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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E DA SAÚDE - FACHS


CURSO DE PSICOLOGIA

ESTATUTO CIENTÍFICO DA PSICANÁLISE: CIENTIFICISTA OU


PSEUDOCIÊNCIA?

ANTONIO DE ALMEIDA NEVES NETO

SÃO PAULO
2019

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E DA SAÚDE - FACHS
CURSO DE PSICOLOGIA

ESTATUTO CIENTÍFICO DA PSICANÁLISE: CIENTIFICISTA OU


PSEUDOCIÊNCIA?

Trabalho de Conclusão de Curso


apresentado ao Curso de Psicologia da
FACHS, PUC-SP, como exigência para a
obtenção do título de Psicólogo.

Orientador: Prof. Dr. Paulo José de


Carvalho Silva

ANTONIO DE ALMEIDA NEVES NETO

SÃO PAULO
2019

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Para meu pai, que me ensinou a difícil arte de trancar as portas empenadas de casa.
Para minha mãe, que me permitiu esquecê-las abertas por algum devaneio.
Para meus irmãos, que brincaram comigo no jardim.
Para Lívia, que me deu a mão pra sair à rua.

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AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar, gostaria de agradecer a Paulo José de Carvalho Silva, meu


orientador. O gosto pelos estudos pode muitas vezes ser solitário e sabe-se o quanto é
frustrante tentar conversar com as pessoas sobre suas inquietações de pesquisa e ser
incompreendido. Tive a sorte de achar em Paulo um interlocutor, que me ajudou a achar
a boa forma para expressar minhas ideias e aprofundar meus estudos. Por tudo isso e pela
simpatia e prontidão com que sempre me atendeu, meus mais sinceros agradecimentos.

Essa pesquisa foi realizada em paralelo a uma iniciação científica ainda em curso,
na qual sou orientado por Renato Mezan. Ainda que os dois trabalhos tratem de temas
diferentes, creio que muitas das conversas com Renato ao longo desse último ano
influenciaram na minha forma de encarar os problemas epistemológicos da psicanálise e,
assim, marcaram as linhas dessa pesquisa. Gostaria de agradecê-lo por todas essas
conversas e pelo bom humor contagiante com que tem me recebido em seu consultório
para discutir filosofia da psicanálise. Gostaria de agradecer também ao professor Luis
Jardim, que me ajudou a desenvolver o projeto de pesquisa que desaguaria nesse trabalho.

Em 2014 ingressei nos cursos de graduação de psicologia da PUC-SP e filosofia


da USP, passando a transitar por ambientes universitários totalmente diversos. Na USP,
com microfones para o professor e salas com configuração de auditório, ouvia que diante
de uma contradição em um texto de um grande filósofo bastaria tomar um banho frio que
ela iria passar. Por outro lado, na PUC, as aulas eram em roda e o professor empoderava
os alunos ao igualar a importância de nossas opiniões às dele e às dos grandes autores.
Circular nesses ambientes me colocou em encruzilhadas constantes entre rigor e liberdade
de pensamento, equalização que continuo tentando dar conta.

Nessa trajetória foram muitos os professores que me marcaram e gostaria de


agradecer aqui alguns cujo peso da influência se fez sentir ao longo desse trabalho: Ari
Rehfeld, por plantar tão cedo em mim inquietações tão profundas; João Pedro Perosa, por
fazer da epistemologia um assunto tão instigante; Ana Bock e Graça Gonçalves, que me
iniciaram na pesquisa acadêmica; Denigés Neto (Gés), pela busca constante por rigor;
Alexandre Saadeh, por apresentar sempre um outro ponto de vista; Maria de Lourdes
Trassi (Lurdinha), por mostrar que doçura e exigência não são incompatíveis; Nichan
Dichtchekenian, pela poesia; Odair Furtado, pelo compromisso social e a generosidade;

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Gabriela Gramcow, pelo espírito de grupo; Vladimir Safatle, que me apresentou as áreas
de pesquisa que marcaram minha graduação; Luiz Repa, pela didática com que transmitia
conteúdos tão complexos; Sergio Cardoso, pela gentileza com que tratava de política;
Ricardo Fabbrini, pelo entusiasmo com que ensinava filosofia; Alex Moura, por fazer da
filosofia algo menos áspero; Osvaldo Pessoa, pela filosofia dialogada. Gostaria também
de agradecer aos membros do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da
USP (LATESFIP), por tudo que tenho aprendido lá. Ainda no ambiente da universidade,
agradeço aos livreiros da EDUC Maju e João. Meu amor pelos estudos e pelos livros
certamente deve muito à simpatia e carinho que me atendiam na livraria do campus, de
onde muitos dos livros utilizados nessa pesquisa vieram.

Ao longo da graduação fui me vinculando cada vez mais à psicanálise e foram


muitos aqueles que definiram meu alinhamento com a área. Gostaria de agradecer alguns
deles: Chu Cavalcanti, pelos primeiros passos em psicanálise; Iso Ghertman, com quem
comecei a maratona teórica e prática; Ana Trinca e a psicanálise com crianças; Hemir
Barição, pela amizade na psicanálise; Jorge Broide, pela psicanálise de guerrilha; Paula
Peron, com quem descobri o gosto pela transmissão da psicanálise como seu monitor e
que mais recentemente tem me guiado pelos labirintos da clínica.

Gostaria também de fazer um agradecimento especial a Flávio Ferraz. O meu


primeiro texto sobre epistemologia da psicanálise foi um trabalho para uma matéria da
faculdade de que acabei não recebendo devolutiva. Dei o texto a Flávio, que o comentou
e me sugeriu diversas referências bibliográficas, incentivando que eu continuasse os
estudos sobre a questão. Por ter acolhido meus interesses pela epistemologia da
psicanálise e por todas as piadas que desatam nós, muito obrigado.

Gostaria de agradecer aos meus amigos por toda a vida que existe pra além dos
estudos e da profissão. Aos “brodi” Rodrigo Silva, Lucas Belini, Igor Lopes, Tales
Robles, Pedro Dyna, Matheus Silva e Victor Schneider. À “Maçonaria”: Guilherme Silva,
Danilo Cruz, Rafael Belém e Fernando Xavier. Aos “flangos” Heloisa Prado, Caio
Horowicz, Jorge Kremer, Giulia Costa, Henrique Cutait e Alexia Lund. Aos “esquilos
castores”, em especial Dora Campos e Raquel Morales, grandes amigas. À “galera show
de bola”, especialmente Isabel Lima, Ettore Valente, Guilherme Ruiz, Fernanda Castro,
João Godoy, Marco Caramelli, Pedro Dragone, Sofia Moreira, Alexandre Aebi, Mario

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Broering e Thiago Scuccuglia. À Clara Werneck e Joana Furquim, pela amizade que
vence o oceano atlântico.

Agradeço à grande família que tenho e que me cobre de amor desde sempre.
Minha avó Iolanda Neves (in memorian), pelo carinho que tinha por mim e por meus
irmãos. Meu avô Antonio Neves (in memorian), que achava que seria muita
responsabilidade pra ele ter um neto com seu nome. Meu avô Herculano Almeida Pires e
minha avó Anna Maria Almeida Pires, pela união. Minhas tias e tios Teolídes, Terezinha,
Aparecida, Tita, Lu, Balia, Lele, Nando, Lalau, Totô e Armando. Aos meus primos que
tenho como grandes amigos: Felipe, André e Paula Altenfelder; Fábio e Pedro Almeida,
Nani, Ike e Cacá Lancsarics e Gui, Cami e Nina Lebeis. Rosinha, que me viu crescer e
está há tantos anos do meu lado. Gostaria de agradecer também a Luiz, Claudia, Victoria
e Luiza Sagula por terem me acolhido na sua família.

Gostaria de fazer agradecimentos especiais ao meu pai Fernando Neves e minha


mãe Gigi de Almeida Pires, que sempre acreditaram em mim e incentivaram os meus
estudos e minha formação. Por tudo isso e por todo o amor, muito obrigado. Queria
agradecer também aos meus irmãos Francisco e João Neves, parceiros para toda uma
vida. Por fim, queria agradecer a Livia Sagula, com quem construo dia a dia a vida que
quero junto a ela.

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não estaríamos incorrendo em nenhum paradoxo ao sustentar que o epistemólogo de
hoje só pode visar a cientificidade sob a condição prévia de destruir esses monstros
identitários forjados pelos manuais e pela vulgarização: “a ciência”, “uma ciência...”
Por que se escandalizar com isso?

Gerard Lebrun

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RESUMO

O trabalho parte da comparação de duas críticas à psicanálise em relação a sua


cientificidade. De um lado, temos a crítica de autores predominantemente franceses e de
inspiração fenomenológica, hermenêutica e existencialista. Esses enxergam nas
vinculações da psicanálise com as ciências naturais de seu tempo o princípio da
deturpação que a doutrina de Freud faria do ser humano e sua existência. Para eles, a
psicanálise pecaria por ser excessivamente científica. Do outro lado temos uma crítica
majoritariamente anglófona e americana que acusa a psicanálise de ser uma
pseudociência, uma vez que a disciplina, segundo esses críticos, trabalha com teses cuja
validade ela não consegue provar. Isso relegaria a psicanálise a ser um mero exercício
especulativo sem fundamentação científica. Evitei entrar em discussões sobre a
pertinência das leituras que essas críticas fazem da obra de Freud, o que nos jogaria em
um trabalho textual mais detido sobre a obra do pai da psicanálise. Ao invés disso, tentei
priorizar uma análise epistemológica dessas críticas, perguntando sobre seus
pressupostos, a organização do seu campo de conhecimento e tentando entender que tipo
de práticas eram produzidas por seus critérios de validade e cientificidade. Com isso,
desejo me aproximar do debate contemporâneo entre ciência e psicanálise, cuja relevância
e impacto social já é percebido, por exemplo, no grande número de publicações a respeito
do assunto nos últimos tempos, na presença desse debate mesmo em meios não
especializados como jornais de grande circulação e nas formulações de políticas públicas
na área da saúde que tomam uma posição na discussão.

Palavras-Chave: psicanálise, epistemologia, ciência.

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SOBRE AS PASSAGENS TRADUZIDAS

Parte da bibliografia utilizada nesse trabalho ainda aguarda uma edição em


português e, assim, tive que traduzir algumas de suas passagens. Nos termos cuja tradução
era mais problemática optei por incluir a palavra na língua original entre colchetes logo
em seguida da traduzida (por exemplo: “Os dados clínicos fornecidos por neuróticos
tratados com sucesso não resultam das predições auto-realizadoras [self-fulfiling
predictions].”). A fim de que o leitor possa ter acesso aos originais, incluí os trechos sem
tradução no apêndice desse trabalho. Toda vez que se tratar de um trecho traduzido, a
passagem será seguida de um algarismo romano entre colchetes ([I], [II], etc.). O leitor
então poderá verificar o trecho original correspondente indicado pelo mesmo algarismo
romano no apêndice.

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SUMÁRIO

Introdução
A psicanálise sob fogo cruzado....................................................................................11
A disputa dos métodos .................................................................................................15
Em torno da metapsicologia.........................................................................................22
Plano de trabalho e algumas considerações metodológicas .........................................24

Capítulo 1: Científica demais


Aclimatação da psicanálise em solo francês ................................................................28
Boss, a crítica à metapsicologia e o elogio à intuição..................................................32
Binswanger e a crítica à antropologia psicanalítica .....................................................40

Capítulo 2: Científica de menos


A psicanálise para a filosofia da ciência anglófona .....................................................46
Os vetos de Grunbaum: clínica e método experimental em psicanálise ......................48
A psicanálise como uma ciência estatística e experimental.........................................56

Conclusão .......................................................................................................................69

Bibliografia .....................................................................................................................81
Apêndice .........................................................................................................................86

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INTRODUÇÃO

A psicanálise sob fogo cruzado

Em mais de um século de psicanálise não foram poucas as tentativas de anunciar


a sua obsolescência. Uma dessas investidas é pautada na afirmação da falta de
cientificidade da disciplina. Em poucas palavras, afirma-se que a psicanálise formula
teses das quais não teria como comprovar a validade e a invenção de Freud ficaria assim
condenada a ser um exercício especulativo sem fundamento, flutuando em seus próprios
devaneios. A teoria então marcada pela arbitrariedade e impulso criativo irresponsável
estaria descreditada, assim como a prática clínica nela pautada. Essa crítica está presente
de alguma forma no comentário de autores como Mark Solms (2008) que, apesar de atuar
na defesa da psicanálise, pensa sua revisão pautado em argumentos como esse:

na psicanálise o problema, como você vê, é que ela é subjetiva


demais. Não há controle científico. Não há objetividade. Não há
teste de hipóteses. Não há forma de falsear hipóteses. Isso
também é perigoso. Leva a especulação sem verificação. (2008)

Esse tipo de crítica está às voltas com a metodologia de produção de conhecimento


em psicanálise a sua validade. Trata-se portanto, para dizer em uma palavra, de uma
crítica epistemológica. Ao longo da história da disciplina muito foi escrito a esse respeito.
A crítica de Popper (1980) em “Conjecturas e Refutações”, o comentário de Adolf
Grunbaum (1984) em “Os fundamentos da psicanálise” e as observações de David
Rapapaort (1988) em “A estrutura da teoria psicanalítica” são alguns poucos exemplos
dos casos mais ilustres.

Entre os pensadores já mencionados vale discorrer um pouco sobre aquele que


defere talvez as críticas mais ferozes à psicanálise: Grunbaum. Entre várias de suas
críticas, uma delas é que a psicanálise carece de fundamentação científica por não
conseguir colocar a prova suas teses mais fundamentais sobre a eficácia do tratamento
(2006). A afirmação alvo de sua censura é a tese psicanalítica de que o sofrimento é um
efeito da repressão de um conteúdo insuportável à consciência e o trabalho em desfazer
as forças que atuam a favor da repressão e mantêm esse conteúdo inconsciente (as
resistências) levaria não só a descoberta do conteúdo reprimido como a melhora do
paciente. Para Grunbaum, Freud falharia ao não conseguir isolar o efeito terapêutico da

11
suspenção das resistências de um possível efeito placebo do tratamento e assim a eficácia
clínica do método psicanalítico estaria em cheque:

Mas ainda que tenha existido ganho terapêutico transitório,


vimos que Freud falhou em descartar uma hipótese rival que
prejudica sua atribuição de tal ganho ao levantamento de
repressões por associação livre: a sinistra hipótese do efeito
placebo, que afirma que os ingredientes outros do tratamento que
não os insights das repressões do paciente - tais como a
mobilização da esperança do paciente pelo terapeuta - são
responsáveis por toda a melhoria em questão (Grunbaum, 2006,
p. 272) [I]

Como veremos mais adiante (dedico o segundo capítulo desse trabalho para
estudar essa crítica em maior detalhe), a validação científica para Grunbaum viria, dentre
outras coisas, da possibilidade de isolar as variáveis em jogo no processo analítico, o que
pemitiria confirmar se os resultados terapêuticos prometidos surgêm de fato das causas
supostas pela teoria e não de outros fatores. Não conseguindo isolar essas variáveis,
afirmar que os resultados terapêuticos viriam do trabalho com as resistências, seria uma
tese descreditada, uma especulação que não poderia ser confirmada e a psicanálise ficaria
destituída de sua cidadania científica. É uma crítica que baseia seu critério de
cientificidade muito marcadamente em metodologias das ciências experimentais.

Autores como Shrevin (SHEVRIN et al 2013), Solms (2008) e Sidarta Ribeiro


(2017) tem se dedicado a pensar formas de validação da teoria psicanalítica que deem
conta de responder à vetos como os de Grunbaum. Uma vez que a experiência na clínica
envolve muitas variáveis e não possibilita o isolamento delas para a confirmação de
hipóteses basais da psicanálise (sonho como realização de desejo, sintoma como
decorrência de um recalque, efeito terapêutico do trabalho com as resistências, etc), esses
autores fazem recurso a experimentos extraclínicos que fogem ao métier canônico da
psicanálise (a clínica) e apostam em estudos interdisciplinares ao se aproximarem, por
exemplo, das neurociências. 1

1
Esses estudos se curvam as críticas de Grunbaum e admitem que de fato a psicanálise deve se haver com
os problemas de sua cientificidade. Eles assim desenham formas de fundamentar a disciplina tentando
transformá-la em uma ciência cujas teses estão apoiadas em um método experimental. Esse é um tipo de
resposta que se conforma aos vetos de Grunbaum e os faz valer. Outro tipo de resposta, é claro, seria a de
se rebelar contra as críticas do autor e afirmar que a psicanálise não precisa desse tipo de validação
experimental para se legitimar como conhecimento e prática.

12
Há ainda o polo contrário da crítica epistêmica à psicanálise. Ela diz que a criação
de Freud sofreria de um excesso de cientificidade e aplicaria ao humano uma construção
teórica cuja validade é restrita aos objetos naturais. Entre os representantes que acusam a
psicanálise de uma espécie de cientificismo podemos encontrar, principalmente, autores
franceses do século XX responsáveis pela recepção da obra freudiana no país sob a
influência da fenomenologia, da hermenêutica e do existencialismo. Entre eles estariam
Politzer (1998), Dalbiez (1947), Paul Ricouer (1977) e Jean Hypolite (1989). Somam-se
à esses na crítica ao excesso de cientificidade da teoria psicanalítica os psiquiatras
fenomenólogos suíços Ludwig Binswanger (2013) e Medar Boss (1974).2

Grosso modo, se a crítica anterior dizia que a psicanálise não conseguiria


comprovar as relações causais que ela própria estabelece entre os fenômenos que estuda,
essa nova censura diz que a criação de Freud, para compreender o humano em termos de
causalidade, reduz o objeto “homem” a um objeto natural. (2013, p. 78) Teremos a
oportunidade de trabalhar com o texto de Binswanger mais adiante. 3 Por hora, será
suficiente o comentário de Monzani sobre a leitura que o fenomenólogo faz de Freud:

captado em sua imanência, o homem seria um objeto natural e,


por essa razão, a psicanálise estaria construída segundo o modelo
das Naturwissenschaften [ciências naturais como compreendidas
no contexto epistêmico do século XIX na Alemanha]. [...].
Erigindo o corpo (as massas pulsionais) como essência do
homem, ele [Freud] constrói uma imagem unilateral deste, cuja
característica básica é o mecanicismo. (MONZANI, 1991, p.
114)

Mais ou menos justa a obra freudiana, a leitura de Binswanger alavanca sua crítica
na ideia de que a psicanálise operaria uma redução unilateral do homem a um atomismo
pulsional cujas leis de funcionamento são formalizadas no mecanicismo. Segundo o
fenomenólogo, esse reducionismo freudiano impede que o ser humano seja compreendido
em sua inteireza e caberia assim recusar a proximidade de Freud com as ciências naturais.
Em outras palavras, a natureza do objeto “homem”, ou seja, sua dimensão ontológica, é

2
É claro que a reunião de autores de escolas tão diversas como a fenomenologia, a hermenêutica e o
existencialismo em um mesmo grupo exige uma justificativo de minha parte. O leitor poderá verifica-la
mais adiante, no primeiro capítulo desse trabalho.

3
Mais especificamente, no final do primeiro capítulo desse trabalho, a partir da página 35.

13
incompatível a um modelo de investigação e produção de conhecimento mecanicista, que
caberia somente aos objetos naturais.

É nesse sentido que Merdar Boss poderá dizer que houve uma “vitória do método
científico sobre a ciência no domínio particular ao qual Freud consagrou as suas
investigações durante toda a vida” (BOSS, 1974, p. 1), uma vez que “um pensamento só
é verdadeiramente científico se se esforça sempre para se adaptar o mais possível à
essência do objeto a estudar” (1974, p. 2). Boss diz que Freud nesse aspecto refletia o
espírito de seu próprio tempo, fascinado com o método das ciências naturais e embebido
da crença de que, através dele, poder-se-ia chegar à verdade última das coisas (1974).
Vemos isso em Freud na sua “concepção apriorista segundo a qual somente os fenómenos
físicos e pulsionais do homem constituem a sua verdadeira realidade fundamental.”
(1974, p. 5).

Para esses teóricos próximos à teoria fenomenológica e hermenêutica, o estudo do


homem só seria justificado se o investigarmos não em suas relações de ordem causal, mas
nas relações de sentido:

As relações de causa a efeito não tem “sentido”, como


reconhecem francamente hoje todos os verdadeiros homens de
ciência. A causalidade não pretende, com efeito, ser nada mais
do que o registro duma sucessão singular e puramente
cronológica de determinados fenômenos. Não pode considerar-
se o problema de “sentido” senão quando se trata das motivações
humanas compreensíveis que constituem a vida do homem.
(BOSS, 1974, p. 8).

Em seus exemplos, Boss enfatiza o fato de que fenômenos que acometem o


humano não se desenlaçam em efeitos determinados, como é no caso de uma rajada de
vento que sopra uma janela aberta e a fecha. Fosse assim não poderíamos entender a
liberdade humana na qual, diante do barulho que ouço na rua, decido posso decidir fechar
a janela ou deixa-la aberta. A apreensão que o homem tem dos fenômenos que o afetam
faz com que eles não sejam vistos como mera causa à eliciar determinados efeitos em seu
comportamento, mas sim apelos, uma motivação que pode ou não ser acatada por mim.
(BOSS, 1974, p. 8). Se a causalidade funciona no registro da necessidade, a motivação e
o apelo à ação descritos por Boss estariam no domínio da liberdade, que reside nessa
multiplicidade potencial de desenlaces no humano.

14
Esse modelo de compreensão do homem está pautado em uma concepção bem
delimitada sobre a natureza do ser humano: a “faculdade inata da percepção das coisas
como fenômenos possuindo diferentes significações que está na base de toda existência
humana.” (1974, p. 8). Enquanto os objetos naturais não têm “consciência daquilo que
ele próprio é nem daquilo que lhe é exterior” (1974, p. 8) a

existência humana caracteriza-se justamente pela faculdade de


percepção graças a qual lhe é possível apreender imediatamente
as significações daquilo que não é ela assim como a sua própria
natureza (1974, p. 7).

Com essa crítica, vemos que, retomando a metáfora bélica com que iniciámos esse
texto, a psicanálise está sob fogo cruzado. De um lado, os cientistas que exigem da
psicanálise provas empíricas, estabelecimento e confirmação de hipóteses por testes e
isolamento de variáveis. Do outro, os hermeneutas e fenomenólogos afirmando que o
rigor da psicanálise só será garantido se ela se livrar de seus resquícios cientificistas, do
mecanicismo e do organicismo, firmando-se no campo das relações de sentido. Um dos
lados exige maior rigor científico da psicanálise, acusando-a de ser insuficientemente
científica. O outro exige que ela se livre de seus lastros cientificistas e a critica portanto
por ser científica em excesso.

A exposição mais pormenorizada dessas duas posições em relação à psicanálise


será o objeto principal deste trabalho. Antes, porém, de entrar no estudo mais específico
dessas críticas, gostaria de contextualizá-las retraçando um pouco de seu percurso
histórico. Creio que a oposição entre elas é herdeira de um debate que movimentou o
cenário acadêmico germânico no século XIX que entrou para história das ideias como “A
disputa dos métodos” (Methodenstreit). Nos dediquemos um pouco a essa disputa para
melhor entender nosso problema.

A disputa dos métodos

Tardou até que as ciências humanas em geral e a psicologia em particular


conseguisse elaborar um modelo de investigação de seus objetos descolada dos
imperativos das ciências naturais. Os avanços no campo das ciências da natureza (em
especial a física e a química) e a constatação dos frutos de seu modelo de investigação as
colocava como forma privilegiada de se produzir um conhecimento útil e rigoroso. Assim,

15
no século XIX, os estudos sobre o homem miravam esses modelos de investigação para
imprimir ao seu campo credibilidade social e científica. Vejamos como foi esse o caso da
psicologia nas linhas de Foucault:

A psicologia do século XIX herdou da Aufklarung a


preocupação de alinhar-se com as ciências da natureza e de
encontrar no homem o prolongamento das leis que regem os
fenômenos naturais. Determinação de relações quantitativas,
elaboração de leis que se apresentam como funções
matemáticas, colocação de hipóteses explicativas, esforços
através dos quais a psicologia tenta aplicar, não sem sacrifício,
uma metodologia que os lógicos acreditaram descobrir na gênese
e no desenvolvimento das ciências da natureza. (FOUCAULT,
1999, p. 122)

Foucault elenca três matrizes da psicologia como ciência natural no século XIX
que cabem ser resgatadas a fim de melhor ilustrar a abordagem do fenômeno psicológico
como um objeto natural. Um deles é o modelo físico químico de Stuart Mill com sua
pretensão de separar o fenômeno psíquico em seus elementos mínimos constituintes
(procedimento de clara inspiração na química analítica de Lavoisier) e formalizar as leis
gerais que atuam no objeto de estudo através de casos específicos (herança da física
newtoniana) (FOUCAULT, 1999, p. 124).

Além dele, há o modelo orgânico de compreensão do psiquismo, que entende os


movimentos do objeto como respostas de um organismo total a estímulos que lhe afetam.
As noções centrais são então as de adaptação do organismo ao meio e sua capacidade de
adaptação interna aos estímulos. Para essa compreensão, “o aparelho psíquico não
funciona como um mecanismo, mas como um conjunto orgânico cujas reações são
originais, e, consequentemente, irredutíveis às ações que os desencadeiam.”
(FOUCAULT, 1999. P. 125). Assim, entendem os fenômenos psíquicos como respostas
orgânicas (no sentido de globais) do sujeito. Se antes víamos a relação causa-efeito mais
direta, agora temos a identificação de limiares de sensibilidade aos estímulos. Wundt,
Fechner e Bain são alguns dos representantes dessa linhagem (FOUCAULT, 1999. P.
125).

Enfim, há ainda a escola evolucionista de Jackson, Ribot e Spencer, formada pela


grande influência que “A Origem das Espécies” exerceu no ambiente intelectual da
metade do século XIX. Essa abordagem teve o mérito de apontar que os fenômenos
psicológicos deviam sua manifestação específica a uma bagagem que o sujeito carregava,

16
uma história que estreitava as possibilidades de respostas do psiquismo ante a situações
determinadas. Nas palavras de Foucault:

A importância do evolucionismo para a história da psicologia


deve-se, sem dúvida, por ele mostrar que o fato psicológico não
tem sentido senão com relação a um futuro e um passado: que
seu conteúdo atual assenta-se sobre um fundo silencioso de
estruturas anteriores que o carregam de toda uma história, mas
que ele implica, ao mesmo tempo, um horizonte aberto sobre o
eventual. O evolucionismo mostrou que a vida psicológica tinha
uma orientação. (FOUCAULT, 1999. P. 127).

Apesar de suas diferenças, as três versões da psicologia como ciência natural tem
em comum o fato de que sua produção científica se dava predominantemente em
laboratórios. Construíam teorias sobre o psiquismo através da prova de hipóteses por
testes e experimentos que miravam as características quantitativas de seu objeto:

Ora, foi o destino dessa psicologia, que se queria conhecimento


positivo, apoiar-se sempre sobre dois postulados filosóficos: que
a verdade do homem está exaurida em seu ser natural, e que o
caminho de todo o conhecimento científico deve passar pela
determinação de relações quantitativas pela construção de
hipóteses e pela verificação experimental. (FOUCAULT, 1999.
P. 122).

Vemos portanto como a psicologia partilhava os seus postulados e métodos com


as ciências naturais e submetia o psicológico ao exame dessa orientação. Porém, é
possível identificar uma grande virada no campo epistemológico na metade do século
XIX que irá apartar a psicologia e outras ciências humanas dos métodos de investigação
das ciências naturais, inaugurando uma nova forma de compreender e estudar o seu
objeto.

Essa virada a que me refiro é a célebre cisão epistemológica cujo palco principal
foi a Alemanha e a Austria do século XIX e que ganhou seu lugar na história do
pensamento com o nome de Methodenstreit (disputa dos métodos). Como aponta
Simanke, essa cisão se apresentou como uma estratégia defensiva das ciências humanas
(história, direito, crítica literária, etc) às investidas imperialistas das ciências naturais que
postulavam o seu método de investigação como o único capaz de produzir conhecimento
rigoroso, sendo o exponente maior destes intuitos colonizadores o positivismo comteano
(2009, p. 222-223). Diante da empreitada positivista, coube a alguns teóricos das ciências
humanas instaurar a separação entre as Naturwissenschaften (ciências da natureza) das

17
Geisteswissenschaften (ciências do espírito)4, afirmando que existiam métodos diferentes
para se produzir um conhecimento adequado a cada campo de investigação. Essa
distinção metodológica que diz respeito aos meios mais adequados para se produzir
conhecimento (a questão de como estudar algo) se vê intimamente ligada a uma distinção
ontológica entre homem e objetos naturais (a questão da natureza do que é estudado)
(SIMANKE, 2007, p. 223). Para se referir a diferença metodológica entre as
Naturwissenschaften e as Geisteswissenschaften apela-se, normalmente, para a
diferenciação entre explicar e compreender ou ainda explicar e interpretar
(FOUCAULT, 1999, p. 128-129; ASSOUN, 1983, p. 47; MEZAN, 2007, p. 327;
SIMANKE, 2009, p. 223; DARTIGUES, 1973, p. 52).

A explicação seria um procedimento de origem galilaico-newtoniana que consiste


em submeter um caso específico a leis universais. Circunscrever o caso em uma trama de
conceitos gerais sobre o funcionamento do objeto em questão entendendo ele antes
através de suas generalidades do que especificidades seria a forma de dar
compreensibilidade ao fenômeno, dotá-lo de inteligibilidade ao percebê-lo não como
acaso ou acidente isolado e idiossincrático, mas sim como consequência determinada por
leis gerais que explicariam a sua ocorrência. Cabe citar a longa passagem de Mezan:

No caso dos seres naturais, é indiferente que seja este ou aquele


indivíduo a ser examinado: a investigação o toma como exemplo
de toda a sua categoria, e o que descobre sobre aquele indivíduo
ou grupo de indivíduos vale para toda classe de seres a que
pertence(m). O relevante não é a singularidade ou a
individualidade do espécime, mas aquilo que nele há de
universal, considerando-se universal o próprio da classe em
questão, seja ela uma espécie, um gênero, uma ordem (em
Biologia), ou um tipo de matéria (um gás em Química, uma
rocha em Mineralogia, uma onda em física, etc.) O estudo desse
tipo de objeto visa subsumir o particular ao universal, através de
procedimentos no essencial indutivos, e a formular leis das quais
seja possível deduzir outras propriedades ou comportamentos,
verificáveis em seguida por observações, experimentos, etc. A
isso, os filósofos da época chamavam erklären (explicar). (p.
328, 2007)

4
Essa famosa separação entre os dois campos remete a obra de Wilhem Dilthey. Optou-se aqui por utilizar
os termos em alemão para manter explícita a referência a esse debate epistemológico específico originado
na Alemanha e na Áustria do século XIX. Creio que a utilização de “ciências da natureza”, “ciências do
espírito” e “disputa dos métoos” poderiam remeter o leitor a usos mais genéricos desses termos, arriscando
assim a especificidade deles no debate epistemológico em questão.

18
Trata-se portanto de explicar o singular através do universal, compreender a
singularidade pela derivação dela de leis gerais que cabem a todos os objetos da classe a
qual o fenômeno em questão pertence. Não que a singularidade não exista, mas ela é
reduzida à leis genéricas.

A essa forma de entender os fenômenos se contrapõem as Geisteswissenschaften,


que entendem que um objeto pode ter leis idiossincráticas e que sua apreensão não pode
ser derivada de sua subsunção à leis gerais de uma classe, mas sim na exposição de seu
sentido próprio cujas leis de organização não podem ser generalizadas Tentemos uma
primeira aproximação delas enfatizando o seu contraste com as Naturwissenschaften no
que diz respeito à díade explicar e compreender/interpretar:

Esta última denominação [distinção entre o explicar e o


compreender/interpretar] traduz o sentido da oposição
epistemológica da démarche naturalista que se esforça por
reduzir o devir a leis universais que servem para subsumir o
particular sob o universal [...]; e da démarche culturalista, que
aprende o objeto em sua idiossincrasia individual, enquanto
singularidade imersa na história e no devir. No primeiro caso,
torna-se necessário dissolver o particular no geral; no segundo,
trata-se de transcrever o individual sem dissolvê-lo em qualquer
mediação conceitual (ASSOUN, 1983, p. 47)

Nas Geisteswissenschaften, o que ganha preodominância é a singularidade do


objeto em detrimento da atenção ao seu pertencimento a generalidades e classes, como
acontece nas Naturwissenschaften. Ainda, no texto já citado de Mezan, veremos que o
autor enfatiza o objetivo das Geisteswissenschaften de “discernir o espírito que anima
aquelas produções, não apenas o que elas são, mas o que querem dizer”, buscando
“penetrar em seu sentido”, “revelar sua significação” (2007, p. 329). Essas expressões, a
meu ver, fazem referência a uma outra característica capital do método compreensivo: a
irredutibilidade do vivido e da experiência em primeira pessoa do objeto humano à
teorizações que a apreendam em terceira pessoa. Nesse sentido, o que diferenciaria o ser
humano dos objetos naturais é o acesso que temos da experiência vívida do homem ou,
se quiserem, de seu aspectos narrativos e intencionais:

Observaremos, pois, de início que convém falar de


compreensão quando o fenômeno a compreender é animado por
uma intenção. Não diremos de um geólogo que ele procura
compreender uma pedra; sua tarefa será somente a de analisar
sua composição e determinar a época de sua formação,
investigar sua proveniência, etc. Bem diferente será, ao
contrário, a atitude de um arqueólogo ao encontrar um sílex

19
lascado da idade paleolítica: o sílex não remete somente a leis
físio-quimicas e geológicas, como todas as pedras, mas à
intenção do homem pré-histórico a que serviu de ferramenta.
Não temos mais a ver, consequentemente, com um objeto
natural, mas com um objeto cultural dotado de significação. [...]
Ora, se já o artefato deve ser compreendido porque uma intenção
se revela através dele, quanto mais deverão sê-lo os
comportamentos que nos propõem, não mais objetos, mas os
próprios sujeitos! [...] Compreender um comportamento é
percebê-lo, por assim dizer, do interior, do ponto de vista da
intenção que o anima, logo, naquilo que o torna
propriamente humano e o distingue de um movimento
físico[...] Assimilar os fatos humanos a objetos físicos
equivale a deixar de lado a dimensão subjetiva e intencional
que, precisamente, os torna humanos. (DARTIGUES, 1973,
pgs. 52-53, grifos meus)

Assim, uma compreensão do ser humano e suas produções (o direito, a história, a


política e os fatos culturais em geral) deveria levar em conta uma intuição do sentido
subjetivo desse ato, de sua intencionalidade. Daí porque a empatia é erigida no método
compreensivo ao estatuto de conceito, a fim de descrever esse movimento de “apreender
de certa maneira a partir do interior um fato significativo” (ASSOUN, 2012, p. 38), sendo
ela um

modo de conhecimento que me permite compreender estados


que não experimento, que eu talvez jamais tenha experimentado,
assim como Buda compreendeu a pobreza e a miséria dos
infelizes, quando ele ainda não experimentara senão os prazeres
e o conforto da riqueza. (DARTIGUES, 1973, p. 66)

Poderiam objetar que quando aplica esse método a outros seres humanos, o
pesquisador ficaria refém do relato que seu objeto (outro sujeito) faz sobre o sentido de
seus atos e assim não seria permitido pensar, por exemplo, que esse outro sujeito se
engana sobre o sentido que ele mesmo atribui a sua existência. A palavra do objeto seria
a palavra final e o pesquisador não poderia jamais desafiá-la (DARTIGUES, 1973, p. 53).
Essa objeção nos leva ao terceiro aspecto que parece importante reter das
Geisteswissenschaften: a compreensão leva em conta um deslocamento do investigador
para o contexto social e histórico do objeto estudado e o compreende justamente nesse
deslocamento para um contexto outro, no qual o esforço do pesquisador é de se situar na
posição em que esse outro sujeito se encontra. Ao comentar sobre o método compreensivo
como é exposto por Wilhem Dilthey, Assoun dirá que a noção de história nas
Geisteswissenschaften estaria intimamente relacionada a um conceito de vida como
“‘enraizamento’ do homem em ‘conjuntos’ orgânicos e significativos nos quais o

20
conjunto prima sobre a parte” (2012, p. 39). Essa contextualização do sujeito em um todo
orgânico (história) possibilita que o método compreensivo não fique rendido a narrativa
subjetiva de seu objeto e possa descriminar o seu sentido pelas relações que ela estabelece
com o entorno do sujeito.

Por fim, há um último aspecto que vale ser ressaltado dessa grande matriz
compreensiva. Essa forma de proceder metodologicamente das Geisteswissenschaften
parece ser decorrência de um princípio ontológico que postula a liberdade como elemento
fundamental da natureza humana. Sendo radicalmente livre, seria vetado o
enquadramento dos fenômenos humanos a leis gerais que estipulassem o seu devir. Vimos
anteriormente como esse aspecto se apresenta com especial evidência na intersecção da
fenomenologia com o existencialismo na Daseinsanalyse de Medar Boss.

Essa disputa metodológica originada no século XIX exerceu grande influência em


todo debate epistemológico do século XX, principalmente no que diz respeito a afirmação
da especificidade do estudo do ser humano e suas produções. Ela parece ter sido a pedra
fundamental para nossa divisão mais contemporânea (e um pouco intuitiva) entre ciências
exatas e ciências humanas e de uma certa resistência dessas últimas em prestar o homem
à investigações que seguissem os métodos das ciências exatas5. A meu ver, ela também
desempenhou um papel importante na construção do horizonte de discussão sobre a
legitimidade científica do conhecimento psicanalítico e para as críticas à cientificidade da
psicanálise que foram apresentadas na primeira parte dessa introdução.

Antes, porém, de entrar em uma análise mais detida das críticas da fenomenologia
e das ciências experimentais à psicanálise, cabe apresentar brevemente um tema que lhes
será comum e cuja apropriação, mesmo que instrumental, pode ser importante para

5
Cabe fazer uma observação sobre essa resistência. A Methodenstreit nasceu como sendo uma questão
prioritariamente epistemológica, no sentido de que a defesa de um método em detrimento de outro para a
investigação de determinado objeto pautava-se nos frutos que essa forma de investigar oferecia. No caso,
as Geisteswissenschaften podiam se contrapor com propriedade às Naturwissenschaften pela constatação
de que os resultados das últimas no estudo do ser humano, eram muito pobres. Porém, com o
desenvolvimento impressionante nas últimas décadas de campos das ciências naturais que também tomam
o humano como objeto (como a neurociência) e a constatação de sua efetividade (como os psicofármacos),
a defesa do método compreensivo como único capaz de investigar os fenômenos humanos de forma efetiva
se apoiou de forma cada vez mais dogmática não nas questões metodológicas, mas na distinção ontológica
entre humano e natureza, usando como palavra de ordem que o ser humano seria por princípio irredutível
às ciências naturais. Sendo uma afirmação de princípio, essa palavra de ordem cria uma barreira que
impossibilita o diálogo entre os dois campos. Apesar de não desenvolver o argumento da mesma forma que
eu, a constatação de que a Methodenstreit no início era uma discussão prioritariamente metodológica e que
com o tempo foi tomando contornos cada vez mais ontológicos é de Simanke (2009, p. 223)

21
entender o debate: a metapsicologia. Creio que o alvo principal de ambas as críticas é a
relação da metapsicologia com a atividade clínica e, assim, talvez valha discorrer algumas
palavras sobre esse neologismo criado por Freud.

Em torno da metapsicologia

Birman (1994) resume o desenvolvimento histórico do debate sobre a


cientificidade da psicanálise ao longo do século XX da seguinte forma:

Se a tradição anglo-americana sempre pretendeu que a


psicanálise fosse uma ciência empírica, submetida aos processos
objetiváveis de verificação, a tradição francesa procurou fundá-
la como um saber da interpretação. (1994, p. 56).

O autor atribui essa divisão das leituras à própria obra de Freud, entendendo que
o pai da psicanálise começara seus estudos com a intenção de construir uma ciência
natural, mas abandonou a busca cientificista com o desenvolvimento de suas pesquisas,
aproximando-se cada vez mais do campo das ciências da cultura (1974, p. 56).

Simanke (2014) dá um diagnóstico semelhante ao de Birman no que diz respeito


à recepção da psicanálise em diferentes solos epistêmicos ao longo do século XX:

Aqueles [os franceses] tendiam a considerar a metapsicologia


como um resíduo cientificista que precisaria ser expurgado da
psicanálise; os filósofos anglo-saxões, ao contrário, tendem a ver
na metapsicologia um conjunto de formulações especulativas,
pobres de conteúdo empírico e, portanto, aquém dos padrões de
objetividade requeridos para uma disciplina científica. Ou seja,
os franceses rejeitam a metapsicologia por ela ser científica
demais, e os ingleses e norte-americanos a rejeitam por ela ser
científica de menos, por assim dizer. (2014, p. 208)6

Aqui, o autor levanta um aspecto que parece fundamental: as duas críticas miram
justamente as formalizações psicanalíticas a respeito das leis que regem o psiquismo: a
metapsicologia. Seja pelo descabimento de entender o ser humano por esse viés, seja pela
falta de validade empírica dessas leis que regem o psiquismo, a metapsicologia se

6
Que não se confunda: aqui não se trata da escola inglesa e francesa de psicanálise, mas da filosofia francesa
e anglo-saxônica.

22
encontra no centro de ambas as críticas. Caberia, portanto, alguns apontamentos sobre o
que seria de fato a metapsicologia para nos aprofundarmos no debate.

O termo metapsicologia nasce nos primórdios da psicanálise, em uma carta que


Freud direciona à Flies em 1898.

O vocábulo é evidentemente cunhado a partir do similar


“metafísica”: assim como esta quer avançar além (metà) da
natureza, a metapsicologia se propõe a descrever e fundamentar
os processos psíquicos inconscientes, isto é, que se situam além
(ou aquém) da consciência. Freud utiliza também, num sentido
mais descritivo, o termo Tiefenpsychologie, ou psicologia das
profundezas, que, como assinala Paul Laurent Assoun, nada tem
a ver com “uma problemática romantizante dos lados noturnos
da alma”. “Profundo” aqui é tomado metaforicamente como
oposto a superficial, imediato, consciente, e, como conceito, se
refere ao domínio das causas que escapam à consciência.
(MEZAN, p. 345, 1998.)

A metapsicologia seria então o conjunto de elaborações a nível teórico que


possibilitam formalizar a vida psíquica para além dos fenômenos superficiais da
consciência. Ela é além da psicologia uma vez que a psicologia hegemônica da época
em que Freud desenvolvia sua teoria tinha como objeto somente os fenômenos
conscientes:

No fim do século 19, quando Freud começa a desenvolver a


hipótese de um psíquico inconsciente, a psicologia era,
sobretudo, uma ciência da consciência — ou, ao menos, o projeto
de uma tal ciência. As propostas para uma psicologia científica
que surgem nesse período, como aquelas de Wundt, Brentano e
William James, trabalharam sempre com a hipótese dessa
identidade entre o mental e o consciente, tendo esses autores
devotado passagens inteiras de seus principais trabalhos para
demonstrar que estados mentais inconscientes eram uma
impossibilidade de fato e de direito. (SIMANKE, CAROPRESO,
p. 32, 2008)7

Se para os fenômenos da consciência temos a psicologia, para o estudo do


inconsciente se impõe a necessidade de construir uma metapsicologia. Verificando a
natureza lacunar da démarche dos fenômenos conscientes na clínica, ou seja, constatando

7
O caso parece ser semelhante a diferença na psicologia comportamental entre o behaviorismo
metodológico de Watson para o behaviorismo radical de Skinner. Enquanto o primeiro diz que só poderiam
ser objetos científicos os dados comportamentais observáveis, Skinner estende o campo de estudos da
análise do comportamento para os fenômenos encobertos, que poderiam ser teorizados e compreendidos à
luz dos processos comportamentais mais gerais que estabeleceriam um modelo formal de compreensão a
ser aplicado nos comportamentos encobertos.

23
que entre eles havia hiatos explicativos, Freud precisou formular leis e princípios capazes
de traçar o que se passava nesses hiatos.8 Para alcançar uma compreensibilidade causal
dos fenômenos psíquicos seria necessário apelar para uma ordem outra de causas que não
aparece na superfície da consciência. Essa outra ordem é designada como inconsciente e
as relações causais invisíveis em jogo são tematizadas pela metapsicologia. Assim, a
metapsicologia seria um esforço especulativo necessário para dar conta de explicar o
desenrolar dos dados da consciência que sem ela seriam episódios alheios uns aos outros,
sendo impossível traçar uma trama que os interligasse. Creio que essa introdução à noção
de metapsicologia em Freud, ainda que breve e deficitária, ajudará a circular com maior
facilidade nas críticas que propus analisar aqui.

Plano de trabalho e algumas considerações metodológicas

Tendo introduzido o tema que nos ocuparemos nos capítulos a seguir (as críticas
à cientificidade da psicanálise), traçado alguns comentários sobre seu passado recente (a
Methodenstreit) e instruído brevemente o leitor sobre alguns conceitos basais que
organizam o organizam (a metapsicologia e sua relação com a clínica), cabe finalizar essa
introdução apontando o plano geral desse trabalho.

O intuito aqui é, através de uma revisão bibliográfica, apresentar diferentes


críticas à psicanálise a respeito de sua cientificidade: uma que a acusa de ser cientificista
e a outra que a considera uma pseudociência. A comparação entre essas duas críticas
permitirá perceber que não existe um critério único de cientificidade e validade para o
conhecimento, mas sim critérios diversos com seus pressupostos e consequências
específicos. Assim, meu intuito não é partir de uma concepção de ciência tomada como
padrão ouro para avaliar outras formas de produção de conhecimento e julgá-las pela
proximidade ou distância que guardam com esse padrão. A ideia aqui é entender como
cada uma das críticas se organiza dentro de um campo epistemológico específico e

8
Não cabe entrar em detalhe aqui nas motivações que levaram Freud a construir o conceito de inconsciente
e formular as teses metapsicológicas, trabalho realizado por Simanke e Caropre e ao qual remeto o leitor
(2008). Além da razão clínica, que apontamos no parágrafo do texto, outra motivação que veremos mais
adiante e que Boss dá especial relevância (talvez até exagerada) é a vinculação metodológica de Freud às
Naturwissenschaften, o que o obrigava a estipular relações causais para os fenômenos que se ocupava afim
de alcançar uma heurística mecanicista.

24
verificar os selos de validade e cientificidade produzidos por cada um desses campos.
Com esses objetivos, passaremos pelos domínios da fenomenologia e da ciência
experimental, buscando entender as suas defesas do que seria uma produção de
conhecimento legítimo para o objeto da psicanálise e como essas defesas embasam a
crítica deferida por eles à invenção de Freud.

Meu principal objetivo não é constatar a especificidade da epistemologia


freudiana ante a outros campos do conhecimento (trabalho esse que vemos em obras como
a de Monzani e Assoun) (MONZANI, 1991; ASSOUN, 1983), mas sim verificar a
especificidade dos campos epistemológicos que sustentam uma crítica à psicanálise que
a condena por ser científica demais (a fenomenologia, a hermenêutica e o existencialismo)
ou científica de menos (aquele mais ligado à ciência experimental). Com isso, espero
poder visualizar também em que direções essas críticas lançam a psicanálise uma vez que,
quando acatadas, inserem a invenção de Freud em novos campos epistemológicos e
estabelecem formas específicas de se construir conhecimento legítimo sobre o psiquismo.

Ao privilegiar o estudo desses campos de conhecimento, trabalharei pouco com


os textos do próprio Freud e me dedicarei muito mais às leituras feitas da psicanálise do
que aquelas feitas pela psicanálise. Ainda, por não partir de conceitos psicanalíticos para
estudar os campos epistêmicos da fenomenologia e das ciências experimentais, essa é
antes uma pesquisa sobre a psicanálise (em suas relações com outros campos de
conhecimento) do que uma pesquisa psicanalítica. Ainda assim, defendo que um estudo
desse tipo contribui também para a prática psicanalítica. Ao lidar com epistemologias
outras aprendemos a estranhar àquelas que estamos habituados, colocando sob questão a
forma com que produzimos conhecimento. Um psicanalista, ao verificar que existem
diversos campos epistemológicos, desnaturaliza domínio epistêmico que está inserido e
pode indagar sobre as formas como seu campo legitima o conhecimento que produz.

Sem esse tipo de reflexão, corre-se o risco de estar aceitando de antemão formas
determinadas de produção de conhecimento. Estar aberto a dialogar com outros campos
do conhecimento é uma forma de evitar cair nas garras de um conhecimento dogmático e
ensimesmado no qual não se reflete sobre os pressupostos do próprio campo, operando
assim dinâmicas institucionais autoritárias na qual a adesão à uma doutrina se dá pela
alienação em pressupostos inquestionáveis que devem ser aceitos de forma irrefletida.
Por isso, devemos submeter os campos epistemológicos a uma reflexão crítica, no sentido

25
de tomar os pressupostos que organizam um campo do conhecimento como objeto de
reflexão.

O leitor perceberá que uso a palavra “crítica” em sentidos diversos ao longo do


trabalho. Um deles é o sentido mais corriqueiro de oposição ou censura, como quando
falamos de um pai de família tradicional que, depois de conhecer seu genro tatuado em
um jantar com taças de cristal e bom vinho, critica o jovem quando vai conversar com a
esposa antes de uma noite na qual, provavelmente, não irá dormir muito bem. O outro
sentido, menos corriqueiro e mais conceitual, é a crítica como reflexão sobre os
pressupostos que organizam um conhecimento, sobre a maneira que ele relaciona seus
conceitos e vincula a teoria e a prática, sobre a forma como ele desenha o objeto de
investigação. É, também, fazer uma reflexão sobre como esse campo de conhecimento
produz relações institucionais específicas, relações em que esse conhecimento é
transmitido em salas de aula e livros, produzido em laboratórios ou clínicas. Por fim, é
estar atento à política de cada conhecimento, à forma como ele cria expectativas sobre
seus objetos que respondem dentro de seus modelos e ter em vista as práticas que um
conhecimento engendra. Ou seja, esse sentido de crítica é aquele que se refere a uma
análise epistemológica de um campo de conhecimento, entendendo as condições pelas
quais determinado conhecimento é produzido. Poderíamos traçar uma tradição desse
conceito de crítica que começa pelo menos em Kant e, no nosso caso, desemboca em
autores como Michel Foucault e Gerard Lebrun. Creio que a forma como pretendi analisar
as duas críticas feitas a psicanálise se inspirou, em especial, nesses dois últimos autores.
Ainda que não tenha me comprometido a fazer uma aplicação direta de seus métodos aos
objetos aqui analisados, seus estilos marcaram de alguma forma as investigações aqui
empreendidas.9

Não caberia adotar um termo diferente para cada sentido da palavra “crítica” (por
exemplo, usando “oposição” para o primeiro sentido e preservando “crítica” para o
segundo) já que em muitos contextos a palavra é usada nos dois sentidos
simultaneamente. Por exemplo: quando falamos que Grunbaum faz uma crítica à
psicanálise estamos dizendo que: a) ele faz uma oposição a psicanálise, a medida que
defende que ela não é científica; e b) que ele faz uma análise epistemológica da

9
Aprofundarei essas questões metodológicas na conclusão desse trabalho, onde tentarei explicitar quais
traços desses dois autores mais me influenciaram.

26
psicanálise, investigando seus pressupostos metodológicos, a forma como ela constrói
suas teses, etc. Assim, caberá ao leitor entender os sentidos que a palavra crítica está
sendo utilizada, o que tentarei deixar claro pelo contexto de sua utilização. Feitos esses
esclarecimentos, vamos em frente.

27
CAPÍTULO 1 – Científica demais

Aclimatação da psicanálise em solo francês

Como vimos brevemente na introdução, uma das leituras acerca da cientificidade


da psicanálise que preponderou ao longo do século XX foi a de que a psicanálise era
cientifica demais ou, se quiserem, cientificista. Apesar de não se restringir a França, o
país era o principal polo desse tipo de leitura sobre a psicanálise. Entender a forma como
a obra de Freud foi recebida na França parece ser então uma boa maneira de se aproximar
dessa crítica.

Apesar das especificidades marcantes de cada autor que se ocupou da questão,


podemos entender de forma mais geral a recepção da obra de Freud na França por uma
cisão do pai da psicanálise em dois freuds. O primeiro deles, o bom Sigmund, é aquele
da prática clínica e do método terapêutico, elogiado pela inovação metodológica no
contato verdadeiro com o ser humano. O segundo, o mau, é o Freud da metapsicologia,
produtor de teses infundadas sobre o funcionamento psíquico que, embutidas de
resquícios de uma metafísica positivista, mecanicista e energética, era incapaz de
apreender os caprichos das relações de sentido, compreendido como campo da
experiência humana por excelência. Essa cisão é explicitada já no título de uma das obras
fundantes do campo de intersecção entre filosofia e psicanálise na França chamada “O
método psicanalítico e a doutrina freudiana” de Roland Dalbiez, publicada em 1936.
Separada em dois tomos (um para o método psicanalítico, um para a doutrina), fica
evidente o tom elogioso do primeiro tomo e crítico do segundo, sendo essa obra sempre
referida para indicar os primórdios desse viés de leitura da obra de Freud na França
(SIMANKE, 2014, p. 205; ASSOUN, 1983, p. 25-26).

Há ainda um texto anterior ao de Dalbiez, cuja circulação nos meio acadêmico e


psicanalítico francês e a constante referência nas leituras filosóficas da obra de Freud
indicam a sua importância. Trata-se da “Crítica aos fundamentos da psicologia” de Jean
Politzer (1998), publicado no ano de 1927, que foi chamada de “a primeira recepção
filosófica francesa à psicanálise” por alguém da estatura de Bento Prado Júnior (1991, p.
12), que entende Politzer como o “fundador da filosofia francesa da psicanálise”. (1991,
p. 18)

28
Grosso modo, para Politzer a psicologia de sua época ainda sofria de sérias
dificuldades em se aproximar de seu objeto de estudo. Para ele, o objeto próprio da
psicologia seria a experiência subjetiva como experienciada pelo sujeito, ou seja, a
vivência psíquica em primeira pessoa, a narrativa de sua vida. Sendo assim, todos os
esforços da psicologia em promover um acesso ao fenômeno psicológico pela via da
terceira pessoa tomando o psíquico como algo objetivável deveria ser repreendido. Nesse
sentido, Politzer via com bons olhos a experiência e prática clínica da psicanálise a
medida que criava um espaço privilegiado para o contato com essa narrativa em primeira
pessoa da experiência subjetiva. Porém, o mesmo autor via os esforços metapsicológicos
como resquício de uma psicologia objetivante e, no seu entendimento, abstrata, uma vez
que, ao transformar o psíquico em objeto, se alienava da realidade última do psicológico:
a experiência vívida (SIMANKE, 2014, p. 205).

Ainda que com suas especificidades, é marcante como essa compreensão de Freud
e da psicanálise está presente em diversas obras que sucederam a de Politzer e que se
tornaram os cânones da leitura filosófica da psicanálise na França. Além do já citado
Dalbiez, valeria lembrar de Paul Ricouer (1977) e a sua percepção de uma dualidade
dificilmente conciliável em Freud entre hermenêutica (aqui, o bom Freud) e energética (o
mau), ou ainda Jean Hyppolite (1989) , cujas dificuldades em aceitar a metapsicologia
freudiana conflitavam com o reconhecimento da riqueza que a psicanálise trazia ao estudo
do homem.

Somando esses autores a Boss e Binswanger, que apontamos já na introdução


desse trabalho, impressiona a diversidade de escolas filosóficas a realizar uma crítica
semelhante à psicanálise. Afinal, o que explicaria essa afinidade entre hermeneutas,
fenomenólogos e existencialistas? Talvez o laço a unir essas vertentes tão diferentes da
filosofia seja um autor que não se identifica com nenhuma dessas escolas e que
desempenhou uma influência capital no cenário intelectual francês na virada para o século
XX: Henri Bergson. Essa hipótese é ventilada por Bento Prado Junior (1991) em seu
comentário à “Crítica aos fundamentos da psicologia” de Politzer. Cabe adentrar em seu
argumento.

O filósofo diz que é nítida uma espécie de obsessão literária comum à Politzer e
aos “filósofos da existência” Merleau Ponty e Sartre. Esse recurso prosaico é o relato da
experiência dos autores enquanto escrevem seus textos. Vemos assim em Politzer: “A

29
lâmpada que ilumina minha escrivaninha é um fato ‘objetivo’, precisamente porque ela é
em terceira pessoa, porque não é ‘eu’, mas ‘ela’”. Sartre, por sua vez, abre seu texto sobre
a Imaginação da seguinte maneira: “olho esta folha branca sobre minha mesa (...)”. Por
fim, Merleau Ponty em sua “Fenomenologia da Percepção” no capítulo que reflete sobre
o cogito cartesiano: “Penso no cogito cartesiano, quero terminar este trabalho, sinto o
frescor do papel sobre minha mão, percebo as árvores de boulevard através da janela
(...)”.10 O leitor atento lembrará que nos deparamos com o mesmo artifício literário
quando analisamos o texto de Medard Boss, quando o psiquiatra estava na indecisão de
fechar ou não a janela.11

Vejamos o comentário de Bento Prado sobre esse tique comum aos autores vistos:

O que se montava, assim, além de uma mimese do tom


“subjetivo” da moderna narrativa romanesca, era um dispositivo
argumentativo no qual a pura descrição assumia peso conceitual,
na medida em que só ela, quando depurada do realismo do senso
comum (ou, noutra linguagem, da “atitude natural”), poderia
restituir a natureza originária do vivido. (1991, p. 15)

Para Bento Prado, as semelhanças no elogio à narrativa e experiência psíquica


vivenciada em primeira pessoa que vemos em Politzer, Merleau Ponty e Sartre refletem
a influência da obra de Bergson no cenário intelectual francês. Este autor desempenhou
um papel fundamental na filosofia e psicologia do país ao fundar toda uma tradição de
crítica ao realismo filosófico subjacente às ciências objetivas da subjetividade. Essas
compreendem o fenômeno psíquico como um objeto exterior a ser estudado através de
métodos que o apreendem pela via da terceira pessoa. Para essa tradição, uma

10
As passagens são perfiladas por Bento Prado Júnior no texto que viemos comentando. (PRADO JR, 1991,
p. 15-16)

11
Relembrando a passagem já citada:

Suponhamos, para começar, que uma rajada de vento fecha


repentinamente a janela, anteriormente aberta, que me encontro a
trabalhar. Trata-se nesse caso de um incidente que é objeto de uma
observação [...]. No entanto, em lugar de ser uma rajada de vento que
tivesse fechado a janela, podia realmente ter acontecido que fosse eu,
na minha qualidade de homem “existente”, que tivesse decidido fazê-
lo. O ruído proveniente da rua ter-me-ia incomodado e incitado a fechar
a janela. A razão pela qual eu a teria fechado seria, ao contrário da
causa eficiente do primeiro exemplo, uma verdadeira motivação –
neste caso preciso, o desejo de ter calma (BOSS, 1974, p. 8)

A listagem de recursos desse tipo poderia se estender até chegarmos aos corredores da PUC e os exemplos
clássicos sobre a percepção da garrafa de água em cima da mesa do professor.

30
metodologia que tentasse compreender o psiquismo como objeto de estudo exterior perdia
de vista o que é próprio ao fenômeno psicológico: a dimensão vivencial da experiência
subjetiva e intuitiva, que só poderia ser captada na narrativa em primeira pessoa. Ao
comentar especificamente o texto de Politzer, Bento Prado diz:

Objetivismo ou realismo (substancialismo, poderíamos


acrecentar), tal é o pecado original da tradição da filosofia, que
se desdobra nos pecados complementares da abstração e do
formalismo. Essa extensão epistemológica da ideia da
perspectiva da primeira pessoa configura, assim, uma crítica em
regra do próprio Entendimento, no qual é impossível não
reconhecer (horribile dictus!) o estilo do intuicionismo
bergsoniano. A atenção ao singular (ou às diferenças), a ênfase
no ato, por oposição à identidade morta da coisa, a continuidade
do eu na totalidade de suas expressões – tudo isso não nos faz
lembrar o programa dos Dados Imediatos da Consciência [texto
de Bergson]? Abaixo a ótica formalista que estabelece
abstratamente relações funcionais entre classes de fenômenos,
deixando na sombra a curva irrepetível desta vida individual!
(PRADO JR, 1991, p. 22).12

Ainda que não vejamos no texto de Politzer uma referência explícita à


fenomenologia ou a qualquer um dos autores que hoje reconhecemos terem
desempenhado importante papel na história dessa escola filosófica (como Brentano e
Husserl, que já eram conhecidos à época), essa recusa de Politzer de uma ciência positiva,
objetivista, que mira o objeto-em-si e não o objeto-para-o-sujeito e que crê que através de
seus métodos ela alcançaria a realidade da coisa muito o aproxima das reflexões da
própria fenomenologia. Bento Prado destaca:

O vocabulário técnico da fenomenologia husserliana não está


presente na CFP [Crítica aos fundamentos da psicologia] (assim
como não encontrei nenhuma referência a Husserl nos escritos
de Politzer, no entanto tão familiarizado com a literatura teórica
alemã), mas um certo estilo fenomenológico parece impregnar
todo o seu ensaio. (1991, p. 16)

Sendo assim, creio que não recairei em grande ecletismo ao reunir à mesa
hermeneutas, fenomenólogos e existencialistas para desdizer o pobre Sigmund. E agora,
podemos entender melhor o que significa dizer que, para essa escola, a psicanálise seria
científica demais: através da metapsicologia e da formalização dos fenômenos psíquicos,

12
Vemos aqui algumas características que verificamos nas Geisteswissenschaften como a irredutibilidade
do vivido à categorias conceituais objetivantes e a possibilidade de acessar a vivência subjetiva de alguém
sem tomar a via da terceira pessoa (como visto na noção de empatia).

31
a psicanálise transforma a subjetividade em objeto apreendido friamente pela via da
terceira pessoa. Ela é cientificista, uma vez que está colada aos métodos das ciências
naturais que desvitalizam a existência humana e dão a ela a frieza morta de uma pedra,
para usar um exemplo de uma ciência natural como a geologia.

O certo seria dedicar a cada um dos autores aqui mencionados um tratamento mais
digno e aprofundado, tendo em vista que, pela bibliografia consultada, são eles os
principais nomes dessa tradição de crítica à psicanálise. Porém, nos limites desse trabalho,
isso nos impediria de chegar à crítica dos anglófonos, esterilizando os benefícios que uma
comparação entre essas críticas poderia ter e que, afinal, era o objetivo inicial aqui. Assim,
aprofundarei somente os comentários dos psiquiatras Ludwig Binswanger e Medard
Boss. Já vimos um pouco da opinião de Boss acerca da prática e teoria psicanalítica na
introdução desse texto, mas cabe expor a parte de seu argumento que diz mais
especificamente sobre as relações entre teoria e prática ou, de forma mais precisa,
metapsicologia e clínica.

Boss, a crítica à metapsicologia e o elogio à intuição

Boss em sua reflexão sobre a psicanálise faz duras críticas aos conceitos de
inconsciente e metapsicologia. O autor diz que a identificação de Freud com as ciências
naturais de seu tempo e a consequente necessidade de entender o seu objeto de estudo (o
psiquismo) em suas relações causais o obrigou a trabalhar com a noção de inconsciente
como locus de todas essas causas obscuras capazes de ligar os eventos conscientes
lacunares um ao outro.

Somente este “receptáculo científico” ou “sistema psíquico” [em


ambos os casos ele se refere ao inconsciente], o qual, por
definição, não podia ser percebido nem verificado duma forma
tangível e se manteria assim para sempre numa obscuridade
absoluta, podia conter as peças que faltavam, preencher as
lacunas manifestas existentes entre os diferentes “momentos da
atividade consciente” e permitir encontrar um perfeito
encadeamento causal, até mesmo nos fenômenos psíquicos.
(1974, p. 6)

Boss entende o inconsciente então como um subterfúgio para justificar a crença


incorreta de que a vida humana estaria submetida a uma determinação causal, o que não
passaria, para o autor, de uma profissão de fé, um mero acreditar “na necessidade duma

32
perfeita relação de causa a efeito entre todas as entidades reais deste mundo” (1974, p. 6).
Enfim, um a priori impossível de ser provado e contrário a liberdade humana que
experienciamos na vida cotidiana.

Sobre a metapsicologia, Boss dirá corretamente que ela é uma “teoria psicológica
que ultrapassava o campo da experiência”, sendo uma “ciência que se estendia para além
do que era perceptível psicologicamente” (1974, p. 6). Ele diz que não à toa a
metapsicologia era referida cada vez mais como um modelo, aproximando-se assim da
noção como ela é utilizada nas ciências naturais, em especial na física. O modelo seria
uma forma de formalizar os eventos observáveis empiricamente, dando-lhes uma
organização através da suposição das relações que se estabelecem entre os diversos
elementos observados. No caso da psicanálise, a metapsicologia seria então um modelo a
medida que supõe as regras que operam atrás das cortinas do campo da experiência e do
perceptível pela consciência, dando aos eventos particulares um nexo explicativo.

Na visão de Boss, o uso de modelos se justifica somente para os objetos naturais,


uma vez que, sendo privados de consciência, não haveria maneira de termos acesso ao
seu mundo interior. A apreensão deles então só seria possível através do exterior com o
uso dos modelos. As ciências humanas, por outro lado, teriam uma especificidade: seus
objetos são dotados de consciência e da percepção e essa peculiaridade, para Boss, torna
o uso de modelos explicativos inadequado.

Em todos os casos, os modelos das ciências naturais têm sua


justificação, porque nós, os homens, não podemos ter acesso aos
fenómenos da matéria senão, por assim dizer, do exterior. Pelo
contrário, a existência humana caracteriza-se justamente pela
faculdade da percepção, graças à qual lhe é possível apreender
imediatamente as significações daquilo que não é ela assim
como a própria natureza. Daqui resulta a inutilidade e o absurdo
de fabricar modelos quando se trata da própria essência da
condição humana. (1974, pgs 6-7)

Entendendo a inadequação da teoria psicanalítica ao seu objeto, Boss propõe que


o acesso ao ser humano em sua especificidade deve expurgar da clínica a metapsicologia
e a doutrina freudiana, mantendo da psicanálise apenas a sua regra fundamental de livre
associação.

É urgente hoje em dia restituir a si própria a regra fundamental


da prática psicanalítica, libertando-a de todas as mutilações
ulteriores imputáveis à metapsicologia pseudocientífica

33
desenvolvida em seguida. Se, em conformidade com os
conselhos de prática terapêutica dados por Freud, se deixa tal
qual tudo o que provém do doente e tudo o que lhe passa pela
cabeça, verifica-se que esta prática analítica, despojada de todas
as escórias teóricas e tornada de novo uma terapêutica
fenomenológica ou terapêutica de análise existencial, constitui
um excelente meio terapêutico. (1974, p. 13)

Em alguns momentos do texto, a crítica de Boss à metapsicologia e à produção de


conhecimento através de modelos parece se sustentar na identificação da metapsicologia
como um método das ciências naturais. Assim como vimos na Methodenstreit e nos
autores franceses do século XX, Boss argumenta que esse método é inadequado para a
investigação do ser humano e, sendo a metapsicologia filiada a esses modelos
explicativos das ciências naturais, ela cai por terra junto a eles.

Porém, o texto abre margem a um outro tipo de leitura. Em diversas passagens, é


possível compreender que a crítica de Boss à metapsicologia e aos modelos é na verdade
uma crítica geral não somente ao método das ciências naturais, mas a qualquer esforço de
conceituação teórica. Essa hipótese interpretativa sobre o texto do psiquiatra ganha força
quando vemos passagens de outros autores da fenomenologia que apontam na mesma
direção e não é pouca coisa ouvirmos com frequência de representantes dessa escola que
a fenomenonologia não é uma teoria e que seus constructos não são conceitos. No caso
de Boss, por exemplo, um elemento de seu texto que nos inclina para essa leitura é seu
elogio à regra fundamental de livre associação e a defesa de uma postura do terapeuta na
qual não se deve mediar o contato com o paciente através de modelos teóricos. É difícil
não entender isso como uma proposta de acesso ao outro ser humano pela via da intuição
a-teórica, como se a suspenção das teorias que fazem a mediação do contato entre eu e
outro no setting terapêutico levasse a um acesso real e último ao outro ser humano em
sua positividade.

Nessa perspectiva, a teoria (e qualquer teoria) utilizada para apreender um outro


ser humano deforma o objeto ao enquadrá-lo nas enrijecidas malhas teóricas utilizadas
para abordá-lo, estrangulando o fenômeno dado para que ele se encaixe nos a prioris
teóricos. De fato, se esse posicionamento acerca da teoria é mais dúbio em autores como
Boss e Binswanger, ele é explicito em outros como Rollo May: “Poderemos ter a certeza
de que vemos o paciente como ele realmente é, conhecendo-o em sua própria realidade?
Ou estaremos vendo apenas uma mera projeção de nossas teorias acerca dele?” (MAY,

34
2000, p. 39). Nessa leitura, a teoria funcionaria como um leito de Procusto13, forçando o
objeto a se conformar às medidas teóricas estabelecidas de ante mão, imputando a uma
alteridade os limites da familiaridade, enfim, transformando um outro em um mesmo.

De fato, a fenomenologia foi lida por muitos como um retorno ao mundo pré-
refletido que possibilitaria um acesso à realidade do objeto ao colocar as mediações entre
parênteses, na busca e elogio de uma percepção ingênua do mundo. Além de passagens
como a de Rolo May, vemos também no texto de Merleau-Ponty caracterizações da
fenomenologia que levam à essa leitura:

uma filosofia para a qual o mundo já está sempre “ali”, antes da


reflexão, como uma presença inalienável, e cujo esforço todo
consiste em reencontrar este contato ingênuo com o mundo, para
dar-lhe enfim um estatuto filosófico. (MERLEAU-PONTY,
2011, p.1)

A fenomenologia como elogio à intuição, um contato a-teórico ou pré-teórico com


o mundo que o revelaria em sua verdade. Todo o esforço estaria em, como Chacal coloca
em uma de suas poesias, voltar a ser criança a se espantar novamente com um mundo
livre das grades cognitivas:

COMO ERA BOM

o tempo em que Marx explicava o mundo


tudo era luta de classes
como era simples o tempo em que Freud explicava
que édipo tudo explicava
tudo era clarinho limpinho explicadinho
tudo muito mais ascéptico
do que era quando eu nasci
hoje rodado sambado pirado
descobri que é preciso
aprender a nascer todo dia (CHACAL, 2016, p. 62)

13
Existe um mito grego antigo a respeito de um saqueador chamado Procusto. Esse ladrão morava próximo
a uma estrada, o que fazia com que recebesse viajantes procurando por abrigo. Depois de bem os receber,
Procusto mostrava-lhes o cômodo onde poderiam passar a noite e, quando o viajante caia no sono, o
anfitrião o amarrava na cama que dormia. A cama tinha o tamanho exato de Procusto e, se o viajante fosse
maior que a medida, o ladrão cortava o excesso decepando a cabeça e as pernas do infeliz, já se o hóspede
fosse menor que Procusto, esse o esticava com um sistema de roldanas e algemas instaladas na cama. Há
muitas variáveis e complementos deste mito, mas esta versão é suficiente para ilustrar a ação das teorias
sob os objetos que trabalhamos aqui. Cabe apontar que tomei conhecimento desse mito justamente em uma
palestra na qual um psicólogo alinhado à fenomenologia usava a história para criticar outras abordagens
em psicologia e defender o método fenomenológico.

35
Foi também assim que, por exemplo, os professores do próprio Merleau-Ponty
entenderam o seu projeto da Fenomenologia da Percepção (2011) exposto em sua
comunicação “O primado da percepção e suas consequências filosóficas” (2015). Brehier,
um de seus interlocutores na ocasião, diz em tom de crítica que a filosofia tem origem na
distância que toma da percepção vulgar e que Merleau Ponty estaria indo na direção
oposta em sua confiança no dado sensível (2015, p. 54). Salzi faz coro a essa acusação ao
dizer que Merleau-Ponty fazia da intuição perceptiva uma tábula rasa que nos dá acesso
ao real (2015, p. 63).

Aqui já podemos começar o trabalho de ponderação dos modelos epistemológicos


que embasam a crítica a psicanálise, apontando seus vícios e virtudes. Em primeiro lugar,
é necessário reconhecer os ganhos éticos dessa orientação proposta pela fenomenologia.
Uma metodologia de estudo do ser humano que defende que sua apreensão rigorosa só é
possível pela formalização do sujeito em grades teóricas do pesquisador desemboca, em
última instância, num idealismo absoluto onde o outro é sempre minha extensão.
(MERLEAU-PONTY, 2011, pgs 493 - 499). Sendo o outro sempre sugado para a
maquinaria explicativa que parte do pesquisador, ficamos impedidos de pensar o
fenômeno da alteridade. Esses dilemas têm vindo à tona com as reflexões recentes sobre
o etnocentrismo teórico, sendo uma das críticas mais interessantes a ele aquela formulada
pelo antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro (2018).14

O autor, ante a identificação do colonialismo epistemológico dos estudos


antropológicos que submetem os povos ameríndios à grades compreensivas formuladas
na Europa, propõe uma nova metodologia antropológica capaz de dar voz a alteridade
sem reduzi-la aos quadros compreensivos do homem branco europeu. Para Viveiros de
Castro, o estudo antropológico de povos outros deveria ir na contramão da epistemologia
moderna ocidental que, através de um método, apreende o objeto. A nova antropologia
deve se assemelhar ao conhecimento do xamã de alguns povos indígenas ameríndios, que
conhece outros seres da natureza ao sair do seu próprio corpo e ver o mundo através dos
olhos desses seres. (VIVEIROS DE CASTRO, 2011, pgs 50 – 52). Como brinca o autor:

14
É verdade que Viveiros de Castro se encontra longe da fenomenologia e faz críticas agressivas à essa
escola. Ainda assim, creio que ele lida com problemas comuns a esses que vimos na crítica da
fenomenologia à metapsicologia como redução do homem à teorias que o apreendem de forma unilateral.
Tanto para o antropólogo como para certa fenomenologia, o problema central é a redução do outro ao
mesmo, do estranho ao familiar e recuperar a obra de Viveiros de Castro serve para explicitar os problemas
éticos em jogo nesse debate epistemológico.

36
“Aqui é preciso saber personificar, porque é preciso personificar para saber. O objeto da
interpretação e a contra-interpretação do objeto.” (VIVEIROS DE CASTRO, p. 52,
2018). O desafio é poder traduzir a experiência vívida de outro ser para a língua daquele
que o estuda. A radicalidade do esforço em preservar essa alteridade fundamental se
apresenta no entendimento do que seria uma boa tradução para essa abordagem
antropológica: a boa tradução não é aquela que trai a língua do texto original, mas a língua
do texto de destino, promovendo nela fissuras que contaminem seu campo de experiência
com o campo do outro. (VIVEIROS DE CASTRO, 2018, p. 87)

Porém, a abordagem que viemos chamando de intuitivista também apresenta seus


perigos. Uma crítica direcionada a fenomenologia que vemos em alguns autores é que a
escola filosófica, nessa aposta na ingenuidade, não conseguiria entender os seus próprios
pressupostos e limites de apreensão do mundo e se tomaria portanto como um contato
com a realidade desembaraçada das condições epistemológicas e históricas de seu
método. É essa acusação que está presente de certa forma em críticas como a feita por
Adorno à fenomenologia de Husserl. O filósofo da escola de Frankfurt aponta o
dogmatismo do projeto husserliano em sua busca pelas “bases absolutas da filosofia”
(2015, p. 35) através de um “ponto de vista superior” (2015, p. 36), “por intermédio de
uma da reflexão sobre o espírito purificado de todo e qualquer rastro de mero ente” (2015,
p. 35), onde a eleição de um método privilegiado de acesso à realidade última dos
fenômenos impossibilitaria a reflexão das condições sociais que determinam a concepção
dos objetos: a sociedade antagônica (2015, p. 34). Algo dessa natureza também anima a
referência de Foucault à fenomenologia no prefácio de seu livro “O Nascimento da
Clínica”, onde o autor desafia a crença de que a verdade se daria em um coup d’oeil sobre
o corpo do doente e defende uma arqueologia do olhar capaz de identificar as
determinações históricas múltiplas que formatam a imagem percebida (2011, p. XIII).15

15
Parece-me que a forma como tomamos contato com a fenomenologia na graduação de nosso curso de
psicologia da PUC-SP dá grande enforque a essa leitura que entende a fenomenologia como uma crítica
mais generalizada a qualquer esforço teórico, sendo a teoria vista como deturpador do fenômeno. A força
dessa crítica nas grades de nosso curso se deve talvez a forte presença de Boss na construção da
fenomenologia da PUC-SP, tendo em vista que o texto do fenomenólogo abre margem para essa
interpretação que venho expondo. A influência do psiquiatra suíço na PUC é tamanha que chegou a deixar
seus traços na tradição psicanalítica da universidade. Quando falo isso penso especialmente no professor
Frankilin Goldgrub, de quem ouvíamos em suas aulas de Freud que o analista deve “esquecer tudo o que
aprendeu em teoria no momento em que vai atender alguém na clínica”. Não à toa um texto de Freud que
parece caro a todos dessa tradição é o “Recomendações aos médicos de desejam exercer a psicanálise”, no

37
Como nosso assunto aqui é a interação teoria e prática, podemos nos perguntar à
que tipo de clínica leva essa leitura da fenomenologia. Parece-me que a prática terapêutica
dentro desses referenciais conceituais corre o risco de ser uma espécie de clínica
espontânea, na qual o esforço do terapeuta seria livrar-se de qualquer tentativa de
teorização para que assim fosse guiado por uma intuição e sensibilidade que lhe
indicassem os caminhos a serem tomados no processo terapêutico. Fosse assim,
poderíamos apontar os perigos de uma clínica desse tipo não conseguir justificar as
opções adotadas no prosseguir do tratamento e não poder assim se diferenciar de uma
clínica leiga. Ainda, no intuitivismo haveriam os riscos do terapeuta ser guiado sem saber
pelas expectativas sociais de adequação do sujeito às normas hegemônicas e seus padrões
de saúde, inserção social e produtividade. Isso produziria uma clínica a-crítica. Se toda
prática é mediada por determinantes epistemológicos, sociais, históricos, culturais e etc.,
o trabalho do pensamento crítico é entender em que pressupostos estamos nos apoiando
a fim de não nos vermos imersos em diretrizes que nos comandam sem que saibamos.
Nesse sentido, poder refletir e escolher essas mediações que guiam a nossa atuação clínica
é uma forma de não nos submetermos irrefletidamente a uma doutrina. Deixar com que
esses pressupostos atuem de forma opaca e surda a nos guiar é ceder à violência
epistêmica.16

Porém, creio que essa não é a única leitura possível da fenomenologia. Arriscaria
mesmo dizer que não é esse intuitivismo que orienta na prática psicólogos filiados a essa
abordagem. Vemos em Boss que essa aposta em uma interação a-teórica não é um
anarquismo metodológico ou uma psicologia vulgar. O colocar da teoria entre parênteses
ganha contornos particulares ao ser apontada como um retorno a “terapêutica
fenomenológica ou terapêutica de análise existencial” (1974, p.13, como vimos na citação
na página anterior). Isso coloca a postura a-teórica defendida ao lado de um marcado
vocabulário fenomenológico existencial no qual temos conceitos bem delimitados de ser

qual o mestre de Viena insiste que o analista deveria afastar todos os preconceitos e formulações teóricas
no momento em que escutava seu paciente. (FREUD, 1969d, pgs 147 – 159)
16
Seria interessante recuperar a noção de crítica desde Kant como uma forma de resistir ao dogmatismo.
Isso nos levaria a todo uma trajetória desse conceito fundamental também em Hegel, Marx e, no que nos
interessaria ainda mais, Foucault. Porém, o leitor deverá se contentar a ver aqui somente esse apontamento
muito remissivo, uma vez que o esforço em recuperar a história do conceito de crítica excederia os limites
desse trabalho. Na conclusão desse estudo, porém, tentarei ao menos explicitar esse método de análise
epistemológica e trabalhar brevemente com textos de Foucault e Lebrun que influenciaram minha tomada
de posição nesses assuntos.

38
humano e direção do tratamento. Vejamos a definição de Boss da “natureza fundamental
da existência humana” (1974, p. 8):

Mas a ordem própria ao ser humano, a sua essência fundamental,


é o seu modo de existir como “lugar aberto” no qual pode
aparecer e ser tudo o que deve ser. É apenas graças a esta
característica da existência humana que tudo aquilo que deve ser
pode ser. Como é que uma coisa poderia alguma vez existir, quer
dizer fazer seu aparecimento, tornar-se “presença”, se o homem
não constituía uma tal “abertura”, na qual tudo aquilo que deve
ser pudesse “entrar”? Todos os homens participam no “existir”
desta abertura de percepção que chamamos “mundo”. Esta
abertura constitui deste modo a liberdade original do homem. É
unicamente graças a ela que o homem dispõe do livre arbítrio,
quer dizer da liberdade de se decidir a aceitar ou a recusar servir
o Ser. (1974, pgs. 7-8)

Mais a frente no texto, Boss coloca de forma clara que dentro dessa concepção de
ser humano e desse quadro conceitual adotado existe uma direção do tratamento que
orienta a clínica e que deve ser buscada ativamente pelo terapeuta:

É muito mais justo, quando se trata do homem, compreender por


“livre associação” e “elaboração” o facto que a existência do
doente “se abra” cada vez mais de tal forma que ele possa aceitar
finalmente tudo o que se passou na história da sua vida e tudo o
que “apela” para ele no presente, e esperar, além disso, tudo o
que o futuro lhe possa trazer. É deste modo que se encontra
realizada a condição necessária para que o homem se emprenhe
cada vez mais nas suas relações com todos os fenômenos do
mundo que lhe falam e lhe tocam de perto ou de longe e para que
ele faça desta forma a experiência de todas as possibilidades que
lhe são dadas nesse domínio. Este compromisso crescente do
homem assim como as suas respostas aos fenômenos de maneira
sempre mais conforme com as coisas apreendidas é a forma
como um ser humano deve amadurecer e fazer uso da sua vida
para poder morrer duma boa morte. (1974, p. 13)

Se antes vimos uma leitura da fenomenologia que elogiava o a-teorismo que


poderia levar à uma espécie de clínica intuitiva, nos deparamos agora um conceito
específico de ser humano, existência, liberdade e o estabelecimento de metas para o
tratamento. Essas duas posições parecem se equalizar no texto da seguinte forma: a
suspensão da teoria, para Boss, significa a adoção da abordagem fenomenológico
existencial. Essa não estaria comprometida com os embaraços das teorias e dos modelos
explicativos uma vez que é, no fim das contas, a tal da apreensão intuitiva e real do objeto
e a abordagem fenomenológico existencial aparece como o acesso sem mediações à
natureza da coisa. O discurso fenomenológico existencial não seria um empecilho teórico

39
à fazer ruído no contato entre eu e outro, mas sim a via de acesso livre ao humano em sua
pureza.

Creio que é dessa maneira que certa tradição de leitura em fenomenologia


consegue conciliar a crítica aos esforços teóricos e a abordagem fenomenológico
existencial. Nessa leitura, a crítica feita à psicanálise em sua articulação entre
metapsicologia e clínica seria que a psicanálise, como já apontamos, enquadra o objeto
em moldes pré determinados e assim a deforma do paciente em um leito de Procusto,
enquanto o aporte metodológico/intuitivo da fenomenologia poderia encontrar o sujeito
fora das malhas teóricas que o comprimem.

Porém, há uma outra leitura da relação teoria e clínica na fenomenologia que leva
a uma outra crítica à psicanálise. Essa outra leitura compreende a fenomenologia não
como uma intuição a-teórica, mas uma metodologia que parte de um conceito
antropológico de ser humano específico. A divergência com a psicanálise, então, não
passaria pela proposição de uma clínica intuitiva (no sentido em que vimos), mas sim na
adoção de uma antropologia diferente da de Freud. Aqui me refiro a Ludwig Binswanger.

Binswanger e a crítica à antropologia psicanalítica

Binswanger foi discípulo de Freud e refletiu sobre a obra do mestre e a prática


psicanalítica durante toda sua carreira como psiquiatra. Em seu texto de 1957 “Meu
caminho até Freud” (2013) (escrito por Binswanger nove anos antes de falecer), o
psiquiatra suíço faz uma avaliação de sua relação com Freud e a psicanálise. Neste texto
altamente instrutivo e interessante no qual o autor se arrisca no bravo esforço de tentar
fazer uma avaliação da própria trajetória intelectual em relação a seu mestre, Binswanger
divide seu caminho até Freud em cinco fases. Seguiremos sua exposição até a quarta fase,
que é a que mais nos interessa.

A primeira delas, como o autor aponta, é a de aprendizado. Binswanger se vê aí


como um discípulo atento que se dedicou a aprender a doutrina freudiana. Ele diz que a
admiração e amor que teve por Freud desde o primeiro encontro com ele facilitaram essa
posição de aprendiz dedicado, mas trouxe como revés um aprendizado dogmático em que
não se ousava ainda fazer críticas ao mestre (2013, p. 64).

40
A segunda fase foi a de comprovação, na qual Binswanger buscou conferir a
confiabilidade dessa doutrina na sua experiência pessoal e na experiência junto a outras
pessoas através da aplicação do método psicanalítico e a verificação de seus resultados
para ver até onde Freud tinha razão. Tratava-se de avaliar a psicanálise segundo as suas
próprias medidas metodológicas e epistemológicas em um esforço de conferir a
consistência interna da disciplina. Essa fase consistiu de um ceticismo inicial que
progressivamente cedeu rumo a uma crescente credibilidade que o psiquiatra passou a
depositar em Freud. (2013, p. 64)

Se na segunda fase a comprovação da psicanálise se deu pela aplicação do método


e da doutrina aprendida na primeira fase e a verificação de seus resultados, a terceira fase
consistiu no questionamento do método em si, ou seja, uma avaliação crítica e distanciada
sobre o método no qual a reflexão feita era sobre a construção da doutrina e da técnica
psicanalítica. É uma fase de reflexão metodológica e epistemológica, na qual Binswanger
não mais se questionava se a teoria e prática psicanalítica produziam os resultados
prometidos, mas pensava quais eram os critérios adotados na produção da própria teoria.

Nessa fase Binswanger empreende algumas investigações sobre o conceito de


psíquico em Freud, além de sua noção de inconsciente e a relação entre interpretação e
experiência. Despendamos algum tempo para ver aqui a avaliação que Binswanger faz de
Freud nessa fase de sua trajetória intelectual para entender como, para esse
fenomenólogo, a crítica à psicanálise deveria mirar antes o seu conceito de natureza
humana do que sua utilização de modelos metapsicológicos de compreensão do fenômeno
psíquico.

Binswanger diz que, para Freud, os atos psíquicos são sempre dotados de sentido,
como expresso na passagem do pai da psicanálise que o psiquiatra recupera:

O que significa porém afirmar que um ato psíquico possui um


sentido? “Por sentido”, assim podemos formular a resposta,
“compreendemos significado, intenção, tendência e posição em
uma série de nexos psíquicos”. (2013, p. 67)

Entendo dessa forma o conceito de sentido, Binswanger diz que a noção de


inconsciente não aparta a psicanálise do campo das relações de sentido, reino legítimo
dos fenômenos humanos. Um pouco como vimos em Boss (mas tirando conclusões
totalmente diversas), Binswanger entende o inconsciente como uma forma de dar

41
inteligibilidade às lacunas da série de nexos psíquicos, assim como explicitar a tendência
suposta desses atos psíquicos que não se manifesta à luz da consciência.

Temos de pensar que a psicanálise não se apoia, para usar as


palavras de Freud, tal como outras ciências empíricas, em
primeira linha sobre fenômenos percebidos, mas sobre supostos
anseios, intenções e tendências. [...] Nesta medida, portanto,
“intenção e tendência” também não se fazem valer aqui de
maneira alguma apenas como “fenômenos”, mas em primeira
linha, para reunir as palavras de Freud, como aspirações
“supostas”, “descobertas”, “desvendadas”, “hipotéticas”,
“postuladas”, “assumidas”, em suma, como aspirações
interpretadas, que, enquanto inconscientes, precisam ser
“interpoladas” com base em seus “efeitos”, “consequências” ou
“sucessos” no interior do contexto psíquico consciente. (2013, p.
68)

Como vemos, a psicanálise se ocupa não dos fenômenos psíquicos colocados a


luz do dia pela percepção consciente, mas do inconsciente que só pode ser suposto pelos
seus efeitos na consciência. Enquanto Boss diz que esses eventos inconscientes são
suposições ilegítimas porque não podem ser conferidas em lugar algum, Binswanger diz
que apesar de não ser observado enquanto tal, o inconsciente continua fazendo parte da
experiência do sujeito por meio dos efeitos que ele provoca.

O inconsciente é, segundo as próprias palavras de Freud,


experimentável enquanto tal. Ele se esconde, como os senhores
bem sabem, por detrás de uma máscara, como Freud o exprimiu
de maneira particularmente drástica com vistas a certos atos
falhos na seguinte sentença: “O fazer sabe se mascarar muito
frequentemente como um vivenciar passivo”. Não obstante, ele
permanece um fazer, e, não obstante, ele continua sendo
“experimentável” de fato, ainda que apenas por meio de desvios.
(2013, p. 68)

Por ser experimentável, Binswanger entenderá que a psicanálise não poderia ser
um mero exercício especulativo, sendo a disciplina de Freud intimamente lastreada na
peculiar experiência do inconsciente que, apesar de não ser um dado imediato apresentado
à consciência pela percepção, se faz sentir pelos seus efeitos. Essa peculiaridade do objeto
psicanalítico (uma experiência que se faz presente apesar de oculta), seria a razão de
Freud insistir tanto na dificuldade daqueles que não são psicanalistas ou não passaram
por uma análise entenderem do que fala a psicanálise (2013, p. 69). Ainda, é essa
particularidade do inconsciente que parece ser a fonte de tanta confusão a respeito da
legitimidade dela como ciência empírica.

42
O procedimento interpretativo psicanalítico e toda a doutrina do
inconsciente não se baseiam de maneira alguma apenas sobre
uma especulação científica, mas em primeira linha sobre a
experiência, sobre uma experiência para qual penso hoje que a
melhor forma de fazer frente a ela é por meio da expressão
“experiência construtiva”. Nisto reside o elemento
completamente novo e, de início, tão sujeito à incompreensões
da psicanálise como ciência empírica. Esse construir é empírico
porque ele acontece segundo as características experimentais e
as regras experimentais descobertas por Freud e porque ele pode
ser constatado em toda e qualquer operação psicanalítica por
meio da experiência. (2013, p. 69)

O método de investigação de Freud que imprimi cientificidade à psicanálise é a


persistência em observar o nexo psíquico ou a cadeia psíquica que se desenrola nos
fenômenos conscientes do paciente (associação livre, lapsos, sintomas, sonhos, etc)
mantendo a aposta de que ela é ininterrupta e que a ligação entre os pontos é dotada de
um motivo que cabe ao psicanalista desvendar (2013, p. 69).

Vemos aqui que, diferente de Boss, Binswanger legitima a construção teórica


freudiana, defendendo o seu apoio na experiência empírica. A noção de modelo que vimos
ser criticada em Boss aparece aqui sem um tom pejorativo, mas como meio de assegurar
rigor científico a disciplina freudiana. Além do mais, o apoio do método de Freud na
causalidade não é censurado.

Aqui, porém, entramos em uma nova fase da trajetória intelectual de Binswanger,


na qual encontramos sua crítica à psicanálise que o lança para além de seu campo e o
aproxima mais radicalmente à fenomenologia de Heidegger. Trata-se de uma crítica à
noção de Homem de Freud. Para Binswanger, todo o aparato teórico e metodológico de
Freud repousa em uma noção naturalista de ser humano que permite com que Freud
compreenda o psiquismo em termos de pulsões e relações causais e mecanicistas. Para o
fenomenólogo, a compreensão legítima do homem deveria partir de uma concepção
antropológica outra. Vejamos o longo comentário de Binswanger sobre um texto capital
dessa fase, “A concepção freudiana do homem à luz da antropologia”:

Já o título “A concepção freudiana do homem à luz da


antropologia” mostra que, agora, no lugar da confrontação
metodológica com a psicanálise e com sua conceptualidade
fundamental, entrou em cena a confrontação com o horizonte
compreensivo do homem no sentido do homo natura, que se
encontra à base desse método e dessa conceptualidade, o
horizonte do homem como puro ser natural, horizonte esse a
partir do qual a construção científico-natural do aparato psíquico

43
se torna compreensível em seu caráter multifacetado e em sua
coesão metodológicos imponentes como uma unilateralidade
antropológica. Com isso, o naturalismo de Freud foi colocado
sob a luz correta, assim como, portanto, a sua dedução da vida
espiritual a partir da pulsionalidade. O impulso, que tinha
recebido desde o início do projeto compreensivo humano da
psicanálise, encontrou agora a sua fundamentação e formulação
filosófico-antropológicas. Ele não podia se apoiar apenas sobre
a doutrina de HUSSERL das diversas regiões de objetos e de
coisas e sobre os tipos fundamentais de “exposição
identificadora” que lhe são correspondentes, mas também sobre
a doutrina de HEIDEGGER do ser-aí como ser-no-mundo, na
qual o ser-jogado-na-vida e o ser-afinado significam, em
verdade, “existenciais” fundamentais, mas de maneira alguma
exclusivos. (2013, p. 78)

A conversão à fenomenologia existencial é colocada por Binswanger então não


como o desembaraçar dos enroscos teóricos para o acesso sem mediações do ser humano,
mas como uma mudança de bases antropológicas que são o fundamento para o método
de construção de conhecimento da disciplina. O homo natura de Freud pede uma
investigação através da ciência natural e empírica, enquanto o ser-aí de Heidegger pede
um modelo fenomenológico de produção de conhecimento. O fato de Binswanger
entender que a psicanálise “reduz o ser do homem a um esquema ou a um sistema
científico natural”(2013, p. 77) enquanto insinua que a fenomenologia conseguiria
abordar o homem em sua diversidade significa antes a preferência por um modelo
antropológico e metodológico do que uma abolição da teoria, como vimos na proposta
fenomenológica que chamamos de intuitivista. O que está em jogo é fundamentalmente
uma troca de bases teóricas e conceituais e não a suspenção delas.

Como já apontei, essa crítica, se acatada, produz efeitos sobre a forma como a
psicanálise produz conhecimento e orienta sua clínica, ficando nítido como esse debate
produz efeitos teóricos e práticos na psicologia. Seria muito interessante, nesse sentido,
entrar mais a fundo nas consequências que essa concepção de homem e conhecimento
trazem para clínica da Daseinsanalyse e outras correntes em psicologia que parecem ter
sido influenciadas por essas discussões. Quando falo dessas novas propostas penso, por
exemplo, na psicanálise existencial de Sartre (2015) ou a aproximação da psicanálise de
Hegel e Heidegger em Hyppollite (1989). Há ainda aquelas que, mesmo que a ruptura
com a psicanálise seja menor, propõem mudanças importantes na disciplina a partir de
inspirações semelhantes. É o caso de Leopoldo Fulgêncio e sua psicanálise sem

44
metapsicologia, façanha que seria possível ao se apoiar em uma aproximação entre
Winnicot e Heidegger (2018)

Enfim, as críticas à cientificidade da psicanálise que vimos nesse capítulo (a


censura aos modelos, à metapsicologia, à antropologia psicanalítica, a apreensão do
psíquico como objeto, etc.) criam novas abordagens teóricas e práticas em psicologia que
deveriam ser estudadas em maior detalhe. Pude trazer aqui apenas algumas ponderações
sobre os efeitos práticos dessas discussões epistemológicas. Entre elas, lembraria das
considerações sobre os perigos do intuitivismo em recair em uma clínica leiga e a-crítica,
os ganhos éticos em poder se pensar uma metodologia que não reduza uma alteridade à
uma familiaridade e a possibilidade de pensar o fenômeno psicológico além das grades
do naturalismo e das ciências objetivas.

Outras ponderações seriam possíveis com um estudo mais detido das diversas
propostas em psicologia movidas pelo descontentamento com o cientificismo do campo
em geral e da psicanálise em particular. Porém, não poderemos dar continuidade ao estudo
dessas críticas e suas consequências e temos, agora, que nos mover para um outro domínio
de conhecimento: o das ciências experimentais. Com isso perdemos em profundidade,
mas creio que a possibilidade de comparar dois campos epistêmicos através de suas
críticas à psicanálise tem o benefício de desnaturalizar ambos os critérios de cientificidade
em jogo. Ao secularizar esses critérios e descer eles à terra, podemos nos ver livre da
assunção servil à suas autoridades colocá-los em debate para que cada um defenda, na
Ágora democrática, sua forma de produção de conhecimento. Nem Heidegger nem
Grunbaum como Deus, mas como cidadãos defendendo suas propostas epistemológicas
diante da pólis. Ao trocar a dogmática dos princípios absolutos de um conhecimento pela
reflexão crítica sobre as condições de possibilidade de um campo epistemológico saímos
de lógicas verticalizadas de poder para entrar em jogos mais horizontais. Dito isso,
sigamos em frente.

45
CAPÍTULO 2 – Científica de menos

A psicanálise para a filosofia da ciência anglófona

Como tentei expor brevemente na introdução, existe ainda um outro tipo de crítica
à psicanálise no que toca a sua cientificidade. Existem aqueles que entendem que a
psicanálise careceria de fundamento científico, deferindo críticas a teoria e prática
psicanalítica por ela se utilizar de meios não confiáveis para produzir suas teses e
justificar suas hipóteses. Nesse sentido, a ausência de meios válidos de produção de
conhecimento científico confiável levaria a psicanálise a ser puramente um exercício
especulativo e fantasioso, um descompromisso com seus pacientes em sofrimento
psíquico legítimo que, enganados, caem nas garras de um terapeuta que emprega métodos
cuja confiabilidade é suspeita.

Como aponta Mezan (2014, p. 528 - 529), a crítica à cientificidade da psicanálise


existe desde o início da disciplina e já estaria evidenciada na obra de Freud em textos tão
primevos quanto “Sobre a crítica da neurose de angústia” de 1896 (uma resposta ao
psiquiatra Leopold Loewenfeld) assim como no início de “A pulsão e seus destinos”
(2017) e “A questão da Weltanschauung” (1969g), onde Freud se vê preocupado em
expor a maneira como a psicanálise produz conhecimento e porquê ela seria uma ciência
junto a outras de sua época . Porém, essas críticas se intensificaram e ganharam o corpo
de uma escola de pensamento apenas a partir de 1950. Mezan (junto a Marshall Edelson,
autor que usa como referência) lista três momentos na constituição dessa linha de
oposição à psicanálise.

O primeiro deles é a crítica dos positivistas lógicos, sendo a principal referência


um texto de Ernest Nagel de 1959. Em suma, ele censura a psicanálise por ter formulações
e teses pouco precisas, confusas. A parcial indefinição de suas hipóteses sobre o
funcionamento psíquico impossibilitariam que elas fossem colocadas a uma prova
experimental e, dessa forma, a psicanálise não poderia adentrar no clube das disciplinas
científicas. (MEZAN, 2014, p. 531)

Depois viria Karl Popper em textos dispersos do final dos anos cinquenta e início
dos sessenta em que ele sustenta que as teses psicanalíticas não teriam validade científica
uma vez que suas hipóteses não permitiriam testes que as falseassem. Na visão de Popper,
para a disciplina ser científica uma

46
hipótese não deve estabelecer uma relação (de causa e efeito,
concomitância, dependência, etc.) entre A e B, mas ainda
permitir imaginar meios por meio dos quais ela mesma poderia
ser desmentida. Caso se realize o experimento assim concebido
e a relação não seja invalidada, a hipótese que a afirma pode ser
tida como verdadeira, porém sempre provisoriamente. Hipóteses
que resistem a seguidas tentativas desse tipo são consideradas
mais consistentes que as suas rivais. (MEZAN, 2014, p. 531)

Enfim, o terceiro momento seria daquele que, dentre os autores que mencionamos
nesse capítulo, é talvez o opositor mais virulento à psicanálise: Adolf Grunbaum. As suas
críticas deferidas à psicanálise foram com certeza aquelas que a comunidade psicanalítica
mais se deu ao trabalho de responder. Desconfio que a razão disso é que quando
desafiados com as críticas anteriores, os psicanalistas podiam sempre defender o seu
embasamento empírico na atividade clínica, como o próprio Freud fez em seu texto “A
questão de uma Weltanschauung” (1969g). Uma vez que a clínica como meio de
validação teórica não é extensamente tematizada por Popper e Nagel, os psicanalistas não
se viam em apuros e tinham liberdade de continuar seus afazeres cotidianos. Grunbaum,
por outro lado, teve a astúcia de tomar a relação entre teoria e clínica como objeto central
de sua crítica, como podemos ver no título de seu livro mais recente sobre a psicanálise,
o famigerado “Validação na teoria clínica da psicanálise” (1993). Como vemos logo na
introdução desse livro:

Em alguns ciclos, acredita-se que desde que Freud desenvolveu


a psicanálise como terapia, a transação entre o analista e o
paciente no cenário clínico forneceu um apoio probatório para
as hipóteses psicanalíticas fundamentais. De fato, há aqueles que
acreditam que a viabilidade do empreendimento freudiano
repousa apenas em tal validação clínica. Consequentemente,
todo o legado analítico – tanto explicativo quanto terapêutico –
sucede ou fracassa [stands or falls] com o apoio de seus
principais princípios setting de tratamento. (1993, p. xi) [II]

Se no capítulo sobre a recepção francesa da psicanálise optei por uma abordagem


mais panorâmica do tema, trabalhando com vários autores e obras a fim de captar os ares
fenomenológicos existenciais que sopravam à época, nesse capítulo optarei por um
recorte mais detido. Proponho um estudo mais restrito de alguns textos de Grunbaum,
ainda que o meu objetivo aqui seja pintar um quadro desse estilo de crítica à psicanálise
que tem na aproximação das ciências experimentais sua marca. Creio que essa escolha
metodológica aparentemente contraditória (a medida que proponho uma tematização
mais geral a partir de um caso particular) se justifica a medida que Grunbaum parece
conter todos os traços desse lado da crítica à cientificidade da psicanálise que desejo tratar
47
aqui: é um filosofo da ciência que mira especialmente as questões experimentais da
validação do conhecimento, pertencendo a estra tradição anglófona que tentamos
categorizar em contraposição à francesa. Ainda, creio que podemos reconhecer na
produção desse autor características de um espírito científico que, se não hegemônico, ao
menos é muito presente em nossa época, o que torna o trabalho com seu texto ainda mais
interessante. Tendo me justificado, encaremos sua obra.

Os vetos de Grunbaum: clínica e método experimental em psicanálise

Ao ler o primeiro capítulo da obra de Grunbaum temos uma explicitação bem clara
de seu objetivo. O filósofo ataca especificamente as inferências causais da teoria
psicanalítica, dizendo que o método pelo qual a psicanálise as constrói e confirma (a
clínica) é insuficiente para validá-las. Grunbaum acredita que ao focar a crítica na relação
entre inferências causais e método clínico ele derrubaria não somente a psicanálise
freudiana, mas também toda a psicanálise pós freudiana, que também trabalharia com
inferências causais (admitidas ou não) fundamentadas na experiência clínica. Portanto, a
crítica de Grunbaum, se correta, é um ataque mortal à toda disciplina.

Embora o conteúdo específico de suas teorias [as teorias pós


freudianas] sobre o conflito psíquico seja mais ou menos
diferente, elas também se apoiam nos métodos clínicos de Freud
de validar inferências causais. Vou desafiar apenas essas
inferências causais. E será um corolário imediato do meu desafio
que ele se aplica não só às hipóteses originais de Freud, mas
também a todas as versões pós-freudianas da psicanálise que se
apoiam em seus métodos clínicos de justificar reivindicações
causais. Afinal, as mudanças feitas pelos pós-freudianos no
conteúdo específico da teoria do pai fundador sobre o conflito
psíquico (repressão) dificilmente tornam a validação das versões
revisionistas mais seguras! (1993, p. 3) [III]

Ao intentar uma análise desse tipo, Grunbaum nega estar fazendo uma crítica
exógena à psicanálise, ou seja, pedindo dela uma validação de suas hipóteses
incompatível com a natureza da disciplina. O filósofo aqui se defende de alguns autores
que o censuraram por estar se utilizando dos parâmetros da física para avaliar a
psicanálise. Os opositores dizem que esse empreendimento seria falho tendo em vista a
incompatibilidade epistêmica primordial entre as duas disciplinas. Grunbaum,
habilidosamente, diz que não só a causalidade não é um fenômeno restrito as ciências

48
exatas (como a física) (2006, p. 258), mas que também é o próprio Freud que reivindica
um estatuto causal para suas hipóteses centrais, nos servindo de inúmeras passagens na
qual o pai da psicanálise explicita essa reivindicação. (1993, p. 20)

Se lembrarmos da conceituação de metapsicologia que tentei desenvolver no


início desse trabalho, vamos ver que essas inferências causais criticadas por Grunbaum
fazem parte justamente desse arsenal explicativo de Freud que se direciona a tudo aquilo
que está para além (meta) da superfície da consciência (psicologia17), ou seja, fazem
parte da metapsicologia psicanalítica. Dentro dessa concepção de metapsicologia,
justifica-se a afirmação que vimos anteriormente em alguns autores, que dizem que tanto
a crítica francófona como a anglófona à psicanálise recaem sobre a relação entre
metapsicologia e clínica na disciplina (SIMANKE, 2014, p. 208).

Aqui, porém, é necessária certa cautela. Dizer que a crítica de Grunbaum é em


relação à metapsicologia freudiana seria simplificar a posição do autor próprio autor sobre
a metapsicologia, que parte de uma compreensão do conceito ligeiramente diferente da
que vimos. Para Grunbaum, a metapsicologia seria o conjunto de teses especulativas
sobre o funcionamento psíquico que a qualquer momento podem ser abandonadas na
medida que perdem seu valor explicativo. Esse não seria o caso do que Grunbaum chama
de “peça central” do corpus freudiano no qual todo o resto se apoia: “the theory of
repression, which features his compromise model of neurotic symptoms, as well as of
manifest dream content and of various sorts of slips” (1993, p. 7). De fato, enquanto temos
na obra de Freud uma mudança das teorias sobre a tópica psíquica, sobre as pulsões e
tantas outras, nunca é questionada a existência do conflito psíquico, da repressão e das
formações de compromisso, que parecem se preservar como um núcleo duro de seu
pensamento.

Essa diferenciação que Grunbaum faz entre metapsicologia e essas que seriam as
teses fundamentais da psicanálise nos ajuda a entender a razão dele voltar toda sua
artilharia a um conjunto de teses psicanalíticas razoavelmente restrito ante a vasta obra
de Freud e seus sucessores. O filósofo acredita que destruindo essas pedras fundamentais
ele faria desabar todo o edifício teórico da psicanálise, compreendido aqui também todas

17
Lembrando que, como trabalhamos na introdução, a psicologia no século XIX ainda era compreendida
como estudo dos fenômenos da consciência.

49
as elaborações pós-freudianas. O filósofo as chama essas teses mestras de Freud’s Master
Proposition. Ele a resume da seguinte maneira:

Uma neurose pode ser seguramente erradicada somente pelo


domínio consciente das repressões que são causas necessárias
para sua patogénese, e somente as técnicas terapêuticas da
psicanálise podem gerar este insight necessário do patógeno
específico (1993, p. 28) [IV]

Essa proposição mestra de Freud encontra sua validação e base empírica na


atividade clínica. Mostrando grande conhecimento da obra do pai da psicanálise,
Grunbaum retraça sua trajetória e expõe como, desde o trabalho com a hipnose e o método
catártico, Freud apoiou suas formulações sobre o funcionamento psíquico sempre na
prática clínica (1993, pgs 20-27). Mais especificamente, Freud constrói e apoia suas
teorias na melhora de seus pacientes, nos efeitos terapêuticos que sua prática clínica
desencadeava. Vemos então todo um esforço de Grunbaum em reviver a descoberta de
vários conceitos e teses centrais para a psicanálise (a hipótese do inconsciente no
tratamento por catarse, a natureza da associação livre, a etiologia dos sofrimentos
neuróticos, a teoria dos sonhos, a teoria dos lapsos, etc) mostrando como em todos eles a
razão de sua formulação e a prova de sua veracidade é sempre, em última instância, os
efeitos terapêuticos da análise. (1993, pgs. 21, 24, 26, 38-39; 2006, pgs. 269-270).

Nos aproximemos melhor das críticas de Grunbaum seguindo o seu esmiuçar da


Freud’s Master Proposition em três tópicos. Vale lembrar que como, para Grunbaum,
todo o edifício psicanalítico se sustenta nessa proposição mestra, basta derrubá-la para
que todo o prédio caia junto. Ele a divide em três partes:

1) A veracidade da teoria psicanalítica em geral e das interpretações de um caso


em particular é confirmada pela cura do paciente:

Se um paciente foi curado, então as interpretações etiológicas


que seu doutor lhe deu, pelo menos nos estágios mais avançados
da análise, devem ter sido corretas ou próximas de serem
corretas [close to the mark]. Pelo mesmo motivo, na medida em
que a remissão substancial dos sintomas pode ser uma cura
genuína, este desfecho do tratamento confirma que o analista
identificou corretamente o patógeno específico através das
associações livres do paciente

[...] a sondagem psicanalítica do inconsciente é reivindicada


como um método de investigação etiológica por suas realizações
terapêuticas. (1993, p. 29) [V]

50
2) Não há contaminação das evidências clínicas por qualquer tipo de influência
vinda das expectativas teóricas do analista:

Os dados clínicos fornecidos por neuróticos tratados com


sucesso não resultam das predições auto-realizadoras [self-
fulfiling predictions]. Assim, esses dados são exonerados da
acusação de que eles estão comprometidos em seu valor
probatório. (1993, p. 29)

3) Como a cura das neuroses é decorrência do levantamento das defesas e o


acesso do sujeito aos conteúdos recalcados, o tratamento psicanalítico é o
único capaz de alcançar curas genuínas das neuroses, se diferenciando dos
efeitos proto-terapeuticos dos tratamentos por sugestão (1993, p. 30)

Como o leitor deve esperar, Grunbaum refuta um a um esses pilares. Vamos para
uma primeira aproximação das ressalvas do filósofo em relação a esses postulados
metodológicos que sustentam a validação clínica da teoria freudiana. Para Grunbaum, o
primeiro pilar não conseguiria se diferenciar de uma prova do tipo post hoc ergo propter
hoc, ou seja, da conhecida falácia lógica de tomar como causalidade uma relação que
pode muito bem ser uma correlação coincidente. Explico: que eventos sigam um ao outro
cronologicamente não significa que o primeiro foi causa do segundo. Pode ser uma mera
coincidência que os dois fenômenos tenham se sucedido, sendo a causa real para o
segundo um motivo outro. O erro, percebe-se, é defender que existe uma relação causal
usando como argumento somente a sucessão cronológica dos eventos (1993, p. 29). Toda
vez quando vou viajar minha mãe impede que eu saia de casa antes dela me jogar água
benta e rezar algumas palavras em minha proteção. Ainda que eu volte vivo de minhas
férias, estou quase certo de que as preces de minha mãe não têm muito a ver com o fato
deu retornar com todos os meus membros para casa, apesar de, de fato, a sua benção ter
precedido cronologicamente minha viagem.

Para Grunbaum, o tipo de validação que a psicanálise se assegura também não


conseguiria provar que o efeito terapêutico não advém de outras variáveis que não aquelas
que Freud defende serem as causas da terapêutica (a vinda à consciência de conteúdos
recalcados). Isso se deve ao fato de a experiência clínica não permitir uma seleção de
variáveis que separe as razões alegadas para a melhora do paciente de outras variáveis
presentes no setting clínico. Dessa forma, a psicanálise não teria, somente com o método
clínico, como diferenciar a melhora terapêutica promovida pela análise de um efeito

51
placebo18 (1993, p. 29 e p. 30). Essa crítica também abala o terceiro pilar da proposição
mestra, uma vez que não seria possível verificar que a melhora do paciente foi de fato
uma consequência da análise.

Vemos uma crítica semelhante em outro de texto de Grunbaum quando ele


comenta sobre o trabalho de Freud junto a Breuer. Verificando os efeitos terapêuticos da
catarse e da vinda à tona de uma memória antes esquecida pelas pacientes histéricas, a
dupla se deu ao direito de postular a “Hipótese Terapêutica T”: "Levantar as repressões
de memórias traumáticas catarticamente é causalmente relevante [causally relevant] para
o desaparecimento das neuroses" (2006, p. 269) [VII]. Bom, se o efeito terapêutico se
deve ao levantamento das repressões e a vinda à consciência dos conteúdos reprimidos,
somos levados naturalmente a “Hipótese Etiológica E”: Uma repressão atuante
acompanhada de supressão afetiva é causalmente necessária para a patogênese inicial e
persistência de uma neurose” (2006, p. 270) [VIII]. Grunbaum dirá que esse tipo de prova
só se sustenta por uma “pseudoconfirmação hipotético-dedutiva bruta”. O exemplo dado
por Grunbaum para explicar o que seria isso é o de um homem que toma diariamente seus
contraceptivos e de fato não engravida (2006, p. 270). Ora, assim como a ingestão dos
medicamentos obviamente não é a causa para que esse sujeito esquisito não engravide,
nós também não poderíamos aceitar os argumentos de Breuer e Freud, uma vez que a
sucessão de determinados eventos a situações específicas não é suficiente para determinar
se essa situação é responsável pelos eventos desenrolados. Com isso, está descreditada a
hipótese etiológica para as neuroses em psicanálise. Como no argumento do placebo, falta
uma maneira efetiva de avaliar quais são as variáveis atuantes na situação.

Grunbaum aponta que alguns psicanalistas se defendem dessa crítica dizendo que
hipóteses desse tipo podem se justificar por serem inferências capazes de dar a melhor

18
Grunbaum aponta que o conceito de placebo se tornou uma verdadeira torre de babel e que deve-se tomar
cuidado com a utilização do termo. Ainda que essa discussão mereça toda a atenção (e Grunbaum dedique
todo um capítulo de seu livro para tratar do assunto), bastará agora definirmos placebo como todo o efeito
terapêutico que advêm de razões que não aquelas previstas teoricamente pela terapêutica em questão (seja
a psicologia, a farmacologia, a medicina, etc.). Assim, um paciente que não tenha nenhuma questão de
saúde devido a baixas taxas de açúcar no sangue melhorar de seus sintomas com a ingestão de comprimidos
de açúcar ou ainda na administração de um remédio que se descobre não ter efeito sobre o funcionamento
orgânico patológico configuraria um efeito placebo (GRUNBAUM, 1993, p. 70). No caso da psicanálise,
chamaríamos de efeito placebo a melhora do paciente desvinculada das razões alegadas pela psicanálise
para sua eficiência clínica. Ou seja, se a psicanálise defende que o seu valor terapêutico adviria, como
Grunbaum insiste, do trabalho com as resistências e a vinda à consciência de conteúdos recalcados, o efeito
placebo seria a melhora do paciente por fatores outros presentes no setting clínico.

52
explicação à sucessão dos fatos, aquela que é mais provável.19 O filósofo argumenta que
esse tipo de defesa confunde dois questionamentos científicos diferentes: os
questionamentos que buscam uma explicação (explanation-seeking questions), na qual se
elabora uma hipótese para o porquê de algo ser de tal forma, e os questionamentos que
buscam por uma confirmação (confirmation-seeking questions), ou seja, quando se busca
confirmar a validade de uma hipótese. Uma inferência hipotética dedutiva que se apoia
no argumento de ser a melhor explicação para uma relação pode ser apenas a resposta à
uma explanation-seeking question. É a formulação de uma hipótese, mas não a
comprovação dela e, assim, não pode se defender como sendo a única explicação possível
para o conjunto de fenômenos, uma vez que é sempre possível elaborar para ele novas
explicações que também não podem ser confirmadas. (2006, p. 271). Sendo a “melhor
explicação possível” no máximo uma hipótese que responde a uma explanation-seeking
question, ela não pode se tomar como uma resposta à uma confirmation-seeking question,
ou seja, como uma explicação que passou pelos testes para se confirmar como uma
explicação valida para a situação.

É possível ainda argumentar que as teorias psicanalíticas se pautam não somente


na melhora do paciente, mas outras observações clínicas tais como o relato dos sonhos, a
introspecção, o relato de sua história de vida, as conclusões vindas do próprio paciente
sobre as relações entre sua biografia e traços de sua personalidade, a associação livre e
tantos mais. Em suma, a teoria psicanalítica não teria apenas como solo de comprovação
os resultados terapêuticos positivos, mas as relações entre todos esses fatos vistos na
clínica. Assim, o clínico poderia fundamentar hipóteses sobre o funcionamento psíquico
ao verificar nos atendimentos que o próprio paciente através de insights chega em teorias
sobre como vivências de desamparo e quebra de laços na sua infância o levaram a ter
traços de personalidade específicos (timidez, introspecção, etc.). Ou ainda o terapeuta
poderia verificar suas teses ao perceber como os sonhos eróticos de uma paciente
precedem lapsos nos quais a ela chama seu namorado pelo nome de outra pessoa ou ainda
como ela continua essa sequência de lapsos e sonhos em associação livre até verificar um
interesse secreto em outra pessoa.

19
Apesar de Grunbaum estar se referindo a outros autores quando trata desse assunto, cabe apontar que
Mezan segue esse caminho argumentativo em seu texto “Que tipo de ciência é, afinal, a psicanálise” (2014)
em que analisa qual seria a forma da psicanálise construir conhecimento.

53
A todas essas possibilidades Grunbaum opõe razões que descreditam esses dados
como formas de provar a teoria freudiana. O fato do paciente relacionar um trauma à sua
condição atual não prova que esse evento traumático foi causa da neurose, pode ser muito
bem uma correlação coincidente (1993, p. 33); a introspecção do paciente e suas
interpretações sobre si mesmo não são mais confiáveis do que a observação de terceiros,
uma vez que ambas são apoiadas em proto-teorias cuja validação não se põe em questão
(1993, p. 34); enfim, a teoria da livre associação, dos sonhos, dos lapsos e do sentido dos
sintomas neuróticos se apoiam todas no suposto efeito terapêutico da psicanálise, que não
pode, por sua vez, ser provado via clínica (1993, pgs 38-39). Como vemos, aqui estão em
jogo argumentos muito semelhantes aos que vimos anteriormente: a impossibilidade de
selecionar variáveis na clínica e a de através dela chegar em confirmações válidas para a
teoria psicanalítica.20

Além disso, Grunbaum acredita que a necessidade do fenômeno da transferência


para o tratamento analítico e a confiança que o paciente deposita no médico faria com que
a confirmação das hipóteses psicanalíticas vindas da reflexão do paciente ou da sua
aceitação das interpretações do analista destituiria os dados clínicos de seu valor
confirmativo das hipóteses psicanalíticas. (1993, p. 29). Ainda, o fato daquelas pessoas
que acabam em um psicanalista normalmente terem de antemão grande confiança no
método faz com que elas queiram agradar seus analistas, confirmando suas interpretações.
Essa predisposição à aceitação das hipóteses psicanalíticas por parte do analisando
contaminaria a observação clínica do lado do terapeuta e assim destituiria as observações
de qualquer potencial de validação dessas hipóteses (1993, p. 29). Por fim, as
confirmações mais explícitas para as teorias psicanalíticas vindas dos pacientes jamais
seriam, digamos, espontâneas, uma vez que ao longo do tratamento o analista, por mais
que se esforce em encobrir suas expectativas teóricas e leituras enviesadas sobre o caso,
acaba por comunicar de maneira sutil a teoria, de forma que quando o paciente parece
confirmar uma hipótese psicanalítica ele, na verdade, foi previamente persuadido a
enunciá-la pelo próprio analista (1993, p. 29). Isso tudo faria da confirmação da teoria

20
Tanto essa discussão sobre a evidência clínica como a do parágrafo anterior sobre inferências hipotético
dedutivas são discutidas também por Erwin em um texto que ele tenta refletir sobre quais seriam as
evidências válidas para apoiar uma teoria científica em geral e a psicanálise em específico. Para esse autor,
tanto a inferência pela melhor explicação como aquela advinda de relatos clínicos não seriam dos tipos mais
fortes de evidência, sendo apenas evidências derivadas, que não seriam suficientes para fundamentar uma
teoria. Para uma apreciação interessante dos argumentos de Erwin no contexto de nossa discussão, ver Beer.
(2017, pgs 140-147)

54
psicanalítica um exercício circular, na qual o analista tende a enxergar na fala do paciente
a confirmação de suas teorias e o paciente trabalha junto com a analista para construir
essa ilusão e agradar o terapeuta. Grunbaum chama esse procedimento circular de tally-
argument (argumento da adequação)21. Como fica evidente, aqui o ataque é ao segundo
pilar da proposição mestra. Com isso, Grunbaum acaba de passar uma rasteira nos pilares
que sustentavam o argumento empírico de Freud, a saber, o de que a clínica validaria a
teoria.

Porém, haveria uma salvação para a psicanálise:

Eu não descarto a possibilidade de que, apesar da fraqueza dos


principais argumentos clínicos de Freud, sua imaginação teórica
brilhante pode, no entanto, ter levado à insights corretos em
alguns aspectos importantes. Portanto, eu permito que uma
reivindicação substancial para algumas de suas ideias chaves
possa talvez ainda vir de investigações extra-clínicas bem
desenhadas, sejam elas epidemiológicas ou experimentais. [...]
Em segundo lugar, se uma nova fundamentação confiável for
alcançada para a teoria de Freud, é essencial ter uma clara
apreciação da amplitude e profundidade das dificuldades que se
colocam para as suas defesas existentes.(Grunbaum, 1993, p. XI)
[IX]

Ainda que hoje, tendo a experiência clínica como base, a psicanálise se encontre
em sérias dificuldades em reivindicar a validade de sua teoria, poder-se-ia defendê-la se
as teses freudianas encontrassem experimentos extraclínicos e estudos epidemiológicos
nos quais pudessem se apoiar. Esses métodos de validação estranhos à prática
psicanalítica seriam uma forma de achar um solo seguro tanto para a eficiência do
tratamento analítico como para a validade das teses psicanalíticas sobre funcionamento
da alma humana, o que legitimaria a sua extensão para campos outros da cultura tais como
a sociologia, a antropologia, a medicina, etc.

É dentro desses critérios de validação que Grunbaum aponta as dificuldades em


defender a psicanálise atualmente. Tendo em vista que os efeitos terapêuticos são o solo
firme da clínica na qual se apoiam as teses psicanalíticas, a maior ameaça a psicanálise é
a da sua diferenciação do efeito placebo. O filósofo aponta estudos que comparam a
eficiência clínica de métodos psicoterápicos concorrentes e verifica que as diferenças
entre eles são irrisórias.Com isso, o efeito que a psicanálise tem sobre seus pacientes

21
Vemos uma exploração dessa dimensão do argumento de Grunbaum tanto em Mezan (2014, pgs 536 –
539) como em Beer (2017, p. 133)

55
poderia ser mais bem explicado por variáveis comuns a todas as práticas terapêuticas (a
expectativa do paciente em melhorar, por exemplo) do que por um suposto levantamento
das repressões e a vinda à consciência de conteúdos inconscientes. (1993, pgs 31-32)

Esse resultado dos estudos comparativos reforçariam a hipótese de que existe uma
contaminação teórica das observações clínicas feitas pelo analista, que enxerga teses pré
estabelecidas em seu paciente que, por sua vez, confirma as interpretações do analista
uma vez que está sob efeito da transferência e admiração pelo terapeuta. Na opinião do
filósofo, para provar suas inferências causais a psicanálise precisaria passar por estudos
prospectivos longitudinais desse tipo, empregando grupos controles e estudos estatísticos
nos quais se comparasse os resultados terapêuticos de uma análise à grupos de indivíduos
tratados por outras abordagens (1993, p. 31).

É tentador aqui seguir o caminho de se aprofundar na crítica de Grunbaum, que


pude apresentar aqui apenas de forma sumária. Se assim prosseguíssemos, poderíamos
refletir sobre a compatibilidade (ou não) dessa crítica à obra freudiana, examinando se a
leitura que o filósofo faz do psicanalista guarda justiça com sua letra. Porém, não se trata
aqui de fazer esse tipo de trabalho. O que gostaria de realizar é uma reflexão sobre campos
de cientificidade divergentes e os diferentes destinos da psicanálise ao atender os vetos
desses campos. Assim como fizemos no capítulo anterior com o trinômio existencialismo-
fenomenologia-hermenêutica, gostaria aqui de verificar que tipo de psicanálise é
produzida por essa crítica guiada por Grunbaum, quais são as consequências dessa adesão
e para onde ela orienta as pesquisas produzidas no campo psicanalítico. Se diante da
crítica do filósofo podemos desafiar seus critérios ou aderir a eles, aceitemos
momentaneamente uma adesão para ver até onde eles nos levam e ponderar os pontos
positivos e negativos de se fazer uma psicanálise que atenda aos critérios do método
estatístico e experimental.

A psicanálise como uma ciência estatística e experimental

Da bibliografia que pude consultar sobre o assunto, grande parte dos esforços em
conferir uma validação extraclínica de cunho experimental para as teses psicanalíticas se
dá na conjunção entre psicanálise e neurociência. Um pesquisador de grande porte que

56
tem despertado amor e ódio da comunidade psicanalítica22 é Mark Solms, que
mencionamos nas primeiras páginas desse texto como alguém que defende a necessidade
da psicanálise submeter sua teoria a procedimentos de validação mais controlados.
Relembremos sua colocação:

na psicanálise o problema, como você vê, é que ela é subjetiva


demais. Não há controle científico. Não há objetividade. Não há
teste de hipóteses. Não há forma de falsear hipóteses. Isso
também é perigoso. Leva a especulação sem verificação. (2008)

Ainda que nem sempre utilize métodos experimentais, Solms, junto à outros
pesquisadores, tem procurado fundamentar as teses especulativas da psicanálise no solo
firme das neurociências. Vemos como exemplo disso seu texto “O self e a neurobiologia
da cura pela fala” (2002) no qual Solms e seu colega Turnbull tentam entender os
fundamentos neurológicos do tratamento psicanalítico através de teorias já bem
estabelecidas dentro da neurociência sobre processos cerebrais relacionados a fenômenos
psíquicos em jogo em uma análise. Assim, utilizando-se do conhecimento neurológico
sobre processos psíquicos como a inibição, tomada de decisão, compulsão e linguagem,
os neuropsicanalistas conseguem traçar as dinâmicas neuronais envolvidas no processo
analítico e entender em termos biológicos a razão de seu efeito terapêutico.

Haveriam ainda muitos outros estudos em neurociência que visam provar (ou,
mais criticamente, dar uma fundamentação fisiológica/orgânica) para outras teorias
freudianas sobre o funcionamento do aparelho psíquico. Vemos em Sidarta Ribeiro o
perfilhamento de diversos estudos de neurociência em que se tenta entender como se
explicaria neurologicamente a teoria dos sonhos em Freud, suas teses sobre a sexualidade
infantil, o conceito de inconsciente, a noção de aparelho psíquico entre outros temas caros
à psicanálise (RIBEIRO, 2017)

Nesses estudos, porém, nem sempre temos uma fundamentação de fato


experimental para as teses psicanalíticas. O que vemos na verdade é a fundamentação da
teoria psicanalítica pela aproximação de suas teses e conceitos de outras teses e conceitos
da área da neurociência que, por sua vez, goza de uma validação experimental de suas

22
Uma reação não muito amistosa à proposta do neuropsicanalista foi a de Forbes e Riva (2004). Ante a
uma entrevista de Solms publicada na Folha de São Paulo em ocasião de sua passagem pelo Brasil, Forbes
e Riva escreveram ao mesmo jornal um pequeno texto onde censuravam a aproximação da psicanálise com
as neurociências. Lá eles diziam que o método criado por Freud em nada tinha a ver com as ciências do
cérebro e que essa aproximação deturparia a psicanálise.

57
teorias. É o que temos, por exemplo, no texto que mencionamos de Solms e Turnbull: não
há uma testagem experimental com controle de variáveis tentando provar os efeitos da
talking cure psicanalítica. O que os autores fazem é aproximar teses psicanalíticas sobre
o funcionamento psíquico (o papel do id e do ego no sofrimento psíquico, a teoria da
repressão, a explicação da eficiência do tratamento tendo em vista uma etiologia
psicodinâmica, etc.) das teses neurológicas sobre o funcionamento psíquico (as instâncias
de tomada de decisão, o funcionamento compulsivo/sintomático, a dinâmica cerebral em
jogo em fenômenos da linguagem, etc.). A fundamentação se dá pela aproximação de
fenômenos observados nas duas áreas por meio da comparação, mas não de fato pela
experimentação de conceitos psicanalíticos (2002).23

Nesse sentido, Shevrin leva mais longe os esforços experimentais em sua pesquisa
que busca validar o inconsciente freudiano. Não entraremos em detalhes sobre essa
pesquisa, trabalho esse, aliás, já feito por Paulo Beer em texto publicado recentemente
(2017, pgs. 151 – 168). Para os fins aqui pretendidos, cabe apenas apontar que seu
experimento teve a argúcia de misturar a atuação de psicanalistas clínicos e medições
laboratoriais experimentais. Muito sumariamente: os psicanalistas, por meio de
entrevistas, construíam dois grupos de palavras para pacientes com fobias sociais, um
deles relacionados ao conflito inconsciente dos sujeitos e outro com palavras relacionadas
a vivência consciente dos sintomas produzidos por esse conflito. Depois, em laboratório,
essas palavras eram apresentadas subliminarmente e supra liminarmente aos sujeitos
junto a outras palavras neutras que configuravam o grupo controle. Os efeitos das
apresentações das palavras eram comparados tendo como medida comum a emissão de
sinais neuronais identificados à inibição (as potências alfa). (SHEVRIN et al, 2013, p. 4)

A hipótese a ser testada era se as respostas de inibição ante a apresentação


subliminar de palavras relacionadas ao conflito inconsciente do sujeito poderiam ser

23
É importante apontar que esse tipo de fundamentação da psicanálise se diferenciam das exigências do
experimentalismo e são mais bem entendidos como consequências dos imperativos de uma época que reduz
a alma ao cérebro, compreendendo que qualquer fundamentação válida para teses sobre o psiquismo deve
se pautar no solo firme da biologia. O peso dado ao cérebro e a genética na psicologia e na psiquiatria a
partir da década de 90 é de fato uma das viradas epistemológicas dentro do campo psi que deve ter toda
nossa atenção. Assim como os vetos fenomenológicos e experimentais que analisamos nesse trabalho, os
vetos neurocientíficos às disciplinas psicológicas em geral e psicanalíticas em particular mereceriam toda
uma análise sobre seus pressupostos epistemológicos, seus métodos de validação, suas condições históricas
de surgimento e seus efeitos éticos, institucionais e políticos, o que tento fazer em uma pesquisa de Iniciação
científica em andamento. Como isso, porém, foge do alcance desse trabalho, remeto o leitor ao texto “Si
mesmos neuroquímicos” de Nikolas Rose (2013), que é uma boa introdução crítica sobre a hegemonia da
leitura biológica dos fenômenos psíquicos.

58
correlacionadas às taxas de potência alfa detectadas ante a apresentação supra liminar de
palavras relacionadas a experiência sintomática consciente. A semelhança das respostas
de inibição habilitaria os pesquisadores a afirmar a relação existente entre o conflito
inconsciente e a manifestação sintomática (SHEVRIN et al, 2013, pgs 4-5). O diferencial
desse estudo é o fato dele verificar experimentalmente os efeitos de varáveis encontradas
por meio do método psicanalítico (as palavras relacionadas ao conflito inconsciente dos
sujeitos testados) e perceber que os efeitos observados correspondiam às previsões da
teoria psicanalítica. Um fato interessante trazido por Beer ao comentar esse experimento
é que o próprio Grunbaum, em uma troca de cartas com Shevrin, sentiu-se convencido de
que essa seria uma prova suficiente para o inconsciente dinâmico de Freud (BEER, 2017,
p. 162).

Como apontei anteriormente, existem também os estudos sobre a eficiência clínica


da psicanálise quando comparada com outras psicoterapias ou ainda com grupos controles
a fim de verificar se o efeito terapêutico de uma análise poderia se diferenciar de um
efeito placebo. Luiz Alberto Hanns em seu texto “Psicoterapias sob suspeita: a psicanálise
no século XXI (2000) mostra como esses estudos foram impulsionados pela exigência de
planos de saúde e gestores do governo (no caso de sistemas públicos de saúde) de provas
da eficiência dos tratamentos que eles estavam financiando. Ele também discorre sobre
como a opinião pública passou a se mobilizar pela questão ante a grande proliferação de
alternativas em psicoterapia e os limites as vezes difusos na área entre prática ética e
comprometida cientificamente de um lado e charlatanismos e crendices de todo tipo do
outro. O texto também tem o mérito de apontar algumas das pesquisas realizadas com
esses intuitos e fazer um balanço crítico sobre as posturas de terapias psicodinâmicas em
entrar ou não nesses debates.24

Bom, essas pesquisas seriam as consequências metodológicas mais aparentes da


recepção na psicanálise das críticas vindas de um espírito mais experimental e estatístico
de ciência. Há, porém, algumas questões menos evidentes em jogo na adesão da
psicanálise a esses vetos experimentalistas que devem fazer parte da nossa avaliação
desse campo de conhecimento. Em uma análise epistemológica não se pode deixar de
fora os aspectos institucionais, políticos, históricos e éticos envoltos em escolhas

24
Não entrarei no mérito de analisar a proposta do próprio Hanns para a validação científica das terapias
psicodinâmicas, que muito se diferencia dos estudos prospectivos longitudinais com grupo controle que
tomam como critério de efetividade a remissão de sintomas.

59
metodológicas. Uma análise epistemológica que tomasse dogmaticamente um referencial
metodológico como único capaz de alcançar a verdade só poderia analisar outros campos
do saber de forma negativa, ou seja, enxergando-os pelos seus erros, pela sua distância
em relação ao saber verdadeiro. Aos olhos dessa ciência transcendental, monárquica e
divina, os campos de conhecimento que dela divergem seriam mera mistificação e
ideologia. Nada disso me interessa. Gostaria antes de poder compreender esses campos
como campos discursivos, tomados na horizontalidade das relações de seus conceitos com
seu contexto histórico, das suas instituições de circulação e de seus jogos de poder e não
através de uma subjugação verticalizada onde o discurso é tomado pelos olhos de um
sumo-saber.25 Assim como fizemos na análise do campo “fenomenologia-hermenêutica-
existencialismo” sobre as suas possíveis implicações clínicas, sua visão de homem e seus
ganhos éticos, cabe ponderar sobre os efeitos dessa epistemologia estatístico-
experimental para a psicanálise e a psicologia.

Nesse sentido, Paulo Beer apresenta um primeiro ponto interessante do campo


epistemológico experimental. Retomando Gilles Gaston Granger, Beer diz que a
validação cumpre a função política de tornar o conhecimento comunitário, já que a
explicitação dos métodos pelos quais se chegou em determinadas teses abriria a verdade
neles contida ao exame de outras pessoas.

Como vimos, é num traço da própria validação, que deve ser


possível em outros momentos e lugares que não somente aquele
em que a teoria foi produzida, que reside a demanda de
reprodutibilidade – a qual, nessas condições, perde um caráter
puramente normativo ou idealizado e ganha um contorno
político: a possibilidade de replicação e de realização de outros
testes de validade responde, em última instância, a essa
característica de um conhecimento que não deve ser
exclusividade somente de alguns. (BEER, 2017, p. 128)
Na experimentação, em especial, teríamos uma abertura radical do conhecimento
à fiscalização pública, uma vez que o experimento pode ser replicado por qualquer um,

25
O leitor atento já deve ter sentido os ares foucaultianos que, já na introdução, mencionei como uma
influência importante para esse trabalho. Creio que alguns traços da análise dos discursos Foucault fizeram
coro à minha intenção inicial de comparar as duas críticas à científicidade da psicanálise sem me basear em
um campo científico prévio como capaz de oferecer critérios de verdade universais. Essa desconfiança em
tomar uma metodologia como única forma legítima de produção de conhecimento é com certeza fruto de
meu percurso em um curso de psicologia, no qual se convive simultaneamente com diversas abordagens
absolutamente díspares sobre o fenômeno psicológico.

60
tornando-o anônimo26. Esse seria um meio efetivo de não submeter a população a
verdades inverificáveis e assim deixá-la vulnerável ao autoritarismo de uma ideia que, se
não pode se apoiar na disponibilidade de sua testagem a todos da comunidade, tende a se
legitimar por meios espúrios.

Um deles seria o de uma espécie de negociação em que o sujeito deve aderir


cegamente a um conjunto de ideias para pertencer a um grupo social que lhe
recompensará com trocas afetivas, reconhecimento e outros benefícios. Um belo exemplo
disso é visto em Behind the Curve (CLARK, 2018), documentário que retrata o mundo
daqueles que acreditam que a terra é plana. No final do documentário eles focam em
depoimentos nos quais esses conspiradores dizem como a adesão à comunidade dos terra-
planistas deu a seus integrantes um lugar no mundo (é difícil evitar os trocadilhos),
proporcionando-lhes novas amizades e mesmo relacionamentos amorosos. Um dos mais
influentes terra-planistas, o youtuber Mark Sargent, confessa no final do documentário
que mesmo que ele descobrisse um dia que a terra na verdade é uma esfera ele não poderia
deixar de acreditar que ela é plana, uma vez que toda sua vida agora gira em torno da
comunidade terra-planista. Teríamos também outros meios menos discretos de fazer valer
uma verdade impassível de ser conferida pela população: a inquisição, a adesão
compulsória aos sistemas religiosos por pressões familiares, a admiração cega por gurus
e charlatões e tantos outros mais.27

26
Castoriadis chamou a atenção para o anonimato no desenvolvimento das ciências exatas em
contraposição ao personalismo das ciências humanas, o que de fato é algo a ser pensado. O filósofo diz que
enquanto nas ciências humanas existe grande interesse em estudar antigos pensadores e explorar a maneira
como eles elaboraram seus problemas de estudos e os resolveram, nas ciências exatas esse esforço não
existiria. Para Castoriadis, quando se estuda a forma com que Newton formulou suas questões e resolveu
problemas teóricos de sua época não se está fazendo propriamente física, mas história da física ou ainda
filosofia da física. As ciências exatas estariam mais voltadas aos problemas do atual estado de
desenvolvimento de sua disciplina, enquanto nas ciências humanas haveria uma certa indiferenciação entre
história das ideias e desenvolvimento do campo. Recuperando o dito de que Lacan descobriu Freud,
Castoriadis sintetiza suas observações dizendo que nas ciências exatas não se descobre cientistas, mas sim
coisas (CASTORIADIS, 1987, p. 45). O tema também é abordado lateralmente por Foucault em “A ordem
do discurso”, quando ele comenta como, a partir do século XVII, vimos o decrescer da importância do autor
em conferir aos discursos científicos o estatuto de verdade ao mesmo tempo em que na literatura o autor
passou a ser a referência última para a verdade do texto, seja na vinculação da obra com sua vida, seja na
demanda ao próprio autor para dar ao seu texto o significado e estabilizar os sentidos difusos de sua
literatura (2014a, p. 26)

27
É verdade que a sujeição imediata e irrefletida ao sistema de validação experimental é, também, uma
forma de estar submetido a dinâmicas de poder, uma vez que o experimento é tomado de ante mão como
forma de produção da verdade. É nesse sentido que, acredito eu, Beer tem que recorrer não somente a
Granger, mas a Thomas Kuhn e Paul Feyerbend, que em sua filosofia da ciência enfatizam a necessidade
de compreender os campos de conhecimento em sua dimensão histórica e social. Historicizar o

61
Além disso, a prática experimental possibilita um recurso à empiria menos sujeito
ao viés do observador. Pensemos na astrologia para entender melhor essa parte. Os
leitores do horóscopo de jornal têm muita facilidade em reconhecer em suas vidas as
predições ali enunciadas, assim como aqueles que fazem mapas astrais por aplicativos na
internet conseguem muito rapidamente identificar características de sua personalidade
que provam as teses astrológicas. Como vemos, a produção de conhecimento pela
aplicação de teorias a casos específicos sem um controle experimental pode gerar toda
espécie de mal entendidos, uma vez que a impossibilidade de isolar variáveis abre
margem para que possamos eleger qualquer evento como causa dos fenômenos a ele
relacionados (por exemplo, eleger os astros como variáveis determinantes ao invés da
história de vida, genética, cultura, etc).28

Outro ponto positivo da experimentação é que o padrão ouro de cientificidade hoje


mundo afora é justamente o método estatístico - experimental. Nos últimos anos temos
assistido ao debate sobre o financiamento de tratamentos homeopáticos pelo National
Health Sistem (NHS), o sistema de saúde público da Inglaterra (DAVIS; CAMPBELL,
2017). A maioria dos médicos ingleses parece estar descontente com esse direcionamento
da verba pública, criticando a homeopatia justamente pela ausência de evidências
experimentais que comprovem sua eficiência e, assim, algum veredito que diferencie seu
efeito de um efeito placebo. A crítica em relação à falta de uma heurística biológica para
a ação dos remédios homeopáticos (uma explicação orgânica para seus efeitos
terapêuticos) fica em segundo plano e o que ganha relevância são os testes de eficiência
clínica. Assim, como coloca novamente Paulo Beer, submeter a psicanálise a esses
métodos de validação é fazer com que ela continue presente nas políticas públicas de
saúde, que não seja marginalizada e ensimesmada em pequenas seitas institucionais ou

conhecimento é uma forma de não naturalizá-lo e, assim, poder se colocar diante dele de uma forma
reflexiva e não aderida. Veremos isso em maior profundidade na conclusão.

28
Por mais absurdo que isso pareça, seria interessante entender, nesse sentido, como a psicanálise se
diferencia da astrologia. Talvez o caminho a ser trilhado aqui seria o de entender o papel da aplicação de
uma mesma teoria à casos múltiplos (não só na clínica, mas nas ciências sociais, na vida cotidiana, na
literatura, etc.) como critério de validação da psicanálise, ainda que isso não a livre, como todas as outras
ciências humanas que se utilizam do mesmo método, das intepretações selvagens e do conhecido esforço
de alguns pesquisadores entusiasmados em fazer o mundo caber em suas teorias, uma das razões das
ciências humanas serem tão descreditadas pelas ciências experimentais e ganhar contornos muitas vezes
paranoicos (“as crianças brigando pelo brinquedo é uma manifestação da luta de classes!”). Dentro dessa
discussão, creio que a análise pessoal como condição para a prática psicanalítica cumpre essa função de
enviesar menos o olhar do clínico pelas suas questões pessoais. Enfim, o método clínico de produção de
conhecimento valeria toda uma discussão a parte que não poderei empreender aqui.

62
ainda condenada à reclusão nos consultórios privados, atendendo apenas aqueles que
acreditam misticamente nela (DAVIS; CAMBELL, 2017, BEER, 2017, pgs 191 - 192).

Talvez, porém, o método experimental e estatístico não seja o mais adequado para
se fazer pesquisa em todas as esferas do conhecimento humano. Talvez não seja tão
irrazoável pensar que, assim como qualidades e vantagens, esses métodos tenham
também suas deficiências e que elas sejam ainda mais gritantes para alguns casos
específicos em que metodologias não experimentais possam ser mais produtivas. Quem
sabe, o psiquismo seja um desses casos.

É o que defende Mezan em seu texto “Que tipo de ciência é, final, a psicanálise”.
Depois de recuperar a história da Methodenstreit (que tivemos a oportunidade de estudar
na introdução), Mezan diz que a forma com que Freud produziu conhecimento estaria
muito mais próxima do método com que Darwin construiu sua teoria da evolução do que
do método das ciências experimentais. Como sabemos, Darwin não realizou nenhum
experimento para provar sua tese. Diante de muitos dados esparsos e lacunares tais como
formações geológicas, bicos de passarinhos, indicações de mudanças ambientais e tantos
outros, Darwin traçou uma explicação plausível que desse conta dessa diversidade de
fenômenos isolados, enredando-os em uma trama que deu sentido ao todo (2014, pgs 567-
569). Para Mezan, tanto Freud como Darwin lidavam com objetos cuja rede causal era
complexa demais para ser submetida à controles experimentais. Isso os obrigou a recorrer
a outras metodologias que, para uma análise de fenômenos complexos como os que eles
tratavam, se mostrou mais profícua que a metodologia experimental. Como aponta o
autor:

a infinita complexidade dos fatores que determinam um


fenômeno humano (seja ele uma sinfonia, a moda, o retorno dos
fundamentalismos, a inflação ou qualquer outro) se assemelha
em muito ao que Darwin expõe em A origem das espécies para
dar conta da evolução. Há interdependência, retroalimentação,
reticularidade, teleologia − estamos longe da relação linear de
causa e efeito que prevalece nas ciências naturais.

A meu ver, é isso que finalmente explica por que o método


experimental não serve para as ciências humanas: ele é ideal para
evidenciar causalidades lineares, mediante o isolamento
artificial de variáveis até que se encontre a correlação pertinente,
mas totalmente inapto para trabalhar com o tipo de causalidade
próprio dos objetos “humanos”. ( 2014, pgs 573-574)

63
Ainda que, a meu ver, a eficiência do método experimental não seja restrito
somente a causalidades lineares29, creio que o apontamento de Mezan nos ajuda muito a
pensar as dificuldades em se aplicar o método experimental a fenômenos complexos,
como aqueles que as ciências humanas enfrentam.

A enorme quantidade de variáveis presentes em um fenômeno complexo como os


que as ciências humanas normalmente tratam e a dificuldade de isolá-los talvez seja a
razão para o resultado surpreendende de um estudo liderado por Brian Nosek. O
pesquisador e sua equipe encamparam a tarefa hercúlea de refazer 100 experimentos
publicados em revistas respeitadas de psicologia. O resultado é estarrecedor: menos de
metade dos estudos replicados alcançaram resultados semelhantes aos originais. Como
resumido Gabriel Alves ao divulgar a pesquisa na Folha de São Paulo:

Enquanto 97% dos estudos originais selecionados conseguiam


obter resultados significantes (que não poderiam ser atribuídos
ao acaso a não ser com uma pequena probabilidade, em geral
5%), apenas 36% dos estudos de replicação conseguiram
resultados que apontassem na mesma direção.

Além disso, 83% das replicações que deram certo eram "menos
intensas" do que os estudos originais. (2015)

Os autores da pesquisa apontam, em consonância com nossas observações


anteriores, que em áreas como a psicologia, a medicina e a biologia o número de variáveis
a serem controladas é muito grande, sendo difícil entender todas aquelas que influenciam
nos resultados obtidos. Isso fica especialmente claro ao lembramos que quando testamos
hipóteses em seres humanos não temos nunca dois exemplares iguais de sujeitos do
experimento e que o curso acidental da vida coloca em jogo inúmeras variáveis
impossíveis de serem todas rastreadas e isoladas:

No caso de uma pesquisa com camundongos, pelo menos dá pra


ter a certeza de que eles tem o mesmo background genético e que
viveram toda a vida em um ambiente parecido.

Quando humanos são estudados, porém, o número de possíveis


variáveis candidatas a trazerem ruído para as medidas é enorme.
Em psicologia, não há como fugir disso. (ALVES, 2015)30

29
Um exemplo mais próximo do nosso campo para mostrar a possibilidade de experimentação em
causalidades não lineares é o do behaviorismo radical. O conceito de comportamento operante permite
submeter relações de interdependência, retroalimentação e teleologia à controles experimentais.

30
É interessante lembrar como Levy Strauss se utiliza dessa impossibilidade para fundar a distinção entre
as ciências humanas e as ciências naturais em seu clássico “Natureza e Cultura” (2003, pgs 41 - 49). No ser

64
A medicina, porém, querendo dar uma fundamentação experimental para o seu
campo encontrou modos de amenizar a influência de variáveis indesejadas nos estudos,
selecionando aquelas que interessavam colocar em relação. Quando falo disso penso
especialmente nos pilares do movimento “Medicina Baseada em Evidências”, que são o
Randomized Controled Trial (RCT) e o tratamento estatístico dos dados em meta-
análises. Vejamos também o alcance desses métodos.

Os RCTs são testes para avaliar a eficiência de uma determinada terapêutica. Ele
começa na seleção de um grupo de sujeitos que cumpra com determinados requisitos para
participarem do experimento. Esses requisitos podem ser faixas etárias determinadas,
submissão prévia a tratamentos semelhantes, gravidade da doença, etc. Dentro desse
grupo divide-se aqueles que receberão o tratamento alvo de avaliação (um novo fármaco,
por exemplo) e outro que será o grupo controle e ou não receberá a terapia avaliada (o
famoso caso dos comprimidos de açúcar) ou serão tratados com uma terapia “rival” cujos
efeitos terapêuticos já estão bem assentados pelo acúmulo bibliográfico na área. Os
estudos podem ser abertos ou cegos. Nos estudos abertos, os pacientes e os médicos
sabem quem são os indivíduos recebendo a intervenção testada e quem são aqueles que
participam do grupo controle. Nos estudos cegos, podem ser tanto os pacientes, os
aplicadores das intervenções ou aqueles incumbidos de avaliar os efeitos do tratamento a
não saber quais indivíduos fazem parte do grupo controle e quais recebem o tratamento
sendo testado. Essa cegueira [blindness] é uma forma de evitar a sobrevalorização dos
efeitos terapêuticos por parte dos médicos que sabem de antemão qual o grupo que recebe
o tratamento em avaliação, sendo o procedimento recomendado sempre que possível.
Esses sujeitos são acompanhados em follow-up studies nos quais se verifica a ação das
intervenções depois de sua realização. Já que os efeitos terapêuticos podem ser
influenciados por variáveis que não aquelas analisadas nos RCTs (os sujeitos avaliados
comem, fazem esporte e vivem suas vidas pra além do laboratório e esses fenômenos

humano não existe a distinção entre domesticação e estado de natureza. A plasticidade humana
impossibilita o reconhecimento de um comportamento que seria natural ao homem, anterior às práticas
culturais. Assim, toda ação humana só pode ser compreendida na sua relação com a história e a na sua
inserção em ciclos sociais e culturais específicos. Nesse sentido, o famoso caso dos “meninos selvagens”
criados fora da sociedade são tão artificiais quanto os criados na cidade: tanto um quanto o outro foram
construídos, não sendo a vida fora de sociedade uma volta a natureza humana. É por essa razão que cada
ser humano só pode ser compreendido em sua individualidade, na maneira própria em que foi construído
socialmente. Sendo a sua configuração tão sensível à história individual, não é de se espantar que esforços
experimentais de generalização em psicologia sejam tão frequentemente frustrados, como mostra a
pesquisa.

65
vários da vida podem influenciar na melhora do sujeito), recorre-se a grandes amostragens
a fim de minimizar os efeitos do acaso: se o remédio funcionou tanto pra pessoa que se
alimentou bem quanto pra que se alimentou mal, pra aquela que fez esportes e pra aquela
que não saiu de casa, temos então um bom indicativo de que é o tratamento a razão da
melhora do doente. Nesse intuito, apela-se para a meta-análise, que é a reunião e o
tratamento estatístico de diversos RCTs sobre uma determinada terapêutica para dar uma
palavra final sobre a efetividade do tratamento em questão.31

Os RCTs junto ao trabalho com amostragens amplas nas meta-análises parecem


dar conta de tratar fenômenos extremamente complexos através de método experimental
e estatístico, vencendo o desafio de aplicar esse método a objetos com uma quantidade
enorme de variáveis cujo controle é difícil. Mas não nos encantemos tão depressa com o
charme desse modo de produção de evidências. Nikolas Rose expõe como essa forma de
se produzir evidências no campo da psicofarmacologia têm encontrado diversos
problemas. O primeiro deles é que o grupo de pacientes selecionados para os estudos
raramente corresponde à população que de fato fará uso dos medicamentos. Rose diz que
na maioria dos RCTs com psicofármacos os sujeitos devem ser drug-naive, ou seja, não
devem ter recebido anteriormente nenhum tipo de tratamento psiquiátrico. Além disso, a
avaliação dos efeitos terapêuticos e dos efeitos colaterais dos fármacos é feita em um
espaço muito curto de tempo, durando apenas algumas semanas segundo o autor.
Sabemos que a população que faz uso dos remédios psiquiátricos está longe de ser essa
das amostras: na maioria dos casos, pacientes que fazem uso de psicofármacos tem uma
longa história de uso de medicamentos psiquiátricos e fazem uso prolongado deles,
ultrapassando em muito o tempo de duração avaliado nessas pesquisas. Ainda, a cegagem
prometida é raramente efetiva: os avaliadores dos RCTs conseguem reconhecer muito
rapidamente quem são os sujeitos do grupo controle e quem são aqueles que recebem o
novo psicofármaco devido aos efeitos colaterais produzidos pelo medicamento, driblando
a cegagem que impediria a sobre-valorização dos efeitos da intervenção.

Não bastassem esses reveses, as meta-analises correm grande risco de enviesarem


seus resultados devido ao viés de publicação [publication bias], ou seja, a maior
probabilidade de algumas pesquisas de RCT serem publicadas em detrimento de outras.

31
Uma análise detida da utilização de RCTs para avaliação de fármacos pode ser encontrada em “O que é
um medicamento: um objeto estranho entre ciência, mercado e sociedade” de Philippe Pignarre (1999).

66
Rose comenta então um estudo sobre a eficiência de determinado antidepressivo realizada
não somente com os RCTs publicados em revistas científicas, mas também aqueles que
não foram publicados. Essa pesquisa mostrou que, quando incluídos os estudos não
publicados, os efeitos dos medicamentos eram muito mais tímidos do que aqueles
expostos em meta-análises de estudos publicados, ao mesmo tempo que os efeitos
colaterais apareciam de forma mais violenta. Esse dado somado à identificação das redes
de financiamento que relacionam industrias farmacêuticas, associações psiquiátricas
responsáveis por publicações influentes e centros de pesquisa da área levantam a suspeita
de que esse viés de publicação cumpre aos interesses dessas industrias, que se
beneficiariam de estudos que chamam mais atenção para os efeitos terapêuticos de seus
remédios e deixa de lado os efeitos colaterais. Rose reforça essa suspeita ao citar outras
pesquisas que apontam que estudos financiados pelas industrias farmacêuticas
interessadas no bom desempenho do remédio em questão tendem a mostrar resultados
mais favoráveis aos fármacos do que estudos em que o órgão que os financia não tem
nenhuma relação com o laboratório que produziu o medicamento, ou seja, estudos onde
não existe essa convergência de interesses (2018, pgs 123- 125). É claro que esses defeitos
metodológicos podem encontrar correção, que é possível pensar modelos experimentais
com menos contaminação dos resultados e fazer meta-análises honestas, mas não
devemos nos enganar e comprar as evidências produzidas por esses métodos estatísticos
e experimentais como dando a palavra final sobre o assunto em questão.

Ainda, cabe perguntar se realmente podemos importar como critério de


efetividade para a clínica psicanalítica a remissão de sintomas dos pacientes. Se
compreendemos o sintoma como resultado de um conflito inconsciente que é sua causa,
é justo dizer que o objetivo da psicanálise é antes atingir esses conflitos inconscientes e
não suprimir os sintomas. De uma perspectiva psicanalítica, a supressão de sintomas sem
a elaboração do conflito inconsciente apenas desloca o sintoma, fazendo-o reaparecer de
novas formas, como no exemplo muitas vezes dado de pacientes com compulsões
alimentares que, depois de passar por cirurgias que restringem a alimentação, adquirem
novos hábitos compulsivos como as compras ou o jogo. Nesse sentido, ainda que a
psicanálise de fato acabe por remitir sintomas, seria necessário avalia-la não somente por
essa base, mas pela sua capacidade de intervir nos conflitos inconscientes do paciente,
ainda que esse tipo de avaliação seja um verdadeiro desafio.

67
Com esse capítulo, espero ter conseguido apresentar a crítica estatístico-
experimental à psicanálise e algumas de suas consequências. Enquanto alguns pontos da
aplicação desses métodos para a psicanálise me parecem muito positivos (o controle
social do conhecimento; a defesa contra o charlatanismo; a possibilidade de evitar a
submissão ao poder vertical de um conjunto de ideias dogmáticas; a empiria mais precisa;
a possibilidade de dialogar com os critérios de cientificidade hegemônicos e evitar a
marginalidade científica), outros carregam problemas que devem entrar na conta quando
avaliamos qual seria a metodologia científica a ser aplicada para a validação da
psicanálise (a instabilidade das teses em psicologia construídas por esses métodos; a
dificuldade de aplica-lo a fenômenos onde a seleção de variáveis é difícil de ser realizada;
os problemas em exportar os critérios de avaliação da efetividade clínica da medicina para
a psicanálise e ainda algumas pistas de que, mesmo nesses métodos, não estamos livres
de submissões à verdades que partem não mais de gurus, mas de indústrias
farmacêuticas). Tendo a certeza de que muitos dos pontos aqui apresentados deveriam ser
explorados de forma mais extensa e detida, encerro com pesar esse capítulo, cuja intenção
era antes mapear o debate e apresentar algumas das tensões que me pareciam mais
importantes.

68
CONCLUSÃO

Outro dia indo abastecer meu carro fui alertado pelo frentista: “Acho que tem
alguma coisa errada com seu veículo senhor, ele está derramando um líquido preto”.
Depois de me engrandecer pelo tratamento por “senhor”, logo fiquei preocupado. Meu
pobre carro! Retomando um pouco a prudência, perguntei a onde ele tinha visto o tal
líquido escuro. Ele então passou a mão no meu escapamento e me mostrou os dedos
pretos. “Veja só, isso aqui não é normal”.

Sem ter a menor ideia sobre o que poderia significar para o bem estar do meu carro
aquela fuligem no dedo do frentista, embalei na confiança com que ele me dizia aquelas
coisas e, a seu pedido, abri o capô para ele ver o que afinal estava acontecendo. Ele então,
se utilizando de seus instrumentos equivalentes ao estetoscópio e ao medidor de pressão
para verificar o bem-estar do meu possante (ou seja, a varetinha e o pano que, juntos,
permitem avaliar o óleo) aferiu com segurança: “Olha, creio que seu carro sofre de
problemas de óleo. Se não tratarmos disso com eficiência a questão pode ficar crônica”.
Na verdade ele disse que meu óleo tinha vencido e que se não o trocássemos
imediatamente meu motor poderia ser danificado de forma irreversível, mas isso tudo me
soou de forma muito parecida com a frase anterior entre aspas.

Para dar ainda maior fundamentação ao seu argumento ele conferiu a última data
de troca de óleo estampada em um adesivo no interior do meu carro. “Veja só, já está na
hora de trocar o óleo”. Mesmo atordoado pelas informações – que ganhavam uma
magnitude ainda maior pelo fato de eu não entender absolutamente nada sobre óleo,
escapamento ou líquidos pretos – falei a ele que iria então no mecânico que conhecia. Ele
insistiu dizendo que era realmente algo importante de ser feito logo e que poderíamos
trocar o óleo já no posto. Sentindo o cheiro de cilada logo disse que “preferia não” e dirigi
até minha casa guardando grande raiva de ter quase sido ludibriado pelo frentista. O
sentimento se agravou depois que meu mecânico de confiança disse que a saúde de meu
carro ia bem. Só conseguia pensar que nada disso teria acontecido se eu soubesse sobre
os tais líquidos pretos, a fuligem no escapamento e o maldito óleo.

Vi ali toda a dinâmica de poder de uma relação de conhecimento desigual, onde a


falta de instrução de um dos lados o vulnerabiliza aos interesses do outro. A razão e o
conhecimento são vistos aqui como ferramentas libertadoras, como possibilidade de

69
autonomia ante a violências que se garantem pela falta de conhecimento do outro. A
condição para que jogos de poder aconteçam é justamente a falta de conhecimento de um
dos lados, seja do funcionamento de um motor, da palavra divina ou de seus direitos como
cidadão. Estar destituído do conhecimento é, nesses casos, estar vulnerável.

Essa é, porém, apenas a superfície dos problemas das relações de poder em jogo
no campo do conhecimento. Nessa formulação do problema estamos ainda no iluminismo
e vemos a razão, o conhecimento e o método científico como possibilidade de libertar o
homem. Aprendemos, principalmente no século XX, os perigos também dessa forma de
enxergar o problema do conhecimento em suas relações com o poder. A cientificidade
com que se justificou a inferioridade intelectual dos negros e sua periculosidade inata na
frenologia de Lombroso (RAUTER, 2013), as dinâmicas de reclusão e dominação
envoltas no rigoroso discurso psiquiátrico e o tratamento dos alienados (FOUCAULT,
2014b) ou ainda a deformação da teoria da evolução para justificar práticas colonizadoras
no darwinismo social são alguns exemplos do que a segurança no projeto científico
permitiu em violência política.

Alguns dirão que esses abusos da ciência só foram possíveis pela falta de
maturidade do método científico. Eles seriam antes desvios da boa norma científica, hoje
já bem estabelecida e validada. Porém, dizer que o darwinismo social, a teoria da
periculosidade ou os saberes psiquiátricos do século XIX só foram possíveis por estarem
aquém do método científico é cair nos riscos de não colocar sob crítica e reflexão o critério
de cientificidade com que se realiza essa censura, ou seja, é tomar o seu critério de
cientificidade como via régia ao conhecimento seguro sem o colocar em julgamento. Isso
significa deixar de avaliar como o critério de cientificidade adotado para criticar as teorias
“não científicas” carrega rituais próprios de produção de conhecimento, com suas
dinâmicas institucionais específicas envolvendo jogos de poder próprios. É, enfim, cair
no encobrimento que a verdade de um saber faz de sua política (FOUCAULT, 2014a, p.
19).

Nesse sentido, tomar modelos de cientificidade herdados como forma de produção


da verdade é se sujeitar a dinâmicas de poder irrefletidas. O apelo à ciência e ao
conhecimento não basta para emancipar o sujeito de jogos de poder verticalizados. Deve-
se refletir sobre as formas de produção de conhecimento que tomamos como métrica da
verdade. Ao fazê-las objeto de nossa análise, podemos resistir às pressões e coerções que

70
tais ordens de discurso exerceriam caso fossem tomadas de forma irrefletida
(FOUCAULT, p. 17, 2014a).

Foi tendo essas questões em vista que me propus a fazer um estudo dos campos
epistemológicos que sustentam as duas críticas à psicanálise. Em uma análise desse tipo,
pudemos ver também que tipo de produção de conhecimento e prática clínica teríamos ao
acatar os vetos vindos desses campos epistêmicos, se conformando a esses outros
domínios de conhecimento. Esse trabalho de comparação me parecia fundamental para
explicitar que a adoção de critérios epistemológicos determinados resulta em
consequências teóricas e práticas que, por sua vez, devem ser avaliadas para pensarmos
que tipo de psicanálise queremos produzir e exercer. Como apontei brevemente na
introdução, esse olhar para os campos epistemológicos tem inspiração em textos de
autores como Michel Foucault e Gerard Lebrun.

Gostaria de traçar alguns comentários sobre o que desses autores pude me servir
ao longo do trabalho, explicitando em quais momentos os seus estilos se fizeram mais
presentes nas minhas reflexões. Essa será uma boa forma de retomar alguns dos achados
desse trabalho e, ao mesmo tempo, esclarecer ao leitor alguns recursos metodológicos
que me utilizei aqui. Não gostaria de pasteurizar minha pesquisa ao identificá-la como
uma aplicação direta dos métodos desses autores e não acredito que o que fiz aqui cumpra,
para o bem e para o mal, suas exigências metodológicas. O leitor deve compreender a
influência deles sobre mim antes como aquela que um músico sofre de seus artistas
favoritos na escolha das notas com que improvisa.

Lebrun defende que não se deve estudar determinado campo de conhecimento


através de um critério universal de racionalidade que avaliaria algum domínio epistêmico
pela proximidade ou distância que ela guarda com tal critério. Isso seria fazer uma
reflexão racionalista sobre as ciências, quando o que é interessante para o autor é fazer
uma análise epistemológica das ciências (p. 134, 2006). Ainda que o segundo termo tenha
uma razoável difusão de significados e tenha sido usado de forma razoavelmente livre ao
longo desse texto, o sentido dele pra Lebrun é muito bem delimitado e valerá discorrer
algumas palavras sobre a maneira com que o autor entende esses dois estilos de reflexão
sobre as ciências.

71
Lebrun entende como reflexão racionalista sobre a ciência todos os esforços
filosóficos que afirmam a existência de uma razão anterior às ciências. Nessa pespectiva,
todos os campos do conhecimento humano legítimos estariam submetidos a uma
racionalidade universal que lhes dá a base comum e aqueles que não se conformam aos
imperativos dessa racionalidade seriam ilegítimos. Para essa forma de ver o problema do
conhecimento, não há nada mais falso do que afirmar que cada campo de conhecimento
produz suas verdades através de pressupostos conceituais e instrumentos metodológicos
específicos. A verdade é descoberta pelas ciências, que só podem operar esse
desvelamento da realidade pois estão alinhadas com uma racionalidade universal. Como
aponta Lebrun:

Trata-se de construir o discurso homogêneo que unificará a


produção e o encadeamento de todos os enunciados ditos
“científicos”. É por isso que, na realidade, as ciências
particulares “nada mais são que a humana sabedoria que
permanece sempre idêntica a si mesma, por mais diversos que
sejam os objetos aos quais elas se aplicam” (2006, p. 132)32

Esse tipo de reflexão científica entende que a razão é anterior a todas as ciências
legítimas e norteiam seus caminhos até a realidade do mundo, enquanto aqueles
conhecimentos que estiverem fora desse espectro estabelecido de antemão seriam
irracionais. No objeto de pesquisa que elegi, seria o equivalente a estudar os campos da
fenomenologia e das ciências experimentais tendo como critério de meu julgamento o
modelo de construção de conhecimento presente em Freud. Isso seria tomar Freud como
dogma de cientificidade e ver naquilo que se distancia dele heresia e desrazão.

Uma análise epistemológica das ciências para Lebrum tomaria outro caminho.
Nessa abordagem entenderíamos cada campo científico como um domínio autônomo,
orientado por pressupostos e práticas que lhe são próprias e, assim, construindo objetos e
formulando teses de maneira idiossincrática. Invertendo a fórmula anterior, o
conhecimento é muito mais uma produção do que uma descoberta. No lugar da razão
única do estilo racionalista temos agora uma razão diferente para cada campo
epistemológico. Trocamos assim a Verdade incondicional por verdades diversas, cada
uma delas condicionadas ao campo epistemológico que a gerou. Lebrun chama esse

32
Lebrun não indica a referência dessa citação, ainda que tudo leve a crer que vem de Descartes. O fato
dele ligar muito fortemente essa tradição de pensamento a Descartes e de mencioná-lo poucas linhas antes
me sugeriu isso. Ainda assim, a falta de indicação bibliográfica não permite ter certeza.

72
gênero científico de ciência positiva33, no qual o cientista “deixa de ser mandatário da
razão para se tornar seu iniciador” (p. 137, 2006).

A reflexão sobre as ciências deveria se voltar então à forma como o conhecimento


é construído por cada prática científica, enfatizando nessa análise tanto os aspectos
históricos (a medida que as ciências, não sendo um desenrolar necessário da razão, devem
ser analisadas como uma aventura contingente do espírito humano e, assim, tendo seu
início e desenrolar contextualizados e impulsionados por acontecimentos casuais,
submetidos a pressões históricas específicas) (LEBRUN, p. 137, 2006) e filológicos (o
que consistiria em ler um campo científico como um texto no qual os conceitos, os
procedimentos e os dispositivos se interligam formando um corpus próprio, cujas relações
devem ser explicitadas) (LEBRUN, p. 138, 2006). Buscando algum apelo pedagógico,
podemos recorrer a uma divisão um tanto artificial entre “dentro” e “fora” para dizer que
enquanto o primeiro vetor de análise (o histórico) ressalta uma leitura intersistêmica,
apelando a fenômenos que, apesar de “exteriores” ao campo científico em questão, o
determinam (condições históricas, culturais, etc.), o segundo (o filológico) privilegia uma
reflexão intrasistêmica, na qual se verifica as correlações “interiores” dessas maquinarias
cognitivas que dão inteligibilidade aos objetos de conhecimento.

Recuperemos o nosso percurso nesse trabalho. Vimos como a história exerce um


papel importante na configuração dos campos epistemológicos quando recuperamos a
Methodenstreit como antecessora das críticas atuais à cientificidade da psicanálise,
quando verificamos alguns traços da cultura filosófica francesa e o seu peso na
constituição da crítica da fenomenologia, da hermenêutica e do existencialismo ou ainda
na parte desse trabalho que estudamos outras críticas à psicanálise semelhantes às de
Grunbaum que o antecederam. Por outro lado, entendo que as análises mais exegéticas
dos textos de Boss, Binswanger e Grunbaum que percorremos aqui se aproximavam disso
que Lebrun chamou de vetor filológico da reflexão epistemológica, uma vez que vimos

33
A referência aqui é obviamente Augusto Comte. Lebrun chama a atenção que apesar do famoso “Curso
de filosofia positiva” apontar em diversos momentos para a necessidade de uma ciência única capaz de
produzir conhecimento válido (e apesar de sempre lembrarmos com certo desdém do pai do positivismo
por essas suas famigeradas formulações), foi Comte um dos primeiros a entender que o objeto de uma
ciência é sempre posto por seu método e, portanto, produzido pelo viés do cientista. (LEBRUN, p. 135,
2006)

73
ali a amarração conceitual dos campos e como esses conceitos se agenciavam em práticas
determinadas.

Resumindo os dois modos de refletir sobre os campos de conhecimento, Lubrun


diz:

Em outras palavras, diante do Faktum das ciências positivas,


existem duas atitudes possíveis, uma de origem cartesiana, outra
de origem aristotélica. Ou bem se deixa na sombra a
positividade, preferindo mostrar de que modo a ciência em
questão é uma explicação dos arkhai racionais (dos quais ela
revela então, uma vez mais, a prodigiosa fecundidade em
qualquer área): trata-se do estilo racionalista. Ou bem se presta
atenção ao caráter autóctone (oikeîon) dos princípios que uma
ciência apresenta e ao caráter singular dessa montagem teórica
que permite determinar os “objetos” de forma até então inédita
– ou seja, prefere-se, àquilo que uma ciência descobre (para a
maior glória da ratio), sua maneira própria de produzir
enunciados ou regras que possibilitam sua edificação: trata-se do
estilo epistemológico. (2006, pgs 134-135)

Nesse sentido, creio que Lebrun não se encontra tão distante da análise dos
discursos proposta por Foucault. Em sua aula inaugural no Collège de France, Foucault
anunciou as bases para as investigações que empreenderia como professor ali nos
próximos anos. Logo no início do texto vemos ele dizer o seguinte:

Eis a hipótese que gostaria de apresentar esta noite, para fixar o


lugar – ou talvez o teatro muito provisório – do trabalho que
faço: suponho que em toda sociedade a produção do discurso é
ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e
redistribuída por certo número de procedimentos que têm por
função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu
acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível
materialidade. (pgs. 8-9, 2014a)

Qualquer enunciação é governada por regras e coerções que determinam o seu


desenrolar e impedem a proliferação errante de sentidos, dando forma ao discurso em
questão. Ao mesmo tempo em que essa ordem do discurso expele pra fora de si e
identifica como monstruosidade aquilo que não se conforma aos seus limites, ela coage
os elementos que habitam em seu domínio, impondo-lhes rotas e regras que devem ser
seguidas caso queiram ter cidadania em sua pátria. A diferença entre esses mecanismos
de gestão dos discursos se esclarece quando Foucault comenta as diferenças entre
verdade, erro e conteúdos teratológicos:

74
No interior de seus limites, cada disciplina reconhece
proposições verdadeiras e falsas; mas ela repele, para fora de
suas margens, toda uma teratologia do saber. O exterior de
uma ciência é mais ou menos povoado do que se crê: certamente,
há a experiência imediata, os temas imaginários que carregam e
reconduzem sem cessar crenças sem memória; mas, talvez, não
haja erros em sentido estrito, porque o erro só pode ser
decidido no interior de uma prática definida; em
contrapartida, rondam monstros cuja forma muda com a história
do saber. Em resumo, uma proposição deve preencher
exigências complexas e pesadas para poder pertencer ao
conjunto de uma disciplina; antes de poder ser verdadeira ou
falsa, deve encontrar-se, como diria M. Canguilhem, “no
verdadeiro”. (p. 32, 2014a)

O erro se encontra dentro dos limites de um campo discursivo e só pode ser


reconhecido como erro pelas regras desse campo. A monstruosidade, por outro lado, é
aquilo que beira o incompreensível, a aberração, o que é totalmente estranho e irracional
à um determinado campo discursivo.34 Era um pouco dessa compreensão de campo
discursivo que me servia para trabalhar com as críticas à cientificidade da psicanálise,
entendendo que a afirmação da monstruosidade da psicanálise se apoiava em uma ordem
discursiva que lançava a invenção de Freud para além dos limites do campo discursivo
de onde a crítica partia.

Lembremos que, ainda que eu tenha equalizado esse trabalho nos polos “científica
demais” e “científica de menos”, Boss afirma que a vinculação de Freud às ciências
naturais fazia com que ele abandonasse a verdadeira ciência do homem (1974, p.1), sendo
a crítica do fenomenólogo, no final das contas, também um ataque à falta de cientificidade
da psicanálise! Tanto os autores da fenomenologia como Grunbaum veem a
monstruosidade da psicanálise (encarnada, nesses casos, na sua ausência de
cientificidade) naquilo que dela não se adequa à ordem discursiva de suas disciplinas, seja
a ordem da fenomenologia-existencial ou da ciência de método experimental e estatístico.

34
Um bom exemplo de um episódio na história das ciências que ajuda a ilustrar essas forças em jogo é o
de Mendel. Apesar de estar correto em suas teses, Mendel visto como um monstro para a botânica
institucionalizada do século XIX. Em suas pesquisas percursoras sobre a transmissão de características nas
plantas ele se utilizava de métodos e entidades absolutamente estranhas à botânica de sua época (a
estatística, por exemplo), além de tomar como objeto de investigação algo que não estava dentro dos
horizontes dessa disciplina. Por isso Foucault dirá que “foi preciso toda uma mudança de escala, o
desdobramento de todo um novo plano de objetos na biologia para que Mendel entrasse ‘no verdadeiro e
suas proposições aparecessem, então, (em boa parte) exatas.” (p. 33, 2014a).

75
Mapeando as forças de organização de um discurso, Foucault identifica ainda um
terceiro vetor a organizar as enunciações: o direito de fala (pgs 34-35, 2014a). Esse tipo
de coerção do discurso está presente, por exemplo, no modelo do ritual, onde a circulação
palavra está condicionada à posição que um determinado indivíduo ocupa em relação aos
outros e como cada um deles está localizado em relação a situação ritualística. Em um
julgamento, concede-se ao juiz, réu e advogado permissões diferentes de fala, além de a
eficácia das palavras variar segundo cada papel que eles ali ocupam. Dentro de um campo
discursivo, atribui-se papeis a cada um de seus agentes e esses papeis ancoram os
indivíduos em posições que determinam a sua agência no interior desses sistemas.

Esse vetor de coerção dos discursos pode ser visto na contraposição que fizemos
do método experimental com o personalismo dos gurus e das seitas. No método
experimental, a validação independe da pessoa que produz o conhecimento, enquanto nos
personalismos a verdade está radicalmente vinculada a posição que determinado
indivíduo ocupa perante o grupo.

Compreendendo dessa forma os discursos que circulam em determinada


sociedade, Foucault aponta para a necessidade de tomarmos esses mecanismos como
objeto de nosso pensamento, formulando um método para analisar esses campos
discursivos. Para uma analise dos discursos, diz Foucault, devemos entender os polos que
normalmente tomamos como a origem dos discursos (o autor, o cientista, o médico, o
juiz, etc.) não como seus iniciadores, mas como atravessados por todo um sistema de
coerções que os sustenta. Para retomar o velho ditado estruturalista, devemos entender
que os sujeitos não falam, mas são falados pelas estruturas discursivas que os atravessam.
Além disso, o discurso não se entrega a nós pela complacência entre sua apresentação e
nossas disposições cognoscentes que permitiriam apreendê-lo35. Antes de tomar o

35
A passagem em que Foucault expõe esse princípio é especialmente instrutiva:

não transformar o discurso em um jogo de significações prévias; não


imaginar que o mundo nos apresenta uma face legível que teríamos de
decifrar apenas; ele não é cúmplice de nosso conhecimento; não há
providência pré-discursiva que o disponha a nosso favor. Deve-se
conceber o discurso como uma violência que fazemos às coisas, como
uma prática que lhe impomos em todo caso; e é nesta prática que os
acontecimentos do discurso encontram o princípio de sua regularidade.
(p. 50, 2014a)

76
discurso como objeto de nosso pensamento a ser assimilado, ele deve ser compreendido
na forma com que sujeita os objetos a sua ordem, na violência que impõe às coisas.

Nesse sentido, estudar campos epistêmicos diversos pela crítica que eles fazem a
outros foi uma boa forma de explicitar a coerção que eles impunham aos objetos, seja
para expulsá-los de seu campo discursivo (como na fenomenologia, onde a vinculação da
psicanálise às ciência naturais impede qualquer ciência do homem) seja para exigir sua
conformação aos imperativos do campo (quando Grunbaum diz que a psicanálise ainda
não é científica, mas só se ela submeter suas teses à controles experimentais e estudos
longitudinais estatísticos com grupos controle).

Enfim, essa análise do discurso deve estar atenta às forças que o organizam, as
suas condições de possibilidade que delineiam suas fronteiras. (pgs 48 – 50, 2014a).
Seguindo esses princípios, Foucault elabora dois vetores de análise dos discursos. De um
lado, uma análise capaz de verificar tanto os jogos de exclusão dos campos discursivos
(as forças que repelem objetos para seu exterior e os tomam como monstruosidades, como
vimos anteriormente) como as coerções que regem seu domínio e promovem a coesão do
campo (como aquelas que estipulam o erro e o acerto, os métodos necessários para se
produzir conhecimento, etc.). Do outro lado, o estudo da formação histórica desses
campos, nos diversos acontecimentos que levaram a sua constituição.36 (p. 61-62, 2014a)

Talvez venha daí minha desconfiança em relação à campos do conhecimento que


se afirmam como via régia de acesso à verdade. Tanto minha crítica à fenomenologia
intuitiva quanto a minha relativização do método estatístico-experimental como forma de
acesso privilegiado ao fenômeno partiam daí. No primeiro caso, apontava para os perigos
de uma clínica a-crítica que não conseguiria tomar como objeto do pensamento as
coerções discursivas que orientam a prática e a escuta. No outro, tentei apontar como o

36
Aqueles que conhecem o texto de Foucault perceberão que ocultei todos os nomes que o autor dá aos
seus princípios metodológicos e vetores de análise dos discursos. Como não se trata aqui de uma discussão
detida sobre o texto de Foucault, mas sim da explicitação de alguns traços de seu pensamento que
influenciaram na minha abordagem do problema da cientificidade da psicanálise, creio que a introdução
dos conceitos e terminologias foucaultianas nos desviaria muito de nossos propósitos. Porém, para não
deixar na mão quem possa se interessar pela conceituação de cada um desses princípios e vetores de análise,
indico conferir as páginas 48 – 66 do texto que viemos trabalhando. Os princípios metodológicos são quatro:
“inversão”, “descontinuidade”, “especificidade” e “exterioridade”. Os vetores de análise se dividem em
“crítica” e “genealogia”. A identificação dos termos no texto é facilitada pelo uso de negritos e aspas na
edição que tomamos aqui como referência. (2014a).

77
método estatístico-experimental, apesar de suas qualidades, tinha dificuldade em lidar
com alguns objetos, em especial aqueles trabalhados por algumas ciências humanas como
a psicologia.

Sendo influenciado por esses estilos de análise epistemológica, ficaria satisfeito


se com esse trabalho eu tenha apontado ao leitor como diferentes críticas a cientificidade
da psicanálise estão comprometidos com campos epistemológicos que governam não
somente questões metodológicas de um conhecimento (o abandono de modelos teóricos
como a metapsicologia, mudança no conceito de homem, experimentos extra-clínicos,
estudos longitudinais com grupo controle, etc.), mas também efeitos institucionais (a
forma que o conhecimento circula, se é público ou privado, se gera dinâmicas de poder
mais verticalizadas ou menos) e clínicos, a medida que podem mudar a prática dos
analistas filiados a cada uma dessas escolas.

Creio que a comparação entre duas críticas tão diversas à cientificidade da


psicanálise permitiu desenvolver a hipótese de que o julgamento de cada uma dessas
críticas estava apoiado em pontos de partida díspares. Assim como na citação famosa
(normalmente atribuída a Freud, ainda que eu nunca a tenha encontrado em sua obra) que
reza que quando Pedro nos fala de Paulo sabemos mais sobre Pedro do que de Paulo,
podemos falar que quando Grunbaum ou Boss criticam a cientificidade da psicanálise
eles dizem mais sobre seus respectivos campos epistemológicos do que sobre o campo
epistemológico psicanalítico. Como vimos em Foucault, um campo discursivo não se
revela a nós por uma cumplicidade doce com nosso visar, mas sim na forma violenta com
que esses discursos sujeitam seus objetos e impõem a eles suas regras de enunciação
(FOUCAULT, 2014a, p. 50). Por essa razão podemos enxergar nos vetos que Boss e
Grunbaum fazem a Freud as coerções discursivas de seus respectivos campos
epistêmicos, que exigem da psicanálise uma conformação a suas regras de enunciação
para que seja reconhecida como conhecimento válido.

Nesse sentido, uma empreitada que ficou para além do meu alcance, mas que se
impõe, é a de reconhecer na teoria e prática de Freud seus critérios de produção de
conhecimento e coerção do discurso, aplicando ao campo epistêmico psicanalítico um
trabalho semelhante ao que fiz em relação ao campo que chamei de experimental e
fenomenológico/hermenêutico/existencial. Creio que esse trabalho deveria se dedicar a
alguns aspectos da teoria psicanalítica como a centralidade da experiência clínica na

78
construção de suas teses, a função dos modelos e da metapsicologia e suas implicações,
a razão do recurso que Freud faz à literatura (a Gradiva ou o texto sobre o conto de
Hoffman) (1969b; 1969e) à vida cotidiana (os chistes, seu sobrinho brincando com o
carretel) (1969a; 1969f) ou às ciências sociais (“Totem e Tabu” ou “O Mal-Estar na
Civilização”) (1969f; 1969h) e outros mais que fossem importantes para entender como
a psicanálise freudiana valida o conhecimento que produz e quais são os efeitos desses
critérios de validade.

O mesmo poderia ser estendido para todas as formas de validação epistemológica


da teoria psicanalítica intentadas depois de Freud. Se pudemos analisar brevemente a
validação psicanalítica pelo instrumental fenomenológico-existencial, pela estatística e
pelo método experimental, teriam de ser estudadas ainda as validações da psicanálise que
passam pelas suas aproximações com a neurologia, com o estruturalismo, com o
marxismo, dentre tantas outras formas que ao longo do século XX foram intentadas.
Seguindo esse raciocínio, seria necessário um estudo epistemológico para cada forma de
validação diferente que encontramos na psicanálise, entendendo que cada um desses
métodos de validação carrega um campo epistemológico complexo cujas características
devem ser explicitadas para que possamos ter ciência das forças que nos guiam estando
dentro de cada um deles e, quem sabe, poder eleger aquele que nos parece mais adequado.
Nesse sentido, creio que minha proposta não esteja tão distante da “Filosofia das ciências
da psicanálise” sugerida por Paulo Beer (2017, p. 198), ainda que tenhamos seguido
caminhos diferentes para chegar em um programa de pesquisa semelhante.37

Como venho apontando, a aceitação de métodos de validação que não passem por
análises desse tipo nos põe em risco de, embalados pela pretensa autoridade de um campo
epistêmico que se impõe como critério de verdade, nos submetermos a ordens discursivas
que desconhecemos. Saímos, assim, da autonomia do pensamento crítico e entramos na
subserviência do pensamento dogmático, que nos coage por vetores de poder que
desconhecemos. A violência do pensamento dogmático reside tanto na sua opacidade
como na adesão que não passa por uma eleição refletida do modelo epistemológico que
achamos mais razoável, mas pelo argumento de autoridade, nas promessas afetivas (como

37
Essa convergência pode ser explicada talvez por uma proximidade entre Michel Foucault, Gerard Lebrun,
Thomas Kuhn e Paul Feyerabend (esses dois últimos sendo referências caras ao trabalho de Beer), uma vez
que a proposta dos quatro de análise das ciências recusa uma reflexão racionalista das ciências e se aproxima
muito mais de uma análise epistemológica, como vimos conceituada por Lebrun algumas páginas atrás.

79
vimos anteriormente recorrendo ao exemplo dos terra-planistas), incentivos financeiros
(pesquisas científicas que seguem determinadas diretrizes metodológicas tem mais
chances de serem financiadas) e outros mais. Assim sendo, espero que esse trabalho possa
ser uma tímida contribuição para uma prática científica menos dogmática e autoritária.

80
Bibliografia

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APÊNDICE

I - But even insofar as there was transitory therapeutic gain, we saw that Freud failed to
rule out a rival hypothesis that undermines his attribution of such gain to the lifting of
repressions by free association: The ominous hypothesis of placebo effect, which asserts
that treatment ingredients other than insight into the patient’s repressions—such as the
mobilization of the patient’s hope by the therapist—are responsible for any resulting
improvement (GRUNBAUM, 2006, p. 272)

II - It is believed in some quarters that ever since Freud developed psychoanalysis as a


therapy, the transaction between the analyst and the patient in the clinical setting has
yielded telling evidential support for the cardinal psychoanalytic hypotheses. Indeed,
there are those who believe that the viability of the Freudian enterprise rests on just such
clinical validation. As they would have it, the entire analytic legacy – both explanatory
and therapeutic – stands or falls with the support for its principal tenets from the
treatment setting. (GRUNBAUM, 1993, p. xi)

III - Although the specific content of their theories of psychic conflict is more or less
different, they also rely on Freud’s clinical methods of validating causal inferences. I
shall be challenging just these causal inferences. And it will be an immediate corollary
of my challenge that it applies not only to Freud’s own original hypotheses, but also to
any and all post-Freudian versions of psychoanalysis that rely on his clinical methods of
justifying causal claims. After all, the changes made by post-Freudians in the specific
content of the founding father’s theory of psychic conflict (repression) hardly make the
validation of the revisionist versions more secure! (GRUNBAUM, 1993, p. 3)

IV - A neurosis can be dependably eradicated only by the conscious mastery of the


repressions that are causally required for its pathogenesis, and only the therapeutic
techniques of psychoanalysis can generate this requisite insight into the specific pathogen
(GRUNBAUM, 1993, p. 28)

V - If a patient has been cured, then the etiologic interpretations his doctor gave him, at
least in the later stages of the analysis, must have been correct or close to the mark. By
the same token, insofar as the substantial remission of symptoms can beaspeak a genuine
cure, this treatment outcome confirms that the analyst has correctly identified the specific
pathogen via the patient’s free associations

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[…] the psychoanalytic probing of the unconscious is vindicated as a method of etiologic
investigation by its therapeutic achievements. (GRUNBAUM, 1993, p. 29)

VI - The clinical data furnished by successfully treated neurotics do not result from self-
fulfilling predictions. Thus, these data are exonerated from the charge that they forfeit
their probative value. (GRUNBAUM, 1993, p. 29)

VII - Lifting repressions of traumatic memories cathartically is causally relevant to the


disappearance of neuroses (GRUNBAUM, 2006, p. 269).

VIII - An ongoing repression accompanied by affective suppression is causally necessary


for the initial pathogenesis and persistence of a neurosis (GRUNBAUM, 2006, p. 270).

IX - I do not rule out the possibility that, granting the weakness of Freud major clinical
arguments, his brilliant theoretical imagination may nonetheless have led to correct
insights in some important respects. Hence, I allow that a substantial vindication for some
of his key ideas may perhaps yet come from well-designed extraclinical investigations, be
they epidemiologic or experimental. […] In second place, if such a reliable new footing
is ever to be achieved for Freud’s theory, it is essential to have a clear appreciation of
the range and depth of the difficulties besetting its extant defenses. (GRUNBAUM, p. xi,
1993)

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