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Revista Leia Escola, Campina Grande, v. 19, n. 2, 2019 - ISSN 2358-5870 ASPECTOS RELEVANTES DA DRAMATURGIA PARA A INFANCIA NAS PALAVRAS DE QUEM FAZ O TEATRO INFANTIL RELEVANT ASPECTS OF DRAMATURGY FOR CHILDREN IN THE WORDS OF WHO DO THEATER FOR CHILDREN, Fabiano Tadeu Grazioli” Fulvio Torres Flores™ Resumo: O artigo parte de uma reflexdo sobre o primeiro livzo de teatro infantil publicado no Brasil, 2 saber, Teatrinho Infantil, de Figueiredo Pimentel, até apresentar 0 propésito do trabalho. que é pincar de Jum conjunto de publicagées diversas (entrevista, depoimento, debate transcrito, artigos publicados inicialmente em jomais, publicacdes académicas como obras teéricas © periédicos cientificos) informagdes sobre a dramaturgia para a infancia ou entio aspectos do teatro infantil que server também para pensarmos a dramaturgia para a infineia, Este tema nio € recorrente nos estudos da literatura infantil brasileira ¢ nao recebeu, no pais, 2 mesma ateng4o, por parte dos pesquisadores, que o poema ¢ a narrativa. Nao houve a inten¢3o de mapear um periodo historico especifico de publicacdes, mas sim de revisitar as vozes de alguns diretores, encenadores, atores, pesquisadores, criticos e dramaturgos que contribuiram com as Artes Cénicas, em especial aquelas destinadas as criancas. Ao final, percebe-se uma importante galeria de informagdes que podem auxiliar no direcionamento de um teatro infantil que serve 205 principios da infincia e legitimam a arte que precisa ser oferecida a esse piiblico, , claro, & dramaturgia que vai servir de ponto de partida para a construglo dos referides espetéculos. Embora os autores pesquisados nio tenam o intuito de prever uma dramaturgia para ser lida pela crianca, nbs. entusiastas dessa possibilidade, podemos afimmar que os aspectos levantados indicam alguns caminhos para tima dramarurgia com essa finalidade Palavras-chave:Literatura infantil brasileira. Experiacias de criadores do teatro, Leitura da dramaturgia, Abstract: This article begins by reflecting on the first children’s theater book published in Brazil, namely Teatrinho infantil (literally: Little theater for children), by Figueiredo Pimentel, and after it presents the purpose of the work, which is to draw from a set of different publications (interview, testimony, transcript discussion, articles published initially in newspapers, academic publications such as theoretical works and scientific journals) information on the dramaturgy for children or aspects of the children’s theater that are ‘as well useful for thinking the dramaturgy for children. This theme is not recurrent in the studies of Brazilian children’s literature and it has not yet reveived, in this country, the same attention by researchers that poetry and narrative have. Thete was no intention of mapping a specific historical period of publications, but rather to revisit the voices of some directors, actors, researches, crities and playwrights ‘who have contributed to the Performing Arts, specially those aimed at children. In the end, an important gallery of information can be found that can help guide a children’s theater that serves the principles of childhood and legitimize the art that must be offered to this audience and, of course, the dramaturgy that will serve as a starting point for the construction of these theater productions. Although the researched authors do net intend to predict a dramaturgy to be read by children, we — enthusiasts of this possibility — ccan affirm that the aspects raised indicate some ways for a dramaturgy for this purpose. Keywords: Brazilian children’s literature, Theater artists experiences, Dramaturgy reading. 1 Introducao * Doutor ¢ mestre em Letras pelo Programa de Pés-graduacdo em Letras da Universidade de Passo Fundo (UPF), Docente da Universidade Regional Integrada do Alto Unugvai e das Misses (URD, Campus de Erechim/RS e da Faculdade Anglicana de Erechim/RS (FAE). E-mail: tadeugraz@yahoo.com br * Doutor e mestre em Letras pelo Programa de Estudos Linguisticos e Literérios em Inglés da Universidade de Sio Paulo (USP). Docente da Universidade Federal do Vale do Sio Francisco (UNIVASE), no curso de licenciatura em Artes Visuais, e no Programa de Pés-graduagdo em Extensio da Rural, orientando mestrado profissional na linha de pesquisa Identidade, Cultura e Processos Sociais. E- snail: falviotf@uol.com. be Lo SF 9 Revista Leia Escola, Campina Grande, v. 19, n. 2, 2019 - ISSN 2358-5870 Para apresentarmos a proposta de eserita deste trabalho, iniciamos com uma reflexdo que parte de algumas consideragdes sobre o primeiro livro de teatro infantil publicado no Brasil. Regina Zilberman, no ensaio intitulado “Teatro para criangas e jovens: questdes histricas e caminhos criativos” (2015), afirma que a procedéncia dos textos do género dramitico é diversificada, e essa caracteristica acompanha o referido género desde 0 seu surgimento, “Supde-se que resultem da imaginago do artista, mas, fiequentemente, provém da adaptagio de mitos, como fizeram os trigicos gregos, de fatos historicos, como se verifica em boa parte da obra de Shakespeare, ou de obras literdrias previamente existentes” (ZILBERMAN, 2015, p. 18). Segundo a pesquisadora, com o teatro infantil nao é diferente, ele se alimenta tanto de criagdes individuais quanto do aproveitamento de material que circulow preliminarmente em outros contextos. Este segundo caso pode ser exemplificado com o primeiro livro brasileiro que contém textos de teatro para eriancas', conforme informa a autora: Figueiredo Pimentel, entio jé consagrado autor de obras destinadas aos pequenos eiteres, organizou 0 Ieatrinho infantil, cujo subtitulo revela os destinatirios previstos: “livro para crianeas”, Nao bastasse essa indicacto, acompanha o subtitulo a seguinte explicagto: Contendo espléndida colecto de monéloges, dilogos, cenas eémicas, dramas, comédias, operetas, etc. (em prosa € verso) préprios para serem representados por criangas de ambos os sexos, dispensando-se despesas com cenésios, vestimentas © caracterizagio. (ZILMERMAN, 2015, p. 18-19, gvifo do autor) Nota-se, pela explicagdo, que nao se trata de uma criagao original para a crianga, mas do aproveitamento de um repertorio que ja existia em outros contextos. Analisando © prologo do livro, que Pimentel intitulou 4o /eifor (nio o leitor crianca, mas um mediador, pai, mie ou professor), Zilberman desvenda o intuito pedagogico da publicagdo e, por extensio, da pritica do teatro por eriangas na época do seu langamento/eireulagio. A partir da avaliagao da pesquisadora, na maioria das pecas de Teatrinho infantil predominam, “além da perspectiva moralista, a falta de ago, a inconsisténcia das personagens, o didlogo insosso” (ZILBERMAN, 2015, p. 20). Seu valor seria outro, de cunho histérico: “seu livro [de Figueiredo Pimentel] oferece um interesse antes de tudo historico, na medida em que inaugura a publicagao de textos conforme um género bastante popular entre o pilico adulto, mas ainda ndo frequentado por autores voltados a criangas e jovens”. (ZILBERMAN, 2015, p. 20). Registrado 0 valor histérico de Zeatrinho Infantil, de Figueiredo Pimentel, Zilberman encerra suas reflexdes sobre 0 primeiro volume de textos para teatro destinados 4 infancia publicado no Brasil com uma importante reflexfo: [J ele [0 volume em questio] € indicativo de um pendor bastante significativo no que diz respeito ao teatro infantojuvenil, mesmo quando produzido por adultos: a sugestio de que a qualidade possa vir em segundo lugar ou até estar ausente, porque nao é esse o objetivo principal quando 0 destinatirio € menor de idade. Bastaria a ele ensinar algo ou divert preenchidas tais metas, o resultado mostrar-se-ia satisfatGrio, conclusio que sairia fortalecida em decorréncia da efemeridade congénita producto teatral. Afinal, as representagdes cénicas se extinguem quando terminadas; 'PIMENTEL. Figueiredo, Teatrinho infantil: livzo para criangas. Rio de Janeiro: Quaresma, 1955. A. edigto referida por Regina Zilberman data de 1955, mas a primeira ediedo do livro de Pimentel foi langada em 1897, Lo 10 Revista Leia Escola, Campina Grande, v. 19, n. 2, 2019 - ISSN 2358-5870 portanto, nem precisariam ser muito boas se dirigidas a infancia, idade, alids que é sindnimo, ela mesma, da transitoriedade, (ZILBERMAN, 2015, p. 20), E de suma importaneia relatar como se deu o surgimento desse primeiro volume de textos para a infincia reunidos em livro, Para tanto, esclarece-se que Pimentel ficou primeiramente conhecido como romaneista, migrando depois para a literatura infantil: [...] Figueiredo Pimentel assume um novo “ethos” ¢ passa a transitar também pelo universo infantil, tentando afastar-se da antiga face de escritor imoral que ganhara com a publicagao de O aborto (1893) ¢ 0 Canatha (1895). Nada ‘melhor para apagar sua imagem anterior tio deteriorada do que mudar 0 foco © assumir a linguagem de um inocente contador de historias para criangas [..] (LAURITI, 2018, p. 42) Isso nos ajuda a entender que o autor era preocupado com sua carreira, conforme nos informa Thiago Lauriti (2018, p. 44), quando afirma que a partir de 1897 (ano da publicagio de Teatrinho infantil), “gradativamente Figueiredo Pimentel vai se distanciando dessa representacio inicial [de autor imoral], provavelmente por perceber que essa ‘imagem de autor’ nao era compativel com alguém ainda em inicio de carreira € com vinte € oito anos de idade”. A entrada para a literatura infantil néo se deu, portanto, como primeira opgao ou “vocagio”, mas como forma de aproveitar a onda comercial editorial ascendente naquele momento, “considerando-se que em 1890, o Rio de Janeiro contava com meio milhdo de habitantes, seis livrarias, oito teatros, e uma taxa de analfabetismo de 50% — a mais baixa do pais — fazendo com que eseritores e editores previssem a possibilidade de atingir um grande nimero de leitores potenciais” (MENDES, 2015, p. ¥ apud LAURITI, 2018, p. 41). Pimentel sabia se promover, respondendo aos ataques da imprensa a sua obra e também criando situagdes que ajudassem a promover seus livros, como fez com o folhetim Suicida, simulando seu proprio suicidio, o que causou repercussio na imprensa e ajudou a impulsionar a venda do romance langado semanas apés sua fingida morte (LAURITI, 2018, p. 52-54). Aproveitando tais oportunidades editoriais, ele publicou Contos da earachinha (1894), Histérias da Avozinha e Historias da Baratinha (1896), Histérias do arco da vetha, Historias de fada, Contos do Tio Alberto, Os meus bringuedos, e a reunifio de textos em Teatrinho Infantil (1897), entre outros que se seguiram, Todos esses livros alcangaram no minimo a sexta edigdo, tendo alguns atingido a décima e outros, a décima oitava, segundo o editor Pedro Quaresma (LEAO, 2003). Saber que o Teatrinho infantil de Pimentel atingiu no minimo a sexta edigdo em plena década de 1890 numa cidade com apenas 50% de pessoas alfabetizadas e que na época contava com uma classe média de mimero reduzido é algo que nos impulsiona a acreditar que o mercado editorial pode e deve investir na publicacao de dramaturgia para a infancia, ‘Uma das vertentes que a dramaturgia para criangas no Brasil seguiu foi aquela que colocou a qualidade em segundo lugar ou mesmo a renegou. Essa mesma vertente optou pelo teatro infantil que se satisfez (¢ ainda se satisfaz) ensinando, como Fabiano Tadeu Grazioli registrou tratando da recepgdo calorosa de Dramatizacdes Escolares, de autoria de Zulmira de Queiroz Breiner, na década de 1960, pelas escolas brasileiras em uma subsegio da obra Teairo de se ler: 0 texto teatral e a formacéo do leitor, que teve MENDES, L. O Zola da Praia Grande: Figueiredo Pimentel e o naturalismo. In: PIMENTEL, A. F. 0 aborto, Estabelecimento do texto ¢ organizacto de Leonardo Mendes ¢ Pedro Paulo Garcia Ferreira Catharina. Rio de Janeiro: 7Letras, 2015 [1893]. p. 7-14. Lo ud Revista Leia Escola, Campina Grande, v. 19, n. 2, 2019 - ISSN 2358-5870 sua segunda edigdo no inicio deste ano, em e-book; ou se satisfaz simplesmente divertindo, oferecendo ao espectador diversio pueril, descaracterizando o sentido de transformagio social que toda a arte possui, além de tratar de forma redutiva a capacidade de apreensio e intervengo na realidade que a infincia pode exercer no cotidiano. A outra vertente, que tratou o teatro para criangas como uma linguagem especifica, possuidora de caracteristicas peculiares, inerente ao florescimento da sensibilidade e ao gesto da criagao, revelou um conjunto de autores do qual fazem parte Liicia Benedetti, Maria Clara Machado, Sylvia Orthof, entre tantos outros, que nos legaram uma dramaturgia consistente, mas que, salvo casos muito raros, sio mais apropriados para a leitura de um adulto, por meio do qual a crianga conhecerd o texto, pois estamos visualizando aqui que esse adulto fara a mediagao entre a crianga e 0 texto, por meio do espeticulo teatral, da leitura dramatica ou dramatizada ou, simplesmente da leitura do texto para a crianga, Por isso importante lembrar, desde a abertura deste ensaio, que a grande maioria dos textos dramatirgicos escritos para o piiblico infantil nfo se prestam a leitura deste piblico, sfo textos que necessitam da presenga de um adulto para chegarem até a crianea no formato de espeticulo teatral e demais maneiras de interagao entre crianga e texto dramarirgico Entretanto, ao se pensar a leitura das referidas pegas fora do circulo dos interessados em encend-los, a literatura infantil nao den conta de langar mao de estudos que pensassem enfaticamente a dramaturgia escrita para criangas, assim como o fez com a narrativa ou a poesia, talvez pelo niimero reduzido de textos dramatirgicos publicados frente aos textos narrativos ¢ poéticos. Ou talvez por uma concepedo equivocada da natureza do género dramitico, sobre o qual aprendemos (desde as aulas de Literatura do Ensino Médio) que é escrito somente para ser representado, e no lido pelo leitor que nfo cireula pelos meios cénicos. O que ocorre é que existe uma lacuna nos estudos de muitos pesquisadores ao abordar o texto dramatico escrito para a erianga. Ainda sobre a independéncia do texto teatral em relagio a encenagao, vale destacar as palavras do pesquisador e diretor francés Jean-Pierre Ryngaert (1996, p. 25), certeiro quando afirma que Let o texto de teatro & uma operagdo que se basta a si mesma, fora de qualquer representacio efetiva, estando entendido que ela nao se realiza independentemente da construcao de um palco imaginario e da ativagio de processes mentais como em qualquer pratica de leitura, mas aqui ordenados ‘hum movimento que apreende 0 texto ‘a caminho' do palco. (RYNGAERT, 1996, p. 25) Essa operagio que se basta a si mesmo e que é uma pritica de leitura, como diz Ryngaert, pode ser ainda mais bem compreendida se a examinarmos complementarmente pelo que Antonio Candido (1995, p. 244) denominou de as trés faces da literatura: construgao de objetos com significado e forma, uma forma de expressio da visio do mundo de pessoas e grupos e uma forma de conhecimento. Independentemente de a obra dramatirgica ser destinada a adultos ou criangas, ela encontrari mais vigor na construgio e na proposigao se estiver alinhada as propostas tedrieas de Ryngaert, isto é, permitir-se ser lida e deixar que cada leitor construa seu palco imaginario — assim como o faz quando 1é um romance ou conto, imaginando obra encontra-se no seguinte enderego: bitp/www.editora.upf br/index.php/e-books-topa/68- 210. Revista Leia Escola, Campina Grande, v. 19, n. 2, 2019 - ISSN 2358-5870 personagens e cenérios — ¢ também de Candido, cumprindo um papel literdrio com significado e forma gue expressam uma visio de mundo e, portanto, um conhecimento sobre ele, O que garante a poténcia de um texto dramatiigico ndo € necessariamente haver uma ou mais encenagdes que o tornem reconhecido. Isso, sem diivida, pode atestar a sua importancia e ajud-lo a ser lido e difundido em épocas posteriores a sua criagio, Entretanto, mais potente do que as encenagdes & a propria qualidade da drammturgia, Como observa Fulvio Torres Flores (2017, p. 72) em seu artigo “Literatura dramética: um convite 4 leitura”: Um texto [dramatirgico] abre muitas freates de leitura e essa é, talvez, a principal caracteristica daquilo que podemos chamar de cldssico: uma inesgotavel fonte de interpretago, reapropriagdo ¢ dilogo a0 longo de décadas, séculos, milénios. A maneira como wm texto ser interpretado em diferentes sociedades por grupos ¢ leitores distintos € algo que mio se pode calcular e prever, pois as forgas do inconsciente humano, com seus desejos € repressdes, nto podem ser controladas por vozes tnicas que imponham significados. As obras literérias estio abertas a novas interpretagtes e sua recepeto pelo pilblico se dara de acordo com o mal-estarcivilizatério de cada epoca. Ainda que a literatura infantil nfo tenha se esmerado em estudar adequadamente a dramaturgia para a infincia, nem ditado caminhos de criago para a produgdo de uma dramaturgia que possa ter sua recep¢ao na leitura do texto impresso, temos encontrado algumas ~ poueas ~ coordenadas sobre dramaturgia para a infincia nos estudos do teatro infantil, nas manifestagdes dos profissionais das Artes Cénicas em suas variadas fumgdes, coordenadas essas publicadas em materiais diversos, que vio desde entrevistas, depoimentos ¢ debates gravados, até as tradicionais obras tebricas e artigos publicados em periddicos cientificos. Eis, enfim, o propésito deste trabalho: realizar uma recolha de alguns desses aspectos com a finalidade de termos um ponto de partida para se pensar a drammturgia escrita para a crianga, mesmo que o objetive dos que ganham voz na nossa escrita nao tenha sido exatamente esse, pois eles quase sempre estio preocupados em tratar a dramaturgia como um aspecto somado aos demais elementos cénicos, ¢ nao em separado. J4 que a literatura infantil nos legou essa lacuna, vamos procurar preenché-la pelos estudos da drea vizinha que sio os do teatro infantil. E importante destacar que as, publicagGes que foram utilizadas no levantamento nfo tém intengio de mapear um period especifico, Nossa escolha se pautou na contribuigdo que diretores, atores, encenadores, pesquisadores, criticos e dramaturgos trouxeram 4 temiitica em questo, bem como na flexibilidade que percebemos em suas colocagdes sobre o teatro infantil a ponto de poderem ser aproveitadas também para se pensar a dramaturgia que pode vir a projetar os espetaculos. Obviamente que, nem todos os espetéculos sao a atualizagao, no paleo, de uma dramaturgia escrita. Contudo, neste trabalho, estamos visualizando esta possibilidade, que é a mais recorrente nos processos de criagao cénica. 2 As vores, as interlocugdes e o vislumbre de uma dramaturgia pensada para publico infantil Ivo Bender, muito vontade em entrevista concedida 4 pesquisadora Vera Lucia Bertoni do Santos, fala sobre Teatro para criancas: sob 0 enfoque do dramaturgo' e + Titulo da seeo do artigo em que & apresentada a entrevista. A primeira parte & um breve estudo de autoria de Vera Liicia Bertoni do Santos sobre teatro e infancia Lo B Revista Leia Escola, Campina Grande, v. 19, n. 2, 2019 - ISSN 2358-5870 apresenta alguns elementos para pensarmos a dramaturgia destinada 4 erianga. Quando iniciou na dramaturgia infantil, na década de 1970, a literatura para criangas apresentava-se realista, e seus autores propunham temas que Bender julgava impréprios para a literatura destinada a este piiblico, Eu sempre considerei a vida ja suficientemente dura, muito dificil, para todos, principalmente para os idosos ¢ as criangas. Um modo de amenizar a dureza da realidade era criar um termo médio: era preciso, supunha eu, eriar pecas de teatro que partissem desse universo magico, dentro do qual a crianca se movimenta, com qual a crianca sonha ¢ onde seu imaginério esta imerso. (BENDER, 2003, p. 168), ‘A proposta de Bender tinha como premissa incorporar em sua dramaturgia 0 universo migico proprio da infincia, para a crianga poder transitar e se movimentar dentro das pegas, para que elas se apresentassem compativeis com o imaginério infantil, ‘no qual a erianea mergulha; essa proposta leva o pesquisador a encontrar solugdes espeeificas em termos de realizagdes dramatiigicas, como a integragao de personagens como animais, avis ¢ avés, bruxas e fadas, e a preferéncia pelo espago rural, onde estrelas ¢ Iuas brilham em harmonia com o espago e as personagens. “Para mim 0 ideal era fazer as historias acontecerem dentro de um cenario junto A natureza. Nele, bananeiras e espantalhos, macacos e pogos d’égua falam, estrelas caem do céu e se encontram com as pessoas aqui da terra”. (BENDER, 2003, p. 163). Aqueles que conhecem sua dramaturgia sabem que © fantasioso é um elemento forte e recorrente dentro dela, mas somado aos elementos da realidade, bem como enfatiza 0 proprio autor, ao lembrar que uma parte de seus personagens sio figuras humanas, gente conmm, “que trabalha, eostura, cozinha, faz pio, e luta para sobreviver”. (BENDER, 2003, p. 163). Quando perguntado sobre a identificagao de suas personagens com as criangas, Bender afirma que tal identificagao ocorre pelo fato de as criangas reconhecerem-se nas personagens: “Quando escolho um pequeno macaquinho para ser o herdi, uma estrelinha, ou ainda, um diabinho, as criangas reconhecem essas figuras como seus iguais. Em outras palavras: as criangas se veem nessas figuras”. (BENDER, 2003, p. 164). Naturalmente, quando a leitura do texto impresso for realizada, essa identificagdo também ocorrerd, Ao avaliar seu trabalho como dramaturgo para eriangas “no que se refere & construgio do texto, ao tratamento da linguagem, aos aspectos da agao dramiética e da encenagao em geral” (SANTOS, 2003, p. 168), Bender afirma existir uma grande diferenga entre eserever teatro para um piiblico de crianas e um piblico adulto, a comecar pelos assuntos a serem tratados, a linguagem e, principalmente, pela acio dransitica a ser mostrada, Sobre este iltimo ponto, ele afirma: Tanto é assim que a primeira preocupagao de um autor de teatro para criancas deve ser, necessariamente, a de fazer acontecer a acto ante o olhar do espectador. E se a peca contiver pouca acto, nto haverd heréi capaz de fazer surgir 0 interesse do piblico. Portanto, a agéo dramética € 0 primeito equisito nas pecas que se destinam s criancas. Depois é que vém 0 enreda e 0s hieréis. (BENDER, 2003, p. 179) Pronunciando-se dessa maneira, Bender sugere que os espeticulos para crianeas tenham suas agdes realizadas frente ao piiblico, que o dramaturgo nio use expedientes Lo 14 Revista Leia Escola, Campina Grande, v. 19, n. 2, 2019 - ISSN 2358-5870 como uma personagem contando a outra que tal ago aconteceu. As agdes principais do espetéculo precisam ocorrer ante 0 olhar do piblico, como afirma 0 proprio autor. Nenhum recurso deverd substituir a aco dramatica, afinal, ¢ por meio dela que as relagdes de atengdo e interesse entre plateia e personagens estardio garantidas. Quem estiver interessado em produzir dramaturgia para criangas, deve, portanto, ficar atento para isso: a acdo deve acontecer em cena aberta. Por isso recomendo: quando se precisa de uma cena em quc os personagens vao atravessar um riacho, deve-se faz8-lo ocorrer em cena. E como se faz isso? E 6 indicar na rubrica. Os diretores s4o suficientemente criativos para inventar regatos rolando por campos ou pedras. Teatro no é a arte do faz-de-conta? (BENDER, 2003. p. 179), Se as ages as claras, acontecendo aos olhos do piiblico, possuem tanta importincia na pega encenada, obviamente se trata de um recurso que também vai canalizar a atengao da crianga na leitura do texto impresso. O texto dramético ja possui uma estrutura que favorece a exposig¢ao da agdo, em que as rubricas, se bem escritas, podem conduzir o leitor pelo texto com a mesma forca de um narrador, bem como apontou Anatol Rosenfeld (2007). Apredominancia da acdo dramitica nfo deve significar, no entanto, a recusa aos outros elementos literirios. O termo “agio dramitica” oculta um pleonasmo, pois “drama”, em grego (cultura-lingua que inventou essa forma), quer dizer “agd0”. A ado & a forga motriz do drama, é 0 que o faz funciona. Se pensarmos nos trés grandes géneros literdrios sobre as quais discorre Anatol Rosenfeld em O reatro épico (2008), quais sejam, o lirico, 0 épico ¢ o dramitico, veremos que eles tém coexistido nas obras, dramatirgicas ao longo dos séculos, Para citar exemplos distantes no tempo, nas tragédias gregas e shakesperianas prevalece o drama como forga motriz, ums hi elementos épicos e liricos em nimero suficiente para impedir que tais obras sejam caracterizadas como puramente dramiticas. Para qualquer obra dramatirgica, @ pureza de género é possivel de ser aleangada, mas nio é necessariamente recomendada, visto que incluir tragos de outros géneros pode dar ao texto contornos mais complexos & dinamicos. Bertolt Brecht, que via de regra se opunha 4 ago dramitica e foi fundamental na criagdio das bases do teatro épico, no deixou de incluir tragos liricos em varias de suas obras, E contrariando muitas expectativas, escreveu um texto mais predominantemente dramético (Os fuzis da Senhora Carrar [1937]). Esses exemplos evidenciam que mais importante do que se ater a uma forma é colocar a forma a servigo do que se quer dizer ao piiblico (leitor e espectador). Dispensar 0 lirismo poético e as diversas formas de expressio do épico que podem ser inseridas na dramaturgia infantil seria © mesmo que apostar na ineapacidade desse publico de compreender nuances para alm do que 0 dramético oferece a olhos vistos. Um exemplo recente de dramaturgia infantil com predominancia do drama ¢ elementos dos outros géneros é a pega O principe atrasado, de Cassia Leslie e Ricardo Dalai (2018)*, na qual encontramos uma estrutura contendo prélogo, atos divididos em cenas, e entreatos. O lirismo de algumas falas e a exposigao narrativa (portanto, épica) do prologo e dos entreatos dio um refinamento ao texto impraticavel se ele se alinhasse a pureza da agdo dramatica. Quanto 4 linguagem, Bender afirma ter experimentado diferentes realizagdes em. sua trajetéria no teatro infantil. Em O macaco e a vetha, considerando as trés pegas que LESLIE, Cassia; DALAT, Ricardo. O principe atrasado: uma parddia teatral dos contos de fadas. Thustragao Roberta Asse. Londrina: Madrepérola, 2018. Lo 15 Revista Leia Escola, Campina Grande, v. 19, n. 2, 2019 - ISSN 2358-5870 formam a trilogia, 0 autor afirma que “consegue uma espontaneidade na linguagem teatral que se aproxima muito da linguagem empregada pelas proprias crianeas” (BENDER, 2003, p. 177). No entanto, as trés pecas tém tratamentos diferenciados. Na primeira, O macaco e velha (que abre a trilogia e cujo nome da titulo geral is és pecas), 0 tratamento € mais hidico, informa o autor. Em A invasito das tiriricas, a linguagem & mais objetiva, mais realista. “Na terceira pega, [4 estrelinha cadente] busquei compor wm texto lirico, embora simples. Aqui a linguagem se caracteriza pelo ritmo, pela sonoridade das palavras ¢ até mesmo por certas rimas embutidas nas falas”. (BENDER, 2003, p. 177). Ainda sobre a linguagem da trilogia, Bender afirma que, de modo geral, as trés pegas caracterizam-se por uma linguagem despojada, com um minimo de adjetivagao. “Creio que foi na trilogia que eu fiz um primeiro exercicio de despojamento da linguagem dramitica. Mais tarde isso se refletiria em meu teatro para adultos”. (BENDER, 2003, p. 177). Linguagem to espontinea quanto a linguagem da propria crianga, com tratamento lidico, mareada, por vezes, pelo ritmo e pela uuusicalidade da palavra; eserita caracterizada mais pelo despojamento do que pelo rebuscamento do vocabulario e da construgio frasal: eis algumas coordenadas que podemos resgatar da entrevista de Bender e aproveitar para caracterizarmos o texto dramético escrito para a crianga 5 estudos do teatro infantil também tém comparecido (timidamente, é verdade) quando a questao a ser debatida é a dramaturgia para a crianca. E 0 caso da publicacio A linguagem no Teatro Infantil, de Marco Camarotti (2005), na qual 0 autor investiga a construgio da linguagem no teatro para criangas de maneira muito original: compara uma producio eserita, dirigida e encenada por adultos com uma versio do mesmo espeticulo eserita e encenada por criangas. Prestando atengao em todos os elementos que constituem a linguagem cénica, ele conelui que o teatro infantil é aquele em que “a crianga ou é responsével pela atividade como um todo, ou se constitui na fonte principal de sua alimentacio, isto é, um teatro no qual é a linguagem da crianga que predomina e 0 orienta em todos os setores de sua criagao”. (CAMAROTTI, 2005, p. 161). Quanto & dramaturgia, o pesquisador também arrolou algumas consideragdes sob © titulo de O adulto escrevendo ou encenando para a erianca e, embora sua preocupacdo tenha sido a dramaturgia escrita para ser encenada (e mio lida, como é 0 foco de nossa pesquisa), suas palavras podem nos indiear um caminbo: Ao escrever para a criausa, € precise lembrar gue o texto deve permanecer © ‘mais possivel em aberto, em sentido amplo, possibilitando @ erianca circular por ele, imagina (sic) ou coneretamente, armando-o ot desarmando-o ¢ voltando a armé-lo, ao impulso de sua criatividade e de sua ansia de construcdoirecoustructo, sob a égide de uma liberdade consciente responsivel, que tem a marca de sua profunda espontaneidade. (CAMAROTTI, 2005, p. 164). O fragmento de Camarotti pode ser entendido a partir da ideia de representacio do texto dramitico no teatro, contexto no qual um texto aberto seria aquele com recursos que permitissem 0 manuseio no jogo cénico prazeroso, bem como o exercicio da criatividade em cena. Mas o fiagmento também pode ser entendido como uma caracterizagio do texto dramitico infantil, que deve ser aberto no sentido da plurissignificacdo que precisa carregar; que precisa mergulhar no imagindtio da infincia a ponto de permitir & erianea circular por ele, armando-0, desarmando-o, e voltando a Lo 16 Revista Leia Escola, Campina Grande, v. 19, n. 2, 2019 - ISSN 2358-5870 armé-lo; que necessita estar em sintonia com as caracteristicas proprias da infaneia, para poder corresponder a elas no momento da leitura. Camarotti também aborda a questio da extensio dos textos, que “nao devem ultrapassar quarenta ou quarenta e cinco minutos de duragio no espeticulo, para nio promover a dispersao da crianca, pois, para ela, esse tempo é suficiente, e inteiramente proprio para sua satisfagdo criativa’. (CAMAROTTI, 2005, 164). Transferindo essa informagdo para a dramaturgia escrita, talvez a extenstio do texto alcangasse o leitor fluente (a partir dos 10/11 anos), segundo as categorias apresentadas por Coelho (2000). Sobre o tempo, & interessante notar que sua delimitagio nio é comum apenas para espetdculos infantis, mas tem acontecido ha muito tempo também com os espetaculos adultos, So mais infrequentes as encenagdes para adultos que ultrapassam duas horas. Textos classicos como os de Shakespeare sio adaptados (algumas vezes até retalhados...) para atrair 0 piblico ja condicionado pelo tempo de apreciacio audiovisual do cinema. Outras questdes levantadas pelo pesquisador ~ e que julgamos importante resgatar aqui — sio a composigdo de wn texto com muita sugestao de agdes, © uso moderado da palavra e o emprego de bastante humor. Além disso, 0 autor afirma que o texto escrito para crianga também deverd ser entremeado de miisica e de canto. No caso de o texto nao ser encenado, o que fica registrado na dramaturgia sio didlogos com construgdes rimadas e com arranjos inusitados, como temos percebido, percorrendo as paginas da maioria dos textos destinados ao publico infantil ‘Outro autor que tem comparecido quando se trata dos estudos do teatro infantil que podem ser aproveitados para se pensar em uma dramaturgia infantil ¢ Dib Carneiro Netto (2003, 2014), que, come critico de teatro infantil e jurado de prémios na referida rea, tem colaborado para os estudos que estamos pontuando neste capitulo, muitas vezes reunindo artistas da area teatral em tomo de temiticas caras ao teatro infantil Sidnei Caria, fundador, produtor e diretor da Cia. Maracuja Laboratorio de Artes (Sto Paulo), em depoimento para a obra Jé somos grandes: teatro infantil (entrevistas, criticas, debates, balangos e rumos), de Carneiro Neto, traz a tona importante formulagao sobre o humor no teatro. Afirma ele: (© humor é fundamental para o ser humano. As situagdes que mexem com 0 nosso humor sio seguidas de swrpresas, identificagdes © sensagio de superioridade, no sentido positive, quando nossas referencias sto tocadas & nos colocam mum lugar seguro, onde podemos ter nossa autoestima alimentada, com a compreensio desses jogos constituides de equivoces exageros, caricaturas. (CARNEIRO NETO®, 2014, p. 38), Embora nesse fragmento Caria nao faga distingdo entre 0 humor no teatro para criangas ou para outras categorias de piblico, sua afirmacao pode servir de estimulo para abrirmos um espago, neste estudo, para o tema em questiio. O humor, segundo o artista paulista, aproxima 0 piiblico do espeticulo, logo, pode aproximar o leitor do texto dramitico. Por ser um espago conhecido do ser humano, o humor traz seguranga a quem entra em contato com o espeticulo ou com o texto e até sensagiio de superioridade, 4 medida que leva 4 compreensio das situagdes roteirizadas ou © Embora esta fala seja de Sidnei Caria, cla nao se caracteriza como apud porque 0 autor, Dib Carneiro Neto, no esté fazendo uma citagao de obra (0 livro reiine entrevistas, depoimentos etc.). O mesino acontece com outras citagdes de entrevistados extraidas do Livro desse autor que serio apresentadas seaui Revista Leia Escola, Campina Grande, v. 19, n. 2, 2019 - ISSN 2358-5870 encenadas, como algo do qual o leitor ou 0 espectador podem participar ativamente na construgao do(s) sentido(s). Quanto ao humor voltado a crianga, Caria destaca: ss0 [0 humor no teatro infantil] & uma espécie de cécega no raciocinio e um tesouro para as criancas, que estio neste momento com o seu raciocinio em. formagaio. A forma mais eficaz € um eterno exercicio do pensamento crtico, (0 jogos a serem propostos ¢ infinitos a serem descobertos. Acredito que mais importante € nunca menosprezar a inteligéncia da crianga. Existem as, metéforas, tanto visuais, sonoras ou da propria expresstio do ator ov da palavra para serem explorados, sendo sempre importante manter a surpresa, 0 frescor, o ato de surpreender com a brincadeira entre o certo e 0 errado, jogando com as referéncias da crianga ¢ trazendo as novidades da contemporaneidade, (CARNEIRO NETO, 2014, p. 38). Para o artista, o humor parece ser a porta de entrada da crianga no teatro infantil, A partir dele é que a crianga poderé percorrer o espeticulo teatral —e 0 texto dramitico, acrescentamos! — de modo a articular os elementos que compdem esses produtos culturais. O pensamento critico comparece quando o humor é flagrado no texto dranxitico e no teatro para criangas, a despeito do que muitos podem considerar, Metiforas presentes na encenagao ¢ no proprio texto sio compreendidas, assim como a surpresa e a novidade sio apreendidas pela crianga que vé o espeticulo ou 18 o texto impresso. O humor, deduzimos da declaragao de Caria, permite ainda jogar com as referéncias da crianga e acrescentar elementos da contemporaneidade, construindo um contraponto entre o conhecido eo desconhecido, no qual a crianga logra a ampliagio de seu repertorio cultural por meio da linguagem da encenagio e dos recursos presentes nos textos dramaturgicos. Marcia Abujamra, diretora paulista, também em depoimento para a obra de Cameiro Neto, trata do humor enquanto recurso a ser considerado no teatro para criangas: © humor amplia as possibilidades de conexdo da crianga com © mundo, com as pessoas que a cercam e, claro, com o espeticulo teatral. Ele aproxima, cria © sentido de aproximagio ¢ pertencimento. © humor tira 0 medo do desconhecido, permite novas maneiras de experimentar ¢ expressar 0 mundo. Ele permite o insdlito, 0 surpreendente, 0 absurdo e, dessa maneira, estinmula a imaginacio das criancas para lidar com os diferentes desafios do dia-a-dia As possibilidades de respostas se ampliam. Sem humor nto dé para viver, sejamos adultos ou criangas. E € bom saber e experimentar, desde pequeno, que, mesmo quando uma situacdo parece insuportével. é mais ffeil encontrar formas de transformi-la quando se tem humor. (CARNEIRO NETO, 20148, p43). Na mesma perspeetiva de que trativamos anteriormente, a declaragio de Abujamra reitera a importaneia do humor na construgio do teatro para a infancia, 4 medida que afirma que tal recurso amplia as possibilidades de conexio da crianga como mundo, Ele é capaz de oferecer 4 crianga a sensacdo de pertencimento, to necessiria na arte infantil, pois da sentido a existéncia e detona um processo de reconhecimento das proprias vivéncias da crianga. No mais, a presenga do humor no espetaculo teatral ou no texto dramitico, segundo depreendemos da declaragio da artista, leva a crianga a perceber 0 humor enquanto recurso que se coloca fora da esfera artistica e tem em 18 Revista Leia Escola, Campina Grande, v. 19, n. 2, 2019 - ISSN 2358-5870 importancia na maneira de se viver e de se perceber os fatos cotidianos. Abujamra ainda aponta para as maneiras de se fazer a crianga rir no teatro: Um jeito eficaz de fazer a crianga rir? Acreditando na capacidade que toda crianga tem de pensar as acdes apresentadas ¢ se relacionar com elas: acreditando no seu. maravilhoso mundo magico, onde tudo & possivel apostando em sua sensibilidade para reconhecer gestos e sentimentos, na sua hhabilidade para traduzi-los para seu mundo. Acima de tudo, mantendo-se sempre encantado com a infinita capacidade que as criangas tém de acreditar! (CARNEIRO NETO, 20142, p. 44) A apreensio do humor pela crianga seri to satisfatoria quanto for ousada a aposta dos criadores do teatso infantil na capacidade que a propria erianga possui de estabelecer relacdes, buscar o sentido daquilo que é apresentado, bem como nos aponta a declaragio de Abujamra. A construgie do humor, segundo a diretora paulista, precisa considerar a caracteristica propria da crianga de acreditar no magico e de filtrar desse mundo proprio da infincia o investimento da dramaturgia e da encenagao naquilo que leva a crianga ao riso sincero e espontaneo. Para a artista, o humor esta diretamente associado ao mundo da crianga, suas crengas e modos de perceber a realidade: Elas [as criangas] acreditam (ou sabem?) que todo ser, animado ou inanimado, fala: que o pé de pirlimpimpim faz viajar; que varinhas magicas existem ¢ que a magia existe; que todo ano nasce um dragto: que elas podem ser prineesas ou bruxas, com isso criam seu proprio mundo e apreendem com ele, experimentam respostas, reagdes, e esse mundo fica mais interessante e rico. [..] © humor flexibiliza © pensamento ¢ a emogio. Se nés adultos acreditamos nisso, as criangas & que nos ensinaro o que devemos fazer para faz8-las tir. (CARNEIRO NETO, 2014a, p. 44). Nossos olhos e intelecto saltam frente a uiltima parte da declaragdio de Abujamra. Longe de ofrecer uma receita da construcao do humor no texto dramético e no teatro para a infincia, a artista afirma que é conhecendo a infincia e seus desdobramentos que 0s interessados em escrever ou fazer teatro para a erianga saberdo utilizar o humor. Ea propria crianea, com sua linguagem e suas crengas, que ensinaré o artista adulto a manejar 0 humor dentro de um texto dramitico ou de um espeticulo teatral, A medida da utilizagio do humor ¢ as maneiras de mostra-lo ¢ de incité-lo estio na propria crianga, Cabe a0 dramaturgo ¢ aos demais artistas envolvidos na montagem de um espetéculo infantil conhecer a infancia de modo a conseguir retirar dela nuances que resultem no humor despretensioso ¢ instintivo. Em seu Diciondrio de Iumor infantil, Pedro Bloch (1997) apresenta algumas definigdes bem-humoradas e até mesmo poéticas formuladas por criangas: “Alegria é um palhacinho no coragdo da gente. Arco-iris é uma ponte de vento, Rekimpago é um barulho rabiscando o céu. Cobra um bicho que s6 tem rabo. Avestruz é a girafa dos passarinhos. Caleanhar é 0 queixo do pé. Helicéptero é uum carro com ventilador em cima, Paciéneia é uma coisa que mamie perde sempre. Sono é saudade de dormir.”. Os exemplos apresentados por Bloch reforgam a fala de Abujamra sobre se inspirar nas criangas a fim de encontrar os recursos para a construgao do humor na dramaturgia Vladimir Capella, veterano autor e diretor paulista, também em depoimento para a obra de Cameiro Neto, chama atenco para 0 tipo de humor que deve ser inserido em uma produgio para criancas: Lo 19 Revista Leia Escola, Campina Grande, v. 19, n. 2, 2019 - ISSN 2358-5870 As vezes a erianga ri nos momentos mais inesperados de um espetéculo. Espontaneamente. Uma histéria deve ser bem contada. Pode ter humar, sim. Pode ser uma pega até bem engracada. Se for boa a pega, tudo bem, étime. Mas que nto é fimdamental que ela ra, ah, nfo € mesino! Brilho n0s ollos também conta, Silencio, medo, interagao,ligrimas,rudo isso conta, Crianga é um ser humano como nés. Ou no? Além do mais, &a coisa mais ficil fezer tuna crianga rir no teatro, Receita prontissima. Todo mundo sabe. Até a crianga sabe, porque esté acostumada, 4 entendet 0 mundo adulto melhor do que supamos e compreende que aquilo foi feito para ela ric. E ela ri porque quer ser aprovada, Entio é s6 botar o ator caindo toda hora e pronto! Falar bobagem, ser bem idiota, bancar 0 palhago e todos os outros esterestipas. E se alavém, quando moatou um espetdculo, antes pense em gual jeito € mais, eficaz para a crianca rr, pode mudar de profisio. (CARNEIRO NETO. 2014a, p. 37-38). © que parece incomodar Capella sio dramaturgias e espetaculos que, frente a necessidade desenfreada de fazer a crianga rir, abrem mio do humor que destacdvamos (sincero, espontineo, despretensioso, instintivo) e comprometem a construgio de uma histéria nos moldes draméticos. Mais importante que a presenea do humor é a necessidade de se construir dramaturgias e espetéculos capazes de articular a acio dranxitica e canalizé-la para o fluxo dos acontecimentos da historia lida ou encenada. Se a narrativa dramética partir dessas convicedes, ela pode apresentar humor ou outros recursos que garantam a presenca do universo da erianga dentro da peca e a maneira de lidar com a construgao adequada da dramaturgia, Por acompanhar a trajetoria premiada do autor e diretor paulista no teatro para criangas, temos certeza de que, por meio de sua colocagao, ele busca denunciar 0 riso facil ou forgado, que brota dos esterestipos tao conhecidos do teatro infantil, equivocos da concepgio da dramaturgia de nossa época e de outros tempos. Também é util lembrar que o humor pode estar presente em textos & encenagdes que nfo sejam majoritariamente cOmicas. E a utilizagio de humor nesse caso nao deve ser vista como uma concessio as criangas, pois no teatro adulto o humor em tragédias e dramas (aqui no sentido do subgénero dramatirgico) se faz presente em textos como Romeu e Julieta, de William Shakespeare, e Um bonde chamado desejo, de Tennessee Williams, s6 para ficar em dois exemplos amplamente conhecidos. So chamados de “alivio eémico” os momentos em que, geralmente apds uma cena de alta tensio dramética, um(a) personagem da 4 plateia a oportunidade de rir de algo que, via de regra, tangencia as questdes principais trazidas pelo enredo. Fany Abramovich, na obra O estranho mundo que se mostra és criancas, parte do conjunto de cento e quatorze textos dramiticos inscritos no Concurso Nacional de Teatro Infantil do ano de 1976 e aponta com minticias os t6picos que evidenciam a maneira de seus autores conceberem dramaturgia para criangas. A longa citagao nos dai uma amostra de como os inscritos dimensionaram algumas questes importantes em seus textos: Que 05 novos (2!) autores nao tenham a menor ideia do que seja tum texto teatral (..), que confimdam teatro escolar com teatro infantil, que confindam aula com espeticulo, ainda scria esperado... Até mesmo que, no afi de se mostrarem inteirados da linguagem teatral, deem rubricas de TV para 0 paleo... Que nao tenham ideia do que seja uma produgdo teatral... Que um njo dominio da lingua portuguesa se apresentasse, também seria cogitével mas o analfabetismo mais crasso jé superava o nivel das expectativas... Que 0 20 Revista Leia Escola, Campina Grande, v. 19, n. 2, 2019 - ISSN 2358-5870 moralismo estivesse presente, vi ld... Mas que a ténica fossem: mentirs, chantagens, secigdes, fares, sedugSes, wraicées, castiges, enfim, um festival de condutas “edificantes”, foi alem do imaginado (..) O que dizer dos preconceitos de toda e qualquer espécie, da rigidez e do convencionalismo no comportamento dos personagens, da grossura como elemento constante de “humor, da filosofia de baixa qualidade, do palavreado adult, do exeesso de verborragia, das situagdes. inverossimels aventadas, da pouca ago existente (justo em teatro?) da vivencia estupefaciente destes personagens estas histrias infantis? (ABRAMOVICH, 1983, p. 81-82) A autora estaria disposta a aceitar defeitos como a falta de conhecimento apurado sobre estrutura e construgio dramatingica, didatismo, confusio entre roteiro televisivo e dramaturgia infantil, entre outros. Entretanto, © quadro que a estudiosa depreende do conjunto de textos é calamitoso ¢ apresenta equivocos de diversas naturezas, mas o que nos chama mais a atengo so o desconhecimento da infincia e suas propriedades, bem como da concepgao da arte dramitica que subjaz a esse pubblico. Aspectos levantados por Abramovich, como o moralismo, os preconceitos, a rigidez e 0 convencionalismo, ¢ a filosofia de baixa qualidade, dizem muito sobre 0 momento cultural do pais, entao sob regime militar hé doze anos, 0 que certamente se refletiu de forma latente nas concepgées dos textos submetidos ao concurso, visto que naquele momento apenas se iniciavam os primeiros acenas para a redemocratizacao, que s6 viria a se coneretizar dali a quase uma década. Some-se a isso a escassez de estudos, até aquele momento, sobre a dramaturgia para a infincia e discusses nos circulos universitarios e artisticos, o que pode ter contribuido para deixar os autores e as autoras que submeteram textos sem referéneias tedrieas solidas para aprimorarem seus trabalhos. Contudo, seriamos injustos se, neste momento em que caracterizamos a dramaturgia para crianea na década de 1970, nao fizéssemos referéncia ao trabalho, tanto dramatiirgico quanto de encenagao, do Grupo Vento Forte, liderado por Ilo Krugli, que despontou em 1974, com a pega Histérias de ventos de lencos. Sobre 0 impacto dessa criagio na época de sua estreia, Abramovich afirma: [...] marcou-se um divisor de aguas nitido ¢ claro do que ¢ um espeticulo ditigido a criangas: bonito, deslumbrante, provocando “ais e uis” [de admiracao], inesperado, envolvente, com impasses e discussio de continuidade da narrativa interrompida, usando uma linguagem poética, uma conducio lirica e inventiva e com um profundo respeito pela inteligéncia e curiosidade da crianga, (ABRAMOVICH, 1983, p. 98) A dramaturgia e a proposta de encenacdo que Ilo Krugli articula na pega em questo e que se percebe na condugio do texto escrito constitui, de fato, uma novidade para a época e para as décadas que se seguiram. O tratamento poético do texto e da cena, um enredo que corresponde A fluidez do pensamento e do raciocinio da erianga, a possibilidade de se produzir uma dramaturgia e um teatro que respeita a inteligéneia e a curiosidade da crianga, entre outros recursos que Krugli utiliza, trazem promessa de renovagio ao cenario catastréfico que Abramovich caracterizou na época das. suas consideragdes em relagdo a0 conjunto de textos que analisou, quando jurada de um coneurso de dramaturgia infantil. E a mesma autora que nos informa que a proposta do grupo Vento Forte influenciou outros elencos, dramaturgos e diretores. Mas 0 grande ex 21 Revista Leia Escola, Campina Grande, v. 19, n. 2, 2019 - ISSN 2358-5870 contingente de criadores do teatro infantil seguiu produzindo o teatro que Abramovich caracterizou como estranho, desqualificado e inoportuno. Raimundo Matos de Ledo (2010), professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), no artigo “Teatro para criangas: dramaturgia e encenacdo”, também utilizou a abordagem de Abramovich para caracterizar a construcao da dramaturgia e do teatro infantil nas décadas que nos antecedem e considera o quadro “aterrador”, principalmente se ponderarmos que nuitas das caracteristicas apontadas por Abramovich comparecem na dramaturgia infantil de nossos tempos. Afirma ele: “O texto ou roteito que serve para o espeticulo veicula visdes de mundo do autor, sempre um adulto, que, em seu ar professoral, mostra-se como educador, mas na verdade presta um desservigo ao papel educativo do teatro”. (LEAO, 2010, p. 87). Isso porque o papel de educar no teatro nao pode ser confiundido com o simples repasse do legado da geracio adulta aos pequenos, nem com a perpetuacao de ensinamentos dos adultos, que acreditam deter todas as verdades e que escolhem o teatro infantil como veieulo para tansmiiti-las. O papel educativo do teatro é, antes de tudo, o da aprendizagem da vida, das relagdes sociais e politicas, das relagdes com a natureza e com os outros seres humanos, conhecimentos esses que devem ser apresentados as criancas a partir do Angulo da arte, do pacto com o hidico ¢ com a fantasia, em um proceso de decodificagio da realidade a partir do texto e da cena dramatica, excluindo desse processo qualquer atitude que delegue ao adulto superioridade e funedo didatica. 0 adulto precisa, sim, conhecer 0 mundo da crianga e mergulhar nele de maneira intensa. Desse processo, resultaré uma dramaturgia e uma linguagem para a cena teatral que se colocam ao lado da crianca e de seus interesses, potencializando a sua condi¢ao de fruidor da literatura dramtica e do espetaculo teatral, e no como meros receptores das informagdes que os adultos acreditam que precisam, na sua condicio de superiores, repassar aos pequenos. Nesse ponto, deparamo-nos com a dependéncia da crianga com relagio a0 adulto. Assim como na literatura infantil, o teatro expde a subordinagio da crianca frente aos adultos com quem convivem. Por depender do adulto, a crianga vé-se limitada as possibilidades que the so oferecidas, sempre escolhas daqueles, subordinando a sua autoridade os gostos e escolhas dos pequenos. No teatro, cria-se uma cadeia dificil de ser rompida: a) uma grande parcela dos autores de dramaturgia infantil e dos encenadores, ao conceberem os produtos culturais que os pequenos consumirao, assumem a postura professoral da qual tratamos anteriormente e fazem da dramaturgia infantil e do espetaculo teatral uma possibilidade de repassar 0 legado do adulto a crianga, como se suas verdades fossem a tnica justificativa para a existéncia da arte teatral e seus derivados; b) as escolas, espago proficuo para a produgao teatral no pais, tém adultos que desempenham a fungio de coordenadores pedagdgicos ou diretores, quase sempre mais interessados nos espetaculos que listamos anteriormente, ou nos espeticulos que cumprem fungio utlitéria-pedagogica, associando contetidos e ensinamentos do curriculo escolar a dramaturgia e ao espeticulo para criangas: ¢) os pais so, geralmente, incapazes de distinguir entre um teatro infantil que observa a esséneia da infineia ao se constituir em produto cultural e um teatro que abdica da linguagem attistica de seus elementos em prol dos ensinamentos dos adultos, ou entdo sio levados pelos modismos que oferecem ao espectador um pseudoteatro, protagonizado pelas personagens dos desenhos animados mais assistidos no momento. Considerando as trés situacdes, a crianca distancia-se cada vez mais do teatro que lhe possibilite uma verdadeira experiéneia estética, pois, se depender de muitos autores € ex 2 Revista Leia Escola, Campina Grande, v. 19, n. 2, 2019 - ISSN 2358-5870 diretores, de coordenadores pedagdgicos e de uma grande parcela dos pais, a crianga no tem poder de decisdo sobre 0 que assistir. ‘Assim sendo, quais so os caminhos que nossos dramaturgos, encenadores, diretores, atores, cendgrafos, figurinistas e misicos precisam trilhar para que o teatro infantil atinja a infancia em suas particularidades, sem desmerecer a inteligéncia infantil, assim como a capacidade que a crianga tem de decodificar o verbal, o sonoro e © visual? Cameiro Neto (2003, 2014) contribui com uma concepgio de teatro e dramaturgia para a infancia que no legue aos nossos pequenos os desastres © os equivocos de outrora. Destaca ele: Canso de criticar espetaculos para criangas que perdem a mao na linguagem. artista para virar uma aborrecida sucessto de ligdes de moral. E claro que & perfeitamente possivel, ¢ até desejivel, que uma peva para os pequenos ajude a compreender o mundo, a vida, os valores que mais prezamos. Mas como fazer isso no teatro sem cair na pregacao macante? Ensinando da forma mais eficaz possivel; sugerindo, mais do que mostrando; enredando mais que catequizando, (CARNEIRO NETO, 2014e, p. 74-75). Quando 0 autor declara que é preferivel sugerir a mostrar, ele nos remete aos trabalhos de teatro infantil que, com poucos elementos e recursos, sio capazes de compor todo o universo do imaginério da plateia, Sem ofrecer questdes prontas, mas levando a crianga a pensar, relacionar, agir intelectualmente a partir da linguagem dransitica, esses trabalhos despontam como exemplares na construcio da dramaturgia e da cena, bem como de todos os elementos que as compdem. Dentre um amplo conjunto de pistas que Cameiro Neto tem nos legado em suas criticas especializadas em jornais & revistas nos titimos anos, cabe transcrever aquelas que julgamos esseneiais, como a que segue! Nao é buscando passar mensagem que um autor cria verdadeiramente uma dramaturgia infantil, Nao € necessirio invadir, arrombar o imaginario das criangas com as chamadas regras de conduta. E mais honesto tentar contar livremente uma historia e deixar que a crianca se identifique, que a vivencie por si mesma. Explicar é redutor sempre. Crianga é capaz de entender alegorias, metéforas. Estranheza é saudavel. Leva cada um a interpreta, & sua ‘maneira, o que Vé, 0 que ouve, 0 que Ie. (CARNEIRO NETO, 2014c, p. 54), © autor aposta na capacidade de a crianga decodificar a linguagem eénica, se ela for resultado de um processo de estudo e buscas no préprio contexto da infincia. A dramaturgia e 0 teatro que nos parecem ultrapassados, tendo presente o fragmento de Carneiro Neto, sio aqueles que insistem em repassar de modo diditico normas e regras visando a conduta do espectador, aos moldes do que jé apontou Abramovich. Na perspeetiva de Cameiro Neto, os envolvidos com a arte dramitica precisam agir com hhonestidade, ou seja, sem trapacear, sem colocar em risco a esséncia da dramaturgia € do teatro infantil, que é contar uma histéria fazendo uso de uma linguagem caleada no lidico e na surpresa, no encantamento e na novidade. “Esse ¢ 0 grande achado da dramaturgia para criangas: dar seu recado de forma lidica, poética, e com maior simplicidade possivel”. (CARNEIRO NETO, 20144, p. 192). ex 2B Revista Leia Escola, Campina Grande, v. 19, n. 2, 2019 - ISSN 2358-5870 Ainda pingando dos estudos de Carneiro Neto os aspectos que julgamos relevantes, tendo em vista a dramaturgia e 2 encenagdo que favoregam os aspectos intrinsecos da infincia, destacamos Em vez do dedo cm riste ¢ da ligdo de moral, vale mais a pena, ¢ € até mais hhonesto, tentar contar livremente uma histéria ¢ deixar que a erianga se identifique, que a crianca vivencie por si mesma. [... Nao é buscando passar mensagens pedagégicas ou instrutivas que um autor cria verdadeiramente ‘uma dramaturgia infantil, O melhor ¢ tentar dar dimensto dramética para rnossos conflites mais intimos. Para isso, basta querer falar de si com absoluta sinceridade, (CARNEIRO NETO, 2003, p. 13). A possibilidade de dar uma dimensio dramética para os conflitos mais intimos do dramaturgo, do diretor, enfim, do trabalhador do teatro infantil, parece ser uma boa medida quando se quer fugir da construgio dramitica que tem como foco passar ‘mensagens ¢ instrugdes. O autor destaca mais uma vez a honestidade que deve existir no momento de conceber 0 objeto artistico que temos perseguido neste estudo. Tal hhonestidade pode direcionar o trabalho de todos os envolvidos na criagio dramatica, principalmente o trabalho do dramaturgo, aja vista a possibilidade de o espeticulo ser projetado a partir de um texto dramatico. Acreditamos que se trata de um comego bastante positivo para a atividade dramitica que, a partir de um texto que se anuncia verdadeiro, honesto, sincero no tratamento com a crianga, ter’ condigdes de repassar essa caraeteristica para os demais elementos da linguagem dramética, contando, claro, com que seus idealizadores também intencionem oferecer a erianga um produto cultural com essas caracteristicas. Contudo, agir com honestidade na concepgao do teatro infantil no significa oferecer ao espectador um produto cultural que se desvela facilmente, gratuitamente no texto dramatico ou no palco. Carneiro Neto, ao comentar o espetaculo Mozart apaga a Jc, que tem a dramaturgia criada por Cristine Rohrig, afirma: A estranheza do texto esta justamente na sua coragem de nto ser linesr, em nto abrir mio de imagens metaforicas, em nfo facilitar nada para a platea. Quem quiser que entenda — e nao ha nada de mais saudavel do que isso. Quase sempre, uma s6 peca como essa funciona melhor do que dez aulas de Educago Artistica no colégio. Sair do teatro com essa sensagao de estranhamento ¢ um étimo passo para a crianga comegar a entender todas as possibilidades ilimitadas da arte, (CARNEIRO NETO, 20144, p. 196). Oferecer ao leitor e ao piblico uma linguagem que nio abre mio da articulagio de elementos que desafiem o mundo conhecido pela crianga e apostar em situagdes que lidam com a simbologia, a analogia e as situagdes que beiram o desconhecido sto estratégias que o teatro infantil pode assumir para tirar o publico do lugar-conum, daquilo que é regular, seguro ¢ estavel. Esse abalo que o espectador sofierd é positivo ¢ faz com que a crianga acumule experiéncias estéticas diversificadas com a linguagem cénica, numa crescente busca por compreender aquilo que, em um primeiro momento, apresenta-se como estranho, inusitado e insélito. “Nada como uma histéria bem contada, fluente, com ritmo, didlogos certeiros, enfim, com contetido, e a0 mesmo tempo sem abrir mio da ousadia”. (CARNEIRO NETO, 20144, p. 211). E preferivel, no teatro feito para criangas, uma equipe ousada do que um grupo de realizadores que Lo 24 Revista Leia Escola, Campina Grande, v. 19, n. 2, 2019 - ISSN 2358-5870 apostam no conhecido, Ousar parece ser uma palavra de ordem para a dramaturgia € para o teatro infantil. Os temas que perpassam a dramaturgia e o teatro infantis também podem sair do circulo rotineiro que nossas criangas esto acostumadas a frequentar. Em texto sobre 0 dia mundial do teatro infantil (20 de marco), Carneiro Neto apresenta um panorama de como foi o debate Interagées em cena, organizado pelo Ttat Cultural, coma presenga da drammturga argentina Maria Inés Falconi. Em determinada parte do texto o autor trata dos temas que o teatro para criangas pode abarcar: ‘De fato, durante o debate, alguns temas foram listados como sendo tabus no teatro feito para os pequeninos: morte, doengas, violéncia, abandono, sextalidade, divércio. “As sociedades rechagam certo temas no teat, mas as eiaagasconviver com eses temas em sev cotdian e, assim, podeia set catartica a experiéncia da abordagem teatral”, argumenta a argentina. “Agora, & preciso ter euidado para nto defender que esses temas devam sec tratados didticac pedagogicament. Jamas. E preciso que srjam espontancamente © sempre com viés artistico”, [salienta a dramaturga]. (CARNEIRO NETO, 20146, p. 48). Ao invés de negar o contato com esses temas pelo viés do teatro infantil, seus criadores possibilitariam uma experiéneia catistica para a crianga, Uma vez que a crianga nao é privada desses temas na vida cotidiana, percebé-los pelo prisma do teatro constitui uma possibilidade de eles compreenderem melhor o mundo, os seres humanos, as relagdes sociais. Por isso, aborda-los no teatro ganha uma dimensao purgativa, eapaz de constituir uma pritica libertadora para a crianga, a despeito do que mnitos pais podem vir a achar Ela [Maria Inés Falcoai] ja escreveu ¢ montou um texto infantil em tomo de questées relativas ao divorcio ¢ foi muito criticada pelos pais em Buenos Aires. Outra de suas pegas infantis fala de meninos que moram na rua € dormem nas caleadas da capital argentina, Os pais saiam indignados, dizendo que aquilo nao era peca para seus flhos verem. (CARNEIRO NETO, 2014b, p48). Como ja apontamos, a interféréncia dos pais muitas vezes pode ser catastréfiea para as criangas que buscam investigar a vida e as questes humanas no teatro. Os temas abordados pela dramaturga e diretora no agradavam os pais, mas cabe lembrar que o empreendimento da artista era oferecer essas temiiticas aos pequenos. Passando pelo filtro do adulto, obviamente a abordagem dos temas pode se tomar incdmoda e desagradivel. A honestidade no trato da dramaturgia e da encenagio, tio cara a Dib Carneiro, faz-se presente no trabalho artistico de Maria Inés Falconi, mas ndo corresponde as atitudes de muitos pais frente ao teatro proposto pela dramaturga argentina. De situagdes como a apresentada no excerto, podemos deduzir o quanto uma parcela dos pais ainda blinda seus filhos e tenta escondé-los da realidade, e mais, nio permitem que seus filos vivenciem determinadas temiticas nem no teatro, que carrega a possibilidade da experiéncia catartica da qual falivamos, A partir de nosso ponto de vista, agir assim com a crianga ¢ justamente trapacear no modo de apresentar-lhe 0 mundo e a arte a ela dirigida ex 25 Revista Leia Escola, Campina Grande, v. 19, n. 2, 2019 - ISSN 2358-5870 Ha apenas um aspecto positive nessa situagdo e ele reside justamente em ratificar a forga que o teatro (em geral) tem por ser uma arte em que os personagens se fazem presentes em frente ao piblico, sem a mediacao de uma tela, como € 0 caso do cinema. Dificilmente sabe-se de contestacio de pais sobre os filhos assistirem a filmes que falam, por exemplo, sobre perdas familiares, como se pode ver em Bambi, O rei eGo ¢ Procurando Nemo. No teatro 0s personagens que passam por tais situagdes no provém de um universo espetacularizado como o do cinema e, por isso mesmo, podem ‘mais facilmente criar identificagao com as criangas. 3 Consideragdes finais Carneiro Neto, em Jé somos grandes: teatro infantil (entrevistas, eriticas, debates, balancos @ rumos), trata em determinados momentos especificamente da composicao da dramaturgia infantil. Em um deles, o autor assim se pronuncia: “No caso do teatro eserito ou adaptado para o piblico infantil, o valor dos sonhos, o estimulo 4 fantasia, os jogos simbolicos, 0s trocadilhos hidicos — tudo isso tem de estar contido nos didlogos ou sugerido por eles”. (CARNEIRO NETO, 2014c, p. 53). A elaboragio dos didlogos pensados para serem lidos ou assistidos pelos pequenos precisa contar com os elementos arrolados pelo autor, sob pena de, se assim nao procederem, constituirem um produto insosso e enfadonho. © autor delineia a dramaturgia a ser oferecida 4 crianga como “Um texto sem medo de ousar, de subverter, com diilogos inteligentes, ritmo fluente, aces ininterruptas”. (CARNEIRO NETO, 2014e, p. 220). Ousadia, subversio e fluéncia, deduzimos, a partir do autor, sio elementos que nio podem faltar na dramaturgia enderegada ao pequeno leitor. No encerramento da sua obra, o autor manifesta um desejo que reproduzimos no fechamento de nosso texto: Que surjam muitos autores noves, com plena sensibilidade para entender que escrever para criangas ndo significa ter barreiras, censuras © limitagdes de temas ou abordagens. Ao contririo, que uma nova safra de autores solte as rédeas da fantasia, com responsabilidade © ética, mas sem medos nem reticéncias, de forma a surpreender até os adultos (CARNEIRO NETO, 2003, p. 218). © desejo do autor de perceber na cena contemporinea dramaturgos sensiveis ¢ libertos das caracteristicas que diminuem a poténcia da criagdo para os pequenos encontra correspondéneia em nosso desejo, pois também apostamos na existéncia de imma a partir de seus elementos uma dramaturgia que valorize a inffincia e se cons intrinsecos. A dramaturgia destinada ao ptblico infantil no esperou que os estudos da literatura de recepgao infantil langasse as coordenadas ou ditasse os parametros para 0 género se manifestar no pais. Ele simplesmente aconteceu. Com a incluso do género dramitico nos editais do extinto Programa Nacional Biblioteca na Escola (PNBE), em 2005, os textos teatrais passaram a ser editados no formato de livros ilustrados, tais quais, os de poemas e de narrativas. Assim, e de muitas outras maneiras, que a historia do género vem se construindo do Brasil. Recentemente, uma tese’ sobre essa tenuitica 7GRAZIOLL, Fabiano Tadeu. Pereursos criativos na concepgto de Canto de Cravo e Rosa, de Viviane Suquero: a dramaturgia inpressa para a leitura da crianga. Tese (Doutorado em Letras) ~ Programa de 6s-Graduagdo em Letras, Universidade de Passo Fundo, Passo Fundo, 2019. 204p, ex 26 Revista Leia Escola, Campina Grande, v. 19, n. 2, 2019 - ISSN 2358-5870 foi defendida no Programa da P6s-Graduagio em Letras da Universidade de Passo Fundo, a partir da perspectiva de que existe uma dramaturgia muito especifica sendo construida no pais, a qual permite a recepedo do texto (e nao do espeticulo, como observamos na abertura do estudo) pela leitura do texto impresso no formato de livro ilustrado pela crianga, a partir do momento em que ela tiver © dominio da leitura. Resumida assim, a proposta parece simplista, mas outorgar ao texto dramatirgico a autonomia de ser lido e ainda mais por uma crianga, sem a mediagio do espeticulo ou do adulto (professor, pai, mae, animador cultural, entre outros), é ereditar a essa nova dramsturgia que a tese focalizou um espago importante nos estudos da literatura infantil. Quanto ao apanhado de ideias, conceitos e consideragdes que aqui apresentamos, ele serve para refletirmos sobre a dramaturgia oferecida a crianga, além de nos demonstrar que, muitas vezes, mesmo indiretamente, as pessoas envolvidas nas diversas fientes do teatro infantil langam seu olhar para as questdes relacionadas & dramaturgia, e quando nfo o fazem diretamente, nds o fizemos, aqui, por meio do nosso olhar. Ha pontos importantes que nosso estudo evidenciou nas vozes dos entrevistados, dos autores, dos pesquisadores, que serviram para pensar o teatro e dramaturgia da época de sua publicagao e que ainda contribuem com nossas reflexdes. 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