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A MÚSICA SECULAR NA IDADE MÉDIA

Tudo o que sabemos da música não religiosa que se praticava no primeiro milênio da nossa era
nos chegou através da literatura e das artes plásticas. Na literatura da época encontramos
citações sobre a prática de cantos , danças, festas praticadas nas praças e nos castelos,
informações confirmadas nas bulas papais e nos atos do Concílio Romano onde eram
veementemente condenadas e proscritas. Nas artes plásticas encontramos inúmeras ilustrações
de músicos tocando instrumentos, cantando e dançando.
Apesar das restrições empreendidas pela igreja, a música herdada da pagania greco-romana
mesclada com as tradições culturais célticas e as influências orientais decorrentes da presença
arábica na península ibérica, possuía uma força muito grande e permaneceu latente no seio do
povo para desabrochar com impressionante vitalidade a partir do segundo milênio.
Coube aos Jograis (juglar, em langue d’Oc) e aos Goliardos – gente do povo que, além de
músicos itinerantes, eram também poetas, bailarinos, malabaristas – conservar o pouco que
restou da antiga civilização pagã. Muito requisitados nas festas e nas comemorações, esses
artistas primitivos desempenharam também o importante papel de “comunicadores”,
divulgando em suas andanças os acontecimentos e as histórias, constituindo-se assim num
meio de comunicação importante na época.
Geralmente serviam-se de melodias já amplamente conhecidas, algumas muito antigas, às
quais aplicavam um novo texto em língua vulgar, acompanhando-se ou se fazendo acompanhar
por instrumentos, como as antigas liras, harpas, instrumentos de sopros e uma percussão
simples. À essa classe de músico - que gozavam de pouco crédito e péssima reputação nos
meios eclesiásticos, mas que possuíam uma singular vitalidade – é que devemos a
preservação, não só de uma linguagem musical popular, como também dos próprios
instrumentos musicais, os quais, sem eles, teriam fatalmente desaparecido por completo.
Mas, apesar de combatida e perseguida pela igreja, não é raro encontrar-se vínculos estreitos
entre essa música secular e a música religiosa, notadamente no fim do primeiro milênio. Um
elemento de ligação entre elas , sem dúvida, nos é apresentado pelos Goliardos ou “clérigos
vagantes” jovens pertencentes a ordens religiosas menores e que se deslocavam por todo o
ocidente pregando o cristianismo. Testemunhos dessa ligação são as formas como as
Seqüências e os Troppos que apresentam uma mescla de música religiosa com certos
elementos populares como o ritmo regular e, por vezes o uso de línguas vulgares (Carmina
Burana, p. ex.). Outro elemento de ligação seria o teatro religioso popular (representações de
passagens do evangelho feitas por fiéis e clérigos, no altar ou no lado exterior da igreja) onde o
texto em latim foi dando lugar às línguas vulgares.

Trovadores e Troveiros
Com o tempo essa arte profana foi ganhando espaço no meio social atingindo também outros
segmentos como os cavaleiros, mercenários das milícias feudais, alguns profissionais liberais e
por fim, a própria nobreza.
A Arte Trovadoresca, como se convencionou chamar esse universo cultural paralelo, foi o
resultado de várias confluências sociais, políticas e religiosas ocorridas no início do segundo
milênio. Entre os fatores mais determinantes dessas transformações estão as cruzadas, que
abriram as portas para uma visão além das fronteiras da Europa, possibilitando um novo
pensar, mais espiritual, mais livre, separado do latim no seu aspecto formal e distanciado das
formas de pensar tradicionais. Os trovadores eram jovens de linhagem nobres ou cavaleiros
que aspiravam uma vida mais pura e renovada, calcada em valores novos, tais como a
lealdade, a dignidade, a honra, a fidelidade e, sobretudo o amor humano, buscando
através da poesia e da música, atingir uma expressão artística mais liberada e concorde com os
seus ideais cavalheirescos.
Foi na Provance, (região ao sul da França, também conhecida como Aquitania ou Occitania)
que surge a figura de um dos primeiros trovadores conhecidos, Guilherme de Aquitania, mais
conhecido como Conde de Poitieu, que viveu entre 1070 e 1127, em cuja corte aparecem as
primeiras mostras da poesia trovadoresca que logo se estenderia primeiro para o sul, na
direção da Catalunha, Castilha e Leon, e depois para o norte , Champagne e Borgogne.
A esses músicos dava-se o nome de trobadors ( trovadores em português) que vem de
trobar, termo que em provençal significava “o que troba, o que encontra ou inventa os sons e
as palavras”, ou seja, as formas poético-musicais através das quais expressam seus
sentimentos e uma nova forma de ver o mundo, a natureza e de se ver, ele próprio, nesse
mundo. À esse tipo de idioma provençal se deu o nome de Langue’Oc (abreviatura de
Occitania). Já na França setentrional o mesmo termo (trobar) aparece na forma do francês
arcaico (também chamado de Langue d’Oil) trouvèr, gerando a denominação de trouvers
(troveiros em português) para os músicos da região.
Além dos Trovadores e Troveiros existiam ainda os ministriles ( menestréis ), muitas vezes
confundidos com os antecedentes, mas que poderiam ser, uma espécie diferente de músicos,
mais habilitados, que conheciam música de uma forma mais ampla e técnica, talvez dissidentes
da própria igreja onde teriam tido uma formação musical mais apurada, que sabiam ler e
escrever música e que atuavam como “agregados “ aos trovadores e troveiros, cantando ou
tocando vários instrumentos quando àqueles não sabiam ou não queriam fazê-lo. Muitas vezes
eles (os menestréis) são confundidos com os jograis ou então esses (os jograis) , quando eram
mais talentosos e habilidosos eram chamados de menestréis. Enfim, há uma grande indefinição
a respeito, mas provavelmente devemos a eles os primeiros registros escritos dessa nova arte
musical.
Das regiões mais próximas da Provance já citadas, a arte trovadoresca se estende para o sul,
atingindo várias regiões da Península Ibérica, Itália e Portugal, e para o norte, chegando à
Alemanha, onde são chamados de minnesinger.

Segundo Andrea Della Corte e Guido Pannain em sua “Storia della Musica (4ª edição, 1964), o
feudalismo, caracterizado por uma “cavaleria guerreira”, que tinha funções eminentes (diferente
daquela cavaleria ideal e utópica, imaginada pelos literatos e pelos romancistas) foi o ambiente
onde se desenvolveu essa arte poético/musical que tinha na natureza primaveril e no amor
seus temas principais. Essa linha amor/primavera coincidia com Ovídio, poeta italiano que
viveu entre 43 a.C. e 17 ou 18 d.C. e que era muito estudado nas escolas e universidades na
Idade Média. Outros fatores que influenciaram a arte trovadoresca foram as cruzadas, em
especial a de 1147, que reabriu o contato com o oriente próximo, e a heresia cátara, que não
acreditava na possibilidade de haver um “amor cavaleiresco” no vínculo matrimonial. A “arte de
amar” trovadoresca atingiu aspectos sofisticados e profundamente subjetivos, dando origem a
uma linguagem sumamente particular, impregnada de segredos, mistérios, preciosismos, sob a
qual se ocultavam aos “profanos incultos” o real sentido de suas idéias. Chamavam essa
linguagem de verba astrusa e de elocutio contorta. Havia ainda, vários níveis de segredo e
sofisticação. Assim, trobar sotil significava expressar-se de forma difícil; trobar cobert, de forma
secreta; trobar clus, de forma fechada; trobar oscur, de forma impenetrável.
Algumas palavras adquiriam um “valor absoluto” e “revelador”:
midonz era “minha senhora”;
dame era “a mulher símbolo”;
grazir era “a graça (atenção) que a dame ou senhora lhe concede”;
guerredoner era “recompensar o amor”;
hom litges era “o homem devoto e apaixonado”;
homenatge era “a homenagem dedicada à dama”;
felonie era “a infidelidade”, o pior pecado para um trovador.
A Arte Trovadoresca era, portanto, “um procedimento místico” no qual “a poesia cantada era
um ato de participação na beleza universal, uma oração estética”.

As várias modalidades de canções:


Canço: (chanson em langue d’oil): expressa todas as variedades do amor cavaleiresco e cuja
forma musical perdura ainda entre os povos latinos;
Canço de jeste: (chanson de geste em langue d’oil): longas
narrativas sobre, heróis, lendas, fatos, etc.;
Sirventes : canção de serviço, geralmente de cunho moral ou
político, ou seja, um protesto contra os serviços, a corrupção, a injustiça;
Plahn: pranto, dor, canto para os poetas, heróis, seres queridos ou personagens falecidos;

Tenço: (joc-partit em langue d’oil): cantos dialogados (desafios), nos quais geralmente se
expunham um tema em discussão;
Pastorella: (pastourelle ou reverdie em langue d’oil): relato de aventura amorosa na qual os
personagens se disfarçavam sob a alegoria pastoril;
Albada: (aube em langue d’oil): canto do guardião dos amantes ou dos próprios amantes em
despedida;
Enueg: (escárnio): crítica às condições de vida, aos costumes, à sociedade, à igreja;
Canço de Cruada: relato das cruzadas;
Chanson de Toile: cação que a mulher cantava enquanto tecia, geralmente reportando-se ao
companheiro distante, servindo nas cruzadas;
Cantiga de Amigo: ( na Península Ibérica e em Portugal); canção de amor.

Danças (instrumentais)
Trotto
Saltarello
Ductia

Instrumentos
Viele de Arco
Viele de Roda (organistrum)
Rabeca
Harpa
Lira
Saltério (espécie de cítara)
Alaúde
Flutès (pequena flauta com 3 orifícios)
Flageolet (flauta de cana com 3 orifícios)
Frestèu (flauta de Pan ou Zamponha)
Órgão portátil
Tambor de duas faces
Tamborim de cordas
Pandereta
Nackers (pequenos tímpanos)
Cliquettes (espécie de castanholas)
Crótalos

Trovadores ( langue d’0c - Provance)


Guillaume de Aquitania 1071 1127
Rambaut d'Avengra 1120? 1173?
Bernard de Ventadour 1125 1195
Peire de Alvargne 1130? 1190?
Berenguer de Palou século XII
Raimon de Miraval 1140? 1220?
Raimbaut de Vaqueiras 1156? 1210
Peiri(e) Vidal 1160? 1220?
Peirol de Alvarenga 1167? 1235
Guido d'Uscel 1170? 1225?
Peire Cardenal 1190? 1280?
Bernart Arnout d'Armognac séc. XII/XIII
Guillebert de Berneville séc. XIII
Guiraut de Borneil 1175? 1220?
Pons d’Ortafá séc. XII/XIII
Guiraut de Riquier século XIII

Troveiros (langue d’Oil - França)

Jehan de Neville 1200? 1250?


Thibaut de Champagne 1201 1253
Jean Moniot de Paris 1210? 1250?
Jehan Bretel 1210? 1272?
Adan de la Halle 1237 1285
Colin Muset (jogral) século XIII
Gace Brulé século XIII
Guillaume d'Amiens século XIII
Guillaume de Coincy século XIII
Guillaume de Berneville século XIII
Guillebert de Berneville século XIII
Guiot de Colanson século XIII
Guiot de Dijon século XIII
Guiraut de Bemelh século XIII
Jacques d'Amiens século XIII
Jean de Garlande século XIII
Jehannot de l'escurel século XIII
Moniot d'Arras século XIII
Perdigon 1170? 1230?

Minnesinger (Alemanha)

Reinmar der Alte 1150? 1210?


Ulrich von Gutenberg 1150? 1210?
Ulrich von Zatzickhofen 1150? 1220?
Walter von der Vogelweide 1163 1230
Ulrich von Singenberg 1180? 1240?
Neithart von Revental 1190? 1236?
Reimmar von Zweter 1200? 1260?
Tannhäuser 1200? 1270
Ulrich von Lichtenstein 1204? 1276?
Ulrich von Winterstetten 1210? 1290?
Ulrich von Turheim século XIII
GASCUNHA – ESPANHA – PORTUGAL
Jeanroy Marcabrú Catal. século XII
Bernat Arnout d'Armognac séc. XII/XIII
Alfonso X (el Sábio) 1230 1284
Bernardo del Carpio século XIII
Guillem de Cervera século XIII
Guiraut d'Espaigna século XIII
Martin Codax século XIII

FRANÇA
Jehan de Neville 1200? 1250?
Thibaut de Champagne 1201 1253
Jean Erart 1205? 1259?
Jean Moniot de Paris 1210? 1250?
Jehan Bretel 1210? 1272?

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