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Os “maus costumes”

de Foucault
Durval Muniz de Albuquerque Júnior
História e filosofia: uma
relação em conflito?
A filosofia contemporânea, sobretudo francesa, após o maio de
1968: um “levante de gafanhotos” e suas repercussões no
mundo intelectual.

A quebra com o formalismo marxista - o que já vinha


acontecendo em outros espaços, como a Grã-Bretanha, com a
new left e a história social britânica.

Louis Althusser: a referência com a qual se estabeleciam


rupturas em busca de outros paradigmas intelectuais e outras
referências.
Nietzsche e a história: por
que pensar suas
ressonâncias?
Na ruptura com os padrões intelectuais que o marxismo
ortodoxo propunha, jovens estudantes e professores
buscavam novas referências.

Nietzsche, a “gaia ciência” e a busca por outras


possibilidades para o conhecimento afetam jovens filósofos
como Michel Foucault e Gilles Deleuze.

Considerado um “maldito” pelos historicistas em seu


tempo, tido como bases para o nazismo pelas leituras
desonestas de sua irmã, Nietzsche e suas “considerações
intempestivas sobre a história” servem de modelo para
outros debates.
É correto chamar Foucault e Deleuze
de “pós-modernos”?
Diferente do que pensam alguns intelectuais - inclusive historiadores
como Ciro Flamarion Cardoso - “pós-modernidade” não é um adjetivo que
designa uma concepção teórico-metodológica.

Pós-modernidade significa uma condição histórica de existência. Ou seja,


o “pós-moderno”, para quem concorda com esse conceito, seria a pessoa
que se encontra na pós-modernidade, nessa temporalidade histórica.

Foucault e Deleuze não tratam do conceito de “pós-modernidade”. Esse


conceito sequer aparece em suas obras. Eles só seriam “pós-modernos” se
os considerarmos como parte desse tempo histórico.
Durval Muniz e Michel Foucault: por
que o interesse do primeiro na obra
do segundo?
O encontro de Durval com a obra de Foucault: o mestrado na
UNICAMP e a recepção de Foucault pela Igreja Católica (PUC-SP e
PUC-RJ) e sua conexão com a obra de Thompson nos primeiros
anos de sua leitura na oficina historiográfica de Campinas.

Foucault para o Durval historiador: inspiração para a


desnaturalização da realidade, a percepção das coisas
como “criadas” e não como “dadas” e seu desdobramento
em “A invenção do Nordeste e outras artes” (1994).

Foucault para o Durval como sujeito: inspiração para a


percepção de si, a discussão sobre a sexualidade, o gosto
pela provocação, pelo incômodo, pela ironia, pelo
descentramento.
Durval Muniz e Michel Foucault: por
que o interesse do primeiro na obra
do segundo?
Ao trazer Foucault para suas aulas e pesquisas, Durval foi
acusado de “modismo intelectual” e de “despolitizar o
debate historiográfico” por apresentar perspectivas que
se ligavam ao pós-estruturalismo e descentravam a
discussão vigente.

Apresenta Foucault como uma “moda que incomoda” e


com a qual a academia precisaria se acostumar.

Em alguns momentos do texto, ao falar de Foucault,


Durval parece falar um pouco de si mesmo, daquilo que,
em sua trajetória pessoal e intelectual, foi dito como um
“mau costume”.
Ele é um rapaz que parece gostar da solidão, que foge do
convívio com as outras pessoas. A presença dos outros
lhe parece ser um incômodo, que procura resolver usando
o seu humor e sua capacidade de ironizar. Zomba de todo
o mundo com uma ferocidade que o torna imediatamente
antipatizado.

Briga com os colegas, com quem se atraca em público.


Adora se exibir. É logo tido por maluco. Suas atitudes
bizarras chamam atenção e levam ao surgimento
daquele equívoco murmúrio que turva o ambiente em
volta de cada um. Um dia seu corpo indócil é encontrado
estendido no chão e ferido a navalhadas. E quando tenta
o suicídio, a maioria de seus colegas vê neste gesto a
confirmação de duas suspeitas: a de seu exótico fascínio
pela morte e a de seu precário equilíbrio psicológico.
Passa, então, a viver isolado numa enfermaria, onde se dedica apenas aos
estudos. Ainda se sucederão inúmeras tentativas ou encenações de
suicídio, bem como ainda será apanhado quase se transformando num
homicida, ao perseguir um colega, com um punhal nas mãos, pelos
corredores da escola onde estuda. Faz frequentes expedições noturnas
pelos pontos de encontro ou bares homossexuais. Parece, nestas ocasiões,
ser tomado por uma enorme culpa que o esmaga, que o prostra durante
horas, doente, aniquilado pela vergonha.
Na busca pelo conhecimento de si, Foucault se
interessou por psicanálise e psiquiatra e pelos
chamados “escritores da transgressão”: o
escritor Georges Bataille e sua reflexão sobre o
erotismo; o romancista Pierre Klosowski e sua
“teologia da carne”; o crítico literário Maurice
Blanchot e sua reflexão sobre o espaço literário
e as coisas inconfessáveis.

No interesse obsessivo pela figura do filósofo


louco e do saber sobre a loucura, marcado
pelas suas próprias experiências de internação
em hospitais psiquiátricos, Foucault conhece a
obra de Nietzsche sob o sol forte de uma praia
africana, levando-o a nunca abandonar o uso
do riso como uma arma nas lutas acadêmica,
políticas e pessoais, levando-o a ser visto como
figura difícil, irônica, insuportável.
Quando lhe falaram, pela primeira vez, da
existência de um “câncer que só atingia
homossexuais”, ele chegou a cair do sofá,
contorcendo-se num acesso de riso, dizendo
que era muito bonito para ser verdade.

Suspeita-se que tenha contraído AIDS


frequentando o que ele chamava "os
laboratórios de experimentação sexual de São
Francisco e Nova York".

Ele adorava orgias violentas em saunas. O


medo de ser reconhecido o impedia de
freqüentar as saunas parisienses. Mas, quando
partia para o seu seminário anual perto de São
Francisco, esbaldava-se nas inúmeras desta
cidade. Nelas os homossexuais de São
Francisco realizavam as fantasias mais
insensatas.
Mesmo após a epidemia de AIDS ter se
confirmado, ele volta de São Francisco
testemunhando que nunca houvera tanta gente
nestes lugares antes, que a ameaça que pairava
no ar criava novas cumplicidades, novas
ternuras, novas solidariedades; as pessoas se
falavam, definindo precisamente por que
estavam ali.

Quando morreu, Daniel Defert, o companheiro


com quem viveu durante vinte e cinco anos e
com quem mantinha um relacionamento aberto,
encontrou no armário do apartamento um grande
saco cheio de chicotes, de capuzes de couro, de
coleiras, de freios e de algemas.
Para traçar a biografia deste rapaz, poderíamos ter escolhido
outros traços marcantes seus: sua cabeça brilhante, tanto por
maquinar ideias originais como por ser completamente raspada,
sem um fio de cabelo, cabeça onde às vezes podiam se ver restos
de sangue, de um pequeno corte feito pela navalha; seus olhos
brilhantes; o beijo com que sempre se despedia de seus amigos; a
capa longa e às vezes puída com que desfilava pelas ruas de Paris;
a sua rotina de oito horas de leitura diária na Biblioteca Nacional
onde, às vezes, chegava a ler oito obras ao mesmo tempo; sua
presença constante em passeatas e manifestações, onde assinou
inúmeros manifestos e foi preso algumas vezes; sua solidariedade
com todos os discriminados, perseguidos, exilados; seu total
desprendimento das coisas materiais, tendo deixado, por
exemplo, de descontar inúmeros cheques de grande valor que
foram achados depois de sua morte, tendo dormido quase a vida
inteira num velho colchão jogado no chão; ou sua retórica
fulgurante que fascinava as plateias que se apinhavam para ouvir
suas aulas no College de France.
Parece que ouço aqui soar a sua última
grande gargalhada, aquela que foi ao ar
na televisão francesa no dia de sua
morte. Ele de terno e gravata,
literalmente torcendo-se de rir, quando
se esperava que se comportasse como
todo "sério" intelectual quando vai
dissertar sobre um tema da gravidade
da história dos costumes sexuais.

Com certeza desejou a fama e a perseguiu com todas


as suas forças, mas também desejou a infâmia, ou o
que chamou a falsa infâmia, aquela de que desfrutam
homens de pavor ou de escândalo, mas que são, de
fato, homens da lenda gloriosa, mesmo que as razões
desse renome sejam por inverter o que os "hipócritas
costumes" chamam de comportamentos desejáveis,
normais, naturais, morais. Mas o que mais desejou foi
o anonimato; seu nome cada vez mais se tornava um
pesadelo para ele, chegando a escrever textos sob
nome fictício.
Ao longo de sua vida intelectual e pessoa, Foucault rejeitou o
gesto biográfico, pois considerava a biografia um “nome de
morte”, que parecia definir quem era um sujeito, o que, para ele,
seguindo a lógica do Ecce Homo de Nietzsche, seria impossível.

A experiência de vida de Foucault, por sua complexidade, foge à


biografia em sua forma tradicional. É profundamente marcada
pelo gesto parresiasta, ou seja, pela parrésia, o desejo dos
antigos de lutar pela sua própria verdade. Essa verdade, para ele,
estava na busca pela realização dos desejos, na construção de
uma nova erótica.

Por isso, seus "maus costumes", que hoje podem ser descritos e
provocar escândalos, faziam parte do que ele chamava,
parafraseando os gregos, "uma estética da existência", ou seja, o
ato de transformar a própria vida em obra de arte.
É possível, a partir do pensamento de Michel
Foucault, escrever uma história dos costumes?

A temática dos costumes foi discutida por


diferentes historiadores sociais e culturais e
sociólogos, tai como os historiadores da terceira
geração dos Annales, ao escreverem textos para a
“História da vida privada”, E. P. Thompson em
seus “Costumes em comum” ou Norbert Elias e
seu “Processo civilizador”.

A obra de Foucault serviria para estudar a “polícia


dos costumes”, ou seja, os modos como a
sociedade moderna tentou enquadrar os
praticantes de “maus costumes”, tais como
loucos, doentes, prisioneiros, homossexuais,
hermafroditas.
A obra de Foucault pode ser material para se fazer
uma história de como costumes não enquadrados
foram policiados pela sociedade conservadora
brasileira em termos de ditadura.

Atitudes de cabeludos, garotos e garotas de


minissaias e miniblusas, corpos andróginos eram
cerceados por instituições tais como igreja,
família, Estado e imprensa.

Ao andar com seus longos cabelos pela cidade de


Teresina, personagens como Torquato Neto eram
abordados pela polícia e pessoas da sociedade civil
que se escandalizavam com seus “maus
costumes”.
“Por entender a prática do filósofo desta maneira é que, na vida,
Foucault se encaminhou, cada vez mais, no sentido de expressar, em
forma de práticas, o que estava presente em seu pensamento. Para ele,
a filosofia devia ser, não apenas, amizade pelo conhecimento, pelo
saber, mas um saber capaz de instaurar novas formas de amizade, de
amor, de afetos, de sentimentos. [...] Foi por isso que tracei, inicialmente,
neste texto, a imagem do Foucault infame, marginal, desregrado,
turbulento, tresloucado. Imagem que é apenas uma a serviço da
estratégia e economia deste texto; dele se poderia construir muitas
outras. Poderia se construir, principalmente, a imagem de alguém à
procura de novos amigos, amigos no pensamento e nas práticas. E foi
por amizade que escrevi este texto, amizade não por ele, a quem,
infelizmente, nunca conheci, mas por seu pensamento, por sua
historiografia, que já me permitiu fazer outras amizades, afetar e ser
afetado por outras pessoas e outras formas de conhecimento. Seu
pensamento continua sendo fundamental na construção de minha
historiografia e de minha história, na escrita de mim mesmo, dos meus
costumes e "maus costumes". E, faz parte dos meus "maus costumes",
lançar o seu pensamento como arma para a construção e desconstrução
de novos objetos historiográficos, como os costumes, o que faço aqui e
agora.”

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