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Coordenação Editorial: Antonio Carlos dos Santos Gomes

Revisão: Luana Costa Negraes


Capa:Victor Sancassani
Diagramação: Raquel Serafim
Copyright 2018 by Homo Ludens
Título Original: Mangás, Animes e a Psicologia 2
Autores:
Ivelise Fortim (org.), Cristiana Rohrs Lembo (org.), Ana Bárbara Naccarati de Mello, Antonio Carlos
dos Santos Gomes, Carolina M. Grando, Flavia Cristina Trindade Corrêa Barros, Giullia Longo,
Heloísa Harumi I, Henrique Mota Manesco, Heráclito Aragão Pinheiro, Katia Regina Oushiro, Luiz
Mello Gallina, Marcia Luiza Trindade Corrêa de Melo, Maria Eugênia de Almeida Fedewicz, Paula
Guimarães, Roxane Pirro, Victor Lippelt Matheus, Victor Sancassani, Vivian de Freitas Bandeira.

Mangás, Animes e a Psicologia 2. [Ivelise Fortim, Cristiana Rohrs Lembo, (orgs.)].


São Paulo: Homo Ludens , 2018.
Vários Autores.
ISBN 978-85-68278-02-4
1. Psicologia. 2. Psicologia Analítica. 3. Psicologia – Aspectos Sociais. 4. Histórias em
Quadrinhos.

Todos os direitos são reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por
qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia, gravação e
digitalização) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão da Homo Ludens.

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Email: homoludens@homoludens.com.br
Agradecimentos
É um prazer apresentar, junto com Cristiana Lembo, este livro com autores
tão apaixonados pelo tema.
Mais uma vez, agradecemos a Antonio Carlos dos Santos Gomes, nosso
editor, pela nossa terceira parceria editorial.
A Luana Costa Negraes, novamente nossa revisora;
Victor Sancassani, autor e artista da capa;
Aos autores, pela disponibilidade de participar do projeto;
Aos nossos patrocinadores e parceiros de mídia;
As famílias e amigos pelo apoio ao projeto;
Heráclito Aragão Pinheiro, pelo glossário;
A Anne Aguemi e Ana Barbara Nacarratti, nossas
analistas de mídias sociais;
E a todos os autores dos nossos mangás e animes favoritos!
Mangás, Animes e a Psicologia 2
Ivelise Fortim (org.)
Cristiana Rohrs Lembo (org.)
Ana Bárbara Naccarati de Mello
Antonio Carlos dos Santos Gomes
Carolina Moura Grando
Flavia Cristina Trindade Corrêa Barros
Giullia Longo
Heloísa Harumi I
Henrique Mota Manesco
Heráclito Aragão Pinheiro
Katia Regina Oushiro
Luiz Mello Gallina
Marcia Luiza Trindade Corrêa de Melo
Maria Eugênia de Almeida Fedewicz
Paula Guimarães
Roxane Pirro
Victor Lippelt Matheus
Victor Sancassani
Vivian de Freitas Bandeira
2018
Sumário
Introdução
O alerta de Hayo Miyazaki: a busca pela força feminina em Princesa
Mononoke nota 1 e em Nausicaä do Vale do Vento nota 2
O castelo animado
Naruto: reflexões sobre um caso clínico
As memórias de Marnie
Gaara, o bode expiatório da Aldeia da Areia
As aventuras de Pinóquio
Ai Yazawa, Paradise Kiss e Nana: questionando as narrativas femininas
tradicionais
Análise funcional do comportamento dos personagens de Ranma ½
Sailor Moon
Goku: o macaco andarilho, mas não peregrino
A condição de desamparo e o trabalho de luto em Cardcaptor Sakura
Kirito e Asuna: um encontro com si-mesmo
Kimi no Na Wa: a busca pelo inconsciente
Perfect Blue: angústia e a busca por si mesmo
Ayakashi: arquétipos em um anime de terror
Paprika: um caminho para o mundo dos sonhos
Glossário de conceitos junguianos
Animes que compõe a capa
Introdução
Ivelise Fortim
Cristiana Rohrs Lembo

15 DE MARÇO DE 2017 FOI REALIZADO O LANÇAMENTO DO PRIMEIRO

N
O DIA
volume de Mangás, animes e a psicologia. Depois de muitos pedidos
e anseios, estamos felizes em entregar para os nossos leitores – e aos
novos leitores que virão – o segundo volume deste trabalho.
A inspiração para esses livros não surgiu por mero acaso: esse fantástico
universo dos desenhos japoneses sempre se fez presente na vida de Ivelise
Fortim, organizadora dos dois volumes de Mangás, animes e a psicologia.
Inicialmente, os mangás e os animes entraram em sua vida por interesse
pessoal e encantamento; depois, a partir de seu olhar clínico e psicológico
diante do mundo. E imaginem qual não foi o tamanho de seu entusiasmo ao
descobrir que diversos de seus colegas sentiam o mesmo encanto com esse
tema? Essa descoberta alimentou ainda mais seu sonho de estudar essas
curiosas histórias.
Uma das colegas descobertas por Ivelise é a segunda organizadora deste
livro, Cristiana Lembo. Sua relação com os animes começou na infância,
quando seu pai lhe deu de presente um filme de Hayao Miyazaki – ainda em
VHS! –, Serviços de entrega da Kiki. 1 O presente foi um acaso, pois a
protagonista da história e Cristiana têm o mesmo apelido, mas o fascínio que
essa história despertou perdurou ao longo dos anos, e Cristiana seguiu
acompanhando as obras do diretor, sempre encantada com as fortes figuras
femininas criadas por ele. Hoje, revisitando esses filmes com o olhar de
psicóloga, encontrou neles muito mais que histórias fantásticas: descobriu
mensagens poderosas – mensagens que procuramos analisar no primeiro
volume e que traremos para este segundo volume também.
A narrativa de histórias sempre foi importante para a humanidade: são as
histórias que nos emocionam, transformam e curam. Elas estiveram sempre
presentes, dos relatos orais mais primitivos, como as mitologias ou os contos
de fadas, aos relatos mais modernos, orais, impressos ou transformados em
imagens por meio da televisão, cinema ou videogames. Assim, por essa
constante transmissão de narrativas ao longo dos anos, podemos ter uma
certeza: as pessoas têm prazer de acompanhar boas histórias, especialmente
quando se identificam com elas (FORTIM, 2017). 2
São as narrativas, muitas vezes, que nos permitem fazer uma mediação
simbólica entre a consciência e o inconsciente. Enquanto em outros tempos
as fábulas foram utilizadas para esse propósito, atualmente os animes e os
mangás também desempenham esse papel (FORTIM, 2017) 3 ,
principalmente quando entendemos o quanto essas histórias mobilizam a
população mundial.
O Japão é considerado, hoje em dia, o líder global em cultura pop.
Podemos perceber o quão importante esse posto é para o país, já que em 2010
o Ministério da Economia, Comércio e Indústria japonês criou o Escritório de
Promoção de Indústrias Criativas, visando acompanhar, com cuidado e
atenção, a disseminação de seus desenhos. Hoje, estes compõem parte
importante da cultura artística japonesa (LUYTEN, 2017) 4 .
Notamos, de fato, como essas produções artísticas fazem parte da vida de
crianças, adolescentes e adultos, já que os assuntos retratados nesses
desenhos, filmes, videogames e mangás dão origem a brincadeiras e viram
assunto de interesse nas rodas de conversa. E vejam: não têm tamanha
importância por serem apenas um bom entretenimento, mas porque tocam no
mais íntimo do ser humano. Trazem personagens e jornadas que apresentam
os mesmos medos, as mesmas dificuldades e as mesmas angústias que nós
sentimos – ainda que de uma forma mais fantástica!
E é justamente aqui que a psicologia tem seu papel: nessas histórias,
podemos ver conteúdos emocionais e simbólicos que traduzem a vida
humana de uma forma alegórica e coletiva, mas que toca cada indivíduo à sua
maneira. Em nossos consultórios, percebemos o quanto isso é frequente:
muitos de nossos pacientes falam sobre esses personagens e sobre o quanto
essas histórias os emocionam, percebendo – às vezes, percebendo apenas
quando nos contam – o quanto essas histórias se entrelaçam com os seus
mitos pessoais.
O retorno que tivemos do primeiro volume foi tão gratificante – e
surpreendente! – que estamos de volta para uma segunda rodada. Assim, com
alguns autores presentes mais uma vez somados a novos integrantes, estamos
imensamente felizes por podermos compartilhar com vocês o segundo
volume dessas histórias, das nossas análises e das leituras de vocês, todas
entrelaçadas para criarmos, juntos, mais uma emocionante jornada.
Boa leitura!

1 Filme analisado por Cristiana no primeiro volume de Mangás, animes e a psicologia (FORTIM,
2017).

2 FORTIM, I. Arigato, Mangakás! Animangás no Brasil. In: FORTIM, I. (Org.). Mangás, animes e a
psicologia. São Paulo: Homo Ludens, 2017. p. 10-23.

3 Idem.

4 LUYTEN, S. M. B. Prefácio. In: FORTIM, I. (Org.). Mangás, animes e a psicologia. São Paulo:
Homo Ludens, 2017. p. 7-9.
O alerta de Hayo Miyazaki: a busca pela força
feminina em Princesa Mononoke 1 e em Nausicaä
do Vale do Vento 2
Cristiana Rohrs Lembo 3

HAYAO MIYAZAKI SÃO FREQUENTEMENTE PROTAGONIZADOS POR

O
S FILMES DE
mulheres. Neles, encontramos fortes figuras femininas com ideais
bem estabelecidos lutando pelo que acreditam. Essas são figuras que
por muitos anos foram abafadas na história da humanidade. Representam
vozes que, atualmente, passaram a se destacar, embora não tenham ainda o
volume merecido. Mas agora, neste capítulo, elas o receberão.
O filme Princesa Mononoke (Mononoke Hime, 1997) tem como
protagonistas o príncipe Ashitaka e a menina selvagem San, a quem o título
da animação se refere.
Antes dos eventos vividos pelos protagonistas da animação, somos
informados de que o Japão viveu uma longa era de paz, na qual os homens e
os animais, regidos por espíritos de feras, conviviam pacificamente. Contudo,
isso logo mudaria: os homens passariam a desejar a conquista de mais e mais
terras, ousando invadir até mesmo os limites da floresta sagrada, habitada
pelos grandes regentes espirituais do mundo.
Ashitaka, rapaz que vivia em uma pacata tribo na região leste do Japão,
desconhecia os conflitos e a ganância que assolavam o oeste japonês. Certo
dia, sua aldeia é atacada por um demônio e o príncipe arrisca a vida para
salvar seu povo. Ao sair do embate, descobre uma marca negra em seu braço:
a ferida da escuridão deixada por um espírito perturbado.
Ashitaka entende, pelas palavras da curandeira de sua tribo, que o único
modo de salvar sua vida seria procurar o local de onde surgira aquele espírito.
Ao mesmo tempo, poderia descobrir o porquê do ataque.
Durante sua peregrinação, Ashitaka conhecerá Tataraba, a vila comandada
por aquela que é a responsável pelo desequilíbrio no mundo dos espíritos:
Eboshi.
As regras passadas por Eboshi, chefe da vila, para seus súditos são claras e
implacáveis: desmatar a Floresta dos Espíritos para extrair ferro e criar mais
armas. É justamente esse arsenal que a auxiliará a conquistar outras terras,
desejo maior de Eboshi. Sua vila é composta por prostitutas e leprosos,
pessoas que, para ela, são subjugadas e menosprezadas por todos.
Ashitaka procurará a cura para sua ferida e também ajudará Eboshi.
Entretanto, seus planos mudam quando conhece San, filha adotiva de Moro, a
Deusa Loba da Floresta. Além de se redescobrir ao lado da menina selvagem,
o príncipe também se apaixonará por ela.
San fora abandonada por seus pais biológicos quando criança. Depois de
ser resgatada pela Grande Loba, cresceu na floresta, não mais se
reconhecendo como humana, mas como espírito (daí o título que recebe no
filme, Princesa Mononoke, que, em tradução livre do japonês, seria algo
como fantasma, espírito).
Os lobos são, por essência, animais de percepção aguçada, com enorme
capacidade para devoção e extremamente protetores, tanto para com seus
filhotes quanto para com seu território. São fortes, curiosos e resistentes à
dor. Possuem, também, facilidade para se adaptar a situações extremas
(ESTÉS, 2014). Encontramos todas essas características em Moro e nos
espíritos que a acompanham, bem como na própria San.
Na narrativa, a sede por poder dos seres humanos excedeu os limites e
provocará grande desarmonia se não for parada a tempo. Exemplo disso é o
“demônio” que ataca a aldeia de Ashitaka no início do filme: na verdade, era
um espírito de javali que fora brutalmente assassinado por Eboshi e que não
conseguira aceitar sua injusta morte.
Os residentes de Tataraba não concordam com a aliança de San à Deusa
Loba e planejam matá-la junto com os animais e espíritos para que possam se
apossar da floresta. Eboshi também tem uma missão secreta: assassinar o
Espírito da Floresta e roubar-lhe a cabeça, para, então, entregá-la ao
imperador do Japão, mandante do crime. Quem fosse dono desse crânio teria
imortalidade. Ashitaka e San irão, então, se unir para impedir a matança
trágica, tendo como armas as palavras e, quando necessário, a força.
Ao analisarmos as duas personagens femininas do filme, percebemos
claramente suas diferenças: Eboshi está cega pelo poder, empenhada na busca
pela supremacia, enquanto San defende a natureza com amor, prezando pelo
equilíbrio. Sua grandeza surge quando é convocada a ser heroína e a lutar
pelo que acredita.
O conflito entre o poder – controle do homem sobre o meio – e o amor –
potencial do ambiente que a tudo suporta e transcende – pode simbolizar,
para a psicologia analítica, o embate entre a consciência e o inconsciente.
Também podemos analisar a conhecida dialética entre os opostos eros e
poder.
A presença de fortes imagens femininas, que se valem de força, sabedoria
e intuição, positiva e negativamente, é outro ponto do filme que merece
destaque. Essas personagens representam a imagem de mulher combativa e
selvagem. Esses potenciais, em meio a um mundo predominantemente
patriarcal, foram sufocados no inconsciente.
Seguiremos com o segundo filme escolhido para este capítulo antes de
analisarmos essas questões à luz da psicologia analítica.
Em Nausicaä do Vale do Vento (Kaze no Tani no Naushika, 1984), a
protagonista e a vilã são, novamente, figuras femininas. O cenário do filme é,
também, um mundo regido pelo patriarcado, cujos habitantes batalham pelo
poder.
Nausicaä é a princesa da aldeia Vale do Vento. Seu mundo é ameaçado
pelos fungos Fukai e por insetos gigantes. Tais criaturas foram o remédio
hostil encontrado pela natureza para educar seus filhos desobedientes. Estes,
com seus avanços tecnológicos, infectaram os solos, as águas e o ar,
destruindo muito do potencial terrestre.
A mensagem da Mãe Natureza é clara: por mais que os seres humanos se
desenvolvam, sua força será sempre predominante, uma vez que, sem ela,
nenhuma pessoa existiria. Presentear os seres com o dom da vida é sua
função, mas arrancá-lo também é uma possibilidade.
Segundo o Dicionário de símbolos de Chevalier e Gheerbrant, na América
Central os insetos representavam espíritos da morte. Eram mensageiros que
transmitiam o aviso de que algo deveria morrer para que nova vida pudesse
surgir (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1996). Esse significado se encaixa
no contexto do filme. Os insetos seriam os responsáveis por destruir regiões
dominadas por humanos gananciosos. Esses seres infectariam as pessoas e
seus lares, liberando também esporos que a tudo invalidariam. Sua meta seria
destruir e transformar tudo que fosse tóxico em areia, dando espaço para que
nova vida pudesse ali se formar.
O pai de Nausicaä, rei do Vale do Vento, viveu por muito tempo tentando
entender as florestas e o que dentro delas acontecia. Contudo, em meio às
suas pesquisas, foi infectado.
Nausicaä fará seus próprios estudos em busca da cura para a infecção do
mundo. Em sigilo, procura entender o funcionamento dos esporos e seu efeito
nos seres vivos. Suas habilidades de exploração e experimentação – como
fabricar substâncias e se reconciliar com diferentes seres que existem no
mundo – apontam para uma nova perspectiva: uma mulher que se relaciona
com o inconsciente, o desconhecido, valendo-se de sua intuição e de seus
sentimentos. Diferentemente de Mononoke, Nausicaä tem coração mais puro,
com menos raiva e rancor.
Sua vila é invadida pelo exército de uma das regiões adversárias, a
Torumekia, comandada por uma das vilãs do filme, Kushana. Durante esse
conflito, o pai de Nausicaä é assassinado, despertando sentimentos negativos
em nossa heroína. Aqui conhecemos a força de Nausicaä: em um ataque de
fúria, mata os seis soldados que tiraram a vida de seu pai.
A invasão dos torumekianos teve um propósito: encontrar a carga
misteriosa de um avião que tinha caído na região do Vale do Vento. Dentro
dele, estava a princesa Rastel, monarca de Pejite. Rastel, tão corajosa quanto
Nausicaä, havia fugido de seu povo, levando a tal carga misteriosa consigo:
um Espírito de Guerreiro, antiga entidade maligna, única sobrevivente de
seus sete irmãos. Sua força era tamanha que poderia devastar qualquer vida
que dela se aproximasse. Os pejites tinham ambições de conquistar toda a
humanidade e destruir os Fukai valendo-se da força desse espírito.
Kushana chega ao Vale do Vento em busca desse espírito e, para capturá-
lo, fará o que for preciso, mesmo que tenha de escravizar e devastar outros
povos, fatal destino do Vale do Vento.
Nausicaä será mantida refém, mas eventualmente conseguirá escapar das
brigas entre as tribos. Nesse momento, ela conhecerá Asbel, príncipe de
Pejite, irmão da princesa que falece no início do filme. Ele será de grande
auxílio para que Nausicaä alcance seus objetivos mais adiante.
Nausicaä descobre que a tribo Pejite tentará destruir o Vale do Vento. Essa
tribo fará isso pois está em guerra com Torumekia, comandada por Kushana,
situação agravada depois de terem perdido o Espírito Guerreiro. Por Kushana
estar no Vale do Vento, os pejites sequer pensam nas pessoas pacíficas que
ali residem, apenas querem aniquilar seus inimigos. Quando Nausicaä
descobre esses planos, será mantida refém novamente, dessa vez pelos
pejites, mas Asbel irá soltá-la para que ela possa impedir os planos dos
pejites.
O plano fatal desse povo é aniquilar os torumekianos, o Vale do Vento e o
Espírito Guerreiro com a manipulação dos insetos. Para isso, usam um filhote
como isca, fazendo com que todos os outros insetos sejam consumidos pela
raiva. Nausicaä é quem resgatará o filhote e enfrentará a ira de todos os
insetos, defendendo seu povo, ainda que quase se sacrifique para isso.
É nesse momento que surge uma imagem impactante no filme: quase
morta, ao ser pisoteada pelos insetos, Nausicaä será curada por eles quando
percebem que foi ela quem salvou o precioso filhote. Assim, com uma
espécie de antena ou tentáculo, os insetos envolvem o corpo de nossa
protagonista, limpando e curando suas feridas. Por fim, todos eles unirão seus
tentáculos, criando um caminho dourado que permitirá o retorno de Nausicaä
para seu povo, forte e renovada.
Na aldeia de Nausicaä vive uma velha anciã que previu que o mundo seria
salvo por um peregrino de vestes azuis, que caminharia sobre um chão
dourado. Nesse momento, diante de Nausicaä, a idosa se surpreende e
percebe que o salvador não era uma imagem masculina, mas o feminino forte
e sagrado que traria novamente a esperança para um mundo antes devastado
por ódio e ganância: trata-se de um ato de amor misericordioso e forte
realizado por uma mulher.
Ainda que Miyazaki ressalte que o propósito de seus filmes é entreter, não
politizar, vemos em Nausicaä – e em Mononoke – tendências feministas,
ecológicas e até pacifistas. Além disso, também percebemos a sensibilidade
do diretor em trabalhar a personalidade dos seus personagens: ainda que
possuam traços heroicos, admiráveis, também têm falhas e cometem erros
(MCCARTHY, 2002).
Também notamos uma mensagem subliminar nos dois enredos: os recursos
da Mãe Natureza são preciosos, mas não infinitos, e o amor deve prevalecer
diante do ódio, da ganância e do poder. Mesmo que a natureza se reinvente e
tenha espíritos que a preservem, Miyazaki atenta que estes não são
milagrosos e podem um dia se revoltar ou faltar para com os seres vivos
(MCCARTHY, 2002).
Percebemos que em ambos os filmes encontramos símbolos semelhantes:
um mundo majoritariamente patriarcal, onde impera o desejo pelo poder, que
não mede forças para dominar a Mãe Natureza, representante da energia vital,
que tudo perdoa e recebe com amor, até que começa a reagir contra seus
filhos gananciosos por meio de ataques extremamente hostis, seja na forma
de espíritos de feras, em Princesa Mononoke, ou de insetos e toxinas, em
Nausicaä do Vale do Vento.
Outras imagens recorrentes nessas animações são as figuras femininas
guerreiras: mulheres fortes que lutam por seus ideais, podendo estes ser
positivos, como representado por Mononoke e Nausicaä, ou negativos, como
mostram Eboshi e Kushana.
Para melhor entendermos esses simbolismos, veremos o que podemos
compreender dessas imagens com o auxílio da psicologia analítica.
O objetivo da vida humana seria o da auto-realização, de ser quem se é,
meta que, para Jung, traduz-se no processo de individuação (JUNG, 2012).
Para alcançar essa conquista, é responsabilidade de cada um desenvolver sua
personalidade, que deve contar tanto com traços positivos quanto negativos.
A psique humana é constituída pelo ego e pela consciência, bem como pelo
inconsciente pessoal. Ao longo de nosso desenvolvimento, o ego escolhe e
hierarquiza componentes em nossa personalidade, atraindo algumas
características para o campo da consciência e renegando outras ao
inconsciente. Neste, estariam localizados memórias reprimidas e nossos
complexos. Para um ser humano se desenvolver em sua totalidade, é sua
obrigação resgatar tais conteúdos, elaborá-los e integrá-los ao campo da
consciência, para que tenha uma personalidade de maior inteireza (JUNG,
2012).
Compreender quem se é também está relacionado ao se desenvolver em
meio a uma sociedade, em confronto com o outro, sendo necessário se
separar dele e saber diferenciar quais características são suas, quais lhe são
proveitosas e aquilo que pertence ao outro e ao coletivo. Dessa forma, para
que alguém possa se individuar, deve distinguir o que pertence a si, o que o
realiza e o que precisa melhorar (JUNG, 2012).
O processo, entretanto, não depende só de nossas atitudes conscientes, mas
também dos conteúdos inconscientes e dos momentos e maneiras como estes
se manifestarão em nossa vida. Assim, quando isso acontecer, será dever do
ego captar esse conteúdo e integrá-lo, formando símbolos – os quais são,
como escreveu Jung, a melhor expressão do desconhecido (2012).
Muitas vezes, o ego cai na ilusão de que pode controlar tudo e todos que
estão em seu entorno, não sabendo respeitar o tempo que a vida leva para
acontecer. Muitas vezes, disso resultam sintomas importantes, como a
depressão – pelo que eu poderia ter feito –, a ansiedade – o que eu poderei
fazer – e o controle – a ilusão de que posso resolver tudo imediatamente, do
jeito que julgar melhor.
O controle, de fato, pode se manifestar na necessidade de saber tudo o que
está acontecendo ao redor do indivíduo. E, de forma por vezes patológica,
pode se manifestar como uma vontade desmedida da busca por poder. Isso
acontece quando somos tomados por um complexo de inferioridade, por uma
necessidade absurda de termos poder sobre os acontecimentos de nossa vida,
desequilibrando o funcionamento da psique, uma vez que o oposto do poder,
eros, encontrar-se-ia no inconsciente.
A dinâmica da psique para a psicologia analítica é complexa, mas aqui
tentaremos ilustrá-la de forma breve: tudo o que se forma na psique se forma
por meio de opostos, entre os quais flui a energia psíquica necessária para
que a vida se desenvolva – chamada por alguns de libido; para os junguianos,
trata-se uma energia neutra que se concentra em diversos objetivos (JUNG,
2012).
Quando a energia flui apenas em uma direção, dizemos que a atitude da
consciência está polarizada, focada apenas em um lado da mesma moeda. O
outro lado do conteúdo estudado fica abandonado no inconsciente. Contudo,
por se tratar de uma dinâmica energética, em que tudo que recebe energia de
um lado recebe a mesma energia do outro, o polo do conteúdo que está no
inconsciente fica extremamente carregado, podendo atingir e assombrar a
consciência a qualquer instante, por mais que esta esteja cega. E a forma
como a psique tenta reconquistar o equilíbrio energético nem sempre
acontece da maneira mais passiva possível: pode ocorrer um verdadeiro
ataque.
Se tivermos em conta os filmes analisados neste capítulo e pensarmos que
os humanos dos universos explorados estão tomados pelo complexo de poder,
buscando dominar e escravizar o ambiente em seu entorno, podemos entender
que estão sob o efeito de um ego iludido, inflado, crendo que sabe tudo o que
poderia saber sobre a vida. Contudo, vemos que a natureza revida com seus
espíritos de fera e suas toxinas: a Grande Mãe, polo que deveria representar o
amor, o acolhimento de seus filhos seres vivos, contra-ataca para lhes dar
uma lição.
Segundo Jung, eros (amor) e poder são opostos, de modo que onde um
impera o outro deixa de existir. O primeiro estaria ligado ao lado mais
instintivo do homem, ao animal, à natureza, enquanto o segundo se
relacionaria ao espírito, ao lógico (JUNG, 2011). Quando um homem prioriza
um dos dois lados, a desarmonia se instala (JUNG, 2011).
Em seu livro O abuso do poder na psicoterapia (2004), Adolf
Guggenbühl-Craig cria um estudo a respeito de como o psicólogo, por
trabalhar com o auxílio do outro, pode muitas vezes acreditar ser o único
detentor do conhecimento e saber o que é melhor para o outro, estando numa
posição inflada de ter poder absoluto. Isso é um exemplo do que acontece
quando caímos na armadilha de acreditar que podemos controlar o outro.
Esquecemos de nos envolver, de colocar o sentimento, eros, em nossas
relações e, como consequência, somos por ele dominados: num furor de
vaidade, acreditamos saber tudo, pensando que temos palavras ou soluções
mágicas para ensinar ao paciente como ele deve viver sua vida. Isso é algo
que vemos em ambos os filmes: os seres humanos acreditam que podem
dominar o ambiente, os espíritos e os insetos, pois se julgam mais capazes
que tudo.
Em Princesa Mononoke, vemos esse contraste entre Eboshi e San: a
primeira constrói uma vila com pessoas “renegadas”, segundo ela, mas sobre
a qual ela pode ter maior domínio, uma vez que foi a salvação de seus
habitantes. Tudo é feito de caso pensado: utiliza-se da força e dos trabalhos
dos excluídos e maltratados para conquistar seus objetivos. Há aqui um
complexo de inferioridade importante, em que o poder impera e o amor
diminui. San, por outro lado, aceita o que a maioria dos humanos teme: vive
no mundo do instinto, da natureza, de Mãe Gaia. Não vive como pessoa,
dentro dos padrões exigidos pela sociedade e retida em uma persona, mas
próxima à natureza, sendo fiel ao meio que a gestou.
É algo que também vemos em Nausicaä do Vale do Vento, já que a
protagonista procura compreender os insetos e a importância destes no
reequilíbrio do universo, enquanto Kushana e os pejites querem massacrá-los,
tornando-se soberanos do mundo.
Mesmo que apareçam figuras masculinas nos filmes, tanto as vilãs quanto
as heroínas são mulheres. Mulheres fortes, que lutam por seus sonhos – ainda
que nem sempre sejam tão positivos. Mulheres que já foram – e ainda são –
muito reprimidas ao longo dos anos.
A figura da mulher guerreira pode ser associada à deusa Ártemis da
mitologia grega. Mulheres-Ártemis são aquelas que buscam seus objetivos,
empunham flechas e as lançam, com foco em suas metas, custe o que custar.
Também estão ligadas a mulheres que se fortalecem quando em contato com
a natureza (BOLEN, 1993). São pessoas obstinadas, mas que podem ter
importante frieza emocional, negligenciando o afeto dos outros por estarem
preocupadas apenas com seus objetivos. De fato, sua empatia e sua
hostilidade oscilam com muita força: ou são misericordiosas e defendem os
fracos e oprimidos ou são insensíveis e destroem aqueles que julgam
inferiores (BOLEN, 1993). Vemos esses traços nas personagens aqui
estudadas.
A mulher que é intuitiva, conectada à natureza e corajosa foi – e ainda é –
sufocada na história da humanidade. Imagem disso é a própria Lilith,
compreendida por muitos – dominados por uma consciência patriarcal –
como um demônio a ser exterminado; seria a primeira mulher de Adão,
Lilith, que o teria tentado com a maçã antes de Eva, com suas formas e
sensualidade.
De fato, a mulher já foi, e ainda é, associada às figuras de sedução e
tentação, como o poder instintivo que tiraria o homem de sua luz, de sua
racionalidade e o levaria a agir de modo mais animal. Novamente, falamos
das forças do inconsciente, do instinto, de eros, que deveriam fazer parte do
ser humano, e não serem reprimidos por ele. É o fato de nos conectarmos
com a sexualidade que nos torna instintivos, animais, mas, ao mesmo tempo,
nos deixa próximos da natureza da qual nascemos e onde, um dia, iremos
perecer (KOLTUV, 2017).
Outra autora que fala do feminino reprimido é Clarissa Pinkolas Estés, em
Mulheres que correm com os lobos (2014). Para ela, a cultura e a consciência
dominantes no nosso mundo, usualmente patriarcal e masculino,
transformaram a mulher, lupina e instintiva, num cão dócil, domesticado e,
por vezes, afetado e neurótico.
Tanto o lobo quanto a mulher, escreve Pinkolas Estés, foram e são
duramente perseguidos justamente por terem sua natureza mal compreendida:
por serem instintivos e intuitivos, territoriais e protetores para com seus
filhotes, podem ser entendidos como perigosos e traiçoeiros. Contudo, apenas
o são quando mal interpretados – ou até sofrerem preconceito por aqueles que
temem entendê-los e neles se reconhecer (ESTÉS, 2014).
As mulheres que foram domesticadas cederam à pressão de viver num
mundo onde só o que é regra importa, negando o espírito da natureza. É claro
que não podemos generalizar e dizer que os homens não podem ser
instintivos, intuitivos e sedutores, assim como não se pode dizer que as
mulheres não podem ser racionais, intelectuais e estrategistas. O que sabemos
é que quando traços de personalidade se polarizam – como, nesse caso,
pareceu ocorrer uma cisão coletiva nos gêneros – um desequilíbrio se
instaura.
Talvez Eboshi e Kushana tenham esquecido o feminino sedutor e se
enrijecido nas leis de um mundo aparentemente masculino, mas temos San e
Nausicaä como exemplos de salvação: meninas que sabem ouvir e dialogar
com a lógica e com a natureza, procurando equilibrar suas decisões e o bem-
estar do ambiente em que vivem.
É interessante perceber que não são apenas esses os filmes em que
Miyazaki nos apresenta figuras femininas como protagonistas, caso
procuremos estudar seus enredos. Também não é a única vez que ele aponta
tais contrastes entre conhecido e desconhecido, natureza e tecnologia,
humanos e animais.
Quem sabe o diretor procure mostrar em seus filmes uma imagem para que
muitas meninas e mulheres – e meninos e homens, por que não? – despertem
seus olhares para uma parte de suas vidas que anda esquecida, essa parte da
vida que anda negligenciada, abafada e dominada por desejos gananciosos e
controladores.
É preciso reconhecer com as princesas Nausicaä e Mononoke que na vida
há muito mais que dominação e incansável desenvolvimento: por vezes,
retornar às nossas origens e saber ouvir e dividir é suficiente. Aliás: é o
suficiente.
Esperemos que as mensagens de Miyazaki e a luta de nossas heroínas não
nos tenham sido apresentadas em vão.
Referências
BOLEN, J. S. Las diosas de cada mujer: una nueva psicologia femenina. Barcelona: Kairós, 1993.
CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Dictionary of symbols. Londres: Penguin Books, 1996.
ESTÉS, C. P. Mulheres que correm com os lobos: mitos e arquétipos da mulher selvagem. Rio de
Janeiro: Rocco, 2014.
GUGGENBÜHL-GRAIG, A. O abuso do poder na psicoterapia. São Paulo: Paulus, 2004.
JUNG, C. G. Psicologia do inconsciente. Petrópolis: Vozes, 2011.
______. O eu e o inconsciente. Petrópolis: Vozes, 2012.
KAZE no Tani no Naushika. Direção: Hayao Miyazaki. Tóquio: Studio Ghibli, 1984. 1 VHS (117
min), son., color.
KOLTUV, B. B. O livro de Lilith: o resgate do lado sombrio do feminino universal. São Paulo: Cultrix,
2017.
MCCARTHY, H. Hayao Miyazaki: master of Japanese animation. Berkeley: Stone Bridge Press, 2002.
MONONOKE Hime. Direção: Hayao Miyazaki. Tóquio: Studio Ghibli, 1997. 1 VHS (134 min), son.,
color.

1 Mononoke Hime (1997).

2 Kaze no Tani no Naushika (1984)

3 Mestranda em Psicologia Clínica pelo Núcleo de Estudos Junguianos da Pontifícia Universidade


Católica de São Paulo (PUC-SP). Tem graduação em Psicologia pela mesma instituição (2015). Atua
em consultório particular. Contato: <crisrlembo@gmail.com>.
O castelo animado
Heloísa Harumi I 1

Você realmente deseja isto?


(Bruxa da Terra Abandonada)

STUDIO GHIBLI, O CASTELO ANIMADO, FOI LANÇADO

U
M TÍTULO DE SUCESSO DO
em 2004 no Japão e em 2005 no Brasil. O filme é baseado na obra
Howl’s Moving Castle (1986), da autora inglesa Diana Wynne Jones.
A história se passa em um mundo fantástico no qual vive a protagonista,
Sophie, uma jovem bonita de cabelos castanhos que cuida da chapelaria que
herdou de seu pai. Certo dia, ao ser importunada por alguns soldados, Sophie
recebe ajuda de Howl, um mago muito misterioso.
Mais tarde, a Bruxa da Terra Abandonada invade a chapelaria, e Sophie,
sem saber com quem está lidando, a enfrenta e acaba sendo enfeitiçada,
tornando-se uma senhora de idade bem avançada. Sophie, então, resolve sair
de sua cidade, sem ter um rumo definido.
Afastada da cidade, ela encontra o castelo de Howl, uma construção que
tem a aparência de um animal e se move sobre duas pernas. Lá, ela conhece
Calcifer, um demônio do fogo que controla todas as funções do castelo e que
está preso à estranha construção por um feitiço. Os dois fazem uma
promessa: se Sophie for capaz de descobrir a ligação entre Howl e Calcifer,
este a ajudaria a se livrar do feitiço da Bruxa da Terra Abandonada. Assim,
Sophie acaba ficando no castelo como faxineira e conhece mais personagens
desse mundo mágico, como o espantalho Cabeça de Nabo e o aprendiz de
Howl, Markl. Em momentos de tensão causados pela guerra que ocorre nesse
mundo, Howl e Sophie se ajudam, desenvolvem uma relação e acabam se
apaixonando. Ao longo do filme, Sophie oscila entre a juventude e a velhice,
até que no final da narrativa consegue quebrar o feitiço.
Este capítulo se propõe a falar sobre o filme O castelo animado utilizando
um recorte focado em Sophie e no feitiço lançado pela Bruxa da Terra
Abandonada a partir da perspectiva da psicologia analítica e do conceito de
individuação. Esse conceito também pode ser verificado nas análises feitas no
primeiro volume de Mangás, animes e a psicologia (FORTIM, 2017), nos
capítulos sobre os filmes A viagem de Chihiro (FELDMAN; HIME, 2017) e
Serviço de entregas da Kiki (LEMBO, 2017). Nesse sentido, é possível
observar que as três protagonistas, Sophie, Chihiro e Kiki, passam por
grandes transformações e se desenvolvem no decorrer de suas respectivas
narrativas. Essa é uma forte característica dos filmes do Studio Ghibli. No
entanto, considerando a diferença de idade entre as personagens e os
momentos nos quais se encontram no início de suas jornadas, entendemos
que Sophie se desenvolve em um sentido diferente, que será mais bem
explicado posteriormente.
O processo de individuação
Para a psicologia analítica, o desenvolvimento psicológico é um processo
contínuo, que se estende por toda a vida. A esse longo percurso damos o
nome de individuação. Esse processo tem como guia o si-mesmo, centro de
toda a psique, consciente e inconsciente. O si-mesmo expressa totalidade e
unidade (JUNG, 1991) e, aos poucos, ele se revela na consciência, levando à
“plena expressão e manifestação da personalidade” (STEIN, 2012, p. 155),
ou seja, o sujeito é capaz de alcançar integralmente suas potencialidades, que
gradualmente se tornam mais conscientes.
O desenvolvimento psicológico pode ser dividido em duas etapas. Na
primeira, que abrange também o período da infância, o ego surge na
consciência, e passa-se a realizar a separação eu-outro. É nessa etapa que se
dá a estruturação do ego e o desenvolvimento da persona; em outras palavras,
o sujeito é capaz de se colocar no mundo e se adaptar ao meio e às normas
coletivas. No entanto, ao mesmo tempo que se desenvolvem ego e persona,
muitos aspectos de si são deixados fora do escopo da consciência.
Para Jung, a psique como um todo é um sistema auto-regulador, ou seja,
ela sempre busca se manter em equilíbrio utilizando-se de compensações
entre consciente e inconsciente. Quando há uma unilateralidade consciente,
por exemplo, esta também se reflete no inconsciente. Entendemos essa
função compensatória da psique como um mecanismo que possibilita o
processo de individuação, pois permite chegar ao equilíbrio da psique. Dessa
forma, é na segunda etapa que esses aspectos que foram deixados de lado
serão integrados à consciência, levando o indivíduo a um movimento para a
sua totalidade.
Nesse sentido, é possível entender que na primeira metade do
desenvolvimento psicológico há um movimento de dentro para fora do
indivíduo – ele se estabelece no mundo; enquanto na segunda metade há um
movimento de interiorização, no sentido de que o sujeito faz um movimento
de integração de aspectos de si que foram negligenciados ao longo do seu
desenvolvimento.
Vale ressaltar que, embora o processo de individuação tenha um momento
de maior introspecção, Jung aponta que, “Uma vez que o indivíduo não é um
ser único mas pressupõe também um relacionamento coletivo para sua
existência, também o processo de individuação não leva ao isolamento, mas a
um relacionamento coletivo mais intenso e mais abrangente” (2009, p. 468).
Dessa forma, entende-se que, ao se falar de individuação, é impossível
deixar de lado o âmbito coletivo do indivíduo e suas relações, pois esse é um
processo que acontece, principalmente, a partir da relação existente entre o
indivíduo e o mundo.
Quebrando o feitiço: o resgate do si-mesmo
Como visto anteriormente, o foco de nossa análise será Sophie e seu
desenvolvimento ao longo da narrativa, refletido principalmente nas
mudanças ocasionadas pelo feitiço que foi lançado sobre a protagonista.
Durante todo o filme, deparamo-nos com cenas nas quais Sophie oscila entre
a juventude e a velhice, às vezes ficando no meio do caminho. Conforme a
protagonista vai desenvolvendo suas relações e entendendo mais sobre
aspectos de si que antes eram tão negligenciados, ela, aos poucos, vai
quebrando o feitiço.
“Algumas vezes tudo parece bem externamente, mas no seu íntimo a
pessoa está sofrendo um tédio mortal que torna tudo vazio e sem sentido. [...]
Poderia-se dizer que o encontro inicial com o self lança uma sombra sobre o
futuro.” (JUNG et al., 2008, p. 219) Para entendermos o desenvolvimento da
protagonista durante o filme, é necessário olharmos também como ela inicia
sua jornada. No decorrer dos primeiros minutos da animação, temos um
vislumbre da vida de Sophie e de quem ela é. Apesar de jovem, é a
responsável por cuidar da chapelaria que herdou de seu pai, confeccionando
chapéus para as clientes. Na cena em que visita sua irmã, Lettie, vemos
Sophie ser questionada sobre o que quer para si, quando demonstra estar em
dúvida, sendo incapaz de responder a pergunta. Por um lado, não parece
haver um grande sacrifício no ato de cuidar da chapelaria, pois Sophie não se
mostra particularmente interessada em nada, mas, por outro, também não há
satisfação no que faz. Assim, ela se encontra estagnada, em um estado de
pouco investimento físico e emocional no que faz e nas relações que vive. Ao
cuidar da loja que era de seu pai, sem ver um propósito para si nesse ato, a
protagonista também estava negligenciando aspectos e vontades próprias
importantes, que nem mesmo chegavam a emergir na consciência,
permanecendo no inconsciente.
Outra característica visível sobre Sophie é que ela demonstra ter
insegurança com relação à sua aparência. Isso pode ser observado por meio
de suas ações e de suas roupas. Apesar de trabalhar em uma chapelaria e
confeccionar chapéus suntuosos, com muitos enfeites, plumas, flores e
pedras, ela usa um chapéu simples, que aparenta ser de palha e que chega a
ser chamado de feio por outro personagem. Além disso, a protagonista
casualmente fala que não se acha bonita. Mais tarde, vemos que essa era uma
questão importante para Sophie, mas ela não se permitia admitir tal
importância.
O que vemos no início do filme é o contraste entre a Sophie jovem e a
Sophie velha. Antes de ser enfeitiçada, a personagem tinha uma vida pacata e
era séria; até então, não somos apresentados a nenhuma relação da
personagem além daquela que tinha com sua irmã. Já como idosa, vemos
uma Sophie que vivencia coisas que nunca fizera antes: ela se permite ser
mais espontânea e impulsiva, sai de casa e da sua zona de conforto para um
caminho sem destino final; desenvolve mais relacionamentos e conversa mais
com as pessoas, chegando até a fazer brincadeiras, como com uma das
clientes da loja de Howl. Também é possível notar isso ao se comparar as
duas cenas em que Sophie se olha no espelho: como jovem, ela rapidamente
se irrita com sua aparência e não consegue se olhar por muito tempo; já como
idosa, sente-se mais confortável com o que vê, chegando até a se elogiar.
É interessante pensar nessas cenas como um paralelo à condição da
personagem. Quando jovem, havia uma ausência do olhar para si, ela não
sabia ao certo como se sentia nem o que gostaria ou não de fazer. Como
idosa, foi capaz de se olhar e compreender melhor seus sentimentos e
vontades. “O bom de se estar velha é que não se tem nada a perder.” (Sophie)
Após ser transformada em uma idosa, Sophie se mostra bem conformada com
a situação. De cabelos brancos, com o rosto cheio de rugas provenientes da
idade e com certa dificuldade para andar: é assim que a protagonista se olha
no espelho e considera que está em boa forma, saindo de sua casa logo em
seguida e acabando no castelo de Howl.
É nesse ambiente que Sophie se mostra mais espontânea. Ela demonstra
astúcia ao barganhar com Calcifer, sem ter medo de falar ou fazer aquilo que
deseja. Em certo momento, ao se lembrar da Bruxa da Terra Abandonada,
Sophie se irrita e diz estar cansada de ser velha. Esse é o primeiro momento
em que podemos ver uma mudança em sua postura. Ela começa a limpar todo
o castelo porque quer e da forma que quer, o que é um trabalho de grande
exigência física. A idosa que precisa de uma bengala e que anda devagar,
nesse momento, desaparece.
O ato de limpar também pode ser entendido em seu sentido mais
simbólico. Segundo o dicionário Houaiss (2010, p. 480), a palavra “limpar”
significa “1. Deixar ou ficar sem sujeiras, impurezas [...] 2. [...] reabilitar(-
se)”. No Japão, há uma tradição chamada oosouji ou osōji, a partir da qual se
realiza uma grande limpeza nas casas, nos templos, nas ruas etc. no dia 31 de
dezembro. Nessa ocasião, além da limpeza geral, joga-se fora o excesso e
renovam-se certos itens das casas. A tradição tem como objetivo limpar e
purificar não apenas os locais frequentados, mas também o espírito, sendo
uma forma de atrair coisas boas para o novo ano que se inicia. Assim,
pensando na própria definição de “limpar” e no contexto cultural do Japão, a
limpeza realizada por Sophie pode estar relacionada à purificação, à
renovação e à organização, tanto do mundo exterior quanto do mundo
interior.
Como consequência da limpeza desenfreada pelo castelo, Howl confunde-
se com suas poções e acaba ficando com os cabelos de outra cor. Por ser
vaidoso, esse acontecimento o afeta negativamente, de forma exagerada.
“Não posso viver se eu não for bonito”, foram suas palavras, o que deixou
Sophie muito brava. Nesse momento, ela sai do castelo e, finalmente,
lamenta-se sobre a questão da beleza, que tanto a incomodava. É possível ver
uma pequena mudança em seu corpo novamente: ela não está mais tão
curvada e suas rugas parecem diminuir discretamente.
Outra mudança significativa pode ser observada quando Sophie visita
Madame Suliman, antiga professora de magia de Howl. Por alguns segundos,
vemos Sophie se transformar na jovem do início do filme. Isso acontece no
momento em que ela defende Howl e algo no qual acredita, questionando os
atos e valores da feiticeira.
Quando Howl presenteia Sophie com um campo de flores, ela se torna
jovem novamente. No entanto, quando se sente insegura e se desvaloriza,
conformando-se com a posição de idosa, vemos Sophie de novo em sua
forma mais envelhecida.
Nos momentos finais, depois de Sophie perceber que se apaixonou por
Howl e decidir salvá-lo, ela deve recuperar o coração do amado, que se
encontra nas mãos da Bruxa da Terra Abandonada. “Você realmente deseja
isto?” é a pergunta da bruxa para Sophie. Ao responder que sim, ela consegue
devolver o coração a Howl e salvá-lo do pacto que tinha com Calcifer, que
aos poucos o consumia.
É nesses movimentos entre a Sophie jovem e a Sophie velha que vemos os
desdobramentos de seu desenvolvimento nada linear. É possível entender
esses breves momentos de transformação para a Sophie jovem como
pequenas manifestações do si-mesmo na consciência: neles, podemos ver sua
determinação e sua força de vontade de realizar aquilo que se propõe a fazer.
Durante todo o filme, Sophie vive essa ambivalência entre insegurança e
confiança em si. É nessa constante oposição que ela movimenta seu
desenvolvimento, pouco a pouco, tornando-se mais consciente de si, de seus
sentimentos e de seus desejos.
Nas últimas cenas do filme, vemos uma Sophie jovem, com um vestido e
um chapéu diferentes, e seu cabelo, agora curto, permanece branco. Essa cena
nos mostra que, apesar de ter quebrado o feitiço e ter voltado à sua forma
original, Sophie não volta a ser exatamente como era antes, pois traz em sua
aparência características que refletem seu desenvolvimento. Seu chapéu é
simples, mas mais elaborado em sua forma, trazendo um laço como adorno.
Seu cabelo permanece branco, prova de tudo o que aprendeu e desenvolveu
como Sophie idosa.
Enquanto Chihiro, de A viagem de Chihiro, é uma menina entre a infância
e a adolescência, um pouco mimada e chorona, que precisa se virar sozinha
enfrentando uma realidade muito diferente da sua para salvar seus pais e
poder voltar para casa (FELDMAN; HIME, 2017) e Kiki, do filme O serviço
de entregas da Kiki, sai da casa de seus pais aos 13 anos para se tornar uma
bruxa, seguindo a tradição da família, tendo que se estabelecer em uma
cidade diferente e achar um ofício como bruxa, buscando o seu lugar no
mundo (LEMBO, 2017), temos aqui uma personagem mais velha e mais
madura, Sophie, que se apresenta como uma jovem responsável, mas um
tanto insegura e sem um propósito próprio, que acaba realizando uma jornada
em busca de si mesma. Nesse sentido, pode-se entender que essas três
protagonistas dos filmes do Studio Ghibli não só estão vivenciando
momentos diferentes em suas vidas, mas fazem movimentos diferentes no seu
desenvolvimento. Kiki e Chihiro se encontram entre a infância e a
adolescência e fazem um movimento de dentro para fora, na tentativa de
achar seu lugar no mundo como indivíduos. Já Sophie faz um movimento
contrário, de fora para dentro, uma vez que, por meio de suas relações e
vivências, ela foi capaz de resgatar aquilo que era importante para si,
conseguindo compreender e aceitar a si mesma e, consequentemente, suas
vontades e desejos.
Um ponto interessante é que em nenhum momento do filme foi revelado o
que realmente foi o feitiço mencionado e, assim, fica para o espectador
apenas o mais óbvio: que a bruxa transformou a jovem Sophie em uma idosa.
No entanto, olhando mais atentamente para o filme e para todas as
implicações que envolvem o feitiço, podemos imaginar algumas
possibilidades diferentes sobre a “natureza” do encanto lançado pela Bruxa
da Terra Abandonada. Este poderia ser um ato de ciúme, na tentativa de
deixar Sophie menos interessante aos olhos de Howl, mas também poderia
ser um feitiço que apenas externalizou aquilo que Sophie sentia e a forma
como agia. Quando decidiu cuidar da loja que era de seu pai, algo que
provavelmente se estenderia por toda a sua vida, Sophie se viu envolta na
responsabilidade e na maturidade que apresentava, deixando de lado suas
vontades, bem como sua juventude. Dessa forma, ao sair e acabar
conhecendo mais a si mesma, aos poucos, a protagonista foi capaz de quebrar
o feitiço.
Referências
FELDMAN, N.; HIME, F. A. A viagem de Chihiro: a jornada do feminino em busca de seu
amadurecimento. In: FORTIM, I. (Org.). Mangás, animes e a psicologia. São Paulo: Homo Ludens,
2017. p. 143-153.
FORTIM, I. (Org.). Mangás, animes e a psicologia. São Paulo: Homo Ludens, 2017.
HOUAISS, A. Minidicionário Houaiss da língua portuguesa. 4. ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010.
JUNG, C. G. Psicologia e alquimia. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1991.
______. Tipos psicológicos. Petrópolis: Vozes, 2009. (Obras Completas, v. 6).
JUNG, C. G. et al. O homem e seus símbolos. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
KAWANAMI, S. Osōji e Susuharai – A grande faxina de fim de ano. Japão em foco, [S.l.], 21 dez.
2012. Disponível em: <http://www.japaoemfoco.com/osoji-e-susuharai-as-grandes-limpezas-de-fim-
de-ano/>. Acesso em: 17 fev. 2018.
LEMBO, C. R. Serviço de entregas da Kiki: entregando a si mesma. In: FORTIM, I. (Org.). Mangás,
animes e a psicologia. São Paulo: Homo Ludens, 2017. p. 135-142.
STEIN, M. Jung: o mapa da alma. 9. ed. São Paulo: Cultrix, 2012.
STUDIO Ghibli Brasil. O Castelo Animado (resenha). [S.l.: s.n.]. [20--]. Disponível em:
<http://site.studioghibli.com.br/filmografia/o-castelo-animado/>. Acesso em: 20 nov. 2017.

1 Graduada em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Contato:
<hhi_94@hotmail.com>.
Naruto: reflexões sobre um caso clínico
Ivelise Fortim 1

BRASIL, ENCONTRA-SE NARUTO,

E
NTRE OS MANGÁS E ANIMES MAIS FAMOSOS NO
cujo mangá foi criado em 1999 por Masashi Kishimoto para a revista
Shonen Jump; a adaptação para anime foi realizada em 2002, mas só
começou a ser exibida no Brasil em 2007, primeiro pelo Cartoon Network e
depois pelo SBT, gerando uma verdadeira febre entre as crianças,
principalmente as do sexo masculino.
A narrativa conta a história de Naruto, um garoto de 12 anos que mora em
Konoha, a Vila Oculta da Folha. Ele é um jovem aprendiz de ninja que tem
lacrada dentro de si uma raposa de nove caudas, monstro folclórico japonês.
Bagunceiro e impulsivo, mas com enorme persistência e força de vontade,
Naruto quer se tornar Hokage, o líder da vila. Ele começa a ser treinado pelo
mestre Kakashi junto com seus dois outros companheiros: Sakura, garota por
quem é apaixonado, e Sasuke, ao mesmo tempo companheiro e grande rival.
A história acompanha a evolução do personagem desde sua infância até a
vida adulta, quando deverá cuidar de seus filhos.
O foco deste capítulo será a possibilidade de utilizar elementos da cultura
de massa (em especial de mangás e videogames) para promover reflexões na
psicoterapia infantil. É evidente que o material apresentado aqui pode ser
passível de diversas análises, mas optei por dar destaque ao uso dos temas
propiciados pela cultura de massa como meio de comunicação com a criança.
A princípio, não me considero uma psicoterapeuta infantil. Costumo
atender pré-adolescentes ou adolescentes, sendo raro atender crianças
pequenas. Trabalho com a abordagem da psicologia analítica e utilizo como
recurso terapêutico, além do material gráfico, o sandplay (caixa de areia).
Minha formação como psicóloga não é das mais comuns. Resumidamente,
sou coordenadora do Laboratório de Estudos de Tecnologias da Informação e
Comunicação (Janus) da Clínica Psicológica da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP) e uma área de profundo interesse meu é a
relação do ser humano com a internet e com a tecnologia. Fiz mestrado em
Antropologia, quando estudei sobre juventude e cultura de massa, tendo
escrito minha dissertação sobre jogos eletrônicos do tipo role playing games
(RPG). O contato com os jovens jogadores pesquisados despertou meu
interesse para conhecer outros temas, como histórias em quadrinhos (HQ),
universo Harry Potter, universo Senhor dos Anéis, universos de ficção
científica e cyberpunk e, especialmente, os quadrinhos e desenhos animados
japoneses, conhecidos respectivamente como mangás e animes. Além disso,
leciono no Curso Superior de Tecnologia em Jogos Digitais da PUC-SP, o
que me permitiu conhecer bastante sobre videogames.
Dattebayo, Rafael
Neste capítulo, pretendo relatar um caso de um garoto de 10 anos, cujo
apelido aqui será Rafael 2 . Essa criança foi encaminhada à psicoterapia pela
coordenadora de sua escola, pois apresentou comportamento agressivo com
os colegas. Sua mãe me procura, apreensiva com o comportamento do filho,
que já foi várias vezes chamado pela coordenação do curso para conversar
sobre sua conduta. O paciente foi atendido durante um ano.
Na primeira entrevista, apenas a mãe comparece e relata que considera a
criança “agressiva e carente”, pois busca sua atenção o tempo todo. Diz
também que o filho é “teimoso”, que grita com frequência e que não obedece
às ordens, principalmente as vindas dos pais (o garoto passa a maior parte do
tempo com a avó materna). A mãe diz que “quando a teimosia é muito
grande, o filho só obedece se apanhar”. Rafael tinha desempenho escolar
ruim em matemática, disciplina com a qual tem mais dificuldade, mas é aluno
mediano nas demais matérias. A mãe acredita que isso se deve à “preguiça”,
pois acredita que ele é inteligente e que poderia ir melhor na escola. Também
diz que acha que o filho passa tempo excessivo na internet e jogando
videogame. Como o menino passa a maior parte do tempo com a avó, a mãe
diz que não consegue controlar o uso que ele faz da tecnologia, que ele a
“engana”.
A mãe é professora de Português e trabalha em escolas estaduais e
particulares. Acabara de sair de um dos empregos porque várias amigas a
aconselharam a ficar pelo menos uma parte do dia com o filho único, já que
ela lecionava de manhã, à tarde e à noite, restando tempo para o filho apenas
nos fins de semana. Já o pai trabalha durante todo o dia e cursa pós-
graduação; assim, parte de seu tempo é dedicado ao curso, ausentando-se à
noite algumas vezes por semana. Durante a semana, o garoto frequenta a
escola e depois fica com a avó materna até que o pai chegue para ficar com
ele, à noite. A mãe relata que o pai tem o hábito de assistir à televisão e jogar
bola com o filho quando a criança insiste. Diz que o pai de Rafael é uma
pessoa muito séria e bastante reservada.
A mãe confessa que se sente culpada por não ficar mais tempo em casa
com o filho. Para compensar, criou o hábito de trazer um pequeno presente à
criança praticamente todos os dias. Assim, trazia, principalmente, brinquedos
de pequeno valor e jogos de videogame, além de balas e revistas em
quadrinhos. A mãe conta que se arrepende de ter feito isso, pois o filho
espera que ela sempre traga alguma coisa e se decepciona quando ela nega
presentes.
Rafael aparece para o primeiro atendimento. Chega vestido como um
pequeno rapper: com calças largas, um medalhão, correntes, camiseta preta e
boné. Convido-o para entrar na sala e inicio a sessão com a clássica pergunta:
“Você sabe por que sua mãe te trouxe aqui?”. Ele me responde que sabe:
acredita que os problemas da escola sejam o motivo. E se cala. Examina a
sala com interesse. Explico que a mãe está preocupada, que ali vamos
conversar sobre as coisas que o incomodam. Apresento o material disponível
para ele na sala: o cesto de brinquedos, o material gráfico (papel, lápis etc.) e
o sandplay, com suas muitas miniaturas.
Rafael diz que gosta muito de desenhar e se interessa por papel e lápis,
fazendo seu primeiro desenho. Rafael desenha em praticamente todas as
sessões de sua terapia, exceto por uma, em que dá preferência ao jogo de
areia. Realizou cerca de trinta desenhos, sendo que alguns ficaram
incompletos. Foram escolhidos para este relato apenas os desenhos que
propiciaram discussões relevantes para seu processo de psicoterapia.
O primeiro desenho que será analisado aqui é sobre Harry Potter. Demorei
a entender o que o desenho significava, mas Rafael me explicou: “É o Harry
Potter tentando agarrar o pomo de ouro. Tem as torres de Hogwarts, um outro
jogador rebatendo um balaço e o Rony e a Hermione aqui embaixo”.
Pergunto qual o seu personagem favorito no filme, e ele me diz que é o
próprio Harry Potter, mas que, na verdade, só leu o primeiro livro. Rafael
assistiu aos filmes, mas seu principal contato com o mundo dessa franquia se
dá pelo videogame, em que ele encarna o próprio Harry Potter em um jogo de
quadribol. O desenho é uma reprodução do jogo, não do filme nem do livro.
No desenho, sua versão de Potter parece estar com uma expressão
preocupada.
Conversamos, então, sobre o seu uso de videogame. Ele lista seus títulos
favoritos: Harry Potter, Naruto, Ben 10, Grand Theft Auto, Need for Speed e
Fifa Soccers. Relata que, eventualmente, troca jogos com os colegas,
variando sua quantidade de títulos. Além desses, tem mais de vinte jogos de
videogame (frutos da época em que a mãe o presenteava diariamente), mas
não joga todos com a mesma frequência.
Pergunto sobre outras atividades e Rafael relata que, além de jogar
videogame, fica bastante tempo na internet ou jogando bola, pois passa muito
tempo “sozinho” – a avó só se interessa por ele nos horários de servir as
refeições e não se importa com o que ele faz em outros momentos, desde que
não faça barulho.
Na segunda sessão, Rafael entra, senta-se e fica calado, mas em
movimento na cadeira. Parece ansioso. Pergunto o que ele deseja fazer, e ele
me diz que quer desenhar. E assim se iniciam praticamente todas as sessões
de seu atendimento.
Seu segundo desenho é o de uma pista de skate com dois skatistas e uma
bicicleta. Ele desenha um skatista famoso, Tony Hawk. Pergunto sobre a
cena e ele me diz que gosta desse skatista, mas na verdade não quer falar do
desenho. Rafael está nervoso porque foi a um passeio da escola, no qual
acabou brigando com um colega, o que resultou novamente em uma
repreensão. Repete muitas vezes o acontecido e depois se cala.
Pergunto como ele se sente. Rafael responde que está nervoso, pois
acredita que ele é quem estava certo. Fica calado por um tempo. Pergunto se
ele quer dizer algo e ele responde que não. Ao final do atendimento, diz estar
mais calmo, e eu proponho conversarmos sobre o assunto em outra sessão.
Em paralelo a isso, descubro que seu desenho é uma mistura dos cenários de
dois jogos de videogame: Mat Hoffman’s pro BMX, game em que se joga
pilotando uma bicicleta, e Tony Hawk’s, um jogo sobre skatistas.
Em outras sessões, o modo como a criança se comporta se mantém: entra,
pede papel e lápis, desenha e, a partir de então, discutimos sobre tema de sua
obra. Ressalto que, apesar de não apresentar os desenhos aqui, Rafael tem um
traçado acima da média para um garoto de sua idade, principalmente para
quem nunca teve ensino formal de desenho.
Na terceira sessão, Rafael começa desenhando um símbolo que me é
familiar: o símbolo de Konoha, a Vila Oculta da Folha. Entretanto, ele apaga
o símbolo e desenha sobre ele outro tema. O desenho que finaliza é sobre
Pokémon: uma mão libera da pokébola um pokémon inventado por ele (uma
espécie de cobra) e a outra libera um pokémon morcego, também inventado
por ele.
Nesse momento, dois pensamentos me surgem. O primeiro é a que a
criança geralmente não desenha a partir de sua própria imaginação: os
desenhos costumam se basear no que foi visto na televisão e nos videogames.
Nesse desenho, no entanto, ele começa a introduzir suas próprias
modificações, com a invenção de “novos pokémon”. Minha segunda hipótese
é a de que Rafael usa os temas da comunicação de massa para expressar seus
sentimentos durante a sessão. Portanto, seria vital que eu os conhecesse para
compreender do que ele estava falando.
Rafael me conta que desenhou novos pokémon, e peço que me explique o
desenho. “São fortes”, ele responde. Vejo que tanto o morcego quanto a
cobra têm dentes afiados: em uma análise clássica de traçado, esses itens
representariam a agressividade. Pergunto, também, onde ele assiste ao
desenho. Ele diz que assiste ao Cartoon Network sempre que pode, mas
também joga o jogo de Pokémon. Pergunto sobre o objetivo do jogo e ele diz
que é preciso capturar o maior número de monstros possível para se tornar
um mestre. Como tinha conhecimento do desenho, pergunto de qual monstro
ele gosta mais. “Do Pikachu, é claro. Quando ele se irrita, dá choque em
todos.” Penso que isso é uma metáfora de seu próprio comportamento
explosivo. Pergunto o que ele acha de Ash, o treinador de Pikachu. “Ele é
bom, legal, tem paciência com os pokémons dele e faz qualquer coisa por
eles.”
Em outra sessão, o paciente inicia um desenho – novamente, o símbolo de
Konoha, a vila de Naruto –, mas desiste dele. Ao lado, faz um desenho de
Harry Potter com a varinha – que mais parece uma espada – matando a cobra
de Lord Voldemort. A cobra parece estar voando para atacá-lo, mas um
traçado leve informa que ela foi atingida.
Questiono o que seria o primeiro desenho, o que foi apagado. Ele diz que
tentou fazer o Naruto 3 , mas não conseguiu. Conversamos, então, sobre
Harry Potter, e o paciente diz que tem muito dó dele, pois os pais morreram e
ele tem de se virar sozinho. “É difícil se virar sozinho”, afirma Rafael.
Pergunto a ele como se sente em relação aos pais. Digo que tenho a
impressão de que ele tem a mesma vivência de Potter, de ter de se virar
sozinho na vida, sem muita ajuda dos pais. Rafael concorda e diz que, pelo
menos, Potter tem amigos na escola, coisa que ele “não tem muito”. Pergunto
o motivo e a criança me diz que ninguém gosta muito dele porque ele tira
boas notas: “Dizem que eu sou nerd e eu fico chateado por isso”.
Relata que brigou na escola novamente por causa de um brinquedo, uma
varinha de Harry Potter que um amigo levou. Rafael diz que estava olhando a
varinha e um outro colega a tomou dele. Para recuperá-la e não decepcionar o
amigo, teve de brigar e bater no colega, que não queria devolvê-la. O colega,
então, quebrou a varinha e a devolveu assim para ele. Rafael acabou sendo
culpabilizado pelo colega pela quebra do brinquedo. A professora presenciou
a situação e se posicionou a favor dele, mas, ao chegar em casa, a mãe não
acreditou nele, e isso o deixou muito chateado. Pergunto por que ele acha que
a mãe não acreditou nele, e ele diz que não sabe. Pergunto sobre a postura do
pai, e ele responde que o pai não deu muita atenção ao caso e foi fazer suas
tarefas.
No atendimento com a mãe, posterior a esse último, ela relata a situação
dizendo que se irritou com o filho porque ele continuava arrumando briga na
escola. Além da disputa pela varinha, relatou que o filho brigou em um
passeio da escola, o que também a deixou irritada. Ao ser questionada sobre
sua irritação, diz: “Eu sei que criança mente. Eu sou professora, eu vejo na
escola o tempo todo”. Nesse momento, nós duas fazemos uma reflexão sobre
seu papel de mãe com relação ao filho. A mulher, então, concorda comigo
que na realidade tem se portado mais como professora do filho que como sua
mãe. Também é questionada a desconfiança da mãe em relação à sinceridade
e à honestidade da criança.
No atendimento seguinte, Rafael escolhe não desenhar e quer contar sobre
o passeio na escola. Está muito nervoso. Chora e diz que a mãe nunca
acredita nele. Diz que o pai ora acredita, ora não. Questiona se eu acredito
nele, e eu digo que sim. Começo a explorar se de alguma forma Rafael já
mentira para sua mãe, algo que explicaria a desconfiança sobre seu
comportamento. A criança reflete por um momento e diz que já foi pega
mentindo, “mas foi uma vez só”. Sente-se injustiçado. Pede para mexer no
sandplay em vez de desenhar e faz um cenário de guerra, com muitos
soldados, tanques e caminhões. Diz que tudo está em guerra, como no
programa de televisão a que assistiu.
Em outro atendimento, Rafael entra e tenta desenhar um personagem de
Duelo Shaolin. Então desiste dele, vira a folha do outro lado e começa a
desenhar pacientemente o personagem Naruto, com muitos detalhes. Naruto
está de boca cerrada, “com raiva”, como diz a criança. No alto do olho, uma
marca característica dos mangás e animes: um símbolo de quando o
personagem está com muita, muita raiva. Os cabelos de Naruto estão eriçados
e as mãos estão cerradas como se fossem dar socos.
Pergunto o que o desenho significa. Rafael me diz que é o Naruto e se cala.
Pergunto se ele sabe a história do Naruto, ele responde que sim. Eu digo que
também o conheço – para o espanto da criança – e que estava me
perguntando se, de alguma forma, o Naruto seria parecido com ele. Continuo
a conversa dizendo que eu acho que sim, pois Rafael, assim como Naruto,
explode de raiva quando é levado ao seu limite. Pergunto, então, se ele acha
que essa minha ideia faz sentido, e ele diz que sim. Questiono qual é a meta
de Naruto, ao que ele responde que é ser um Hokage, ou seja, um grande
mestre ninja. Pergunto como são os Hokage e os Jounin (mestres ninjas, que
são os professores das crianças). Ele diz que são calmos e controlados,
atacando apenas na hora certa.
“E como é o Naruto?”, pergunto. “Ele fica com raiva, ataca na hora errada
e, às vezes, estraga tudo”, ele responde. Pergunto se, com aquela fala, Rafael
não enxerga uma lição: quando se comporta com descontrole, com raiva,
como Naruto, pode acabar estragando tudo, enquanto ninjas controlados
sabem atacar na hora certa. Ele concorda.
Faço um paralelo com a vida dele, com o fato de que talvez ele sinta tanta
raiva quanto Naruto. Contudo, Rafael deveria aprender a controlar isso.
Pergunto a ele, então, o que vive na barriga de Naruto. “É a raposa-demônio”,
responde o menino. É o demônio que foi aprisionado dentro do personagem e
que pode dar a ele uma força inacreditável caso esteja se sentindo em risco ou
caso precise proteger pessoas queridas. Uma das metas de Naruto na série é,
inclusive, aprender a controlar o poder dessa poderosa raposa. Faço a
analogia de que talvez ele tenha, assim como o personagem, uma grande
força interior que ainda não aprendeu a controlar. Rafael concorda.
Na sessão seguinte, ele desenha dois ninjas lutando, seu único desenho
colorido. Pergunto se tem alguma conexão com algum desenho animado que
ele tenha visto, e ele responde que não. Pergunto se ele sabia que os ninjas
existiram de verdade, e ele fica muito interessado, pois achava que isso era
apenas “coisa de desenho”. Rafael também pergunta sobre os samurais, por
ter visto o desenho Samurai Jack. Explico simplificadamente a diferença
entre ninjas e samurais do mundo real, que existiram na história do Japão
Antigo: ninjas eram espiões que combatiam apenas quando necessário,
enquanto samurais preferiam o combate aberto com o inimigo. Pergunto se
ele conhece a ética samurai, o Bushido. Segundo ele, para ser um bom
samurai, um combatente não pode atacar com raiva. O garoto concorda: conta
que no episódio a que assistiu o samurai estava falando algo muito parecido
com isso.
Na sessão seguinte, quando chego para buscar Rafael na recepção, vejo
que ele guarda um “tesouro precioso” em suas mãos. Em vez de perguntar se
são figurinhas – reação de grande parte dos adultos –, eu exclamo: “Cards de
Naruto!”. Rafael ri com satisfação e diz: “Mãe, falei que ela conhece essas
coisas”.
Entramos na minha sala e ele diz que quer jogar com os cards. Digo que
não sei como se joga e peço para que ele me ensine. Primeiro, ele me mostra
os tipos das cartas: há as ninjas, que representam os ninjas das vilas; as
relativas às missões, ou seja, ao que o ninja deve fazer; as das técnicas ou dos
jutsu; e as dos “clientes”, ou seja, das pessoas que representam a vila. Não
questiono sua explicação e começo a perguntar o que significam os sinais em
volta das cartas – o que seriam as estrelinhas vermelhas, os kanji (caracteres
japoneses) e os números? Rafael diz que isso “não tem importância”, e
começo a perceber que, na verdade, ele não sabe jogar corretamente e está
fazendo suas próprias regras do jogo, baseadas apenas nos números de ataque
e defesa das cartas.
Ele separa uma mão de cartas para mim e uma para ele, e eu, sem entender
bem o jogo, apenas sigo suas instruções. A única regra que entendo é que, de
alguma forma, as cartas se enfrentam e, como no jogo Super Trunfo, de
minha infância, o objetivo consiste em comparar atributos das cartas: a que
tiver o menor atributo perde. Basicamente, podíamos escolher um ninja e um
jutsu (golpe) e comparar os atributos das cartas. A menor seria
desclassificada e ficaria de fora, de modo que fosse comprada outra carta para
ficar no seu lugar. O jogo se desenvolve durante os 50 minutos da sessão,
com uma troca incessante de cartas, que eu tento acompanhar, mas na
verdade só sigo as ordens de Rafael: “Tira esta, põe aquela! Eu te dou este
jutsu e você se defende com este! Aí seu ninja é maior que o meu e o meu cai
fora!”. Quase no fim da sessão, as cartas da minha mão acabam. “Você
ganhou o jogo!”, declara Rafael.
Como parte de uma das sessões seguintes, proponho a ele a construção de
um mangá. Rafael aceita a atividade com interesse e começa a dobrar as
folhas e a desenhar do lado inverso (como os mangás japoneses, que abrem
para o lado direito). Desenha dois ninjas em luta, mas tem dificuldade de
pensar em uma história. Proponho que a história seja sobre um ninja com
dificuldade para controlar sua raiva. A criança ri, acha o argumento
interessante, mas mesmo assim não consegue pensar em um desenrolar da
história para a produção do quadrinho. Pensa em professores ninjas mais
velhos, mas deixa a atividade incompleta.
Em uma de suas últimas sessões, Rafael desenha detalhadamente Kakashi,
professor de Naruto, que tem, na primeira temporada do desenho, atitude
calma e controlada. Conversamos sobre Kakashi e Rafael diz que o professor
é justo e está sempre junto de seus alunos, não permite que injustiças
aconteçam e está preparado para ajudar quando for preciso. Diz que agora
esse é seu personagem favorito, ao lado de Naruto. Do meu ponto de vista
como psicóloga, percebo que a criança pode ter passado a perceber outros
modelos de identificação nessa animação. Kakashi é um personagem mais
controlado, mas, mesmo assim, não deixa de ser um ninja e é um modelo
importante para Naruto aprender a se controlar.
Na última sessão, Rafael desenha um Bob Esponja sorridente, com o qual
me presenteia, levando consigo os desenhos anteriores.
Síntese do caso
Inicialmente, o processo terapêutico de Rafael se constitui pelo
fortalecimento do vínculo entre terapeuta e criança. O manejo das sessões foi
mediado com auxílio de produções gráficas realizadas por ele. Esse
instrumento possibilitou a investigação de conteúdos intrapsíquicos e
propiciou a emergência de conflitos e vivências importantes. Rafael tem
prazer em desenhar, e essa atividade mostrou-se uma potente forma de
comunicação entre nós.
Seus desenhos foram predominantemente de personagens vindos dos jogos
de videogame que Rafael jogava durante muitas horas. Ele fazia os desenhos
e, quando era inquirido sobre os conteúdos destes, mostrava-se envolvido na
atividade. Em certa ocasião, verbalizou que eu o “entendia”, já que discorria
com propriedade sobre os temas e heróis mencionados por ele. Esse manejo
se mostrou extremamente positivo no processo terapêutico de Rafael, que, ao
ativar essa possibilidade de identificação, sentiu-se compreendido e acolhido.
Um aspecto central dos temas abordados foi seu comportamento agressivo
e as consequências desse tipo de comportamento. A abordagem dessa questão
foi cuidadosamente trabalhada. Aqui trago uma breve sequência do que já foi
mencionado, mas que ilustra um momento crucial desse encontro analítico:
eu lembro Rafael sobre o menino/herói Naruto, que tem dentro de si uma
raposa e cujo maior desafio é, precisamente, dominar a força desse demônio,
já que este, no contexto da história em questão, causa pavor aos demais
quando se manifesta. Da mesma maneira que o personagem precisava
dominar a raposa, Rafael devia dominar sua raiva. Essa analogia ilustra que,
assim como os ninjas atacam na hora certa, ele também pode aprender a
controlar sua raiva e saber o melhor momento para expressá-la; a analogia
serve, também, para mostrar que ele pode seguir o Bushido, ética samurai que
ensina que “um samurai não deve atacar com raiva” e que esse é o verdadeiro
caminho do combatente. Esse universo lúdico, repleto de fantasia, é viável e
tem enorme sentido para o garoto. Ele conhece o menino/herói Naruto e pode
também se reconhecer por meio dessa perspectiva tão fantástica que espelha
vivências que ele tem.
Durante o processo de análise, com a emergência de conflitos e a gradativa
integração de alguns conteúdos, um novo padrão vivencial é observado:
Rafael pôde se lançar a uma atividade criativa. Ele pediu e ganhou de
presente um celular que fotografa e filma. Rafael criou um enredo, mobilizou
seus familiares e fez com que seus primos atuassem em seu “filme”.
A mãe de Rafael se defrontou com a discriminação do duplo papel de
mãe/professora que exercia e conseguiu abrir mão de sua tripla jornada de
trabalho para ficar mais tempo com o filho.
O final do processo se deu numa sessão em que Rafael desenhou um
personagem que é um professor. O fechamento desse ciclo trouxe um
personagem que simboliza a potência, a capacidade de aprender e de ensinar;
uma figura que remete à sabedoria e ao processo de aprendizagem.
O menino, antes agressivo e inseguro, ganhou confiança a partir do vínculo
com a terapeuta, que o ouvia e compreendia. Talvez tenha se sentido acolhido
pela primeira vez, sendo capaz de falar sobre seus interesses – e
compreendendo o quanto estes o espelhavam – sem ser julgado por seus pais
ou colegas. Por meio das interpretações e conversas com sua psicoterapeuta,
passou a entender com mais propriedade seu processo. E, dentro de seus
limites, agradeceu-me ao permitir que o vencesse numa batalha de cards,
tendo manipulando a partida para que tivesse esse desfecho.
Ao final do processo, com o desenho de um mestre e de uma figura feliz e
sorridente, Rafael parece mostrar a integração dos conteúdos discutidos. E
não apenas isso: sente-se mais seguro para trilhar seu caminho entre a
realidade e a fantasia, pois, afinal, descobriu que a magia não aparece
somente nas histórias de mangás e animes.

1 Psicologa, Doutora em Psicologia Clínica e professora dos cursos de Psicologia e Jogos Digitais da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Contato: ivelise@homoludens.com.br

2 Nome escolhido pelo próprio paciente.

3 Rafael assistiu somente à primeira temporada do anime, portanto conhece Naruto apenas como
criança e não como adolescente.
As memórias de Marnie
Maria Eugênia de Almeida Fedewicz 1

STUDIO GHIBLI, AS MEMÓRIAS DE MARNIE

Ú
LTIMO FILME PRODUZIDO PELO
(Omoide no Marnie, 2014) é uma produção de Hirosama
Yonebayashi, sendo possivelmente a obra de encerramento de uns dos
mais conhecidos estúdios de animação japonesa. A narrativa começa com
uma menina de vida interior muito rica, Anna Sasaki, de 12 anos, residente
de Sapporo, uma cidade cosmopolita do Japão. Anna, até então, vive em seu
próprio mundo e tem muito medo – mas também muito desejo – de
compartilhar seus momentos com outras crianças. Ela é uma menina muito
talentosa para o desenho, tendo a tendência de desenhar situações de alegria e
interação entre as pessoas, porém seu isolamento a torna fechada e lhe dá um
ar de quem carrega uma grande tristeza. A situação-chave do filme começa
quando Anna tem um acesso de asma e sua mãe adotiva, mediante
recomendação do médico que vem atendê-la, envia a menina a seus parentes
– um casal muito simpático, sr. e sra. Oiwa, moradores de uma aldeia de
Kushiro – para um período de recuperação.
É em meio aos magníficos campos do norte de Hokkaido, cujos traços de
animação renderam uma indicação do Studio Ghibli ao Oscar em 2016 na
categoria de melhor animação (longa-metragem), que Anna vai se deparando
com elementos, acontecimentos e personagens que lhe transmitem uma
estranha familiaridade, quase fantasmagórica. Ela fará, então, um profundo
mergulho nas imagens de seu próprio mundo interior, ao qual ninguém além
dela mesma tem acesso. Anna ilustra bem um tema caro à psicologia
analítica, uma vez que esse contato com as imagens que habitam seu interior
ganha voz e corpo, e ela se vê convocada a uma trajetória fascinante. Apesar
de se tratar da história de uma menina comum, alguém como todos nós, Anna
entra em um processo heroico. Sabe-se por Campbell (2001, 1995) que a
jornada do herói é um processo muito antigo, presente nas histórias mais
íntimas da humanidade, revelando dilemas pertencentes ao drama humano,
com os quais cada um se depara de modo único; além disso, expressa a
urgente busca de sentido na existência. A história de Anna é rica em
símbolos, que ligam sua história pessoal ao enfrentamento de temas como
tristeza, solidão e morte, inerentes à trajetória humana; portanto, aqui lançou-
se mão de uma orientação de Campbell (1995) para uma maior compreensão
e vivência do contato com essas imagens recônditas que atravessam a vida
pessoal de Anna. O autor sugere que há um padrão nas aventuras mitológicas
dos heróis, ao qual deu o nome de Monomito para explicar o trajeto partida –
iniciação – retorno.
Um herói vindo do mundo cotidiano se aventura numa região de prodígios sobrenaturais; ali
encontra fabulosas forças e obtém uma vitória decisiva; o herói retorna de sua misteriosa
aventura com o poder de trazer benefícios aos seus semelhantes (CAMPBELL, 1995, p. 36).
A partida
O verdadeiro ponto de chamada para a aventura de Anna é o momento em
que ela pega um atalho para levar um postal para sua mãe adotiva. Ela foge
das pessoas que vinham conversar e corre para tão longe que tomba dos
degraus da escada que leva para a margem do mar. Ela encontra, logo na
outra margem, uma mansão que a fascina de modo irresistível. Campbell
(1995) comenta que é nesse estágio que será encontrada a figura que
personifica o guia da jornada heroica. Anna é tomada pelo fascínio por aquela
mansão e fica tanto tempo dentro dela que adormece ali mesmo. A maré sobe
e ela fica sem saber como voltar para a outra margem. Só consegue voltar
porque, estranhamente, Toichi, um velho pescador que não fala nada com
ninguém, simplesmente aparece para buscá-la e a ajuda com seu barco. A
mansão em questão é uma casa abandonada que figura nas histórias de terror
da população local, sendo considerada um local assombrado.
Nesse ponto, temos imagens preciosas: o mar é um dos símbolos mais
ricos e não está nessa história à toa. Chevalier e Gheerbrant (1990) colocam o
mar como símbolo da dinâmica da vida, um lugar de transformação,
nascimento, morte e renascimento. Por apresentar movimento de águas, os
autores associam o mar a um estado transitório, uterino, pois, assim como o
útero materno gesta uma vida em desenvolvimento embrionário, o mar
anuncia uma possibilidade de conteúdos que ainda estão inconscientes para o
indivíduo; esses conteúdos podem vir à tona e ser elaborados ou não.
Anna não sabe o porquê de seu fascínio. Ela não tem consciência do que a
chama, simplesmente atende o chamado de ir até a mansão. Esse movimento
de ida é fundamental, pois Anna percebe algo sobre si mesma, se vê
mergulhada e perdida nessas águas inconscientes, adormecida a ponto de se
ver impedida de voltar para a convivência com os demais – situação que já
vinha ocorrendo há muito tempo, segundo o que o filme dá a entender. Ela
também tem um encontro importante com uma figura protetora, Toichi, que a
ajuda a retornar do estado de torpor, de modo que ela não se perde no
arrebatamento que sentiu.
Toichi garante a Anna seu barco, que permite que ela faça a passagem de
uma margem para outra com segurança, é como um amuleto protetor sem o
qual a aventura seria muito perigosa ou mesmo impossível. Campbell (1995)
cita o barqueiro como imagem frequente do ajudante com o sobrenatural. À
semelhança de Hermes – deus grego mensageiro e viajante incumbido de
levar as almas dos mortos a Caronte, o barqueiro dos ínferos (Hades) –, tem
uma relação comunicativa estreita com o submundo; assemelha-se, também,
a Tot, o deus-Íbis que também se manifesta como deus-babuíno, divindade
egípcia da Lua cuja junção com Hermes é associada à composição de Hermes
Trimegisto, sábio da antiguidade egípcia e da alquimia, base da antiga
maçonaria, que representava a possibilidade de investigar os segredos de
transmutação da alma em sua forma mais valiosa, conforme afirma Shah
(1977). Por trás dessa figura protetora e orientadora nessa passagem de
comunicação com o inconsciente, de onde escapa a explicação racional à
Anna, estão esses temas míticos.
Essa figura representa o poder benigno e protetor do destino. A fantasia é uma garantia – uma
promessa de que a paz do Paraíso, conhecida pela primeira vez no interior do útero materno,
não se perderá, de que ela suporta o presente e está no futuro e no passado (é tanto ômega
quanto alfa) e de que, embora a onipotência possa parecer ameaçada pela passagem de limiares
e pelos despertares da vida, o poder protetor está, para todo o sempre, presente ao santuário do
coração [...] Basta saber e confiar, e os guardiões intemporais surgirão. Tendo respondido ao
seu próprio chamado e prosseguido corajosamente conforme se desenrolam as consequências, o
herói encontra todas as forças do inconsciente do seu lado (CAMPBELL, 1995, p. 76).

Embora Campbell não fosse junguiano, o inconsciente é utilizado aqui com


referência à psicologia analítica de Jung, a partir da qual ele vai discorrer em
suas conferências (JUNG, 2011) sobre a estrutura do psiquismo humano, na
qual estão inclusos processos de natureza inatingível, isto é, o sujeito não os
contém na consciência, não os retém em seu testemunho e os domina muito
pouco, ou absolutamente nada, pela vontade. É por isso que Jung afirma na
referida obra a impossibilidade de serem diretamente observáveis, de modo
que as pessoas têm acesso somente aos produtos do inconsciente que
interferem sobre o limiar da consciência. Uma instância do inconsciente, diz
o autor, tem natureza pessoal, é produto de vivências do indivíduo e forma o
que Jung nomeou como inconsciente pessoal; a outra instância é ainda mais
fundante, de origem totalmente misteriosa, ultrapassa qualquer vivência
pessoal e reside em expressões coletivas, isto é, da humanidade em geral.
Essa parte foi nomeada como inconsciente coletivo e encerra em si os temas
míticos mencionados anteriormente; como exemplo, temos o tema do
guardião na forma de barqueiro, que aparece na produção anímica em
questão (a nível microcósmico) ou no mito grego como Hermes e no mito
egípcio como Tot, assim como a própria figura do herói de Campbell (a nível
macrocósmico). São temas que se repetem na história da humanidade, nas
mais variadas formas de expressão, e que encenam o drama humano de forma
tão rica e inesgotável de sentidos que extrapolam os limites meramente
racionais.
A iniciação
Na noite em que encontrou a mansão fascinante, Anna teve um sonho:
nele, estava atravessando aquela margem, sob uma passagem neblinada, e
avistava a janela do quarto de cima da mansão, iluminado; por ela, via uma
menina de cabelos loiros sendo penteada por uma mulher mais velha. Na
noite seguinte, teve outro sonho, mas nesse a maré estava rasa, ao contrário
do ocorrido no primeiro sonho. No segundo sonho, Anna consegue enxergar
mais ainda o interior da casa e vê a menina se levantando bruscamente da
cadeira, rebelando-se contra a submissão dolorosa do pentear brutal de seus
cabelos. Percebe-se que esse sonho e contato com a mansão misteriosa lhe
dotam de uma energia mobilizadora importante: o sonho reflete uma atitude
de Anna de se submeter ao que acha doloroso para ela por parte dos outros,
seja indo a um festival a pedido da tia quando tem a necessidade de estar
sozinha consigo mesma ou quando outra menina lhe arranca das mãos o
papelzinho onde teria escrito seu desejo (“Desejo ter uma vida normal todos
os dias”) e o lê. Ela trai a si mesma nessas pequenas atitudes de submissão
quando seu interior solicita atitudes contrárias, e isso a fere; entretanto, esse
aspecto ainda não é elaborado por Anna, que consegue se desvencilhar, na
noite do festival mencionado, de uma situação em que se sentiu exposta. A
menina o faz de maneira explosiva, rebelde e impulsiva, resultando no
mesmo insulto que sentiu quando foi colocado à vista que se sentia diferente
das outras pessoas, sem lugar. De qualquer forma, Anna sai correndo após o
embate e vai até o mar, onde se depara com o barco de Toichi, iluminado por
uma vela, como se estivesse esperando a garota para atravessar até a mansão.
O sonho é um instrumento de transformação muito caro à psicologia
analítica, mas o que interessa nesse momento da história é que, com o apoio
de Hopcke (2011), o sonho promove o contato do sujeito com experiências e
percepções do essencialmente humano. Podemos nos basear nesse autor para
entender que Jung considerava o inconsciente coletivo como fonte psíquica
de energia interior mobilizadora e transformadora do sonhador, com
consequências tidas por este como negativas ou positivas. Contudo,
considera-se que o crescimento psicológico se dá na medida em que se
constrói uma ponte de ligação entre os conteúdos misteriosos que se
encontram na trajetória e a outra margem, o mundo em que se vive
cotidianamente. Anna começa a fazer essa passagem entre mundos com
frequência. Ela sofre transformações: a menina que se levanta com rebeldia
frente à imposição dolorosa é um aspecto dela mesma que se rebela.
Observemos que Anna consegue se transformar somente quando estabelece
um diálogo com os conteúdos inconscientes.
Contudo, a partir do momento em que Anna toma o barco de Toichi a
realidade concreta e a fantasia se misturam. Ela se encontra com Marnie, a
menina que vira em sonhos. Essa figura aparece com roupa de dormir e há
uma meia-lua ao fundo do cenário; exercendo grande encantamento sobre
Anna, Marnie atua como uma influência carinhosa e aproximativa para a
garota. Esse encontro não dura muito tempo, mas é intenso o suficiente para
selarem um pacto de que a ligação entre elas seria um segredo entre as duas,
pois a descoberta das pessoas “arruinaria tudo”.
Marnie é dotada de elementos associados ao feminino, expressos por
características lunares ligadas ao sono e às águas, conforme atestam
Chevalier e Gheerbrant (1990) sobre os mitos e contos de fadas que
estudaram. A partir destes, descobriram que esse aspecto do feminino evoca
temas de renascimento, gestação e fechamento de ciclo; mesmo seu nome
tem raízes no mar. A fase da Lua que acompanha ambas as meninas nesse
encontro é a minguante, quando a luz da Lua mingua, isto é, o ciclo de quatro
fases está se fechando, dando entrada para mais uma lua nova. A cor azul é a
que mais se destaca nesse momento, é a cor que preenche a noite iluminada
pela luz refletida nessa lua e tem, para os supracitados autores, a expressão de
ser a mais profunda das cores; por isso, tem seu simbolismo ligado ao vazio,
bem como à transparência, dando uma qualidade atenuante ao ambiente.
Marnie tem uma personalidade de entrega à vida, toma atitudes com
segurança pessoal e exerce um efeito apaziguador sobre Anna por sua calma
em conhecê-la (“Quero saber tantas coisas sobre ti, mas quero descobrir
lentamente [...], por mim, com o passar do tempo”); Anna, por sua vez, tem
personalidade densa e introspectiva e muito medo de contato com o próximo.
Assim como as fases da Lua, esse encontro e os posteriores têm um efeito
transformador sobre a personalidade de Anna, dotando-a cada vez mais das
qualidades que a figura de Marnie traz e exerce sobre ela. Há uma
flexibilidade maior entre o mostrar-se ao mundo externo e o recolher-se para
dentro do mundo interior. Cecília Meireles descreve bem o contexto desse
símbolo em seu poema “Lua adversa”:
Tenho fases como a lua.
Fases de andar escondida,
Fases de vir para a rua...
Perdição da minha vida!
Perdição da vida minha!
Tenho fases de ser tua,
Tenho outras de ser sozinha.
Fases que vão e vêm,
No secreto calendário
Que um astrólogo arbitrário
Inventou para meu uso.
(MEIRELES, 1942, p. 232-233)
Marnie, que é um aspecto muito vivo no interior de Anna, vai sendo
transformada, humanizada, parece que vai adquirindo certa densidade por
meio da interação com Anna. A vivência de passar por caminhos sombrios
precisa ser enfrentada por Anna, como a noção distorcida de ser um peso para
sua mãe adotiva, de que esta estivesse com ela somente por obrigação. Com
os tempos no charco de Kushiro, com Marnie e os tios Oiwa, Anna vai
conseguindo elaborar a dor da perda da mãe e da avó biológicas, vivida por
ela em sua tenra infância como abandono. Por meio da sensibilidade,
principalmente de Marnie, um aspecto seu, e dos tios, que a acolheram
amorosamente, foi despertada em Anna a possibilidade de se apropriar da
própria história. Inicialmente, é um contato difícil, o afeto e o amor dos Oiwa
eram uma realidade diferente da que Anna vivia interiormente. Foi preciso
entrar em contato com Marnie para que Anna pudesse incorporar e entender a
proximidade com o outro de forma calorosa; sem Marnie, essa tarefa teria
sido muito mais árdua, talvez impossível.
Anna tem de encontrar recursos dentro de si, como a capacidade de
sedução pelo feminino atraente, que atrai admiração e valor sobre si, bem
como aguentar o aspecto que traz responsabilidades na relação com o outro,
na medida em que precisa se sentir digna de dar e receber. Esse caminho
traçado é como se Anna entrasse no domínio de Benten, a deusa japonesa do
amor e das águas, que está entre os Sete Deuses da Sorte e da Fortuna. De
fato, a história de Benten tem muito a ver com Anna.
Na tradição japonesa, diz-se que, em tempos antigos, morava onde hoje é o
lago Biwa um dragão que devorava as crianças da região, conforme conta
Seto (2000). Um dia, Benten ouve o lamento de parentes desesperados pela
perda de suas crianças. A deusa promete resolver a situação dos povos da
região que tinham perdido seus filhos na estação das flores, quando o dragão
saía. Contudo, a deusa vê que o dragão mora em uma caverna muito profunda
e que sua crueldade é oriunda de uma solidão que nem os raios de Amaterasu
Omikami, a deusa-Sol, alcançavam. Benten observa que os homens
desprezam os dragões desde tempos remotos, e esse dragão fora condenado
ao isolamento. A deusa, então, senta-se sobre uma nuvem um pouco acima do
local onde o dragão mora e toca em seu biwa (o bandolim japonês) uma
música tão maravilhosa e sagrada que apazigua as águas aturdidas pela vinda
revoltosa do dragão. Ele fica maravilhado, a música desperta flores aquáticas
das mais diversas espécies e juntam-se revoadas e mais revoadas de pássaros,
que deixam cair uma chuva de pétalas sobre a deusa e o dragão. Benten
encarna o aspecto divino da compaixão frente ao dragão da solidão, casando-
se com ele e lhe atribuindo o status de deus das águas e do mar.
De modo semelhante, Anna vai olhando cada vez mais para essa solidão
dolorosa que sente; vai conseguindo, na relação com amigos seletos com
quem se sente mais à vontade para expressar sua necessidade de calma na
interação, enxergar o quanto estava depositando de sua dor na realidade
externa, o que a impedia, muitas vezes, de receber a amizade genuína que lhe
era por vezes proposta. Esse caminho foi realizado por ela aos poucos,
quando foi se permitindo ter compaixão para consigo mesma, para com os
aspectos que não entendia dentro de si. Com esses recursos de cuidado para
consigo mesma, ela começa a entrar em contato com seu cotidiano com mais
vida.
Quando consegue internalizar os aspectos de Marnie, Anna se aprofunda
em uma nova descoberta. Agora ela consegue discriminar de onde vem, em
suas vivências, a solidão que sentia e pode compreendê-la um pouco mais a
fundo. Mais aberta para o mundo, Anna encontra um fragmento que une
Marnie à sua vida, mais especificamente as histórias transgeracionais
(passadas de avó para mãe, de mãe para filha e de avó para neta) relacionadas
a essa personagem. Por trás dessa história de família estavam três gerações de
mulheres, principalmente a da avó, que sofriam experiências de abandono e
desproteção. Marnie, a despeito de ser uma imagem interior de Anna, é
verdadeira, tem força transformadora e possibilita que haja uma nova
discriminação entre o que é dela, Anna, e o que vem do padrão familiar que
gera uma sequência de fechamento para o mundo, o sentimento de
inadequação, uma relação de se sentir invadida pelo outro; todas essas são
dimensões que precisam ser elaboradas. Jung (2011) aponta que as questões
familiares afetam os membros das famílias das mais variadas formas. Porém,
apesar de essas questões serem vividas de forma única por cada um dos
membros, os padrões temáticos envolvem todos eles, podendo se repetir ao
longo das gerações. É preciso todo um trabalho interior para ter consciência
de processos como este.
Cavalli (2014) demonstra em seus atendimentos a importância do afeto da
mãe por seu bebê, o que permite sustentar uma experiência interna que lhe dê
recursos e contornos para suportar experiências difíceis e dolorosas, como a
sensação que o bebê tem quando não tem (ou perde) essa sustentação uma
série de vezes. Como a autora afirma, a criança ainda está estruturando a
noção de si mesma, e a perda dessa conexão emocional com a mãe (que
inclui seu olhar mesclado aos cuidados físicos, que são importantes) é a perda
da sustentação de si mesma; isto é, o bebê se depara com a experiência de
estar caindo indefinidamente ou de estar se desintegrando. O holding materno
(WINNICOTT apud CAVALLI, 2014) protege a criança dessa ferida
estrutural, sentida como abandono, e tem interferência no processo de
desenvolvimento, até nos movimentos do bebê de separação, considerados
saudáveis quando ele suporta essa experiência – e é importante que o faça.
Para se defender dessa experiência desintegradora, o bebê cresce se apegando
a uma experiência que sirva como substituta daquele holding perdido, pois
este sustenta a noção de um “eu”, de um “dentro” preservado do “fora” e é a
partir dele que se tem a experiência de integração. O interessante é que há
uma cena em que Anna, pequenina, segura Marnie em forma de boneca; ela
havia acabado de perder sua avó, que adoecera um ano após a morte da mãe
de Anna. É como se a menina precisasse se agarrar a Marnie para conseguir
se sustentar diante da situação penosa de perda.
Pode parecer estranho, mas quando somos bebês e nossa mãe nos alimenta
e nos olha como se fôssemos a coisa mais linda do mundo, ela está nos dando
um grande amparo interno. O abraço amoroso de uma mãe oferece um
contorno para as experiências do bebezinho, tanto para as felizes quanto – e
principalmente – para as desagradáveis. Os recém-nascidos ainda não sabem
quem são eles mesmos. É por isso que a cientista Cavalli, 2014 vai dizer que
o bebê se experimenta a partir de suas experiências físicas, ou seja, se ele
sente fome, por exemplo, ele não sente fome, ele é a fome. É muito diferente.
Apenas sentir fome é mais fácil do que a angústia de ser um buraco vazio. Se
o bebê sente isso e não tem como ter o contorno materno de alguém, como
ele fica? Com um vazio terrível. Percebe-se como as mães são importantes!
A relação entre quem cumpre a função materna e quem cumpre a função
paterna é fundamental. Essa experiência é que vai permitir que a criança entre
em contato com o simbólico; esse relacionamento, segundo Kiehl (2016), se
estende à família, à classe social, à nação. A família, diz Kiehl, passa, de
forma velada ou não, sua noção e experiências sobre a vida, o que podemos
verificar na relação entre a avó de Anna e a mãe desta: ambas estão enredadas
no sentimento de abandono, do não dar conta de si mesmas, de modo que
entendem que é preciso manter as aparências a fim de evitar essa dor. O
mesmo acontece com Anna, mas ela se protege a partir do enclausuramento
em si mesma. Trata-se de um trauma transgeracional. Para resolver essa
situação traumática, Anna deverá integrar essa experiência dolorosa na
própria identidade, apropriando-se dela; esse é o recurso usado por Cavalli
(2012) para o tratamento de pacientes com esse tipo de trauma. Somente
assim Anna poderá se libertar dele, porém trata-se de uma tarefa realmente
heroica; cada ser humano tem um sistema psicológico (assim como existe o
sistema biológico) autorregulador que o protege. A experiência traumática
equivale a um ataque do organismo a si mesmo, como meio de defesa, à
semelhança do sistema biológico em caso de doenças autoimunes. É como se
Anna se defendesse do mundo externo e hostil e fosse viver no próprio
mundo, de fantasia; entretanto, a possibilidade de cura está justamente no
relacionamento com o mundo externo, visto como hostil, dada a experiência
traumática que tem forte influência sobre ela.
Cavalli (2012) dá o nome de fantasmas para essas questões
transgeracionais que se repetem; se observarmos com atenção, não é à toa
que Marnie aparece como um fantasma com conteúdos da avó materna de
Anna. Esta ainda precisa de recursos para se separar dessa imagem carregada
de afeto – a avó e, consequentemente, a mãe –, para que possa, enfim, se
relacionar com o mundo. Como Anna faz parte da terceira geração, isso é
ainda mais dificultoso pelo fato de que, ainda de acordo com a autora, ela terá
de dar sentido a uma parte da história que não viveu (a história da sua avó),
mas que foi passada a ela pela vivência familiar. Anna vai criando
significados para Marnie e, ao mesmo tempo, vai ficando cada vez mais
disponível para se abrir à vida, organizando um confuso estado de angústia.
Ela vai montando a história de sua avó (e a sua própria!) e lhe dando sentido
até que tem acesso, por fim, à história completa da vivência traumática da
avó.
Gambini (2011) tem uma forma interessante de explicar que dentro de nós
há algo como personagens que encenam a nossa vivência do drama humano,
havendo uma necessidade imperiosa na alma humana de se relacionar com
esses personagens interiores, mesmo que alguns deles tenham por referencial
uma pessoa – seja ela concreta ou não; sempre é possível conversar com o
que está vivo em nós. É por esse motivo que Marnie está colocada aqui como
uma imagem de dentro de Anna, com quem ela conversa em um cenário
simbólico: quando se aprofunda em sua solidão e em sua tristeza, Anna se
depara com a raiva que sente pelo abandono, muito comum em processos de
luto em elaboração. A morte da avó e dos pais lhe soa como traição por estes
terem deixado Anna sozinha. É preciso que ela tenha um diálogo com
Marnie, que é a conversa com aquele recurso que se julgou perdido com a
morte dos pais e, principalmente, da avó, que ficou com a menina um ano
após a morte do casal.
Marnie, quando aparece com a idade de Anna, encarna também o pedido
de perdão da “Manie-avó” por tê-la deixado aos cuidados de terceiros, o que
foi experimentado por Anna como abandono. Na verdade, a avó de Anna
ficou muito doente e fez o melhor que pôde para cuidar da menina, mesmo
que fosse preciso deixá-la. Essa conversa se inicia com uma forte ventania
que arrasta as águas do mar, que quase engolem Anna, refletindo seu estado
emocional. Com o perdão, o vento e as águas do mar se acalmam. Anna diz
que ama Marnie e que sempre se lembrará dela. O diálogo com essas imagens
é poderoso e apazigua não apenas momentaneamente o afogamento de Anna
na raiva que sentia do abandono – algo que também descreve a história do
sentimento de sua mãe –, mas evoca nela uma profunda compreensão e
mudança de atitude.
O retorno
Vi na solidão um silêncio de concha (BARROS, 2011, p. 6). O amor jamais acaba. Mas,
havendo profecias, desaparecerão; havendo línguas, cessarão; havendo ciência, passará. Porque
em parte conhecemos e em parte profetizamos. Quando, porém, vier o que é perfeito, então o
que o é em parte será aniquilado. [...] Porque agora vemos como em espelho, obscuramente, e
então veremos face a face; agora conheço em parte, e então conhecerei como sou conhecido
(CORÍNTIOS 13 apud DRUMMOND, 1991, p. 18).

Vê-se que, ao final do filme, Anna está transformada. Sua face se mostra
mais suavizada, como que se ela tivesse tirado um fardo de suas costas,
conseguindo, inclusive, sorrir e estabelecer uma conexão interpessoal,
posicionando-se de forma mais ativa. É nesse momento que ela se encontra
preparada para ouvir o que acontecera a seus pais e a sua avó: ela está firme,
consegue aguentar a história e a ouve com compaixão e gratidão. Anna teve
de transcender um estado de solidão e separação muito profundas, ao qual
Gambini (2011) se refere como solidão psicológica, que é “não merecer que
outra pessoa faça o esforço de nos conhecer” (p. 185). Após isso, ela também
está firme o suficiente para uma relação de troca com a mãe adotiva, a quem
chamava de “tia”. Anna consegue estar aberta para abraçá-la com ternura e
estabelecer com ela uma relação de mãe e filha.
Anna é uma heroína: a tarefa de diferenciar o que pertencia às histórias da
avó e da mãe em relação à própria história foi difícil, e a garota foi muito
corajosa no caminho enfrentado. Ela conseguiu dar um sentido para a grande
dor que carregava quando passou a dialogar com a imagem mais profunda de
seu relacionamento, a avó; há algo como um fio que une três tecidos (as três
gerações) e as coloca nos eixos históricos. Sentimentos difíceis de perda,
permeados nos fantasmas da avó e da mãe, precisavam ser tolerados, mas
junto desse aspecto Anna pôde descobrir o amor e a compaixão por (e nessas)
duas figuras. Ela passa a saber sobre si mesma e sobre seus sentimentos e
ganha firmeza e força também para o amor, pois conseguiu amar a si mesma
no final. É importante ressaltar que ela só consegue dar o passo final com
ajuda – sozinha, Anna provavelmente ainda estaria presa; ela contou com a
ajuda de personagens fundamentais, como a amiga de sua avó que serve de
substituta para lhe passar a história organizada dessa menina (Marnie) que
sofreu, mas tinha uma enorme capacidade de manter a chama da vida diante
das dificuldades, além de ter um grande coração, dando, assim, representação
ao irrepresentável, como coloca Cavalli (2012) ao se referir a seu trabalho
como psicóloga.
Referências
BARROS, M. Escritos em verbal de ave. São Paulo: Leya, 2011.
CAMPBELL, J. O herói de mil faces. São Paulo: Cultrix, 1995.
______. O poder do mito. Entrevistas com Bill Moyers, organização de Betty Sue Flowers, tradução de
Carlos Felipe Moisés. 19. ed. São Paulo: Palas Athena: 2001.
CAVALLI, A. Transgenerational transmission of indigestible facts: from trauma, deadly ghosts and
mental voids to meaning-making interpretations. Journal of Analytical Psychology, London, v. 57, n.
5, p. 597-614, 2012.
______. Clinging, gripping, holding, containment: reflections on a survival reflex and the development
of a capacity to separate. Journal of Analytical Psychology, London, v. 59, p. 548-565, 2014.
CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos,
formas, figuras, cores, números. Tradução de Vera da Costa e Silva. 3. ed. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1990.
DRUMMOND, H. O dom supremo. Tradução de Paulo Coelho. Rio de Janeiro: Rocco, 1991.
GAMBINI, R. A voz e o tempo: reflexões para jovens terapeutas. 2. ed. São Paulo: Ateliê Editorial,
2011.
HOPCKE, R. H. Guia para a obra completa de C. G. Jung. Petrópolis: Vozes, 2011.
JUNG, C. G. A vida simbólica. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 2011. (Obra Completa, v. 18/1).
KIEHL, E. ‘You were not born here, so you are classless, you are free!’: social class and cultural
complex in analysis. Journal of Analytical Psychology, London, v. 61, n. 4, p. 465-280, 2016.
MEIRELES, C. Vaga música. Rio de Janeiro: Pongetti, 1942.
OMOIDE no Marnie. Direção: Hiromasa Yonebayashi. Produção: Dentsu. Tóquio: Studio Ghibli,
2014. 1 DVD (103 min), son., color.
SETO, C. A deusa e o dragão. Portal Nippo Brasil, [S.l.], 3-9 ago. 2000. Disponível em:
<http://www.nippo.com.br/lendasdojapao/n064.php>. Acesso em: 4 dez. 2017.
SHAH, I. Os sufis. São Paulo: Círculo do Livro, 1977.

1 É psicóloga e aprimoranda em práticas clínicas na perspectiva da Psicologia Analítica pela PUC-SP e


co-fundadora do grupo Numinus - estudos junguianos. Atua com casos de depressão e na área da
pessoa com deficiência e seus cuidadores. Contato: <m.fedewicz@gmail.com>.
Gaara, o bode expiatório da Aldeia da Areia
Ana Bárbara Naccarati de Mello 1

Mas, para viver, você precisa de um propósito.


Viver por nada é o mesmo que estar morto
(Gaara)
Gaara: um breve resumo de sua vida

(我愛羅) É UM PERSONAGEM DO MANGÁ – E, POSTERIORMENTE, DO

G
AARA
anime – Naruto, criado em 1997 por Masashi Kishimoto. Aparece no
mangá no capítulo 35 e na animação no episódio 20, sendo
introduzido para contrapor o personagem principal, Naruto Uzumaki. Os dois
personagens apresentam histórias de vida parecidas, mas suas personalidades
são completamente diferentes.
Gaara é filho do kazekage da Aldeia da Areia e é o mais novo de três
irmãos, sendo os outros dois Kankuro e Temari. Antes mesmo de nascer,
Gaara foi escolhido por seu pai para ser uma arma terrível, poderosa e
perigosa: nele foi selada a besta de uma cauda, Shukaku. Esse ato causou a
morte de sua mãe, fazendo com que Gaara a perdesse pouco depois de nascer.
Assim como Naruto, por ter hospedado uma besta perigosa e mortal dentro
de si, os aldeões temem Gaara, que é rejeitado e atormentado. Seu pai queria
que ele fosse uma arma que tornasse possível restaurar sua aldeia, mas a sede
de sangue do Shukaku acabou se mostrando um peso muito grande para
Gaara. Além disso, por medo de a besta corroer sua alma caso ele
adormecesse, ele começa a ter terrores noturnos. Além do Shukaku, ele
também consegue controlar a areia, que, inconscientemente, sempre o
protege. Mais tarde, ele descobre que sua mãe, que na verdade sempre o
amou, prometeu protegê-lo, infundindo sua vontade na areia. Assim, por
conta do poder da areia e da incapacidade de controlar o Shukaku, Gaara se
tornou temido pelo pai a ponto de este o querer morto.
Após ser traído por seu tio, a única pessoa que o garoto acreditava que se
importava consigo, Gaara se tornou frio, contando apenas com sua própria
força. Logo após essa traição, Gaara grava em sua testa, com sua areia, o
kanji (ideograma japonês) de amor, atitude que será explicada mais adiante
neste capítulo. Ele também começa a sentir prazer e a encontrar razão para
viver ao matar as pessoas que eram enviadas para eliminá-lo.
Este capítulo pretende analisar o personagem Gaara e como ele se tornou o
bode expiatório de sua aldeia, tendo sido levado a se tornar uma pessoa fria,
que só ama a si mesma. As informações trazidas aqui são baseadas no anime
Naruto, lançado em 2002.
Complexo do bode expiatório
Para compreender o complexo do bode expiatório, é importante entender o
que é um complexo. A psique – que, para Jung (1916), são todos os processos
psíquicos, sejam eles conscientes ou inconscientes – possui um conjunto de
complexos formados por um agrupamento de ideias e imagens carregadas de
emoção, que atuam como “personalidades autônomas”. No centro dos
complexos, existe um arquétipo (YOUNG-EISENDRATH; DAWSON,
2002). Arquétipos, para a psicologia analítica, são estruturas arcaicas que
moldam padrões de comportamento da humanidade; não conhecemos os
arquétipos em si mesmos, mas suas expressões – como é o caso dos contos de
fada, que tratam de questões importantes para a vida e para as relações
humanas (JUNG, 2011[1935]). De acordo com Von Franz,
Contos de fada são a expressão mais pura e mais simples dos processos psíquicos do
inconsciente coletivo. Consequentemente, o valor deles para investigação científica do
inconsciente é sobejamente superior a qualquer outro material. Eles representam os arquétipos
na sua forma mais simples, plena e concisa. Nesta forma pura, as imagens arquetípicas
fornecem-nos as melhores pistas para compreensão dos processos que passam na psique
coletiva (VON FRANZ, 2013, p. 9).

Para poder entender o complexo do bode expiatório, também é preciso


entender de onde vem essa expressão. A origem do termo “bode expiatório”
provém de rituais encontrados em diferentes culturas, em que uma vítima
humana, animal, vegetal ou um objeto inanimado era sacrificado para os
deuses. Isso ocorria pois acreditava-se que, depois de transferir magicamente
o mal para o ser ou objeto a ser sacrificado, este poderia ser eliminado, isto é,
o mal seria destruído com o sacrifício. Esse ato tinha finalidades como a
diminuição da ira das divindades e a purificação da comunidade. Assim, seria
reestabelecida a relação do povo com o espírito e com a moral, aliviando-o da
culpa (PERERA, 1991). A expressão vem do ritual do Yom Kippur (Dia do
Perdão, em tradução livre), quando um bode era sacrificado e oferecido a
Jeová (mediador entre o mundo divino e o mundo humano) para que ele
perdoasse Israel, e outro bode era expulso ou evadido, levando consigo os
pecados para ser reclamado pelo anjo decaído, Azazel (PERERA, 1991).
De acordo com Perera (1991), com o passar dos anos, o ritual foi
banalizado e perdeu o sentido. O termo, agora, é usado com outro propósito:
ele representa pessoas que são responsabilizadas por um mal ou por um
delito. Para o autor, o mecanismo de negação da sombra grupal – ou pessoal
– está associado ao complexo do bode expiatório. Uma pessoa, a vítima,
receberá as projeções dos conteúdos não tolerados por um grupo, o que
poderá fazer com que ela se sinta identificada com o bode expiatório. Quando
o receptor dessas projeções se identifica com esse papel, crendo que tais
conteúdos negativos são seus, e não de um grupo, poderá se sentir preso,
incapaz e rejeitado. Isso acontece porque a pessoa se identifica com a
imagem que fizeram dela e passa a ter dificuldade de entender o que
realmente lhe diz respeito. Dessa forma, fica impossibilitada de descobrir
quais são os limites de sua verdadeira personalidade, dificultando seu
processo pessoal de desenvolvimento, bem como a possibilidade de descobrir
seus próprios potenciais. Em outras palavras, o agressor – o grupo – projeta
sua sombra na vítima, e esta se identifica com essas características projetadas,
ficando, então, presa nesses sentimentos negativos.
Em nossa psique, possuímos uma parcela conhecida, a consciência, e uma
desconhecida, representada pelo inconsciente pessoal, também chamado de
sombra. Os conteúdos sombrios geralmente possuem uma faceta considerada
imoral, uma vez que usualmente é formada por traços que não condizem com
os ideais pessoais e da sociedade. De acordo com Murray Stein (2000), os
conteúdos que recaem na sombra são partes da personalidade que foram
suprimidas por divergência emocional ou cognitiva e que, se tivessem sido
integradas, pertenceriam à consciência. Esses conteúdos sombrios, apesar de
reprimidos no inconsciente, não deixam de existir: seguem uma vida paralela
à vida consciente. Quanto mais reprimirmos tais conteúdos e
impossibilitarmos sua expressão, maior será a energia neles investida. E qual
é a consequência disso? Eles irão se tornar cada vez mais autônomos e
poderosos, expressando-se quando menos esperarmos.
De acordo com Olsen (2016), todos somos vítimas, em algum momento,
de nossos complexos. Quanto menor for a nossa consciência diante deles,
maiores serão as chances de projetarmos tais conteúdos. A vítima será aquela
que receber as projeções e será expiada como “bode”. Quando essa vivência
acontece, os acusadores sentem-se isentos de culpa diante de suas próprias
sombras, inconscientes, pois as vivenciam no outro, crendo que aqueles
conteúdos de fato não fazem parte de suas personalidades (PERERA, 1991).
A autora explica que os indivíduos que se identificam com o complexo do
bode expiatório muitas vezes começam a viver o papel de vítima de maneira
defensiva, e não criativa. O medo é o sentimento que sempre acompanha a
vítima. Ela se sente impotente, pois o agente da vitimização tem o poder de
causar dor e sofrimento, negando justiça:
No entanto, só porque a vitimização desencadeia tanto medo e uma negatividade tão completa, é
possível que nenhuma outra imagem arquetípica constele tanto a necessidade da psique humana
de tornar significativo o sofrimento vivido como a figura da vítima. O primeiro lamento de
desespero da vítima é “por que eu?”. O horror daquele ato violento que cria a vítima explode
num grito que pede significado para a dor, propósito para a angústia. Não pode haver aceitação
ou acordo com a própria vitimização sem que a psique constele a vítima sagrada. Podemos ser
capazes de tolerar muita dor, muito mais do que jamais mereceremos ou nos julgaremos capazes
de suportar. Mas Jung estava certo quando disse que os seres humanos não conseguem suportar
uma existência sem sentido (DOWNING, 1994, p. 145).

A figura arquetípica da vítima pode ter um aspecto sagrado e/ou secular.


Como explicado por Downing (1994), a vítima sagrada é aquela que se
imagina no seu sofrimento, e a vítima secular é aquela que é colocada como
vítima de violência, por razão de um ato criminoso. Em outras palavras,
entendemos que a vítima sagrada é aquela que vivencia o sofrimento e as
projeções de maneira criativa, conseguindo se transformar diante da
experiência vivida. Já vítima a secular é aquela que se identifica com as
projeções e não consegue delas se separar, sendo, então, realmente vítima da
violência do grupo.
Gaara, o bode expiatório
Quando conhecemos o personagem Gaara no anime, ele é apresentado
como um sociopata frio e sedento por sangue que não sente remorso ao matar
seus oponentes. Entretanto, nem sempre foi assim: sua história é muito
interessante, porém triste.
Desde pequeno, Gaara foi rejeitado, excluído e temido por sua aldeia por
carregar o Shukaku dentro de si. O Shukaku é um bijuu (monstro de cauda)
que habita Gaara. Quem recebe um bijuu é chamado de jinchuuriki, que
significa “poder do sacrifício humano”. Como visto anteriormente,
antigamente o bode expiatório era também um sacrifício de algo que recebia
o mal dentro de si. Podemos dizer que essa besta que Gaara recebeu, mesmo
antes de nascer, seria a representação do mal. Por causa do Shukaku, Gaara é
visto como o monstro da vila, não tendo ninguém que o ame.
Ainda que temido, Gaara fora uma criança amável que tentava
desesperadamente ser amigável com todos. Entretanto, nenhuma das crianças
queria sua amizade e sempre o excluíam. De acordo com Cowan (1994), a
pessoa que se torna vítima se sente como se tivesse sido “destinada” a uma
dor intolerável. Em um dos episódios, há um flashback que mostra Gaara
ainda criança segurando o lado esquerdo do peito e dizendo: “Não me deixe
sozinho. Eu não estou sangrando, mas dói muito” (NARUTO, 2003, ep. 58).
Essa cena comprova o quanto Gaara sofria por ser excluído. Por passar muito
tempo sofrendo por isso, Gaara, passa a ser um indivíduo frio que
praticamente não se relaciona com ninguém, apenas com seus irmãos, com
quem tinha de conviver. Perera explica esse tipo de condição: “Isso significa
que nenhuma experiência poderá ser vivida em profundidade e nenhum
relacionamento com um Outro exterior poderá desenvolver-se, pois qualquer
abertura poderá acarretar mais sofrimento” (1991, p. 62).
A pessoa receptora das projeções do complexo do bode expiatório,
considerada inaceitável pela comunidade, está em uma situação análoga à
dinâmica da criança considerada a “ovelha negra da família” (PERERA,
1991). Como Gaara, a criança vista como a ovelha negra se sente anormal,
segregada e estigmatizada. Como explicado pela autora, elas se identificam
com tudo que é errado, feio ou ruim. Quando pequeno, Gaara não entendia o
que era e por que sua areia machucava as pessoas. Entretanto, assim como a
criança identificada como bode expiatório ou como ovelha negra, ele era
considerado diferente e, por isso, ameaçador e execrável (PERERA, 1991).
Por muito tempo, todos o excluíam e temiam, mas ninguém explicava por
que ele era diferente. Gaara poderia entender essa rejeição, assim como os
indivíduos identificados com esse complexo, como uma punição por sua
existência: “sentimentos de culpa, ansiedade e um núcleo sempre presente de
ansiedade existencial pela ausência de conexão com o todo maior constituem
o fardo do indivíduo” (PERERA, 1991, p. 20). De acordo com a autora, os
“bodes expiatórios” são rejeitados por não corresponderem a um padrão
comum aceitável. Gaara não apresentava um padrão aceitável pois nasceu
para se tornar uma arma para a aldeia. Entretanto, pelo fato de o Shukaku ser
muito forte, acabou se tornando perigoso. Como ele mesmo diz: “Eu nasci
um monstro” (NARUTO, 2003, ep. 58).
O padrão desejável é que Gaara fosse uma criança capaz de conter o
Shukaku sem machucar seu povo, para que, quando crescesse, pudesse lutar
pela aldeia, tornando-a forte e poderosa. Entretanto, não foi isso que ocorreu.
Em outra fala, enquanto Gaara está contando sua história, ele diz que
“aqueles que se tornam muito fortes se tornam muito temidos” e, logo depois,
também diz: “Eu falhei no único propósito para o qual nasci” (NARUTO,
2003, ep. 58). Como explicado por Downing (1994), viver sem um sentido é
insuportável. A mesma autora afirma que o medo é sempre o sentimento que
acompanha a vítima, e Gaara, por muitos anos, viveu com medo daqueles que
eram enviados para matá-lo, mesmo sendo forte. Isso se deu porque o agente
da vitimização – nesse caso, seu pai – tem o poder de causar dor e
sofrimento, negar a justiça e até causar a morte – real objetivo de seu pai.
Nesse exemplo, Gaara é visto como a vítima secular, pois é vítima de atos de
violência (DOWNING, 1994).
A imagem da vítima secular e as situações que a criam atraem para ela uma atenção negativa
que em geral assume a forma de culpabilização. Uma vez que o significado da vitimização não
pode ser divorciado do contexto cultural de valor no qual é vivido, a vítima sempre parecerá
digna de culpa e em falta para com a cultura que acima de tudo preza a dominação, a conquista,
o poder, a competição – exatamente as coisas necessárias para vitimizar (DOWNING, 1994, p.
146).

Gaara, após ser traído pela única pessoa que acreditava se importar
consigo, encontra uma razão para sua existência e uma forma defensiva de
lidar com seu complexo. Isso acontece no anime quando seu tio, enviado por
seu pai, tenta matá-lo. As ações de seu tio distorcem sua personalidade e
Gaara finalmente entende o que é e que tem dentro de si o Shukaku. Antes de
morrer, seu tio, além de tentar machucá-lo fisicamente, também tenta atingi-
lo psicológica e emocionalmente, dizendo coisas como “no fundo do meu
coração, eu odeio você, Gaara. Sempre odiei você” (NARUTO, 2004, ep.
77). Ele também afirma que Gaara nunca foi amado e que nem sua mãe o
amava. Ouvir essas palavras do tio e saber que seu próprio pai queria vê-lo
morto fazem com que o garoto deixe de ser uma criança amável, que sempre
tenta ser reconhecida por seus colegas; assim, ele se transforma em um ser
frio e impiedoso.
Downing (1994) diz que as pessoas vitimizadas começam a usar a paranoia
como um antídoto para a vitimização. Elas não confiam em ninguém, que é
exatamente o que Gaara começa a fazer. Outra fala do tio que influencia
Gaara a desprezar todos e a não confiar em ninguém aparece no episódio 77:
Seu nome é o que sua mãe deu a você. Seu nome é Gaara, o demônio que só ama a si mesmo, e
você não deve amar a ninguém mais, não deve se importar com a existência de ninguém exceto
a sua, deve lutar só por si mesmo, só assim você sobreviverá. Esse é o presente que sua mãe
agonizante deixou para você, sem afeto maternal. Não foi por amor que ela deu esse nome a
você, foi por sua infinita raiva pela aldeia… (NARUTO, 2004, ep. 77)

Logo após essa fala, o tio, em uma última tentativa de matar Gaara,
explode-se com vários papéis-bomba, deixando o garoto sozinho no mundo.
Com a morte do tio, Gaara decide seguir suas palavras e não amar ninguém,
só a si mesmo, tornando-se o “monstro” que todos acreditam que ele é. Essa
nova atitude de autoamor é a forma com que Gaara lida com seus complexos
do bode expiatório e de vítima. Assim, Gaara usa sua areia para gravar em
sua testa um kanji com a palavra Ai (que significa “amor”, em tradução livre)
como símbolo do demônio que só ama a si mesmo. Ele encontra razão para
sua existência matando todos aqueles que seu pai enviou para eliminá-lo ou
qualquer um que o desafiasse. Gaara passa a introjetar tudo de negativo que
viam nele, satisfazendo a sede de sangue do Shukaku dentro de si, e disso
culminaria sua natureza sociopata.
De certa forma, essa rejeição que Gaara sempre sofreu pode ser comparada
com casos de bullying: o jovem, quando rejeitado, humilhado e desprezado,
passa a realizar atos de agressão. Exemplo disso é o caso dos tiroteios de
Columbine, onde dois jovens abriram fogo em uma escola após sofrer
agressão e rejeição (LEARY et al., 2003). De acordo com Olsen (2016),
vítimas de bullying também se identificam com o complexo do bode
expiatório. Em relação aos casos de tiroteio em escolas provocados por
bullying e rejeição, Leary et al. (2003) realizaram um estudo que aponta que
pelo menos dez dos quinze incidentes envolveram um perpetrador que
aparentava ter problemas psicológicos. Gaara, em uma de suas falas, também
mostra ter problemas desse tipo: “O jutsu que me deu à luz desequilibrou
algo na minha mente. Até os tolos da minha aldeia finalmente perceberam
que eu tinha problemas emocionais...” (NARUTO, 2003, ep. 58). Os
atiradores das escolas relatam que suas ações foram uma resposta aos maus
tratos que sofreram por parte dos outros estudantes. Por exemplo, um aluno
de uma escola do Mississippi justificou seus crimes dizendo: “Pessoas como
eu são maltratadas todos os dias. Ninguém nunca realmente se preocupou
comigo” (CHUA-EOAN apud LEARY et al., 2003). As justificativas desse
aluno podem facilmente ser comparadas com as de Gaara quando ele diz: “Eu
estou sozinho, então não vou amar ninguém” (NARUTO, 2004, ep. 77).
Para finalizar, pode-se dizer que Gaara consegue, finalmente, encontrar
uma forma melhor para lidar com seu complexo – uma forma criativa –
quando conhece Naruto Uzumaki. No começo da história, Naruto teve uma
infância parecida com a de Gaara. Porém, enquanto Naruto lidou com o seu
complexo do bode expiatório com brincadeiras e travessuras, Gaara lidou de
forma obscura e agressiva. A grande diferença entre as histórias é que Gaara
sempre foi solitário, enquanto Naruto foi para a academia ninja e conheceu
seu professor e mentor, sensei Iruka, além de Sakura, Sasuke e, mais tarde,
sensei Kakashi.
Na luta entre Gaara e Naruto, o protagonista da série mostra a importância
de nunca desistir de tentar ser reconhecido como um ser humano, não como
uma besta de cauda. Vendo como Naruto protege seus amigos, Gaara decide
mudar o caminho que tinha acreditado ser o certo quando criança e começa a
seguir o exemplo de Naruto. Assim, finalmente se aceita como é e, no
decorrer da série, liberta-se da influência do complexo do bode expiatório.
A exemplo de Gaara, é possível que outras vítimas também consigam sair
da influência desse complexo. Mesmo que às vezes pareça que a pessoa
sempre será vítima de agressões, humilhações e outras coisas horríveis, por
mais bestial que o sujeito seja, ele tem dentro de si a capacidade de mudar.
Gaara, com a ajuda de Naruto, conseguiu achar dentro de si essa capacidade,
tornando-se, assim, uma pessoa respeitada e não temida por sua aldeia.
Referências
COWAN, L. C. A vítima. In: DOWNING, C. (Org.). Espelhos do self: as imagens arquetípicas que
moldam sua vida. São Paulo: Cultrix, 1994. p. 144-151.
DOWNING, C. (Org.). Espelhos do self: as imagens arquetípicas que moldam sua vida. São Paulo:
Cultrix, 1994.
JUNG, C. G. The structure and dynamics of the psyche. Princeton: Princeton University Press, 1916.
(Collected Works, v. 8).
______. Fundamentos de psicologia analítica. Petrópolis: Vozes, 2011[1935]. (Obras Completas, v.
18/1).
LEARY, M. R. et al. Teasing, rejection, and violence: case studies of the school shootings. Aggressive
Behavior, [S.l.], v. 29, n. 3, p. 202-214, 22 Apr. 2003. Disponível em:
<http://dx.doi.org/10.1002/ab.10061>. Acesso em: 15 maio 2017.
NARUTO. Episódios 58, 75, 76 e 77. Direção: Hayato Date. Tóquio: Pierrot, Shueisha, TV Tokyo,
2002-2007. 220 episódios (24 min. cada), son., color. Disponível em: <http://netflix.com.br>. Acesso
em: 26 nov. 2017.
OLSEN, B. O vínculo agressor/vítima em casos de bullying sob a perspectiva da psicologia analítica.
2016. 76 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2016.
Disponível em: <https://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/48223/R - D - BARBARA
OLSEN.pdf?sequence=1&isAllowed=y>. Acesso em: 25 nov. 2017.
PERERA, S. B. O complexo de bode expiatório. São Paulo: Cultrix, 1991.
STEIN, M. O mapa da alma: uma introdução. São Paulo: Cultrix, 2000.
VON FRANZ, M.-L. A interpretação dos contos de fada. Tradução de Maria Elci Spaccaquerche
Barbosa. 9. ed. São Paulo: Paulus, 2013. (Amor e Psique).
WIKIA. Gaara. [S.l.: s.n.]. [20--]. Disponível em: <http://pt-br.naruto.wikia.com/wiki/Gaara>. Acesso
em: 25 nov. 2017.
YOUNG-EISENDRATH, P; DAWSON, T. Manual de Cambridge para estudos junguianos. Porto
Alegre: Artmed, 2002.

1 Aluna do curso de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).


As aventuras de Pinóquio
Antonio Gomes 1
Giullia Longo 2

CARLO COLLODI ENTRE 1881 E 1883,

P
INÓQUIO É UMA HISTÓRIA CRIADA POR
publicada originalmente no formato de folhetim e destinada a
crianças. A história se popularizou após ser lançada como longa-
metragem pela Disney no ano de 1940. A trama envolvente passou por
diversas releituras, entre as quais se encontra aquela do mestre Osamu
Tezuka, que, por meio da editora Tokodo, publicou o título no Japão em
1952. A versão de Tezuka tem grande influência da versão criada pela
Disney, apresentando, no entanto, passagens que retomam um caráter de
maior agressividade e vulnerabilidade diante de perigos – como fica claro no
contato de Pinóquio com cigarro e álcool.
Osamu Tezuka dispensa comentários. Tendo nascido no ano de 1926 na
cidade de Osaka, vivenciou os horrores das grandes guerras mundiais. Ao
longo de sua vida, desempenhou atividades como mangaká, médico, produtor
e cartunista, sendo a ilustração sua maior paixão. Essa profissão se tornou seu
objetivo de vida, e por meio dela passava suas mensagens de respeito à vida,
à humanidade e às diferenças. Tezuka desenhou mais de 150 mil páginas de
mangás, num total de 700 títulos, além de ter produzido 60 animações. Criou
mais de mil personagens, durante sua carreira. Vítima de câncer, o autor
faleceu em 1989, o que encerrou sua vida, mas certamente não findou a
influência de suas obras, que ecoam eternamente.
As aventuras de Pinóquio certamente é uma obra que influencia crianças e
adultos, apresentando de maneira simplificada o bê-a-bá do bom filho. A
partir de suas peripécias, Pinóquio serve de guia às crianças, com os
exemplos simples de atos e consequências representados no decorrer de seu
caminho. Além disso, a história traz as entrelinhas mais complexas dos
adultos, retratando temas como educação, criação de consciência nos
pequenos e relações entre pais e filhos.
A história começa com o pequeno grilo falante, Jiminy, buscando
acolhimento em meio ao frio que fazia durante determinada noite. Depois de
receber muitos nãos e desprezo pela música que tocava em seu violino, o
inseto se depara com a casa de Gepeto, um carpinteiro idoso. Este
gentilmente acolhe Jiminy, permitindo que o grilo passe a noite ali, junto de
si e de seus bichinhos de estimação – Cléo, uma peixinha, e Fígaro, um gato.
Após cuidar bem do pequeno grilo, Gepeto avista no céu, pela janela de seu
quarto, a Estrela Azul, conhecida por realizar os desejos daqueles que fazem
o bem. Com muita fé, Gepeto lhe pede um filho. Com a ajuda da Estrela
Azul, que se compadece da pureza daquele anseio e desce à terra como a
Fada Azul, o desejo do carpinteiro se torna realidade. Mediante encantamento
da fada, então, um boneco de madeira feito por Gepeto, batizado de Pinóquio,
ganha vida. O pequeno grilo logo se oferece para ser a consciência do
boneco, angariando a simpatia da Fada Azul. Esta, entretanto, ressalta a
Pinóquio que ele só se tornará de fato humano caso seja capaz de discernir o
bem do mal.
As aventuras de Pinóquio têm início após Gepeto vender todas as
quinquilharias que construíra até então para lhe comprar um livro didático e
mandar seu filho à escola com as outras crianças. Pinóquio, no entanto, acaba
por ser ludibriado por uma raposa e um gato a caminho da escola. Os
malfeitores o induzem a vender seu livro e assistir a um show de marionetes
com a intenção de vender o boneco ao dono do espetáculo, sr. Stromboli.
Este, porém, após comprar Pinóquio, acaba por libertá-lo ao se deparar com o
ato determinado do boneco, que se oferece para morrer queimado no lugar de
seu amigo, Jiminy, confessando que se desviou da escola e que fora
enganado, deixando seu pai à sua espera. O senhor Stromboli, comovido com
a história de Pinóquio, além de libertá-lo, oferece-lhe algumas moedas.
Voltando para casa com o grilo Jiminy e suas moedas, Pinóquio acaba
sendo atacado novamente pelos malfeitores que o venderam ao sr. Stromboli.
Visando roubar seu dinheiro, a raposa e o gato, disfarçados, penduram o
boneco em uma árvore, para que este entregue a quantia que ganhou, que está
escondida em sua boca. Gepeto, por sua vez, sai em busca do filho,
acompanhado de Cléo e Fígaro. Quando passam pelos malfeitores, no
entanto, não reparam no boneco pendurado, e Gepeto é também ludibriado
pelos por eles, acreditando que o teatro de marionetes viajaria pelo mundo
com seu Pinóquio. Diante da notícia e sem pensar duas vezes, o pai,
desesperado, pega sua jangada e parte numa jornada em busca do filho
desaparecido, sempre acompanhado por seus bichinhos de estimação.
Tendo permanecido, então, pendurado, Pinóquio acaba sendo salvo por
uma águia, que o agarra e o leva para receber cuidados médicos. Quando
recobra os sentidos, o boneco vê a Fada Azul, que o interroga sobre o desvio
do caminho à escola. A marionete tenta se safar mentindo, mas, como
consequência, seu nariz começa a crescer e só volta ao tamanho original após
ele se desculpar e contar a verdade. Pinóquio, então, desculpado pela Fada,
põe-se de volta no caminho para casa, mas não por muito tempo, pois é
enganado pela raposa e pelo gato novamente, perdendo suas moedas e
passando fome e sede, dormindo ao relento, tendo de aprender a se esforçar
para conseguir alimento e água.
Com mais essa lição aprendida e retomando novamente seu caminho, à
beira da estrada, o garoto de madeira conhece Espoleto, um menino de
verdade que o convida para seguir com ele para a Ilha dos Sonhos, convite
que Pinóquio acaba por aceitar, subindo na carroça cheia de crianças que têm
a ilha como destino. Ao chegar na Ilha dos Sonhos, as crianças se deparam
com um lugar em que não existem regras, horários ou limites, além de terem
acesso a infinitos brinquedos e guloseimas. Pinóquio, acompanhando
Espoleto, acaba por fumar e beber, colocando-se em um estado cada vez mais
deplorável até que o pequeno grilo falante o encontra. Jiminy confronta
Espoleto e o culpa pela condição lastimável em que se encontra seu amigo. O
grilo é, entretanto, rejeitado e escorraçado por Pinóquio, que fica entregue,
então, ao triste fim de todas as crianças naquela ilha, que se transformam em
burros e são vendidos em leilão. Pinóquio, no entanto, é mais uma vez salvo
pela Fada Azul, ao ser dominado pelo desejo de resgatar seu pai ao saber do
paradeiro deste: a barriga de uma baleia. Corajoso, Pinóquio segue com
Jiminy para o fundo do mar, onde, depois de muita busca, encontra a baleia-
monstro que engoliu seu Gepeto, deixando-se por ela devorar. Já dentro do
corpulento animal, o boneco localiza sua família e bola um plano para que
consigam sair dali, fazendo a baleia espirrar para expeli-los.
Na fuga, Pinóquio acaba se desmontando. Gepeto, os bichinhos de
estimação e Jiminy o levam para casa, onde choram por sua morte. Ao ver a
tristeza daquela perda e reconhecendo os últimos atos corajosos e
determinados de Pinóquio, a Fada Azul transforma o boneco de madeira em
menino de verdade. Uma vez que foi capaz abrir mão de si em prol daqueles
que amava, Pinóquio prova que aprendeu sua lição, recebendo, então, a graça
de ser verdadeiramente humano. Todos ficam muito contentes e comemoram,
e a história termina com a despedida do grilo falante, ao ver cumprida sua
missão de ser a consciência de Pinóquio.
Pinóquio é uma das histórias infantis mais conhecidas entre as crianças, e é
possível avaliar essa narrativa com o olhar da psicologia, analisando alguns
pontos importantes que, na história, fazem alusão a dinâmicas presentes no
desenvolvimento psíquico.
O menino de verdade discerne entre bem e mal
A história de Pinóquio, tanto no conto original como na versão de Tezuka,
destaca muito a palavra “consciência”, que se faz importante a ponto de haver
na narrativa um guardião e conselheiro para desempenhar tal função: o grilo
Jiminy. Por sua vez, a repercussão dessa história lhe confere a dimensão de
fábula infantil. Como colocam Corso e Corso (2006), as fábulas carregam
uma função de disseminação de bons valores e princípios para as crianças,
mediante situações simples e coerentes com a qualidade imaginativa e
imagética da infância.
Para a psicologia analítica, como postulado por Jung, os indivíduos nascem
inconscientes, sendo o desenvolvimento da consciência observado no
decorrer do processo de vida de cada um. Nesse sentido, é a partir das
relações com o mundo que as crianças começam a estruturar uma
consciência. Esta, por sua vez, tende a desempenhar um papel hierarquizante,
elencando valores e juízos às situações de vida com base nas exigências com
que o indivíduo se depara. É relevante notar, aqui, a leitura possível de que,
dado seu “nascimento” como menino de madeira, Pinóquio é enviado a
caminhar no mundo com as próprias pernas logo na manhã seguinte ao seu
descobrimento da vida. Nesse sentido, pode-se inferir que a falta de uma
consciência minimamente estruturada abre espaço às tantas e consecutivas
situações em que o boneco coloca à prova suas noções de certo e errado. As
ideias de moral e ética desempenham importante papel nesse processo.
Partindo da noção fundamental de que a consciência, provinda do
inconsciente em sua dimensão coletiva, funciona mediante a hierarquização
de pares de opostos, a psicologia analítica proporciona reflexões úteis a essa
discussão acerca da moral e da ética no desenvolvimento da consciência e,
por conseguinte, do próprio indivíduo.
Jung (2013), fazendo considerações acerca de bem e mal enquanto
princípios independentes do funcionamento consciente, abre caminho para
tais reflexões. Nesse sentido, coloca bem e mal como categorias psíquicas a
priori, como motivos arquetípicos da experiência humana, diferenciando-os
dos conceitos de bom/certo e ruim/errado, os quais se apresentam como
princípios e qualidades a serem manejados e hierarquizados pelo ego, centro
arquetípico da consciência. Sendo assim, coloca-se a moral como conjunto de
regras/leis, o qual se refere ao que determinado grupo classifica como certo e
errado em determinada época – reeditando-se com o tempo e o espaço,
portanto. Fala-se da atribuição de valores às polaridades opostas, um
funcionamento psíquico característico da consciência dita patriarcal, a qual,
segundo Whitmont (1991), para se estabelecer destacada do inconsciente,
precisa se discriminar dessa dimensão na qual se encontram dualidades
coexistentes e indiscriminadas.
Estabelecendo um paralelo com o desenvolvimento infantil, pode-se
perceber esse movimento de discriminação também na gradual inserção da
criança no grupo de que se torna parte ao nascer, na medida em que, dado o
embate com o mundo externo, esta passa a se diferenciar enquanto indivíduo,
ao mesmo tempo que aprende a equilibrar sua individualidade com os
requisitos da coletividade. Há no desenvolvimento infantil, portanto, a
necessidade de hierarquização de polaridades opostas, geralmente realizada
de acordo com a moral do grupo em que se insere para o desenvolvimento
sadio de sua consciência. Nesse processo, no entanto, é comum que a criança
teste limites e normas segundo sua vontade, necessitando da intermediação
adulta para aprender a discernir o bom do ruim, uma vez que ainda conta com
uma consciência frágil.
Ao observar o menino Pinóquio, vemos justamente o embate de uma
consciência incipiente diante da incongruência dos desejos individuais de
prazer e pouco labor em relação às necessidades de se adaptar a um meio no
qual já se encontram valores e expectativas bem estabelecidas. Entende-se
que, ao se deixar levar por seus desejos, dos quais se aproveitam os
malfeitores, Pinóquio nega a moral coletiva. Nesse sentido, é possível fazer
um paralelo entre a dinâmica contraventora inicial de Pinóquio e o que
Neumann (1991) chamou de “unidade originária”. Esta se refere a um estado
de indiferenciação inconsciente, no qual o indivíduo não se encontra provido
de consciência individual suficientemente estruturada, deixando-se suscetível
às leis coletivas primitivas, que, como no caso de Pinóquio, estão sujeitas a
certo nível de caos e desordem. É preciso haver, portanto, instâncias dualistas
que, condicionadas pela sociedade e pelo tempo, proporcionem a saída desse
movimento indiferenciado. Na história em questão, tais instâncias são
claramente representadas pelo grilo falante e, em especial, pela Fada Azul,
figuras que Pinóquio tenta seguir mediante esforços grandes e repetidamente
falhos. Tais falhas se revelam à medida que, ainda que inicialmente
necessárias para o fortalecimento da consciência, as instâncias dualistas se
apresentem precárias, na medida em que tendem a suprimir em absoluto os
desejos individuais que contradizem a ordem estabelecida por seus valores.
A ética, por sua vez, é entendida mediante uma noção de individualidade.
Carregando um caráter mais global, a dimensão ética da consciência
considera tanto a situação do indivíduo como os efeitos das atitudes
individuais sobre o coletivo. Mais do que uma dimensão incorporada pelo
que se dita pelo grupo externo, a ética é, para a psicologia analítica, entendida
como dimensão individual que, segundo Neumann (1991), visa produzir
integração, uma vez que propicia e fundamenta a forma como o indivíduo irá
lidar com a condição básica de sua consciência de atribuir julgamento de
valor à realidade que a ela se apresenta.
O mesmo autor faz uma densa análise do desenvolvimento ético do
indivíduo, postulando como “nova ética” a instância do desenvolvimento
ético da consciência que se apresenta de maneira mais convergente com a
noção de totalidade psíquica. Tal noção não permite o esquecimento de que a
vida psíquica vai além da realidade de perfeição almejada pela consciência do
ego, integrando os conteúdos sombrios que são relegados ao inconsciente no
embate com a cultura. Nesse sentido, a ética é necessária para a integração na
medida em que proporciona a avaliação dos valores que são apresentados por
uma moral coletiva, não apenas tomando suas normas e leis como atitudes-
padrão da consciência. Ressaltando o caráter dinâmico da vida psíquica,
compreende-se também ser este um processo contínuo no desenvolvimento
do indivíduo, que de certo tem início e fundamento nas experiências da
infância.
É no decorrer dos embates enfrentados na relação de suas vontades com as
normas da moral, bem como diante das consequências das atitudes de
descaso completo com tais normas, que Pinóquio se inicia nesse movimento
de consciência, que se pode chamar “nova ética” (NEUMANN, 1991). À
medida que segue suas aventuras, o boneco cria uma tolerância maior ao que
inicialmente contrariava seus desejos, compreendendo a importância da vida
em coletividade e passando a seguir um caminho que integra o que é
coletivamente tido como “bem/bom” não apenas por imposições externas,
mas por levar em consideração o bem-estar daqueles a quem ama, em
especial o de seu pai, Gepeto. Pode-se dizer, então, que Pinóquio passa a um
estado de consciência mais ampliado, aprendendo com as próprias
experiências e ganhando, então, o prêmio de ter sua humanidade reconhecida
pela Fada Azul. Há, ainda, uma ressalva importante no que concerne às
noções de bom e mau. Retomando a ideia de Jung (2013) de que essas noções
não são de fato qualidades dadas a priori, observa-se que, ainda que tomadas
socialmente como “más”, as atitudes contraventoras de Pinóquio se
concretizam como aquilo que precisamente lhe possibilitou a ampliação de
consciência que se tem como objetivo do processo de individuação. Entende-
se, portanto, que a história desse boneco de madeira representa justamente o
árduo caminho de fortalecimento e ampliação de consciência, o qual é mais
densa e caricatamente expresso na infância, mas que ocorre em movimento
dinâmico no decorrer de toda a vida.
O nariz que cresce
Em meio à construção das noções de bem e mal do boneco Pinóquio, como
explicitado anteriormente, o tema da mentira é de grande impacto para
aqueles que leem ou escutam essa história. Em determinado ponto de suas
peripécias, Pinóquio se depara com um fato intrigante: a cada mentira que
conta, seu nariz cresce um tanto, sendo a verdade o antídoto para esse
crescimento. É assim, então, que o boneco de madeira aprende a lição de que
não deve mentir. Não raro, as crianças pegas em mentiras são comparadas a
Pinóquio, havendo alertas como “cuidado para que seu nariz não cresça!”. De
fato, faz-se importante a interdição das figuras parentais diante das mentiras,
em congruência com seu papel educativo perante a criança. Ainda assim,
cabe fazê-lo levando em consideração a capacidade do pequeno indivíduo de
distinguir a realidade da fantasia, capacidade esta que não se observa em
crianças muito pequenas.
Tendo em vista que Pinóquio passa a mentir ao perceber que suas atitudes
foram, de algum modo, equivocadas, observa-se em seu comportamento a
discriminação da realidade, o que leva Corso e Corso (2006) a acertadamente
ressaltar o caráter de proteção por trás da mentira, abrindo espaço para uma
análise que se estende para além do caráter moral que condena em absoluto
esse comportamento. Além disso, entende-se, segundo os autores e, em
especial, pelas produções psicanalíticas, a relevância das “pequenas lorotas”
(CORSO; CORSO, 2006) durante o desenvolvimento infantil. Estas se
apresentam como possibilidade de diferenciação das figuras parentais,
auxiliando a criança na construção de sua individualidade na medida em que
permitem que ela perceba a possibilidade de uma relação menos simbiótica
para com os pais e/ou cuidadores – ao mentir e não ser, ao menos
inicialmente, descoberta, a criança pode perceber que as figuras parentais não
possuem controle absoluto sobre seus pensamentos (CORSO; CORSO,
2006).
Diante da análise desses autores, é possível estabelecer uma relação com os
postulados da psicologia analítica. Esse caráter algo criativo da mentira pode
ser comparado, então, à necessidade de saída de um estado de participação
mística com as figuras parentais, em especial com a figura materna. Tal
estado se refere justamente a uma indiferenciação entre a criança enquanto
indivíduo e sua mãe ou cuidador primário.
Uma vez que nasce inconsciente, a criança encontra-se misturada à
realidade psíquica da figura materna, tornando necessário, posteriormente,
que desta se diferencie, em direção à constituição de sua consciência
individual. Cabe ressaltar, no entanto, que tal análise da mentira aparece
como uma saída primária à questão da diferenciação e da construção de
identidade/individualidade.
A história de Pinóquio enfatiza justamente as consequências negativas que,
muitas vezes de maneira inevitável, seguem-se a esse comportamento, que
pode acabar por prejudicar tanto o mentiroso quanto aqueles ao seu redor.
Trata-se, portanto, de um comportamento de certo modo útil em determinado
momento do desenvolvimento psíquico, mas nocivo quando realizado
indiscriminadamente e perpetuado no decorrer do processo de individuação.
Havendo essa perpetuação, é possível se deparar com a mentira dita
patológica, que surge, por exemplo, como sintoma e comorbidade em alguns
casos de transtornos psicológicos, como a psicopatia e a depressão, podendo
aparecer com formas e padrões distintos, a serem reconhecidos como
patológicos e tratados com ajuda profissional. Entende-se, no entanto, que a
história do boneco Pinóquio alude à mentira não em seu sentido patológico,
mas em sua ocorrência natural no processo de desenvolvimento da criança.
Referências
CHAUÍ, M. Ética e psicanálise: convite à filosofia. São Paulo: Ática, 2000.
CORSO, D. L.; CORSO, M. Fadas no divã: psicanálise nas histórias infantis. Porto Alegre: Artmed,
2006.
JUNG, C. G. Civilização em transição. Petrópolis: Vozes, 2013.
LOBO, M. Por que as pessoas mentem? São Paulo: Arte Editorial, 2010.
NEUMANN, E. Psicologia profunda e nova ética. São Paulo: Edições Paulinas, 1991.
TEZUKA PRODUCTIONS. Company profile. [S.l.: s.n.]. [20--]. Disponível em:
<https://tezuka.co.jp/en/company/index.html>. Acesso em: 20 maio 2018.
WHITMONT, E. C. Retorno da deusa. São Paulo: Summus, 1991.

1 Antonio é formado em Jornalismo pela UNINOVE, tem Pós-Graduação em Gestão Financeira pela
ESPM. Nerd assumido e parceiro da Homo Ludens na publicação de títulos voltados para o público
geek e nerd.

2 Giullia Longo é psicóloga pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e mestranda
do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica pela mesma instituição.
Contato: <longo.giullia@gmail.com>.
Ai Yazawa, Paradise Kiss e Nana: questionando as
narrativas femininas tradicionais
Carolina M. Grando 1

E
XISTEM DUAS CATEGORIAS DE MANGÁS DESENVOLVIDOS PRINCIPALMENTE PARA
o público feminino: os shōjo, cujo público seria composto por crianças,
adolescentes e mulheres jovens, e os josei, voltado para mulheres
adultas. Mesmo quando um mangá apresenta temáticas e discussões mais
presentes no mundo adulto, a revista na qual está publicado e seu público-
alvo é o que decide sua classificação. Ogi (2003), porém, afirma que é
possível considerar que existe uma categoria intermediária para classificar
essas obras, que nomeia em seu artigo de young ladies comics (mangás para
moças jovens) – ainda que não tenha a pretensão de estabelecer uma
nomenclatura definitiva –, que estaria entre o josei e o shōjo, focada em
moças jovens, adolescentes ou recém-saídas dessa fase, lidando com temas
maduros como a sexualidade, ainda que sem abordar questões sociais do
mundo da mulher adulta, como casamento, divórcio ou família.
Ai Yazawa é uma autora de mangás cuja carreira começou em 1985,
estando suas obras frequentemente classificadas nas categorias citadas
anteriormente. A moda, assunto que estudou antes de se tornar mangaká,
exerce grande influência em seus trabalhos, especialmente a partir do mangá
Gokinjo Monogatari (1995), no qual a protagonista, Mikako Kouda, deseja
criar sua própria marca de roupas. A influência da moda é também visível no
design dos personagens de seus universos, sempre estilosos e vestidos de
maneira icônica. Outro tema bastante presente nos mangás de sua autoria,
desde a publicação de Ballad Made Soba ni Ite (1989), é a música, sendo
frequentes personagens cantores ou envolvidos em bandas.
A autora enfrentou graves problemas de saúde em 2009, o que levou à
interrupção da publicação de seu mangá mais adaptado para outras mídias,
Nana, que foi ao ar como anime em 2006 e como filme em 2005 e 2006. Até
o momento, Nana não voltou a ser publicado.
Neste capítulo, será dado enfoque a duas obras da autora: Paradise Kiss
(1999-2003) e Nana (2000-2009), escolhidas por serem os mangás mais
recentes da autora, além de apresentarem protagonistas complexas, que
rompem com os modelos tradicionais do gênero.
Paradise Kiss, publicado em 1999 na revista de moda Zipper, relata a
história de Yukari, uma estudante de um colégio de prestígio que se dedica
completamente a estudar para o vestibular, mas acaba se tornando modelo
para um grupo de estudantes de moda, o que transforma sua perspectiva sobre
a vida.
Nana, publicado na revista shōjo Cookie, relata a história de duas
protagonistas e de sua inusitada amizade: Nana Osaki e Nana Komatsu, que
se conhecem em um trem para Tóquio e passam a morar juntas na cidade.
Apesar de Nana ser publicado numa revista que o classificou como shōjo,
acredita-se que esse mangá se encaixa na categoria levantada por Ogi (2003),
assim como Paradise Kiss, que é classificado como josei, mas parece mais
adequado a um espaço intermediário.
Segundo Almeida (2016), os imaginários sociodiscursivos, ou seja, as
formas como um grupo social representa a realidade a partir, por exemplo, da
arte, circulam por meio dos mais diversos produtos culturais, sendo
“coformadores das identidades coletivas, da percepção que indivíduos e
grupos têm dos acontecimentos, de si próprios, de outros sociais e dos
julgamentos que realizam acerca de suas atividades sociais” (p. 149). Ou seja,
filmes, jogos, livros, revistas e mangás nos transmitem informações sobre o
mundo e sobre a cultura, sobre o que se espera de nós, sobre o que é
valorizado e sobre o que é desvalorizado. Desse modo, nossas identidades são
também formuladas a partir de nossa relação com esses produtos e suas
narrativas.
Faz sentido, portanto, ao pensarmos as identidades de gênero, investigar
como os mangás, produtos culturais japoneses adaptados e consumidos pelas
mais diversas culturas, retratam o imaginário social a respeito do feminino.
Afinal, a comunicação, nas suas mais diversas mídias, “influencia
substancialmente os processos políticos, psicológicos, culturais e sociais”
(ALMEIDA, 2016, p. 151), sendo essas mídias produtoras de poder
simbólico, com discursos atuantes, por vezes reproduzindo visões de mundo
hegemônicas, que desconsideram a diversidade (p. 152).
O amor em Nana e Paradise Kiss
O amor e o romance estão entre os temas mais comuns dos shōjo, sendo
frequentemente o enredo central de suas narrativas, que podem acompanhar a
trajetória de protagonistas que procuram consolidar uma relação ou a
resolução de um triângulo amoroso, por exemplo. As obras de Yazawa
seguem a tradição do gênero, sendo o amor uma de suas temáticas centrais.
Os conflitos presentes, porém, diferenciam-se do usualmente proposto, bem
como suas resoluções.
Nana Komatsu (posteriormente Nana Ichinose), apelidada ao longo da
série de Hachi (que significa “oito” em japonês, enquanto nana significa
“sete”) ou Hachiko (nome popular para cachorros no Japão, que tem relação
com a dedicação e carinho da personagem), é uma representação de feminino
que está mais próxima dos papéis de gênero tradicionais, exibindo
características comumente atribuídas às mulheres pela narrativa do machismo
“benevolente”. Esse termo é cunhado por Glick e Fiske (1996) e descreve um
conjunto de posturas inter-relacionadas em relação às mulheres que
estereotipam o feminino a papéis restritos (e subalternos), mas que são
subjetivamente e afetivamente vividos pelo perpetuador como positivos,
eliciando ações pró-sociais, como de ajuda; ou seja, posiciona o feminino em
um pedestal, desde que submetido ao masculino. No Japão, por exemplo, é
comum a exigência de que mulheres sejam yashashii, denotando doçura,
gentileza e delicadeza, independentemente de seus desejos ou humores.
Analisando Komatsu, a personagem exibe características comuns a essa
narrativa idealizada sobre o feminino, como beleza, gentileza e propensão a
atividades de cuidado. Seu sonho no início da série, por exemplo, é ser uma
bela esposa. Hachi, como será muitas vezes chamada ao longo do capítulo
para evitar possíveis confusões com a outra protagonista do mangá, atende,
portanto, ao ideal de feminino para a sociedade patriarcal e androcêntrica.
Na grande maioria dos shōjo, como Fruits Basket, de Natsuki Takaya
(1998-2006), e Kimi ni Todoke, de Karuho Shiina (2006-atualmente), o
destino de protagonistas com as características de Hachi seria a felicidade
amorosa, ainda que conquistada a partir da superação de outros conflitos.
Conforme coloca Ogi (2003), quadrinhos voltados para garotas por muito
tempo tiveram o papel de reforçar valores patriarcais.
No mangá Nana, porém, Hachi acaba em um casamento conturbado com o
distante Takumi, em vez de encontrar a felicidade eterna com Nobuo, o gentil
guitarrista da banda Blast, com quem apresenta uma relação mais saudável e
harmoniosa ao longo da série. Ao escolher dar à gentil Komatsu um
casamento dificultoso e distante, Yazawa vai contra a narrativa cultural de
que mulheres que se adequam às expectativas patriarcais são protegidas e
recompensadas, alertando para o perigo de uma identidade centrada no olhar
do outro, tratando das expectativas tidas como necessárias para ser aceito e
amado.
Em realidade, desde o início de sua história, a expressão da feminilidade
tradicional por Hachi não é recompensada. Quando, por exemplo, Komatsu
acredita que o cuidado com a casa fará com que seu namorado Shoji a aceite
morando com ele, ela acaba sendo obrigada a procurar outra residência, o que
a leva a morar com a outra Nana.
Nana Osaki aparece como uma contraposição a Komatsu, apresentando
diversos elementos de uma mulher inadequada aos olhos do patriarcado.
Nana, antes do sucesso de sua banda, trabalhara em atividades vistas como
tipicamente masculinas, como marcenaria e serviços de mudança; ela se
comporta de modo pouco acolhedor e tem aparência agressiva, inspirada na
subcultura punk.
Por não se adequar às expectativas de feminino, Osaki também sofre
sanções sociais, sendo que a primeira delas ocorre em seu período escolar,
quando é acusada de prostituição e é expulsa da escola. É importante dizer,
porém, que as personagens nunca são colocadas numa perspectiva
maniqueísta, com Osaki sendo o modelo ideal ou vice-versa. Ambas as
personagens apresentam qualidades, defeitos, potências e dificuldades.
Ao longo de toda a história, Nana Osaki possui apenas um par romântico:
Ren. Tendo sido namorados na adolescência, sua relação é interrompida
quando Ren se torna guitarrista da Banda Trapness e se muda para Tóquio. O
casal é reunido com a ajuda de Hachi e eles planejam se casar. Ren, porém,
decide que precisa recuperar sua saúde e interromper sua dependência de
cocaína para dar continuidade à relação. O personagem falece em um
acidente de carro antes que o casamento se concretize. O romance, portanto,
não é apresentado como o caminho para a felicidade de nenhuma das duas
protagonistas de Nana.
Já em Paradise Kiss, Yukari se apaixona por George, um personagem
distante e hedonista, fascinado pelo mundo da moda. A relação dos
personagens, apesar de bastante presente na série, não é sua temática central,
o que já rompe com as expectativas do gênero. Na realidade, a narrativa é
centrada na busca dos personagens por realizar seus sonhos profissionais, por
encontrar seu lugar no mundo. Entretanto, a série nunca nega a importância
do amor entre os dois para o desenvolvimento dos personagens e de suas
motivações profissionais. Novamente, a autora prefere a complexidade a
oposições simples (como carreira vs. romance).
O amor, nas obras da autora, aparece como parte importante, formadora,
mas não definitiva, da experiência feminina. Isso destaca os mangás de Ai
Yazawa nos gêneros em que são publicados, que frequentemente colocam
relacionamentos como ponto de maior centralidade para suas personagens
femininas.
Carreira como fonte de identidade
Outra temática que se faz presente em ambos os mangás é a carreira como
espaço de construção de identidade.
Em Paradise Kiss, Yukari (apelidada de Caroline) pode encontrar uma
maneira autêntica de viver por meio do trabalho. É na atividade como modelo
para a marca ParaKiss que ela descobre estar vivendo uma vida para os
outros e decide traçar um caminho próprio em direção ao futuro.
Da mesma forma, Nana Osaki encontra espaço para se construir a partir da
música e da expressão inspirada no punk. Mesmo sua paixão por Ren é por
vezes deixada de lado para tentar se tornar uma musicista bem-sucedida.
Ogi (2003) aponta que no Japão a lei de oportunidades iguais de trabalho
não teve objetivo de encorajar mulheres a procurar carreiras de longo prazo,
mas proteger as posições de esposas como trabalhadoras de meio período,
mantendo as mulheres em posições secundárias e de baixo custo. Ainda
assim, a autora afirma que a cobrança de que a mulher exibisse a mesma
competência dos homens foi capaz de colocar alguns estereótipos de gênero
em cheque, mesmo que as responsabilidades do trabalho doméstico e do
cuidado do marido permaneçam sob responsabilidade feminina.
Ambas as séries apresentam mulheres para quem a carreira toma espaço
central na produção de um projeto de futuro e na construção de identidade.
As personagens também são obrigadas a enfrentar barreiras à plena realização
de seu trabalho.
Yukari precisa, por exemplo, enfrentar o desejo de seus pais de que ela
siga a vida que eles planejaram, cursando uma boa universidade. Ela precisa
enfrentar seus medos, suas inseguranças e até mesmo seus desejos amorosos,
como quando decide não ir com George para Paris para dar continuidade à
sua carreira de modelo.
As dificuldades enfrentadas por Osaki estão relacionadas à sua inserção no
mundo da música como um mundo comercial, ou seja, Nana enfrenta a
realidade de sua expressão artística estar submetida à necessidade de produzir
lucro. Isso significa não apenas realizar aquilo que lhe é prazeroso e
identitário, como cantar, mas também lidar com paparazzi e a exposição de
sua vida pessoal para o consumo dos fãs, bem como o gerenciamento de sua
imagem e de seus companheiros de banda.
Não é acessível para a personagem, portanto, a liberdade de produzir sua
identidade a partir da música. Não à toa, após a perda de Ren, Nana passa a
sofrer com ataques de pânico – o aprisionamento da música como indústria
leva a personagem a simular seu suicídio e fugir, abandonando a carreira à
qual tanto se dedicou.
Ainda que não se saiba se esta é a intenção da autora, é possível perceber
nas narrativas de Yazawa a mensagem de que a liberdade da mulher não se
encontra no romance nem na carreira, havendo sempre alguma esfera de
dominação sobre suas vidas, seja a das normas sociais, como as que
impactam o casamento de Hachi, seja a das demandas do capital, como as
que impactam Nana. Suas personagens, porém, procuram traçar vidas
autênticas, a despeito das dificuldades encontradas.
Ambas as séries aqui analisadas, portanto, contrariam a expectativa
tradicional da mulher que tem na vida afetiva e familiar o sentido de sua
identidade, trazendo personagens que não se adequam às expectativas
patriarcais de submissão, obediência e devoção, mas que tomam as rédeas de
suas próprias vidas.
A importância de obras shōjo que questionam: novas referências de
feminino
Brown (2008), em sua tese explorando a agência de protagonistas de
mangás shōjo, demonstra que as heroínas de narrativas shōjo para meninas de
até 13 anos são mais ativas em suas histórias, sendo o romance uma parte
pouco central no enredo e sendo mais presente a amizade feminina. Já
mangás para moças entre 15 e 21 anos têm protagonistas mais passivas,
voltadas para o romance, sem tantos vínculos de amizade com mulheres.
Ogi (2003) também aborda o fato de que tanto obras shōjo quanto josei
apresentam feminilidades tradicionais, passivas, centradas no casamento ou
nas relações amorosas com homens, mesmo que alguns desejos, como o
desejo sexual, se façam presentes às personagens. Yazawa, portanto, rompe
com as expectativas desses gêneros, trazendo mulheres que não se adequam
ao feminino passivo e tradicional. O romance, ainda que bastante presente em
ambas as séries, não é o principal motivador de suas personagens, que são
guiadas por seus desejos e pela necessidade de enfrentar expectativas sociais.
Mesmo Hachi, personagem mais alinhada aos retratos tradicionais de
feminino, demonstra em sua história que o romance, o amor e uma vida
centrada no cuidado e na dedicação ao outro não equivalem à felicidade ou à
liberdade da mulher.
Quando Ai Yazawa oferece narrativas com mulheres complexas, com
objetivos que vão além do romance, guiadas por desejos próprios, não sendo
apenas suporte para uma narrativa masculina, a autora questiona a identidade
feminina de suas leitoras. Ela coloca em cheque seus sonhos e propósitos e as
convida a repensar a autenticidade destes. Seus mangás, portanto, “propõem
aos sujeitos sociais um olhar reflexivo acerca de si mesmos, de suas
condições social, histórica e cultural que, muitas vezes, determinam suas
maneiras de ser e de estar no mundo” (ALMEIDA, 2016, p. 150).
Além disso, o mangá Nana, por exemplo, tem como foco principal a
amizade entre duas mulheres, quando diversos produtos culturais preferem
retratar uma rivalidade feminina. A despeito de suas diferenças, Nana e Hachi
se apoiam mutuamente e sua convivência proporciona crescimento,
amadurecimento e acolhimento para ambas, opondo-se à ideia de que a
amizade entre mulheres implicaria farsa ou competição.
O trabalho de Yazawa não é perfeito e também reproduz imaginários
hegemônicos que podem ser nocivos às mulheres, como a romantização de
posturas abusivas em relacionamentos amorosos, como o ciúme excessivo. O
mundo da moda, em que diversas de suas personagens encontram carreiras,
também já é visto como tipicamente feminino e frequentemente apresenta
posturas controladoras sobre o corpo e a aparência das mulheres. Finalmente,
há ainda um grande foco na beleza de suas personagens, não questionando a
ideia da mulher como prioritariamente decorativa.
Não se pretende colocar Yazawa como uma autora feminista. Impor uma
posição política à autora seria desrespeitar seus desejos e perspectivas sobre
sua própria obra. O que se pretende, na realidade, é mostrar como suas
narrativas e personagens abrem portas para outras possibilidades de feminino,
frequentemente excluídas dos mangás, ainda mais em se tratando de shōjo,
sendo sua obra um espaço potente para a construção de identidades femininas
mais complexas e mais livres.
Referências
ALMEIDA, V. C. Sobre comunicação, sociedade e identidade de gênero. In: BARRETO, B. M. V. B.;
ALMEIDA, V. C. Comunicação, gênero e identidades: conflitos e debates no século 21. Porto
Alegre: Simplíssimo (Revolução eBook), 2016. p. 149-152.
BROWN, J. L. Female protagonists in shōjo manga: from the rescuers to the rescued. 2008. 132 p.
Dissertação (Mestrado em Artes). University of Massachusetts Amherst, Amherst, 2008.
GLICK, P.; FISKE, S. T. The ambivalent sexism inventory: differentiating hostile and benevolent
sexism. Journal of Personality and Social Psychology, v. 70, n. 3, p. 491-512, 1996.
OGI, F. Female subjectivity and shoujo (girls) manga (Japanese comics): shoujo in ladies’ comics and
young ladies’ comics. The Journal of Popular Culture, n. 4, p. 780-803, Apr. 2003.

1 Psicóloga formada pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e mestre em
Trabalho, Saúde e Ambiente pela FUNDACENTRO. Presta assessoria ao Sindicato dos Trabalhadores
na Administração Pública e Autarquias no Município de São Paulo (SINDSEP-SP), sendo, também,
membro do Núcleo de Ação em Saúde do Trabalhador (NAST).
Análise funcional do comportamento dos
personagens de Ranma ½
Flavia Cristina Trindade Corrêa Barros 1
Marcia Luiza Trindade Corrêa de Melo 2

½ É UMA OBRA DA FAMOSA MANGAKÁ 3 RUMIKO TAKAHASHI. EM

R
ANMA
2013, a autora foi reconhecida como a artista que mais vendeu mangás
em todo o mundo, contabilizando mais de 170 milhões de cópias
vendidas. Foi vencedora em duas ocasiões do Prêmio Shogakukan de Mangá,
segundo Ressler (2017): com Urusei Yatsura, em 1980 (seu primeiro grande
sucesso), e em 2002 com Inuyasha 4 .
Para Keiko (2014) e Ichihara (2014), Takahashi é mais conhecida no Brasil
por seu trabalho com Inuyasha, porém Ranma ½ segue uma linha bem
diferente da história do famoso meio-youkai: a animação pode ser
considerada uma comédia romântica com muito humor e ação.
A obra Ranma ½ conta a história de Ranma Saotome, um estudante de
artes marciais de 16 anos que está em treinamento desde sua infância. Filho
único de Nodoka e Genma Saotome, aos 2 anos foi obrigado por seu pai a
sair de casa e iniciar uma viagem a fim de aperfeiçoar suas habilidades. Perto
do final dessa viagem, Genma levou Ranma até as Montanhas Bayankala, no
campo de treinamento Jusenkyo, na China, pouco usado devido à lenda das
fontes amaldiçoadas. Segundo esta, se uma pessoa caísse nas fontes,
transformar-se-ia no primeiro ser que havia nelas se afogado. Não sabendo
disso e sem paciência para ouvir um alerta do guia local, Genma tentou
treinar com Ranma no topo dos polos de bambu que se erguiam dessas
fontes. Quando Ranma derrubou seu pai em uma delas, ficou surpreso ao ver
um urso panda emergir da fonte e pular para um dos polos. Genma, agora
amaldiçoado, derruba Ranma em outra fonte. Ele, então, se transforma em
uma versão feminina de si mesmo. Dessa forma, sempre que se molharem
com água fria, pai e filho se transformarão nas criaturas das suas respectivas
fontes; a única forma de voltarem ao estado normal é se molhar com água
quente.
Quando Ranma retorna ao Japão, descobre que estava prometido a uma das
três filhas de um amigo de seu pai. É na casa da família Tendo que Ranma
conhece Akane, sua futura noiva.
Outros personagens se transformam na trama, pois também teriam treinado
nas Montanhas Bayankala. Todos os personagens com essa particularidade
serão abordados neste capítulo: Ryoga se transforma em um porquinho,
adotado por Akane como bichinho de estimação, Shampoo se transforma em
uma gatinha e Mousse se transforma em um pato.
A obra é tão famosa que ganhou versões em mangá e anime e deu origem a
vários títulos para diversos consoles de videogame. Cabe ainda destacar que
várias pessoas no mundo todo fizeram (e ainda fazem!) cosplays de diferentes
personagens da série.
Muitos ambientes presentes em Ranma ½ foram inspirados em áreas reais
do bairro Nerima, em Tóquio, o que contribuiu para o sucesso da obra, pois
as crianças e adolescentes japoneses reconheciam tais locais. Exemplos são a
viela com grade lateral por onde Ranma e Akane passam correndo para ir à
escola, o parque Shakujii Koen e o Colégio Furinkan (em que Ranma, Akane
e Nabiki estudavam). A área das Montanhas Bayankala (originalmente
chamada de Bayan Har Shan) realmente existe e fica na província de
Qinghai, na China. Somente o campo de treinamento, Jusenkyo, é fictício.
A história de Ranma ½ será aqui analisada à luz da análise funcional do
comportamento.
E o que é a análise funcional do comportamento?
O behaviorismo radical, também chamado de análise experimental do
comportamento, estuda o comportamento humano em relação ao meio
ambiente (SKINNER, 1994[1953]). É válido ressaltar que pensamentos e
sentimentos também são considerados como comportamentos. A análise
funcional é uma forma de entender por que os comportamentos ocorrem. Para
isso, estudamos as contingências de reforçamento a fim de intervir nos
comportamentos e alterá-los, pois sugerimos que todos os comportamentos
são aprendidos. As contingências de reforçamento são o estudo das relações
entre estímulos e respostas, que na maioria das vezes são de três termos, por
isso chamamos de tríplice contingência.
Entretanto, alguns estímulos são condicionados e outros não. É importante
saber que existem comportamentos respondentes e operantes. Os
respondentes são eliciados pelo estímulo antecedente e ocorrem
independentemente da consequência. Os operantes são aprendidos e podem
ser analisados em termos de tríplice contingência (considerando o estímulo
discriminativo, a resposta e a consequência), pois, dependendo da relação
entre a resposta e a consequência, o comportamento pode ser mantido ou não.
Para saber o que é estímulo, resposta e consequência precisamos nos basear
na premissa de que qualquer evento do meio torna-se um estímulo se for
seguido por uma resposta. Estímulos são o que acontece antes e depois da
resposta, ou seja, as consequências são os estímulos que acontecem depois da
resposta. Com os exemplos deste capítulo, será possível entender esses
termos. Skinner (1994[1953]) comenta sobre a percepção individual,
fundamental para a análise funcional, destacando que a nossa percepção
particular do mundo é o nosso próprio comportamento em relação ao mundo.
Isso é muito importante num consultório, por exemplo, pois a percepção do
cliente não é igual à do terapeuta, que deve ter empatia e assertividade.
Meyer (2003) define a análise funcional do comportamento como a
identificação das relações entre os eventos ambientais e as ações dos
organismos. Seguindo essa definição, Comodo (2016) e Guilhardi (2004)
ainda destacam que fazer uma análise funcional é estabelecer relações entre
os antecedentes, a resposta e as consequências que essa resposta produz. São
essas relações de interdependência entre os antecedentes, a resposta e as
consequências que chamamos de tríplice contingência.
Matos (1999) questiona três pontos fundamentais: o que é a unidade
funcional do comportamento, como determiná-la e, finalmente, como estudá-
la. O pesquisador dirige a atenção para as condições ambientais em que se
encontra o organismo (ou o personagem, como veremos neste capítulo),
assim como para as reações deste com essas condições e as consequências
produzidas. Assim, o comportamento é entendido como uma relação de
transformação mútua entre o organismo e o ambiente que o cerca
(GUILHARDI, 2017; MATOS, 1999; SKINNER, 1994[1953]).
Cabe ressaltar, conforme destacam Andery, Micheletto e Sério (2001), que
a expressão “análise funcional” não diz muito sobre a prática do analista do
comportamento, uma vez que precisamos considerar as múltiplas variáveis
que controlam a emissão de uma resposta. Vale acrescentar, para quem se
interessar pelo assunto, que o estudo do comportamento humano é amplo, são
muitos anos de estudo de diversos autores que produziram muitas
publicações relevantes e que podem ser facilmente encontradas em português.
Desse modo, destacamos que o que será feito neste capítulo é um pequeno
ensaio, pois isolar todas as variáveis envolvidas em cada comportamento dos
personagens mencionados é tarefa impossível, uma vez que nem sempre são
todas claramente evidenciadas.
Personagens de Ranma ½ e análise funcional
Ranma ½, tanto nos mangás quanto no anime, conta com mais de quinze
personagens ativos e marcantes. Neste capítulo, escolhemos estudar o
comportamento de cinco deles: Ranma, Akane, Ryoga, Shampoo e Mousse.
Akane, apesar de não ter a questão da transformação, é fundamental para a
trama, como veremos a seguir. Focamo-nos em como as histórias de cada
personagem se entrelaçam com a de Ranma Saotome. A intenção foi fazer
uma breve análise funcional de alguns comportamentos marcantes,
considerando o contexto das histórias de vida de cada um.
Vale ressaltar que, para analisar a ocasião em que o comportamento
(resposta) ocorre, é necessário saber os estímulos antecedentes: se existem
estímulos eliciadores, estímulos discriminativos ou, ainda, operações
estabelecedoras, como destaca Meyer (2003). Estímulos eliciadores são
responsáveis por respostas reflexas ou respondentes, enquanto os estímulos
discriminativos são usados para as contingências de três termos, sendo
responsáveis por sinalizar as condições sob as quais uma resposta ocorre
quando tem consequências diferenciais.
Seria possível dizer que o comportamento de se transformar, tão presente
na série, é um comportamento respondente, pois é eliciado pelo estímulo
antecedente da água fria. Já a resposta de voltar ao normal seria eliciada pelo
estímulo antecedente da água quente. Mas, afinal, se eles não gostam de suas
respectivas formas transformadas, por que passam tanto tempo assim durante
toda a trama? A análise funcional do comportamento de cada um deles
apresentada a seguir ajudará a compreender esse processo.
A resposta de se transformar é um comportamento respondente iniciado
pelo estímulo eliciador, o contato com a água. No entanto, o comportamento
de jogar água quente ou fria é operante, possui estímulos discriminativos e
consequências, possibilitando a análise funcional desse comportamento.

Ranma Saotome
Quando Ranma e Genma se mudam como convidados para a casa da
família Tendo, surge uma série de desafios diante de seus rivais, de novos
adversários e até de pretendentes amorosos. Mesmo a versão feminina de
Ranma tem pretendentes masculinos, sendo o mais persistente o jovem
Tatewaki Kuno.
Ranma é bom, franco, enérgico, mas também indeciso, teimoso, exigente e
malicioso. Além disso, é despreocupado e amigável. No entanto, não possui
muita experiência com situações sociais e frequentemente fala e age sem
considerar as possíveis consequências. Exemplo disso seria não considerar os
sentimentos dos outros, principalmente das meninas. Por vezes, insulta
pessoas com apelidos e provocações, mas também é relativamente fácil
constrangê-lo.
Ranma tende a confiar em táticas e planejamento direto, mas é hábil em
aprender com os erros em uma briga e tira proveito das fraquezas do
oponente em um encontro posterior. Ele não recua diante de um desafio,
mesmo que esteja incerto sobre como superar seu oponente. Contudo, ele
recusará uma disputa se considerar o oponente muito ridículo.
Orgulha-se de sua força, de suas habilidades e, basicamente, de ser um
homem. Enquanto isso, em sua forma feminina, orgulha-se de sua beleza e
atributos físicos (como os seios grandes, que faz questão de exibir), além de
se orgulhar de sua habilidade com as artes marciais. Todo esse orgulho
resulta em recusar a derrota. Se ele é repetidamente derrotado ou humilhado,
grita declarações de vingança ou fica chorando no chão. Ranma não aguenta
ver Akane tornar-se mais poderosa por meio do uso de sua força, por
exemplo.
Segundo Lapa (2016), é comum ver crianças com comportamentos de birra
em algum momento da vida, e o que os caracteriza são a frequência e a
intensidade com que ocorrem. Além disso, para analisar o comportamento de
birra, é preciso compreender a função desse comportamento. No contexto da
série, mesmo Ranma não sendo mais uma criança, seus comportamentos de
birra (como chorar sentado no chão) podem ser relacionados ao fato de terem
sido reforçados pelo ambiente em sua infância. Assim, ele continua repetindo
esse tipo de comportamento até a adolescência, pois conseguia o que queria
com suas birras.
Já é possível perceber que o temperamento de Ranma varia bastante. Por
um lado, é irresponsável e não mostra muito interesse por seus mestres (algo
fundamental na cultura japonesa). Ignora a escola, viola os regulamentos
quando a frequenta e se esquiva de situações que não envolvem artes
marciais ou outros interesses pessoais. Por outro lado, protegeu todas as
meninas em momentos diferentes e até mesmo Happosai, um importante
inimigo na série, recebe a sua compaixão. Podemos perceber que a falta de
habilidade de Ranma para lidar com algumas pessoas deve-se à falta de
experiência: ele não aprendeu a se comportar de forma adequada diante de
algumas variáveis. Exemplo disso seria o comportamento inadequado na
presença de meninas ou de autoridades. Assim, pode-se afirmar que seu
aprendizado se deu principalmente experienciando contingências de
reforçamento, de modo que não lida bem com regras.
Ranma parece não ter nenhum medo, mas sofre de ailurofobia (medo de
gatos), o que, obviamente, é explorado na série, até porque, como
mencionado anteriormente, a personagem Shampoo se transforma em uma
gata, e isso já é motivo para muitas confusões.
Genma tentou tratar esse problema ensinando a seu filho a técnica
Nekoken. Com ela, ao atingir um ponto crítico em seu medo, Ranma vive a
ilusão de que ele mesmo é um gato. Essa técnica é útil em algumas situações,
como estar cercado por gatos ou ser incapaz de se afastar deles. Esse estado é
manifestado sob a forma de lutar como um animal selvagem desenfreado,
com a capacidade de atacar seu entorno com uma pressão de ar poderosa.
Apesar de a série tratar essa questão de uma forma mágica, fica a seguinte
dúvida: seria esse um comportamento respondente eliciado pela presença dos
gatos ou Ranma realmente aprendeu uma técnica com seu pai? Se ele
conseguiu desenvolver a técnica, isso nos possibilita fazer uma análise
funcional desse comportamento inusitado. Levando em consideração o
estímulo antecedente discriminativo, a presença de gatos e os reforçadores
após o ataque, Ranma consegue se livrar do que ele teme. Mas, assim como
as transformações, esse comportamento é apresentado na série como
inevitável. Dessa forma, o comportamento poderia ser considerado como um
reflexo eliciado pelo estímulo antecedente.
Ranma também aprendeu a usar sua forma feminina a seu favor,
analisando as variáveis envolvidas e até se transformando propositalmente.
Ele usa rotineiramente sua forma feminina combinada a uma personalidade
inocente para convencer os meninos a lhe prestarem diversos favores, como
lhe dar comida ou comprar algo para ele, mas também para se divertir ou para
brincar com os sentimentos de Ryoga Hibiki e Tatewaki Kuno. Ranma se
orgulha de sua forma feminina ser mais atraente que Akane, que é uma
menina grosseira, bem diferente da moça de postura inocente criada por
Ranma. Todos esses comportamentos são reforçados positivamente e são
emitidos considerando os três termos: os estímulos discriminativos, as
respostas de Ranma e as consequências que alcança. Contudo, nem sempre
seu comportamento de estar na forma feminina de maneira proposital é
reforçado positivamente.
Na série, ele gosta do sorvete parfait, mas está sempre na forma feminina
quando o toma, por considerar embaraçoso que homens consumam esse
sorvete. Analisando a função de se transformar em sua forma feminina para
tomar o sorvete, podemos considerar que seu comportamento é reforçado
negativamente, uma vez que emite essa resposta para evitar que seja
ridicularizado pelos colegas enquanto está na forma masculina, coisa que
Ranma não suporta e que já foi explicitada.

Akane Tendo
Antes do incidente em Jusenkyo, Genma tinha acordado com seu melhor
amigo, Soun Tendo, que Ranma se casaria com uma de suas filhas, dando
continuidade ao dojo 5 Tendo. A mãe das meninas faleceu quando Kasumi,
Nabiki e Akane ainda eram crianças.
Chegando no Japão, Ranma conhece o amigo de seu pai e suas três filhas.
Ele chega à casa da família em forma de garota, o que já gera certa confusão,
e logo Akane fica amiga de Ranma. Entretanto, tudo muda quando ela o vê
tomando banho quente, como garoto.
As filhas mais velhas começam, então, a insistir que Ranma escolhesse
Akane como noiva, alegando que a masculinidade da irmã seria propícia para
um garoto que se transforma em garota. A princípio, Akane e Ranma
discordaram totalmente da ideia de ficarem noivos, mas, aos poucos,
desenvolvem sentimentos um pelo outro, embora neguem e evitem
demonstrá-los abertamente durante a série.
Akane e Ranma iniciam um relacionamento que alterna entre brigas
constantes e momentos em que estão dispostos a se ajudar. Eles chegam a
arriscar a vida para garantir a segurança um do outro. Esse comportamento de
ajuda é sempre reforçado por momentos românticos e demonstrações de
carinho que os fãs adoram, mas que são rapidamente modificados pela
postura teimosa dos dois protagonistas em não admitir que estão
apaixonados.
Akane era muito popular no Colégio Furinkan, mesmo com a reputação de
ser muito masculina, sendo seu principal pretendente o aluno Tatewaki Kuno.
Seu comportamento masculinizado garantia sua popularidade, pois a tornava
diferente das outras meninas, e suas habilidades com artes marciais
impressionavam ainda mais os meninos.
Embora afirmasse não ter interesse nos rapazes, era evidente que ser
popular era um reforçador positivo para os seus comportamentos, ou seja,
uma consequência positiva para suas respostas de agir com brutalidade, pois
na presença dos meninos da escola ela agia de forma bem mais grosseira e
agressiva do que quando estava com a família em casa.
Desde o noivado com Ranma, muitos garotos desistiram de Akane, mas
Kuno continuou insistindo em conquistar seu amor, inclusive enfrentando
Ranma diversas vezes. Devido à sua declarada aversão pelos meninos, Akane
chegou a ser apontada como odenbo (termo pejorativo para mulheres
homossexuais).
Akane tem um temperamento hostil e está constantemente discutindo com
Ranma, mas é sempre boa com os outros quando não é provocada. Ela adora
seu porquinho de estimação, a quem dá o nome de P-Chan, e é muito
carinhosa com ele, sem imaginar que se trata de Ryoga Hibiki transformado.
Ela tem comportamentos de carinho e atenção com o porquinho, o que deixa
Ryoga realizado, e ela também fica muito feliz com a reação de P-Chan aos
seus afagos. Podemos avaliar que a presença de P-Chan na série ajudou
Akane a aprender a ser mais delicada e carinhosa.
Apesar da fama de ser grosseira, Akane é, muitas vezes, romântica e
feminina. Um exemplo é o seu esforço em fazer comida para a família, apesar
de ser uma péssima cozinheira, o que é outro fator cômico da série. Vale
destacar também o seu comportamento de cuidado: apesar do seu jeito bruto
de ser, sempre se preocupa com todos que a cercam, fazendo com que as
consequências de suas ações de ajuda lhe proporcionem grande satisfação.

Ryoga Hibiki
A rivalidade entre Ryoga e Ranma começou quando estudavam juntos em
uma escola particular para garotos, em Tóquio. Ranma roubava o lanche de
Ryoga com frequência. Certa vez, os dois marcaram um duelo atrás da casa
de Ryoga, mas este errou o caminho e só apareceu três dias depois.
Quando Ranma e seu pai foram treinar, Ryoga resolveu partir para tentar
encontrá-los. Mas, ao chegar à área das fontes amaldiçoadas de Jusenkyo, ele
acidentalmente foi atingido por Ranma e caiu dentro de uma fonte, que o
transformou em um porquinho preto. Ranma sequer percebeu o ocorrido.
Apesar da maldição, Ryoga continua sua busca por Ranma e retorna ao Japão
algumas semanas depois. Ao chegar a Tóquio, finalmente consegue se
reencontrar cara a cara com Ranma, que o reconheceu da época de escola.
Ryoga Hibiki é o principal rival de Ranma nas artes marciais. O fator
cômico mais marcante desse personagem está no fato de ele ter um senso de
direção inexistente e de se perder com frequência.
Ryoga guarda rancor por Ranma pelo acidente nas fontes do campo de
treinamento Jusenkyo. Desde então, sempre que tem contato com água fria,
transforma-se no porquinho. Isso faz com que sua perda de senso de direção
constante piore ainda mais. Além disso, Ryoga luta pelo afeto de Akane.
Ranma considera Ryoga um amigo e o ajuda em várias ocasiões – ajuda-o,
principalmente, a esconder a maldição de Akane, que mantém a forma de
porquinho de Ryoga como animal de estimação.
Ranma se diverte com Ryoga por meio de pequenas provocações em
relação à sua falta de senso de direção, ao seu amor por Akane e,
principalmente, pelo fato de ele se transformar no porquinho em contato com
a água fria. Tudo isso irrita Ryoga profundamente. Contudo, ele tira
vantagem da transformação e aproveita sua forma de porquinho para ficar
próximo de sua amada, ganhando carinho e atenção e provocando até ciúmes
em Ranma, que prometeu não revelar sua identidade a Akane.
Por muitas vezes, Ryoga se joga na água fria propositalmente na presença
da sua amada para se transformar em P-Chan e ganhar afagos. A presença de
Akane funciona como estímulo discriminativo para Ryoga emitir a resposta
de se jogar na água fria, transformando-se no porquinho e recebendo um
reforço positivo: as carícias de Akane.
Apesar de ser um dos personagens centrais da trama, pouca coisa é
revelada sobre o passado de Ryoga: sabe-se que sua casa era grande e ficava
perto do Monte Fuji, próximo a Tóquio, e que é filho único de pais tão
perdidos quanto ele, que sequer conseguem voltar para casa.
Ryoga frequentemente parte em viagens de treinamento, mas sempre se
perde e só retorna a Tóquio depois de vários dias. Vale ressaltar que Ryoga
também se arrisca para ajudar os outros ou para salvar as vidas de Ranma e
Akane durante sérios conflitos. Certa vez, impede Ranma de se afogar,
mesmo estando em forma de porquinho. Com o passar do tempo na série, a
rivalidade desses personagens se transforma em uma relação mais amigável:
os dois se ajudam mutuamente, embora ainda se enfrentem com frequência.

Shampoo
Quando Ranma e Genma ainda estavam em suas formas amaldiçoadas,
saindo da área das Montanhas Bayankala para procurar comida, encontraram
a Tribo da Amazona Chinesa. Lá, acidentalmente, comem um alimento que
seria usado em uma premiação, o que faz com que uma jovem amazona
chinesa, Shampoo, desafie Ranma a lutar.
Ranma ganha a disputa, mas Shampoo lhe dá o chamado Beijo da Morte.
Segundo a tradição de sua tribo, quem receber esse beijo deverá ser
assassinado. Dessa forma, Shampoo passa a persegui-lo por toda a China.
Em outra disputa, Ranma novamente vence a garota e ela lhe dá outro
Beijo da Morte, mas dessa vez Ranma está em sua forma masculina. Segundo
a tribo, quando esse beijo é dado em alguém do sexo oposto, as pessoas
envolvidas deverão se casar. O cômico da personagem é o fato de que ela não
percebe que “a” Ranma que quer matar, na forma feminina, é o mesmo
Ranma com quem quer se casar, na forma masculina.
Shampoo também foi amaldiçoada na fonte do campo de treinamento
Jusenkyo e se transforma em uma gata quando entra em contato com água
fria. Quando se irrita com Ranma, tira proveito do medo de gatos dele e o
atormenta com a sua forma amaldiçoada. É mais uma personagem que se
transforma propositalmente para tirar vantagem da sua condição.

Mousse
Mousse também esteve na área das Montanhas Bayankala e, enquanto
treinava no campo Jusenkyo, foi amaldiçoado e transformado em um pato.
Mousse é apaixonado pela chinesa Shampoo e irrita-se com Ranma desde
que sua amada decidiu se casar com ele. Shampoo gosta apenas de homens
extremamente fortes e Mousse tenta provar seu valor desafiando Ranma em
vários momentos. Como não tem tanta habilidade com as artes marciais,
Mousse se utiliza de vários artefatos escondidos – literalmente – em suas
mangas. Em três de suas lutas com Ranma, ele chega muito perto de vencer.
Durante a obra, fica evidente que Mousse está sempre mais interessado em
ganhar a atenção de Shampoo do que de fato enfrentar Ranma, o que diminui
a rivalidade entre os dois. Ele fica entusiasmado com a perspectiva de um
casamento entre Ranma e Akane, pois assim teria mais chances de conquistar
sua amada Shampoo.
Ao contrário dos demais personagens, Mousse realmente não suporta se
transformar em pato. Ele não usa essa forma para tirar vantagem em
momento algum e, quando está transformado, sua única preocupação é voltar
ao normal.
Considerações finais
O maior desafio deste capítulo foi relacionar análise do comportamento
com personagens fictícios que passam por processos mágicos de
transformação.
Diferenciar o comportamento respondente de se transformar ao entrar em
contato com água e o comportamento operante de jogar água com a
consequência de se transformar e tirar proveito disso de alguma forma foi
fundamental para possibilitar a análise funcional da maioria dos personagens.
Meyer (2003), ao falar de análise funcional, destaca que a análise dos
antecedentes e consequentes é justamente a análise de relações ordenadas
entre as variáveis ambientais e o comportamento de interesse. Mas já foi
considerada a possibilidade de também haver outras relações entre o
comportamento de interesse e outros comportamentos existentes.
Para identificar esse tipo de relação entre comportamentos, podemos
verificar se existem outros comportamentos que ocorrem antes do
comportamento de interesse e se sua relação com o comportamento de
interesse é de necessidade, de facilitação ou, ainda, se são ocorrências
acidentais. É o que acontece na série: o comportamento respondente,
provocado pela maldição das fontes, passou a ser atrelado a outro
comportamento, operante, de provocar a transformação por meio da resposta
de jogar água fria (para se transformar) ou quente (para voltar ao normal).
Além disso, Ichihara (2014) enfatiza que o enredo, abordado numa
narrativa divertida, baseada em comédia romântica, foi desenvolvido entre o
final da década de 1980 e início dos anos 1990, quando, por exemplo,
questões de gênero e sexualidade não eram tão presentes como hoje.
Apesar de não ter sido a proposta deste capítulo, consideramos importante
ressaltar que Ranma ½ é uma obra da década de 1990 que se mantém atual e
quebra padrões tanto dentro universo da ficção e quanto fora dele.
Vale também apontar que muito antes das questões sobre identidade e
expressão de gênero – bem como orientação sexual – estarem mais evidentes
já existia essa história, na qual todas essas questões foram abordadas.
Talvez seja interessante tratar esse e outros aspectos numa próxima
oportunidade de relacionar essa obra à psicologia, afinal, como destaca Keiko
(2014), Ranma ½ é uma série clássica inesquecível, capaz de animar qualquer
pessoa com seu humor ímpar, que é, ao mesmo tempo, muito refinado.
Referências
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<https://pt.wikipedia.org/wiki/Ranma_%C2%BD>. Acesso em: 11 out. 2017.
1 Comunicóloga pela Universidade Paulista (UNIP), pós-graduada em Marketing pela Escola Superior
de Propaganda e Marketing (ESPM) e mestre em Gestão Integrada em Saúde do Trabalho e Meio
Ambiente pelo Senac-SP.

2 Psicóloga e mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-
SP). Atua como chefe de seção técnica da Divisão de Proteção Social Básica da Secretaria de
Desenvolvimento e Assistência Social da Prefeitura Municipal de Guarulhos.

3 Palavra utilizada para se referir a autores de quadrinhos japoneses.

4 O primeiro volume de Mangás, animes e a psicologia (FORTIM, 2017) tem um capítulo de análise
dedicado a essa obra.

5 Dojo é o local de treinamento de artes marciais de determinada família, onde acontecem aulas e onde
se dá a formação de sucessores, que devem assumir a responsabilidade do local e dos treinamentos após
o falecimento dos fundadores.
Sailor Moon
Henrique Mota Manesco 1
Katia Regina Oushiro 2
Introdução

MOON, CONHECIDO NO JAPÃO COMO PRETTY SOLDIER SAILOR MOON, É

S
AILOR
um mangá composto por 52 capítulos, escrito e ilustrado por Naoko
Takeuchi e publicado pela editora Kodansha em formato de série na
revista Nakayoshi entre fevereiro de 1992 e fevereiro de 1997.
Simultaneamente, a editora lançou o mangá intitulado Sailor Moon,
organizado em 18 volumes, até abril de 1997. No Brasil, a obra foi lançada
pela editora JBC, em edição especial, entre abril de 2014 e março de 2015.
Sua adaptação para anime foi ao ar no Japão entre março de 1992 e
fevereiro de 1997, e seu sucesso acarretou a distribuição para vários países,
nos quais a animação foi igualmente bem-sucedida. No Brasil, o anime foi
exibido a partir de 1996 na extinta Rede Manchete, tornando-se muito
popular e estendendo-se para outras emissoras posteriormente.
Sailor Moon é um mangá considerado mahō shōjo, ou seja, pertence ao
subgênero cujas personagens principais são garotas jovens com poderes
mágicos. Traz em sua narrativa elementos simbólicos ligados a diversas
áreas, como a mitologia e a astrologia.
Com base na psicologia analítica de Carl Gustav Jung, faremos a seguir
uma breve análise simbólica das principais personagens apresentadas na
primeira temporada do anime, conhecida como Sailor Moon Classic,
relacionando-as com alguns dos deuses da mitologia greco-romana, além de
explorar outros símbolos presentes na série. Ao final, vamos tecer algumas
considerações sobre o desenvolvimento da personalidade da protagonista em
sua jornada.
A história
Sailor Moon conta a história de Serena, uma garota de 14 anos que
descobre ser uma guerreira destinada a lutar contra as forças do mal,
representado pelo chamado Negaverso. Ela precisa, também, proteger os
inocentes das investidas dos integrantes do Negaverso, liderados pela rainha
Beryl, que frequentemente armam situações para sugar a energia vital dos
seres humanos a fim de ressuscitar seu amo maligno e encontrar o lendário
Cristal de Prata, que dá ao seu usuário a garantia de realizar seus desejos mais
profundos.
Em sua jornada, Serena conta com a gata falante, Lua, mensageira que a
comunica sobre seu novo destino. Lua é a responsável por guiar Serena pelas
tarefas e batalhas, ensinando-a a usar seus poderes mágicos. A gata explica
para Serena que, além de lutar contra o mal e salvar os inocentes, ela deve se
reunir com as outras guerreiras, encontrar o Cristal de Prata antes que ele caia
nas mãos dos inimigos e localizar a princesa da Lua, cujo paradeiro é
desconhecido. Ao longo dos episódios, Sailor Moon encontra as outras
guerreiras, formando um quinteto que luta por um mesmo objetivo. Ela conta
também com o misterioso Tuxedo Mask, um jovem guerreiro que sempre a
salva quando ela está em apuros e pelo qual se vê apaixonada a cada vez que
o reencontra, embora não conheça sua verdadeira identidade.
À medida que Sailor Moon e as guerreiras se aproximam da possibilidade
de derrotar o Negaverso, acabam descobrindo um pouco mais sobre o porquê
de terem se tornado guerreiras. No antepenúltimo episódio da temporada, elas
são transportadas para o passado, onde descobrem suas verdadeiras
identidades. Lá, conhecem a rainha Serenity, que se apresenta como mãe de
Serena e explica que há muito tempo, durante o chamado Milênio de Prata,
existiu um reino paradisíaco localizado na Lua, onde as outras quatro
guerreiras viviam, sendo Serena a princesa de tal reino. Esse local tinha como
objetivo cuidar do Cristal de Prata e garantir a paz na Terra e no universo.
A rainha conta, então, que o príncipe Endymion – guardião da Terra que
descobrem ser a verdadeira identidade de Tuxedo Mask no passado, por
quem Serena, então princesa da Lua, fora apaixonada – alertou-as de que a
rainha Beryl planejava invadir o Reino da Lua e destruí-lo para roubar o
Cristal de Prata. Com o sucesso de sua empreitada, ela matou a princesa e o
príncipe e tomou conta do reino até que a rainha Serenity, num ato de
sacrifício, usou o Cetro Lunar para reestabelecer a ordem e a paz, fazendo
com que todos reencarnassem com outras identidades na Terra.
Depois de voltar dessa viagem ao passado, as guerreiras retornam aos seus
objetivos e, no final da temporada, juntam-se para derrotar a rainha Beryl. Na
grande batalha final, todas as guerreiras morrem, restando apenas Sailor
Moon, que derrota a rainha Beryl sozinha, embora tenha a ajuda de suas
amigas em espírito. Sailor Moon também acaba morrendo durante o combate,
mas faz seu último desejo estando de posse do Cristal de Prata: que tudo
voltasse a ser como era antes. Assim, todos renascem sem se lembrar do que
havia acontecido e de quem eram, voltando a ter uma vida normal.
Personagens

Sailor Moon
Serena, a protagonista do anime, tem 14 anos e logo no primeiro episódio
ela mesma se define como uma garota medrosa. Além disso, é atrapalhada,
está sempre atrasada para ir para a escola, tem péssimas notas e é um tanto
romântica, embora viva sofrendo por amores não correspondidos. Assim que
se dá sua primeira batalha, Serena já demonstra um de seus principais
comportamentos, que se repete durante quase todos os episódios: começa a
chorar. Ela é muito sensível e chora por tudo, o que a faz ser conhecida pelos
outros como chorona e bobona.
O elemento simbólico predominante na história, que inclusive dá nome ao
anime, é a Lua (Moon, em inglês). A Lua é um dos elementos de maior valor
simbólico na história da humanidade. Está relacionada ao subconsciente, ao
psiquismo, ao sonho, ao feminino, ao yin (em relação ao yang do Sol) e
também ao crescimento e à transformação (CHEVALIER; GHEERBRANT,
1986).
Serena se apresenta na introdução de alguns episódios como alguém do
signo de Câncer, signo regido pela Lua, segundo a astrologia (MARCH;
McEVERS, 1999). Câncer, assim como sua regente, está relacionado aos
instintos, ao humor, ao mundo sentimental e emocional, o que podemos
perceber na maior parte das características iniciais de Serena, mesmo que
estas venham em sua forma exagerada: é sensível, chorosa e amorosa.
Por outro lado, a Lua está presente também na figura de Ártemis, deusa
grega correspondente a Diana na mitologia romana, que rege a lua crescente
(BRANDÃO, 1987) 3 . A deusa Ártemis representa a expressão do
movimento, o feminino guerreiro, tem uma natureza instintiva (por não
seguir o padrão lógico, em oposição a Apolo, seu irmão). É a virgem eterna,
ou seja, não se submete ao masculino – aqui, referimo-nos ao princípio
masculino, caracterizado pelas leis, normas, hierarquias bem-definidas,
polarizações etc. Sua vestimenta é caracterizada, entre outros elementos, pela
saia curta (assim como as outras sailors), que permite que ela tenha liberdade
para se movimentar segundo sua própria vontade. Além disso, é determinada,
detalhista, confiável, amiga, leal e companheira e se comporta como líder
(AMARAL, 2007).
É possível perceber algumas semelhanças entre a deusa Ártemis e
Serena/Sailor Moon: Serena, apesar de se mostrar inicialmente como medrosa
e chorona, torna-se uma garota guerreira, com capacidade de combater o mal
em nome do amor e da justiça. Guerreira, também, é Ártemis, com seu arco e
flecha sempre certeiros. Sailor Moon aprende a liderar, está sempre
acompanhada por suas amigas sailors, como Ártemis, que sempre anda
acompanhada de ninfas, dadas por Zeus a seu pedido. Assim como a
expressão de movimento da deusa e a expressão de transformação da Lua,
vemos em Sailor Moon, ou melhor, em Serena, as transformações que a
jovem passa: de uma menina inocente, chorona e atrapalhada a uma garota
mais autônoma, independente, que luta pela justiça e que já não sofre por
amor.
Outro mito correspondente à história é o da deusa Selene, deusa da Lua na
mitologia grega, correspondente à deusa Luna na mitologia romana. O mito
de Selene está relacionado ao encanto dos enamorados. Assim como Serena,
que se apaixonou pelo guardião da Terra, príncipe Endymion, quando era
princesa da Lua, Selene também se apaixonou por um mortal, Endimião, ao
encontrá-lo adormecido ao relento no alto de um monte, configurando, assim,
um amor célebre. Selene é identificada muitas vezes com Ártemis, assim
como com Hécate, consideradas deusas lunares, embora apenas Selene fosse
considerada como a personificação da própria Lua.
Dessa maneira, verificamos que Serena personifica na história duas
dimensões do símbolo lunar: tanto o lado emocional, relacionado às
flutuações sentimentais e ao amor, relacionado a Selene, como o lado
instintivamente guerreiro, relacionado a Ártemis.

Sailor Mercúrio
Sailor Mercúrio é Amy Mizuno, colega de escola de Serena. Amy é
conhecida por ser muito inteligente e estudiosa, sendo chamada de gênio. É
possível perceber em Amy certas referências a Hermes, deus grego
correspondente a Mercúrio da mitologia romana, que é simbolizado por pedra
e vaso alquímicos e pela comunicação, que são “fundamentais para
transformação psíquica ou processo de regeneração da alma” (BAPTISTA,
2007, p. 253). Além disso, é interessante lembrar que Hermes é caracterizado
por alta capacidade de intuição (de enxergar além), independência e
autoconfiança, mas, principalmente, por sua sabedoria, com a qual já nasceu.
Encontramos as mesmas características no Mercúrio astrológico, que rege
a razão, a capacidade de comunicação, o intelecto, a percepção, a destreza, a
racionalização, a transmissão, as palavras, as opiniões e as percepções
sensórias (MARCH; McEVERS, 1999). Sailor Mercúrio personifica essas
características, sendo bastante analítica em suas tarefas e prezando sempre
pelo diálogo nas situações. Ela traz para a história e para a vida de Serena a
intelectualidade e a sensatez de suas atitudes.

Sailor Vênus
Mina Aino é a Sailor Vênus, a última guerreira a aparecer. Ela já atuava
anteriormente como Sailor V, antes de se unir às outras sailors, além de ser
protagonista de um jogo de videogame. Ela é vista pelas companheiras como
uma guerreira perfeita, sendo um modelo para as outras, a ponto de Serena
desconfiar que ela fosse a princesa da Lua, devido às suas características mais
marcantes: a beleza, a feminilidade e a perfeição. Essas características estão
relacionadas à deusa grega Afrodite, correspondente a Vênus na mitologia
romana, cujo maior poder é o da sedução. Pessoas que são regidas por essa
deusa são, em geral, joviais e alegres e dão bastante valor aos bens materiais.
Afrodite era uma deusa conhecida por sua beleza e também era a deusa
“dos relacionamentos e das transformações por amor” (LINDENBERG,
2007, p. 171). Mina, nesse sentido, exemplifica como uma profunda vivência
amorosa pode ser transformadora. No episódio 42 do anime, conhecemos
uma parte de sua história em que ela sofre uma decepção amorosa, tendo que
aceitar, por fim, que o rapaz que ela amava estivesse com outra garota. Dessa
maneira, Mina se coloca como um exemplo para Serena de que é necessário
ter maturidade ao lidar com as questões do coração.

Sailor Marte
Sailor Marte é Rei Hino, uma garota muito forte, decidida e até um pouco
arrogante, chegando a ser agressiva no dia a dia, principalmente com Serena,
com quem trava algumas discussões. Entretanto, possui boas percepções
intuitivas e chega a ser, às vezes, impulsiva ao enfrentar os inimigos. Seu
poder é o fogo, tendo este relação com o coração, as paixões, o conhecimento
intuitivo e a purificação alquímica (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1986).
O fogo tem, também, aspectos ambivalentes: da mesma forma que ilumina e
purifica, também queima e destrói. Nesse sentido, é possível perceber como
pode haver um aspecto positivo na destruição do fogo, pois com a queima e a
destruição é possível ter um novo, purificado e regenerado.
Marte corresponde ao deus grego Ares, cujas características mais
marcantes são as de impulsividade, alegria na destruição (nas guerras, Ares
tinha impulsos destrutivos maiores que os impulsos estratégicos, que ficavam
por conta de Atena), competitividade, independência e camaradagem.
Sailor Marte, assim como o deus grego, traz aspectos de maior
impulsividade, age de acordo com o passional, de acordo com seu elemento
regente (fogo), mas também é leal às outras sailors e, ainda que tenha
frequentes atritos com Serena, mantém uma boa amizade com ela.

Sailor Júpiter
Lita Kino, a Sailor Júpiter, é a personagem mais madura de todas, sendo
descrita como possuidora de uma grande força física, o que faz com que
outras pessoas tenham medo dela; ela foi, inclusive, expulsa de outro colégio
por causar briga. A partir de então, tornou-se colega de escola de Serena.
Além disso, é uma garota mais alta que as outras de sua idade. É uma ótima
cozinheira e é a mais independente das sailors.
Seu poder está relacionado ao raio, que, segundo Chevalier e Gheerbrant
(1986), “é o fogo celeste de imensa força e terrível rapidez: pode ser benéfico
ou nefasto” (p. 435, tradução nossa). O raio é, também, a arma de Zeus, deus
grego correspondente a Júpiter na mitologia romana, que foi forjado no fogo
pelos ciclopes. De modo geral, o raio representa a atividade celeste e a ação
transformadora do céu sobre a terra (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1986).
Assim como Zeus, Sailor Júpiter é bastante independente, analítica, chega
a ser mais impessoal em suas relações, tendo até um certo ar de
superioridade. Assim, Lita se destaca entre as sailors por sua altura
(remetendo à superioridade de Zeus), sua independência e sua maturidade,
assim como seu deus guardião.
A jornada de Serena e o desenvolvimento da personalidade
Segundo a psicologia analítica, o desenvolvimento da personalidade está
atrelado à chamada individuação, processo pelo qual uma pessoa busca sua
individualidade, sua singularidade mais íntima, com o objetivo de tornar-se si
mesma (JUNG, 2011). Esse processo se dá à medida que sua consciência, em
contato constante tanto com o inconsciente pessoal quanto com o
inconsciente coletivo, lida com diversas tarefas para se desenvolver
plenamente, como a elaboração de conflitos internos, a diferenciação entre o
eu e o outro, o desenvolvimento de uma identidade social para se relacionar
com o mundo externo e o reconhecimento de aspectos incômodos que fazem
parte da personalidade, mas são negados pela consciência, entre outras.
Cada uma dessas tarefas tem como base padrões psicológicos de natureza
impessoal chamados arquétipos do inconsciente coletivo, que são inerentes à
natureza humana, isto é, comuns a todas as pessoas, mas que cada uma irá
manifestar de acordo com sua vivência. Por esse motivo, podemos encontrar
correspondência entre esses padrões em diversas manifestações humanas, de
todas as épocas – inclusive nos mitos da Antiguidade, conforme apresentado
anteriormente.
Sendo assim, podemos identificar na jornada da pequena Serena elementos
que a levam a se tornar quem ela realmente é, a princesa da Lua. A princípio,
é possível dizer que a história se passa quando ela está vivenciando um dos
períodos mais intensos de sua vida: a adolescência. É nessa fase que surgem
diversas questões e conflitos relacionados à identidade, uma vez que o
indivíduo está saindo da infância em direção à vida adulta.
Serena demonstra frequentemente dois comportamentos característicos
dessa fase: a dificuldade de lidar com as responsabilidades e os interesses
semelhantes aos da maior parte das garotas de sua idade: roupas, perfumes,
cartas de amor e, principalmente, relacionamentos amorosos. Essas duas
questões são chave para o seu desenvolvimento.
Nessa fase de transição, a consciência desenvolvida ao longo da infância
precisa se afirmar diante do mundo, dos outros e de si mesmo. Conforme
Araujo (2010), um conflito básico da adolescência é transpor o desafio do
crescimento, numa tensão entre se tornar independente e, ao mesmo tempo,
temer a perda de segurança e dependência características da infância. Frente
ao seu novo chamado, Serena se sente amedrontada. A cada nova batalha, ela
se pergunta se é capaz de cumprir seus objetivos.
Quando descobre ser a princesa da Lua, no episódio 34, isso causa medo
na menina e ela se recusa a assumir esse papel, dizendo ser uma
responsabilidade muito grande, para a qual ela ainda se sente fraca.
Entretanto, embora se sinta assim, a gata Lua diz que não há como ela fugir
disso, trazendo um caráter de destino para sua vida.
Nesse sentido, a fala da gata evidencia que Serena está vivendo sob um
padrão psicológico de desenvolvimento, que tem como base um arquétipo, ou
seja, é comum a todas as pessoas. Numa determinada fase da vida, todos
precisam começar a assumir responsabilidades, sendo esta uma das tarefas na
busca por tornar-se si-mesmo e atingir sua verdadeira essência. Em outras
palavras, há um princípio maior (e, por isso, arquetípico) que promove o
desenvolvimento de Serena como princesa da Lua.
A presença de Tuxedo Mask na história é importante nessa balança entre
dependência e independência. Cada vez que ele salva Serena, é reativado nela
seu lado infantil e dependente, como se somente com a intervenção dele ela
conseguisse vencer seus desafios. Entretanto, ao longo dos episódios, essa
segurança trazida pelo jovem mascarado fica cada vez mais intermitente. Já
no episódio 5, por exemplo, Tuxedo Mask não aparece, como de costume, e
então Lua diz a Serena que ela precisa começar a se defender sozinha, pois
assim terá uma boa oportunidade de conhecer o mundo dos adultos.
Ao mesmo tempo, conforme visto anteriormente, cada sailor que surge na
história desperta nela algumas questões sobre sua própria personalidade. Na
introdução de alguns episódios, por exemplo, ela se pergunta, após descrever
as características delas: “Será que elas são mais competentes que eu?”. É na
relação com o outro que Serena passa a refletir sobre as responsabilidades. À
medida que os outros vão lhe mostrando diversas faces da vida, ela vai
integrando os aspectos antes projetados neles, como a capacidade de ser
responsável e de triunfar sobre o mal, algo que que ela não conseguia
reconhecer em si mesma. Em sua consciência anteriormente infantil, somente
os outros conseguiam realizar as tarefas difíceis.
Isso demonstra sua consciência se desenvolvendo de maneira autocrítica e
reflexiva, algo que se espera dessa fase da adolescência em termos de
desenvolvimento da consciência, uma vez que o ego infantil já poderia estar
estruturado (ARAUJO, 2010). Nesse movimento, Serena se compreende cada
vez mais dentro de um contexto no qual ela amplia o olhar sobre si e sobre o
mundo.
Torna-se cada vez mais ela mesma à medida que se reconhece como
princesa da Lua. Por fim, sua maturidade atinge o ápice quando, no último
episódio (46), em meio ao combate final, ela assume seu amor por Tuxedo
Mask, ao mesmo tempo que o sacrifica diante de seu objetivo de salvar o
mundo, também sacrificando a si mesma ao final.
Acompanhar a história de Serena e das outras garotas é, ao mesmo tempo,
uma viagem entre símbolos mitológicos e astrológicos e uma viagem pelo
desenvolvimento da personalidade. Tendo em vista que os padrões
psicológicos são universais, o sucesso da série, que até hoje ainda lança
produtos promocionais, evidencia o quanto aqueles símbolos e imagens
mexem com o imaginário e com a personalidade, trazendo a identificação
com os aspectos da série por parte de adolescentes e jovens de todo o mundo.
Referências
ALVARENGA, M. Z. (Org.). Mitologia simbólica: estruturas da psique e regências míticas. São Paulo:
Casa do Psicólogo, 2007.
AMARAL, M. T. M. B. Ártemis Sagitária. In: ALVARENGA, M. Z. (Org.). Mitologia simbólica:
estruturas da psique e regências míticas. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007. cap. 13, p. 235-249.
ARAUJO, F. R. R. S. Passagem perigosa: a construção da identidade de jovens em situação de
vulnerabilidade social – uma perspectiva da psicologia analítica. 2010. 198 p. Dissertação (Mestrado
em Psicologia Clínica) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010.
BAPTISTA, S. M. S. Hermes. In: ALVARENGA, M. Z. (Org.). Mitologia simbólica: estruturas da
psique e regências míticas. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007. cap. 14, p. 251-268.
BRANDÃO, J. S. Mitologia grega. Petrópolis: Vozes, 1987. (v. 2).
CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Diccionario de los símbolos. Barcelona: Herder, 1986.
JUNG. C. G. O eu e o inconsciente. Petrópolis: Vozes, 2011. (Obras Completas, v. 7/2).
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psique e regências míticas. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007. cap. 9, p. 169-182.
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Paulo: Pensamento, 1999. (v. 1).
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21 nov. 2017.
WIKIPEDIA. Sailor Moon. [S.l.: s.n.]. [20--]. Disponível em:
<https://pt.wikipedia.org/wiki/Sailor_Moon>. Acesso em: 21 nov. 2017.

1 Graduado em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Contato:
<riquemanesco@hotmail.com>.

2 Graduada em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Contato:
<katia.oushiro@gmail.com>.

3 A Lua, na mitologia grega, é representada por três deusas, uma vez que o princípio lunar caracteriza-
se por seus ciclos, e expressa a renovação da vida. A lua crescente corresponde a Ártemis, a virgem,
que representa o vir-a-ser; a lua cheia corresponde a Selene, cujas representações são a grávida e a
realização; as luas minguante e nova correspondem a Hécate, que representa a decadência e a morte
(AMARAL, 2007).
Goku: o macaco andarilho, mas não peregrino
Heráclito Aragão Pinheiro 1

BALL É UMA RELEITURA DO CLÁSSICO CHINÊS O MACACO PEREGRINO

D
RAGON
ou Jornada para o oeste (西遊記), escrito no século XVI por Wu
Cheng’em. A obra japonesa em quadrinhos, bem como sua versão em
anime, guarda similaridades com o escrito original, mas possui um tom de
paródia e, o que é mais importante, revela um profundo empobrecimento
simbólico – o que diz muito do pano de fundo psíquico inexpresso de nossos
dias. Os protagonistas possuem o mesmo nome em ambas as obras: Son
Goku (孫 悟空) – a pronúncia chinesa é Sun Wu Kong. Seu significado –
algo como “consciente do vazio” – tem um sentido profundo na obra original,
mas perde toda e qualquer importância na paródia moderna.
No clássico chinês, temos um macaco que nasce de maneira miraculosa,
torna-se rei, depois, imortal e vai ficando mais e mais poderoso até se
intitular “sábio igual ao céu” – alcunha prenhe de significado psicológico – e
causar todo tipo de barafunda na corte do Imperador de Jade. Mas era tão
absurdamente poderoso o Rei Macaco que nenhum dos marechais celestiais
ou espíritos imortais podia detê-lo. O equilíbrio do mundo estava por um fio,
ameaçado pelas arruaças do Macaco, quando, sem qualquer outra saída, a
corte celeste apelou para Buda, que desafiou o Macaco e, depois de derrotá-
lo, o aprisionou sob uma montanha de pedra por quinhentos anos. Passado
esse tempo em cativeiro, ele foi ordenado a acompanhar um peregrino,
Tripitaka, tornando-se seu discípulo para conseguir trazer o cânone budista da
Índia até a China.
Mas, psicologicamente, qual o significado dessa obra? Antes de tudo,
convém recordar que, em termos psicológicos, os mitos são a manifestação
da essência da alma. Toda mitologia é uma espécie de projeção do
inconsciente coletivo. Além disso, as figuras míticas – como o Rei Macaco –
correspondem a vivências interiores, e os arquétipos são elementos
estruturais da psique (JUNG, 1999). Existe, ainda, a crença muito difundida
de que os mitos são meras alegorias de eventos físicos. Entretanto, em
psicologia, existe uma sutil inflexão derivada de constatações empíricas:
trata-se do fato de que o arquétipo não provém de fatos físicos, mas descreve
como a alma vivencia a realidade. A psicologia não trata das coisas como elas
são por elas mesmas, mas da maneira como são imaginadas (JUNG, 2003).
O livro descreve, na figura do Macaco, a ação do complexo de poder e
aquilo que Jung chamava de inflação psíquica. O termo originário – tomado
de empréstimo da psicologia de Alfred Adler, que, por sua vez, o tomou de
empréstimo a Goethe –, “semelhança a Deus”, é psicologicamente mais
preciso. O Macaco, ao perceber-se logrado pelo Imperador com uma posição
que não passava de um título pomposo na corte celestial – posto que na
prática seu ofício era o de um mero cavalariço –, passou a causar as maiores
desordens e se autodenominou “sábio igual ao céu”, o que, psicologicamente,
dá quase no mesmo que “semelhança a Deus”. O Macaco de Pedra é a
própria imagem da desmedida.
Para que servem, afinal de contas, em termos psicológicos, as mitologias?
Nosso racionalismo atual vê nelas nada mais que uma curiosidade pré-
científica da superstição de nossos avós ou, no máximo, o legado venerável,
mas avelhantado, de nossos antepassados. Em termos práticos, uma mitologia
viva nos ensina a lidar com os aspectos objetivos da alma e a evitar uma
conduta similar à de Sun Wu Kong. Assim como os sonhos, os mitos não são
uma mera invencionice e não podem ser reduzidos a uma mera propriedade
da consciência, uma vez que são imagens oriundas do inconsciente e
carregam a marca indelével de sua origem.
Foi esse o significado vivo do mito, o de explicar ao homem desnorteado o que acontecia em
seu inconsciente, que não o largava. O mito disse-lhe: “Isto não é você, isto são os deuses. Você
nunca os alcançará, por isso volte-se para a sua vida humana, temendo e venerando os deuses”
(JUNG, 1999, p. 300).

A religião é entendida, psicologicamente, como a constante e cuidadosa


atenção aos fatores desconhecidos (JUNG, 2011), isto é, a conduta que não é
pautada apenas pela razão consciente, compreendendo em si também os
fatores desconhecidos e os acontecimentos sincrônicos. Essa atitude só
degenera em superstição quando se torna algo mecânico, não mais decorrente
de uma atitude intuitiva (VON FRANZ, 1990).
O Macaco, entre outras coisas, representa uma atitude típica de desmedida.
Não é supérfluo salientar que nosso Macaco não é um mortal comum, mas
um herói que teve um nascimento miraculoso e se elevou a alturas titânicas,
mesmo que de uma maneira atabalhoada. Durante todo o livro há menções ao
mau uso da religião: o próprio Macaco é um mestre taoísta que usa o poder
da alquimia interna para fins mesquinhos e se depara com vários magos
taoístas que igualmente fazem uso torpe dos poderes advindos das práticas
alquímicas e meditativas – psicologicamente, sucumbem ao complexo do
poder e são incapazes de realizar a mudança de atitude psicológica
(metanoia) necessária ao verdadeiro serviço religioso. Assim como o
Macaco, caem na trágica esparrela de se considerarem detentores do mana 2
do inconsciente.
A alma não é idêntica ao eu. Para além do eu e de seus conteúdos, há uma
alma inconsciente que se manifesta como algo autônomo, objetivo, dotado de
uma energia própria. A consciência do eu, ao se julgar possuidora do mana
do inconsciente, é, na verdade, possuída pela alma. Toda possibilidade de
ação desembaraçada e realmente consciente – ou seja, toda a liberdade
empírica – desaparece diante dessa atitude de desmedida, dessa “semelhança
a Deus”. Tal perda de liberdade é denotada na obra pelo aprisionamento de
Sun Wu Kong por quinhentos longos anos sob uma montanha que nem sua
força titânica poderia erguer.
O romance de Wu Cheng’em descreve a cura do complexo de poder.
Como se liberta o nosso Macaco? Ao realizar o serviço religioso, ao se
vincular vivamente ao símbolo budista – dessa forma, ele consegue realizar o
trabalho de diferenciar a personalidade empírica daquilo que são as potências
inconscientes e autônomas. Ao servir ao símbolo organizado pelo arquétipo,
em vez de se confundir com ele ou de julgar que pode competir com ele ou
controlá-lo, encontra finalmente a libertação. Paradoxalmente, ele encontra a
liberdade justamente no servir.
Em Dragon Ball, vemos um empobrecimento simbólico típico de nosso
tempo. A jornada de Goku não possui qualquer significado religioso; as
esferas, quando reunidas, invocam um imenso dragão celestial chamado
Sheng Long, capaz de realizar qualquer desejo. A errância de Goku não se
trata de uma peregrinação, não possui um sentido espiritual ou transcendente;
diferentemente de Sun Wu Kong, o personagem não abraça o paradoxo
taoísta de buscar não a força e a rigidez, mas a fraqueza e a flexibilidade – ao
contrário, Goku procura incessantemente tornar-se cada vez mais poderoso.
Na jornada de Sun Wu Kong, pressentimos o sentido vivo das palavras de
Lao Tzu (1999): “Quem vence os outros é forte/Quem vence a si mesmo é
poderoso” (p. 69). Além disso, o significado vivo da vacuidade budista,
presente no nome dos protagonistas, vai se desvelando nas imagens
engraçadas das pelejas com monstros, sendo o fio condutor de toda a jornada:
ao final, o Rei Macaco torna-se realmente “consciente do vazio”. Goku, por
outro lado, afasta-se sempre dessa possibilidade e, ao se transformar em
macaco, sucumbe completamente à fúria.
A religião exprime uma relação subjetiva com fatores metafísicos, isto é,
extramundanos. O sentido e a finalidade da religião consistem na relação do
indivíduo com Deus (judaísmo, islamismo e cristianismo) ou no caminho da
redenção (budismo), sendo essas as bases fundamentais de suas éticas
(JUNG, 2011). O sentimento religioso, ou, dito de maneira melhor, a atitude
religiosa, consiste em uma acurada consideração daquilo que Rudolf Otto
(apud JUNG, 1995) chamou de numinoso, com o significado de uma
existência ou efeito dinâmico não causados por um ato arbitrário. Nesse
sentido, a religião é um vínculo vivo do sujeito com os processos anímicos
que não dependem do consciente, mas que o ultrapassam. Há, por certo, um
vestígio dos elementos da mitologia chinesa em Dragon Ball, especialmente
no que concerne à burocracia celestial e ao mundo dos mortos com seus
deuses e reis, mas isso é pouco explorado e sem qualquer efeito dramático ou
implicação metafísica ou religiosa.
Em Dragon Ball, a busca pelas esferas é completamente mundana. Bulma
quer apenas realizar seus desejos, motivada por um individualismo típico de
nossa sociedade. Ela é uma paródia do monge Tripitaka, o personagem a
quem Sun Wu Kong se submete como discípulo e guarda-costas para permitir
a consecução da perigosa jornada para o oeste. O desejo que ela pretende
realizar ao reunir as esferas e convocar o dragão é o de conseguir um
namorado.
A personalidade de Goku é bastante diversa da do Macaco de Pedra, mas
ambos têm em comum alguns traços similares à figura do Trickster 3 . No
caso de Sun Wu Kong, contudo, há uma evolução simbólica em que ele
paulatinamente assume o papel de herói que seu nascimento miraculoso já
prenunciava. O nascimento de Sun Wu Kong, por seu caráter miraculoso e
virginal, é deveras interessante, sendo assim descrito logo no primeiro
capítulo do livro:
Havia outrora um rochedo que, desde a criação do mundo, tinha sido muito bem burilado pelas
puras essências do Céu e os finos sabores da Terra, o vigor dos raios solares e a meiguice do
clarão da lua; por fim, ele engravidou magicamente e, num belo dia, abrindo-se deu à luz a um
ovo de pedra, mais ou menos do tamanho de uma bola de criança. Fecundado pelo vento, ele
desenvolveu-se tornando-se um macaco de pedra, perfeitamente constituído, com todos os
membros e órgãos internos. Este macaco soube de imediato trepar e correr, mas seu primeiro ato
foi fazer uma reverência a cada uma das quatro direções (WU, 2000, p. 17).

O segundo parágrafo dá o tom do livro. O romance O macaco peregrino é


uma obra satírica, quase burlesca, repleta de um humor refinado e imbuída
desse espírito que fala de um símbolo vivo. Dragon Ball também possui essa
vertente cômica, e por certo há algo de simbólico na obra de Toriyama, mas
sem o vigor e a beleza do original – muito se perde, e essa perda diz muito
sobre o nosso tempo. Sun Wu Kong é incutido desse caráter de reverência
logo ao nascer, mas, ao adquirir poder e mais poder, ele o perde, vindo a
reencontrar essa sua essência após inúmeras peripécias ao lado de seu mestre
Tripitaka e de seus dois condiscípulos.
Na descrição do nascimento do Macaco de Pedra, fica claro que se trata de
um ιερός γάμος (casamento divino), uma conjunção entre o céu e a terra,
entre as forças Yin e Yang. Além disso, trata-se de um nascimento virginal, o
nascimento de um herói em sentido psicológico:
A ideia de uma concepção sobrenatural é compreendida como fato metafísico, mas
psicologicamente ela diz que um conteúdo do inconsciente (“filho”) nasceu sem a participação
natural de um pai humano (isto é, o consciente). Ao contrário, um Deus seria o gerador do filho,
e além disso o filho seria idêntico ao pai, o que em linguagem psicológica quer dizer que um
arquétipo central, a imagem divina, se renovara (“renascido”) e se “encarnara” de modo
perceptível ao consciente (JUNG, 1999, p. 312).

No caso de Sun Wu Kong, o “Deus” que é seu pai não é outro senão o Tao
(道) eterno. Faz-se necessário estabelecer a diferença, ou diferenças, em
termos psicológicos, entre Oriente e Ocidente para melhor compreender o
nascimento do Macaco de Pedra. O conceito de Tao é central para a filosofia
da China e impregna todo o seu pensamento. No Ocidente, a causalidade é
que desempenha esse mesmo papel, adquirindo ainda mais relevância nos
dois últimos séculos em virtude do sucesso sem precedentes das ciências
naturais. Traduzir o termo Tao é algo complicado, e Jung considera a melhor
tradução aquela feita por Richard Wilhelm, que o interpreta como “sentido”.
Em chinês moderno, o hanzi (道) pode significar, além de Tao: direção,
modelo, método, estrada, caminho, dizer, falar, conversar.
O nada (vazio) é o sentido ou a finalidade e é assim denominado por não
aparecer no mundo dos sentidos, mas organizá-lo: é chamado a forma sem
forma/a imagem sem conteúdo. Frequentemente, o Tao é comparado também
à neblina, que parece possuir qualidades similares de ser e não ser
simultaneamente. Trata-se de algo situado na fronteira do mundo das
aparências; nele, os opostos se dissolvem, porém ainda existem como
potencialidade.
Na perspectiva chinesa clássica, a realidade é cognoscível pois existe uma
racionalidade latente em todas as coisas. Há um paralelismo entre o psíquico
e o físico, porquanto os dois possuem o mesmo sentido, e disso resulta a
ordem. A perspectiva taoísta representa bem o pensamento chinês típico,
porque é um pensamento, sempre que possível, em termos de globalidade.
Daí resulta uma diferença notável nas visões de mundo ocidental e oriental,
conforme afiança Jung (2014): “Para nós, os detalhes são importantes em si
mesmos; para a mente oriental, os detalhes juntos é que formam sempre o
quadro global” (p. 67). O pensamento chinês tende a uma atitude intuitiva.
Para se compreender o drama de Sun Wu Kong – que, como estamos
percebendo, é bem diverso do drama do jovem Goku –, é importante ter em
mente, ainda, outra diferença basilar entre as mentalidades ocidental e
oriental. Para o Ocidente, o espírito é a mentalidade de um indivíduo; no
Oriente, o espírito é um princípio cósmico, a existência do ser em geral
(JUNG, 2012).
A partir de Kant (1980), chegamos à conclusão de que o espírito é a
condição essencial para o conhecimento, logo, para a existência do mundo
enquanto representação e ideia. No Oriente, está ausente o conflito entre
religião e ciência, isso por dois motivos: (1) a ciência não se baseia na paixão
pelos fatos; e (2), a religião não se baseia apenas na fé.
Diferentemente da paixão pelos fatos em seus mínimos detalhes, o Oriente
se baseia na realidade psíquica, isto é, na psique, enquanto fundamento da
existência. Trata-se de um ponto de vista introvertido, ao contrário do ponto
de vista ocidental, que é extrovertido. Ou seja, no Oriente a introversão é uma
atitude habitual coletiva. No que concerne à atitude religiosa, no Ocidente a
graça provém de outra fonte, provém de fora. Para o espírito oriental, essa
atitude não passa de um grau inferior de religiosidade, que deve ser
compassivamente tolerado. No que concerne à atitude oriental, a psique é o
mais importante, toda a vida jorra da psique, a realidade dos sentidos não
passa do véu de Maya, meticulosamente tecido por nossa alma. Obviamente,
uma posição idiotiza a outra, pois o que é valor para uma é desvalor para a
outra (JUNG, 1991).
O nascimento de Goku, ou melhor, seu aparecimento, macaqueia o
nascimento miraculoso do Rei Macaco, mas com uma diferença importante.
Goku também surge de um “ovo”, mas, em seu caso, trata-se (descobrimos
depois) de uma nave espacial em forma de esfera. Em vez de termos o
nascimento favorecido pelas forças cósmicas de Yin e Yang, Goku veio do
espaço. O espaço cósmico onde outrora viviam os deuses, em planetas com
seus nomes, é de onde veio o jovem Goku; ele não é um deus, imortal taoísta
ou algo que o valha, mas um alienígena com cauda de macaco. Seus poderes
sobre-humanos não têm uma causa divina, mas são explicados por sua
origem extraterrestre.
Jung (2013), ao tratar do significado simbólico dos diversos casos de
avistamentos de óvnis, tece uma comparação interessante: no ano 1000 da era
cristã, existiu uma ampla e divulgada fantasia sobre o fim do mundo – como
vimos em 2000 e, posteriormente, em 2012 –, de motivação puramente
metafísica. Nossa era racionalista não está disposta a se utilizar da hipótese
de um ato metafísico. Ainda assim, em virtude das tensões do contexto
histórico (ameaça nuclear, Guerra Fria, superpopulação etc.), surgiram os
boatos visionários sobre discos voadores. Não podemos escapar da
conjectura mitológica, ou seja, da projeção; entretanto, nossa época necessita
dar a impressão de um fundamento racional mesmo aos seus devaneios.
Tomem, por exemplo, certos contos modernos sobre vampiros, como Blade –
em vez de criaturas mágicas, há pessoas infectadas por um vírus. O mesmo se
dá com os zumbis hodiernos vitimados por uma doença misteriosa (ou
radiação, ou substâncias químicas; há até zumbis vindos do espaço!).
Do nosso céu, foram enxotados todos os deuses, mas não há força alguma
que possa expulsá-los de nosso peito, onde, até hoje, secretamente têm sua
morada. Em nossa época, Goku não poderia ser um deus ou um ente
metafísico. Vem mais a calhar, para nossa tendência racionalista, que ele seja
um extraterrestre. Ele, inclusive, carrega as mesmas projeções dos óvnis
estudados por Jung: era um terrível invasor que se converteu em salvador.
Essa característica ambivalente o torna mais interessante, porém o que
sobressai na imagem do jovem saiyajin é seu aspecto de salvador universal.
Goku representa uma variante moderna da criança divina. Essa é uma
considerável diferença em relação ao macaco de pedra Sun Wu Kong, que,
como indicam as primeiras linhas do livro, já nasce adulto e plenamente
capaz. A mitologia, ao falar das idades da vida, não pode ser confundida com
a mera biografia de seus personagens – é mais e menos que isso: ela abrange
as idades da vida enquanto realidades atemporais. A criança divina – como
toda figuração possível do ser – é uma forma de expressão do divino. A
mitologia, ao representar seus deuses como jovens, homens régios ou velhos
rabugentos, não está expressando idades biográficas, mas a essência de Deus.
Isso expressa seu valor simbólico, pois possuem plenitude de vida e plenitude
de sentido ao mesmo tempo, independentemente de qualquer relação
biográfica imaginável (JUNG; KÉRENYI, 2011).
O arquétipo da criança divina pode ser reconhecido por seus traços
fundamentais que sempre se repetem: a criança divina é na maioria dos casos
um órfão, uma criança abandonada e, desde cedo, ameaçada por perigos
extraordinários. Batman, Super-Homem e Homem-Aranha são todos órfãos.
No campo literário, o mesmo se dá com Harry Potter e, nos quadrinhos
japoneses, com Naruto. Goku, como bem sabemos, é um órfão,
“abandonado” na Terra e criado por seu avô adotivo, Son Gohan.
Algumas vezes, o pai da criança divina é o inimigo (como Darth Vader em
Star Wars ou Cronos e Zeus), em outros casos está simplesmente ausente
(como em Naruto ou no caso de Goku). A mãe desempenha sempre um papel
insólito: no caso de Goku, ela jamais é mencionada, em alguns casos, ela não
resiste ao nascimento da criança, em outros, a enjeita, mas é comum a
presença de amas nos mitos – no caso de Dragon Ball, Bulma, mutatis
mutandis, desempenha esse papel – e elas geralmente representam dois
significados: a solidão da criança divina e o quanto ela se sente à vontade no
mundo primitivo ou selvagem.
Bulma é a primeira mulher que Goku conhece e o segundo ser humano
com quem tem contato, pois desde a morte de seu avô vivia em completo
isolamento no “mundo primitivo”. Mesmo assim, ele é dotado de grandes
poderes e compaixão, o que denota a situação ambivalente da criança divina,
já que se trata de um órfão e, simultaneamente, de um “filho favorito dos
deuses”. Goku encarna bem o segundo tipo de abandono da criança divina
descrito por Kerényi: a solidão da criança no mundo primitivo e selvagem,
compreendida simbolicamente como “a criança original na solidão original
do elemento original; a criança original é o desenvolvimento do ovo original
da mesma forma que o mundo inteiro é o seu desenvolvimento” (JUNG;
KERÉNYI, 2011, p. 73, grifo do autor).
A psicologia junguiana trata produtos da atividade da fantasia inconsciente
como asserções da psique inconsciente acerca de si própria, e o drama de
Goku, que alcançou uma popularidade que ultrapassa em muito o escopo do
Japão, certamente faz vibrar uma corda comum. Aqueles que o assistem
percebem, consciente ou inconscientemente, um drama de sua própria alma
formulado de maneira humorística pelo desenho. Vemos ressurgir em Goku
uma estrutura imorredoura de nossa alma com uma roupagem moderna.
Um conteúdo arquetípico (inconsciente) se expressa em primeiro lugar
metaforicamente; não se pode entendê-lo de maneira denotativa. De acordo
com a hipótese dos arquétipos, Goku representa um elemento da estrutura
psíquica vitalmente necessário à economia anímica. O motivo da criança
reflete o aspecto pré-consciente da infância da alma coletiva:
Na realidade psicológica, porém, a representação empírica da “criança” é apenas um meio de
expressão (e nem mesmo o único!) para falar de um fato anímico impossível de apreender de
outra forma. Por esse motivo, a representação mitológica da criança não é de forma alguma uma
cópia da “criança” empírica, mas um símbolo fácil de ser reconhecido como tal: trata-se de uma
criança divina, prodigiosa, não precisamente humana, gerada, nascida e criada em
circunstâncias totalmente extraordinárias. Seus feitos são tão maravilhosos ou monstruosos
como sua natureza ou constituição corporal. É unicamente graças a essas propriedades não
empíricas que temos necessidade de falar de um “motivo da criança” (JUNG, 2011, p. 123).

Em termos pessoais, a problemática da criança divina surge principalmente


durante o processo que Jung denominou de individuação, em virtude de uma
separação violenta na pessoa de seu caráter originário em favor de uma
persona arbitrária. Da mesma maneira que acontece ao indivíduo, assim
também a humanidade entra sempre em contradição com seu estado
originário inconsciente, instintivo. O mito e o ritual têm a finalidade de trazer
à consciência a imagem da infância e tudo que a ela está ligado com o
objetivo de manter a conexão com esse estado originário.
A consciência diferenciada (unilateral) é constantemente ameaçada de
desenraizamento, daí a necessidade da compensação por meio do estado
infantil ainda presente. Quando este é totalmente reprimido, o conteúdo
inconsciente se apodera da meta consciente e pode destruir sua realização.
Qualquer progresso só pode acontecer por meio da cooperação de ambos.
A criança divina é o futuro em potencial; na psicologia do indivíduo,
significa geralmente uma antecipação de desenvolvimentos futuros. Por esse
motivo, tantas vezes os salvadores míticos são crianças divinas, o que
corresponde à psicologia individual, em que a criança prepara uma futura
transformação da personalidade (JUNG; KERÉNYI, 2011).
Goku é um “salvador”; mais interessante ainda é a percepção desse fato
por meio de imagens e piadas na internet sobre a “igreja” de Goku. Na
psicologia individual, a criança divina é um símbolo da unificação de
opostos, um portador da salvação. Nesse sentido, os destinos de Goku podem
ser compreendidos como representações daqueles acontecimentos psíquicos
que ocorrem na gênese do si-mesmo (Selbst).
A criança como herói, que é o caso de Goku, tem um nascimento
miraculoso, normalmente sobrenatural. Como se trata de uma gênese
psíquica, tudo tem que acontecer de um modo não empírico; porém, no caso
de Goku, essa gênese sobrenatural é substituída por uma origem
“extraterrestre”. Seu abandono, sua solidão, sua insignificância inicial e os
perigos aos quais está exposto normalmente possuem um caráter mundano,
porém elevado ao limite do divino. Goku é um “macaco” que se transforma
na lua cheia e perde a consciência completamente, e essa ligação com um
animal simbólico representa o inconsciente coletivo ainda não integrado em
um ser humano, ao passo que o seu aspecto de herói semidivino, que inclui a
natureza humana, representa uma possibilidade de síntese do inconsciente à
consciência humana. Isso significa uma antecipação potencial da totalidade.
Quando Bulma encontra o jovem Goku, ele está abandonado à própria
sorte na natureza e, depois, expõe-se aos maiores perigos, assustadores
mesmo diante de sua força hercúlea, o que representa a precariedade da
existência psíquica diante da totalidade e a imensa dificuldade de se atingir
esse bem supremo (a totalidade). Todos os perigos e obstáculos no caminho
do jovem herói possuem um sentido propedêutico, pois, no processo de auto-
realização, as influências do ambiente colocam as maiores dificuldades,
quase impedindo o caminho da individuação. O principal feito do herói é
derrotar o monstro da escuridão: a vitória da consciência sobre o
inconsciente. É a partir da tomada de consciência que se faz o mundo cuja
existência era antes insuspeita. A meta da criança é a vitória sobre a
escuridão.
Carentes de símbolos que traduzam nossas almas, adotamos como novo
folclore, sem o perceber, a cultura pop – cinema, animes, quadrinhos. Nesse
processo de construção de uma mitologia representativa e própria de nosso
tempo, acabamos, eventualmente, por tomar personagens limitados, como
Goku, por espelho possível para aquilo que medra em nossos corações, mas
isso basta? Creio que não, a não ser para alguns poucos mais sensíveis. A
imagem despreocupada do anime não possibilita o confronto moral
necessário ao nascimento da criança em nós. A vida de Goku não inspira
qualquer compromisso ético – não como Cristo o faz para os cristãos, quando
há religião genuína e não mera confissão; o personagem nos proporciona
apenas um momento de catarse passageira e algumas boas risadas.
O aspecto cômico em Dragon Ball é seu legado mais importante, pois o
humor é uma das poucas coisas que têm o poder de nos salvar de nós
mesmos. A imagem de Goku, por mais que não seja salvífica, engendra uma
insólita e divertida mitologia com o potencial de nos despertar para a fantasia
inconsciente e ser uma via para escaparmos do atroz materialismo que
caracteriza a nossa época – se for esse o caso, a criança divina terá cumprido
sua missão, mesmo que por vias tortuosas.
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______. Um mito moderno sobre coisas vistas no céu. Petrópolis: Vozes, 2013.
______. Sincronicidade. Petrópolis: Vozes, 2014.
JUNG, C. G.; KERÉNYI, K. A criança divina: uma introdução à essência da mitologia. Petrópolis:
Vozes, 2011.
KANT, I. Crítica da razão pura. São Paulo: Abril Cultural, 1980.
TZU, L. Tao-te King: o livro do sentido e da vida. São Paulo: Pensamento, 1999.
VON FRANZ, M.-L. A interpretação dos contos de fadas. São Paulo: Paulus, 1990.
WU, C. O macaco peregrino ou Saga ao ocidente. São Paulo: Hórus, 2000.

1 Graduado em História pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e mestre em Psicologia pela
mesma instituição. Autor dos livros Impetus, Naruto e a mitologia oriental e Obakemono, romance de
fantasia sombria. Coordenador da Pós-Graduação em Psicologia Junguiana na faculdade Ratio.
Contato: <heraclito@gmail.com>.

2 A energia, o assombro e o fascínio do inconsciente

3 Tipo de herói embusteiro, amoral e com características picarescas que representa um estágio
primitivo de desenvolvimento da consciência.
A condição de desamparo e o trabalho de luto em
Cardcaptor Sakura
Luiz Mello Gallina 1

E
STE CAPÍTULO BUSCA ABORDAR OS CONCEITOS DE LUTO E DE DESAMPARO
tendo como base a história narrada no mangá Cardcaptor Sakura.
Criado pelas artistas Nanase Ohkawa, Satsuki Igarashi, Mick Nekoi e
Mokona Apapa (o grupo CLAMP), foi publicado no Japão no período de
1996 a 2000. Ganhou adaptações para anime em 1998 e dois longas-
metragens nos anos seguintes. Em 2016, a protagonista Sakura volta a
protagonizar aventuras em Cardcaptor Sakura: Clear Card. Foi lançado em
2017 um capítulo especial em DVD e uma nova temporada do anime
começou a ser transmitida em janeiro de 2018.
O mangá e sua adaptação para a televisão apresentam diferenças
importantes de enredo. Essas divergências entre as mídias serão apontadas
nos momentos oportunos, mas de modo geral não alteram as análises
apresentadas. Aqui serão tratadas as produções realizadas até 2001, não
englobando, portanto, as sequências produzidas a partir de 2016.
A história trata de Sakura Kinomoto 2 , uma garota de 10 anos que mora
com seu irmão, Touya, cinco anos mais velho, e seu pai, Fujitaka. Sua mãe,
Nadeshiko, faleceu em circunstâncias não esclarecidas na história quando
Sakura tinha 3 anos.
A aventura se inicia quando a garota encontra um livro antigo na biblioteca
do pai e, ao abri-lo, acidentalmente permite a fuga de cartas mágicas que nele
estavam seladas. Essas cartas são criações de um mago antigo e poderoso
chamado Lead Clow e cada uma tem um poder mágico específico. Quando
libertadas, podem trazer destruição e desgraça ao mundo, e cabe a Sakura
aceitar ou não o desafio de capturá-las novamente. A protagonista opta por
realizar tal tarefa, mas não sem se angustiar com a possibilidade de falhar. A
abertura o livro também desperta Kero (apelido dado pela menina para
Kerberos, o guardião das cartas). Sob a forma e disfarce de um bicho de
pelúcia laranja com asas brancas, ele será seu companheiro e auxiliar na
busca pelas cartas. Conforme tem sucesso nas batalhas e conquistas das
cartas, Sakura passa a contar com o poder destas para capturar as que ainda
estão livres, precisando de atenção e criatividade – suas e de seus amigos –
para resolver os desafios impostos a ela.
Os acontecimentos da história de Sakura ocorrem em um contexto
histórico e cultural diferente do contexto no qual foram criados. A edição
brasileira do mangá, traduzida pela editora JBC, apresenta notas a respeito da
cultura japonesa como forma de elucidar o significado de algumas das falas e
hábitos dos personagens retratados 3 . Para evitar análises fechadas dos fatos
narrados na história, houve cautela nas interpretações das cenas. Priorizou-se
falar aqui de dois aspectos das aventuras de Sakura que retornam em diversos
momentos do desenvolvimento da personagem: foram discutidos o luto de
Sakura em relação à perda de sua mãe e o desamparo da protagonista diante
dos desafios enfrentados.
O desenvolvimento do enredo será apresentado enquanto discutimos os
temas que propomos analisar neste capítulo. Faremos, então, breves
considerações acerca do tema do luto antes de retomar a história de Sakura
para, posteriormente, abordar o aspecto do desamparo.
Alguns aspectos a respeito do luto
As características do processo de enlutamento foram discutidas por
Sigmund Freud em seu artigo “Luto e melancolia” (1992[1917]), bem como
em outras partes de sua obra. Todas as pessoas estão sujeitas a vivenciar o
luto, sendo este um fenômeno universal. Trata-se de um processo em que a
pessoa precisa de tempo para a elaboração de sua perda para, posteriormente,
ser capaz de lidar com ela e seguir em frente, mantendo consigo as memórias
relacionadas ao que, ou a quem, se perdeu.
O entristecimento vivido pela pessoa enlutada poderá ser acompanhado por
gestos de solidariedade e compreensão vindos de pessoas ao seu redor.
Compadecemo-nos por aqueles que perderam pessoas importantes pois nós
mesmos passamos ou passaremos por vivências de perda. O processo e
duração do luto de cada pessoa é diferente, uma vez que a relação com quem
se perdeu é única.
A pessoa enlutada apresenta dor psíquica. Recolhe-se das atividades e dos
interesses não relacionados à perda. A ausência da pessoa falecida ou do ideal
perdido aumenta e tem-se a sensação de que o mundo não é mais como antes.
Muitos aspectos da vida perdem o significado e é difícil se levantar e seguir
adiante. Mais que somente uma questão concreta a ser resolvida, o luto
implica um trabalho no mundo interno de cada pessoa, em seus sentimentos e
pensamentos.
Em alguns casos, surge o sentimento de culpa diante da possibilidade de se
recuperar da perda e seguir o curso da vida, como se a pessoa que segue viva
tivesse abandonado ou esquecido aquele que faleceu. Por esse motivo, são
comuns os rituais de despedida aos que se foram como forma coletiva e
social de recordar e exaltar a pessoa falecida, dando-lhe um último adeus.
Permanecem, então, as lembranças, recordações, impressões e idealizações
relacionadas ao falecido, mantendo sua existência nessas memórias sem que
se tenha um completo desligamento dele. Os sentimentos também podem
perdurar, mas se modificam por conta da ausência concreta da pessoa.
Porém, não há garantias de que o trabalho do luto ocorrerá sem grandes
obstáculos. Pode-se encarar a perda e aceitar a morte como a única certeza
comum a todos os seres humanos, deixando que a pessoa “se vá”, mantendo
as lembranças relacionadas a ela. Existe também a possibilidade de não
conseguir elaborar a perda, entrando em um estado de entristecimento e
melancolia que perdura por períodos extensos na vida, impedindo a retomada
ou o começo de novas atividades. Além disso, é possível se distanciar muito
da realidade, alucinando com a presença de quem faleceu, por exemplo.
No trabalho com o luto, é comum a sensação de que os elementos do
cotidiano fazem recordar a pessoa perdida. São sons, cheiros, objetos e
pensamentos que remetem àquele que se foi, voltando nossa atenção para,
mais uma vez, constatar a ausência do falecido. A cada lembrança, é comum
experimentar novamente a dor da perda, sendo necessário tempo para que
seja possível encarar a possibilidade de permanecer vivo e seguir em frente.
Aos poucos, o sujeito enlutado consegue ter outras atitudes diante dessas
lembranças, e a dor vai gradativamente se tornando mais suportável. Não é
esperado que em algum momento a perda possa ser vivida sem nenhum
sofrimento, mas essa realidade torna-se mais aceitável à medida que se passa
a elaborar o luto. Trata-se, como já foi dito, de um processo longo e
particular, que demanda muito trabalho da pessoa enlutada, além do auxílio
de sua rede de apoio, seja esta familiar, de amigos ou profissional.
Além da dor da perda, a pessoa enlutada também sente outro incômodo:
trata-se da desilusão diante da própria mortalidade. Para Freud (1992[1917]),
as pessoas levam consigo, ao longo da vida, uma ilusão infantil 4 de
imortalidade que, de acordo com a história e as possibilidades de elaboração
de cada um, pode se apresentar de formas diferentes. Cada qual lidará de uma
maneira com a noção da própria finitude e a ilusão de imortalidade pode se
apresentar em maior ou menor grau, dependendo da organização de mundo
interno de cada um. Ao nos depararmos com a morte das pessoas amadas,
sofremos não só com a perda em si, mas também com a reafirmação de que
não somos imortais. Lidar com um luto é um trabalho constante ao longo de
nossa jornada, sendo vivido cotidianamente por diferentes ângulos. Não se
trata de um caminho linear com crescente aumento da tolerância à perda, pois
toda construção que fazemos para lidar com a mortalidade é incompleta.

Sakura e o luto
Em uma das primeiras cenas, tanto do mangá quanto do anime, Sakura
cumprimenta o retrato de sua mãe, Nadeshiko. Indica-se, então, que esta
falecera quando a menina tinha 3 anos de idade. Ao longo do enredo, a
relação de Sakura com ela – e com sua ausência – é apresentada, sendo
interessante notar a forma como a protagonista se aproxima da história de sua
progenitora, estando sempre muito atenta a detalhes que a ajudem a entender
como ela era.
Sakura não guarda muitas memórias a respeito de Nadeshiko, mas constrói
sua imagem a partir dos relatos de pessoas que conviveram com ela: seu pai,
seu irmão, Sonomi (sua prima em segundo grau) 5 e seu bisavô. Essa
reconstrução permitirá a Sakura descobrir algumas semelhanças físicas e de
personalidade entre elas, permitindo, assim, uma aproximação póstuma.
Exemplo disso é a dificuldade que ambas têm com habilidades manuais e sua
notável dedicação para superar isso, visando presentear pessoas que amam.
Esse traço compartilhado por ambas é entendido por Sakura como algo de
que ela deve se orgulhar.
Acerca da história de Nadeshiko, Sonomi afirma que sua prima morava
com sua família. Há a sugestão de que os avós maternos de Sakura não
tinham condições de cuidar da filha, deixando-a desde pequena aos cuidados
dos tios e da prima. Ao tomar conhecimento disso, Sakura fica aliviada por
saber que sua mãe não crescera sozinha e desamparada quando criança e
adolescente. Isso parece importante à protagonista, talvez por ela mesma
conviver com a falta de uma figura cuidadora materna.
Nadeshiko fora modelo fotográfica desde o ensino médio. Conheceu seu
marido quando foi sua aluna. Eles ficaram noivos, casaram-se e Nadeshiko
abandonou sua carreira. O relacionamento não foi aprovado pela família dela,
especialmente por Sonomi. O resultado disso foi o distanciamento de
Nadeshiko e sua família, dificultando a possibilidade de Sakura conhecer a
história da própria mãe. Em uma viagem ao campo, a garota encontra-se com
seu bisavô, que em nenhum momento menciona que são parentes. Ele
presenteia a menina com um vestido, escondendo dela o fato de que este
pertencera a Nadeshiko.
Notando o interesse de Sakura em relação à história de sua mãe, assim
como o quanto a menina ama seu pai, Sonomi e o bisavô começam a
ressignificar o casamento de Nadeshiko e Fujitaka. Ambos ficam com menos
rancor diante daquele professor substituto que roubou Nadeshiko tão nova da
família. Falam também da dor de ter perdido Nadeshiko, elaborando o luto
conforme Sakura realiza o reencontro da família com a história da mãe. É
mencionado que Sonomi, ao seu modo, manteve a existência da prima no
desejo de que sua própria filha, Tomoyo, tivesse cabelos compridos como os
de Nadeshiko, buscando perpetuar uma característica que considerava tão
marcante na prima.
Sakura busca descobrir o que a mãe pensava sobre ela. Alegra-se ao saber
que Nadeshiko sempre quisera ter uma filha e dar a ela o nome de sua flor
preferida: a flor de cerejeira. É dada a mesma explicação para o nome de
Touya, batizado em homenagem à flor de pessegueira. Esse fato aproxima
Sakura de uma narrativa e de um sonho que a mãe tinha para a filha já antes
de seu nascimento. Tratam-se de imagens que os pais criam e “emprestam” a
seus bebês. Essas imagens representam o desejo dos pais de que seus filhos
se desenvolvam e aprendam a viver em sociedade, colocando-os em contato
com a diversidade que a vida lhes oferece. São traços pessoais que os pais
acessam em seus próprios mundos internos, relacionados também ao que que
gostariam de ter sido. Ao longo do crescimento, o bebê terá de lidar com
essas expectativas e decidir segui-las ou abandoná-las. Até lá, entretanto, são
muito importantes para que ele possa se desenvolver e ter um lugar no
mundo.
A função de proteção que a mãe de Sakura ocupou – e ainda ocupa – no
imaginário da menina é muito importante. Embora Sakura nunca tenha visto
o fantasma de sua mãe, Touya e seu pai relatam em diferentes momentos
conseguir enxergá-la quando Sakura está em apuros ou recuperando-se de
suas aventuras e de adoecimentos. Nadeshiko ocupa o lugar de grande
cuidadora de Sakura na memória dessa família. Ainda que a mãe tenha sido
capaz de proteger plenamente Sakura dos incômodos e das angústias
enquanto estava viva, a presença de seu fantasma parece evocar uma figura
de total cuidado que protege a menina das situações de perigo. Parece ser a
garantia, para Fujitaka e Touya, de que Sakura pode sobreviver à ausência da
mãe e aos perigos do mundo. A menina também compartilha desse
sentimento.
Quando enfrenta a carta Ilusão, Sakura acredita enxergar sua mãe na
manifestação física da carta. Nesse evento, a protagonista se ilude,
acreditando que Nadeshiko estaria sozinha no “pós-vida”, convidando a filha
a se juntar a ela. Sakura perde a consciência e cai de um penhasco. Quem a
salva é o verdadeiro fantasma de Nadeshiko, que amortece sua queda.
Posteriormente, a protagonista decide retornar ao local para verificar se o
fantasma da mãe gostaria de dizer algo a ela. No reencontro, consegue se
desvencilhar da ilusão e capturar a carta.
Nesse capítulo do anime, fica evidente o desejo de Sakura de reencontrar a
mãe. Entretanto, a quase morte da menina não é compatível com a ideia
enunciada por Yukito de que Nadeshiko nunca colocaria sua filha em risco.
Sakura pode manter simbolicamente a presença de sua mãe como figura de
constante proteção e cuidado, mesmo diante de sua ausência concreta. É esse
pensamento que permite que a menina não se entregue à morte e, então,
desmonte o truque da carta Ilusão.
Essa cena demonstra o aspecto da contínua elaboração do luto diante da
perda de pessoas muito importantes para nós. Como dito anteriormente,
sempre resta algum sofrimento que retorna à consciência quando nos
deparamos com novos desafios na vida. Não é esperado que Sakura seja
indiferente à ausência da mãe, mesmo após tantos anos e tantas conquistas
alcançadas. Foram e serão necessários muitos momentos de reflexão e
elaboração para organizar essa perda ao longo das diferentes etapas da vida
da menina.
A seguir, será discutida a questão do desamparo, condição vivida por todos
nós – e por Sakura – diante do desconhecido. Posteriormente, serão
apontados aspectos relacionados a esse tema na história de Sakura.
A condição de desamparo
A questão do desamparo foi abordada por Sigmund Freud em diversos
momentos de sua obra, ainda que não tenha dedicado a ela um trabalho
exclusivo (MENEZES, 2008).
Em “Projeto para uma psicologia científica” (1950[1895]) e em “Três
ensaios sobre a teoria da sexualidade” (2016[1905]), Freud contextualizou o
desamparo como a incapacidade física dos bebês, em seus primeiros
momentos de vida, de satisfazerem suas necessidades corporais que garantem
sua sobrevivência sem a presença de um outro (PEREIRA, 1999). Ao sentir
fome, por exemplo, a criança chora para comunicar seu desconforto. Um
adulto é quem deve realizar a “tradução” do choro e agir para deixá-la
confortável novamente (por exemplo, alimentando-a, ninando-a, pegando-a
no colo etc.). Portanto, o bebê depende do amor e do cuidado de um adulto
para se manter vivo nos primeiros momentos de vida. Se bem-sucedidas, tais
intervenções trarão algumas das primeiras experiências de satisfação a ele.
O desamparo não está relacionado apenas às capacidades motoras do
recém-nascido. O aprendizado da linguagem também implicará uma
dependência por traduções. Estas permitirão a diminuição do desconforto
físico na fala e ocorrem desde muito cedo na vida. Exemplo disso são as
conversas que os adultos realizam durante os cuidados como amamentação,
troca de fraldas, banhos, entre outros. Tais interações permitem que os
pequenos gradativamente assimilem essa forma de comunicação e aprendam
a associar os sons e os gestos do adulto àquilo que sentem no próprio corpo.
Posteriormente, poderão distinguir o que é interno (fome, sono, medo)
daquilo que vem do mundo (frio, calor, ataques dirigidos ao seu corpo).
Ao longo dessa lenta construção de relação, é estabelecido um vínculo de
segurança entre o bebê e seus cuidadores. Isso permitirá o desenvolvimento
gradual de uma tolerância aos desconfortos. Eventualmente, esses incômodos
deixarão de ser vividos como aniquiladores ou aterrorizantes, uma vez que a
criança passa a acreditar, a seu modo, que os seus cuidadores saberão
administrar as situações de desconforto e angústia. Posteriormente, poderá
contar também com palavras para descrever essas sensações, aumentando
ainda mais seu entendimento diante dos desconfortos vividos. Isso,
entretanto, não se dá de forma linear nem contínua, o que faz com que cada
pessoa passe por essas experiências em seu próprio ritmo.
Em resumo, os incômodos para os quais não havia palavras ou símbolos
que permitissem uma compreensão do que era vivido serão entendidos como
traumáticos.
Compreende-se por trauma o evento no qual um excesso de excitações
invade o mundo interno e não é possível representá-lo. Trata-se de uma
situação em que a pessoa – independentemente de sua idade – sente angústia
e desconforto, ficando aterrorizada por não conseguir simbolizar
minimamente aquilo que está acontecendo consigo.
Em determinado momento, a criança compreenderá, em maior ou menor
grau, que os cuidadores não conseguem evitar todas as situações de angústia
e desconforto vividas por ela. Assim, à semelhança de como seus cuidadores
lidam com suas próprias emoções, a criança inicia um trabalho interno de
administrar o que se passa dentro de si. Aos poucos, diante da proteção de
seus cuidadores e das descobertas do mundo externo, a criança aprende que o
desamparo é uma realidade tolerável.
As vivências do início da vida influenciarão a forma como cada pessoa lida
com a angústia. Elas poderão servir como memórias que irão antecipar e
prevenir que certas situações se tornem traumáticas. Ao longo da vida, as
novas experiências de angústia e seus desfechos se juntarão às memórias,
aumentando a capacidade do indivíduo de lidar com o desconhecido. Ainda
que uma pessoa consiga manejar suas necessidades de sobrevivência, tanto
orgânicas quanto afetivas, pode restar, eventualmente, uma condição de
desamparo e de incapacidade de preservar a própria vida, especialmente
quando sentimentos e afetos fortes venham a atravessar seu mundo interno.
Essa condição universal de desamparo está relacionada à fragilidade da
linguagem e à impossibilidade de descrever todos os aspectos de nosso
mundo interno por meio dela. Nunca uma definição será suficiente para dar
conta de nossas vivências. Estamos fadados à incompletude da linguagem e
só conseguimos simbolizar uma parte dos afetos que sentimos.
Para lidar com a imprevisibilidade da vida e com a realidade de que vamos
todos morrer, cada pessoa encontra sua forma de lidar com a condição de
desamparo para tornar a vida possível. São maneiras peculiares e criativas,
mas nunca completas ou à prova de desabamentos e desconstruções. As
ilusões que temos para suportar a morte são sempre falhas, temporárias,
sendo necessário reinventá-las a cada vez que nos deparamos com situações
que nos remetem à finitude. Pereira (1999) afirma que para Freud a condição
de desamparo não pode nunca ser completamente superada, “mesmo com os
maiores progressos da Ciência […], [sendo] a relação do homem com sua
existência sempre marcada pela precariedade, pelas falsas ilusões de domínio
e pelas tentativas mágicas de proteção contra os perigos” (p. 145).
Nenhuma palavra ou objeto será suficiente para que a pessoa alcance, em
qualquer etapa da vida, uma condição de plenitude e constante satisfação,
visto que sempre sobrará algo da experiência humana que não é passível de
ser colocado em palavras. É por esse motivo que somos capazes de atingir
objetivos que traçamos para nós mesmos e, ainda assim, queremos ir além,
em busca de novas conquistas.

Sakura e o desamparo
Em suas aventuras, Sakura é constantemente lembrada da condição de
desamparo à qual todos estamos submetidos. Embora não se apresentem
como “ataques de pânico”, os desafios enfrentados, mágicos ou cotidianos,
tornam necessário o uso de sua criatividade e de seu empenho para lidar com
as situações apresentadas.
Ao aceitar a missão de recuperar e selar as cartas mágicas do livro de
Clow, o guardião Kero alerta Sakura de que sua missão deve ser bem-
sucedida para evitar uma catástrofe. Ela precisa, assim, vencer seu próprio
medo para lidar com as forças mágicas que estão descontroladas e à solta pela
cidade, cada qual impondo à protagonista um novo desafio. Nessas situações
de angústia, é possível notar que Sakura duvida de suas próprias capacidades.
Em mais de uma ocasião ao longo da história, teme não ser capaz de virar
uma verdadeira Cardcaptor. A preocupação eventualmente se altera, então ela
passa a se questionar se conseguirá capturar todas as cartas perdidas e, por
fim, duvida que possa assumir o posto de dona das cartas mágicas,
anteriormente ocupado pelo poderoso mago Lead Clow.
Sakura não tem apenas suas habilidades para lhe ajudar: é auxiliada por
diversas pessoas ao seu redor, às quais pode recorrer diante de todos os
desafios, dos mais difíceis aos mais triviais – por exemplo, aprender a fritar
croquetes para presentear alguém. O tema do cuidado está muito presente em
suas relações com o irmão e com o pai, sendo perceptível também em suas
relações com os amigos da escola e com os guardiões das cartas.
O primeiro exemplo disso é Touya, seu irmão. Ele se preocupa com
Sakura, estando sempre por perto quando a garota circula pela cidade. É
mencionado que o irmão sabe, por magia, se ela está em perigo, deslocando-
se para ajudá-la quando necessário (ainda que não participe ativamente da
busca pelas cartas por não conhecer a missão de Sakura). Outro aspecto
interessante é que Touya faz trabalhos temporários, possivelmente com o
objetivo de complementar a renda da casa, garantindo conforto à família.
Yukito Tsukishiro, amigo muito próximo de Touya 6 , é retratado como
interesse romântico de Sakura. O rapaz mostra-se atencioso para com a
menina, presenteando-a com doces, convidando-a para passear ou
acompanhando-a de volta para casa em diversas situações. Yukito mora
somente com os avós, que muito viajam, pois perdeu os pais quando era
muito pequeno. Por estar sempre tão sozinho em casa, Yukito empatiza com
Sakura, sabendo o que significa ser alguém que precisa de cuidados. Busca,
então, usar seus próprios recursos internos para oferecer proteção às pessoas
por quem tem afeto. Adiante na trama, será revelado que ele é mais um
guardião das Cartas Clow, sendo essa a explicação de sua motivação de estar
sempre perto de Sakura, a fim de protegê-la nas situações de perigo.
Ao longo da história, é possível notar que Sakura é admirada por suas
amigas da escola. Isso fica claro pelas falas que expressam o olhar atento e a
estima das colegas por ela. Com suas amigas, torna-se possível dividir as
angústias, os sonhos e as felicidades. Elas se auxiliam, cada qual com suas
habilidades e dificuldades.
Tomoyo Daidouji é a amiga de Sakura que mais se destaca na história. Em
grande parte das aventuras, Tomoyo mostra-se calma e atenta diante dos
perigos, auxiliando Sakura a elaborar estratégias para capturar as cartas.
Tomoyo é uma ajuda fundamental para a protagonista em sua aventura,
assumindo o papel de decodificadora daquilo que ocorre no ambiente e
mesmo dentro de Sakura, como seus medos ou estados de ânimo. Tomoyo
cria e costura os trajes que a protagonista utiliza em suas aventuras, além de
registrar suas façanhas em vídeo. Essa admiração vai além da amizade,
existindo um interesse amoroso pela protagonista.
Tomoyo também compartilha com Sakura a falta de uma das figuras
parentais. Não é esclarecido o motivo da ausência de seu pai em sua vida.
Sua mãe, Sonomi, trabalha muito e, em diversos momentos, deixa a menina
sozinha ou com seguranças e outros empregados da família. Apesar disso, em
certas ocasiões, Sonomi se afasta do trabalho para ir ao encontro de Tomoyo
e cuidar dela, reforçando a importância que a filha tem em sua vida.
Há outras amigas na história de Sakura, como Rika 7 , retratada como uma
colega madura, que auxilia a protagonista nas questões amorosas; por sua
vez, Rika ainda está aprendendo a nadar e é ajudada por Sakura, ficando
evidente o companheirismo e o suporte dessa amizade. Há também Naoko,
muito interessada em ler e bastante criativa, mas que tem baixo desempenho
nos esportes, sendo incentivada a melhorar pelas amigas. Além disso, o casal
de colegas Chiharu e Yamazaki, que se conhecem desde pequenos, é para
Sakura um modelo possível de relacionamento amoroso.
Durante sua vida escolar, Sakura conhece a professora temporária Kaho
Mizuki. Ela é vista como um modelo adulto para Sakura, tendo, também,
uma grande admiração pela menina. Em diversos momentos, Mizuki cuida da
saúde e do bem-estar de Sakura, sendo na trama uma das mulheres que mais
se aproxima da função materna para ela. A importância desse laço se
evidencia pela troca de cartas que Sakura estabelece com Mizuki quando esta
retorna à Inglaterra, onde reside. Em uma das correspondências, Mizuki
recomenda de maneira muito atenta que Sakura não se esqueça de que é
muito admirada por todos. Recorda-a também do mantra invencível da
menina (“vai estar tudo bem com você”), que a guiará em diversos momentos
de desafio e terror durante suas aventuras de captura das cartas.
Um colega estrangeiro, Shoran Li, é apresentado na história como rival na
busca pelas Cartas Clow. Posteriormente, passa a auxiliar a protagonista e,
por fim, constrói com ela uma relação amorosa. Nascido em Hong Kong, o
menino mora sozinho em Tomoeda, sendo uma pessoa da idade de Sakura
que precisa administrar as dificuldades de viver sozinho em outro país.
Apenas a mãe de Shoran é mencionada na história, pois seu pai faleceu
quando o garoto era pequeno.
Dessa forma, é possível notar que Sakura é rodeada por um grupo de
pessoas que, desde muito cedo, precisou lidar com a ausência de alguma das
figuras parentais protetoras e encontrar meios de enfrentar seus desafios. Ao
longo de suas aventuras, Sakura teme perder ou se distanciar de todas essas
referências de proteção. Posteriormente, preocupa-se em protegê-los,
retribuindo o cuidado e o amparo que deles recebe.
Em seu cotidiano, são frequentes os momentos em que Sakura se vê
sozinha em casa, preocupando-se com a possibilidade de não dar conta dos
problemas que poderiam ocorrer na ausência de pessoas que possam ajudá-la.
O pai trabalha muito e o irmão, além de estudar, também está ocupado com
seus empregos temporários. A protagonista realiza um esforço para não
reclamar da solidão, pois entende que as obrigações deles vêm em primeiro
lugar, já que precisam sustentar o lar. Entretanto, sempre que se vê sozinha
em casa, a menina expressa preocupação e angústia, sendo recorrentes as
menções ao medo de fantasmas ou ladrões. A companhia do guardião Kero
permite atenuar um pouco a solidão da personagem. Gradativamente, a
protagonista começa a lidar com seus medos e angústias.
Sakura se esforça para cumprir suas obrigações escolares, apesar de sua
dificuldade para acordar cedo. A pressa para se arrumar e para tomar o café
da manhã, aspecto comumente apresentado na trama, é motivada por sua
vontade de encontrar Yukito, junto de Touya, no caminho para a escola.
Além de ele ser o interesse amoroso de Sakura, a menina também se sente
segura em sua presença. Tanto Touya quanto Yukito foram, aparentemente,
bem-sucedidos diante dos desafios cotidianos e das inseguranças evocadas
pela condição de desamparo. Seriam, portanto, modelos que servem de
inspiração para Sakura.
Mesmo construindo novos recursos para lidar com os desafios vividos 8 ,
contar com uma rede protetora é algo muito importante, dado que Sakura
ainda tem muitos medos, fraquezas e demandas de cuidado. Isso é esperado
de uma criança que perdeu a mãe tão cedo. Ao se deparar com desafios
inéditos, busca soluções observando seu ambiente e se utilizando das cartas já
capturadas. Também procura manter seguras todas as pessoas com quem
pode contar, salvando-as de diversos riscos ao longo da narrativa.
Assim que a protagonista sela todas as cartas mágicas, começa o Juízo
Final, no qual será testado se a menina pode ser a nova mestra das cartas.
Yukito se transforma, revelando ser o outro guardião das cartas, Yue. Ele é
quem aplicará o teste do Juízo Final em Sakura. Ela deve enfrentar o desafio
sozinha, sem poder contar com ajuda das pessoas próximas e do guardião
Kero. Se falhar, ocorrerá uma catástrofe tão ruim quanto a destruição do
mundo.
Trata-se, portanto, de uma situação imprevisível e aterrorizante, em que
não seria possível simbolizar ou compreender o que se passa. A protagonista
estaria imersa em angústia 9 . Yue, então, revela que todas as relações
afetivas entre as pessoas no mundo serão esquecidas, apagadas, caso Sakura
não seja bem-sucedida na tarefa. Temendo um mundo solitário, inóspito, em
que todos lhe pareceriam indiferentes e sem vida, Sakura se apressa para
encontrar uma solução, visto que não há, para ela, nada mais importante que
o afeto que sente pelas pessoas amadas. No anime, Sakura conhece essa
realidade inóspita na qual todas as relações amorosas e de amizade foram
desfeitas, restando somente indiferença no cotidiano.
A intervenção da professora Mizuki, porém, permite evitar esse
acontecimento. Sakura consegue se reassegurar de que tudo ficará bem e se
coloca de forma diferente frente à condição de desamparo, acalmando-se e
vencendo o desafio. Entretanto, como dito anteriormente, isso não garante a
ela a imortalidade ou qualquer garantia de que estará sempre segura. Por ser
bem-sucedida no Juízo Final, passa a ser dona e guardiã dos poderes das
cartas, dando seu toque pessoal às características destas, que passam a se
chamar Cartas Sakura. O seu próprio báculo também sofrerá uma
transformação, mudando de forma nos capítulos seguintes.
Ao ter resolvido a questão do Juízo Final, Sakura se vê livre para lidar com
a questão do apaixonamento por Yukito, decidindo confessar seus
sentimentos a ele. O rapaz, entretanto, afirma que a menina não está
apaixonada, mas agradecida pelo cuidado e pelo carinho que ele dirige a ela.
Apesar de compreender o que ele diz, Sakura sente a dor de não ser
correspondida em seu apaixonamento, entristecendo-se.
Quando consegue se recuperar da desilusão amorosa e retoma sua vida, seu
pai se alegra e expressa o alívio por ver a filha melhor. A menina não tinha
conseguido notar os gestos de cuidado do pai, de tão introspectiva que estava,
ocupando-se em viver o luto da desilusão amorosa. Quando supera esse
sentimento, Sakura passa a ter condições de ressignificar as ações do pai,
admirando-o e ficando muito grata pelos cuidados que sempre ofertou a ela.
Isso abre outras possibilidades para compreender e agradecer as pessoas ao
seu redor. Procede, então, expressando sua gratidão a Tomoyo, Shoran, Kero
e Yukito/Yue, marcando a importância que todos têm em sua vida.
“Tudo ficará bem”
Percebe-se, ao longo da narrativa, que Sakura duvida de suas capacidades
diante dos grandes desafios que tem de enfrentar. Todas as conquistas e
objetivos são temporários, colocando a protagonista, e todos nós, em
constante movimento para buscar algo melhor e maior. O desenvolvimento
não se dá de forma retilínea. Tal expansão de repertório não implica que a
condição de desamparo teria se desfeito. Entretanto, as experiências
permitem que suas capacidades de resolução de problemas sejam ampliadas,
usando a criatividade para tolerar os desafios e controlar o que antes poderia
ser vivido como traumático.
Por fim, é importante mencionar as comparações que Sakura faz entre si
mesma e o mago Lead Clow, o antigo dono das cartas. A capacidade de
acreditar nos outros diferencia Sakura de Clow, que é retratado como
solitário, tendo criado com sua magia os guardiões que o acompanhavam. Já
a protagonista conta com pessoas que têm suas próprias vidas e optam por
estar perto dela. Lead Clow tinha a capacidade de prever o futuro por conta
de suas magias. Mesmo assim, guardava uma grande apreciação pelo
imprevisível. Sakura, por outro lado, não consegue prever o futuro e busca
resolver os desafios com sua criatividade. Ainda que muitas dessas aventuras
tragam sofrimento, ela conta com seus próprios recursos e com as pessoas
próximas para lidar com o desconhecido. Ao final do mangá, Sakura passa a
ter a habilidade de prever o futuro, ainda que escolha não utilizá-la.
Como mencionado anteriormente, a falta de garantias diante do
desconhecido também nos coloca diante da certeza de nossa própria morte.
Admitir nossa finitude e a das pessoas à nossa volta é motor tanto do terror
frente aos aspectos imprevisíveis e incontroláveis da vida quanto da
criatividade para buscarmos aquilo que sonhamos ou que acreditamos que
nos trará satisfação.
A protagonista se apoia nas memórias da mãe – na ilusão de que ela
sempre estará por perto para protegê-la dos perigos –, nos adultos que a
inspiram a sonhar com seu futuro, nos amigos que tornam possível enfrentar
os desafios cotidianos e nos guardiões das cartas que a auxiliam em suas
aventuras mágicas. Essa rede permitirá que ela lide com as adversidades a seu
próprio modo. Diante dos desafios da vida, Sakura se mantém firme em suas
aventuras e em seus sonhos por acreditar que “tudo ficará bem”.
Referências
CARDCAPTOR Sakura. Produção: NHK. Tóquio: Madhouse, 1998-2000. 70 episódios (25 min. cada),
son., color.
CLAMP. Sakura Card Captors. São Paulo: JBC, 2001. 24 v.
FREUD, S. Projeto para uma psicologia científica. In: ______. Estudos sobre a histeria. Rio de Janeiro:
Imago, 1950[1895]. p. 335-454. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de
Sigmund Freud, v. 2).
______. Luto e melancolia. Revista Novos Estudos (CEBRAP), São Paulo, n. 32, p. 128-142, mar.
1992[1917]. Disponível em: <http://novosestudos.uol.com.br/wp-
content/uploads/2017/04/09_luto_e_melancolia.pdf-1.zip>. Acesso em: 27 nov. 2017.
FREUD, S______. Projeto para uma psicologia científica. In: Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1950[1895]. p. 335-454.
______. Inibição, sintoma e angústia. In: ______. Obras completas, volume 17: Inibição, sintoma e
angústia, O futuro de uma ilusão e outros textos (1926-1929). Tradução de Paulo César Lima de
Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2014[1926]. p. 13-123. (Obras completas, v. 17).
______. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: ______. Obras completas, volume 6: Três
ensaios sobre a teoria da sexualidade, análise fragmentária de uma histeria (“o caso Dora”) e
outros textos (1901-1905). Tradução de Paulo César Lima de Souza. São Paulo: Companhia das
Letras, 2016[1905]. p.13-172. (Obras completas, v. 6).
HODGKINS, C. Cardcaptor Sakura: Clear Card Arc Manga Gets TV animê Series in January 2018.
Anime News Network, [S.l.], 26 nov. 2016. Disponível em:
<https://www.animenewsnetwork.com/news/2016-11-26/cardcaptor-sakura-clear-card-arc-manga-
gets-tv-anime-series-in-january-2018/.109204>. Acesso em: 27 nov. 2017.
MENEZES, L. S. Desamparo. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2008.
PEREIRA, M. E. C. Pânico e desamparo. São Paulo: Escuta, 1999.

1 Psicólogo, acompanhante terapêutico (AT), psicanalista e técnico de pesquisa no Laboratório de


Estudos de Psicologia e Tecnologias da Informação e Comunicação (Janus) da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP). Contato: <luizmgallina@gmail.com>.

2 Neste capítulo, optamos por utilizar a grafia dos nomes dos personagens e das cartas conforme a
edição brasileira dos mangás de Cardcaptor Sakura publicados pela JBC em 2001.

3 Um exemplo dessas diferenças culturais são as diversas formas de se dirigir a alguém na língua
japonesa. O uso de prefixos varia de acordo com a formalidade ou proximidade entre duas pessoas.
Quando Sakura e Shoran começam a se chamar pelos primeiros nomes, por exemplo, está implícita
uma proximidade afetiva entre eles.

4 Aqui, o adjetivo “infantil” não tem conotação negativa. Refere-se àquilo que surgiu na infância (e é,
portanto, muito antigo) e acompanha todos nós mesmo com a passagem do tempo.

5 Sonomi Daidouji, mãe da melhor amiga de Sakura, Tomoyo, é prima de Nadeshiko, fato que só será
apresentado às garotas mais adiante na história.

6 Em mais de uma ocasião, é sugerida a existência de uma relação amorosa entre Touya e Yukito.

7 Rika vive um apaixonamento por um dos professores da turma, que corresponde seu afeto. Esse fato
foi percebido com estranhamento ao longo desta leitura, visto que ela é uma menina com idade entre 10
e 11 anos.

8 Ao tentar desvendar o enigma proposto pelas cartas Trevas e Luz, Sakura percebe que enxerga a si
mesma na solidão. Em seguida, nota a presença da carta Luz dentro de seu corpo, sendo, então, capaz
de selá-la. Esse fato torna evidente seu amadurecimento diante de situações desorientadoras.

9 O mesmo ocorre quando a turma de Sakura está tendo aulas na praia e tem de passar por um teste de
coragem, que se inicia como uma assustadora brincadeira dos professores e depois se torna um perigo
real por conta da carta Apagar.
Kirito e Asuna: um encontro com si-mesmo
Paula Guimarães 1

A se em 2022,Sano emA queOo jogo Sword


LIGHT NOVEL WORD RT , R K
NLINE 2 CRIADA POR EKI AWAHARA AMBIENTA-
,
Art Online (SAO), do tipo
massively multiplayer online role playing game (MMORPG), é lançado. O
jogo é pautado pela experiência de realidade virtual (virtual reality – VR)
proporcionada pelo Nerve Gear, um capacete que permite a estimulação dos
cinco sentidos dos jogadores e o controle de personagens por meio da mente.
No referido ano, 10 mil jogadores adentram o universo do jogo SAO e,
então, descobrem que não é possível sair dele. Akihiko Kayaba, criador do
SAO, surge e revela que somente se vencerem os cem andares de um castelo
de aço, denominado Aincrad, poderão sair do jogo, enquanto aqueles que
morrerem jogando ou que tentarem retirar seus Nerve Gears falecerão no
mundo real.
Dentre os personagens, encontra-se aquele que será o protagonista dessa
história, Kirito, que havia pertencido a um grupo de mil jogadores da etapa de
experimentação e teste do jogo, denominada fase beta. Uma vez que conhecia
o universo de SAO, Kirito acredita que pode vencê-lo sozinho e, assim, inicia
sua saga.
Há diversos aspectos do anime Sword Art Online sobre os quais se poderia
lançar luz, relacionados a ambientação, personagens, elementos, simbolismos
e relações interpessoais. Entretanto, o presente capítulo terá como foco o
desenvolvimento de Kirito, promovido por seu encontro com a personagem
Asuna.
Kirito, conforme exposto, inicia sua jornada solitário por acreditar que
seria capaz de vencer o jogo com suas habilidades e experiência como
jogador da fase beta, de modo que se recusa, em seu caminho, a se aliar a
outros jogadores por crer que estes somente o atrapalhariam e atrasariam em
sua missão de completar os cem níveis do Aincrad. Essa postura denota
arrogância, presunção e comportamento autocentrado do personagem, o que
se torna evidente, também, por ele acreditar e afirmar que vai proteger e
salvar a todos no universo do jogo.
Kirito, por diversas vezes, combate e vence os monstros-guardiões dos
níveis do castelo de aço e as demais figuras oponentes, bem como resgata e
salva outros personagens. Efetivamente, se sobressai àqueles que encontra em
seu caminho e demonstra superioridade em suas habilidades de batalha,
percepção e raciocínio.
O duelo do herói contra monstruosidades e criaturas malévolas, como
expressa Henderson (2008[1964]), exprime o conflito entre o ego e a sombra:
No decorrer do desenvolvimento da consciência individual, a figura do herói é o meio simbólico
pelo qual o ego emergente vence a inércia do inconsciente, liberando o homem amadurecido do
desejo regressivo de uma volta ao estado de bem-aventurança da infância [...] O herói [...]
precisa convencer-se de que a sombra existe e que dela pode retirar sua força. Deve entrar em
acordo com o seu poder destrutivo se quiser estar suficientemente preparado para vencer o
dragão. Ou seja, para que o ego triunfe, precisa antes subjugar e assimilar a sombra (p. 154-
155).

No transcorrer de sua trajetória, Kirito desempenha proezas, transpõe


obstáculos e ultrapassa limiares. Tais façanhas, realizadas caracteristicamente
por heróis, parecem simbolizar o movimento de fortalecimento egóico,
marcado pela ampliação da consciência por meio da integração de conteúdos
inconscientes. Nestes, estão inclusos aspectos que o indivíduo acredita que
estejam demasiadamente distantes de sua constituição, imersos na sombra,
cujo reconhecimento costuma se dar de modo pesaroso e dificultoso, como
são os feitos heroicos. Entretanto, esse movimento promove que tais
conteúdos passem a estar a serviço do ego, bem como, potencialmente,
aproxima o indivíduo de si próprio e impulsiona o processo de descoberta de
si mesmo. Somente desse modo torna-se possível prosseguir no caminho do
desenvolvimento psíquico, bem como da jornada heroica.
À medida que prossegue, Kirito vivencia momentos em que sua
falibilidade e suas limitações se desdobram em mortes de personagens que
pensava poder proteger, uma vez que acreditava não possuir imperfeições e
limites. Essas experiências promovem a reflexão do protagonista, no sentido
de que sua arrogância e seu senso de onipotência acabam ocasionando a
aniquilação de outros e, assim, ele pode contatar elementos que pensava não
lhe serem constituintes.
Kirito, portanto, surge como um ser inflacionado ao se julgar onipotente.
Entretanto, como passagem típica das aventuras heroicas, ao percorrer um
caminho permeado por provas, obstáculos e tentações, necessita de coragem,
força de vontade, esforço e resistência intensos. Porém, seu maior desafio é
descobrir a si mesmo, inclusive perceber suas limitações e a inexorável
submissão a poderes e desígnios de forças mais poderosas. Assim, Kirito
poderia se desvencilhar de suas inflações, renunciando ao poder e
percebendo-se em sua real medida.
Pode-se associar esse desafio à primeira luta máxima de Kirito, que se dá
contra Kayaba, criador de um jogo a partir do qual pensa ser capaz de
controlar os jogadores e ditar regras sobre suas vidas e mortes, buscando o
poder de um deus. Vencer Kayaba parece representar a necessidade de Kirito
de ultrapassar sua crença de que, sozinho, pode realizar tudo aquilo que
deseja, aniquilar todos os que julga merecerem e salvar aqueles que crê serem
dignos, da mesma forma que um deus, com sua pujança, poderia fazê-lo.
Portanto, pode-se conceber que Kirito, ao longo de seu caminho, percorre
experiências que se associam à apreensão pelo ego de elementos que julgava
não pertencentes a si, inclusive relacionados à sombra, o que permite, entre
outros movimentos, a míngua da inflação egóica.
Uma vez tendo incorporado elementos seus que até então eram
desconhecidos e tendo percebido seu real tamanho, Kirito se permite
aproximar-se de Asuna. Destoante de diversas figuras femininas que
permeiam a saga do personagem, Asuna é uma jovem fantástica, admirável,
combatente, forte, perspicaz. Desse modo, não somente é protegida por
Kirito, mas o protege, bem como se opõe a ele, desconcerta-o e o constrange
em diversos momentos.
Kirito sente-se fascinado e atraído por Asuna e, assim, não consegue
resistir à força que o magnetiza em direção à bela e vigorosa figura feminina,
a despeito de seu intelecto, inúmeras vezes, ter formulado juízos de que o
melhor seria se afastar, além de ter lhe surgido o temor de, efetivamente,
envolver-se com alguém. Asuna o deslumbra e o atrai de tal modo que Kirito
não é capaz de apartá-la.
Tal fascínio parece remeter à imagem da alma, sobre a qual Jung
(2011[1971]) discorre:
a alma, a atitude interna, é representada no inconsciente por certas pessoas que possuem as
qualidades correspondentes à alma. Esta imagem chama-se imagem da alma. [...] Nos homens,
normalmente, a alma é apresentada pelo inconsciente como pessoa feminina; nas mulheres,
como masculina. [...] Em todos os casos em que há identidade com a persona e, portanto, a alma
é inconsciente, a imagem da alma é transferida para uma pessoa real. Esta pessoa é objeto de
amor intenso ou de ódio intenso. As influências dessa pessoa têm caráter imediato e
absolutamente obrigatório porque sempre recebem resposta afetiva (p. 463).

Enquanto a imagem da sombra usualmente ocasiona temor e aflição, a


imagem da anima ou do animus suscita, costumeiramente, excitação, atração
e desejo de união, conforme afirma Stein (2005[1998]). A ânsia se dá por
avançar, querer participar, caminhar junto, se o receio à aventura não se
sobrepuser: “para fins de desenvolvimento psicológico e aumento da
consciência, a ação essencial do ego consiste em engajar a anima/us num
processo dialético” (p. 130).
Jung (2011[1971]) expressa que sempre que houver uma relação absoluta
cujo efeito é mágico, entre os sexos, trata-se de uma projeção da anima.
Nesse sentido, é possível correlacionar Asuna a uma figura de alma para
Kirito e, assim, ela parece se associar a uma representação de anima, um
complexo funcional que pode ser concebido como uma ponte entre o ego e o
inconsciente em nível mais profundo do que aquele contatado via apreensão
de elementos da sombra: “A experiência de anima/us é a Estrada Real (a via
régia) para o si-mesmo” (STEIN, 2005[1998], p. 133).
Por outras palavras, anima/us permite que o ego penetre e tenha a experiência das
profundidades da psique [...] Anima/us é uma disposição (ou atitude) que governa as nossas
relações com o mundo interior do inconsciente – imaginação, impressões subjetivas, idéias,
humores, emoções. Como estrutura psíquica, anima/us é o instrumento pelo qual homens e
mulheres penetram nas partes mais profundas de suas naturezas psicológicas e se adaptam a elas
(STEIN, 2005[1998], p. 118-120).

A trilha de Kirito, portanto, correlacionar-se-ia a duas etapas do processo


analítico – e acredita-se também aludir a momentos do desenvolvimento
psíquico – descritas por Jung (2011[1976a]). A primeira refere-se à
integração da sombra, à conscientização de elementos do inconsciente
pessoal, sem a qual não é possível a etapa seguinte, o conhecimento de
anima/animus: “Só se pode conhecer a realidade da sombra, em face de um
outro, e a do animus e da anima, mediante a relação com o sexo oposto,
porque só nessa relação a projeção se torna eficaz” (p. 35, grifos do autor).
O encontro do ego com anima/animus possui intrínseco potencial para o
desenvolvimento psíquico, pois, conforme exposto, representa uma conexão
com o inconsciente mais profundo que o permeado por elementos de sombra.
No caso da sombra, trata-se de uma reunião com as peças desdenhadas e rejeitadas da psique
total, com as qualidades inferiores e indesejadas. No encontro com anima/us, temos contato com
níveis da psique que têm potencial para conduzir às regiões mais profundas e mais altas (de
qualquer modo, as mais remotas) que o ego pode alcançar (STEIN, 2005[1998], p. 128).

A jornada prossegue, Kirito e Asuna combatem, em conjunto, criaturas,


personagens e monstruosidades, assim como desvendam mistérios,
conquistam itens mágicos relevantes para a completude de sua missão,
protegem e salvam personagens que povoam seus caminhos e,
progressivamente, rumam ao objetivo final.
Segundo Hopcke (2011), figuras como a de Asuna emergiram em inúmeras
lendas e obras literárias em que um personagem do sexo oposto conduz o
herói ou a heroína ao seu objetivo final da aventura; tratam-se de figuras de
anima/animus como companheiras e auxiliares do caminho.
Asuna e Kirito se aproximam paulatinamente e, em dado momento, Kirito
pede a Asuna que cozinhe um guisado com o coelho que havia capturado.
Asuna consente, mas diz que a refeição será servida em sua casa. Assim,
Kirito adentra a moradia de Asuna, que muda sua vestimenta de combatente
para uma roupa mais confortável e questiona Kirito se ele permaneceria
vestido como estava, o que faz com que ele retire seu habitual casaco.
Essa passagem parece representar uma maior aproximação entre Kirito e
Asuna, entre o ego e a anima, pois se despem de suas roupagens e proteções
características para entrarem, tal como são, em uma relação mais íntima e
verdadeira. O ego se desvencilharia de suas amarras mundanas, defesas e
preconcepções acerca de si para adentrar uma relação mais profunda com o
si-mesmo por intermédio do diálogo com a anima em sua morada.
Posteriormente, Asuna – que era vice-comandante de uma guilda – decide
se afastar de seu grupo a fim de prosseguir com Kirito. Assim, abdica de
antigos padrões e do status quo para dar lugar a um novo tempo, no qual
Kirito emerge como seu anunciador transformador. Conforme Alvarenga
(1995), a heroína, ao encontrar o herói em suas alteridades, de modo a se
complementarem, usualmente o protege e o mune de ensinamentos, técnicas
e conhecimentos necessários às façanhas que virá a executar. Portanto, acolhe
o novo e trai seu povo, pois seu desejo pelo herói é maior que sua lealdade à
tribo. Assim, renuncia ao poder endogâmico e à manutenção de velhos
padrões ao se render ao amor e permitir que o eleito anunciador da renovação
ocupe seu lugar no trono.
A traição das mulheres decretará o fim de um tempo [...] A cada série de heróis matadores
encontraremos uma sequência de mulheres “traidoras” [...] O feminino trai pelo amor ao inédito,
ao novo, mudando a ordem sistêmica ameaçada de destruição pelo endogâmico incestuoso. O
feminino que “trai” propicia a emergência da exogamia renovadora [...] Mulheres, sempre
mulheres, emergências da Grande Deusa, propiciando o acontecer de um tempo novo
(ALVARENGA, 1995, p. 79).

Em um segundo jantar na casa de Asuna, ela e Kirito dormem juntos e,


então, Asuna pede a Kirito que fiquem temporariamente fora de batalhas,
pois se encontra cansada e pressente que algum mal acontecerá. Kirito afirma
também estar fatigado e propõe irem a um pequeno vilarejo cercado por uma
floresta e lagos, situado no vigésimo segundo andar do jogo. Em seguida,
pede Asuna em casamento, e ela, emocionada, aceita.
Segundo Henderson (2008[1964]), para figuras masculinas, o casamento,
como representação simbólica, associa-se à descoberta bem-vinda e
necessária de um componente feminino, anima, da psique masculina. Nesse
sentido, o casamento correlaciona-se à assimilação da tendência do sexo
oposto para manter a libido em progressão, à integração do inconsciente, na
combinação de consciente e inconsciente, como expressa Jung (2011[1973]).
Desse modo, o casamento de Kirito e Asuna parece se relacionar ao
movimento de integração de elementos de anima à consciência.
Kirito e Asuna casam-se, mudam-se para o vilarejo e, enamorados,
divertem-se. Ao passearem pela floresta, encontram uma menina que, em
seguida, parece desmaiar. O casal, então, leva a criança para sua moradia e,
quando ela finalmente acorda, diz que não se recorda do que ocorreu; lembra-
se somente de seu nome, Yui. Ela chama Kirito e Asuna de papai e mamãe e,
assim, o casal passa a cuidar da garota, ainda que saibam que é necessário
buscar os pais verdadeiros da criança, a despeito da dor que sentirão no
momento em que se separarem dela.
Em sua busca por compreender o passado da criança, Kirito e Asuna se
deparam com um inimigo extremamente poderoso, que causa a queda de
ambos. Nesse momento, Yui se coloca à frente, ergue uma proteção em
forma de redoma energética e aniquila o inimigo com o uso de esfera e
espada de fogo. Há a revelação de que Yui, na verdade, é um objeto imortal.
Então, a criança se recorda de que é um programa criado para o sistema de
SAO a fim de auxiliar os jogadores. No entanto, anteriormente em sua
história, foi impedida de se aproximar dos jogadores, e assim permaneceu até
encontrar Kirito e Asuna.
Yui se emociona e chora, reação estranha, uma vez que se trata apenas de
um programa, ao que Kirito lhe diz que ela não se restringe somente a isso.
Nessa ocasião, Kirito e Asuna assumem os papéis de pai e mãe em relação a
Yui, que lhes corresponde como filha.
Segundo Stein (2005[1998]), o encontro com um(a) portador(a) da
projeção da anima ou do animus usualmente dá origem à emergência de
símbolos de gravidez e nascimento, o que se associa à seguinte explanação:
“A real intenção psíquica do affaire entre o homem convencional e sua nada
convencional mulher-anima é produzir uma criança simbólica, a qual
representa a união de opostos em sua personalidade e é, por conseguinte, um
símbolo do si-mesmo” (STEIN, 2005[1998], p. 127-128, grifo do autor).
Conforme Jung (2011[1976b]), o motivo da criança se conecta ao futuro
em potencial, logo, a ocorrência desse motivo na psicologia de um indivíduo
denota, usualmente, a antecipação de desenvolvimentos futuros.
Não admira, portanto, que tantas vezes os salvadores místicos são crianças divinas. Isto
corresponde exatamente às experiências da psicologia do indivíduo, as quais mostram que a
“criança” prepara uma futura transformação da personalidade. É, portanto, um símbolo de
unificação de opostos, um mediador, ou um portador da salvação, um propiciador de
completude (p. 166, grifo do autor).

Jung (2011[1976b]) prossegue, expressando que a criança ora possui


aspecto de divindade, ora de herói juvenil. Como divina, personifica o
inconsciente coletivo, ainda não integrado em um ser humano; já como herói
juvenil representa uma síntese do inconsciente e da consciência ao incluir a
natureza humana em sua sobrenaturalidade. Logo, a criança sinaliza uma
antecipação potencial do desenvolvimento psíquico.
Yui apresenta-se tanto como criança divina quanto como heroína juvenil,
uma vez que não é representada como humana, mas como criação imortal,
dotada de poderes sobre-humanos – a saber: extrema força, magias raras,
percepção intensamente aguçada, conhecimentos ímpares, entre outros
elementos – e, concomitantemente, desempenha atos heroicos de intensa
grandeza, inclusive a fim de salvar Kirito e Asuna e promover sua união.
Portanto, Yui parece remeter à criança que é fruto do encontro entre ego e
anima, aquela que sinaliza a integração de elementos destes, de modo a
emergir como um símbolo do potencial desenvolvimento psíquico, da
mediação e da unificação entre opostos; nessa história, isso é ilustrado pela
união, pelo diálogo e pela relação entre Kirito e Asuna, os quais são
promovidos, inclusive, por Yui.
Após uma série de desenrolares, duelos e peripécias, chega o momento
para o qual toda a aventura se dirigiu: o confronto final com Kayaba. Kirito
duela com ele, inclusive fazendo uso da espada de Asuna, e vence-o ao final.
O jogo é completado e os jogadores conseguem sair do universo do SAO e
voltar à vida real. Antes de se retirarem do jogo, Kirito e Asuna se
apresentam com seus nomes do mundo concreto: Kirigaya Kazuto e Yuuki
Asuna.
Kirito e Asuna podem, então, apresentar-se como aqueles que de fato são,
o que parece, uma vez mais, denotar o reconhecimento e o estabelecimento
genuíno de uma relação entre ego e anima. Assim, tornam-se potenciais a
aproximação e a integração de elementos do inconsciente mais profundo à
consciência por meio da ponte aflorada com a anima.
Contudo, ao retornar ao mundo real, Kirigaya Kazuto toma conhecimento
de que Yuuki Asuna está em estado de coma e, ao visitá-la no hospital,
encontra Sugou, um homem que deseja se casar com Yuuki, tirando proveito
de seu estado e chantageando seus familiares, uma vez que tem o poder de
mantê-la viva.
Agil 3 , um amigo de Kirigaya Kazuto, envia-lhe uma fotografia de Asuna
presa em uma jaula situada no universo do ALfheim Online, novo jogo de
realidade virtual. Assim, Kirigaya entra nesse jogo como Kirito, a fim de
resgatar Asuna.
Nesse novo universo fantástico, Kirito encontra-se novamente com Yui,
que passou a se configurar como uma fada-guia; conhece, também, Leafa,
uma personagem que nos recorda das figuras protetoras e guardiãs presentes
em inúmeros contos e mitos, pois ensina Kirito a voar – característica
primordial nesse jogo –, bem como o ensina sobre a ambientação de cenários,
as habilidades pertinentes, as magias e demais elementos fundamentais para
sua nova saga.
Ainda que Kirito e Asuna não saibam, Leafa é interpretada por Sugu,
prima de Kirigaya Kazuto, criada como sua irmã. Sugu é apaixonada por por
seu primo, assim como Leafa vem a se enamorar de Kirito. Entretanto, este
permanece leal a Asuna, assim como Kirigaya Kazuto permanece leal a
Yuuki Asuna. Apesar desse desencontro, Leafa e Sugu se mantêm ao lado de
Kirito e Kirigaya Kazuto como figuras guardiãs e protetoras, bem como
auxiliares de seus caminhos.
Leafa conta a Kirito que o objetivo de todos os jogadores é alcançar o
cume da Árvore Mundial, no qual encontrariam o Rei Oberon e renasceriam
como uma classe mais avançada em comparação às demais. Contudo, a
dificuldade dessa tarefa reside no fato de que os voos dos personagens têm
limite de altura e de tempo de duração, além de a base da Árvore Mundial ser
protegida por monstros poderosíssimos, sendo que ultrapassá-la é o primeiro
passo para iniciar a subida. Kirito, então, revela a Leafa que necessita
alcançar o topo da Árvore Mundial a fim de resgatar uma pessoa.
No decorrer do tempo que permanece enjaulada, Asuna protesta, confronta
e rejeita o Rei Oberon, personagem interpretado por Sugou, bem como busca
meios para escapar; no entanto, é mantida prisioneira pelo Rei Oberon e por
seus subordinados. Assim como no mundo concreto, Sugou deseja que seu
personagem e a personagem de Asuna se casem, motivo pelo qual a mantém
presa; além disso, ele anseia por exercer domínio e ter poder sobre os
jogadores de ALfheim Online, inclusive sobre suas emoções, pensamentos e
desejos. Assemelha-se, portanto, a Kayaba, uma vez que ambos aspiram o
poder de um deus.
Após uma série de combates, façanhas e proezas, Kirito, Leafa e Yui
chegam à base da Árvore Mundial. Impulsivamente, Kirito alça voo com toda
a sua força, mas não é capaz de ultrapassar a barreira interposta a certa altura.
Então, adentra a cúpula situada na base da árvore, onde se depara com
incontáveis guardas munidos com espadas e arcos e flechas.
Kirito é ferido gravemente e, derrotado, morre no universo do jogo.
Enquanto aguarda o período de tempo necessário para renascer no mundo
virtual, reflete sobre o fato de que não pode conseguir tudo aquilo que deseja,
relembrando sua trajetória até aquele momento; como pensamento final,
Asuna lhe vem à mente. Então, Leafa o resgata, consegue se desviar do
alcance de flechas e espadas, sai da cúpula e, por meio de um artefato
mágico, ressuscita-o.
Em uma nova tentativa de adentrar na Árvore Mundial, Kirito, Asuna, Yui
e Recon dirigem-se à sua base. No transcorrer do combate aos guardiões,
surgem montadores de dragões para auxiliá-los, uma vez que Kirito os havia
ajudado anteriormente. A batalha prossegue e cada um realiza bravamente
seu papel, o que culmina na passagem de Kirito e Yui por um portal que lhes
permite prosseguir rumo ao ápice da Árvore Mundial.
Kirito e Yui, então, deparam-se com um novo portal, o qual Yui consegue
abrir ao conjugar seus poderes com um cartão lançado por Asuna em um
momento anterior da saga, quando ela ouvira a voz de Yui a lhe chamar,
próxima à Árvore Mundial. Kirito e Yui prosseguem em seu caminho e,
enfim, encontram Asuna presa no interior da jaula; Yui, então, rompe as
barras da prisão de Asuna e todos se abraçam.
Entretanto, uma força energética opressora passa a operar sobre eles, Yui
desaparece e o Rei Oberon surge. Kirito não é capaz de se mover, o que
permite que o Rei Oberon o agrida, transpassando-o com sua espada para
mantê-lo preso ao solo enquanto aprisiona Asuna em correntes com algemas,
ameaçando-a e torturando-a diante de Kirito; este, por sua vez, reflete se
aquilo seria o seu castigo por se idealizar como o jogador mais forte, crendo
que poderia salvar Asuna sozinho, ainda que soubesse não possuir capacidade
alguma. Então, Kirito chora, desolado, tomado por desespero e senso de
impotência.
Em meio ao vazio, ilustrado por um fundo de tela branco, surge a imagem
de Kayaba, que provoca uma reação em Kirito, fazendo com que este se
levante a partir de um diálogo estimulante e confrontador. Kirito, por fim,
ergue-se e, dotado de intensa força de vontade, aniquila o Rei Oberon e
liberta Asuna, que, finalmente, consegue sair do jogo e recobrar a consciência
no mundo real. Em seguida, Kirito reencontra Yui e lhe promete que, em
breve, retornará, na companhia de Asuna, a fim de encontrarem um meio para
prosseguirem como uma família.
Whitmont (2004[1969]) discorre acerca da ilusão de que é possível ter
absoluto controle sobre tudo aquilo que nos circunda, de que nada pode nos
acontecer se os devidos cuidados forem tomados, enfim, de que querer é
poder. Segundo esse autor, o ego não pode renunciar a tal ilusão sem que o
indivíduo tenha vivenciado sofrimentos intensos, por meio de julgamentos e
falhas conscientes, a ponto de que as armas caiam de suas mãos.
Então, quando estamos a ponto de desistir e, finalmente, sentimos que não adianta, que não
podemos fazê-lo – então começa a transformação. É aí que nos tornamos o objeto e não o
sujeito da mudança interior. Esse ponto de completo desespero é o momento decisivo (-
WHITMONT, 2004[1969], p. 177).

Somente após vivenciar o desespero e a impotência, frutos de sofrimentos


ao longo de sua trajetória – sobretudo em função do aprisionamento e tortura
de Asuna, decorrentes de sua arrogância e orgulho –, Kirito é capaz de
recobrar suas forças, mais vigorosas que nunca, e salvar Asuna. Inicia-se,
então, sua verdadeira transformação e sua mudança interior, representada
pela libertação de Asuna.
Conforme Henderson (2008[1964]), a aptidão do herói para proteger ou
salvar mulheres fantásticas de um grande perigo é uma das formas pelas
quais os sonhos ou os mitos referem-se à anima. Esse salvamento simboliza,
para o referido autor, a liberação da anima da dimensão inconsciente.
O salvamento e a libertação de Asuna por Kirito associam-se ao
movimento da liberação da anima das amarras do inconsciente, o que torna
possível sua integração à consciência, relacionada a Kirito levar Asuna ao
mundo real, ou seja, ela deixa de ser apenas uma figura habitante de um
universo virtual imaginário e passa a se constituir como parte da realidade
concreta de Kirito.
Já no mundo real, Kirito se dirige ao hospital e, então, depara-se com
Sugou e, dessa vez, derrota-o facilmente, mas poupa sua vida. Enfim, quando
adentra o quarto de sua amada no hospital, Kirito e Asuna se abraçam,
entrelaçam seus dedos, apresentam-se novamente com seus nomes reais e,
finalmente, podem seguir juntos.
Referências
ALVARENGA, M. Z. A grande deusa e a emergência do masculino. Revista Junguiana, São Paulo, n.
13, p. 72-87, 1995.
HENDERSON, J. H. Os mitos antigos e o homem moderno. In: JUNG, C. G. (Org.). O homem e seus
símbolos. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008[1964]. p. 133-307.
HOPCKE, R. H. Guia para a obra completa de C. G. Jung. Petrópolis: Vozes, 2011.
JUNG, C. G. Tipos psicológicos. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2011[1971]. (Obra Completa, v. 6).
______. Símbolos da transformação. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 2011[1973]. (Obra Completa, v. 5).
______. Aion. 8. ed. Petrópolis: Vozes, 2011[1976a]. (Obra Completa, v. 9/2).
______. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 2011[1976b]. (Obra
Completa, v. 9/1).
STEIN, M. Jung: o mapa da alma – uma introdução. 4. ed. São Paulo: Cultrix, 2005[1998].
WHITMONT. A busca do símbolo: conceitos básicos de psicologia analítica. 6. ed. São Paulo: Cultrix,
2004[1969].

1 Mestre e doutora em Psicologia Clínica pelo Núcleo de Estudos Junguianos da Pontifícia


Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Analista de Promotoria – Psicóloga junto ao Ministério
Público do Estado de São Paulo. Professora do curso de Psicologia da PUC-SP. Contato:
<paula.ppvg@gmail.com>.

2 A light novel deu origem a um anime produzido pela A-1 Pictures, cuja primeira temporada baseou o
presente capítulo

3 Agil também fora um dos jogadores de SAO.


Kimi no Na Wa: a busca pelo inconsciente
Roxane Pirro 1

A sensação de ter perdido alguma coisa permanece por


um bom tempo depois que acordo. Sempre estou
procurando por algo ou alguém.
(Taki e Mitsuha)

NA WA (YOUR NAME, EM INGLÊS; SEU NOME, EM TRADUÇÃO LIVRE) É

K
IMI NO
um filme japonês dirigido por Makoto Shinkai, responsável também
pelos filmes de sucesso 5 centímetros por segundo (2007) e O jardim
das palavras (2013). Todos esses filmes têm uma característica em comum:
uma preocupação impecável com as animações, para deixá-las visualmente
lindas e cativantes. O filme foi lançado em 2016, quebrando diversos
recordes de bilheteria no Japão e fazendo sucesso até nos cinemas
internacionais. No Brasil, chegou aos cinemas em 2017, também tendo
sucesso de bilheteria durante as primeiras semanas.
A história retrata a vida de dois adolescentes que não se conhecem:
Mitsuha Miyamizu, uma garota entediada que mora em um templo na cidade
fictícia de Itomori, no interior do Japão, e Taki Tachibana, um garoto bonito e
popular que mora na cidade de Tóquio. Logo no começo do longa, os dois
começam a ter sonhos estranhos em que trocam de corpo, passando a viver as
vidas um do outro por um dia. Pensando ser somente um sonho, ao trocar de
corpo fazem o que têm vontade: desde gastar o dinheiro do outro
indevidamente até agir e falar mais agressivamente com os colegas de classe.
Ao dormir e voltar a acordar, os personagens voltam aos seus devidos
corpos, lembrando do sonho e do quão estranho ele foi. Entretanto, seus
amigos e familiares não hesitam em comentar o quanto estavam estranhos no
dia anterior, o quanto suas ações foram diferentes de suas ações costumeiras.
Isso passa a se repetir na narrativa dia sim, dia não, até que os protagonistas
percebem a verdade: não é um sonho, eles realmente trocam de corpo por um
dia, ocasionalmente.
Sem entender por que nem como isso acontece, os dois passam a deixar
lembretes em seus celulares ou a escrever avisos, pedidos e explicações em
seus corpos. Isso inclui não deixar que o outro tome banho quando trocam de
corpo, não deixar que o outro gaste dinheiro, pedir para o outro agir de forma
mais contida em público e explicar para o outro detalhadamente como foi o
dia anterior e o que aconteceu de diferente.
O principal evento relatado nos jornais durante o período em que os
protagonistas trocam de corpo é a passagem de um cometa visível a olho nu,
algo que todos aguardavam. No dia seguinte à passagem do cometa, Taki
percebe que não pode mais trocar de corpo com Mitsuha e parte em uma
jornada para descobrir o porquê disso.
No meio de sua viagem, descobre que a cidade de Itomori foi destruída
pelo cometa que havia passado e que Mitsuha morreu nesse acidente, por isso
não era mais possível que trocassem de corpo. O estranho é que esse evento
ocorrera três anos antes, ou seja, a linha do tempo dos dois não estava
alinhada: o Taki do presente estava trocando de corpo com a Mitsuha do
passado.
Taki, então, parte em uma nova jornada, agora para tentar salvar as pessoas
de Itomori e poder voltar a ver Mitsuha. Entretanto, há um problema que
dificulta a trilha dos dois: quanto mais se distanciam e não trocam de corpo,
mais vão esquecendo da existência um do outro, dos acontecimentos e,
principalmente, de seus nomes.
A representação do inconsciente
Na psicologia analítica, há os conceitos de anima e animus. Ambos são
elementos inconscientes, que fazem parte do nosso dinamismo psíquico. Em
linhas gerais, Jung (1987) descreve a anima como um elemento feminino
dentro do dinamismo da psique masculina; já o animus seria o elemento
masculino dentro de uma psique feminina. Ou seja, de acordo com o autor,
um homem terá inconscientemente uma representação feminina, e a mulher,
uma representação masculina. Ambos possuem aspectos negativos e
positivos, a depender de como tais conteúdos foram integrados na psique,
mas o ideal é que trabalhem junto com a consciência e ajudem no processo de
desenvolvimento da psique ao longo da vida.
Von Franz (apud JUNG, 1964) complementa a descrição de Jung dizendo
que a anima é a personificação de tendências psicológicas dadas como
femininas. Sua influência na psique de um homem aparece pela sensibilidade,
pelos sentimentos, pela intuição e pelo relacionamento com o inconsciente. O
animus, diferente da anima, é a personificação das tendências dadas como
masculinas, como insistência, imposição, voz forte e convicções
incontestavelmente verdadeiras.
É preciso reconhecer ambos como estruturas que funcionam como pontes
para o mundo interior. O objetivo desse dinamismo inconsciente é permitir e
forçar que o homem e a mulher desenvolvam e amadureçam partes de seu ser
que desconhecem, integrando mais conteúdo de sua personalidade oculta,
inconsciente, e trazendo esses conteúdos para a realidade. Podemos entender,
então, que a função dessas estruturas é a de relacionamento com o mundo
inconsciente. Assim, a mediação do animus ou da anima entre consciência e
inconsciente permite que novos conteúdos cheguem à consciência, podendo
estes ser ou não integrados.
Voltando à narrativa do filme, podemos fazer uma relação de anima e
animus com o dinamismo de troca de corpo que acontece entre os
personagens. Mitsuha passa a ser a representação da anima de Taki, enquanto
Taki passa a ser a representação do animus de Mitsuha. Eles possuem
personalidades muito diferentes, mas cada um tem qualidades que faltam no
outro. Com isso dito, podemos falar mais sobre essa representação.
Quando os personagens trocam de corpo tão repentinamente, há um
choque: tanto por estarem com partes íntimas diferentes quanto por estarem
em uma nova vida, tendo de agir como o outro e aprender a personalidade do
outro para que possam viver o dia sem chamar atenção. Por ser algo muito
brusco, criam regras e relatórios para amenizar esse primeiro contato e
começar o processo de aprendizado juntos de forma mais suave. Assim,
começam a jornada para lidar com o feminino e o masculino com que não
tinham de lidar antes.
A exemplo do animus, de acordo com Von Franz (apud JUNG, 1964), se
uma mulher der a devida atenção consciente aos problemas de seu animus,
apesar de ser dolorido e tomar bastante tempo, ao se dar conta da influência
dele e não se deixar possuir por ele, o animus pode auxiliar na integração de
novos conteúdos e virar uma série de boas qualidades que podem ser
utilizadas a favor da mulher, como iniciativa, coragem e ter uma posição mais
objetiva. Durante o filme, podemos ver o amadurecimento de Mitsuha depois
de entrar em contato com seu inconsciente, representado por Taki: ela se
torna mais objetiva, decidida e destemida, viajando sozinha para Tóquio
impulsivamente e fazendo o possível para usar sua personalidade e sua
iniciativa para salvar a cidade nos últimos momentos. Ao mostrar um corte de
cabelo novo e decidido, também demonstra um ato impulsivo e corajoso.
A mulher deve buscar a coragem e a grandeza de espírito interior capazes de lhe permitir avaliar
a inviolabilidade das suas convicções. Só então estará capacitada a aceitar sugestões do seu
inconsciente, sobretudo as que contradizem as opiniões do seu animus. Só então, repetimos, é
que as manifestações do self chegarão a ela e a farão compreender conscientemente o seu
sentido (VON FRANZ apud JUNG, 1964, p. 260).

Além da representação do animus em Mitsuha, podemos ver,


principalmente, o desenvolvimento da anima em Taki, já que a maior parte
da animação é focada nele e em sua jornada para salvar Itomori.
Taki, por meio da projeção de sua anima em Mitsuha, pode entrar em
contato com a sensibilidade e os sentimentos, de forma que apresenta
desenvolvimento e amadurecimento durante o filme. Podemos entender,
então, que novos conteúdos foram integrados à sua consciência, tornando sua
personalidade mais inteira. Um exemplo disso é o momento em que tem um
encontro com sua colega de trabalho e consegue lidar com ela com mais
sensibilidade, além de perceber seus verdadeiros sentimentos.
Há um melhor entendimento de Taki com relação à compaixão para com
os outros, sejam eles os amigos de Mitsuha, a cidade ou os habitantes de
Itomori, bem como um entendimento mais claro de seus reais sentimentos
por Mitsuha. Taki também apresenta um desenvolvimento e maior
aprofundamento na relação com os personagens com os quais tem contato,
além de ter uma maior determinação em salvar aqueles com quem se importa.
Podemos notar, também, que há uma sensibilidade em relação ao feminino,
que pode ser ilustrada por amadurecimento enquanto homem ao estar no
corpo de Mitsuha e pensar que não deve tocar em seus peitos “pelo bem
dela”, não apenas por seguir as regras.
Uma evidência muito forte disso também pode ser vista perto do final do
filme: Mitsuha e Taki finalmente se encontram pessoalmente em uma mesma
linha do tempo pelo curto período de alguns minutos do pôr do sol. Taki tem
a ideia, então, de um escrever seu nome na mão do outro a caneta, para que
eles não esqueçam um ao outro quando voltarem para suas linhas temporais
normais. Entretanto, em vez de escrever seu nome na mão da menina, Taki
resolve expressar seus mais profundos sentimentos e escreve “eu te amo”,
deixando a garota sem saber seu nome.
Outra passagem representativa da integração mente e corpo entre os dois
seria a do kuchikamizake, um ritual japonês muito antigo, feito a partir da
mastigação do arroz: uma sacerdotisa cospe o arroz mastigado em um um
recipiente para que fermente e se transforme em sakê. No filme, Mitsuha faz
esse ritual como parte da tradição do templo onde vive, depositando o sakê
em um santuário da família um pouco afastado da cidade. A avó da menina
explica, enquanto Taki está no corpo de Mitsuha, que aquilo é metade de
Mitsuha, já que é feito dela. Diz que o santuário é um tipo de submundo e
que, para retornar ao mundo normal, deve deixar algo para trás, aquilo que
for mais importante, como o kuchikamizake.
No momento em que ouve essa fala, Taki não a compreende; entretanto,
seu sentido será entendido mais adiante, quando, desesperado, tenta retornar
ao mundo de Mitsuha para alertar as pessoas sobre o cometa que irá destruí-
los. Assim, ele bebe o kuchikamizake e, ao desmaiar, volta a ser Mitsuha,
tentando usar de suas novas habilidades integradas de sensibilidade para
convencer todos de que devem se dirigir a um local seguro. Entretanto, ao
perceber que apenas ele, como Taki, não conseguiria fazer isso, chega à
conclusão de que é Mitsuha, com sua própria personalidade, que deve tentar
convencer as pessoas e dá lugar a ela. E a garota, depois de ter demonstrado
uma posição destemida recém-integrada por seu dinamismo do animus, salva
grande parte dos moradores da cidade do acidente ocasionado pelo cometa.
Linha do tempo
A linha do tempo dos protagonistas do filme não está alinhada, uma vez
que temos Mitsuha três anos no passado em relação ao presente de Taki.
Entretanto, de alguma forma, eles conseguem se conectar e se relacionar. Há
diferentes interpretações para isso, sendo que nenhuma delas é uma verdade
absoluta que exclui outras interpretações.
Primeiramente, devemos levar em consideração que aqueles conteúdos
proporcionados por anima/us foram apresentados para os personagens em um
momento propício, em que ambos precisavam desenvolver determinadas
qualidades. Aqui, considera-se também que o inconsciente tem um
dinamismo atemporal, ou seja, permeia tanto o passado quanto o presente e o
futuro, por ter diversos conteúdos de diferentes tempos. Por isso, se formos
ponderar que ambos estavam se conectando inconscientemente porque eram
representações inconscientes um do outro, faz sentido que a linha do tempo
não seja precisa, já que ela não necessariamente precisa ser a mesma para os
dois personagens.
Em segundo plano, podemos citar o trabalho de Pereira ([20--]), que cita a
distinção do tempo de anima e animus. A anima está relacionada com o
passado, com o ancestral, cultural. Já o animus, pelo contrário, volta-se para o
futuro, para o planejamento e para questões tecnológicas: “Anima e animus
precisam um do outro; pois o animus pode tornar o passado relevante para o
presente e o futuro, enquanto a anima dá profundidade cultural às previsões e
opiniões vigentes” (HILLMAN, 1985, p. 35 apud PEREIRA, [20--]). Dito
isso, faz sentido que Taki tenha uma representação de anima que vive no
passado, enquanto Mitsuha teria uma representação de animus que vem do
futuro (no caso, do presente de Taki).
Seu nome
O filme proporciona uma reflexão interessante sobre o que é um nome e o
que ele representa para todos nós. Há na mitologia antiga os mitos do deus-
Sol, Rá, e da deusa Ísis, a maga. Rá era um deus muito poderoso, que mudava
de aparência e de nome, transformando-se para não ser reconhecido. A deusa
Ísis almejava aumentar seus poderes mágicos e, para isso, deveria descobrir o
nome verdadeiro de Rá, que era onde estavam guardados seus poderes. Para
tanto, utilizou sua sabedoria e sua magia para criar uma armadilha para o
deus-Sol. Ísis criou uma cobra venenosa, a qual colocou no meio do caminho
pelo qual Rá passava diariamente. No dia seguinte, ele foi picado e chamou
todos os deuses para ajudá-lo a se curar. A única que apareceu foi Ísis, que,
antes de curá-lo, pediu para que ele dissesse seu nome verdadeiro. A
princípio, Rá se negou a fazê-lo, mas a dor era tanta que acabou cedendo.
Depois de ter revelado seu nome de nascimento, Ísis sentiu seu poder
aumentar, tendo poderes superiores aos de todos os outros deuses. Conseguiu,
então, curar Rá com sua magia, passando a exercer poder sobre ele.
A partir dessa história, podemos entender duas questões: Rá e a
importância de um “nome secreto”, que vamos relacionar à persona; e Ísis, à
procura do nome e de seus poderes interiores, que vamos relacionar com
anima/animus.
Rá foi aquele que criou diversas personalidades, nomes e formas para
esconder sua verdadeira identidade de quem quisesse possuí-la. Isso foi
importante para sua construção de identidade, já que, com o passar do tempo,
mudava sua forma para guardar onde estava seu enorme poder. O nome,
então, foi uma muralha que guardava seus segredos. Levando em
consideração essa importância do nome para Rá, podemos ver na animação a
valorização do nome para os protagonistas, representada pela importância de
saber o nome um do outro e, mais relevante ainda, de lembrá-lo. A partir
dessa afirmação, podemos explorar mais o conceito de persona para a
psicologia analítica.
Para Jung (1987), a persona é uma espécie de máscara que usamos em
ambiente social que esconde parte da verdadeira natureza do indivíduo. A
persona é consciente, o que se mostra para o outro. Ninguém consegue se
adaptar totalmente às exigências, necessidades e expectativas da sociedade,
daí a necessidade da persona. Existe, portanto, uma máscara diferente para
diferentes ambientes e situações sociais. Rá criou diferentes personalidades e
formas, ou seja, diferentes personas, para não ser reconhecido pelos humanos
e deuses e dar continuidade ao seu reinado. Assim, seu poder ficou guardado
dentro de seu nome verdadeiro, de sua verdadeira forma interior. A partir daí,
podemos fazer a analogia do nome como uma persona.
O nome é o primeiro contato que se tem com alguém, a primeira
informação que vamos buscar. Quando conhecemos uma pessoa, é comum
que a primeira coisa que desejamos saber seja seu nome. É algo primordial,
porém superficial. O nome, em sociedade, é uma máscara que não abrange
todo o conteúdo de uma pessoa; portanto, é algo passível de esquecimento e,
como no caso de Rá, mutável.
O filme demonstra o total inverso daquilo com que nos relacionamos
cotidianamente, retratando primeiro o contato do inconsciente com a
consciência, e não o inverso. Os personagens não se conheceram em
circunstâncias normais, então não sabiam, por todo tempo em que trocaram
de corpo, os nomes um do outro. O nome não foi a primeira forma de
apresentação entre eles; esta se deu ao conhecerem mais a fundo o verdadeiro
dono do corpo em que estavam. Portanto, essa relação já começou tendo um
nível de intimidade maior que o normal.
Para construirmos uma persona, deixamos de viver parte de nossos
potenciais, que ficam no inconsciente. A persona é uma função adaptativa,
assim como o animus e a anima, mas que serve para construirmos um
relacionamento com o mundo externo, diferente do outro par de estruturas,
que lida com o mundo interno. Apesar de ser parte do que somos, ela não
representa nossa personalidade por inteiro, é apenas uma faceta de nós que
mostramos para a sociedade, sendo necessária para que possamos nos adaptar
a ela. Dependendo de como esse processo é vivido, podemos acabar nos
identificando com a persona, acreditando que esse papel que desempenhamos
para o convívio coletivo é tudo que somos. Nesse caso, podemos negligenciar
traços de personalidade que também fazem parte de nós e, em casos mais
extremos, sacrificar o nosso verdadeiro eu.
Rá sacrificou seu nome verdadeiro e sua forma original para poder se
tornar poderoso e irreconhecível, mas isso também deve ter um preço. A
máscara da persona que usava diariamente deve ser compensada
internamente, como uma balança, pela influência de anima/us.
No caso de Ísis, a busca pelo nome de Rá é uma busca interna para saciar
sua sede de conhecimento. Ela queria o poder contido nesse nome, buscando
mais do que a persona de Rá queria mostrar. Ela elabora um plano para
identificar não só a persona de Rá, mas seu eu interior, para acordar seu
poder contido, buscando seu oposto, o animus. Quando ela descobre essa
identificação e dá sentido ao seu animus, seu poder desperta. Esse, então, é
um mecanismo para desenvolver a personalidade e compensar a falta de “se
mostrar para o outro”.
Só quando a persona é despida e a anima/us abre os portões para acesso às camadas mais
profundas do inconsciente [...] é que a necessidade de desenvolvimento interior torna-se uma
questão aguda e seriamente considerada. Embora isso possa parecer-se a um surto de neurose,
pode muito bem ser o apelo para individuação adicional e o desafio para que se empreenda uma
jornada mais profunda pelo interior, na estrada que leva ao desenvolvimento individual (STEIN,
2009, p. 122).

Taki e Mitsuha também partem em uma jornada para se descobrir e ter essa
compensação de anima/us, como foi dito anteriormente. Entretanto, o filme
mostra uma construção inversa, propiciando, primeiro, um conhecimento
maior do interno, para depois passar para o externo. Por isso, a questão do
nome é importante apenas na parte final do filme.
Em algumas cenas, Taki questiona a veracidade dos acontecimentos e vai
esquecendo lentamente de Mitsuha e da cidade de Itomori. Quando descobre
que a garota havia morrido, as mensagens e notas em seu celular vão
rapidamente desaparecendo à medida que vai perdendo contato com a
persona de Mitsuha. Ele vai, lentamente, negando os acontecimentos,
dizendo que tudo aquilo que viveu e esqueceu não passou de um sonho do
qual não consegue se lembrar.
As pessoas ao seu redor se preocupam, já que não entendem o porquê de
ele estar agindo dessa forma nem por que faz uma viagem para Itomori.
Passar por esse surto psicótico é algo compreensível por parte de Taki, pois o
inconsciente é tão cheio de conteúdos que é possível ficar louco com as ideias
e todos os conteúdos profundos que ele tenta tanto lembrar, mas não
consegue. Ele sente como se parte dele estivesse faltando.
No final dos acontecimentos, nem Taki nem Mitsuha conseguem se
lembrar do nome do outro e, depois, não conseguem lembrar sequer de sua
existência. O contato e a relação que tiveram foi mais profundo que um mero
contato com a persona, havendo a possibilidade de se conhecerem mais
profundamente do que a qualquer outra pessoa antes.
O contato interior de anima e animus já os modificou e os desenvolveu
como pessoas a ponto de mudar certas atitudes, mesmo que eles não lembrem
como ou por quê. A única coisa que sentem é uma falta de algo ou de
alguém; falta dos contatos inconsciente e consciente que tiveram antes, que
possibilitavam um mundo de autodescobertas e de conhecimento mais
profundo do outro; mas, infelizmente, não conseguem lembrar onde poderiam
encontrar esse contato.
Na última cena do filme, os dois se encontram repentinamente em lados
opostos do metrô. Não sabem por que, mas se reconhecem e vão correndo ao
encontro um do outro. Quando finalmente se encontram, a primeira coisa que
perguntam é: “Qual o seu nome?”. Seria esse, então, o caminho reverso do
que o filme retrata desde o início, possibilitando, ao final, que os dois se
conheçam por meio de seus nomes e suas personas?
Referências
IMAGICK. A lenda do nome mágico. [S.l.: s.n.]. [20--]. Disponível em:
<http://www.imagick.org.br/apres/ArtigoTextos/TesourosMitologicos/lendaisis.html>. Acesso em: 3
fev. 2018.
JUNG, C. G. O eu e o inconsciente. 12. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1987.
KIMI NO NA WA. Direção: Makoto Shinkai. Tóquio: Amuse, 2016. Digital (106 min), son., color.
PEREIRA, L. F. Anima e animus: um olhar sobre seus reflexos na psique e relacionamentos. [S.l.: s.n.],
[20--].
STEIN, M. O mapa da alma: uma introdução. São Paulo: Cultrix, 2009.
JUNG, C. G. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1964.

1 Graduada em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP). Contato:


roxanepirro@gmail.com
Perfect Blue: angústia e a busca por si mesmo
Victor Lippelt Matheus 1

BLUE (1999) É UMA ANIMAÇÃO JAPONESA PRODUZIDA PELO

P
ERFECT
estúdio Mad House e dirigida por Satoshi Kon. Durante o filme,
acompanhamos a jovem Mima Kirigoe, que faz uma mudança brusca
em sua carreira de cantora para se tornar atriz em uma série policial. A trama
desenvolve-se quando Mima começa a receber ameaças por conta do novo
rumo que sua carreira tomou e, concomitantemente, depara-se com um
misterioso site intitulado Mima’s Room, em que alguém, como se fosse
Mima, escreve um diário.
A primeira apresentação da personagem revela sua vida como
cantora pop da banda Cham, sempre sorrindo em seu show, cercada
pelos flashes das câmeras, pelas cores vibrantes e pelo ritmo acelerado da
música. A imagem sugere alguém que vive feliz pelos privilégios de estar em
uma banda, ter fãs e ser idolatrada. No entanto, são introduzidos os bastidores
da sua profissão, e nesse momento é possível perceber aspectos muito
diferentes dos que haviam sido mostrados até então.
A cena reveladora de tais aspectos retrata Mima cabisbaixa e apática
enquanto escuta seus empresários decidindo sobre os rumos da sua carreira.
O modo como as cenas se intercalam entre os momentos em que Mima está
cantando e os momentos em que está fora dos palcos deixa claro o contraste
entre os dois mundos em que ela vive. Mas a imagem de Mima inerte é a que
chama mais atenção, pois enquanto o destino de sua carreira é decidido ela
permanece calada, como se toda a discussão sobre mudanças na sua vida
fosse alheia à sua própria vontade ou como se não fosse possível ao menos
participar da conversa.
Percebe-se que Mima se angustia diante da possibilidade de ter de escolher
sobre seu futuro. Como postula Kierkegaard (2013):
A angústia pode se comparar com a vertigem. Aquele cujos olhos se debruçam a mirar uma
profundeza escancarada sente tontura. […] Desse modo, a angústia é a vertigem da liberdade,
que surge quando o espírito quer estabelecer a síntese, e a liberdade olha para baixo, para sua
própria possibilidade, e então agarra a finitude para nela firmar-se (p. 66).

Segundo o autor, a angústia surge diante da escolha. O indivíduo, ao olhar


para o abismo de suas possibilidades, sente angústia. No caso de Mima, a
angústia se daria diante da escolha entre ser cantora e ser atriz. Angustiar-se
traduziria o seu momento de escolha e a construção de uma individualidade.
A personagem é colocada literal e simbolicamente sentada entre sua
empresária, que é contrária à mudança, e seu empresário, que é a favor dela,
apontando para a cisão e para os sentimentos conflitantes que a personagem
tem em relação às suas opções. Mima se vê guiada por possibilidades
absolutamente contraditórias e, por meio da sua angústia, chega a uma
questão tipicamente humana: a de sermos impelidos para uma existência mais
singular.
Entretanto, anuncia-se o modo como Mima lida com sua vida: diante do
peso das próprias decisões, delega sua existência aos outros. Frente à
dificuldade de assumir a própria escolha e, consequentemente, suas
implicações, Mima se guia unicamente pela vontade do outro, retirando-se da
obrigação de refletir e fazer um caminho pessoal.
Como esclarece Jung (2013a), a missão de se desvincular das coações que
nos prendem a um estado de inconsciência é tremendamente difícil, e diante
do conflito e da insegurança dos próprios pensamentos é possível que
sejamos persuadidos “a escolher o caminho mais fácil da inconsciência” (p.
121). Nesse caminho, é possível acreditar que tal missão possa ser delegada a
outrem, sendo esse o ponto em que se inicia a jornada de Mima, no modo
como a personagem se mantém à parte da própria vida, deixando que outras
pessoas assumam suas escolhas.
Uma vez feita a mudança em sua carreira, Mima passa a viver cada vez
menos baseada em escolhas conscientes, aproxima-se do que esperam dela e
distancia-se de si mesma. Quando era líder da banda Cham, Mima
apresentava-se pueril. Suas músicas, suas coreografias e suas roupas
beiravam a infantilidade. Ao ser decidido que Mima irá se tornar uma atriz,
sua imagem é radicalmente alterada, visto que suas atuações requerem uma
nova postura: dramática, deixando de lado uma expressão de sexualidade
apenas insinuada para dar lugar a uma sexualidade que compõe
explicitamente sua nova imagem.
A imagem ideal que se cria na tentativa de corresponder a certas demandas
do mundo social é um importante aspecto da psique, e para essa função Jung
(2015) atribuiu o nome de persona. Pode-se pensar que as diferentes imagens
de Mima, cantora ou atriz, correspondem a aspectos da sua persona. Portanto,
representam um compromisso entre a personagem e a sociedade
(empresários, fãs e colegas de trabalho). No entanto, como destaca Jung
(2015), durante o processo de se moldar em uma imagem ideal parte da
própria humanidade da pessoa é sacrificada. Mima abre mão de sua
personalidade total e passa a ser apenas o que esperam dela, podendo
manifestar pouco de quem realmente é.
Em meio aos conflitos da heroína surge, simbolicamente, a primeira fala
que ela deve pronunciar como atriz: “Quem é você?”. A frase é repetida
inúmeras vezes pela protagonista como um ensaio para sua atuação e também
aparece disfarçadamente ao longo do filme. Não é sem sentido que o roteiro
insista nessa pergunta, uma vez que responder “quem é você?” sintetiza o
grande enigma da personagem. A pergunta se mostra como um enigma da
Esfinge que, segundo Brandão (1987), devora aqueles que não lhe respondem
corretamente. Nesse sentido, a pergunta vai consumindo Mima, que precisa
repeti-la e escutá-la diversas vezes a fim de respondê-la para si mesma.
Afinal, quem é Mima diante do abismo de suas possibilidades?
Diante dessa questão, Mima se depara com o site chamado Mima’s Room.
Na página, a personagem encontra uma série detalhada de descrições sobre
sua rotina, seus sentimentos e suas experiências. O que inicialmente parecia
uma brincadeira rapidamente faz Mima se apavorar com a ideia de que
alguém poderia estar se passando por ela. Eis que surge outra Mima, alguém
que realiza por meio do site sua outra possibilidade de ser.
Durante todo o filme, a protagonista se vê refletida em espelhos, vidros ou
nas câmeras que sempre a acompanham. A imagem refletida expressa outro
eu, outras possibilidades paralelas de ser, inferindo que olhar para espelhos é
chocar-se com a virtualidade do que poderia ser. Ao ser atriz, Mima renuncia
a possibilidade de ser cantora ou qualquer outra coisa. A angústia de ter que
escolher o que ser, sem ao menos saber quem é, faz com que Mima esteja
sempre olhando para o que ela não é.
Nesse sentido, a outra Mima escancara o dilema da personagem ao mostrar
para ela o que poderia ser, mas renunciou.
A partir de então, o absurdo que cerca a vida de Mima torna-se cada vez
mais exagerado, visto que seus empresários decidem que ela fará uma cena
de estupro para conseguir mais relevância no show no qual atua. Até então,
Mima continua a relegar sua vida aos outros. A cena de estupro é realizada
com sofrimento e seguida de um arrependimento profundo, e a garota chega a
dizer que fez a cena para não decepcionar aqueles que a levaram tão longe.
Mima se sente constantemente vigiada pela misteriosa pessoa que escreve
no Mima’s Room, passando, então, a conversar com essa “outra Mima” por
meio de uma imagem que surge dela mesma com suas antigas roupas.
Um fã aparece em lugares inesperados, aproximando-se cada vez mais
dela, certo de que a Mima que ele está vendo não é a verdadeira. Todos
parecem saber quem é Mima, quais são seus desejos e sentimentos e o que
faz dela a verdadeira Mima; no entanto, a protagonista é a única que não
conseguem responder quem verdadeiramente é.
À medida que a trama avança, a realidade de Mima vai se confundindo
com suas fantasias, sonhos e até mesmo com o seriado policial do qual faz
parte. Nesse momento, evidencia-se o recurso metalinguístico da obra, uma
produção cinematográfica que fala sobre a uma produção cinematográfica,
um desenho ficcional que aponta para a ficcionalidade da vida de sua
protagonista.
No decorrer da narrativa de Perfect Blue, Mima aparece cada vez mais nua.
Literalmente, suas roupas expõem cada vez mais seu corpo, até o momento
em que a personagem, com pouca participação nessa decisão, posa nua para
uma revista. Desvestir a personagem é entendido de forma paradoxal no
filme: por um lado, serve para que mais uma vez tomem uma decisão por
Mima, já que ela não se sente bem com a realização das fotos; por outro,
indica o processo de Mima de se despir das suas imagens, sugerindo a
aproximação da personagem com a sua própria natureza.
Da incongruência que se tornou a vida de Mima, inicia-se um segundo
momento no filme: a protagonista é impelida a se confrontar com sua sombra.
Por sombra Jung (2013b) descreve os aspectos obscuros da personalidade,
isto é, os traços inferiores que foram pouco desenvolvidos por não serem
compatíveis com a consciência. Tais aspectos representam as características
conflituosas da personalidade que, portanto, foram reprimidas ou pouco
elaboradas. O autor também entende que os conteúdos da sombra possuem
uma natureza emocional e de certa autonomia em relação à própria pessoa. A
sombra da protagonista é personificada por meio da “outra Mima”, que
assume sua personalidade, e o embate final ilustra a atitude da heroína de
entrar em contato com tais conteúdos.
Jung (2013b) entende que é parte fundamental do desenvolvimento
psíquico a conscientização dos aspectos sombrios, pois residem neles
dimensões primitivas importantes da personalidade completa. A sombra,
portanto, traz em si características que, apesar de conflituosas, possibilitam
uma aproximação com a totalidade do indivíduo. Nesse sentido, o confronto
de Mima com seu fã viabiliza um primeiro momento de mudança, visto que o
contato com o antagonista permite que a personagem assimile conteúdos que
até então não estavam à sua disposição, mas que pertenciam à sua
personalidade. Jung (2013b) esclarece que “quanto maior for o número de
conteúdos assimilados ao eu e quanto mais significativos forem, tanto mais o
eu se aproximará do si-mesmo” (p. 36).
Confrontar alguém com sua sombra significa também mostrar-lhe sua luz. [...] Quem percebe ao
mesmo tempo sua sombra e sua luz, este se enxerga dos dois lados e, assim, fica no meio. […]
O que aqui chamamos de “si-mesmo” não está apenas em mim, mas em todos os seres, como o
atmã e como o tão. É a totalidade psíquica (JUNG, 2013c, p. 210, grifos do autor).

Para sua transformação, foi necessário que Mima se lançasse ao seu último
desafio, confrontando a “outra Mima” que havia assumido sua personalidade
no diário online. O embate, simbolicamente, sugere o desafio de Mima de
olhar para um aspecto interno, ao refletir sobre alguém que abortou a própria
existência e preferiu, de modo definitivo, ser outra pessoa que não si próprio.
Dessa forma, a “outra Mima” representa o processo para o qual a
protagonista se encaminha, pois, até então, diante da angústia, Mima também
abdicava da própria vida.
A superação da “outra Mima” ocorre quando a heroína afirma: “eu sou
quem eu sou”. Além disso, há nesse momento a conscientização de sua
natureza: Mima passa a ver para além de suas imagens de persona e passa a
integrar aspectos da sua sombra, tendo uma compreensão sobre a sua
totalidade. Finalmente, é capaz de responder a pergunta do seu enigma
pessoal. Ao dizer “eu sou”, Mima é capaz de tornar-se algo, mostra-se capaz
de enfrentar a angústia.
Por fim, entende-se que a jornada de Perfect Blue ilustra a dramaticidade
dos processos que nos afastam da totalidade da própria existência, pois, como
definiu Jung (2013d), o processo de individuação é a formação e
particularização do ser individual, distinto do conjunto e da psicologia
coletiva, portanto o processo de diferenciação, o que se vê até os últimos
instantes da obra, é um processo inverso. Jung (2013d) adverte que a
atividade vital do processo de individuação pode ser coibida pelas
regulamentações exclusivamente coletivas e, consequentemente, pode
produzir deformações artificiais do indivíduo. Assim, segundo Jung (2012), o
processo de se aproximar de si-mesmo requer o fim da conformidade pessoal.
Guiar-se de maneira imprópria por outrem resulta na tragédia da heroína que,
ao se deslocar das suas escolhas, afasta-se do si-mesmo. Tal processo origina
a dificuldade de saber quem realmente se é, resultando na falta de sentido da
própria vida.
Os processos pelos quais passa a protagonista não são distantes dos dramas
que ocorrem cotidianamente no mundo real. Perto ou longe dos holofotes da
vida de uma artista, vive-se a mesma dificuldade diante das escolhas: o peso
de ter de escolher algo e renunciar a outras possibilidades. Sempre haverá,
pois, a árdua tarefa de se angustiar diante da possibilidade de fazer uma
escolha. Ligada a toda escolha existe a perda, pois escolher significa abdicar
de tudo aquilo que não foi escolhido. É o exigente processo de se tornar algo
em determinado tempo e, nesse momento, deixar de ser tudo aquilo que até
então existia enquanto possibilidade. Então, surge de forma intensa a tentação
de delegar esse peso ao outro, provavelmente a quem nos demanda um papel
de filho, mãe, pai ou profissional. Corre-se o risco de se afastar de si-mesmo,
de perder o contato com nossa totalidade.
Segundo Jung (2013e) o “homem comum” (p. 158) é aquele que não toma
consciência nem precisa fazer suas escolhas, que entende que tem o privilégio
de nunca ser culpado, pois a ele não cabe nenhuma responsabilidade. No
entanto, segundo o autor, no confronto com o inconsciente, é preciso
abandonar tal atitude e ter a consciência de que algo depende do próprio
indivíduo, principalmente a própria vida.
Assumir tais processos expressa a capacidade de se tornar responsável
pelas próprias escolhas e, por fim, de ser protagonista da própria existência. É
na angústia, ou seja, na capacidade de se angustiar diante de suas escolhas,
segundo Kierkegaard (2013), que há a reflexão sobre o abismo de nossas
possibilidades. Nesse processo, viabiliza-se construir um caminho singular
ou, como postula Jung (2012), o árduo processo de se individuar e se
aproximar de si-mesmo. Nesse sentido, Perfect Blue convida a repetir mais
uma vez o enigma de Mima, na tentativa de responder para nós mesmos:
“Quem é você?”.
Referências
BRANDÃO, J. S. Mitologia grega. Petrópolis: Vozes, 1987. (v. 3).
JUNG, C. G. A vida simbólica. Petrópolis: Vozes, 2012. (Obras Completas, v. 18/2).
______. A prática da psicoterapia. Petrópolis: Vozes, 2013a. (Obras Completas, v. 7/2).
______. Aion: estudos sobre o simbolismo do si-mesmo. Petrópolis: Vozes, 2013b. (Obras Completas,
v. 9/2).
______. Civilização em transição. Petrópolis: Vozes, 2013c. (Obras Completas, v. 10/3).
______. Tipos psicológicos. Petrópolis: Vozes, 2013d. (Obras Completas, v. 6).
______. A natureza da psique. Petrópolis: Vozes, 2013e. (Obras Completas, v. 8/2).
______. O eu e o inconsciente. Petrópolis: Vozes, 2015. (Obras Completas, v. 7/2).
KIERKEGAARD, S. A. O conceito de angústia. Petrópolis: Vozes, 2013.
PERFECT BLUE. Direção: Satoshi Kon. Produção: Takeshi Washitani. Tóquio: Mad House, 1999. 1
DVD (81 min), son., color.

1 Mestrando em Psicologia Clínica pelo Núcleo de Estudos Junguianos da Pontifícia Universidade


Católica de São Paulo (PUC-SP). Graduado em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (PUC-SP). Contato: <victor.lippelt.matheus@gmail.com>.
Ayakashi: arquétipos em um anime de terror
Victor Sancassani 1

O Jaquelas que acabaram fazendo parte de sua filmografia,, como é o caso de


APÃO É MUITO CONHECIDO POR SUAS HISTÓRIAS DE TERROR PRINCIPALMENTE

filmes como O chamado (Ringu, 1998) e O grito (Ju-On, 2002). Da mesma


forma, no universo do animes, vários são os exemplos, de Kobu-tori Jiisan
(1929), Yū Yū Hakusho (1992-1995), Inuyasha (2000-2004) e
Bakemonogatari (2009) a Hōzuki no Reitetsu (2011-atualmente).
No entanto, fantasmas, demônios, espíritos e entidades sobrenaturais fazem
parte da tradição mitológica japonesa desde o primeiro milênio. Inúmeros são
os termos para descrever essas criaturas – yōkai, yūrei, ayakashi, bourei,
henge, mononoke, onryuou, mamono, kajirō, chōshizen, bakemono, obake,
oni etc. – e inúmeros são seus tipos e classes, que podem ser mais bem
explorados nos livros do folclorista Ema Tsutomu, História das criaturas
estranhas do Japão (tradução livre de Nihon yōkai henge shi, 1923) e
História de fantasmas (tradução livre de Obake no rekishi, 1951) ou, ainda,
no Dicionário completo do folclore japonês (tradução livre de Sōgō Nihon
minzoku goi, 1955-1956). 2
Nesse meio, Ayakashi se insere como um anime seinen 3 de terror
produzido pelo estúdio noitaminA e lançado pela Toei Animation em 2006.
A animação consiste em uma série de onze episódios divididos em três
narrativas criadas e dirigidas por equipes distintas, cada qual com foco em
diferentes histórias de seres sobrenaturais que fazem parte da cultura
japonesa:
1) Yotsuya Kaidan, do episódio 1 ao 4: escrita por Chiaki Konaka e
dirigida por Tetsuo Imazawa, essa narrativa conta a história do espírito
vingativo Iwa.
2) Tenshu Monogatari, do episódio 5 ao 8: escrita por Yūji Sakamoto e
dirigida por Hidehiko Kadota, conta a história de Tomi Hime.
3) Bake Neko, do episódio 9 ao 11: escrita por Michiko Yokote e dirigida
por Kenji Nakamura, conta a história do mononoke chamado Bake Neko.
Em sequência à apresentação de cada uma dessas narrativas, faremos uma
pequena análise dos arquétipos do inconsciente coletivo que consideramos
mais expressivos de acordo com a trajetória e as características de cada
entidade sobrenatural que aparece nessas histórias. Assim, relacionaremos a
figura da sombra com o espírito de Iwa, o arquétipo de anima-animus com a
história de Tomi Hime e a imagem do espírito com Bake Neko.
Yotsuya Kaidan
Yotsuya Kaidan significa, literalmente, “a história de fantasma de
Yotsuya” – sendo Yotsuya o nome de um bairro de Tóquio – e é baseada na
Tokaido Yotsuya Kaidan, considerada uma das narrativas mais famosas do
Japão, sendo interpretada no teatro kabuki 4 até os dias de hoje. Em uma de
suas versões – que é tida como a original –, Iwa Inari, filha da família
Tamiya, era uma mulher exemplar que orava frequentemente para o Inari 5
da terra. Era tão exemplar que as pessoas ao seu redor começaram a imitá-la.
Então, traída pelo marido, decide retornar como um espírito vingativo após a
morte. Outra versão da história conta que Iwa teve varíola quando jovem e,
para evitar a perda da fortuna da família, casou-se com Iemon; ao ser
abandonada por seu marido, jogou uma maldição nas famílias Tamiya e Itou,
que não deixaram nenhum descendente. O design da animação dessa primeira
narrativa foi realizado por Yoshitaka Amano, desenhista da série de jogos de
videogame Final Fantasy.
A história é narrada por um escritor chamado Tsuruya Nanboku IV – cujo
nome verdadeiro é Katsu Hyozo –, que inicia a trama questionando Iwa a
respeito da persistência da maldição, que se iniciou há 180 anos, advinda do
ódio da mulher, apesar da boa recepção de sua representação na peça de
teatro kabuki. O próprio autor se questiona se não estaria sob o controle da
história do fantasma que tanto usou como base para seus escritos.
A narrativa do fantasma que desencadeia a maldição de Iwa começa com
uma caçada em busca de comida, quando Tamiya Iemon troca olhares com
Tamiya Iwa, prometidos um ao outro em casamento. Iemon era um samurai
que servia o daimyo 6 de Ako-han Asano Takimi-no-Kami, incriminado
falsamente por Kira Kōzuke-no-Suke Yoshinaka, resultando no seu seppuku,
7 o que tornou Iemon um ronin 8 que precisava vingar seu mestre – essa

história do conflito entre Asano e Kira, conhecida originalmente como


Chūsingura, é a base da narrativa principal.
O pai de Iwa, Yotsuya Samon, é atacado por dois homens para os quais
devia dinheiro, mas acaba sendo defendido por Iemon. Samon, no entanto,
recusa o auxílio, acusando o ronin de roubar o dinheiro de seu daimyo após
sua morte e desaprovando a união dele com sua filha, vetando seu casamento.
Iemon pensa em se vingar.
Enquanto isso, o vendedor de remédios Naosuke Gonbē – que trabalhava
como criado para a família Yotsuya – procura por Yotsuya Sode, “irmã” de
Iwa – na realidade, é cunhada dela –, mas é informado de que a moça havia
se mudado para Jigokuya por conta do emprego – gerenciado por Takuetsu –,
já que trabalhava como prostituta. Naosuke, cheio de antigos desejos por
Sode, vai em busca de seus serviços em Jigokuya. Porém, Sode se recusa a
ser tocada por um criado e é defendida por Satou Yomoshichi, prometido em
casamento para Sode, que também se encontrava no bordel. Naosuke pensa
em se vingar.
Durante a noite, Iemon encontra Samon caminhando sozinho em Asakusa
e decide realizar sua vingança, assim como, próximo ao local, Naosuke, seu
aprendiz, mata Yomoshichi, desfigurando o rosto da vítima para tornar
impossível seu reconhecimento. Posteriormente, os corpos são aproximados
para simular um assassinato por bandidos de estrada. No entanto, Sode e Iwa,
preocupadas com a saída de seu pai, seguem à sua procura e acabam se
deparando com os cadáveres. Iemon e Naosuke reaparecem, fingindo não ter
ciência do ocorrido. Como resultado, Iwa pensa em se matar, sendo impedida
por Iemon, que promete vingar seu sogro em razão da promessa de
casamento, bem como Naosuke jura vingança por Yomoshichi, mesmo não
sendo parente de Sode; ele finge ser seu marido, apesar de não manterem
uma relação, como prova da inocência de seus atos contra ela no bordel.
Assim, formam-se dois casais.
Posteriormente, depois de se casar com Iwa e do nascimento de seu filho,
Iemon perde o interesse por sua esposa e ela fica doente. Simultaneamente, o
criado Kobotoke Kohei é acusado de roubar um remédio chamado soukisei da
casa da família Tamiya, fugindo em seguida.
Em uma saída de casa, Iemon, de repente, é confrontado por uma cobra,
que aparece à sua frente como sinal de mau presságio. Logo, ele cruza
caminho com Omaki – criada da família Itou – e Itou Ume, trocando olhares
com esta, que fica ruborizada.
Na manhã seguinte, Kohei é capturado por Akiyama Choubē – ronin a
serviço da família Tamiya – e levado para Iemon; o criado, então, justifica o
roubo do remédio como um ato de ajuda para seu mestre original, que estava
doente, e clama por perdão. Como punição, Iemon sugere quebrar todos os
dedos do criado e, antes que possa começar a tortura, é impedido pela visita
de Omaki e Ume, e Kohei é jogado dentro de um armário. Omaki parabeniza
Iemon pelo nascimento de seu filho e presenteia a família com um “balde
cerimonial”, 9 além de oferecer um remédio feito por seu mestre, Itou Kihē,
para a recuperação pós-parto de Iwa; ela também convida Iemon para uma
visita à casa da família Itou.
Takuetsu, agora criado da família Tamiya, prepara o remédio para ser
ministrado à Iwa. Enquanto isso, em agradecimento, seu mestre visita a
família Itou junto com Choubē. A família Itou está, naquele momento, sendo
favorecida pelo acusador de seu antigo chefe, Kira. Durante a visita, é dada
ao visitante uma bela refeição e lhe oferecem muito dinheiro, bem como a
transferência de todas as propriedades da família de Itou, em troca de ele
aceitar se casar com Ume. Também lhe é revelado que o remédio oferecido a
Iwa é, na realidade, um veneno que causa deformação. Aconselhado por
Choubē e após Ume ameaçar cometer suicídio, num ato de paixão obsessiva
– que teve início quando ela avistou Iemon pela primeira vez, quando este
defendeu Samon dos agressores –, Iemon concorda com a proposta, que seria
executada mais tarde naquele mesmo dia; antes que isso acontecesse, ele
deveria avisar sua esposa. Ao voltar para casa, Iemon é atacado por um rato,
e Iwa, já com o rosto deformado, pede que, caso ela morra, o marido não
tenha uma segunda esposa. Iemon retruca dizendo que se casará com uma
mulher mais jovem e mais bonita em breve – ele estava casado há menos de
um ano com Iwa –, abandonando sua esposa, o filho e sua promessa de
vingar o pai da mulher. Iemon paga Takuetsu, a fim de que ele espalhe um
boato de que Iwa traiu Iemon com Kohei, exigindo a morte de ambos como
forma de punição.
À noite, numa sessão de massagem para relaxar Iwa, Takuetsu tenta tirar
proveito da situação, mas a mulher consegue pegar uma espada para se
defender. No entanto, durante um golpe, a espada fica presa na parede e o
servo confessa que seu ato é resultado das ordens de Iemon, além de contar a
verdade sobre o falso remédio.
Iwa vai até a casa da família Itou para “agradecer” e decide se apresentar
como uma mulher casada, fazendo o ritual do ohaguro, 10 mesmo sendo
contra a tradição. No entanto, durante os preparativos, Iwa lamenta as
atitudes do marido e morre como se fosse cortada por uma espada. Um gato
se aproxima do corpo dela, mas ele é expulso por Takuetsu por ser proibido
que se aproxime de cadáveres, e diversos ratos aparecem. Quando Iemon
retorna, mata Kohei, pregando-o em uma porta; do outro lado desta, Iwa está
pregada – sinal de punição para amantes proibidos –, e Iemon pede para o seu
criado desová-la em um rio. Logo, a família Itou aparece na residência de
Iemon para trazer Ume, que decide morar com seu marido a partir dessa
mesma noite, entregando seu filho para Kihē e Omaki.
Durante a noite de núpcias de Iemon e Ume, inúmeros ratos invadem a
residência e o corpo de Ume se transforma no espírito de Iwa, que é golpeado
com uma espada pelo marido; consequentemente, o corpo de Ume retorna à
sua forma e a atual esposa de Iemon morre. Perplexo, Iemon sai da casa, mas
Kihē, sob a forma de Kohei, surge também e acaba sendo morto por seu
genro. Assim, tem início a maldição de Iwa.
Longe da sua morada, Iemon é acolhido por sua mãe, Okuma, que o ajuda
temporariamente, preparando, inclusive, um sotoba 11 para quando ele
viesse a morrer. Coincidentemente, ele encontra seu antigo aliado, Naosuke,
que, durante uma pesca, resgata o pente perdido de Iwa – sem saber que o
objeto pertencia a ela – e que já sabe da má reputação de Iemon. Após se
retirar, uma chuva se aproxima enquanto Iemon pesca e, de repente, a “porta
dos amantes” aparece no rio e o fantasma de sua primeira mulher e de seu
criado começam a questioná-lo, e Iemon ataca com a espada; no entanto, é
possível ver que o ronin está lutando com o nada.
Enquanto isso, a “irmã” de Iwa, Sode, morando com Naosuke, trabalha
como lavadeira e recebe um quimono de Okuma, que diz sarcasticamente que
a encomenda pertence a uma morta pregada numa porta que fora jogada no
rio: a “irmã” de Naosuke. Quando Naosuke retorna, ele mostra o pente
encontrado e Sode reconhece o objeto como um pertence de sua irmã. Ela,
então, chora, pedindo que retorne o objeto à casa da família Yotsuya, mas
Naosuke decide se aproveitar da situação para lucrar. Então, braços de um
espírito – provavelmente de Iwa – surgem da bacia em que Sode deixara o
quimono e resgatam o pente. Coincidentemente, Takuetsu aparece
caminhando próximo ao local e, quando Sode retorna ao trabalho, o sangue
do quimono encomendado transborda a bacia. Reconhecendo o pente, o servo
decide contar o acontecimento, fazendo com que Sode exija uma nova
vingança – dessa vez, contra Iemon. Naosuke, aproveitando-se novamente da
situação, exige se casar e deitar com sua “esposa fictícia” para consolidar a
união e, assim, poder cometer a vingança em nome de sua mulher, que, às
lágrimas, aceita a proposta.
A serviço de Kira, Okuma se tornou esposa de Kobotoke Magobei, pai de
Kohei, mas mantinha uma relação ruim com o filho socioafetivo, Jiroukichi,
exigindo dele um número maior de vendas de shijimi 12 – caso contrário, ele
não poderia comer –, além de afirmar piamente que seu pai havia morrido.
Repentinamente, o fantasma de Kohei possui o corpo de seu filho para
lembrar Okuma que seu assassino era seu filho Iemon.
Surpreendentemente, Yomoshichi – que deveria estar morto – aparece na
casa de sua noiva, Sode, deparando-se com o quimono de Iwa levitando e
vestindo o espírito da falecida. Surpresos com a aparição do visitante, Sode e
Naosuke reconhecem Yomoshichi, que lhes conta haver trocado de roupa
com Okuda Shouzaburou para entregar um documento secreto em Ako, bem
como se surpreende ao saber do casamento entre seus anfitriões. Assim, Sode
é questionada sobre quem seria sua escolha de marido. Sode faz a mesma
proposta para ambos os pretendentes, sugerindo um plano em que
embebedaria o concorrente com saquê para que, então, o outro desferisse um
golpe dentro do byobo 13 e matasse seu adversário assim que o andon 14
apagasse. Quando é chegado o momento de execução do plano, ambos os
concorrentes acertam Sode, que havia se escondido dentro do byobo; ela se
desculpa com Yomoshichi e exige a conclusão da vingança de Naosuke.
Naosuke, no entanto, recebe das mãos de Sode um Heso no O no Sho, 15 a
partir do qual lhe é revelado que sua mãe, Motomiya Sandayuu, também é
mãe de Sode – portanto, eles eram irmãos de sangue separados; na sequência,
ele confessa a tentativa de assassinato de Yomoshichi e comete suicídio,
passando o encargo da vingança para Yomoshichi.
Dando continuidade à narrativa, andando a esmo, Iemon segue o voo de
um falcão, que o leva à casa de uma bela jovem que lhe oferece hospedagem
justamente na noite de Tanabata. 16 Quando ela vai revelar seu nome,
entrega a Iemon um poema waka. 17 Procurando por seu companheiro e por
danna, 18 Choubē avista uma casa abandonada e decide investigar,
deparando-se com Iemon conversando com um cadáver, que se revelara
novamente como Iwa, e foge. Entretanto, mostra-se que essa situação é um
sonho, do qual Iemon desperta em meio a uma cerimônia de
expurgação/exorcismo que acontece na casa de sua família. Sua mãe, que
acompanhara a cerimônia, preocupa-se com a saída de Iemon às seis horas,
alegando o perigo de seu filho ter uma febre nesse horário. Novamente, Iwa
aparece para Iemon, entregando-lhe o cadáver de seu filho, mas o pai alega
inocência para conquistar confiança para uma futura vingança e culpa sua
primeira esposa pelos desastres ocorridos. Novamente atacando o nada,
Iemon é interrompido por Choubē, que não deseja mais servi-lo; entretanto,
quando Choubē se retira, acaba sendo morto por Iwa, que o prega na parede.
Posteriormente, aparece Genshirou, pai de Iemon, que discute com sua ex-
mulher, Okuma, sobre a aliança com o inimigo – enquanto ele ainda serve à
família Asano – e condena os atos de seu filho, renegando-o. Subitamente,
entra no recinto uma horda de ratos – inclusive com deformidades
semelhantes às de Iwa –, que ataca mãe e filho, matando Okuma. Quando
Iemon consegue sair do local, ainda se depara com os cadáveres pendurados
de seu pai e de seu antigo servo, Choubē.
Eis que surge Yomoshichi, vestido com traje branco; ele desafia Iemon a
fim de cumprir a vingança em nome de Iwa e Samon. Apesar de obter
vantagem no combate, Iemon é repentinamente atacado por ratos, e
Yomoshichi aproveita a situação para desferir o golpe final; depois disso, o
corpo de seu inimigo é totalmente devorado pela horda de ratos.
Apesar de sua vingança, nunca se soube se Iwa descansou em paz ou não,
exceto na versão do 9º Bunsei, renomeada para Irohagana Yotsuya Kaidan e
apresentada em Osaka, na qual Iwa consegue se desvincular da maldição. O
autor e narrador da trama, Tsuruya Nanboku, finaliza a narrativa contando
que durante o 12º Bunsei ele, seu filho, seu genro e os onze demais
envolvidos na apresentação morreram num intervalo de cinco anos. Ademais,
Tsuruya comenta que a encenação da peça resultou em desastres que têm
traços de situações sobrenaturais vindas desde os koudan 19 e que
influenciam até as encenações nos cinemas, o que o faz considerar a presença
da maldição até os dias atuais como algo surgido de sua escrita, e não da
verdadeira Iwa. Assim, Tsuruya exige do espírito que a maldição não
acometa os outros, mas apenas ele próprio.

Yotsuya Kaidan e o arquétipo da sombra


No primeiro volume de Mangás, animes e a psicologia (FORTIM, 2017),
já apontamos a presença do arquétipo da sombra em outro anime. 20
Comumente associado às representações nefastas e malignas das narrativas,
principalmente no que diz respeito às histórias de horror, a sombra nem
sempre é resultado somente de características individuais, mas também de
características coletivas. Assim, como a sombra se manifesta na história
Yotsuya Kaidan?
Brevemente, a sombra é “a parte negativa da personalidade, isto é, a soma
das propriedades ocultas e desfavoráveis, das funções mal desenvolvidas e
dos conteúdos do inconsciente pessoal” (JUNG, 2007, p. 58), cujos
elementos permanecem em latência até que ocorra uma crise que os faça
sobrepujar o ego. Como todo arquétipo, apesar de sua predominante
negatividade, a sombra também possui um aspecto positivo que auxilia o
indivíduo em sua jornada de desenvolvimento do próprio ego a partir do
reconhecimento e da aceitação dos fatos traumáticos. No entanto, como
veremos adiante, Iwa parece não passar por essa integração dos aspectos
sombrios de sua psique.
Primeiramente, Iwa exerce as funções de “boa esposa” e de “boa filha” da
sociedade japonesa: é fiel ao seu marido, Iemon, e respeitosa com seu pai,
Samon. No entanto, com a morte deste último, apesar de inicialmente desejar
a própria morte, Iwa concorda com o ato de vingança de Iemon contra aquele
que o matou: o próprio marido.
Nesse momento, já temos o início de um aspecto nefasto da sombra que se
manifesta na “inofensiva e inocente mulher tradicional”, ou seja, assim como
“o altruísta sensível pode conter, em si mesmo, um egoísta brutal; a sombra
do lutador corajoso pode ser um covarde manhoso; a namorada amorosa pode
abrigar uma bruxa cruel” (WHITMONT, 2010, p. 146); o caso de Iwa se
assemelha a esse último exemplo. O amor incondicional e a dedicação
excessiva por seu pretendente e futuro marido, Iemon, independentemente do
modo como é rejeitada e tratada friamente, principalmente após o nascimento
de seu filho, além da não conclusão da promessa de vingança por parte do
marido, hão de se voltar contra ela mesma na imagem de um fantasma
vingativo. As qualidades consideradas boas são reprimidas e vão se refletir
proporcionalmente em qualidades ruins, no aspecto sombrio, em que Iwa é
sempre culpabilizada. Essa mudança de um estado inocente para uma atitude
nefasta também é mostrada de forma simbólica, sendo representada por dois
animais: o peixe e o rato. Paralelamente à entrega do falso remédio à Iwa pela
família Itou, esse veneno é jogado num lago, cujos peixes morrem ao entrar
em contato com a substância. Ademais, apesar de serem comumente
considerados no Japão como um símbolo auspicioso e de fartura, os ratos
aparecem aqui em sua forma sombria, como um símbolo tanto de
repugnância e de pestilência quanto de familicídio – eliminando a família
Tamiya e a família Itou – ao se aliarem à Iwa em sua forma fantasmagórica,
atacando as vítimas de sua vingança.
Na narrativa, Iwa sofre inúmeros abusos: é traída pelo marido e rejeitada
por ele junto com o próprio filho, é envenenada pelos vizinhos, sofre uma
tentativa de abuso sexual pelo criado, é acusada falsamente de adultério e tem
seu cadáver jogado em um rio em vez de um enterro digno. Podemos, ainda,
levar em consideração todas as demais formas de vingança e de abuso que
acabam por confluir, sendo representadas pelo fantasma de Iwa: a história de
sua “irmã”, Sode; a morte de seu pai, Samon; e o assassinato de Kohei, todo
conectados à narrativa de Iwa.
Pelo que é relatado na história, a maldição de Iwa traz como resultado a
eliminação de todos os membros das famílias envolvidas em sua tragédia,
sejam eles consanguíneos ou não. Todos os personagens que aparecem na
narrativa têm alguma relação com o fantasma e, simultaneamente, alguma
“transgressão social” que deve ser punida, seja esta incesto, estupro,
assassinato, adultério etc. Dessa forma, Iwa é tanto uma representação da
sombra de sua história pessoal em relação a Iemon quanto uma representação
coletiva, exprimindo todas as punições e vinganças cumulativas que têm
início com a morte de seu pai e que se somam a todos os outros eventos
consequentes. Iwa se torna, portanto, a manifestação de todas as formas de
vingança da narrativa, agindo da mesma forma que os outros e mantendo os
traços de caráter que repudia, ainda que estes estejam encobertos por “boas
maneiras”, impedindo-a de ver ou entender seus próprios atos (JUNG et al.,
2008, p. 105).
Assim, chegamos ao ponto destacado no início desta análise: o fato de Iwa
não enfrentar o poder destrutivo da sombra, subjugá-la e assimilá-la, mas
acabar sendo dominada pelas tendências inconscientes, tornando-a sua
inimiga. A ausência de uma integração da sombra pode ser vista,
principalmente, no fato de que a maldição de Iwa, mesmo após a punição e a
eliminação de ambas as famílias Itou e Tamiya e o cumprimento de todas as
vinganças exigidas, persiste sobre aqueles que interpretam sua história nos
teatros; ainda que o autor da peça, Tsuruya Nanboku, peça que a culpa seja
atribuída a ele, isso não necessariamente determina o fim da maldição. No
entanto, por vezes, a origem do poder destrutivo da sombra é incerta; tendo
isso somado ao fato de Iwa ser totalmente devota e presa aos paradigmas
culturais que se instauram sobre as mulheres da sociedade de sua época,
daquilo que se espera dela, criando uma espécie de “máscara social” – o que
Jung chama de persona –, resulta num aproveitamento vantajoso por parte
tanto de seu marido quanto das outras personagens, levando à rejeição de
Iemon, que não encontra mais “utilidade” em sua esposa, e a todos os atos
hediondos que se seguem e que culminam na manifestação da sombra de Iwa.
Desta forma, Iwa não é só a representação da vingança contra aqueles que se
colocaram em oposição a ela, mas também é a representação da vingança
contra os valores tradicionais de uma sociedade que subjuga a mulher,
valores que permanecem para além de sua narrativa. Nesse sentido, a
maldição de Iwa ainda persiste na nossa sociedade.
Tenshu Monogatari
O título dessa narrativa pode ser traduzido literalmente como “Narrativa da
torre do castelo” – também chamada de “A deusa da torre negra” –, uma
história baseada na narrativa homônima de 1917, escrita também para o teatro
kabuki por Kyotaro Izumi (1873-1939), conhecido como Kyōka Izumi.
A narrativa se inicia com um grupo de bandidos que, em busca de
descanso após roubar uma cerimônia de casamento, se instalam em um
castelo abandonado no meio de uma floresta durante a noite, desconsiderando
o alerta sobre seus habitantes dado por uma senhora no caminho. Durante a
estada do grupo no castelo, alguns homens e suas mulheres desaparecem, e o
local, até então degradado, se renova, revelando belas mulheres trajando
quimonos, que matam os homens remanescentes. Essas mulheres, na
realidade, são deuses esquecidos que vivem no Castelo Shirasagi, surgidos
após algumas invasões humanas no plano divino em busca de poder, fazendo
com que as divindades diminuíssem em número e fossem gradualmente
esquecidas. Apesar desse começo trágico, a narrativa conta a história de amor
entre um falcoeiro chamado Himekawa Zusho-no-Suke e Tomi Hime, a
princesa dos deuses esquecidos.
Zusho é encarregado de treinar e cuidar de um falcão branco chamado
Kojirou, que servirá, posteriormente, de presente para os superiores do senhor
feudal local, Takeda Harima-no-Kami. Em uma das caçadas, ao atirar,
Takeda espanta Kojirou, que voa em direção ao Castelo Shirasagi. Na busca
pelo falcão, Zusho se depara acidentalmente com Tomi Hime, que estava se
banhando em uma lagoa próxima e não lhe dirige uma palavra; sendo
questiona por uma de suas servas sobre o porquê de não o ter matado, ela
alega esquecimento.
Ao retornar ao castelo, é questionada por Shita-Naga-Uba – a senhora do
início da história, outro deus esquecido – por que se recusa a se alimentar da
carne de um famoso samurai de Izumono no Kuni, dada de presente pela
princesa de Inawashiro; a senhora diz que os deuses esquecidos ficam fracos
ao não consumir carne humana. A recusa de Tomi Hime já é uma forma de
alegar que há o início de amor por um humano – Zusho. Logo em seguida,
Tomi Hime encontra Kojirou, que chama de Haguri, reconhecendo-o como o
espírito de sua mãe.
Num novo encontro, Tomi Hime se impede de matar Zusho, que afirma
vê-la como alguém além desse mundo, vindo de “um sonho dentro de um
sonho”. De repente surgem dois oni, 21 chamados Kikimaru e Kaikaimaru, a
fim de salvar o falcoeiro, mas eles fogem após a intervenção da princesa. No
entanto, Tomi Hime é atingida durante o combate, o que inicialmente não se
mostra algo perigoso, devido à sua imortalidade divina; entretanto, ao beijar
Zusho, a princesa começa a sangrar e a gerar uma nova sensação em seu
corpo.
Zusho, depois de um encontro com Takeda e de ser prometido de seppuku
em caso de falha na busca por Kojirou, decide seguir rumo ao Castelo
Shirasagi, mesmo tendo sido questionado por sua esposa, Oshizu. Os oni
decidem se juntar ao falcoeiro em busca dos tesouros do castelo. Os deuses
esquecidos aparecem e Zusho é ferido no conflito. Posteriormente, acaba
encontrando Kojirou, mas Tomi Hime se nega a devolvê-lo, ainda que salve
Zusho e os oni de suas servas. A princesa explica ao falcoeiro o motivo de
sua recusa em devolver o falcão, contando que, no passado, sua mãe se
envolveu com um humano que se utilizou de seus poderes para o controle do
mundo humano e, posteriormente, a abandonou. Consequentemente, a forma
da mãe ficou presa no corpo humano e, quando morreu, seu espírito se
instalou no falcão e os deuses foram esquecidos pelos homens.
Nesse ínterim, Susuki, um dos deuses esquecidos, a pedido de Shita-Naga-
Uba, tenta matar Zusho, mas acaba sendo morto por Tomi Hime. Ela e Zusho
trocam promessas de amor e novamente se beijam. São flagrados por Oshizu,
que estava à procura do marido. Após passarem a noite juntos, o casal foge
do castelo para um vilarejo próximo, onde prometem passar a vida lado a
lado, mesmo que Tomi Hime perca sua imortalidade. Entretanto, Shita-Naga-
Uba encontra a princesa e pede que retorne ao Castelo Shirasagi,
questionando as consequências severas advindas dos sentimentos por um
humano. Consequentemente, Tomi Hime, aos prantos, decide se separar de
Zusho e o expulsa do castelo, mas ele guarda um pente da princesa como
recordação – item perdido durante o primeiro encontro contra os oni. Esse
pente acaba sendo encontrado por Oshizu, que decide se vingar da princesa,
delatando-a ao governante pelo rapto de Kojirou. Assim, as tropas de Harima
são convocadas para destruir o castelo Shirasagi.
Zusho decide se aliar aos deuses esquecidos, deixando um aviso de
falecimento para a esposa para que ela receba dinheiro por sua morte, mas
Oshizu decide se aliar à invasão contra o castelo. Inúmeros humanos morrem
no início do conflito, mas um a um os deuses esquecidos também começam a
morrer devido ao enfraquecimento advindo da violação cometida por Tomi
Hime. Em meio ao conflito, Oshizu tenta salvar Zusho, mas ele permanece ao
lado dos deuses esquecidos, transformando-se também em um deles e
abandonando a esposa. Após a morte de todos os deuses esquecidos, Tomi
Hime revela sua verdadeira forma e destrói todo o exército de Harima. Ao
final, Kojirou-Haguri faz chover rosas sobre o campo de batalha e dois novos
falcões brancos surgem no céu.

Tenshu Monogatari e o arquétipo de anima-animus


A principal questão que envolve a narrativa que acaba de ser descrita
parece ser a relação entre a integração de opostos complementares do
masculino-feminino e do divino-mundano. Porém, arquetipicamente, como
ocorre esse processo de complementaridade entre esses pares? Para uma
possível resposta, utilizaremos os arquétipos de anima e animus.
Para Jung, a anima é o arquétipo da vida, a parte feminina ctônica da alma
(JUNG, 2012, p. 68) que reside no inconsciente do homem e que é
geralmente projetada em parceiras femininas pela psique masculina; o
animus, em oposição, é a personificação masculina no inconsciente da
mulher, projetada geralmente em parceiros masculinos. Inicialmente, essas
imagens são formadas pelas imagines parentais, ou seja, a partir das
representações inconscientes e internalizadas dos pais. Esses arquétipos são
frequentemente encontrados nas imagens mitológicas do par divino
masculino-feminino, representado nas figuras da sizígia (eclipse), do yin-
yang, do hermafrodita e do andrógino, por exemplo.
Particularmente, a anima aparece recorrentemente nas narrativas míticas
como um ser mágico feminino sedutor de homens, ligado ao mundo dos
espíritos ou das trevas – isto é, o inconsciente –, como sereias, ondinas,
melusinas, ninfas do bosque, graças, lâmias, loreleis e súcubos, que
“atordoam os jovens, sugando-lhes a vida” (JUNG, 2012, p. 33). Como o
arquétipo do inconsciente coletivo, a anima possui dois aspectos: um positivo
– da deusa protetora e guia – e um negativo – da femme fatale sedutora e
destruidora. Em Tenshu Monogatari, os deuses esquecidos são mulheres
jovens, belas e sedutoras que atraem os homens para o Castelo de Shirasagi a
fim de se alimentar deles, permanecendo imortais, algo muito semelhante às
imagens míticas da anima. No entanto, como aponta Jung, “a anima não vem
ao nosso encontro como deusa, mas sim como equívoco talvez sumamente
pessoal, ou como a maior ousadia” (JUNG, 2012, p. 39), e, portanto, os
deuses esquecidos revelam uma forma aterradora, teriomórfica, que é
manifestada no momento do “bote” contra suas presas. Assim, revela-se a
contradição entre positivo e negativo da anima: a aparência divina é mera
isca para atrair as vítimas, mas contém um elemento ctônico-decadente –
assim como acontece com as sereias. Ademais, “é a presença da anima que
faz um homem apaixonar-se subitamente” (JUNG et al., 2008, p. 239), que
pode levar a problemas no casamento ou a um triângulo amoroso – na
narrativa, é possível observar tal situação na relação do triângulo Tomi Hime-
Zusho-Oshizu, pois o falcoeiro se apaixona subitamente pela princesa dos
deuses esquecidos, como “um sonho dentro de um sonho” – evidência do
aspecto da anima inconsciente –, e, consequentemente, isso interfere em sua
relação com a esposa. Além disso, Zusho é humano, mas, conforme
permanece mais tempo ao lado dos deuses esquecidos – principalmente de
Tomi Hime – e se afasta dos humanos – principalmente de sua esposa,
Oshizu –, adquire os aspectos de um deus, culminando em sua transformação
perto do final da narrativa. Segundo Jung, “com o arquétipo da anima
entramos no reino dos deuses”, em que “tudo que é tocado pela anima torna-
se numinoso, isto é, incondicional, perigoso, tabu, mágico” (2012, p. 36);
assim, ao integrar a anima inconsciente, Zusho adquire as características
numinosas de Tomi Hime.
Já o animus, em geral, aparece na forma de convicções secretas sagradas
(JUNG et al., 2008, p. 251), também tendo aspectos positivos – o espírito
encorajador da iniciativa – e negativos – o demônio absoluto da morte. O
desejo mais frequentemente demandado pelo animus é o amor (JUNG et al.,
2008, p. 251), que podemos ver na busca de Tomi Hime pelo ato de amar,
após o encontro com Zusho. Apesar desse aspecto individual, projetado em
um único homem, o animus também pode aparecer com um caráter mais
coletivo que, no caso de Tenshu Monogatari, surge com a invasão do exército
de Harima. Criticada por Shita-Naga-Uba – uma representação do aspecto
materno negativo –, com medo de repetir os erros da mãe, Tomi Hime confia
em Zusho como o transmissor das qualidades humanas que a retiram do
ambiente indiferenciado divino. Ao final da narrativa, após a morte dos
deuses esquecidos, a princesa se revela como um ser celeste e toma frente na
batalha contra os humanos, destruindo todo o exército e simbolizando a
aceitação dos aspectos negativos do animus, como a brutalidade, e a
assimilação dos aspectos positivos, como a iniciativa e a coragem. Assim,
Tomi Hime inicia uma jornada em que “se obedecer, o animus destruidor que
a atormenta será transformado numa atividade criadora e rica de sentido”
(JUNG et al., 2008, p. 257) ao integrar qualidades masculinas, como a
iniciativa, a coragem, a objetividade e a sabedoria espiritual.
Por último, o que podemos ressaltar dessa relação entre o arquétipo de
anima-animus e a ligação entre Tomi Hime e Zusho é a lógica do coniunctio
e a integração dos pares de opostos, em que tanto o feminino recebe o
masculino quanto o masculino recebe o feminino. Apesar de o número quatro
ser o representante da totalidade, o “quadrado de relações” também deve
incluir Oshizu como um de seus pontos, junto com Tomi Hime, Zusho e
Kojirou, mãe da princesa, uma vez que ela também é representante dos
valores femininos existentes no falcoeiro e é relevante para a integração da
anima. Porém, o tema da integração e da totalidade presente nas místicas da
tríade e do quatérnio será mais frequentemente relacionado com o arquétipo
do espírito, que veremos adiante.
Bake Neko
Apesar de também ser estruturado no formato de um teatro, sendo dividido
em atos, Bake Neko é a única das três narrativas que é completamente
original. Apesar da autenticidade da narrativa, a imagem do espírito de um
gato metamorfo já aparece em histórias e ilustrações desde o século XVII,
sendo, por vezes, confundido com outro espírito de gato chamado Nekomata.
A narrativa ocorre em uma residência samurai do período Edo e se inicia
com o assassinato de Sakai Mao, que caminhava em direção à cerimônia de
seu casamento com um membro da família Shiono. O casamento tinha o
propósito de sanar as dívidas da família Sakai, advindas da má administração
de Sakai Yoshiaki, filho mais novo de Sakai Yoshiyuki e pai de Mao. Sakai
Yoshikuni, o filho mais velho, era muito preguiçoso para assumir a
responsabilidade sobre as finanças da família.
Um jovem vendedor de medicamentos, que entra atrevidamente na
cerimônia, é tido como suspeito, sendo retido e interrogado pela família para
evitar alardes sobre a morte da noiva. Sua caixa de medicamentos é
investigada, e dela retiram uma katana – que, durante o período, era de uso
exclusivo de samurais –, o que o torna ainda mais suspeito. Entretanto, é
revelado que a espada é utilizada para matar mononoke, 22 ou seja, ela é um
taima (um aniquilador de espíritos malignos), mas só pode ser
desembainhada após a revelação de 1) katachi, a forma advinda do ódio e do
rancor contra os humanos; 2) makoto, a verdade dos fatos; e 3) kotowari, o
motivo, a razão pela qual aconteceu o incidente e que motiva a ação do
mononoke; somente a partir disso a arma pode derrotar o demônio.
O miado de um gato é ouvido do lado de fora da residência e Yahei, um
dos servos da família, é encontrado morto após ser enviado em busca de
ajuda médica. Logo, o vendedor de remédios coloca selos em volta de toda a
residência – posteriormente colocando medidores de distância e traçando uma
linha de sal – a fim de impedir a entrada do demônio no local. Porém, ao
tenta sair, Odajima – outro servo da família – é impedido pelo vendedor, que
encontra pelos de gato em sua roupa, revelando, assim, o katachi do
mononoke: Bake Neko.
O vendedor começa, então, a questionar os membros da família, pois
deduz que haja maltrato a gatos naquela residência a partir da relação entre o
katachi do mononoke e a ausência de gatos no local. Logo, inicia-se uma
sequência de acusações entre cada membro presente: Kayo acusa Sato e Sato
coloca-se contra Sasaoka. Em seguida, Yoshikuni confessa ter matado vinte
gatos como forma de testar o corte das espadas importadas, a fim de verificar
se eram mercadorias falsificadas.
Posteriormente, o mononoke consegue passar pela barreira criada pelo
vendedor e invade o corpo da garota morta. Sua mãe, Sakai Mizue, em
pânico, revela o nome de Tamaki – a verdadeira razão da presença do
demônio – e tenta fugir, mas é morta por ele junto com o seu marido,
Yoshiaki, e Katsuyama, servo da família.
Yoshiyuki revela uma passagem secreta para uma possível fuga e, por
detrás da porta, surge um vestido de casamento, o que faz Sato – ciente do
verdadeiro motivo do crime – acusar os homens pela vinda do demônio.
Assim, é revelado o makoto do Bake Neko: Yoshiyuki é o responsável.
Yoshiyuki conta que há vinte e cinco anos havia raptado uma garota
chamada Tamaki, que estava a caminho de seu casamento. Apesar de
inicialmente ter a intenção de devolvê-la, ele preferiu mantê-la consigo
devido à sua amabilidade, dando-lhe belas roupas e muita comida; entretanto,
devido ao acúmulo de remorso, a garota acabou se matando. No entanto, Sato
ainda insiste na existência de mais culpados e diz que seu papel fora somente
o de seguir ordens. O demônio consegue invadir a passagem secreta, matando
Sasaoka, Sato e Yoshikuni e poupando Kayo e Odajima, revelando ao
vendedor de remédios o que de fato acontecera no passado. A revelação
mostra o assassinato de uma gata e seus filhotes, exceto por uma das crias, e
os abusos constantes, tanto físicos quanto sexuais, que Tamaki sofrera
aprisionada no porão da residência; a garota dava sua própria refeição ao gato
sobrevivente, prometendo-lhe liberdade. Posteriormente, a prisioneira foi
estuprada por Yoshikuni e por seu pai. Yoshiyuki, pensando que Tamaki
havia seduzido seu filho, como punição, espancou-a até a morte, enquanto o
gato conseguiu fugir. Para não deixar provas, Sasaoka desovou o corpo de
Tamaki num poço, porém o espírito rancoroso de Tamaki possuiu o gato,
transformando-se, posteriormente, em um demônio. Assim, revela-se o
kotowari do Bake Neko.
Consequentemente, a espada taima é desembainhada e o vendedor de
remédios, transformando-se num guerreiro divino, derrota e exorciza o
demônio, que sai do corpo do gato. Kayo e Odajima enterram o gato próximo
ao poço em que o corpo de Tamaki foi desovado para que pudessem ficar
juntos, e assim seguem seus destinos. Yoshiyuki é abandonado no porão da
residência onde aprisionou Tamaki para lembrar de sua crueldade. O
vendedor de remédios, então, sai da residência ouvindo os sons de Tamaki e
de seu gato em liberdade.
Devido ao sucesso da história, em 2007 foi lançado um spin-off de Bake
Neko, intitulado Mononoke, em que novas aventuras contra outros mononoke
são enfrentadas pelo vendedor de remédios, que utiliza as mesmas técnicas de
exorcismo.

Bake Neko e o arquétipo do espírito


Claramente, a presença de um espírito – mononoke – levaria à conclusão
antecipada de sua notoriedade como arquétipo nessa narrativa. Porém, uma
vez que tais entidades sobrenaturais existem também nas duas histórias
anteriores, o que faz com que o arquétipo do espírito tenha destaque
especialmente em Bake Neko? Jung defende que as figuras espirituais não são
moralmente boas ou simplesmente malignas, mas, assim como os demais
arquétipos, ambivalentes (2012, p. 216). Geralmente, essas figuras aparecem
como a imagem do velho sábio, do mago branco ou preto, mediadores, guias
que auxiliam as pessoas a enfrentar ou passar por determinada situação: “O
arquétipo do espírito sob a forma de pessoa humana, gnomo ou animal
manifesta-se sempre em situações nas quais seriam necessárias intuição,
compreensão, bom conselho, tomada de decisão, plano etc., que no entanto
não podem ser produzidos pela própria pessoa” (JUNG, 2012, p. 216).
Para ilustrarmos esse caráter mediador do arquétipo do espírito a fim de
guiar o indivíduo, utilizaremos como analogia a própria análise que Jung –
com auxílio de Marie-Louise von Franz – realiza sobre o arquétipo do
espírito em um conto de fadas dos irmãos Grimm intitulado Die Prinzessin
auf dem Baum, (JUNG, 2012, p. 232). Nesse conto, um cuidador de porcos se
pergunta qual seria a vista do mundo se escalasse a maior árvore da floresta
que habitava. Ele demora três dias para escalá-la, encontrando entre os galhos
uma aldeia de camponeses que o abrigam; por fim, na copa, descobre um
castelo no qual um feiticeiro havia aprisionado uma princesa. Lhe é permitida
hospedagem ali desde que ele não entre em um dos quartos. Porém, devido à
curiosidade, o cuidador de porcos entra e encontra um corvo pregado na
parede por três pregos. Ele liberta a ave após lhe dar água, e ela revela-se
como feiticeiro, raptando a princesa. Em busca desta, um lobo, um urso e um
leão entregam ao jovem seus pelos para auxiliá-lo a qualquer momento.
Posteriormente, ele encontra a princesa em uma casa de caçador, da qual é
impossível fugir, pois seu habitante – o caçador – possui um cavalo branco de
três pernas que o avisa de tudo. É dito ao guardador de porcos que o segredo
para derrotar o caçador se encontra com uma bruxa criadora de cavalos que
mora próximo ao local. Ele passa por uma série de desafios com o auxílio dos
animais que encontrara anteriormente, ganhando um cavalo branco de quatro
patas como recompensa. Após salvar a princesa, o caçador alcança o casal,
mas o cavalo de quatro patas convence o de três patas a derrubar seu
cavaleiro, que acaba pisoteado. A princesa é levada até o seu reino, casando-
se com seu salvador, enquanto os cavalos são decapitados e se revelam
príncipes, que retornam também para os seus próprios reinos.
Essa narrativa apresenta muitas semelhanças simbólicas com a história de
Bake Neko. Constatamos isso pelas funções exercidas pelos personagens e
pela quantidade de informações necessárias para a revelação dos fatos da
trama. Em síntese, o cuidador de porcos se assemelha ao vendedor de
remédios, no sentido de que ambos surgem “fortuitamente” em meio ao
conflito; a princesa se assemelha a Tamaki, ambas sendo figuras raptadas,
seja por um caçador/feiticeiro ou por um samurai, Yoshiyuki, como na
imagem mitológica do rapto de Prosérpina-Core-Perséfone por Hades-Plutão;
e a quantidade de pregos que prendem o corvo e o número de patas do cavalo
do caçador se assemelham à quantidade de condições necessárias para o
exorcismo do mononoke e à quantidade de culpados ao final da narrativa;
assim como “a tríade é que exorciza o corvo e ao mesmo tempo é o poder do
espírito mau” (JUNG, 2012, p. 238), o Bake Neko só pode ser exorcizado
pela espada taima a partir da revelação das três condições: katachi, makoto e
kotowari, que simultaneamente guardam o poder do mononoke. Portanto, é
possível observar que o número três tem grande importância para ambas as
narrativas, e que, segundo Jung,
entre a tríade e o quatérnio há em primeiro lugar a oposição homem-mulher e além disso o
quatérnio é um símbolo de totalidade ao passo que a tríade não o é. Esta última denota, segundo
a alquimia, um estado de oposição, na medida em que uma tríade sempre pressupõe uma outra,
tal como o superior pressupõe um inferior, o claro um escuro, o bom um mau. Energeticamente,
a oposição significa um potencial, e onde há um potencial, há a possibilidade de um fluxo e de
um acontecimento, pois a tensão dos opostos busca o equilíbrio. Quando imaginamos o
quatérnio como um quadrado dividido em duas metades por uma diagonal, disso resultam dois
triângulos cujos ápices apontam direções opostas. Poder-se-ia dizer metaforicamente: quando
dividimos a totalidade simbolizada pelo quatérnio em metades iguais obtemos duas tríades em
oposição (2012, p. 235-236).

Em suma, Jung nos diz que o simbolismo do número três, em linguagem


psicológica, é como uma “totalidade manca”, algo que é aprisionado no nível
do inconsciente, que pode ser liberado por meio de uma troca, um sacrifício
(2012, p. 236). Analogicamente, em relação à narrativa em análise, Tamaki é
a prisioneira de uma força inconsciente chamada Bake Neko, que só pode ser
libertada em troca do sacrifício dos culpados por seu rapto e seu assassinato.
Esses culpados são os representantes das três partes que compõem a tríade
consciente que guarda o seu quarto elemento inconsciente, a ser revelado.
Vale lembrar, ainda, que, curiosamente, tanto na numerologia quanto na
mística o número três representa o aspecto divino, e o quatro, o aspecto
humano-físico, e a soma dos dois resulta no número sete, comumente
conhecido como o número de vidas de um gato. 23 Portanto, o quadrado
completo da relação é formado pelos pontos de Tamaki-Bake Neko, Sasaoka,
Sato e Yoshiyuki-Yoshikuni, nos quais existem as duas oposições entre
homem e mulher – dos amantes e dos servos – e um centro mediado pelo
vendedor de remédios – como um xamã que conecta o sobrenatural ao
mundano – no cruzamento entre as oposições dos culpados quando
do exorcismo.
Um último ponto que também se relaciona a esse caráter mediador e que
não poderíamos deixar escapar é a imagem do mononoke ser um gato.
Segundo Von Franz, o gato, assim como a cobra, é um símbolo de
ambivalência entre características positivas e negativas, adorado
simultaneamente como entidade solar e lunar, do gato branco com aspecto
curandeiro-fértil e do gato preto de aspecto infeccioso, atribuídos à imagem
da virgem ou da bruxa. Psiquicamente, o gato está conectado à consciência e
aos processos criativos (VON FRANZ, 2000, p. 71). Assim como o
curandeiro na narrativa, o gato “atuava como mediador entre o bem e o mal e
também entre a vida interior e a vida exterior, entre deus e as forças
sobrenaturais e o homem” (VON FRANZ, 2000, p. 72), funcionando como o
guia para a consciência, em que o sacrifício de gatos se tornou uma
necessidade compensatória destrutiva da projeção humana em animais, do
inconsciente, assemelhando-se à imagem de Hermes-Mercúrio e Cristo,
mediadores de mundos. O aspecto negativo e demoníaco dos gatos surge com
o cristianismo e com “a expulsão patriarcal da sombra feminina” (VON
FRANZ, 2000, p. 74).
Apesar da evidente existência de um gato na narrativa, devemos também
levar em consideração o simbolismo existente por detrás da utilização de um
felino como a forma representante de um espírito. Primeiramente, “a figura
do animal indica que os conteúdos e funções em questão ainda se encontram
na esfera extra-humana” (JUNG, 2012, p. 231), tanto do sobre-humano
demoníaco – em que o espírito demoníaco (mononoke) assume a forma
animal de um gato – quanto do infra-humano animal – em que a origem do
mononoke advém de aspectos aterradores de natureza infra-humana, ou seja,
a brutalidade, o abuso, o estupro, por exemplo. Paralelamente, assim como
vimos os animais oferecerem seus pelos como auxílio mágico no conto do
cuidador de porcos, o Bake Neko deixa cair seus pelos na residência, o que
revela ao vendedor de remédios uma das condições de seu exorcismo, o seu
katachi, de gato. Portanto, temos simultaneamente a ambiguidade do Bake
Neko como um espírito maligno em busca de vingança e justiça, que auxilia
seu exorcista a libertá-lo das atrocidades às quais Tamaki fora submetida.
Dessa forma, o arquétipo do espírito representado teriomorficamente na
imagem do cavalo no conto do cuidador de porcos também aparece sob
forma teriomórfica na imagem do gato na narrativa de Bake Neko, revelando
com clareza o caráter antitético do arquétipo do espírito a fim de se alcançar
uma consciência mais elevada (JUNG, 2012, p. 240).
Considerações finais
Apesar de nossas análises terem por foco somente um arquétipo específico
por narrativa, temos que lembrar que “há tantos arquétipos quantas situações
típicas na vida” (JUNG, 2012, p. 57) e que “todos os desdobramentos de um
arquétipo formam uma rede. Todos eles se conectam um com o outro,
entretecendo-se” (VON FRANZ, 2000, p. 88-89). Portanto, não há apenas o
arquétipo da sombra presente na narrativa Yotsuya Kaidan, assim como em
Tenshu Monogatari e em Bake Neko não temos só os arquétipos de anima-
animus e do espírito, respectivamente, mas inúmeros outros arquétipos
também podem ser identificados nessas narrativas.
Assim, por exemplo, não poderíamos desconsiderar a trajetória de Iemon,
em sentido negativo, ou de Yomoshichi, no positivo, como facetas do
arquétipo do herói em Yotsuya Kaidan; ou, ainda, deixar de notar a
importância da figura materna na narrativa de Tomi Hime, já que a princesa
repete o mesmo ato profanador de sua mãe – uma vez “que toda mãe contém
em si sua filha e que toda filha contém em si sua mãe; toda mulher se alarga
na mãe, para trás, e na filha, para frente” (JUNG, 2012, p. 190) – em seu
aspecto positivo, enquanto a personagem Shita-Naga-Uba vem como o
aspecto negativo; ou ignorar o arquétipo da persona na história de Bake
Neko, cujos personagens escondem os verdadeiros motivos do crime por trás
de máscaras vitimárias, resultando em todos os problemas e mortes advindos
do enigma do mononoke.
Assim, já que “no inconsciente todos os arquétipos estão contaminados um
pelo outro” (VON FRANZ, 1990, p. 24, grifo do autor), inúmeras análises
adicionais e complementares podem ser realizadas tendo por base essas
mesmas narrativas, mudando somente a perspectiva ou as personagens que
são colocadas em evidência. A essência desse pensamento se insere, porém,
na utilização dos arquétipos não somente para o desvelamento de suas
variadas formas simbólicas manifestas, mas em busca do entendimento dos
processos anímicos de transformação do sujeito que possam ajudá-lo a
entender e a atribuir significado para a sua vida. Desse modo, esperamos, a
partir da análise de narrativas como as apresentadas aqui, inquietar o leitor
com situações da própria vida em que seja possível ampliar seus significados
individuais.
Referências
FERREIRA, C. A. Personagens folclóricos, deuses, fantasmas e história extraordinária de Yotsuya em
Tôkaidô: o sobrenatural na cultura japonesa. 2014. 123 p. Dissertação (Mestrado em Língua,
Literatura e Cultura Japonesa) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de
São Paulo, São Paulo, 2014.
FORTIM, I. (Org.). Mangás, animes e a psicologia. São Paulo: Homo Ludens, 2017.
VON FRANZ, M.-L. A interpretação dos contos de fada. São Paulo: Paulus, 1990. (Coleção Amor e
Psique).
______. O gato: um conto da redenção feminina. São Paulo: Paulus, 2000. (Coleção Amor e Psique).
JUNG, C. G. Psicologia do inconsciente. Petrópolis: Vozes, 2007. (Obras Completas, v. 7/1).
______. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis: Vozes, 2012.
JUNG, C. G. et al. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
SANCASSANI, V. A sombra em Paranoia Agent. In: FORTIM, I. (Org.). Mangás, animes e a
psicologia. São Paulo: Homo Ludens, 2017. p. 78-90.
TSUTOMU, E. Nihon yōkai henge shi (日本妖怪変化史). Quioto: Chūgai Shuppan, 1923.
______. Obake no rekishi (おばけの歴史). Tóquio: Gakufūshoin, 1951.
WHITMONT, E. C. A busca do símbolo: conceitos básicos de psicologia analítica. São Paulo: Cultrix,
2010.
YANAGITA, K.; KENKYŪJO, M. Sōgō Nihon minzoku goi (綜合日本民俗語彙). Tóquio:
Heibonsha, 1955-1956.

1 Graduado em Tecnologia em Jogos Digitais (2013) pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (PUC-SP). Possui pós-graduação lato sensu em Direção de Arte em Comunicação (2015) pelo
Centro Universitário Belas Artes de São Paulo. Mestrando em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP.
Pesquisa mitologia e imaginário com enfoque nas áreas de processos criativos e games. Contato:
<vsancassani@gmail.com>.

2 Para maior aprofundamento na questão das criaturas sobrenaturais da cultura japonesa, conferir
Ferreira (2014), em português.

3 Seinen são os animes com conteúdos voltados para o público masculino com idades entre 18 e 40
anos, geralmente envolvendo temas como sexo e violência.

4 Kabuki é uma das formas do teatro japonês. Surge por volta do século XVII e envolve canto (ka),
dança (bu) e habilidades (ki). Geralmente, os atores utilizam maquiagens muito expressivas e, por
vezes, as peças tratam de temas religiosos, tendo passado até por censura do governo, quando todas as
interpretações, inclusive de personagens femininas, eram feitas somente por homens.
5 Na mitologia xintoísta, Inari é um tipo de kami (geralmente traduzido como “deus”) das colheitas, da
fertilidade, da agricultura e dos alimentos, representado pela imagem de uma raposa.

6 Classe dos senhores feudais que estavam submetidos ao shōgun e ao imperador (do século X ao
século XIX), sendo responsáveis por contratar samurais para garantir a segurança de suas terras.

7 Ritual de suicídio japonês, também conhecido como harakiri, kappuku ou tofuku, em que a vítima,
usando uma espada pequena – tantō –, corta o próprio abdômen. Inicialmente, a técnica era realizada
voluntariamente por samurais para não morrerem pelas mãos do inimigo, o que seria considerado
motivo de desonra, ou como resultado da morte de seu mestre, sendo chamado, nesse caso, de oibara.

8 De acordo com o bushidō – ou seja, o código de conduta dos samurais –, o bushi (guerreiro) que
perdesse seu daimyo deveria cometer seppuku; mas, por vezes, o ritual de suicídio não era praticado e o
guerreiro passava a se tornar um ronin, um guerreiro sem mestre, vivendo de peregrinação e realizando
serviços em troca de refeições e hospedagem.

9 Chamado de akaoke-no-jyou, é um termo budista vindo do sânscrito (argha/arghya) para se referir a


um conjunto de objetos que geralmente continham água ou “água benta” como parte da prática védica
chamada tarpana, de oferenda às divindades – nesse caso, a Buda.

10 Também chamado de kane, ettyou, fushimizu, kanetsuke, tsukegane ou hagurome, era um costume
de algumas culturas asiáticas, principalmente entre mulheres casadas – embora após a Era Edo somente
homens da família imperial pudessem executar essa prática –, de tingir os dentes de preto com acetato
de ferro, produzido a partir da mistura entre vinagre, limalha de ferro e outros ingredientes – como pó
de chá ou de gallnut –, o que ajudava a impedir a formação de cáries ou periodontite. Essa técnica foi
proibida pelo governo em 1870.

11 Lápide de madeira em que está escrito “A pessoa com má reputação, Tamiya Iemon”.

12 Um molusco do tipo amêijoa (corbiculidae), mexilhão de água doce utilizado principalmente para
fazer ensopados.

13 Tela dobrável e deslocável usada como divisória de cômodos, geralmente feita com armação de
bambu e tela de tecido (normalmente seda) ou papel, podendo, também, haver pinturas; comumente
chamado de biombo.

14 Assim como bonbori, chōchin e tōrō, é um tipo de lâmpada/lanterna japonesa a óleo revestida com
papel washi para proteger a chama do vento. Possui diversas formas: okiandon, kakeandon,
enshuandon e ariakeandon.

15 Heso no O é um dos termos para “cordão umbilical”. Quando ele era unido a uma carta (Sho) que
continha informações sobre o nascimento da criança, indicava a relação entre a mãe e o filho, servindo
como uma espécie de identificação.

16 Tanabata, Festival da Estrela ou Festival Qixi é um festival de origem chinesa que foi importado
para o Japão. Comemora-se no dia 7 de julho ou em 7 de agosto, quando as pessoas escrevem desejos
em papéis e os penduram em bambus, que posteriormente serão queimados ou jogados no rio. O
festival se baseia na história mítica do encontro anual entre os deuses Orihime e Hikoboshi, separados
pela Via Láctea por Tentei, pai de Orihime.

17 O poema waka que aparece na narrativa é: “Mesmo que a correnteza flua e se divida rapidamente
sobre as pedras, elas no final irão se unir”.

18 Palavra utilizada para se referir a um homem de posição social superior, como um mestre, um chefe
ou um governante.

19 Koudan é uma forma de narrativa oral tradicional japonesa do século XIV que evoluiu a partir da
nobreza do período Heian (794-1185). Nela, o narrador se utiliza de um leque para marcar o ritmo da
narração.

20 Cf. Sancassani (2017).

21 Oni são criaturas da mitologia japonesa que geralmente são associadas aos demônios e ogros do
ocidente. Em sua maior parte, aparecem como antropófagos antropomórficos ou antropozoomórficos,
carregando armas, mas também podendo ter função protetora.

22 Mononoke são entidades sobrenaturais que possuem corpos ou que atormentam humanos a partir da
produção de sentimentos negativos.

23 Na cultura norte-americana, porém, é dito que os gatos têm nove vidas, um múltiplo do número três
que simboliza imortalidade, relacionado à imagem da serpente, à qual já nos referimos anteriormente.
Ambos os números atribuídos ao número de vidas desses animais devem-se às influências
colonizadoras: árabe-portuguesa, no Brasil, e nórdica-europeia, nos Estados Unidos.
Paprika: um caminho para o mundo dos sonhos
Vivian de Freitas Bandeira 1

Os sonhos afirmam o impossível. Eles dizem: “Olhe,


você acha que isso é impossível, mas isso existe no reino
da psique. Não no mundo da matéria, mas no da
psique”
(VON FRANZ, 1988, p. 42)

O adaptado pelo ousado e inventivo


FILME DE ANIMAÇÃO JAPONESAP ,
APRIKA LANÇADO EM2006, FOI DIRIGIDO E
diretor Satoshi Kon (1966-2010),
conhecido também pelas obras Perfect Blue (1998), Millennium Actress
(2002), Tokyo Godfathers (2003) e Paranoia Agent (2004). A animação
analisada neste capítulo foi baseada no livro de ficção científica Paprika, do
escritor Yasutaka Tsutsui (1993). A trilha sonora de Susumu Hirasawa, em
conjunto com a estética imagética e fantasiosa na qual o enredo é estruturado,
maximizam as emoções despertadas por esse espetáculo cinematográfico. Tal
composição, nem sempre clara e linear, exige do espectador atenção
cuidadosa, pois o olhar desatento diante da obra pode provocar desorientação.
A trama se inicia quando três amostras de uma poderosa máquina de
psicoterapia experimental chamada DC-Mini, criada pelo dr. Tokita, são
roubadas. Esse aparelho tecnológico permite que um sonho seja visualizado e
compartilhado com outra pessoa que não o indivíduo que o sonhou. A
máquina foi criada com o intuito de auxiliar tratamentos psicoterápicos, a fim
de possibilitar uma ligação mais profunda com os pacientes.
Entretanto, com o roubo do DC-Mini, esse dispositivo não é mais utilizado
apenas para fins terapêuticos, proposta original de seu criador, mas para
adentrar o inconsciente e invadir a consciência daqueles que estiverem
conectados à máquina ou que foram frequentemente expostos ao seu uso. Tal
invasão gera comportamentos inusuais e excêntricos, além de estados
alterados de consciência.
Essa situação é expressa na cena em que o dr. Toratarõ Shima – chefe do
laboratório de desenvolvimento do DC-Mini da fundação para pesquisa em
psiquiatria – e outros pesquisadores da equipe começam a proferir frases que
causam estranhamento por seu conteúdo ilógico e mergulham em um mundo
de imagens confusas e caóticas. O dr. Toratarõ Shima, em um momento em
que teve sua consciência suprimida e invadida pelo inconsciente, devido a um
sonho implantado em sua mente, diz:
A disciplina requer uma busca do DC-Mini em vez do biquíni da Paprika, isso que é felicidade
[...] pois até mesmo as cinco mulheres mais belas da corte dançaram em total sincronia com as
flautas e os tambores dos sapos. O papel reciclado era uma visão para não ser perdida, era como
os complicados gráficos de computador, que eu não suporto, sobremesas coloridas e esnobes, é
de conhecimento geral em toda a Oceania (PAPRIKA, 2006).

A partir de então, a dra. Atsuko Chiba, respeitável pesquisadora da equipe


de desenvolvimento do DC-Mini, tenta recuperar as amostras roubadas. Ela
acredita que os aparelhos foram roubados por Kei Himuro, o assistente do dr.
Tokita na criação do DC-Mini. Enquanto o presidente do laboratório, dr. Inui
Seijiro, quer interromper o desenvolvimento e o uso das máquinas de
psicoterapia, a dra. Chiba, junto com o criador do DC-Mini e outro
pesquisador, vão à casa de Kei Himuro e encontram-no inconsciente,
utilizando um DC-Mini.
Kei Himuro está mergulhado e preso no mundo dos sonhos. A dra. Chiba
decide entrar no sonho dele como Paprika para encontrar os outros dois DC-
Minis e os reais responsáveis pelo roubo.
Paprika é um aspecto da dra. Chiba que atua dentro do inconsciente.
Enquanto a dra. Chiba opera na realidade objetiva ou consciente de modo
contido e sério, representado pelas tonalidades mais sóbrias, Paprika vive em
uma realidade oposta, agindo e transitando de maneira fluida, sem restrições,
em um mundo onírico, colorido com tons avermelhados.
Entretanto, dr. Tokita acaba entrando antes de Paprika no sonho de Kei
Himuro, sozinho e sem ajuda. A partir de então, os limites entre a realidade,
os sonhos individuais de cada personagem e o sonho coletivo, no qual os
sonhos de todos os personagens se misturam, ficam cada vez mais
indefinidos.
Concomitantemente ao roubo do DC-Mini, o detetive Toshimi Kanakawa
utiliza o aparelho de maneira informal para tratamento psicoterápico. Nos
seus sonhos, diante de situações enigmáticas, conflitivas e perigosas, ele é
guiado e auxiliado por Paprika.
Este capítulo objetiva fazer algumas considerações sobre: 1) a
compreensão do fenômeno onírico para a psicologia analítica; 2) a função
psicológica desempenhada por Paprika no mundo dos sonhos; 3) as relações
da protagonista com os personagens; e, por fim, 4) os perigos de ser possuído
pelo inconsciente.
Paprika e o sonho na perspectiva Junguiana
Em algumas culturas ancestrais, os sonhos desempenhavam um papel
importante no comportamento e na vida social do grupo. O conteúdo
apresentado nos sonhos era de suma importância: estes eram portadores de
mensagens que traziam ensinamentos que guiavam os indivíduos em seus
passos. Atualmente, ao contarmos um sonho e tentarmos compreendê-lo,
utilizamos a via racional. Entretanto, o sonho se vale de uma linguagem
simbólica, por isso não o entendemos e o julgamos tolo e incoerente (VON
FRANZ, 1988). Podemos considerar que o DC-Mini, desenvolvido pelo dr.
Tokita, materializaria o desejo da humanidade de possuir a chave que decifra
os sonhos, isso porque “na raiz do sonho há um mistério criativo que não
temos como explicar racionalmente” (VON FRANZ, 1988, p. 44).
Ao falarmos de sonho, é necessário explicitar a compreensão da psicologia
analítica sobre esse fenômeno. Para Jung (1987), o sonho é uma
representação simbólica atual do inconsciente. Nele, faz-se um retrato da
realidade interior do sonhador, em uma tentativa do inconsciente de se
comunicar com a consciência. Os sonhos ocorrem a despeito da vontade
consciente do sujeito, adquirindo aspectos estranhos e desconcertantes para a
consciência. Por não seguirem a lógica consciente, são caracterizados como
absurdos (JUNG, 1987). Por inconsciente entendemos todo material psíquico
que subjaz ao limiar da consciência, incluindo componentes psíquicos
subliminares, reprimidos e que ainda não alcançaram o limiar da consciência
(JUNG, 2014b).
Jung (2014a) faz uma distinção entre o inconsciente pessoal e o
inconsciente coletivo. O primeiro é constituído por conteúdos pessoais,
adquiridos com a experiência do indivíduo. Entretanto, o inconsciente possui
conteúdos que ultrapassam a esfera da aquisição meramente pessoal, isso
porque os elementos do inconsciente coletivo nunca estiveram na
consciência, sendo povoados por arquétipos. Essas estruturas são padrões ou
motivos universais a todos os seres humanos, isto é, são formas tipicamente
humanas do funcionamento psíquico.
Hillman (1990, p. 151) descreve o inconsciente como “autônomo,
espontâneo, ubíquo, coletivo, está sempre nos atingindo, explodindo,
transbordando e estourando no meio da rua”. Essas qualidades do
inconsciente são explicitadas em momentos em que o universo onírico e
Paprika, componente psíquico interior da dra. Chiba que atua nos sonhos,
estão presentes na animação.
Podemos perceber que o diretor propõe ao longo da obra a existência de
duas realidades. A primeira é a realidade concreta e objetiva, que respeita
uma lógica sequencial, cujos limites são simples e compreensíveis. A
segunda é a realidade fantasiosa, em que as imagens adquirem um caráter
plástico e exagerado, as quais configuram uma colagem surrealista com
abundância cromática e imagética que transborda e confunde:
Os sonhos, portanto, comunicam-nos, em uma linguagem figurada – isto é, por meio de
representações sensoriais e imaginosas – pensamentos, julgamentos, concepções, diretrizes,
tendências etc. que se achavam em estado de inconsciência, por terem sido recalcados ou
simplesmente ignorados (JUNG, 2013a, p. 198).

Vale destacar que, para Jung (2013a), na maioria das vezes os conteúdos
contidos no inconsciente e na consciência não coincidem (2013b; 2013c).
Isso porque, para Jung (2013b), o inconsciente – considerado a matriz dos
sonhos – tem um funcionamento independente da consciência e exerce uma
função compensatória, ou seja, compensa uma atitude consciente.
Por função compensatória entendemos um conteúdo inconsciente que
acrescenta à situação consciente do indivíduo elementos que não alcançaram
o limiar da consciência em estado de vigília, representando uma
autorregulação do organismo psíquico.
As tendências discordantes entre os aspectos conscientes e inconscientes
podem ser observadas quando Paprika diz: “não fique pensando que você está
sempre certa”, ao que a dra. Chiba replica: “por que será que você nunca me
ouve?” e ordena: “faça o que estou mandando”.
Logo, para Jung (2013a), todo conteúdo e tendência inconsciente se
comporta de maneira compensatória em relação à consciência. Entretanto, o
inverso também deve ser considerado, tendo em vista que as atividades
inconscientes possuem autonomia. As influências das tendências
inconscientes na consciência ficam evidenciadas na trama pela fala da dra.
Chiba (aspecto consciente), que questiona Paprika (aspecto inconsciente e
pertencente ao mundo dos sonhos): “Será que você não sabe que é parte de
mim?”, ao que Paprika responde: “Já parou para pensar que você pode ser
uma parte de mim?”.
Nossas imagens são partes constitutivas de nossa mente, e quando o nosso sonho reproduz
casualmente algumas representações, estas são, antes de tudo, as nossas representações, em cuja
elaboração esteve envolvida a totalidade de nosso ser (JUNG, 2013a, p. 218).
Paprika: a guia no mundo onírico
Podemos observar que Paprika, em diversos momentos, atua como guia no
mundo onírico. Ela auxilia o detetive Toshimi Kanakawa na compreensão de
seus sonhos; resgata o dr. Toratarõ Shima de um desfile que provavelmente o
levaria a um lugar sem volta; fornece orientações à dra. Chiba quando está
prestes a encontrar Himuru; e, por fim, entra no sonho coletivo de Himuro,
dr. Tokita, detetive Toshimi Kanakawa e presidente dr. Inui Seijiro na
tentativa de salvar alguns dos personagens, retirando-os do sonho coletivo.
Há também o combate com o culpado do roubo do DC-Mini, que descobre
ser o presidente dr. Inui Seijiro.
Nessa perspectiva, ela desempenha uma função de mediadora, representada
em três figuras: psicopompo, Hermes/Mercúrio e anima.
O psicopompo é aquele que tem livre trânsito e acesso aos mundos
consciente e inconsciente, guiando as almas na transição para os dois
mundos. Essa função também é atribuída ao deus olímpico grego Hermes,
conhecido na mitologia romana como Mercúrio, condutor das almas e
intermediador das polaridades – nesse caso, consciente-inconsciente
(SAMUELS; SHORTER; PLAUT, 1988).
Hermes é considerado na mitologia, segundo Brandão (1987), astuto,
inventivo, guardião dos caminhos, mensageiro dos deuses, guia das almas dos
mortos, trickster e aquele que penetra a partir de um mundo conhecido no
mundo desconhecido. Segundo Hillman (1990), também existem algumas
aproximações entre o deus Mercúrio/Hermes e a anima, visto que ambos
possuem um caráter mutável, leve, efêmero, fugaz, volátil e ativo. A anima
pode ser definida como aquela que é mediadora e ponte para o desconhecido.
Paprika, nesse sentido, atua como anima ao instruir, inspirar e iniciar o
detetive no caminho interior dos sonhos para realizar o enfrentamento
daquilo que mais teme, mas que deve encarar.
É importante destacar que Jung (2013a) entende que os sentidos e
significações dos sonhos são polissêmicos, não únicos, uniformes e fixos.
Dessa forma, podemos pensar em algumas amplificações possíveis dos
simbolismos contidos nas corporificações aladas de Paprika. Como borboleta,
carrega a transformação daquela que um dia já foi lagarta; como fada, é
mensageira do mundo mágico, aqui compreendido como o universo onírico;
já como Esfinge, é portadora do enigma que muitas vezes os sonhos nos
trazem (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1986).
Além disso, o deus Hermes/Mercúrio, uma das figuras representadas por
Paprika, também possui asas em suas sandálias. Ademais, ao adentrar no
sonho de Himuro, Paprika se locomove flutuando em cima de uma nuvem,
que, embora não tenha asas, como os elementos supracitados, é um
componente etéreo. Tais símbolos trazem as características de fugacidade,
volatilidade, mutabilidade, atividade e leveza. As asas viabilizam que Paprika
transite pelas zonas abismais do inconsciente sem ficar aprisionada,
possibilitando que transcenda as polaridades dos opostos consciente-
inconsciente, sendo portadora de algo novo, que ultrapassa a situação de
conflito.
O presidente: perigos do inconsciente
Ao final da trama, podemos perceber um estado de indiferenciação entre os
sonhos dos personagens Himuro, dr. Tokita, detetive Toshimi Kanakawa e
presidente dr. Inui Seijiro. Paprika relata que esse sonho em especial é
extremamente perigoso, pois existe uma grande possibilidade de ficar presa e
indiferenciada no inconsciente, assim como os personagens Himuro e dr.
Tokita.
O presidente, que na atitude consciente rejeitava e opunha-se ao DC-Mini,
era, na verdade, o antagonista da trama. Na atitude inconsciente, ele estava
fascinado pelos poderes que a máquina psicoterápica poderia proporcionar,
como o fácil acesso aos segredos desconhecidos pela consciência, dos quais o
sonho é mensageiro. Tal fascínio nutriu sua vontade de poder, possibilitando
que fosse tomado por um estado de inflação psíquica, isto é, a personalidade
do personagem expande-se para além de seus limites individuais, passando a
ocupar um espaço que normalmente não pode preencher. O indivíduo
apodera-se de conteúdos e de qualidades autônomas do inconsciente, o que
propicia excessos e presunção (JUNG, 2014b). Isso é representado no
tamanho e na grandeza atingida pelo corpo do presidente dr. Inui Seijiro ao
final do filme.
É interessante notar, também, que elementos infantis, como as bonecas e o
parque de diversão, assim como a cor primária vermelha, aparecem em
diversos momentos no universo onírico. Isso pode demonstrar que o
inconsciente possui conteúdos pouco discriminados, ou seja, pouco
desenvolvidos, por isso tem um caráter pueril, impulsivo, rudimentar,
bárbaro, arcaico e instintivo. Essas características fazem com que a
emergência dos conteúdos inconscientes tome com facilidade a consciência.
Por fim, podemos observar que tanto Paprika quanto o presidente dr. Inui
Seijiro relacionam-se com o inconsciente de formas diferentes. Por um lado,
Paprika tenta resgatar no inconsciente o gérmen de potencial criativo
riquíssimo e a matéria-prima prenhe de símbolos, dos quais o sonho é porta-
voz. Paprika, como psicopompo, Hermes/Mercúrio e anima, auxilia na
compreensão, assimilação e integração desses conteúdos na consciência, o
que possibilita a emergência de uma nova atitude perante a situação
conflituosa. Por outro lado, o valioso material contido no inconsciente pode
ser perigoso. É possível relacionar isso à atitude do presidente dr. Inui Seijiro,
na medida em que este se deixa fascinar pelos poderes e pelos segredos neles
contidos. Ao utilizar o DC-Mini para invadir o inconsciente das outras
figuras da trama, o personagem tem sua consciência inundada por um
conteúdo grandioso e seu inconsciente pessoal invadido.
Referências
BRANDÃO, J. S. Mitologia grega. Petrópolis: Vozes, 1987. (v. 2).
CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Diccionario de los símbolos. Barcelona: Editorial Herder, 1986.
HILLMAN, J. Anima: anatomia de uma noção personificada. São Paulo: Cultrix, 1990.
JUNG, C. G. A aplicação prática da análise dos sonhos. In: ______. Ab-reação, análise dos sonhos,
transferência. Petrópolis: Vozes, 1987. p. 22-45.
______. Aspectos gerais da psicologia do sonho. In: ______. A natureza da psique. 10. ed. Petrópolis:
Vozes, 2013a. p. 186-234.
______. Da essência dos sonhos. In: ______. A natureza da psique. 10. ed. Petrópolis: Vozes, 2013b. p.
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______. A função transcendente. In: ______. A natureza da psique. 10. ed. Petrópolis: Vozes, 2013c. p.
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______. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 11. ed. Petrópolis: Vozes, 2014a.
______. Eu e o inconsciente. 26. ed. Petrópolis: Vozes, 2014b. (Obras Completas, v. 7/2).
PAPRIKA. Direção: Satoshi Kon. Tóquio: Madhouse, 2006. 1 DVD (90 min), son. color.
SAMUELS, A.; SHORTER, B.; PLAUT, A. Dicionário crítico de análise junguiana. Rio de Janeiro:
Imago, 1988.
TSUTSUI, Y. Paprika. New York: Vintage Books, 1993.
VON FRANZ, M. L. O caminho dos sonhos. São Paulo: Cultrix, 1988.

1 Mestranda do Núcleo de Estudos Junguianos do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia


Clínica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); capacitanda em transtornos
alimentares no Núcleo de Atenção aos Transtornos Alimentares (PROATA) do Departamento de
Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e aluna do Further Education Program in
Analytical Psychology no Instituto C.G. Jung de Zurique, Suíça. Possui graduação em psicologia pela
PUC-SP. Atua como psicóloga em consultório particular. Contato: vifbandeira@gmail.com.
Glossário de conceitos junguianos
Heráclito Aragão Pinheiro

Amplificação: Amplificar significa alargar um tema por meio de numerosas versões análogas, como o
uso dos contos de fadas para interpretar uma experiência vivida. A base do método comparativo é a
amplificação; além disso, Jung (2012) abandona as associações livres freudianas e em seu lugar utiliza
as amplificações em seu método interpretativo. A interpretação deve ser uma variação da mesma
concepção (em outras palavras, amplificação), do contrário ela é uma compensação ou polêmica, isto é,
uma eliminação do processo que deve ser reconstruído. A interpretação, nessa perspectiva, deve estar
precavida contra o emprego de quaisquer outros pontos de vista que não sejam manifestamente
indicados pelo conteúdo.

Anima: A anima pode ser entendida corretamente como a alma feminina no homem. Sua
masculinidade consciente é compensada por uma feminilidade inconsciente. Há, por assim dizer, uma
imagem coletiva da mulher no inconsciente do homem, por meio da qual ele pode entrar em contato
com a natureza da mulher. Ela não é apenas individual, mas na imagem da anima feminina subjaz algo
de supraindividual, que não deve sua existência tão somente à individualidade, mas possui algo
de típico.

Animus: O animus é o espírito masculino ou o inconsciente feminino. A consciência da mulher se


caracteriza por sua vinculação ao eros – a função de relacionamento –, enquanto seu inconsciente se
caracteriza pela vinculação com o logos – o caráter diferenciador e cognitivo. Esse logos inconsciente é
constituído de opiniões, e não de reflexões. O animus é, na mulher, o produtor de opiniões irrefletidas.

Arquétipo: É uma categoria da fantasia ou um mitologema. Um mitologema ou um motivo mítico


designa formas específicas e grupos de imagens que se encontram, sob formas coincidentes, em todas
as épocas e em todas as latitudes, bem como em sonhos, visões, fantasias e ideias delirantes (natureza).
Em si, o arquétipo não é um fator explícito, mas uma disposição interior para organizar o material
inconsciente em figuras bem definidas, reunindo e ordenando o material da fantasia. Onde quer que se
manifeste, o arquétipo tem caráter compulsivo, pois procede do inconsciente (trindade). O arquétipo
não é um conteúdo individual, mas coletivo, ou seja, não é próprio de um só indivíduo, mas de muitos
ao mesmo tempo (de uma sociedade, de um povo ou da humanidade toda).

Complexo: É uma imagem de uma situação psíquica de forte carga emocional dotada de poderosa
coerência interior e que goza de grande autonomia, comportando-se na esfera da consciência como um
corpo estranho animado e com vida própria. Em princípio, não há diferença alguma entre uma
personalidade fragmentária e um complexo. Os complexos são aspectos parciais da psique dissociados.

Constelação: Quando a situação exterior desencadeia um processo psíquico que consiste na atualização
e na aglutinação de determinados conteúdos, isso leva o indivíduo a adotar uma atitude preparatória e
de expectativa, com base na qual reagirá de maneira definida. A constelação é um processo automático
que independe da vontade, e os conteúdos constelados são determinados complexos que possuem
energia própria.

Dissociação: Processo que caracteriza o estado neurótico ou psicótico, ou seja, uma desunião consigo
mesmo em virtude da separação de determinados conteúdos na consciência por adquirirem igual valor
energético, gerando uma dissociação da consciência ou um afastamento da base instintiva e
inconsciente, o que produz uma dissociação que cria uma tendência oposta no inconsciente, podendo
gerar uma estagnação do desenvolvimento consciente.

Ego: Jung (2013b) entende por ego (eu) aquele fator complexo com o qual todos os conteúdos da
consciência se relacionam. O eu é algo individual e único. É o centro do campo da consciência e o
sujeito de todos os atos conscientes da pessoa. O eu é o sujeito de todos os esforços de adaptação, na
medida em que estes são produzidos pela vontade. Ele não é um fator simples e elementar, mas
complexo e impossível de se descrito com exatidão. O eu é a personalidade consciente, mas não é
idêntico à personalidade global (si-mesmo) e dela se distingue.

Imagem: Trata-se de uma imagem da fantasia que se relaciona indiretamente com a percepção do
objeto externo. Tal imagem depende em maior grau da atividade inconsciente da fantasia, surgindo à
consciência de maneira mais ou menos espontânea e abrupta, mas sem caráter patológico. A imagem é
uma expressão concentrada da situação psíquica como um todo, e não apenas dos produtos
inconscientes. No que se refere aos conteúdos inconsciente expressos pela imagem, expressa os
conteúdos inconscientes constelados pela situação momentânea da consciência, por um lado, e, por
outro, da atividade autônoma do inconsciente. A imagem é a expressão momentânea tanto da
consciência quanto do inconsciente. Quando a imagem possui caráter arcaico, ela é uma imagem
primordial, e por arcaico Jung (2012) entende uma concordância explícita com motivos mitológicos
conhecidos, sendo, dessa maneira, uma expressão do inconsciente coletivo, indicando que a situação
momentânea da consciência é mais influenciada coletiva do que pessoalmente.

Inconsciente coletivo: Consiste em imagens primordiais que possuem caráter arcaico, pois apresentam
concordância explícita com motivos mitológicos. É uma camada psicoide (similar ao psíquico) que
corresponde a uma hipótese de trabalho que visa explicar os fenômenos psíquicos que fogem da mera
escala individual, bem como a similaridade entre mitologemas em diversas culturas sem a possibilidade
de transmissão histórica. Constitui a verdadeira base do psiquismo individual.

Inconsciente pessoal: O inconsciente é tudo aquilo que sabemos ser psiquicamente real, mas que não é
consciente. Não sabemos o que é, sabemos apenas que há fenômenos psíquicos que se manifestam por
meio de sonhos, gestos involuntários etc. Podemos defini-lo, também, como a totalidade dos
fenômenos psíquicos em que falta a qualidade da consciência. O inconsciente pessoal se caracteriza
pelo fato de seus conteúdos serem em parte aquisições da vida individual, em parte fatores psicológicos
que também poderiam ser conscientes. Os conteúdos inconscientes são de natureza pessoal quando
podemos reconhecer no nosso passado seus efeitos, suas manifestações e sua origem específica.

Inflação: Esse estado envolve uma expansão da personalidade além dos limites individuais – trata-se
de uma presunção. O indivíduo ocupa um espaço que normalmente não pode preencher. Aquilo que nos
ultrapassa pertence a outro, a todos ou a ninguém.

Integração: É a aproximação de um novo conteúdo da consciência de um material subjetivo que está à


disposição. Tal material é integrado à consciência, ampliando seu escopo e profundidade, corrigindo ou
equilibrando a sua atitude.

Participação mística: Também chamada por Jung (2012) de identidade arcaica, é uma identidade
inconsciente entre sujeito e objeto. Nesse estado, interior e exterior se confundem e mal se distinguem.
Trata-se de uma igualdade inconsciente com os objetos, um ser igual a priori que jamais foi objeto da
consciência, e não um nivelamento ou identificação. Nisso se baseia a possibilidade da sugestão e do
contágio psíquico. Esse estado caracteriza a consciência da criança e do primitivo e o inconsciente do
homem civilizado.

Persona: É um complexo funcional que surgiu por razões de adaptação ou comodidade, porém não
corresponde à individualidade e diz respeito exclusivamente à relação com os objetos externos. Jung
(2012) chama de persona a atitude externa, o caráter externo. Representa um compromisso entre o
indivíduo e a sociedade, em que ele desempenha o papel que lhe cabe de maneira a corresponder o
máximo possível às expectativas social e geral acerca daquela posição. As características e traços de
personalidade que compõem o papel que o indivíduo representa diante do mundo são reais, mas
representam algo de secundário em relação à individualidade essencial da pessoa. Fundamentalmente, a
persona é uma aparência.

Processo de individuação: É o desenvolvimento do indivíduo psicológico como ser distinto da


psicologia coletiva. Trata-se de um processo de diferenciação que tem por meta o desenvolvimento da
personalidade individual. Essa meta é completamente diferente do “individualismo”, que não passa de
uma “acrobacia da vontade”. O processo de individuação não leva a um isolamento, mas a um
relacionamento coletivo mais intenso e abrangente. Paradoxalmente, a individuação pressupõe um
mínimo de adaptação à norma coletiva, ao mesmo tempo que está sempre em maior ou menor oposição
a ela, pois é uma separação e diferenciação do geral. A individuação não vai contra a norma coletiva,
mas se constitui em um outro modo – se fosse uma simples oposição, não seria um caminho individual,
mas uma norma antagônica, e o caminho individual nunca é norma. Para Jung (2012), a individuação
nunca é algo simplesmente procurado pelo sujeito, mas já se encontra fundamentada a priori na sua
disposição natural.

Projeção: É uma transferência inconsciente, isto é, imperceptível e involuntária de um fato psíquico


para um objeto exterior.

Si-mesmo (self): É o arquétipo da totalidade, uma instância que não é consciente nem inconsciente, ou
que é consciente e inconsciente. Designa o âmbito total de todos os fenômenos psíquicos no homem.
Trata-se do “ponto central” da personalidade, é o elemento unificador dos opostos, que é,
simultaneamente, o centro e a totalidade do psiquismo. O si-mesmo aparece empiricamente em sonhos,
mitos e contos de fadas sob o aspecto de “personalidades superiores”, como reis, heróis, profetas e
salvadores ou como imagens de símbolos da totalidade, como o círculo, o quadrilátero, a cruz etc.
Aparece, igualmente, como dualidade unificada, e todas essas imagens, não raro, possuem inequívoco
poder numinoso, isto é, um valor sentimental apriorístico.

Símbolo: Trata-se da melhor formulação possível de algo relativamente desconhecido. Enquanto um


símbolo for vivo, isto é, enquanto é capaz de expressar a constelação subjetiva subjacente, é a melhor
tradução de um fato complexo ainda não claramente apreendido pela consciência. Um símbolo vivo
representa o indizível de maneira insuperável. Ele formula um fator essencialmente inconsciente e é a
expressão melhor e mais plena possível desse fator inconsciente apenas obscuramente pressentido.

Sombra: É um arquétipo – ou seja, um motivo mítico – com a característica peculiar de ser um dos
arquétipos que com mais frequência e intensidade influencia ou perturba o ego (eu). A sombra é
composta pelos traços obscuros de caráter e pelas inferioridades do indivíduo e possui uma natureza
emocional e certa autonomia, consequentemente tendo caráter possessivo. Em geral, em sonhos e
visões, bem como na fantasia e na arte, aparece personificada como um indivíduo do mesmo sexo, com
características opostas à consciência. Exemplos famosos da manifestação desse arquétipo dizem
respeito ao mitologema do “irmão gêmeo malvado”, como Caramon e Raistlin nos romances de
Dragonlance, sendo Raistlin um mago cerebral, franzino e mau em contraste com seu irmão, Caramon,
bonachão, tolo, bondoso e forte como um touro; como exemplo, ainda, temos dr. Jekyll e mr. Hyde e
Bruce Banner e seu alter ego Hulk.
Referências
HANNAH, B. The animus: the spirit of inner truth in women. Asheville: Chiron Publications, 2010.
JUNG, C. G. O eu e o inconsciente. Petrópolis: Vozes, 2011. (Obra Completa, v. 7/2).
______. Tipos psicológicos. Petrópolis: Vozes, 2012. (Obra Completa, v. 6).
______. A natureza da psique. Petrópolis: Vozes, 2013a. (Obra Completa, v. 8/2).
______. Aion, estudo sobre o simbolismo do si-mesmo. Petrópolis: Vozes, 2013b. (Obra Completa, v.
9/2).
______. O desenvolvimento da personalidade. Petrópolis: Vozes, 2013c. (Obra Completa, v. 17).
______. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis: Vozes, 2014. (Obra Completa, v. 9/1).
VON FRANZ, M. L. Reflexos da Alma. Cultrix: São Paulo, 1997.
______. O caminho dos sonhos. Cultrix: São Paulo, 2002.
Animes que compõe a capa

COMPOSIÇÃO GEOMÉTRICA DA IMAGEM FAZ REFERÊNCIA A UMA MANDALA,

A palavra do sânscrito que significa “círculo”, composto por inúmeros


fragmentos que convergem ao centro, do plano do profano (exterior)
ao sagrado (interior), representando a ascensão espiritual. A mandala ficou
muito conhecida na psicologia com os estudos de Carl Gustav Jung, que a
encarava como o símbolo da totalidade psíquica ou Self. Por isto, ela foi
escolhida para ser a imagem de capa de um dos mais conhecidos de seus
livros: “O homem e seus símbolos”, de 1964. Sua imagem serviu de
inspiração fundamental para a nossa capa.

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