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LÍRICA E LUGAR-COMUM, FRANCISCO ACHCAR

(1) Lírica e composição genérica


No carmen 9 de Catulo, parece se inscrever uma linguagem emotiva diante da tópica
da chegada do amigo distante. O registro dessa emotividade se dá por o que parece ser um
grau de sinceridade, que, contudo, é um efeito produzido pelo poema, não elemento de sua
composição, isto é, o poema não corresponde a dados discerníveis da realidade. O acatamento
das convenções genéricas impede que o poema se sustente pela experiência pessoal do poeta,
confinando-se à mimesis ou imitatio. As convenções genéricas, no caso do carmen catuliano,
se adequam ao gênero chamado pelos retores gregos de phosphonetikon (mensagem de boas-
vindas), também identificado na Odisseia e em outras fontes da literatura antiga.
Os gêneros são tão antigos quanto as sociedades organizadas, já que há uma
quantidade vária de situações que exigem respostas regulares dos sujeitos, transmitidas pela
canção. Essas respostas constituem assuntos literários que se repetem, os quais são mais
antigos que a herança cultural grega, informada pelos poemas homéricos. Nesse sentido,
segundo Cairns (apud ACHCAR, p. 28), a classificação genérica depende do que chama de
elementos primários, que comunicam os assuntos literários que se repetem. Por sua vez, os
elementos secundários são lugares-comum, ou tópoi, que, da forma como são reunidos,
apontam instâncias de particularidade, ainda que alinhados aos elementos primários do
gênero.
(2) Lírica e mimese
Apesar da pluralidade de manifestações que abarca a poesia que conhecemos por
lírica, desde o século XVII, sobretudo a partir do romantismo, conhecemos a busca por
definições abrangentes, que atribuem ao “eu” uma posição central. Há um conflito, contudo,
entre o princípio “existencial” da lírica e seu efeito mimético, pois aquele confere à lírica uma
pertença restrita ao “enunciado de realidade”. Em oposição a essa definição, Achcar considera
a lírica mimética nos termos aristotélicos, na medida em que está envolvida com a
representação performática, que gera um efeito de identificação entre poeta e espectador.
(3) Eu-lírico e subjetividade
Apesar de nomearem a lírica como poesia do eu, teóricos modernos divergem no
entendimento do sujeito lírico. Uns o entendem como substancial, outros, como semiótico. A
concepção substancial associa o enunciado lírico à experiência individual do enunciador.
Adorno (apud ACHCAR, p. 37), em concordância com Hegel, concilia a visão substancial-
expressiva ao dado mimético da lírica, o que significa dizer que alia a subjetividade à natureza
coletiva da linguagem, que estabelece a medicação entre a poesia e a sociedade. Mas, apesar
de reconhecer o caráter mimético da lírica e não ceder a biografismos, Adorno falha na
conceituação da lírica antiga na medida em que a poesia antiga adere ao “paladar social” e às
expectativas do grupo, não há um confronto entre a poesia e o social. A originalidade não
resulta do abandono da tradição, mas de uma manipulação de seus elementos e horizontes.
(4) Sinceridade e fides
A concepção romântica do efeito de sinceridade como correspondente ao estado de
espírito do poeta ainda se mantém. Em contraposição a essa ideia, Archibald W. Allen (apud
ACHCAR, p. 44) faz uso do termo da retórica antiga fides, que descreve uma disposição que a
obra deve causar no receptor, dando à poesia um “efeito de verdade” (ueritatem). Esse efeito
se dá não em relação à vivência particular do poeta, mas entre obra e audiência.
(5) Eu-lírico e enunciação
Diante do entendimento de que o eu-lírico não deve ser tomado como expressão direta
e existencial da sensibilidade do poeta, prevalece a concepção semiótica do sujeito lírico. Nos
termos de Roman Jakobson (apud ACHCAR, p. 45), na lírica, a função emotiva (centrada no
emissor) coexiste com a função poética (centrada na mensagem). O eu-lírico é sujeito de um
enunciado que mimetiza o real e, portanto, sua existência é duplamente implicada como
enunciador e sujeito da experiência. E, se há uma associação entre emissor lírico e autor, “não
é que o sujeito lírico seja real, mas sim que o sujeito real se traduz ficticiamente em sujeito
lírico” (ACHCAR, p. 50).
(6) Fides e tópoi
Essa concepção do eu-lírico recupera a discussão sobre a fides lírica. Nesse viés, dois
dados condicionantes da eficácia estética são fundamentais: “a emoção como ponto de
partida” e “a emoção como ponto de chegada”. Considerar esta última é reconhecer a reação
do leitor, “elemento decisivo do valor da obra” (ACHCAR, p. 51). Mas considerar a “emoção
como ponto de partida” é uma atitude biografista, porque tem como dado a sensibilidade do
autor, pessoa real. Aquela só pode ser considerada literariamente, em relação ao sujeito de
enunciação, não ao autor.
(7) Mímese e intertextualidade
No período da chamada Era Lírica da Grécia, passa a haver a disseminação da escrita,
que foi assumindo as funções desempenhadas pela oralidade e memória. Em um modo de
funcionamento oral da poesia, fórmulas (na poesia épica) e tópoi (na lírica) constituem
recursos composicionais estocados pela tradição. Nesse sentido, a inovação dos poemas está
relacionada à seleção e combinação de tópoi pela inteligência do poeta. Isso se mantém na
poesia do mundo da escrita, apesar das transformações na produção e no consumo dos textos.

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