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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

CENTRO DE HUMANIDADES
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL

BRENDA TIMBÓ MENDES

O CONFLITO DA FAZENDA JAPUARA EM CANINDÉ-CE: REPRESSÃO


POLÍTICA, RESISTÊNCIA CAMPONESA E LUTA PELA TERRA (1968 – 1984)

FORTALEZA
2022
BRENDA TIMBÓ MENDES

O CONFLITO DA FAZENDA JAPUARA EM CANINDÉ-CE: REPRESSÃO POLÍTICA,


RESISTÊNCIA CAMPONESA E LUTA PELA TERRA (1968 – 1984)

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em História Social da Universidade
Federal do Ceará, como requisito parcial à
obtenção do título de mestre em História. Área
de concentração: História Social

Orientador: Prof. Dr. Samuel Carvalheira de


Maupeou

FORTALEZA
2022
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação
Universidade Federal do Ceará
Sistema de Bibliotecas
Gerada automaticamente pelo módulo Catalog, mediante os dados fornecidos pelo(a) autor(a)

M49c Mendes, Brenda Timbó.


O conflito da fazenda Japuara em Canindé-CE : repressão política, resistência camponesa e luta pela
terra (1968 – 1984) / Brenda Timbó Mendes. – 2022.
223 f. : il. color.

Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Ceará, Centro de Humanidades, Programa de Pós-


Graduação em História, Fortaleza, 2022.
Orientação: Prof. Dr. Samuel Carvalheira de Maupeou.

1. Conflito de terra. 2. Camponeses. 3. Ditadura civil-militar. I. Título.


CDD 900
BRENDA TIMBÓ MENDES

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em História Social da Universidade
Federal do Ceará, como requisito parcial à
obtenção do título de mestre em História. Área
de concentração: História Social

Aprovada em:24/08/2022.

BANCA EXAMINADORA

________________________________________
Prof. Dr. Samuel Carvalheira de Maupeou (Orientador)
Universidade Estadual do Ceará (UECE)

_________________________________________
Prof. Dr. Mário Martins Viana Júnior
Universidade Federal do Ceará (UFC)

_________________________________________
Prof. Dr. Pablo Francisco de Andrade Porfírio
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
AGRADECIMENTOS

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento


de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.
Ao Prof. Dr. Samuel Carvalheira de Maupeou, por ter aceitado trilhar essa trajetória
de pesquisa comigo. Agradeço pela paciência, pela indicação de leituras, pelo encorajamento e
por ter me acompanhado aos acervos de pesquisa. Ele desde a elaboração do projeto forneceu
apoio, mesmo eu sendo de uma outra instituição de ensino e me incentivou a prosseguir e
ampliar as fontes de pesquisa.
Aos entrevistados, sr. Alfredo Ramos Fernandes; sr. Francisco Luzardo Sousa
Barros; Francisco Haroldo Sousa Barros; sr. Jacó Ramos Fernandes e Maria Paes Fernandes,
pelo tempo concedido durante as entrevistas e por terem aceitado conversar comigo, mesmo
diante de muito receio. Sem dúvida, as suas falas enriqueceram esse trabalho
Aos membros do Grupo de Pesquisa: Seca, Cultura e Movimentos Sociais pela
leitura atenta dos meus textos e sugestões pertinentes à pesquisa. Em especial ao Frederico de
Castro Neves e Romário Bastos pela indicação de leituras e de fontes de pesquisa.
Ao Dirceu Gomes Garcia por te me acompanhado durante a realização das
entrevistas.
Aos amigos da turma de mestrado, pela companhia e conversa. Em especial ao
Ulysses e ao Paulo
Aos familiares, Jocélia Parente Timbó e Débora Timbó Mendes pelo apoio,
dedicação e por serem sempre meu sustentáculo. Agradeço ao Fábio Timbó Sales, por ter me
recebido de braços abertos quando resolvi dar continuidade aos meus estudos em Fortaleza.
Sem dúvida, um homem de grande coração.
Aos amigos de longa trajetória pela companhia, afetos e risadas que sempre
tornaram tudo mais alegre. Sempre é uma grande festa encontrá-los: Amanda, Davi, Ingrid,
John e William. Agradeço também a uma amiga de longa data, Sarah Pinho, pelas conversas,
por ter apoiado a minha tentativa ao mestrado e por sempre fornecer apoio e carinho nos
momento decisivos da minha vida.
RESUMO

Esta pesquisa tem por objetivos, analisar o conflito entre camponeses e o proprietário de terras
ocorrido na Fazenda Japuara em Canindé - CE, em 1971, perscrutando o seu percurso de
disputas, os desdobramentos para os sujeitos diretamente implicados, e discutir o tratamento
aplicado pelo Estado às disputas no campo em um contexto autoritário. Para isto, faremos uso,
principalmente, de fontes oficiais e hemerográficas, privilegiando a análise do acervo Memórias
Reveladas do Arquivo Nacional e do Arquivo Público do Ceará – APEC, que contém uma série
de documentos do Departamento de Ordem Política Social – DOPS, do Serviço Estadual de
Informação – SEI e da Polícia Militar. O conflito da Fazenda Japuara resultou na primeira
desapropriação de terras do Ceará em decorrência de tensão social, isso durante a ditadura civil-
militar. Em um contexto de perseguição aos Sindicatos Rurais e prisão das principais lideranças
camponesas do Estado, Japuara marca a retomada dessa mobilização camponesa, com a vitória
dos trabalhadores rurais na luta pela terra, mesmo em um cenário de repressão. Todavia, mesmo
o Estado reconhecendo o direito à terra dos camponeses de Japuara, não demorou para ser
instaurado um inquérito para apurar atividades subversivas no meio rural, que indiciou
importantes lideranças sindicais camponesas e mediadores dos conflitos de terra. Deste modo,
posterior aos confrontos, um processo de repressão intensa incidirá, aos camponeses e
mediadores do conflito. Esses foram acusados como responsáveis pela “agitação no meio rural”
e por realizarem uma “orientação equivocada” dos direitos dos camponeses, dentre eles,
encontra-se Lindolfo Cordeiro, mediador do conflito de Japuara, e que utilizou, principalmente,
o Estatuto da Terra na defesa dos camponeses.

Palavras-chave: conflito de terra; camponeses; ditadura civil-militar.


ABSTRACT
This research aims to analyze the conflict between peasants and landowner that occurred at the
Japuara Farm in Canindé - CE in the year 1971, scrutinizing it’s quarrels and the consequences
that inflicted the subjects involved and also discuss the treatment used by the State in the
disputes in the countryside in an authoritarian context. In the research we will mainly make
use of official sources and journalistic material focusing on the collection of the “Memórias
Reveladas do Arquivo Nacional”, National Archive of Revealed Memories, and of the “Arquivo
Público do Ceará - APEC”, Public Archive of Ceará, that contains many documents of the
“Departamento de Ordem Política Social - DOPS” the Department of Political and Social Order
of the “Serviço Estadual de Informação - SEI”, the State’s Information Service and of the
Military Police. The conflict at the Japuara Farm resulted in the first case of expropriation of
land in the State of Ceará as an outcome of social tension in the civil-military dictatorship. In a
context of persecution of the rural unions and imprisonment of the main peasant leaderships in
the State, Japuara marks the resumption of the country's mobilization by the victory in court by
the rural workers in their claim to their land in a scenery of repression. However, even with the
recognition of the landowning rights of the peasants of Japuara by the State it won’t be long
until an inquiry to investigate their main union leaderships and conflict mediators was started.
Thus, after many quarrels, a process of severe repression befell over them. Accused of being
the responsibles for the inciting of “subversive behavior in the countryside” between the
indicted was Lindolfo Cordeiro, a mediator in the Japuara conflict that utilized the Land Statute
in the defense of the peasants.

Keywords: land conflict; farmers; civil-military dictatorship.


SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ................................................................................................. 09
2 JAPUARA: MOBILIZAÇÃO CAMPONESA NA LUTA POR
DIREITOS.......................................................................................................... 27
2.1 A chegada do novo proprietário ...................................................................... 27
2.2 A propriedade em litígio .................................................................................. 52
2.3 A organização dos moradores e o processo de sindicalização rural........... 77
3 NARRATIVAS DE UM CONFLITO DE TERRA: MEMÓRIA E
IMPRENSA................................................................................................................. 100
3.1 A destruição da casa de morada: o estopim do conflito................................. 100
3.2 Conflito de terra em primeira página............................................................. 124
3.3 Desapropriação para pôr fim à tensão social................................................ 151
4 JAPUARA: A SUBVERSÃO NO MEIO RURAL....................................... 172
4.1 A subversão no meio rural e os inimigos interno da nação......................... 173
4.2 A Justiça Militar e a pena de morte .............................................................. 193
5 CONCLUSÃO .................................................................................................... 211
REFERÊNCIA................................................................................................... 214
9

1 INTRODUÇÃO
O conflito ocorrido na Fazenda Japuara em Canindé, em 2 de janeiro 1971, causou
repercussão na imprensa pelo número de vítimas resultante dos confrontos entre os camponeses
que residiam na propriedade, trabalhadores da obra de emergência contra a seca e a Polícia de
Canindé — quatro mortos e vários feridos. O conflito arrastava-se há anos na Justiça com várias
tentativas de despejo forçado dos moradores pelo novo proprietário de Japuara, César Campos,
e este, por sua vez, não tendo conseguido por meio judicial, resolve expulsar os camponeses
sem a mediação da Justiça. Para isso, no dia 2 de janeiro de 1971, ele contratou trabalhadores
da obra de emergência contra a seca para destelharem as casas dos moradores (BARROS, 2013,
p. 20). No primeiro confronto, morre o trabalhador da frente de emergência contratado pelo
proprietário – Joaquim Piau. No mesmo dia, o delegado do Departamento de Ordem Política e
Social – DOPS acompanhado por soldados da Polícia Militar de Canindé dirigiram-se à
propriedade a mando do proprietário, César Campos, e entraram em confronto direto com os
moradores de Japuara. Nesse segundo confronto, falece o delegado do DOPS (Cidio Martins);
o soldado de polícia (Paulo de Freitas) e o agricultor e morador de Japuara (Nonato Pais), o
último a falecer (BARROS, 2013, p. 20).1
Os dois confrontos se deram em frente à casa de uma das lideranças dos moradores,
o agricultor Francisco Nogueira Barros, mais conhecido como Pio Nogueira Barros. Além de
ser residência de Pio Nogueira, a casa também era a sede da Delegacia Sindical de Japuara, e o

1
No Ceará, treze camponeses foram assassinatos durante a Ditadura Civil Militar, crimes cometidos tanto por
agentes públicos (Polícia Civil ou Militar, ou das Forças Armadas) ou a mando de proprietários de terras. As
informações referentes aos Ceará foram retiradas do livro Retratos da repressão política no Campo-Brasil 1962-
1985 – camponeses torturados, mortos e desaparecidos, de autoria de Ana Carneiro e Marta Cioccari. O livro
relata, de forma mais aprofundada, as diversas violações aos direitos humanos sofridas pelos camponeses durante
a Ditadura Civil Militar em todos os estados brasileiros. Os textos referentes a cada estado são compostos de
entrevistas dos camponeses que sofreram algum tipo de violação de direitos humanos. Ao término de cada capítulo,
são listados os camponeses torturados, mortos ou desaparecidos. Cabe destacar, ainda, que, no município de
Canindé, três agricultores foram assassinados em três confrontos em fazendas da região durante a ditadura segundo
tal publicação. No caso, os agricultores e os locais respectivos foram Antônio Almeida da Silva, morto na Fazenda
Parafuso (1970/1971); Nonato Pais (Nonato 21), morto no conflito da Fazenda Japuara (1971), e José Amaro
Macena (José Américo), morador da Fazenda Valparaíso (1984), assassinado por um pistoleiro, a mando do
deputado e proprietário da fazenda Valparaíso, Francisco Figueiredo de Paula Pessoa. (CARNEIRO, CIOCCARI,
2011, p.123-124). Enfatiza-se que a Fazenda Valparaíso fica localizada em uma região fronteiriça entre o
munícipio de Canindé e Santa Quitéria, por isso existe certa indefinição de sua localização, contudo, devido ao
envolvimento do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Canindé e de elementos da Igreja Católica de Canindé no
conflito, este passou a ter uma vinculação mais ativa de sujeitos ligados ao município de Canindé do que de Santa
Quitéria.
10

agricultor ocupava o cargo de Delegado Sindical de Japuara e região do entorno. Posteriormente


aos confrontos, os camponeses diretamente envolvidos no conflito de Japuara se refugiaram por
três dias no Serrote de Santa Teresa para evitar de serem mortos pelos policiais locais. Foram
resgatados no dia 5 de janeiro de 1971 por uma equipe formada pela Fetraece e pelo Diário dos
Associados, órgão pertencente ao grupo de Assis de Chateaubriand. Os demais camponeses que
permaneceram na propriedade, incluindo, mulheres e crianças (parentes dos agricultores)
sofreram torturas durantes as investigações da polícia e guardam marcas até hoje da extrema
violência à qual foram submetidos. Violência operada com participação direta do Estado, que
se fez presente no conflito, ora atuando de modo favorável ao proprietário, durante as disputas
judiciais, ora reprimindo de modo direto os camponeses utilizando o aparato de violência
policial após os confrontos.
Destaca-se que, apesar de o conflito de Japuara ter ganhado notabilidade da
imprensa somente em janeiro de 1971, em decorrência dos episódios de extrema violência, na
verdade, os confrontos foram a culminância de uma disputa prolongada entre os moradores de
Japuara e novo proprietário, César Campos, que vinha sendo travada judicialmente desde 1968
e contava com o forte engajamento da Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e
Agricultoras Familiares do Estado do Ceará – Fetraece, como mediadora deste conflito,
fornecendo assistência jurídica aos moradores e atuando na defesa dos direitos desses
camponeses desde 1969.2 Portanto, o conflito se insere em uma disputa entre camponeses e
proprietário situada para além dos episódios do dia 2 de janeiro de 1971 e iniciada desde o
momento em que a propriedade fora vendida por um dos herdeiros da fazenda ao comerciante,
Júlio César Campos (BARREIRA, 1992, p. 49). Assim, Pio Nogueira Barros e os demais
moradores de Japuara se organizaram na propriedade e a transformaram em uma Delegacia
Sindical para que não fossem despejados da terra sem o recebimento dos seus direitos
assegurados pelo Estatuto da Terra, tendo em vista que tal dispositivo legal assegurava a posse
da terra aos moradores, até que estes fossem ressarcidos pelas benfeitorias úteis.
Enfatiza-se que o conflito da Fazenda Japuara resultou na primeira desapropriação
de terras do Ceará para fins de reforma agrária em decorrência de tensão social, isto em plena
ditadura civil-militar. O advogado Lindolfo Cordeiro, ligado à Fetraece, que atuou como
mediador do conflito, tornou-se peça fundamental para a desapropriação de Japuara. Para
Lindolfo, os confrontos legitimavam a desapropriação das terras com base no Estatuto da Terra,
que previa desapropriação de terras em caso de grave tensão social no campo. Decorridos pouco

2
No início da disputa judicial, em 1968, a Fetraece ainda não atuava como mediadora do conflito. Ela se tornará
parte atuante do conflito a partir de 1969, quando Lindolfo Cordeiro se torna advogado dos camponeses moradores.
11

mais dois meses dos confrontos, o presidente Médici assina o Decreto nº 68.414, de 23.03-71,
declarando Japuara área prioritária para fins de reforma agrária (BARREIRA, 1992, p. 56).
Atualmente, Canindé é o município do estado do Ceará, segundo informações
disponíveis no relatório produzido pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
– Incra (CE),3 com a maior quantidade de projetos de assentamentos rurais do Ceará. São 39
projetos, com uma área desapropriada em torno de 83.000 mil hectares de terra, 4 com mais de
1.6005 famílias vivendo em assentamentos rurais. A maioria dessas desapropriações ocorreram
em meados da década de 1980, intensificando-se durante a década de 1990, em um cenário
marcado pela expressiva atuação dos movimentos sociais no campo e durante a
redemocratização do país. Apesar de o conflito da Japuara ter ocorrido no início da década de
1970, cabe questionar se o seu resultado favorável aos camponeses pode ser apontado como
elemento desencadeador de uma série de conflitos entre proprietários e camponeses na cidade
de Canindé. Ou mesmo como um fator encorajador para que outros camponeses se
mobilizassem na luta pela terra. Como nos lembra James Scott, quando o discurso dos
subalternos é bem recebido na esfera pública, “a sua capacidade de mobilização como acto
simbólico é potencialmente assombrosa” (SCOTT, 2013, p. 307).
O interesse desta pesquisa surgiu a partir de uma maior aproximação do universo
camponês durante a graduação em História, com as disciplinas cursadas que tematizavam a
questão agrária no Brasil e a cultura camponesa. A inquietação em abordar os conflitos sociais
no campo e sua relação com a ditadura civil-militar está entrelaçada inicialmente com a
descoberta de um conflito camponês em Canindé (1971), na Fazenda Japuara. A leitura de um
relato escrito pelo camponês Francisco Blaudes Sousa Barros, Japuara, um relato das
entranhas do conflito (2013) intensificou esse interesse. Assim, como o contato com a obra do
sociólogo César Barreira, Trilhas e atalho do poder: conflitos sociais no Sertão, o primeiro
estudo acadêmico sobre o conflito de Japuara.

3
Relatório: “Projetos de Reforma Conforme Fases de Implementação” (Período de Criação do Projeto 01/01/1980
até 13/03/2019) Superintendência Regional do Estado do Ceará – SR (02). Ministério do Desenvolvimento Agrário
– MDA. Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra/CE). Diretoria de Obtenção de Terras e
Implantação de Projetos de Assentamento. Relatório do Sistema SIPRA. Acesso em: 13 mar. 2019. Ressalte-se
que tal relatório foi repassado por uma funcionária do Incra (CE) na referida data.
4
Canindé possui uma extensão territorial de 3.218 km².
5
De acordo com a estimativa do IBGE (2019), Canindé possui uma população total de cerca de 76.997 habitantes.
Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/ce/caninde/panorama. Acesso em: 31 jul. 2020. Segundo dados
do Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará (Ipece), o tamanho médio das famílias do Ceará é de
3,19 membros. IPECE informe / Fortaleza – Ceará: Ipece, 2019. Disponível em:
https://www.ipece.ce.gov.br/wpcontent/uploads/sites/45/2019/11/ipece_informe_162_11_nov2019.pdf. Acesso
em: 31 jul. 2020. Levando em consideração esse fato, pode-se presumir que pelo menos 6,6% da população do
munícipio de Canindé habitem em áreas de assentamento rural, isto estimando que essas 1.600 famílias possuam
em torno de 3,19 membros.
12

Diante do exposto, esta pesquisa tem por objetivo analisar o conflito entre
camponeses e o proprietário de terras, ocorrido na Fazenda Japuara em Canindé-CE (1968 –
1984), perscrutando o seu percurso de disputas e os desdobramentos para os sujeitos
diretamente implicados. Além disso, pretende-se discutir o tratamento dispensado pelo Estado
aos conflitos de terra em um contexto autoritário. Desse modo, este trabalho almeja analisar um
conflito de terra motivado, em certa medida, pelo questionamento do campesinato das relações
de trabalho e poder no campo que passam a ser reconfiguradas a partir da atuação dos Sindicatos
dos Trabalhadores Rurais, da aprovação do Estatuto do Trabalhador Rural e do Estatuto da
Terra. Mesmo em um período de forte repressão por parte do Estado, as reivindicações por
direitos movidas pelos camponeses não cessaram, inclusive, estes fariam uso de um aparato
legal aprovado durante a ditadura civil-militar (Estatuto da Terra), para questionar as relações
de trabalho e poder no campo. De acordo com Palmeira (2009), os momentos de menos
efervescência das lutas camponesas tendem a ser esquecidos. Para ele, é necessário recuperar
os momentos de desmobilização, inclusive, para compreender a possibilidade de “aparecimento
ou desaparecimento de conflitos abertos” (PALMEIRA, 2009, p.172). Portanto, cabe questionar
como foi possível a emergência de conflitos abertos como os de Japuara, mesmo em um
contexto autoritário marcado pela repressão às lideranças camponesas e perseguição às
entidades sindicais.
O recorte da pesquisa foi definido a partir do rompimento do conflito entre César
Campos e os moradores parceiros de Japuara, em 1968, e finaliza com o julgamento dos
agricultores em 1984. Para estabelecer esse recorte, elencamos alguns marcos do conflito: I) o
momento da venda da propriedade e os embates cotidianos até desembocar nos confrontos
abertos; II) os confrontos na propriedade, sua repercussão e a desapropriação; III) a instauração
de inquérito para apurar atividades de subversão no meio rural, em que Lindolfo Cordeiro
(advogado dos moradores) é indiciado por sua participação no conflito de Japuara; IV) a
titulação das terras pelo Incra – CE, haja vista que a entidade se negará a titular os camponeses
em virtude do envolvimento destes no conflito da fazenda, mesmo contrariando o que era
previsto pelo Estatuto da Terra. Na visão do órgão, a titulação de implicados em dissídios
poderia incentivar mais conflitos no campo: “Titulação de ocupantes de parcelas da Fazenda
Japuara Canindé - CE envolvidos diretamente em processo criminal, poderá incentivar conflito
no meio rural”.6; V) O julgamento dos agricultores de Japuara e o reconhecimento do direito de

6
Comunicado Interno/ CR (02) 128/82. “Titulação de ocupantes de parcelas da Fazenda Japuara Canindé – CE.
Envolvidos diretamente em processo criminal”. 13 de julho de 1982. In: Divisão técnica CR (02), p. 3. Arquivo
do Incra (CE).
13

titulação dos moradores implicados nos confrontos. Neste sentido, apesar da desapropriação ter
ocorrido com uma certa celeridade, o mesmo não pode ser dito em relação à titulação dos
camponeses e ao julgamento destes. Assim, o Estado somente reconhece em parte o direito dos
camponeses, já que o Incra se nega a proceder à titulação dos moradores de Japuara envolvidos
diretamente nos confrontos, mesmo contrariando a legislação.
Enfatiza-se que o conflito de Japuara tornou-se um marco de luta pela terra dos
camponeses do estado do Ceará. De acordo com Beserra (2017), os primeiros anos da ditadura-
civil-militar no Ceará, são marcados por perseguição aos líderes sindicalistas e fechamento de
Sindicatos Rurais dos Trabalhadores Rurais (STRs), especialmente os ligados ao Partido
Comunista Brasileiro – PCB. Tanto os STRs, quanto a Fetraece e a recém-criada Contag sofrem
intervenção do Estado de imediato após o golpe militar. Assim, se anterior a 1964, segundo
Lima, a conjuntura mostrou-se favorável à mobilização dos trabalhadores rurais,
posteriormente a esse período, a participação democrática se tornará limitada e a repressão
intensa (LIMA, 2003, p. 13). Dessa forma, em decorrência da perseguição política, a
mobilização camponesa entra em uma fase de estagnação ou declínio. Os camponeses, diante
da violência infligida com o golpe militar, tiveram que retornar “às suas conchas”,7 pelo menos
temporariamente, diante de uma conjuntura desfavorável à mobilização.
Entretanto, mesmo em um cenário de repressão, a partir do final da década de 1960,
o movimento camponês já passava por uma reestruturação em torno de uma nova mobilização
sindical. A própria Fetraece passa a ocupar um papel central como mediadora dos conflitos de
terra no Ceará, defendendo camponeses embasados naquilo que pautava o Estatuto do
Trabalhador Rural e Estatuto da Terra. Portanto, Japuara emerge de um cenário de repressão ao
campo, mas, ao mesmo tempo, surge em um contexto de reorganização da mobilização sindical
camponesa, isto é, as lutas camponesas voltam a aflorar no final da década de 1960 em torno
da cobrança por direitos assegurados por essas novas leis.
De acordo com Medeiros (2014), mesmo diante desse cenário de forte repressão de
Estado aos camponeses e apoiadores, os conflitos de terra continuam a emergir em diversos
locais do Brasil como atos de resistência aos desmandos do patronato agrícola, e não
propriamente como atos de resistência à ditadura civil-militar. Dentre os diversos conflitos entre
camponeses e proprietários, a autora destaca a luta dos camponeses de Canindé como caso

7
De acordo com Hobsbawm, mudanças favoráveis na conjuntura influenciam os camponeses por abrirem novas
possibilidades, contudo, ao menor indício de que o “poder irá reprimi-los”, estes tendem a retornar às suas conchas,
somente voltando a se mobilizar quando “aos poucos se dessem conta de que a situação estava novamente mais
aberta” (1998, 230-231).
14

emblemático no qual camponeses se insurgiram contra os proprietários de terra, mesmo durante


o período autoritário:
Onde havia mobilização, a resposta era mais repressão, fosse ela oficial, pelo Dops,
fosse pela tolerância à ação violenta dos proprietários de terra, por meio de seus
jagunços.
Essa situação se reproduziu ao longo de toda a década de 1970. Mesmo assim, os
conflitos persistiam em diversos locais. Há casos emblemáticos e ainda pouco
conhecidos que apontam para a resistência dos trabalhadores, não propriamente ao
golpe, mas às ações patronais, e que resultou em violência. O chamado Massacre de
Matapiruna, em Pernambuco, é um exemplo dessas formas de ação, bem como os
conflitos de Canindé, no Ceará, ou aqueles ocorridos na região de Pindaré-Mirim no
Maranhão e na Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro (MEDEIROS, 2014, p. 95).

Apesar de os conflitos ocorrerem de forma isolada nos anos 1970, como também
sinaliza Beserra (2017), percebemos que o trabalho do historiador, ao tentar desvelar esses
conflitos entre camponeses e proprietários, assemelha-se ao que Martins (1985) se refere como
um trabalho de reunir migalhas dispersas dos pequenos e grandes conflitos e da presença
minúscula desses sujeitos que vêm resistindo a diversas opressões.8 Desse modo, mesmo em
um período autoritário, as lutas camponesas e a mobilização sindical permanecem latentes,
apesar de terem de “atender às regras do jogo impostas” pelo período autoritário (PALMEIRA,
2009, p. 196).
É necessário compreender que, mesmo quando o Estado reconhecia o direito à terra
aos camponeses, isto não significava que posteriormente os camponeses e apoiadores da causa
não se tornassem alvos de perseguição política. Depois de desapropriada a Fazenda Japuara,
não tardará a ser instaurado pela Delegacia Regional do Ceará (DR-CE)9 um inquérito para
apurar atividades subversivas no meio rural, indiciando lideranças sindicais camponesas e
apoiadores da causa. Tidos como responsáveis pelos conflitos de terra, caso de Lindolfo
Cordeiro,10 advogado da Fetraece, o qual atuou defendendo os camponeses de Japuara e se
envolveu em diversos conflitos de terra (ALBUQUERQUE, 2016). Assim, Japuara, torna-se
um marco do retorno dessa mobilização camponesa na luta pela efetivação de direitos e, ao

8
José de Sousa Martins, na comemoração dos dez anos de fundação da Comissão Pastoral da Terra – CPT,
publicou um artigo denominado “Na revolta das formigas”, inserido em edição de um livro da própria CPT
intitulado Conquistar a terra, reconstruir a vida: CPT – dez anos de caminhada. Neste artigo, Martins afirma que
a CPT, nesses dez anos de existência, contribuiu justamente ao reunir informações sobre os conflitos dispersos e
muitas vezes isolados pela própria distância e censura do regime militar brasileiro. O livro foi publicado no
chamado período de redemocratização do Brasil (1985) e retrata as dificuldades vivenciadas pela CPT durante os
dez anos de caminhada.
9
Processo Secom nº 52.023 (1972) – “atividades subversivas no meio rural” Fundo: Divisão de segurança e
informações do Ministério da Justiça. Arquivo: Memórias Reveladas sob tutela do Arquivo Nacional.
10
Lindolfo Cordeiro foi um dos 14 advogados ligados à questão agrária, assassinado durante a Ditadura. (Relatório
da Secretária dos Direitos Humanos da Presidência da República, 2013, p. 82). Disponível em:
http://dh.sdh.gov.br/download/dmv/camponeses.pdf. Acesso em: 26 jan. 2017.
15

mesmo tempo, demarca um processo de repressão intensa às lideranças camponesas e


assistentes jurídicos após a desapropriação da fazenda.
No conflito de Japuara, ocorreu a perseguição aos moradores durante as
investigações da Polícia Militar de Canindé, principalmente, às famílias dos agricultores,
mulheres e crianças que permaneceram na Fazenda após os confrontos. Outro elemento
demonstrativo dessa repressão, prende-se ao fato de que Lindolfo Cordeiro passa a sofrer
perseguição política de forma mais incisiva por sua atuação como mediador nos conflitos de
terra, principalmente, depois de sua participação no conflito de Japuara, que ganha uma ampla
repercussão na imprensa. Outro fator demonstrativo da perseguição é a própria negativa do
Incra (CE) de conceder a titulação dos lotes de terra desapropriados aos agricultores que
atuaram como partícipes diretos dos confrontos, pois, segundo o órgão, isto incentivaria mais
conflitos de terra. Ressalte-se que a negativa do Incra (CE) de conceder a titulação dos lotes de
terra desapropriados aos moradores envolvidos diretamente no conflito contrariava o disposto
no Estatuto da Terra.
Com relação à produção acadêmica sobre Japuara, o diálogo interdisciplinar com
alguns trabalhos mostra-se essencial. Um deles é o trabalho pioneiro do sociólogo César
Barreira, que, de fato, abriu a trilha para uma série de outros estudos sobre o conflito de Japuara,
inclusive o meu. O autor da obra Trilhas e atalhos do poder: conflitos sociais no Sertão (1992),
fruto de sua tese de doutorado, discute como as relações tradicionais de dominação do sertão
começam a ser rompidas com os conflitos sociais no campo, enfatizando o papel exercido pelos
novos agentes mediadores dos conflitos de terra, tais como a Igreja Católica, os Sindicatos de
Trabalhadores Rurais e o próprio Estado. Uma questão fundamental, segundo Barreira, para
entender as relações de poder e dominação entre proprietários e camponeses é a aceitação da
dominação por meio de aparatos não necessariamente violentos. Assim, os movimentos
camponeses têm de enfrentar tanto a dominação exercida pelo uso da violência física, quanto a
praticada por elementos ligados a certos preceitos e valores, como o da própria aceitação da
condição de dominado e do não questionamento da sua posição social. Ainda de acordo com o
mesmo autor, a partir da década de 1960, surgem conflitos isolados que emergem do interior
de cada fazenda, dentro de contornos geográficos bem precisos e que passam a contestar as
formas tradicionais de dominação do sertão. Barreira compreende os conflitos das fazendas
Japuara (Canindé), Santo Antônio (Caridade) e Monte Castelo (Quixadá), como espaços de
contestação da dominação tradicional do sertão desencadeada pela atuação dos novos agentes
mediadores de conflitos sociais. Em relação a Japuara, o autor utilizou como principais fontes
para sua pesquisa os depoimentos orais dos camponeses locais e fontes hemerográficas.
16

Outro trabalho relevante sobre Japuara e os conflitos de terra é o estudo da socióloga


Bernadete Beserra (2017), Movimentos sociais no campo do Ceará (1950-1990), que enfatiza
o processo de modernização da agricultura no Ceará e a própria resistência camponesa a esse
processo. Para a autora, a vinculação dos moradores-parceiros aos STRs durante a década de
1970 ou mesmo a modernização das relações de trabalho no campo ocasionará o rompimento
da relação de morada desses camponeses. Ela enfatiza os inúmeros conflitos entre proprietários
e camponeses que emergiram durante esse contexto. Para a autora, Japuara foi uma exceção à
regra, com a conquista da desapropriação da propriedade pelos camponeses. A maioria dos
conflitos camponeses durante o período autoritário tiveram um desfecho distinto de Japuara e
muitos camponeses que residiam nas propriedades rurais foram expulsos sem receberem
qualquer indenização pelos anos de trabalho nessas fazendas. Portanto, em um contexto de
modernização da agricultura, ter camponeses residindo no interior das fazendas vai se tornando
desinteressante para os fazendeiros.
Temos também o trabalho do historiador Gomes (2006), Japuara/1971: memórias
do conflito, o qual crítica veementemente os estudos que atribuíram ao conflito características
de um movimento social no campo, pois, segundo o autor, os moradores não almejavam a
reforma agrária: “Diferente dos demais movimentos sociais que buscavam por uma Reforma
Agrária. Ocorreu em Canindé, no dia 02 de janeiro de 1971, o conflito que envolveu fazendeiro,
camponeses e as forças policiais do estado” (GOMES, 2006, p. 11). Conforme Gomes, os
camponeses de Japuara somente almejavam uma indenização pelas benfeitorias, e isto não se
configuraria uma mobilização de luta pela terra:

O que torna o “Conflito da Japuara” singular é que um grupo que procurava apenas
uma indenização, e pelos caprichos do fazendeiro entraram em contenda com a força
policial, e mais, ao fugirem do reforço da capital, deixaram seus familiares a sofrerem
as diligencias dos militares que os caçavam (GOMES, 2006, p. 12).

Neste sentido, o autor propôs tanto demonstrar que tratar o conflito de Japuara como
um movimento social é um equívoco, já que não o percebe como movimento social organizado
que buscava conseguir a reforma agrária, quanto propõe “corrigir os erros” e “preencher” as
lacunas sobre Japuara. Gomes fez bastante uso das narrativas orais em seu trabalho, mas
também de fontes hemerográficas e oficiais.
Todavia, apesar de os camponeses de Japuara não terem almejado a reforma agrária
com a sua mobilização, é necessário compreender, de acordo com Dezemone (2008), que os
sujeitos, ao efetuarem determinadas escolhas dentro de um campo vasto de possibilidades,
17

colhem frutos previstos, mas também imprevistos, de suas ações e escolhas. Para Dezemone,
isto retira o determinismo da história, torna-a mais fluida e menos estática: “A consequência
disso é romper com a ideia de um rumo pré-estabelecido, inescapável aos acontecimentos”
(DEZEMONE, 2008, p. 28). Assim, por mais que os camponeses de Japuara não tivessem
vislumbrado, em seu campo de atuação, a desapropriação da fazenda, conquistaram-na em
decorrência de determinadas escolhas efetuadas neste campo de possibilidades.11 Assim, mais
importante do que compreender se os camponeses desejavam ou não a desapropriação da
fazenda, é discutir o processo que desencadeou a conquista pela terra e como isto foi possível
em um contexto autoritário de perseguição política aos camponeses e em um cenário de
desarticulação das mobilizações no campo.
A dissertação de mestrado de Albuquerque (2016), intitulada Francisco Lindolfo
Cordeiro na luta em defesa dos trabalhadores rurais do sertão cearense (1970-1978), constitui
importante trabalho para entender a perseguição política vivenciada por Lindolfo Cordeiro
durante a ditadura. A autora ainda aborda o envolvimento de Lindolfo em uma série de conflitos
de terra, enfatizando a atuação deste como advogado da Fetraece, a perseguição política que ele
sofreu por conta do seu engajamento nos inúmeros conflitos de terra e fecha seu estudo com o
assassinato do advogado, ocorrido em 1978 e até hoje impune.
Na Geografia, temos uma maior diversidade de trabalhos, com diferentes ênfases.
Primeiro, destaca-se o estudo de Lima e Sampaio (2006), que compreendem Japuara inserida
em um contexto de distribuição desigual da terra e desigualdade social latente no município de
Canindé. Para os autores, isto exemplifica um histórico de luta e resistência camponesa no
município. Temos ainda o trabalho de Diniz (2008), Trilhando caminhos: a resistência dos
camponeses no Ceará em busca de sua libertação, tese de doutorado defendida na USP. A
autora compreende Japuara como “fruto de uma resistência camponesa dos moradores de
condição” (2008, p. 33). Diniz analisa uma série de outros conflitos de terra que envolveram
camponeses no Ceará.
O livro produzido por Alencar et al. (2013), intitulado O pulsar da vida no campo:
Fetraece 50 anos, foi relevante para entender o funcionamento dessa entidade sindical durante
o regime autoritário e também os conflitos deflagrados na área rural na década de 1970. Os
autores compreendem Japuara como um conflito resultante da cobrança por direito pelos
moradores-parceiros e ensejado pelo cumprimento do Estatuto da Terra. Por fim, temos o
estudo de Matos (2017), dissertação de mestrado intitulada: Justiça juntos: os sindicatos de

11
Cf. KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro:
Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006.
18

trabalhadores rurais no Ceará: 1950-1985. Nele, a autora discute não só a atuação do


sindicalismo rural no campo, mas também o envolvimento de tais sindicatos em conflitos de
terra. A dissertação aborda o conflito de Japuara, buscando compreender a relevância que o
STR de Canindé exerceu para deflagrar essa luta camponesa.
Sobre o sistema de parceria, foram relevantes os trabalhos de Gnaccarini (1980),
Martins (1996) e Oliveira (2007), para compreender como a parceria, em certa medida,
perpetuou relações de desigualdade no campo após o fim da escravidão. Com relação às
aproximações entre a parceria e o sistema de morada na cultura do algodão do semiárido,
destacamos os importantes artigos produzidos por Barreira (1979); Almeida e Esterci (1979) e
Carvalho (1982).
No que se refere ao modo de reprodução camponesa, os estudos de Wolf (1970),
Schwarz (1990) e Paulino e Almeida (2010) nos ajudaram a compreender o papel da família
nesse modo de reprodução e também as fragilidades que envolvem esse sistema. Os estudos de
Garcia Júnior e Heredia (2009) e Heredia (2013) são relevantes para compreender as formas de
acumulação camponesa e outras necessidades que envolvem essa reprodução, para além das
questões de subsistência. Foram trabalho interessantes para entendemos o processo de
resistência dos moradores de Japuara que lutaram não só pela conquista por direitos, mas
também para preservar um determinado modo de vida que passa a ser ameaçado com a chegada
do novo proprietário.
Com relação aos conflitos de classes durante o período autoritário nesse mesmo
período, destacam-se duas coletâneas de artigos. A primeira, organizada por Cioccari e Lopes
(2013), Narrativas da desigualdade: memórias, trajetórias e conflitos. A segunda coletânea de
textos, organizada por Medeiros (2018), Ditadura, conflito e repressão no campo: a resistência
camponesa no Estado do Rio de Janeiro. Ambos os livros possuem artigos que tratam dos
conflitos de terras em suas diferentes dimensões, por pesquisadores de áreas distintas e durante
a ditadura civil-militar.
Optamos, neste estudo, por empregar tanto o termo camponês, quanto a expressão
moradores. Destaque-se que a participação dos camponeses na História do Brasil foi muitas
vezes relegada e Welch et al. (2009) apresentam duas justificativas para compreender a
invisibilidade dos camponeses na cena histórica brasileira. De acordo com eles, os camponeses
foram vistos, durante muito tempo, como “resíduos”, aqueles que, segundo os autores, “se
atrasaram para sair de cena” (2009, p. 9) e que, portanto, estariam condenados a desaparecer.
A segunda questão, também apontada pelos autores com relação à “invisibilidade” desses
sujeitos em nossa história, diz respeito ao modelo eurocêntrico de “camponês” que, durante
19

muito tempo, negou a presença de tais sujeitos na cena histórica brasileira (WELCH et al.,
2009), tendo em vista que os sujeitos do campo no Brasil não se adaptavam à concepção do
modelo de camponês europeu e medieval. Entretanto, isto foi sendo modificado, e os
camponeses foram emergindo na cena política brasileira, assim como foi tornando-se mais
recorrente o emprego da expressão “camponeses”.
De acordo com Martins (1983), essa expressão “camponês” passa a ser utilizada no
Brasil, principalmente, a partir da década de 1950, quando esses sujeitos emergem com mais
veemência no cenário político e esta palavra passa a ser utilizada em contraposição ao termo
latifúndio. Essas duas categorias emergem neste cenário evidenciando disputas que passam a
ser travadas na esfera política. Antes desse momento, os camponeses tinham outras
denominações tais como caipira, caiçara, tabaréu e caboclo. Segundo Palmeira (1985), a
mobilização política tira os camponeses do anonimato e, em certa medida, seria responsável
por criá-los como classe política. O autor leva em consideração o pressuposto do termo
camponês como parte de um vocabulário político novo e definidor de uma classe. Assim, essa
categorização passa a ser utilizada com o intuito de inserir uma nova identidade política às
denominações convencionais já empregadas, mas que possuíam uma identidade mais restrita.
De acordo com Palmeira (1985), o termo camponês, como definidor do campesinato, foi
(re)apropriado para definir os trabalhadores do campo que possuíam engajamento político.
Segundo Andrade (1989), o termo camponês passa a ser vastamente empregado
pelas correntes políticas de esquerda que apoiavam as mobilizações de tais sujeitos do campo,
inclusive, o emprego da expressão passa ser objeto de disputa entre segmentos de esquerda e
de direita, já que, segundo o autor, a direita defendia a utilização da categoria rurícola, a qual,
entretanto, não obteve muita aceitação, diferente do termo camponês, que ganha popularidade
com o surgimento das ligas camponesas em Pernambuco.
Segundo Francisco Julião (1962), ao proferir um discurso na Assembleia
Legislativa de Pernambuco, uma deputada propôs que ele substituísse o termo camponês pela
expressão rurícola por considerá-la menos ofensiva à classe proprietária e por ter uma
conotação menos “radical”. Entretanto, se o emprego do termo camponês, em princípio, trazia
consigo certo desconforto, principalmente, às classes proprietárias, posteriormente, de acordo
com Julião, a palavra foi-se naturalizando:

Preferíamos o nome “camponês” porque deriva de “campo”; era simples e tinha


sentido radical. Hoje, a palavra que naquele tempo ofendia os usineiros e grandes
senhores de terra de Pernambuco já é pronunciada por eles mesmos e escutada, sem
espanto e consagrado do povo, na cátedra, no púlpito, no pretório, no rádio, na
20

conferência e no comício. Era o sinal do radicalismo de que já se achava impregnado


o campesinato (JULIÃO, 1962, p. 29).

Tanto Martins (1983), quanto Palmeira (1985), Andrade (1989) e Julião (1962)
atribuem à expressão camponês uma identidade política nova que passa a ser conferida aos
sujeitos do campo mobilizados politicamente. As expressões camponês, latifúndio e rurícola
sinalizam um processo de disputa em curso antes do golpe militar de 64 e demonstra o quanto
este era um momento de forte ebulição política na qual os sujeitos passam a se valer do uso de
novas expressões ou, melhor, atribuir sentidos políticos novos às palavras para dar conta de
expressar esse cenário em transformação.12 De acordo com Palmeira, após 1964, a ditadura
passa a censurar a utilização do termo “camponês”, como uma tentativa de “esvaziar política e
ideologicamente o prosseguimento das lutas camponesas” (1985, p. 50).
O historiador Clifford Welch, em uma coletânea de estudos denominada História
Social do Campesinato no Brasil (2009), enfatiza que existem diversas possibilidades de
conceituar o campesinato, entretanto, o autor define seus integrantes como sujeitos
poliprodutores que guardam especificidades das demais categorias de trabalhadores urbanos ou
rurais, por estarem assentados no modo de produção familiar, o que os distingue dos demais
trabalhadores que “não operam produtivamente sob tais princípios” (2009, p. 10). Shanin
(2005) também compreende a família campesina como unidade básica de produção e, também,
como uma característica mais específica e singular do campesinato diversa dos demais
trabalhadores, além de constituir um meio de vida social. Para o autor: “Ao mesmo tempo, o
cerne de suas características determinantes parece repousar na dinâmica e no estabelecimento
rural familiar, enquanto unidade básica de produção e meio de vida social” (SHANIN, 2005, p.
5). Shanin apresenta o modo de vida camponês como um modelo de vida que tem muito a
ensinar a quem não é camponês: quer pela sua flexibilidade frente aos desafios, quer pela sua
capacidade de utilizar a família como principal instrumento de defesa:

Os camponeses podem nos ensinar uma variedade de coisas que nós não sabemos. A
questão da flexibilidade de respostas em fase dos desafios e crises econômicas é algo
que o camponês pode ensinar àquele que não é camponês, muito mais que o contrário,
como se pode observar em inúmeras situações. [...]. Não temos que ensinar aos
camponeses como viver, nós é que temos que aprender com eles como viver e com
resolver problemas nos quais parte da população está envolvida. Especialmente
aprender a partir da criatividade e multiplicidade de respostas dos camponeses
em situação de crise e de sua capacidade para usar a família como instrumento
para se defender das calamidades (SHANIN, 2008, p. 28. Grifo nosso).

12
Cf. KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro:
Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006.
21

A expressão camponês tanto carrega uma conotação política, quanto também se


refere a um modo de vida que guarda sua singularidade em relação aos demais trabalhadores,
sendo a utilização da família no modo de produção uma dessas particularidades. Segundo
Welch (2009) muitos camponeses se mobilizam politicamente visando a resguardar justamente
essa condição de vida e de produção camponesa.
Outra questão também relevante é a compreensão do que entendemos por
resistência camponesa. Esterci (2008), em seu estudo intitulado Conflito no Araguaia: peões e
posseiros contra a grande empresa, discute a mobilização dos posseiros como um movimento
de resistência campesino contra a introdução de grandes empresas na Amazônia (2008). A
autora leva em conta as especificidades que envolvem essas categorias de trabalhadores do meio
rural imersos em conflitos de terra que reivindicavam a posse da terra por eles ocupada, lutando
para não serem expulsos que são identificados como campesinos, enquanto os peões estavam
mais próximos do proletariado, também resistindo contra a exploração. Esterci compreende a
resistência camponesa como um processo perpassado por uma mobilização de tais posseiros
para evitar o despejo e por uma luta dos campesinos por direitos:

Dizer que o movimento dos posseiros de Santa Terezinha foi um movimento de


resistência implica, neste sentido, dizer que foi marcado por um caráter
essencialmente defensivo, os posseiros se opondo à tomada das terras por eles já
ocupadas, e sobre as quais se julgavam com direitos (ESTERCI, 2008, p. 12).

No caso dos camponeses de Japuara, é possível fazer tal aproximação com a luta
dos posseiros de Santa Terezinha, tendo em vista que a mobilização dos camponeses de Japuara
também foi marcada por um caráter defensivo: uma luta para que não fossem despejados da
terra pelo novo proprietário sem o ressarcimento das devidas indenizações asseguradas pelo
Estatuto da Terra. Ao mesmo tempo, foi uma luta também pela defesa dos direitos que os
campesinos julgavam ter sobre a terra: acesso à agua do açude que existia na propriedade, aos
peixes, à criação de animais na propriedade e ao pagamento de uma renda justa. A mobilização
campesina de Japuara é um processo de resistência: tratava-se de assegurar o acesso aos
recursos da terra e da floresta (WELCH et.al., 2009), em um processo pautado em torno do
cumprimento da legislação agrária, isto é, pelo asseguramento dos direitos.
Com relação às fontes utilizadas para a construção desta pesquisa, faremos uso,
principalmente, de fontes oficiais e hemerográficas. Todavia, isto não significa dar vazão a uma
concepção de História de Estado/Oficial ou dos vencedores. Benjamin (1987), em uma
observação pertinente, permite-nos refletir sobre o historiador e as suas fontes, lembra-nos da
22

necessidade de análise da documentação histórica a contrapelo e de uma história dos vencidos


e vencedores:

Ora, os que num momento dado dominam são os herdeiros de todos os que venceram
antes. A empatia com o vencedor, beneficia sempre, portanto, os dominadores. Isso
diz tudo para o materialismo histórico. Todos os que até hoje venceram participam do
cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão
prostrados no chão. Os despojos são carregados no cortejo, como de praxe. Esses
despojos são o que chamamos bens culturais. O materialista histórico os contempla
com distanciamento. Pois todos os bens culturais que ele vê têm uma origem sobre a
qual ele não pode refletir sem horror. Devem sua existência não somente ao esforço
dos grandes gênios que os criaram, como à corveia anônima dos seus contemporâneos.
Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da
barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o
processo de transmissão da cultura. Por isso, na medida do possível, o materialista
histórico se desvia dela. Considera sua tarefa escovar a história a contrapelo
(BENJAMIN, 1987, p. 225).

Portanto, mesmo utilizando os ditos documentos oficiais, os discursos neles


presentes devem passar por um escrutínio, questionando as narrativas por eles produzidas sobre
os sujeitos por excelência deste trabalho, caso dos camponeses de Japuara e dos agentes
mediadores dos conflitos de terra, e isto está implícito em qualquer análise dos documentos que
se tornem fontes para a história, oficiais ou não.
Com relação aos periódicos analisados pela pesquisa, os principais foram o jornal
O Povo (CE), o Correio do Ceará (CE) e o Gazeta de Notícias (CE), consultados na Biblioteca
Pública Menezes Pimentel. No acervo do Instituto Histórico, consultamos o jornal O Nordeste
(CE). Em um primeiro momento, utilizamos as fontes hemerográficas para entender as
situações conflitivas cotidianas vivenciadas pelos moradores de Japuara. No segundo capítulo
deste estudo, utilizaremos os periódicos O Povo (CE), Correio do Ceará (CE) e Gazeta de
Notícias (CE), buscando entender como os conflitos de terra e a violência no campo eram
retratados na imprensa local e chegavam até o público leitor. Optamos por utilizá-los pelo fato
de serem jornais de grande circulação à época. Poderíamos ampliar a análise para outros jornais,
haja vista que o acontecimento ganhou repercussão nacional e internacional, todavia
dificilmente daríamos conta de tão vasta documentação e de alguns procedimentos
metodológicos para analisá-la. Ao utilizar o jornal enquanto fonte sobre a luta pela terra, a
qualificação dos sujeitos retratados e os discursos produzidos devem ser levados em
consideração, assim como a circulação do jornal, o seu posicionamento político, o seu público
alvo, o contexto histórico da sua produção, entre outras questões sintetizadas nas seguintes
perguntas que o pesquisador deve fazer a sua fonte:
23

As questões iniciais que se propõem a análise do periódico são fundamentais para o


direcionamento da pesquisa. Quem são os seus proprietários? Quando foi produzido?
A qual público é direcionado? Quais seus objetivos e intenções? Como se constitui
enquanto força ativa no seu período de circulação? Como se constitui enquanto
sujeito? Qual sua relação com as conjunturas de seu tempo e campos de atuação?
Quais seus aliados e opositores? (LEITE; ARIAS NETO, 2015, p. 5)

Levando em consideração que um dos objetivos do trabalho é a discussão dos usos


de aparatos legais pelos camponeses na reivindicação dos seus direitos, faz-se imprescindível a
análise do Estatuto do Trabalhador Rural e do Estatuto da Terra. Outras legislações também
consultadas foram o Código de Processo Civil e a Consolidação das Leis do Trabalho – CLT.
Mas nos detivermos, principalmente, na análise do Estatuto da Terra por ser o principal
instrumento jurídico utilizado pelo advogado dos camponeses de Japuara na defesa destes e
também por pautar um modelo de Reforma Agrária.
Faremos uso também dos relatórios publicados pelo Ministério do
Desenvolvimento Agrário (2011): Retrato da repressão política no campo – Brasil 1962 -1985
– camponeses torturados, mortos e desaparecidos; pela Secretaria de Direitos Humanos (2013):
Camponeses mortos e desaparecidos: excluídos da justiça de transição, e o Relatório Final da
Comissão Camponesa da Verdade, publicado em 2014. São livros/relatórios que retratam a
perseguição, morte, tortura e desaparecimento do camponeses e mediadores de conflitos de
terra durante a ditadura. Ressalte-se que Japuara sempre é mencionado nestas publicações, no
que se refere à perseguição e às torturas vivenciadas por camponeses e apoiadores no Ceará.
A biografia produzida pelo camponês Francisco Blaudes de Sousa Barros, Japuara,
um relato das entranhas do conflito, possui relevância para a pesquisa na medida em que retrata
as memórias sob o ponto de vista de um camponês que participou dos confrontos.
Outra relevante fonte para a nossa pesquisa foram as entrevistas dos moradores de
Japuara. Entrevistamos cinco camponeses que ainda residem na fazenda que foram: o sr.
Alfredo Ramos Fernandes; o sr. Francisco Luzardo Sousa Barros; o sr. Francisco Haroldo Sousa
Barros; sr. Jacó Ramos Fernandes e dona Maria Paes Fernandes. Durante o processo de
entrevista, observou-se que os camponeses se dividem em duas categorias de narradores. O
primeiro grupo, diz respeito aos que estiveram presentes nos confrontos do dia 2 janeiro de
1971. O segundo grupo, são os que não participaram dos confrontos ou que estiveram presente,
mas ainda eram crianças pequenas. Estes narram a experiência sedimentados em uma memória
paterna /materna dos confrontos.
Faremos uso igualmente tanto do acervo Memórias Reveladas, do Arquivo Público
do Ceará – APEC, quanto do acervo digital do Arquivo Nacional, por serem acervos relevantes
24

para compreender a perseguição política aos envolvidos nos conflitos de terra. No que se refere
à tipologia dos documentos que normalmente fazem parte do acervo do DOPS, os autores
Braggio e Fiuza (2013) consideram que eles podem ser caracterizados de acordo com três
grupos: documentos produzidos pelos agentes a serviço do Estado, como relatórios, informes,
entre outros; documentos produzidos por sujeitos instituições/grupos/entidades que estivessem
sob vigilância, tais como panfletos, fotografias, manifestos impressos pelos movimentos etc.;
e, por fim, documentos produzidos pela própria imprensa, em que comumente jornais aparecem
recortados com as partes que os agentes julgavam mais relevantes. No acervo Memórias
Reveladas, tanto do Arquivo Nacional, em sua plataforma virtual, quanto do acervo físico do
APEC/Ceará, observa-se estrutura idêntica à descrita acima. O acervo assim revela-se vasto e
não constituído apenas por documentos produzidos pelos agentes de vigilância do Estado.
É fundamental, portanto, destacar que a disponibilização e as possibilidades de acesso
dos pesquisadores aos documentos produzidos pelos órgãos repressivos do Estado, durante o
regime autoritário, segundo Joffyly (2013), fomentaram a crença de que essa simples
disponibilidade garantiria o acesso a uma espécie de “verdade intrínseca/imanente” carregada por
esses documentos sobre as ações praticadas pelo Estado, indivíduos ou grupos sob vigilância
durante a ditadura. Dispor assim desses documentos (tratados/denominados por pesquisadores ou
não, a partir de então, como “arquivos sensíveis” ou também “arquivos repressivos”, termos
vastamente utilizados para referi-los como fontes para a história) fomentou a ideia equivocada de
que possibilitariam um acesso aos acontecimentos históricos durante o regime autoritário de
modo idêntico “ao que de fato aconteceu”. Isto não corresponde à realidade pela impossibilidade
inerente ao próprio fazer historiográfico. Como nos lembra Benjamin, o conhecimento sobre o
passado ocorre por meio de reminiscência: “Articular historicamente o passado, não significa
conhecê-lo ‘como ele de fato foi’. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal qual como ela
relampeja no momento de perigo” (1987, p. 224).
A historiadora Camargo (2009) enfatiza que, se o pesquisador tem interesse de
investigar a atuação dos indivíduos que eram alvos de vigilância desses órgãos de repressão, as
informações contidas nessa documentação devem ser interpretadas pelo pesquisador,
considerando-se que tais documentos, por si sós, não podem ser utilizados como prova da ação
de indivíduos ou mesmo de grupos vigiados pelo Estado. O espectro da verdade não está contido
nesses documentos nem em qualquer outro utilizado que possa vir a se tornar fonte pelo
historiador, como nos alerta a pesquisadora. Portanto, não se trata de uma particularidade desses
documentos como fontes para a história, trata-se de procedimentos metodológicos a serem
observados no uso de qualquer documentação.
25

Segundo Camargo (2009), esses documentos dizem muito mais sobre as instituições
que os elaboraram do que sobre as ações dos indivíduos neles retratados. Seria um erro utilizar
tais documentos como comprobatórios da ação desses indivíduos então sob vigilância do
Estado, haja vista que, como pondera Padrós, a respeito do contexto de produção dessa
documentação, os depoimentos eram recolhidos sob forte pressão física e psicológica dos
depoentes. As informações aí contidas, segundo o autor, eram comumente distorcidas e até
mesmo forjadas/falseadas, de acordo com os interesses desses órgãos:

Finalmente, deve-se esclarecer que não se pode ter a expectativa de que esses
documentos, quando revelados, se tornam portadores de uma verdade cristalina,
trazem informações essenciais ou grandes novidades e descobertas. A própria
legitimidade das informações ali coletadas deve ser questionada com muita cautela,
pois são informações que, em muitos casos, foram arrancadas das vítimas em
situações constrangedoras, sob forte coerção ou, então, elaboradas por funcionários
estatais (policiais, militares, diplomatas, médicos, funcionários públicos, etc.) que
transmitiram a informação de acordo com seus interesses e simpatias, dos seus chefes
ou das instituições em que desempenharam funções (PADRÓS, 2009, p. 42).

Como em qualquer outra documentação, o tratamento desses documentos,


portadores de particularidades inegáveis, requer sempre uma crítica histórica:

Qualquer que seja o teor das informações neles contidas – exploradas de inúmeras
maneiras, com diversos propósitos e sob diferentes perspectivas teóricas pelos
pesquisadores –, o valor probatório dos documentos de arquivo continua a recair, com
exclusividade, sobre as ações de que se originaram. No referido caso das fichas
nominativas, por exemplo, seria erro grave supor que tais documentos fazem prova
do comportamento das pessoas e não da entidade encarregadas de vigiá-las
(CAMARGO, 2009, p. 435).

Por fim, cabe destacar que, com o processo de abertura política e a disponibilização
aos pesquisadores de acervos dos arquivos da ditadura civil-militar, acreditamos que outras
questões possam vir a ser suscitadas com o uso dessas fontes sobre conflitos de terra que já
foram analisados por outros pesquisadores, caso do conflito da Fazenda Japuara (1971).
Sobre a estruturação do trabalho, este encontra-se dividido em três capítulos. O
primeiro, “Japuara: mobilização camponesa na luta por terra e direitos”, almeja desvelar a
trajetória do conflito antes dos episódios de 2 de janeiro de 1971. Almeja trazer uma
racionalização ao conflito e expor como este foi ocorrendo em espaços de disputas distintos
antes de ocorrerem os confrontos (SCOTT, 2002, p. 14), tendo em vista a ocorrência de disputas
cotidianas anteriores entre o proprietário e os camponeses em torno da cobrança da renda da
terra, da criação de animais, da utilização de açude e da repartição da produção do algodão e
das culturas ligadas diretamente à subsistência dos camponeses. Assim, procurou-se apresentar
como a chegada do novo proprietário rompe com o modus vivendi dos moradores e também
26

como a quebra das regras de transmissão da propriedade implicaram em desentendimentos entre


os camponeses e o novo proprietário da fazenda.
O segundo capítulo, “Narrativas de um conflito de terra: memória e imprensa”,
inicia com os confrontos na propriedade, buscando compreender o que ocasionou os episódios
de violência de Japuara, em 2 de janeiro de 1971, e como a tentativa de destruição da casa de
morada de Pio e a quebra de determinados códigos de conduta do universo masculino tornaram-
se o estopim de um conflito de terras. Nesse capítulo, também buscamos discutir a imagem
construída pelos jornais sobre o conflito de Japuara e os seus implicados, assim como o papel
colaborador da imprensa na celeridade da desapropriação da fazenda
O terceiro capítulo intitula-se “Japuara: a subversão no meio rural, buscar tratar do
processo de perseguição política aos mediadores dos conflitos de terra” e defende que a
repressão política aos mediadores dos conflitos de terra intensificou-se, no Ceará, após a
desapropriação de Japuara. Assim, discutiremos como os órgãos do aparelho do Estado serão
utilizados para promoverem a perseguição política, principalmente, aos que atuaram como
mediadores dos conflitos de terra, em especial, aos sujeitos ligados à Fetraece. Nesse sentido,
utilizaremos como uma das principais categorias de análise a noção de “inimigo interno” para
compreender o que os órgãos de vigilância atribuem como “subversão no meio rural” e como a
difusão da existência de inimigo interno foi utilizada para promover, nos setores médios da
sociedade, a ideia de que esses sujeitos, que atuavam como mediadores dos conflitos entre
proprietários e camponeses, deveriam ser expurgados por romperem com a coesão da nação ao
provocarem “choques” entre as classes do meio rural.13 Do mesmo modo, busca-se refletir
como os mecanismos judiciais serão utilizados para conferir um ar de legalidade à perseguição
política aos mediadores dos conflitos de terra, tais como os sindicalistas e advogados e, também,
como a pena de morte se tornou um mecanismo de “neutralização” dos assim considerados
opositores políticos do regime militar brasileiro.

13
Cf. BORGES, Nilson. A doutrina de segurança nacional e os governos militares. In: FERREIRA, Jorge;
DELGADO, Lucília de Almeida. O Brasil republicano – o tempo da ditadura: o regime militar e os movimentos
sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
27

2. JAPUARA: MOBILIZAÇÃO CAMPONESA NA LUTA POR DIREITOS

Três dias de sujeição


Pra morador na fazenda
Fosse chuva fosse sol
Cinquenta por cento a renda
Comprava e vendia tudo
Ao patrão na sua venda
E quem desobedecesse
Era expulso da terra
O patrão não lhe queria
Nem no sertão nem na serra
Foi aí que Japuara
Se organizou pra “guerra”14

César Campos, o novo proprietário de Japuara, desejava que voltasse a vigorar a


meia do algodão na fazenda, como em tempos de outrora, no qual os moradores eram “sujeitos”
a lei dos patrões. Além disso, ao comprar a fazenda e se apresentar como o novo proprietário
proibiu os camponeses de criarem animais e de utilizarem o açude para pesca. Os moradores
defendendo um modo de vida, vão resistir as novas imposições do proprietário e serão
ameaçados de expulsão da terra.
Na narrativa dos camponeses sindicalizados de Canindé, Japuara marca um antes e
um depois nas relações no interior das propriedades rurais. Um tempo em que os camponeses
moradores eram submetidos aos desígnios e vontades pessoais dos patrões e um depois em que
ocorre a mobilização dos moradores pela conquista por direitos e cumprimento das legislações
vigentes.

2.1 A chegada do novo proprietário

A uma distância de 12 km, ao sul da sede do município de Canindé, pela rodovia da


BR-020, localiza-se a Fazenda Japuara e terras circunvizinhas que se tornaram seus anexos, “Sacos
dos Aragões” e “Barra da Vaca Morta”,15 localizados a sudoeste da sede do município. As terras
possuem cobertura vegetal predominante de caatinga, com marmeleiros e juremas, clima semiárido
com estação chuvosa entre os meses de janeiro a junho e seca nos demais meses do ano. O relevo
de Japuara é ondulado, acentuando-se mais nos seus anexos, e possui três tipos de solos: aluvião,

14
Cordel do “Cinquentenário do Sindicato” (1968-2018). Alfredo Paz, membro do Sindicato Rural de Canindé.
20 de outubro de 2018.
15
Nos relatos dos jornais e na bibliografia sobre o conflito, sempre aparece um anexo a Japuara de nome “Mela
Pinto”, não sabemos se a “Barra da Vaca Morta” era também conhecida por esse nome ou se, na verdade, trata-se
de um outro anexo
28

vertissolos, vermelho, com a presença predominante, nos anexos, Saco dos Aragões e Barra da
Vaca Morta, do solo vermelho e argiloso, com erosão variando de ligeira a severa.16
Em Japuara, pelo menos, até a década de 1970, os moradores plantavam culturas
como feijão, milho, mandioca, arroz, entre outras. Cultivava-se o algodão arbóreo,17 plantado
sob o regime de repartição entre os moradores-parceiros e o proprietário. A este, os camponeses
entregavam parte da produção do algodão arbóreo plantado em Japuara em troca de moradia e
do direito de cultivar a terra, por isso são denominados como moradores-parceiros.
O conflito entre o proprietário e os moradores-parceiros de Japuara inicia-se no
momento em que ocorre a transmissão da terra ao novo dono, o comerciante Júlio César
Campos,18 que não é reconhecido pelos moradores-parceiros como o legítimo possuidor da
fazenda. Considera-se, portanto, que o litígio em torno da venda da propriedade foi um dos
primeiros conflitos entre os camponeses e o novo proprietário. Uma série de disputas judiciais
será travada pela propriedade e posse da terra até o desembocar de confrontos abertos e diretos,
em 2 de janeiro de 1971.
O litígio em torno da transmissão da propriedade suscita a questão: como o
desrespeito de acordos prévios de transmissão da propriedade desencadeia conflitos entre
camponeses e proprietários? Igualmente relevante é discutir as mudanças implicadas nas
relações de trabalho dos moradores-parceiros com a transmissão da propriedade de Japuara ao
novo dono.
Como nos lembram Motta e Secreto (2011), é necessário desnaturalizar a ideia da
propriedade da terra como um bem absoluto. A propriedade, assim como qualquer outra coisa,
lembram-nos as pesquisadoras, é uma construção histórica perpassada por “percepções e
distintas análises” e, claro, concepções diferentes acerca do direito à terra por proprietários e
camponeses (2011, p. 14-15).
Em 1968, um rico comerciante influente de Canindé, Júlio César Campos, comprou
a Fazenda Japuara e região do entorno, a Fazenda “Serrinha dos Aragões” ou “Saco dos
Aragões”, de Hebe Braga Barroso, filha de Anastácio Barroso e Edite da Costa Braga

16
Informações disponíveis no Memorial e Laudo Descritivo da Fazenda Japuara, inserido no processo de titulação
do parceleiro Francisco Teixeira Brito. Incra (CE), 1974, p. 16-17.
17
Para Silva (1995, p. 86), o cultivo do algodão arbóreo se deu principalmente no centro-sul do estado do Ceará
nos sertões de Senador Pompeu, Cariri e Salgado e também no centro-norte do estado, destacando-se os sertões de
Canindé, as serras de Uruburetama e também Baturité, diferentemente do algodão herbáceo, que o autor destaca
ser mais dependente de umidade e melhor adaptado à região do Jaguaribe. A decadência do cultivo de algodão no
Ceará ocorre, principalmente, a partir da década de 1980, com a praga do bicudo que devastou os algodoeiros e a
própria expansão do cultivo para outras regiões do Brasil
18
Na cidade, até hoje existe o estabelecimento comercial bastante tradicional “Casa Campos”, fundado pelo pai
de Júlio César Campos, em 1896.
29

(proprietários de Japuara). Anastácio Braga Barroso, proprietário de Japuara, tinha como sócio
Firmino Amorim da Silva, administrador da propriedade. 19 Este residia em Japuara, onde
cultivava e era responsável por arrecadar a renda dos moradores da fazenda,20 alegando
preferência da oferta da terra, Firmino irá contestar judicialmente a venda da propriedade ao
comerciante Júlio César Campos.
Braga Barroso e Firmino Amorim eram sócios desde 1943, possuíam em regime de
sociedade uma empresa agropecuária. Braga Barroso, por volta do início da década de 1960,
faliu, e Firmino Amorim permaneceu administrando Japuara, com a permissão do síndico de
falência. Após se recuperar da falência, os bens retornaram a Braga Barroso. Então, o
comerciante Júlio César Campos, interessado na propriedade, apresentou uma proposta de
quatro milhões de cruzeiros para comprar Japuara e a região do entorno pertencente a Braga
Barroso e Edite Braga. Todavia, existia um acordo prévio entre Braga Barroso, proprietário de
Japuara e o administrador Firmino Amorim, na preferência da compra da terra. Assim, Firmino
Amorim compromete-se a cobrir a oferta de César Campos. Contudo, com o falecimento da
esposa de Anastácio Braga, os bens desta, incluindo a fazenda Japuara, ficaram a cargo da sua
filha, Hebe Braga, que também entra em um acordo com Firmino Amorim na preferência da
oferta da terra:

O acordo consistiu na venda, em 24 de abril de 1963, dentro do novo prazo de 120


dias, Anastácio Braga Barroso, viúvo, e sua única filha, Maria Hebe Braga,
inventariante do espólio de sua falecida progenitora, Edite da Costa Braga, fizeram ao
contestante, das fazendas Japuara e Serrinha pelo preço global de quatro milhões de
cruzeiros em igualdade com a proposta de Júlio César Campos, recebendo os
vendedores adiantamento de um milhão de cruzeiros [...], lhes serem pagos o restante
três milhões na lavra da escritura, ato que por acordo verbal, foi adiado para quando
homologado a partilha do inventário de Edite da Costa Braga. 21

Todavia, mesmo quitada uma primeira parcela das compras da terra com Hebe
Braga, esta consegue obter um alvará para vender Japuara e região do entorno ao comerciante
Júlio César Campos. Portanto, mesmo existindo um acordo prévio entre Anastácio Braga e
Hebe Braga com o administrador e arrendatário de Japuara, Firmino Amorim, na prioridade da
oferta da terra, Japuara foi vendida ao comerciante Júlio César Campos. Assim, instala-se um

19
Correio do Ceará (CE) 06/01/1971. – “As origens da fazenda Japuara”. Matéria produzida por Elysio Serra.
20
BARROS, Francisco Blaudes de Sousa. Japuara: um relato das entranhas do conflito. Brasília: Ministério do
Desenvolvimento Agrário, 2013 (Coleção Camponeses e o regime militar, v. 2, p.54).
21
Xerocópia da ação de contestação de imissão de posse. Autor: Firmino Amorim da Silva. Réu: César Campos.
14 de março de 1968. A ação de contestação de imissão de posse ocorreu depois que César Campos tenta expulsar
Firmino Amorim e sua mulher de Japuara. Os processos judiciais de disputas por Japuara encontram-se disponível
em formato digital: Ministério Público Federal/BNM 082/Ação Penal 40/72. Consultar o site:
http://bnmdigital.mpf.mp.br/pt-br/. Acesso em: 7 ago. 2020.
30

processo de disputa judicial pela posse da terra entre dois interessados na compra da
propriedade: Firmino Amorim (administrador de Japuara) e Júlio César Campos.
A herdeira da fazenda, Hebe Braga, não se preocupou em respeitar o acordo firmado
por seu pai e por ela quanto à prioridade da venda da propriedade a Firmino Amorim. Dessa
maneira, o processo de transmissão da herança foi um elemento desencadeador de conflito de
terras. De acordo com Motta, é preciso considerar, na análise dos conflitos, o que se configura
como justo, legal e legítimo, levando-se em consideração o percurso, as disputas e o que os
envolvidos passam a entender como conflito (2001, p. 86-87). No caso de Japuara, a
transmissão da terra foi um processo que os moradores consideram ilegítimo e que alimentou o
sentimento de injustiça, provocando situações que, aos poucos, acumulam-se para
desembocarem em confrontos diretos entre os moradores e o novo proprietário César Campos.
É de se notar que Firmino Amorim, o administrador da fazenda, não dispunha de
recursos financeiros para adquiri-la quando surge a proposta de venda de Japuara. Ele então
convida um fazendeiro da região, José Fenelon, para uma compra conjunta (BARREIRA, 1992,
p. 49) À época, Fenelon possuía terras limítrofes com a Barra da Vaca Morta ou também
conhecida como Barra do Bento e dispõe-se a adquirir a propriedade com Firmino Amorim,
mas, nesse ínterim, Japuara fora vendida.
Segundo o depoimento do morador de Japuara, o sr. Jacó Ramos Fernandes, um
senhor com mais de oitenta anos de idade nascido em Japuara, existiu, em princípio, um acordo
entre César Campos, Firmino Amorim e José Fenelon para comprarem a propriedade
conjuntamente. De acordo com o seu relato, metade da terra fora comprada por Firmino
Amorim, sendo paga por José Fenelon, e a outra metade, por César Campos. Entretanto, o
acordo entre os compradores foi desfeito, pois o comerciante não ficou contente com a divisão
da propriedade, porque a parte da propriedade que possuía uma “lagoa”, isto é, abastecida com
água, ficou para Firmino Amorim. César Campos, então, articula-se com o seu advogado e
compra a propriedade sem a participação de Firmino Amorim, conforme atesta o depoimento
do sr. Jacó:
O César Campos comprou aqui a metade da Japuara e o Seu Amorim, meu patrão, a
metade, 800 hectares, o Amorim. Quem pagou foi o Zequinha Fenelon, pagou e
recebeu em gado do Amorim. O Zequinha Fenelon, pode anotar isso aí no papel. O
Zequinha Fenelon. Agora o Zequinha quando pagou, pagou a terra do Amorim que
era 800 hectares na época, botou o gado pra lá. Agora, acontece que o César Campos
comprou a metade, tirou um piquete. A senhora não sabe o que é um piquete não. É
assim: um caminho, uma linha. Mas não pegou a lagoa pro seu César, pegou pro
Amorim. A Japuara era quatro conto, o Amorim já tendo pago dois e dois era do César.
Bom pra acabar a história, digo assim de novo! César Campos mergulhou por baixo e
31

comprou sozinho a terra. Amorim tendo pago, tendo pago pelo Zequinha Fenelon,
oitocentos hectares do Amorim, nosso patrão.22

É importante salientar que Anastácio Braga, ainda em vida, estava enfrentando


dificuldades financeiras para administrar Japuara, e Firmino Amorim o auxiliou nesse
momento. Isso explica a preferência da oferta da terra concedida ao administrador de Japuara:
“Firmino e Braga Barroso haviam trabalhado em benefício de Japuara, tendo o primeiro como
administrador da propriedade conseguido meios financeiros para tanto, enquanto Braga Barroso
passou momentos difíceis”.23 De acordo com Barros (2013), então morador de Japuara, César
Campos, tão logo se apresenta como o novo proprietário da Fazenda Japuara, já começa com
as intimidações, inicialmente, à família de Firmino Amorim e, posteriormente, aos demais
moradores.
O interesse do comerciante César Campos em Japuara seria em decorrência da boa
localização das terras (próximas à BR-020, rodovia que liga Canindé a Fortaleza) e da
disponibilidade de água, já que a propriedade possuía um açude, que se mostrava bastante útil
ao propósito do comerciante, segundo Blaudes Barros, de transformar a fazenda em um “polo
criadouro de gado” (BARROS, 2013, p. 55). Possivelmente, poderia ocorrer também uma
combinação do “binômio gado-algodão”, ou mesmo simplesmente concentrar-se somente na
criação de gado. Inclusive, de acordo com Girão e Martins, a criação de animais sobrepunha-se
às atividades agrícolas em Canindé, com a presença de grandes fazendas de criação na região:
“É mais pastoril do que agrícola. Povoam seus campos de excelentes pastagens de gado vacum,
cavalar, muar, asinino, caprino, ovino e suíno” (GIRÃO, MARTINS, 1966, p. 115).
A combinação do cultivo de algodão com a criação de gado no semiárido do Ceará,
normalmente, ocorria devido à folhagem do algodão servir de alimento para o gado (VIEIRA,
1979). Na verdade, o binômio gado-algodão assentava-se em um tripé que combinava gado,
algodão com as culturas alimentares. Esse tripé, em termos de mão de obra, assentava-se na
utilização de camponeses que trabalhavam sob o sistema de parceria (BARREIRA;
ALENCAR, 2007). Japuara combinava justamente, então, esses três elementos: o binômio
gado-algodão com cultura de subsistência e utilizava a mão de obra dos moradores que
trabalhavam no sistema de parceria.
A limitação de Japuara com outras propriedades ocorria pelos contornos das águas do
riacho Serrinha e já nos informa sobre a disponibilidade de água no entorno das terras e dentro da

22
FERNANDES, Jacó Ramos. Entrevista, 7 de janeiro de 2021. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda Mendes.
Acervo pessoal.
23
Correio do Ceará (CE). 06/01/1971. “As origens da fazenda Japuara”. Matéria produzida por Elysio Serra.
32

propriedade com o açude. As terras Saco dos Aragões ou Serrinha dos Aragões confrontavam com
outra propriedade de César Campos, ou seja, o proprietário almejava estender as suas posses para
além dos limites impostos, caso de Serrinha dos Aragões e da própria Japuara. O comerciante já era
dono de duas outras propriedades nessa região (BARREIRA, 1992). Como podemos observar, no
sentido norte das terras Aragões, localizava-se outra propriedade de César Campos:

Figura 1 – Mapa inserido no processo de titulação do parceleiro Jorge Ferreira de Araújo. O lote 09, nas terras
Sacos dos Aragões ao centro, seria destinado ao lavrador.

Fonte: Incra (CE), 1972, sem numeração.

Para os camponeses, a venda da fazenda, feita às escondidas pela herdeira (Hebe


Braga), deslegitimou o processo de transmissão da terra ao novo proprietário. Firmino Amorim
teria realizado o pagamento de uma primeira parcela à herdeira, Hebe Braga Barroso, que, a
exemplo de seu pai, também se comprometera em dar-lhe a prioridade na venda:

A fazenda Japuara em Canindé foi adquirida pelo sr. Júlio César Campos, de dona Hebe
Barroso Frota, filha do seu antigo proprietário Antônio Braga Barroso, também dono das
propriedades Mela Pinto e Saco dos Aragões, nas mesmas confluências. O antigo
proprietário ainda em vida, teve sua situação financeira arruinada e entregou a faixa de
terra a seu parente, Firmino Amorim da Silva, que conseguiu com muito trabalho levantar
da falência. O velho proprietário morre, em seguida e ficam os herdeiros Dona Hebe
33

Barroso se compromete a vender a propriedade a Firmino Amorim, tendo inclusive


recebido, na época, como parcela de pagamento 1 milhão de cruzeiros.24

Portanto, Hebe Braga desrespeita o acordo outrora firmado com Firmino Amorim
e, por extensão, com José Fenelon, que compraria a propriedade conjuntamente com o
administrador de Japuara. César Campos, ao comprar a propriedade sozinho, invalidava perante
camponeses o meio de aquisição de Japuara, inclusive, na visão dos moradores o processo de
compra e negociação foi feito sem o conhecimento dos mesmos, inclusive, sem o conhecimento
de Firmino Amorim e José Fenelon. Um “negócio feito por trás”, como atesta o depoimento do
sr. Alfredo Ramos Fernandes, que também nasceu em Japuara e é irmão do seu Jacó Ramos
Fernandes, ambos diretamente envolvidos no conflito. De acordo o sr. Alfredo Fernandes, o
princípio do conflito de Japuara associa-se ao endividamento dos antigos proprietários que os
leva a hipotecarem Japuara. No seu relato, ele também enfatiza que Fenelon já tinha pago uma
parte em dinheiro à herdeira de Japuara, Hebe Braga, contudo o negócio foi desfeito pelo
advogado e a fazenda vendida para o César Campos:

Aí fizeram um empréstimo, tava hipotecada a fazenda aqui, hipotecaram no banco.


Um horror de ano hipotecada quando resolveram a dona Hebe, era advogada ela, filha
do seu Braga Barroso. [...]. Pegou, venderam! O Joaquim Magalhães ia comprar, não
comprou. Veio um fogo da Ipiranga, aí ele não quis. Aí finado Zeca Fenelão foi e
comprou. Deu uma parte do dinheiro, aí ficou devendo. Foi feito um negócio para ele
dar metade, ficar devendo o resto pra ele pagar com um ano, dois... Aí o advogado
foram por trás e desmancharam o negócio com o Zeca, devolveram o dinheiro do Zeca
e o juros. Aí venderam para o seu César Campos. 25

Thompson, em seu artigo El tramado hereditário, discute sobre as práticas hereditárias


na transmissão da terra. Ele expõe as diferentes implicações e relações sociais envolvidas na posse
da terra, como o direito de permanecer e fazer uso daquele domínio por determinadas gerações, ou
seja, o direito de aproveitamento. Como bem aponta o autor, a transmissão da posse incluía os seus
costumes, que deveriam ser respeitados pelo proprietário, assim como a preferência da oferta da
terra aos que a ocupavam, caso houvesse o desejo de vendê-la:

En Hartlebury la costumbre es conceder el tiempo de una vida en posesión y tres con


derecho de sucesión, y alternar y cambiar a voluntad del señor; cuando tres vidas han
pasado, el señor puede otorgar la propiedad a quien le plazca; aunque los tenentes
tienen derecho a la primera oferta (THOMPSON, 2000, p. 49. Grifo nosso).

24
Destaque-se que Firmino Amorim não era parente de Anastácio Braga, como afirma matéria do jornal O Povo
(CE) de 4 de fevereiro de 1971, em que possivelmente ocorreu uma troca em relação ao parentesco. Firmino
Amorim e Pio Nogueira é que possuíam parentesco. As autoras Marta Cioccari e Djane Torre, que escreveram a
introdução do livro de Blaudes Barros, enfatizam que Firmino Amorim já havia pago à herdeira Hebe Braga uma
primeira parcela da aquisição de Japuara. BARROS, F. B. de S. Op. cit., p. 20-21.
25
FERNANDES, Alfredo Ramos. Entrevista, 23 de setembro de 2020. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda
Mendes. Acervo pessoal.
34

Observa-se que o fato de a preferência da oferta de Japuara não ter sido respeitada
trouxe implicações para a ocorrência de desentendimentos entre o novo proprietário e os
moradores-parceiros. Era esperado que a preferência da compra fosse para aquele que era o
administrador da fazenda há anos e que, inclusive, tinha atendido aos apelos de ajuda do antigo
proprietário quando este passava por dificuldades financeiras. Além de que Firmino Amorim
possuía relação de parentesco com diversos moradores de Japuara (GOMES, 2013, p. 3).
Portanto, existia uma expectativa de que as relações que ali se desenvolviam seriam continuadas
e os moradores teriam garantido o direito de permanecer na terra: “A venda feita por D. Hebe
Braga Barroso ao sr. Júlio César Campos sempre aparece como o início dos descontentamentos
dos agricultores que pelo passar dos tempos já reconheciam o sr. Firmino Amorim como
legítimo dono, tanto por seus serviços como bom capataz [...]” (GOMES, 2006, p. 52).
De acordo com o sr. Jacó Ramos Fernandes, o tempo em que Firmino Amorim
administrava Japuara foi uma época marcada por bonança para os moradores, ninguém passava
fome. Até hoje o sr. Jacó chama Firmino Amorim como “o nosso patrão” e guarda, entre os
seus objetos pessoais, uma fotografia da família de Firmino Amorim denominada por ele como
uma família grande e educada. É importante considerar que os camponeses que viviam nas
terras de outrem costumavam se identificar pela relação de morada que mantinham com tais
proprietários, tanto que o sr. Jacó ainda se identifica como um morador da família Amorim. Ao
ser questionado do porquê de ele considerar o antigo administrador de Japuara um bom patrão,
ele forneceu a seguinte resposta:

Entrevistadora: Seu Jacó, quer dizer que o Firmino Amorim que morava aqui, ele era
um bom patrão. Ele era bom para os moradores na época, era?
Jacó: Quando eu morava aqui na Japuara mais o Amorim, uma época dessa, não tinha
fome pra morador. Era o melhor patrão, vou contar a história à senhora. A redor de
todos, os fazendeiros era quinze conto e o Amorim era quarenta e o almoço e a
merenda e os outros era quinze. Foi quem puxou a família de Mariano pra cá, foi o
Amorim. Por causa do preço e não cobrava renda de algodão nem nada, do mocó, só
do herbáceo que é desse capucho que tem aqui. Acho que é o herbáceo aqui (Seu Jacó
me mostra um novelo de algodão que ele tinha no bolso). O herbáceo é esse aqui. Esse
aqui é do herbáceo, que ele plantava. Do mocó ele não queria saber de nada, os
algodão mocó que tinha aqui, tanto fazia Pio, como Joaquim Abreu, Zé Sutero,
Antônio Franco.26

26
FERNANDES, Jacó Ramos. Entrevista, 7 de janeiro de 2021. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda Mendes.
Acervo pessoal.
35

Como foi visto, segundo o sr. Jacó, todos os fazendeiros próximos de Japuara
pagavam um preço inferior pela diária de trabalho dos camponeses.27 O sr. Jacó também destaca
que, na época em que Firmino Amorim administrava a fazenda, os moradores entregavam
repartição somente do algodão herbáceo. Do algodão mocó, também plantado pelos moradores
de Japuara, assim como os demais cultivos dedicados ao abastecimento das famílias, não se
pagava renda.
Devido às boas condições de trabalho em Japuara, algumas famílias camponesas da
região foram atraídas para a propriedade, como a família Mariano, cujos membros eram
conhecidos pelo apelido de “Mundocas”. Os Mariano eram uma das famílias moradoras de
Japuara envolvidas de forma mais direta no conflito. O sr. Jacó, em seu depoimento, chegou a
cogitar que, se um dia a família Amorim fossem reconhecidos pelo Incra como sendo
proprietários de Japuara, nenhum dos moradores seriam expulsos, pois, segundo ele, era uma
família educada e não colocava morador para fora da terra:

Bom, o Amorim tem direito aqui a oitocentos hectares pago pelo Zeca Fenelon, eu
sou morador do Amorim, Zé Batista, Expedito Arruda. Quase tudo é morador do
Amorim véi, do tempo que a terra foi desapropriada. Zé Mariano, Zé Batista. Então,
se eu conto essa história é porque foi aprovada. Tudo é morador do Amorim e essa
parcela aqui é minha com o documento, é minha. Entregada pelo governo, do Incra.
Mas os Amorins são uns homens educados, doutor formado. O que eu penso é isso,
se um dia ele pegasse essa proposta que foi comprada, o Pio não sabia. Se ele soubesse
ele tinha dito o Incra não era? Seu Pio não sabia ainda não, disso aí que os Amorins
tinham comprado. Os Amorins como educado e doutor formado, se fizerem uma força
pro governo, pra receber os oitocentos hectares de terra dele, se o governo conhecer
que os Amorins são homem, ele entrega os oitocentos hectares e eu sou um dos
morador. A metade da terra pra cá que pega ali do Geraldo Mariano pra cá...até acolá.
Isso é o que eu penso e os Amorins não botava morador pra fora não, porque são
educados e eu faço um acordo com ele pra deixar nossa família aqui cumprindo o que
nós cumpria com o Amorim que eles são educados e me conhecem.28

Afirmando-se como “morador” da família Amorim, ainda nos dias atuais, conforme
dissemos, o sr. Jacó se mostra nostálgico em sua narrativa e ainda cogita o retorno da família
Amorim a Japuara como verdadeiros proprietários da terra e a possibilidade de ele próprio
voltar às antigas condições de trabalho.
Segundo a narrativa dos moradores, na época em que Amorim foi administrador de
Japuara, preponderava uma boa relação entre moradores e patrão. Firmino atendia as
expectativas do que se esperava de um “bom patrão”, isto é, cobrava uma renda justa, oferecia
boa remuneração pela diária de trabalho e os moradores tinham acesso livre ao açude existente

27
Alguns moradores de Japuara entrevistados por Gomes (2006), também enfatizaram que os antigos proprietários
pagavam melhor diária de trabalho e que Japuara oferecia melhores condições de vida aos camponeses.
28
Id., Ibid.
36

no interior da propriedade. Essa situação de trabalho de Japuara tida como justa pelos
moradores de Japuara foi rompida com a venda da propriedade a César Campos, que passa
exigir a metade de toda a produção dos moradores, inclusive do roçado, que anteriormente era
poupado da repartição:

Quando venderam pro seu César Campos. O Zeca comprou e disse: “Eu quero que
trabalhe pra fazer forragem pros bichos que eu vivo de criar gado”. Tudo bem. Quando
seu César comprou, soubemos que ele tinha comprado. Nós fiquemos imaginando,
rapaz e o Zeca!? Seu Zeca Fenelão apareceu aqui.
[Fenelão] “Venderam a fazenda da Japuara pro seu César Campos?
[Moradores]: “Nós já tamo sabendo aqui seu Zequinha que venderam”.
[Fenelão] “Como é que vende uma coisa duas vezes?”
Mas é isso mesmo, a advogada vendeu. De tarde, de noite ele chegou: Ele [César
Campos] disse: “Eu quero”, convidou todo mundo que não era pra faltar ninguém, até
o pessoal da Serrinha do Aragão, desligada daqui, é um anexo daqui. [...] Aí veio, fez
a reunião com nós, que queria a terra desocupada. O que ficasse... se plantasse uma
melancia, ele queria uma banda da melancia nem que fosse pra rebolar no mato! 29

Na memória do sr. Alfredo Ramos Fernandes, transparece um horizonte de


expectativa30 com a passagem de Japuara a José Fenelon, possível novo proprietário de Japuara,
cuja contrapartida exigida aos camponeses para continuarem a residir e trabalhar em Japuara
seria apenas entregar ao novo proprietário somente os “restolhos oriundos dos roçados”.31 Em
contraposição, César Campos passa a exigir dos moradores a metade de toda a produção e não
somente a repartição da produção do algodão herbáceo. César Campos assim não atende as
expectativas dos moradores ao impor condições de trabalho consideradas injustas e inviáveis.
O possível comprador, José Fenelon, por outro lado, manteria as relações de parceria
anteriormente existentes e tidas como justas.
No relato do sr. Alfredo Ramos Fernandes, caso o fazendeiro José Fenelon tivesse
se tornado proprietário de Japuara, os moradores não teriam problemas com eles, pois, segundo
ele, Fenelon só tinha interesse em receber a repartição da produção do algodão herbáceo e se
conformaria em receber apenas os restolhos dos roçados para a pastagem do gado. Essas eram
as expectativas nutridas pelos camponeses quanto à possível passagem de Japuara às mãos José
Fenelon e de Firmino Amorim, que dariam continuidade às relações de parceria consideradas
convenientes aos camponeses, o tempo da bonança permaneceria. São visíveis, na narrativa dos

29
FERNANDES, Alfredo Ramos. Entrevista, 23 de setembro de 2020. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda
Mendes. Acervo pessoal.
30
Cf. KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro:
Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006.
31
A forragem para alimentar o gado era resultante das plantações dos moradores que era utilizada como pasto pelo
gado. Normalmente, após o fim da colheita, o gado era colocado para se alimentar do que restava da colheita.
37

moradores, diversos cenários de possibilidade, isto é, eles refletem como o conflito poderia ter
sido evitado caso Japuara tivesse ficado nas mãos de Firmino Amorim ou de José Fenelon.
Não se pode esquecer que, com o antigo administrador de Japuara, Firmino
Amorim, a renda incidia apenas sobre a produção do algodão herbáceo e se poupavam as
culturas destinadas ao abastecimento dos moradores. Afora que, ao antigo proprietário,
entregava-se somente 1/3 da produção do algodão, diferente do que impunha César Campos ao
exigir metade de toda a produção, inclusive do roçado. Condição esta que os moradores
consideraram injusta e insustentável, como atesta o depoimento do agricultor sr. Luzardo
Barros, morador de Japuara e filho de Pio Nogueira Barros. Ele evidencia em seu relato o
embate entre o novo proprietário e os moradores, já que os camponeses vão se recusar a entregar
a meia da produção:
Quando chegaram aqui foram impor uma situação que não existia. Aí meu pai disse
pra eles que tiveram na reunião, disse pra eles que não tinha condição de trabalhar na
fazenda dando 50%. Aí ele disse que não tinha condição, se ele quisesse trabalhar com
os agricultores até 30% se respeitava [..]. Aí ele disse (César Campos): “Não, mas não
pode, se você produzir uma cabaça você tem que cortar ela no meio e mandar uma
banda pra lá e fica outra aqui pra você”.32

A chegada do novo proprietário, conforme se vê, é apresentada pelos moradores de


Japuara como o início do conflito, principalmente, com a imposição de mudanças nas relações
de parceria. César Campos é retratado pelos camponeses como sendo hostil e pouco aberto a
negociação com os camponeses. Se o tempo de Amorim como administrador de Japuara é
marcado pela bonança, quando César Campos tornou-se proprietário de Japuara, iniciou-se uma
época de dificuldades bem evidenciada nas narrativas.
É fundamental esclarecer como se constituem as relações de trabalho no sistema da
parceria para se compreender o porquê de os moradores de Japuara entregarem parte da sua
produção pelo direito de cultivo e morada na terra. Igualmente relevante é compreender as
características do sistema da parceria no cultivo do algodão no Ceará combinado com atividades
pecuaristas, isto é, o binômio gado-algodão.
Em Japuara, os ocupantes da fazenda, além de moradores, trabalhavam sob o
sistema de parceria, por isso eram denominados parceiros ou também moradores-parceiros.
Adotaremos a definição de parceria proposta por Ariovaldo Umbelino de Oliveira: “relação de
trabalho na qual o proprietário da terra e o trabalhador dividem entre si, em partes combinadas,
os custos e a produção obtida” (OLIVEIRA 2007, p. 181). Assim, a parceria agrícola é

32
BARROS, Luzardo. Entrevista, 5 de outubro de 2020. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda Mendes. Acervo
pessoal.
38

caracterizada tanto pela divisão dos custos, entre parceiros e proprietários, quanto pela divisão
da produção:
A parceria pode ser descrita do seguinte modo: num determinado local, existe o
proprietário da terra e o não proprietário. Este, pode ou não ser morador da terra do
primeiro. O importante é que trabalha na mesma. Pelo uso da terra paga um percentual
do que produz. O pagamento é feito após a colheita, e se por um motivo ou outro
(seca, enchente, praga ou doenças nas plantações) não houver produção, o parceiro
não tem nada a pagar por esse uso da terra (VIEIRA, 1979, p. 178).

Segundo Martins (1996), tornou-se corriqueiro pesquisadores afirmarem que o


trabalho escravo no campo foi substituído pela mão de obra assalariada provinda de imigrantes.
Para o autor, o pagamento a esse trabalhador não se restringia ao salário, o seu pagamento
provinha de três elementos: “pagamento fixo pelo trato do cafezal, um pagamento proporcional
pela quantidade de café colhido e produção direta de alimentos como meios de vida e como
excedentes comercializáveis pelo próprio trabalhador” (1996, p. 19). Portanto, ocorria uma
combinação entre salário e produção na remuneração desses trabalhadores, e o sistema da
parceria coexiste combinado com novos elementos na agricultura brasileira. Então, para
Martins, o trabalho escravo não foi substituído totalmente pela mão de obra assalariada como
advogaram autores clássicos.
De acordo com Gnaccarini (1980, p. 48), o sistema de parceria combinado com o
trabalho assalariado deu origem ao colonato. Este foi o sistema encontrado pelo latifúndio na
substituição da mão de obra escrava, já que, nessa forma de trabalho, o próprio camponês provê
a sua subsistência e de sua família, portanto, não gera custos elevados ao proprietário. No caso
do sistema da parceria na cultura do algodão no semiárido do Ceará, ao que tudo indica, os
camponeses não recebiam qualquer tipo de remuneração salarial dos proprietários rurais,
diferente de algumas regiões brasileiras. Merece destaque o estudo desses pesquisadores, cujo
intuito é ressaltar que o sistema da parceria não desapareceu completamente da agricultura
brasileira e foi, inclusive, utilizado pelos proprietários em diferentes regiões do país com o
propósito de reduzir custos na mão de obra empregada nas lavouras em decorrência do fim da
escravidão. Isto é, o parceiro pagaria ao proprietário por meio da repartição da produção pelo
direito de cultivar a terra e ficaria a cargo deste a própria manutenção e da sua família.
No sistema de parceria, o proprietário cede aos parceiros o direito de cultivar a terra,
existindo normalmente na propriedade uma cultura principal plantada sobre a qual incide a
repartição, sendo, normalmente, esta cultura destinada ao mercado. No caso da Fazenda Japuara
e, em boa parte do semiárido do Ceará, durante o século XX, essa cultura da repartição se dava,
principalmente, sobre a produção do algodão. De acordo com Barreira, (1979), o pagamento da
39

renda pelos moradores ao proprietário, comumente, era por meio da destinação de parte da produção
do algodão. Era por meio da entrega da produção que os camponeses garantiam terra para cultivo e
morada. Para Forman (1979, p. 93), o sistema de repartição da parceria não era restrito somente
a safras comerciais e poderia se estender também às outras culturas cultivadas na propriedade
dedicadas prioritariamente ao abastecimento dos camponeses. De acordo com Vieira (1979, p.
179), quando se refere a parceria, tanto proprietários quanto trabalhadores a denominavam de
“renda” que diz respeito ao percentual de repartição pago pela utilização da terra pelos camponeses.
A renda da terra poderia ser cobrada sobre toda a produção dos parceiros, mas, normalmente,
possuía algumas distinções: era mais alta sobre as culturas destinadas ao mercado (como o algodão),
e mais baixa sobre os produtos destinado ao abastecimento da família dos parceiros (o roçado).
Entretanto, poderia acontecer de o proprietário exigir dos parceiros a metade de toda a produção,
mesmo sendo mais raro, como apontado por Caio Prado Júnior: “Na lavoura algodoeira da mesma
região (Nordeste), os trabalhadores são parceiros que têm a meação do algodão colhido; e
cultivavam por sua conta gêneros de subsistência de que às vezes – em geral nas propriedades
menos importantes – pagam a meação ao proprietário” (PRADO JÚNIOR, 1979, p. 61).
Esse pagamento da renda em produtos, de acordo com Oliveira (2007), dá-se
quando o trabalhador cede parte da sua produção pelo direito de cultivar na terra do proprietário.
A renda da terra poderia ainda, segundo o mesmo autor, ser paga em dia de trabalho gratuito
(renda da terra em trabalho) ou também em dinheiro, quando o trabalhador rural converteria a
sua produção em dinheiro e o entregaria ao proprietário pelo direito de cultivo na terra (renda
da terra em dinheiro). Para Oliveira, a parceria na qual o camponês paga a renda em produtos
adquiriu regionalmente muitas formas na agricultura brasileira, tais como meação, terça, quarta
(OLIVEIRA, 2007, p. 60). No caso do semiárido do Ceará, a exigência comumente era entregar
metade da produção aos proprietários de terra, sistema denominado como meação ou, entre os
camponeses e os proprietários, simplesmente “meia”.
De acordo com Almeida e Esterci (1979, p. 107), que produziram um estudo sobre
as relações de trabalho e subordinação no sertão do Ceará, ser parceiro não excluía a
possibilidade de ser morador, rendeiro ou mesmo proprietário. Poderia acontecer, como em
Japuara, uma combinação dessas categorias, e isto estava condicionado a alguns fatores: ser
morador e entregar parte da produção pelo direito de cultivar e residir na terra; ser um pequeno
proprietário, o que possibilitava aos camponeses escapar da “sujeição”33 por não ser um

33
“Sujeição” eram os dias de trabalho gratuito que os proprietários exigiam dos moradores de suas propriedades.
O trabalho na condição de sujeição era estendido a todos os membros da família, os filhos solteiros trabalhavam
nos roçados dos patrões, e as mulheres tinham que trabalhar prestando serviços domésticos no interior das casas.
40

morador, todavia, devido a ganhos incipientes na sua terra, trabalhar no regime de repartição
em outra propriedade; da mesma forma, ser rendeiro em uma terra e trabalhar no regime de
parceria em outra. Portanto, a parceria poderia acontecer combinada e envolver uma série de
outras relações de trabalho, e isto dependia do interesse do proprietário em ter o camponês
residindo ou não dentro da propriedade.
Segundo Carvalho (1979), a parceria era comumente empregada na produção do
algodão no semiárido do Ceará, justamente porque, ao compartilhar os riscos e custos com os
parceiros, os proprietários poderiam dispender o seu capital financeiro em atividades
consideradas mais atraentes para eles: “Convém esclarecer que ao grande proprietário interessa
que o algodão seja produzido, mas não lhe interessa comprometer recursos que teriam
alternativas de aplicação mais atraentes” (CARVALHO, 1979, p. 135). No caso, para os
proprietários, mesmo o cultivo do algodão sendo combinado com a pecuária, o interesse
principal dos proprietários do Ceará, segundo a autora, voltava-se mais para a criação do gado
que se mostrava como atividade mais atraente a esses proprietários e o algodão aparece
associado a pecuária por sua forragem servir de alimento para o gado:

Se para o parceiro o algodão é mercadoria que se converte em meios de subsistência,


para o proprietário é a fórmula de obtenção de "renda da terra" e principalmente de
formação gratuita de pastagem para o gado que constitui a atividade econômica
principal. (CARVALHO, 1979, p. 135)

De acordo com Vieira (1979), o estabelecimento do percentual a ser pago ao


proprietário era previamente estabelecido entre as partes e costumeiramente não existia nenhum
contrato formal entre parceiros e proprietários. Segundo Garcia Júnior (2002), esses contratos
informais entre proprietário e parceiros não pressupõem a existência de relações simétricas, isto
é, acordos entre indivíduos livres e iguais. Devido aos parceiros, normalmente, residirem dentro
das propriedades rurais, esse sistema de trabalho caracterizava-se por uma maior submissão dos
camponeses aos arbítrios dos proprietários. Da mesma forma, era um sistema que acionava
relações pessoais entre camponeses e proprietários, pois esses indivíduos, ao se tornarem
moradores, acabavam por contrair uma dívida moral com esses proprietários:

Muitos camponeses associavam o sistema de morada a “ser sujeito” ou “ser cativo”. De acordo com Palmeira, a
moradia e a sujeição são faces de uma mesma moeda, por isso constituem-se como sinônimos e, não raro, os
camponeses se denominam “moradores de condição”, o que remete justamente ao trabalho gratuito (2009, p. 208).
O fato de não possuírem moradia implicava em uma maior subordinação aos proprietários de terra. No caso do
semiárido do Ceará, os proprietários comumente cobravam metade da produção da cultura destinada à partilha dos
moradores-parceiros, era comum exigir que a outra metade lhes fosse vendida por um preço inferior ao de mercado.
Neste sentido, o sistema de morada, não raro, aparece associado como uma “condição” que lhes impunham uma
intensa exploração por parte dos proprietários de terra.
41

Assim, muito além de um acordo de vontades entre "iguais diante do direito", o ritual
de solicitar abrigo em grande domínio rural enfatizava a dissimetria entre o patrão que
acolhe um novo cliente e o indivíduo que se desqualifica como homem ao pedir apoio
e proteção: ao entrar na propriedade, todo chefe de família contraía de imediato uma
dívida moral com o proprietário, que ultrapassava de muito o valor material dos
elementos de vida que era provido pelo novo patrão (GARCIA JR, 2002, p. 50).

A inexistência de um contrato formal no sistema de parceria possibilitava, segundo


Barreira, arbitrariedades por parte do proprietário de terra que, por vezes, poderia, inclusive,
manipular o percentual da repartição da produção, adotando critérios mais favoráveis a ele: “A
inexistência de contrato social escrito permite ao proprietário manipular o percentual a ser pago
de acordo com as circunstâncias. Existem casos de o proprietário exigir um percentual maior
da produção depois da colheita, conforme esteja a cotação do produto no mercado”
(BARREIRA, 1979, p. 151). Outra característica bastante comum no sistema da parceria diz
respeito a uma menor autonomia desses camponeses em relação ao destino da produção, já que
comumente existia uma obrigatoriedade de entregar parte da produção convertida em renda ao
proprietário, enquanto a outra parte, que cabia aos parceiros, não raro, era vendida ao
proprietário por um preço inferior ao de mercado:

Normalmente, a parte do parceiro é vendida ao proprietário que compra ao preço da


cotação do dia e aguarda para vender somente quando o preço está mais alto no
mercado. O sistema de pagamento, como se pode observar, para grande parte dos
parceiros, implica uma forma de realização de um sobrelucro. Poderíamos então situar
a compra da produção do parceiro pelo proprietário como um segundo momento da
apropriação do sobretrabalho. Fecha-se então o círculo de extração do trabalho
excedente (BARREIRA, 1979, p. 152).

Segundo Almeida e Esterci (1979), diversos conflitos podem surgir entre os parceiros
e proprietários, principalmente, em relação ao uso da terra: interferência dos proprietários sobre
o que deve ser cultivado pelas famílias nas propriedades; a exigência de que a produção seja
vendida ao proprietário por um preço inferior ao de mercado; repartição da produção e
antagonismo de interesses entre o proprietário, que almeja obter o máximo de ganho possível não
só da terra, mas do trabalho dos parceiros, e estes, que, por sua vez, almejam tirar uma boa
produtividade da terra para a sua sobrevivência, recusando-se, portanto, de acordo com os autores,
a plantar somente o produto destinado à partilha (no caso do Ceará, principalmente, a cultura do
algodão), diversificando, sempre que possível, a produção:

Neste sentido, o parceiro procura cultivar, além dos produtos destinados à partilha, a
maior quantidade e variedade possível de produtos destinados à sua manutenção; o
proprietário recusa-lhe, pelo menos em parte, esta pretensão, alegando que
42

determinados produtos prejudicam o desenvolvimento do produto em que está


principalmente interessado, no caso, o algodão (ALMEIDA; ESTERCI, 1979, p. 108).

De acordo com Vieira (1979), outras situações conflitivas entre parceiros e


proprietários, delineadas nessa combinação do binômio gado e algodão, ocorria quando o gado
era posto no roçado dos parceiros antes do término do período da colheita. Do mesmo modo,
segundo a autora, a presença de rebanho nas fazendas condicionava o que deveria ser plantado
pelos parceiros para posteriormente servir de alimento para o gado ou mesmo quando os
proprietários destinavam a melhor parte da terra aos campos de pastagem ao gado e aos
parceiros restavam as frações de terra menos produtivas. A relação entre parceiros e
proprietários era perpassada por constantes conflitos cotidianos configurados em torno da renda
da terra e no antagonismo de interesses quanto ao que deveria ser plantado ou ao maior ou
menor interesse dos proprietários na produção algodoeira ou pecuária. A combinação entre
agricultura e pecuária, que caminharam juntas desde o processo de colonização do Ceará, longe
de ser harmoniosa, suscitava uma série de conflitos entre proprietários e parceiros.
É imprescindível ainda discutir as possíveis motivações dos moradores-parceiros
de Japuara de se recusarem a atender as novas condições impostas por César Campos para que
pudessem continuar a morar e trabalhar na terra. No relato do sr, Luzardo, um desses elementos
acaba transparecendo, para ele, entregar a metade de toda a produção significaria um
comprometimento do bem-estar das famílias de Japuara, seria entregar “o pão” dos filhos dos
moradores em prol do enriquecimento de César Campos:

Eles queriam 50% de tudo né!? A metade de tudo, aí o meu pai não aceitou e disse:
[Pio]: “Vocês querem aceitar, pra viver sossegado com ele? Ou não querem aceitar e
vamos partir pra uma decisão acertada e disseram [moradores]: “Não, nós não vamos
fazer tudo de graça pra ele não. Se ele quiser os 30% do algodão, nós ainda damos.
Mas dar o pão dos nosso filhos pra ele ficar enricando cada vez mais e comprando
fazenda e matando o povo por lá também. Então, nós não vamos fazer isso não. 34

É fundamental destacar que o trabalho empregado na produção do algodão e das


culturas destinadas ao abastecimento das famílias da Fazenda Japuara, em sua maioria, era o
trabalho familiar dos moradores que ali residiam. É necessário entender, portanto, como o
aumento da repartição da produção poderia comprometer o bem-estar das famílias. Lembre-se
que, no trabalho familiar, são membros da família que decidem o quanto deveriam produzir
para suprir as suas necessidades, daí surge uma produção voltada para a busca do equilíbrio

34
BARROS, Luzardo. Entrevista, 5 de outubro de 2020. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda Mendes. Acervo
pessoal.
43

interno no trabalho das famílias camponesas. Ou seja, a produção familiar e a autoexploração


dependem do quanto uma família camponesa necessite para obter o bem-estar:

Chayanov (1974) esclarece que a família camponesa visa unicamente a maneira mais
fácil de satisfazer suas necessidades em consonância com o gasto da força de trabalho.
É fundamentalmente isso que distingue a família camponesa do empresário
capitalista, pois enquanto o capitalista investe nos setores mais lucrativos, visando o
máximo de retorno possível, a família camponesa cessa imediatamente o trabalho ao
alcançar o equilíbrio trabalho/consumo, pois seu objetivo é reproduzir-se enquanto
unidade de produção econômica camponesa (PAULINO; ALMEIDA, 2010, p. 43).

Essa utilização da família no modo de produção camponesa é apresentada pelas


autoras, por meio do pensamento de Chayanov, “como um elemento indispensável à compreensão
da permanência do campesinato” (PAULINO; ALMEIDA, 2010, p. 33). Todos os membros da
família participam, de forma direta ou indireta, neste modo de produção, tudo é de todos, e não
há como saber quem produz o quê. A terra representa, assim, além de um espaço de trabalho,
também um espaço de sociabilidade familiar. O trabalho nesta produção familiar é voltado para
o autoconsumo e também para atender a outras necessidades da família por meio da venda da
produção que excede para adquirir outros bens substanciais não produzidos pelos camponeses.
Para Paulino e Almeida, a demanda de produção não é ditada pela busca incessante de lucro, mas
sim pelo desejo de que a família consiga obter um equilíbrio interno (trabalho – consumo), sem a
necessidade de intensificar a autoexploração, como explicitado na discussão das autoras:

Assim, por mais vantajoso que possa parecer um determinado investimento em que o
uso do capital resulte em aumento dos ganhos, isso não representa, necessariamente, um
estímulo para o camponês. Ele não trabalha com o princípio capitalista de valorização
do capital e sim, com uma análise do balanço trabalho-consumo que é subjetiva porque
baseada nas necessidades da família (PAULINO; ALMEIDA, 2010, p. 36).

A recusa de uma maior repartição na produção do algodão e das outras culturas


cultivadas na propriedade pelos camponeses de Japuara não ocorre por um simples desacordo com
o novo proprietário. Para esses camponeses, o aumento do pagamento da renda da produção do
algodão e a incidência da repartição, inclusive, da produção voltada para o autoconsumo da família
(o roçado), poderia implicar um comprometimento do bem-estar e sobrevivência das famílias de
Japuara. O algodão, por exemplo, não era utilizado diretamente na subsistência, mas era por meio
do algodão que os moradores pagavam pelo direito de cultivar e morar na terra. Os recursos que
provinham deste podiam ser utilizados para adquirir outros bens fundamentais, isto é,
medicamentos, roupas e alimentos não produzidos na propriedade. Como bem afirma Blaudes
Barros, ex-morador de Japuara, o algodão era: “a fonte de renda mais garantida do trabalhador”
(2013, p. 59). Portanto, é preciso entender que os próprios camponeses também possuíam interesse
44

na agricultura comercial como o algodão e não somente nas culturas destinadas ao abastecimento
da família (roçado). Daí resulta uma recusa em entregar uma maior repartição ao proprietário da
produção algodão, além de ser o cultivo que trazia maior retorno financeiro aos parceiros. A renda
advinda do algodão era essencial para a garantia do bem-estar das famílias de Japuara, por isso a
recusa em ceder às exigências do novo proprietário.
Palacios (2009), em seu estudo sobre cultivadores pobres e livres no Nordeste Oriental,
afirma que, a partir do século XVIII, mais precisamente entre os anos de 1700 a 1760, forma-se o
campesinato das capitanias de Pernambuco, Alagoas, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará em
decorrência da crise do sistema açucareiro. Essa crise possibilitou o surgimento da “brecha
camponesa”, a qual, segundo o autor, permitiu furar o mecanismo agroexportador que conferia à
produção camponesa um lugar de marginalidade nesse sistema. Assim, nesse período, tanto esses
homens livres e pobres passam a produzir culturas destinadas à subsistência, como também cultivos
destinados à comercialização, como tabaco, mandioca e, posteriormente, o algodão. Em
decorrência do espaço conquistado por esses homens livres e pobres em tais atividades, eles
passam a sofrer repressão para que voltassem a ocupar um lugar de marginalidade no sistema
agroexportador. Apesar de o recorte temporal de Palacios (2009) ser distinto do proposto neste
estudo, destaque-se a contribuição desse historiador, pois rompe com o paradigma de uma produção
agrícola camponesa somente interessada em produzir culturas de “subsistência” e desinteressada
nos plantios destinados à comercialização, como o algodão. Do mesmo modo, pode-se perceber
que essa combinação de plantios comerciais (destinados à venda) com os cultivos destinados ao
abastecimento das famílias (roçado) era uma prática que perpassou gerações de camponeses no
Ceará.
Como enfatizado, o cultivo do algodão plantado pelos camponeses de Japuara era
totalmente voltado à comercialização, mas possuía implicação significativa na vida dessas famílias,
já que o suprimento de certos bens de uso doméstico somente se dava por meio da compra em
dinheiro:

Há cultivos voltados exclusivamente para venda, nos quais a produtividade valor por
hectare e por recursos despendidos constitui a motivação básica, porque uma parte do
orçamento doméstico só pode ser suprida por compra de mercadorias a dinheiro (sal,
açúcar, querosene ou luz elétrica, produtos de limpeza, vestuário etc.) (GARCIA
JÚNIOR; HEREDIA, 2009, p. 233).

Destaque-se que o Estatuto da Terra (Lei nº 4504) limitava a cobrança da repartição


da produção aos parceiros, esta não poderia ultrapassar 50% da produção a ser entregue pelos
camponeses ao proprietário. Todavia, o valor era condicionado ao que era oferecido pelo
45

proprietário: terra já limpa, moradia, entre outros elementos especificados no próprio Estatuto.
César Campos poderia até cobrar 50%, ou seja, a meia, desde que atendesse a determinadas
exigências estabelecidas no Estatuto da Terra, como o fornecimento de maquinário e
implementos agrícolas entre uma série de outros requisitos, que não eram poucos:

IV – Na participação dos frutos da parceria, a quota do proprietário não poderá ser


superior a:
a) dez por cento, quando concorrer com a terra nua;
b) vinte por cento, caso concorra com a terra preparada e moradia;
c) trinta por cento, caso concorra com o conjunto básico de benfeitorias, constituído
especialmente de casa de moradia, galpões, banheiro para gado, cercas valas ou currais,
conforme o caso;
d) cinqüenta por cento, caso concorra com a terra preparada e o conjunto básico de
benfeitorias enumeradas na alínea “c” e mais o fornecimento de máquinas e
implementos agrícolas, para atender aos tratos e, no caso da parceria pecuária, com
animais de cria em proporção superior a cinqüenta por cento do número de cabeças
objeto da parceria.35

De acordo com Alencar et al. (2013), muitos proprietários no Ceará cobravam renda
de 50% da produção, a “meia”, dos moradores e, geralmente, ofereciam terra nua aos
camponeses. Assim, os proprietários só poderiam cobrar 10% da produção, de acordo com o
estabelecido pelo Estatuto da Terra (ALENCAR ET AL., 2013, p. 41). Assim, trata-se de
situações conflitivas, de acordo com Carvalho (1982), entre a “lei da renda” do Estado,
estabelecida pelo Estatuto da Terra, e a renda costumeiramente cobrada pelos patrões no interior
de suas fazendas, ou seja, a meia: “o movimento se legitima por seu próprio caráter de
legalidade, ressaltado por dirigentes sindicais e trabalhadores. É na verdade a partir da oposição
entre a ‘lei da renda’ do governo e a ‘lei dos patrões’ que os esquemas de enfrentamento são
montados” (CARVALHO,1982, p. 6).
A legislação agrária enseja dificuldades para que os proprietários continuassem a
manipular, de forma arbitrária, a porcentagem da repartição exigida como uma contrapartida ao
direito de cultivo e morada. Tendo em vista que o Estatuto da Terra passa a regulamentar as
relações de parceria, arrendamento da terra e também outras relações de trabalho no campo
anteriormente não sujeitas a nenhum tipo de atos normativos na esfera legal. Antes do Estatuto
da Terra, esses acordos eram regidos por acordos que melhor favoreciam os proprietários de
terra, no caso, cobrava-se a meia dos camponeses moradores devido à maior vulnerabilidade
social desses camponeses e por não existir nenhum instrumento legal que regulasse essas
relações.

35
Lei N° 4.504, de 30 de novembro de 1964. Dispõe sobre o Estatuto da Terra. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l4504.htm. Acesso em: 24 abr. 2020.
46

A aplicação do Estatuto encontra resistência por parte dos proprietários de terra.


Como nos lembra Huizer (1974), um dos fatores de maior frustração para os camponeses era a
longa espera por uma possível melhora de sua situação, enquanto os proprietários, em
contrapartida, tratavam de “bloquear” essa possibilidade e “mantener el antigo sistema con más
rigidez que antes” (1974, p. 261). Dessa maneira, o patronato agrícola articulava uma
resistência para que as relações de trabalho no campo permanecessem como outrora, isto é, sem
qualquer tipo de regulamentação legal e estabelecidas em acordos que lhes favorecessem ao
máximo. A situação de vulnerabilidade social imposta aos camponeses moradores, por não
possuírem nem casa de morada, nem terra para o trabalho, acabava levando-os a aceitarem as
situações impostas (PALMEIRA, 2009).
A não aceitação da porcentagem de repartição exigida pelo novo proprietário pelos
moradores de Japuara, em um primeiro momento, aparenta estar assentada em um costume, já
que ao proprietário Braga Barroso, representado pela figura de Firmino Amorim, entregava-se
30% da produção do algodão e os moradores queriam que permanecesse desse modo.
Entretanto, com o encaminhar do conflito, os camponeses passam a cobrar por seus direitos
segundo também o que era estabelecido pelo Estatuto da Terra. Assim, é fundamental destacar
que essa recusa de entregar a meia de toda a produção a César Campos assenta-se em uma
interface entre costumes (que haviam sido estabelecidos ao longo dos anos com o antigo
proprietário), combinado com o que passa a ser regulamentado pelo Estatuto da Terra.36
No relato do sr. Alfredo, esse aspecto fica bem evidente, pois, segundo ele, os
moradores passam a pagar o percentual da renda do algodão conforme a orientação dada pelo
advogado, Lindolfo Cordeiro: “Ele queria a metade do algodão. Nós não demos a metade, o
advogado disse: “deixe trinta porcento pra ele. Trinta porcento deixemos pra ele”.37 Assim,

36
O historiador E. P. Thompson enfatizou o costume, como a interface entre a lei e a prática, fundamentado
principalmente na práxis. Ver THOMPSON, E. P. Costume, lei e direito comum. In:____ Costumes em comum:
estudos sobre cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. De acordo com Esterci (2009),
os pequenos produtores reivindicam direitos tanto “de acordo com as formas costumeiras de apropriação por eles
firmadas ao longo de anos, mas apelavam também para a lei na defesa de outros direitos que lhes eram facultados”
(2009, p. 223). No caso dos parceiros de Japuara, observamos primeiro uma mobilização para assegurar que o
sistema de parceria não fosse modificado, permanecesse como outrora, pagando-se os 30% somente da produção
do algodão como cobrava o antigo proprietário, Braga Barroso. Entretanto, com o envolvimento do advogado da
Fetraece no conflito essa reivindicação passa a se assentar em torno do que era estabelecido também pela legislação
agrária, o Estatuto da Terra. César Campos não cumpria os requisitos legais estabelecidos pelo Estatuto para exigir
o que pretendia dos camponeses. Como evidencia Esterci (2009), as reivindicações dos camponeses tanto poderiam
se fundamentar no que era estabelecido pela apropriação costumeira firmada no decorrer do tempo quanto pela lei
ou mesmo em uma combinação de ambos. Assim, observamos que os camponeses de Japuara reivindicam a
manutenção de permanecerem entregando a terça parte da produção, cobrando a continuidade de acordos de
apropriação do uso da terra firmada ao longo dos anos, quanto também pelo que o advogado orienta, isto é, pelo
que era estabelecido pelo Estatuto da Terra.
37
FERNANDES, Alfredo Ramos. Entrevista, 23 de setembro de 2020. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda
Mendes. Acervo pessoal.
47

César Campos desejava que vigorasse a meia do algodão na fazenda, como em tempos
anteriores à existência de legislações que regulamentavam o sistema de parceria.
Outro elemento de conflito cotidiano entre o novo proprietário e os moradores foi
a proibição de criar animais pelos ocupantes de Japuara. Esse impedimento contrariava o
disposto do artigo 96, inciso IV do Estatuto da Terra, que previa que o proprietário deveria
oferecer moradia higiênica, roçado para plantio exclusivo da família dos moradores (portanto,
não destinada à repartição) e área para criação de animais de pequeno porte aos parceiros: “IV
– o proprietário assegurará ao parceiro que residir no imóvel rural, e para atender ao uso
exclusivo da família deste, casa de moradia higiênica e área suficiente para horta e criação de
animais de pequeno porte”. Em resumo, o Estatuto da Terra garantia aos parceiros o direito de
criação de animais e proibia a incidência da repartição sobre o plantio do roçado. Nesse sentido,
o novo proprietário de Japuara violara uma série de dispositivos da legislação agrária ao impedir
a criação de animais e de cobrar a renda da produção destinada ao autoconsumo das famílias.
Além de animais de pequeno porte, os moradores de Japuara também criavam gado,
como atestou o depoimento sr. Alfredo Ramos Fernandes. Segundo ele, a criação de animais
pelos moradores de Japuara era parca, mas tinha a função de “atenuar” a condição de vida dos
camponeses. Como ele mesmo definiu, todo mundo tinha uns “bichinhos” que serviam para
suprir uma eventualidade, “mediar”:

Entrevistadora: O que vocês criavam aqui?


Alfredo: Eu criava bode, porco, ovelha, gado. Pouquinho, mas criava. Chegou a dar
29 criação de gado, agora um tempo desses tinha 12 bichinhos. Tudo criava gado, os
morador maior parte criava gado. Bacafute criava, Zé Lúcio criava. Morreu mulher
dele, morreu agora poucos dias. Tudo criava uns bichinhos. Criava pra mediar. 38

Destaca-se que, em circunstância de baixa produtividade do roçado, de acordo com


Heredia (2013), as famílias poderiam recorrer ao consumo ou mesmo à venda dos animais de
criação para a compra de alimentos. Assim como, em momentos de abundância do roçado, recorrer
à venda dos animais para adquirir bens secundários não diretamente ligados à subsistência das
famílias: utensílios para a casa, vestimentas e outras necessidades. Portanto, em momentos de
escassez alimentar, recorria-se à criação de animais que representava para os camponeses uma
reserva e um asseguramento no momento de baixa produtividade do roçado, como nos períodos de
seca ou alguma outra intempérie, como adoecimento de algum membro familiar:

38
FERNANDES, Alfredo Ramos. Entrevista, 23 de setembro de 2020. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda
Mendes. Acervo pessoal.
48

[...] quando os produtos do roçado – que são os responsáveis por ele – não são
suficientes para atingir seu objetivo, ou seja, em situações de precisão, os animais de
propriedade da mãe de família contribuem para esse consumo ser obtido. Neste
sentido, os bichos de terreiro são complementares ao roçado e, ao mesmo tempo,
estão subordinados a ele, na medida em que suprem as necessidades reconhecidas
como secundárias quando os produtos do roçado são suficientes para abastecer o
consumo coletivo considerado prioritário (HEREDIA, 2013, p. 70).

Da mesma forma, segundo Garcia Júnior e Heredia (2009), recorria-se à criação de


animais como meio de ter o que ofertar em momentos de uma visita inesperada e de
festividades. A criação poderia, inclusive, possibilitar aos camponeses, em momentos fortuitos,
boa produtividade dos roçados, fazer uso da criação de animais como meio de acumular
recursos para casamentos e promover, portanto, a formação de novos núcleos familiares.
Porventura, também, era possível adquirir uma terra para moradia e trabalho, conquistando
maior autonomia. Portanto, a criação de animais constituía um modo de acumulação
camponesa, no qual se configura a sua utilização tanto em momentos de escassez dos roçados,
quanto em momentos de abundância para suprir outras necessidades da família:

A criação supõe a agricultura e serve mesmo para paliar sua eventual insuficiência. A
expansão da agricultura que possibilita o acréscimo de plantel é assim instrumento
privilegiado de acumulação camponesa. Numerosas foram as etnografias que
registraram posteriormente a posse da criação como meio de acumular para o
casamento e as despesas de instalação de novo grupo doméstico.
Exatamente por ser a criação de animais o instrumento por excelência de reserva e
acumulação de grupos domésticos camponeses [...] (GARCIA JÚNIOR; HEREDIA,
2009, p. 228).

A criação de gado, de acordo com Garcia Júnior e Heredia (2009), poderia ser
utilizada para suprir um gasto eventual que os camponeses pudessem ter, além de servir para
realização de uma grande despesa da família devido à possibilidade de maior retorno financeiro
que a criação de gado propiciava. A criação de animais exercia papel essencial no modo de vida
do ser camponês e, não à toa, foi acompanhada por atos de resistência dos moradores em
cumprir o que era estabelecido, pois, segundo o sr. Luzardo, apesar da proibição do novo
proprietário, os moradores “compraram a questão” e permaneciam criando animais.
César Campos também tentou impedir a utilização do açude pelos moradores, seja
o uso das águas, como também das pescarias que ali ocorriam, pois, segundo o proprietário, os
ocupantes de Japuara faziam “mau uso das águas”, o que inviabilizava seu consumo pelo gado:

[...] porque as referidas pescarias vinham causando prejuízos e uma série de


aborrecimentos ao depoente, inclusive baldeando as águas do açude as transformando-
as, quase completamente em lama, fato este que considerava um crime de dano
49

proposital, desejando acrescentar que as referidas águas não vinham servindo mais
nem para o gado do depoente.39

A visão do proprietário com relação ao usufruto do açude pelos camponeses


configurava-se uma afronta, já que percebia essa utilização como uma tentativa de causar danos
propositais. Na verdade, trata-se de concepções distintas com relação aos usos da água e demais
recursos. Para os camponeses, predominava uma visão do açude para a sobrevivência: uso da
água para atividades cotidianas e pesca. Na concepção do proprietário, as águas aparecem
associadas ao desenvolvimento de atividades comerciais, como a criação de gado.
Para esses camponeses, o acesso aos demais recursos da terra não poderia ser
negado, inclusive, porque isso comprometeria a própria reprodução da vida e impossibilitaria a
permanência no interior da propriedade. Nesse sentido, ocorrem estratégias de resistência
constituídas para garantir acesso livre aos recursos da terra, floresta e água:

Os camponeses, instauraram na formação da sociedade brasileira, em situações


diversas e singulares e mediante resistências de intensidade variada, uma forma de
acesso livre e autônomo aos recursos da terra, da floresta e das águas, cuja
legitimidade é por eles reafirmada no tempo (WELCH et.al., 2009, p. 13).

A cobrança de maior repartição da produção do algodão e o fato de serem impedidos


de criarem animais e de utilizarem o açude já seriam suficientes para provocar um desequilíbrio
no bem-estar das famílias dos camponeses de Japuara. Em contrapartida, pode-se pensar essas
exigências como uma estratégia do proprietário para tornar insustentável a permanência dos
moradores na fazenda. Da mesma forma, as novas exigências poderiam implicar uma
intensificação da exploração do trabalho familiar para alcançar um equilíbrio interno (trabalho-
consumo). Em resumo, as famílias teriam de intensificar o trabalho para garantir a subsistência,
o direito de moradia e cultivo na terra (PAULINO; ALMEIDA, 2010).
Como nos lembra Wolf (1970), a unidade camponesa é tanto uma organização
produtiva, quanto um espaço de consumo, da mesma forma que possui “braços” para trabalhar,
também possui “bocas para alimentar” (1970, p. 28). O autor enfatiza que os camponeses são
obrigados a manter um equilíbrio entre as suas necessidades e as exigências externas. Esse fato,
por sua vez, pode vir a causar “tensões” com vistas à unidade camponesa manter um equilíbrio
entre esses dois elementos (1970, p. 28). O autor também destaca que a unidade produtiva
camponesa nunca estará somente preocupada exclusivamente com a alimentação, haja vista que
a família também possui outras necessidades a serem supridas. Observa-se que podemos
enquadrar como “exigências do mundo exterior” a contrapartida exigida pelos proprietários

39
O Povo (CE), 2 fev. 1971.
50

para que os camponeses possam fazer uso daquelas terras para cultivo e também morada, por
exemplo:

O eterno problema da vida do camponês consiste, portanto, em contrabalançar as


exigências do mundo exterior, em relação às necessidades que ele encontra no
atendimento às necessidades de seus familiares. Ainda em relação a esse problema
básico, o camponês pode seguir duas estratégias diametralmente opostas. A primeira
delas é incrementar a produção; a segunda é reduzir o consumo (1970, p. 31).

Wolf (1970) apresenta dois caminhos possíveis para os camponeses manterem o


equilíbrio diante das novas exigências do mundo exterior: I) aumentar a produtividade; ou II)
reduzir o consumo da família. Portanto, as tentativas de mudanças no modo de reprodução dos
camponeses pelo novo proprietário poderiam provocar modificações significativas no bem-estar
das famílias de Japuara. Como bem afirma Schwarz (1990), qualquer elemento desencadeador,
mesmo as alterações menos substanciais no modo de reprodução camponesa, são propícios a
provocarem desequilíbrio:

No entanto, o equilíbrio continua tão frágil, que todo elemento gerador de uma ligeira
modificação o perturbará profundamente. Pode-se tratar do crescimento demográfico,
de acidentes climáticos, da deterioração momentânea dos preços agrícolas, de uma
sobrecarga temporária de impostos pelo Estado, do aparecimento de novas
necessidades da parte do produtor agrícola, etc. (SCHWARZ , 1990, p. 86).

Essas ameaças à sobrevivência podem, inclusive, para o autor, gerar revoltas


camponesas contra os que exploram os camponeses:

Em todas as circunstâncias esboçadas, observa-se que a dinâmica do


subdesenvolvimento agrícola, por ocasião da reprodução simplificada, impõe-se
como uma ameaça aguda e contínua para a própria sobrevivência biológica do
agricultor tradicional. Poder-se-ia então supor que esse agricultor vai contestar o
Estado, reivindicando, não apenas garantias mínimas de sua sobrevivência como
indivíduo, mas também como produtor agrícola. Poder-se-ia igualmente supor que
ele entrará em luta direta (revoltas camponesas) ou indireta contra o rendeiro e
outros parasitas, aos quais devota, sem dúvida, profunda aversão (SCHWARZ,
1990, p. 86. Grifo nosso).

De acordo com Wolf, é justamente a tentativa de manter o equilíbrio da unidade de


produção que faz os camponeses temerem tanto o “novo”, haja vista que este pode modificar
as relações de trabalho e provocar desequilíbrio no modo de reprodução camponesa: “Tais
esforços para equilibrar a balança do orçamento pelo subconsumo explicam, parcialmente, por
que os camponeses temem o nôvo, como se vissem a própria tentação: qualquer novidade
poderá abalar o seu precário equilíbrio” (1970, p. 33). Não à toa, os moradores de Japuara viam
a passagem da propriedade a Firmino Amorim e a José Fenelon como garantia de que as
51

relações não seriam modificadas. Em contrapartida, a chegada do novo proprietário, César


Campos, representava uma ameaça às relações anteriormente existentes.
Faz-se necessário enfatizar que os moradores de Japuara não aceitaram as novas
imposições do novo proprietário. Assim, permaneceram pagando a renda somente da produção
do algodão, a terça parte que eles consideravam legítima, da mesma forma permaneceram
criando animais e utilizando o açude para a pesca. Essa negativa dos moradores em cumprir as
exigências fez com que César Campos passasse a realizar uma série de intimidações aos
camponeses, como a destruição dos seus roçados. Em princípio, de modo sorrateiro, os
capatazes destruíam os roçados no período noturno:

Aí daí em diante começou as confusões. Eles fazendo confusão, derrubando cerca,


quando o dia amanhecia as lavouras tava só o pepineiro no chão. Aí quando se tomava
as providências, quando era já na noite seguinte fazia o mesmo. Aí até que os
agricultores ficaram praticamente sem nada né!?40

São intimidações que visavam a forçar a retirada dos moradores de Japuara. Essas
atitudes de César Campos revelam um modus operandi dos proprietários de terra quando a
permanência dos camponeses passa a ser indesejada no interior das propriedades rurais em
decorrência de situações conflitivas. Como bem observado por Almeida e Esterci (1979), que
ouviram diversos depoimentos de camponeses no Ceará, os proprietários utilizavam essas
intimidações para tornar inviável a permanência dos moradores na fazenda, como uma maneira
de vencê-los pelo cansaço:

Segundo informantes quando o patrão quer botar pra fora o morador ele provoca tais
atritos. Pode, por exemplo, deixar mal fechada uma porteira de tal modo que à noite,
o gado invade a roça do morador. O patrão alega, então, que a culpa é do próprio
morador: “foi seus meninos mesmo que abriram”. Dizem os informantes que quando
o patrão assim deseja, torna-se impossível para o morador manter-se na propriedade,
pois, então para o patrão é “matar na unha” provocando situações insuportáveis
(ALMEIDA; ESTERCI, 1979, p. 114).

Segundo os autores quando os proprietários de terra intimidavam os moradores, isto


não significa que estes não quisessem mais oferecer morada a outros trabalhadores. Na verdade,
tratava-se simplesmente de expulsar os antigos e substituí-los por novos: “Pequenos
proprietários e parceiros refletindo sobre casos de expulsão de moradores concluem que não
há por parte de proprietários a intenção de eliminar a relação: ao “botar pra fora” um morador

40
BARROS, Luzardo. Entrevista, 5 de outubro de 2020. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda Mendes. Acervo
pessoal.
52

os patrões estariam interessados apenas em substituí-los por outros [...]” (ALMEIDA;


ESTERCI, 1979, p. 113).
Assim, as intimidações de César Campos aos camponeses de Japuara,
possivelmente visava a isto: expulsar os antigos moradores e substituí-los por outros que
aceitassem as suas imposições. Com o início das batalhas judiciais, as investidas do novo
proprietário de Japuara serão intensificadas com ações como a destruição dos roçados e dos
campos de algodão por animais; proibição de cultivos; envio de capatazes à fazenda; incêndios
às cercas e ameaças aos moradores que permaneciam utilizando o açude.

2.2 A propriedade em litígio

Pretende-se, neste tópico, trazer à torna as disputas judiciais por Japuara, todavia
dando ênfase à utilização do Estatuto da Terra pelo advogado dos moradores, Lindolfo Cordeiro,
para assegurar o cumprimento da referida Lei, visando à resolução do conflito. Em um contexto
marcado pela repressão aos camponeses e apoiadores, as disputas dentro da esfera judicial
mostravam-se um horizonte possível de mobilização e de resolução dos conflitos de terra
(ESTERCI, 2009, p. 223).
Recorde-se que, de acordo com Medeiros (2014), ocorreram, em 1967, eleições para
a Contag. Foi quando uma chapa encabeçada por José Francisco da Silva, liderança sindical do
Estado de Pernambuco, conseguiu derrotar a chapa do interventor José Motta (MEDEIROS,
2014, p. 97). Assim, a autora enfatiza que, com a retomada da direção da Contag pelo
movimento sindical camponês, o órgão orienta tanto os STRs quanto as Federações Estaduais
dos Trabalhadores Rurais para que pautem a mobilização camponesa em torno do âmbito legal,
isto é, o movimento sindical camponês passa a atuar cobrando o que era estabelecido pela
legislação agrária, tanto pelo Estatuto do Trabalhador Rural, quanto pelo Estatuto da Terra
(MEDEIROS, 2014, p. 97). O movimento sindical camponês, durante a ditadura civil-militar,
será pautado em torno da efetivação da legislação trabalhista e agrária assumindo o que a
Contag definiu como uma “defesa intransigente dos direitos dos trabalhadores rurais”
(CONTAG, 1980, p. 7).
Assim, o fato de Lindolfo Cordeiro, assessor jurídico da Fetraece, atuar no conflito
de Japuara cobrando a efetivação do Estatuto da Terra não foi um fato isolado, tendo em vista
que tanto a Fetraece quanto os STRs vinculados à Contag passam a seguir esse direcionamento
em torno da cobrança por direitos e aplicação das novas leis. Portanto, quando a Fetraece
assume conflito de Japuara como mediadora, esta passa a cobrar nos Tribunais a efetivação da
53

legislação agrária, principalmente do Estatuto da Terra em benefício dos moradores.41 Portanto,


a atuação de Lindolfo Cordeiro insere-se em uma mobilização sindical mais ampla, assentada
em uma cobrança da efetivação da legislação agrária. Isto é, o advogado entra no conflito
seguindo tal direcionamento da própria Contag. Portanto, é importante considerar, antes de
tudo, que a mobilização dos camponeses de Japuara não se iniciou em torno da cobrança da
legislação agrária, todavia ao longo do percurso de disputa e com o envolvimento da Fetraece
no conflito, a mobilização vai sendo pautada também no âmbito jurídico e em torno do Estatuto
da Terra, seguindo os pressupostos defendidos pela Contag, isto é, uma luta camponesa pautada
em torno da efetivação dos direitos.
De acordo com Motta (1996), historicamente, os grandes proprietários têm-se
apropriado do campo legal para garantir a propriedade da terra, não somente porque o direito e
a lei necessariamente os favorecia, mas também porque possuíam recursos financeiros para
promover tais ações. Assim, ao analisar os conflitos de luta pela terra, é imprescindível
compreender como proprietários e camponeses fazem uso do direito e da Lei para contrapor
diferentes concepções do direito de propriedade e também de posse da terra:

Os grandes fazendeiros se “apropriam” da legislação não porque as leis satisfazem


inteiramente os seus interesses, mas porque eles possuem recursos para financiar
processos custosos, recompensando satisfatoriamente os defensores de sua versão nos
tribunais (MOTTA, 1996, p.16).

Portanto, é necessário enfatizar que entrar em disputa judicial com proprietários de


terra nem sempre era uma alternativa viável aos camponeses, como ressalta Motta (1996),
desprovidos de meios materiais para custear o pagamento de advogados e outras despesas dos
processos. Entretanto, estes também aprenderam a se mobilizar no campo jurídico como
enfatizado pela autora, com o propósito de entrarem nesse “jogo de poder” na esfera judicial
com os proprietários de terra (MOTTA, 1996, p. 16). Assim, com a organização das sociedades
civis e, posteriormente, com o surgimento dos sindicatos dos trabalhadores rurais e das
federações estaduais de trabalhadores rurais, os camponeses passam a contar com os assessores
jurídicos disponibilizados por essas entidades. Neste sentido, de acordo com Medeiros (1989),
as entidades sindicais e, por extensão, os assessores jurídicos (advogados), passam a se tornar

41
Em 1979, ocorre o III Congresso Nacional organizando pela Contag, e ela assume uma postura crítica em relação
ao rumo que o movimento sindical camponês tomava até então, isto é, eles perceberam que a luta em torno da
efetivação dos direitos não alcançou os resultados esperados, já que existia um entrave do próprio governo
ditatorial em efetivar tais legislações, principalmente, o Estatuto da Terra. Desse modo, a Contag percebeu que
não existia um esforço por parte do governo ditatorial em efetivar tais legislações, muito menos em promover a
Reforma Agrária e rompe com este direcionamento em torno da cobrança da efetivação da legislação agrária
(GARCIA; PALMEIRA, 2001, p. 68).
54

“peças chave” nos conflitos de terra (MEDEIROS,1989, p. 93). Portanto, um campo de disputa
se abre aos camponeses e apoiadores com os conflitos de terra sendo travados também dentro
do espaço jurídico, cobrando o cumprimento da legislação e contrapondo diferentes concepções
sobre o direito de propriedade da terra.
Quando toma conhecimento de que a propriedade fora vendida a César Campos,
Firmino Amorim (administrador e arrendatário de Japuara) entra com duas ações judiciais: uma
ação preferencial de compra e outra cominatória para cobrar as benfeitorias realizadas na
fazenda.42 Além de existir um acordo entre Anastácio Braga e Firmino quanto à preferência da
oferta da terra, o próprio Estatuto da Terra, em seu Capítulo IV, que dispõe sobre o uso ou da
posse temporária da terra, garantia ao arrendatário a preferência da oferta da terra, não podendo
esta ser vendida ou negociada sem o conhecimento do mesmo:

§ 3º No caso de alienação do imóvel arrendado, o arrendatário terá preferência para


adquiri-lo em igualdade de condições, devendo o proprietário dar-lhe conhecimento
da venda, a fim de que possa exercitar o direito de perempção dentro de trinta dias, a
contar da notificação judicial ou comprovadamente efetuada, mediante recibo. 43

No caso de Japuara, tanto não se respeitou a primeira oferta da terra, mesmo com
Firmino Amorim tendo pago uma primeira parcela à herdeira de Japuara, Hebe Braga, como o
processo de venda e negociação com César Campos aconteceu, como afirmou Blaudes Barros,
“por debaixo dos panos”. Dessa forma, contrariava o disposto pelo Estatuto da Terra e abria
margem para que Firmino Amorim, que não fora notificado sobre a venda de Japuara, pudesse,
por exemplo, “haver para si o imóvel: “§ 4° O arrendatário a quem não se notificar a venda
poderá, depositando o preço, haver para si o imóvel arrendado, se o requerer no prazo de seis
meses, a contar da transcrição do ato de alienação no Registro de Imóveis”.44
Em 12 de fevereiro de 1968, a escritura da terra foi passada a César Campos. O
comerciante, já investido da escritura do imóvel, entra com uma ação de imissão de posse na
Justiça de Canindé contra Firmino Amorim e sua mulher, dando um prazo de dez dias para que
eles abandonassem a propriedade: “Assim sendo o suplicante requer a v. excia. a citação de
FIRMINO AMORIM DA SILVA, brasileiro, casado, agricultor, inclusive de sua mulher, se
casado fôr, para dentro do prazo de dez dias demitir-se da posse dos imóveis retro indicados”.45

42
Informações disponíveis na matéria do jornal O Povo (CE), 4 fev. 1971 e BARREIRA, C. Op. cit., p. 50-51.
43
Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964. Op. cit.
44
Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964. Op. cit.
45
Mandado de imissão de posse. Autores: Júlio César Campos. Réus: Firmino Amorim da Silva e sua mulher.
Ação movida na comarca de Canindé em 26 de fevereiro de 1968. O processo encontra-se disponível em formato
digital na página do Brasil Nunca Mais: Ministério Público Federal/BNM 082/Ação Penal 40/72. Consultar:
http://bnmdigital.mpf.mp.br/pt-br/. Acesso em: 7 ago. 2020. fls 1266.
55

Em 14 de março de 1968, Firmino Amorim recorre, alegando ter um contrato de compra e venda
da terra e sustenta que já teria pago uma primeira parcela à herdeira de Edite Braga. Além de
reivindicar as benfeitorias realizadas na propriedade.46 O juiz da comarca de Canindé não
atende o pedido de Firmino Amorim, sustenta a legitimidade da compra da propriedade por
César Campos e alega que as benfeitorias sejam cobradas da herdeira, Hebe Braga e não do
novo proprietário, César Campos. Além de condenar a parte que perdeu, no caso Firmino
Amorim, ao pagamento dos custos do processo, deveria ele também se abster da disputa judicial
pela propriedade de Japuara:

Assim, dúvida não há de que Júlio César Campos e sua mulher são legítimos donos
da fazenda Japuara e tem direito à posse da mesma.
Tentando alterar o estado da lide, os réus esboçaram agravo no auto do processo,
alegando “jus retentions” por benfeitorias, no terreno litigioso.
Se os réus acham que tem direitos de ressarcimento por gasto no imóvel em
alusão, que o façam, se for o caso, com ação própria, contra o espólio de EDITE
DA COSTA BRAGA, não contra os autores que adquiriram o referido imóvel
livre de quaisquer ônus.
Condeno os réus ao pagamento das custas processuais, bem como se absterem de
quais atos de posse do imóvel em questão e a pagarem aos advogados dos autores
a importância referente a dez por cento do valor da causa, como honorários de
advogados.47

Em março de 1969, o advogado de César Campos entra novamente com um pedido


de imissão de posse, mas, dessa vez, a ação seria estendida a “quem quer que esteja em sua
posse, ou mesmo ali residindo”.48 A juíza de Canindé atende o pedido do advogado e autoriza
os oficiais de Justiça para seguirem a Japuara para cumprir as ordens da Justiça de Canindé de
imitir César Campos em sua posse.49 No dia seguinte, os oficiais chegam a Japuara, contudo,
Firmino Amorim já tinha se retirado com a sua mulher da propriedade, e os oficiais cumprem
a ordem de imitir César Campos na posse: “Certificamos mais que não encontramos mais ali
residindo os réus Firmino Amorim da Silva e sua mulher. Certificamos finalmente que a casa
onde residiam os réus mencionados, já se encontra no poder dos autores”. 50 Entretanto, os
demais moradores não se retiraram da propriedade, já que o mandado de imissão de posse era
pra retirar Firmino e sua mulher de Japuara e estes já não se encontravam mais nas terras.

46
Contestação da imissão de posse. Ação movida na comarca de Canindé pelo advogado de Firmino Amorim da
Silva. 14 de março de 1968. Op. cit., fls. 1267-1269.
47
Vistos do juiz de direito da comarca de Canindé. 30 de abril de 1968. Op., Cit., fls: 1271-1272. Grifo nosso.
48
Petição movida pelo advogado de César Campos. Comarca de Canindé, 24 de março de 1969. Op. cit., fls 1275.
49
Expedição de mandado de imissão de posse pela juíza de direito da comarca de Canindé. 26 de março de 1969.
Op. cit., fls: 1277 – 1278.
50
Certidão de cumprimento do mandado redigido pelos oficiais de Justiça. Comarca de Canindé. 27 de março de
1969. Op. cit.
56

César Campos, não satisfeito somente com a retirada de Firmino Amorim da


propriedade, recusa-se a receber a propriedade com os demais moradores residindo em Japuara,
pois alega querer recebê-la “livre” e “desembaraçada” dos agricultores.51 Todavia, o mandado
de imissão de posse era pra retirar apenas Firmino Amorim e sua mulher da propriedade e,
como estes não mais se encontravam residindo, o advogado do comerciante entra com um novo
pedido para expulsar os demais moradores. Em abril de 1969, a Justiça de Canindé atende o
pedido do advogado comerciante de receber a propriedade sem os camponeses e dar um prazo
de 15 dias improrrogáveis para que “essa gente” regularize a situação com o proprietário.
O mandado de imissão de posse seria estendido a todos os camponeses que, por
ordem judicial, também receberiam uma notificação individual. Somente permaneceriam na
terra aqueles que “aceitassem” as condições do novo proprietário. A juíza, portanto, separa os
moradores entre os úteis ao proprietário e os sem serventia, que deveriam ser expulsos, isto é,
alguns camponeses até poderiam permanecer em Japuara desde que fosse do desejo de César
Campos:

É viável que entre os moradores e rendeiros que exerçam suas atividades nos terrenos
denominados “Japuara”, também conhecidos como “Mela Pinto”, e “Vaca Morta”
queiram ficar onde estão exercendo suas atividades, subordinando-se as condições de
rendeiros e parceiros agrícolas, do mesmo modo como estavam nestas terras sob
administração do sr. Firmino Amorim.
Por outro lado, é presumido que o senhor César Campos precise dos trabalhos
agrícolas daqueles que considerar convenientes e que aceitarem as suas condições,
para continuarem exercendo suas atividades, sem solução de continuidade. Assim
sendo, não se torna despropositado que se dê um prazo de quinze dias improrrogável
a essa gente para que regularize a sua situação de rendeiros ou parceiros agrícolas para
com os exequentes, a fim de que esse Juízo fique apto a fazer a separação entre o
“joio” e o “trigo”.52

Todavia, aceitar as condições do proprietário seria abrir mão dos direitos, já que
César Campos negava-se a cumprir o Estatuto da Terra e estabelecia relações de parceria tidas
como insustentáveis pelos moradores, tais como a imposição da meia da produção. Assim, as
tentativas de despejo passam a atingir todos os moradores de Japuara, os quais não receberiam
qualquer tipo de indenização pelos anos de trabalho na propriedade e pelas benfeitorias
realizadas na terra, tais como casas, cercas, plantações e o açude. Como bem afirma Palmeira
(2013), “Sempre que pode, o que o proprietário faz é simplesmente expulsar seus moradores,
dando-lhes uma indenização irrisória (em termos do que eles teriam direito pela lei) ou, o que
talvez seja mais frequente, indenização nenhuma” (2013, p. 33).

51
Petição movida pelo advogado de César Campos. Comarca de Canindé. 7 de abril de 1969. Op. cit., fls: 1281.
52
Despacho da juíza de direito da comarca de Canindé. 16 de abril de 1969. Op. cit., fls 1282.
57

Na entrevista aos camponeses, o sr. Alfredo recorda-se do processo de tentativa de


despejo pela Justiça de Canindé. A própria juíza ter-se-ia dirigido a Japuara para convencer os
moradores a assinarem os documentos de despejo, teria passado uma semana na propriedade
com os moradores, passava o dia em Japuara e, durante a noite, dormia, segundo o sr. Alfredo,
no hotel pertencente a César Campos. Transparece ainda, em seu relato, a pressão exercida pelo
proprietário à Justiça de Canindé, além de uma aproximação entre o âmbito privado e público
das decisões judiciais:

Veio uma Juíza aqui passar uma semana aqui mais nós aqui, ela trouxe uns papel pra
nós assinar. Ela chamou logo nós. [Juíza] “Os primeiros que forem chegando, vão
avisando pros outros. Esse papel aqui se você assinarem, esse documento aqui, vocês
tão assinando o despejo de vocês. Já tem o despejo pra vocês, já encaminhado”. Já
tinham avisado que nós não assinassem. Passou o dia mais nós, comeu feijão mais
nós. Nesse fuxico, passemos a semana todinha. Quando ela chegou, ela tava
hospedada no hotel São Francisco, hotel São Francisco nesse tempo era dele né!? Do
César Campos. Ela chegou de noite, saiu daqui de noite, pegava o carro e ia.
[César Campos]: “Aí: o que que resolveu lá?”
[Juíza] “Eu resolvi nada não, os homens não assinaram”.
[César Campos]: “Mas a senhora é Juíza, a senhora tem por obrigação mandar eles
assinarem é a força.
[Juíza] “A força não! Eu não tenho ordem de fazer isso. Peço desistência do meu
trabalho, mas a assinar a força não pode não”.
Aí pronto ele endoidou. Diz a delegada que andou aqui que tinha três despejos
cancelado, grampeado.53

Nos processos de imissão de posse, o advogado do comerciante, Barros dos Santos,


sustenta que os moradores foram postos na terra por Firmino Amorim. Uma estratégia para que
os demais moradores não tivessem os seus direitos reconhecidos, versão sustentada pela Justiça
de Canindé no processo de imissão de posse do proprietário em Japuara. Argumento utilizado
ainda para justificar o porquê de os demais camponeses não terem sidos citados nos processos
anteriores de imissão de posse por supostamente exercerem “posse precária da terra”, isto é,
serem dependentes de Firmino Amorim. O relato do sr. Alfredo Ramos enfatiza que muitos
camponeses ocupavam Japuara muito antes de a fazenda pertencer a Anastácio Braga Barroso,
isso ainda antes de 1940: “O dono daqui era o finado Ezaquiel, vendeu pro seu Braga Barroso,
de Fortaleza ele. Eu nasci já no tempo do seu Braga Barroso. Os outros era do tempo do seu
Luiz Ezaquiel, é de Fortaleza ele, um senhor. Eu pouco vi ele, muitas vezes”.54 Portanto, não
eram dependentes de Firmino Amorim, pois tinham sido ali colocados por outros proprietários.
Essa versão é contraposta à do advogado de César Campos, Barro dos Santos, que sustentava

53
FERNANDES, Alfredo Ramos. Entrevista, 23 de setembro de 2020. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda
Mendes. Acervo pessoal.
54
Id., Ibid.
58

que os moradores teriam sidos ali colocados pelo administrador Firmino Amorim da Silva e
não pelos antigos donos.
Assim a Justiça de Canindé defende que, por serem dependentes de Firmino
Amorim, não poderiam permanecer em Japuara e não tinham quaisquer direitos. Logo,
reafirmam a versão de César Campos de que este comprou a terra “desocupada”, negando
reconhecer que os moradores foram postos em Japuara pelos antigos proprietários e que,
inclusive, exerciam posse imemorial nas terras:

Os moradores que se rebelam contra a execução da sentença foram postos ali pelo
referido administrador, com seus prepostos, razão porque não precisavam serem
citados para a ação intentada, uma vez que que exerciam posse precária no terreno,
visto estarem sob a dependência do referido administrador.
Os promoventes compraram a propriedade livre de todos os ônus e de qualquer
embaraço, mas foram embaraçados no seu recebimento pela oposição criada por
Firmino Amorim.
Ninguém pode recusar-lhes o direito de se imitirem na propriedade “livres” e
“desembaraçadas” tal qual como adquiriram.55

Com o abandono do litígio por Firmino Amorim, Pio Nogueira Barros, camponês
que residia em Japuara desde 1950, assume o posto de liderança dos moradores e se recusará,
assim como os demais moradores, a se retirar da propriedade sem qualquer indenização pelas
benfeitorias realizadas no local. Pio possuía parentesco com Firmino Amorim, que era seu
cunhado.
Uma série dessas benfeitorias realizadas na fazenda por seus moradores pode ser
creditada às expectativas nutridas por estes de permanecerem em Japuara. Quando os
camponeses chegaram à terra, só existiam 12 casas construídas. Em 1971, ano de ocorrência
dos confrontos na propriedade, existiam 64 moradias, além de plantações, cercas e construções
como o próprio açude.56 Em 1968, chegou a ser realizada uma perícia pela Justiça do Trabalho
em Japuara para o levantamento das benfeitorias realizadas pelos moradores.

Em 1968, Pio Nogueira, em conjunto com os demais agricultores, moradores-


parceiros, solicitou à Justiça do Trabalho uma perícia que envolvia o levantamento
das benfeitorias e um relatório sobreo tempo de moradia nas terras. O temor era de
que a qualquer momento, tivessem que sair da fazenda de mãos abanando, sem ter
ideia do que deixavam para trás e, depois, terem de buscar na Justiça os seus direitos
(BARROS, 2013, p 57).

As disputas passam a ocorrer tanto na Justiça comum, quanto na Justiça do Trabalho


com os moradores cobrando indenizações das benfeitorias. O Estatuto da Terra, em seu artigo

55
Despacho da juíza de direito da comarca de Canindé. 16 de abril de 1969. Op. cit., fls 1282.
56
Informação verbal do advogado dos agricultores, Lindolfo Cordeiro, ao jornal Gazeta de Notícias, 5 jan. 1971.
59

96, inciso V, item e), estabelecia indenizações aos parceiros, quando estes realizavam
benfeitorias na terra:

e) direitos e obrigações quanto às indenizações por benfeitorias levantadas com


consentimento do proprietário e aos danos substanciais causados pelo parceiro, por
práticas predatórias na área de exploração ou nas benfeitorias, nos equipamentos,
ferramentas e implementos agrícolas a ele cedidos.57

César Campos recusava-se a entrar em um acordo com os camponeses para


indenizá-los pelas benfeitorias. De acordo com sr. Luzardo, o proprietário chegou até a propor
um acordo com Pio Nogueira, mas não queria indenizar os demais camponeses:

O Pio era delegado sindical, delegado sindical, o Pio aqui. Tinha os delegados do
sindicato nas região né!? Ele foi delegado aqui. Ainda houve um acordo entre o César
Campos e ele, nós fomos para o Baturité. Nós fomos pra uma reunião lá, 9 pessoas.
Quando chegou só entrou dois. Ele ia dar uma indenização de dois mil conto, nós ia
sair, mas ele só dava pro Pio e a passagem do carro pra onde o cara fosse né!? Mas
quando ele chamou lá que só ia pagar o Pio, os outros ficava sem. [Pio Nogueira]
“Pois eu não quero não, não aceito não. Eles são sindicalizados, eu sou delegado deles,
se pagarem eles que são de acordo, já tão de acordo comigo pra nós sair, mas só pra
mim não.” Deixaram nós no meio da rua, começou a reunião e foi até 11 horas da
noite...58

Possivelmente, foi uma estratégia de César Campos indenizar somente a liderança


dos moradores com o propósito desarticular a mobilização dos moradores de Japuara.
Entretanto, Pio recusa-se a receber a indenização, já que os demais moradores não seriam
ressarcidos. No relato do sr. Alfredo, transparece que a atitude de Pio foi condizente com o
papel de liderança assumido por ele como uma representação sindical dos camponeses de
Japuara, já que Pio não visou a auferir as indenizações somente para si e impôs o interesse
coletivo dos moradores acima do individual.
Desse modo, aceitar o acordo na Justiça do Trabalho seria abrir mão do direito
coletivo de todos os camponeses. Ressalte-se que, apesar de o acordo ter sido proposto somente
para o Pio, os outros moradores acompanharam o processo de negociação na Justiça do
Trabalho e se dirigiram pessoalmente ao local, como relatou o sr. Alfredo. Outro elemento que
transparece na fala camponês é o fato de os moradores terem sido abandonados no meio da
estrada durante a noite pelo proprietário, César Campos. Isto se configura um ato de represália,
pois Pio Nogueira não aceitou o acordo que lhe fora proposto.

57
Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964. Op. cit.
58
FERNANDES, Alfredo Ramos. Entrevista, 23 de setembro de 2020. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda
Mendes. Acervo pessoal.
60

Ainda relativamente à decisão da Justiça de Canindé de imissão de posse contra


todos os ocupantes de Japuara, Pio, nesse meio tempo, dirige-se a Fortaleza. Em um primeiro
momento, dirige-se ao IBRA59 para tentar encontrar alguma saída e evitar o despejo.
Aconselhado pelo IBRA, busca a Fetraece (BARREIRA, 1992, p. 50). Em seu auxílio, vem o
experiente advogado Francisco Lindolfo Cordeiro, que, a partir de 1969, passa a atuar na defesa
dos moradores de Japuara. Portanto, os moradores resolvem buscar os seus direitos, recorrendo
a diferentes entidades representativas que, de alguma forma, pudessem oferecer apoio a eles e
que evitassem o despejo.
Assim, com a ameaça de despejo de todos os moradores o conflito, naquele momento,
toma outro rumo e nova configuração, assumindo um caráter de reivindicação coletiva pela terra.
A tentativa de expulsão de todos os moradores da propriedade configurava-se injusto para os que
ocupavam Japuara desde tempos imemoriais, como dito, muitos eram moradores antes de a
propriedade pertencer a Anastácio Braga, o antigo proprietário (GOMES, 2013, p. 4). Por isso,
os despejos acabam sendo vistos pelos camponeses como: “Procedimentos ilegítimos, injusto
contra lavradores que havia desbravado a terra, tornando a produtiva, valorizando a com seu
trabalho, seu suor e seu sangue, e mais ainda, que não se recusavam a pagar por sua utilização”
(GRYNSZPAN, 1987, p. 71).
Com a saída de Firmino da disputa judicial e as tentativas de despejo de todos os
moradores por César Campos, Lindolfo Cordeiro entra na Justiça de Canindé com um embargo
de terceiro possuidor prejudicado60 em nome de Pio e de todos os moradores da fazenda, ainda
em 24 abril de 1969, dentro do prazo de 15 dias dado pela Justiça de Canindé aos camponeses

59
O Instituto Brasileiro de Reforma Agrária (IBRA), foi um órgão criado pelo Estatuto da Terra (Lei nº 4.504, de
30 de novembro de 1964) e tinha como propósito tornar efetivo o Estatuto da Terra, além de “aliviar as tensões”
no campo, atuando principalmente no que se referia a questões relativas à propriedade da terra. Funcionava
paralelamente com o Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrário (Inda). Em 1970, surge o Instituto Nacional
de Colonização e Reforma Agrária (Incra), uma autarquia federal criada pelo Decreto – Lei nº 1.110, de 9 de julho
de 1970. Com o seu surgimento, esses dois órgãos foram unificados, no caso o Ibra e o Inda. Informações
consultadas no site FGV/ CPDOC. Pesquisar pelo verbete “Ibra”. Disponível em:
http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/instituto-brasileiro-de-reforma-agraria-ibra. Ver
também: Medeiros, Leonilde Sérvolo de. História dos movimentos sociais no campo. Rio de Janeiro FASE. 1989.
p. 89.
60
O Código Civil de 1939, no artigo 707, estabelecia o seguinte sobre embargo de terceiro: “Quem não fôr parte
no feito e sofrer turbação ou esbulho em sua posse, ou direito, por efeito de penhora, depósito, arresto, sequestro,
venda judicial, arrecadação, partilha ou outro ato de apreensão judicial, poderá defender seus bens, por via de
embargos de terceiro”. O embargo de terceiro prejudicado ocorre pelo fato de Pio e os demais moradores não
fazerem parte do processo anterior, no caso, não faziam parte da disputa judicial entre César Campos e Firmino
Amorim e com a saída de Firmino da propriedade e por consequência da disputa judicial, o terceiro prejudicado
passa a ser Pio Nogueira e os demais ocupantes que permaneciam residindo em Japuara e cobravam pelas
benfeitorias realizadas por eles. Consultar: Decreto – Lei nº 1.608, de 18 de setembro de 1939. Código de Processo
Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1937-1946/del1608.htm> Acesso em: 13
jun. 2020.
61

de Japuara para que abandonassem a propriedade. O processo de disputa por Japuara torna-se
então coletivo.
Mencione-se que os “advogados sindicais” que atuaram defendendo trabalhadores
rurais durante a ditadura civil-militar evitavam, de acordo com Tavares e Quintans (2018),
entrar com ações individuais na Justiça e buscavam, sempre que possível, envolver o maior
número de trabalhadores rurais no litígio por meio das ações coletivas. Os advogados
colaboravam para a coletivização dos conflitos de terra com mobilização de todos os
trabalhadores:

Esses advogados também exploravam as ações coletivas trabalhistas e possessórias de


forma a que permitissem a coletivização do conflito e a mobilização dos
trabalhadores. Desse forma, evitavam as ações que reforçavam a propriedade
individual, como o usucapião. Nesse sentido, exploravam as brechas dentro do
Judiciário, compreendendo que as leis colocavam freios legais ao poder do regime
autoritário e dos fazendeiros. (TAVARES; QUINTANS, 2018 p. 626)

Assim, ao entrar com um embargo de terceiro possuidor prejudicado em nome de


todos os moradores, Lindolfo Cordeiro colaborou para que o conflito de Japuara adquirisse um
caráter de reivindicação coletiva e envolvesse todos os camponeses que ocupavam a terra na
disputa judicial. Além de entrar com um embargo no nome de todos os moradores, o advogado
sustenta ainda a defesa destes embasado no Estatuto da Terra, já que os ocupantes residiam e
eram parceiros na fazenda antes de ela ser vendida a César Campos. Fundamentava-se o
advogado no parágrafo 5º do artigo 92 do Estatuto da Terra: “§ 5º A alienação ou a imposição
de ônus real ao imóvel não interrompe a vigência dos contratos de arrendamento ou de parceria
ficando o adquirente sub-rogado nos direitos e obrigações do alienante”.61 Dessa forma,
Lindolfo não contesta o fato de César Campos ser o legítimo proprietário de Japuara. Em vez
disso, cobrava do comerciante o cumprimento dos contratos de parceria outrora firmados e
também, por sua vez, buscava garantir a posse da terra aos camponeses. Assim, Lindolfo
defende que os camponeses não precisavam regularizar a sua situação com o novo proprietário,
conforme decisão da Justiça de Canindé, pois os contratos de parceria permaneciam vigentes,
mesmo com a venda da propriedade, e sustentava, invocando novamente o Estatuto da Terra,
que, enquanto os moradores não fossem indenizados pelas benfeitorias, não poderiam ser
expulsos:

Que, em vista, do que determina a lei, os peticionantes não têm situação a regularizar
com os atuais proprietários, uma vez que sua situação como parceiros outorgados ou

61
Lei n° 4.504, de 30 de novembro de 1964. Op. cit.
62

arrendatários, já se encontra definida por lei, cabendo-lhes tão somente, na devida


oportunidade, a obrigação contratual de pagarem aos proprietários reclamantes as
rendas devidas e estes respeitarem os direitos conferidos por lei aos postulantes.
Que, tendo em vista o exposto, pedem e requerem que V. Excia. se digne de mandar
juntar aos respectivos autos, como aditamento, aos embargos de terceiro possuidor
prejudicado manifestados tempestivamente e onde e com abundância de
esclarecimentos demonstram liquidez de seu direito para no final lhes ser
assegurado o direito de permanência nas áreas que cultivam e residem, até que
lhes sejam pagas as indenizações que fazem jus, sendo-lhes, outrossim, garantido
o direito de usarem e gozarem as vantagens que o imóvel lhes oferecer, sem
qualquer molestamento por parte dos autores, os mesmo estão espalhando que
brevemente, despejarão os peticionantes que seja com a Polícia daqui ou vinda da
capital.62

Defendia ainda que os camponeses não foram postos em Japuara por Firmino
Amorim, mas sim pelos antigos proprietários. Desse modo, contrapunha a versão do advogado
de César Campos de que os moradores eram dependentes de Firmino Amorim e, por isso, não
tinham quaisquer direitos assegurados pelo Estatuto da Terra.
A utilização do Estatuto da Terra pelo advogado dos moradores reconfigura o status
da disputa judicial. O Estatuto da Terra garantia a posse da terra aos camponeses até que estes
fossem ressarcidos pelas benfeitorias que construíram na propriedade para que pudessem viver
e trabalhar. Portanto, nem Firmino Amorim, nem os demais camponeses poderiam ser expulsos
de Japuara antes de serem indenizados pelas referidas construções. Nesse sentido, a Justiça de
Canindé, em diferentes momentos da disputa judicial, ignora o que era estabelecido pela
legislação agrária:

VII – o arrendatário, ao termo do contrato, tem direito à indenização por benfeitorias


necessárias e úteis, será indenizado das benfeitorias voluptuárias quando autorizadas
pelo locador do solo. Enquanto o arrendatário não seja indenizado das benfeitorias
necessárias e úteis, poderá permanecer no imóvel, no uso e gozo das vantagens
oferecidas, nos termos do contrato de arrendamento e nas disposições do inciso I. 63

O Estatuto garantia ainda que os direitos estabelecidos aos arrendatários eram


extensivos aos parceiros: “VII – aplicam-se à parceria agrícola, pecuária, agropecuária, agro-
industrial ou extrativa as normas pertinentes ao arrendamento rural, no que couber, bem como
as regras do contrato de sociedade, no que não estiver regulado pela presente Lei”.64 Nem
arrendatários nem parceiros poderiam ser expulsos da terra sem receber as indenizações pelas
benfeitorias e tinham o direito de permanecer ocupando a terra até o ressarcimento destas.
Lindolfo Cordeiro utiliza justamente esse dispositivo e o que era estabelecido pelo Estatuto da

62
Juntada de petição aos autos. Ação movida por Lindolfo Cordeiro. Comarca de Canindé. 10 de maio de 1969.
Op. cit.
63
Lei n° 4.504, de 30 de novembro de 1964. Op. cit.
64
Lei n° 4.504, de 30 de novembro de 1964. Op. cit.
63

Terra no que diz respeito ao ressarcimento pelas benfeitorias para garantir a posse da terra aos
camponeses e sustenta ainda que eles tinham direito ao gozo das vantagens que a terra lhes
oferecia, não podendo eles sofrerem ação de despejo enquanto não fossem indenizados, já que
os moradores eram constantemente ameaçados por milícias do proprietário e mesmo pela
polícia local.
Entretanto, o embargo de terceiro possuidor prejudicado foi rejeitado sumariamente
pela juíza de Canindé. Lindolfo, então, entra com um agravo de instrumento no Tribunal de
Justiça do Estado. Observa-se que, de acordo com art. 842 do Código de Processo Civil de
1939, o agravo de instrumento permitia recorrer de decisão judicial que não admitisse a
intervenção de terceiros: “Art. 842. Além dos casos que a lei expressamente permite, dar-se
agravo de instrumento das decisões; I. que não admitem a intervenção de terceiro na causa”.65
Lindolfo retira, então, as ações de uma rede de poder local, já que os camponeses não tinham
obtido até aquele momento nenhum julgamento favorável a estes na Comarca de Canindé, com
juízes que reiteravam constantemente o direito de propriedade de César Campos e não
reconheciam qualquer direito aos camponeses, mesmo isto sendo amparado pelo Estatuto da
Terra.
Em julho de 1969, o advogado de César Campos entra novamente com um pedido
de imissão de posse e uma nova tentativa de despejo dos moradores na comarca de Canindé,
solicitando por parte da juíza daquela comarca uma decisão “enérgica” para retirar os
moradores da propriedade.66 A juíza novamente atende ao pedido do advogado e, dessa vez, o
despejo seria realizado com aparato policial.

Neste juízo, em petição requerida por Júlio César Campos e sua mulher, assinado pelo
advogado, bel Antônio Barros dos Santos, doc. nos autos pediram para serem imitidos
na posse dos imóveis descritos na inicial das fls. citados no mandado expedido e
entregue aos Oficiais de Justiça para cumprimento da imissão.
No despacho exarado por êste Poder Judiciário, determino que se oficialize ao
Delegado Especial desta cidade, a quem solicitava sua cooperação no sentido de
adotar providências para garantir o cumprimento do mandado expedido.67

O Estado ignora o estabelecido pelo Estatuto da Terra, isto é, ressarcir os moradores


pelas benfeitorias para que estes se retirassem na propriedade. Todavia, com o acionamento
legal de uma nova instância jurídica pelo advogado dos moradores, essa história de sucessivas

65
Decreto – Lei nº 1.608, de 18 de setembro de 1939. Código de Processo Civil. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1937-1946/del1608.htm. Acesso em: 13 jun. 2020.
66
Petição movida pelo advogado, Barros dos Santos. 2 de julho de 1969. Comarca de Canindé. Op. cit., fls. 1288.
67
Ofício 47/69. Da juíza de direito da comarca de Canindé ao major Antônio Onofre (delegado especial de
Canindé). 23 de julho de 1969. Op. cit., fls. 1299.
64

derrotas judiciais sofre uma reviravolta. O advogado desloca o conflito do âmbito local em que
a Justiça de Canindé demonstrava-se comprometida com os interesses do proprietário.
Lindolfo entra com um mandado de segurança no Tribunal de Justiça do Estado
para sustar a ação de despejo e conseguir manter temporariamente os moradores na terra. O
desembargador do órgão aceita a liminar que susta a ação de despejo, enquanto o agravo de
instrumento fosse julgado no Tribunal de Justiça do Estado. Em 19 de novembro de 1969, o
agravo, finalmente, é julgado pelos procuradores do Tribunal, com decisão favorável aos
moradores de Japuara, reconhecendo que os contratos de parceria permaneciam vigentes com
a venda da propriedade e que estes não prescindiriam de provas escritas para serem validados.
Do mesmo modo, alegava que o novo proprietário tinha a obrigação de tomar conhecimento
das relações contratuais existentes antes de adquirir a propriedade: “A parceria prescinde de
instrumento escrito como condição de validade. – Ao adquirente de propriedade agrícola, cuja
exploração se faça mediante o concurso de trabalho de terceiros, corre o dever de tomar
conhecimento das relações contratuais dêstes com os alienantes”.68 Os contratos de parceria
permaneceriam vigentes e teriam de ser respeitados por César Campos, já que, quando este
adquirira a propriedade, não se preocupara em tomar conhecimento das relações contratuais
existentes entre os antigos proprietários e os moradores. A Justiça de Canindé ainda teria de
aceitar receber os embargos de terceiro prejudicado no nome de Pio e de todos os moradores:
“Acorda a turma Julgadora da Segunda Câmara Civil do Tribunal de Justiça do Estado, por
maioria dos votos, por dar provimento ao agravo, para, cassando a decisão recorrida mandar
que o Juiz a que receba os embargos e os processe na forma da Lei”.69 Portanto, o Tribunal de
Justiça do Estado reconhece que os moradores tinham direitos adquiridos e que o proprietário
não comprara a terra desocupada como alegava o seu advogado.
Mesmo com uma vitória jurídica no Tribunal de Justiça do Estado, os embargos de
terceiro prejudicados não tiveram andamento na Justiça de Canindé, e as ações permaneceram
engavetadas enquanto o conflito entre os moradores e César Campos se acirrava: “Não
entendendo o porquê — explica Lindolfo Cordeiro — os recursos não tiveram andamento e,
com o início do período eleitoral, tudo voltou à estaca zero”.70 Entretanto, mesmo com os
recursos paralisados, Lindolfo Cordeiro conseguiu assegurar a posse da terra aos camponeses,

68
Acórdão do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado. 19 de novembro de 1969. Em 26 de junho de 1970, Lindolfo
entra com uma petição na Comarca de Canindé, solicitando que o juiz de Canindé juntasse aos autos do processo
a Certidão Acórdão do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado. Op. cit.
69
Acórdão do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado. 19 de novembro de 1969. Op. cit.
70
O Povo (CE) 4 fev. 1971. “Desapropriada a Fazenda Japuara”.
65

pelo menos temporariamente, ao mover as ações em outras instâncias jurídicas e utilizar o


Estatuto da Terra na cobrança dos direitos dos moradores.
Enquanto tramitavam as ações judiciais, Lindolfo orienta que os moradores
permaneçam pagando ao novo proprietário a renda da terra, os 30% do algodão, cumprindo
com que era estabelecido pelo Estatuto da Terra e também seguindo o que os moradores
consideravam justo, já que eles reivindicavam que as relações de parceria permanecessem como
eram com o antigo proprietário, Braga Barroso. Entretanto, César Campos recusava-se a receber
a renda dos moradores. Possivelmente, foi uma estratégia do proprietário para posteriormente
alegar que os camponeses não estavam pagando pela utilização da terra, portanto, não estavam
cumprindo os contratos de parceria. Segundo Palmeira (2009), quando os proprietários
desejavam expulsar os foreiros dos engenhos em Pernambuco, estes passavam a recusar o
recebimento do foro, inclusive, para posteriormente entrar na Justiça alegando quebra de
contrato:
Querendo eliminar o foreiro, o proprietário recusa-se a receber o foro. Algum tempo
depois, armado de algumas testemunhas, vai à Justiça e pede a expulsão do “invasor”
ou de quem rompeu o contrato deixando de pagar o que havia sido estipulado. Mas os
foreiros têm a sua resposta. Se o proprietário se recusa a receber o foro, vão ao
sindicato individualmente ou em grupo, e, através do sindicato, passam a depositar o
foro na Justiça (PALMEIRA, 2009, p. 183)

Assim, apesar de o autor refletir sobre um contexto distinto do analisado, é possível


perceber que algumas estratégias dos proprietários do Nordeste estavam configuradas em um
modus operandi quando estes desejavam expulsar os camponeses de suas fazendas,
principalmente quando os conflitos de terra passavam a ser travados no âmbito jurídico.
Outra questão relevante são as diferentes estratégias utilizadas pelos advogados
sindicais no conflitos de terra, tais como a coletivização do conflito ao envolver o maior número
possível de camponeses; a utilização dos meandros da justiça; o prolongamento das disputas
com o proprietário visando a manter os camponeses na terra o maior tempo possível e o
deslocamento das disputas judiciais do âmbito local, tendo em vista que, corriqueiramente, os
proprietários de terra conseguiam influenciar as decisões judiciais locais, pois era comum as
relações pessoais influenciarem o andamento dos processos e as decisões dos juízes.
Destaque-se que uma das estratégias de Francisco Julião,71 advogado e liderança
das ligas camponesas, para assegurar a posse da terra aos camponeses, era arrastar a disputa

71
Francisco Julião, advogado e ex-deputado pelo estado de Pernambuco, tornou-se notoriamente conhecido como
uma figura de liderança das ligas camponesas no Nordeste, entre os anos de 1954 a 1964. “Ligas camponesas” é a
denominação que populariza a mobilização camponesa por todo o país, iniciam-se no Engenho da Galileia,
localizado no estado de Pernambuco, no munícipio de Vitória de Santo Antão. Em 1954, um grupo de foreiros do
Engenho da Galileia fundam a Sociedade Agrícola de Plantadores e Pecuaristas de Pernambuco – SAAP. Em
66

judicial por anos com os proprietários de terra. O propósito era que, durante o interstício da
disputa judicial, mesmo que os camponeses perdessem, estes tinham como se preparar para se
retirar da propriedade. Assim, o advogado interpunha recursos em diferentes instâncias e
tentava se utilizar da legislação para garantir o maior tempo de permanência dos moradores na
propriedade:

Eu utilizava sempre tudo aquilo que a lei me permitia. Sempre que havia possibilidade
eu recorria da instância inferior para a instância superior, utilizava os recursos que a
lei me permitia. Quando o juiz tomava uma medida que eu não considerava correta,
ou quando o laudo não me contentava, eu podia usar uma série de recursos. E eu os
usava também, para paralisar o processo. Nos recursos de efeito suspensivo, a
demanda ia toda para o Tribunal e lá passava três, quatro, cinco meses. Enquanto isso,
o camponês ficava descansado e eu tratando de outras coisas.72

Segundo Dezemone (2008), acionar a instância jurídica e cobrar o cumprimento da


lei colaborava para a “corrosão” do poder dos proprietários de terra. Do mesmo modo, desgastava
a imagem do proprietário com os camponeses, pois este não conseguia efetivar o despejo dos
moradores a seu bel prazer e, para o autor, demonstrava ainda “que a lei está acima do poder
pessoal do proprietário rural” (DEZEMONE, 2008, p. 186). Portanto, os fazendeiros se davam
conta de uma dimensão de poder acima de sua própria influência. Claro que estes também
poderiam influenciar as decisões jurídicas, principalmente no âmbito local, mas, quando os
conflitos de terra eram movidos em instâncias jurídicas fora do domínio do proprietário, estes
encontravam algumas barreiras, como no caso do conflito de Japuara. Assim, a lei pode ser
pensada como um obstáculo ao poder exercido pelas classes dominantes.
Cabem aqui algumas considerações e paralelos acerca de Senhores e Caçadores, um
estudo realizado por E. P. Thompson sobre a Lei Negra (1723)73 na Inglaterra do século XVIII.

princípio, essa sociedade figura-se como uma organização assistencialista para os moradores do engenho,
posteriormente, quando os galileus passam a ser ameaçados de expulsão, estes decidem procurar ajuda externa e
encontram esse apoio na Assembleia Legislativa do Estado de Pernambuco, por intermédio do deputado Francisco
Julião, que passa a representar os galileus e se torna a figura de maior notoriedade das ligas camponesas. Elide
Bastos divide o movimento em três momentos: entre os anos de 1955 a 1961, momento de articulação e de
expansão regional do movimento, o segundo momento, entre os anos de 1961-1963, quando ocorre a sua expansão
nacional. Em 1964, em decorrência do golpe militar, as ligas são desarticuladas devido à forte repressão ao
movimento. Sobre as ligas camponesas ver: BASTOS, E. R. As ligas camponesas. Petrópolis: Vozes, 1984.
AZEVEDO, F. A. As ligas camponesas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
72
JULIÃO, Francisco. Entrevista concedida à pesquisadora Aspásia Camargo em Morelos (México). Rio de
Janeiro: FGV/ CPDOC, 1977.
73
A Lei Negra, aprovada em 1723, estabelecia uma série de delitos, cujo descumprimento era passível de
condenação com a pena de morte. Por isso, foi tida como uma lei extremamente severa já que atos como a caça, a
coleta e pesca poderiam levar os indivíduos à pena máxima de morte pelo Estado. Daí reside a sua extrema
crueldade em estabelecer o que passa a ser configurado pelo Estado como propriedade privada a partir de tal
dispositivo legal. Portanto, foi uma lei que reconfigurou a propriedade privada com extrema rigidez já que as
pessoas tinham anteriormente um acesso mais livre às florestas e aos campos. Não à toa, essa lei encontrou atos
de resistência, apesar da extrema severidade. Enfatiza-se que alguns grupos de caçadores clandestinos eram
conhecidos como “Negros”, pois costumavam pintar os seus rostos de preto para dificultar de serem identificados
67

O autor apresenta que esta lei suscitou conflitos entre as classes ao ampliar o direito de
propriedade privada e punir com pena capital as populações florestanas que insistissem em caçar,
coletar ou pescar nas áreas florestais, campos privados de caça ou locais de pesca. Essa lei findou
por ampliar e proteger a apropriação privada sobre os campos e florestas outrora partes de um
modus vivendi coletivo. A partir da Lei Negra, os sujeitos pegos caçando em áreas florestais,
parques particulares de caça ou locais de pescas eram punidos severamente com a pena capital.
Por outro lado, Thompson (1997) entende que, apesar de a Lei Negra ter servido para ampliar a
apropriação privada e punir severamente aqueles que a descumprissem, ela também impôs limites
ao poder exercido pelas classes dominantes e tornou-se um campo de disputa:

E não só os dominantes (na verdade, a classe dominante como um todo) estavam


restringidos por suas próprias regras jurídicas contra o exercício da força direta e sem
mediações (prisão arbitrária, emprego de tropas contra a multidão, tortura e aqueles
outros úteis expedientes do poder com que estamos todos familiarizados), como
também acreditavam o bastante nessas regras, e na retórica ideológica que as
acompanhava, para permitir, em certas áreas limitadas, que a própria lei fosse um foro
autêntico onde se travavam certos tipos de conflito de classe. Inclusive existiram
ocasiões (lembramo-nos de Tohn Wilkes e vários dos julgamentos· dos anos 1790)
em que o próprio Governo saiu derrotado dos tribunais. Essas ocasiões,
paradoxalmente, serviram para consolidar o poder, acentuar sua legitimidade e conter
movimentos revolucionários. Mas, para completar o paradoxo, essas mesmas ocasiões
serviram para colocar ainda mais freios constitucionais ao poder (1997, p. 556).

De tal modo, para o autor, a lei tanto poderia ser utilizada para legitimar o poder
exercido pelas classes dominantes, quanto, por outro lado, também inibiria esse poder, podendo
servir para proteger “os destituídos de poder”. De acordo com Esterci (2009): “Thompson se
atreveu, mesmo assim, a questionar a noção, forte na época, de que as leis servem apenas aos
interesses dos poderosos e argumentou que a existência de alguma lei é melhor do que a de
nenhuma lei [...]” (ESTERCI, 2009, p. 225). Assim, a autora enfatiza a visão de Thompson da
importância da lei para “proteger os mais frágeis” da sociedade dos “arbítrios” das classes
dominante. Para ela, Thompson se atreve a perceber as distintas dimensões que envolvem uma
legislação que não necessariamente somente protege os que estão em uma condição de
dominantes. A existência de uma lei que mediasse as relações entre as classes, poderia
representar um entrave ao exercício de poder desmedido:

É verdade que, na história, pode-se ver a lei a mediar e legitimar as relações de classe
existentes. Suas formas e procedimentos podem cristalizar essas relações e mascarar
injustiças inconfessas. Mas, essa mediação, através das formas da lei, é totalmente
diferente do exercício da força sem mediações. As formas e a retórica da lei adquirem
uma identidade distinta que, às vezes, inibe o poder e oferece alguma proteção aos

facilmente pelos guardas florestais ou outras autoridades quando iam caçar animais em áreas florestais ou nos
campos privados, por isso o nome “Lei Negra”.
68

destituídos de poder [...] Como tal, a lei não foi apenas imposta de cima sobre os
homens: tem sido um meio onde outros conflitos sociais têm se travado
(THOMPSON, 1997, p. 558).

Thompson aborda as arenas de disputas abertas com a aprovação de uma lei,


levando em consideração que, por mais paradoxal que pareça, uma mesma jurisprudência tanto
poderia servir aos interesses dos que estavam no poder, quanto se tornar um campo de disputas
e impor limites ao poder arbitrário das classes dominantes, já que estes também tinham de se
submeter aos desígnios da lei, portanto, as classes dominantes também se tornavam passíveis
de sanções punitivas. Segundo Thompson, a própria Lei Negra suscitou conflitos entre as
classes, já que diferentes concepções do direito de propriedade entraram em disputa:

O que muitas vezes estava em questão não era a propriedade defendida pela lei contra
a não propriedade; eram as outras definições dos direitos de propriedade: para o
proprietário de terras, o fechamento das terras comunais; para o trabalhador rural, os
direitos comunais; para os funcionários das florestas, "terrenos preservados" para os
cervos; para os habitantes da floresta, o direito de apanhar torrões de grama
(THOMPSON, 1997, p. 351).

Assim, o autor propõe que, ao estudar uma lei, é necessário levar em conta as suas
diferentes dimensões e implicações, não enxergá-la somente como um meio de uma classe
exercer o poder sobre a outra, ou simplesmente como um elemento de superestrutura em que
os indivíduos pouco ou nada podem fazer para modificar a realidade. A lei, em sua concepção,
deve ser abordada como um espaço de conflito entre as classes.
A abordagem de Thompson suscita algumas questões que precisam ser discutidas
em torno da própria utilização do Estatuto da Terra pelo advogado, Lindolfo Cordeiro, para
assegurar direitos e a posse da terra aos camponeses de Japuara. O Estatuto da Terra é
comumente referido pelos autores como uma lei que visava tanto a garantir a Segurança
Nacional, contendo os conflitos de terra, quanto a promover a modernização no campo
(beneficiando os grandes projetos de colonização da Amazônia) e que colaborou para barrar o
acesso dos camponeses à terra:

Esse projeto, aprovado rapidamente, transformou-se no Estatuto da Terra. O Estatuto


abria o acesso à terra quando se olha o assunto do ângulo dos proprietários, mas
fechava o acesso à terra quando se olha o assunto do ângulo da grande massa de
trabalhadores sem terra: a reforma agrária beneficiaria preferencialmente lavradores
com vocação empresarial. Ao mesmo tempo, as desapropriações só ocorreriam no
caso de conflitos ou de tensão social grave (MARTINS, 1985, p. 22).

Apesar de ter sido pensado para conter a tensão social no campo e dificultar o acesso
das classes mais pobres à terra, quando os camponeses passam a cobrar a aplicação desta lei
69

são ensejados conflitos no campo devido à resistência dos proprietários em cumprir o


estabelecido pela legislação agrária. Os camponeses e apoiadores da causa redimensionam a
legislação agrária para questionarem tanto as relações de trabalho no campo quanto garantir o
acesso à terra. Portanto, se, por um lado, esse instrumento (o Estatuto da Terra) foi pensado
pelos militares para conter a manifestação dos camponeses e favorecer as classes dominantes
do campo, por outro, este também foi (res)significado e (re)apropriado pelo advogado dos
camponeses de Japuara, Lindolfo Cordeiro, para garantir o direito de ocupação coletiva e
imemorial da terra. De tal modo que o Estatuto da Terra também foi utilizado para limitar o
poder exercido pelos proprietários de terra e proteger os camponeses da dominação arbitrária
exercida por estes no interior dessas fazendas. Portanto, o próprio Estatuto da Terra, de certo
modo, também cerceou o poder desmedido dos proprietários de terra, já que, em tese, estes
também tinham de se submeter ao que era estabelecido pela legislação agrária e, em certa
medida, tal lei também assegurou direitos aos camponeses que trabalhavam sob o sistema de
parceria ou que exerciam posse temporária nas propriedades rurais ao regulamentar tais relações
de trabalho e de ocupação da terra.
É importante destacar que, de acordo com Garcia Júnior (1989, p. 82), a aprovação
do Estatuto do Trabalhador Rural, em 1963, e do Estatuto da Terra, em 1964, tornou possível
aos camponeses recorrer à Justiça para cobrar seus direitos na esfera jurídica, tais como receber
indenizações por benfeitorias e evitar o despejo sem qualquer ressarcimento monetário pelos
anos de trabalho nas fazendas, como ocorria anteriormente antes da aprovação de tais
legislações. Do mesmo modo, segundo o autor, com a regulação das relações de parceria, posse
temporária da terra e garantia legal de cobranças de indenizações pelo Estatuto da Terra,
tornava-se possível aos camponeses, em especial àqueles em condição de maior vulnerabilidade
social, como os camponeses-moradores, questionarem os “relacionamentos desfavoráveis” com
os proprietários de terra mesmo durante o período autoritário: “[...] tornava-se possível ir à
justiça para impedir o patrão de expulsar o morador sem indenização ou obter compensações
monetárias no momento da dispensas” (GARCIA JÚNIOR, 1989, p. 82).
Assim, a própria lei é perpassada por disputas, além de ser um modo de
compreender os conflitos por terra, momento em que camponeses e proprietários contrapõem
distintas concepções sobre a propriedade da terra: “Afirmar que a lei tem uma história significa
sustentar que ela tem uma relação estreita com os conflitos pela posse da terra. Por isto mesmo,
é preciso analisar historicamente e sob vários ângulos possíveis” (MOTTA, 1996, p. 18). Pode-
se pensar a utilização da legislação agrária como uma tática de mobilização, um instrumento
de resistência possível em um contexto marcado pela repressão aos camponeses:
70

Um dos componentes do projeto modernizante do governo militar, mas explicitando


constantemente sua preocupação com as tensões sociais, o Estatuto da Terra acabou
por impor aos trabalhadores rurais um determinado campo de luta pela reforma
agrária. O questionamento de seus fundamentos só apareceria com vigor quase vinte
anos depois, em uma conjuntura bastante distinta. No momento de sua aprovação
representou uma esperança e um patamar possível para reivindicações.
(MEDEIROS, 1989, p. 86. Grifos nossos)

A utilização do Estatuto da Terra pelos advogados dos camponeses é a forma que


estes encontraram para se mobilizar dentro de um campo de visão do “inimigo”, com os meios
por ele mesmo fornecidos e evitarem de serem acusados de subversão. Portanto, a cobrança da
legislação agrária foi uma tática adotada pelo movimento sindical camponês durante a ditadura
civil-militar para manter-se em atividade:

A tática não tem por lugar senão o do outro. E por isso deve jogar com o terreno que
lhe é imposto tal como o organiza a lei de uma força estranha. Não tem meios para se
manter em si mesma, à distância, numa posição recuada, de previsão e de convocação
própria: a tática é movimento "dentro do campo de visão do inimigo", como dizia von
Büllow, e no espaço por ele controlado (CERTEAU, 1998, p. 100).

Essa entrada dos moradores de Japuara na disputa judicial com o proprietário,


evidencia ainda a capacidade de mobilização dos camponeses dentro da própria esfera legal na
defesa dos seus direitos e na garantia da permanência na terra ocupada coletivamente. Assim, eles
passam a fazer parte deste “jogo de poder” dentro da esfera jurídica, utilizando para isto o Estatuto
da Terra. Como nos lembra Motta (1996), os sem-terra de outrora também aprenderam a se
mobilizar utilizando legislação agrária a seu favor, isto ainda no século XIX, cobrando o que era
estabelecido pela Lei de Terras:

Assim, não são apenas os pobres de hoje que aprenderam a lidar com o emaranhado
de leis, mas os pequenos posseiros, agregados e arrendatários de outrora – ou para
usar uma terminologia atual os sem terra de ontem já haviam aprendido a defender
legal ou juridicamente seus direitos à terra ocupada. Assim, os conflitos de terra no
Brasil foram e são permeados por lutas diversas: pela história das ocupações, pela
interpretação das normas legais, pelo direito a terra ocupada e muito mais (MOTTA,
1996, p. 19).

Em vista disso, utilizar a Justiça e a Lei, como campo de reivindicação por direitos e
na garantia da ocupação coletiva da terra, não foi um elemento inaugurado com os sindicatos dos
trabalhadores rurais, durante a ditadura civil-militar. De acordo com Motta, os camponeses já se
mobilizavam desde o século XIX, utilizando o campo legal como espaço de reivindicação pela
terra; no caso, utilizavam-se, principalmente, da Lei de Terras de 1850. Na interpretação de
muitos autores clássicos, segundo Motta, a Lei de Terras teria consagrado a propriedade privada
71

da terra e assegurado direitos somente aos grandes proprietários de terra. Assim, a autora os
contrapõe e critica os que defenderam que esta lei se tornou apenas uma “expressão jurídica da
classe dominante” (1996, p. 14) e propõe que seja compreendida levando em consideração as
concepções conflitantes entre as classes sobre esta lei, inclusive, como os posseiros também a
mobilizaram na defesa dos seus interesses e possuíam uma interpretação distinta das classes
dominantes sobre a Lei de Terras. A abordagem que Motta propõe se aproxima da defendida por
Thompson, ao reafirmar que uma lei não pode ser entendida apenas como uma expressão do
interesse das classes dominantes. É preciso considerar como as diferentes concepções sobre uma
mesma legislação podem abrir um espaço de conflito e também como os “destituídos de poder”
(MOTTA, 1996), foram-se apropriando do campo legal como um espaço de reivindicação. As
próprias ligas camponesas travaram seus embates com os proprietários de terra, principalmente,
dentro do campo legal utilizando para isto, como embasamento jurídico, o Código de Processo
Civil de 1939:

Na história brasileira, as Ligas Camponesas firmaram uma imagem de radicalidade e


de ação fora dos limites institucionais. No entanto, grande parte de sua trajetória foi
marcada pela defesa dos trabalhadores na justiça, usando o instrumental legal
existente. Isso não as impedia de romper com uma determinada ordem, quando
levavam os tradicionais senhores aos tribunais ou transformavam as praças em locais
de suas manifestações. E somente no seu período final que as Ligas partiram para
ações do tipo ocupações de terra, em Pernambuco e na Paraíba (MEDEIROS, 1989,
p. 79).

Destarte, historicamente os camponeses têm utilizado o campo jurídico na


reivindicação pela posse da terra e cobrado direitos seja recorrendo à Lei de Terras (1850); ao
Código de Processo Civil (1939); ao Estatuto do Trabalhador Rural (1963) ou ao Estatuto da
Terra (1964).74 Isto não significa afirmar que utilizar o espaço jurídico, enquanto meio de
reivindicação por direitos, não rompesse com uma ordem previamente estabelecida, como
destacado por Medeiros (1989). Os proprietários, inclusive, reagiam com violência aos
camponeses que entravam em litígio com eles. Entrar em uma disputa jurídica com proprietários
já trazia consigo certa “radicalização” ao conflito. Quando os camponeses acionavam a esfera
legal na defesa dos seus interesses e confrontavam os proprietários de terra, estes passavam a

74
Huizer observa que os camponeses tendem a devotar um grande respeito pela ordem e lei e muitas mobilizações
camponesas iniciaram com algum tipo de cobrança legal, por isso são acusados de serem “legalistas”. O autor
pondera essa forte necessidade dos camponeses de lutarem pela efetivação da legislação tem relação com o fato
dos governos não desejarem ou terem dificuldades em aplicar as legislações existentes quando estas protegem
mais os camponeses do que os proprietários de terra. Em decorrência disso, a cobrança pela efetivação da
legislação pode adquirir radicalidade: “[...] resulta un estímulo vigorosamente radicalizador en las zonas rurales”
(1974, p. 262).
72

agir de modo violento com os camponeses que permaneciam residindo e cultivando nas terras
que eram objeto de litígio. O fato de os advogados conseguirem manter os camponeses na terra
era um elemento que, por si só, de acordo com Julião, já radicalizava o conflito, pois os
proprietários percebiam isto como uma afronta, um questionamento de sua autoridade
tradicional:

Sabendo de antemão que a luta judiciária duraria o prazo mínimo de dois anos, por
causa das audiências sujeitas a adiamento em virtude de interposição dos recursos,
aconselhávamos o rendeiro a plantar as lavouras necessárias à sua subsistência, como
a mandioca, o milho, o feijão e outras de ciclo vegetativo mais curto. Esse fato, por si
só, concorria para radicalizar a luta. É que o proprietário não se conformava em ter as
terras em litígio cultivadas pelo rendeiro (JULIÃO, 2013, p. 142).

A entrada dos moradores de Japuara na disputa judicial pode ser apontado como
um fator crucial para o desencadeamento de conflitos entre os moradores e César Campos
dentro da esfera cotidiana, com visitas intimidatórias aos camponeses e comprometimento da
permanência dos ocupantes dentro da propriedade, ameaças que muito possivelmente buscavam
inibir que as ações judiciais fossem levadas adiante. Com o envolvimento da Fetraece no
conflito, essas intimidações são intensificadas:

Após o litígio, Pio Nogueira foi instruído a procurar os direitos através da Federação
dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Ceará (Fetraece), pois o caso poderia
revidar com um novo requerimento e pegar a todos desprevenidos, deixando-os em
maus lençóis.
A notícia vazou e novas pressões começaram a surgir. A mando de Júlio César
Campos, seus homens, prestadores de serviços, cometiam os piores absurdos. Durante
a noite queimavam cercas, soltavam animais para que destruíssem as roças,
principalmente campos de algodão (BARROS, 2013, p. 59).

A partir do momento em que essa entidade de representação sindical se envolve no


conflito, o que era circunscrito ao âmbito local de um litígio entre o proprietário e moradores
ganha novas dimensões. Essa participação da Fetraece no conflito de Japuara significou o
rompimento de relações tradicionais estabelecidas no âmbito do poder local dos proprietários
de terra:

De forma explícita, sem subterfúgios, estavam sendo levadas ao conhecimento do


senhor práticas que sinalizam uma ruptura paternalista e de compadrio que
cimentavam as relações de exploração. Contratar um advogado era uma forma de
dizer ao senhor que a relação de direitos e deveres entre os donos da terra e os
trabalhadores não seria mais estabelecida apenas verbalmente ou por meio da política
do que eram considerados “pequenos favores” (MONTENEGRO, 2004, p. 395)

A intensificação da violência quando os camponeses entravam em disputas


jurídicas com os proprietários precisa ser objeto de reflexão. Uma primeira questão levantada
73

pelos autores, como visto, diz respeito a uma afronta à autoridade tradicional que essas disputas
jurídicas com os proprietários traziam à tona. Era o momento em que se rompiam relações
assentadas no paternalismo e se desgastava a imagem do “homem bom que dá a terra para
plantar”75 perante os camponeses. Como levantado por Julião (2013), depois que os camponeses
entravam em disputa na esfera legal com os proprietários, o conflito adquiria certa
“radicalidade”, já que os camponeses permaneciam na terra sem o consentimento do
proprietário. Assim, as vitórias dos advogados dos camponeses nos tribunais não significavam
uma acomodação do conflito. Pelo contrário, poderiam intensificar as situações conflitivas e,
não raro, eram acompanhadas com atitudes violentas por parte dos proprietários.
No caso de Japuara, essas intimidações também foram intensificadas, seja com o
proprietário ordenando para que se apreendessem animais de criação dos moradores, destruindo
cercas, queimando roçados, prendendo moradores que utilizavam o açude da propriedade (haja
vista que César Campos proibira os moradores de pescarem no açude, mediante o uso tanto de
violência privada (milícias) quanto pública (polícia local)). Assim a própria polícia passa a ser
um elemento atuante no conflito, cometendo violência contra os moradores e servindo enquanto
instrumento de defesa privado dos interesses do fazendeiro. Pio Nogueira chegou a ser preso
pela polícia local antes mesmo dos confrontos e ficou 56 horas detido sem qualquer
justificativa: “Que duas semanas após o depoente vindo a Canindé fazer compras recebeu voz
de prisão do Maj. ONOFRE que havia chegado naquela semana a Canindé como delegado de
polícia, que o depoente indagou o motivo da prisão e o Maj. ONOFRE disse que não
interessava”.76 O conflito, então, torna-se um caso de polícia e evidencia uma histórica
articulação entre Estado e latifúndio, “agentes privados e públicos na efetivação da violência”
(MAIA, 2018, p. 408). Do mesmo modo, são perceptíveis as diferentes estratégias de
intimidação aos moradores, utilizadas por César Campos.
Um elemento que aparece no relato dos moradores, são as violências contra os
animais de criação. Não custa recordar que o proprietário proibira os moradores de Japuara de
criarem animais. De acordo com o sr. Luzardo, os animais de Pio chegaram a ser apreendidos
por ordens do proprietário e só foram devolvidos ao seu pai, quando já se encontravam bastante

75
De acordo com Barreira (1979, p. 152), muitos moradores-parceiros construíam uma certa imagem idílica dos
proprietários de terra, já que eram estes que forneciam a casa de morada e terra de trabalho. Portanto, as relações
entre moradores e proprietários era perpassada por paternalismo e não se restringiam a ser mera relações
contratuais de trabalho.
76
Depoimento de Pio Nogueira à Justiça Militar, prestado em 1974. O depoimento do camponês foi
disponibilizado na página do Brasil Nunca Mais. Ministério Público Federal/BNM 082/Ação Penal 40/72.
Disponível em: http://bnmdigital.mpf.mp.br/pt-br/. Acesso em: 7 ago. 2020.
74

debilitados, e boa parte da criação não escapou em decorrência dos maus tratos infligidos aos
animais:
Papai, um dia, tinha umas cinquenta... sessenta cabeças de cabra. Aí eles pegaram,
botaram em cima de uma caçamba e levaram. Chegaram lá no curral onde o gado
ficava, o matadouro. Aí botava lá no curral do matadouro e realmente servia de
matadouro mesmo, porque o meu pai tinha umas 60 cabeça de cabra e quando
disseram que era pra ele ir buscar ele disse [Pio]: “Não vou não. Vou não e a Justiça
tá com tudo isso aí no caderno”. Aí eles vinham deixar, soltavam nas estradas e elas
vinham bater na casa dele, dessas aí talvez tenham escapado umas 10 ou 12.77

O próprio Pio Nogueira denunciou tal situação à Justiça Militar, quando prestou
depoimento sobre o conflito. Ele enfatizou que os animais foram levados por Cidio Martins,
delegado morto nos confrontos, isto sinaliza o quanto a polícia já era parte atuante nas
intimidações aos moradores e colaborava com o proprietário: “QUE SIDIO MARTINS,
delegado substituto, veio ao sítio e apreendeu a criação do depoente, com 26 cabeças,
conduzindo a criação numa caçamba atrelada a um trator de propriedade de César Campos, até
Canindé, que treze dias após restituíram a criação em péssimo estado”.78 O sr. Alfredo também
fez questão de enfatizar, em seu relato, a violência contra os animais de Pio: “Levaram as
criação do finado Pio, botaram no curral da delegacia quando tava morrendo, o advogado foi lá
e eles mandaram deixar. Rebolava as bichinhas lá de cima do caminhão”.79
É possível perceber a dimensão assumida pela violência em um conflito de terra,
violência não necessariamente traduzida em punições físicas impostas aos moradores, mas
também em intimidações que até hoje provocam um sentimento de injustiça nos camponeses
de Japuara.
Outra marca dos anos de disputas judiciais, que é dimensionado pelos moradores
nos dias de hoje como atitudes de extrema violência, foi a proibição estabelecida por César
Campos de cultivarem os seus roçados na propriedade. Assim, eles recordam as muitas
dificuldades passadas durante o período de mais de dois anos de disputas jurídicas com César
Campos, inclusive, porque todos eles foram impelidos à fome pelo proprietário para que
desistissem de lutar por seus direitos.
Segundo o sr. Jacó, esses dois anos de disputas judiciais com César Campos foram
marcados pela fome, o “tempo de prisão” em que os moradores foram proibidos de plantar pelo

77
Barros, Luzardo, Entrevista, 5 de outubro de 2020, Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda Timbó Mendes. Acervo
pessoal.
78
Depoimento de Pio Nogueira prestado à Justiça Militar, em 1974. Op. cit.
79
FERNANDES, Alfredo Ramos. Entrevista, 23 de setembro de 2020. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda
Mendes. Acervo pessoal.
75

novo proprietário. Os moradores, inclusive, tiveram de conseguir roçados em propriedades


vizinhas para conseguirem sobreviver:

Aí na questão, na questão. Nós passemos dois anos sem plantar aqui na Japuara um
acorde de cabaça proibido por César Campos, tem homem que tá vivo...vai no Lauro
Pelado pra testemunha. Aqui duma família. Dois anos sem plantar um acorde de
cabaça. Tanto fazia Pio, como todos os morador. Seu Pio pra viver, pra criar doze
filhos, que era treze, mas um é sobrinho meu. Pra criar doze filhos, precisou arranjar
um roçadinho no Pedro Pelado ali em cima, um de setenta litros e outro de sessenta.
Pio Nogueira Barros, nas eras de 70 pra 71. A senhora pode anotar isso aí que os
homens tão vivo ainda a família de Pelado, gravar também pode gravar.80

A moradora de Japuara, dona Maria Paes Fernandes (esposa do sr. Jacó), também
destacou, em seu depoimento, as dificuldades vivenciadas durante o período em que os
camponeses foram proibidos de cultivar seus roçados na propriedade:

Vamos criar coragem...vamos trabalhar. Como é que trabalha? Inverno tinha, mas não
tinha serviço. Não tinha serviço pros homens e ninguém podia plantar como ele (sr.
Jacó) disse. Não podia plantar. Foi dois anos a gente vendo a água no chão cair e a
gente não plantar. Foi dois anos sem plantar coisa nenhuma, minha filha. Todo mundo
encostado. A gente via a água caindo no chão e não poder plantar nada. E a fome?
Rum, a fome é o que é. Eu sei que eu não queria ver meus filhos com fome, hora
dessas eu vinha chegando com um saco de mandioca pra relar no ralo pra poder dar
de comer a essas crianças. E nisso, minha filha, passei o ano todinho relando mandioca
e pedindo força a Deus todo tempo que eu tivesse coragem pra eu relar meno a
mandioca pros meus filhos comer. Eu tinha duas...Seu Pio deu umas duas cabrinhas
ao Jacó que eles eram muito amigos e onde ele tiver, ele tá ouvindo. Eu sei que deu
essas cabras dois litros de leite e eu fazia os beijuzinho né? E os bichinhos comia com
leite. Isso era pro almoço e janta.81

Os relatos dos moradores evidenciam essas distintas dimensões da violência: a


fome, a destruição dos frutos do trabalho como as queimas dos roçados, o sequestro dos animais
de criação, as prisões, o impedimento de cultivarem os seus roçados, de utilizarem o açude,
tudo isso ocasionou o comprometimento da subsistência das famílias durante este período e
ocasionou profundo sofrimento. O relatos desses intimidações foram acompanhados por um
sentimento de injustiça e de denúncia que permanece latente mesmo nos dias atuais. Em
determinados momentos, os moradores se emocionaram, a exemplo do sr. Jacó ao relatar tais
situações, principalmente, em relação à fome. Do mesmo modo, dona Maria traz, em seu
depoimento, uma perspectiva do próprio sofrimento infligido às mulheres ao se depararem com
dificuldades para alimentar os seus filhos pequenos. Assim, a chegada do inverno, momento

80
FERNANDES, Jacó Ramos. Entrevista, 7 de janeiro de 2021. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda Mendes.
Acervo pessoal.
81
FERNANDES, Maria Paes. Entrevista, 7 de janeiro de 2021. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda Mendes.
Acervo pessoal.
76

marcado pelo trabalho árduo dos camponeses, adquiriu outra conotação, já que eles foram
impedidos de cultivarem a terra para assegurarem a alimentação durante o ano. Segundo Moore
Júnior (1987), a privação dos frutos do trabalho árduo, a fome e a violência física provocam
dor nos seres humanos e ninguém almeja “o sofrimento como fim” (MOORE JÚNIOR, 1987,
p. 623).
Assim, é preciso considerar esses relatos como testemunhas do sofrimento
vivenciados pelos moradores de Japuara. Esses narradores impõem aos seus relatos um caráter
de denúncia do que eles passaram durante o processo de disputa judicial com o proprietário e
também nos ajudam a entender o que os moradores definem como violência.
Evidencia-se o quanto entrar em uma disputa judicial com esses fazendeiros, ou
melhor, entrar em uma “questão de terra” como bem definiu o sr. Jacó, trazia consigo muitas
dificuldades e desafios a serem enfrentados pelos camponeses, principalmente, quando estes
residiam nessas fazendas. A dominação, como relatada pelos camponeses, era acompanhada de
uma intensificação da violência por parte dos proprietários. Do mesmo modo, o conflito de
Japuara evidencia as diversas estratégias para forçar a retirada dos camponeses da terra,
principalmente, quando as disputas se prolongavam, fazendo com que a tensão entre os
moradores e César Campos fosse se tornando crescente.
Segundo Garcia Júnior (1989), a violência era um elemento constituidor da relação
de dependência entre proprietários e camponeses, sendo utilizada como instrumento de
manutenção de poder por parte desses patrões, que se valiam de milícias privadas para se
fazerem respeitar dentro e fora do seu âmbito de domínio (GARCIA JÚNIOR, 1989, p. 47). Em
outros termos, para o autor, os camponeses moradores eram constantemente submetidos aos
arbítrios dos proprietários quando faziam algo que desagradasse ou questionasse esse poder
pessoal, e a resposta mais comum dos fazendeiros era a violência contra os camponeses. Do
mesmo modo, era usual os proprietários recorrerem à violência contra os moradores para
preservar a sua autoridade patronal. Assim, faziam também uso da violência como instrumento
para pôr fim aos processos de disputas judiciais. De acordo com Garcia Júnior, os proprietários
costumavam ameaçar os trabalhadores e as suas testemunhas, além de atentar contra suas
moradias e violar os animais de criação dos moradores (1989, p. 80-81). Tudo isso para que os
camponeses desistissem de levar as reivindicações adiante, inclusive, para evitar que outros
camponeses também entrassem em tais disputas jurídicas com os fazendeiros. Assim, para o
autor, são intimidações que visavam também a recuperar a dominação perdida, principalmente,
quando estes proprietários tinham sua imagem combalida em decorrência das disputas jurídicas
com os trabalhadores de suas fazendas.
77

Conforme visto, essas intimidações eram vistas pelos camponeses com indignação
e provocavam um sentimento de injustiça. No caso de Japuara, essas ameaças eram
direcionadas à liderança dos moradores, mas também aos demais camponeses com o propósito
de inibir e desarticular a mobilização, isto é, fazer com que os camponeses desistissem de tais
disputas judiciais com os proprietários ou mesmo que abandonassem a propriedade, já que a
proibição de cultivar os roçados na fazenda comprometia a sobrevivência e a permanência dos
camponeses nesses locais.
Destaque-se que não era a primeira vez que César Campos se envolvia em conflitos
de terra e se incomodava com a organização dos camponeses, agindo de modo violento com
moradores de suas propriedades quando estes questionavam o seu poder pessoal. Faz-se
imprescindível, portanto, discutir o processo de sindicalização dos camponeses de Japuara, em
um contexto autoritário, e as implicações do envolvimento de uma entidade de representação
sindical no conflito.

2.3 A organização dos moradores e o processo de sindicalização rural

A ameaça de despejo dos moradores de Japuara por César Campos transformou um


litígio circunscrito às duas possíveis partes interessadas na propriedade em um dissídio coletivo.
Desse modo, pretende-se discutir aqui a organização dos moradores-parceiros de Japuara e o
papel exercido pelos “agentes externos” ao litígio ou também denominados “novos
mediadores” de conflitos de terra (BARREIRA, 1992, p.79), caso do Sindicato dos
Trabalhadores Rurais de Canindé e da Fetraece no dissídio.
Durante a emergência do conflito de Japuara, essas entidades de representação dos
trabalhadores rurais a que nos referimos como “agentes externos” ou “mediadores” de conflito
como os Sindicatos dos Trabalhadores Rurais e a própria Fetraece encontravam-se sob
vigilância do Estado e com atuações limitadas. Segundo Albuquerque (1991), somente os
sindicatos rurais ligados à Igreja Católica permaneceram em atuação ativa no Ceará após o
golpe militar, já que os sindicatos ligados ao PCB foram fechados ou sofreram intervenção: “A
partir desse momento, apenas os sindicatos ligados à Igreja permaneceram. Os demais
desapareceram ou foram nomeados interventores da confiança do governo recém-instalado.
Com isso, os sindicatos livres sofreram um refluxo em todo o Estado do Ceará [...]”
(ALBUQUERQUE, 1991 p. 108).
Apesar do refluxo que o sindicalismo rural sofre no Ceará com o golpe militar, ao que
tudo indica, no final dos anos 1960, o movimento já passava por uma (re)organização em torno da
78

criação de novos STRs. O líder sindical João Felismino enfatiza, em seu relato, o retorno vagaroso
do movimento sindical no Ceará devido justamente à repressão que se abate sobre os sindicatos
rurais de imediato após o golpe militar. Assim, de acordo com Felismino, o retorno do movimento
sindical camponês ocorre mais aliado às políticas de Estado e com características, segundo ele,
mais assistencialistas do que os sindicatos rurais do pré-golpe militar. No final da década de 1960,
salienta-se a (re)organização da Fetraece e da propaganda sindical, sob nova roupagem, devido
ao temor de uma possível acusação de subversão. Não se podia mais mencionar a reivindicação
por Reforma Agrária:

A retomada do movimento sindical depois do golpe deu-se vagarosamente, Veja bem,


no ano de 1964, só foi fundado um sindicato no Estado do Ceará. Já no final do ano, foi
fundado o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Mauriti. Mas esse já fundado com
uma característica bem diferente daqueles outros, já casado (com o governo) assim pra
seguir o caminho assistencialista, tá bem diferente daqueles outros sindicatos que
haviam sido fundados antes das intervenções.
Então o movimento sindical prosseguiu lentamente, se reorganizando, a própria
Federação se reorganizou em 1966, aí ele teve que eleger uma nova diretoria que aquela
acabou, desapareceu. É a partir de 1967 com novas fundações de sindicatos em 66 e
outros em 67, então começou a propaganda do movimento sindical, mas aí já com outros
fins diferente daquela luta que tava sendo encampada pelos dirigentes sindicais antes do
golpe militar. Quer dizer, primeiro não se pode falar em reforma agrária. Reforma
agrária até 1970 ninguém podia falar em reforma que era subversão.82

O estudo dos historiadores Linhares e Silva (1999) defende que, a partir de 1966,
com relação aos padrões de organização do espaço agrário, incidirá a chamada “modernização
autoritária”, definida pelos autores pela inserção de mecanização técnica pautada numa
reorganização neoliberal da economia. Esse momento é definido, no estudo citado, como de
incentivo à industrialização do campo e de mecanismos das chamadas políticas de “bem-estar
social” para os trabalhadores rurais, como o Funrural.83
De acordo com Aldiva Diniz (2008), o retorno do movimento sindical ocorre no final da
década de 1960 e início da década de 1970, aliado às políticas assistencialistas promovidas pelo
Estado, como o próprio Funrural, que incentiva a criação de novos STRs:

No final dos anos de 1960 e início da década de 1970, iniciou-se no Ceará um novo
período de expansão dos sindicatos rurais. Talvez esta expansão seja explicada pela
criação do FUNRURAL, em 1967, que assegurava a assistência médico-social aos

82
Entrevista concedida pelo sindicalista João Felismino de Souza, ex-presidente da Fetraece (1977 a 1980) à
pesquisadora Glória Ochoa, realizada em 15/08/83, p. 8. Documento sob guarda do Nudoc-UFC.
83
Em 1963, foi sancionada a Lei nº 4.214, que aprovou o Estatuto do Trabalhador Rural e criou o Fundo de
Assistência e Previdência do Trabalhador Rural – Funrural. Contudo, de acordo com Ferrante (1975), com relação
à questão previdenciária, o Estatuto do Trabalhador Rural não conseguiu aplicações concretas. Segundo a autora,
somente com a Lei Complementar de 25 de maio de 1971, que institui o Programa de Assistência ao Trabalhador
Rural – Prorural, é que, de fato, esse sistema entra em vigor. O Prorural, segundo a autora, previa aposentadoria
por velhice, por invalidez, pensão, auxílio funeral, além de serviços voltados à saúde e estabelecia o Funrural como
órgão gestor.
79

trabalhadores rurais. Através da instituição desse órgão, o governo em 1970, delega


aos sindicatos de Trabalhadores Rurais a função de administrar através de convênios,
a previdência social no campo (DINIZ, 2008, p. 109).

Parente (1985) afirma que, de 1968 a 1972, foram fundadas mais 71 organizações
sindicais no Ceará, um crescimento súbito de sindicatos rurais atribuído pela autora ao Funrural,
que, ainda segundo ela, transformou os sindicatos em uma “espécie de agência governamental
para prestação de serviços assistenciais e de previdência aos beneficiados, o Estado recria uma
nova forma de intervenção freando a capacidade reivindicativa destas organizações”
(PARENTE, 1985, p. 102). Para a autora, o sindicalismo rural, no regime autoritário, sobrepõe
as políticas assistenciais ao interesse de classe, e isto explicaria o empenho dos proprietários
rurais e políticos na criação dos sindicatos rurais. Por consequência, os sindicatos rurais teriam
sido convertidos em “cabides de emprego”, assentados na política de favores e clientelismo:
“Para os políticos as novas funções atribuídas aos sindicatos representavam oportunidades de
emprego que deveriam ser ocupados pelos seus “afilhados”, donde a importância de influir na
criação desses órgãos e “manipulá-los politicamente” (PARENTE, 1985, p. 102). Portanto, os
sindicatos rurais, durante o regime autoritário, na visão da autora, com o aparelhamento do
Estado, contribuíram para fortalecer as relações tradicionais no campo e não para rompê-las.
Para Alencar et al. (2013), nem todos os sindicatos dos trabalhadores rurais teriam sido
“cooptados” no processo de (re)organização pelo qual o movimento sindical passou no Ceará
depois do golpe militar. Aliás, alguns sindicatos rurais teriam tido uma participação ativa nos
conflitos com proprietários de terra, ainda durante a década de 1970, mesmo sendo um período
marcado pela repressão e pela sobreposição das pautas assistenciais. Entre estes que se mantiveram
ativos, encontra-se o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Canindé:

No caso dos sindicatos que não abandonaram a luta por terra e por reforma agrária,
então enfrentaram e resistiram as determinações da ditadura militar resultou em
conflitos violentos, nos quais trabalhadores e policiais foram mortos. Foi o caso da
Fazenda Japuara, 1971, município de Canindé, envolvendo 60 famílias; Fazenda
Jardim, 1979, município de Aratuba, 5 famílias, e Monte Castelo, 1978, município de
Quixadá, 35 famílias (ALENCAR et al., 2013, p. 41).

Matos (2017) também defende a relevância do papel exercido pelos sindicatos rurais
nos conflitos com os proprietários de terra durante a década de 1970. Mesmo reconhecendo que, de
fato, durante o regime militar, muitos sindicatos possuíam um caráter mais assistencialista e
abandonaram as reivindicações de outrora ensejadas pelo movimento antes do período autoritário,
como a cobrança por direitos e reivindicação por reforma agrária. A autora destaca a mediação do
Sindicato Rural de Canindé no conflito da Fazenda Japuara:
80

É no início da década de 1970 que se intensificou no Ceará uma série de conflitos por
terra e garantia de direitos trabalhistas cujos envolvidos são os trabalhadores rurais
por intermédio dos sindicatos e os grandes proprietários de terra. Uma das lutas
mais emblemáticas e noticiadas desse período foi a da Fazenda Japuara, no município
de Canindé que envolveu os moradores do local e o dono da terra: o comerciante César
Campos [...] (MATOS, 2017, p. 168. Grifo nosso)

Todavia, o Sindicato Rural de Canindé, para alguns estudiosos, não teria tido uma
relevância no conflito de Japuara, tendo a Fetraece sim exercido papel central no processo de
organização dos moradores e na mediação do dissídio. Para esses autores, o Sindicato Rural de
Canindé estaria com uma atuação mais voltada às políticas assistenciais e não possuía um
departamento jurídico bem estruturado para prestar assistência aos agricultores envolvidos em
conflitos com proprietários:

Em Japuara os trabalhadores rurais não tiveram tanto apoio do STR de Canindé, mas
sim da Federação dos Trabalhadores Rurais do Ceará. Isso ocorreu porque, conforme
sindicalistas da época, este cuidava mais de problemas previdenciários e direitos
trabalhistas nas comunidades rurais, reconhecendo que o departamento jurídico não
estava ainda bem estruturado para receber causas dessa natureza (LIMA; SAMPAIO,
2006, p. 9).

O próprio presidente do Sindicato Rural de Canindé, Francisco Almeida, alegou,


ainda à época do conflito de Japuara, que a Federação dos Trabalhadores, de fato, teria exercido
um papel central na mediação do dissídio, já que o STR de Canindé estava mais alinhado com
outras questões, mais “assistenciais”:

Para o agricultor José Ferreira de Almeida, o Sindicato sob sua direção tem cuidado
especialmente dos problemas sanitários e educacionais dos camponeses, muito
embora também deva prestar auxílio também nos casos dessa natureza. Por isto
mesmo, ainda não tomou qualquer posição com relação ao caso de Japuara, mesmo
por que êste está entregue à Federação dos Trabalhadores na Agricultura. 84

De acordo com o sr. Luzardo, o STR de Canindé não teve atuação tão ativa no
conflito de Japuara, pois, na época, temia sofrer represálias. Em contrapartida, considerou mais
relevante o papel exercido pela Fetraece na mediação do conflito, pois foi por meio desta que
os camponeses de Japuara obtiveram assessoria jurídica. Ressaltou a presença constante de
Lindolfo Cordeiro nas reuniões ocorridas na propriedade:

84
O Jornal Gazeta de Notícias (CE) errou o nome do Presidente do Sindicato Rural de Canindé neste trecho,
tratava-se de Francisco Almeida e não José Ferreira de Almeida, na primeira menção ao sindicalista, a reportagem
transcreveu o nome correto, contudo, no trecho selecionado, ocorreu um erro. Essa entrevista foi concedida depois
do confronto de 2 de janeiro de 1971, portanto, quando o conflito passa a ser notícia nos jornais.
81

Entrevistadora: O sindicato ajudou vocês?


Luzardo: O sindicato não era tão forte não, era fraco. Logo tinha o medo da repressão
dos bandidos, de judiarem com eles por aí nas fazendas. Por isso eu achava eles fraco,
porque eles não tinham moral pra dizer: é assim e vai terminar assim. Aí ficava na
pendência de só eles tem direito né!?
A federação ajudou muito. Porque o advogado vivia direto... quando não era na
federação, era na fazenda orientando o povo. Quando alguém fazia pergunta que não
era cabível ao trabalho dele e ele [Lindolfo Cordeiro] dizia: “Não, não...não é por aí
não, é por aqui”. Aí ia e explicava. Era um advogado de primeira classe mesmo! 85

Segundo Moacir Palmeira (1985), os sindicatos rurais, após o golpe militar, tiveram
de atender às “regras do jogo” impostas pelo regime autoritário. Assim, para o autor, os
sindicatos tiveram de pôr em prática um “legalismo de sobrevivência”. Portanto, passa a ser
uma atuação colada com o estabelecido pela legislação. Os STRs, de acordo com o autor,
recortariam, quando inquiridos a mencionarem sobre os conflitos por terra em sua área, somente
aqueles que pudessem realmente ser enquadrados na legislação trabalhista ou agrária. Assim
sendo, a conjuntura autoritária limitou o envolvimento dos sindicatos rurais em conflitos
agrários, isto é, estes passam a agir com certa “precaução” em atuar como agentes mediadores
ou mesmo a “tomar esses conflitos como seus” (PALMEIRA, 2013, p. 48-49). Todavia, por
mais que o Sindicato Rural de Canindé sobrepusesse, durante o período autoritário, as questões
“assistenciais” e não tivesse força suficiente para mediar um conflito de terra, o STR de Canindé
estava inserido em um “sistema sindical mais amplo”, com representação na esfera estadual
(Fetraece) e nacional (Contag), que também poderiam intervir no conflito de Japuara:

O sindicato por menos atuante que seja, é um corpo estranho que se introduz numa
relação, cuja exclusividade é parte de sua própria natureza. Se a legislação e a própria
justiça podem ser neutralizadas pela função de mediação dos grandes proprietários e
chefes políticos locais, o sindicato é o novo mediador, dificilmente “capturável” pela
sua própria vinculação a um sistema sindical mais amplo, que se introduz nas relações
entre campesinato e o Estado. É a lei do fazendeiro que passa a ser relativizada
(PALMEIRA, 1985, p. 48).

Barros (2013), ex-morador de Japuara, destaca principalmente a ação da Fetraece


na organização dos moradores de Japuara. Inclusive, foi com a interferência da Federação no
conflito que os moradores se vincularam ao Sindicato Rural de Canindé: “O sindicato local
estava ligado à Fetraece. Com a presença do órgão na fazenda os dirigentes instruíram o povo
para que se organizasse, associando-se ao sindicato, de modo que a Federação pudesse atuar
em seu benefício” (2013, p. 60-63). Assim, os moradores passam a se organizar de modo mais
formalizado em torno da sindicalização rural, que passa a ser considerada mais uma estratégia

85
BARROS, Luzardo. Entrevista, 5 de outubro de 2020. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda Mendes. Acervo
pessoal.
82

de enfrentamento ao proprietário. Portanto, os moradores vão se vincular ao STR de Canindé,


depois que a Fetraece passa a atuar de modo ativo no conflito.
O sr. Jacó Ramos trouxe à tona, em seu relato, as represálias por parte do advogado
do proprietário, Barros dos Santos, para que os moradores não se vinculassem ao Sindicato
Rural de Canindé. Apesar de, como enfatizado, a Fetraece ter tido uma participação mais ativa
como mediadora do conflito, o STR de Canindé também se fez presente no conflito, depois que
ocorreu o envolvimento da Fetraece, já que ela aconselhou os moradores de Japuara a se
vincularem ao STR local para que ela pudesse atuar defendendo os camponeses juridicamente.
Para o sr. Jacó, a vinculação ao sindicato rural relaciona-se ao acesso a determinados direitos,
tais como a própria aposentadoria, e evidencia o incômodo gerado ao deputado e advogado
Barros dos Santos, ao se deparar com os moradores de Japuara se organizando para ingressarem
ao STR de Canindé:

Entrevistadora: O senhor é do Sindicato Rural?


Jacó: Eu tenho a minha carteira ali já. Eu não conto tudo porque não dá tempo de
contar, mas vou contar um bocado de coisa do Dr. Barros, Barros dos Santos. Quando
nós tava fazendo as carteiras da aposentadoria, no dito onde o Seu Pio tava num
birosinho (birô) assim pra fazer as carteiras da aposentadoria. Chegou o Barros dos
Santos como eu tô aqui: “Opa, pare isso aí! Não quero isso aqui não!” O Barro dos
Santos.
A minha carteira tava feita já, faltava fazer a dos outros, a carteira da aposentadoria.
Barros dos Santos chegou e proibiu. Aí um veinho chamou para o lado de fora assim,
um moreninho do Xinuaquê (outro munícipio) e disse: “Companheiro, nós tamo aqui
não é por questão de terra”. O Chico Almeida (presidente do Sindicato Rural de
Canindé à época), eu só não vi ele dessa vez agora, mas todo mês eu vejo ele lá no
meu patrão. O Chico Almeida: “Nós tamo aqui não é por questão de terra, nós tamo
aqui em benefício do trabalhador rural, da aposentadoria. Já tinha um bocado de
carteira feita, como a minha que tá ali, tá guardada, do Sindicato Rural que pertence
a aposentaria.86

É importante considerar também como os moradores viram o processo de


sindicalização. No depoimento de Pio Nogueira, prestado à Justiça Militar após os confrontos,
ele ressaltou que, com o início do processo de disputa judicial, o advogado aconselhou que ele
instalasse uma Delegacia Sindical na propriedade: “QUE o Dr. Lindolfo deu entrada nos papeis
para serem encaminhado ao juiz; QUE então o depoente foi aconselhado a conseguir uma
Delegacia do Sindicato Rural em Japuara [...]”.87 Pio também destacou, em seu depoimento, a
exemplo do sr. Jacó, que fazer parte de um sindicato seria um meio de ter acesso a determinados
direitos:

86
FERNANDES, Jacó Ramos. Entrevista, 7 de janeiro de 2021. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda Mendes.
Acervo pessoal.
87
Depoimento de Pio Nogueira à Justiça Militar, prestado em 1974. O depoimento do camponês foi
disponibilizado na página do Brasil Nunca Mais. Ministério Público Federal/BNM 082/Ação Penal 40/72.
Disponível em: http://bnmdigital.mpf.mp.br/pt-br. Acesso em: 7 ago. 2020.
83

QUE o depoente antes procurou saber as “Mercedes” que o tal sindicato traria para o
pessoal; QUE foi explicado pelo então Presidente da Federação que isto
proporcionaria assistência de dentista, para extrair dentes, assistência medica para
operação de hérnia estrangulada, e advogacia para defesa do que fosse do interesse do
trabalhador rural e quanto mais que o depoente procurasse o presidente do sindicato
de Canindé.88

Segundo Garcia Júnior, os camponeses ponderavam algumas questões quando


buscavam os seus direitos, porque isto significava romper com a dependência tradicional com
os proprietários de terra. Então, recorrer a um advogado ou entidade de representação sindical
foi um meio encontrado pelos camponeses para, por meio do texto legal, conhecer os seus
direitos. Assim, os advogados os auxiliavam a avaliar as possíveis vantagens auferidas por meio
da lei, do mesmo modo os custos e riscos envolvidos nos processos jurídicos (GARCIA
JÚNIOR, 1989, p.76). Os camponeses estavam conscientes de que recorrer à justiça rompia
uma relação anterior marcada por laços de dependência e de obediência. Em outros termos,
envolver-se com o sindicato e entrar em disputa com o proprietário possuía os seus riscos que
eram ponderados pelos camponeses. Isto fica evidente no depoimento de Pio Nogueira ao
declarar que buscou previamente esclarecer com a própria Fetraece as vantagens de fazer parte
de um STR e de se tornar um camponês sindicalizado.
Outra questão interessante são os serviços assistenciais oferecidos pelos sindicatos,
como ter acesso ao dentista, assessoria jurídica, serviços médicos em geral, direito a aposentaria
etc. De acordo com Huizer (1976), as organizações camponesas, ofertavam tais serviços
assistenciais como estratégia para barrar o poder exercido por esses proprietários: “Como parte
de este esfuerzo, es muy lógico que una de la primeras cosas que las organizaciones campesinas,
opuestas al tradicional sistema de la hacienda, tratan de organizar para sus membros es la clase
de servicios que a veces los señores proporcionaban a sus campesinos [...]” (HUIZER, 1976, p.
276). O autor cita o caso das ligas camponesas de Pernambuco, que iniciaram a mobilização
justamente oferecendo serviços assistenciais aos camponeses: “[...] em algunos casos se trata
de escuelas, en otros de serviços médicos (las ligas campesinas de Brasil organizaron, siempre
que pudieron serviços médicos para sus membros). Una vez que esos serviços son importante
fuera del monopolio del señor (HUIZER, 1976, p. 276-277). Assim, é preciso levar em
consideração que os sindicatos passam a ocupar um lugar antes pertencente aos proprietários
rurais. Naquele momento, era possível ter acesso a tais serviços mediante a vinculação com o
sindicato e não mais pela mediação dos proprietários rurais, o que reconfigura as relações entre

88
Id., Ibid.
84

os camponeses e esses fazendeiros. Por outro lado, o autor também pondera que isto envolve
algumas desvantagens como o aparelhamento de tais organizações camponesas por aqueles que
controlam tais recursos (HUIZER, 1976, p. 277). De todo modo, é preciso levar em
consideração que a oferta de tais serviços assistenciais aos camponeses faz com que estes
ponderem os riscos e custos de se vincularem aos STRs e como esta vinculação significava, não
raro, ter acesso a direitos até então negados a eles, como serviços médicos, acesso à escola e
assistência jurídica. Por isso, o sr. Jacó denomina a carteira de membro do STRs de Canindé
como a “carteira da aposentaria”, porque, para ele, foi por meio da vinculação a tal entidade
que os camponeses tiveram acesso a esse direito. Isto também é perpassado, em certa medida,
por um sentimento de gratidão dos camponeses voltado agora às entidades sindicais e não mais
aos proprietários de terra.
Para o sr. Alfredo, a vinculação ao STR de Canindé era um meio de ter acesso à
Federação dos Trabalhadores Rurais: “Ai se não fosse o Sindicato, porque o sindicato tinha a
Federação dos Trabalhador né!?”.89 O camponês fez ainda questão de sublinhar que os
moradores se inseriram nessa estrutura sindical que envolvia diferentes instâncias de
representação e formaram um sindicato próprio: “Nós fizemos o sindicato, nós tinha o sindicato,
nós tinha a Federação dos Trabalhador que ajudava nós também”.90 Desse modo, ele percebe
toda uma estrutura sindical envolvida na organização dos moradores, ele relata que até hoje faz
questão de pagar a mensalidade do STR de Canindé, por ter considerado relevante o papel
exercido pela entidade no conflito:

Eu ainda pago o Sindicato, O Sindicato é descontado do meu dinheiro ainda, mandei


fastar não. O gerente do banco do Brasil, disse que ia mandar uma pessoa mais eu no
INSS, mandar o rapaz lá e de lá nós ia pro Sindicato. Eu escutei a história dele bem e
disse: “Doutor, vamos deixar pra lá, quanto eu for vivo e ganhar essa mensalidade do
governo, eu pago... deixe lá.” Mas por que rapaz? Sua idade não precisa pagar mais
não. Não, deixe lá. Descontado lá. Tem a minha carteira tá... até por aqui, tem uma
outra, foi feita por lá e não fui buscar... não fui mais pra reunião, fiquei ruim da vista.
Contei essa história lá, danou-se pra achar graça.91

Com o envolvimento da Fetraece no dissídio, a entidade passa a realizar encontros


na fazenda, e essas reuniões passam a atrair outros camponeses da região. Assim, Japuara
tornou-se um local de concentração de camponeses, diga-se de passagem, não diretamente
implicados no conflito com César Campos. As reuniões que ocorriam na propriedade também

89
FERNANDES, Alfredo Ramos. Entrevista, 23 de setembro de 2020. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda
Mendes. Acervo pessoal
90
Id., Ibid.
91
Id., Ibid.
85

contavam com a presença do advogado Lindolfo Cordeiro, que passa a ser parte atuante do
conflito, assim como também eram acompanhadas de perto pelo advogado dos proprietários,
Barros dos Santos. Segundo o sr. Luzardo, Lindolfo Cordeiro era um advogado “experiente nas
leis”, pois conhecia “os novos estatutos” que resguardavam os direitos dos trabalhadores rurais,
diferente de Barros dos Santos, advogado de César Campos, que somente conhecia “os estatutos
velhos”. De modo que, para o sr. Luzardo, Lindolfo Cordeiro apresentava-se um intelectual que
dominava o formalismo jurídico ao conhecer “as novas leis” e utilizá-las na defesa dos
moradores:

Entrevistadora: O senhor sabe onde era a Delegacia Sindical aqui?


Luzardo: Era na casa do meu pai mesmo, era tanto que quando tinha o advogado dele
[César Campos], que era o deputado Barros dos Santos, ele era uma pessoa muito...os
trabalho dele era tudo trabalho de bandido que só dava razão a quem tinha dinheiro,
por isso passava a ser trabalho de bandido. Aí aconteceu que ele vinha pra reuniões
da Japuara, ele tinha o maior medo do Lindolfo, porque o Lindolfo conhecia todo o
sistema de... de mostrar como é que tinha que ser e ele ficava com raiva e o destino
dele era perder o juízo por causa da Delegacia Sindical. Até que uma vez ele chegou,
era 11 horas do dia e eu tava assim no terreiro da casa, aí quando eu cheguei, quando
ele chegou aí ele me chamou. Eu fui lá onde ele tava.
Ele disse [Barro dos Santos]: “O Lindolfo tá aqui na reunião?”.
Digo: [risadas] “Tá não, senhor. Ele ainda vem, mas não veio ainda não”.
[Barro dos Santos]: “Mas enquanto ele ainda não vem, eu vou entrar aqui, não gosto
dele não”. [risadas]
Eu digo: “Pois é, tenha cuidado que o Lindolfo é meio experiente das leis”.
Ele parecia que só conhecia as coisas do Estatuto velho, aí por isso ele vivia com medo
do Lindolfo, se ver eles dois de frente a frente.
Entrevistadora: Toda reunião ele vinha pra cá?
Luzardo: Vinha não, vinha quando sabia que o Lindolfo não tava. Ele ficava
encorajado e vinha, mas no caso ele tinha sempre a suspeita de não estar na reunião
junto com o Lindolfo, porque ele não conhecia as leias novas né!? E só trabalhava
com o sistema de leis velhas.92

Outra questão relevante é a preocupação por parte de Lindolfo Cordeiro de


“socializar o conhecimento jurídico” com os moradores, apresentando a estes os dispositivos
legais que resguardavam os direitos destes, tais como o Estatuto da Terra e o Estatuto do
Trabalhador Rural (TAVARES; QUINTANS, 2018, p. 617). Do mesmo modo, existe uma
preocupação, por parte do advogado, de se dirigir ao local do conflito e se tornar parte atuante.
Assim, enquanto tramitavam as ações judiciais, passam a ser realizadas reuniões em Japuara,
inclusive, com a presença de Lindolfo Cordeiro. Os moradores passam a se munir do que era
estabelecido pela legislação trabalhista e agrária na defesa dos seus direitos. Esse é um elemento
fundamental para entender o papel ativo assumido pelos advogados ligados às entidades
sindicais nos conflitos de terra durante a ditadura civil-militar. Tanto a socialização do

92
BARROS, Luzardo. Entrevista, 5 de outubro de 2020. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda Mendes. Acervo
pessoal.
86

conhecimento jurídico, quanto o deslocamento aos locais dos conflitos colaboravam para a
mobilização de todos dos trabalhadores e para que estes se apropriassem do espaço legal como
um campo de disputa com os proprietários de terra (TAVARES; QUINTANS, 2018, p. 626).
Assim, no relato do sr. Luzardo, evidencia-se o papel ativo exercido por Lindolfo
Cordeiro na socialização do conhecimento jurídico ao discutir com os camponeses estes
“estatutos novos” (Estatuto do Trabalhador Rural e Estatuto da Terra), os quais, naquele
contexto específico, eram legislações recentes. Os camponeses ainda estavam se apropriando
desse âmbito legal na defesa dos seus direitos, daí por que os narradores as denomina
“estatutos novos” em suas falas. Em sua entrevista, o sr. Luzardo, embora sequer se refira pelo
nome aos dois estatutos citados, é capaz, assim como os demais camponeses, de dimensionar a
importância das novas leis, os novos estatutos, que passam a garantir-lhes uma série de direitos.
Pio Nogueira, em seu depoimento prestado à Justiça Militar, enfatizou que,
quando buscou orientação jurídica de Lindolfo Cordeiro, o advogado orientou que os
moradores permanecessem pagando a renda da terra, os 30% do algodão, conforme pagavam
a Anastácio Braga Barroso, antigo proprietário. Um ponto que desperta atenção no
depoimento de Pio Nogueira é que ele, então, explica aos militares como devia ser o
pagamento da renda da terra aos proprietários, conforme o disposto no Estatuto da Terra. Ele
relatou que o advogado do proprietário, Barros dos Santos, participou de uma reunião em
Japuara e o indagou sobre o percentual de renda paga pelos camponeses. Ele então começa a
explicar aos militares quais as condições previstas na legislação agrária com relação ao
percentual da renda da terra que poderia ser cobrada dos camponeses pelos proprietários:
“QUE BARROS SANTOS passou a indagar sobre o percentual de renda pago pelo
trabalhador, tendo o depoente explicado 30% sobre o algodão tendo a terra nua e 10% sobre
tudo que produzisse sobre a terra nua, 50% do algodão sobre o algodão da terra cercada”.93 É
perceptível, então, a apropriação do texto legal pelos camponeses. Isto é um ponto relevante,
pois indica como os camponeses sustentaram a mobilização amparados no texto legal do
Estatuto da Terra, além de mostrar como a propriedade passa a ser utilizada como local de
encontro dos camponeses e de apropriação das novas leis.
Portanto, esses novos agentes mediadores foram fundamentais para levar ao
conhecimento dos trabalhadores rurais às legislações trabalhistas e agrárias que resguardavam

93
Depoimento de Pio Nogueira à Justiça Militar, prestado em 1974. O depoimento do camponês foi
disponibilizado na página do Brasil Nunca Mais. Ministério Público Federal/BNM 082/Ação Penal 40/72.
Consultar o site http://bnmdigital.mpf.mp.br/pt-br/. Acesso em: 7 ago. 2020.
87

seus direitos. Por isso, tais agentes encontraram resistência em atuar no meio rural, já que os
proprietários os enxergavam como “inimigos” por orientarem os trabalhadores rurais.
(BARREIRA, 1992, p. 55).
Assim, a participação de um advogado sindical no conflito significou o rompimento
de relações tradicionais: “Contratar um advogado era uma forma de dizer ao senhor que a
relação de direitos e deveres entre os donos da terra e os trabalhadores não seria mais
estabelecida apenas verbalmente ou por meio da política do que eram considerados “pequenos
favores [...]” (MONTENEGRO, 2004, p. 395). Por isso, existia um processo de resistência por
parte dos proprietários em aceitar que os moradores se vinculassem aos STRs, tendo em vista
que isto significava ter acesso ao formalismo jurídico e entrar em disputas judiciais com esses
proprietários. Da mesma forma, com a mediação dos advogados sindicais nos conflitos, os
camponeses vão-se apropriando sobre o que diziam os textos legais que resguardavam os seus
direitos.
Devido às reuniões que ocorriam na fazenda agregarem camponeses de regiões
circunvizinhas, Japuara transformou-se em uma Delegacia Sindical, ampliando seu campo de
atuação. Os camponeses então perceberam que enfrentavam problemas em comum não
restritos ao interior de cada propriedade rural. Esses encontros fortalecem a mobilização dos
moradores de Japuara, que passam a contar com a participação de agricultores não
necessariamente implicados no conflito com César Campos: “Devido ao sucesso em número
de associados de lugares remotos, os sindicalistas decidiram, com o aval dos sócios, fundar
uma delegacia no local, ficando assim a sede regional com direitos a expandir o movimento
em seus limites geográficos” (BARROS, 2013, p. 63). Assim, é importante considerar que, a
mobilização dos moradores de Japuara não se iniciou a partir da sindicalização rural e da
apropriação do texto legal, mas com o envolvimento das entidades sindicais e a apropriação da
legislação agrária abriu um campo de possibilidades aos camponeses na reivindicação dos seus
direitos.
Conforme visto, a organização dos moradores foi envolvendo diferentes etapas até
que eles decidissem pautar as suas lutas em torno da sindicalização rural, levando em
consideração os riscos e benefícios envolvidos. É importante considerar ainda como o
envolvimento das entidades sindicais no conflito os fortaleceu e deu ainda mais organicidade
ao movimento dos moradores, isto é, a mobilização dos moradores por seus direitos se inicia
antes da sindicalização, mas, ao se vincularem às entidades sindicais, fortaleceu.
Uma questão que desperta atenção é o incômodo gerado ao advogado do
proprietário em decorrência das reuniões dos camponeses, as quais passam a ocorrer em Japuara
88

com a fundação de uma Delegacia Sindical. O próprio Pio Nogueira também enfatizou, em seu
depoimento à Justiça Militar o incômodo, gerado a Barros dos Santos ao tomar conhecimento
de que os moradores fundariam uma organização sindical dentro de Japuara. Segundo tal
depoimento de Pio, os representantes do proprietário acompanhavam de perto tais encontros
dos camponeses, inclusive, acompanharam a fundação da Delegacia Sindical: “QUE no dia da
fundação chegam ao local dr. Barros, Cesinha Campos e Fernando Honorato. Que então
BARROS DOS SANTOS indagou que movimento era aquele e que o depoente esclareceu que
estava sendo fundada uma Delegacia Sindical.94 O advogado do proprietário teria, então,
questionado a Pio se tal encontro era do conhecimento do proprietário, e o camponês afirmará
que não, pois César Campos se recusava a conversar com ele e com os demais moradores.
Portanto, a fala de Pio indica que os encontros em Japuara não eram autorizados pelo
proprietário.
James Scott afirma que qualquer encontro de subalternos que não seja de iniciativa
do senhor, proprietário ou mestre é visto com desconfiança e encarado pelas autoridades como
uma ameaça implícita à ordem estabelecida (SCOTT, 2013, p.103-104). Ele define tais
encontros dos subordinados, quando desautorizados pela elite que os governa, como “reuniões
clandestinas”. Para Scott, tais encontros provocam nos grupos dominantes um sentimento de
ameaça, pois indicam uma maior autonomia dos dominados e constituem “um estímulo à
ousadia dos subordinados (SCOTT, 2013, p. 107).
Esse acompanhamento da reunião dos camponeses de Japuara por representantes
de César Campos indica esse sentimento de ameaça que tais reuniões provocavam nestes grupos
dominantes, tendo em vista que esses encontros contavam com a presença de entidades sindicais
e de camponeses de outras propriedades da região, além do fato de que tais encontros dos
camponeses passam a acontecer mesmo à revelia dos patrões. Em outros termos, as reuniões
claramente ameaçavam a ordem estabelecida e colocava em xeque o poder de tais proprietários.
Por isso, as reuniões dos moradores de Japuara eram constantemente vigiadas, pois
explicitavam claramente o questionamento de uma hierarquia de poder.
A Delegacia Sindical de Japuara funcionava na casa do agricultor Pio Nogueira
Barros, a liderança dos moradores. Como atesta o depoimento do sr. Luzardo, durante as
reuniões, a Fetraece e os camponeses discutiam os “novos estatutos”, contribuindo, dessa

94
Depoimento de Pio Nogueira à Justiça Militar, prestado em 1974. O depoimento do camponês foi
disponibilizado na página do Brasil Nunca Mais. Ministério Público Federal/BNM 082/Ação Penal 40/72.
Disponível em: http://bnmdigital.mpf.mp.br/pt-br/. Acesso em: 7 ago. 2020.
89

forma, para que os moradores se apropriassem do que estava disposto na legislação trabalhista
e agrária. As reuniões tanto exerciam o papel de atrair camponeses de outras propriedades da
região para participar desses encontros, quanto representavam o momento de “socialização
do conhecimento jurídico” com os camponeses (TAVARES; QUINTANS, 2018, p. 626).
É preciso lembrar que a Lei nº 4.214, de 2 de março de 1963, que dispõe sobre o
Estatuto do Trabalhador Rural,95 não faz menção à existência de delegacias sindicais dentro da
estrutura dos sindicatos dos trabalhadores rurais. Contudo, o parágrafo 2º do artigo 517, do
Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943 – Consolidação das Leis do Trabalho (CLT),
estabelecia que ficava a cargo dos sindicatos instituir delegacias ou seções para tornar mais
efetiva a presença do sindicato: “§2º Dentro da base territorial que lhe for determinada é
facultado ao sindicato instituir delegacias ou secções para melhor proteção dos associados e da
categoria econômica ou profissional ou profissão liberal representada”.96
A função das delegacias sindicais era exercer uma espécie de ponte entre os
camponeses de determinados locais e a diretoria do sindicato rural, já que os trabalhadores
rurais se concentravam em regiões, não raro, afastadas da sede do sindicato. Assim, era uma
forma de a entidade estender os seus “tentáculos” para regiões mais longínquas e tornar o
sindicato mais ativo nas comunidades.
As reuniões para fundar as primeiras Delegacias Sindicais em Canindé e estudar o
Estatuto da Terra aconteciam no interior das propriedades rurais embaixo das árvores ou em
casas escondidas, isto é, eram reuniões desautorizadas pelos proprietários de terra:

O nosso Sindicato foi criado para conseguirmos a Reforma Agrária pois existiam em
Canindé muitos latifúndios e a “meia” do algodão era cobrada sem perdão por estes
patrões que ainda colocavam o gado para invadir nossos roçados. Tudo isso e muito
mais ia de encontro a lei do Estatuto da Terra nº 4.504 de 1964 (Lei da Reforma
Agrária). As reuniões para articular as primeiras delegacias sindicais e estudar a lei
4.504 eram feitas muitas vezes embaixo de árvores ou em casas escondidas”. 97

Essas delegacias ainda deveriam funcionar como agregadoras de camponeses de


determinada região para ampliar o número de associados ao sindicato. Assim, pode-se atribuir às
Delegacias Sindicais o papel de polo atrativo de camponeses para participarem de entidades de

95
Lei nº 4.214, de 2 de março de 1963. Dispõe sobre o Estatuto do Trabalhador Rural. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1950-1969/L4214.htm. Acesso em: 13 jul. 2020.
96
Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943. Aprova a Consolidação das Leis do Trabalho. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm. Acesso em: 13 jul. 2020.
97
Informação fornecida por Alfredo Paz, membro do Sindicato Rural de Canindé. O sindicalista nos entregou um
cordel de sua autoria em comemoração aos 50 anos de fundação do sindicato, escrito em 2018, e um texto escrito
a punho sobre a história da fundação do Sindicato Rural de Canindé, que, segundo ele, complementa e explica o
cordel.
90

representação dos trabalhadores rurais: “[...] procurar também crescer o número de associados e
representar a diretoria em problemas que aparecem entre trabalhador e empregador”.98
Segundo Francisco Julião, as delegacias sindicais, que também despontaram nos
Engenhos de Pernambuco, eram uma forma de os camponeses perderem o medo de uma outra
delegacia, a de polícia: “Preferimos dar a cada núcleo o nome de Delegacia. É. uma maneira de
fazer o camponês perder o mêdo da outra Delegacia – a de polícia. Dêsse modo, o soldado de
polícia tem a sua Delegacia, e o camponês tem a dele” (JULIÃO, 1962, p. 47).
Assim, as Delegacia Sindicais não são uma peculiaridade de organização dos
camponeses do Ceará, mas podem ser apontadas como uma particularidade do sindicalismo
rural em relação ao urbano, já que os camponeses viviam em regiões mais longínquas das sedes
dos STRs. Do mesmo modo, pode-se refletir como fundar uma Delegacia Sindical dentro das
propriedades rurais constituíam uma declaração aberta de conflito com os proprietários de terra.
O papel de delegado sindical de Japuara e região do entorno ficou a cargo de Pio
Nogueira Barros. Portanto, o agricultor transformou-se em uma liderança camponesa com
atuação não circunscrita aos limites de Japuara. De acordo com Felismino, o delegado sindical
era uma figura que ligava as bases ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais:

Olha, comumente, o elemento é escolhido pelas bases. Mas dificilmente no


movimento sindical a não ser que haja interferência de terceiros pelo meio, o
movimento sindical dificilmente aparece um delegado que o pessoal simplesmente
apresente e a diretoria diga que aquele elemento não tem confiança, porque já um
elemento que está mais ou menos ligado à diretoria e ligado ao pessoal da base. 99

Os delegados sindicais eram escolhidos pelos associados e assumiam a direção das


delegacias, conforme estabelecido no artigo 523, da CLT: “Art. 523 – Os Delegados Sindicais
destinados à direção das delegacias ou seções instituídas na forma estabelecida no § 2º do art.
517 serão designados pela diretoria dentre os associados radicados no território da
correspondente delegacia”.100 O delegado sindical normalmente era uma figura de liderança da
comunidade e atuava como mediador de conflitos entre camponeses e os proprietários rurais,
antes de o conflito chegar a outras instâncias. Em um primeiro momento, o delegado sindical
tentava resolver o conflito no âmbito local. Caso não encontrasse meios para solucionar os
possíveis impasses, deveria acionar a diretoria do sindicato rural: “[...] esse delegado vai lá na
fazenda, faz o levantamento, procura conversar com o patrão. Se é possível resolver o problema

98
Entrevista concedida pelo sindicalista João Felismino de Souza. Op. cit., p. 11.
99
Entrevista concedida pelo sindicalista João Felismino de Souza. Op. cit., p. 11.
100
Consolidação das Leis do Trabalho – CLT (Decreto-lei n° 542, de 1º de maio de 1943). Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm. Acesso em: 4 jul. 2021.
91

ele resolve, e se não é possível, então, esse elemento faz o apanhado de todas as ocorrências e
traz e representa a diretoria juntamente com o trabalhador prejudicado”.101 A diretoria do
sindicato, no que lhe concerne, caso não resolvesse o conflito, poderia acionar a entidade de
representação sindical de 2ª instância, caso, por exemplo, da Fetraece, que passou a prestar
assessoria jurídica aos moradores de Japuara, e esta, por sua vez, poderia acionar a Contag,
representação sindical de 3ª instância.
Pio, ao se tornar Delegado Sindical da região, torna-se um mediador de possíveis
questões que surgissem entre trabalhadores rurais e proprietários de terra, tornando-se um
representante do STR de Canindé em Japuara e nas propriedades vizinhas. O camponês torna-
se uma liderança sindical dos camponeses da região. Com a fundação de uma delegacia sindical,
Japuara torna-se, então, um local de mobilização de camponeses provindos de outras
propriedades. Isto é, o conflito deixa de se circunscrever aos limites de sua unidade geográfica:
“A quebra da crença da legitimidade do poder tradicional, fundado sobre relações pessoais, que
acompanhou a implantação dos sindicatos, rompeu com a possibilidade de conflito ‘locais’, isto
é, limitados a uma única unidade geográfica ou social [...]” (PALMEIRA, 2013, p. 48). Assim,
os espaços de morada dos camponeses foram transformados em tentáculos do STR de Canindé,
reconfigurando as relações entre proprietários e moradores.
De acordo com Barreira (1979), o fato de os camponeses residirem dentro das
propriedades implicava maior controle sobre os moradores por parte dos patrões. Por outra via,
esse sistema favorecia uma aglutinação desses camponeses que poderiam vir a se organizar para
questionarem essas relações de trabalho e poder. Dessa forma, os moradores passam a utilizar
as fazendas, locais onde residiam e trabalhavam, como espaços de mobilização para fundar as
Delegacias Sindicais e estudarem a legislação agrária – o Estatuto da Terra.
Sigaud (1979) observa a ruptura de práticas tracionais que implicaram no fim da
morada em decorrência da reivindicação por direitos dos trabalhadores dos engenhos de
Pernambuco. Para a autora, o trabalhador tornar-se morador implicava colocar-se à inteira
disposição do patrão, assumindo as “lutas” desse proprietário, por exemplo, nos momentos de
eleição, votando em seu candidato, “entregando parte da produção”, sem que, para isso, fosse
necessária a firmação de contratos formais. Sigaud enfatiza que os proprietários enxergavam
esses moradores praticamente como um “patrimônio incorporado à propriedade”. A partir do
momento em que esses trabalhadores começam a utilizar as fazendas como espaços de
organização coletiva, os proprietários dos Engenhos observam o sistema de morada como uma

101
Entrevista concedida pelo sindicalista João Felismino de Souza. Op. cit., p. 11.
92

ameaça a sua autoridade e passam a recusar esses camponeses como forma de desarticulá-los e
evitar que as propriedades continuassem a ser locais de mobilização camponesa.
Dessa forma, quando os camponeses passam a utilizar as fazendas, ou seja, os seus
locais de morada e trabalho como espaços de organização, ameaçam as relações anteriormente
existentes e implicadas diretamente com o ser morador. Assim, passam a sofrer ameaças de
despejo. A criação de uma Delegacia Sindical em Japuara pode ser apontada como mais um
elemento conflitivo com César Campos, já que Japuara tornou-se um espaço de congregação
de trabalhadores rurais da região e o comerciante era avesso à sindicalização de moradores de
suas propriedades.
Merece atenção especial o fato de a criação de uma delegacia sindical e as vitórias
jurídicas no Tribunal de Justiça do Estado trouxeram mais confiança aos moradores de Japuara
na possibilidade de permanecer na terra, mesmo com as constantes ameaças de despejo: “Foi
quando o povo confiou e teve um pouco de firmeza na Justiça, que se apresentava de outro
ângulo. A criação da delegacia sindical foi como botar lenha na fogueira. E haja madeira para
queimar! A situação, de crise, passou de mal a pior” (BARROS, 2013, p. 63). Assim, os
moradores entendem que o “presente estado das coisas” não era permanente ou mesmo
inevitável” e que a situação poderia ser revertida em favor dos camponeses (MOORE JÚNIOR,
1987 p. 626). Assim, eles adquirem mais confiança ao perceberem a própria capacidade de
organização com a criação de uma delegacia sindical na propriedade. Ao mesmo tempo, a
interferência dos agentes externos, tais como a Fetraece e a criação da Delegacia Sindical em
Japuara intensificou as situações conflitivas com César Campos:

Entrevistadora: Pio era Delegado do Sindicato.


Luzardo: Era Delegado do Sindicato, foi a raiva que ele [César Campos] teve.
Primeira raiva que ele teve foi isso, foi o meu pai ser o Delegado Sindical, pra ele
aquilo era um fim de vida. Ter uma delegacia dentro da fazenda, porque tudo que ele
queria fazer não tinha por onde ele fazer, porque a Delegacia Sindical o que dissesse
tava feito.102

César Campos tinha um histórico de envolvimento em conflitos com outros camponeses


moradores de suas propriedades, principalmente quando os camponeses se vinculavam a entidades
sindicais. Em 1963, os jornais do estado noticiaram o envolvimento de César Campos em outro
conflito de terra com camponeses da Fazenda Cobra de Veado, pertencente ao comerciante e também
localizada em Canindé, inclusive, limítrofe com Japuara. O jornal Correio do Ceará trouxe a seguinte

102
BARROS, Luzardo. Entrevista, 5 de outubro de 2020. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda Mendes. Acervo
pessoal.
93

chamada para a matéria: “Proprietário de Canindé quer liquidar camponeses”, informando que o
proprietário teria soltado animais com o propósito de destruir as plantações dos agricultores e
intimidá-los:

Mais de 60 pequenos agricultores do lugar chamado “Cobra do Veado”, do município


de Canindé, foram prejudicados no decorrer desta semana, pela atitude assumida pelo
fazendeiro César Campos, que a fim de expulsá-los, mandou soltar 135 rezes de raça
dentro dos seus roçados. A informação foi transmitida pelo sr. Valdir Gomes de
Almeida, presidente do Sindicatos dos Trabalhadores Autônomos daquele município,
adiantou mais que esses pobres plantadores tiveram suas culturas de milho, já prestes
a ser colhido, devorado pelo gado. – “O algodão, também em ponto de colher, teve a
mesma sorte, destacou o sr. Valdir Gomes, por último.103

O jornal O Nordeste destacou que as residências dos moradores de Cobra de Veado


teriam sido incendiadas com o propósito de expulsá-los: “200 homens incendiaram casas dos
camponeses em Canindé: Choque”.104 O jornal Terra Livre chamou a atenção para o fato de
que as intimidações do comerciante aos camponeses chegaram a resultar na prisão do presidente
do Sindicato Rural de Canindé, Valdir Gomes de Almeida, acusado de causar perturbação à
ordem pública. O proprietário foi acusado ainda de ter passado um trator por cima da casa de
um dos moradores da fazenda (Francisco Almeida), de ter levado animais para destruir as
plantações de milho e algodão dos moradores e ainda por ter ameaçado de morte as lideranças
do Sindicato Rural de Canindé.105
Saliente-se que César Campos era um homem influente na cidade de Canindé e,
sempre que sofria ataques a sua imagem em jornais em decorrência de arbitrariedades infligidas
a camponeses, não tardava para que políticos e proprietários rurais se manifestassem nos
veículos de imprensa em apoio ao comerciante (BARREIRA, 1992, p. 53). O jornal O Estado
publicou nota de autoria de José Alves, que, segundo o próprio, falava em nome “dos bons
filhos da gleba cearense”. No texto, ele apresentou-se como alguém próximo a César Campos.
Na página em que se encontra a coluna, a chamada central era “Questão de Terra Acirrada em
Canindé: Assalto à fazenda”. Sobre os acontecimentos na Cobra de Veado, o autor afirmou o
seguinte:

Esta história do sr. César Campos, mandar decretadamente, 200 homens atacar
campôneses que desejam, a mando comunista, se apossarem de certa faixa de terra
denominada “Cobra de Veado”, dêste munícipio, é verdadeiramente falsa. Houve
sim, no dia 12 último, o assalto à Fazenda, mas planejado por livre vontade de
pessoas populares, as quais cientes dos inacábíveis propósitos dos moradores
daquela Fazenda até lá se deslocaram a fim de desfazerem os planos subversivos a

103
Correio do Ceará (CE), 7 set. 1963.
104
O Nordeste (CE), 15 set. 1963.
105
Terra Livre (SP), set. 1963.
94

que ali estavam acontecendo. Contra os legítimos direitos de propriedade do sr. Cesar
Campos.106

Portanto, nas entrelinhas do texto, José Alves admite a invasão da Fazenda Cobra
de Veado e o ataque aos camponeses. Entretanto, eximia o proprietário da responsabilidade ao
defender que o ataque fora uma iniciativa do que ele denominou como “ação de pessoas
populares”, que teriam se dirigido à fazenda com o propósito de pôr fim aos “planos
subversivos” dos camponeses. Esses sujeitos teriam atacado os camponeses por conta própria,
sem envolvimento do comerciante. Nesse sentido, o autor desvinculou César Campos do
conflito ocorrido na Fazenda Cobra de Veado e legitimou a ação orquestrada por esses
“populares”, pois os camponeses estariam atentando contra o direito de propriedade.
O deputado estadual e também advogado de César Campos, Barros dos Santos, que
também o defendeu no conflito de Japuara, realizou um pronunciamento na Assembleia
Legislativa do Estado do Ceará, alegando que a única verdade divulgada pelos jornais era a
prisão do presidente do Sindicato Rural de Canindé:

O sr. César Campos jamais – assinalou – pensou em tacar fogo em roçados de seus
moradores. E a única coisa verdadeira em tudo que foi divulgado, é a prisão do
Presidente do Sindicato dos Trabalhadores Agrícolas por ter desacatado, em plena rua,
o sr. Cesar Campos. O deputado Barros dos Santos observou, em aparte, que se forem
respeitados os termos do acordo celebrado entre os rendeiros e o sr. César Campos e
se não houver interferências estranhas no problema, o incidente será superado de
pronto. “O que houve – acentuou – foi o envolvimento dos camponeses por uma onda
comunista. 107

Os “elementos estranhos” citados pelo deputado, neste pronunciamento, seriam os


sindicatos rurais e seus representantes, que estariam interferindo nessa relação entre
camponeses e patronato no interior das fazendas, inclusive, os membros do sindicato são
apresentados como desvinculados dos camponeses locais. A interferência desses sujeitos seria
o motivo dessa “agitação” no meio rural orquestrada por influência comunista. Assim, os
indivíduos sindicalizados foram apresentados como aqueles que afrontam o direito de
propriedade e corrompem os moradores das fazendas.
Assim, o conflito em Cobra de Veado era uma demonstração do modus operandi
de César Campos nas intimidações aos moradores de suas propriedades, quando estes pautavam
a sua organização em associações sindicais: incêndios aos roçados, destruição de moradias dos
agricultores e atuação em conluio com a Polícia de Canindé nas intimidações. São, nas palavras

106
O Estado (CE), 18 set. 1963.
107
O Povo (CE) 17 set. 1963.
95

de Maia (2008), “[...] dimensões de violência, que mesmo antes do golpe de 1964, se abatia
contra os lavradores, bem como as resistências que contras elas foram se delineando” (2018, p.
373). Portanto, é possível perceber que, mesmo em um contexto democrático, os proprietários
de terra já agiam de modo violento quando os camponeses pautavam a sua organização sindical,
do mesmo modo, é perceptível como estes buscavam articular em seus discursos a ameaça
comunista à organização dos camponeses.
Por outra via, a organização dos camponeses de Cobra de Veado indica, de acordo
com Matos, que os camponeses de Canindé já acumulavam forças muito antes da mobilização
de Japuara: “Esse fato mostra que as lutas por terra e melhores condições trabalhistas já eram
vivenciadas em Canindé em anos anteriores, mas atingiram seu estopim com o episódio violento
e sanguinário de Japuara” (MATOS, 2017, p. 168).
O episódio ocorrido em Cobra de Veado apareceu no relato dos camponeses de
Japuara, indicando a extrema violência do proprietário quando este desejava efetivar o despejo
de moradores de suas propriedades:

Teve um despejo por conta dele aqui, Cobra de Veado, mandou fazer. Morreu gente,
morreu uma mulher, acabou de parir, de ter uma criança, morreu. Pegaram os tambor
de feijão, tambor de milho e botaram no meio, passaram o carro por cima. Ficou só os
bagaços, os tambor véi. Aí uma véia da boca santa jogou uma praga no motorista. O
motorista saiu mangando, ficou mangando: “Agora vão fazer o sindicato de vocês
debaixo do Juazeiro”.108

Tinha uma na fazenda... Fazenda Oiticica, mas o nome de lá antes era...deixar eu ver
se eu me lembro antes...Até uma mulher que tava em tempo de dar à luz a uma criança,
eles mataram. Botaram ela dentro de uma rede, isso foi um voluntário que andava com
eles, teve dó dela. Armaram uma rede debaixo de uma moita, talvez fosse uma moita
tipo essa aí, ficava na sombra. Mas ela de tanto sofrer vexame não resistiu, morreu lá
dentro da redinha mesmo e eles atirando. As cabacinhas tudo cheias de feijão e eles
tacavam fogo, fogo que eu digo bala, as cabacinhas caía no chão e ficava tudo
derramado. Eu acho que ele tá pagando, se ele tá pagando é uma coisa que Deus
determinou o sofrimento dele. Até que ele pague tudo que ele fez com os pobres.109

Nos relatos dos episódios de Cobra de Veado, transparecem os atos violentos de


César Campos envoltos em uma memória coletiva sobre os conflitos por terra na região
envolvendo tal proprietário. Assim, as atitudes como a destruição das colheitas dos moradores,
de suas casas e o abandono de uma mulher em estado de puerpério desabrigada indicam que os
abusos de César Campos não eram fatos isolados em Japuara e que ele já costumava agir de

108
FERNANDES, Alfredo Ramos. Entrevista, 23 de setembro de 2020. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda
Mendes. Acervo pessoal.
109
BARROS, Luzardo. Entrevista, 5 de outubro de 2020. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda Mendes. Acervo
pessoal.
96

modo semelhante com camponeses moradores em outras propriedades na região. Assim, como
Barros dos Santos, que também fazia uso de sua posição política para safar o proprietário das
acusações dos camponeses que reverberavam na imprensa.
Os moradores mobilizam a história de outros conflitos por terra, para chamar
atenção ao fato de que o ocorrido em Japuara se insere em uma mobilização mais ampla de
moradores das fazendas da região que também se rebelaram contra César Campos e sofreram
represálias. Ao mesmo tempo, são narrativas que trazem à torna experiências distintas da luta
pela terra, inclusive, remetem às experiências de derrota vivenciadas pelos moradores de Cobra
de Veado, cujo desfecho foi distinto do de Japuara, já que César Campos conseguiu efetivar o
despejo dos moradores. Assim, são memórias de derrota e vitória que coabitam em tais relatos.
Os fatos que ocorreram em Cobra de Veado eram utilizados pelo filho de César
Campos conhecido por “Cesinha” como “exemplares” do que poderia acontecer com os
moradores de Japuara, caso estes continuassem a confrontá-los. Em um depoimento prestado
por Pio Nogueira à Justiça Militar, este sinaliza como esses fatos eram empregados pelo
proprietário e sua parentela para frear a organização dos moradores de Japuara:
Que Cesinha então modificou e voltando-se para o depoente disse que iria resolver
aquele caso como fizera na “COBRA DE VEADO”; QUE o depoente quer esclarecer
que esse sitio “COBRA DE VEADO” fica mais ou menos uma légua de Japuara e que
Cesinha havia desalojado o morador de lá FRANCISCO ALMEIDA e FRANCISCO
NOVO e outros moradores utilizando-se de um caminhão e determinando que
derrubasse a casa de ré, o que foi feito não obstante estar uma senhora em estado
interessante; QUE esta senhora foi removida e colocada debaixo de um pé de pau em
uma rede junto com uma criança de um ano e pouco. QUE o motorista que derrubou
a casa chamava-se FRANCISCO BERTULINO; QUE em consequência disso a
mulher de FRANCISCO NOVO que fora alojada debaixo de um pé de pau começou
a ter suores e tremores e a noite por volta das oito horas terminou seus dias de vida.
QUE o depoente alertou a Cesinha que aquilo não podia dar certo em JAPUARA
porque a casa do depoente era de parede dupla e podia ocorrer que no momento da
demolição morresse morador e o carro ficasse destruído. 110

Em outros termos, se os camponeses de Japuara seguissem o caminho trilhado pelos


moradores de Cobra de Veado, isto é, se pautassem a mobilização em torno da sindicalização
rural, o desfecho de outrora poderia repetir-se. Cesinha, conforme visto, teria ameaçado
derrubar a casa de Pio Nogueira, assim como fizera com a liderança de Cobra de Veado. Os
proprietários, então, recorriam à lembrança de enfrentamentos anteriores em que os
trabalhadores camponeses haviam sido derrotados, como forma de inibir possíveis novas
manifestações nas fazendas e, sobretudo, para retaliar uma provável vinculação de camponeses

110
Depoimento de Pio Nogueira à Justiça Militar, prestado em 1974. O depoimento do camponês foi
disponibilizado na página do Brasil Nunca Mais. Ministério Público Federal/BNM 082/Ação Penal 40/72.
Consultar o site: http://bnmdigital.mpf.mp.br/pt-br/. Acesso em: 7 ago. 2020.
97

às entidades sindicais, o que, naquele contexto, representava aos olhos dos patrões uma afronta
ao direito de propriedade, além de subversão.
O processo de organização dos moradores de Japuara acirrou um conflito cada vez
mais aberto. Os camponeses relataram que a destruição dos roçados por capatazes de César
Campos ocorriam normalmente à noite, entretanto, aos poucos, as intimidações do proprietário
vão deixando de serem veladas, e essa destruição dos roçados passa a ocorrer também durante
o dia, conforme o depoimento do sr. Luzardo: “Quando deram fé eles tavam eram queimando
a cerca era de dia!”.111 Dessa forma, os enfrentamentos entre camponeses e proprietário se
circunscreviam, em um primeiro momento, a intimidações silenciosas que evitavam, em
princípio, o embate aberto. O caminhar do conflito mostrou ao proprietário que as ameaças
veladas não surtiram o efeito esperado, isto é, os moradores permaneciam contestando sua
autoridade. César Campos, então, passa a agir de modo cada vez mais incisivo, deixando claro
aos camponeses de Japuara o rompimento da relação de morada e o seu descontentamento com
a permanência destes na terra.
Esse fato fica evidente na fala do sr. Luzardo, quando ele relatou que a destruição
das cercas que protegiam os roçados passa a ocorrer também durante o dia, tendo em vista que
antes a queima do roçado e a destruição das cercas aconteciam durante a noite. O que sinaliza
que tradicionalmente esses embates entre os moradores e patrões eram travados de modo
dissimulado. Isto é, normalmente os proprietários agiam de modo velado, mas provocando
atritos que tornavam a permanência dos moradores inviável. Era o “matar na unha”, como bem
definiu um dos camponeses entrevistados por Almeida e Esterci (1979, p. 114).
Assim, os proprietários se utilizavam de estratégias distintas quando visavam a
romper a relação de morada. Agiam furtivamente evitando os confrontos declarados e, aos
poucos, essas intimidações se tornavam abertas. Existia por parte dos proprietários a percepção
de que o confronto travado dessa maneira poderia reverberar de modo negativo e corroer sua
imagem (como foi o caso de Cobra de Veado, que ganhou repercussão na imprensa e que
provocou o desgaste da figura César Campos perante a sociedade.
Os conflitos por terra ocorriam em “terrenos distintos” até se tornarem
declaradamente abertos entre os fazendeiros e os moradores (SCOTT, 2002, p.14). Mesmo
quando os camponeses saíam derrotados, somente o fato de o conflito ser francamente
declarado e ganhar notabilidade na imprensa também era, mesmo que parcialmente, uma
derrota para esses fazendeiros. O patronato agrícola tinha então os seus motivos para evitar, na

111
BARROS, Luzardo. Entrevista, 5 de outubro de 2020. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda Mendes. Acervo
pessoal.
98

medida do possível, tornar explícito esse choque com os moradores das fazendas e
sorrateiramente intimidavam estes na tentativa de expulsá-los das terras, mas evitando que o
conflito ganhasse maiores repercussões, pois poderia ocasionar envolvimento de entidades
sindicais ou mesmo ganhar visibilidade na imprensa.
Se César Campos modificou a sua estratégia no encaminhar do conflito de Japuara,
isto é, foi deixando de agir de modo sorrateiro e passando a intimidar os moradores de modo
mais aberto, igual atitude adotaram os camponeses, que passam a vislumbrar outras estratégias
de enfrentamento ao se organizarem em “mutirão”.112 Em outros termos, compuseram uma
“turma”, como relatou o sr. Luzardo, para evitar que o gado do proprietário fosse colocado por
capatazes nos roçados dos moradores:

Chegaram lá, eles [Capatazes de César Campos] já estavam era abrindo o buraco pra
colocar o gado. Aí quando eles se ajeitaram pra botar o gado dentro, aí chegou cinco
[moradores] e ficou no buraco onde eles já tinham aberto e disse:
[Moradores] “Olha, é daí pra lá. Gado aqui hoje não entra nenhum aqui.”
[Capatazes de César Campos] “Por que que não entra?”
[Moradores]: “Porque não entra”.
Aí o doutor Lindolfo veio e disse: “É assim que se trabalha, não trabalhe sozinho. Tem
que ser grupo de pessoas, de 20 pessoas pra cima que é pra segurar a justiça”. E assim
ele fazia tudo por onde mandava o Estatuto, ele nunca fazia por onde a justiça pegar
ele né!? 113

Portanto, são diferentes dimensões envoltas no processo de organização dos


moradores, desde as resistências operadas no cotidiano para evitar a destruição dos roçados, até
o processo de organização mais formalizado, isto é, fundar uma Delegacia Sindical em Japuara
e se apropriarem do espaço legal como campo de disputa.
Merece destaque o fato de que a presença constante da Fetraece na fazenda gerou
incômodo ao proprietário. Possivelmente, esse incômodo também se deveu à conquista de
Lindolfo Cordeiro da suspensão de despejo dos moradores de Japuara no Tribunal de Justiça
do Estado. Portanto, a Justiça estava caminhando, naquele momento, mais ao lado dos
moradores do que de César Campos, que, juridicamente, não tinha conseguido concretizar o
despejo dos ocupantes, mesmo com várias tentativas na comarca de Canindé. Afora que a
mobilização dos moradores estava ganhando cada vez mais densidade, já que a Fazenda se

112
Tradicionalmente os camponeses realizam o chamado “mutirão” que consiste em trabalhos coletivos com
alguma finalidade. Normalmente, são formados mutirões em momentos de colheita ou de algum trabalho árduo
que demande a cooperação coletiva destes, como a “farinhada”. No caso de Japuara, percebemos que o mutirão é
ressignificado como uma estratégia de enfrentamento coletivo que se insere dentro de um modus vivendi dos
camponeses.
113
Os moradores sempre mencionam uma parte da propriedade que era conhecida como “Manga”. BARROS,
Luzardo. Entrevista, 5 de outubro de 2020. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda Mendes. Acervo pessoal.
99

transformara em uma sede da Delegacia Sindical, tornando-se um espaço de congregação dos


trabalhadores rurais da região. O proprietário então decide fazer os despejos com as “próprias
mãos”, deixando de lado a mediação da Justiça no conflito.
100

3 NARRATIVAS DE UM CONFLITO DE TERRA: MEMÓRIA E IMPRENSA


Derrubar as suas casas
Era ordem do patrão
E arrombar o açude
Daquele seco sertão
Pra deixar todos com sede
Morador e criação
Foi polícia e foi jagunço
A mando do fazendeiro
Foi até gente “inocente”
Outros comprado a dinheiro
Cabra com medo da briga
Se rasgou no marmeleiro
Na briga morreu polícia
Inclusive o delegado
Agricultor também teve
O seu sangue derramado
Japuara depois teve
Seu chão desapropriado114

Em 2 de janeiro de 1971, explode o conflito entre os moradores e o novo


proprietário da fazenda. A motivação principal foi a ordem de destruição por parte de César
Campos da casa de morada da liderança dos camponeses, Pio Nogueira Barros. Japuara, então,
ganha as páginas dos principais jornais de notícia do país e chama atenção da imprensa devido
a extrema brutalidade que um conflito de terras poderia atingir. Neste sentido, é necessário
trazer os fios da memórias dos camponeses que nos conduzem ao clímax de uma questão de
terra e a narrativa construída pela imprensa sobre os confrontos.

3.1 A destruição da casa de morada: o estopim do conflito

Segundo Palmeira (2009), a vinculação dos camponeses ao proprietário iniciava-se


no ato de pedido de morada. Antes mesmo de se buscar a terra para o trabalho, o que se
solicitava primeiro ao proprietário era a casa de morada (PALMEIRA, 2009, p. 205). Se a casa
representava vinculação dos camponeses ao proprietário, a sua destruição significava o
rompimento definitivo de tal relação. É importante refletir sobre o papel ocupado pela
residência na relação entre camponeses e proprietários rurais e como a tentativa de destruição
da casa de Pio Nogueira Barros representou o estopim do conflito para os moradores de Japuara.
Com vistas a essas observações iniciais, ressalta-se que, no dia 2 de janeiro de 1971,
César Campos contrata trabalhadores da frente de serviço para efetivar o despejo dos moradores
de Japuara. No mercado público de Canindé, um dos empregados do proprietário realizou o

114
Cordel do “Cinquentenário do Sindicato” (1968-2018). Alfredo Paz, membro do Sindicato Rural de Canindé.
20 de outubro de 2018.
101

recrutamento de trabalhadores da obra de emergência contra a seca, para seguirem até a fazenda.
Nesse dia, teriam recebido uma importância de 10 cruzeiros para efetivar ações como arrombar
a parede do açude, destelhar as moradias dos residentes de Japuara e destruir as cercas
(GOMES, 2006; BARROS, 2013).
O número de trabalhadores da frente de emergência de Canindé contratados por
César Campos variava, nos relatos sobre o conflito, entre 30 até 180 homens, que optaram por
faltar o dia de serviço, em troca de uma melhor remuneração oferecida pelo proprietário.
Portanto, talvez não tenham cogitado muito em se deslocarem até Japuara para cumprir as
ordens de César Campos:

No dia dois de janeiro de 1971, o capataz de César Campos, Otavio Abreu,


arregimentou nas ruas de Canindé e entre os “cassacos”, como eram chamados os
trabalhadores da frente de serviço, conseguindo um grande número de trabalhadores
– que chamarei de contratados para melhor compreensão, prometendo pagar da diária
em Cr$10,00(dez cruzeiros). O que naqueles dias era um pagamento razoável visto
que a diária dos cassacos era de Cr$ 2,00 (dois cruzeiros) (GOMES,2006, p.19-20).

Arrombar uma barragem de açude poderia exigir muitos braços humanos, o que foi
percebido pelo proprietário na frente de trabalho comandado pelo DNER em Canindé, ou seja,
mão de obra abundante e de baixo custo. César Campos, então, aproveita-se da situação de
maior vulnerabilidade imposta pela seca e contrata os que costumeiramente eram conhecidos
como “cassacos”, já que dificilmente teria que despender um custo elevado em contratar essa
mão de obra. Nesse sentido, o proprietário redimensionou a mão de obra dos “flagelados da
seca” para cometer atos de violência contra os moradores de Japuara
De acordo com Barreira (1992), o açude, foi o principal sujeito desse primeiro
confronto em Japuara: “No primeiro, o personagem principal é o açude, cujo papel é vital no
cotidiano dos residentes da fazenda... É ele que fornece o peixe e a água. Interessado no despejo
dos moradores, o proprietário contratou homens para arrombar o açude, destelhar casas” (1992,
p.48).
É importante considerar que, na narrativa dos moradores, o proprietário não queria
arrombar o açude. O que César Campos desejava era destruir as moradia dos camponeses e
provocar o despejo. Durante a entrevista, questionei aos moradores se, no dia nos confrontos, o
proprietário enviou os trabalhadores da frente de serviço para destruir o açude, fato este que foi
negado por mais de um entrevistado. Conforme relatou o sr. Luzardo, filho de Pio Nogueira
Barros, o estopim do primeiro conflito foi a derrubada da casa da liderança:

Aí aconteceu que meu pai era meio disposto pra não aceitar as coisas que eles iam
impondo né!? Até que um dia aconteceu o pior, exatamente foi a chacina de 4 mortos,
102

um avô do Alfredo 21 e o resto foram deles. Um que foi destelhar a casa, a casa era
ali do outro lado de frente aquele mercantilzinho ali, só que do outro lado da pista,
aonde a gente morava. Aí procuraram derrubar a casa e no sistema deles arrombar o
açude, mas não queria arrombar o açude não, eles queriam era derrubar as casas e
botar todo mundo pra fora.115

Nesse sentido, a casa de Pio adquire uma centralidade na memória dos moradores
de Japuara sobre os confrontos, mais do que o próprio açude. Aquela personifica o despejo e
representa o ponto alto do conflito com César Campos, que já se arrastava por anos. Assim, eles
constantemente ressaltam que o fazendeiro não desejava arrombar o açude, pois ele próprio
ficaria sem água para prover o gado que criava em Japuara. O questionamento feito aos
moradores, isto é, se o objetivo do proprietário, ao enviar tais homens da frente de serviço a
Japuara, era destruir o açude que existia na fazenda, causou certa indignação entre os
moradores, tendo em vista que a versão do proprietário era esta, isto é, ele teria enviado os
trabalhadores para arrombar o açude e estes teriam se desviado da tarefa para a qual haviam
sido contratados e teriam resolvido por conta própria destruir as moradias dos camponeses.
Segundo a versão dos camponeses, o proprietário não teria ordenado que os
trabalhadores da frente de serviço destruíssem o açude. Isto é sustentado mediante algumas
observações. Por exemplo, o fato de os trabalhadores das frentes de serviço não terem ido até o
açude no dia do confronto e, de imediato, terem iniciado o destelhamento da casa de Pio:

Entrevistadora: Sr. Alfredo, lá naquele tempo lá que esses homens vieram pra cá, os
da frente de serviço, eles vieram era pra arrombar o açude?
Alfredo: Era uma lábia, não ia arrombar açude não, foi uma sugesta que fizeram.
Porque aqui tinha duas mil e tanto gados numa fazenda, de onde é que esse gado ia
beber?
Nesse tempo o açude tava quase cheio né!? Uma sugesta que eles inventaram,
trouxeram os cassacos pra abrir, pra arrombar o açude e lá não pisaram. Ele foi pra
audiência no juiz, ele tava mais nós lá, dono da terra, seu César Campos e o juiz
perguntou: “Como é que o senhor ia arrombar o açude? O senhor com mais de 2 mil
gado na fazenda, esse seu gado ia beber aonde?” O Seu César: “A gente dava um
jeito”. Foi sugesta, eles vieram fazer o despejo, vieram fazer o despejo, já tinham
arranjado três despejo.116

Assim, para o sr. Alfredo, derrubar a barragem do açude configura um ato de


irracionalidade de um proprietário, já que ele perderia a principal fonte de água da fazenda,
sobretudo, para um criador de gado em uma região de semiárido, além de desvalorizar as terras.
O proprietário não almejava a destruição do açude que existia no interior da propriedade, mas

115
BARROS, Luzardo. Entrevista, 5 de outubro de 2020. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda Mendes. Acervo
pessoal.
116
FERNANDES, Alfredo Ramos. Entrevista, 23 de setembro de 2020. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda
Mendes. Acervo pessoal.
103

sim promover o despejo dos camponeses, conforme também relatou o sr. Jacó: “Aí lá vem o
despejo, mandado pelo juiz. O despejo mandado pelo Juiz de Pio Nogueira Barros com todos
os moradores. Como é o despejo? Derrubar todas casas e deixar só a Casa Grande e a Cachoeira.
César Campos fazendo isso.”117
Ainda é relevante enfatizar que a casa de Pio Nogueira era a sede da Delegacia
Sindical de Japuara, portanto, simbolizava a própria organização dos moradores e representava
uma afronta direta a César Campos. Não por acaso, foi a residência escolhida para se iniciar o
destelhamento pelos trabalhadores da frente de serviço.
É importante considerar que o rompimento da relação de morada não ocorre de
modo repentino. Na verdade, os proprietários evitavam confrontar-se de modo direto com os
camponeses, na medida do possível, mas alguns conflitos cotidianos já sinalizavam aos
camponeses o desgaste dessa relação. Como fora visto, o conflito de Japuara foi em decorrência
de um “acúmulo de situações cotidianas”, como bem define Scott (2013), e a destruição da casa
é apontada pelos camponeses como a gota d’água, o ponto de não retorno da relação com César
Campos.
É interessante notar que um dos indícios de que a relação entre camponeses e
proprietários já se encontrava corroída era a deterioração das residências oferecidas aos
camponeses. Maupeou (2015) observou como os proprietários dos Engenhos, em Pernambuco,
deixavam de realizar a manutenção das moradias, com vistas a uma deterioração destas,
tornando, aos poucos, insustentável a permanência dos camponeses na terra: “A redução do sítio
e o abandono da casa levariam, portanto, o trabalhador a deixar a terra, sem que para isso tivesse
sido expulso pelo empregador” (2015, p.47). Ele ainda observou que os camponeses entrariam
em uma arena de disputas judiciais cobrando dos proprietários dos Engenho de Pernambuco o
oferecimento de moradia higiênica e em boas condições, além do sítio para cultivo, provocando
disputas com os proprietários rurais.
Nesse sentido, as residências eram corriqueiramente objeto de tensão entre
camponeses e proprietários de terra. A deterioração das moradias já indicava aos camponeses
que a presença deles se tornara indesejada no interior dessas fazendas e sinalizava que eles
deveriam buscar um novo lugar para residir. Observa-se ainda como os proprietários deixavam
de realizar a manutenção das residências com o propósito de impor aos camponeses que estes
se retirassem daqueles locais, isto é, a deterioração da habitação era utilizada por esses
proprietários para evitar, na medida do possível, conflitos declarados com os camponeses.

117
FERNANDES, Jacó Ramos. Entrevista, 7 de janeiro de 2021. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda Mendes.
Acervo pessoal.
104

Um dos motivos que levavam os camponeses a buscar uma nova morada em outras
propriedades, inclusive, eram as condições das instalações oferecidas a eles pelo patronato
agrícola. Como pode ser visto no depoimento do camponês e sindicalista João Felismino, que
relatou os inúmeros motivos de rompimento da relação de morada entre camponeses e o
patronato agrícola no Ceará:

Dali a gente se mudou para o Sítio Pelado. Lá não havia condição da gente ficar. O
dono da terra era muito pobre e também muito ruim. E a casa que ele dera pra gente
morar era uma casa que não oferecia condição. Começava a chover e, quando chuva
passava, ficava chovendo mais dentro da casa de que a chuva que tinha chovido do
lado de fora, que a casa era coberta de palha, muito mal coberta. 118

Quando os proprietários não ofereciam condições dignas de habitação, os


camponeses acabavam buscando uma nova residência. De tal modo, corriqueiramente o
rompimento da relação de morada entre moradores e proprietários já se manifestava na casa,
tendo em vista ser comum os proprietários de terra, almejando expulsar os camponeses,
deixarem de realizar a manutenção das moradias ou, de modo mais explícito, destelhá-las ou
derrubá-las para obrigar a retirada dos moradores de imediato, principalmente em
circunstâncias em que o conflito se tornara declarado.
Pode-se ainda refletir como o destelhamento das habitações dos camponeses de
Japuara foi visto pelo proprietário como uma forma de manter a estrutura preservada da
moradia, todavia sem os camponeses dentro. Seria assim uma forma de forçar a retirada dos
camponeses e ainda assim preservar a estrutura da casa para futuramente oferecê-la a novos
moradores, tendo em vista que dificilmente os camponeses de Japuara conseguiriam se manter
na propriedade com as habitações destelhadas. Não custa recordar que César Campos, no
conflito de Cobra de Veado, em 1963, conforme relatos de alguns jornais, teria destruído com
um trator a casa da liderança dos camponeses daquela fazenda, Francisco Almeida, situação
essa que foi denunciada a época, por José Leandro, liderança da Contag, no jornal Terra Livre.
O destelhamento das casas ou a sua destruição era uma forma de os proprietários
de manter “o controle de tais habitações” (SCHMIDT; SPERANZA, 2012, p. 1),
principalmente, quando os camponeses se tornavam indesejados na propriedade. Assim, era
uma estratégia dos proprietários de forçar a retirada dos camponeses e também de se sobrepor
a sua própria autoridade. Observa-se ainda que o alvo principal do patronato agrícola eram

118
Entrevista concedida pelo sindicalista João Felismino de Souza, ex-presidente da Fetraece (1977 a 1980) à
pesquisadora Glória Ochoa, realizada em 15/08/83, p. 8. Documento sob guarda do Nudoc-UFC.
105

normalmente as casas das lideranças camponesas, locais que também passam a ser utilizados
como espaços de mobilização sindical.
Dezemone (2008) também observou que, quando os proprietários não desejavam
mais os colonos em suas terras, uma das primeiras atitudes tomadas era o destelhamento das
casas dos camponeses. Segundo ele, os proprietários davam um prazo para os colonos
abandonarem as residências; caso estes não se retirassem dentro do período estabelecido, tinha
início a retirada das telhas das casas dos colonos: “A ‘lei deles’ seriam determinações
particulares dos fazendeiros, que caso não aceitas, motivariam a expulsão em vinte e quatro
horas da fazenda. Se o prazo exíguo não fosse obedecido ocorria a retirada das telhas da casa
do colono” (DEZEMONE, 2008, p. 126). A retirada das telhas das moradias sinalizava que eles
deveriam abandonar de imediato a propriedade. Assim representava o rompimento definitivo
da relação entre o proprietário e os colonos: “As vinte quatro horas e a retirada das telhas,
comuns nas fazendas da região, encerravam o contrato social implícito, sem ressarcimento ou
indenizações de qualquer natureza pelo trabalho e benfeitorias do colono” (DEZEMONE, 2008,
p. 127). Portanto, a retirada das telhas das habitações dos camponeses ou a sua destruição eram
práticas recorrentes entre os proprietários de terra tanto do Sudeste quanto do Nordeste. Isto
indica o quanto as residências dos moradores adquiriam uma centralidade nos conflitos de terra.
A destruição das habitações, além de caracterizar o modus operandi dos
proprietários nos confrontos com os camponeses, buscava resguardar a autoridade que se
encontrava ameaçada pelos camponeses, principalmente, quando estes passam a utilizar as
fazendas como espaços de mobilização sindical. Isto é, o fato de César Campos ordenar a
destruição das casas das lideranças dos camponeses de suas propriedades não constitui fato
isolado. Segundo Palmeira (1989), a interferência dos sindicatos colabora “para enfraquecer os
padrões tradicionais de dominação” e representa ainda uma “negação personalizada do poder
do latifúndio” (1989, p. 101-102). Assim, atentar contra as moradias era algo corriqueiro entre
os proprietários de terra quando estes desejavam despejar os camponeses das fazendas,
principalmente, em uma situação de perda de poder pessoal que se encontrava ameaçada com
a interferência dos STRs em tais relações.
Observa-se ainda que o processo de organização dos moradores ocorria no interior
dessas fazendas e a estrutura da casa da liderança camponesa servia como ponto de apoio ao
STR local, a exemplo, da residência de Pio, que era sede de uma Delegacia Sindical. Então,
atentar contra a moradia dessas lideranças sindicais tornou-se um modo de intimidar e
desarticular a mobilização sindical dos camponeses que utilizavam a morada como espaço de
organização coletiva.
106

Nesse sentido, uma série de elementos simbólicos é acionada quando os


proprietários resolvem despejar os camponeses, e muitos desses elementos se materializam na
casa. Do mesmo modo, a defesa da moradia por parte dos camponeses também é atravessada
por uma forma de resistência tanto à intimidação pelos fazendeiros, quanto aos despejos
forçados e sem o ressarcimento pelos anos de trabalho na propriedade. Outra observação
pertinente é a ligação da família camponesa com a casa, isto é, a defesa da residência era uma
defesa dos que ali residiam e que ficariam desabrigados caso o despejo fosse concretizado.
Assim, existe por parte dos camponeses a esfera da defesa do âmbito privado e da família ao
defenderem a morada.
A destruição da casa de Pio, portanto, representou a culminância do conflito entre
os moradores de Japuara e César Campos. Significou um ponto de não retorno da relação de
morada, além de ter sido uma tentativa do proprietário de recuperar a autoridade perdida. Como
já enfatizado, o proprietário tinha realizado inúmeras tentativas de expulsão dos moradores sem
sucesso. As intimidações como a destruição dos roçados por animais, o impedimento do cultivo,
proibição de pescar no açude e a prisão da liderança dos moradores não tinham surtido o efeito
esperado. Logo, são situações que deixam clara a perda do poder dos proprietários de terra e,
não raro, são acompanhadas de atos de violência. A violência é utilizada como instrumento de
manutenção de poder, principalmente, diante de circunstâncias em que outros possíveis
aparatos ligados à dominação tradicional dos proprietários de terra passam a ser questionados
pelos camponeses (BARREIRA, 1992).
Retornando ao conflito do dia 2 de janeiro de 1971, é preciso lembrar que o processo
de destelhamento da casa ocorre com a família de Pio dentro da residência, recusando-se a sair.
De acordo com o sr. Luzardo, filho de Pio Nogueira, seu pai ainda tentou negociar com tais
trabalhadores da frente de serviço para que interrompessem o destelhamento da moradia, e
alguns desistem. É interessante observar que muitos desses trabalhadores já frequentavam
Japuara, inclusive, pescavam no açude da propriedade, mesmo proibidos por César Campos.
Isto nos foi relatado pelo sr. Luzardo, que afirmou que os trabalhadores das frentes de serviço
eram conhecidos dos moradores. Ele enfatizou ainda que Pio tinha bom relacionamento com
esses homens da frente de serviço, o que facilitou para convencê-los a descerem da residência.
Todavia, dois deles resolvem permanecer no telhado da propriedade e cumprir as ordens de
César Campos:
Aí quando começaram a subir na casa né!? Destelharam a casa toda... Aí quando
começaram a destelhar a casa, quando o papai saiu de dentro do sítio e foi direto pra
casa, aí ele nesse momento... ele andava com uma espingarda de cartucho 20, calibre
20. Aí quando ele chegou em casa, ele viu a multidão de gente, aí ele disse:
[Pio]: “Meu Deus, não deixe que eu seja pegue por essa turma e lhe peço proteção”.
107

E assim graças a Deus aconteceu. Ele chegou, tinha 8 na frente da casa apreciando os
outros derrubando a casa. Aí ele chegou:
[Pio]: “Eu vou ter que fazer o que o meu coração não pede”.
Mas ele se segurou, chegou até aonde eles tavam, aí conversou com eles. Ele tava com
a espingarda e o facão, porque tava derrubando as bananeiras. Aí quando ele chegou,
diz ele que bateu, bateu o facão assim na perna e ficou brincando, batendo na perna.
Aí quando... quando ele viu as pessoas destelhando a casa, jogando as telhas no chão,
quebrando tudo aí ele disse:
[Pio] “Meus amigos, por que vocês estão tomando essa decisão contra mim e a minha
família?”
Aí eles disseram:
[Trabalhadores da frente de serviço]: “Seu Pio, nós não tamo aqui pra fazer nada com
o senhor e nem estamos aqui pra ordenar ninguém. Nós tamo aqui é fazendo com que
nós sejamos o seu futuro testemunho e se o senhor precisar, pode chamar que a gente
vai.”
Aí quando... quando eles observaram que ele tava entrando dentro de casa, aí saíram
mais ou menos quatro ou cinco, desceram e os outros ficaram em cima da casa. Aí
tinha um, que até tirava ele do sério, ele dizia pra ele:
[Trabalhador]: “Véi, manda as meninas fazer o café que quando nós terminar de
sacudir a última telha embaixo, nós vamos tomar o café”.
Aí ele disse:
[Pio]: “Meus amigos, eu quero fazer um convite a vocês a descerem daí. A escada
ainda tá aqui, vocês desçam e deixe que o patrão de vocês venham fazer o que vocês
estão fazendo”.
Aí eles continuaram com a prosa, mandando que as meninas fizessem o café, que
tavam com vontade de tomar o café. Aí ele começou a ficar um pouco injuriado com
o que tava vendo, aí quando ele fez o pedido pra descer, aí desceram mais uns três, só
ficou dois. Aí ele perguntou:
[Pio]: “E vocês dois? Vão ficar aí mesmo em cima da casa?”
[Trabalhadores da frente de serviço] Nós só saímos daqui, quando não tiver uma telha
em cima”.
Aí ele disse:
[Pio]: “Tudo bem”.
Diz ele que era um sistema tão pesado como tava acontecendo, aí ele disse:
[Pio]: “Eu não vou resistir tanto insulto não, vou reagir”. Aí mandou eles descerem,
eles tornaram a dizer:
[Trabalhadores]: “Manda as meninas fazer o café, nós só saímos daqui quando tomar
o café e quando não tiver mais uma telha em cima”.
Aí ele pegou a espingarda, ficou olhando os dois. Quando os dois ficaram em posição,
de um tiro só derrubar todos os dois, aí ele fez.
Ele disse[Pio]: “Então vocês não querem me ouvir, vocês querem é fazer a derruba da
minha casa.
Eles disseram [Trabalhadores]: “É pra derrubar, o patrão quer a casa limpa, sem
ninguém”.119

É importante considerar que o sr. Luzardo não estava presente no dia dos
confrontos, mas ele personifica a figura do pai em sua narrativa e traz, em seus diálogos, o que
ele passa a considerar como insultos por parte dos trabalhadores da frente de serviço que
levaram a figura paterna a agir daquele modo: fazer o que o seu coração não desejava e atirar
em direção a esses trabalhadores que se recusaram a atender aos clamores de Pio. A liderança
dos camponeses aparece como um herói injustiçado que, por anos, aguentou humilhações do

119
BARROS, Luzardo. Entrevista, 5 de outubro de 2020. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda Mendes. Acervo
pessoal
108

proprietário e que foi levado a agir de modo contrário aos seus princípios. Para os camponeses,
Pio só atirou contra os trabalhadores da frente de serviço porque foi impelido a isto, não resistiu
aos insultos desses trabalhadores e fez o que o seu coração não desejava. No relato dos
camponeses, aparecem os elementos que vão conduzindo aquele ao clímax da história do
conflito. Assim, a narrativa do sr. Luzardo consiste no intercâmbio de experiência entre ele e
os demais moradores de Japuara, pois ele relata o que escutou de outrem: “O narrador retira da
experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as
coisas narradas as experiências de seus ouvintes” (BENJAMIN, 1987, p. 201).
De acordo com Benjamin (1987), a arte de narrar está cada vez mais cara entre os
homens, principalmente após a Segunda Grande Guerra, já que, segundo ele, tais homens
retornavam emudecidos dos campos de batalha e não mais ricos em experiências: “É a
experiência de que a arte está em vias de extinção. São cada vez mais raras as pessoas que
sabem narrar devidamente (1987, p.197). É interessante refletir como ainda alguns grupos de
camponeses conseguiram preservar essa habilidade narrativa, cujas histórias contadas buscam
não só envolver aquele que escuta, mas também retiram uma lição do que relatam, pois, para
Benjamin, “o narrador é um homem que sabe dar conselhos” (1987, p. 200). Assim, o sr.
Luzardo pode ser apontado como um exímio narrador, já que ele consegue envolver aquele que
escuta e tem a capacidade de intercambiar experiências.
A narrativa do sr. Luzardo nos mostra ainda capacidade imaginativa envolta nos
relatos memorialísticos das classes populares, no caso dos camponeses: “Fontes orais de classes
não hegemônicas são ligadas à tradição da narrativa popular” (PORTELLI, 1997, p. 30). Os
elementos factuais são narrados de modo imaginativo e poético que não se limita a relatar os
fatos, mas produz uma narrativa que envolve também aquele que escuta. Existe ainda uma
diluição entre o acontecimento e a imaginação, entre o indivíduo e o grupo. A imaginação, no
caso desse relato, toma ainda mais vazão pelo fato de ele não ser uma testemunha ocular dos
confrontos. A sua memória é produzida a partir de uma imaginação social compartilhada entre
ele e os demais moradores:

[...] a narrativas históricas, poéticas e mítica; sempre se tomam inextricavelmente


misturada. O resultado são narrativa-, nas quais a fronteira entre o que toma o lugar
fora do narrador e o que acontece dentro, entre o que diz respeito ao individual e o
que diz respeito ao grupo, pode se tomar mais enganosa que os gêneros escritos
estabelecidos, de modo que a "verdade" pessoal possa coincidir com a "imaginação"
compartilhada (PORTELLI, 1997, p. 30).

Em certo sentido, o que chama atenção no relato do sr. Luzardo é justamente isto:
a capacidade de imaginar, de criar diálogos entre os personagens, mais do que restringir-se à
109

mera detenção nos fatos, tendo em vista a riqueza de detalhes e diálogos em que é construída a
sua representação sobre o conflito. Ele refaz o caminho do seu pai, buscando esclarecer o que
teria levado Pio a tomar uma atitude violenta contra os trabalhadores da frente de serviço. É
fundamental perceber que são os diálogos entre Pio e os trabalhadores que justificam a reação
do camponês, foi necessário reagir diante dos insultos desses homens.
É perceptível como os relatos orais são carregados de imaginação por parte de seus
narradores, o passado é contado a partir de experiências que produzam sentidos no tempo
presente: “[...] mas talvez mais ainda pelas habilidades imaginativas e narrativas com que são
construídas, que podemos perceber a mais profunda consciência histórica dos falantes”
(THOMPSON, 1998, p. 309). Assim, a riqueza testemunhal reside também na capacidade do
narrador de se distanciar do fato e dar vazão a sua imaginação: “A importância do testemunho
oral pode se situar não em sua aderência ao fato, mas de preferência em seu afastamento dele,
como imaginação, simbolismo e desejo de emergir. Por isso não há falsas fontes orais”
(PORTELLI, 1997, p. 32).
Segundo Portelli (1986), não temos como ter a certeza do “fato”, tendo em vista
que o que as fontes relatam pode não ter “sucedido verdadeiramente” daquela maneira, mas é
relatado de modo verdadeiro. Dito isto, tomam-se neste trabalho as narrativas orais como uma
representação dos fatos ou mesmo interpretações dos acontecimentos, pois, como afirma o
autor, seria ilusório tratar qualquer relato testemunhal como uma tomada dos fatos de modo fiel
e autêntico ao acontecimento, pois “recordar e contar já é interpretar” (PORTELLI, 1996, p. 2).
De tal modo, a narrativa do sr. Luzardo está inserida em uma memória coletiva
construída sobre os fatos, mas carregada de representações: “As histórias que relembramos não
são representações exatas do nosso passado, mas trazem aspectos desse passado e os moldam
para que se ajustem às nossas identidades e aspirações atuais” (THOMSON, 1997, p. 57). As
narrativas divergem a partir do lugar social ocupado por esse sujeito e também de acordo com
as expectavas atuais dos narradores: “a memória é uma operação de sujeitos historicamente
situados, que se realiza na medida em que acontece uma (re)composição do passado sob direta
influência de experiências do presente”. (RAMOS, 1997, p. 364). Além de serem atravessadas
por escolhas do que lembrar e esquecer: “Esse movimento está apoiado por em um processo de
escolhas onde as pessoas elegem o que lembrar e o que narrar” (CARDOSO, 2010, p. 39).
Assim, os narradores trazem, em seus discursos, uma interpretação dos
acontecimentos e expectativas que não podem ser enquadrados como reprodução fiel dos fatos:
“fontes orais contam-nos não apenas o que o povo fez, mas o que queria fazer, o que acreditava
estar fazendo e o que agora pensa que fez” (PORTELLI, 1997 p. 31). Portanto, é necessário
110

compreender o relato oral como uma representação que faz uso dos fatos, mas que não se detém
em relatar somente o que se passou: “os fatos são reconhecidos e organizados de acordo com
as representações” (PORTELLI, 2006, p.111). O fato de a casa de Pio ter sido destelhada pelos
trabalhadores da frente de serviço é inegável, bem como um desses trabalhadores ter sido morto
durante tal confronto, mas a interpretação de tais acontecimentos emerge de imediato a partir
do relato do sr. Luzardo, que não esteve presente nos confrontos, mas disse que transmitiria os
acontecimentos conforme o que o seu pai havia contado.
É fundamental salientar que o relato do sr. Luzardo são registros da memória
individual entrelaçada e diluída em uma memória coletiva sobre os acontecimentos e que
buscam se respaldar dentro do grupo: “Certamente, se nossa impressão pode apoiar-se não
somente sobre nossa lembrança, mas também sobre a dos outros, nossa confiança na exatidão
da evocação será maior, como se uma mesma experiência fosse recomeçada não somente pela
mesma pessoa, mas por várias” (HALBWACHS, 1990, p. 25). Por mais que o seu corpo físico
não tenha se tornado testemunha dos confrontos em Japuara, o simples fato de ele se afirmar
enquanto filho da principal liderança e divulgador dos acontecimentos conforme as lembranças
do seu pai o sedimentam como um narrador confiável para recontar a história do conflito. Assim
ele se coloca.
De acordo com Cardoso (2010), as narrativas orais possibilitam ao historiador
compreender experiências sociais compartilhadas entre os sujeitos em tempos cruzados: o do
acontecido e o do relato (2010, p. 32). Trabalhar com narrativas orais, segundo a autora,
permitem ainda discutir como o mundo social é construído por esses sujeitos em seus
relacionamentos com os demais e também inserir na História os grupos socialmente
marginalizados. Todavia, é importante considerar que o historiador não deve trabalhar com os
relatos orais apenas para dar voz a esses sujeitos, mas sim para compreender a esfera social em
que estes se encontram inseridos com as “suas experiências nos debates diários com outros
sujeitos dominantes ou não” (CARDOSO, 2010, p. 38) e, também, como estes narradores se
constroem enquanto sujeitos. Trabalhar com relatos orais, em uma perspectiva da história
social, significa trabalhar com essas narrativas por meio de um olhar que traz à tona as questões
do historiador “voltadas para a compreensão do social e de seus interlocutores” (2010, p. 38).
De tal modo, é possível utilizar as memórias para tentar compreender o mundo social dos
sujeitos e sua ligação com os diferentes estratos sociais, sejam eles dominantes ou não.
Nesse sentido, toda memória individual é também atravessada por esses aspectos
sociais que dizem respeito a uma construção de uma memória coletiva sobre tais
acontecimentos. O passado passa a ser sentido pessoalmente pelos sujeitos por meio dessa
111

memória social compartilhada: “Pelo sentimento de descoberta nas entrevistas, o meio


ambiente imediato adquire uma dimensão histórica viva: uma percepção viva do passado o qual
não é apenas conhecido, mas sentido pessoalmente” (THOMPSON, 1998, p. 30). Assim,
mesmo ausente dos confrontos, o sr. Luzardo consegue sentir esse passado como parte de si por
meio de uma memória social compartilhada pelo seu pai e se insere no grupo ao qual ele se
vincula.
Em um determinado momento da entrevista, inclusive, o sr. Luzardo interrompeu a
narrativa do destelhamento da casa e questionou-me se um dos agricultores conhecido como
Alfredo 21, que havia sido entrevistado e que estava presente no confronto, tinha relatado o
episódio de destelhamento da moradia de Pio de modo semelhante:

Aí ele disse [Pio]: “Meu filho é o seguinte: os gritos que eles estão fazendo e
acontecendo é uma coisa que é para nos amedrontar, mas nós não podemos ter
assombro nenhum com isso não. Eles não valem nada é igual a nós ou pior”.
Aí quando começaram a subir na casa né!? Destelharam a casa toda.
O Alfredo contou dessa maneira?120

O que indica a preocupação de ter uma consonância entre o seu relato e o do grupo,
principalmente com os narradores enquadrados como testemunhas oculares do conflito. De
acordo com Alistair Thomson, do mesmo modo que se busca a afirmação da identidade pessoal
dentro de comunidade específica, as reminiscências também necessitam ser (re)afirmadas
dentro de um grupo ao qual o sujeito se vincula (THOMSON, 1997, p. 58). Assim, as memórias
dos narradores oculares servem de fios condutores para os demais camponeses para recontarem
a história do conflito. Portanto, são narrativas, numa perspectiva de Walter Benjamin (1987),
que recorrem à experiência individual e vivida por outros para construir uma memória de si e
do grupo. A memória desses camponeses pode ser compreendida como um espaço de
intercâmbio de experiências constituídas pela memória do narrador e da vivida pelos outros,
especialmente, no caso do sr. Luzardo, uma memória paterna sobre os confrontos que se
confunde no seu relato com as suas próprias lembranças e com a sua própria interpretação desse
passado.
Do mesmo modo, é inegável como os trabalhadores, ao promoverem o
destelhamento da casa de Pio, afrontam-no na esfera de uma honra masculina, principalmente,
quando o sr. Luzardo enfatiza constantemente que os trabalhadores afirmaram que, depois que
retirassem a última telha da casa de Pio, tomariam o café feito pelas meninas que estavam no

120
BARROS, Luzardo. Entrevista, 5 de outubro de 2020. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda Mendes. Acervo
pessoal.
112

interior da moradia presenciando o destelhamento: “Aí eles continuaram com a prosa,


mandando que as meninas fizessem o café, que tavam com vontade de tomar o café. Aí ele
começou a ficar um pouco injuriado com o que tava vendo”.121 Assim, fica evidente como esse
fato insultou profundamente Pio, que resolve tomar uma atitude contra esses homens. O sr. Jacó
também enfatizou que alguns trabalhadores da frente de serviço fizeram “pouco caso” da
liderança dos moradores ao afirmarem que “tomariam o café”, depois que terminassem de
destelhar a residência de Pio:
Quando chegaram na casa do Pio ali, que tava pro Sitio, finado Pio tava por sítio mais
esse Pelé Mariano com as bananas e a espingardona de lado. Aí esse Piau [trabalhador
da frente de serviço] que morreu, que eu amostrei pra senhora ontem [mostrou uma
fotografia do trabalhador publicada pelo jornal], fazendo pouco do finado Pio, ele tava
do lado de cá, mandando fazer o café, era pra fazer o café. O Pelé dá a notícia disso
aí, eu nem vi porque eu tava na minha casa ainda. Subiu... as telhonas ali, do lado de
cá eu conheço. Dá fé o Piau. A dona Zefa [esposa de Pio] tava chorando e se tremendo,
dona Zefa mãe dos Nogueiras, do Luzardo. Aí tacou ou foi bala ou foi chumbo no
Piau que desceu, bufo!!122

Essa tentativa de destelhamento da casa de Pio Nogueira Barros só foi interrompida


com o falecimento do trabalhador da frente de serviço, Joaquim Piau, que teria caído do telhado
e ferindo-se em uma cerca próxima a tal moradia, conforme relatou o sr. Luzardo:

Aí ele disse:
[Pio]: “Eu vou derrubar todos dois, eles não querem me ouvir e eu não vou mais pedir
nada pra eles. Já pedi umas cinquenta vezes e não querem”.
Aí ele foi, botou a espingarda no rumo dos dois, aí apertou o dedo. Quando ele apertou
o dedo, aí caiu o segundo que ele atirou entre as pernas do outro. Aí o chumbo pegou
no segundo, que era o que mais fazia ele ficar injuriado com eles. Aí ele apertou o
dedo. Quando ele apertou o dedo, o que tava na frente pulou. Aí quando bateu
embaixo, entortou o pé né!? O pé saiu da junta e ficou sem resistência e mesmo assim
ele fez carreira na estrada. A estrada era a 020 de hoje. Aí ele foi...quando... quando o
outro pulou, o que estava atrás dele, saiu bolando em cima dos caibros, até que desceu
e caiu em cima das madeiras. Só o tiro não matava ele não, mas ele caiu em cima da
própria madeira que os amigos dele tavam quebrando, tanto quebrava como cortava e
tudo ficando com as pontas pra cima. Ele bateu em cima das pontas de madeira e
morreu todo estrepado também, coitado. Aí meu pai foi... nessa hora o meu pai tava
sozinho, não tava só porque Deus tava encostado dele, proteção dele né!? Porque eu
até lendo a bíblia eu vejo em Matheus, tem exatamente sobre os injustiçados, então
eu fiquei pensando nisso depois de tudo.123

Nos depoimentos dos moradores, fica evidente que Pio agiu daquela forma em
decorrência da necessidade de defender a si e aos seus que se encontravam no interior da casa:
a sua mulher e os seus filhos. Foi uma reação dos injustiçados, como pôde ser visto no

121
Id., Ibid.
122
FERNANDES, Jacó Ramos. Entrevista, 7 de janeiro de 2021. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda Mendes.
Acervo pessoal.
123
BARROS, Luzardo. Entrevista, 5 de outubro de 2020. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda Mendes. Acervo
pessoal.
113

depoimento do sr. Luzardo ao citar uma passagem bíblica e enfatizar que os moradores tiveram
que fazer justiça pelas próprias mãos, já que em certa medida eles se sentiram abandonados
pela justiça dos homens.
Nesse sentido, a narrativa sobre o episódio do primeiro confronto busca destacar
situações que constrangeram Pio no momento do despejo e que o levaram a reagir de modo
violento contra os trabalhadores da frente de serviço. Um desses episódios que evidenciam esse
constrangimento se relaciona com as palavras ditas por Joaquim Piau tomadas como insultos
ao submeterem Pio a uma situação vexatória diante dos demais camponeses. Principalmente,
quando o trabalhador da frente de serviço afirmou que, depois que despejasse a família de Pio,
tomaria o café feito pelas meninas que estavam no interior da casa presenciando o despejo. Para
os moradores, tais palavras rompem o limite do tolerável.
Assim, na interpretação dos conflitos de terra, também é necessário compreender
os sentimentos dos sujeitos e as situações consideradas humilhantes: “Uma compreensão da
história da luta pela terra deve voltar para estes momentos de resistência teimosa, de análise das
necessidades materiais e dos afetos, tais como sentimentos de humilhação, injustiça e
desumanização” (BRITO, 2017, p. 20). Para os camponeses entrevistados, esses trabalhadores
da frente de serviço, ao pronunciarem tais palavras, durante o despejo, tocam profundamente
os sentimentos e a intimidade de Pio.
Nesse sentido, os relatos induzem a refletir como o conflito de Japuara também foi
ocasionado por uma quebra de determinados códigos de conduta do mundo masculino e como
os entrevistados percebem determinadas atitudes dos trabalhadores da frente de serviço como
uma afronta direta à honra de Pio ao submeterem a uma humilhação diante do grupo de
camponeses. Segundo Velasco e Sutil, a honra alicerça-se em princípios ligados tanto à
virilidade quanto aos valores morais considerados essenciais pelos sujeitos na constituição
individual e a sua posição no grupo: “A honra é compreendida como um cálculo individual a
respeito do que a sociedade espera como aceitável e necessário para efeito de afirmação e defesa
da posição social do indivíduo” (VELASCO; SUTIL, 2017, p. 278). De acordo com Büschges
(1997), a ideia de honra, em determinadas regiões ou sociedades, impõe aos indivíduos modelos
e regras de comportamento nos relacionamentos pessoais e social (1997, p. 57). Para Farge
(2009), a valorização da honra não é exclusividade das classes dominantes, e os “menos
afortunados” também percebem a honra como um valor fundamental ligado à sua existência:
“Longe de ser apanágio dos grandes, a honra é um bem que as pessoas do povo pleiteiam com
veemência. Assim, os sujeitos do povo convivem constantemente com os sentimentos do que
consideram enquanto injúrias, ofensas e os limites do que deve ou não ser tolerado” (FARGE,
114

2009, p. 565). Em outros termos, existe uma linha tênue entre a honra e a desonra, e os
indivíduos sabem que isto pode ser determinante na forma como aquele sujeito é visto pelos
demais do seu grupo: “[..] percorrem as comunidades populares perpétuos movimentos de honra
e desonra que no âmago de fenômeno de solidariedade perfeitamente visíveis, conduzem o jogo
do destino individual” (FARGE, 2009, p. 561).
De acordo com Büschges (1997), é necessário considerar ainda que a honra não se
alicerça somente em valores morais dos indivíduos ou grupo, ela também está fundamentada
em valores como a coragem e a bravura: “Además, no sólo se consideraba el honor en su esencia
y en su más alta expresión como una virtud en el sentido moral, sino tambíen en el sentido de
ànimo (corage) y valentia (bravura)” (1997, p.61) Considera-se ainda como a honra é
estreitamente fundamentada sobre papéis previamente estabelecidos na sociedade sobre o que
se concebe sobre o masculino e o feminino, isto é, as convenções de gênero como ressalta Farge
(2009): “Não surpreende, pois, que os meios mais utilizados para atacar indivíduos e famílias
sejam a agressividade do homem contra a mulher e as formas de afrontamento seculares reais
e míticas, entre o mundo masculino e o feminino. Basta colocar em dúvida a virtude das
mulheres” (FARGE, 2009, p. 570). Portanto, salienta-se como a autora observa que uma das
formas de atingir a honra masculina é por meio da difamação dirigida às mulheres, com palavras
que questionem a virtude feminina: “a difamação da virtude é uma arma que pode servir para
atingir mais de um alvo: ora a própria mulher, ora o homem a ela ligado” (FARGE, 2009, p.
570). De tal modo, existe uma diferença na manutenção da honra para homens e mulheres, além
de ser necessário levar em consideração que o masculino e o feminino são atingidos em sua
intimidade de modos distintos. Segundo Büschges (1997), enquanto no universo masculino
existe uma sobrevalorização de valores como a coragem e a bravura, no mundo feminino, a
honra assenta-se mais sobre os comportamentos sexuais (1997, p. 63). Assim, colocar em xeque
tais valores gera tensão: seja questionando a virtude feminina normalmente associada à esfera
sexual ou, no caso dos homens, colocando em dúvida a capacidade de reagir com bravura e
coragem quando provocados.
No caso das narrativas dos camponeses de Japuara, é possível perceber como eles
enfatizam o comportamento considerado ofensivo por parte dos trabalhares da frente de serviço
direcionado às mulheres, mas que, na verdade, atingem a honra de Pio, que se valerá da coragem
e valentia para defender tais valores. Em outros termos, o camponês age conforme o que era
convencionalmente esperado que um homem fizesse para defender as mulheres e as crianças
da família: agir com bravura e firmeza.
115

É necessário, pois, compreender a masculinidade como histórica e socialmente


construída, conforme adverte Del Priore (2013), que ainda ressalta as diversas nuances que
envolvem tal construção, como as diferentes temporalidades, regiões geográficas, classe social,
sexualidade e religião. Diferentes variáveis influenciam o ser masculino, e essas nuances
produzem diferentes papéis previamente estabelecidos que devem ser atendidos pelos homens.
Ser homem não é o suficiente, a masculinidade necessita ser constantemente atestada pela
sociedade: “Pois a história dos homens não é só feita de conquista e atos heroicos, mas também
de sofrimento, dores e humilhações que os condenam a sofrer calados. Bom cabrito não berra,
homem que é homem não chora, dizem os provérbios populares” (DEL PRIORE, 2013, p. 10).
Deve-se considera ainda que, no caso específico, trata-se de homens pobres do
campo e nordestinos que trazem algumas particularidades a serem pensadas sobre o ser
masculino nesta realidade social e geográfica. Uma delas, no caso de camponeses moradores,
é a própria sujeição aos proprietários de terra que se sobrepõem a estes pela hierarquia social,
inclusive, submetendo os camponeses a muitas situações intimidatórias que não raro visam a
atingir a honra desses homens por meio de humilhações públicas. O ato de expulsão da morada
é perpassado por ações que buscam atingir a intimidade desses camponeses moradores, seja
com difamações dirigidas às mulheres ou mesmo com atitudes provocativas tomadas de modo
público. Assim, para Del Priore (2013), existe uma questão de classe social que não deve ser
posta de lado na construção da masculinidade desse homem do sertão: “[...] entre os homens
existiram diferenças econômicas, de cor e condição que incentivaram a exploração de uns sobre
os outros. Não se trata, portanto, de uma história sem tensões, mas de uma história feita no
entrelace de conflitos, dominação, subserviência e violência (DEL PRIORE, 2013, p. 10)”.
Portanto, os marcadores sociais de classe, raça/etnia produzem uma “masculinidade
subalterna” (CAETANO E SILVA JÚNIOR, 2018, p. 13). Assim, é possível considerar também
determinados marcadores sociais e geográficos na produção da masculinidade, no caso
específico deste estudo, dos homens subalternos do sertão ou como também definido por
Albuquerque Júnior do “cabra macho nordestino”, cujos valores se assentam na virilidade,
coragem e valentia “O nordestino, portanto, fruto de uma história e uma sociedade violenta,
teria como uma de suas mais destacadas características subjetivas a valentia, a coragem pessoal,
o destemor diante das mais difíceis situações” (ALBUQUERQUE, 2013, p. 176). Levando
ainda em consideração como a honra é um alicerce desse “cabra macho nordestino: “Coragem
e um apurado sentido de honra seriam características constituintes destes homens, que não
levariam desaforo para casa. Homens que preferiam perder a vida do que perder a honra, serem
desfeitos publicamente” (ALBUQUERQUE, 2013, p. 176). Assim, a utilização da violência era
116

preferível a ter a honra desfeita publicamente diante dos seus iguais, ou melhor definindo, do
grupo social ao qual esse sujeito se vincula.
Nos relatos dos camponeses, emerge a imagem de Pio associada justamente aos
ideais de masculinidade, tais como a coragem, a valentia, virilidade e a macheza como seus
atributos (ALBUQUERQUE, 2013, p. 208). A própria defesa da casa também aparece dentro
dessa esfera do universo masculino, isto é, cabia a Pio (o homem da casa) defender o seu lar e
a sua família daquela situação intimidadora e vexatória. Destaque-se que os narradores fizeram
questão de afirmar que boa parte dos trabalhadores da frente de serviço se retiram do telhado
da casa a partir do momento em que Pio adentra o espaço doméstico quando ocorria o
destelhamento. As narrativas buscam, então, enfatizar que Pio era um homem respeitado entre
os trabalhadores da frente de serviço. Contudo, os dois trabalhadores contratados pelo
proprietário que resolvem permanecer no telhado destelhando a residência de Pio, ao afirmarem
que tomariam o café feito pelas mulheres da família, acendem o estopim do conflito. Naquele
contexto, tais palavras são tomadas como insultos pelos camponeses, o que gerou efeitos reais
e instantâneos: “qualquer palavra insinuante, provocativa, até mesmo evasiva sobre a reputação
do outro acarreta uma série de consequências imediatas” (FARGE, 2009, p. 569). Esses
trabalhadores, ao atentarem contra o lar de Pio e o insultarem em sua intimidade, transpuseram
os limites do aceitável.
Mesmo as intimidações constantes como destruição dos roçados, apreensão dos
animais de criação, prisões dos moradores estavam dentro do que então podia ser suportado, já
que eles estavam aguardando as providências judiciais. Contudo, aquelas palavras provocativas
direcionadas às mulheres e o destelhamento da casa de morada, deflagram o conflito e
provocam uma reação dos camponeses.
A emergência do segundo confronto se dá também no dia 2 de janeiro de 1971,
também na casa de Pio Nogueira Barros. Depois da morte de Joaquim Piau, os camponeses vão
se concentrar em frente à residência de Pio, e, dessa vez, os enviados pelo proprietário serão a
Polícia local. Os policiais, ao chegarem à propriedade, já agem com hostilidade e provocam o
segundo confronto ao assassinarem um ancião que se encontrava junto aos demais moradores
em frente à residência de Pio, o sr. Nonato Paes Fernandes. O delegado local teria tido uma
discussão com Nonato, o qual estava com uma foice nas mãos. Conforme nos relatou o sr.
Alfredo, sobrinho de Nonato, ele considerava Nonato como um pai e também se incomodava
com o fato de a violência ter sido associada somente aos camponeses e não aos policiais, como
fica evidente em seu relato:
117

Essa delegada que veio pra cá, passou o dia por aqui conversando e ela disse: “Seu
Alfredo por que tanta agressão?” Digo: Doutora, a agressão não partiu dos trabalhador
não, a agressão partiu da pessoa que veio fazer, o delegado que veio né!? Já tinha
acontecido já uma morte né!? O Piau, derrubaram o Piau do Pio, de cima da casa dele
né!? Pode-se chamar bandido né!? Aí foi... chegaram, mas chegou logo foi batendo,
atirando no pessoal, atirou... matou o véi meu tio, pai de criação.124

Portanto, de acordo com os moradores, os policiais chegam à propriedade de modo


hostil. O que intensificará o cenário de violência:

Aí a Polícia já estava saindo de Canindé, mais ou menos nessa hora. Mais ou menos
dez minutos depois a Polícia chegou e quando a Polícia chegou tinha o Nonatinho,
avô do Alfredo, aí ele tava com a foicinha dele na mão, aí o carro da polícia parou,
era muito atrevido esse delegado. Aí disse pra ele [Delegado Cidio]: “Velho, solta a
foice, velho”. Aí o nome dele era Cidio né!? Aí ele disse [Nonatinho]: “Seu Cidio, a
minha foicinha né pra briga não, eu tô aqui porque eu tô pelejando pra tirar o meu
filho que tá aqui, e eu quero levar ele pra casa com vida”. Aí foi e ele disse [Delegado
Cidio]: “Não conversa não, velho. Solta a foice. Ele disse [Nonatinho]: “Sim senhor,
vou soltar.” Quando ele disse que ele ia soltar, ele foi e tacou dois tiros na cara dele,
uma bala ficou dentro da boca, a outra passou pro outro lado, furou o rosto dele de um
lado pra outro.125

Depois desse episódio em que Nonato foi atingido por um tiro, policiais e
agricultores entraram em confronto direto. Os dois confrontos terminaram com quatro mortos:
o trabalhador da frente de emergência, Joaquim Piau; o delegado Cidio Martins; o soldado de
polícia Paulo Freitas; e o último a falecer, o morador de Japuara, Nonato Paz, que, durante os
confrontos, teria recebido um segundo tiro do irmão do delegado.
O assassinato do camponês, até hoje causa muita indignação, principalmente entre
os parentes de Nonato, caso também do sr. Jacó, sobrinho de Nonato. Esse sentimento de
injustiça e de denúncia é muito latente, principalmente, porque nenhum dos policiais respondeu
criminalmente pelo assassinato de Nonato.

Pode botar aí no papel. Nonato Paes Fernandes quem matou foi o Cidio Martins! Com
a foicinha na mão, sem bulir...nunca puxou um cabelo dentro da Japuara, moradores
de César Campos e dos Cruz. Nonato Pais Fernandes que aquele que tava no... que eu
mostrei a senhora ontem (ele me mostrou uma fotografia de Nonato).126

Os moradores constantemente afirmavam que Nonato era um senhor pacífico e que


nunca tivera desentendimento com os demais camponeses. Assim, estabelecem, em seus
depoimentos, que a violência policial foi desproporcional com o agricultor.

124
FERNANDES, Alfredo Ramos. Entrevista, 23 de setembro de 2020. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda
Mendes. Acervo pessoal.
125
BARROS, Luzardo. Entrevista, 5 de outubro de 2020. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda Mendes. Acervo
pessoal.
126
Idem.
118

Até os dias de hoje, o sr. Jacó, lamenta o fato de não ter conseguido evitar a morte
do seu tio:
Meu tio tinha merendado um pão quando eu entrei em casa, tinha uma criação do
finado Pio que eu passei a dizer e desceu ali pra baixo: “Jacó, vem já pra nós olhar a
madeira”. Se eu soubesse que ia acontecer isso, eu tinha tirado o meu tio. Tinha
desviado ele pra olhar madeira por aqui que eu conhecia os caminhos tudinho.127

Apesar do sentimento de impotência, por não ter impedido que seu tio fosse morto
pelos policiais, outros elementos evidentes em sua narrativa provocam certo orgulho e
permitem uma melhor convivência com o passado. Um desses acontecimentos relaciona-se ao
fato de o sr. Jacó ter escondido as armas dos policiais e evitado, segundo ele, que houvesse um
maior saldo de mortes no segundo confronto com os agentes do Estado:

Aí acontece que a Polícia fecharam a rosca em cima do Jacó véi. Tomei dois
mosquetão da Polícia pra não matar uns aos outros que eu não tava vendo ninguém de
briga lá. Pra brigar, não tinha ninguém, só os que tinha...tinha os que tava lá no conflito
e eu não vi ele, não deu tempo. Aí dois eu tomei os mosquetão dele, botei no quintal
do Pio. O derradeiro foi o Magalhães, José Ratinho, um magrinho. Pode botar dois
soldados. Tomei e botei no quintal do Pio, o Jacó Paes Fernandes. Isso já tá escrito, lá
embaixo, lá na justiça, lá em Fortaleza.128

Outra questão é a tentativa, por parte dos camponeses, de restabelecerem uma


narrativa distinta da que foi construída pela imprensa nos primeiros dias dos confrontos, já que
os jornais enfatizaram que as ações violentas foram tomadas pelos camponeses e não pelos
policiais. Assim, os camponeses de Japuara que ficaram associados a essa imagem agressiva
fazem questão de afirmar, em seu discurso, terem sido os policiais quem iniciou o segundo
confronto e não os moradores.
A casa de morada de Pio não existe mais em Japuara. Os moradores, após os
confrontos, optaram por destruí-la em decorrência de a casa ter sido totalmente alvejada por
tiros. O sr. Jacó lamentou tal destruição. Para ele, a casa de Pio Nogueira era uma testemunha
dos confrontos ocorridos na propriedade:

A casa da bodega que o Pio tava, que era do Amorim com o Edgar, cortou de bala
todinha pensando que o Pio tava dentro, mas não tava. Na hora que eu botei as armas
pra dentro e vim embora, tava o Seu Pio, coitado, na casa de cá que num era pra nós
ter desmanchado aquela casa não, ter deixado que um dia aparecia gente, desmanchou.
Mas tava o Seu Pio na porta, por lado de dentro, tava na porta lá de dentro e um tio
meu andando, esse que levou a bala, pisou em cima do sangue, Nonato Paes
Fernandes. Em cima do sangue! Pegou lá nele assim e saiu assim (fez gestual

127
FERNANDES, Jacó Ramos. Entrevista, 7 de janeiro de 2021. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda Mendes.
Acervo pessoal.
128
Id., Ibid.
119

mostrando o local que o tiro atravessou no rosto). Em cima do sangue, pisando em


cima do sangue!129

O sr. Jacó, em diferentes momentos, refletiu sobre desfechos distintos para a


história dos confrontos e como tudo poderia ter sido diferente. Ele relatou que Pio deveria ter
ficando residindo na Casa Grande130 que existia na propriedade, pois os trabalhadores da frente
de serviço não teriam conseguidos entrar à força, e, assim, teria sido evitado o confronto entre
Pio e os trabalhadores da frente de serviço. Desse modo, ele traz para a sua narrativa o âmbito
de possibilidades de como a história do conflito poderia ter sido outra, sem um desfecho trágico:

O Seu Pio não soube trabalhar, devia ter ficado na Casa Grande como cunhado do
Amorim e compadre. O Pio Nogueira Barros! Mas veio pra cá né? Lá era custoso do
povo ir (risadas) toda cercada de arame, fechava a cocheira e não entrava ninguém à
força não. Que era do Amorim, mas não... tudo aberto aqui. Só tinha o arame do César
que encostava ali, da minha terra mais da comadre Irene. Assim, a gente vai dizendo
as coisas e o povo acreditando aí, nas coisas que eu conto.131

Segundo Portelli (1993), os narradores não necessariamente se referem a fatos que


obrigatoriamente tenham ocorrido. O autor observa que os relatos memorialísticos não atuam
somente no campo da realidade e constata que muitos narradores inserem os seus relatos no
campo da possibilidade, do desejo, a denominada “ucronia”:

Ucronia é “aquele perturbador tema, no qual o autor imagina o que poderia ter
sucedido se um determinado evento histórico não tivesse acontecido”; a representação
de “um presente alternativo, uma espécie de universo paralelo no qual se cogita sobre
um desdobramento de um evento histórico que não se efetuou” (PORTELLI, 1993, p.
50).

Assim, o relato do sr. Jacó não incide efetivamente no âmbito concreto, isto é, no
que de fato ocorreu, tendo em vista que ele também relatou fatos inseridos no campo da
“possibilidade”, do que não ocorreu, e sim do que poderia ter sido. Existe, então, uma tentativa,
por parte dele, de construir uma história diferente dos confrontos. A sua memória atua no
âmbito do “desejo”, da possibilidade de o conflito ter tomado um outro rumo em que não
houvesse mortes.
Depois do confronto com os policiais, os moradores resolveram se refugiar nas
matas locais. O grupo de agricultores diretamente implicados no conflito era formado por Pio
Nogueira; seu filho Francisco Blaudes Sousa Barros; Joaquim Abreu – sogro de um dos filhos

129
Id., Ibid.
130
Os moradores de Japuara denominavam a residência do proprietário ou do administrador da fazenda como a
“Casa Grande”.
131
Id., Ibid.
120

de Pio (Plauto Barros); Alfredo Ramos Fernandes (pseudônimo Alfredo 21); Antônio Soares
Mariano (pseudônimo Antônio Mundoca) e Luís Mariano da Silva (pseudônimo Luís
Mundoca), mesmo bastante feridos dos confrontos, refugiam-se nas matas. Inclusive, o
agricultor Luís Mundoca encontrava-se ferido por um projétil (BARROS, 2013, p. 28-29).
Desse modo, são três famílias envolvidas diretamente no conflito: a família de Pio; a de Nonato
Pais, conhecidos como “21” e a família Mariano, conhecida como “Mundoca”. Os agricultores
permaneceram escondidos no Serrote de Santa Teresa por três dias
Apesar de a Polícia de Canindé estar diretamente implicada nos confrontos, ficou a
cargo desta realizar as investigações. Enquanto os agricultores permaneceram refugiados nas
matas, a polícia local cometia arbitrariedades com as famílias de Japuara: mulheres e crianças,
parentes dos agricultores refugiados. A dona Maria relatou sobre o tratamento violento da
polícia com as pessoas que permaneceram em Japuara para que revelassem o paradeiro dos
camponeses:

Uma hora dessas tava longe com as crianças por dentro do mato tudo chorando com
fome. Que o Jacó já tinha saído e eu só fiz fechar as portas e saí. Com nove meses,
com oito meses de grávida e quatro (crianças) andando.
O maiorzinho era o Pedro que tinha mais ou menos uns três...uns quatros anos. A mais
velha tinha cinco, seis anos que era a Heleninha né!? Aí quando foi no dia mesmo, da
Guerra mesmo aqui. Que eles tavam caçando os homens, eu ia saindo na porta da
cozinha e minha filha quando eu olhei assim pra porta da cozinha, tava assim de
polícia (gesto com mão indicando ser muitos policiais) o bucho por acolá.
Aí chegou um e disse:
(Polícia) “Cadê o seu marido”? (Alteração de voz, imitando o policial) (Dona Maria):
“Ah, meu filho eu não sei não. Só deus é quem sabe! Só deus é quem sabe!”
Aí os bichinhos (crianças) ficaram tudo nos meus pés.
(Polícia): “Entre pra dentro, seu bocado de nego.”
Desse jeito ele dizendo com as crianças e os bichinhos ficaram tudo assombrado.
Criança não tinha visto esse horror de polícia né!? Aí ele disse assim:
(Polícia): “Você vai ter que saber onde tá o seu marido”.
(Dona Maria) “Sei não, meu filho. Eu juro como eu não sei onde ele tá. Tô aqui com
essas crianças aqui até uma hora dessas com fome, chorando com fome”.
Aí ele olhou assim e pegou aqui, meu braço aqui. E do jeito que você tava aí, ele
puxou assim pra cima dele, só faltou ele encostar no meu bucho. Mal educado!
Aí eu...aí eu fiquei assim.... e quando foi uma polícia olhou, olhou assim e disse:
(Polícia): “Faz isso não, macho! A pobrezinha sofredora, faça isso não com ela não,
que ela tá grávida”.
(Polícia) “Eu não tenho nada com isso”.
Desse jeito. Ah, minha filha... eu criei uma raiva tão grande. Menino, quando eu
olhei... quando eu olhava pra esse homem, chega eu me tremia todinha. Ele disse:
(Polícia) “Pois é.... pois você vai dar conta dele.
Eu digo:
(Dona Maria): “É.... se eu der conta, tá certo. Mas eu não sei nem onde tá esse homem.
Tá tudo espalhado, o pessoal tá tudo espalhado e eu não sei de nada”.
Ele disse:
(Polícia): “Tem uma coisa, se você não der fim nele, no dia que eu achar ele eu arranco
a língua dele e trago pra você comer assada”.
121

Eu fiquei com um entalamento, é isso mesmo.132

É interessante salientar que ela iniciou a sua narrativa sobre o conflito a partir do
questionamento de como teria sido a sua infância, o que a remeteu a falar não sobre o seu tempo
de criança, mas sim a relatar o que as crianças e mulheres sofreram nas mãos dos policiais
durante os três dias em que os camponeses estiveram no Serrote de Santa Teresa. Como nos
lembra Sarlo (2007), a memória não é espontânea, as intervenções, durante as entrevistas, são
uma forma de forçar essa memória espontânea a produzir uma narrativa sobre esse passado.
São as “imposições da memória” que forçam a lembrar o que se deseja esquecer e que atendem
a uma pressão de conhecimento dimensionada dentro do que esse presente deseja saber sobre o
passado (SARLO, 2007, p.56-57). Nesse sentido, as perguntas do entrevistador conduzem a
uma determinada narrativa sobre o passado e também podem conduzir a rememorações que não
estão dentro do campo da expectativa daquele que conduz a entrevista.
Destaca-se que, se, em princípio, a dona Maria disse que não queria rememorar os
acontecimentos dos confrontos de Japuara, pois considerava tais lembranças dolorosas e,
sempre que narrava os episódios, era impelida ao choro, ela, entretanto, se dispôs a relatar os
acontecimentos. Isto leva a questionar sobre o que impulsionou tal narrativa, mesmo quando
ela afirmou que a rememoração causava sofrimento. De acordo com Lopes (1998), as memórias
podem emergir quando a revolta se torna mais impulsiva do que o trauma. Nesse momento, as
narrativas passam a ser atravessadas pelo tom de denúncia, o silenciamento torna-se mais
doloroso do que a própria memória: “Há situações em que a dor do calar-se é maior que o
sofrimento de operar as tramas da memória (1998, p. 367)”. Para dona Maria, o tratamento dos
policiais com as mulheres e crianças para revelar o paradeiro dos camponeses foi intolerável,
principalmente ela estando grávida. Assim, o seu relato é impulsionado pelo trauma e pela
necessidade de denunciar o Estado representado pelo seu aparelhamento armado.
Dona Maria representa a voz das esposas dos agricultores que tiveram de enfrentar
a brutalidade policial. Por sua vez, um dos filhos de Pio, o sr. Haroldo, representa um pouco o
sofrimento das crianças, ao relatar o episódio em que um dos seus irmãos, o Francisco, uma
criança com cerca de dez anos de idade, foi levado pelos policiais e submetido a torturas:

Na época meu irmão, o Francisco, foi levado com os policiais pra dentro da mata, de
pés descalços só de bermuda e ameaçado de morte na época. Carregando caixas de
balas dos policial e além... além desse sofrimento dele, ele era ameaçado a todo o
momento dizendo que se não encontrasse meu pai, ele morreria. Nisso esse meu irmão
ficou até com um problema psicológico por causa desse tipo de coisa e chegou até a

132
FERNANDES, Maria Paes. Entrevista, 7 de janeiro de 2021. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda Mendes.
Acervo pessoal.
122

ficar um pouco desorientado, ele era um pouco desorientado por causa provocado por
esse episódio que aconteceu, pelo sofrimento que ele teve de andar dentro da mata
com os soldados procurando meu pai e obrigado a carregar caixa de bala na cabeça e
a todo momento sofrendo esse tipo de ameaça se não encontrasse meu pai ele iria
morrer.133

O sr. Haroldo, na época do conflito, tinha um ano de idade e afirmou que as


lembranças que tem sobre o confronto também foram repassadas por seus pais.

Na época eu tinha um ano de idade, não dá pra lembrar de nada...uma criança com um
ano de idade. Mas segundo os meus pais foram momentos difíceis porque minha mãe
se vendo que ia morrer comigo nos braços e teve que adentrar de mata adentro comigo
nos braços, correndo comigo nos braços pra que pudesse salvar a sua vida e salvar a
minha ao mesmo tempo. Foi uma coisa muito triste segundo eles me contaram, porque
na época como eu lhe falei eu tinha um ano de idade, não me lembro do que aconteceu.
Para os meus pais, segundo eles, foram momentos muito tristes que eles passaram
naquela época, porque tanto minha mãe como meu pai tiveram que se embrenhar na
mata pra não morrer porque a ordem vinda do proprietário era liquidar o que tivesse
pela frente, era a ordem que vinha. Então, eles se viram acuados, então eles tiveram
que fugir porque se não fugissem teriam morrido, tanto meu pai quanto minha mãe.134

Se a memória das mulheres e crianças que permaneceram na propriedade é


traumática, por sua vez, os camponeses foragidos no Serrote de Santa Teresa recordam-se
desses dias trazendo uma perspectiva mais heroica, enfatizando o próprio confronto dos homens
contra a natureza. Um dos episódios destacados, durante as entrevistas, foi o enfrentamento de
uma onça que ficou circundando o grupo durante os três dias que estiveram na mata local.
Segundo os narradores, um dos camponeses feridos durante o confronto com os policiais ia
sendo devorado por uma onça: “Passemos quatro dia, quatro dia no mato e a onça ia comendo
nós. Nós ficava dentro, arrebaixado, quando dava fé ela tava. Uma onça pintada que era uma
monstra, olhava pra nós e fazia uma careta pra nós. Ficou uma rapaz baleado no mato, ela ia
comendo o cara né!?”135. O sr. Jacó também enfatizou, em seu relato, as hostilidades da natureza
enfrentadas pelos camponeses:

Aí fumo, duas da madrugada por dentro do mato, por cima de espinho, de cobra,
jararaca, cascavel, onça pintada tinha nesse trecho, nesse tempo também. O Pio
Nogueira lá no mato viu uma onça pintada mais com os que andava mais ele, não
matou com medo da Polícia, tava com uma espingarda, uma 20. Uma onça pintada, o
João do Felix escapou de ser comida por ela.136

133
BARROS, Haroldo. Entrevista, 5 de janeiro de 2021. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda Mendes. Acervo
pessoal.
134
Id., Ibid.
135
FERNANDES, Alfredo Ramos. Entrevista, 23 de setembro de 2020. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda
Mendes. Acervo pessoal.
136
FERNANDES, Jacó Ramos. Entrevista, 7 de janeiro de 2021. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda Mendes.
Acervo pessoal.
123

Segundo ainda o sr. Alfredo, os agricultores sobreviveram esses dias refugiados no


Serrote de Santa Teresa à base de uma batata do mato utilizada para sanar a sede: “No mato
tem uma batata nos mato que chama rainha, é adocicada, o cabra bebe a água, descasca ela,
bebe a água, mastiga, bebe a água”.137 O ambiente natural é relatado de modo agressivo pelos
camponeses. Seja enfatizando as dificuldades de provimento e como eles contornaram tal
situação ou mesmo rememorando os confrontos dos homens versus os animais da natureza.
Assim, os camponeses procuram destacar a própria valentia e coragem durante o período que
permaneceram nas matas locais.
Nesse sentido, essas memórias do conflito também são atravessadas por elementos
em tom heroico, o que indica uma elaboração desse passado que torna menos doloroso o
relacionamento com essas lembranças. Se emergem aspectos nos depoimentos que causam
revolta em decorrência das ações dos policiais contra os camponeses e que ainda provocam um
sentimento de impotência, aparecem também aspectos que tomam esse passado como algo
digno de ser lembrado e recontado aos pesquisadores, principalmente, quando eles trazem um
tom mais aventureiro ao relembrarem os dias que estiveram no Serrote de Santa Teresa.
Durante o período que os agricultores estiveram foragidos nas matas locais, o
conflito ganhava as páginas dos jornais locais e nacionais, com informações sendo divulgadas
diariamente sobre o paradeiro dos camponeses. Assim, faz-se necessário discutir a narrativa
construída pela imprensa sobre o conflito de Japuara.

3.2 Conflito de terra em primeira página

A violência decorrente dos dois confrontos entre os moradores da fazenda, policiais


e trabalhadores da frente de emergência teve grande repercussão nos veículos da imprensa. Por
vários dias seguidos, o conflito de Japuara estampou as capas dos principais jornais do estado,
tendo, inclusive, obtido repercussão nos principais veículos de notícias do país e até mesmo
internacionalmente.138

137
FERNANDES, Alfredo Ramos. Entrevista, 23 de setembro de 2020. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda
Mendes. Acervo pessoal.
138
Segundo o Correio do Ceará, a agência estadunidense United Press Internacional – UPI, repercutiu o conflito
de Japuara no noticiário internacional tanto por meio de relatos quanto por meio da divulgação de radiofotos
(Correio do Ceará, 6 de janeiro de 1971, p. 1).
124

Dos conflitos camponeses do século XX no Ceará, destacam-se como os de maior


cobertura da imprensa jornalística, o massacre do Caldeirão139 (1937) e o conflito da Fazenda
Japuara em Canindé (1971). Pode-se, inclusive, atribuir à extensiva cobertura da imprensa sobre
o conflito de Japuara a celeridade da desapropriação das terras, já que os veículos de imprensa
passam a enfatizar a iminência de outros possíveis confrontos de terra, voltando-se
prioritariamente, dessa maneira, para o clima de tensão social no campo no Ceará e cobrando
uma resolução para estes.
É necessário compreender como os jornais, ao mesmo tempo que levaram ao
conhecimento da sociedade os conflitos pela terra, também produziram uma narrativa sobre os
dissídios e os seus implicados. Analisaremos as notícias veiculadas por três jornais impressos
de maior circulação no estado do Ceará: O Povo; Correio do Ceará e Gazeta de Notícia, o que
nos possibilitou perceber como os periódicos foram mobilizando as notícias sobre o conflito de
Japuara ao longo dos dias e como estes atuaram na formação de uma opinião pública sobre a
violência no campo, suas causas e possíveis alternativas de resolução.
Alguns trabalhos acadêmicos nos ajudaram a refletir sobre a representação dos
camponeses na imprensa, tais como o artigo “O tal de natal: reivindicação por direitos
trabalhistas e assassinatos de camponeses. Pernambuco, 1963”, produzido pelo historiador
Pablo Porfírio. O autor, em seu texto, trata do assassinato cruel de cinco trabalhadores rurais
ocorrido na Usina Estrelina, em Pernambuco, em decorrência da reivindicação por direitos
trabalhistas desses camponeses, tais como o pagamento do décimo terceiro salário denominado
pelos camponeses como “o tal de natal”. Porfírio (2016) analisa como esse fato foi narrado pela
imprensa de Pernambuco e, principalmente, como esta combinou tanto elementos visuais e
narrativos para qualificar os trabalhadores rurais e associá-los à desordem e subversão no
campo. Trata-se de trabalho relevante para quem deseja compreender como os jornais exercem
um papel relevante na formação da opinião pública em questões que envolvem camponeses e
proprietários.

139
O Caldeirão de Santa Cruz do Deserto é considerado um dos principais movimentos religiosos populares do
Brasil do século XX. A comunidade organizava-se no município de Crato (CE), que congregou camponeses em
uma comunidade em torno de uma liderança religiosa, o beato José Lourenço, apoiado por Padre Cícero. A
comunidade sofreu dois ataques amparados pelas forças repressivas do Estado: o primeiro em 1936 e a sua
destruição completa em 1937. O general Góis de Campos Barros (à época, ocupava o cargo de tenente) esteve à
frente do massacre ordenado pelo Estado a comunidade do Caldeirão e escreveu uma série de artigos no jornal
sobre a destruição da comunidade que, posteriormente, foram reunidos no livro intitulado: “A ordem dos
penitentes” (1937), que associava o Caldeirão ao fanatismo religioso. Cf. RAMOS, Francisco Régis Lopes.
Caldeirão: um estudo histórico sobre o beato José Lourenço e suas comunidades. 2. ed. rev. ampl. Fortaleza:
Instituto Frei Tito de Alencar/Núcleo de Documentação Cultural – NUDOC/ UFC, 2011. 220p.
125

É ainda importante considerar, antes de tudo, que os jornais não produzem notícias
de modo neutro e imparcial e mesmo a dita grande imprensa manifesta o seu posicionamento
político no fluxo de notícias (SODRÉ, 1999, p. 4). Segundo Marcondes Filho, o jornal não só
transmite determinado posicionamento, como também é capaz de conduzir a opinião dos
leitores e ditar comportamentos: “Ocorre, entretanto, que os jornais efetivamente colaboram
com a formação de opinião. É incorreto dizer que eles somente a reforçam: em alguns sentidos
e em casos muito específicos eles exercem uma ação verdadeiramente condutora”
(MARCONDES FILHO,1989, p. 21). A imprensa exerce papel fundamental na formação de
opinião pública sobre os conflitos de terra e a violência no campo. Seria um equívoco considerar
que os jornais produzem notícias de modo objetivo e neutro. Como nos lembra Capelato, todo
jornal busca atrair o público leitor e conseguir adeptos para uma causa, conquistando mentes e
corações (CAPELATO, 1988, p. 15). Para a autora, o jornal não é um transmissor imparcial de
notícias, antes, a imprensa constitui-se um instrumento de manipulação de interesses e de
intervenção social. Não se pode então tratar a imprensa como uma reprodutora fiel da realidade
social ou de factualidades. Muito menos, considerar que as notícias são transmitidas ao público
leitor sem qualquer interesse por parte do jornal. O que vira notícia, os destaques de primeira
página, os termos empregados nas chamadas das matérias, tudo isto transforma e torna
relevantes determinados acontecimentos, tudo isto é perpassado por escolhas: “O jornal extrai
da realidade o que lhe interessa (ou a seus leitores) e isso se transforma em notícia [...] o enfoque
da matéria, o tamanho que esta deve ter (linhas), o tamanho e os tipos de títulos e a colocação
da página” (MARCONDES FILHO, 1989, p. 50). Existe, portanto, uma série de elementos
subjetivos por trás da produção das matérias desses periódicos e do que é selecionado para virar
notícia.
Considera-se, então, relevante situar quais os grupos políticos estavam por trás de
cada periódico e também analisar o contexto político em que foram produzidas as notícias sobre
o conflito de Japuara, tendo em vista que esses elementos influenciaram na produção narrativa
de cada jornal sobre a violência no campo. Buscamos responder as seguintes proposições que,
de acordo com Capelato (1988), são relevantes para compreender o papel do jornal na história:
“quem são seus proprietários, a quem se dirige? com que objetivos e quais os recursos utilizados
na batalha para a conquista de mentes e corações” (CAPELATO, 1988, p. 14). Assim, existem
indagações que devem ser respondidas pelos historiadores ao elegerem os jornais como fontes
para produção do conhecimento histórico.
Vejamos então um pouco da história dos principais periódicos da época
responsáveis pela cobertura do conflito em questão. O Correio do Ceará foi fundado pelo
126

cearense Álvaro da Cunha Mendes, em 2 de março de 1915, e surge como um jornal político.
Em 1937, o periódico passa a ser controlado pelo grupo Diário dos Associados pertencente a
Assis Chateaubriand. Então, por fazer parte de um grande conglomerado de comunicação, o
Correio do Ceará não falava sozinho, e a voz desse grupo, à qual pertencia, inegavelmente
ressoava no modo de fazer notícias deste jornal (MARCONDES FILHO, 1989).
O jornal O Povo, por sua vez, foi fundado por Demócrito Rocha em 7 de janeiro de
1928 e surge como um jornal político: “o jornal nascera político, nos seus primeiros dias falava
pelo partido, por muitos anos fez da política partidária a sua bandeira” (COSTA, 1988, p. 17).
O periódico costuma ser considerado um jornal liberal, por suas origens como opositor das
oligarquias e do latifúndio:

Com um discurso em tom liberal, O Povo apresenta-se como um opositor das velhas
tradições políticas. Um ano antes da criação do jornal, o seu fundador, Demócrito
Rocha, envolvido nos movimentos de contestação às oligarquias dominantes, junto
com outros membros da classe média urbana cearense; jornalistas, intelectuais,
estudantes, organizou o Partido da Mocidade, que se proclamava contra o latifúndio
e a favor da moralização do processo eleitoral (SIPRIANO, 2014, p. 75).

Posteriormente, com a morte de Demócrito Rocha (em 23 de novembro de 1943),


o jornal passa ao controle de Paulo Sarasate, que ocupará diversos cargos políticos, tais como
deputado estadual, federal e governador do Estado, sempre sendo eleito pelo partido
conservador União Democrática Nacional (UDN). Posteriormente, com a ascensão dos
militares ao poder e a promulgação do Ato Institucional nº 2, que extingue os partidos políticos,
Sarasate se liga ao Aliança Renovadora Nacional (Arena), partido da situação e estreitamente
vinculado ao governo ditatorial e é eleito senador pelo Arena. De acordo Sipriano (2014),
Sarasate jamais abdicou da direção do jornal O Povo (SIPRIANO, 2014, p. 72), mesmo quando
investido nos vários cargos políticos como também pontua Girão: “O Povo na época do Paulo
Sarasate e do próprio Demócrito Rocha era um jornal político, o Paulo Sarasate foi deputado
mais de uma vez, foi senador, governador, foi tudo no jornal” (GIRÃO, 2004, p. 62).
O terceiro periódico analisado foi o jornal Gazeta de Notícias, fundado em 10 de
julho de 1927 pelo jornalista Antônio Luís de Drummond e também, desde sua gênese, um
jornal eminentemente político. Drummond foi assassinado dentro da redação do periódico
depois da Revolução de 1930 em decorrência de divergências políticas (GIRÃO, 2004, p. 60).
Segundo Girão (2004), que, durante quinze anos, foi repórter e revisor da Gazeta de Notícias,
em 1951, o periódico foi vendido para o sobralense Olavo de Araújo, o responsável, conforme
Girão, por modernizar a Gazeta tanto em seu aspecto gráfico, quanto na produção das
127

reportagens, separando melhor cada setor do jornal e deixando um repórter responsável por
produzir a matéria de cada seção (GIRÃO, 2004, p. 61). De acordo com Nobre (2006), a Gazeta
de Notícia era um dos periódicos com maior aderência de “leitores populares”, sendo conhecido
por sua tradição de “combatividade” (2006, p. 159).
Lembre-se que a década de 1970 foi caracterizada pelo recrudescimento da ditadura
civil-militar. Os anos do governo Emilio Garrastazu Médici (1969-1973) foram marcados pela
intensificação da repressão contra aos opositores do regime e o cerceamento da liberdade de
imprensa, principalmente, com a aprovação do Ato Institucional nº 5, que fortaleceu a censura
no país (CARVALHO, 2006, p.1). Todavia, de acordo com Carvalho (2006), essa intensificação
da censura aos veículos de imprensa, no Ceará, não foi necessária, tendo em vista que os jornais
que circulavam no estado apoiaram incontinente a instalação do golpe militar. Os jornais do
Ceará não manifestaram resistência à ditadura civil-militar e escaparam de sofrer censura,
inclusive, os sujeitos que ocupavam as chefias desses periódicos, tais como Eduardo Campos,
dirigente do Correio do Ceará, e Paulo Sarasate, ligado ao jornal O Povo. ambos possuíam
ligações estreitas com o regime militar e exerceram papéis relevantes na deflagração do golpe
militar em 1964:

Os Diários Associados tinham como superintendente, entre nós, Eduardo Campos,


apontado como líder civil da Revolução de 64 no Estado. O Povo alinhava-se,
incondicionalmente, com os postulados autoritários, por conta da ligação de um dos
fundadores do jornal, Paulo Sarasate com Castelo Branco, o primeiro dos militares a
governar o país (1964/1967) (CARVALHO, 2006, p. 1. Grifos do autor).

Os dois principais jornais do estado, o Correio do Ceará (integrante do


conglomerado do Diário dos Associados fundado por Assis Chateaubriand) e O Povo
(pertencente ao grupo Demócrito Rocha e Paulo Sarasate) compactuaram ambos com os
pressupostos dos governos autoritários e não representaram uma voz dissonante à ditadura.
Inclusive, não houve necessidade de censores dentro das redações de tais periódicos cearenses,
como atesta o depoimento de Girão (2004): “Os jornais daqui não tinham censor de jeito
nenhum. Nos de São Paulo e do Rio, eu sei que houve censura dentro das redações, inclusive
os jornais se rebelaram” (GIRÃO, 2004, p. 72). As motivações apresentadas por Carvalho
(2006, p. 1) para a ausência de censores nas redações seria o próprio apoio de algumas chefias
desses periódicos cearenses ao regime autoritário. Segundo o autor, a única voz de resistência
ao golpe militar no Ceará, entre os veículos de comunicação, foi a Rádio Dragão do Mar.
No caso de Eduardo Campos, apoiador do golpe militar de 1964 no Ceará, este
dirigia quatro empresas do Diário dos Associados, grupo de Chateaubriand, no estado: a Ceará
Rádio Clube; a TV Ceará (conhecida como o Canal 2); e ainda dois jornais: O Correio do Ceará
128

– vespertino e o Unitário – matutino (PONTE, 2004, p. 175). Desse modo, pode-se ter uma
dimensão do poder exercido por Assis Chateaubriand na década de 1970,140 no Ceará, que
detinha o controle de rádio, canal televiso e dois grandes jornais que concorriam diretamente
com os jornais locais. Tratava-se de verdadeiro conglomerado. Chateaubriand era conhecido
por ter constituindo um verdadeiro império na imprensa, inclusive, estendendo sua influência
ao campo político. Em uma entrevista do jornalista cearense Lustosa da Costa (que chegou a
ocupar o cargo de editor chefe do Correio do Ceará e também escreveu para o Unitário)
concedida ao historiador Sebastião Rogério Ponte, o jornalista definiu do seguinte modo o papel
exercido pelo Diário dos Associados na deflagração do golpe de 64, no Ceará:

(Entrevistador): Qual foi o papel dos Diários dos Associados no golpe de 1964,
principalmente, aqui no Ceará?
(Entrevistado) Ah, eles se aliaram decididamente ao golpe de 61, a tentativa do golpe
de 1961 e ao golpe de 1964.
(Entrevistador): E aqui, como é que o Diário dos Associados se comportaram?
(Entrevistado):Eram os porta-vozes do golpe contra João Goulart, contra Leonel
Brizola. O João Calmon, que morreu um dia desses, era um dos porta-vozes da reação
às reformas de base preconizadas, era o diretor-geral dos Associados; e aqui no plano
estadual, um dos líderes dessa mesma orientação, era Eduardo Campos (DA COSTA,
2004, p. 293).

Tanto o Correio do Ceará quanto O Povo, portanto, foram entusiastas do golpe


militar, foram jornais conservadores e de situação.
É interessante enfatizar que, segundo Nobre (2006), o surgimento do Correio do
Ceará, em 1915, marca uma nova fase do jornalismo cearense, que passa a ser de cunho mais
“noticioso” e menos político. A saber, em sua concepção, o jornalismo cearense adquire um
carácter mais “informativo” com a fundação do periódico:

A história do jornalismo cearense pode ser dividida em duas fases principais. Na


primeira, os jornais existiam em função de partidos políticos, ou de grupos de opinião,
e consequentemente pouca atenção deram ao caráter noticioso ou mesmo comercial
da imprensa. Com o surgimento do Correio do Ceará, em 1915, o noticiário e a
publicidade começaram a ganhar espaço jornalístico e, a partir de então, os órgãos de
duração política tiveram duração efêmera (NOBRE, 2006, p. 16).

Entretanto, o fato de os jornais adquirirem um caráter mais noticioso não significa


que estes passassem a expressar as “informações” ao público de modo neutro ou mesmo que
não possuíssem mais ligações políticas a partir de meados do século XX. Como visto, as
questões políticas permaneceram perpassando os jornais mesmo durante a ditadura civil-militar.

140
O próprio fundador do grupo Diário dos Associados, Assis Chateaubriand, foi um dos engajadores da “Marcha
da Família com Deus pela Liberdade”, portanto, um dos articuladores civis da defesa do golpe militar em 1964
(LAURENZA, 2012, p. 83).
129

O periódico O Povo, por ser um jornal liberal, em tese, seria avesso aos pressupostos de um
governo autoritário, mas isto também não se sustenta. O jornal se torna opositor do regime
autoritário apenas tardiamente, no final da década de 1970 e, mesmo assim, de modo bastante
vagaroso, como atesta Carvalho (2006): “Tal situação começou a se reverter, paulatina e
timidamente, quando Demócrito Dummar assumiu o controle da empresa e sacudiu o mofo
acumulado de anos de convivência com o autoritarismo” (CARVALHO, 2006, p. 2).
Evidencia-se, pois, a atitude colaboracionista da imprensa cearense no contexto
autoritário. Os jornais eram porta-vozes do regime autoritário, levando em consideração a
estreita relação por eles mantida com a própria ditadura.
Destaque-se ademais que os periódicos que ora pretendemos analisar eram
classificados em vespertinos ou matutinos, de acordo com o horário que circulavam. Os
vespertinos, considerados de maior envergadura, eram o Correio do Ceará e O Povo, enquanto
os matutinos mais robustos eram O Unitário (também vinculado aos Associados) e o Gazeta
de Notícias (GIRÃO, 2004, p. 62). Portanto, o Correio do Ceará concorria diretamente com o
jornal O Povo, já que ambos circulavam no mesmo horário.
Com relação à tiragem desses jornais, de onde se pode deduzir quais eram
supostamente os jornais mais lidos pela população cearense, segundo o jornalista Eduardo
Campos, que dirigia o conglomerado do Diário dos Associados no Ceará e que concedeu uma
entrevista ao historiador Rogério Ponte, o jornal O Povo era o mais vendido e superava o seu
concorrente o Correio do Ceará: “Os jornais do Ceará vendiam muito pouco, isto é que é a
verdade, mas naquele tempo enquanto vendíamos na base de 12 mil, sete mil, oito mil jornais,
o Povo vendia quase o dobro, vendia 15 mil, 16 mil por aí assim” (CAMPOS, 2004, p. 182).
Partindo desses pressupostos iniciais, almeja-se analisar como cada jornal local
constituiu a sua narrativa sobre o conflito de Japuara e a violência no campo. Destaca-se que as
primeiras matérias sobre o conflito de Japuara foram produzidas pelos jornais enquanto o grupo
de camponeses encontrava-se foragido e a polícia realizava investigações sobre os confrontos,
sendo os resultados das investigações divulgados diariamente aos leitores. De tal modo que os
moradores diretamente envolvidos no conflito ainda não tinham apresentado a sua versão, tendo
em vista que só se apresentaram no dia 6 de janeiro de 1971, quando foram resgatados pelo
Fetraece e pela equipe do Diário dos Associados.
Lembre-se que o conflito aconteceu em um sábado (2 de janeiro de 1971) e que os
jornais locais analisados não circulavam aos domingos.141 Contudo, na segunda feira, 4 de

141
Os periódicos cearenses circulavam seis dias por semana. Entretanto, nenhum dos jornais analisados circulava
aos domingos.
130

janeiro de 1971, os três periódicos locais já tinham colhido vastas informações sobre os
confrontos, com depoimentos e fotografias. Os três periódicos enviaram correspondentes até
Canindé para apurar as notícias sobre Japuara.
À época, os jornais locais possuíam as seguintes seções: noticiário nacional e
internacional; as ocorrências policiais, parte esportiva, acontecimentos políticos e
administrativos e ainda tinha a coluna de opinião (NOBRE, 2006, p. 159). O conflito da fazenda
Japuara despontará nos primeiros dias de cobertura da imprensa ocupando sempre as principais
páginas dos jornais e a seção das ocorrências policiais. Figurar nas páginas policiais revela-se
um dado interessante na cobertura jornalística do conflito, pois induzia certa leitura no público
consumidor do jornal. Entretanto, cabe salientar que, ao longo da cobertura, os jornais trarão o
conflito em outras seções do jornal, por exemplo, dentro das colunas de opinião, o que significa
dizer que o posicionamento o político desses periódicos sobre a violência no campo se
manifestará de forma mais contundente.
O Correio do Ceará destacou, em sua primeira reportagem sobre o conflito de
Japuara, a violência dos confrontos. Trouxe estampadas, em sua primeira página, as fotografias
dos quatros mortos. Foi o único dos três jornais que trouxe imagens de todas as vítimas. Abaixo
das fotografias, introduziu-se uma imagem menor, no canto esquerdo da página, da esposa de
Pio Nogueira, Maria José de Sousa Barros, acompanhada do pároco de Canindé, Frei Luca
Dolle, ambos conversando com a equipe do jornal Correio do Ceará. Portanto, mostrava o
trabalho de apuração das notícias. Ao mesmo tempo, buscava transmitir ao leitor certa
autoridade ao discurso da reportagem. A equipe estava no local do conflito, conversou com os
implicados e estava acompanhando de perto o desenrolar dos acontecimentos:

Figura 2. Capa do jornal Correio do Ceará, 4 de janeiro de 1971.


131

Desperta atenção o conflito de Japuara ocupar praticamente a primeira página


inteira do jornal. Salienta-se que, de acordo com Marcondes Filho (1989), a notícia é uma
informação transformada em mercadoria, que utiliza diversos apelos estéticos que visam a
chamar atenção do público leitor (1989, p. 12). De acordo com Capelato (1988): “Na primeira
página concentram-se todos os recursos persuasivos de propaganda da mercadoria” (1988, p.
17). Assim, os elementos estéticos como fotografias e os termos utilizados nas manchetes são
formas de atrair o leitor para a informação central vendida como mercadoria pelo jornal. No
caso, a manchete de primeira página do Correio do Ceará destaca a violência do conflito como
eixo central: “4 mortos e 6 feridos na tragédia de Canindé” e “Invasão gera luta de foice,
revolver e espingarda”. O conflito de Japuara foi vendido ao leitor (consumidor) como a
principal informação (mercadoria) do dia. Na matéria principal, utilizou-se a seguinte chamada
“Invasão transforma em carnificina entre homens enfurecidos”. O jornal considerava que a ação
de César Campos de enviar trabalhadores da obra de emergência a Japuara foi um ato de
“invasão de propriedade” e que a ação provocou os confrontos – a carnificina. A matéria sobre
132

o conflito foi composta com fotografias da polícia realizando buscas na casa de Pio (imagem à
direita da página); da cadeia de Canindé (local para onde os corpos foram levados e em frente
do qual se reuniu curiosa a população local); de Nonato Paz embalsado, possivelmente, em uma
rede (o corpo teria sido talvez abandonado após os confrontos); de Maria José Barros batendo
em uma porta buscando por Pio Nogueira (seu marido); e uma imagem menor, no canto direito
da página, do enterro do delegado Cidio Martins, mostrando uma grande concentração de
pessoas, posicionadas para o registro fotográfico. Assim, diferentes locais aparecem na matéria:
a propriedade (local dos confrontos); o cemitério (local do enterro do delegado); e a delegacia
de Canindé:
Figura 3. Correio do Ceará, 4 de janeiro de 1971, p. 7.

As fotografias utilizadas pelo periódico aparecem como uma captação do momento


das ações, já que tanto a polícia é mostrada em ação na busca por armas na casa de Pio Nogueira,
quanto a esposa de Pio, Maria José Sousa Barros, aparece batendo em uma porta à procura do
seu marido, como se a fotografia tivesse registrado o exato momento em que ela recebia a
notícia de que o agricultor estava foragido:
133

Figura 4. Correio do Ceará, 4 de janeiro de 1971, p. 7


Maria José Sousa Barros, mulher de Pio, quando batia na porta pensando que seu marido ainda estivesse
entrincheirado.

Figura 5. Correio do Ceará, 4 de janeiro de 1971, p.7


O Coronel Raimundo Filho e soldados da PM vasculham casa de Pio, à procura de armas.

De acordo com Burke (2004), as imagens são registro tão relevante quanto o texto
e os testemunhos orais (BURKE, 2004, p. 17). Assim, compõem uma importante evidência
histórica que deve ser levada em consideração pelo historiador. O estudioso estabelece que as
imagens “registram atos de testemunha ocular”, ou seja, registram aquilo que um sujeito viu
em um “ponto específico num dado momento” (2004, p. 18), isto é, somente aquele que esteve
presente poderia relatá-lo. Barthes (1984), por sua vez, compreende que a fotografia não
“rememora o passado” e não restabelece o que foi revogado seja pelo tempo ou distância (1984,
134

p. 123). O autor também destaca o carácter testemunhal das fotografias, isto é, a fotografia
atesta que o que se vê, de fato, existiu. Cita, por exemplo, a fotografia de um escravo como um
fato irrevogável que testemunharia, por sua vez, a existência da escravidão: “Penso novamente
na fotografia de William Casby, “nascido escravo”, fotografado por Avedon. O noema aqui é
intenso; pois aquele que vejo aí foi escravo: ele certifica que a escravidão existiu, não tão longe
de nós [...]” (1984, p. 119. Grifo do autor) ou mesmo a comoção que ele sentiu ao ver uma
fotografia do último irmão de Napoleão Bonaparte e afirmar que: “Vejo os olhos que viram o
imperador” (1984, p. 11). Portanto, para o autor, a foto atesta a existência da coisa: “Na
fotografia jamais posso negar que a coisa este lá” (1984, p. 115), e, segundo ele, o “noema” da
fotografia, isto é, o seu traço inigualável, é que a fotografia atesta que alguém viu a pessoa ou
objeto fotografado “em carne e osso” (1984, p.118). O noema da fotografia, portanto, segundo
o autor, reside em poder afirmar que “Isto foi”. Entretanto, dizer que as fotografias constituem
uma evidência história, pois são “testemunhas oculares”, não significa afirmar que a fotografia
constitui, de acordo com Burke (2004), um “reflexo puro” da realidade (2004, p. 36) e tratá-la
assim levaria a uma “interpretação errônea” ou uma utilização equivocada da imagem pelo
historiador (2004, p.143). Portanto, estamos levando em consideração que as fotografias não
são reproduções fiéis da realidade e consistem em uma representação desta, como atesta Mauad
(2008):

[...] a fotografia, que nasce do desejo de retratar fielmente a realidade, é, por sua vez,
mais uma interpretação desta mesma realidade, pois, ao mesmo tempo que apresenta
o referente, o representa através de linguagem codificada, invalidando, com isso, a
ambição de cópia fiel da realidade. A fotografia é sempre uma outra coisa, uma
imagem, um signo (2008, p. 95).

Segundo Burke (2004), as imagens seriam “testemunhas mudas”, portanto, é tarefa


difícil traduzir o seu testemunho em palavras (2004, p. 18). A imagem possui um modo de
comunicação próprio. Então é possível fazer as imagens “falarem”? De acordo com Mauad
(2008), sim, mas, para que isto ocorra, é necessário interrogar as fotografias e também atribuir
significados a essas imagens perpassadas por questões colocadas pelo tempo presente e pela
própria problemática do historiador: “Da mesma forma que seus antigos donos, o historiador
entra em contato com este presente/passado e investe nele sentido, um sentido diverso daquele
dado pelos contemporâneos da imagem, mas próprio da problemática a ser estudada” (2008, p.
41). Os historiadores, dessa maneira, atribuem sentidos novos às fotografias, os quais são
diferentes dos significados atribuídos aos que consumiram de imediato essas imagens.
135

Ao utilizar a fotografia como uma “evidência histórica”, isto é, vestígio ou indício da


realidade (MAUAD, 2008; BURKE, 2004), alguns elementos devem ser levados ainda em
consideração na análise dessa documentação, como a contextualização das fotografias,
conforme adverte Burke. Questões como: Quem foi fotografado? E por quem? são relevantes
para o historiador, mas, como bem pontua o autor, nem sempre é possível respondê-las
(BURKE, 2004, p. 27). No caso das fotografias que pretendemos analisar, não sabemos o autor
de tais imagens, mas temos conhecimento de alguns sujeitos destacados nas fotografias, mas
também não sabemos a identidade de todos. Interessante observar ainda que, apesar dos
registros dessas duas imagens, os sujeitos retratados aparecem no que seria um registro
espontâneo, já que não encaram a lente do fotógrafo, como é o caso dos policiais que aparecem
em movimento e da esposa de Pio captada em um ponto alto registrado pelo fotógrafo, afinal é
o momento em que ela toma conhecimento do desaparecimento do marido. Assim, também
cabe questionar: em que medida os sujeitos não estariam “posando” para o fotografo? Barthes
(1984) compreende que o caráter imanente da fotografia é a pose, mesmo que dure apenas
alguns segundos. Imaginando-se no lugar do sujeito que se sente olhado por aquele que olha,
Barthes diz que, no momento do registro fotográfico, de imediato: “Ponho-me a “pousar”
fabrico instantaneamente um outro corpo, metamorfoseio-me antecipadamente em imagem”
(BARTHES, 1984, p. 22). Esse “jogo de cenas”, de acordo com Mauad (2008), depende da
negociação entre esse sujeito que olha e aquele que é olhado: “O ato fotográfico pressupõe um
consentimento, uma aceitação tácita do fotografado [...]. As regras do jogo da representação –
uma negociação entre o querer do fotografo e o desejo do fotografado” (2008, p. 87-88).
Com muitos jornais noticiando o confronto de Japuara, existe uma preocupação por
parte do Correio do Ceará de levar ao público leitor um elemento distinto dos demais jornais,
que consiste na suposta “captação instantânea” do desenrolar dos acontecimentos com
fotografias que retratem os sujeitos ainda em ação. Segundo Barbosa (2007, p. 36), a ilustração
das matérias policiais passa a ser vastamente utilizada pelos periódicos jornalísticos a partir de
1901, com desenhos que reproduziam a cena do crime. Com o advento da fotografia, os
periódicos permaneceram trazendo as cenas do crime para dentro das páginas dos periódicos,
entretanto, agora de forma ainda mais fiel, já que as fotografias transmitem ao leitor a “sensação
da captação do real” por meio do olhar do repórter. Utilizar imagens das cenas do crime e das
pessoas tornava ainda mais crível os fatos narrados na matéria e sedimentava uma ideia de
“verdade” do que era retratado nas páginas do periódico como pontuado pela autora: “A
imagem passa a conter em si mesma a ideia de verdade. Por outro lado, a construção da cena
sob a forma impressa torna presente o ausente e permite a fixação da própria realidade”
136

(BARBOSA, 2007, p. 36). Assim, para a autora, a imagem transmite ao leitor a “sensação de
captação da realidade” pelo repórter com a sua câmera. Ele não só estava no local do crime
como também congelava aquele momento captado pela máquina fotográfica. O repórter então
adquire o caráter de uma “testemunha ocular”, registrando aquilo que somente ele poderia ter
visto naquele instante: “Ao ser vista por um aparelho técnico – e, portanto, carregada de
neutralidade – a imagem estanca o tempo. Não é só o repórter que está presente na cena do
acontecimento, mas o repórter e a máquina capaz de captar o real” (BARBOSA, 2007, p. 36-
37). Portanto, tornava crível a narrativa do jornal e imprimia certa neutralidade ao que estava
sendo relatado ao leitor, como se o repórter estivesse apenas registrando o acontecimento, as
cenas e os personagens que compunham a matéria. Além de, claro, como se vê nas imagens
divulgadas pelo Correio do Ceará, captar os sujeitos ainda em ação congelando aquele presente
na fotografia.
As fotografias, de acordo com Capelato (1988), imprimem ainda uma ideia de
movimento ao texto impresso e rompem com a monotonia da escrita (1988, p. 17). Por isso, o
Correio do Ceará empregou o texto escrito sempre acompanhado de muitas fotografias, que
tanto dialogam com o texto, quanto falam por si. Assim, existe uma combinação de elementos
intertextuais para se comunicar com o leitor. Outra questão interessante, do vasto emprego das
fotografias pelos jornais, diz respeito à capacidade do jornal de se comunicar com o público
leitor, por outro meio que não o texto impresso, principalmente, em uma sociedade que ainda
detinha grande contingente de população analfabeta: “a textualidade da imprensa se faz pela
capacidade de transmitir a informação através da imagem” (BARBOSA, 2007, p. 32). De tal
modo, as imagens permitem outro tipo de leitura ao público que consumia o jornal e sinaliza o
destaque dado ao conflito de Japuara pelo jornal, já que são imagens que ocupam mais de uma
página do periódico.
Destaque-se ainda que o Correio do Ceará foi, entre os periódicos locais
analisados, o mais apelativo na abordagem do conflito de Japuara, tendo em vista que expôs na
reportagem os corpos das vítimas sem qualquer pudor. O agricultor Nonato Paz teve exposta,
na matéria principal, a imagem de seu corpo embalsamado, enquanto os corpos de todas as
vítimas do conflito foram abandonados. Então, cabe interrogar: por que somente o agricultor
sofreu tal exposição? É notória ademais a intenção do jornal de utilizar as fotografias com o
objetivo de chocar e causar uma sensação de “horror” nos leitores, buscando atrair a atenção
destes. Assim, as fotografias buscam mexer com as “sensações dos leitores” e, claro, aumentar
a vendagem do jornal (CAPELATO, 1988, p. 16).
137

Com relação ao posicionamento político assumido pelo Correio do Ceará sobre a


violência no campo, este assume uma postura de defesa da atuação do Estado nos conflitos de
terra, pelo menos no primeiro momento. Isto fica claro no texto produzido pelo jornal sobre os
confrontos entre os policiais e os camponeses. Segundo o jornal, os agricultores, denominados
por ele, como “os homens enfurecidos”, atacaram a Polícia de Canindé, antes de esta poder
realizar qualquer ação. Assim, para o periódico, os moradores de Japuara teriam atacado os
policiais, e, somente depois desse fato, os agentes do Estado teriam reagido, justificando-se
assim as ações dos policiais contra os agricultores:

Choque com a polícia


A volante policial chegou ao local por volta das 8h 30 min e encontrou apenas homens
comandados por Pio entrincheirados e aguardando uma nova invasão.
Desceu do veículo, dirigido por seu irmão, Francisco Martins e se encaminhou para a
casa de Pio.142
Ao atingir o delegado a entrada da casa, saiu armado com uma foice o agricultor
Raimundo Nonato Pais, acompanhado de seu filho Valdemar Ramos Pais, ambos
conhecidos como “Vinte Um” e atacaram Cidio. Atingido por dois golpes de foice, o
agente tombou ao solo e ali mesmo morreu.
Francisco Martins investiu contra Nonato 21 e recebeu uma foiçada na cabeça. E
começou a luta entre soldados e agricultores (CORREIO DO CEARÁ, 4 DE JAN. DE
1971, p.7).

O relato do jornal, combinado com as imagens, principalmente, a que mostrava os


policiais buscando armas nas casas dos moradores, identificava para o leitor quais eram os
sujeitos “perigosos” e responsáveis pelos confrontos.143 Ao afirmar que a Polícia os encontrou
“entrincheirados”, fortalecia o argumento de que os moradores de Japuara enfrentaram os
policiais de modo premeditado. Tornava, então, ainda mais crível o discurso de que os
moradores reagiram aos policiais de imediato, sem ter havido tempo para qualquer tentativa de
diálogo entre as partes. Apesar de o jornal afirmar que a ação de César Campos causou o
conflito com os moradores, dedicou-se pouco espaço para criticar o proprietário. A maior parte
do texto buscava reconstituir as supostas cenas dos embates, desvelando as circunstâncias das
mortes. O discurso do Correio do Ceará almejou, principalmente, isentar de responsabilidade
os agentes do Estado no conflito com os moradores de Japuara e pouco se discutiu a participação
do proprietário nos confrontos ou foram tecidas críticas à atuação dos policiais. No discurso do

143
Enfatiza-se que atribuir determinadas características aos camponeses não é um elemento novo no discurso
produzido pelo Correio do Ceará. Porfírio (2016) observou como a imprensa mobiliza narrativas e imagens para
associar os camponeses ao perigo e a subversão.
138

jornal, a violência no campo seria em decorrência, principalmente, das atitudes dos camponeses,
que são retratados agindo com hostilidade e extrema brutalidade contra os policiais.
Pode-se, então, compreender essa violência desproporcional atribuída pelo Correio
do Ceará aos moradores de Japuara por meio do pensamento de James Scott. Segundo o autor,
as imagens atribuídas aos camponeses contrastam entre a “submissão, medo, cautela” de
períodos normais, com a de momentos em que as “revoltas camponesas” vem à tona e as ações
dos sujeitos são retratadas como atos viscerais de “fúria cega”, isto sem mencionar que as
disputas ocorreram, previamente, em outro terreno e de forma racional (SCOTT, 2002, p.14).
Portanto, percebe-se como o Correio do Ceará produziu uma narrativa sobre os camponeses de
Japuara, tentando enquadrá-los como sujeitos irracionais e extremamente agressivos. Essa
imagem ficou associada, principalmente, a Pio Nogueira Barros, que acabou personificando o
conflito.
A Gazeta de Notícias, no dia 4 de janeiro de 1971, trouxe estampada, em sua
primeira página, a fotografia da filha do delegado do Dops (Cidio Martins), debruçada sobre o
caixão do seu pai e não trouxe imagens dos demais mortos. Trouxe o seguinte título como
chamada central da primeira página: “Luta entre policiais e campôneses em Canindé termina
com seis mortos” (GAZETA DE NOTÍCIAS, 4 de janeiro de 1971). Ao centro uma imagem do
que o jornal denominou como “populares” concentrados na frente da delegacia de Canindé.
Assim, mostrava-se ao leitor como o conflito alterara o cotidiano da cidade:
139

Figura 6. Capa e detalhe do Gazeta de Notícias de 4 de janeiro de 1971.


140

Na mesma página, ao lado da fotografia da filha do delegado, foi introduzido um


texto sobre as causas do conflito de Japuara, apresentando como estopim dos confrontos a
pescaria realizada no açude por Pio Nogueira:

Na manhã de ontem, por causa de uma pequena pescaria que o agricultor fêz no açude
do sítio, para alimentar sua esposa e uma nora que se encontrava doentes, o
comerciante reuniu 80 homens, entre os desocupados da rua, com ordens para
arrombar o reservatório d’água e destruir plantações” (GAZETA DE NOTÍCIA, 4 jan.
1971, p. 1).

O jornal inicia acusando o proprietário, já que o confronto teria ocorrido por algo
banal: “uma pequena pescaria” em decorrência de o agricultor querer alimentar a sua família
que se encontrava doente. Na matéria principal, trouxe como chamada a seguinte proposição:
“Velha questão de terra provoca batalha com 6 mortos” (GAZETA DE NOTÍCIAS, 4 jan.
1971), enfatizando que os conflitos de terra no estado eram já familiares e recorrentes. No texto,
a Gazeta de Notícia passa a reforçar a agressividade dos camponeses, retratados como movidos
por uma brutalidade desproporcional. Essa agressividade é atribuída principalmente a Pio
Nogueira Barros, apresentado, de pronto, pela identidade de “posseiro”, pois, segundo a
matéria, o camponês se recusava a sair da propriedade em decorrência de ter “direitos
adquiridos”. O texto alertava ainda ao leitor que Pio Nogueira Barros era membro do Sindicato
dos Trabalhadores Rurais, portanto, passível de certa desconfiança por parte dos leitores:

Julgando-se com direito de posse da terra que ocupava há mais de vinte anos, o
pequeno agricultor, delegado do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Canindé,
Francisco Nogueira mais conhecido por Pio, resistiu ferozmente ontem, à invasão
determinada pelo proprietário César Campos, provocando um conflito no qual
morrerem quatros homens e muitos outros saíram feridos.
O primeiro a se aproximar da casa foi o carreteiro Joaquim de Sousa, e subiu no teto,
disposto a derrubá-lo na família de Pio, muito embora êste fizesse inúmeros apelos
para que não executasse o plano. Como o carreteiro não atendeu a seus pedidos o
posseiro de terras atacou a pauladas.
A luta: Chegando no Sítio Japuara o subdelegado dirigiu-se ao agricultor Pio,
disposto a prendê-lo, mas estê reagiu a golpes de foice, abatendo imediatamente o
policial. Sômente depois que matou o subdelegado, Pio usou arma de fogo, pois
apanhou o revólver de sua vítima e com elê atacou os policiais que lutavam sob o
comando do cabo Francisco Silva da Rocha.
Nessa luta, Pio foi auxiliado por familiares seus e outros moradores do sítio e ao
mesmo tempo em que a luta se prolongava, outros civis se incorporavam as fileiras
dos agricultores, procurando exterminar os cinco policiais que resistiam (GAZETA
DE NOTÍCIAS, 4 jan. 1971, p. 6).

De antemão, o jornal acusa Pio de todas as mortes de Japuara, teria ele então,
segundo o jornal, matado o carreteiro a pauladas, desarmado sozinho a Polícia de Canindé e
assassinado o delegado e o policial. Os demais moradores de Japuara aparecem como
141

coadjuvantes no enfrentamento. O jornal reforça que a violência dos confrontos foi em


decorrência das atitudes dos agricultores contra a Polícia e não o contrário. Os agentes do
Estado, no relato do jornal, sequer teriam tido tempo de reagir diante de tamanha agressividade
de Pio Nogueira, que estaria movido pelo ímpeto de “exterminar a polícia”. Assim, justificam-
se as ações dos agentes públicos do Estado que somente tentavam cumprir o seu dever, enquanto
os agricultores reagiam de forma desproporcional e com extrema violência.
As circunstâncias da morte de Nonato Paz não foram mencionadas na reportagem.
Pode-se pensar como essa lacuna fortalecia o discurso do jornal que tentava isentar os agentes
do Estado pelas mortes, tendo em vista que fora a Polícia de Canindé quem assassinara o
morador. Sendo assim, os fatos foram selecionados previamente pelo jornal para fortalecer ou
enfraquecer determinada versão sobre o conflito. A saber, o Gazeta de Notícias assumiu uma
postura que defendia a ação da Polícia no confronto, colocando-a na posição de principal vítima
dos moradores. Esse texto da matéria principal dialogava diretamente com a primeira página,
que mostrava a principal vítima do conflito para o jornal, no caso, o delegado Cidio Martins.
Destaque-se que a Gazeta de Notícia apresentou como a causa da “revolta dos
camponeses” contra a Polícia o fato de esta ter suspostamente proibido o porte de “armas
pesadas”, tais como metralhadoras e fuzis que, segundo a reportagem, estariam sob a posse dos
moradores. Esse fato foi utilizado para justificar a ação da Polícia de Canindé e reforçar o quão
perigosos eram os camponeses que, inclusive, estavam fortemente armados quando os policiais
os encontraram:
A população de Canindé, em constante apreensão, comentava que a proibição de
armas pesadas, como metralhadoras e fuzis foi a causa principal da revolta dos
camponeses que já estavam agitados com o primeiro incidente que culminou com a
morte do carreteiro Joaquim de Sousa, contratado por César Magalhães, para
transportar as telhas da casa de Pio. (GAZETA DE NOTÍCIAS, 4 jan. 1971, p. 6).

Esse episódio serviu para reforçar a periculosidade dos moradores, ao divulgar que
estes possuíam armas pesadas na propriedade e que já estavam, portanto, previamente
preparados para um confronto com o proprietário ou até mesmo com a Polícia. Do mesmo
modo, sinalizava ao leitor que o confronto com a Polícia só ocorreu porque os moradores se
recusaram a cumprir as ordens destes agentes. O jornal ainda se utiliza de dois elementos para
sustentar que os moradores de Japuara seriam os responsáveis pelo confronto: o primeiro
elemento mobilizado foi apresentar previamente que os sujeitos do conflito não seriam simples
agricultores, tendo em vista que o jornal, antes de descrever as circunstâncias em que se deram
os confrontos de Japuara, antecipa que Pio Nogueira Barros era um “posseiro de terras” e um
“indivíduo sindicalizado”. A Gazeta, então, utiliza-se de elementos previamente estabelecidos
142

no imaginário do leitor que associava o Sindicato dos Trabalhadores Rurais à desordem no


campo e aos conflitos de terra. O segundo elemento utilizado pelo jornal para reforçar a culpa
dos moradores, como foi visto, foi afirmar que eles possuíam armamentos na fazenda e a
possível apreensão de tal arsenal foi a motivação da “revolta camponesa”.
Sublinha-se que o Gazeta de Notícia não deixou César Campos impune da
responsabilidade dos confrontos. Segundo o jornal, o proprietário ao tentar realizar o despejo
dos moradores, sem a mediação da Justiça, teria a sua parcela de responsabilidade pelos
confrontos: “Por outro lado, o comerciante César Campos, responsável por todo o ocorrido,
devido mandar fazer o despejo por conta própria, está desaparecido desde as primeiras horas da
manhã de ontem, quando eclodiu o conflito” (GAZETA DE NOTÍCIAS, 4 jan. 1971, p. 6).
Contudo, a imagem negativa recaiu mais sobre os moradores do que sobre César Campos, já
que o jornal dedicou maior espaço para retratar os “atos de fúria cega” dos camponeses do que
para criticar o proprietário, pouco mencionado durante toda a reportagem, digno apenas de um
comentário menor ao final da reportagem. Os atos de violência praticados por César Campos
com o propósito de efetivar o despejo dos moradores adquirem caráter secundário na
reportagem, tendo em vista que o jornal opta por abordar o conflito enfatizando os moradores
como sujeitos atuantes centrais dos embates. Apontam Pio Nogueira Barros como o principal
protagonista, personificando o conflito, assim como o fizeram os demais periódicos.
O jornal O Povo, neste mesmo dia, em sua primeira página, divulgou a foto das
possíveis armas utilizadas pelos moradores nos confrontos, segundo a reportagem, apreendidas
pela polícia. À esquerda da página, fotografias de dois mortos: o delegado do Dops (Cidio
Martins) e o soldado de polícia logo abaixo (Paulo Freitas). O carreteiro e o agricultor não
tiveram fotografias divulgadas, apesar de serem mencionados na matéria. Tais omissões
suscitam igualmente reflexão: os sujeitos mortos e dignos de terem suas fotografias divulgadas
na primeira página, conferindo-se, portanto, maior humanidade a essas pessoas, e aqueles
dignos de terem apenas os nomes mencionados. De tal modo, para o jornal, as principais vítimas
do conflito seriam os agentes do Estado. A edição trouxe ainda uma quarta fotografia, dessa
vez de um agricultor preso pela polícia de Canindé por estar supostamente implicado no
conflito. A quinta fotografia, mais escura e ao centro da página, retratava os policiais realizando
buscas no entorno da Japuara. A chamada da matéria de primeira página trazia o temor de um
possível novo confronto de terra semelhante ao de Japuara e ressaltava o clima de
intranquilidade em Canindé:
143

Figura 7. Capa de O Povo, 4 de janeiro de 1971.

É importante destacar que, durante os confrontos, os policiais teriam sido


desarmados pelos moradores. Então essas armas postas ao centro da página pertenciam aos
policias, fato este que não foi negado pela reportagem, que trouxe o seguinte texto ao lado da
imagem das armas: “Até ontem ao meio dia, as volantes policiais vasculham residências na
fazenda Japuara, apreendendo armas. A foto à esquerda mostra a quantidade de armamento
apreendidas, inclusive dois fuzis, arrebatados dos policiais, na hora do conflito” (O POVO, 4
jan. 1971, p. 1). Portanto, no texto, o jornal afirmava que os moradores tiraram as armas das
mãos dos policiais e as quebraram, entretanto, a fotografia dessas armas foi utilizada para
reforçar a periculosidade dos moradores, já que, se o leitor não lesse o texto menor, associaria
diretamente as armas aos moradores e não aos policiais. Do mesmo modo, percebe-se como
armas foram estrategicamente posicionadas para o registro fotográfico. Como lembra Porfírio
(2016), as imagens são utilizadas com determinados objetivo, no caso, apontar para o leitor os
camponeses como dignos de “suspeitas”:
144

Personagens antes anônimos – como os trabalhadores rurais – ganhavam as páginas


da imprensa e eram tema dos seus editoriais, sendo integrados à engrenagem que fazia
circular a imagem da desordem social. Dar-se-ia a ver, por meio da fotografia, um
ambiente subversivo para indicar os cidadãos suspeitos (PORFÍRIO, 2016, p. 751).

Apesar, portanto, de as fotografias nos transmitirem a “sensação de captação do


real”, de acordo com Barthes (1984), essas imagens guardariam muito mais proximidade com
o teatro do que propriamente com as pinturas. As fotografias são caracterizadas muito mais por
“encenar” uma realidade, do que por ser um “reflexo” desta. Para Mauad (2008), mesmo
quando as imagens “mentem”, é preciso ainda considerar “porque mentiu e como mentiu”.
Observa-se, então, que as armas foram fotografadas e utilizadas nesse “jogo de cena”
(MAUAD) criado pelo jornal para culpar previamente os camponeses.
Essa primeira página publicada pelo O Povo foi seguida por uma longa matéria
presente no interior do jornal intitulada: “Quatro corpos rolaram na chacina de Canindé”, que
detalhava os confrontos e desvelava ao leitor as circunstâncias das mortes. Na constituição do
texto, os moradores são apresentados pelo termo “elementos”: “A polícia acredita que vários
elementos tenham fugido armados de revolveres, pois muitos deles foram vistos empunhando
armas de canos curtos no cessar da luta” (O POVO, 4 jan. 1971, p. 8). Portanto, fazendo uso de
uma linguagem policial para produzir uma qualificação sobre moradores, esse termo, de certa
forma, já indicava ao leitor quais seriam os criminosos ou pelo menos os “suspeitos”. O texto
principal, conforme se vê, dialogava com as fotografias da primeira página que, de antemão,
mostravam um agricultor preso e as possíveis armas utilizadas pelos moradores, constituindo
assim uma narrativa que já apresentava ao leitor os responsáveis pelos embates. Neste texto, o
jornal reforça que os camponeses eram perigosos, ao afirmar que estes teriam fugido armados.
Ao retratar os antecedentes dos confrontos, enfatizou-se que os agricultores teriam planejado
uma emboscada para o proprietário, César Campos:

Na noite de sexta-feira última, véspera do conflito sangrento, pessoas residentes em


Canindé viram uma Rural Willys com armas se dirigindo para a fazenda Japuara.
Parece que o fato foi levado ao conhecimento de César Campos, tanto que, no dia
seguinte já tinha gente preparada para engrossar a questão, orientados para demolir
casas, arrômbar o açude e derrubar cêrcas (O POVO, 4 jan. 1971, p. 8).

Faz-se necessário ressaltar que o carro mencionado na reportagem a “Rural Willys”


foi o veículo utilizado pela polícia de Canindé para se dirigir a Japuara no dia dos
enfrentamentos (GOMES, 2006, p.21). Portanto, não tinha qualquer ligação com os
camponeses de Japuara. Entretanto, o jornal deu a entender que tal veículo com carregamento
de armas possuía ligação com os moradores. Com essa informação, O Povo suprimiu a culpa
145

do proprietário pelos embates e dava margem para que o leitor interpretasse que os confrontos
foram previamente planejados pelos camponeses. Esse fato serviu para reforçar a culpa em
torno dos moradores e isentar o proprietário do conflito. Já que, segundo essa reportagem, César
Campos só reagiu enviando trabalhadores para cometer arbitrariedades contra os moradores,
pois este tomou conhecimento da possível “emboscada” articulada pelos camponeses de
Japuara. Nesse sentido, o jornal mobiliza o limiar entre o falso e o verdadeiro com determinado
objetivo, no caso, apresentar os moradores de Japuara como “sujeitos perigosos” e dignos de
“suspeitas” (PORFÍRIO, 2016, p. 75) por parte do leitor e retirar a responsabilidade do
proprietário pelo conflito. De acordo com Capelato (1998), o historiador não pode tratar o jornal
como um reprodutor fiel da realidade. Isto é, a historiadora compreende que o jornal, assim
como qualquer outra fonte, consiste em fatos fabricados e estabelece que é importante distinguir
o que é “falso” ou “verdadeiro” (1988, p. 22). Contudo mais importante do que isto, é
compreender como os sujeitos mobilizam os acontecimentos e o porquê de as notícias terem
sido produzidas de determinada maneira: “A distinção entre o falso e o verdadeiro é necessária,
mas hoje entende-se que o documento falso é um documento histórico tão relevante quanto o
verdadeiro, cabendo averiguar porquê e como foi produzido” (CAPELATO, 1988, p. 23-24).
Assim, os jornais reproduzem, em suas páginas, determinada versão sobre o
conflito, tendo um propósito. Ao afirmar que os moradores tramaram uma emboscada para
César Campos, o jornal previamente justificava a violência do proprietário contra os moradores.
Do mesmo modo, ao reforçarem que os moradores possuíam armamento na fazenda, o
periódico também respaldava a violência do aparelho do Estado contra os camponeses.
A situação de intranquilidade retratada na primeira página do jornal O Povo foi
reforçada ao afirmar que os agricultores, após os confrontos, teriam permanecido
“entrincheirados” e armados. Inclusive, segundo a reportagem, estes atiravam contra
proprietários de terra que passavam por perto. Tratava-se de perigosos agricultores tomados por
uma espécie de “ódio de classe”, agindo com hostilidade contra a classe proprietária de
Canindé:

Após o conflito os elementos que tomaram parte na luta – mais de vinte homens –
ficaram entrincheirados, todos empunhando armas e dispostos ainda a matar.
Ninguém se aproximava da fazenda, passava pela estrada em seu jipe, o fazendeiro
Francisco Estevão da Silva, conhecido por Dourado e sofreu atentado. Os homens
entrincheirados dispararam tiros contra o seu veículo. Isso declarou José Francisco
Mivali, gerente do Bar Canindé, logo que chegou a cidade. (O POVO, 4 jan. 1971, p.
8).
146

A afirmativa de que os moradores estavam entrincheirados era constantemente


mobilizada pelos jornais e criava um clima de tensão social e medo, por sua vez, de que novos
confrontos por terra pudessem eclodir a qualquer momento em Canindé. Assim, O Povo
reforçava que os embates entre camponeses e proprietários de terra da região permaneciam e
poderiam ter um desfecho semelhante ao de Japuara.
Sobre os confrontos e as mortes, de acordo com a reportagem, Joaquim Piau teria
morrido do tiro, e não da queda na cerca da casa. Os agricultores são retratados como os que
deram início aos confrontos com a Polícia e os responsáveis pelas mortes. O delegado, por
exemplo, primeiro teria sido atacado por Nonato Paz com uma foice e somente depois a polícia
reage tirando a vida do agricultor:

Quem iniciou a carnificina


Por volta das 8 horas de sábado um grupo de homens chegou ao local, levando a
missão de demolir as casas e arrombar o açude. O carregador Joaquim Piau subiu para
destelhar a residência de Pio Nogueira. Quando estava sobre o telhado, executando o
serviço, foi abordado pelo morador da casa. Uma contraordem: Não derrubar
continuar destelhando a casa. Joaquim Piau, humilde carreteiro, insistiu afirmando
que estava cumprindo uma ordem. Foi quando recebeu um tiro de espingarda, caiu
morto.
Japuara Pé de Guerra
Com a chegada da polícia em Japuara, o momento foi de pânico. Ao lado jazia o
cadáver do carreteiro Joaquim Piau. O Delegado Cidio Martins e sua volante dirigiu-
se até a latada defronte à casa onde reside Pio Nogueira. Os moradores armados de
foices, facas enxadas, machados e cacetes enfrentaram a polícia, partindo para o
segundo conflito. Japuara virou pé de guerra em questão de segundos. Na primeira
investida, o Delegado Cidio foi logo contido com uma foiçada na cabeça desfechada
pelo agricultor Raimundo Nonato Paes, vulgado Nonato 21. O comandante da volante
caiu morto. Os policiais que o acompanharam engatilharam armas e com um tiro na
cabeça foi morto o matador do delegado. A luta continuou veio a terceira vítima do
conflito. Com vários golpes de foice na cabeça tombou morto o soldado Jorge Paulo
de Freitas. A luta engrossou mais ainda, depois que os rebeldes se apossaram das
armas dos policiais (um fuzil e revolver foram arrebatados das mãos dos elementos
que compunham a volante) (O POVO, 4 jan. 1971, p. 8).

Se aos agricultores foi atribuída uma agressividade desproporcional, tal narrativa


contrapõe-se à imagem paternalista constituída sobre César Campos. O Povo, na matéria do dia
5 de janeiro de 1971, apresenta o proprietário preocupado com bem-estar dos moradores
acometidos por sarampo: “A propósito, o fazendeiro César Campos, que se encontra em
Fortaleza, autorizou a Fernando Honorato, seu gerente de Canindé, para distribuir
medicamentos aos doentes, inclusive para o grupo ligado a Francisco Pio” (O POVO, 5 jan.
1971). Constituiu-se assim uma imagem paternalista que era considerada mais adequada para
um proprietário e que isentava César Campos do ocorrido na fazenda, ao apresentá-lo como
bom patrão, portanto, incapaz de cometer tamanhos atos de violência contra seus moradores.
147

Então, percebe-se, por parte do O Povo, uma tentativa de isentar os policiais dos confrontos,
assim como o proprietário, César Campos.
Essas matérias sobre o conflito de Japuara produzidos no “calor da hora” pela
imprensa não teceram críticas em relação à atuação da polícia de Canindé, que é retratada
sempre agindo no cumprimento do seu dever. Assim como enfatizaram que a situação de
intranquilidade no campo ainda permanecia, pois os moradores continuavam supostamente
entrincheirados e reagindo à ação policial e também contra os proprietários de terra da região.
É perceptível o quanto essa versão apresentada pelos jornais buscava isentar os agentes públicos
envolvidos no conflito, construindo uma narrativa que justificasse e respaldasse a atuação do
Estado nos conflitos de terra, atribuindo principalmente aos camponeses a responsabilidade
pela violência no campo.
Pode-se refletir como os jornais locais, ao vincularem determinadas identidades aos
moradores de Japuara – como denominá-los “posseiros de terra” ou afirmar que eles eram
vinculados ao STR –, buscavam respaldar uma narrativa que atribui aos indivíduos
sindicalizados uma imagem de hostilidade contra os proprietários de terra e policiais. Portanto,
quando os periódicos conformam determinadas características aos moradores, esse processo é
perpassado por escolhas que evidenciam parcialidades patentes nos periódicos em torno dos
conflitos de terra. Essa imprensa assume um lado ao retratar estes embates entre proprietários
e camponeses. Isto significa dizer que os periódicos mobilizavam as possíveis crenças e valores
do público leitor para conformar determinados posicionamentos sobre os conflitos agrários,
tendo em vista que já existia uma conjuntura favorável que associava sindicalismo rural à
violência no campo, principalmente, no Nordeste. Essas notícias produzidas logo após os
confrontos estavam carregadas de julgamentos prévios que, ao realizar determinadas
afirmativas, buscavam influenciar o posicionamento do leitor sobre violência no campo e os
sujeitos envolvidos.
Uma questão que despertou atenção foi a linguagem utilizada pelos jornais na
construção discursiva das matérias, termos empregados tais como “entrincheirados”, “campo
de batalha” ou mesmo denominar o conflito uma “guerra” fortaleceu essa situação de
intranquilidade no campo e criou uma atmosfera de tensão social e medo144 de que os episódios

144
Existem dois textos relevantes que analisam os discursos dos jornais que associaram camponeses e medo. O
primeiro é um artigo escrito pelo historiador Antônio Montenegro intitulado “Labirintos do medo: o comunismo
(1950-1964)”, que trata como a imprensa de Pernambuco politizou os incêndios dos canaviais de Pernambuco. A
pesquisa empreendida pelo historiador demonstra que incêndios nos canaviais eram bastante recorrentes e
ocorriam por diversos motivos, inclusive, pelo fato de os canaviais já serem propícios a incêndios. Entretanto, ele
percebe que a imprensa começa a reproduzir, em suas páginas, que tais incêndios eram provocados por
trabalhadores rurais, especialmente, dando a entender que tais ocorrências possuíam relação com os comunistas,
148

de Japuara voltassem a se repetir brevemente. Além disso, igualava-se o conflito de Japuara a


uma espécie de “guerrilha rural”, já que constantemente os jornais reforçavam que os moradores
de Japuara estavam fortemente armados, inclusive, teriam arquitetado previamente os
confrontos com o proprietário e o aparato policial.
No que diz respeito a César Campos, mesmo quando atribuíam parte da
responsabilidade pelo conflito ao proprietário, a imagem agressiva ficou associada aos
camponeses, os sujeitos ativos que iniciam sempre os atos de violência contra os trabalhadores
da obra de emergência e, posteriormente, contra a polícia de Canindé e até mesmo contra o
proprietário. Como foi visto, as notícias dos periódicos locais afirmaram, de modo frequente,
que os moradores estavam fortemente armados e que reagiram com violência ao fazendeiro.
Diga-se de passagem versão contraposta pela narradores entrevistados. Minimiza-se,
entretanto, as próprias violações cometidas durante o despejo dos moradores de Japuara por
parte de César Campos e pelos policiais, o proprietário foi criticado somente por não ter
aguardado as providencias judiciais para remover os moradores das terras.
Em relação aos agentes do Estado, estes tiveram suas ações legitimadas por esses
jornais e pouco se discutiu que o delegado e o seu irmão assassinaram um dos camponeses de
Japuara. Possivelmente, a principal fonte de informação utilizada por esses periódicos para
produzir essa primeira narrativa sobre o conflito foram as fontes oficiais e oriundas do próprio
Estado, tendo em vista que, constantemente, esses periódicos cederam espaço ao delegado
Raimundo Pereira, que estava à frente das investigações do confronto e que apontava
previamente como responsáveis pelos confrontos os moradores de Japuara. Assim, os policiais
aproveitaram-se do maior espaço cedido a eles para se isentarem da participação no conflito.

buscando criar uma atmosfera de medo na sociedade, principalmente, nos setores médios. Ao mesmo tempo,
existia uma clara tentativa, por parte dos jornais, que, ao politizar esses incêndios, associar a mobilização dos
trabalhadores rurais à desordem e a violência no campo. O segundo texto é a dissertação de mestrado do historiador
Pablo Porfírio intitulada “Pernambuco em perigo: pobreza, revolução e comunismo (1959-1964)”. Porfírio, em
sua dissertação de mestrado, demonstra que os discursos dos jornais e das autoridades norte-americanas
vislumbravam o Nordeste brasileiro como “um potencial” para a eclosão de uma revolução social semelhante à de
Cuba, em decorrência da própria pobreza que preponderava no Nordeste brasileiro e que passa a ser associada ao
perigo de uma possível sublevação desses pobres. Ambos os textos possuem como recorte cronológico o período
que antecede ao golpe militar, isto significa dizer que estes textos tratam de um período fortemente marcado pela
mobilização dos trabalhadores rurais e estes pesquisadores, por sua vez, analisaram como o discurso da imprensa
buscava, por sua vez, associar tais movimentos camponeses ao comunismo e até mesmo criavam um temor de um
possível espraiamento na América Latina da Revolução Cubana, principalmente, no Nordeste do Brasil com a
atuação das Ligas Camponesas de Francisco Julião associadas naquele contexto a uma postura “radicalizadora”.
Portanto, os discursos dos jornais que associavam camponeses e medo não eram um elemento novo mobilizado
pela imprensa como ocorreu com o conflito de Japuara, tendo em vista que isto já ocorria mesmo antes da ditadura
civil-militar e permanece sendo utilizado pelos jornais para criar um clima de tensão social e medo no setor médio
da sociedade leitora desses jornais, como fica evidente pelas pesquisas desses historiadores. Assim, os conflitos
camponeses são retratados na imprensa como um “alerta” para a sociedade, por isso aparecem associados ao
perigo, medo de uma possível eclosão de uma “guerrilha rural” que facilmente poderia se alastrar no campo.
149

Segundo Capelato (1988), os jornais expressam relações de poder e, normalmente,


ecoam, em suas páginas, mais fortemente a voz dos dominantes do que a voz do dominados,
principalmente, quando se trata da imprensa tradicional ou denominada como a grande
imprensa: “Os jornais expressam a opinião pública. Só que na grande imprensa (a empresarial)
o murmúrio da vox populi (voz do povo) ecos longínquos enquanto ressoa forte a vox domini
(voz dominante)” (1988, p. 18). Não à toa que os periódicos previamente tomaram partido tanto
em defesa dos agentes do Estado ou também, em algumas circunstâncias, do proprietário.
As notícias produzidas pelos periódicos, neste primeiro momento, buscavam exaltar
que a agressividade partia de um lado e não era do proprietário ou dos agentes do Estado. Não
são os proprietários de terra apresentados como os sujeitos ativos no conflito ou os policiais.
São os moradores que foram retratados como os que provocam a violência no campo e que
agem de maneira agressiva contra o patronato agrícola e a polícia. Assim, por mais que as
circunstâncias dos confrontos de Japuara ainda não estivessem esclarecidas, os julgamentos
prévios foram determinantes na produção de um tipo de narrativa que isentava os agentes do
Estado ou mesmo o proprietário, mas que não ponderaram, em nenhum momento, em culpar
previamente os moradores pela violência no campo. Mesmo os ditos jornais “informativos”,
vinculados à chamada grande imprensa, são carregados de posicionamentos e opiniões desses
grupos econômicos e políticos, normalmente transvertidos sob uma suposta neutralidade e
objetividade (MARCONDES FILHO, 1989, p. 11).
Outra questão relevante foi a abordagem dos jornais com matérias que expunham
os corpos das vítimas dos confrontos, recorrendo a chamadas e fotografias bastante apelativas.
Segundo Capelato (1988), quando o jornal utiliza alto níveis de espetaculosidade na cobertura
dos acontecimentos em suas páginas, este normalmente acaba levando a pecha de ser um jornal
“sensacionalista”, pertencente à dita “imprensa marrom”, por isso considerado menos sério
pelos seus pares. Normalmente, esses jornais atuam assim: “A imprensa que usa
sensacionalismo, dando larga cobertura a crimes, fatos escabrosos e anomalias sociais dirige-
se às camadas populares; explorando corações e mentes obtém fartos lucros” (CAPELATO,
1988, p. 15). Entretanto, os jornais analisados não se enquadravam como jornais da “imprensa
marrom”, na verdade, pertenciam à imprensa mais tradicional. O que, para Marcondes Filho,
distingue um jornal sensacionalista de outro mais convencional, pertencente à dita “boa
imprensa”, é apenas o grau em que se mobilizam as notícias e se busca mexer com as sensações
dos leitores: “O jornal deve vender-se pela sua aparência. O que vai diferenciar um dito jornal
sensacionalista de outro dito sério é somente o grau. Sensacionalismo é apenas o grau mais
radical de mercantilização da informação” (MARCONDES FILHO, 1989, p. 66). Isto significa
150

dizer que mesmo jornais dito informativos, conhecidos por um modo de produzir notícia
“sério”, podem ter uma abordagem mais apelativa em suas páginas com o objetivo de se
destacar entre os demais e tornar a sua mercadoria (notícia) mais atraente para o leitor ou mesmo
possuir o objetivo de “chocar”, causar um certo furor na sociedade.
Segundo Adísia Sá (2004), a maior parte dos recursos dos jornais cearenses
provinha das assinaturas, entretanto, ela enfatiza que a venda variava de acordo com a
manchete. Assim, se a manchete era atrativa, o jornal poderia ter um retorno financeiro melhor.
As seções que normalmente despertavam maior interesse no público eram o esporte e o policial:

Entrevistador: Mas, algum jornal procurava ser mais sensacionalista do que outro,
colocar a manchete de primeira página em letras maiores com fotos maiores?
Entrevistada: Infelizmente, o policial e o esporte eram os grandes chamarizes, sem
sombras de dúvidas. Como ainda hoje, ainda chama o leitor esse tipo de coisa
sensacionalista, principalmente o policial que veio com o resquício da Ditadura
Vargas em que não se podia falar de política, economia, não se podia falar de nada.
Eles só tiveram um caminho: ir para o esporte, ou para o policial (2004, p. 19).

Para Alves (2004), a imprensa cearense sempre destacou, em suas principais


páginas, a seção policial: “Essa coisa de apelativo sempre existiu, principalmente na parte
policial. Ela existiu desde que eu me entendo, nos anos da década de 50, 60, 70. É inevitável
pelo fato da concorrência. O outro vai dar, então vamos dar também” (2004, p. 94). Assim,
mesmo os jornais ditos “sérios” utilizavam manchetes apelativas e destacavam a violência em
suas páginas. Os relatos desses jornalistas evidenciam o caráter mercadológico da notícia. O
acontecimento, ao se tornar algo vendável, como bem definiu Marcondes Filho (1989), leva os
jornais informativos a explorar o impacto da notícia, o “caráter explosivo” associado ao fato
(1989, p. 30). A seção policial possuía destaque nos periódicos cearenses, pois era o que público
queria consumir. Portanto, esta abordagem apelativa do conflito de Japuara foi utilizada sem
pudor pela grande imprensa local com o objetivo de “chocar” o público, mexer com as
sensações dos leitores e até mesmo provocar medo de que novos confrontos por terra
eclodissem por todo o Estado.
O conflito de Japuara atrair, por vários dias seguidos, a cobertura da imprensa local
mostra ainda que os jornais deram bastante destaque à questão da violência no campo, inclusive,
aprofundaram essa temática ao longo da cobertura. Nesse primeiro momento, como foi visto, a
imprensa cedeu muito mais espaço aos discursos oficiais do conflito e construiu, de modo
apelativo, uma narrativa que mostrava os camponeses como agressores, os causadores do
151

conflito,145 seja com o proprietário ou com os policiais, e com uma abordagem apelativa.
Considera-se, então, fundamental destacar como a imprensa trará, em suas páginas, o discurso
dos camponeses de Japuara e o debate público da questão agrária.

3.3 Desapropriação para pôr fim à tensão social

Se a violência no campo tomou as páginas dos periódicos, no primeiro momento da


cobertura jornalística sobre o conflito de Japuara, sendo retratada como “atos de fúria cega”
(SCOTT, 2002, p. 14), aos poucos, essa mesma violência surge como fruto de problemas
estruturais mais amplos, como a dificuldade em aplicar a legislação agrária e trabalhista ao
campo. Portanto, a questão agrária, aos poucos, também foi-se tornando parte dos debates da
imprensa, e críticas foram sendo tecidas, principalmente, aos proprietários de terra, por se
recusarem a cumprir os dispositivos legais. A imprensa, a partir desse momento, passa a
responsabilizar os fazendeiros por esse clima de hostilidade entre as classes que imperava no
estado do Ceará.
Cubas (2012) estudou, em sua dissertação de mestrado, a representação da disputa
territorial entre camponeses e ruralistas na imprensa em São Paulo durante o recorte
cronológico entre 1988 e 2009. O autor compreende a conflitualidade entre camponeses e
proprietários rurais como uma disputa que se dá tanto no espaço físico, disputas pelo território,
quanto no espaço simbólico, isto é, disputas pela representação do conflito na imprensa, tendo
em vista que, para o autor, a mídia exerce papel fundamental na formação da opinião pública
sobre essas disputas territoriais e imateriais que envolvem camponeses e proprietários. Assim,
a imprensa torna-se um “território imaterial” que também entra em jogo na conflitualidade entre
camponeses e ruralistas: “são eventos com intensa conflitualidade que atraem a cobertura da
imprensa, os comentários dos camponeses e ruralistas que exigem deles discursos conscientes
e vêm formando sua identidade classistas” (CUBAS, 2012, p. 37). De modo que, segundo
Cubas (2012), este momento de repercussão dos conflitos de terra na imprensa é determinante
na constituição de quem são os “protagonistas” e “antagonistas” das questões de terra.
Neste sentido, este tópico almeja discutir como a imprensa foi tomada como
território de disputa entre os camponeses de Japuara e seus representantes sindicais, de um lado,

145
Cubas (2012, p. 129) observou, no que diz respeito à representação do Movimento dos Trabalhadores Rurais –
MST na imprensa paulista, que esta costuma retratá-los como os agressores, os responsáveis por causarem os
conflitos de terra. Isto, em certa medida, aproxima-se da representação na imprensa dos camponeses de Japuara já
estes foram retratados, naquele momento, como os provocadores dos confrontos, os que foram apontados como os
principais responsáveis pelas mortes.
152

e o proprietário (César Campos) e os agentes do Estado, do outro, tendo em vista que as partes
envolvidas entraram em choque nestes jornais e buscaram construir representações distintas
sobre um mesmo conflito de terra.
Antes de tudo, é necessário enfatizar de acordo com Silva (1994), que a questão
agrária, durante o período do “milagre brasileiro”, pouco foi discutida pela imprensa. O
primeiro motivo diz respeito ao “esquecimento” ou o silenciamento imposto pela intensificação
da repressão política e também devido ao aumento da produtividade no campo, o que ocasionará
uma ideia equivocada de que a questão agrária tinha sido solucionada pelos militares:

De um lado, ela havia sido esquecida ou deixada de ser tema da grande imprensa. Do
outro lado, da parte daqueles que não podiam esquecer, porque a questão agrária faz
parte de sua vida diária, os trabalhadores rurais, ela fora silenciada. Para isso foi
necessário fechar sindicatos, prender e matar líderes camponeses, além de outra série
de violência que todos conhecem ou pelo menos imagina (SILVA, 1994, p. 9-10).

Silva (1994) ainda adverte para a necessidade de diferenciar a questão agrícola da


questão agrária. Para o autor, a questão agrícola relaciona-se a fatores ligados a mudanças de
produção, enquanto a questão agrária diz respeito às transformações nas relações de produção
“como se produz, de que forma se produz” (1994, p. 11). É necessário, ainda, considerar que
solucionar a questão agrícola não significa resolver a questão agrária, pois também se faz
essencial discutir a estrutura agrária, isto é, como a terra se encontra distribuída. Assim,
aumentar a produtividade do campo ou mesmo modernizar as relações de trabalho no campo
não implicam solucionar a questão agrária ou mesmo colocar em pauta a estrutura agrária.
Segundo Palmeira (2013), a onipresença do Estado autoritário mascara qualquer
atividade política que não “seja ele próprio” ou ligada ao seu controle político. Nesse sentido,
transparece uma ideia equivocada de que a política, durante o regime autoritário, restringe-se,
apenas ao que diz respeito ao Estado ou, ainda, que os conflitos de classe teriam desaparecido
com a democracia: “É como se o Estado substituísse a política, e o consenso tomasse o lugar
do conflito. A luta de classes, a matéria mesmo da sociedade civil, desaparece de vez dos olhos
dos analistas mais refinados” (2013, p. 24). Assim, as visões de muitos analistas políticos
excluíram os conflitos de classe durante o regime autoritário, em especial, os conflitos de terra
envolvendo os camponeses e os proprietários de terra por acreditarem que estes desapareceram
junto com a democracia:

O fato é que os interpretes da chamada “realidade social brasileira”, acompanhando o


corte estabelecido pelas forças repressivas no plano político, estabeleceram um corte
ao nível de suas análises, pelo qual os trabalhadores, em especial os trabalhadores do
153

campo, “os excluídos de sempre”, sobre os quais antes se depositavam todas as suas
esperanças messiânicas, foram excluídos também delas. A julgar por tais análises, a
luta de classes no Brasil encerrou-se em 1964 (PALMEIRA, 2013, p. 24).

De acordo com Grynszpan (2003, p. 325), mesmo que o Estado autoritário tenha
imposto a desmobilização aos camponeses, isto não foi capaz de conter os conflitos de terra.
Estes, inclusive, persistiram e foram até mesmo ampliados durante a ditadura. Do mesmo modo,
ele enfatiza que a questão agrária, mesmo após o golpe militar, manteve-se uma problemática
central em decorrência das recomendações do próprio governo norte-americano, que temia a
possível eclosão de revoltas camponesas na América Latina semelhantes à Revolução Cubana.
A reforma agrária era vista como mecanismo de controle e de eliminação dos conflitos e
revoltas de luta pela terra durante o regime militar brasileiro (GRYNSZPAN, 2003, p. 321).
Portanto, com a emergência do conflito da fazenda Japuara, as páginas dos
principais periódicos do país mostravam que os conflitos de classe no meio rural não haviam
desaparecido com a ascensão dos militares ao poder e que tais conflitos ainda representavam
uma ameaça, pois as revoltas camponesas poderiam se espraiar brevemente por todo o estado.
A questão agrária e os conflitos de classes revelam-se, então, problemáticas sociais latentes
durante a ditadura. A imprensa, inclusive, passa a defender que Japuara seja tratada como um
“problema social” e não apenas como um “caso de polícia”. Nesse sentido, pretende-se chamar
a atenção para o modo como o maior espaço cedido às entidades sindicais foi essencial na
mudança de abordagem do conflito de Japuara nos jornais que passam a tratar como um
problema social os conflitos entre as classes do campo.
A “arena de disputa imaterial” pela representação do conflito vai reverberar com
mais força nas páginas dos jornais com a apresentação dos moradores de Japuara (CUBAS,
2012). De tal modo, as vozes dissonantes sobre a atuação dos agentes do Estado e dos
proprietários nos conflitos de terra ganharão maior veemência. Esse momento se apresentará
como uma oportunidade para os camponeses de Japuara e seus representantes sindicais tentarem
reverter a imagem do conflito que vinha sendo construída pela imprensa, ao mesmo tempo que
também passa a existir uma clara defesa da desapropriação como a solução mais viável para os
conflitos de terra.
Os agricultores envolvidos diretamente nos confrontos estavam escondidos no
Serrote de Santa Teresa e, com a apresentação dos moradores em 6 de janeiro de 1971, estes
também confrontarão as versões apresentadas pelos próprios jornais que os colocavam como
os principais responsáveis pelos confrontos e isentava os policiais e o proprietário. Diga-se de
154

passagem, os jornais cederão espaço para que os moradores pudessem contrapor as falas oficiais
que legitimavam a ação do Estado nos conflitos de terra.
O jornal Correio da Manhã, em sua reportagem de 6 de janeiro de 1971, trouxe, em
sua primeira página, fotografias dos moradores resgatados no Serrote de Santa Teresa. Na
primeira página, o jornal divulgou a seguinte manchete “Correio localiza fugitivos de Canindé”,
inclusive, o termo “fugitivos” dialogava diretamente com a fotografia dos camponeses expostos
lado a lado numa espécie de “retrato falado”:

Figura 8. Capa do Correio do Ceará de 6 de janeiro de 1971.


155

Os agricultores permaneceram três dias foragidos da polícia local e foram


resgatados em 5 de janeiro de 1971, por uma equipe formada pela Fetraece, “Diário dos
Associados” (o repórter Elysio Serra e o fotógrafo Alberto Sampaio) e também pelo
comandante regional da Polícia Militar, Francisco das Chagas. Foram localizados nas matas de
Santa Teresa localizada em Canindé.
A equipe, antes de encontrá-los, percorreu um longo caminho, embrenhando-se
pelas matas e contando com a colaboração de um agricultor amigo do grupo de Pio, que os
guiou até a possível localização do esconderijo dos moradores. Os camponeses, ao
reconhecerem, na equipe de resgate, as figuras de Lindolfo Cordeiro e Ubirajara, sentiram
segurança e resolveram entregar-se: “Francisco Pio logo reconheceu o advogado do Sindicato,
aproximando-se sendo então apresentado ao restante, inclusive o coronel José Francisco das
Chagas cuja missão era dar garantias contra as patrulhas espalhadas pela região” (CORREIO
DO CEARÁ, 6 jan. 1971, p. 7).
Os agricultores encontravam-se bem debilitados devido à escassez de água e
alimentos durante esses dias em que permaneceram nas matas: “Estavam famintos e com sede,
as vestes quase que completamente rasgadas, apenas com a esperança de que ali chegaram
pessoas de sua confiança, para prestar-lhes ajuda como fizeram os jornalistas ‘Associados’”
(CORREIO DO CEARÁ, 6 jan. 1971, p. 7). O jornal coloca-se então como protagonista central
no resgaste dos moradores.
Com a cobertura da imprensa, os moradores tiveram um espaço privilegiado para
apresentarem uma contraposição ao que até então estava sendo dito na própria imprensa, que
atribuía principalmente aos moradores a responsabilidade pelos confrontos.
O camponês Pio Nogueira Barros tornou-se essa voz dissonante. Pio, então,
aproveita o espaço cedido pelo Correio do Ceará e passa a atribuir ao proprietário César
Campos e também à própria Polícia de Canindé a responsabilidade pelo desfecho no conflito,
e isto aparece logo na primeira página do periódico sob título: “Pio acusa César Campos e a
polícia de Canindé:

César Campos e a polícia de Canindé são os únicos responsáveis pelo que ocorreu
sábado último na fazenda Japuara – afirmou que o agricultor Francisco Nogueira
Barros, Pio, ainda nas matas do conflagrado município cearense, onde o foi localizar
a reportagem “associada” acrescentou que dias antes do conflito, a 22 de dezembro,
soldados da Polícia Militar a mando de César Campos, foram a Japuara arrancar
cancelas e tomar tarrafas de pescadores, enquanto outro elemento queimava os
roçados dos moradores da propriedade. (CORREIO DO CEARÁ, 6 jan. 1971, p. 7).
156

Pio Nogueira passa a enfatizar, em seu depoimento prestado à imprensa, que a


Polícia de Canindé já era parte ativa do conflito e que esta já tinha realizado diversas
intimidações aos moradores a mando de César Campos, inclusive, prisões: “Até mesmo a pesca
estava proibida, pois dois dias antes do conflito, alguns moradores foram impedidos de
pescarem e presos em Canindé pelo Delegado Cidio Martins, o qual disse que estava cumprindo
ordens do dono da terra, César Campos” (CORREIO DO CEARÁ, 6 jan. 1971, p. 7).
Sobre o primeiro confronto, o jornal trouxe a seguinte versão apresentada sob a
perspectiva dos camponeses: “Disse o agricultor que foi covardemente agredido pelos homens
pagos por César Campos, que foram trazidos de Canindé para a fazenda Japuara, a fim de
derrubar além das cercas por ele construídas, a casa onde estava os seus filhos” (CORREIO DO
CEARÁ, 6 jan. 1971, p. 7).
Sobre os confrontos com os policiais, Pio Nogueira também apresentou uma versão
distinta daquela divulgada pelos jornais. Enfatizou que primeiro o delegado Cidio Martins
atirou no camponês Nonato Paz e que isto deflagrou o segundo confronto. Assim, Pio
confrontou tanto a participação da Polícia de Canindé no conflito, que, até então, apresentava-
se como a principal vítima dos camponeses de Japuara e também trouxe à torna as constantes
intimidações de César Campos aos moradores, isto é, os mais de três anos de disputas entre o
novo proprietário e os moradores.
Então, tanto os camponeses quanto a Fetraece vão-se esforçar em constituir uma
representação distinta do conflito na imprensa e vão acusar os policiais por sua participação no
conflito e a parcialidade destes, denunciando também o tratamento arbitrário dos proprietários
de terra.
É necessário enfatizar que, por mais de duas semanas, os jornais permanecem
divulgando fotografias dos camponeses e dos envolvidos, assim como trechos dos depoimentos
prestados à polícia. Tanto a Gazeta de Notícias quanto o Correio do Ceará optaram por trazer
o depoimento da liderança dos moradores, Pio Nogueira Barros, que ganha bastante espaço nas
páginas dos periódicos.
O Correio do Ceará trouxe, em sua primeira página, uma fotografia do agricultor e
enfatizou que Pio agiu em defesa da casa e da família: “Pio fez apenas confirmar o que já havia
declarado aos ‘Associados’, quando disse que agiu em legítima defesa para defender sua família
que estava ameaçada por capangas enviados por César Campos; para destruir as benfeitorias
feitas na Japuara, a qual era morador há 20 anos” (CORREIO, DO CEARÁ, 6 jan. 1971). Os
jornais constantemente passam a destacar esse trecho do depoimento de Pio, isto é, que ele teria
agido em defesa da propriedade e da família:
157

Figura 9. Capa do Gazeta de Notícias, 6 de janeiro de 1971.


“Falando com firmeza Pio depôs durante cinco horas afirmando que se matou foi em defesa própria e da família”.

Essa imagem, originalmente, mostrava os policiais do outro lado da mesa, mas o


jornal fez questão de recortar a fotografia e deixar somente Pio Nogueira gesticulando, sem a
presença dos policiais e do delegado na primeira página. Portanto, em certa medida, essa
fotografia trazia certa credibilidade ao discurso de Pio ao afirmar que ele depôs com “firmeza”.
A violência agora atribuída aos camponeses estava dotada de valores morais como a defesa da
propriedade e da família, valores que facilmente levariam os setores médios leitores desses
jornais a se identificarem com a causa de Pio.
Em contrapartida aos demais periódicos, o jornal O Povo trouxe o depoimento do
proprietário César Campos, cerca de duas semanas depois do depoimento de Pio. Entretanto, o
jornal não divulgou nenhuma fotografia do proprietário dentro da delegacia, como haviam feito
os outros jornais no dia do depoimento de Pio Nogueira. Ressalte-se, ainda, que o depoimento
do proprietário não gerou a mesma repercussão na imprensa e os jornais destacam muito mais
o depoimento de Pio do que do proprietário, que não chegou nem mesmo a ser divulgado por
todos os periódicos analisados aqui. Isto indica que, nesta “arena de disputa”, os camponeses
terão suas falas ganhando mais eco do que a do proprietário. Isto foi relevante porque eles
158

tiveram mais espaço para se contrapor às versões oficiais sobre o conflito, além de indicar que
os jornais aparentemente estavam mais interessados no que os camponeses tinham a dizer.
De toda forma, é relevante analisar o discurso do proprietário sobre Japuara e os
camponeses. O jornal Povo trouxe como manchete da matéria a seguinte proposição: “César
acusa sindicato no conflito de Canindé”. A reportagem reproduziu, de modo direto, o
depoimento do proprietário com as questões realizadas pela polícia e as respostas dele. Segue
um desses trechos:

SÉTIMA PERGUNTA) – Se no dia dois de janeiro do corrente ano, o depoente


contratou uns homens com a finalidade de irem à fazenda Japuara, promover
demolição de cêrcas, destelhamento de casas dos moradores da referida fazenda,
bem assim como a missão de arrombar o açude da dita propriedade e quanto pagou
a cada um dêsses homens?
que referente à SÉTIMA PERGUNTA depoente declaro que fique esclarecido que
no dia dois de janeiro do corrente ano mandou contratar trinta homens com a
finalidade única e exclusive de arrombar o açude da fazenda Japuara, pelo fato de
haver o morador Pio Nogueira de modo desrespeitoso mandado fazer pescarias
naquele açude por numerosos indivíduos residentes em Canindé [...]
Não mandou os trinta homens contratados para arrombar o açude, demolir cêrcas,
destelhar casas de moradores daquela propriedade, e se assim o fizeram foi por
iniciativa própria, por conseguinte o depoente ignora completamente o motivo pelo
qual referidos indivíduos tomaram aquela atitude violenta (O POVO, 2 fev. 1971,
p. 8).

O proprietário, no inquérito da polícia divulgado pelo jornal, alegou, em sua defesa,


que não teria autorizado os trabalhadores da frente de emergência a destruir as casas dos
moradores para provocar o despejo. Se estes o fizeram, foi por conta própria e não mediante a
sua autorização, já que César Campos afirmou ter dado ordens, somente, para que os
trabalhadores arrombassem o açude (o que, por si só, já consiste em uma atitude violenta).
Assim, Campos admitiu ter ordenado o arrombamento do açude e alegou ter tomado tais
atitudes em decorrência de Pio ter autorizado as pescarias de modo “desrespeitoso”. Observa-
se como foi conveniente ao proprietário contratar os trabalhadores da frente de emergência,
pois ele conseguiu defender-se de suas atitudes escondendo-se atrás da “multidão de homens
anônimos” para não ser penalizado juridicamente (NEVES, 2000, p. 113). Se houve excessos,
a responsabilização recaiu sobre dezenas ou mesmo possíveis centenas de trabalhadores da
frente de emergência que não foram acusados e que não responderam a nenhum processo. O
único desses sujeitos contratados pelo proprietário que ganhou visibilidade foi o trabalhador
Joaquim Piau, morto durante o confronto. Os demais trabalhadores da frente de serviço
159

contratados pelo proprietário não tiveram suas identidades reveladas e sempre aparecem sob a
identidade genérica de “homens” ou “cassacos”.146
O proprietário também responsabilizou o Sindicato dos Trabalhadores Rurais pelo
início do conflito. No seu depoimento, ele deixa claro que o conflito com os moradores se
iniciou a partir do momento em que Pio Nogueira e os demais moradores se filiaram ao STR:

TERCEIRA PERGUNTA) – Desde quando começou a questão entre o depoente e os


moradores da fazenda Japuara, a respeito do problema das indenizações das
benfeitorias lá existentes?
Respondeu que a questão foi iniciada pelo morador FRANCISCO NOGUEIRA
BARROS, vulgo Pio, quando este ingressou no Sindicato dos Trabalhadores Rurais
do Ceará, tendo referido indivíduo recebido a solidariedade de outros moradores, que
também passaram a fazer parte do aludido Sindicato, os quais daí por diante ficaram
obedecendo a orientação ou chefia do aludido Pio Nogueira, uma vez que êle é
delegado do aludido Sindicato na região de Canindé (O POVO, 2 fev. 1971, p. 8).

O conflito entre o proprietário e os moradores de Japuara não teve início com o


processo de sindicalização, apesar de as situações conflitivas terem-se intensificado com a
intervenção da Fetraece e a orientação para que os moradores de Japuara fizessem parte de uma
entidade de representação sindical. Entretanto, a afirmação de César Campos de que o conflito
e as cobranças pelas benfeitorias tiveram início com o processo de sindicalização dos moradores
poderia deslegitimar a mobilização dos agricultores de Japuara. Principalmente, em um
contexto marcado pela perseguição a indivíduos sindicalizados.
Assim, as atitudes violentas de um proprietário poderiam ter um peso menor, diante
de um Estado que levava a cabo a perseguição e a tortura de indivíduos sindicalizados. Desse
modo, durante o período autoritário, para determinado segmento da sociedade, o uso da
violência era justificado mediante a defesa dos interesses de classe e do direito à propriedade
sem quaisquer embaraços: “Trata-se por isso de uma ideologia de dominação de uma parcela
da sociedade que se serviu para justificar as mais violentas formas de opressão classistas”
(CUNHA, 2007, p. 24). Observa-se, então, que o proprietário de modo estratégico estabeleceu
que a relação entre eles e os moradores de Japuara era perpassada por uma suposta
tranquilidade, rompida com a interferência dos agentes externos a essa relação, caso do
sindicato.
O proprietário, ao enfatizar que a mobilização dos moradores foi desencadeada pela
interferência do sindicato rural no conflito, mesmo sendo reivindicações pautadas pela legislação

146
De acordo com Castro (2014), a denominação “cassaco” associa-se, no Ceará e também em outros estados do
Nordeste, a animais feios e fedorentos. Normalmente, os trabalhadores da frente de emergência eram conhecidos
por essa alcunha (2014, p. 2). Então, era um termo que estigmatizava esses trabalhadores das frentes de serviço e
que permanece sendo utilizado mesmo durante a década de 1970.
160

agrária, inclusive, respaldadas principalmente no Estatuto da Terra, poderia fazer com que a
mobilização dos moradores adquirisse uma conotação distinta e as ações dos camponeses fossem
encaradas como atos “subversivos” durante o regime autoritário. Talvez tenha sido este o propósito
de César Campos.
Por conseguinte, da mesma forma que era conveniente para o novo proprietário
acusar os trabalhadores da frente de emergência pelos atos arbitrários na propriedade, alegando
que não os autorizara a destruir as casas dos moradores e as cercas, também era conveniente
afirmar que a situação de intranquilidade entre ele e os moradores só se iniciou a partir da
orientação do sindicato para que os camponeses cobrassem pelos seus direitos. Dessa forma, o
proprietário enfatiza que essas reivindicações só ocorreram a partir da interferência do
sindicato. Sendo este, portanto, o responsável por romper “a ordem e paz no campo”
(MONTENEGRO, 2004, p. 396).
Segundo Barreira (1992), com a emergência do conflito de Japuara, os sindicatos
rurais despontam como os grandes adversários dos proprietários de terra: “Outro resultado do
conflito foi o Sindicato dos Trabalhadores passar a ser considerado o grande inimigo dos
proprietários de terra e o agente da subversão social e do conflito no campo, na medida em que
deu orientação aos camponeses” (1992, p. 55). Portanto, o sindicato rural vai aparecendo nos
discursos dos proprietários na imprensa e de seus representantes, sempre associado à subversão
no campo.
Observa-se, desse modo, como foi tornando-se latente o conflito das classes do
campo, dimensionado agora para dentro das páginas dos periódicos do estado do Ceará com
deferimento de acusações de ambos os lados. São discursos que constantemente passam a se
contrapor nos jornais. Assim, vê-se que, em Japuara, o conflito de classes entre os camponeses
e o proprietário também passou a travar-se “nesse território imaterial” (CUBAS, 2012): a
disputa pela forma como seria representado nas páginas dos jornais o conflito na imprensa e o
modo como deveria ser conduzida a questão agrária.
O discurso que dava ênfase à intranquilidade no meio rural e que almejava criar um
temor na sociedade de novos conflitos de terra começa também a ser utilizado pelos
representantes sindicais. Isto é, os advogados dos moradores de Japuara e os sindicalistas
passam a se valer de um discurso alarmante sobre os conflitos de terra no Ceará.
O sindicalista Francisco Almeida, presidente do Sindicato dos Trabalhadores
Rurais de Canindé, concedeu uma entrevista à Gazeta de Notícias, enfatizando a situação de
intranquilidade que preponderava no meio rural. O sindicalista, em sua fala ao jornal, destacou
que, em Canindé, predominava certo clima de hostilidade entre moradores e proprietários em
161

decorrência de tais fazendeiros não respeitarem a legislação agrária e negarem-se a conceder


direitos aos trabalhadores rurais:

Líder camponês reconhece o perigo de novos conflitos


“Casos como aquêle da Fazenda Japuara podem ocorrer novamente a qualquer –
momento no município de Canindé” A afirmação do Presidente do Sindicato dos
Trabalhadores Rurais de Canindé, Francisco Almeida Ferreira, adiantando que ali são
inúmeras as questões entre agricultores e proprietários, em que os primeiros ficam
sempre prejudicados vendo os seus direitos afetados (GAZETA DE NOTÍCIAS. 8
jan. 1971, s.n. Grifo do autor).

A ameaça de novos conflitos que, em princípio, estava restrita ao município de


Canindé foi ganhando mais repercussão, e os veículos de imprensa passam a destacar que, em
várias cidades do estado do Ceará, existia uma atmosfera de hostilidade no meio rural que
poderia desdobrar-se em episódios violentos. O jornal Correio do Ceará divulgou uma matéria
em que afirmava que o Delegado Regional do Trabalho, Vicente Cândido Neto, teria recebido
um documento das entidades sindicais atestando a tensão social entre proprietários e
camponeses no Ceará em razão de inúmeras “brigas de terra”: “O Sindicato dos Trabalhadores
Rurais encaminhou àquela autoridade, um documento no qual enumera mais de cinquentas
casos perigosos no interior que poderão se transformar em pontos de atritos semelhantes
ao que ocorreu em Japuara” (CORREIO DO CEARÁ, 14 jan. 1971. Grifo nosso). O jornal
enfatizou que o Estado possuía inúmeros casos de conflitos que poderiam ter desfechos
violentos, isto indicava ao leitor que a violência no campo poderia facilmente se generalizar
pelo estado.
Assim, os jornais e as entidades sindicais criaram uma atmosfera de “tensão social”
o que, por outra via, abriu um caminho para que Lindolfo Cordeiro (advogado dos moradores)
apresentasse como solução para o conflito de Japuara a desapropriação com base no próprio
Estatuto da Terra, que previa o seguinte: “Art. 15. A implantação da Reforma Agrária em terras
particulares será feita em caráter prioritário, quando se tratar de zonas críticas ou de tensão
social”.147
Em outros termos, os advogados e lideranças sindicais também sustentavam que os
conflitos de terra no Ceará eram um “barril de pólvora” que explodiria a qualquer momento.
Essa atmosfera de ameaça de novos embates entre proprietários e camponeses permitiu que
fosse apresentada à sociedade a desapropriação de Japuara como o meio mais viável para

147
Lei N° 4.504, de 30 de novembro de 1964. Dispõe sobre o Estatuto da Terra. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l4504.htm. Acesso em: 24 abr. 2020.
162

acalmar os ânimos. Inclusive, esses sujeitos ganham cada vez mais espaço nos jornais e vão
suscitar um debate mais aprofundado na imprensa sobre a questão agrária.
É fundamental salientar que, possivelmente, essa exploração do temor de novos
conflitos de terra no Ceará pelos advogados ligados às Federações dos Trabalhadores foi
utilizada como estratégia para acelerarem a desapropriação de Japuara. Alegava-se, então, que
tais áreas eram caracterizadas como locais de “grave tensão social no campo”, sujeitas a
medidas desapropriatórias como estabelecido pelo Estatuto da Terra. Lindolfo Cordeiro e as
entidades sindicais passam, dessa forma, a explorar o suposto caráter violento associado ao
conflito de Japuara com o objetivo de conquistarem uma decisão favorável aos camponeses.
Grynszpan (2009), em seu estudo sobre as ocupações de terra na Baixada fluminense, observou
uma mudança de estratégica dos camponeses e de seus representantes sindicais na luta pela
conquista da terra. Se, durante a década de 1950, eram comuns as ações envolvendo o usucapião
para a conquista da terra, essa estratégia de luta passa por mudanças a partir da década de 1960,
com a projeção do movimento camponês no cenário político e o debate em torno da
consolidação da reforma agrária por meio de desapropriações de terra previstas, inclusive, na
Constituição:
Nesse contexto, o que passavam a buscar as lideranças era não mais o usucapião, mas
sim, expondo a violência e a radicalidade das lutas, caracterizar os locais onde vinham
ocorrendo despejos como áreas de conflito, de tensão social. Seu objetivo era forçar a
desapropriação daquelas áreas e sua entrega aos lavradores (GRYNSZPAN, 2009, p.
47).

Assim, segundo Grynszpan (2009), o movimento camponês a partir de década de


1960 passa a explorar a radicalidade dos conflitos de terra com o objetivo de conquistar a
desapropriação e forçar o cumprimento do que estava assegurado na Constituição. Nesse
sentido, a exploração da violência dos conflitos de terra por parte do movimento sindical era
uma estratégia para compelir, ou melhor, forçar a aplicação da legislação agrária,
principalmente, quando o Estado se mostrava ineficiente em cumprir o disposto em lei.
Portanto, a exploração da violência por parte dos advogados dos camponeses de
Japuara pode ser pensado como estratégia política para forçarem a desapropriação da terra que
estava prevista na legislação, mas que não estava sendo posta em prática. O desinteresse do
Estado em aplicar o Estatuto da Terra ocasionou, por parte do movimento sindical, uma
exploração do caráter violento associado aos conflitos de terra para forçarem a aplicação da lei
e conquistarem a desapropriação: “Usando habilmente a referência legal existente, o
movimento sindical conseguiu manter o seu perfil de força autônoma exigindo o cumprimento
da lei, contestando o Governo no que era possível contestar” (PALMEIRA, 1989, p. 102). A
163

cobrança do Estatuto da Terra, portanto, torna-se objeto central de debate da imprensa graças à
articulação dos sindicalistas e advogados dos camponeses.
Como já dito, a imprensa, ao longo da cobertura do conflito de Japuara, passa a
debater as inúmeras dimensões que envolviam as questões de terra, buscando até conduzir a
opinião dos seus leitores sobre a Reforma Agrária e as novas legislações existentes sobre os
direitos dos camponeses. Assim, é fundamental analisar tais artigos publicados pela imprensa,
com a finalidade de compreender como esses discursos favoreceram a celeridade da
desapropriação de Japuara.
Em um artigo intitulado “Questão delicada”, o jornal O Povo propôs-se a discutir o
“problema da terra” com o seu público leitor. No artigo, o jornal defende que a terra é tanto um
fator de produção, quanto motivo de tensão social, principalmente, quando o problema da terra
era tratado à margem da legislação agrária. O jornal reflete que os conflitos de terra ocorriam
quando não se respeitavam as leis agrárias e citava o caso de Japuara como um desses casos.
Segundo O Povo, a aprovação do Estatuto do Trabalhador Rural e do Estatuto da Terra surgiu
justamente para solucionar a “questão agrária”, tendo em vista que a “Revolução de março”
tratou, de forma lúcida, os problemas oriundos das relações de trabalho no campo. Dessa forma,
o regime militar, desde o princípio, segundo o jornal, mostrou-se preocupado tanto com a
“produtividade” quanto com o restabelecimento de uma “paz social” no campo.
O Povo ainda enfatizou que o governo ditatorial estimulava a aplicação da
legislação agrária por meio da organização dos trabalhadores rurais em diferentes instâncias de
representação sindical, assim como estimulou a organização dos “empresários do campo”.
Portanto, o jornal atribui ao regime militar tanto a existência da legislação agrária, quanto a
organização dos camponeses e também dos proprietários. O jornal também definiu, como o
cerne do conflito de Japuara e de outros conflitos de terra do Estado, o desrespeito da legislação
pelos fazendeiros mais tradicionais e os criticou por se oporem ao “espírito das leis”, por serem
apegados a “privilégios caducos” (O POVO, 6 jan. 1971, p. 3). Portanto, foi deixando evidente
o seu posicionamento mais liberal e se opondo à oligarquia do campo mais tradicional,
conservadora e resistente à modernização das relações de trabalho no campo, que atuava à
margem da lei.
Assim, para a imprensa, esse segmento de proprietários avessos à aplicação da
legislação agrária representava um obstáculo ao pleno desenvolvimento do capitalismo no
campo, oposto ao que supostamente era vislumbrado pelo regime militar, além de ocasionarem
os conflitos de terra: “O episódio de Canindé tumultuado ao primeiro impacto pela
desinformação decorrente, ora da ignorância, ora da má fé, é característico da oposição de certos
164

setores dos proprietários de terra à legislação em vigor” (O POVO, 6 jan. 1971, p. 3). Do mesmo
modo, ressaltava que a cobrança da aplicação do Estatuto da Terra pelos camponeses de Japuara
fora a causa do conflito e gerara uma reação violenta de César Campos: “A persistência dos
lavradores na defesa dessas disposições legais é que gerou a questão, sendo de lamentar que,
talvez mal orientado haja o proprietário das terras se antecipado ao pronunciamento da justiça,
apelando para uma solução violenta” (O POVO, 6 jan. 1971, p. 3).
O jornal Gazeta de Notícias também entrará de forma profunda no debate da
questão agrária, inclusive, mais ainda do que O Povo. O periódico, em 18 de janeiro de 1971,
retoma a entrevista do presidente do Sindicatos dos Trabalhadores de Canindé, Francisco
Almeida, para cobrar providências das autoridades públicas como meio de sanar o clima de
intranquilidade supostamente preponderante no meio rural no Ceará: “O lamentável incidente
do dia 2 de janeiro, em Canindé, poderá se repetir a qualquer momento, se as autoridades não
tomarem providências imediatas” (GAZETA DE NOTÍCIAS, 18 jan. 1971, p. 8).
Para o jornal, o conflito de Japuara poderia ter sido evitado caso tivessem sidos
tomadas as medidas necessárias e as autoridades públicas tivessem atuado como mediadoras do
conflito entre os proprietários e os camponeses. A Gazeta expressa esse posicionamento
trazendo a voz de Francisco Almeida: “Na mesma entrevista, adianta o líder rural que o caso
da Fazenda Japuara teria sido evitado se as autoridades judiciais tivessem agido com mais
rapidez, antes que o tempo se encarregasse de criar um clima de ódio entre proprietários e
posseiros” (GAZETA DE NOTÍCIAS, 18 jan. 1971, p. 8). Entretanto, o jornal ainda permanece
enfatizando que a violência no campo acontecia, muitas vezes, por uma certa “rudez” do homem
do campo que, ao não ter os seus direitos respeitados, via-se impelido a “agir pela força”: “Por
esta razão não se pode agora cruzar os braços, visto que os agricultores são homens de pouca
instrução e podem chegar a atos violentos, na defesa dos seus direitos se a justiça for morosa”
(GAZETA DE NOTÍCIAS, 18 jan. 1971, p. 8). Então, a imprensa, mesmo modificando o seu
posicionamento sobre os camponeses, ainda difunde uma visão estereotipada sobre eles.
A Gazeta, neste mesmo dia, trouxe ainda uma coluna de opinião do jornalista
Francisco Pires Saboia intitulada “Questões de Terra: um problema social”. Esse texto vai-se
inserir em uma série de matérias em que o jornal se disporá a discutir a questão agrária com os
seus leitores. Saboia realizará uma reflexão em torno da questão agrária, o que significa dizer
que o jornalista discutirá os problemas do arrendamento da terra, os contratos de parceria, a
concentração de terras e as relações de trabalho no campo. O colunista ainda retoma uma
suposta fala de Lindolfo Cordeiro para enfatizar a necessidade de discussão das leis agrárias,
pois tanto o patronato agrícola quanto autoridades judiciais “desconheciam” o sistema legal que
165

regia as relações de trabalho no campo, principalmente, as novas leis, tais como o Estatuto do
Trabalhador Rural e, principalmente, Estatuto da Terra (objeto central dos debates): “Para o
advogado Lindolfo Cordeiro, a violência nasce do desconhecimento das normas jurídicas em
vigor, por parte dos proprietários que vêem o posseiro como uma pessoa que pode ser despedida
a qualquer momento” (GAZETA DE NOTÍCIAS, 18 jan. 1971, p. 8). Assim, a Gazeta de
Notícias enfatiza que existe um problema que precisa ser melhor debatido e que o cerne da
questão agrária no Ceará reside no desrespeito às leis pelos fazendeiros. O periódico atribui-se
assim a missão de discutir essa problemática com os leitores.
Observa-se ainda como o jornal vai “legitimando o seu discurso”, utilizando-se,
para tanto, do que diziam os advogados sindicais ou lideranças sindicais, tendo em vista que
estes se respaldavam pela lei agrária (CUBAS, 2012, p. 121). Portanto, os jornais passam a
embasar o seu posicionamento sobre os conflitos de terra por meio do que estava sendo
defendido pelos advogados sindicais e pelas lideranças sindicais camponesas e não mais pelos
proprietários de terra ou mesmo pelos agentes do Estado. Assim, as falas de outros sujeitos vão
ganhando mais eco nas páginas dos jornais e passam a ser utilizadas para respaldar o
posicionamento político assumido pelos periódicos.
No dia seguinte, o jornal Gazeta manifesta-se, de forma bastante clara, a favor da
desapropriação de Japuara como uma resolução para o conflito, já que, segundo o periódico,
uma decisão favorável aos camponeses acalmaria a situação de intranquilidade no campo e
evitaria o aparecimento de novos conflitos no Ceará:

Uma decisão favorável aos lavradores, sem que resultasse em prejuízo para a outra,
poderia servir de exemplo, possibilitando o entendimento mútuo entre proprietários e
agricultores noutras questões existentes em nosso Estado e que podem resultar no
surgimento de novos conflitos de consequências imprevisíveis (GAZETA DE
NOTÍCIAS, 19 jan. 1971, p. 3).

Na sua segunda coluna divulgada na Gazeta de Notícia, Saboia começa a tecer


críticas mais contundentes contra os proprietários de terra. Afirma ainda que o patronato
agrícola se sustentava em “antigos costumes” e não tinha por hábito indenizar os seus
moradores pelas benfeitorias úteis. Para ele, o que imperava, nessas propriedades, era “lei da
força” responsável por fazer valer a vontade pessoal desses fazendeiros:
166

Questões de terra: um problema social II


Nenhum proprietário de terras no interior do Ceará tolera a idéia de ter que pagar a
indenização quando precisa tirar de suas fazendas os moradores ali existentes. A
maioria dos latifundiários entende que se trata de uma coisa absurda, pois a terra lhe
pertence e ninguém pode ficar ocupando-a. Muitos deles ou a quase totalidade sabe
da existência que determina esta indenização apenas por ouvi dizer. Os poucos que a
conhecem, não se conformam com a sua existência e a taxam como injusta.
Para estes tais leis surgiram com o aparecimento dos sindicatos e têm orientação
subversiva. Para outros é coisa sem importância, pois sendo uma lei, não poderá ser
colocada em prática, porque é absurda e injusta.
Lei da Força
Exatamente porque os proprietários de terra não aceitam em hipótese alguma a lei que
assegura direitos dos agricultores, no tocante à indenização pelas benfeitorias úteis e
necessárias, é que vemos ocorrências como os casos de Japuara, em Canindé. Os
nossos fazendeiros ainda têm como base os costumes antigos quanto não havia norma
que disciplinasse a questão e por isso o uso da terra era determinado por sua vontade
(GAZETA DE NOTÍCIAS, 25 jan. 1971, p. 6. Grifo do autor).

Destarte, com as colunas de opinião, os jornais demonstram ao leitor que existe uma
relação entre cobrança por direitos e violência no campo, já que os proprietários de terra agiam
com hostilidades contra os camponeses justamente por resistirem a cumprir os dispositivos
legais e negarem-se a conceder direitos aos moradores. Assim, atribui-se ao patronato agrícola,
em parte, a responsabilidade pelos conflitos de terra, enquanto a imprensa relaciona que a
cobrança por direitos gera violência no campo, pois existia um processo de resistência dos
proprietários em acatar o estabelecido pela legislação agrária.
Saboia ainda enfatiza que o sistema legal que regulamentava as relações de trabalho
no campo, tais como o Estatuto da Terra, era fruto da elaboração do regime militar e trouxe
consigo a possibilidade da concretização da Reforma Agrária: “Com a Revolução de 31 de
março de 1964, a coisa tomou outro sentido, especialmente porque a idéia de Reforma Agrária
aparecia de maneira promissora nos países em desenvolvimento” (GAZETA DE NOTÍCIAS,
25 jan. 1971, p. 6). Assim, não poderia se associar a cobrança da aplicação da legislação agrária
como atos de subversão dos camponeses ou das entidades sindicais que os representavam. A
legislação agrária não seria dotada de um “caráter ideológico”, como sustentavam os
proprietários: “Muito tem se falado que o aparecimento dos sindicatos deu aos rurícolas uma
informação distorcida, levada por um caráter político diferente, tendencioso e de esquerda.
Entretanto, as normas jurídicas em vigor, defendendo os interesses dos agricultores, surgiram
com a Revolução de Março de 1964” (GAZETA DE NOTÍCIAS, 25 jan. 1971, p. 6).
Nesse sentido, os jornais passam a confrontar a associação entre a cobrança por
direitos e subversão no campo, tendo em vista que os proprietários de terra associavam tais
reivindicações a uma atuação ativa do sindicato dos trabalhadores rurais e tentavam, por sua
vez, associar tais reivindicações à violência no campo. Para o jornal, o desrespeito à legislação
167

agrária tornara-se comum entre os proprietários de terra do estado. Assim, são os fazendeiros
que não estão agindo conforme os preceitos do regime autoritário. Nesse momento, percebe-se
ainda que os “antagonistas” dos conflitos de terra passam a ser os fazendeiros e não mais os
camponeses e as entidades sindicais (CUBAS, 2012).
Portanto, conflitos de terra não ocorriam somente em decorrência do
desconhecimento da lei agrária pelos fazendeiros. Na verdade, os jornais agora passam a
reforçar a ideia de que os proprietários não cumpriam o Estatuto da Terra e outros dispositivos
legais porque se recusavam a conceder direitos aos moradores por serem “atrasados” e
contrários ao “espírito das leis”. Não se tratava apenas de mero desconhecimento do que estava
disposto na legislação, como fora defendido em princípio, mas sim uma resistência proposital
operada por esses proprietários.
A terceira e última coluna sobre a questão agrária foi publicada no dia em que os
moradores de Japuara foram liberados pela polícia. O jornalista Saboia inicia o seu texto
enfatizando a recorrência dos conflitos de terra devido à cobrança do cumprimento da legislação
agrária pelos camponeses:
Questões de terra III: um problema social
Diariamente, pelo menos três casos envolvendo agricultores e proprietários chega ao
conhecimento da Federação dos Trabalhadores na Agricultura no Estado do Ceará.
Cada questão apresenta um problema diferente, mas todas têm sempre um detalhe em
comum. O não reconhecimento dos direitos que assistem o operário por parte dos
proprietários (GAZETA DE NOTÍCIAS, 1 fev. 1971, p. 6. Grifo do autor).

De acordo com o jornalista, quando os camponeses se encontram desassistidos, isto


é, em locais em que os STRs são menos ativos, a situação de desrespeito ao cumprimento da
legislação tende a se agravar e os camponeses são postos para fora das propriedades sem receber
os seus direitos. “O problema se torna mais grave nos municípios onde não existem sindicatos
rurais, porque uma pessoa despejada não sabe para onde apelar e termina aceitando a coisa
como sendo natural dirigindo seus esforços apenas para conseguir nova moradia” (GAZETA
DE NOTÍCIAS, 1º fev. 1971, p. 6).
Saboia reflete sobre como a existência da legislação agrária atingiu o status quo
dos proprietários de terra que se utilizam da violência pública ou privada, ou até mesmo uma
combinação entre ambas, como meio de manutenção de “antigos costumes” ameaçados com a
atuação dos Sindicatos dos Trabalhadores Rurais, assim como pela existência de novos
dispositivos legais: “O mais comum, em tôdas as questões é o emprego da violência,
especialmente da parte do patrão, que na ânsia de jogar fora os posseiros de terra emprega a
fôrça, geralmente por intermédio de empregados seus ou usando policiais” (GAZETA DE
168

NOTÍCIAS, 1º fev. 1971, p. 6). Dessa forma, ele também observa o papel colaborador do
Estado com os proprietários de terra: mesmo quando este intervém no conflito com o seu
aparato policial, atua em conluio com os fazendeiros. Portanto, críticas são tecidas contra o
Estado, que contribui para a manutenção “dessa ordem” estabelecida pelos fazendeiros no
campo.
O jornalista, então, observa que a negativa de conceder indenizações aos moradores
foi o cerne do conflito de Japuara, já que os fazendeiros, tais como o próprio César Campos,
recusavam-se a reconhecer quaisquer direitos aos moradores. Saboia constata um modus de agir
comum entre os fazendeiros quando os camponeses cobravam pelos seus direitos: “Para não
cumprir esta determinação legal, qualquer fazendeiro emprega métodos grosseiros e sua
primeira cartada é contratar policiais do destacamento local para ameaçar rurícolas. Muitas
vezes a ameaça se torna luta e acontece crimes de homicídio como o caso de Japuara”
(GAZETA DE NOTÍCIAS, 1º fev. 1971, p. 6). O jornalista observa como a violência era
articulada pelos proprietários para inibir a reivindicação pela aplicação da legislação agrária.
Percebe-se ainda que tal posicionamento favorável aos camponeses de Japuara se
relaciona ao fato de as reivindicações deles terem sido pautadas pelo Estatuto da Terra,
instrumento jurídico aprovado pelo presidente Castelo Branco. Afinal, se o regime autoritário,
em tese, era favorável à Reforma Agrária, isto, em parte, facilitou certa simpatia do jornal pela
mobilização dos moradores de Japuara em torno do cumprimento da lei elaborada pelo próprio
regime militar. A reivindicação dos camponeses de Japuara era legítima e estava conforme o
que era pregado pelo regime militar.
É importante ainda considerar que, segundo Barreira (1992), a imprensa do Ceará
observa, por meio do conflito de Japuara, que os proprietários de terra eram “atrasados” e que
não desejavam modernizar as relações de trabalho e de produção no campo: “Foram
denunciadas as formas arcaicas, não capitalistas, da relação de produção no campo; a baixa
produtividade da agricultura do sertão, o viés conservador dos proprietários de terra, etc.”
(1992, p. 55). Ainda segundo o autor, os jornais também constataram o quanto os fazendeiros
eram “autoritários” e “absolutistas” no tratamento dado aos camponeses. A única lei que
imperava no interior dessas fazendas era a “vontade pessoal” desses proprietários. Para esses
fazendeiros, os mecanismos legais só deveriam ser postos em pratica quando lhes beneficiassem
(1992, p. 54-55).
Os proprietários de terra passam, dessa maneira, a personificar um modelo de
agricultura a ser superado no Ceará para possibilitar o pleno desenvolvimento do capitalismo
no campo. A imprensa passa a defender a Reforma Agrária, mas desde que fosse concretizada
169

nos moldes capitalistas como advogava o Estatuto da Terra. Portanto, existe uma ênfase
econômica em tais debates conduzidos pela imprensa em torno da Reforma Agrária, a qual
conduziria a uma modernização das relações de trabalho no campo, visando ainda à substituição
dos proprietários mais tradicionais por uma classe rural mais moderna.
Assim, a existência de leis regulamentadoras das relações no campo entrou em
debate na imprensa em decorrência da existência de um conflito de grande repercussão. Os
jornais viram-se impelidos a levar ao conhecimento da sociedade “as questões de terra”.
Observa-se, por parte dos jornais, uma clara tentativa de conduzir opinião pública sobre os
conflitos de terra e a violência no campo, já que lhes era forçoso trazer à torna o debate sobre a
nova legislação agrária. Merece destaque ainda o fato de que a imprensa se posiciona a favor
do esclarecimento dos dispositivos legais que passam a regulamentar a relação entre moradores
e proprietários, inclusive, defendendo que o patronato agrícola cumpra o disposto na lei como
forma de evitar a emergência de novos confrontos entre as classes. Foi nítida ainda a defesa dos
jornais da desapropriação como medida mais cabível na resolução dos conflitos de terra, quando
estes já estavam instalados.
A desapropriação é retratada nestes discursos como a medida mais precisa, rápida
e eficaz para sanar conflitos de terra, seria o meio de atacar o “mal pela raiz” (BARREIRA,
1992, p. 57). Assim, a questão agrária passa a ser considerada pelos jornais locais um “problema
delicado”, isto é, os periódicos passam a problematizar como o desrespeito disseminado entre
os fazendeiros ao Estatuto da Terra e a suposta tendência dos camponeses de cobrarem por seus
direitos fazendo uso da “força” poderiam ocasionar revoltas camponesas.
A imprensa observa com temor a insatisfação dos camponeses ao terem os seus
direitos negados e relacionava o fato a uma possível insurgência generalizada desses
camponeses contra os desmandos dos fazendeiros. O conflito de Japuara trouxe um sinal de
alerta à sociedade, da possível emergência de novos confrontos entre as classes do campo, o
que exigia medidas imediatas para sanar o clima de intranquilidade no meio rural.
O medo foi mobilizado pelos jornais e pelas entidades sindicais para cobrar uma
resolução para Japuara e alertar que este conflito não era um caso isolado no Ceará. Se o Estado
do Ceará estava ou não acometido por diversos conflitos pela terra que poderiam se desdobrar
em casos semelhantes ao de Japuara, não temos como saber. Entretanto, foi nítida a mobilização
do medo pela imprensa como fator preponderante na celeridade da desapropriação de Japuara
(PORFÍRIO, 2008; MONTENEGRO, 2004).
170

Os jornais, então, passam a defender a desapropriação e o acatamento ao Estatuto


da Terra por parte dos proprietários como um modo de precaver a emergência de novos
conflitos agrários e de uma possível sublevação de camponeses no Ceará
Nota-se, então, que o tratamento dado a Japuara não foi homogêneo ao longo da
cobertura da imprensa. Ora os jornais manifestaram-se mais claramente favoráveis ao
proprietário ou mesmo defendendo a atuação dos agentes do Estado, ora teceram críticas aos
proprietários de terra mais tradicionais por não respeitarem a legislação agrária, relacionando
esse fato à incidência de conflitos de terra. Por vezes, foram posicionamentos sobre as questões
agrárias e a violência no campo assumidos por esses jornais de modo mais contundente, por
meio das colunas de opinião, outra vezes, de forma mais velada no “fluxo de notícias” (SODRÉ,
1999, p. 4). Entretanto, esse debate foi primordial para que ocorresse a desapropriação de
Japuara com rapidez, principalmente, com a imprensa constantemente cobrando um
posicionamento das autoridades públicas sobre os conflitos de terra.
Devido à intensa repercussão do conflito na imprensa, o presidente do Incra – CE,
José Francisco Moura Cavalcanti, encaminhou ao ministro da Agricultura, Luiz Fernando Cirne
Lima, um projeto de decreto que declarava de interesse social, para fins de reforma agrária, a
Fazenda Japuara e sítios anexos. Como justificativa apresentada ao ministro da Agricultura,
para a desapropriação de Japuara, Moura Cavalcanti destacou o fato de o Ceará ser considerado
uma aérea prioritária para reforma agrária, além da intensa cobertura da imprensa, inclusive,
internacionalmente sobre o conflito em que, segundo ele, constatou-se “o grave clima de tensão
social”: “Determinei exame e verificação dos lamentáveis acontecimentos que ocuparam o
noticiário da imprensa, com sérias repercussões até mesmo no estrangeiro, constando-se o grave
clima de tensão social que existe na região [...].148
Moura Cavalcanti destacou ainda que a desapropriação seria um instrumento legal
de “pronta ação” e que este restabeleceria a tranquilidade e paz no campo: “Serão mais de 30
famílias já ocupantes da área de 3.645 ha com cerca de 260 pessoas que voltarão a ter
tranquilidade e serão assistidas em Projeto de Reforma Agrária [....]”.149 Enfatizou, ainda, que
César Campos possuía título de domínio passível de nulidade, que o proprietário fez uso de
“manobras judicias” para se beneficiar, além de ter empregado violência contra os camponeses,
comprometendo, na sua visão, a “paz” e a “justiça social no campo”:

148
Aviso nº 15. Brasília, 26 de janeiro de 1971. O processo encontra-se disponível em formato digital na página
do Brasil Nunca Mais: Ministério Público Federal/BNM 082/Ação Penal 40/72. Disponível em:
http://bnmdigital.mpf.mp.br/pt-br/. Acesso em: 7 ago. 2020. Fls. 1061.
149
Idem. Ibidem, fls.1061.
171

Um mês e dois dias após o término dos confrontos explícitos, O Presidente da


República assinou o decreto desapropriando 3.645 hectares em benefício de 39
famílias, com lotes que variam de 25 a 42 hectares.
O decreto, um feito obtido, até certo ponto, com inusitada rapidez, foi considerado
“medida acauteladora”. Isso na essência, traduz o temor de que o problema de Canindé
se estendesse a outras propriedades também em vias de conflito (BARREIRA, 1992,
p. 56).

A repercussão do conflito na imprensa foi determinante para que se declarasse


Japuara área prioritária para fins de reforma agrária, pois impeliram o Incra a providenciar, com
a maior brevidade possível, uma solução para o conflito, o que, por sua vez, colocaria um ponto
final nesse clima de tensão social no Ceará.
172

4 JAPUARA: A SUBVERSÃO NO MEIO RURAL


A tortura é a coisa pior do mundo. Trouxe um caderno e caneta pra eu escrever o
movimento sindical. Depois de escrito, ele chega, algema a gente e leva peitando a
gente nas paredes. Chega lá no campo, a gente passa num apertado e fica num canto
da mesa, nu, algemado, com a mão pra trás e um capuz na cabeça. E tem que se
ajoelhar no chão, com as pedrinhas e os caroços de milho pra gente se ajoelhar em
cima. E botava na gente, ligava na orelha um bichinho. Liga lá na máquina, pergunta
uma coisa, você não responde como ele quer: “Tira a chinela dos pés, essas
havaianas”. Com havainas o choque é menos, isso você fica com pé na terra. “Você
conhece fulano de tal?” Conheço não. Ele liga o choque, a língua sai fora, os dentes
pra dentro, você fica rolando pelo chão, rola pelo chão e o mundo desaparece, parece
que é outro mundo (SILVA, 2003, p. 46)150.

Após a desapropriação da fazenda Japuara, o Estado Autoritário vai desencadear


um processo de perseguição a Lindolfo Cordeiro, Vicente Pompeu e outros sujeitos que
exerceram um papel relevante enquanto mediadores dos conflitos de terra. A Fetraece, que
estava atuando fornecendo assistência jurídica aos camponeses que entravam em disputas
jurídica com os proprietários, se torna um dos principais alvos dos Serviços de Informação do
regime militar. Em verdadeiro processo de “caça às bruxas”, esses sujeito serão apresentados à
sociedade como inimigos internos da nação:

Enquanto conceito, o “inimigo interno” é suficientemente flexível como para incluir,


permanentemente, novo grupos alvos. É uma espécie de “guarda-chuva” que pode
mover-se em determinada direção projetando desconfiança e potencial repressão
sobre atores que expressam novo focos de questionamento do status quo existente.
Eles podem ser guerrilheiros, comunistas, políticos populistas, sindicalistas,
estudantes, etc. (PADRÓS, 2005, p.185).

O Estado Autoritário se valerá tanto de aparatos judiciais, Justiça Militar, e também de


aparatos extrajudiciais, tortura, para promover a perseguição política aos mediadores dos
conflitos de terra (SILVA, 2007, p. 21)

150
Vicente Pompeu foi preso duas vezes durante a ditadura civil militar. Pompeu ocupava a presidência da
Federação dos Trabalhadores Autônomos Rurais na Agricultura do Estado do Ceará quando foi preso a primeira
vez, em 3 de abril de 1964. A segunda ocorreu em abril de 1973, momento de recrudescimento dos chamados anos
de chumbo da ditadura. Pompeu foi preso no Ceará, mas levado a Pernambuco, um dos Estados do Nordeste de
maior repressão aos camponeses e apoiadores da causa e lá foi submetido à tortura.
173

4.1 A subversão no meio rural e os inimigos internos da nação


Em 19 de abril de 1972, os sujeitos envolvidos no conflito da Fazenda Japuara
retornam às manchetes dos jornais locais e nacionais. Os veículos da imprensa noticiaram a
descoberta pela Polícia Federal de um suposto “esquema subversivo” arquitetado pelo
advogado Lindolfo Cordeiro e lideranças sindicais camponesas, tais como Vicente Pompeu da
Silva, Manoel Brito e também Pio Nogueira Barros, liderança dos camponeses de Japuara,
contando ainda com o envolvimento de outros sujeitos do meio rural (ALBUQUERQUE, 2016,
p.87):

Advogado incita a subversão no campo


Documentação apreendida pela Polícia Federal, identificou um movimento
subversivo no meio rural, com elementos já conhecidos utilizando-se dos Sindicatos
Rurais para incitar camponeses contra proprietários de terra. Gerando condições
propícias à lutas de classes e a desarmonia social. O advogado Francisco Lindolfo
Cordeiro foi indiciado como principal cabeça da orientação dessas atividades.
Diz a informação distribuída pela imprensa pela Polícia Federal que os presidentes
dos Sindicatos Rurais de Sobral, Vicente Rodrigues da Silva; Quixadá, Manuel Brito,
de Quixeramobim, Joaquim Mendes Fernandes; de Canindé, Pio Nogueira,
representavam os polos principais do desenvolvimento desse plano de incitação à luta
de classes. A polícia prendeu documento comprometedor em poder de Vicente
Pompeu da Silva, ex-presidente do Sindicato Rural de Fortaleza. (CORREIO DO
CEARÁ, 19 abr. 1972. Grifo nosso).

Vicente Pompeu da Silva, na década de 1970, era uma importante liderança sindical
camponesa, atuava no movimento desde a década de 1950, tendo, inclusive ocupado vários
cargos importantes, como presidente do Sindicato Rural de Fortaleza, participou da fundação
da Fetraece e possuía ligação com o Partido Comunista Brasileiro. Desde a instalação do golpe
militar, Pompeu sofria com perseguição política e já havia sido preso, acusado de subversão.
Tanto Lindolfo Cordeiro, quanto Vicente Pompeu, ganharam destaque nas páginas dos jornais
como os principais mentores dos conflitos de terra no Ceará durante a ditadura.
Na manchete de primeira página do jornal Correio do Ceará, a chamada principal
trouxe como título “Advogado comandava no Ceará esquema visando luta entre camponeses e
proprietários” e, em letras garrafais, trouxe o título principal da matéria do dia “Subversão no
Campo”. Para compor a matéria, foram utilizadas ainda fotografias de Lindolfo Cordeiro e
Vicente Pompeu da Silva, apontados como os “cabeças” da subversão:
174

Figura 10. Capa do Correio do Ceará, 19 de abril de 1971.

Observa-se ainda que as chamadas das matérias procuraram dar um maior destaque
à figura de Lindolfo Cordeiro como mentor intelectual desse plano de incitação à “luta de
classes no meio rural”. Segundo o Correio do Ceará, ele utilizava-se de sua posição como
advogado da Fetraece para difundir ideias comunistas: “Advogado da Federação dos
Trabalhadores Rurais passou a negar a existência do direito de propriedade e segundo suas teses
a terra não era de ninguém, conduzindo habilmente, a uma ação de violência. Citava, inclusive,
exemplos de países comunistas com relação aos problemas” (CORREIO DO CEARÁ, 19 abr.
1972).
É interessante observar que a perseguição política aos envolvidos nos conflitos de
terra no Ceará se intensifica após a desapropriação da Fazenda Japuara. A imprensa passa a ser
utilizada como meio de persuasão no convencimento da sociedade quanto à existência de perigo
iminente no meio rural, uma ameaça articulada por advogados e lideranças sindicais que
estariam fomentando a luta de classes no campo. Assim, se anteriormente a imprensa mobilizou
uma narrativa favorável à desapropriação de Japuara, na defesa do cumprimento da legislação
175

agrária, posteriormente, ocorre uma reviravolta que transforma advogados e lideranças


camponesas novamente em antagonistas dos conflitos de terra, que aparecem sob a identidade
de “subversivos”, ocupando as primeiras páginas dos jornais. A utilização de tal denominação
os transforma, por sua vez, em inimigos políticos que deveriam ser combatidos e expurgados
da sociedade ao fomentarem a luta de classes no campo.
Assim sendo, diferentes narrativas são articuladas pela imprensa sobre os sujeitos
envolvidos nos conflitos de terra durante o período autoritário. A imprensa legítima e se torna
porta-voz da perseguição política aos indivíduos vinculados ao movimento sindical camponês.
Os jornais colaboram na formação dessa nova identidade política atribuída aos sujeitos
envolvidos no conflito de Japuara e em demais questões de terra. Eles passam a ser
denominados sob a alcunha de “subversivos”, acusados de difundir ideias comunistas entre os
camponeses.
Ao associá-los a determinadas correntes políticas, justificam-se, perante a
sociedade, as motivações da investigação e prisão desses sujeitos pelo Estado autoritário.
Assim, o discurso jornalístico os trata como indivíduos perigosos e criminosos. São, portanto,
considerados inimigos da nação ao provocarem a dissidência interna por supostamente
incitarem os camponeses contra os proprietários de terra, acirrando os conflitos de classe, como
fica evidente na matéria do Correio do Ceará: “De posse de todos elementos os elementos a
Polícia Federal desenvolveu uma investigação hábil e sigilosa, culminando com a apreensão de
documentos comprometedores e a observação dos fatos que levavam a luta de classes no
campo” (CORREIO DO CEARÁ, 19 abr. 1972).
Segundo o Correio do Ceará, as reuniões que Lindolfo Cordeiro realizava com os
camponeses não possuíam a finalidade de esclarecê-los quanto a seus direitos. Segundo o
periódico, o advogado, na verdade, estaria realizando “a conscientização política”, e isto
incitava à luta de classes no meio rural. Ao final da reportagem, o jornal esclarece que a polícia
realizara uma investigação sigilosa que constatou que os STRs estavam atuando contrariamente
aos interesses da classe patronal. Justificava-se assim o indiciamento de Lindolfo Cordeiro e de
Vicente Pompeu pela polícia, somente eles foram indiciados entre os líderes sindicais citados
na matéria. Assim, diferentes elementos são mobilizados pelo jornal ao denominar tais sujeitos
como “subversivos”, desde associá-los ao perigo comunista e responsabilizá-los pelos conflitos
de terra, ou mesmo por atuarem se opondo à classe proprietária, provocando a dissidência no
campo e rompendo com a ordem estabelecida.
Faz-se necessário discutir as implicações políticas na vida dos sujeitos considerados
"subversivos” no período autoritário ou mesmo a noção de “inimigo interno”, que será utilizada
176

como justificativa para a perseguição política aos que não se adaptavam aos preceitos do regime
autoritário.
Segundo Padrós (2005), a Doutrina de Segurança Nacional fundamentou todos os
regimes ditatoriais do Cone Sul, mesmo cada local guardando suas particularidades. A Doutrina
de Segurança Nacional, segundo ele, fomentou a ideia de um “estado de guerra permanente”
contra um suposto “inimigo interno” (2005, p. 26). No caso específico do Brasil, segundo Alves
(2005), a Doutrina de Segurança Nacional foi formulada pela Escola Superior de Guerra,
contando com a colaboração do IPES e IBAD, que se constitui como escopo teórico formado
por “elementos ideológicos e diretrizes para a infiltração, coleta de informações e planejamento
político-econômicos de programas governamentais” (2005, p. 42). Nesse sentido, a Doutrina
de Segurança Nacional, segundo Borges (2003), foi tanto recepcionada quanto elaborada
intelectualmente pela Escola Superior de Guerra, sendo que esta contou tanto com a
participação de militares quanto de civis na sua formulação doutrinária (2003, p. 17). Ainda
segundo Alves, uma das premissas fundamentais em que a DSN se sustenta são as diferentes
noções de guerra definidas pelo Manual da Escola Superior de Guerra: “guerra total; guerra
limitada e localizada, guerra subversiva ou revolucionária; guerra indireta ou psicológica”
(2005, p. 42). Com relação à Guerra Revolucionária, que estaria sendo promovida pelo
“comunismo internacional”, segundo a autora, esse tipo de enfrentamento tem noções distintas
de uma guerra convencional, pois não se restringe aos limites definidos pelas fronteiras
territoriais de cada país e não é exclusivamente voltada a combater as forças externas daquela
nação. Assim, a noção de uma Guerra Revolucionária não possui dimensões bem esclarecidas
como uma guerra convencional, isto é, a noção de que o inimigo se difere daquela nação ou que
este se encontra fora das fronteiras territoriais.
Existe assim uma maior plasticidade da noção de fronteira em uma guerra
revolucionária, pois as fronteiras são ideológicas e não existe uma clara separação entre um
Estado-Nação e outro (BORGES, 2003). É interessante observar que essas diferentes noções de
guerra inseridas em tal manual possuem ligação com a Guerra Fria e a bipolarização entre países
capitalistas e comunistas que vai reverberar nos países da América Latina ao formularem a
ideologia de segurança nacional em que pese uma luta anticomunista (ALVES, 2005). Segundo
Borges, a guerra fria não se adapta à formulação clássica de guerra, mas também não é um
estado de paz. O autor a define como um “hiato” entre esses dois estados: já que não existe um
clima amistoso, mas também não se adapta à formulação mais comum do que se entende por
guerra. O autor também pondera sobre o caráter ideológico da Guerra Fria como um dos seus
elementos constitutivos: “Em síntese, a guerra fria pode ser definida como um antagonismo à
177

de ideologia e de interesses políticos e econômicos que não se aplica a guerra clássica”


(BORGES, 2003, p. 35-36). A Doutrina de Segurança Nacional, surgida no bojo da Guerra Fria,
oferece alguns subsídios para compreender a ideia plástica e diluída de inimigo interno inserida
no Manual da Escola Superior de Guerra: “A ESG teria como peculiaridades em relação à sua
matriz americana a ênfase na teoria do “ataque indireto” por parte da União Soviética, isto é, a
tomada do poder por inimigos internos, apoiados pela União Soviética por meio da chamada
guerra subversiva (ou revolucionária)” (GONÇALVES, 2017, p. 19). Assim, qualquer
indivíduo pode vir a ser considerado perigoso por difundir determinadas ideias contrárias às
doutrinas de um Estado autoritário. Portanto, a Guerra Revolucionária ou Subversiva não
corresponde a uma guerra convencional tanto por não se prender aos limites de fronteiras entre
os países, como também pela maior plasticidade que adquire a noção de inimigo externo ou
interno.
O inimigo, em uma guerra convencional, é aquele distinto da nação. O Estado faz
uso de seu aparato de violência externamente. É diferente de uma guerra revolucionária, cujo
inimigo pode estar no seio da população e não necessariamente é externo. Portanto, existe uma
ligação estreita entre a defesa interna e externa contra essa noção de inimigo mais diluída em
uma guerra subversiva: “[...] a agressão pode vir tanto do exterior (comunismo internacional)
quanto do interior (inimigo interno). Fica claro, pois, que a infiltração generalizada do
comunismo consolida e justifica a repressão interior, por órgãos de informação dos governos
atingidos” (BORGES,2003, p. 25). Assim, esse tipo de enfrentamento sedimenta um clima de
suspeição internamente, pois a Guerra Revolucionária não seria “declarada” e poderia ser
“promovida secretamente” pelo inimigo que também poderia se encontrar entre a própria
população: “Portanto, por definição, torna-se suspeito toda a população, constituída de inimigos
internos que devem ser cuidadosamente controlados, perseguido, eliminado” (ALVES, 2005,
p. 45).
Segundo Padrós (2005), os regimes ditatoriais do Cone Sul puseram em prática o
Terror de Estado, cujos objetivos consistiam em derrotar os movimentos sociais e desmobilizar
os projetos de mudanças sociais em curso que questionavam o status quo da propriedade, da
distribuição de riquezas. O Terror de Estado foi ainda utilizado no enfraquecimento ou até
mesmo na destruição das instituições democráticas representativas. Tratava-se de um regime
que fazia uso disseminado da violência e do terror para adequar a sociedade aos ditames
autoritários, respaldado pelos setores das classes dominantes. Portanto, o aparelho do Estado se
volta contra a sua própria população. Os inimigos internos são os que permaneceram
questionando os pressupostos basilares da ditadura. As ditaduras do cone sul tiveram como
178

elemento basilar o terror praticado contra a sua própria população: “O TDE aplicado na
América Latina, entre as décadas de 60 a 80, através das orientações da DSN e na forma de
guerra contra-insurgente, é um terrorismo de grande escala, dirigido desde o centro do poder
estatal, dentro ou fora das suas fronteiras” (PADRÓS, 2005, p. 77).
A existência de uma suposta guerra interna e permanente justifica a utilização do
aparato repressivo pelo Estado. É interessante observar que, na guerra contra a “subversão”,
existe a diluição do inimigo que pode ser onipresente, justamente por não ser uma “guerra
declarada” (ALVES, 2005, p. 47). Fica clara, então, a estreita ligação entre a Doutrina de
Segurança Nacional, ao ter como elemento basilar o caráter de uma guerra antissubversiva ou
revolucionária, e o modo como Estado autoritário passa a se valer do seu aparato repressivo
para coibir esse suposto inimigo interno, atuando com violência contra a sua população.
A divulgação, nos veículos de imprensa, da descoberta pela polícia federal de um
“plano de agitação que pregava violência no meio rural” sedimenta na sociedade um clima de
medo e suspeição, pois demonstrava aos setores médios a existência de indivíduos
“camuflados”, ou seja, a existência de inimigos internos que estariam tramando silenciosamente
guerrilhas no meio rural. Isto fica ainda mais evidente na matéria publicada pelo Jornal do
Brasil que divulgou uma nota da Polícia Federal em que esta detalha como ocorriam as reuniões
organizadas por Lindolfo Cordeiro:

Feito o encaminhamento das reivindicações, os agricultores passaram a participar de


reuniões. Uma destas chegou a contar com 400 pessoas em Quixeramobim, na qual o
advogado Lindolfo Cordeiro passou a afirmar que a terra não era de ninguém. Negava
o direito de propriedade como justificativa para a violência, forçando o Governo a
desapropriações para a distribuição das terras rurais, forma com a qual procurava
conscientizar o agricultor dentro das linhas seguidas pelos países comunistas, para o
que citava os exemplos da China, Rússia e Cuba (JORNAL DO BRASIL, 20 abr.
1972).

Na nota, a polícia estabelece uma relação entre Lindolfo Cordeiro e os países


comunistas, tais como China, Rússia e Cuba. Assim, o inimigo interno acaba sendo associado
aos elementos supostamente externos aos valores da nação, não à toa os advogados e lideranças
sindicais camponesas receberam a alcunha de “subversivos” que os relacionava
necessariamente ao comunismo internacional.
A perseguição aos envolvidos nos conflitos de terra constitui um modelo para
refrear tais reivindicações. Demonstra-se aos leitores dos jornais o quanto a difusão de
determinadas ideias poderia se tornar nociva por supostamente fomentar a luta de classes no
campo. De tal modo, o Estado autoritário fortalece a “cultura do medo” que visa a paralisar e
amedrontar a sociedade, mas que possui um caráter pedagógico ao explicitar o que aconteceria
179

com os sujeitos que não se adaptassem aos preceitos de pertencimento à nação e não se
comportassem conforme os valores de um regime autoritário, tais como prisões, torturas e
punições violentas. Assim, o Terror de Estado possui um caráter pedagógico, repressor e
preventivo coibindo possíveis novas manifestações dos setores populares (PADRÓS, 2005, p.
35).
A prisão ou indiciamento de Lindolfo Cordeiro e de Vicente Pompeu tomam as
páginas dos jornais como ações intimidadoras. Era necessário demonstrar ao movimento
sindical camponês o que ocorreria com os demais advogados e camponeses, caso perdurasse a
mobilização em torno da aplicação das leis agrárias e por direitos. A cobrança pelo
cumprimento de direitos ou da legislação agrária, em um regime autoritário, assume caráter
subversivo: “buscar o cumprimento dos direitos por menores que fossem em um quadro
dominado pelo arbítrio, era já uma forma atuadora de tensões” (GRYNSZPAN, 2003, p. 326).
Na verdade, os conflitos entre as classes, nesse discurso da imprensa, não ocorrem devido à
cobrança por direitos, mas sim em decorrência da difusão de ideias comunistas entre os
camponeses. O debate anteriormente travado na imprensa sobre a questão agrária e as novas
legislações é posto de lado em decorrência das acusações de subversão sofridas por Lindolfo
Cordeiro e os demais camponeses.
A exposição, nos jornais, dos sujeitos considerados subversivos no meio rural se
insere na noção de guerra psicológica pautada dentro da Doutrina de Segurança Nacional. De
acordo com Borges (2003), uma das premissas da guerra psicológica é a destruição moral do
indivíduo visando a separá-los dos demais cidadãos e como forma de assegurar a não oposição
da sociedade a determinado projeto político. Os meios de comunicação podem ser utilizados
para desmoralizar os considerados “inimigos internos” da nação, além de servirem para
provocar medo e a intimidação na sociedade (BORGES, 2003, p. 28-29). Do mesmo modo,
quando a imprensa apresenta a existência de subversivos e agitadores perigosos no campo,
sedimenta-se, em seus leitores, a noção da necessidade de maior controle por parte do Estado
na manutenção da ordem, o que, por sua vez, relaciona-se com a noção de uma “guerra
permanente” contra os subversivos, justificando, então, o uso do aparato repressivo contra o
inimigo interno, ou seja, justifica-se o Estado de Terror voltado contra a população:

A principal razão do inimigo interno é manter a coesão e o espírito de corpo de grupo


que mantém o poder. Por outro lado é a necessidade de uma guerra permanente serve
também para manter um estado permanente de crise, que mesmo sobre base fictícia é
muito efetivo do ponto de vista policial e jurídico. O estado de crise permite impor
restrições do ponto de vista das liberdades e dos direitos individuais (BORGES, 2003,
p. 30)
180

Portanto, a exposição dos advogados e camponeses na capa dos principais jornais


do Estado que aparecem sob a identidade de “subversivos” atende a uma série de premissas de
um Estado autoritário. Pode visar à desarticulação da mobilização dos camponeses, ao
sedimentar uma cultura do medo, pois os indivíduos sindicalizados são expostos nos jornais
como inimigos internos, além de sofrerem perseguição política ao se tornarem alvo do Terror
de Estado. Do mesmo modo, essa exposição nos jornais também pode vir a ser utilizada na
desmoralização de tais sujeitos apresentados como inimigos da nação ao associá-los a
determinadas correntes ideológicas como o comunismo, visando também a enfraquecer o
movimento sindical camponês e criminalizar seus integrantes. Ao vinculá-los a determinadas
ideologias estranhas aos valores da nação, esses discursos divulgados na imprensa estabelecem
que os advogados e lideranças sindicais deveriam ser expurgados por representarem uma
ameaça à segurança e paz no campo.
É necessário observar que a noção de “inimigo interno” não se restringe às
organizações guerrilheiras, ou seja, qualquer sujeito podia ser um inimigo do Estado autoritário:
“O uso flexível do conceito de “inimigo interno atesta que novos grupos sociais e/ou políticos
foram sendo incorporados como “novos subversivos”, num processo sem fim (PADRÓS, 2005,
p. 35). Nesse sentido, a ação repressiva de um Estado autoritário é desmedida e permanente,
inclusive devido a uma flexibilidade da noção de inimigo interno, ou seja, novos sujeitos vão
sendo incorporados em uma escalada sem limites. Portanto, diferentes sujeitos ou grupos
podiam se tornar alvos do terror de Estado. Isto indica a plasticidade da noção de inimigo
interno, constantemente realocada pelos regimes autoritários do Cone Sul: “a posição do
inimigo se constitui, portanto, de maneira derivativa, sendo caracterizada como lugar vazio e
indeterminado demandante de preenchimento a posteriori” (ANDRADE, 2021 p. 4). Essa
plasticidade da noção de inimigo interno também se tornou objeto de reflexão de Arendt (2013)
em sua obra “As origens do totalitarismo”, apesar de a autora tratar sobre o terror praticado
pelos regimes totalitários, tais como Nazismo e o Comunismo da União Soviética, é possível
traçar alguns paralelos da plasticidade da ideia de inimigo interno com as ditaduras do Cone
Sul.
Arendt (2013) observou que os regimes despóticos dependem em grande medida
dos serviços secretos na detecção desses inimigos e não raro se sentem mais ameaçados pelo
seu próprio povo do que por estrangeiros. Para ela, os regimes totalitários também deslocavam
a noção de inimigo, que poderia enquadrar qualquer indivíduo da sociedade, passando por
modificações de acordo com as circunstâncias do momento. Os regimes totalitários se
181

caracterizam pelo clima de suspeição generalizado, qualquer sujeito pode representar uma
ameaça pelo simples fato de possuir a capacidade de pensar e mudar de ideia. Qualquer
indivíduo poderia, então, se tornar um oponente do Estado, mesmo aqueles que, em princípio,
não foram tidos como inimigos:

Nas condições do regime totalitário, a categoria dos suspeitos compreende toda a


população; todo pensamento que se desvia da linha oficialmente prescrita e
permanentemente mutável já é suspeito, não importa o campo de atividade humana
em que ocorra. Simplesmente em virtude da sua capacidade de pensar, os seres
humanos são suspeitos por definição, e essa suspeita não pode ser evitada pela conduta
exemplar, pois a capacidade humana de pensar é também a capacidade de mudar de
ideia (ARENDT, 2013, p. 365).

A noção fluida de inimigo, serviu para retroalimentar os regimes totalitários ao


fortalecer os serviços secretos. Assim, mesmo quando a oposição se encontrava paralisada ou
aparentava ter sido extinta, Arendt (2013) observou, de forma pertinente, que ocorreu um
movimento inverso, isto é, os serviços secretos foram ampliados tanto na Alemanha nazista
quanto na União Soviética. Ela observou, dessa forma, a plasticidade da noção do que ela
denomina “inimigo objetivo” com a inserção constante de novos oponentes a serem
combatidos. Deste modo, justificava-se a vigilância permanente e até mesmo a ampliação dos
serviços secretos de informação, pois a guerra nunca cessa:

A introdução da noção de “inimigo objetivo” é muito mais decisiva para o


funcionamento dos regimes totalitários que a definição ideológica das respectivas
categorias. Se fosse apenas uma questão de odiar os judeus ou os burgueses, os
regimes totalitários poderiam, após cometerem um crime gigantesco, como que
retornar às regras normais de vida e de governo. Mas sabemos que acontece
exatamente o oposto. A categoria dos inimigos objetivos sobrevive aos primeiros
inimigos do movimento, ideologicamente determinados; e novos inimigos objetivos
são encontrados segundo as circunstâncias (ARENDT, 2013, p. 361).

Retornando à noção de inimigo interno definida pelos regimes autoritários do Cone


Sul, torna-se necessário sublinhar que a existência de novos oponentes a serem combatidos
também foi utilizada como justificativa para a vigilância constante da população em tais regime.
Como vimos, o Terror de Estado é alimentado mediante o clima de suspeição generalizado, por
isto, o Estado Autoritário encontra-se em guerra incessante aos indivíduos eventualmente
identificados com o comunismo internacional. Impunha-se à população a vigilância constante
para que estes fossem expurgados da sociedade: “em última instância, o inimigo interno pode
ser permanentemente deslocado, dependendo de construções discursivas do Estado, do
surgimento de novos grupos que desafiam a ordem ou se opõem politicamente a ela ou de
reações desencadeadas pela própria ofensiva militar” (ANDRADE, 2021, p. 4). Assim, mesmo
182

advogados, lideranças camponesas ou qualquer outro sujeito da sociedade civil podiam ser
ameaças à coesão da nação.
O Estado autoritário monta uma estrutura repressiva armada na identificação desse
“inimigo interno”, assim como mantém uma rede de informação para identificar e neutralizar
os setores da população supostamente influenciados ou mesmo contaminados por ideias
comunistas (ALVES, 2005, p. 48). Segundo Gonçalves (2017), um dos pressupostos
fundamentais da Doutrina de Segurança Nacional é a ideia de que o inimigo se encontra
“camuflado” entre a população, sendo, por isso, relevantes os órgãos de informação para sua
detecção (GONÇALVES, 2017, p. 22). Para Borges (2003, p. 23), a Doutrina de Segurança
Nacional é estruturada em dois pilares principais. O primeiro diz respeito ao aparato repressivo
responsável pela coerção, enquanto o segundo é a montagem de uma rede de informação para
identificar os possíveis inimigos internos. O aparelho repressivo, segundo ele, foi organizado e
implementado com base na Doutrina de Segurança Nacional e será utilizado na estruturação do
Serviço Nacional de Informação – SNI. Portanto, o SNI torna-se umas das principais estruturas
do Estado autoritário, pois mantém sob constante vigilância a oposição política e aparelha o
poder executivo. Este órgão, durante a ditadura militar no Brasil, adquiriu tamanha relevância
que somente devia satisfação ao presidente da República (ALVES,2005, p. 58).
A existência de um inimigo interno é a principal fundamentação para que o Estado
autoritário monte um aparelho de vigilância da população e sustente a política repressiva. Os
serviços de vigilância são responsáveis pela coleta, análise e ainda por julgar tais informações.
A partir daí, definem os possíveis inimigos internos do Estado autoritário. Assim, é a crença na
existência de uma guerra interna constante que fundamenta a suspeição generalizada da
população (BORGES, 2003, p. 28). Isto significa dizer que, quando os sujeitos aparecem nos
jornais sob a alcunha de “subversivos”, antes estes já passaram pelo crivo desses serviços de
informação e já se encontravam anteriormente sob vigilância do Estado. São esses serviços de
informação que os definiram como inimigos internos da nação. Portanto, os discursos que
vieram à torna nos jornais sobre a subversão no meio rural representam apenas a ponta de um
iceberg das informações coletadas pelos órgãos de vigilância. Necessário também enfatizar que
essas informações divulgadas na imprensa passaram antes por um crivo do que deveria ser dito
à sociedade sobre o indiciamento de Lindolfo Cordeiro e Vicente Pompeu. Isto é, o discurso
público foi previamente arquitetado. São matérias que estabelecem culpados, que
representavam os advogados e sindicalistas como uma ameaça à nação, pois possuíam relação
com ideologias estrangeiras contrárias ao regime autoritário.
183

Nesse sentido, é relevante analisar os documentos produzidos pelos órgãos de


vigilância do Estado e a narrativa produzida sobre os sujeitos ligados à questão agrária. Tanto
na documentação do fundo Memórias Reveladas do Arquivo Nacional, quanto na do fundo do
APEC, existem documentos referentes à ação de liderança sindicais e advogados ou outros
sujeitos ligados ao movimento sindical. Os documentos revelam indícios da constante
vigilância a que tais lideranças sindicais e apoiadores da causa estavam submetidas pelo
aparelho de repressão da ditadura, inclusive, existe vasta documentação sobre Lindolfo
Cordeiro e o conflito de Japuara. Os acervos Memória Reveladas do Arquivo Nacional e do
Arquivo Público do Ceará contêm uma série de documentos do Departamento de Ordem
Política Social – DOPS, do Serviço Estadual de Informação – SEI e da Polícia Militar. Neles,
encontram-se tanto documentos produzidos pelos órgãos repressivos, como documentos
apreendidos por esses órgãos. Os documentos são interessantes por trazerem uma visão sobre
os camponeses, as lideranças sindicais e sobre a própria questão agrária, os conflitos de terra,
entre outros elementos. Portanto, a principal função dos órgãos de vigilância é a produção de
informação sobre pessoas ou grupos. De acordo com Fico (2003), a produção desses
documentos era bem regulamentada e cuidadosamente sigilosa, isto é, os discursos não
deveriam vir a público: “Quase todos os documentos produzidos pela comunidade recebiam
uma classificação de sigilo: “reservado”, “confidencial” ou “secreto” (FICO, 2003 p. 179).
Assim, são documentos que carregam uma visão da instituição sobre os sujeitos que estavam
sob vigilância e uma série de outras questões, por exemplo, relacionadas à própria questão
agrária.
É preciso notar que, ainda em 1971, anteriormente à divulgação na imprensa da
descoberta desse plano subversivo pela Polícia Federal, os aparelhos de vigilância do Estado
receberam uma denúncia que apontava a Fetraece como difusora da subversão no meio rural.
O advogado Ubirajara Alves, ligado à própria Federação e atuante, inclusive, como defensor
dos camponeses de Japuara, denunciou aos órgãos de vigilância vários colegas seus como
subversivos:

Ubirajara Alves iniciou suas atividades, na Federação em janeiro de 1971, logo que
eclodiu o conflito na Japuara, a convite do então presidente daquela entidade, Otávio
Ferreira Gomes, um antigo conhecido e conterrâneo da cidade de Itapipoca. Em
decorrência das discórdias existentes entre ele e os membros da Federação,
principalmente Lindolfo Cordeiro, pouco tempo permaneceu por lá, cerca de oito
meses, pois, logo após realizar as denúncias, pediu demissão, assumindo em seu lugar
Francisco de Jesus Nogueira Lima (ALBUQUERQUE, 2016, p. 91).
184

Na sua primeira correspondência com os aparelhos de informação, Ubirajara


afirmara que a Fetraece estava incitando à desordem no campo e os conflitos entre as classes:

Visto minha disposição de servir à Pátria e lutar contra àqueles que querem subvertê-
la foi que aceitei o cargo de assessor jurídico da Federação dos Trabalhadores da
Agricultura do Estado do Ceará [...]. Assumi meu trabalho alí na hora da eclosão da
tragédia da Fazenda Japuara, no Município de Canindé, a convite do então presidente
da Federação, Otávio Ferreira Gomes, trabalhador rural de Itapipoca, que conhecia
meus atos e atitudes como advogado naquela cidade.
Chegando ali encontrei um ambiente intranquilo, agitado intencionalmente preparado
para a luta violenta entre trabalhadores e proprietários, incitação à desordem em todo
o meio cearense.151

Este documento fora endereçado ao tenente-coronel Hunaldo Pinheiro de Jesus, da


10ª região militar. Logo no início do relatório, Ubirajara se apresenta como um sujeito
colaborador do regime militar e afirma que, antes de ser instalada a ditadura militar no Brasil,
ele já atuava na defesa da ordem, na identificação e na eliminação de inimigos internos da
nação:

Desde 1962 que venho empreendendo uma luta árdua contra a subversão e
subversivos em minha terra, onde meus primeiros adversários encontrei na
universidade.
Após isso, onde quer que encontre esses inimigos do regime e da ordem sempre
procurei eliminá-los e evitar sua proliferação ideológica e de métodos que possam
levar ao terror.
Como advogado que V. EXc, me conhece, lidando com vários tipos de pessoas em
várias partes do Ceará, procurei sempre sentir onde o inimigo moureja.152
É perceptível como a ideia da existência de inimigos internos a serem eliminados
pelo Estado autoritário esteve presente até mesmo nos discursos dos indivíduos que atuavam
junto ao movimento sindical camponês, tais como o Ubirajara Alves, assessor jurídico da
Federação, mas que utiliza, em suas correspondências com a 10ª região militar, termos ligados
a essa “guerra ideológica”:

Excelentíssimo, sr. Ten. Cel., é êsse meu pequeno relatório em face das atividades do
meio rural no Ceará, seus órgãos de classe e a maneira como os agentes da subversão
e terror procuram me eliminar como advogado dali [...]
Destarte, espero contar com a pronta cooperação de V. Excia., para que não seja
concretizada essa vitória da subversão e da agitação no meio rural, onde o seu chefe
supremo é o Dr. Lindolfo Cordeiro e de tôda a cúpula esquerdista de nossa terra que
infelizmente não dorme, está presente em todas as horas que há condições.153

151
Correspondência de Ubirajara Alves com a 10ª Circunscrição Judiciária Militar, 15 de setembro de 1971. In:
Militar Ministério Público Federal/BNM 082 1-4/Ação Penal 40/72. Disponível em:
http://bnmdigital.mpf.mp.br/pt-br/. Acesso em: 7 ago. 2020. Fls 14.
152
Op. cit., fls 14. Grifo nosso.
153
Op. cit., fls 17.
185

Portanto, Ubirajara considerava Lindolfo um inimigo interno a ser neutralizado. Em


sua denúncia, além de Lindolfo Cordeiro, citou Vicente Pompeu, que, segundo ele, circulava
dentro da Federação com livros comunistas vindos da China e de Cuba (relacionando-o,
portanto, ao comunismo internacional). No mesmo documento, Ubirajara afirmou que a sua
entrada na Federação ocasionou uma pacificação dos conflitos no campo e que isso resultou em
perseguição por parte de Lindolfo Cordeiro:

Como advogado procurei defender os direitos do trabalhador rural e vê suas relações


de trabalho exclusivamente dentro das normas agrárias, por sinal muito extensas e
promulgadas todas elas dentro do atual regime revolucionário, felizmente, consegui
contem em muito a agitação social no campo em nosso Estado [...]
Mas, como o Dr. Lindolfo está se sentindo tolhido em suas pretensões, pois tem
diminuído sensivelmente a agitação no meio rural e que os pobres rurícolas estão
sentindo que a orientação dêle é desonesta e prejudicial ao trabalhador rural, a
produção e ao próprio regime e sendo ele um elemento doutrinador de idéias
contrárias a política nacional do governo, vem agora procurando com métodos
escusos e baixos criar uma esfera de atrito entre os 3 diretores da Federação e minha
pessoa.

Ubirajara alegava ter divergências com diversos membros das entidades e, por isso,
não teria permanecido como assessor jurídico da Fetraece. Assim, procura afastar-se dos
membros da entidade que estariam usando a Federação para fomentar conflitos de classes. Ele,
inclusive, relatou que Lindolfo teria desfeito acordos realizados por ele entre patrões e
trabalhadores, o que gerou um desgaste entre os dois advogados.
O advogado ainda enviou mais dois relatórios aos órgãos de vigilância do Estado.
Em um deles, destinado ao tenente-coronel Eider Nogueira, chefe da 2ª seção da 10ª região
militar, citou o camponês Pio Nogueira Barros, que, segundo ele, também era considerado um
indivíduo perigoso. O documento acusava Pio de insuflar os camponeses contra os proprietários
de terra em Canindé e Itatira:

Francisco Nogueira Barros - vulgo “Pio” – apesar de estar sendo processado por estar
envolvido no “caso Japuara”, continua em plena atividade no Município de Canindé
e Itatira, como sempre fiel cumpridor das ordens do Dr. Lindolfo, insuflando humildes
agricultores à revolta, à insurreição, baseando seus ensinamentos na “Japuara” que
para eles é bom exemplo e que o governo dá pleno apoio [...].154

O discurso estabeleceu ainda a ligação de Lindolfo Cordeiro com o comunismo


internacional, ao afirmar que o advogado conduzia camponeses com o objetivo de fomentar a
luta de classes no campo e que este atuava contrário aos preceitos da segurança nacional:

154
Segunda correspondência de Ubirajara Alves com a 10ª Circunscrição Judiciária Militar, sem data. In: Militar
Ministério Público Federal/BNM 082 1-4/Ação Penal 40/72. Disponível em: http://bnmdigital.mpf.mp.br/pt-br/.
Acesso em: 7 ago. 2020. Fls. 27.
186

Sr. Ten. Cel., é por isso que o Dr. Lindolfo não deseja que eu continuasse na Federação
dos Trabalhadores, é porque eu não tenho a intenção de usar os humildes e miseráveis
como instrumento de subversão, para intranquilizar a Pátria, para fins demagógicos e
contra a Segurança Nacional, porque na diretriz que vai ou que deseja o Dr. Lindolfo
em pouco tempo está apto a atender os desejos de Cuba, China ou Rússia. 155

No terceiro e último documento endereçado à 10ª região militar, Ubirajara defendeu


que a Federação dos Trabalhadores, apesar de vinculada ao Ministério do Trabalho, não deveria
ser esquecida pelos órgãos estreitamente ligados à Segurança Nacional, pois, segundo ele, “a
sindicalização é a menina dos olhos da subversão”. Em seu discurso, reforçara que os sindicatos
rurais estavam “infiltrados” por comunistas e que ele, por se distanciar desse posicionamento
político, fora afastado da Fetraece. As supostas divergências existentes entre Ubirajara e os
membros da Fetraece adquirem uma conotação ideológica. A forma como deveriam ser
conduzidos os acordos trabalhistas entre camponeses e proprietários motivara a denúncia do
advogado:

Tais acusações tiveram como pano de fundo a profunda insatisfação de Ubirajara


Alves com a postura contrária de Lindolfo, em face de determinadas atitudes
conciliatórias por ele intermediadas. O estopim teria sido o litígio trabalhista, do sítio
Bastiões, no município de Pacoti, no qual, depois de Ubirajara ter realizado acordo,
Lindolfo o desfaz. Diante do episódio, Ubirajara sentiu-se afrontado e acusou-o de
criar atritos entre ele e os dirigentes da Federação (ALBUQUERQUE, 2016, p. 91).

Portanto, os conflitos internos entre membros de uma entidade acabaram


desembocando em um contexto autoritário em delações, caso de Ubirajara Alves, que
denunciou diversos membros da Federação, acusando-os de semearem a “discórdia” e
insuflarem camponeses. É interessante observar como os desentendimentos por questões
pessoais ou profissionais poderiam resultar em acusações de subversão durante a ditadura.
Levando ainda em consideração que, quando um sujeito se tornava alvo de vigilância dos
órgãos de informação, todo um levantamento “ideológico” era realizado e isto poderia trazer
prejuízos para a carreira profissional dos acusados e implicações para a vida pessoal destes:

Não é difícil imaginar a que vilanias não serviram esses documentos, pois são
conhecidos os casos de pessoas impedidas de tomar posse em cargos públicos em
função de perseguição políticas impelidas através das comunidades de informação.
Um simples chefe de repartição, por exemplo, que não desejasse a ascensão funcional
de um desafeto, poderia acusa-lo de “agitador” ou contrário à “Revolução” (FICO,
2003, p. 179).

155
Op. cit., fls 30.
187

Portanto, Ubirajara, ao se corresponder com os órgãos de vigilância do Estado,


certamente tinha consciência dos possíveis desdobramentos relatados. Assim, ele denunciou
seus colegas de trabalho visando a causar prejuízos aos seus desafetos profissionais dentro da
Federação dos Trabalhadores. Lindolfo é apresentado como um desafeto pessoal, mas a serviço
da “subversão” e atuando contrariamente à Doutrina de Segurança Nacional. É interessante
observar que são denúncias motivadas por ressentimentos, desprezo e ódio contra aqueles que
ele denomina como seus inimigos pessoais, mas que se confundem com inimigos da nação.
Interessante observar que o linguajar empregado no documento sinaliza como a própria
sociedade vai se enquadrando dentro dos pressupostos basilares da Doutrina de Segurança
Nacional. São denúncias que evidenciam a crença por parte da sociedade na existência de uma
guerra interna e permanente contra os indivíduos considerados subversivos e tidos como
inimigos comuns da ordem social (BORGES, 2003, p. 29). Constantemente, Ubirajara
denomina Lindolfo e os demais sujeitos da Federação como “inimigos”, “agitadores” e
“esquerdistas”, canalizando o seu ressentimento pessoal na defesa dos valores do regime
autoritário. Ou seja, ele mobiliza afetos/desafetos, manejando-os de tal modo que faz
transparecer que se trata apenas de uma defesa interna da Segurança Nacional e um
engajamento na luta antissubversiva, quando, na realidade, tudo indica que ele estava motivado
por ressentimentos pessoais contra os membros da Federação em decorrência de divergência na
condução dos acordos trabalhistas.
É interessante observar que existia uma pressão social para que os membros da
Federação passassem pelo crivo dos serviços de vigilância ou mesmo que sofressem ações mais
energéticas por parte do Estado. A classe proprietária também se correspondeu tanto com a
Polícia Federal quanto com o SEI, pressionando para que a Federação dos Trabalhadores fosse
investigada e punida: “Atrás de tais agitações, que buscam, não o debate de questões
profissionais ou o zelo pela probidade contratual, mas sem dúvida uma efervescência de nítido
color social e ideológico, está uma organização que se pretende representativa dos trabalhadores
do campo”.156 O documento foi escrito pela Associação de Criadores do Ceará e Associação
Cearense de Criadores de Bovinos da Raça Holandesa, que exigia uma posição mais enérgica
por parte do Estado autoritário com relação à Federação dos Agricultores, pois, segundo a classe
proprietária, o meio rural tornara-se um ambiente agitado e solicitava a “neutralização” e
punição da Fetraece: “de modo que nos resta clamar, antes autoridade específica, pela

156
Correspondência entre a Associação dos Criadores do Ceará e o Serviço Nacional de Informação e a Polícia
Federal, 5 de janeiro de 1972. In: Militar Ministério Público Federal/BNM 082 1-4/Ação Penal 40/72. Consultar:
http://bnmdigital.mpf.mp.br/pt-br/. Acesso em: 7 ago. 2020. Fls. 62.
188

neutralização pronta e eficaz dessa entidade, que está dispondo de impunidade ostensiva”.157
Portanto, existia uma pressão por parte da classe proprietária para que a Fetraece fosse
investigada e desmobilizada.
Depois da denúncia de Ubirajara Alves, ocorreu a abertura de um inquérito policial
com o propósito de investigar as “atividades subversivas no meio rural”. Foram colhidos
depoimentos de lideranças sindicais, camponeses, proprietários de terra, entre outros sujeitos
ligados de alguma forma à questão agrária. Foram ainda solicitadas ao SEI/CE informações
referentes à atuação de Lindolfo Cordeiro no meio rural. No relatório desse órgão de vigilância,
fica evidente a vigilância constante a que estavam submetidos os advogados e as lideranças
sindicais, tendo em vista a vasta documentação existente referente à atuação desses sujeitos. O
SEI/CE enviou as informações sobre a atuação de Lindolfo e outros líderes sindicais
acompanhadas de um relatório em que elencou alguns fatores que estariam contribuindo para a
eclosão de conflitos de terra no Ceará no que eles denominaram de “considerações de ordem
no campo psicossocial”. O primeiro fator apresentado pelo SEI, com relação à emergência dos
conflitos entre as classes do campo, seria a própria concentração de terra que, de acordo com o
relatório, estaria gerando um “clima de insatisfação e descontentamento muito forte” entre os
camponeses. O segundo seria a “infiltração” nos sindicatos rurais de sujeitos vinculados ao
comunismo internacional, tais como o Lindolfo Cordeiro, apontado como um desses infiltrados
que estariam difundindo ideias “comuno-subversivas” entre os camponeses:

Com o advento da sindicalização dos trabalhadores rurais, aumentou o índice de


litígios, face ao grande número de elementos subversivos, infiltrados no seio dos
sindicatos, pagos para por em prática um plano de ação comuno-subversivo, tutelados
por elementos como o DR. Lindolfo Cordeiro e outros da Federação dos
Trabalhadores na Agricultura do Ceará.158

Segundo esse mesmo relatório produzido pelo SEI/ CE, o ambiente social favorecia
para parte da população cearense a aderência a determinadas ideias subversivas: “Com o
advento da seca, flagelados e desajustados sociais emigram para as frentes de serviço, onde lá
são inoculados com o germe venenoso dos subversivos[...]”.159 Depois que saíam das Frentes
de Serviço, segundo o relatório, os camponeses iam “engrossar as fileiras dos sindicatos
revoltados”.

157
Op. cit., fls. 62.
158
Sumário de registros existentes no Sei/CE, sobre atividades do advogado Lindolfo Cordeiro, 17 de fevereiro de
1972. In: Militar Ministério Público Federal/BNM 082 1-4/Ação Penal 40/72. Disponível em:
http://bnmdigital.mpf.mp.br/pt-br/. Acesso em: 7 ago. 2020.
159
Op. cit., fls. 441.
189

O último fator apresentado seria a influência exercida pelos padres ao movimento


sindical que estariam opondo os camponeses aos proprietários: “a ala inovadora do Clero (ala
esquerdista), liderada por D. Fragoso, bispo de Crateús, não poupa esforços para colaborar e
incentivar lavradores à luta contra os proprietários, bem como criar uma imagem grotesca do
governo como sendo o único responsável pela miséria do povo [...]”.160 Portanto, de acordo
com o relatório, o comunismo encontrava no Ceará um ambiente favorável a sua difusão em
decorrência da pobreza da população e da influência exercida por padres e advogados.
Os advogados e religiosos são apontados neste relatório como os principais
responsáveis pelos conflitos de terra, justamente por estarem “infiltrados” nos sindicatos e
exercerem influência entre os camponeses. A insatisfação dos camponeses em relação à
concentração de terra, combinada com fatores climáticos, tais como a própria seca, tornavam
os camponeses cearenses alvos fáceis para a aderência a ideias comunistas. Assim, assessores
jurídicos e padres são retratados como uma ameaça interna, ao serem comumente vinculados
às ideologias estrangeiras. Do mesmo modo, existe uma menção de que os sindicalizados são
elementos estranhos aos camponeses, uma interferência que perturba a paz social no campo e
provoca conflitos entre as classes.
Ao término da investigação sobre a subversão no meio rural, foi redigido um
relatório assinado pelo inspetor da Polícia Federal, João Batista Xavier, em 15 de abril de 1972,
alguns dias antes da divulgação na imprensa da notícia que alertava os setores médios sobre a
subversão no meio rural cearense e que apontava Lindolfo Cordeiro e Vicente Pompeu como
seus mentores intelectuais. Segundo esse documento, os indivíduos responsáveis pela
subversão seriam lideranças sindicais camponesas e assistentes jurídicos:

Os fatos desenrolam-se utilizando-se da inocência do pobre homem do campo para


jogá-lo de encontro ao proprietário, tomando por base a defesa dos seus direitos, de
forma que o trabalhador rural tomaria a iniciativa de não mais atender as
determinações dos patrões, não lhes pagando mais rendas, exigindo-lhes
indenizações por benfeitorias realizadas no curso da permanência das terras
cultivadas.
A maneira como isso vem sendo feita gera sofrimento ao homem do campo para uma
concepção errônea de como preservar os seus direitos, o qual achando-se castigado
pelos donos da terra, passa a agir desatinadamente. Uma vez indisposto com esses
donos de terra, recorre aos entreveros culminando quase sempre a violência, cujos
exemplos vêm ser de conhecimento de todos nós. Isso é a imagem negra dessa má
orientação.161

160
Op. cit., fls. 441.
161
Processo Secom nº 52.023 (1972). p. 2. Grifo nosso. Fundo: Serviço Nacional de Informação. Disponível em:
https://www.gov.br/memoriasreveladas/pt-br/bancodedadosmr.jpg/view. Acesso em: 5 jul. 2022.
190

Os camponeses são retratados como “ingênuos” e facilmente guiados por lideranças


sindicais rurais e assessores jurídicos. A subversão aparece no inquérito como uma “orientação
equivocada” dos direitos dos trabalhadores rurais, que seriam vítimas desses indivíduos “mal
intencionados” que faziam uso da legislação para contrapor camponeses e proprietários. Como
o Estatuto da Terra foi um instrumento jurídico elaborado pela própria ditadura, João Batista
Xavier reconhece que as leis rurais, elaboradas pelo governo militar, não constituiriam um
problema, mas a questão seria a interpretação e orientação dada pelos sindicatos rurais e
assessores jurídicos:

A legislação brasileira e a política do Governo de assistência ao homem do campo,


passou a ser manipulada de forma a se constituir no elemento base dos conflitos que
afloram nas zonas rurais deste Estado face a interpretação tendenciosa dada por
alguns; Presidentes dos sindicatos orientados que são pelo Assessor Jurídico da
Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Ceará, Dr. Francisco
Lindolfo Cordeiro, conforme ficou comprovado nos presentes autos.162

Portanto, é necessário entender o que esses órgãos passam a considerar como atos
de subversão ou o que eles consideravam como indivíduos perigosos. O inspetor responsabiliza
os assessores jurídicos e os STRs por essas ações tidas como subversivas que estariam
acontecendo no Ceará, e essas atividades seriam fruto da organização dos camponeses como
também da reivindicação por direitos. Os novos os mediadores de conflitos de terra seriam os
responsáveis por perturbar a paz no campo, segundo a concepção dos serviços de vigilância.
Segundo ainda tal relatório, Lindolfo Cordeiro e outros sujeitos vinculados às
entidades sindicais estariam tramando uma espécie de “guerrilha rural”, um movimento
subversivo no Ceará de caráter global, ou seja, vinculado ao comunismo internacional. Os
camponeses seriam uma espécie de massa manobra usada por Lindolfo na conquista de
objetivos maiores, contando ainda com a colaboração de Vicente Pompeu:

Homem culto e conhecedor das leis, encontrou na massa que lhe foi dada trabalhar
presa fácil para a consecução de seus objetivos, de vez que, desconhecedores das leis
e com poucas luzes, passaram os Presidentes dos Sindicatos a serem verdadeiros
teleguiados nas mãos de quem os preparava para um movimento de caráter
subversivo, de âmbito global para o Estado do Ceará, correndo pari passo com
objetivos de organização de esquerda, para implantação de guerrilha rural, conforme
afirma o próprio Vicente Pompeu da Silva.163

162
Processo Secom nº 52.023 (1972), p. 17. Fundo: Serviço Nacional de Informação. Disponível em:
https://www.gov.br/memoriasreveladas/pt-br/bancodedadosmr.jpg/view. Acesso em: 5 jul. 2022.
163
Inquérito para apurar atividades subversivas no meio rural, 15 de abril de 1972. In: Militar Ministério Público
Federal/BNM 082 1-4/Ação Penal 40/72. Disponível em: http://bnmdigital.mpf.mp.br/pt-br/. Acesso em: 7 ago.
2020. Fls. fls. 661
191

Com esse discurso, os órgãos de vigilância inserem tais sujeitos em uma guerra
ideológica, o que, por outro lado, os transforma automaticamente em inimigos da ordem social.
Por estarem ligados ao comunismo internacional, esses sujeitos são apresentados como os que
corrompem os demais com as ideias estrangeiras e geram conflitos entre as classes. Nesse
sentido, são retratados como “infiltrados”, “germes” que estariam tentando difundir ou
“inocular” a ideologia comunista entre os camponeses, nos próprios termos do inspetor Xavier.
Estes, estariam corroendo, por sua vez, internamente a harmonia entre as classes: “A
representação do comunismo como enfermidade remete ao tema correlato da “infiltração”. Tal
qual uma doença, os comunistas foram denunciados como um grupo dedicado a infiltrar-se nos
organismos sociais, debilitando-os internamente” (MOTTA, 2000, p. 80). Assim, o comunismo
é retratado como uma patologia social, sempre associado ao perigo externo, uma doença capaz
de contaminar a todos e que tem a capacidade de seduzir os camponeses considerados ingênuos
pelos serviços de informação. Levando em consideração que, em uma “guerra revolucionária”,
o inimigo seria quem tem a capacidade de persuadir, induzir e conquistar as mentes do povo
para difundir determinadas ideologias (ALVES, 2005, p. 45), assim, os advogados e lideranças
sindicais são retratados como uma ameaça à nação. São sujeitos que deveriam ser expurgados
da sociedade por supostamente fomentarem a luta de classes no campo ao disseminarem e
persuadirem os camponeses com ideias comunistas:

O inimigo interno seria o agente encarregado dessas ações de desestabilização do


poder institucional. Assim, tanto indivíduos quanto grupos seriam enquadrados na
noção de inimigo interno. Eles se organizariam em partidos, forças irregulares,
organizações de massa, sempre com a meta principal de conquistar o apoio irrestrito
da população à sua causa. A luta seria travada nos meios urbanos ou rural, dependendo
de fatores geográficos e sociais (GONÇALVES, 2017, p. 274).

O subversivo é identificado como o alheio aos valores da nação, o estranho, o de


fora, o que pode vir a corromper os demais da sociedade e o estranho que “não pertence e não
tem o direito de pertencer à Nação” (PADRÓS, 2005, p. 54). Em um regime autoritário, os
sujeitos são vistos como perigosos por estarem associado a determinadas ideologias
estrangeiras, são aqueles que se deixaram persuadir, se contaminar e que, por isso, precisam ser
combatidos: “O imaginário anticomunista representava as propostas de seus adversários como
“doutrinas exóticas”, que teriam vindo de outros países: idéias estranhas, elaboradas em terras
alienígenas” (MOTTA, 2000, p. 81).
Assim, tudo o que questiona a coesão social e sinaliza a existência de conflitos de
classes acaba sendo considerado como “nocivo” e oposto aos interesses da nação, que se
192

preconiza homogênea e sem conflitos internos: “Segundo princípios da DSN, o cidadão não se
realiza enquanto indivíduo ou em função de uma identidade de classe. É a consciência de
pertencimento a uma comunidade coesa o que potencializa o ser humano e viabiliza a satisfação
de suas demandas” (PADRÓS, 2005, p. 52). Qualquer tipo de ameaça à coesão da nação que
represente conflito social entre as classes pode vir a ser apresentada como uma justificativa para
pôr em prática o Terror de Estado contra os denominados subversivos. Destaque-se ainda que
o subversivo é aquele que faz parte da população, mas não do povo:

Para a Doutrina de Segurança Nacional, o inimigo e o ato de agressão não são


considerados provenientes do povo, pois o povo não é simplesmente formado pela
população do país; ao contrário, ele faz parte da população que tem uma noção correta
da problemática que determina os objetivos nacionais (BORGES, 2003, p. 29).

O comunismo aparece, nesses relatórios, como uma patologia social que corrompe
os valores da sociedade e que tem a capacidade de “contaminar”, de adoecer os demais por
meio da difusão de determinadas ideias, caso não seja freado:

A representação do comunismo como ameaça proveniente do exterior guarda relação


de proximidade com os temas “doença” e “infiltração”, pois se trataria de um corpo
estranho, infiltrado no Brasil por agentes estrangeiros. Os comunistas, inimigos
externos do país, se infiltrariam na organização social brasileira tal como agentes
patológicos, colocando em risco a integridade da nação (MOTTA, 2000, p. 81).

João Batista Xavier finaliza o seu relatório afirmando que as prisões administrativas
de Lindolfo Cordeiro, Vicente Pompeu e também de Joaquim Mendes Fernandes foram eficazes
em refrear a subversão no meio rural: “Esse movimento que vinha num crescendo de forma a
alertar os órgãos de segurança da área, cuja a documentação a eles relacionados e constante nos
autos, sofreu um resfriamento com as prisões de [...]”.164 Afirmou que o líder sindical Joaquim
Mendes Fernandes se tornou subversivo em decorrência da influência exercida por Lindolfo
Cordeiro. Os demais camponeses, tais como Pio Nogueira Barros, citado por Ubirajara, não
foram indiciados. Por fim, o inspetor Xavier defendeu, ainda no mesmo relatório, que Lindolfo,
Vicente e Joaquim deveriam permanecer presos como medida mais eficaz para “garantir a
ordem pública no campo” e afirmou que o relacionamento entre trabalhadores e proprietários
de terra voltou à paz com o expurgo de tais sujeitos. Em sua concepção, a imobilização dos
advogados e lideranças sindicais da Fetraece atacou o mal pela raiz.

164
Inquérito para apurar atividades subversivas no meio rural, 15 de abril de 1972. In: Militar Ministério Público
Federal/BNM 082 1-4/Ação Penal 40/72. Disponível em: http://bnmdigital.mpf.mp.br/pt-br/. Acesso em: 7 ago.
2020. Fls. fls. 662.
193

Francisco Lindolfo Cordeiro, Vicente Pompeu da Silva e Joaquim Mendes


Fernandes foram acusados de subversão e, a partir desse momento, estariam submetidos à
Justiça Militar, que deveria realizar o rito de julgamento.

4.2 A Justiça Militar e a pena de morte

A denúncia de Ubirajara Alves gerou uma série de implicações para Lindolfo


Cordeiro, que passa a ser alvo de investigação pelos órgãos de vigilância do regime militar e
passa a sofrer acusações em decorrência de sua atuação como mediador dos conflitos de terra:
“Partindo dessa carta, novas denúncias e acusações foram sendo aglutinadas em torno das ações
de Lindolfo Cordeiro, considerado o mentor intelectual de todos os conflitos agrários existentes
no interior do Ceará, àquela época” (ALBUQUERQUE, 2016, p. 88). No caso de Lindolfo
Cordeiro, o seu processo transcorrerá pela Justiça Militar, mesmo este sendo um civil.
Nesse sentido, pretende-se discutir o próprio julgamento de Lindolfo Cordeiro pela
Justiça Militar com o objetivo de compreender como o âmbito legal foi utilizado pela ditadura
militar na perseguição aos considerados opositores políticos. Segundo Pereira (2010), o estudo
em torno da legalidade autoritária e dos processos por crimes políticos consiste em uma
importante reflexão para compreender como o aparato legal pode ser “manipulado”,
“distorcido” e “usado” em um regime de exceção contra os opositores (2010, p. 38). Igualmente,
para o autor, essa situação mostra que uma ditadura não se utiliza apenas de “força bruta” na
perseguição aos seus inimigos políticos: os tribunais se tornaram uma importante ferramenta
nos regimes autoritários para expurgar opositores (PEREIRA, 2010, p. 36). Portanto, a análise
de tais julgamentos é relevante na compreensão dos aparatos utilizados pela ditadura militar no
expurgo aos considerados inimigos internos.
Em 4 de agosto de 1972, o procurador da Justiça Militar, Júlio Crispino Leite,
enviou a denúncia contra Lindolfo Cordeiro ao juiz auditor da 10ª Região Militar. No
documento, o procurador militar acusava Lindolfo de reunir os camponeses, de suspostamente
orientá-los ao não cumprimento do contrato com os proprietários rurais e, ainda, de persuadir
os trabalhadores a permanecem nas fazendas, mesmo mediante a ordem de expulsão dos
patrões. No documento, o procurador sustentava que as mortes decorrentes do conflito da
Fazenda Japuara seria fruto da orientação dada por Lindolfo Cordeiro aos camponeses:

Com efeito, daquelas peças se extrai a convicção de que as mortes produzidas nas
pessoas de Joaquim Rodrigues de Oliveira, Cidio Martins, José Paulo de Freitas e
Raimundo Nonato Paz, na Fazenda JAPUARA, município de Canindé, deste Estado,
pelos agricultores Francisco Nogueira Barros, Francisco Plauto de Souza Barros, Luiz
194

Mariano da Silva, Raimundo Mariano Filho, Alfredo Ramos Paz, Jacó Ramos Paz,
Joaquim Abreu de Souza, Antonio Soares Mariano, Francisco Blaudo de Souza
Barros, Valdemar Ramos Paz e Valnir Abreu, decorreram do incitamento levado a
efeito pelo denunciado a que estes últimos permanecem nas suas posses erigidas
na Fazenda referida e resistissem a qualquer ato contrário de Júlio César
Campos, proprietário da mesma.165

Para a Promotoria Militar, Lindolfo estaria aliciando os camponeses à luta de


classes contra os proprietários de terra ao orientá-los a permanecerem nas fazendas, até o
recebimento dos seus direitos. Era acusado ainda de reunir os agricultores e orientá-los ao não
cumprimento do contrato com os proprietários de terra e, também, por supostamente prometer
que as propriedades pertenceriam, ao término dos processos jurídicos, aos camponeses:

Infere-se ainda daquelas peças que o denunciado, em sucessivas viagens ao interior


do Estado, onde fazia reuniões com os agricultores, associados aos respectivos
sindicatos, a estes orientava no sentido de que não atendessem a seus patrões, como
também, no mesmo passo lhes prometia que a terra por eles ocupada passariam a ser
de propriedades deles e que, desta forma, todos deveriam permanecer nas fazendas
onde trabalhavam, sem prestar contas aos respectivos proprietários. 166

Segundo o procurador Júlio Crispino Leite, a atuação de Lindolfo Cordeiro


ultrapassou os limites profissionais da função de advogado da Federação dos Trabalhadores,
pois possuía uma “conotação de cunho ideológico” que gerava intranquilidade no meio rural e
solicitava o recebimento da denúncia pelo Juiz Auditor Militar:

Nessas condições, o representante do Ministério Público Militar, convencido, face a


tudo que instrui a presente, de que o comportamento do denunciado extrapolou ao
dever profissional decorrente da função que exercia junto àquela Federação e tomou
conotação sócio ideológica, espera que V. Exa. receba a presente denúncia e faça citá-
lo para que se veja processar e julgar perante este Juízo Militar [...].167

Faz-se necessário salientar que o Estatuto da Terra no artigo 95, inciso VIII, previa
que os camponeses arrendatários poderiam permanecer nas fazendas até o pagamento das
benfeitorias úteis:

VIII – o arrendatário, ao termo do contrato, tem direito à indenização das benfeitorias


necessárias e úteis; será indenizado das benfeitorias voluptuárias quando autorizadas
pelo proprietário do solo; e, enquanto o arrendatário não for indenizado das
benfeitorias necessárias e úteis, poderá permanecer no imóvel, no uso e gozo das

165
Auditória da 10º Circunscrição Judiciária Militar. Autuação. Juiz Auditor: Alzir Carvalhães Fraga. 4 de agosto
de 1972. In: Militar Ministério Público Federal/BNM 082 1-4/Ação Penal 40/72. Disponível em:
http://bnmdigital.mpf.mp.br/pt-br/. Acesso em: 7 ago. 2020. Fls.,9. Grifo nosso.
166
Id., Ibid., fls. 10.
167
Id., Ibid., fls. 10-11.
195

vantagens por ele oferecidas nos termos de contrato do arrendamento e das


disposições do inciso I deste artigo.168

Do mesmo modo, o artigo I § 3º do Estatuto da Terra assegura aos camponeses o


direito de permanecer nas propriedades rurais que cultivem, dentro dos limites estabelecidos
pelo próprio Estatuto, observando ainda as normas de contrato de trabalho: “§ 3º A todo
agricultor assiste o direito de permanecer na terra que cultive, dentro dos termos e limitações
desta Lei, observadas sempre que for o caso, as normas dos contratos de trabalho”.169 Portanto,
Lindolfo, ao orientar os camponeses de Japuara a permanecerem na propriedade até o
pagamento das benfeitorias úteis, mesmo à revelia de César Campos, apenas obedecia ao texto
legal relativo a um direito assegurado pela legislação agrária. Isso foi desconsiderado pelo
procurador Militar, Júlio Crispino Leite, que solicitou o pedido de recebimento de denúncia
pelo juiz procurador militar e o enquadramento de Lindolfo na Lei de Segurança Nacional, que
previa a pena de morte como punição:

O representante do Ministério Público Militar, IN FINE, vem perante V. Exa., no uso


de suas atribuições legais, com suporte no inquérito policial anexo e nas várias cópias
de inquéritos e processos outros que tramitam em diversas comarcas do interior deste
Estado. DENUNCIAR como incurso nas sanções penais do art. 39, incis. I e IV e seu
§ 2°, do Dec. Lei n° 898, de 29 de setembro de 1969, o advogado FRANCISCO
LINDOLFO CORDEIRO, residente nesta cidade na Rua Ildefonso Albano nº 1392,
pelo deste causídico vir há muito, como Chefe do Setor Jurídico da Federação
dos Trabalhadores na Agricultura no Estado do Ceará, sublevando agricultores
filiados a vários sindicatos rurais deste Estado, incitando os mesmos à luta pela
violência contra os proprietários de terra, incitamento este que já decorreram
várias mortes.170

A denúncia do procurador Júlio Crispino Leite, ressalte-se, fora recusada pelo juiz
auditor militar Alzir Fraga. Este alegou que Lindolfo Cordeiro não poderia ser enquadrado na
Lei de Segurança Nacional e ser acusado de subversão pelo fato de orientar os camponeses a
seguir o que estava disposto nas leis agrárias e por cumprir sua função de advogado:

[...] Não se pode receber a denúncia quando esta atribui ao advogado ter, no exercício
de sua profissão, dados conselhos a seus constituintes para que não abandonassem as
suas casas por mera ordem de seus adversários na lide judicial para que pagassem as
rendas que lhes eram por êstes exigidas, para que recusassem acordos que o causídico
ruinosos a seus clientes.171

168
Lei N° 4.504, de 30 de novembro de 1964. Dispõe sobre o Estatuto da Terra. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l4504.htm. Acesso em: 24 abr. 2020.
169
Lei N° 4.504, de 30 de novembro de 1964. Dispõe sobre o Estatuto da Terra. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l4504.htm. Acesso em: 24 abr. 2020.
170
Auditória da 10ª Circunscrição Judiciária Militar. Autuação. Juiz auditor: Alzir Carvalhães Fraga. 4 de agosto
de 1972. In: Militar Ministério Público Federal/BNM 082 1-4/Ação Penal 40/72. Disponível em:
http://bnmdigital.mpf.mp.br/pt-br/. Acesso em: 7 ago. 2020. fls. 9.
171
Vistos do procurador militar: Júlio Crispino Leite. 18 de agosto de 1972. In: BNM 082 1-4/Ação Penal 40/72.
Disponível em: http://bnmdigital.mpf.mp.br/pt-br/. Acesso em: 7 ago. 2020. fls. 684.
196

Para o juiz auditor, Lindolfo estava sendo acusado de subversão por justamente se
interpor nesta relação tradicional entre camponeses e proprietários. O magistrado ironizou sobre
a resistência dos proprietários de terra cearenses em seguir as novas leis agrárias e conceder
direitos aos camponeses, estabelecendo que isto era um dos motivos dos conflitos de terra:

Este é o grande crime do denunciado, pois aconselhar lavradores que não obedeçam
ao proprietário da terra é inteiramente inadmissível na sociedade atrasadíssima do
“interland” cearense. É o mesmo que dizer-se, algum tempo atrás que o operário
deveria exigir salário mínimo, o repouso semanal, as férias, o 13º salário, previdência
social. É o cumulo da subversão!172

Destacou ainda as dificuldades enfrentadas em colocar em prática a legislação


agrária aprovada pelo próprio regime militar em decorrência da resistência operada pelos
fazendeiros: “O Gôverno busca a melhoria das condições e incentiva a sindicalização, promulga
o Estatuto da Terra, cria a Previdência Rural e tudo é muito bonito no papel”.173 Assim, os
proprietário são retratados como atrasados por se recusarem a cumprir a legislação, em
decorrência desse atraso, os advogados, que atuam como defensores de direitos trabalhistas,
enfrentariam tantas dificuldades:

Todos que já militaram na Justiça Trabalhista em defesa de trabalhadores sabem como


é difícil convencer um empresário que o operário tem os seus direitos. Muito mais
difícil convencer/ quando se trata de defender lavradores do sertão cearense, os quais
são até vendidos como escravos para as fazendas de Goiás, como já algumas vêzes a
Polícia Federal divulgou ter descoberto.174

Sobre o conflito na Fazenda Japuara, o juiz auditor posicionou-se afirmando que


Lindolfo não poderia ser considerado o responsável pelas mortes decorrentes dos confrontos
pelo fato de ter orientado os camponeses a permanecerem em suas casas, enquanto transcorriam
os processos na esfera jurídica:

Pode-se chamar de incitamento o conselho dado pelo advogado a seus clientes a que
permanecessem em suas casas enquanto a Justiça não os mandasse sair e não fosse
paga a indenização de determinada sentença? É o fato descrito na denúncia um crime?
Há que se ter presente que o acusado não aconselhou nem mesmo que disparassem
sobre esses oitenta jagunços contratos pelo proprietário para destelhar as casas dos
lavradores.175

172
Id., Ibid., fls. 684.
173
Id., Ibid., fls. 684.
174
Id., Ibid., fls. 686.
175
Id., Ibid., fls. 683.
197

Portanto, para o juiz auditor, Lindolfo não se enquadrava como um “subversivo”,


nem estava descumprindo a Lei de Segurança Nacional enquanto atuou como advogado da
Federação dos Trabalhadores, já que apenas cumprira a sua função de advogado ao defender os
interesses dos seus clientes e orientá-los a permanecer nas propriedades até o ressarcimento dos
seus direitos enquanto transcorriam os processos na Justiça. Assim, a acusação de Lindolfo
gerou um impasse entre a Procuradoria Militar, que solicitava o enquadramento do advogado
na Lei de Segurança Nacional, acusando-o de subversão, e o juiz auditor militar, que alegava
que Lindolfo não poderia sofrer tal acusação, pois este apenas atuou orientando os camponeses
sobre os seus direitos.
Em decorrência da recusa do juiz auditor em receber a denúncia da Procuradoria
Militar contra Lindolfo Cordeiro, este foi afastado do processo: “Logo após ter rejeitado a
denúncia contra Lindolfo, o Juiz Auditor Alzir Carvalhães foi transferido da 10ª Regional
Militar de Fortaleza para a 9ª Regional Militar, sendo substituído por Ângelo Rattacaso Júnior”
(ALBUQUERQUE, 2016, p. 104). O substituto do juiz auditor recebeu a denúncia contra
Lindolfo e o processo continuou a transcorrer. Em 26 de julho de 1973, o Ministério Público
Militar incluiu, no mesmo processo, Vicente Pompeu e Joaquim Mendes Fernandes, todos
acusados de subversão pela Lei de Segurança Nacional.
É importante considerar o significado político do afastamento que o juiz auditor
Alzir Magalhães sofreu ao se recusar a dar encaminhamento ao processo e enquadrar Lindolfo
na Lei de Segurança Nacional. Dessa forma, aqueles que passam a questionar de algum modo
os preceitos do regime militar, mesmo sendo corpo constituinte do Tribunal Castrense, também
sofriam sanções em suas decisões e poderiam ser penalizados quando a sua atuação era
considerada inconveniente:

Uma ditadura militar que cumpre decisões judiciais e que afasta de suas funções de
que não gosta ou que considera inconvenientes, mandando-os para casa com
vencimentos iguais aos que receberiam na atividade é, sem dúvida, uma coisa
diferente. Nem por isso deixa de agir ditatorialmente, ou pelo menos autoritariamente,
nem de violentar a ordem jurídica no que ela tem de mais importante (ROSA, 1985,
p. 18-19).

No processo, foi concluído que a atuação de Lindolfo Cordeiro deveria ser


enquadrada no artigo 39, incisos I e IV do Decreto Lei de nº 898, de 29 de setembro de 1969,
denominada como a Lei de Segurança Nacional por sublevar os camponeses filiados aos
sindicatos rurais à luta de classes e por responsabilizá-lo pelas mortes decorrentes dos conflitos
198

de terra. O indiciamento de Lindolfo pela Promotoria Militar foi noticiado pela imprensa que
afirmara que ele provocara conflitos de terra em diversas localidades do Ceará:

Advogado é denunciado por subversão no Ceará.


O procurador pediu enquadramento do advogado no artigo 39, Parágrafo 1° e 4°, da
Lei de Segurança Nacional, fazendo um longo relato sobre suas atividades apontadas
como de aliciamento para criar um clima de luta de classes no município de Sobral,
Quixadá, Quixeramobim e Canindé (JORNAL DO BRASIL, 9 ago. 1972).

Não se pode esquecer que a Lei de Segurança Nacional no artigo 39, incisos I e IV
estabelecia que era crime incitar: “I – A guerra ou à subversão da ordem político-social; IV –
A luta pela violência entre as classes sociais”.176 Se do crime de “incitamento” decorresse
morte, o sujeito seria apenado severamente. Em decorrência de alguns conflitos de terra em que
Lindolfo atuou como mediador terem resultado em mortes, o advogado seria condenado à pena
de morte por fuzilamento, conforme estabelecido pela Lei de Segurança Nacional de 1969.
O enquadramento de Lindolfo na Lei de Segurança Nacional ganhou repercussão
pública. Buscava-se estabelecer que os indivíduos que passavam pelo crivo da Justiça Militar
representavam uma ameaça à sociedade e que a ditadura julgava seus inimigos políticos
amparados por mecanismos legais:
De modo geral parece correto afirmar que o regime militar, pelo menos durante o
tempo em que ocupou o poder, conseguiu retratar esses julgamentos como medidas
necessárias para proteger a segurança e o bem-estar dos cidadãos comuns e
cumpridores da lei contra terroristas perigosos, subversivos, comunistas e seus
cúmplices (PEREIRA, 2010, p. 138).

Observa-se, então, a severidade da punição aplicada pelo regime militar brasileiro


que poderia recair sobre seus opositores. Assim, é perceptível a própria diluição de quem é
considerado inimigo interno do Estado autoritário, tendo em vista que qualquer sujeito poderia
facilmente ser enquadrado na Lei de Segurança Nacional, ao menor sinal de oposição e ser
punido de modo extremamente severo.
Portanto, o julgamento pelos tribunais militares dos indivíduos considerados
subversivos conferia um ar de legalidade à perseguição política. É necessário refletir sobre os
crimes praticados pelos civis julgados pela Justiça Militar. Apesar de estes terem sido
enquadrados na Lei de Segurança Nacional, a maioria dos acusados por crimes políticos pelas
Ditaduras do Cone Sul não foram processados por participação em movimentos armados

176
Decreto-Lei nº 898, de 29 de setembro de 1969. Define os crimes contra a segurança nacional, a ordem política
e social, estabelece seu processo e julgamento e dá outras providências. Disponível em:
https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1960-1969/decreto-lei-898-29-setembro-1969-377568-
publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em: 17 jun. 2022.
199

(PEREIRA, 2010, p. 39). Foi o caso do próprio Lindolfo Cordeiro, processado como o
responsável por incitar conflitos entre as classes, mas que não tinha qualquer participação em
ações armadas. Assim, a Justiça Militar não ficou responsável apenas por julgar civis que
participassem de ações mais incisivas contra a ditadura militar, os cidadãos comuns
considerados como opositores políticos também passaram pelo crivo do Tribunal Castrense e
sofreram com severas sanções penais desproporcionais aos supostos crimes cometidos.
Antes de tudo, é importante considerar também que, com a aprovação do Ato
Institucional nº 2, em 1965, a Justiça Militar fica encarregada de julgar os civis que cometessem
crimes políticos, ou melhor definindo, crimes contra a Segurança Nacional (FACHIN, 2014, p.
3). Uma das características das ditaduras do Cone Sul foi a utilização dos tribunais militares no
amparo à perseguição aos considerados inimigos políticos, o que foi utilizado para conferir uma
imagem de legalidade aos regimes autoritários: “[...] é muito comum que os regimes autoritários
usem a lei e os tribunais para reforçar seu poder de modo a tornar obscura a distinção simplista
entre regime de facto e regime constitucionais (ou de jure). Em particular, muitos regimes
levaram seus opositores políticos a julgamentos” (PEREIRA, 2010, p. 36).
Historicamente, a Justiça Militar sempre funcionou em paralelo à Justiça Comum
no Brasil, todavia sua atribuição era julgar os militares e não os civis (PEREIRA, 2010, p. 11).
Segundo Fachin (2014, p. 1), com relação ao Tribunal Castrense brasileiro, esta constitui o ramo
da justiça especializada mais antiga do Brasil, com mais de 200 anos de existência, remontando
ainda ao tempo do Brasil Império. De acordo com Silva (2013, p. 1), a Justiça Militar surge em
1808, em decorrência da vinda da família real ao Brasil e ordenava-se em torno de duas
instituições: os Conselhos de Guerra e o Conselho Supremo Militar e de Justiça. Apesar da sua
remota existência, somente com a promulgação da Constituição de 1934 é que a Justiça Militar
passa a ser parte constituinte da estrutura funcional do Poder Judiciário:

A Justiça Militar só veio a se integrar de fato na estrutura do Poder Judiciário em


1934, com a nova Constituição. Até então, o Supremo Tribunal Militar estava atrelado
ao Poder Executivo. A Constituição de 1934, além de atribuir atividade judicante ao
STM, determinou que em alguns casos, mormente nos chamados crimes contra
segurança externa ou contra instituições militares, se estenderia para civis o foro
militar (FACHIN, 2014, p. 3).

A Constituição de 1934 foi a primeira a fazer uso do termo “Segurança Nacional”,


e, nesse momento, a Justiça Militar passa a ser, de fato, integrante do Poder Judiciário, sob a
denominação de “Superior Tribunal Militar” (SILVA, 2013, p. 6). A atribuição da Justiça
Militar para julgar civis que cometessem crimes contra a Segurança Nacional remonta ainda ao
período da Era Vargas com a aprovação da Constituição de 1934 e também o estabelecimento
200

de crimes contra a Segurança Nacional: “Apenas com a constituição de 1934, o Supremo


Tribunal Militar passou a integrar o Poder Judiciário, com a atribuição de julgar civis que
houvessem cometido crimes contra a Segurança Nacional ou as instituições militares”
(COITINHO, 2015, p. 2).
A extensão da tarefa da Justiça Militar de julgar civis que cometessem crimes
políticos não foi algo inaugurado com a ditadura militar: “[..] o deslocamento promovido pelos
militares, em 1965, por meio da edição do Ato Institucional nº 2, tornando a Justiça Militar
responsável pelo julgamento de crimes contra a segurança nacional não foi uma inovação do
concerto político iniciado um ano antes” (SILVA, 2011, p. 10). No Brasil, o uso dos Tribunais
e da Lei como instrumento de perseguição aos opositores políticos não era novidade do regime
militar:

No Brasil, tanto a prática de usar a lei para reprimir os adversários políticos quanto a
Doutrina de Segurança Nacional já existiam bem antes do golpe militar de 1964. A
prática da repressão judicial da oposição política, é portanto, uma característica não
do regime de 1963-1985, mas sim do Estado brasileiro (PEREIRA, 2010, p. 84).

Segundo Coitinho (2015, p. 2-3), findado o período do Estado Novo e com o


estabelecimento do retorno à democracia, a Constituição de 1946 define como instância
máxima da Justiça Militar, o Supremo Tribunal Militar. Todavia, de acordo com a Constituição
de 1946, cabia à Justiça Militar somente o julgamento dos civis em casos do cometimento de
crimes militares ou aqueles cometidos contra a Segurança Externa (SILVA, 2011, p. 17). Com
relação aos crimes políticos cometidos por civis, não existia prerrogativa legal na Constituição
de 1946 para o julgamento destes pelo Tribunal Castrense.
A ditadura militar, inicialmente, não contava com leis que amparassem o
julgamento de civis pelos Tribunais Militares, em casos de crimes políticos, tendo em vista que
tal prerrogativa não contava mais com amparo legal com o fim do Estado Novo. De acordo com
Silva (2011, p. 48), quando os militares assumem o poder em 1964, a Justiça Militar amparava-
se no Código de Justiça Militar de 1938, pela Constituição de 1946 e também pela Lei de
Segurança Nacional de 1953. Assim, tais dispositivos foram utilizados, no primeiro momento
da ditadura, para sustentar a perseguição aos opositores políticos:

É significativo o fato de que durante os primeiros anos do regime militar que subiu
ao poder em 1964, a Lei de Segurança Nacional de 1953 tenha sido considerada
embasamento legal mais que suficiente para a instauração de processo contra
pessoas suspeitas de serem comunistas, sindicalistas e partidários do governo
deposto de João Goulart (PEREIRA, 2010, p. 88).
201

Entretanto, nenhuma dessas leis oferecia embasamento jurídico para julgar civis em
Tribunais Militares acusados de crimes políticos. Os civis que cometessem crimes contra a
Segurança Nacional eram julgados pela Justiça Comum. No transcorrer da ditadura militar, os
crimes políticos cometidos por civis passam novamente a ficar a cargo da Justiça Militar com
a aprovação do AI-2 e de novos dispositivos legais que vão amparar os julgamentos de civis
pelo Tribunal Castrense. Como observado por Coitinho, os ministros que compunham o
Superior Tribunal Militar, durante o período do regime militar, buscavam demonstrar que a
tarefa de julgar civis que cometiam crimes contra a Segurança Nacional era melhor
desempenhada pela Justiça Militar:

Muitos ministros do STM procuraram enaltecer em seus discursos a importância de


tal tarefa, analisando que o STM poderia desempenhar melhor a função de julgar
crimes contra a Segurança Nacional, mesmo que os mesmos tivessem sidos cometidos
por civis, uma vez que tribunal possuíam composição mista, a sua atribuição não
deveria ser contestada (COITINHO, 2015, p. 3).

Os militares consideravam a Justiça Comum passível de desconfiança e não apta a


julgar os crimes políticos: “Afirmamos, em geral, que os militares não confiavam na justiça
comum e que, por isso, seria necessário dotar a Justiça Militar da responsabilidade legal pelo
julgamento dos casos que versassem sobre questões políticas” (SILVA, 2011, p. 63). Do mesmo
modo, com a aprovação do AI -2, a Justiça Militar torna-se legítima aplicadora da execução da
política de Segurança Nacional (COITINHO, 2015, p. 6).
O AI-2 surge em decorrência da pressão exercida por parte dos militares da linha
dura para enrijecimento do autoritarismo por meio do enfraquecimento do Judiciário e do
Legislativo (ALVES, 2005, p. 109). Esse dispositivo, em relação à esfera judicial, limitava as
possibilidades de recursos por partes dos civis acusados pelos Inquéritos Policiais Militares –
IPMs, tendo em vista que, até a aprovação do AI-2, esses civis costumavam recorrer à Justiça
Comum como forma de escapar aos ditames autoritários. Para Alves (2005), esse novo
dispositivo buscava dar continuidade à perseguição política promovida pela “Operação
Limpeza” ensejada ainda no Governo de Castelo Branco, cujo objetivo principal era expurgar
os que possuíam qualquer associação com o Governo de João Goulart, como também ampliar
a noção de inimigo interno (ALVES, 2005, p. 111). Ainda segundo Alves (2005), uma das
exigências dos oficiais militares, responsáveis pelos IPMs, no que diz respeito ao Judiciário,
era ter maior controle sobre tal instituição e retirar da jurisdição comum as decisões sobre os
crimes políticos cometidos pelos civis, tendo em vista que muitos dos acusados pelos IPMs
conseguiam decisões favoráveis a eles na Justiça Comum (ALVES, 2005, p. 112).
202

Portanto, percebe-se como o AI-2, ao oferecer legitimidade para o processo de


julgamento de civis pelo Tribunal Castrense, contribuiu para expurgar os considerados inimigos
internos da nação e para a aplicação da Lei de Segurança Nacional: “A partir de então a Justiça
Militar assumiu definitivamente um papel político de relevo no processo de institucionalização
e legitimação do regime militar, além de se configurar como um importante instrumento de
punição” (SILVA, 2007, p. 55).
Com relação às modificações no Judiciário ensejada pelo AI-2, pode-se destacar o
Artigo 8º desse Ato Institucional, que modificou o parágrafo 1º do Artigo 108 da Constituição
de 1946, ao estender aos civis o processo de julgamento em casos de crimes cometidos contra
a Segurança Nacional: “§ 1º – Esse foro especial poderá estender-se aos civis, nos casos
expressos em lei para repressão de crimes contra a segurança nacional ou as instituições
militares”.177 Assim, com a aprovação do AI-2 os processos políticos em decorrência da
abertura dos IPMs ficam a cargo da Justiça Militar:
A transferência aos Tribunais Militares dos processos políticos envolvendo questões
de Segurança Nacional era uma resposta clara às pressões dos setores linha dura: ela
eliminava a possibilidade de recurso, que permitia que muitos dos processados nos
IPMs escapar à degola (ALVES, 2005, p. 112).

Segundo Rosa (1985), esse Ato Institucional também alterou a composição do


Superior Tribunal Militar, ao aumentar de 11 para 16 a quantidade de ministros do Supremo,
objetivando torná-lo mais dócil aos preceitos do regime militar: “O pretexto foi fazer o Supremo
mais rápido e eficiente, desafogando seus ministros de carga excessiva de trabalho. O objetivo
verdadeiro, entretanto, foi mudar-lhe a composição para fazê-lo mais compreensivo aos
desígnios e procedimentos revolucionários” (1985, p. 19). Para Alves, o aumento de ministros
no Supremo buscava conceder ao Executivo maior controle sobre o Judiciário, além de que os
novos ministros seriam indicados pelo presidente: “A indicação, pelo Presidente, dos Juízes do
Supremo Tribunal, juntamente com a suspensão das garantias do Judiciário previstas na
Constituição, dava ao Executivo um controle muito maior sobre as decisões do Judiciário”
(2005, p. 112).
O AI-2 fortalece, então, o poder Executivo, em detrimento dos demais poderes, e
institucionaliza um processo de perseguição política aos civis que passam a ser julgados pelo
Tribunal Castrense: “Estas modificações estruturais na Justiça Militar caracterizaram uma fase
de atuação político institucional do tribunal militar na qual todos os processos abertos para

177
Ato Institucional nº 2, de 27 de outubro de 1965. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ait/ait-
02-65.htm. Acesso em: 17 jun. 2022.
203

julgar crimes políticos vão ser de sua responsabilidade, inclusive aqueles que já estavam em
andamento” (SILVA, 2007, p. 55). Fica a cargo da Justiça Militar a jurisdição dos crimes
políticos cometidos por civis: “[...] o AI-2 tornou a Justiça Militar legítima aplicadora da Lei
de Segurança Nacional” (FACHIN, 2014, p. 4). Segundo Fragoso (1980), essas leis surgem
com as premissas fundamentais tanto de reprimir como de prevenir a subversão associada ao
“perigo vermelho”, além de representarem uma institucionalização da perseguição política pela
esfera jurídica (1980, p. 13-14).
O enfraquecimento ou mesmo a diluição do Poder Legislativo e Judiciário em
decorrência da aprovação dos Atos Institucionais ofereceu subsídios para a atuação arbitrária
do Executivo durante a ditadura militar brasileira: “O regime brasileiro foi claramente uma
ditadura. Um alto grau de arbitrariedade determinava o tratamento dado os presos políticos, e
havia pouca separação entre os poderes, o que permitia que o executivo alterasse as regras do
jogo da forma como bem entendesse” (PEREIRA, 2010, p. 230). Assim, o AI-2 modificou a
Constituição de modo que oferecesse aparato legal para levar os opositores civis que cometiam
crimes políticos a serem julgados pelos tribunais militares: “O regime militar brasileiro usou os
tribunais militares de tempos de paz para processar dissidentes e opositores políticos, sem
jamais abolir a Constituição” (PEREIRA, 2010, p. 34). É necessário refletir, portanto, sobre
como a perseguição aos inimigos internos da nação vai sendo amparada por dispositivos legais
como os atos institucionais. Do mesmo modo, observa-se um enrijecimento da ditadura no
tratamento dispensado aos acusados de crimes políticos, que passam a sofrer perseguição e ter
os seus julgamentos deixados a cargo do Tribunal Castrense.
Com relação à composição do Tribunal Castrense, durante o regime militar
brasileiro, este se organizava em duas instâncias: a primeira era formada pelas auditorias
militares, enquanto a segunda instância era constituída pelo Superior Tribunal Militar (SILVA,
2007, p. 55). As auditorias militares eram localizadas em cada circunscrição militar e existiam
cerca de doze no país: “Na primeira instância, os Conselhos de Justiça eram compostos por um
juiz auditor civil, três oficiais militares com patente de capitão ou tenente capitão e um militar
com patente superior que atuava como presidente da sessão de julgamento” (COITINHO, 2015
p. 8). Dentro das auditorias militares, situadas em cada circunscrição, existiam duas espécies
de conselhos militares, que possuíam as seguintes atribuições:

[...] são compostas por dois tipos de Conselho que se dignam a examinar as denúncias
oferecidas pela Procuradoria Militar: Conselho Especial de Justiça constituído para
processar e julgar oficiais, exceto generais, que só poderiam ser julgados pelo STM,
bem como os casos nos quais havia sido pedida a pena de morte; Conselho Permanente
204

de Justiça: direcionados para os casos de condenação de não oficiais, e de civis,


julgados por crimes cometidos contra a segurança nacional (SILVA, 2007, p. 55).

Conforme visto, o Tribunal Castrense possuía, em seu quadro, tanto militares


quanto civis. É importante ressaltar que, apesar da composição mista dos tribunais militares, os
juízes civis que compunham tais órgãos eram escolhidos por compactuar com a ditadura militar:
“Quatro dos cinco juízes era oficiais militares da ativa e, portanto, naturalmente partidários de
um dos lados da campanha antissubversiva do regime militar. Os juízes civis que serviam nos
tribunais militares, de modo geral, eram conhecidos pela posição favorável ao regime”
(PEREIRA, 2010, p. 215). De acordo com Rosa (1985), a relação entre magistrados e militares
foi permeada por conflitos, mas existia certa identidade entre eles, inclusive, devido à própria
extração social comum a ambos (ROSA, 1985, p. 12). Assim, o próprio juiz auditor que ficou
encarregado do recebimento da denúncia contra Lindolfo compactuava com os preceitos do
regime autoritário, mas eram perceptíveis também as divergências entre os membros do
Tribunal Castrense, no momento de enquadrar os civis na Lei de Segurança Nacional e,
também, na própria interpretação dada à lei.
Como para o caso de Lindolfo havia sido imposta a pena de morte, este ficaria a
cargo de ser julgado pelo Conselho Especial de Justiça, que era também encarregado do
julgamento de oficiais. Ressalte-se, ainda, que os mecanismos legais que permitiram que
Lindolfo fosse julgado pelo Tribunal Castrense foram o AI-2 e a Lei de Segurança Nacional de
1969, que oferecia subsídios legais para a condenação de civis à pena de morte por fuzilamento
ou prisão perpétua, inclusive, em casos de incitamento aos conflitos de classes que resultassem
em morte. Assim, durante a ditadura militar, existe a possibilidade de condenar os opositores
políticos à pena de morte de modo “judicial” ou “extrajudicial”. A primeira utilizando os
mecanismos legais, e a segunda, que foi mais utilizada, ocorria nos porões da ditadura:

O que diferenciava a pena de morte judicial da extrajudicial era fundamentalmente,


as maneiras como ambas eram aplicadas. A primeira estava envolta em uma esfera
político institucional e também era circundada e legitimada pelo aparato jurídico –
legislativo, que podia fazer uso dela ou não. No caso das ditaduras latino-americanas,
a segunda se caracterizou como prática (SILVA, 2007, p. 21).

É importante destacar que os Atos Institucionais nº 13 e 14, aprovados pela Junta


Militar em 27 de setembro de 1969, foram os que permitiram que os opositores políticos da
ditadura pudessem ser condenados à pena de morte ou mesmo banidos do território brasileiro.
Tais dispositivos foram aprovados como uma resposta ao sequestro do embaixador norte-
americano Charles Burke Elbrick (PEREIRA, 2010, p. 138). Além disso, a pena de morte era
205

um desejo dos militares que desejavam uma punição mais severa aos opositores políticos: “Há
indicações de que a pena de morte contava com forte apoio em meio as forças armadas [...]”
(PEREIRA, 2010, p. 140).
Assim, esses aparatos legais institucionalizaram o enrijecimento da ditadura com o
restabelecimento da pena de morte aos considerados inimigos internos que, por estarem
vinculados ao comunismo internacional, na concepção militar, deveriam ser eliminados:

Vale lembrar que a pena de morte sempre esteve presente nos códigos penais militares
republicanos, para o caso de guerra externa. Considerar os guerrilheiros como
inimigos externos, por sua filiação ao movimento comunista internacional, seria uma
estratégia de justificar o restabelecimento da pena de morte como um ato legítimo, ou
seja, sem fugir a tradição “constitucional brasileira” (SILVA, 2007, p. 71).

A pena de morte foi restabelecida pelo regime militar com o objetivo de intimidar
os opositores políticos e, segundo Fragoso (1980), também como um elemento “preventivo” da
subversão: “a lei, em seu conjunto, adotou a política intimidatória e feroz, reintroduzindo a pena
de morte” (1980, p. 15). De acordo ainda com Fragoso, a lei mostrava todo “o seu extremo
rigor” ao estabelecer a pena de morte, cuja pena alternativa era a prisão perpétua, além de
estabelecer punições desproporcionais aos crimes cometidos (1980, p.15). Assim, o
restabelecimento da pena de morte foi uma clara resposta aos que participaram do sequestro do
embaixador norte-americano, mas também àqueles que ainda insistiam em fazer oposição aos
militares:

Por ter existido em momentos de crise política, durante regimes e governos de cunho
ditatorial ou autoritário, percebeu-se que, diferente da presença da pena de morte para
crimes comuns – que não vigeu em momento algum desde 1889 -, a pena capital como
medida da força contra inimigos políticos foi bastante utilizada como recurso
intimidatória e preventivo (SILVA, 2007, p. 10).

É necessário destacar que, durante o regime militar brasileiro, houve somente


quatro condenações à pena de morte pelos tribunais militares, mas que não chegaram a ser
cumpridas e foram revogadas por recursos (PEREIRA, 2010, p. 34). Todavia, observa-se como
a severidade da punição aos que descumpriam a Lei de Segurança Nacional foi utilizada com o
propósito de desarticular qualquer oposição à ditadura brasileira já que a gravidade da punição
já consistia em um inibidor:

Os indícios de absolvição não bastam para contar toda a história desses julgamentos,
uma vez que não mostram o tempo que os réus passaram na prisão aguardando
julgamentos, nem refletem a capacidade que esses julgamentos públicos tinham de
intimidar e desmoralizar a oposição (PEREIRA, 2010, p. 129).
206

Portanto, o caso do próprio Lindolfo foi um dos poucos em que a Lei de Segurança
Nacional foi utilizada para punir de modo severo um opositor político do regime, ou melhor,
alguém que passa a ser visto como inimigo interno por supostamente incentivar a luta de classes
no campo. A condenação de Lindolfo foi embasada com o máximo rigor possível, mesmo este
sendo um advogado que não tinha qualquer participação em movimentos da esquerda armada
que atuaram durante o regime militar brasileiro. A severidade da sua punição surge como uma
resposta da ditadura militar aos advogados que atuavam junto ao movimento sindical camponês
e que insistiam na reivindicação por direitos, mesmo quando amparados pelas leis agrárias
elaboradas pelo próprio regime militar brasileiro. Assim, se Lindolfo, no primeiro momento,
utiliza os instrumentos legais da ditadura na conquista de direitos aos camponeses. A sua
utilização das leis agrárias passa a ser vista como uma atuação subversiva ao atuar como
mediador dos conflitos de classe. Quando os advogados atuam nas margens do regime militar,
apresentando as leis aos camponeses, estes passam a serem vistos como inimigos internos da
nação que deveriam ser banidos e terem suas ações refreadas.
Retornando à análise do processo, em 6 de dezembro de 1976, o Conselho
Permanente de Justiça para o Exército reuniu-se na sede da 10ª Circunscrição Judiciária Militar
para julgar os acusados de subversão pela Lei de Segurança Nacional, no caso, Joaquim Mendes
Fernandes, Lindolfo Cordeiro e Vicente Pompeu. Todos eles compareceram com os seus
respectivos advogados, que apresentaram suas teses de defesa.
O advogado de Lindolfo Cordeiro, de imediato, em sua tese de defesa, buscou
desvincular o seu cliente de qualquer ligação com o comunismo internacional ou outra ideologia
vinculada à esquerda, buscando provar que Lindolfo não possuía qualquer ligação com os
movimentos tidos como subversivos que atuaram contra a ditadura. Do mesmo modo, fez
questão ainda de destacar que Lindolfo, desde a instalação do golpe militar, apresentou-se como
um sujeito entusiasta do regime. Assim, ele não devia ser tido como um inimigo interno em
decorrência de suas crenças ou simpatias políticas, pois o mesmo compactuava com os preceitos
do regime autoritário:

Com a palavra o Dr. JURANDY PORTO ROSA, defensor do acusado FRANCISCO


LINDOLFO CORDEIRO, argumentou, de início, a inexistência de suspeita de que o
Dr. Lindolfo simpatizava com a ideologia MARXISTA LENINISTA, inexistindo,
igualmente, forma de insubmissão às leis e desrespeito às ordens; QUE a conduta do
207

acusado poderia ser suspeitada, porém nunca foi homens de elogiar quem está de cima
e que teve foi um excesso de entusiasmo pela Revolução de 1964.178

A defesa ainda salientou que Lindolfo seguia os preceitos da Justiça e do Direito e


que ele não incitou os camponeses de Japuara ou de São Felipe a reagir com violência contra
os proprietários de terra, salientando que ambos os conflitos resultaram em mortes. Com relação
a Japuara, o advogado destacou que o estopim do conflito teria ocorrido em decorrência de
César Campos não ter seguido os preceitos legais previstos nas leis agrárias e que Lindolfo, em
nenhum momento, orientou os camponeses a agir de modo mais incisivo contra o proprietário:

Que tudo que o acusado idealizou foi baseado no Direito e na Justiça, tentando, a
rigor, a aplicação da legislação agrária vigente; Que assim não pode ser
responsabilizado pela prática de crime simples de incitamento sem o gravame de
resultado de morte; Que a dispensa da responsabilidade objetiva pelo resultado morte
nos conflito de “Japuara” e “São Felipe” equivale ao reconhecimento da inexistência
de INCITAÇÃO; Que é impiedoso e perverso dizer-se que partira do réu a agressão,
quando, na verdade o fora de César Campos; Que se não lhes foi paga a indenização,
eles agricultores não tinha obrigação de sair da terra; Que na verdade o que fez
Lindolfo foi conclamar os trabalhadores rurais e não aliciá-los para a luta.179

É importante considerar que o julgamento dos acusados por subversão era tido pelos
advogados de defesa como o momento de desvincular qualquer ligação dos réus com a
esquerda. Afirmar que os acusados eram simpatizantes da ditadura era um meio de conseguir
decisões favoráveis aos réus nos tribunais militares. Isto é, se Lindolfo era ou não um entusiasta
da Revolução de 1964, não vem ao caso, mas é necessário perceber a estratégia da defesa em
se tratando de um julgamento em que um civil havia sido acusado de subversão por compactuar
com ideologias estrangeiras. Portanto, cabia à defesa a tentativa de desvincular o seu cliente
dos movimentos de esquerda, mesmo que isso custasse afirmar que o réu era favorável ao
regime militar: “Os advogados de defesa, em geral, convenciam seus clientes a evitar defesas
políticas, optando por um dos dois tipos de defesa. A defesa jurídica significa o réu abjurar
qualquer crença em ideias tidas como subversivas e negar que houvesse infringido as leis de
segurança nacional (PEREIRA, 2010, p. 213).
Ao término dessa sessão, os juízes absolveram Lindolfo Cordeiro e Joaquim
Mendes Fernandes por não existirem provas consistentes para condená-los pela Lei de
Segurança Nacional (ALBUQUERQUE, 2016, p. 111). O Conselho Especial de Justiça utilizou

178
Ata da 29ª sessão do Conselho Permanente de Justiça para o Exército. Auditor: Ângelo Rattacaso Júnior. 6 de
dezembro de 1976. In: Militar Ministério Público Federal/BNM 082 3-4/Ação Penal 40/72. Disponível em:
http://bnmdigital.mpf.mp.br/pt-br/. Acesso em: 7 ago. 2020. fls. 191-192.
179
Id., Ibid., fls. 192.
208

como embasamento jurídico para inocentá-los o artigo 439, letra e, do Código de Processo Penal
Militar, que trata sobre os requisitos de absolvição dos réus pelo Conselho de Justiça: “Art. 439.
O Conselho de Justiça absolverá o acusado, mencionando os motivos na parte expositiva da
sentença, desde que reconheça: [...] e) não existir prova suficiente para a condenação”.180
Assim, Lindolfo e Joaquim foram absolvidos por não existir embasamento suficiente para a
condenação:
[...] no mérito de quatro (04) votos contra hum (01) de seus Juízes, vencido o Juiz
Major Geraldo Amorim Navarro, absolver como absolvido tem o acusado Francisco
Lindolfo Cordeiro da imputação que lhe fora feita da prática de crime previsto no art.
39, n° IV do Decreto-lei n° 898, de 29.09.69 (LSN), e bem, assim, absolver, por
unanimidade de votos, o acusado Joaquim Mendes Fernandes, também da mesma
imputação, ambas as absolvições proferidas com fundamento no art. 39, letra e, do
C.P.P. M.181

Vicente Pompeu, por sua vez, já havia sido processado e cumprido prisão por dois
anos. Portanto, não poderia ser novamente julgado e apenado pelo mesmo crime. Fato este
alegado pelo seu advogado e acolhido pelo Conselho, que também o absolveu. Destaque-se que
Lindolfo contou ainda com dois depoimentos favoráveis que foram relevantes na sentença de
absolvição, no caso, do delegado do DOPS, Luiz Coelho de Carvalho, e do ex-secretário de
Segurança do Estado, ten. Hamilton Holanda, que, na época do seu depoimento, ocupava o
cargo de coordenador regional do Incra. É fundamental observar, então, como tais depoimentos
foram relevantes na sua absolvição de Lindolfo, já que eram testemunhas que faziam parte da
máquina de vigilância e punição gestada pela ditadura militar.
Entretanto, apesar do julgamento favorável a Lindolfo e Joaquim Mendes
Fernandes, essa história prolongou-se por ainda mais tempo:

Com base no art. 439, letra ‘e’, o Juiz Ângelo Rattacaso Júnior concluiu, portanto, que
não havia provas suficientes para a condenação. O representante do Mistério Público
Militar, João Alfredo da Silva, não se conformando com a decisão do Conselho
Especial, em março de 1977 apelou ao Supremo Tribunal Militar (ALBUQUERQUE,
2016, p. 111).

A sentença do Conselho Especial de Justiça gerou descontentamento, por parte da


Promotoria Militar, principalmente, no caso da absolvição de Lindolfo Cordeiro. O Ministério
Público Militar não acata a decisão do Conselho Especial de Justiça que absolveu Lindolfo
Cordeiro e Joaquim Mendes Fernandes. Em 14 de março de 1977, o ministério recorre ao

180
Decreto-lei nº 1.002, de 21 de outubro de 1969. Dispõe sobre o Código de Processo Penal Militar. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del1002.htm. Acesso em: 17 jun. 2022.
181
Ata da 29ª sessão do Conselho Permanente de Justiça para o Exército. Auditor: Ângelo Rattacaso Júnior. 6 de
dezembro de 1976. In: Militar Ministério Público Federal/BNM 082 3-4/Ação Penal 40/72. Disponível em:
http://bnmdigital.mpf.mp.br/pt-br/. Acesso em: 7 ago. 2020. fls.192-193.
209

Egrégio Superior Tribunal Militar. O processo então passa a ser movido na 2ª instância da
Justiça Militar.
O MPM, ao enviar as razões da apelação ao Superior Tribunal Militar, aceitou a
decisão do Conselho Especial Militar com relação à absolvição de Joaquim Mendes Fernandes,
mas não de Lindolfo Cordeiro e defendeu o seguinte:

Assim, quanto ao réu JOAQUIM MENDES FERNANDES, por estar o decisório do


juízo a quo consentâneo dos fatos e o direito não há o que reformar, salvante melhor
entendimento.
Entanto, o mesmo não ocorre, ver na permissa, no tocante ao acusado Francisco
Lindolfo Cordeiro
É certo que o nominado acusado parece ter contado com a simpatia da maior parte das
testemunhas inquiridas, talvez em decorrência da gravidade da pena correspondente
ao delito que lhe foi imputado a qual lhes era insistentemente mostrada através da
leitura da defesa prévia [...].
Ali, naquela peça, entre outras coisas “a Promotoria pede o fuzilamento de um
homem.”
Ora, a índole religiosa e sentimentalista do nosso povo repugna semelhante
expectativa, mormente em se tratando de pessoas humildes -e o eram quase todos-,
ainda mais de procedência interiorana, onde o meio social que integram não lhes
propicia a oportunidade de lhes ser exibido com tamanha ênfase anúncio dessa
natureza do veículo pela defensoria pública.182

Na apelação do MPM, foi solicitada uma reformulação da sentença que absolvia


Lindolfo Cordeiro, mas não solicitava revisão alguma com relação à absolvição de Joaquim
Mendes Fernandes. Foi alegado ainda que Lindolfo conquistou a simpatia das testemunhas em
decorrência da gravidade da pena, já que Lei de Segurança Nacional previa morte por
fuzilamento, caso fosse provada, de fato, a sua participação como mentor intelectual dos
conflitos de terra. Segundo o MPM, os depoimentos favoráveis das testemunhas arroladas pelo
advogado de Lindolfo, inclusive, do Secretário de Segurança Pública do Estado e do Delegado
do DOPS, decorreram da própria cultura do povo brasileiro, que abominaria a pena de morte
devido à religiosidade e ao sentimentalismo. Assim, Lindolfo teria sido absolvido pelo
Conselho Especial de Justiça devido à própria gravidade da punição e não por ser, de fato,
inocente em sua atuação como mediador dos conflitos de terra, assim as testemunhas teriam
sido induzidas pela defesa a depor de modo favorável motivadas pelo próprio horror à pena de
morte.
Apesar de ter recorrido da decisão do Conselho Especial de Justiça, o Ministério
Público Militar não conseguiu trazer elementos suficientes capazes de sustentar o
enquadramento de Lindolfo na Lei de Segurança Nacional, já que, para ocorrer a condenação

182
Colendo Superior Tribunal Militar, Procurador Militar: João Alfredo Silva. 31 de março de 1977. In: Ministério
Público Federal/BNM 082 3-4/Ação Penal 40/72. Disponível em: http://bnmdigital.mpf.mp.br/pt-br/. Acesso em:
7 ago. 2020. fls. 252-253
210

de morte por fuzilamento, era necessário que não houvesse qualquer dúvida quanto à atuação
subversiva do réu. A Procuradoria, por sua vez, alegou que não encontrara subsídios suficientes
nos autos que sustentassem a condenação na Lei de Segurança Nacional. Em 5 de abril de 1978,
Lindolfo foi absolvido pelo Supremo Tribunal Militar, tendo sua inocência provada:

Assim, ACORDAM, os Ministros do Superior Tribunal Militar, por maioria dos


votos, manter, por seus jurídicos e sólidos fundamentos, a sentença de primeiro grau
que absolveu FRANCISCO LINDOLFO CORDEIRO E JOAQUIM MENDES
FERNANDES, por quem o MP pediu absolvição nas alegações finais e nas razões do
seu apelo, em virtude de não encontrar nos autos ao Procurador- Geral da Justiça
Militar, para apreciação da atuação do representante do MPM na 1° instância e adotar
as providências que julgar cabíveis.183

Portanto, a batalha judicial travada por Lindolfo Cordeiro para provar a sua
inocência perante a Justiça Militar alongou-se por praticamente seis anos, durante os quais ele
permaneceu respondendo à Justiça Militar. O seu envolvimento nos conflitos de terra trouxe
implicações para ele e os demais acusados de subversão, tais como Vicente Pompeu e Joaquim
Mendes Fernandes. Assim, foi desencadeado um processo de perseguição política aos
envolvidos em conflitos de terra, tidos como mentores intelectuais da luta de classes no campo.
Para tanto, mobilizavam-se tanto os aparelhos de vigilância do Estado Autoritário quanto os
mecanismos judiciais.
O enquadramento de Lindolfo na Lei de Segurança Nacional com a penalização
máxima demostra que, mesmo quando o Estado autoritário cedia nas pautas reivindicatórias
dos camponeses, caso da desapropriação da Fazenda Japuara, isto não significava que os
envolvidos nos conflitos de terra estivessem a salvo de sofrerem posteriormente sanções
punitivas por suas atuações e por suas conquistas. Assim, é importante considerar que tanto os
camponeses envolvidos no conflito de Japuara quanto os seus mediadores sofreram sanções por
cobrarem por seus direitos e pela conquista da desapropriação da fazenda.

183
Superior Tribunal Militar. Apelação nº 41.662. 5 de abril de 1978. In: Ministério Público Federal/BNM 082 3-
4/Ação Penal 40/72. Disponível em: http://bnmdigital.mpf.mp.br/pt-br/. Acesso em: 7 ago. 2020. fls.309.
211

5 CONCLUSÃO

Sobre os desdobramentos do conflito de Japuara, salienta-se que os camponeses


diretamente implicados no conflito permaneceram respondendo judicialmente pelas mortes dos
confrontos e, somente, foram inocentados pelo Tribunal Popular do Júri de Canindé, em 16 de
maio de 1984.
Durante esse período, os camponeses envolvidos diretamente no conflito
encontraram dificuldades para se tornarem titulares das parcelas de Japuara por estarem
respondendo processos criminais na Comarca de Canindé. O fato dos camponeses estarem
implicados no conflito, para o INCRA (CE), fora entendido que os mesmos não possuíam bons
antecedentes criminais para se tornaram titulares definitivos das parcelas de terras
desapropriadas:
Atendendo à Cl nº 166/02, de 14.07.82, dessa Chefia, informamos a V. Sa. que, os 7
ocupantes de parcelas no Projeto Japuara - Canindé, ainda não titulados, prende-se ao
fato dos mesmos responderem processo criminal na Comarca de Canindé - Ce. Nessas
condições, permanece o impedimento legal quanto ao ato de titulação dos
indiciados.184

A Procuradora Autárquica, Maria Iracema Pedrosa, havia sido consultada a respeito


da titulação dos camponeses e concluiu que estava havendo por parte do INCRA (CE) um pré-
julgamento dos agricultores:
Da parte do INCRA, está havendo pre-julgamento.
Ao que parece, o art. 25 do Estatuto da Terra, ao estabelecer bons antecedentes ou
reabilitação, quis referir-se a quem não tiver sido condenado em processo penal, ou
sendo, tenha sido reabilitado, na forma do art. 119 do Código Penal, combinado com
os artigos 743 a 760 do Código de Processo Penal.
Ora se os réus não foram julgados ainda, como podem ser tratados como se
condenados fossem?
Sendo assim, somos favoráveis a titulação dos sete parceleiros da Fazenda Japuara.185

No seu entendimento, o fato dos camponeses estarem respondendo processo


criminal não constituía empecilho para que os mesmos se tornassem titulares das parcelas de
terra, pois os mesmos não foram condenados por crimes e estavam sendo tomadas providências
para a extinção da punibilidade dos agricultores. Apesar da desapropriação ter ocorrido com
uma certa celeridade, o mesmo não ocorreu com relação ao julgamento dos agricultores na
Comarca de Canindé e com o processo de titulação pelo INCRA (CE).

184
Comunicado Interno/ CR (02) 128/82. 13 de julho de 1982. In: Divisão técnica CR (02) Titulação de ocupantes
de parcelas da Fazenda Japuara Canindé – CE. Envolvidos diretamente em processo criminal, p. 3. Sob guarda do
INCRA (CE).
185
CR(O2) nº 225/ 82/ CI. Andamento do processo crime movido pela justiça pública contra FRANCISCO
NOGUEIRA BARROS E OUTROS. 20 de set. de 1982. In: Op., Cit., p.5. Sob guarda do INCRA (CE).
212

Os agricultores de Japuara somente tornaram-se titulares das parcelas depois que


foram inocentados pelo Tribunal Popular do Júri de Canindé. Receberam as setes parcelas
restantes das 51 totalizadas da desapropriação da fazenda. Os lotes entregues a esses
agricultores variaram entre 37 a 42 ha. Finalmente, depois de uma longa batalha judicial, os
agricultores tiveram os seus direitos reconhecidos.
Com relação a Francisco Lindolfo Cordeiro, em 1978, como fora visto, ele foi
definitivamente inocentado pela Justiça Militar, entretanto, não tardou para que ceifassem a sua
vida. Em 13 de novembro de 1978, o advogado foi morto:
Foi assassinado por um pistoleiro, com um tiro na nuca, na porta de sua residência, na
cidade de Tianguá, Ceará, em 1978, dois meses após o veredicto do Supremo Tribunal
Militar que o absolvia das acusações de subversão e incitamento de trabalhadores
rurais contra proprietários de terras (ALBUQUERQUE, 2016 p.14).

Não existe consenso sobre a motivação do assassinato de Lindolfo, pois alguns


atribuem uma conotação político - partidária e outros que o seu assassinato possuiria relação
com os conflitos de terra em que ele se envolveu como bem pontua Albuquerque:
Além de ser um grande articulador político da oposição, ele estaria envolvido em
questões agrárias naquela região. Por isso, houve quem acreditasse ter sido um crime
encomendado por latifundiários. O assassinato ocorreu meses depois de Lindolfo
Cordeiro ter sido absolvido pelo Supremo Tribunal Militar de crime contra a
Segurança Nacional (ALBUQUERQUE, 2016, p. 120).

Assim, não se sabe ao certo se o mandante do seu assassinato foi algum político de
Tianguá, cidade em que residia Lindolfo, ou se foi algum proprietário incomodado com a sua
atuação enquanto advogado.
Pela morte de Nonato de Paz (Nonato 21), ninguém respondeu criminalmente
(BARREIRA, 1992, p.49). Em 2008, a família do camponês recebeu indenização em
decorrência do seu assassinato que contou com participação de um agente público do Estado
durante o conflito em Japuara. O camponês teve o seu caso reconhecido e sua família foi
indenizada pela Lei dos Desaparecidos Políticos186 considerado, portanto, uma vítima da
ditadura-civil militar.
César Campos não foi de forma alguma implicado judicialmente pelas mortes dos
confrontos, mesmo tendo orquestrado todo o cenário de violência em Japuara. Escondendo-se
atrás dos trabalhadores da obra de emergência contra a seca e, posteriormente, atuando em

186
A apuração dos crimes de violação de direitos humanos, cometidos durante a ditadura, iniciou na década de 90
com a aprovação da Lei nº 9.140 de 04 de dezembro de 1995, que ficou conhecida como a Lei dos Desaparecidos
Políticos, que reconheceu 136 casos de opositores mortos em decorrência do regime militar e com participação do
Estado. Consultar: AMORIM, Gilney. (Coord.) Camponeses mortos e desaparecidos: excluídos da justiça de
transição. Brasília: Secretária de Direitos Humanos da Presidência da República, 2013. p. 12-15.
213

conluio com a polícia local e culpando o Sindicato Rural de Canindé e a Fetraece pelos
confrontos, safou-se de ser responsabilizado criminalmente.
Assim, apesar de os moradores terem conquistado a desapropriação de Japuara, o
conflito teve implicações significativas na vida dos principais envolvidos, principalmente, dos
camponeses e do advogado que atuou na defesa destes. Neste sentido, o conflito evidencia o
processo de repressão e perseguição política aos sujeitos do campo mobilizados politicamente
durante o regime autoritário, principalmente, aos que atuavam enquanto mediadores das
disputas travadas entre camponeses e proprietários de terra.
Foi perceptível o papel da imprensa na celeridade da desapropriação de Japuara. O
Estado foi conclamado pela sociedade para se posicionar em torno da questão agrária, das
relações trabalhistas no campo e como a nova legislação agrária estava tensionando as relações
entre camponeses e proprietários de terra.
Conflitos camponeses foram deflagrados durante o período autoritário e
representaram importantes conquistas para o movimento sindical do Ceará com a conquista da
primeira desapropriação do Estado em decorrência de tensão social. Contudo, tais
reivindicações trouxeram ônus aos sujeitos que permaneceram mobilizados politicamente
cobrando os direitos dos campesinos.
Dito isto, o propósito dessa dissertação foi discutir o conflito da Fazenda Japuara,
delineando as disputas travadas em torno da posse e propriedade da terra, o processo de
organização dos camponeses e como estes fizeram uso dos aparatos legais, em especial do
Estatuto da Terra na reivindicação do que eles passam a conceber como seus direitos.
214

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