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Mangás, Animes e a Psicologia
Ivelise Fortim (org.)
Anne Aguemi
Antonio Carlos dos Santos Gomes
Ceres Alves de Araujo
Cristiana Rohrs Lembro
Flavia Arantes Hime
Juliano Alves
Katia Regina Oushiro
Louise de França Monteiro
Luiz Ojima Sakuda
Luna Pereira Gimenez
Marcos Daniel G. Polcino
Naomi Prata Feldman
Paula Guimarães
Victor Lippelt Matheus
Victor Sancassani
Prefácio:
Sonia M. Bibe Luyten
2017
Agradecimentos
É um prazer publicar outro livro com a ajuda de tantas pessoas queridas.
Sou muito grata a Antonio Carlos dos Santos Gomes, nosso editor, que novamente com seu
carinho e animação pelo mundo nerd se dispôs a viabilizar o livro. É o segundo de nossa
parceria profissional, resultado de uma amizade de 25 anos;
Agradeço ao pessoal do Vitália MUD, meus introdutores no universo dos animes “modernos”,
companheiros de Anime Friends, parceiros de discussões relevantes tais como escolher qual a
melhor temporada de InuYasha;
Luana Costa Negraes, nossa revisora, indicada por Felipe Bonfim (o bardo);
Victor Sancassani, pelo design da capa do nosso livro;
Profa. Dra. Sonia Luyten, pelo prefacio e por ter encarado o desafio de faze-lo em prazo tão
curto;
Aos autores já experientes, pela sua disponibilidade de participar do projeto e tecer suas
preciosas análises;
Aos autores que estão na graduação ou acabaram de sair dela, pela coragem, dedicação,
esforço e confiança. O futuro da psicologia é de vocês;
Aos nossos patrocinadores, FujiFilm, Antalis e Leograf;
Agradecemos nossas famílias e amigos pelo incentivo a publicação;
A todos os mangakás, animadores e figuras importantes do universo dos animangás, nosso
sincero agradecimento pela possibilidade de a arte expressar nossas histórias, nossos
sentimentos, medos, fantasias e tudo o mais. Domo arigatou gozaimasu!
Sumário
Prefácio
Arigato, Mangakás! Animangás no Brasil
Inuyasha – Procure os fragmentos que estão perdidos dentro de você!
Yu Yu Hakusho
Angel Beats!
Os Cavaleiros do Zodíaco
A sombra em Paranoia Agent
Harry Potter e Naruto: tão iguais, tão diferentes
Pokémon: uma análise simbólica
Kamui: uma lenda da gesta heroica
Death Note: à sombra, um deus – Análise do personagem Light Yagami
Sakura Card Captors: um olhar sob a luz da teoria junguiana
A Princesa e o Cavaleiro
Serviço de Entregas da Kiki: entregando a si mesma44
A viagem de Chihiro: a jornada do feminino em busca de seu amadurecimento
Yaoi: os homens do mundo feminino
Patrulha Estelar: reflexões sobre um marco da primeira geração de Animes da
cultura otaku
Prefácio
M INÍCIO SEM RODEIOS: ESTA OBRA É DEFINITIVAMENTE O QUE FALTAVA À BIBLIOGRAFIA BRASILEIRA
1 Doutora em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, com tese sobre
mangá. Foi professora do Departamento de Jornalismo e Comunicações da ECA/USP (1972-1984) do primeiro curso regular de
Histórias em quadrinhos no Brasil com início em 1972. Criadora do primeiro núcleo de estudos sobre mangá no Brasil na década
de 1970 na mesma universidade que mais tarde tornou-se a ABRADEMI. Foi professora convidada da Universidade de Estudos
Estrangeiros de Osaka e Tóquio – Japão, da Universidade Real de Utrecht - Holanda e professora convidada da Universidade de
Poitiers – França. Autora de inúmeros livros entre eles Mangá, o poder dos quadrinhos japoneses e Cultura Pop japonesa: animê e
mangá. Obteve vários prêmios por sua pesquisa em Histórias em Quadrinhos como a Honraria do governo japonês pela atuação
na divulgação e pesquisa da Cultura Pop Japonesa. – em 2008.
Arigato, Mangakás! Animangás no Brasil
Ivelise Fortim 2
Já os animes (do inglês animation), por sua vez, são os desenhos animados japoneses, que
estão longe de ser passatempos infantis, como são comumente vistos nos países ocidentais. Em
sua origem, os animes também sofreram forte influência do ocidente, especialmente das
animações da Disney e dos filmes de Hollywood (DRAZEN, 2003). Podem ser veiculados em
séries de episódios, em episódios individuais ou no formato de filmes.
Os animes e os mangás costumam ter profunda ligação entre si, no sentido de que muitos
mangás originam animes, assim como muitos animes originam mangás. Além disso, ainda se
relacionam com a indústria dos videogames: muitos mangás e animes podem dar origem a jogos
(e vice-versa). Assim, por exemplo, Pokémon, um dos animes de maior sucesso, foi criado a
partir de um jogo para videogame. Essas formas de arte constituem-se como narrativas
multimidiáticas, como apontado por Jenkins (2009).
Neste texto, as mídias serão designadas pelo termo “animangá”, contração das palavras anime
e mangá. O termo surgiu de um grupo de fãs e é utilizado por brasileiros e portugueses para
denominar séries japonesas que existem tanto no formato animado quanto em quadrinhos.
Portanto, doravante, animangá irá se referir às narrativas originadas por estes dois veículos, mas
que se utilizam de diversos meios para contar sua história: quadrinhos, jogos eletrônicos,
desenhos de animação, filmes de animação, filmes live action (com atores reais), criações
colaborativas na internet etc. Quando necessário distinguir os termos, serão usadas as palavras
anime – para designar apenas as animações – e mangá – para designar apenas os quadrinhos.
Ainda segundo o autor, os videogames seriam responsáveis por grande parte da difusão de
cultura pop japonesa pelo mundo, uma vez que muitas empresas de entretenimento eletrônico do
Japão fazem games baseados nessas narrativas.
Já segundo Gusman (2005), o sucesso dos mangás deve-se aos seguintes fatos: 1) Ser um tipo
de história com começo, meio e fim. Isso faz com que o leitor fique curioso em saber como será
o desfecho da trama, ao contrário de outros tipos de quadrinhos, em que o tempo não passa. 2)
Ter uma boa interatividade entre narrativas cinematográficas e de animação. Diferente dos filmes
de super-heróis, cujas narrativas podem ser modificadas e não refletir a narrativa dos quadrinhos
e filmes, existem poucas diferenças entre os filmes e as histórias originais apresentadas nos
mangás. 3) São histórias que trabalham com mais consistência o aspecto humano do
personagem. Os quadrinhos norte-americanos, por exemplo, retratam os personagens
praticamente como semideuses invencíveis, muito diferente do apresentado nos mangás.
Cabe lembrar que o animangá é um sucesso não apenas no Brasil, mas em todo o mundo.
Moliné (2006) afirma que o destaque desta arte foi conquistado a partir das sagas Akira e Dragon
Ball em diversos países ocidentais.
Devido ao grande êxito dos animangás, muitos autores ocidentais passaram a imitar seu estilo.
Entretanto, o que caracteriza um animangá não é apenas a forma como é desenhado – os
personagens geralmente têm cabeças e olhos muito grandes e cabelos espetados –, mas também
sua ideologia com relação a padrões sociais orientais, o tipo de narrativa, a psicologia dos
personagens e o ritmo narrativo (MOLINÉ, 2006).
Ainda segundo Moliné (2006), podemos dizer que existem diversos gêneros de animangás.
Simplificadamente, há os chamados shonen (voltados para meninos) e os shojo (direcionados
para meninas). Existem os de ficção científica, cujos temas principais apresentam distopias e
robôs gigantes, e os jidaimono, narrativas históricas que retratam especialmente o Japão
Medieval, com temas sobre samurais e ninjas. Há animangás policiais, que tratam de histórias de
detetives, e os de Yakuza, sobre a máfia japonesa. Temos também os que têm como foco os
esportes – tanto os orientais (como artes marciais) quanto os considerados ocidentais (como
futebol). Outro gênero é o que versa sobre trabalho, mostrando a vida de executivos ou sobre
determinados hobbies. Ainda temos os importantes animangás que trazem os temas da guerra
(antibélicos) e os eróticos; estes últimos, muitas vezes conhecidos como hentai, têm como
subgêneros os chamados yaoi (gay masculino) e yuri (gay feminino). O autor ainda cita como
exemplos de gêneros os animangás educativos e os animangás undergrounds, que exploram
temas “proibidos”, como pedofilia, parafilias etc. Para uma história mais detalhada dos
animangás, recomenda-se a leitura de Luyten (2014).
Essas “situações típicas na vida” podem ser representadas nas mais diversas formas da cultura
de massa, que cumpririam a função de exibir narrativas sobre essas vivências primordiais, assim
como antes eram transmitidos oralmente os mitos e os contos de fada. Campbell (1988) concorda
que os meios de comunicação, em especial o cinema, podem ser novos veículos para os mitos,
representando novas possibilidades de metáforas para ideias mitológicas e, portanto,
arquetípicas. Campbell se refere a isto especialmente quando fala do filme Star Wars. Para o
autor, “o filme comunica. É concebido numa linguagem que fala aos jovens, e é isso que
verdadeiramente conta” (p. 153). Hoje, podemos considerar que a cultura de massa, por meio de
suas histórias, pode auxiliar o indivíduo a fazer esta mediação. Além disso, expressa
necessidades coletivas de determinados grupos (no caso, jovens fãs), mostrando símbolos que
são importantes na contemporaneidade.
Assim, é necessário que seja feita uma análise psicológica dos principais temas dos
animangás. Como aponta Xavier (2005),
Do mesmo modo como os contos são considerados como sendo de valor inestimável para a vida psíquica da criança, os
quadrinhos oferecem, através de seu rico, criativo e versátil mundo do imaginário, uma ampla gama de recursos
pedagógicos e psicológicos, reguladores do funcionamento psíquico e, em alguns casos, como na categoria de heróis
em quadrinhos, podemos encontrar elementos potencialmente estruturantes de uma inteligência espiritual ou
religiosa. 6
Os animangás estão relacionados ao imaginário japonês, com suas muitas figuras míticas:
seres mitológicos (onis, youkais, kyuubis, shinigamis), animais mágicos, bruxas, sacerdotisas,
robôs e ciborgues. Além destas, também existem as figuras históricas romantizadas: mestres de
espada e de artes marciais, samurais, shoguns, ninjas, generais, entre muitas outras figuras que
povoam a imaginação oriental.
A narrativa dessas séries é, em geral, tão fantasiosa e inexplicável à lógica racional como os
contos de fada. Nem sempre de fácil entendimento, as histórias contêm uma lógica narrativa
considerada por muitos como “psicodélica”, aproximando-se muito mais dos conteúdos
inconscientes do que de uma lógica racional e consciente.
A conexão entre contos de fadas e animangás é muito estreita, já que muitos deles são
originados justamente a partir de lendas e contos de fadas japoneses. Segundo Drazen (2003), os
contos de fadas japoneses são tão influentes na construção destas narrativas quanto o cinema de
Hollywood. Para o autor, muitos animangás voltam-se para os antigos contos conhecidos como
mukashi banashi com o intuito de trazer personagens, enredos, nomes ou lugares. Alguns
trabalham com o enredo clássico da história; outros, com suas diversas variações; e há, ainda, os
que apenas carregam alguma semelhança, como nomes de personagens ou pequenas piadas
inseridas em um contexto maior.
Este livro convida psicólogos, alunos de psicologia e outros profissionais a pensar em que
reside o encanto dessas histórias. Faz análises dos destaques shonen Yu Yu Hakusho, Cavaleiros
do Zodíaco, Patrulha Estelar – Yamato, Naruto, Inuyasha, Angel Beats!, Death Note, Kamui,
Pokémon e Paranoia Agent; de clássicos shojo como A Princesa e o Cavaleiro e Sakura Card
Captors, além de fazer uma incursão sobre o universo yaoi, destinado às mulheres. No campo
das produções cinematográficas, são analisadas as animações A viagem de Chihiro e O serviço
de entregas da Kiki, ambas do diretor Hayao Miyazaki. Buscamos entender as narrativas, os
personagens e suas dinâmicas, refletindo sobre questões diversas, especialmente do ponto de
vista da psicologia analítica de Carl Gustav Jung.
Com relação aos autores, é um prazer apresentar uma coletânea com alguns já muito
experientes e outros bem mais jovens. É importante que haja espaço para os alunos de graduação
publicarem suas produções, pois dão frescor à obra. A proposta é fazer análises despretensiosas,
que nos levem a uma incursão tanto no psiquismo humano quanto nas narrativas fantásticas. Os
autores deste livro, em sua maioria, têm formação em psicologia analítica, mas também temos
contribuições de outras áreas, como administração, jornalismo e ciências sociais. Cada capítulo
versa sobre um animangá específico.
Esperamos que os leitores aproveitem esta viagem pelo universo imaginário nipo-brasileiro!
Referências
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DRAZEN, P. Anime explosion! The What? Why? & Wow! of Japanese Animation. Berkeley (CA): Stone Bridge Press, 2003.
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JUNG, C. G. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1964.
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VON FRANZ, M. L. A interpretação dos contos de fadas. São Paulo: Achiamé, 1981.
XAVIER, C. L. M. Quadrinhos, psicologia e espiritualidade: símbolos e mitos estruturam o desenvolvimento psíquico e
espiritual. Psicologia para América Latina, México, n. 4, ago. 2005.
2 Psicóloga, Doutora em Psicologia Clínica e professora dos cursos de Psicologia e de Jogos Digitais da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP). Contato: ivelise@homoludens.com.br
4 O termo “ anime” foi escolhido pois a palavra foi incorporada a língua portuguesa desta forma. O original em japonês é
“animê”, com acentuação. No Brasil utilizam-se ambos os termos.
A mesma autora completa dizendo que é a anima que faz um homem se apaixonar, pensar que
a moça é a escolhida e perder o juízo aos olhos dos outros, uma vez que se prende a essa mulher.
Para Jung (1982), a anima é, simplificadamente, a imagem do feminino que cada homem
carrega – não a imagem de uma mulher específica, mas, sim, a imagem de um outro. 10 Com
frequência, esse outro é projetado no parceiro amoroso. Dessa forma, ao se casar com Kagome,
Inuyasha integra aspectos de sua anima.
Ao fim da série, Inuyasha diz: “Kagome me ensinou como sorrir e como acreditar em outras
pessoas. Kagome foi a razão pela qual eu pude fazer amigos e confiar neles. Para chorar pelos
outros, para entender a verdadeira força e bondade. Todas essas coisas eu aprendi com a
Kagome” (Inuyasha – Kakentsu-Hen, episódio 26). Percebemos, portanto, como foi a evolução
de Inuyasha ao longo de seu caminho para recuperar os fragmentos da Joia.
Para Jung (1994), os processos descritos pela alquimia eram uma metáfora do processo de
individuação. Conseguir a Pedra Filosofal tratava-se, mais do que de um processo concreto de
transformação material, de uma transformação psicológica. Jung acreditava que a alquimia
descrevia os processos necessários para o processo de individuação. Neste processo, a tarefa
principal era a de integração dos opostos.
Os opostos constituem a anatomia mais básica da psique. O fluxo da libido, ou energia psíquica, é gerado pela
polarização de opostos, da mesma forma que a eletricidade flui entre polos negativos e positivos. [...] Os opostos são o
dínamo da psique, são o motor que mantém a psique ativa (EDINGER, 2008, p. 13).
Os opostos são separados no nascimento, diversos tipos deles. No inconsciente, haveria muitos
pares de opostos: masculino e feminino, bem e mal, jovem e velho, o que é revelado e o que é
oculto, entre tantos outros. No caminho do desenvolvimento da personalidade, esses diferentes
pares de opostos devem ser reunidos. Quando os opostos estão polarizados, o sujeito pode passar
por crises e dificuldades emocionais: se estou muito fixado em um determinado tipo de vivência,
excluo outras de minha vida. Entretanto, para Jung (1996), isso causa neuroses. A cura para as
neuroses seria a integração desses opostos, a vivência de outras possibilidades que o sujeito
ainda não consegue viver.
Jung (1982) também acreditava em uma estrutura chama de self (ou si mesmo). O self seria o
todo e também o centro da personalidade. Jung diz que os conteúdos integrados fazem parte do si
mesmo. Acredita que quanto maior for o número de conteúdos assimilados ao ego, melhor a
relação que este estabelece com o si mesmo. Conforme os conteúdos chegam à consciência,
podem ser integrados. Essa integração dos conteúdos psíquicos leva o homem à totalidade.
Jung (1982) aponta que há muitos símbolos que representam o self como centro da totalidade
psíquica e como aquele que reúne os opostos. Esses símbolos são a mandala, o centro do
labirinto, as flores e, muitas vezes, as joias e pedras preciosas – além, é claro, da Pedra Filosofal
dos alquimistas.
O enredo do animangá se inicia com a Joia, que é dividida em inúmeras partes. Podemos
traçar um paralelo desta como o início da jornada, quando Inuyasha e Kagome devem se
desenvolver. A joia foi partida e precisa ser recuperada, e é nessa jornada que os heróis vão
trilhar seus caminhos. Esse processo de unificação das partes também é chamado pelos
alquimistas de coniunctio – a união dos opostos, que traz a transformação da multiplicidade em
unidade (EDINGER, 2008).
A Joia de Quatro Almas é esférica, uma pedra preciosa de cor lilás. Isso remete aos
simbolismos do círculo (a esfera é um círculo tridimensional), que representa ausência de
distinção ou de divisão; é símbolo do tempo, da unidade, do princípio em que não há começo
nem fim (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1996). O símbolo da pedra preciosa está relacionado
à representação do si mesmo e também à transmutação do opaco ao translúcido; em um sentido
espiritual, das trevas à luz, da imperfeição à perfeição (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1996).
Podemos fazer uma leitura de que a joia representada é uma ametista, por conta de sua cor. A
ametista representa uma pedra de temperança, que protege contra todo o tipo de embriaguez
(CHEVALIER; GHEERBRANT, 1996).
Além destes simbolismos, podemos tecer várias comparações entre a Joia de Quatro Almas e a
Pedra Filosofal dos alquimistas. Ambas têm o simbolismo de representar o todo, o estágio final
de integração. A Joia aparece como símbolo de integração, reunião das partes perdidas,
multiplicidade que deve ser reunida (EDINGER, 1995).
A Pedra Filosofal é um símbolo do si mesmo, segundo Edinger (1995). Baseado em Ashmole,
ele a descreve como se fosse dividida em quatro pedras diferentes: a Pedra Mineral, a Pedra
Vegetal, a Pedra Mágica e a Pedra Angelical. Estas quatro categorias dividem-na em diferentes
funcionamentos, mas o autor diz que a parte mais importante é que o número quatro simboliza o
princípio ordenador da matéria. Ashmole fala em quatro diferentes pedras, mas, na verdade, elas
são diferentes aspectos de uma Pedra Filosofal única e unitária. A Shikon no Tama, como o
próprio nome diz, carrega quatro almas com diferentes qualidades, conferindo, assim, o mesmo
caráter simbólico. Os quatro elementos que aparecem dispostos dentro de um círculo (como em
uma mandala, por exemplo) são considerados como símbolo do self.
A Pedra Filosofal, pedra incorruptível, é metáfora da união dos opostos, contendo em si a
tensão do bem e do mal; é considerada um no todo e remete ao tema da unidade e da
multiplicidade. Esse tema, do ponto de vista da psicologia, envolve o problema de integração de
fragmentos em conflito da personalidade (EDINGER, 1995). O alvo do processo é experimentar-
se a si mesmo como uno; mas, ao mesmo tempo, o ímpeto de fazer esforço parece derivar da
unidade que estava ali, a priori, o tempo todo.
A Shikon no Tama, como a Pedra filosofal, tem o poder da transmutação das ambições. Ela
pode conceder os desejos mais profundos das pessoas e dá poderes diversos a quem possui seus
fragmentos. Entretanto, dependendo de quem a tem, pode ser purificada ou corrompida.
Naraku, o vilão, deseja-a por motivos pessoais e tem o poder de corrompê-la; Kikyou e
Kagome, por outro lado, têm o poder de purificar os fragmentos da Joia. Estando esta completa,
a batalha entre Midoriko e os youkais que deram origem a ela ainda acontece. Vemos que a Joia
contém em si tanto o bem quanto o mal, estes opostos que permanecem em luta. A pessoa que
possui a joia pode corrompê-la (deixar o lado mal predominar) ou purificá-la (deixar o lado bom
predominar) como um todo, influenciando a batalha que ocorre dentro dela. Descrição bem
parecida é dada à Pedra Filosofal, que tem o poder de transformação e revelação, de fertilidade,
da união dos opostos, da ubiquidade e de ser um no todo (EDINGER, 1995).
Ao final da saga, Naraku deseja substituir Midoriko e os youkais que estão ali por Kagome e
por si próprio. Assim, ficaria eternamente ligado a Kagome/Kikyou. Mas, nesse momento,
acontecem duas coisas: Inuyasha encontra Kagome dentro da joia e ela faz uma reflexão sobre
algo que o avô, em outra era, dissera-lhe: “a guerra com os youkais só irá acabar quando alguém
fizer o desejo correto!”. E qual seria o desejo correto?
A reflexão de Kagome leva em conta a escolha anterior de Kikyou, que era ver Inuyasha mais
uma vez. Isso não pôs fim à guerra. Naraku deseja que a guerra dentro da Joia continue, portanto,
este também não é o desejo correto. Inuyasha queria apenas tornar-se um youkai completo, o que
também não aconteceu.
Do ponto de vista da psicologia, os desejos de Kikyou, Naraku e Inyasha estão baseados em
desejos pessoais. Edinger vai fazer uma distinção entre dois tipos de desejo: os centrados no self
e os centrados no ego. O desejo centrado no ego é de natureza infantil, inconsciente, o eu exige
ter o que quer, quando quer, enquanto o desejo centrado no self é um desejo regenerado ou
transformado; é um desejo que foi transformado pela consciência (EDINGER, 1995). O autor diz
que, para que a consciência se alargue, estes desejos devem ser purificados. O desejo purificado
é aquele que tem uma sede pelo eterno e aquele que transcendeu os opostos.
Os desejos de Kikyou, Naraku e Inuyasha são desejos centrados no ego. Kagome, entretanto,
faz um desejo centrado no self: ela deseja que a Joia deixe de existir. Esse desejo, na verdade,
representa o fim da separação dos opostos, a transcendência da guerra entre o bem e o mal que
acontece na Joia. É um desejo baseado no sacrifício dos desejos pessoais em favor do que é
melhor para todos.
Ao fazer este desejo, a Joia se vai. Todos conseguem seguir suas vidas e para Kagome fica o
dilema entre ficar no presente ou voltar ao passado. Após passar um período no presente e
concluir seus estudos, Kagome retorna a Segongoku Jidai, onde passa o resto de seus dias ao
lado de Inuyasha.
Referências
BURCKHARDT, T. Alchemy, science of the cosmos, science of the soul. Londres: Stuart and Watkins, 1967.
CAMPBELL, J. O poder do mito. São Paulo: Palas Athena, 1988.
CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1996.
DRAZEN, P. Anime explosion! The What? Why? & Wow! of Japanese Animation. Berkeley (CA): Stone Bridge Press, 2002.
EDINGER, E. Ego e arquétipo. São Paulo: Cultrix, 1995.
______. O mistério da coniunctio: imagem alquímica da individuação. São
Paulo: Paulus, 2008.
JUNG, C. G. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1964.
______. Aion: estudos sobre o simbolismo do si-mesmo. Petrópolis: Vozes, 1982.
______. Psicologia e alquimia. Petrópolis: Vozes, 1994.
______. Fundamentos da psicologia analítica. Petrópolis: Vozes, 1996.
KAWAI, H. Psique japonesa: grandes temas dos contos de fadas japoneses. São Paulo: Paulus, 2007.
STEIN, M. O mapa da alma: uma introdução. São Paulo: Cultrix, 2000.
VON FRANZ, M. L. O Processo de individuação. In: JUNG, C. G. (Org.). O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2008. p. 154-224.
WIKIA, Inuyasha Wiki. Disponível em: <http://inuyasha.wikia.com/>. Acesso em: 9 nov. 2016.
WIKIPEDIA, Youkai. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Y%C5%8Dkai>. Acesso em: 16 out. 2016.
7 Psicóloga, Doutora em Psicologia Clínica e professora dos cursos de Psicologia e de Jogos Digitais da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP).
9 Nome da espada de Inuyasha, recebida como herança de seu pai. É feita com o canino de seu pai youkai, assim como
Tenseiga, espada usada por seu meio-irmão, Sesshoumaru. Ambas as armas possuem determinados poderes, tendo a primeira a
capacidade de matar youkais para proteger humanos e a segunda, o poder para fazer alguém voltar à vida.
10 O conceito de anima, para Jung, é bem mais complexo; entretanto, para fins de explicação neste texto, utilizaremos apenas
esta parte da definição.
11 Segundo o Bushido, as qualidades lealdade, bravura, educação, simplicidade e veracidade devem ser respeitadas.
Yu Yu Hakusho
Ceres Alves de Araujo 12
Introdução
RETENDE-SE DESCREVER E COMPREENDER COMO UM ADOLESCENTE COM TRANSTORNO DO ESPECTRO DO
P autismo (TEA) tenta aprender como são os sentimentos na relação amorosa por meio dos
personagens do anime Yu Yu Hakusho.
O anime
Yu Yu Hakusho significa “o livro branco do fantasma”. Essa série de mangás foi escrita e
desenhada por Yoshihiro Togashi, sendo posteriormente adaptada para um anime. Inicialmente,
Yu Yu Hakusho foi planejado para ser uma série de drama, que contaria as histórias de Yusuke
Urameshi enquanto fantasma, ajudando outros espíritos. Assim, a história seria concluída quando
ele ressuscitasse como uma pessoa melhor. Nos primeiros capítulos, fica clara a influência do
misticismo xintó-budista. Entretanto, o autor precisou, contra sua vontade, seguir a fórmula
tradicional das publicações da editora nos capítulos subsequentes, criando episódios com
batalhas, torneios e personagens cada vez mais poderosos.
A série conta a história de Yusuke Urameshi, um jovem de 14 anos que estudava na escola de
Sarayashiki. O rapaz gostava de matar aulas no telhado do colégio e era odiado por alguns
professores e temido pela maior parte de seus colegas. No começo do anime, Yusuke era muito
briguento e considerado mau-caráter. Eis que o jovem transgressor morre atropelado ao salvar
uma criança que atravessava a rua na frente de um carro em alta velocidade. Como seu ato foi
inesperado para todos, principalmente para o Mundo Espiritual, ele teve a chance de voltar a
viver. Ao retornar à Terra, Yusuke descobre sua condição de detetive sobrenatural, devendo se
dedicar a combater os demônios e monstros do Mundo das Trevas que se infiltravam no Mundo
dos Homens.
Keiko Yumura é uma colega de Yusuke e está sempre tentando livrá-lo das enrascadas nas
quais se mete. Ela dá broncas quando ele cabula aulas ou não faz o que é pedido quanto às lições
e ao bom comportamento. Depois de atropelado e morto, Yusuke vê, surpreso, o quanto ela
chora por ele. Voltando à vida, o rapaz percebe o amor que sente por Keiko e descobre que é
correspondido. Durante as sagas, Keiko continua livrando Yusuke de confusões e somente ela
consegue impor limites a ele.
Yusuke tem sempre um jeito inesperado de agir: é rebelde, tem carisma e vai adquirindo cada
vez mais força e poder. Além disso, mostra-se um amigo leal e uma pessoa de confiança. Ao
longo da trama, nosso protagonista vai formando um grupo de amigos, dentre eles Botan, sua
guia espiritual; Koenma, o filho do deus Enma, chefe do Mundo Espiritual; Kuwabara, seu
inimigo no colégio, que depois se mostra dotado de sensibilidade espiritual; a supracitada Keiko,
por quem se vê apaixonado; e Mestra Genkai, uma senhora idosa com poderes impressionantes,
que vai passando tais virtudes para ele no decorrer da série.
Com duração de 112 episódios, o anime se divide em quatro sagas:
1. “Detetive Sobrenatural” – Yusuke morre ao salvar uma criança e o Mundo Espiritual lhe
oferece uma segunda chance de vida. Nessa parte, a saga apresenta as provas que Yusuke tem de
enfrentar para se tornar detetive espiritual.
2. “Torneio das Trevas” – Competições em que participam humanos e demônios. Yusuke aceita
os desafios e entra no torneio ao lado de aliados humanos.
3. “Portão do Inferno” – Yusuke recebe a missão de evitar que uma porta dimensional seja aberta
e que os demônios possam invadir o Mundo dos Homens.
4. “Makai” (Mundo Espiritual) ou “Saga dos Três Reis” – Yusuke vai até o Makai para encontrar
seu pai, que é um dos três reis magos deste domínio. Quando o pai morre, cabe a Yusuke
organizar um torneio para decidir quem será o novo rei supremo do Mundo Espiritual.
O autismo
O autismo, chamado hoje de transtorno do espectro do autismo (TEA), é classificado como um
transtorno do neurodesenvolvimento, de acordo com a quinta edição do Manual Diagnóstico e
Estatístico de Transtornos Mentais – DSM-5 (APA, 2013). Caracteriza-se por déficits
persistentes na comunicação e na interação social em múltiplos contextos e por padrões restritos
e repetitivos de comportamentos, interesses ou atividades. Os sintomas estão presentes
precocemente, no período do desenvolvimento, e causam prejuízo clinicamente significativo no
funcionamento social, profissional e em outras áreas da vida (APA, 2013).
Existem três níveis de gravidade para o transtorno do espectro do autismo: o nível 3 exige
apoio muito substancial; o nível 2 exige apoio substancial; e o nível 1 exige apoio durante toda a
vida. No nível 1, encontram-se as pessoas que têm a inteligência preservada e, portanto, o
transtorno mais atenuado ou mais leve (APA, 2013).
Dentro dos TEA, aqueles que foram designados como Síndrome de Asperger pelo DSM-IV
(APA, 1994) são indivíduos com alta funcionalidade, mas que têm alterações nas mesmas áreas
observadas nas demais pessoas com TEA. Apresentam alterações no padrão do desenvolvimento
social e no da linguagem, têm estereotipias comportamentais e número limitado de áreas de
interesse. Esses indivíduos apresentam, habitualmente, nível de inteligência normal ou acima da
média, associado a um padrão de aquisição de linguagem em geral também normal, embora com
déficits semânticos e pragmáticos (ASSUMPÇÃO JR.; KUCZYNSKI, 2011).
Desde a década de 1990, essa patologia é considerada como uma síndrome comportamental
com etiologias múltiplas em consequência de distúrbios do desenvolvimento. Existe o déficit na
interação social, visualizado pela inabilidade em relacionar-se com o outro, combinado com
déficits de linguagem e alterações de comportamento, associados a uma vasta gama de condições
pré, peri e pós-natais.
As pessoas com essa condição têm atraso e alteração na aquisição da teoria da mente
(BARON-COHEN, 1995); apresentam um déficit motivacional para a interação desde o início da
vida, havendo prejuízo na aquisição da intersubjetividade, determinando alterações na interação
afetiva, na sociabilidade e na cognição.
Pelo prejuízo no funcionamento dos neurônios-espelho, essas pessoas demonstram
dificuldades sérias na coordenação do afeto interpessoal, na expressividade emocional e na
compreensão da emoção (GALLESE, 2006). Mostram uma inabilidade para reexperimentar
emoções enquanto estados corporais. Sabe-se que a falha no reagir emocional nas primeiras
interações da criança com os cuidadores primários acarretam alterações nos esquemas de estar-
com-o-outro e impedem a constituição de uma gramática de emoções (STERN, 1997).
As pessoas com o transtorno do espectro do autismo não seguem os trajetos típicos da
estruturação da consciência humana. Isto é, há uma dificuldade básica no estabelecimento da
primeira relação humana, a relação com a mãe ou com o cuidador primário, por condições
atípicas do desenvolvimento dessas pessoas (ARAUJO, 2011). Pode-se afirmar que esses
indivíduos carecem dos dinamismos matriarcais e estruturam uma identidade diferente, talvez a
identidade daquele a quem falta algo, possivelmente uma estruturação sob a constelação do
arquétipo do Inválido, expressão de Guggenbüll-Craig (1983).
O funcionamento do portador do transtorno do espectro do autismo, mesmo do que tem a
inteligência preservada, é o funcionamento de uma outra forma de mente, que se desenvolve sob
um padrão diferente. Funcionam sob a égide do Arquétipo do Pai. Os indivíduos com TEA
parecem ficar subordinados às funções da informação, da coerência e da lógica. Na interação
com o outro pode nascer uma intersubjetividade baseada na correspondência, na comunicação
inteligente, na honra, na história do relacionamento, na confiança. Diferentes das pessoas
neurotípicas, as trocas cognitivas precedem as afetivas.
Sob a constelação do arquétipo da anima-animus, o ser humano típico no seu trajeto do
desenvolvimento ganha a possibilidade da relação simétrica. Adquire os papéis relacionados à
amizade, à fraternidade e à conjugalidade. Pode vivenciar uma forma de amor que implica em
amar o outro como a si mesmo, sendo os dinamismos da alteridade a troca, a dialética, o fascínio
e a paixão (ARAUJO, 2011).
Não se sabe se a alteridade seria possível às pessoas com TEA. A teoria da mente no seu
aspecto cognitivo é passível de ser adquirida na vida adulta pelo esforço do preenchimento do
que não se adquire naturalmente, pelo elaborado raciocínio dedutivo e pela capacidade de
memorização dessas pessoas. Entretanto, faltará o componente afetivo, que é a capacidade
natural da empatia, a sintonização espontânea e natural com as ideias e sentimentos do outro via
linguagem dos olhos, entonação da voz e sutilezas de mímica corporal, que são atributos
relacionados aos dinamismos matriarcais. Parece não ocorrer o sentir a atmosfera emocional,
amorosa, que se instala no contato com o outro e o reagir apropriadamente ao sentimento, o que
inclui paixão, compaixão e misericórdia.
O caso clínico
R. foi diagnosticado como apresentando um transtorno do espectro do autismo (TEA) aos 7
anos. Na época, foi considerado portador de Síndrome de Asperger.
Aos 11 anos, desenhava personagens que criava justapondo e aglutinando características
físicas e de vestiário de heróis e vilões de histórias em quadrinhos que lia e de desenhos e vídeos
que assistia. Criou, por exemplo, o Bat-Aranha, somando características do Batman e do Homem
Aranha, e o Pássaro da Morte, somando características do Pinguim e do Abutre, explicando a
lógica da colagem dos atributos, que variava desde as cores dos personagens, passando pelos
estúdios em que foram criados e pela coincidência de vozes nas dublagens.
Depois, R. se aprofundou no conhecimento da origem e da saga dos personagens,
interessando-se mais pelos vilões do que pelos heróis, desenhando personagens baseados em
figuras como Darth Vader (Star Wars), Malévola (A Bela e a Fera), Skeleton (He-Man) e Sauron
(Sauron), dentre outros. É possível que o maior interesse pelos vilões do que pelos heróis possa
ser compreendido como uma aproximação à sombra coletiva, fenômeno frequente e desejável ao
processo de desenvolvimento encontrado em crianças bem jovens. As pessoas com TEA, por sua
própria condição, tendem a ser rígidas quanto às normas e às regras e não sabem lidar com
mentiras e contravenções. Provavelmente, é daí que decorre o fascínio que R. demonstrou, no
início da adolescência, pelas características malévolas dos personagens.
Aos 14 anos, R. se interessou pelo anime Yu Yu Hakusho, sendo que inicialmente ficou muito
mais ligado aos personagens sombrios: demônios e humanos do mal. Em certo momento, os
aspectos de transgressão do personagem principal chamaram sua atenção e, posteriormente, quis
compreender as relações amorosas entre os personagens.
Ele contou para a psicoterapeuta como a saga acontecia e, em sessões que se sucediam, quis
ver com ela o desenrolar do drama, interessando-se pelas reações emocionais dos personagens,
que não conseguia decodificar.
Considerações finais
As relações anímicas, sejam exitosas e criativas ou desastrosas e terríveis, sempre causaram
fascínio. No mundo ocidental, são cantadas desde a Idade Média, nos contos do amor cortês, e
antes ainda no mundo oriental, no século IX, nos contos de Mil e uma noites (ALVARENGA, no
prelo). Relatos sobre as interações anímicas e sobre encontros amorosos são encontrados na
mitologia, na história, na literatura, na música, nos filmes – enfim, nas mais variadas expressões
da cultura em todos tempos da história do homem.
Com a eclosão da puberdade, no advento da adolescência, surgem as demandas para uma
forma nova de se relacionar com o outro. Vivências de caráter fisiológico, ligadas ao prazer
físico, sensual e sexual associam-se a vivências de caráter mental, vinculadas às emoções e
sentimentos. O adolescente descobre o amor e tende a se apaixonar pelo amor mais do que pelo
objeto da paixão. A constelação do arquétipo da anima-animus permite a ele viver o fascínio de
se saber diante da presença do outro.
Nos adolescentes com TEA, isso não acontece. Mesmo naqueles cuja inteligência preservada
permite uma adaptação razoável ao mundo dos “outros” – neurotípicos –, as interações afetivas
não podem ser consideradas como relações anímicas. A relação amorosa se estabelece sob outro
padrão.
A puberdade acontece e as exigências físicas, sexuais, existem – embora nem sempre
conscientes, nem sempre passíveis dos controles sociais. Mas a necessidade de ser igual aos
demais, o hábito de copiar o que os colegas fazem, enfim, a demanda para a adaptação aos
costumes da sociedade em que o indivíduo se insere, traz, na adolescência, o desejo de ter uma
namorada ou um namorado e, antes ainda, a curiosidade a respeito de como é namorar,
apaixonar-se. Tal interesse leva à busca de respostas, na tentativa de se apropriar racionalmente
de um conhecimento quase sempre apenas teórico, dissociado da experiência.
Isso pode explicar o interesse de R. pelas relações amorosas dos personagens de Yu Yu
Hakusho. Ele busca compreender o porquê das atitudes, dos comportamentos, das reações do par
romântico. Tenta entender os movimentos de aproximação e afastamento que caracterizam o
jogo amoroso. Interessa-se pelas considerações dos demais personagens a respeito do casal, mas
demonstra muita dificuldade para compreender as sutilezas das relações. Não decodifica o que é
expressão de solidariedade e o que é expressão de inveja e ciúmes. Entretanto, faz perguntas e
grava as respostas da terapeuta, parecendo estar formando um dicionário interno de emoções.
Quer saber o que significa o gesto e qual resposta deve eliciar.
Dificuldade maior surge na tentativa de compreender as sensações. O que gera o toque, o
abraçar e o beijar? O que sentem os personagens? Cumpre dizer que R. não gostava de abraços e
beijos, tendo aceitado tal forma de cumprimento apenas quando a entendeu como regra social.
Entretanto, agora começa a se interessar por sensações, para as quais parece não possuir
repertório acessível.
O anime permitiu a abertura ao interesse de R. pelo que acontece nas relações anímicas em
uma pessoa incapaz de atingir a plenitude da alteridade. Ele poderá construir a persona de um
namorado, comportar-se como tal e, com certeza, será previsível e fiel. Entretanto, terá
dificuldades no reconhecimento das emoções e na decodificação das sensações no próprio corpo,
já que para ele é difícil ligar a emoção a sensações corporais, a características situacionais, no
que se refere, também, a lembranças de outras situações vividas.
Os portadores de TEA travam uma luta titânica para se adaptarem às demandas do mundo em
que vivem, ainda que como seres sempre diferentes. Precisam se apropriar dos modos de
funcionamento esperados e alguns, como R., ainda que consigam processar as informações
afetivas pelo referencial da dinâmica patriarcal, parecem tangenciar a estruturação anímica.
Talvez apenas isso seja possível...
“Há anjos sem asas e as madonas sem mãos
e a sandália sem dança
e há o alaúde sem os dedos, o nome sem a pessoa,
o canto sem voz
e muito mais lágrimas que olhos.”
(Cecília Meireles – As escadas medievais sem balaústre e sem patamares) 14
Referências
ALVARENGA, M. Z. Anima Animus de todos os tempos. No prelo.
APA – AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Diagnostic and statistical manual of mental disorders: DSM-IV.
Washington (DC): APA, 1994.
______. Diagnostic and statistical manual of mental disorders: DSM-5. Washington (DC): APA, 2013.
ARAUJO, C. A. Psicologia e os transtornos do espectro do autismo. In: SCHWARTZAMN, J. S.; ARAUJO, C. A. (Ed.).
Transtornos do espectro do autismo. São Paulo: Memnon, 2011. p. 173-214.
ASSUMPÇÃO JR., F. B.; KUCZYNSKI, E. Psicofarmacoterapia nos transtornos globais do desenvolvimento. In:
SCHWARTZAMN, J. S.; ARAUJO, C. A. (Ed.). Transtornos do espectro do autismo. São Paulo: Memnon, 2011. p. 215-
226.
BARON-CHOEN, S. Mindblindness: an essay on theory of mind and autism. Cambridge: Bradford Book, MIT Press, 1995.
GALLESE, V. Intentional Attunement: a neuropsychological perspective on social cognition and its disruption in autism. 2006.
Disponível em: <www.elsevier.com/locate/brainres>. Acesso em: nov. 2006.
GUGGENBÜHL-CRAIG, A. O arquétipo do inválido e os limites da cura. Junguiana, n. 1, p. 97-106, 1983.
STERN, D. N. A constelação da maternidade. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.
TOGASHI, Y. Yu Yu Hakusho. São Paulo: JBC, 2004.
12 Psicóloga com Doutorado em Distúrbios da Comunicação Humana (Fonoaudiologia) pela Universidade Federal de São
Paulo. É professora da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica e membro da Academia Paulista de Psicologia, ocupando a
cadeira 39. Contato: <ceres@pucsp.br>.
13 CARTEIRO e o poeta, O. Direção: Michael Radford. Produção: Mario Cecchi Gori, Vittorio Cecchi Gori, Gaetano Daniele.
Itália: Cecchi Gori Group Tiger Cinematografica, 1994.
14 MEIRELES, C. Poesias completas: Poemas III (1960-1964). Sonhos (1950-1963). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1974.
Angel Beats! 15
ANGEL BEATS! FOI CRIADO POR JUN MAEDA E DUAS SÉRIES DE MANGÁS FORAM PUBLICADAS
O
ENREDO DE
a partir de 2009. O anime, dirigido por Seiji Kishi, foi ao ar em 2010 no Japão e conta com
treze episódios produzidos pela Aniplex e pela P. A. Works.
A história se passa em um mundo pós-morte, onde Otonashi, o personagem principal, acorda
sem qualquer lembrança. A primeira pessoa que encontra ali é Yuri, uma garota que está
escondida, apontando uma arma para outra menina. Yuri percebe a chegada do rapaz e explica
em poucas palavras que ele está morto. Conta que o lugar em que se encontram é controlado por
NPCs (non-player characters, isto é, personagens comandados pelo computador), como em um
jogo, mas ali eles são conhecidos como anjos. Yuri é líder de uma frente de batalha rebelde que
luta contra essas criaturas e, principalmente, contra Deus. Além disso, ela acredita que os NPCs
– que também podem ser alunos do conselho estudantil e professores – não possuem almas como
os demais estudantes. A garota explica, também, que todos os que vivem ali são adolescentes que
morreram de maneira injusta – este é o motivo que faz com que travem uma verdadeira guerra
contra Deus. Segundo ela, ali não é possível morrer novamente; entretanto, se o adolescente
seguir as regras impostas pelos anjos, desaparece instantaneamente. Por isso, é importante que os
estudantes sempre desobedeçam, furtem, colem nas provas e não prestem atenção às aulas,
garantindo sua permanência naquele mundo e dando continuidade ao plano contra Deus.
Otonashi fica muito confuso e vai ao encontro da garota-anjo que está na mira da arma de
Yuri. Assustado, conta para a menina o que lhe foi dito, dando ênfase à questão de não ser
possível morrer naquele mundo. A garota-anjo usa, então, sua arma de tecnologia avançada
(hand sonic) para perfurar o coração de Otonashi. Depois de um tempo, o menino acorda no
hospital, pois, apesar de não poderem morrer, os habitantes daquele mundo sentem a dor dos
ferimentos e, muitas vezes, precisam ficar em repouso até recobrarem a consciência. Assim, Yuri
convida-o para fazer parte da frente de batalha contra os anjos e o rapaz aceita a proposta.
Otonashi conhece Iwasawa, vocalista da banda da escola, que conta a ele sobre seu passado
triste e sua paixão pela música. Ela tinha acabado fazer uma composição que falava sobre sua
vida e seus sentimentos e, em uma operação organizada pela frente de batalha na qual a banda se
apresenta para distrair os alunos, Iwasawa canta essa música e desaparece com a frase “eu
encontrei o que eu queria”. Esse acontecimento faz Otonashi se questionar sobre o que havia
feito a colega sumir: e se agir de acordo com as normas não fosse a única maneira de
desaparecer?
A Guilda, local em que se armazenavam todas as armas de guerra, é invadida pela garota-anjo
e a frente de batalha a destrói junto com todos os armamentos.
Nesse mundo pós-morte, os objetos podem ser construídos a partir de qualquer substância –
por exemplo, as tais armas podem ser feitas até mesmo de poeira. Isto transmite o entendimento
de que as coisas não são realmente criadas, mas transformadas. Nada com vida pode ser criado
ali, apenas objetos.
A ideia de transformação de uma substância em outra pode ser relacionada a um termo
alquímico: a prima materia. Este conceito existe desde a época dos filósofos pré-socráticos, que
falavam sobre uma matéria única e original, geradora do mundo. Aristóteles, por exemplo,
discorria sobre uma potencialidade que posteriormente toma forma e se apresenta como matéria.
De acordo com Edinger (1990), os alquimistas partiam do pressuposto de que seria necessário
reduzir a substância ao seu estado original para transformá-la.
Sob o olhar da psicologia analítica, esse procedimento pode ser correlacionado à necessidade
de reduzir às condições indiferenciadas e originais os aspectos estáticos e rígidos da
personalidade, a fim de que surja uma nova maneira de expressão ou de lidar com o mundo.
Edinger (1990) usa um sonho para ilustrar o retorno à prima materia: “Voltei a uma ala de
hospital. Tornei-me criança outra vez e estou nesta ala a fim de iniciar minha vida desde o
começo” (p. 30, grifo do autor). Este sonho nos remete à cena em que Otonashi, assim que chega
ao novo mundo, vai parar em uma ala de hospital. Será que ali ele terá a possibilidade de iniciar
sua vida desde o começo? Isto é, será que novos potenciais se apresentarão para que ele possa
recomeçar de uma nova maneira?
Para o autor, “a inocência corresponde ao estado de indiferenciação da prima materia”
(EDINGER, 1990, p. 31). Assim, Otonashi chega àquele mundo completamente inocente e sem
conhecimento sobre o que está acontecendo, indiferenciado de um conteúdo original, o que é um
requisito para a transformação.
Ainda na Guilda, Yuri conta para Otonashi que o mais importante não são os armamentos,
mas as memórias, pois tudo o que é feito por eles naquele mundo tem base naquilo de que eles se
recordam. A personagem Yuri é bastante presa às emoções que remetem à sua vida passada; não
consegue lidar com o mundo de uma forma que não seja fundamentada em seus sentimentos de
vingança e rancor pela morte de seus irmãos enquanto estava viva. O fato de ela dizer que o mais
importante são as memórias pode refletir essa dificuldade de se renovar, de destruir alguns
conteúdos rígidos que a fazem sofrer a fim de permitir a vazão de potenciais novos para lidar
com seu passado e futuro. Esses conteúdos rígidos da personalidade impedem a mudança e a
transformação.
Yuri deseja enfrentar Deus e diz que ele é muito irracional. Jung (1987b) traz a ideia de que
não é saudável, psiquicamente, que façamos uma identificação total com a razão, pois não somos
somente racionais. Dessa forma, o irracional não deveria ser negligenciado ou excluído. De
acordo com o autor, quando nos identificamos somente com um aspecto, essa é uma atitude
unilateral, ou seja, concebe somente um aspecto da totalidade. Nesse caso, seria a valorização
apenas da razão, que é meramente um polo do eixo racional-irracional.
Para a psicologia analítica de Jung, tudo aquilo que deixamos de lado no processo de
estruturação do ego consciente cai para o inconsciente. Esse conteúdo negligenciado ganha uma
conotação negativa por ser diferente daquilo que reconhecemos como sendo nós mesmos e
distinto daquilo que socialmente foi instaurado como algo moral e correto de ser. Desta forma, a
polaridade racional é concebida por Yuri como algo positivo e, consequentemente, a polaridade
irracional é vista como algo negativo e é negligenciada em sua própria personalidade.
De imediato, temos a tendência de pensar que essa característica e tantas outras ignoradas na
personagem (ou em qualquer um de nós) não existem na personalidade. Tudo aquilo que é
rejeitado pelo ego se torna sombra. Para Jung (1987b), esse conteúdo que não pode ser
encontrado na atitude consciente será encontrado no inconsciente, de forma a ser projetado – ou
seja, esses conteúdos tornam-se visíveis por meio da projeção no mundo externo.
Dessa forma, os conteúdos relacionados à esfera irracional, que reside no inconsciente da
personagem, são projetados na figura de Deus e, consequentemente, nos anjos que o servem. Por
esses conteúdos estarem completamente fora da moralidade consciente de Yuri, ela tem vontade
de destruí-los.
Dando seguimento à história, a frente de batalha traça um plano para invadir o quarto do anjo.
Usam o computador para conhecer o programa que o controla e percebem que a opção de
clonagem fora ativada. Como mais uma tentativa de realizar atos ilegais, o grupo decide
participar clandestinamente de um torneio de baseball. Hinata, que faz parte do grupo, organiza
um time. Em uma das partidas, a bola vem em sua direção e ele tem uma lembrança de sua vida
passada; fica paralisado e acaba por não conseguir pegar o arremesso. Otonashi pensa que se
Hinata vencesse a partida pegando aquela bola, o amigo poderia ter desaparecido.
O grupo planeja outra operação contra o inimigo e são bem-sucedidos: a garota-anjo perde o
posto de presidente do conselho estudantil e se torna uma aluna comum. Eles descobrem que seu
nome é Kanade Tachibana. O novo presidente é Naoi, que tem o poder da hipnose e mostra-se
cruel com os alunos que desobedecem às regras. Com este contraste de comportamento entre os
dois presidentes do conselho estudantil, o grupo percebe que Kanade só usava suas armas
tecnológicas para se defender da frente de batalha, mas nunca os havia atacado como primeira
medida. Começam, então, a se perguntar o porquê de a garota ter reações humanas – por
exemplo, o sofrimento que sente pela perda de seu posto. Será que ela também teria uma alma?
A partir desse questionamento, descobrem que o novo presidente do conselho estudantil não é
um NPC, pois possui alma humana. Naoi conta que também burla as leis, possibilitando o
equilíbrio daquele mundo. Yuri começa a pensar que o que faz uma pessoa desaparecer é o fato
de ela aceitar a própria existência.
Naoi afirma que todos que estão naquele mundo tiveram uma vida sofrida quando vivos, e, por
este motivo, possuem o direito de se tornar Deus, se assim desejarem. Ele acredita que naquela
realidade o sonho das pessoas é concedido, de forma que seu próprio sonho de se tornar Deus
teria se realizado. Portanto, Naoi acredita ser o Deus daquela existência. Mas, então, por que ele
ainda não desaparecera?
Naoi tenta “apagar” Yuri usando a hipnose para infiltrar memórias falsas na mente da garota,
para que sua existência fosse reconhecida e aceita por ela. Otonashi enfrenta Naoi, mas não com
armas: ele compreende a existência e o sofrimento de Naoi. O presidente do conselho estudantil
se comove e passa a fazer parte da frente de batalha.
Yuri tem a ideia de fazer com que Naoi hipnotize Otonashi para que ele possa se lembrar de
sua vida passada. Otonashi se recorda, então, que vivia em função de sua irmã, que estava doente
e passava todo o tempo internada – eles só tinham um ao outro. Otonashi passava dias e noites
trabalhando para poder comprar mangás para a garota e lhe trazer alguma alegria. Entretanto, sua
irmã falece sem encontrar um doador e o rapaz se dá conta de que ela era seu motivo de viver.
Começa a procurar algo que o faça sentir vontade de seguir em frente e decide que quer ajudar as
pessoas. Continua trabalhando e estudando medicina por conta própria até que, certo dia, sofre
um acidente de metrô e acaba morrendo. Otonashi sai do transe acreditando que partiu sem
nunca ter realizado nada de bom e sem conseguir ajudar ninguém.
A frente de batalha sai para pescar – uma atividade considerada ilícita naquele mundo – e
Otonashi convida Kanade para ir com eles. No lago, há um monstro que é uma espécie de peixe
gigantesco. O grupo se reúne para tentar capturá-lo, mas o animal é muito grande e violento. Eis
que Kanade usa suas armas supersônicas para destruí-lo e fatiá-lo. A partir desse momento, todos
se unem para preparar a refeição e a menina passa a fazer parte do grupo.
Pensando na simbologia do peixe, este se mostra na superfície, revelando aquilo que se
encontrava obscuro no fundo das águas. Assim, o peixe-monstro que habitava o lago ofereceu
grande perigo à frente de batalha, mas permitiu que os colegas e Kanade se unissem para vencê-
lo. A situação propiciou a revelação de Kanade como alguém que se protege e protege os outros,
não apresentando uma ameaça.
Essa perspectiva nos leva a pensar novamente que o caráter negativo e ameaçador que Kanade
transmitia era fruto de uma projeção dos colegas, principalmente de Yuri. Dessa forma, o peixe
teve a função de trazer um potencial novo para a relação dos personagens: algo saiu das águas
obscuras do lago para permitir a transformação de uma relação de amizade.
Simbolicamente, essa analogia pode ser feita aos conteúdos da psique que estavam no
inconsciente e recebiam uma conotação negativa por parte da consciência, ou seja, estavam na
sombra. Esses conteúdos puderam ser trazidos à consciência e transformados, possibilitando uma
integração de forma que eles pudessem, agora, participar de maneira positiva nas relações
interpessoais dos personagens.
Após a união entre os colegas, surge um clone maligno de Kanade. Yuri explica para o grupo
que a criação dessa cópia foi um comando “inconsciente” que estava na programação da garota e
que, por esse motivo, ela não poderia apagar a criatura voluntariamente. Os clones são
“subpersonalidades” más de Kanade.
A ideia de subpersonalidade pode ser relacionada ao conceito de complexo da psicologia
analítica. Jung (2000) chama de complexo uma imagem psíquica de forte carga emocional,
incompatível com a atitude habitual da consciência. A ação voluntária é uma propriedade da
consciência, mas o complexo tem um grau de autonomia que a perturba, de forma que o controle
sobre os aspectos autônomos do inconsciente é limitado. Quanto mais forte é a atitude de tentar
reprimir um complexo, maior será a força com que ele aparecerá sob o campo da consciência no
momento favorável, dependendo da carga emocional de uma situação experienciada.
Kanade é uma menina muito doce, que usa a agressividade somente como defesa. Seus
aspectos mais malignos se mostravam inexistentes, de forma que estavam claramente enterrados
no inconsciente. Entretanto, a psique possui uma função chamada transcendente, que “resulta da
união dos conteúdos conscientes e inconscientes” (JUNG, 2000, p. 131). A psique naturalmente
busca a homeostase, a fim de encontrar um equilíbrio entre os opostos. Assim, faz-se necessário
o reconhecimento dos conteúdos inconscientes para a compensação da unilateralidade, de forma
que os conteúdos da consciência e do inconsciente possibilitem, juntos, a função transcendente,
que permite a passagem de uma atitude para a outra. Com isso, torna-se possível conscientizar
potenciais que anteriormente estavam inconscientes e carregados de conotação negativa – no
caso de Kanade, a assertividade e posição mais ativa diante das vivências. Ou seja,
psiquicamente, o ideal seria a união entre esses opostos, possibilitando o surgimento de um
terceiro conteúdo, que contempla ambos e que transforma essa psique. E é justamente essa união
que Yuri pretende realizar entre Kanade e seu clone.
Yuri acessa o computador do quarto de Kanade para ativar a união, mas o clone maligno havia
aprisionado a Kanade original para impossibilitar a fusão. A frente de batalha se organiza para
procurá-la, mas Yuri adverte que os clones têm seu conteúdo próprio e que, caso ocorresse a
união, a garota seria modificada, uma vez que absorveria as “subpersonalidades”. Aqui, fica
claro o aspecto da função transcendente sob a modificação da atitude de Kanade, quando ela
integra os aspectos sombrios que exerciam influência somente por meio de um caráter negativo,
autônomo e desarticulado.
Os clones se unem assim que Kanade é libertada e Otonashi fica ao lado da menina para que
ela se reconheça. Em contato com o corpo dela, o rapaz lembra do que aconteceu no momento de
sua própria morte: quando percebe que as pessoas que estavam no metrô iriam morrer sem
oxigênio embaixo da terra, ele pede com suas últimas forças que todos marquem em suas
carteiras a intenção de doar seus órgãos, caso sejam encontrados; Otonashi morre e, minutos
depois, o serviço de resgate chega para salvar os sobreviventes. Um deles reflete: “você deu
sentido às nossas vidas”.
Otonashi percebe que desaparecer daquele mundo é encontrar a paz, pois aqueles jovens são
indivíduos que não encontraram um sentido em suas vidas até aquele momento. Assim, quando
ficam livres de arrependimentos, “somem”.
Nunca estamos tão convencidos desta marcha inexorável do que quando vemos uma vida chegar ao fim, e nunca a
questão do sentido e do valor da vida se torna mais premente e mais dolorosa do que quando vemos o último alento
abandonar um corpo que ainda há pouco vivia. Quão diferente nos parece o significado da vida quando vemos um
jovem a lutar por objetivos distantes [...] em comparação a um doente incurável. A juventude tem – aparentemente –
um objetivo, um futuro, um significado e um valor, enquanto a marcha para um fim é apenas uma cessação sem sentido
(JUNG, 2000, p. 361).
Para Jung (2000), a vida é um processo energético orientado para um objetivo. A primeira
metade da existência estaria direcionada para uma expansão, crescimento do indivíduo e
vitalidade. A segunda tem como um de seus objetivos o término, de modo que recusar a
plenitude da vida é equivalente a não aceitar o seu fim.
Barcellos (2012) relata uma metáfora do tempo em relação a um rio e um mar – o rio dentro de
nós e o mar à nossa volta. O rio seria nosso tempo biográfico, que sentimos de maneira
individual e pessoal e que encadeia eventos de maneira linear. O mar seria o tempo coletivo,
impessoal, “a noção de tempo própria da alma” (p. 75).
Para as filosofias grega e romana, existem duas maneiras de conceituar o tempo: chronos e
kairós. O primeiro seria uma maneira cronológica de marcar o tempo, fundamentada em
períodos, estações, meses etc. – ou seja, é um entendimento linear do tempo. Já o segundo seria
uma explicação de tempo que não é linear, mas baseada na percepção subjetiva do indivíduo,
carregado por sua percepção única e individual.
Para Barcellos (2012), a tradição judaico-cristã rompe o tempo em “um antes e depois”
definitivo e diferente. Essa é a experiência do tempo mortal. Mesmo que cada um de nós tenha
uma percepção diferente do tempo, todos nós a temos, pois ele é arquetípico e possui
características potenciais eternas. Para Jung (2008), “o mundo arquetípico é eterno, isto é, fora
do tempo, e está em toda parte, pois não existe espaço sob condições psíquicas” (p. 220).
Juntos, Otonashi e Kanade planejam o que fazer para que os amigos encontrem a paz e livrem-
se de seus arrependimentos nesse espaço-tempo pós-morte. Assim, investigam com cada um dos
colegas o que os faria felizes. Com muito reconhecimento, compreensão e tato, Otonashi vai
realizando os sonhos de seus colegas e dando sentido às suas existências, fazendo com que eles
desapareçam, um a um. Antes que todos sumam, surgem sombras violentas que os atacam. Yuri
começa a apurar quem teria programado as sombras, enquanto Otonashi continua a ajudar seus
colegas.
No percurso, Yuri pensa que não quer desaparecer e acredita que jamais ficaria em paz porque
nunca conseguiria perdoar Deus pelos sofrimentos que ele permitiu que ela e seus irmãos
enfrentassem durante a vida. Nesse momento, um turbilhão de sombras a ataca. Yuri as combate
e chega à central de programação daquela realidade. Descobre que todo aquele mundo é feito por
tecnologia.
O programador e Yuri discutem sobre a realidade daquele lugar. Ele explica que o grande
problema foi que o amor se manifestou ali, num lugar que deveria ser somente um limbo. Por
isso, ele não poderia permitir que aquele espaço-tempo se tornasse um paraíso, pois as pessoas
jamais iriam querer desaparecer dali.
Quando Yuri descobre o segredo do mundo, pensa que poderia se tornar o Deus daquele lugar.
Mas, justamente pelo amor que sente por seus colegas e por querer que eles encontrem a paz,
destrói tudo o que há na central de programação.
Nesse momento, a garota visualiza seus irmãos, que a agradecem por ter se esforçado tanto
para protegê-los ao tentar impedir que fossem assassinados. Yuri se despede de seus irmãos e o
desejo de vingá-los não faz mais sentido.
Um a um, os alunos vão fazendo suas escolhas, refletindo sobre suas vidas e sumindo. Quando
restam somente alguns dos membros da frente de batalha, eles realizam uma cerimônia de
graduação e são homenageados por suas qualidades individuais, desparecendo em seguida.
Otonashi quer continuar naquele mundo para fazer com que as próximas pessoas que
chegarem ali consigam encontrar a paz. Além dele, resta apenas Kanade, e ele pede que ela fique
e para ajudá-lo a realizar essa tarefa. Mas Kanade quer compartilhar o arrependimento que a
prende naquele lugar. O garoto tenta impedi-la, pois não quer que ela desapareça, mas, apesar
disso, a menina conta que o seu arrependimento foi nunca ter conseguido agradecer a Otonashi
por ele ter salvo sua vida: Otonashi descobre que Kanade foi salva porque seu coração foi doado
a ela quando ele morreu. Assim, ambos compartilham o mesmo coração e Kanade revela: “seu
corpo reconheceu o som dos batimentos do coração”. Kanade desaparece e Otonashi fica em
desespero, pois a amava.
Após isso, no mundo real, não se sabe quanto tempo depois, um menino e uma menina se
cruzam na rua: Otonashi e Kanade. Aquele havia sido só o começo de uma jornada.
Referências
ANGEL BEATS! ニュース|公式サイト – アニプレックス. Disponível em: <http://angelbeats.jp>. Acesso em: 2 out. 2015.
BARCELLOS, G. Psique e imagem: estudos de psicologia arquetípica. Rio de Janeiro, Petrópolis: Vozes, 2012.
EDINGER, E. Anatomia da psique. 6. ed. São Paulo: Cultrix, 1990.
JUNG, C. G. Psicologia do inconsciente. 22. ed. Rio de Janeiro, Petrópolis: Vozes, 1987a. (Obras Completas – v. VII/1).
______. O eu e o inconsciente. 24. ed. Rio de Janeiro, Petrópolis: Vozes, 1987b. (Obras Completas – v. VII/2).
______. A natureza da psique. 10. ed. Rio de Janeiro, Petrópolis: Vozes, 2000.
______. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 2. ed. Rio de Janeiro, Petrópolis: Vozes, 2008. (Obras Completas – v. IX/1).
16 Graduada em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e Mestranda em Psicologia Clínica:
Núcleo de Estudos Junguianos (PUC-SP). Contato: <lpgimenez5@gmail.com>.
Os Cavaleiros do Zodíaco
Victor Lippelt Matheus 17
CAVALEIROS DO ZODÍACO (SAINT SEIYA) É UMA SÉRIE DE MANGÁS ESCRITA E ILUSTRADA POR MASAMI
O
S
Kurumada, posteriormente adaptada para um anime e exibida em diversos países. A
animação foi extremamente bem-sucedida e tornou-se especialmente popular no Japão, na
Europa e na América Latina. No Brasil, foi exibido inicialmente pela TV Manchete, na década
de 1990, sendo uma das séries responsáveis pela inserção do público brasileiro na cultura dos
animes, abrindo as portas para outros títulos que se seguiram.
Os Cavaleiros do Zodíaco são protegidos por Armaduras Sagradas, que representam
constelações que protegem os guerreiros e existem desde os tempos mais remotos, tendo servido
nas batalhas entre os deuses e nos acontecimentos históricos primordiais.
A história que guiará este capítulo acompanha a jornada de cinco órfãos que se tornam heróis
ao conquistarem suas respectivas Armaduras Sagradas: Seiya de Pégaso, Hyoga de Cisne, Shun
de Andrômeda, Shiryu de Dragão e Ikki de Fênix. Além das Armaduras, os Cavaleiros
descobrem que sua missão é proteger a reencarnação da deusa Atena, que voltou à vida por meio
da personagem Saori Kido. Ao longo da animação, incontáveis vilões ameaçam a vida de Atena
e, consequentemente, a paz e a justiça que tentam se reestabelecer no mundo. Cabe aos
Cavaleiros combater os inimigos por meio das suas técnicas de luta e elevação do Cosmos,
energia vital que concede força aos guerreiros.
Em Os Cavaleiros do Zodíaco, Masami Kurumada foi muito além de uma simples narrativa:
criou uma gênese para seu universo, diferentes eras, inúmeros personagens e, para cada
personalidade, uma dimensão cativante. Tudo isso foi possível a partir de um grande mosaico
mitológico em que o mangaká se baseou.
O presente capítulo não tenta analisar os motivos que inspiraram Kurumada, tampouco ser
absoluto em sua leitura. Enquanto passível de leituras simbólicas, a obra jamais se esgota – pelo
contrário: o que este capítulo visa é a ampliação dos símbolos presentes no anime. Para tanto,
será composto por análises simbólicas entre as personalidades dos cinco principais guerreiros do
anime, as histórias míticas que os envolvem e os processos psíquicos propostos pela psicologia
junguiana.
Shun de Andrômeda
O reino de Cefeu estava condenado a ser destruído por um terrível monstro marinho enviado
pelo deus Posídon. O Oráculo, ao ser consultado, declarou que o império só seria salvo caso
Andrômeda, filha do rei, aceitasse ser presa por correntes a um rochedo e fosse entregue à
criatura. Assim fez Andrômeda, aceitando ser acorrentada e tomando para si a responsabilidade
de ser devorada para evitar o terrível destino de todos. Foi no momento em que a moça já se
encontrava à disposição da criatura monstruosa que o herói Perseu a avistou, apaixonando-se no
mesmo momento. Assim, o herói salvou Andrômeda do monstro e, em troca, casou-se com a
princesa (BRANDÃO, 1992b).
Essa história revela um outro tipo de heroísmo – no caso, o ato heroico de resignação:
Andrômeda não vence o monstro por sua força ou por qualquer talento perceptível, mas entrega-
se a ele. Segundo Brandão (1992b), a vitória sobre o monstro é a comprovação do fecho
iniciático e o casamento simboliza a maturidade do herói e da heroína. Na mítica de Andrômeda,
seu percurso ao lado de Perseu representa, também, a transformação que um exerce sobre o
outro. Por um lado, Perseu ascende em seu status social, pois casa-se com uma princesa; por
outro, ao ser libertada do monstro, entende-se que Andrômeda também supera seus próprios
aspectos devoradores.
O Cavaleiro Shun também está diretamente relacionado à resignação heroica. Desde os
primeiros capítulos da série animada, o herói prefere abdicar às lutas, optando, sempre que
possível, por não ser violento e por não machucar os outros. Percebemos que outro ponto de
encontro entre o personagem e o símbolo de sua constelação é o sacrifício incondicional, já que a
bondade de Shun se estende até mesmo aos seus inimigos.
A atitude de Shun é, muitas vezes, confundida com fraqueza, mas não é o que vemos: assim
como os outros Cavaleiros, ele é extremamente poderoso; o que se percebe é que sua
benevolência faz com que ele seja um herói diferente dos outros.
Logo nas primeiras histórias do anime, Shun tem de enfrentar um dos seus maiores desafios –
precisaria combater um inimigo: seu irmão. O conceito de sombra, explicado anteriormente,
frequentemente aparece nas histórias em personagens duplos, em que um reflete as
características obscuras do outro – são, por definição, opostos. O duplo de Shun é Ikki de Fênix,
seu irmão. Quando ambos ainda eram crianças, Ikki assume voluntariamente o lugar de Shun e é
mandado para a temida Ilha da Rainha da Morte. Após anos de treinamento, Ikki retorna
completamente transformado. Motivado por vingança e ódio, pretende atrapalhar os planos de
Saori Kido para reunir os Cavaleiros. Assim como Andrômeda, Shun está dividido, acorrentado
pela dificuldade de sua tarefa, entre as duas facetas do inimigo: enquanto figura do irmão mais
velho e herói salvador – assim como a figura heroica de Perseu para Andrômeda – e como vilão
ou monstro a ser derrotado.
Outra característica peculiar de Shun é que o herói é o único associado a uma figura feminina
entre os principais guerreiros. Comporta aspectos do feminino e do masculino com sua aparência
andrógina, destacando uma importante complementaridade em relação aos companheiros. No
caso deste personagem, a constelação em questão é feminina. Conter aspectos opostos na
personalidade nos remete ao conceito de polaridades, explicado anteriormente. Segundo Edinger
(1992), o processo de criação de consciência apresenta-se por meio do contato com os opostos –
no caso de Shun, o feminino e o masculino integrando sua psique.
Assim como na história de Andrômeda, Shun já se discriminou da terrível criatura, isto é, de
seus próprios aspectos monstruosos – que, para ele, seriam os elementos da violência. Shun é o
único dos Cavaleiros que parece sempre perceber uma opção além da luta, dando a impressão de
que tem uma maior compreensão sobre seus atos. Esta percepção fica clara durante a aventura
dos heróis no mundo dos mortos, em que Shun é capaz de reconhecer de início a gravidade de
seus atos ao ser julgado por um dos juízes do inferno. Ele é o herói capaz de se resignar: por
meio do sacrifício, supera o monstro devorador de sua personalidade.
Shiryu de Dragão
A figura do dragão é amplamente explorada nas mais diversas mitologias. Neste caso, a
personalidade do herói seria melhor abarcada pela figura do dragão oriental. Segundo Lexikon
(1998), este animal é venerado na China e no Japão por trazer sorte e afastar demônios. Em sua
concepção, a imagem do dragão seria composta por diversos animais: serpente, lagarto, pássaro,
escamas de carpa, chifres de veado, entre outras inúmeras possibilidades. Nesse sentido, o
dragão representaria um pouco de cada animal, tornando-se um ser completo na medida em que
contempla várias perspectivas.
Campbell (1990) descreve o dragão chinês como representante da vitalidade dos pântanos, que
surge batendo na barriga e rugindo, ameaçador. É um animal adorável, grande e glorioso, que
libera a generosidade das águas e que pode, ao mesmo tempo, ser fonte de sabedoria e de
prosperidade, além de deter um poder ameaçador e grandioso, que deve ser respeitado.
Podemos ver em Shiryu as qualidades do dragão: o personagem se destaca por sua calma e
sabedoria. Sua história está diretamente ligada à água – inclusive, sua tarefa final para obter a
Armadura de Dragão consiste em reverter o sentido de uma cachoeira, tarefa que já anuncia o
grande poder de Shiryu. O elemento da água parece comum à simbologia do dragão e à história
do guerreiro. Reverter o sentido natural de uma cachoeira tem implicações sobre o domínio dos
aspectos de sua personalidade.
Ao longo de suas batalhas, Shiryu torna-se capaz de dominar seu principal golpe: Cólera do
Dragão. A cólera, tanto enquanto afeto poderoso quanto como golpe do herói, demonstra a
capacidade do personagem em dispor de seus sentimentos. Esta ideia é ilustrada em um de seus
combates mais marcantes: ao enfrentar Máscara da Morte, Shiryu é lançado ao mundo dos
mortos; retornando de lá, submete-se a uma das batalhas mais difíceis com que se depara em sua
jornada. No entanto, é no momento em que acredita que sua fiel companheira, Shunrei, está
morta que todo o poder do Cavaleiro desperta. Assim como a figura do dragão torna-se
ameaçadora, Shiryu muda radicalmente, trocando a serenidade por uma ira profunda e uma
grande sede de poder. Ainda assim, em determinado ponto, Shiryu vê seu inimigo desarmado e,
apesar de sua raiva, é capaz de se desarmar também, em nome de uma luta justa. A ideia
ilustrada mostra a capacidade de sentir, por mais intensamente que seja, mas de não ser
dominado por seus sentimentos.
Shiryu perde a visão em determinado ponto do anime. Apesar das primeiras dificuldades, sua
cegueira não o torna menos poderoso – pelo contrário, o herói aprende a lidar com o mundo de
uma nova maneira. A cegueira também é um tópico comum na mítica, sendo um dos exemplos
mais conhecidos o mito do Édipo Rei. O tema admite a interpretação de punição, no sentido de
que perder a visão expiaria algum pecado; no entanto, também reflete outro aspecto: voltar-se
para o mundo interior. Voltar-se a esse mundo é um tema caro à psicologia junguiana, tendo em
vista que a partir do contato com aspectos mais profundos da vida psíquica poderíamos assimilar
partes da nossa personalidade total (JUNG, 2012b).
A maneira como Shiryu é capaz de acessar seus mais profundos afetos sem se permitir ser
dominado por eles demonstra a integração dos aspectos de sua personalidade. O Cavaleiro já
assimilou seus sentimentos: assim como o dragão dispõe de diversas características por ser
composto por vários animais e pode se tornar um ser completo, Shiryu dispõe de suas
características mais opostas – serenidade e cólera – e, assim, enxergando seus aspectos interiores,
caminha para a totalidade.
Ikki de Fênix
A Fênix é um pássaro ligado simbolicamente ao ciclo solar. É uma ave de grandeza
incomparável, que, após viver longos períodos, tem o poder de se consumir no próprio fogo e
renascer de suas cinzas. Seus aspectos simbólicos são claros: ressurreição, regeneração,
imortalidade e o reaparecimento cíclico.
Sua representação no Egito descreve que o magnífico pássaro se levantava com a aurora sobre
as águas do Nilo, como o próprio sol. Assim como o astro-rei arde e depois se apaga nas trevas
da noite, a Fênix evoca o fogo criador e o fogo da destruição, no qual o mundo teve sua origem e
deverá ter seu fim (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009).
A relação de Ikki com o fabuloso pássaro é apontada frequentemente em sua história. Este
Cavaleiro é capaz de enfrentar as batalhas mais árduas e sofrer os golpes mais violentos, sempre
ressurgindo, regenerando-se e ficando ainda mais poderoso. A própria jornada de Ikki é marcada
por renascimentos – não apenas em seus combates, mas em seu desenvolvimento como
personagem. Logo no início da história, ficamos sabendo que ele foi levado para treinamento na
Ilha da Rainha da Morte. Ali, enfrentou um cenário inóspito, a partir do qual aprendeu com seu
mestre a aumentar seu poder por meio da agressividade e do ódio. Antes de obter sua armadura –
destacadamente uma das mais poderosas –, Ikki precisa perder tudo: seu querido irmão, Shun,
sua única amiga na Ilha da Rainha da Morte, Esmeralda, e, por fim, deve matar seu próprio
mestre.
Após o confronto com os outros quatro Cavaleiros, Ikki transforma-se pela primeira vez:
morre e renasce como um novo herói. Brandão (1992a) nos explica que a Fênix está associada ao
surgimento do homo nouus – o novo homem.
A ave mística e Ikki estão unidos pelo elemento do fogo, ligado, por sua vez, à calcinatio, que,
como explica Edinger (1990), é a operação da alquimia que envolve o intenso aquecimento de
um corpo. Esse processo está relacionado a todas as imagens do fogo livre ou do fogo que
queima alguma coisa – conectado, portanto, a todos os simbolismos e representações desse
elemento. Uma das possibilidades por meio da calcinatio é a integração da personalidade a partir
da queima em si mesmo e o renascimento. Assim como a Fênix, esse processo representa as
várias vezes que Ikki queima, morre e renasce, integrando um novo aspecto de sua
personalidade, antes desconhecido.
Jung (2012b) aponta outro símbolo da Fênix que aparece representado pelas aparições de Ikki:
enquanto panaceia, ou seja, um remédio universal para as situações que aparentemente não têm
solução. Ikki não acompanha regularmente o grupo dos guerreiros, mas surge repentinamente
quando os outros quatro estão em uma situação muito difícil – principalmente quando Shun, seu
irmão e personagem oposto, está em dificuldade. Depois de ajudar os heróis, Ikki parte
novamente, relembrando o caráter cíclico da Fênix que surge e desaparece.
Conclusão
Ao analisarmos os Cavaleiros e seus símbolos, surgem manifestações de conteúdos
relacionados aos processos psíquicos mais arcaicos e com os quais todos podem se vincular. A
imagem do herói se dá de maneira profunda em nosso psiquismo: como explica Jung (2014), os
heróis representados na cultura manifestam uma dimensão própria do ser humano, que nos lança
aos desafios, às batalhas e à superação. O ato principal do herói é a tomada de consciência – ao
vencer suas provações, ele descobre algo novo e, então, é possível transcender a uma nova
atitude diante do mundo.
Em Os Cavaleiros do Zodíaco, é fácil nos identificarmos com os personagens e suas
constelações. Por meio de Seiya, Hyoga, Shun, Shiryu, Ikki e seus símbolos, somos mobilizados
– cria-se uma conexão entre o espectador e os guerreiros do anime. Somos atraídos ao nos
aproximarmos de figuras heroicas – estejam elas representadas nos mitos, sonhos, contos de
fadas ou em animes – por reconhecermos nelas algo próprio, cativante e transcendente.
Referências
BRANDÃO, J. S. Mitologia grega. Petrópolis: Vozes, 1991. (v. I).
______. Mitologia grega. Petrópolis: Vozes, 1992a. (v. II).
______. Mitologia grega. Petrópolis: Vozes, 1992b. (v. III).
CAMPBELL, J. O poder do mito. São Paulo: Palas Athena, 1990.
CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009.
CORDEIRO, A. M. Posidon: senhor dos mares internos e externos. In: ALVARENGA, M. Z. Mitologia simbólica: estruturas da
psique e regências míticas. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2010.
EDINGER, E. Anatomia da psique. São Paulo: Cultrix, 1990.
______. A criação da consciência: o mito de Jung para o homem moderno. São Paulo: Cultrix, 1992.
JUNG, C. G. Mysterium coniunctionis II: investigação acerca da separação e da reunião dos opostos anímicos na alquimia.
Petrópolis: Vozes, 1989.
______. A natureza da psique. Petrópolis: Vozes, 2000.
______. Aion: estudos sobre o simbolismo do si-mesmo. Petrópolis: Vozes, 2012a.
______. Psicologia e alquimia. Petrópolis: Vozes, 2012b.
______. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis: Vozes, 2014.
LEXIKON, H. Dicionário de símbolos. São Paulo: Cultrix, 1998.
17 Graduando em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Contato:
<victor.lippelt.matheus@gmail.com>.
18 O conceito de arquétipo é definido como “a existência de determinas formas na psique, que estão presentes em todo tempo e
todo lugar” (JUNG, 2014, p. 51).
A sombra em Paranoia Agent
Victor Sancassani 19
A sombra de Maromi
Existem inúmeras teorias a respeito da narrativa de Paranoia Agent – desde trabalhos que
tratam de identidade e consumotopia (FERRÍN, 2013; HANSON, 2007) até analogias sobre a
Segunda Guerra Mundial e escapismo (RIBEIRO, 2014). Ademais, diversos conceitos da
psicologia parecem ser trabalhados no anime, como os sonhos “profetizados” nos epílogos de
cada episódio, a histeria coletiva e o complexo de Madonna-prostituta na personagem Harumi
Chono. Focaremos, porém, na figura de Shōnen Bat, que pode ser interpretado como “uma
criança real, um fantasma pérfido, uma defesa contra ofensas de outras pessoas ou até uma
projeção alucinatória de seus medos profundos” (CAVALLARO, 2008, p. 139). Aqui,
atentaremo-nos à teoria de que “Shōnen Bat, assim como Maromi, foi inventado por Sagi”
(DRAZEN, 2014, p. 336) e de que o agressor é, na realidade, a sombra de Maromi. Para isso,
mostraremos alguns simbolismos e reflexões sobre os acontecimentos e a trajetória dessa sombra
na personagem de Tsukiko Sagi.
Primeiramente, devemos clarificar o que se entende por sombra nesse contexto. Para Jung,
sombra é “a parte negativa da personalidade, isto é, a soma das propriedades ocultas e
desfavoráveis, das funções mal-desenvolvidas e dos conteúdos do inconsciente pessoal” (2007,
p. 58), decorrente de um processo de “choque entre a coletividade e a individualidade”
(WHITMONT, 1990, p. 147). Ou seja, é a fonte de tudo, bom ou ruim, que é reprimido pelo
homem e armazenado no inconsciente; dessa forma, para se adaptar à realidade e à comunidade,
o indivíduo tem que “domesticar ímpetos animais contidos na sombra” (HALL; NORDBY,
2000, p. 40).
Inúmeros são os elementos imagéticos que denotam a imagem de Shōnen Bat como a sombra
de Maromi. No final do primeiro episódio, ao cair durante uma fuga, Tsukiko derruba Maromi.
À imagem da pelúcia caída sobrepõe-se a sombra do Shōnen Bat, que avisa ter retornado. Além
disso, a imagem do agressor é sempre escurecida ou embaçada, sendo que suas maiores
representações acontecem no último episódio, com a nuvem negra que domina a cidade, e na
sombra que surge do corpo de Tsukiko quando criança, após a morte de seu cachorro, Maromi;
isso resultou na criação da mentira de que um assaltante teria matado o animal, levando, assim, à
sua formação.
Outro fator relevante à análise é a questão de Maromi ser um cachorro 20 , que,
via de regra, tem uma relação muito positiva com o homem: ele é um amigo, um guardião e um guia. Mas ele era
também muito temido nos tempos antigos, pois, sendo portador da raiva e da loucura (hidrofobia), viam-no como
aquele que traz doenças e pestes (FRANZ, 2005, p. 151).
Desta forma, podemos pensar a sombra em Paranoia Agent sob duas perspectivas
complementares: 1) Maromi, a pelúcia, representando o ego, ou seja, a organização da mente
consciente, que protege Tsukiko contra a afloração da sombra, reprimindo-a; e 2) Shōnen Bat
como o cachorro transmissor da paranoia, tendo como vetor o próprio Maromi, aproveitando-se
das fragilidades das personagens. Inclusive, o bastão torto que o agressor utiliza nos ataques é
comparado à perna de um cachorro.
Para traçar os diferentes aspectos da sombra em Paranoia Agent, vale ressaltar, também, a
trajetória da própria personagem Tsukiko Sagi em ordem cronológica. É a partir da criação da
mentira de um ataque sofrido, com medo de receber uma punição de seu pai, que surge a sombra
Shōnen Bat; entretanto, somente anos mais tarde, com a pressão advinda do sucesso do
personagem Maromi, baseado em seu cachorro de infância, é que a sombra retorna num
momento de fragilidade do ego da menina.
Eles [elementos negativos] se recolhem ao inconsciente onde permanecem em estado latente enquanto tudo corre bem
no ego consciente. Mas se a pessoa se encontrar numa crise ou tiver de enfrentar uma situação vital difícil, a sombra
aproveitará a oportunidade para exercer o seu poder sobre o ego (HALL; NORDBY, 2000, p. 41).
Assim sendo, a soma da forte repressão causada pela educação paterna, pela sociedade e pela
própria Tsukiko faz com que Maromi seja criado como uma válvula de escape para as situações
de pressão que ela sofre durante a vida. Isso acontece como um mecanismo de defesa: toda vez
que tenta rememorar a experiência traumática, Maromi a interrompe dizendo, por exemplo, “não
se preocupe tanto”, “não pense nisso!” ou, ainda, “não é culpa da Tsukiko. Ele é o culpado. A
culpa é do Shōnen Bat”. 21
No entanto, essa pressão social iniciada pelo trauma de Tsukiko acontece com inúmeros outros
personagens e em diversas situações, dando vida à sombra social advinda do desespero, da falta
de autoconfiança, do escapismo etc., que culmina num desastre, devastando a cidade de Tokyo.
Tendo isto em vista e unindo tal situação ao fator de contágio psicológico da paranoia por meio
de Maromi, temos uma situação de explosão emocional que se torna destrutiva para si e para os
outros. Quanto mais rígido for o ego (Maromi), maior será a violência da invasão dos conteúdos
inconscientes (Shōnen Bat), justamente por ser o limiar, a camada que faz a passagem dos
conteúdos reprimidos, que são autônomos e incontroláveis, à consciência.
Os estados emocionais destrutivos são muito contagiosos, como se pode depreender dos fenômenos de massa. Quando
alguém solta as rédeas liberando as emoções destrutivas, geralmente tem o poder de arrastar consigo outras pessoas,
gerando aqueles horríveis movimentos de massa onde pessoas são linchadas, assassinadas – tudo devido ao fogo de
emoção que foi repentinamente liberado (FRANZ, 2005, p. 122).
Em suma, abordamos Paranoia Agent sob uma perspectiva que dá ênfase à figura da sombra e
seus desdobramentos dentro da narrativa, de modo que pudéssemos olhar para o mesmo drama
por diferentes pontos de vista e explorar suas potencialidades. Assim, a obra de Kon não somente
nos traz questionamentos sobre as próprias personagens e a narrativa, mas também sobre
questões que permeiam a natureza humana em sua profundidade.
Referências
BROWN, S. T. Cinema anime. Londres: Palgrave Macmillan, 2006.
CAVALLARO, D. The art of Studio Gainax: experimentation, style and innovation at the leading edge of anime. Jefferson:
McFarland, 2008.
DRAZEN, P. Anime explosion! The what? Why? and Wow! of Japanese animation. 2. ed. (revised and updated). Berkeley:
Stone Bridge Press, 2014.
FERRÍN, A. G. La identidad como causa trágica: lo real y su doble en Paranoia Agent de Satoshi Kon. Revista de letras y
ficción audiovisual, n. 3, p. 47-71, 2013.
FRANZ, M. L. A interpretação dos contos de fada. Tradução Maria Elci Spaccaquerche Barbosa. 5 ed. São Paulo: Paulos,
2005.
HALL, C. S.; NORDBY, V. Introdução à Psicologia Junguiana. Tradução Heloysa de Lima Dantas. São Paulo: Cultrix, 2000.
HANSON, J. S. Enter paranoia: identity and “makeshift salvations” in Kon Satoshi’s Paranoia Agent. 154 p. Tese (Doutorado)
– Department of East Asian Studies, University of Arizona, 2007.
JUNG, C. G. Psicologia do inconsciente. 19 ed. Petrópolis: Vozes, 2007. (Obras Completas de Carl Gustav Jung – VII/1).
______. Civilização em transição. 19 ed. Petrópolis, Vozes: 2011. (Obras Completas de Carl Gustav Jung – X/3).
PIERI, P. F. P. Dicionário Junguiano. São Paulo: Vozes, 2002.
RIBEIRO, R. P. Nanquim & Celulóide #15: Paranoia Agent (2004). 2014. Disponível em:
<http://thekeyholeofmymind.blogspot.com.br/2014/10/nanquim-15-paranoia-agent-2004.html>. Acesso em: 3 jul. 2016.
WHITMONT, E. C. A busca do símbolo: conceitos básicos de psicologia analítica. Tradução Eliane Fittipaldi Pereira e Kátia
Maria Orberg. São Paulo: Cultrix, 1990.
19 Graduado em Tecnologia em Jogos Digitais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP (2013). Possui
Pós-Graduação lato sensu em Direção de Arte em Comunicação pelo Centro Universitário Belas Artes de São Paulo (2015).
Mestrando de Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Pesquisa mitologia e imaginário com enfoque nas áreas de processos
criativos e games. Contato: <vsancassani@gmail.com>.
20 Muitos dos personagens de Paranoia Agent têm ou fazem referência a nomes de animais, como Sagi (鷺 – “garça”), Kawazu
(川津 / 蛙 – “sapo”), Chono (蝶野 – “borboleta”) e Zebra (ゼブラ – “zebra”), que são utilizados como analogias nas profecias dos
epílogos dos episódios.
21 Em alguns momentos, Tsukiko Sagi faz solilóquios (conversa consigo mesma) a fim de se conhecer, projetando os
pensamentos do ego em Maromi, que, da mesma forma, enrijece o ego de modo a fortalecê-lo, ao mesmo tempo que reprime
mais ainda a sombra do evento traumático.
22 Aqui também é importante ressaltar o fato de que geralmente são as experiências impactantes que ajudam o indivíduo no
processo de individuação, ou seja, no seu reconhecimento como indivíduo, sua própria compreensão na integralidade em busca
de autoconhecimento.
Harry Potter e Naruto: tão iguais, tão diferentes
Ivelise Fortim 23
Victor Sancassani 24
M
UITAS NARRATIVAS COM PROTAGONISTAS MASCULINOS SÃO VISTAS COMO EXPRESSÕES DO MITO DO
herói. Este mito é entendido pela psicologia junguiana como metáfora da jornada humana,
sendo que o herói representa o ego do sujeito e sua jornada, as tarefas com as quais ele deve
lidar durante sua vida.
Harry Potter e Naruto são duas narrativas muito semelhantes em seu enredo, mas diferem nas
características atribuídas ao herói. Apesar de passarem pelos mesmos ciclos, Naruto faz uma
jornada pessoal que difere um pouco daquela apresentada por Campbell ou Vogler, pois está
baseada em valores orientais, especialmente nos valores japoneses. O objetivo deste texto é tecer
uma comparação entre os dois personagens, mostrando suas semelhanças e, especialmente, suas
diferenças, dando ênfase à forma como os personagens de animangás shonen são construídos.
O herói tradicional
Em 1949, Joseph Campbell, após duas recusas de editoras, publica o livro O herói de mil
faces. Abastecido de inúmeros estudos da mitologia e religião comparativas, literatura,
antropologia e psicologia, para citar somente alguns, Campbell cria, nesta obra, o conceito da
jornada do herói ou monomito (retirado da obra Finnegans wake, de James Joyce). A jornada do
herói, resumidamente, trata-se de uma estrutura não linear e universal semelhante às etapas
apresentadas em rituais de passagem, em que um herói passa por uma transformação após
múltiplos desafios que o testam dentro de um mundo especial, diferente do seu contexto habitual.
Posteriormente, utilizando os estudos de Campbell, Christopher Vogler direciona este mesmo
conceito para a área do audiovisual, especialmente a cinematográfica. No livro A jornada do
escritor, Vogler (2006) simplifica didaticamente o esquema campbelliano, focando em doze
etapas do desenvolvimento da trajetória de protagonistas em filmes, as quais comparou ao
esquema do monomito (conforme Quadro 1, a seguir).
Quadro 1 – Comparação esquemática e de terminologia entre a jornada do escritor e a jornada do
herói
Fonte: Vogler (2006).
Apesar das diferenças, ambos os esquemas são compostos por três momentos principais, que
compreendem as etapas pelas quais o herói passará no decorrer de sua jornada como um todo, a
saber: 1) separação ou primeiro ato; 2) iniciação ou segundo ato; e 3) retorno ou terceiro ato.
Nas palavras de Campbell: “Um herói vindo do mundo cotidiano se aventura numa região de
prodígios sobrenaturais; ali encontra fabulosas forças e obtém uma vitória decisiva; o herói
retorna de sua misteriosa aventura com o poder de trazer benefícios aos seus semelhantes”
(CAMPBELL, 1949, p. 36).
A separação, também chamada de partida, é o momento em que o herói sai do seu mundo
comum – status quo – para adentrar a jornada em um mundo especial. Esse evento é ocasionado
por um chamado que o leva até o limiar entre estes dois mundos (seja de forma acidental ou
intencionalmente), que, ao ser atravessado, irá colocá-lo dentro da aventura.
A iniciação compreende a fase de transição do herói, como numa espécie de incubação, a
partir da qual, por meio de batalhas e desafios, ele terá de se transformar interior e/ou
exteriormente, de forma a aprender a enfrentar seus medos; esta etapa pode incluir um desafio
tão grande que o herói pode acabar morrendo durante sua execução, sendo recompensado
posteriormente por seus atos heroicos.
Por fim, no retorno, o herói deve voltar ao seu mundo, de onde partiu inicialmente – mas
transformado, como num ato de renascimento. Dessa forma, a partir das experiências e
recompensas adquiridas durante a jornada, o herói transforma, também, o seu mundo comum,
seja de forma a beneficiar alguém ou a si próprio, ou até mesmo de forma catastrófica, trazendo
prejuízos ao ambiente interno e/ou externo.
Temos ciência de que a jornada do herói de Campbell também é válida para os estudos dos
heróis orientais. Entretanto, como será visto adiante, optamos por dar ênfase ao papel executado
pelo herói durante sua jornada, que reflete os valores japoneses, e não na estrutura narrativa
como um todo.
Os personagens
Naruto Uzumaki é um shinobi (ninja) de Konohagakure, a Vila da Folha. Para proteger a vila
durante um ataque, seus pais, Minato Namikaze e Kushina Uzumaki, sacrificam-se ao selar
Kurama, a Raposa de Nove Caudas (Kyuubi no Kitsune) em Naruto. O maior sonho do garoto
durante sua infância era se tornar um Hokage, líder de uma vila, o que posteriormente se efetiva
na narrativa, após a Quarta Guerra Mundial Shinobi.
Harry Tiago Potter é um bruxo mestiço, isto é, filho de um bruxo, Tiago Potter, e de uma
bruxa nascida trouxa, Lílian Potter. Quando Harry ainda era um bebê, Lord Voldemort,
considerado o mais poderoso bruxo das trevas, lança um feitiço que acaba por matar os pais do
garoto, que se sacrificam em prol de sua proteção contra o vilão, dando fim à Primeira Guerra
Bruxa. Posteriormente, Harry entra para Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts, onde é temido
por alguns e adorado por outros. Durante a Segunda Guerra Bruxa, o herói consegue derrotar
Voldemort e se tornar um Auror, mago que luta contra as magias das trevas, e o Senhor da
Morte.
Considerações finais
Assim, após o estudo comparativo realizado entre as trajetórias de Harry Potter e Naruto
Uzumaki, podemos observar que, apesar das diferenças entre as narrativas, são inegáveis as
inúmeras semelhanças existentes, não somente entre os eventos ocorridos, mas também entre os
personagens que compõem as histórias. Potter e Naruto são lados de uma mesma moeda heroica,
que representa eixos culturais diferentes entre si, mas que apontam para um mesmo mito: a
jornada do herói.
Desta forma, é importante ressaltar que a narrativa de Harry Potter aborda o tema de um herói
que é vangloriado diante da vitória, enquanto Naruto valoriza o esforço do herói que combate em
nome de seu povo – trata-se de um entre os diferentes valores existentes nas culturas ocidental e
oriental, respectivamente. O caminho percorrido por ambos é semelhante, mas o esforço e
desempenho exercidos pelos heróis durante a jornada são díspares.
Obviamente, Naruto não pode ser considerado por si só como um representante de todos os
valores heroicos orientais, já que diversas culturas compõem o cenário do oriente. Neste estudo,
porém, tendo em vista as inúmeras semelhanças narrativas entre as histórias de Naruto e Harry
Potter, além do próprio foco deste livro se dar no animangás, que são, em sua maior parte,
produzidos no Japão, atentamo-nos em aproximar estes dois eixos, aparentemente tão díspares e,
muitas vezes, polarizados. No entanto, apesar de suas diferenças, apresentam também
semelhanças primordiais para se entender a questão do mito do herói, comum a todas as culturas.
Do mesmo modo, não podemos resumir Potter a todos os heróis do ocidente, já que, apesar de
apontar para um mito universal, ele também é representante de uma cultura única.
Referências
CAMPBELL, J. O herói de mil faces. Tradução Adail Ubirajara Sobral. São Paulo: Pensamento, 1949.
DRAZEN, P. Anime explosion! The What? Why? & Wow! of Japanese animation. Revised and updated edition. Berkeley (CA):
Stone Bridge Press, 2014.
KAWAI, H. A psique japonesa: grandes temas dos contos de fadas japoneses. São Paulo: Paulus, 2007.
VOGLER, C. A jornada do escritor: estruturas míticas para escritores. Tradução Ana Maria Machado. 2. ed. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2006.
23 Psicóloga, Doutora em Psicologia Clínica e professora dos cursos de Psicologia e de Jogos Digitais da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
24 Graduado em Tecnologia em Jogos Digitais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP (2013). Possui
Pós-Graduação lato sensu em Direção de Arte em Comunicação pelo Centro Universitário Belas Artes de São Paulo (2015).
Atual Mestrando de Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Pesquisa mitologia e imaginário com enfoque nas áreas de
processos criativos e games. Contato: <vsancassani@gmail.com>.
25 Jinchuuriki (人柱力) significa, literalmente, “poder do sacrifício humano”. Trata-se de uma pessoa que serve de hospedeiro
para um dos dez demônios chamados Bijuu, cada qual com uma quantidade de caudas. Naruto é hospedeiro da Raposa de Nove
Caudas, ou seja, Naruto é o jinchuuriki da Raposa de Nove Caudas.
Outro exemplo claro desse tipo de processo que se apresenta na série refere-se à relação de
Ash com Charmeleon, que perdura após sua evolução para Charizard. A explicação fornecida no
enredo para a desobediência de Charmeleon/Charizard tem ligação com o respeito que o
treinador consegue ter por parte de seus Pokémon. Isso é uma referência a um recurso dos jogos
da franquia, nos quais o treinador é capaz de controlar os Pokémon abaixo de determinado nível,
sendo esse limite definido pela última insígnia de ginásio que ele tiver obtido.
Um episódio que ilustra a correlação entre a desobediência de Charmeleon/Charizard e o
fenômeno psicológico que descrevemos anteriormente é justamente o episódio em que este
Pokémon evolui. Quando Ash precisa batalhar contra um Pokémon pré-histórico voador, opta
por enviar Charmeleon, mas este se recusa a lutar até ser atingido acidentalmente pelo inimigo.
Isto seria equivalente a uma situação em que algum fator externo faz referência a um conteúdo
de um complexo, provendo-o de energia e fazendo com que este passe a agir de forma autônoma;
como citado anteriormente, levando à “ruptura da continuidade do comportamento”.
Os caracteres autônomos e imediatistas dos complexos também podem ser percebidos nessa
cena, na medida em que Charizard desconsidera os comandos de Ash, lutando apenas quando é
provocado e atuando de forma independente, além de agir reagindo a estímulos, colocando Ash
em perigo – mesmo que se prove que seu objetivo final fosse salvá-lo.
Quando nos focamos na elaboração de que os Pokémon mais fortes respeitam seus treinadores
à medida que estes vencem os desafios dos ginásios e adquirem suas insígnias, podemos
entendê-la como uma referência ao fato de que o ego é capaz de assimilar e entender melhor os
complexos que constituem o seu ser a partir das relações que estabelece com outros. Quando um
treinador luta usando seus Pokémon contra os Pokémon de um líder de ginásio, teríamos o
equivalente a uma interação humana em que um indivíduo interage com outro a partir de seus
conteúdos, tendo a possibilidade de perceber seus próprios complexos. A diferenciação feita
entre um treinador qualquer e um líder de ginásio é que os líderes de ginásios são mestres
Pokémon cuja função é testar, ensinar e validar o crescimento dos outros treinadores, por estarem
em níveis mais avançados quanto ao seu contato e entendimento a respeito dos Pokémon. Neste
sentido, a assimilação dos conteúdos internos seria propiciada pela interação humana autêntica,
na qual há espaço para reflexividade e acolhimento dos conteúdos que se manifestam.
De acordo com Stein (2004), podemos falar de complexos como “do poder dos nossos
demônios internos” (p. 59) – esta etapa da vida representada em Ash é de especial importância
no enfrentamento destes demônios internos. É nesta etapa do desenvolvimento que o indivíduo
internaliza as normas sociais e precisa contrapor seus impulsos e desejos com estas. Na
psicologia analítica, o paralelo que se traça entre este estágio do desenvolvimento e a mitologia é
com o tipo de herói classificado por Henderson (1964) como Hare. Nesta concepção, os mitos
heroicos são narrativas que exemplificam os processos do desenvolvimento do ego e os
diferentes tipos de protagonistas representam diferentes etapas.
O Hare seria o segundo tipo de herói destacado no processo de desenvolvimento e representa
um avanço sobre os aspectos negativos de seu predecessor, o Trickster. Este primeiro estágio de
desenvolvimento é correspondente a heróis que utilizam habilidades e inteligência para obter
benefícios pessoais, cedendo a seus impulsos e desejos. A aprendizagem do Trickster trata-se de
utilizar seus recursos para alcançar objetivos coletivos, e não apenas pessoais. Quando passamos
para o estágio no qual o Hare está vigente, a temática está relacionada a um esforço do herói para
manter a ordem e as normas sociais, geralmente antagonizando vilões que, por sua vez, cedem
aos impulsos egoístas do Trickster.
Podemos encontrar um paralelo a esta temática dentro do enredo deste anime ao observarmos
a relação que se estabelece entre Ash e a Equipe Rocket. Enquanto Ash busca capturar os
Pokémon um a um, seguindo as regras estabelecidas naquele mundo, a Equipe Rocket tenta se
utilizar de artifícios, manipulações e enganações para roubar os Pokémon. Seguindo o mesmo
antagonismo, o objetivo de Ash é se tornar o maior treinador Pokémon do mundo, buscando
construir seu lugar na sociedade e se inserir nesta. Por outro lado, a Equipe Rocket tem como
objetivo a busca pelo poder dos Pokémon e os vê como um meio de realizar seus desejos
pessoais. Desta forma, podemos entender que em cada episódio Ash precisa derrotar esses
impulsos característicos do Trickster para reafirmar sua posição como Hare.
Ao longo dos primeiros episódios, fica evidente que Ash tem uma postura bastante incomum
com seus Pokémon, se comparado aos outros treinadores. Um outro Pokémon capturado por Ash
é um Caterpie, que, inicialmente, também fica fora da Pokébola. Misty tem nojo de Caterpie e
este fica bastante chateado com a rejeição. Ash briga com Misty pela maneira como ela trata
Caterpie e a garota tem que conviver com o Pokémon fora da Pokébola, assim como Pikachu.
Misty reflete que nunca viu um treinador como Ash, que “realmente adora seus Pokémon”.
Em mais uma batalha Pokémon, Caterpie vence e Misty o agradece pela forma como lutou.
Como consequência a esse relacionamento positivo com Misty, Caterpie evolui para Metapod.
Aqui, fica claro que o desenvolvimento de uma relação afetiva com os Pokémon está diretamente
ligado a uma transformação, seja física, por meio da evolução (Metapod), ou psicológica, das
características da personalidade do personagem (Pikachu), além de uma transformação afetiva
também no indivíduo (Ash e Misty).
Assim, a psicologia analítica de Jung pode contribuir para uma compreensão simbólica do
enredo de Pokémon, ao discutirmos a transformação e evolução dos Pokémon em relação à
transformação na personalidade dos treinadores, que parecem acontecer concomitantemente. De
maneira análoga, isso também ocorre no processo psíquico de elaboração dos complexos
inconscientes e suas manifestações afetivas correspondentes.
Para possibilitar uma melhor compreensão sobre Pokémon e seus paralelos com a psique
humana, é importante considerar os jogos atrelados à franquia, principalmente porque estes
foram a origem desta. Neste sentido, destaca-se que muitos dos paralelos aqui observados
também estão presentes na série principal de jogos, aqueles voltados para videogames portáteis
da Nintendo e que inauguram as novas gerações de Pokémon.
Nesses jogos, está presente a lógica de captura e treinamento de Pokémon, assim como o
interagir no mundo por meio destes, seja em batalhas ou nas interações com o cenário.
Considerando que os Pokémon e suas habilidades são imprescindíveis para se ter acesso a
determinadas partes do jogo, torna-se ainda mais claro o paralelo com a assimilação de
conteúdos e potenciais do indivíduo, importantes para lidar com as demandas da vida.
Nos jogos, as dinâmicas pessoais entre treinador e Pokémon são menos explícitas do que
quando comparadas à forma como são apresentadas no anime. Ainda assim, a construção de uma
relação positiva entre humanos e Pokémon é a temática central desses jogos. Como foi
exemplificado com a relação de Ash com seu Charizard, nos jogos, o treinador precisa se provar
à altura do poder de seus Pokémon para que estes respondam aos seus comandos; em situações
em que esse equilíbrio não existe, os Pokémon agem de forma autônoma durante as batalhas.
A importância de uma relação afetiva positiva e da construção de uma amizade, exemplificada
na série com Ash e Pikachu, pode ser encontrada nos jogos em casos de Pokémon específicos,
que só evoluem mediante uma boa relação com seus treinadores, como é o caso de Togepi. Nos
jogos mais antigos, esses cuidados eram menos claros, mas nos atuais há uma funcionalidade a
partir da qual é possível alimentar, brincar e acariciar seus Pokémon, promovendo essa conexão.
Assim, se pensarmos na leitura simbólica que fizemos dos Pokémon como conteúdos
inconscientes de nossa personalidade, fica clara a necessidade de que estes precisam de
investimento e elaboração por parte do ego para que passem de uma atitude negativa e autônoma
para fazer parte de uma integração harmônica no funcionamento da psique como uma totalidade.
Quanto à jornada heroica presente nesses jogos, por mais que haja especificidades em cada
um, em linhas gerais, todos seguem o modelo da disputa entre o personagem principal e uma
equipe de treinadores que busca utilizar os Pokémon para seus objetivos individuais, agindo de
forma criminosa; a consequência dos atos dessa equipe pode ser terrível, como a destruição do
mundo, do ecossistema ou outras catástrofes. Isso mantém alguns pontos centrais que atribuem
ao enredo uma ligação com a temática do Hare.
Dentre os jogos paralelos da franquia, destaca-se atualmente Pokémon GO, um jogo de
realidade aumentada que pode ser usado em smartphones e que tem como objetivo encontrar e
capturar Pokémon em locais do mundo real. Em Pokémon GO, existe a possibilidade de capturar
os Pokémon sem batalhar, além de ser possível chocar ovos de Pokémon (dinâmica existente
também nos outros jogos e na série animada) e lutar em ginásios. No entanto, ao contrário da
dinâmica dos ginásios que se apresenta nos jogos principais e no anime, os ginásios de Pokémon
GO são centros de competição entre treinadores, sem um mestre fixo ou recebimento de
insígnias.
Estas diferenças entre Pokémon GO e a série e os jogos principais destacam uma mudança da
dinâmica que se estabelece entre treinadores e Pokémon. Ainda há a ideia de assimilação de
conteúdos, mas se destaca e se fortalece a noção de coleção de Pokémon. Este colecionar retira
dos Pokémon uma parte de seu potencial como receptores da projeção desses conteúdos internos
a serem assimilados, na medida em que perdem algumas de suas características e sua
possibilidade de interação com o treinador.
Considerando que os Pokémon ainda são utilizados para batalhas (como as disputas pelos
ginásios, que o jogador pode dominar), permanecem imbuídos da função de mediadores entre o
treinador e seu ambiente, mesmo que em menor medida.
Nesse jogo, percebe-se uma valorização das relações de poder e posse, deixando de lado
muitos dos aspectos da franquia que estão ligados ao amadurecimento do protagonista, à
sensibilização a aspectos inconscientes ou à valorização de relações de caracteres emocionais
positivos.
Além disso, os Pokémon vivem em seu habitat natural e livre antes de serem capturados por
seres humanos. Ou seja, nos jogos e (principalmente) no anime, os Pokémon são “selvagens” e
completamente autônomos até que o ser humano altere essa dinâmica natural, aprisionando o
Pokémon em uma Pokébola e utilizando-o quando for necessário batalhar com outro treinador
Pokémon, ou de acordo com seus interesses. A ênfase das relações de poder e posse, assim como
a utilização dos Pokémon em função desses objetivos nas interações com os outros se assemelha
consideravelmente às atitudes tomadas pela Equipe Rocket e outros times de vilões dos jogos da
franquia.
Quando nos atentamos a estas semelhanças, destaca-se também que, ao iniciar as competições
por ginásios, os treinadores de Pokémon GO devem optar por times que representam formas de
lidar com os Pokémon, sendo que as descrições desses times enfatizam a importância de vencer
as batalhas, seja pelo uso de poder, de estratégia ou mesmo por seguir os instintos. Desse ponto
de vista, podemos comparar a dinâmica deste jogo com aquela identificada como Trickster,
podendo ser entendido como uma regressão a um estado de dinâmicas mais infantis.
De maneira geral, podemos perceber que o enredo de Pokémon trata de aspectos das relações
humanas como amizade, desenvolvimento progressivo e de todas as dificuldades que esse
processo pode apresentar. Os jogos são uma maneira de trazer para a nossa realidade a tarefa de
cuidar dos Pokémon e, de certa forma, cuidar dos nossos aspectos, que, muitas vezes, podem
aparecer como pequenos monstrinhos inconscientes.
Evidencia-se, assim, a importância de não lidarmos de maneira negligente com esses aspectos
que, não raro, mostram-se inadequados e autônomos, mas, sim, investir em um desenvolvimento
positivo para que eles possam ser integrados de forma positiva à nossa personalidade.
Referências
CARMO, J. P. O.; GUSHIKEN, Y.; HIRATA, T. Os preceitos imagéticos de Pokémon como difusores da cultura japonesa.
In: INTERCOM – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação. XV Congresso de Ciências da
Comunicação na Região Centro-Oeste. Rio Verde, Goiás, 2013.
HENDERSON, J. L. O homem e seus símbolos. Tradução Maria Lúcia Pinho. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1964.
JUNG, C. G. Psicologia do inconsciente. Rio de Janeiro: Vozes, 1978.
______. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis: Vozes, 2002.
PIERI, P. F. Dicionário junguiano. São Paulo: Paulus, 2002.
POKÉMON, Pokédex. Disponível em: <http://www.pokemon.com/br/pokedex/>. Acesso em: 15 out. 2016.
SALMAN, S. Manual de Cambridge para estudos junguianos: a psique criativa – as principais contribuições de Jung. Porto
Alegre: Artmed Editora, 2002. p. 69-84.
STEIN, M. Jung: o mapa da alma. São Paulo: Editora Cultrix, 2004.
27 Graduada em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e Mestranda em Psicologia Clínica:
Núcleo de Estudos Junguianos (PUC-SP). Contato: <lpgimenez5@gmail.com>.
28 Graduado em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e Mestrando em Psicologia Clínica:
Núcleo de Estudos Junguianos (PUC-SP). Contato: <mdpolcino@gmail.com>.
29 Um mestre Pokémon captura e treina Pokémon e participa de competições em ginásios com eles.
30 A Pokédex é uma espécie de enciclopédia que contém informações sobre cada um dos Pokémon, incluindo sua origem,
lendas, comportamentos, habitat natural, entre outros dados.
Kamui: uma lenda da gesta heroica
Paula Guimarães 31
HERÓI HABITA ESTÓRIAS DE TODAS AS CULTURAS E POVOS AO LONGO DO TEMPO; ASSIM, PERMEIA
A sociedade e a cultura nas quais se está imerso e a estrutura corporal iniciam o processo de modelagem da
personalidade – inclusive do herói –, mas haverá o momento em que a singularidade clamará por sua realização. “O ser
humano após saber-se como identidade corporal, marcada e definida pelas semelhanças de raça, cor, traços e vestes,
armas e cultos, crenças e deuses, buscar-se-á pelas imparidades, pela natureza exclusiva. O reclamo será pela
singularidade” (ALVARENGA, 1999, p. 48).
Após fugir, Kamui adentra uma floresta e suas provas têm início, uma vez que é necessário
escapar de numerosos perseguidores que tencionam matá-lo. O protagonista obtém sucesso em
todos os embates e, então, prossegue em sua jornada; para tanto, utiliza-se de dons especiais que
soam sobre-humanos: percepções extremamente aguçadas, saltos semelhantes a voos, golpes
secretos – como a queda Izura, na qual abraça seu oponente, pula de um local alto e finca-o no
solo, sem que nenhum ferimento lhe atinja, e a miragem da névoa da morte, com a qual ludibria
seu adversário ao projetar uma imagem de si, de modo que seu inimigo não sabe qual dentre as
imagens (a real ou a projetada) é a verdadeira –, dentre outras proezas que costumam permear a
existência do herói.
Tipicamente, ao longo de sua saga, esta figura realiza façanhas por meio das quais contata
suas realidades pessoal e transpessoal, de modo a ampliar o conhecimento acerca de seus
mundos interno e externo. Tais proezas são desempenhadas por meio de um caminho de
provações, e, ao ultrapassá-las, iluminações levam à recompensa. Este movimento também se faz
presente em vidas do mundo dito concreto, uma vez que as recompensas advêm de renúncias e
superação de obstáculos impostos. “O Alcorão diz: Você acha que pode ter acesso ao Jardim das
Delícias sem passar pelas mesmas provações daqueles que o antecederam?” (CAMPBELL, 2000
[1990], p. 134).
As proezas heroicas podem ser consideradas análogas às dificuldades encontradas pelo ego 33 ,
a fim de manter seu relacionamento com o inconsciente de modo saudável, disposto, portanto, a
contatar e incorporar novos elementos como pertencentes a si, de modo que o indivíduo possa
ampliar suas possibilidades e potencialidades e, assim, tornar-se progressivamente aquilo que de
fato é.
Esse relacionamento inconsciente requer, no entanto, um esforço – como qualquer pessoa que tente ficar ciente dos
impulsos inconscientes logo descobre – pois parece que o inconsciente coloca no caminho todos os obstáculos
possíveis desse mesmo relacionamento no qual ele insiste de modo ostensivo (da mesma forma que o herói nos contos
de fada é sempre perseguido por dificuldades que ele tem que superar quase que por acordo prévio) (WHITMONT,
2004 [1969], p. 45).
Para que o ego vença a batalha contra criaturas aquáticas ou seres análogos, é necessário que,
antes, assimile sua própria criatura interior, seu lado obscuro, sua sombra. O herói deve
reconhecer em si mesmo a criatura, aceitá-la e assimilá-la, a fim de ressignificá-la e utilizá-la de
maneira positiva e criativa, no sentido de impulsionar a vida. Apenas assim poderá vencer a
criatura exterior. “Na condição de preso à mãe, o herói é o dragão, e na condição do renascido da
mãe, ele é o que vence o dragão” (JUNG, 2011 [1973], p. 363).
Jung (2011 [1973]) discorre a respeito da luta contra o monstro marinho como disseminado
pelo mundo todo. O enfrentamento da baleia ou de outras criaturas aquáticas pode ser visto como
a representação do ego submergido nas forças sombrias do inconsciente, de modo a poder
assimilá-las para, então, destruir o animal em suas entranhas ou acender uma tocha em seu
interior. Esse episódio significa, portanto, a retomada de consciência do herói por meio da vitória
em relação à criatura símbolo do inconsciente e da regressão, o que, por sua vez, ocorre somente
após a assimilação desta pelo herói como parte de si mesmo.
De modo similar, considera-se relevante discorrer sobre o segundo teste pelo qual passa
Kamui, no qual submerge, preso em uma jaula, nas águas do mar. Acredita-se que possa
simbolizar, assim como o confronto com criaturas aquáticas, a necessidade de se libertar do
engradamento das forças inconscientes, ilustradas por meio da imersão nas águas do oceano,
para emergir após tal libertação munido de seus elementos, que passam a ser conscientemente
integrantes dele.
Os piratas, então, dizem a Kamui que ele passou em seus testes e, por esta razão, reconhecem-
no como um ninja fugitivo companheiro, tal qual todos os tripulantes do navio. Entretanto, havia
um traidor entre estes: o chefe dos piratas, que revela o paradeiro de Kamui ao senhor dos ninjas.
Como punição, todos os piratas são mortos, assim como os habitantes da ilha – inclusive Hanbei
e sua família.
Kamui é perseguido e atacado por numerosos ninjas, derrota-os por intermédio de suas
habilidades extraordinárias e chega ao duelo final: o embate com o chefe dos piratas, ninja de
habilidade espetacular. Após um exaustivo confronto, no qual ambos se utilizam de golpes
secretos, como a miragem da névoa da morte, Kamui o derrota.
Em contrapartida, o protagonista desempenhou seu papel naquele território; é preciso seguir
outros rumos e continuar sua saga, ainda incompleta, mas corrente. Novamente, embarca em
direção ao mar aberto com questões em sua mente, como: será capaz de confiar em alguém?
Alcançará sua almejada liberdade? E, então, prossegue em sua jornada.
A lenda de Kamui parece retratar o início da jornada heroica, que, simbolicamente, pode ser
concebido como os passos iniciais da conquista da singularidade e alteridade. A saga percorrida
por ele parece se relacionar, sobretudo, ao fortalecimento egoico e à saída do mundo
endogâmico, ao passo que as etapas subsequentes da jornada heroica, como o sacrifício, o
encontro com sua contraparte feminina e o retorno ainda não foram trilhadas por Kamui.
O sacrifício representa a provação em que o herói abdica do poder e das conquistas em prol do
bem maior; ele percebe a si em sua real medida e desvencilha-se de possíveis inflações em
função dos obstáculos superados, sinalizadores de sua extensa força física e espiritual. Somente
assim o herói pode conectar-se ao inconsciente – não subjugado, mas em relação com ele. “No
sacrifício o consciente renuncia à posse e ao poder, a favor do inconsciente. Isto torna possível
uma união de opostos cuja conseqüência consiste numa libertação de energia” (JUNG, 2011
[1973], p. 415).
Durante o caminho, o herói passará, ainda, pelo encontro com sua contraparte feminina, seu
oposto complementar – ilustrado pelo encontro com a princesa, donzela, amante, dentre outras –,
que confere a possibilidade de experienciar maior aproximação com a sua totalidade, que deve
ser uma das conquistas de sua trajetória. Conforme Jung (2011 [1973]), a assimilação da
tendência do sexo oposto trata-se de uma tarefa a ser resolvida para manter a energia psíquica em
progressão; desse modo, consiste na integração do inconsciente ao consciente. “[...] a tarefa do
herói tem um objetivo que vai além do ajustamento biológico e conjugal: liberar a anima 35
como o componente íntimo da psique, necessário a qualquer realização criadora verdadeira”
(HENDERSON, 2008 [1964], p. 162-163, grifo do autor).
Conforme exposto, Kamui ainda não desempenha atos permeados pelo sacrifício, tampouco
conjuga-se com sua contraparte feminina e, portanto, encontra-se distante de seu retorno heroico
após a última conquista, embate ou o encontro daquilo que buscava ao partir para sua jornada.
Kamui e Sayaka, filha de Hanbei, enamoram-se, mas não mantêm nenhuma relação conjugal.
A maior aproximação se dá quando a moça oferta a Kamui uma concha vermelha, representativa
do Sol, e permanece com outra, prateada, ilustrativa da Lua; então, diz a ele que enquanto
estiverem em posse de tais conchas permanecerão conectados. Kamui recusa insistentemente
unir-se a Sayaka, dizendo-lhe que não pode fazê-lo. Ademais, não consegue salvá-la e ela morre
por envenenamento junto com os demais habitantes da ilha, como narrado anteriormente. Ao
enterrá-la, Kamui dispõe as conchas em seu túmulo e, assim, não carrega consigo o símbolo da
conjugação com o feminino, ainda que o tenha utilizado anteriormente para ultrapassar o
segundo teste imposto pelos piratas.
Portanto, ao não se conjugar com o outro exterior, representado por Sayaka, Kamui tampouco
contata parte do outro desconhecido interior, o que pode denotar não estar preparado para tanto.
Somente é possível atingir a alteridade referente aos mundos externo e interno após a conquista
da singularidade, por meio do fortalecimento egoico e progressiva ampliação da consciência que
permita reconhecer em si mesmo o desconhecido e transformá-lo em familiar.
Kamui é permeado frequentemente por temas aquáticos: cai em um rio após ser ferido, é
lançado ao mar diversas vezes, enfrenta criaturas marinhas, embarca em um navio pirata, vive
em uma aldeia de pescadores e os auxilia, dentre outras conjunturas. A água, imprevisível,
incontrolável, misteriosa, cuja força possui a capacidade de ser aterradora, pode ser associada ao
inconsciente, parece simbolizar a necessidade de Kamui contatar elementos desta dimensão em
detrimento de permanecer à sua mercê, como ainda parece ocorrer em sua trajetória.
Acredita-se ser significativo que Kamui seja um herói ainda a percorrer o início de sua
jornada, já que o público majoritário de animes e mangás é composto por adolescentes, que
também se encontram nessa fase de suas sagas. No decorrer da adolescência, símbolos heroicos
ou conexões com estes começam a surgir, pois se faz necessário que o ego se fortaleça e se
aproxime da fonte inconsciente, a fim de tornar seus conteúdos acessíveis e, após integrá-los,
munir-se deles para, enfim, enfrentar os desafios que lhe serão propostos ao defrontar-se com a
passagem à idade adulta. A saída do mundo parental para adentrar o reino dos desafios, sem os
quais as conquistas não ocorrem, começará a se configurar, bem como a busca pela singularidade
será iniciada.
O herói [...] exige o sacrifício da “mãe”, significando uma atitude infantil passiva, e que assume as responsabilidades
da vida e enfrenta a realidade de um modo adulto. O arquétipo do herói exige o abandono desse pensamento fantasioso
infantil e insiste em que se aceite a realidade de um modo ativo. Se os humanos não tivessem sido competentes para
aceitar esse desafio, teriam sido condenados ao fracasso e extinção há muitas centenas de milhares de anos (STEIN,
2005 [1998], p. 86).
A fim de transpor tais façanhas no decorrer da passagem à idade adulta, o adolescente, tal qual
Kamui, inicia seu movimento de aproximação com o inconsciente e, sobretudo, de
fortalecimento egoico. Os passos posteriores da jornada encontram-se ainda distantes, mas o
chamado a vivenciá-los ocorrerá e, a fim de percorrê-los, será necessário ter conquistado as
trilhas anteriores, que o levarão às que estão por vir.
Forma-se, assim, a base para a superação de futuros obstáculos e o progressivo caminhar ao
longo do desenvolvimento psíquico, para o qual apenas o herói não será suficiente; entretanto,
sem as conquistas proporcionadas por ele – por meio de integrações e instrumentalizações
decorrentes da integração de conteúdos inconscientes, fortalecimento egoico, adaptação ao
mundo exterior e início do desenvolvimento da singularidade –, os passos seguintes da jornada
não seriam possíveis.
Em A lenda de Kamui, há uma figura marcante e peculiar: um ancião que se encontra sempre
nos locais em que ocorrem os principais episódios da estória de Kamui e os desenha. Durante o
confronto final do protagonista, o ancião retira a pele de seu rosto e mostra uma nova face: a do
chefe dos ninjas perseguidores. Entretanto, quando Kamui vence seu duelo final, esta figura não
o enfrenta e, então, surge em um local distante da ilha, nos salões do Senhor do Clã, onde
prossegue com seus desenhos.
Este ancião remete à figura do velho sábio, um guia sobrenatural ilustrado em inúmeras
mitologias e contos de fadas como habitante da floresta, mágico, eremita, pastor, ferreiro,
barqueiro, condutor de almas etc. Porém, sempre é, a um só tempo, protetor e perigoso, reunindo
todas as oposições da psique e todas as possibilidades inconscientes; representa, portanto, um
auxílio à atitude consciente.
Ainda que no desenrolar da estória de Kamui essa figura pareça lhe desejar o mal e estar,
assim, contra ele, oferece sinais de que, na realidade, refere-se ao guia e condutor do curso a ser
navegado, a fim de que a jornada heroica de Kamui seja percorrida por completo e, para tanto,
faz-se necessário enfrentar perigos, obstruções exteriores e, ainda, a si mesmo. De modo similar,
para que o desenvolvimento psíquico continue a fluir, é fundamental que sejam transpostas
conjunturas pesarosas, bem como que a consciência possa reconhecer conteúdos inconscientes,
inclusive os penosos e de caráter inicialmente aversivo.
Acerca da saga do herói, Campbell (2000 [1990]) discorre:
Além disso, não precisamos correr sozinhos o risco da aventura, pois os heróis de todos os tempos a enfrentaram antes
de nós. O labirinto é conhecido em toda a sua extensão, e lá, onde temíamos encontrar algo abominável, encontraremos
um deus. E lá, onde esperávamos matar alguém, mataremos a nós mesmos. Onde imaginávamos viajar para longe,
iremos ter ao centro da nossa própria existência. E lá, onde pensávamos estar sós, estaremos na companhia do mundo
todo (p. 132).
A presença do ancião em A lenda de Kamui assegura que é possível vencer as batalhas iniciais
e prosseguir na jornada a ser trilhada, pois o curso apresenta-se a cada um e o germe para
percorrê-lo habita a todos.
Referências
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CAMPBELL, J. O poder do mito. São Paulo: Palas Athena, 2000 [1990].
______. O herói de mil faces. 11. ed. São Paulo: Cultrix, Pensamento: 2007 [1949].
HENDERSON, J. H. Os mitos antigos e o homem moderno. In: JUNG, C. G. (Org.). O homem e seus símbolos. 2. ed. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2008 [1964].
JUNG, C. G. Tipos psicológicos. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2011 [1971]. (Obras Completas – VI).
______. Símbolos da transformação. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 2011 [1973]. (Obras Completas – V).
______. Aion. 8. ed. Petrópolis: Vozes, 2011 [1976]a. (Obras Completas – IX/2).
______. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 2011 [1976]b. (Obras Completas – IX/1).
STEIN, M. Jung: o mapa da alma – uma introdução. 4. ed. São Paulo: Cultrix, 2005 [1998].
WHITMONT. A busca do símbolo: conceitos básicos de psicologia analítica. 6. ed. São Paulo: Cultrix, 2004 [1969].
31 Mestre e Doutora em Psicologia Clínica (Núcleo de Estudos Junguianos) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC-SP). Analista de Promotoria – Psicóloga junto ao Ministério Público do Estado de São Paulo. Contato:
<appvg@hotmail.com>.
32 Acerca do conceito de arquétipo: “[...] estamos tratando de tipos arcaicos – ou melhor – primordiais, isto é, de imagens
universais que existiram desde os tempos mais remotos” (JUNG, 2011 [1976]b, p. 13). Os arquétipos em si são irrepresentáveis e
destituídos de forma; ao utilizar o termo imagens, pode-se conceber que Jung referia-se às manifestações regidas por determinada
dinâmica arquetípica e sujeitas às influências sociais e culturais das quais emergem para se tornarem expressões exteriores e,
desse modo, serem acessadas pela consciência. Para fins de exemplificação, citam-se alguns arquétipos: materno, paterno, do
herói, da criança divina, da totalidade, do velho sábio.
33 Acerca do conceito de ego:[...] um complexo de representações que constitui para mim o centro de meu campo de consciência
e que me parece ter grande continuidade e identidade consigo mesmo [...] é tanto um conteúdo quanto uma condição da
consciência, pois um elemento psíquico me é consciente enquanto estiver relacionado com o complexo do eu (JUNG, 2011
[1971], p. 444, grifo do autor).
34 Acerca do conceito de sombra: O conteúdo e as qualidades específicas que contribuem para a formação dessa estrutura
interna, a sombra, são selecionados pelo processo de desenvolvimento do ego. O que a consciência do ego rejeita torna-se
sombra; o que ela positivamente aceita, aquilo com que se identifica e absorve em si, torna-se parte integrante de si mesma
(STEIN, 2005 [1998], p. 100). Por essa razão, a sombra costuma ser carregada de conteúdos indesejáveis ou, em termos
expressos por Jung, de “traços obscuros do caráter, isto é, das inferioridades do indivíduo” (2011 [1976]a, p. 20).
35 Acerca do conceito de anima: “[...] a anima representa o arquétipo do Yin no homem, o feminino que há dentro dele, o
animus representa a masculinidade da mulher, seu Yang” (WHITMONT, 2004 [1969], p. 165, grifo do autor). Portanto, esses
arquétipos assemelham-se a um outro que habita em cada um e, a fim de que o desenvolvimento continue a fluir, faz-se
necessário contatá-lo, conhecê-lo e, então, integrá-lo como parte de si mesmo.
Death Note: à sombra, um deus – Análise do personagem
Light Yagami
Anne Aguemi 36
Além disso, existe uma camada ainda mais profunda chamada de inconsciente coletivo, que é
desligada do inconsciente pessoal e totalmente universal. É nele que se encontram os arquétipos
ou imagens primordiais, “sedimentos de experiências constantemente revividas pela
humanidade” (JUNG, 2014a, p. 81). Por exemplo, no arquétipo da persona, independente da
cultura, há a imagem e a postura que assumimos para os outros – vide os diferentes papéis e
nomenclaturas existentes.
A persona seria o arquétipo das relações sociais. A palavra persona vem do teatro, sendo o
termo que denominava, originalmente, as máscaras que os atores utilizavam. Assim, a persona é
a imagem que construímos para nos relacionar com outros, necessária para estabelecer e manter
relações com os demais. É uma construção psicológica e social adotada para um fim específico,
relacionando-se com o desempenho de papéis na sociedade. Ela possui características do sujeito,
mas não deve ser confundida com o próprio, pois, como o nome sugere, é uma máscara, uma
fachada, um tipo de postura que assumimos para com os outros. Idealmente, ela deve ser flexível
e se adaptar a diferentes situações:
É um complexo funcional cuja tarefa consiste tanto em esconder quanto em revelar os pensamentos e sentimentos
conscientes de um indivíduo aos outros. [...] A sombra, um complexo funcional complementar, é uma espécie de
contra-pessoa. [...] pode ser pensada como uma subpersonalidade que quer o que a persona não permitirá (STEIN,
2006, p. 101).
Assim, Stein explica que “somos feitos de muitas atitudes e orientações potencialmente
divergentes, e estas podem facilmente cair em oposição recíproca e criar conflitos” (2006, p. 97),
como é o caso do eixo sombra-persona. Ambas são segmentos da psique coletiva, mas a persona
está mais atrelada ao consciente e ao exterior, ao passo que a sombra está mais ligada com o
inconsciente e o interior do sujeito. Enquanto a persona é a imagem que se quer demonstrar, a
sombra é o que se oculta, ou mesmo as características da personalidade que estão pouco
desenvolvidas.
Não obstante, a sombra consiste em omissões, atos impulsivos ou inadvertidos. Jung (2008)
diz que “antes se de ter tempo para pensar, irrompe a observação maldosa, comete-se a má ação,
a decisão errada é tomada, e confrontamo-nos com uma situação que não tencionávamos criar
conscientemente” (p. 223). Como consequência, a sombra está muito mais sujeita a contágios
coletivos do que a personalidade consciente, sendo mais suscetível a influências.
O homem que está só, por exemplo, encontra-se relativamente bem; assim que vê “os outros” comportarem-se de
maneira primitiva e maldosa, começa a ter medo de o considerarem tolo se não fizer o mesmo. Entrega-se então a
impulsos que na verdade não lhe pertencem (JUNG, 2008, p. 223).
Retomando a questão da balança, à medida que a persona fica mais rígida, a sombra se amplia,
dado que os conteúdos do interior da pessoa não são trabalhados e ela veste uma máscara da qual
não se desfaz. O sujeito se convence de que é a máscara, ou seja, acredita que é a imagem ideal
que criou. A balança que tende em demasia para um lado sofre a súbita inversão. A sombra,
então, tem sua vez.
O bom moço versus o assassino
Light sempre foi um estudante brilhante, obtendo o primeiro lugar nos exames e,
posteriormente, passando também em primeiro lugar no vestibular. Além disso, mostrava-se
como uma pessoa agradável, gentil e solícita. Sua persona é a do filho perfeito, o rapaz prodígio.
Seus ideais de justiça estão fortemente presentes, mas ele deixa transparecer o condizente com o
seu jeito “correto” de ser. A persona de “bom moço” de Light sofre apenas pequenas alterações
dependendo do contexto, mas sempre se apresenta de uma maneira favorável e positiva.
Entretanto, ao obter o caderno, essa persona é elevada a outro patamar: o bom moço passa a ser
um mero disfarce para o suposto deus que o personagem acredita ser.
Nesse sentido, Light começa a enrijecer sua persona e acredita ser realmente o deus que clama.
No entanto, como resultado, não percebe seus ideais de justiça se corrompendo da mesma forma
que suas ações; não se vê como errado por acreditar que os contrários ao “deus” é que estão
errados. A sombra, então, passa a tomar conta, há uma invasão dos conteúdos inconscientes.
Light não vê que se torna aquilo que mais repudiava. O suposto deus engole o humano, as
sombras tomam conta do que estava à luz, o inconsciente vem à tona com força: o assassino
subjuga o bom moço.
O nome Kira passa a representar um ideal que logo se estende para outros, ganhando força –
especialmente no âmbito virtual. Dessa forma, depreende-se o caráter de contágio coletivo da
sombra, fazendo com que várias outras pessoas sejam atingidas. O racional deixa de prevalecer,
dado que a figura do divino, do sobrenatural, do irracional e do impulsivo toma a frente; não por
acaso, no decorrer da história, surgem adoradores, religiosos e fanáticos por Kira.
No decorrer da história, Light enfatiza várias vezes o quanto é grato por ter encontrado o
Death Note e por ter se apropriado de seu poder. Entretanto, também é possível perceber que foi
se vendo cada vez mais tentado por ele, submergindo nas trevas – característica da sombra do
personagem, que fora consumindo-o.
A maçã é outro elemento muito presente na narrativa, dado que o shinigami é viciado na fruta
e até sofre de abstinência quando não pode comê-la – o que dá um colorido cômico à história.
Um fato curioso é que quem alimenta Ryuk com as maçãs é o próprio Light, o humano. Em um
referencial simbólico, segundo Chevalier (1995),
A maçã é usada como símbolo em vários sentidos aparentemente diferentes, no entanto, próximos; estes são: a maçã da
discórdia, atribuída à Paris; as maçãs douradas do jardim das Hespérides, que são frutos da imortalidade; a maçã
consumida por Adão e Eva e a maçã do Cântico dos Cânticos, que, segundo ensina Orígenes, representa a fertilidade
do Verbo divino, o seu conhecimento e sua presença. Trata-se, pois, em todas as circunstâncias, de um meio de
conhecimento, mas é também tanto fruto da árvore da vida quanto da árvore do conhecimento do bem e do mal:
conhecimento unitivo que confere imortalidade, ou conhecimento diferenciado que provoca a queda (p. 688).
Não obstante, em um paralelo com a narrativa bíblica do Genesis, a cobra oferece um saber
além do que Adão poderia ter, e, após aceitar, ele abre mão do direito ao Paraíso. Assim, Ryuk
oferece um poder sobre-humano para Light, o fruto proibido e, como Neto (2013) afirma,
“apoderar-se da maçã implica em saber, transgredir a Luz e descer na escuridão” (p. 101, grifo
do autor). Isso se reflete no fato de Light deixar de ser Light –“luz”, em inglês – e passar a se
identificar como Kira – killer, “assassino” –, o deus do novo mundo que pretende criar.
Como na situação que o próprio Light descreve, ele demonstra ter consciência do que as
pessoas diriam no senso comum e dos ideais que sustentam a sociedade. Contudo, também
mostra que todos têm um outro lado, no qual não admitiriam seus pensamentos ocultos. Nesse
sentido, vale retomar a discussão de sombra e persona. Light sabe que, para manter as
aparências, uma imagem condizente com o esperado se faz necessária, mas também existem
aqueles conteúdos que não são revelados – desejos, crenças e anseios são guardados, ou sequer
se tem consciência deles. O Death Note possibilita a Light um maior contato com tais conteúdos;
todavia, à medida que eles vêm à tona com tamanha intensidade, ele passa a ser consumido por
sua sombra.
Referências
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COOLS, V. The phenomenology of contemporary mainstream manga. Image & Narrative, v. 12, n. 1, p. 63-82, 2011.
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NETO, G. F. S. Correntes, maçãs e shinigamis. In: TURCHI, M. Z.; NENOKI, E. K. N.; STRÔNGOLI, M. T. Q. G. O
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WIKIA, Deathnotefanon. Light’s Reincarnation Theory. Disponível em:
<http://deathnotefanon.wikia.com/wiki/Light’s_Reincarnation_Theory>. Acesso em: 14. ago. 2016.
36 Graduanda em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e aluna de japonês da Aliança
Cultural Brasil-Japão. Fã de animes, mangás e da cultura oriental desde que se entende por gente. Contato:
<anne.aguemi@outlook.com>. Agradecimentos especiais à professora Ivelise Fortim, que me convidou para fazer parte deste
projeto incrível.
Sakura Card Captors: um olhar sob a luz da teoria
junguiana
Katia Regina Oushiro 37
Introdução
KINOMOTO É UMA GAROTA DE 10 ANOS DE IDADE QUE ESTUDA NA ESCOLA FICTÍCIA DE
S
AKURA
Tomoeda, no Japão. Suas matérias preferidas são Educação Física e Música, mas detesta
Matemática. Sakura mora com seu irmão, Touya Kinomoto, seis anos mais velho, e com seu
pai, Fujitaka Kinomoto, que é professor universitário. Sua mãe, Nadeshiko, morreu quando
Sakura tinha apenas 3 anos e aparece durante a série em forma de memórias e espírito.
A melhor amiga de Sakura é Tomoyo Daidouji, uma garota que também tem 10 anos e que
adora costurar fantasias para Sakura e filmá-la durante suas aventuras. Além disso, ela é a única
que sabe da atração de Sakura por Yukito Tsukishiro, melhor amigo de Touya.
Kerberos, 40 o Psicopompo
Durante a captura das Cartas Clow, Sakura sempre tem a ajuda do Guardião das Cartas,
Kerberos, de Yukito e de Shoran, que a princípio parece ser seu rival, mas acaba por auxiliá-la ao
longo da jornada.
O psicopompo é entendido como aquele que guia e conduz, que revela símbolos e é orientador
(MOURÃO, 2014). Para a psicologia, portanto, é o elemento que auxilia o ego a se conectar com
o inconsciente, assim como Kerberos, Yukito e Shoran iluminam as ideias e percepções de
Sakura em relação às cartas.
A figura do psicopompo mais conhecida é a de Hermes, e Jung foi a primeira pessoa a
introduzir o estudo deste deus na psicoterapia (LOPEZ-PEDRASA, 1999). Hermes é o deus
grego do comércio, das encruzilhadas, mensageiro dos deuses e senhor dos caminhos e,
portanto, podemos dizer que este deus, Hermes, “Senhor das Estradas”, como veio a ser conhecido, também demarca
nossos trajetos e limites psicológicos, assinala o perímetro de nossas fronteiras psicológicas e estabelece o território a
partir do qual, em nossa psique, tem início o desconhecido, o estrangeiro (LOPEZ-PEDRASA, 1999, p. 15).
Os atributos desse deus são as sandálias aladas, um chapéu redondo (pétaso) e um caduceu
(BAPTISTA, 2010). Se formos analisar os elementos que aparecem na saga de Sakura, seu
báculo está muito próximo ao caduceu de Hermes (ambos são alados), assim como Kerberus, que
é uma figura com asas e está sempre próximo à heroína.
Se pensarmos especificamente em Kero, ele é um ser travesso, generoso, companheiro e muito
amigo, além de ser sábio. Estas são, também, características do deus grego, que, além disso,
também é responsável por estimular a inventividade e a criatividade, assim como o companheiro
de Sakura: ele raramente dá respostas prontas à garota – em geral, oferece dicas que fazem com
que a personagem possa, criativamente, chegar a uma resposta de captura às cartas.
Tal como Hermes, Kero é responsável por auxiliar a personagem principal a se transformar, a
ir em busca de algo mais, a encontrar seu caminho pessoal. Em outras palavras, Hermes é
responsável por nos conduzir em nosso processo de individuação. É ele quem nos ajuda a
conectar a consciência do inconsciente e encontrar caminhos em nossa profundidade psíquica.
O nome de Hermes em romano é Mercúrio, nome também de um dos elementos principais na
alquimia. Mercúrio é responsável pelas transformações e é o que mantém o processo ativo, em
movimento. Pensando na saga analisada, Sakura dificilmente conseguiria seguir sua jornada sem
a presença de Kero, que a encoraja a seguir em frente e ativa sua criatividade.
A transformação de Kero também é visível durante a jornada – tanto que, no final, sua
aparência já não é mais a de um ursinho de pelúcia, mas sim a de um animal grande, com asas
enormes e imponentes. Assim como auxilia Sakura a se transformar e achar seu caminho,
Kerberos também possui essa característica em si próprio. Como Hermes, que em sua história
impôs a si mesmo este desafio e estimula pessoas sob sua regência a se transformarem.
Como disse Baptista (2010), Hermes, “do ponto de vista psíquico, é expressão do substrato da
individuação. É ele quem nos põe no nosso caminho individual para que possamos ser aquilo a
que viemos. Faz brotar a semente de quem somos” (p. 266).
Kerberos é a figura do psicopompo na saga de Sakura, e é quem auxilia que a heroína se torne
ela mesma. Nós, espectadores, também estamos nessa jornada de individuação, desenvolvendo
nossos potenciais e nos adaptando aos mundos interno e externo, transformando-nos sob a
regência de Hermes.
Referências
BAPTISTA, S. M. S. Hermes. In: ALVARENGA, M. Z. (Org.). Mitologia simbólica. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2010. p.
251-268.
BRANDÃO, J. S. Mitologia grega. Petrópolis: Vozes, 1986.
JUNG, C. G. O eu e o inconsciente. 24. ed. Petrópolis: Vozes, 2012 [1971].
LOPEZ-PEDRASA, R. Hermes e seus filhos. São Paulo: Paulus, 1999.
MOURÃO, H. R. Hermes: o Psicopompo. 2014. Disponível em: <http://cafecomjung.blogspot.com.br/2014/05/hermes-o-
psicopompo.html>. Acesso em: 20 mar. 2016.
PROJETO SAKURA. Disponível em: <http://projetosakura.net/>. Acesso em: 5 mar. 2016.
STEIN, M. O mapa da alma: uma introdução. São Paulo: Cultrix, 2000.
WHITMONT, E. C. A busca do símbolo: conceitos básicos de psicologia analítica. 4. ed. São Paulo: Cultrix, 2000.
38 Cada carta possui um nome, uma forma humana ou animal, temperamento e poderes específicos. De acordo com Kerberus,
Guardião das Cartas, cada uma delas “tem vida própria e poderes surpreendentes” (episódio 1).
39 Palavra de origem inglesa usada como gíria para designar alguém por quem se tem atração ou paixão.
40 Kerberos, em grego antigo, traduzido para o latim como Cérberus. Na mitologia grega, é um cão representado ora com três
cabeças, ora com cinquenta. É guardião do Submundo, permitindo às almas que passassem, mas impedindo-as de saírem
(BRANDÃO, 1986).
A Princesa e o Cavaleiro
Antonio Carlos dos Santos Gomes 41
Luna Gimenez 42
Katia Oushiro 43
Intersexual
Safiri é uma menina que possui um coração azul e um rosa e, devido a questões políticas, é
criada e anunciada ao povo como um menino. Uma maneira possível de interpretar o simbolismo
dos corações de dois sexos coexistirem em Safiri é o chamado interssexual, que, de acordo com
Pino (2007), é um termo para “designar pessoas que nascem com corpos que não se encaixam
naquilo que entendemos por corpos masculinos ou femininos” (p. 153).
O intersex, portanto, não se encontra nas definições binárias de sexo (homem ou mulher) e não
se encerra em um corpo único. São “indivíduos que nascem com corpos diferenciados” (PINO,
2007, p. 159).
Em geral, possuem genitálias “ambíguas” ou “indefinidas”, o que pode ser entendido como a
representação dos dois corações que Safiri possui ao nascer na Terra. Por uma decisão social, “os
médicos são orientados a manter os sinais e as funções corporais socialmente destinadas a cada
sexo” (PINO, 2007, p. 157) –, ou seja, manter o que é “de homem” nos homens e o que é “de
mulher” nas mulheres. Ching ter de recuperar o coração azul pode ser uma expressão de
designação de sexo a Safiri, ou seja, atribui a ela o sexo feminino.
Há, ainda, uma expectativa de que o sexo designado e o gênero deverão estar em
concordância, ou seja, foi designado que Safiri fosse um menino para manter e proteger o reino,
uma vez que o Reino de Prata exige que apenas homens assumam a posição de governantes, e
espera-se que ela se desenvolva e se comporte como um príncipe, ainda que seja mulher.
Não só o comportamento deve ser de acordo com o sexo designado, como também a
sexualidade. Pino (2007) diz que “nos casos de indivíduos intersex, a definição do corpo é
fundamental não só para a atribuição do gênero, mas também para o desenvolvimento ‘normal’,
leia-se heterossexual, da sexualidade” (p. 158).
Transgênero
Também chamado pela psiquiatria de disforia de gênero, essa situação se refere a sujeitos que
sentem que nasceram no corpo errado. Muitos destes indivíduos, depois, procuram cirurgias para
chegar àquilo que se sentem, homem ou mulher, tornando-se, assim, as chamadas pessoas
transgênero.
Sob outro ponto de vista, o animangá levanta o tema transgênero, pois a personagem se
identifica como uma mulher, mas ao nascer foi designada como homem. O enredo mostra de
forma interessante os conflitos que permeiam a trajetória de um indivíduo que se identifica com
um gênero específico, mas precisa se mostrar diante da sociedade de outra forma.
Heterossexual
Outra possibilidade, ainda, seria entender que Safiri é uma mulher heterossexual, uma vez que
tende a relacionar-se amorosa e sexualmente com pessoas do sexo oposto (no caso, com o
príncipe Franz Charming, por quem se apaixonou, mas para quem não pode revelar sua
identidade).
O fato de a princesa ter um coração de homem pode ser entendido, simbolicamente, como uma
psique que possui uma boa integração dos princípios masculinos com os femininos, embora no
início da trajetória esses opostos complementares apresentem-se de forma bastante conflituosa.
Ou seja, inicialmente, parecia existir um conflito acerca de como a personagem deve se
apresentar para o mundo. Ela possui uma psique de mulher, mas precisa se apresentar como
homem.
Podemos pensar que, ao longo da trajetória, a personagem consegue integrar de forma positiva
esses dois princípios, já que tanto os aspectos femininos quanto os masculinos passaram a ser
experienciados por ela de forma funcional e saudável.
Considerações
De maneira geral, o conteúdo desta história é muito propício para se discutir o tema gênero
sob diversos aspectos, pois traz à tona o que é princípio do masculino (e, consequentemente, o
quanto a mulher pode estar apropriada destas características) e do feminino em um mesmo
corpo; como pode ocorrer a dinâmica entre estes opostos na psique, além da discussão do papel
social ligado ao gênero – no caso de Safiri, poder ou não exercer determinadas funções na
sociedade.
Ainda que se tenha feito uma breve relação entre questões de gênero e sexualidade com a
personagem do animangá, não é possível fechá-la totalmente em uma definição, uma vez que
esse debate vem sofrendo diversas transformações à medida que a sociedade passa a aceitar
melhor a diversidade, além de transcender a estrutura binária do pensamento atual.
Referências
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PINO, N. P. A Teoria queer e os intersex: experiências invisíveis de corpos des-feitos. Cadernos Pagu, Campinas, n. 28, p. 149-
174, jan.-jun. 2007. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/cpa/n28/08.pdf>. Acesso em: 3 de nov. 2016.
41 Formado em Jornalismo pela UNINOVE, tem Pós-Graduação em Gestão Financeira pela ESPM. Nerd assumido e parceiro da
Homo Ludens na publicação de títulos voltados para o público geek e nerd.
42 Graduada em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e Mestranda em Psicologia Clínica:
Núcleo de Estudos Junguianos (PUC-SP). Contato: <lpgimenez5@gmail.com>.
MA NÃO TÃO MENINA, NÃO TÃO MULHER, EM BUSCA DE SI E DE SEU LUGAR NO MUNDO É O QUE O FILME
U Kiki’s Delivery Service (Majo no takkyûbin) propõe. O que Kiki procura entregar aos
personagens e a nós, espectadores, é a constante busca por sentido e transformações na vida
humana.
Kiki, apenas uma bruxinha no início do filme, deixa a cidade de seus pais no seu aniversário
de 13 anos. Ao completarem essa idade, todas as bruxas devem procurar uma nova cidade para
viver – uma que ainda não tenha uma bruxa residente. Percebe-se aqui um ritual de passagem
que indica o fim da infância e o início de uma vida mais adulta, marcada pela busca por um lugar
no mundo.
A adolescência, fase que Kiki vivencia, é um período marcante na vida dos seres humanos –
período este que se encaixa no processo de individuação, fundamental dentro da psicologia
analítica, caracterizado pela jornada trilhada durante a vida de uma pessoa para que ela se torne
quem é. Este processo inicia-se logo que nascemos e nos acompanha até a morte.
Por individuar entende-se ser quem se é em suas singularidades, inserido no meio coletivo em
que reside. Desse modo, a pessoa segue seu caminho, desenvolvendo-se tanto em suas
particularidades quanto em meio à influência da sociedade em que vive. Nas palavras de Jung:
A individuação significa precisamente a realização melhor e mais completa das qualidades coletivas do ser humano; é
a consideração adequada e não o esquecimento das peculiaridades individuais, o fator determinante de um melhor
rendimento social (JUNG, (2012 [1971]), p. 63).
Para realizar a si mesma, Kiki não pode abandonar sua bagagem formadora – sua história
como filha e como bruxa –, mas deve conciliar seu passado com sua nova imagem de
trabalhadora, em uma cidade diferente, longe da casa de seus pais. É saber dialogar diferentes
partes de si, procurando tornar-se cada vez mais inteira.
Precisamos analisar o que acontece no período de transição que Kiki está vivendo como
adolescente e como este momento se diferencia da infância antes de prosseguirmos na análise.
Inicialmente, o bebê vive bastante indiferenciado de seu meio, sem muito saber quem é ele
mesmo e quem é o outro, o que faz ou não faz parte dele. De fato, um bebê é extremamente
dependente de seu pais, especialmente de sua mãe, com a qual vive uma participação mística.
Esta participação pode ser entendida como a dificuldade que o bebê tem de se diferenciar de sua
mãe, sem entender os limites de sua psique e de seu corpo, crendo que ele mesmo seja parte dela
(STEIN, 2006).
Os anos se passam e o bebê torna-se criança. Esta, cada vez mais, consegue viver uma
diferenciação. Agora possui um ego, um eixo central para sua consciência. É o início da
formação de sua personalidade – personalidade esta ainda muito influenciada pelos valores e
posicionamentos de seus progenitores. Inicia-se, também, um reconhecimento de certas
características – ou seja, características conscientes – e o depósito de outras, negadas, no
inconsciente.
Na infância, os pais são tidos como grandes modelos, receptores de projeções de imagens de
onipotência, bem como são as pessoas com as quais as crianças têm maior identificação. Desse
modo, a criança enxerga sua mãe e seu pai como os detentores da verdade: suas palavras são
inquestionáveis e suas atitudes, sempre heroicas.
Na adolescência, por outro lado, os jovens procuram por novos referenciais “fora de casa”:
professores, amigos ou ídolos platônicos. É o primeiro momento de cisão com o que foi sempre
conhecido e tido como certo: marca o início de uma busca por opiniões próprias, revelando,
também, um período de adaptação ao mundo externo. Segundo Neves,
A aquisição da identidade está relacionada a um processo de identificações no qual a pessoa repudia alguns modelos e
absorve outros. O processo intensifica-se na adolescência, quando o indivíduo reconhece a si mesmo com passado e
futuro. O adolescente busca a sua identidade sexual, ocupacional e ideológica (NEVES, 2010, p. 138).
Kiki inicia esse processo de busca por nova identidade saindo da casa de seus pais – não
apenas simbolicamente, mas concretamente.
O modo como Kiki procura essa cidade é por meio do voo sobre sua vassoura. É interessante
ressaltar o simbolismo do voo: uma possível expressão do desejo de sublimar algo, de estar
acima, de buscar harmonia diante de uma situação (CHEVALIER; GHEERBRANDT, 1996
[1969]).
Outro simbolismo intrigante é seu companheiro de viagem, o gato preto Jiji. Os gatos são
reconhecidos como seres igualmente maus e bons: segundo lendas japonesas, os felinos matavam
mulheres para assumir seus corpos; já no Egito, os gatos eram tidos como servos do mundo
inferior, representando imagens de força e agilidade, auxiliando aqueles que pedissem por
solução de conflitos internos (CHEVALIER; GHEERBRANDT, 1996 [1969]). Jiji, de fato,
apresenta ambos os lados ao longo da história de Kiki, como veremos no decorrer da análise.
Ao chegar à cidade que escolhe como sua, Kiki procura por uma função. Logo para em uma
padaria, cuja dona, Osono, oferece-lhe um emprego de entregadora. Ela permite, também, que a
garota durma em um quarto vago do estabelecimento.
Viver e crescer é um processo necessário. Ao longo da vida, é importante que se tenha
imagens e pessoas que auxiliem neste processo. Assim, a dona da padaria representa um papel
elementar na história: trata-se de uma mulher mais velha e de uma figura que oscila entre o
materno e a autoridade profissional. É uma imagem futura de Kiki, que ainda será adulta,
trabalhadora e mãe. É, portanto, uma presença positiva na vida da menina, não só por lhe
oferecer acolhimento e sustento, mas também por representar uma realidade que Kiki ainda irá
viver. É uma imagem que ela pode guardar para si e na qual poderá se espelhar.
O serviço de entregas de Kiki não se restringe a produtos da padaria, mas também a outros
pedidos dos cidadãos que descobrem seu trabalho. Aliás, Kiki entrega não somente objetos, mas
permite conexões entre as pessoas, trocas e possibilidades de relacionamento. A entrega mais
marcante, inclusive é a de um presente de aniversário.
Kiki leva para uma cliente um presente de sua avó: um gatinho preto e uma torta. É nessa
entrega que a bruxinha tem seu primeiro confronto com os corvos, cujo simbolismo será
comentado adiante. Há uma confusão no momento da entrega: enquanto voa, Kiki atrapalha-se
em meio a uma ventania e acaba sendo atingida por esses pássaros, derrubando o presente que
carregava no meio da floresta. Seu fiel parceiro, Jiji, tenta ajudar, fingindo ser o gato de
brinquedo que deveria ser entregue, enquanto Kiki procura o brinquedo na floresta para que
possam fazer a troca. Nesse momento, Jiji representa o lado positivo do felino. Os corvos levam
o brinquedo para a artista Ursula, personagem que tem importância na história e que será citada
posteriormente.
Depois dessa entrega, Kiki adoece e perde a possibilidade de se encontrar com Tombo, um
garoto que conhecera na cidade. Ela ainda está incerta sobre seus sentimentos, mas Tombo está
encantado com a bruxinha e suas habilidades voadoras, já que ele mesmo nutre a vontade de
voar.
Após o incidente com os corvos, a vida de Kiki começa a declinar: ela não consegue recuperar
sua energia e seus poderes e deixa de conseguir voar; evita Tombo por ter dúvidas em relação a
ele, já que desgosta de seus amigos e, muitas vezes, sente-se invadida por sua personalidade
expansiva; além disso, Jiji encontra uma namorada e não conversa mais com Kiki – a relação
entre eles torna-se negativa.
Os impasses desse momento da história refletem bem a adolescência: viver a juventude é se
separar do paraíso da infância. Procurar se reconhecer em suas opiniões e valores traz
independência, mas também o preço da solidão. Reconhecer-se a si mesmo é um paradoxo: há o
lado positivo de se encontrar, mas há também o lado negativo de perceber que existe nisso muito
sofrimento. Tornam-se frequentes, portanto, os sentimentos de medo e desamparo tão presentes
em Kiki naquele momento (NEVES, 2010).
Kiki recebe a visita de Ursula, a artista, que a leva para passar um tempo na floresta rodeada
por corvos. Neste momento, precisamos analisar duas imagens: a da jovem adulta, Ursula, e a
dos corvos.
À semelhança da dona da padaria, Osono, Ursula também é uma imagem do feminino na qual
Kiki se espelha nessa jornada de autoconhecimento: já um pouco mais velha e independente,
Ursula mora num recanto próprio na floresta, vivendo para sua arte, algo que lhe representa e lhe
dá sentido. A criatividade presente na vida de Ursula é o que Kiki busca naquele momento da
narrativa: quando estamos vivendo um conflito e nos sentimos estagnados, algo novo deve surgir
ou uma nova atitude deve ser tomada. Em ambos os casos, são necessárias a flexibilidade e a
criatividade da pessoa para poder mudar o rumo de sua história.
Ao passar tempo com a nova amiga, Kiki pode se aproximar deste mundo criativo tão cuidado
por Ursula e refletir sobre seus sentimentos e vontades, procurando um novo sentido para sua
vida. É interessante, também, notar que esse momento é vivido em meio à natureza, uma imagem
de enorme poder de nascimento e transformação. Ao considerarmos que toda vida se inicia e
termina na mãe natureza – em Gaia, nossa primeira grande mãe –, entendemos que Kiki teve de
entrar em contato com novos potenciais vindos da floresta e, consequentemente, renascer. Foi a
vivência de um novo cultivo e de uma nova colheita.
Os corvos que fazem companhia a Ursula na floresta e, naquele momento, para Kiki, são
símbolos aos quais devemos nos atentar: enquanto no mundo ocidental são tidos como mau
presságio (visão decorrente do mundo europeu), na Ásia essas aves são vistas como mensageiras
do divino. Na alquimia, o corvo é associado ao estágio de putrefação, ou seja, representa uma
matéria que já não está em bom estado e que deve ser decomposta e transformada em algo novo
(CHEVALIER; GHEERBRANDT, 1996 [1969]). Do ponto de vista simbólico, os corvos podem
representar a solidão, bem como a necessidade de o indivíduo entrar em contato consigo mesmo
para que consiga se transformar e se conhecer em novo nível. Também é interessante apontar que
para os suetônios o grito da ave, algo que entendiam como um “cras, cras!”, significava
“amanhã, amanhã!”. Assim, para esse povo, o corvo era entendido como transmissor de algo
novo, um símbolo de esperança (CHEVALIER; GHEERBRANDT, 1996 [1969]).
A presença desse tipo de ave, portanto, encaixa-se muito bem para Kiki: no seu primeiro
encontro com essas criaturas, é derrubada; quando as encontra novamente na cabana de Ursula,
sente apreensão; mas, após um tempo de convivência, Kiki passa a respeitá-las, e vice-versa,
criando um bom convívio. Isso também acontece conosco em momentos de introspecção: a
princípio, refletir a respeito de nós mesmos e de nossas escolhas pode parecer amedrontador e
desconfortável, mas é um exercício a ser realizado para melhor nos conhecermos e nos
completarmos. É este o momento que nossa protagonista vive aqui.
Logo após a temporada na floresta, Kiki é convidada para a casa de Madame, senhora para
quem fez uma entrega no início do filme. É uma personagem feminina mais sábia e mais idosa,
outro momento do processo de Kiki, num futuro mais distante. Dentro da psicologia analítica, a
imagem de uma mulher de idade é associada à sabedoria, sendo uma figura muito presente na
mitologia e nos contos de fada. São representações que, justamente por sua vasta experiência,
apresentam perspicácia, expansividade, paz e capacidade de premonição de excelente qualidade
(ESTÉS, 2007).
Uma menina no início de sua jornada, como Kiki, também guarda uma parcela de sabedoria
interior. Contudo, a inexperiência frente às adversidades da vida ainda pode paralisá-la, como de
fato acontece no filme – e não só nessa história, mas em diversos contos e mesmo na vida real.
Aqui, mostra-se a importância do auxílio de uma mulher mais velha, com mais experiência, que
pode dividir reflexões de uma pessoa já vivida. Diante de dúvidas a respeito de si mesma e de
sua capacidade como bruxa e como pessoa, Kiki passa por um momento de angústia e desânimo,
mas Madame auxilia a garota nesse momento, convidando-a para ir até sua casa e preparar uma
torta a ser entregue. A senhora do filme poderia ser entendida, segundo Estés (2007), como uma
curandeira, avó querida, perspicaz e amorosa, que compartilha emoções e alimentos, pois
prepara algo para ser repartido e comido. Convidando alguém para preparar um alimento, ou até
mesmo para dele se alimentar, auxilia na digestão de sentimentos negativos e inicia um
preenchimento interior com amor e aconchego.
É na casa desta anciã que Kiki dá continuidade ao seu reparo psíquico – reparo necessário, já
que logo nos deparamos com o clímax do filme: por meio de um noticiário, as mulheres ficam
sabendo de um acidente de dirigível na cidade, que faz com que várias pessoas corram risco de
vida. A situação fica ainda pior quando Kiki descobre que Trombo está no local do acidente,
tentando ajudar as pessoas e, ao mesmo tempo, correndo perigo.
Kiki assumirá novamente o poder de voar e salvará não somente Tombo – permitindo, então,
um reatamento com o menino e com sua própria imagem do masculino –, mas a si mesma,
encontrando um novo sentido para seu voo e para sua vida. Nos momentos de grande impacto é
que mais investimos nossa energia: são deles que decorrem mudanças em nós e em nosso
entorno. Salvar as pessoas valendo-se de seu voo, algo tão próprio da bruxa Kiki, torna possível
colocar sua marca no mundo, colocar parte dela mesma no que faz e nos outros. É imprimir para
si mesma quem ela se tornou a partir do que aprendeu, ficando conhecida por isso na cidade que
escolheu para viver.
Acompanhamos durante o filme o processo de autodescoberta de si mesma por parte de Kiki
como pessoa, como bruxa e até mesmo como jovem mulher. Vivemos junto dela a conquista por
um lugar na cidade: fazendo uso de suas habilidades de bruxa, Kiki consegue não só realizar seu
trabalho de entrega, mas também entrega parte de si para o lugar, fazendo-se útil e heroica para a
população, bem como para ela mesma.
Presenciamos, também, sua experiência com uma imagem do masculino ao relacionar-se com
Tombo, sendo isso os conflitos e prazeres do início de um relacionamento amoroso.
Outra experiência importante são as imagens do feminino que acodem Kiki em momentos
difíceis: passamos pela imagem materna de Osono quando Kiki precisou de acolhimento; pela
jovem-adulta criativa, Ursula, seu futuro mais próximo, quando precisou se renovar; e pela
imagem da velha sábia, Madame, que lhe deu novo impulso e sabedoria para seguir em frente.
Por meio de seu serviço de entregas, Kiki descobre muito mais que sua utilidade como bruxa
na cidade que escolheu: inicia um caminho para a descoberta de si mesma. O ir e vir e o recolher
e entregar representam muito do nosso movimento interno. Podemos entender isso à luz da
psicologia analítica como a construção de um símbolo e a transformação do indivíduo por meio
deste. Todo símbolo tem uma parte consciente, que ressoa em nossas vidas, e uma parte
encoberta, inconsciente, que nos é intrigante e misteriosa. Esses aspectos precisam dialogar para
que novas forças sejam descobertas e para que novos símbolos e sentidos sejam criados. É um
constante fluxo de energia circulando entre opostos, procurando um maior equilíbrio e união.
Isso se encaixa perfeitamente no trabalho de nossa protagonista.
Entregar é o serviço de Kiki: leva algo em suas mãos, em sua posse, para um lugar novo,
desconhecido. Ao entregar o que lhe foi proposto no lugar determinado, realiza uma tarefa, pois
conecta uma pessoa à outra. Faz papel de mensageira, mas também de unificadora de relações, já
que estabelece vínculos tanto para os indivíduos para quem está trabalhando quanto para ela
mesma, uma vez que, nas entregas, descobre novas pessoas com quem pode se relacionar e
aprender.
Toda essa situação é, por si só, simbólica – no sentido do adjetivo e no sentido funcional: leva
uma parte do que conhece consigo para um lugar desconhecido, tendo como resultado uma nova
conexão. Aqui, temos uma metáfora viva de um símbolo! Por meio de seu trabalho, Kiki se
entrega a si mesma, pois as pessoas com quem entra em contato auxiliam nos seus diálogos
internos e na afirmação de quem ela é como pessoa naquele instante.
Aos 13 anos, Kiki ainda tem muito a descobrir e a entregar, mas o mais importante é que ela
inicia um contato com seus mundos interno e externo, com suas fraquezas e forças, com quem
ela é e com quem poderá ser.
Referências
CHEVALIER, J; GHEERBRANDT, A. Dictionary of Symbols. Londres: Penguin Books, 1996 [1969].
ESTÉS, C. P. A ciranda das mulheres sábias: ser jovem enquanto velha, ser velha enquanto jovem. Rio de Janeiro: Rocco,
2007.
JUNG, C. G. O eu e o inconsciente. Petrópolis: Vozes, 2012 [1971].
NEVES, S. R. Identidade na adolescência: análise do livro Clarissa. Cadernos Junguianos, São Paulo, v. 6, p. 135-153, 2010.
STEIN, M. Jung: o mapa da alma. São Paulo: Cultrix, 2006.
44 Kiki’s Delivery Service. Direção: Hayao Miyazaki. Produção: Hayao Miyazaki. Japão: Studio Ghibli, 1989.
45 Graduada em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e Mestranda em Psicologia Clínica:
Núcleo de Estudos Junguianos (PUC-SP). Atua em consultório particular. Contato: <crislembo@hotmail.com>.
A viagem de Chihiro: a jornada do feminino em busca de
seu amadurecimento
Naomi Feldman 46
Flavia Arantes Hime 47
HIHIRO É UMA MENINA JOVEM, VIVENDO O PERÍODO DE TRANSIÇÃO DA ADOLESCÊNCIA. FOI OBRIGADA
C por seus pais a deixar para trás tudo o que lhe era familiar – amigos, casa, escola e rotina –
para se mudar para um lugar que não lhe parecia muito agradável. Durante a viagem, seu pai
acaba se perdendo no meio da floresta, fazendo com que eles entrem por um túnel e encontrem
um parque temático abandonado. É assim que se inicia o filme A viagem de Chihiro (Spirited
Away, em inglês, ou Sen to Chihiro no Kamikakushi, em japonês), 48 de autoria de Hayao
Miyazaki, que é objeto deste texto.
Este capítulo consiste em alguns recortes de meu trabalho de conclusão de curso. Teve como
inspiração o mito de Lilith: a história da primeira mulher de Adão, antes de Eva, que acaba sendo
demonizada por não aceitar se submeter ao homem. Esse mito reafirma a necessidade da
valorização do feminino dentro de cada mulher e de cada homem. Com a influência do trabalho
de Clarissa Estés e da psicologia analítica, esse filme serve como o objeto a partir do qual a
análise dos símbolos pode auxiliar na retomada desse feminino profundo, especialmente na
mulher.
A aventura que Chihiro inicia tem como desafio o processo de individuação. Para Jung, a
individuação trata do desenvolvimento psicológico; todo indivíduo tem um impulso natural de se
mover em direção a uma unidade, a uma integração; tem o potencial de tornar-se si mesmo, de
ser quem ele é em sua totalidade (STEIN, 2006). Dessa maneira, ela começa uma jornada em
busca de si mesma, de seu amadurecimento.
Outro conceito importante da psicologia analítica é o arquétipo, que vem do grego arché
(“começo”) e typo (“modelo”), significando o modelo ideal ou o primeiro modelo de alguma
coisa. Esses modelos inatos servem de matriz para o desenvolvimento psíquico. O arquétipo é a
fonte primária de energia e padronização psíquica, é a fonte essencial dos símbolos psíquicos e
pode ser compreendido como uma energia psíquica que se manifesta por meio de imagens.
Dessa forma, dois arquétipos servirão como lente para a compreensão desta obra: o do herói e
o da mulher selvagem.
O arquétipo do herói envolve a força interior que todos possuímos como algo a ser descoberto;
está ligado ao ego, associado à capacidade de superar desafios em momentos difíceis – sendo,
assim, extremamente ligado à adolescência por esta ser uma fase em que a quebra de barreiras e
paradigmas é recorrente. É na puberdade e na adolescência que o caminho se direciona ao
amadurecimento e ao fortalecimento do ego. Campbell (2007) desenvolve a ideia de que o
caminho padrão percorrido por um herói, tanto em um mito como em um conto de fadas,
resume-se na passagem separação-iniciação-retorno. Como este filme tem uma heroína, escolhi
me basear na obra de Del Picchia e Balieiro (2010), na qual as autoras, apoiadas em Campbell,
construíram um processo pelo qual passa a heroína – ou melhor, pelo qual as mulheres passam
diversas vezes em suas vidas.
Já o arquétipo da mulher selvagem se refere ao lado instintivo da mulher. O selvagem é o
ponto em comum com a natureza que todo ser possui. A ordem da natureza se traduz em uma
organização do ser e de sua consciência. Estar em contato com esse lado é muito importante para
a mulher, pois é regida por ele. O problema surge diante da negação do selvagem e da
desvalorização do espaço da natureza instintiva feminina.
Chihiro inicia sua jornada de amadurecimento como heroína de sua própria história e como
menina que quer se tornar mulher e poder entrar em contato com a mulher selvagem que existe
dentro de si. Para isso, terá que superar seus medos e diversos obstáculos. Ela começa como
alguém de quem foi retirado tudo o que conhecia, o que a colocou em um estado de rejeição
diante do que acontecia naquele momento.
Na cultura japonesa, a floresta está vinculada à ideia de santuário natural, sugerindo algo
sagrado que deve ser cuidado e reverenciado. Ao mesmo tempo, simboliza aqui o vasto
inconsciente, por suas raízes profundas e por despertar o medo do desconhecido. A entrada de
Chihiro na floresta seria o passo inicial para olhar para si mesma, sua primeira abertura para os
conteúdos de sua psique profunda. O túnel é como uma via de comunicação escura; não se sabe o
que haverá do outro lado, e também se assemelha à matriz, à vagina, pela qual se inicia a vida de
uma criança. Essas duas imagens juntas simbolizariam Chihiro adentrando seu inconsciente,
como um rito de iniciação.
No parque abandonado, seus pais se deparam com uma bancada repleta de comidas e se
sentem à vontade para se servir sem pedir autorização. O instinto da fome precisava ser saciado
sem outras considerações, com voracidade e satisfação. A menina sente que esta é uma decisão
ruim; algo lhe diz que não deveriam estar ali e que não deveriam pegar aquela comida, o que
simboliza sua inquietação diante do desconhecido. No chamado à aventura, ela está vivendo sua
recusa inicial.
Enquanto seus pais devoram a comida, Chihiro começa a caminhar pelo lugar e vê um
menino, Haku. Ao anoitecer, o ambiente muda completamente. O esmorecimento da luz reforça
a ideia de que ela caminha mais e mais em direção ao inconsciente, ao desconhecido que se quer
fazer conhecer. Não somente a noite libera o inconsciente como é o tempo de germinar algo
novo. Quando ela vê seus pais na forma de porcos, vive um momento crítico. O porco simboliza
a voracidade de comer, daquele que come tudo que vê pela frente. Também é visto como aquele
que, em sua impulsividade, acaba sendo ignorante, guloso e egoísta (CHEVALIER;
GHEERBRANT, 1988). A satisfação imediata, impulsiva e voraz da fome levou a uma falta de
conhecimento da realidade concreta e das necessidades da filha. Ela se viu ignorada pelos pais,
que deixaram de ser protetores, de desempenhar o papel de adultos que promovem a segurança
daquela que dependia deles. A mãe até chega a hesitar por um momento, mas acaba se rendendo,
talvez por um contato difícil com seu instinto selvagem.
Chihiro tenta fugir, mas quando um conteúdo se torna consciente não há mais volta. Esse
momento marca a separação entre Chihiro e seus pais: é o primeiro passo para que a jovem deixe
de depender tanto deles e siga seu caminho rumo à independência e discriminação.
Ao anoitecer, a cidade é dos espíritos. No lugar do túnel, existe um grande rio. Chevalier e
Gheerbrant (1988) compreendem este elemento como fertilidade, morte e renovação e que a
corrente das águas é a fluidez vida-morte-vida. O rio é uma imagem recorrente nesta obra, mas
encontra diferentes maneiras de se expressar; neste momento, ocupou a entrada/saída daquele
mundo e não há maneira de atravessá-lo – não é uma questão de superar o rio, e sim de deixá-lo
estar. Chihiro não tem mais como voltar para casa e precisa enfrentar sua jornada; ela adentrou a
floresta e agora precisa olhar para o que está dentro de si mesma.
Haku, o menino que Chihiro encontra, explica que ela deve ir até o Mestre Kamaji, o Senhor
das Caldeiras, para conseguir um emprego. A chegada até o Mestre significaria a travessia do
primeiro limiar: depois de um momento de crise, ela diz sim ao chamado da aventura e faz sua
primeira busca ativa por uma solução (DEL PICCHIA; BALIEIRO, 2010).
Chihiro vive a constante angústia de ir em busca de soluções para seus problemas e, ao mesmo
tempo, sente um forte medo do que isso poderia significar. Kamaji é uma grande figura barbuda
e com múltiplas mãos; tem um formato de aranha, aquela que urde uma teia capaz de capturar
suas presas, é artesã do tecido do mundo e senhora do destino (posição divina), mas, ao mesmo
tempo, sua morada é frágil, uma fachada ilusória, que engana. Esta contradição permite
compreender Kamaji um pouco melhor: ele é o responsável por aquecer as águas da casa de
banhos, pegando feno e colocando-o para ferver com a ajuda de pequenas bolinhas mágicas de
fuligem (Susuwatari), que enchem o forno de carvão. É o Senhor das Caldeiras e, ao mesmo
tempo, o escravo; é quem aquece a casa de banhos e aquele que vive excluído em função de seu
trabalho (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1988).
Chihiro acaba sendo encaminhada até a bruxa Yubaba, a dona da casa de banhos, uma criatura
ameaçadora e poderosa. A figura de Yubaba é de grande importância para a jornada de Chihiro:
Baba Yaga, a Mãe Selvagem, é a mestra que podemos consultar nesses casos. Ela instrui o ordenamento da casa alma.
Ela infunde uma ordem alternativa no ego, uma ordem em que a magia pode acontecer, a alegria pode ser criada, o
apetite permanece intacto, as tarefas são realizadas com prazer. Baba Yaga é o modelo para sermos fiéis ao Self. Ela
ensina tanto a morte quanto a renovação (ESTÉS, 1994, p. 124).
Chihiro precisa de um emprego para poder habitar aquele mundo. A casa de banhos é onde
milhões de espíritos vêm para descansar. O banho representa as grandes passagens da vida, como
o nascimento, a puberdade e a morte, e está associado ao elemento água (CHEVALIER;
GHEERBRANT, 1988). A ideia de imersão traz a imagem do regredir ao útero, quando o ser
estava imerso em líquido confortável, seguro e sem realizar esforço para se alimentar. Esta
regressão simboliza um momento de recuperação e do retorno à origem da vida, assim como da
separação mais difícil vivida pelo sujeito. A casa de banhos é habitada por espíritos que vão
descansar os ossos, que simbolizam uma parte essencial do corpo: o que dá estrutura, a matéria, a
parte que retorna à terra. Por outro lado, os ossos simbolizam a firmeza, a força, algo que é
imutável; para o xamã, contemplar os ossos se assemelha a retornar ao estado primordial
(CHEVALIER; GHEERBRANT, 1988). Esse ambiente simboliza que Chihiro estaria retornando
a um estado primordial, um estado que a coloca em conexão com sua natureza instintiva.
Os espíritos que frequentam a casa de banho são figuras transparentes, capazes de assumir
diversas formas. O espírito estaria, nesse caso, ligado à ideia de alma, ou seja, o oposto da
matéria. A noção fantástica de alma invoca o poder invisível daquilo que não pode ser contido
pela matéria; a alma é o sopro da vida. A casa de banho é o lugar em que esses espíritos/almas
vão para descansar os ossos, para descansar esse poder invisível. É nesse lugar mágico que
transformações profundas e importantes podem acontecer para a jovem.
Chihiro treme diante do poder de Yubaba, mas seu bebê gigante, Boh, é despertado, o que dá a
Chihiro uma pequena abertura para pedir seu emprego. Boh é o filho de Yubaba: é
supreendentemente grande e sabe falar muito bem para um bebê. É extremamente mimado,
egoísta e tem um poder sobre Yubaba que mais ninguém tem. Boh parece simbolizar a fraqueza
de Yubaba, seu lado maternal, feminino; mas isso se revela em uma relação exagerada, pois a
mãe dá tudo que criança quer, o que acaba não sendo benéfico para ela, que anseia por alguém
com quem possa brincar. Yubaba não sabe dar contorno nem limites para seu bebê de forma
amorosa.
Nesse contexto, a bruxa concorda em empregar a menina. Este é um momento crucial em seu
amadurecimento, segundo Laurentino (2012) descreve, pois, de alguma maneira, o encontro com
Yubaba obriga Chihiro a renunciar à posição de criança e se transformar, aos poucos, em mulher.
Para amadurecer, Chihiro tem que encontrar um lugar em sua vida para essa sua parte, já que
seria impossível se tornar uma mulher em profundo contato com sua feminilidade instintual se
abrisse mão de sua criança.
Para selar o contrato, a bruxa faz com que a jovem assine seu nome; depois, Yubaba retira
uma parte dele e diz que o nome da garota, dali em diante, será Sen. Assim, Chihiro – ou melhor,
Sen – concretiza o primeiro limiar, iniciando sua aventura.
O menino Haku, discípulo de Yubaba, mostra-se de forma confusa para Sen, pois segue todas
as ordens de sua mestra. No entanto, é ele quem cuida da garota, quem avisa que ela precisará de
sua roupa e de seu verdadeiro nome para poder voltar para o seu mundo. Yubaba controla as
pessoas roubando seus nomes. O nome está ligado à identidade: saber seu nome é saber onde é
sua base, sua referência pessoal.
Então, Sen vive um momento importante: sua primeira noite de trabalho. Ela e Lin (sua chefe)
são designadas para cuidar da maior e mais imunda banheira da casa; quando vai jogar a água
suja fora, a menina encontra um espírito sem rosto (Kaonashi) e o convida para entrar,
acreditando que fosse mais um cliente da casa.
Esse é o primeiro desafio de Sen, que é muito desastrada e constantemente cai: limpar uma
banheira imunda é uma imagem de purificação e limpeza de toda a psique (ESTÉS, 1994). A
água usada na lavagem é o símbolo de purificação e regeneração; na cultura oriental representa a
renovação e regeneração do corpo e do espírito, a fertilidade e a sabedoria. Simboliza também a
massa que é indissociável, a infinidade de possibilidades; mergulhar na água sem nela se
dissolver é retornar às origens, fazer o movimento de renovação (CHEVALIER;
GHEERBRANT, 1988). Para Chihiro, limpar a banheira é realizar o desafio de se dissociar, de
habitar o lugar de origem e dele partir para algo mais discriminado, exercitando o ofício do ego
de ser este complexo que diferencia e que ordena.
O espírito fedorento (Okusare) chega à casa de banhos e Sen é encarregada de cuidar dele. O
mau cheiro do espírito é demasiado, tanto que apenas a água não é capaz de retirar suas
impurezas. Durante o banho, Sen vê que há um espinho preso no espírito e Yubaba percebe,
então, que não se trata de um espírito fedorento. Todos os funcionários da casa auxiliam Sen a
puxar o espinho, e dele saem diversos objetos (anzol, bicicleta, sujeiras em geral). Depois que
retiram tudo, o espírito se transforma em Kawa no Kami, o espírito do rio.
Na mitologia japonesa, este é o Deus dos Rios. Ele fora até a casa de banhos fazer um ritual de
imersão e purificação antes de retornar ao mundo dos humanos. Seu estado é resultado do
desrespeito dos homens diante da natureza. No filme, evidencia-se a realidade atual, em que a
importância e a reverência à natureza foi perdida; assim, Sen representa alguém que é capaz de
retomar esta ligação, que percebe instintivamente que há algo a ser cuidado.
Em agradecimento, Kawa no Kami dá a Sen uma bola pequena. Começam a aparecer
pequenos pedaços de ouro no chão, e todos da casa festejam. Yubaba parabeniza Sen, que, com
sua proatividade e disposição, pôde ajudar o espírito, completando seu primeiro grande desafio.
Kaonashi, o espírito sem rosto que Sen deixou entrar durante seu primeiro trabalho, é uma
figura importante para a jornada da jovem. Ele é capaz de reagir a emoções e ingerir pessoas para
adquirir suas personalidades. Quando aparece, sua forma é indefinida: tem uma máscara como
rosto e seu corpo se assemelha a um véu preto que vai se tornando transparente da cintura para
baixo. Trata-se de um espírito solitário que se interessa por Sen, por sua sinceridade e humildade.
Como desconhece a cultura da casa de banhos, ele passa a se adaptar ao meio, incorporando a
forma como as pessoas se comportam, seguindo os exemplos ali presentes. Quando nota como os
funcionários competiam pelo ouro no chão, percebe a importância do metal e passa a oferecê-lo a
todos. Kaonashi é um reflexo do ambiente em que está inserido e uma clara crítica à maneira
como as relações na casa de banho se davam.
Em relação à sua forma física: a máscara nos lembra a persona construída pelo sujeito para
estar no mundo e se relacionar com o mundo externo. Seu véu/capa significa o conhecimento
oculto, que é desvelado. Ele é aquilo que ele vê no mundo; por não ter rosto, sua identidade está
atrelada ao outro, ao que o outro lhe fornece (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1988).
Simultaneamente à estada de Kaonashi, Sen vê um dragão sendo perseguido por papéis
enfeitiçados, que acabam ferindo-o gravemente. Ela percebe que o dragão é, na verdade, Haku, e
tenta ajudá-lo. Os discípulos de Yubaba, os Kashira (três grandes cabeças) e Yu Pássaro (forma
pequena de Yubaba como pássaro) tentam se livrar de Haku e Sen luta contra eles. Zeniba, a
irmã gêmea de Yubaba, aparece e enfeitiça os personagens: transforma Boh em um ratinho
gordo, Yu Pássaro em uma mosca e os Kashira em um bebê gigante (como Boh).
Sen descobre que Haku é um aprendiz de magia de Yubaba e que faz tudo o que ela pede, seja
a tarefa boa ou má. Sua última missão fora roubar o selo de Zeniba. A arrogância e a ânsia de
Haku por aperfeiçoar sua magia e ter poder o levam à beira da morte. Sen, desesperada, entrega-
lhe o bolinho que ganhou do espírito do rio e faz com que ele vomite o selo de Zeniba.
Em uma situação-limite para poder continuar sua jornada, Sen percebe que deve ir até a casa
de Zeniba para devolver seu selo e pedir ajuda para salvar Haku. Sua postura já é muito diferente
daquela da jovem que entrara na sala de Kamaji pela primeira vez, amedrontada e encolhida.
Agora, decide por iniciativa própria fazer esta jornada final, acompanhada de Boh e Yu Pássaro
(ambos transformados): para isso, pega suas roupas antigas, parte de sua personalidade original.
Kamaji explica que tem somente o ticket de ida até Zeniba, mas Sen está determinada a ir.
Embarca no trem, meio de locomoção para uma jornada que, simbolicamente, não tem volta; isso
faz com que ela entre em contato com seu instinto, sua parte profunda feminina, e esse
amadurecimento é irreversível.
Enquanto isso, o espírito sem rosto causa problemas, devorando tudo o que vê. Ele pede por
Sen incessantemente. Quando a menina chega, a criatura está gigantesca, graças aos alimentos e
pessoas que devorou. O espírito só quer ser capaz de dar algo que ela queira, mas não pode lhe
dar o que ela busca. A garota oferece, então, o último pedaço do bolinho mágico para o espírito,
que começa a regurgitar tudo o que havia comido até então. Ele fica furioso e começa a perseguir
Sen; mesmo assim, ela é a única que não tem medo dele. O sem-rosto fica enlouquecido com a
ideia de que ele não pode ser algo que satisfaça a jovem, pois este foi sempre o lugar que ocupou
no mundo. Ela lhe oferece, então, a possibilidade de não precisar se alimentar dos outros, ser
como os outros são ou ter de se adequar à maneira arrogante das pessoas na casa de banhos.
Na medida em que ele regurgita, enfraquece e se acalma. A menina se dirige à estação de trem
e o espírito a segue, fazendo com que ela conclua que “ele só fica mal quando está lá dentro,
precisa sair de lá”. Assim é iniciada a jornada até a casa de Zeniba.
O espírito sem rosto volta à sua forma original e a acompanha no trem. O trilho deste veículo
está no meio de um grande mar: representa uma passagem através do inconsciente, uma linha
mestra que leva de uma dimensão à outra. Ao anoitecer, Chihiro/Sen chega à sua parada e
caminha até a casa de Zeniba.
Ela devolve o selo e pede que Zeniba que retire o feitiço que colocara em Yu Pássaro e em
Boh. Esta explica que o feitiço já havia acabado e que cabia a eles quererem voltar às suas
formas originais, o que eles não desejavam. O não querer voltar à forma original se relaciona ao
fato de essa nova forma ter sido o meio pelo qual eles puderam se libertar, conhecer um pouco o
mundo, sair do quarto que habitavam e da proteção repressiva de Yubaba.
Zeniba é muito diferente de sua irmã gêmea, Yubaba. Uma é a boa e a outra, a má. Uma
completa a outra: Yubaba como a Grande Mãe Terrível e Zeniba como a Grande Mãe bondosa,
ambas manifestações de um feminino arquetípico profundo. A Grande Mãe é aquela que domina
a vida-morte-vida e também simboliza a fertilidade e a morte, assim como pode ser a renovação
e o fim.
O contato de Chihiro com essas duas figuras (que podem ser entendidas como uma só)
simboliza o contato com o inconsciente. Ela se relaciona com a natureza das forças instintivas,
processo importante para que possa se conectar com o seu feminino.
De acordo com Estés (1994), existe semelhança entre os termos “bruxa” e “selvagem”:
antigamente, a palavra bruxa era designado às benzedeiras, sendo que o termo wit (que origina a
palavra witch – “bruxa”, em inglês) quer dizer sábio. Com a repressão da Mãe Selvagem pelas
religiões monoteístas, o termo se tornou pejorativo.
Haku aparece na casa de Zeniba em sua forma de dragão. É uma imagem que causa
encantamento em Chihiro durante toda a obra. Ele pode ser compreendido como o animus dela,
que é o conceito junguiano para os conteúdos inconscientes, que o indivíduo nem sequer teve a
oportunidade de ser; é o outro, a expressão daquilo que é completamente diferente para o
indivíduo. A figura do dragão é, em muitas culturas, vista como um guardião severo, um símbolo
do mal. Na realidade, ele é aquele que guarda os tesouros; derrotando-o, pode-se ter acesso a
algo importante (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1988).
É na relação com este outro que o eu pode atingir seu potencial como individualidade. O outro
permite que o eu entre em contato com o seu mundo interno, aquele que talvez o indivíduo nunca
poderá ser; o animus/anima é o arquétipo da alteridade, e, entrando em contato com este outro, o
indivíduo pode encontrar seu tesouro. O dragão é o guardião do tesouro da própria garota, da sua
possibilidade de se tornar quem ela é.
Todo o processo pelo qual Chihiro passa para adentrar a floresta nos dá indícios de que ela
entrou em seu mundo inconsciente, suas profundezas. Portanto, as figuras apresentadas no filme
seriam dinâmicas internas de Chihiro. Se Haku é capaz de ajudá-la, ela mesma é capaz de
enfrentar momentos desafiadores, é quem tem as ferramentas internas para lidar com os desafios
impostos pela vida. Relacionando-se com Haku, desenvolve suas dinâmicas internas. Sua
capacidade de se conectar com a psique profunda será algo essencial para o decorrer de sua vida.
O arquétipo da mulher selvagem possibilita a conexão com este feminino profundo, que aguça os
sentidos, que late diante do desconhecido e que uiva em nome de todas as mulheres.
Ao voarem juntos, Chihiro se recorda de que quando era pequena caíra em um rio e quase se
afogara. Depois disso, o rio foi drenado e construíram edifícios no lugar; o nome do rio era
Kohaku. Quando ela diz esse nome em voz alta, Haku volta à sua forma humana; eles se
recordam um do outro, de como ele a salvara.
A ideia de que Haku e Chihiro já se conheciam há muito tempo confirma sua relação antiga e
profunda – o eu e seu animus como uma relação arquetípica e fundamental. A necessidade
constante da jovem de cuidar de Haku quando ele se machuca, mesmo sem ter certeza de quem
era o dragão, simboliza o instinto aguçado (desenvolvido em sua jornada) para identificar algo
que é importante para ela.
Como desafio final para que Chihiro possa retornar ao seu mundo com seus pais, Yubaba
coloca vários porcos à sua frente. A menina precisa lembrar quem dentre eles são seus pais. Algo
dentro dela está muito diferente daquela que chegou àquele mundo: agora, ela é capaz de
perceber que nenhum daqueles porcos são seus pais, quebrando o feitiço de Yubaba. Sem opção,
a bruxa liberta Chihiro, que a agradece por tudo.
Em seu caminho de volta, Haku e Chihiro correm de mãos dadas até um ponto em que Haku a
orienta pela última vez: diz para Chihiro encontrar seus pais mais à frente, seguindo sem olhar
para trás. Agora ele sabe que está seguro e pode retomar sua vida, sua identidade.
Quando os três entram no túnel, a cena inicial do filme se repete: o pai anda mais à frente e
Chihiro está segurando os braços de sua mãe. Quando eles chegam até o carro, notam que o
veículo está todo sujo. A jovem olha para o túnel como alguém que se pergunta se tudo fora
sonho ou realidade. Entra no carro, mas não é mais a mesma. A reprodução da cena inicial ao
final da obra reforça a ideia de mudança – ela viveu um lindo processo interno que precisava ser
ressignificado.
No início de sua jornada, Chihiro é “obrigada” a sustentar muitas angústias de uma só vez:
seus pais são transformados em porcos; ela se encontra sozinha em um lugar desconhecido. Mas
Haku a ajuda a suportar essa tensão, a conviver com as provações para que pudesse criar algo
novo. Ela sai pelo túnel para iniciar uma nova jornada.
A história tem começo-meio-fim; ela passa por várias ligações e separações até poder resgatar
o início de uma forma renovada. O ciclo se fecha – não para sempre, mas na forma de uma
espiral de crescimento. Nesse momento crítico de sua vida e de seu desenvolvimento, a menina
passa por diversas transformações, mas este ciclo se repete ao longo de sua existência, em
momentos diferentes. Espera-se que o indivíduo possa fazer novas passagens, novos rituais,
novos crescimentos e descobertas, caminhando rumo à integração e ao equilíbrio.
O ego, com sua importância inegável e patriarcal, serve como uma instância que permite à
heroína se colocar no mundo de uma forma mais adaptada. O arquétipo da mulher selvagem traz
a possibilidade do equilíbrio do patriarcal com o matriarcal, no qual o feminino não deve ser
reprimido ou renegado, e, sim, integrado.
O drama da humanidade pode começar a ser reconstruído a partir de dentro do sujeito e
também em sua dimensão coletiva, pois o pessoal e o coletivo são indissociáveis. Este estudo
buscou promover uma reflexão direcionada ao feminino dentro de cada mulher, embora este
feminino tenha de ser reconectado nos homens e nas mulheres. Teve-se a intenção de que os
símbolos apresentados pudessem mobilizar as mulheres, cada uma à sua maneira, de acordo com
a transição que estiverem vivenciando.
Referências
CAMPBELL, J. O herói de mil faces. São Paulo: Pensamento, 2007.
CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores,
números. Rio de Janeiro: José Olympio, 1988.
DEL PICCHIA, B.; BALIEIRO, C. O feminino e o sagrado: mulheres na jornada do herói. São Paulo: Ágora, 2010.
ESTÉS, C. P. Mulheres que correm com os lobos. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
LAURENTINO, N. P. O arquétipo do grande feminino nos contos “Vasalisa” e “A Viagem de Chihiro”. 54 p. Trabalho de
Conclusão de Curso – Faculdade de Letras, Universidade Estadual de Paraíba. 2012.
STEIN, M. Jung: o mapa da alma – uma introdução. 5. ed. São Paulo: Cultrix, 2006.
46 Graduada em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). O presente capítulo é o resumo de um
trabalho de conclusão de curso elaborado pela primeira autora e orientado pela segunda. Contato: <naomipf8@hotmail.com>.
48 Spirited Away. Direção: Hayao Miyazaki. Produção: Hayao Miyazaki. Japão: Studio Ghibli, 2001.
Yaoi: os homens do mundo feminino
Louise de França Monteiro 49
A
S PRODUÇÕES JAPONESAS CONHECIDAS POR SEREM VOLTADAS PARA O PÚBLICO FEMININO JOVEM E
adulto são muito populares e difundidas, inclusive fora do Japão: o gênero shoujo geralmente
abarca a adolescência, enquanto o josei, a idade adulta das mulheres. Os enredos destas obras
são de cunho principalmente romântico, frequentemente contando com gêneros secundários
como comédia e drama. Diferentemente, o shounen e o seinen (para o público masculino jovem e
adulto) giram em torno de temas como lutas, aventuras, esportes, entre outros – embora possam
ter gêneros secundários como o romance e o drama. Os heróis do mundo shounen parecem
buscar virtudes como disciplina, perseverança e força, enquanto as protagonistas do mundo
shoujo se encontram em tramas sentimentais, constantemente buscando resoluções para
problemas em seus relacionamentos interpessoais. Direcionado a um mercado consumidor
específico, o sucesso de vendas do gênero shoujo até a década de 1970 foi atribuído à
identificação do público leitor feminino com as histórias e personagens produzidas por mãos
masculinas, isto é, as publicações predominantes no mercado apresentavam seus personagens,
tanto masculinos como femininos, inseridos em um contexto criado e dominado pela lógica
masculina.
O gênero a ser destacado aqui é, em sua raiz, trabalho tão somente feminino, composto por
paródias altamente sexualizadas dos mangás shounen e seinen dos anos 1970. Surgido como um
subgênero dos mangás shoujo, tratava de relações homossexuais entre homens com
características e papéis definidos, isso é, romances entre “rapazes bonitos” (bishonen) e
andróginos, criados quando mulheres adentraram o mercado de produção de mangás. O gênero
se consagrou como o primeiro estilo escrito por e para mulheres (MCLELLAND, 2001;
WELKER, 2006). A esta categoria de mangás foram atribuídos diferentes nomes, como shounen
ai (“amor de menino”) e, posteriormente, o termo mais conhecido, yaoi, acrônimo de yama
nashi, ochi nashi, imi nashi, que em tradução livre seria “sem clímax, sem objetivo, sem
sentido”. Isso porque as primeiras edições eram produções amadoras – com personagens já
conhecidos dos mangás masculinos (doujinshi) e alguns originais – que não focavam no
desenvolvimento dos personagens e nas quais tampouco se fazia necessário algum tipo de
conclusão, “enfatizando que as histórias eram pouco mais que veículos para alcançar as cenas de
sexo entre jovens personagens masculinos” (MCLELLAND, 2005, p. 73). Posterior e mais
recentemente, o termo Boys Love (BL) foi cunhado para se referir a tais publicações e a outros
tantos conteúdos na temática, compreendendo um conjunto de subgêneros, dentre os quais o
próprio yaoi, embora este ainda seja assaz popular.
A primeira obra considerada pertencente ao gênero yaoi foi o mangá Koibitotachi no Mori (“A
floresta dos amantes”), de Mari Mori, publicado em 1961. Embora aclamado nos círculos
literários dominantes na época, esta obra é considerada como a origem do yaoi não só por ter
sido o primeiro romance homoerótico masculino escrito por uma mulher, mas também porque
contém uma série de características estéticas que foram marcas das ficções yaoi até que tais obras
se tornaram amplamente comercializadas e popularizadas na década de 1990 (MIZOGUCHI,
2003, p. 52).
Também prova de seu considerável sucesso de vendas na década de 1970 é o surgimento da
revista June, em 1978, a primeira publicação inteiramente dedicada a essa temática
(MIZOGUCHI, 2003; MONTEIRO, 2012). Com a popularização do gênero a partir da década de
1990, mais publicadoras e profissionais passaram a se envolver nas produções. Daí seguiu-se a
abertura de um mercado que hoje contempla mangás, animes, filmes, doramas e outras tantas
formas de mídia para uma parcela um tanto quanto expressiva de consumidores no mundo todo,
com publicações regulares, trabalhos profissionais e mesmo amadores em seus diversos
subgêneros.
No Brasil, a primeira publicação yaoi com distribuição em nível nacional foi a série
Gravitation, de Murakami Maki, em 2007. Embora anteriormente já houvesse trabalhos que
continham yaoi entre seus subgêneros e também trabalhos de fãs (fanzines), Gravitation marcou
mais propriamente a entrada do yaoi no mercado brasileiro em grande escala.
O que é um yaoi?
Grosso modo, um mangá yaoi é aquele que tem como característica a presença de pelo menos
dois protagonistas homens que se relacionam entre si de forma romântica. Não se trata de uma
retratação fiel de um relacionamento homossexual real, tampouco tem isso como objetivo, uma
vez que os trabalhos voltados para o público gay existem e são nomeados bara ou Men’s Love.
Vale ressaltar que os enredos, as representações e muitos outros aspectos dos mangás bara
divergem amplamente em comparação ao yaoi, pois esses títulos são criados por e para o público
homossexual masculino. Assim, as representações bara geralmente são constituídas de homens
com características “masculinas”, como corpos musculosos e com pelos, correspondendo mais
aos relacionamentos homossexuais reais. Os mangás yaoi, no entanto, são concebidos como
relações idealizadas, fantasiosas em sua essência, mas, sobretudo, românticas e com muito
conteúdo sexual.
No início, com poucas produções – e, portanto, menor diversidade –, identificavam-se
facilmente determinadas características nos personagens e certas semelhanças nos traços dos
enredos. O personagem cuja representação fosse mais “masculinizada”, agressiva, misteriosa e
dominadora seria chamado seme, o “ativo” na relação. Seu parceiro, fisicamente mais frágil,
sensível e com características ditas mais “femininas”, seria o uke, ou o “passivo”. Além das
características relacionadas aos gêneros, outras também poderiam compor o papel que cada um
exerceria na relação – por exemplo, as faixas etárias de ambos poderiam ser diferentes, com o
mais novo sendo o uke e o mais velho, o seme. Poderia haver, também, relações de poder para
determinar o papel de cada um, como um relacionamento entre o chefe e o subordinado. Nas
primeiras histórias criadas, esses papéis eram fixos, não permutáveis. Os enredos, por sua vez,
poderiam se passar no cotidiano do colégio ou na rotina de uma empresa, em antigas eras do
Japão ou num futuro ficcional. Os romances poderiam ser “predestinados”, incentivados, bem
como incompreendidos ou proibidos (casos de homens comprometidos e incesto, por exemplo).
Hoje, o mercado apresenta tantas variações dessas temáticas que já não é difícil para as fãs
excluir ou acrescentar preferências específicas e, ainda assim, encontrar diversos títulos
correspondentes: com alguma, pouca ou muita sexualidade, com homens ou com robôs, com
vampiros ou lobos, pedofilia ou incesto, entre dois homens ou mais, mais romântico ou mais
pornográfico, tudo junto ou nada disso – baseando-se nas produções atuais, pode-se dizer que no
yaoi é possível encontrar de tudo.
Qual a graça?
Uma fujoshi pode contar animadamente a uma não fujoshi sobre como ela adora ler histórias
em quadrinhos japonesas sobre romance entre homens, ao passo que para a segunda pessoa resta,
na melhor das hipóteses, perguntar do que aquilo se trata; na pior, questionar o que há de errado
com a fujoshi. Contudo, a pergunta mais ouvida entre as fãs de yaoi é, não surpreendentemente,
“o que poderia ser tão interessante num romance entre dois homens?”.
Curiosamente, relacionamentos entre mulheres não são alvo de tanta estranheza quando se está
falando do consumo masculino de materiais de conteúdo sexual. O próprio termo fujoshi
(“mulher podre”) é depreciativo e foi cunhado para mulheres fãs do gênero de romance entre
homens ou entre mulheres (yuri). Atualmente, as fãs optaram por assumir o termo para
autodesignação, assim como o termo otaku, que é pejorativo no Japão, mas foi assumido para
referenciar os fãs de produções japonesas pelo mundo.
Algumas (talvez muitas) consumidoras de BL não conseguem colocar em palavras o que
exatamente é atraente nesses conteúdos. É indiscutível, entretanto, sua produção de autoria
majoritariamente feminina mantida por uma comunidade de fãs e que, ao mesmo tempo, causa
tamanha estranheza – principalmente numa sociedade heteronormativa com designações
fechadas de gênero. São várias as hipóteses e análises realizadas sobre as produções de BL, seja
entendendo-as como forma de expressão da sociedade estratificada da dominação/submissão,
seja considerando-as como uma possibilidade de consumo para o público feminino.
A grande polêmica
Um elemento bastante comum nos enredos dos BL é a ocorrência do chamado “estupro
consentido”. O termo utilizado para descrever tal situação parece carecer de lógica, uma vez que,
sendo estupro, obviamente não pode ser consentido. Nos mangás yaoi dirigidos ao público
adulto, porém, é bastante comum encontrar situações que apenas um termo controverso como
este poderia descrever. O estupro consentido é uma situação em que o seme força, com ou sem
violência física explícita, o parceiro a ter relações sexuais com ele, embora “no fundo” o uke
demonstre estar querendo ou gostando. E adianto que não há confusão ou má interpretação
quanto à representação destas cenas – é isso que vemos ou lemos, é isso que muitas autoras
expõem. Histórias de homens que não se consideravam gays ou que estão confusos com a
atração por outro homem são comuns e uma atitude agressiva por parte do seme igualmente o é.
Unindo-se as duas variáveis e adicionando-se uma paixão avassaladora, a romantização de um
ato de violência tornou-se muito utilizada nos enredos. Como se não bastasse, alguns romances
parecem “surgir” desse ato – apresentado como deveras prazeroso e/ou como demonstração de
afeto – e geralmente culminam num relacionamento amoroso. Atualmente, com a diversidade
das produções, é possível encontrar diversos mangás que oscilam em relação a esse tema, isto é,
contendo cenas de estupro como é conhecido e criminalizado ou os que retratam relações sem
qualquer apelo a isso.
Há discussões entre as fãs do gênero sobre este tópico, uma vez que é fruto de trabalhos de
mulheres, aquelas que sabidamente são as maiores vítimas de tal violência. Partindo-se da ideia
do yaoi como representação das relações femininas de forma velada, não é muito difícil pensar
na sexualidade feminina, representada pelo uke, estando subjugada aos impulsos masculinos,
representados pelo seme, ainda nos tempos atuais. Também não é complicado pensar que se “no
fundo” há alguma fonte de prazer, o entendimento de estar vivenciando um ato violento pode ser
diferente para a vítima.
Para aqueles menos familiarizados com conteúdos divergentes da cultura ocidental, este e
outros temas retratados nas obras japonesas podem soar incompreensíveis ou até incabíveis.
Nesse sentido, pode-se pensar que, com os avanços alcançados pelo feminismo em diversas
partes do mundo, o estupro consentido pode ser mais ou menos passível de críticas nas obras BL,
isto é, as representações de violência contra o personagem que remete ao “feminino” tendem a
ser menos toleradas. Muitas mulheres podem não conceber a opressão masculina representada
tão recorrentemente nos trabalhos, apesar do discurso do prazer e da demonstração de afeto.
McLelland (2005) aponta outra interpretação: o fato de as representações dos corpos serem
masculinas pode tornar a utilização de cenas de violência sexual mais segura para as mulheres,
porquanto ocorrem usualmente com mulheres como alvo. Algumas fãs, no entanto, podem e
preferem abster-se, enquanto outras acabam por optar pelo tema sem problemas, principalmente
quando tantas produções o retrataram há tantos anos.
Às fujoshis e simpatizantes
As divergências culturais que transparecem nas obras e publicações podem ser tanto atrativas
como completamente desinteressantes para indivíduos de outras culturas. No mercado japonês de
animes e mangás não é diferente: o yaoi é apenas um dentre diversos gêneros com conteúdos
incomuns, quiçá incompreensíveis para muitos que se deparam com tais obras. Certamente, suas
peculiaridades são fonte da fascinação e da rejeição que geram. Talvez por suas representações,
pelo romance, pelas possibilidades, desde que foram marcados por algo jamais visto,
exclusivamente direcionado, concebido e compartilhado por e para um mesmo público, o yaoi
tenha se tornado uma opção tão interessante. O que era oferecido às mulheres antes não era
propriamente delas; o que nos oferecem hoje pode ainda não nos representar. Mas o gênero que
criamos e dominamos se provou, ao longo do tempo, mutável – tão mutável quanto desejamos
que seja o papel designado às mulheres em diversas partes do mundo.
Referências
HOFFMANN, A. G.; TEIXEIRA, N. C. R. B. Mangá e representação: a mulher pós-feminista em Love Hina. Vertentes, UFSJ,
v. 36, p. 62-73, 2010.
MCLELLAND, M. Local meanings in global space: a case study of women’s “Boy love” web sites in Japanese and English.
Most Pluriels, n. 19, oct. 2001. Disponível em: <http://www.arts.uwa.edu.au/MotsPluriels/MP1901mcl.html>. Acesso em: 20
ago. 2016.
______. The world of yaoi: the internet, censorship and the global “boys’ Love” Fandom. Australian Feminist Law Journal, v.
23, n. 1, p. 61-77, 2005.
MIZOGUCHI, A. Male-Male Romance by and for Women in Japan: A History and the Subgenres of Yaoi Fictions. U. S. –
Japan Women’s Journal, n. 25, p. 49-65, 2003.
MONTEIRO, N. A. V. Desejos femininos nos prazeres masculinos. In: VII Congresso Português de Sociologia. Portugal, 2012.
NAGAIKE, K. Perverse sexualities, perversive desires: representations of female fantasies and “yaoi manga” as pornography
directed at women. US – Japan Women’s Journal, n. 25, p. 76-103, 2003.
WELKER, J. Beautiful, borrowed, and bent: “boys’ love” as girls’ love shôjo manga. Journal of World in Culture and Society,
v. 31, n. 3, p. 841-870, 2006.
49 Graduada em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e Mestranda em Psicologia
Experimental: Análise do Comportamento (PUC-SP). Contato: <louise.fmt@gmail.com>.
Patrulha Estelar: reflexões sobre um marco da primeira
geração de Animes da cultura otaku
Luiz Ojima Sakuda 50
Juliano Barbosa Alves 51
Introdução
SENKAN YAMATO (USY), CONHECIDA EM INGLÊS COMO SPACE BATTLESHIP YAMATO, SPACE CRUISER
U
CHŪ
Yamato e Star Blazers, foi lançada no Brasil com o nome de Patrulha Estelar (apesar da
tradução literal ser “Encouraçado Espacial Yamato”). Neste texto, utilizaremos o acrônimo
USY para se referir ao anime, “o Yamato” para se referir ao encouraçado e “a Yamato” para se
referir à espaçonave. Esta obra é muito representativa na cultura otaku e também do espírito do
tempo de sua época. USY marcou a visibilidade do fenômeno otaku, quando em agosto de 1977
foram formadas as primeiras filas durante toda a noite para a estreia do filme nos cinemas
(KAICHIRO; WASHBURN, 2013), o que foi um pouco surpreendente pois a audiência das
séries não tinha sido tão alta e a série tinha sido redimensionada de 39 para 26 episódios.
A cultura otaku pode ser dividida em quatro gerações: a primeira nasceu por volta de 1960 e
assistiu USY e Mobile Suite Gundam, a segunda nasceu por volta de 1970 e assistiu a uma
cultura mais diversificada que a anterior, terceira geração nasceu por volta de 1980 e assistiu
Neon Genesis Evangelion, e a quarta nasceu por volta de 1990 e está acostumada com a Internet
(AZUMA, 2009). Como a exibição dos Animes no Brasil foi posterior ao lançamento no Japão e
nos Estados Unidos, as datas de nascimento das gerações são diferentes, mas USY tem também
no Brasil o mesmo papel que teve em outros países: ser uma das principais referências para a
primeira geração de otakus, ainda que não tivessem na época esta identidade de grupo, como
ilustrado pelo André Forestieri em retrospectiva (FORESTIERI, 2010).
Osawa (1996, 2008 apud M. TANAKA, 2014) discute o espírito do tempo do Japão pós-
guerra e denomina o período de 1945 a 1969 como “era idealística”, de 1970 a 1995 como “era
ficcional”, e após 1995 como “era da impossibilidade”. O primeiro período possui meta-
narrativas sobre ideologias políticas que estavam em curso. O segundo período procurou ideais
em mundos imaginados e personagens de ficção, pois as ideologias pareciam não estar
funcionando muito bem e o ativismo estudantil começou a falhar. No terceiro período teve seu
início marcado por dois eventos apocalípticos no mesmo ano de 1995 (terremoto de Kobe e
ataque de gás sarin no metrô de Tóquio pelo grupo Aum).
Neste sentido, USY é um representante da era ficcional, onde o estilo das space operas
possuíram um papel de destaque. Não por acaso, o primeiro filme da franquia Star Wars foi
lançado no mesmo ano do filme de USY. Muitas semelhanças entre os dois filmes foram
apontadas na época, e considerando o conhecimento de Lucas sobre a cultura japonesa da época,
é bem provável que USY tenha influenciado Star Wars (BURNS, 1980).
Este capítulo está dividido nas seguintes sessões: (i) esta introdução, (ii) sobre USY e sinopse
das séries, (iii) a história real do navio Yamato, (iv) o renascimento do navio através do Anime,
(v) análises sobre e o Anime, (vi) considerações finais e (vii) referências.
A.D. 2199-2200: Space Battleship Yamato (série “Busca de Iscandar”, 1974-1975), Space
Battleship Yamato (filme que condense os 26 episódios em duas horas, 1977), Space
Battleship Yamato (versão live action, 2010), Yamato 2199 (remake, 2012-2015)
A.D. 2201: Arrivederci Yamato (Sarabá Uchuu Senkan Yamato ou Farewell to Yamato,
1978), Space Battleship Yamato II (série “Cometa Império”, 1978-1979), Yamato: The New
Voyage (1979)
A.D. 2202: Be Forever Yamato (1980), Space Battleship Yamato III (série “A Crise do Sol”,
1980-1981)
A.D. 2203: Final Yamato (1983)
A.D. 2220: Space Battleship Yamato: Resurrection (2010)
A.D. 2520: Yamato 2520 (1995-1996)
A.D. 3199: Great Yamato No. 0 (2004)
Está prevista para dia 25 de fevereiro de 2017 o lançamento de um novo filme, Uchū Senkan
Yamato 2202: Ai no Senshi-tachi (Encouraçado Espacial Yamato 2202: Guerreiros do Amor),
dirigido por Nobuyoshi Habara (ANIME NEWS NETWORK, 2016).
No Brasil, a primeira série foi exibida apenas no Rio de Janeiro pela TV Record em 1981, e a
segunda e a terceira temporadas entre os anos de 1983 e 1985 na extinta Rede Manchete, sendo a
segunda foi a versão adaptada americana (Star Blazers) e a terceira a versão original japonesa
(WIKIPEDIA, 2016a). Assim, no Brasil tivemos a convivência dos nomes em japonês e dos
nomes adaptados pelos americanos. Neste capítulo, são utilizados os nomes dos personagens em
português, derivados da adaptação americana, colocando entre parênteses os nomes originais em
japonês e/ou inglês quando o nome for diferente. As referências à espaçonave estão com o nome
Yamato, e à série estão com a sigla USY. Os parágrafos a seguir contam a história das séries,
sem considerar os filmes (STAR BLAZERS, 2016; WIKIPEDIA, 2016a;2016b;2016c):
A primeira série continha 26 episódios. A história começa em 2199, quando a raça alienígena
Gamilons lança bombas de meteoritos radioativos na Terra, tornando a superfície do planeta
inabitável. A humanidade recua para cidades subterrâneas profundas, mas a radioatividade
também as afeta lentamente, com a extinção da humanidade estimada em um ano. A frota
espacial da Terra é derrotada pelos Gamilons e tudo parece perdido até que uma cápsula de
mensagem de uma misteriosa espaçonave é recuperada em Marte. A cápsula possui planos para
um motor mais rápido que a luz e uma oferta de ajuda da Rainha Starsha do planeta Iscandar na
Grande Nuvem de Magalhães. Ela diz que seu planeta tem um dispositivo, o Cosmo-Cleaner D
(Cosmo DNA), que pode limpar a Terra de seus danos de radiação.
Os habitantes da Terra secretamente constroem uma espaçonave a partir do navio japonês
Yamato, que se torna o Uchū Senkan Yamato. No original japonês, a espaçonave é referida
sempre como “Yamato”. Na adaptação americana (Star Blazers), o navio é creditado como sendo
o Yamato histórico, mas é rebatizado então o Argo (referência ao navio de Jasão e dos
Argonautas). Usando os planos de Starsha, a nova nave é equipada com uma arma incrivelmente
poderosa na proa, a arma de ondas. O motor é capaz de funcionar como um motor de foguete
normal e também fornecer energia infinita para o navio.
Uma tripulação de 114 pessoas parte para Iscandar na Yamato para recuperar o dispositivo de
remoção de radiação e retornar à Terra dentro do prazo de um ano. Ao longo do caminho, eles
descobrem os motivos de seus adversários: o planeta Gamilon, planeta irmão de Iscandar, está
morrendo; e seu líder, General Deslock (Desslar), quer que seu povo se mude para Terra. A
saúde do capitão do USY Abraham Avatar (Juzo Okita) declina, Derek Wildstar (Susumo Kodai)
se torna um oficial maduro e começa um romance com a enfermeira Lola (Yuri Mori na versão
japonesa, Nova Forrester na versão americana).
A segunda série também possui 26 episódios. A história continua em 2201. O Cometa
Império, uma ameaça nova e ainda maior do que os Gamilons, ataca a Terra depois que a
tripulação da Yamato investiga um sinal SOS da misteriosa Trilena (Teresa na versão japonesa e
americana) do planeta Telezart, que tem uma história de amor com Mark Venture (Daisuke
Shima). Ao mesmo tempo, Deslock, líder do Império Gamilon, também busca vingança por sua
derrota pela Yamato.
A terceira série possui 25 episódios. A história começa em uma data não revelada, mas
acredita-se que seja 2203. Um míssil proton proveniente de uma batalha entre o Império Galman
e a Federação Bolar cai no Sol fazendo a fusão nuclear acelerar a níveis inseguros. A Yamato e a
tripulação partem em uma missão para procurar um novo mundo para a raça humana em menos
de um ano. Os Galmans são a raça ancestral de onde vieram os Gamilons. Depois que a batalha
que destruiu o planeta Gamilon, Deslock e suas forças remanescentes partem para procurar por
esta pátria ancestral e encontraram Galmans escravizados por alienígenas cruéis de pele cinzenta
conhecidos como os Bolars. Libertaram prontamente Galman, e uma guerra é iniciada.
A Yamato e a equipe finalmente alcançam Deslock, que está profundamente arrependido de
que a Terra tenha sido arrastada para este conflito. Deslock despacha uma equipe de cientistas
Galman-Gamilon para tentar restaurar o Sol, mas este esforço falha.
Durante o curso da missão, a Yamato resgata Ruda, a rainha exilada do planeta misterioso e
oculto, Shalbart. Ela é adorada por facções que procuram paz dentro dos impérios Galman e
Bolar, e é procurada (preferencialmente morta) por ambos os governos que temem sua
influência. Isso coloca uma pressão sobre a frágil aliança entre a Terra e os Galmans, e faz com
que os Bolars declarem guerra direta contra a Terra. A Terra é finalmente salva quando Yamato
leva Ruda a Shalbart, e ela decide dar à Terra um dispositivo que pode restaurar o equilíbrio de
fusão natural do Sol. Isso só é bem-sucedido após alguns sacrifícios finais por parte de alguns da
tripulação de Yamato.
Capitão Avatar (Okita) é um herói na tradição samurai, embebido de giri (conceito feudal
de dever ou obrigação), que está em uma situação apocalíptica. Como esperado, seu final é
a morte, onde ele se sacrifica pelo que defende. É também o sábio que guia o herói.
A figura do demônio é identificada com Deslock, que é bonito, gentil, inteligente e
competente; ao contrário da maioria dos vilões de quadrinhos americanos da época. A
filosofia de Deslock expressa a sombra do herói, o tirano-monstro imperialista.
Wildstar é o personagem que a jornada do herói. Seu nome, Susumu, significa “progresso”
em japonês. Começa com um comportamento adolescente, é iniciado pelo sábio (Avatar),
apoiado pelo racional (Daisuke) e pela sua anima (Nova). Outra imagem importante é o do
sacrifício, quando Wildstar decide fazer um ataque suicida para finalizar o conflito. O
ataque suicida, tática muito conhecida pelo ocidente devido aos ataques kamikaze na 2ª
guerra mundial.
Nova é identificada como a eterna virgem, mais decorativa do que prática, refletindo as
expectativas machistas sobre as mulheres na época. Como outras mulheres em obras
artísticas japonesas, ela se morre em um acidente no qual estava tentando ajudar o herói.
Yuki significa neve em japonês, simbolizando pureza e castidade. É também uma figura
materna para a tripulação.
Starcha, rainha de Iscandar, é identificada com a grande mãe. Suas qualidades estão
relacionadas à solicitude materna e à simpatia, além de desapego em relação a seu planeta e
suas irmãs. Em japonês, Yamato é feminino, e também tem o papel da grande mãe para seus
tripulantes.
Talvez o personagem mais interessante seja o antagonista do herói, Deslock. Ele inicia como
um líder qualificado, estrategista arrogante e com baixa tolerância ao fracasso. Ao longo da
primeira temporada, seu objetivo fica claro: como outros líderes, está tentando basicamente
salvar seu povo. Na segunda série, já derrotado pela Yamato, Deslock mostra-se possuído pelo
desejo de vingança. Quando tem a chance de vencer, é tocado pela demonstração de amor de
Nova a Wildstar. A seguir, na guerra contra o império da nebulosa negra, mostra lealdade e
devoção a Starsha. No final, mostra lealdade aos novos aliados humanos (SPACE BATTLESHIP
YAMATO WIKI).
Assim, a imagem de Deslock como sombra do herói é válida na primeira metade da saga.
Podemos identificar uma trajetória de redenção de um personagem complexo (VON FRANZ;
CABRAL, 1985), com momentos de conflito entre o dever e o desejo (DRAZEN, 2014), assim
como o papel das emoções nas decisões de um líder que valoriza a racionalidade. Assim como
Wildstar, Deslock também amadurece ao longo da sua trajetória. O primeiro inicia em uma
posição bélica inferior e o segundo em uma posição superior; mas é só após experiências de
quase-morte e superação do trauma da derrota que Deslock fica aberto às emoções e revive a sua
ligação com Starsha. A capacidade de conciliação com o antigo inimigo mostra que Deslock
conseguiu se desapegar do passado e está pronto para liderar uma nova fase de sua civilização. A
amizade e confiança criada entre Deslock e Wildstar no final pode ser compreendida como uma
integração do herói com sua sombra.
Zoja (2000) observa os limites nas civilizações ocidentais, ressalta a importância do desapego
e lembra que tecnologias da arma de fogo não foi difundida no Japão do século XVII. Como
observou (KEEGAN, 2006), a lógica do xogunato Tokunaga era diferente da lógica de
Clausewitz, o general prussiano autor de clássicos sobre a guerra ocidental. Para Zoja, a ética
militar japonesa contém uma honra guerreira de quem não luta apenas pelo seu resultado
mensurável.
A história da civilização de Iscandar (SPACE BATTLESHIP YAMATO WIKI), ilustra o
desapego e também a arrogância. Após dominar a Grande Nuvem de Magalhães, a civilização
decide se retirar seus domínios, e se manter apenas em seu planeta natal, mostrando desapego ao
que já foi conquistado. Um tema recorrente nas guerras situadas no futuro é que a “arma final” é
muito para lidar, como referência às armas nucleares (DRAZEN, 2014). A tecnologia de ondas,
que foi fundamental para a conquista de Iscandar de outros planetas, passa a ser vista como
perigosa demais. Esta trajetória contrasta com a decisão dos Gamilons, que ao perceber que seu
planeta está condenado, passa a procurar um novo lar pela conquista territorial e utilizam todos
seus recursos para isso.
Por outro lado, a queda de Iscandar consequência da tentativa de alcançar a imortalidade,
quando um vírus é criado e dizima quase toda a população, sobrando apenas Starsha e sua irmã
(TIMELDRED, 2013). Típica da arrogância de Ícaro, a mensagem é que mesmo a civilização
mais avançada não deveria buscar ir além dos limites dos mortais.
Considerações Finais
A ficção científica projeta desejos, medos, valores e paradigmas da realidade sócio-histórica
na qual está inserida; é resultado de seu espírito do tempo. É possível explorar o nível macro,
meso e micro.
No nível macro e meso, é interessante notar algumas similaridades e diferenças de USY com
outras séries como Star Trek. Em Star Trek Nova Geração, o comandante Picard explica que no
século 24 não existe mais dinheiro, o que ilustraria uma evolução da humanidade para um
sistema que superasse o capitalismo. Por outro lado, é a hierarquia militar e a especialização
continuam, sem que isto seja questionado. Em USY, o dinheiro ainda existe, assim como a
hierarquia militar e a especialização continuam. O macro e o meso possuem mais similaridades
que diferenças. Outras lógicas de organização da sociedade são apresentadas em outras
civilizações do universo Star Trek, mas existe pouca diversidade em USY em relação a este
aspecto: são basicamente variações de sistemas existentes na humanidade no século XX.
Em Star Trek, existe uma busca ativa pela exploração espacial, refletindo a característica mais
expansionista dos Estados Unidos pós-guerra. Em USY, a busca é reativa, impulsionada por uma
situação apocalíptica, refletindo um país que estava se recuperando de uma guerra devastadora.
Assim como Nova mudou da série original para o remake live action, refletindo mudanças na
sociedade; é possível esperar que o novo filme também traga mudanças nos personagens e suas
relações, assim como uma complexidade maior nos conflitos dos personagens.
A tecnologia em USY tem tanto um potencial destrutivo como um potencial restaurador.
Embora a destruição esteja mais ligada aos usos militares, já antecipava uma preocupação com a
tecnologia biológica, como no vírus que dizimou a população de Iscandar. Este potencial
contraditório é explorado de formas diferentes na tradição de animangás de ficção, como Akira e
Ghost in the Shell.
Ao estudar a evolução da ficção científica ao longo do tempo, é possível identificar as
mudanças do espírito do tempo. USY sempre nos proverá um retrato complexo de um Japão com
muitas questões em aberto, muitas das quais continuam atuais para a humanidade. A maneira
como USY é apropriado pelas novas gerações muda, os desafios mudam, mas a necessidade de
ter esperança para superar cenários apocalípticos, causados por forças diversas, nunca muda. Que
Yamato continue a inspirar pessoas a salvar o mundo!
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ZOJA, L. História da Arrogância. São Paulo: Axis Mundi, 2000.
50 Professor do Centro Universitário FEI e da Fundação Vanzolini, doutor em Engenharia de Produção (POLI-USP), mestre e
bacharel em administração (FGV-EAESP). É conselheiro da Abragames e sócio na Homo Ludens. Publicou seu primeiro livro
aos 18 anos, montou peças de teatro e assistiu muito Sci-Fi. Contato: luizsakuda@gmail.com.
51 Mestre em Administração (UEL), bacharel em ciências sociais (UEL) e MBA (FGV), é coautor das antologias Reflexões de
um Fantasma (Editora Regência); Dimensões BR 2 (Andross Editora) e Poderes (Darda Editora). Expõe os seus trabalhos no
www.criadordemundos.com.br e na www.radiogeek.com.br. Contato: jbalveswriter@gmail.com
2017