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Copyright ©2000 by Leyla Perrone-Moisés Capa Joo Baptista da Costa Aguiar sobre Biblioteca (1949), 6le sobre tela de Maria Helena Viera da Siva, Pais, Musée National d'Art Moderne, Centre Georges Pompidou, ‘Copyright © 2000 anacr/snar Preparagao indice onomastco Carlos Alberto Inada eviao (Carmen. da Costa Beatriz de Freitas Moreira Pere Mois Le Sian Hm | Unease tgs {2000} “Todos os direitos desta edigao reservados a Bandeira Paulista 026.32 1332-002 — Sto Paulo —s? ‘Tlefone (1) 3846-0801 Fax (n) 3846-0814 son companhiadasletrascom.be Em meméria de Decio de Almeida Prado Consideracao intempestiva sobre o ensino da literatura” Os problemas atuais do ensino da literatura decorrem da situagdo incerta em que se encontra a propria literatura neste fim deséculo,época quese convencionouchamar de pés-moderna. No momento atual a literatura esta sendo questionada em sua produ- lo eem sua recepeao, encontrando-seameagada em seus proprios Como atividade auténoma,alliteratura datademea- ‘omo instituicdo e matéria de ensino,elaalean- fundamentos. dosdoséculo xvi. ‘ao auge de seu prestigio no periodo que vai do inicio do século x1x até meados de nosso século. Seu prestigio decorria, entao, de uma determinada concepgao da cultura, queimplicavaaestimaconsen- sual pelas humanidades ea valorizagao da tradigao escrita. Essa tra- digo estava sacramentada num canone, fundamentado em deter- minados valores, o qual orientava a organizacdo dos programas ¢ dos manuais escolares. Entretanto, desde o fim do século pasado, quando o lugar da assegurado, os social ¢ institucional da literatura parecia * Incidéncias:m 1, Lisboa, Edicbes Colibri/Universidade Nova de Lisboa, 1999. 345 escritores da modernidade procediam a um profundo questiona- ‘mento dos fundamentos de sua pratica e da inscrigao damesmana sociedade. Como disseram Blanchot e outros, a literatura cami- nhou em diregao a sua propria esséncia, num movimento ao ‘mesmo tempo autoglorificador e suicida, e colocou-se em franca ‘oposigao aos valores da sociedade burguesa, rejeitando assim 0 seu lugar institucional. ‘O ensino, como instituigdo, tem por objetivo manter os fun- damentos da sociedade, e nao questioné-los de maneira profunda, Assim sendo, o ensino de uma literatura que punha em xeque seus préprios fundamentos como pratica social, e, indiretamente, as priticas sociais em seu conjunto, comegou a apresentar-se como problematico. As produgGes das vanguardas do inicio do século, por seuaspecto demolidor eandrquico, agravaram 0 divércio entre apratica da literatura seu ensino, Entretanto,o ensino da literatu- ra pode manter-se sem grandes problemas, na medida em que esse ensino, até meados de nosso século, continuou apoiado nos prin- cipios da literatura anterior (principios neoclissicos e moderada- ‘mente romanticos) ,ignorando as praticas literdrias mais recentes ¢ fazendo de conta quea intituigao literéria permanecia inedlume. Na verdade, a literatura da alta modernidade nao era ensind- vel. Se ensinar é repetir (como apontava Barthes), obras que se apresentam como tinicas,¢ cujo valor maior é a transformagao do cédigo anterior (segundo o formalismo russo ¢ a semiética), nao tém nada aensinar, pelo menos no sentido de fornecer valores fixos ¢ formas repetiveis pelos aprendizes. O ensino da literatura (assim como a critica literdria) foi, assim, ameacado pela propria pratica dos escritores modernos, inassimilavel aos objetivos praticos € gem, da segunda metade de nosso século, uma nova situa~ socializantes de qualquer representagao ou apren Apart «40 configurou-se,e, nesta, a literatura tem sido relegada a um 346 lugar cada vez mais desimportante. A produgao literdria comegou a softer de exaustdo. Os gestos revoluciondrios das vanguardas jé haviam sido assimilados e neutralizados pela sociedade, 0 “novo” tornou-se repetitivo, Enquanto isso, os avangos tecol6gicos dos meios de comunicagdo e a propria vida cotidiana na “sociedade do espeticulo” habituaram o piblico a um consumo répido e castico deinformacoes, em tudo diverso da concentragao eda lentidao exi- gidas pela leitura do texto literario. 5 efeitos dessa situacao no ensino da literatura tém sido devastadores. Seduzidos pelas novas ofertas da informatica e dos meios de comunicagao de massa, e na esperanga de captar 0 inte- resse dos alunos, muitos professores deliteratura tém tentado as milé-las em suas aulas. Ora, a tinica maneira de aderir a essa nova situacdo é abandonar de vez tudo 0 que justificava o ensino ante- riordalliteratura, desde o mais elementar: olivro,aleitura solitaria, seletiva e reflexiva. Nao é possivel uma verdadeira alianga entre as antigas andlises de textos ea espetacularizagao dos mesmos, a ndo ser como mais um dos numerosos simulacros da indastria cultu- ral, Um cb-RoM com imagem, som e hipertexto pode ser, no maxi- mo, um arremedo das infinitas possibilidades sinestésicas sugeri- daspor um texto literério, Ouuma contextualizagdo auxiliar,como a dos verbetes de uma enciclopédia. Enquanto isso, na universidade, a reflexdo te6rica foi toman- doo lugar do estudo dos textos literarios. Depois do encantamen- to pelo estruturalismo e pela semiética, logo transformados em aplicagao mecinica de modelos classificat6rios, os universitérios receberam, com um entusiasmo compreensivel, mais filos6fico e politico do que propriamente estético, as propostas teéricas do pés-estruturalismo.A critica do logocentrismo,o questionamento da verdade e da origem, assim como 0 processo do sujeito classico, substancial e unitério, ea conseqtiente proposta de descentramen= 37 to, deliberacdo das margens evalorizacao da diferenga, passaram a ‘ocuparos professores deliteratura ea fornecer-Ihes um arsenal dis- cursivo de prestigio académico local e internacional. ‘As propostas dos tedricos pés-estruturalistas franceses — Derrida, Foucault, o titimo Barthes — foram lidas nos Estados Unidos de modo superficial, batizadas com o nome genérico de “desconstrugao”, de i reexportadas para as universidades de ou- tros paises. A “desconstruga0”, concebida e praticada por Derrida como uma critica fina dos discursos idealistas do Ocidente, trans- formou-se,nos Estados Unidos, numa demolicao grosseira e gene- ralizada dos saberes anteriores, a servigo de posigdes “politicamen- te corretas” e de apoio as chamadas minorias. As boas intengoes apregoadas também serviam, é claro, a criagao de novas dreas de poder dentro das universidades (Avaliadas a partir de posigdes ideol6gicas, as obras literdrias foram afogadas na enxurrada dos “estudos culturais”, que tem pouco de estudo e pouico de cultural, por recorrerem a um ecletis ‘mondo interdisciplinar mas adisciplinar,e porseaplicaremabje- tos cujo valor é indeterminado)\0 resultado dessa tendéncia foi nocivo para os estudos literdrios, porque redundou no questiona- mento dos valores estéticos ecognitivos das obras eno nivelamen- to da pratica literria com outras praticas culturais, dentro das idade.As brechas abertas pela “desconstrugao” foram aproveitadas por pro- ‘quais ela perde sua especificidadee até mesmo sua leg fessores de literatura que nao gostam de literatura, mas estao inte- ressados em outras coisas: sociedade, ideologia, politica, enfim, tudo o que, na literatura, aparece de forma indireta ¢ refratada, ¢ que agora se pretende atingir por meio dela, como se 0s textos lite- raios fossem meros documentos e discursos apenas referenciais. Reduzidas a essa condicao de discurso entre outros, as obras literdrias perderam qualquer privilégio com relagio a outros tipos 348 de texto. A propria nogao de texto alargou-se para abrigar até mesmo as manifestades nao verbais. Desinteressados daquilo que é especifico da pratica literaria, e numa atitude de complacéncia paracom o meio ambiente, muitos professores de literatura passa- ram a cuidar de manifestagdes paraliterérias da comunicacao de ‘massa. Evidentemente, todas essas manifestag6es merecem estudo, ‘maso problema é que clas comegaram a tomar olugar antes ocupa- do pelos textos literdrios nos curriculos ¢ nas aulas. As intengdes expressas pelos novos professores de literatura so aparentemente Jouvaveis: levar 0s alunos a descoberta do prazer de ler, liberar sua criatividade. Mas se o“prazer de ler” é concebido como facilitagao eadesao a0 gosto médio do piblico, e sea liberacao da criatividade se da sem a prévia e concemitante consolidacio de uma bagagem cultural, e sem o desenvolvimento da capacidade critica, os resul- tados so ou inécuos ou lamentaveis. Mais grave do que isso, para o ensino da literatura, foi o ques- tionamento do canone ocidental em nome do “politicamente cor- ulos escola- reto”, que resultou em censuras exclusdes nos cut res. Ora, mesmo quando nao assume esse aspecto inquisitorial (puritano) que assumiu nos Estados Unidos, a reformulacio dos curriculos, a luz das questoes ideolégicas atuais, resulta em abrir espagos para a inclusio de representantes de classes, etnias e géne- ros sexuais particulares, empurrando para fora (tanto em funga0 do principio da escolha como em fungao da simples falta de tempo no calendério escolar) as obras menos exemplares para essas posi- bes ideolégicas, isto é, aquelas que “nao passam de obras de arte”; ou, pior,aquelas quese propdem como arte, atividade considerada pelos “culturalistas” como idealista, eurocéntrica, anacrénica & ideologicamente suspeita. Defender o canone ocidental ou 0 nacional pode parecer (© ruitas vezesé) uma posicao conservadora. Entretanto, seconside- 349 77sseFeFe eee Fee FFF Fe ee ec eh er ler rarmos que o “cdnone” é apenas uma tabua de referéncia de deter- ‘minada cultura (por acaso, a nossa), e que os curriculos escolares, até segunda ordem,devem permitir aosalunos o conhecimento de ‘sua pr6pria tradigao cultural,assim como a de putras culturas,néo estaremos defendendo o cdnone, mas apenas permitindo 0 acesso ao mesmo. O canone, como outras tébuas de referéncia de nossa cultura, nao é um repert6rio imével e sagrado; esta sujeito a trans- formagoes, em nome de valores que mudam segundo as épocas, e que € preciso sempre revisar, reformular, reinventar, por meio de um juizo reflexivo eda busca de um consenso ampliado. A alegacao. fosse uma pés-moderna da relatividade dos valores (como se iss descoberta recente) élevada até o extremo da negagio de qualquer valor, mesmo que provisério ou transitério. Ora, a aboligéo pura e simples dos repertérios culturais s6 pode resultar em descultura,ea descultura nao necessita do apoio dasin 1uigdes deensino. Osjovensnao precisam ser introduzidos nna descultura global;estamos todos imersos nela. Aquilo de que os jovens precisam édecultura,a qual ésempreconhecimentodeuma tradic20, condigao minima até mesmo para a contestar e renovat. Eoacesso dos jovensa cultura é uma responsabilidade dos profes sores (afirmagdo ou dbvia, ou antiquada, segundo 0 ponto de vista). io da moder- A literatura, tal como a entendemos desde o in nidade, nao é ensinavel. Mas a leitura literdria nao apenas pode ser ensinada como necessita de uma aprendizagem,e é por isso que os professores de literatura ainda existem. O conhecimento aprofun- dado das obras nas quais cada lingua atingiu o maximo de suas potencialidades expressivas e sugestivas € 0 que garante o prosse- guimento da atividade literdria, quer do lado dos leitores, quer do lado de futuros e eventuais escritores. Se os professores negligen- ciarem a tarefa de mostrar aos alunos os caminhos da literatura, 350 estes serdo desertados, ea cultura como um todo ficaré ainda mais empobrecida. O mestre da critica brasileira, Antonio Candido, fez uma vez uma conferéncia na qual defendia o direito a literatura como um dos direitos humanos. Isso me parece nao apenas verdadeiro, mas oportuno como titica. No momento atual, em que todos preten- dem defender alguma causa minoritéria, a defesa de uma discipli- 1a tao ameacada é uma boa causa que os professores de it eratura literaria’, essa corporacdo quase extinta, deveriam adotar. A manu- tengao do ensino da literatura nao deve (nem pode mais) ser defen- dida com argumentos aprioristicos, mas com base em seus benefi- cios. Segundo Antonio Candido, a literatura deve ser ensinada porque atua como organizadora da mente e refinadora da sensi lidade, como oferta de valores num mundo onde eles se apresen- tam flutuantes. ‘Acesses argumentos, podemos acrescentar outros, qué sd decorrentes: a obra literaria 6 sempre uma leitura critica do real, ‘mesmo que essa critica ndo esteja expressa, jé que a simples postu- lacao de uma outra realidade coloca o leitor numa posigao virtual- mente critica com relagao aquilo que ele acreditava ser o real. E, finalmente, a escrita e a leitura literarias sao exercicios de liberda- de: liberdade no uso da linguagem, esclerosada e estereotipada no uso cotidiano, ¢ liberdade do imaginario, oposto a uma suposta fatalidade da historia. Mas, para que o ensino literério continue dando seus frutos,é necessirio que o professor, antes do aluno, continue acreditando nas virtudes da literatura. Se o proprio professor nao confia mais no objeto de seu ensino, e nao faz deste um projeto de vida, é me- Ihor que escolha uma profissao mais atual, menos exigente ¢ mais rentavel. 3s See wvvye eV VeVVVVuUVueVuUVuUVvuVevVveveveNev=,"—"—"™ © Abrale Produ: ‘Aderaldo & Rothschild Eaitores Ltda, Rua Joto Moura, 433 ~ 05412-001 Sio Paulo, Brasil “Tel/Fax: (55 11)3083-7419. (65 1193060-9273 (atendimento 20 Leitor) lerereler@hucitec.com.br ‘wor bucitc.combr Depisito Legal efetwado Coordenacio editorial Maniana Napa Assistente editorial Mantaxtceta GIANNELLA Apoio: Peo-Reironta DE CULTURA F EXTENSAO 'ba UNIVERSIDADE DE SAO PaUto 1P-Brasl, Catalogagio-na-Fonte Sindicato Nacional dos Baitores de Livros, Rb Ets, Encontro Regional da ABRALIC (11. : 2007. io Paulo) ae, arte saberes / organizacao, Sandra iter coordenadors. [et al. ~ Sto Paulo: Aderado & Roths- ‘hid : ABRALIC, 2008. 2869, Paletras proferidas nas sessoesplenirias do XI Encontro Regional da ABRALIG, realizado em julho de 2007 na Uni versidade de So Paulo. Tl bibiogeaia ISBN 978-85-60838-69-3 1, Literatura comparada ~ Congress. 2. Literatura ~ atria celica - Congrestos. 1. Nitin, Sandra. 1. Associa (Go Braslcra de Literatura Compared. IL, Titulo 08-2850 cpp: 808 DU: 82.091 OENSINO DA LITERATURA LEYLA PERRONE-Moisés Universidade de Sao Paulo fos ULTIMOS ANOS, instalou-se certo mal-estar no ensino da literatura. Do século XIX até 0s anos 80 do século passado, 0 prestigio dos estudos literdrios manteve-se incontestado. Os pres- supostos e os métodos se transformaram, desde a antiga ret6rica, passando pelo historicismo, o biografismo, 0 impressionismo, a estilistica, a nova critica baseada nas ciéncias humanas até o es truturalismo que retomou, 2 luz da lingiistica, as propostas do formalismo russo. Apesar das diferengas desses pressupostos e mé- todos, ninguém punha em diivida que existisse algo chamado “li teratura”, que esse algo tivesse valor e que merecesse ser estudado, eportanto, ensinado. Nas tiltimas décadas do século XX — época chamada de“p6s- ‘modernidade”, “pés-estruturalista” ou, mais adequadamente,“mo- dernidade tardia” — muitas coisas solidas se dissolveram no ar e, entre elas, a velha literatura. A globalizagao economic e informa- cional, a larga difusdo da cultura de massa, a descolonizagao de vvirias nagdes, as migrag6es humanas, colocaram em divida a“uni- versalidade” de varios conceitos, entre os quais 0 conceito de lite- ratura, suspeito de logocentrismo, de etnocentrismo e de elitismo. ‘Accontestagao do valor universal do conceito se projetou sobre os ccanones, sobre 0s contetidos ¢ os métodos de ensino da literatura, ‘eaté mesmo sobre a conveniéncia ou a utilidade de manté-la como disciplina escolar e universitaria,. eS ee a ae a a ae ae ry LEYLA PERRONE-MOISES ‘Todos os professores de literatura em atividade desde a segunda metade do século passado notaram essas mudangas. Muitos se senti: ram desamparados, porque os pressupostos e métodos em que fo- ram formados tinham perdido sua validade. Outros aderiram a novos pressupostos e métodos, baseados num conceito téo alarga do de literatura que a propria palavra caiu quase em desuso, per- dendo de longe para a palavra ‘cultura’, nos programas e nas pes- quisas desenvolvidas nos departamentos literdrios. Se outras provas no existissem, basta entrar, hoje, numa grande livraria université- ria norte-americana para verifcar o desaparecimento ou a drastica redugao das estantes de“Literary Theory” ou “Literary Criticism’, € 0 crescimento avassalador das prateleiras de “Cultural Studies’, classificadas pela tematica e, por isso, misturando ensaios de virios géneros, literdrios ou nao, No Brasil, a disciplina “Literatura” foi substituida, no ensino secundirio por “Expresso e Comunicagao” e, no ensino superior, por “Linguagens, Codigos e suas Tecnologias”. Assim constam nos documentos do Ministério da Educacao, nos quais a palavra “lite- ratura” é raramente usada. Quando 0s textos literdrios sao referi- dos, sdo equiparados a outros tipos de texto, e avaliados em fun- sao de sua “brasilidade” ou de sua aceitago pelos alunos, ‘O mesmo descrédito e a mesma diminuigao do ensino literario tém ocorrido em varios paises, como Portugal e Franga, No ano pasado, em Portugal, o Ministério da Educagio pos em discussao ‘um documento assinado por numerosos professores que protesta~ vam contra uma proposta de reforma do ensino secundério, na qual o ensino da literatura era minimizado, Pelo que soube, por co- legas portugueses, o protesto nio teve grande efeito. Na Franca, pelo mesmo motivo, houve passeatas em 2000 ¢ um Ministro da Educa- ‘io foi deposto. Organizaram-se, logo depois, coléquios e ntime- 1 Para uma anise dealhada dos documentos do MEC, ver meu artigo “Literatura para todos. In: Literatura e Sociedade 19, Sio Paulo, USP-DTLLC, 2006, (© ENSINO Da LITERATURA 15 10s especiais de revistas sobre o tema, Mas, recentemente, colegas franceses me disseram que a mudanca de Ministro foi apenas cos- ética, e quea tendéncia de baixa da disciplina literdria se mantém. (Os motivos do declinio do ensino literério, nesses paises, dife- rentemente do que ocorre nos pafses americanos, nao sao ideol6- ‘gicos, mas pragmaticos. No contexto de Estados enfraquecidos e economia neoliberal, vé-se a tendéncia a substituir as humanida- des em geral por disciplinas mais técnicas, profissionalizantes, em uma s6 palavra, mais titeis a consolidagao da Comunidade Euro- péia. A desejada ligacdo direta das universidades com as empresas dispensaria, pouco a pouco, essas disciplinas “iniitei Curiosamente, enquanto a literatura perdia seu prestigio no ensino, como instituigao social, ela se adaptou aos novos tempos. A edicdo e a circulagio de obras literdrias ganhou um grande im- pulso coma informatizagao; a globalizacao suscitou um aumento considerdvel de tradugdes em todos os pafses; 0 Prémio Nobel de Literatura manteve todo o seu prestigio, enquanto novos prémios aumentaram em numero e em valor monetério; os escritores pre- ‘miados sairam de seus gabinetes para se tornar “celebridades” mi- diaticas, conhecidas mundialmente; as feiras e festas literdrias se multiplicaram. E tudo isso continua ocorrendo como se o concei- to de literatura nao tivesse sofrido nenhum abalo teérico, como se todos soubessem tacitamente o que éa literatura, Por isso, vale a pena retomar 0 conceito e reexaminé-lo. O conceito de “literatura” tem uma historia, que ja virou alguns culos, conservando a mesma palavra mas alterando sua definisio. Na verdade, a literatura nunca pode ser definida com a precisio de um conceito, sendo mais uma nogao consensual. A nocio mo- derna de literatura instalou-se na Europa em meados do século XVIII, quando deixou de significar o conjunto da cultura letrada, para designar uma atividade particular, uma pratica de linguagem separada (e superior) as outras praticas linguageiras, uma arte e um meio de conhecimento autonomos. 1 © LEYLA PERRONE-MOISES Os teéricos da literatura, dos romanticos alemies aos estrutura- lista franceses, concordavam em determinados pontos:a literatura Uma arte e uma forma de conhecimento; escrever no sentido lterd- Tio da palavra, é nao apenas desvendar o real mas transformd-lo; 0 texto literario élivre, isto nao é um instrumento visando qualquer : a leitura literdria é criaco partilhada. Em 1946, Jean-Paul Sar- ‘Te, em seu famoso ensaio Qurest-ce que la littérature,” reafirmava to- 405 esses principios. Mas um eventual desaparecimento da literatura 34 estava no ar. Sartre terminava o ensaio com as seguintes palavras: “[A arte de escrever] é 0 que os homens fazem dela, eles a €scolhem escolhendo-se a si mesmos. Se ela estivesse fadada a se tornar pura propaganda ou puro divertimento, a socieda- de recairia na vida sem meméria dos himendpteros ¢ dos gas- trépodes. E claro que isso nao é muito importante: 0 mundo Pode passar muito bem sem a literatura. Mas pode passar ain- da melhor sem 0 homem” (p. 316). Algumas décadas mais tarde, Roland Barthes falava aberta~ Mente da“morte da literatura’. Em seu tltimo curso no College de France (1978-1980),’ hd varias observacoes nesse sentido: “Algo ronda em nossa Historia: a Morte da literatura” (p. 49); “O que aflora atualmente a consciéncia — ou semicons- ciéncia — coletiva é um certo arcaismo da literatura €, por- tanto, de certa marginalizacao” (p. 361); “Esse sentimento de que a literatura, como Forga Ativa, Mito vivo, est, nao em crise (formula facil demais), mas talver em vias de morrer” (p. 353) Na verdade, Barthes nao se referia a morte da pratica liters- Tia, mas a morte da literatura na critica e no ensino, que ocasio- Gallimard, 1988 1 Pais, Seuil- IMEC, 2003, Trad. 2008, * Jean-Paul Sartre, Situations If, Pai » Roland Barthes, a préparation du roman Tet A preparagi do romance I eI, So Paulo, Martin Foe bras (© ENSINO DA LITERATURA 7 naria uma mutagao no tipo de escrita que seria praticada no futu- +0, a qual pouco teria a ver com o que a modernidade chamava de literatura ou écriture. Um quarto de século depois dessas consideragdes de Barthes, isto é, em 2005, um livro foi publicado na Franga com o titulo: O ‘adeus @ literatura, Hist6ria de uma desvalorizagao. Século VIIa sé- culo XX.‘ E, no ano passado, Antoine Compagnon intitulou sua Aula Inaugural no Collége de France: “Para que serve a literatu- ra?” A quarta capa da publicacao dessa aula significativa: “Depois da questio tedrica ou historica tradicional;‘O que €a literatura?’ hoje se coloca com maior urgéncia a questo critica e politica: ‘O que pode a literatura?’ Que valor a socie~ dade ¢ a cultura contemporaneas atribuem 8 literatura? Que utilidade? Que papel? Italo Calvino declarava que sta confian- ano futuro da literatura repousava sobre a certeza de que ha coisas que s6 a literatura nos pode dar. Esse credo é ainda 0 nosso?” Compagnon, que jé vinha definindo o ensino atual da litera- tura como uma “canoa furada, fazendo gua, afundando lentamen- te’ responde a essa pergunta sem muita convicgao.” Esses exemplos, 20s quais se poderiam juntar muitos outros, nos, mostram que o mal-estar nos estudos literdrios ndo é uma hipéte- se, mas uma realidade, Nao deveriamos pois, como professores de literatura, fazer o luto de nossa antiga disciplina e atualizarmo- nos, acomodando-nos aos novos tempos eas novas necessidades? ‘A pergunta subjacente a todas as propostas de diminuigao ou “William Marx, LAdiew a la littérature, Histoire dune dévalovsation. XVIle-XXe stl, Pats, Minuit, 2005, ' Amtoine Compagnon, La litéraure, pour qui faire 2, Pars, College de Francel Fayard 2007. “In Ledébat n2 110, mai-aodt 2000, Pars p. 136 Posteriormente, o grande piblicoatrada por seu curso sobre Proust, no Colle, obrigou-o a reavaliar esse “nauftigo" 18 LEYLA PERRONE-MOISES de climinagdo do ensino literdrio é, de fato: para que serve a li- teratura? Por que estudar literatura? Sintetizando 0 que foi dito por numerosos tedricos modernos, responderfamos: porque ensi- har literatura € ensinar a ler, sem leitura, nas sociedades letra- das, nao hé cultura; porque os textos literdrios so aqueles em que alinguagem atinge seu mais alto grau de precisao e sua maior po- téncia de significacdo; porque a significacio, no texto literdrio, nao se reduz ao significado (como acontece nos textos cientificos, jor- nalisticos, técnicos), mas opera a interacao de varios nfveis se~ ‘manticos e resulta numa possibilidade teoricamente infinita de interpretagdes; porque a literatura € um instrumento de conheci- mento do outro e de autoconhecimento; porque a ficgao, a0 mes- imo tempo que ilumina a realidade, mostra que outras realidades sio possiveis, libertando o leitor de seu contexto estreito e desenvol- vendo nele a capacidade de imaginar, que é uma necessidade huma- na e pode gerar transformagoes historicas; porque a poesia capta niveis de percepgao e de fruigao da realidade que outros tipos de tex- to nao alcancam. Nao me parece que o fato de muitas obras atuais no corresponderem mais a essas fungies e qualidades da literatura deva levar-nos a conclusdo de que nio vale mais a pena ensiné-la. ‘Uma das alegagdes contra 0 ensino tradicional da literatura, se refere a um pretenso clitismo desse ensino. Sendo 0 texto literd~ rio um texto tio complexo e sofisticado, por que manter a litera- tua nos curriculos do ensino médio? Podemos dar as seguintes res- postas: porque, exatamente por ser complexo, a leitura do texto literdrio exige uma aprendizagem que deve ser iniciada na juven- tude; porque os textos literdrios podem incluir todos os outros ti- pos de texto que o aluno deve conhecer, para ser um cidadao apto; porque a literatura, quando o leitor dispde de uma capacidade de leitura que nao é inata, mas adquirida, dé prazer (e a fungao do professor € exatamente a de demonstré-lo). ‘A mesma pecha de elitismo foi atribuida aos programas cons- tituidos de escritores “canénicos”, Ora, a chamada “guerra dos ci- (© ENSINO DA LITERATURA 19 nones’,ocorrida no fim do século XX, era equivocada desde o prin- cipio. Contestar 0 ocidentalismo do cnone era protestar contra © 6bvio, jé que o conceito de cinone € ocidental, assim como 0 conceito de literatura em que ele se baseia. Primeiramente, abrir 0 cinone as literaturas ndo-ocidentais seria forgé-las a entrar num paradigma que nao é a de todas as culturas. Por outro lado, 0 ca- none ocidental nunca esteve fechado, tém-se modificado substan- cialmente através dos séculos. Finalmente, abrir 0 cénone aos au- tores populares, marginais, minoritarios, significaria abandonar 0s critérios valorativos em que se baseia o antigo conceito de lite- ratura, Seria, aplicar ao tema de cotas estranho a seus fundamentos. E abrir o cinone a literaturas ditas “emergen- tes” contraria seu principio basico, que éa duracao de determina- das obras ao longo do tempo. As “literaturas emergentes” ainda nio tiveram esse tempo. Se acreditamos naquelas virtudes especificas da literatura que mencionei ha pouco, devemos ensiné-las a partir das obras que as possuem. A pretensa democratizagao do ensino, como nivelagao baseada na “realidade dos alunos’ redunda em injustica social. Ofe- recer a0 aluno apenas aquilo que ja consta em seu repert6rio ésu- bestimar sua capacidade de ampliar seus conhecimentos, e priva- Jo de um bem que deveria pertencer a todos. Marcel Proust, entre outros, considerava vio escrever “para 0 povo”. Por que ele era um clitista Muito pelo contrario, porque era um democrata. Em Contre Sainte-Beuve ele escrevia: one um. “Por que se acredita que, para um leitor operario eletri- cista, se deve escrever mal e falar da Revolugao Francesa? Pri- meiro, é exatamente 0 contrério, Assim como os parisienses gostam de ler acerca da Oceania e as ricas narrativas da vida dos mineiros russos, 0 povo também gosta de ler coisas que no se relacionam com sua vida, Além disso, por que levantar essa barreira? Um operério pode ser baudelairiano” 20 LEYLA FERRONE-Moists Justamente, o ensino puiblico republicano francés da época de Proust facultava a todos 0 acess0 a Baudelaire, Hoje, isso jé é me- nos evidente, e um Baudelaire tendea ser estudado apenas por uma elite que pode pagar boas escolas privadas Cabe entao, a0 professor de literatura, escolher as obras que pro- pord aos alunos, nao em fungao de uma atualidade que pode ser ape- nas um modismo, mas em fungio das qualidades literdrias de uma obra, passada ou recente. O tema nao deve ser predominante na es- colha, porque o que caracteriza a obra literdria é 0 como ¢ nao 0 ‘que, sendo que a significagao nao esta, nea, separada da forma. A excessiva énfase no “contexto social” e na “identidade nacio- nal", que aparece em todos os documentos do MEC, limita os es- tudos literdrios ao local, quando a boa literatura, embora con- tenha sempre as marcas do social e do nacional, nao conhece fronteiras geogréficas. A literatura é justamente, uma poderosa mediadora entre diferentes culturas,funcio que hoje em dia, num mundo globalizado pela informagao e pelos deslocamentos huma- nos é mais do que nunca oportuna. A preocupacao com o “politicamente correto”, que leva a subme- tera escolha das obras tematica, ou ainda pior, a“mensagem’ revel uma descrenga na fungao politica da literatura como tal. Afinal, en- inar literatura é sempre um ato politico, pois como diz Adorno, qualquer que seja sua temética, a poesia desvenda o “fundamento qualitativo” da sociedade. Deve-se, segundo ele, “nao fazer abusiva- mente dos textos poéticos o objeto de demonstragdes sociol6gicas, mas fazer de modo que a relagao desses textos com o social desvende algo que lhes é essencial, algo de seu fundamento qualitativo”. A obra literdria, diz ele, “deixa falar aquilo que a ideologia dissimula”® (O que ainda esté —e sempre estar em questo — nos estudos literdrios, éa oscilagao entre os pélos extremos do “conteudismo” € do “formalismo”. Desde o século XIX, 05 estudos literdrios tém. "Theodor Adorno, Notes sur la fiératre Pars, Champs-Flammarion, 1984, p46 4s © ENSINO DA LITERATURA 21 alternado fases conteudistas e fases formalistas. Tanto 0 excesso de conteudismo como o excesso de formalismo deixam escapar um lado da obra, perdendo de vista sua unidade. Por ser criagao de significados a partir de dados da realidade, a obra literaria, dife- rentemente dos textos verbais meramente comunicativos, diz algo em determinada forma, mais complexa, mais rica, mais ambigua. E curioso notar que as acusagdes simétricas de “conteudismo” de'“formalismo” podem existir numa mesma época ou num mes- ‘mo te6rico, em diferentes momentos. Tzvetan Todorov, que con- tribuiu para a difusdo do formalismo russo no Ocidente, acaba de publicar um livro que se chama A literatura em perigo? Como tan- tos outros tebricos franceses, atualmente preocupados com o ensi- no literario, Todorov investe, neste livro, contra. . .o formalismo. Ele exige, agora, que se busque, na literatura, “o mundo em que vivemos” e“um sentido para nossa existéncia”. Essa surpreendente reviravolta tem sua razio de ser. As grandes conquistas da teoria literaria francesa dos anos 60 e 70 chegaram ao ensino secundario, por meio dos professores formados naquelas décadas, ¢ 0s alunos, segundo Todorov, sao sobrecarregados de conceitos tesricos que os afastam dos ensinamentos e prazeres da leitura. Este é um pro- blema especificamente francés, porque a tendéncia atual, norte € sul-americana, é exatamente inversa: a de privilegiar a tematica na escolhae na valorizagao das obras. Nem tanto ao mar, nem tanto & terra. Para trabalhar com os significados, o estudo da literatura pode buscar apoio nas ciéncias humanas, sem, no entanto, usar a obra como simples documento a servigo de um saber particular. Segundo Barthes, “a literatura faz girar os saberes, mas nao fixa, nao fetichiza nenhum” (Aula)."” Para lidar com as formas que produzem esses significados, o estudo da literatura exige uma base tedrica e uma terminologia especifi- ca, que também nao deve ser fetichizada. Os jovens do ensino se- * Trvetan Todorov, La litéature en péril Paris, Haramarion, 2006. "Roland Barthes, Leon, Paris, Seuil 1978, p. 18. 22 LEYLA PERRONE-MOISES. cundério gostam de saber como as coisas sto feitas e como fun- cionam, e um texto literdrio é um artefato que pode ser examinado como tal Para tanto, 0 professor dispoe de uma formagio teérica universitéria que ele pode utilizar, sem pretender transformar os secundaristas em especialistas. 4 0 ensino universitario deve pro- ver 0s futuros professores dessa formagio tedricae técnica, sem per- der de vista seu carter auxiliar para a compreensao das obras. Qualquer que seja 0 percurso adotado pelo professor de lite- ratura, este ndo pode perder de vista que 0 ponto de partida e 0 ponto de chegada de seu ensino € o texto. As idéias e 0s sentimen- tos comunicados pelo texto nao devem ser aqueles concebidos pre- viamente pelo professor. O texto é soberano, até mesmo com rela- ‘sao as intengdes do autor, como ja se tem comprovado ao longo do tempo. O que nao exclui, nem deve excluir a inteligencia ou a sensibilidade pessoais do leitor que ensina outros leitores. Sem ade~ do e entusiasmo ao objeto, nenhum ensino é eficaz. Ensinar literatura é, fundamentalmente, ensinar a ler literatu- ra. Cada professor escolher a porta pela qual ele introduziré 0 aluno na obra literdria, e seu ensino seré eficiente se ele conseguir mostrar que a grande obra tem intimeras portas. Levar o aluno a melhor entender 0 que a obra diz € tanto abrir seus significados quanto mostrar como eles so criados, na linguagem do autor. O maior elogio que um professor de literatura ou um critico literé- rio pode receber de um aluno ou de um leitor, é que este Ihe diga: “Vocé me fer ver, neste livro, coisas que eu nao havia visto numa primeira leitura.” O que equivale a dizer: “Vocé ampliou meus ho- rizontes e conferiu mais qualidade & minha vida’. Nao € isso 0 que fazem as boas obras literdrias? E no é por isso que vale a pena continuar ensinando literatura?

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