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SÃO PAULO
2019
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E DA SAÚDE - FACHS
CURSO DE PSICOLOGIA
SÃO PAULO
2019
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Para meu pai, que me ensinou a difícil arte de trancar as portas empenadas de casa.
Para minha mãe, que me permitiu esquecê-las abertas por algum devaneio.
Para meus irmãos, que brincaram comigo no jardim.
Para Lívia, que me deu a mão pra sair à rua.
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AGRADECIMENTOS
Essa pesquisa foi realizada em paralelo a uma iniciação científica ainda em curso,
na qual sou orientado por Renato Mezan. Ainda que os dois trabalhos tratem de temas
diferentes, creio que muitas das conversas com Renato ao longo desse último ano
influenciaram na minha forma de encarar os problemas epistemológicos da psicanálise e,
assim, marcaram as linhas dessa pesquisa. Gostaria de agradecê-lo por todas essas
conversas e pelo bom humor contagiante com que tem me recebido em seu consultório
para discutir filosofia da psicanálise. Gostaria de agradecer também ao professor Luis
Jardim, que me ajudou a desenvolver o projeto de pesquisa que desaguaria nesse trabalho.
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Gabriela Gramcow, pelo espírito de grupo; Vladimir Safatle, que me apresentou as áreas
de pesquisa que marcaram minha graduação; Luiz Repa, pela didática com que transmitia
conteúdos tão complexos; Sergio Cardoso, pela gentileza com que tratava de política;
Ricardo Fabbrini, pelo entusiasmo com que ensinava filosofia; Alex Moura, por fazer da
filosofia algo menos áspero; Osvaldo Pessoa, pela filosofia dialogada. Gostaria também
de agradecer aos membros do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da
USP (LATESFIP), por tudo que tenho aprendido lá. Ainda no ambiente da universidade,
agradeço aos livreiros da EDUC Maju e João. Meu amor pelos estudos e pelos livros
certamente deve muito à simpatia e carinho que me atendiam na livraria do campus, de
onde muitos dos livros utilizados nessa pesquisa vieram.
Gostaria de agradecer aos meus amigos por toda a vida que existe pra além dos
estudos e da profissão. Aos “brodi” Rodrigo Silva, Lucas Belini, Igor Lopes, Tales
Robles, Pedro Dyna, Matheus Silva e Victor Schneider. À “Maçonaria”: Guilherme Silva,
Danilo Cruz, Rafael Belém e Fernando Xavier. Aos “flangos” Heloisa Prado, Caio
Horowicz, Jorge Kremer, Giulia Costa, Henrique Cutait e Alexia Lund. Aos “esquilos
castores”, em especial Dora Campos e Raquel Morales, grandes amigas. À “galera show
de bola”, especialmente Isabel Lima, Ettore Valente, Guilherme Ruiz, Fernanda Castro,
João Godoy, Marco Caramelli, Pedro Dragone, Sofia Moreira, Alexandre Aebi, Mario
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Broering e Thiago Scuccuglia. À Clara Werneck e Joana Furquim, pela amizade que
vence o oceano atlântico.
Agradeço à grande família que tenho e que me cobre de amor desde sempre.
Minha avó Iolanda Neves (in memorian), pelo carinho que tinha por mim e por meus
irmãos. Meu avô Antonio Neves (in memorian), que achava que seria muita
responsabilidade pra ele ter um neto com seu nome. Meu avô Herculano Almeida Pires e
minha avó Anna Maria Almeida Pires, pela união. Minhas tias e tios Teolídes, Terezinha,
Aparecida, Tita, Lu, Balia, Lele, Nando, Lalau, Totô e Armando. Aos meus primos que
tenho como grandes amigos: Felipe, André e Paula Altenfelder; Fábio e Pedro Almeida,
Nani, Ike e Cacá Lancsarics e Gui, Cami e Nina Lebeis. Rosinha, que me viu crescer e
está há tantos anos do meu lado. Gostaria de agradecer também a Luiz, Claudia, Victoria
e Luiza Sagula por terem me acolhido na sua família.
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não estaríamos incorrendo em nenhum paradoxo ao sustentar que o epistemólogo de
hoje só pode visar a cientificidade sob a condição prévia de destruir esses monstros
identitários forjados pelos manuais e pela vulgarização: “a ciência”, “uma ciência...”
Por que se escandalizar com isso?
Gerard Lebrun
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RESUMO
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SOBRE AS PASSAGENS TRADUZIDAS
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SUMÁRIO
Introdução
A psicanálise sob fogo cruzado....................................................................................11
A disputa dos métodos .................................................................................................15
Em torno da metapsicologia.........................................................................................22
Plano de trabalho e algumas considerações metodológicas .........................................24
Conclusão .......................................................................................................................69
Bibliografia .....................................................................................................................81
Apêndice .........................................................................................................................86
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INTRODUÇÃO
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suspenção das resistências de um possível efeito placebo do tratamento e assim a eficácia
clínica do método psicanalítico estaria em cheque:
Como veremos mais adiante (dedico o segundo capítulo desse trabalho para
estudar essa crítica em maior detalhe), a validação científica para Grunbaum viria, dentre
outras coisas, da possibilidade de isolar as variáveis em jogo no processo analítico, o que
pemitiria confirmar se os resultados terapêuticos prometidos surgêm de fato das causas
supostas pela teoria e não de outros fatores. Não conseguindo isolar essas variáveis,
afirmar que os resultados terapêuticos viriam do trabalho com as resistências, seria uma
tese descreditada, uma especulação que não poderia ser confirmada e a psicanálise ficaria
destituída de sua cidadania científica. É uma crítica que baseia seu critério de
cientificidade muito marcadamente em metodologias das ciências experimentais.
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Esses estudos se curvam as críticas de Grunbaum e admitem que de fato a psicanálise deve se haver com
os problemas de sua cientificidade. Eles assim desenham formas de fundamentar a disciplina tentando
transformá-la em uma ciência cujas teses estão apoiadas em um método experimental. Esse é um tipo de
resposta que se conforma aos vetos de Grunbaum e os faz valer. Outro tipo de resposta, é claro, seria a de
se rebelar contra as críticas do autor e afirmar que a psicanálise não precisa desse tipo de validação
experimental para se legitimar como conhecimento e prática.
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Há ainda o polo contrário da crítica epistêmica à psicanálise. Ela diz que a criação
de Freud sofreria de um excesso de cientificidade e aplicaria ao humano uma construção
teórica cuja validade é restrita aos objetos naturais. Entre os representantes que acusam a
psicanálise de uma espécie de cientificismo podemos encontrar, principalmente, autores
franceses do século XX responsáveis pela recepção da obra freudiana no país sob a
influência da fenomenologia, da hermenêutica e do existencialismo. Entre eles estariam
Politzer (1998), Dalbiez (1947), Paul Ricouer (1977) e Jean Hypolite (1989). Somam-se
à esses na crítica ao excesso de cientificidade da teoria psicanalítica os psiquiatras
fenomenólogos suíços Ludwig Binswanger (2013) e Medar Boss (1974).2
Mais ou menos justa a obra freudiana, a leitura de Binswanger alavanca sua crítica
na ideia de que a psicanálise operaria uma redução unilateral do homem a um atomismo
pulsional cujas leis de funcionamento são formalizadas no mecanicismo. Segundo o
fenomenólogo, esse reducionismo freudiano impede que o ser humano seja compreendido
em sua inteireza e caberia assim recusar a proximidade de Freud com as ciências naturais.
Em outras palavras, a natureza do objeto “homem”, ou seja, sua dimensão ontológica, é
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É claro que a reunião de autores de escolas tão diversas como a fenomenologia, a hermenêutica e o
existencialismo em um mesmo grupo exige uma justificativo de minha parte. O leitor poderá verifica-la
mais adiante, no primeiro capítulo desse trabalho.
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Mais especificamente, no final do primeiro capítulo desse trabalho, a partir da página 35.
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incompatível a um modelo de investigação e produção de conhecimento mecanicista, que
caberia somente aos objetos naturais.
É nesse sentido que Merdar Boss poderá dizer que houve uma “vitória do método
científico sobre a ciência no domínio particular ao qual Freud consagrou as suas
investigações durante toda a vida” (BOSS, 1974, p. 1), uma vez que “um pensamento só
é verdadeiramente científico se se esforça sempre para se adaptar o mais possível à
essência do objeto a estudar” (1974, p. 2). Boss diz que Freud nesse aspecto refletia o
espírito de seu próprio tempo, fascinado com o método das ciências naturais e embebido
da crença de que, através dele, poder-se-ia chegar à verdade última das coisas (1974).
Vemos isso em Freud na sua “concepção apriorista segundo a qual somente os fenómenos
físicos e pulsionais do homem constituem a sua verdadeira realidade fundamental.”
(1974, p. 5).
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Esse modelo de compreensão do homem está pautado em uma concepção bem
delimitada sobre a natureza do ser humano: a “faculdade inata da percepção das coisas
como fenômenos possuindo diferentes significações que está na base de toda existência
humana.” (1974, p. 8). Enquanto os objetos naturais não têm “consciência daquilo que
ele próprio é nem daquilo que lhe é exterior” (1974, p. 8) a
Com essa crítica, vemos que, retomando a metáfora bélica com que iniciámos esse
texto, a psicanálise está sob fogo cruzado. De um lado, os cientistas que exigem da
psicanálise provas empíricas, estabelecimento e confirmação de hipóteses por testes e
isolamento de variáveis. Do outro, os hermeneutas e fenomenólogos afirmando que o
rigor da psicanálise só será garantido se ela se livrar de seus resquícios cientificistas, do
mecanicismo e do organicismo, firmando-se no campo das relações de sentido. Um dos
lados exige maior rigor científico da psicanálise, acusando-a de ser insuficientemente
científica. O outro exige que ela se livre de seus lastros cientificistas e a critica portanto
por ser científica em excesso.
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no século XIX, os estudos sobre o homem miravam esses modelos de investigação para
imprimir ao seu campo credibilidade social e científica. Vejamos como foi esse o caso da
psicologia nas linhas de Foucault:
Foucault elenca três matrizes da psicologia como ciência natural no século XIX
que cabem ser resgatadas a fim de melhor ilustrar a abordagem do fenômeno psicológico
como um objeto natural. Um deles é o modelo físico químico de Stuart Mill com sua
pretensão de separar o fenômeno psíquico em seus elementos mínimos constituintes
(procedimento de clara inspiração na química analítica de Lavoisier) e formalizar as leis
gerais que atuam no objeto de estudo através de casos específicos (herança da física
newtoniana) (FOUCAULT, 1999, p. 124).
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uma história que estreitava as possibilidades de respostas do psiquismo ante a situações
determinadas. Nas palavras de Foucault:
Apesar de suas diferenças, as três versões da psicologia como ciência natural tem
em comum o fato de que sua produção científica se dava predominantemente em
laboratórios. Construíam teorias sobre o psiquismo através da prova de hipóteses por
testes e experimentos que miravam as características quantitativas de seu objeto:
Essa virada a que me refiro é a célebre cisão epistemológica cujo palco principal
foi a Alemanha e a Austria do século XIX e que ganhou seu lugar na história do
pensamento com o nome de Methodenstreit (disputa dos métodos). Como aponta
Simanke, essa cisão se apresentou como uma estratégia defensiva das ciências humanas
(história, direito, crítica literária, etc) às investidas imperialistas das ciências naturais que
postulavam o seu método de investigação como o único capaz de produzir conhecimento
rigoroso, sendo o exponente maior destes intuitos colonizadores o positivismo comteano
(2009, p. 222-223). Diante da empreitada positivista, coube a alguns teóricos das ciências
humanas instaurar a separação entre as Naturwissenschaften (ciências da natureza) das
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Geisteswissenschaften (ciências do espírito)4, afirmando que existiam métodos diferentes
para se produzir um conhecimento adequado a cada campo de investigação. Essa
distinção metodológica que diz respeito aos meios mais adequados para se produzir
conhecimento (a questão de como estudar algo) se vê intimamente ligada a uma distinção
ontológica entre homem e objetos naturais (a questão da natureza do que é estudado)
(SIMANKE, 2007, p. 223). Para se referir a diferença metodológica entre as
Naturwissenschaften e as Geisteswissenschaften apela-se, normalmente, para a
diferenciação entre explicar e compreender ou ainda explicar e interpretar
(FOUCAULT, 1999, p. 128-129; ASSOUN, 1983, p. 47; MEZAN, 2007, p. 327;
SIMANKE, 2009, p. 223; DARTIGUES, 1973, p. 52).
4
Essa famosa separação entre os dois campos remete a obra de Wilhem Dilthey. Optou-se aqui por utilizar
os termos em alemão para manter explícita a referência a esse debate epistemológico específico originado
na Alemanha e na Áustria do século XIX. Creio que a utilização de “ciências da natureza”, “ciências do
espírito” e “disputa dos métoos” poderiam remeter o leitor a usos mais genéricos desses termos, arriscando
assim a especificidade deles no debate epistemológico em questão.
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Trata-se portanto de explicar o singular através do universal, compreender a
singularidade pela derivação dela de leis gerais que cabem a todos os objetos da classe a
qual o fenômeno em questão pertence. Não que a singularidade não exista, mas ela é
reduzida à leis genéricas.
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lascado da idade paleolítica: o sílex não remete somente a leis
físio-quimicas e geológicas, como todas as pedras, mas à
intenção do homem pré-histórico a que serviu de ferramenta.
Não temos mais a ver, consequentemente, com um objeto
natural, mas com um objeto cultural dotado de significação. [...]
Ora, se já o artefato deve ser compreendido porque uma intenção
se revela através dele, quanto mais deverão sê-lo os
comportamentos que nos propõem, não mais objetos, mas os
próprios sujeitos! [...] Compreender um comportamento é
percebê-lo, por assim dizer, do interior, do ponto de vista da
intenção que o anima, logo, naquilo que o torna
propriamente humano e o distingue de um movimento
físico[...] Assimilar os fatos humanos a objetos físicos
equivale a deixar de lado a dimensão subjetiva e intencional
que, precisamente, os torna humanos. (DARTIGUES, 1973,
pgs. 52-53, grifos meus)
Poderiam objetar que quando aplica esse método a outros seres humanos, o
pesquisador ficaria refém do relato que seu objeto (outro sujeito) faz sobre o sentido de
seus atos e assim não seria permitido pensar, por exemplo, que esse outro sujeito se
engana sobre o sentido que ele mesmo atribui a sua existência. A palavra do objeto seria
a palavra final e o pesquisador não poderia jamais desafiá-la (DARTIGUES, 1973, p. 53).
Essa objeção nos leva ao terceiro aspecto que parece importante reter das
Geisteswissenschaften: a compreensão leva em conta um deslocamento do investigador
para o contexto social e histórico do objeto estudado e o compreende justamente nesse
deslocamento para um contexto outro, no qual o esforço do pesquisador é de se situar na
posição em que esse outro sujeito se encontra. Ao comentar sobre o método compreensivo
como é exposto por Wilhem Dilthey, Assoun dirá que a noção de história nas
Geisteswissenschaften estaria intimamente relacionada a um conceito de vida como
“‘enraizamento’ do homem em ‘conjuntos’ orgânicos e significativos nos quais o
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conjunto prima sobre a parte” (2012, p. 39). Essa contextualização do sujeito em um todo
orgânico (história) possibilita que o método compreensivo não fique rendido a narrativa
subjetiva de seu objeto e possa descriminar o seu sentido pelas relações que ela estabelece
com o entorno do sujeito.
Por fim, há um último aspecto que vale ser ressaltado dessa grande matriz
compreensiva. Essa forma de proceder metodologicamente das Geisteswissenschaften
parece ser decorrência de um princípio ontológico que postula a liberdade como elemento
fundamental da natureza humana. Sendo radicalmente livre, seria vetado o
enquadramento dos fenômenos humanos a leis gerais que estipulassem o seu devir. Vimos
anteriormente como esse aspecto se apresenta com especial evidência na intersecção da
fenomenologia com o existencialismo na Daseinsanalyse de Medar Boss.
Antes, porém, de entrar em uma análise mais detida das críticas da fenomenologia
e das ciências experimentais à psicanálise, cabe apresentar brevemente um tema que lhes
será comum e cuja apropriação, mesmo que instrumental, pode ser importante para
5
Cabe fazer uma observação sobre essa resistência. A Methodenstreit nasceu como sendo uma questão
prioritariamente epistemológica, no sentido de que a defesa de um método em detrimento de outro para a
investigação de determinado objeto pautava-se nos frutos que essa forma de investigar oferecia. No caso,
as Geisteswissenschaften podiam se contrapor com propriedade às Naturwissenschaften pela constatação
de que os resultados das últimas no estudo do ser humano, eram muito pobres. Porém, com o
desenvolvimento impressionante nas últimas décadas de campos das ciências naturais que também tomam
o humano como objeto (como a neurociência) e a constatação de sua efetividade (como os psicofármacos),
a defesa do método compreensivo como único capaz de investigar os fenômenos humanos de forma efetiva
se apoiou de forma cada vez mais dogmática não nas questões metodológicas, mas na distinção ontológica
entre humano e natureza, usando como palavra de ordem que o ser humano seria por princípio irredutível
às ciências naturais. Sendo uma afirmação de princípio, essa palavra de ordem cria uma barreira que
impossibilita o diálogo entre os dois campos. Apesar de não desenvolver o argumento da mesma forma que
eu, a constatação de que a Methodenstreit no início era uma discussão prioritariamente metodológica e que
com o tempo foi tomando contornos cada vez mais ontológicos é de Simanke (2009, p. 223)
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entender o debate: a metapsicologia. Creio que o alvo principal de ambas as críticas é a
relação da metapsicologia com a atividade clínica e, assim, talvez valha discorrer algumas
palavras sobre esse neologismo criado por Freud.
Em torno da metapsicologia
O autor atribui essa divisão das leituras à própria obra de Freud, entendendo que
o pai da psicanálise começara seus estudos com a intenção de construir uma ciência
natural, mas abandonou a busca cientificista com o desenvolvimento de suas pesquisas,
aproximando-se cada vez mais do campo das ciências da cultura (1974, p. 56).
Aqui, o autor levanta um aspecto que parece fundamental: as duas críticas miram
justamente as formalizações psicanalíticas a respeito das leis que regem o psiquismo: a
metapsicologia. Seja pelo descabimento de entender o ser humano por esse viés, seja pela
falta de validade empírica dessas leis que regem o psiquismo, a metapsicologia se
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Que não se confunda: aqui não se trata da escola inglesa e francesa de psicanálise, mas da filosofia francesa
e anglo-saxônica.
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encontra no centro de ambas as críticas. Caberia, portanto, alguns apontamentos sobre o
que seria de fato a metapsicologia para nos aprofundarmos no debate.
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O caso parece ser semelhante a diferença na psicologia comportamental entre o behaviorismo
metodológico de Watson para o behaviorismo radical de Skinner. Enquanto o primeiro diz que só poderiam
ser objetos científicos os dados comportamentais observáveis, Skinner estende o campo de estudos da
análise do comportamento para os fenômenos encobertos, que poderiam ser teorizados e compreendidos à
luz dos processos comportamentais mais gerais que estabeleceriam um modelo formal de compreensão a
ser aplicado nos comportamentos encobertos.
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que entre eles havia hiatos explicativos, Freud precisou formular leis e princípios capazes
de traçar o que se passava nesses hiatos.8 Para alcançar uma compreensibilidade causal
dos fenômenos psíquicos seria necessário apelar para uma ordem outra de causas que não
aparece na superfície da consciência. Essa outra ordem é designada como inconsciente e
as relações causais invisíveis em jogo são tematizadas pela metapsicologia. Assim, a
metapsicologia seria um esforço especulativo necessário para dar conta de explicar o
desenrolar dos dados da consciência que sem ela seriam episódios alheios uns aos outros,
sendo impossível traçar uma trama que os interligasse. Creio que essa introdução à noção
de metapsicologia em Freud, ainda que breve e deficitária, ajudará a circular com maior
facilidade nas críticas que propus analisar aqui.
Tendo introduzido o tema que nos ocuparemos nos capítulos a seguir (as críticas
à cientificidade da psicanálise), traçado alguns comentários sobre seu passado recente (a
Methodenstreit) e instruído brevemente o leitor sobre alguns conceitos basais que
organizam o organizam (a metapsicologia e sua relação com a clínica), cabe finalizar essa
introdução apontando o plano geral desse trabalho.
8
Não cabe entrar em detalhe aqui nas motivações que levaram Freud a construir o conceito de inconsciente
e formular as teses metapsicológicas, trabalho realizado por Simanke e Caropre e ao qual remeto o leitor
(2008). Além da razão clínica, que apontamos no parágrafo do texto, outra motivação que veremos mais
adiante e que Boss dá especial relevância (talvez até exagerada) é a vinculação metodológica de Freud às
Naturwissenschaften, o que o obrigava a estipular relações causais para os fenômenos que se ocupava afim
de alcançar uma heurística mecanicista.
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verificar os selos de validade e cientificidade produzidos por cada um desses campos.
Com esses objetivos, passaremos pelos domínios da fenomenologia e da ciência
experimental, buscando entender as suas defesas do que seria uma produção de
conhecimento legítimo para o objeto da psicanálise e como essas defesas embasam a
crítica deferida por eles à invenção de Freud.
Sem esse tipo de reflexão, corre-se o risco de estar aceitando de antemão formas
determinadas de produção de conhecimento. Estar aberto a dialogar com outros campos
do conhecimento é uma forma de evitar cair nas garras de um conhecimento dogmático e
ensimesmado no qual não se reflete sobre os pressupostos do próprio campo, operando
assim dinâmicas institucionais autoritárias na qual a adesão à uma doutrina se dá pela
alienação em pressupostos inquestionáveis que devem ser aceitos de forma irrefletida.
Por isso, devemos submeter os campos epistemológicos a uma reflexão crítica, no sentido
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de tomar os pressupostos que organizam um campo do conhecimento como objeto de
reflexão.
Não caberia adotar um termo diferente para cada sentido da palavra “crítica” (por
exemplo, usando “oposição” para o primeiro sentido e preservando “crítica” para o
segundo) já que em muitos contextos a palavra é usada nos dois sentidos
simultaneamente. Por exemplo: quando falamos que Grunbaum faz uma crítica à
psicanálise estamos dizendo que: a) ele faz uma oposição a psicanálise, a medida que
defende que ela não é científica; e b) que ele faz uma análise epistemológica da
9
Aprofundarei essas questões metodológicas na conclusão desse trabalho, onde tentarei explicitar quais
traços desses dois autores mais me influenciaram.
26
psicanálise, investigando seus pressupostos metodológicos, a forma como ela constrói
suas teses, etc. Assim, caberá ao leitor entender os sentidos que a palavra crítica está
sendo utilizada, o que tentarei deixar claro pelo contexto de sua utilização. Feitos esses
esclarecimentos, vamos em frente.
27
CAPÍTULO 1 – Científica demais
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Grosso modo, para Politzer a psicologia de sua época ainda sofria de sérias
dificuldades em se aproximar de seu objeto de estudo. Para ele, o objeto próprio da
psicologia seria a experiência subjetiva como experienciada pelo sujeito, ou seja, a
vivência psíquica em primeira pessoa, a narrativa de sua vida. Sendo assim, todos os
esforços da psicologia em promover um acesso ao fenômeno psicológico pela via da
terceira pessoa tomando o psíquico como algo objetivável deveria ser repreendido. Nesse
sentido, Politzer via com bons olhos a experiência e prática clínica da psicanálise a
medida que criava um espaço privilegiado para o contato com essa narrativa em primeira
pessoa da experiência subjetiva. Porém, o mesmo autor via os esforços metapsicológicos
como resquício de uma psicologia objetivante e, no seu entendimento, abstrata, uma vez
que, ao transformar o psíquico em objeto, se alienava da realidade última do psicológico:
a experiência vívida (SIMANKE, 2014, p. 205).
Ainda que com suas especificidades, é marcante como essa compreensão de Freud
e da psicanálise está presente em diversas obras que sucederam a de Politzer e que se
tornaram os cânones da leitura filosófica da psicanálise na França. Além do já citado
Dalbiez, valeria lembrar de Paul Ricouer (1977) e a sua percepção de uma dualidade
dificilmente conciliável em Freud entre hermenêutica (aqui, o bom Freud) e energética (o
mau), ou ainda Jean Hyppolite (1989) , cujas dificuldades em aceitar a metapsicologia
freudiana conflitavam com o reconhecimento da riqueza que a psicanálise trazia ao estudo
do homem.
O filósofo diz que é nítida uma espécie de obsessão literária comum à Politzer e
aos “filósofos da existência” Merleau Ponty e Sartre. Esse recurso prosaico é o relato da
experiência dos autores enquanto escrevem seus textos. Vemos assim em Politzer: “A
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lâmpada que ilumina minha escrivaninha é um fato ‘objetivo’, precisamente porque ela é
em terceira pessoa, porque não é ‘eu’, mas ‘ela’”. Sartre, por sua vez, abre seu texto sobre
a Imaginação da seguinte maneira: “olho esta folha branca sobre minha mesa (...)”. Por
fim, Merleau Ponty em sua “Fenomenologia da Percepção” no capítulo que reflete sobre
o cogito cartesiano: “Penso no cogito cartesiano, quero terminar este trabalho, sinto o
frescor do papel sobre minha mão, percebo as árvores de boulevard através da janela
(...)”.10 O leitor atento lembrará que nos deparamos com o mesmo artifício literário
quando analisamos o texto de Medard Boss, quando o psiquiatra estava na indecisão de
fechar ou não a janela.11
Vejamos o comentário de Bento Prado sobre esse tique comum aos autores vistos:
10
As passagens são perfiladas por Bento Prado Júnior no texto que viemos comentando. (PRADO JR, 1991,
p. 15-16)
11
Relembrando a passagem já citada:
A listagem de recursos desse tipo poderia se estender até chegarmos aos corredores da PUC e os exemplos
clássicos sobre a percepção da garrafa de água em cima da mesa do professor.
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metodologia que tentasse compreender o psiquismo como objeto de estudo exterior perdia
de vista o que é próprio ao fenômeno psicológico: a dimensão vivencial da experiência
subjetiva e intuitiva, que só poderia ser captada na narrativa em primeira pessoa. Ao
comentar especificamente o texto de Politzer, Bento Prado diz:
Sendo assim, creio que não recairei em grande ecletismo ao reunir à mesa
hermeneutas, fenomenólogos e existencialistas para desdizer o pobre Sigmund. E agora,
podemos entender melhor o que significa dizer que, para essa escola, a psicanálise seria
científica demais: através da metapsicologia e da formalização dos fenômenos psíquicos,
12
Vemos aqui algumas características que verificamos nas Geisteswissenschaften como a irredutibilidade
do vivido à categorias conceituais objetivantes e a possibilidade de acessar a vivência subjetiva de alguém
sem tomar a via da terceira pessoa (como visto na noção de empatia).
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a psicanálise transforma a subjetividade em objeto apreendido friamente pela via da
terceira pessoa. Ela é cientificista, uma vez que está colada aos métodos das ciências
naturais que desvitalizam a existência humana e dão a ela a frieza morta de uma pedra,
para usar um exemplo de uma ciência natural como a geologia.
O certo seria dedicar a cada um dos autores aqui mencionados um tratamento mais
digno e aprofundado, tendo em vista que, pela bibliografia consultada, são eles os
principais nomes dessa tradição de crítica à psicanálise. Porém, nos limites desse trabalho,
isso nos impediria de chegar à crítica dos anglófonos, esterilizando os benefícios que uma
comparação entre essas críticas poderia ter e que, afinal, era o objetivo inicial aqui. Assim,
aprofundarei somente os comentários dos psiquiatras Ludwig Binswanger e Medard
Boss. Já vimos um pouco da opinião de Boss acerca da prática e teoria psicanalítica na
introdução desse texto, mas cabe expor a parte de seu argumento que diz mais
especificamente sobre as relações entre teoria e prática ou, de forma mais precisa,
metapsicologia e clínica.
Boss em sua reflexão sobre a psicanálise faz duras críticas aos conceitos de
inconsciente e metapsicologia. O autor diz que a identificação de Freud com as ciências
naturais de seu tempo e a consequente necessidade de entender o seu objeto de estudo (o
psiquismo) em suas relações causais o obrigou a trabalhar com a noção de inconsciente
como locus de todas essas causas obscuras capazes de ligar os eventos conscientes
lacunares um ao outro.
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perfeita relação de causa a efeito entre todas as entidades reais deste mundo” (1974, p. 6).
Enfim, um a priori impossível de ser provado e contrário a liberdade humana que
experienciamos na vida cotidiana.
Sobre a metapsicologia, Boss dirá corretamente que ela é uma “teoria psicológica
que ultrapassava o campo da experiência”, sendo uma “ciência que se estendia para além
do que era perceptível psicologicamente” (1974, p. 6). Ele diz que não à toa a
metapsicologia era referida cada vez mais como um modelo, aproximando-se assim da
noção como ela é utilizada nas ciências naturais, em especial na física. O modelo seria
uma forma de formalizar os eventos observáveis empiricamente, dando-lhes uma
organização através da suposição das relações que se estabelecem entre os diversos
elementos observados. No caso da psicanálise, a metapsicologia seria então um modelo a
medida que supõe as regras que operam atrás das cortinas do campo da experiência e do
perceptível pela consciência, dando aos eventos particulares um nexo explicativo.
33
desenvolvida em seguida. Se, em conformidade com os
conselhos de prática terapêutica dados por Freud, se deixa tal
qual tudo o que provém do doente e tudo o que lhe passa pela
cabeça, verifica-se que esta prática analítica, despojada de todas
as escórias teóricas e tornada de novo uma terapêutica
fenomenológica ou terapêutica de análise existencial, constitui
um excelente meio terapêutico. (1974, p. 13)
34
2000, p. 39). Nessa leitura, a teoria funcionaria como um leito de Procusto13, forçando o
objeto a se conformar às medidas teóricas estabelecidas de ante mão, imputando a uma
alteridade os limites da familiaridade, enfim, transformando um outro em um mesmo.
De fato, a fenomenologia foi lida por muitos como um retorno ao mundo pré-
refletido que possibilitaria um acesso à realidade do objeto ao colocar as mediações entre
parênteses, na busca e elogio de uma percepção ingênua do mundo. Além de passagens
como a de Rolo May, vemos também no texto de Merleau-Ponty caracterizações da
fenomenologia que levam à essa leitura:
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Existe um mito grego antigo a respeito de um saqueador chamado Procusto. Esse ladrão morava próximo
a uma estrada, o que fazia com que recebesse viajantes procurando por abrigo. Depois de bem os receber,
Procusto mostrava-lhes o cômodo onde poderiam passar a noite e, quando o viajante caia no sono, o
anfitrião o amarrava na cama que dormia. A cama tinha o tamanho exato de Procusto e, se o viajante fosse
maior que a medida, o ladrão cortava o excesso decepando a cabeça e as pernas do infeliz, já se o hóspede
fosse menor que Procusto, esse o esticava com um sistema de roldanas e algemas instaladas na cama. Há
muitas variáveis e complementos deste mito, mas esta versão é suficiente para ilustrar a ação das teorias
sob os objetos que trabalhamos aqui. Cabe apontar que tomei conhecimento desse mito justamente em uma
palestra na qual um psicólogo alinhado à fenomenologia usava a história para criticar outras abordagens
em psicologia e defender o método fenomenológico.
35
Foi também assim que, por exemplo, os professores do próprio Merleau-Ponty
entenderam o seu projeto da Fenomenologia da Percepção (2011) exposto em sua
comunicação “O primado da percepção e suas consequências filosóficas” (2015). Brehier,
um de seus interlocutores na ocasião, diz em tom de crítica que a filosofia tem origem na
distância que toma da percepção vulgar e que Merleau Ponty estaria indo na direção
oposta em sua confiança no dado sensível (2015, p. 54). Salzi faz coro a essa acusação ao
dizer que Merleau-Ponty fazia da intuição perceptiva uma tábula rasa que nos dá acesso
ao real (2015, p. 63).
14
É verdade que Viveiros de Castro se encontra longe da fenomenologia e faz críticas agressivas à essa
escola. Ainda assim, creio que ele lida com problemas comuns a esses que vimos na crítica da
fenomenologia à metapsicologia como redução do homem à teorias que o apreendem de forma unilateral.
Tanto para o antropólogo como para certa fenomenologia, o problema central é a redução do outro ao
mesmo, do estranho ao familiar e recuperar a obra de Viveiros de Castro serve para explicitar os problemas
éticos em jogo nesse debate epistemológico.
36
“Aqui é preciso saber personificar, porque é preciso personificar para saber. O objeto da
interpretação e a contra-interpretação do objeto.” (VIVEIROS DE CASTRO, p. 52,
2018). O desafio é poder traduzir a experiência vívida de outro ser para a língua daquele
que o estuda. A radicalidade do esforço em preservar essa alteridade fundamental se
apresenta no entendimento do que seria uma boa tradução para essa abordagem
antropológica: a boa tradução não é aquela que trai a língua do texto original, mas a língua
do texto de destino, promovendo nela fissuras que contaminem seu campo de experiência
com o campo do outro. (VIVEIROS DE CASTRO, 2018, p. 87)
15
Parece-me que a forma como tomamos contato com a fenomenologia na graduação de nosso curso de
psicologia da PUC-SP dá grande enforque a essa leitura que entende a fenomenologia como uma crítica
mais generalizada a qualquer esforço teórico, sendo a teoria vista como deturpador do fenômeno. A força
dessa crítica nas grades de nosso curso se deve talvez a forte presença de Boss na construção da
fenomenologia da PUC-SP, tendo em vista que o texto do fenomenólogo abre margem para essa
interpretação que venho expondo. A influência do psiquiatra suíço na PUC é tamanha que chegou a deixar
seus traços na tradição psicanalítica da universidade. Quando falo isso penso especialmente no professor
Frankilin Goldgrub, de quem ouvíamos em suas aulas de Freud que o analista deve “esquecer tudo o que
aprendeu em teoria no momento em que vai atender alguém na clínica”. Não à toa um texto de Freud que
parece caro a todos dessa tradição é o “Recomendações aos médicos de desejam exercer a psicanálise”, no
37
Como nosso assunto aqui é a interação teoria e prática, podemos nos perguntar à
que tipo de clínica leva essa leitura da fenomenologia. Parece-me que a prática terapêutica
dentro desses referenciais conceituais corre o risco de ser uma espécie de clínica
espontânea, na qual o esforço do terapeuta seria livrar-se de qualquer tentativa de
teorização para que assim fosse guiado por uma intuição e sensibilidade que lhe
indicassem os caminhos a serem tomados no processo terapêutico. Fosse assim,
poderíamos apontar os perigos de uma clínica desse tipo não conseguir justificar as
opções adotadas no prosseguir do tratamento e não poder assim se diferenciar de uma
clínica leiga. Ainda, no intuitivismo haveriam os riscos do terapeuta ser guiado sem saber
pelas expectativas sociais de adequação do sujeito às normas hegemônicas e seus padrões
de saúde, inserção social e produtividade. Isso produziria uma clínica a-crítica. Se toda
prática é mediada por determinantes epistemológicos, sociais, históricos, culturais e etc.,
o trabalho do pensamento crítico é entender em que pressupostos estamos nos apoiando
a fim de não nos vermos imersos em diretrizes que nos comandam sem que saibamos.
Nesse sentido, poder refletir e escolher essas mediações que guiam a nossa atuação clínica
é uma forma de não nos submetermos irrefletidamente a uma doutrina. Deixar com que
esses pressupostos atuem de forma opaca e surda a nos guiar é ceder à violência
epistêmica.16
Porém, creio que essa não é a única leitura possível da fenomenologia. Arriscaria
mesmo dizer que não é esse intuitivismo que orienta na prática psicólogos filiados a essa
abordagem. Vemos em Boss que essa aposta em uma interação a-teórica não é um
anarquismo metodológico ou uma psicologia vulgar. O colocar da teoria entre parênteses
ganha contornos particulares ao ser apontada como um retorno a “terapêutica
fenomenológica ou terapêutica de análise existencial” (1974, p.13, como vimos na citação
na página anterior). Isso coloca a postura a-teórica defendida ao lado de um marcado
vocabulário fenomenológico existencial no qual temos conceitos bem delimitados de ser
qual o mestre de Viena insiste que o analista deveria afastar todos os preconceitos e formulações teóricas
no momento em que escutava seu paciente. (FREUD, 1969d, pgs 147 – 159)
16
Seria interessante recuperar a noção de crítica desde Kant como uma forma de resistir ao dogmatismo.
Isso nos levaria a todo uma trajetória desse conceito fundamental também em Hegel, Marx e, no que nos
interessaria ainda mais, Foucault. Porém, o leitor deverá se contentar a ver aqui somente esse apontamento
muito remissivo, uma vez que o esforço em recuperar a história do conceito de crítica excederia os limites
desse trabalho. Na conclusão desse estudo, porém, tentarei ao menos explicitar esse método de análise
epistemológica e trabalhar brevemente com textos de Foucault e Lebrun que influenciaram minha tomada
de posição nesses assuntos.
38
humano e direção do tratamento. Vejamos a definição de Boss da “natureza fundamental
da existência humana” (1974, p. 8):
Mais a frente no texto, Boss coloca de forma clara que dentro dessa concepção de
ser humano e desse quadro conceitual adotado existe uma direção do tratamento que
orienta a clínica e que deve ser buscada ativamente pelo terapeuta:
39
à fazer ruído no contato entre eu e outro, mas sim a via de acesso livre ao humano em sua
pureza.
Porém, há uma outra leitura da relação teoria e clínica na fenomenologia que leva
a uma outra crítica à psicanálise. Essa outra leitura compreende a fenomenologia não
como uma intuição a-teórica, mas uma metodologia que parte de um conceito
antropológico de ser humano específico. A divergência com a psicanálise, então, não
passaria pela proposição de uma clínica intuitiva (no sentido em que vimos), mas sim na
adoção de uma antropologia diferente da de Freud. Aqui me refiro a Ludwig Binswanger.
40
A segunda fase foi a de comprovação, na qual Binswanger buscou conferir a
confiabilidade dessa doutrina na sua experiência pessoal e na experiência junto a outras
pessoas através da aplicação do método psicanalítico e a verificação de seus resultados
para ver até onde Freud tinha razão. Tratava-se de avaliar a psicanálise segundo as suas
próprias medidas metodológicas e epistemológicas em um esforço de conferir a
consistência interna da disciplina. Essa fase consistiu de um ceticismo inicial que
progressivamente cedeu rumo a uma crescente credibilidade que o psiquiatra passou a
depositar em Freud. (2013, p. 64)
Binswanger diz que, para Freud, os atos psíquicos são sempre dotados de sentido,
como expresso na passagem do pai da psicanálise que o psiquiatra recupera:
41
inteligibilidade às lacunas da série de nexos psíquicos, assim como explicitar a tendência
suposta desses atos psíquicos que não se manifesta à luz da consciência.
Por ser experimentável, Binswanger entenderá que a psicanálise não poderia ser
um mero exercício especulativo, sendo a disciplina de Freud intimamente lastreada na
peculiar experiência do inconsciente que, apesar de não ser um dado imediato apresentado
à consciência pela percepção, se faz sentir pelos seus efeitos. Essa peculiaridade do objeto
psicanalítico (uma experiência que se faz presente apesar de oculta), seria a razão de
Freud insistir tanto na dificuldade daqueles que não são psicanalistas ou não passaram
por uma análise entenderem do que fala a psicanálise (2013, p. 69). Ainda, é essa
particularidade do inconsciente que parece ser a fonte de tanta confusão a respeito da
legitimidade dela como ciência empírica.
42
O procedimento interpretativo psicanalítico e toda a doutrina do
inconsciente não se baseiam de maneira alguma apenas sobre
uma especulação científica, mas em primeira linha sobre a
experiência, sobre uma experiência para qual penso hoje que a
melhor forma de fazer frente a ela é por meio da expressão
“experiência construtiva”. Nisto reside o elemento
completamente novo e, de início, tão sujeito à incompreensões
da psicanálise como ciência empírica. Esse construir é empírico
porque ele acontece segundo as características experimentais e
as regras experimentais descobertas por Freud e porque ele pode
ser constatado em toda e qualquer operação psicanalítica por
meio da experiência. (2013, p. 69)
43
se torna compreensível em seu caráter multifacetado e em sua
coesão metodológicos imponentes como uma unilateralidade
antropológica. Com isso, o naturalismo de Freud foi colocado
sob a luz correta, assim como, portanto, a sua dedução da vida
espiritual a partir da pulsionalidade. O impulso, que tinha
recebido desde o início do projeto compreensivo humano da
psicanálise, encontrou agora a sua fundamentação e formulação
filosófico-antropológicas. Ele não podia se apoiar apenas sobre
a doutrina de HUSSERL das diversas regiões de objetos e de
coisas e sobre os tipos fundamentais de “exposição
identificadora” que lhe são correspondentes, mas também sobre
a doutrina de HEIDEGGER do ser-aí como ser-no-mundo, na
qual o ser-jogado-na-vida e o ser-afinado significam, em
verdade, “existenciais” fundamentais, mas de maneira alguma
exclusivos. (2013, p. 78)
Como já apontei, essa crítica, se acatada, produz efeitos sobre a forma como a
psicanálise produz conhecimento e orienta sua clínica, ficando nítido como esse debate
produz efeitos teóricos e práticos na psicologia. Seria muito interessante, nesse sentido,
entrar mais a fundo nas consequências que essa concepção de homem e conhecimento
trazem para clínica da Daseinsanalyse e outras correntes em psicologia que parecem ter
sido influenciadas por essas discussões. Quando falo dessas novas propostas penso, por
exemplo, na psicanálise existencial de Sartre (2015) ou a aproximação da psicanálise de
Hegel e Heidegger em Hyppollite (1989). Há ainda aquelas que, mesmo que a ruptura
com a psicanálise seja menor, propõem mudanças importantes na disciplina a partir de
inspirações semelhantes. É o caso de Leopoldo Fulgêncio e sua psicanálise sem
44
metapsicologia, façanha que seria possível ao se apoiar em uma aproximação entre
Winnicot e Heidegger (2018)
Outras ponderações seriam possíveis com um estudo mais detido das diversas
propostas em psicologia movidas pelo descontentamento com o cientificismo do campo
em geral e da psicanálise em particular. Porém, não poderemos dar continuidade ao estudo
dessas críticas e suas consequências e temos, agora, que nos mover para um outro domínio
de conhecimento: o das ciências experimentais. Com isso perdemos em profundidade,
mas creio que a possibilidade de comparar dois campos epistêmicos através de suas
críticas à psicanálise tem o benefício de desnaturalizar ambos os critérios de cientificidade
em jogo. Ao secularizar esses critérios e descer eles à terra, podemos nos ver livre da
assunção servil à suas autoridades colocá-los em debate para que cada um defenda, na
Ágora democrática, sua forma de produção de conhecimento. Nem Heidegger nem
Grunbaum como Deus, mas como cidadãos defendendo suas propostas epistemológicas
diante da pólis. Ao trocar a dogmática dos princípios absolutos de um conhecimento pela
reflexão crítica sobre as condições de possibilidade de um campo epistemológico saímos
de lógicas verticalizadas de poder para entrar em jogos mais horizontais. Dito isso,
sigamos em frente.
45
CAPÍTULO 2 – Científica de menos
Como tentei expor brevemente na introdução, existe ainda um outro tipo de crítica
à psicanálise no que toca a sua cientificidade. Existem aqueles que entendem que a
psicanálise careceria de fundamento científico, deferindo críticas a teoria e prática
psicanalítica por ela se utilizar de meios não confiáveis para produzir suas teses e
justificar suas hipóteses. Nesse sentido, a ausência de meios válidos de produção de
conhecimento científico confiável levaria a psicanálise a ser puramente um exercício
especulativo e fantasioso, um descompromisso com seus pacientes em sofrimento
psíquico legítimo que, enganados, caem nas garras de um terapeuta que emprega métodos
cuja confiabilidade é suspeita.
Depois viria Karl Popper em textos dispersos do final dos anos cinquenta e início
dos sessenta em que ele sustenta que as teses psicanalíticas não teriam validade científica
uma vez que suas hipóteses não permitiriam testes que as falseassem. Na visão de Popper,
para a disciplina ser científica uma
46
hipótese não deve estabelecer uma relação (de causa e efeito,
concomitância, dependência, etc.) entre A e B, mas ainda
permitir imaginar meios por meio dos quais ela mesma poderia
ser desmentida. Caso se realize o experimento assim concebido
e a relação não seja invalidada, a hipótese que a afirma pode ser
tida como verdadeira, porém sempre provisoriamente. Hipóteses
que resistem a seguidas tentativas desse tipo são consideradas
mais consistentes que as suas rivais. (MEZAN, 2014, p. 531)
Enfim, o terceiro momento seria daquele que, dentre os autores que mencionamos
nesse capítulo, é talvez o opositor mais virulento à psicanálise: Adolf Grunbaum. As suas
críticas deferidas à psicanálise foram com certeza aquelas que a comunidade psicanalítica
mais se deu ao trabalho de responder. Desconfio que a razão disso é que quando
desafiados com as críticas anteriores, os psicanalistas podiam sempre defender o seu
embasamento empírico na atividade clínica, como o próprio Freud fez em seu texto “A
questão de uma Weltanschauung” (1969g). Uma vez que a clínica como meio de
validação teórica não é extensamente tematizada por Popper e Nagel, os psicanalistas não
se viam em apuros e tinham liberdade de continuar seus afazeres cotidianos. Grunbaum,
por outro lado, teve a astúcia de tomar a relação entre teoria e clínica como objeto central
de sua crítica, como podemos ver no título de seu livro mais recente sobre a psicanálise,
o famigerado “Validação na teoria clínica da psicanálise” (1993). Como vemos logo na
introdução desse livro:
Ao ler o primeiro capítulo da obra de Grunbaum temos uma explicitação bem clara
de seu objetivo. O filósofo ataca especificamente as inferências causais da teoria
psicanalítica, dizendo que o método pelo qual a psicanálise as constrói e confirma (a
clínica) é insuficiente para validá-las. Grunbaum acredita que ao focar a crítica na relação
entre inferências causais e método clínico ele derrubaria não somente a psicanálise
freudiana, mas também toda a psicanálise pós freudiana, que também trabalharia com
inferências causais (admitidas ou não) fundamentadas na experiência clínica. Portanto, a
crítica de Grunbaum, se correta, é um ataque mortal à toda disciplina.
Ao intentar uma análise desse tipo, Grunbaum nega estar fazendo uma crítica
exógena à psicanálise, ou seja, pedindo dela uma validação de suas hipóteses
incompatível com a natureza da disciplina. O filósofo aqui se defende de alguns autores
que o censuraram por estar se utilizando dos parâmetros da física para avaliar a
psicanálise. Os opositores dizem que esse empreendimento seria falho tendo em vista a
incompatibilidade epistêmica primordial entre as duas disciplinas. Grunbaum,
habilidosamente, diz que não só a causalidade não é um fenômeno restrito as ciências
48
exatas (como a física) (2006, p. 258), mas que também é o próprio Freud que reivindica
um estatuto causal para suas hipóteses centrais, nos servindo de inúmeras passagens na
qual o pai da psicanálise explicita essa reivindicação. (1993, p. 20)
Essa diferenciação que Grunbaum faz entre metapsicologia e essas que seriam as
teses fundamentais da psicanálise nos ajuda a entender a razão dele voltar toda sua
artilharia a um conjunto de teses psicanalíticas razoavelmente restrito ante a vasta obra
de Freud e seus sucessores. O filósofo acredita que destruindo essas pedras fundamentais
ele faria desabar todo o edifício teórico da psicanálise, compreendido aqui também todas
17
Lembrando que, como trabalhamos na introdução, a psicologia no século XIX ainda era compreendida
como estudo dos fenômenos da consciência.
49
as elaborações pós-freudianas. O filósofo as chama essas teses mestras de Freud’s Master
Proposition. Ele a resume da seguinte maneira:
50
2) Não há contaminação das evidências clínicas por qualquer tipo de influência
vinda das expectativas teóricas do analista:
Como o leitor deve esperar, Grunbaum refuta um a um esses pilares. Vamos para
uma primeira aproximação das ressalvas do filósofo em relação a esses postulados
metodológicos que sustentam a validação clínica da teoria freudiana. Para Grunbaum, o
primeiro pilar não conseguiria se diferenciar de uma prova do tipo post hoc ergo propter
hoc, ou seja, da conhecida falácia lógica de tomar como causalidade uma relação que
pode muito bem ser uma correlação coincidente. Explico: que eventos sigam um ao outro
cronologicamente não significa que o primeiro foi causa do segundo. Pode ser uma mera
coincidência que os dois fenômenos tenham se sucedido, sendo a causa real para o
segundo um motivo outro. O erro, percebe-se, é defender que existe uma relação causal
usando como argumento somente a sucessão cronológica dos eventos (1993, p. 29). Toda
vez quando vou viajar minha mãe impede que eu saia de casa antes dela me jogar água
benta e rezar algumas palavras em minha proteção. Ainda que eu volte vivo de minhas
férias, estou quase certo de que as preces de minha mãe não têm muito a ver com o fato
deu retornar com todos os meus membros para casa, apesar de, de fato, a sua benção ter
precedido cronologicamente minha viagem.
51
placebo18 (1993, p. 29 e p. 30). Essa crítica também abala o terceiro pilar da proposição
mestra, uma vez que não seria possível verificar que a melhora do paciente foi de fato
uma consequência da análise.
Grunbaum aponta que alguns psicanalistas se defendem dessa crítica dizendo que
hipóteses desse tipo podem se justificar por serem inferências capazes de dar a melhor
18
Grunbaum aponta que o conceito de placebo se tornou uma verdadeira torre de babel e que deve-se tomar
cuidado com a utilização do termo. Ainda que essa discussão mereça toda a atenção (e Grunbaum dedique
todo um capítulo de seu livro para tratar do assunto), bastará agora definirmos placebo como todo o efeito
terapêutico que advêm de razões que não aquelas previstas teoricamente pela terapêutica em questão (seja
a psicologia, a farmacologia, a medicina, etc.). Assim, um paciente que não tenha nenhuma questão de
saúde devido a baixas taxas de açúcar no sangue melhorar de seus sintomas com a ingestão de comprimidos
de açúcar ou ainda na administração de um remédio que se descobre não ter efeito sobre o funcionamento
orgânico patológico configuraria um efeito placebo (GRUNBAUM, 1993, p. 70). No caso da psicanálise,
chamaríamos de efeito placebo a melhora do paciente desvinculada das razões alegadas pela psicanálise
para sua eficiência clínica. Ou seja, se a psicanálise defende que o seu valor terapêutico adviria, como
Grunbaum insiste, do trabalho com as resistências e a vinda à consciência de conteúdos recalcados, o efeito
placebo seria a melhora do paciente por fatores outros presentes no setting clínico.
52
explicação à sucessão dos fatos, aquela que é mais provável.19 O filósofo argumenta que
esse tipo de defesa confunde dois questionamentos científicos diferentes: os
questionamentos que buscam uma explicação (explanation-seeking questions), na qual se
elabora uma hipótese para o porquê de algo ser de tal forma, e os questionamentos que
buscam por uma confirmação (confirmation-seeking questions), ou seja, quando se busca
confirmar a validade de uma hipótese. Uma inferência hipotética dedutiva que se apoia
no argumento de ser a melhor explicação para uma relação pode ser apenas a resposta à
uma explanation-seeking question. É a formulação de uma hipótese, mas não a
comprovação dela e, assim, não pode se defender como sendo a única explicação possível
para o conjunto de fenômenos, uma vez que é sempre possível elaborar para ele novas
explicações que também não podem ser confirmadas. (2006, p. 271). Sendo a “melhor
explicação possível” no máximo uma hipótese que responde a uma explanation-seeking
question, ela não pode se tomar como uma resposta à uma confirmation-seeking question,
ou seja, como uma explicação que passou pelos testes para se confirmar como uma
explicação valida para a situação.
19
Apesar de Grunbaum estar se referindo a outros autores quando trata desse assunto, cabe apontar que
Mezan segue esse caminho argumentativo em seu texto “Que tipo de ciência é, afinal, a psicanálise” (2014)
em que analisa qual seria a forma da psicanálise construir conhecimento.
53
A todas essas possibilidades Grunbaum opõe razões que descreditam esses dados
como formas de provar a teoria freudiana. O fato do paciente relacionar um trauma à sua
condição atual não prova que esse evento traumático foi causa da neurose, pode ser muito
bem uma correlação coincidente (1993, p. 33); a introspecção do paciente e suas
interpretações sobre si mesmo não são mais confiáveis do que a observação de terceiros,
uma vez que ambas são apoiadas em proto-teorias cuja validação não se põe em questão
(1993, p. 34); enfim, a teoria da livre associação, dos sonhos, dos lapsos e do sentido dos
sintomas neuróticos se apoiam todas no suposto efeito terapêutico da psicanálise, que não
pode, por sua vez, ser provado via clínica (1993, pgs 38-39). Como vemos, aqui estão em
jogo argumentos muito semelhantes aos que vimos anteriormente: a impossibilidade de
selecionar variáveis na clínica e a de através dela chegar em confirmações válidas para a
teoria psicanalítica.20
20
Tanto essa discussão sobre a evidência clínica como a do parágrafo anterior sobre inferências hipotético
dedutivas são discutidas também por Erwin em um texto que ele tenta refletir sobre quais seriam as
evidências válidas para apoiar uma teoria científica em geral e a psicanálise em específico. Para esse autor,
tanto a inferência pela melhor explicação como aquela advinda de relatos clínicos não seriam dos tipos mais
fortes de evidência, sendo apenas evidências derivadas, que não seriam suficientes para fundamentar uma
teoria. Para uma apreciação interessante dos argumentos de Erwin no contexto de nossa discussão, ver Beer.
(2017, pgs 140-147)
54
psicanalítica um exercício circular, na qual o analista tende a enxergar na fala do paciente
a confirmação de suas teorias e o paciente trabalha junto com a analista para construir
essa ilusão e agradar o terapeuta. Grunbaum chama esse procedimento circular de tally-
argument (argumento da adequação)21. Como fica evidente, aqui o ataque é ao segundo
pilar da proposição mestra. Com isso, Grunbaum acaba de passar uma rasteira nos pilares
que sustentavam o argumento empírico de Freud, a saber, o de que a clínica validaria a
teoria.
Ainda que hoje, tendo a experiência clínica como base, a psicanálise se encontre
em sérias dificuldades em reivindicar a validade de sua teoria, poder-se-ia defendê-la se
as teses freudianas encontrassem experimentos extraclínicos e estudos epidemiológicos
nos quais pudessem se apoiar. Esses métodos de validação estranhos à prática
psicanalítica seriam uma forma de achar um solo seguro tanto para a eficiência do
tratamento analítico como para a validade das teses psicanalíticas sobre funcionamento
da alma humana, o que legitimaria a sua extensão para campos outros da cultura tais como
a sociologia, a antropologia, a medicina, etc.
21
Vemos uma exploração dessa dimensão do argumento de Grunbaum tanto em Mezan (2014, pgs 536 –
539) como em Beer (2017, p. 133)
55
poderia ser mais bem explicado por variáveis comuns a todas as práticas terapêuticas (a
expectativa do paciente em melhorar, por exemplo) do que por um suposto levantamento
das repressões e a vinda à consciência de conteúdos inconscientes. (1993, pgs 31-32)
Esse resultado dos estudos comparativos reforçariam a hipótese de que existe uma
contaminação teórica das observações clínicas feitas pelo analista, que enxerga teses pré
estabelecidas em seu paciente que, por sua vez, confirma as interpretações do analista
uma vez que está sob efeito da transferência e admiração pelo terapeuta. Na opinião do
filósofo, para provar suas inferências causais a psicanálise precisaria passar por estudos
prospectivos longitudinais desse tipo, empregando grupos controles e estudos estatísticos
nos quais se comparasse os resultados terapêuticos de uma análise à grupos de indivíduos
tratados por outras abordagens (1993, p. 31).
Da bibliografia que pude consultar sobre o assunto, grande parte dos esforços em
conferir uma validação extraclínica de cunho experimental para as teses psicanalíticas se
dá na conjunção entre psicanálise e neurociência. Um pesquisador de grande porte que
56
tem despertado amor e ódio da comunidade psicanalítica22 é Mark Solms, que
mencionamos nas primeiras páginas desse texto como alguém que defende a necessidade
da psicanálise submeter sua teoria a procedimentos de validação mais controlados.
Relembremos sua colocação:
Ainda que nem sempre utilize métodos experimentais, Solms, junto à outros
pesquisadores, tem procurado fundamentar as teses especulativas da psicanálise no solo
firme das neurociências. Vemos como exemplo disso seu texto “O self e a neurobiologia
da cura pela fala” (2002) no qual Solms e seu colega Turnbull tentam entender os
fundamentos neurológicos do tratamento psicanalítico através de teorias já bem
estabelecidas dentro da neurociência sobre processos cerebrais relacionados a fenômenos
psíquicos em jogo em uma análise. Assim, utilizando-se do conhecimento neurológico
sobre processos psíquicos como a inibição, tomada de decisão, compulsão e linguagem,
os neuropsicanalistas conseguem traçar as dinâmicas neuronais envolvidas no processo
analítico e entender em termos biológicos a razão de seu efeito terapêutico.
Haveriam ainda muitos outros estudos em neurociência que visam provar (ou,
mais criticamente, dar uma fundamentação fisiológica/orgânica) para outras teorias
freudianas sobre o funcionamento do aparelho psíquico. Vemos em Sidarta Ribeiro o
perfilhamento de diversos estudos de neurociência em que se tenta entender como se
explicaria neurologicamente a teoria dos sonhos em Freud, suas teses sobre a sexualidade
infantil, o conceito de inconsciente, a noção de aparelho psíquico entre outros temas caros
à psicanálise (RIBEIRO, 2017)
22
Uma reação não muito amistosa à proposta do neuropsicanalista foi a de Forbes e Riva (2004). Ante a
uma entrevista de Solms publicada na Folha de São Paulo em ocasião de sua passagem pelo Brasil, Forbes
e Riva escreveram ao mesmo jornal um pequeno texto onde censuravam a aproximação da psicanálise com
as neurociências. Lá eles diziam que o método criado por Freud em nada tinha a ver com as ciências do
cérebro e que essa aproximação deturparia a psicanálise.
57
teorias. É o que temos, por exemplo, no texto que mencionamos de Solms e Turnbull: não
há uma testagem experimental com controle de variáveis tentando provar os efeitos da
talking cure psicanalítica. O que os autores fazem é aproximar teses psicanalíticas sobre
o funcionamento psíquico (o papel do id e do ego no sofrimento psíquico, a teoria da
repressão, a explicação da eficiência do tratamento tendo em vista uma etiologia
psicodinâmica, etc.) das teses neurológicas sobre o funcionamento psíquico (as instâncias
de tomada de decisão, o funcionamento compulsivo/sintomático, a dinâmica cerebral em
jogo em fenômenos da linguagem, etc.). A fundamentação se dá pela aproximação de
fenômenos observados nas duas áreas por meio da comparação, mas não de fato pela
experimentação de conceitos psicanalíticos (2002).23
Nesse sentido, Shevrin leva mais longe os esforços experimentais em sua pesquisa
que busca validar o inconsciente freudiano. Não entraremos em detalhes sobre essa
pesquisa, trabalho esse, aliás, já feito por Paulo Beer em texto publicado recentemente
(2017, pgs. 151 – 168). Para os fins aqui pretendidos, cabe apenas apontar que seu
experimento teve a argúcia de misturar a atuação de psicanalistas clínicos e medições
laboratoriais experimentais. Muito sumariamente: os psicanalistas, por meio de
entrevistas, construíam dois grupos de palavras para pacientes com fobias sociais, um
deles relacionados ao conflito inconsciente dos sujeitos e outro com palavras relacionadas
a vivência consciente dos sintomas produzidos por esse conflito. Depois, em laboratório,
essas palavras eram apresentadas subliminarmente e supra liminarmente aos sujeitos
junto a outras palavras neutras que configuravam o grupo controle. Os efeitos das
apresentações das palavras eram comparados tendo como medida comum a emissão de
sinais neuronais identificados à inibição (as potências alfa). (SHEVRIN et al, 2013, p. 4)
23
É importante apontar que esse tipo de fundamentação da psicanálise se diferenciam das exigências do
experimentalismo e são mais bem entendidos como consequências dos imperativos de uma época que reduz
a alma ao cérebro, compreendendo que qualquer fundamentação válida para teses sobre o psiquismo deve
se pautar no solo firme da biologia. O peso dado ao cérebro e a genética na psicologia e na psiquiatria a
partir da década de 90 é de fato uma das viradas epistemológicas dentro do campo psi que deve ter toda
nossa atenção. Assim como os vetos fenomenológicos e experimentais que analisamos nesse trabalho, os
vetos neurocientíficos às disciplinas psicológicas em geral e psicanalíticas em particular mereceriam toda
uma análise sobre seus pressupostos epistemológicos, seus métodos de validação, suas condições históricas
de surgimento e seus efeitos éticos, institucionais e políticos, o que tento fazer em uma pesquisa de Iniciação
científica em andamento. Como isso, porém, foge do alcance desse trabalho, remeto o leitor ao texto “Si
mesmos neuroquímicos” de Nikolas Rose (2013), que é uma boa introdução crítica sobre a hegemonia da
leitura biológica dos fenômenos psíquicos.
58
correlacionadas às taxas de potência alfa detectadas ante a apresentação supra liminar de
palavras relacionadas a experiência sintomática consciente. A semelhança das respostas
de inibição habilitaria os pesquisadores a afirmar a relação existente entre o conflito
inconsciente e a manifestação sintomática (SHEVRIN et al, 2013, pgs 4-5). O diferencial
desse estudo é o fato dele verificar experimentalmente os efeitos de varáveis encontradas
por meio do método psicanalítico (as palavras relacionadas ao conflito inconsciente dos
sujeitos testados) e perceber que os efeitos observados correspondiam às previsões da
teoria psicanalítica. Um fato interessante trazido por Beer ao comentar esse experimento
é que o próprio Grunbaum, em uma troca de cartas com Shevrin, sentiu-se convencido de
que essa seria uma prova suficiente para o inconsciente dinâmico de Freud (BEER, 2017,
p. 162).
24
Não entrarei no mérito de analisar a proposta do próprio Hanns para a validação científica das terapias
psicodinâmicas, que muito se diferencia dos estudos prospectivos longitudinais com grupo controle que
tomam como critério de efetividade a remissão de sintomas.
59
metodológicas. Uma análise epistemológica que tomasse dogmaticamente um referencial
metodológico como único capaz de alcançar a verdade só poderia analisar outros campos
do saber de forma negativa, ou seja, enxergando-os pelos seus erros, pela sua distância
em relação ao saber verdadeiro. Aos olhos dessa ciência transcendental, monárquica e
divina, os campos de conhecimento que dela divergem seriam mera mistificação e
ideologia. Nada disso me interessa. Gostaria antes de poder compreender esses campos
como campos discursivos, tomados na horizontalidade das relações de seus conceitos com
seu contexto histórico, das suas instituições de circulação e de seus jogos de poder e não
através de uma subjugação verticalizada onde o discurso é tomado pelos olhos de um
sumo-saber.25 Assim como fizemos na análise do campo “fenomenologia-hermenêutica-
existencialismo” sobre as suas possíveis implicações clínicas, sua visão de homem e seus
ganhos éticos, cabe ponderar sobre os efeitos dessa epistemologia estatístico-
experimental para a psicanálise e a psicologia.
25
O leitor atento já deve ter sentido os ares foucaultianos que, já na introdução, mencionei como uma
influência importante para esse trabalho. Creio que alguns traços da análise dos discursos Foucault fizeram
coro à minha intenção inicial de comparar as duas críticas à científicidade da psicanálise sem me basear em
um campo científico prévio como capaz de oferecer critérios de verdade universais. Essa desconfiança em
tomar uma metodologia como única forma legítima de produção de conhecimento é com certeza fruto de
meu percurso em um curso de psicologia, no qual se convive simultaneamente com diversas abordagens
absolutamente díspares sobre o fenômeno psicológico.
60
tornando-o anônimo26. Esse seria um meio efetivo de não submeter a população a
verdades inverificáveis e assim deixá-la vulnerável ao autoritarismo de uma ideia que, se
não pode se apoiar na disponibilidade de sua testagem a todos da comunidade, tende a se
legitimar por meios espúrios.
26
Castoriadis chamou a atenção para o anonimato no desenvolvimento das ciências exatas em
contraposição ao personalismo das ciências humanas, o que de fato é algo a ser pensado. O filósofo diz que
enquanto nas ciências humanas existe grande interesse em estudar antigos pensadores e explorar a maneira
como eles elaboraram seus problemas de estudos e os resolveram, nas ciências exatas esse esforço não
existiria. Para Castoriadis, quando se estuda a forma com que Newton formulou suas questões e resolveu
problemas teóricos de sua época não se está fazendo propriamente física, mas história da física ou ainda
filosofia da física. As ciências exatas estariam mais voltadas aos problemas do atual estado de
desenvolvimento de sua disciplina, enquanto nas ciências humanas haveria uma certa indiferenciação entre
história das ideias e desenvolvimento do campo. Recuperando o dito de que Lacan descobriu Freud,
Castoriadis sintetiza suas observações dizendo que nas ciências exatas não se descobre cientistas, mas sim
coisas (CASTORIADIS, 1987, p. 45). O tema também é abordado lateralmente por Foucault em “A ordem
do discurso”, quando ele comenta como, a partir do século XVII, vimos o decrescer da importância do autor
em conferir aos discursos científicos o estatuto de verdade ao mesmo tempo em que na literatura o autor
passou a ser a referência última para a verdade do texto, seja na vinculação da obra com sua vida, seja na
demanda ao próprio autor para dar ao seu texto o significado e estabilizar os sentidos difusos de sua
literatura (2014a, p. 26)
27
É verdade que a sujeição imediata e irrefletida ao sistema de validação experimental é, também, uma
forma de estar submetido a dinâmicas de poder, uma vez que o experimento é tomado de ante mão como
forma de produção da verdade. É nesse sentido que, acredito eu, Beer tem que recorrer não somente a
Granger, mas a Thomas Kuhn e Paul Feyerbend, que em sua filosofia da ciência enfatizam a necessidade
de compreender os campos de conhecimento em sua dimensão histórica e social. Historicizar o
61
Além disso, a prática experimental possibilita um recurso à empiria menos sujeito
ao viés do observador. Pensemos na astrologia para entender melhor essa parte. Os
leitores do horóscopo de jornal têm muita facilidade em reconhecer em suas vidas as
predições ali enunciadas, assim como aqueles que fazem mapas astrais por aplicativos na
internet conseguem muito rapidamente identificar características de sua personalidade
que provam as teses astrológicas. Como vemos, a produção de conhecimento pela
aplicação de teorias a casos específicos sem um controle experimental pode gerar toda
espécie de mal entendidos, uma vez que a impossibilidade de isolar variáveis abre
margem para que possamos eleger qualquer evento como causa dos fenômenos a ele
relacionados (por exemplo, eleger os astros como variáveis determinantes ao invés da
história de vida, genética, cultura, etc).28
conhecimento é uma forma de não naturalizá-lo e, assim, poder se colocar diante dele de uma forma
reflexiva e não aderida. Veremos isso em maior profundidade na conclusão.
28
Por mais absurdo que isso pareça, seria interessante entender, nesse sentido, como a psicanálise se
diferencia da astrologia. Talvez o caminho a ser trilhado aqui seria o de entender o papel da aplicação de
uma mesma teoria à casos múltiplos (não só na clínica, mas nas ciências sociais, na vida cotidiana, na
literatura, etc.) como critério de validação da psicanálise, ainda que isso não a livre, como todas as outras
ciências humanas que se utilizam do mesmo método, das intepretações selvagens e do conhecido esforço
de alguns pesquisadores entusiasmados em fazer o mundo caber em suas teorias, uma das razões das
ciências humanas serem tão descreditadas pelas ciências experimentais e ganhar contornos muitas vezes
paranoicos (“as crianças brigando pelo brinquedo é uma manifestação da luta de classes!”). Dentro dessa
discussão, creio que a análise pessoal como condição para a prática psicanalítica cumpre essa função de
enviesar menos o olhar do clínico pelas suas questões pessoais. Enfim, o método clínico de produção de
conhecimento valeria toda uma discussão a parte que não poderei empreender aqui.
62
ainda condenada à reclusão nos consultórios privados, atendendo apenas aqueles que
acreditam misticamente nela (DAVIS; CAMBELL, 2017, BEER, 2017, pgs 191 - 192).
Talvez, porém, o método experimental e estatístico não seja o mais adequado para
se fazer pesquisa em todas as esferas do conhecimento humano. Talvez não seja tão
irrazoável pensar que, assim como qualidades e vantagens, esses métodos tenham
também suas deficiências e que elas sejam ainda mais gritantes para alguns casos
específicos em que metodologias não experimentais possam ser mais produtivas. Quem
sabe, o psiquismo seja um desses casos.
É o que defende Mezan em seu texto “Que tipo de ciência é, final, a psicanálise”.
Depois de recuperar a história da Methodenstreit (que tivemos a oportunidade de estudar
na introdução), Mezan diz que a forma com que Freud produziu conhecimento estaria
muito mais próxima do método com que Darwin construiu sua teoria da evolução do que
do método das ciências experimentais. Como sabemos, Darwin não realizou nenhum
experimento para provar sua tese. Diante de muitos dados esparsos e lacunares tais como
formações geológicas, bicos de passarinhos, indicações de mudanças ambientais e tantos
outros, Darwin traçou uma explicação plausível que desse conta dessa diversidade de
fenômenos isolados, enredando-os em uma trama que deu sentido ao todo (2014, pgs 567-
569). Para Mezan, tanto Freud como Darwin lidavam com objetos cuja rede causal era
complexa demais para ser submetida à controles experimentais. Isso os obrigou a recorrer
a outras metodologias que, para uma análise de fenômenos complexos como os que eles
tratavam, se mostrou mais profícua que a metodologia experimental. Como aponta o
autor:
63
Ainda que, a meu ver, a eficiência do método experimental não seja restrito
somente a causalidades lineares29, creio que o apontamento de Mezan nos ajuda muito a
pensar as dificuldades em se aplicar o método experimental a fenômenos complexos,
como aqueles que as ciências humanas enfrentam.
Além disso, 83% das replicações que deram certo eram "menos
intensas" do que os estudos originais. (2015)
29
Um exemplo mais próximo do nosso campo para mostrar a possibilidade de experimentação em
causalidades não lineares é o do behaviorismo radical. O conceito de comportamento operante permite
submeter relações de interdependência, retroalimentação e teleologia à controles experimentais.
30
É interessante lembrar como Levy Strauss se utiliza dessa impossibilidade para fundar a distinção entre
as ciências humanas e as ciências naturais em seu clássico “Natureza e Cultura” (2003, pgs 41 - 49). No ser
64
A medicina, porém, querendo dar uma fundamentação experimental para o seu
campo encontrou modos de amenizar a influência de variáveis indesejadas nos estudos,
selecionando aquelas que interessavam colocar em relação. Quando falo disso penso
especialmente nos pilares do movimento “Medicina Baseada em Evidências”, que são o
Randomized Controled Trial (RCT) e o tratamento estatístico dos dados em meta-
análises. Vejamos também o alcance desses métodos.
Os RCTs são testes para avaliar a eficiência de uma determinada terapêutica. Ele
começa na seleção de um grupo de sujeitos que cumpra com determinados requisitos para
participarem do experimento. Esses requisitos podem ser faixas etárias determinadas,
submissão prévia a tratamentos semelhantes, gravidade da doença, etc. Dentro desse
grupo divide-se aqueles que receberão o tratamento alvo de avaliação (um novo fármaco,
por exemplo) e outro que será o grupo controle e ou não receberá a terapia avaliada (o
famoso caso dos comprimidos de açúcar) ou serão tratados com uma terapia “rival” cujos
efeitos terapêuticos já estão bem assentados pelo acúmulo bibliográfico na área. Os
estudos podem ser abertos ou cegos. Nos estudos abertos, os pacientes e os médicos
sabem quem são os indivíduos recebendo a intervenção testada e quem são aqueles que
participam do grupo controle. Nos estudos cegos, podem ser tanto os pacientes, os
aplicadores das intervenções ou aqueles incumbidos de avaliar os efeitos do tratamento a
não saber quais indivíduos fazem parte do grupo controle e quais recebem o tratamento
sendo testado. Essa cegueira [blindness] é uma forma de evitar a sobrevalorização dos
efeitos terapêuticos por parte dos médicos que sabem de antemão qual o grupo que recebe
o tratamento em avaliação, sendo o procedimento recomendado sempre que possível.
Esses sujeitos são acompanhados em follow-up studies nos quais se verifica a ação das
intervenções depois de sua realização. Já que os efeitos terapêuticos podem ser
influenciados por variáveis que não aquelas analisadas nos RCTs (os sujeitos avaliados
comem, fazem esporte e vivem suas vidas pra além do laboratório e esses fenômenos
humano não existe a distinção entre domesticação e estado de natureza. A plasticidade humana
impossibilita o reconhecimento de um comportamento que seria natural ao homem, anterior às práticas
culturais. Assim, toda ação humana só pode ser compreendida na sua relação com a história e a na sua
inserção em ciclos sociais e culturais específicos. Nesse sentido, o famoso caso dos “meninos selvagens”
criados fora da sociedade são tão artificiais quanto os criados na cidade: tanto um quanto o outro foram
construídos, não sendo a vida fora de sociedade uma volta a natureza humana. É por essa razão que cada
ser humano só pode ser compreendido em sua individualidade, na maneira própria em que foi construído
socialmente. Sendo a sua configuração tão sensível à história individual, não é de se espantar que esforços
experimentais de generalização em psicologia sejam tão frequentemente frustrados, como mostra a
pesquisa.
65
vários da vida podem influenciar na melhora do sujeito), recorre-se a grandes amostragens
a fim de minimizar os efeitos do acaso: se o remédio funcionou tanto pra pessoa que se
alimentou bem quanto pra que se alimentou mal, pra aquela que fez esportes e pra aquela
que não saiu de casa, temos então um bom indicativo de que é o tratamento a razão da
melhora do doente. Nesse intuito, apela-se para a meta-análise, que é a reunião e o
tratamento estatístico de diversos RCTs sobre uma determinada terapêutica para dar uma
palavra final sobre a efetividade do tratamento em questão.31
31
Uma análise detida da utilização de RCTs para avaliação de fármacos pode ser encontrada em “O que é
um medicamento: um objeto estranho entre ciência, mercado e sociedade” de Philippe Pignarre (1999).
66
Rose comenta então um estudo sobre a eficiência de determinado antidepressivo realizada
não somente com os RCTs publicados em revistas científicas, mas também aqueles que
não foram publicados. Essa pesquisa mostrou que, quando incluídos os estudos não
publicados, os efeitos dos medicamentos eram muito mais tímidos do que aqueles
expostos em meta-análises de estudos publicados, ao mesmo tempo que os efeitos
colaterais apareciam de forma mais violenta. Esse dado somado à identificação das redes
de financiamento que relacionam industrias farmacêuticas, associações psiquiátricas
responsáveis por publicações influentes e centros de pesquisa da área levantam a suspeita
de que esse viés de publicação cumpre aos interesses dessas industrias, que se
beneficiariam de estudos que chamam mais atenção para os efeitos terapêuticos de seus
remédios e deixa de lado os efeitos colaterais. Rose reforça essa suspeita ao citar outras
pesquisas que apontam que estudos financiados pelas industrias farmacêuticas
interessadas no bom desempenho do remédio em questão tendem a mostrar resultados
mais favoráveis aos fármacos do que estudos em que o órgão que os financia não tem
nenhuma relação com o laboratório que produziu o medicamento, ou seja, estudos onde
não existe essa convergência de interesses (2018, pgs 123- 125). É claro que esses defeitos
metodológicos podem encontrar correção, que é possível pensar modelos experimentais
com menos contaminação dos resultados e fazer meta-análises honestas, mas não
devemos nos enganar e comprar as evidências produzidas por esses métodos estatísticos
e experimentais como dando a palavra final sobre o assunto em questão.
67
Com esse capítulo, espero ter conseguido apresentar a crítica estatístico-
experimental à psicanálise e algumas de suas consequências. Enquanto alguns pontos da
aplicação desses métodos para a psicanálise me parecem muito positivos (o controle
social do conhecimento; a defesa contra o charlatanismo; a possibilidade de evitar a
submissão ao poder vertical de um conjunto de ideias dogmáticas; a empiria mais precisa;
a possibilidade de dialogar com os critérios de cientificidade hegemônicos e evitar a
marginalidade científica), outros carregam problemas que devem entrar na conta quando
avaliamos qual seria a metodologia científica a ser aplicada para a validação da
psicanálise (a instabilidade das teses em psicologia construídas por esses métodos; a
dificuldade de aplica-lo a fenômenos onde a seleção de variáveis é difícil de ser realizada;
os problemas em exportar os critérios de avaliação da efetividade clínica da medicina para
a psicanálise e ainda algumas pistas de que, mesmo nesses métodos, não estamos livres
de submissões à verdades que partem não mais de gurus, mas de indústrias
farmacêuticas). Tendo a certeza de que muitos dos pontos aqui apresentados deveriam ser
explorados de forma mais extensa e detida, encerro com pesar esse capítulo, cuja intenção
era antes mapear o debate e apresentar algumas das tensões que me pareciam mais
importantes.
68
CONCLUSÃO
Outro dia indo abastecer meu carro fui alertado pelo frentista: “Acho que tem
alguma coisa errada com seu veículo senhor, ele está derramando um líquido preto”.
Depois de me engrandecer pelo tratamento por “senhor”, logo fiquei preocupado. Meu
pobre carro! Retomando um pouco a prudência, perguntei a onde ele tinha visto o tal
líquido escuro. Ele então passou a mão no meu escapamento e me mostrou os dedos
pretos. “Veja só, isso aqui não é normal”.
Sem ter a menor ideia sobre o que poderia significar para o bem estar do meu carro
aquela fuligem no dedo do frentista, embalei na confiança com que ele me dizia aquelas
coisas e, a seu pedido, abri o capô para ele ver o que afinal estava acontecendo. Ele então,
se utilizando de seus instrumentos equivalentes ao estetoscópio e ao medidor de pressão
para verificar o bem-estar do meu possante (ou seja, a varetinha e o pano que, juntos,
permitem avaliar o óleo) aferiu com segurança: “Olha, creio que seu carro sofre de
problemas de óleo. Se não tratarmos disso com eficiência a questão pode ficar crônica”.
Na verdade ele disse que meu óleo tinha vencido e que se não o trocássemos
imediatamente meu motor poderia ser danificado de forma irreversível, mas isso tudo me
soou de forma muito parecida com a frase anterior entre aspas.
Para dar ainda maior fundamentação ao seu argumento ele conferiu a última data
de troca de óleo estampada em um adesivo no interior do meu carro. “Veja só, já está na
hora de trocar o óleo”. Mesmo atordoado pelas informações – que ganhavam uma
magnitude ainda maior pelo fato de eu não entender absolutamente nada sobre óleo,
escapamento ou líquidos pretos – falei a ele que iria então no mecânico que conhecia. Ele
insistiu dizendo que era realmente algo importante de ser feito logo e que poderíamos
trocar o óleo já no posto. Sentindo o cheiro de cilada logo disse que “preferia não” e dirigi
até minha casa guardando grande raiva de ter quase sido ludibriado pelo frentista. O
sentimento se agravou depois que meu mecânico de confiança disse que a saúde de meu
carro ia bem. Só conseguia pensar que nada disso teria acontecido se eu soubesse sobre
os tais líquidos pretos, a fuligem no escapamento e o maldito óleo.
69
autonomia ante a violências que se garantem pela falta de conhecimento do outro. A
condição para que jogos de poder aconteçam é justamente a falta de conhecimento de um
dos lados, seja do funcionamento de um motor, da palavra divina ou de seus direitos como
cidadão. Estar destituído do conhecimento é, nesses casos, estar vulnerável.
Essa é, porém, apenas a superfície dos problemas das relações de poder em jogo
no campo do conhecimento. Nessa formulação do problema estamos ainda no iluminismo
e vemos a razão, o conhecimento e o método científico como possibilidade de libertar o
homem. Aprendemos, principalmente no século XX, os perigos também dessa forma de
enxergar o problema do conhecimento em suas relações com o poder. A cientificidade
com que se justificou a inferioridade intelectual dos negros e sua periculosidade inata na
frenologia de Lombroso (RAUTER, 2013), as dinâmicas de reclusão e dominação
envoltas no rigoroso discurso psiquiátrico e o tratamento dos alienados (FOUCAULT,
2014b) ou ainda a deformação da teoria da evolução para justificar práticas colonizadoras
no darwinismo social são alguns exemplos do que a segurança no projeto científico
permitiu em violência política.
Alguns dirão que esses abusos da ciência só foram possíveis pela falta de
maturidade do método científico. Eles seriam antes desvios da boa norma científica, hoje
já bem estabelecida e validada. Porém, dizer que o darwinismo social, a teoria da
periculosidade ou os saberes psiquiátricos do século XIX só foram possíveis por estarem
aquém do método científico é cair nos riscos de não colocar sob crítica e reflexão o critério
de cientificidade com que se realiza essa censura, ou seja, é tomar o seu critério de
cientificidade como via régia ao conhecimento seguro sem o colocar em julgamento. Isso
significa deixar de avaliar como o critério de cientificidade adotado para criticar as teorias
“não científicas” carrega rituais próprios de produção de conhecimento, com suas
dinâmicas institucionais específicas envolvendo jogos de poder próprios. É, enfim, cair
no encobrimento que a verdade de um saber faz de sua política (FOUCAULT, 2014a, p.
19).
70
tais ordens de discurso exerceriam caso fossem tomadas de forma irrefletida
(FOUCAULT, p. 17, 2014a).
Foi tendo essas questões em vista que me propus a fazer um estudo dos campos
epistemológicos que sustentam as duas críticas à psicanálise. Em uma análise desse tipo,
pudemos ver também que tipo de produção de conhecimento e prática clínica teríamos ao
acatar os vetos vindos desses campos epistêmicos, se conformando a esses outros
domínios de conhecimento. Esse trabalho de comparação me parecia fundamental para
explicitar que a adoção de critérios epistemológicos determinados resulta em
consequências teóricas e práticas que, por sua vez, devem ser avaliadas para pensarmos
que tipo de psicanálise queremos produzir e exercer. Como apontei brevemente na
introdução, esse olhar para os campos epistemológicos tem inspiração em textos de
autores como Michel Foucault e Gerard Lebrun.
Gostaria de traçar alguns comentários sobre o que desses autores pude me servir
ao longo do trabalho, explicitando em quais momentos os seus estilos se fizeram mais
presentes nas minhas reflexões. Essa será uma boa forma de retomar alguns dos achados
desse trabalho e, ao mesmo tempo, esclarecer ao leitor alguns recursos metodológicos
que me utilizei aqui. Não gostaria de pasteurizar minha pesquisa ao identificá-la como
uma aplicação direta dos métodos desses autores e não acredito que o que fiz aqui cumpra,
para o bem e para o mal, suas exigências metodológicas. O leitor deve compreender a
influência deles sobre mim antes como aquela que um músico sofre de seus artistas
favoritos na escolha das notas com que improvisa.
71
Lebrun entende como reflexão racionalista sobre a ciência todos os esforços
filosóficos que afirmam a existência de uma razão anterior às ciências. Nessa pespectiva,
todos os campos do conhecimento humano legítimos estariam submetidos a uma
racionalidade universal que lhes dá a base comum e aqueles que não se conformam aos
imperativos dessa racionalidade seriam ilegítimos. Para essa forma de ver o problema do
conhecimento, não há nada mais falso do que afirmar que cada campo de conhecimento
produz suas verdades através de pressupostos conceituais e instrumentos metodológicos
específicos. A verdade é descoberta pelas ciências, que só podem operar esse
desvelamento da realidade pois estão alinhadas com uma racionalidade universal. Como
aponta Lebrun:
Esse tipo de reflexão científica entende que a razão é anterior a todas as ciências
legítimas e norteiam seus caminhos até a realidade do mundo, enquanto aqueles
conhecimentos que estiverem fora desse espectro estabelecido de antemão seriam
irracionais. No objeto de pesquisa que elegi, seria o equivalente a estudar os campos da
fenomenologia e das ciências experimentais tendo como critério de meu julgamento o
modelo de construção de conhecimento presente em Freud. Isso seria tomar Freud como
dogma de cientificidade e ver naquilo que se distancia dele heresia e desrazão.
Uma análise epistemológica das ciências para Lebrum tomaria outro caminho.
Nessa abordagem entenderíamos cada campo científico como um domínio autônomo,
orientado por pressupostos e práticas que lhe são próprias e, assim, construindo objetos e
formulando teses de maneira idiossincrática. Invertendo a fórmula anterior, o
conhecimento é muito mais uma produção do que uma descoberta. No lugar da razão
única do estilo racionalista temos agora uma razão diferente para cada campo
epistemológico. Trocamos assim a Verdade incondicional por verdades diversas, cada
uma delas condicionadas ao campo epistemológico que a gerou. Lebrun chama esse
32
Lebrun não indica a referência dessa citação, ainda que tudo leve a crer que vem de Descartes. O fato
dele ligar muito fortemente essa tradição de pensamento a Descartes e de mencioná-lo poucas linhas antes
me sugeriu isso. Ainda assim, a falta de indicação bibliográfica não permite ter certeza.
72
gênero científico de ciência positiva33, no qual o cientista “deixa de ser mandatário da
razão para se tornar seu iniciador” (p. 137, 2006).
33
A referência aqui é obviamente Augusto Comte. Lebrun chama a atenção que apesar do famoso “Curso
de filosofia positiva” apontar em diversos momentos para a necessidade de uma ciência única capaz de
produzir conhecimento válido (e apesar de sempre lembrarmos com certo desdém do pai do positivismo
por essas suas famigeradas formulações), foi Comte um dos primeiros a entender que o objeto de uma
ciência é sempre posto por seu método e, portanto, produzido pelo viés do cientista. (LEBRUN, p. 135,
2006)
73
ali a amarração conceitual dos campos e como esses conceitos se agenciavam em práticas
determinadas.
Nesse sentido, creio que Lebrun não se encontra tão distante da análise dos
discursos proposta por Foucault. Em sua aula inaugural no Collège de France, Foucault
anunciou as bases para as investigações que empreenderia como professor ali nos
próximos anos. Logo no início do texto vemos ele dizer o seguinte:
74
No interior de seus limites, cada disciplina reconhece
proposições verdadeiras e falsas; mas ela repele, para fora de
suas margens, toda uma teratologia do saber. O exterior de
uma ciência é mais ou menos povoado do que se crê: certamente,
há a experiência imediata, os temas imaginários que carregam e
reconduzem sem cessar crenças sem memória; mas, talvez, não
haja erros em sentido estrito, porque o erro só pode ser
decidido no interior de uma prática definida; em
contrapartida, rondam monstros cuja forma muda com a história
do saber. Em resumo, uma proposição deve preencher
exigências complexas e pesadas para poder pertencer ao
conjunto de uma disciplina; antes de poder ser verdadeira ou
falsa, deve encontrar-se, como diria M. Canguilhem, “no
verdadeiro”. (p. 32, 2014a)
Lembremos que, ainda que eu tenha equalizado esse trabalho nos polos “científica
demais” e “científica de menos”, Boss afirma que a vinculação de Freud às ciências
naturais fazia com que ele abandonasse a verdadeira ciência do homem (1974, p.1), sendo
a crítica do fenomenólogo, no final das contas, também um ataque à falta de cientificidade
da psicanálise! Tanto os autores da fenomenologia como Grunbaum veem a
monstruosidade da psicanálise (encarnada, nesses casos, na sua ausência de
cientificidade) naquilo que dela não se adequa à ordem discursiva de suas disciplinas, seja
a ordem da fenomenologia-existencial ou da ciência de método experimental e estatístico.
34
Um bom exemplo de um episódio na história das ciências que ajuda a ilustrar essas forças em jogo é o
de Mendel. Apesar de estar correto em suas teses, Mendel visto como um monstro para a botânica
institucionalizada do século XIX. Em suas pesquisas percursoras sobre a transmissão de características nas
plantas ele se utilizava de métodos e entidades absolutamente estranhas à botânica de sua época (a
estatística, por exemplo), além de tomar como objeto de investigação algo que não estava dentro dos
horizontes dessa disciplina. Por isso Foucault dirá que “foi preciso toda uma mudança de escala, o
desdobramento de todo um novo plano de objetos na biologia para que Mendel entrasse ‘no verdadeiro e
suas proposições aparecessem, então, (em boa parte) exatas.” (p. 33, 2014a).
75
Mapeando as forças de organização de um discurso, Foucault identifica ainda um
terceiro vetor a organizar as enunciações: o direito de fala (pgs 34-35, 2014a). Esse tipo
de coerção do discurso está presente, por exemplo, no modelo do ritual, onde a circulação
palavra está condicionada à posição que um determinado indivíduo ocupa em relação aos
outros e como cada um deles está localizado em relação a situação ritualística. Em um
julgamento, concede-se ao juiz, réu e advogado permissões diferentes de fala, além de a
eficácia das palavras variar segundo cada papel que eles ali ocupam. Dentro de um campo
discursivo, atribui-se papeis a cada um de seus agentes e esses papeis ancoram os
indivíduos em posições que determinam a sua agência no interior desses sistemas.
Esse vetor de coerção dos discursos pode ser visto na contraposição que fizemos
do método experimental com o personalismo dos gurus e das seitas. No método
experimental, a validação independe da pessoa que produz o conhecimento, enquanto nos
personalismos a verdade está radicalmente vinculada a posição que determinado
indivíduo ocupa perante o grupo.
35
A passagem em que Foucault expõe esse princípio é especialmente instrutiva:
76
discurso como objeto de nosso pensamento a ser assimilado, ele deve ser compreendido
na forma com que sujeita os objetos a sua ordem, na violência que impõe às coisas.
Nesse sentido, estudar campos epistêmicos diversos pela crítica que eles fazem a
outros foi uma boa forma de explicitar a coerção que eles impunham aos objetos, seja
para expulsá-los de seu campo discursivo (como na fenomenologia, onde a vinculação da
psicanálise às ciência naturais impede qualquer ciência do homem) seja para exigir sua
conformação aos imperativos do campo (quando Grunbaum diz que a psicanálise ainda
não é científica, mas só se ela submeter suas teses à controles experimentais e estudos
longitudinais estatísticos com grupos controle).
Enfim, essa análise do discurso deve estar atenta às forças que o organizam, as
suas condições de possibilidade que delineiam suas fronteiras. (pgs 48 – 50, 2014a).
Seguindo esses princípios, Foucault elabora dois vetores de análise dos discursos. De um
lado, uma análise capaz de verificar tanto os jogos de exclusão dos campos discursivos
(as forças que repelem objetos para seu exterior e os tomam como monstruosidades, como
vimos anteriormente) como as coerções que regem seu domínio e promovem a coesão do
campo (como aquelas que estipulam o erro e o acerto, os métodos necessários para se
produzir conhecimento, etc.). Do outro lado, o estudo da formação histórica desses
campos, nos diversos acontecimentos que levaram a sua constituição.36 (p. 61-62, 2014a)
36
Aqueles que conhecem o texto de Foucault perceberão que ocultei todos os nomes que o autor dá aos
seus princípios metodológicos e vetores de análise dos discursos. Como não se trata aqui de uma discussão
detida sobre o texto de Foucault, mas sim da explicitação de alguns traços de seu pensamento que
influenciaram na minha abordagem do problema da cientificidade da psicanálise, creio que a introdução
dos conceitos e terminologias foucaultianas nos desviaria muito de nossos propósitos. Porém, para não
deixar na mão quem possa se interessar pela conceituação de cada um desses princípios e vetores de análise,
indico conferir as páginas 48 – 66 do texto que viemos trabalhando. Os princípios metodológicos são quatro:
“inversão”, “descontinuidade”, “especificidade” e “exterioridade”. Os vetores de análise se dividem em
“crítica” e “genealogia”. A identificação dos termos no texto é facilitada pelo uso de negritos e aspas na
edição que tomamos aqui como referência. (2014a).
77
método estatístico-experimental, apesar de suas qualidades, tinha dificuldade em lidar
com alguns objetos, em especial aqueles trabalhados por algumas ciências humanas como
a psicologia.
Nesse sentido, uma empreitada que ficou para além do meu alcance, mas que se
impõe, é a de reconhecer na teoria e prática de Freud seus critérios de produção de
conhecimento e coerção do discurso, aplicando ao campo epistêmico psicanalítico um
trabalho semelhante ao que fiz em relação ao campo que chamei de experimental e
fenomenológico/hermenêutico/existencial. Creio que esse trabalho deveria se dedicar a
alguns aspectos da teoria psicanalítica como a centralidade da experiência clínica na
78
construção de suas teses, a função dos modelos e da metapsicologia e suas implicações,
a razão do recurso que Freud faz à literatura (a Gradiva ou o texto sobre o conto de
Hoffman) (1969b; 1969e) à vida cotidiana (os chistes, seu sobrinho brincando com o
carretel) (1969a; 1969f) ou às ciências sociais (“Totem e Tabu” ou “O Mal-Estar na
Civilização”) (1969f; 1969h) e outros mais que fossem importantes para entender como
a psicanálise freudiana valida o conhecimento que produz e quais são os efeitos desses
critérios de validade.
Como venho apontando, a aceitação de métodos de validação que não passem por
análises desse tipo nos põe em risco de, embalados pela pretensa autoridade de um campo
epistêmico que se impõe como critério de verdade, nos submetermos a ordens discursivas
que desconhecemos. Saímos, assim, da autonomia do pensamento crítico e entramos na
subserviência do pensamento dogmático, que nos coage por vetores de poder que
desconhecemos. A violência do pensamento dogmático reside tanto na sua opacidade
como na adesão que não passa por uma eleição refletida do modelo epistemológico que
achamos mais razoável, mas pelo argumento de autoridade, nas promessas afetivas (como
37
Essa convergência pode ser explicada talvez por uma proximidade entre Michel Foucault, Gerard Lebrun,
Thomas Kuhn e Paul Feyerabend (esses dois últimos sendo referências caras ao trabalho de Beer), uma vez
que a proposta dos quatro de análise das ciências recusa uma reflexão racionalista das ciências e se aproxima
muito mais de uma análise epistemológica, como vimos conceituada por Lebrun algumas páginas atrás.
79
vimos anteriormente recorrendo ao exemplo dos terra-planistas), incentivos financeiros
(pesquisas científicas que seguem determinadas diretrizes metodológicas tem mais
chances de serem financiadas) e outros mais. Assim sendo, espero que esse trabalho possa
ser uma tímida contribuição para uma prática científica menos dogmática e autoritária.
80
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85
APÊNDICE
I - But even insofar as there was transitory therapeutic gain, we saw that Freud failed to
rule out a rival hypothesis that undermines his attribution of such gain to the lifting of
repressions by free association: The ominous hypothesis of placebo effect, which asserts
that treatment ingredients other than insight into the patient’s repressions—such as the
mobilization of the patient’s hope by the therapist—are responsible for any resulting
improvement (GRUNBAUM, 2006, p. 272)
III - Although the specific content of their theories of psychic conflict is more or less
different, they also rely on Freud’s clinical methods of validating causal inferences. I
shall be challenging just these causal inferences. And it will be an immediate corollary
of my challenge that it applies not only to Freud’s own original hypotheses, but also to
any and all post-Freudian versions of psychoanalysis that rely on his clinical methods of
justifying causal claims. After all, the changes made by post-Freudians in the specific
content of the founding father’s theory of psychic conflict (repression) hardly make the
validation of the revisionist versions more secure! (GRUNBAUM, 1993, p. 3)
V - If a patient has been cured, then the etiologic interpretations his doctor gave him, at
least in the later stages of the analysis, must have been correct or close to the mark. By
the same token, insofar as the substantial remission of symptoms can beaspeak a genuine
cure, this treatment outcome confirms that the analyst has correctly identified the specific
pathogen via the patient’s free associations
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[…] the psychoanalytic probing of the unconscious is vindicated as a method of etiologic
investigation by its therapeutic achievements. (GRUNBAUM, 1993, p. 29)
VI - The clinical data furnished by successfully treated neurotics do not result from self-
fulfilling predictions. Thus, these data are exonerated from the charge that they forfeit
their probative value. (GRUNBAUM, 1993, p. 29)
IX - I do not rule out the possibility that, granting the weakness of Freud major clinical
arguments, his brilliant theoretical imagination may nonetheless have led to correct
insights in some important respects. Hence, I allow that a substantial vindication for some
of his key ideas may perhaps yet come from well-designed extraclinical investigations, be
they epidemiologic or experimental. […] In second place, if such a reliable new footing
is ever to be achieved for Freud’s theory, it is essential to have a clear appreciation of
the range and depth of the difficulties besetting its extant defenses. (GRUNBAUM, p. xi,
1993)
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