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Apresentação
Sob quais condições a ecologia, em vez de ser um conjunto de movimentos entre outros, poderia
organizar a política ao seu redor? Ela pode aspirar a definir o horizonte político como fizeram, em
outros momentos, o liberalismo, o socialismo, o neoliberalismo e, mais recentemente, os partidos
iliberais ou neofascistas cuja influência não para de crescer? Ela pode aprender com a história social
como emergem os novos movimentos políticos e como eles vencem a luta pelas ideias, muito antes
de poderem traduzir seus avanços em partidos e eleições?
Os autores
Bruno Latour, professor associado do médialab de Sciences Po, é autor de obras como "Face à Gaia.
Oito palestras sobre o Novo Regime Climático" (2015), "Onde Aterrar? - Como se orientar
políticamente no Antropoceno" (2017) e "Onde Estou? - Lições do Confinamento para Uso dos
Terráqueos" (2021).
Nikolaj Schultz, doutorando do Departamento de Sociologia da Universidade de Copenhague,
trabalha com classes geossociais.
INDICE
Memorando
Memorando:
A. Uma nota que se usa para facilitar a lembrança de algo; por metonímia, um caderno ou bloco de
notas onde se anota o que se quer lembrar.
B. Uma nota escrita sobre um assunto importante por um representante diplomático que apresenta,
sobre uma questão dada, ao governo junto ao qual ele está acreditado, o ponto de vista do seu
próprio governo.
12 - Mas aqui está, não é mais a mesma materialidade! É daí que vem a relativa
descontinuidade entre as tradições socialistas e o que se deve emergir hoje. Assim
como há um conflito sobre classificações, há um conflito sobre o que constitui uma
análise materialista das condições de existência. A sobrevivência e a reprodução
humanas eram, para Marx, o primeiro princípio de todas as sociedades e sua história.
Assim, o estágio inicial de qualquer análise da sociedade humana e da história social
era necessariamente dar conta das condições materiais - o que as pessoas comiam, a
água que bebiam, as roupas que vestiam, as casas em que viviam, etc. - que
permitiam às sociedades e coletivos humanos subsistirem, bem como dos processos
que os geraram. Era a produção dessas condições materiais de reprodução que Marx
considerava como o fundamento da história social. Mas era a reprodução dos seres
humanos que era a questão principal. No entanto, hoje estamos em uma configuração
histórica completamente diferente. Não estamos mais na mesma história. A produção
não define mais nosso único horizonte. E, acima de tudo, não é mais a mesma
matéria com a qual estamos confrontados.
16 - Resumindo a situação atual, pode-se dizer que todo mundo agora entende que é
necessária uma ação decisiva para combater a catástrofe, mas faltam os meios, a
motivação, a direção que permitiriam agir. Fala-se exaustivamente de "revolução", de
"transformação radical", de "colapso", mas vemos que nada vem traduzir essas
angústias em um programa de ação mobilizador à altura dos desafios. Nesse sentido,
o apelo à ação não se assemelha em nada ao que nossos antecessores puderam
experimentar durante a guerra, ou durante os períodos de reconstrução,
desenvolvimento ou globalização. As energias engrenavam efetivamente com os
ideais; compreender a situação era suficiente para mobilizar. Hoje, a certeza da
catástrofe parece antes paralisar a ação. De qualquer forma, não há alinhamento
instintivo entre as representações do mundo, as energias a serem acionadas, os
valores a serem defendidos. Todos os instintos estão, pelo contrário, voltados para a
"retomada" idêntica da antiga concepção da produção. É dever da classe ecológica
diagnosticar a fonte dessa paralisia e procurar um novo alinhamento entre as
angústias, a ação coletiva, os ideais e o sentido da história.
21- A classe ecológica é aquela que assume a questão da habitabilidade. Por isso,
ela possui uma visão mais ampla, mais longa e mais complexa da história e até
mesmo da geo-história. O que inicialmente parecia um retrocesso, como um
movimento para trás, quase como uma posição "reacionária", agora se torna uma
grande expansão da sensibilidade às condições necessárias para a vida. É por isso que
a classe ecológica entra em conflito com as antigas classes que foram incapazes de
compreender as condições reais de seus projetos. Nem o liberalismo nem o
socialismo levaram a sério suas condições de habitabilidade - e os neofascistas ainda
menos. Nesse sentido, a classe ecológica, porque enxerga mais longe, porque leva em
consideração um maior número de valores, porque está disposta a lutar para defendê-
los em um maior número de frentes, pode se considerar mais racional do que as
outras classes, no sentido que Norbert Elias dá a este adjetivo. Ela aspira, portanto, a
retomar o processo de civilização que as outras classes abandonaram ou traíram. Em
qualquer caso, trata-se da continuação da civilização.
31 - Portanto, a natureza não é uma vítima a ser protegida; ela é o que nos possui.
Esse é o sentido do orgulhoso slogan dos zapatistas: "Somos a natureza que se
defende"... Não temos que nos arrepender diante de pobres vítimas, mas suportar uma
dura retomada pelos nossos verdadeiros proprietários... Dessa inversão, um exército
de juristas está tirando as consequências, até na legislação. As práticas de
engendramento que permitem manter, ampliar e reparar a habitabilidade das
condições de vida tornam-se novamente o que deve ser descoberto e tratado. O que
estamos vivendo é o exato oposto do famoso episódio das cercas. De repente, são os
seres humanos que estão de fato envolvidos, voltados e cercados - para não dizer
confinados! Mas o problema é saber como tornar positiva tal subversão nos valores?
Como transformar em senso comum essa expressão: "Dependo, é isso que me liberta,
finalmente posso agir"? Como transformá-lo na nova matriz de uma concepção
estendida de solidariedade e emancipação?
36 - O mais perturbador para a classe ecológica é que ela deve disputar até mesmo a
ideia de um sentido, um único sentido da história. A obrigação de reunir o mundo em
que vivemos com o mundo de que vivemos exige pensar o sentido da história não
mais como um movimento para a frente, à moda dos Modernos que cortavam o
passado do futuro, mas sim como a multiplicação das formas de habitar e cuidar das
práticas de engendramento, em completa indiferença ao que pertence ao passado,
presente ou futuro. A história não é mais concebida como uma união em uma frente
coerente desenhando a famosa e única "seta do tempo", mas sim como uma dispersão
em todas as direções que recupera e repara o que o antigo sentido da história havia
tentado simplificar demais.
37 - O tipo de subversão próprio dessa classe está, portanto, tão distante quanto
possível do espírito "revolucionário" do passado, com sua famosa "convergência das
lutas", embora seja, no entanto, uma ruptura muito mais radical e revolucionária do
que as que visavam apenas a tomada do sistema de produção. É aí que se compreende
o interesse da multiplicidade, da diversidade, da particularidade, das inúmeras lutas
em que os ativistas estão engajados, em todos os assuntos e em todas as escalas.
Como dar um único sentido a uma história que, ao contrário, se dobra a cada vez à
lição dos vivos que têm cada um sua maneira de fazer sua história ao mesmo tempo
que a nossa?
41 - Fazer uma lista das patologias a serem tratadas não é ser cruel, mas sim
demonstrar um realismo elementar. Enquanto as grandes massas não se mobilizarem
para se libertarem das armadilhas da produção, será preciso continuar a investigar a
fonte da sua inércia. Felizmente, o quadro muda completamente se, em vez de se
preocupar com pessoas vagamente envergonhadas da sua estupidez, se voltar para
aqueles que já estão há muito tempo mobilizados. Com estes, finalmente poderemos
"contar". Esse é todo o paradoxo desta "estranha guerra": de um lado, a causa
ecológica parece marginal, do outro, todo mundo já mudou de paradigma.
49 - Em 1789, o Terceiro Estado tinha uma vantagem que falta tão cruelmente à
classe ecológica. Quando o Terceiro Estado se tornou a Nação, já havia cem anos que
a luta pelas ideias, em todos os meios, em todas as classes, havia "preparado as
mentes", e se insinuado no coração das elites, como se diz. Mas quem preparou as
elites nos últimos cem anos para a mudança em curso? Houve um enorme trabalho de
reflexão realizado por inúmeros pesquisadores, pensadores, ativistas, moralistas,
militantes e poetas, mas este trabalho não foi adotado pelos chamados partidos
"verdes" e apenas roçou as classes dirigentes. Onde estão os lugares de pensamento
onde a luta ideológica sobre todos os assuntos mencionados acima foi travada passo a
passo por décadas? Temos a horrível impressão de que a luta está apenas começando.
As outras classes fazem um barulho ensurdecedor, saturam o espaço midiático,
ocupam revistas, televisões, semanários, monopolizam a formação dos agentes do
Estado, multiplicam as escolas de gestão e os departamentos de economia, mas onde
estão os órgãos desta classe ecológica? Nada que permita uma contra-ataque na
escala necessária para alcançar a hegemonia na luta pelas ideias.
51 - Exceto que é muito mais difícil para esta classe do que para as anteriores. É
preciso tornar sensível uma população inteira a uma mudança de cosmovisão que
implica um prodigioso aumento nos assuntos a serem considerados. Mesmo se as
classes sociais tradicionais incluíssem, implicitamente, sua dimensão geossocial,
mesmo a negando, é essa dimensão que se torna primordial, já que agora as lutas
dizem respeito à ocupação, natureza, uso e manutenção dos territórios e condições de
subsistência, em todas as escalas e em todos os continentes. Portanto, há uma
tremenda intensificação na luta das ideias, já que é disso que o mundo é feito e,
portanto, é, em última análise, uma questão metafísica. Todos os detalhes começam a
importar. Como Baptiste Morizot diz, cada matilha de lobos merece uma filosofia.
61 - O que ainda complica a busca pelo poder é que, assim que a classe ecológica
tenta fazer coincidir o mundo em que vivemos com o mundo de que vivemos, ela
reabre, para cada assunto, as questões de geopolítica, comércio e direito
internacional, bem como as fronteiras e o tipo de ocupação do solo próprio das
nações-estados. É bem estabelecido que o estado atual foi desenhado para permitir
que as classes dominantes exerçam seu monopólio e para permitir, primeiro, a
modernização e, em seguida, a globalização. Ele não é de forma alguma desenhado
para atender às necessidades da nova classe ecológica. Essa inadequação é evidente
na formação de seu pessoal, na oferta política que lhe permite definir a tarefa dos
governos, bem como em sua inscrição territorial. Além disso, a nova relação exigida
pela consideração do mundo de que vivemos na lógica do mundo em que vivemos
não se sobrepõe à distinção e conexão entre o interno e o externo que
tradicionalmente define o monopólio do poder nas nações-estados (polícia, impostos,
exército) e o significado da palavra "régio". Pelo contrário, a nação-estado permite a
separação radical entre os dois mundos, que precisamente precisa ser atenuada. Sendo
diferente o papel do Estado, também é diferente a definição do monopólio que ele
representa, assim como a nova distribuição entre política "externa" e política
"nacional" que a classe ecológica procura operar.
67 - Mas sob a condição de retomá-lo por baixo, isto é, pela descrição do mundo
material em que os habitantes se encontram, expulsos de sua antiga cosmologia em
outra que ainda não aprenderam a explorar. É nesse sentido que a classe ecológica
retoma a tradição materialista. Vamos inverter toda a cadeia: para votar é preciso ter
partidos; para que haja partidos, é preciso que as queixas tenham sido reunidas,
estilizadas e estabilizadas em tipos de programas; para que haja queixas, é preciso
que cada um possa definir seus interesses, que permitam traçar a linha de frente de
potenciais aliados e adversários; mas como ter interesses se você não pode descrever
com detalhes suficientes as situações concretas em que se encontra mergulhado? Se
você não sabe do que depende, como saber o que precisa defender? Agora, essa
primeira etapa está faltando, por causa da rapidez e, acima de tudo, da amplitude da
mudança em curso. Assim, o restante não se segue. É, portanto, por essas raízes que
se deve começar - pelas grassroots..
68 - Na ausência de um sentimento compartilhado, provável, demonstrável de
interesses, seus conflitos e entrelaçamentos, resta aos participantes, que não se
atrevem mais a ser chamados exatamente de "cidadãos", apenas se inclinarem para as
paixões tristes mais óbvias: queixas e recriminações. O mais desencorajador é que
essas queixas se dirigem a uma entidade misteriosa que seria capaz de satisfazer os
reclamantes. Mas infelizmente esse agente mítico é o antigo Estado desenhado para
as antigas classes dirigentes e reduzido hoje a um fantasma. Alguns, lá embaixo, já
não conseguem articular suas queixas porque não sabem exatamente onde estão e,
portanto, quem são seus inimigos; os outros, lá em cima, são incapazes de ouvir o que
lhes é pedido e continuam a responder com as ferramentas embotadas do Estado antes
modernizador. Os mudos falam com os surdos. E é claro que a situação piora a cada
ciclo, com os mudos cada vez mais furiosos por não serem ouvidos; os surdos por
não acolherem suas soluções como deveriam. Daí a impressão de que o espaço
público se tornou insuportavelmente brutal. Por mais que se culpe as redes sociais, se
queixe do "aumento da incivilidade", a crise é muito mais profunda: houve um
Estado de reconstrução, um Estado de modernização, um Estado (fortemente
abalado) de globalização, mas não há um Estado de ecologização. Nem um
funcionário, nem um eleito saberia dizer como passar do crescimento - e suas
misérias associadas - para a prosperidade - e seus sacrifícios associados.
71 - Por outro azar, no momento em que mais precisamos, em todos esses assuntos,
de novos métodos de pesquisa, a universidade foi saqueada, o sistema de pesquisa
sacrificado, a educação desprezada. A classe ecológica precisa de um sistema de
pesquisa adaptado a essa reviravolta. A universidade ainda é a de Humboldt, uma
caricatura do movimento de modernização, com uma ponta avançada, a vanguarda da
"pesquisa fundamental", supostamente percolando até o povo - como os lucros. No
entanto, as exigências da época são exatamente inversas: dada a esmagadora
ignorância em que todos estamos sobre o que significa habitar uma Terra que reage às
nossas ações, é necessário ainda mais de pesquisa e ainda mais fundamental.Mas
essa pesquisa de base deve apoiar todos aqueles que precisam de ajuda na exploração
de suas novas condições de vida. Longe do modelo de percolação, é o curto-circuito
entre as mais fortes exigências em pesquisa fundamental e a humildade das situações
em que essa pesquisa é testada que deve ser alcançado para definir as inovações do
futuro. A inversão do esquema de desenvolvimento vale para a pesquisa em ciências
humanas ou naturais ou híbridas, assim como para tudo o mais. A arte delicada da
política científica não é comumente discutida entre os ecologistas; sua importância é,
no entanto, decisiva.
72 - Como ensinou John Dewey, "o Estado está sempre a ser reinventado", mas
sempre precisa de um povo, um público que o preceda, ensine e guie. Ele é apenas o
delegado provisório e facilmente corrompível. Esse povo é o que a classe ecológica
deve aceitar representar se quiser desempenhar seu papel de nova classe-pivô. Até
agora, as outras classes eram convidadas a seguir as classes dirigentes no caminho da
modernização, supostamente compartilhando seus benefícios ou recebendo suas
sobras. A questão toda é saber se os interesses dessas classes podem se alinhar com os
interesses da classe ecológica. Até agora, esta última não conseguiu ainda fazer sua
luta contra a produção se alinhar com as preocupações, desejos, hábitos e interesses
atuais das outras classes. E, no entanto, o apoio dessas classes é indispensável para
aceitar os imensos sacrifícios pelos quais teremos que passar para mudar de regime.
Se você acha a pandemia difícil de enfrentar, imagine uma situação em que as
medidas a serem tomadas sejam cem vezes mais restritivas sobre os assuntos que
você valoriza tanto quanto a saúde. E sem mesmo um Estado vagamente legítimo
para propô-las - não falemos em impô-las.
76 - Ao listar todos os pontos que precisam ser trabalhados em comum para fazer
surgir essa famosa consciência de classe, poderíamos chegar à conclusão
desanimadora de que há tanto a mudar, e em tópicos tão diversos, que a classe
ecológica não tem chance de rivalizar com as atuais classes dirigentes. E o tempo está
se esgotando. Mas, por outro lado, tudo já está provavelmente decidido, pois no
fundo as pessoas entenderam que mudaram de mundo e que habitam outra Terra.
Como destacou Paul Veyne, as grandes revoluções às vezes são tão simples quanto o
movimento que um dorminhoco faz para se virar na cama.