Você está na página 1de 156

Melhor que o caminho é o caminhar

Ou como um sedentário, fumante, obeso e hipertenso se transformou em corredor de


longas distâncias.

por Fábio Namiuti


Prefácio – “Ter bondade é ter coragem” por Guilherme Maio

Capítulo 1 – O saco de batatas


O susto com a descoberta da pressão alta.

Capítulo 2 – Um jovem desportista


Meu passado de esportista, o futebol de rua, a primeira medalha e o atletismo.

Capítulo 3 – Uma brasinha numa ponta, um tonto na outra


O vício do cigarro.

Capítulo 4 – Certa área verde


As primeiras caminhadas, a tentativa de correr uma reta.

Capítulo 5 – Vai rolando que chega mais rápido!


A tentativa de correr na rua e as inevitáveis gozações.

Capítulo 6 – Alvorecer na serra


A primeira corrida.

Capítulo 7 – Festa que se preze tem de ter brigadeiro


A realização do sonho da São Silvestre.

Capítulo 8 – Pé na estrada
A redescoberta do prazer de viajar.

Capítulo 9 – Dividir com o mundo inteiro


A criação do Arquivo de Corridas e a adesão à equipe 100 Juízo.

Capítulo 10 – O quintal de casa


A popularização das corridas na cidade e região.

Capítulo 11 – Nem tudo foram flores


Alguns “fracassos” em corridas.

Capítulo 12 – As voltas por cima


Alguns “sucessos” em corridas.

Capítulo 13 – Metade do tamanho, prazer por inteiro


As meias maratonas, minha distância favorita.

Capítulo 14 – Batendo na trave


O caminho (acidentado) para a primeira maratona.

Capítulo 15 – Só se aprende fazendo


O aprendizado que as outras maratonas (e a preparação para elas) me trouxeram.

Capítulo 16 – “Cassetadas” e cacetadas


Fatos engraçados de corridas inusitadas.

Capítulo 17 – Companheiros de batalhas


Algumas das grandes amizades que a corrida me trouxe.

Capítulo 18 – Semeando o futuro


A preparação de um futuro corredor.
Prefácio: “Ter bondade é ter coragem”.

Só superei o meu arraigado sedentarismo após uma crise depressiva que acabou
com uma promessa íntima de nunca mais voltar a um hospital, tal o horror que aquela
ida a um pronto socorro me causara.

Sempre tinha desdenhado por toda uma vida das pessoas que praticavam
exercícios aeróbicos, afinal, apenas depois de muito custo tornei-me um praticante de
musculação e achava que correr “prejudicava” as atividades de força.

Em uma grande ironia do destino, fui inscrito na marra para uma prova de
corrida em revezamento - pelo professor da academia que frequento - e fiquei dividido
entre sentimentos de desalento, perplexidade e inexplicável paixão por aquela atividade
física que me remeteu a uma experiência de renascimento, já que as dores desse novo
parto foram reais, mas deixaram um desejo paradoxal de sair da zona de conforto e
arriscar-me em um novo mundo.

Mesmo com a minha enorme ignorância no assunto, eu queria vivenciar mais


daquilo tudo que aquela primeira prova tinha me proporcionado.

Li sobre corridas tudo o que pude em sites, mas me pareciam escritos por seres
de outra galáxia, tal a complexidade dos “ensinamentos” e o ego nas alturas dos autores.

Eis que visito um sítio, o Arquivo de Corridas de Fábio Namiuti e fico fascinado
com as conquistas daquele cara que era gente de carne e osso e que tinha a grandeza de
eternizar suas agruras, medos, dificuldades e percalços por meio de relatos que me
fizeram perceber que quem “acredita sempre alcança”.

Contraditoriamente ao senso comum a fortaleza daqueles escritos estava na


constatação de que as vitórias são construídas não de saltos sem escalas rumo à glória,
mas sim que são os atos de “perseverar de desacerto em desacerto sem nunca perder a fé
no sucesso”.

Sou um admirador confesso do Fábio deste então, pois ele me demonstrou – na


prática - que o músico Renato Russo estava iluminado ao poetizar que “ter bondade é
ter coragem”, frase esta que sintetiza muito bem alguém que tanto ensina a todos nós ao
escrever com o coração coisas que só os puros de espírito tem coragem de compartilhar.

As páginas seguintes mostrarão a magnífica transformação que um ser humano


pode empreender em sua própria existência e que me serviram de inspiração para tentar
ser uma pessoa com menos defeitos e também disposto a dividir alegrias e tristezas por
intermédio da internet.

Uma boa leitura a todos!

Guilherme Maio

corredor amador, blogueiro e privilegiado por ser amigo do Fábio.


Agradecimentos

A Janete, esposa, amiga, confidente, companheira de todos os momentos, namorada


eterna, mãe, staff pessoal, fotógrafa, psicóloga, treinadora, nutricionista, carrasca, meu esteio,
meu amor.

A Eduardo, meu filho, meu amigão, a melhor e mais bela coisa que já fiz na vida, a
minha missão (que sinto estar sendo cumprida, a cada vez que o vejo cantando ou rindo tão
fácil).

A Fátima, mãe afetuosa, dedicada, lutadora, presença marcante na minha infância e em


tudo o que veio depois, que me mimou tanto que eu não sirvo para lavar um prato, mas me
ensinou muita coisa, inclusive a ser tão parecido com ela, por fora e por dentro.

A Tadeo, assim mesmo, com “o” no fim, pai caladão, de poucas palavras, mas de
coração generoso como nenhum outro. Que me ensinou, muito mais com ações do que com
discurso, a ser honesto, íntegro e trabalhador.

A Tereza e Tetuo, meus tios e padrinhos, companheiros queridos e assíduos das


expedições esportivas, tanto que muita gente pensa que são meus pais. No que não estão de todo
errados.

A Claudio e Priscila, irmãos mais novos e amigos, nos quais vejo as mesmas qualidades
que tão bem caracterizam nossos pais. Cada qual com o seu talento marcante que os diferencia:
um responsável pela ilustração deste livro, a outra pela música que adotei como sendo um tema
próprio.

A Matsue, a Batian, avó, torcedora, esportista, a quem tenho tanto orgulho de exibir
cada nova medalha que conquisto (e com quem aprendi a gostar delas!).

A Guilherme, amigo leal e generoso, companheiro de esporte, pessoa de semblante às


vezes fechado, mas mãos sempre estendidas e coração sempre aberto. Que foi o principal
responsável por transformar em realidade o sonho distante que era escrever esse livro.

Ao Dr. Fábio Baptista, médico, amigo e conselheiro, criador autoproclamado desse


“monstro”, maior incentivador da transformação que me salvou a vida.

Aos companheiros de Equipe “100 Juízo”, impagáveis “malucos do asfalto”, minha


segunda família, aquela que eu escolhi e que me recebeu de braços abertos. E da qual nada, nem
a mais sedutora e vantajosa das propostas do mundo poderá me separar.

A todos os amigos e amigas que a corrida, afortunadamente, me trouxe. Aos que estão
sempre ao meu lado, fisicamente falando, ou só mesmo do lado esquerdo do peito. Que fazem
as experiências que conto aqui e no ciberespaço serem ainda mais especiais e marcantes. E que
vão estar comigo, certamente, em muitas das que ainda virão. Que me incentivam, alegram,
ensinam tanto e dão verdadeiro sentido à missão que assumi, a de compartilhar as minhas
histórias.

À força maior do universo, à qual cada um dá o nome que bem entender. Eu costumo
chamar de DEUS.
Capítulo 1
O saco de batatas

As lembranças daquela tarde não são muito nítidas. Tudo ressurge meio
embaçado, enevoado, como se fosse uma cena de um daqueles seriados médicos
maçantes (eu acho) da TV, em que a personagem volta do coma ou de uma daquelas
experiências extracorpóreas. Tudo foi muito rápido, mas o filme parece passar em
slowmotion sempre que tento me recordar da sequência dele.

18 x 12. Placar de jogo de futebol de salão ou handebol? Não. O médico tinha


um tom sério, falava rapidamente e as palavras dele não pareciam fazer muito sentido
para mim. Pressão alta não era doença de gente velha? Não era só minha avó que tinha
que se preocupar com isso? Eu era, ora essa, um garoto mal saído da puberdade. Bem,
nem tanto assim. Mas era ainda novato no clube dos balzaqueanos, tinha somente trinta
e uma primaveras, completadas alguns meses antes.

“É a obesidade!”. Já tinha ouvido falar isso de outras pessoas, inclusive dentro


do próprio círculo familiar. Mas vindo de alguém de jaleco branco, embora tão
antipático e ofensivo quanto, costuma ser levado um pouco mais em conta. Eu não
estava ali para receber aquele tipo de diagnóstico, tinha ido ao hospital por causa de
uma singela e banal inflamação na gengiva. Daí o susto ao ouvi-lo: hipertensão arterial.
Doença tão silenciosa quanto traiçoeira. Praticamente assintomática. Mas que é gatilho
para coisas bastante graves, como insuficiências renais e cardíacas ou acidentes
vasculares cerebrais. E para mortes também. Inclusive de pessoas jovens, como eu.

Sem sentir absolutamente nada e nem saber direito o que estava acontecendo, fui
colocado numa maca e transportado de um lado para outro pelos corredores, como se
fosse um saco de batatas. Um enfermeiro colocou um daqueles comprimidinhos com
gosto esquisito, meio metálico, debaixo da minha língua. Felizmente derreteu bem
rápido. Outro veio falar comigo num tom que a gente costuma ouvir na teledramaturgia,
dedicado exclusivamente aos moribundos. Pausado e piedoso. Se não estivesse
acontecendo justamente comigo, seria até engraçado. A desculpa que eu dei talvez entre
para o compêndio das mais esfarrapadas da história da humanidade: como é que pode?
Eu me cuido, uso até azeite de oliva na alimentação! Sim, na fatia de pizza quatro
queijos. Nas fatias. Na pizza inteira, se deixassem.

Apesar dessa comilança desmesurada, até que eu não estava tão gordo assim.
Não seria favorito, por exemplo, em um concurso para rei momo e nem matéria bizarra
de um dos canais de documentários da TV a cabo. 110 kg (que eu estimava, porque na
verdade já não tinha mais coragem de pisar em balança nenhuma fazia tempo) para
1,72m de altura também não era isso tudo... Não? Então por que eu andava me
escondendo ao cruzar na rua, nos shoppings, em lugares em geral, com gente que havia
me conhecido mais magro? A ponto de mudar de calçada ou passar de cabeça baixa,
tentando de todo modo evitar o encontro e os inevitáveis comentários “nossa, como
você engordou!” Só de raiva, depois do jantar, comia um sanduíche no capricho, ou um
macarrão instantâneo plus (com algum tipo de “cobertura”, como frango, queijo, bacon
e presunto). Ou esvaziava uma lata de batata frita industrializada. Ou devorava uma
barra de chocolate inteira. Ou um pacote de bolachas recheadas. Ou tudo isso junto.
Eu não era mais aquele bebê robusto e bonito, que nascera com quase 5 kg e cuja
mãe ganhara quase 40 kg durante a gravidez. Que, esfomeado aos seis meses, já pesava
12 kg. Que pesadão e de “pés de pão” (aqueles meio arredondados, de dorso alto), o
pediatra vaticinara ao ver: esse só vai andar com dois anos de idade. Fechando desde
cedo a boca de muita gente, aos dez meses já dava meus passeios autônomos por aí. Não
era mais a criança meio gordinha, que ganhava inevitáveis apelidos maldosos na escola
e que teve de aprender muito jovem a se impor, para não deixar isso virar situação
insustentável, sofrer bullying antes mesmo da invenção do termo. Agora eu era um
adulto com apetite voraz e comportamento compulsivo, à mesa e no supermercado. E
pagava o preço por isso. Mais alto que o da fatura do cartão de crédito.

O bebezão

Nos consultórios, ambulatórios e outros locais com o mesmo sufixo, até parece
que o tempo é medido em outra escala. Lá o tempo não passa! Você olha dez vezes para
o relógio e o ponteiro simplesmente não se mexe. Meia hora parecem duas. Duas,
parecem um dia inteiro. O sujeito de branco da voz de extrema-unção voltou, sabe-se lá
quantos “séculos” depois e de novo inflou a bombinha. 16 x 11. Ué, o placar da partida
tinha diminuído? Tome mais espera. Dizer que eu já estava me sentindo bem melhor de
nada adiantou. Foi batendo desespero. Tempo era dinheiro. Eu não tinha patrão já havia
alguns anos. Trabalhava por conta própria havia quase dez, orgulhoso de não ter tirado
férias durante todo esse período. Tinha sob minha responsabilidade o controle
administrativo de algumas centenas de empresas, desenvolvendo os sistemas de
informática e dando suporte aos diversos usuários dos mesmos. De forma local, por
telefone ou por correio eletrônico. Começando lá pelas sete da manhã, quando abriam as
primeiras lojas de materiais para construção. E só terminando depois da uma da
madrugada, quando fechavam as últimas pizzarias e restaurantes. Sendo chamado para
instalar novos programas em clientes aos finais de semana, quando havia menos
movimento. Varando madrugadas à base de café e cigarro, para cumprir os prazos da
contabilidade, da folha de pagamento ou da secretaria da fazenda estadual. O telefone
celular tocava sem parar, mas estava na bolsa da esposa e eu não podia atender naquele
momento. Remédio sublingual nenhum no mundo seria capaz de baixar a pressão
naquelas condições.

Desisti de marcar o tempo e tentei relaxar. Procurei instintivamente o maço de


cigarros no bolso, já que ele era o meu ansiolítico, mas havia ficado no carro. Quando
finalmente voltei a entrar no automóvel, depois de finalmente os números mostrados
pelo esfigmomanômetro me liberarem (com ressalvas, já que ainda eram de 15 x 10), já
não tinha mais vontade de acender nada. A minha história como fumante tinha se
encerrado ali, quinze anos depois de iniciada. Tinha nas mãos uma receita de
medicamentos e o encaminhamento para o cardiologista, que pareciam pesar tanto
quanto uma sentença de morte (embora acabasse sendo a de liberdade). A cabeça girava
com tanta informação nova. Todas as placas imaginárias diziam “emagreça!”, “não
fume!”, “no stress”, “mexa-se!” Mas elas passavam tão rápido à minha frente que eu
mal podia ler.

O primeiro médico especialista que me atendeu foi extremamente gentil e cortês.


Assim como a pessoa que me recebeu antes dele, enchendo o meu peito de estranhos
eletrodos e prendendo meus tornozelos e pulsos com uma espécie de garra. “Consulta de
rotina, não é?”, perguntou o ajudante ao limpar o gel ou algo parecido que tinha
espalhado onde grudara as ventosas do eletrocardiógrafo. Concordei. O que iria dizer?
O doutor me chamou em seguida e, para minha surpresa, era quase do meu tamanho, em
termos de largura. Talvez um pouco mais volumoso no total. Receitou um medicamento
francês (u-la-lá!), de última geração e com preço condizente com a tecnologia
embutida. Falou em dieta, o que me deu vontade de rir e perguntar se era testada e
aprovada por ele mesmo. E salientou a importância de ter uma atividade física, coisa
que também parecia claramente só “faça o que eu digo e não o que eu faço”. Não senti
nenhuma firmeza, mas saí dali disposto a tentar tomar providências. Nosso
relacionamento duraria apenas duas ou três consultas. Por algum motivo particular, não
lembro bem qual, a recepcionista disse por telefone que ele não poderia mais me
atender. E sugeriu um colega de clínica. Conservador que sou, relutei um pouco, mas
não me restava alternativa. Mal sabia eu que estava prestes a conhecer alguém que
mudaria a minha vida.

O tal sujeito com o mesmo nome que eu parecia mais jovem, era bem mais
esbelto e, embora tão cordial no trato quanto o seu antecessor, tinha um tom de voz
mais firme, daquele que a gente reconhece nos amigos que sabem dar bons conselhos.
Como o remédio que o primeiro me passara parecia estar provocando algum tipo de
reação alérgica, com sintomas de gripe: coriza, espirros, tosse, ardência nos olhos,
trocou por outro, que tinha uma espécie de “programa de fidelidade”, com descontos
progressivos de acordo com o tempo de uso (mal imaginava que seria uma relação
perene). Foi ainda mais enfático e taxativo ao falar da importância de perder peso,
usando palavras claras e desmistificando o processo para isso. Não existia milagre, mas
matemática pura. Emagrecer era simples questão de gastar mais calorias do que se
consome. Para consumir menos, boca fechada. Para gastar mais, movimento. Mas que
atividade prescrever para alguém que estava totalmente parado havia anos, mais de uma
década, para ser preciso? A mais simples e corriqueira de todas: andar. Uma caminhada
diária ou mesmo inserir pequenos deslocamentos a pé na rotina, deixando o carro mais
longe, subindo escadas em vez de usar elevadores, indo até o banco ou o correio com as
próprias pernas. Qualquer coisa que fizesse aquela massa disforme e preguiçosa se
mexer um pouco, depois de longos anos de inércia. Parecia a mais impossível das
missões. Mas eu me dispus a cumpri-la. No dia seguinte, já estava procurando lugares
seguros e próximos de casa para dar uns passeios.

Mais que um médico, um amigo e um incentivador


Capítulo 2
Um jovem desportista

Ter uma atividade física podia até ser novidade naquele novo milênio, mas não
era coisa totalmente nova para mim. Muito pelo contrário. Eu ainda tinha na cabeça (e
nas gavetas) lembranças de um passado remoto onde o esporte, se não foi garantia de
fama, fortuna e glória, trouxera alguns bons momentos. Tudo começou como para
qualquer garoto de bairro ou de interior. Pelada na rua. Não tinha coisa melhor e nem
mais divertida para um moleque daqueles tempos bem mais tranquilos que os atuais.
Mas a gente levava tudo muito a sério. Éramos a única rua de toda a vizinhança que
tinha as suas próprias traves de metal, feitas em serralheria, coisa muito fina. A cada vez
que passava carro, um tinha que sair carregando aquele peso todo para liberar a
passagem. Quanta farra não rolou! Como em toda turma de crianças, depois
adolescentes, só tinha “figuraças”. O metido a galã, o bom de bola, o chorão, o que
fugia no meio do jogo, o artilheiro marrento, o burguesinho dono da bola oficial, o cara
que jogava de calça social para não mostrar as pernas branquelas, o fortinho invocado. E
também o “barraqueiro”, aquele que estava quase sempre impedido (e “racha” lá tem
essa regra?) e que não jogava quase nada, mas botava muita bola pra dentro. Esse
último, no caso, eu mesmo. Só tinha o pé direito (apesar de ser canhoto para escrever,
vai entender!), conhecia no máximo dois tipos de dribles, tinha certo temor de botar a
canela em divididas, mas houve um tempo em que eu não era de jeito nenhum o último
a ser escolhido para o time. Num épico jogo contra o pessoal de um prédio do bairro, fiz
um golaço, matando a bola no peito e chutando de virada no ângulo, que garantiu a
vitória do time e me deu fugaz fama de goleador na vizinhança. Na escola, numa
competição interna entre as classes, arrisquei ir para o gol na quadra de futsal (sorte é
que a molecada não chutava tão forte). E o fechei muito bem, garantindo na decisão por
pênaltis o campeonato e uma medalha única para o time inteiro, doada para a
professora, que nem jogou. Até tentei reproduzir o “sucesso” da rua nos gramados, em
nível sub-varzeano, mas não consegui repeti-lo, no gol ou na linha. Faltou pouca coisa:
só altura, porte físico, impulsão, resistência, fôlego e principalmente, talento. O futebol
perdeu um grande craque. Sorte dele.

O escrete campeão
O gosto pelo esporte não estava só na prática. A criatividade do garoto de
subúrbio o levou a bolar, em meados dos já longínquos anos oitenta, uma competição
multiesportiva entre a petizada das redondezas, com o peculiar nome de “Olimpivetes”.
Engraçadas mesmo eram as modalidades: tinha a corrida de um poste a outro (ou 40
metros), a corrida de rua inteira (de 180 metros), a volta ao quarteirão (uns 500 metros),
o arremesso de dardo (no caso, um cabo de vassoura substituindo o dito cujo), a luta (e
os gordinhos tiravam aí o atraso das provas anteriores), o salto em distância sem caixa
de areia. E outras tantas, igualmente exóticas e divertidíssimas. Havia até medalha,
comprada do próprio bolso e cobiçadíssima entre os participantes, para o campeão geral
na soma de pontos de todas as competições. Qualquer um dos guris menores, hoje quase
todos respeitáveis pais de família, que morou na mesma rua que eu, certamente também
guarda boas lembranças desses dias tão alegres.

Houve uma época em que eu achei, a despeito da altura mais apropriada para um
jóquei, que poderia jogar vôlei (depois de ter tentado também o basquete, obviamente
sem sucesso, a não ser em nível escolar, especializado em cestas de gancho). E também
me destaquei, à minha maneira. Nas redes, compradas em lojas de materiais esportivos
com as mesadas somadas, e montadas na rua graças ao talento de alguns para a
carpintaria, eu estava sempre entre os melhores. Era respeitado e até temido, pela
potência do meu saque (no auge da geração de prata de Willian e Bernard, eu era um
dos únicos que conseguia reproduzir com parca fidelidade as suas célebres invenções,
criativamente denominadas de “Jornada nas Estrelas” e “Viagem ao Fundo do Mar”). E
principalmente pela violência dos meus ataques, as populares cortadas. Além de
brevilíneo, tinha pouca impulsão e vez por outra, encaixotado, via a bola voltar no pé.
Mas, quando pegava em cheio, o chão tremia. E o peito de algum adversário, de vez em
quando, também recebia “condecorações” nada honrosas.

Como no futebol, transpor a glória das ruas para as quadras não foi tarefa das
mais fáceis. Entre gente bem mais alta, eu sumia, literalmente. Cheguei a fazer parte do
esquadrão escolar que conseguiu algum destaque e era favorito absoluto ao ouro nos
primeiros jogos das escolas municipais em 1983. Mas era reserva e vi, do banco, meu
time perder feio para a zebra das zebras e ser eliminado da competição logo no jogo de
estreia. Ainda bem que esse mesmo grupo também era o representante da escola em
outra modalidade, o handebol. Nesse esporte, fomos simplesmente imbatíveis.
Vencemos todos os jogos por goleada. Algumas delas, verdadeiras “lavadas”.
Chegamos à final e, diante de câmeras de TV e tudo (nunca soubemos se passou em
algum canal ou não), conquistamos a medalha que havíamos perdido vergonhosamente
no voleibol. Também não era titular absoluto nesse esporte, mas entrei em todos os
jogos. E deixei meus golzinhos, dei bons passes, fiz parte, enfim, dessa breve, modesta,
mas vitoriosa história. Foi a primeira medalha que botei no peito. Minha mãe estava lá
para assistir e entregar o prêmio. Era a única mãe de aluno presente. Limpei algumas
lágrimas na hora. E o farei novamente, sempre que me lembrar disso.

A “carreira” no esporte dos gigantes se encerrou em definitivo depois de


algumas decepções meio amargas. A medalha que deveria ser dourada num torneio de
1987, entre as paróquias da cidade, acabou se tornando de bronze. O nosso único
levantador teve de trabalhar bem no dia da semifinal e, sem o “cérebro” do time,
levamos uma surra histórica de um adversário que seria de respeito, mesmo contra o
grupo completo. Tive uma atitude da qual me envergonho até hoje e que gostaria de
fazer o tempo voltar só para poder consertar. Derrotado e de cabeça quente, deixei a
quadra sem parabenizar os vencedores. Na entrega da premiação, o organizador do
torneio me entregou a medalha, dando parabéns, apesar do que eu tinha feito. Nunca
mais repetiria isso na vida. Não se recusa um cumprimento a ninguém. No ano seguinte,
não me saí nada bem numa seletiva que escolheu os integrantes entre os alunos das
turmas do sexto semestre de todos os cursos da escola técnica que frequentava. Ainda
assim, entrei para o grupo, por influência de amigos importantes. Mas a “panelinha” era
forte demais, só entrava em quadra quem o “dono” da equipe queria que entrasse. O
time seria campeão do torneio, mas eu não estaria lá para receber o prêmio. Não apareci
mais depois da primeira rodada. Preferia ser eliminado jogando. Nem que fosse só um
ponto por set.

A pista de atletismo do meu bairro, inaugurada em 1982, mas sem a presença do


grande atleta homenageado (que ficou conhecido aqui como “João do Furo”), trouxe a
oportunidade da prática do chamado mais nobre de todos os esportes. Tivemos
convivência próxima com gente bacana e talentosa, além de profissionais da área
técnica e pudemos assistir a alguns eventos esportivos de bom nível. Não participei de
nenhuma competição enquanto criança, mas gostava muito de frequentar o centro
poliesportivo e de assistir às feras treinando. Lá pelos treze ou quatorze anos cheguei a
brincar umas vezes na pista, achando o máximo conseguir dar quatro ou cinco voltas
seguidas nela sem parar. No dia em que consegui completar dez, foi a glória! Quatro
incríveis quilômetros. Uma distância inatingível, quase astronômica para meus padrões
de então. Quando um colega de escola um pouco mais velho contou que corria dez, eu
pirei. Vinte e cinco giros na pista. Como era possível alguém percorrer a pé a distância
daqui até a cidade vizinha mais próxima? Assistia pela televisão todo final de ano,
religiosamente, à corrida de São Silvestre, achando que aqueles caras eram deuses,
gênios, mitos. Não sabia e nem me preocupava em saber que distância exatamente tinha
aquilo, mas me encantava ver o ano chegar, com os fogos espocando, junto àqueles
grandes atletas e seus feitos épicos. Num deles, talvez um dos últimos em que a prova
foi noturna, eu jurei para mim mesmo que um dia iria correr aquela prova. Não sabia
como e nem por que. Talvez quem tenha ouvido, à época, não acreditou ou levou a
sério. Mas eu sim. Mesmo que o sonho tivesse de ficar adormecido por muitos anos.

A minha única competição “oficial” em atletismo também aconteceu nos jogos


escolares de 1987. Ligeiro, em boa forma de adolescente, porém com um pé
machucado, não consegui a vaga na seletiva para as provas individuais dos 100 e 200
metros rasos. Bati na trave, perdi ambas por décimos de segundos. Mas me garanti pelo
menos no revezamento 4x100, fazendo parte do quarteto que iria representar as turmas
do semestre. Pela primeira vez usando uma sapatilha de pregos (emprestada) na pista
que eu tão bem conhecia, abri a prova, entregando o bastão para o meu companheiro de
equipe em quarto lugar, entre os oito competidores. O cara era rápido à beça, tirou parte
da diferença e passou para o outro parceiro já em segundo. O terceiro corredor também
abriu o gás, encostando-se ao líder da prova e dando ao nosso atleta mais rápido a
oportunidade de um sprint inacreditável na reta final, que nos garantiu uma vitória
incontestável. Comemoramos como se fosse olímpica aquela medalha que botamos no
pescoço. Dançamos cancã no meio do gramado do campo de futebol. Uma tremenda
farra e um entusiasmo que eu só voltaria a sentir muito tempo depois. Seria a última
vez, em muitos anos, que eu faria parte de uma competição esportiva. Um enorme e
inexplicável hiato, uma interrupção súbita e injustificável numa trajetória que de
brilhante nada teve, mas que era capaz de trazer momentos de grande alegria.
Conquistas que poderiam ser medíocres para todo o resto do mundo, mas que, para nós,
que as alcançávamos, eram grandiosas. Coisas que só o esporte pode proporcionar. E
que eu deixaria de lado por mais de uma década e meia de minha vida. Dando lugar a
outra atividade, perniciosa e estúpida. Que me tiraria dos campos, quadras e pistas e me
levaria aos hospitais, clínicas e farmácias.

O palco dos primeiros passos como jovem corredor


Capítulo 3
Uma brasinha numa ponta, um tonto na outra

Todo adolescente é, por essência, um rebelde e um contestador. Eu só fui mais


um deles, coisa absolutamente normal e previsível. Mas inocente útil que era, não sabia
que ninguém precisa jogar contra si mesmo para contestar ou se rebelar contra qualquer
coisa. Eram outros tempos, em que aparecer com um cigarro nas mãos ou na boca era
sinal de status. Marcas da indústria tabagista estavam associadas a eventos descolados,
como festivais de rock ou de jazz. As propagandas de cigarro eram as mais impactantes.
Quem não se lembra dos videoclipes com músicas fantásticas da marca H? Das imagens
de western, dando ilusões de masculinidade aos usuários da marca M? Ou daquela outra
marca que mais ninguém nem lembra o nome (começava com A), mas que marcou
época com os maços simulando peças de dominó caindo em sequência, formando
desenhos incríveis? Fumar era bem tolerado, pra não dizer estimulado. Não existiam leis
proibindo dar tragadas em shoppings, bares ou restaurantes. Acender o cigarro alheio ou
filar um era até pretexto para a paquera. “Tem fogo?” era trocadilho infame que
garantiu namoricos casuais para um bocado de gente. Ter um cigarro era mostrar aos
amigos que você podia. Podia o quê? Morrer de câncer, ter um derrame, ficar
impotente? Nem se falava disso. As fotos polêmicas nos maços só viriam muitos anos
depois. O lobby das grandes marcas era poderoso e fez muita gente acreditar que fumar
era cool. É inacreditável pensar hoje que existiam nessa época “cigarrinhos de
chocolate”, com crianças simulando o gesto de fumar na embalagem. Que tinham um
gosto horrível, de cera pura, por sinal.

Não existia meio termo. Ou você fumava um “careto”, ou era careta. A coisa
valia, e creio que valha até hoje, para qualquer outro tipo de droga, lícita ou não. A
pressão dos amigos (amigos?) é quase sempre a porta de entrada. A de saída, muita
gente custa a encontrar. Não usaria, durante os revolucionários anos oitenta, que
marcaram minha entrada na vida teen, nenhum tipo de substância entorpecente proibida.
Tive drogas nas mãos mais de uma vez, mas me recusei a consumi-las. Tive pelo menos
esse discernimento, já que, desde muito cedo, descobri o quanto era suscetível. Mas,
contraditoriamente, convivi durante alguns anos com o cigarro sem, digamos, me viciar.
Tirando as baforadas de exibição na escola, que começaram mais ou menos na época do
torneio esportivo onde ganhei no revezamento 4x100 e deixei de ganhar no vôlei,
durante um bom tempo fui fumante de final de semana. O cigarro estava associado à
balada que, na época, nem esse nome tinha. Durante uma noitada de sexta ou sábado, eu
queimava seis ou sete cigarros. O grau de imbecilidade era tamanho que, mesmo
sentindo enjoos por causa de fumar (de bebida definitivamente não era, nessa época eu
andava tão duro que mal tinha dinheiro para umas biritas), eu insistia em querer
“aprender”. Virei um consumidor compulsivo daquele famoso dropes sabor extraforte.
Do contrário, a noite era sempre improdutiva. Que garota, afinal, queria beijar um
cinzeiro?

Sendo assim, ao menos durante os cinco primeiros anos, para todos os efeitos, eu
era um não-fumante. Meus pais não sabiam, minha família inteira me elogiava por ser
assim, mesmo tendo pai, mãe, avó, tios, primos e os mais variados graus de parentesco
totalmente dependentes de nicotina. Eu, hipocritamente, aceitava os parabéns. E passava
logo em seguida na padaria para garantir o flip-top box do final de semana. Só fui
assumir a condição quando entrei para a faculdade. Num ambiente totalmente pró-
fumaça como aquele, o hábito, que ficava adormecido durante a semana, passou a ser
diário. A permissão de fumar não só nas dependências do campus, mas até dentro da
própria sala de aula, era um estímulo a mais para isso. Havia até uma professora de
inglês que dava aulas o tempo todo soltando fumacinha. Numa dessas, em claro tom
provocativo, eu e mais dois farristas aparecemos com charutos dando baforadas
debochadas e causando risos generalizados na classe.

Solteiro, trabalhando, e mesmo não ganhando muito bem, tendo a comodidade


de morar com os pais, eu agora tinha grana para me divertir à vontade. E não só tinha
finalmente me viciado em tabaco, como também entrei numa fase de consumo pesado
de álcool. Havia aulas aos sábados, mas eu nunca comparecia. E nem precisava, porque
havia o esquema das listas de presença, onde vigorava o acordo tácito de um único
aluno assinar por todos os ausentes. Quando aparecia, era para seguir direto da última
aula para um alambique na cidade vizinha à universidade. Não para consumir o produto
artesanal do dito cujo, que nunca foi muito do meu agrado. Mas para enxugar, ao lado
de uma turma cada vez maior em número e pior nos estudos, copos e mais copos de
cerveja, acompanhados de truco e casquinhas de siri.

Felizmente, a fase etílica mais aguda não foi tão duradoura e nem trouxe maiores
consequências. Não ter carro na época, por exemplo, foi uma bênção. Não virei
alcoólatra e, embora até tomasse uns golinhos de vez em quando durante a semana,
matando uma ou outra aula mais chata ou que eu já tivesse visto no curso técnico
(minha formação prévia em informática me colocava em vantagem em relação aos
colegas que, ao contrário de mim, nunca tinham visto boa parte das matérias), não tive
na bebida um problema mais sério. Ao contrário do fumo. Não era época das câmeras
fotográficas digitais de hoje, onde se registra qualquer baboseira. Mas era quase
impossível tirar uma foto minha em que não houvesse um cigarro na boca ou na mão.
Parecia que eu tinha seis dedos! Já tinha, sem mais subterfúgios, assumido em casa, no
que também não tive nenhum maior problema. Era bem provável que todos já
soubessem, a bem da verdade. De fumante, a gente sente o cheiro de longe. Os quinze
cigarros semanais, das noites de farra, já haviam se tornado diários. Daí para um maço
por dia foi um pulo. Quando eu vi, já estava comprando logo de pacote inteiro, para não
ter que ir para a padaria toda hora. O canhoto do meu talão de cheques quase só tinha a
palavra “cigarro”. O recorde de consumo veio numa excursão para a Oktoberfest de
Blumenau, em 1993. Fumei dois maços inteiros num único dia. Quarenta cigarros!
Tirando as oito dormindo, dá 2,5 por hora, em média.

Foi nesse mesmo ano que, numa daquelas guinadas de cento e oitenta graus na
vida, resolvi deixar o emprego, a faculdade no segundo ano e montar uma empresa. Sem
nenhum capital, junto com um colega de trabalho da área de vendas e um amigo dele,
que entrou na sociedade por ter uma sala vaga num dos prédios comerciais mais
famosos da cidade, fundamos uma pequena softwarehouse. A responsabilidade cresceu,
o trabalho quadruplicou e o estresse, idem. Os sócios eram mera formalidade, quem
fazia praticamente tudo era eu mesmo sozinho. Uma atividade que era do meu agrado e
juntava conhecimento técnico com boa dose de criatividade. Mas que era também
extremamente desgastante. Não foram poucas as noites em que o trabalho foi até a
madrugada, quando não a manhã seguinte. Os cinzeiros ficavam abarrotados, pareciam
aqueles de rodoviárias. Com a simples diferença que eu era o único “passageiro” ali.

Relativamente talentoso na área, com algum tino comercial e a boa estrutura que
a sociedade me ofereceu, o negócio chegou até a prosperar um pouco. Mas a divisão
entre os “acionistas” e as despesas diversas, inclusive com os funcionários que foram
sendo contratados, não me permitia ver muito o resultado prático disso. Depois de quase
dois anos, acabei descobrindo algo que não gostaria de saber. Além de trabalhar quase
sozinho e dividir o rendimento, estava sendo envolvido em dívidas em nome da
empresa que, pior, haviam sido contraídas sem o meu conhecimento. Trairagem feia. Na
calada da noite, peguei o carro e fiz a mudança, levando tudo que era meu para casa.
Computador, móveis, material de trabalho em geral. Na manhã seguinte, estava
trabalhando como autônomo, mantendo apenas a base de clientes conquistada por mim,
porque nem mesmo o trabalho comercial o tal sócio estava mais fazendo. Foram dias
difíceis, de uma decepção muito grande e nos quais tive que recomeçar mais uma vez do
zero. E, claro, de muita fumaça para dentro dos pulmões.

O operário padrão (e alcatrão)

Anos depois, já casado, morando no meu próprio apartamento, dirigindo meu


próprio carro e acendendo um cigarro na brasa de outro, passei por uma situação
familiar bastante delicada. Meu sogro, morador de uma pequena cidade do interior da
Bahia, onde as condições de atendimento na rede pública de saúde são ainda mais
precárias do que no restante do país, teria de ser operado às pressas do coração.
Fumante inveterado, daqueles de cigarro de palha, e com um sério problema na válvula
aórtica, teria de ser resgatado de lá e trazido imediatamente para cá. Numa dessas
ciladas da vida real, o hospital onde ele estava internado teve o centro cirúrgico
interditado por um surto de infecção hospitalar, retardando em meses a operação.
Quando ele finalmente passou pelo procedimento (tendo de repetir a cirurgia no ano
seguinte, pois tivera uma infecção na válvula biológica implantada), o médico foi
categórico ao afirmar: nunca havia visto um pulmão tão “preto”. Senti como se o recado
tivesse sido dado diretamente a mim. Doeu como uma faca enfiada no peito. No mesmo
dia, saí de casa sem companhia. Sem o maço no bolso, que não saía dele havia anos. Foi
talvez o dia mais longo da minha vida. E certamente aquele no qual mais falei palavrões
até hoje. Quem passou ao meu lado no trânsito deve ter pensado que era aquela agora
saudosa senhorinha boca-suja e centenária quem estava no carro.

O susto alheio de nada adiantou. A abstinência durou um dia apenas. Na mesma


noite, eu já estava me envenenando de novo, e com gosto. Conversava com outras
pessoas, vítimas do mesmo mal, dizendo que fumar já não me trazia nenhum tipo de
prazer, era um simples ato mecânico, uma dependência química e psicológica apenas.
Mas, ao mesmo tempo, era capaz de piadas de gosto duvidoso, dizendo, por exemplo,
que toda manhã acordava com vontade de parar de fumar, mas bastava acender um ou
dois cigarros para ver a vontade passar. Ou que pretendia parar de fumar até o ano de
99. Dois mil e noventa e nove.

Havia, já na época, mil maneiras disponíveis para tentar deixar de fumar.


Adesivos, cigarros “falsos”, chicletes, sistemas engenhosos de redução de consumo
anunciados na TV por celebridades ou em sites na internet. E até antidepressivos e
métodos de hipnose. Nunca tentei nenhum deles. E nem precisei. Naquela tarde de
2002, eu estava no bolso com o primeiro dos dez maços do pacote recém-aberto.
Quando o médico decretou os absurdos valores da minha pressão arterial e os
enfermeiros me transportaram às pressas, como um saco de batatas, para botar o
remedinho na língua, eu me tornei um ex-fumante instantâneo. Se o susto do sogro (que
largou o cigarro, sobreviveu às duas operações e está aí até hoje, firme e forte) não me
servira de nada que não fosse quase causar acidentes de trânsito e rubor nos motoristas
mais pudicos, o próprio teve efeito imediato. Muitas pessoas, interessadas em também
parar, viriam mais tarde me perguntar como eu conseguira deixar o cigarro. Eu
simplesmente não sabia. Como não sei até hoje. A única coisa que podia dizer é que
tinha sido no susto. O bom, velho, clássico e eficiente medo da morte. Foi ele, e ele só,
o que resolveu para mim. O pacote quase completo ficou de presente (de grego) para a
sogra, também fumante. A esposa não herdara, felizmente, esses genes. Os outros, todos
muito bons, sim.

Foi, enfim, tão fácil parar que deu até raiva de não ter conseguido antes. Tinha
sido apenas uma tentativa malsucedida, é bem verdade. Mas nenhuma outra, muito
provavelmente, daria certo. Não foi força de vontade, não foi heroísmo, nada disso. Pelo
contrário: a covardia é que salvou a minha vida. Pena que o susto não foi tomado anos
antes. Tinham sido quinze anos de tabagismo que, felizmente, não me trouxeram
consequências devastadoras como poderiam, um câncer de pulmão ou um enfisema.
Mas que tinham castigado muito o meu organismo como um todo. Ele tem um poder de
recuperação impressionante. Anos depois, de pulmões quase limpos, tenho verdadeira
aversão a cigarro, fujo imediatamente de qualquer lugar com cheiro de fumaça; o enjoo
que surgia depois das noitadas defumadas, agora aparece ao menor contato. Dizem que
se eu botar um cigarro na boca volto ao vício muito pior do que antes. Pude constatar
que isso acontece mesmo na prática, com uma pessoa muito próxima, aliás. Não
comigo. Meu vício hoje é outro. Tão poderoso quanto, ou até mais.
Capítulo 4
Certa área verde

Quase todo mundo (que tenha idade para isso, pelo menos) sabe andar. Talvez
seja essa uma das manifestações mais naturais da espécie humana. Fica aí a pergunta
que não quer calar: por que não andam então? Cada vez mais o que se vê é a
mecanização do movimento. Carro até para ir à padaria da esquina. Elevador para subir
um mísero andar. Controle remoto para tudo, até (e talvez principalmente) para aquilo
que não precisa. Pessoas se recusando não só a gestos de cortesia que requeiram um
mínimo esforço, mas empurrando até uns para os outros a responsabilidade de se mexer.
Basta ir ao estacionamento de qualquer grande supermercado para ver a absurda
quantidade de carrinhos de compras deixada atrás dos automóveis alheios. Retornar o
objeto usado para o transporte de mercadorias ao seu devido lugar virou um gesto
errado, a ponto de quem o faz ser apontado em público como “o otário”. Como se esse
simples e trivial ato rebaixasse o responsável por ele a uma espécie de grau de servidão.
A deplorável glamorização da preguiça.

Remando contra a maré e por estritas indicações médicas, redimi meu pecado
capital particular e fui andar. Tendo ao meu lado a companhia fiel e valorosa daquela
que havia sido escolhida também como companheira de vida. Janete esteve ao meu lado
na primeira das muitas. E também em todas as inúmeras caminhadas que fiz nesse
período, que carinhosamente apelidei de “pré-história”. Foi juntos que redescobrimos
um lugar que até já conhecíamos, mas não frequentávamos, porque até então
simplesmente nada tínhamos a fazer ali.

Curioso e fascinante o poder que têm esses oásis verdes no cinza das cidades. É
como se fossem envolvidos por um campo de força. Onde o resto lá fora, com todas as
suas mazelas e quizilas, deixa simplesmente de ter importância. Ali há paz, harmonia,
os rostos são felizes, os problemas parecem simplesmente não existir. O ambiente de
um desses santuários me conquistou à primeira vista. Dar os primeiros passos dentro
dele, além de um bem-estar instantâneo, deu também a sensação de tempo perdido. Por
que cargas d’água eu não tinha começado isso antes?

Fora um ou outro caso específico, que cabe a um médico especializado analisar,


caminhar não tem quaisquer contraindicações. É recomendável até para os mais
ferrenhos sedentários, como era o meu próprio caso à época. Não requer prática e nem
tampouco experiência. Apenas um par de tênis e um lugar seguro, longe de preferência
da fumaça das ruas. A tal área verde, apelido dado pelos próprios moradores à praça que
separava dois dos mais importantes e populosos bairros da cidade, era ideal para isso.
Mesmo ladeada por três avenidas movimentadas e barulhentas, parecia outro mundo.
Um mundo perfeito.

Nas suas duas pistas, uma de concreto, mais externa; e outra de terra, interna, eu
comecei a dar voltas ao lado da minha cara-metade. No final da tarde, após o
expediente, ao invés de continuar sentado ao computador, eu me desligava de tudo e ia
caminhar. Celular tocando? Nem pensar! Só se fosse de outro caminhante. O meu ficava
em casa, para não correr o risco de ter de interromper a atividade e voltar às pressas para
atender algum cliente mais afoito, que não pudesse esperar o dia seguinte chegar. Devo
ter deixado de ganhar um bom dinheiro com isso. Mas estava economizando uma
fortuna também. Só nos cigarros, que me aliviavam a carteira com voracidade, já deu
uma boa diferença. Em longo prazo, com remédios, então, nem se fala.

Caminhar me trouxe benefícios imediatos. O humor melhorou bastante, o


estresse deu uma bela diminuída, assim como os níveis de colesterol e triglicérides. As
marcas iniciais eram alarmantes. No exame inicial que fiz, o primeiro índice chegou a
276 mg/dl. O segundo, ainda pior, aos 512 mg/dl. Meu sangue era pura gordura e
carboidrato. Praticamente um molho de macarrão circulante. Definitivamente, a
continuar nessa toada, faltava um nada para conseguir um infarto ou um AVC. Os
valores não diminuíram da noite para o dia, num passe de mágica, é claro. Mas foram
gradativamente chegando a níveis toleráveis. As frações foram me dando notas
melhores a cada novo exame feito. O dito bom colesterol só subia, enquanto o outro,
ruim, despencava aos poucos. Cheguei a consumir medicamentos específicos para
ajudar nessa queda, mas o uso foi esporádico, durou apenas uma caixa de cada, em
épocas diferentes. No mais, a redução foi independente disso.

O oásis

No concreto do chão da área verde ficaram dez quilos de pura banha. Em pouco
tempo, não me recordo exatamente quantos meses, mas com uma rapidez espantosa.
Voltei a ter um número de dois dígitos na balança, ainda no limite disso, tendo algumas
recaídas aos finais de semana (ninguém é de ferro e tampouco precisa se submeter a
sacrifícios extremos, como abrir mão totalmente daquilo que gosta de comer). Mas
fechando de leve a boca, diminuindo porções, introduzindo mais frutas na dieta do dia-
a-dia (uma das grandes dificuldades foi a minha total aversão por verduras e legumes),
bebendo mais água, consumindo mais cereais, ricos em fibras e que dão sensação de
saciedade com pouca quantidade, atingi o primeiro estágio do meu objetivo. Depois de
muitos anos, voltei a receber elogios que não estivessem relacionados ao trabalho. Além
das voltas quase diárias pelo mesmo caminho, passei também a pedalar em uma velha
bicicleta ergométrica, comprada por impulso e que tinha se transformado em um cabide
de roupa, entulhando, ocupando espaço no pequeno apartamento. A empolgação com a
perda de peso era grande e me dava disposição para longas sessões caseiras de spinning,
com uma, duas horas de duração. Descia suor por todos os poros. Para o tempo passar,
aproveitava para assistir televisão ou ler jornais, revistas ou livros. Coloquei a leitura
em dia, coisa que sempre gostei, mas na correria, tinha deixado meio de lado havia
anos. Assinava o periódico só mesmo para ver a página de esportes e os quadrinhos.
Voltei a ser leitor compulsivo e redescobri o prazer que a palavra escrita traz.

Derretendo e ficando up-to-date


Em cerca de um ano de atividade física e reeducação alimentar, já tinha
alcançado algumas conquistas importantes. O exame que mostrou 208 mg/dl de
colesterol e 163 mg/dl de triglicérides foi comemorado. O que refiz com o
oftalmologista trouxe a palavra “leve” ao invés de “moderada” à frente de “retinopatia
hipertensiva”, o primeiro estágio do sério glaucoma. O ecocardiograma com doppler,
que mostrava mais detalhadamente o músculo cardíaco, registrou uma diminuição na
hipertrofia do ventrículo esquerdo, o caminho para a insuficiência cardíaca, do exame
feito no ano anterior. Para mais tarde regredir, para surpresa até do médico, até a
normalidade. O teste ergométrico, feito na esteira com avaliação da frequência cardíaca
e da pressão arterial durante a atividade física, apresentou melhora significativa na
aptidão cardiorrespiratória. Não fiquei (muito) ofegante nos primeiros estágios, só
apresentei sinais de cansaço quando o doutor cismou de aumentar bastante a velocidade.
Os futuros, bastante tempo depois, na acepção dos avaliadores, dariam a mim
parâmetros similares aos de um atleta.

Com tantos números positivos e, inspirado pelo cenário e pelos demais


frequentadores do parque (alguns em excelente forma física, outros nem tanto; gente de
todas as idades, inclusive pessoas bem mais velhas que eu), quinze meses depois do
trágico dia em que fui carregado na maca e parei de fumar no susto; e um pouco menos
da primeira vez em que pisei naquele lugar, resolvi fazer algo diferente. Cada uma das
retas da pista deveria ter pouco mais de duzentos e cinquenta metros. Um quarto de
quilômetro, isso no máximo. Uma distância extremamente pequena, fácil de vencer
usando qualquer meio de transporte, mesmo as pernas. Mas que nunca foi tão longa
como naquele outubro de 2003. Já não estava mais tão pesado como no começo e o
alcatrão já tinha desgrudado um pouco das pleuras. Mas querer correr de ponta a ponta
aquela pequena reta foi uma ousadia que teve o seu preço a pagar. Ao dizer para a
Janete que ia fazê-lo, ouvi não uma dúvida e nem uma piadinha. Mas uma advertência
para tomar cuidado. Ela tinha razão. Não possuía ainda um frequencímetro para medir
com exatidão, mas o coração ao final deve ter passado dos 200 batimentos por minuto.
A falta de fôlego era notória. A sensação era de ter um saco de cimento dentro de cada
pulmão. Os músculos das pernas ardiam. Era como se eu tivesse feito um grande
esforço, como se tivesse passado o dia trabalhando como boia-fria. No dia seguinte, tive
fortes dores musculares como triste lembrança do esforço. Não sei se estou exagerando,
mas acho que tive até febre...

Talvez tenha sido a primeira das muitas vezes em que pensei no que estava
fazendo ali. A pergunta, recorrente, apareceria em inúmeras outras ocasiões futuras.
Havia uma enorme frustração, a do choque de realidade. Por tentar fazer algo que talvez
não fosse para mim, mas que cheguei a achar que seria, devido ao progresso
relativamente fácil e animador da etapa anterior. Um baque grande. Poderia ter
terminado ali mesmo a “carreira” do corredor. Poderia. Se uma das minhas
características mais marcantes, de toda a vida, não fosse um grave defeito: a teimosia.
Dão a ela nomes mais bonitos para tentar aproximá-la das virtudes, como persistência,
garra, gana, raça ou determinação. Mas eu sempre preferi o original, sem eufemismos
mesmo. Sou um cara teimoso pra burro! Não um burro teimoso, aquele que insiste até a
morte em algo que não pode. Mas um teimoso racional, que insiste naquilo que acha
que pode. Mesmo que o resto do mundo não ache. Ou principalmente se.

Confesso não me lembrar da segunda, da terceira ou da quarta tentativa. Não me


vem à cabeça a imagem da primeira vez em que correr não doeu. Continuei, resignado,
fazendo minhas caminhadas regularmente. Só que tentando, de preferência quando não
tivesse ninguém olhando, também arriscar algo parecido com um trote. Ainda bem que
não tinha nada para aferir a minha velocidade, talvez desse tilt no aparelho ou mostrasse
um valor negativo. Mas das oito sagradas voltas andando de cada dia, parte delas passou
a ser um pouco menos lenta que o habitual. Os 5368 metros passaram a ser percorridos
em menos de uma hora. O mesmo espaço, em tempo menor. O delta V variava
positivamente, mesmo que muito devagar.

A presença constante já tinha trazido, a mim e à Janete, histórias interessantes da


área verde. Saindo sempre para caminhar ao final da tarde, antes do jantar, era
inevitável que chegássemos em casa mortos de fome. Um dos agravantes era o aroma
que invariavelmente exalava de uma das casas ao lado da pista, numa das esquinas,
perto da avenida um pouco menos movimentada. No preparo da refeição, batia sempre
um cheirinho gostoso de feijão fresquinho. O detalhe curioso é que eu, cheio de
frescurinhas gastronômicas que vêm da tenra infância, simplesmente não como feijão
(em compensação, os pertences da feijoada...). E mesmo assim ficava com água na boca
sempre que passava por lá. Difícil manter a dieta assim.

Uma característica que tenho em comum com a minha esposa é o grande afeto
pelos animais. Já tínhamos adotado um gato siamês que encontramos na rua, ainda
filhote, literalmente arremessado por dois moleques que passaram de bicicleta, como se
fosse lixo. E, numa das caminhadas pelo lugar de sempre, nos deparamos com outro
gatinho, também quase recém-nascido e à beira da morte. Do cano para escoamento da
chuva, ele saía e miava quase sem forças, se escondendo de medo logo em seguida.
Estava visivelmente desnutrido, tinha o pelo coberto por carrapichos; estava, enfim, em
um estado deplorável. Nossa intenção não era ficar com ele. Apenas cuidar até que
ficasse um pouquinho mais forte e tentar doar para alguém que pudesse acolhê-lo. Mas
havia uma dificuldade: era um gato preto. Estamos em pleno século XXI, mas ainda
existem superstições que remetem a eras medievais. Ninguém quis o pobre coitado. Que
de desnutrido, passou a ser o bicho mais comilão da face da Terra. Bonito, sem-
vergonha, saudável e forte, é até hoje o nosso animal de estimação. O nosso filho, que
viria alguns anos depois, tem algum ciúme. “Coisa de irmão caçula”, diria a mãe.

A evolução foi bem mais lenta e penosa do que a da caminhada. Mas também
aconteceu no protótipo de corrida. A cada tentativa, foi ficando menos impossível. E
chamativo. Talvez ninguém tivesse reparado naquele meu primeiro fracasso. Mas a
sensação havia sido de uma enorme e sonora vaia coletiva. Agora, o silêncio
predominava. Eu já me sentia meio parecido com os demais frequentadores assíduos,
que andavam quase o tempo todo, mas também davam passos um pouco mais ligeiros
vez por outra. Providencialmente camuflado entre eles e pelas árvores ao redor. Em
algum tempo, depois de várias tentativas malsucedidas, veio talvez a primeira vitória
concreta: uma volta inteira correndo. Não me perguntem em quanto tempo, não vou me
recordar. A alegria ofuscou qualquer número mostrado no relógio. A partir dali, as
coisas parecem que deslancharam de vez. As etapas seguintes, na minha vaga
lembrança, são de intercalar uma volta correndo a cada três andando. Depois, a cada
duas. Houve um belo dia em que os números se igualaram. A cada 671 metros
caminhados, outros tantos foram corridos logo em seguida, continuamente, sem
intervalos para descanso. Eu fazia fartleks e nem sabia disso. A razão não tardou a se
inverter. As voltas correndo passaram a ser em maior número, com o descanso ativo das
caminhadas para recuperação do fôlego. Que ainda se ressentia muito dos quinze anos
ininterruptos de fumaça e nicotina. Mas ganhava vigor a cada novo final de tarde. A
teimosia valera, e muito. Eu havia encontrado algo que me dava prazer legítimo em
fazer.

Nos primeiros dias, a companhia da Janete era uma constante. Mas o aumento na
carga traria uma consequência indesejável. Apesar do tipo físico muito mais favorável e
de nunca ter colocado um bendito cigarro na boca, ela já não conseguia mais
acompanhar o marido que, cada vez mais, tomava gosto pela coisa. Continuaríamos
caminhando juntos, cuidar da saúde dela também era prioridade. Mas quando o esporte
mudou, perdi a companheira de dupla. Ao mesmo tempo, o lugar também começava a
ficar pequeno para mim. Era grato à área verde e nunca mais deixaria de frequentá-la.
Mas eu também queria e precisava ganhar o mundo.
Capítulo 5
Vai rolando que chega mais rápido!

Um dos grandes males do corredor iniciante costuma ser o “se achismo”. Muito
se vê por aí gente que mal deu os primeiros passos e já quer fazer parte da galeria da
fama do atletismo mundial. Existem os mais variados graus de aptidão para o esporte e
alguns privilegiados podem mesmo se dar o luxo de queimar algumas etapas. Há, por
exemplo, quem parta direto para a ultramaratona sem sequer ter feito uma maratona. Ou
quem faça a sua primeira corrida de rua da vida já nos 42 km. Pontos fora da curva. Isso
não é, definitivamente, para todos. Evoluir passo a passo, subir de degrau em degrau,
costuma ser mais seguro e coerente. Não se constrói uma casa começando pelo telhado
e muito menos pelo acabamento. Fundações são fundamentais.

Até por uma absoluta falta de jeito para a coisa, não acho que tenha me
precipitado. A cautela seria minha marca. Chegaria muito paulatinamente, de caso
pensado, a cada nova etapa. E só depois de estar firme e confiante na anterior. Foi assim
que decidi um belo dia deixar o “casulo” da área verde, onde tudo era belo e virtuoso. E
enfrentar a realidade das ruas. Dura. Implacável. Cruel até, eu diria. A pista, que tão
bem me acolhera, me tratara como mais um igual desde o primeiro dia. Que me
compreendera quando tentei fazer aquilo para o que não estava preparado. Que não me
intimidara com ameaças, repreensões ou menosprezo. Ela não mais me protegia. Eu
estava só. Exposto. Perdera o escudo, as defesas. Vulnerável. E, sem traços de malícia,
também despreparado para o que viria.

Não sei precisar com quantos quilos fui correr na rua pela primeira vez. Já tinha
talvez perdido uns vinte. E me afastado um bocado da morbidez a que a obesidade pode
chegar. Mas seguia com uma silhueta disforme, totalmente fora do estereótipo do
corredor que se espera ver fazendo seus treinos pela cidade. Ainda não tinha começado
a prática da musculação, que daria uma remodelada em meu corpo, dando a ele um
pouco de força para justificar o sempre alto valor do Índice de Massa Corporal. Era
lento, pesado e desajeitado toda vida. Um alvo perfeito, enfim, para os gozadores de
plantão. E eles não são de perder a oportunidade. A primeira, e talvez mais dolorida de
todas, viria logo no primeiro dia. A poucos metros de casa, logo no comecinho do trote.
O carro passou bem lento ao meu lado, propositalmente, apesar do sempre carregado
trânsito da avenida com um largo canteiro central, o menos pior possível da região para
uma corridinha. E soltou a bomba, que dá nome a esse capítulo. Bem criativa, a frase. E
que não deixava de ser, ao seu modo, verdadeira. Naquela (baixa) velocidade e naquele
(alto) peso em que eu me encontrava, se rolasse certamente deveria ganhar aceleração,
por questões até da física cinemática.

Todo mundo acha que tem resposta para tudo. E pode até ter mesmo, o problema
é que ela nem sempre vem na hora certa. Eu poderia ter dado o troco de bate-pronto, ter
levado na esportiva ou ter simplesmente mandado o cara para aquele lugar. Qualquer
uma dessas reações provavelmente seria melhor que a que tive. Porque foi nenhuma.
Fiquei pasmo, sem palavra, estático. Bem, estático propriamente dito também não,
porque continuei correndo. Envergonhado, de cabeça baixa, mas na mesma cadência.
Não se deve deixar abater por qualquer coisa. Mas essa não foi bem assim. Doeu.
Machucou. Foi tapa na cara. Mas teve lá sua utilidade também. Seguindo meus passos
na humildade, prometi para mim mesmo, tal uma Scarlet O’Hara, que usaria cada uma
daquelas provocações baratas, vindas muitas vezes de gente invejosa, que no fundo tem
vontade de estar ali no nosso lugar, mas não pode (ou não consegue), como um
incentivo. A cada nova zombaria, mais força acumulada. Não para retrucar. Pelo menos
não na maioria das vezes, porque também há aqueles dias em que a gente acorda de ovo
virado e desanca qualquer um por muito menos. Mas para usar a meu favor.

Onde eu corria para não rolar

Foram muitas as outras vezes em que isso se repetiu. Algumas mais óbvias,
como “olha o gordo correndo”, mas outras bem mais criativas, que mereceriam menções
honrosas em concursos publicitários. Aquela propaganda do queijo processado, vendido
sem refrigeração em triangulozinhos, foi relembrada por alguns: “vai, queijinho!”.
Muitas, mesmo depois que as corridas de rua já tinham entrado em minha vida, me
associando automaticamente ao “lanterna” da prova, o que só aconteceria uma única vez
(o que é assunto para outro trecho desse livro, aliás). Outros dizendo coisas que
pareciam incentivos, como “vai!” ou “corre!”, mas em tom claramente pejorativo.
Tirando a primeira, a que mais chamou minha atenção, mas em uma fase em que eu já
era bem mais eu, foi a de um grupo de adolescentes munidos de latas de cerveja em
pleno trânsito: “essa é a prova de que correr não emagrece”. Mal sabiam eles que
emagrecia sim, senhor! A essa altura, eu já estava a caminho dos trinta quilos a menos.

Com isso, as ofensas foram começando, aos poucos, a dar lugar para os elogios.
Casado, e muito bem, não me faziam falta as cantadas e referências elogiosas femininas.
Mas que uma, de vez em quando, também faz bem ao ego, todo mundo sabe que faz. As
pessoas já começavam a me procurar para saber como eu tinha conseguido emagrecer
tanto. Imediatistas, muitos me mediam por sua própria régua e pediam o nome do
cirurgião bariátrico. Ou pelo menos uma cópia da receita médica. Não. Nem redução de
estômago (ou qualquer técnica similar) e nem remédios “milagrosos” (e que costumam
trazer resultados adversos diversos). A minha “mágica” tinha sido simplesmente
combinar menos comida e mais exercícios. O meu cirurgião havia sido o Doutor
Asfalto.

Os passeios na rua continuavam, os gracejos também. Mas eles já não tinham


mais muito efeito sobre mim. Se eu achasse que tinha de responder, respondia, mesmo
que não fosse com algo lá muito inteligente. Do contrário, achava até graça. Só não
muito quando a coisa resvalava na agressividade, como quando um grupo de pivetes
arruaceiros tentou me coagir. Um deles, muito valentão (em bando), passando de
bicicleta, esticou o pé para me atingir quando eu corria ao lado de uma ciclovia. Eu
disse ao lado, não na própria. Sempre respeitei os espaços e as regras, embora a
recíproca não seja lá muito verdadeira (ciclistas na área exclusiva de corredores e
caminhantes não são nada raros). Não teve desdobramentos, não valia a pena. Só entrou
para o meu folclore pessoal. Com o tempo, fui conquistando o direito de correr em paz.
Ou quase.

Essa foi uma fase efervescente, rica em novidades. Houve nela muitas primeiras
vezes. Cada dia, cada treino era oportunidade de fazer algo diferente. De conhecer
novos lugares ou de percorrer outros bastante conhecidos, mas acessíveis somente de
forma motorizada. De ver as coisas sob outra perspectiva. Alguns lugares se tornaram
mais habituais nos treinos, mas desde os primórdios, eu tomei gosto pela exploração. As
pessoas vinham conversar comigo dizendo que tinham me visto em vários pontos
diferentes da cidade. Uns admirados pela distância de casa, outros preocupados com
minha integridade, por depararem comigo em lugares destinados normalmente apenas a
veículos. Eu já não me escondia de ninguém. Achava divertido conversar com as
pessoas sobre o meu hobby, que tinha começado como terapia. Reencontrava amigos de
infância e adolescência sem maiores traumas. Não precisava mais mudar de calçada
quando reconhecia alguém. A redescoberta da vida social, que tinha sofrido um
rompimento abrupto, foi extremamente benéfica para mim.

Foi nessa época “pré-histórica” que comecei também a registrar meus


treinamentos. No início, nada mais era que um scout, uma forma de anotar e controlar a
quilometragem diária, semanal e mensal. Rato de computador que sou, criei não um
caderno de rabiscos para somar tudo à mão, feito de alguns amigos que admiro. Bolei
logo uma planilha de cálculo (que uso até hoje, modernizei e disponibilizei para outras
pessoas também baixarem gratuitamente na internet), para lançar nela as informações
mais relevantes dos meus treinos. Constavam dados como data, dia da semana, local,
quilometragem percorrida, tempo gasto, velocidade (calculada em km/h, que não é
unidade usada por corredor), ritmo (conhecido no meio como pace, e medido em
minutos por quilômetro). E outras informações mais pitorescas, como o gasto calórico,
o peso na data e até o VO2 máximo. Esse é meio complicado de explicar. Googlem se
quiserem.

Antes da popularização dos softwares de imagens de satélite e dos relógios


equipados com GPS, coisas mais recentes, as distâncias eram todas estimadas,
calculadas com base no tempo cronometrado e em uma velocidade de “chutômetro”.
Hoje, relendo as planilhas da época, constato que muitas vezes foi superdimensionada.
O feeling de estar rodando a 5’20’’ (corredor sabe, mas para quem não decifra
automaticamente, quer dizer fazer um quilômetro em cinco minutos e vinte segundos,
em média) era meio exagerado. Mas às vezes, também verdadeiro, quando os treinos
eram em lugares com distâncias demarcadas. Sem querer trair a área verde, onde tudo
havia começado, eu já praticava meu esporte em outros lugares congêneres. Parques
municipais com pistas de asfalto ou trilhas em meio à natureza. Pistas com inúmeros
caminhantes, ex-colegas. E outros tantos corredores, com quem já tinha alguma
familiaridade. A ponto até de perder a vergonha de voltar a frequentar, dezessete anos
depois, a pista oficial de atletismo do meu bairro, lugar de treino de cobras criadas do
esporte. Ouvi as meninas do time de futebol assobiarem “O passo do elefantinho”, de
Henry Mancini, uma vez para mim. Mas nem liguei.

Mesmo talvez errando a mais na conta, eu já era capaz de percorrer distâncias


inimagináveis para quem chegara ao final da reta de duzentos e poucos metros botando
os bofes para fora, quase morrendo. Os treinos tinham sete, oito, nove quilômetros.
Alguns chegavam até aos dois dígitos. Não eram treinos contínuos, é bem verdade.
Mais magro e relembrando o meu passado remoto de velocista (de uma única
competição para valer), eu conseguia correr com alguma agilidade, mas me faltava
constância. Para chegar aos dez quilômetros, eu tinha de recorrer a paradas estratégicas
para recuperar o fôlego. Tinha até alguma resistência também, mas desde que baixasse
consideravelmente a velocidade. Só não conseguia, de jeito algum, juntar ambas as
coisas.

Corria a esmo, sem nenhum tipo de informação, nem mesmo pesquisas sobre
princípios ou planilhas de treinamento em revistas, livros ou sites especializados na
internet. Treinava seis dias por semana, sem qualquer descanso planejado. Parava em
casa quando batia cansaço ou quando chovia forte, do contrário, estava na rua. Fazia
quarenta, às vezes até cinquenta quilômetros por semana, uma carga relativamente alta
para um ainda principiante. Mas não tinha essa noção, à época. Não sabia nada sobre
tênis específicos para corrida ou sistemas de amortecimento. Muito menos sobre tipos
de pisada, baropodometria e outros termos do jargão que, para mim, eram em grego.
Não fazia nenhum tipo de fortalecimento muscular, específico para corrida ou não. Por
sorte, até que não tive maiores consequências dessa ignorância que beirava a
irresponsabilidade. Não me machuquei seriamente nenhuma vez. Tive canelite, aquela
dor que quase todo corredor que se preze já passou por. Que acabei curando sem
maiores traumas, bem como outras pequenas lesões, que me tiravam de combate por
alguns poucos dias, em geral. Mas, preocupado com elas, procurei me informar,
aprender com os erros, os meus próprios e os alheios. Numa cidade de média para
grande, mas sem muitos profissionais da área, nada das assessorias e treinadores aos
montes das capitais e grandes centros, tive de penar um pouco pelo autodidatismo. Mas
aprendi um bocado também.

Numa noite fria de final do outono de 2005, provavelmente depois de mais um


desses treinos a granel, a TV estava ligada. E entre as propagandas nem sempre úteis,
apareceria uma que iria causar uma verdadeira revolução em minha vida. Em definitivo.
Capítulo 6
Alvorecer na serra

Uma nacionalmente conhecida rede de supermercados, cujo próprio dono eu


descobriria, anos depois, ser também praticante de corrida de rua, anunciava em horário
nobre na emissora de maior audiência sobre esse evento. Uma corrida de dez
quilômetros, na turística e próxima cidade de Campos do Jordão. Num lugar
maravilhoso, que eu já conhecia de um passeio: o Parque Estadual, também conhecido
como Horto Florestal. Um cenário magnífico, uma moldura perfeita para o primeiro dos
muitos “quadros” que eu pintaria. A empolgação foi imediata. Sem saber que as
inscrições poderiam também ser feitas pela internet, fui direto para o supermercado
obter informações e tentar garantir a minha. Afoito, até me confundi, achando que eram
feitas num dos shoppings da cidade, quando na verdade eram em outro. Anotei lá, pelos
dados do cartaz, o endereço da página da web onde poderia me inscrever. E dei sem
medo o número do meu cartão de crédito pela primeira vez numa dessas “lojas virtuais”.
Não tinha mais volta.

Não foi nem presunção, foi precipitação mesmo. A corrida tinha opções de
percurso de cinco e dez quilômetros, de forma individual ou em dupla. Não conhecia
ninguém que também corresse – pelo menos nenhum amigo mais próximo – para
convidar. Mas poderia e deveria ter feito só a primeira das duas voltas no trajeto. Que
era pesado. Num terreno acidentado, cheio de subidas fortes e descidas perigosas.
Poderia até ter me traumatizado (ou machucado feio) e ficado só nessa primeira vez.

Durante os dias que antecederam a corrida, uma ansiedade estranha tomou conta
de mim. O corpo chegava a formigar, a vontade de ver a semana passar voando e o dia
chegar logo era quase incontrolável. As noites não foram lá muito tranquilas,
principalmente a última delas. Dormir, eu até dormi. Mas não conseguia relaxar. Dois
questionamentos martelavam a mente. Primeiro: será que eu conseguiria terminar? E
segundo: se sim, chegaria no último lugar? Foi uma noite bem longa essa de sábado.
Mas como qualquer outra manhã, a de domingo, dia 26 de junho, também chegou. Pulei
da cama logo cedo, com muito mais energia do que imaginei que poderia estar, depois
de uma noite de sono tão curta. E uma empolgação diferente. Difícil de descrever, mas
talvez similar à de uma criança indo para a sua primeira festa.

Desde a primeira vez, fiz questão de contar com um petit-comité me


acompanhando, dando importante apoio, com o qual me acostumei mal, até. E
testemunhando meus pequenos feitos. Meu filho ainda era muito novo, tinha pouco
menos de nove meses. E não pôde estar presente nessa minha estreia. Mas elas estavam
lá. Aquela que tinha me acompanhado desde os primeiros passos como corredor. E que
continuaria a fazê-lo em quase todos os seguintes. E também a minha irmã caçula, cujo
negócio é muito mais a música (autora até de uma canção que embalaria uma futura
comemoração minha) que o esporte. Mas que faria parte, ao menos dessas primeiras
páginas da minha nova trajetória esportiva.

A identificação foi natural e automática. Desde o primeiro contato visual, me


senti em casa naquela boa, saudável e divertida bagunça que o ambiente das corridas é.
As fotos não me deixam mentir. A alegria estava estampada no meu rosto pelo simples
fato de ali estar. Morrendo de medo, sem querer deixar isso transparecer, de fracassar,
de sair de lá sem o objetivo cumprido e sem a medalha de participação, objeto de desejo
para quem ainda não possuía nenhuma (pelo menos não na década, século e milênio).
Mas ansioso para que tudo começasse logo. Ver entre os competidores gente muito mais
enquadrada no arquétipo, atletas clássicos, reconhecíveis de longe, aumentou ainda mais
os temores. Em cada um daqueles que envergavam no peito números de papel fixados
na camiseta por alfinetes, eu reconhecia um potencial algoz. Deu vontade de desistir,
confesso. De deixar tudo para lá, de pegar o caminho de volta e retomar envergonhado
os treinos na área verde ou nas ruas e avenidas do meu bairro. Mas, na verdade, ali
estava alguém que já tinha superado barreiras bem maiores, aparentemente até
intransponíveis. Que há menos de dois anos marchava inexoravelmente para a doença,
para não dizer a morte. Que se afogava no trabalho dia e noite, tentando inutilmente
usar nicotina como tranquilizante. Que mal conseguia subir dois lances de escada sem
ter uma taquicardia. Não! Não havia por que temer aqueles 10 km. Nem que tivesse de
andar mil vezes para terminá-los, eu o faria com honra e dignidade. Se chegasse em
último lugar, ouviria com resignação as críticas e gracejos, aceitaria de bom grado os
aplausos piedosos... E recomeçaria. Mas não deixaria de tentar. Nunca.

Tudo era novidade. Receber uma sacola com uma camiseta de tecido
tecnológico (!), brindes e folhetos diversos foi um luxo. Colocar corretamente a pequena
peça plástica, apelidada de chip, amarrada ao cadarço do tênis, sob pena de não ter o
tempo de prova registrado e o nome ser riscado da lista final de classificação, um
desafio. Os rituais, como o do alongamento, individual ou coletivo, aos quais dediquei
boa parte do tempo antes da prova. E do aquecimento, aquela corrida em ritmo
confortável, que serve para despertar o corpo, principalmente quando a prova é matinal,
e avisá-lo do esforço pelo qual está para fazê-lo passar. Ao lado de algumas centenas de
companheiros e companheiras de prova, fazendo piadas entre desconhecidos para
descontrair, coisa que seria um hábito duradouro (e talvez meio irritante para alguns), eu
senti pela primeira vez o frisson que não queria deixar de ter nunca mais. Não vou
lembrar se foi buzina, tiro, 3,2,1, já... Ou se teve música ou não. Mas quando nos
liberaram para correr, eu me senti mais vivo que nunca. Renascido das cinzas.
Motivado, cheio de vontade e com toda a energia do mundo.

Aquelas trilhas estreitas do parque, ocupadas por tanta gente ao mesmo tempo,
ficaram ainda mais apertadas. O tempo seco (no meu retorno ao local, no ano seguinte,
para outra corrida, seria o contrário) fazia a poeira levantar. Mas o visual era
deslumbrante. Apesar do avançado grau de dificuldade, certamente eu não poderia ter
escolhido um lugar mais perfeito para começar.

Mas inexperiente ao extremo, cometi todos os erros a que tinha direito para um
estreante. A começar pelo ritmo, muito forte, como se a competição tivesse apenas um,
e não dez quilômetros de extensão, talvez o mais comum dos pecados dos neófitos. A
continuar pela hidratação: passei pelo primeiro posto de distribuição de água (em
garrafas de meio litro, coisa que me lembro de ter visto poucas vezes em corridas
posteriores) e, sem sentir sede aos 2,5 km de prova, optei por seguir em frente. Até o
segundo posto chegar, foi uma espera eterna. Na metade da corrida, eu já estava
destruído, desidratado, chamando a mamãe... Já tinha andado, relembrando o passado
como caminhante, quando a coisa apertou, em uma subida forte, daquelas que eu não
gosto até hoje, mas aprenderia a conviver. E ainda tinha uma volta inteira para fazer.
Bateu desespero. Quase fiquei por ali mesmo. Mas prossegui. Não sei nem porque,
como não saberia em muitas outras situações semelhantes no futuro, mas prosseguiria.
Quantas vezes eu caísse, tantas me levantaria. Trocando os verbos por andar e
correr. Na primeira das duas voltas, isso só foi necessário uma vez. Para a segunda, o
fôlego se foi. Travei disputas pessoais com adversários nas mesmas más condições,
alternando posições quando eu andava enquanto eles corriam ou vice-versa. Fazer
ultrapassagens era uma sensação gloriosa. Não pela competição em si, aquela que vale
premiações e condecorações e que, para mim, até por falta de opção, ficariam em
segundo plano. Mas pelo gosto de saber que meu treino, meu esforço, estava dando
resultado, me levando a conseguir correr melhor que algumas pessoas, pelo menos. Eu
não era mais o pária, pelo menos era o que eu pensava então. Mas ninguém é. A corrida
é um esporte onde não há vencedores e derrotados. Todos que cruzam a linha de
chegada têm o que comemorar. E aos que eventualmente não cruzam, por qualquer
problema que aconteça, sempre há a chance de fazer melhor na próxima vez. Parte do
fascínio da coisa está aí.

Com muito orgulho, a primeira medalha


Mas não que precise ser assim. Estar bem treinado e preparado é a melhor forma
de evitar o sofrimento nas provas. Quem não sofre nos treinos, sofre nas provas, é uma
máxima comum entre os corredores. Só que eu estava apenas começando, não poderiam
exigir de mim o savoir-faire. Foi uma odisseia a segunda passagem pelo percurso
irregular pelas trilhas do horto. Mas também inesquecível. Quando soube, tempos
depois, de histórias de lutas e vitórias em que a adversidade era infinitamente maior,
como doenças graves ou deficiências físicas, deixei um pouco de lado palavras fortes
como superação. Mas nessa especificamente, até me dou o direito. Mesmo com
dificuldade, buscando forças que não sabia possuir, tendo de caminhar três, quatro,
incontáveis vezes, consegui chegar ao final. A visão do pórtico inflável com a palavra
“chegada” foi extasiante. O que eu estava fazendo ali (pergunta que me fiz dezenas de
vezes pelo caminho)? Estava fazendo história. A minha, pelo menos. Estava feliz. Sem
saber direito o que fazer com aquela linda medalha que não era de primeiro, de segundo,
de terceiro, de nenhum lugar, enfim. Era apenas o símbolo da minha vitória pessoal.
Grande, quadrada, dourada, com o logotipo do patrocinador, o ano e o nome da cidade.
Era de participação, apenas um mero suvenir, mas para mim, tinha o mesmo valor de
uma medalha de ouro olímpica.

A comemoração foi em grande estilo. Como faríamos muitas vezes no futuro, eu


e a Janete levamos nosso próprio lanche, complementado com as frutas que eu nem
sabia que iria receber depois da prova, junto com a medalha. E por ali mesmo fizemos
nosso piquenique, o primeiro de vários, que iriam contar com muito mais gente depois.
O passeio pela cidade mais tarde também foi bacana. Depois de chegar às alturas no
sentido figurado, fui novamente a elas, ipsis literis, passeando de teleférico, vendo lá de
cima o território conquistado. No retorno, exibia com orgulho o meu troféu. Sim, a
medalha para mim assim valia. Para comemorar e mostrar para a família, combinamos
até uma churrascada, que trouxe certamente muito mais calorias que as perdidas durante
a batalha. Acho que estava no direito.

A alegria era grande. Talvez só não maior que a vontade de fazer a próxima corrida. Eu
estava conquistado, definitivamente, por esse admirável mundo novo.
Capítulo 7
Festa que se preze tem de ter brigadeiro

No day after à estreia, apesar do cansaço e das dores musculares, eu já procurava


na internet outras corridas para fazer. A vontade era de arranjar, o mais rápido possível,
uma companheira para aquela solitária medalha. Ainda não tinha muito traquejo para
encontrar, as competições até existiam, mas eu não as procurava no lugar certo. Deixei
passar, por exemplo, a corrida que comemorava o aniversário de minha própria cidade,
um mês depois da que fiz em Campos do Jordão.

Dois meses depois, tentei fazer minha segunda prova. Estava inscrito e conhecia
o lugar do evento, próximo à universidade que cursei, em Mogi das Cruzes. Mas me
confundi. Talvez nervoso (ainda principiante) fui procurar o tal supermercado usado
como ponto de referência do outro lado da cidade, quase pegando a estrada para a praia.
Até consegui chegar ao ponto certo, mas aí era tarde demais. Os competidores já tinham
largado. Mal sabia eu que, em muitas provas, existe o tapete na largada e o tempo de
cronometragem que conta é o líquido, que desconsidera o horário em que a prova
começa e vale apenas a partir do momento em que se pisa nesse tapete. Poderia ter
corrido assim mesmo, portanto. Mas acabei não o fazendo. Na lábia, conversando com
os devidos responsáveis, recebi a segunda medalha (enorme e ainda mais bonita que a
primeira) e uma camiseta de manga longa que adoro e continuo usando até hoje, mesmo
meio surrada. A viagem não foi de todo perdida. Mas ficou a frustração. Curada depois,
por outras corridas. Nada como uma depois da outra.

Fiz em seguida minha primeira prova mais distante, exigindo uma viagem na
véspera e consequente hospedagem. Corri pela primeira vez oficialmente em minha
própria cidade. Visitei a cidade que seria, a posteriori, considerada uma segunda
morada, conhecendo nela o meu futuro primeiro grande amigo das corridas. Fui para
outra cidade vizinha fazer uma competição que era de revezamento, mas que preferi
encarar sozinho, tendo que correr quatro voltas seguidas no mesmo trajeto. Passando
quatro vezes em frente de um botequim cheio de frequentadores admirados com a
disposição dos que iam e voltavam. A dificuldade da estreia tinha ficado para trás. Eu já
corria com bem mais desenvoltura, baixando vários minutos do meu primeiro resultado.
Todas as provas eram da mesma distância, os clássicos dez quilômetros. O meu tempo
se aproximava dos cinquenta minutos, uma marca que deixa um corredor bem longe do
topo da lista, preenchido normalmente por quem corre na casa dos trinta. Mas que
também costuma afastá-lo bastante do rodapé da mesma, onde estão, em geral, aqueles
que terminam acima dos sessenta, às vezes até bem acima.

Eu me sentia maduro, portanto, para tentar alçar um voo mais alto. E realizar um
sonho de infância. Aquele que eu achava ser exclusivo para deuses, gênios, mitos, mas
que, na fanfarronice do começo da adolescência, prometi um dia também fazer parte.
Ela tinha mudado bastante, ficado mais comercial. O que é natural, aliás: corrida
também é business. Não acontecia mais na virada do ano propriamente dita, não tinha
mais os fogos e o espetáculo de luzes. “Quem corre dez, corre quinze”, frase muito
comum (só mudam os algarismos), também é coisa de fanfarrão. Pode até ser verdade,
mas também pode ser sentença de fracasso, quando não de contusão mais séria. Eu
preferi, como de hábito, ir pelo caminho mais seguro. O do treinamento e preparação
sérios. Àquela altura, um pouco melhor informado, já usava calçados de melhor
qualidade, conhecia vagamente suplementos. Continuava treinando muito, de forma
exagerada e sem o vital descanso, ativo ou não, para recuperação. Mas comecei a fazer
algo que seria fundamental para a minha evolução enquanto corredor de rua.

Quando o doutor amigo perguntou “por que você não faz musculação?”, eu torci
o nariz. Tinha, como muita gente, preconceito. E ignorância. A figura do marombeiro,
do ambiente narcisista das academias, onde gente fora do padrão é malvista e mal
falada, era a imagem pronta sem retoques que eu tinha na cabeça. Não era algo que eu
quisesse para mim. Passara a adolescência inteira, quando músculos definidos são armas
de conquista, sem precisar deles. Não via motivo para querer ganhá-los depois dos
trinta. E mais: que corredor de fundo (não de quintal, mas o fundista, das distâncias
maiores, em oposição às provas mais curtas de pista, rasas) é musculoso? Praticamente
nenhum, é bem verdade. Eles são o oposto disso: geralmente mirrados, pernas finas
como riscos num boneco de desenho infantil. Mas quem disse que musculação é apenas
a chamada hipertrofia? Ninguém precisa se transformar no governador californiano e
vingar o futuro. Musculação, eu descobriria depois, é coisa muito mais ampla. É ganhar
força, mesmo que ela não salte aos olhos. É dar aos músculos resistência, que ou se tem
como patrimônio genético (felicitações aos privilegiados!), ou se ganha com trabalho
duro. É acelerar o metabolismo e injetar na corrente sanguínea não os aditivos proibidos
(ou não), mas os hormônios autoproduzidos do bem-estar. É emagrecer, mantendo ou
até aumentando o peso, já que a balança não é a melhor ferramenta para averiguar isso,
mas a calça jeans (que eu encolhera em dez números). É uma ferramenta para auxiliar
na corrida, mas está muito além de ser só isso. É ajudar a envelhecer melhor (e, de
preferência, mais lentamente também). Preparar músculos, ossos, tendões e articulações
para o inevitável e inexorável desgaste que o tempo traz.

Quando o professor me entrevistou, para medir com a pinça as minhas ainda


abundantes e indesejadas gordurinhas, e saber dos meus objetivos, eu tive até bom
desempenho na avaliação física. O percentual não era de corredor, mas também não era
de lutador de sumô. Os conceitos de flexibilidade (o alongamento, que eu não conhecia
quando entrei pela primeira vez na área verde e estranhei ao ver o sujeito pretensamente
empurrando uma árvore, tinha se tornado um hábito) e desempenho no teste de
abdominais em um minuto foram considerados excelentes, ou quase isso. O ambiente
que vi na prática era bem distante do cenário previamente pintado na mente. A
academia tinha sim as suas cavalgaduras, que ocupam três aparelhos ao mesmo tempo,
mesmo sendo um só indivíduo. Mas tinha também muita gente boa, simples, disposta a
ajudar e dar dicas ao novato. Gente mais jovem, com quem a convivência parece ajudar
a rejuvenescer. E também os mais velhos, sábios, dando lições de disposição e
jovialidade. Foi prazeroso, embora inevitavelmente dolorido, no início, começar a
transformar e remodelar meu corpo. Ajudaria muito a dar a essa velha carcaça mais
vigor e resiliência.

Começaram a entrar no meu dicionário algumas palavras novas, como


especificidade. Conceito dos mais óbvios, mas nem sempre colocado em prática. Se
você vai jogar golfe, treine no campo esburacado. Se for para uma regata, vá para o mar
ou para a represa. Se o seu projeto é correr uma São Silvestre, de nada adianta ficar na
planície. Um amigo diz gostar de uma frase que cunhei: bom elefante africano que sou,
gosto mesmo é das savanas. Mas teria de sair delas, mesmo que momentaneamente,
para vencer não só os quinze quilômetros, até então nunca dantes alcançados por mim;
mas principalmente ela, a mitológica subida da Avenida Brigadeiro, cantada em verso e
prosa pelos narradores esportivos. Encararia aquela que é vendida como se fosse a mais
difícil de todas as corridas do mundo. E a de maior distância também. Quantos não são
os leigos (e até os nem tanto, como alguns jornalistas esportivos) que a chamam de
“Maratona de São Silvestre”? Tecnicamente não é, já que maratona é o nome específico
dado a uma prova com 42,195 km de extensão. A Corrida de São Silvestre tem pouco
mais de um terço disso. Mas é importante (para não dizer obrigatória), pela fama e
tradição, no currículo de qualquer praticante do esporte. Nem que seja uma única vez.

A fama cria o mito. A transmissão ao vivo pela emissora que manda prender e
manda soltar nesse país, amplia a fama. Eu faria depois da SS (sigla criada para
identificar mais rapidamente a prova em tempos cibernéticos) muitas outras corridas,
umas inclusive bem maiores e mais difíceis. Mas, principalmente entre os não-
corredores, a pergunta era inevitável: “e a São Silvestre, você nunca fez?” Faria. E me
prepararia bem para ela, com muitos treinos longos (para os padrões da época) e muitas
subidas. Agora, eu não treinava mais seis dias por semana, mas quatro ou cinco,
intercalando sessões de fortalecimento e resistência muscular. E descansando um pouco
mais, melhor orientado por um profissional da área de educação física. Tinha confiança
de alcançar a meta, completando a prova. Mas nunca a expectativa de corrê-la de ponta
a ponta. Em meu relato pós-prova, escrito inicialmente só para mim, mas que acabaria
sendo publicado na internet, em um dos blogs de maior repercussão do meio, o do
corredor, jornalista e escritor Rodolfo Lucena, eu dissera que a maior dúvida era
quantas vezes eu teria de parar pelo caminho.

Mas ao mesmo tempo em que me preocupava em simplesmente conseguir


concluir, contraditoriamente (ou nem tanto), também tinha minhas metas de resultados.
Como incentivo, fiz uma autopromessa: se fechasse a prova abaixo de um determinado
tempo, no caso, o de 1h20min, me presentearia com um tênis top de linha. O registro
dos treinos da época mostra uma preparação relativamente bem feita, com bom volume
de quilometragem semanal, treinos bem distribuídos, incluindo os longos e as séries de
velocidade ou ritmo. Já tinha conseguido até superar, em treinos, a distância da prova,
mas sempre com pausas para ganhar fôlego, tomar uma água, enfim, dar um leve
descanso para seguir em frente. Cheguei a um pico de 57 km semanais no início do mês
de dezembro, uma boa marca para a época. Mas não fiz o chamado polimento,
diminuindo significativamente o volume à medida que a prova ia se aproximando.
Mantive mais ou menos a mesma rodagem. Até na própria semana da prova, que
acontecia em um sábado, rodei bastante, correndo três dias seguidos, de segunda a
quarta, com um treino de mais de 14 km no último dia. Descansei os dois dias seguintes,
no que fiz muito bem. Voltei a São Paulo, depois de ter ido buscar o kit (composto pela
camiseta, o numeral de peito e o chip de cronometragem) durante a semana, por falta de
contatos por lá então. E levando novamente a comitiva da estreia: esposa e irmã.

Ficamos todos encantados com o que vimos. Aquilo era outro mundo. Não
bastasse a beleza urbana, a pujança da região da Avenida Paulista, que até já
conhecíamos, mas sempre em passagens rápidas, no corre-corre típico do dia-a-dia dali,
a corrida em si era grandiosa, totalmente diferente das pequenas provas de interior que
eu fizera até então. Com exceção de uma de maior porte, em Campinas, eu só tinha feito
provas para menos de mil participantes. Estar ao lado de quinze mil corredores (fora
aqueles não inscritos, os populares “pipocas”, termo que a corrida emprestou do
carnaval baiano) e outros tantos milhares de espectadores era empolgante. Os
fantasiados, que até então eram vistos somente nas transmissões de TV, estavam todos
ali, dando o seu show à parte. E eram tantos que nem dava para enumerar: a tradicional
“noiva”, o “presidente da república”, o “maluco beleza”, o “herói” que passou pelos
raios gama, entre tantos outros. Gente carregando placas e faixas de todas as cidades
possíveis e imagináveis (com destaque para Cerquilho, que deve ter uma fábrica enorme
só disso), além dos mais variados objetos na cabeça: vaso de cerâmica, réplica de
ônibus, bateria de carro, cacho de banana. Cada um querendo aparecer mais que os
outros, mas todos muito animados e divertidos, além de receptivos. Não foi o meu caso,
mas eles atendiam com simpatia a todos que pediam para tirar fotos juntos.

A largada era só às cinco da tarde, pelo menos a da prova masculina. Foi uma
das últimas edições em que ela não foi conjunta. Mas ao meio-dia já havia bastante
gente por ali, se não antes. Nós chegamos por volta das três da tarde, a tempo de
acompanhar (sem conseguir ver direito, por causa do tumulto) a largada feminina em
frente ao famoso museu. A ansiedade era grande, assim como o calor. Os termômetros
marcavam trinta e dois graus, mas a sensação térmica era de bem mais, pelo abafamento
da região, cercada de prédios por todos os lados. O tempo parecia não querer passar. O
jeito era arrumar coisa pra fazer, mas pensando ao mesmo tempo, em economizar
energia para a longa empreitada. Aqueci e alonguei, na medida do possível, no espaço
exíguo. Tirei fotos registrando a alegria e a expectativa do momento. Quando faltava
apenas meia hora, fui me posicionar na largada. Nem parecia tão longe de onde o
relógio começava a contar, mas o curto trajeto, até a enorme e lenta massa humana à
minha frente se deslocar, levou um tempo bastante grande. Doze minutos, para ser mais
preciso. Eu estava, afinal, na 81ª edição da Corrida de São Silvestre.

O desfile pelo coração financeiro paulistano tinha apenas um quilômetro, mas


pareceu durar a tarde inteira. Cercado pelos dois lados por gente entusiasmada,
aplaudindo e incentivando, e também por milhares de colegas de esporte, eu me sentia
nas nuvens, feliz como qualquer um que realiza um grande sonho. Quando viramos à
direita na Consolação, pareceu até que o desfile iria virar corrida. Ao invés de apenas
uma das faixas, tínhamos as duas à disposição, a massa se espalhou e ganhou a avenida,
as calçadas, a entrada do grande cemitério, toda aquela longa e deliciosa descida. Onde
muita gente parecia querer voar, como se a prova terminasse logo ali embaixo.
Contrariando tudo o que todos diziam, nas revistas, nos sites especializados e nas
matérias televisivas durante a semana que antecedeu a prova. Cauteloso, desci na boa,
segurando o impulso de disparar, poupando meus joelhos e meu fôlego para todo o resto
que tinha pela frente.

Quando a descida acabou, alguns cenários bacanas apareceram, como a bonita


igreja à direita e o célebre edifício em forma de “S” à frente, na Ipiranga. E outros ainda
mais famosos, como a esquina imortalizada por Caetano. A São João aliviava, por dar o
primeiro copo d’água ao corredor esbaforido, alguns até já dando a batalha por
encerrada, rastejando com apenas quatro quilômetros rodados. Mas a avenida se
encerrava com a primeira subida, no acesso ao lugar onde todo mundo se aglomerava
novamente, depois da breve ilusão da dispersão. O famoso e temível elevado. Apelidado
de Minhocão, um monstro de concreto ligando regiões da cidade e passando ao lado das
janelas dos edifícios, com moradores ora incentivando, ora praguejando com a baderna.
Sem circulação de ar, parecendo um forno ligado na máxima potência. Com pequenas
inclinações para cima e para baixo, mal percebidas com aquele mundaréu de gente
ocupando as duas pistas e até a separação entre elas. Que tapava a visão de muitas
coisas, inclusive das placas de sinalização da quilometragem, tão importantes para
controlar o ritmo. Mas nada daquilo importava, a diversão era grande, a festa continuava
correndo solta.

Quando deixa a via elevada, a corrida entra num trecho peculiar. Ruas e
alamedas do bairro da Barra Funda, um contraste com as grandes avenidas de quase
todo o resto. E com intensa participação popular, inclusive uma célebre e santa
moradora que, mangueira em punho, distribuía água e alegria. A disputa pelos jatos
refrescantes é que era meio grande, nem sempre dava para desfrutar deles. Apareceria
em seguida a primeira rampa mais forte, no viaduto do qual se vê o Memorial da
América Latina. Para depois retornar, pegando mais à frente a subida de outro viaduto,
ainda mais forte e longo, também sobre a linha férrea.

Após tantas reviravoltas pelo meio do caminho, uma longa e plana reta, a da
Avenida Rio Branco, para dar uma relaxada. E nela a prova chega ao km 10 (não que eu
tenha conseguido ver a placa), onde quase todos fazem sua projeção do tempo de
conclusão. Eu passei com algo em torno de 54 minutos, um tempo bem mais alto que a
minha média de então na distância, mas justificável pelo tumulto. Ainda acreditando,
mas já começando a dar adeus ao tempo-alvo que daria direito ao regalo. Procurando
manter a concentração, a respiração sob controle e o ritmo constante na medida do
possível.

Depois da monotonia por um tempo, volta-se a um trecho mais divertido, que


acabaria se tornando o meu favorito de toda a corrida. O chamado centro velho, um
tanto degradado, não muito bonito de se ver, principalmente nos outros 364 dias do ano.
Mas com muitas belezas escondidas, ou nem tanto. Nomes famosos de lugares que se
deixam apreciar numa passagem rápida, mas marcante pela região. O imponente teatro,
as ruas e praças, o viaduto e o vale por sob ele, as arcadas. E mais gente concentrada
para ver, dedicando parte de seu último dia do ano para incentivar e torcer por estranhos
desconhecidos. Algumas vezes deixando em seus corações palavras e frases que não
vão ser esquecidas nunca mais. Uma que ouvi, em minha primeira passagem, foi algo
como “vocês se esforçaram muito para chegar até aqui e merecem terminar bem”. Na
segunda, dois anos depois, seria “todos vocês são vencedores, só por estarem aqui”. Um
dia eu tinha ouvido “vai rolando que chega mais rápido”. E fiquei feliz por não
existirem apenas pessoas assim.

Era chegado o momento de mostrar para o que eu tanto havia me preparado, por
horas a fio. Tantos e tantos treinos, imaginando outras subidas locais como se fossem
ela. Simulando, tentando me convencer de que era capaz. Mas imaginando como ela
seria, se tão feia como pintada ou se só jogada de marketing para tornar mais atrativo o
desafio para os marinheiros de primeira viagem. Ela apareceu de mansinho. Não
pareceu tão ameaçadora, mas logo ficou forte e implacável. A subida da Brigadeiro?
Não, a chuva. Justamente no começo da subida. Sem muito ameaçar, desabou de vez.
Um verdadeiro dilúvio, trazendo junto com ele pedras de granizo e muito vento (contra,
é claro). Enquanto tentávamos subir, a água da enxurrada descia com força, impedindo
qualquer tentativa de correr pelos cantos da rua, deixando apenas o meio livre e o
espaço ainda mais apertado para a verdadeira multidão. Não havia mais apoio de torcida
nenhuma, e nem dava para pedir isso. Não dava nem para ver direito para onde
estávamos indo, aliás. A cabeça tinha de ficar voltada para baixo, sob o risco de levar
pedrada no rosto. Tentava inutilmente proteger com as mãos, mas elas também tinham
que ser usadas para evitar maiores trombadas entre os corredores. A única vantagem foi
pela temperatura despencar em quase quinze graus, mas isso nem fazia muita diferença
àquela altura. Os tênis estavam encharcados, como todo o resto. Subi a Brigadeiro pela
primeira vez sem ter muita noção da dificuldade real dela, tão inóspita era a situação.

Se existe um lugar onde quase todo corredor quer chegar, é ali. O topo da
subida, a virada à direita para voltar à Paulista, aqueles quatrocentos metros finais de
puro êxtase. Eu voltaria lá outras vezes, inclusive para fazer um treino no percurso, dias
antes da prova de 2008 (da qual nem participaria, a propósito). Mas a emoção sempre
seria a mesma. Diria para um companheiro desconhecido e escreveria num texto sobre a
prova que aquela pequena reta valia um ano inteiro de preparação dura. Em todas as
vezes, uma enorme descarga de energia seria recebida ali, mas com reações diferentes a
cada passagem. A primeira foi de intensa vibração. O tempo perdido na chuva, que já
diminuíra bem, e na grande ladeira tinha sido muito grande e jogara velocidade lá para
baixo e tempo lá para cima. Sete minutos acima do tempo planejado. Mas isso não
interferiu na euforia ao constatar que eu havia corrido os 15 km de ponta a ponta, sem
qualquer interrupção, exceto aquela para pegar água nos postos de hidratação, sempre
tumultuados e com gente se debruçando neles depois de apanhar o seu copo. Pela
primeira vez, e logo na mítica SS, eu havia alcançado tamanha distância. Felicidade
plena.

Encharcado, mas feliz ao final da São Silvestre

Cheguei, na minha escala própria, a outro patamar como corredor. Para tomar,
mais adiante, gosto de vez pelas distâncias maiores e mais desafiadoras. Ficaria a
missão de baixar esse tempo para a próxima participação, que acabaria acontecendo
dois anos depois. E falharia. Apesar de bem melhor preparado e com provas mais
longas no portfólio, acabaria esbarrando no aumento do número de participantes e na
junção das provas masculina e feminina, não conseguindo desenvolver meu ritmo e
ficando bem aborrecido com isso, terminando com um minuto a mais que na estreia.
Desgostei um pouco disso tudo, da desorganização que presenciei, da forma pouco
cortês com que fui tratado, junto com outras reses, digo, corredores. E decidi que não
voltaria, pelo menos por algum tempo, a correr a prova. Que também tem o defeito de
interferir significativamente nas comemorações de final de ano. Para quem é da própria
cidade ou redondezas, dá tempo de voltar e curtir a ceia. Quem vem de longe, como
muitos de todos os estados e até outros países, por ali mesmo ficam. Opções para o
réveillon é que não faltam. Mas, para o meio termo, como quem mora a 100 km,
embola. Chegar em casa faltando duas horas ou pouco mais para a virada, sem banho
nem nada, não é a melhor maneira de entrar num novo ano. A polêmica entrega
antecipada da medalha no kit pré-prova na edição 2010 mostraria que eu fizera bem de
manter o meu boicote temporário.

Ficaria, a partir daí, mesmo depois da fantástica experiência de simular a prova


num treino noturno no percurso, na torcida, quase uma campanha, por uma edição
comemorativa, quem sabe a 90ª ou mesmo a 100ª, marcada para o ano de 2024, em que
a prova volte às origens, como certamente seria o desejo de seu criador, Cásper Líbero.
Imagino as dificuldades práticas, temo que conflitos de interesse impeçam e que isso
nunca se realize. Talvez eu nunca tenha a alegria de correr uma legítima São Silvestre à
noite, chegando com o raiar do novo ano e com o céu desenhado em múltiplas cores.
Mas ninguém vai me tirar nunca a felicidade da realização do sonho de infância.
Capítulo 8
Pé na estrada

Se fosse para ficarmos sempre no mesmo lugar, teríamos raízes, como as


plantas. Nascemos para percorrer o mundo, admirar suas belezas, respirar seus ares,
beber de suas águas, provar de seus sabores, conhecer suas gentes, percorrer os seus
caminhos. Por questões econômicas, muitas vezes, mas por pura preguiça, outras tantas,
deixamos de exercer esse direito. Trancamo-nos em casa aos finais de semana, depois
dos dias de labuta. E o corpo realmente merece o descanso. Mas a cabeça também
precisa dele. E, talvez tirando ler (que também é viagem, para a alma), não há higiene
mental melhor que viajar. Sempre gostei. Mas deixei um pouco de lado por um bom
tempo, no auge da fase workaholic, que felizmente não me trouxe maiores sequelas.
Pouco deixava meu canteiro e, quando o fazia, era para os lugares de sempre, a mesma
praia, as mesmas cidades, as mesmas paisagens, sistematicamente. Que não deixam de
ser belas. Mas que ficam ainda mais bonitas quando podemos compará-las a outras.

Esse espírito nômade e aventureiro ganhou corpo quando a corrida entrou


definitivamente em minha vida. Por morar numa cidade onde, pelo menos nos meus
primórdios como atleta amador, não havia muitas opções de corridas, tive, desde o
começo, que me habituar às viagens para praticar meu esporte. Através dele, conheceria
diversas novas cidades e aprenderia a admirar bem mais outras que já conhecia. Seria
levado a novas regiões, novos estados (e, espero, um dia também a novos países).
Aprenderia novos costumes, palavras diferentes, maneiras distintas de dizer as mesmas
coisas. Faria amigos virtualmente, mas que teria a oportunidade de abraçar
pessoalmente em verdadeiras celebrações, nos mais diferentes lugares. Iria
confraternizar, reunir amigos, fazer parte de excursões coletivas com destino a provas,
comboios com vários veículos ou mesmo apenas o meu, com a presença da família ou
de companheiros de esporte. Pegar estrada rumo a todos os pontos cardeais, onde quer
que uma nova corrida interessante fosse descoberta e, por qualquer motivo, chamasse a
minha atenção, despertasse o meu interesse e estivesse dentro do meu orçamento. Iria
descobrir que correr é divertido em qualquer lugar desse imenso planeta.

Houve, motivadas pelas corridas, diversas viagens curtas, do tipo bate-e-volta,


de um dia só. Apenas para fazer a prova ou, se muito, passear, almoçar e pegar o
caminho de casa. Na maior parte das vezes, para cidades próximas, dentro de um raio de
no máximo uns 150 km, digamos, com algumas exceções honrosas. Tendo de madrugar
para chegar a tempo quando o local era mais afastado. Mas houve também turismo
propriamente dito. Não tanto quanto eu gostaria, talvez. Pelo meu gosto, estaria cada
final de semana num novo lugar. Não seria possível, é claro. Mas já era bem mais do
que em qualquer outra época de minha vida.

O primeiro desses passeios foi logo na segunda corrida efetiva. A segunda


prevista, em Mogi das Cruzes, acabou ficando com um “x” nos meus registros. Tendo
notícia pela internet da tradicional Corrida Integração, realizada na bela e grandiosa
cidade de Campinas, me interessei de imediato. Era a 22ª edição da prova, organizada
por uma emissora de televisão da cidade e disputada num cartão postal da mesma, o
entorno da Lagoa do Taquaral e seu parque, ponto de grande procura dos moradores
para o lazer e os exercícios físicos. Procurei e encontrei na internet um hotel nos
arredores que seria de acomodações simples, mas permitindo acesso fácil e tranquilo ao
local do evento. Falaram em seis mil participantes embora a listagem oficial de
classificação acabasse mostrando pouco mais de quatro mil concluintes. De qualquer
forma, eram muitos os corredores agrupados naquele espaço meio apertado da largada,
muito mais que em minha prova anterior. E, nesses eventos maiores, a tendência é que,
com resultados semelhantes ao que se costuma ter normalmente, o nome apareça mais
no alto nos resultados. O nível médio cai bastante, muita gente vai de “paraquedista”.

Foi uma corrida bem divertida e com um percurso interessante. Tinha uma
subida forte, que me chamou a atenção logo em minha chegada à cidade. Antes das
mudanças no local da largada e chegada, anos depois, com requinte de crueldade de
ficar posicionado na altura do oitavo quilômetro da prova, onde a coisa normalmente já
começa a apertar por si só. Apanhei um pouco dessa ladeira, chegando a andar uns
poucos metros nela. Forcei mais do que devia na reta final, tentando talvez recuperar o
tempo perdido e cheguei não me sentindo muito confortável. Mas melhorei em quase
quatro minutos o meu tempo na distância. E depois comemorei passeando com esposa e
filho (este completando um ano de idade) pelo gigantesco shopping da cidade. E me
alimentando como um rei, como já fizera também na véspera, aliás. Roteiros
gastronômicos sempre fazendo parte do pacote.

Depois de disputar outras provas, no final de 2005 e começo de 2006, em


cidades próximas como Guaratinguetá, Taubaté, Caçapava e novamente Campos do
Jordão, no mesmo Parque Estadual onde a história havia principiado; e também de
correr pela primeira vez em minha própria terra natal, agendei minha segunda viagem
vinculada a uma corrida de rua. O destino seria a cidade de Santos, para mais uma prova
de grande tradição e nome: a vigésima primeira edição dos 10 km que levam o nome da
principal emissora de rádio e TV local. Essa de ainda maior porte, prometendo quase
dez mil participantes e entregando a lista com cerca de 8500 que a finalizaram.
Chamada, com méritos, de São Silvestre da Baixada Santista.

Santos é uma cidade que respira esporte. Passear pela orla ajardinada é garantia
de ver muita gente, de todas as idades, praticando atividade física. Caminhantes,
ciclistas e também muitos corredores. O cenário é inspirador, como de tantas
localidades à beira-mar. E os habitantes locais não se fazem de rogados. Têm fama de
grandes esportistas, em diversas modalidades. E um concorrido campeonato municipal
de pedestrianismo, com várias etapas em diferentes regiões da cidade, para uma das
quais eu voltaria para participar, algum tempo depois, como membro honorário de uma
gloriosa equipe e associação de corredores de lá.

Frequentador habitual do litoral norte, mais próximo de casa, eu não conhecia


até então a região. E gostei do que vi. A cidade era simpática e acolhedora, como seu
povo. O hotel, também escolhido pela internet, era bastante antigo, um casarão
reformado bem próximo à praia onde acontece a chegada da prova. E também da
agitação noturna, com muitos bares, restaurantes e pontos comerciais em geral. Durante
o dia o passeio foi uma beleza, o jantar na cantina de massas foi delicioso. Mas a noite
foi longa. O barulho dos baladeiros, seus carros e suas músicas no último furo
simplesmente não me deixaram dormir. Acordar na manhã seguinte foi um tremendo
sacrifício. Que eu me acostumaria a fazer mais para frente, depois de outras noites mal
dormidas pré-corrida.

Uma peculiaridade dessa prova é o início em outro ponto bem afastado da


chegada, no centro da cidade, defronte à sede do jornal do mesmo conglomerado de
imprensa. Peguei um táxi e cheguei bem cedo, ainda com pouca gente no lugar. Mas ele
ficou pequeno para a multidão que foi chegando e se acumulando perto do local da
largada, num empurra-empurra danado. Destacavam-se, na multidão, corredores
claramente de elite, ou quase isso, com todo porte de atletas. Mas também o alto-astral
de outros visivelmente fora de forma, participando só mesmo pela festa. Há lugar para
todos no espaço democrático que é o ambiente das corridas de rua. Desde que haja
respeito de parte a parte, a convivência entre corredores de primeiro nível, corredores
amadores e até os não muito bem conceituados “caminhantes metidos a corredores”,
que eu mesmo fora um dia, costuma ser harmoniosa.

Ao contrário da Integração campineira, quando a dispersão foi


surpreendentemente rápida, em Santos a coisa demorou bem a fluir. A dificuldade para
driblar os mais lentos, que insistiam em empacar em frente à massa, era grande. Não
que eu esteja entre os mais rápidos, longe disso. Mas sempre, desde as primeiras
corridas, procurei ficar em meu lugar, evitando estresse e atropelos. Corrida é lazer.
Quando parecia que a coisa iria deslanchar, um túnel logo no primeiro quilômetro tratou
de complicar tudo de novo. E é impressionante a mania que as pessoas têm de gritar em
túneis. Coisa chata, sô!

Tirando esses percalços iniciais, no resto a prova foi tranquila e gostosa de fazer.
O percurso totalmente plano ajudou um pouco a recuperar o tempo perdido lá atrás. Mas
o calor, costumeiro do evento e que sempre seria o vilão em quase todas as minhas
fábulas, tratou de atrapalhar os objetivos. As parciais mostradas a cada placa de
quilometragem mostravam que eu não estava ali para conquistar um grande resultado.
Nem a boa estrutura de hidratação, que me faria não só beber bastante água, mas chegar
praticamente ensopado (uma das fotos tiradas de mim no percurso, que eu compraria em
um site especializado, mostra bem o quanto), resolveu totalmente o problema. Nos dois
quilômetros finais, pela orla, eu não me sentia disposto a acelerar e repetir os tempos na
casa dos 50 minutos obtidos em corridas anteriores. Fechar em 54’ não foi motivo de
grandes comemorações, mas ficou de bom tamanho, pela confusão e pela regularidade,
terminando inteiro e sem andar em nenhum momento. Valeu o passeio. E o “passeio”
também.

Daria seguimento às minhas corridas domésticas, realizadas nas cidades do meu


Vale do Paraíba, no litoral e na Serra da Mantiqueira. Novas cidades vizinhas seriam
visitadas, como Caraguatatuba, Jacareí, São Sebastião e Guararema. A nova aventura
estrada afora, no final de 2006, seria para bem mais longe que as demais anteriores.
Sairia, pela primeira vez, do estado de São Paulo para correr. No estado vizinho de
Minas Gerais, que tem localidades próximas, a 60 km ou pouco mais daqui. Mas indo
dez vezes mais longe que isso, para a capital do estado, que os mineiros chamam
carinhosamente de Belô ou “Beagá”. Que eu até já conhecia de passagem, a caminho da
casa dos pais de minha esposa, no interior da Bahia. E também do casamento de uma
prima, algum tempo antes, e cuja festa havia sido justamente onde aconteceria a prova.
Ao redor de outra lagoa, mas essa muito maior e mais conhecida, a da Pampulha. Cuja
volta dava o nome à prova, popularizada pela transmissão ao vivo pela televisão e
atraindo grandes nomes do atletismo, nacional e estrangeiro. Convivência propriamente
dita com eles, não há. Via de regra, ficam confinados num espaço à parte, ao qual não
temos acesso. Como sempre chegam muito antes, não costumamos vê-los em ação.
Somente em corridas com traçado tortuoso, com idas, voltas, retornos e “grampos” é
que, às vezes, os pegamos de frente, voltando quando ainda estamos indo. Cenas bonitas
de ver. De gente tão veloz que nem parece ser do mesmo planeta que o nosso.

Num evento de maior porte, não tão grande quanto a São Silvestre, mas em
franca expansão (mais de seis mil concluiriam essa oitava edição), a retirada do kit ficou
restrita ao dia anterior. Nada de poder pegar chip e número de peito na hora da prova. O
visual da lagoa era inspirador e suas cercanias, planinhas, prometiam ajudar no
desempenho. O que dava medo era a temperatura. No ano seguinte à minha
participação, ouviria dizer que a ambulância trabalhou como nunca, com termômetros
marcando bem mais que trinta graus. Na manhã da minha prova, eles ficaram mais
mansos, chegando a uma máxima de 28ºC. Para um mês de dezembro, foi bônus, quase
bênção.

A viagem rodoviária bastante longa na véspera da prova não foi algo lá muito
recomendável. Mas, em plena crise aérea, que sucedeu aquele gravíssimo acidente,
acabou sendo a opção mais sensata e segura. O hotel escolhido foi na área central da
cidade, numa das principais avenidas e perto de vários pontos turísticos. Bem distante
do local da prova, onde as acomodações, me disseram, costumam ser bem mais caras. O
que motivou preocupação com o transporte. Antevendo dificuldades para estacionar por
perto, deixei o carro na garagem do hotel. Mas a lotação (barata e ligeira) levou a mim,
Janete e a vários dos corredores que também estavam hospedados no mesmo lugar (o
café da manhã só tinha gente usando camisetas de corridas, dos mais diferentes lugares).
E nos deixou à beira da grande “poça” com bastante antecedência para toda a
preparação necessária.

Começaria uma tradição: a de conhecer pessoalmente colegas corredores com


quem mantinha contato através da internet, frequentador assíduo de fóruns e sites que
me tornara. Fazer novas amizades seria um dos melhores “efeitos colaterais” da corrida.
Já havia criado uma página pessoal para registrar meus textos sobre as corridas, mas
ainda não havia qualquer repercussão. Mais adiante, ela seria responsável por boa parte
dos grandes amigos que eu viria a conhecer. Além de um corredor do interior do Rio de
Janeiro, que me abordou e com quem bati um papo antes da prova, encontrei também
minha prima e seu marido, também adeptos. Ele, mais experiente, já colecionava várias
participações na Volta. Ela, estreando nas corridas oficiais e, destemida, partindo logo
para essa distância considerável de quase dezoito quilômetros. Foi muito bom
reencontrá-los e conversar. Assunto em comum é o que não falta para corredores.
Ambos concluiriam a prova, e bem. E nos receberiam mais tarde, com muita gentileza e
hospitalidade, em um belo e animado almoço na casa deles.

As fotos que tiramos, eu e Janete, antes da corrida começar mostram claramente


um casal feliz. Com problemas, dificuldades, briguinhas bobas (ou nem tanto) como
qualquer outro. Mas que a corrida e tudo em torno dela uniria ainda mais. As viagens
passaram a ser um momento nosso, um tempo para ficarmos juntos, para curtirmos um
ao outro. Com filho pequeno, contávamos sempre com o inestimável apoio da vovó,
minha queridíssima mãe, para que o projeto saísse do papel. Não poderia ser sempre,
mas quando dava, era só alegria. As imagens não mentem.

A alegria de estar junto dela

A transmissão ao vivo de uma corrida em rede nacional deveria ser benéfica para
o esporte. Ao popularizá-lo, trazer suas imagens e seu ambiente para dentro da casa das
pessoas, deveria ser tão somente um incentivo para a prática do mesmo, angariando
novos adeptos e, com o crescimento do mercado, nos dando novas e cada vez melhores
opções de corridas. Certo? Em termos. Acredito nas palavras que iniciam este
parágrafo. Mas existem, por detrás de tudo, interesses que não são exatamente os dos
praticantes do esporte. A grade de programação empurra o horário de largada de provas
muitas vezes longas, com durações que podem ultrapassar horas, para números nada
recomendáveis e tampouco saudáveis. Na Pampulha, na Meia Maratona do Rio e,
principalmente, na Maratona de São Paulo, o mais grave dos casos, todas elas provas da
parceria entre a principal emissora do país e uma mesma empresa organizadora, o
problema é recorrente. Houve anos em que, para piorar, aconteceram atrasos de mais de
trinta minutos, para que pudessem encerrar a transmissão de uma partida importante de
voleibol, por exemplo. Nada contra o esporte em si, também já fui praticante e ainda
gosto muito de assistir. Mas jogar na arena para os leões, para não dizer na frigideira de
óleo fervente, pobres corredores que não estão na elite, são às vezes até desrespeitados
pelos locutores mal informados, chamados pejorativamente de “atletas de final de
semana” (embora eles existam, são minoria absoluta em corridas longas, que exigem
muito treino e boa preparação), é um enorme descaso. Depois que os quenianos chegam
e as câmeras são desligadas, ficamos nós, correndo às vezes até bem depois da hora do
almoço, com sol a pino e gente tendo que ser atendida às pressas por insolação ou
desidratação.
Apesar dos pesares, a prova em si foi bastante proveitosa. Eu até já havia
percorrido distâncias maiores, mas considerei essa um desafio interessante. O tumulto
foi grande na largada, com diferença considerável, cerca de sete minutos, entre os
tempos líquido e bruto. E também durante a corrida, com desvios compulsórios na
calçada para fugir da aglomeração, e fiscais de prova anotando os números de quem
supostamente “burlava a lei”. Ao redor da lagoa, pitoresco observar as obras do criativo
e longevo arquiteto, com evidente destaque para a bela igreja, ainda nos quilômetros
iniciais do trajeto. Durante quase todo ele, grande apoio popular, similar ou até mais
intenso que o das ruas de São Paulo em 31 de dezembro. Na região nobre, pontilhada de
casas de alto padrão, uma cena inusitada e marcante, simbolizando a solidariedade de
um povo: de uma delas, o morador virou o chuveiro de sua piscina para o lado de fora
do muro, garantindo o “banho” para quem passava. Gesto nobre. E útil, já que o calor
aumentara bastante no decorrer do caminho, quando o sol deixou as nuvens.

Não tinha conseguido manter o ritmo esperado durante a corrida, vinha numa
toada mais conservadora. Tentei me estimular, escolhendo ao acaso, como faria muitas
vezes em outras corridas, um adversário para tentar adequar o meu ritmo ao dele. O
“coelho” selecionado dessa vez, entretanto, foi um fracasso retumbante. Parou menos de
um quilômetro depois. Obrigou-me a seguir por conta própria, mantendo a passada
lenta, mas regular. A passagem pela marca parcial dos 15 km, fosse o resultado da São
Silvestre, não me daria o prêmio prometido, mas me deixaria bem mais satisfeito que o
próprio. Da barragem, um pouco à frente disso, já dava para ver a chegada da prova, só
que faltando ainda bastante para chegar até lá. Toda uma longa curva, repleta de gente
sofrendo os efeitos do calorão. Algo que viria a acontecer inúmeras outras vezes e que
sempre seria um fator psicológico negativo, difícil de controlar. A técnica do “olhar
curto”, alcançando apenas uns três metros adiante e evitando o que está além disso, até
seria sugerida pelos mais experientes, mas nunca funcionaria bem para mim.

Concluí a prova em 1h38min, um tempo que não me deixou exultante. Mas


valeu, e muito, a experiência. Terminar mais uma prova de distância razoável e em
condições climáticas adversas, sem ter de andar, já era uma vitória. Curioso foi ter de
subir um morrinho, depois de correr o tempo todo no plano, para ir buscar a medalha de
participação, muito bonita e estilizada com o monumento-símbolo do local. Tomei
coragem e tirei uma foto com um dos corredores fantasiados mais chamativos, o sujeito
que corre coberto por “vegetação”. E fui me trocar, no espaço ínfimo e pútrido do
banheiro químico. Como não dera para passear muito na véspera, poupando energias
para o esforço da prova, o lazer ficou para a noite de domingo, onde jantamos muito
bem num restaurante típico. E para o dia seguinte, para o qual reservamos também a
viagem de regresso.

Outros lugares foram sendo descobertos. Ou redescobertos, através de suas


corridas. Estive em Aparecida, Bom Jesus dos Perdões, Ribeirão Pires, Potim,
Pindamonhangaba. Voltei a fazer provas nas cidades próximas que já havia visitado
antes. Seguia aumentando a disposição, a vontade e as distâncias. E, já começando a
pensar em alçar voos mais altos, me interessei por uma corrida diferente de que ouvi
falar. Até então, já tinha feito provas ou totalmente urbanas, ou as chamadas rústicas,
em parques e trilhas. Asfalto ou terra. Em areia, minha experiência se resumia a um ou
outro treino leve e curto na praia de Tabatinga, divisa entre Caraguatatuba e Ubatuba,
onde costumava passar as férias e feriados no período pré-corridas. Mas topei assim
mesmo o desafio. E um dos grandes: 25 km, uma distância que eu nunca atingira, nem
em treinos, até ali. E nesse terreno totalmente atípico para mim. Por sorte, eu veria
depois, algo diferente do que eu esperava. Ao invés de areia fofa, uma mais dura, tão
compacta que permitiria até uma inusitada quadra de tênis na praia. Anos depois, ao
fazer outra prova no mesmo local, só que bem mais longa, a surpresa seria inversa. Mas
isso é outra história.

Iria com esposa e filho para uma pequena pousada na cidade de Bertioga, que eu
também não conhecia, apesar da relativa proximidade. Não deu para desfrutar muito do
bonito final de semana na praia, porque o pequenino andava meio adoentado, uma
daquelas gripes comuns na faixa etária. Mas deu para passear um pouco pelas
redondezas, fazendo a retirada antecipada do kit no próprio local da prova e tendo uma
vaga ideia do que iria enfrentar no dia seguinte. A outra ponta da praia, onde
aconteceria o retorno, parecia distante, quase inalcançável. Deu um friozinho na barriga.
Nem dormi direito, não sei se por causa desse medo, da agitação, de estranhar a cama
ou de tudo isso junto. Na manhã seguinte, acordei bem disposto, entretanto. E caprichei
no farto desjejum. Não exagerar diante de tantas opções seria um desafio que eu teria de
aprender a enfrentar.

Outro inimigo que não se pode vencer é o sol. Nunca se sabe exatamente quando
ele vai estar presente, até os mais conceituados meteorologistas levam baile dele
eventualmente. Quando ele se esconde, para o corredor típico, costuma ser uma alegria.
Mas nem sempre isso ocorre. Em algumas provas, ironicamente as mais difíceis, às
vezes, ele vem e brilha intensamente, castigando pra valer quem está debaixo. A solução
estaria, teoricamente, em simular as condições de prova, treinando no horário em que
elas ocorrem. Uma dificuldade prática. Durante a semana, isso é pleno horário de
expediente, e as conquistas esportivas (ainda) não garantem o leitinho das crianças. Aos
finais de semana, tem prova e/ou a véspera é reservada ao descanso. Aqueles em que
não há corrida acabam sendo as únicas oportunidades para isso, portanto. Ou a época do
horário de verão, na qual o final de tarde, meu período habitual de treinamento, ainda é
brindado com o sol forte de uma hora antes.

E naquele domingo de maio de 2007, ele, o sol, esteve presente com força quase
total. O horário da largada poderia ter colaborado um pouco mais conosco. 8h30min,
mais algum atraso, não foi o ideal para tal disputa. Mas era o que tínhamos em mãos. A
corrida começou fora da areia, para minha surpresa. Os dois primeiros quilômetros
foram no asfalto da avenida que contornava a praia. Só então entramos nela
propriamente dita. Para um longo passeio à beira-mar. O cenário litorâneo começou
fascinante, como sempre. Mas foi se tornando monótono e repetitivo por parecer sempre
igual, à medida que o tempo ia passando. As praias, sem um limite claro, se alternariam,
recebendo denominações diferentes a cada trecho. Mas parecia uma só longa e
interminável faixa arenosa de 11,4 km de extensão. Lembrava muito correr na terra, a
textura era semelhante. Com exceção dos muitos “riachinhos” desaguando no mar,
alguns com desagradável e característico odor de esgoto.

Comecei a prova num ritmo forte, que fui readequando aos poucos, com o calor
e o cansaço natural no avançar pelo terreno. A denominação “Interpraias” tinha
significado prático pela breve saída do padrão, uma espécie de trilha unindo a ponta
final da grande praia à outra, bem mais badalada e ocupada por diversos prédios e
condomínios horizontais. O trecho percorrido nela seria curto, uma pequena amostra,
que mal deu para sentir o quanto era diferente o tipo de piso. Uma areia bem mais solta,
que me faria sofrer um bocado numa prova futura. O caminho de volta pela mesma
trilha e, lá longe, surgiu novamente a ponta da praia de onde eu tinha saído, mais de
uma hora antes. O arco à beira da lagoa belorizontina pareceu insignificante, diante
daquilo.

O caminho de volta foi marcado por uma dor aguda na região do tornozelo
direito, que felizmente não se transformaria em nenhuma lesão mais séria. E pelas
comparações com outras provas de distâncias menores que já havia feito. Os 15 km da
SS, os quase dezoito da Volta da Pampulha, os 21 km das meias maratonas. Em todas
essas parciais, registrei e constatei que estava abaixo da média histórica, correndo com
alguma dificuldade, mas ainda projetando resultados favoráveis para uma estreia na
distância. Mas os quatro quilômetros finais, que pareciam tão pequenos diante do total,
é que realmente foram complicados. Ali o fôlego raleou, a musculatura estava fatigada e
o rendimento despencou subitamente, transformando minha corrida numa caminhada
um pouco mais ligeira. Nem toda água e nem todo carboidrato em gel (suplemento que
eu usava até em provas abaixo de 10 km, até esquecer um dia na mochila e correr 21 km
sem eles) seriam capazes de me recuperar.

Um sol para cada um em Bertioga

Fazendo esse último pedaço com um ritmo médio de sete minutos por
quilômetro, por muito pouco não acabei a prova acima das 2h30min, que eu considerava
o limite do aceitável. Vários outros terminariam ainda depois de mim, mas fechei essa
prova não só extenuado, mas também receoso quanto ao meu futuro nas provas de mais
longa duração, temendo não ser capaz de seguir adiante, embora disposto a continuar
insistindo. Precisei do apoio da Janete para ajudar a me recompor e tive de dividir a
atenção dela com o filhote, bateu até um certo ciumezinho na hora... Sentei e desmontei
na areia, deixando as ondas e a água morninha da arrebentação servirem como
analgésico. E, mais tarde, na churrascaria, um belo espeto misto com toda a proteína que
se tinha direito e um pouco mais, para completar o tratamento.

Deve haver pouca gente no mundo que não seja fascinada pelo Rio de Janeiro.
Por mais que se ouça falar de violência, o que não é de forma nenhuma um “privilégio”
só de lá, a cidade faz jus totalmente à alcunha de maravilhosa. Pela beleza de seus
cenários naturais, deslumbrantes e famosos em todo o mundo. Mas não só. Eu
descobriria no lugar um algo mais, que me encantou tanto quanto as praias e as
montanhas: a sua gente. O jeito de ser do povo carioca é único e dá ao lugar um charme
irresistível. Gente simpática, boa de conversa, de sorriso fácil e amizade ainda mais. O
carioca é o amigo de infância que você acaba de conhecer. Em tempos de internet, até o
amigo de infância que você ainda nem conhece pessoalmente. Nesta minha primeira
passagem, como corredor de rua, pela cidade, depois de mais de vinte anos ausente, isso
não foi sentido de perto, pois ainda não havia feito os devidos contatos. Ao voltar,
menos de um ano depois, no entanto, seria recebido com tanta cortesia e consideração
que jamais iria me esquecer. No Rio, passei a me sentir em casa.

A oportunidade de ir correr uma prova de sonho na cidade tal qual surgiu


quando descobri uma assessoria esportiva de São Paulo que organizava, já havia algum
tempo, pacotes de viagens para essa e outras localidades, fora do país, inclusive. Bem
recomendado por um colega que já era freguês habitual, adquiri duas vagas. Um custo
razoável para o casal, mas mais em conta que os preços praticados pelas agências de
turismo convencionais. Tinha bem mais gente fazendo o mesmo. Seis ou sete ônibus –
não me lembro bem – deixaram a estação de metrô na noite, quase na madrugada de
sexta para sábado. Apesar de passar de volta em São José pelo caminho, simplesmente
não havia como esperar à beira da estrada, em plena madrugada, correndo riscos
desnecessários, inclusive o de perder a condução. O leito era até confortável, mas sem
qualquer costume de passar a noite viajando desta forma, penei. Tentei dormir, mesmo
incomodado com o barulho do filme em DVD. Quando ele acabou, um alívio, mas nada
das pestanas caírem. A viagem de 450 km foi longa e cansativa. No trecho fluminense
de serra, quando estava quase finalmente conseguindo dar um cochilo, as freadas
bruscas me despertaram. Já chegando e doido para desabar na cama do hotel, a polícia
rodoviária ainda resolvera parar três dos ônibus do comboio e pedir os documentos de
todos os passageiros. Quase uma hora perdida, literalmente. Só às 8h30min do sábado,
instalado e de café da manhã tomado é que finalmente pude cair no sono. Mas não
muito. Às 11h já estava de pé, caminhando pela praia mais próxima e curtindo o cenário
fantástico.

Estava incluído no pacote também outro passeio, a um dos pontos turísticos mais
famosos da cidade e do planeta. Subir os setecentos e tantos metros (de trenzinho, meio
caro, mas melhor que ir correndo na véspera da meia maratona) do Corcovado foi bem
bacana. O sambinha no vagão era animado, o visual, de tirar o fôlego. Pena que o dia
não estava lá muito bonito, um céu azul deixaria tudo ainda mais perfeito. Mas foi bom
demais, religiosidade à parte, sentir a energia daquele lugar. E ser abençoado por Ele,
para que tudo corresse bem no dia seguinte. Alguns dos integrantes do grupo esticaram
o programa, indo ao Maracanã assistir a uma partida entre o Flamengo e sabe-se lá
quem. Até gostaria, mas preferi descansar um pouco. Para depois ter uma noite
agradabilíssima. Por indicação de um funcionário do hotel onde todo o pessoal que veio
de SP ficou hospedado, fomos parar num rodízio de pizzas, massas e crepes, ali perto
mesmo, no Catete. Tudo o que eu gosto, no capricho e com direito a uma enorme
variedade. Comi tanto que nem sei como consegui correr poucas horas depois. Achei
que ia dormir feito uma pedra, mas não foi bem assim. A ansiedade era grande, mesmo
que não fosse a primeira meia maratona e nem tampouco a maior distância já
percorrida. O sono foi pouco, mais para uma série de cochiladas interrompidas. Mas
serviu.

Em um dos cenários mais lindos do mundo

A grande vantagem de ter ido com o pessoal da equipe foi não ter de fazer
absolutamente nada que não fosse correr. Eles retiraram o kit na véspera e também nos
levaram até o local da largada, comodidades importantes. No Rio, estrategicamente,
para aproveitar as maravilhas do cenário, as provas longas não são de ida e volta e nem
tampouco em voltas. Parte-se de um ponto da orla e chega-se até outro. No caso desta
prova de setembro (que também ocorreria em outubro e em agosto, nos anos seguintes),
o começo é na praia do Pepê, em São Conrado, célebre pela prática de voo livre e
escalada à Pedra da Gávea. Passando pela estreita Avenida Niemeyer, de cenário
deslumbrante à direita e o Morro do Vidigal do lado oposto. Chegando às praias mais
famosas e movimentadas da cidade, Leblon, Ipanema e Copacabana. Deixando a orla
momentaneamente em Botafogo, passando por túneis abafados, terror dos
claustrofóbicos. E chegando ao Aterro do Flamengo, com a pintura natural do Pão de
Açúcar logo ao lado. A outra grande prova da cidade, que eu faria futuramente, no
dobro da distância dessa, já dava ao corredor o gosto da chegada ali mesmo, sem
peripécias. Esta não, ela tem um quê de maldade de quem criou o percurso. À altura do
décimo quinto quilômetro, vê-se a chegada do outro lado da pista. Bastariam alguns
passos para atingi-la. Mas faltam ainda seis milhares de intermináveis metros para que
ela seja legítima. Este trecho de ida e volta, chamado de “grampo” por alguns
corredores, é um teste de resistência, física e psicológica. Mais que a longa subida no
começo da prova, que é dura, mas enfrentada no auge da empolgação, e quase nem se
sente.

Um grande prazer foi ter ao meu lado, antes e durante parte do percurso, um
amigo muito querido. A primeira das grandes amizades que a corrida me traria. Com
idade suficiente para ser meu pai, pouca diferença para o próprio, até. Mas uma empatia
e uma afinidade de irmão. Jovial, cheio de energia, incansável, ele seria companheiro
não só de muitas provas, pela proximidade de nossas condições físicas. Mas também de
muitos treinos conjuntos, além de muitas celebrações, já que nossas famílias também se
aproximariam bastante. Com ele ali para bater papo, o tempo passou rápido, e olha que
a espera foi grande. Como nas demais provas transmitidas pela emissora líder, todos
tivemos de aguardar o programa esportivo de domingo entrar no ar. Por sorte, quase um
milagre, a temperatura era agradável, inacreditáveis dezenove graus. No final de semana
anterior, o Rio tinha sido brindado com um sol de 36ºC. Que alívio!

Animadíssimos, muito empolgados, juntos começamos a prova, subindo com


tranquilidade a longa rampa. Deparando-nos com cenas tocantes, como a do corredor de
muletas, com as quais faria todo o trajeto. Nonsense, como a corredora que parou num
beco para fazer um xixi, sem qualquer pudor. E agridoces, como os meninos da favela
interpelando os corredores, querendo bonés ou quaisquer outros objetos de lembrança,
oferecendo as mãozinhas para o tapa de cumprimento. Pouco conhecedor do lugar, mas
um pouco mais que o companheiro, fiz o trabalho de guia turístico, dizendo os nomes
dos lugares por onde passávamos, baseado nos estudos do mapa do percurso no
programa de computador com as imagens do alto.

Pelas duas primeiras praias, tive a companhia do amigo. Na rua que liga a
segunda à terceira, ao diminuir para pegar o copo d’água, me distanciei dele, não mais o
reencontrando até a chegada. A partir de “Copa”, a corrida foi solitária, mas não menos
marcante. Percorrer toda a avenida ao longo da princesinha do mar foi uma bela
experiência. O Atlântico de um lado, os prédios imponentes de outro, o agito, mesmo
com o friozinho (abafado, úmido, bem diferente do que eu estou acostumado por aqui).
Tudo bom de ver e de sentir. Deixar esse trecho tão lindo para entrar no concreto dos
túneis de Botafogo é um pecado. Mas leva a um trecho que te ensina a ser mais forte,
nem que seja na marra. Não fui muito, desanimei um pouco depois de passar pela área
fervilhante de tendas das assessorias, mesmo recebendo o incentivo da Janete, que me
reconheceu na multidão. Tive que parar rapidamente para amarrar o cadarço, coisa que
nunca havia acontecido até então em nenhuma corrida. E, aborrecido porque acreditei
que o retorno já estava ali, quando na verdade ainda não estava, perdi um bom tempo
transformando a corrida em caminhada.
Com o mestre e amigo

Recobrando a consciência de que podia ainda ao menos terminar a prova abaixo


das duas horas, que é um tempo satisfatório para a maior parte dos corredores “mortais”,
me reanimei na pista oposta do Aterro. Só não tinha mais muito fôlego e nem músculo
àquela altura. Mas consegui cumprir a última meta, por menos de um minuto. Cheguei
feliz, comemorando de punho para o alto. Como também estava o veterano, já ali há
dois minutos. Pena que não pudemos comemorar juntos, ele havia vindo em outra
excursão e tinha de retornar logo. Com mais tempo, podendo esperar até às quatro da
tarde, tomei meu banho relaxante e fui almoçar, mais uma vez uma das orgias
gastronômicas que fariam parte de quase todas as grandes festas, como essa. O Rio
estava no meu coração, definitivamente. E eu voltaria outras vezes a ele, sempre com
muito gosto.

Falar em corrida é falar em amizades. Para mim, são coisas indissociáveis. As


corridas trazem novos amigos. E os amigos nos levam a novas corridas. Em 2008, eu já
havia estreado na nobre distância tão almejada, já tinha um site sobre o assunto na
internet com um número considerável de visitantes, muitos dos quais se tornariam meus
correspondentes, com uma troca de ideias e informações muito útil e válida. Tinha
conhecido pessoalmente alguns amigos virtuais do Rio, na minha volta à cidade, para os
primeiros 42 km. E mantinha laços de amizades também na outra extremidade da Via
Dutra. Seria com um grupo misto dos dois estados que a próxima grande aventura
aconteceria. Por obra e gentileza de uma das pessoas mais corteses e generosas que eu
conheceria na vida. Gente de finíssimo trato e cultura invejável, daqueles que podem
discorrer longamente sobre assuntos que a gente só finge que sabe algo sobre, para
parecer mais inteligente. Foi ele quem me convidou para acompanhá-lo na empreitada,
uma prova não tão célebre como as demais que eu já havia feito, mas objeto de desejo
de qualquer praticante do esporte um pouco melhor informado.

Há, por detrás da corrida, muitos nomes fortes, marcas famosas e conceituadas.
Mas a maior parte, do próprio meio esportivo. Ver outros setores dando apoio e
patrocínio às provas é até comum, mas não a ponto de dar nome e bancar o evento.
Ainda estamos engatinhando aqui no que, lá fora, é prática mais que comum. Mas
vamos aos poucos chegando lá. Essa grande empresa do ramo alimentício, fabricante de
uma das coisas mais irresistíveis (e engordativas) que existem, já organizava a prova
havia dezenove anos quando combinamos a nossa caravana para lá. Seria a minha
primeira viagem aérea para uma corrida (a trabalho, já havia feito algumas), a mais
longa distância percorrida até então. Fosse pelo chão, eu teria que percorrer 780 km para
chegar até a capital do Espírito Santo, cidade e estado que nunca tinha visitado. A
distância ganhou mais quase cem, tendo de me deslocar até o aeroporto de Guarulhos
para embarcar, na noite de sexta, rumo às terras capixabas.

Após uma viagem extremamente tranquila (exceto no pouso, quando a aeronave


pareceu raspar a água) e rápida, fomos recebidos em Vitória pela dupla de amigos que já
estava lá havia algum tempo. Com um deles eu já confraternizara na minha estada no
Rio, quando fui recebido com muita hospitalidade. O outro, eu finalmente conheceria
pessoalmente ali, mas era como se fôssemos velhos companheiros, de tanto papo que já
havíamos batido pelos nossos teclados. Depois de descarregarmos as bagagens, fomos
conhecer a pizza típica da região, com massa duas vezes mais grossa que a do meu
costume, mas muito saborosa também. Bem, dizem que carboidrato nunca é demais
para corredor. O plano era o alternativo: quando começamos a definir o roteiro turístico
conjunto, a ideia era ficarmos numa pequena cidade, nos arredores de Guarapari,
alugarmos um carro e, se a praia, a piscina e o salão de jogos deixassem, também
darmos uma chegada até a capital para correr. Seduzidos pela promoção irresistível que
dá aos participantes de eventos esportivos um desconto significativo na hospedagem,
entretanto, acabamos optando por ficar mais próximos da concentração. Meaípe ficou
para uma outra oportunidade.

Para o sábado, tínhamos uma missão importante: a retirada dos kits. E não era ali
por perto da largada, não. Era justamente na outra ponta do trajeto, a chegada, na fábrica
de chocolates que dava nome à prova. A distância era peculiar, pouco usual, até pela
unidade de medida importada. Eu nunca havia corrido a exata extensão de dez milhas
até então. As que separavam as duas cidades eram belíssimas, com direito a um visual
espetacular na ponte que nos levaria até Vila Velha, naquele primeiro momento, de táxi.
No dia seguinte, com as próprias pernas. Não era à toa esse deslocamento. A jogada era
fazer com que todos atravessassem a rua, depois da passagem pelo ginásio onde foram
entregues os materiais dos corredores, atraídos pelas maquetes em tamanho gigante,
bombons do tamanho de bombas atômicas. A preços convidativos, mas não muito, os
produtos da marca eram vendidos, de forma avulsa ou combinados em cestas e
embalagens para presente. Não havia como não sair de mãos cheias (e bolsos vazios).
Um belo e divertido passeio. Com direito a muitas fotos e gargalhadas, inclusive quando
conversamos com o motorista de táxi sobre a prova no dia seguinte. Primeiro ele disse
que não fazia aquilo, correr entre as duas cidades, nem que pagassem. Quando soube
que o primeiro brasileiro e a primeira brasileira a terminarem ganhariam um carro zero
como prêmio, no entanto, garantiu que iria começar a treinar imediatamente. Atraímos
mais uma ovelha para o rebanho!

Pegamos uma carona no ônibus de um grupo de corredores para voltar, fomos


almoçar já quase na hora do jantar e depois, tratar de descansar, porque o caminho a
seguir era longo na manhã seguinte. Para não darmos um daqueles cochilos que
estragam a noite de sono, eu e a Janete fomos dar um passeio pela orla, conhecer de
perto a bela e ventosa praia de Camburi, onde a largada da corrida estava prevista.
Conseguimos a façanha de nos perder na volta. Na hora foi trágico, depois ficou
divertido, como quase tudo que acontece em viagens.

Acordamos cedo no domingo, tomamos o café coletivo no hotel e, em comboio a


pé, seguimos todos para a arena, com três mil participantes espalhados pela avenida,
fazendo suas preparações. A Janete, única que não iria correr, tinha a difícil tarefa de
chegar a Vila Velha com o caminho parcialmente interditado para a passagem dos
atletas. Acabaria conseguindo uma carona com a namorada de um dos corredores.
Tiveram um pouco de trabalho, seguindo por caminhos alternativos para evitar o
congestionamento, mas conseguiram chegar lá. Faltava a gente.

Os três primeiros quilômetros seriam planos e bem tranquilos, apesar do calor


que já começava a dar as caras. O dia nublado na véspera tinha sido promissor, mas não
adiantaria muita coisa. Meu ritmo também não seria forte, desde o começo. As placas,
para controle, eram convencionais, com números arábicos. Mas as marcas no chão,
curiosamente, estavam em algarismos romanos. Km VIII. Numa temperatura daquelas,
hidratação abundante seria o ideal para evitar maiores problemas. Mas não era bem isso
o que se via. Uma bancada de copinhos na largada teria sido útil, mas não existia. Um
longo trecho seco seria muito prejudicial para a minha prova. A passagem pela ponte
seria de tirar o fôlego, em ambos os sentidos. Tanto pela beleza de cartão postal, quanto
pela subida em si, onde diversos colegas de esporte já sentiam o esforço e caminhavam.
Mantive minha passada lenta, mas contínua, e retomei a aceleração na descida,
chegando à outra cidade com ânimo. Lá do alto, tinha avistado a fábrica, no formato da
célebre caixa de bombons da marca. Parecia próxima, mas o caminho até ela seria longo
e tortuoso.

Na corrida, como na vida em geral, existem dias em que tudo dá certo, as coisas
fluem naturalmente, como se tudo estivesse no piloto automático. Mas tem outros em
que sai de baixo, shit happens, nada do que você fizer vai dar certo. Esse domingo foi
um desses para mim. Deixei cair o sachê de gel, escorregando da minha mão como se
tivesse vida própria. Voltar para pegar seria perder ainda mais tempo. Ao abrir um dos
copos d’água, cortei o dedo no papel metalizado. Dei um grito tão alto, não de dor, mas
de raiva (detesto me machucar, ainda mais de forma besta), que devo ter feito dois ou
três adversários desistirem da corrida. No último posto de hidratação, faltando poucos
quilômetros para chegar, passei quando já não havia mais água disponível. Uma
combinação de azar e incompetência alheia acabaram tornando a corrida, que era para
ser o auge do passeio, algo não tão agradável quanto poderia.

O resultado final refletiria esse estado de espírito momentâneo. Não fiquei nada
contente com o tempo de 1h35min, muito mais alto que eu esperava. Reencontrei a
Janete, na arquibancada da reta final, de onde me saudou e fotografou. E depois os
amigos. Na nossa pequena disputa em grupo, eu seria o segundo colocado, perdendo
apenas para o que conhecera no dia anterior, que me ultrapassara, sem que eu
percebesse, no trecho final. O outro carioca chegou satisfeito com sua performance, mas
o paulista não. Ficou tão aborrecido que quebrou sua promessa, que já durava anos, de
não mais comer chocolate. Traçou as poucas amostras do kit pós-prova ali mesmo. De
cabeça quente, disse que ia até deixar as corridas, como voltaria a fazer algumas vezes
depois. Mas sempre daria a volta por cima, conquistando excelentes resultados,
galgando degraus rapidamente e se especializando em longas distâncias. Nunca ficando
totalmente satisfeito, perfeccionista que é. Mas acumulando experiências magníficas e
deixando os amigos orgulhosos de seus feitos.

Cenas de um fim de semana achocolatado

Apesar de não ter feito a prova que gostaria também, deixei o Espírito Santo
com espírito leve. A corrida da categoria celebração tinha sido simplesmente perfeita.
Reunir amigos para viagens esportivas se tornaria, a partir daí, uma agradável tradição,
que repetiríamos outras vezes. E que espero que seja duradoura, nos trazendo muitos
momentos tão gratificantes como foram os desse final de semana. A viagem de volta, ao
contrário da ida, foi demorada e desgastante. Tentamos adiantá-la, chegando com horas
de antecedência ao aeroporto, mas não teve jeito. O voo foi confirmado só mesmo para
as 23h de domingo, com escala no Rio e mais 45 minutos de espera por lá. Mais duas
horas em São Paulo, até conseguirmos um ônibus para São José; e só fomos chegar em
casa quase às 8h da manhã de segunda, após uma longa noite sem pregar os olhos. Uma
saga que valeu enfrentar. E que repetiria, se necessário fosse.

*
Outras viagens, curtas ou longas, viriam também. Faria corridas em cidades
próximas, como as paulistas Santa Isabel, Suzano, Tremembé, Arujá, Guarulhos,
Osasco, Santo Antônio do Pinhal e Ilhabela; e as mineiras Sapucaí-Mirim e
Paraisópolis. E também outras mais distantes, como Itu, Praia Grande, Sorocaba, São
Roque e Vinhedo. Também viajaria novamente ao Rio e a Bertioga, para distâncias
maiores que as das primeiras visitas. E iria ainda mais longe, até Porto Alegre, para
fazer uma maratona. Histórias que também vou contar aqui, mas numa sessão específica
sobre essas verdadeiras lições de vida que são as provas de 42 km. Totalizaria, até
agosto de 2011, trinta e nove diferentes cidades de cinco estados brasileiros. Esperando
que isso seja apenas o começo. E aceitando convites para conhecer outros lugares, gosto
e satisfação que a corrida me fez voltar a ter.
Capítulo 9
Dividir com o mundo inteiro

Esta talvez tenha sido uma das coisas menos ambiciosas que fiz na vida. Quando
resolvi transportar para a internet o arquivo-texto em que escrevia minhas histórias de
corridas, no final de 2006, eu já tinha feito um par de dezenas de corridas, já havia
chegado aos 21 km da meia maratona e começava a ter alguma bagagem e histórias para
contar. Mas não tinha, sinceramente, a pretensão de que alguém se interessasse por elas.
Os relatos das primeiras provas foram feitos com base em lembranças, tiveram poucas
palavras. Mas acabaria virando costume chegar em casa e, muitas vezes ainda no calor
dos fatos, colocar em forma de texto as minhas impressões, opiniões, sugestões e
críticas sobre cada nova corrida feita. Mas, principalmente, os meus sentimentos a
respeito delas. Como um diário de adolescente, que eu mantive, aliás, na devida época
(faz tempo!), mas com periodicidade diferente, o editor de textos, e depois o website se
tornaram meus confidentes. Era neles que eu contava minhas experiências, comemorava
minhas pequenas conquistas e chorava minhas pitangas, quando as coisas davam errado.
Pelo contador de visitas que até existia, mas quase não avançava, sabia que era só para
mim mesmo.

Não fazia qualquer divulgação, mesmo porque não tinha muito a intenção de me
fazer conhecido pelos praticantes do mesmo esporte. Meus tempos nunca foram
propriamente grandes marcas esportivas, dava um certo constrangimento a ideia de
receber a visita de um atleta profissional, ou mesmo um amador qualificado, que visse
minhas marcas e dissesse “será que esse cara acha mesmo que é corredor?” Durante o
primeiro semestre de 2007, deu para perceber que algumas pessoas até descobriram o
site e começaram a visitá-lo, mas em número incipiente. Os picos não chegavam a trinta
acessos diários, mostrados por uma ferramenta de estatística instalada por mera
curiosidade. A coisa se manteve mais ou menos estável durante todo o ano, mas chegou
a um número um pouco maior, ultrapassando as cem visitas/dia, no final de semana em
que fiz uma “dobradinha”, correndo uma prova no sábado em São José e outra no
domingo, em Mogi das Cruzes. Ainda era, como ainda é até hoje, uma gota no oceano,
um pontinho de luz na galáxia que é a internet, com portais e mesmo páginas pessoais
que recebem centenas de milhares ou até milhões de acessos diários. Mas o pequeno
espaço que esse corredor autodenominou de Arquivo de Corridas já não era mais apenas
um back-up do seu editor de textos. Tinha se tornado um prolongamento da sala de estar
de minha casa, onde eu receberia as pessoas, com quem compartilharia minhas histórias.
De sucessos e fracassos, de força e fraqueza. Com algumas palavras bonitas e outras
nem tanto, escritas em momentos de raiva ou frustração. E até alguns delírios de
grandeza, quando tudo incrivelmente deu certo.

As segundas-feiras de 2008 passaram a ser dias de visita. Algumas mensagens


chegavam, dando parabéns pela prova, desejando melhor sorte na próxima, dicas,
conselhos e até alguns puxões de orelha, quando necessário foi. Algumas dessas pessoas
se tornaram meus amigos pessoais, que viriam me procurar nos dias de corrida, dizendo
ter lido minhas histórias e me reconhecido das fotos que as ilustravam. Minha timidez
atávica não seria impedimento para fazer novas amizades, que foram todas muito bem-
vindas. Algumas verdadeiramente especiais, quando a empatia é naturalmente maior, os
assuntos em comum são muitos e o papo passa a fluir com facilidade. Passaria a travar
longos diálogos com essas pessoas, não só pela tela do computador, mas também ao
vivo e em cores. A convivência, principalmente a real, seria extremamente prazerosa.
Em meados desse ano, viria o convite para transcrever meus textos para um
novo site de corridas que surgia, inicialmente com a intenção de ser um portal regional,
falando exclusivamente sobre as provas do Vale do Paraíba. Que eu aceitaria com gosto,
vestindo a camisa, ajudando a divulgar esse trabalho que cresceria muito, se tornaria
referência e ponto de encontro dos praticantes do esporte não só da cidade e região, mas
se estendendo por muito além. A parceria seria, creio eu, bastante proveitosa para
ambos, embora acabasse sendo desfeita, tempos depois, por conta da dissolução do
quadro societário. Enquanto durou, foi bacana ver meu nome como colunista.

O Arquivo de Corridas

Pouco depois, com a ainda pequena e modesta, mas bastante válida repercussão
do trabalho, conheceria a equipe que passaria a integrar, e que cujo nome tinha
absolutamente tudo a ver comigo. A “100 Juízo”, grupo de corredores que eu sempre
via nas provas e, quase sempre, subindo ao pódio ao final das competições, me atraiu
pela proposta. Ao invés de ser uma assessoria esportiva formal, com treinadores,
planilhas e padronizações, era simplesmente um grupo de amigos que corria. Gente
simples, simpática, boa de papo e de marketing pessoal, que me encantou ao primeiro
contato. A maior parte, grandes atletas, com desempenho fantástico nas corridas e
excepcionais resultados nelas. Mas sem qualquer discriminação contra os corredores de
menor aptidão, como é o evidente caso deste aqui. O critério de admissão não era índice
técnico ou tempo abaixo de “xis”, mas a afinidade, além de algo obrigatório: a paixão
incondicional pelo esporte. Fui recebido no grupo com muita fidalguia, passei a me
sentir mais um deles, um membro uniformizado dessa família, a quem ajudei a crescer,
a desenvolver, a se tornar conhecida além dos limites da cidade e das vizinhanças. Por
criar mais um site na internet específico para a equipe, que passaria a trazer informações
sobre seus atletas, calendário das provas, resultados e fotos das corridas, receberia uma
linda (e imerecida) deferência, um almoço em minha homenagem, na casa de nosso
comandante. No qual receberia um objeto de presente que, por si só, não teria qualquer
significado. Mas que teve um gigantesco para mim. Um troféu, de uma das provas mais
difíceis que eu faria em toda a vida. Não somente pela distância e altimetria do percurso
combinadas, mas pelas circunstâncias em que ela ocorreu, na semana em que, de luto
pela perda de uma pessoa muito querida, não pude treinar um dia sequer. Recebê-lo,
ainda que tempos depois da luta, encheu meus olhos de lágrimas, mas também meu
coração de felicidade.

Um time, uma família, uma paixão

Seriam muitas as batalhas ao lado dessa valorosa tropa. Que eu contaria, através
dos meus espaços na grande rede mundial. E que trariam gestos marcantes de
solidariedade, de amizade e dedicação, tão incomuns no mundo lá fora, mas que
permeiam o ambiente das corridas. Felizmente. Como corredor um pouco mais lento,
muitas vezes fui escoltado ao final das provas pelos colegas de equipe bem mais
ligeiros. E essa companhia e incentivo seriam fundamentais para recuperações
importantes, salvando corridas que pareciam fadadas ao fracasso. Chegando muitas
vezes bastante cansado, fui amparado pelos amigos, que sempre tinham uma palavra
amiga, um copo d’água, uma garrafa de isotônico ou qualquer coisa que o valesse para
oferecer. Houve vezes em que até se abaixaram para retirar o chip do meu tênis. Coisas
que ninguém precisa fazer, mas que têm valor justamente porque fazem.

A amizade não ficaria restrita apenas às corridas e muito menos somente aos
atletas do grupo. A consolidação e o crescimento da equipe nos aproximaram de outras
agremiações similares, com as mesmas finalidades e objetivos, da própria cidade e de
outras, que se tornaram grandes amigos nossos. Passou a ser uma gostosa tradição os
treinos coletivos reunindo poucos ou dezenas de corredores, seja na simulação de
percursos de corridas, seja no treinamento específico para competições, seja pelo
simples prazer de correr e estar junto. A heterogeneidade dos participantes saltava aos
olhos e ninguém precisava se matar para alcançar os da frente e nem prejudicar seu
ritmo para esperar os de trás. Cada um correndo na sua toada, divertíamo-nos e
apoiávamo-nos uns aos outros. Essa simbiose foi fundamental na preparação de muitos
para suas primeiras provas mais longas. Gerou treinos inesquecíveis, como o dia em que
nossa fé e nossas pernas nos levaram de Taubaté a Aparecida pelo acostamento da Via
Dutra, em uma jornada de 37 km de esforço, reflexão e autoconhecimento. Momentos
que eu registrei em palavras e pude compartilhar entre muita gente, através do Arquivo
de Corridas. E que pretendo continuar por muito tempo, fazendo, curtindo e escrevendo
depois sobre.

Um dia que marcou a vida de todos que o viveram


Capítulo 10
O quintal de casa

Como os outros agitos culturais ou esportivos, as corridas de rua, enquanto


eventos, também estiveram sempre mais presentes nos grandes centros. Elas no Brasil
nasceram em São Paulo (onde estão as provas mais antigas do país, como a SS e a Volta
da Penha, por exemplo), tiveram um boom nos anos 70 e 80 no Rio de Janeiro,
firmaram-se nas duas maiores cidades do país e se estenderam pelas outras grandes
capitais. Migraram para outras cidades do interior de porte médio a grande, mas até
meados da primeira década do novo século, ainda eram algo bastante esporádico nelas.
Para o corredor da velha guarda, mesmo que não tão velha assim, era necessário morar
nas capitais ou viajar para elas para fazer uma ou mais provas por mês. Não era culpa
nem de quem organizava. Não havia ainda, a bem da verdade, público para isso. Os
corredores sempre existiram, mas não eram tão numerosos. A figura de alguém
correndo pelas ruas era algo ainda meio raro, que chamava a atenção e despertava o
interesse (e até o senso de humor, como já mencionei anteriormente) de quem via.

Mas não foi preciso muito tempo para esse cenário mudar radicalmente. A busca
pela qualidade de vida, por um modo saudável de viver, passou a ser algo bem mais
difundido de uns tempos para cá. Correr virou moda. Para alguns, “modinha” apenas.
Achando bonito, muita gente compra todo o equipamento e, como as esteiras, bicicletas
ergométricas e estações caseiras de musculação, tudo acaba virando uma grande tralha.
A falta de perseverança é a causa maior do mal dos corredores de uma só corrida ou
temporada. Mas creio que isso seja exceção. Quem é picado pelo bichinho da corrida,
costuma virar adepto. Alguns, longevos, que eu admiro profundamente, com dez, vinte,
quarenta ou mais anos dedicados ao esporte. Alguns, fanáticos. Como eu mesmo (e
precisava dizer?).

Foi, portanto, com grande satisfação que pude testemunhar de perto o


crescimento das corridas de rua em minha cidade e em toda a região. De uma única
prova em 2005 (pelo menos que eu tenha feito) em São José dos Campos, passamos a
ter várias. Em 2010 seriam onze (fora as “extraoficiais”), praticamente uma por mês,
compondo um circuito, não nos moldes do santista, que eu espero que um dia também
ocorra por aqui, mas que já representa uma enorme evolução. Em 2011, esse número
seria ampliado para dezessete (ou vinte, contando com uma estranha associação de três
eventos concomitantes, no mesmo dia, horário e local). As viagens à capital passaram a
ser opcionais, dando-nos o direito da escolha, de podermos exercer o livre arbítrio de ir
ou ficar, com igual oportunidade de fazermos aquilo que gostamos. Isso foi uma
conquista de todos os corredores de rua da região, vindo atender ao anseio e à
necessidade de um grupo de pessoas que só faz crescer, mas que é também o resultado
do trabalho de gente do ramo, talentosa e competente. Que batalha muito para isso. O
trabalho de organizar uma corrida, tive a oportunidade de acompanhar nas vezes em que
estive por perto, é árduo, começa muito antes da largada e termina muito depois da
chegada. Aprendi a valorizar, e muito, a dedicação dessas pessoas, desde os que estão
no planejamento até os mais simples trabalhadores braçais. Os que entram com o
investimento e os que distribuem copos d’água. O que montam a estrutura no papel e os
que o fazem literalmente. Todos são peças fundamentais dessa máquina, sem as quais
nada funcionaria a contento.
Com as minhas opiniões contidas nos relatos das provas que fui fazendo, passei
a ter contato mais próximo com as pessoas envolvidas na organização das corridas de
rua. Há, como em todos os setores, gente que simplesmente se negue a conversar, que se
melindre com críticas, mesmo que sejam construtivas e tenham somente o objetivo de
ajudar a melhorar. Mas há também pessoas dispostas a ouvir e, melhor que isso, a levar
em consideração o que pensam os corredores. De certa maneira, passei, sem ter a
pretensão de fazê-lo de forma oficial, a ser uma espécie de porta-voz dos corredores.
Enquanto ainda não existiam comunidades na internet voltadas para os atletas da região,
o que seria um importante passo para democratizar ainda mais toda a coisa, não foram
raras as vezes em que fui procurado por colegas de esporte para ouvir suas
reivindicações. Procurei sempre atender a todos e fazer a ponte entre eles e as pessoas
responsáveis pelos eventos. Conquistamos algumas coisas, juntos assim. Melhorias
importantes, que ajudaram, modestamente falando, no salto de qualidade que tivemos
nos eventos locais. Cada vez mais profissionais, não deixando dever em nada, muitas
vezes, às superproduções esportivas nos grandes centros.

Fazer parte, mesmo que seja apenas com discurso e não mão na massa
propriamente dita, desta expansão das corridas, em quantidade e qualidade, é um prazer
e um privilégio, que me traz grande satisfação e até uma pontinha de orgulho. A cada
vez que eu olho uma corrida repleta de gente bonita, saudável e cheia de disposição, e
que acontece praticamente no quintal da minha casa, me dá gosto dizer que também
faço parte dessa história. E que pretendo continuar fazendo, por muito tempo.

Mas nem sempre tudo foi assim. Até atingirmos esse padrão de excelência,
muito sal foi comido por quem esteve presente nos tempos heroicos. Houve corridas
maravilhosas desde sempre, mas também muitos “bate-sacos” horríveis, que só mesmo
o tempo foi capaz de tornar engraçados. A coisa nem sempre esteve na não de quem
entende do riscado. Erros de planejamento, escolhas equivocadas de locais, logística
inadequada ou insuficiente marcariam algumas das provas que fiz por aqui. Por sorte,
houve mais sucessos que fracassos nessa história que nos trouxe até aqui, quando a
cidade já começa a poder ser comparada às do mesmo porte em termos de ofertas de
eventos esportivos, corridas aí inclusas.

Minha primeira prova joseense foi a terceira corrida que fiz na vida. Depois da
estreia em Campos do Jordão e da viagem a Campinas, consegui finalmente correr pela
primeira vez em casa. O percurso foi interessante, num bairro da zona oeste da cidade
que se tornaria, futuramente, lugar habitual de treinos individuais e coletivos. Um pouco
cara para os padrões da época, mas bem organizada e supostamente beneficente. A
camiseta seria de tão boa qualidade que continuaria por anos em condições de uso,
apesar de tantas vezes vestida. Pena a medalha, a primeira a ser “destruída”, com o
sumiço do adesivo colado nela. Ficou somente a foto, na galeria do site, como
recordação. Tirando um atraso grande, por conta da mudança para o horário de verão,
em linhas gerais, gostei da estreia caseira. Não houve mais edições dela,
lamentavelmente. Mas as marcas de quilometragem, pintadas no chão, resistiram quase
tanto quanto a camiseta, podiam ser vistas até pouco tempo atrás.

Só fui voltar a correr na cidade depois de oito meses, no caminho que levava ao
mesmo bairro da anterior. O circuito que levava o nome de uma marca esportiva
acontecia pelo segundo ano consecutivo na cidade, com etapas em outras cidades do
interior e, paralelamente, do litoral paulista. Contrariando o hábito, aconteceria numa
tarde de sábado. O percurso iria começar e terminar num parque aquático das
redondezas, mas ocuparia também parte da avenida na parte externa. O fechamento das
pistas sem qualquer critério, caminho único para o bairro, causou um tumulto de
grandes proporções no trânsito, com motoristas estressadíssimos xingando nossa quinta
geração de corredores. Embora com custo x benefício satisfatório e razoável procura, a
prova não voltaria a se repetir nos próximos anos.

No ano anterior, desinformado, perdera a inscrição. Mas no 239º aniversário da


cidade, não ficaria de fora. Um mês depois da anterior, voltei a fazer uma prova local,
desta vez menor (9 km) e em terreno diferente, as trilhas rústicas do Parque da Cidade,
na entrada da zona norte. Não me dei bem com o abandono provisório do asfalto, senti o
calor, a secura do ar e a falta da sinalização de quilometragem e não fiz uma boa prova.
Mas saí satisfeito com a boa qualidade do que recebi: camiseta, medalha de participação
e lanche caprichado. De uma prova gratuita, bancada pela prefeitura municipal, que me
faria convidar vários amigos para a edição seguinte, que não seria lá essas coisas...

Voltando ao mesmo lugar da segunda prova, o parque aquático, mas em horário


totalmente diferente, corri minha primeira prova noturna. Acostumado a treinar neste
período do dia, me empolguei com a oportunidade, acreditando que teria tudo para fazer
uma excelente corrida. Até que fiz a minha parte, mas a organização, não. Só mesmo a
camiseta, que também mantenho na coleção até hoje, foi de qualidade. O percurso,
dessa vez totalmente nas dependências do parque, foi gostoso, mas confuso, mal
sinalizado, dando margem a erros e necessidade de parar para “decifrar” o caminho
certo. Apesar da temperatura agradável, a água fez falta. Disseram que faltou medalha
de participação para os últimos colocados, um erro de cálculo grosseiro. A iluminação
com archotes deu à prova um ar de luau havaiano, mas não foi eficiente. Muita gente
correu sério risco de torções ou lesões ainda mais sérias. Primeira e única edição, não
caiu no gosto de ninguém por aqui.

Quase na divisa com a cidade de Caçapava, está Eugênio de Melo, sede da


equipe “100 Juízo”, da qual eu futuramente me tornaria integrante. Nesta primeira prova
comemorativa do aniversário do distrito, eu marcaria presença (nos anos seguintes não,
sempre haveria alguma coisa impedindo). A distância de 8 km, relativamente tranquila
para quem fazia maiores, deu a entender que a prova seria fácil, mas passou longe disso.
A altimetria era complicada, com subidas longas tanto na ida, a caminho do bairro
vizinho do Galo Branco, quanto na volta, à beira da rodovia Rio-SP. Muita gente
também sentiu o calor, inclusive eu, com a largada no atípico e pouquíssimo indicado
horário das 16h. Mas meu resultado até que não seria de todo ruim, o que acabou sendo
uma surpresa, junto com o recebimento da camiseta e medalha, que tínhamos a
impressão de que nem haveria, pela simplicidade (e gratuidade) do evento.

Passou quase um ano antes que eu voltasse a fazer uma corrida em casa. Em
junho de 2007, surgiu na internet a informação de uma corrida que integrava o
programa de um evento de duathlon. Sem bicicleta de competição e nem o hábito de
pedalar, optei por usar somente as pernas mesmo. Apesar do percurso interessante,
partindo e chegando num dos shoppings da cidade e com maior parte do trajeto na
avenida plana onde se encontram a prefeitura e a câmara municipal, o evento naufragou.
Com experiência somente na organização de provas ciclísticas, o pessoal da liga se
atrapalhou feio ao tentar promover essa corrida. Houve confusão em tantos aspectos que
eu cheguei a escrever, sem obter qualquer resposta, fazendo minhas críticas e sugestões
de melhorias. Divulgaram valor errado de inscrição e disseram que elas poderiam ser
feitas somente no local da prova (para logo depois estarem disponíveis na internet). O
mapa do percurso que foi divulgado não se cumpriu na prática, sem qualquer
justificativa plausível. O treino que fiz no trajeto, por conta própria, de nada me serviu.
A retirada do kit, antecipada, me fez ir à toa novamente ao local do evento na quinta-
feira, mais uma vez por informações equivocadas da organização. Voltei na véspera e
consegui pegar somente o número de peito, com o chip sendo entregue no próprio dia
da competição. Muita gente ficou na fila, debaixo de chuva, para retirar o seu. Houve
um atraso grande para a largada, com o organizador pegando o microfone e culpando os
fiscais de trânsito, que não haviam entendido direito as suas orientações. Não havia uma
placa sequer demarcando os quilômetros. Choveu à beça, mas água para beber faltou. O
estacionamento do shopping foi pago, sem aviso prévio de que haveria a cobrança. Os
resultados, divulgados posteriormente, trouxeram tempos incorretos e nomes faltando
na lista. Até a camiseta veio com a estampa torta. Tudo errado, enfim. Prometi que
nunca mais faria uma etapa, já que estavam previstas outras. Voltaria, sem inscrição, só
para assistir. Mas acabaria ganhando uma na hora e me vendo “obrigado” a participar.

A fase era crítica. Depois desse verdadeiro desastre, encararia outro parecido.
Com verbas restringidas de última hora, correu um boato à época que até por um golpe
dado por um espertalhão, a corrida do 240º aniversário da cidade, de superior à de um
ano antes, só teria a distância e o número de participantes. No mais, tudo decaiu. A
medalha foi uma chapinha com adesivo colado, a camiseta prometida não estava ali, o
percurso ficou mais estreito, causando grande tumulto. Havia uma enorme poça de lama
na largada, que poderia ter sido facilmente evitada, com um trabalho pequeno e rápido
de drenagem ou a montagem do pórtico vinte metros para frente. Só o lanche pós-prova,
similar ao do ano anterior, se salvou. A comparação com a corrida do aniversário de
Pindamonhangaba, também gratuita e de excelente qualidade, uma semana antes, foi
devastadora para São José. Tive de pedir desculpas aos amigos que convidei, os
empurrei para uma tremenda cilada. No ano seguinte, ressabiado, o pessoal da prefeitura
firmaria parcerias que iriam garantir uma prova impecável, redimindo-se de forma
notável.

Até então, já tinha feito provas em lugares conhecidos. Mas nunca em um com
que tivesse uma relação sentimental tão grande. Passar pelas avenidas do bairro da
minha infância foi marcante. Era meu lugar costumeiro de treinos, que eu conhecia ali
como quase ninguém. A sensação de percorrê-las ao lado de centenas de colegas
corredores foi tremendamente gratificante. A primeira edição dessa prova, promovida
por uma rede de calçados e uma marca esportiva, marcaria o renascimento das provas
comerciais na cidade. Depois do fracasso de outras tentativas, essa viria para se firmar,
atrair cada vez mais corredores e provar que São José dos Campos era sim lugar para se
correr. A manhã fria e nublada de agosto foi perfeita pra mim, consegui fazer um tempo
bastante razoável para os meus padrões, que está até hoje entre as minhas melhores
marcas. Tive problemas com a minha inscrição, meu nome não constava na lista de
inscritos, mas a falha foi solucionada fácil e rapidamente. O atraso e uma pequena
confusão na largada conjunta dos 5 e 10 km ocorreram, mas não tiraram o brilho do
evento, que voltaria a se repetir outras vezes, quase sempre com a minha presença. E
com o percurso sendo aperfeiçoado para não complicar demais o trânsito e nem obrigar
os corredores a um perigoso convívio com carros e ônibus.
Em outubro fui, pela primeira vez, somente para assistir a uma corrida. Nunca
tivera (e continuaria não tendo) a experiência. E para ver se haveria um mínimo de
melhorias na segunda etapa do mesmo evento que fracassara redondamente em junho.
Meus contatos na área, que começavam a surgir pela internet, já me traziam alguns
benefícios. Ao me ouvir dizer que não ia correr, um dos organizadores tratou de
conseguir um chip de última hora, nos envelopes sem nome que sempre existem.
Participando, poderia perceber que houve algum avanço, principalmente pela
contratação de uma empresa especializada em corrida para dar assessoria. Mas alguns
problemas graves persistiriam, a começar pela sinalização. As placas, ausentes na
primeira prova, apareceram, mas nem todas e quase sempre em lugar nitidamente
errado. O atraso na largada permaneceu acontecendo, o estacionamento continuou sendo
à parte, a medalha parece que foi aproveitada das sobras, tão parecida que era.
Hidratação e posterior divulgação de resultados foram itens que tiveram uma pequena
melhora, mas a coisa não foi muito além. Com a (justificável) presença de um número
menor de participantes que na corrida anterior, fechou-se de vez a tampa do caixão. Se
eles voltaram a fazer provas, foi de ciclismo, e sem o meu conhecimento. Uma pena.

Mas quando tudo parece perdido, pode também surgir uma prova que beira a
perfeição. Gratuita e com inscrições on-line, realizada pela entidade representativa do
comércio, com organização impecável, ampla participação, percurso bem sinalizado,
novamente no bonito e seguro parque municipal, brindes muito bons (ainda mais tendo
em vista que nada havia sido pago por eles). E com uma coisa até então inédita por aqui:
a divulgação dos resultados no mesmo dia. Relativamente comum nas grandes provas,
ela não acontecia nos eventos pelos lados de cá. Tínhamos de esperar dias, às vezes
vários deles, para receber nossas confirmações de tempo e colocações. No próprio
domingo já estávamos de posse da lista final desse evento, surpresa das mais agradáveis
e que se tornaria referencial para outras provas futuras. Essa corrida só não foi perfeita
porque ficou em uma única edição. Eu voltaria a fazer provas com a mesma “marca”
por detrás em outras cidades. Mas essa local marcou época. E deixou saudades.

Outra que pareceu que ficaria numa única edição foi a que levou o nome da
maior universidade da cidade e que ocorreu no campus do bairro onde fiz minha
primeira corrida por aqui. Só voltaria a ser realizada três anos depois, no final de 2010,
mas sem contar com minha participação. O preço alto para os padrões locais, a pouca
divulgação e a coincidência da data com outro evento mais badalado, no dia seguinte
em Mogi das Cruzes, atraiu poucos corredores para o circuito empoeirado, que eu faria
em volta única de 5 km (quem quisesse, podia fazer duas), já que também estava
inscrito para a outra corrida no domingo. Não consegui disparar meu cronômetro na
largada e ficaria sem um registro exato do tempo. O resultado demoraria muito a sair e
me daria só o bruto, com o acréscimo do tempo perdido na largada. Pelo local da prova,
diferente do usual, lamentei que não fosse dada continuidade nos anos seguintes, mas
fiquei feliz em saber de seu posterior renascimento, depois da longa interrupção.

Um novo grande intervalo, de sete meses, até que outra boa corrida acontecesse
por aqui. A primeira edição de um evento promovido por uma cooperativa de
assistência médica traria uma prova para o único grande shopping que ainda não sediara
uma. E faria bastante sucesso, atraindo um número recorde de inscritos para as corridas
de 5 km (e alguns metros extras, que não agradaram muito), 10 km e a caminhada, da
qual meus tios e padrinhos tomariam parte, passando a nos acompanhar regularmente
em diversas outras a partir dali. Tendo nos bastidores as mesmas pessoas envolvidas nas
corridas de sucesso do ano anterior, essa prova tinha tudo para agradar o mercado
crescente dos corredores de rua da cidade e região. E satisfez realmente, tornando-se um
evento tradicional, com continuações e melhorias, inclusive no percurso, nos anos
seguintes. O oferecimento de duas camisetas inclusas no kit, uma para uso na prova,
com numeração na própria, outra ao final, foi uma iniciativa interessante, pena que
cairia em desuso futuramente.

A primeira edição de uma corrida que cairia no gosto popular

No mês seguinte, comemorando mais um aniversário da cidade, voltamos a ter


um evento condizente com a grandeza da mesma. Se no ano anterior, a bagunça tinha
imperado, dando ao evento uma aura de amadorismo, desta vez tudo foi diferente. A
conquista de bons patrocínios e a escolha de gente competente para auxiliar na
organização trouxe aos participantes uma das melhores provas já ocorridas na cidade.
Com todos os benefícios que ela já tinha, mas corrigindo os defeitos anteriores. A
divulgação antecipada, pela primeira vez, se não me falha a memória, da lista de
participantes com seus números de peito, facilitou a retirada dos kits pré-prova. O
pequeno atraso e a largada feminina à frente da masculina, mas com pequeno intervalo
entre elas, foram os únicos senões. O percurso mudou, não nos obrigando a dar voltas
apenas dentro do parque. O trecho externo era de piso meio irregular, mas deu à corrida
uma variedade interessante. O kit recebido ao final foi similar, mas desta vez tinha a
camiseta. E a medalha, quanta diferença! Uma das mais bonitas da minha coleção.
Outro padrão de qualidade, aprovado com louvor pelos mais de mil atletas presentes.

A consolidação das provas na cidade começava a ficar mais nítida. Eventos que
tinham dado muito certo nas suas primeiras edições teriam outras, com cada vez maior
número de participantes. A promovida pela rede de lojas de calçados foi um bom
exemplo disso. Em agosto de 2008, a segunda edição marcou época, trazendo melhorias
em relação à estreia. As largadas separadas dos 5 e 10 km se tornariam uma só, evitando
conflitos entre os mais rápidos de uma bateria e os mais lentos da outra. A opção de
retirada antecipada do kit adiantou o lado de quem morava perto, permitindo, entretanto,
a entrega no ato para quem quisesse ou viesse de outras cidades. O percurso fora
mudado, visando evitar confusões com o trânsito. Ainda haveria alguns problemas,
como atraso na largada e posicionamento de algumas placas de sinalização, mas a
evolução foi evidente. Só a minha é que não. Com o tempo nublado sob medida na
primeira vez sendo substituído pelo sol forte nessa, combinado a uma lesão de surpresa
na panturrilha, que me fez parar e quase desistir, meu resultado seria desastroso, um
tempo quase equivalente ao da minha primeira corrida. Aborrecimento momentâneo,
que seria devidamente “curado” por bons resultados posteriores.

Um deles aconteceria na terceira edição da prova realizada pela grande indústria


aeronáutica sediada na cidade, a primeira aberta ao público em geral. Nos arredores da
empresa, a prova reuniu um pequeno grupo de atletas, entre trabalhadores da fábrica e
“convidados” (que pagam pelo convite). O percurso, em local diferente do habitual,
chamou a atenção e caiu no gosto dos presentes. Mas haveria a crítica, mantida
inclusive nas edições seguintes, da diferenciação entre quem era da casa e quem não. A
premiação por faixa etária não é algo que eu particularmente almeje (e nem se quisesse),
mas acho bem chato quando ela só existe para a “panelinha”. Levando até gente que não
é a se inscrever como se fosse, para poder concorrer em igualdade de condições. No
mais, gostei da maioria dos aspectos, inclusive do meu próprio desempenho, que
redimiu qualquer decepção com o anterior.

O sucesso crescente das provas na região passava a atrair outros nomes, como o
da cooperativa de consumo com lojas na cidade. Mas faltaria o bom senso de sacar o
óbvio, que uma coisa é uma coisa, e outra coisa é outra coisa. Por maior que pudesse ser
o potencial local, não daria ainda para comparar com o da capital e região
metropolitana, muito mais populosa e com número proporcionalmente maior de
praticantes do esporte. A prova, apesar de começar a tornar batido o uso do parque
municipal para eventos de corrida, foi muito bem organizada, atraiu corredores e
caminhantes, trouxe uma conhecida ex-miss e personal trainer que morara na cidade
muitos anos atrás para animar a festa. Mas, claro, não teve o mesmo impacto da similar
que aconteceu na região do ABCD paulista, sede da empresa. Não se repetiria nos anos
seguintes, para nossa decepção. Seria particularmente marcante para mim, com um
recorde pessoal de velocidade e na distância dos 5 km, marca que duraria mais de um
ano.

Mais seis meses se passaram, mas valeria muito a pena esperar pela segunda
edição de mais uma bela corrida, novamente patrocinada pela empresa de assistência
médica. Pelo evento em si, um dos melhores e mais bem organizados que já tivemos na
cidade. Mas também por uma razão pessoal: eu completaria nessa prova a marca de cem
corridas. Um número expressivo para quem começara timidamente, quatro anos antes,
fazendo a princípio uma a cada dois ou três meses. E que foi comemorado em grande
estilo, numa festa-surpresa que a Janete e meus padrinhos fariam para mim, convidando,
sem que eu percebesse (sempre muito inocente!), boa parte dos meus amigos
corredores. Teve bolo, teve champanhe, teve muita alegria, principalmente. Teve até
vídeo comemorativo, com uma compilação de fotos tiradas em quase todas as provas
anteriores, ao som de uma linda música composta e interpretada pela minha talentosa
irmã. Que nem tinha sido criada para esta finalidade, mas casou perfeitamente com o
espírito da festa. O refrão dizia que “cada manhã já é em si a esperança de começar tudo
outra vez”. Inclusive cada manhã de corrida. Para ficar ainda melhor, consegui baixar
meu tempo do ano anterior em alguns poucos, mas sempre importantes segundos. Um
dos dias mais felizes de minha vida, sem dúvida nenhuma.

Um brinde pelas cem corridas

Mas minha vida como corredor seria sempre como uma montanha-russa.
Motivação e condicionamento iriam e viriam em ciclos, a coisa toda não seria nunca
muito natural para mim, um talento inato que alguns ungidos têm e aos quais dedico
minha admiração. E até um pouquinho de inveja (branca). A sobrecarga de provas em
algumas épocas, combinada com pouco treinamento, em quantidade e, principalmente,
em qualidade, me levaria a fases onde correr se tornaria algo maçante, feito meio que
por obrigação. Não passaria impune. Houve dias, como esse onde mais uma vez
estivemos no mesmo parque comemorando o aniversário da cidade, em que deveria ter
ficado na cama ao invés de ir correr. Ou, no máximo, ter senso crítico o bastante para
perceber que o melhor seria ir apenas para assistir. Insistir em correr, como nessa prova,
traria saturação, levando-me a períodos compulsórios de férias, para recarregar as
baterias e reencontrar o prazer de correr. A prova em si não foi ruim, tirando as placas
de quilometragem, que pareciam jogadas a olho pelo caminho. Mas a minha foi uma
tragédia. Mais caminhei que corri, fiz um tempo que considerei deprimente, sempre
falando em termos pessoais e não estabelecendo qualquer comparação com outros
atletas, de nível mais alto ou não. Tiraria um mês de folga e voltaria ainda não muito
bem, mas melhorando aos poucos.
O dia em que a escolta dos amigos ajudou a chegar ao fim

Procurando diversificar, inclusive no tocante às distâncias, na terceira edição da


corrida das lojas de calçados e material esportivo, optei por fazer pela primeira vez o
caminho mais curto, com apenas uma volta, ao invés das duas dos anos anteriores. O
nosso grupo de amigos, cada vez maior e mais unido, começava a se integrar e a
promover treinos simulados nos percursos das corridas, visando apresentá-lo a quem
não conhecia ou simplesmente a praticar para quem já era da casa, como era minha
própria situação. A mudança no trajeto agradou bastante, fugindo do trânsito pesado da
primeira vez e do ziguezague meio confuso da segunda. Melhorou bastante também a
sinalização, com placas mais visíveis e aparentemente melhor distribuídas no trajeto.
Fiz uma boa corrida. Não cheguei a melhorar meu tempo nos 5 km, mas fiquei perto
disso. Fiquei contente, por mim mesmo e pelos muitos amigos que vi subirem ao pódio.

Para a quarta edição da corrida da fábrica de aviões, a segunda com minha


presença, houve uma boa preparação. Mais um treino simulando o trajeto da prova, feito
em conjunto com os amigos. E uma parceria, combinada de última hora, com um grande
companheiro de equipe e excelente corredor, que estava se recuperando de lesão e não
pretendia imprimir seu ritmo costumeiro. Ter esse camarada servindo como “coelho”
seria um grande incentivo e poderia ter me levado a uma prova fantástica, batendo todos
os recordes possíveis. Mas não daria muito certo. Primeiro porque o cadarço cismou de
desamarrar, em plena descida, me obrigado a uma parada forçada e quebradora de
ritmo. Segundo, porque na volta faltou fôlego mesmo para manter. Acabei vendo meu
resultado escorrer pelas mãos e ficar três minutos acima da marca do ano anterior. Mais
uma vez, a prova em si foi das boas, com organização competente e estrutura digna.
Faltou fazer a minha parte.
Pela primeira vez, o intervalo entre duas provas na cidade seria inferior a um
mês. Isso aconteceria em outubro de 2009, quando mais uma grande marca, dessa vez
de um banco, chegaria à rotina esportiva da cidade. O circuito também incluía outras
cidades do interior do estado, além de algumas capitais, e tinha como mote a
longevidade. Que está diretamente relacionada à saúde e à qualidade de vida, palavras
que são praticamente sinônimos de outra: esporte. No meu caso específico, a corrida.
Essa prova causou grande frisson entre os corredores locais. Preços módicos, percurso
diferenciado (apesar de, mais uma vez, o lugar ser o mesmo), promessa de brindes de
qualidade. Mas as coisas acabaram não ficando dentro da expectativa. A chuva
atrapalhou bastante, é bem verdade. Mas faltou bom senso e competência mesmo, em
vários aspectos estruturais, da pontualidade da largada à divulgação dos resultados. E
um gesto discriminatório ficou muito feio: havia um pódio todo luxuoso, com tapete
vermelho e tudo. Mas que receberia apenas os chamados atletas de ponta, vencedores da
categoria geral. Para as faixas etárias, a pérola do locutor: “depois vocês passam lá e
pegam o seu troféu”. Eu estava num mau momento psicológico, depois do naufrágio de
um projeto pessoal, uma maratona para a qual me preparei bastante, mas que imaginava
não ser tão difícil. E tive, como na última corrida ali, três meses antes, um desempenho
pífio, repetido na semana seguinte, na meia maratona em Guaratinguetá. Empanzinado,
ver-me-ia obrigado a mais um mês sabático, para uma espécie de “desintoxicação”. Que
me faria muito bem. O retorno seria bem mais ameno e proveitoso.

2010 seria o divisor de águas na história das corridas joseenses. Tirando o


período de janeiro a março, época de férias, carnaval e poucos eventos esportivos em
toda parte, teríamos agitação em quase todos os meses e algumas boas novidades. As
provas reunidas passariam a compor um circuito municipal, com direito a ranking de
atletas (com festa de premiação no final do ano e tudo!) e apoio dos órgãos públicos. Eu
não participaria de todas as etapas, na verdade, nem da metade delas, porque, buscando
novos horizontes no meu esporte, iria também me dedicar a provas fora da região, de
longa distância ou não. Com a popularização do serviço de microblogging, o célebre
site das sentenças de 140 caracteres e, mais tarde, a rede social que de tão popular,
viraria até tema de blockbuster hollywoodiano, passaria a ganhar cortesias para algumas
provas clássicas, famosas, mas que ainda não faziam parte do meu currículo. E não
desperdiçaria a oportunidade de fazê-las.

A primeira do ano, em março, seria a mais simples de todas elas. A rigor, não foi nem
uma competição, já que não teve nada que a caracterizasse: premiação, cronometragem,
divulgação de resultados, numeração dos competidores. Organizada por uma academia
da cidade e uma assessoria esportiva, o treino coletivo só ganhou status de prova porque
assim foi divulgado, erroneamente, no ciberespaço. Usou parte do polêmico percurso da
extinta prova da marca esportiva em 2006, mas o local já havia passado por uma
reforma, ganhando ciclovia e pista para caminhada. Não houve, portanto, necessidade
de intervenção no trânsito. Pudemos correr tranquilamente no espaço destinado a
pedestres e ciclistas. A convivência não foi das mais simples, houve alguns desvios de
última hora e eu quase seria atropelado por uma bicicleta no complemento que demos à
prova, um treino longo que era para ter uns vinte quilômetros e acabou ficando em
pouco mais de doze. E com todo mundo quase indo parar no hospital com insolação
generalizada. Nos apenas cinco quilômetros, comecei forte, ultrapassei grandes feras
nos primeiros metros. Depois voltei a ser eu mesmo, correndo dentro dos limites
próprios. Foi divertido. E teve até uma farta distribuição de frutas depois. Uma boa
maneira de começar uma temporada promissora.
Dois meses depois, quando aconteceria uma prova que iria passar literalmente na
porta da minha casa, eu estava em Porto Alegre para mais uma maratona. Perderia,
infelizmente, a oportunidade de estar na primeira prova de um novo circuito, promovido
pelo serviço social da indústria. Mas, em contrapartida, participaria intensamente da
terceira edição do evento, cada vez maior e melhor produzido, bancado pelo grande
nome dos planos de saúde. Inclusive do que antecedeu a prova. Foi feito, com algum
tempo de antecedência, um treino noturno como test-drive do inovador percurso criado
especialmente para a ocasião. E eu fui, com muito gosto, uma das cobaias. Produziu-se
um vídeo, usado como teaser, falando sobre as vantagens do novo trajeto. E, junto a
dois amigos corredores, fui um dos portadores de um segredo que causou uma pequena
comoção no meio. Muitas gargalhadas, no mínimo, foram garantidas com a brincadeira.
Quando finalmente o novo percurso foi divulgado, organizei, junto com um dos
parceiros do treino original, novos simulados, que contaram com a presença de muitos
amigos corredores e renderam bons momentos de confraternização do grupo. Rodei
tanto que decorei o caminho, era capaz de fazê-lo de olhos fechados. E cheguei no dia
da prova, em junho, já meio enjoado dele... Mas ainda assim faria uma boa prova,
voltando a correr, como havia algum tempo não fazia, abaixo dos cinquenta minutos nos
dez quilômetros. Havia também a opção dos cinco, mas nessa acabaria preferindo o
caminho completo.

Em julho, pela primeira vez desde 2006, ficaria de fora da prova do aniversário
da cidade. Mas por um motivo mais que justo: minha participação na maratona carioca.
Disseram depois que eu não perdera muita coisa. Novamente, mas com a expectativa,
mais tarde confirmada, de que seria pela última vez nas trilhas do parque da cidade,
agora ainda mais estreitadas por conta de uma reforma para criação de uma ciclovia, a
prova, depois de uma semana bastante chuvosa se transformou em um verdadeiro
atoleiro. O detalhe curioso é que eu estava inscrito para a corrida e, mantendo segredo
propositalmente sobre minha viagem ao Rio, simplesmente não apareci, deixando os
amigos curiosos e inquietos com minha ausência aparentemente sem motivos. Eles só
ficariam sabendo depois, ao ser publicado o meu relato dos 42 km na internet.

Um novo circuito de corridas chegaria à cidade prometendo fazer barulho. Com


uma proposta inovadora, a da variação dos parâmetros de distância, tempo e velocidade,
dando nome ao próprio evento, previa três etapas no decorrer do ano, com trajetos
progressivos, começando nos tradicionais 5 e 10 km, ampliando para as inusitadas 5 e
10 milhas (8 e 16 km, aproximadamente) e culminando com 10 e 21 km, significando
portanto a primeira meia maratona na cidade, a segunda da região. A ideia era
fantástica, incentivar os corredores da cidade a evoluírem nos seus objetivos. Mas o
lado business falaria mais alto, mudando a regra com o jogo em andamento. As três
etapas, na calada da noite, seriam padronizadas na mesma distância, os já banalizados
cinco e dez. Tornando a novidade apenas mais um lugar-comum. Delta virou Pi. Grande
decepção, para mim e meus amigos mais experientes. Na data da primeira etapa, nem
marquei presença, preferi ir fazer uma prova conhecida e bem quista, na faculdade de
engenharia da cidade de Guaratinguetá. Até porque outra mudança não justificada foi a
do dia da prova, que havia sido marcado inicialmente para abril, num final de semana
sem outros eventos. E de forma arbitrária e, no meu modo de ver, pouco inteligente,
alterada posteriormente para um dia com concorrência forte. Desapontado, garanti que
não estaria nas outras etapas. E só mudaria de ideia porque, por intermédio do capitão
da minha equipe, ganharia um convite para a prova, dias antes da segunda data do
calendário, em agosto. Foi bom. Só se pode opinar bem a respeito de algo de dentro
para fora. E aproveitei também a oportunidade para fazer algo diferente e muito
gratificante: ao invés de correr no meu ritmo habitual, como numa prova qualquer, optei
por acompanhar um grande amigo, outro que vencera o poderoso inimigo de oito
centímetros, auxiliando na tentativa da quebra do recorde pessoal dele na distância.
Começamos talvez num pique muito forte, que ele não conseguiria manter até o final. A
distância total do percurso, o mesmo originalmente utilizado nas duas primeiras edições
da prova da cooperativa médica, com seiscentos metros a mais, não serviu como base
para isso, mas o sucesso se confirmou na passagem pela quinta placa de quilometragem.
Missão cumprida, recorde batido e a agradável sensação de ter feito algo diferente e por
alguém. No final das contas, constatei que a corrida não era ruim, não fazendo por
merecer a execração. Mas também não era nada demais, muito melhor que o padrão,
para justificar os preços acima da média regional.

Apenas duas semanas depois, mais um belo evento para a crescente comunidade
de corredores locais. Definitivamente inserida no calendário esportivo e ganhando um
número cada vez maior de adeptos, a prova da rede de lojas de calçados chegaria, forte e
consolidada, à quarta edição. Todas elas com a minha presença. Brinquei com alguns
amigos que merecia um troféu “corri todas”, em analogia com o prêmio oferecido por
uma organizadora de eventos de corrida paulistana aos atletas que cumprissem todo o
seu calendário anual. O percurso aprovado do ano anterior fora mantido, com a forte e
longa subida da avenida pela qual passo todos os dias, seja treinando, seja trabalhando,
seja fazendo qualquer outra coisa. Já em fase descendente nos treinos, depois da longa
preparação para duas maratonas no ano, apanhei um pouco mais que o normal dela. E
acabei fazendo um tempo acima do normal para a distância, mas que não chegou a me
desagradar de todo. Foi mais um grande congraçamento de amigos, antigos e novos,
com direito até a festa de aniversário para um dos mais atuantes e queridos membros de
nosso grupo.

Em fase totalmente descompromissada, aceitaria convites para provas inusitadas,


fora do padrão. E na terceira corrida num único mês na cidade, dessa vez novamente no
distrito de Eugênio de Melo, ficaria ausente. Seria selecionado para fazer uma corrida
vertical, dentro das dependências de um prédio na zona sul de São Paulo. Subindo
escadarias, trinta e um andares delas. Uma aventura inesquecível, coroada pelo fato de
estar na primeira bateria, ao lado de cerca de vinte corredores, as cobaias do
experimento. Perderia dessa vez uma prova gratuita, simples, mas que deixaria ótima
impressão entre meus companheiros de esporte. Não participaria do dia D, mas estaria
na simulação dele. Convocado pelo pessoal da equipe, fiz um treino de reconhecimento
de percurso dos 5 km, para o qual estava inscrito oficialmente. Sentiria ao menos o
gostinho de conhecer o caminho.

A seguradora associada à grande instituição bancária também promoveria uma


segunda edição de sua corrida, novamente no parque municipal. O circuito, do qual a
etapa faria parte, cresceria bastante em número de cidades, mas apenas a nossa seria
“contemplada” com o percurso rústico. As demais, todas, em sólido e higiênico asfalto.
Mantendo o mesmo preço módico das inscrições, inclusive cobrando “meia entrada” de
faixas etárias abaixo do costumeiro, ela continuou sendo uma boa relação custo x
benefício. Seguiu mantendo as virtudes da edição anterior, mas também primou pelos
mesmos defeitos. Exigiu, por exemplo, uma desnecessária retirada apenas de forma
antecipada (com “pau” nos computadores, o que deixou meu número de peito como um
dos poucos sem identificação do nome). E repetiu os péssimos modos, ao reservar o
pódio apenas para os vencedores no geral, relegando aos premiados nas categorias um
“de mentirinha”, só para as fotos.

Nas trilhas do parque

Lamentavelmente, a prova que fechou a grande temporada de 2010 na cidade,


acabou não tendo a excelência esperada. Apesar de pegar o já bom percurso usado pela
corrida da cooperativa médica e aprimorá-lo, seguindo inclusive dicas e sugestões dadas
por nós, participantes dos eventos, a primeira grande prova noturna da região (a anterior
tinha sido para poucos corredores e inteiramente nas dependências do parque aquático)
pecou em alguns aspectos. E contou, sobretudo, com a má educação dos motoristas
locais. Poderiam ter sido avisados da interdição do trânsito através de faixas, como as
que costumamos ver na capital paulista, mas não precisavam também dar o show
gratuito de grosseria e falta de civilidade com que nos brindaram, desde antes do
começo da corrida. A invasão da área destinada aos corredores e caminhantes foi um
risco, causou burburinho e palavras pouco elogiosas nos fóruns de discussão sobre
corridas. Mas a meu ver, não desmerece de forma alguma o trabalho de quem procurou
fazer sempre o melhor pelas corridas da região. Acertos e erros fazem parte do processo
de crescimento delas. E são nesses últimos que mais se aprende. Também não consegui
render como esperava, apesar das condições aparentemente propícias para isso. E fiquei
longe das minhas melhores performances na distância dos cinco quilômetros.

A temporada 2011 local, aberta com ainda mais opções no cardápio que a
anterior, começaria em abril, com a primeira edição de uma nova opção de corrida
promovida pelo grupo calçadista. Nova, mas não muito. O percurso era o mesmo já
utilizado por outras tantas corridas, o vaivém pela avenida rente ao córrego, partindo e
chegando de volta ao centro de compras. Se a falta de novidades no trajeto desagradou
alguns, o bom padrão agradou outros, inclusive a mim. Ainda mais porque ganharia três
inscrições promocionais para o evento e poderia não só correr “na faixa”, como também
presentear amigos com as duas outras.

Se em 2010 eu ficara de fora da corrida no Dia do Trabalhador por estar nos


pampas disputando uma maratona, nesta nova temporada trataria de garantir a minha
vaga. Deixei a Janete no portão de casa, aguardando a minha passagem, fiz um treino
durante a semana no percurso divulgado, que garantiram que seria mantido para a
segunda edição. E na hora H, não é que mudaram tudo sem avisar? Apenas os
participantes da distância dos 10 km passariam defronte ao meu prédio. Os dos 5 km,
como eu, virariam antes. Confusão na certa. Tirando isso, no mais, gostei da prova.
Sempre bom correr para valer no percurso dos treinos do dia-a-dia.

A tal série de provas que deveria variar de etapa para etapa se repetiria no ano
seguinte, apesar das críticas que recebeu e de manter o traçado mais que manjado, já
começando a deixar corredores bem enjoados dele. Mudaria de proposta, passando a
adotar uma temática “africana”, dando a cada etapa o nome de um país deste continente,
mudando cores de medalhas, camisetas e estampas de animais locais. Sem me ater a
detalhes como esses, secundários a meu ver, tratei de fazer o que gosto: correr.
Presenteado com uma inscrição doada pelo capitão de minha equipe, representei o
grupo da melhor maneira que pude, fazendo um tempo discreto, mas melhorando
bastante a marca em relação à edição anterior e até mesmo à outra prova, dois meses
antes, exatamente no mesmo itinerário.

Pelo quarto ano seguido, participaria de uma edição da prova da cooperativa


médica, já tradicional, mas procurando inovar, sobretudo no quesito percurso. Fugindo
do lugar-comum, literalmente falando, ela já criara um trajeto diferenciado no ano
anterior. E o aperfeiçoaria ainda mais para essa nova etapa. Quase fiquei de fora, não
me inscrevi, falei que ia para Campos do Jordão participar de outra corrida, para a qual
havia ganhado uma inscrição na internet. Mas acabei mudando de ideia de última hora,
surpreendendo alguns e deixando outros com cara de “eu já sabia”. Convocado pela
instância superior, a cúpula da equipe, não recusei o convite. Ainda bem que os
números de peito, apesar da tendência, não eram nominais nesse evento. Ser chamado
de Roseli, companheira de equipe que me cedera a inscrição por ter que trabalhar no
dia, seria praticamente um bullying. Fiz bem em ficar por aqui. A prova seria de ótimo
nível, uma das melhores já realizadas na cidade.

Normalmente realizada em outubro, a etapa local do circuito patrocinado pela


seguradora, ampliado para novas cidades, seria, nesse ano de 2011, antecipada para o
começo de julho. Mudança única, imaginara eu. O local do evento ficaria sendo o
mesmo, o bom e velho parque, agora palco apenas desse evento, já que a prova do
aniversário da cidade, a partir dessa edição (que eu perderia, por estar novamente no Rio
de Janeiro em uma maratona), seria enfim transferida para outro local, bem mais amplo
e agradável para os atletas. Mas até que dariam um jeito de inovar, tirando o começo do
trajeto da parte interna do parque, agilizando a dispersão e tornando a prova um pouco
menos travada, garantindo melhores resultados a quase todos. Já era um alento. Outro
foi não ter chovido às vésperas do dia da prova, evitando o lamaçal dos anos anteriores.
O evento cresceu um pouco em meu conceito pessoal.
No final deste mesmo julho de 2011, uma nova prova, criada para comemorar o
cinquentenário de um dos institutos científicos sediados na cidade, surpreenderia os
participantes. Focada apenas na distância dos 5 km, trazendo um trajeto diferenciado,
parte na avenida também da prova promovida pela vizinha fábrica aérea, mas outra no
interior do centro de pesquisas foi de agrado geral, mostrando que boas corridas podem
ser feitas também por organizadores diferentes, mesmo não profissionais do ramo, mas
com vontade de arregaçar as mangas e colocar as boas ideias em prática. O custo x
benefício seria sensacional, com uma inscrição a preços módicos e kits pré e pós-prova
bastante caprichados, recheados de itens de qualidade. A medalha talvez seja a maior de
toda a minha coleção, rivalizando apenas com a da maratona gaúcha. Fechando muito
bem a primeira metade de uma temporada que começou cheia de boas novidades,
melhorias nos eventos já existentes, avanços quantitativos e qualitativos.

Diversão sempre, em casa ou não

Se nos anos anteriores, compromissos fora de casa haviam me impedido de estar


na festa do aniversário do distrito-sede dos malucos do asfalto, meus queridos
companheiros de equipe, em 2011 eu finalmente poderia voltar a marcar presença. E
ficaria bastante gratificado por isso, pois faria parte de um belo evento, talvez um dos
mais bem organizados da história da cidade. Treinei nos dez, no simulado durante a
semana, mas na hora mesmo, optei pela metade da distância. Não aproveitei muito bem
a manhã nublada, praticamente sob encomenda, e deixei escapar um daqueles grandes e
inspiradores resultados que eram comuns em dias como aquele. Mas me diverti
bastante, ao lado de uma miríade de amigos. Isso já valia mais que qualquer número no
relógio.

Seriam, até o momento, trinta e quatro corridas disputadas por mim dentro dos
limites do município em que nasci e no qual passei praticamente toda minha vida. Que
vi começarem lá atrás, simples, com estrutura precária ou nem tanto, com presença de
pouca gente, pioneiros, veteranos, gente que ajudou a escrever a história do esporte na
cidade. Pude acompanhar de perto a evolução, a profissionalização, o crescimento em
estrutura e número de participantes. Do qual quero continuar sendo testemunha ocular.
E em contínuo movimento. Compartilhando minhas experiências, dando minhas
opiniões (sendo convidado para isso ou não), elogiando quando for cabível, criticando
quando for necessário, indicando pontos positivos e negativos, colocando-os em foco
para que possam ser debatidos, sugerindo melhorias. Não quero dar a isso um valor
mais alto que o merecido. Mas acredito ter colaborado um pouco para que as coisas
chegassem ao ponto onde estão. O trabalho não é meu, sei bem disso. Mas costumo
dizer que sinto certo orgulho ao ver o sucesso que as corridas vêm atingindo por aqui.
Fazendo por merecer divulgação e visitas de atletas de outras cidades e regiões, que
tenho prazer em convidar e receber.
Capítulo 11
Nem tudo foram flores

Apesar de terem sido muitas as vitórias, sobretudo as reconquistas da saúde, do


bem-estar e da vida social, nem só de momentos gloriosos tem sido a trajetória desde
que as corridas entraram em minha vida. A gangorra subiu e desceu muitas vezes, não
necessariamente de forma cíclica e muito menos seguindo uma lógica plausível. Houve
dias em que tudo parecia que ia dar certo e falhou miseravelmente. Assim como outros
em que tudo fazia crer que daria errado, mas no lugar veio o triunfo. Aprendi, com o
tempo e a repetição, a relativizar tanto vitórias quanto derrotas. A não valorizá-las mais
que elas merecem. Afinal, para um corredor não competitivo, como é meu caso
específico, não há (ou pelo menos não deveria haver) pressão por resultados,
patrocinadores para quem prestar contas ou torcedores organizados a quem orgulhar ou
decepcionar. Dividir minhas histórias, através do Arquivo de Corridas na internet até
me trouxe certa responsabilidade, mas nunca houve qualquer tipo de cobrança que não
fosse a minha própria. Pelo contrário, sempre receberia muito apoio, muito carinho dos
amigos, pessoais ou não. Congratulações nas conquistas. E afagos, tão importantes,
quando a coisa não acontecia como o esperado. Que poderiam vir sob diversas formas:
mensagens de incentivo, conselhos diversos. E até uma ou outra bica na canela, que, na
hora e intensidade certa, tem lá o seu valor também.

Haveria pequenas, médias e até algumas grandes decepções, que marcariam de


forma indelével meu currículo esportivo. Mas que serviriam sempre de incentivo para as
próximas tentativas. Inspirado no primeiro fracasso, quando tentei correr a lateral da
pista, ainda com os pulmões cheios de alcatrão e o corpo revestido de gordura, e na
primeira redenção, ali mesmo, com força de vontade e perseverança, não desistiria
nunca. Teria sempre objetivos condizentes com a minha condição física, procurando
evoluir lenta e gradativamente, com bom senso e cautela. Não dando passos maiores
que as pernas, não queimando etapas e nem precipitando as coisas. Mas seria um típico
“insistista”. Aquele corredor que não é nem velocista e nem fundista, mas continua
insistindo sempre.

Existe uma frase, atribuída a inúmeros autores, que corre por aí: “a dor é
temporária, desistir é para sempre”. Não faria dela o meu lema, até porque acredito que
ela pode ser muito mal interpretada e induzir quem a invoca nos momentos difíceis a
seguir adiante independente de qualquer coisa, de forma impensada e inconsequente,
provocando ou agravando seriamente lesões ou podendo ocasionar até coisas bem
piores. Teria sempre em mente que uma desistência poderia sim ser temporária, que
retroceder um passo hoje poderia permitir avançar dois amanhã, numa outra
oportunidade.

Talvez a primeira das frustrações tenha sido o mau resultado na estreia na São
Silvestre. Teve a chuva forte, o tumulto de sempre, mil motivos para justificar um
tempo bem mais alto que o esperado. Mas há atenuantes também. Eu nunca havia
corrido a distância, era muito iniciante ainda, estava apenas na minha sexta prova. E,
mesmo não fazendo a corrida dos sonhos, terminei ao menos sem andar, feliz pelo que
tinha sido capaz de fazer. Seria esse sempre, aliás, o critério subjetivo para determinar
se minha participação havia sido boa ou ruim a cada nova corrida. A percepção de ter
feito ou não o melhor possível naquele dia.
*

Nunca, pelo menos não até me tornar amigo de grandes corredores,


frequentadores assíduos de pódios, havia dado muita atenção às cerimônias de
premiação que ocorrem depois das corridas. Mas, por mais zen e desencanado que se
possa ser, não creio que haja um corredor sequer que não sonhe em ganhar um troféu
(sem a palavra “participação” grafada nele). Nem que seja uma única vez na vida.
Sempre soube da dificuldade prática de isso acontecer. As minhas faixas etárias, a da
época das primeiras corridas, a que ostentei até o final de 2010 e a atual, estão entre as
mais competitivas. É normalmente nessa época que as pessoas redespertam para o
esporte, por prazer ou pura necessidade. Gente mais jovem nem sempre tem disciplina
suficiente, o que é bastante compreensível (eu também não tive, afinal). As categorias
de maior idade também são de disputas ferrenhas, mas normalmente com menor
quantidade de participantes.

Mas ainda assim, me despertou a cobiça a oportunidade, em minha décima nona


corrida, depois de pouco mais de um ano de competições, de tentar faturar a primeira
premiação. As condições eram bastante favoráveis: uma corrida de pequeno porte, num
bairro afastado e pouco conhecido na cidade vizinha de Jacareí, com faixas etárias a
cada dez anos (apesar do padrão determinado pela federação do esporte ser de cinco em
cinco), mas com dez troféus por categoria. Achei que era simplesmente impossível não
conseguir um, a não ser que fizesse uma grande lambança. Treinei bem durante a
semana que antecedeu a prova, fazendo um bom tempo (para mim) na mesma distância
de 6 km, dias antes. Tinha também iniciado a preparação para a minha primeira meia
maratona, que aconteceria dois meses depois e estava em franca evolução no
condicionamento. Cheguei confiante na manhã de domingo, acreditando plenamente
que não sairia dali de mãos vazias.

Com inscrições sendo aceitas na hora (eu havia reservado a minha durante a
semana, passando no estabelecimento de propriedade do organizador), haveria um
atraso considerável para a largada, com direito a muitos graus a mais na temperatura.
Mas isso não seria o pior. Logo de cara, uma subida daquelas que chamamos de
“animal”. Pura insanidade. Correr fraco demais é ver todo mundo sumir na frente.
Correr forte é queimar os cartuchos antes do tempo. Para um atleta mais experiente,
achar o meio-termo é mais fácil, mas não era ainda o meu caso. E a subida forte não
seria a única. Haveria, no curto trajeto, outra não tão íngreme, mas muito mais longa,
que fez bastante gente caminhar. E trechos rústicos, dentro de uma chácara, no retorno
em descida, onde não foi tão simples recuperar o tempo perdido. Meu resultado final
acabaria sendo sete minutos mais alto que o tempo do último treino, feito em terreno
plano e asfaltado. Que repetido, provavelmente teria me levado a um quinto ou sexto
lugar na categoria, dando direito ao troféu que nem bonito era, mas seria recebido
certamente com muito orgulho. Esperei mais duas horas, fiquei até o finalzinho da
cerimônia de premiação, na esperança de, apesar do péssimo desempenho, levar por
WO. Mas isso não aconteceria. Voltaria para casa murcho. Mas disposto a continuar
treinando cada vez melhor. E a tentar outras vezes, até conseguir.

A primeira meia maratona foi um momento mágico em minha história como


corredor. Achei que nem conseguiria terminar ou que chegaria em último lugar, mas o
que fiz foi muito melhor. Tomei gosto pela distância, que disputaria várias outras vezes.
A segunda vez seria a oportunidade perfeita de tentar fazer ainda mais bonito. A
confiança era grande, assim como a expectativa. A prova seria em São Paulo, a primeira
edição de uma opção alternativa à única meia então existente na cidade. Contaria com
um número bem maior de participantes do que na minha modesta estreia na distância. E
com logística especial, com direito a hospedagem desde a véspera e passeio no
Ibirapuera após a retirada dos kits.

Ter prazer na corrida, pelo menos para mim, era sempre fundamental. Não
gostar de algo, detalhe que fosse, seria sempre adversário jogando contra. Que algumas
vezes até seria superado, mas outras tantas não. Nessa, seriam muitos os inimigos, todos
muito fortes. O tumulto, impedindo de correr no ritmo habitual e de controlá-lo, já que
as placas de quilometragem ficavam invisíveis na multidão. O calor, que sempre causa
grande desconforto em quem treina costumeiramente no período noturno; e aumenta
expressivamente o consumo de água, deixando o “tanque” cheio e ainda mais pesado. O
trecho menos querido de todas as provas paulistanas, o mesmo Minhocão da São
Silvestre, mas percorrido numa extensão muito maior que na própria. E o percurso em
duas voltas, que é, nas minhas palavras à época, faca de dois gumes. Quando se gosta,
ótimo, repetir é um prazer. Não foi o caso. A primeira volta foi difícil. A segunda seria
simplesmente torturante.

Aí a mente mexeria com o corpo, dominando-o. Apareceriam dores,


provavelmente imaginárias, já que não persistiram no dia seguinte. O peso se
concentrou nas pernas, que se arrastaram pelo trajeto e me levaram a um resultado vinte
e um minutos mais alto que na meia maratona anterior. Seria minha pior média de
velocidade de até então (que seria muito piorada futuramente, em provas infinitamente
mais difíceis). O baque foi tão grande que eu cheguei dizendo para minha esposa que
desistiria de correr, que aquilo não era coisa para mim. Concordaria, como concordo até
hoje, com a segunda sentença. Mas não cumpriria a promessa, é lógico. De cabeça fria e
tirando uma semana de folga para descansá-la junto com a carcaça, pensaria melhor,
tomaria conhecimento de depoimentos de outros participantes, todos destacando suas
dificuldades pelo trajeto. Até a banana do kit-lanche viria podre, num dia em que
simplesmente nada deu certo. Mas duas semanas depois estava novamente na pista,
fazendo outra vez a mesma distância, num trajeto rústico e inesquecível. E conseguindo
nele uma pequena, mas deliciosa vingançazinha.
Decepcionado sim, derrotado nunca

Ao mesmo lugar onde brilhei, à minha maneira, nos primeiros 21 km, voltei com
grande responsabilidade. Tal qual um tenista que conquista um torneio e defende seus
pontos no ranking no ano seguinte, cheguei a Guaratinguetá, terra do primeiro santo
genuinamente brasileiro, com o handicap de já ser conhecedor do percurso (que
mudaria somente o lugar de largada e chegada) e acreditando novamente num excelente
resultado. Já estava na minha quinta meia maratona, com alguma experiência e em bom
momento, vindo de ótimos resultados em distâncias menores. Tudo parecia conspirar
para mais uma conquista importante. Mas havia gente tramando para que isso não
acontecesse também. Quando vi, no material sobre a prova na internet, o horário
previsto para o início da prova, tratei de entrar em contato para alertar. Dez horas da
manhã, fazendo boa parte dos participantes chegar em torno do meio-dia, era uma
temeridade. Fui ignorado. Pode até não passar de boato, mas o que se comentou depois
da quase tragédia (anunciada) foi que a justificativa era a de aguardar o final da missa.
Quase se celebra outra, a de sétimo dia, das vítimas.

Não daria outra. A corrida acabaria antes mesmo de começar. Na hora da


largada, a temperatura já passava dos trinta graus. O simples aquecimento já me fez
transpirar como se tivesse corrido toda a distância. Mas teimoso, começaria tentando
manter o mesmo ritmo médio da edição anterior, ao lado do grande e veterano amigo e
companheiro de batalhas que conhecera ali mesmo na cidade. Não conseguiria manter e
o desconforto chegaria cedo, com a disposição acabando antes mesmo do primeiro terço
da prova. Resmunguei, dizendo que tinha outras corridas para fazer na vida, não estava
disposto a cair morto ali. Andei pela primeira vez, pensei em dar meia-volta e desistir,
mas algo me impulsionava adiante, nem que fosse para completar apenas a primeira das
duas voltas. Ouvi deboches pelo caminho, frases que me ridicularizavam como
corredor, o que só me deu força para seguir adiante. E relembrei outras corridas que
pareceram perdidas em dados momentos, mas que trariam recuperações simplesmente
inesquecíveis. Tentei voltar à batalha e passei reto ao final da primeira volta, quando fui
socorrido pela Janete, com uma salvadora garrafinha de água de coco, conseguida sabe-
se lá onde.

Mas a decisão de prosseguir talvez não tenha sido a mais acertada. A segunda
volta seria uma verdadeira odisseia, com fortes tons de drama. Comecei alcançando o
amigo, que seguira adiante na minha primeira refugada. E juntos prosseguimos por boa
parte da caminhada. Literalmente falando, já que correr uma distância daquelas, com
trinta e cinco, trinta e seis graus no lombo não era nada salutar. A temperatura
subsaariana levara a um estouro no consumo de água, secando os postos de hidratação,
deixando para os últimos colocados apenas as lembranças do chão umedecido e os
copos espalhados. Sem o costume de levar dinheiro nas corridas e praticamente sem
opções de aquisição, mesmo que o tivesse à mão, tive de apelar para a solidariedade. A
única casa comercial que encontrei pelo caminho, aberta na manhã de domingo, foi um
depósito de material para construção. Ataquei o bebedouro como se amanhã não
houvesse, quase esgotei o conteúdo do garrafão do bom samaritano, digo, comerciante.
Saí carregando um copinho transbordante, à procura do companheiro que seguira em
frente mais uma vez, dono de uma garra sem tamanho.

O que mais se ouvia era o som da sirene da ambulância, que funcionou como
nunca naquele dia. O sofrimento estava estampado na cara dos que resistiam, pois
muitos simplesmente não haviam conseguido. Mesmo gente com toda pinta de corredor
clássico, com muitos quilos a menos que eu. Ao lado do amigo novamente, fui
questionado sobre uma projeção para o tempo final. O valor que eu mesmo falei chegou
a me dar desespero. Decidi acabar com aquilo de vez. Parando? Não, voltando a correr.
Para abreviar a situação desesperadora e não prolongá-la ainda mais, voltei a trotar ao
invés de me arrastar como estava fazendo. Terminaria a prova com inacreditáveis trinta
e seis minutos a mais que no ano anterior. O valente companheiro, cinco minutos
depois, causando grande preocupação em sua família. Felizmente sobrevivemos todos,
provavelmente porque não quisemos bancar os heróis. Triste foi ouvir do consternado
locutor da prova, ao final, que a edição seguinte tinha largada marcada para as oito da
manhã (o que nem seria verdade, aliás). Eu cantara essa pedra. O resultado foi um soco
no estômago e me fez sentir, por alguns dias, o último dos mortais. Sensação pouco
duradoura, evidentemente. Em condições menos adversas, conseguiria voltar a fazer
corridas quase tão boas quanto a primeira meia maratona.

A quase síndrome do pânico que me atacou naquela primeira prova em Campos


do Jordão e que voltaria a apresentar sintomas nos primeiros 21 km, a de chegar em
último lugar numa prova, só foi se transformar de pesadelo em realidade tempos depois,
numa prova que teria para mim um significado diferente e especial. Aconteceria apenas
três dias depois da perda de um familiar muito próximo. Seria em homenagem a ela,
minha querida avó materna, que eu faria essa corrida e escreveria um texto carregado de
emoção a descrevendo depois. E não seria mesmo uma prova comum, sob nenhum
aspecto. A distância era desafiadora, mesmo para quem já tinha uma maratona
recentemente concluída. E os 31 km ainda possuíam um requinte de crueldade a mais:
subidas. Longas e fortes, um verdadeiro trecho de serra encravado na metade do trajeto,
aumentando exponencialmente a dificuldade. Em se tratando de uma corrida simples,
pequena, com poucos participantes e a maior parte de altíssimo nível, ficaríamos, eu e
um dos grandes amigos que a corrida havia me trazido, na chamada rabeira da tropa.
Depois da largada, em nenhum momento chegaríamos sequer perto dos outros trinta e
um participantes, exceto quando eles já voltavam pelo mesmo caminho da ida. A
primeira grande ladeira, até conseguimos enfrentar com dignidade, diminuindo muito o
ritmo, mas conseguindo escalar a contento. Na volta, depois de deixarmos no ponto de
retorno os comprovantes de nossa passagem, entretanto, nos deparamos com um
verdadeiro paredão, quase vertical. Não havia simplesmente como subir correndo e eu
nem tentei insistir em fazê-lo. Mil e quinhentos metros de pirambeira, que me
separaram do companheiro de prova e obrigaram a acelerar bastante na descida para
tentar emparelhar novamente.

A serra fora vencida com hombridade, mas o esforço deixara sequelas. Segui até
onde deu para chegar mantendo ritmo lento e constante, mas fui vencido pelo cansaço e
pelas cãibras, que me transformaram de corredor em caminhante. E disso em rastejante,
na sequência. Os últimos seis ou sete quilômetros foram martirizantes. Sem pernas, era
quase o tempo todo assediado pelos ocupantes da ambulância, que nos acompanhara de
perto durante toda a prova. Convidado a desistir e cruzar a linha de chegada dentro dela.
Resisti bravamente ao canto da sereia. Devia à minha avó uma homenagem digna, com
uma pequena, quase ínfima, amostra da temperança e coragem que ela demonstrou
diante da grave doença que a acompanhou durante os últimos anos de vida. Mas que não
tirou dela, em nenhum momento, a alegria, a doçura, a afetuosidade com que sempre
nos tratara a vida inteira. Cheguei sim em último lugar, nove minutos depois do meu
grande amigo de mesmo nome, mesma profissão, mesmo time de futebol e outras tantas
coisas em comum. Com orgulho de conseguir terminar. Ferido talvez por essa
colocação, que de desonrosa nada tinha, ainda mais nesse caso específico, uma prova
definitivamente para poucos valentes, mas é sempre algo indesejável. Mas guardando, lá
nos recônditos da alma, o desejo de voltar e fazer muito melhor, algo que só aconteceria
dois anos depois.

Corrida, para um amador como eu, deveria ser sempre diversão. Mas houve
talvez uma única vez em que isso não prevaleceu. Em que me vi dominado por algo que
provavelmente não dê para chamar de soberba, mas que se aproximou bastante disso.
Em que decidi que era tudo ou nada. Como se fosse um profissional, que só entra se for
para ganhar, voltando para participar pelo terceiro ano seguido da corrida noturna que
acontece no mês de dezembro na cidade de Aparecida (que não é do Norte, apesar de
celebrizada como tal), mentalizei que deveria bater, a todo custo, a marca obtida lá
mesmo no ano anterior. Ou desistir da prova.

Não interpretei isso como algo negativo, pelo menos não a princípio. O desafio
me serviu de estímulo para treinar de forma forte e regular, motivou a tentar melhorar
meu desempenho, minha forma física, dar um sentido a mais para a disciplina e o
esforço na preparação quase diária. Cheguei animado à cidade dos romeiros,
acompanhado dos amigos da equipe no transporte coletivo gratuito que estava nesses
bons e não tão velhos tempos ao nosso dispor. Mas já comecei a enfrentar problemas
desde cedo. Tinham sumido com a minha inscrição, problema que teve de ser resolvido
às pressas, com um recadastramento na tenda de cronometragem. Tentando me
concentrar antes da largada, irritei-me com o barulho excessivo, inclusive com o
falatório ininterrupto do locutor do evento. Fui pego de surpresa com uma largada
antecipada em relação ao horário previsto. A coisa não começara nada bem.

O calor, típico do período do ano, junto com uma chuva de final de tarde, deixou
o chão escorregadio e o ambiente abafado, com vapor d’água subindo. Com o ritmo
fortíssimo do começo de prova, a temperatura pareceu subir ainda mais. Mantive a
pegada no começo, ainda acreditando, apesar dos reveses iniciais, na conquista da
marca almejada. A presença de um grande número de pessoas na rua não significava
torcida pelos atletas, mas gente simplesmente querendo atrapalhar, inconformada com a
nossa presença, mesmo apenas temporária, por ali. Outra disputa era por espaço com os
carros, essa totalmente desigual e injusta.

As marcas parciais na passagem por cada placa de quilometragem foram só


aumentando. Quando cheguei à metade da prova, já estava consciente de que não iria
conseguir alcançar o objetivo. O desânimo despencou sobre mim. Os companheiros de
prova, com quem vinha até ali, sumiram na frente. Até tentei buscar nova motivação,
após caminhar alguns metros, mas não teria mesmo jeito. A desistência acabou se
tornando o único caminho. Terminar a prova com um tempo mais alto, bem mais alto
que a do ano anterior; e talvez até da estreia ali, dois anos antes, seria ainda pior,
naquele dia específico. Já tinha feito isso várias outras vezes, resignado, aceitando o que
era possível fazer no dia. Não daquela vez. Parei, retirei o número de peito e fiz o
caminho de volta, a partir de um ponto onde o retorno estava próximo, depois de
completar apenas seis dos dez (menos, na verdade, confirmaríamos a suspeita no ano
seguinte, com o uso de GPS) quilômetros do trajeto.

Receber os cumprimentos dos amigos, como se tivesse feito uma grande prova,
foi embaraçoso, constrangedor, diria eu. Para alguns, até tentei explicar o que ocorrera,
mas não era fácil dizer. Fumacinha preta saía da cabeça. Sentira a pressão, a
responsabilidade imposta por mim mesmo. E falhara feio. A birra duraria algum tempo,
prejudicando inclusive a corrida seguinte, dias depois. E só passaria depois da
realização do complemento do sonho de infância. Já com duas São Silvestres nas costas,
foi só aí, no quarto ano como corredor, que tive a oportunidade de fazê-la no período
noturno, onde ela deveria sempre estar. Não foi a prova em si, é claro. Mas um treino no
percurso, evento beneficente, promovido por uma assessoria esportiva da capital, para
angariar doações para as vítimas das enchentes causadas pelas fortes chuvas naquele
ano. Fechei de bom humor um ano de muitos altos e baixos, pronto para recomeçar tudo
de novo no seguinte.

E ele, 2009, teria mesmo muitas coisas memoráveis na minha trajetória


esportiva. Mas também alguns momentos de baixo astral, provas em que acidentes de
percurso impediriam um desempenho mais de acordo com minhas condições, ou falta
delas. A outra meia maratona paulistana, realizada por uma das organizadoras mais
queridas pelos corredores (fato até merecido, pela qualidade de seus eventos, embora
cada vez a custos mais altos e reajustados muito acima da média) já era minha
conhecida do ano anterior, no qual havia conseguido um bom resultado, minha então
segunda melhor marca na distância. Voltaria para ela com boas expectativas, apesar de
uma semana com quase zero de treino, por conta de uma gripe, mas desta feita, sem
grande antecedência, chegando à cidade no mesmo dia, em comitiva junto com amigos
da própria equipe e de outras agremiações. Um corre-corre danado para conseguir
chegar a tempo e ainda pegar o kit, retirado obrigatoriamente na véspera por um
generoso amigo. Nem tempo de ir ao banheiro deu.

E já começaria tudo errado. Pilhado pelo medo de chegar atrasado e perder a


prova (e ainda prejudicar o portador do meu kit), preso no meio do tumulto da largada,
sem conseguir correr direito nos primeiros quilômetros, senti enormes dificuldades
desde os primeiros passos. Para completar o cenário perfeito para o desastre, o calor
forte, logo cedo. A única nuvem que havia era uma, negra, sobre a minha cabeça. Faltou
prazer nessa corrida dentro da grandiosa cidade universitária, palco de várias outras de
minhas batalhas, umas vitoriosas, outras nem tanto. O ritmo, que nem sequer começara
forte, já havia despencado antes da metade da prova. E, para estragar tudo de vez, um
buraco no meio do caminho. Que fez “crec”, parecendo que tinha quebrado algo ali.
Seria uma torção simples, nada muito sério, mas que me dificultaria ainda mais a vida.
Cheguei a desistir da prova e, apesar da longa distância para voltar, decidi fazer isso
caminhando.

Mas às vezes, uma imagem muda tudo. A visão de um companheiro de esporte


com necessidade de superar um problema muito mais sério que o meu, nada menos que
a falta de uma das pernas, me fez cair na realidade. Ele me ultrapassou, meio
cambaleante, com sua prótese não específica para corrida. E seguiu adiante
tranquilamente. Dando a dimensão real das coisas e me fazendo ver que não tinha
porque não também seguir. Um dos staffs veio me perguntar se eu queria que
chamassem a ambulância para me socorrer. A ficha caiu. Não precisava.

Os 5 km finais, depois do incidente, seriam literalmente dolorosos. O próprio


tornozelo lesionado não parecia atrapalhar muito, mas me obrigaria a uma inevitável
mudança na postura de correr, o que faria doer outras partes do corpo. Contrariando
meus princípios, fui me arrastando até a chegada, onde completaria a prova com um
tempo altíssimo, só não pior que a catástrofe do dia em que nos obrigaram a correr
depois da missa, num calor dos infernos. Além de ruim por si só, o acontecimento ainda
abalou bastante a confiança para o grande projeto do semestre, que aconteceria ali
mesmo no campus universitário, dois meses depois. Um dia para se esquecer,
definitivamente.

E esquecimento também merecem empresas que se dizem do ramo e fazem


verdadeiras lambanças na organização de corridas. Provas simples, artesanais, com
poucos ou quase zero de recursos, promovidas por abnegados incentivadores do esporte,
muitas vezes são bem melhores do que grandes produções, feitas por gente
supostamente do métier, mas dando verdadeiros shows de incompetência e falta de
respeito para com os participantes. Na maioria das vezes, tolerei problemas, mesmo
sérios, e fiz a minha parte enquanto atleta amador, correndo dentro das limitações
impostas pela falta de estrutura. Mas houve dias em que conseguiram fazer corridas tão
ruins, mas tão ruins, que me fizeram perder o gosto pela coisa.

Talvez o exemplo mais claro desse tipo de baderna generalizada que quiseram
chamar de corrida tenha sido nessa bonita cidade na região de Campinas, sede de
parques temáticos famosos. Chegamos, em bando, todos felizes ao local, mesmo tendo
de madrugar, literalmente, para conseguir vencer a distância de casa até lá. O sorriso
duraria pouco. O pouco caso dos responsáveis se fez notar logo ao primeiro contato. As
inscrições dos meus tios para a caminhada não foram localizadas e ninguém fazia
absolutamente nada para resolver o problema, um irritante jogo de empurra. A lista de
participantes trazia nomes misturados, relacionados a equipes às quais não
pertencíamos. Para piorar, a longa espera pelo prefeito atrasadinho para começar a
brincadeira.

Sabia bem que o estresse poderia estragar tudo e procurei relaxar, abstrair-me
dos problemas e me focar exclusivamente no ato de correr. Mas seria difícil. A prova já
começou mal, com placas de sinalização visivelmente mal colocadas, quilômetros ora
longos demais, ora ridiculamente curtos. Seguiu ruim, com a perda do parceiro de
prova, grande amigo e valoroso companheiro de equipe, vendo-se obrigado a desistir
por sentir uma lesão recorrente. Quanto a mim, o mesmo tornozelo da meia maratona
anterior voltou a chiar, limitando os movimentos e atrapalhando bastante.

O cenário, bucólico, era dos mais inspiradores, mas o percurso, dos mais
complicados. Subida forte, mesmo quando é avisada com antecedência, complica a
vida. O apoio da organização, colocando os postos de hidratação em pontos
estratégicos, pode ajudar. Mas até nisso o planejamento foi malfeito, negando-nos água
quando mais precisávamos e com intervalos muito irregulares entre os pontos de
distribuição. Todos os problemas somados e mais um vilão, o relógio, foram minando
minha vontade de correr. A cada vez que eu olhava as parciais, mesmo sabendo que as
placas não refletiam a realidade, ficava ainda mais desanimado. A descida forte me fez
voltar a correr momentaneamente bem e acendeu o desejo de salvar o final da prova,
terminando dignamente, dentro do tempo possível. Mas um quilômetro bem corrido
sendo registrado pelo relógio num tempo quase de uma caminhada mais forte, derrubou
de vez o meu entusiasmo. Com tanto descaso, abandonei a prova e a terminaria
andando, por pouco não repetindo o gesto de um amigo, que rasgou noutra ocasião o
número de peito em frente ao pórtico de chegada para protestar contra uma organização
simplesmente desastrosa.

Com isso, já que não vinha bem desde o começo da prova, terminaria pela
primeira e única vez uma corrida de 10 km acima de uma hora. Nem na estreia, parando
e andando várias vezes durante o caminho, conseguira a “façanha”. Ao final, a
confirmação de que os amigos mais rápidos, que tinham voltado para me buscar,
disseram. O kit entregue aos corredores não tinha sequer uma banana. Em provas
gratuitas, até dava para aceitar, embora não seja uma prática comum. Mas essa não era.
Tinha sido paga, apesar de não estar entre as mais caras. Mas era um dinheirinho jogado
fora. Por ironia, havia até patrocinadores, entre eles, o de uma bebida isotônica, que
levara um garrafão inflável gigante, para fazer propaganda. Mas que não entregou nem
uma garrafinha sequer para os corredores. Foi dia de recorde. Recorde de
incompetência. Uma prova para não voltar nunca mais, a não ser que mudem
absolutamente tudo. A cidade merecia bem mais do que isso.
Andar para protestar

Houve vezes em que faltou sabedoria de minha parte. Em não perceber o óbvio:
por mais que se goste de correr, há dias em que a gente acorda totalmente sem vontade.
Ao invés de insistir, com levíssimas chances de conseguir superar a adversidade que
vem de dentro, mas grandes probabilidades de me dar mal, o mais sensato seria ficar em
casa. Ou, no máximo, aproveitar o passeio, a companhia dos amigos e servir, como
fazem alguns dos meus generosos companheiros de equipe, de suporte para os que estão
participando. Levar uma água, acompanhar nos metros finais, tirar fotos. Qualquer gesto
desses é sempre muito bem-vindo para quem recebe e gratificante para quem o faz. Eu
deveria, nesses dias de tormenta, passar para a equipe de apoio.

Quando, junto com a falta de disposição, vem o clima errado, então, o desastre é
quase certo. Esses meses finais de 2009, um ano de muitos contrastes, em que fiz a
ponte aérea céu-inferno, ida e volta, diversas vezes, foram críticos. O calor foi
enlouquecedor, talvez já consequência do tal aquecimento global. O efeito estufa
particular prejudicaria algumas corridas, inclusive essa, no feriado da padroeira
nacional. A cidade de Guararema, onde o Vale acaba e começa a região metropolitana
(pelo menos no que se refere ao código telefônico de área), já havia sido palco de bons e
maus momentos. Essa mesma corrida, que, lamentavelmente, era uma das poucas de 15
km existentes (excelente treino para a São Silvestre, portanto) e foi sendo encurtada até
se enquadrar, em 2010, no padrão mais que batido dos 10 km, já tinha sido disputada
duas vezes por mim. Na primeira, em 2006, um resultado bastante ruim e desanimador.
Mas a volta por cima viria no ano seguinte, com um tempo doze minutos melhor na
mesma distância.

Nesta terceira participação, a distância seria de 12 km. Menos mal, por dois
aspectos. Por ser também uma pouco usual, com apenas uma prova feita nesta medida,
até então. E por cortar três quilômetros da via crucis que ela seria para mim, naquele
fatídico dia. A transferência para o bairro mais afastado tornou a prova mais rústica,
apesar do percurso original também passar por lá. Mas também menos interessante, por
se tornar um vaivém, ao invés do circuito das edições anteriores. Mais poeira e mais
subidas que na beira da estrada. Um bom grau de dificuldade, que normalmente seria
bem suportado, mas me causaria desgaste prematuro. Corria ao lado de um amigo, que
“liberei” para fazer a prova no ritmo próprio, não querendo prejudicá-lo. Ele, se dizendo
sem maiores pretensões, optou por manter a parceria. Seria de grande ajuda. Mas
duraria pouco. A vontade era de andar, não de correr.

Chegar à metade da prova, meros 6 km, uma distância trivial, em condições tão
ruins e com um tempo parcial já bastante alto, fez com que o desalento pairasse de vez
sobre mim. Ouviria várias vezes “o que aconteceu?” dos amigos que já retornavam. E
não saberia responder ou explicar. As pernas estavam travadas, só não mais que a
cabeça. A cada vez que tentava retomar o trote, porque caminhando iria demorar demais
para chegar, surgia um morrinho enjoado e impedia. Ou era a sensação de
superaquecimento, que nem a água gelada dos postos dava jeito de reverter. Quatro
quilômetros que pareceram demorar uma eternidade. A partir do décimo, em terreno
mais plano e apoiado por um dos mais rápidos dos companheiros de equipe, tornaria a
correr, na tentativa de minorar o “vexame”, mas o estrago já estava feito. A média final
de velocidade seria uma das piores de todos os tempos, só comparável a de provas bem
mais longas e difíceis. Junto aos amigos, tirei várias fotos ao final da prova, no bonito
cenário local. A que ficou como símbolo da prova, no entanto, foi a que apareço ao lado
de uma tartaruga de pedra. No álbum de fotos do meu site, ela tem a legenda “até para
essa eu perdi hoje”.

Nem dela eu ganhei


*

Quis o destino que o ápice da fase negativa chegasse no mesmo palco de um dos
meus grandes feitos como corredor. Era a sexta prova seguida em seis semanas que
sucederam o domingo em que meu projeto pessoal de melhorar significativamente o
tempo na maratona atolou na areia. Várias corridas feitas em más condições, nem tanto
físicas, mormente psicológicas. Que deveriam ter sido evitadas, pelo menos algumas
delas. A volta à terra do Frei, na prova que leva o seu nome, era uma temeridade, já que
eu mal vinha conseguindo correr a contento distâncias bem menores.

Pelo sim, pelo não, não medrei. Fui à luta, na expectativa remota de conseguir
reverter o quadro negativo e recomeçar novo círculo virtuoso. Mas já decidido também
a fazer da prova uma despedida temporária, por tempo indeterminado, até que a
disposição reaparecesse e o “modus correndi” fosse reencontrado. Falei, à época, em
criar uma versão 3.0 de mim mesmo. A primeira era a do obeso sedentário fumante e
hipertenso. A segunda, a do corredor de rua que até conseguira consertar os bugs da
anterior, mas começava a ficar obsoleta. Seria uma metáfora interessante. No meu
retorno, continuaria apresentando os defeitos quase incorrigíveis de sempre. Mas não
perderia, salvo raríssimas exceções momentâneas, nunca mais a alegria de correr.

Pela primeira vez, faria uma corrida sem relógio no pulso. Sem a velha obsessão
de ficar apertando botões a cada vez que uma placa numerada aparecia. Ou praguejar
quando não. Não assimilaria o costume saudável, mas seria uma experiência
interessante esquecer, ao menos por um dia, a matemática. Tinha o claro benefício, para
quem já experimentara a fornalha acesa das 10h, da largada às oito, em clima mais
ameno (mas nem tanto, a temperatura assim mesmo beiraria os trinta graus). E a
companhia pra lá de agradável dos amigos do RJ e SP, os mesmos da viagem à
fantástica fábrica de chocolate e que estariam comigo numa inestimável escolta durante
boa parte da minha segunda tentativa nos 42 km, história que ainda vou contar aqui. O
cenário era bastante favorável. Exceto por um pequeno, mas decisivo detalhe.

É complicado falar dele sem ser deselegante, sem chafurdar na escatologia. O


dito número dois fica simpático em inglês, como no título do livro “Everybody poops”.
Mas, no bom e velho português, é mesmo uma merda. Se você não consegue fazê-la
denotativamente antes de uma corrida longa, como uma meia maratona, a chance de ser
conotativo é bastante grande. No sagrado lar não deu tempo, a correria da viagem foi
grande. Na escola que servia como ponto de concentração para o evento, muito menos.
O único banheiro disponível quando fiz a tentativa parecia um verdadeiro estábulo. Fui
para o field carregado. Não passaria impune.

Faria boa parte da primeira volta ao lado do ilustre visitante de longe, enquanto
vivia a ilusão de conseguir terminar a prova mesmo sem a lição de casa feita. Mas isso
parecia cada vez mais difícil. Nas mudanças sutis do percurso anterior, o suor era mais
frio que de costume. Quando nos reaproximamos do burburinho da largada e chegada,
mas ainda faltando cerca de quatro quilômetros para completar o giro inicial, não houve
como não parar. Desviei uns trezentos metros ou mais da rota e, com uma frustrada
Janete na porta para vigiar, apelei para um banheiro feminino, se não perfumado, um
pouco menos estonteante. Até poderia ser abnegado e completar a volta, mas optei por
abrir mão da prova em si e fazer, de forma apenas recreativa, uma segunda passagem
completa pelo percurso. Só não tirei o número do peito para não correr o risco de ver
negado um apoio oficial, como água ou mesmo um eventual socorro (que não seria,
felizmente, necessário).

Cortar caminho, mesmo sem nenhuma má intenção de minha parte, surpreendeu


meus amigos, que não se viram ultrapassados por mim. Mas a “vantagem” seria
novamente perdida, na necessidade de uma nova parada forçada, pois o problema ainda
não tinha sido resolvido de todo. Dessa vez, pelo menos não tive de sair do caminho,
um posto de combustível ali mesmo ao lado foi a salvação. Quase passei reto
novamente ao me aproximar da escola, mas na bifurcação, avistei uma figura conhecida
e dei um pique para alcançá-lo na ponte sobre o nosso grande rio regional. Fiz, com
satisfação, o trecho ao lado dele, amigo de tantas e tantas corridas, treinos e disputas
pessoais, inclusive ali mesmo. Na reta de chegada, tentaria deixar com que ele chegasse
sozinho, mas o funil estava fechado, impedindo minha passagem ao lado, sem registrar
o tempo de chegada. Meu nome apareceria na lista de classificação, com um tempo
fictício de 2h10min, alto, mas ainda assim imerecido. Que gostaria que nem constasse
lá, mas não pude evitar. A missão estava cumprida e a temporada de tragédias,
encerrada. Não foi uma fase de muitos sorrisos e nem de boas histórias, mas, sem
nenhuma dúvida, de muito aprendizado. Por mais que seja chavão, frase feita e tudo
mais, uma grande verdade: nas derrotas é que se aprende a dar valor às vitórias.
Capítulo 12
As voltas por cima

Na corrida, como na vida, vale a máxima: não há bem que sempre dure, nem mal
que nunca acabe. E vice-versa. Para cada dia cinza houve outros tantos azuis, muito
embora, em se tratando de correr, os cinzas costumem ser bem melhores que os azuis.
Assim como houve provas que me deixaram mal, que me fizeram sentir na pele a
dificuldade de praticar um esporte para o qual não tenho qualquer aptidão natural, que
contraria o meu biótipo e demanda um esforço acima da média para manter as
condições de fazê-lo, existiriam também dias gloriosos, inesquecíveis, nos quais não
houve barreira física ou mental que me segurasse. Em que consegui extrair o melhor de
mim, mesmo que isso seja muito pouco, quase nada, diante do talento dos verdadeiros
atletas. Que essa insignificância se fez menos insignificante e premiou algo que nunca
me faltou, desde os primórdios como corredor: dedicação. Compensei a absoluta falta
de talento para a corrida com muito, muito esforço, sempre. Algumas vezes, deu
resultado. E a alegria foi imensa.

Um dos principais objetivos do corredor principiante médio costuma ser


conseguir um resultado nos dez quilômetros abaixo dos cinquenta minutos. Obviamente
há tanto gente mais ligeira, que faça muito abaixo disso logo de cara, como outros que
têm isso como sonho distante, quase utópico. No meu caso específico, era palpável.
Logo na quinta corrida já passei muito perto, com apenas cinco segundos acima da
marca, depois de ter cravado 56’, 53’ (duas vezes) e 51’ nas anteriores. Mito ou não (há
toda uma polêmica sobre isso), depois de começar a praticar musculação, visando
chegar à primeira São Silvestre, ganhei bastante resistência, mas nitidamente perdi um
pouco de velocidade. Meus tempos estabilizaram na casa de 53 a 56 minutos durante
mais de um ano. O chamado sub-50’ virou uma espécie de obsessão. E, quando isso
acontece, parece que tudo fica mais difícil de conseguir.

Antes que os GPS de pulso se tornassem populares e até mesmo os mapas


baseados em imagens de satélite estivessem ao nosso dispor, o que nos restava era
confiar na acurácia dos organizadores de corridas. Não tínhamos como conferir se a
distância estava correta. Havia até quem tentasse percorrer de carro os trajetos, com a
inevitável pouca precisão do odômetro e a dificuldade ocasional dos trechos em
contrafluxo. Mas, em geral, vale o feeling. A gente costuma perceber quando a distância
é mais curta ou mais longa que a anunciada. É triste quando o resultado tão desejado
finalmente vem e todo mundo o contesta, propositalmente ou não, acusando metros
marotos a menos. Durante muito tempo considerei como marca significativa e especial
esse primeiro resultado abaixo dos cinquenta, que depois, com a aferição do percurso,
registrando nada menos que quase setecentos metros de diferença (9320 metros), tornar-
se-ia apenas mais uma média de velocidade trivial. Mas, pelo menos no dia, não seria
assim. Chegar pela primeira vez ao final de uma prova na distância com o relógio ainda
marcando tempo começando com quatro foi glorioso, enquanto durou.

Tudo isso aconteceu na terra da padroeira. Cidade de turismo religioso com uma
particularidade no que diz respeito à corrida. O intenso movimento de veículos,
principalmente ônibus, e de pessoas, impediria na prática, ou pelo menos deixaria muito
complicada a realização de uma prova de rua no final de semana, como acontece em
quase todos os outros lugares. Corredor trombando com romeiro e vice-versa não ia dar
muito certo. Assim, a única corrida da cidade, comemorando o aniversário da mesma,
aconteceria sempre durante a semana, em pleno dia útil. Nessa primeira participação,
uma noite de quinta-feira nublada, ameaçando chuva. A prova, gratuita, pedindo apenas
um quilo de alimento não perecível para doação, seria das mais simples e das menos
organizadas, não oferecendo aos corredores sequer uma medalha de participação. Fato
que seria corrigido pela ação de um participante, que criara um adesivo para ser colado
numa medalha do tipo “faça você mesmo”, o que viraria uma espécie de tradição para
os anos seguintes.

Um fato curioso seria usar, pela primeira vez (o que voltaria a se repetir em
alguns dos anos seguintes) um número de elite. O nº 2 no peito, se não serviu de
estímulo a mais, também não pesou. Comecei a prova em ritmo forte e consegui manter
por algum tempo, só deixando cair um pouco quando surgiu a primeira subida, curta,
mas muito forte. Não havia apoio dos espectadores, muito mais frequentadores dos
botecos pelo caminho. E nem facilidade no percurso. Além das subidas, um trajeto meio
mal sinalizado e com várias irregularidades, entre elas um buraco que quase me causou
uma torção.

Num viaduto, o fôlego faltou e me obrigou a dar uma caminhada para recuperá-
lo. Dei por perdida a meta, só voltando a correr pelo importante incentivo de uma
colega de esporte, figura assídua nas provas da região. Retomei o pique e fiz, a despeito
das placas muito mal colocadas no trecho final, excelentes parciais de tempo nos quatro
últimos quilômetros. Quando apontei na reta final e vi o cronômetro ainda marcando um
tempo iniciado com menos de cinco, disparei num sprint louco, que teve pouco mais de
cem metros, mas provavelmente me levaria à seletiva do revezamento escolar, quiçá
olímpico. 49’21’’ seria o tempo final. Comemorado com cautela, afinal, todos ali eram
unânimes em dizer que o trajeto não tinha, de maneira nenhuma, os dez quilômetros
oficiais. Mas que me deu fugaz e intensa alegria naquela noite muito especial.

No ano seguinte, em dezembro de 2007, voltaria à cidade num dia ainda mais
inusitado, plena segunda-feira. Numa noite bem mais quente e abafada do que a
primeira, mas que traria um corredor com número 002 (dois zeros à esquerda, isso
mesmo) bem melhor preparado. A emissora de TV local estava presente, chegaram a
dizer até que um conhecido corredor brasileiro, vencedor de maratonas e outras corridas
famosas e que estaria em Pequim no ano seguinte representando o país, também viria
(boato, apenas, embora tenha aparecido a notícia no site da própria prefeitura). Neste
intervalo de um ano, eu já tinha feito várias outras provas de 10 km e conseguido dois
outros resultados abaixo dos 50’ (casas de 48’ e 47’), aparentemente em percursos mais
próximos da realidade.

Seria uma noite perfeita, sob todos os aspectos. Corri motivado, em fase de
treinos fortes, preparando-me para a segunda São Silvestre, sem medo das subidas que
me haviam assustado no ano anterior. Cheguei à metade da prova com uma marca
excelente, que me garantiria com sobras o recorde, se mantida na segunda parte. Tive
dificuldades, senti dores musculares, olhei para a basílica e pedi até uma forcinha.
Esqueci-me totalmente do relógio e me foquei apenas em correr da melhor maneira
possível nos quilômetros finais. Fácil não foi. Mas consegui. Disparei novamente na
descida final, ao avistar o cronômetro do pórtico de chegada. Bati no peito, gritei feito
louco, comemorei com a Janete, sentei no chão e caí no choro. 46’12’’ era a marca, que
eu nunca mais (até hoje, pelo menos) conseguiria repetir na distância correta.
Inacreditável naquela noite, trazida para a realidade dois anos depois, em que eu faria
quase o mesmo tempo, monitorado pelo sistema de posicionamento global. Mas que
teve um enorme significado para mim. Tirou de mim, por instantes, a pecha de corredor
vira-lata, que era incapaz de fazer coisas boas na pista. Fez acreditar que eu era sim um
deles. Se não seria uma grande marca real, traria ao menos uma incontestável evolução
de três minutos em relação à marca anterior. E isso ninguém me roubava.

A noite em que corri feito louco

Em março de 2007, um dia antes de completar trinta e seis anos de idade, eu já


tinha no currículo duas meias maratonas. A primeira, sensacional, com um resultado
muito além da expectativa. A segunda, mencionada no capítulo anterior, um desastre
completo. Apenas duas semanas depois, uma nova tentativa se fez possível. E seria uma
experiência magnífica, na cidade de Ribeirão Pires, que eu não visitava desde a infância.
Uma prova extremamente difícil, pela combinação de distância (à época, ainda não
dominada por mim) e condições do percurso. Que percorri com algum inevitável
sofrimento, mas com enorme prazer. O nome “Trilheira” não era por acaso. Em vários
pontos do trajeto, estaríamos literalmente em trilhas na mata. Lugares onde uma
caminhada em fila indiana era a única possibilidade, correr estava fora de cogitação.
Onde simplesmente não havia como ser rápido. E nem faria falta isso. A satisfação de
sair totalmente do cenário urbano habitual das corridas, de seguir por subidas fortes,
estradas de terra, linha de trem (desativada) e até barrancos onde nem o melhor dos
corredores evitou a necessidade de andar, foi impagável. Inusitada, mas extremamente
prazerosa.
Essa meia maratona destruiu um mito. O de que eu não conseguia correr sem a
“muleta” do suplemento de carboidratos em gel. Não foi proposital, esqueci na verdade
os sachês na mochila. E a Janete até tentou pedir para que alguém me alcançasse e
levasse até mim, favor evidentemente negado. Só me daria conta da ausência com a
prova já em andamento. Até faria alguma falta, principalmente psicológica. Mas me
traria outro tipo de relação com o produto a partir dali. Menor, bem menor dependência.

Não traria essa primeira participação um resultado fora de série - longe disso,
aliás. Cheguei à marca dos dez quilômetros, pouco menos de metade da prova, com o
tempo parcial mais alto de até então na distância. Iniciei uma discreta recuperação a
partir da segunda metade, mas a dificuldade, o calor e o cansaço seriam maiores. Os
últimos quilômetros, sem placas de sinalização, foram bastante custosos. Mas chegar ao
final da prova com 2h08min, três a menos que no percurso urbano, limpinho e muito
mais tranquilo nos arredores do estádio municipal paulistano, foi muito mais valoroso e
significativo. Deu gostinho de redenção. Tomei uma deliciosa chuveirada ao ar livre, ali
mesmo no ginásio que sediava o evento. E, travado, me arrastei até o carro, estacionado
longe dali. Vibrando.

Demoraria três anos, apesar do gosto que tomara pela prova, para retornar à
cidade. A causa seria a participação, duas vezes seguidas, em outra prova da mesma
distância, promovida pela entidade supostamente sem fins lucrativos (domínio .org), no
campus universitário. Corrida muito agradável de fazer, mas que a cada nova edição,
alçaria patamares de custo mais altos, saindo do meu orçamento neste último ano. A
coincidência de datas era prejudicial para ambas as provas e poderia ser revista. Para a
décima edição da prova, comemorativa, estava previsto um aumento no número de
participantes, mas o que se viu foi justamente o contrário. Menos de metade dos
concluintes de 2007. Uma pena.

As chuvas fortes, comuns na época do ano, fizeram com que os organizadores


tomassem uma decisão: mudar, de última hora, o traçado da prova. Ela ficaria talvez até
mais difícil, com subidas bem mais fortes que no caminho original. Mas perderia
também alguns dos atrativos daquela grande farra da primeira vez. Nada de fila indiana
no mato, nada de barranco, nada de estrada de ferro, nada de ducha depois. Mas uma
coisa não faltaria: lama. De monte. Chegar asseado ao final de uma corrida já não é
comum; nessa, então, simplesmente impossível. Apesar do parque de diversões ter
menos brinquedos, eu não deixei de me divertir. Fiz uma corrida que pareceu recreativa
no início, desviando de buracos e dos companheiros de prova. Tinha ido para a cidade
com dois grandes amigos da equipe, um participando e garantindo o seu “caneco” de
todos os domingos; outro, solidário e parceiro, mesmo não competindo, indo prestar
todo o apoio aos colegas, como motorista, fotógrafo ou pacer.

Durante o trajeto bem menos acidentado do início de prova, fui percebendo que
estava num bom dia e, de baixar apenas o tempo da participação anterior, a meta passou
a ser um pouco mais ambiciosa. O tempo sub-2h é uma marca ousada, para os meus
padrões, mesmo em percursos mais simples. Para este, bem mais complexo, seria talvez
excesso de pretensão. Mas eu não pensaria assim naquele momento. Em alguns
momentos mais difíceis, principalmente na subida tão longa e forte que obrigou quase
todos a andar, ela pareceu em xeque, perigando ficar apenas no plano dos sonhos. Não
havia as tradicionais placas de quilometragem e, no lugar, as marcas pintadas no chão,
mesmo de terra, não tinham qualquer precisão, com parciais muito discrepantes entre si,
sem qualquer variação aparente no ritmo.

Em dado momento, embora ele estivesse bem diferente, imaginei reconhecer o


caminho. Parecia ser a trilha de outrora, só que transformada numa bem menos estreita
estrada vicinal. Em alguns pontos, entretanto, a dificuldade seria tal qual, como na
descida, onde correr seria pedir para perder os incisivos centrais. A companhia do
amigo nos dois quilômetros finais seria importante e ajudaria a manter a aceleração,
mesmo quando a meta, que chegou a parecer impossível, ficou garantida na passagem
pela marca do vigésimo quilômetro. Terminei a prova com 1h58min, um tempo
espetacular não para a distância em si, mas para essa prova em específico, sim, até
demais. Mais valioso inclusive que a 1h56min de um mês antes, em São Paulo, numa
também muito válida reação num percurso que até então não havia me visto correr bem,
em duas tentativas anteriores. A sensação de conseguir um bom resultado, numa prova
bem mais difícil que de costume, era de vitória em dobro.

Os 15 km eram uma distância em que eu ainda não havia conseguido acertar a


mão. Já tinha feito uma boa estreia nos 21 km, já tinha conseguido chegar ao sub-50’
nos 10 km, mas nada de aceitável na prova intermediária entre eles. Duas tentativas
tinham sido feitas, a primeira na São Silvestre com 1h27min, a segunda ainda pior, em
Guararema, com mais de hora e meia. Parecia que eu não conseguia encontrar um meio
termo entre a velocidade das provas mais curtas e a regularidade de ritmo das mais
longas. Eram poucas chances de fazê-lo, portanto, aproveitar as raras oportunidades era
fundamental.

A manhã perfeita para isso foi essa, no final de julho de 2007. O dia mais frio de
todas as minhas corridas até ali e, desde então, ainda não superado. Por mais que eu
goste de temperaturas quase polares, achei aquela, de um dígito apenas, excessivamente
baixa. Não acreditava numa grande performance na chegada à cidade de Mogi das
Cruzes, parte de minha história por ter me recebido como estudante universitário no
início dos anos 90. Para sair do carro e tomar coragem de enfrentar a friaca, só mesmo
com uns bons goles do cafezinho quente levado pela fiel escudeira. Um bom e
caprichado aquecimento era indispensável antes da prova. Tinha gente correndo de
agasalho e até de cachecol!

Questionado pela esposa sobre o tempo previsto para a conclusão, chutei apenas
dois minutos a menos que o da estreia na distância. Mas comecei bem mais forte que o
necessário para isso. O ritmo registrado na primeira placa de quilometragem acabaria
sendo praticamente o mesmo da média final. Ele iria variar no decorrer da prova, com o
longo e pouco inclinado trecho de subida, no caminho de ida, transformando-se em
descida equivalente no de volta. Mas se manteria dentro de uma regularidade importante
para garantir o bom desempenho. A chegada aos 10 km se deu com um tempo quase
igual ao do meu recorde de então na distância, indicando que tudo se encaminhava
muito bem. Trouxe até certa empolgação, que tive de administrar para não estragar o
terço final.

Mas consegui manter a estabilidade. Passei, feliz da vida, na placa doze com
tempo bem abaixo de uma hora, indicando uma excelente média de velocidade, para a
minha realidade. Tentei até arranjar um “coelho” para puxar o ritmo no trecho final, mas
acho que escolhi um arisco demais, que acelerou mais do que eu poderia acompanhar
naquele momento. Quando apontei na reta de chegada doze minutos antes do tempo
anunciado, surpreendi à Janete, mas também a mim mesmo. A marca de 1h13min,
inimaginável, muito melhor que qualquer expectativa, era um prêmio e tanto, melhor até
que a linda medalha, talvez uma das mais bonitas que recebi até hoje numa corrida. O
“pangaré” viveu seu dia de puro-sangue.

Um dia perfeito

O mal de se fazer algo muito bom é que aquilo se torna uma referência, um
paradigma, algo que se espera que seja sempre atingido ou superado com facilidade. E
nem sempre a coisa corre para esse lado. Chamei isso, baseado em algo que li em algum
lugar, de “Síndrome de Orson Welles”. Não conseguiria mais repetir o grande tempo, o
meu “Cidadão Kane” pessoal, obtido dois meses antes, na cidade vizinha de Mogi, mas
iria para Guararema com outra missão. Ressurgir das cinzas numa prova que tinha feito
de forma muito insatisfatória no ano anterior.

Naquela ocasião, sem querer usar como desculpa, mas já usando, o calor
insuportável, agravado por uma distribuição de água no mínimo deficitária, havia
colaborado para o malogro. Desta vez, tudo diferente. Quatorze graus a menos no
termômetro e uma estrutura bem melhor, inclusive no tocante à hidratação, me
ajudariam bastante a baixar o tempo, correndo praticamente no mesmo percurso, só
mudando basicamente o local da largada e chegada, com muito mais desenvoltura e
tranquilidade que um ano antes.
Houve dias em que confusões prejudicaram o meu ânimo e me impediram de
fazer direito o que sabia. Em outros, como neste, nada me abalou. Resolvi o problema
do desaparecimento de minha inscrição com impavidez, tolerei pacientemente um atraso
de quase uma hora para a largada. Desorganização nenhuma me atrapalhou. Como
sempre deveria ser, a propósito. Tinha desperdiçado uma grande chance, dias antes, de
conquistar um grande resultado na meia maratona carioca, ficando apenas com um
aceitável tempo pouco abaixo das duas horas. Estava disposto a não fazer o mesmo
naquele dia. Comecei forte, mesmo com a subida inicial e as muitas ondulações pelo
caminho.

O percurso irregular, cross-country, trouxe dificuldades, mas encontrei naquela


manhã a melhor maneira de fazê-lo. No cenário bucólico, um susto que pareceu
filmagem de programa humorístico: gritaram “ó o boi” e eu achei que era pegadinha.
Não era. Um boizão verdadeiro, com chifre e tudo, nos perseguia à distância. Foi
motivo para todos acelerarmos ainda mais. Cheguei aos 10 km não com tempo quase
recorde, como na prova anterior, mas com uma marca muito boa, tendo em vista o
percurso bem complicado enfrentado até ali. As ultrapassagens, inclusive sobre pessoas
com tipo físico bem mais adequado para o esporte que o meu, demonstravam que estava
mesmo num bom dia.

A volta ao trecho urbano, também com subidas das boas e chão de


paralelepípedo, de fácil nada teve. Mas não impediu uma chegada bonita, comemorando
de braços abertos um tempo de 1h18min, cinco minutos acima do recorde da distância,
mas doze, quase treze minutos menor que o de 2006, na mesma corrida. Os fantasmas
estavam sendo todos exterminados, um a um.

A preparação para a minha primeira maratona foi árdua. Falarei mais dela em
uma seção à parte deste livro. Mas o fato é que ela trouxe efeitos colaterais pra lá de
benéficos também. Ao aumentar a minha resistência para percorrer distâncias maiores,
mas ao mesmo tempo, ao exigir de mim também treinos de qualidade em menores, a
planilha trouxe, pelo caminho, alguns resultados expressivos para meu currículo
esportivo, sobretudo nos dois meses que antecederam a estreia nos 42 km.

Um dos melhores, que acabaria mais tarde se transformando no meu recorde


oficial nos 10 km, com a confirmação de que o percurso em Aparecida tinha bem menos
que isso, seria obtido nesta prova em Taubaté, que ganhou a denominação de circuito,
pretensamente como se tivesse outras etapas futuras. Mas que acabaria sendo uma
corrida só. Uma pena, porque não seria das piores. Tirando o atraso (anunciado) para a
largada, as placas de sinalização que até estavam ali, mas não foram colocadas onde
deveriam (o percurso); e uma medalhinha talvez simples demais, de resto seria um
evento interessante, com um trajeto diferenciado e propício para boas velocidades, na
região do shopping local. Complicou um pouco o controle de trânsito, colocando os
participantes em certo risco, mas nada com maiores desdobramentos.

A chuva forte que caiu antes e até um pouco durante a prova deixou as
condições perfeitas para um bom desempenho. Não perderia esta chance, a despeito do
inevitável cansaço que sentia, depois de um treino longo (longo mesmo, quase 32 km!)
para a maratona, menos de trinta e seis horas antes. E de ter chegado em casa às altas
horas na noite anterior, vindo de uma festa de casamento. Nada disso me impediria de
largar forte, disposto e animado nesta manhã de domingo. Nem as poças d’água que
encharcaram tênis, meias e pés logo nos primeiros metros do percurso.

Sem as placas para ditar o ritmo, comecei encaixando um que achei mais
adequado. Consegui manter até determinado ponto, chegando até o retorno na rotatória
da fábrica bem e confiante. Mas já dando sinais do esforço, sob forma de um
desconforto estomacal, que voltaria a me acometer outras vezes, ora estragando, ora
apenas prejudicando um bocadinho o resultado final. O “passão” virou passinho, mas a
coisa parecia que tinha ficado só mesmo no susto. Incentivado por um corredor, que
mais tarde eu descobriria ser vizinho de cidade, retomei meu pique e, na batida de antes
do incidente, fui até o final. Reencontraria o colega ao final da prova e o agradeceria
pelo apoio. O resultado final, na casa de 47 minutos, poderia ter sido ainda melhor, mas
ficou de excelente tamanho. Fez jus a um bom momento, de extrema dedicação aos
treinamentos, que serviria de referência para tudo o que eu quisesse fazer de bom dali
em diante.

Ficou como principal lição desta prova: é quase sempre possível se recuperar.
Mesmo quando tudo parece perdido, um iminente desastre, pode ser que um pequeno
detalhe, seja ele o incentivo de um torcedor ou de um companheiro de prova, um
pensamento positivo, uma imagem ou frase qualquer que venha à mente. Ou até quem
sabe uma respiração mais profunda, simplesmente. Seja vinda de fora ou de dentro
mesmo, uma pequena força pode salvar uma corrida. Como bem pode fazê-lo em muito
maior escala também. Não seria a primeira e muito menos a última vez em que fui o
lutador de boxe que apanhou, apanhou, apanhou e, no final, deu um ou dois golpes e
nocauteou o adversário. Sem sangue, dentes perdidos e ou quaisquer lesões sérias que o
valham, é óbvio.

Ser bem tratado é bom em qualquer lugar, em qualquer meio em que se esteja.
Em corridas não poderia ser diferente. Ser recebido com cortesia e respeito deveria ser
prática comum, mas, justamente por não ser exatamente assim, é que fui aprendendo
com o tempo a dar o devido valor aos que tratam, a mim e aos meus colegas de esporte,
com esse carinho e essa deferência. Nunca fiz questão de ser VIP, pagando (como se
vem se tornando costume em grandes eventos) ou não por luxos, mimos, “frufrus” ou
qualquer tipo de tratamento diferenciado. Gosto de ser paparicado? Sim, desde que os
demais participantes também o sejam igualmente.

Em algumas corridas específicas e em alguns lugares em particular, isto ficaria


bem mais claro do que em outros. Uma localidade que eu mal conhecia até pouco tempo
atrás, só tendo visitado duas ou três vezes a trabalho, era a cidade de Guaratinguetá.
Passaria a ser frequentador habitual do lugar, devido ao calendário farto em opções de
corridas durante o ano. E a terra do santo, antes mesmo de ganhar essa denominação,
conquistou meu coração. A forma afetuosa com que fui, não exclusivamente, mas de
uma forma geral, recebido nas tantas vezes em que estive por lá correndo, fez com que
eu desse à cidade um outro título, evidentemente muito menos importante, mas de
grande valor sentimental para mim: minha segunda casa.
Seriam pelo menos sete nomes diferentes de provas disputadas por mim lá. Além
da meia maratona, da qual vou tratar também à parte; da prova mais antiga da região,
supostamente a terceira do país; e de etapas menos famosas do circuito local, duas
outras corridas em particular merecem destaque nessa condição diferenciada de provas
especiais. Uma delas, organizada por um desses apaixonados pelo esporte, que com
poucos recursos, (mas muito trabalho) conseguem reproduzir, em escala reduzida, o que
só grandes empresas, com centenas de pessoas envolvidas, trazem aos participantes. E
com pequenos, mas muito importantes detalhes, que mostram ainda mais consideração.

Desde a primeira visita, ainda em meu primeiro ano como corredor, ver o
empenho desse guerreiro, o de sua filha e de seus colaboradores, foi comovente e
inspirador. Tornar-me-ia fã incondicional da prova e de seu realizador, passando a
prestigiá-lo em várias edições seguintes. E em ajudar na divulgação do evento,
convidando amigos de outras localidades a vir conferir tudo isso de perto. Receberia,
como se cicerone da região fosse, a visita de grandes amigos, inclusive de cidades
distantes. Que viriam, muitas vezes curiosos pelo inusitado de ver associado a uma
corrida o nome e, principalmente, o ramo de atividade inusitado do estabelecimento
comercial (um bar) do organizador. E que também se tornariam admiradores do
valoroso trabalho desse camarada.

A outra, realizada por um grupo de funcionários, também praticantes e


incentivadores do esporte, da universidade estadual e disputada nas dependências do
campus, ganharia condição de evento permanente em meu calendário logo a partir de
minha primeira participação, já em 2007. Como na vida, o mais marcante numa corrida
talvez seja aquilo que ninguém é obrigado a fazer, mas faz mesmo assim. No gesto mais
simples e singelo, como o da colaboradora na fila de entrega do kit pós-prova,
agradecendo a presença e dizendo nos esperar novamente no ano seguinte. Ou na
simpatia de receber a todos, participantes e acompanhantes, num farto e variado café da
manhã, que só não é mais sumariamente devorado por acontecer antes e não depois da
corrida (exceto no primeiro ano em que lá estive).

Em ambas estas corridas, tenho bons momentos (e outros nem tanto) para
relembrar. Mas é particularmente na segunda que as coisas parecem sempre acontecer
de forma mais intensa, trazendo histórias de viradas, recuperações, voltas por cima, do
qual esta seção trata em particular. Já na primeira edição, que fiz acompanhado de um
daqueles que me conheceriam por intermédio do site na internet, e que se tornaria um de
meus grandes amigos, a salvação de um dia que parecia destinado ao fracasso se fez
presente. Passara a semana atacado de gripe e de rinite e, por consequência, treinando
pouco ou quase nada. A musculação era quase sempre benéfica, menos quando mudava
a série de exercícios, trazendo inevitáveis dores em lugares do corpo que eu nem sabia
que existiam, até então. A única coisa que parecia a favor era a temperatura amena, com
que eu poucas outras vezes me depararia na cidade. À base de chazinho, me recuperei
como pude e fui para a batalha assim mesmo. Sem sintomas agudos, como febre, por
exemplo, que teriam me deixado obviamente em casa. O resultado final não seria um
daqueles inesquecíveis, mas mostraria um ritmo pra lá de digno, alcançado
normalmente em provas disputadas em condições próprias e bem mais adequadas.
Mostraria que eu era capaz de superar adversidades e conquistar boas marcas, mesmo
sem estar nos meus melhores dias. Que não era preciso, obrigatoriamente, desistir por
causa disso.
No ano seguinte, na crista da onda que me levaria à estreia na nobre distância em
terras cariocas, eu disputaria a corrida em situação bem mais privilegiada. Menos
pesado, melhor condicionado, com ânimo em alta. Tendo feito também um longo e
proveitoso treino na noite de sexta-feira antes da prova, que deixou as pernas bem
pesadas, mas a alma em estado de graça. Curiosamente, nestes dias em que parecia
haver, por conta do bom cansaço, a menor responsabilidade possível de correr em busca
de um resultado, é que eles pareciam ser alcançados mais naturalmente, quase que
caindo no colo.

Pisando forte no campus

Corri neste maio de 2008, com tranquilidade e muita satisfação. O sol estava
presente, para compensar o nublado ano anterior, mas não causaria nenhum problema.
Mesmo que fosse um pouco mais brilhante, havia água mais que suficiente,
praticamente de quilômetro em quilômetro, para refrescar. O ritmo já começou
surpreendentemente forte e os tempos parciais que apareciam nas placas eram cada vez
animadores. As ultrapassagens por gente aparentemente em bem melhor forma, idem.
As passadas eram largas, firmes, decididas, como poucas vezes vistas antes. Doeu um
pouco, claro, a musculatura tinha sido bastante exigida, não muitas horas antes. Dos
ultrapassados, alguns se vingariam, mas serviriam como “coelhos” para manutenção da
batida no trecho final. Inspirado num filme de animação infantil, visto à época até a
saturação (pai de criança pequena sabe como é isso), de desacreditado passaria a
vitorioso. Aquele era um novo dia. Chegaria de punho erguido, celebrando uma marca
que ficaria por bastante tempo entre as melhores da história pessoal.

No ano seguinte, também em plena fase de preparação para uma maratona, mas
num caminho bem mais difícil até ela, as coisas não correriam de forma tão harmoniosa.
Faltando apenas duas semanas para a segunda tentativa de emplacar os 42 km, a corrida
não seria menos especial, bem organizada ou agradável. Mas minhas condições não
eram as mesmas de um ano antes. Num belo e inesquecível treino, entre as cidades de
Taubaté e Tremembé, ao lado do grande amigo de mesmo nome, o solado de um dos
pés acusou uma lesão que me tiraria de combate durante quase toda a semana que
antecederia minha terceira participação nesta corrida. Chegaria ao final de semana em
dúvida sobre estar ou não presente, mas em desaparecendo as dores, pelo menos até
antes da prova, seria mesmo difícil abrir mão. Faria uma corrida não exatamente
desastrosa, daquelas com médias de velocidades para deixar de baixo astral durante a
semana inteira, mas muito acima, quase quatro minutos, do tempo do ano anterior. Que
inevitavelmente aborrecem quem já foi capaz de fazer muito melhor no mesmo trajeto.

Um ano depois, só para variar, estava às vésperas de correr outra maratona, desta
feita, com apenas uma semana de antecedência para a dita cuja. E, como parecia ser
impossível de evitar, também passando sustos de última hora. A poucos dias da prova,
uma posição da sessão de alongamento quase me causaria um estiramento muscular,
dando na hora a sensação de “ih, já era...”. Não seria nada de mais sério (felizmente)
também como quase sempre, mas colocaria em risco a participação não só nesta corrida
de despedida da planilha de treinamento, como até mesmo na própria prova-alvo.
Recuperado, troquei a minha própria cidade, onde também acontecia uma corrida, pela
outra, distante quase cem quilômetros. Sem medo de me arrepender. Não que eu prefira
necessariamente sair de casa para correr, mas aprenderia que a melhor escolha nem
sempre é a mais óbvia.

Se o desempenho não beiraria a perfeição, como dois anos antes, também ficaria
bem longe da corrida meio capenga do ano anterior. O ritmo começou talvez forte
demais para ser mantido durante toda a prova, o que me obrigaria a uma diminuição
considerável, com direito até a uns passos de caminhada, já no retorno, em subida. Mas
ficaria, na prática, a apenas seis segundos da grande marca de 2008. Desta vez, também
com a (triste) constatação via GPS de que o trajeto tinha metros a menos, mas sem a
discrepância absurda da cidade vizinha de Aparecida. Qualquer coisa em torno de
duzentos a trezentos, minorando, mas não desvalorizando de todo o feito. O suficiente
para me deixar bastante feliz e satisfeito, fechando bem mais um ciclo de preparação. E
escrevendo a quarta página seguida de uma bonita história. Que eu espero continuar
ampliando sempre, a cada novo ano. E também fazendo muitas outras corridas, de todas
as distâncias possíveis, neste meu outro lar.

Outra cidade que merece destaque em minha trajetória como corredor é a


vizinha Caçapava. Nem estive lá tantas vezes assim, devido ao número reduzido de
provas existentes, mas a cidade detém uma marca interessante. Na corrida
comemorativa do aniversário, realizada no mês de abril desde o ano de 2006, estive
presente em todas as edições. Tenho também cinco ou até seis participações seguidas,
até o momento, em outras provas, mas estas bem mais antigas, com quase trinta ou mais
de setenta anos, não me permitindo dizer que faço parte do seleto grupo que correu
todas as edições. Pena que em 2011 houve, por conflitos não muito bem explicados
entre organização, autoridades e patrocinadores, a suspensão da prova. Espero que tenha
sido apenas um breve hiato. A outra corrida local, promovida pelo batalhão do exército
sediado ali, também contou com a minha presença todas as vezes desde que a descobri,
em 2007. Nas duas corridas, que em comum sempre tiveram o mesmo lugar de
concentração, com largada e chegada acontecendo na mesma grande praça, vivi também
bons momentos. O ano mais marcante, em ambas, entretanto, foi o de 2009.

Desde criança tenho alguns problemas respiratórios. Não fui um daqueles que
não largam a bombinha, mas desde que me entendo por gente, nariz entupido é situação
recorrente. Não é gripe, porque gripe sara. É de origem alérgica. Já procurei,
obviamente, tratamento. Passei por dezenas de médicos, tomei, pinguei e injetei
diferentes medicamentos, fiz até uma tremendamente incômoda cauterização para
corrigir um suposto desvio de septo, que só serviu para deixar meu nariz com cheiro de
carne defumada. Nada resolveu. Coincidentemente ou não (o que é mais provável),
depois que parei de fumar, o problema pareceu se agravar. O nariz tapado ganhou
companhia de outros sintomas muito piores. Ardência nos olhos e secreção escorrendo o
tempo todo (virei o maior freguês da companhia de lenços de papel). Fiz um daqueles
exames para tentar detectar a causa da alergia e a conclusão é que não sou alérgico a
nada, pelo menos não em relação a nenhum dos agentes mais comuns. Um drama,
daqueles bem difíceis de desenrolar. Por sorte, uma das coisas que descobri na prática é
que correr, além de não ser algo que a rinite prejudique muito, ainda alivia os sintomas.
Bastou colocar o tênis, sair de casa e dar umas passadas para o tempo abrir, junto com
as vias aéreas.

Mas, tirando um ou outro “ser extraterrestre” (conheço alguns!), não dá para


correr vinte e quatro horas por dia. Os ataques não são nem tão frequentes, às vezes
ficam meses sem aparecer. Muito embora venham ficando mais comuns à medida que
enfrentamos dias de tempo cada vez mais quente e seco. Mas parece que, ironicamente,
gostam de aparecer justamente nas vésperas de corridas. No sábado que antecedeu
minha quarta participação na prova do aniversário da cidade, passei o dia derrubado,
sem disposição para absolutamente nada. A noite foi trágica e interminável, não dormi
um pingo, sem conseguir respirar direito. Poderia e talvez até devesse abortar a
participação na corrida. Cheguei até a dizer isso para a Janete, quando “acordei”. Mas,
sabedor de que, pelo menos enquanto o movimento acontecia, eu estava livre do
problema, optei por pagar para ver. Sem nenhuma pretensão, obviamente, de resultado.
Apenas e tão somente pelo poder anestésico da atividade.

Quem me viu naquela manhã, deve ter achado irreconhecível. Um amigo disse
que eu estava de farol baixo. Abatido, procurei me animar um pouco na conversa com
os colegas de esporte, sempre tão cheios de energia e disposição. E ao ver o quanto a
prova já tinha crescido, nesta quarta edição. Dos menos de duzentos concluintes em
2006, já chegavam aos mil os participantes nas corridas de 5 e 10 km e na caminhada.
Inscrito na distância maior, até me arrependi da escolha, mas alinhei ao lado do velho
parceiro, com quem já tinha travado (e vencido) uma disputa pessoal dois anos antes,
que valeu uma aposta de almoço. Logo nas primeiras passadas, percebi que tinha duas
escolhas: usar os problemas como desculpa e fazer uma péssima corrida, piorando ainda
mais o estado de espírito; ou tentar, independente de qualquer coisa, fazer uma prova
normal, me esquecendo de tudo e simplesmente correndo. Fiquei com a segunda
hipótese. Marcando de perto os passos do bom companheiro, segui como se tivesse
dormido como um bebê a noite inteira.

E seria mesmo uma corrida normal, dentro dos meus conceitos disso. Com altos
e baixos, como quase todas as que faço. Comecei bem, conseguindo manter a boa
passada até determinado ponto. Mas, com um ritmo mais forte que o possível para o dia,
acabei sentindo e tendo de diminuir bastante, quase parar de vez, no retorno da grande
reta ao lado da fábrica que cheira bem, igual à capixaba. O amigo, em melhores
condições, seguiu em frente, abrindo distância, mas continuando a servir de referência
no horizonte. Brevemente recuperado, busquei inspiração na colega de esporte que me
incentivara na primeira vez que corri abaixo dos cinquenta minutos. E, num trecho com
algumas subidas, usei o (limitado) poder dessa musculatura judiada para deixá-la, junto
às amigas, para trás. Na outra reta, ao lado da avenida da rodoviária local, alcancei o
amigo, que estranhou o meu ressurgimento das cinzas. Tendo como pacer um bom e
solidário companheiro de equipe, que já tinha terminado a prova havia mais de dez
minutos, engatei uma quinta marcha nas subidas finais e, mesmo sem me aproximar dos
melhores tempos na distância, fechei a prova com um incrível, ao menos para o dia,
sub-50’, por pouco mais de dez segundos. Vibrei muito, cheguei gritando, como se
tivesse quebrado um recorde mundial. Talvez tenha sido um dos dias em que terminei
mais feliz uma corrida. Saí andando pela praça, sozinho, feito um bobo alegre. E
telefonei para casa, agradecendo emocionado à minha companheira, com quem
completava dez anos de casado naquele mês, por ter me incentivado a não desistir.
Valeu a pena, e como, ter insistido.

Fazendo por merecer os cumprimentos

No mesmo ano, pouco mais de quatro meses depois, voltei à cidade e à mesma
praça para mais uma edição da corrida militar. Bem mais simples, sem os caprichos da
cada vez melhor prova municipal, mas também animada, reunindo aquela turma de
sempre, que não perde uma. Dessa vez cheguei sem nenhum problema, inteiríssimo e
em bom momento físico e mental, a poucos dias da participação de mais uma maratona,
a de Bertioga. A fase em que o treinamento começa a decair em volume semanal de
quilometragem, o famoso polimento, costumeiramente é a que traz alguns dos meus
melhores resultados nas corridas de curtas distâncias, usadas como treinos de luxo. Mas,
por mais otimista que pudesse estar para minha terceira maratona, não tinha ideia de
quão bem poderia ir nessa pequena prova de cinco quilômetros que faria.

Curiosamente, ao contrário da maioria das corridas que disputo, nesta, nem


comecei tão forte. Sem fazer aquecimento prévio (coisa muito pouco recomendável) e
no susto com o tiro de canhão usado como substituto da buzina para anunciar a largada,
fiz o primeiro quilômetro pouco abaixo de cinco minutos, marca absolutamente trivial,
embora a próxima tenha registrado absurdos 3’38’’, dando a entender que a precisão
não era lá o forte desta sinalização. Desencanado, corri com prazer e sem compromisso,
como se estivesse fazendo um treino de ritmo. Até mesmo na longa subida à beira da
rodovia, onde já tinha sofrido bastante em outras provas ali. À medida que o pórtico se
aproximava, no entanto, o bom resultado ficava cada vez mais evidente, trazendo
aceleração quase involuntária. Fecharia a prova na casa de vinte minutos líquidos, que,
se o percurso tivesse mesmo os cinco mil metros previstos, daria uma média totalmente
fora da minha realidade. Ainda assim, medindo depois, já em casa, chegaria a uma
diferença de não muitos metros, o que registraria a minha melhor marca de todos os
tempos, acima, pela primeira e única vez (até hoje) dos 13 km/h. Velocidade
discretíssima para um corredor clássico, mas turbinada para aquele sujeito pesadão que
um dia ousou acreditar que podia correr. O bom tempo fez com que eu recebesse
elogios até de feras do esporte. “Você não corria assim” foi uma das frases mais
lisonjeiras que já ouvi. Pelo menos naquela manhã, havia feito por merecê-la.

O troféu tão almejado parecia sonho distante, principalmente depois do


tremendo desastre que foi a primeira tentativa de consegui-lo, não ficando nem entre os
dez melhores da categoria numa prova bastante modesta. Outro tiro no pé havia sido
dado no começo de 2009, numa prova tão pequena que o número de peito fora
substituído por uma chamada oral. Ao ver quinze objetos do desejo sobre a mesa e
contar vinte participantes, acreditei que tinha tudo para garantir o meu. Disparei,
enfrentei uma ladeira monstruosa, me surpreendi ao ver que a distância não tinha nem a
metade do que havia sido anunciado a princípio e cheguei em décimo quarto lugar,
faturando, teoricamente, quase na bacia das almas, mas dentro do objetivo. Em outra
oportunidade, fiz a minha parte e achei que até levaria um para casa, mas a quantidade
de troféus expostos sobre a mesa me enganou. Uma parte deles estava reservada para os
vencedores de uma corrida infantil não previamente anunciada. Uma tremenda
decepção.

Falava, brincando, mas com fundo de verdade, que só imaginava ganhar o


primeiro troféu quando chegasse à categoria cem anos ou mais. Como sobrevivente. Até
já havia recebido alguns, os de participação, também conhecidos à boca miúda como
“miss simpatia”. Por mérito, realmente, não nutria ilusões. Exceto se apelasse para uma
situação extrema. Não foi nem por isso que voltei a Guaratinguetá, mas para prestigiar o
amigo promotor do evento, num final de semana onde não havia outras opções para os
corredores locais. Ajudado por um novo amigo, morador das redondezas, consegui com
grande dificuldade localizar o bairro afastado onde a corrida aconteceria, nos arredores
de um cemitério. Ainda bem que não se tratava de uma corrida noturna! E, ao lado de
pouco mais de trinta pessoas, larguei para os oito quilômetros.
Havia feito, alguns meses antes, outra prova do mesmo organizador, só que de
distância bem maior (25 km). E que passaria por parte do trajeto desta. Seria
apresentado ao sentido contrário do percurso, quando a forte descida viraria subida. E
que subida! Até tentei enfrentá-la, mas com as pernas pesadas de mais um treino longo
feito pouco tempo antes, achei por bem subir um trecho andando. Retomei a velocidade,
para não mais perdê-la, a partir da descida. Fui disputando, só de brincadeira, com uma
corredora que havia me ultrapassado na rampa e que pareceu se sentir afrontada quando
devolvi o gesto. Ao final da prova, com fair play, acabaria deixando que ela me
ultrapassasse na reta final.

Ex-fumante, fui castigado nesta prova pelo que já fizera muitos não-fumantes
passarem por tanto tempo. Não foi baforada de fumaça na cara, e antes fosse. Ao
receber uma sacolinha de água (usada no lugar dos tradicionais copos, e que costuma
agradar pela praticidade, mais fácil de abrir e consumir), fui brindado pelo
inconfundível gosto que vinha da mão impregnada do voluntário. Custou a entender
porque fizera aquilo com o meu organismo durante tantos anos. Argh!

Cumprida a missão, fiquei aguardando o resultado, coisa tão pouco comum para
alguém normalmente não interessado de forma direta. Quando recebi a notícia de que
havia sido o primeiro da categoria, fiquei exultante. Nem mesmo a notícia de que isso
só acontecera porque simplesmente não havia outros competidores da mesma faixa
etária diminuiu a alegria. Como escreveriam alguns amigos que leram meu relato de
então, fui o único que acordou naquela manhã e que enfrentou o desafio, logo, havia
feito por merecer. Quase ofereci dez reais de “propina” para alguém aparecer comigo,
fingindo ser o segundo colocado na foto do pódio. Que, por problemas logísticos, não
fora transportado até o local da prova, deixando a cerimônia de premiação acontecer ali
mesmo no chão. Mas recebi, com muito orgulho, meu primeiro, e único até hoje, prêmio
do tipo. Que não tem a palavra “participação” grafada, mas no lugar dela, um valoroso
numeral ordinal, primeirão. Não estavam ali, para celebrar comigo, nem a minha
família, nem os meus companheiros de equipe. Não tinha problema. No “alto do pódio”,
estava um corredor feliz da vida.
Meu único troféu

Voltas por cima são curiosas. Não há receita de bolo para obtê-las. Elas podem
vir como resultado de um trabalho de longo prazo, como uma planilha de treinos com
dezesseis ou mais semanas de duração. Como podem também acontecer do nada, num
dia em que você acorda inspirado e, mesmo sem nenhuma preparação especial,
simplesmente vai lá e faz. 2010 foi um ano em que, além das maratonas, me dediquei
também a provas curtas, em especial a dos 5 km. E quebraria duas vezes seguidas minha
marca pessoal nessa distância, depois de bater na trave uma vez, no começo do ano. Não
é ainda uma prova em que eu possa me dizer especialista, e creio até que nunca consiga
afirmar isso. Um sábio corredor definiu a distância muito bem em seu blog: “5 km são o
inferno, do qual você tem de sair o mais rápido possível”. Uma corrida em que você tem
de ser rápido em todos os instantes, sem direito a erros ou variações de velocidade, sem
espaço para poupar fôlego, realmente pode ser assim definida. Ainda não achei a melhor
fórmula para enfrentá-la, mas não abro mão do direito de seguir tentando.

A primeira quebra do recorde, que já durava um ano e cinco meses, aconteceu


bem longe de casa, na cidade de Sorocaba. Viajar duzentos quilômetros e pagar onze
pedágios para correr apenas cinco é algo difícil de explicar até para quem é adepto da
corrida de rua, imagine para quem não é. Mas é apenas mais uma das muitas doideiras
que me dispus a fazer. E pelo segundo ano seguido, já que havia feito a mesma prova
também em 2009. Debaixo de uma chuva torrencial, que pensei até que poderia impedir
a realização da corrida, larguei em ritmo alucinante, buscando a todo custo baixar meu
tempo anterior, mas de olho mesmo no recorde pessoal. Nem o aguaceiro, nem o vento
gelado e nem as facadas nas estradas impediram a presença em massa dos “malucos do
asfalto”, meus grandes companheiros de batalhas. Todos motivados e movidos a pura
diversão, já que apesar de muito bem organizada, a corrida local não oferece o atrativo
da premiação por faixa etária.

Mantive a pegada, ganhando ainda mais aceleração durante a corrida.


Escolhendo, como alvos, corredores à frente de forma aleatória e usando-os como
motivação para ultrapassagens. Segui correndo bem, administrando a respiração, mas
dando o máximo que podia, segurando ritmos bem fortes também no segundo e terceiro
quilômetros. Passei com tranquilidade pela pequena subida do viaduto, onde no ano
anterior dera uma engasgada e prejudicara o final de prova. Mas, estranhamente, senti
um pouco de desânimo ao entrar na (não exatamente) reta final. Sobretudo depois de
olhar o relógio, me confundir com o número visto e imaginar que não daria mais para
bater a marca. Diminuí, burocraticamente, o ritmo e passei no pórtico sem
comemoração. Só depois, já conversando com a Janete sobre a prova, é que iria checar
novamente o tempo e ver que a marca estava, sim, batida. Por míseros quatro segundos,
mas estava. Dava para ter feito bem melhor, não fosse a ilusão de ótica. Ou se tivesse
corrido sem relógio. Mas ficou de ótimo tamanho.

A segunda quebra de recorde viria depois de uma das maiores decepções de toda
a minha trajetória esportiva. Fizera um ciclo de preparação muito bem feito para a
Maratona de Porto Alegre, com dedicação extrema, planejamento seguido à risca e
muita vontade de melhorar bastante meu tempo, na prova em que planejara estrear nos
42 km, mas não conseguira, em 2008. No final de maio, uma semana após a leve lesão
que me impediu de concluir a prova rio-grandense, já devidamente curado dela, mas
ainda não das feridas d’alma, fui para a pequena cidade de Tremembé, encravada entre
Taubaté e a serra da Mantiqueira, participar pela primeira vez de uma corrida bastante
simples, mas igualmente agradável, realizada em homenagem a um grande e promissor
atleta falecido prematuramente.

Já havia tramado outro plano para não desperdiçar toda a base de treinamento
para a maratona anterior, escolhido outra prova da mesma distância, em seguida, no
calendário. E, motivado, reiniciaria a planilha a começar por esta corrida de 5 km.
Ainda inseguro e com medo de voltar a sentir as mesmas dores que arruinaram a corrida
no sul. Mas já tendo feito durante a semana treinos extremamente proveitosos, sem
vestígios do problema.
Quebrando o recorde dos 5 km

Larguei forte, com o “tacógrafo” da experiência ajustado para a média que


gostaria de manter durante toda a corrida. Com o pequeno número de participantes, a
maior parte grandes atletas, mesmo esse ritmo não foi o suficiente para impedir que eu
ficasse bem para trás, ao lado de pouca gente, entre esses, jovens corredoras com menos
de metade da minha idade. E do peso também. A ausência das primeiras placas de
quilometragem não permitiu ratificar se o controle era eficaz, mas conseguia,
aparentemente, manter a mesma boa passada. Quando cheguei à terceira placa, a
primeira avistada por mim, detectei que estava até mais forte, correndo próximo dos
4’20’’ por quilômetro. Uma combinação de trecho em subida e do temor de quebrar fez
com que esse pique insano (para mim) diminuísse naturalmente.

A prova terminaria, tal qual uma maratona olímpica, numa pista de atletismo,
nas dependências da escola que servia como ponto de concentração. Bem mais simples,
uma de terra batida mesmo, nada de tartan ou quaisquer outros pisos sintéticos. Não
precisava. O fôlego estava quase no limite e me impediu de dar a volta final na mesma
boa velocidade do início da prova, mas ela foi ainda assim gloriosa. Problemas com o
meu relógio, com o botão teimoso não querendo disparar a cronometragem no começo;
e a falta de recursos eletrônicos, com a boa e velha apuração manual, impediriam de
registrar com precisão. Mas, depois de intrincados cálculos matemáticos (e de perguntar
para quem chegou quase junto), cheguei à conclusão de que finalizara a prova na casa
dos 23’30’’. Três segundos abaixo do tempo de Sorocaba. Novo recorde. Que serviria
de amuleto para uma vitoriosa campanha de um mês e meio até chegar de volta ao Rio
de Janeiro e finalmente correr uma maratona a contento. Mas que eu espero ainda baixar
bastante, quando finalmente conseguir treinar bem para essa distância aparentemente
fácil. Mas só aparentemente.

Ter ficado em último lugar na prova dos 31 km pareceu coisa pouca. Havia
atenuantes. Nível alto, grau de dificuldade ainda mais. Pouquíssimos “doidos”
presentes. Mas, se isso não tivesse ficado engasgado na garganta, eu não me
reconheceria. Não seria eu. Eu tinha de voltar àquela serra, quase cordilheira, para
enfrentar novamente o desafio, nome inclusive da própria corrida. E tentar resgatar algo
que havia perdido naquelas subidas inacreditavelmente íngremes.

Tentei fazê-lo logo no ano seguinte, mas fui impedido pelo calendário. A prova
iria ocorrer apenas uma semana depois da Maratona das Praias, da qual eu ainda estava
me recuperando, depois de uma saga de 42 km pelas areias. Ainda bem que não o fiz.
Quem lá esteve, disse que as dificuldades, já naturais da distância e altimetria, se
agravaram severamente, por condições climáticas das mais adversas, com temperaturas
acima dos trinta graus. Tive de esperar mais um ano com a palavra “lanterna” pintada na
testa. Não fiquei pensando nisso, claro, mas não via a hora de poder tentar outra vez.

O dia finalmente chegou, e amanheceu perfeito. O mesmo friozinho de dois anos


antes, ajudando bastante os “malucos” presentes. Só faltou a garoa para ficar igualzinho.
O número de participantes crescera bastante, quase o dobro dos apenas trinta e três
concluintes da prova anterior. E outros tantos fazendo apenas o caminho de volta, prova
oficialmente destinada às mulheres (muito embora existam muitas que fazem a distância
completa com um pé nas costas), mas também com a presença na metade do caminho de
alguns “intrusos” varões. Não eu. Para mim, era o dobro ou nada.

Mesmo não tendo conseguido me preparar melhor, como prometera ao chegar


junto da ambulância da outra vez, tinha plena convicção de que conseguiria meus dois
intentos: melhorar um pouco o tempo e deixar alguns adversários para trás. Ao contrário
do que acontecera antes, não fiquei totalmente na rabeira da tropa. Vi a grande maioria
das feras desaparecerem no horizonte, como estou acostumado, aliás. Mas ficaria num
bloco junto com alguns outros corredores do mesmo nível. Nós nos dispersaríamos com
o avançar da prova, mas eu alcançaria alguns e faria até ultrapassagens, coisa que nem
chegara perto de acontecer na outra edição. Enfrentaria as subidas com valentia, sem
nenhum tipo específico de treino recente. Inclusive as da região serrana, no sentido
literal da palavra. Enfrentaria a primeira parte delas, no caminho de ida, ao lado de um
corredor que se aproximou e se apresentou como leitor dos meus relatos, tendo
descoberto inclusive sobre a prova em meu site. Companhia valorosa e papo bastante
agradável, que ajudou o tempo a passar. Prova longa tem dessas coisas. Corre-se muito
mais com a cabeça do que com as pernas.
A subida na volta era bem mais complicada. Mesmo para os melhores
corredores, praticamente impossível não andar em certos trechos. A longa rampa acima,
com inclinação que muitos carros populares chorariam para vencer, me convenceu a
caminhar durante algumas dezenas ou centenas de metros. Mas não me derrotou.
Cheguei ao final dela ainda inteiro e bem disposto, ganhando aceleração com a longa
descida e com metas ousadas, de melhorar o tempo de 2008 em quase quinze minutos,
fechando a prova com um ritmo médio próximo aos seis minutos por quilômetro. Veria
depois que isso não seria tão simples, mas durante boa parte do caminho de volta, foi
um sonho que pareceu possível.

Dias de desafios

Já quase no final, ao me deparar novamente com subidas, num trecho de apenas


quatro quilômetros, mas que enfrentei já no limite de minhas forças, o desempenho
cairia bastante. As ladeiras não eram, nem de longe, íngremes como as da serra, mas o
suficiente para novamente me transformarem em caminhante. A companhia do grande
amigo e líder da equipe, nos três últimos milhares de metros, seria decisiva para me
manter em pé, já que o cansaço era extremo. A reboque do capitão, cheguei ao final,
baixando em apenas cinco, e não os quinze almejados minutos, do resultado anterior.
Mas deixando alguns corredores, oito deles, para precisar melhor, atrás do meu nome na
lista de classificação. Ficou a sensação de que poderia ter sido ainda maior a conquista,
mas não deixou de sê-la. De onde estava, creio que minha falecida avó tenha dado um
daqueles sorrisos que tão bem a caracterizavam e ficado um pouquinho orgulhosa do
neto de pouco talento, mas muito espírito de luta.
Capítulo 13
Metade da distância, prazer por inteiro

O nome deste capítulo remete ao slogan de uma marca de cigarro, de quando as


propagandas ainda eram permitidas. Não reparem. É cacoete de ex-fumante. A distância
que traz tanto prazer quanto o dobro dela é a de vinte e um quilômetros. Tem, por
capricho da realeza britânica, alguns metros a mais que, no caso da meia maratona, dá
até casa decimal. 21097,5 metros. Uma extensão que nem me passava pela cabeça,
quando, lá atrás, tinha dificuldade para percorrer um centésimo disso. Mas que se tornou
um desafio plausível e natural, depois que os quinze da São Silvestre foram galgados
ainda no início de minha trajetória como corredor de rua.

Ao contrário de alguns, que não critico, por achar que cada qual tem seu tempo e
sua evolução natural, não parti para a meia maratona logo no começo, assim que venci a
distância imediatamente anterior. Preferi ganhar algum know-how, me consolidar como
praticante relativamente experiente nos 10 km, fazer outra prova de 15 km, treinar e me
preparar bastante. Só com quase um ano e meio de corridas é que decidi tentar encarar a
dita cuja, para a qual já vinha recebendo convites de amigos já bem mais rodados. Na
primeira vez em que tentei alcançar a distância em treino, entretanto, um duro choque
de realidade. Até cheguei lá, mas destruído ao final; e com uma média de velocidade
muito abaixo da expectativa, totalmente distante do que estava acostumado a fazer nas
provas menores. Pensei em desistir e adiar o projeto, mas isso, definitivamente, não era
da minha natureza.

A opção natural para a estreia seria a de uma prova na região. E a prova


dedicada ao santo brasileiro era (como é até hoje) a única na distância realizada no Vale
do Paraíba paulista. Os organizadores estão marcando bobeira, porque é um nicho de
mercado a se explorar, já somos muitos os corredores de longas distâncias por aqui. A
planilha, montada por conta própria, mas tendo como base um serviço disponível on-
line no site de uma conhecida revista de corrida norte-americana, teve duração de
quatorze semanas. Pareceu estranha a princípio, ao conter dois treinos semanais em
ritmo muito fraco. Mal sabia eu, à época, a importância dos chamados easy runs, os
populares regenerativos, tão fundamentais para recuperar o corpo depois dos treinos
mais fortes ou mais longos. Mas a disciplina rígida, em relação ao que foi prescrito,
trouxe notável evolução. Consegui aumentar bastante a rodagem semanal sem cansaço
excessivo ou lesões.

Ainda assim, a expectativa era muito baixa, ao alinhar ao lado de gente com
muito mais pinta de corredor que eu, num pequeno grupo, de apenas cento e trinta
corredores, presentes naquela largada. A velha pergunta surgiu: o que eu estava fazendo
ali? Duas coisas apenas: querendo terminar, em qualquer tempo; e, novamente, não ser
o último colocado. Tal qual na primeira prova, onde tudo havia começado, quinze meses
antes, em Campos do Jordão. Mas acabaria me surpreendendo, positivamente, com o
que aconteceria na prática.

Em relativa boa forma (as fotos da época mostram um shape que eu gostaria de
voltar a ter), consegui iniciar o percurso num ritmo muito bom, não muito acima do que
estava acostumado a usar nos dez quilômetros. Tinha planejado rodar próximo aos
5’30’’ de pace, mas estava baixando de quinze a vinte segundos a cada placa de
quilometragem que deixava para trás. O entusiasmo pareceu perigoso, quase uma
armadilha, mas se transformou em combustível para manutenção desse ótimo padrão de
velocidade. Cheguei à parcial dos 10 km com tempo similar ao que estava fazendo em
provas da distância. Completei a primeira das duas voltas sendo aplaudido e recebendo
incentivos do público, o que só deu ainda mais vontade de fazer uma ótima segunda
metade de prova.

É claro que enfrentaria dificuldades, naturais da distância e das condições em


que a prova era realizada. Tanto as do próprio percurso, com muitas retas longas e
planas, mas também trechos de variação altimétrica, com subidas e descidas
desgastantes. Como também as climáticas, num dia não dos mais quentes, mas que foi
complicando a corrida, à medida que ela se aproximava das onze e meia da manhã,
horário muito pouco recomendável para a disputa continuar a acontecer. A segunda
volta não seria percorrida com a mesma desenvoltura da primeira, mas as placas de dois
dígitos também foram vencidas com bravura. E, melhor que isso, com alegria e extrema
naturalidade, como se eu tivesse corrido essa distância a vida toda. A passagem pela
marca dos 15 km, com 1h18min, fosse na São Silvestre, me daria o direito ao presente
que me propus.

A primeira conquista dos 21 km

No trecho final, passando pelos inevitáveis botecos pelo caminho, ouvi um


frequentador dizer “ê, gordinho, hoje você perdeu uns dois quilos, pelo menos, hein?”.
Nem me importei. O gordinho estava num dos seus dias mais felizes de todos os
tempos, fazendo algo então inacreditável para ele. Fechando uma meia maratona com
tempo de 1h50min, até hoje minha melhor marca na distância. Não só completando pela
primeira vez uma prova assim e deixando um bocado de gente para trás, mas fazendo-o
de forma bastante digna, correndo de ponta a ponta. Seria paixão à primeira vista. A
meia maratona passaria a ser a minha distância predileta, que eu percorreria incontáveis
outras vezes, em provas oficiais (dezoito delas, até o momento) e treinos, solo ou em
conjunto, sempre com a mesma disposição e entusiasmo do iniciante. Considerada por
mim a medida perfeita de uma corrida: nem tão curta que acabe antes mesmo de ficar
boa; nem tão longa que dê a sensação de ser interminável.
Capítulo 14
Batendo na trave

Minha decisão de disputar uma maratona não foi um mero capricho, um


impulso, um arroubo de heroísmo. Foi sim uma consequência natural de minha
evolução, natural e gradativa, como corredor. Só veio quando eu já tinha uma base
consolidada de rodagem em treinos, um corpo fortalecido por trabalho de musculação e
dois anos e meio de experiência em provas. Os treinos estavam previstos para começar
em janeiro de 2008, depois de uma rápida semana de férias (por mais que eu tenha
ficado relax, o trabalho não me permitia mais do que isso), aproveitando a paradeira dos
dias festivos para visitar os familiares de minha esposa no interior da Bahia.

Tudo corria muito bem no passeio, era a primeira vez que meu filho, então com
três anos de idade, fazia uma viagem tão longa (é, fomos de carro mesmo, por estradas
inacreditavelmente esburacadas) e ele curtiu bastante conhecer os primos e saber um
pouco de sua origem. Na pequena cidade, de pouco mais de quinze mil habitantes e
muita liberdade para brincar nas ruas, mas com raras opções de lazer, uma delas era a
quadra esportiva, ali mesmo na rua da casa de meus sogros. Não tive dúvidas. Peguei a
bola de futebol e levei toda a criançada para lá, revivendo meus próprios dias de
moleque peladeiro. Mas o jogo duraria muito pouco. Na posição de goleiro, fui fazer
uma brincadeira extremamente comum e inocente, me dependurando na trave. Sem
saber que lá elas não eram presas, encaixadas em buracos no chão como aqui. Por muita
sorte, no momento as crianças estavam longe, porque ela veio abaixo comigo. Caí de
costas, meio em câmera lenta, batendo primeiro a região lombar e depois a cabeça. A
dor foi indescritível. Mas não a do choque em si.

Muitos meses antes, num dos treinos por aí, passando por uma região pouco
povoada da cidade e atravessando um terreno baldio, eu tinha me deparado com um
cachorro. Até aí, nada demais, os vira-latas abundam nas ruas. Mas nem todos eram
traiçoeiros como aquele, que me esperou passar primeiro, para só depois atacar.
Virando-me de repente, no susto, não senti a mordida na canela, mas um rasgo no lado
esquerdo da virilha. Que demoraria bastante para melhorar, me fazendo perder alguns
treinos de corrida e na academia. Mas finalmente sararia, pelo menos até a hora daquele
tombo infeliz. Estatelado no chão da quadra, a primeira coisa que pensei foi: ih, já era a
maratona. Não era só impressão.

Passei o resto dos dias de férias andando torto, levando meia hora para
atravessar uma rua. Imaginem a dificuldade que foi dirigir mil e quinhentos quilômetros
da viagem de volta, ainda mais complicada por conta de uma infecção intestinal
conseguida não em comida de beira de estrada, mas aparentemente por algo (muito)
estragado na refeição feita no hotel onde passamos a noite. Amargo regresso. Alguns
dias, analgésicos e anti-inflamatórios depois, a dor pareceu diminuir um pouco, a ponto
de eu tentar arriscar uma corridinha na rua. Qual o quê! Bastavam duas passadas para
ela voltar, quase como se outro tombo tivesse levado. Tentei uma vez, mal consegui
passar dos cinco quilômetros de treino. Descansei mais dois dias, esperançoso de que
ela sumiria de vez. Insisti novamente e até cheguei aos pouco mais de oito, mas vendo
estrelas a cada vez que o pé esquerdo tocava o chão.

Mais uma semana de gancho, mantendo a forma (ou a falta dela) somente com
exercícios para a parte superior na academia. Um bom e quase indolor treino, no
retorno, deu até a esperança de que o problema estava solucionado de vez. Mas, o tira-
teima, no dia seguinte, com uma hora de esteira, mostrou que não era nada disso. Já
começava a me lamentar da “falta de sorte”, em casa e com os amigos. Quem se
correspondia virtualmente comigo àquela época, deve ter ficado de saco cheio de tanta
choradeira. Bons conselhos até vinham, mas não eram lá muito seguidos à risca. Já tinha
passado por dois ou três ortopedistas diferentes, cada um dando um diagnóstico não lá
muito preciso e receitando um novo e mais caro remédio. E iria começar uma série de
sessões de fisioterapia, dez delas a princípio. Que iriam ajudar a agilizar o retorno, mas
seriam tremendamente aborrecidas. Não só pelos procedimentos, choque, raios laser e
aplicação de gelo no local, mas principalmente pelo incômodo da situação em si. Antes
a contusão tivesse sido na canela...

A algoz

O tempo corria contra mim. A maratona escolhida já tinha data marcada e iria
acontecer, obviamente, com ou sem a minha presença. A opção havia sido pela mais
recomendada, conforme especialistas no assunto, para um estreante. Entre as maratonas
brasileiras, Porto Alegre é a que teoricamente reúne as melhores condições para quem
ainda não tem experiência na prova. O percurso, predominantemente plano (mas nem
tanto, eu iria descobrir na prática, anos depois) e o horário matinal de largada,
totalmente oposto ao de provas mais badaladas e com transmissão televisiva, eram os
pontos a favor e que pesaram na escolha. Mas ela iria acontecer em 25 de maio e já
estávamos quase em fevereiro, a menos de quatro meses do dia D, portanto. Não
conseguia me imaginar numa preparação que levasse, sem contar o chamado período de
base, menos que as dezesseis semanas que constam em boa parte das planilhas que vêm
prontas em revistas e páginas na internet. Amuado, constatava que não haveria tempo
hábil para estar apto a largar ao lado dos demais competidores nos pampas.
O mais triste era não poder contar com o que há de melhor, ou nem perto disso,
em minha árdua tentativa de recuperação. O meu plano de saúde, que de barato não tem
nada, cobria as sessões de fisioterapia, mas não consultas com médicos da área
esportiva. O ortopedista que me atendia naquele momento era o clássico, aquele que
acha que a única coisa que resolve é “mandar parar”. A frase mais marcante em nossos
diálogos partiu dele, em resposta a uma pergunta minha. “Ressonância magnética? Pra
quê? Isso não é algo que se peça por qualquer coisa...”. Lamentavelmente, eu estava
tentando sarar num açougue. A radiografia, única coisa que o doutor foi capaz de pedir,
veio com laudo e mostrou que eu tinha uma coisa de nome muito estranho, um tal de
osteocondroma solitário acetabular bilateral. Pesquisando na internet, entrei em pânico
ao ver que era uma espécie de tumor ósseo no quadril, que poderia inclusive ter
indicação cirúrgica e me deixar de muletas por um bom tempo. Levei um “sabão” do
médico quando perguntei, ouvindo um discurso inflamado sobre aqueles que leem os
exames antes deles. E descobri que o meu caso era incipiente, não necessitando de
nenhuma ação corretiva.

Apesar do alívio, a tristeza era imensa, muito maior que a dor em si. Evitava até
de sair de casa no final da tarde, horário em que estava acostumado a treinar, para não
me deparar com gente saudável e cheia de vida, praticando com alegria e entusiasmo
sua atividade física. A inveja era grande. Até mesmo das vovozinhas que davam as suas
caminhadas a passos lentos e claudicantes, porque nem isso eu era capaz de fazer
naquele momento. No dia em que tentei, cheguei tão estropiado que parecia ter o dobro
da idade delas. Minha página na internet seguia no ar, sem qualquer atualização, já que
só as recebia quando aconteciam novas corridas. Mas ganharia uma espécie de slogan.
A frase, que inclusive dá nome a esse livro, melhor que o caminho é o caminhar, surgiu
em minha mente neste período de extrema infelicidade. Não me recordo agora se a li em
algum lugar ou se ela simplesmente veio do nada. Mas ela passou a ser uma espécie de
mantra próprio. Não poderia ter uma lição maior sobre o velho, batido, mas imutável
conceito: só se aprende a dar valor a algo quando se perde. Ou se priva de. Eu já sabia o
valor que o simples fato de poder correr, independente de velocidade, tempo, distância,
medalhas, camisetas, lanches, brindes ou qualquer outra coisa tinha para mim. Só não
imaginava quanto.

Só fui conseguir voltar a pisar o asfalto na segunda quinzena de fevereiro.


Quarenta e cinco dias haviam se passado desde a queda feia na quadra baiana. As costas
ainda incomodavam um pouco, mas a corrente elétrica e a friagem parece que tinham
feito uma “solda” confiável na rachadura. O treino de retorno durou trinta e sete
minutos e teve menos de seis quilômetros. Foi feito quase em ritmo de procissão de
Corpus Christi, teve piso especialmente selecionado, de terra e grama, para evitar
impacto e pânico. Foi delicioso. Mas mostrou claramente o tamanho do estrago.
Cheguei ao final do percurso sentindo cãibras nas panturrilhas, como não acontecia
havia muitos anos, desde que era um principiante gorducho metido a corredor, sendo
provocado por quase metade dos motoristas na rua.

Foi como recomeçar do zero. Mais de quatro anos depois, lá estava eu, tentando
correr com imensa dificuldade, inseguro, morrendo de medo de voltar a sentir as dores.
Lento como naqueles primeiros dias de voltas na área verde. Pesado, já que o mês e
meio de qualquer total inatividade tinha acrescentado alguns quilos ao meu já
significativo acervo deles. Assistia à propaganda da tradicional prova realizada pela
polícia militar, que já disputara duas vezes, com a nítida impressão de que não
conseguiria estar nela. Ainda assim, confirmei de última hora a minha inscrição, na
esperança de pelo menos conseguir trotar uma parte e concluir, nem que fosse
caminhando. Não me arrependi da escolha. Fiz uma prova completamente atípica,
limitada pela falta de condicionamento físico. Fechei os dez quilômetros com um tempo
próximo de uma hora, bem mais alto até que o da minha primeira corrida. Mas
aproveitei a total falta de compromisso para presentear meu filho, então com quatro
anos, com a oportunidade de terminar a prova comigo. Fizemos, durante a semana, até
um ensaio para não errar na hora H. Faltando poucos metros, a mãe o entregaria a mim
por cima do gradil e passaríamos juntos no tapete final, sendo aplaudidos pela multidão
e clicados por todos os fotógrafos presentes. Um momento mágico e inesquecível, que
marcou a entrada definitiva do guri no meio das corridas. Espectador ele já era desde
bem pequenino.

O pequeno corredor

Não seria nada fácil a retomada. Janeiro havia terminado com apenas 32 km
rodados (ou arrastados); e fevereiro, não muito melhor, com 78 km e apenas sete dias de
treinos. Insuficientes até para quem quer apenas manter a forma física, imagine para os
que desejam completar uma maratona. Eu tinha muito tempo perdido para recuperar,
mas era necessário ter plena consciência de que isso não se faz da noite para o dia.
Aumentar a rodagem era necessário, mas de forma gradual, sem correr o risco de
recidiva da lesão ou do surgimento de outras. É um erro comum entre os corredores, que
eu sabia não poder cometer. Fui aumentando a minha quilometragem dentro de
parâmetros aceitáveis pela literatura técnica da área, na casa dos 10% aos 15%
semanais. Ainda sem treinos específicos de velocidade, fazendo basicamente rodagens
livres, sem preocupação com o ritmo, apenas a de voltar a conseguir correr com
tranquilidade, sem ficar com um palmo e meio de língua para fora da boca.

Chegou a ser surpreendente, então, a corrida seguinte, na cidade litorânea de São


Sebastião, para a qual fui na companhia do amigo de nome igual ao meu. O dia frio era
perfeito, na minha opinião pessoal, para fazer uma excelente prova. Mas eu não
esperava tanto. Nem mesmo o atraso recorde, de mais de uma hora e meia, justificado
para aguardarem a chegada do prefeito municipal, foi capaz de me impedir de voltar a
correr com desenvoltura, como se não tivesse parado por tanto tempo. No relato da
prova em meu site, disse com propriedade que voltei a me reconhecer enquanto
corredor. O caminho parecia ter sido reencontrado, finalmente. O xará iria ainda melhor,
conquistaria um resultado excepcional e começaria a acreditar cada vez mais em si
próprio, o que lhe faria muito bem.

Observando as planilhas de registro de treinos da época, esta prova pareceu ter


sido um divisor de águas. A partir dali, me soltei e passei a fazer treinos de bem mais
qualidade, além de seguir ampliando as distâncias. Já tinha passado dos quinze
quilômetros em um treino; e chegaria aos dezoito no final de março. O mês foi fechado
com uma rodagem total de 202 km, ainda longe dos melhores dias e do recomendado
para o objetivo em foco. Mas infinitamente melhor que nos dois anteriores. A confiança
começava a transparecer. Os dias de tristeza e tédio haviam ficado para trás, dando lugar
a uma grande vontade e motivação para treinar cada vez mais e melhor.

Abril seguiria nessa toada. E marcaria a volta da temporada de corridas, que


passariam a ser mais constantes, menos espaçadas. Faria uma em cada final de semana
do mês. A primeira delas, em Guaratinguetá, só que numa região meio afastada do
centro da cidade, dentro das dependências de um sítio, às margens da rodovia Rio-SP.
Apenas seis quilômetros, mas com subidas e descidas fortes, não me permitindo
alcançar o mesmo desempenho obtido na corrida praiana do mês anterior. Levaria meus
tios e padrinhos, companheiros mais que habituais de aventuras, a um inusitado, mas
marcante pódio como participantes únicos, ao lado de uma moradora local, da prova de
caminhada. Deixaria a todos nós bastante felizes.

A seguinte traria ainda mais disposição para seguir com a luta. Depois de
fracassar retumbantemente na meia maratona anterior, vencido por um calor anormal e
um horário estúpido de largada, fui a São Paulo, com direito a hospedagem difícil de
encontrar na região e café da manhã improvisado, com esfirras de fast-food. E dei o
troco na distância, fazendo uma prova ainda longe da minha grande estreia, mas
marcando novamente um tempo abaixo das duas horas, com alguma sobra. 1h58min foi
um resultado bastante válido e que mostrava o momento de franca ascensão.

As demais, ambas de dez quilômetros, nas cidades de Taubaté e Caçapava, não


seriam tão significativas quanto, mas também mostrariam sinais claros da minha
evolução. Fechar uma prova de altimetria tão complicada quanto a disputada nas
dependências do belíssimo parque municipal taubateano, melhorando em quase um
minuto o tempo do ano anterior, seria um feito interessante. E conseguir voltar a
completar a distância muito perto dos cinquenta minutos, apenas nove segundos acima
disso, na dita “cidade simpatia” no final do mês, também me deixou bastante satisfeito.
Estava novamente no meu ritmo habitual de competição. Terminaria abril com 245 km
rodados.
O mês seguinte começaria com o tradicional feriado e uma corrida em
homenagem à efeméride. Pequena e simples que ela só, no distrito de Moreira César,
pertencente à cidade de Pindamonhangaba, mas bem afastado dela. E,
contraditoriamente, com a presença de reportagem da emissora de tevê local. A
vantagem de fazer pela primeira vez uma distância era que, com o tempo que fosse,
seria recorde. Faria minha primeira prova de doze quilômetros, disputada em cenários
pouco povoados, estrada de terra (mas com pedágio!), galpões de fábricas, gente local
estranhando o movimento e os corredores, fazendo inclusive piadinhas com a forma de
alguns, como no caso deste que vos escreve. O resultado não seria dos mais brilhantes,
mas também não ficaria de todo feio. Acabaria poupando energia para o treino de três
dias depois, superando, pela primeira vez na vida, a marca dos 25 km.

O intervalo sem corridas de duas semanas seria bastante profícuo. Aproveitar o


domingo para fazer o treino longo, ao invés de deixá-lo para a noite, durante a semana,
era bem mais proveitoso. Quebrei novamente meu recorde de rodagem, chegando aos
27 km na manhã do dia das mães. Embalado, repeti a dose novamente na sexta-feira da
mesma semana, chegando aos 29 km. Mas nem tudo era rosa. A carcaça acusava fadiga
de material, as dores musculares eram fortes ao final dos treinos e no dia seguinte. Mas
rapidamente recuperado, eu seria capaz de voltar a rodar forte apenas dois dias depois,
como na prova de oito quilômetros que já descrevi anteriormente, a da faculdade de
engenharia.

O ritmo dos treinos longos vinha sendo até satisfatório, para quem nunca havia
corrido estas distâncias, ficando sempre próximo, mas abaixo dos seis minutos por
quilômetro. Era algo que me deixava relativamente contente, mas também intrigado,
pensando na possibilidade, não sabia até que ponto concreta, de correr mais rápido.
Sabendo que nunca conseguiria me aproximar da média de velocidade obtida nas provas
mais curtas, mas matutando seriamente sobre tentar acelerar. Teria a oportunidade
perfeita para testar isso, numa prova de 25 km, promovida pela mesma organizadora da
meia maratona de abril e disputada no mesmo local, o campus da Universidade de São
Paulo. Era uma distância que, de certa forma, estava um pouco atravessada na garganta,
depois de uma tentativa não muito bem-sucedida de fazê-la em condições adversas, em
chão de areia. No asfalto, faria uma prova bem mais aproveitável, mantendo ritmos
parecidos nas duas metades (e voltas). Variando um pouco no quilômetro a quilômetro,
deixando a velocidade cair em alguns, mas me recuperando nos seguintes. Chegando à
marca da meia maratona com um tempo melhor que o da própria, em abril; embora seis
minutos acima do melhor tempo, obtido dois anos antes. Concluindo a prova abaixo,
por dois minutos, da meta de duas horas e vinte, mantendo um ritmo médio próximo dos
5’30’’/km. Fechando pela primeira vez uma semana de treinos com carga acima dos
setenta (e três) quilômetros. E o mês de maio com inéditos 310 km rodados.

Junho iniciaria para mim em clima de lua de mel com a corrida. Logo no
primeiro dia do mês, dois apenas depois de passar pela primeira vez da mítica marca dos
trinta quilômetros num treino (31,76 km, para ser mais exato), faria uma corrida
excepcional em Taubaté, que também já mencionei no capítulo das voltas por cima. Os
dez quilômetros mais bem corridos da minha vida até então. A despeito do cansaço
acumulado e do esforço considerável em cada treino. A menos de um mês do dia
marcado para a tão esperada estreia nos 42 km, transferidos para outra cidade, mas sem
perder o entusiasmo e muito menos a ansiedade pela chegada da hora, o desafio era
manter a cabeça no lugar. Evitar o clima de “já ganhou”, de achar que estava com a
maratona no bolso, com uma onda tão forte e positiva a meu favor. Não precisaria fazê-
lo sozinho. Aconteceria algo que o faria por mim.

Dizem os leigos que virose é o nome dado a tudo aquilo que os médicos não
conseguem diagnosticar. Eu não sei onde foi que arrumei uma dessas, mas ela me pegou
de jeito. No quarto dia de junho, voltando de um treino que era para ser um pouco mais
longo, mas que acabaria terminando perto dos quinze quilômetros, me senti mal. Desde
o começo dele, já estava me achando meio preso, sem bom rendimento. Febril, caí de
cama. Só saindo dela para o trono, inúmeras vezes seguidas. Desidratado e sem
conseguir me alimentar direito, perdi, além de quatro quilos, seis dias de treino. Só fui
me recuperar depois de tomar um remédio receitado não por um gastroenterologista,
mas pelo bom e velho guru, que me incentivara lá atrás a começar a fazer uma atividade
física, qualquer uma. O cardiologista salvara minha pele pela segunda vez...

A volta aos treinos seria trágica, como parece sistematicamente sempre ser.
Tive, como no retorno da contusão, imensa dificuldade para rodar mesmo uma distância
pífia para quem vinha fazendo rodagens muito maiores e melhores. Já estava entrando
na dita fase de polimento, tendo de baixar significativamente a carga de treinos, mas
com um enorme ponto de interrogação sobre a cabeça. Até que ponto a semana
imobilizado na cama teria prejudicado o meu já sensível condicionamento físico?
Quanto disso era real e quanto imaginário? Ainda conseguiria correr a maratona, apesar
do incidente? Tinha de tirar da frente tais dúvidas, para não correr o risco de perder a
viagem. Não que ela por si só não valesse muito a pena. A escolha acabaria recaindo
sobre o Rio de Janeiro. Uma prova também com boas características, se não ideais como
as gaúchas, muito próximas disso. Percurso predominantemente plano e à beira-mar,
com cenário mais deslumbrante, impossível. Horário adequado para a largada. Época do
ano onde, apesar da imprevisibilidade do clima, a tendência é de um calor mais
suportável. O pacote de viagem junto à assessoria esportiva estava pago e eu iria de
qualquer jeito, mesmo que tivesse de caminhar quarenta e dois quilômetros. Mas não
era, claro, o que eu gostaria de fazer.

Para isso, foi inevitável um teste. Tive de fazê-lo. Faltando apenas doze dias
para a maratona, contrariando o que se diz correto, fui para a pista e corri uma boa
distância. Não abusei, não quis também recuperar o que perdera com a parada
compulsória. Treinei apenas 19 km, mas que foram suficientes para restaurar a
confiança, voltar a acreditar que eu ainda tinha chances reais de alinhar ao lado dos
outros corredores na largada daquela grande prova. Toda a preparação tinha sido
justamente para me tornar apto para isso. E eu a vencera, apesar dos pesares e das
quedas, em sentido figurado ou não. Fiz, a uma semana do dia marcado, uma prova em
minha própria cidade, na qual conquistei um bom resultado, dando ainda mais gás para
aquela reta final. Treinei três dias, de forma bastante leve, durante a semana que
antecedeu a prova e, hoje, acredito que devesse ter feito até menos. Um treino de cerca
de uma hora (o chamado esvaziador da reserva de glicogênio), feito na quarta ou quinta-
feira, junto a um trote de soltura no começo da semana, na minha opinião de leigo
praticante, é o bastante. Pelo menos para quem não pretende chegar lá na frente.

A viagem foi um tanto tumultuada, com um acidente na estrada causando um


atraso razoável, mas o maior problema mesmo foi não ter conseguido pregar o olho a
noite inteira. Eu, que era bom para dormir até na curta viagem que fazia de ônibus para
a faculdade, pouco mais de setenta quilômetros, sofria agora de insônia, “ajudada” pela
inevitável ansiedade pré-prova. Sem chance de dormir nem quando cheguei, junto à
companheira de sempre, ao hotel, acabei optando por fazer turismo. Ao lado de amigos,
fiz um short city-tour, indo (re)conhecer um trecho da orla, no qual iria correr no dia
seguinte. Almoçar num shopping, saboreando uma deliciosa lasanha, mas tomando um
susto gigantesco com um vazamento de gás na praça de alimentação. E também visitar o
Pão de Açúcar, passeio lindíssimo, mas que acabou ficando incompleto por conta de um
outro compromisso marcado: uma verdadeira recepção de luxo feita, com muito carinho
e consideração, pelos amigos cariocas. Num simpático e agradável barzinho no Leme,
batemos um papo muito bacana (muito embora monotemático, como costumam ser os
papos de corredores), comemos uma bela pizza, tiramos muitas fotos e
confraternizamos, desejando uns aos outros uma excelente corrida no dia seguinte.

Sempre juntos, em todas as paisagens

Achei que desabaria na cama e dormiria um sono só, mas que nada. A noite foi
longa e agitada. Estranhei cama, colchão, tudo que estava em volta. Fiquei brigando
com o ar condicionado, ora desligando porque achava que estava frio, ora religando, ao
sentir que tinha esquentado demais. O luminoso do rádio-relógio, implacável, mostrava
horários cada vez mais desesperadores antes do sono vir. Quando ele despertou, parecia
que eu tinha um caminhão de areia nos olhos e uma tonelada dela nas costas. Deu uma
vontade imensa de deixar tudo pra lá, mas eu havia ido muito longe para desistir.
Lembrei-me de uma frase que tinha lido em algum lugar e que serviria como mote desta
minha estreia: “correr é tirar o tigre que há escondido dentro do gato”. Era chegada a
hora de mostrar as minhas garras.
Nenhum cansaço foi capaz de diminuir a emoção que senti ao dar os primeiros
passos daquele longo passeio pela orla carioca. A imagem daquela linda manhã de sol
ficaria registrada para sempre em minha mente: no cenário mais que perfeito, milhares
de pessoas irmanadas num mesmo objetivo, cada qual no seu tempo e ritmo,
simplesmente o de atingir a outra ponta do mapa. Com a força motriz das próprias
pernas, do esforço capaz de ser depreendido. Muito mais difícil que a prova
propriamente dita, tinha sido o caminho até lá. Que começara a passos cambaleantes, de
alguém que se machucara seriamente e tivera quase de reaprender a correr. A lutar para
se recuperar dessa lesão e do tempo perdido por ela. A conseguir voltar a fazer o que era
capaz, aos poucos, com muita força de vontade e determinação. Qualquer que fosse o
meu resultado final, a vitória já tinha sido conquistada. Eu estava ali, onde quisera e
tanto me preparara para estar.

A prova seria bem mais difícil do que eu imaginara. Sofri com o calor e, logo
cedo, antes mesmo das placas de sinalização passarem a ter dois dígitos, já tive de me
desfazer da “colinha” que levara, com o planejamento do ritmo para cada parte da
corrida. O consumo de água acabaria sendo bem maior que o esperado, chegaria a pegar
até três copos em alguns dos postos de hidratação. Mas conseguiria manter um ritmo
bastante razoável durante boa parte do percurso. No primeiro trecho, uma longa e
psicologicamente desgastante reta pelo Recreio dos Bandeirantes, com nenhum público
presente e um visual bonito, mas monótono, quase sem variações, consegui rodar mais
ou menos dentro do previsto. Cheguei ao quilômetro dez com 57 minutos e ao quinze
com uma hora e vinte e oito.

A partir da Barra, o cenário ganharia contornos mais urbanos, com os


milionários condomínios emoldurando o lado esquerdo e o mar à direita. Cheguei à
metade da prova, local da largada para os que haviam optado pela meia maratona, com
tempo de 2h06min, projetando um tempo já bem mais alto do que as quatro horas
sonhadas como tempo perfeito para a estreia; mas ainda dentro de uma certa
normalidade. A chegada da primeira subida, no elevado do Joá, chegou a ser bem-vinda,
a despeito do meu pouco afeto por elas, só pela mudança na toada. A partir dali, depois
de passar pelo trecho dos túneis, um deles muito bonito, com a lateral aberta e a vista
talvez mais bela de toda a prova, o restante do percurso já era conhecido da meia de
2007. A praia de São Conrado e a temível subida da Avenida Niemeyer.

Nos 21 km, sejam os da prova internacional, mais para o final do ano, seja nessa
própria, ela não é nenhum grande vilão. Ainda muito no começo da corrida, quando se
tem todo o gás do mundo, longa, mas não muito íngreme, esta ladeira com o Atlântico
de um lado e o populoso Morro do Vidigal do outro, só ganha algum poder realmente na
distância maior. Chega-se à base dela já na altura do km 26 da maratona, quando
músculos e tendões já foram bem castigados pela extensa planície até ali. Cauteloso,
engatei uma segunda marcha para subi-la, mas ainda assim, ganhei nela de vários outros
corredores que estavam em primeira, alguns quase em marcha a ré. Foi um grande
momento, um verdadeiro prêmio aquela sensação de ainda estar inteiro e cheio de
disposição num ponto da prova em que vários demonstravam nítida exaustão. Mas outra
sensação, essa nada agradável, me obrigaria a fazer uma parada de emergência. Gastas
pelo atrito (ou algo que o valha), as solas dos pés davam a impressão de estar em brasa.
Quase no final da subida, optei por encostar numa mureta e jogar água nelas, para ver se
amainava o calor. Foi até reconfortante. Mas não tinha sido uma boa escolha. A parada
súbita, com tentativa de retomada em seguida, fora um erro gritante.
Grito mesmo foi o da dor que senti. A cãibra, primeiro na lateral da coxa, depois
na panturrilha, foi devastadora. Travou toda a musculatura e me impediu, simplesmente,
de continuar correndo. Tendo feito até ali uma prova em ritmo confortável, estava
praticamente intacto em termos cardiorrespiratórios. Como diria depois, no longo e
dramático texto relatando sobre a prova em meu Arquivo de Corridas, tinha pulmões,
mas não pernas. Era ainda o vigésimo nono quilômetro, faltando, portando, treze para a
chegada. Distância que eu já havia feito em pouco mais de uma hora e alguns minutos,
em tantos treinos anteriores; mas que levaria quase duas para percorrer naquelas
condições. Este quilômetro logo após o acontecido levou quase dez minutos para
acabar. E nenhum dos seguintes o seria em menos de seis. O calvário era o medo de
voltar a ser atingido pelas cãibras, coisa que aconteceria duas outras vezes, obrigando a
mais paradas. Numa delas, na praia de Ipanema, cheguei a me sentar no chão e quase
chorar, feito criança desesperada.

Essa quase caminhada pelas mais conhecidas praias cariocas não foi das mais
memoráveis. Sem conseguir correr e nem apreciar direito as belezas naturais ou
arquitetônicas, eu me arrastava literalmente, desanimando mais e mais todas as vezes
em que projetava o tempo de conclusão, previsto para números cada vez mais altos. Mas
ciente de algo: tinha de terminar. Se estivesse agravando uma lesão por insistir em
correr, certamente abandonaria a prova. Sempre achei tocante a imagem da maratonista
suíça chegando em condições deploráveis ao fim da prova nas Olimpíadas, mas não era
uma cena que eu gostaria de reproduzir. Muito mais bonita é a imagem de alguém
terminando a prova exausto, mas inteiro, vibrando muito e já pensando na próxima. Eu
não tinha condições de terminar assim, mas também não estava no limite de minhas
forças. Tinha simplesmente uma limitação física pontual e momentânea, que me
impedia de correr dentro da minha normalidade. Insistiria até o fim.

Chamariam a minha atenção três gestos de solidariedade neste trecho tão difícil
da prova. Na maior parte da orla, os competidores pareciam transparentes, quase
ignorados e com pouco incentivo de plateia. A maior parte parecia nos considerar um
estorvo, obstáculos móveis entre eles e a praia. Mas existia também quem estava ali
unicamente para nos apoiar, dedicar parte de seu domingo para prestar auxílio a
estranhos, ato de grande nobreza. A senhora que apenas quis saber porque eu estava
andando levantou o meu astral, revelou em mim um bom humor que eu não imaginava
dispor naquele instante. Respondi a ela, sorrindo, que se fosse para contar a história
toda, levaríamos muito tempo conversando. Outra foi a que trouxe de casa uma caixa de
isopor cheia de pedras de gelo, que distribuía generosamente entre os que sofriam muito
com o sol, alto no céu, naquele horário já bem avançado. Por fim, já em Botafogo,
depois dos dois abafados e cruéis túneis, um voluntário distribuindo, por conta própria,
copos de refrigerante, coisa da qual nem sou adepto, mas que caiu maravilhosamente
bem naquela hora. A maratona parece extrair o melhor, de quem a faz e de quem
somente acompanha.
Uma linha difícil de chegar, mas inesquecível

Cada nova placa parecia mais difícil de alcançar que a outra. Ao chegar à de
número quarenta e um, não me contive e caí no choro. Vi passarem na minha frente
todos os momentos daquela preparação tão complicada e incerta. A contusão, os dias de
molho, a volta aos treinos, as semanas de dedicação a eles, os intermináveis treinos
longos, as sessões do trabalho de resistência na academia, cada qual com duas horas e
meia de duração. Enfim, um longo e trabalhoso processo que havia me permitido sonhar
acordado com minha estreia nos 42 km. E estar ali, ao lado de outras tantas pessoas com
o mesmo sonho. Enxuguei as lágrimas e segui em frente, o melhor que tinha a fazer.

Na reta final, na última placa de quilometragem, fui recebido por um dos


grandes amigos locais, que havia feito a meia maratona e aguardava os companheiros
para escoltá-los pelos últimos e mais difíceis metros. A companhia dele seria decisiva
para que eu resolvesse terminar em grande estilo, não me redimindo ou salvando a
prova, mas usando o finalzinho das forças que me restavam e disparar, num curto, mas
glorioso sprint final, acompanhado de um grito de desabafo que veio lá do fundo da
alma. Ficaria grato ao amigo pelo resto da vida por esses singelos 195 metros. E
retribuiria o gesto, voltando, apesar da musculatura destruída, para fazer o mesmo com
outro grande amigo que também chegaria, com visível esforço e dificuldade. Fazendo
parte de uma pequena guarda e revivendo, pouco depois, a emoção de cruzar a linha de
chegada.
Reviver, ao lado do amigo, a mesma emoção

Ficou muito longe de ser a estreia sonhada. O tempo final, de 4h50min era muito
acima das minhas piores projeções. Havia levado nada menos que trinta e oito minutos a
mais na segunda metade da prova. A cãibra acabara com a minha corrida, tecnicamente
falando, mas a emoção de tê-la concluído era impagável. Até pela dificuldade de
locomoção, depois que o corpo esfriou, deu vontade de não sair mais daquele Aterro do
Flamengo, tão cheio de gente querida e amiga, inundados de endorfina e de alegria.
Tinha a consciência de que maratona não era algo para mim. Mas não abriria mão,
nunca mais, do direito de continuar insistindo em fazê-las.
Capítulo 15
Só se aprende fazendo

Não se deve converter objetivo em obsessão cega. Corre-se o sério risco de


transformá-la em arma contra si próprio. Eu aprenderia muito com a minha primeira
maratona, mas a experiência de não ter conseguido fazê-la a contento traria um
sentimento ruim, difícil de extirpar. Costumo comparar com a minha carteira de
habilitação. Ao fazer o primeiro exame para motorista, estava bastante preparado e
confiante, já dirigia muito bem. Passaria pela desagradável experiência de receber um
alarme falso de aprovação, numa história muito mal contada, que nunca entendi muito
bem. O documento não chegava nunca e, quando fui procurar saber, descobri que tinha
sido reprovado. Nervoso, irritado, ansioso e inseguro, parti para outra tentativa e falhei
feio, só faltei subir na calçada com o carro. Na terceira, nem a baliza consegui fazer.
Apesar de saber perfeitamente o que tinha de fazer, não conseguia colocar em prática na
hora certa. Foi só na quarta tentativa, com apoio da então namorada que se tornaria
esposa, que enforcou o dia de serviço para me acompanhar, que a coisa finalmente
desenrolou. Foi preciso tranquilidade, cabeça fria, para conseguir tirar de mim aquilo
que necessitava. Mas que sempre existiu, estava ali, ao meu alcance.

Com a maratona não seria muito diferente. Meio com raiva pelo resultado
totalmente incompatível com o esforço despendido na preparação para a primeira vez,
não me dediquei com o mesmo afinco na tentativa seguinte. A planilha de treinos que
adotei era bem mais suave, com menos volume semanal de quilometragem e menor
intensidade, com trabalhos de velocidade bem mais esparsos. Não que tenha sido uma
esculhambação total, longe disso. À época, eu imaginava estar certo, pensando ter
exagerado na dose na primeira vez, chegado ao dia da prova mais cansado que bem
treinado. Acreditava que, se me poupasse mais, conseguiria alcançar um grau de
condicionamento semelhante, mas com menor desgaste, guardando forças para o
momento em que mais delas precisaria. Nem tanto ao céu, nem tanto ao inferno.
Descobriria, na prática e de forma bastante dolorosa, que o equilíbrio estava no caminho
do meio.

Algo que pesquisei bastante, por ter sido a maior causa do fracasso no Rio, foi a
reposição de sais (mormente sódio e potássio). Encontraria um produto que me ajudaria
bastante a evitar as cãibras a partir dali, com a praticidade de vir sob a forma de
pastilhas mastigáveis. E o inconveniente do gosto ruim, misturando sabores de frutas e
de sal de cozinha. Trabalharia também a alimentação, tentando, com muito esforço,
segurar a implacável “boca nervosa”. E a suplementação de vitaminas, exclusivamente
nos dois meses que antecederiam a prova, investindo num polêmico (há quem diga que
servem só para deixar a urina mais cara), mas não dos mais destruidores de orçamentos
domésticos, complexo vitamínico.

Se para o Rio de Janeiro, a preparação custou a começar por conta da contusão


no começo do ano, para São Paulo, lugar escolhido para a segunda tentativa, ela até
iniciou bem, antes mesmo da virada de 2008 para 2009. Mas não seguiu em céu de
brigadeiro. Muito pelo contrário, houve bastante turbulência na viagem. Nenhuma mais
séria, que me tirasse de combate por muito tempo, mas muitos pequenos incidentes que
complicariam principalmente os treinos longos, tão fundamentais para ganho de
condicionamento e, mais que isso, da confiança indispensável para chegar ao grande
dia. A maior distância que eu conseguiria alcançar desta vez, num memorável percurso
entre as cidades de Taubaté e Tremembé, na companhia do amigo e xará, seria pouco
mais de 28 km. Que terminaria com a sola do pé lesionada, impedindo a progressão da
quilometragem e também um melhor desempenho nas provas que serviam como treinos
de ritmo.

Comecei o ano e a preparação até que bem embalado, fazendo alguns treinos
diferenciados, que chamei de ziguezagues pelas ruas da infância, explorando meu
próprio bairro, mas passando por ruas pouco percorridas nos trajetos cotidianos.
Aproveitei um final de semana de folga para correr na areia da praia e em trechos da
rodovia Rio – Santos. Adiantei a estreia nas provas para o começo da segunda quinzena
de janeiro, mês costumeiramente bem parado em termos de competições. Fazendo uma
das corridas mais simplórias de todos os tempos, de menor distância e número de
participantes, aquela em que achei que levaria um troféu, mas o perderia para a
criançada. Na semana seguinte, a já tradicional e sempre divertida, mas desta feita,
muito mal organizada corrida da cidade de Bom Jesus dos Perdões.

2009 seria o ano em que deixamos de correr sozinhos. A consolidação das


amizades e a progressão natural dos objetivos dos companheiros de esporte fez com que
muitos passassem a se interessar em treinar juntos, coisa que até já fazíamos, mas em
duplas, no máximo trios; e muito esporadicamente. Depois de um desses, no início de
fevereiro, feito no litoral sob um sol de fritar miolo e na companhia do mais antigo dos
bons amigos corredores, o primeiro coletivo do ano seria uma espécie de simulação do
trajeto, mudado para aquela edição, da corrida policial de Taubaté. Reuniria onze
participantes, entre os quais, até um bom camarada vindo da capital paulista. O mês
carnavalesco, além dos treinos, também contaria com duas corridas: uma na cidade de
Itu, que visitei junto com vários colegas de equipe, a convite de um amigo local; e outra
em Pindamonhangaba, feita pelo mesmo organizador do desafio de 31 km, mas este,
muito mais leve, com apenas três e uns quebrados (mas muito mais difícil sob outros
aspectos, principalmente os da reputação, só vale mesmo no Carnaval). A rodagem
mensal progredia lentamente, passando de 196 km em janeiro para 206 km em
fevereiro.

Março registraria dois desses marcantes treinos coletivos, ambos para


comemorar aniversários. O de um bom companheiro de batalhas, no princípio do mês,
com direito à magnífica combinação de treino antes e churrasco depois. E o meu
próprio, no final dele, com um trajeto de quinze quilômetros rico em subidas, para
gastarmos energias antes de repô-las à vontade, em uma caprichada e completa feijoada.
E teria também mais duas provas: uma meia maratona em terras paulistanas, onde de
certa forma me redimi de uma estreia bastante ruim, dois anos antes, melhorando em
quase dez minutos meu tempo; e a corrida para a qual tínhamos feito o simulado e na
qual consegui minha melhor marca, num percurso bem mais “amansado” que o
tradicional. A quilometragem do mês chegou aos 226 km, melhor que a de março do
ano anterior, mas ainda patinando, com dificuldade no ganho das distâncias maiores nos
treinos. Quatro dias de gancho na virada para abril, atacado por uma daquelas gripes de
começo de outono.

O mês seguinte já era o último antes da prova, prevista para o final de maio.
Teria de ser bastante proveitoso, sob risco de minar a autoestima. Mas acabaria sendo
recheado de problemas. Na primeira das três corridas de rua do mês, outra meia
maratona em São Paulo, a pisada em falso num buraco próximo ao Parque Villa-Lobos
acabaria com a prova e deixaria como sequela uma dor na região do tornozelo, que
complicaria os longões seguintes. Chegaria aos 27 km no começo da segunda quinzena,
mas sentindo o incômodo quase o tempo todo. Quando não era uma coisa, era outra: no
longo seguinte, até pit stop forçado por dor de barriga tive de fazer. Não era de sorte,
definitivamente, a maré. O show de horrores na prova da cidade de Vinhedo, a corrida
que nem uma banana nos deu, me deixou ainda mais emburrado. Fecharia abril com um
bom resultado, apesar da dificuldade de respirar imposta pela rinite, em Caçapava. E
aumentando um pouquinho a rodagem em relação a março: 229 km. Muito pouco,
comparado aos 245 km de abril de 2008 e, principalmente, aos 310 km do mês anterior
à prova no Rio de Janeiro. Não estava, e com razão, me sentindo preparado para outra
maratona.

Faria, antes dos 42 km, quatro outras provas menores em maio, algumas só de
farra mesmo, como a dobradinha nas cidades de Sorocaba e Suzano, no sábado à noite e
manhã de domingo; e a prova universitária dos 8 km em Guará, onde mais manquei que
corri. Mas outra como treino sério, também na terra das garças brancas, a uma semana
do grande dia, numa interessante e relativamente rara em provas de distância de 25 km.
Na companhia do xará e de um jovem amigo durante boa parte do percurso, mas
superado por eles numa longa e insana subida, até que não fiz feio. Se conseguisse
manter, sete dias depois, a mesma média de velocidade desta corrida, terminaria a
maratona pra lá de feliz. Encerrei relativamente confiante o ciclo de preparação, apesar
de muitas dificuldades encontradas nele. Entrei na van fretada pelo grupo de amigos,
rumo à capital paulista, acreditando que poderia vencê-las e concluir a prova
melhorando, pouco que fosse, o tempo obtido na carioca.

Começando mais uma longa jornada


Tentei fazer quase tudo de forma diferente, para não ter de reclamar, ao final,
que tudo tinha sido igual. Cheguei descansado, depois de uma noite de sono curta, por
conta da viagem em plena madrugada, mas não intermitente. A semana quase toda tinha
sido dedicada ao repouso, com um treino de quarenta e cinco minutos na esteira da
academia na quarta-feira, e só. Nada de gastar energia andando pela arena da prova.
Fiquei sentado na calçada, ao lado da Janete, fazendo os rituais preparatórios todos,
lubrificando as áreas de atrito, me hidratando e, mais que tudo, me preparando
psicologicamente para o desafio de grandes proporções que tinha pela frente. Tendo nas
mãos um cartaz fornecido pela organização, com uma mensagem (simbólica) para o
meu filho para que pudesse, ao lado de inúmeras outras, ser mostrada na transmissão
televisiva, larguei rumo à bonita ponte suspensa por cabos, novo cartão postal da
cidade. Retornando em seguida ao mesmo lado da pista marginal por outra ponte,
alguns metros à frente.

Em ritmo mais conservador e sem a “cola” de ritmo usada na estreia, segui meu
caminho ao longo do rio malcheiroso e ladeado por belos e imponentes prédios. Um
incidente, um corredor anônimo desabado no chão, antes mesmo do quarto quilômetro
de prova, deu a entender que o dia não tinha nascido muito bom para boa parte dos ali
presentes. Ainda nem fazia muito calor, algo que se tornaria um adversário poderoso no
decorrer das horas, mas a sensação de umidade alta já se fazia notar desde cedo, numa
sudorese bem acima do normal.

Receberia, a partir do final da primeira grande reta, um presente muito valioso: a


escolta da dupla de amigos com quem passara o marcante final de semana em terras
capixabas. Ambos estavam inscritos na prova secundária dos 25 km, mas haviam se
comprometido, generosamente, em abrir mão do próprio ritmo para acompanhar o meu.
Geraria cenas constrangedoras, como a do grande amigo paulistano, tendo de parar e
voltar seguidas vezes, para que eu não perdesse contato. Mas seria de enorme valia,
ajudaria e muito a manter uma passada segura e a afastar qualquer pensamento negativo.
Durante vinte quilômetros, os parceiros me carregariam junto com eles. Palavras curtas,
pela natural dificuldade de conversar durante longos trajetos como aquele, mas de
inestimável valor para mim.

O passeio pela região dos túneis sob o rio, pela longa reta do jóquei, pelos
quadrantes da grande praça redonda e pelos arredores do bonito parque, já devidamente
tapado o buraco que me causara a torção no mês anterior, tudo isso virou literalmente
turismo ao lado dos bons companheiros. Foi percorrido com grande satisfação, pareceu
passar num piscar de olhos. Na chegada à Cidade Universitária, entretanto, a percepção
da perda iminente da companhia, junto ao cansaço inevitável, trouxe o choque de
realidade. Junte isso ao fato do grau de dificuldade aumentar bastante neste trecho, com
subidas curtas, mas fortes, dentro do campus, e estava pronta a receita do desastre. Lá
pelo vigésimo oitavo quilômetro, já por minha conta própria, comecei a andar ao final
de uma dessas ladeiras, trecho mais ameno de uma das rampas mais célebres entre os
corredores locais. E, a partir dali, tudo ficaria bastante complicado. Coincidentemente
ou não, era mais ou menos até onde eu havia conseguido chegar nos treinos. Não que se
tenha de treinar exatamente a mesma distância da prova, toda a literatura especializada
aponta para o contrário disso. Mas eu tinha ainda bons quatorze quilômetros a percorrer,
já sem a mesma disposição do início. Mas, pelo menos sem sentir a limitação física das
cãibras que atacaram na primeira tentativa, quase um ano antes.
Um dos conhecidos de longa data, já com bastante experiência na distância na
qual se tornaria verdadeiro especialista, havia rogado uma “maldição” no começo da
prova, dizendo para que eu não quebrasse, ou ele me alcançaria. Via isso se concretizar
e nem o incentivo dele, bem mais sincero e sério que a praga, imagino, foi capaz de me
reanimar. Ao ver, à altura do km 30, o trânsito da marginal e as pontes por sobre o rio,
sabendo que ali estava bem mais perto da linha de chegada que se fizesse o trajeto
oficial, pensei em desistir e procurar alternativa de transporte. Mas reavaliei minhas
condições, físicas e psicológicas, e cheguei à conclusão de que podia ao menos concluir,
quiçá até melhorando um pouco o tempo da estreia. E o faria, alternando corrida bem
lenta e caminhada ainda mais. Contaria com a ajuda preciosa, dentro do campus e fora
dele, das assessorias que não distinguiam seus associados dos demais participantes,
prestando apoio a todos indistintamente. E do grupo de voluntários que,
tradicionalmente nesta prova, distribuem frutas, ajudando a repor parte das muitas
energias perdidas pelo caminho.

Cada um daqueles relógios-termômetros na rua era um inimigo feroz, mostrando


o avançar implacável da hora e da temperatura. A elite já terminara fazia tempo sua
participação, os cinegrafistas e fotógrafos já tinham desmontado acampamento.
Restávamos somente nós, o fundão, os teimosos, os que não desistem nunca. Correndo
sob o sol alto de quase uma da tarde, às vezes mais. Com fome, mas também o
estômago revirado, com dificuldade de aceitar qualquer alimento sólido. Reencontrando
diversas vezes as mesmas pessoas e alternando posições com elas, quando a decisão de
uma, andar, não acompanhava a da outra: trotar. Os longos e abafados túneis, muito
maiores e talvez até mais quentes que os do Rio, com o agravante de conterem trechos
em subida, tornavam aquele retorno ainda mais dramático. O cansaço era extremo. Mas
algo me impulsionava adiante, não sabia direito nem bem o que.

Não foi perfeito, mas foi assim


Ao chegar à penúltima placa, a de número quarenta e um, tive a agradável
surpresa de encontrar dois dos leais amigos que, com muita solidariedade, haviam
terminado suas provas de 25 km e estavam ali exclusivamente para me acompanhar no
trecho final. Se não me garantiram um sprint, bem mais longo que no Aterro, pelo
menos fizeram com que o último quilômetro fosse inteiro sem caminhadas. O cansaço
era grande, quase de exaustão física. Mas cheguei, saudado pela esposa e pelos
companheiros da comitiva, todos na arquibancada ao lado do Parque Ibirapuera. E
batendo, por três minutos, minha marca anterior, fechando a prova com 4h47min.
Sentindo que deixara escapar, mais uma vez, a oportunidade de fazer um tempo muito
melhor, mais compatível com as minhas marcas nas outras distâncias menores. Mas
satisfeito por ter sido ao menos capaz de vencer a falta de um melhor e mais bem feito
preparo. E simplesmente concluir mais uma maratona, que sempre é algo que tem muito
valor.

A folga depois da batalha iria durar apenas quatro dias. No quinto, voltei à
academia e fiz uma série de exercícios ditos regenerativos, mais para soltar a
musculatura. Como bem foi também o treino de retorno, no dia seguinte, com distância
considerável, acima dos quinze quilômetros, mas ritmo bastante suave e na companhia
de dois grandes amigos. Já tinha em mente outro ciclo de preparação, voltado para a
maratona seguinte, que iria começar logo na segunda semana de junho. Praticamente
sem “férias”. A vontade de treinar era tanta que eu não conseguiria ficar parado mais
tempo. A longa prova a ser disputada nas areias do litoral paulista era a escolhida.

Ao criar, com a ajuda de material obtido em revistas e sites, a planilha de treinos


(sempre de forma autodidata, que me perdoem os treinadores, mas é algo que optei por
fazer, por minha conta e risco), levei em consideração os erros e acertos das duas
anteriores. Tentando não me destruir com excesso de volume e intensidade e nem me
descondicionar com o oposto. Iria variar os treinos, priorizando os longos e os
diversificando, ora fazendo em ritmo mais lento, como de costume, ora em pace de
competição. E incluindo também outros tipos, como os intervalados e fartleks, para
velocidade; os regenerativos em piso macio ou em esteira; e voltando a fazer o trabalho
de resistência na musculação. Seria extremamente rigoroso e disciplinado, seguindo o
roteiro praticamente à risca, acompanhando e vendo os resultados da progressão
semanal de quilometragem e do grau de dificuldade dos treinos, à medida que se
tornavam de maior duração e/ou mais intensos. Foram meses duros, de junho a
setembro, mas muito proveitosos também. E não tiveram, como no começo do ano,
tantos problemas, pequenas e chatíssimas lesões. A marca de visto, colocada em cada
célula da planilha eletrônica representando um treino cumprido, surgia a olhos vistos,
em contraste com o pequeno número de letras xis, indicando os raros dias perdidos.

O primeiro mês deste novo ciclo teve três provas. Uma delas, bastante inusitada,
passando pela linha de montagem de uma das fábricas de veículos da região, com um
sorteio de um automóvel entre os participantes, que ficaram frustrados ao ver que o
vencedor foi um funcionário da casa. A seguinte, comemorando a minha corrida de
número cem, que já mencionei ao falar dos eventos de minha cidade, trouxe uma boa
média de velocidade, indicando que os treinos de qualidade já começavam a dar mostras
de valia. A terceira, que também já citei, foi a que trouxe meu até hoje único troféu de
primeiro colocado na faixa etária. Os treinos foram ganhando força aos pouquinhos,
chegando ao final do mês já com o primeiro acima de 25 km, num percurso noturno
pela zona oeste da cidade na companhia de três amigos, correndo até altas horas. Junho
terminaria com 205 km rodados.

Julho, que eu costumo chamar de mês da alta temporada de corridas na região (e


no geral), permitiu-me disputar provas em quase todos os finais de semana, inclusive
numa delas, mais de uma vez, no feriado estadual da revolução constitucionalista. Além
dela, uma prova realizada por uma paróquia da cidade de Jacareí, simples ao extremo,
largada anunciada por um berrante, mas que garantiu alguma diversão. E as dos
aniversários de Pindamonhangaba (pela primeira vez fazendo a distância alternativa de
4 km) e São José dos Campos. O que não conseguira fazer durante toda a preparação
para a maratona paulistana, desta vez seria alcançado já na primeira tentativa: a marca
dos trinta quilômetros num treino. Só não repeti a dose no final do mês porque fui
surpreendido por uma tempestade no meio do caminho, num treino intermunicipal, indo
e voltando de uma cidade vizinha. A progressão seria notável: 299 km rodados no mês.
Menos que o recorde da primeira planilha, mas muito mais que qualquer outro registro
da segunda. E a certeza de que as coisas estavam se encaminhando bem.

E isso se confirmaria novamente em agosto, um mês com menos provas (três),


incluindo uma dobradinha no último final de semana, mas bastante rodagem. Não só os
treinos longos chegariam a uma nova marca próxima da recorde, a de 31,4 km, como os
demais tipos de treinos acumulados também permitiam chegar a somas semanais da
ordem dos oitenta quilômetros, ou pouco mais. As corridas eram treinos de ritmo, mas
também concessões que eu me fazia, para me divertir e quebrar um pouco a rigidez da
planilha. Não fui nada bem no sul mineiro, correndo com notória dificuldade pouco
mais de 4 km em terreno bastante acidentado. Mas me recuperaria em seguida, no
sábado em Pindamonhangaba e no domingo no bairro onde passei quase toda a infância,
em duas provas com cinco cada. Terminaria o mês com um novo recorde pessoal, o de
340 km rodados em vinte e quatro dias de treinos ou provas. Uma média diária de mais
de quatorze mil metros. Quem diria que o gorducho seria capaz disso um dia!

O mês seguinte já era o da prova, prevista para o segundo final de semana de


setembro. Antes disso, aproveitei o feriado da independência e fiz uma nova
dobradinha, conquistando num dia a já aqui citada melhor média de velocidade em
todas as minhas corridas até hoje; e no seguinte, na impossibilidade de conseguir correr
bem, com uma montanha quase literal já no primeiro quilômetro, apenas me divertindo
e relaxando. O último treino longo, dez dias antes da prova, teve pouco mais de
dezenove quilômetros e foi feito sob chuva torrencial, quase em ritmo de passeio, já me
poupando para o grande dia. Adepto do novo e efervescente serviço de microblogging,
compartilhava com os amigos seguidores detalhes da minha preparação, falando de cada
treino, de cada pequena conquista, das vitórias e derrotas, forças e fraquezas. Recebendo
bastante carinho e solidariedade, de gente bastante conhecida ou apenas colegas
virtuais, mas que nem por isso deixaram de prestar um importante apoio.

Treinei pela última vez na quarta-feira, um trote de menos de nove quilômetros.


E folguei durante os três dias seguintes, viajando no sábado para Bertioga, ficando
confortavelmente hospedado, próximo da largada, num chalé. Aproveitei o dia, indo
fazer um (curto) passeio pela praia, acompanhando minha esposa numa improvisada
pescaria, para retribuir minimamente a companhia dela em tantas e tantas corridas. E a
noite, num simples, mas saboroso jantar de massas oferecido pela organização aos
participantes. Ao contrário das noites que antecederam as duas maratonas anteriores,
nesta, dormi muito bem, não dei bola nem para a festa que estava acontecendo no chalé
vizinho. Acordei com os raios de sol entrando por entre as frestas da madeira, tomei
meu café e parti para a praia, que já conhecia bem dos vinte e cinco quilômetros de dois
anos antes.

Sabia, portanto, de antemão das dificuldades que iria encontrar. Correr na areia é
naturalmente mais difícil que no asfalto. Poupa as articulações do impacto, é bem
verdade. Mas, em contrapartida, exige muito mais da musculatura. Eu tinha feito toda
uma preparação para isso, reforçando-a com muitos exercícios de resistência. O piso da
primeira praia, conforme já citei ao falar da prova anterior por lá, não era o clássico, de
areia macia, que afunda ao ser pisada. Tinha em mente, portanto, que essa era uma
característica das praias locais. As duas outras, no meu entendimento, só mudariam em
termos de cenário. Doce engano...

Após o susto da largada inesperada, com a buzina soando sem que eu estivesse
alinhado, o ritmo escolhido para o início de prova seria bem mais conservador que o
usado na ida dos 25 km. A sinalização confusa, com placas totalmente fora do lugar
(chegaram a sugerir que talvez mudadas pelos banhistas, mas eu duvido dessa hipótese)
atrapalhou um controle mais efetivo, mas eu já tinha experiência o bastante para saber
que estava rodando próximo dos seis minutos por quilômetro. O meu planejamento era
justamente esse: o de fazer cada trecho de dez quilômetros em uma hora, guardando um
pouco de fôlego e energia para o final. A passagem pela placa do km 10, em
praticamente sessenta minutos cravados, deu a satisfação das coisas seguindo bem o seu
curso. Mas, a partir da travessia entre a primeira e a segunda praia, já não seria mais
bem assim.

Na bela Riviera, percebi o chão mais fofo e, com o calor chegando devagar, mas
forte, um desgaste muito prematuro. A primeira caminhada forçada chegou cedo
demais, numa distância que eu estava mais que acostumado, os treze quilômetros.
Tentei não me deixar abater por isso e segui adiante, mas o alarme não era falso. O
décimo quinto já foi quase inteiro andando, vencido pelo grau de dificuldade inesperado
e pela perspectiva disso demolir o objetivo maior da prova, a melhora no meu tempo
das duas anteriores. Eu ainda estava relativamente inteiro fisicamente falando, mas
ferido de morte no aspecto psicológico, que é simplesmente determinante nas corridas
de longa distância. Não havia mais concentração, ritmo constante, tudo aquilo que havia
praticado durante os treinos. Só a vontade de chegar logo ao retorno e começar o
caminho de volta.

A passagem entre a segunda e a terceira praia tinha um riacho no meio. Na ida,


com maré baixa, a água estava na altura da canela. A volta transformaria corrida em
natação, com o rio batendo na linha da cintura. Com os pés encharcados e muita areia
entrando nos tênis, haviam se formado pequenos montes dela, que, pontiagudos,
cutucavam a sola dos pés. Parar para retirar, perceberia, era inútil: eles voltavam a
aparecer logo em seguida. Primeiro, a sensação era só de incômodo. Mais tarde, à
medida que a distância tornava mais sensível a região, ela se transformaria em dor, e das
fortes. O cenário da terceira e última praia, Itaguaré, mencionada pela organização
como sendo um refúgio ecológico, realmente era muito bonito. Mas não deixava de
chamar a atenção a presença de muita gente e, mais ainda, de muita sujeira.
Fazia de tudo para tentar me sentir melhor. Até tirar a camiseta, como mais de
metade dos participantes (masculinos), eu tentei. Tive, neste trecho, uma sensação
estranha e inédita numa das muitas paradas para andar: minhas pernas pareciam sem
comando, querendo continuar correndo por conta própria. Era, sem exageros, uma briga
ferrenha entre corpo e cabeça. O primeiro, bem preparado, querendo seguir adiante. A
segunda, nem tanto, mandando parar. Chegaria à metade da prova fazendo cálculos
mentalmente destrutivos. As 2h19min, se multiplicadas por dois, ainda me dariam um
recorde pessoal na distância. Mas eu sabia que teria enorme dificuldade para manter
mesmo esse ritmo tão fraco. Tinha vontade de tirar o relógio do pulso e atirá-lo no mar.
E era o que deveria ter feito.

Ainda bem no começo, eu havia escolhido ao acaso um corredor à frente como


alvo a ultrapassar. O “coelho” se destacava na multidão por usar um lenço azul na
cabeça. Na segunda praia, conseguiria a ultrapassagem sobre ele, mas a queda no ritmo
e a caminhada lhe devolveriam a colocação. A dificuldade não era exclusivamente
minha. Outros tantos corredores também se arrastavam literalmente pelo percurso,
inclusive ele. Seriam inúmeras as alternâncias de posições, minha, dele e de alguns
outros companheiros de provas. O contato constante nos tornaria amigos de ocasião. Já
nos incentivávamos mutuamente a cada novo reencontro. Tudo parecia conspirar contra:
o aumento significativo da temperatura, a distância entre os postos de água (que até
parecia adequada no começo), uma bisonha inversão de placas, com a de número maior
colocada antes da menor; e até a triste visão de uma tartaruga marinha gigante, morta na
areia. A cabeça girava sem parar.

Em determinado ponto, não mais aguentei e tomei uma dura, mas que pareceu
inevitável, decisão: a da desistência. Achei um telefone público e dele liguei para a
Janete, comunicando a minha escolha. Ela, consternada, mas também compreensiva, se
dispôs inclusive a pegar um táxi e ir me resgatar. Mas, como fazer isso? A logística era
bastante complicada. A praia era muito afastada, a estrada estava bem longe (não sabia
nem exatamente quanto) e não havia um caminho simples de fazer da largada até ali. A
brincadeira poderia sair bem cara. Coloquei em stand-by o plano e disse que daria um
jeito de voltar por meios próprios. Ao perguntar para um staff de bicicleta o que poderia
ser feito, ele deu de ombros e perguntou se eu queria carona no guidão. Era brincadeira
(de gosto duvidoso), mas ilustrava o mato sem cachorro em que eu me encontrava. O
único jeito era voltar andando. Para não ficar demorado demais, intercalando, quando
possível, alguns trotes.

Seria um longo e demorado caminho. Pararia diversas vezes, como no posto de


apoio com o tonel de isotônico, que ataquei como se estivesse num oásis no deserto.
Sentaria no chão e choraria de dor. Ouviria piadinhas, como havia muito tempo não
acontecia, como a dos moleques perguntando se eu iria dividir o prêmio pelo primeiro
lugar (essa foi boa!). Lembrei-me do pedido feito pela Janete na noite anterior: que eu
dedicasse a ela os cinco quilômetros finais do trajeto. O apoio incondicional, não apenas
naquele dia, mas em praticamente todas as corridas, antes e depois, merecia um esforço
suplementar de minha parte. Estava destruído em todos os aspectos possíveis, mas devia
a ela a conclusão dessa prova.

Quando, faltando apenas dois quilômetros para chegar, resolvi tentar tirar os
tênis, foi como se tivesse renascido. Sem a areia espetando as solas dos pés, livre e
descalço, voltei momentaneamente a sentir prazer em correr, coisa que havia perdido
horas antes. Se tivesse feito isso dez quilômetros atrás, talvez tivesse baixado o tempo
em trinta ou quarenta minutos. Mas era tarde demais para lamentar. A visão do sorriso
da minha musa inspiradora, naquela curva final rumo ao pórtico de chegada, foi mais
linda e marcante do que qualquer um dos muitos cenários naturais que a prova
proporcionou. O abraço no companheiro de prova, que chegou literalmente junto
comigo, também foi momento de grande emoção. Para Janete, não fazia a menor
diferença que eu já tivesse passado das cinco horas de corrida. Dezessete minutos além.
O que realmente importava era que eu estivesse ali. Ela me diria que muita gente,
inclusive bem mais rápida que eu, contara ter aumentado exponencialmente seus tempos
de conclusão. Ou nem chegado ainda.

Um abraço ao chegar

A palavra “fracasso” pesou sobre a minha cabeça naquela hora e durante todo
aquele dia. Mas não era justa para comigo. O corredor que me acompanhou tinha vinte e
sete maratonas no currículo e dissera ter sido essa uma das mais duras. Meu orgulho era
apenas por ter resistido ao impulso quase irresistível de capitular, mesmo que impedido
apenas pela dificuldade em fazê-lo. Não tive como evitar, no entanto, o baixo astral.
Emendei a essa prova uma série de várias outras, praticamente em todas as semanas que
a sucederam. O que consegui, ao invés de redenção, foi uma lista quase infindável de
resultados pífios, totalmente incompatíveis com a minha realidade enquanto corredor. O
desânimo era visível de longe. Recebi dos amigos apoio, tapinhas nas costas, conselhos
importantes e até críticas bastante válidas. Pensei, repensei e, depois de um mês e meio,
fechei para balanço. Foi a melhor coisa que fiz. Quando voltei, quase no final do ano,
era outra pessoa e, principalmente, outro corredor.

*
O início da temporada seguinte se deu ainda no último dia do ano de 2009.
Enquanto muitos faziam os ajustes finais nas suas “máquinas” para a São Silvestre, eu
deixava minha casa e fazia uma longa caminhada de quatro horas de duração. Foram
mais de vinte e dois quilômetros, percorrendo boa parte de minha cidade. Momento de
introspecção, de reflexão, mas também de agradecimento por mais um ano de altos e
baixos, na vida e no esporte. Com algumas conquistas importantes, grandes momentos,
alegrias e tristezas, vitórias e derrotas, como quase todos os anos são. Foi, outrossim, o
início da preparação psicológica para a próxima maratona, talvez aquilo que mais tenha
me faltado na anterior. Tinha preparado tão bem o corpo, mas talvez relegado a um
segundo ou terceiro plano a mente. Desta vez, iria procurar levar ambos juntos até a
chegada.

Montaria talvez a melhor de todas as planilhas, rumo àquela que deveria ter sido
a minha primeira, se o destino assim o quisesse. A programação de treinos para Porto
Alegre seria aquela na qual eu encontraria o equilíbrio mais próximo da perfeição entre
a rodagem e o repouso, o treino puxado e o regenerativo. Onde eu talvez tenha aplicado
melhor o conceito da supercompensação, aquele que diz que, após um estímulo forte e a
recuperação deste, envolvendo descanso e boa alimentação, a carga seguinte gera uma
automática resposta positiva do organismo, trazendo natural, gradativa e contínua
evolução. Não fiz isso sozinho, nem teria competência para tanto. O texto que li, rico
em referências e exemplos, foi elaborado pelo ex-atleta e treinador Benji Durden e
reproduzido em língua portuguesa pelo site Copacabana Runners. Com pequenas
adaptações, o roteiro se tornou o meu script para uma nova e melhor elaborada tentativa
de chegar aos 42 km, com chance de enfrentá-los em condições adequadas.

Começaria os treinos no primeiro domingo do ano, passando alguns dias de


folga na praia. Seriam seis as semanas de base, período composto de treinos de rodagem
livre, sem ritmo previamente definido, visando o ganho (ou a recuperação) de
condicionamento. Mas já seria um bom início, com a primeira semana registrando
rodagem total quase equivalente à da prova-alvo e num ritmo demonstrando que as
“férias” não haviam causado grande estrago, ao contrário de outras tantas. Só talvez o
excesso de comida tipicamente natalina é que sim. A temporada do panetone é malévola
e daninha para a minha silhueta. As três semanas seguintes manteriam a tendência
favorável, com aumento na distância percorrida e melhoria no desempenho. Janeiro
seria um mês de pouco mais de duzentos quilômetros rodados e uma única prova, a
tradicional e inconfundível corrida de Bom Jesus dos Perdões. Rica em subidas e em
moradores locais festejando fantasiados, já em clima pré-carnavalesco.

Já o mês do carnaval propriamente dito teve em Mogi a corrida dita noturna, mas
disputada na verdade ainda com dia claro, logo após uma tempestade inesquecível,
deixando poças d’água espalhadas por todo canto e engraçadinhos querendo fazer disso
armas contra os adversários. Quase saiu briga e quase saiu novo recorde dos 5 km. Se
eu tivesse prestado atenção no relógio, não deixaria escapar essa chance por míseros
quatro segundos. E teve também, mais uma vez, a constrangedora farra dos corredores
da região. Tentei escapar, indo para a capital levar minha sogra para pegar o ônibus para
a Bahia, aleguei problemas de saúde (e os tinha, novamente a crise de rinite alérgica),
mas não teve jeito. Tive de cair na avenida vestido de mulher, pelo segundo ano
consecutivo. Constatando o quanto é difícil, além de ridículo, correr usando um
minivestido. Pelo menos os treinos foram dignos. Somaram 218 km no mês. Mas a
média de velocidade caiu um pouco em relação a janeiro, acendendo uma luzinha
amarela de preocupação. Em parte justificável, pelo final dos treinos livres e o início da
planilha propriamente dita, as duas primeiras das quatorze semanas previstas. Os
“longões”, dessa vez fixados em tempo e não em distância (a teoria do coach diz que o
corpo não compreende quilômetros, mas entende o esforço de x horas de duração),
chegariam às 2h45min, para mim, o equivalente a algo em torno dos 28 km.

Se as outras preparações tinham sido praticamente solitárias, esta iria contar com
a presença maciça de amigos nos treinos, mesmo os mais longos, muitos deles se
preparando para a primeira maratona. E iria fugir dos percursos comuns e batidos dos
coletivos de quase sempre. Faríamos, no decorrer do primeiro quadrimestre, pelo menos
sete marcantes treinos, que registrei e eternizei em relatos publicados em meu site. O
primeiro em Taubaté, subindo em bando (dezenove participantes) o chamado Morro do
Aprovado, que felizmente não reprovou ninguém, embora tenha feito muitos, inclusive
eu, andarem. O segundo, menor em participantes, mas maior em distância, saindo do
Parque Vicentina Aranha, indo até o bairro do Urbanova e retornando ao ponto de
partida. O terceiro, inesquecível, dias antes da festa de momo, levou doze guerreiros a
um estirão de mais de vinte e cinco quilômetros pelas ruas joseenses. O quarto, então
recorde de público, com vinte e nove corredores catalogados (também, teve almoço com
pernil e tudo depois!), para um trio de bons malucos, teve distância acima dos vinte e
oito mil metros. Mas permitiu que todos participassem, cada um correndo quanto
melhor lhe conviesse. O quinto, promovido por um amigo então morador da cidade
vizinha de Caçapava, nos levou a recantos então desconhecidos dela, com variações
altimétricas de tirar o fôlego, literalmente ou não. Pena que o calor acabou prejudicando
um pouco, encurtando à força o caminho, ainda assim com marcantes vinte e quatro
quilômetros para mim e meu veterano amigo (e algo mais para alguns valentes). O
sexto, no sábado de aleluia, foi o mais longo, com mais de trinta e um quilômetros para
mim e meu parceiro de nome igual. Que trouxe a ele a certeza de que estava apto para a
distância e o ajudou bastante, creio eu, a brilhar nesta primeira prova, alcançando nela
um resultado excelente. O sétimo foi uma grande festa. Que nos levou ao litoral, à casa
de um dos grandes amigos de todos nós, líder de uma equipe coirmã e atleta dedicado e
cada vez mais assíduo nos pódios de faixa etária. Distância curta, mas com dificuldade
intensa pelas condições climáticas. E depois, todo o clima de confraternização, um
saboroso almoço e a alegria de estarmos todos juntos, irmanados pelo esporte que
escolhemos para praticar.

Março é mês de meia. Da meia paulistana, em sua quarta edição, a terceira com
a minha presença. E se eu vinha me recuperando da estreia desastrosa nela, dessa vez
conseguiria um resultado pra lá de satisfatório. Ainda não perto daquela primeira prova
em Guaratinguetá, mas o melhor desde ela. Seis minutos melhor que o tempo de 2009.
E quinze minutos abaixo do tempo da fatídica prova de 2007. A evolução se fazia notar
com facilidade. O mês teria mais duas outras provas. Uma disfarçada de treino, ou vice-
versa, promovido por uma assessoria esportiva e uma academia local. E que acabaria
virando treino mesmo, com um pequeno grupo continuando a rodagem sob um sol
escaldante. Ficamos longe de alcançar a distância prevista, mas terminamos todos
satisfeitos, mesmo esgotados. A outra era a tradicional prova da PM, na qual consegui
minha melhor marca entre as cinco participações, mas ainda fiquei devendo o tempo
começando com quatro nos dez quilômetros. Nos treinos, as três horas previstas foram
alcançadas e superadas, mas o ritmo nos longos não era dos melhores. A distância total
do mês cresceu, chegando aos 248 km, mas a velocidade teve uma nova pequena queda.
Veio abril e começou logo com o tal treino da aleluia de que já falei. Foram
trinta e um quilômetros e uns quebrados, percorridos em pouco mais de 3h15min. Era o
ápice, embora devesse ter quinze minutos e alguns milhares de metros a mais. A partir
daí, as rodagens começariam a diminuir, reduzindo até chegar à fase de polimento, as
duas ou três semanas que antecedem a prova. Disputei mais uma meia maratona, que eu
achei que seria apenas para diversão, mas trouxe um inesperado e agradável tempo sub-
2 horas no sempre difícil, embora dessa vez um pouco mais urbanizado percurso da
Trilheira de Ribeirão Pires. E a quinta participação seguida em cinco edições da corrida
que comemora o aniversário de Caçapava, dessa vez com ligeira queda de desempenho
e um tempo quase um minuto acima do obtido um ano antes, no mesmo percurso. O
mês terminaria com 265 km rodados, bem menos que o auge das planilhas anteriores.
Mas com a sensação de preparo equivalente, menos cansaço e mais equilíbrio.

Maio chegou e, embora o caminho até ali não tivesse sido virtuoso a ponto de
me fazer sentir tinindo, estava confiante. Logo no começo do mês, um treino
luxuosíssimo. Herdando a vaga do amigo do outro lado da baía, fui representá-lo na
maratona paulistana, acompanhando vários dos meus colegas estreantes na distância. E,
mais de perto, o velho companheiro, tão experiente, mas debutando nos quarenta e dois.
A intenção era fazer um treino de duração indeterminada. Aos 25 km, havia a opção de
parar e pegar o ônibus da organização até a chegada, mas eu só faria isso por motivo de
força maior. E ele aconteceria. O parceiro de prova sentiria no campus universitário
uma contusão no joelho. Sem ele para escoltar, não tinha a mesma graça. Optei por
fechar a minha participação e pegar o coletivo até o Ibira.

Antes do grande dia nos pampas, mais duas corridinhas. A reedição da prova dos
comerciários em Sorocaba, na qual bati pela primeira vez no ano meu recorde dos cinco
quilômetros. E a dos futuros engenheiros em Guaratinguetá, onde fiquei a seis míseros
segundos de igualar o de oito quilômetros. Diz o filósofo que uma coisa não é outra
coisa, mas eu estava me sentindo nos cascos, com muita vontade de pegar o avião e
estraçalhar em PoA, sigla usada para identificar a capital dos gaúchos. O último treino
foi noturno, na quarta-feira, e contou com a presença de alguns amigos que atenderam a
um chamado meu. Foi muito agradável, mas antes não tivesse acontecido. Nele, senti
pela primeira vez em muito tempo o incômodo na região da virilha, resquício ainda do
tombo na quadra esportiva baiana, na brincadeira com os sobrinhos. Fiz que não era
comigo. Não podia acreditar naquilo, que cinco meses de treinos intensos e de tanta
dedicação pudessem ser jogados fora assim, do nada. Descansei três dias e torci muito
para que fosse só mais um daqueles comuns alarmes falsos, que assustam bastante, mas
não trazem maiores transtornos na prática.

Cheguei finalmente a Porto Alegre, acompanhado de esposa e filho, com essa


bagagem adicional. Noventa e quatro dias de treinos, mais de mil quilômetros rodados
neles. E o peso extra da preocupação. Com o apoio logístico da organização, fiz o
traslado aeroporto – retirada do kit – hotel. Após me instalar, reencontrei os mesmos
amigos de outros passeios e da escolta na maratona paulista do ano anterior. E fomos
todos juntos garantir os carboidratos para o dia seguinte na pizzaria por metro. A noite
de sono foi entrecortada, começou cedo, teve interrupções antes da hora, mas serviu
para o repouso. O café da manhã não chegou a ser dos mais “glutônicos”, embora eu
nunca consiga praticar a frugalidade nele também. Ainda com tudo escuro e num furgão
lotado de hispânicos, nos deslocamos até a largada. Durante os preparativos, o dia foi
amanhecendo, ainda nublado, mas já dando mostras de que não seguiria assim. Não
cheguei a sentir em nenhum momento o friozinho típico esperado e nem o famoso vento
local.

Estava muito contente por ter enfim conseguido estar naquela largada, tão
almejada, desde dois anos antes. Rodeado de bons amigos de vários lugares,
conhecendo pessoalmente outros que até então eram apenas virtuais. Mas algo parecia
errado. Era como se eu pressentisse que não conseguiria terminar aquela prova.
Tentava, é claro, afastar os maus pensamentos, abstraí-los, substituir por positivismo. E
assim comecei o caminho, formando novamente um paredão com os mesmos dois
companheiros de outrora. Com visível melhor rendimento, o amigo de Sampa fez
justiça e abriu distância a partir do sétimo quilômetro, passando a imprimir seu ritmo
próprio, bem mais forte que o meu. O trio virou dupla. Por mais seis ou sete, eu seguiria
com o fluminense (embora rubro-negro), até constatar que a minha companhia lhe seria
prejudicial, liberando-o para continuar sem a âncora.

Meu pesadelo se tornara realidade. A fisgada veio leve, não causou dor mais
intensa. Mas imediatamente passou a limitar os movimentos, encurtando a passada e
jogando o ritmo lá para baixo. A mesma virilha do treino durante a semana e também
que me impedira de estar ali em 2008, agora seria responsável direta pelo naufrágio da
prova. Tentei continuar insistindo, já que não se atira pela janela uma maratona e toda a
preparação para ela por qualquer dorzinha. Sabia que, rodando a 6’20’’ ou mais por
quilômetro, obviamente não alcançaria a meta de terminar com o bom tempo desejado.
Mas ainda acreditava estar dentro do jogo. Até a dor voltar, mais intensa a partir do km
16. E ainda acompanhada de uma cólica intestinal. Nenhum comércio salvador aberto.
O museu de portas fechadas. Nenhum ponto de emergência ao qual eu pudesse recorrer.
Teria que me arrastar, de pernas trançadas, até o local da largada, por onde o percurso
passava novamente na altura do vigésimo terceiro quilômetro. E fazer uma longa parada
no banheiro químico, que nem com papel contava. O número de peito de um corredor
que ali estivera faria as vezes deste.

De corpo e cabeça fria, resolvi arriscar a continuidade. Não queria decepcionar


meu filho, que me esperava na reta final para mais uma chegada conjunta. Peguei a orla
do Guaíba e segui por ela. Já tinha até zerado o relógio, oficializando a minha
desistência, mas o disparei novamente, disposto a fazer contas de mais ou até a esquecer
de vez os números, focando apenas na conclusão da prova. Mas a disposição pouco
duraria. Apenas três quilômetros à frente, parando para abastecimento num dos postos
de isotônico, tive a súbita visão da realidade. Não tinha mais o que fazer ali. Se tentasse,
naquelas condições precárias em que me encontrava, correr os dezesseis que faltavam,
provavelmente agravaria a contusão, além de conseguir um tempo final que só me
causaria ainda mais decepção e revolta. A corrida tinha acabado para mim. Peguei, com
os olhos marejando, o caminho de volta. Pela primeira vez, abandonaria sem completar
uma maratona. Na teoricamente mais fácil delas. E para a qual eu estava talvez melhor
preparado.

Para não prolongar ainda mais o sofrimento desnecessário, optei por intercalar
caminhada e trote nos quilômetros que me separavam da chegada fajuta. E a companhia
de gente bem mais rápida me mostraria que eu não estava tão derrubado assim.
Consegui, quando corri, encaixar as duas melhores parciais de tempo de toda a prova,
rodando na casa dos 5’40’’. Se mantivesse isso durante toda a corrida, conseguiria um
resultado inesquecível (para mim). Apontei na reta e, surpreendendo minha esposa,
peguei pelos braços meu guri, extasiado com aquele momento mágico. Mesmo com
toda a tristeza, consegui sorrir por duzentos metros, mais uma vez sendo destaque para
fotógrafos e cameramen. Para Eduardo, então com cinco anos de idade, seu pai não era
um derrotado. Era uma espécie de bom exemplo. Foi o que me bastou.

Pai e filho chegando juntos

O luto existiu, o vazio no peito das grandes perdas se fez presente nos dias que
sucederam este triste domingo. Mas eu nunca fui o tipo do cara que espera coisas caindo
do céu. O “plano de vingança” começou a ser arquitetado apenas alguns dias depois do
regresso ao lar. O primeiro passo dele foi uma troca rápida de e-mails com dois amigos.
Um deles, aqui mesmo da cidade, mas nascido e criado no Rio de Janeiro e com laços
familiares por lá. E que pretendia disputar, pela quarta vez, uma meia maratona na terra
natal. A ele, tive a cara-de-pau de pedir a carona. Ao outro, que estivera comigo na
maratona porto-alegrense, dediquei mais ousadia ainda. Solicitei a estadia, que já havia
sido oferecida em outras ocasiões, sem que eu pudesse aceitar. Deixei acertada,
portanto, toda a parte logística da coisa. Tinha sete semanas para juntar os caquinhos,
reconstruir um corredor e recomeçar, mais uma vez.

Além destes dois e da família, só quem ficou sabendo dos meus planos foi o
jovem amigo que, depois da boa, mas complicada estreia em São Paulo (acometido do
mesmo problema muscular que tive em meu próprio debute), resolveu também
continuar se preparando, mas para uma maratona estrangeira, comemorativa ao
bicentenário da independência do país vizinho, o Paraguai. O motivo do segredo não foi
nenhum fricote, mas uma tática pensada para evitar o excesso de expectativa. A minha
própria, mas também a dos amigos. Caso tudo desse errado novamente, eu não teria de
me justificar para ninguém que não fosse eu mesmo. Montei uma nova planilha, com
uma semana de base, uma de polimento e cinco de “batente”, mantendo a mesma teoria
da anterior. Simples, mas eficaz, composta de uma sessão semanal de musculação (mas,
dessa vez caseira, feita com uma faixa elástica comprada em loja de material esportivo),
um treino longo (previsto para começar com 21 e chegar aos 32 km), um trabalho de
velocidade (fartlek, fugindo dos tiros), um regenerativo para poupar a musculatura. E,
para manter o ritmo de competição e a motivação em alta, uma corrida de rua por
semana.

Este curto ciclo de preparação, o menor que já tive para uma maratona, teve
altos e baixos como todos os anteriores, mas foi também um dos mais gratificantes. Em
muitos momentos, na companhia de outros colegas em treinos, tive vontade de abrir o
jogo e contar o motivo de tanta dedicação. Muitos andavam desconfiados, talvez até
soubessem o que eu estivesse tramando, só não exatamente para onde eu pretendia ir.
Quem, fora um ou outro ser de asinhas, mantém a mesma pegada quando não está
treinando para algo específico?

Em cada uma dessas sete semanas, aconteceu pelo menos um treino especial,
pela distância, pela companhia, pelo cenário ou trajeto ou por qualquer outro motivo
para tanto. Que registrei posteriormente, depois de concluída a maratona, num texto
carregado de emoção, gratidão e paz de espírito em meu espaço pessoal na internet. A
expressão “anatomia de uma vingança”, usada como título, talvez não tenha combinado
com as palavras usadas no corpo, mas retratava bem o que eu estava sentindo. De alma
leve. Com o roteiro nas mãos, estava me sentindo tão motivado que fui a Tremembé e
bati novamente meu recorde dos 5 km, sem qualquer treinamento próprio para isso.

O primeiro destes treinos aconteceu no sábado da semana de base. Abrindo


também a preparação do amigo para qual eu havia choramingado o “carreto” até o Rio.
Numa manhã fria, percorri a distância entre a minha casa e a dele (não tão curta assim,
cerca de cinco quilômetros) como aquecimento. E juntos fizemos o miolo do trajeto, o
itinerário entre o shopping e o bairro do Urbanova, com direito a boas subidas pelo
caminho. O ritmo foi bom, dando a ele uma espécie de recorde pessoal na distância. E
dali, segui de volta para casa, pelo mesmo caminho da ida. No total, foram pouco mais
de 23 km, bem mais e melhor que a encomenda. Um bom e promissor começo. Essa
seria a única das semanas que não teria uma corridinha para comemorar.
A partir da segunda semana, os treinos longos seriam deslocados para o período
noturno e em dias úteis. Não é o ideal, reconheço. O princípio da especificidade é
sempre válido: se você está se preparando para uma corrida matinal, treine de manhã!
Mas eu optei por correr o risco. Na companhia do amigo e confidente, segui quase à
risca um roteiro especialmente traçado no site de mapeamento de imagens de satélite.
Numa noite gelada de sexta-feira, percorremos 25,5 km pelas ruas da cidade. Dois dias
depois, estávamos na pista para a corrida da cooperativa médica local. Ele voaria baixo.
Eu, um pouco menos, ficaria também contente com meu tempo sub-50’, quase sub-49’
nos 10 km.

O terceiro treino foi o primeiro solo, sem contar com o apoio de ninguém. O que
também é fundamental numa preparação bem feita. A maratona, via de regra, é na
prática uma longa corrida solitária. Acostumar-se mal a algo que você pode não ter na
hora H é arriscado. Foi o primeiro sinal de dificuldade numa trajetória até então
virtuosa. O treino foi bastante complicado, meu corpo acusou sinais de cansaço e as
primeiras dores, na região do joelho. Fez temer por uma escolha equivocada em, pela
primeira vez em cinco anos, tirar férias da musculação formal. Tinha previsto alcançar
os 28 km e mal passei dos vinte e seis. Balancei, quase desanimei de vez e por pouco
não joguei tudo para o alto. Mas fui para uma corrida no domingo no litoral, que
esperava ser totalmente plana e, em vez disso, foi uma insanidade total, a subida de um
morro sem fim, tão alto que usado até como rampa de voo livre. Ao contrário do que se
podia imaginar, tive um desempenho bastante satisfatório e, mais do que isso, curti
bastante o desafio e a dificuldade. Saí dessa prova com tanta motivação que encarei
logo uma dobradinha, substituindo um amigo contundido numa corrida curta na cidade
de Arujá. A montanha-russa existia, mas parecia ter mais subidas que descidas. Tudo
bem.

O quarto treino teve um integrante a mais na dupla, tornando-a um destemido


trio. Sobrinho e tio me acompanhariam num novo trajeto traçado para ter trinta
quilômetros, mas que o adiantado da hora, com início tardio, acabou abreviando em
menos de vinte e oito. Ficou de bom tamanho, rendeu bem, foi divertido e bastante útil,
fazendo com que ficássemos em atividade contínua por um tempo bastante prolongado.
No final de semana, mais uma dobradinha: um treino coletivo comemorando o
aniversário do capitão de nossa equipe no sábado. E uma viagem a Campinas, para fazer
uma pequena, mas agradável corrida em torno da lagoa de quase sempre. Na qual
consegui manter uma boa média de velocidade. Não era nem o foco, mas mostrava que
eu estava em relativa boa forma.

O auge da distância chegaria nesta quinta semana. Convoquei os mesmos


amigos do treino anterior, mas ambos acusaram pequenos problemas de saúde e não
puderam comparecer. Sozinho, recomecei do ponto onde tínhamos interrompido uma
semana antes. Encarando subidas e descidas fortes, trânsito carregado e a poluição
decorrente dele e os quase trinta e dois quilômetros do caminho, cumpri integralmente o
roteiro. Excetuando-se as próprias maratonas, era a maior distância que eu já havia
percorrido. Feliz e cada vez mais confiante, fui desfrutar do meu prêmio, uma inscrição
promocional faturada para a tradicional prova paulistana dos bombeiros. Presente de
grego, com a enorme ladeira da Avenida Nazaré para fazer sofrer.
Chegando ao topo, começaria a descida. No sexto treino, que tinha tudo para ser
o mais fácil de todos, problemas sérios e muito medo. Não no trajeto em si, repetindo a
companhia e o deslocamento até a casa do amigo do primeiro treino, ganhando a mais a
companhia de sua sobrinha, ainda novata no esporte, mas mostrando disposição de
sobra. Mas no retorno dele. Exatamente a mesma dor, no mesmíssimo lugar, que tinha
me deixado pelo meio do caminho no sul do país. Faltando uma semana apenas para o
grande dia. Parecia fadado a fracassar, não por falta de esforço ou dedicação de minha
parte, mas por pura fatalidade. Dos 25 km, cumpri pouco mais de vinte e um. E achei
que a vaca já estava no brejo.

Mas tratei de desatolá-la. A semana que antecedeu a prova foi dedicada ao


descanso, ao carboloading (alimentação mais rica em carboidratos a partir dos últimos
dias antes da prova) e a um treino inusitado e marcante. Inspirado numa brincadeira que
fiz com um amigo na rede social das mensagens curtas, bolei uma “corrida do centro
histórico de São José dos Campos”, plagiando na cara dura a de São Paulo. Num
traçado da mesma distância da prova oficial, os nove quilômetros, passando pelos
principais pontos históricos da região central da cidade, convidei vários amigos. Mas só
os menos ajuizados mesmo é que apareceram. O motivo? Uma chuva torrencial, quase
uma tempestade, que assolou a região no final da tarde. Fui por desencargo de
consciência, achando que correria sozinho ou mesmo voltaria para casa sem treino. Mas
foram chegando os amigos, um por um. Quatro seríamos os corredores nesse
divertidíssimo passeio noturno pela cidade, chamando a atenção dos poucos e corajosos
transeuntes. O melhor de tudo foi correr, e em bom ritmo, sem sentir qualquer sinal da
dor na virilha. Aí, tudo ficava prazeroso. Três dias depois, pegaria com os amigos o
caminho asfaltado até a capital carioca. Com toda a vontade do mundo de fazer a
melhor prova possível.

A chegada ao local da entrega dos kits causou estranheza em algumas pessoas.


“O que você está fazendo aqui?” foi a pergunta mais ouvida. Ter escondido tão bem o
leite era motivo de gargalhadas no reencontro com os camaradas, locais ou de outros
pontos do globo. Cumprida a burocracia, fui me instalar na casa dos pais do meu
brother. E lá seria mesmo tratado como filho, com cortesia, carinho e muita
hospitalidade. Foi um sábado inesquecível. Passeio mesmo, só o traslado Rio – Niterói,
pela ponte que eu só conhecia de longe. Mas na qual um dia quero correr a tal nova
meia, que estrearia em 2011. Mas me diverti bastante com a pequenina, filha do meu
grande camarada, uma graça de menina, esperta como ela só. E, à noite, que beleza de
jantar, num rodízio de pizzas e massas caprichadíssimo e variado ao extremo. Dormi tão
pesado que, sozinho estivesse, perderia a hora. Quase tive de levar um balde d’água fria
na cabeça para finalmente despertar.

O longo trajeto entre a chegada e a largada, no ônibus da organização, pago à


parte, foi mais contemplativo que de conversa. Nas brincadeiras para descontrair, as
estratégias de um e outro sendo combinadas, tão difíceis de seguir na prática. O dia
ainda não havia nascido e ninguém era capaz de dizer o que teríamos nele. Chuva?
Nuvens? Sol? De tudo um pouco? No mesmo lugar onde eu me emocionara em 2008,
estava de volta, dois anos depois. Enfrentando a fila de um banheiro químico trancado,
tão grande costuma ser meu azar. Tomando o “café da manhã” que não tivera tempo e
nem vontade de ingerir ao acordar. Tentando me concentrar para já largar focado, mas
sabendo que ninguém consegue fazê-lo por tanto tempo, então, o negócio era começar
mais relaxado. Dando ao corpo o recado: ele deveria se preparar para um grande
esforço, mas sob o comando da cabeça. Juntos, eles me levariam até o destino final.

Dessa vez, não havia comigo nenhum roteiro matemático. Sabia que tinha de
correr os primeiros quilômetros dentro da zona de conforto, sem me desgastar
prematuramente. E que até poderia registrá-los no relógio, mas sem me deixar
influenciar, positiva ou negativamente por eles. O caminho era longo demais para se
preocupar com detalhes. E bom demais para isso também. Mesmo já conhecido, o
cenário era deslumbrante. Revê-lo era um privilégio. Tentei correr tendo como
referência meu anfitrião, mas ele parecia mais arisco, mantendo sempre alguns metros
de distância. Só pretendia não deixá-lo desaparecer no horizonte, portanto. Tinha em
mente que, numa fictícia competição pessoal, ele tinha a supremacia total, nunca tendo
sido “derrotado” por mim em nenhuma das (poucas) provas em que estivemos juntos.
Havendo, portanto, como fator motivacional, esse desejo frívolo de um golzinho de
honra.

Um dos dramas vivido nos pampas voltaria a se repetir. Felizmente, não a dor.
Não pelo menos a da virilha. A barriga incomodou pela primeira vez, lotada das massas
da véspera, ainda no sétimo quilômetro. Cedo demais. Resistiria por algum tempo,
passaria batido pelas primeiras “casinhas” na altura do km 15. Mas teria de fazer uma
escala forçada mais quatro para frente. Tomei duas providências para não deixar que
isso estragasse a prova. A primeira delas foi parar o relógio. Não me interessava quanto
a lista de classificação oficial iria marcar. Meu tempo de prova seria, pelo menos para
mim, o que estivesse no meu relógio, desconsiderando esse pit stop. A segunda tinha
sido ter no bolso aquilo que faltou no banheiro gaúcho. Um rolinho de poucos
centímetros me tirou do sufoco. Uns quatro minutos perdidos foram o bastante para me
fazer renascer na corrida. Saí de lá outra pessoa, significativos segundos mais rápido a
cada nova placa de quilometragem.

A chuva não viera para a prova, mas deixara lembranças pelo caminho, sob a
forma de muitas e grandes poças a serem evitadas em todo o trecho da Barra. Por ali
chegou também a marca de metade da prova, com o tempo de 2h11min, bem mais alto
que a minha média na distância, mas que me garantiria, se repetido na segunda parte,
um resultado muitos minutos melhor que a marca anterior. Cabia a mim manter o ânimo
e a passada. O cenário, a partir dali, sairia da monotonia, bem como a inclinação. As
subidas eram bem-vindas, por mais que eu as abomine. Sair daquele longo e
interminável trecho plano e reto era para aliviar qualquer um. Veio o elevado, vieram os
túneis, um com aquela abertura de visual indescritível, o outro com os balões
iluminados e a música clássica. Eu ia me aproximando cada vez mais de onde havia
chegado correndo na primeira vez. E onde tinha visto a prova se encerrar subitamente,
com a contração da musculatura causando dor e revolta. Sentia o pulso acelerar.

Antes de chegar ao pé do morro, reencontrei o amigo, que também havia


passado pelo mesmo problema (e restaurante). Mais inteiro e com a preparação mais em
dia para aquele momento específico, acabei deixando-o para trás. Subi a longa
Niemeyer quase como se plana fosse. Com o enorme prazer que dá vencer algo difícil
correndo, não que ela o seja em muito elevado grau. Mas experimente encarar dois
quilômetros ou mais de ladeira depois de já ter corrido quase vinte e sete. Chegar ao
lugar onde vira meu sonho se despedaçar foi porrada pura. Ver aquela placa trinta, que
parecia que não chegava nunca mais em 2008, fez meus olhos se encherem de lágrimas.
Na descida, tive de conter a empolgação para não disparar simplesmente. Estava tomado
por um enlevo que poderia comprometer o restante da prova, que de fácil nada tinha.

No trecho das praias mais badaladas e conhecidas do país, talvez do mundo,


mais emoção. Aos trinta e três quilômetros, da outra vez, havia passado pela segunda
cãibra, que me fez sentar e desmontar no chão de dor. Dessa vez, ela e Ipanema me
viram passar bem mais inteiro. Em Copacabana, já não estava mais tanto, tinha de me
concentrar para não olhar longe, procurando o final da praia e a esquina tão esperada
com a Avenida Princesa Isabel. Cheguei a andar, por alguns míseros metros, que, algum
tempo antes, me transformaria em não-maratonista num conceito próprio. Mas isso
pouco importava para mim, naquela hora. Já havia chegado à óbvia conclusão de que
não era mesmo um desses autoproclamados experts, mas apenas um corredor qualquer,
que também corre maratonas, mas sente o mesmo prazer e alegria em todas as outras
distâncias menores. Iria chegar ao final, custasse o que custasse. Não forçando uma
lesão e nem querendo demonstrar heroísmo desnecessário. Mas com naturalidade e
altivez, mesmo que o tempo final não refletisse ainda o meu potencial.

Com um sorriso de serenidade no rosto

O trecho por Botafogo e os túneis, até a chegada ao Aterro, já não seria mais tão
confortável. Mas eu estava ali sem me arrastar, como acontecera da outra vez. Ao invés
do sujeito com a garrafa de refrigerante, havia outro, distribuindo generosamente
laranjas. E outros tantos, dando incentivo, tão importante quanto algo para comer.
Cheguei a compor brevemente um trio com dois outros corredores, que vinham na
mesma toada e dizendo estar nas mesmas condições, já no limite das forças. Mas
avistei, no sentido oposto, vindo de bicicleta, um amigo local, que havia terminado sua
participação na meia e agora estava ali unicamente para apoiar os companheiros. Não
era nem a minha intenção solicitar apoio, apenas saudá-lo, mas ele seguiria comigo
pelos dois quilômetros finais, o tempo todo me incentivando a tirar forças lá de dentro
para continuar. A vontade de andar era imensa, o corpo pedia repouso imediato, mas a
gana de chegar era ainda maior. E, ajudado por esse verdadeiro anjo da guarda, percorri
em silêncio e em paz todo esse trecho, tendo como observador o Pão de Açúcar, até a
extasiante visão da placa com o número quarenta e dois. Fui saudado, nesse curto, mas
emocionante quinhão de 195 metros, pelo casal de amigos campineiros, ele também
tendo finalizado a metade do caminho, embora tenha muitos completos no extenso
currículo. Pela querida família anfitriã, rostos amigos e transmitindo vibração e alegria
pela minha passagem. A mesma que também me deram meus amigos com quem tinha
ido até a cidade, e que agora me esperavam pacientemente, já que ele também chegara
há tempos ao final de sua prova de 21k.

O resultado final realmente não acabaria sendo o esperado, a queda de


rendimento a partir do km 35 tinha sido significativa e bastante prejudicial. Mas as
4h34min (e trinta e oito no tempo oficial, incluindo a parada no banheiro químico)
eram, com treze minutos de folga, meu novo recorde pessoal. Dezesseis a menos que o
mesmo percurso dois anos antes. Quarenta e três abaixo do pior tempo, nas areias.
Independente desses números, entretanto, a alegria maior residia em ter superado a dura
derrota sofrida dois meses antes, quando a dor da contusão havia estragado todos os
planos. A sensação era a de finalmente ter conseguido encaixar uma maratona. Seja lá o
que aquilo significasse. Talvez quisesse dizer algo bem simples: aprendizado. Que eu
levaria para todas as outras provas que fizesse depois dessa ou de qualquer outra
distância. E também para a vida.
Capítulo 16
“Cassetadas” e cacetadas

Algo que nunca faltou em minhas corridas foi diversão. Por não ser um corredor
competitivo, não almejar pódios ou grandes conquistas, por ter como único adversário
eu mesmo, no máximo meu próprio relógio, sempre corri por lazer. Dizem meus
colegas mais “sangue no zóio” que não conseguem lembrar de nada durante as provas,
ficando surpresos com a quantidade de detalhes que consigo visualizar e lembrar depois,
na hora de transformar em texto cada corrida disputada.

“Causos” de corredor, assim como os de pescador, são muitos. Sozinhos, eles


certamente já encheriam um livro inteiro. Vale lembrar, no entanto, de alguns mais
inusitados ou engraçados, que entrariam para o meu folclore pessoal e, embora nem
sempre fossem assim tão divertidos na hora, trariam boas gargalhadas ao serem
relembrados. O passado sempre parece melhor do que realmente foi.

Logo numa das minhas primeiras corridas, um revezamento em Taubaté que


corri sozinho, embora ele permitisse a participação de grupos com até quatro corredores,
surgiu a primeira galhofa. Por se tratarem de quatro voltas idênticas com 2,5 km cada,
totalizando a distância de 10 km do trajeto completo, os corredores individuais tinham
de passar três vezes pelo ponto de retorno e início da volta seguinte, antes da chegada.
Na primeira volta, os staffs, mal orientados, avisaram que o retorno era num lugar,
quando na verdade, era em outro bem mais adiante. Não quis trapacear, mas acabei
cortando caminho sem querer, enganado pela informação incorreta de quem deveria
justamente fiscalizar isso. Foi só na primeira vez. A partir do final da segunda volta, fiz
o retorno no local correto, como deveria ser. Ganhei alguns segundos, talvez quinze ou
vinte. E por pouco não fiz, com isso, meu primeiro tempo sub-50’ na distância. Ficaria
com a consciência pesada se isso acontecesse? Talvez, muito embora a culpa não fosse
minha. Em algumas outras corridas futuras, o “roubo” seria contra mim, vendo
resultados evidentemente errados sendo publicados e me afanando recordes pessoais ou
tempos significativos. O fato é que, de caso pensado, jamais faria uso de subterfúgios
como esse para burlar regulamentos ou obter quaisquer vantagens. E não sei como
dormem as pessoas que têm esse tipo de atitude. Ter um troféu imerecido na estante
talvez seja uma espécie de castigo, que faça relembrar a desonestidade que ele
representa. Jamais vou querer isso para mim. Já cruzei linhas de chegada sem completar
a distância prevista, como menciono aqui, inclusive, mas nunca deliberadamente.

Dos cinco sentidos, o meu mais aflorado é o olfato. Não tenho maiores
problemas em ver, ouvir, tocar ou degustar, mas qualquer cheiro mais forte acaba
comigo. E tive, em algumas das muitas corridas que disputei, o azar de me deparar com
fontes de odores nada agradáveis. Não só antes, nos lamentáveis, mas necessários
banheiros químicos, mas também durante as provas. Duas foram as piores situações. A
primeira delas, na minha primeira participação numa corrida também em Taubaté, que a
partir do ano seguinte mudaria para um bonito (e cheiroso) parque municipal. O trajeto
escolhido pelos organizadores passaria por uma espécie de pasto. Até aí, nada demais,
os animais não estavam lá. Mas tinham deixado lembranças. As piores possíveis. Passar
por aquele verdadeiro “campo minado” foi uma tortura em distância. Quebrou
totalmente o ritmo e me obrigou a interromper a corrida para conter uma ânsia de
vômito. Tem gente que até diz que gosta do tal “cheirinho de roça”. Deus me livre! Sou
mais fumaça de escapamento...

E de se bicho é ruim, pior mesmo é de gente. Na minha segunda maratona


carioca, tudo lindo e maravilhoso de se ver. O cenário é deslumbrante, seja pelo mar,
pela montanha, pela arquitetura, pelas praias ou frequentadoras delas. Mas o cheirinho,
que loucura! Uma torrente de esgoto a céu aberto, nas proximidades da subida da
Niemeyer, escorria e era uma fedentina só. Com as narinas bem abertas pelo esforço, só
faltando mesmo usar aquele dilatador nasal comum nas corridas, o bodum parecia ainda
mais amplificado. Foi difícil subir a longa ladeira, desafio maior da prova. Mas acho
que o fiz até mais rápido do que planejava.

Não sei se é regra da confederação nacional de atletismo ou só excesso de


estabelecimentos, regidos pela milenar lei da oferta e da procura. Mas o fato é que não
há, sobretudo nas corridas do interior, percurso de prova que não passe pela porta de um
botequim aberto, mesmo nos horários matinais em que as corridas costumam ocorrer.
Perdi a conta da quantidade de “pés-de-cana” com quem falei, na maior parte das vezes
levando na base do bom humor, durante corridas. Ouvi provocações, como “emagrecer
é bom”, respondendo que parar de beber também era. Escutei até incentivos de uns
bebuns mais gente fina. Mas engraçado mesmo foi aquele que não se conformou de me
ver correndo, fora do padrão do atleta clássico, e cismou que podia correr mais do que
eu. Largou o copo de cachaça na mesa e disparou atrás de mim. Ultrapassou e contou
vantagem por isso, mas a fanfarronice durou pouco. Aguentou uma reta de cem metros,
se muito. Deu medo de desabar morto ali mesmo, coitado. Resignado, parou,
resmungou algo ininteligível e reconheceu a derrota. Quem dera trocasse, como fiz, um
vício pelo outro, bem mais saudável. Crianças na rua, durante meus treinos, costumam
fazer o mesmo, muitas vezes só mesmo pela graça de acompanhar por alguns metros e
depois ver que não dá pra correr comigo por quilômetros a fio. Isso não me incomoda,
muito pelo contrário. Mesmo não sendo nenhum exemplo de nada, posso estar, de
alguma maneira, até influenciando alguém a começar a correr também.

Uma das mais difíceis e divertidas corridas de todos os tempos foi a primeira e
única edição de uma prova que fiz na cidade vizinha de Jacareí. Atrasou uma
barbaridade, largamos depois das 11 horas da manhã e, olha, quase não deixam
acontecer (faltava ambulância ou autorização do departamento de trânsito, sei lá, o
maior bafafá). O percurso era porreta, cheio de "costelas", aquelas subidas e descidas
intermináveis. A temperatura subiu pra mais de 30ºC e faltou água, esgotada pelos
corredores do pelotão da frente, obrigando uma dona de casa caridosa a nos socorrer
com uma providencial mangueira de jardim. Parei no meio do percurso pra telefonar
para a Janete, senão ia ter problema em casa, pois já passava do meio-dia. Corri os 8,5
km (alterados na hora) com tempo de 10 km, fui resgatado por então novos, hoje
grandes amigos, no finalzinho. Na chegada, ganhei de outro companheiro uma garrafa e
despejei chá gelado na cabeça, achando que era água. E, no final de tudo isso, ainda
recebi meu primeiro troféu, providenciado pelos organizadores no lugar da tradicional
medalha. Quem quisesse, podia ridicularizar, mas, mesmo sendo só de participação, deu
o maior gosto de ganhar. Acho que foi merecido.
*

Também em Jacareí, numa corrida da qual poucos ficaram sabendo, apenas vinte
pessoas apareceram para participar, boa parte desses, integrantes do meu círculo de
amizades. A mais simples entre as muitas provas simples que eu correria nessa hoje já
extensa trajetória como esportista. O detalhe mais exótico é que sequer números de
peito, usados para identificação dos corredores, tinham sido confeccionados para o
evento. Um dos organizadores pegou a lista preenchida na hora e foi fazendo uma
espécie de chamada, informando na hora o número de cada corredor. Foi o primeiro e
único “número de peito oral” de todas as minhas corridas. A prova foi curtíssima, teve
pouco mais de dois quilômetros, a menor do meu currículo também neste quesito. E eu
tive a breve ilusão de faturar um troféu nela, já que existiam quinze unidades dele sobre
a mesa e eu ficaria em 14º lugar no geral. Pelo tamanho e inclinação da pirambeira
pouco antes da chegada, até merecia. Mas arrumariam uma corrida infantil para logo
depois da nossa, destinando meia dúzia dos “canecos” para a petizada, deixando para os
adultos apenas nove prêmios. Sairia de mão abanando. Para completar os detalhes
cômicos, a chegada da prova aconteceria não num pórtico com cronômetro e tapete, e
não também num risco no chão, como nas mais singelas. Mas no balcão de um bar,
também usado como concentração do evento (e ponto de “hidratação” pós-prova). Só
rindo. Quem só corre provas fashion com lounge e quickmassage nos grandes centros
deve sempre se horrorizar com as minhas histórias...

Esse escapou por pouco

*
Quando ouvi falar, logo me interessei. Apesar de nunca ter sido fã de subidas,
evitá-las, inconscientemente ou não, nos treinos e sofrer com elas nas provas, fiquei
bastante empolgado com a ideia de correr nas escadarias de um edifício. Não qualquer
um, nada menos que o quarto mais alto da cidade de São Paulo, sede de uma
multinacional do ramo alimentício. 31 andares, 142 metros, 765 degraus, números
expressivos e que abriram o apetite de muitos corredores. A procura foi grande; as
vagas, poucas. E foi necessário, pela primeira vez em minha história como corredor,
participar de uma espécie de “vestibular”. Selecionariam, entre os candidatos, aqueles
com mais bagagem. Por sorte, àquela altura, eu estaria entre estes, já carregava nas
costas quatro anos de provas, muitas meias e algumas maratonas. Mas o anúncio dos
escolhidos seria tão em cima da hora que mal daria tempo para conseguir o requerido
atestado médico, quanto mais treinar num ambiente que simulasse minimamente o
desafio. Cheguei à base totalmente cru, assustado com o tamanho e a imponência do
gigante e me perguntando, mais uma vez, o que estava fazendo ali. Estava me
divertindo. Para tornar a coisa ainda mais especial, fiz parte da primeira bateria, o grupo
de vinte e poucos estreantes no novo esporte (sim, não tem nada a ver com uma corrida
normal) que correu antes de todos os demais. Disparei na reta do hall de entrada do
prédio, mas bastou ganhar as escadas, de uma alvura e estreiteza impressionantes, para
cair na real. Subi os primeiros cinco ou seis andares com todo fôlego, mas cheguei ao
décimo segundo já pedindo o penico. A partir dali, foi mescla de trote e caminhada. Lá
pelo vigésimo sexto, parecia escalada em montanha, o ar se rarefez, ficou difícil até
andar. Se não fosse o corrimão, não dava nem para terminar. A última placa surgiu,
avisando que eu tinha conseguido. E, no terraço, uma faixa estendida pelos staffs, para
ser rompida com o peito, me deu a sensação momentânea de ser um campeão. Fui o
penúltimo da bateria, fiquei quase no rodapé da lista de classificação final, deixando
menos de sessenta dos 244 concluintes para trás. Mas me diverti como poucas vezes.
Fui assistido pela Janete, sempre presente nos meus grandes momentos, através de um
telão colocado do lado de fora do prédio. E ganhei uma história bacana, mais uma, para
contar.
O tamanho da encrenca

E haveria também uma outra prova totalmente diferente do padrão e de tudo que
eu havia feito até então nas ruas. E para a qual também seria chamado de surpresa,
convocado de última hora, para substituir o amigo regularmente inscrito que não
poderia comparecer, com viagem e maratona no exterior marcadas. Corridas de
montanha são lindas nas fotos, propositalmente marcadas para o final de tarde, para
torná-las ainda mais encantadoras. Mas, na prática, a coisa fica feia. Ainda mais para
quem não está preparado para elas. E mais ainda para quem pega, logo de cara, uma
distância acima inclusive das comumente usadas para as etapas do campeonato da
modalidade. Os iniciantes correm 6 km. A minha inscrição era para 18!
Não se engane com o “asseio” da chegada

Como não sou de fugir da raia, topei o desafio. Mas, meio temeroso, adaptei
minha semana de treinos, reduzindo a carga e a intensidade. Fui junto com o xará
corredor representar o outro xará, ausente. O despreparo ficou claro logo nos primeiros
quilômetros, já em subida, em direção ao ponto mais alto da já elevada cidade de
Campos do Jordão, onde tudo começara, cinco anos antes. Foi impossível não caminhar
naquela inclinação. Mas a coisa ficaria divertida mesmo no off-road. O cenário era
deslumbrante, de extasiar. As montanhas, as bonitas casas de temporada, a vista da
célebre pedra na vizinha São Bento do Sapucaí, tudo era de tirar o fôlego. As rampas,
então, nem se fala. Havia umas que as motos dos batedores tinham dificuldade para
galgar. No que dividiram o grupo entre os que iam fazer metade do trajeto e o inteiro, eu
quase fingi que errei o caminho. Mas segui adiante. Não me arrependi. A coisa ficou
ainda mais difícil, mas o downhill seria, mesmo meio perigoso, alucinante. Escorreguei,
caí na trilha estreita, afundei o pé no barro, torci o tornozelo mil vezes. Ri à beça. Desci
o morro da ida a milhão, enfrentando cãibras que só vira acima dos trinta quilômetros
rodados. E concluí outra vez lá na rabeira, deixando apenas quinze nomes depois do
meu na lista final. Não importava. Ralado, sujo e dolorido, mas feliz, mais uma vez ao
lado de meu filho na chegada. Ganhando uma insígnia virtual que me permitiria, se
futuramente quisesse (e certamente vou querer), partir para outras provas do gênero. E
uma engrossada a mais na casca.

Tombos, capotes e escorregões não seriam lá uma constante em minhas muitas


aventuras “corrísticas” por aí. Em treinos, apesar de na maior parte das vezes fazê-los
no período noturno, em plena escuridão, lembro-me de ter sofrido apenas dois (nenhum
mais sério, só uns arranhões mesmo) e evitado alguns outros, recuperando o equilíbrio
depois do tropicão. Em provas, tirando a descida da montanha citada anteriormente,
nunca havia “catado cavaco”, sempre me mantendo em pé, mesmo em superfícies
escorregadias e manhãs chuvosas. Mas houve um dia em que isso simplesmente não foi
possível. Já tinha feito os 21 km em trilha duas outras vezes na cidade de Ribeirão Pires.
Uma no percurso clássico, mas numa semana de tempo um pouco mais seco, fugindo do
lodaçal. E outra numa semana tão chuvosa que obrigara os organizadores a tomarem a
decisão de “urbanizar” a prova, mantendo apenas amostras de barro num trajeto
desafiador, com muitas subidas, mas bem mais higiênico.

Na edição 2011, entretanto, o bom senso do ano anterior se dissiparia, fato


causado talvez pelas reclamações dos próprios corredores, os mais conservadores, que
não gostaram de ver o evento descaracterizado. A Trilheira voltaria a ser trilheira. Mais
trilheira do que precisava, aliás. Nos primeiros quilômetros foi divertido. Depois, foi
ficando complicado. O primeiro tombo seria bobo e engraçado. Ri com quem vinha
junto. Lavei as mãos com o copo do posto de hidratação e prossegui. O segundo seria
perigoso. Atolei o pé na lama, quase perdi o tênis, tendo de resgatá-lo com uma
“escavadeira manual” improvisada. E fiquei por um triz para arrumar uma torção mais
séria, de joelho ou tornozelo. O terceiro seria o mais ridículo. Desequilibrado pelo chão
com zero de atrito, trancei as pernas e cai de “popozão”. Sorte que os fotógrafos oficiais
estavam mal posicionados. Ver isso publicado nos sites de imagens daria uma
vergonha... Seria uma prova impossível de correr, onde mesmo as maiores feras veriam
seus tempos ganharem vários minutos a mais. Mas teria gente dizendo sem parar que
tinha sido a melhor do ano também. Não era o meu caso, mas só de terminar inteiro, já
tinha motivo para estar contente. Quedas fazem parte de qualquer aprendizado. Só quem
não gostou mesmo foi a cara-metade aqui em casa. O par de meias ficou lá mesmo na
cidade, era impossível voltar a tornar branco o que ficou marrom escuro. Mas o tênis era
seminovo, dava dó de descartar assim. Deu o maior trabalho para “ressuscitar” o
danado.

Se houve dias em que o corredor fora dos padrões típicos chamou a atenção pelo
jeito desengonçado, teve também um ou outro em que elogios, sinceros ou não, foram
ouvidos. Quase todos não levados a sério, porque tenho discernimento e
autoconhecimento o bastante para saber quem sou.

Teve aquela noite da corrida na terra da padroeira, em que bati o meu recorde
dos 10 km, mesmo que o percurso ficasse devendo metros para oficializar isso. E em
que ouvi da plateia, num trecho onde começava a me recuperar da subida do viaduto e
reencontrar a passada ideal, referências elogiosas ao meu bonito porte como corredor.
Se foi piada, não sei bem, mas agradou aos ouvidos, deu um gás a mais para a chegada.
Teve a menina boazinha (e bem mal informada!) em Perdões, que me garantiu que
estava torcendo para que eu ganhasse a prova. Teve a moçoila de Taubaté que, claro,
nem reparei se era bonita ou não (não sou doido!), elogiando a anatomia daquelas que
me impulsionavam na corrida, fez recordar um tempo nem tão remoto assim, aquele do
adolescente de corpo quase atlético e feições quase belas, que chamava a atenção por
onde passava. Que eu transformaria, por alguns anos, em um saco de preguiça, gordura
e baforadas. Mas que, felizmente, pude resgatar, já na maturidade, fazendo bem não só
para a saúde, mas também para a autoestima. Teve até o rapaz na Avenida Paulista que
murmurou quase a mesma coisa que a moça durante aquele treino simulado noturno da
São Silvestre e, pior, bem na frente de um amigo que vinha comigo. Bem, esse também
nem precisava ter, não é? Gozação na certa. Teve, enfim, muita coisa engraçada,
inusitada, ridícula ou tudo junto. Porque corrida é isso também: diversão.
Capítulo 17
Companheiros de batalhas

Se há algo que a corrida me trouxe em abundância, além de saúde e alegria, isso


atende pelo nome de amigos. É curioso que um esporte individual, exceto pelos
revezamentos; e solitário em sua essência, possa proporcionar tantas boas amizades,
calcadas em valores sólidos e nobres, que tanta falta fazem fora deste meio. Há
competitividade? Sim, nas ruas e pistas, somos uns contra os outros, estamos lá também
para ganhar, chegar na frente dos adversários, poder bater no peito e dizer “hoje eu
ganhei dele”. Mas há também companheirismo, solidariedade, senso de justiça,
benemerência, caridade e gratidão. É um espaço onde não há ricos ou pobres, negros ou
brancos, carolas ou ateus, palmeirenses ou corintianos, senhores de engenho ou
bolcheviques, nerds ou limítrofes. Na corrida, somos todos corredores, pura e
simplesmente. E podemos todos ser amigos. Só não somos se realmente não quisermos.

Eu quis e fiz muitos companheiros, que aprendi a respeitar e admirar. Gente de


todas as idades, “moleques”, “vovôs” e contemporâneos, com os quais aprendo muito,
independente da data da certidão de nascimento. De tantos lugares diferentes, uns que
estão comigo regularmente, com quem falo quase todos os dias, treino costumeiramente
ou que encontro em todas as corridas que faço. Mas também gente de longe, que vejo só
de vez em quando, uma ou até “meia vez” por ano, só mesmo em ocasiões muito
especiais, aquelas típicas viagens de corredor, cuja parte de lazer é toda feita a pé. Mas,
nem por isso, menos amigos, já que a distância também aproxima e faz de cada
reencontro uma verdadeira recarga na bateria da amizade.

Há também aqueles que encontrei através dos meus escritos, que se depararam
em algum momento com um texto meu sobre determinada corrida, pararam para ler e se
interessaram, apesar do estilo mezzo drama, mezzo realismo fantástico do autor.
Tiveram a curiosidade de me conhecer pessoalmente, depois de já saberem muito sobre
mim. E se tornaram meus grandes amigos, de frequentar casa, de ir ao aniversário dos
respectivos filhos (ou netos, que ainda não tenho), de atividades extraesportivas, enfim.
Gente que a corrida aproximou, mas que teve empatia tão grande, que a amizade passou
a transcender a origem. Mesmo se um dia pararmos de correr, o que espero que nunca
aconteça, acredito que seguiremos sendo amigos.

Existem também os que não têm muita paciência para aturar meus longos e
melosos textos, mas mesmo assim são amigos sempre presentes. A leitura, sempre
disse, é opcional. Leitores ou não, o importante é estarmos juntos, nas corridas e nos
treinos. Como há aqueles que não precisam me aguentar ao vivo e em cores, só mesmo
pela tela do computador, o que facilita um pouco o convívio. Gente que eu nunca vi e
que talvez nem reconheceria se visse, péssimo fisionomista que sou, mas que criou
vínculos muito importantes comigo. Pessoas com quem troco palavras de apoio e
incentivo mútuos, que aconselho quando acho que devo ou que escuto respeitosamente,
quando sei que têm toda a razão.

Há os que já eram amigos de outros meios, de escola, de trabalho, de serviço


militar, de vizinhança, de noitadas, de qualquer lugar, mas que a corrida reaproximou,
reatou laços de amizade, fez retomar a história de onde ela havia parado. Reencontrar
um amigo é achar o “X” do mapa do tesouro duas vezes.
Tem os que fazem parte da minha equipe, os inigualáveis “malucos do asfalto”,
uma segunda família, uniformizada (mas não muito, já que nem cor oficial conseguimos
ter). Um grupo que cresce em quantidade e qualidade, agregando cada vez mais pessoas,
atletas valorosos e seus familiares, mas sobretudo, gente sintonizada com os nossos
ideais de amor ao esporte, do gosto (bem) acima da média por acordar cedo, muito cedo,
nas manhãs de domingo e encarar as corridas onde quer que elas aconteçam. Porque
correr é praticar esporte, é competir, é disputar, ganhar ou perder prêmios vultosos ou
simplesmente medalhas de participação, mas é também estar entre amigos, sentir-se
acolhido entre aqueles que têm o mesmo interesse em comum. É estar conosco na nossa
tenda, humilde, talvez uma das mais simples que exista, entre os modelos bem mais
suntuosos das assessorias ou grandes grupos. Mas certamente também uma das mais
animadas, onde sempre há um café, um suco ou refrigerante, um lanche, uma torta da
Janete, uns salgadinhos ou sanduíches da minha tia e madrinha, umas frutas, mas muito
mais importante que isso, há sempre palavras amigas e carinhosas, que nos fazem sentir
em pleno seio familiar.

Tem também os que não vestem o mesmo uniforme, mas por mera formalidade,
porque são tão identificados comigo e com o meu grupo que parecem fazer mais parte
dele do que alguns dos próprios integrantes. Amigos que partilham e difundem as
minhas ideias e que me ajudaram sempre a transformar em realidade os meus projetos
esportivos. E que incentivo a também realizarem os seus. Que, junto comigo,
proporcionaram à comunidade corredora da cidade e da região muitos momentos
memoráveis, quem viveu sabe bem do que falo. E que, tenho certeza, vão continuar
“tramando”, pois são marcados por essa mesma boa inquietude que também faz parte de
mim.

Existem aqueles que me ajudaram em muitos momentos. Que me estenderam a


mão nas dificuldades, que me permitiram estar em lugares ou situações que eu
provavelmente não conseguiria sozinho. Que me apoiaram desde sempre, que foram
extremamente generosos, de tal maneira que fica até difícil resgatar a dívida. Que por
mais que eu tente retribuir, sempre estarei em débito. Coisas palpáveis, mas também, e
principalmente, muitas que não podem ser contabilizadas. Gestos e palavras que me
marcaram para sempre. Gente que me fez voltar a acreditar no ser humano e até mesmo
na bondade inata da espécie, tão esquecida que parece em extinção.

Existem, enfim, inúmeras pessoas, a quem tanto quero bem. Que optei, depois de
muito pensar, por não citar nominalmente, pois certamente deixaria de mencionar, por
injusto e imperdoável esquecimento, alguns muito importantes. Mas que tenho certeza
de que se reconhecerão de alguma forma, nas palavras deste capítulo, enquadrados em
um, mais de um ou até em todos os parágrafos dele. A todos vocês, estimados amigos e
amigas, companheiros de esporte e de batalhas pelas pistas do mundo, o meu forte e
sincero abraço e a minha singela homenagem. E o meu agradecimento, do fundo do
coração, por vocês existirem e fazerem parte da minha vida e história.
Capítulo 18
Semeando o futuro

Aprendi muitas coisas com meu pai, um simples, honesto e generoso balconista
de farmácia, que trabalha desde os oito anos de idade e segue na ativa aos quase setenta;
e também com minha mãe, uma dona de casa que resolveu, depois de muitos anos e dos
três filhos crescidos, voltar a trabalhar e encontrou alegria em prestar um humilde
serviço como servente de escola. Foram tantas as lições, mesmo que nem todas tenham
sido passadas de forma clara, que ficaria impossível enumerar, por mais páginas que
este livro pudesse ter. Mas uma talvez seja a mais fundamental entre todas. O sentido de
família, o simplesmente estar junto, o compartilhar o pão, mas também o tempo, o ser
em detrimento ao ter. A ciência de que laços familiares, por si só, nada significam. Mas
que a convivência, nos bons e também nos maus momentos, é que os reforçam e os
tornam indissolúveis e indestrutíveis.

Adulto, me uni a uma pessoa com essa mesma forma de pensar e de agir. Janete
passou por momentos difíceis na vida, teve uma infância com muitas restrições e com a
responsabilidade desproporcional de cuidar dos irmãos mais novos. Só conseguiu
começar a estudar já com bem mais idade e formou-se professora com um esforço e
uma dedicação sobrenaturais, pois tudo competia contra isso. Mas aprendeu também
com seus pais que a união da família é o que faz superar adversários que seriam
impossíveis de vencer sozinho.

Juntos, eu e ela enfrentamos uma árdua luta para que pudéssemos ter o nosso
filho. Foram quatro tentativas anteriores, todas sem sucesso. Abortos espontâneos, logo
nos primeiros meses de gestação. E até mesmo uma gravidez tubária, um caso raro em
que o embrião se aloja numa das trompas e requer uma intervenção cirúrgica de
emergência. Foram anos de alegrias fugazes, logo seguidas de tristeza e decepção. E de
muitas incertezas. A quinta tentativa, depois de um longo e complicado tratamento com
uma geneticista, também parecia fadada ao fracasso. Sequer começávamos a montar o
enxoval do bebê, pois a sensação da perda iminente não nos permitia sequer fazer
planos concretos.

Mas não. O quinto elemento era um pequeno guerreiro bem mais forte que os
demais e demonstrou isso desde cedo. Obrigou a mãe a um repouso absoluto que durou
oito meses, já que as condições especiais obrigariam a um arriscado parto prematuro,
mas fez tudo parecer diferente, resistindo a tudo e ultrapassando barreiras até então
intransponíveis. No quinto mês, uma ameaça de descolamento de placenta quase botaria
tudo a perder, nos deixaria mais uma vez atônitos e apreensivos. Fé é coisa particular de
cada um, não é objetivo meu e nem do que escrevo impor (ou mesmo expor) a minha ou
a da minha família. Mas, para nós, ela fez toda a diferença naquele dia. Três meses
depois, Eduardo viria ao mundo cheio de saúde, surpreendendo quem esperava que ele
tivesse de ir direto da sala de parto para a UTI neonatal, dando uma senhora “mijada” na
enfermeira e mudando para sempre as nossas vidas.
A pequena família

Não há muitas coisas de que me orgulho na vida, mas uma delas certamente é de
meu filho nunca ter me visto fumar. Parei, felizmente, com essa estupidez dois anos
antes de ele nascer. Correr, entretanto, seria algo que ele me veria tantas vezes fazer que
passaria a associar automaticamente a algo natural, que faz parte da vida, coisa trivial
como almoçar, tomar banho, escovar os dentes ou mesmo respirar. Desde muito cedo,
Janete e eu já o levávamos para o ambiente das corridas. Ele cresceria vendo-me
participar das provas, torcendo por mim, estando presente sempre que possível (de
preferência nas provas realizadas nos meses menos frios, para evitar as malditas gripes
da estação). Maiorzinho, passaria a chamar pelo nome cada um dos meus amigos
corredores. Ganharia uma camiseta personalizada da equipe, seria um “maluquinho do
asfalto”. Apareceria paramentado, com número de peito e tudo, ficando todo bacana nas
fotos. Faria treinos comigo, claro, coisas lúdicas, divertidas, no sentido de brincadeiras,
sem sobrecarregá-lo com algo desproporcional à sua tenra idade. Mas o guri mostraria
desenvoltura e resistência. Uma vez, na mesma pista do centro poliesportivo da minha
infância, dispararia e faria, por conta própria, duas voltas e meia, completando um
quilômetro de corrida, com três pra quatro anos de idade. Faltava só mesmo ter a
oportunidade de fazer uma corrida de verdade, só dele.
Vida de pai é correr atrás

A dificuldade maior era a falta de eventos locais. Mesmo nos grandes centros, as
corridas infantis não são tão comuns, embora até existam, fazendo pais corujas ficarem
horas postados esperando suas crias correrem por alguns segundos na pista. Na nossa
cidade e região, a criançada ficava praticamente sem opções. Tivemos, para finalmente
conseguir que ele participasse de sua primeira corrida, de ir até o sul de Minas Gerais,
na cidade próxima de Sapucaí-Mirim, onde a prova adulta aconteceria pela manhã e as
infantis, mais tarde, após o almoço.

A expectativa era grande, não só a do pequeno corredor, mas também a de toda a


família presente. A comitiva contava, além dos pais, com a avó paterna e os meus tios
caminhantes e membros permanentes da nossa equipe de apoio. Deu o que fazer para
explicar que de manhã ainda não era a vez dele. Até uma da tarde, foram muitos “é
agora?”.

Mas enfim chegaria a hora. Ele, inscrito na categoria de até seis anos (tinha
cinco), ficaria logo numa das primeiras baterias, com as crianças menores. Os maiores,
até doze anos, aguardavam sua vez. Primeiro largaram as meninas, só depois os
meninos. A mãe se posicionou na largada, eu fui aguardar na chegada. O tumulto foi
meio grande, a aglomeração de gente querendo assistir e fotografar me impediu de ver
direito. Foram apenas cem metros, mas de uma emoção inenarrável. A carinha de
felicidade dele, durante aqueles poucos instantes, valeu por todos aqueles anos de luta
para transformar a minha vida. Para me livrar do vício do tabagismo, da doença da
obesidade, de achar que trabalho é tudo na vida, dos males do estresse e da hipertensão
arterial, do caminho que certamente me levaria a uma morte precoce ou ao sofrimento
de uma vida com as limitações de um cardiopata ou uma vítima de derrame cerebral.
Ele estava ali porque eu o inspirara. Porque fora capaz de vencer inimigos poderosos e
tomar o controle, as rédeas da minha vida. Porque escolhera viver, correr, ser feliz e ter
uma família.

Um pai, um filho, um esporte

Eduardo seria apenas o sétimo colocado em sua bateria, entre nove crianças
participantes. Tal como seu pai, talvez não tivesse qualquer grande talento ou
predisposição genética para brilhar neste esporte. Não levaria troféu, mas parecia um
veterano, ostentando com muito orgulho e alegria a medalha em seu peito, gesto que
tinha tantas vezes me visto repetir. Quando ele me perguntou se havia ganhado a
corrida, como é que eu poderia responder que não?

O resto seria com ele, mas um caminho estava apontado. Uma semente estava plantada
em seu coração.

Você também pode gostar