No carmen 9 de Catulo, parece se inscrever uma linguagem emotiva diante da tópica da chegada do amigo distante. O registro dessa emotividade se dá por o que parece ser um grau de sinceridade, que, contudo, é um efeito produzido pelo poema, não elemento de sua composição, isto é, o poema não corresponde a dados discerníveis da realidade. O acatamento das convenções genéricas impede que o poema se sustente pela experiência pessoal do poeta, confinando-se à mimesis ou imitatio. As convenções genéricas, no caso do carmen catuliano, se adequam ao gênero chamado pelos retores gregos de phosphonetikon (mensagem de boas- vindas), também identificado na Odisseia e em outras fontes da literatura antiga. Os gêneros são tão antigos quanto as sociedades organizadas, já que há uma quantidade vária de situações que exigem respostas regulares dos sujeitos, transmitidas pela canção. Essas respostas constituem assuntos literários que se repetem, os quais são mais antigos que a herança cultural grega, informada pelos poemas homéricos. Nesse sentido, segundo Cairns (apud ACHCAR, p. 28), a classificação genérica depende do que chama de elementos primários, que comunicam os assuntos literários que se repetem. Por sua vez, os elementos secundários são lugares-comum, ou tópoi, que, da forma como são reunidos, apontam instâncias de particularidade, ainda que alinhados aos elementos primários do gênero. (2) Lírica e mimese Apesar da pluralidade de manifestações que abarca a poesia que conhecemos por lírica, desde o século XVII, sobretudo a partir do romantismo, conhecemos a busca por definições abrangentes, que atribuem ao “eu” uma posição central. Há um conflito, contudo, entre o princípio “existencial” da lírica e seu efeito mimético, pois aquele confere à lírica uma pertença restrita ao “enunciado de realidade”. Em oposição a essa definição, Achcar considera a lírica mimética nos termos aristotélicos, na medida em que está envolvida com a representação performática, que gera um efeito de identificação entre poeta e espectador. (3) Eu-lírico e subjetividade Apesar de nomearem a lírica como poesia do eu, teóricos modernos divergem no entendimento do sujeito lírico. Uns o entendem como substancial, outros, como semiótico. A concepção substancial associa o enunciado lírico à experiência individual do enunciador. Adorno (apud ACHCAR, p. 37), em concordância com Hegel, concilia a visão substancial- expressiva ao dado mimético da lírica, o que significa dizer que alia a subjetividade à natureza coletiva da linguagem, que estabelece a medicação entre a poesia e a sociedade. Mas, apesar de reconhecer o caráter mimético da lírica e não ceder a biografismos, Adorno falha na conceituação da lírica antiga na medida em que a poesia antiga adere ao “paladar social” e às expectativas do grupo, não há um confronto entre a poesia e o social. A originalidade não resulta do abandono da tradição, mas de uma manipulação de seus elementos e horizontes. (4) Sinceridade e fides A concepção romântica do efeito de sinceridade como correspondente ao estado de espírito do poeta ainda se mantém. Em contraposição a essa ideia, Archibald W. Allen (apud ACHCAR, p. 44) faz uso do termo da retórica antiga fides, que descreve uma disposição que a obra deve causar no receptor, dando à poesia um “efeito de verdade” (ueritatem). Esse efeito se dá não em relação à vivência particular do poeta, mas entre obra e audiência. (5) Eu-lírico e enunciação Diante do entendimento de que o eu-lírico não deve ser tomado como expressão direta e existencial da sensibilidade do poeta, prevalece a concepção semiótica do sujeito lírico. Nos termos de Roman Jakobson (apud ACHCAR, p. 45), na lírica, a função emotiva (centrada no emissor) coexiste com a função poética (centrada na mensagem). O eu-lírico é sujeito de um enunciado que mimetiza o real e, portanto, sua existência é duplamente implicada como enunciador e sujeito da experiência. E, se há uma associação entre emissor lírico e autor, “não é que o sujeito lírico seja real, mas sim que o sujeito real se traduz ficticiamente em sujeito lírico” (ACHCAR, p. 50). (6) Fides e tópoi Essa concepção do eu-lírico recupera a discussão sobre a fides lírica. Nesse viés, dois dados condicionantes da eficácia estética são fundamentais: “a emoção como ponto de partida” e “a emoção como ponto de chegada”. Considerar esta última é reconhecer a reação do leitor, “elemento decisivo do valor da obra” (ACHCAR, p. 51). Mas considerar a “emoção como ponto de partida” é uma atitude biografista, porque tem como dado a sensibilidade do autor, pessoa real. Aquela só pode ser considerada literariamente, em relação ao sujeito de enunciação, não ao autor. (7) Mímese e intertextualidade No período da chamada Era Lírica da Grécia, passa a haver a disseminação da escrita, que foi assumindo as funções desempenhadas pela oralidade e memória. Em um modo de funcionamento oral da poesia, fórmulas (na poesia épica) e tópoi (na lírica) constituem recursos composicionais estocados pela tradição. Nesse sentido, a inovação dos poemas está relacionada à seleção e combinação de tópoi pela inteligência do poeta. Isso se mantém na poesia do mundo da escrita, apesar das transformações na produção e no consumo dos textos.