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O SAGRADO E O PROFANO NA MÚSICA

A música é uma linguagem, veículo para transmissão de informação, sentimentos, ideias,


emoções, uma ponte entre o real e o imaginário. E, assim como vimos na arte românica e
na arte gótica, a música e as artes, em geral, são instrumentos da educação popular. Eles
transmitem os princípios de filosofia, ética e religião em forma de sons e imagens,
experiências sensíveis que remetem ao arrebatamento e a um estado de paz e serenidade.
Há séculos, a música tem sido um meio de expressar a fé e propagar a divindade ao mundo.

Música monofônica

No início da Idade Média, a música era monofônica – ou seja, tinha melodia desprovida de
qualquer acompanhamento. Nesse período, surgiu o cantochão – tipo de música vocal,
exclusivamente eclesiástica, executada em solo ou por coros em uníssono, sem
instrumentos, durante a celebração de cerimônias religiosas católicas.

Nascida numa sociedade estreitamente cristã, a música atendia à necessidade da Igreja


Católica no propósito de unificar a liturgia de seus cultos. Sentindo esta necessidade de
fortalecer o cristianismo, São Gregório Magno compilou e selecionou uma série de cânticos
litúrgicos, festivos e cerimoniais, e outros de sua própria autoria, em uma coletânea
intitulada Antifonário. Ao assumir o papado, Gregório I oficializou o cantochão, ou canto
gregoriano, nas missas de todas as igrejas católicas do continente europeu. Neste estilo de
música, sem acompanhamento, somente a voz produz a melodia. O canto gregoriano,
portanto, era uma forma de oração, de melodia simples que seguia o ritmo das palavras
para demonstrar o amor a Deus.

Música polifônica

O passo seguinte na evolução da arte musical na Idade Média é dado pelas primeiras
composições polifônicas no século IX, que consistem na sobreposição de duas ou mais
melodias, o chamado organum.

Em comparação com suas predecessoras monofônicas, as obras eram bastante elaboradas,


sendo Leonin e Perotin seus expoentes. Mais tarde, no século XIV, esta técnica foi
batizada de Ars Antiqua, em contraposição à Ars Nova que se disseminava na Europa.

Em seus estudos, o regente do coro na catedral da Toscana, um italiano chamado Guido


D’Arezzo, percebeu que a construção de uma escala musical simplificada facilitaria o
aprendizado dos alunos, diminuindo os erros de interpretação de uma peça musical. Assim,
ele organizou o sistema de notação musical em utilização até hoje.

No período de 1322 a 1380, surgiu uma nova técnica polifônica: a Ars Nova. Ela nasceu,
desenvolveu-se na França, e foi criada com base em um tratado escrito pelo francês
Philippe de Vitry. Os músicos franceses, responsáveis por parte do repertório litúrgico da
época, recebiam as bênçãos da corte e da capela pontifícia de Avignon, e assinaram
diversas missas ou trechos delas. Em destaque Guillaume de Machaut, compositor da
Missa de Notre-Dame.

Entre as inovações da Ars Nova estão canções que incluem refrão – ballade, virelai, rondó
e madrigal – e o surgimento do contratenor.

Música profana ou secular

Rapidamente, a música passou a ser acompanhada por danças e instrumentos em ritmos


executados pelos trovadores, tocando alaúde, pandeiro, harpa e cornamusa, que eram de
fácil transporte de uma cidade a outra.

A partir daí, surgiu uma grande separação entre música religiosa e música popular,
conhecida como música profana ou secular, em que as palavras ganharam importância e as
pessoas começaram a cantar por diversão.

A maior coleção de música profana provém dos poemas que os trovadores levavam às
cortes europeias, e sua principal característica é ser destituída de qualquer intenção
religiosa, privilegiando danças, encenações, sátiras políticas e canções de amor.

Em meados do século XIV, menestréis oriundos da Alemanha, Flandres, França, Inglaterra,


Itália, Península Ibérica e cantores a serviço das casas reais introduziram novos estilos
musicais na Europa.

Instrumentos musicais medievais

Corda

Saltério - caixa de ressonância oca de madeira, cujo formato pode variar de triangular a
trapezoidal. Suas cordas, em número variado, costumam ser beliscadas com uma pena ou
pelectro – espécie de palheta –, percutidas com martelos ou friccionadas com arco.

Cítola - constituída por um corpo de madeira e um braço em que são esticadas quatro
cordas de metal. A cítola, cistre ou cítara também produz som por meio de cordas
beliscadas.

Viela - tem suas cinco cordas friccionadas por um arco e apresenta um formato parecido
com o das atuais violas de orquestra. Porém, ela tem o corpo ligeiramente maior e é
apoiada entre as pernas do instrumentista, como os violoncelos de hoje em dia.

Rabeca - Em formato de pera, é menor que a viela e apresenta apenas três cordas. O
instrumento é considerado um dos precursores dos violinos.

Alaúde - é um instrumento de origem medieval, mas teve seu auge no Renascimento. Seu
corpo tem o formato de uma gota, e o braço é alongado como a harpa medieval.
Sopro

Aulos – muito usados nos cultos à Dionísio, lamentos fúnebres, casamentos, e banquetes.

Corneto - feito de marfim ou madeira, tem bocal parecido com o do trompete. As notas são
controladas por orifícios presentes no corpo do instrumento, como na flauta.

Charamela - é considerada precursora do oboé e tem palheta dupla. As notas também são
controladas por orifícios presentes no corpo do instrumento, como na flauta.

Menestréis, trovadores, jograis e goliardos

Trovadores

A literatura medieval fundamentava-se na oralidade. O Trovadorismo foi um movimento


poético-musical iniciado no século XI pelos trovadores (aquele que escreve a letra e
compõe as canções) da Provença, sul da França, cujas composições eram acompanhadas
por instrumentos musicais e pela dança. Essas produções abrangiam um número grande de
pessoas ao incluir elementos poéticos, amorosos, ideológicos, sociais, políticos e também
de divertimento, uma vez que o verso se constituía em uma forma de ritmar a fala.

Suas composições transmitiam informações sobre costumes e modos de vida de


sociedades distantes, falavam de sentimentos e propagavam a fidalguia, o ideal do
comportamento cavalheiresco diante da dama, o amor cortês e o refinamento dos costumes.
Contudo, a temática dos trovadores também incluía o escárnio e o maldizer, com muitos
acontecimentos e personagens virando alvo de chacota.

Jograis

De origem social humilde, eles iam de povoado em povoado, ganhando seu sustento com a
exibição de animais amestrados e também com a música, cantando canções de gesta –
composições que falam de feitos heróicos e batalhas – ou música de trovadores. O jogral
não compunha e ganhava a vida divertindo o público, nos palácios ou nas praças públicas,
com sátiras, mágicas, acrobacias e mímica.

Menestrel

Com o passar do tempo, o jogral passou a ser chamado de vagabundo por sair a esmo,
declamando, com isto, a denominação de jogral foi mudada para menestrel. Na Idade
Média, era o poeta e bardo que declamava poemas, cantava e contava histórias de lugares
distantes ou sobre eventos históricos, reais ou imaginários. Ele não compunha as obras,
este era o papel dos trovadores.
Goliardo

O goliardo, o intelectual, aquele cujo ofício era exclusivamente ensinar e escrever, é a


primeira figura típica surgida nas cidades no século XII. Eram basicamente estudantes
pobres que viviam em constantes viagens de uma cidade para outra.

Levados por uma vida inconstante, por sua ironia e crítica ácida, não eram bem aceitos
socialmente, a comunidade urbana não via com bons olhos aquele grupo de rapazes
pobres, irreverentes, rebeldes e imorais que, em seus discursos, eram críticos ferozes a
todas as classes sociais, além de defenderem a libertinagem, os prazeres da vida, do amor
e dos jogos de azar.

Os goliardos faziam um contraponto ao modo de ser puritano dos religiosos, que ditavam as
regras de comportamento da sociedade. Estes jovens podem ser considerados os primeiros
anarquistas de espírito livre da história, e, por seus poemas se oporem ao sistema vigente,
eram anônimos, como forma de evitar problemas com as autoridades religiosas. Além de
questionar a autoridade moral do papa, eles acusavam a Igreja de ser uma organização
regida pela força do dinheiro. Essa atitude radical contestadora gerou uma série de
perseguições e condenações, causando seu desaparecimento, mas seu legado permaneceu
nos intelectuais do Humanismo durante o Renascimento.

Danças sociais na Idade Média

Estampie: muito apreciada pela corte francesa, era uma espécie de sapateado
acompanhado por música instrumental.

Saltarello: as cortes medievais e renascentistas italianas a apreciavam muito, era uma


dança saltitante, leve e alegre.

Carola: modalidade de maior registro de dança medieval, desde os séculos XII e XIII, era
praticada por grupos de dançarinos de mãos dadas e em círculos.

Branle: dança de camponeses, onde os dançarinos seguiam o líder.

Tarantela: popular entre os séculos XIV e XV, seu nome deriva de Tarento, cidade ao sul da
Itália. O ritmo aumenta progressivamente, enquanto os casais trocam os pares.
Os autos no teatro

Depois de banir os artistas teatrais, por servirem a uma arte considerada profana e satírica,
a própria Igreja se tornou o palco em que o teatro ressurge. A Igreja Católica percebeu a
força do teatro como instrumento de ensino, abrindo espaço para as encenações nas
liturgias. Em 1400, a obra dramática medieval é basicamente de inspiração religiosa, com
forte intenção didática e moralizante. Nesse período, as encenações podiam ser tanto
litúrgicas quanto profanas. As litúrgicas eram encenadas em igrejas e praças na forma de
autos, jogos e representações, e as profanas, representadas em palácios ou em pátios, e
não estavam relacionadas ao culto religioso. As peças litúrgicas eram divididas em
mistérios, milagres e moralidades, e as profanas, em farsas ou satíricas. Havia, também,
soties, semelhantes às farsas; momos, que faziam uso de máscaras de pessoas e de
animais; entremeses, encenações rápidas durante o serviço nos banquetes; sermões
burlescos, monólogos interpretados por atores ou jograis mascarados; e, por fim, os autos
pastoris. Nos autos sacramentais espanhóis e portugueses, havia personagens folclóricos
típicos da Idade Média, como dançarinos e seres grotescos. Um recurso comum era a
alegoria – a representação de conceitos ou ideias, como a morte, a luxúria e a caridade, na
forma de figuras, por vezes, personificadas e com fins didáticos.

No Brasil, José de Anchieta (1534-1597), padre jesuíta espanhol, utilizou largamente o


teatro para catequizar os indígenas. Anchieta escreveu vários autos no século XVI, como
Auto da pregação universal, Auto de São Lourenço e Na aldeia de Guaraparim. Ele foi um
inovador na escrita dramática, incluindo diferentes línguas ao texto de forma a garantir maior
engajamento da plateia, além de citar divindades locais indígenas e, com isso, contribuir
para o que pode ter sido o embrião do sincretismo religioso no país.

Outros autores brasileiros de autos

Joaquim Cardoso, autor do texto De uma noite de festa, um auto de natal; Ariano Suassuna,
que escreveu Auto da Compadecida; e João Cabral de Melo Neto, que tem Morte e vida
severina ou Auto de natal pernambucano como uma de suas principais obras.

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