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Coordenação editorial: Antonio Carlos dos Santos Gomes

Revisão: Luana Negraes


Capa: Victor Sancassani
Diagramação: Raquel Serafim
Copyright 2021 by Homo Ludens
Autores:
Ivelise Fortim (org.), Cristiana Rohrs Lembo (org.), Amanda Rolim, Ana Bárbara N. Mello, Anne
Aguemi, Antonio Carlos dos Santos Gomes, Jefferson Luiz Pereira, Julia Motta Vale, Julio Cesar
Santos Araujo, Louise de França Monteiro, Luiz Ojima Sakuda, Luna Pereira Gimenez, Marcos Daniel
Grassmann Polcino, Maria Cristina Moraes Rosa Petroucic, Maria Julia Bengel, Rafael Augusto
Montassier, Roxane Pirro, Victor Sancassani.

Mangás, animes e a psicologia 3. [Ivelise Fortim, Cristiana Rohrs Lembo, (orgs.)].


São Paulo : Homo Ludens, 2021.
Vários autores.
ISBN 978-65-88093-01-6
1. Psicologia. 2. Psicologia analítica. 3. Psicologia – aspectos sociais. 4. Histórias em
quadrinhos.

Todos os direitos são reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por
qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia, gravação e
digitalização) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão da Homo Ludens.

Email: homoludens@homoludens.com.br
Sumário
Introdução
Homenagem a Sonia Luyten
Moral e ética em Crime e castigo, de Osamu Tezuka
Ghost in the Shell: identidade e memória
Jogadores compulsivos: uma visão analítica sobre Kakegurui
A espada e o que ela conta: histórias de Kenshin e Kaoru
Imaginário e mito nos animes: reflexões sobre a imagem da espada
japonesa em Rurouni Kenshin
Sombra, persona e complexo do bode expiatório: análise do protagonista
Shoya Ishida
Puella Magi Madoka Magica: recapitulação junguiana
O luto em Tengen Toppa Gurren Lagann
Meu amigo Totoro: um convite ao estudo da psique infantil
Aspectos de feminilidade e heteronormatividade em romances yaoi
Yuri!!! on Ice
Alquimia e transformação em Fullmetal Alchemist: a exploração das
potencialidades humanas no personagem Van Hohenheim
O desenvolvimento dos irmãos Elric e a integração da sombra
Introdução
Ivelise Fortim
Cristiana Rohrs Lembo

O iniciadoM em 2017,
LIVRO , 3
ANGÁS ANIMES E A PSICOLOGIA É A CONTINUAÇÃO DE UM TRABALHO
quando o primeiro volume foi publicado. São obras de
não ficção, teóricas, que discutem e analisam sagas queridas pelo público que
consome essas produções, majoritariamente de origem japonesa.
Ivelise Fortim iniciou esse projeto mesclando interesse pessoal com seu
campo de pesquisa no volume 1, convidando Cristiana Rohrs Lembo para
fazer parte dessa aventura no segundo volume. Juntas, organizaram e
produziram mais este livro, que está agora diante dos seus olhos.
O objetivo destas páginas é demonstrar como, para além de histórias
emocionantes, mangás e animes revelam conflitos e desenvolvimentos
psicológicos e culturais. Para isso, diversas obras foram analisadas à luz de
teorias da psicologia, em especial a psicologia analítica, a psicologia
comportamental e a psicologia social.
Neste volume, você encontrará temas de relevância psicológica como a
memória e o luto; críticas e conflitos sociais; a compulsão por jogos e a
representatividade na comunidade LGBTQIA+; e análises simbólicas
junguianas de animes e filmes, explorando os conceitos da psicologia
analítica como um todo.
Ivelise Fortim, acompanhada de Maria Cristina Moraes Rosa Petroucic,
escreveram sobre a identidade humana e as memórias que a constroem a
partir de Ghost in the Shell. Para isso, valem-se dos conceitos de narração e
memória autobiográficas estudando a dinâmica da protagonista, Motoko, em
suas diversas aventuras. As autoras buscaram observar e discutir o quanto a
personagem é impactada por não ter uma constituição inteiramente humana e
as consequências disso em sua história.
Já a vivência do luto e os diferentes impactos que este pode gerar em uma
pessoa foram estudados no anime Tengen Toppa Gurren Lagann. No enredo
dessa aventura, todos os personagens perdem pessoas que amam. Assim, o
autor Marcos Daniel Grassmann Polcino trabalhou a presença do trauma e da
resiliência nos personagens a partir do modo com que lidam com a morte.
O anime Samurai X foi estudado por dois autores sob olhares distintos. A
autora Amanda Rolim escreveu sobre a vivência da violência e da
agressividade por meio do simbolismo da espada. Nessa obra, os personagens
vivenciam aprendizados diferentes quanto aos usos das artes marciais, da
força e da espada. Consequentemente, o modo como lidam com a violência e
a agressividade também é particular. Já o autor Rafael Augusto Montassier
escreveu sobre a complexidade e o fascínio da imagem da espada, mas
valendo-se do conceito de imaginação do antropólogo Gilbert Durant.
Há dois capítulos sobre Fullmetal Alchemist, ambos escritos por Luna
Pereira Gimenez e Marcos Daniel Grassmann Polcino. O primeiro explora os
diferentes rumos que uma pessoa pode tomar a partir de suas decisões, ética e
postura ao longo da vida, indicando os inúmeros potenciais que existem
dentro de um mesmo ser humano. O segundo tem como tema os dois irmãos
que protagonizam a história.
Os autores Jefferson Luiz Pereira e Antonio Carlos dos Santos Gomes
exploraram as questões de ética e moral na psicologia analítica por meio do
mangá de Osamu Tezuka que revisita o clássico Crime e castigo, de
Dostoiévski.
O capítulo escrito por Cristiana Rohrs Lembo trabalha os simbolismos do
período da infância presentes no filme Meu amigo Totoro. Tanto os medos
quanto as descobertas são explorados nesse capítulo, e são também
trabalhados os laços entre mãe e filha e doença e saúde, estudando a
criatividade na figura da criança e os potenciais de futuro adulto que a
protagonista poderá vir a ser.
Outro capítulo com foco na análise simbólica junguiana de um anime foi o
sobre Puella Magi Madoka Magica, da autora Roxane Pirro. Nele, foram
estudados principalmente três imagens presentes na história: as bruxas, o lobo
e o sacrifício.
No capítulo que aborda a obra Koe no Katachi, escrito por Ana Bárbara N.
Mello e Anne Aguemi, as autoras exploraram os conceitos de persona,
sombra e bode expiatório a partir da relação dos protagonistas, Shoya e
Shoko. A segunda personagem, surda, sofrerá bullying de seus colegas, sendo
tal ação liderada por Shoya, personagem cuja dinâmica as autoras exploram
mais a fundo. A partir dessa relação conturbada, Shoya será, inicialmente,
valorizado pela turma e, depois, hostilizado devido às suas ações, sofrendo
por conta das projeções nele colocadas. Tais projeções causaram impactos em
sua persona e em sua sombra, além de terem feito com que ele vivenciasse a
experiência do bode expiatório em sua própria pele, o que, por si só, já é
demasiado impactante. Tais fenômenos, então, são os objetos de estudo das
autoras nesse capítulo.
O capítulo sobre Yuri!!! on Ice, de Louise de França Monteiro e Victor
Sancassani, por sua vez, terá como pauta uma crítica aos demais animes e
mangás de temática yaoi (histórias cujo tema é a relação homoafetiva). Por
vezes, esse tipo de obra constrói relações baseadas em estereótipos
heteronormativos, indicando que haveria sempre um “enquadre-padrão”
nesse tipo de relacionamento, sendo uma das pessoas do par romântico “mais
feminina” e a outra “mais masculina”. O que é discutido no capítulo é
justamente a necessidade de expandir a representatividade nessas histórias
para outros tipos de relações homoafetivas, com diferentes vivências tanto na
apresentação do gênero, sendo mais feminino, mais masculino ou ainda não
binária ou intersexual, quanto na representação de diferentes modos de
expressar a sexualidade.
O capítulo das autoras Julia Motta Vale e Maria Julia Bengel sobre
romances yaoi investiga a ausência de personagens femininas em obras desse
gênero, mesmo que nelas ainda haja expressão de feminilidade nos
relacionamentos homoafetivos entre homens, que reproduzem padrões de
heteronormatividade. As autoras farão críticas e análises a partir do modo
como esses romances são construídos, pois, além de reproduzirem padrões de
comportamentos estereotipados nos relacionamentos entre homens, não há
presença de personagens femininas nos enredos para realmente representar o
público feminino que consome essas histórias.
Por fim, o tema da compulsão por jogos foi analisado por Julio Cesar
Santos Araujo, que tratou do anime Kakegurui. A partir da animação, cujo
tema central são os jogos de azar, o autor articula a vivência e o sofrimento
psicológico dos personagens em relação às questões vividas por aqueles que,
na vida real, enfrentam a compulsão por jogos. O diálogo entre ficção e
realidade é feito por meio de uma análise junguiana.
Acreditamos que este volume, com temas e histórias tão diversas,
contribuirá para o campo de estudo de mangás e animes. Sua proposta é
oferecer novos olhares e análises a respeito desses materiais. Além disso,
esperamos poder informar e, quem sabe, inspirar e gerar reflexão no público
que consome esse tipo de entretenimento, fazendo com que seja possível
enxergar faces mais profundas e enriquecedoras nessas fantásticas histórias.
Boa leitura!
Homenagem a Sonia Luyten
Luiz Ojima Sakuda 1
Ivelise Fortim 2
Julio Cesar Santos Araujo 3

A diversos autoresMem falar,


SÉRIE DE LIVROS ,ANGÁS ANIMES E A PSICOLOGIA SURGIU DO INTERESSE DE
com uma linguagem de divulgação científica,
sobre as aproximações entre a psicologia e as produções japonesas. Contudo,
não é possível falar sobre esse assunto sem citar uma das grandes pioneiras
sobre o estudo de quadrinhos, animes e mangás no Brasil: Sonia Luyten.
Esta homenagem faz uma retrospectiva de sua trajetória e sua contribuição
para o campo, tendo como base dados públicos sobre sua carreira e uma
entrevista realizada em janeiro de 2021. O presente capítulo está organizado
em quatro partes: (i) Formação e carreira acadêmica; (ii) Produção
acadêmica; (iii) Protagonismo nos outros papéis no ecossistema de
quadrinhos; e (iv) Atividades atuais e considerações finais sobre sua
contribuição.
Formação e carreira acadêmica
Sonia Luyten é uma pesquisadora brasileira pioneira na temática de
histórias em quadrinhos (HQs) e cultura pop japonesa, tendo 50 anos de
trajetória ligada às HQs. Graduada em Jornalismo pela Faculdade Cásper
Líbero (1971), é mestre (1974) e doutora (1987) em Ciências da
Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São
Paulo (ECA-USP).
Como jornalista e tradutora, trabalhou para a Associated Press (1967-1968)
e para O Estado de S. Paulo (1969-1972). Em 1972, com a entrada no
programa de mestrado, passou a privilegiar sua atuação acadêmica. Como
docente e pesquisadora, teve três grandes ciclos: brasileiro, internacional e a
volta ao Brasil. Seu principal vínculo no primeiro ciclo foi como professora
na ECA-USP, mas também trabalhou em outras instituições brasileiras, como
Faculdade Cásper Líbero, FIAM, Fundação Armando Alvares Penteado
(FAAP), Centro Educacional Objetivo e Escola Superior de Propaganda e
Marketing (ESPM).
No segundo ciclo, lecionou e fez pesquisas em diversas instituições
internacionais: primeiro, no Japão, na Osaka University of Foreign Studies
(1984-1987), na Tokyo University of Foreign Studies (1987-1990) e na
University of Tsukuba (1990); depois, na Holanda, na Teikyo University,
Campus avançado em Maastricht (1991-1992) e na Royal University of
Utrecht (1993-1996); e, por fim, na França, na Université de Poiteirs (1998-
1999).
De volta ao Brasil, trabalhou como professora e coordenadora do Mestrado
em Comunicação da Universidade Católica de Santos (2000-2005), onde
desenvolveu o Núcleo de Pesquisa e Documentação sobre Histórias em
Quadrinhos. Após sua aposentadoria, continuou a participar da vida
acadêmica sem vínculos longos com nenhuma instituição específica.
Produção acadêmica
Apesar de sua pesquisa sobre HQs ter se iniciado na Universidade de São
Paulo (USP), é possível dizer que seu relacionamento com essa arte vem
desde sua infância, quando seu pai lhe comprava alguns quadrinhos,
facilitando sua leitura, a qual veio a se tornar sua paixão, impulsionando-a no
meio acadêmico.
Eu sempre li. De criança até a adolescência [...] porque a menina sempre larga quadrinhos na
adolescência, e eu não, continuei com super-heróis e etc.

Na faculdade de Jornalismo, o professor José Marques de Melo fez um trabalho sobre


quadrinhos, me chamou muita atenção. Isso foi o primeiro despertar para a pesquisa, usando
toda uma metodologia e etc. para pesquisar os quadrinhos. 4

Em 1972, recebeu um convite do professor José Marques para auxiliar na


montagem do curso de Editoração de Quadrinhos. Por meio desse curso,
organizou a revista Quadreca, lançada em 1977, pela qual passaram grandes
desenhistas ainda atuantes, como Laerte. Os alunos eram responsáveis por
criar reportagens sobre quadrinhos, bem como editá-las para que fossem
publicadas na Quadreca. As edições estão disponíveis no site da ECA-USP
(PROJETO Quadreca, [20--]).
Em [19]72, entrei no mestrado [...] e iniciei o curso de quadrinhos na ECA, de editoração de
histórias em quadrinhos. Era um curso voltado para o editor. Naquela época, eu já queria
editores com a cabeça mais aberta para publicar quadrinhos, ou então livros didáticos de
quadrinhos. Uma coisa que também fomentou a pesquisa foi a revista Quadreca [...]. Antes de ir
para o Japão, eu deixei uma sementinha aqui, depois fui embora... Dei um curso de pós-
graduação na área de quadrinhos, não tinha isso. Então, deu como fruto o livro História em
quadrinhos e leitura crítica. Os próprios alunos foram convidados para colocar seus textos e
isso foi legal também.

Seu trabalho anterior sobre mangás na Quadreca foi a semente que um dia
se tornaria seu doutorado, um estudo pioneiro sobre o mundo dos mangás no
Brasil e no mundo.
Porém, na universidade, devo dizer que sempre escrevi os livros que eu achava que tinha que
escrever. Para me expressar, não para impressionar com temas da moda. Sempre escrevi para
poder ser lida. Muitas vezes, eles não gostavam, mas a universidade tem que sair daquele
intramundos e o pesquisador [tem que] parar de falar coisas difíceis, para que as pessoas
compreendam.
A experiência no Japão foi bastante importante, pois foi quando Sonia
Luyten pôde vivenciar a interação da cultura pop japonesa com a academia.
A produção nos anos 1980 era volumosa e diversa, mas os estudos
acadêmicos ainda não estavam estabelecidos:
O que eu vi no Japão naquela época foi uma profusão de livros paradidáticos usando
personagens de quadrinhos, mas nada de pesquisa sobre quadrinhos. O Japão, no início dos anos
[19]80, tinha uma profusão de vendas: milhões de cópias [...]. Mas eles não conseguiam se olhar
no espelho e ver o que aquilo significava. [...] os estrangeiros pesquisaram mangá, [...] comecei
a traduzir para o japonês, [isso] não foi muito bem recebido porque era um espelho que nem
sempre a pessoa quer se ver. Então, todas as considerações da leitura, o quando, o porquê das
fantasias, até dos fetiches, que se eu puser o quadrinho mais pornográfico, erótico, então... Isso
não ia muito bem. Naquela época, [havia] muito pouca coisa em Japonês sobre análise do
próprio mangá.

No ciclo europeu, Sonia Luyten encontrou um cenário mais maduro, em


que pôde aproveitar sua vivência no Japão e fazer conexões:
Na Europa, encontrei uma outra mentalidade, já tinha muitos salões de quadrinhos. Isso, por
meio das exposições, fomentou a pesquisa. Tinha muitos artigos, muita coisa que eu aproveitei
bastante. Na França, idem, fiz várias exposições. Tem um curso lá sobre cultura pop e cultura
popular, usando os quadrinhos europeus desde a Idade Média, pegando a arte sequencial. Tive
excelentes trabalhos, então fiz bom proveito.

A volta ao Brasil foi na mesma época em que o perfil da produção


japonesa mudou:
O Japão ficou um pouco direcionado ao ocidente, por exemplo, a gente pega a produção até os
anos 1990, uma produção própria interna. Depois daquilo, coincide com algumas publicações
sendo traduzidas do japonês para o inglês, e eles começam a abrir para o mercado externo. [...] o
Japão, então, começa a fazer um quadrinho mais “tipo exportação”. Mudam a figura humana,
mulheres com seios maiores, bundas maiores, para atrair melhor o mercado.

O preconceito dentro da área acadêmica para com seu tema de pesquisa foi
sempre uma barreira, a credibilidade de temas menos tradicionais na
comunidade acadêmica é sempre um processo longo e difícil. Nesse sentido,
Sonia Luyten teve um papel duplo: como pesquisadora na sua instituição e
também como incentivadora do tema em outras instituições de ensino e
pesquisa, pois muitas vezes ela era solicitada como referência na área para
escrever cartas de indicação para que outros alunos pudessem pesquisar sobre
assuntos relacionados às HQs. Tal reconhecimento se deve em muito a sua
perseverança e sua habilidade de seguir mesmo diante das adversidades,
estudando e trazendo mais luz ao tema ao qual tanto se dedicou.
Essa linha da pesquisa... eu sempre batalhei, mas não pensa que foi fácil, não. [...] Eu não gosto
de lamento, eu gosto de falar: “Vamos conseguir fazer as coisas”. Então, [conseguimos] a
introdução de quadrinhos nas teses, TCC, mestrado e doutorado.

Sonia Luyten ressalta a importância da qualidade e do rigor como


essenciais para que a pesquisa em quadrinhos continue a se desenvolver,
quebrando preconceitos ainda existentes sobre temas menos estudados:
Eu sou extremamente rigorosa na pesquisa. [...] todo mundo acha que fazer pesquisa em
quadrinhos... “tanto faz, não tem metodologia, não tem nada”. Então, nas orientações e nas
bancas, eu tomo em consideração esse aspecto da metodologia, da espinha dorsal, os livros,
nomes corretos [...] “A Sonia ’tá naquela banca? Ai, que medo!” Porque eu sou rigorosa
mesmo. Acho que é um assunto como qualquer outro, merece ter certo cuidado.

Entre suas publicações, as mais influentes segundo um levantamento no


Google Scholar foram seus livros Mangá: o poder dos quadrinhos japoneses
(1991), O que é história em quadrinhos (1985), Histórias em quadrinhos:
leitura crítica (1989) e Cultura pop japonesa (2005).
A coletânea organizada por Sonia Luyten em 1989 para a editora Paulinas
é bastante ilustrativa: fez parte de uma coleção mais ampla que incluía títulos
como Tramas da comunicação, Para uma leitura crítica da televisão e Para
uma leitura crítica dos jornais. Esse é um exemplo de como seu trabalho
contribuiu para a institucionalização dos quadrinhos como objeto de estudo
válido, no mesmo patamar de mídias mais tradicionais, como a televisão e os
jornais, afastando o estigma de “subarte ou subliteratura” (LUYTEN, 1989,
p. 8). Os capítulos incluíam diversos aspectos das HQs: como manifestação
de arte; sua relação com a indústria gráfica; syndicates norte-americanos;
contextos geográficos (na Argentina, no México e no Brasil); relação com as
crianças, com os livros didáticos, com as publicações populares e com os
álbuns de figurinhas; e como prática pedagógica. Expor essa variedade de
temas, contextos e práticas era necessário para que a complexidade das HQs
pudesse ser compreendida pela sociedade.
O currículo Lattes de Luyten lista 23 artigos em periódicos acadêmicos, 8
livros, 17 capítulos de livros, 59 textos em jornais de notícias/revistas, 102
apresentações de trabalho, 61 outras publicações bibliográficas, participação
em 19 bancas de mestrado e 12 bancas de doutorado, organização de 14
eventos e orientação de 9 dissertações de mestrado; além de outros itens
(CNPQ, [20--]).
A distribuição desses itens ao longo do tempo também reflete o
amadurecimento da academia brasileira no setor. No início, eram necessários
mais cursos, eventos e livros para que o tema fosse mais divulgado; depois,
com a criação e desenvolvimento de linhas de pesquisa de pós-graduação que
aceitavam os quadrinhos no escopo e/ou como objeto de pesquisa, as bancas
para monografias e a publicação de artigos em congressos e periódicos
passaram a ser mais frequentes.
Protagonismo nos outros papéis no ecossistema de quadrinhos
A contribuição de Sonia Luyten não se resume ao meio acadêmico.
Construtora de pontes, foi componente importante para diversas iniciativas
no ecossistema de quadrinhos.
Desde o começo, seu trabalho busca não somente divulgar o estudo de
quadrinhos em geral, mas também promover internacionalmente a arte
brasileira. Ela participou da 1ª Exposição de Quadrinhos Brasileiros na
Holanda, seguindo para um congresso em Portugal, e desses para tantos
outros eventos em que ela falava sobre produções brasileiras no exterior.
Outro marco de sua carreira foi sua atuação como curadora de quadrinhos
africanos (conhecidos como Picha), que construiu uma ponte cultural e
social, quebrando barreiras étnicas e sociais ao possibilitar a entrada dessa
forma de expressão artística e cultural no Brasil.
Nesta sessão, destacaremos ainda sua contribuição para a Associação
Brasileira de Desenhistas de Mangá e Ilustrações (Abrademi) e o Troféu
HQMIX.

Abrademi
Uma das edições da Quadreca do ano de 1976 foi voltada para mangás, e
nela surgiram seus primeiros estudos voltados para quadrinhos japoneses.
Isso abriu portas para a fundação da Associação de Amigos de Mangá, que
mais tarde fez uma exposição na Sociedade Brasileira de Cultura Japonesa e
de Assistência Social (Bunkyo), no bairro da Liberdade.
Esse movimento foi formalizado em 1984 com a fundação da Associação
Brasileira de Desenhistas de Mangá e Ilustrações (Abrademi), um grupo de
profissionais que começaram a realizar as primeiras convenções de mangás
em São Paulo e no Brasil como um todo. Sonia Luyten participou da criação
e foi diretora da associação – quase foi a primeira presidente, também, mas
não pôde aceitar porque estava se mudando para Osaka (ABRADEMI, [20--
]). A Abrademi teve iniciativas pioneiras na difusão da cultura pop japonesa
no Brasil, por exemplo, apresentando os primeiros cosplayers do país.
Sonia Luyten também foi fundadora do primeiro museu de quadrinhos do
Brasil, o Museu de Histórias em Quadrinhos “Júlio de Mesquita Filho”, bem
como de uma mangateca em 1972.

Troféu HQMIX
O Troféu HQMIX é uma das mais tradicionais premiações dos quadrinhos
brasileiros, tendo sido criado em 1988 por José Alberto Lovetro (Jal) e João
Gualberto Costa (Gual). As votações são realizadas por artistas e
profissionais da área, editores, pesquisadores e jornalistas brasileiros (BLOG,
2020). Sonia Luyten participou e ainda participa da comissão organizadora,
tendo sido responsável pela introdução da categoria Livro teórico e das
categorias acadêmicas Trabalho de conclusão de curso, Dissertação de
mestrado e Tese de doutorado.
[Jal e o Gualberto] começaram o programa do HQMIX, o programa do Serginho Groisman. Fui
convidada pra participar depois junto com eles. Tenho toda a história do HQMIX, como júri, já
fui presidente por dois anos, aí então eu achei que estava faltando um item dentro da premiação.

Eu queria inovar e realmente foi o único no mundo, só depois o prêmio Eisner colocou isso. Eu
acho que tem que ter pesquisa também. É o seguinte: no momento em que você valoriza a
pesquisa, muitas vezes o desenhista se vê nisso e muitas vezes a pesquisa é sobre o quadrinho
nacional, o quadrinho latino-americano etc. Com isso, o próprio desenhista volta pro banco
escolar e vai fazer seu mestrado. Partindo de um certo momento, eu quis fazer uma metodologia
de troféus, falei pro Jal e pro Gualberto: “Não adianta eu fazer uma escolha da melhor tese, são
diferentes tipos de teses. Um TCC não pode ser comparado com um mestrado, doutorado ou
ambos. Precisamos de mais verba pra fazer três troféus. Assim, cada um ganha na sua
categoria”.

Sonia Luyten destaca a importância do prêmio para o desenvolvimento do


campo na academia:
Você nem queira saber o quanto isso fomentou. Um dia eu tenho que fazer uma lista, não tive
tempo, são centenas de teses que recebemos de universidades do país inteiro. Então, um
estudante que ganha o prêmio HQMIX, seja de tese, mestrado ou doutorado, é uma tese de
excelência. Ele já passou por uma banca de três ou cinco pessoas e ele passa pra mais uma
banca de cinco elementos, então se o cara ganhou, é porque ele é bom.

O HQMIX no caso das teses é algo assim, meu xodó. O que eu mais me empolgo todo ano. São
centenas de páginas pra ler, eu não me importo.
Atividades atuais e considerações finais sobre sua contribuição
Sonia Luyten foi responsável por abrir caminhos para uma arte até então
pouco reconhecida e, principalmente, possibilitou que essa arte fosse
estudada e utilizada de forma didática. Seu trabalho passou tanto pela arte
como pela literatura e pela revisão bibliográfica, dando origem a algo muito
maior no cenário nacional e levando as características da arte nacional
relacionada aos quadrinhos para fora, num intercâmbio rico ao apresentar a
arte dos quadrinistas brasileiros no exterior, comparecendo a convenções e
incitando a criação de outras. Ainda hoje podemos ver frutos de seu trabalho,
mesmo que ela não participe mais diretamente de publicações como a
Quadreca ou que não compareça a convenções de animes e mangás, que hoje
são numerosas.
Atualmente, Sonia Luyten mantém uma atividade bastante importante,
coordenando a comissão acadêmica do Troféu HQMIX, participando de
bancas de monografias de diversas instituições e níveis acadêmicos, além de
apoiar outros pesquisadores. “Estou fazendo o que eu gosto sem a parte
burocrática universitária. [...] Dou muitas palestras, escrevo livros, artigos,
então... Estou com a vida que pedi para Deus”, afirma ela.
Sonia Luyten avalia que as HQs conseguiram se institucionalizar como
campo e considera muito gratificante poder participar de uma comunidade
que cresceu em quantidade e qualidade de pesquisa:
Hoje está num patamar de reconhecimento. Essa é a minha história. Me sinto muito feliz de ter
aberto espaços, de muita gente pegar isso. Tem vários grupos de pesquisa, gente que está
realmente iniciando, outros que estão na carreira há tempos... Mas é uma delícia estar entre
pesquisadores. São vários grupos aos quais eu pertenço e... Ouvir, aprender, tanta coisa que a
gente aprende ainda.

Luyten recebeu vários prêmios na área acadêmica, entre eles o Troféu


Romano Calise em Lucca, na Itália, como melhor tese acadêmica na área de
histórias em quadrinhos (1990), o Troféu HQMIX (1988, 1991, 1999), o
Prêmio MangaCom (2000), o Prêmio Angelo Agostini, na categoria Mestre
do quadrinho nacional (2006), o Prêmio Cátedra UNESCO/Metodista de
Comunicação (2006) e o Prêmio Honraria do governo japonês (2008) por sua
atuação na divulgação e na pesquisa da cultura pop japonesa (SONIA, [201-
]).
Sônia também recebeu muitas homenagens, sendo que uma das mais
recentes e simbólicas foi a inauguração do Grupo de Estudos e Pesquisas
Professora Sonia Maria Bibe Luyten, que tem apoio do Departamento de
Formação e Pesquisa Cultural (Deforpec) e da Secretaria de Cultura (Secult)
da Prefeitura de Santos, cidade onde Sonia Luyten reside. O grupo tem foco
nas pesquisas de histórias em quadrinhos e segue os moldes de outros núcleos
de pesquisa já consolidados, como o Observatório de Histórias em
Quadrinhos da ECA-USP (PREFEITURA, 2019).
Personagem de eventos simbólicos das HQs brasileiras, como a
apresentação de Mauricio de Souza a Osamu Tezuka, é impossível dissociar a
trajetória de Sonia Luyten do desenvolvimento dos quadrinhos no Brasil.
Muito obrigado por tudo, Sonia Luyten!
Em 2022, Sonia irá completar 50 anos de carreira, bem como o curso de
quadrinhos da USP. Esperamos que seja possível uma grande comemoração!
Referências
ABRADEMI – Associação Brasileira de Desenhistas de Mangá e Ilustrações. A fundação da
Abrademi, associação de mangá. [S. l.: s. n.]. [20--]. Disponível em:
https://www.abrademi.com/index.php/a-fundacao-da-abrademi-associacao-de-manga/. Acesso em: 5
abr. 2021.
BLOG Oficial do Troféu HQMIX. Vencedores do 32° Troféu HQMIX. [S. l.: s. n.], 30 nov. 2020.
Disponível em: https://blog.hqmix.com.br/noticias/vencedores-32-trofeu-hqmix-2020/. Acesso em: 5
abr. 2021.
CNPQ. Currículo do sistema de Currículos Lattes. Informações sobre a formação e a atuação
profissional de Sonia Maria Bibe Luyten. [S. l: s. n.]. [20--]. Disponível em:
http://lattes.cnpq.br/3523112773488026. Acesso em: 5 abr. 2021.
LUYTEN, S. M. B. (org.). Cultura pop japonesa. São Paulo: Hedra, 2005.
LUYTEN, S. M. B. (org.). Histórias em quadrinhos: leitura crítica. v. 1. São Paulo: Paulinas, 1989.
LUYTEN, S. M. B. Mangá: o poder dos quadrinhos japoneses. São Paulo: Estação Liberdade, 1991.
LUYTEN, S. M. B. O que é história em quadrinhos. São Paulo: Brasiliense, 1985.
PREFEITURA de Santos. Grupo de estudos de quadrinhos faz reunião inaugural na Gibiteca. Santos:
[s. n.]. 14 fev. 2019. Disponível em: https://www.santos.sp.gov.br/?q=noticia/grupo-de-estudos-de-
quadrinhos-faz-reuniao-inaugural-na-gibiteca. Acesso em: 5 abr. 2021.
PROJETO Quadreca. Homepage. [S. l.: s. n.]. [20--]. Disponível em:
http://www2.eca.usp.br/quadreca/. Acesso em: 5 abr. 2021.
SONIA Luyten e as histórias em quadrinhos. Curriculum Vitae. [S. l.: s. n.]. [201-]. Disponível em:
http://sonialuyten.blogspot.com/p/curriculum-vitae.html. Acesso em: 5 abr. 2021.
Notas
1 Luiz é doutor em Engenharia de Produção pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo
(Poli-USP), mestre em Administração de Empresas pela FGV-EAESP (com intercâmbio na ESSEC
Business School) e bacharel em Administração Pública pela mesma instituição. É sócio da Homo
Ludens Research & Consulting e professor do Centro Universitário FEI. Cocoordena cursos de
extensão na FIA Business School, na área de economia criativa, e na Unibes Cultural, na área de jogos
digitais e gamificação. E-mail para contato: luiz@homoludens.com.br

2 Ivelise é doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-
SP), mestre em Ciências Sociais e graduada em Psicologia pela mesma instituição. É docente da PUC-
SP nos cursos de graduação de Psicologia e Tecnologia em Jogos Digitais. Também é coordenadora do
Janus – Laboratório de Estudos de Psicologia e Tecnologias da Informação e Comunicação e sócia da
Homo Ludens Research & Consulting. E-mail para contato: ivelise@homoludens.com.br.

3 Julio é formado em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Tem
grande interesse por assuntos geek e pelo modo como se relacionam com a saúde mental. E-mail para
contato: jc.sih@hotmail.com.

4 A não ser que seja indicada a fonte, os trechos citados neste capítulo são parte da entrevista que
Sonia Luyten concedeu aos autores em janeiro de 2021.
Moral e ética em Crime e castigo, de Osamu Tezuka
Jefferson Luiz Pereira 1
Antonio Carlos dos Santos Gomes 2

ONSIDERADO POR MUITOS UM DOS MAIORES EXPOENTES DO MANGÁ MODERNO,

C com produções como Astro Boy e Don Drácula, e influenciador de


quadrinhos como Turma da Mônica, de Mauricio de Souza, Osamu
Tezuka, falecido em 1989, produziu mais de setecentos mangás, sendo que a
maioria de seus títulos só está disponível, ainda hoje, em língua japonesa.
Em 1953, lançou uma releitura da obra Crime e castigo, de Dostoiévski, em
forma de mangá, o que lhe rendeu boas críticas por introduzir para crianças
uma obra literária tão expressiva. Apesar de essa adaptação ser uma narrativa
adulta, o mangaká consegue apresentar a obra de forma inteligível às crianças
e despertar interesse em jovens e adultos. Cabe dizer que Tezuka propõe um
final diferente do original de Dostoiévski à sua adaptação da obra.
A trama
A história se desenvolve na Rússia pré-revolução, cenário em que o jovem
estudante Raskólnikov passa por privações e dificuldades financeiras como a
maioria absoluta de Petersburgo, antiga Leningrado. Em uma atitude
desesperada, o personagem procura Alyona, a agiota da cidade, para vender
um relógio de importância sentimental. A agiota lhe oferece apenas cinquenta
moedas, e isso o revolta, mexendo com sua mente a ponto de fazê-lo pensar
em matar a “velha egoísta” e “sem coração”. Questionamentos sobre injustiça
e equidade fazem Raskólnikov decidir que executaria a senhora que não se
importa com nada. Resoluto, o jovem pega uma machadinha e parte para a
casa da agiota, decidido a ser instrumento de seu próprio senso de justiça.
Chegando lá, o estudante se depara com dois trabalhadores que faziam
reparos no edifício e que seriam possíveis testemunhas de seu crime.
Despercebido, Raskólnikov decide agir, ludibriando Alyona, entrando em sua
casa e a matando, tomando para si muito mais que o relógio que vendera para
ela.
Em meio à sua fuga, o jovem deixa cair um relógio, que é encontrado por
um dos trabalhadores do prédio, Nikolai. Este, por infortúnio, mente ao dizer
que o objeto lhe pertence e acaba acusado pela morte da senhora. Preso,
Nikolai é acusado e condenado à morte, mas, por intermédio do juiz Porfiry,
ao inocente trabalhador é dado o benefício da dúvida e o direito a uma
investigação, conduzida por seu salvador e detetive, Zamyotov.
O primeiro lugar a ser investigado é o bar Lata de Lixo, onde o sobrinho
do juiz, Razumíkhin, celebrava por ter conseguido um bico. Durante a
comemoração, Razumíkhin é empurrado contra a mesa de um bêbado,
Marmeladov, que é derrubado. Então, ele percebe que Marmeladov era
motivo de chacota por sua filha, Sonia, ser prostituta. Razumíkhin
esbravejava com as pessoas do bar que estavam debochando do bêbado
quando Porfiry chega ao local e o chama de lado para fazer perguntas sobre
seu amigo Raskólnikov. O juiz pede para conhecer o jovem estudante em
razão de seu apreço pelo trabalho acadêmico deste “sobre gênios” que, em
suma, diz que pessoas ordinárias devem obedecer as geniais, e que o mundo
justifica as ideias destas mesmo que ajam erroneamente, pois elas conduzirão
o velho mundo ao novo.
Enquanto isso, em sua casa, o jovem estudante se martiriza e sofre por seu
crime hediondo e sai para esconder o fruto de seu roubo. Ele resolve fugir e,
depois de acobertar tudo, volta para casa, onde encontra seu amigo
acompanhado do juiz. Uma discussão sobre o estudo de Raskólnikov tem
início e, durante o desenrolar da conversa, o juiz chega onde realmente
queria: insinuar a participação do estudante no assassinato. Raskólnikov
reage com perplexidade e medo, o que faz com que Razumíkhin saia dali
repentinamente com o juiz, evitando, assim, um maior desentendimento entre
Porfiry e Raskólnikov
Depois de se livrar das visitas inesperadas, o estudante recebe uma carta da
mãe avisando-o do casamento de sua irmã, Dunya. Insatisfeito com o
casamento por interesse devido à situação de pobreza da família, Raskólnikov
decide sair para caminhar. Ele chega no bar Lata de Lixo, onde se depara com
o detetive Zamyotov, com quem inicia uma conversa sobre sua situação. Por
pressão dos argumentos agressivos de Raskólnikov, o detetive decide deixar
o bar. Em seguida, Raskólnikov repara em Marmeladov, que está bêbado, e
decide ampará-lo até um determinado ponto da cidade, onde se separam. No
entanto, logo em seguida, o pobre alcoolizado é atropelado. Raskólnikov
retorna e, junto de outros que presenciaram o acidente, socorre Marmeladov,
levando-o para a pensão onde morava com sua mulher e sua filha.
Logo que chega ali, sob a atenção da família e de muitos curiosos da
pensão, Marmeladov morre. Em meio ao desconsolo da família, Raskólnikov
encontra-se com Luzhin, o noivo de sua irmã, que estava entre os curiosos,
pois havia se mudado havia pouco tempo para um quarto naquela pensão. Em
uma conversa nada amistosa, os dois brigam, pois Raskólnikov percebe que
as intenções de Luzhin não são boas. Contrariado, o estudante dá as costas
para o homem e, ao chegar à sua casa, encontra a mãe e a irmã. Ele discute
com a irmã sobre aquele noivado com alguém tão vil e, mesmo que ela
argumentasse que fazia aquilo pela felicidade da família, o jovem se nega a
receber esse sacrifício da irmã, que seria justamente o relacionamento com o
homem de posses, apesar de vulgar. Após essa conversa, Dunya e sua mãe
decidem visitar Luzhin, enquanto Raskólnikov continua em casa, investido
em uma conversa com Razumíkhin, que chegara inesperadamente.
Razumíkhin o informa que o juiz Porfiry pedira desculpas pelo mal-
entendido, por desconfiar dele, e que Nikolai, considerado o verdadeiro
assassino, havia sido preso.
A família de Raskólnikov vai a um jantar com o futuro marido de Dunya.
Durante uma refeição, Luzhin lembra o quanto fora maltratado no encontro
com o estudante e que aquilo não poderia se repetir. Nesse momento, chega
Raskólnikov, que inicia uma discussão com Luzhin e, durante o calor do
momento, o noivo da irmã deixa escapar o que o estudante vinha alertando à
irmã: Luzhin usava o argumento que tiraria Dunya da pobreza como uma
espécie de chantagem para forçar o noivado. Raskólnikov debocha da
máscara do noivo, que acabara de cair, e então Dunya resolve romper o
noivado.
Após saírem daquele recinto, o estudante convence a irmã e a mãe a
voltarem para o interior, já que a ideia absurda do noivado havia finalmente
acabado. Ainda inconformado e ressentido por sentir que fora humilhado por
Raskólnikov e pelo fim do noivado, Luzhin sai pelas ruas. É quando encontra
Sonia, que o convida para o velório do pai. Após recusar o convite, ele é
informado que Raskólnikov estará no velório e resolve fazer uma armação:
coloca uma nota no bolso de Sonia ao abraçá-la, sem que ela percebesse. O
objetivo seria acusar de roubo alguém por quem Raskólnikov tinha muito
apreço. Contudo, ele não contava que uma testemunha, Svidrigailov,
observara tudo. Já no velório na casa da viúva, Luzhin aparece de surpresa
e tenta consumar seu plano em frente a todos os presentes, incluindo o
estudante, mas é desmascarado por Svidrigailov, causando uma confusão
generalizada entre os presentes.
Transtornado por presenciar aquela cena deplorável, Raskólnikov sai para
a rua, onde encontra-se com Sonia e promete confessar algo logo depois de se
encontrar com Porfiry. Chegando ao gabinete do juiz, começa um embate
psicológico entre os dois, e então Raskólnikov descobre que o juiz já sabe
que ele é culpado e aguarda que confesse para prendê-lo. Apesar do
argumento de Porfiry de que a confissão seria um ato de grandeza do
estudante, ele não confessa e sai transtornado do gabinete.
Em um beco, voltando para casa, Svidrigailov, empregado de uma mansão
onde fora assassinada a moradora Marfa, aborda o estudante, convidando-o a
participar da revolução e confessando ser o responsável por esse assassinato.
Atônito, Raskólnikov se nega a ajudá-lo e é ferido com um tiro, porém Sonia
o socorre. Desesperado, ele decide confessar seu crime. Sonia se surpreende
com a verdade e o aconselha que fazer uma confissão pública e se entregar
seria o melhor que o estudante poderia fazer para se redimir. Caminhando
ferido, o estudante vai até a praça pública e grita que havia cometido o
assassinato da agiota, mas ninguém o ouve, pois todos estavam tomados pela
tensão da revolução que havia emergido nas ruas. Nesse ponto, vemos uma
diferença em relação à obra original: em vez de ser exilado na Sibéria –
experiência vivenciada pelo próprio Dostoiévski –, no mangá o protagonista
amarga a impossibilidade da confissão, da expurgação de sua culpa, em um
grito desesperado para surdos imersos na revolução que acabara de emergir.
A influência de Dostoiévski
Dostoiévski é um dos escritores mais admirados em todo mundo, e sua
influência atravessou os diversos campos da produção filosófica e artística.
Machado de Assis, Sigmund Freud, Franz Kafka, Ernest Hemingway e Jean-
Paul Sartre foram alguns dos autores que beberam de suas obras. O filósofo
alemão Friedrich Nietzsche fez referências ao autor, a quem se referia como o
único psicólogo com quem tinha algo a aprender. Em uma carta endereçada a
um amigo, Nietzsche disse que “a voz do sangue fez-se ouvir de imediato e
minha alegria não teve limites” (ELSIRIK; TREVISAN, 2008. p. 6); a voz do
sangue seria a voz genuína da alma humana, com suas alegrias e seus
tormentos, seus sofrimentos. Curiosamente, uma das cenas de Crime e
castigo que não está presente na adaptação de Tezuka, quando Raskólnikov
conta um sonho de infância em que camponeses embriagados surram um
cavalo até a morte, é muito parecida com o surto psicótico que Nietzsche
sofrera em Turim, onde, chorando, abraçou um cavalo após presenciar um
cocheiro batendo com força no animal, que estava completamente exausto e
não conseguia mais andar.
Podemos verificar outro paralelo entre Dostoiévski e Nietzsche: na obra
Assim falou Zaratustra (NIETZSCHE, 2011), o filósofo alemão desenvolve a
ideia de super-homem (em alemão, Übermensch, com sentido de “além do
homem”), que lembra o estudo de Raskólnikov, que veremos com mais
detalhes adiante neste capítulo. Nesse estudo, é citada a existência de homens
ordinários e extraordinários. A ideia de super-homem é mais uma visão do
mundo do que uma teoria propriamente e representa aquele que arrisca tudo
pelo bem da melhoria da humanidade, em oposição ao homem ordinário, cujo
único desejo é seu próprio conforto, sendo incapaz de criar algo que não
tenha relação consigo mesmo. Segundo Nietzsche, o super-homem possui
seus próprios valores, independentes dos valores das outras pessoas, cujas
vidas obedecem a um instinto de rebanho. Ele deve ser capaz de afetar a
história indefinidamente, reentrando no mundo por meio da mente de outras
pessoas e afetando seus pensamentos e valores.
As obras de Dostoiévski possuem como um de seus pilares a profunda
análise da subjetividade das personagens. Conforme descreveu o psicanalista
junguiano Erich Neumann, Dostoiévski foi um grande reformador que
colocou no centro do desespero o ser humano doente, o mal e o abissal
(NEUMANN, 1991). Isso tornou o autor uma espécie de precursor da
psicologia do inconsciente, o que faz com que a adaptação em mangá aqui
examinada traga diversos pontos a serem analisados pelo olhar da psicologia
profunda. Especificamente para esta análise, será estudada a questão da ética
sob o olhar da psicologia analítica.
Moral e ética na psicologia analítica
Um ponto explorado nas obras de Carl Gustav Jung é a questão da moral e
da ética. Alguns pós-junguianos revisitaram a questão, como foi o caso de
Erich Neumann, no livro Psicologia profunda e nova ética (1991), e do
filósofo e psicólogo Marco Heleno Barreto, em um capítulo de sua
compilação de textos chamada Pensar Jung (2012). Vale ressaltar aqui a
diferenciação entre os conceitos de moral e ética: a moral tem relação com
um conjunto de regras sociais, normas de conduta para convivência em
sociedade. A moral faz parte da ética, mas esta tem a ver com a consciência
individual, que se desenvolve para deliberar uma ação mais adequada, um
conhecimento que suporta, por meio de critérios, a eleição da melhor conduta
tendo em conta o interesse coletivo.
Na obra de Jung, encontramos em várias passagens a diferenciação entre
moral e ética, mesmo que em muitos pontos o autor trate a palavra “moral”
no sentido geral de comportamento ético (CARVALHO; FREIRE; 2019).
Mas, se alcançarmos um autoconhecimento mais profundo, muitas vezes nos defrontamos com
os problemas mais difíceis, ou seja, com as colisões de deveres, que simplesmente não podem
ser decididas por nenhum parágrafo, nem do Decálogo, nem de outras autoridades. Aliás, é só a
partir daqui que as decisões éticas começam, pois o simples cumprimento de um “tu não
deves...” codificado está longe de ser uma decisão ética; é simplesmente um ato de obediência
e, em certos casos, até uma saída cômoda, que com a ética só se relaciona de forma negativa.
(JUNG, 1958/2013d, p. 65, grifo do original)

A partir dessa passagem, Jung deixa claro que na perspectiva da psicologia


analítica a postura ética tem relação com um dever com os seus próprios
conteúdos internos, do inconsciente. Essa também é a nova ética proposta por
Neumann, que constatou no período logo após a Segunda Guerra Mundial
que a velha ética judaico-cristã não se comunicava mais com sua época
(1991). Essa postura ética não necessariamente tem a ver com a moral
vigente na sociedade em questão, com o “tu não deves”. Os conteúdos
inconscientes entram em confronto com o ego, a partir de uma ausência de
concordância entre ambos, e deverão ser elaborados para se integrarem à
consciência na tentativa de ampliá-la, dentro do chamado processo de
individuação. Este, segundo a teoria da psicologia analítica, tem como
objetivo tornar a personalidade do indivíduo mais inteira, mais completa.
Esse processo é regido pelo arquétipo do centro da personalidade e totalidade
psíquicas, o si-mesmo.
Há um caso relatado por Jung (1935/2013a) que ilustra bem o conflito
entre a moral e a ética. Um paciente de 30 anos, altamente inteligente e
intelectualizado, havia desenvolvido praticamente um tratado sobre sua
própria neurose compulsiva, mostrando grande conhecimento acerca de seu
estado psicológico. Jung disse que nada tinha a criticar naquela análise que,
em sua opinião, estava muito bem descrita. Mas percebeu uma inconsistência
na narrativa: o sujeito não mencionava alguns detalhes de sua vida, como a
forma de se manter financeiramente. Jung questionou se era herdeiro de
alguma fortuna, e o paciente negou, dizendo que era mantido por uma mulher
com quem tinha um romance. Ela era uma professora primária com salário
modesto, mas que se esforçava para financiar o amante (provavelmente com
o intuito de não o perder) em suas aventuras de veraneio em São Moritz e na
Riviera, no inverno. É quando Jung se dá conta de que a neurose do paciente
estava relacionada exatamente com um conflito moral: a neurose seria uma
compensação punitiva pela postura infantil e imoral de exploração da
professora. Irritado, o jovem abandona a terapia, acusando Jung de ser
moralista.
O que esse caso nos diz? Que Jung foi realmente moralista? Essa é a
primeira impressão, mas se analisarmos com cuidado, veremos que ele vai
além disso. No caso descrito, a moral coincide com a questão da ética da
psicologia analítica, uma vez que a neurose era fruto da incompatibilidade
entre a atitude do sujeito e o impulso de individuação: o jovem mantinha-se
numa postura infantil irrealista, já não mais condizente com sua realidade,
que lhe impunha a responsabilidade adulta por sua própria vida (BARRETO,
2012). A suposta intervenção moralista de Jung, pelo modo como interpretou
o paciente, era um obstáculo a seu próprio processo de desenvolvimento
psicológico com um fator moral estancando esse fluxo, fato negligenciado
pelo jovem que acreditava que apenas a consciência da falta moral não
gerasse tensão interna ou, nas palavras de Jung, que “um pecado intencional
deixa de ser pecado desde que seja eliminado intelectualmente pelo
pensamento” (JUNG, 1924/2013c, p. 111). Novamente, temos nesse caso
uma convergência entre moral e ética. Mas há casos em que o código moral
da sociedade não coincide com a lealdade ao seu próprio processo de
individuação, e é aqui que ocorrem os maiores e mais difíceis conflitos no
sujeito. Conforme explicita Jung, “um maior conhecimento do inconsciente
equivale a uma vivência mais ampla e uma conscientização maior, e, por isso,
nos proporciona aparentemente novas situações que exigem decisões éticas”
(JUNG, 1958/2013d, p. 65).
Nesse ponto, entraremos inevitavelmente na tensão entre “bem” e “mal” e
nos conceitos de persona e sombra da psicologia analítica. A persona é a
máscara que o ego veste para adaptar-se às demandas sociais e culturais,
como a moral. Já a sombra refere-se aos conteúdos psíquicos que foram
negligenciados por incompatibilidade com os conteúdos da consciência e do
ego. São características que ficarão em solo inconsciente, muitas vezes com
autonomia em relação ao ego, até o momento que exijam expressão,
posteriormente dentro do processo de individuação. É importante notar que as
qualidades que foram reprimidas por serem incompatíveis com o ego e com a
persona são também fundamentais para a estrutura básica da personalidade;
mas, por terem sido reprimidas, permanecerão no solo inconsciente como
sombra (WHITMONT, 1994). No confronto com a sombra, somos obrigados
a admitir que o mal não vive apenas na exterioridade apartada dela, nos
criminosos, nos políticos ou nos imigrantes (CARVALHO; FREIRE, 2019):
ele mora em nossa própria casa. E justamente por se tratar de conteúdos que
muitas vezes afrontam o código moral é que entramos num conflito entre
bem e mal.
Uma parte da história do mangá que ilustra a questão do “bem” e do “mal”
é aquela que envolve o personagem Svidrigailov. Ele é um dos empregados
de Marfa, moradora de uma mansão que é assassinada com um tiro. Logo no
início, ele já é considerado suspeito do crime, mas não há provas. O
personagem sempre se apresenta com um sorriso cínico, à espreita de
importantes acontecimentos da história, como a tentativa de Luzhin de
incriminar Sonia ao colocar uma nota em seu bolso sem que ela perceba. Mas
Svidrigailov denuncia o que presenciara e, demonstrando muita firmeza e
coragem, acusa e insulta Luzhin. Essa mesma postura é repetida no final do
mangá: com o riso cínico e a assertividade de um revolucionário, o assassino
de Marfa tenta convencer Raskólnikov a participar da revolução e, nesse
momento, confessa o crime sem nenhum sinal de arrependimento ou crise
moral. Ele diz: “Eu fiz o correto, eu me perdoo”. Svidrigailov chega a quase
cometer outro homicídio ao atirar em Raskólnikov quando este se recusa
tomar parte na revolução. Finalmente, a revolução emerge, e lá temos
Svidrigailov comandando algumas pessoas a atirar enquanto diz que eles
serão os heróis do povo. Percebemos que o personagem não demonstra em
nenhum momento incômodo com o assassinato cometido ou mesmo com as
outras tentativas de homicídio. Há aqui um caso semelhante ao do paciente de
Jung, no que se refere à moral e à ética: num exemplo mais dramático, por
evolver assassinato, Svidrigailov parece não se importar em carregar a
imoralidade, numa atitude que pode sugerir a psicopatia, já que o personagem
não demonstra em nenhum momento arrependimento e, ao contrário, suporta
esses fatos com a segurança de dever cumprido.
Em suas memórias, Jung deixa claro que não devemos sucumbir ao bem
nem ao mal e que estaremos, nesse caso, imersos nos tormentos da decisão
ética (JAFFÉ, 1989), sofrimento que é inerente ao processo de individuação.
Na perspectiva da psicologia analítica, Svidrigailov teria sucumbido à
sombra, aos seus próprios conteúdos inconscientes. Ele poderia caminhar em
seu processo de individuação evitando os polos opostos (bem e mal, persona
e sombra) e indo em direção a uma terceira via, por meio do símbolo e do
equilíbrio entre as duas atitudes, algo que uniria os opostos. No entanto,
Svidrigailov parece inconsciente de todo esse processo, e sua sombra dita as
suas ações. E se a adaptação em mangá incluísse alguns quadrinhos
mostrando o personagem questionando e sofrendo o tormento de carregar um
assassino dentro de si? A psicologia analítica diria que ele deveria suportar a
tensão entre esses conteúdos e a moral vigente. Aqui costuma falhar o
intelecto com sua lógica, pois em uma oposição lógica não existe o terceiro
termo. O que traz a solução somente pode ser de natureza irracional (JUNG,
1956/2012). O processo de individuação causa no sujeito um conflito de
deveres pelo contato com a sombra, “cuja solução o afasta da moral coletiva,
empurrando-o para uma saída que não cabe mais na racionalidade ou no
costume” (CARVALHO; FREIRE, 2019, p. 8).
A ética no caso de Raskólnikov
Podemos agora tecer uma análise, sob a perspectiva da psicologia analítica,
sobre a tensão psicológica vivida por Raskólnikov após ter assassinado a
senhora agiota Alyona. Essa tensão foi produto apenas de um conflito com o
código moral? Temos estabelecido também um conflito da ética junguiana?
Usaremos como base a história descrita no mangá, e não a obra de
Dostoiévski que, obviamente, possui mais detalhes.
O estudo sobre “gênios” realizado por Raskólnikov e relatado pelo juiz
Porfiry lembra bastante o já citado conceito de super-homem de Nietzsche:
Todas as pessoas podem ser divididas entre “ordinárias” e “extraordinárias” [...] Napoleão,
Hitler, Stalin e Eisenhower são gênios. Essas pessoas usam as pessoas comum para guerrear,
para fazer politicagem. Portanto os gênios podem fazer qualquer coisa. Se, por exemplo, ele
matar (sic) uma pessoa, o próprio mundo os justifica. Pessoas ordinárias devem sempre
obedecer aos gênios. E então o “gênio” vai levar o mundo velho a um novo mundo. (TEZUKA,
2013, p. 35)

O personagem afirma em seu estudo que há pessoas ordinárias e


extraordinárias, estas com uma espécie de permissão tácita para cometer
crimes, já que o mundo os justifica, desde que suas intenções sejam úteis à
humanidade. Raskólnikov acredita ser uma dessas pessoas extraordinárias,
com uma missão superior de eliminar um estorvo da sociedade, um ser
repugnante e desprezível representado pela figura da agiota. Mas, ao
contrário do super-homem nietzschiano, o jovem sucumbe a um aparente
conflito moral após cometer o assassinato, e então se instalam a neurose, a
culpa, com traços de grande aflição e delírios mostrados na sequência de
desenhos no quarto do personagem. Ele também percebe o quanto as pessoas
que se julgam extraordinárias são, na verdade, ordinárias. Numa das cenas
finais do mangá, Porfiry provoca o estudante em uma espécie de confronto
psicológico. O juiz pergunta se a confissão do assassinato de Raskólnikov
não seria a maior prova de sua grandeza, e continua: “Eu? Eu sou uma pessoa
ordinária. E por que você não se torna uma pessoa ordinária?” (TEZUKA,
2013, p. 117).
Aqui, podemos afirmar que o protagonista não executou a senhora por um
desejo, um prazer, mas por uma crença, uma ideologia, talvez em uma
tentativa de nova moral. E não podemos afirmar que essa nova moral
coincida com sua sombra, com valores aos quais ele deveria ser fiel numa
postura ética. Raskólnikov se aproxima mais do drama do paciente de Jung
que explorava a professora: um crime hediondo como rompimento do código
moral gerando um conflito com a ausência de uma postura adulta e madura
perante uma agiota imoral, postura essa que representaria a lealdade a si
mesmo. Havia outras maneiras de tratar essa situação que não o extremo de
um assassinato, talvez um meio termo entre uma total passividade e a
violência. O tormento de Raskólnikov o impede de seguir em frente, o
paralisa e tira a possibilidade de um caminho à emancipação psicológica, ao
seu próprio processo de individuação. A situação é tão aguda que, no final, o
personagem parece não conseguir nem ao menos se redimir publicamente de
sua culpa confessando o assassinato.
Há outra cena interessante no final da história, quando Raskólnikov
confessa seu crime a Sonia. Há aqui dois conflitos em jogo: o jovem
tensionado entre o pecado do assassinato e a esperança de seus ideais e Sonia
entre a vida religiosa e o fato de ser ferramenta de luxúria dos homens.
Ambos sofrem um conflito moral e buscam redenção: Sonia pede para
Raskólnikov confessar seu crime como expiação, para que sua alma seja
salva. O jovem só será salvo desse modo, e Sonia, ao conseguir salvá-lo,
também se redimiria da prostituição, pois se tornaria um instrumento para a
redenção divina. Novamente, podemos analisar esse trecho do mangá sob a
perspectiva da nova ética: a lealdade ao seu próprio processo de
aprimoramento psíquico que, nos dois casos, é suspenso pelo rompimento
moral que coincide com a ética junguiana.
Referências
BARRETO, M. H. Pensar Jung. Belo Horizonte: Edições Loyola, 2012.
CARVALHO, A. G. R.; FREIRE, J. C. Psique e ética em C. G. Jung: o lugar do irracional na
constituição do etos. Psicologia USP, v. 30, e180133, p. 1-10, 2019.
DOSTOIÉVSKI, F. Crime e castigo. 6. ed. São Paulo: Editora 34, 2013.
ELSIRIK, M. F.; TREVISAN, J. F. A invenção do ressentimento no século XIX e os desafios da
psicologia social no século XXI. Psicologia: Ciência e Profissão, Brasília, v. 28, n. 1, p. 4-17, 2008.
JAFFÉ, A. Memórias, sonhos e reflexões. 13. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989.
JOSEPH, F. Dostoiévski: os anos milagrosos – 1865 a 1871. São Paulo: Edusp, 2003.
JUNG, C. G. A vida simbólica. O. C. 18/1. 7. ed. v. 1. Petrópolis: Vozes, 1935/2013a.
JUNG, C. G. A vida simbólica. O. C. 18/2. 4. ed. v. 2. Petrópolis: Vozes, 1949/2013b.
JUNG, C. G. Mysterium Coniunctionis. O. C. 14/2. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1956/2012.
JUNG, C. G. O desenvolvimento da personalidade. O. C. 17. 14. ed. Petrópolis: Vozes, 1924/2013c.
JUNG, C. G. Um mito moderno sobre coisas vistas no céu. O. C. 10/4. 6. ed. Petrópolis: Vozes,
1958/2013d.
NEUMANN, E. Psicologia profunda e nova ética. São Paulo: Edições Paulinas, 1991.
NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra. Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza. São
Paulo: Companhia das Letras, 2011.
TEZUKA, O. Crime e castigo. São Paulo: NewPOP, 2013.
WHITMONT, E. C. A evolução da sombra. In: ZWEIG, C.; JEREMIAH, A. (org.). Ao encontro da
sombra: o potencial oculto do lado escuro da natureza humana. São Paulo: Cultrix, 1994. p. 36-42.
Notas
1 Jefferson é mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-
SP), especialista em Psicologia Junguiana pelo Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa (IJEP) e
graduado em Engenharia Eletrônica pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. E-mail para contato:
jlzpereira@gmail.com.

2 Antonio é formado em Jornalismo pela UNINOVE e tem pós-graduação em Gestão Financeira pela
Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM). Nerd assumido e parceiro da Homo Ludens na
publicação de títulos voltados para o público geek e nerd. E-mail para contato:
antonio@leograf.com.br.
Ghost in the Shell: identidade e memória
Ivelise Fortim 1
Maria Cristina Moraes Rosa Petroucic 2

“porque é isso que está sussurrando minha alma...”


The Ghost in the Shell, 2016
A narrativa de Ghost in the Shell
SHELL (GITS), DE MASANORI OTA (CONHECIDO PELO

G
HOST IN THE
pseudônimo Masamune Shirow), é uma franquia composta por uma
série de produtos culturais. O enredo se inicia em um mangá, mas sua
narrativa também é apresentada em filmes, séries de TV, OVAs 9 e jogos de
computador. O primeiro mangá, The Ghost in the Shell, foi escrito e ilustrado
em 1989.
Graças à enorme popularidade do mangá original, houve múltiplas
sequências em diferentes mídias. Os produtos mais conhecidos são o primeiro
filme de animação da saga, Ghost in the Shell, de 1995, dirigido por Mamoru
Oshii e produzido por Kodansha, Bandai Visual Company e Manga
Entertainment; o anime Ghost in the Shell: Stand Alone Complex, de 2002,
dirigido por Kenji Kamiyama e produzido pelo Production I.G.; e o filme live
action Ghost in the Shell, de 2017, estrelado por Scarlett Johansson, dirigido
por Rupert Sanders e produzido pela DreamWorks Pictures.
Atualmente, a franquia é composta pelos seguintes títulos:
Além das obras listadas, ainda existem romances (Innocence: After the
Long Goodbye: 02, de Masaki Yamada; The Lost Memory, Revenge of the
Cold Machines e White Maze, de Junichi Fujisaku) e dois jogos de
computador (Ghost in the Shell e Ghost in the Shell: Stand Alone Complex).
Todas as histórias da franquia GitS se passam em um universo ficcional no
século XXI. A saga se inicia, mais precisamente, no dia 5 de março de 2029,
em uma cidade chamada Newport, na província de Nihama. No mangá, essa
província está localizada no Japão, e em outras animações, em uma cidade
futurista da Ásia, sem nacionalidade determinada. A protagonista é Motoko
Kusanagi, agente e líder da Seção 9 da Segurança Pública Japonesa, uma
operação especial dedicada a combater o terrorismo cibernético. Há
controvérsias sobre suas origens, existindo diferentes histórias sobre como a
personagem se tornou robótica.
Cabe dizer que as diversas histórias da franquia não se configuram como
um enredo linear, apresentando diferentes visões sobre a personagem Motoko
em universos paralelos, mas, de modo geral, a personagem trabalha com seus
colegas da Seção 9. Ela é a líder do esquadrão de operações, sendo tratada
como “major”. Ela aparenta ser relativamente jovem, mas sua idade é
desconhecida pelo fato de ser uma ciborgue.
Entre os personagens frequentes, temos Batou, que tem olhos cibernéticos;
em algumas versões, é o melhor amigo de Motoko, e em outras é seu ex-
parceiro amoroso; Togusa, detetive da polícia metropolitana que pode acessar
o mundo cibernético, mas que é completamente humano; Ishikawa, hacker
que faz a coleta de informações no espaço cibernético; Borma, auxiliar de
Ishikawa; Saito, atirador de elite; e Aramaki, que comanda o departamento de
segurança pública do grupo da Seção 9 e é chefe de todos. Outros
personagens que aparecem com frequência são as máquinas conhecidas como
Tachikomas, Uchikomas e Fuchikomas, robôs sencientes que ajudam Motoko
(SHINDO, 2017).
Nesse universo, influenciado fortemente por obras do gênero cyberpunk
(especialmente pelo filme Blade Runner, de 1982), os seres humanos podem
ter implantes robóticos. O nível de hibridização vai de acessórios e partes
mínimas até a troca completa do corpo, sendo que um cérebro humano pode
operar em um corpo totalmente protético, caracterizando-se como um
ciborgue. Além disso, os cérebros cibernéticos permitem a interface entre o
cérebro biológico e várias redes digitais (KOMEL, 2016). A própria Motoko
Kusanagi, protagonista da história, mantém apenas seu cérebro biológico e
tem um corpo totalmente robótico. Ela está conectada às redes e pode viajar
por elas.
GitS explora especialmente a figura do ciborgue, em que há uma mistura
entre humano e robô. Um dos temas que desafiam Motoko são questões como
entender se ela ainda é humana ou se é uma máquina, se ela teve uma vida
biológica pregressa e qual o significado disso. Esse tipo de questionamento é
motivo de angústia para a personagem, especialmente no mangá original.
Ghost
Nesse universo futurístico, a palavra Ghost denota uma consciência
individual, que diferencia um humano (ainda que ciborgue) de um robô.
Mesmo que uma pessoa troque seu corpo biológico por um completamente
ciborgue, incluindo modificações e um cibercérebro, a pessoa ainda pode se
considerar humana, desde que retenha seu próprio Ghost. Ghost (espírito)
seria a consciência humana que sobrevive à biologia do corpo, e Shell
(concha) seria o corpo que a carrega. No entanto, pelo fato de terem conexões
cibernéticas, existe a possibilidade de haver vários protocolos que permitem
hackear os cibercérebros (KOMEL, 2016).
A palavra Ghost, presente nas diversas peças que compõem a obra, pode
significar tanto a consciência humana quanto a alma, o espírito ou o kami (de
acordo com a tradição xintoísta), não havendo uma definição exata. O que se
sabe é que nessa obra o termo é usado para diferenciar humanos de robôs.
Uma das questões principais de Motoko é sua dúvida com relação ao seu
próprio Ghost. O que seria ela: uma humana completamente cibernética, com
apenas um fio de cérebro, ou na verdade seria simplesmente um robô?
Na animação de 1995, o significado de Ghost não é esclarecido – a obra
deixa a interpretação por conta do espectador. O termo poderia ser definido
como o ego, a consciência ou, literalmente, a alma, diferencial dos seres
vivos; a inteligência artificial, por sua vez, não possuiria uma alma
(SHINDO, 2017).
Segundo Bardaouil (2017), o Ghost pode representar a consciência, no
sentido sartreano. A partir disso, é possível interpretá-lo como parte da
própria individualidade do ser, onde residem a identidade e as memórias que
constituiriam sua história no mundo.
O tema não é novo e faz referência especialmente ao filme Blade Runner.
Ele traz consigo questionamentos como o que significa ser humano? Qual a
importância de ser humano? O que confere a humanidade a alguém? Ter uma
identidade é prova de humanidade?
Identidade pessoal e memória
A identidade pessoal está especialmente ligada com as memórias pessoais;
os fatos vividos constituem parte da identidade do sujeito. A memória
humana é o armazenamento e a evocação de informação adquirida por meio
de experiências.
Diferentemente das máquinas, a memória humana faz seleções específicas,
sendo que as situações não são apenas registradas, mas também contêm em si
uma carga de emoções e sentimentos, que priorizam e hierarquizam a
memória, trazendo contornos que irão acompanhar o sujeito durante toda a
sua vida. Esse tipo de memória e, portanto, esse senso de identidade pessoal
são responsáveis pela construção do repertório autobiográfico que se
solidifica com o passar do curso da vida e permite que o indivíduo preserve
sua identidade ao longo das variações que compõem as experiências da vida
diária (IZQUIERDO, 1989).
Assim, a relação entre memória e identidade é de constituição mútua, uma
vez que o centro da identidade individual está ligado a um sentimento de
mesmidade e de continuidade no tempo, e o fato de o indivíduo conseguir se
recordar do próprio passado é o que sustenta sua identidade. A memória que
se refere às experiências pessoais e particulares é chamada pela neurociência
de memória episódica, sendo esta a capacidade de se rememorar um passado
vivencial e pessoal (MEJÍA, 2018).
As lembranças episódicas consistem na representação de múltiplas
características dos eventos, sendo que diferentes tipos de informação
(espacial, temporal, contextual) estão vinculados com a consciência
individual das experiências pessoais em um tempo subjetivo. As memórias
episódicas estão baseadas em horários, datas e locais específicos,
determinados por cada evento vivenciado: o sujeito se lembra de ter estado
presente em um contexto. A memória episódica também compreende a
memória autobiográfica, que é um tipo de memória episódica diretamente
associada a eventos autobiográficos de um indivíduo (SCHACTER;
TULVING, 1994 apud MEJÍA, 2018).
Graças à memória autobiográfica, os seres humanos podem organizar e
combinar de forma única o conhecimento sobre o mundo e o conhecimento
sobre si mesmos, o que é essencial para sua sobrevivência. A memória
autobiográfica permite o desenvolvimento da consciência de identidade
pessoal e da capacidade de a pessoa reviver seu passado, tornando possível
tanto interpretar o presente quanto planejar o futuro. Entretanto, a memória
não é uma entidade fixa (determinada apenas pelo nível orgânico), mas uma
entidade dinâmica, com múltiplos centros de interação, que se constitui e se
reconstrói constantemente em função de seus múltiplos sistemas (RUIZ-
VARGAS, 2004 apud MEJÍA, 2018).
Segundo Ruiz-Vargas (2004 apud MEJÍA, 2018), as lembranças
autobiográficas têm algumas características particulares. Uma delas é o fato
de tais vivências se relacionarem diretamente com o eu; assim, para que uma
lembrança seja biográfica, deve haver uma continuidade entre o passado
evocado e a sensação do presente do eu. A segunda característica é sua
estrutura narrativa, ou seja, o fato de poder narrar-se, construir-se e
desconstruir-se contínua e coerentemente, para se dar conta de quem se é,
pois a memória é um ato criativo, sendo a confabulação um fato normal da
vida. Outras características da memória autobiográfica referem-se às imagens
mentais: a possibilidade de “ver”, mostrando que os aspectos sensoriais são
importantes. A lembrança narrada é mais que um relato do que se passou, é
uma convergência do que o sujeito viu, sentiu e ouviu, apesar de os traços
mnésticos (de memória) serem suscetíveis à distorção. Ainda como
característica, temos um componente emocional que influi nas lembranças;
determinadas situações vividas podem ser evocadas em detalhes; outras,
porém, podem ser esquecidas (MEJÍA, 2018) ou mesmo ficar no plano
inconsciente, como pode ocorrer nos eventos traumáticos.
Entretanto, a narração pessoal autobiográfica de um sujeito é determinada
não apenas por sua própria memória, mas também pela memória dos outros.
Nesse sentido, a memória individual se entrelaça com o contexto social, no
qual se constrói por intermédio da interação com o outro. Segundo Ruiz-
Vargas (2004 apud MEJÍA, 2018), a memória autobiográfica possibilita o
conhecimento do eu.
Ghost como memória autobiográfica
Como dissemos anteriormente, Blade Runner é uma referência importante
para GitS. Os temas da memória e da identidade já haviam sido colocados,
pois nesse filme uma das grandes diferenças estabelecidas entre humanos e
androides é que os primeiros têm uma memória pessoal, não padronizada. As
memórias dos androides, por sua vez, são todas iguais entre si, sendo
implantadas mecanicamente. Essas memórias não pertencem a eles, mas são
cópias da memória da filha de seu criador. Em Blade Runner 2049, essa
questão também é colocada, sendo que a filha de Deckyard é uma criadora de
memórias.
No universo de GitS, as inteligências artificiais parecem não ter memórias
pessoais. Motoko, em diversas peças que compõem a franquia, não tem
memórias de uma existência anterior. Ela está aprisionada em sua concha e
por isso continua buscando por sua identidade individual. A personagem diz
que,
assim como existem muitas partes que são necessárias para fazer um humano, há inúmeras
coisas que são necessárias para fazer um indivíduo do jeito que ele é. Um rosto para se
distinguir dos outros; a voz por quem você percebe quando não é você mesmo. A mão que você
vê quando você acorda. As memórias da infância. Ter os sentimentos com relação ao futuro.
Isso não é tudo, existe a expansão de dados que o meu cibercérebro pode acessar. Tudo isso vai
fazer o que eu sou. Dando nascimento à consciência que eu chamo de eu e simultaneamente me
confinando dentro dos meus limites. (GHOST, 1995)

Nessa fala de Motoko, fica nítida sua concepção de Ghost como memória
autobiográfica. A concepção de memória dessa personagem inclui aspectos
corporais, sociais e da sua memória infantil.
Como podemos ver, a memória é um ponto importante em GitS. Em um
universo onde a internet acessa o cérebro e o cérebro acessa a internet, existe
a possibilidade de hackeamento do cérebro e das memórias pessoais. Esse
tema aparece por diversas vezes nessas narrativas, fazendo com que os
personagens não tenham certeza se de fato possuem determinadas memórias
ou se elas foram alteradas. Além disso, em um cérebro cibernético, existe a
possibilidade de haver memórias implantadas de maneira artificial, e
esquecimentos também podem ser atribuídos ao hackeamento da memória.
Na versão do filme live action A vigilante do amanhã, de 2017, Motoko
tem sua memória apagada para servir ao governo, tornando-se uma
importante espiã e assassina. Contudo, sua memória traz flashbacks de cenas
estranhas que ela não consegue compreender. Essas cenas se revelam como
memórias de fatos que ela havia vivido, mas que foram apagados. Ela
descobre não ser quem pensava que era, pois a história que lhe foi contada
sobre sua família e sua origem não é verdadeira. Nesse filme, a perda da
memória autobiográfica refere-se à perda da identidade e de vivências
associadas às suas relações familiares. Entretanto, memórias importantes
sobrevivem no inconsciente da personagem e acabam retornando. Por estar
sendo manipulada, o governo a faz crer que isso é o resultado de defeitos em
seu sistema, mas a memória traz a verdade sobre si mesma, sobre sua história
pessoal e sobre seus valores.
Em Ghost in the Shell Arise (2013), o enredo gira em torno do passado de
Motoko, que aparece mais jovem. É explorada a relação entre seu corpo
cibernético ser seu ou pertencer ao governo. Aqui ela também se refere ao
fato de “não ter resquícios de lembranças de um corpo de carne e osso” e
entende que o “Ghost é aquilo de mais independente que existe nesse
mundo”. O fato de não ter lembranças conferiria a ela um status não humano.
Entretanto, por vezes, crê em seu Ghost e entende que ele é que lhe dá as
direções. Em Ghost in the Shell Arise – Alternative Architecture, filme de
animação (OVA) de 2015, Motoko combate um terrorista que utiliza um
símbolo que a impressiona e incomoda, mas que ela não sabe exatamente o
que significa. Contudo, apesar de não entender conscientemente seu
significado, sente que está conectada àquele evento, de algum modo. Ao
final, descobre que teve suas memórias apagadas e também percebe que tanto
o símbolo como o terrorista que persegue estão conectados à sua própria vida.
Nessa série, também é sugerido que todas essas memórias de Motoko podem
ser falsas.
Em Ghost in the Shell: The New Movie (2015), o passado de Motoko é
explorado de maneira diferente. Descobre-se que ela vivera em um orfanato
para crianças cibernéticas. Nesse filme, é sugerido que seus pais morreram
em um ataque terrorista com armas químicas e que seus corpos foram
recolhidos pelo Órgão 501. Motoko possui lembranças desse orfanato e de
suas amigas, mas não tem certeza sobre a história de sua família. Nesse
sentido, a personagem não tem lembranças de um corpo físico, importante
para a constituição da memória, nem de experiências familiares. A
experiência mais próxima disso é sua relação com as crianças do orfanato.
Em Ghost in the Shell: Stand Alone Complex (2002-2003), depois de um
ataque em sua residência, Batou retorna para buscar alguns objetos: o relógio
de estimação de Motoko e equipamentos de musculação. Na série, isso é
visto como uma “prova” de sua humanidade, uma prova externa de que o
“eu” é “eu”, uma vez que Batou arrisca a vida por esses objetos. Ao entregar
o relógio para Motoko, ela lhe diz: “Relógio e musculação... nós dois nos
apegamos a fragmentos tão fúteis da memória”.
Ao longo das narrativas de GitS, Motoko repete várias vezes a frase “Pois
é isso que sussurra meu Ghost”, como se Ghost, além de memória
autobiográfica, pudesse ser sua intuição, algo que as máquinas não parecem
ter.
Em Stand Alone Complex, ao salvar as Hadalys (bonecas de sexo) que têm
o Ghost clonado de uma humana, uma delas diz que não quer ser boneca,
pois é humana. Motoko lhe responde que as bonecas provavelmente também
se angustiam porque não querem ser humanas. A questão é: por que um robô
se angustiaria ao saber que não é humano? A partir de um dispositivo de
reprodução de almas, os Ghosts podem ser clonados, mas isso levaria à morte
do cérebro original.
Em GitS, a manipulação da memória gera diversos conflitos e debates, que
não atingem apenas Motoko. Ainda em Stand Alone Complex, idosos e
crianças maltratadas têm suas memórias hackeadas para esquecerem suas
vidas pregressas de abuso e abandono e passam a acreditar que são parentes.
Assim, os idosos teriam alguém que cuidasse deles, e as crianças, um lar
longe de abusos. Seria esse um bom uso da possibilidade de apagar
memórias?
Em Ghost in the Shell: o fantasma do futuro (1995), um lixeiro tem sua
memória hackeada. Ele pensa ter uma esposa e um filho e se angustia pelo
processo de divórcio. Pensa estar ligando para o advogado, quando na
verdade apenas está sendo manipulado pelo Mestre dos Fantoches. Ao ser
preso, descobre que não tinha aquela família e se desespera ao saber que, na
verdade, vive sozinho. Nesse caso, a manipulação só confere sofrimento ao
personagem.
Voltando aos acontecimentos de Stand Alone Complex (2002-2003),
policiais atiram na primeira ministra em um evento, pois foram atingidos por
um vírus adulterador de memórias, chamado “acendedor de chamas”. O que
aconteceria se fosse possível que um vírus modificasse, em massa, as
memórias de cidades inteiras? Caos e desordem tomariam conta da
sociedade?
Outra questão levantada na série é a possibilidade de externalização da
memória. Se a memória puder ser controlada pelo exterior, será que ainda
poderemos nos considerar humanos? Segundo Zhou e An (2018), quando a
memória humana é ameaçada pela tecnologia, a relação íntima entre
humanidade e máquina de fato assimila os seres humanos e obscurece a
identidade individual, o que gera uma crise de identidade humana. Em
conclusão, Motoko é responsável por sua própria construção de identidade.
Como o filme Stand Alone Complex sugere, embora a tecnologia impeça a
formação da identidade humana, os ciborgues ainda superam a crise de
identidade e, finalmente, descobrem que a memória é essencial para que
construam uma identidade própria.
Considerações finais
A memória autobiográfica, em grande medida, traz em si a identidade
pessoal e sua carga afetiva. A perda dessa identidade pode causar vários
danos às pessoas e à civilização como um todo.
Ao final do filme Ghost in the Shell: o fantasma do futuro (1995), bem
como do mangá original (1989), a major se funde a outra entidade
cibernética, conhecida como Mestre dos Fantoches, em um “casamento”. A
partir disso, ela se torna uma outra entidade, um cérebro que Batou aloca em
outro corpo.
Nos mangás posteriores (1991) e no filme Ghost in the Shell 2: Innocence
(2004), Motoko fica inteiramente na rede, ocupando corpos cibernéticos
apenas quando isso lhe convém. Ela viaja pela rede e tem pleno acesso a ela,
comunicando-se com membros da Seção 9 também apenas quando
necessário. Não é claro, entretanto, se ela manteve seu Ghost. É possível que
sim, pois foi capaz de reconhecer Batou e ajudá-lo no caso das Hadalys, mas
não há certeza quanto a isso.
Em The Ghost in the Shell: Human-Error Processer (2008), Aramaki e
Batou procuram por Motoko. Ao final, eles concluem que ela teria virado um
híbrido, uma vida artificial inteligente, um ser com Ghost e inteligência
artificial, com poderes nunca vistos antes. Creem que esse é um novo tipo de
ser, que devem procurar compreender. Isso quer dizer que, mesmo nesse ser
híbrido, o diferencial em relação às máquinas é a presença de um Ghost. Ao
final do terceiro mangá, sugere-se que Motoko teria se apropriado de uma
médium, isto é, teria se unido a mais um Ghost.
O universo de GitS nos traz diversos questionamentos a respeito do futuro
da humanidade. Caso a tecnologia nos permita algo semelhante ao ilustrado
por GitS, como seriam esses híbridos no futuro? Cabe lembrar que já
vivemos em uma sociedade cujos algoritmos de inteligência artificial estão
bastante presentes. Será que nesse contexto em que os algoritmos das redes
sociais podem no conhecer melhor do que nós mesmos as nossas memórias
autobiográficas ainda irão manter nosso senso de individualidade?
Aguardemos os próximos anos e suas mudanças. A imensidão da internet
ainda nos trará muitas possibilidades. E para onde vai a humanidade? Como
diria Motoko: “Não sei, para onde será que eu vou? Ah, como a rede é
vasta...” (MASAMUNE, 2016, p. 344).
Referências
BARDAOUIL, L. A concha existencial: aspectos do existencialismo sartreano na obra de animação
japonesa Ghost in the Shell (1995). Orientador: Prof.ª M.ª Flávia Santos Arielo. 2017. 55 f. Tese
(Bacharelado em Artes Visuais) – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Bauru,
2017. Disponível em:
https://www.academia.edu/38432432/A_CONCHA_EXISTENCIAL_ASPECTOS_DO_EXISTENCIALISMO_SAR
Acesso em: 11 mar. 2020.
GHOST in the Shell: o fantasma do futuro. Direção: Mamoru Oshii. Japão: Bandai Visual
Company/Kodansha Production I. G., 1995.
IZQUIERDO, I. Memórias. Estudos Avançados, Rio Grande do Sul, v. 3, n. 6, p. 89-112, 1989.
Disponível em: https://www.revistas.usp.br/eav/article/view/8522. Acesso em: 4 maio 2021.
KOMEL, M. The ghost outside its shell: revisiting the philosophy of Ghost in the Shell. Teorija in
Praksa, Eslovênia, ano 2016, v. 4, ed. 53, p. 920-929, 2016. Disponível em:
https://www.academia.edu/35141030/The_Ghost_Outside_Its_Shell_Revisiting_the_Philosophy_of_Ghost_in_the_Sh
Acesso em: 11 mar. 2020.
MASAMUNE, S. The Ghost in the Shell. São Paulo: JBC, 2016.
MASAMUNE, S. The Ghost in the Shell 2: Manmachine Interface. 2. ed. São Paulo: JBC, 2017.
MASAMUNE, S. The Ghost in the Shell, v. 1.5: Human-Error Processer Deluxe Edition. New York:
Kodanssha Comics, 2008.
MEJÍA, D. M. La memoria neuropsicológica y la memoria psicoanalítica: reflexiones e
implicaciones sobre la identidad del sujeto. Orientador: Jonathan Osorio García. 2018. 111 f. Tese
(Graduação em Psicologia) – Facultad de Ciencias Sociales y Políticas, Fundación Universitaria
Católica Lumen Gentium, Colômbia, 2018. Disponível em:
https://repository.unicatolica.edu.co/handle/20.500.12237/1472. Acesso em: 11 mar. 2020.
RUIZ-VARGAS, J. M. Claves de la memoria autobiográfica. In: FERNANDEZ; HERMOSILLA (ed.).
Autobiografía en España: un balance. Madrid: Visor, 2004. p. 138-220.
SHINDO, T. (ed.). The Ghost in the Shell: Perfect Book. São Paulo: JBC, 2017.
ZHOU, H.-T.; AN, J. How Cyborgs Define Themselves: On Ghost in the Shell. In: INTERNATIONAL
CONFERENCE ON EDUCATION, SOCIAL SCIENCES AND HUMANITIES, 2018, Dubai.
Anais […]. Dubai: ICESSH, 2018. p. 136-141.
Notas
1 Ivelise é doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-
SP), mestre em Ciências Sociais e graduada em Psicologia pela mesma instituição. É docente da PUC-
SP nos cursos de graduação de Psicologia e Tecnologia em Jogos Digitais. Também é coordenadora do
Janus – Laboratório de Estudos de Psicologia e Tecnologias da Informação e Comunicação e sócia da
Homo Ludens Research & Consulting. E-mail para contato: ivelise@homoludens.com.br.

2 A prof.ª dr.ª Maria Cristina é docente da PUC-SP no curso de Psicologia, neuropsicóloga e terapeuta
psicodramática. E-mail para contato: siguicris@gmail.com.

3 Do inglês original video animation.


Jogadores compulsivos: uma visão analítica sobre
Kakegurui
Julio Cesar Santos Araujo 1

KAKEGURUI COM CONCEITOS DA

E
STE CAPÍTULO PRETENDE RELACIONAR O ANIME
psicologia, buscando com isso aproximar a obra fictícia em forma de
animação da realidade sob o olhar da psicologia e das questões
envolvendo saúde mental no que diz respeito à dependência de jogos de azar,
também conhecida como transtorno de jogo.
Kakegurui – traduzido para o inglês como Compulsive Gambler, que em
tradução literal para o português seria algo como “jogador compulsivo” – foi
originalmente um mangá que começou a ser publicado em 2017. A obra foi
adaptada para anime em 2017, ganhando uma segunda temporada em 2019.
Seu roteiro foi escrito por Homura Kawamoto e suas ilustrações são de
autoria de Toru Naomura. Pertence ao gênero shonen, classificação de obras
que costumam conter mais ação e que têm como objetivo atingir o público
masculino.
A trama do anime gira em torno de um colégio frequentado por estudantes
de famílias muito ricas e influentes que possuem o hábito de apostar entre si.
Os prêmios das apostas variam, podendo ser desde grandes quantias de
dinheiro até posses pessoais; com o tempo, as apostas vão avançando até que
os personagens chegam a colocar em jogo o controle sobre a vida de outra
pessoa. As apostas começam a ficar ainda mais imprevisíveis diante da
chegada de uma nova aluna, Yumeko Jabami, uma garota aparentemente
comum que descobrimos possuir uma enorme dependência em jogos de azar.
Yumeko não parece possuir nenhum tipo de apego material ou bom senso
quando se trata de apostas; ela não possui uma motivação clara, apenas faz
qualquer coisa para conseguir uma aposta que seja imprevisível e inovadora.
Passando a desafiar a autoridade da escola, o Conselho Estudantil, ela
começa a desenvolver laços com outros alunos e se indispor com o Conselho
Estudantil, que possui uma presidente tão louca por apostas quanto ela.
Transtorno de jogo, jogo patológico ou ludomania: independentemente de
como for chamada, a dependência de jogos de azar não é algo que se limita
ao universo de Kakegurui. Segundo o Manual diagnóstico e estatístico de
transtornos mentais (DSM-V), o transtorno de jogo é classificado como uma
doença na parte de dependências, por possuir algumas similaridades com a
dependência em substâncias químicas. Em países em que jogos de azar são
legalizados e estruturados, como os Estados Unidos, observa-se um número
maior de dependentes, embora existam canais de auxílio financiados pelos
próprios cassinos. Desse modo, quem vende a doença também é obrigado a
patrocinar a cura, por assim dizer.
No Brasil, a cultura de jogos de azar é mais velada e o acesso a essa
modalidade de jogo é um pouco mais difícil. Os meios legalizados envolvem
sorteios como a Mega-Sena e carnês; entre os meios ilegais, há o famoso jogo
do bicho, em que a pessoa aposta em números que correspondem a animais,
concorrendo a uma determinada quantia em dinheiro. Também existem
inúmeros cassinos ilegais.
Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), jogo patológico é a
incapacidade da pessoa de controlar o hábito de jogar, independentemente
das consequências sociais e financeiras que isso venha a trazer para sua vida.
O diagnóstico de JP (Jogo Patológico) acompanha o raciocínio geral das dependências,
assentando-se sobre três pilares: perda de controle, ajustamento psicofisiológico à atividade
repetida com frequência e persistência do comportamento, mesmo em face dos prejuízos.
(MARIANI; TAVARES, 2014, p. 345)

O DSM-V (2014) considera os dependentes do jogo de azar aqueles que


possuem ao menos quatro dos critérios listados a seguir num período de doze
meses:

1. Tem necessidade de jogar compulsivamente;


2. Fica agitado ou irritado quando tenta parar de jogar;
3. Tem feito repetidos esforços infrutíferos para se controlar, parar de jogar
ou ao menos diminuir a intensidade desse hábito;
4. Preocupa-se em demasia com o jogo; tem pensamentos frequentes
voltados a isso, idealizando constantemente como serão as próximas
apostas, relembrando as apostas passadas etc.;
5. Muitas vezes, quando joga, sente-se angustiado;
6. Depois de perder dinheiro no jogo, frequentemente volta a jogar para
tentar recuperar o que foi perdido;
7. Mente para esconder a extensão de seu envolvimento com os jogos;
8. Coloca-se em risco ou perde relacionamentos significativos e
oportunidades de desenvolvimento (profissional e pessoal) por conta do
jogo;
9. Depende de outros para reviver sua situação financeira, que se tornou
desesperadora em consequência do jogo.

Após trazer o fenômeno do jogo patológico sob o olhar da psiquiatria, é


importante trazer seu aspecto psicológico. Levando em conta a perspectiva da
psicologia analítica, faz-se necessário explicitar o ponto de vista de Carl
Gustav Jung sobre as dependências e quanto isso se relaciona com o
transtorno de jogo.
Na época em que Jung estava desenvolvendo seus estudos, não havia uma
consciência de dependência ou uma definição como a que temos atualmente;
entretanto, o jogo patológico é um tipo de dependência tão antiga quantos as
dependências de álcool e outras drogas. Jung não elaborou uma definição
clara de dependência química, muito menos de dependência de jogo. No
entanto, ele atendeu dependentes e, de certo modo, seu trabalho serviu como
inspiração para os Doze Passos dos Alcoólicos Anônimos (AA). Em 1930,
Jung foi responsável pelo atendimento de um paciente alcoólatra, Rowland
Hazard, que havia conseguido se recuperar do alcoolismo uma vez por meio
da terapia com o próprio Jung, mas teve uma recaída algum tempo depois.
Novamente, Jung o declarou um alcoólatra crônico e afirmou que não poderia
fazer nada por ele. Para o psiquiatra, nada poderia salvar Hazard, exceto uma
experiência de conversão religiosa, um fenômeno potente e raro que Rowland
viria a experimentar após procurar o Grupo Oxford, um grupo religioso com
o qual se envolveu, logo parando de beber. Após se recompor, Hazard
decidiu se dedicar a auxiliar dependentes de álcool como ele fora e acabou
sendo um dos responsáveis pela fundação do AA.
Nas palavras de Jung, “Qualquer que seja a forma que revele o excesso a
que nos entregamos, como o álcool, a morfina ou o idealismo, é nociva.
Nunca devemos sucumbir à sedução daquilo que é prejudicial” (2016, p.
211). Muitas vezes, em suas narrativas, o psiquiatra via as dependências
como uma falha de caráter, uma deficiência moral; para ele, qualquer forma
de excesso não poderia ser considerado algo saudável. Assim, não existe um
estudo preciso realizado por ele dissecando e definindo a questão do vício,
sendo necessário avançar para outros autores e seguidores modernos de seus
pensamentos para nos aprofundarmos nesse tema.
Em seu estudo sobre o uso patológico da internet, Fortim discorre acerca
de outros autores para fundamentar os pilares da citação a seguir.
Parece haver quatro grandes troncos de explicação, dentro da Psicologia Analítica, para o
fenômeno das dependências. Seriam eles: o arquétipo do herói e seus ritos; uma relação com o
dinamismo arquetípico dionisíaco; uma relação de simbiose/ruptura com o dinamismo
matriarcal e uma relação entre Persona e Sombra. (FORTIM, 2013, p. 71)

A autora também cita Zoja, que diz que as drogas seriam um meio de se
colocar na sociedade, definir identidade e não fugir da realidade. O vício
poderia ser, então, decomposto em três elementos: a tolerância orgânica, o
hábito psicológico e uma tendência arquetípica, esta relacionando-se de
forma comparativa a um elemento sagrado, uma experiência transcendental
nos hábitos de consumo da droga, como papel de um rito de passagem para
algo mais.
Segundo Souza et al. (2009), em sua leitura sobre Tavares (2000), a
melhor definição de jogo patológico é uma dependência comportamental,
cujos traços que mais chamam atenção seriam a impulsividade e a sensação
de êxtase, que são muito similares aos que ocorrem durante a experimentação
de drogas – no caso do jogo, vindo da emoção de ganhar apostas e obter bons
resultados ao se arriscar em um jogo de azar.
O padrão descrito encaixa-se perfeitamente com o comportamento de
Yumeko durante as apostas. Assim, podemos dizer com propriedade que ela é
uma jogadora compulsiva – em outras palavras, uma vítima do transtorno de
jogo. Em vários momentos, a personagem mostra-se em busca do prazer de
apostar; no entanto, ela deleita-se não necessariamente com a possibilidade
de vitória, mas com a imprevisibilidade da aposta: quanto maior a
engenhosidade da estrutura da aposta, maior o valor apostado, maior o risco e
maior o seu prazer. Ela não se importa de perder, desde que a aposta seja boa.
A ficção cria essa personagem dependente de apostas e jogos de azar e a
caracteriza com diversos traços pertencentes a dependentes da vida real. No
anime, até o momento, ela não parece se importar em sacrificar relações em
prol do jogo; muito pelo contrário, ela já rompeu relações com personagens
que ficaram no caminho de suas apostas ou que a atrapalharam no jogo de
alguma forma. Yumeko não é uma simples viciada, ela ama tanto o jogo que
gosta de dividir o risco com pessoas que são especiais para ela. A dinâmica
dionisíaca fica clara em momentos como esse, em que a personagem central
afirma que gosta de jogar até enlouquecer e sente muito prazer quando
terceiros enlouquecem com ela. Nesse sentido, seu comportamento está muito
ligado ao aspecto e ao mito das bacantes, as servas de Baco, deus do vinho e
da loucura que possuía seguidoras e amantes que, inebriadas com seu poder e
sua presença, tornavam-se completamente selvagens e imprevisíveis, vivendo
ao máximo, de forma impetuosa e dilacerando qualquer coisa que ficasse no
caminho de seu prazer e de sua loucura.
De acordo com Oliveira (2004) (apud FORTIM, 2013), os principais
motivos que levam as pessoas a serem dependentes de jogos de azar são a
solidão, a depressão, a carência, o tempo ocioso e a fuga de conflitos. Os
dependentes de jogo se embasam muito em uma vivência de persona que se
desfaz com o tempo. Diferentemente do uso de drogas, esse tipo de vício é
mais comum em pessoas mais velhas, enquanto o vício em drogas é mais
comum em adolescentes como forma de encontrar seu lugar na sociedade.
Esse é um dado um tanto irônico quando colocado nesta análise, cujo foco é
uma personagem adolescente.
Fortim (2013), citando Oliveira (2004), menciona que os jogadores
compulsivos são pessoas que se consideram vencedoras, mas cujo ego não
possui estrutura para sustentar a condição de vencedor; sendo assim, colocam
em jogo as coisas que têm a perder. Seriam pessoas que passaram a vida sem
saber dizer “não” aos outros, mas sendo pouco permissivas quando tratam de
si mesmas. Por fim, podemos dizer que são pessoas que tiveram de exercer
um papel materno muito cedo, antes de estarem prontas para isso; essa
questão do papel materno independe do sexo da pessoa em questão, tratando-
se da questão de acolher, cuidar e fortalecer.
A animação Kakegurui não revelou muitas informações sobre Yumeko e
sua família, tampouco sobre seu passado. A única coisa que podemos
discorrer sobre ela seria que possui uma leve tendência a ocupar um papel
materno, que comumente está oculta pela loucura e pela embriaguez
ocasionadas pelo vício em jogo. Esse papel materno é desempenhado nas
ocasiões em que ela se oferece para apostar com outras pessoas para ajudar
terceiros, ainda que isso acabe sendo mais um ganho secundário do que
primário, que para ela é o prazer de apostar.
O último dos pilares anteriormente mencionados na obra de Fortim (2013)
fala sobre a relação entre sombra e persona, diferente do pilar de
identificação com o arquétipo de Grande Mãe; este se torna mais óbvio e
interessante para analisarmos a protagonista de Kakegurui.
Assumindo que os conteúdos da sombra sejam aqueles que não se
encontram na persona e que diversas vezes sejam conteúdos que reprimimos
por diferentes questões, como por não serem aceitos socialmente, é
necessário compreender como se relacionar com os materiais que estão ali.
Pessoas que vivem em uma persona muito rígida não abrem espaço para
nenhum tipo de relacionamento com a sombra, o que inevitavelmente leva a
sombra a se manifestar de maneira intensa, assumindo total controle sobre o
indivíduo e manifestando de uma só vez tudo que ali estava reprimido, de
certa forma como uma “possessão”.
O termo “possessão” encaixa-se perfeitamente quando analisamos a
personagem Yumeko Jabami. Verificando apenas o que nos foi apresentado
pelo anime, não temos informações suficientes para afirmar se Yumeko vive
em persona ou se possui uma persona muito rígida; podemos apenas supor
que, graças à grande diferença entre a garota doce, simpática e aparentemente
ingênua que ela demonstra ser quando não está apostando e que, ao receber
um desafio suficientemente interessante, transforma-se totalmente na
apostadora descontrolada e sem nada a perder.
Fortim (2013) discorre no fragmento a seguir sobre a funcionalidade da
sombra dentro do mecanismo psíquico no que diz respeito ao comportamento
do dependente:
A combinação de Sombra pessoal, comportamento adictivo e Sombra Arquetípica/Mal
Arquetípico acaba se tornando um poder sem igual na psique, tomando conta do complexo do
Ego. Essa Sombra arquetípica é um aspecto da psique que é impossível de ser integrada e deve
ser combatida, pois transcende a Sombra pessoal. As pessoas são levadas a contatar esse
arquétipo por sua força e energia incríveis, a sensação de liberdade inimaginável e a sensação de
completude dos desejos de status, prestígio, dominação e promessas de potência sobre-humanas.
(p. 79)

Discorrendo sobre a teoria de Schoen (2009), Fortim (2013) argumenta que


o vício seria algo autodestrutivo e potente vindo de uma grande repressão
interna e da tomada de frente de uma sombra arquetípica e que, ainda
segundo Schoen, assim como Jung dizia, só poderia ser enfrentado diante de
uma vivência igualmente potente, como uma conversão religiosa.
A ausência de uma vivência suficientemente potente e o fato de Yumeko
viver em uma escola que estimula seu vício, com amigos que se identificam
com essa mesma figura arquetípica de descontrole que pratica apostas
insanas, tornam-na uma dependente além da salvação e de qualquer
arrependimento. Até o momento, ela sempre optou por apostar cada vez mais
e nunca pareceu demonstrar arrependimento por investir tudo que possui e
um pouco mais, ou por romper relações com aqueles que se pusessem entre
ela e suas apostas. Ela age, portanto, como uma típica jogadora compulsiva
que, ao perder, somente volta querendo mais para reaver aquilo que foi
perdido.
Sua possessão pela sombra quando está apostando é completa; de certo
modo, levando em conta somente o anime, seria possível até mesmo dizer
que ela se integra perfeitamente à sombra nos momentos em que tem a
oportunidade, ganhando uma dimensão nova em que persona e sombra são
indiferenciáveis, e tudo o que sobra é o conteúdo sombrio que a caracteriza
como uma dependente de jogos de azar.
Referências
ALCOÓLICOS ANÔNIMOS ONLINE. Dr. Carl Gustav Jung. [S. l.: s. n.]. [20--]. Disponível em:
https://www.aaonline.com.br/ver.php?id=233&secao=20. Acesso em: 3 nov. 2020.
AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos
mentais (DSM-V). 5. ed. São Paulo: Artmed. 2014.
FORTIM, I. Aspectos do uso patológico de internet. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Ceres Alves de Araújo.
2013. 178 f. Tese (Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia: Psicologia Clínica) –
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2013. Disponível em:
https://tede2.pucsp.br/handle/handle/15253. Acesso em: 3 nov. 2020.
JUNG, C. G. Memórias sonhos e reflexões. São Paulo: Nova Fronteira. 2016.
MARIANI, M. M. C.; TAVARES, H. Transtorno do jogo. In: FORLENZA, O. V.; MIGUEL, E. C.
(ed.). Clínica psiquiátrica de bolso. São Paulo: Manole, 2014. p. 339-354.
OLIVEIRA, M. E.; SAAD, A. C. Jogo patológico: uma abordagem terapêutica combinada. J. bras.
psiquiatr., Rio de Janeiro, v. 55, n. 2, p. 162-165, 2006. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0047-
20852006000200011&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 3 nov. 2020.
SCHOEN, D. War of the Gods in Addiction. Nova York: Spring Journal, 2009.
SOUZA, C. C. et al. Jogo patológico e motivação para mudança de comportamento. Psicol. clin., Rio
de Janeiro, v. 21, n. 2, p. 345-361, 2009. Disponível em http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?
script=sci_arttext&pid=S0103-56652009000200007&lng=pt&nrm=iso. Acesso em: 27 set. 2020.
Notas
1 Formado em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Tem grande
interesse por assuntos geek e pelo modo como se relacionam com a saúde mental. E-mail para contato:
jc.sih@hotmail.com.
A espada e o que ela conta: histórias de Kenshin e
Kaoru
Amanda Rolim 1

O originalmente
MANGÁ R K
UROUNI S
ENSHIN OU X, N
AMURAI DE W
OBUHIRO ,
ATSUKI PUBLICADO
no Japão em 1994 e no Brasil em 2001, foi transformado
em anime pelo Studio Gallop, transmitido no Brasil em televisão aberta.
Hoje, a animação está disponível na íntegra em serviços de streaming.
O enredo da obra se desenvolve no início da Era Meiji e conta a trajetória
de Kenshin Himura, um andarilho misterioso que possui cabelos ruivos e
uma cicatriz em forma de X em seu rosto. Ele vaga sem rumo e segue
solitário por dez anos, arrependido de seu passado sangrento. É um homem
que toma consciência da sua história e busca mudá-la, escrevendo seu futuro
de modo pacífico. Toda a história de Kenshin é atravessada pela lenda de
Battousai, o Retalhador, um lendário espadachim que serviu ao império antes
da consolidação da Era Meiji. De acordo com essa lenda, tratava-se de um
homem que fez sua fama matando muitas pessoas em nome do império e que
desapareceu sem deixar pistas. A história de Kenshin vai revelando aos
poucos que ele é essa lenda desaparecida. Relata, também, como ele foi
mudando ao longo de sua trajetória até chegar ao momento em que encontra
Kaoru e os novos companheiros.
Kaoru Kamiya é uma mulher de personalidade forte, muito determinada e
altamente ligada à tradição familiar. Kaoru é espadachim e mestre em um
dojo, onde ensina a técnica de sua família. Ela e Kenshin desenvolvem um
relacionamento de amizade e companheirismo, passando a viver juntos no
dojo com a família de Kaoru e os amigos que fazem ao longo do caminho.
A saga de Kenshin se divide em momentos: são três temporadas de anime
e dois OVAs (original video animation) em que são contadas suas aventuras
e as de outros personagens que o acompanham em sua jornada. Além disso,
existem três filmes live action.
O presente capítulo trata de um panorama geral do anime com foco nas
histórias contidas nas espadas de Kenshin e de Kaoru.
Conceito, metáfora e histórico: qual a espada?
Pensar o que é uma espada passa por diversos níveis de compreensão:
existem níveis conceituais mais abrangentes e culturalmente compartilhados e
níveis mais específicos, como a história que cada indivíduo tem com o objeto
(conhecimento sobre manejo, forja e outros). Além desse aspecto, é
necessário destacar que a história construída em relação à espada também é
composta pelos afetos, pensamentos e valores que ela suscita e mobiliza nos
indivíduos e na cultura. A seguir, discutiremos um pouco a ideia de conceito
com base em classes de estímulo, o que nos ajudará a compreender como,
coletivamente, aprendemos alguns aspectos conceituais da espada.
Quando ouvimos o termo “espada” imediatamente alguma imagem se
forma em nosso pensamento. Essa imagem vai depender do quanto
conhecemos esse objeto; talvez nosso pensamento imagine algo genérico,
uma empunhadura e uma lâmina, ou forme uma imagem mais específica,
como a de uma katana afiada, semelhante à de algum personagem do anime,
ou até mesmo uma arma de características de outra cultura e de outro
momento histórico; no entanto, todas essas imagens podem ser agrupadas no
conceito de “espada”.
Isso quer dizer que um objeto corresponde ao conceito de algo, isto é, o
objeto pode representar a si mesmo ou representar um conceito. Se tivermos
em mente a espada, mais especificamente a katana, podemos agrupá-la em
alguns conjuntos (classe de estímulos) que guardam semelhanças entre si e
representam tanto a katana quanto outros objetos. Exemplo: katana é um tipo
de espada, logo pode ser definida como: 1. Arma; 2. Arma branca; 3. Arma
de samurai.
Nesse exemplo, um objeto, tendo suas características e dimensões
mantidas, pode ser colocado em três conjuntos diferentes, pois existe algo em
comum entre eles. Nesse sentido, buscou-se destacar que existem
significados mais abrangentes quanto a definições e grupos mais restritos –
como no exemplo, em que se parte de um conjunto maior para conjuntos
menores.
Quando pensamos em metáfora, estamos dizendo que um objeto, uma
imagem ou um item pode estar sendo usado com um conceito diferente do
tradicional, ou que representa partes de um outro conceito; vejamos mais um
exemplo: katana também faz parte da classe de estímulos Armas japonesas ou
Objeto da cultura japonesa e, em sentido metafórico, pode significar o
aspecto mais global desses conceitos.
A metáfora tem aspectos comuns, pois se constrói com base em conceitos e
objetos que a comunidade e a cultura conhecem e aos quais têm acesso, mas
não corresponde de modo literal a si mesma. Ela comunica algo para além
daquilo que está contido em suas dimensões físicas: afetos, valores,
pensamentos e ideias que têm sentido compartilhado; se não fosse esse o
caso, a metáfora não seria compreensível aos outros. Ainda que cada uso de
metáfora tenha aspectos da história individual e comunique elementos
individuais da história de cada um, ela também está construída em aspectos
culturalmente compartilhados.
Para falarmos em histórico, a premissa utilizada se baseia na ideia de
relação que as pessoas desenvolvem com o mundo que as cerca, seja o
mundo físico ou o mundo social. Essa relação é fundamental para entender o
histórico de cada um. Para explicar como uma história é construída, é preciso
entender que ela é resultado das interações entre a pessoa e o ambiente em
que vive. Entende-se que ações, sentimentos, valores e pensamentos são
todos produtos dessa relação contínua entre um indivíduo e o meio (físico e
social). Para fins didáticos, não analisaremos aqui os históricos culturais; o
que faremos será descrever o ambiente cultural para utilizá-lo como contexto
no qual as histórias individuais se desenvolvem.
Considerando essas noções de conceito e metáfora, o presente capítulo vai
se focar em análises baseadas nas histórias individuais, mas é importante ter
em mente que se trata apenas de uma proposta de leitura.
A espada na Era Meiji
No enredo de Samurai X, as espadas possuem um significado negativo no
início da Era Meiji, uma vez que o simples ato de carregar uma espada
desperta choque e reações adversas na população. Desse modo, entende-se
que elas carregam em sua imagem a história construída a partir de muitas
mortes e destruição; assim, tornaram-se símbolo do poder conquistado às
custas da morte de pessoas inocentes. O anime mostra que apenas militares
têm autorização para empunhar esse tipo de arma. É dito em diversas cenas o
quanto as espadas são proibidas e qual o significado que a população atribui a
elas.
Nesse sentido, a espada carrega em si toda a história dolorida que aquela
cultura viveu e, no sentido coletivo, torna-se sinônimo de destruição e
sofrimento. A arma passa a ser compreendida como um instrumento que
provoca o mal. Ainda que as crianças e os mais jovens não tenham vivido o
contexto da guerra, a história pela qual as comunidades passaram ainda se faz
presente e esses valores comuns em relação às espadas continuam sendo
transmitidos, perpetuando o pareamento “espada = destruição”.
Ainda que novas relações possam ser construídas para esse objeto, estas
serão escritas dentro do contexto maior que perpetua os valores de que elas
são instrumentos que provocam dor e sofrimento. Partindo da história da
comunidade, é importante destacar que ainda que grupos menores (famílias,
dojos) tentem construir novos significados e recuperar a tradição anterior ao
período da revolução, permanecem inseridos em um grupo maior, que
dissemina valores antagônicos. Portanto, a relação se torna mais complexa, e
podem surgir conflitos quanto aos significados atribuídos à espada.
Destaca-se aqui como objetos podem carregar em si muito mais
complexidade de significados do que apenas os da história individual ou da
história coletiva: elas se misturam e uma compõe a outra. Ainda que em
alguns momentos seja possível discriminar o que é resultado da história
individual do que é resultado da história da sociedade, não há como negar o
quanto uma influencia a outra.
Como pontuado anteriormente, a proposta deste capítulo é relacionar as
espadas com a história nelas impressa pelas relações individuais, e é isso que
faremos a seguir.
A espada de Kaoru: raízes familiares
Kaoru Kamiya é a mestra do dojo de seu pai, onde ensina a técnica criada
por ele, aliando o estilo de luta aos valores que cultiva quanto a justiça, papel
das artes marciais e disciplina do estudo. Nessa breve descrição da
personagem, pode-se fazer a leitura do quanto a espada está associada a
valores familiares e com um significado afetivo muito importante e muito
potente. Kaoru honra a memória de seu pai pela prática de sua técnica, o
estilo Kamiya.
A relação da personagem com o pai é de proximidade e respeito. O valor
dos ensinamentos dele são muito caros a ela, e a proteção de seu legado é
fundamental para a personagem. Um exemplo disso se dá no primeiro
episódio, quando Kaoru enfrenta um homem que busca vingança da família
Kamiya, passando-se por Battousai, o Retalhador, e contando para todos que
foi com o estilo Kamiya que matara tantas pessoas, manchando a história de
respeito e paz que o pai de Kaoru tanto se dedicara a construir. A
determinação da personagem em preservar a tradição familiar é tamanha que
ela enfrenta o homem para desmascará-lo e restaurar a honra do nome de seu
pai.
Na técnica que Kaoru pratica, a espada é um instrumento para defesa, é
feita de bambu e não possui lâmina. Assim, em termos de definições clássicas
da espada, ela já rompe com a imagem genérica. O fato de essa arma ser
empunhada apenas para a defesa e de a técnica inteira ser direcionada para a
preservação da vida, não para disseminar a violência e derramar sangue, é
radicalmente diferente do conceito de espada que a comunidade dissemina.
O material da arma de Kaoru, o bambu, é um material de origem natural
que foi manipulado, porém não foi fundido ou transmutado pelo fogo: é uma
arma que não carrega em si elementos de “sofrimento” nem mesmo em sua
composição. Em uma proposta quanto às metáforas que as espadas carregam,
a de Kaoru parece remeter muito mais aos conceitos de “Mãe Natureza” e ao
estereótipo social do que é feminino (defesa, cuidado, manutenção da vida e
flexibilidade). Outro aspecto do material a partir do qual a arma é feita é a
imagem de natureza e de raízes, que podem remeter a estar enraizado, estar
apoiado em algo, crescer a partir de uma base sólida e fértil, como ela
mesma: uma mulher que está sempre enraizada nos valores e na técnica de
sua família.
Sua arma traz aspectos que podem ser lidos como metáforas das
características da personagem, que é uma líder assertiva e que ao mesmo
tempo cuida; é uma mulher que rompe com a tradição cultural e ao mesmo
tempo carrega a tradição familiar.
Outra possível leitura metafórica de sua arma e de sua técnica passa pelo
fato de que representam algo a ser transmitido pelo ensino (transmissão
cultural). Ela reúne estudantes e seguidores em seu dojo, sendo que este serve
como moradia para um deles; nesse caso, a relação está sendo mediada pelo
ensino do estilo Kamiya.
Kaoru está no papel de acolhedora, protetora e educadora. Ela passa a zelar
por todos, e podemos pensar isso desde o sentido mais fundamental de dar
abrigo até o de proteger e transmitir a eles os conhecimentos que adquiriu ao
longo de sua vida e de seu treinamento.
Uma lâmina e duas faces: Kenshin e Battousai
A história de Kenshin é revelada aos poucos na série, em que é explicitado
que ele é a lenda Battousai, o Retalhador. Kenshin e Battousai são altamente
contrastantes, ainda que sejam a mesma pessoa. Para compreendermos esse
contraste e o paradoxo do personagem, é preciso olhar para sua história em
um contínuo, sem fragmentá-la, pois assim é possível compreender a
mudança e a transformação pelas quais ele passa.
A criança que se tornaria Battousai perde seus pais muito cedo e é criada
por Seijuro Hiko, que se torna seu mestre. Esse homem introduz a criança na
arte da luta e lhe ensina a técnica Hiten Mitsurugi. Este é um estilo que se
baseia em desembainhar a espada rapidamente e golpear o adversário em
pontos específicos que, quando atingidos pela lâmina afiada, tornam-se fatais
para o adversário. A técnica pode ser letal, se utilizada com essa finalidade. O
jovem Battousai se separa de seu mestre, seguindo outro caminho: torna-se
um mercenário a serviço do império. Assim, usando a técnica que aprendeu,
constrói um legado sangrento de violência, provocando muitas mortes.
A essa altura, Battousai ainda é um jovem que traz diversas cicatrizes em
sua história, mas em seu corpo, não. Sua imagem parece ser de alguém
indestrutível, uma vez que é letal em seus golpes e nunca foi derrotado por
nenhum adversário. A violência que a espada de Battousai espalha não está
associada aos valores da arte ensinada por seu mestre, ela reflete as escolhas
do personagem por esse caminho de destruição.
Battousai é levado pelas consequências de sua escolha, até que em um
momento de sua história ocorrem eventos marcantes que mudam o modo
como ele se relaciona com sua espada. Os valores, afetos e pensamentos que
o personagem apresentara até então são modificados pela relação que ele
estabelece com dois personagens que cruzam seu caminho. A partir daí, essas
novas relações recuperam aspectos afetivos quanto à sua espada que haviam
sido afastados quando ele se separara de seu mestre. Battousai é marcado pela
relação que constrói com essas novas figuras e recebe a cicatriz em forma de
X em seu rosto, passando a levar, a partir de então, a marca física como
metáfora da marca afetiva, da transformação da relação que ele estabelece
para com o mundo e para com a sua própria espada.
É nesse momento que ele muda de nome e se torna Kenshin, um andarilho
que se arrepende de seu passado ao ser marcado pela própria lâmina. Ele
parte e vaga até encontrar um homem que forja armas, a quem pede que crie a
sua “nova” espada, a Sakabatou, ou espada de fio inverso, na qual a lâmina
tem o fio virado para dentro. Assim, trata-se de uma lâmina que não corta,
não mata: é uma lâmina para defesa, proteção e construção de um novo
caminho, uma lâmina que é usada como instrumento de paz e segurança.
Kenshin se mostra um homem bom e generoso, ainda que muito quieto e
misterioso. Ele vaga dez anos pelo Japão e, nessa rota, tenta se perdoar por
seus feitos do passado.
A mudança pela qual passou foi muito radical, e o nome da lenda Battousai
permanece, ainda que ao longo de sua jornada existam momentos em que
Kenshin é chamado a ser de novo um assassino e matar seus adversários.
Entretanto, ele se mantém fiel a seus princípios e à sua transformação. A
espada é o símbolo de sua mudança, uma vez que a técnica permanece a
mesma, mas agora não representa mais um recurso letal, que atua apenas em
prol da destruição.
Diferentemente de Kaoru, Kenshin não se relaciona com o ensino da
técnica. Ele, assertivamente, recusa-se a transmiti-la, assim como se recusa a
ensinar o uso da espada, tanto de uma katana quanto de sua Sakabatou.
Kenshin não pode mudar seu legado sangrento ou apagá-lo, nem mesmo
depois de sua transformação, mas pode se recusar a transmitir essa tradição.
Ainda que a carregue junto de si o tempo todo, parece que o sentido de levá-
la consigo está ligado à sua história, com seu juramento de defesa.
Talvez as espadas de Kenshin e Kaoru possam nos contar as histórias
propostas aqui; talvez elas estejam contando muito mais do que o que foi
destacado, e provavelmente estão. As histórias são longas e complexas,
construídas pelas trajetórias dos personagens, da cultura e até mesmo de
quem as conta. Talvez não seja possível esgotá-las. Só nos resta pensar o que
mais podem significar as espadas.
Leituras recomendadas
PORTAL Comporte-se. A utilização de metáforas como recurso terapêutico. [S. l: s. n.], 10 fev.
2012. Disponível em: https://www.comportese.com/2012/02/a-utilizacao-de-metaforas-como-
recurso-terapeutico. Acesso em: 28 nov. 2017.
http://legiaodosherois.uol.com.br/lista/10-curiosidades-sobre-samurai-x.html. Acesso em 20 nov. 2017
SÉRIO, T. M. A. P. et al. Controle de estímulos e comportamento operante. 3. ed. São Paulo:
EDUC, 2010.
SKINNER, B. F. Ciência e comportamento humano. Tradução Todorov, J. C.; Azzi, R. São Paulo:
Martins Fontes, 2003. (Originalmente publicado em 1953).
SUPER INTERESSANTE. Existiram mulheres ninjas e samurais? [S. l: s. n.], 15 dez. 2015.
Disponível em: https://mundoestranho.abril.com.br/historia/existiram-mulheres-ninjas-e-samurais/.
Acesso em: 15 nov. 2017.
TOURINHO, E. Z. Analogias, metáforas e cognições: comentários a partir do artigo de Ruiz e Luciano.
Acta comportamentalia, Guadalajara, v. 20, n. 4, p. 32-37, 2012.
Notas
1 Graduada em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) em 2017. E-
mail para contato: amanda.rolimaraujo@hotmail.com.
Imaginário e mito nos animes: reflexões sobre a
imagem da espada japonesa em Rurouni Kenshin
Rafael Augusto Montassier 1
Introdução
A imagem da espada japonesa é alvo de grande fascinação entre as
pessoas, o que fica evidente pela enorme quantidade de mídias que exploram
essa imagem, por meio de filmes, vídeos na internet e, em especial, animes,
como são conhecidas as animações japonesas.
O intuito deste capítulo é, com base no agrupamento das imagens proposto
por Gilbert Durand, apresentar exemplos da complexidade da imagem da
espada japonesa, mostrando que essa arma pode ser usada para “cortar”,
mesmo sem possuir uma lâmina, ou até ser utilizada para unir aquilo que fora
separado.
A espada no imaginário segundo Gilbert Durand
Antes de fazer uma exploração mais aprofundada sobre a imagem dessa
espada, é necessário abordar a noção de imaginário. Enquanto a imaginação
seria a capacidade do ser humano de produzir, escolher e categorizar
imagens, o imaginário, sob o ponto de vista antropológico de Gilbert Durand,
seria o modus operandi da imaginação, que visa estabelecer um equilíbrio
nos campos biológico e psicológico em conjunção com os estímulos do meio
social e da cultura em que o indivíduo está inserido, para que este possa lidar
melhor com as implicações da passagem do tempo e do medo da morte. Ao
fazer um levantamento de imagens em diversas mitologias e artes, o autor
notou que, na dinâmica dos planos biopsicossociais e culturais, surge um
conjunto de arquétipos, símbolos e mitos. O pensador francês achou mais
proveitoso agrupá-los em vez de classificá-los, partindo inicialmente dos
reflexos dominantes, ligados aos aspectos biológicos e anatômicos do ser
humano, como os gestos postural, digestivo e copulativo, os quais
proporcionaram fundamentação para o autor definir três grandes esquemas: o
heroico, o místico e o sintético. De acordo com Gilbert Durand, “são esses
esquemas que formam o esqueleto dinâmico, o esboço funcional da
imaginação” (2002, p. 60).
O esquema místico se vincula ao reflexo dominante digestivo e ao ato de
engolir. Diferentemente da abordagem heroica, que visa a separação por meio
de um enfrentamento da morte e do tempo, esse esquema é composto por
imagens que agregam, acolhem e são internalizadas, como a terra, a mãe e os
alimentos. No caso dessas imagens, deve-se considerar que a terra, por gerar
as plantas que servem de alimento, acaba por ser associada a figuras
femininas, como Gaia.
O esquema sintético se conecta com o gesto dominante copulativo do ser
humano e se encontra entre os esquemas heroico e místico, estando ligado às
ideias do eterno retorno e dos ciclos, como os do calendário agrícola
(DURAND, 2002, p. 58). Sabe-se, ainda, que esse esquema é composto por
imagens como a da árvore, que nasce da terra feminina, porém se eleva aos
céus como uma torre fálica transcendente que se separa do chão. Imagens
como o fogo e a cruz também contemplam esse esquema que engloba o
aspecto do renascimento (DURAND, 2002, p. 443).
No caso específico desta análise, é necessário destacar o esquema heroico,
que dialoga com a questão postural ereta do ser humano; por esse motivo,
imagens ascensoriais estão ligadas a ele. Entre essas imagens que inspiram a
distinção e a separação, está a da espada, cuja principal característica é seu
poder de corte, que visa a separação (DURAND, 2002, p. 159-161). Isso
pode ser percebido em certos ritos que requerem que os cabelos da cabeça
sejam raspados ou que sejam feitas escarificações na pele, ou mesmo na
própria circuncisão; todos esses procedimentos teriam por função “cortar” o
mal de certas pessoas, de modo a distingui-las daquelas que não pertencem a
um determinado grupo (DURAND, 2002, p. 170-172). Vale destacar que tais
ritos não estão desvinculados dos ambientes temporal e espacial em que são
executados. Isso posto, a seguir será tratado como a terra do arquipélago
japonês e o corpo nipônico sussurram nos ouvidos dos ferreiros o modo como
essa espada específica gostaria de ser concebida nas fornalhas onde está
sendo moldada.
Características específicas da espada japonesa

Formato da lâmina
Antes de adquirir seu formato característico com curvatura e lâmina de
apenas um gume, a espada japonesa era muito similar às espadas chinesas de
lâmina reta e de dois gumes, cuja principal função era servir como uma arma
perfurante. Ademais, essas espadas retas eram muito mais adaptadas ao
biotipo chinês, mais alto e longilíneo quando comparado aos japoneses, de
estatura menor. Devido a isso, a espada foi sofrendo transformações para se
adaptar à nova realidade da terra do sol nascente, adquirindo seu aspecto que
a tornava mais voltada a ser uma arma de corte (GUIMARÃES, 2001, p. 110-
114).
É interessante salientar nesse ponto que, após a abertura de seus portos no
início do período Meiji (1867-1912), o Japão pôde facilmente importar
matérias-primas de qualidade, como o aço. Entretanto, os ferreiros do
passado tinham também de fabricar seu próprio aço, advindo de areia
ferruginosa de ribanceiras (TURNBULL, 2010, p. 10). Devido à baixa
disponibilidade de minério de ferro adequado para o desenvolvimento de um
aço rígido, o formato da espada japonesa teve de ser concebido de modo a se
adaptar àquilo que o meio disponibilizava. Ao final do processo, o resultado
foi uma lâmina com a espinha dorsal feita de um metal mais maleável, de
pior qualidade, envolta por uma camada de aço forjado e reforjado diversas
vezes até adquirir rigidez e capacidade de corte ímpar (TURNBULL, 2010, p.
12-15).
Ademais, a espada nipônica também pode funcionar como escudo, visto
que o ferro mais maleável que compõe seu núcleo permite uma absorção de
impacto considerável; isso não seria possível caso a lâmina fosse inteiramente
feita de um material mais rígido (TURNBULL, 2010, p. 7). Essa suavidade
presente na lâmina conversa com a maleabilidade vegetal do bambu ou do
salgueiro, que se curvam ante uma tempestade, muito diferente da rigidez do
carvalho ao enfrentar uma tormenta.
Tendo sido contextualizada a imagem da espada japonesa em relação ao
seu ambiente, a seguir será abordado brevemente como essa arma estava
inserida em um contexto social de uma época específica do Japão.

A espada como legitimadora de poder


“A espada é a alma do guerreiro”, disse certa vez o xogum Ieyasu
Tokugawa (TURNBULL, 2010, p. 4). Tal colocação pode ser aplicada
especialmente aos samurais, uma classe de elite na sociedade japonesa
medieval que, mesmo sem suas armaduras, mantiveram suas espadas presas à
cintura, o que serviu, inclusive, como forma de distinção com relação às
demais classes sociais que, teoricamente, não podiam andar armadas
(TURNBULL, 2010, p. 4) – isso porque, em 1588, Toyotomi Hideyoshi, em
sua empreitada de tentar unificar o território japonês, proibiu o porte de
armas para camponeses, sendo que as armas, por sua vez, ficariam sob o
controle dos respectivos daimyos, espécie de senhores-feudais, de cada
território. Para auxiliar nesse processo de desarmamento, os donos das
espadas eram informados de que estas não seriam descartadas e que o metal
presente nelas seria derretido para a feitura de pregos, que seriam utilizados
na construção de uma enorme imagem de Buda que Hideyoshi estava
erguendo em Kyoto (TURNBULL, 2003, p. 155).
Esses exemplos mostram com a espada japonesa pode ser usada de
diferentes maneiras, mesmo sem fazer uso de sua lâmina, pois, de acordo
com eles, ela separa as classes populares da elite governante. A seguir, será
apresentada a série de animação japonesa escolhida para a presente análise,
que pode trazer perspectivas interessantes para a imagem da espada.
Contextualização histórica e sinopse da trama de Rurouni Kenshin
Em 1853, visando expandir seu mercado comercial, uma frota naval dos
Estados Unidos forçou o Japão a abrir seus portos, que até então se
encontravam fechados para as potências centro-ocidentais e seu suposto
progresso positivista. Esse foi o estopim para o fim da era dos samurais.
Apesar de haver a figura de um imperador no Japão, o poder daquela nação
estava, de fato, nos punhos de ferro dos xoguns, líderes militares, da dinastia
Tokugawa (TURNBULL, 2003, p. 167). Entretanto, graças ao incidente dos
navios americanos, uma revolução monarquista se iniciou, visando devolver
o poder para as mãos do imperador. Contando com o apoio de diversos
feudos e grupos descontentes com a entrada de estrangeiros no país, os
monarquistas venceram o xogunato e devolveram o poder ao imperador
Meiji. No entanto, em vez de expulsar os estrangeiros, algo que o xogunato
não conseguiu, Meiji decide abraçar a cultura ocidental, ansiando pelas
tecnologias desenvolvidas durante a revolução industrial e também por
extinguir o sistema feudal, vigente até então no Japão, e, consequentemente, a
classe guerreira e aristocrática dos samurais. Assim, aqueles que estavam
entre os vitoriosos tiveram de abrir mão de suas espadas em prol das cartolas
ocidentais, ao passo que os guerreiros que resistiram tiveram de ser
esmagados (TURNBULL, 2003, p. 167). A extinção dessa classe cria todo
um grupo de ex-guerreiros espadachins que ficam deslocados nessa era para a
qual o Japão estava rumando. É justamente nesse contexto de desconexão
com o ambiente, fosse do ponto de vista da nova classe dominante burguesa
em seu ímpeto pela ocidentalização, fosse pelos ex-samurais que se
recusavam a aceitar a mudança pela qual seu país estava passando, que vão se
desdobrar as tramas do anime Rurouni Kenshin, principal objeto do presente
capítulo.
A animação Rurouni Kenshin, cujo título pode ser traduzido como
“andarilho Kenshin”, foi baseada em um mangá de mesmo nome que teve sua
publicação iniciada em 1994, tendo sido adaptada para anime em 1996, que
chegou, inclusive, a ser exibido na televisão brasileira anos mais tarde. O
sucesso da obra foi de tal vulto que chegou a ser adaptada para os cinemas
em uma trilogia de filmes live action, lançados entre 2012 e 2014, com um
quarto filme previsto para 2021.
A história de Rurouni Kenshin se passa no Japão de 1878, durante a Era
Meiji, em nela o protagonista, um espadachim chamado Kenshin Himura,
busca redenção por todas as vidas que tirou durante a restauração, período em
que ele lutou pela causa dos monarquistas. Apesar de a alta cúpula do novo
regime oferecer ao protagonista um cargo elevado no governo, Kenshin
recusa-se a aceitá-lo e, em vez disso, opta por vagar sem rumo, utilizando
suas técnicas para proteger as pessoas ao seu redor, de modo que não tenha
de matar mais ninguém. Para isso, ele usa sua Sakabatou, ou espada de
lâmina invertida. É importante explicar, nesse ponto, que as espadas
japonesas costumam ter apenas um gume, e, no caso da espada de Kenshin, o
lado cego, sem corte, está voltado para o oponente, enquanto a lâmina em si
está voltada para a única pessoa que o protagonista permite cortar: ele
próprio.

O design do protagonista e o arquétipo do andrógino


Na classificação de Gilbert Durand, o arquétipo do Andrógino se enquadra
na estrutura sintética das imagens, incorporando aspectos masculinos e
femininos e, portanto, nele atributos noturnos e diurnos se mesclam e se
complementam, tornando-o um símbolo de união.
Com relação aos fenômenos de análise, o protagonista de Rurouni Kenshin
foi inspirado por Kawakami Gensai, um espadachim descrito como alguém
de baixa estatura e com traços delicados e femininos. Isso vai de encontro
com a representação do personagem Kenshin, que é deveras andrógina,
sendo, inclusive, dublado na animação por uma mulher, a atriz Mayo
Suzukaze.
É válido ressaltar que a própria espada de lâmina invertida de Kenshin
engloba o aspecto fálico masculino da arma com a sombra lunar noturna e
feminina de não visar o corte e a separação, mas a integração, dado que os
oponentes de Kenshin, como Sagara Sanosuke e Hajime Saitou, acabam, de
certo modo, renascendo como aliados do protagonista após duelarem contra
essa espada. O renascimento é, por sua vez, um esquema verbal da estrutura
sintética da classificação das imagens, de acordo com Gilbert Durand (2002,
p. 443).

O principal antagonista de Kenshin


Apesar de Kenshin se deparar com diversos adversários ao longo do
anime, não se pode deixar de mencionar o principal deles, Shishio Makoto,
um assassino que, assim como Kenshin, atuara em prol do recém-instaurado
governo Meiji. Porém, devido à sua personalidade mais instável e ao teor
mais controverso das missões do espadachim, o novo regime, após consolidar
seu poder, decide atear fogo em Shishio ainda vivo, como uma forma literal
de queima de arquivo. Entretanto, Shishio sobrevive e, coberto de
queimaduras e com suas glândulas sudoríparas destruídas, decide arquitetar
um golpe de estado contra o novo governo.
Com seu carisma, Shishio consegue montar uma organização de
seguidores fanáticos e injustiçados pelo governo. Na verdade, trata-se de um
secto forte o suficiente para propagar sua ideologia progressista e
socioevolucionista, a partir da qual somente o forte impera e os fracos sofrem
e morrem; essa é a filosofia que ele queria que o Japão seguisse, devido à
expansão das potências centro-ocidentais que estavam colonizando
massivamente a China e outros países da Ásia.

A espada e as chamas
A imagem do fogo, segundo o agrupamento do imaginário, está associada
ao esquema sintético das imagens, relacionado ao aspecto copulativo do ser
humano. As chamas emitem calor, que tem a capacidade de penetrar.
Contudo, segundo Durand, o fogo é uma imagem polivalente (aparentado da
flecha ígnea e do raio, que também emite luz), imagem essa contida no
esquema heroico por se contrapor à escuridão, ocasionando uma separação
(2002, p. 173). É justamente essa característica que prevalece na associação
dessa imagem com a figura do principal oponente de Kenshin.
Como mencionado anteriormente, Shishio havia sido traído e queimado
vivo pelos monarquistas que ajudara a conquistar o poder. Todavia, essa não
é a única relação dessa figura com a imagem do fogo. Para conseguir cumprir
seus objetivos de conquistar o Japão e fortalecê-lo para que não se tornasse
uma colônia das potências ocidentais, Shishio Makoto planeja que sejam
feitos investimentos pesados nos setores industrial e militar, focando
especialmente na extração de petróleo. Por essa razão, não é à toa que o
confronto final contra Kenshin se dá numa plataforma de extração de
petróleo, com as labaredas dos exaustores iluminando o confronto.
Ademais, a espada de Shishio possui uma lâmina de formato serrilhado,
que acumula a gordura das vítimas retalhadas por ele em seus vincos. Com
isso, ele desenvolveu sua técnica Homura Dama (“alma das chamas”, em
tradução livre), que consiste em friccionar essa lâmina coberta de material
inflamável a ponto de incendiá-la, causando no adversário a dor de ser
queimado e cortado ao mesmo tempo.
Entendendo a espada como a alma do guerreiro, o espadachim seria,
portanto, o corpo da espada. No caso, pode-se considerar que o próprio
Kenshin também passa por um processo de ser forjado, ao ser exposto às
chamas da espada de seu oponente e dos exaustores dos poços de perfuração
de petróleo que contornam o campo de batalha.
Considerações finais
Como foi explorado anteriormente no presente capítulo, a espada japonesa
assumiu uma forma para melhor dialogar com seus ambientes, seja o próprio
terreno do Japão ou o formato do corpo dos espadachins japoneses. Assim,
pode-se admitir que Kenshin, um assassino ficcional inserido no contexto da
Era Meiji, alterou a imagem da espada e sua função de corte. Outro exemplo
da relação do ambiente com a imagem das armas vem dos quadrinhos norte-
americanos com o personagem Capitão América que, inserido no contexto da
Segunda Guerra Mundial, alterou a imagem do escudo.
Nesse caso, a característica defensiva do escudo reflete o discurso usado na
política externa dos Estados Unidos de fazer uso da força apenas em
situações em nome da segurança de seu território nacional; isso caracteriza
um discurso que legitima os interesses imperialistas dessa nação (DITTMER,
2005). Todavia, os Estados Unidos não foram os únicos impérios inseridos no
contexto da segunda grande guerra: o Japão também foi uma dessas nações, e
as repercussões desse conflito podem ter sido expressas na criação da espada
de lâmina reversa.
No episódio 36 da série de animação, Shishio lamenta a incompetência do
governo Meiji em mobilizar o exército para destruir um “mero” espadachim
moribundo e seus seguidores pelo medo que o regime tinha de demonstrar
uma fraqueza para as potências ocidentais. Por esse motivo, Shishio sentia a
necessidade de guiar a nação para um novo rumo. Ao final do confronto
contra seu arqui-inimigo, Kenshin retorna ao encontro de seus companheiros
e, na versão original dos quadrinhos, o narrador comenta que, apesar da
derrota de Shishio e do fracasso de sua facção em tomar o poder, o próprio
governo Meiji, que fora salvo por Kenshin da tentativa de golpe de Estado,
decide adotar uma política similar àquela pregada por Shishio, segundo a
qual deveria imperar o mais forte. Tal abordagem foi chamada de fukoku
kyohei, que consistia, basicamente, em enriquecer o país e fortalecer o
exército. Esse slogan e essa abordagem política foram de fato adotados pelo
governo Meiji e perduraram durante décadas (SAMUELS, 1994, p. 34-42),
sendo essenciais na transformação do Japão em uma potência imperial, tal
qual os países que temia, levando os japoneses a expandirem seu território
sobre a Ásia.
A relação do Japão com seu passado pode ser encontrada na figura de
Kenshin, que carrega em seu rosto uma cicatriz em formato de cruz, uma
imagem relacionada à estrutura sintética, segundo Durand, e ligada também
ao renascimento. Essa marca representa os horrores cometidos pelo
protagonista em seu passado como assassino e, devido ao fato de não se
perdoar pelos seus atos, ele não pode simplesmente raspar seus cabelos e se
tornar monge, mas necessita continuar vivendo pela espada, de modo a
transmutar seus traumas em algo construtivo.
Existe um ditado nipônico que diz que “a pena e a espada são um só”, pois
o treinamento dos samurais visava também o desenvolvimento do indivíduo
como ser humano, de modo que a exigência à forma marcial não seria
diferente de artes como a escrita (DONOHUE, 1999, p. 141). Assim como o
personagem Arai Shakku, os diretores, animadores e roteiristas do anime de
Rurouni Kenshin podem ser interpretados como ferreiros em busca de criar
sua forja de redenção. A trajetória de Kenshin pode ser interpretada como um
reflexo da própria nação japonesa após os eventos da Segunda Guerra
Mundial, quando o país não só cometeu atrocidades – como no caso do
massacre de Nanquim, onde 20 mil mulheres chinesas foram estupradas por
soldados japoneses – como sofreu pesados reveses com os bombardeios
atômicos em Hiroshima e Nagasaki. É possível pensar que essas chamas
atômicas e destruidoras contribuíram significativamente para forjar a imagem
de uma espada que valoriza a vida.
Referências
ANAZ, S. et al. Noções do imaginário: perspectivas de Bachelard, Durand, Maffesoli e Corbin.
Revista Nexi, São Paulo, n. 3, 2014. Disponível em:
http://revistas.pucsp.br/index.php/nexi/article/view/16760. Acesso em: 24 maio 2021.
DITTMER, J. Captain America’s empire: Reflections on identity, popular culture and post 9/11
geopolitics. Annals of the association of American Geographers, v. 95, ed. 3, p. 626-643, set.
2005.
DONOHUE, J. Complete kendo. Vermont: Tuttle, 1999.
DURAND, G. Estruturas antropológicas do imaginário: introdução à arquetipologia geral. São
Paulo: Martin Fontes, 2002.
GUIMARÃES, G. A magia da espada japonesa. São Paulo: Cultrix, 2001.
RUROUNI Kenshin. Direção: Kazuhiro Furuhashi. Tóquio: Studio Gallop, Studio Deen, 1996.
SAMUELS, R. J. “Rich nation strong army”: National security and the technological transformation
of Japan. Nova York: Cornell University Press, 1994.
SENNET, R. O artífice. Rio de Janeiro: Record, 2009.
STERN, R. BYRNE, J. Captain America (1968) #254. Nova York: Marvel, 1981.
TURNBULL, S. Katana: the samurai sword. Oxford: Osprey, 2010.
TURNBULL, S. Samurai the world of the warrior. Oxford: Osprey, 2003.
WATSUKI, N. Rurouni Kenshin: crônicas da Era Meiji. São Paulo: JBC, 2012.
WATSUKI, N. Samurai X: Kesnhin Kaden. São Paulo: JBC, 1999.
WILLMOTT, H. P.; CROSS, R. MESSENGER, C. World War II. Londres: Dorling Kindersley,
2012.
Notas
1 Doutorando em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC-SP). Bolsista CNPq. Mestre em Comunicação e Semiótica também pela PUC-SP com a
dissertação Os processos comunicacionais das imagens de complexidade: uma leitura da espada em
animações japonesas, defendida em 2017. Graduou-se em Imagem e Som pela Universidade Federal de
São Carlos (UFSCar) em 2012. E-mail para contato: rafael.montassier@gmail.com.
Sombra, persona e complexo do bode expiatório:
análise do protagonista Shoya Ishida
Ana Bárbara N. Mello 1
Anne Aguemi 2

E
STE CAPÍTULO SE PROPÕE A EXPLORAR O DESENVOLVIMENTO DO PROTAGONISTA
Shoya Ishida, tendo por base sua infância e sua adolescência. Aqui,
procuramos utilizar como referência tanto a obra cinematográfica A
voz do silêncio quanto o mangá de mesmo nome, entendendo que ambos
possuem suas particularidades e contribuem para uma melhor compreensão
da história. Ademais, a análise será embasada pelo viés da psicologia
analítica, em especial pelos conceitos de sombra, persona e complexo do
bode expiatório.
A obra
A voz do silêncio – cuja tradução literal do nome em japonês, Koe no
Katachi, seria “A forma da voz” – foi escrito e ilustrado por Yoshitoki Oima.
Inicialmente, a obra foi publicada como um one-shot – história de um
capítulo único – lançado em fevereiro de 2011 pela revista Bessatsu Shōnen.
Em agosto de 2013, a história começou a ser serializada pela Weekly Shōnen
Magazine, sendo concluída em novembro de 2014. Em setembro de 2016, o
mangá teve uma adaptação cinematográfica escrita por Reiko Yoshida e
dirigida por Naoko Yamada.
O enredo principal gira em torno de Shoya Ishida e Shoko Nishimiya e
como o encontro dos dois gera um profundo impacto em suas vidas. Os
personagens se conhecem no primário – equivalente ao ensino fundamental
no Brasil –, quando Shoko é transferida para a escola de Shoya. Shoko é
surda e, por isso, a classe passa por certas mudanças em seu cotidiano para se
adaptar às necessidades dela. Isso se dá especialmente no que se refere à
comunicação com Shoko, que acontece por meio de um caderno seu, que ela
própria oferece para ser a principal maneira de se estabelecer diálogos com
seus colegas. Entretanto, passado algum tempo, as crianças começam a sentir
dificuldade para integrá-la ao grupo e acabam por hostilizá-la. Shoya assume
o papel de líder nas ditas “brincadeiras” e persegue Shoko, tornando-a seu
alvo. Os demais colegas de classe presenciam as atitudes de Shoya e as
toleram e incentivam, muitas vezes também participando.
Em dado momento, os fatos escalam e Shoya acaba quebrando os
aparelhos auditivos de Shoko. Assim, o abuso e o bullying contra ela vêm à
tona, e quando o diretor da escola é informado e questiona a classe, Shoya é
apontado como o único culpado. A partir do ocorrido, ele se torna o alvo das
outras crianças e é isolado do grupo – passando, inclusive, pelos mesmos
maus tratos aos quais submetera Shoko. Um exemplo disso é quando Shoya,
irritado com Shoko, jogara o caderno com que ela tentava se comunicar com
os colegas na fonte da escola; após virar alvo da sala, Shoya e seus materiais
são jogados na mesma fonte. É então que ele encontra o caderno de Shoko e
acaba guardando-o.
Eis que, certo dia, Shoya percebe que Shoko estava mexendo na mesa dele
antes da aula. Ele se irrita com ela e os dois acabam tendo uma briga física, o
que resulta na transferência de Shoko para outra escola. Só então Shoya
percebe que, na verdade, a garota estava limpando a carteira dele dos
desenhos e das ofensas feitos pelo restante da turma.
Há um salto de cinco anos na história, passando para o dia em que Shoya
pretende se suicidar. Mesmo no colegial, ele permanece isolado dos colegas e
não tenta fazer amizade com ninguém. Ele sai do seu trabalho de meio
período, vende todas as suas coisas e retira todo o dinheiro do banco para dar
à sua mãe – a mesma quantia que ela tivera de pagar à mãe de Shoko pelos
aparelhos auditivos quebrados, anos antes. A última pendência que o rapaz
desejava resolver seria encarar Shoko, devolver seu caderno e se desculpar.
No entanto, em um desenrolar um tanto inesperado da conversa, Shoko
concorda em se tornar amiga dele e também se surpreende que ele tenha
aprendido a linguagem de sinais. A partir desse momento, Shoya busca se
aproximar dela e tentar se redimir, pois deseja compensar seus atos do
passado. A história segue desenvolvendo as relações entre os dois e daqueles
à sua volta, incluindo antigos colegas do primário, familiares e novos colegas
do colegial.
Conceitos: persona e sombra
Carl Gustav Jung (1875-1961) foi o psiquiatra fundador da psicologia
analítica, uma das psicologias profundas que detêm enfoque sobre o estudo
do inconsciente e seus fenômenos. Jung procurou estudar a alma humana e os
mistérios da psique, e sua teoria é “como um mapa da alma, mas é o mapa de
um mistério que não pode, em última instância, ser captado em termos e
categorias racionais” (STEIN, 2006, p. 15).
Jung tem por base que a libido é uma energia de caráter neutro, e é ela que
move os processos psíquicos, sendo produzida pela tensão dos contrários.
Isso quer dizer que, se pensarmos em uma balança, enquanto existirem duas
forças agindo em ambos os extremos, os pratos da balança irão se mexer.
Essa energia seria originária dos contrários que movem a psique em seus
diversos aspectos: o consciente e o inconsciente, um lado mais racional e
outro mais irracional, nossos pensamentos e intuições, entre outros. Desse
modo, o ideal é que se procure um equilíbrio na balança, pois, se ela ficar
muito polarizada, há o perigo de a energia “ficar estagnada” – ou se desgastar
– em um lado e, então, haver uma reversão súbita. Um lado influencia o
outro. Como o próprio Jung afirma, “não há equilíbrio nem sistema de
autorregulação sem oposição. E a psique é um sistema de autorregulação”
(JUNG, 2014, p. 73).
Entre os vários elementos constituintes da psique humana, estão os
arquétipos; neste tópico, daremos atenção aos que são os chamados persona e
sombra, que são um par de subpersonalidades divergentes – ou seja, dois
polos de uma das balanças que compõem o nosso psiquismo. Em primeiro
lugar, o que são arquétipos? Eles são imagens primordiais, existentes no
inconsciente de cada indivíduo. “Isso não quer dizer que sejam hereditárias;
hereditária é apenas a capacidade de ter tais imagens, o que é bem diferente”
(JUNG, 2014, p. 76-77, grifos do original).
Assim, os arquétipos são estruturas que todos possuem, são manifestações
da camada mais profunda do inconsciente, não detendo caráter pessoal, e sim
imagens humanas universais e originárias. Para melhor ilustrar o que seriam,
é preciso entender que para a psicologia analítica o inconsciente pode ser
subdividido em duas camadas. Se pensarmos na psique como uma esfera
cheia de camadas, a que recobre a parte mais superficial é o consciente e, em
seguida, temos a primeira camada do inconsciente, denominada inconsciente
pessoal, que
contém lembranças perdidas, reprimidas (propositalmente esquecidas), evocações dolorosas,
percepções que, por assim dizer, não ultrapassaram o limiar da consciência (subliminais), isto é,
percepções dos sentidos que por falta de intensidade não atingiram a consciência e conteúdos
que ainda não amadureceram para a consciência. (JUNG, 2014, p. 77)

Depois dele, na camada ainda mais interna, há o que se denomina


inconsciente coletivo, que é desligado do inconsciente pessoal e totalmente
universal. É nele que se encontram os arquétipos ou imagens primordiais,
“sedimentos de experiências constantemente revividas pela humanidade”
(JUNG, 2014, p. 81). Ou seja, enquanto o inconsciente coletivo traz essas
estruturas primordiais e universais que são os arquétipos, o inconsciente
pessoal cabe mais ao âmbito de vivências e experiências individuais.
A palavra persona vem do teatro, sendo o termo que denominava
originalmente as máscaras que os atores utilizavam. Simplificando, a persona
é a imagem que construímos para nos relacionar com os outros. Ela se faz
necessária para estabelecer e manter relações com os demais. É uma
construção psicológica e social adotada para um fim específico, relacionando-
se com o desempenho de papéis na sociedade. Ela possui características
próprias da pessoa, mas não deve ser confundida com sua essência pois,
como o nome sugere, é uma máscara, uma fachada, um tipo de postura que
assumimos para com os outros. Idealmente, ela deve ser flexível e se adaptar
a diferentes situações e necessidades:
É um complexo funcional cuja tarefa consiste tanto em esconder quanto em revelar os
pensamentos e sentimentos conscientes de um indivíduo aos outros. [...] A sombra, um
complexo funcional complementar, é uma espécie de contra-pessoa. [...] pode ser pensada como
uma subpersonalidade que quer o que a persona não permitirá. (STEIN, 2006, p. 101)

Assim, “somos feitos de muitas atitudes e orientações potencialmente


divergentes, e estas podem facilmente cair em oposição recíproca e criar
conflitos” (STEIN, 2006, p. 97), como é o caso do eixo sombra-persona. De
um lado, está a persona, que é a imagem construída e expressa para o social,
enquanto em seu outro polo existe a sombra. Ambas são segmentos da psique
coletiva, mas a persona está mais atrelada com o consciente e o exterior, ao
passo que a sombra está mais ligada com o inconsciente e o interior do
sujeito. Enquanto a persona é a imagem que se quer demonstrar, a sombra é o
que se oculta, ou mesmo as características da personalidade que estão pouco
desenvolvidas.
Não obstante, a sombra consiste em omissões, atos impulsivos ou
inadvertidos. Jung afirma que “antes se de ter tempo para pensar, irrompe a
observação maldosa, comete-se a má ação, a decisão errada é tomada, e
confrontamo-nos com uma situação que não tencionávamos criar
conscientemente” (JUNG et al., 2008, p. 223). Como consequência, a sombra
está muito mais sujeita a contágios coletivos do que a personalidade
consciente, sendo mais suscetível a influências.
O homem que está só, por exemplo, encontra-se relativamente bem; assim que vê “os outros”
comportarem-se de maneira primitiva e maldosa, começa a ter medo de o considerarem tolo se
não fizer o mesmo. Entrega-se então a impulsos que na verdade não lhe pertencem. (JUNG et
al., 2008, p. 223)

Retomando à questão da balança, à medida que a persona fica mais rígida,


a sombra se amplia, dado que os conteúdos do interior da pessoa não são
trabalhados e ela veste uma máscara da qual não se desfaz. O sujeito se
convence de que é a máscara, ou seja, acredita que é a imagem que criou. A
balança que tende em demasia para um lado pode sofrer uma súbita inversão
ou permanecer estagnada em um dos lados. Vale lembrar que o conflito de
opostos é necessário; no entanto, é importante se buscar um equilíbrio – do
contrário, o resultado por ser sofrimento ao próprio sujeito, o que veremos
expresso na trajetória de Shoya.
Primário: a persona de palhaço
Desde o começo da história, Shoya é tido como uma criança arteira e um
tanto quanto inquieta, pois adora fazer traquinagens e brincadeiras com seus
amigos, mas também é bem enturmado com o grupo e chama a atenção dos
demais. A vida dele começa a mudar quando Shoko entra em sua sala. No
começo, todos tentam aceitá-la e se adaptar às suas necessidades – ajudando-
a nas lições e comunicando-se com ela por meio de seu caderno, por
exemplo. Entretanto, com o passar do tempo, a classe e o professor
responsável começam a se incomodar com as alterações na rotina e no ritmo
de aula. Shoya, então, acaba sendo o porta-voz desse incômodo e passa a
fazer ataques contra Shoko, que vira alvo de seu bullying e da hostilidade da
turma.
Frequentemente, o alvo de bullying é o aluno que é considerado
“esquisito” ou diferente; a vítima normalmente também é tímida, passiva e
pode ter dificuldade para se defender (VIEIRA, 2010). Shoko tem uma
atitude passiva e muitas vezes pede desculpas, mesmo quando são os colegas
que a agridem – mais adiante na história, descobrimos que Shoko
compreende essas ações como naturais e sente que a culpa é sua por
acontecerem.
Shoya percebe o desconforto da sala, em especial dos amigos mais
próximos e, inclusive, do seu professor. Isso soma-se ao incômodo próprio,
que ele relata na narrativa, pois não sabia como se relacionar ou como
classificar sua relação com Shoko. Ele logo percebe que quando importuna
Shoko ou faz brincadeiras com ela tem como recompensa o riso dos demais e
atitudes de aprovação. Muitos colegas da sala riem, e logo ele vira o palhaço
da turma, aliviando-a do suposto “peso” que consideram ser Shoko.
Dessa maneira, é possível dizer que Shoya incorpora uma persona de
palhaço, sendo a classe e seus colegas sua plateia. A persona forma a
identidade psicossocial do indivíduo, sendo também resultado da nossa
adaptação aos meios físicos e sociais (STEIN, 2006). Assim, quando Shoya
vê que seu comportamento é reforçado por seus colegas, sua “máscara” de
palhaço arteiro que não pensa nas consequências só “enrijece” – ou seja, ele
pende para apenas um lado da balança, e seus receios e sua habilidade de
comunicação e empatia acabam ficando escondidos e encobertos em sua
sombra esquecida.
Além do papel do palhaço, ele também incorpora o papel do agressor,
intimidando Shoko de maneira proativa. Ainda que muitas vezes seu
comportamento seja repreendido pelo professor, este também expressa em
sua fala e em suas ações que considera tais “provocações” compreensíveis,
também vendo Shoko como um fardo. É importante explicitar esses papéis e
uma compreensão da lógica de grupo que se institui. Shoya possui, sem
dúvida, traços de seu próprio caráter e um desconforto para com a menina.
Não obstante, eles apenas vêm à tona com tanta força pois há aprovação e
colaboração do grupo. Podemos inferir que Shoya também sofre o contágio
da sombra dos demais e de seus sentimentos de condenação em relação a
Shoko, sendo ele aquele que os personifica de maneira mais intensa e os
expressa.
Em sua persona, ele passa a ser uma pessoa que importuna a outra para o
prazer dos demais, que agride o outro pelo alívio cômico e não mede as
consequências de seus atos. Em sua sombra pessoal, ele coloca tudo o que
não quer ver e que não está desenvolvido, como a intenção de se comunicar e
tentar entender Shoko. Shoya projeta em Shoko uma menina irritante, que
incomoda a todos e que não percebe o quanto atrapalha o andamento da
turma – é irônico pensar que aquilo que projetamos no outro também diz
respeito a percepções ou defeitos que estão em nossa própria sombra, que
muitas vezes temos dificuldade em perceber ou admitir. Esse mesmo
incômodo que ele demonstra ter para com Shoko depois se volta para o
próprio Shoya.
A sombra é inconsciente, não é experimentada diretamente pelo ego, mas
projetada nos outros. Para que isso aconteça, é necessário que a pessoa em
que está sendo projetado o conteúdo apresente um “gancho” (ou hook, em
inglês) para projeção (STEIN, 2006). Em sua sombra, Shoya também é uma
pessoa que atrapalha o andamento da turma com suas brincadeiras e muitas
vezes deixa o professor irritado, ainda que ele não perceba ou ignore isso. O
fato de ele se identificar, em alguma instância, com Shoko permite que essa
projeção seja feita. Nesse momento da narrativa ainda não é explicitado,
porém, mais adiante na história, tanto Shoya como Shoko relatam ter
aspectos muito parecidos e que se identificam um com o outro.
O complexo do bode expiatório
A vida de Shoya e seu papel de agressor e palhaço têm uma grande virada
quando surge o ultimato. A mãe da menina percebe o abuso que a filha vinha
sofrendo, e finalmente a escola toma uma atitude. Quando a turma é
questionada sobre a origem do bullying com Shoko, Shoya logo é apontado
como culpado, não tendo o direito de se manifestar por conta própria. É
importante notar esse fato, pois o modo como ele é colocado em foco
também demonstra um afastamento dos colegas e do professor, que não
conseguem reconhecer seus próprios erros e suas próprias sombras. Ele,
então, passa a ser o bode expiatório da turma, dado que o termo pode ser
utilizado para representar pessoas que são responsabilizadas por algum delito
ou mal provocado. O complexo do bode expiatório está associado com a
negação da sombra, pois ele recebe a projeção das sombras dos demais que,
por não estarem de acordo com seu ego ideal – ou seja, aquilo que idealizam
de si –, não aceitam ou reconhecem a própria sombra (PERERA, 1991).
Todos da sala projetaram aquilo que não queriam aceitar em si e, no
momento que são questionados, parece mais simples colocar o erro em um
outro alguém – no caso, em Shoya.
Quando um bode expiatório é identificado, é gerado nos acusadores um
sentimento de inculpabilidade, pois eles ficam isentos de qualquer
responsabilidade (PERERA, 1991). Os alunos passam, então, a hostilizar e a
isolar Shoya e não enxergam isso como algo errado, pois acreditam que ele
merece ser tratado daquele jeito pelo que fez, afinal a culpa seria toda dele.
No entanto, o real motivo de suas ações é o fato de que eles se sentem traídos
por terem suas falhas apontadas e não aceitam que também tiveram sua
parcela de responsabilidade. Nesse sentido, é interessante se pensar que o
significado original da palavra “vítima” vem do termo em latim victima,
relacionado a sacrifício (COWAN, 1994). Assim, Shoya também passa a ser
uma vítima, dado que é um sacrifício do grupo, escolhido para suportar o
sofrimento como punição por seus atos.
No começo, Shoya não entende como os amigos e colegas que riam de
suas brincadeiras e sempre estavam ao seu lado de repente se voltam contra
ele e começam a atormentá-lo. Porém, com o tempo, ele passa a acreditar no
que os demais dizem sobre si e que precisa sofrer. Nas palavras do
personagem, “Os pecados que eu cometi no passado se viraram contra mim.
Aprendi uma lição: que eu devo carregar esses pecados e ser punido por eles.
E assim... eu me isolei” (KOE no Katachi, 2016).
As pessoas identificadas com o arquétipo do bode expiatório “habituam-se
a dar crédito às avaliações coletivas, múltiplas e cambiantes” (PERERA,
1991, p. 52); esses indivíduos não confiam na validez de suas percepções de
fatos, sentimentos, ideias ou palpites. Podemos ver tal fenômeno nas atitudes
de Shoya, especialmente no modo como ele se resigna a esse novo lugar
quando há o salto de cinco anos na história.
Colegial: isolamento e reparação
No colegial, temos um Shoya completamente diferente. Seus traços
originais e suas características pessoais foram quase totalmente apagados em
função de um novo papel que lhe foi imposto e aceito por ele. É comum para
quem se identifica com o complexo do bode expiatório ter problemas de se
vincular e de se sentir acolhido (PERERA, 1991), o que se mostra no
personagem mesmo depois de ele mudar de classe, uma vez que não quer
fazer amizades e se mantém alheio. Ele enxerga todos com um X no rosto,
uma maneira muito emblemática de como Shoya não vê perspectivas em suas
interações e em seus possíveis relacionamentos. Isso também pode ser
interpretado como um de seus mecanismos de defesa e autopunição.
A persona é alheia ao ego, ou seja, não é por si só o indivíduo, mas uma
parte dele que forma a sua identidade psicossocial (STEIN, 2006). Nesse
novo contexto, a “máscara” de Shoya teve de se adaptar ao novo ambiente
físico e social para que ele pudesse continuar a seguir com sua rotina. A
persona do menino palhaço que fazia brincadeiras na sala não existe mais. O
que existe agora é a persona de um adolescente quieto que não precisa da
amizade de ninguém e que gosta de se isolar – ainda que, durante a narrativa,
o próprio personagem conte que escolheu se isolar para tentar acreditar que
não estava isolado. Essa nova persona se faz necessária por julgar que deve
“compensar” o papel anteriormente assumido por ele.
Essa nova máscara está tão enrijecida nele que apenas quando começa a se
relacionar com Shoko e a tentar reparar seus erros é que percebe que os
amigos são importantes e necessários em sua vida, e que ele sentia falta deles.
Assim, quando assume esse novo papel de maneira a se autopunir, deixa
oculto em sua sombra seu desejo de ter novas relações e voltar a ser o Shoya
mais descontraído – desejo e características que apenas aparecem quando ele
vai se desfazendo de seu novo papel. Retomando o viés da balança e de seus
polos, apenas quando Shoya experimenta ambos os extremos – tendo
invertido de maneira muito brusca e quase fatal – é que, aos poucos, ele
consegue ir chegando a um equilíbrio.
É interessante pensar que esse momento de reparação começa com uma
perspectiva de fim. Shoya inicialmente encontra-se muito polarizado, vivendo
apenas em função dos outros e das dívidas que tinha com sua mãe e com
Shoko. A primeira delas diz respeito a devolver o dinheiro de sua mãe, que
havia pagado os aparelhos auditivos quebrados por ele. A segunda seria
devolver o caderno que Shoko utilizara para tentar se comunicar com a classe
e que ele havia jogado na fonte da escola, recuperando-o depois. Ao ir se
encontrar com Shoko, ele tem o intuito de devolver o caderno e pedir
desculpas; em seguida, ele planeja dar fim à sua existência, na qual não vê
valor. Entretanto, após encontrar a jovem, que fica chocada com sua presença
e com o fato de ele ter aprendido a língua de sinais para se comunicar com
ela, Shoya acaba por não se desculpar, mas pergunta, em vez disso, se ela
gostaria de se tornar sua amiga. Para sua surpresa, Shoko aceita.
Essa sequência de fatos é muito simbólica, pois sua mãe e Shoko são
figuras que se revelam muito importantes para Shoya, e ele deseja compensá-
las pelas atitudes que tivera. As duas são aquelas que estimulam sentimentos
de cuidado, seja para com o outro, seja para si próprio. Ambas também
trazem à tona características vinculadas a quem Shoya realmente é, para além
de máscaras, papéis e expectativas dos outros. Tanto a mãe de Shoya quanto
Shoko sempre buscaram enxergá-lo pelo o que ele “realmente é” e resgatar
seus pontos positivos. Logo nos primeiros capítulos/cenas de Shoya no
colegial, sua mãe faz com que ele prometa que não irá tentar se suicidar
novamente, e Shoko lhe dá uma nova chance ao se tornar sua amiga. Assim,
essas personagens permitem que ele tenha um recomeço e uma nova chance,
ocasionando a alteração do estado em que ele se encontrava até dado
momento. As duas oferecem uma possibilidade diferente do que ele havia
esperado para si.
A partir de seu reencontro com Shoko, temos mais informações sobre
como ele havia vivido até então e o modo como ele se fechou para as demais
relações, explicitado de maneira gráfica pelos X marcados sobre os rostos das
pessoas que cruzam seu caminho. A amizade com Shoko permite uma nova
abertura a ele, que acaba criando novos vínculos: primeiro com um colega de
sala chamado Nagatsuka e, a partir de sua convivência com Shoko, com a
irmã dela, Yuzuru. Há a tentativa de remediar o que causou a Shoko, que ele
expressa no sentimento de querer “devolver aquilo que tirou dela”, nas
palavras do próprio personagem. Assim, ele busca refazer as relações que
Shoko demonstra interesse em reatar. No processo, ele mesmo passa a rever
suas relações e a se relacionar com os demais. Assim como, querendo cuidar
dela, passa a cuidar de si e dar espaço para outras pessoas.
Mais adiante na história, há uma retomada do complexo do bode
expiatório, evidente na cena em que sua colega de classe, Kawai, novamente
acusa Shoya em público de suas ações contra Shoko. Eis que conteúdos de
sua sombra não desenvolvidos – como a dificuldade de se expressar e se
comunicar e uma postura mais introspectiva – tomam conta de si.
Novamente, ele se fecha e torna a assumir uma persona de alguém que não
merece contato com os outros, que deve se afastar e que deve ser punido –
algo que faz acontecer na cena seguinte, em que, quando os membros de seu
grupo se encontram na ponte habitual, Shoya rebate a todos os comentários e
afasta os amigos. Ele retoma sua postura inicial, fechada para com os outros,
vivendo apenas em função de Shoko e não dando atenção aos próprios
sentimentos.
Mais uma vez, a balança sofre uma inversão, com Shoya se enrijecendo em
sua persona e deixando várias questões e vários incômodos ocultos em sua
sombra, sem se haver com ela. Esse momento é bem ilustrado em suas férias
de verão, que passam a ser apenas em função de Shoko; nesse momento, ele
usa uma máscara que obviamente não lhe cai bem, fingindo que não se
importa com o ocorrido e que estava tudo certo.
Ele continua em sua saga na esperança de fazer com que Shoko goste de si,
o que pode soar um tanto quanto irônico, dado que ambos têm uma posição
muito similar: os dois acreditam que não têm valor. Aqui, podemos
interpretar o ocorrido também como uma projeção da sombra. A tentativa de
Shoya de fazer com que Shoko goste de si também tem uma projeção sua, do
fato de não se cuidar nem ter amor próprio. Por isso, estar cuidando de Shoko
é o que desencadeia o cuidado consigo, e o inverso também é válido. Isso é
explicitado no caso de Shoko quando ela sobrevive à tentativa de suicídio e,
enquanto Shoya está em coma, ela busca reparar o que julgou que estragara.
Eis que, quando Shoya acorda e se encontra com Shoko na ponte, ele
finalmente pede desculpas, e ela retribui o pedido. Shoya, então, pede a ela
que o ajude a viver, e os dois se comprometem a seguirem juntos.
Nesse sentido, o fato de Shoya se machucar ao proteger Shoko quando a
jovem tenta se suicidar também é muito simbólico. Esse é o momento em que
vemos, especialmente no diálogo que ocorre enquanto ele cai, o personagem
retomando parte de seus conteúdos da sombra. Em outras palavras, ele
percebe boa parte daquilo de que estava fugindo, ignorando ou evitando e se
dá conta do que é realmente seu e do que estava escondido até então.
A parte final da história revela Shoya tentando se aceitar e se haver melhor
com sua sombra e seus conteúdos. Ele também tenta enfrentar seus medos e
enxergar as pessoas para além de suas preconcepções e receios. Aqui,
podemos inferir que ele tenta se desfazer de sua persona anterior e criar uma
nova, que tenha agora mais coerência consigo e que seja mais equilibrada.
Tenho certeza que do outro lado dessa porta… o meu passado doloroso está esperando por mim.
Porém, essa não é a única coisa. Há também possibilidades. E essas são portas que posso abrir a
qualquer momento, enquanto eu estiver vivo. (Shoya Ishida em OIMA, 2015, tradução livre)
Considerações finais
No presente capítulo, tentamos compilar de maneira breve e didática
alguns momentos importantes da vida do personagem Shoya Ishida e como
eles se refletiram em sua construção psíquica. Nossa intenção foi dar ao leitor
uma possibilidade de compreensão, como uma aproximação com conceitos
da psicologia com enfoque em sombra, persona e complexo do bode
expiatório. Aqui pudemos explorar um pouco dos movimentos
acompanhados dos papéis que Shoya assumiu, bem como a importância e os
impactos de seus conteúdos ocultos.
Assim, em uma retomada, vimos como Shoya passou por identificações
como palhaço, agressor, sofredor, cuidador e diversas mais, que contribuíram
para que ele pudesse se apropriar melhor de si e de seus relacionamentos.
Ademais, também demonstrou o quanto ambos os lados da balança – nesse
caso, a dualidade de sombra e persona – são importantes de serem cultivados.
Eles dizem respeito a como agimos com relação a nós e aos demais e fazem
parte de nossa constituição.
Por fim, sabemos que a obra é muito mais complexa que o apresentado
neste texto e que nos traz diversos temas para discussão. Esperamos ter
conseguido oferecer algum insight em parte dele ou, ao menos, cumprir o que
aqui foi proposto.
Referências
COWAN, L. C. A Vítima. In: DOWNING, C. (org.). Espelhos do self: as imagens arquetípicas que
moldam sua vida. São Paulo: Cultrix, 1994, p. 144 – 150.
JUNG, C. G. Psicologia do inconsciente. Obras Completas, v. 7/1. São Paulo: Vozes, 2014.
JUNG, C. G. et al. O homem e seus símbolos. São Paulo: Nova Fronteira, 2008.
KOE no Katachi. Direção: Naoko Yamada. Kyoto, Japão: Kyoto Animation, 2016. Disponível em:
https://www.netflix.com/br-en/title/80223226. Acesso em: 15 jan. 2021.
OIMA, Y. A Silent Voice. v. 7. Tradução LECROY, S. Nova York: Kodansha USA, 2015.
PERERA, S. B. O complexo de bode expiatório. São Paulo: Cultrix, 1991.
STEIN, M. Jung: o mapa da alma. São Paulo: Cultrix, 2006.
VIEIRA, M. B. Timidez e exclusão-inclusão escolar: um estudo sobre identidade. Orientadora: Prof.ª
Dr.ª Mitsuko Aparecida Makino Antunes. 2010. 192 f. Dissertação (Mestrado em Educação:
Psicologia da Educação) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010.
Disponível em: https://tede2.pucsp.br/handle/handle/15973. Acesso em: 21. jul. 2020.
Notas
1 Graduada em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), participou
do segundo volume de Mangás, animes e a psicologia. E-mail para contato:
anabarbara.mello@gmail.com.

2 Graduada em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), participou
do primeiro volume de Mangás, animes e a psicologia. E-mail para contato:
psi.anneaguemi@gmail.com.
Puella Magi Madoka Magica: recapitulação
junguiana
Roxane Pirro 1

“Neste país, mulheres quase adultas são chamadas de


garotas, certo? Nesse caso, faz sentido que vocês,
que um dia se tornarão bruxas, sejam chamadas
de garotas mágicas.”
Kyubey, episódio 8
A história

O adolescente
ANIMEP M M
UELLA AGI M
ADOKA AGICA COMEÇA DENTRO DE UM SONHO DA
de 14 anos, Madoka Kaname, em que ela vê uma garota de
cabelos longos lutando contra algo que parecia um monstro; Madoka se vê
muito preocupada com essa menina. No dia seguinte, essa garota do sonho,
chamada Homura Akemi, se muda para a sala de Madoka na escola,
demonstrando um ar enigmático e misterioso principalmente com ela,
deixando Madoka incomodada com a situação e sem entender os motivos na
nova colega.
No mesmo dia, em um passeio durante a tarde com sua amiga, Sayaka
Miki, Madoka ouve uma voz pedindo socorro. Buscando de onde a voz
vinha, ela se depara com Kyubey, uma espécie de gato branco de olhos
vermelhos, todo machucado. Homura, então, se identifica como responsável
por quase matar o animal, sem demonstrar remorso, e pede para se afastar
dele. Enquanto tenta fugir para salvá-lo, Madoka e sua amiga se encontram,
repentinamente, dentro de uma espécie de universo paralelo com monstros e
objetos estranhos que tentam atacá-las. As garotas são salvas e trazidas de
volta ao mundo normal por Mami Tomoe, que logo descobrem ser uma
garota mágica.
Kyubey explica para Madoka e Sayaka que existem bruxas, criaturas
nascidas a partir de maldições que se escondem dentro dos labirintos que
criam. O universo paralelo estranho onde as garotas foram parar antes era o
labirinto de uma dessas bruxas. Por se esconderem, essas criaturas são
invisíveis aos olhos comuns dos humanos, o que as torna ainda mais
perigosas. Ele diz também que essas bruxas são responsáveis por várias
catástrofes na Terra que não têm explicação, como terremotos, tsunamis,
suicídios e assassinatos. O ambiente criado pelas bruxas também pode gerar
ansiedade, raiva e ira sem explicação para os humanos, levando-os a fazer
coisas anormais.
Kyubey é uma criatura capaz de realizar qualquer desejo, não importa quão
impossível ou milagroso seja. Ele se oferece para realizar um desejo de uma
garota e, em troca, ela deve exercer o papel de garota mágica: enfrentar as
bruxas, arriscando sua vida para matá-las e recebendo, para isso, poderes
mágicos e habilidades de luta. Quando uma menina se torna uma garota
mágica, é criada uma Joia da Alma, objeto bonito e brilhante que ela utiliza
para obter seu poder e lutar contra a maldição das bruxas.
Kyubey oferece para Madoka e Sayaka a oportunidade de realizar qualquer
desejo que quisessem em troca do favor de enfrentar as bruxas. Indecisas, as
meninas não fazem nenhum desejo num primeiro momento, buscando saber
mais sobre as bruxas antes. Então, Mami as leva para caçar essas criaturas,
para poderem saber se existe algum desejo tão importante que valha a pena o
sacrifício de ser uma garota mágica. Entretanto, Homura continua aparecendo
e intervindo, demonstrando cada vez mais um ar misterioso. Assim, faz com
que Madoka não confie em suas atitudes, tendo um certo medo de se
relacionar com a colega enigmática. Embora não entenda qual o seu papel em
toda essa história de garotas mágicas, Madoka não consegue negar que tem
uma conexão com Homura, algo que não consegue entender nem explicar até
que a história se desenrole mais.
Ao longo do anime, acompanhamos principalmente Madoka em sua
jornada para tomar a decisão de fazer ou não um pedido a Kyubey. Durante
sua trajetória, conhece também Kyoko Sakura, outra garota mágica que terá
papel importante em sua decisão.
As bruxas como constelações de complexos
No começo da história, Mami tenta mostrar para Madoka e Sayaka como
lutar contra bruxas, como é o interior delas e por que os labirintos que criam
podem ser perigosos. As bruxas podem se tornar cada vez mais poderosas
com o passar do tempo, então combatê-las é uma tarefa diária que as garotas
fazem logo depois da escola.
Apesar de as garotas acompanharem a caça às bruxas com Mami e
contarem com as explicações de Kyubey, após um acontecimento tenebroso
com Sayaka, Madoka descobre do jeito mais cruel que essas explicações
eram meramente superficiais.
Sayaka se encontrava em um momento de dúvida, uma vez que Kyosuke
Kamijo, o menino que mais amava, havia sofrido um acidente e não podia
mais tocar violino. Pensando que isso poderia fazer bem para os dois e no
quanto o amava, ela deseja que ele volte a tocar e, por um momento, fica feliz
e satisfeita. No entanto, esse momento de alegria não dura, já que as
próximas cenas são de angústia e fragilidade para a personagem.
Ela se corrói de tristeza por esse menino: pensa que, agora que é uma
garota mágica, jamais vai poder ficar com ele romanticamente. Sayaka
acredita que não vai mais poder ser uma garota normal e junta a essa tristeza
os ciúmes que sente em relação a ele e sua amiga de sala, pensando que ela
talvez seria um par melhor para ele do que si mesma. Esse ressentimento e
esse ódio crescem dentro de Sayaka a ponto de consumi-la, literalmente. É a
partir daí que Madoka e suas amigas entendem a verdadeira realidade do que
são as bruxas: a angústia consome Sayaka, fazendo com que sua Joia da
Alma, antes brilhante, se torne completamente negra; os sentimentos
negativos consomem a garota a ponto de fazê-la se expandir até virar uma
bruxa muito poderosa. O poder dessa bruxa vem, principalmente, do
sofrimento liberado de forma irracional.
O interior de Sayaka é, como em todas as outras bruxas, um labirinto
paradoxal, mas demonstra por meio de objetos específicos sua dor e seu
sofrimento. Isso nos faz voltar para as bruxas mostradas anteriormente na
história e pensar que os objetos mostrados em seus interiores também são
dotados de sentido lógico, não sendo apenas monstros estranhos jogados no
ar.
Voltando ao labirinto de Sayaka, nele são mostrados vitrais com suas
lembranças, pôsteres de concertos, notas musicais e instrumentos voando e
uma orquestra sendo regida por um maestro, dando a impressão de que
aquele ambiente seria o palco e a plateia do espetáculo que estava sendo
regido. A Sayaka em forma de bruxa também aparece nessa visão, dando a
impressão de estar regendo a orquestra com sua espada. Todas essas figuras
estão ilustrando simbolicamente aquilo com que ela não era capaz de entrar
em contato. Para a psicologia junguiana, essa passagem é congruente com a
teoria de constelações de complexos.
Complexos são aglomerados de conteúdos inconscientes presentes em
todos nós. Jung (2011) diz que complexos possuem uma imagem arquetípica
central e alta carga emocional. Quando não integrados à consciência, podem
atuar de forma autônoma sobre o indivíduo. Vivências como traumas e
conflitos podem gerar novos conteúdos que agregam e potencializam a força
de atuação desses complexos.
Para ilustrar esse conceito, podemos falar do complexo materno. Além de
termos imagens coletivas do que é ser mãe, temos também uma percepção
subjetiva e pessoal sobre essa figura, que vai depender de eventos da vida de
cada um. Ao passar por diferentes situações, novos conteúdos de diferentes
graus emocionais vão se agregando e podem passar a entrar em ação de
diferentes maneiras dentro de nós. A partir desses eventos e assimilações, é
possível mudar nossa percepção e nossa personalidade, além de podermos
agir de diferentes modos em situações que dizem respeito a esse complexo. O
mesmo pode acontecer em relação a outros inúmeros complexos, como o
paterno, do amor etc.
Quando falamos dessa energia vinculada ao complexo que vêm à tona
quando ativado, podemos falar também dos nossos “demônios interiores”,
aspectos que não integramos à nossa consciência e se tornam compulsões
irracionais que podem fazer “o que quiserem” conosco (STEIN, 2009).
Quando um complexo é estimulado, há a constelação dele, segundo Jung
(2011). Uma situação exterior pode desencadear uma aglomeração de
processos psíquicos, situação na qual vários processos psíquicos associados
àquela situação ou àquele trauma se unem e se integram de maneira
automática. Essas experiências são associadas, e os complexos “mudam de
curso” a partir dessa nova situação, podendo provocar reações perturbadas na
consciência. Quando o complexo é constelado, a pessoa sofre uma perda de
controle de si mesma, podendo agir de modo mais irracional. Assim, segundo
Stein (2009),
a pessoa é ameaçada com a perda de controle sobre suas emoções e, em certa medida, também
sobre o seu comportamento. Ela reage irracionalmente. [...] Quando constelada, é como se a
pessoa estivesse em poder de um demônio, uma força muito superior à sua vontade. Isso gera
um sentimento de impotência. (p. 47)

Voltando à situação do anime, essa questão pode ser vista de uma maneira
pitoresca durante a situação de tornar-se bruxa e pelo modo como é visto o
interior desses seres.
Sayaka passou por diversos momentos em que assimilou situações
traumáticas e negativas com relação a si mesma e a diversos complexos
importantes no seu dia a dia, desencadeando uma série de sentimentos ruins e
pensamentos que não conseguia afastar. Todas essas assimilações negativas
foram se aglutinando nos seus complexos, que explodiram depois de certo
momento e, em palavras junguianas, se constelaram, tornando-a uma bruxa.
Todos os objetos mostrados em seu labirinto eram uma forma de demonstrar
todos os conteúdos com que a garota não conseguia lidar, sendo uma
representação simbólica dela mesma.
Portanto, podemos dizer que, ao longo dos momentos em que as garotas
mágicas estão vivendo suas vidas normalmente e matando bruxas, elas
também estão entrando em contato com diversos complexos durante suas
rotinas, complexos esses que podem ter carga emocional grande ou pequena.
Por terem uma Joia da Alma, é mais fácil ver o processo de aglutinação dos
complexos e sua constelação de maneira exacerbada, que é retratada por meio
das bruxas e de como elas se portam.
Ainda de acordo com Stein (2009), os efeitos da constelação de um
complexo podem permanecer durante longos períodos de tempo, mesmo
depois de o estímulo não ser mais concreto. Isso pode ser retratado no
momento em que Kyoko e Madoka entram na bruxa de Sayaka, tentando
ajudar a amiga com seus sentimentos, chamando-a e dizendo que as coisas
serão resolvidas e tudo ficará bem. A bruxa, entretanto, não parecer dar
ouvidos às amigas. Ela ainda estava sob efeito da constelação de complexo,
portanto perdera totalmente o controle de si mesma e de sua consciência. Por
isso, faz sentido que as duas meninas não tenham sido capazes de salvá-la,
bem como o fato de que Sayaka e outras bruxas podem permanecer durante
longos períodos na forma de bruxa, amaldiçoando outras pessoas.
Ainda nessa discussão, é interessante falar sobre a importância da Joia da
Alma e da Semente do Rancor durante a trajetória do anime. A Joia da Alma,
como já mencionado, é dada a uma garota mágica depois de ela ter feito um
contrato com Kyubey. Trata-se de uma joia brilhante que as garotas carregam
consigo para conseguirem se transformar para a batalha. A Semente do
Rancor é um outro tipo de joia, que só é obtida depois de matar uma bruxa.
Quando morrem, todas as bruxas soltam uma semente, que é o prêmio das
garotas por terem feito seu trabalho. Com ela, conseguem “limpar” a joia da
alma: Kyubey explica que, conforme forem usando mais magia, a joia da
alma vai se corrompendo e ficando negra. Essa parte impura é repassada para
a semente, fazendo com que a joia se torne pura de novo, permitindo que a
garota mágica use quanta magia quiser novamente. Por isso, essas sementes
são muito disputadas pelas garotas, e é normal que estas briguem entre si para
derrotar a bruxa.
Mais adiante na história, descobrimos outros detalhes a respeito dessa
dinâmica que nos fazem pensar em algumas simbologias por trás dela.
Kyubey conta para Madoka o motivo que o leva a fazer um pacto com as
garotas mágicas: sua intenção é gerar energia para seu povo e manter o
“equilíbrio no universo”; ele explica para a garota o conceito de entropia
física e como a energia se perde quando há uma mudança de forma. De
acordo com sua explicação, a energia presente no universo diminuiria,
incluindo a do povo de Kyubey. Eles encontraram nos humanos seres capazes
de sentir emoções, que são convertidas em energias puras. Como esse povo
não é capaz de sentir emoções, passaram a utilizar os humanos e seus
sentimentos como forma de obtenção de energia para o universo.
Kyubey é um incubador e transforma as Sementes do Rancor das bruxas
em energia, o que nos faz entender que a parte preta presente na semente
seriam emoções puras e aglutinadas dentro de um recipiente, originadas da
própria garota mágica. O mesmo vale para a Joia da Alma, que se corrompe
com energia preta e precisa ser purificada, pois também seria a representação
de emoções.
Ao acumular muitas emoções não purificadas e mal resolvidas dentro da
joia, os complexos são estimulados de maneira negativa e podem ser
constelados.
Kyubey: o lobo em pele de cordeiro
Apesar de ser retratado no começo do anime como um gatinho inocente,
que apenas quer realizar desejos das garotas, Kyubey acaba mostrando ser
bem mais que isso – tanto que os motivos pelos quais faz as coisas acabam
por ser uma surpresa para o telespectador. Há inúmeras funções de Kyubey
no anime, mas uma das principais é ser um facilitador para as garotas
mágicas entrarem em contato com seu conteúdo interno e seus complexos,
uma vez que ele dá a elas a Joia da Alma, ferramenta utilizada para isso.
Madoka fica preocupada com Sayaka pelo modo como a amiga está agindo
e como está enfrentando descuidadamente seu novo trabalho como garota
mágica. Em um ato impulsivo, ela joga fora a Joia da Alma de Sayaka,
fazendo com que o objeto caia acidentalmente em cima de um carro e seja
levado para longe. Nesse momento, o corpo de Sayaka também cai,
totalmente sem vida. Madoka não entende o motivo para que aquilo tivesse
acontecido com sua amiga, e Kyubey explica que a alma das garotas agora
estava dentro de suas respectivas Joias da Alma, daí o nome do objeto. Isso
quer dizer que Sayaka era um corpo vazio, um mero objeto para poder lutar,
enquanto sua alma estava vinculada à joia, podendo ser corrompida enquanto
seu corpo já estava morto.
Ao descobrirem isso, as meninas se voltam contra Kyubey, alegando que
ele as havia enganado, já que não explicara todos os termos e tudo o que
aconteceria com elas ao se transformarem em garotas mágicas.
Essa passagem nos remete à fábula popular de Esopo, Lobo em pele de
cordeiro, originada a partir de um verso bíblico que traz um alerta para
termos cautela com falsos profetas, que são lobos disfarçados de ovelhas
(BÍBLIA, Mateus, 7, 15-16). De acordo com o conto, o lobo em questão se
disfarça como suas presas para se aproximar delas e suprir seus motivos
egoístas.
A princípio, Kyubey surge como um gato inocente, que quer realizar os
desejos das meninas pedindo um favor simples em troca. Entretanto, ele
mostra ser bem mais complexo que isso, já que não revela que as garotas
mágicas precisariam ter morrido em algum lugar do mundo, tendo suas Joias
da Alma corrompidas, para que pudessem lutar contra bruxas.
Em uma conversa com ele, Madoka diz que isso não está certo e que
Kyubey deveria ser inimigo dos humanos, por prepará-los para morrer desse
jeito, sem sequer avisar. Ele, então, rebate afirmando que não entende as
relações humanas e seus valores morais, pois aquilo que estava fazendo era
um nobre sacrifício para guardar energia e salvar as formas de vida do
universo. Entretanto, nota-se que ele também age em benefício próprio, assim
como o lobo, já que não contara previamente o que aconteceria com as
garotas mágicas. Kyubey chega a dizer que as meninas sempre têm a mesma
reação quando ele revela a verdade, o que justificaria sua omissão para com
os fatos. Portanto, diferentemente do lobo, Kyubey não selaria o contrato
com as meninas visando o mal, por ser um vilão, mas porque não entende
emoções, característica inerente de seu povo.
Os sacrifícios
No decorrer da história do anime, podemos ver várias trajetórias que
carregam em si diversos sacrifícios, uma vez que são retratados atos heroicos
realizados pelas garotas para um bem maior.
O mito do herói exemplifica a jornada de desenvolvimento do ego, meio
pelo qual vai adquirir consciência e alcançar certa autonomia. Ele pode ser
exemplificado pelas quatro protagonistas principais do anime, que
representam diferentes etapas do desenvolvimento, de acordo com os quatro
ciclos do herói de Henderson (1964). Assim, levaremos em consideração os
seguintes pares:

1. Trickster – Kyoko
2. Hare – Sayaka
3. Red Horn – Homura
4. Twins – Madoka

Trickster é o primeiro tipo de herói, portanto corresponde ao primeiro ciclo


de vida, mais primitivo. É dominado por suas próprias vontades, sendo cínico
e cruel. Luta apenas para satisfazer desejos pessoais, assim como Kyoko age
no começo do anime, tentando persuadir Sayaka a lutar apenas por si mesma,
e não para salvar os humanos comuns. Tudo o que não agradava Kyoko a
irritava facilmente, e sua resposta imediata era lutar contra isso, fazendo com
que fosse possível identificá-la com a personalidade de Trickster. Apesar de
todas as suas características, o Trickster pode amadurecer e se transformar,
sendo capaz até de demonstrar outras atitudes ou aparências. Esse
amadurecimento pode ser relacionado ao sacrifício de Kyoko quando esta
morre com a bruxa de Sayaka, por não querer deixá-la sozinha nesse
momento difícil, demonstrando ter desenvolvido certa responsabilidade
afetiva para com a amiga, algo diferente de tudo que havia demonstrado até
então.
Hare é o segundo tipo de herói, que representa a próxima etapa do
processo de desenvolvimento, com mais avanços positivos que o Trickster.
Hare é o tipo de herói mais civilizado, responsável. É frágil, mas possui
poder de combate, sacrificando-se para ter uma evolução. Essa descrição tem
muito a ver com a personalidade de Sayaka depois de virar uma garota
mágica, pois a menina sente, então, que tem a obrigação de salvar as pessoas
e matar as bruxas, sem se tirar proveito de nada que poderia receber a partir
disso. Ela se sacrificou por Kyosuke e tirou como aprendizado disso que
poderia lutar pelos humanos, mostrando um desenvolvimento em sua
personalidade. Ela também mostra ter muita fragilidade, principalmente com
relação ao amor e ao menino que ama, mas consegue achar forças para
continuar lutando pelo que acredita até que seus complexos sejam
constelados.
Sayaka precisa derrotar os impulsos primitivos e cruéis do Trickster para
consolidar sua identificação como Hare, algo ilustrado principalmente nos
momentos de embate ideológico entre as duas heroínas.
Red Horn é o terceiro ciclo do herói, aquele que vence difíceis provas e
derrota tudo o que vem pelo seu caminho. Possui um incrível poder e vence
os inimigos pela astúcia ou pela força. No anime, pode ser ilustrado
principalmente por Homura, graças a sua perseverança e sua força emocional
em voltar no tempo diversas vezes, aprendendo com seus erros para tentar
salvar Madoka novamente. Em cada linha do tempo à qual retorna, derrota as
bruxas de maneira mais esperta e rápida por aprimorar suas habilidades e
ficar mais forte. Além disso, não desiste de seu objetivo de salvar a vida da
melhor amiga e sacrifica a continuidade de sua própria vida nesse intento.
Twins são os irmãos gêmeos chamados Flesh e Stump, nascidos do Sol;
juntos, são considerados uma só pessoa no ventre materno, mas são separados
ao nascer. Entretanto, são integrantes complementares um do outro, sendo
representações dos dois lados da natureza humana: por um lado, Flesh é
conciliador, sem iniciativas, por vezes sendo retratado como introvertido; por
outro lado, temos Stump, dinâmico, cuja ação é capaz de realizar grandes
feitos, extrovertido. Apesar de parecer algo difícil, é necessário reuni-los para
que aconteça a integração da natureza humana. Esses heróis mataram todos
os monstros do céu e da terra, tornando-se invencíveis por um longo tempo,
mas, ao ultrapassar os limites do que era possível, é tido como “merecido”
que sejam mortos; assim, acabam morrendo.
Essa passagem remete muito à jornada de Madoka e a seu papel no anime.
Até o último episódio, a personagem é retratada como frágil, introvertida,
sem iniciativas, indecisa. Por vezes, era a ponte conciliadora durante as brigas
das garotas mágicas. Esses momentos se relacionam ao irmão Flesh. No
último episódio, depois de ver todo o sofrimento que as garotas mágicas
sentiram desde o começo e de descobrir todos os sacrifícios que Homura
fizera por ela, Madoka deseja livrar todas as garotas mágicas que já existiram
e que viriam a existir do sofrimento de virarem bruxas. Ela se torna, assim,
uma deusa em nível universal, pegando todo o sofrimento de todas as linhas
temporais das garotas mágicas e o integrando em si mesma. Ela diz que
aguentará o fardo do sofrimento delas para que possam morrer em paz. Capaz
de feitos incríveis, essa versão divina de Madoka se relaciona ao irmão
Stump, ilustrando também seu sacrifício por um bem maior.
Em todos os ciclos citados, há o tema do sacrifício do herói, representado
principalmente por sua morte em prol de um bem maior. Isso é um símbolo
heroico muito presente no anime como um todo, enquanto há o aprendizado
de que, ao se fazer uma escolha, outras centenas de possibilidades são
sacrificadas, e é assim que o ego vai se fortalecendo e se estruturando ao
longo dessa jornada.
Ao final da história, Madoka deixa de existir no mundo natural. Sua
família e seus amigos, incluindo Kyubey, não lembram de sua existência.
Homura é a única que se recorda de seu sacrifício e que sabe por que as
garotas mágicas simplesmente desaparecem depois de sua joia se tornar
completamente negra. Nesse mundo criado por Madoka, nasce um novo tipo
de distorção, que servirá de energia para Kyubey: os fantasmas, que, quando
mortos, soltam uma espécie de cápsula, que servirá ao mesmo propósito que
a Semente do Rancor. Nesse novo mundo, Madoka continuará salvando todas
as garotas mágicas, até o fim.
Referências
BÍBLIA, N. T. Mateus, Capítulo 7, Versículo 15-16. In BÍBLIA. Português. Bíblia Católica, [S. l.: s.
n.], [20--]. Disponível em: https://www.bibliacatolica.com.br/biblia-ave-maria/sao-mateus/7/. Acesso
em: 28 nov. 2017.
HENDERSON, J. L. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1964.
JUNG, C. G. A natureza da psique. 8. ed. Petrópolis: Vozes, 2011.
STEIN, M. O mapa da alma: uma introdução. São Paulo, Cultrix, 2009.
Notas
1 Graduada em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). E-mail para
contato: roxanepirro@gmail.com.
O luto em Tengen Toppa Gurren Lagann
Marcos Polcino 1

TOPPA GURREN LAGANN É UM ANIME DE 2007 DA PRODUTORA

T
ENGEN
Gainax, escrito por Kazuki Nakashima e ilustrado por Kotaro Mori. A
temática central desse anime é, assim como tantos outros shonen, a
capacidade de superação. A tradução de seu título seria algo próximo de
“Ultrapassando os céus com Gurren-Lagann”, sendo que Gurren e Lagann
são os nomes dos robôs dos protagonistas. Entre os diversos obstáculos que
os personagens, em especial o protagonista, devem superar para prosseguir
com sua aventura e com seu desenvolvimento está a perda de entes queridos.
A temática da morte e da vida já é apresentada logo nos primeiros episódios.
O foco aqui será justamente os processos de luto que encontramos no enredo.
Para tratar desse tema, iremos nos referir a eventos que ocorrerão do primeiro
ao último episódio da série animada.
Já na apresentação dos protagonistas, Simon e Kamina, somos informados
de que eles são órfãos. Kamina foi abandonado pelo pai, que o deixou para
poder explorar o mundo. As limitações iniciais desses personagens estão
relacionadas ao viver em uma vila subterrânea, onde não se acredita na
existência do céu e onde os órfãos são cuidados pelo chefe da vila apenas por
obrigação, além de serem marginalizados. Simon trabalha escavando novas
áreas para a expansão e por isso é exaltado pelo chefe, mas considerado sujo
e excluído pelos demais conterrâneos. Kamina é um sonhador que busca sair
da vila para procurar seu pai e voltar a ver o céu, por isso é desprezado por
todos, além de ser considerado uma má influência pelo chefe.
Enquanto Kamina precisa lidar com o abandono e o desejo de reencontrar
seu pai, Simon deve lidar com o trauma de ter presenciado a morte de seus
pais por soterramento durante um terremoto. Não há nenhuma menção à mãe
de Kamina, apenas é dito que ele é órfão. Nesse cenário, Kamina, o mais
velho, adota Simon como seu “irmão de alma”, e este idolatra seu aniki
(“irmão mais velho”, em tradução livre). Isso significa que quando os
encontramos, os personagens já possuem um histórico de perdas e um
vínculo entre si que os ajudou a seguir em frente e a suportar essas perdas.
Mais adiante no anime, descobrimos um dos pontos de fortalecimento desse
vínculo: esses dois protagonistas passaram por uma situação de soterramento,
momento em que a capacidade de escavação de Simon os salvou, mas foi a
perseverança e o otimismo de Kamina que o mantiveram motivado e
confiante.
O luto de Simon é apresentado quando este passa por uma situação que se
assemelha aos episódios de estresse pós-traumático. Durante um tremor, ele
se recorda do soterramento em que seus pais faleceram e fica paralisado e
sofrendo visivelmente, além de temer pela repetição do evento, colocando-se
em estado de alerta.
As marcas características do transtorno de estresse pós-traumático são as lembranças
autorizadas do acontecimento traumático, lembranças essas tão vívidas que a pessoa tem a
impressão de estar passando pelo trauma repetidamente. Ocorrem durante o dia, e, à noite, se
assemelham a pesadelos. São tão dolorosas que a pessoa faz de tudo para evitar qualquer coisa
que possa provocá-las, mas sente como se tivesse esperando pela próxima tragédia, sobressalta-
se por qualquer motivo e está sempre em estado de alerta. (PARKES, 1998, p. 4)

Parkes (2009) afirma que todos os lutos são traumáticos, mas há alguns
tipos de perda que geram um efeito, como trauma, mais acentuado. Em geral,
essas perdas são mortes relacionadas à violência, súbitas e múltiplas. O autor
também diferencia trauma e luto, sendo que o primeiro seria um impacto,
enquanto o segundo seria uma elaboração.
Além das consequências do trauma, também são visíveis em Simon os
impactos, destacados por Parkes (2009), resultantes da perda dos pais na
infância somada à ausência de um ambiente seguro e acolhedor para a
elaboração do luto infantil, como a falta de autoconfiança. A princípio, seu
luto não é devidamente acolhido socialmente, tendo em vista sua exclusão
social e o posicionamento de seu chefe, que demonstra desgosto em cuidar
dos órfãos. Por outro lado, podemos entender que Simon foi acolhido e
protegido por Kamina. Apesar de já ter desenvolvido alguns efeitos de um
possível luto complicado, esses comportamentos são contornáveis devido à
presença desse protetor.
Outro ponto relevante na personalidade de Simon que condiz com essa
visão de seu luto traumático é seu estado sempre alerta. Esse estado é
percebido em mais de uma situação em que outros personagens estão em
apuros e Simon percebe isso prontamente e age, algumas vezes antes até que
os outros entendam a situação. Parkes (1998) aponta que pessoas enlutadas
ficam em estado de vigia elevado na maior parte do tempo, parecendo estar
em pânico. Esse pânico aparente é extremamente perceptível em Simon na
primeira etapa do anime.
Quando pensamos no luto de Kamina, é importante destacar que, apesar de
estar distante de seu pai, ele ainda tem a expectativa reencontrá-lo,
vivenciando uma ambiguidade semelhante à daqueles próximos a pessoas
desaparecidas, sem uma definição.
No segundo episódio, essa ambiguidade é resolvida, e o luto pode ser
elaborado. Kamina encontra o corpo de seu falecido pai enterrado próximo à
saída de sua vila subterrânea. Diante dessa possibilidade de elaboração do
luto, esse protagonista se permite chorar e sofrer por sua perda, fazer uma
pequena cerimônia fúnebre e enterrar seu pai. Nesse momento, ele passa a
saber a resposta para a dúvida a respeito do paradeiro seu pai e pode seguir
em frente, mudando seu objetivo de encontrar seu pai para explorar a
superfície e ter a liberdade que seu pai almejara.
A saída dos protagonistas de sua vila subterrânea, que se dá no primeiro
episódio, é consequência de uma batalha com um robô gigante que vem da
superfície, destruindo o teto da área central da vila. Nesse ponto, é possível
notar a contraposição entre Kamina e Simon: o primeiro busca enfrentar e
lidar com os desafios, enquanto o segundo teme, acima de tudo, perder
aqueles que são importantes para si e prefere fugir sempre que possível. Esse
posicionamento é compatível com o estresse pós-traumático, descrito
anteriormente, e com sua falta de confiança.
O avanço e o desenvolvimento de Simon ocorrem, a princípio, pela
insistência e pelo apoio de Kamina e pela perspectiva de que lutando e
avançando ele poderia proteger aqueles que ficaram para trás. Em seguida, a
motivação de Simon passa a estar relacionada à possibilidade de equilibrar os
impulsos de Kamina e protegê-lo, uma vez que eles lutam juntos. Kamina
tem um sonho e uma sede por liberdade que o fazem lutar e querer continuar,
enquanto Simon se prende a essa relação fundamental para sua autoestima,
sua autoconfiança e sua capacidade de relação com o mundo. Essa dinâmica
se mantém quase até o final da primeira etapa da história.
Nessa etapa do enredo, outros personagens vão sendo incluídos, e um
grupo vai se formando, tendo como principal objetivo lutar contra os
homens-fera que monopolizam a superfície, aprisionando os humanos em
vilas subterrâneas. Essa luta pela liberdade é o sonho fundamental de
Kamina, o que inspira esses personagens e faz dele indiscutivelmente líder do
grupo. A primeira a entrar nesse grupo é Yoko, uma garota da superfície que
os encontra ainda na vila subterrânea e os acompanha desde então. Junto dela
surge Boota, um porco-toupeira que passa a ser mascote do time e,
especialmente, animal de estimação de Simon.
Com o avançar da história, o grupo cresce, recebe outros robôs além de
Gurren e Lagann, e o verdadeiro inimigo que estão enfrentando é revelado:
trata-se do Rei Espiral, que rege todos os homens-fera junto de seus quatro
grandes generais. É marcada, então, a primeira grande batalha. O grupo dos
protagonistas, a Brigada Gurren, se prepara para tentar conquistar a fortaleza
móvel de um desses generais.
Nesse ponto da trama, Simon se descobre apaixonado por Yoko, e esta, por
sua vez, se percebe apaixonada por Kamina. Na noite anterior à batalha,
Simon segue Yoko e a vê se declarar para Kamina, que a beija. Essa
perturbação emocional intensa afeta não apenas a relação de Simon com
Kamina, mas também sua capacidade de concentração e combate. Essa
confusão mental e emocional se torna ainda mais explícita no anime pelo fato
de que os robôs nele apresentados são controlados e alimentados pelas
emoções de seus pilotos.
O planejamento de batalha do grupo depende inteiramente da capacidade
do Lagann, robô pilotado por Simon, de se conectar e controlar outros robôs.
Já que Simon estava emocionalmente confuso, mesmo tendo conseguido se
conectar à base móvel inimiga, ele se mostra incapaz de tomar o controle
dessa outra máquina. Diante dessa situação, Kamina vai até Simon e o
acalma, voltando a assegurá-lo não apenas do quanto confia em sua
capacidade, mas também da profundidade do vínculo entre eles.
Ao voltar para Gurren, seu robô, Kamina é atingido por um golpe fatal. O
grupo vence a batalha, mas perde seu líder.
A ambivalência de amor e ódio que Simon sentia por Kamina no momento
de sua morte é um fator fundamental para entendermos a magnitude que
alguns aspectos de seu luto alcançam. O amor nutrido ao longo de todo o
convívio entre os personagens é momentaneamente abalado pelo ódio
provindo da competição pelo afeto de Yoko. Perante esse conflito, Simon
tenta se convencer de que essa situação não diz respeito a ele, como um modo
de manter intacto dentro de si o vínculo entre ele seu aniki. O fato de esse
conflito ter sido, até certo ponto, o que proporcionou as circunstâncias da
morte de Kamina intensificam ainda mais o conflito interno de Simon.
A culpa presente nesse luto é um dos fatores que podem levar a um
processo de luto complicado e que demandam uma elaboração. Outro fator a
ser considerado é a alteração de sentimentos em relação àquele que faleceu:
alterações entre amor, saudades e sentimentos positivos, por um lado, e ódio,
raiva e sentimentos negativos, por outro. Esses sentimentos opostos podem
vir de uma situação vivenciada antes da morte ou em decorrência da própria
morte, como é o caso do sentimento de raiva por ter sido deixado para trás.
Uma forma de expressão desses sentimentos ambivalentes é a exteriorização
da destrutividade, podendo esta estar voltada aos outros ou a si mesmo.
Logo no episódio seguinte, o grupo se mostra extremamente abatido, e
ninguém consegue falar sobre o ocorrido. Há um clima tenso que paira sobre
a base recém-conquistada. Simon se torna extremamente violento, tanto com
inimigos quanto com seus aliados, e recluso. Ele se sente e se declara mais de
uma vez como culpado pelo que ocorrera, além de se sentir responsável por
ocupar o vazio deixado por Kamina, no sentido de se tornar um grande
combatente capaz de liderar o grupo nas batalhas que virão.
Parkes (2009) indica que pessoas com histórico de relacionamentos
semelhantes ao de Simon têm a tendência de se tornarem superprotetoras
diante de uma situação de luto. Esse comportamento já estava incipiente no
personagem desde o luto por seus pais, mas se potencializa perante esse novo
processo. Outro ponto desse mesmo processo são os sentimentos de raiva e
revolta, direcionados tanto para o próprio enlutado como para aqueles à sua
volta, fator que retroalimenta o isolamento (PARKES, 1998).
O sentimento de culpa, mesmo que incoerente em relação aos eventos que
levaram à morte, é um comum em pessoas enlutadas. No caso de Simon, isso
é intensificado por aqueles ao seu redor, que reafirmam essa culpa. A falta de
confiança do personagem no grupo, especialmente durante as batalhas,
também reflete a falta de confiança que enlutados tendem a desenvolver em
ambientes pouco acolhedores (PARKES, 1998, 2009).
Envolto nesse processo complicado de luto, Simon interrompe o processo
de construção de sua autoestima e de sua autoconfiança, voltando à sua
insegurança inicial e passando a se expressar por meio de explosões de
emoções intensas. Essas emoções o fazem flutuar entre a ilusória necessidade
de onipotência e a sensação de impotência completa. Simon, não apenas
passa a focar todas as suas ações e atitudes na vontade de ser igual ao seu
falecido aniki como fica fixo na imagem de Kamina, passando seus dias
fazendo diversas estátuas do falecido amigo. Essa fixação absoluta, a ponto
de se fechar para o mundo exterior, termina por nos apresentar esse quadro de
luto complicado.
A fixação na imagem de Kamina é outro sinal do luto pesquisado por
Parkes (1998), que se refere a imagens que são vistas por pacientes enlutados
como lembranças vívidas. Essa tendência de Simon diante de suas perdas já
se fazia visível em relação à perda dos pais, mas se torna mais intensa com a
morte de Kamina.
Essa atitude completamente focada na perda também impedia que qualquer
pessoa do grupo fosse capaz de chegar até Simon. Esse era um fator que o
mantinha isolado, mas o luto de todos os integrantes do grupo era outro fator
que mantinha essa barreira. Além da desconfiança e do isolamento de Simon,
havia também o luto e a desconfiança de outros membros enlutados do grupo,
como Yoko. Nesse momento, tanto Simon quanto Yoko se mostram
solitários, mesmo em meio ao grupo; esse tipo de solidão pode ser um
resultado do processo de luto, sendo indiferente para a sensação de solidão se
a pessoa enlutada vive só ou acompanhada (PARKES, 2009).
O que permitiu uma saída dessa situação que estava se retroalimentando
foi a chegada de um elemento novo ao grupo. Esse elemento foi a
personagem Nia. Quando Simon a encontra, ela se apresenta como alguém
sem nenhum conhecimento sobre o mundo, algo que o cativa. A primeira
reação do protagonista é representar Kamina para ela, recusando-se a fugir de
um conflito, mesmo que fosse uma situação impossível de ser vencida. Ele
entende que devia estar pronto para morrer por seu ideal e pela proteção
daqueles à sua volta, e esse padrão se rompe quando Nia o puxa para fugir
junto com ela, para que ambos se salvassem. Esse pequeno gesto começa a
quebrar o ciclo de luto de Simon, tirando seu foco da perda e o voltando à
vida, ao novo e à restauração. Nia representa esse polo de renovação não
apenas para o protagonista, mas para todo o grupo, que se fascina com a
presença nova e encantadora que passeia pela base.
Nia, por estar isenta do processo de luto do grupo, se constitui como uma
interlocutora ideal para que Simon possa conversar sobre Kamina e sobre seu
luto. Ela, como interlocutora, passa a desempenhar um papel semelhante ao
que Kamina desempenhava para Simon em relação à morte de seus pais.
Kovács (2010) aponta como em situações de famílias e grupos enlutados há
uma dificuldade de se abordar o tema da morte com crianças, o que dificulta
seu processo, levando-as à sensação de desamparo e, possivelmente,
abandono.
Outra atitude de Nia que é decisiva para a transformação do processo de
luto de Simon é reconhecê-lo como indivíduo autônomo, alguém que é mais
que o luto que está vivendo e que é mais que o “irmão de alma” de Kamina.
Nia diz que ele é ele e que não precisa, e nem deveria tentar, ser outra pessoa.
Essa ideia é, a princípio, recusada por Simon, mas já abre caminho para que
Yoko possa trazer à tona a história do soterramento que Kamina e Simon
viveram, dessa vez pelo ponto de vista de Kamina. Nessa versão da história,
Kamina admite que só conseguiu se manter otimista e animado pelo apoio
que a presença de Simon lhe proporcionava.
Após receber essa informação e a validação sobre o vínculo que havia
entre eles, Simon passa a se utilizar de uma frase e de uma pose típicos de
Kamina. Essa frase era a que ele lhe dizia nos momentos de dificuldade. Ao
fazer isso, Simon aceita a influência que Kamina teve sobre si e a importância
dessa influência, mas declara para si e para os outros que a lição importante a
se aprender com aquela atitude era a de seguir sempre em frente. A partir
desse ponto na narrativa, a memória de Kamina passa a estar sempre
presente, mas de forma positiva. Esse processo se assemelha ao descrito por
Silva (2011), segundo o qual
O enlutado deveria, amparado pelo logos e instrumentado pela memória, deslocar-se da morte e
da perda e voltar-se para a vida. Para tanto, é necessário uma dinâmica sutil entre lembrar e
esquecer, na qual, porém, corre-se o risco de intensificar ainda mais a dor. (p. 717)

No caso de Simon, podemos identificar claramente uma relação entre o


processo de ressignificação da perda e as mudanças no modo de se lembrar
de Kamina. Em um primeiro momento, ele tem o desejo de substituir seu
aniki, assumindo as características dele e lembrando-se dele por sua ausência.
Depois, após desistir de ser como Kamina, Simon passa a se lembrar do
amigo com saudade e se recusa a ver a possibilidade de um futuro positivo
sem ele. Finalmente, Simon passa a se lembrar de Kamina como uma figura
importante em sua formação e toma suas memórias como inspirações para
continuar a trilhar o caminho que iniciaram juntos.
Até agora, mantivemos o foco no luto de Simon e, em termos gerais, do
grupo como um todo, mas também há o luto de Yoko. Seu luto não é
manifestado: ela se recusa a falar a respeito disso, não se permite demonstrar
sua tristeza e se fixa na promessa de Kamina de que voltaria a beijá-la, de que
lhe daria cem vezes mais do afeto que recebera logo antes de sua última
batalha.
Ao contrário de Simon e do grupo, Yoko não aceita Nia como um polo de
restauração e um novo vínculo. Há problemas de relação entre as
personagens desde o começo. É possível entender que, para Yoko, o fascínio
do grupo em relação a Nia foi visto como uma substituição de Kamina, e por
isso essa nova figura não pôde ser aceita.
A fixação no polo da perda faz com que o desfecho desse luto complicado
de Yoko seja muito diferente do luto de Simon. Yoko nunca teve dificuldade
em continuar com seus deveres e desempenhar seu papel no grupo, mas, uma
vez que a guerra contra o Rei Espiral termina, ela opta por se isolar, indo para
uma ilha distante; então, muda de nome e se dedica a ser professora.
O tema do luto volta a ser presente no enredo nos últimos episódios do
anime, quando Simon e o grupo vão lutar contra os seres antiespiral. Nessa
parte do arco, explica-se a origem do poder que permitiu que a Brigada
Gurren fosse vitoriosa em sua revolução. A explicação está relacionada ao
chamado “poder espiral”, próprio das criaturas capazes de evoluir; o termo se
relaciona à espiral do DNA, à capacidade de adaptação e superação de
obstáculos e à perseverança diante da adversidade. Na luta final, Simon
declara que a verdadeira espiral, que permite toda essa capacidade de evoluir
e seguir em frente, é formada por todos aqueles que vieram antes de nós, os
entes queridos que perdemos e que nos permitiram chegar onde estamos; e
também por aqueles que virão depois, nos quais depositamos nossas
esperanças e os quais queremos levar para além de onde conseguimos chegar.
Ao contrário do senso comum, que afirma que o tempo cura todos os males, Freud supõe um
trabalho psíquico no luto: é necessário pronunciar interiormente a morte do que se foi. Assim,
muito distinto de um esquecimento passivo, o luto é um esforço que exige lembrar para
esquecer [...]. (SILVA, 2011, p. 712)

Ao final do anime, Simon só consegue seguir em frente se conhecendo e se


reafirmando diante da influência que Kamina teve em sua vida. Apesar da dor
que essa perda trouxe a ele, foi a partir dessa relação e desse processo de
elaboração de luto que Simon pôde se desenvolver e vencer os obstáculos que
surgiram diante de si.
Terminada a aventura e vencidos os obstáculos, Simon e Nia se casam,
mesmo sabendo que ela faleceria pouco depois. Isso, além da realização da
importância de sua relação com Kamina e do processo de luto envolvido,
mostra como o protagonista percebeu o valor de se abrir para novos
relacionamentos, mesmo que estes possam lhe causar dor ao final. Simon
vence, além de seus inimigos, receios e medos que o acompanhavam desde a
infância, desenvolvendo-se e amadurecendo apesar das dificuldades.
Tengen Toppa Gurren Lagann é um anime que aparenta uma certa
superficialidade, mas, como pudemos perceber neste capítulo, apresenta
temáticas importantes e profundas, como o luto. Em seu roteiro, os
antagonistas não são meramente maus, mesmo que a princípio pareçam ser;
na verdade, eles possuem motivações positivas, mas optam por caminhos
distintos. Os protagonistas dessa história cometem erros, se arrependem e se
redimem. Sua complexidade, balanceada com a ação e o humor, permite uma
visão sobre dificuldades da vida e do amadurecimento.
Referências
KOVÁCKS, A. M. Morte e desenvolvimento humano. São Paulo: Casa do psicólogo, 2010.
PARKES, C. M. Amor e perda: as raízes do luto e suas complicações. São Paulo: Summus, 2009.
PARKES, C. M. Luto: estudo sobre a perda na vida adulta. São Paulo: Summus, 1998.
SILVA, P. J. C. Lembrar para esquecer: a memória da dor no luto e na consolação. Rev. Latinoam.
Psicopatol. Fundam., São Paulo, v. 14, n. 4, p. 711-720, 2011.
Notas
1 Mestre em Psicologia Clínica pelo no Núcleo de Estudos Junguianos da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP) e graduado em Psicologia pela mesma instituição. E-mail para
contato: mdpolcino@gmail.com.
Meu amigo Totoro: 1 um convite ao estudo da
psique infantil
Cristiana Rohrs Lembo 2

A desafio que Hayao Miyazaki se propôs em seu longa-metragem. FMeu


PERCEPÇÃO DAS SUTILEZAS DO MUNDO INFANTIL NÃO É TAREFA FÁCIL OI ESSE O

amigo Totoro (Tonari no Totoro, 1988) e cumpriu com muita sensibilidade.


Por isso, seu filme será analisado neste capítulo à luz da psicologia analítica.
As protagonistas são Satsuki, que aparenta ter em torno de 7 anos de idade,
e Mei, que somos informados ter 4 anos. Junto de seu pai, as meninas
começam sua jornada em uma nova casa que, de nova, tem pouco: é velha,
escura e até assombrada. A mudança foi realizada para que a família pudesse
morar perto da mãe, internada em um hospital com uma doença que não nos é
esclarecida pelo enredo.
A exploração das meninas na casa é divertida de acompanhar: com muita
curiosidade, exploram os cômodos. Mei está sempre escondida atrás de sua
irmã mais velha, o modelo feminino mais importante durante a ausência de
sua mãe. Percebemos o quanto Mei se espelha e investiga as posições e
atitudes da irmã, buscando copiá-las.
É importante refletirmos a respeito da função da mãe no desenvolvimento
infantil. Segundo a psicologia analítica, todo ser humano nasce com a aptidão
de poder experimentar o que é e o que faz uma figura materna. Esta recebe
um papel importante na maturação egoica de seu filho, ensinando-o, aos
poucos, a ser independente e a tornar-se si mesmo (JACOBY, 2007).
Diferentes teóricos comentaram sobre essa relação. Melanie Klein aponta
que partes do corpo da mãe – como o seio – são os primeiros objetos
significativos para uma criança e a primeira forma de conhecer o mundo.
Neumann teoriza que é pela mãe que a criança experimenta o mundo, já que é
ela quem nutre e mantém a vida do filho. Por fim, Winnicott relata que a mãe
tem função dupla para a criança: a de objeto e a de ambiente. A primeira
função representaria o “objeto” que satisfaz as necessidades urgentes de vida
da criança, como a alimentação. A segunda diz respeito ao pano de fundo em
que a criança se insere, pois ela é quem o carrega e transporta, bem como
quem lhe transmite segurança (JACOBY, 2007).
Toda criança precisa vivenciar o vínculo materno, mesmo que a pessoa que
for desempenhá-lo não seja necessariamente sua mãe biológica. É o que
vemos na relação de Mei e Satsuki.
O confronto interessante no começo desse filme é com a fuligem,
pequenos bichinhos pretos que aparecem nos cômodos mais escuros e se
dissipam com a claridade. Sabemos que são fuligens porque a nova vizinha
das meninas, uma senhora a quem elas chamarão carinhosamente de Vovó,
ensina sobre as criaturinhas às meninas e comenta que apenas crianças
conseguem enxergá-las. Além da fuligem, as meninas encontram na casa
pequenas sementes, outro simbolismo interessante que o longa nos propõe.
Durante a exploração, as meninas procuram segurança em seu pai, que as
acalma. O papel do pai é importante no desenvolvimento do filme, uma vez
que é ele quem mostra para as meninas como enfrentar seus medos e ter
esperança de que conseguirão transformar a casa em um lar.
O bebê depende muito das atitudes de seus progenitores, tanto para
sobreviver – já que ainda não consegue cuidar de si mesmo sozinho – quanto
para a maturação de seu ego. São os pais que demonstrarão se o ambiente em
que se vive é um lugar agradável ou hostil, dependendo do modo que cuidam
de seu filho e atendem às suas necessidades (FORDHAM, 1969).
Nesse filme, o modelo do pai, que transmite serenidade e paz, ajuda as
meninas a terem a segurança de que necessitam nesse novo momento de suas
vidas. Jacoby (2010) escreve que o pai auxilia na promoção do
desenvolvimento propondo atividades interessantes e brincadeiras mais
energéticas. Assim, as recreações que os pais oferecem a seus filhos os
estimulam a ter um raciocínio mais ágil e a correr riscos. O pai, então,
promoveria atividades de maior desafio e exploração, sendo a própria
brincadeira e, posteriormente, o sucesso dela, formas de gratificação. É
importante ressaltar que, para Jacoby, não podemos generalizar, apesar de
esse ser um comportamento paterno comumente observado em prática clínica
(2010).
A percepção de Jacoby é correta se analisarmos o pai de Mei e Satsuki: ele
brinca com as meninas, incentivando que estas explorem o espaço físico da
casa, apoia as brincadeiras da caçula no jardim e até incentiva as irmãs a
rirem para enfrentar os próprios medos. Todas as brincadeiras são formas de
explorar a independência e a criatividade das meninas.
À luz de uma visão clássica da psicologia analítica, poderíamos entender
que quando as meninas começam a viver essa tensão entre o bom e o mau, o
conhecido e o desconhecido, a segurança e o medo, suas psiques estão sobre
a regência do Arquétipo Masculino ou Paterno, uma vez que sua principal
função é justamente essa divisão entre opostos do que outrora foi uma
totalidade (NEUMANN, 1994).
A diferenciação entre a luz e a sombra pode muito bem ser expressa entre
as castanhas e as fuligens encontradas na casa, respectivamente. Ali, há
novos frutos a serem colhidos, mas há também uma escuridão de lugar
abandonado, que já guardou outras histórias, outras dores. É interessante a
sensibilidade das meninas em perceber tanto a escuridão quanto a claridade e
a maneira como essa descoberta se torna lúdica: é uma busca, ainda que
receosa, por novas experiências. E, como bem define a Vovó, “apenas
crianças veem as fuligens”.
Poderíamos apontar esse aspecto lúdico como uma das atividades mais
importantes da infância. A criança deve explorar o mundo e a si mesma, o
espaço e seus potencias, transformando seus pensamentos e sentimentos de
mundo interno em algo representado no mundo externo, concreto. Por si só, a
brincadeira é um símbolo, uma vez que a criança coloca sua impressão no
ambiente e a ele reage (FORDHAM, 1969).
A fuligem pode representar a sombra, e as sementes, a luz. O fato de esta
surgir daquela também encontra ecos na teoria junguiana. Somente
trabalhando os potenciais esquecidos (ou reprimidos) em nossa sombra, é que
poderemos colher os frutos de uma personalidade mais inteira. É dentro da
maior escuridão que encontramos os nossos maiores tesouros (JOHNSON,
1991).
“Sombra” é o termo que utilizamos para representar o nosso inconsciente
pessoal, a parte que não foi desenvolvida de nossa personalidade ou que foi
por nós negligenciada. É nela que residem nossos traumas e nossos
complexos, o conglomerado de vivências e emoções que podem ou não ter
um residual traumático. Ao trabalharmos esse conteúdo e integrá-lo à nossa
consciência, conseguimos utilizar toda a energia lá reprimida em nosso favor
(JUNG, 2012).
A casa é colocada em ordem e a nova vida da família se inicia. Satsuki, por
ser mais velha, já frequenta a escola. Mei fica em casa com seu pai,
brincando de “ser Satsuki”, usando seu chapéu e sua bolsa. Enquanto brinca
no jardim, Mei nota mais algumas castanhas e procura descobrir de onde elas
vêm. É aí que se depara com um ser estranho, mas amigável, branco e
pequenino, com duas orelhas, lembrando um coelho. Mei se surpreende
quando percebe que ele desaparece.
Mei insiste em segui-lo, pois o bichinho ressurge após alguns instantes. Ela
descobre, então, que existe mais outro bicho, parecido com o branco, mas um
pouco maior. Ela corre atrás dos dois, no meio da floresta, e cai em um
buraco que a leva para o coração da mata. É ali que ela conhecerá Totoro.
Totoro é o mesmo animal que ela conhecera no jardim de casa, mas dessa
vez muito maior, de pelo cinza com o peito bege. Mei logo fica curiosa e
começa a mexer em seu rosto e brincar com seu rabo. Por fim, aconchega-se
em seu pelo. Totoro acorda e lhe conta seu nome. Depois disso, os dois tiram
um longo cochilo.
Totoro é descrito como um espírito da floresta que vive em uma árvore de
cânfora. A pronúncia de Mei de seu nome seria uma fala errônea: a menina
teria, na verdade, tentando dizer troll. Apesar de Totoro ser uma criação de
Miyazaki, podemos então perceber tal referência folclórica (MCCARTHY,
2002).
Os Totoros – no plural já que, além do clássico cinza grandalhão, vemos
também alguns de seus amigos pequeninos – teriam habilidades como
invisibilidade e extrema sensibilidade, podendo ser bastante empáticos. Além
disso, são seres educados, pois retribuem com gestos educados àqueles que os
tratam bem (MCCARTHY, 2002).
Não sabemos ao certo se Totoro é um ser que existe ou produto da fantasia
das meninas. O que sabemos é que a criança tem uma tendência a criar
amigos imaginários e histórias fantásticas. A capacidade de fantasiar e
imaginar circunstâncias ou seres que não apresentam realidade concreta
estaria ligada à função simbólica: “Com essa capacidade [da função
simbólica], o pensar se liberta das suas amarras de estar limitado somente à
percepção concreta e abre caminho para a fantasia livre, que é independente
da realidade literal e pode até mesmo se encontrar em oposição a ela”
(JACOBY, 2010, p. 108).
Mei só será encontrada mais tarde, por seu pai e Satsuki, quando a irmã
volta da escola. Contudo, Totoro não estará lá, muito menos a orla em que
ambos se conheceram. O pai das crianças resolve a situação contando para
elas que se tratava de um espírito da floresta. Satsuki fica ansiosa para um dia
conhecê-lo também.
Um dia, a chuva os visita, e as meninas ficam encarregadas de buscar o pai
no ponto de ônibus com um guarda-chuva. A chuva, segundo Chevalier e
Gheerbrandt (1996), pode ser entendida como símbolo de fertilidade, uma
vez que fertiliza e nutre o solo. Isso poderia apontar, aqui, o início positivo da
relação entre Satsuki e Totoro.
O ônibus demora a passar e, enquanto aguardam, Mei fica com sono e
acaba dormindo apoiada na irmã. Satsuki espera e, subitamente, um
companheiro chega a seu lado: Totoro. A princípio, a menina parece ficar
assustada, mas logo percebe que ele está se molhando e oferece o guarda-
chuva extra para ele. Totoro estranha inicialmente o barulho da chuva
batendo na sua proteção, mas logo fica entretido. Como forma de
agradecimento, presenteia as meninas com mais sementes e
castanhas. Percebemos que, além de ser uma relação frutífera, o laço entre
Totoro e Satsuki é algo digno de sua proteção. Isso se evidencia pelo presente
dado e pelo guarda-chuva oferecido.
O ônibus de Totoro chega primeiro: trata-se de uma criatura que parece um
gato com muitas patas e olhos-lanternas que iluminam o caminho. Mais
adiante neste capítulo, um comentário sobre isso será feito.
Chega, então, o pai das meninas, e os três retornam à casa. As garotas logo
tratam de plantar as sementes com que Totoro lhes presenteara, torcendo para
que uma pequena floresta cresça no jardim. Isso, contudo, demora a
acontecer.
Certa noite, Totoro as visita – não podemos dizer se é uma fantasia vivida
ou sonhada. Nesse momento, as meninas, Totoro e seus dois amigos realizam
um ritual para que as plantas cresçam. Depois disso, voam juntos pelo campo.
Na manhã seguinte, as irmãs constatam que, de fato, as plantinhas
floresceram.
Voar é ação que simboliza a necessidade de se estar acima de um conflito,
sublimá-lo, vê-lo por alto para, então, refletir e integrar seu significado
(CHEVALIER; GHEERBRANDT, 1996). Apesar das dúvidas vividas pelas
meninas, quando estão junto de Totoro conseguem fugir dos dilemas do
cotidiano e enxergar esperanças.
Nesse momento do filme, o quadro da mãe piora, e suas filhas ficam
nervosas. Satsuki pede à vizinha para usar o telefone e liga para o pai, com o
objetivo de avisá-lo que receberam uma notificação do hospital. Esse é o
primeiro momento em que começamos a ver o nervosismo e o medo de
Satsuki, antes controlados por ela ou acalmados pelo pai. Também prova
disso é a discussão que tem com a irmãzinha, deixando a pequena Mei
sentida e aflita. Os papéis aqui se invertem: a irmã mais velha torna-se a
criança assustada, e a irmã mais nova sustentará o papel de heroína.
A pequena Mei resolve levar um milho que colhera no jardim da Vovó
para sua mãe, crendo que um bom legume poderia trazer a sua saúde de volta.
Contudo, Mei acaba se perdendo e deixando todo o vilarejo preocupado.
Satsuki se arrepende de ter discutido com sua irmã e agora assume
novamente o papel de heroína que precisa resgatar a parte menos
desenvolvida da relação. Aqui, Satsuki se lembra de Totoro e decide recorrer
à sua ajuda. Totoro chama o ônibus-gato e Satsuki entra nele, partindo em
busca da irmã.
O livro O gato: um conto da redenção feminina (VON FRANZ, 2000)
apresenta, por meio da análise de um conto de fadas, a ligação desse animal
com o desenvolvimento da psique feminina. O felino representa “o caminho
do meio” (VON FRANZ, 2000). Por essa afirmação, entendemos que o gato
funciona como mediador dos mundos interno e externo, do bem e do mal. Por
ele transitar com destreza entre os mundos, ao se fazer um vínculo simbólico
com esse animal, deve-se confiar nele para indicar o caminho a seguir (VON
FRANZ, 2000).
O conto analisado por Von Franz liga a imagem do gato com a mulher. A
heroína desse conto de fadas é transformada em uma gata e só poderá
sobreviver a essa maldição, tornando-se humana novamente, quando
enfrentar os desafios que a vida lhe impuser. Para isso, precisará ter mais
segurança em si mesma e boas parcerias ao seu lado, além de entender que
nem sempre temos tudo o que queremos no momento que achamos ideal,
bem como que nem sempre podemos resolver todas as situações sozinhos:
precisamos, também, do auxílio do outro.
Isso também é algo que experienciamos no filme: Satsuki desconhece o
que acontecerá com ela quando aceita a ajuda do ônibus-gato, mas confia
nele. Confia que ele lhe trará novos significados num momento de medo,
com a mãe doente e a irmã desaparecida. É hora de aceitar que ela, apenas
com as próprias atitudes, não poderá resolver tudo. É preciso confiar que, por
vezes, só a vida pode resolver a própria vida.
O gato e Satsuki encontram Mei. As irmãs e o felino festejam aliviados e,
para comemorar, resolvem fazer mais uma parada: o hospital da mãe.
Sentadas em uma árvore, as meninas observam pela janela seus pais a
conversar. Ao verem a mãe sorrir, as irmãs começam a perceber que tudo
ficará bem. Aqui, descobrimos que, na verdade, a mãe das garotas só tivera
uma gripe. Antes de partir, as filhas deixam o milho colhido por Mei no
parapeito da janela. Nele, a palavra “mãe” está talhada.
O filme se encerra com a felicidade da mulher, por retornar à casa e para
suas filhas, e da família, por ter uma nova oportunidade frente à vida.
Chevalier (1996) aponta que nas culturas hispânicas o milho é visto como
símbolo do Sol, do Mundo, do Homem. Podemos pensar que, quando em
grão, é unidade, e quando em espiga, é o todo. Dessa forma, é símbolo para
prosperidade e integração. O milho recebido pela mãe das meninas pode bem
representar o agradecimento pela saúde e o anseio para a reconstrução de um
laço. Ou, quem sabe, a passagem do meio entre dois instantes da vida
feminina: menina e mulher, filha e mãe. Acima de tudo, podemos entender
que a semente, representada pelas meninas, retoma união com a família, mãe
e pai, na espiga, reconstruindo uma vida antes estagnada.
Em Meu amigo Totoro, somos convocados a observar e viver novamente o
mundo infantil: os medos que uma vez sentimos, as fantasias que já criamos,
as referências de futuros adultos que um dia já desejamos ser. Miyazaki nos
propõe reviver esse período para que, por um instante, possamos
experimentar uma vivência lúdica, sem tantos moldes culturais e sociais: é
um convite a apenas ser e brincar de ser, construindo a base de uma
personalidade que um dia iremos compor. Talvez seja justamente esse o
nosso encantamento: sentir todas as nossas potencialidades, juntas, em um só
corpo, prontas pra despertar.
Referências
CHEVALIER, J.; GHEERBRANDT, A. Dictionary of Symbols. Londres: Penguin Books, 1996.
FORDHAM, M. Children as Individuals. Nova York: G. P. Putnam’s Sons, 1969.
JACOBY, M. Psicoterapia e a pesquisa contemporânea com crianças: padrões básicos de
intercâmbio emocional. São Paulo: Paulus, 2010.
JACOBY, M. Saudades do paraíso: perspectivas psicológicas de um arquétipo. São Paulo: Paulus,
2007.
JOHNSON, R. A. Owning your own Shadow. Nova York: Harper One, 1991.
JUNG, C. G. O eu e o inconsciente. Petrópolis: Vozes, 2012.
MCCARTHY, H. Hayao Miyasaki: Master of Japanese Animation. Berkeley: Stone Bridge Press,
2002.
NEUMANN, E. A criança. São Paulo: Cultrix, 1994.
VON FRANZ, M.-L. O gato: um conto da redenção feminina. São Paulo: Paulus, 2000.
Notas
1 TONARI no Totoro. Direção: Hayao Miyazaki. Japão: Studio Ghibli, 1988.

2 Mestre em Psicologia Clínica pelo Núcleo de Estudos Junguianos da Pontifícia Universidade


Católica de São Paulo (PUC-SP). Possui graduação em Psicologia (2015) pela mesma instituição. Atua
em consultório particular. E-mail para contato: crisrlembo@gmail.com.
Aspectos de feminilidade e heteronormatividade em
romances yaoi
Julia Motta Vale 1
Maria Julia Bengel 2

RODUÇÕES VOLTADAS PARA O ENTRETENIMENTO, COMO QUADRINHOS, FILMES E

P livros, comumente são divididas e subdivididas em gêneros e, por


vezes, subgêneros. Animes e mangás, por se enquadrarem nessa
categoria, também contam com uma série de divisões internas, sendo uma
delas o yaoi.
O yaoi surgiu na década de 1980, no Japão, por meio de doujinshi
(fanzines) que ironizavam personagens masculinas de outras obras, sendo
escritos, desenhados e publicados por mulheres de maneira independente. É
possível notar, nas obras dessa época, uma importante supremacia da lógica
masculina no universo dos mangás, influenciando a representação de
personagens femininas e masculinas nessas produções (ARANHA, 2010).
Mesmo as publicações voltadas para o público feminino eram produzidas por
homens até a década de 1970, sendo compostas basicamente pelos gêneros
shōjo, voltado para adolescentes, e josei, direcionado a mulheres adultas,
ambos com foco em tramas românticas e questões associadas a sentimentos e
relações interpessoais. É importante ressaltar que ambos os gêneros eram
retratados por um ponto de vista essencialmente masculino, associado à sua
autoria (MONTEIRO, 2017). Nesse sentido, os doujinshi, precursores do yaoi
que conhecemos hoje, foram as primeiras produções de autoria feminina no
âmbito dos mangás, trazendo sátiras à hegemonia masculina dominante até
então (ARANHA, 2010).
Essas produções amadoras iniciais foram ganhando espaço e popularidade
entre as adolescentes japonesas e, com o tempo, foram abandonando o tom de
paródia e adquirindo características próprias, passando a abordar o romance
entre homens jovens e bonitos (bishounen), personagens originais e com
características e papéis bem delimitados dentro da trama (ARANHA, 2010;
MONTEIRO, 2017). Essas histórias não focavam necessariamente em
resoluções bem-definidas ou conclusões bem-delimitadas, mas buscavam
trazer situações em que o romance e o encontro sexual entre homens
surgissem. A partir dessa característica surgiu o nome yaoi, originado do
acrônimo de yama nashi, ochi nashi, imi nashi, que significa “sem clímax,
sem objetivo, sem sentido” (MONTEIRO, 2017). O yaoi surge, então, sem
esse compromisso de corresponder a uma visão hegemônica, possibilitando
um espaço amplo de expressão. Além disso, traz como diferencial em relação
às produções dos gêneros shōjo e josei uma abordagem mais explícita da
temática erótica em si, não chegando, porém, a atingir o plano pornográfico,
pois circula em torno da atmosfera sexual e do desejo, tornando-se um “pivô”
para situações da trama, como complicações e reviravoltas próprias da
história. O foco do yaoi gira em torno da narrativa, não do encontro sexual
que pode fazer parte dela (ARANHA, 2010; O’BRIEN, 2008).
Esse subgênero dos mangás e animes, por sua temática homoerótica, surge
a partir de uma necessidade da população feminina japonesa de se expressar,
emocional e sexualmente, devido ao fato de estarem inseridas em uma
sociedade machista e conservadora (ARANHA, 2010). Como os mangás yaoi
são protagonizados pelo romance entre dois homens, há uma igualdade entre
as personagens e uma subversão das hierarquias sociais já preestabelecidas
(ARANHA, 2010), o que talvez não acontecesse em um relacionamento entre
um homem e uma mulher inseridos na sociedade japonesa, mesmo que
ficcional.
Como dito anteriormente, ainda hoje os mangás yaoi são feitos por
mulheres e para mulheres. A popularização dessa mídia entre o público
feminino foi tão grande que associaram a expressão fujoshi (“garota podre”,
em tradução livre) às fãs desse tipo de mídia. Conquanto, mesmo que a
maioria dos artistas e consumidores sejam mulheres, ainda há uma parcela de
homens que contribuem para o yaoi, sendo que os fãs do sexo masculino são
chamados de fundashi (“garoto podre”, em tradução livre). Vale a pena
ressaltar que existem obras com conteúdo homoerótico masculino feito por
homens e para homens, sendo esse conteúdo chamado, de maneira informal,
de bara (“rosa”, em tradução livre) . Uma das obras mais notáveis desse
subgênero é o mangá O marido do meu irmão, escrito e desenhado por
Gengoroh Tagame; a obra recebeu vários prêmios, entre eles o Eisner
Awards, em 2018.
É importante ressaltar que ao longo do presente capítulo abordaremos o
gênero yaoi em suas diversas manifestações na mídia, incluindo mangás,
fanzines, animes e manhwa (termo utilizado para se referir aos quadrinhos
originários da Coreia do Sul).
Yaoi e as problemáticas de gênero e sexualidade
Podemos considerar o yaoi como uma mídia que proporciona, por
princípio, um espaço para que o feminino se expresse, permitindo que “vozes
abafadas” ressoem, surgindo como manifestação temática do romance
homoerótico. Nele, evidencia-se uma equidade entre parceiros do mesmo
sexo, sendo que o discurso feminino acaba por se refugiar em um dos
parceiros do casal protagonista (ARANHA, 2010). Sendo assim, a trama
sugere uma abertura de espaço para que um romance se desenvolva de modo
que as questões e problemáticas do “ser mulher” ou do feminino, fortemente
presentes na sociedade japonesa, não bloqueiem ou afetem diretamente o
desenvolvimento do romance. Essas questões parecem se colocar de forma
mais implícita, a partir de características dos personagens, do enredo e das
problemáticas vividas pelo casal.
Nesse sentido, evidencia-se uma forma distinta de abordar as
problemáticas de gênero nos relacionamentos se tivermos como comparativo
outras produções orientais voltadas para o público feminino, nas quais os
papéis do “feminino” e do “masculino” costumam aparecer de forma
diretamente influenciada pelo sexo biológico. Como dito anteriormente, no
yaoi se faz presente um relacionamento entre dois homens homossexuais
cisgêneros (ou seja, cujo sexo biológico equivale à identificação com o
gênero masculino), porém nas obras desse gênero não há o objetivo de
retratar fielmente um relacionamento homossexual ou debatê-lo. O principal
elemento que esse tipo de relação traz para a trama consiste em uma aparente
equidade entre parceiros, mas que também subverte hierarquias sociais pré-
estabelecidas, possibilitando um espaço livre de expressão, contestação e
recusa de identificação com imagens estereotipadas do feminino de acordo
com essa lógica. As mulheres transpõem para a falas masculinas aspectos
relativos ao seu próprio universo (ARANHA, 2010). Abre-se uma
possibilidade de identificação da leitora com personagens e situações de
caráter erótico que não inferiorizam ou menosprezam a figura da mulher em
si, mas que refletem seus pensamentos e seus desejos dentro do enquadre
romântico.
Outro aspecto importante a ser salientado é que, ao abordar a questão do
encontro sexual como parte da atmosfera romântica entre dois homens, o
diálogo entre mulheres acerca de questões da sexualidade pode acontecer de
maneira mais fácil e tranquila, especialmente em contextos nos quais é difícil
falar delas. Além disso, a imagem da mulher em mídias que abordam
conteúdos eróticos, em especial em pornografias de caráter heterossexual,
costuma ser retratada de modo humilhante e em posições de subordinação
(O’BRIEN, 2008). Segundo essa lógica, as tramas e as personagens
masculinas do yaoi proporcionariam um potencial contato com esses
elementos do feminino em face à sexualidade, de forma menos literal e mais
distanciada. Assim, por meio de suas cenas, elementos e histórias trariam
aspectos e questões intrínsecos à vivência da sexualidade feminina, podendo
incluir, inclusive, essas questões de humilhação e submissão em algumas
histórias, as quais são normalmente atribuídas à imagem sexualizada da
mulher, porém ligadas à figura de um homem. No entanto, nos resta entender
melhor quais são esses elementos mais femininos que aparecem no romance
entre rapazes no yaoi.
Dicotomias de gênero no yaoi
Um dos motivos que levaram à popularização do yaoi, tanto no ocidente
como no oriente, é o fato de esse gênero proporcionar ao seu público um alto
nível de identificação entre os leitores e os personagens representados na
obra. Nos mangás desse subgênero, os personagens apresentados são
divididos em duas categorias, o seme (“atacante”, em tradução livre) e o uke
(“receptor”, em tradução livre), as quais designam a função da personagem
na relação (SILVA, 2018). Não são todos os mangás que possuem essa
definição polarizada dos personagens; em algumas obras, os protagonistas
assumem ambas as funções, sendo chamados de seke (junção das palavras
seme e uke). Na comunidade LGBTQI+ (sigla que engloba lésbicas, gays,
bissexuais, transexuais, queers, intersexuais e outras identificações, indicadas
pelo símbolo +; é usada principalmente para designar grupos não
heterossexuais e/ou cisgêneros) internacional, tais atribuições são chamas de
ativo (seme), passivo (uke) e versátil (seke). Essa constante polarização
presente nos mangás yaoi contribui para a identificação das mulheres com as
personagens que são passivas. Essa identificação deve-se não só à forma
como as personagens são escritas, mas também ao design delas.
Os seme, ou ativos, são os personagens que mais transparecem
características físicas e de personalidade associadas comumente como
sinônimos de masculinidade (SILVA, 2018). Em geral, eles são mais altos e
mais fortes que seus pares românticos, possuindo ombros largos e feições
mais robustas; em seu design, há uma predominância de formas quadradas e
triangulares, que, em termos de character design, transmitem
respectivamente solidez ou estabilidade e poder ou tensão. Em termos de
personalidade, eles costumam ser mais contidos e frios do que os uke,
expressando pouco os seus sentimentos. Também não é incomum que nos
contos yaoi os seme sejam extremamente elegantes e estejam em uma
posição financeira superior à do uke. Essas escolhas na criação dos
personagens, tanto em design quanto em conteúdo, assemelham-se muito aos
pares românticos das protagonistas de mangás shōjo.
Já os uke, ou passivos, são retratados de maneira mais delicada, frágil e
emocional que seus parceiros. Eles em geral são mais baixos e mais magros
que os seme, muitas vezes possuindo mais curvas e grandes olhos. Em seu
design, linhas curvas e formas circulares são mais comumente vistas, sendo o
círculo, em se tratando de character design, associado a algo suave, fofo e
seguro. A personalidade dessas personagens é muito mais expressiva e volátil
do que a dos seme, e eles se expressam muito mais. Tanto de maneira física
quanto psicológica, os uke se assemelham muito com as heroínas de mangás
shōjo (SILVA, 2018).
Essas escolhas em design e escrita permitem que, logo no início da obra,
haja uma fácil identificação da leitora com o personagem do passivo, já que
ele reflete características comumente tidas como femininas, e as fãs também
buscam estabelecer um sentimento de “paixão” com o seme. Outro fator para
essa assimilação é o fato de que a polarização do relacionamento dos
protagonistas possui um valor extremamente heteronormativo, em que o
passivo assume e reproduz valores femininos, enquanto o ativo assume e
reproduz valores masculinos.
Atualmente, há uma subcategoria dentro do próprio yaoi chamada
omegaverse (“universo ômega”, em tradução livre), que leva ao extremo a
projeção feminina dentro do yaoi. Essa subcategoria trata de uma realidade
paralela onde os personagens possuem um segundo sexo, o qual pode ser
alpha, beta ou ômega. Os alphas possuem designs e personalidades
semelhantes aos dos seme, enquanto os dos ômegas são semelhantes aos dos
uke. Entretanto, nesse mundo paralelo os ômegas podem ficar grávidos.
Desse modo, no omegaverse a projeção feminina nas personagens é muito
maior, já que o personagem é capaz de engravidar, se casar e formar uma
família nos moldes tradicionais monogâmicos e heteronormativos, com filhos
biológicos.
Obras como Love Stage!! (com arte de Mikiyo Tsuda e história de Eiko
Naitou), The World’s Greatest First Love: The Case of Ritsu Onodera
(Shungiku Nakamura) e Blood Honey (Sakyou Yozakura) possuem
claramente essa dicotomia do seme e do uke e suas respectivas associações
de masculinidade com feminilidade. Porém, não são todas as obras que
apresentam essa divisão. Obras mais recentes, como Given (Natsuki Kizu),
Canis Series (Ishie Hachi), Ultras (Maki Satoh), Moon and Sun (Akane Abe)
e até o omegaverse Megumi to Tsugumi (Mitsuru Si) quebram essa
dicotomia. Apresentam personagens que não estão restritos a esse estereótipo
de seme e uke, possuindo aspectos tanto tidos como femininos quanto como
masculinos, podendo haver até uma inversão dos valores associados aos
passivos e aos ativos; mesmo aqueles que possuem características tidas como
femininas não são subjugados por isso, mas abraçam essas particularidades
conscientemente.
Ausência e antagonismo das mulheres literais no yaoi
O enfoque dos mangás yaoi é o desenvolvimento do romance entre
personagens masculinos, porém, mesmo que esse seja o foco principal desse
subgênero, ainda existem obras que desenvolvem a amizade dos
protagonistas com os demais personagens da trama. No entanto, é comum
que nas tramas de obras yaoi haja uma ausência de personagens do sexo
feminino.
Em romances mais clássicos, como Tōma no Shoinzō (Moto Hagio) e J no
Subete (Assumido Nakamura), essa falta de personagens femininas é
justificada pelo fato de a história acontecer em um colégio só para meninos.
Esse tema, escola para garotos, era muito recorrente nos mangás yaoi mais
antigos, mas ainda é retratado em obras mais atuais, como Yarichin Bitch
Club (Ogeretsu Tanaka) e Slow Starter (Hei Ichikawa). É comum, ainda, que
a homossexualidade entre os protagonistas seja resultado e justificado no
próprio enredo pela ausência física de mulheres no cotidiano dos
personagens. É interessante ressaltar que essa mesma temática e a forma
como é abordada também é comum em mangás yuri (nos quais o foco
principal da obra é o romance homoerótico entre duas mulheres), só que com
os gêneros invertidos; assim, garotas estudam em um colégio apenas para
garotas e há uma ausência de homens no local. Um exemplo disso é o mangá
Hana ni Arashi (Ruka Kobachi).
No entanto, a ausência de mulheres no yaoi não se deve apenas a questões
geográficas de onde a obra se passa. Em muitos mangás, há uma ausência não
justificada de mulheres: elas simplesmente não existem naquele universo ou
são vistas apenas como figurantes no fundo do cenário, como elementos de
composição; desse modo, não há personagens femininas, mesmo que
secundárias. Como exemplo disso, temos Hengoku no Calendula (Haji), em
que personagens femininas são vistas apenas nos planos de fundo para
preencher multidões e fazer arranjos mais interessantes de câmera, porém os
protagonistas não interagem em nenhum momento com nenhuma figura
feminina; enquanto isso, o número de personagens secundários é vasto, mas
são todos homens. Há, ainda, obras como Itonaga-kun no Koi no Ito (Okuda
Waku), em que as personagens femininas figurantes aparecem na obra apenas
para ser uma espécie de fã-clube para um protagonista; em outras palavras, a
presença delas é usada para enaltecer a beleza e a popularidade de um dos
personagens. Sendo assim, há uma constante objetificação da mulher, sendo
usada apenas como um objeto de cenário e um elemento de composição na
estética das obras.
Quando há a presença de personagens femininas, não apenas como
figurantes, mas como personagens secundárias, é comum que essas mulheres
sejam representadas de maneira antagônica a um dos protagonistas ou que
apresentem aspectos de personalidade extremamente negativos. Em Given
(Natsuki Kizu), uma das poucas personagens femininas recorrentes é Yayoi
Uenoyama, irmã de um dos protagonistas. A personalidade dela é feita de
modo que os leitores tendam a detestá-la, já que é uma garota mimada e
egoísta que tenta atrapalhar o romance entre outros personagens masculinos.
Já em Ten Count (Rihito Takarai), a única personagem feminina significativa
é a que causou um trauma profundo em um dos protagonistas e o torturava
psicologicamente, fazendo com que ele desenvolvesse transtorno obsessivo
compulsivo (TOC).
Também há algumas mulheres que são introduzidas em determinadas obras
apenas como plot device (“dispositivo de roteiro”, em tradução livre). O
design dessas personagens é extremamente genérico, sua personalidade é rasa
e elas são usadas apenas para criar uma trama que cause algum tipo de
conflito entre os protagonistas; esse tipo de conflito geralmente está
relacionado aos ciúmes entre os personagens. Desse modo, a mulher é
introduzida apenas para haver uma competitividade entre ela e um dos
protagonistas pelo amor do outro. Um exemplo desse tipo de personagem é
An Kohinata, de The World’s Greatest First Love: The Case of Ritsu
Onodera (Shungiku Nakamura), que aparece em dado momento da trama
como noiva de um dos protagonistas. Isso gera um conflito entre o casal da
obra, que logo é resolvido; essa personagem é, então, descartada e não volta a
aparecer, deixando evidente que ela só existiu para desenvolver mais os
personagens masculinos e o amor entre eles.
É curioso ver que em obras yaoi feitas por mulheres e para mulheres a
representação feminina seja tão negativa. Existe a possibilidade de esse
fenômeno estar relacionado ao modo como criamos as meninas, tanto no
ocidente quanto no oriente, tratando de enxergar outras mulheres como
inimigas, pois há uma competição feminina voltada para assegurar o melhor
homem para si mesma (GORDON, 2015). Segundo a dra. Lynn Margolies,
essa competição, que à primeira vista é lida como hostil, é na realidade uma
faceta que esconde as inseguranças, receios e medo das mulheres. Sendo
assim, há uma constante busca por aprovação provinda de outras pessoas, e o
triunfo de uma mulher viria com a superação de outras mulheres, criando-se,
assim, um cenário de competição (MARGOLIES, 2018).
Esse cenário é instigado e fomentado desde a infância das mulheres, sendo
ensinadas pelos pais, quando crianças, e quando mais velhas, pelo ensino
formal e até por produtos midiáticos, como novelas, em que quase sempre há
uma rival para roubar o par romântico da heroína. A competitividade e a
insegurança que são desenvolvidas ao longo da vida de uma mulher são
reflexos de sua criação, e o yaoi, por ser uma mídia majoritariamente feita
por mulheres, também recebe esses reflexos. Por conta desse cenário, as
mulheres ficcionais presentes nessas obras possuem atitudes extremamente
negativas, antagônicas e voltadas para a competitividade. Essa normalização
de uma personagem feminina apresentar uma ameaça ao protagonista pode
ser um reflexo direto de uma sociedade que investe mais na competição
feminina que na sororidade.
Mesmo que a maioria dos yaoi apresentem mulheres de maneira negativa e
antagônica, ou não apresentem mulheres de maneira geral, existem obras que
vão na contramão dessas tendências do subgênero, obras essas que
apresentam personagens femininas que apoiam e incentivam os protagonistas.
Essas obras apresentam não a figura feminina como uma ameaça ao romance
do casal principal, mas como uma aliada fundamental a esse par, sendo uma
figura que irá orientar os protagonistas e dar conselhos. Algumas dessas
obras mais positivistas são Canis Series (Ishie Hachi), Motomete Yamanai
(Sangatsu Masao) e Kazoku ni Narouyo (Tomo Kurahashi), em que as
personagens femininas ajudam os protagonistas a aceitarem e entenderem
seus sentimentos e são verdadeiras amigas deles.
Aspectos favoráveis e problemáticos nas temáticas do yaoi
Frente ao que foi apresentado nesta análise até agora, outro aspecto
relevante a ser explorado consiste nas temáticas abordadas nas tramas yaoi.
Como dito anteriormente, os elementos femininos presentes em personagens
masculinos possibilitam uma série de identificações com esses aspectos por
parte de quem lê esse tipo de obra. Mesmo se tratando de um romance
homoafetivo, é apresentado de tal modo que alude de forma implícita a
modelos heteronormativos, em face a uma dicotomia entre “feminino” e
“masculino”, “ativo” e “passivo”. Também é importante retomar que o yaoi
foi o gênero que introduziu pela primeira vez na história do mangá a
perspectiva e a expressão feminina. Tendo isso em vista, é importante
considerar os diversos temas que surgem no yaoi em face a esse contexto
enquanto expressão de um feminino, retomando a ideia de que ele não busca
retratar fielmente a homossexualidade masculina, mas proporciona um
espaço no processo de resistência e expressão de “vozes femininas”
(ARANHA, 2010).
Nesse sentido, tópicos que emergem no yaoi, como romance, sexualidade,
paixões intensas, ódio, estupro, expressões públicas e exageradas de amor,
pedofilia, luxúria, busca da felicidade e livre expressão do afeto, devem ser
considerados em face à expressão desse feminino (ARANHA, 2010). Assim,
é importante considerar que a maneira como esses assuntos são apresentados
nessas obras está relacionada a recortes e perspectivas específicas correlatas a
essa manifestação, não correspondendo necessariamente a um retrato fiel de
como esses temas tendem a se desenrolar na realidade, mas remetendo a
visões, vivências e conteúdos aos quais a mídia yaoi dá voz. Outro ponto
relevante a ser observado é a amplitude de tópicos englobados pelo gênero,
que passam por temas mais “suaves”, como a questão do afeto, do amor e da
paixão, e chegam a temas mais “densos”, como estupro e pedofilia. Em obras
diferentes, temas diferentes serão explorados de modo distinto, com
prevalências, presenças e ausências diferentes de acordo com cada trama.
Porém, vale a pena ressaltar questões importantes em relação à forma como
as temáticas são abordadas, em especial no que diz respeito às “mais
pesadas”.
Em obras yaoi bastante populares, como Junjou Romantica e Sekai-ichi
Hatsukoi (Shungiku Nakamura), Koisuru Boukun (Hinako Takanaga) e
Kuroneko Kareshi No Asobikata (Ukyou Ayane), observa-se uma certa
romantização do abuso sexual e do estupro, incorporados frequentemente
como uma espécie de etapa para a iniciação sexual do uke, por exemplo. Essa
abordagem aponta para questões especialmente problemáticas,
principalmente no que concerne a romantização e/ou naturalização de
violências. Vale, aqui, retomar o fato de que o yaoi, enquanto mídia, se
configurou com base na expressão do discurso feminino em meio a uma
sociedade machista, que atua de modo a reprimir a sexualidade e o discurso
femininos (ARANHA, 2010). Essa questão se coloca de uma forma
especialmente intrigante, já que no contexto esse tipo de violência costuma
ser direcionado especialmente às mulheres, principalmente se considerarmos
que há uma associação de aspectos femininos direcionados ao uke,
proporcionando uma identificação do feminino como objeto de abusos.
Entretanto, em outros títulos yaoi, as mesmas temáticas são desenvolvidas
a partir de um ponto bastante distinto. Embora muito escassos se comparados
aos demais títulos, além de serem mais atuais, essas obras são um ponto
significativo para pensarmos como esses temas são abordados. Em Back to
School (Oryu), manhwa do gênero yaoi, a temática do abuso sexual também
está fortemente presente, porém a partir de outra perspectiva. O protagonista,
Chiwoo, passa por experiências de abuso no passado que o traumatizam
significativamente e influenciam sua relação com a questão dos afetos, da
paixão e do contato sexual. Ao contrário do que se delineia nos títulos
anteriormente citados, nesse manhwa a questão não é romantizada ou
naturalizada, mas abordada de maneira mais profunda, considerando-se seus
impactos para a construção de novos relacionamentos. Assim, temos como
contraponto uma mídia que apresenta a questão do abuso enquanto uma
violência, dispondo-se a discuti-la do ponto de vista de seus efeitos
emocionais e psíquicos, o que tende a ser favorável a uma discussão que
considere a problematização do tema.
Entre fãs, no que concerne ao modo de enxergar os conteúdos sexuais na
obra, não há um consenso. A aproximação em torno de seu conteúdo se dá de
uma forma bastante pessoal, com diferentes visões, embora exista a primazia
do discurso de que o grande atrativo do yaoi não reside essencialmente nesse
tipo de conteúdo, mas na história e na trama em si (O’BRIEN, 2008). Nesse
sentido, observamos que existem diversas formas de abordar suas temáticas e
discussões, tanto no contexto da própria obra quanto pelo ponto de vista do
leitor. Assim, dentro do recorte expressivo trazido pelo yaoi, é possível
observar inúmeras maneiras de se relacionar com o que é transmitido nessas
obras. Portanto, podemos pensar o espaço proporcionado por esse subgênero
enquanto campo de expressão do feminino, podendo ser convertido, do ponto
de vista favorável, em um espaço em que essas temáticas podem ser
pensadas, refletidas e discutidas, ou, de um ponto de vista mais problemático,
um campo em que se perpetuam, romantizam e naturalizam padrões e
abordagens complicadas dessas temáticas, que parecem guardar relação com
um contexto de opressão do feminino. Em suma, independentemente do tom
que é dado às temáticas dentro do yaoi por autores e fãs, elas guardam
relação com assuntos relevantes à vivência individual e coletiva, assim como
em qualquer mídia.
Conclusão
O yaoi se consolidou enquanto espaço para dar voz e vazão ao discurso
feminino, abafado especialmente nas sociedades orientais. Esse discurso se
materializa, em um primeiro momento, por meio de histórias de fãs, que vão
ganhando maior seriedade, personagens próprios e tramas cada vez mais
elaboradas, sempre centradas no romance e no encontro homoerótico. Abarca
a representação de elementos fortemente associados a um universo feminino,
retratando de forma implícita, nas relações homoeróticas, dinâmicas que
refletem padrões tipicamente heteronormativos, de modo a polarizar o que é
considerado feminino e o que é considerado masculino. Essas manifestações
podem ser exemplificadas na dicotomia de papéis entre seme e uke, no design
dos personagens, na composição da história e mesmo na rivalidade entre o
“uke protagonista” e outros uke, ou mesmo eventuais mulheres protagonistas,
refletindo uma rivalidade feminina. Por conta dessas características, tende a
existir uma maior identificação do público, majoritariamente feminino, com
os personagens das obras desse subgênero.
Mesmo no que concerne às suas temáticas, que podem ser abordadas e
entendidas de diversas maneiras por fãs, os elementos femininos associados à
sua constituição e ao seu contexto trazem pontos importantes a serem
considerados na discussão e na compreensão dessas obras. Nelas, residem
diferentes discursos circundantes a essas vozes. Cada um deles tem o
potencial de abordar os temas de maneiras diferentes, sejam elas favoráveis a
sua problematização e sua contestação ou estruturadas de modo mais
problemático, como a romantização de violências.
Assim, o yaoi, enquanto mídia, pode ser considerado algo além de uma
forma de entretenimento, que de certa forma também pode proporcionar
espaço para o discurso feminino, em especial no que diz respeito ao desejo,
ao romance e à sexualidade, refletindo aspectos que o circundam. Desse
modo, traz o potencial de ser um campo interessante não apenas para a
expressão de autores e fãs, mas também para reflexão e contestação acerca de
questões femininas, relacionamentos, padrões heteronormativos, abusos e
padrões e fronteiras referentes ao ato de amar. Além disso, parece legitimar
aspectos que rondam diferentes vivências femininas, inclusive no que diz
respeito à sexualidade, sem, contudo, se basear em figuras de um feminino
rebaixado, conferindo espaço para que isso seja expressado de maneira
artística. Com isso, o yaoi tem o potencial de conferir um espaço de discussão
e diálogo que facilita o debate de temas potencialmente mais “densos”,
principalmente por proporcionar uma oportunidade de contato e engajamento
entre fãs em torno de suas histórias, dramas, temas e problemáticas. Nesse
sentido, há uma possibilidade de trocas e reflexões valiosas aos temas e
questões que o circundam, incluindo aspectos do feminino e padrões
heteronormativos.
Referências
AL-ALI, A. The Shape of Character Design. Medium: Media Reflections: Past, Present and Future, [S.
l.: s. n.], 5 dez. 2019. Disponível em: https://medium.com/media-reflections-past-present-future/the-
shape-of-character-design-78c66eb97518. Acesso em: 30 jun. 2020.
ARANHA, G. Vozes abafadas: o mangá yaoi como mediação do discurso feminino. Revista Galáxia,
São Paulo, n. 19, p. 240-251, jul. 2010. Disponível em:
http://revistas.pucsp.br/index.php/galaxia/article/view/3305. Acesso em: 16 jun. 2020.
BAUWENS-SUGIMOTO, J. Subverting masculinity, misogyny, and reproductive technology in SEX
PISTOLS. Image & Narrative, v. 12, n. 1, mar. 2011. Disponível em:
https://www.researchgate.net/publication/277177823_Subverting_masculinity_misogyny_and_reproductive_technolo
Acesso em: 16 jun. 2020.
GORDON, E. V. Por que as mulheres competem entre si. Estadão, São Paulo, 19 nov. 2015.
Disponível em: https://emais.estadao.com.br/noticias/moda-e-beleza,por-que-as-mulheres-
competem-entre-si,10000002348. Acesso em: 30 jun. 2020.
MARGOLIES, L. Competition Among Women: Myth and Reality. PsychCentral, [S. l.: s. n.], 8 out.
2018. Disponível em: https://psychcentral.com/lib/competition-among-women-myth-and-reality/.
Acesso em: 30 jun. 2020.
MONTEIRO, L. F. Yaoi: os homens do mundo feminino. In: FORTIM, I. (org.). Mangás, animes e a
psicologia. São Paulo: Homo Ludens, 2017.
O’BRIEN, A. A. Boys Love and Female Friendships: The Subculture of Yaoi as a Social Bond
between Women. 2008. 155 f. Tese (Master of Arts) – Georgia State University, Georgia, 2008.
Disponível em: https://scholarworks.gsu.edu/cgi/viewcontent.cgi?
article=1027&context=anthro_theses. Acesso em: 16 jun. 2020.
SILVA, M. D. Mangás yaoi: a heteronormatividade do romance homoerótico masculino. In: 5AS
JORNADAS INTERNACIONAIS DE HISTÓRIAS EM QUADRINHOS, ago. 2018, São Paulo.
Anais [...]. São Paulo: Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, 2018. 15 p.
Disponível em http://www2.eca.usp.br/jornadas/anais/5asjornadas/q_historia/michele_silva.pdf.
Acesso em: 16 jun. 2020.
Notas
1 Graduada em Psicologia pela Pontifícia Universidade de São Paulo (PUC-SP). E-mail para contato:
ju.motta.vale@gmail.com.

2 Graduada em Jogos Digitais pela PUC-SP. E-mail para contato: majubengel@gmail.com.


Yuri!!! on Ice
Louise de França Monteiro 1
Victor Sancassani 2

ENTRE OS MUITOS ESTILOS DE MANGÁS EXISTENTES NO MERCADO, UM DELES É

D caracterizado, principalmente, por tratar de relacionamentos amorosos


homoeróticos. Os assim conhecidos mangás yaoi surgiram como uma
produção feita por mangakás de gênero feminino para um público específico,
de mesmo gênero. Abrindo as portas da produção e da publicação de mangás
– dominadas por homens até a década de 1970 –, o yaoi (ou Boys Love, em
nomenclatura mais recente) tornou-se, com sua popularização a partir da
década de 1990 (MIZOGUCHI, 2003), um estilo bem-sucedido, amplamente
difundido e com um público consumidor estável.
As classificações desses mangás se dão geralmente pelo grau de
sexualidade, mais ou menos explícita, presente nas obras. Mangás do tipo
shounen-ai apresentam um menor nível de sexualidade e de insinuações
sexuais, focalizando mais propriamente nas tramas e romances. Quando
apresentam conteúdo ligeiramente mais explícito, como beijos e/ou referência
a relações sexuais, sem, contudo, detalhá-las, são chamados de yaoi. Uma
grande quantidade de mangás com a temática LGBTQI+ encaixam-se ou são
classificados nessa categoria. Mangás de conteúdo adulto nomeiam-se lemon
e são altamente sexualizados e explícitos.
Ainda que apresentem uma grande diversidade de possibilidades em
termos de enredo, personagens, entre outros, desde seu surgimento até o
presente, as obras yaoi ainda apresentam algumas características e traços que
são mais frequentemente encontrados. Houve tempos em que pareceu
necessária uma delimitação do papel que cada personagem possuiria na
relação. Essa delimitação fora – e por vezes ainda é – pautada em
características como gênero, relações de poder, platonismo, diferentes faixas
etárias, entre outras. Essas características, de modo geral, marcavam qual dos
personagens corresponderia ao “ativo” (seme) e qual representaria o
“passivo” (uke), com casos raros em que esses papéis eram permutáveis.
Nesse sentido, alguma delimitação de gênero fez-se necessária.
Nos animes de grande sucesso do gênero, esses traços são facilmente
identificados: em Love Stage!!, 3 o personagem Ryouma se apaixona por
Izumi, acreditando que o último é uma mulher devido a seus traços femininos
e, inclusive, rejeita seus sentimentos quando descobre o verdadeiro gênero de
Izumi. Ao mesmo tempo, o próprio Izumi não declara nenhum sentimento
por Ryouma e jamais cogitou se interessar por homens. O romance segue
com a aceitação de ambos sobre seus sentimentos, deixando de lado a questão
de gênero. Em Junjou Romantica, 4 os três principais casais trazem à tona
mais dessas temáticas: os casais Usami e Misaki e Hiroki e Nowaki mostram
relacionamentos em que há uma admiração de uma parte para com a outra,
sendo que, principalmente para o último casal, esta constitui uma grande
problemática no relacionamento; o casal Shinobu e Miyagi, por sua vez,
apresenta ampla diferença de idade, e ainda reitera-se o fato de que o jovem
Shinobu já fora cunhado de Miyagi. Em Sekai-ichi Hatsukoi, 5 o personagem
de Ritsu Onodera mantém um relacionamento com seu chefe, Takano, que
vai além da relação de poder, frequentemente cedendo às investidas de seu
superior.
Uma produção recente que aplacou grande sucesso de público e de vendas
é o anime intitulado Yuri!!! on Ice. Este retrata a relação amorosa entre os
dois personagens principais, homens, ambos patinadores artísticos, além de
temas como amizade, confiança, dedicação e superação e o cotidiano dos
atletas patinadores, buscando, ainda, representar a diversidade cultural de
diferentes países.
O enredo de Yuri!!! on Ice
Yuri!!! on Ice é um anime yaoi de esporte sobre patinação artística. A obra
conta com 12 episódios, lançados em 2016 com direção de Yamamoto Sayo,
escrito por Kubo Mitsurō e produzido pelo estúdio MAPPA.
O anime ganhou dois prêmios no Tokyo Anime Award de 2017, nas
categorias Animação do ano: categoria televisiva e Anime por votos de fãs;
além disso, o designer de personagens Hiramatsu Tadashi recebeu o prêmio
de Melhor animador. A obra também ganhou mais dois prêmios no 39º
Anime Grand Prix da revista Animage, nas categorias de Melhor personagem
masculino (Victor Nikiforov) e Melhor música (“History Maker”); sete
prêmios por voto popular online no Anime Awards da Crunchyroll, nas
categorias de Melhor animação, Melhor abertura, Melhor encerramento,
Anime do ano, Melhor personagem masculino (Katsuki Yuri), Cena mais
emocionante (“The Kiss”, episódio 7) e Melhor casal (Katsuki Yuri e Victor
Nikiforov); e, ainda, o prêmio Japan Character Grand Prize New Face
Award da Character Brand Licensing Association.
O anime retrata a relação do patinador russo Victor Nikiforov, de 27 anos,
e Katsuki Yuri, de 23 anos, patinador certificado pela Japan Skating
Federation (JSF). O relacionamento dos dois é desenvolvido durante todo o
decorrer da temporada, passando de uma relação entre técnico e atleta a um
romance.
Yuri, após conquistar pela primeira vez uma vaga no Grand Prix, muda-se
para Detroit para treinar. No entanto, por comer descontroladamente antes da
competição – em razão de seu nervosismo e sua angústia após a morte de seu
poodle, chamado Victor/Vi (comprado pelo personagem porque Nikiforov
também tinha um cachorro da mesma raça, chamado Macchachin) –, Katsuki
não estava em condições físicas nem psicológicas para competir, acabando
em último lugar e não conseguindo uma vaga para o Campeonato dos Quatro
Continentes nem para o Mundial, além de perder no campeonato nacional.
Enquanto isso, mais uma vez, Nikiforov vence o programa curto masculino
do Campeonato Mundial de Patinação Artística em Yoyogi, Tóquio, o
campeonato nacional russo e o campeonato europeu.
Katsuki, em dúvida sobre sua permanência no esporte, encerra o contrato
com o seu técnico e retorna para a sua cidade natal, Hasetsu. Lá, Katsuki
executa exatamente o mesmo programa que Nikiforov apresentara no
mundial do qual não pôde participar. O vídeo dessa apresentação de Yuri,
secretamente gravado, acaba vazando e se popularizando, alcançando o
próprio Nikiforov. Este, então, abandona seu próprio treinador, viaja para o
Japão e se propõe a ser o novo treinador de Katsuki.
Uma semana após o ocorrido, revoltado com a decisão de Nikiforov, o
também patinador russo Yuri Plisetsky, de 15 anos, campeão do Grand Prix
Júnior e admirador de Victor, viaja para Hasetsu em busca de Victor para que
este cumprisse sua promessa: coreografar o programa de Plisetsky caso ele
vencesse o Grand Prix Júnior. Assim, Nikiforov decide colocar os dois
patinadores aprendizes em competição, utilizando uma mesma música, mas
com arranjos diferentes: Eros (amor sexual) e Ágape (amor incondicional).
Os arranjos designados por Nikiforov para cada patinador são opostos às
escolhas e personalidades de cada um, e quem saísse vitorioso garantiria
Nikiforov como seu treinador. O vencedor acaba por ser Katsuki, que,
inclusive, escolhe o Amor como tema de suas apresentações da temporada.
O desempenho de Yuri Katsuki volta a ser promissor, mas ele ainda se
mostra receoso sobre suas próximas apresentações. Victor, inexperiente como
técnico, na tentativa de incentivá-lo, acaba por magoá-lo ao colocar seu posto
de técnico em jogo. Superando as expectativas, Katsuki, ao som de “Yuri on
Ice” – música refeita por uma amiga da época em que treinara em Detroit –,
realiza uma ótima apresentação. A cena que se segue mostra o beijo do casal
Yuri e Victor, que Victor descreve como seu modo de surpreender Yuri,
assim como fora surpreendido por ele durante sua performance. Essa cena
classificou o anime integralmente na categoria yaoi. Além disso, durante a
estadia em Barcelona, onde ocorreria o Mundial, após um dia de descanso,
Yuri e Nikiforov trocam alianças em frente a uma igreja – como em um
casamento –, como amuletos em sinal de agradecimento, o que causa certo
espanto entre os competidores.
O resultado final do Mundial mostra Yuri Plisetsky como ganhador da
medalha de ouro, e Katsuki fica com a medalha de prata. Ambos superaram o
recorde mundial de pontuação máxima obtido por Nikiforov. O ótimo
desempenho de Katsuki no campeonato marca o retorno de sua carreira na
patinação competitiva. Nikiforov, bem-sucedido no desafio de tutorar
Katsuki, decide continuar sendo seu técnico, mas também de Plisetsky, e os
três se mudam para a Rússia. Ao final do anime, na apresentação de gala,
Katsuki executa o programa técnico do ano anterior de Nikiforov – o mesmo
que, sem querer, despertara o interesse de Victor ao mostrar-lhe que Katsuki
tinha tanto potencial a ser explorado.
O gênero em Yuri!!! on Ice
Uma parte massiva das produções do estilo yaoi é marcada pela
caracterização de seus personagens principais, o casal homossexual, segundo
delineações designadas aos gêneros feminino e masculino. Ou seja,
geralmente o casal é formado por um homem que apresenta características
ditas “masculinas” e outro que apresenta características ditas “femininas”.
Surgem discussões e teorias sobre o uso extenso desse padrão de
representação nos mangás yaoi, considerando um enfrentamento à sociedade
heteronormativa com a designação de características femininas a uma figura
masculina ou mesmo pela expressão da sexualidade reprimida das mulheres,
a ser contemplada pela figura masculina.
O uso do tema homoerótico masculino desponta como modo de expressão feminina. Inseridas
em uma sociedade machista, as mulheres japonesas passam a utilizar a relação homoerótica
como espaço expressivo para suas vozes abafadas. Apoiando-se na equidade entre os parceiros,
o discurso feminino se refugia na voz de um dos personagens que compõem o casal
protagonista. Este recurso subverte as hierarquias estabelecidas, viabilizando a argumentação
destas mulheres em relação a temas impertinentes à mulher na sociedade japonesa. (ARANHA,
2010, p. 241)

O anime não se propõe a discutir questões referentes a definições de


gênero nem faz referência ao que se considera masculino ou feminino,
apostando numa representação que, assim como a narrativa, é mais fluida.
Em certo momento, o personagem Yuri Katsuki vai à casa de sua
professora de balé para pedir que ela o ensine a dançar de maneira feminina
para seduzir o público com sua performance, mas nada disso é discutido mais
à frente na trama, no sentido de que nenhuma problemática tenha surgido a
partir disso. Na realidade, o sucesso de Yuri em suas performances sob tutela
de Victor baseou-se em incorporar “a influência performativa da fluidez de
gênero e sexualidade” (COOK, 2016, tradução livre) esbanjada por seu
técnico em seus programas de patinação.
A sexualidade em Yuri!!! on Ice
Ao ser escolhido para Katsuki o tema Eros, assumindo que seria “oposto” à
personalidade do rapaz, o público é levado a crer que a sexualidade seria
inserida de algum modo durante a trama. O fato de Katsuki se pautar em sua
comida favorita para promover a expressão do que seria um “amor sexual” já
deixa claro que esse assunto não seria – e de fato não foi – apresentado de
forma apelativa na animação; na verdade, o personagem buscou se apresentar
como “um delicioso katsudon”. 6
A referência à sexualidade comumente conhecida aparentemente se deu
por meio do personagem cômico de Christophe Giacometti, patinador suíço
que exibe grande apelo sexual em suas apresentações. Algumas cenas de
nudez parcial e certa sensualidade, mais propriamente protagonizadas por
Victor e Yuri, explicitam ora a intimidade crescente entre os personagens, ora
cenas cômicas entre eles.
A representatividade em Yuri!!! on Ice
Embora o yaoi não faça – e não tenha por objetivo fazer – jus à realidade
de um relacionamento homossexual, situações como o preconceito e a
intolerância são frequentemente descritas nessas histórias. Há, ainda,
questões sobre a orientação sexual dos personagens que, por vezes, podem se
mostrar confusos ou mesmo em negação sobre sua orientação homossexual,
além de outras problemáticas como relacionamentos abusivos, precariedades
e necessidades que forçam o relacionamento a acontecer. Quando se passam
em uma realidade cotidiana ou próxima à que conhecemos, muitas obras se
pautam nessas situações e nessas questões para compor o drama de seus
enredos. Em Koisuru Boukun, 7 por exemplo, o professor Souichi Tatsumi se
declara abertamente homofóbico e assim permanece, ainda que esteja
envolvido emocional e sexualmente com seu aluno Tetsuhiro Morinaga.
Em Yuri!!! on Ice, o romance se desenvolve de forma fluida e parece ser
aceito, sem empecilhos, por todos os personagens que os cercam. Entretanto,
a discussão aqui apresentada trata justamente do sucesso alcançado por um
anime que traz a temática LGBTQI+, ressaltando que no Japão a união entre
pessoas do mesmo sexo não é legalizada em muitas áreas, sendo tampouco
aceita em países como a Rússia.
À altura do episódio 7, o anime faz uma homenagem ao patinador olímpico
e campeão nacional dos Estados Unidos Johnny Weir, ao mostrar um
personagem em trajes muito semelhantes aos do famoso patinador recebendo
o prêmio.
Johnny Weir, alvo de ridicularização homofóbica ao longo de sua carreira, está representado em
Yuri!!! on Ice pelo patinador mais realizado, respeitado e popular da série até agora. Enquanto
Weir foi criticado por ter sido um modelo questionável para jovens patinadores masculinos por
causa de como ele escolheu apresentar-se, Victor é introduzido como um modelo com um
histórico de jogar com sua expressão de gênero e completo conforto com sua sexualidade. [...]
Para quem segue a patinação artística e está ciente da “controvérsia” em torno de Weir, esta foi
claramente uma declaração firme de apoio para a comunidade LGBTQ+ na e em torno da
patinação artística. (COOK, 2016, tradução livre)

Outro momento de destaque foi aquele já mencionado neste capítulo, que


ocorreu durante a estadia dos patinadores em Barcelona antes do início do
campeonato Mundial: Yuri e Nikiforov trocam alianças em frente a uma
igreja – simbolismo claro de um casamento –, mas, quando questionados
pelos demais, Yuri declara que as alianças são “amuletos” em sinal de
agradecimento pelo que Victor havia feito por ele. Victor, por sua vez,
assume que se trata de um noivado. O momento causa uma ligeira tensão
entre os patinadores, mas não engata nenhum tipo de grande represália ou
desrespeito marcante na história. Ademais, o saldo final desse episódio é
positivo, visto que nele também há outro tipo de representatividade, uma vez
que o grupo apresenta uma grande diversidade de nacionalidades.
O amor em Yuri!!! on Ice
A narrativa faz uso do sentimento de admiração de Yuri por Victor, seu
ídolo, como um ponto de partida para o desenvolvimento de algo mais.
Sobretudo, a discrepância entre os dois personagens em relação a suas
carreiras os prende a uma forma de renovação do significado que a patinação
tem para ambos. Yuri deve restaurar sua motivação para competir, dado que
se tornara um perdedor, enquanto Victor, vencedor e bem-sucedido, deve
encarar o desafio de instruir outrem. O desenvolvimento dessa trama não
deixa claro o ponto exato em que a admiração se tornou um romance,
tampouco descreve que tal admiração sempre se tratou de um amor platônico.
Esse desenvolvimento leve, fluido e não tão facilmente delimitado, embora
previsível, pode ter sido um dos pontos fortes para manter o espectador
acompanhando a obra. O tema do amor é central no enredo e é mostrado de
diversas maneiras e por diversos personagens. Nikiforov, ainda no início da
história, escolhe o tema Amor, seleciona os aspectos Eros e Ágape, sexual e
incondicional, respectivamente, e os designa aos dois Yuris. Enquanto um
personagem se inspira em um amor de uma figura que aparenta ser paterna
em sua vida, o outro personagem, sexualmente inexperiente, faz uma
passagem do prazer sexual para seu prato favorito: o prazer de saborear algo
delicioso. Mais à frente, Katsuki escolhe o mesmo tema para suas
apresentações da temporada, uma clara referência à influência de Victor.
Pode-se dizer que Yuri!!! on Ice é um anime sobre amor e patinação no
gelo, amor esse que transcende questões de gênero.
Referências
ARANHA, G. Vozes abafadas: o mangá yaoi como mediação do discurso feminino. Revista Galáxia,
São Paulo, n. 19, p. 240-251, jul. 2010.
COOK, A. Straight guys!!! on ICE. Anime Feminist, [S. l.: s. n.], 18 nov. 2016. Disponível em:
https://www.animefeminist.com/feature-straight-guys-on-ice/. Acesso em: 12 jan. 2018.
MIZOGUCHI, A. Male-Male Romance by and for Women in Japan: A History and the Subgenres of
Yaoi Fictions. U.S.-Japan Women’s Journal, n. 25, p. 49-65, 2003. Disponível em:
https://www.jstor.org/stable/42771903?seq=1. Acesso em: 12 jan. 2018.
Notas
1 Mestre em Psicologia Experimental: Análise do Comportamento pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP) (2017). Graduada em Psicologia pela PUC-SP. Estuda violência e
games e questões de gênero nos videogames. E-mail para contato: louise.fmt@gmail.com.

2 Graduado em Tecnologia em Jogos Digitais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC-SP) (2013). Possui pós-graduação lato sensu em Direção de Arte em Comunicação pelo Centro
Universitário Belas Artes de São Paulo (2015). Mestrando em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP.
Pesquisa mitologia e imaginário com enfoque nas áreas de processos criativos e games. E-mail para
contato: vsancassani@gmail.com.

3 Love Stage!! é escrito por Eiki Eiki e ilustrado por Taishi Zaou. A série é publicada desde julho de
2010 na revista Asuka Ciel, da editora Kadokawa Shoten. O anime foi produzido pela J.C. Staff e foi ao
ar em 2014.

4 Junjou Romantica é uma série shounen-ai de Nakamura Shungiku. A série é publicada desde 2002
pela revista Asuka Ciel. O anime, produzido pelo Studio DEEN, possui três temporadas, que foram ao
ar em 2008 e 2015.

5 Sekai-ichi Hatsukoi: Onodera Ritsu no Ba’ai é escrito e ilustrado por Shungiku Nakamura. Em
2011, o mangá ganhou uma adaptação para anime com duas temporadas.

6 Katsudon é um donburi típico da culinária japonesa, em que, em sua versão mais comum, um filé
de porco à milanesa com molho é servido sobre arroz cozido em uma tigela.

7 Koisuru Boukun é escrito e ilustrado por Hinako Takanaga, sequência do mangá Challengers (1996-
2004) e considerado um mangá best-seller nos Estados Unidos. Em 2010, o primeiro volume foi
adaptado para dois OVAs – lit. original video animation, ou seja, animações completares (spin-offs) às
narrativas principais, lançadas em formato físico diretamente ao público.
Alquimia e transformação em Fullmetal Alchemist:
a exploração das potencialidades humanas no
personagem Van Hohenheim
Luna Pereira Gimenez 1
Marcos Daniel Grassmann Polcino 2

FULLMETAL ALCHEMIST, DE HIROMU ARAKAWA, UM DOS PERSONAGENS MAIS

E
M
marcantes e central para todo o desenvolvimento da trama é Van
Hohenheim, pai dos protagonistas, os irmãos Alphonse e Edward Elric.
Nas duas versões em anime, Hohenheim é um personagem construído de
maneiras muito distintas, apesar de manter algumas características básicas.
Nesta análise, partiremos da versão original do enredo, presente no mangá e
em sua adaptação em anime, Fullmetal Alchemist: Brotherhood. Este capítulo
discutirá o processo de desenvolvimento de Van Hohenheim sob a
perspectiva da psicologia analítica, considerando seus paralelos com a
alquimia.
A alquimia é uma prática cujo ápice ocorreu durante a Idade Média e foi
precursora da química moderna. Caracteriza-se pela busca de compreensão e
transformação da matéria, partindo de princípios teológicos, filosóficos,
físicos, químicos e práticos. Na prática da alquimia buscava-se, assim como
em outras linhas místicas, contribuir com a obra divina, com o mundo,
purificando-o e tentando aproximá-lo de um estado de perfeição.
De acordo com Edinger (1990), não é fácil compreender a alquimia tal
como expressa nos escritos originais:
Meu método de organização do caos da alquimia consiste em concentrar a atenção nas
principais operações alquímicas. Descoberta a prima matéria, deve-se submetê-la a uma série de
procedimentos químicos a fim de transformá-la na Pedra Filosofal. [...] Não há um número
exato de operações alquímicas, e muitas imagens se sobrepõem. Para meus propósitos,
considerei sete dessas operações como os principais componentes da transformação alquímica.
São elas: calcinatio, solutio, coagulatio, sublimatio, mortificatio, separatio e coniunctio.
(EDINGER, 1990, p. 32-34, grifos do original)

Para o autor, essas operações carregam um elaborado sistema de símbolos


que possuem caráter transformativo e compõem o principal conteúdo de
todos os produtos culturais. Quando ampliamos esses processos alquímicos
simbolicamente, eles fornecem compreensão acerca da vida psíquica,
ilustrando a riqueza de experiências que constituem a individuação.
Ainda sobre o trabalho do alquimista, em sua busca por purificação e
perfeição, este possui alguns objetivos principais ao realizar os processos
alquímicos: a transformação de chumbo – metal mais impuro – em ouro –
metal mais puro –, a criação da pedra filosofal – elemento por definição
perfeito, que dotaria os alquimistas de capacidades sobre-humanas, como a
produção da panaceia universal e a imortalidade – e a produção de
homúnculos – vida humana artificial criada a partir de materiais inanimados.
Conforme exploraremos ao longo deste capítulo, toda a vida de Hohenheim
espelha, de certa maneira, esses processos alquímicos.
Hohenheim começa sua trajetória como um escravo, alguém que até então
era desprovido de aspirações e objetivos. Enquanto escravo número 23 de um
alquimista, ele se torna elemento de um experimento no qual tem início,
também, sua transformação em alquimista.
A partir do sangue de Hohenheim, até então escravo número 23, é criado
um homúnculo que reside em um frasco de fundo redondo, típico de
laboratórios químicos e alquímicos. Esse homúnculo de Fullmetal Alchemist
é uma nuvem negra com rosto, voz e vontade própria. A partir do diálogo
entre o escravo 23 e o homúnculo do frasco, é possível perceber que, de
acordo com seus pressupostos, visão de mundo e ambições, ambos se
apresentam como opostos. O relacionamento deles evolui ao longo do tempo,
e novos questionamentos e ideias são levantados.
Podemos traçar um paralelo entre o relacionamento dos personagens e a
dinâmica entre ego e inconsciente. Nesse caso, Hohenheim representaria o
ego que, inicialmente indiscriminado, aos poucos adquire estrutura e entra em
contato com o outro aspecto de sua personalidade, um aspecto inconsciente
de caráter sombrio 3 (homúnculo), que é, em termos gerais, caracterizado
pelos aspectos opostos à atitude do ego.
Na interação entre eles, o escravo é batizado pelo homúnculo de Van
Hohenheim e começa a aspirar ser mais que um mero escravo. Hohenheim se
torna um grande alquimista do reino de Xerxes. Há cenas de seu treinamento
em que ele, conversando com aquele que aqui representa seus aspectos
sombrios inconscientes (homúnculo), passa a compreender o mundo à sua
volta, o equilíbrio que existe na natureza, os princípios da alquimia e suas
aspirações pessoais. O homúnculo no frasco se torna uma personificação
dessa relação entre ego e sombra e, consequentemente, uma via de acesso aos
conteúdos do inconsciente, não só para Hohenheim, mas também para o
mestre alquimista e para todo o reino.
Mais adiante no enredo, encontramos elementos que nos permitem assumir
que esse primeiro homúnculo já existia antes da criação do outro lado do
portão da verdade e, portanto, estava munido de diversas formas de
conhecimento. Podemos entender alguns aspectos dessa relação com o
homúnculo como sendo um contato com a parte mais profunda da psique,
transcendente às experiências individuais e rica em conhecimentos
simbólicos que guiam as vivências humanas. Exploraremos, ao final deste
capítulo e em mais detalhes, a possível correspondência que há entre o portão
da verdade e o inconsciente coletivo.
Portanto, podemos compreender o homúnculo no frasco como uma ponte
entre os alquimistas de Xerxes e um conhecimento mais profundo sobre a
alquimia, especialmente quando a entendemos enquanto metáfora para o
processo de desenvolvimento e individuação, ou seja, realização de si mesmo
enquanto totalidade.
Após algum tempo, Hohenheim manifesta o desejo de constituir uma
família e ser leal ao rei, ou seja, o desejo inicialmente sombrio de liberdade –
pois foi a partir de um contato com a sombra, aqui representada pelo
homúnculo, que o personagem passa a se relacionar com ambições e desejos
antes não expressos em sua personalidade – passa a exercer uma função
positiva, levando-o de escravo a membro da sociedade. Como sabemos, os
aspectos sombrios da psique não são essencialmente ruins, embora quase
sempre estejam carregados por essa conotação. Entretanto, é extremamente
importante que possamos entrar em contato com esses nossos aspectos
negligenciados pela noção de eu, para que seja possível uma realização mais
genuína e total de nós mesmos. Aliás, quando não realizamos essa tarefa de
dialogar com nossa sombra, esta exerce influência sobre nós de maneira
autônoma, por meio do mecanismo de projeção. Portanto, a elaboração e a
integração dos aspectos sombrios da nossa personalidade são necessárias para
a realização do processo de individuação.
Inicialmente, o desejo de liberdade de caráter individualista foi
aparentemente negligenciado pela consciência do escravo 23 em prol da
adaptação e da sobrevivência no contexto daquela comunidade. Podemos
pensar que esse aspecto individualista recai na sombra de Hohenheim, de
modo que o homúnculo no frasco, enquanto representação da sua sombra,
nesse momento passa a aspirar a liberdade em relação a seu frasco, em função
de um mecanismo psíquico de compensação e autorregulação.
Essa dinâmica ilustra, de maneira metafórica, como os conteúdos não
integrados, que permanecem ou se tornam sombrios, adquirem uma
autonomia e passam a exercer uma função negativa em relação à
personalidade total.
Concomitantemente ao contentamento de Hohenheim em relação à sua
posição social, o homúnculo manifesta uma sede de poder que o leva a
enganar o rei. Essa tensão entre ambos, em situação de opostos, culmina na
criação da pedra filosofal. Esta divide-se entre o homúnculo, que passa a se
intitular Pai, e Hohenheim. O sacrifício necessário para a confecção dessa
pedra filosofal é o reino de Xerxes, que acaba dizimado.
Essa complementaridade entre os objetivos e desejos do consciente e do
inconsciente ilustram o movimento em busca de equilíbrio e homeostase, por
meio dos símbolos que existem na psique. A tensão entre opostos permite a
erupção de símbolos e a expressão da função transcendente da psique,
levando à transformação e ao desenvolvimento do indivíduo no sentido de
maior expressão de sua totalidade, como acontece com Hohenheim durante
seu processo de contato e posterior confronto com a sombra, o homúnculo.
É importante notar que a complementaridade entre Hohenheim e o
homúnculo Pai se mantém ao longo da história de ambos. Logo após o
extermínio de Xerxes, Hohenheim migra em busca de respostas e
autoconhecimento. Chega em Xing e instaura a alquimia oriental, enquanto o
homúnculo Pai permanece na região em Amestris, separando de si aquilo que
lhe desagrada e fundando a alquimia de Amestris.
Historicamente, a alquimia oriental se diferencia da ocidental por estar
relacionada ao taoísmo, às ideias de Yin e Yang, I-Ching e diversas outras
referências da medicina chinesa. Seu objetivo, assim como aparece no anime,
é obter o elixir da imortalidade/longa vida (ou pílula da imortalidade). Já a
alquimia ocidental se utiliza dos conceitos de pedra filosofal e homúnculos,
além do elixir da longa vida.
Ao separar de si os sete pecados capitais, o Pai origina os demais
homúnculos que encontramos na história; ele constitui uma espécie de
família e tem como objetivo, considerando-se digno de tal feito, absorver
Deus.
Assim, na obra temos sete homúnculos (Gula, Luxúria, Ira, Preguiça,
Orgulho, Ganância e Inveja), além do seu criador, chamado de Pai. O
homúnculo Pai foi criado a partir do sangue de Hohenheim, conquistando a
imortalidade ao enganá-lo séculos antes. Para tanto, transmutou as vidas de
toda a população do extinto país Xerxes, transformando ambos (ele mesmo e
Hohenheim) em pedras filosofais.
Em oposição, Hohenheim realiza um diálogo com todas as almas que
absorveu ao se tornar uma pedra filosofal, pois se considera indigno de
tamanho poder e desiste de constituir uma família, por se considerar um
monstro; assim, acaba abandonando seus filhos e sua esposa.
É interessante notar que o Pai exige ser chamado assim pelos outros
homúnculos, enquanto Hohenheim não se considera digno de ser chamado
assim por seus filhos, temendo até mesmo tocá-los. A complementaridade
que existe entre Pai e Hoheheim se mantém até o final da história. Logo após
a derrota do homúnculo que almejava viver eternamente, Hohenheim também
morre, cumprindo seu último desejo de deixar de ser imortal.
Hohenheim busca, durante toda a sua trajetória, compreender-se e
compreender o homúnculo Pai. Portanto, busca compreender sua sombra,
dialogando com ela, de modo a se dispor a realizar a trabalhosa e difícil tarefa
de conversar com todas as 536.329 almas que compunham a pedra filosofal
que ele se tornou e acalmá-las.
Esse processo de busca da realização do si-mesmo pode ser observado
durante a trajetória dos personagens que se transformam ao longo da saga, ao
passo que desenvolvem seus conhecimentos sobre alquimia. Faz parte desse
processo conhecer os complexos – conteúdos de caráter efetivo que
compõem o inconsciente pessoal – que nós, enquanto indivíduos, possuímos.
Portanto, a compreensão simbólica que fazemos neste capítulo descreve o
processo de individuação (realização de si-mesmo) do personagem
Hohenheim.
De acordo com Stevens (1993) a psicologia junguiana, além de
compreender a alquimia como um esforço para tratar os materiais básicos de
modo a transformá-los em ouro, entende que nessa prática o alquimista
estaria concomitantemente trabalhando simbolicamente a transformação de
sua própria psique. Ou seja, para Jung, a alquimia é uma metáfora do
processo de individuação.
Por outro lado, é a ambição extrema do homúnculo Pai que leva
Hohenheim a um aprofundamento maior em relação a esses seus conteúdos
inconscientes. O objetivo do homúnculo de alcançar Deus seria equivalente
psicologicamente a chegar ao self, no sentido de centro e totalidade da
psique. Porém, o homúnculo tem uma atitude de ambição, de apreender essa
totalidade em uma relação de poder, o que não é possível.
Uma forma de entender a narrativa dessa obra seria fazendo uma analogia
da história de Van Hohenheim com o processo de individuação. Esse
processo de vivenciar seus potenciais e se tornar um indivíduo único passa
pelo confronto com a sombra, pela elaboração dos complexos, pela vivência
do individual, do coletivo e da alteridade, discutidos aqui como sua relação
com o homúnculo, a elaboração das inseguranças quanto à paternidade, o
diálogo e o contato com as almas que habitam sua pedra filosofal, assim
como a interação e a atuação no cenário nacional de Amestris. No contexto
desse enredo, pode-se entender o processo alquímico como metáfora, ou
como facilitador, do processo de individuação.
Um objetivo desse processo seria estabelecer contato entre o ego (eu
consciente) e o self (enquanto expressão da totalidade na psique). Essa
relação do ego com o self, realizada intensamente, pode ser comparada com a
iluminação em contextos religiosos. O self é descrito em alguns contextos
como a totalidade da psique, como seu centro, como o arquétipo guia ou
como “imagem de Deus, o cunho de si-mesmo” (STEIN, 2006, p. 143).
Ao longo de Fullmetal Alchemist há, em mais de um momento, uma
representação comparável do contato do ego com o self em diálogos de
diversos personagens com a entidade que os aguarda atrás de seus portões da
verdade.
Conforme comentamos anteriormente, o portão da verdade pode ser
compreendido como representação da comunicação com elementos do
inconsciente coletivo. O self, por ser o centro regulador e a totalidade da
psique, inclui a parte coletiva da psique, mas não se limita a ela. Sendo assim,
é interessante considerar que essa sua representação surja no portão. Esse
ambiente branco em que ambos surgem seria uma representação de uma
instância mais profunda da psique, que permite, enquanto via de acesso, a
conexão com a expressão do self.
A figura que se apresenta do outro lado do portão pode ser entendida como
uma representação, uma imagem arquetípica do self. De acordo com Stein
(2006), “quando imagens arquetípicas invadem o ego, têm uma voz, uma
identidade, um ponto de vista, um conjunto de valores” (p. 144). Em relação
à conexão do ego com o self,
Acreditava Jung que existe uma relação privilegiada entre o ego e o si-mesmo. Pode ser que o
si-mesmo possua a mais alta forma de autoconhecimento e a reparta com o ego [...] poderia
argumentar-se que o si-mesmo é, de fato, uma imagem do ego, uma espécie de superego ou
ideal do ego. (STEIN, 2006, p. 145)

Ainda de acordo com Stein (2006), as imagens arquetípicas relacionadas


ao si-mesmo (self) aparecem como expressões espontâneas da psique quando
esta necessita ser unificada. Ou seja, a psique gera símbolos compensatórios
de integração quando o sistema psíquico corre o risco de se fragmentar.
Enquanto expressão de totalidade e da unificação e integração desta, a
intervenção simbólica do arquétipo do si-mesmo atua para realizar a
unificação.
A natureza compensatória dos símbolos e a regência de uma agência
reguladora na psique podem ser observadas na fala do homúnculo Pai quando
descreve as atitudes de vários personagens ao longo da trama:
A verdade é muito cruel. Por desejarem mais do que merecem, ousaram reviver a mãe para
voltar a sentir seu calor. Um filho perdeu a perna que o mantinha em pé e o único ente que
restava de sua família, enquanto o outro perdeu o corpo e a capacidade de sentir o calor que
tanto desejava. Aquela que desejava trazer o filho de volta acabou tendo um corpo incapaz de
gerar uma nova vida. E… aquele que tinha um olhar fixo no futuro de seu país perdeu sua visão
e jamais poderá ver o destino de sua nação. Os humanos são brindados com o desespero
merecido para punir e ensinar a não serem presunçosos. O responsável por essas sentenças é a
existência que vocês, humanos, chamam de Deus… a “Verdade”. (FULLMETAL, 2009,
episódio 59: “Lost Light”)

Nessa fala, fica evidente a noção arquetípica (self) da imagem de Deus,


enquanto regente, orientador, ser onipresente e guia do indivíduo. Aquele que
carrega a verdade de quem realmente se é.
A fala da entidade encontrada atrás do portão, “Eu sou o que você chama
de Mundo, ou então Universo, ou então Deus, ou então Verdade, ou então
Tudo, ou então Um. Eu também sou Você” (FULLMETAL, 2009, episódio
59: “Lost Light”), expressa a manifestação desse arquétipo, ou seja, está
carregada do aspecto unificador dos opostos complementares presentes na
psique e do aspecto de totalidade em relação a esses conteúdos.
A simbologia do círculo (comumente usada para representar a expressão
do self), de acordo com Fontana (2004), ilustra um dos aspectos mais vastos
dessa perspectiva. Isso porque cada ponto da circunferência de um círculo
pode ser entendido como o início ou o fim dele. Além da relação simbólica
com a noção de totalidade e unificação que o círculo tem, na alquimia e em
diversas práticas, essa forma é utilizada para a realização transformadora de
algo. Em Fullmetal Alchemist, os personagens se utilizam do círculo para
transmutar a matéria, e este se faz importante durante todo o enredo.
A realização de si-mesmo, o encontro com a verdade de quem se é de
maneira singular e única, configura-se como uma busca a ser realizada
enquanto ideal durante todo o processo de individuação. Esse processo de nos
realizarmos enquanto nós mesmos é uma característica que nos torna
essencialmente humanos. Desse mesmo modo, análoga e metaforicamente, o
alquimista busca realizar a pedra filosofal.
De acordo com a entidade encontrada quando o homúnculo Pai abre a
porta, “você não pode chegar ao seu tão clamado ‘Deus’ usando a força dos
outros” (FULLMETAL, 2009, episódio 63: “The Other Side of the
Gateway”). Ou seja, esse processo, por mais que envolva e necessite da
relação com o outro para se realizar, é uma trajetória que precisa ser feita
individualmente, de modo a corresponder às necessidades de realização da
própria singularidade de cada um.
Como em outros pontos de contraposição de Van Hohenheim e do
Homúnculo, enquanto Hohenheim busca um desenvolvimento interior,
isolando-se da coletividade e vivendo como eremita, deixando até mesmo sua
família, o Pai se faz pilar central na construção da sociedade de Amestris,
mas sem qualquer exploração de sua individualidade.
Essa dinâmica se altera quando Van Hohenheim decide tomar
responsabilidade por sua atitude perante o cenário coletivo, caminhando
rumo a uma situação de equilíbrio e trazendo ao social os frutos de sua
aprendizagem interna. Esse equilíbrio entre essas duas facetas de
desenvolvimento se caracteriza como um grande dilema: a tarefa de nos
realizarmos como nós mesmos, seguindo uma ética individual ao mesmo
tempo que nossa existência, pressupõe o convívio com o outro em uma
cultura compartilhada, na qual se faz necessária uma moral também
compartilhada pela sociedade, ou seja, não só individual, mas também
coletiva.
O dilema ético parece ser uma característica essencialmente humana.
Todavia, a única maneira de nos realizarmos enquanto indivíduos únicos e
singulares é desenvolver uma consciência crítica que nos permita nos
diferenciar do coletivo, realizar nossos objetivos e desejos únicos e
individuais, ainda que pertencentes ao grupo.
Para tanto, se faz necessário levar em conta os aspectos conscientes e
inconscientes, a natureza instintiva e a cultura, para que possamos nos
desenvolver enquanto indivíduos efetivamente inseridos na sociedade.
Esse equilíbrio entre realização individual e integração a um senso ético
em relação à sociedade permite que realizemos da maneira mais plena
possível a expressão do self, de modo único e singular. Podemos considerar
que Hohenheim chega muito perto dessa realização, se é que ela não chega a
acontecer efetivamente.
Referências
EDINGER, E. E. Anatomia da psique: o simbolismo alquímico na psicoterapia. São Paulo: Cultrix,
1990.
FONTANA, D. A linguagem dos símbolos. Lisboa: Editorial Estampa, 2004.
FULLMETAL Alchemist Brotherhood. Direção: Yasuhiro Irie. Produção: Hirō Maruyama, Noritomo
Yonai, Ryo Ōyama, Nobuyuki Kurashige. Roteiro: Hiroshi Õnogi. Música: Akira Senju. Tóquio:
Estúdio Bones, 2009. Baseado no mangá Fullmetal Alchemist, de Hiromu Arakawa. Disponível em:
https://www.netflix.com/title/70204981. Acesso em: 17 maio 2021.
STEIN, M. Jung: o mapa da alma. São Paulo: Cultrix, 2006.
STEVENS, A. Jung: vida e pensamento. Petrópolis: Vozes, 1993.
Notas
1 Mestre em Psicologia Clínica pelo Núcleo de Estudos Junguianos da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP) e graduada em Psicologia pela mesma instituição. E-mail para
contato: lpgimenez5@gmail.com.

2 Mestre em Psicologia Clínica pelo Núcleo de Estudos Junguianos da Pontifícia Universidade


Católica de São Paulo (PUC-SP) e graduado em Psicologia pela mesma instituição. E-mail para
contato: mdpolcino@gmail.com.

3 “Sombrio” quer dizer “advindo da sombra”. Para a psicologia analítica, esta é constituída de
conteúdos negligenciados pelo ego (eu consciente) no seu processo de estruturação, de modo que tais
conteúdos se tornam inconscientes. Os conteúdos pessoais sombrios não são essencialmente bons ou
ruins, porém, por terem sido compreendidos como alheios à personalidade, são tidos pelo sujeito como
caráter negativo.
O desenvolvimento dos irmãos Elric e a integração
da sombra
Luna Pereira Gimenez 1
Marcos Daniel Grassmann Polcino 2

ALCHEMIST É UM MANGÁ DE HIROMU ARAKAWA CUJA TEMÁTICA

F
ULLMETAL
central é a alquimia. Foi lançado em 2001 e teve duas adaptações para
anime, sendo que a primeira teve um final alternativo e a segunda, com
o subtítulo Brotherhood, seguiu o enredo do mangá. Optamos por trabalhar
nesta análise com a segunda versão do anime, que condiz com a história
original do mangá. Neste capítulo, tomaremos como foco o processo de
amadurecimento psicológico dos protagonistas, os irmãos Elric, sob a ótica
da psicologia analítica. Essa vertente teórica explora a alquimia enquanto
metáfora dos processos dinâmicos psicológicos. Essa relação enriquece a
compreensão psicológica da história de Fullmetal Alchemist, assim como da
jornada dos personagens principais.
Edward e Alphonse Elric são dois jovens irmãos alquimistas. O pai deles,
Van Hohenheim, abandona a família e, anos mais tarde, a mãe morre de uma
doença incurável.
Os irmãos tentam trazê-la de volta à vida por meio da transmutação
humana, uma técnica proibida a partir da qual se tenta criar ou modificar um
ser humano. A técnica não é bem sucedida e, no processo, Ed, o irmão mais
velho, perde uma perna, e Al perde o corpo. Numa tentativa desesperada de
salvar seu irmão, Edward sacrifica seu braço direito para unir a alma de
Alphonse a uma armadura. A perna esquerda e o braço direito de Edward são
substituídos por próteses chamadas automail, construídas por sua amiga de
infância Winry Rockbell, que também realiza sua manutenção, assim como a
da armadura de Alphonse, o novo corpo do garoto.
Edward busca se tornar um alquimista federal contratado pelo Estado para
ter acesso aos vastos recursos alquímicos disponíveis àqueles que exercem o
cargo, às ricas informações que por ali circulam e à verba para realizar
pesquisas. Os irmãos partem em uma busca pela pedra filosofal, pois
acreditam que esse é um possível meio para restaurar seus corpos,
encontrando diversos vestígios da existência desse material, até então
considerando lendário.
Os irmãos Elric: dinâmicas matriarcal e patriarcal no conflito pessoal
Nesse primeiro momento do enredo, todo o desenvolvimento e o foco dos
irmãos Elric são de cunho individual. É possível entender essa divisão do
enredo de diversas formas, sendo uma delas pensar do ponto de vista do
desenvolvimento do ciclo vital.
No âmbito da psicologia analítica, Neumann (1995) atribui estágios ao
desenvolvimento da consciência dos seres humanos que se relacionariam com
estágios arquetípicos 3 do desenvolvimento da consciência da humanidade.
O autor descreve três estágios de desenvolvimento: urobórico, matriarcal e
patriarcal.
O estágio urobórico corresponderia ao momento em que o bebê e a mãe
vivem em simbiose, sem discriminação ou diferenciação entre ambos. Já no
estágio matriarcal do desenvolvimento, existe uma iniciativa de diferenciação
entre o bebê e a mãe, porém a relação entre eles é de completa dependência.
Psicologicamente, a criança ainda não tem consciência das normas e das leis
que regem nossa sociedade, interagindo com o ambiente ainda de maneira
egocentrada em suas necessidades.
O próximo estágio, chamado de patriarcal, seria regido pelo arquétipo do
Pai. Corresponderia ao momento da emancipação do ego e da consciência, da
separação dos opostos, como o bem e o mal, o interno e o externo, o
masculino e o feminino, que traz a perspectiva do diferente. O
desenvolvimento crescente da consciência culmina na separação dos
diferentes e na hierarquização para que seja possível o exercício do poder e
das normas. Isso quer dizer que a criança começa a entender que existem
limitações para seus desejos e que está inserida numa sociedade que possui
leis e concessões.
De acordo com Byington (2009), uma próxima etapa viria após a
patriarcal, chamada de alteridade. Nesta, o indivíduo teria a capacidade de
criativamente chegar a uma síntese dos aspectos matriarcais e patriarcais. A
dinâmica arquetípica regente dessa etapa propicia uma atitude do sujeito mais
integrada com o coletivo e suas necessidades, de modo que essa interação
culminaria em um desenvolvimento individual concomitante.
Nas partes do enredo que foram discutidas até então, essa primeira etapa de
desenvolvimento dos personagens pode ser relacionada com a fase
matriarcal, devido ao papel central e quase absoluto da relação da criança
com a mãe. A primeira etapa da história está muito voltada ao desejo dos
irmãos Elric de recuperarem sua mãe.
Quando os personagens se inserem no contexto militar do estado, passam a
vivenciar as dinâmicas da etapa seguinte, a patriarcal. As características desse
contexto são predominantemente relacionadas às regras e à adaptação às
normas. Quando a história do anime se inicia, os protagonistas já estão
realizando essa transição, que é fluida e gradual, mas ainda possuem
características importantes da etapa matriarcal. Essas são expressas na
sensação de desemparo pela ausência da mãe, na ambivalência em relação
aos próprios desejos e na presença do pensamento mágico infantil de
reversibilidade, que é representado no início da narrativa pela tentativa de
trazer a mãe de volta à vida e, em seguida, no ato de reverter a perda do corpo
do irmão mais novo.
Portanto, até esse momento da história, os protagonistas estavam muito
focados em seus próprios conflitos e não tinham acesso ao conhecimento do
contexto no qual estavam inseridos. Algumas vezes, chegam a não
dimensionar o tamanho das consequências de seus atos. Logo nos primeiros
episódios, eles passam por Lior, onde desmoralizam um culto religioso,
expondo seu líder como um charlatão. Da perspectiva dos protagonistas, eles
estão prezando pela verdade, pela autonomia individual e priorizando a
tentativa de encontrar a pedra filosofal para uso próprio. Porém, estão
completamente desatentos ao fato de que essas ações criam um contexto que
leva a uma guerra civil.
Até então, eles ainda estão envolvidos com o que aconteceu no passado e o
objetivo decorrente do fato de terem tentado realizar a transmutação humana,
perdendo, consequentemente, seus corpos originais. Essa busca por realizar a
transmutação é semelhante à sua tentativa de ressuscitar sua mãe: ambas
estão embasadas na mentalidade mágica das primeiras etapas da infância, em
que não se aceitam desprazeres e há a expectativa de uma reversibilidade
total, mágica, do que foi traumático.
Podemos tomar como um primeiro marco em direção à próxima etapa o
dia em que os protagonistas decidem queimar a casa em que passaram a
infância, como uma tentativa de dizer para si mesmos que não haveria volta
para algumas coisas. O começo dessa jornada representa, também, a busca de
uma cura para a ferida psíquica originada no trauma da perda precoce da mãe.
Apesar de ter início com o desejo de ressuscitar a mãe, este evolui para a
busca da cura absoluta da ferida e culmina na cura relativa da ferida, com a
aceitação dela e do amadurecimento que ela proporcionou.
Nesse começo de transição para a etapa patriarcal, concomitantemente à
inserção dos irmãos no exército, estes passam a formar uma identidade mais
madura, voltada para um papel social: a persona 4 de um alquimista federal.
Por outro lado, eles ainda buscam uma saída mágica, a pedra filosofal, que
aqui é apresentada como uma solução absoluta, simples e imbuída de um
sentido de salvação.
Os irmãos Elric: dinâmica de alteridade no conflito pessoal e coletivo
O próximo ponto central para o desenvolvimento dos personagens é a
descoberta de que a pedra filosofal é criada a partir do sacrifício de vidas
humanas. Nesse momento, a atenção dos Elric se volta para questões
coletivas, levando-os a percepções sobre o contexto em que estavam
inseridos.
Essa mudança de uma perspectiva individual para uma coletiva, assim
como o primeiro contato com personagens receptáculos de projeções de
sombra, 5 transformam a atitude dos protagonistas para reflexões mais
profundas acerca de si mesmos e sobre a trajetória no contexto em que estão
inseridos.
Uma dessas reflexões acontece quando Alphonse encontra-se com outro
personagem cuja alma também foi fixada em uma armadura, passando a
questionar sua existência e sua autenticidade.
Nesse momento, o personagem está em uma etapa da vida em que é muito
mais acentuada a necessidade de adaptação ao ambiente externo, sem a
mediação integral da mãe, e a inserção nas normas culturais e nos códigos
sociais por meio das leis, regras e costumes. É de vital importância, nessa
etapa, a relação do indivíduo com o próprio corpo.
Até então, Al se focava em seus desejos como forma de se validar e se
compreender, porém nesse momento ele sente falta de um substrato concreto
para esses elementos psíquicos. Nessa existência fantástica de uma alma
humana que existe em um corpo originalmente inanimado, a ligação entre
armadura e alma não permite uma comunicação efetiva entre físico e
psíquico.
Alphonse: conflito entre corpo e alma
Alphonse, também conhecido como Al, não come, não dorme e não tem a
oportunidade de experienciar emoções diretamente relacionadas a sensações
corpóreas. Portanto, Al pode ser compreendido como uma metáfora da cisão
mente-corpo, 6 que causa uma sensação de que ele não é real.
De acordo com Ramos (2006), Jung estuda o fenômeno psique-corpo como
um símbolo em seu trabalho sobre psicologia e alquimia, afirmando que o
resultado do trabalho alquímico não deve ser procurado somente no corpo
nem somente na psique. Desse modo, o resultado da opus alquímica estaria
em um campo sutil e intermediário, entre a alma e a matéria, podendo
manifestar-se de ambas as formas.
Para a autora, os termos “corpo onírico, corpo subjetivo e corpo simbólico
são conceitos que se referem a um terceiro fator que transcende a dicotomia
psique-corpo: o símbolo” (RAMOS, 2006, p. 68). Porém, a percepção desse
fenômeno seria feita por meio das alterações fisiológicas somadas às imagens
simbólicas referentes aos sintomas. Os afetos possuem a capacidade de
expressão diversa, entre elas, a corpórea. De acordo com Jung (1972),
A alma e o corpo são presumivelmente um par de opostos e, como tais, são expressão de uma só
entidade. [...] Externamente, este ser é um corpo material mas, considerado do interior, parece
constituído de uma série de imagens das atividades vitais que têm lugar no organismo. (p. 619)

Quando existe uma manifestação no âmbito psíquico, sempre podemos


encontrar seu reflexo no corpo, muitas vezes apresentada como doença
quando essa é a melhor expressão simbólica possível em relação ao conflito
que a psique pode produzir como mensagem. O símbolo emergente, então,
apresentaria essa disfunção, que precisaria ser corrigida por meio da relação
entre o ego (eu consciente) e o self (personalidade total do indivíduo). A falta
de algum membro do corpo na narrativa de Fullmetal Alchemist pode
representar, simbolicamente, algo significativo na dinâmica psíquica dos
personagens, principalmente quando levamos em consideração a causa da
ausência desse membro. Ed perde a perna quando perde o apoio da mãe, e
perde o braço direito quando perde momentaneamente seu irmão e
companheiro.
Isso nos faz pensar no caso de Al, que também não está de fato em contato
com a sua totalidade psíquica, pois uma parte importante dessa totalidade
encontra-se em outra dimensão. Nesse sentido, esse aspecto disfuncional de
Al poderia ser reestabelecido na relação deste com a sua outra parte (corpo),
como veremos no decorrer da análise da trama.
Quando nos atentamos a detalhes presentes na animação, principalmente
na inscrição dos portões de cada personagem, encontramos referências
visuais de elementos cabalísticos, como diagramas e outros símbolos. Logo
antes de esse conflito em relação à autopercepção de Al ser apresentado, há
algumas referências a essa tradição. Podemos encontrar esses elementos
discutidos na Kabbalah quanto à divisão do indivíduo, ou de sua alma, em
três partes: Nefesh, Ruach e Neshama (LAITMAN, 2006).
A primeira, Nefesh, seria a parte da alma atrelada ao corpo, que dá a vida.
A segunda, Ruach, se refere ao intelecto e aos pensamentos. E a terceira,
Neshama, refere-se a uma parte divina que há em cada um (LAITMAN,
2006). A partir dessas definições, podemos fazer uma comparação com os
conceitos de corpo, ego e self da psicologia analítica. No caso de Al,
poderíamos nos referir ao seu corpo, que foi levado, à sua alma, que está na
armadura, e ao seu portão da verdade.
Considerando essas possíveis correspondências, uma interpretação do
enredo seria a de que a reestruturação da ligação do ego com o corpo deve
passar pelo contato do ego com o self. Na trama, isso corresponderia à
necessidade do corpo de Al, que fica aguardando-o junto a seu portão da
verdade. Em dado momento, a alma de Al começa a ser chamada pelo seu
corpo, para que possam se unir novamente.
A psique possui um mecanismo de autorregulação que busca o equilíbrio
sempre que possível, e a condição de cisão entre mente e corpo é uma
situação de desequilíbrio psíquico. Nesse sentido, torna-se imprescindível um
trabalho do ego em relação à elaboração desse símbolo para que essa
homeostase seja realizada, já que a alternativa de equilíbrio sem a
participação da consciência se dá pela somatização, no adoecimento do
corpo, e, no caso aqui analisado, poderíamos ter como consequência última a
morte do personagem.
Ainda que o conflito dessa cisão entre mente e corpo de Al não esteja
solucionada até esse momento da trama, ele consegue, com a ajuda de Ed,
reconhecer sua existência e ter uma autopercepção do seu eu singular,
enquanto Alphonse. Ed o reconhece e o valida, de modo que fica clara a
importância do reconhecimento, seja de um outro, da família ou da
comunidade, para que possamos nos reconhecer enquanto indivíduos.
Amadurecimento dos irmãos Elric: comprometimento individual e
coletivo
Quando se torna evidente para os irmãos Elric que sua busca pela pedra
filosofal não os levaria a uma solução mágica e sem consequências, mas
demandaria uma atitude em relação ao coletivo, eles se sentem impelidos a
repensar sua jornada. Nesse momento, há uma imposição, um interdito
atrelado à função paterna psicológica e à dinâmica patriarcal, que explicita
que todo ato de escolha possui uma consequência. A reação deles frente às
reflexões previamente apresentadas pelos personagens é de recolhimento.
Eles voltam para sua cidade natal, ainda buscando uma forma sem ônus de
recuperar seus corpos, o que mostra que nesse aspecto traumático específico
da vida eles ainda funcionam bastante na dinâmica matriarcal. É nesse
momento que há um reencontro com o pai deles, concretizando a presença do
interdito paterno que definitivamente os obriga a olhar para frente, para as
consequências, as limitações e o coletivo. Esse interdito se coloca com o
questionamento de Van Hohenheim sobre se aquilo que seus filhos haviam
criado durante a transmutação humana seria realmente sua esposa Trisha ou
não.
Ao desenterrar o cadáver, percebem que, apesar de seus esforços, os
resíduos de sua transmutação não eram uma versão de sua mãe. Ed se dá
conta da impossibilidade de ressuscitar alguém. O personagem se depara com
a morte de forma absoluta e irreparável, encerrando inequivocamente suas
aspirações de se manter em um funcionamento infantil de resoluções
mágicas, aceitando e interiorizando de forma mais madura uma perspectiva
de causa e efeito em relação aos atos e suas consequências.
Os personagens principais cada vez mais caminham para uma reafirmação
dos seus desejos e objetivos, porém sempre mais próximos de uma realização
tanto pessoal quanto em prol do coletivo, graças à percepção de que
pertencem a ele. Essa mudança de atitude se mostra importante,
principalmente tendo em vista a postura primeva dos personagens de
sentirem-se sozinhos após o abandono do pai e a morte da mãe, pois, de certa
forma, foram egoístas em relação aos seus objetivos de recuperar os corpos a
qualquer custo.
No decorrer da história, são apresentados outros personagens cujo processo
de desenvolvimento e amadurecimento complementam e influenciam os
processos dos protagonistas. Esses personagens, mesmo que secundários, não
deixam de passar por experiências complexas e ricas em simbolismo. É
justamente essa riqueza de significados que permite o impacto psicológico
nos irmãos Elric, contribuindo para seu amadurecimento e forçando-os a
rever alguns de seus conceitos e ideais.
Essa atitude mais madura também introduz os personagens gradualmente
no início da etapa da alteridade. É no encontro com o outro diferente e no
reconhecimento das necessidades deste que podemos nos desenvolver em
aspectos até então desconhecidos (FRANKEL, 2003).
Scar e a integração da sombra
Um desses personagens que têm forte influência sobre os protagonistas é
Scar, um sobrevivente do massacre de Ishval que a princípio é apresentado
como um indivíduo consumido por sua sede de vingança contra os
alquimistas federais, responsáveis pelo massacre de seu povo e pela morte de
seu irmão. Esse é um personagem que se identifica, inicialmente, com seus
aspectos sombrios. No caso de Scar, os aspectos deixados aos cuidados do
inconsciente são, em geral, considerados positivos pela sociedade, enquanto
os aspectos considerados negativos por esta constituem sua autoimagem.
O primeiro contato com esse personagem faz com que os protagonistas
tenham de lidar com a aceitação desses aspectos negativos que Scar
representa. Por serem alquimistas que transmutam a matéria e por estarem
envolvidos com o exército, Scar entende que os irmãos estariam perturbando
a ordem natural, considerada sagrada pelos ishvalianos.
Essa perturbação da ordem natural pode ser ilustrada pelo episódio em que
um dos alquimistas do Estado transmuta sua própria filha, Nina, e seu
cachorro em uma quimera, sob a pressão de produzir conhecimento científico
em prol dessa instituição. Fica claro o desprezo que Scar sente pela prática da
alquimia e por suas consequências.
Scar é um personagem que sempre leva os protagonistas a se questionarem
sobre a própria sombra. A princípio, eles se consideram inocentes pelo
massacre de Ishval e se recusam aceitar que fazem parte da instituição que o
realizou, além de estarem envolvidos em um conflito semelhante: a guerra
civil de Lior, iniciada por suas ações.
No decorrer de seus processos, eles percebem que poderiam se tornar
exatamente como Scar caso se deixassem consumir por seus sentimentos de
vingança. Compreendem, então, na relação com Winry, a importância da
capacidade de perdoar. Os pais de Winry eram médicos em Ishval, onde
cuidavam tanto dos soldados do exército quanto dos feridos ishvalianos. Eles
salvam a vida de Scar nessa guerra, mas este está consumido por sua sede de
vingança contra todos os amestrinos e os mata.
Outro ponto importante de se destacar na história de Scar é sua relação
com o irmão. Inicialmente, eles tinham personalidades complementares: Scar
era um guerreiro guiado pela fé no deus de Ishval, e seu irmão era um
estudioso que pesquisava a arte profana da alquimia, tanto a de Amestris
(ocidental) quanto a de Xing (oriental).
Essa complementaridade de irmãos é tida por Henderson (JUNG, 1964)
como correspondente aos heróis míticos Twins. Um deles seria a
representação da extroversão, e o outro, da introversão; um é capaz de
explorar os aspectos atrelados ao inconsciente e ao mundo interno, e o outro,
de lidar e se destacar na interação com o mundo externo. Seria a
complementaridade entre eles que permitiria que triunfassem.
O irmão de Scar se sacrifica e transmuta seu braço no irmão, de modo que
Scar herda o braço com tatuagens com símbolos alquímicos, que conferem a
ele o poder de exercer a alquimia. O processo de desenvolvimento de Scar
passa pela aceitação de seus pecados e de sua raiva, mas também pela
aceitação dos aspectos por ele considerados sombrios e profanos, antes
atribuídos ao irmão. Nesse ponto, ele deixa de se identificar com a sombra,
mas passa a aceitá-la, voltando a perceber em si os aspectos positivos que ele
havia tentado abandonar.
Assim, ele também passa a aceitar a alquimia estudada por seu irmão e
tatua seu braço esquerdo, completando o equilíbrio: um braço é capaz de
destruir, e o outro, de criar. Ele, então, se torna uma representação viva do
princípio alquímico do anime: os três estágios da transmutação, sendo eles a
compreensão, a decomposição e a reestruturação. Isso permite que ele integre
os dois aspectos, positivo e negativo, de modo mais abrangente em sua
personalidade, resultando em sua nova capacidade de percepção do mundo,
para além do dualismo de bem e mal.
Todo esse processo vivido por Scar se reflete no processo de
desenvolvimento dos protagonistas. A necessidade de aceitar a sombra e
trabalhar com ela pode ser vista nos esforços dos irmãos Elric de confiarem
em Scar e trabalharem juntos. Mais adiante, essa aliança torna-se um ponto-
chave para que possam derrotar o grande vilão da trama. Scar se torna o
ponto central para inverter o círculo de transmutação do homúnculo Pai.
Alteridade e elaboração do sofrimento
Conforme os irmãos avançam em seus processos de desenvolvimento de
alteridade, não apenas percebem as dores e feridas dos outros personagens,
como aprendem, a partir dessas experiências, como lidar com suas próprias
feridas. No enredo, esse desenvolvimento pode ser observado no movimento
dos protagonistas de compreender alguns antagonistas, inclusive tornando-os
aliados. Um exemplo que já apresentamos é a relação com Scar, mas há
outros casos, como os soldados quimeras e o homúnculo da ganância.
A alteridade e a empatia transformam, também, as relações mais próximas
dos irmãos, como a com sua mestre, Izumi. Ed passa a compreender a
habilidade que compartilha com sua mestra, de conseguir realizar
transmutações sem a necessidade de um círculo de transmutação, como
consequência por ter passado pelo portão da verdade, que por sua vez é o
resultado da tentativa de uma transmutação humana. Nesse processo, Ed está
atento não apenas à sua ferida, mas também à do outro, podendo, assim,
perceber o luto de Izumi em relação a seu filho natimorto. Sob essa nova
perspectiva, os irmãos Elric conseguem se abrir e perceber o caráter materno
do afeto que Izume tem por eles.
Outra parte desse processo pode ser observada na reconciliação dos irmãos
Elric com Van Hohenheim. Ao se abrirem para a experiência pessoal de
Hohenheim, tanto Al como Ed conseguem ressignificar suas próprias
experiências em relação à figura paterna. Al, com mais facilidade, e Ed,
incentivado pelo irmão, passam a permitir um contato com seu pai que
considera as feridas emocionais e seus históricos, mas que também considera
a perspectiva do outro, sendo, portanto, uma visão menos egocentrada.
Todo esse processo de elaboração por meio da relação com os outros leva
os personagens ao confronto final e a um momento de síntese desse processo.
No ápice da reaproximação com os próprios traumas e as próprias limitações,
Ed percebe que não é possível voltar para seu estado anterior, mas que seria
possível ressignificar e encontrar um novo espaço para seu sofrimento,
aceitando-o como parte de sua experiência de vida.
Com um movimento mais claro de saída de uma dinâmica psíquica
predominantemente marcada por aspectos matriarcais, Ed renuncia ao seu
portão da verdade e, assim, à sua possibilidade de realizar transmutações
alquímicas no mundo. Em troca, ele consegue recuperar o seu braço e o corpo
de Alphonse, aceitando as marcas e as dores de suas vivências como parte de
seu processo de crescimento individual, dando continuidade à sua alquimia
psíquica. Podemos entender que essa aceitação é representada na
permanência da cicatriz que fica no braço direito do Ed, assim como da sua
prótese mecânica da perna esquerda. Há marcas de dores em sua relação com
o irmão, a cicatriz, e há a lacuna deixada pela morte da mãe, a falta da perna,
onde se encontra uma prótese, uma nova relação materna desenvolvida com
Izumi.
Ao final da narrativa, Ed e Al estão se separando para estudar diferentes
formas de alquimia. Ao aceitarem as marcas de seus sofrimentos, eles deixam
de buscar a reversibilidade e passam a valorizar o desenvolvimento e o
crescimento. Os irmãos Elric deixam de ser guiados por seus passados e
passam a buscar novos horizontes.
Referências
BYINGTON, C. A. B. Diálogos com o prof. dr. Carlos Amadeu Botelho Byington. Aula ministrada
no Núcleo de estudos Junguianos da pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). São
Paulo, 2009. Disponível em:
https://www5.pucsp.br/jung/portugues/publicacoes/artigos_dialogos_prof_carlos_byington.html.
Acesso em: 7 mar. 2017.
FRANKEL, R. The Adolescent Psyche: Junguian Perspetctives. Hove e Noa York: Brunner-
Routledge, 2003.
JUNG, C. G. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1964.
JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Obras Completas, v. 9/1. Petrópolis: Vozes,
2013.
JUNG, C. G. The structure and dynamics of the psyche. Collected works, v. 8. Princeton: Routledge,
1972.
LAITMAN, M. Kabbalah, Science and the Meaning of Life: Because Your Life Has Meaning.
Brooklyn, NY: Laitman Kabbalah Publishers, 2006.
NEUMANN, E. História da origem da consciência. São Paulo: Cultrix, 1995.
RAMOS, D. G. A psique do corpo: a dimensão simbólica da doença. 5. ed. São Paulo: Summus, 2006.
STEIN, M. Jung: o mapa da alma. São Paulo: Cultrix, 2006.
Notas
1 Mestre em Psicologia Clínica pelo Núcleo de Estudos Junguianos da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP) e graduada em Psicologia pela mesma instituição. E-mail para
contato: lpgimenez5@gmail.com.

2 Mestre em Psicologia Clínica pelo Núcleo de Estudos Junguianos da Pontifícia Universidade


Católica de São Paulo (PUC-SP) e graduado em Psicologia pela mesma instituição. E-mail para
contato: mdpolcino@gmail.com.

3 Sobre os arquétipos, Jung postula que “Há tantos arquétipos quantas situações típicas na vida.
Intermináveis repetições imprimiram essas experiências na constituição psíquica, não sob a forma de
imagens preenchidas de um conteúdo, mas precipuamente apenas formas sem conteúdo, representando
a mera possibilidade de um determinado tipo de percepção e ação” (2013, p. 58).

4 Persona: “segmento da psique que tem a função de adaptação na sociedade e se relaciona com os
papéis que devem ser desempenhados nesta. Geralmente, o ego se identifica com a persona quando o
indivíduo entende que é aquilo que a sociedade espera dele quando desempenha determinado papel
social” (STEIN, 2006, p. 102-104).

5 Sombra: para a psicologia analítica, a sombra se constitui de conteúdos negligenciados pelo ego (eu
consciente) no seu processo de estruturação, de modo que tais conteúdos tornam-se inconscientes. Os
conteúdos pessoais sombrios não são essencialmente bons ou ruins, porém, por terem sido
compreendidos como alheios à personalidade, são tidos pelo sujeito com caráter negativo.

6 Ressaltamos que, embora o anime se refira à alma e ao corpo de Alphonse, quando refletimos sobre
o processo psíquico trabalharemos também com o conceito de mente e corpo.
2021

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