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Sumário
Introdução
Homenagem a Sonia Luyten
Moral e ética em Crime e castigo, de Osamu Tezuka
Ghost in the Shell: identidade e memória
Jogadores compulsivos: uma visão analítica sobre Kakegurui
A espada e o que ela conta: histórias de Kenshin e Kaoru
Imaginário e mito nos animes: reflexões sobre a imagem da espada
japonesa em Rurouni Kenshin
Sombra, persona e complexo do bode expiatório: análise do protagonista
Shoya Ishida
Puella Magi Madoka Magica: recapitulação junguiana
O luto em Tengen Toppa Gurren Lagann
Meu amigo Totoro: um convite ao estudo da psique infantil
Aspectos de feminilidade e heteronormatividade em romances yaoi
Yuri!!! on Ice
Alquimia e transformação em Fullmetal Alchemist: a exploração das
potencialidades humanas no personagem Van Hohenheim
O desenvolvimento dos irmãos Elric e a integração da sombra
Introdução
Ivelise Fortim
Cristiana Rohrs Lembo
O iniciadoM em 2017,
LIVRO , 3
ANGÁS ANIMES E A PSICOLOGIA É A CONTINUAÇÃO DE UM TRABALHO
quando o primeiro volume foi publicado. São obras de
não ficção, teóricas, que discutem e analisam sagas queridas pelo público que
consome essas produções, majoritariamente de origem japonesa.
Ivelise Fortim iniciou esse projeto mesclando interesse pessoal com seu
campo de pesquisa no volume 1, convidando Cristiana Rohrs Lembo para
fazer parte dessa aventura no segundo volume. Juntas, organizaram e
produziram mais este livro, que está agora diante dos seus olhos.
O objetivo destas páginas é demonstrar como, para além de histórias
emocionantes, mangás e animes revelam conflitos e desenvolvimentos
psicológicos e culturais. Para isso, diversas obras foram analisadas à luz de
teorias da psicologia, em especial a psicologia analítica, a psicologia
comportamental e a psicologia social.
Neste volume, você encontrará temas de relevância psicológica como a
memória e o luto; críticas e conflitos sociais; a compulsão por jogos e a
representatividade na comunidade LGBTQIA+; e análises simbólicas
junguianas de animes e filmes, explorando os conceitos da psicologia
analítica como um todo.
Ivelise Fortim, acompanhada de Maria Cristina Moraes Rosa Petroucic,
escreveram sobre a identidade humana e as memórias que a constroem a
partir de Ghost in the Shell. Para isso, valem-se dos conceitos de narração e
memória autobiográficas estudando a dinâmica da protagonista, Motoko, em
suas diversas aventuras. As autoras buscaram observar e discutir o quanto a
personagem é impactada por não ter uma constituição inteiramente humana e
as consequências disso em sua história.
Já a vivência do luto e os diferentes impactos que este pode gerar em uma
pessoa foram estudados no anime Tengen Toppa Gurren Lagann. No enredo
dessa aventura, todos os personagens perdem pessoas que amam. Assim, o
autor Marcos Daniel Grassmann Polcino trabalhou a presença do trauma e da
resiliência nos personagens a partir do modo com que lidam com a morte.
O anime Samurai X foi estudado por dois autores sob olhares distintos. A
autora Amanda Rolim escreveu sobre a vivência da violência e da
agressividade por meio do simbolismo da espada. Nessa obra, os personagens
vivenciam aprendizados diferentes quanto aos usos das artes marciais, da
força e da espada. Consequentemente, o modo como lidam com a violência e
a agressividade também é particular. Já o autor Rafael Augusto Montassier
escreveu sobre a complexidade e o fascínio da imagem da espada, mas
valendo-se do conceito de imaginação do antropólogo Gilbert Durant.
Há dois capítulos sobre Fullmetal Alchemist, ambos escritos por Luna
Pereira Gimenez e Marcos Daniel Grassmann Polcino. O primeiro explora os
diferentes rumos que uma pessoa pode tomar a partir de suas decisões, ética e
postura ao longo da vida, indicando os inúmeros potenciais que existem
dentro de um mesmo ser humano. O segundo tem como tema os dois irmãos
que protagonizam a história.
Os autores Jefferson Luiz Pereira e Antonio Carlos dos Santos Gomes
exploraram as questões de ética e moral na psicologia analítica por meio do
mangá de Osamu Tezuka que revisita o clássico Crime e castigo, de
Dostoiévski.
O capítulo escrito por Cristiana Rohrs Lembo trabalha os simbolismos do
período da infância presentes no filme Meu amigo Totoro. Tanto os medos
quanto as descobertas são explorados nesse capítulo, e são também
trabalhados os laços entre mãe e filha e doença e saúde, estudando a
criatividade na figura da criança e os potenciais de futuro adulto que a
protagonista poderá vir a ser.
Outro capítulo com foco na análise simbólica junguiana de um anime foi o
sobre Puella Magi Madoka Magica, da autora Roxane Pirro. Nele, foram
estudados principalmente três imagens presentes na história: as bruxas, o lobo
e o sacrifício.
No capítulo que aborda a obra Koe no Katachi, escrito por Ana Bárbara N.
Mello e Anne Aguemi, as autoras exploraram os conceitos de persona,
sombra e bode expiatório a partir da relação dos protagonistas, Shoya e
Shoko. A segunda personagem, surda, sofrerá bullying de seus colegas, sendo
tal ação liderada por Shoya, personagem cuja dinâmica as autoras exploram
mais a fundo. A partir dessa relação conturbada, Shoya será, inicialmente,
valorizado pela turma e, depois, hostilizado devido às suas ações, sofrendo
por conta das projeções nele colocadas. Tais projeções causaram impactos em
sua persona e em sua sombra, além de terem feito com que ele vivenciasse a
experiência do bode expiatório em sua própria pele, o que, por si só, já é
demasiado impactante. Tais fenômenos, então, são os objetos de estudo das
autoras nesse capítulo.
O capítulo sobre Yuri!!! on Ice, de Louise de França Monteiro e Victor
Sancassani, por sua vez, terá como pauta uma crítica aos demais animes e
mangás de temática yaoi (histórias cujo tema é a relação homoafetiva). Por
vezes, esse tipo de obra constrói relações baseadas em estereótipos
heteronormativos, indicando que haveria sempre um “enquadre-padrão”
nesse tipo de relacionamento, sendo uma das pessoas do par romântico “mais
feminina” e a outra “mais masculina”. O que é discutido no capítulo é
justamente a necessidade de expandir a representatividade nessas histórias
para outros tipos de relações homoafetivas, com diferentes vivências tanto na
apresentação do gênero, sendo mais feminino, mais masculino ou ainda não
binária ou intersexual, quanto na representação de diferentes modos de
expressar a sexualidade.
O capítulo das autoras Julia Motta Vale e Maria Julia Bengel sobre
romances yaoi investiga a ausência de personagens femininas em obras desse
gênero, mesmo que nelas ainda haja expressão de feminilidade nos
relacionamentos homoafetivos entre homens, que reproduzem padrões de
heteronormatividade. As autoras farão críticas e análises a partir do modo
como esses romances são construídos, pois, além de reproduzirem padrões de
comportamentos estereotipados nos relacionamentos entre homens, não há
presença de personagens femininas nos enredos para realmente representar o
público feminino que consome essas histórias.
Por fim, o tema da compulsão por jogos foi analisado por Julio Cesar
Santos Araujo, que tratou do anime Kakegurui. A partir da animação, cujo
tema central são os jogos de azar, o autor articula a vivência e o sofrimento
psicológico dos personagens em relação às questões vividas por aqueles que,
na vida real, enfrentam a compulsão por jogos. O diálogo entre ficção e
realidade é feito por meio de uma análise junguiana.
Acreditamos que este volume, com temas e histórias tão diversas,
contribuirá para o campo de estudo de mangás e animes. Sua proposta é
oferecer novos olhares e análises a respeito desses materiais. Além disso,
esperamos poder informar e, quem sabe, inspirar e gerar reflexão no público
que consome esse tipo de entretenimento, fazendo com que seja possível
enxergar faces mais profundas e enriquecedoras nessas fantásticas histórias.
Boa leitura!
Homenagem a Sonia Luyten
Luiz Ojima Sakuda 1
Ivelise Fortim 2
Julio Cesar Santos Araujo 3
Seu trabalho anterior sobre mangás na Quadreca foi a semente que um dia
se tornaria seu doutorado, um estudo pioneiro sobre o mundo dos mangás no
Brasil e no mundo.
Porém, na universidade, devo dizer que sempre escrevi os livros que eu achava que tinha que
escrever. Para me expressar, não para impressionar com temas da moda. Sempre escrevi para
poder ser lida. Muitas vezes, eles não gostavam, mas a universidade tem que sair daquele
intramundos e o pesquisador [tem que] parar de falar coisas difíceis, para que as pessoas
compreendam.
A experiência no Japão foi bastante importante, pois foi quando Sonia
Luyten pôde vivenciar a interação da cultura pop japonesa com a academia.
A produção nos anos 1980 era volumosa e diversa, mas os estudos
acadêmicos ainda não estavam estabelecidos:
O que eu vi no Japão naquela época foi uma profusão de livros paradidáticos usando
personagens de quadrinhos, mas nada de pesquisa sobre quadrinhos. O Japão, no início dos anos
[19]80, tinha uma profusão de vendas: milhões de cópias [...]. Mas eles não conseguiam se olhar
no espelho e ver o que aquilo significava. [...] os estrangeiros pesquisaram mangá, [...] comecei
a traduzir para o japonês, [isso] não foi muito bem recebido porque era um espelho que nem
sempre a pessoa quer se ver. Então, todas as considerações da leitura, o quando, o porquê das
fantasias, até dos fetiches, que se eu puser o quadrinho mais pornográfico, erótico, então... Isso
não ia muito bem. Naquela época, [havia] muito pouca coisa em Japonês sobre análise do
próprio mangá.
O preconceito dentro da área acadêmica para com seu tema de pesquisa foi
sempre uma barreira, a credibilidade de temas menos tradicionais na
comunidade acadêmica é sempre um processo longo e difícil. Nesse sentido,
Sonia Luyten teve um papel duplo: como pesquisadora na sua instituição e
também como incentivadora do tema em outras instituições de ensino e
pesquisa, pois muitas vezes ela era solicitada como referência na área para
escrever cartas de indicação para que outros alunos pudessem pesquisar sobre
assuntos relacionados às HQs. Tal reconhecimento se deve em muito a sua
perseverança e sua habilidade de seguir mesmo diante das adversidades,
estudando e trazendo mais luz ao tema ao qual tanto se dedicou.
Essa linha da pesquisa... eu sempre batalhei, mas não pensa que foi fácil, não. [...] Eu não gosto
de lamento, eu gosto de falar: “Vamos conseguir fazer as coisas”. Então, [conseguimos] a
introdução de quadrinhos nas teses, TCC, mestrado e doutorado.
Abrademi
Uma das edições da Quadreca do ano de 1976 foi voltada para mangás, e
nela surgiram seus primeiros estudos voltados para quadrinhos japoneses.
Isso abriu portas para a fundação da Associação de Amigos de Mangá, que
mais tarde fez uma exposição na Sociedade Brasileira de Cultura Japonesa e
de Assistência Social (Bunkyo), no bairro da Liberdade.
Esse movimento foi formalizado em 1984 com a fundação da Associação
Brasileira de Desenhistas de Mangá e Ilustrações (Abrademi), um grupo de
profissionais que começaram a realizar as primeiras convenções de mangás
em São Paulo e no Brasil como um todo. Sonia Luyten participou da criação
e foi diretora da associação – quase foi a primeira presidente, também, mas
não pôde aceitar porque estava se mudando para Osaka (ABRADEMI, [20--
]). A Abrademi teve iniciativas pioneiras na difusão da cultura pop japonesa
no Brasil, por exemplo, apresentando os primeiros cosplayers do país.
Sonia Luyten também foi fundadora do primeiro museu de quadrinhos do
Brasil, o Museu de Histórias em Quadrinhos “Júlio de Mesquita Filho”, bem
como de uma mangateca em 1972.
Troféu HQMIX
O Troféu HQMIX é uma das mais tradicionais premiações dos quadrinhos
brasileiros, tendo sido criado em 1988 por José Alberto Lovetro (Jal) e João
Gualberto Costa (Gual). As votações são realizadas por artistas e
profissionais da área, editores, pesquisadores e jornalistas brasileiros (BLOG,
2020). Sonia Luyten participou e ainda participa da comissão organizadora,
tendo sido responsável pela introdução da categoria Livro teórico e das
categorias acadêmicas Trabalho de conclusão de curso, Dissertação de
mestrado e Tese de doutorado.
[Jal e o Gualberto] começaram o programa do HQMIX, o programa do Serginho Groisman. Fui
convidada pra participar depois junto com eles. Tenho toda a história do HQMIX, como júri, já
fui presidente por dois anos, aí então eu achei que estava faltando um item dentro da premiação.
Eu queria inovar e realmente foi o único no mundo, só depois o prêmio Eisner colocou isso. Eu
acho que tem que ter pesquisa também. É o seguinte: no momento em que você valoriza a
pesquisa, muitas vezes o desenhista se vê nisso e muitas vezes a pesquisa é sobre o quadrinho
nacional, o quadrinho latino-americano etc. Com isso, o próprio desenhista volta pro banco
escolar e vai fazer seu mestrado. Partindo de um certo momento, eu quis fazer uma metodologia
de troféus, falei pro Jal e pro Gualberto: “Não adianta eu fazer uma escolha da melhor tese, são
diferentes tipos de teses. Um TCC não pode ser comparado com um mestrado, doutorado ou
ambos. Precisamos de mais verba pra fazer três troféus. Assim, cada um ganha na sua
categoria”.
O HQMIX no caso das teses é algo assim, meu xodó. O que eu mais me empolgo todo ano. São
centenas de páginas pra ler, eu não me importo.
Atividades atuais e considerações finais sobre sua contribuição
Sonia Luyten foi responsável por abrir caminhos para uma arte até então
pouco reconhecida e, principalmente, possibilitou que essa arte fosse
estudada e utilizada de forma didática. Seu trabalho passou tanto pela arte
como pela literatura e pela revisão bibliográfica, dando origem a algo muito
maior no cenário nacional e levando as características da arte nacional
relacionada aos quadrinhos para fora, num intercâmbio rico ao apresentar a
arte dos quadrinistas brasileiros no exterior, comparecendo a convenções e
incitando a criação de outras. Ainda hoje podemos ver frutos de seu trabalho,
mesmo que ela não participe mais diretamente de publicações como a
Quadreca ou que não compareça a convenções de animes e mangás, que hoje
são numerosas.
Atualmente, Sonia Luyten mantém uma atividade bastante importante,
coordenando a comissão acadêmica do Troféu HQMIX, participando de
bancas de monografias de diversas instituições e níveis acadêmicos, além de
apoiar outros pesquisadores. “Estou fazendo o que eu gosto sem a parte
burocrática universitária. [...] Dou muitas palestras, escrevo livros, artigos,
então... Estou com a vida que pedi para Deus”, afirma ela.
Sonia Luyten avalia que as HQs conseguiram se institucionalizar como
campo e considera muito gratificante poder participar de uma comunidade
que cresceu em quantidade e qualidade de pesquisa:
Hoje está num patamar de reconhecimento. Essa é a minha história. Me sinto muito feliz de ter
aberto espaços, de muita gente pegar isso. Tem vários grupos de pesquisa, gente que está
realmente iniciando, outros que estão na carreira há tempos... Mas é uma delícia estar entre
pesquisadores. São vários grupos aos quais eu pertenço e... Ouvir, aprender, tanta coisa que a
gente aprende ainda.
2 Ivelise é doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-
SP), mestre em Ciências Sociais e graduada em Psicologia pela mesma instituição. É docente da PUC-
SP nos cursos de graduação de Psicologia e Tecnologia em Jogos Digitais. Também é coordenadora do
Janus – Laboratório de Estudos de Psicologia e Tecnologias da Informação e Comunicação e sócia da
Homo Ludens Research & Consulting. E-mail para contato: ivelise@homoludens.com.br.
3 Julio é formado em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Tem
grande interesse por assuntos geek e pelo modo como se relacionam com a saúde mental. E-mail para
contato: jc.sih@hotmail.com.
4 A não ser que seja indicada a fonte, os trechos citados neste capítulo são parte da entrevista que
Sonia Luyten concedeu aos autores em janeiro de 2021.
Moral e ética em Crime e castigo, de Osamu Tezuka
Jefferson Luiz Pereira 1
Antonio Carlos dos Santos Gomes 2
2 Antonio é formado em Jornalismo pela UNINOVE e tem pós-graduação em Gestão Financeira pela
Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM). Nerd assumido e parceiro da Homo Ludens na
publicação de títulos voltados para o público geek e nerd. E-mail para contato:
antonio@leograf.com.br.
Ghost in the Shell: identidade e memória
Ivelise Fortim 1
Maria Cristina Moraes Rosa Petroucic 2
G
HOST IN THE
pseudônimo Masamune Shirow), é uma franquia composta por uma
série de produtos culturais. O enredo se inicia em um mangá, mas sua
narrativa também é apresentada em filmes, séries de TV, OVAs 9 e jogos de
computador. O primeiro mangá, The Ghost in the Shell, foi escrito e ilustrado
em 1989.
Graças à enorme popularidade do mangá original, houve múltiplas
sequências em diferentes mídias. Os produtos mais conhecidos são o primeiro
filme de animação da saga, Ghost in the Shell, de 1995, dirigido por Mamoru
Oshii e produzido por Kodansha, Bandai Visual Company e Manga
Entertainment; o anime Ghost in the Shell: Stand Alone Complex, de 2002,
dirigido por Kenji Kamiyama e produzido pelo Production I.G.; e o filme live
action Ghost in the Shell, de 2017, estrelado por Scarlett Johansson, dirigido
por Rupert Sanders e produzido pela DreamWorks Pictures.
Atualmente, a franquia é composta pelos seguintes títulos:
Além das obras listadas, ainda existem romances (Innocence: After the
Long Goodbye: 02, de Masaki Yamada; The Lost Memory, Revenge of the
Cold Machines e White Maze, de Junichi Fujisaku) e dois jogos de
computador (Ghost in the Shell e Ghost in the Shell: Stand Alone Complex).
Todas as histórias da franquia GitS se passam em um universo ficcional no
século XXI. A saga se inicia, mais precisamente, no dia 5 de março de 2029,
em uma cidade chamada Newport, na província de Nihama. No mangá, essa
província está localizada no Japão, e em outras animações, em uma cidade
futurista da Ásia, sem nacionalidade determinada. A protagonista é Motoko
Kusanagi, agente e líder da Seção 9 da Segurança Pública Japonesa, uma
operação especial dedicada a combater o terrorismo cibernético. Há
controvérsias sobre suas origens, existindo diferentes histórias sobre como a
personagem se tornou robótica.
Cabe dizer que as diversas histórias da franquia não se configuram como
um enredo linear, apresentando diferentes visões sobre a personagem Motoko
em universos paralelos, mas, de modo geral, a personagem trabalha com seus
colegas da Seção 9. Ela é a líder do esquadrão de operações, sendo tratada
como “major”. Ela aparenta ser relativamente jovem, mas sua idade é
desconhecida pelo fato de ser uma ciborgue.
Entre os personagens frequentes, temos Batou, que tem olhos cibernéticos;
em algumas versões, é o melhor amigo de Motoko, e em outras é seu ex-
parceiro amoroso; Togusa, detetive da polícia metropolitana que pode acessar
o mundo cibernético, mas que é completamente humano; Ishikawa, hacker
que faz a coleta de informações no espaço cibernético; Borma, auxiliar de
Ishikawa; Saito, atirador de elite; e Aramaki, que comanda o departamento de
segurança pública do grupo da Seção 9 e é chefe de todos. Outros
personagens que aparecem com frequência são as máquinas conhecidas como
Tachikomas, Uchikomas e Fuchikomas, robôs sencientes que ajudam Motoko
(SHINDO, 2017).
Nesse universo, influenciado fortemente por obras do gênero cyberpunk
(especialmente pelo filme Blade Runner, de 1982), os seres humanos podem
ter implantes robóticos. O nível de hibridização vai de acessórios e partes
mínimas até a troca completa do corpo, sendo que um cérebro humano pode
operar em um corpo totalmente protético, caracterizando-se como um
ciborgue. Além disso, os cérebros cibernéticos permitem a interface entre o
cérebro biológico e várias redes digitais (KOMEL, 2016). A própria Motoko
Kusanagi, protagonista da história, mantém apenas seu cérebro biológico e
tem um corpo totalmente robótico. Ela está conectada às redes e pode viajar
por elas.
GitS explora especialmente a figura do ciborgue, em que há uma mistura
entre humano e robô. Um dos temas que desafiam Motoko são questões como
entender se ela ainda é humana ou se é uma máquina, se ela teve uma vida
biológica pregressa e qual o significado disso. Esse tipo de questionamento é
motivo de angústia para a personagem, especialmente no mangá original.
Ghost
Nesse universo futurístico, a palavra Ghost denota uma consciência
individual, que diferencia um humano (ainda que ciborgue) de um robô.
Mesmo que uma pessoa troque seu corpo biológico por um completamente
ciborgue, incluindo modificações e um cibercérebro, a pessoa ainda pode se
considerar humana, desde que retenha seu próprio Ghost. Ghost (espírito)
seria a consciência humana que sobrevive à biologia do corpo, e Shell
(concha) seria o corpo que a carrega. No entanto, pelo fato de terem conexões
cibernéticas, existe a possibilidade de haver vários protocolos que permitem
hackear os cibercérebros (KOMEL, 2016).
A palavra Ghost, presente nas diversas peças que compõem a obra, pode
significar tanto a consciência humana quanto a alma, o espírito ou o kami (de
acordo com a tradição xintoísta), não havendo uma definição exata. O que se
sabe é que nessa obra o termo é usado para diferenciar humanos de robôs.
Uma das questões principais de Motoko é sua dúvida com relação ao seu
próprio Ghost. O que seria ela: uma humana completamente cibernética, com
apenas um fio de cérebro, ou na verdade seria simplesmente um robô?
Na animação de 1995, o significado de Ghost não é esclarecido – a obra
deixa a interpretação por conta do espectador. O termo poderia ser definido
como o ego, a consciência ou, literalmente, a alma, diferencial dos seres
vivos; a inteligência artificial, por sua vez, não possuiria uma alma
(SHINDO, 2017).
Segundo Bardaouil (2017), o Ghost pode representar a consciência, no
sentido sartreano. A partir disso, é possível interpretá-lo como parte da
própria individualidade do ser, onde residem a identidade e as memórias que
constituiriam sua história no mundo.
O tema não é novo e faz referência especialmente ao filme Blade Runner.
Ele traz consigo questionamentos como o que significa ser humano? Qual a
importância de ser humano? O que confere a humanidade a alguém? Ter uma
identidade é prova de humanidade?
Identidade pessoal e memória
A identidade pessoal está especialmente ligada com as memórias pessoais;
os fatos vividos constituem parte da identidade do sujeito. A memória
humana é o armazenamento e a evocação de informação adquirida por meio
de experiências.
Diferentemente das máquinas, a memória humana faz seleções específicas,
sendo que as situações não são apenas registradas, mas também contêm em si
uma carga de emoções e sentimentos, que priorizam e hierarquizam a
memória, trazendo contornos que irão acompanhar o sujeito durante toda a
sua vida. Esse tipo de memória e, portanto, esse senso de identidade pessoal
são responsáveis pela construção do repertório autobiográfico que se
solidifica com o passar do curso da vida e permite que o indivíduo preserve
sua identidade ao longo das variações que compõem as experiências da vida
diária (IZQUIERDO, 1989).
Assim, a relação entre memória e identidade é de constituição mútua, uma
vez que o centro da identidade individual está ligado a um sentimento de
mesmidade e de continuidade no tempo, e o fato de o indivíduo conseguir se
recordar do próprio passado é o que sustenta sua identidade. A memória que
se refere às experiências pessoais e particulares é chamada pela neurociência
de memória episódica, sendo esta a capacidade de se rememorar um passado
vivencial e pessoal (MEJÍA, 2018).
As lembranças episódicas consistem na representação de múltiplas
características dos eventos, sendo que diferentes tipos de informação
(espacial, temporal, contextual) estão vinculados com a consciência
individual das experiências pessoais em um tempo subjetivo. As memórias
episódicas estão baseadas em horários, datas e locais específicos,
determinados por cada evento vivenciado: o sujeito se lembra de ter estado
presente em um contexto. A memória episódica também compreende a
memória autobiográfica, que é um tipo de memória episódica diretamente
associada a eventos autobiográficos de um indivíduo (SCHACTER;
TULVING, 1994 apud MEJÍA, 2018).
Graças à memória autobiográfica, os seres humanos podem organizar e
combinar de forma única o conhecimento sobre o mundo e o conhecimento
sobre si mesmos, o que é essencial para sua sobrevivência. A memória
autobiográfica permite o desenvolvimento da consciência de identidade
pessoal e da capacidade de a pessoa reviver seu passado, tornando possível
tanto interpretar o presente quanto planejar o futuro. Entretanto, a memória
não é uma entidade fixa (determinada apenas pelo nível orgânico), mas uma
entidade dinâmica, com múltiplos centros de interação, que se constitui e se
reconstrói constantemente em função de seus múltiplos sistemas (RUIZ-
VARGAS, 2004 apud MEJÍA, 2018).
Segundo Ruiz-Vargas (2004 apud MEJÍA, 2018), as lembranças
autobiográficas têm algumas características particulares. Uma delas é o fato
de tais vivências se relacionarem diretamente com o eu; assim, para que uma
lembrança seja biográfica, deve haver uma continuidade entre o passado
evocado e a sensação do presente do eu. A segunda característica é sua
estrutura narrativa, ou seja, o fato de poder narrar-se, construir-se e
desconstruir-se contínua e coerentemente, para se dar conta de quem se é,
pois a memória é um ato criativo, sendo a confabulação um fato normal da
vida. Outras características da memória autobiográfica referem-se às imagens
mentais: a possibilidade de “ver”, mostrando que os aspectos sensoriais são
importantes. A lembrança narrada é mais que um relato do que se passou, é
uma convergência do que o sujeito viu, sentiu e ouviu, apesar de os traços
mnésticos (de memória) serem suscetíveis à distorção. Ainda como
característica, temos um componente emocional que influi nas lembranças;
determinadas situações vividas podem ser evocadas em detalhes; outras,
porém, podem ser esquecidas (MEJÍA, 2018) ou mesmo ficar no plano
inconsciente, como pode ocorrer nos eventos traumáticos.
Entretanto, a narração pessoal autobiográfica de um sujeito é determinada
não apenas por sua própria memória, mas também pela memória dos outros.
Nesse sentido, a memória individual se entrelaça com o contexto social, no
qual se constrói por intermédio da interação com o outro. Segundo Ruiz-
Vargas (2004 apud MEJÍA, 2018), a memória autobiográfica possibilita o
conhecimento do eu.
Ghost como memória autobiográfica
Como dissemos anteriormente, Blade Runner é uma referência importante
para GitS. Os temas da memória e da identidade já haviam sido colocados,
pois nesse filme uma das grandes diferenças estabelecidas entre humanos e
androides é que os primeiros têm uma memória pessoal, não padronizada. As
memórias dos androides, por sua vez, são todas iguais entre si, sendo
implantadas mecanicamente. Essas memórias não pertencem a eles, mas são
cópias da memória da filha de seu criador. Em Blade Runner 2049, essa
questão também é colocada, sendo que a filha de Deckyard é uma criadora de
memórias.
No universo de GitS, as inteligências artificiais parecem não ter memórias
pessoais. Motoko, em diversas peças que compõem a franquia, não tem
memórias de uma existência anterior. Ela está aprisionada em sua concha e
por isso continua buscando por sua identidade individual. A personagem diz
que,
assim como existem muitas partes que são necessárias para fazer um humano, há inúmeras
coisas que são necessárias para fazer um indivíduo do jeito que ele é. Um rosto para se
distinguir dos outros; a voz por quem você percebe quando não é você mesmo. A mão que você
vê quando você acorda. As memórias da infância. Ter os sentimentos com relação ao futuro.
Isso não é tudo, existe a expansão de dados que o meu cibercérebro pode acessar. Tudo isso vai
fazer o que eu sou. Dando nascimento à consciência que eu chamo de eu e simultaneamente me
confinando dentro dos meus limites. (GHOST, 1995)
Nessa fala de Motoko, fica nítida sua concepção de Ghost como memória
autobiográfica. A concepção de memória dessa personagem inclui aspectos
corporais, sociais e da sua memória infantil.
Como podemos ver, a memória é um ponto importante em GitS. Em um
universo onde a internet acessa o cérebro e o cérebro acessa a internet, existe
a possibilidade de hackeamento do cérebro e das memórias pessoais. Esse
tema aparece por diversas vezes nessas narrativas, fazendo com que os
personagens não tenham certeza se de fato possuem determinadas memórias
ou se elas foram alteradas. Além disso, em um cérebro cibernético, existe a
possibilidade de haver memórias implantadas de maneira artificial, e
esquecimentos também podem ser atribuídos ao hackeamento da memória.
Na versão do filme live action A vigilante do amanhã, de 2017, Motoko
tem sua memória apagada para servir ao governo, tornando-se uma
importante espiã e assassina. Contudo, sua memória traz flashbacks de cenas
estranhas que ela não consegue compreender. Essas cenas se revelam como
memórias de fatos que ela havia vivido, mas que foram apagados. Ela
descobre não ser quem pensava que era, pois a história que lhe foi contada
sobre sua família e sua origem não é verdadeira. Nesse filme, a perda da
memória autobiográfica refere-se à perda da identidade e de vivências
associadas às suas relações familiares. Entretanto, memórias importantes
sobrevivem no inconsciente da personagem e acabam retornando. Por estar
sendo manipulada, o governo a faz crer que isso é o resultado de defeitos em
seu sistema, mas a memória traz a verdade sobre si mesma, sobre sua história
pessoal e sobre seus valores.
Em Ghost in the Shell Arise (2013), o enredo gira em torno do passado de
Motoko, que aparece mais jovem. É explorada a relação entre seu corpo
cibernético ser seu ou pertencer ao governo. Aqui ela também se refere ao
fato de “não ter resquícios de lembranças de um corpo de carne e osso” e
entende que o “Ghost é aquilo de mais independente que existe nesse
mundo”. O fato de não ter lembranças conferiria a ela um status não humano.
Entretanto, por vezes, crê em seu Ghost e entende que ele é que lhe dá as
direções. Em Ghost in the Shell Arise – Alternative Architecture, filme de
animação (OVA) de 2015, Motoko combate um terrorista que utiliza um
símbolo que a impressiona e incomoda, mas que ela não sabe exatamente o
que significa. Contudo, apesar de não entender conscientemente seu
significado, sente que está conectada àquele evento, de algum modo. Ao
final, descobre que teve suas memórias apagadas e também percebe que tanto
o símbolo como o terrorista que persegue estão conectados à sua própria vida.
Nessa série, também é sugerido que todas essas memórias de Motoko podem
ser falsas.
Em Ghost in the Shell: The New Movie (2015), o passado de Motoko é
explorado de maneira diferente. Descobre-se que ela vivera em um orfanato
para crianças cibernéticas. Nesse filme, é sugerido que seus pais morreram
em um ataque terrorista com armas químicas e que seus corpos foram
recolhidos pelo Órgão 501. Motoko possui lembranças desse orfanato e de
suas amigas, mas não tem certeza sobre a história de sua família. Nesse
sentido, a personagem não tem lembranças de um corpo físico, importante
para a constituição da memória, nem de experiências familiares. A
experiência mais próxima disso é sua relação com as crianças do orfanato.
Em Ghost in the Shell: Stand Alone Complex (2002-2003), depois de um
ataque em sua residência, Batou retorna para buscar alguns objetos: o relógio
de estimação de Motoko e equipamentos de musculação. Na série, isso é
visto como uma “prova” de sua humanidade, uma prova externa de que o
“eu” é “eu”, uma vez que Batou arrisca a vida por esses objetos. Ao entregar
o relógio para Motoko, ela lhe diz: “Relógio e musculação... nós dois nos
apegamos a fragmentos tão fúteis da memória”.
Ao longo das narrativas de GitS, Motoko repete várias vezes a frase “Pois
é isso que sussurra meu Ghost”, como se Ghost, além de memória
autobiográfica, pudesse ser sua intuição, algo que as máquinas não parecem
ter.
Em Stand Alone Complex, ao salvar as Hadalys (bonecas de sexo) que têm
o Ghost clonado de uma humana, uma delas diz que não quer ser boneca,
pois é humana. Motoko lhe responde que as bonecas provavelmente também
se angustiam porque não querem ser humanas. A questão é: por que um robô
se angustiaria ao saber que não é humano? A partir de um dispositivo de
reprodução de almas, os Ghosts podem ser clonados, mas isso levaria à morte
do cérebro original.
Em GitS, a manipulação da memória gera diversos conflitos e debates, que
não atingem apenas Motoko. Ainda em Stand Alone Complex, idosos e
crianças maltratadas têm suas memórias hackeadas para esquecerem suas
vidas pregressas de abuso e abandono e passam a acreditar que são parentes.
Assim, os idosos teriam alguém que cuidasse deles, e as crianças, um lar
longe de abusos. Seria esse um bom uso da possibilidade de apagar
memórias?
Em Ghost in the Shell: o fantasma do futuro (1995), um lixeiro tem sua
memória hackeada. Ele pensa ter uma esposa e um filho e se angustia pelo
processo de divórcio. Pensa estar ligando para o advogado, quando na
verdade apenas está sendo manipulado pelo Mestre dos Fantoches. Ao ser
preso, descobre que não tinha aquela família e se desespera ao saber que, na
verdade, vive sozinho. Nesse caso, a manipulação só confere sofrimento ao
personagem.
Voltando aos acontecimentos de Stand Alone Complex (2002-2003),
policiais atiram na primeira ministra em um evento, pois foram atingidos por
um vírus adulterador de memórias, chamado “acendedor de chamas”. O que
aconteceria se fosse possível que um vírus modificasse, em massa, as
memórias de cidades inteiras? Caos e desordem tomariam conta da
sociedade?
Outra questão levantada na série é a possibilidade de externalização da
memória. Se a memória puder ser controlada pelo exterior, será que ainda
poderemos nos considerar humanos? Segundo Zhou e An (2018), quando a
memória humana é ameaçada pela tecnologia, a relação íntima entre
humanidade e máquina de fato assimila os seres humanos e obscurece a
identidade individual, o que gera uma crise de identidade humana. Em
conclusão, Motoko é responsável por sua própria construção de identidade.
Como o filme Stand Alone Complex sugere, embora a tecnologia impeça a
formação da identidade humana, os ciborgues ainda superam a crise de
identidade e, finalmente, descobrem que a memória é essencial para que
construam uma identidade própria.
Considerações finais
A memória autobiográfica, em grande medida, traz em si a identidade
pessoal e sua carga afetiva. A perda dessa identidade pode causar vários
danos às pessoas e à civilização como um todo.
Ao final do filme Ghost in the Shell: o fantasma do futuro (1995), bem
como do mangá original (1989), a major se funde a outra entidade
cibernética, conhecida como Mestre dos Fantoches, em um “casamento”. A
partir disso, ela se torna uma outra entidade, um cérebro que Batou aloca em
outro corpo.
Nos mangás posteriores (1991) e no filme Ghost in the Shell 2: Innocence
(2004), Motoko fica inteiramente na rede, ocupando corpos cibernéticos
apenas quando isso lhe convém. Ela viaja pela rede e tem pleno acesso a ela,
comunicando-se com membros da Seção 9 também apenas quando
necessário. Não é claro, entretanto, se ela manteve seu Ghost. É possível que
sim, pois foi capaz de reconhecer Batou e ajudá-lo no caso das Hadalys, mas
não há certeza quanto a isso.
Em The Ghost in the Shell: Human-Error Processer (2008), Aramaki e
Batou procuram por Motoko. Ao final, eles concluem que ela teria virado um
híbrido, uma vida artificial inteligente, um ser com Ghost e inteligência
artificial, com poderes nunca vistos antes. Creem que esse é um novo tipo de
ser, que devem procurar compreender. Isso quer dizer que, mesmo nesse ser
híbrido, o diferencial em relação às máquinas é a presença de um Ghost. Ao
final do terceiro mangá, sugere-se que Motoko teria se apropriado de uma
médium, isto é, teria se unido a mais um Ghost.
O universo de GitS nos traz diversos questionamentos a respeito do futuro
da humanidade. Caso a tecnologia nos permita algo semelhante ao ilustrado
por GitS, como seriam esses híbridos no futuro? Cabe lembrar que já
vivemos em uma sociedade cujos algoritmos de inteligência artificial estão
bastante presentes. Será que nesse contexto em que os algoritmos das redes
sociais podem no conhecer melhor do que nós mesmos as nossas memórias
autobiográficas ainda irão manter nosso senso de individualidade?
Aguardemos os próximos anos e suas mudanças. A imensidão da internet
ainda nos trará muitas possibilidades. E para onde vai a humanidade? Como
diria Motoko: “Não sei, para onde será que eu vou? Ah, como a rede é
vasta...” (MASAMUNE, 2016, p. 344).
Referências
BARDAOUIL, L. A concha existencial: aspectos do existencialismo sartreano na obra de animação
japonesa Ghost in the Shell (1995). Orientador: Prof.ª M.ª Flávia Santos Arielo. 2017. 55 f. Tese
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GHOST in the Shell: o fantasma do futuro. Direção: Mamoru Oshii. Japão: Bandai Visual
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IZQUIERDO, I. Memórias. Estudos Avançados, Rio Grande do Sul, v. 3, n. 6, p. 89-112, 1989.
Disponível em: https://www.revistas.usp.br/eav/article/view/8522. Acesso em: 4 maio 2021.
KOMEL, M. The ghost outside its shell: revisiting the philosophy of Ghost in the Shell. Teorija in
Praksa, Eslovênia, ano 2016, v. 4, ed. 53, p. 920-929, 2016. Disponível em:
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Acesso em: 11 mar. 2020.
MASAMUNE, S. The Ghost in the Shell. São Paulo: JBC, 2016.
MASAMUNE, S. The Ghost in the Shell 2: Manmachine Interface. 2. ed. São Paulo: JBC, 2017.
MASAMUNE, S. The Ghost in the Shell, v. 1.5: Human-Error Processer Deluxe Edition. New York:
Kodanssha Comics, 2008.
MEJÍA, D. M. La memoria neuropsicológica y la memoria psicoanalítica: reflexiones e
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(Graduação em Psicologia) – Facultad de Ciencias Sociales y Políticas, Fundación Universitaria
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RUIZ-VARGAS, J. M. Claves de la memoria autobiográfica. In: FERNANDEZ; HERMOSILLA (ed.).
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CONFERENCE ON EDUCATION, SOCIAL SCIENCES AND HUMANITIES, 2018, Dubai.
Anais […]. Dubai: ICESSH, 2018. p. 136-141.
Notas
1 Ivelise é doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-
SP), mestre em Ciências Sociais e graduada em Psicologia pela mesma instituição. É docente da PUC-
SP nos cursos de graduação de Psicologia e Tecnologia em Jogos Digitais. Também é coordenadora do
Janus – Laboratório de Estudos de Psicologia e Tecnologias da Informação e Comunicação e sócia da
Homo Ludens Research & Consulting. E-mail para contato: ivelise@homoludens.com.br.
2 A prof.ª dr.ª Maria Cristina é docente da PUC-SP no curso de Psicologia, neuropsicóloga e terapeuta
psicodramática. E-mail para contato: siguicris@gmail.com.
E
STE CAPÍTULO PRETENDE RELACIONAR O ANIME
psicologia, buscando com isso aproximar a obra fictícia em forma de
animação da realidade sob o olhar da psicologia e das questões
envolvendo saúde mental no que diz respeito à dependência de jogos de azar,
também conhecida como transtorno de jogo.
Kakegurui – traduzido para o inglês como Compulsive Gambler, que em
tradução literal para o português seria algo como “jogador compulsivo” – foi
originalmente um mangá que começou a ser publicado em 2017. A obra foi
adaptada para anime em 2017, ganhando uma segunda temporada em 2019.
Seu roteiro foi escrito por Homura Kawamoto e suas ilustrações são de
autoria de Toru Naomura. Pertence ao gênero shonen, classificação de obras
que costumam conter mais ação e que têm como objetivo atingir o público
masculino.
A trama do anime gira em torno de um colégio frequentado por estudantes
de famílias muito ricas e influentes que possuem o hábito de apostar entre si.
Os prêmios das apostas variam, podendo ser desde grandes quantias de
dinheiro até posses pessoais; com o tempo, as apostas vão avançando até que
os personagens chegam a colocar em jogo o controle sobre a vida de outra
pessoa. As apostas começam a ficar ainda mais imprevisíveis diante da
chegada de uma nova aluna, Yumeko Jabami, uma garota aparentemente
comum que descobrimos possuir uma enorme dependência em jogos de azar.
Yumeko não parece possuir nenhum tipo de apego material ou bom senso
quando se trata de apostas; ela não possui uma motivação clara, apenas faz
qualquer coisa para conseguir uma aposta que seja imprevisível e inovadora.
Passando a desafiar a autoridade da escola, o Conselho Estudantil, ela
começa a desenvolver laços com outros alunos e se indispor com o Conselho
Estudantil, que possui uma presidente tão louca por apostas quanto ela.
Transtorno de jogo, jogo patológico ou ludomania: independentemente de
como for chamada, a dependência de jogos de azar não é algo que se limita
ao universo de Kakegurui. Segundo o Manual diagnóstico e estatístico de
transtornos mentais (DSM-V), o transtorno de jogo é classificado como uma
doença na parte de dependências, por possuir algumas similaridades com a
dependência em substâncias químicas. Em países em que jogos de azar são
legalizados e estruturados, como os Estados Unidos, observa-se um número
maior de dependentes, embora existam canais de auxílio financiados pelos
próprios cassinos. Desse modo, quem vende a doença também é obrigado a
patrocinar a cura, por assim dizer.
No Brasil, a cultura de jogos de azar é mais velada e o acesso a essa
modalidade de jogo é um pouco mais difícil. Os meios legalizados envolvem
sorteios como a Mega-Sena e carnês; entre os meios ilegais, há o famoso jogo
do bicho, em que a pessoa aposta em números que correspondem a animais,
concorrendo a uma determinada quantia em dinheiro. Também existem
inúmeros cassinos ilegais.
Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), jogo patológico é a
incapacidade da pessoa de controlar o hábito de jogar, independentemente
das consequências sociais e financeiras que isso venha a trazer para sua vida.
O diagnóstico de JP (Jogo Patológico) acompanha o raciocínio geral das dependências,
assentando-se sobre três pilares: perda de controle, ajustamento psicofisiológico à atividade
repetida com frequência e persistência do comportamento, mesmo em face dos prejuízos.
(MARIANI; TAVARES, 2014, p. 345)
A autora também cita Zoja, que diz que as drogas seriam um meio de se
colocar na sociedade, definir identidade e não fugir da realidade. O vício
poderia ser, então, decomposto em três elementos: a tolerância orgânica, o
hábito psicológico e uma tendência arquetípica, esta relacionando-se de
forma comparativa a um elemento sagrado, uma experiência transcendental
nos hábitos de consumo da droga, como papel de um rito de passagem para
algo mais.
Segundo Souza et al. (2009), em sua leitura sobre Tavares (2000), a
melhor definição de jogo patológico é uma dependência comportamental,
cujos traços que mais chamam atenção seriam a impulsividade e a sensação
de êxtase, que são muito similares aos que ocorrem durante a experimentação
de drogas – no caso do jogo, vindo da emoção de ganhar apostas e obter bons
resultados ao se arriscar em um jogo de azar.
O padrão descrito encaixa-se perfeitamente com o comportamento de
Yumeko durante as apostas. Assim, podemos dizer com propriedade que ela é
uma jogadora compulsiva – em outras palavras, uma vítima do transtorno de
jogo. Em vários momentos, a personagem mostra-se em busca do prazer de
apostar; no entanto, ela deleita-se não necessariamente com a possibilidade
de vitória, mas com a imprevisibilidade da aposta: quanto maior a
engenhosidade da estrutura da aposta, maior o valor apostado, maior o risco e
maior o seu prazer. Ela não se importa de perder, desde que a aposta seja boa.
A ficção cria essa personagem dependente de apostas e jogos de azar e a
caracteriza com diversos traços pertencentes a dependentes da vida real. No
anime, até o momento, ela não parece se importar em sacrificar relações em
prol do jogo; muito pelo contrário, ela já rompeu relações com personagens
que ficaram no caminho de suas apostas ou que a atrapalharam no jogo de
alguma forma. Yumeko não é uma simples viciada, ela ama tanto o jogo que
gosta de dividir o risco com pessoas que são especiais para ela. A dinâmica
dionisíaca fica clara em momentos como esse, em que a personagem central
afirma que gosta de jogar até enlouquecer e sente muito prazer quando
terceiros enlouquecem com ela. Nesse sentido, seu comportamento está muito
ligado ao aspecto e ao mito das bacantes, as servas de Baco, deus do vinho e
da loucura que possuía seguidoras e amantes que, inebriadas com seu poder e
sua presença, tornavam-se completamente selvagens e imprevisíveis, vivendo
ao máximo, de forma impetuosa e dilacerando qualquer coisa que ficasse no
caminho de seu prazer e de sua loucura.
De acordo com Oliveira (2004) (apud FORTIM, 2013), os principais
motivos que levam as pessoas a serem dependentes de jogos de azar são a
solidão, a depressão, a carência, o tempo ocioso e a fuga de conflitos. Os
dependentes de jogo se embasam muito em uma vivência de persona que se
desfaz com o tempo. Diferentemente do uso de drogas, esse tipo de vício é
mais comum em pessoas mais velhas, enquanto o vício em drogas é mais
comum em adolescentes como forma de encontrar seu lugar na sociedade.
Esse é um dado um tanto irônico quando colocado nesta análise, cujo foco é
uma personagem adolescente.
Fortim (2013), citando Oliveira (2004), menciona que os jogadores
compulsivos são pessoas que se consideram vencedoras, mas cujo ego não
possui estrutura para sustentar a condição de vencedor; sendo assim, colocam
em jogo as coisas que têm a perder. Seriam pessoas que passaram a vida sem
saber dizer “não” aos outros, mas sendo pouco permissivas quando tratam de
si mesmas. Por fim, podemos dizer que são pessoas que tiveram de exercer
um papel materno muito cedo, antes de estarem prontas para isso; essa
questão do papel materno independe do sexo da pessoa em questão, tratando-
se da questão de acolher, cuidar e fortalecer.
A animação Kakegurui não revelou muitas informações sobre Yumeko e
sua família, tampouco sobre seu passado. A única coisa que podemos
discorrer sobre ela seria que possui uma leve tendência a ocupar um papel
materno, que comumente está oculta pela loucura e pela embriaguez
ocasionadas pelo vício em jogo. Esse papel materno é desempenhado nas
ocasiões em que ela se oferece para apostar com outras pessoas para ajudar
terceiros, ainda que isso acabe sendo mais um ganho secundário do que
primário, que para ela é o prazer de apostar.
O último dos pilares anteriormente mencionados na obra de Fortim (2013)
fala sobre a relação entre sombra e persona, diferente do pilar de
identificação com o arquétipo de Grande Mãe; este se torna mais óbvio e
interessante para analisarmos a protagonista de Kakegurui.
Assumindo que os conteúdos da sombra sejam aqueles que não se
encontram na persona e que diversas vezes sejam conteúdos que reprimimos
por diferentes questões, como por não serem aceitos socialmente, é
necessário compreender como se relacionar com os materiais que estão ali.
Pessoas que vivem em uma persona muito rígida não abrem espaço para
nenhum tipo de relacionamento com a sombra, o que inevitavelmente leva a
sombra a se manifestar de maneira intensa, assumindo total controle sobre o
indivíduo e manifestando de uma só vez tudo que ali estava reprimido, de
certa forma como uma “possessão”.
O termo “possessão” encaixa-se perfeitamente quando analisamos a
personagem Yumeko Jabami. Verificando apenas o que nos foi apresentado
pelo anime, não temos informações suficientes para afirmar se Yumeko vive
em persona ou se possui uma persona muito rígida; podemos apenas supor
que, graças à grande diferença entre a garota doce, simpática e aparentemente
ingênua que ela demonstra ser quando não está apostando e que, ao receber
um desafio suficientemente interessante, transforma-se totalmente na
apostadora descontrolada e sem nada a perder.
Fortim (2013) discorre no fragmento a seguir sobre a funcionalidade da
sombra dentro do mecanismo psíquico no que diz respeito ao comportamento
do dependente:
A combinação de Sombra pessoal, comportamento adictivo e Sombra Arquetípica/Mal
Arquetípico acaba se tornando um poder sem igual na psique, tomando conta do complexo do
Ego. Essa Sombra arquetípica é um aspecto da psique que é impossível de ser integrada e deve
ser combatida, pois transcende a Sombra pessoal. As pessoas são levadas a contatar esse
arquétipo por sua força e energia incríveis, a sensação de liberdade inimaginável e a sensação de
completude dos desejos de status, prestígio, dominação e promessas de potência sobre-humanas.
(p. 79)
O originalmente
MANGÁ R K
UROUNI S
ENSHIN OU X, N
AMURAI DE W
OBUHIRO ,
ATSUKI PUBLICADO
no Japão em 1994 e no Brasil em 2001, foi transformado
em anime pelo Studio Gallop, transmitido no Brasil em televisão aberta.
Hoje, a animação está disponível na íntegra em serviços de streaming.
O enredo da obra se desenvolve no início da Era Meiji e conta a trajetória
de Kenshin Himura, um andarilho misterioso que possui cabelos ruivos e
uma cicatriz em forma de X em seu rosto. Ele vaga sem rumo e segue
solitário por dez anos, arrependido de seu passado sangrento. É um homem
que toma consciência da sua história e busca mudá-la, escrevendo seu futuro
de modo pacífico. Toda a história de Kenshin é atravessada pela lenda de
Battousai, o Retalhador, um lendário espadachim que serviu ao império antes
da consolidação da Era Meiji. De acordo com essa lenda, tratava-se de um
homem que fez sua fama matando muitas pessoas em nome do império e que
desapareceu sem deixar pistas. A história de Kenshin vai revelando aos
poucos que ele é essa lenda desaparecida. Relata, também, como ele foi
mudando ao longo de sua trajetória até chegar ao momento em que encontra
Kaoru e os novos companheiros.
Kaoru Kamiya é uma mulher de personalidade forte, muito determinada e
altamente ligada à tradição familiar. Kaoru é espadachim e mestre em um
dojo, onde ensina a técnica de sua família. Ela e Kenshin desenvolvem um
relacionamento de amizade e companheirismo, passando a viver juntos no
dojo com a família de Kaoru e os amigos que fazem ao longo do caminho.
A saga de Kenshin se divide em momentos: são três temporadas de anime
e dois OVAs (original video animation) em que são contadas suas aventuras
e as de outros personagens que o acompanham em sua jornada. Além disso,
existem três filmes live action.
O presente capítulo trata de um panorama geral do anime com foco nas
histórias contidas nas espadas de Kenshin e de Kaoru.
Conceito, metáfora e histórico: qual a espada?
Pensar o que é uma espada passa por diversos níveis de compreensão:
existem níveis conceituais mais abrangentes e culturalmente compartilhados e
níveis mais específicos, como a história que cada indivíduo tem com o objeto
(conhecimento sobre manejo, forja e outros). Além desse aspecto, é
necessário destacar que a história construída em relação à espada também é
composta pelos afetos, pensamentos e valores que ela suscita e mobiliza nos
indivíduos e na cultura. A seguir, discutiremos um pouco a ideia de conceito
com base em classes de estímulo, o que nos ajudará a compreender como,
coletivamente, aprendemos alguns aspectos conceituais da espada.
Quando ouvimos o termo “espada” imediatamente alguma imagem se
forma em nosso pensamento. Essa imagem vai depender do quanto
conhecemos esse objeto; talvez nosso pensamento imagine algo genérico,
uma empunhadura e uma lâmina, ou forme uma imagem mais específica,
como a de uma katana afiada, semelhante à de algum personagem do anime,
ou até mesmo uma arma de características de outra cultura e de outro
momento histórico; no entanto, todas essas imagens podem ser agrupadas no
conceito de “espada”.
Isso quer dizer que um objeto corresponde ao conceito de algo, isto é, o
objeto pode representar a si mesmo ou representar um conceito. Se tivermos
em mente a espada, mais especificamente a katana, podemos agrupá-la em
alguns conjuntos (classe de estímulos) que guardam semelhanças entre si e
representam tanto a katana quanto outros objetos. Exemplo: katana é um tipo
de espada, logo pode ser definida como: 1. Arma; 2. Arma branca; 3. Arma
de samurai.
Nesse exemplo, um objeto, tendo suas características e dimensões
mantidas, pode ser colocado em três conjuntos diferentes, pois existe algo em
comum entre eles. Nesse sentido, buscou-se destacar que existem
significados mais abrangentes quanto a definições e grupos mais restritos –
como no exemplo, em que se parte de um conjunto maior para conjuntos
menores.
Quando pensamos em metáfora, estamos dizendo que um objeto, uma
imagem ou um item pode estar sendo usado com um conceito diferente do
tradicional, ou que representa partes de um outro conceito; vejamos mais um
exemplo: katana também faz parte da classe de estímulos Armas japonesas ou
Objeto da cultura japonesa e, em sentido metafórico, pode significar o
aspecto mais global desses conceitos.
A metáfora tem aspectos comuns, pois se constrói com base em conceitos e
objetos que a comunidade e a cultura conhecem e aos quais têm acesso, mas
não corresponde de modo literal a si mesma. Ela comunica algo para além
daquilo que está contido em suas dimensões físicas: afetos, valores,
pensamentos e ideias que têm sentido compartilhado; se não fosse esse o
caso, a metáfora não seria compreensível aos outros. Ainda que cada uso de
metáfora tenha aspectos da história individual e comunique elementos
individuais da história de cada um, ela também está construída em aspectos
culturalmente compartilhados.
Para falarmos em histórico, a premissa utilizada se baseia na ideia de
relação que as pessoas desenvolvem com o mundo que as cerca, seja o
mundo físico ou o mundo social. Essa relação é fundamental para entender o
histórico de cada um. Para explicar como uma história é construída, é preciso
entender que ela é resultado das interações entre a pessoa e o ambiente em
que vive. Entende-se que ações, sentimentos, valores e pensamentos são
todos produtos dessa relação contínua entre um indivíduo e o meio (físico e
social). Para fins didáticos, não analisaremos aqui os históricos culturais; o
que faremos será descrever o ambiente cultural para utilizá-lo como contexto
no qual as histórias individuais se desenvolvem.
Considerando essas noções de conceito e metáfora, o presente capítulo vai
se focar em análises baseadas nas histórias individuais, mas é importante ter
em mente que se trata apenas de uma proposta de leitura.
A espada na Era Meiji
No enredo de Samurai X, as espadas possuem um significado negativo no
início da Era Meiji, uma vez que o simples ato de carregar uma espada
desperta choque e reações adversas na população. Desse modo, entende-se
que elas carregam em sua imagem a história construída a partir de muitas
mortes e destruição; assim, tornaram-se símbolo do poder conquistado às
custas da morte de pessoas inocentes. O anime mostra que apenas militares
têm autorização para empunhar esse tipo de arma. É dito em diversas cenas o
quanto as espadas são proibidas e qual o significado que a população atribui a
elas.
Nesse sentido, a espada carrega em si toda a história dolorida que aquela
cultura viveu e, no sentido coletivo, torna-se sinônimo de destruição e
sofrimento. A arma passa a ser compreendida como um instrumento que
provoca o mal. Ainda que as crianças e os mais jovens não tenham vivido o
contexto da guerra, a história pela qual as comunidades passaram ainda se faz
presente e esses valores comuns em relação às espadas continuam sendo
transmitidos, perpetuando o pareamento “espada = destruição”.
Ainda que novas relações possam ser construídas para esse objeto, estas
serão escritas dentro do contexto maior que perpetua os valores de que elas
são instrumentos que provocam dor e sofrimento. Partindo da história da
comunidade, é importante destacar que ainda que grupos menores (famílias,
dojos) tentem construir novos significados e recuperar a tradição anterior ao
período da revolução, permanecem inseridos em um grupo maior, que
dissemina valores antagônicos. Portanto, a relação se torna mais complexa, e
podem surgir conflitos quanto aos significados atribuídos à espada.
Destaca-se aqui como objetos podem carregar em si muito mais
complexidade de significados do que apenas os da história individual ou da
história coletiva: elas se misturam e uma compõe a outra. Ainda que em
alguns momentos seja possível discriminar o que é resultado da história
individual do que é resultado da história da sociedade, não há como negar o
quanto uma influencia a outra.
Como pontuado anteriormente, a proposta deste capítulo é relacionar as
espadas com a história nelas impressa pelas relações individuais, e é isso que
faremos a seguir.
A espada de Kaoru: raízes familiares
Kaoru Kamiya é a mestra do dojo de seu pai, onde ensina a técnica criada
por ele, aliando o estilo de luta aos valores que cultiva quanto a justiça, papel
das artes marciais e disciplina do estudo. Nessa breve descrição da
personagem, pode-se fazer a leitura do quanto a espada está associada a
valores familiares e com um significado afetivo muito importante e muito
potente. Kaoru honra a memória de seu pai pela prática de sua técnica, o
estilo Kamiya.
A relação da personagem com o pai é de proximidade e respeito. O valor
dos ensinamentos dele são muito caros a ela, e a proteção de seu legado é
fundamental para a personagem. Um exemplo disso se dá no primeiro
episódio, quando Kaoru enfrenta um homem que busca vingança da família
Kamiya, passando-se por Battousai, o Retalhador, e contando para todos que
foi com o estilo Kamiya que matara tantas pessoas, manchando a história de
respeito e paz que o pai de Kaoru tanto se dedicara a construir. A
determinação da personagem em preservar a tradição familiar é tamanha que
ela enfrenta o homem para desmascará-lo e restaurar a honra do nome de seu
pai.
Na técnica que Kaoru pratica, a espada é um instrumento para defesa, é
feita de bambu e não possui lâmina. Assim, em termos de definições clássicas
da espada, ela já rompe com a imagem genérica. O fato de essa arma ser
empunhada apenas para a defesa e de a técnica inteira ser direcionada para a
preservação da vida, não para disseminar a violência e derramar sangue, é
radicalmente diferente do conceito de espada que a comunidade dissemina.
O material da arma de Kaoru, o bambu, é um material de origem natural
que foi manipulado, porém não foi fundido ou transmutado pelo fogo: é uma
arma que não carrega em si elementos de “sofrimento” nem mesmo em sua
composição. Em uma proposta quanto às metáforas que as espadas carregam,
a de Kaoru parece remeter muito mais aos conceitos de “Mãe Natureza” e ao
estereótipo social do que é feminino (defesa, cuidado, manutenção da vida e
flexibilidade). Outro aspecto do material a partir do qual a arma é feita é a
imagem de natureza e de raízes, que podem remeter a estar enraizado, estar
apoiado em algo, crescer a partir de uma base sólida e fértil, como ela
mesma: uma mulher que está sempre enraizada nos valores e na técnica de
sua família.
Sua arma traz aspectos que podem ser lidos como metáforas das
características da personagem, que é uma líder assertiva e que ao mesmo
tempo cuida; é uma mulher que rompe com a tradição cultural e ao mesmo
tempo carrega a tradição familiar.
Outra possível leitura metafórica de sua arma e de sua técnica passa pelo
fato de que representam algo a ser transmitido pelo ensino (transmissão
cultural). Ela reúne estudantes e seguidores em seu dojo, sendo que este serve
como moradia para um deles; nesse caso, a relação está sendo mediada pelo
ensino do estilo Kamiya.
Kaoru está no papel de acolhedora, protetora e educadora. Ela passa a zelar
por todos, e podemos pensar isso desde o sentido mais fundamental de dar
abrigo até o de proteger e transmitir a eles os conhecimentos que adquiriu ao
longo de sua vida e de seu treinamento.
Uma lâmina e duas faces: Kenshin e Battousai
A história de Kenshin é revelada aos poucos na série, em que é explicitado
que ele é a lenda Battousai, o Retalhador. Kenshin e Battousai são altamente
contrastantes, ainda que sejam a mesma pessoa. Para compreendermos esse
contraste e o paradoxo do personagem, é preciso olhar para sua história em
um contínuo, sem fragmentá-la, pois assim é possível compreender a
mudança e a transformação pelas quais ele passa.
A criança que se tornaria Battousai perde seus pais muito cedo e é criada
por Seijuro Hiko, que se torna seu mestre. Esse homem introduz a criança na
arte da luta e lhe ensina a técnica Hiten Mitsurugi. Este é um estilo que se
baseia em desembainhar a espada rapidamente e golpear o adversário em
pontos específicos que, quando atingidos pela lâmina afiada, tornam-se fatais
para o adversário. A técnica pode ser letal, se utilizada com essa finalidade. O
jovem Battousai se separa de seu mestre, seguindo outro caminho: torna-se
um mercenário a serviço do império. Assim, usando a técnica que aprendeu,
constrói um legado sangrento de violência, provocando muitas mortes.
A essa altura, Battousai ainda é um jovem que traz diversas cicatrizes em
sua história, mas em seu corpo, não. Sua imagem parece ser de alguém
indestrutível, uma vez que é letal em seus golpes e nunca foi derrotado por
nenhum adversário. A violência que a espada de Battousai espalha não está
associada aos valores da arte ensinada por seu mestre, ela reflete as escolhas
do personagem por esse caminho de destruição.
Battousai é levado pelas consequências de sua escolha, até que em um
momento de sua história ocorrem eventos marcantes que mudam o modo
como ele se relaciona com sua espada. Os valores, afetos e pensamentos que
o personagem apresentara até então são modificados pela relação que ele
estabelece com dois personagens que cruzam seu caminho. A partir daí, essas
novas relações recuperam aspectos afetivos quanto à sua espada que haviam
sido afastados quando ele se separara de seu mestre. Battousai é marcado pela
relação que constrói com essas novas figuras e recebe a cicatriz em forma de
X em seu rosto, passando a levar, a partir de então, a marca física como
metáfora da marca afetiva, da transformação da relação que ele estabelece
para com o mundo e para com a sua própria espada.
É nesse momento que ele muda de nome e se torna Kenshin, um andarilho
que se arrepende de seu passado ao ser marcado pela própria lâmina. Ele
parte e vaga até encontrar um homem que forja armas, a quem pede que crie a
sua “nova” espada, a Sakabatou, ou espada de fio inverso, na qual a lâmina
tem o fio virado para dentro. Assim, trata-se de uma lâmina que não corta,
não mata: é uma lâmina para defesa, proteção e construção de um novo
caminho, uma lâmina que é usada como instrumento de paz e segurança.
Kenshin se mostra um homem bom e generoso, ainda que muito quieto e
misterioso. Ele vaga dez anos pelo Japão e, nessa rota, tenta se perdoar por
seus feitos do passado.
A mudança pela qual passou foi muito radical, e o nome da lenda Battousai
permanece, ainda que ao longo de sua jornada existam momentos em que
Kenshin é chamado a ser de novo um assassino e matar seus adversários.
Entretanto, ele se mantém fiel a seus princípios e à sua transformação. A
espada é o símbolo de sua mudança, uma vez que a técnica permanece a
mesma, mas agora não representa mais um recurso letal, que atua apenas em
prol da destruição.
Diferentemente de Kaoru, Kenshin não se relaciona com o ensino da
técnica. Ele, assertivamente, recusa-se a transmiti-la, assim como se recusa a
ensinar o uso da espada, tanto de uma katana quanto de sua Sakabatou.
Kenshin não pode mudar seu legado sangrento ou apagá-lo, nem mesmo
depois de sua transformação, mas pode se recusar a transmitir essa tradição.
Ainda que a carregue junto de si o tempo todo, parece que o sentido de levá-
la consigo está ligado à sua história, com seu juramento de defesa.
Talvez as espadas de Kenshin e Kaoru possam nos contar as histórias
propostas aqui; talvez elas estejam contando muito mais do que o que foi
destacado, e provavelmente estão. As histórias são longas e complexas,
construídas pelas trajetórias dos personagens, da cultura e até mesmo de
quem as conta. Talvez não seja possível esgotá-las. Só nos resta pensar o que
mais podem significar as espadas.
Leituras recomendadas
PORTAL Comporte-se. A utilização de metáforas como recurso terapêutico. [S. l: s. n.], 10 fev.
2012. Disponível em: https://www.comportese.com/2012/02/a-utilizacao-de-metaforas-como-
recurso-terapeutico. Acesso em: 28 nov. 2017.
http://legiaodosherois.uol.com.br/lista/10-curiosidades-sobre-samurai-x.html. Acesso em 20 nov. 2017
SÉRIO, T. M. A. P. et al. Controle de estímulos e comportamento operante. 3. ed. São Paulo:
EDUC, 2010.
SKINNER, B. F. Ciência e comportamento humano. Tradução Todorov, J. C.; Azzi, R. São Paulo:
Martins Fontes, 2003. (Originalmente publicado em 1953).
SUPER INTERESSANTE. Existiram mulheres ninjas e samurais? [S. l: s. n.], 15 dez. 2015.
Disponível em: https://mundoestranho.abril.com.br/historia/existiram-mulheres-ninjas-e-samurais/.
Acesso em: 15 nov. 2017.
TOURINHO, E. Z. Analogias, metáforas e cognições: comentários a partir do artigo de Ruiz e Luciano.
Acta comportamentalia, Guadalajara, v. 20, n. 4, p. 32-37, 2012.
Notas
1 Graduada em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) em 2017. E-
mail para contato: amanda.rolimaraujo@hotmail.com.
Imaginário e mito nos animes: reflexões sobre a
imagem da espada japonesa em Rurouni Kenshin
Rafael Augusto Montassier 1
Introdução
A imagem da espada japonesa é alvo de grande fascinação entre as
pessoas, o que fica evidente pela enorme quantidade de mídias que exploram
essa imagem, por meio de filmes, vídeos na internet e, em especial, animes,
como são conhecidas as animações japonesas.
O intuito deste capítulo é, com base no agrupamento das imagens proposto
por Gilbert Durand, apresentar exemplos da complexidade da imagem da
espada japonesa, mostrando que essa arma pode ser usada para “cortar”,
mesmo sem possuir uma lâmina, ou até ser utilizada para unir aquilo que fora
separado.
A espada no imaginário segundo Gilbert Durand
Antes de fazer uma exploração mais aprofundada sobre a imagem dessa
espada, é necessário abordar a noção de imaginário. Enquanto a imaginação
seria a capacidade do ser humano de produzir, escolher e categorizar
imagens, o imaginário, sob o ponto de vista antropológico de Gilbert Durand,
seria o modus operandi da imaginação, que visa estabelecer um equilíbrio
nos campos biológico e psicológico em conjunção com os estímulos do meio
social e da cultura em que o indivíduo está inserido, para que este possa lidar
melhor com as implicações da passagem do tempo e do medo da morte. Ao
fazer um levantamento de imagens em diversas mitologias e artes, o autor
notou que, na dinâmica dos planos biopsicossociais e culturais, surge um
conjunto de arquétipos, símbolos e mitos. O pensador francês achou mais
proveitoso agrupá-los em vez de classificá-los, partindo inicialmente dos
reflexos dominantes, ligados aos aspectos biológicos e anatômicos do ser
humano, como os gestos postural, digestivo e copulativo, os quais
proporcionaram fundamentação para o autor definir três grandes esquemas: o
heroico, o místico e o sintético. De acordo com Gilbert Durand, “são esses
esquemas que formam o esqueleto dinâmico, o esboço funcional da
imaginação” (2002, p. 60).
O esquema místico se vincula ao reflexo dominante digestivo e ao ato de
engolir. Diferentemente da abordagem heroica, que visa a separação por meio
de um enfrentamento da morte e do tempo, esse esquema é composto por
imagens que agregam, acolhem e são internalizadas, como a terra, a mãe e os
alimentos. No caso dessas imagens, deve-se considerar que a terra, por gerar
as plantas que servem de alimento, acaba por ser associada a figuras
femininas, como Gaia.
O esquema sintético se conecta com o gesto dominante copulativo do ser
humano e se encontra entre os esquemas heroico e místico, estando ligado às
ideias do eterno retorno e dos ciclos, como os do calendário agrícola
(DURAND, 2002, p. 58). Sabe-se, ainda, que esse esquema é composto por
imagens como a da árvore, que nasce da terra feminina, porém se eleva aos
céus como uma torre fálica transcendente que se separa do chão. Imagens
como o fogo e a cruz também contemplam esse esquema que engloba o
aspecto do renascimento (DURAND, 2002, p. 443).
No caso específico desta análise, é necessário destacar o esquema heroico,
que dialoga com a questão postural ereta do ser humano; por esse motivo,
imagens ascensoriais estão ligadas a ele. Entre essas imagens que inspiram a
distinção e a separação, está a da espada, cuja principal característica é seu
poder de corte, que visa a separação (DURAND, 2002, p. 159-161). Isso
pode ser percebido em certos ritos que requerem que os cabelos da cabeça
sejam raspados ou que sejam feitas escarificações na pele, ou mesmo na
própria circuncisão; todos esses procedimentos teriam por função “cortar” o
mal de certas pessoas, de modo a distingui-las daquelas que não pertencem a
um determinado grupo (DURAND, 2002, p. 170-172). Vale destacar que tais
ritos não estão desvinculados dos ambientes temporal e espacial em que são
executados. Isso posto, a seguir será tratado como a terra do arquipélago
japonês e o corpo nipônico sussurram nos ouvidos dos ferreiros o modo como
essa espada específica gostaria de ser concebida nas fornalhas onde está
sendo moldada.
Características específicas da espada japonesa
Formato da lâmina
Antes de adquirir seu formato característico com curvatura e lâmina de
apenas um gume, a espada japonesa era muito similar às espadas chinesas de
lâmina reta e de dois gumes, cuja principal função era servir como uma arma
perfurante. Ademais, essas espadas retas eram muito mais adaptadas ao
biotipo chinês, mais alto e longilíneo quando comparado aos japoneses, de
estatura menor. Devido a isso, a espada foi sofrendo transformações para se
adaptar à nova realidade da terra do sol nascente, adquirindo seu aspecto que
a tornava mais voltada a ser uma arma de corte (GUIMARÃES, 2001, p. 110-
114).
É interessante salientar nesse ponto que, após a abertura de seus portos no
início do período Meiji (1867-1912), o Japão pôde facilmente importar
matérias-primas de qualidade, como o aço. Entretanto, os ferreiros do
passado tinham também de fabricar seu próprio aço, advindo de areia
ferruginosa de ribanceiras (TURNBULL, 2010, p. 10). Devido à baixa
disponibilidade de minério de ferro adequado para o desenvolvimento de um
aço rígido, o formato da espada japonesa teve de ser concebido de modo a se
adaptar àquilo que o meio disponibilizava. Ao final do processo, o resultado
foi uma lâmina com a espinha dorsal feita de um metal mais maleável, de
pior qualidade, envolta por uma camada de aço forjado e reforjado diversas
vezes até adquirir rigidez e capacidade de corte ímpar (TURNBULL, 2010, p.
12-15).
Ademais, a espada nipônica também pode funcionar como escudo, visto
que o ferro mais maleável que compõe seu núcleo permite uma absorção de
impacto considerável; isso não seria possível caso a lâmina fosse inteiramente
feita de um material mais rígido (TURNBULL, 2010, p. 7). Essa suavidade
presente na lâmina conversa com a maleabilidade vegetal do bambu ou do
salgueiro, que se curvam ante uma tempestade, muito diferente da rigidez do
carvalho ao enfrentar uma tormenta.
Tendo sido contextualizada a imagem da espada japonesa em relação ao
seu ambiente, a seguir será abordado brevemente como essa arma estava
inserida em um contexto social de uma época específica do Japão.
A espada e as chamas
A imagem do fogo, segundo o agrupamento do imaginário, está associada
ao esquema sintético das imagens, relacionado ao aspecto copulativo do ser
humano. As chamas emitem calor, que tem a capacidade de penetrar.
Contudo, segundo Durand, o fogo é uma imagem polivalente (aparentado da
flecha ígnea e do raio, que também emite luz), imagem essa contida no
esquema heroico por se contrapor à escuridão, ocasionando uma separação
(2002, p. 173). É justamente essa característica que prevalece na associação
dessa imagem com a figura do principal oponente de Kenshin.
Como mencionado anteriormente, Shishio havia sido traído e queimado
vivo pelos monarquistas que ajudara a conquistar o poder. Todavia, essa não
é a única relação dessa figura com a imagem do fogo. Para conseguir cumprir
seus objetivos de conquistar o Japão e fortalecê-lo para que não se tornasse
uma colônia das potências ocidentais, Shishio Makoto planeja que sejam
feitos investimentos pesados nos setores industrial e militar, focando
especialmente na extração de petróleo. Por essa razão, não é à toa que o
confronto final contra Kenshin se dá numa plataforma de extração de
petróleo, com as labaredas dos exaustores iluminando o confronto.
Ademais, a espada de Shishio possui uma lâmina de formato serrilhado,
que acumula a gordura das vítimas retalhadas por ele em seus vincos. Com
isso, ele desenvolveu sua técnica Homura Dama (“alma das chamas”, em
tradução livre), que consiste em friccionar essa lâmina coberta de material
inflamável a ponto de incendiá-la, causando no adversário a dor de ser
queimado e cortado ao mesmo tempo.
Entendendo a espada como a alma do guerreiro, o espadachim seria,
portanto, o corpo da espada. No caso, pode-se considerar que o próprio
Kenshin também passa por um processo de ser forjado, ao ser exposto às
chamas da espada de seu oponente e dos exaustores dos poços de perfuração
de petróleo que contornam o campo de batalha.
Considerações finais
Como foi explorado anteriormente no presente capítulo, a espada japonesa
assumiu uma forma para melhor dialogar com seus ambientes, seja o próprio
terreno do Japão ou o formato do corpo dos espadachins japoneses. Assim,
pode-se admitir que Kenshin, um assassino ficcional inserido no contexto da
Era Meiji, alterou a imagem da espada e sua função de corte. Outro exemplo
da relação do ambiente com a imagem das armas vem dos quadrinhos norte-
americanos com o personagem Capitão América que, inserido no contexto da
Segunda Guerra Mundial, alterou a imagem do escudo.
Nesse caso, a característica defensiva do escudo reflete o discurso usado na
política externa dos Estados Unidos de fazer uso da força apenas em
situações em nome da segurança de seu território nacional; isso caracteriza
um discurso que legitima os interesses imperialistas dessa nação (DITTMER,
2005). Todavia, os Estados Unidos não foram os únicos impérios inseridos no
contexto da segunda grande guerra: o Japão também foi uma dessas nações, e
as repercussões desse conflito podem ter sido expressas na criação da espada
de lâmina reversa.
No episódio 36 da série de animação, Shishio lamenta a incompetência do
governo Meiji em mobilizar o exército para destruir um “mero” espadachim
moribundo e seus seguidores pelo medo que o regime tinha de demonstrar
uma fraqueza para as potências ocidentais. Por esse motivo, Shishio sentia a
necessidade de guiar a nação para um novo rumo. Ao final do confronto
contra seu arqui-inimigo, Kenshin retorna ao encontro de seus companheiros
e, na versão original dos quadrinhos, o narrador comenta que, apesar da
derrota de Shishio e do fracasso de sua facção em tomar o poder, o próprio
governo Meiji, que fora salvo por Kenshin da tentativa de golpe de Estado,
decide adotar uma política similar àquela pregada por Shishio, segundo a
qual deveria imperar o mais forte. Tal abordagem foi chamada de fukoku
kyohei, que consistia, basicamente, em enriquecer o país e fortalecer o
exército. Esse slogan e essa abordagem política foram de fato adotados pelo
governo Meiji e perduraram durante décadas (SAMUELS, 1994, p. 34-42),
sendo essenciais na transformação do Japão em uma potência imperial, tal
qual os países que temia, levando os japoneses a expandirem seu território
sobre a Ásia.
A relação do Japão com seu passado pode ser encontrada na figura de
Kenshin, que carrega em seu rosto uma cicatriz em formato de cruz, uma
imagem relacionada à estrutura sintética, segundo Durand, e ligada também
ao renascimento. Essa marca representa os horrores cometidos pelo
protagonista em seu passado como assassino e, devido ao fato de não se
perdoar pelos seus atos, ele não pode simplesmente raspar seus cabelos e se
tornar monge, mas necessita continuar vivendo pela espada, de modo a
transmutar seus traumas em algo construtivo.
Existe um ditado nipônico que diz que “a pena e a espada são um só”, pois
o treinamento dos samurais visava também o desenvolvimento do indivíduo
como ser humano, de modo que a exigência à forma marcial não seria
diferente de artes como a escrita (DONOHUE, 1999, p. 141). Assim como o
personagem Arai Shakku, os diretores, animadores e roteiristas do anime de
Rurouni Kenshin podem ser interpretados como ferreiros em busca de criar
sua forja de redenção. A trajetória de Kenshin pode ser interpretada como um
reflexo da própria nação japonesa após os eventos da Segunda Guerra
Mundial, quando o país não só cometeu atrocidades – como no caso do
massacre de Nanquim, onde 20 mil mulheres chinesas foram estupradas por
soldados japoneses – como sofreu pesados reveses com os bombardeios
atômicos em Hiroshima e Nagasaki. É possível pensar que essas chamas
atômicas e destruidoras contribuíram significativamente para forjar a imagem
de uma espada que valoriza a vida.
Referências
ANAZ, S. et al. Noções do imaginário: perspectivas de Bachelard, Durand, Maffesoli e Corbin.
Revista Nexi, São Paulo, n. 3, 2014. Disponível em:
http://revistas.pucsp.br/index.php/nexi/article/view/16760. Acesso em: 24 maio 2021.
DITTMER, J. Captain America’s empire: Reflections on identity, popular culture and post 9/11
geopolitics. Annals of the association of American Geographers, v. 95, ed. 3, p. 626-643, set.
2005.
DONOHUE, J. Complete kendo. Vermont: Tuttle, 1999.
DURAND, G. Estruturas antropológicas do imaginário: introdução à arquetipologia geral. São
Paulo: Martin Fontes, 2002.
GUIMARÃES, G. A magia da espada japonesa. São Paulo: Cultrix, 2001.
RUROUNI Kenshin. Direção: Kazuhiro Furuhashi. Tóquio: Studio Gallop, Studio Deen, 1996.
SAMUELS, R. J. “Rich nation strong army”: National security and the technological transformation
of Japan. Nova York: Cornell University Press, 1994.
SENNET, R. O artífice. Rio de Janeiro: Record, 2009.
STERN, R. BYRNE, J. Captain America (1968) #254. Nova York: Marvel, 1981.
TURNBULL, S. Katana: the samurai sword. Oxford: Osprey, 2010.
TURNBULL, S. Samurai the world of the warrior. Oxford: Osprey, 2003.
WATSUKI, N. Rurouni Kenshin: crônicas da Era Meiji. São Paulo: JBC, 2012.
WATSUKI, N. Samurai X: Kesnhin Kaden. São Paulo: JBC, 1999.
WILLMOTT, H. P.; CROSS, R. MESSENGER, C. World War II. Londres: Dorling Kindersley,
2012.
Notas
1 Doutorando em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC-SP). Bolsista CNPq. Mestre em Comunicação e Semiótica também pela PUC-SP com a
dissertação Os processos comunicacionais das imagens de complexidade: uma leitura da espada em
animações japonesas, defendida em 2017. Graduou-se em Imagem e Som pela Universidade Federal de
São Carlos (UFSCar) em 2012. E-mail para contato: rafael.montassier@gmail.com.
Sombra, persona e complexo do bode expiatório:
análise do protagonista Shoya Ishida
Ana Bárbara N. Mello 1
Anne Aguemi 2
E
STE CAPÍTULO SE PROPÕE A EXPLORAR O DESENVOLVIMENTO DO PROTAGONISTA
Shoya Ishida, tendo por base sua infância e sua adolescência. Aqui,
procuramos utilizar como referência tanto a obra cinematográfica A
voz do silêncio quanto o mangá de mesmo nome, entendendo que ambos
possuem suas particularidades e contribuem para uma melhor compreensão
da história. Ademais, a análise será embasada pelo viés da psicologia
analítica, em especial pelos conceitos de sombra, persona e complexo do
bode expiatório.
A obra
A voz do silêncio – cuja tradução literal do nome em japonês, Koe no
Katachi, seria “A forma da voz” – foi escrito e ilustrado por Yoshitoki Oima.
Inicialmente, a obra foi publicada como um one-shot – história de um
capítulo único – lançado em fevereiro de 2011 pela revista Bessatsu Shōnen.
Em agosto de 2013, a história começou a ser serializada pela Weekly Shōnen
Magazine, sendo concluída em novembro de 2014. Em setembro de 2016, o
mangá teve uma adaptação cinematográfica escrita por Reiko Yoshida e
dirigida por Naoko Yamada.
O enredo principal gira em torno de Shoya Ishida e Shoko Nishimiya e
como o encontro dos dois gera um profundo impacto em suas vidas. Os
personagens se conhecem no primário – equivalente ao ensino fundamental
no Brasil –, quando Shoko é transferida para a escola de Shoya. Shoko é
surda e, por isso, a classe passa por certas mudanças em seu cotidiano para se
adaptar às necessidades dela. Isso se dá especialmente no que se refere à
comunicação com Shoko, que acontece por meio de um caderno seu, que ela
própria oferece para ser a principal maneira de se estabelecer diálogos com
seus colegas. Entretanto, passado algum tempo, as crianças começam a sentir
dificuldade para integrá-la ao grupo e acabam por hostilizá-la. Shoya assume
o papel de líder nas ditas “brincadeiras” e persegue Shoko, tornando-a seu
alvo. Os demais colegas de classe presenciam as atitudes de Shoya e as
toleram e incentivam, muitas vezes também participando.
Em dado momento, os fatos escalam e Shoya acaba quebrando os
aparelhos auditivos de Shoko. Assim, o abuso e o bullying contra ela vêm à
tona, e quando o diretor da escola é informado e questiona a classe, Shoya é
apontado como o único culpado. A partir do ocorrido, ele se torna o alvo das
outras crianças e é isolado do grupo – passando, inclusive, pelos mesmos
maus tratos aos quais submetera Shoko. Um exemplo disso é quando Shoya,
irritado com Shoko, jogara o caderno com que ela tentava se comunicar com
os colegas na fonte da escola; após virar alvo da sala, Shoya e seus materiais
são jogados na mesma fonte. É então que ele encontra o caderno de Shoko e
acaba guardando-o.
Eis que, certo dia, Shoya percebe que Shoko estava mexendo na mesa dele
antes da aula. Ele se irrita com ela e os dois acabam tendo uma briga física, o
que resulta na transferência de Shoko para outra escola. Só então Shoya
percebe que, na verdade, a garota estava limpando a carteira dele dos
desenhos e das ofensas feitos pelo restante da turma.
Há um salto de cinco anos na história, passando para o dia em que Shoya
pretende se suicidar. Mesmo no colegial, ele permanece isolado dos colegas e
não tenta fazer amizade com ninguém. Ele sai do seu trabalho de meio
período, vende todas as suas coisas e retira todo o dinheiro do banco para dar
à sua mãe – a mesma quantia que ela tivera de pagar à mãe de Shoko pelos
aparelhos auditivos quebrados, anos antes. A última pendência que o rapaz
desejava resolver seria encarar Shoko, devolver seu caderno e se desculpar.
No entanto, em um desenrolar um tanto inesperado da conversa, Shoko
concorda em se tornar amiga dele e também se surpreende que ele tenha
aprendido a linguagem de sinais. A partir desse momento, Shoya busca se
aproximar dela e tentar se redimir, pois deseja compensar seus atos do
passado. A história segue desenvolvendo as relações entre os dois e daqueles
à sua volta, incluindo antigos colegas do primário, familiares e novos colegas
do colegial.
Conceitos: persona e sombra
Carl Gustav Jung (1875-1961) foi o psiquiatra fundador da psicologia
analítica, uma das psicologias profundas que detêm enfoque sobre o estudo
do inconsciente e seus fenômenos. Jung procurou estudar a alma humana e os
mistérios da psique, e sua teoria é “como um mapa da alma, mas é o mapa de
um mistério que não pode, em última instância, ser captado em termos e
categorias racionais” (STEIN, 2006, p. 15).
Jung tem por base que a libido é uma energia de caráter neutro, e é ela que
move os processos psíquicos, sendo produzida pela tensão dos contrários.
Isso quer dizer que, se pensarmos em uma balança, enquanto existirem duas
forças agindo em ambos os extremos, os pratos da balança irão se mexer.
Essa energia seria originária dos contrários que movem a psique em seus
diversos aspectos: o consciente e o inconsciente, um lado mais racional e
outro mais irracional, nossos pensamentos e intuições, entre outros. Desse
modo, o ideal é que se procure um equilíbrio na balança, pois, se ela ficar
muito polarizada, há o perigo de a energia “ficar estagnada” – ou se desgastar
– em um lado e, então, haver uma reversão súbita. Um lado influencia o
outro. Como o próprio Jung afirma, “não há equilíbrio nem sistema de
autorregulação sem oposição. E a psique é um sistema de autorregulação”
(JUNG, 2014, p. 73).
Entre os vários elementos constituintes da psique humana, estão os
arquétipos; neste tópico, daremos atenção aos que são os chamados persona e
sombra, que são um par de subpersonalidades divergentes – ou seja, dois
polos de uma das balanças que compõem o nosso psiquismo. Em primeiro
lugar, o que são arquétipos? Eles são imagens primordiais, existentes no
inconsciente de cada indivíduo. “Isso não quer dizer que sejam hereditárias;
hereditária é apenas a capacidade de ter tais imagens, o que é bem diferente”
(JUNG, 2014, p. 76-77, grifos do original).
Assim, os arquétipos são estruturas que todos possuem, são manifestações
da camada mais profunda do inconsciente, não detendo caráter pessoal, e sim
imagens humanas universais e originárias. Para melhor ilustrar o que seriam,
é preciso entender que para a psicologia analítica o inconsciente pode ser
subdividido em duas camadas. Se pensarmos na psique como uma esfera
cheia de camadas, a que recobre a parte mais superficial é o consciente e, em
seguida, temos a primeira camada do inconsciente, denominada inconsciente
pessoal, que
contém lembranças perdidas, reprimidas (propositalmente esquecidas), evocações dolorosas,
percepções que, por assim dizer, não ultrapassaram o limiar da consciência (subliminais), isto é,
percepções dos sentidos que por falta de intensidade não atingiram a consciência e conteúdos
que ainda não amadureceram para a consciência. (JUNG, 2014, p. 77)
2 Graduada em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), participou
do primeiro volume de Mangás, animes e a psicologia. E-mail para contato:
psi.anneaguemi@gmail.com.
Puella Magi Madoka Magica: recapitulação
junguiana
Roxane Pirro 1
O adolescente
ANIMEP M M
UELLA AGI M
ADOKA AGICA COMEÇA DENTRO DE UM SONHO DA
de 14 anos, Madoka Kaname, em que ela vê uma garota de
cabelos longos lutando contra algo que parecia um monstro; Madoka se vê
muito preocupada com essa menina. No dia seguinte, essa garota do sonho,
chamada Homura Akemi, se muda para a sala de Madoka na escola,
demonstrando um ar enigmático e misterioso principalmente com ela,
deixando Madoka incomodada com a situação e sem entender os motivos na
nova colega.
No mesmo dia, em um passeio durante a tarde com sua amiga, Sayaka
Miki, Madoka ouve uma voz pedindo socorro. Buscando de onde a voz
vinha, ela se depara com Kyubey, uma espécie de gato branco de olhos
vermelhos, todo machucado. Homura, então, se identifica como responsável
por quase matar o animal, sem demonstrar remorso, e pede para se afastar
dele. Enquanto tenta fugir para salvá-lo, Madoka e sua amiga se encontram,
repentinamente, dentro de uma espécie de universo paralelo com monstros e
objetos estranhos que tentam atacá-las. As garotas são salvas e trazidas de
volta ao mundo normal por Mami Tomoe, que logo descobrem ser uma
garota mágica.
Kyubey explica para Madoka e Sayaka que existem bruxas, criaturas
nascidas a partir de maldições que se escondem dentro dos labirintos que
criam. O universo paralelo estranho onde as garotas foram parar antes era o
labirinto de uma dessas bruxas. Por se esconderem, essas criaturas são
invisíveis aos olhos comuns dos humanos, o que as torna ainda mais
perigosas. Ele diz também que essas bruxas são responsáveis por várias
catástrofes na Terra que não têm explicação, como terremotos, tsunamis,
suicídios e assassinatos. O ambiente criado pelas bruxas também pode gerar
ansiedade, raiva e ira sem explicação para os humanos, levando-os a fazer
coisas anormais.
Kyubey é uma criatura capaz de realizar qualquer desejo, não importa quão
impossível ou milagroso seja. Ele se oferece para realizar um desejo de uma
garota e, em troca, ela deve exercer o papel de garota mágica: enfrentar as
bruxas, arriscando sua vida para matá-las e recebendo, para isso, poderes
mágicos e habilidades de luta. Quando uma menina se torna uma garota
mágica, é criada uma Joia da Alma, objeto bonito e brilhante que ela utiliza
para obter seu poder e lutar contra a maldição das bruxas.
Kyubey oferece para Madoka e Sayaka a oportunidade de realizar qualquer
desejo que quisessem em troca do favor de enfrentar as bruxas. Indecisas, as
meninas não fazem nenhum desejo num primeiro momento, buscando saber
mais sobre as bruxas antes. Então, Mami as leva para caçar essas criaturas,
para poderem saber se existe algum desejo tão importante que valha a pena o
sacrifício de ser uma garota mágica. Entretanto, Homura continua aparecendo
e intervindo, demonstrando cada vez mais um ar misterioso. Assim, faz com
que Madoka não confie em suas atitudes, tendo um certo medo de se
relacionar com a colega enigmática. Embora não entenda qual o seu papel em
toda essa história de garotas mágicas, Madoka não consegue negar que tem
uma conexão com Homura, algo que não consegue entender nem explicar até
que a história se desenrole mais.
Ao longo do anime, acompanhamos principalmente Madoka em sua
jornada para tomar a decisão de fazer ou não um pedido a Kyubey. Durante
sua trajetória, conhece também Kyoko Sakura, outra garota mágica que terá
papel importante em sua decisão.
As bruxas como constelações de complexos
No começo da história, Mami tenta mostrar para Madoka e Sayaka como
lutar contra bruxas, como é o interior delas e por que os labirintos que criam
podem ser perigosos. As bruxas podem se tornar cada vez mais poderosas
com o passar do tempo, então combatê-las é uma tarefa diária que as garotas
fazem logo depois da escola.
Apesar de as garotas acompanharem a caça às bruxas com Mami e
contarem com as explicações de Kyubey, após um acontecimento tenebroso
com Sayaka, Madoka descobre do jeito mais cruel que essas explicações
eram meramente superficiais.
Sayaka se encontrava em um momento de dúvida, uma vez que Kyosuke
Kamijo, o menino que mais amava, havia sofrido um acidente e não podia
mais tocar violino. Pensando que isso poderia fazer bem para os dois e no
quanto o amava, ela deseja que ele volte a tocar e, por um momento, fica feliz
e satisfeita. No entanto, esse momento de alegria não dura, já que as
próximas cenas são de angústia e fragilidade para a personagem.
Ela se corrói de tristeza por esse menino: pensa que, agora que é uma
garota mágica, jamais vai poder ficar com ele romanticamente. Sayaka
acredita que não vai mais poder ser uma garota normal e junta a essa tristeza
os ciúmes que sente em relação a ele e sua amiga de sala, pensando que ela
talvez seria um par melhor para ele do que si mesma. Esse ressentimento e
esse ódio crescem dentro de Sayaka a ponto de consumi-la, literalmente. É a
partir daí que Madoka e suas amigas entendem a verdadeira realidade do que
são as bruxas: a angústia consome Sayaka, fazendo com que sua Joia da
Alma, antes brilhante, se torne completamente negra; os sentimentos
negativos consomem a garota a ponto de fazê-la se expandir até virar uma
bruxa muito poderosa. O poder dessa bruxa vem, principalmente, do
sofrimento liberado de forma irracional.
O interior de Sayaka é, como em todas as outras bruxas, um labirinto
paradoxal, mas demonstra por meio de objetos específicos sua dor e seu
sofrimento. Isso nos faz voltar para as bruxas mostradas anteriormente na
história e pensar que os objetos mostrados em seus interiores também são
dotados de sentido lógico, não sendo apenas monstros estranhos jogados no
ar.
Voltando ao labirinto de Sayaka, nele são mostrados vitrais com suas
lembranças, pôsteres de concertos, notas musicais e instrumentos voando e
uma orquestra sendo regida por um maestro, dando a impressão de que
aquele ambiente seria o palco e a plateia do espetáculo que estava sendo
regido. A Sayaka em forma de bruxa também aparece nessa visão, dando a
impressão de estar regendo a orquestra com sua espada. Todas essas figuras
estão ilustrando simbolicamente aquilo com que ela não era capaz de entrar
em contato. Para a psicologia junguiana, essa passagem é congruente com a
teoria de constelações de complexos.
Complexos são aglomerados de conteúdos inconscientes presentes em
todos nós. Jung (2011) diz que complexos possuem uma imagem arquetípica
central e alta carga emocional. Quando não integrados à consciência, podem
atuar de forma autônoma sobre o indivíduo. Vivências como traumas e
conflitos podem gerar novos conteúdos que agregam e potencializam a força
de atuação desses complexos.
Para ilustrar esse conceito, podemos falar do complexo materno. Além de
termos imagens coletivas do que é ser mãe, temos também uma percepção
subjetiva e pessoal sobre essa figura, que vai depender de eventos da vida de
cada um. Ao passar por diferentes situações, novos conteúdos de diferentes
graus emocionais vão se agregando e podem passar a entrar em ação de
diferentes maneiras dentro de nós. A partir desses eventos e assimilações, é
possível mudar nossa percepção e nossa personalidade, além de podermos
agir de diferentes modos em situações que dizem respeito a esse complexo. O
mesmo pode acontecer em relação a outros inúmeros complexos, como o
paterno, do amor etc.
Quando falamos dessa energia vinculada ao complexo que vêm à tona
quando ativado, podemos falar também dos nossos “demônios interiores”,
aspectos que não integramos à nossa consciência e se tornam compulsões
irracionais que podem fazer “o que quiserem” conosco (STEIN, 2009).
Quando um complexo é estimulado, há a constelação dele, segundo Jung
(2011). Uma situação exterior pode desencadear uma aglomeração de
processos psíquicos, situação na qual vários processos psíquicos associados
àquela situação ou àquele trauma se unem e se integram de maneira
automática. Essas experiências são associadas, e os complexos “mudam de
curso” a partir dessa nova situação, podendo provocar reações perturbadas na
consciência. Quando o complexo é constelado, a pessoa sofre uma perda de
controle de si mesma, podendo agir de modo mais irracional. Assim, segundo
Stein (2009),
a pessoa é ameaçada com a perda de controle sobre suas emoções e, em certa medida, também
sobre o seu comportamento. Ela reage irracionalmente. [...] Quando constelada, é como se a
pessoa estivesse em poder de um demônio, uma força muito superior à sua vontade. Isso gera
um sentimento de impotência. (p. 47)
Voltando à situação do anime, essa questão pode ser vista de uma maneira
pitoresca durante a situação de tornar-se bruxa e pelo modo como é visto o
interior desses seres.
Sayaka passou por diversos momentos em que assimilou situações
traumáticas e negativas com relação a si mesma e a diversos complexos
importantes no seu dia a dia, desencadeando uma série de sentimentos ruins e
pensamentos que não conseguia afastar. Todas essas assimilações negativas
foram se aglutinando nos seus complexos, que explodiram depois de certo
momento e, em palavras junguianas, se constelaram, tornando-a uma bruxa.
Todos os objetos mostrados em seu labirinto eram uma forma de demonstrar
todos os conteúdos com que a garota não conseguia lidar, sendo uma
representação simbólica dela mesma.
Portanto, podemos dizer que, ao longo dos momentos em que as garotas
mágicas estão vivendo suas vidas normalmente e matando bruxas, elas
também estão entrando em contato com diversos complexos durante suas
rotinas, complexos esses que podem ter carga emocional grande ou pequena.
Por terem uma Joia da Alma, é mais fácil ver o processo de aglutinação dos
complexos e sua constelação de maneira exacerbada, que é retratada por meio
das bruxas e de como elas se portam.
Ainda de acordo com Stein (2009), os efeitos da constelação de um
complexo podem permanecer durante longos períodos de tempo, mesmo
depois de o estímulo não ser mais concreto. Isso pode ser retratado no
momento em que Kyoko e Madoka entram na bruxa de Sayaka, tentando
ajudar a amiga com seus sentimentos, chamando-a e dizendo que as coisas
serão resolvidas e tudo ficará bem. A bruxa, entretanto, não parecer dar
ouvidos às amigas. Ela ainda estava sob efeito da constelação de complexo,
portanto perdera totalmente o controle de si mesma e de sua consciência. Por
isso, faz sentido que as duas meninas não tenham sido capazes de salvá-la,
bem como o fato de que Sayaka e outras bruxas podem permanecer durante
longos períodos na forma de bruxa, amaldiçoando outras pessoas.
Ainda nessa discussão, é interessante falar sobre a importância da Joia da
Alma e da Semente do Rancor durante a trajetória do anime. A Joia da Alma,
como já mencionado, é dada a uma garota mágica depois de ela ter feito um
contrato com Kyubey. Trata-se de uma joia brilhante que as garotas carregam
consigo para conseguirem se transformar para a batalha. A Semente do
Rancor é um outro tipo de joia, que só é obtida depois de matar uma bruxa.
Quando morrem, todas as bruxas soltam uma semente, que é o prêmio das
garotas por terem feito seu trabalho. Com ela, conseguem “limpar” a joia da
alma: Kyubey explica que, conforme forem usando mais magia, a joia da
alma vai se corrompendo e ficando negra. Essa parte impura é repassada para
a semente, fazendo com que a joia se torne pura de novo, permitindo que a
garota mágica use quanta magia quiser novamente. Por isso, essas sementes
são muito disputadas pelas garotas, e é normal que estas briguem entre si para
derrotar a bruxa.
Mais adiante na história, descobrimos outros detalhes a respeito dessa
dinâmica que nos fazem pensar em algumas simbologias por trás dela.
Kyubey conta para Madoka o motivo que o leva a fazer um pacto com as
garotas mágicas: sua intenção é gerar energia para seu povo e manter o
“equilíbrio no universo”; ele explica para a garota o conceito de entropia
física e como a energia se perde quando há uma mudança de forma. De
acordo com sua explicação, a energia presente no universo diminuiria,
incluindo a do povo de Kyubey. Eles encontraram nos humanos seres capazes
de sentir emoções, que são convertidas em energias puras. Como esse povo
não é capaz de sentir emoções, passaram a utilizar os humanos e seus
sentimentos como forma de obtenção de energia para o universo.
Kyubey é um incubador e transforma as Sementes do Rancor das bruxas
em energia, o que nos faz entender que a parte preta presente na semente
seriam emoções puras e aglutinadas dentro de um recipiente, originadas da
própria garota mágica. O mesmo vale para a Joia da Alma, que se corrompe
com energia preta e precisa ser purificada, pois também seria a representação
de emoções.
Ao acumular muitas emoções não purificadas e mal resolvidas dentro da
joia, os complexos são estimulados de maneira negativa e podem ser
constelados.
Kyubey: o lobo em pele de cordeiro
Apesar de ser retratado no começo do anime como um gatinho inocente,
que apenas quer realizar desejos das garotas, Kyubey acaba mostrando ser
bem mais que isso – tanto que os motivos pelos quais faz as coisas acabam
por ser uma surpresa para o telespectador. Há inúmeras funções de Kyubey
no anime, mas uma das principais é ser um facilitador para as garotas
mágicas entrarem em contato com seu conteúdo interno e seus complexos,
uma vez que ele dá a elas a Joia da Alma, ferramenta utilizada para isso.
Madoka fica preocupada com Sayaka pelo modo como a amiga está agindo
e como está enfrentando descuidadamente seu novo trabalho como garota
mágica. Em um ato impulsivo, ela joga fora a Joia da Alma de Sayaka,
fazendo com que o objeto caia acidentalmente em cima de um carro e seja
levado para longe. Nesse momento, o corpo de Sayaka também cai,
totalmente sem vida. Madoka não entende o motivo para que aquilo tivesse
acontecido com sua amiga, e Kyubey explica que a alma das garotas agora
estava dentro de suas respectivas Joias da Alma, daí o nome do objeto. Isso
quer dizer que Sayaka era um corpo vazio, um mero objeto para poder lutar,
enquanto sua alma estava vinculada à joia, podendo ser corrompida enquanto
seu corpo já estava morto.
Ao descobrirem isso, as meninas se voltam contra Kyubey, alegando que
ele as havia enganado, já que não explicara todos os termos e tudo o que
aconteceria com elas ao se transformarem em garotas mágicas.
Essa passagem nos remete à fábula popular de Esopo, Lobo em pele de
cordeiro, originada a partir de um verso bíblico que traz um alerta para
termos cautela com falsos profetas, que são lobos disfarçados de ovelhas
(BÍBLIA, Mateus, 7, 15-16). De acordo com o conto, o lobo em questão se
disfarça como suas presas para se aproximar delas e suprir seus motivos
egoístas.
A princípio, Kyubey surge como um gato inocente, que quer realizar os
desejos das meninas pedindo um favor simples em troca. Entretanto, ele
mostra ser bem mais complexo que isso, já que não revela que as garotas
mágicas precisariam ter morrido em algum lugar do mundo, tendo suas Joias
da Alma corrompidas, para que pudessem lutar contra bruxas.
Em uma conversa com ele, Madoka diz que isso não está certo e que
Kyubey deveria ser inimigo dos humanos, por prepará-los para morrer desse
jeito, sem sequer avisar. Ele, então, rebate afirmando que não entende as
relações humanas e seus valores morais, pois aquilo que estava fazendo era
um nobre sacrifício para guardar energia e salvar as formas de vida do
universo. Entretanto, nota-se que ele também age em benefício próprio, assim
como o lobo, já que não contara previamente o que aconteceria com as
garotas mágicas. Kyubey chega a dizer que as meninas sempre têm a mesma
reação quando ele revela a verdade, o que justificaria sua omissão para com
os fatos. Portanto, diferentemente do lobo, Kyubey não selaria o contrato
com as meninas visando o mal, por ser um vilão, mas porque não entende
emoções, característica inerente de seu povo.
Os sacrifícios
No decorrer da história do anime, podemos ver várias trajetórias que
carregam em si diversos sacrifícios, uma vez que são retratados atos heroicos
realizados pelas garotas para um bem maior.
O mito do herói exemplifica a jornada de desenvolvimento do ego, meio
pelo qual vai adquirir consciência e alcançar certa autonomia. Ele pode ser
exemplificado pelas quatro protagonistas principais do anime, que
representam diferentes etapas do desenvolvimento, de acordo com os quatro
ciclos do herói de Henderson (1964). Assim, levaremos em consideração os
seguintes pares:
1. Trickster – Kyoko
2. Hare – Sayaka
3. Red Horn – Homura
4. Twins – Madoka
T
ENGEN
Gainax, escrito por Kazuki Nakashima e ilustrado por Kotaro Mori. A
temática central desse anime é, assim como tantos outros shonen, a
capacidade de superação. A tradução de seu título seria algo próximo de
“Ultrapassando os céus com Gurren-Lagann”, sendo que Gurren e Lagann
são os nomes dos robôs dos protagonistas. Entre os diversos obstáculos que
os personagens, em especial o protagonista, devem superar para prosseguir
com sua aventura e com seu desenvolvimento está a perda de entes queridos.
A temática da morte e da vida já é apresentada logo nos primeiros episódios.
O foco aqui será justamente os processos de luto que encontramos no enredo.
Para tratar desse tema, iremos nos referir a eventos que ocorrerão do primeiro
ao último episódio da série animada.
Já na apresentação dos protagonistas, Simon e Kamina, somos informados
de que eles são órfãos. Kamina foi abandonado pelo pai, que o deixou para
poder explorar o mundo. As limitações iniciais desses personagens estão
relacionadas ao viver em uma vila subterrânea, onde não se acredita na
existência do céu e onde os órfãos são cuidados pelo chefe da vila apenas por
obrigação, além de serem marginalizados. Simon trabalha escavando novas
áreas para a expansão e por isso é exaltado pelo chefe, mas considerado sujo
e excluído pelos demais conterrâneos. Kamina é um sonhador que busca sair
da vila para procurar seu pai e voltar a ver o céu, por isso é desprezado por
todos, além de ser considerado uma má influência pelo chefe.
Enquanto Kamina precisa lidar com o abandono e o desejo de reencontrar
seu pai, Simon deve lidar com o trauma de ter presenciado a morte de seus
pais por soterramento durante um terremoto. Não há nenhuma menção à mãe
de Kamina, apenas é dito que ele é órfão. Nesse cenário, Kamina, o mais
velho, adota Simon como seu “irmão de alma”, e este idolatra seu aniki
(“irmão mais velho”, em tradução livre). Isso significa que quando os
encontramos, os personagens já possuem um histórico de perdas e um
vínculo entre si que os ajudou a seguir em frente e a suportar essas perdas.
Mais adiante no anime, descobrimos um dos pontos de fortalecimento desse
vínculo: esses dois protagonistas passaram por uma situação de soterramento,
momento em que a capacidade de escavação de Simon os salvou, mas foi a
perseverança e o otimismo de Kamina que o mantiveram motivado e
confiante.
O luto de Simon é apresentado quando este passa por uma situação que se
assemelha aos episódios de estresse pós-traumático. Durante um tremor, ele
se recorda do soterramento em que seus pais faleceram e fica paralisado e
sofrendo visivelmente, além de temer pela repetição do evento, colocando-se
em estado de alerta.
As marcas características do transtorno de estresse pós-traumático são as lembranças
autorizadas do acontecimento traumático, lembranças essas tão vívidas que a pessoa tem a
impressão de estar passando pelo trauma repetidamente. Ocorrem durante o dia, e, à noite, se
assemelham a pesadelos. São tão dolorosas que a pessoa faz de tudo para evitar qualquer coisa
que possa provocá-las, mas sente como se tivesse esperando pela próxima tragédia, sobressalta-
se por qualquer motivo e está sempre em estado de alerta. (PARKES, 1998, p. 4)
Parkes (2009) afirma que todos os lutos são traumáticos, mas há alguns
tipos de perda que geram um efeito, como trauma, mais acentuado. Em geral,
essas perdas são mortes relacionadas à violência, súbitas e múltiplas. O autor
também diferencia trauma e luto, sendo que o primeiro seria um impacto,
enquanto o segundo seria uma elaboração.
Além das consequências do trauma, também são visíveis em Simon os
impactos, destacados por Parkes (2009), resultantes da perda dos pais na
infância somada à ausência de um ambiente seguro e acolhedor para a
elaboração do luto infantil, como a falta de autoconfiança. A princípio, seu
luto não é devidamente acolhido socialmente, tendo em vista sua exclusão
social e o posicionamento de seu chefe, que demonstra desgosto em cuidar
dos órfãos. Por outro lado, podemos entender que Simon foi acolhido e
protegido por Kamina. Apesar de já ter desenvolvido alguns efeitos de um
possível luto complicado, esses comportamentos são contornáveis devido à
presença desse protetor.
Outro ponto relevante na personalidade de Simon que condiz com essa
visão de seu luto traumático é seu estado sempre alerta. Esse estado é
percebido em mais de uma situação em que outros personagens estão em
apuros e Simon percebe isso prontamente e age, algumas vezes antes até que
os outros entendam a situação. Parkes (1998) aponta que pessoas enlutadas
ficam em estado de vigia elevado na maior parte do tempo, parecendo estar
em pânico. Esse pânico aparente é extremamente perceptível em Simon na
primeira etapa do anime.
Quando pensamos no luto de Kamina, é importante destacar que, apesar de
estar distante de seu pai, ele ainda tem a expectativa reencontrá-lo,
vivenciando uma ambiguidade semelhante à daqueles próximos a pessoas
desaparecidas, sem uma definição.
No segundo episódio, essa ambiguidade é resolvida, e o luto pode ser
elaborado. Kamina encontra o corpo de seu falecido pai enterrado próximo à
saída de sua vila subterrânea. Diante dessa possibilidade de elaboração do
luto, esse protagonista se permite chorar e sofrer por sua perda, fazer uma
pequena cerimônia fúnebre e enterrar seu pai. Nesse momento, ele passa a
saber a resposta para a dúvida a respeito do paradeiro seu pai e pode seguir
em frente, mudando seu objetivo de encontrar seu pai para explorar a
superfície e ter a liberdade que seu pai almejara.
A saída dos protagonistas de sua vila subterrânea, que se dá no primeiro
episódio, é consequência de uma batalha com um robô gigante que vem da
superfície, destruindo o teto da área central da vila. Nesse ponto, é possível
notar a contraposição entre Kamina e Simon: o primeiro busca enfrentar e
lidar com os desafios, enquanto o segundo teme, acima de tudo, perder
aqueles que são importantes para si e prefere fugir sempre que possível. Esse
posicionamento é compatível com o estresse pós-traumático, descrito
anteriormente, e com sua falta de confiança.
O avanço e o desenvolvimento de Simon ocorrem, a princípio, pela
insistência e pelo apoio de Kamina e pela perspectiva de que lutando e
avançando ele poderia proteger aqueles que ficaram para trás. Em seguida, a
motivação de Simon passa a estar relacionada à possibilidade de equilibrar os
impulsos de Kamina e protegê-lo, uma vez que eles lutam juntos. Kamina
tem um sonho e uma sede por liberdade que o fazem lutar e querer continuar,
enquanto Simon se prende a essa relação fundamental para sua autoestima,
sua autoconfiança e sua capacidade de relação com o mundo. Essa dinâmica
se mantém quase até o final da primeira etapa da história.
Nessa etapa do enredo, outros personagens vão sendo incluídos, e um
grupo vai se formando, tendo como principal objetivo lutar contra os
homens-fera que monopolizam a superfície, aprisionando os humanos em
vilas subterrâneas. Essa luta pela liberdade é o sonho fundamental de
Kamina, o que inspira esses personagens e faz dele indiscutivelmente líder do
grupo. A primeira a entrar nesse grupo é Yoko, uma garota da superfície que
os encontra ainda na vila subterrânea e os acompanha desde então. Junto dela
surge Boota, um porco-toupeira que passa a ser mascote do time e,
especialmente, animal de estimação de Simon.
Com o avançar da história, o grupo cresce, recebe outros robôs além de
Gurren e Lagann, e o verdadeiro inimigo que estão enfrentando é revelado:
trata-se do Rei Espiral, que rege todos os homens-fera junto de seus quatro
grandes generais. É marcada, então, a primeira grande batalha. O grupo dos
protagonistas, a Brigada Gurren, se prepara para tentar conquistar a fortaleza
móvel de um desses generais.
Nesse ponto da trama, Simon se descobre apaixonado por Yoko, e esta, por
sua vez, se percebe apaixonada por Kamina. Na noite anterior à batalha,
Simon segue Yoko e a vê se declarar para Kamina, que a beija. Essa
perturbação emocional intensa afeta não apenas a relação de Simon com
Kamina, mas também sua capacidade de concentração e combate. Essa
confusão mental e emocional se torna ainda mais explícita no anime pelo fato
de que os robôs nele apresentados são controlados e alimentados pelas
emoções de seus pilotos.
O planejamento de batalha do grupo depende inteiramente da capacidade
do Lagann, robô pilotado por Simon, de se conectar e controlar outros robôs.
Já que Simon estava emocionalmente confuso, mesmo tendo conseguido se
conectar à base móvel inimiga, ele se mostra incapaz de tomar o controle
dessa outra máquina. Diante dessa situação, Kamina vai até Simon e o
acalma, voltando a assegurá-lo não apenas do quanto confia em sua
capacidade, mas também da profundidade do vínculo entre eles.
Ao voltar para Gurren, seu robô, Kamina é atingido por um golpe fatal. O
grupo vence a batalha, mas perde seu líder.
A ambivalência de amor e ódio que Simon sentia por Kamina no momento
de sua morte é um fator fundamental para entendermos a magnitude que
alguns aspectos de seu luto alcançam. O amor nutrido ao longo de todo o
convívio entre os personagens é momentaneamente abalado pelo ódio
provindo da competição pelo afeto de Yoko. Perante esse conflito, Simon
tenta se convencer de que essa situação não diz respeito a ele, como um modo
de manter intacto dentro de si o vínculo entre ele seu aniki. O fato de esse
conflito ter sido, até certo ponto, o que proporcionou as circunstâncias da
morte de Kamina intensificam ainda mais o conflito interno de Simon.
A culpa presente nesse luto é um dos fatores que podem levar a um
processo de luto complicado e que demandam uma elaboração. Outro fator a
ser considerado é a alteração de sentimentos em relação àquele que faleceu:
alterações entre amor, saudades e sentimentos positivos, por um lado, e ódio,
raiva e sentimentos negativos, por outro. Esses sentimentos opostos podem
vir de uma situação vivenciada antes da morte ou em decorrência da própria
morte, como é o caso do sentimento de raiva por ter sido deixado para trás.
Uma forma de expressão desses sentimentos ambivalentes é a exteriorização
da destrutividade, podendo esta estar voltada aos outros ou a si mesmo.
Logo no episódio seguinte, o grupo se mostra extremamente abatido, e
ninguém consegue falar sobre o ocorrido. Há um clima tenso que paira sobre
a base recém-conquistada. Simon se torna extremamente violento, tanto com
inimigos quanto com seus aliados, e recluso. Ele se sente e se declara mais de
uma vez como culpado pelo que ocorrera, além de se sentir responsável por
ocupar o vazio deixado por Kamina, no sentido de se tornar um grande
combatente capaz de liderar o grupo nas batalhas que virão.
Parkes (2009) indica que pessoas com histórico de relacionamentos
semelhantes ao de Simon têm a tendência de se tornarem superprotetoras
diante de uma situação de luto. Esse comportamento já estava incipiente no
personagem desde o luto por seus pais, mas se potencializa perante esse novo
processo. Outro ponto desse mesmo processo são os sentimentos de raiva e
revolta, direcionados tanto para o próprio enlutado como para aqueles à sua
volta, fator que retroalimenta o isolamento (PARKES, 1998).
O sentimento de culpa, mesmo que incoerente em relação aos eventos que
levaram à morte, é um comum em pessoas enlutadas. No caso de Simon, isso
é intensificado por aqueles ao seu redor, que reafirmam essa culpa. A falta de
confiança do personagem no grupo, especialmente durante as batalhas,
também reflete a falta de confiança que enlutados tendem a desenvolver em
ambientes pouco acolhedores (PARKES, 1998, 2009).
Envolto nesse processo complicado de luto, Simon interrompe o processo
de construção de sua autoestima e de sua autoconfiança, voltando à sua
insegurança inicial e passando a se expressar por meio de explosões de
emoções intensas. Essas emoções o fazem flutuar entre a ilusória necessidade
de onipotência e a sensação de impotência completa. Simon, não apenas
passa a focar todas as suas ações e atitudes na vontade de ser igual ao seu
falecido aniki como fica fixo na imagem de Kamina, passando seus dias
fazendo diversas estátuas do falecido amigo. Essa fixação absoluta, a ponto
de se fechar para o mundo exterior, termina por nos apresentar esse quadro de
luto complicado.
A fixação na imagem de Kamina é outro sinal do luto pesquisado por
Parkes (1998), que se refere a imagens que são vistas por pacientes enlutados
como lembranças vívidas. Essa tendência de Simon diante de suas perdas já
se fazia visível em relação à perda dos pais, mas se torna mais intensa com a
morte de Kamina.
Essa atitude completamente focada na perda também impedia que qualquer
pessoa do grupo fosse capaz de chegar até Simon. Esse era um fator que o
mantinha isolado, mas o luto de todos os integrantes do grupo era outro fator
que mantinha essa barreira. Além da desconfiança e do isolamento de Simon,
havia também o luto e a desconfiança de outros membros enlutados do grupo,
como Yoko. Nesse momento, tanto Simon quanto Yoko se mostram
solitários, mesmo em meio ao grupo; esse tipo de solidão pode ser um
resultado do processo de luto, sendo indiferente para a sensação de solidão se
a pessoa enlutada vive só ou acompanhada (PARKES, 2009).
O que permitiu uma saída dessa situação que estava se retroalimentando
foi a chegada de um elemento novo ao grupo. Esse elemento foi a
personagem Nia. Quando Simon a encontra, ela se apresenta como alguém
sem nenhum conhecimento sobre o mundo, algo que o cativa. A primeira
reação do protagonista é representar Kamina para ela, recusando-se a fugir de
um conflito, mesmo que fosse uma situação impossível de ser vencida. Ele
entende que devia estar pronto para morrer por seu ideal e pela proteção
daqueles à sua volta, e esse padrão se rompe quando Nia o puxa para fugir
junto com ela, para que ambos se salvassem. Esse pequeno gesto começa a
quebrar o ciclo de luto de Simon, tirando seu foco da perda e o voltando à
vida, ao novo e à restauração. Nia representa esse polo de renovação não
apenas para o protagonista, mas para todo o grupo, que se fascina com a
presença nova e encantadora que passeia pela base.
Nia, por estar isenta do processo de luto do grupo, se constitui como uma
interlocutora ideal para que Simon possa conversar sobre Kamina e sobre seu
luto. Ela, como interlocutora, passa a desempenhar um papel semelhante ao
que Kamina desempenhava para Simon em relação à morte de seus pais.
Kovács (2010) aponta como em situações de famílias e grupos enlutados há
uma dificuldade de se abordar o tema da morte com crianças, o que dificulta
seu processo, levando-as à sensação de desamparo e, possivelmente,
abandono.
Outra atitude de Nia que é decisiva para a transformação do processo de
luto de Simon é reconhecê-lo como indivíduo autônomo, alguém que é mais
que o luto que está vivendo e que é mais que o “irmão de alma” de Kamina.
Nia diz que ele é ele e que não precisa, e nem deveria tentar, ser outra pessoa.
Essa ideia é, a princípio, recusada por Simon, mas já abre caminho para que
Yoko possa trazer à tona a história do soterramento que Kamina e Simon
viveram, dessa vez pelo ponto de vista de Kamina. Nessa versão da história,
Kamina admite que só conseguiu se manter otimista e animado pelo apoio
que a presença de Simon lhe proporcionava.
Após receber essa informação e a validação sobre o vínculo que havia
entre eles, Simon passa a se utilizar de uma frase e de uma pose típicos de
Kamina. Essa frase era a que ele lhe dizia nos momentos de dificuldade. Ao
fazer isso, Simon aceita a influência que Kamina teve sobre si e a importância
dessa influência, mas declara para si e para os outros que a lição importante a
se aprender com aquela atitude era a de seguir sempre em frente. A partir
desse ponto na narrativa, a memória de Kamina passa a estar sempre
presente, mas de forma positiva. Esse processo se assemelha ao descrito por
Silva (2011), segundo o qual
O enlutado deveria, amparado pelo logos e instrumentado pela memória, deslocar-se da morte e
da perda e voltar-se para a vida. Para tanto, é necessário uma dinâmica sutil entre lembrar e
esquecer, na qual, porém, corre-se o risco de intensificar ainda mais a dor. (p. 717)
2 Graduado em Tecnologia em Jogos Digitais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC-SP) (2013). Possui pós-graduação lato sensu em Direção de Arte em Comunicação pelo Centro
Universitário Belas Artes de São Paulo (2015). Mestrando em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP.
Pesquisa mitologia e imaginário com enfoque nas áreas de processos criativos e games. E-mail para
contato: vsancassani@gmail.com.
3 Love Stage!! é escrito por Eiki Eiki e ilustrado por Taishi Zaou. A série é publicada desde julho de
2010 na revista Asuka Ciel, da editora Kadokawa Shoten. O anime foi produzido pela J.C. Staff e foi ao
ar em 2014.
4 Junjou Romantica é uma série shounen-ai de Nakamura Shungiku. A série é publicada desde 2002
pela revista Asuka Ciel. O anime, produzido pelo Studio DEEN, possui três temporadas, que foram ao
ar em 2008 e 2015.
5 Sekai-ichi Hatsukoi: Onodera Ritsu no Ba’ai é escrito e ilustrado por Shungiku Nakamura. Em
2011, o mangá ganhou uma adaptação para anime com duas temporadas.
6 Katsudon é um donburi típico da culinária japonesa, em que, em sua versão mais comum, um filé
de porco à milanesa com molho é servido sobre arroz cozido em uma tigela.
7 Koisuru Boukun é escrito e ilustrado por Hinako Takanaga, sequência do mangá Challengers (1996-
2004) e considerado um mangá best-seller nos Estados Unidos. Em 2010, o primeiro volume foi
adaptado para dois OVAs – lit. original video animation, ou seja, animações completares (spin-offs) às
narrativas principais, lançadas em formato físico diretamente ao público.
Alquimia e transformação em Fullmetal Alchemist:
a exploração das potencialidades humanas no
personagem Van Hohenheim
Luna Pereira Gimenez 1
Marcos Daniel Grassmann Polcino 2
E
M
marcantes e central para todo o desenvolvimento da trama é Van
Hohenheim, pai dos protagonistas, os irmãos Alphonse e Edward Elric.
Nas duas versões em anime, Hohenheim é um personagem construído de
maneiras muito distintas, apesar de manter algumas características básicas.
Nesta análise, partiremos da versão original do enredo, presente no mangá e
em sua adaptação em anime, Fullmetal Alchemist: Brotherhood. Este capítulo
discutirá o processo de desenvolvimento de Van Hohenheim sob a
perspectiva da psicologia analítica, considerando seus paralelos com a
alquimia.
A alquimia é uma prática cujo ápice ocorreu durante a Idade Média e foi
precursora da química moderna. Caracteriza-se pela busca de compreensão e
transformação da matéria, partindo de princípios teológicos, filosóficos,
físicos, químicos e práticos. Na prática da alquimia buscava-se, assim como
em outras linhas místicas, contribuir com a obra divina, com o mundo,
purificando-o e tentando aproximá-lo de um estado de perfeição.
De acordo com Edinger (1990), não é fácil compreender a alquimia tal
como expressa nos escritos originais:
Meu método de organização do caos da alquimia consiste em concentrar a atenção nas
principais operações alquímicas. Descoberta a prima matéria, deve-se submetê-la a uma série de
procedimentos químicos a fim de transformá-la na Pedra Filosofal. [...] Não há um número
exato de operações alquímicas, e muitas imagens se sobrepõem. Para meus propósitos,
considerei sete dessas operações como os principais componentes da transformação alquímica.
São elas: calcinatio, solutio, coagulatio, sublimatio, mortificatio, separatio e coniunctio.
(EDINGER, 1990, p. 32-34, grifos do original)
3 “Sombrio” quer dizer “advindo da sombra”. Para a psicologia analítica, esta é constituída de
conteúdos negligenciados pelo ego (eu consciente) no seu processo de estruturação, de modo que tais
conteúdos se tornam inconscientes. Os conteúdos pessoais sombrios não são essencialmente bons ou
ruins, porém, por terem sido compreendidos como alheios à personalidade, são tidos pelo sujeito como
caráter negativo.
O desenvolvimento dos irmãos Elric e a integração
da sombra
Luna Pereira Gimenez 1
Marcos Daniel Grassmann Polcino 2
F
ULLMETAL
central é a alquimia. Foi lançado em 2001 e teve duas adaptações para
anime, sendo que a primeira teve um final alternativo e a segunda, com
o subtítulo Brotherhood, seguiu o enredo do mangá. Optamos por trabalhar
nesta análise com a segunda versão do anime, que condiz com a história
original do mangá. Neste capítulo, tomaremos como foco o processo de
amadurecimento psicológico dos protagonistas, os irmãos Elric, sob a ótica
da psicologia analítica. Essa vertente teórica explora a alquimia enquanto
metáfora dos processos dinâmicos psicológicos. Essa relação enriquece a
compreensão psicológica da história de Fullmetal Alchemist, assim como da
jornada dos personagens principais.
Edward e Alphonse Elric são dois jovens irmãos alquimistas. O pai deles,
Van Hohenheim, abandona a família e, anos mais tarde, a mãe morre de uma
doença incurável.
Os irmãos tentam trazê-la de volta à vida por meio da transmutação
humana, uma técnica proibida a partir da qual se tenta criar ou modificar um
ser humano. A técnica não é bem sucedida e, no processo, Ed, o irmão mais
velho, perde uma perna, e Al perde o corpo. Numa tentativa desesperada de
salvar seu irmão, Edward sacrifica seu braço direito para unir a alma de
Alphonse a uma armadura. A perna esquerda e o braço direito de Edward são
substituídos por próteses chamadas automail, construídas por sua amiga de
infância Winry Rockbell, que também realiza sua manutenção, assim como a
da armadura de Alphonse, o novo corpo do garoto.
Edward busca se tornar um alquimista federal contratado pelo Estado para
ter acesso aos vastos recursos alquímicos disponíveis àqueles que exercem o
cargo, às ricas informações que por ali circulam e à verba para realizar
pesquisas. Os irmãos partem em uma busca pela pedra filosofal, pois
acreditam que esse é um possível meio para restaurar seus corpos,
encontrando diversos vestígios da existência desse material, até então
considerando lendário.
Os irmãos Elric: dinâmicas matriarcal e patriarcal no conflito pessoal
Nesse primeiro momento do enredo, todo o desenvolvimento e o foco dos
irmãos Elric são de cunho individual. É possível entender essa divisão do
enredo de diversas formas, sendo uma delas pensar do ponto de vista do
desenvolvimento do ciclo vital.
No âmbito da psicologia analítica, Neumann (1995) atribui estágios ao
desenvolvimento da consciência dos seres humanos que se relacionariam com
estágios arquetípicos 3 do desenvolvimento da consciência da humanidade.
O autor descreve três estágios de desenvolvimento: urobórico, matriarcal e
patriarcal.
O estágio urobórico corresponderia ao momento em que o bebê e a mãe
vivem em simbiose, sem discriminação ou diferenciação entre ambos. Já no
estágio matriarcal do desenvolvimento, existe uma iniciativa de diferenciação
entre o bebê e a mãe, porém a relação entre eles é de completa dependência.
Psicologicamente, a criança ainda não tem consciência das normas e das leis
que regem nossa sociedade, interagindo com o ambiente ainda de maneira
egocentrada em suas necessidades.
O próximo estágio, chamado de patriarcal, seria regido pelo arquétipo do
Pai. Corresponderia ao momento da emancipação do ego e da consciência, da
separação dos opostos, como o bem e o mal, o interno e o externo, o
masculino e o feminino, que traz a perspectiva do diferente. O
desenvolvimento crescente da consciência culmina na separação dos
diferentes e na hierarquização para que seja possível o exercício do poder e
das normas. Isso quer dizer que a criança começa a entender que existem
limitações para seus desejos e que está inserida numa sociedade que possui
leis e concessões.
De acordo com Byington (2009), uma próxima etapa viria após a
patriarcal, chamada de alteridade. Nesta, o indivíduo teria a capacidade de
criativamente chegar a uma síntese dos aspectos matriarcais e patriarcais. A
dinâmica arquetípica regente dessa etapa propicia uma atitude do sujeito mais
integrada com o coletivo e suas necessidades, de modo que essa interação
culminaria em um desenvolvimento individual concomitante.
Nas partes do enredo que foram discutidas até então, essa primeira etapa de
desenvolvimento dos personagens pode ser relacionada com a fase
matriarcal, devido ao papel central e quase absoluto da relação da criança
com a mãe. A primeira etapa da história está muito voltada ao desejo dos
irmãos Elric de recuperarem sua mãe.
Quando os personagens se inserem no contexto militar do estado, passam a
vivenciar as dinâmicas da etapa seguinte, a patriarcal. As características desse
contexto são predominantemente relacionadas às regras e à adaptação às
normas. Quando a história do anime se inicia, os protagonistas já estão
realizando essa transição, que é fluida e gradual, mas ainda possuem
características importantes da etapa matriarcal. Essas são expressas na
sensação de desemparo pela ausência da mãe, na ambivalência em relação
aos próprios desejos e na presença do pensamento mágico infantil de
reversibilidade, que é representado no início da narrativa pela tentativa de
trazer a mãe de volta à vida e, em seguida, no ato de reverter a perda do corpo
do irmão mais novo.
Portanto, até esse momento da história, os protagonistas estavam muito
focados em seus próprios conflitos e não tinham acesso ao conhecimento do
contexto no qual estavam inseridos. Algumas vezes, chegam a não
dimensionar o tamanho das consequências de seus atos. Logo nos primeiros
episódios, eles passam por Lior, onde desmoralizam um culto religioso,
expondo seu líder como um charlatão. Da perspectiva dos protagonistas, eles
estão prezando pela verdade, pela autonomia individual e priorizando a
tentativa de encontrar a pedra filosofal para uso próprio. Porém, estão
completamente desatentos ao fato de que essas ações criam um contexto que
leva a uma guerra civil.
Até então, eles ainda estão envolvidos com o que aconteceu no passado e o
objetivo decorrente do fato de terem tentado realizar a transmutação humana,
perdendo, consequentemente, seus corpos originais. Essa busca por realizar a
transmutação é semelhante à sua tentativa de ressuscitar sua mãe: ambas
estão embasadas na mentalidade mágica das primeiras etapas da infância, em
que não se aceitam desprazeres e há a expectativa de uma reversibilidade
total, mágica, do que foi traumático.
Podemos tomar como um primeiro marco em direção à próxima etapa o
dia em que os protagonistas decidem queimar a casa em que passaram a
infância, como uma tentativa de dizer para si mesmos que não haveria volta
para algumas coisas. O começo dessa jornada representa, também, a busca de
uma cura para a ferida psíquica originada no trauma da perda precoce da mãe.
Apesar de ter início com o desejo de ressuscitar a mãe, este evolui para a
busca da cura absoluta da ferida e culmina na cura relativa da ferida, com a
aceitação dela e do amadurecimento que ela proporcionou.
Nesse começo de transição para a etapa patriarcal, concomitantemente à
inserção dos irmãos no exército, estes passam a formar uma identidade mais
madura, voltada para um papel social: a persona 4 de um alquimista federal.
Por outro lado, eles ainda buscam uma saída mágica, a pedra filosofal, que
aqui é apresentada como uma solução absoluta, simples e imbuída de um
sentido de salvação.
Os irmãos Elric: dinâmica de alteridade no conflito pessoal e coletivo
O próximo ponto central para o desenvolvimento dos personagens é a
descoberta de que a pedra filosofal é criada a partir do sacrifício de vidas
humanas. Nesse momento, a atenção dos Elric se volta para questões
coletivas, levando-os a percepções sobre o contexto em que estavam
inseridos.
Essa mudança de uma perspectiva individual para uma coletiva, assim
como o primeiro contato com personagens receptáculos de projeções de
sombra, 5 transformam a atitude dos protagonistas para reflexões mais
profundas acerca de si mesmos e sobre a trajetória no contexto em que estão
inseridos.
Uma dessas reflexões acontece quando Alphonse encontra-se com outro
personagem cuja alma também foi fixada em uma armadura, passando a
questionar sua existência e sua autenticidade.
Nesse momento, o personagem está em uma etapa da vida em que é muito
mais acentuada a necessidade de adaptação ao ambiente externo, sem a
mediação integral da mãe, e a inserção nas normas culturais e nos códigos
sociais por meio das leis, regras e costumes. É de vital importância, nessa
etapa, a relação do indivíduo com o próprio corpo.
Até então, Al se focava em seus desejos como forma de se validar e se
compreender, porém nesse momento ele sente falta de um substrato concreto
para esses elementos psíquicos. Nessa existência fantástica de uma alma
humana que existe em um corpo originalmente inanimado, a ligação entre
armadura e alma não permite uma comunicação efetiva entre físico e
psíquico.
Alphonse: conflito entre corpo e alma
Alphonse, também conhecido como Al, não come, não dorme e não tem a
oportunidade de experienciar emoções diretamente relacionadas a sensações
corpóreas. Portanto, Al pode ser compreendido como uma metáfora da cisão
mente-corpo, 6 que causa uma sensação de que ele não é real.
De acordo com Ramos (2006), Jung estuda o fenômeno psique-corpo como
um símbolo em seu trabalho sobre psicologia e alquimia, afirmando que o
resultado do trabalho alquímico não deve ser procurado somente no corpo
nem somente na psique. Desse modo, o resultado da opus alquímica estaria
em um campo sutil e intermediário, entre a alma e a matéria, podendo
manifestar-se de ambas as formas.
Para a autora, os termos “corpo onírico, corpo subjetivo e corpo simbólico
são conceitos que se referem a um terceiro fator que transcende a dicotomia
psique-corpo: o símbolo” (RAMOS, 2006, p. 68). Porém, a percepção desse
fenômeno seria feita por meio das alterações fisiológicas somadas às imagens
simbólicas referentes aos sintomas. Os afetos possuem a capacidade de
expressão diversa, entre elas, a corpórea. De acordo com Jung (1972),
A alma e o corpo são presumivelmente um par de opostos e, como tais, são expressão de uma só
entidade. [...] Externamente, este ser é um corpo material mas, considerado do interior, parece
constituído de uma série de imagens das atividades vitais que têm lugar no organismo. (p. 619)
3 Sobre os arquétipos, Jung postula que “Há tantos arquétipos quantas situações típicas na vida.
Intermináveis repetições imprimiram essas experiências na constituição psíquica, não sob a forma de
imagens preenchidas de um conteúdo, mas precipuamente apenas formas sem conteúdo, representando
a mera possibilidade de um determinado tipo de percepção e ação” (2013, p. 58).
4 Persona: “segmento da psique que tem a função de adaptação na sociedade e se relaciona com os
papéis que devem ser desempenhados nesta. Geralmente, o ego se identifica com a persona quando o
indivíduo entende que é aquilo que a sociedade espera dele quando desempenha determinado papel
social” (STEIN, 2006, p. 102-104).
5 Sombra: para a psicologia analítica, a sombra se constitui de conteúdos negligenciados pelo ego (eu
consciente) no seu processo de estruturação, de modo que tais conteúdos tornam-se inconscientes. Os
conteúdos pessoais sombrios não são essencialmente bons ou ruins, porém, por terem sido
compreendidos como alheios à personalidade, são tidos pelo sujeito com caráter negativo.
6 Ressaltamos que, embora o anime se refira à alma e ao corpo de Alphonse, quando refletimos sobre
o processo psíquico trabalharemos também com o conceito de mente e corpo.
2021