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O CANTO DA PRIMITIVA IGREJA CRISTÃ

A partir do século IV a música do culto cristão passa gradativamente para o domínio da igreja
que, com o objetivo de preservar a música de influências “maléficas”, procurou destituí-la de
todos os artifícios mundanos como o uso dos instrumentos, as ornamentações melódicas e os
ritmos marcantes que lembravam a dança, até chegar à pureza da linha melódica do
cantochão.

Foi nos três primeiros séculos da era cristã que o culto cristão ganhou uma ordenação quanto à sua forma
e ao seu conteúdo, o que pode ser atestado pela documentação desse período. Vários centros litúrgicos
apareceram, e os mais importantes fixaram-se nas cidades de Antioquia, Alexandria e Roma. Logo a
igreja cristã foi dividida em igreja do Ocidente e igreja do Oriente, a primeira com sede em Roma e a
segunda em Constantinopla. Com o "Edito de Milão" do imperador Constantino, em 313 a.C., teve início
um novo período na história da igreja, em que ela e o estado se aliaram, permitindo a liberdade de
expressão da religião cristã, abolindo as práticas pagãs e fazendo dos clérigos os governantes. A partir
dessa fase, iniciaram-se os debates acerca de vários aspectos da doutrina cristã. Foi também quando
irrompeu o monasticismo: seus adeptos desligavam-se de tudo o que pudesse afastá-los de se focalizarem
num discipulado rigoroso; sua meta era imitar o Mestre, por isso refugiavam-se em lugares específicos,
separados do mundo:
Souza, Denise Cordeiros de. Cantos para o Culto Cristão. Editora Sinodal

A partir do Édito de Milão promulgado por Constantino em 313d.C. a igreja cristã se organiza
no ocidente e no oriente, já que Constantino I, (agora imperador romano) se instala em
Bizâncio (hoje Istambul, na Turquia) e se converte ao cristianismo, embora segundo alguns
historiadores nunca tenha abandonado o paganismo totalmente. A partir de então vamos
encontrar vamos encontrar o culto expandindo-se pelo mundo ocidental a partir de Roma e
também em Bizâncio onde se encontra o Imperador Constantino, surgindo assim dois centros
referenciais para o culto cristão: a sede propriamente dita que fica em Roma onde está o Papa
e Bizâncio onde fica o Imperador romano.

No culto praticado em Roma a música preservou mais os cantos dos primeiros cristãos
herdados das sinagogas judaicas, mais simples e breves, despojados de eventuais ornamentos
presentes na linha melódica dos cantos judaicos e ritmos importados dos cantos profanos,
entoados sempre em latim, conhecido como Canto Romano.
No culto bizantino a forte herança da música grega, embora decadente, e a proximidade com
outras culturas de características mais orientais, inclusive a própria cultura hebraica, gerou uma
música mais rica e sofisticada onde o texto podia ser em latim ou grego, conhecido como
Canto Bizantino.

Mas além desses dois centros referenciais, outros centros importantes na prática da música no
culto cristão se desenvolveram no ocidente. São eles:

Canto Gálico ou Galês, desenvolvido na Gália que compreendia hoje todo o território da
França e partes da Alemanha, Bélgica e norte da Itália, habitado pelos descendentes do povo
celta.
Esse canto foi bastante desenvolvido no século IV, tendo como figura representativa Hilário de
Poitiers ou Santo Hilário (300 - 368 d.C.) que foi um bispo na cidade romana de Pictavium,
atual Poitiers, na Gália, e foi um dos Doutores da Igreja. Muito culto e influênte (foi músico,
filósofo e teólogo) esteve em contato com Bizâncio e outras igrejas cristãs da Asia Menor e
parece ter trazido para o culto da Gália muitos elementos e práticas musicais presentes naquela
região, tendo incluido algumas dessas praticas na composição de seus hinos. Infelizmente
poucos exemplos desse canto sobreviveram à reforma gregoriana deixando assim muitas
lacunas para se conhecer mais profundamente seu conteúdo.

Canto Ambrosiano ou Canto Milanês.

No séc. IV Milão era a segunda cidade da Itália depois de Roma. Situada na região da
Lombardia encruzilhada dos caminhos para a Gália e Bizâncio e outras regiões da Asia Menor,
Milão foi um importante centro de convergências culturais, religiosas e políticas tendo sido
inclusive capital do Império Romano do Ocidente em 293 d.C. Em 313 Constantino I, o grande,
Imperador Romano do ocidente, promulgou o Édito de Milão que, entre outras medidas,
concedia a liberdade de crédo a todos os cristãos do Império.
Édito de Milão, março de 313.[1]
"Nós, Constantino e Licínio, Imperadores, encontrando-nos em Milão para conferenciar a respeito do
bem e da segurança do império, decidimos que, entre tantas coisas benéficas à comunidade, o culto divino
deve ser a nossa primeira e principal preocupação. Pareceu-nos justo que todos, os cristãos inclusive,
gozem da liberdade de seguir o culto e a religião de sua preferência. Assim qualquer divindade que no
céu mora ser-nos-á propícia a nós e a todos nossos súditos. Decretamos, portanto, que não, obstante a
existência de anteriores instruções relativas aos cristãos, os que optarem pela religião de Cristo sejam
autorizados a abraçá-las sem estorvo ou empecilho, e que ninguém absolutamente os impeça ou moleste...
. Observai outrossim, que também todos os demais terão garantia a livre e irrestrita prática de suas
respectivas religiões, pois está de acordo com a estrutura estatal e com a paz vigente que asseguremos a
cada cidadão a liberdade de culto segundo sua consciência e eleição; não pretendemos negar a
consideração que merecem as religiões e seus adeptos. Outrossim, com referência aos cristãos, ampliando
normas estabelecidas já sobre os lugares de seus cultos, é-nos grato ordenar, pela presente, que todos que
compraram esses locais os restituam aos cristãos sem qualquer pretensão a pagamento... [as igrejas
recebidas como donativo e os demais que antigamente pertenciam aos cristãos deviam ser devolvidos. Os
proprietários, porém, podiam requerer compensação.]
Use-se da máxima diligência no cumprimento das ordenanças a favor dos cristãos e obedeça-se a esta lei
com presteza, para se possibilitar a realização de nosso propósito de instaurar a tranquilidade pública.
Assim continue o favor divino, já experimentado em empreendimentos momentosíssimos, outorgando-
nos o sucesso, garantia do bem comum."

Milão era portanto um centro de referência cultural e político dentro do Império e como tal, uma
vez liberada a fé cristiã, desenvolveu-se ali um culto um tanto diferenciado daquele praticado
em Roma, aproximando-se mais do ritual cristão bizantino. Mas foi a partir de Ambrósio (354 -
397) conhecido como Santo Ambrósio ser eleito bispo da arquediocese de Milão em 374 que
o canto ali praticado se tornou referência no mundo cristão, principalmente através das
declarações de Santo Agostinho de Hipona 352 - 430), uma das figuras mais importantes no
desenvolvimento do cristianismo no Ocidente, sobre a retórica do bispo Ambrósio e os cantos
entoados na arquidiocese de Milão.


“Assim que cheguei a Milão, encontrei o bispo Ambrósio, conhecido no mundo inteiro como um dos
melhores, e teu fiel servidor. Suas palavras ministravam constantemente ao povo a substância do teu
trigo, a alegria do teu óleo e a embriaguez sóbria do teu vinho. (…) Comecei a estimá-lo, a princípio,
não como mestre da verdade (…), mas como homem bondoso para comigo.”
Santo Agostinho

“Quando me lembro das lágrimas derramadas ao ouvir os cânticos da vossa igreja nos primórdios da
minha conversão à fé, e ao sentir-me agora atraído, não pela música, mas pelas letras dessas
melodias, cantadas em voz límpida e modulação apropriada, reconheço, de novo, a grande utilidade
deste costume. Assim flutuo entre o perigo do prazer e os salutares benefícios que a experiência nos
mostra (...)
Santo Agostinho, Confissões, x. cap.33 ACERCA DOS PRAZERES E PERIGOS DA MÚSICA
(D.Grout & C.Palisca. História da Música Ocidental, pag.44)

Para atingir o objetivo de emocionar os fiéis pela fé e pelo envolvimento Santo Ambrósio
teria empregado alguns elementos presentes no canto do ritual bizantino como a estrutura
regular do hino conduzido pela métrica poética, a melodia mais ampla e variada (porem,
sem melismas e ornamentação) e a criação de textos já em língua latina, e não traduzidos
do grego ou hebraico, o que resultava numa maior fluência entre texto e música. Outro
elemento importante do ritual bizantino introduzido por Santo Ambrosio no canto milanês
foi a forma antifônica de entoar os cânticos, onde os versos dos hinos eram cantados
alternadamente entre dois coros, propiciando mais interatividade e maior participação da
congregação no culto.

Canto Mozárabe

Mozárabe era o nome dado aos cristãos que viviam sob o poder dos muçulmanos na
Península Ibérica até meados do século XI, notadamente nas cidades de Toledo Sevilla e
Zaragoza. O Canto Mozárabe seria, portanto, um canto cristão com fortes influências
orientais, principalmente arábicas.
Apesar de ter permanecido em uso por longo tempo naquela região e ter sido conservado
em vários manuscritos da época sua notação musical é muito imprecisa, principalmente
quanto aos intervalos da melodia, o que dificulta muito sua interpretação. Contudo, foi
muito cultivado durante todo o primeiro milênio e pode ter exercido influências importantes
na composição final do Canto Eclesiástico.

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