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SOBRE ALGUMAS FUNGOES DA LITERATURA' ‘Conta « lenda, ¢ se nfo é verdade é bem bolada, que certa vez Stalin teria perguntado quantas divisdes tinha o papa. O que aconteceu nos decénios su- cessivos demo: ides so por certo importantes em determina- dascircunstancias, io avalidveis im aqueles que , como uma doutrina religiosa. E um poder material também o das razes quadradas, cuja lei severa sobre ce aos decretos, nfo 55 de S i também aquele da tradigh aos séculos iterdria, ou seja, do co ‘que a humanidade produziu e produz no para fins priticos (como mai sma —e que se excegio das obrigagbes es E verdade: cenearnam-se em veiculos que, de habito, sio de papel, Mas houve um tempo «em que s incosporavam na voz de quem recordava uma tradigio oral ou mes- _mo em pedra,e hoje discutimos sobre o futuro dos e-books, que permitiriam ina Comédia em uma tela de cristal bro de 2000, Depois em Sadi d eee aoe | aaa ‘UMBERTO ECO Uquido. Aviso logo que nao pretendo me deter esta noite na resata quasio do livro eletrOnico. Pertengo, naturalmente, aqueles que, um romance ou um pocma, preferem lélo em um volume de pape, do qual haverei de recordar até mesmo as orethas eo peso. Dizem, porém, que existe uma gerasao digital de hackers que, nunca tendo lido um livro na vida, com o e-book conheceram «¢ provaram agora, pla primeira vez, 0 Dorm Quivate. Quanto proveto para suas mentes e quanta perda para sua vista, Se as gerag6es fururas chegarem a ter uma boa relacdo (psicolégica ou fisica) com 0 ¢-book, o poder do Dom Quivote néo mudars, Para que serve este bem imateril que é a literatura? Bastaria responder, como jf fia, que & um bem que se consuma gratia su, ¢ portanto no deve servir para nada, Mas uma visio asim desencarnada do prazer literati corre © risco de reduair a literatura a0 jogging ou & pritica de palavras eruzadas — os gjuais, além do mais, server ambos para alguma coisa, ora8 sade do corpo, fora 3 educacio léxica. Pretendo falar, entéo, de uma série de fungies que a literatura assume para nossa vida individual e para a vida social ra mantém em exerciio, ances de tudo, a lingua como patriménio ingua, por definisio, vai aonde ela quer, nenhumm decreto do alto, ica nem por parte da academia, pode barrar © seu cami coletiv. ‘nem por parte da po tho e faxéla desviat-se para situagGes que se pretendam étimas. O fascismo esforgou-se para obrigar-nos a dizer mercita em vea de bar, coda di gallo em vex de cocktail, ereem verde goal, auto pubblica em vex dc tax," ea lingua néo lhe dou atengio. Depois sugeriu uma monstruosidadeléxica, um arcefsmo inacei- tivel como aurista"* no lugar de chauffeur, ea lingua aceitou. Talvez porque evitasse um som que italiano nfo conhece. Manteve xi, mas gradativamente, pelo menos na lingua flada, fez com que se transformasse em tas ‘Alfagua vai para onde quer, mas ésensvel 3s sugestes da literatura, Sem Dance néo haveria um italiano unificado, Quando Dante, em De vulgari eloquentia, analisa ¢ condena os vitios dialctosialianos e se propée forjar ‘um novo vulgar ilustte, ninguém apostaria em semelhante ato de soberbs, € FRaspecdvamente am tian tabera, tbo de gal, sede, aucoméve pablico, ON. de T) Mota WV, daT) e106 SOBRE A LITERATURA, no entanto ele ganhou, com a Coméalia,a sua partida, E verdade que, para se transformat em lingua falada por todos, © vulgar dantesco precsou de alguns tica. Tver seja por isso que Bossi nao fala um vulgar lustre." Vince anos de montes fata, destinos imarcesciveis, eventos imprescindt- vveis e arados que tragam seu sulco nao deixaram, por fim, nenhum trago no médio, que se difundiu através da tlevis3o, no esquesamos que o apelo a. um italiano médio, em sua forma mais nobre, passou através da prosa sem relevos aceitével de Manzoni e depois de Srevo ou de Moravia. ia identidade e comuni- ‘literatura, contribuindo para formar a lingua, dade. Falei antes de Dante, mas pensemos no que teria sem Hometo, a identidade alema sem a tradusio da Biblia feita por Lutero, a lingua russa sem Puchkin, ac Go indiana sem seus poemas fundadores. wento de uma linguagem neotelegrética «quesse esté impondo através do corrcio nico e das mensagens dos cclula- em que se diz ew tamo até com una sila; mas no esqueyamos que os jovens que enviam mensagens nesta nova estenografiz so, pelo menosem parte, ‘0s mesmos que enchem essas novas catedrais do livro que sio as grandes livra- Flas de muitos andares e que, mesmo que folheiem sem comprar, entram em contato com estilos literdros cultos ¢ claborados, aos quais seus pais, e certa- mente seus avés, sequer foram expostos. Podemos por certo dizer que, maioria em relagio aos cores das geragoes 15es de habitantes nto de pensar que as imensas multidges, sura poderia trazeralivio. Mas uma precedentes, estes jovens sio minoria em relasio aos sei do planeta; nem eu seria idealista a as quais faltam pio e remédios, a "inberto Be pendénca do Ligs Lombard, paride ee pes inde to pais € a criagdo de uma“ ee —— I UMBERTO ECO observagio eu gostaria de fazer: aqueles desgracados que, reunidos em bandos «em objetivos, matam jogando pedras dos viadutos ou ateando fogo 2 uma menina, sejam eles quem forem afinal, nio se transformaram no que so por- {que foram corrompidos pelo newrpeak do computador (nem a0 computador cles tém acesso), mas porque restam excluldos do universo do livro e dos luga- res onde, através da educacio ¢ da discussto, pode ‘de um mundo de valores que chega de e remete a livros. chegar até eles 08 ecos das obras literdrias nos obriga a um exercicio de fidelidade e de respeito na liberdade da interpretagio. Hd uma perigosa heresia ria pode-se fazer 0 que se queira, nas lendo aquilo que nossos mais incontroldveisimpulsos nos sugericem. Néo Everdade, As obras literdrias nos convidam a liberdade da interpretagéo, pois propdem um discurso com muitos planos de leitura e nos colocam dante das ambigiiidades eda linguagem e da vida. Mas para poder seguir neste jogo, no qual cada geracio Ié as obras literdrias de modo diverso, é preciso ser movido por um profundo respeico para com aquela que eu, albures, chamei de inten- 530 do texto, De um lado, parece que mundo é um livro “fechado” que consente uma sé leitura, pois se hi uma lei que governa a gravitagio planetiria, ou ela cor- ro nos surge como tum mundo aberto. Mas tentemos nos aproximar com bom senso de uma obra de nossos dias, paraa qual de ume obt feta ou ¢ incorteta: em reagio a iso 0 waverso de um inatrativa e confrontemos as proposigbes que podemos enunciar a seu respeito ‘com aquelas que articulamos em rela5io a0 mundo. Do mundo dizemos que as leis da geavitasio universal sio aquelas enuinciadas por Newton ou que é verdade que Napoleio foi morto em Santa Helena em 5 de maio de 1821. Contudo, se temos a mente aberta, estaremos sempre dispostos a rever nossas convicsBes no diaem quea ciéncia enunclar uma formulacio diversa das grandes leis césmicas ou um historiador encontrar documentos inéditos provando que [Napoledo morreu em um navio bonapartista enquanto tentava a fuga. Mas 20 contritio, no mundo dos livros, proposigbes como Sherlock Holmes era soltei- 10, Chapeuzinho Vermelho foi devorada pelo lobo, mas depois libertada pelo caga- dos, Anna Karenina matouse, petmaneceréo verdadeiras etemnamente ¢ nunca ene SOBRE A LITERATURA podetio ser rfutadas por ninguém. Hi pessoas que negam que Jesus fossef- Iho de Deus, outras que poem em diivida até mesmo a sua existéncia histdrica, outras que sustentam que cle é 0 Caminho, a Verdade e a Vida, outras mis ‘onsideram que o Messias ainda esté por vir, enés, de qualquer forma, eraca- sos tais opiniGes com respeito. Mas ninguém tratard com respeito quem afir- sme que Hamlet desposou Ofélia ou que o Super-Homem no é Clark Kent. (Os textos literdrios no somente dizem explicitamente aquilo que nunca poderemos colocar em diivida mas, & diferenga do mundo, assinalam com soberana autoridade aquilo que neles deve se assumido como relevante eaquilo aque ndo podemos tomar como ponto de partida para interpretagbes livres. No final do capftulo 35 de O vermelho eo negro, dite que Julien Sorel vai até a igreja e dispara em madame de Rénal. Depois de ter observado que seu brago tremia, Stendhal nos diz que Julien d4 um primeiro tiro ¢ nic acerta a vitima, em seguida dé um segundo tito ea senhora cai. Agora imaginemo-nos sustentando que o brago trémulo eo fato de que o primeito tito caiu no vazio demonstrem que Julia no se dirigira&igreja com umm firme propésite homi- ‘ida, mas sim arrastado por um desordenado impulso passional. A esta inter- pretasio pode-se opor uma outra, deque Julien tivesse desde 0 infcio 0 propésivo cde matar, mas fosse um covarde. O texto autoriza ambas Pode acontecer o caso de alguém se perguntar onde teria ido parar a pri- seira bala, 0s devotos ceressante questio para os devotos stendhalianos. Assim como .nos vo 2 Dublin procurst a farmdcia em que Bloom teria ‘comprado tum sabonete em forma de limo ( para satisfazer tais peregrins a ‘ul farmécia, que als existe realmente, comegou a produzit de nove os tais sabonetes), podemos imaginar devotos stendhalianos que tentam descobrit ‘cada coluna para encon- ‘rar o buraco produzido pela bala. Seria um episédio de fanship bastante di- vertido. Mas suponhamos agora que um critico queira bascar toda a sua interpretagéo do romance no destino daquela bala perdida. Com os tempos {que correm, nZo seria inveross(mil, mesmo porque ha quem tera baseado toda aleitura da Carta roubada de Poc na posicao da carta em relagio 3 chami- iné, Mas se Poe torna explicitamente pertinente a posiglo da carta, Stendhal ‘nos diz que da tal bala nada mais e sabe e, portanto, a exclu até mesmo do rol ee 8 a a idaiablaaidai | UMBERTO ECO das entidades ficrcias. Se permanecemos fis a0 vexto stendhaliano, aquela bala esté definitivamente perdida e onde ela foi parar ¢ narrativamente imrelevante. Mas, 20 contririo, © ndo-dito de Armance acerca da possivel im- potincia do protagonista leva o leitor a frenéticas hipéteses para completar aquilo que o conto nao diz, ¢ em Or nofves, uma frase como “a desventurada respondeu” nio dizaré que ponto Gertrude teria ido em seu pecado com Egidio, ‘mas o halo fosco das hipéteses induzidas no leitor faz parte do fascinio desta pigina tao pudicamente No inicio dos Trés mosquete ‘montado em um sendeiro de catorze anos, na primeira segunda-feira de ab de 1625. Quem tiver um bom programa em seu computador pode estabelecer imediatamente que aquela segundaefeia era dia 7 de abril. Uma maravilha para srivia games exiae devotos de Dumas. Mas pode-se basear em tal dado uma ;, dizse que d’Artagnan chegou a Meung superinterpretasio do romance? Eu diria que nfo, pois o texto no torna dado rclevante. O curso do romance também nio dé relevo a0 fato de que a chegada de d’Arcagnan tenha acontecido em uma segunda-feira— ao mesmo ‘tempo em que torna relevante que fosse abril (basta recordar que, para ocultar ebordado s6 na frente, Porthos envergava um ava —atal ponto queseuespléndido talabat pessoas todas essas coisas podem parecer obviedadk tas vezes exquecidas) nos dizem que o mundo ira a conflanca de qu ‘que ele nos oferece, portanto, um modelo, imagindtio tan- to quanto se quiser, de verdade. Esta verdade literal reflete-se sobre aquelas que chamaremos de verdades hermenéuticas: porque a quem nos dissesse que

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