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Mélica grega arcaica: nove poetas e suas canções, Prof.

Giuliana Ragusa
1. A cultura da canção
O cânone de nove líricos (ennéa lyricoí), listado em dois poemas da Antologia Palatina
recuperados por Ragusa, é resultado da compilação e edição pelos eruditos da Biblioteca de
Alexandria. Sua designação por “líricos”, por sua vez, é também resultado dos trabalhos de
comentadores e editores da Biblioteca. Mas, ao que os eruditos helenísticos chamaram de
“lírica” (lyriké), na antiguidade, foi conhecido por “mélica” (meliké), gênero de composições
destinadas à performance e cantadas com acompanhamento da lira.
Na Grécia Arcaica, o mundo da escrita ainda não havia se instituído, e a poesia só
existia no momento de sua enunciação, coincidindo produção e performance. Neste universo,
a poesia está localizada em um tempo-espaço particular e incrustada na vida comunitária e
cultual da pólis, inserindo-se em uma “cultura da canção” (song culture, HERINGTON, 1985;
MOST, 1982). Assim, sua forma se adequa à ocasião e ao interesse da audiência, sendo
identificáveis subgêneros demarcados pelas circunstâncias em que se espera do poeta um uma
postura propícia (epitalâmios em casamentos, paidiká em simpósios...).
2. Denominação: mélica e lírica
Nesse sentido, a denominação “mélica” é a que mais se aproxima do objeto, na medida
em que “lírica” é usada modernamente com uma acepção muito estranha ao modo de
funcionamento da cultura da canção e da poesia oral. Por “poesia lírica” modernamente
depreende-se um subjetivismo confessional, e é preciso lembrar que o “poeta performancer”
da antiguidade está sempre representando diante das convenções da ocasião e do espaço.
Demais, “lírica” também é um termo usado em oposição à “dramática” e à “épica”,
englobando um conjunto de gêneros (elegia, iambo, mélica). Portanto, “mélica” é a escolha da
autora para nomear o gênero praticado pelos poetas reunidos nesta antologia.
3. Modalidades da mélica
São duas as modalidades de mélica: a mélica coral, em que cerca de 7 a 50 membros se
reuniam para entoar juntos o poema e dançar, liderados por um corifeu ou uma corego e
fazendo-se acompanhar da lira e de outros instrumentos; e a mélica monódica, caracterizada
pela performance solo do poeta acompanhada da lira. Essas modalidades diferenciam-se por
metro, matéria e adequação (forma, conteúdo e performance).
3.1. Metro
A mélica monódica é marcada por estrofes breves e metricamente simples, isto é, tem
tendência a ser estrófica (estrofes com estrutura métrica idêntica); enquanto a coral é
habitualmente triádica (estrofe e antístrofe com mesmo metro e epodo de padrão métrico
distinto).
3.2. Matéria
Evidenciam-se, especialmente, na mélica monódica, temas articulados à vida social e à
experiência humana (canções políticas, míticas, convivais, de amor, de amizade, cortejos e
encômios). Já a mélica coral caracteriza-se por um tom de celebração, alicerçada na
recuperação do passado mítico, na ocasião de performance e atuação do coro
(autorreferencialidade e dêixis).
3.3. Adequação
Quanto à performance, a mélica monódica destina-se ao simpósio (“momento após a
refeição em que todos passam a beber”, SCHIMITT-PANTEL apud RAGUSA, 2013, p. 21),
espaço restrito socialmente a homens aristocratas. Apesar de ocasião mais privada, o simpósio
ainda é um espaço comunitário e reverbera o aspecto coletivo e partilhado da poesia oral. Por
sua vez, a mélica coral está especialmente integrada às grandes celebrações e aos festivais
cívico religiosos, em que se destacavam os ágons (“competições”). Neste contexto, o canto
exerce um papel pedagógico e ritual no seio da comunidade.
Além disso, há o simpósio palaciano, patrocinado pela figura do tirano (týrannos),
governante vindo das camadas mais ricas e/ou aristocráticas e apoiado por parcelas populares
que assumia, em condição de instabilidade, o poder da pólis. A poesia praticada neste
ambiente é a poesia encomiástica para elogio do tirano e de seus feitos. Os poetas eram
recompensados tanto materialmente quanto com reconhecimento nesta ocasião.
4. Sobrevivência e preservação dos poemas
Enfim, os fragmentos reunidos sobreviveram ao longo dos séculos oralmente,
repercutidos por amadores e profissionais a partir do alcance e da fama dos poetas que os
cantaram originalmente. Ainda, foram fixados tardiamente pela escrita, mesmo que em
volume restrito e destinados a pequenos grupos leitores, haja vista o acesso precarizado a essa
tecnologia e aos materiais de fixação da escrita (o alto custo do papiro). Tudo isso contribuiu
para que chegassem aos eruditos da Biblioteca de Alexandria séculos mais tarde, onde foram
não só copiados, mas editados e organizados em livros por critérios métricos e de divisão em
subgêneros (partênios, epitalâmios, trenos, paidiká...). Nesta retransmissão dos poemas, fixou-
se um cânone de nove poetas (Álcman, Alceu, Safo, Estesícoro, Íbico, Anacreonte,
Simônides, Baquílides e Píndaro) e perderam-se as notações musicais.

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