Você está na página 1de 28

TROVADORISMO

Cantigas medievais
Alfonso X (rei de Castela e de Leão de 1252 a 1284) com a sua corte poético-musical
Alegoria do Bom Governo e seus efeitos na cidade (1338-1339) - Ambrogio Lorenzetti - Sala dei Nove, Palazzo
Pubblico - Siena, Itália. Parte de um mural com comprimento total de 35 metros.
Contexto
A Idade Média foi um período histórico que durou de 476 a 1453. A
sociedade medieval estava dividida entre clero, nobreza e povo. No
entanto, a Igreja Católica era detentora de poder político e
econômico no Ocidente. Nessa época, portanto, predominou o
Teocentrismo — a ideia de que Deus é o centro de tudo. No período
medieval, a maioria da população era analfabeta, a escrita e a leitura
estavam restritas ao clero e a alguns nobres. Os livros eram muito
caros, pois a reprodução das obras era feita por copistas, elas eram
manuscritas. Além disso, devido à influência católica, a maior parte
da arte produzida nesse período era de cunho religioso.
O sistema político, econômico e social era o Feudalismo, que predominou
na Europa Ocidental entre o início da Idade Média até a afirmação dos
Estados modernos, tendo seu apogeu entre os séculos XI e XIII. O que
predominava era a Vassalagem, que consistia em um acordo recíproco de
serviços entre uma pessoa política e economicamente menos influente e
uma outra que sob esses aspectos lhe era superior. O fenômeno é próprio
do sistema feudal, que considerava a divisão do território e o regime de
propriedade decorrente disso o pilar do equilíbrio político, militar e
econômico. Assim, um vassalo é uma pessoa que tem uma obrigação
mútua a um senhor ou soberano, no contexto do sistema feudal da
Europa medieval.
Entre 1095 e 1291 a Europa estava imersa em uma guerra entre cristãos e
muçulmanos (mouros) - as Cruzadas. Essa guerra, chamada de Guerra
Santa, foi comandada por membros da aristocracia europeia e ficou
conhecida como Cruzada dos Nobres. Além disso, o Tribunal do Santo
Ofício (Inquisição: séculos XIII e XIV) torturava e condenava à fogueira
aqueles que se opunham ao que era imposto pela Igreja. Nesse contexto,
em que a liberdade artística e de pensamento eram restringidas pelo
clero, surgiu o Trovadorismo (1189 ou 1198-1418), movimento literário
medieval caracterizado por uma “poesia cantada”, as chamadas cantigas
trovadorescas. Elas são assim classificadas: de amor, de amigo, de
escárnio e de maldizer.
Tais composições eram cantadas pelo trovador (troubadour, como era
chamado o poeta provençal), daí o termo “trovadoresco”. Assim, as cantigas
trovadorescas podem ser chamadas também de cantigas provençais. Isso
porque foi na Provença, no Sul da França, que esse tipo de arte surgiu, no
século XI, devido a um clima de maior independência em relação à Igreja.
Segundo Audemaro Taranto Goulart e Oscar Vieira da Silva:

A requintada população da Provença caracterizava-se pelos ideais de vida burguesa,


procurando viver de modo mais ameno possível, sem mesmo se notar uma diferença
marcante entre o fidalgo e o burguês. Para tanto, contribuíam a divisão racional da
propriedade e o afrouxamento dos laços de dependência feudal, o que propiciava o
aparecimento de forte individualismo, significando isso, na Idade Média, um choque
com os princípios da Igreja, pois representava uma concepção de vida oposta às
doutrinas ortodoxas. Ademais, vale ajuntar que o clero, no Sul, não possuía a mesma
força dos religiosos do Norte, pois estava submetido aos senhores feudais.
A poesia trovadoresca, portanto, possui uma vertente lírico-amorosa
(as cantigas de amor e de amigo) e outra satírica (as cantigas de
escárnio e de maldizer). Na primeira, predominam os temas do
sofrimento amoroso e da saudade. Na segunda, são feitas críticas a
pessoas ou costumes, algo bastante ousado em uma época de
repressão ao livre pensamento. Uma característica da cantiga de
amor trovadoresca merece uma reflexão. Nesse tipo de composição,
o eu lírico se coloca em posição inferior à sua amada, a quem ele
chama de “senhora”. Como se sabe, na Idade Média, a mulher ainda
ocupava um lugar inferior na escala social.
Então, como o trovador poderia assumir essa posição de submissão
diante da mulher? Isso se explica, segundo Audemaro Taranto
Goulart e Oscar Viera da Silva, pelo seguinte fato:
No Sul da França (Provença), entretanto, a situação da mulher era diferente
da situação da mulher do Norte da França: a lei lhe conferia igualdade
jurídica com o homem, evidenciada no fato de ela herdar, possuir bens, e
poder, depois de casada, dispor deles sem que fosse necessário o
consentimento do marido. Como se vê, a nova civilização possuía um ideal
feminista, que vai ser representado nas Cantigas de Amor pela sujeição
amorosa do homem, pela submissão imposta através do desejo e imposição
femininos.
São inúmeros os autores do Trovadorismo cujas obras foram
resgatadas por pesquisadores em todo o mundo:
Arnaut Daniel (francês - século XI)
Bernart de Ventadorn (francês - 1130-1200)
Dom Afonso X (espanhol - 1221-1284)
Dom Dinis (português - 1261-1325)
Fernão Rodrigues de Calheiros (português - século XIII)
Guilhem de Peitieu (francês - 1071-1126)
João Garcia de Guilhade (português - século XIII)
Martim Codax (galego - século XIII)
Nuno Fernandes Torneol (galego - século XIII)
Paio Gomes Charinho (galego - século XIII)
Paio Soares de Taveirós (galego - século XIII)
Pero Gonçalves Portocarreiro (português - século XIII)
Raimbaut d’Aurenga (francês - 1147-1173)
P. dos Frades
Trovadorismo em Portugal
P. Pescadores Painel do Infante Painel do Arcebispo P. Cavaleiros P. da Relíquia

Políptico de São Vicente (1445 - 1480) - Nuno Gonçalves – Óleo e têmpera s/ madeira - Museu Nacional de Arte Antiga – Lisboa.
Península Ibérica em 1037
Portugal separou-se do reino de Leão e Castela em 1140. Assim, tornou-se um
país independente. O galego-português era o idioma falado nessa época. Com
o novo Estado formado, surgiu também a literatura portuguesa.
Possivelmente, a Cantiga da Ribeirinha é o texto que inaugurou a literatura
portuguesa em 1189 ou 1198. Cantiga da ribeirinha, de Paio Soares de
Taveirós, em interpretação de José de Nicola e Ulisses Infante:
No mundo ninguém se assemelha a mim E, minha senhora, desde aquele dia, ai
enquanto a minha vida continuar como vai, tudo me foi muito mal
porque morro por vós, e ai e vós, filha de don Pai
minha senhora de pele alva e faces rosadas, Moniz, e bem vos parece
quereis que vos descreva de ter eu por vós guarvaia,
quando vos eu vi sem manto pois eu, minha senhora, como mimo
Maldito dia! me levantei de vós nunca recebi
que não vos vi feia algo, mesmo que sem valor.
Os cancioneiros
São coletâneas de textos medievais preservados em Portugal. Assim, há o
Cancioneiro da Ajuda (cantigas de amor), o Cancioneiro da Vaticana
(cantigas de amor, de amigo, de escárnio e de maldizer) e o Cancioneiro
da Biblioteca Nacional (1560 poemas de trovadores galego-portugueses,
além do texto incompleto Arte de trovar, uma espécie de manual de
como compor as cantigas trovadorescas). Esses cancioneiros foram os
responsáveis por chegarem até nós as cantigas de amor galego-
portuguesas, bem como as cantigas de amigo, de escárnio e de maldizer.
Cantigas:
de amor,
de amigo,
de escárnio
e de maldizer
Estes meus olhos nunca perderám - João Garcia de Guilhade - Cancioneiro da
Ajuda (A 237) - 1ª e 2ª partes.
CANTIGAS LÍRICO-AMOROSAS

As cantigas lírico-amorosas apresentam duas modalidades:


as cantigas de amor, nas quais o poeta fala por si próprio,
contendo, por isso, um eu lírico masculino e as cantigas de
amigo, nas quais o poeta, usa as palavras para se colocar
na posição de uma mulher, apresentando por isso um eu
lírico feminino.
CANTIGA DE AMOR
A bõa dona por que eu trobava
(João Garcia de Guilhade)

A bõa dona por que eu trobava, Por de bon prez, e muito se prezava,
e que non dava nulha ren por mi, e dereit’ é de sempr’ andar assi;
pero s’ela de mi ren non pagava, ca, se lh’ alguem na mia coita falava,
sofrendo coita sempre a servi; sol non oia nem tornava i;
e ora ja por ela ‘nsandeci, pero por coita grande que sofri
e dá por mi ben quanto x’ante dava. oi mais ei d’ela quant’ aver cuidava:

E, pero x’ela con bon prez estava Sandec’ e morte, que busquei sempr’i,
e con (tan) bon parecer qual lh’eu vi e seu amor mi deu quant’ eu buscava.
e lhi sempre con meu trobar pesava,
trobei eu tant’ e tanto a servi (Cancioneiro da Biblioteca Nacional 422, Cancioneiro
da Vaticana 34, Cancioneiro da Ajuda 232.)
que ja por ela lum’ e sen perdi,
e anda-x’ela por qual x’ant’ andava:
Características das cantigas de amor
- Manifestam uma paixão infeliz, um amor não correspondido do trovador
pela sua dama;
- A mulher é tratada como superior, a partir de adjetivos tais como “dona” e
“senhora”, e seu nome jamais é revelado pelo trovador;
- O eu lírico é sempre masculino;
- A dama, a “senhora”, é membro da corte;
- O trovador se diz coitado, cativo, enlouquecido, sofredor;
- A dama é identificada por suas qualidades físicas, morais e sociais; portanto
é uma mulher idealizada;
- Normalmente, são compostas em redondilha maior (sete sílabas poéticas);
- Muitas cantigas apresentam refrão;
- Vassalagem amorosa: o trovador é o vassalo e a dama é a suserana; isto é,
servo e senhora, em consonância com a sociedade feudal.
CANTIGA DE AMIGO
Ai ondas que eu vim veer
(Martim Codax)

Ai ondas que eu vim veer, Ai ondas que eu vim ver,


se me saberedes dizer se me sabeis dizer
por que tarda meu amigo sem mim? por que tarda meu amigo sem mim?

Ai ondas que eu vim mirar, Ai ondas que eu vim mirar,


se me saberedes contar se me sabeis contar
por que tarda meu amigo sem mim? por que tarda meu amigo sem mim?
(Cancioneiro da Biblioteca Nacional 573.)
Características das cantigas de amigo
- A temática desse tipo de cantiga é a saudade;
- Evidenciam a relação amorosa concreta entre pessoas do campo;
- O eu lírico é sempre feminino;
- A mulher (amiga) manifesta saudade pela ausência do amigo (namorado
ou amante);
- Quem compõe as cantigas é um homem, o trovador, que cria um eu lírico
feminino;
- O cenário sempre caracteriza um ambiente campesino;
- Além da mulher e seu “amigo”, outros personagens podem aparecer, como
mães, amigas, irmãs;
- Os versos costumam ser compostos em redondilha menor (cinco sílabas
poéticas);
- Apresentam refrão.
CANTIGAS SATÍRICAS

As cantigas satíricas também apresentam duas


modalidades: as de escárnio e as de maldizer. O trovador
faz críticas contundentes, que se diferenciam por não dizer
o nome da pessoa criticada da cantiga de escárnio e
explicitar quem é a pessoa criticada na cantiga de
maldizer, revelando inclusive o seu nome.
CANTIGA DE ESCÁRNIO
Ai dona fea, fostes-vos queixar
(João Garcia de Guilhade)
Ai dona fea, fostes-vos queixar Dona fea, nunca vos eu loei
que vos nunca louv'en[o] meu cantar; em meu trobar, pero muito trobei;
mais ora quero fazer um cantar mais ora já um bom cantar farei
em que vos loarei todavia; em que vos loarei todavia;
e vedes como vos quero loar: e direi-vos como vos loarei:
dona fea, velha e sandia! dona fea, velha e sandia!

Dona fea, se Deus mi perdom, (Cancioneiro da Biblioteca Nacional 1485,


pois havedes [a]tam gram coraçom Cancioneiro da Vaticana 1097.)
que vos eu loe, em esta razom
vos quero já loar todavia
e vedes qual será a loaçom:
dona fea, velha e sandia!
VERSÃO TRADUZIDA DA CANTIGA

Ai, dona feia, você foi reclamar Dona feia, eu nunca te louvei
que nunca te louvo em meu cantar; em meu trovar, embora tenha trovado muito;
mas agora quero fazer um cantar mas agora já farei um bom cantar;
em que te louvarei de qualquer modo; em que vos louvarei de qualquer maneira;
e veja como quero te louvar e te direi como te louvarei:
dona feia, velha e maluca! dona feia, velha e maluca!

Dona feia, que Deus me perdoe,


pois você tem tão grande desejo
de que eu vos louve, por este motivo
quero vos louvar já de qualquer jeito;
e veja qual será a louvação:
dona feia, velha e maluca!
Características das cantigas de escárnio
Nas cantigas de escárnio falava-se mal de alguém usando trocadilhos, a
forma semântica das palavras e também ambiguidades. Esse processo de
construção foi chamado de Equívoco. O humor presente nessas cantigas era
expresso durante a sua declamação pelos trovadores com o uso de recursos
de oratória, com vozes e expressões verbais que indicavam as críticas feitas
em sua produção textual. Neste caso, como a pessoa de quem se falava não
podia ser divulgada, o poeta deveria deixar a criatividade fluir ao contar esta
história com o uso de expressões e gestos irônicos para demonstrar o que
estava sendo dito no poema. Pontos principais:
- Críticas ao comportamento social;
- Palavras de duplo sentido;
- Ironias e trocadilhos;
- Sem identificação direta da pessoa atacada.
CANTIGA DE MALDIZER
Marinha, o teu folgar
(Afonso Eanes de Coton)
Marinha, o teu folgar com as mãos tapo as orelhas,
tenho eu por desacertado, os olhos e as sobrancelhas,
e ando maravilhado tapo-te ao primeiro sono;
de te não ver rebentar; com a minha piça o teu cono;
pois tapo com esta minha e como o não faz nenhum,
boca, a tua boca, Marinha; com os colhões te tapo o cu.
e com este nariz meu, E não rebentas, Marinha?
tapo eu, Marinha, o teu; (Cancioneiro da Biblioteca Nacional
1617, Cancioneiro da Vaticana 1150)
Cantiga extremamente licenciosa, que o trovador dirige à soldadeira Marinha (que
talvez seja a mesma Marinha Sabugal satirizada em outra cantiga de Afonso Eanes do
Coton). Há que salientar a estrutura dos versos da cantiga, muito original. Acrescente-
se ainda que a cantiga está bastante danificada nos códices, o que torna difícil a leitura
de alguns versos.
Características das cantigas de maldizer
As cantigas de maldizer traziam uma crítica direta a certa pessoa a qual era,
na maioria das vezes, identificada com o uso de uma linguagem, muitas
vezes, bem culta, mas muito agressiva e às vezes até obscena, utilizando
recursos adicionais, como a zombaria em sua escrita. Esta segunda
modalidade de poema satírico do Trovadorismo era muito agressiva e
bastante erótica, sem considerações ou meias palavras, utilizando, muitas
vezes, termos mais baixos e populares. Pontos principais:
- Críticas feitas explicitamente, com identificação da pessoa satirizada;
- Crítica grosseira;
- Linguagem ofensiva e palavrões.
ATRÁS DA PORTA
Quando olhaste bem nos olhos meus Dei pra maldizer o nosso lar
E o teu olhar era de adeus Pra sujar teu nome, te humilhar
Juro que não acreditei E me vingar a qualquer preço
Eu te estranhei Te adorando pelo avesso
Me debrucei Pra mostrar que inda sou tua
Sobre teu corpo e duvidei Só pra provar que inda sou tua
E me arrastei e te arranhei
E me agarrei nos teus cabelos
Nos teus pelos BUARQUE, Chico. Atrás da porta. In: Elis
(LP). São Paulo: Cara Nova Editora
Teu pijama
Musical Ltda, 1972.
Nos teus pés
Ao pé da cama
Sem carinho, sem coberta
No tapete atrás da porta
Reclamei baixinho

Você também pode gostar