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Dominique Combe

Tradução de Iside Mesquita e Vagner Camilo


Dominique Combe é professor de Literatura Francesa da Universidade
Sorbonne Nouvelle – Paris III e, atualmente, professor-visitante de Litera-
tura Francesa do Wadham College de Oxford. É autor de vários estudos
relacionados à poética dos gêneros literários, às relações entre literatura e
filosofia, à poesia francesa dos séculos XIX e XX e à poética das literaturas
francófonas.
Dentre os trabalhos por ele publicados, vale destacar Poésie et Récit:
une Rhétorique des Genres (Paris, José Corti, 1989), La Pensée et le Style
(Paris, Éd. Universitaires, 1991), Les Genres Littéraires (Paris, Hachette,
1992) e Poétiques francophones (Paris, Hachette, 1995); a organização e o
estudo introdutório da edição de Arthur Rimbaud, Poésies – Une Saison
en Enfer – Illuminations (Paris, Gallimard, 2004), a edição comentada de
Yves Bonnefoy, Les Planches Courbes (Paris, Gallimard, 2005), e a do
antilhano Aimé Césaire, Cahier d’un Retour au Pays Natal (Paris, PUF,
1993), além de ensaios sobre a poesia surrealista do belga Paul Nougé e a
poesia “científica” do franco-romeno Lorand Gaspar, entre outros autores e
temas. No Brasil, Combe tem apenas um ensaio publicado, mas em francês,
“La Nostalgie de l’Épique”, originalmente uma conferência proferida na
UFF, depois recolhida no volume intitulado Subjetividades em Devir (Rio
de Janeiro, 7Letras, 2008).
O ensaio ora traduzido integra o livro Figures du Sujet Lyrique (Paris, PUF,
1996), organizado por Dominique Rabaté, que também dedicou ao mesmo
tema um número da revista Modernités (Le Sujet Lyrique en Question). O
livro conta ainda com a colaboração de conhecidos críticos franceses, como
Michel Collot, Yves Vadé e Laurent Jenny, além do poeta Jean-Michel
Maulpoix, tornando-se referência obrigatória sobre o assunto.
Combe historia aqui a gênese do conceito de eu lírico, seus desdobra-
mentos e impasses na tradição teórica alemã, sobretudo. Busca, por fim,
superar tais impasses por meio de uma concepção dialética desse eu lírico,
a um só tempo referencial e ficcional, que não existe previamente, mas se
cria ou se constitui no e pelo texto.
Agradecemos ao autor e à Presses Universitaires de France (PUF) por
autorizarem a tradução e a publicação do ensaio em separado.

Os tradutores
diz “eu” é fictício ou não – uma vez que, por
definição, no discurso literário, tanto poéti-
co como romanesco, o autor como pessoa
está ausente, e o “eu” é um puro sujeito da
enunciação. Desse fato decorre que só pode
haver, a rigor, distinção entre o sujeito da
enunciação e o sujeito do enunciado. No
entanto, e precisamente porque ela concebe
a constituição de um sujeito diferente do
sujeito referencial, a noção de sujeito lírico
abre-se para uma análise do texto poético
deliberadamente distinta das perspectivas
biografistas e historicistas. Profundamente
marcada pela fenomenologia de Husserl,
a crítica alemã aplica-se essencialmente
à descrição e à análise do funcionamento
do texto poético e à presença textual do
sujeito, confluindo para a exigência de uma
crítica interna.

hipótese de um “eu lírico”


ou de um “sujeito lírico” co- GÊNESE E HISTÓRIA DO
nheceu, nos estudos críticos
e na teoria literária de língua CONCEITO DE “SUJEITO LÍRICO”
alemã, uma fortuna crítica considerável,
que opõe, frequentemente, um lyrisches
Ich da poesia ao sujeito “real”, “autêntico” A subjetividade romântica
ou ainda “empírico” da obra em prosa e,
sobretudo, dos gêneros autobiográficos. A problemática do “sujeito lírico” (lyris-
Essa oposição se estabelece a propósito ches Ich) procede, em grande medida, da
do tema sempre controverso da referência herança filosófica e crítica do Romantismo
no discurso poético, e sobre a relação entre alemão que se difundiu primeiro na Ingla-
1 Paul de Man, Lyric and Mo­ poesia lírica e ficção. terra, em seguida na França e depois por
dernity. Blindness and Insight: Tal hipótese está, sem dúvida, estreita- toda a Europa. A tripartição retórica pseu-
Essays in the Rhetoric of Con­
temporary Criticism, Londres, mente ligada ao privilégio que a tradição doaristotélica nos gêneros épico, dramático
Methuen, 1986 (nova ed.). alemã, diferentemente das críticas francesa e lírico, como demonstra Gérard Genette3,
W. Iser intitula de maneira
e anglo-saxã, atribui à poesia, ao “lirismo” foi relida por A. W. Schlegel e, de maneira
significativa o II volume de
pesquisas como Poetik und para definir a modernidade1. O objeto central mais geral, pelos românticos alemães, à luz
Hermeneutik: Immanente da análise, tanto para o new criticism como da distinção gramatical entre as pessoas. É
Aesthetik,Aesthetische Refle­
xion: Lyrik als Paradigma der para o estruturalismo francês dos anos 60- dessa forma que, para Schlegel, assim como
Moderne [Poética e Herme­ 70, é, com efeito, a narrativa em prosa e depois dele para Hegel, a poesia lírica é
nêutica: Estética Imanente,
Reflexão Estética: a Lírica suas técnicas de enunciação, de forma que, essencialmente “subjetiva” em função do
como Paradigma da Moder­ se há um sujeito (em todos os sentidos do papel preeminente que ela confere ao “eu”,
nidade] (Munique, 1966).
termo) digno de interesse, é justamente enquanto a poesia dramática é “objetiva”
2 Cf. Thomas Pavel, Le Mirage
aquele que se enuncia no romance e não (tu/você) e a épica, “objetivo-subjetiva”
Linguistique, Paris, Minuit,
1990 [Trad. port. A Miragem no poema. Além disso, o postulado de ins- (ele). A Estética de Hegel, posterior ao
Linguística – Ensaio sobre a piração saussuriana de um fechamento do Romantismo, realiza de alguma forma a
Modernização Intelectual,
Campinas, Pontes, 1990]. texto, que prevalece nessas duas correntes síntese dessa concepção romântica e lega
3 Introduction à l´architexte,
críticas2, torna, de todo modo, obsoleta a à poética moderna o postulado da “subje-
Paris, Seuil, 1979. questão de saber se, no poema, aquele que tividade” lírica:

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“O conteúdo da poesia lírica não é o de- não representa senão os fragmentos de uma
senvolvimento de uma ação objetiva que grande confissão”6. Para Mme. de Staël, que
se amplia em suas conexões até os limites faz ressoar em 1813 os principais temas do
do mundo, em toda sua riqueza, mas o Romantismo de Iena – através de August
sujeito individual e, consequentemente, as Wilhelm Schlegel – para introduzi-los na
situações e os objetos particulares, assim França de maneira retumbante, a poesia
como a maneira pela qual a alma, com lírica é igualmente definida pela expressão
seus juízos subjetivos, suas alegrias, suas imediata do “eu” do poeta: “A poesia lírica
admirações, suas dores e suas sensações, é expressa em nome do próprio autor”7,
toma consciência de si mesma no âmago por oposição à poesia épica ou, sobretudo,
deste conteúdo”4. à dramática, segundo a clássica tripartição
retórica pseudoaristotélica: “Não é mais em
É desse modo que se impõe a ideia nor- um personagem que o poeta se transforma,
malmente difundida, ainda hoje, de que a é nele mesmo”. O lirismo é assim marcado
poesia lírica tem como vocação “exprimir” por seu caráter “natural”, oposto por Mme.
os sentimentos, os estados de espírito do de Staël ao artifício, ao “factício” da prosa.
sujeito na sua “interioridade” e em sua Através do tema do “personagem” do qual
“profundidade”, e não a de representar o se distinguiria, o poeta se perfila à ideia,
mundo “exterior” e “objetivo”. O lirismo se ainda hoje implicitamente aceita, de que
confunde com a poesia “pessoal” e mesmo a poesia lírica exclui a ficção, mesmo se,
“intimista”, e privilegia, assim, a introspec- até o século XVIII, os poemas fundavam-
ção meditativa, o mais das vezes em tom se amiúde em uma “fábula” mitológica,
melancólico, como indica a moda da elegia. religiosa ou alegórica. Concebe-se como
A subjetividade lírica, por natureza intro- a faculdade mestra do lirismo não tanto a
vertida, é essencialmente narcisista. Essa imaginação, mas a memória, pois a poesia
distribuição retórica dos gêneros, fundada oferece a verdade da vida. O Romantismo
na oposição filosófica entre o subjetivo e o pressupõe a transparência do sujeito, o
objetivo, atravessa o Romantismo europeu que permite ao exegeta ler o poema como
como algo evidente. Vigny observa, por a “expressão” (Ausdruck) do “eu” criador.
exemplo, no seu Diário de um Poeta em É, ainda, necessário que a linguagem seja
1839: “Há mais força, dignidade e grandeza adequada ao ser e à pessoa, e por isso, que
nos poetas objetivos épicos e dramáticos se possa conhecer a pessoa “em si”, indepen-
como Homero, Shakespeare, Dante, Moliè- dentemente de sua obra. Para que o crítico
re ou Corneille, do que nos poetas subjetivos possa abordar a questão da autenticidade
ou elegíacos que representam a si mesmos da obra, isto é, de sua “verdade”, ele deve
lamentando seus tormentos secretos como poder confrontá-la com o conhecimento
Petrarca e outros”5. irrefutável da identidade do poeta, de seu
Nessas condições, “o centro e o conteúdo caráter, de sua personalidade, etc.
4 Esthétique, trad. francesa S.
próprio da poesia lírica é o sujeito poético Mas, para atingir o verdadeiro, a Jankélevitch, Paris, Flamma-
concreto, em outras palavras, o poeta”, concepção “biografizante” deve postular rion, 1979, pp.176-7 [trad.
mesmo que ele esteja investido de um co- a “sinceridade” do poeta, que para tanto port.: Cursos de Estética, São
Paulo, Edusp, 2005, v. 4].
eficiente de universalidade que faz dele um surge ainda como “sujeito ético”, pois esse
5 Journal d’un Poete, Paris,
arquétipo da humanidade. O sujeito lírico é postulado remete não apenas à psicologia, Gallimard (Bibliothèque de
a expressão do poeta na sua autenticidade. mas também e, sobretudo, à “moral”, ao la Pléiade), p. 1.121.
Goethe, em sua autobiografia Aus meinem colocar uma atitude voluntária e responsável 6 Trad. francesa de P. du Co-
Leben – Dichtung und Wahrheit (Da Mi- do escritor frente à linguagem: o poeta não lombier, Paris, Aubier, 1941,
reed. 1991, p. 185 [trad.
nha Vida: Poesia e Verdade), apresenta poderia “mentir”, ou seja, ter a intenção de port.: Memórias: Poesia e
diretamente o problema das relações entre enganar seu leitor. Assim, o sujeito poé­ Verdade, São Paulo, Hucitec,
1986].
arte e vida, poesia e verdade, relacionando tico, que é igualmente o sujeito “real”, é
7 De l’Allemagne, I, Paris,
toda criação à experiência vivida: “Assim, também e, sobretudo, um sujeito “ético”, Garnier-Flammarion, 1968,
então, tudo o que foi publicado por mim plenamente responsável por seus atos e p. 206.

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palavras, e, por isso mesmo, um sujeito de capítulo V, evoca Arquíloco como exemplo
direito. É em nome dessa concepção que emblemático do poeta lírico em termos
Baudelaire será condenado por As Flores ainda hegelianos (mas também, sem dúvi-
do Mal, obra em que os juízes poderão da, schlegelianos) da “objetividade” e da
ler a expressão direta e imediata do “eu” “subjetividade”:
de Charles Baudelaire. A ideia romântica
do poema como “confissão” do artista “Nós que consideramos o artista subjetivo
atesta a dimensão moral – se não mesmo um mau artista, e que exigimos que, na arte,
religiosa – da definição autobiográfica. em qualquer gênero e em todos os níveis, a
A questão da ficção e do “artifício” princípio e, sobretudo, se supere o subjetivo,
fica deslocada para o Romantismo uma que se realize a libertação do ‘eu’ e que se
vez que não se trata aqui de um sujeito imponha o silêncio a todas as formas indi-
especificamente lírico e que, na poesia, viduais da vontade e do desejo – sim, nós
toda subjetividade é lírica. Para que surja o consideramos que, sem objetividade, sem
problema de um estatuto original e particular contemplação pura e desinteressada, não
do sujeito na poesia lírica – por oposição, nos será jamais possível acreditar em um
por exemplo, ao sujeito do poema épico mínimo de criação artística verdadeira”8.
ou do romance –, ainda é necessário que o
tema da autenticidade se apresente como Mas o discípulo entusiasta de Schope-
passível de discussão. A reflexão sobre o nhauer, cuja sombra se perfila por trás do
estatuto do sujeito lírico nasce estreitamente tema das “formas individuais da vontade e
ligada à crítica do pensamento romântico e do desejo”, se defronta com o fato de que
das filosofias da “expressão”, fundadas no Arquíloco fala, no entanto, em primeira
mito de um ser originário aquém da lingua- pessoa: como conciliar a presença grama-
gem. A distinção entre um sujeito “lírico” e tical do “eu” com a exigência estética da
um sujeito “empírico” (ou “real”) deve ser objetividade, a não ser forjando o modelo
compreendida no seio do debate filosófico de um “eu” impessoal – de alguma maneira
sobre os temas centrais do Romantismo, transcendental, e que parece situado na ori-
que se desenvolve na Alemanha a partir gem do “eu lírico”: “Como é possível pensar
dos anos 1815-20. o poeta lírico como artista, ele que, a partir
da experiência de todos os tempos, é quem
diz sempre ‘eu’ e não para de nos desfiar
toda uma gama cromática das suas paixões
A dissolução do “eu” e desejos?”9. É aqui que Nietzsche traz sua
marca pessoal ao reinterpretar a distribuição
O próprio Romantismo se caracteriza retórica dos gêneros segundo uma oposição
por uma “dupla postulação” a respeito do estética fundamental entre o lirismo da em-
“eu” do artista, que se exalta de maneira briaguez dionisíaca e o épico da “forma”
ostensiva – de Fichte a Maine de Biran, de apolínea, da representação plástica. Ora,
Chateaubriand a Musset – ao mesmo tempo precisamente, “no processo dionisíaco,
em que se funde simultânea e contradito- o artista abdicou de sua subjetividade”,
riamente ao Todo cósmico – de Schelling a “o gênio lírico” está em “estado de união
Novalis, de Maurice de Guérin a Hugo. É mística e de despojamento de si mesmo”,
8 La Naissance de la Tragédie. esse segundo postulado que parece triunfar de maneira que o “‘eu’ do poeta ecoa desde
Trad. francesa P. Lacoue-
Labarthe, Paris, Gallimard
na herança schopenhaueriana e nietzschiana o abismo mais profundo do Ser; sua ‘subje-
(Col. Folio-Essais), 1986, p. do Romantismo aplicada à arte, uma vez tividade’, no sentido da estética moderna,
43 [trad. port.: O Nascimen­
que retoma o problema da “subjetividade” é pura quimera”10. O estado dionisíaco em
to da Tragédia, São Paulo,
Companhia das Letras, sobre bases anti-hegelianas. Na elaboração que o poeta lírico está mergulhado remete à
1999]. do conceito de sujeito lírico, sob esse ponto fusão do sujeito com o fundo indiferenciado
9 Idem. de vista, O Nascimento da Tragédia (1872) da Natureza sobre a forma de participação,
10 Op. cit., p. 44. representa uma etapa capital. Nietzsche, no e, através do “eu”, quem fala é, em suma, a

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voz do Abgrund [abismo]. Aqui a metafísica o poeta se entrega ao rito elitista de uma
schopenhaueriana do Wille [da Vontade] obra sacralizada. Stefan George está no
reencontra a tradição romântica de uma cruzamento do nietzschianismo, que então
Naturphilosophie [filosofia da natureza] de invade o discurso crítico, e do Simbolismo,
inspiração nitidamente schlegeliana. É essa que ele mesmo contribui para difundir como
metafísica da união cósmica que suscita a meio de renovar o lirismo. A subjetividade
formulação – sem dúvida a primeira, pelo dionisíaca encontra, então, o ideal baudelai-
menos como expressão mais clara – da riano de uma poesia “impessoal” (“a impes-
tese de um “eu lírico” trespassado pelas soalidade voluntária dos meus poemas”); a
forças cósmicas do universal e oposto ao busca de Rimbaud por uma poesia objetiva
“princípio de individuação” apolíneo de em que “eu é um outro”; a constatação de
inspiração schopenhaueriana: “Pois este Ducasse de que “a poesia pessoal já marcou
‘eu’ não é da mesma natureza que o do sua época de malabarismos e acrobacias
homem desperto, o do homem empírico contingentes” e que é tempo de retomar
real”11. Mais tarde, ao aproximar-se da obra “o fio indestrutível da poesia impessoal”;
de Baudelaire, Nietzsche encontrará em As e, sobretudo, a exigência de Mallarmé do
Flores do Mal a realização desse ideal de “desaparecimento elocutório do poeta” até
um lirismo transpessoal. Eis assim o quanto a “morte”. Se não é plausível que O Nasci-
a noção de “eu lírico” parece vinculada à mento da Tragédia, traduzida para o francês
crise filosófica que atravessa o sujeito após somente em 1901, tenha podido influenciar
o Romantismo, e que Nietzsche, ao criticar Mallarmé – nem, aliás, qualquer dos poetas
Descartes, levará ao extremo, denunciando da sua geração, uma vez que Nietzsche foi
a ilusão gramatical de um “eu” e da cons- introduzido na França somente por volta
ciência de si no Cogito. de 1880 –, pode-se conjeturar, ao contrá-
rio, que o filósofo alemão, que conhecia
suficientemente bem a literatura francesa,
tenha visto suas intuições corroboradas
A impessoalidade simbolista nas leituras de Baudelaire. Isso significa
que o encontro da poesia francesa dos anos
Mas é o encontro dessa filosofia pós- 1860-80 (poder-se-ia, igualmente, evocar
romântica schopenhaueriana e nietzschia- pela mesma época, a vontade de impessoa­
na com a poesia simbolista francesa que lidade dos parnasianos) com as filosofias
assegura a difusão e o aprofundamento do pós-românticas favoreceu, na Alemanha, o
tema do “eu lírico” na virada do século. desenvolvimento do conceito de lyrisches
O problema da identidade, formulado de Ich. Convém ressaltar que, nesse contexto,
maneira definitiva por Goethe no subtítulo a expressão não é apenas uma categoria
Dichtung und Wahrheit (poesia e verdade) descritiva do discurso crítico (como ocorrerá
de sua autobiografia Aus meinem Leben, mais tarde), mas antes um ideal estético
continua a ocupar um lugar central para os que busca reagir violentamente contra os
poetas de língua alemã que circulam em excessos da sensibilidade romântica, tal
torno de Stefan George. Com efeito, não é como fizeram os simbolistas franceses e
absolutamente fortuito que a sistematiza- seus contemporâneos Rimbaud ou Lautréa-
ção crítica do lyrisches Ich, para além dos mont. Hofmannsthal12, na Carta de Lorde
círculos filosóficos, se efetive por volta Chandos (1902), que manifesta suspeitas em
de 1900, no interior do grupo poético de relação aos poderes da linguagem, amplia
Stefan George, profundamente marcado a distância entre poesia e vida. Já em uma
por Baudelaire, Mallarmé e os simbolistas conferência de 1896, ele pede que os poetas
franceses, traduzidos e comentados como sejam louvados por sua arte da linguagem,
11 Op. cit., p. 45.
modelos de uma “poesia pura”, em reação pois “da poesia nenhum caminho conduz à
12 Que colaborou, durante um
ao Naturalismo e à poesia social. Conside- vida e da vida nenhum conduz à poesia” de período, na revista de Ge-
rando que a vida do poeta importa pouco, modo que todo propósito autobiográfico se orge, Blätter für die Kunst.

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revela totalmente vão: “Em contrapartida, por sua repercussão afetiva e intelectual, e
caso se busquem confissões, é necessário de restituir assim ao texto a espessura e a
encontrá-las nas memórias dos homens riqueza da vida do criador. Se, por um lado,
de Estado e dos literatos, no testemunho não se pode acusar Dilthey de cientificis-
dos médicos, das bailarinas e dos come- ta, pois combateu ardentemente qualquer
dores de ópio”13. Gottfried Benn, em uma redução positivista do humano a discursos
conferência de 195614 que, embora tardia, “explicativos”, por outro, pode-se dizer que
reconstitui o clima artístico das vanguardas ele contribuiu em “compreender” se não
dos anos 20 que ele conheceu muito bem, em “explicar” a obra pela vida do autor16:
reflete sobre os traços definidores do “eu “A mais alta compreensão da literatura
lírico” moderno, marcado, segundo ele, seria alcançada se fosse possível apontar as
por uma “dupla visada” – do lado da obra determinações internas e externas do poeta,
criada e, simultaneamente, da “filosofia nas quais, para cada um deles, consiste o
da composição” – e pelo deslocamento do conteúdo […]”17. Assim, em reação à her-
“eu” em direção a um “ele”. Assim, todo menêutica de Dilthey, impõe-se a ideia de
poema lírico, segundo Benn, surge como uma crítica interna, e, com ela, a tese de
um “questionamento do eu” (Frage nach um “eu lírico”. Walter Benjamin, em um
dem Ich), ainda mais porque, desde Mari- importante ensaio de 1922, igualmente con-
netti, são numerosos os que se dedicaram sagrado a Goethe e, mais particularmente,
a “destruir o ‘eu’ na literatura”. às Afinidades Eletivas, em nome da lógica
interna da obra, se insurge contra a crítica
biográfica e a filologia que, segundo ele,
“não se define ainda por uma investigação
A sistematização crítica sobre as palavras e as coisas”, e continua
partindo da “essência e da vida, se não
A problemática do sujeito lírico se para inferir dela o conceito de obra como
inscreve, portanto, dentro do pensamento produto, ao menos para estabelecer com ela
alemão, no cerne de uma reflexão mais uma inútil concordância”18. É no quadro
ampla sobre as relações entre literatura e desse debate metodológico sobre as fontes
13 Poésie et Vie, Lettre de Lord vida aberta por Goethe em Dichtung und biográficas que se deve recolocar o tema do
Chandos et Autres Textes, Wahrheit (Poesia e Verdade). Essa reflexão sujeito lírico.
trad. francesa J.-C. Schneider
e A. Cohn, Paris, Gallimard segue adiante com críticos e filósofos que
(Col. Poésie), 1992, p. 27. discutem as teses de Dilthey, cuja influência
14 Probleme der Lyrik, Essays, sobre os métodos das ciências humanas é
Reden, Vorträge [Problemas
da Lírica: Ensaios, Discursos,
determinante dentro e fora da Alemanha Da filologia à fenomenologia
Conferências], Wiesbaden, no início do século XX. Em Das Erlebnis
Limes Verlag, 1959, pp. 494- und die Dichtung (Vida e poesia)15, justa- Em Das Wesen der modernen Deuts-
532.
mente numa passagem em que interpreta chen Lyrik (A Essência da Lírica Moderna
15 “Goethe und die dischte-
rische Phantasie”, in Das
o livro de Goethe, Dilthey estabelece um Alemã), de 1910, Margarete Susman, que
Erlebnis und die Dichtung nexo essencial entre a vida do poeta e o ato pertence então ao círculo de Stefan George,
[“Goethe e a Fantasia Poéti-
poético: “O conteúdo de um poema […] rompe com a análise “identificatória” para
ca”, in Vida e Poesia], Leipzig,
Teubner, 1906. encontra seu fundamento na experiência defender, a partir de exemplos tomados de
16 Dilthey opõe o versteben vivida do poeta e no conjunto de ideias Nietzsche, Stefan George, Hofmannsthal e
(compreender), próprio às encerrado nela. A chave da criação poética Rilke, a tese de um lyrisches Ich por trás
ciências humanas, à l’erklären
(explicar), das ciências físi-
é sempre a experiência e sua significação na do qual se dissimula o autor. De forma
cas. experiência existencial”. Mas para Dilthey assumidamente polêmica, ela denuncia o
17 Dilthey, op. cit., p. 160. não se trata tanto de explicar a obra pelo mito romântico da autenticidade ao afirmar
18 “Les Affinités Électives”, in fato ou acontecimento biográfico, como no que “o ‘eu’ lírico não é um ‘eu’ no sentido
Essais I, 1922-1934, trad. positivismo de Taine, quanto de buscar a empírico”, mas a “forma de um Eu”, isto é,
francês M. de Gandillac, Paris,
Gonthier-Denoël (Col. Mé-
experiência decisiva – l’Erlebnis –, que não uma criação de ordem “mítica”, de forma
diations), 1971-1983, p. 65. se destaca por seu caráter anedótico, mas que a poesia como Dichtung se afasta deli-

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beradamente da realidade (Wirklichkeit). O ‘ele’”. É na obra de Hugo Friedrich, Estru-
conceito é retomado, a partir de 1912, por tura da Lírica Moderna (1956), consagrada
Oskar Walzel, primeiro em Leben, Erleben principalmente à poesia francesa moderna
und Dichten. Ein Versuch (Vida, Experiên- a partir de Baudelaire, que é retomada de
cia e Poesia. Uma Tentativa), depois num maneira sistemática e amplificada a dico-
artigo de 1916, “Schicksale des lyrischen tomia entre o sujeito “lírico”, totalmente
Ich” (“Destinos do eu Lírico”)19, que de- “despersonalizado” (ou “impessoalizado”,
senvolve a tese de uma “desegotização” como escrevia Mallarmé a propósito do
(Entichung) do “eu” na poesia lírica – de “Livro”) e o sujeito “empírico”. Interpre-
uma “despersonalização” (Entpersönnli- tando a poética mallarmeana, Friedrich
chung), conforme um termo ulteriormente não deixa de vincular a despersonalização
retomado por Hugo Friedrich. Comentando do sujeito à “desrealização” do mundo e
um poema de Goe­the, Walzel afirma que à “descoisificação” dos objetos, dentro
“no lirismo puro o ‘eu’ não é um ‘eu’ sub- de um amplo movimento de abstração.
jetivo e pessoal”, mas uma “máscara” – de Segundo ele, “com Baudelaire começa a
acordo com um tema muito nietzschiano despersonalização da poesia moderna”20.
–, chegando inclusive a mostrar que “o Tendo em vista que “quase todos os poemas
‘eu’ do lirismo puro é tão pouco pessoal de Baudelaire são escritos em primeira
e subjetivo que se torna parecido com um pessoa”, deve-se concluir pela existência
separada de um sujeito distinto do autor
real. Cabe a Rimbaud levar a cabo esse
processo de desumanização que privilegia
a imaginação sobre a autobiografia: “Com
Rimbaud realiza-se a separação entre o
sujeito que escreve e o eu empírico”, e
o sujeito converte-se em uma espécie de
sujeito “coletivo”.
Quando Käte Hamburger se coloca na
contramão da tese do Lyrisches Ich, em Die
Logik der Dichtung (A Lógica da Criação
Literária, 1957), sem dúvida alguma, a
obra mais importante sobre a questão,
e que suscitou numerosas discussões e
polêmicas na Alemanha e nos Estados
Unidos, mas não na França, onde ela só
foi traduzida em 1986 (ou seja, trinta anos
depois da sua publicação!) – para defender
a ideia de uma enunciação “real”, ela não
deixa de citar Hugo Friedrich para melhor
demarcar sua posição. Como discípula de 19 Retomado em Das Wort­
kunstwerk, Mittel seiner Er­
Husserl, ela transpõe a problemática da forschung [A Obra de Arte
“ficção”, reservada ao romance e ao teatro, Feita de Palavras; Meios para
sua Investigação], Heidel-
e da “realidade” (o lirismo) para o plano da berg, Quelle & Meyer, 1968,
filosofia da linguagem e, sobretudo, da feno- pp. 260-76.
menologia21. É no terreno da fenomenologia 20 Trad. francesa Denoël-
que ela polemiza longamente com o filósofo Gonthier, 1976, pp. 41 e
segs. [trad. port.: Estrutura
polonês Roman Ingarden, outro discípulo da Lírica Moderna, São Paulo,
de Husserl, que em Das literarische Kuns- Duas Cidades, 1978].

twerk (A Obra de Arte Literária, 1935), 21 É ainda a dicotomia de


Goethe – Dichtung,Wahrheit
afirma que numa obra literária a enunciação – que domina o discurso
é “fingida” assim como os juízos lógicos crítico.

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são apenas “quase-juízos”. Pode-se inferir do discurso”25. O critério original da distinção
desse postulado (ainda que Ingarden não entre o sujeito “empírico” e “lírico”, entre a
aborde tal questão) que o sujeito da poesia referência biográfica e a ficção se encontra
lírica não escapa à “ficcionalização” que o assim deslocado, de forma que a noção
separa radicalmente da experiência da vida. mesma de “sujeito lírico” é esvaziada de
Käte Hamburger retoma a problemática conteúdo: pode-se continuar falando desde
apresentada por Goethe em Dichtung und então de lyrisches Ich, como o faz a crítica,
Wahrheit reabilitando a ideia da “experi- para designar algo que não seja o simples
ência” (Erlebnis), de forma que se encerra sujeito da enunciação poética? Quando
assim o círculo da história do conceito de Karl Pestalozzi busca descrever em livro
“sujeito lírico”. de 197026 o “nascimento do eu lírico” (Die
O tema do sujeito lírico parece hoje re- Enstehung des lyrischen Ich), essa noção já
meter a uma acepção mais ampla no discurso se tornara “histórica”, o que quer dizer talvez
crítico alemão. Se subsiste a noção de um “superada” (no sentido dialético).
lyrisches Ich específico, esse se define essen-
cialmente por seu caráter problemático ou
mesmo hipotético, e, de modo mais preciso,
pela dificuldade de fixá-lo e identificá-lo. O SUJEITO FICCIONAL E SUJEITO
caminho percorrido por Karlheinz Stierle, a
partir de seu artigo de 1964, “Moglichkeiten AUTOBIOGRÁFICO
des dunklen Stils in den Anfängen moderner
Lyrik in Frankreich” (“Possibilidades do A gênese do conceito de “sujeito lírico”
Estilo Obscuro nos Princípios da Lírica é, portanto, inseparável da questão das rela-
Moderna na França”)22, é significativo dessa ções entre literatura e biografia, e do proble-
evolução. Nesse trabalho, Stierle ressalta ma da “referencialidade” da obra literária.
como em Nerval, Mallarmé e Rimbaud a Mas, ao refletirmos sobre as implicações
obscuridade tende à destruição dos dados dessa hipótese, parece que o sujeito “lírico”
referenciais e à reconstrução do “eu” em não se opõe tanto ao sujeito “empírico”,
um sujeito lírico: “O leitor é obrigado a “real” – à pessoa do autor –, por definição
adotar o ponto de vista de um sujeito lírico, exterior à literatura e à linguagem, como ao
cujas experiências subjetivas míticas, com sujeito “autobiográfico”, que é a expressão
seus paradoxos, seus duplos sentidos, suas literária desse sujeito “empírico”. O poeta
suposições implícitas, suas transições im- lírico não se opõe tanto ao autor quanto ao
previstas se subtraem à sua participação”23. autobiógrafo como sujeito da enunciação
De fato, com vinte anos de distância, Stierle e do enunciado.
continua afirmando que “o discurso lírico
não se situa na perspectiva de um sujeito
real, mas na de um sujeito lírico”24, embora
não confira a este um estatuto “ficcional”. O poema autobiográfico
Segundo ele, o sujeito lírico é, antes de tudo,
22 In W. Iser (ed.), Immanente um “sujeito problemático”, “em busca de O conceito de “eu lírico” parece então
Aesthetik, Aesthetische Re­
identidade” e cuja única “autenticidade” se contrapor diretamente ao lirismo au-
flexion, Lyric als Paradigma
der Moderne, Poetik und reside justamente nessa busca: “Há pouco tobiográfico e, particularmente, contra a
Hermeneutik II, Munique,W. interesse em saber se essa configuração tem possibilidade de uma poesia autobiográfica
Fink, 1964, pp. 157-94.
origem em um dado autobiográfico, qualquer em sentido estrito, conforme a definição de
23 Tradução do autor.
que seja este, ou, ao contrário, em uma cons- “pacto autobiográfico” proposta por Philip­
24 “Identité du Discours et
telação ficcional. A ‘autenticidade’ do sujeito pe Lejeune. O critério autobiográfico, com
Transgression Lyrique”, in
Poétique, 32, p. 436. lírico não reside na sua homologação efetiva efeito, repousa na identificação entre autor,
25 Idem, ibidem. (e nem no contrário), mas na possibilidade narrador e personagem confundidos no
26 Berlim, Walter de Gruyter,
articulada de uma identidade problemática do emprego da primeira pessoa. Abstraindo-se
1970. sujeito, refletida na identidade problemática a dimensão narrativa, atenuada ou ausente

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do lirismo, a definição de Lejeune pode ser e a matéria […] Meus poemas são todos
aplicada à poesia lírica, pois, além do pressu- poemas de circunstância. Eles se inspiram na
posto segundo o qual no poema é “o homem realidade, é na realidade que eles se fundam e
mesmo” que fala, apresenta-se a delicada repousam. Eu não tenho como fazer poemas
questão do poema lírico autobiográfico, tal que não repousem sobre nada”28.
como ilustrado por O Prelúdio de Coleridge,
As Contemplações, O Romance Inacabado É nos gêneros da poesia explicitamen-
de Aragon, ou mais recentemente Uma Vida te reconhecida como “de circunstância”,
Comum de Georges Perros. Seria legítimo, estreitamente ligados aos gêneros auto-
nesse caso, falar de lirismo – ou, de modo biográficos, que o “eu” é mais próximo
inverso, o valor referencial do “eu” que se do “eu empírico” do discurso referencial.
enuncia abertamente invalidaria de vez a Com efeito, pode-se dizer que é neles que
hipótese do “sujeito lírico”? À medida que ele atinge a sua subjetividade máxima, de-
a concepção “biografista”, à qual se opõe a finida inteiramente pela situação histórica
teoria do “eu lírico”, identifica o sujeito ao e pelo quadro espacial, isto é, geográfico
autor e a seu “personagem”, ela acaba por – “o que mantém relação com a pessoa, a
estender o gênero do poema autobiográfico27 coisa, o lugar, os meios, os motivos, a ma-
à poesia lírica como um todo, de forma neira e o tempo”, segundo a definição que
que As Flores do Mal só se distinguiriam Éluard propõe de circunstância. Os poetas
de As Contemplações por uma questão de de circunstância, enquanto sujeitos éticos,
grau e não de natureza – com Victor Hugo deixam que seu “eu” referencial se exprima
assumindo uma postura pessoal e referen- livremente – e eis por que eles são suscetí-
cial que Baudelaire, em suma, sublimaria. veis de ser acusados ou condenados e sentir
Inversamente, a tese “separadora” poria na própria pele, como Villon ou Whitman,
em questão não somente a possibilidade de sobre os quais nota Éluard: “Sabemos as
uma poesia “pessoal”, mas também de uma circunstâncias de suas vidas e sabemos que
autobiografia em versos, subordinando toda sua obra é função dessas circunstâncias”29.
poesia à ficção. Desse ponto de vista, As O sujeito lírico, desse ponto de vista, pode
Contemplações estariam no mesmo plano mostrar-se como a negação absoluta do
de As Folhas de Outono e talvez mesmo de sujeito “circunstancial”, ainda que seja
A Lenda dos Séculos, como obras de ima- possível objetar que os Versos de Circuns-
ginação, dada a tendência de se atenuarem tância de Mallarmé se equiparam à mesma
as fronteiras entre o lírico e o épico. “Ficção” que os sonetos.

A poesia de circunstância Enunciação real, enunciação


Goethe afirma em Conversas com fingida
Eckermann que “toda poesia é poesia de cir-
cunstância”, segundo uma fórmula célebre, A poesia lírica apresenta, ao menos nesse
retomada por Éluard em uma conferência ponto, os mesmos problemas que qualquer
de 1952 consagrada precisamente à poesia outro gênero em primeira pessoa – como,
de circunstância: particularmente, o romance: No Caminho 27 O poeta de língua francesa
Pierre Lexert, do Vale de
de Swann e As Flores do Mal são obras Aosta, subtitula um poema
“O mundo é tão grande, tão rico, e a vida compostas em primeira pessoa sem, no autobiográfico: “Autobio­
poema”.
oferece um espetáculo tão diversificado que entanto, resultar em autobiografia. Atual-
não faltarão jamais assuntos para a poesia. mente se admite que um romance ou uma 28 Citado em Paul Éluard,
Oeuvres Completes, II, Paris,
Mas é necessário que sejam sempre poesias narrativa escrita em primeira pessoa não tem Gallimard (Bibl. de la Pléia-
de circunstância, ou, dito de outra forma, é necessariamente um valor autobiográfico. A de), 1968, p. 934.

necessário que a realidade forneça a ocasião distinção metodológica fundamental da nar- 29 Op. cit., p. 933.

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ratologia é entre narrador e autor, e o uso da Rilke, nem o de Louis René des Forêts em
primeira pessoa não constitui absolutamente Poemas de Samuel Wood. Nesse caso, é o
nenhuma garantia de “autenticidade”, isto contexto – imposto sobretudo pelo título e,
é, de referencialidade, e pode se inscrever eventualmente, pelos índices paratextuais
no âmbito da ficção. Pode-se perguntar por (prefácio, apresentação, quarta capa, etc.)
que então, no caso da poesia lírica, o leitor – que confere ao “eu” seu valor ficcional
continua, ainda nos dias de hoje, espontanea­ explícito. Mas pode-se perguntar ainda se,
mente identificando o sujeito da enunciação apesar da ausência de marcas contextuais,
ao poeta como pessoa: é difícil entender a ficção estaria ausente.
por que uma frase como “Eu tenho mais O filósofo Roman Ingarden foi o primei-
recordações do que se eu tivesse mil anos” ro a levantar o problema do estatuto lógico
seria mais autobiográfica do que “Durante dos enunciados e das proposições literárias
muitos anos eu me deitei cedo”. Essa “ilusão sob uma perspectiva fenomenológica em
referencial” deve-se provavelmente ao per- Das literarische Kunstwerk (A Obra de
tencimento oficial e irrefutável do romance Arte Literária, 1935):
aos gêneros de “ficção”, enquanto a poesia,
ao contrário, em função da persistência do “Se comparamos as frases enunciativas
modelo romântico, é percebida como um identificáveis em uma obra literária e as que,
discurso de “dicção”30, quer dizer, de enun- por exemplo, se encontram em uma obra
ciação efetiva. científica, observamos imediatamente que
Seria pertinente dizer que um poema elas se distinguem essencialmente, apesar de
como A Jovem Parca, obra escrita em pri- sua identidade formal e, algumas vezes, até
meira pessoa, mas que põe em cena uma
“personagem” manifestamente distinta de
Paul Valéry, não é um poema lírico? São
inúmeros os monólogos dramáticos – que
a crítica alemã chama Rollengedichte – que
aliam ficção, primeira pessoa e lirismo.
Certamente esse subgênero, que aliás toma
frequentemente emprestado seus procedi-
mentos da linguagem dramática, fornece
índices de ficção (nome do personagem,
alusões mitológicas ou narrativas, contexto,
etc.) que não estão presentes nos poemas lí-
ricos comuns. Pode-se, no entanto, formular
a hipótese de uma enunciação não menos
fictícia em O Cemitério Marinho do que
nos Fragmentos do Narciso ou em A Jovem
Parca. Além disso, uma segunda prova da
possibilidade de o “eu lírico” remeter ao
mundo da ficção evidencia-se em antolo-
gias que inscrevem a enunciação em um
contexto ficcional. Assim ocorre em Vida,
Pensamentos e Poesias de Joseph Delorme,
de Sainte-Beuve, e em Poesias de A-O Bar-
nabooth, de Valéry Larbaud, cujo autor é ele
mesmo personagem da ficção, de maneira
que o “eu” que aí se enuncia não pode ser
30 Segundo a oposição coloca- o de Larbaud, do mesmo modo como não
da por Gérard Genette em pode ser o de Rilke em A Canção de Amor
Fiction et diction (Paris, Seuil,
1991). e de Morte do Porta-estandarte Cristóvão

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de conteúdo: estas últimas são verdadeiros distinção entre “eu empírico” e “eu lírico”
juízos, no sentido da lógica, em que algo recobre absolutamente a distinção retórica
é afirmado com seriedade; juízos que não sobre o critério da mímesis, que procede,
apenas aspiram à verdade, mas que são por sua vez, da oposição entre o subjetivo e
verdadeiros ou falsos, enquanto as primei- o objetivo: a poesia lírica se opõe à épica e
ras não são nem proposições puramente à dramática, pois ela não é “representativa”
enunciativas, nem podem ser seriamente mas “expressiva”, isto é, “subjetiva” e não
consideradas ‘asserções’, ‘juízos’”31. “objetiva”.

Em função do contexto ficcional, esses


juízos que não dizem respeito a uma lógica
da verdade, têm um valor “quase-judicató- Ficção e verdade
rio”, de forma que o “eu” em poesia, como
em todo texto literário, não é “verdadeiro” Já em sua autobiografia Goethe revela
nem “falso” na representação do poeta. consciência do quão intrincadas se mostram
Käte Hamburger, que também não deixa “verdade” e “ficção”, como indica o título
de se referir a Goethe, critica violentamente Dichtung und Wahrheit – Dichtung signifi-
essa concepção em nome de uma distinção cando, ao mesmo tempo, poesia, literatura
fundamental entre os gêneros “miméticos” em geral e também ficção. É por certo grau
– a ficção como tal – e o lirismo, que, lite- de ficção que a “verdade” autobiográfica
ralmente, não representa nada: “A literatura pode ser atingida:
narrativa ou dramática nos proporciona uma
experiência de ficção, de não realidade, o “Verdade e Poesia, esse título foi sugerido
que não acontece com a poesia lírica”32. em função da experiência de certa dúvida
Essa distinção funda-se em uma teoria da que o público sempre nutriu com relação
“enunciação” (Aussagetheorie)33 que, na à veracidade dos ensaios biográficos. Para
terminologia lógico-linguística, só pode fazer frente a isso, eu admiti uma espécie
ser efetiva. Essa “enunciação”, segundo de ficção, por assim dizer, sem necessidade,
ela, faz com que o “eu” em poesia seja e levado por certo espírito de contradição;
bem “real”: pois esse foi meu esforço mais sério de re-
presentar e exprimir, tanto quanto possível,
“A linguagem criativa que produz o poema a verdade profunda que, até onde tenho
lírico pertence ao sistema enunciativo da consciência, presidiu minha vida”36.
língua; é a razão fundamental, estrutural 31 L’Oeuvre d’Art Littéraire,
pela qual apreciamos um poema, enquanto Longe de excluírem-se, a verdade e trad. francesa de Philibert
texto literário, de forma diversa de um texto a ficção se apoiam mutuamente, como Secretan, Paris, Ed. L’Âge
d´Homme, 1983, p. 144
ficcional, narrativo ou dramático. Nós o testemunham, aliás, numerosos textos [trad. port.: A Obra de Arte Li­
apreciamos como o enunciado de um sujeito autobiográficos impregnados de invenção terária, Lisboa, Fundação Ca-
louste Gulbenkian, 1965].
de enunciação. O ‘eu’ lírico, tão controverso, romanesca. Convém então relativizar a
32 Op. cit., p. 24.
é um sujeito de enunciação”34. polaridade estabelecida pela crítica entre
sujeito “empírico” e sujeito “lírico”, entre 33 Que deve ser igualmente
compreendida no sentido
Essa discussão é, sem dúvida, concer- autobiografia e ficção, entre a “verdade” lógico de “asserção”, de
nente à referencialidade da obra literária e a “poesia”, não somente porque todo “proposição”.

e, em particular, da poesia. Mas Ingarden, discurso referencial comporta fatalmente 34 Die Logik der Dichtung, trad.
francesa La logique des Gen­
respondendo às críticas de Käte Hamburger uma parte de invenção ou de imaginação res, Paris, Seuil, 1986, p. 208
na segunda edição de sua obra, sustenta que alude à “ficção”, mas também porque [trad. por t.: A Lógica da
que “a poesia lírica […] não é menos ‘mi- toda ficção remete a estratos autobiográfi- Criação Literária, São Paulo,
Perspectiva, 1975].
mética’ que a poesia épica ou dramática”, cos, de modo que a crítica não tem como
35 Op. cit., p. 157.
e que “o mundo representado pelo poeta verificar a exatidão dos fatos e aconteci-
36 Citado por P. du Colombier,
é tão ‘não-real’ quanto aquele que figura mentos evocados no texto autobiográfico no prefácio de Poésie et vérité
nas obras dramáticas ou épicas […]”35. A ou na “poesia de circunstância” e, assim, (Paris, Aubier, 1941, p. 5).

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avaliar seu grau de “ficcionalidade”; mas,
sobretudo, porque a ficção é também
Sujeito metonímico
um instrumento heurístico, de forma al-
guma incompatível com a exigência de Parece difícil, sem dúvida, definir
“verdade” e de “realidade”. Mais do que esse “desvio” pela metáfora, pois se trata
inscrever as obras em categorias genéricas antes de metonímia ou de sinédoque: a
“fixas” como “autobiografia” e “ficção” significação do sujeito lírico encontra a
– e assim opor sub specie aeternitatis do sujeito empírico sem se confundir com
um “eu lírico” a um “eu ficcional” ou ela40. Como o romance, cuja matéria é
“autobiográfico”, melhor seria abordar o emprestada da autobiografia, a poesia lírica
problema de um ponto de vista dinâmico, opera deslocamentos metonímicos. Como
como um processo, uma transformação já mostrava Margarete Susman em 1912,
ou, melhor ainda, um “jogo”. Assim, o a significação do sujeito “lírico” tem uma
sujeito lírico apareceria como sujeito extensão lógica maior do que a do sujeito
autobiográfico “ficcionalizado”, ou, ao “empírico” – ao mesmo tempo mais “geral”
menos, em vias de “ficcionalização” – e menos enraizada na temporalidade. Em
e, reciprocamente, um sujeito “fictício” termos de figura retórica, essa inclusão do
reinscrito na realidade empírica segundo particular no geral, do singular no universal,
um movimento pendular que dê conta da parece dizer respeito ao mecanismo lógico-
ambivalência que desafia toda definição retórico da sinédoque generalizante: o “eu”
crítica até a aporia. de As Flores do Mal marca um desvio em
relação ao “eu” autobiográfico de Charles
Baudelaire sob a forma de uma sinédoque
generalizante que tipifica o indivíduo
SUJEITO LÍRICO E SUJEITO elevando o singular à potência do geral (o
poeta) e mesmo do universal (o homem).
RETÓRICO É assim que o “eu” lírico se amplia até sig-
nificar um grande e inclusivo “nós”. É em
Generalizando uma definição episte- tal desvio que se abre o espaço da ficção na
mológica37 da metáfora enquanto modelo poesia. A esse processo de ficcionalização
heurístico, suscetível de “redescrever” o interna aproxima-se ainda a crítica alemã,
universo, Paul Ricoeur38 defende o alcance quando atribui ao “eu lírico” o valor de
37 Tomada de empréstimo dos ontológico da poesia (e da arte em geral) um “ele” próximo do Épos, introduzindo
filósofos americanos Nelson
Goodman e Max Black.
que, longe de se encerrar no campo fechado aí uma distância que faz do sujeito seu
dos signos, está em contato se não direto, próprio objeto, como um “personagem” da
38 Cf. La Métaphore Vive, Paris,
Seuil, 1975 [trad. port.: A pelo menos indireto com o real, do qual se narrativa ficcional. Oskar Walzel afirma,
Metáfora Viva, São Paulo, revela, definitivamente, mais próxima do assim, que “o “eu” do lirismo puro é tão
Edições Loyola, 2000].
que os discursos descritivos de “primeiro pouco personalizado e subjetivo que, na
39 Segundo a expressão em-
pregada por Laurent Jenny
grau”. O debate, que se converte amiúde em realidade, se torna parecido a um ‘ele’”41.
em La Parole Singulière, Paris, polêmica, entre os partidários da hipótese Do mesmo modo, Wolfgang Kayser42, que,
Belin, 1990.
“biografista” e os defensores do “sujeito posteriormente a André Jolles, representa
40 Cf.“L’Analyse des Tropes du lírico” parece insolúvel, mas a ideia de uma a Escola morfológica alemã, distingue três
Groupe MU”, in Rhétorique
Générale, Paris, Seuil, 1982 “redescrição” retórica, figural, do sujeito modalidades de lirismo, segundo a atitude
[trad. port.: Dubois, et alii. empírico pelo sujeito lírico, que lhe serviria do lyrisches Ich: a “enunciação lírica”
Retórica Geral, São Paulo,
Cultrix/Edusp, 1974].
de “modelo” epistemológico, poderia, sem (lyrisches Nennen), quando o sujeito se des-
dúvida, contribuir para suprimir tal aporia. dobra e, ao mesmo tempo que se distancia
41 Op. cit., p. 270.
Assim, a “máscara” de ficção atrás da qual de si mesmo como um objeto, torna-se um
42 Das sprachliche Kunstwerk,
Berna, A. Francke, 1948, se dissimula o sujeito lírico, de acordo com “ele” (es); a “apóstrofe lírica” (lyrisches
p. 340 [trad. port.: Análise a tradição crítica, poderia ser assimilada a Ansprechen), quando o desdobramento se
e Interpretação da Obra
Literária, Coimbra,Armênio
um “desvio figural”39 em relação ao sujeito torna monólogo e o “eu” se converte em
Amado, 1985]. autobiográfico. “tu”; e a “linguagem da canção” (liedhaftes

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Sprechen), a forma mais pura de lirismo, individual e singular de cada poeta graças
na qual o “eu” não se objetiva de nenhum a uma “forma” “estilizada”, segundo uma
modo, mas permanece em torno de si mesmo tipificação que também concerne à retórica.
expressando-se pelo canto. O trabalho da A intemporalização e a universalização
ficcionalização reside, então, nessa tensão tendem, com efeito, à alegoria, a tal ponto
interna entre o “eu” e o “ele”, entre o “eu” que o disfarce lírico pode ser considerado
e o “tu”, que Fontanier qualifica como como um processo de autoalegorização.
“enálage de pessoa”43 e que aproxima a
poesia do romance ou do teatro.

A EXPERIÊNCIA VIVIDA E A
Sujeito mítico e REDESCRIÇÃO LÍRICA
autoalegorização A aproximação retórica ao sujeito lírico
pode ser ampliada em uma descrição fe-
No sistema de oposições estabelecido nomenológica dos estados de consciência,
por M. Susman, o sujeito lírico é qualificado como faz, por exemplo, Paul Ricoeur a
como “mítico”, segundo uma expressão propósito da metáfora ou da narrativa, da
retomada, por exemplo, por K. Stierle a pro- linguística à ontologia. Pois o problema da
pósito das Quimeras de Nerval – “mythische ficção, que está no cerne da definição do
Zwischenreich des lyrischen Ich” [“o reino sujeito lírico, é suscetível de ser colocado
mítico intermediário do “eu” lírico”] – ao em termos epistemológicos – “modeliza-
mostrar que Nerval compõe seus sonetos ção heurística”, “redescrição” – em torno
com base em fatos biográficos – a morte do tema da “referência”, isto é, da relação
de Jenny Colon, a viagem pela Itália, a com o mundo como “intencionalidade” da
subida do Pausílipo – para elevá-los, graças consciência, para a qual convergem a abor-
a alusões mitológicas e a um complexo sis- dagem retórica e a fenomenológica. Em Si
tema de referências históricas e intertextuais Mesmo como um Outro45, Ricoeur dá, ele
– Virgílio, Gaston Phoebus, etc. –, a uma próprio, o exemplo de tal método, ao ampliar
dimensão mítica: “O sujeito lírico se colo- gradualmente a teoria do sujeito – do sujeito
ca como absoluto, cria um mundo interior linguístico ao sujeito narrativo, depois ao
mítico, no qual tudo se converte em espelho sujeito ético e ao sujeito jurídico.
do seu destino”44. A principal consequência
dessa “mitificação” do “eu” empírico é a
abolição das fronteiras entre o passado e
o presente – a “presentificação” do antigo O sujeito lírico como
como a identificação do presente aos tempos
imemoriais, segundo um movimento bem “redução fenomenológica”
conhecido do imaginário nervaliano. Essa
intemporalidade mítica do sujeito lírico, do sujeito empírico
já sublinhada por M. Susman, acompanha
um processo de generalização, de uni- Do ponto de vista fenomenológico,
versalização mesmo, visto que o “eu” de “a épochè da referência descritiva”46 em
Nerval, ao identificar-se simultaneamente ação na metáfora condiciona o acesso à 43 Les Figures du Discours,
Paris, Flammarion, 1977, pp.
a diferentes figuras míticas ou históricas, referencialidade, de tal forma que se pode 295-6.
dilata-se ao infinito, carregando em si o falar legitimamente de uma “verdade meta-
44 K. Stierle, op. cit., p. 163.
destino de toda a humanidade. Emblemá- fórica”. Daí, por analogia, a hipótese de que
45 Paris, Seuil, 1990 [trad. port.:
tica da poética nervaliana, essa idealização o sujeito “lírico” como sujeito “retórico”, O Si Mesmo como um Outro,
mítica do sujeito empírico é característica por sua significação figural alegórica, “sus- Campinas, Papirus, 1991].
do lirismo em geral, que ultrapassa o ser penderia”, de alguma forma, a referenciali- 46 Paul Ricoeur, op. cit., p. 301.

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dade do sujeito autobiográfico para melhor Baudelaire enquanto indivíduos, mas um
reencontrá-la, como na redução eidética “estado patemático” (état pathématique)47
conduzida por Husserl em Investigações a priori partilhado com o leitor. É aqui que
Lógicas e, mais tarde, em Meditações convém retornar à distinção entre o fato
Cartesianas, a fim de extrair um sujeito anedótico da biografia pessoal, inscrito no
transcendental do psicologismo do “mundo singular, e a quintessência da experiência
vivido” (Lebenswelt). A sistematização vivida aberta ao universal. Desse ponto de
proposta por Margarete Susman e seus vista, a distinção de um sujeito lírico não
herdeiros do sujeito lírico não é, com efeito, parece absolutamente incompatível com a
sem afinidade profunda com esse “ego puro” ideia de que a poesia tem, apesar de tudo,
obtido pela redução fenomenológica, pela relação com a vida e de que ela se apoia
épochè da Lebenswelt, a partir do sujeito sobre um fundo autobiográfico. Por ser
empírico individual. Com efeito, o sujeito expressão da experiência vivida – Erlebnis
lírico “desumanizado”, “despersonalizado” – livre das contingências do anedótico, no
(Friedrich), “desrealizado” se encontra qual o singular se encontra com o universal,
totalmente abstraído da circunstância, do é que a poesia lírica pode, com Goethe, ser
quadro espaçotemporal no qual se inscreve tomada por uma “confissão”. Os tormentos
o sujeito empírico individual do escritor, e as alegrias do amor, a angústia da mor-
imbuído de sua história pessoal, de seu te, a melancolia, etc., como experiências
estado social e de sua psicologia: sujeito fundamentais do ser humano, constituem
“impessoal”, “coletivo” (allgemein) e não os estados de consciência do sujeito lírico,
mais “individual” (individuell), “intemporal” e, por isso mesmo, a matéria – mais que o
(ewig) e não mais “temporal” (zeitlich), ele objeto, que supõe uma tematização, ou seja,
se assemelha a uma pura “forma” (Form), uma distância precisamente objetivante – do
como o sujeito transcendental da Crítica da poema. Pouco importa, então, que o “eu”
Razão Pura à qual M. Susman se refere, dos Amores seja efetivamente o de Ronsard,
como Husserl, quando ela o opõe ao sujeito uma vez que a gama de sentimentos que dele
“empírico” (empirisch). se depreende pertence à experiência vivida,
como possibilidade do humano. Da mesma
forma que para Aristóteles48 a poesia é supe-
rior à história no plano filosófico, pois trata
A experiência vivida e o do possível e não somente do real, a poesia
lírica supera o testemunho autobiográfico
universal graças à ficcionalidade alegórica. Esse é
precisamente o sentido da tese defendida
Com efeito, a alegorização do “eu” como por Käte Hamburger, tão frequentemente
“redução” do sujeito biográfico liberta o malcompreendida. Ao qualificar o poema
sujeito da circunstância espaçotemporal e lírico como “enunciação” Käte Hamburger
do estado de coisas. Mas, diferentemente do não milita a favor de uma concepção inge-
sujeito transcendental kantiano, o “eu lírico” nuamente biografista, que faria do poema a
não é pura unidade abstrata das percepções. expressão imediata do “eu” do artista. Se ela
O fato de estar descolado da esfera da psi- evoca o “lirismo do vivido” (Erlebnislyrik),
47 Segundo a expressão em-
pregada por Jean Cohen cologia individual não implica, entretanto, é para se distanciar da concepção psicolo-
em Le Haut Langage, Paris, que ele ignore o sentimento, entendido como gizante e biográfica de Dilthey e utilizar a
Flammarion, 1976 [trad.
afeição/afecção (affection), como ethos palavra Erlebnis em sua acepção fenomeno-
port.: A Plenitude da Lingua­
gem – Teoria da Poeticidade, ou como pathos, muito pelo contrário. O lógica: “A experiência designa (em Husserl)
Coimbra, Almedina, 1987].
sujeito lírico é um sujeito sensível – simples- a intencionalidade da consciência”49. Se ela
48 Poétique, 1451 b [trad. port.: mente, o sentimento nele assume um valor afirma que o sujeito lírico é o sujeito de uma
Poética, Lisboa, Imprensa
Nacional, 2008]. universal. A melancolia que afeta o sujeito “enunciação” real, é simplesmente para opor
elegíaco, por exemplo, não é o sentimento a Erlebnis à ficção como pura invenção da
49 K. Hamburger, op. cit., p.
242. experimentado por Lamartine, Musset ou imaginação. Como observa Käte Hamburger,

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mesmo que a experiência seja ficcional, o
sujeito é bem “real”. Ela ressalta, com pro-
priedade, que essa situação não prevalece
somente no gênero lírico, mas é a marca de
toda literatura.

O sentimento lírico
Nessa “experiência lírica” efetiva, conta
apenas a ressonância afetiva dos aconteci-
mentos e dos fatos biográficos, que constitui
a própria matéria do poema, muito mais
que sua simples evocação, sob o modo
descritivo e narrativo. O “sentimento” assim
desembaraçado do substrato autobiográfico
pessoal, individual foi analisado, numa
perspectiva fenomenológica inspirada no
pensamento do “primeiro” Heidegger em
Ser e Tempo, pelo filólogo suíço Emil Staiger
em Grundbegriffe der Poetik (Conceitos
Fundamentais da Poética)50, sob o termo
Stimmung. Retomando a tripartição dos
gêneros épico, dramático e lírico, Staiger
descreve a “tonalidade afetiva” do lirismo e
sua “disposição afetiva” (Der lyrische Ges-
timmte), sob o signo do abandono ao fluxo
do presente e da “distensão”. Ainda que
Staiger não aborde o problema da “verdade”
lírica – que ele apresenta como evidente,
fazendo do “eu” a expressão imediata do
poeta – essa fenomenologia transubjetiva
permite descrever a Erlebnis para além das
contingências anedóticas da biografia. A
redescrição lírica extrai o “sentimento” da
esfera psicológica individual, da biografia,
para elevá-la ao patamar de categorias a
priori da sensibilidade.

A unidade do sujeito lírico e a


ipseidade
Tanto a abordagem retórica como a
50 Trad. francesa, Bruxelas,
abordagem fenomenológica levantam o Lebeer-Hossmann, 1990
problema da unidade do sujeito lírico. A [trad. port.: Conceitos Fun­
damentais da Poética, Rio
questão, de fato, é saber como o “eu é um de Janeiro,Tempo Brasileiro,
outro”, como o sujeito que se enuncia nas 1975].

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Quimeras e em As Flores do Mal pode universal, é uma dupla visada intencional,
referir-se a Nerval ou a Baudelaire como de forma que o domínio do sujeito lírico é
indivíduos e, simultaneamente, abrir-se ao aquele do “entre-dois”51 do Zwischenreich
universal por meio da ficção – e não somente do qual fala K. Stierle.
porque Nerval e Baudelaire participam, É provavelmente em razão de seu caráter
enquanto homens, do universal. No plano de tensão, e não dialético, que o sujeito líri-
retórico, a metáfora como visão “estereos- co, como afirma a crítica, parece altamente
cópica” da realidade e, sobretudo, a alegoria problemático, para não dizer hipotético e
envolvem precisamente o que se poderia inapreensível. Não há, a rigor, uma identi-
chamar “dupla referência” – ou, ainda, uma dade do sujeito lírico. O sujeito lírico não
“referência desdobrada”. Na alegoria, com poderia ser categorizado de forma estável,
efeito, e de modo mais geral em toda figura uma vez que ele consiste precisamente em
de elocutio, a significação literal jamais um incessante duplo movimento do empíri-
desaparece por trás da significação figurada, co em direção ao transcendental. Vale dizer
mas coexiste com ela: na alegoria medieval, então que o sujeito lírico, levado pelo dina-
os diferentes níveis de sentido – anagógico, mismo da ficcionalização, não está jamais
moral, espiritual, etc. – autorizam leituras acabado, e mesmo que ele não é. Longe de
múltiplas, de tal forma que a consciência – exprimir-se como um sujeito já constituído
do ouvinte, do leitor do poema lírico – vá de que o poema representaria ou exprimiria,
um lado a outro, num movimento contínuo o sujeito lírico está em permanente cons-
de vaivém. No plano fenomenológico, essa tituição, em uma gênese constantemente
dupla referência parece corresponder a uma renovada pelo poema, fora do qual ele não
dupla intencionalidade por parte do sujeito, existe. O sujeito lírico se cria no e pelo
ao mesmo tempo voltado para si mesmo e poema, que tem valor performativo.
para o mundo, tensionado ao mesmo tempo Essa gênese contínua impede, cer-
em direção ao singular e ao universal, de tamente, de definir uma identidade do
modo que a relação entre a referenciali- sujeito lírico, que se fundaria sobre uma
dade autobiográfica e a ficção passa por relação do mesmo ao mesmo. Paul Ricoeur
essa dupla intencionalidade. Poder-se-ia mostra, então, que essa concepção de uma
sentir-se tentado a pensar essa dualidade “identidade-idem” do sujeito em geral é
do sujeito lírico – segundo um termo que artificial e redutora, pois ela não pode pensar
aparece frequentemente na crítica alemã: a relação de alteridade, nem no espaço nem
die Zweiheit des lyrischen Ich – em termos no tempo. Ele prefere a ideia de uma ipsei-
dialéticos, com o sujeito lírico de alguma dade fundada na presença a si mesmo, sem
forma “ultrapassando” o sujeito empírico, postular a identidade. Da mesma maneira,
intemporalizando-o e universalizando-o. seria melhor, sem dúvida, falar de uma ip-
Entretanto, na comunicação lírica, trata-se seidade do sujeito lírico que lhe assegura,
antes de uma tensão jamais resolvida, que apesar de tudo, sob suas múltiplas máscaras,
não produz nenhuma síntese superior – certa unidade como Ichpol (Husserl). Mas
uma “dupla postulação simultânea”, para essa unidade do “eu” na multiplicidade dos
empregar uma expressão baudelairiana. atos intencionais, essencialmente dinâmica,
51 Cf. Daniel Sibony, Entre-deux
Em termos fenomenológicos, o jogo do está em constante devir: o “sujeito lírico”
ou l’Origine en Partage, Paris,
Seuil, 1991. biográfico e do fictício, do singular e do não existe, ele se cria.

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