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SOUSA BASTOS Bee cm cea Coheed BIOGRAFIAS DO TEATRO PORTUGUES © ANTONIO MARIA. TWEATRO DO gta chad “Wort Cabra mom ic Piha ‘roreoraey Mr Gana yan Fe gmt Mere or eapado dma earn a Keanu sah se Sida aracom pan, gue ve deo a her rst eae se ae © Fotharereta vor um carcitorisn earcntarau pelo illo, vo ao «Priteh 4 ano de 1879, PRINCIPE REAL — Revista do anuo de 1874 dos spectadores que o applaidem. O car contecimentos O ESCRITOR E O FAZEDOR (OU COMO O DRAMATURGO E O EMPRESARIO SE UNIRAM NUMA FORMULA DE SUCESSO) Revista —E a classificagao que se dé a certo género de pegas, em que o autor critica os costumes de um pais ou de uma localidade, ow entao faz passar a vista do espectador todos 0s principais acontecimentos do ano findo: revoluges, grandes inventos, modas, aconte- cimentos artisticos ou literarios, espetéculos, crimes, desgragas, divertimentos, ete. Nas pecas deste género todas as coisas, ainda as mais abstratas, sio personificadas de maneira a facilitar apresenté-las em cena. Diciondrio do Teatro Portugués*® © REFORMADOR DA REVISTA Quando escreveu a sua primeira revista — Coisas ¢ Loisas de 1869 —, Sousa Bastos estaria longe de imaginar que seria (como autor ¢ empresirio) o grande animador do género até ao final do século xtx e que lhe daria, como escreve Luiz Francisco Rebello, «a forma em que por longo tempo ela haveria de fixar-se>4. Foi em 1889, com Tim Tim por Tim Tim, que estabeleceu a formula que movimentaria multiddes € que sofreria poucas alteragées, pelo menos até a data da implantagao da Reptiblica. O género (subsidiario da revue de fin d’année francesa), inaugurado em Portugal com a Revista em 1850, de Francisco Palha e Latino Coelho, estreada a 11 de janeiro de 1851, SOUSA BASTOS no Teatro do Gindsio, depressa caiu nas grasas do publico ¢ dos autores. Mas apés uma primeira década a com exemplos como O Festejo de Um Noivado (1852), de Bras Martins (a segunda revista apresentada em Portugal : a primeira a provocar a agitagao das hostes sovernativas) Fossilismo ¢ Progresso (1856), de Manuel Roussado ae mover influéncias para que a sua apresentacao fosse proibi ) ; Lisboa em 1856 (1857) eA Revista de 1858 (1859), ambas fe Joaquim Augusto de Oliveira, ou Melhoramentos Materials (1859), de José Maria Andrade Ferreira (que chegou mesmo a ser proibida), a década seguinte foi de stelativa esate Segundo Luiz Francisco Rebello, as «revistas-mondlogos, entremeadas de canconetas, de Pedro Alcantara Chaves» ou «as pecas de outros dramaturgos populares como a César de Vasconcelos, Francisco Serra ou Costa aga, pouco ou nada acrescentavam as dos seus antecessores>* - ‘A renovagao comecaria com a estreia, no Teatro das va dades (antigo Teatro do Salitre), da revista Coisas i de 1869, da autoria de Anténio de Sousa Bastos, em 1 a A partir dessa data, 0 ainda jovem dramaturgo vai ensaian , e apurando (praticamente ao ritmo de uma revista Pot ano), modelo que ganharia a formatagio final com Tim Tim por Tim Tim, onde deviam prevalecer, segundo a definig4o que © ptéprio Sousa Bastos fixaré posteriormente, a genera a alegria, o movimento, o espirito, os «couplets engraca os» ea . O puiblico queria Be mas nao admitia nem o disparate, «nem a pornografia» Coisas e Loisas de 1869 apresentava «um ligeiro quadeo dos principais acontecimentos do ano, bem entretec lo com alguns ditos chistosos, critica benévola ¢ m sica agradavel»*, Entre outros assuntos, aludia ao moviment iO republicano, ao jé referido caso Troppmann, a um desastre 40 © ESCRITOR E O FAZEDOR... ocorrido na zona da Estefania, ao segundo casamento do rei D. Fernando, e ao sempre proficuo ano teatral enquanto mote dos apreciados ditos satiricos. Apesar de bem acolhida pelo ptiblico, 0 sucesso nao foi compardvel a rececéo da segunda experitncia do género, Coisas ¢ Loisas de 1873, escrita em parceria com Baptista Machado (sob o pseudé- nimo Castro & Filho), e estreada a 4 de janeiro de 1874, no Teatro da Rua dos Condes. Esta nova criagio agradava devido as suas «apoteoses alusivas ao incéndio da rua de Sao Lazaro (‘trabalho soberbo de fidelidade e efeito de perspetiva, que muito honra o cendégrafo Luciano’, como a critica sublinhou)», aos festejos do 1.° de dezembro, e a «um quadro inteiro dedicado a greve de 1872, que ficou conhecida pela ‘Pavorosa’»*, A adesio do publico incenti- vou 0 autor a introduzir, poucos dias apés a estreia, novos quadros, a aludirem ao carro americano (a novidade de finais de 1873) e ao caminho de ferro Larmanjat (outra das novidades do progresso), para manter aceso o interesse. A entusidstica recegdo a revista era relatada com especial insisténcia por parte dos periédicos, que destacavam as enchentes, os novos quadros mas sobretudo a Pprestagao de Luisa Candida, com a interpretagao de um fado em «modo arrebatador>* O fado comegava a dar os primeiros passos como género de eleicdo nos mimeros musicais especialmente compostos para os espetaculos de revista, ora como cangio isolada ora «*. Inspirado nas revistas de Sousa Bastos e de José Augusto de Oliveira (O Diabo 4 Quatro), esta ultima representada no Teatro do Principe Real, Calixto José de Aratijo escreve a cena cémica Fui Ver as Revistas, em que «um saloio de Benfica descreve humoristicamente» as duas pegas**, comprovando o triunfo que tinham granjeado no inicio do ano, Impulsionados pelo sucesso da Revista do Ano de 1873 (designagao pela qual os periédicos apresentavam as revistas de entao), e numa tentativa de continuar a explorar a mina em que o género se tinha convertido para o Teatro da Rua dos Condes, nao podendo o espetéculo manter-se em cena durante toda a temporada, o empresério José Torres e 41 SOUSA BASTOS os dramaturgos Sousa Bastos e Baptista Machado resolver contornar 0 problema com a encomenda de uma aati revista para o ano em curso. Assim, em abril de 1874 estreia Entre as Broas ¢ as Améndoas, sobre os principais acontecimentos do primeiro trimestre desse ano, numa resenha «de ae os factos notaveis, sucedidos desde o Natal até 4 Pascoa»*”. A pratica, que se tornaria usual anos mais tarde, com as revistas a sucederem-se no final do semestre, do trimestre, do més ¢ finalmente da semana, e as estreias a sobreporem- -se, nao foi particularmente bem acolhida. No inicio do ano seguinte (1875), Sousa Bastos e 0 ‘Teatro da Rua dos Condes (ainda com 0 empresario José Torres a comandar os destinos do repertério) regressam 4 formula de sucesso (a revista do ano) com Lisboa no Palco, a revista de 1874%* que, segundo o préprio Sousa Bastos, apresentava um quadro «passado no interior do Inferno, onde iam desfilando as almas dos que na teria prevaricavam>» — politicos, agiotas, ministros, senhorios e a propria policia —terminando com um «cancan desen- freado», e um outro, alusivo a um baile no Pago, de aue resultara um roubo que fez correr muita tinta na altura’ i A imprensa voltou a aplaudir sem restrigoes a revista, destacando o fado cantado por Luisa Candida e a cangao espanhola «cantada com toda a graga andaluza pelasra tae que dava os primeiros passos nas lides teatrais. No perio: pa O Contemporaneo, Pedro Vidoeira tecia rasgados elogios ao autor, por nela abundarem as qualidades que, no seu entender, deviam ser proprias do género — critério, graca, «muita justeza na apreciagao dos factos e felizes combi- nagoes de interesse>*' —, destacando a necessidade de os autores serem, simultaneamente, criticos sociais: & facil imaginar uma revista; é dificil, porém, escrevé-la, De todos os géneros que o teatro cultiva, nenhum exige mais firmeza, penetragio e movimento. Uma revista no pode viver da intriga amena da comédia nem dos efeitos complicados do drama. Criada, como 0 seu nome indica, para desenrolar numa tela resumida os acontecimentos dos doze meses, a sua aco precisa ser répida, e 0 seu didlogo 42 ~— | © ESCRITOR E O FAZEDOR.. incisivo. O autor de uma revista é dramaturgo e critico ao mesmo tempo: critico sobretudo, uma vez que o seu fim é, debaixo de um férmula ligeira e despretensiosa, castigar os vicios ¢ ridfculos que se deram num certo perfodo. Frente a frente com os despeitados, em luta com 0s vaidosos, 0 autor da revista precisa ter, nao para periclitar, a coragem dos grandes lances. Ninguém pretenda arrancar a mascara aos que representam a comédia humana sem incorrer profundamente no seu eterno desagrado.®? Sousa Bastos acertara na formula e, involuntariamente, definia-lhe (produgao apés produgao) os contornos que lhe garantiam o sucesso, doseando a politica e a fantasia (ainda antes da censura entrar em cena), de forma equilibrada, de modo a nio ferir suscetibilidades. E quando os ingredientes resultavam, eram repetidos, com as necessdrias atualizacées, mantendo-se inalteraveis enquanto o publico desse mostras de ser do seu agrado. Se uma cena alusiva a um incéndio fazia sucesso, como foi o caso da revista Coisas e Loisas de 1873, com 0 quadro do incéndio da Rua de Sio Lazaro, as tevistas seguintes nao podiam deixar de integrar quadros semelhantes: alusivos ao incéndio da Rua de Sao Vicente, na revista Lisboa no Palco (1875), e ao incéndio da Rua do Outeiro, na revista Cenas de Lisboa (1876)*, estreada no ‘Teatro da Rua dos Condes, no tiltimo dia do ano que passava em revista (31 de dezembro de 1875). Se a inclusio de um fado agitava favoravelmente a audiéncia, voltar-se-iam a ouvir semelhantes acordes, muito provavelmente cantados pela mesma artista, na revista subsequente. Gervasio Lobato nao hesita em considerar a revista 0 género de elei¢ao de Sousa Bastos (numa altura em que tem escritos apenas cinco exemplares), pela forma como desenvolvia «a sdtira a Arist- fanes, pungente, destemida, sangrenta as vezes, bem vibrada sempre», com um espirito que levava de vencidas «muitas das revistas de Clarville»®, 0 homem que em Franga tinha escrito mais pegas do género*, A partir de outubro de 1876, Sousa Bastos passa a aliar 4 escrita a encenagao e a gestio de empresas teatrais, a comegar pelo Teatro da Rua dos Condes, seguindo-se 0 43 SOUSA BASTOS Principe Real, o Trindade e 0 Avenida (embora nem sem- pre acumulasse as trés fungdes), aplicando ¢ ampliando a formula que garantira o sucesso das revistas passadas nas que apresenta a partir de entéo: Cosmorama de 1876%, que 6 proprio Sousa Bastos considera uma das suas mais audazes criagdes; O Nosso Espelho (1878); Trés Horas de Chalaga (1879)*, que esteve para ser proibida, devido a uma alusao, considerada desrespeitosa, 4 atriz Emilia das Neves; O Vale em Lisboa (1880)®, que tinha 0 ator José Antonio do Vale como compére e contava com a preciosa colaboragao de Rafael Bordalo Pinheiro; Do Céu a Terra (1881)”, onde se destacavam as vistas da Rua do Ouro, iluminadas por oca- sido dos festejos de Camées, ¢ 0 cortejo civico; Do Inferno a Paris (1884), a primeira revista portuguesa apresentada do outro lado do Atlantico; O Juizo do Ano (1885), levada & cena sob 0 pseudénimo Ignotus, e O Casamento do Bilontra com a Mulher-Homem (1886), representada apenas nos teatros do Brasil. ‘Arevista entra em definitivo, como dir4 anos mais tar- de Gustavo de Matos Sequeira, «no capitulo das necessidades da vida alfacinha»”, Comega a ser espetaculo obrigatério para as gentes da capital e também para os dramaturgos que bebiam dos acontecimentos do ano a inspiragao para os passar em revista em tom satirico e chistoso. No inicio de cada ano, «entrava-se a esperar o ridente comentario aos acontecimentos do ano anterior. E ninguém lhe pedia imaginagao construtiva. O que se Ihe exigia era sal cdustico que polvilhasse os erros, os defeitos, as injusticas das coisas ¢ dos homens. A inventiva havia de vir depois para socorrer 08 revisteiros de todos os meses.>7# A revista Entre as Broas eas Améndoas (a primeira que nao foi do ano) faltavam, de acordo com Gustavo de Matos Sequeira, «os aconteci- mentos». A imaginagao dos autores — condigao obrigatéria quando as revistas passam a suceder-se mensalmente nos teatros da capital — nao foi suficiente para conseguir «inte- ressar a plateia». Anos mais tarde aconteceria precisamente © oposto, o espeticulo passa a viver da imaginagao dos autores e dispensa «”® ¢ entoavam-se coplas a pro- pésito da divida publica: Eu sou a Divida Publica Que toda a gente condena! JA cresci por esta forma... Sendo hé pouco to pequena! Quase sempre eu dou pretexto P'r6s clamor’s da oposigao... Mas se ela trepa ao poleiro, Logo de mim langa mao! Sou esbelta, sou catita, ~ Tenho atrativos aos centos; Como arranjo bom dinheiro, Tenho fortes argumentos! Corram as libras a rodo, Em ruins, feios contratos! Que importa que eu v4 crescendo, Se nao faltam sindicatos?! © ESCRITOR E O FAZEDOR.., Viva pois o meu poder! Ande tudo num banzé! P’rds graitdos haja géudio... Pois quem paga... Zés: Bcd 0 Zé! Divida: P’rés papées bons sindicatos! P’rés espertos um chalet! Boas luvas nos empréstimos! Zés: E ca vai pagando o Zé.” Ao escrever Tim Tim por Tim Tim, segundo Luiz Fran- cisco Rebello, «Sousa Bastos tinha a exata consciéncia de que a férmula por ele encontrada era a que melhor correspondia aos gostos e preferéncias do piblico lisboeta>®® e nem a designada «lei da rolha», imposta pelas autoridades no ano seguinte, alteraria o rumo entretanto tragado pelo empresério e dramaturgo, que ja se habituara (nas suas produgées) a langar farpas, sem provocar ferimentos de monta. Em abril de 1890, as autoridades estabelecem, por decreto, a proibicao dos ". Na revista Tim Tim por 47 SOUSA BASTOS Tim Tim, Sousa Bastos introduz de imediato novas coplas, cantadas pelas atrizes Pepa e Rosa, onde se ouvia: A lei das rolhas voltou Desta ver desaforada! Jé nao posso dizer nada Que a policia me intimou! De tudo o que se passou, Se eu quiser dizer-lhes mal, Em coplas que tenham sal, A policia é j4 preciso Com trés dias dar aviso E ter ensaio geral!® A lei da rolha teve necessariamente consequéncias nesta revista na altura em cena no Teatro Avenida, devido 4 alteragio dos limites do que era admissivel, mas Sousa Bastos — com a aptiddo que lhe era caracteristica — nao deixou de cumprir com um dos principais objetivos do género: criticar os costumes de um pais ou de uma localidade. Porque as conveniéncias politicas tinham transformado «no maior escandalo que se tem representado em Portugal as antigas alusdes impessoais fin{ssimas, os ditos espirituosissimos sem maldade e até as cenas mudas de malicia penetrante sem o menor indicio de veneno»*, Sousa Bastos, ainda que contrariado, vé-se obrigado a alterar o terceiro ato, «para nao criar conflitos com as autoridades»**, de modo a obter 0 aval da censura para poder prosseguir com a revista em cena. Continuava a existir nela «critica a valer, ao proce imento da policia e seus manddes», segundo avancava 0 periddico Tim Tim por Tim Tim, mas com a habilidade de Sousa Bastos a impedir qualquer hipétese de censura®*. As insubordinagées (de maior ou menor escala), apés a imposigao da «lei da rolha», atenuar-se-iam com 0 tempo, orientando, em definitivo, a revista portuguesa no sentido que hé muito se desenhava, com o espetaculo visual a sobrepor-se ao teor critico e satirico. A partir de entio, segundo Luiz Francisco Rebello, «a fantasia substitui-se ao comentirio social e politico, a insinuag’o pornografica 48 © ESCRITOR E 0 FAZEDOR.. toma o lugar da intervengao critica, os valores decorativos sobrepdem-se aos valores textuais, o fio condutor de uma intriga possivel dilui-se numa série de quadros desligados entre si»®. Sousa Bastos, que sempre tivera a capacidade de discernir entre 0 comentirio admissivel e 0 inoportuno e desaconselhavel, mesmo antes da censura prévia, criticando inclusivamente as revistas que recorriam & pornografia para se imporem perante 0 piiblico, apesar de se afirmar contra as restrigdes impostas, adapta-se sem problemas de maior as novas exigéncias, aprendendo mesmo a tirar partido das suas condicionantes. Nas revistas seguintes, sem alterar a formula que garantira o sucesso de Tim Tim por Tim Tim, trata apenas de aligeirar a critica (sem a eliminar por completo), orientando os quadros para assuntos de ordem literdria e teatral, em que a realidade de atores, empresdrios e autores dramaticos (a sua propria realidade) passa a ser matéria substancial de satira, como acontecia na revista Tam Tam, estreada no Teatro da Rua dos Condes, em 1890°, A nova revista, que procurava assumidamente perpetuar o triunfo da anterior, aludia as revistas do ano, apresentava a receita para cozinhar o género «com todos os temperos», trogando dos dramaturgos improvisados, e evocava «os éxitos teatrais de 1890: D. Afonso VI de D. Joo da Camara, 0 Comissdrio de Policia de Gervsio Lobato, a magica O Reino das Mulheres de Ernest Blum, adaptada pelo proprio Sousa Bastos, a inauguragio do Coliseu dos Recreios, as rivalidades entre a Opera, a opereta e a zarzuela»® Sao as revistas um género dificilimo, escrevia Sousa Bastos, em 1891, nas pginas do periédico Tim Tim por Tim Tim, contestando os criticos que desmereciam o género: Precisam preencher uma noite, alegrando 0 piblico entusiasmando-o, divertindo-o. E tudo isto se hé de conseguir por uma série de situagdes cémicas e imprevistas, pelo fuzilar de ditos de espirito, pelo chiste das coplas, pela trowvaille da nota cémica dos acontecimentos do ano. E nelas nao hd ago a desenvolver, nao hd entrecho a seguir, nao se pode recorrer a retérica, nao se pode estender o didlogo, e tudo se hé de 49 SOUSA BASTOS idades, sem melindrar os partidos! fazer sem ofender suscet Querem-nas mais dificeis? Ja viram arte mais escabrosa do que a arte de fazer revistas? ‘A par da forma como procedia ao urdimento do género, 0 segredo do sucesso das revistas de Sousa Bastos nao pode igualmente ser dissociado dos atores (intuindo talentos desconhecidos ou aproveitando os que reconhecia) e restantes colaboradores, nomeadamente cendgrafos e figurinistas, com destaque para os preciosos contributos de Rafael Bordalo Pinheiro, que inicia com Sousa Bastos um conjunto de importantes colaboragdes em espetdculos de revista, Eduardo Machado e Eduardo Reis, os cendgrafos que assinaram os quadros de algumas das revistas de maior sucesso de Sousa Bastos, ou Carlos Cohen, 0 costumier que introduziu significativas alteragdes ao nivel do guarda- -roupa. A espanhola Pepa Ruiz, que nascera e crescera pata © teatro nas pegas de Sousa Bastos, tinha contribuigao de monta no triunfo das revistas Tim Tim por Tim Tim (onde desempenhava dezenas de papéis), Tam Tam e Fim de Século, 0 mesmo acontecendo com Alfredo de Carvalho, talento repescado por Sousa Bastos nas barracas de feira, a quem 0 dramaturgo atribuia os papéis de compére, ou com a Bastos (outra «criacao» de Sousa Bastos), a estrela das ultimas revistas do dramaturgo. ; Apés 0 Tam Tam (1891), Sousa Bastos escreveu ainda as revistas Fim de Século (1892), Sal e Pimenta (1894)*, Em Pratos Limpos (1897) e Talvez te Escreva (1901)*. Asua tltima revista A Nove (1909)*5, representada no Teatro Avenida, j4 nao acolheu (como as restantes) os aplausos da critica e do publico. Os tempos eram de mudanga — que se tornaria efetiva no ano seguinte, com a implantagao da Reptiblica —, o mesmo acontecendo com os gostos, que ja nao se reviam na férmula, outrora apelativa mas entretanto gasta, das revistas de Sousa Bastos, aproximando-se de re tos agora em ascensio, como Eduardo Schwalbach, André Brun, Penha Coutinho ou 0 trio Ernesto Rodrigues, Félix Bermudes e Jodo Bastos (que pouco depois se constituiria como Parceria Teatral). 50 © ESCRITOR E 0 FAZEDOR.. Sousa Bastos ja tinha, no entanto, deixado bem patente a sua marca, elevando 0 género a um patamar que lhe permitiria iniciar um duradouro reinado nos anos seguintes. Enquanto dramaturgo, definiu-the contornos bem vincados que perdu- rariam durante muitos anos, tendo igualmente contribuido para a imposicao do género no meio teatral portugués, ao aliar a escrita as qualidades de empresatio. Nas primeiras décadas do século xx, a revista foi o género que « nos palcos nacio- nais, como referem Gléria Bastos ¢ Ana Isabel Vasconcelos, constituindo-se como «elemento permanente e mesmo essen- cial» na vida teatral de entao e como «fenémeno social de particular relevo»%*. O novo contexto Politico que o pais vive apés outubro de 1910 vai introduzir alteragées significativas, quer a nivel da tematica quer a nivel da estrutura, A figura que chegava para visitar e passar em revista acontecimentos ¢ personalidades do pais (tao particular em Sousa Bastos) cai Por terra mas mantém-se muitos dos ingredientes com que o dramaturgo e empresario tio bem soubera, no seu tempo, condimentar: a atualidade dos temas, os ditos cémicos e satiricos e a dimensao espetacular, onde sobressafam os luxuosos guarda-roupas, os cendrios elaborados a preceito, as movimentag6es de coristas, bailarinas ¢ figurantes, as grandes apoteoses e os importantissimos nimeros musicais, em que o fado se destacava cada vez mais. As particularidades do labor de dramaturgo (definidas também pelo que sabia que o publico queria ver), Sousa Bastos juntava uma inigualével capacidade de aproveitar as caracteristicas de atores em ascensao e de promover os espeticulos, recorrendo a formas inovadotas de publicidade e divulgacao, que garantiam casas cheias, pelo menos, nas primeiras récitas. Em pouco tempo, transformou-se numa espécie de «senhor revista», dominando o género tanto ao nivel da concegao, como da apresentacao, chegando a ser acusado de promover pateadas sempre que se representava uma revista do ano que nao era da sua autoria. A acusagao, segundo Luiz Francisco Rebello, ™°, Tais «amtincios» nao eram caso tinico, como se percebe pelos posteriores relatos da imprensa"', e tendiam a provocar verdadeiras enchentes & porta dos teatros em causa, depreendendo-se que 0 mais provavel era circularem por ordem dos responsaveis da empresa. Na maior parte dos casos, serviam apenas para atrair ptiblico as estreias, nao se comprovando os escandalos vaticinados, embora os espeta- culos pudessem — come aconteceu com 0 novo trabalho de Sousa Bastos —ferir algumas suscetibilidades, pela forma como abordavam, sem rodeios, assuntos prementes da atua- lidade, A imprensa considerava-a, no geral, uma peca bem urdida e de , como também 53

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