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CENTRO DE HUMANIDADES
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL
FORTALEZA
2022
BRENDA TIMBÓ MENDES
FORTALEZA
2022
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação
Universidade Federal do Ceará
Sistema de Bibliotecas
Gerada automaticamente pelo módulo Catalog, mediante os dados fornecidos pelo(a) autor(a)
Aprovada em:24/08/2022.
BANCA EXAMINADORA
________________________________________
Prof. Dr. Samuel Carvalheira de Maupeou (Orientador)
Universidade Estadual do Ceará (UECE)
_________________________________________
Prof. Dr. Mário Martins Viana Júnior
Universidade Federal do Ceará (UFC)
_________________________________________
Prof. Dr. Pablo Francisco de Andrade Porfírio
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
AGRADECIMENTOS
Esta pesquisa tem por objetivos, analisar o conflito entre camponeses e o proprietário de terras
ocorrido na Fazenda Japuara em Canindé - CE, em 1971, perscrutando o seu percurso de
disputas, os desdobramentos para os sujeitos diretamente implicados, e discutir o tratamento
aplicado pelo Estado às disputas no campo em um contexto autoritário. Para isto, faremos uso,
principalmente, de fontes oficiais e hemerográficas, privilegiando a análise do acervo Memórias
Reveladas do Arquivo Nacional e do Arquivo Público do Ceará – APEC, que contém uma série
de documentos do Departamento de Ordem Política Social – DOPS, do Serviço Estadual de
Informação – SEI e da Polícia Militar. O conflito da Fazenda Japuara resultou na primeira
desapropriação de terras do Ceará em decorrência de tensão social, isso durante a ditadura civil-
militar. Em um contexto de perseguição aos Sindicatos Rurais e prisão das principais lideranças
camponesas do Estado, Japuara marca a retomada dessa mobilização camponesa, com a vitória
dos trabalhadores rurais na luta pela terra, mesmo em um cenário de repressão. Todavia, mesmo
o Estado reconhecendo o direito à terra dos camponeses de Japuara, não demorou para ser
instaurado um inquérito para apurar atividades subversivas no meio rural, que indiciou
importantes lideranças sindicais camponesas e mediadores dos conflitos de terra. Deste modo,
posterior aos confrontos, um processo de repressão intensa incidirá, aos camponeses e
mediadores do conflito. Esses foram acusados como responsáveis pela “agitação no meio rural”
e por realizarem uma “orientação equivocada” dos direitos dos camponeses, dentre eles,
encontra-se Lindolfo Cordeiro, mediador do conflito de Japuara, e que utilizou, principalmente,
o Estatuto da Terra na defesa dos camponeses.
1 INTRODUÇÃO ................................................................................................. 09
2 JAPUARA: MOBILIZAÇÃO CAMPONESA NA LUTA POR
DIREITOS.......................................................................................................... 27
2.1 A chegada do novo proprietário ...................................................................... 27
2.2 A propriedade em litígio .................................................................................. 52
2.3 A organização dos moradores e o processo de sindicalização rural........... 77
3 NARRATIVAS DE UM CONFLITO DE TERRA: MEMÓRIA E
IMPRENSA................................................................................................................. 100
3.1 A destruição da casa de morada: o estopim do conflito................................. 100
3.2 Conflito de terra em primeira página............................................................. 124
3.3 Desapropriação para pôr fim à tensão social................................................ 151
4 JAPUARA: A SUBVERSÃO NO MEIO RURAL....................................... 172
4.1 A subversão no meio rural e os inimigos interno da nação......................... 173
4.2 A Justiça Militar e a pena de morte .............................................................. 193
5 CONCLUSÃO .................................................................................................... 211
REFERÊNCIA................................................................................................... 214
9
1 INTRODUÇÃO
O conflito ocorrido na Fazenda Japuara em Canindé, em 2 de janeiro 1971, causou
repercussão na imprensa pelo número de vítimas resultante dos confrontos entre os camponeses
que residiam na propriedade, trabalhadores da obra de emergência contra a seca e a Polícia de
Canindé — quatro mortos e vários feridos. O conflito arrastava-se há anos na Justiça com várias
tentativas de despejo forçado dos moradores pelo novo proprietário de Japuara, César Campos,
e este, por sua vez, não tendo conseguido por meio judicial, resolve expulsar os camponeses
sem a mediação da Justiça. Para isso, no dia 2 de janeiro de 1971, ele contratou trabalhadores
da obra de emergência contra a seca para destelharem as casas dos moradores (BARROS, 2013,
p. 20). No primeiro confronto, morre o trabalhador da frente de emergência contratado pelo
proprietário – Joaquim Piau. No mesmo dia, o delegado do Departamento de Ordem Política e
Social – DOPS acompanhado por soldados da Polícia Militar de Canindé dirigiram-se à
propriedade a mando do proprietário, César Campos, e entraram em confronto direto com os
moradores de Japuara. Nesse segundo confronto, falece o delegado do DOPS (Cidio Martins);
o soldado de polícia (Paulo de Freitas) e o agricultor e morador de Japuara (Nonato Pais), o
último a falecer (BARROS, 2013, p. 20).1
Os dois confrontos se deram em frente à casa de uma das lideranças dos moradores,
o agricultor Francisco Nogueira Barros, mais conhecido como Pio Nogueira Barros. Além de
ser residência de Pio Nogueira, a casa também era a sede da Delegacia Sindical de Japuara, e o
1
No Ceará, treze camponeses foram assassinatos durante a Ditadura Civil Militar, crimes cometidos tanto por
agentes públicos (Polícia Civil ou Militar, ou das Forças Armadas) ou a mando de proprietários de terras. As
informações referentes aos Ceará foram retiradas do livro Retratos da repressão política no Campo-Brasil 1962-
1985 – camponeses torturados, mortos e desaparecidos, de autoria de Ana Carneiro e Marta Cioccari. O livro
relata, de forma mais aprofundada, as diversas violações aos direitos humanos sofridas pelos camponeses durante
a Ditadura Civil Militar em todos os estados brasileiros. Os textos referentes a cada estado são compostos de
entrevistas dos camponeses que sofreram algum tipo de violação de direitos humanos. Ao término de cada capítulo,
são listados os camponeses torturados, mortos ou desaparecidos. Cabe destacar, ainda, que, no município de
Canindé, três agricultores foram assassinados em três confrontos em fazendas da região durante a ditadura segundo
tal publicação. No caso, os agricultores e os locais respectivos foram Antônio Almeida da Silva, morto na Fazenda
Parafuso (1970/1971); Nonato Pais (Nonato 21), morto no conflito da Fazenda Japuara (1971), e José Amaro
Macena (José Américo), morador da Fazenda Valparaíso (1984), assassinado por um pistoleiro, a mando do
deputado e proprietário da fazenda Valparaíso, Francisco Figueiredo de Paula Pessoa. (CARNEIRO, CIOCCARI,
2011, p.123-124). Enfatiza-se que a Fazenda Valparaíso fica localizada em uma região fronteiriça entre o
munícipio de Canindé e Santa Quitéria, por isso existe certa indefinição de sua localização, contudo, devido ao
envolvimento do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Canindé e de elementos da Igreja Católica de Canindé no
conflito, este passou a ter uma vinculação mais ativa de sujeitos ligados ao município de Canindé do que de Santa
Quitéria.
10
2
No início da disputa judicial, em 1968, a Fetraece ainda não atuava como mediadora do conflito. Ela se tornará
parte atuante do conflito a partir de 1969, quando Lindolfo Cordeiro se torna advogado dos camponeses moradores.
11
mais dois meses dos confrontos, o presidente Médici assina o Decreto nº 68.414, de 23.03-71,
declarando Japuara área prioritária para fins de reforma agrária (BARREIRA, 1992, p. 56).
Atualmente, Canindé é o município do estado do Ceará, segundo informações
disponíveis no relatório produzido pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
– Incra (CE),3 com a maior quantidade de projetos de assentamentos rurais do Ceará. São 39
projetos, com uma área desapropriada em torno de 83.000 mil hectares de terra, 4 com mais de
1.6005 famílias vivendo em assentamentos rurais. A maioria dessas desapropriações ocorreram
em meados da década de 1980, intensificando-se durante a década de 1990, em um cenário
marcado pela expressiva atuação dos movimentos sociais no campo e durante a
redemocratização do país. Apesar de o conflito da Japuara ter ocorrido no início da década de
1970, cabe questionar se o seu resultado favorável aos camponeses pode ser apontado como
elemento desencadeador de uma série de conflitos entre proprietários e camponeses na cidade
de Canindé. Ou mesmo como um fator encorajador para que outros camponeses se
mobilizassem na luta pela terra. Como nos lembra James Scott, quando o discurso dos
subalternos é bem recebido na esfera pública, “a sua capacidade de mobilização como acto
simbólico é potencialmente assombrosa” (SCOTT, 2013, p. 307).
O interesse desta pesquisa surgiu a partir de uma maior aproximação do universo
camponês durante a graduação em História, com as disciplinas cursadas que tematizavam a
questão agrária no Brasil e a cultura camponesa. A inquietação em abordar os conflitos sociais
no campo e sua relação com a ditadura civil-militar está entrelaçada inicialmente com a
descoberta de um conflito camponês em Canindé (1971), na Fazenda Japuara. A leitura de um
relato escrito pelo camponês Francisco Blaudes Sousa Barros, Japuara, um relato das
entranhas do conflito (2013) intensificou esse interesse. Assim, como o contato com a obra do
sociólogo César Barreira, Trilhas e atalho do poder: conflitos sociais no Sertão, o primeiro
estudo acadêmico sobre o conflito de Japuara.
3
Relatório: “Projetos de Reforma Conforme Fases de Implementação” (Período de Criação do Projeto 01/01/1980
até 13/03/2019) Superintendência Regional do Estado do Ceará – SR (02). Ministério do Desenvolvimento Agrário
– MDA. Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra/CE). Diretoria de Obtenção de Terras e
Implantação de Projetos de Assentamento. Relatório do Sistema SIPRA. Acesso em: 13 mar. 2019. Ressalte-se
que tal relatório foi repassado por uma funcionária do Incra (CE) na referida data.
4
Canindé possui uma extensão territorial de 3.218 km².
5
De acordo com a estimativa do IBGE (2019), Canindé possui uma população total de cerca de 76.997 habitantes.
Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/ce/caninde/panorama. Acesso em: 31 jul. 2020. Segundo dados
do Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará (Ipece), o tamanho médio das famílias do Ceará é de
3,19 membros. IPECE informe / Fortaleza – Ceará: Ipece, 2019. Disponível em:
https://www.ipece.ce.gov.br/wpcontent/uploads/sites/45/2019/11/ipece_informe_162_11_nov2019.pdf. Acesso
em: 31 jul. 2020. Levando em consideração esse fato, pode-se presumir que pelo menos 6,6% da população do
munícipio de Canindé habitem em áreas de assentamento rural, isto estimando que essas 1.600 famílias possuam
em torno de 3,19 membros.
12
Diante do exposto, esta pesquisa tem por objetivo analisar o conflito entre
camponeses e o proprietário de terras, ocorrido na Fazenda Japuara em Canindé-CE (1968 –
1984), perscrutando o seu percurso de disputas e os desdobramentos para os sujeitos
diretamente implicados. Além disso, pretende-se discutir o tratamento dispensado pelo Estado
aos conflitos de terra em um contexto autoritário. Desse modo, este trabalho almeja analisar um
conflito de terra motivado, em certa medida, pelo questionamento do campesinato das relações
de trabalho e poder no campo que passam a ser reconfiguradas a partir da atuação dos Sindicatos
dos Trabalhadores Rurais, da aprovação do Estatuto do Trabalhador Rural e do Estatuto da
Terra. Mesmo em um período de forte repressão por parte do Estado, as reivindicações por
direitos movidas pelos camponeses não cessaram, inclusive, estes fariam uso de um aparato
legal aprovado durante a ditadura civil-militar (Estatuto da Terra), para questionar as relações
de trabalho e poder no campo. De acordo com Palmeira (2009), os momentos de menos
efervescência das lutas camponesas tendem a ser esquecidos. Para ele, é necessário recuperar
os momentos de desmobilização, inclusive, para compreender a possibilidade de “aparecimento
ou desaparecimento de conflitos abertos” (PALMEIRA, 2009, p.172). Portanto, cabe questionar
como foi possível a emergência de conflitos abertos como os de Japuara, mesmo em um
contexto autoritário marcado pela repressão às lideranças camponesas e perseguição às
entidades sindicais.
O recorte da pesquisa foi definido a partir do rompimento do conflito entre César
Campos e os moradores parceiros de Japuara, em 1968, e finaliza com o julgamento dos
agricultores em 1984. Para estabelecer esse recorte, elencamos alguns marcos do conflito: I) o
momento da venda da propriedade e os embates cotidianos até desembocar nos confrontos
abertos; II) os confrontos na propriedade, sua repercussão e a desapropriação; III) a instauração
de inquérito para apurar atividades de subversão no meio rural, em que Lindolfo Cordeiro
(advogado dos moradores) é indiciado por sua participação no conflito de Japuara; IV) a
titulação das terras pelo Incra – CE, haja vista que a entidade se negará a titular os camponeses
em virtude do envolvimento destes no conflito da fazenda, mesmo contrariando o que era
previsto pelo Estatuto da Terra. Na visão do órgão, a titulação de implicados em dissídios
poderia incentivar mais conflitos no campo: “Titulação de ocupantes de parcelas da Fazenda
Japuara Canindé - CE envolvidos diretamente em processo criminal, poderá incentivar conflito
no meio rural”.6; V) O julgamento dos agricultores de Japuara e o reconhecimento do direito de
6
Comunicado Interno/ CR (02) 128/82. “Titulação de ocupantes de parcelas da Fazenda Japuara Canindé – CE.
Envolvidos diretamente em processo criminal”. 13 de julho de 1982. In: Divisão técnica CR (02), p. 3. Arquivo
do Incra (CE).
13
titulação dos moradores implicados nos confrontos. Neste sentido, apesar da desapropriação ter
ocorrido com uma certa celeridade, o mesmo não pode ser dito em relação à titulação dos
camponeses e ao julgamento destes. Assim, o Estado somente reconhece em parte o direito dos
camponeses, já que o Incra se nega a proceder à titulação dos moradores de Japuara envolvidos
diretamente nos confrontos, mesmo contrariando a legislação.
Enfatiza-se que o conflito de Japuara tornou-se um marco de luta pela terra dos
camponeses do estado do Ceará. De acordo com Beserra (2017), os primeiros anos da ditadura-
civil-militar no Ceará, são marcados por perseguição aos líderes sindicalistas e fechamento de
Sindicatos Rurais dos Trabalhadores Rurais (STRs), especialmente os ligados ao Partido
Comunista Brasileiro – PCB. Tanto os STRs, quanto a Fetraece e a recém-criada Contag sofrem
intervenção do Estado de imediato após o golpe militar. Assim, se anterior a 1964, segundo
Lima, a conjuntura mostrou-se favorável à mobilização dos trabalhadores rurais,
posteriormente a esse período, a participação democrática se tornará limitada e a repressão
intensa (LIMA, 2003, p. 13). Dessa forma, em decorrência da perseguição política, a
mobilização camponesa entra em uma fase de estagnação ou declínio. Os camponeses, diante
da violência infligida com o golpe militar, tiveram que retornar “às suas conchas”,7 pelo menos
temporariamente, diante de uma conjuntura desfavorável à mobilização.
Entretanto, mesmo em um cenário de repressão, a partir do final da década de 1960,
o movimento camponês já passava por uma reestruturação em torno de uma nova mobilização
sindical. A própria Fetraece passa a ocupar um papel central como mediadora dos conflitos de
terra no Ceará, defendendo camponeses embasados naquilo que pautava o Estatuto do
Trabalhador Rural e Estatuto da Terra. Portanto, Japuara emerge de um cenário de repressão ao
campo, mas, ao mesmo tempo, surge em um contexto de reorganização da mobilização sindical
camponesa, isto é, as lutas camponesas voltam a aflorar no final da década de 1960 em torno
da cobrança por direitos assegurados por essas novas leis.
De acordo com Medeiros (2014), mesmo diante desse cenário de forte repressão de
Estado aos camponeses e apoiadores, os conflitos de terra continuam a emergir em diversos
locais do Brasil como atos de resistência aos desmandos do patronato agrícola, e não
propriamente como atos de resistência à ditadura civil-militar. Dentre os diversos conflitos entre
camponeses e proprietários, a autora destaca a luta dos camponeses de Canindé como caso
7
De acordo com Hobsbawm, mudanças favoráveis na conjuntura influenciam os camponeses por abrirem novas
possibilidades, contudo, ao menor indício de que o “poder irá reprimi-los”, estes tendem a retornar às suas conchas,
somente voltando a se mobilizar quando “aos poucos se dessem conta de que a situação estava novamente mais
aberta” (1998, 230-231).
14
Apesar de os conflitos ocorrerem de forma isolada nos anos 1970, como também
sinaliza Beserra (2017), percebemos que o trabalho do historiador, ao tentar desvelar esses
conflitos entre camponeses e proprietários, assemelha-se ao que Martins (1985) se refere como
um trabalho de reunir migalhas dispersas dos pequenos e grandes conflitos e da presença
minúscula desses sujeitos que vêm resistindo a diversas opressões.8 Desse modo, mesmo em
um período autoritário, as lutas camponesas e a mobilização sindical permanecem latentes,
apesar de terem de “atender às regras do jogo impostas” pelo período autoritário (PALMEIRA,
2009, p. 196).
É necessário compreender que, mesmo quando o Estado reconhecia o direito à terra
aos camponeses, isto não significava que posteriormente os camponeses e apoiadores da causa
não se tornassem alvos de perseguição política. Depois de desapropriada a Fazenda Japuara,
não tardará a ser instaurado pela Delegacia Regional do Ceará (DR-CE)9 um inquérito para
apurar atividades subversivas no meio rural, indiciando lideranças sindicais camponesas e
apoiadores da causa. Tidos como responsáveis pelos conflitos de terra, caso de Lindolfo
Cordeiro,10 advogado da Fetraece, o qual atuou defendendo os camponeses de Japuara e se
envolveu em diversos conflitos de terra (ALBUQUERQUE, 2016). Assim, Japuara, torna-se
um marco do retorno dessa mobilização camponesa na luta pela efetivação de direitos e, ao
8
José de Sousa Martins, na comemoração dos dez anos de fundação da Comissão Pastoral da Terra – CPT,
publicou um artigo denominado “Na revolta das formigas”, inserido em edição de um livro da própria CPT
intitulado Conquistar a terra, reconstruir a vida: CPT – dez anos de caminhada. Neste artigo, Martins afirma que
a CPT, nesses dez anos de existência, contribuiu justamente ao reunir informações sobre os conflitos dispersos e
muitas vezes isolados pela própria distância e censura do regime militar brasileiro. O livro foi publicado no
chamado período de redemocratização do Brasil (1985) e retrata as dificuldades vivenciadas pela CPT durante os
dez anos de caminhada.
9
Processo Secom nº 52.023 (1972) – “atividades subversivas no meio rural” Fundo: Divisão de segurança e
informações do Ministério da Justiça. Arquivo: Memórias Reveladas sob tutela do Arquivo Nacional.
10
Lindolfo Cordeiro foi um dos 14 advogados ligados à questão agrária, assassinado durante a Ditadura. (Relatório
da Secretária dos Direitos Humanos da Presidência da República, 2013, p. 82). Disponível em:
http://dh.sdh.gov.br/download/dmv/camponeses.pdf. Acesso em: 26 jan. 2017.
15
O que torna o “Conflito da Japuara” singular é que um grupo que procurava apenas
uma indenização, e pelos caprichos do fazendeiro entraram em contenda com a força
policial, e mais, ao fugirem do reforço da capital, deixaram seus familiares a sofrerem
as diligencias dos militares que os caçavam (GOMES, 2006, p. 12).
Neste sentido, o autor propôs tanto demonstrar que tratar o conflito de Japuara como
um movimento social é um equívoco, já que não o percebe como movimento social organizado
que buscava conseguir a reforma agrária, quanto propõe “corrigir os erros” e “preencher” as
lacunas sobre Japuara. Gomes fez bastante uso das narrativas orais em seu trabalho, mas
também de fontes hemerográficas e oficiais.
Todavia, apesar de os camponeses de Japuara não terem almejado a reforma agrária
com a sua mobilização, é necessário compreender, de acordo com Dezemone (2008), que os
sujeitos, ao efetuarem determinadas escolhas dentro de um campo vasto de possibilidades,
17
colhem frutos previstos, mas também imprevistos, de suas ações e escolhas. Para Dezemone,
isto retira o determinismo da história, torna-a mais fluida e menos estática: “A consequência
disso é romper com a ideia de um rumo pré-estabelecido, inescapável aos acontecimentos”
(DEZEMONE, 2008, p. 28). Assim, por mais que os camponeses de Japuara não tivessem
vislumbrado, em seu campo de atuação, a desapropriação da fazenda, conquistaram-na em
decorrência de determinadas escolhas efetuadas neste campo de possibilidades.11 Assim, mais
importante do que compreender se os camponeses desejavam ou não a desapropriação da
fazenda, é discutir o processo que desencadeou a conquista pela terra e como isto foi possível
em um contexto autoritário de perseguição política aos camponeses e em um cenário de
desarticulação das mobilizações no campo.
A dissertação de mestrado de Albuquerque (2016), intitulada Francisco Lindolfo
Cordeiro na luta em defesa dos trabalhadores rurais do sertão cearense (1970-1978), constitui
importante trabalho para entender a perseguição política vivenciada por Lindolfo Cordeiro
durante a ditadura. A autora ainda aborda o envolvimento de Lindolfo em uma série de conflitos
de terra, enfatizando a atuação deste como advogado da Fetraece, a perseguição política que ele
sofreu por conta do seu engajamento nos inúmeros conflitos de terra e fecha seu estudo com o
assassinato do advogado, ocorrido em 1978 e até hoje impune.
Na Geografia, temos uma maior diversidade de trabalhos, com diferentes ênfases.
Primeiro, destaca-se o estudo de Lima e Sampaio (2006), que compreendem Japuara inserida
em um contexto de distribuição desigual da terra e desigualdade social latente no município de
Canindé. Para os autores, isto exemplifica um histórico de luta e resistência camponesa no
município. Temos ainda o trabalho de Diniz (2008), Trilhando caminhos: a resistência dos
camponeses no Ceará em busca de sua libertação, tese de doutorado defendida na USP. A
autora compreende Japuara como “fruto de uma resistência camponesa dos moradores de
condição” (2008, p. 33). Diniz analisa uma série de outros conflitos de terra que envolveram
camponeses no Ceará.
O livro produzido por Alencar et al. (2013), intitulado O pulsar da vida no campo:
Fetraece 50 anos, foi relevante para entender o funcionamento dessa entidade sindical durante
o regime autoritário e também os conflitos deflagrados na área rural na década de 1970. Os
autores compreendem Japuara como um conflito resultante da cobrança por direito pelos
moradores-parceiros e ensejado pelo cumprimento do Estatuto da Terra. Por fim, temos o
estudo de Matos (2017), dissertação de mestrado intitulada: Justiça juntos: os sindicatos de
11
Cf. KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro:
Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006.
18
muito tempo, negou a presença de tais sujeitos na cena histórica brasileira (WELCH et al.,
2009), tendo em vista que os sujeitos do campo no Brasil não se adaptavam à concepção do
modelo de camponês europeu e medieval. Entretanto, isto foi sendo modificado, e os
camponeses foram emergindo na cena política brasileira, assim como foi tornando-se mais
recorrente o emprego da expressão “camponeses”.
De acordo com Martins (1983), essa expressão “camponês” passa a ser utilizada no
Brasil, principalmente, a partir da década de 1950, quando esses sujeitos emergem com mais
veemência no cenário político e esta palavra passa a ser utilizada em contraposição ao termo
latifúndio. Essas duas categorias emergem neste cenário evidenciando disputas que passam a
ser travadas na esfera política. Antes desse momento, os camponeses tinham outras
denominações tais como caipira, caiçara, tabaréu e caboclo. Segundo Palmeira (1985), a
mobilização política tira os camponeses do anonimato e, em certa medida, seria responsável
por criá-los como classe política. O autor leva em consideração o pressuposto do termo
camponês como parte de um vocabulário político novo e definidor de uma classe. Assim, essa
categorização passa a ser utilizada com o intuito de inserir uma nova identidade política às
denominações convencionais já empregadas, mas que possuíam uma identidade mais restrita.
De acordo com Palmeira (1985), o termo camponês, como definidor do campesinato, foi
(re)apropriado para definir os trabalhadores do campo que possuíam engajamento político.
Segundo Andrade (1989), o termo camponês passa a ser vastamente empregado
pelas correntes políticas de esquerda que apoiavam as mobilizações de tais sujeitos do campo,
inclusive, o emprego da expressão passa ser objeto de disputa entre segmentos de esquerda e
de direita, já que, segundo o autor, a direita defendia a utilização da categoria rurícola, a qual,
entretanto, não obteve muita aceitação, diferente do termo camponês, que ganha popularidade
com o surgimento das ligas camponesas em Pernambuco.
Segundo Francisco Julião (1962), ao proferir um discurso na Assembleia
Legislativa de Pernambuco, uma deputada propôs que ele substituísse o termo camponês pela
expressão rurícola por considerá-la menos ofensiva à classe proprietária e por ter uma
conotação menos “radical”. Entretanto, se o emprego do termo camponês, em princípio, trazia
consigo certo desconforto, principalmente, às classes proprietárias, posteriormente, de acordo
com Julião, a palavra foi-se naturalizando:
Tanto Martins (1983), quanto Palmeira (1985), Andrade (1989) e Julião (1962)
atribuem à expressão camponês uma identidade política nova que passa a ser conferida aos
sujeitos do campo mobilizados politicamente. As expressões camponês, latifúndio e rurícola
sinalizam um processo de disputa em curso antes do golpe militar de 64 e demonstra o quanto
este era um momento de forte ebulição política na qual os sujeitos passam a se valer do uso de
novas expressões ou, melhor, atribuir sentidos políticos novos às palavras para dar conta de
expressar esse cenário em transformação.12 De acordo com Palmeira, após 1964, a ditadura
passa a censurar a utilização do termo “camponês”, como uma tentativa de “esvaziar política e
ideologicamente o prosseguimento das lutas camponesas” (1985, p. 50).
O historiador Clifford Welch, em uma coletânea de estudos denominada História
Social do Campesinato no Brasil (2009), enfatiza que existem diversas possibilidades de
conceituar o campesinato, entretanto, o autor define seus integrantes como sujeitos
poliprodutores que guardam especificidades das demais categorias de trabalhadores urbanos ou
rurais, por estarem assentados no modo de produção familiar, o que os distingue dos demais
trabalhadores que “não operam produtivamente sob tais princípios” (2009, p. 10). Shanin
(2005) também compreende a família campesina como unidade básica de produção e, também,
como uma característica mais específica e singular do campesinato diversa dos demais
trabalhadores, além de constituir um meio de vida social. Para o autor: “Ao mesmo tempo, o
cerne de suas características determinantes parece repousar na dinâmica e no estabelecimento
rural familiar, enquanto unidade básica de produção e meio de vida social” (SHANIN, 2005, p.
5). Shanin apresenta o modo de vida camponês como um modelo de vida que tem muito a
ensinar a quem não é camponês: quer pela sua flexibilidade frente aos desafios, quer pela sua
capacidade de utilizar a família como principal instrumento de defesa:
Os camponeses podem nos ensinar uma variedade de coisas que nós não sabemos. A
questão da flexibilidade de respostas em fase dos desafios e crises econômicas é algo
que o camponês pode ensinar àquele que não é camponês, muito mais que o contrário,
como se pode observar em inúmeras situações. [...]. Não temos que ensinar aos
camponeses como viver, nós é que temos que aprender com eles como viver e com
resolver problemas nos quais parte da população está envolvida. Especialmente
aprender a partir da criatividade e multiplicidade de respostas dos camponeses
em situação de crise e de sua capacidade para usar a família como instrumento
para se defender das calamidades (SHANIN, 2008, p. 28. Grifo nosso).
12
Cf. KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro:
Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006.
21
No caso dos camponeses de Japuara, é possível fazer tal aproximação com a luta
dos posseiros de Santa Terezinha, tendo em vista que a mobilização dos camponeses de Japuara
também foi marcada por um caráter defensivo: uma luta para que não fossem despejados da
terra pelo novo proprietário sem o ressarcimento das devidas indenizações asseguradas pelo
Estatuto da Terra. Ao mesmo tempo, foi uma luta também pela defesa dos direitos que os
campesinos julgavam ter sobre a terra: acesso à agua do açude que existia na propriedade, aos
peixes, à criação de animais na propriedade e ao pagamento de uma renda justa. A mobilização
campesina de Japuara é um processo de resistência: tratava-se de assegurar o acesso aos
recursos da terra e da floresta (WELCH et.al., 2009), em um processo pautado em torno do
cumprimento da legislação agrária, isto é, pelo asseguramento dos direitos.
Com relação às fontes utilizadas para a construção desta pesquisa, faremos uso,
principalmente, de fontes oficiais e hemerográficas. Todavia, isto não significa dar vazão a uma
concepção de História de Estado/Oficial ou dos vencedores. Benjamin (1987), em uma
observação pertinente, permite-nos refletir sobre o historiador e as suas fontes, lembra-nos da
22
Ora, os que num momento dado dominam são os herdeiros de todos os que venceram
antes. A empatia com o vencedor, beneficia sempre, portanto, os dominadores. Isso
diz tudo para o materialismo histórico. Todos os que até hoje venceram participam do
cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão
prostrados no chão. Os despojos são carregados no cortejo, como de praxe. Esses
despojos são o que chamamos bens culturais. O materialista histórico os contempla
com distanciamento. Pois todos os bens culturais que ele vê têm uma origem sobre a
qual ele não pode refletir sem horror. Devem sua existência não somente ao esforço
dos grandes gênios que os criaram, como à corveia anônima dos seus contemporâneos.
Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da
barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o
processo de transmissão da cultura. Por isso, na medida do possível, o materialista
histórico se desvia dela. Considera sua tarefa escovar a história a contrapelo
(BENJAMIN, 1987, p. 225).
para compreender a perseguição política aos envolvidos nos conflitos de terra. No que se refere
à tipologia dos documentos que normalmente fazem parte do acervo do DOPS, os autores
Braggio e Fiuza (2013) consideram que eles podem ser caracterizados de acordo com três
grupos: documentos produzidos pelos agentes a serviço do Estado, como relatórios, informes,
entre outros; documentos produzidos por sujeitos instituições/grupos/entidades que estivessem
sob vigilância, tais como panfletos, fotografias, manifestos impressos pelos movimentos etc.;
e, por fim, documentos produzidos pela própria imprensa, em que comumente jornais aparecem
recortados com as partes que os agentes julgavam mais relevantes. No acervo Memórias
Reveladas, tanto do Arquivo Nacional, em sua plataforma virtual, quanto do acervo físico do
APEC/Ceará, observa-se estrutura idêntica à descrita acima. O acervo assim revela-se vasto e
não constituído apenas por documentos produzidos pelos agentes de vigilância do Estado.
É fundamental, portanto, destacar que a disponibilização e as possibilidades de acesso
dos pesquisadores aos documentos produzidos pelos órgãos repressivos do Estado, durante o
regime autoritário, segundo Joffyly (2013), fomentaram a crença de que essa simples
disponibilidade garantiria o acesso a uma espécie de “verdade intrínseca/imanente” carregada por
esses documentos sobre as ações praticadas pelo Estado, indivíduos ou grupos sob vigilância
durante a ditadura. Dispor assim desses documentos (tratados/denominados por pesquisadores ou
não, a partir de então, como “arquivos sensíveis” ou também “arquivos repressivos”, termos
vastamente utilizados para referi-los como fontes para a história) fomentou a ideia equivocada de
que possibilitariam um acesso aos acontecimentos históricos durante o regime autoritário de
modo idêntico “ao que de fato aconteceu”. Isto não corresponde à realidade pela impossibilidade
inerente ao próprio fazer historiográfico. Como nos lembra Benjamin, o conhecimento sobre o
passado ocorre por meio de reminiscência: “Articular historicamente o passado, não significa
conhecê-lo ‘como ele de fato foi’. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal qual como ela
relampeja no momento de perigo” (1987, p. 224).
A historiadora Camargo (2009) enfatiza que, se o pesquisador tem interesse de
investigar a atuação dos indivíduos que eram alvos de vigilância desses órgãos de repressão, as
informações contidas nessa documentação devem ser interpretadas pelo pesquisador,
considerando-se que tais documentos, por si sós, não podem ser utilizados como prova da ação
de indivíduos ou mesmo de grupos vigiados pelo Estado. O espectro da verdade não está contido
nesses documentos nem em qualquer outro utilizado que possa vir a se tornar fonte pelo
historiador, como nos alerta a pesquisadora. Portanto, não se trata de uma particularidade desses
documentos como fontes para a história, trata-se de procedimentos metodológicos a serem
observados no uso de qualquer documentação.
25
Segundo Camargo (2009), esses documentos dizem muito mais sobre as instituições
que os elaboraram do que sobre as ações dos indivíduos neles retratados. Seria um erro utilizar
tais documentos como comprobatórios da ação desses indivíduos então sob vigilância do
Estado, haja vista que, como pondera Padrós, a respeito do contexto de produção dessa
documentação, os depoimentos eram recolhidos sob forte pressão física e psicológica dos
depoentes. As informações aí contidas, segundo o autor, eram comumente distorcidas e até
mesmo forjadas/falseadas, de acordo com os interesses desses órgãos:
Finalmente, deve-se esclarecer que não se pode ter a expectativa de que esses
documentos, quando revelados, se tornam portadores de uma verdade cristalina,
trazem informações essenciais ou grandes novidades e descobertas. A própria
legitimidade das informações ali coletadas deve ser questionada com muita cautela,
pois são informações que, em muitos casos, foram arrancadas das vítimas em
situações constrangedoras, sob forte coerção ou, então, elaboradas por funcionários
estatais (policiais, militares, diplomatas, médicos, funcionários públicos, etc.) que
transmitiram a informação de acordo com seus interesses e simpatias, dos seus chefes
ou das instituições em que desempenharam funções (PADRÓS, 2009, p. 42).
Qualquer que seja o teor das informações neles contidas – exploradas de inúmeras
maneiras, com diversos propósitos e sob diferentes perspectivas teóricas pelos
pesquisadores –, o valor probatório dos documentos de arquivo continua a recair, com
exclusividade, sobre as ações de que se originaram. No referido caso das fichas
nominativas, por exemplo, seria erro grave supor que tais documentos fazem prova
do comportamento das pessoas e não da entidade encarregadas de vigiá-las
(CAMARGO, 2009, p. 435).
Por fim, cabe destacar que, com o processo de abertura política e a disponibilização
aos pesquisadores de acervos dos arquivos da ditadura civil-militar, acreditamos que outras
questões possam vir a ser suscitadas com o uso dessas fontes sobre conflitos de terra que já
foram analisados por outros pesquisadores, caso do conflito da Fazenda Japuara (1971).
Sobre a estruturação do trabalho, este encontra-se dividido em três capítulos. O
primeiro, “Japuara: mobilização camponesa na luta por terra e direitos”, almeja desvelar a
trajetória do conflito antes dos episódios de 2 de janeiro de 1971. Almeja trazer uma
racionalização ao conflito e expor como este foi ocorrendo em espaços de disputas distintos
antes de ocorrerem os confrontos (SCOTT, 2002, p. 14), tendo em vista a ocorrência de disputas
cotidianas anteriores entre o proprietário e os camponeses em torno da cobrança da renda da
terra, da criação de animais, da utilização de açude e da repartição da produção do algodão e
das culturas ligadas diretamente à subsistência dos camponeses. Assim, procurou-se apresentar
como a chegada do novo proprietário rompe com o modus vivendi dos moradores e também
26
13
Cf. BORGES, Nilson. A doutrina de segurança nacional e os governos militares. In: FERREIRA, Jorge;
DELGADO, Lucília de Almeida. O Brasil republicano – o tempo da ditadura: o regime militar e os movimentos
sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
27
14
Cordel do “Cinquentenário do Sindicato” (1968-2018). Alfredo Paz, membro do Sindicato Rural de Canindé.
20 de outubro de 2018.
15
Nos relatos dos jornais e na bibliografia sobre o conflito, sempre aparece um anexo a Japuara de nome “Mela
Pinto”, não sabemos se a “Barra da Vaca Morta” era também conhecida por esse nome ou se, na verdade, trata-se
de um outro anexo
28
vertissolos, vermelho, com a presença predominante, nos anexos, Saco dos Aragões e Barra da
Vaca Morta, do solo vermelho e argiloso, com erosão variando de ligeira a severa.16
Em Japuara, pelo menos, até a década de 1970, os moradores plantavam culturas
como feijão, milho, mandioca, arroz, entre outras. Cultivava-se o algodão arbóreo,17 plantado
sob o regime de repartição entre os moradores-parceiros e o proprietário. A este, os camponeses
entregavam parte da produção do algodão arbóreo plantado em Japuara em troca de moradia e
do direito de cultivar a terra, por isso são denominados como moradores-parceiros.
O conflito entre o proprietário e os moradores-parceiros de Japuara inicia-se no
momento em que ocorre a transmissão da terra ao novo dono, o comerciante Júlio César
Campos,18 que não é reconhecido pelos moradores-parceiros como o legítimo possuidor da
fazenda. Considera-se, portanto, que o litígio em torno da venda da propriedade foi um dos
primeiros conflitos entre os camponeses e o novo proprietário. Uma série de disputas judiciais
será travada pela propriedade e posse da terra até o desembocar de confrontos abertos e diretos,
em 2 de janeiro de 1971.
O litígio em torno da transmissão da propriedade suscita a questão: como o
desrespeito de acordos prévios de transmissão da propriedade desencadeia conflitos entre
camponeses e proprietários? Igualmente relevante é discutir as mudanças implicadas nas
relações de trabalho dos moradores-parceiros com a transmissão da propriedade de Japuara ao
novo dono.
Como nos lembram Motta e Secreto (2011), é necessário desnaturalizar a ideia da
propriedade da terra como um bem absoluto. A propriedade, assim como qualquer outra coisa,
lembram-nos as pesquisadoras, é uma construção histórica perpassada por “percepções e
distintas análises” e, claro, concepções diferentes acerca do direito à terra por proprietários e
camponeses (2011, p. 14-15).
Em 1968, um rico comerciante influente de Canindé, Júlio César Campos, comprou
a Fazenda Japuara e região do entorno, a Fazenda “Serrinha dos Aragões” ou “Saco dos
Aragões”, de Hebe Braga Barroso, filha de Anastácio Barroso e Edite da Costa Braga
16
Informações disponíveis no Memorial e Laudo Descritivo da Fazenda Japuara, inserido no processo de titulação
do parceleiro Francisco Teixeira Brito. Incra (CE), 1974, p. 16-17.
17
Para Silva (1995, p. 86), o cultivo do algodão arbóreo se deu principalmente no centro-sul do estado do Ceará
nos sertões de Senador Pompeu, Cariri e Salgado e também no centro-norte do estado, destacando-se os sertões de
Canindé, as serras de Uruburetama e também Baturité, diferentemente do algodão herbáceo, que o autor destaca
ser mais dependente de umidade e melhor adaptado à região do Jaguaribe. A decadência do cultivo de algodão no
Ceará ocorre, principalmente, a partir da década de 1980, com a praga do bicudo que devastou os algodoeiros e a
própria expansão do cultivo para outras regiões do Brasil
18
Na cidade, até hoje existe o estabelecimento comercial bastante tradicional “Casa Campos”, fundado pelo pai
de Júlio César Campos, em 1896.
29
(proprietários de Japuara). Anastácio Braga Barroso, proprietário de Japuara, tinha como sócio
Firmino Amorim da Silva, administrador da propriedade. 19 Este residia em Japuara, onde
cultivava e era responsável por arrecadar a renda dos moradores da fazenda,20 alegando
preferência da oferta da terra, Firmino irá contestar judicialmente a venda da propriedade ao
comerciante Júlio César Campos.
Braga Barroso e Firmino Amorim eram sócios desde 1943, possuíam em regime de
sociedade uma empresa agropecuária. Braga Barroso, por volta do início da década de 1960,
faliu, e Firmino Amorim permaneceu administrando Japuara, com a permissão do síndico de
falência. Após se recuperar da falência, os bens retornaram a Braga Barroso. Então, o
comerciante Júlio César Campos, interessado na propriedade, apresentou uma proposta de
quatro milhões de cruzeiros para comprar Japuara e a região do entorno pertencente a Braga
Barroso e Edite Braga. Todavia, existia um acordo prévio entre Braga Barroso, proprietário de
Japuara e o administrador Firmino Amorim, na preferência da compra da terra. Assim, Firmino
Amorim compromete-se a cobrir a oferta de César Campos. Contudo, com o falecimento da
esposa de Anastácio Braga, os bens desta, incluindo a fazenda Japuara, ficaram a cargo da sua
filha, Hebe Braga, que também entra em um acordo com Firmino Amorim na preferência da
oferta da terra:
Todavia, mesmo quitada uma primeira parcela das compras da terra com Hebe
Braga, esta consegue obter um alvará para vender Japuara e região do entorno ao comerciante
Júlio César Campos. Portanto, mesmo existindo um acordo prévio entre Anastácio Braga e
Hebe Braga com o administrador e arrendatário de Japuara, Firmino Amorim, na prioridade da
oferta da terra, Japuara foi vendida ao comerciante Júlio César Campos. Assim, instala-se um
19
Correio do Ceará (CE) 06/01/1971. – “As origens da fazenda Japuara”. Matéria produzida por Elysio Serra.
20
BARROS, Francisco Blaudes de Sousa. Japuara: um relato das entranhas do conflito. Brasília: Ministério do
Desenvolvimento Agrário, 2013 (Coleção Camponeses e o regime militar, v. 2, p.54).
21
Xerocópia da ação de contestação de imissão de posse. Autor: Firmino Amorim da Silva. Réu: César Campos.
14 de março de 1968. A ação de contestação de imissão de posse ocorreu depois que César Campos tenta expulsar
Firmino Amorim e sua mulher de Japuara. Os processos judiciais de disputas por Japuara encontram-se disponível
em formato digital: Ministério Público Federal/BNM 082/Ação Penal 40/72. Consultar o site:
http://bnmdigital.mpf.mp.br/pt-br/. Acesso em: 7 ago. 2020.
30
processo de disputa judicial pela posse da terra entre dois interessados na compra da
propriedade: Firmino Amorim (administrador de Japuara) e Júlio César Campos.
A herdeira da fazenda, Hebe Braga, não se preocupou em respeitar o acordo firmado
por seu pai e por ela quanto à prioridade da venda da propriedade a Firmino Amorim. Dessa
maneira, o processo de transmissão da herança foi um elemento desencadeador de conflito de
terras. De acordo com Motta, é preciso considerar, na análise dos conflitos, o que se configura
como justo, legal e legítimo, levando-se em consideração o percurso, as disputas e o que os
envolvidos passam a entender como conflito (2001, p. 86-87). No caso de Japuara, a
transmissão da terra foi um processo que os moradores consideram ilegítimo e que alimentou o
sentimento de injustiça, provocando situações que, aos poucos, acumulam-se para
desembocarem em confrontos diretos entre os moradores e o novo proprietário César Campos.
É de se notar que Firmino Amorim, o administrador da fazenda, não dispunha de
recursos financeiros para adquiri-la quando surge a proposta de venda de Japuara. Ele então
convida um fazendeiro da região, José Fenelon, para uma compra conjunta (BARREIRA, 1992,
p. 49) À época, Fenelon possuía terras limítrofes com a Barra da Vaca Morta ou também
conhecida como Barra do Bento e dispõe-se a adquirir a propriedade com Firmino Amorim,
mas, nesse ínterim, Japuara fora vendida.
Segundo o depoimento do morador de Japuara, o sr. Jacó Ramos Fernandes, um
senhor com mais de oitenta anos de idade nascido em Japuara, existiu, em princípio, um acordo
entre César Campos, Firmino Amorim e José Fenelon para comprarem a propriedade
conjuntamente. De acordo com o seu relato, metade da terra fora comprada por Firmino
Amorim, sendo paga por José Fenelon, e a outra metade, por César Campos. Entretanto, o
acordo entre os compradores foi desfeito, pois o comerciante não ficou contente com a divisão
da propriedade, porque a parte da propriedade que possuía uma “lagoa”, isto é, abastecida com
água, ficou para Firmino Amorim. César Campos, então, articula-se com o seu advogado e
compra a propriedade sem a participação de Firmino Amorim, conforme atesta o depoimento
do sr. Jacó:
O César Campos comprou aqui a metade da Japuara e o Seu Amorim, meu patrão, a
metade, 800 hectares, o Amorim. Quem pagou foi o Zequinha Fenelon, pagou e
recebeu em gado do Amorim. O Zequinha Fenelon, pode anotar isso aí no papel. O
Zequinha Fenelon. Agora o Zequinha quando pagou, pagou a terra do Amorim que
era 800 hectares na época, botou o gado pra lá. Agora, acontece que o César Campos
comprou a metade, tirou um piquete. A senhora não sabe o que é um piquete não. É
assim: um caminho, uma linha. Mas não pegou a lagoa pro seu César, pegou pro
Amorim. A Japuara era quatro conto, o Amorim já tendo pago dois e dois era do César.
Bom pra acabar a história, digo assim de novo! César Campos mergulhou por baixo e
31
comprou sozinho a terra. Amorim tendo pago, tendo pago pelo Zequinha Fenelon,
oitocentos hectares do Amorim, nosso patrão.22
22
FERNANDES, Jacó Ramos. Entrevista, 7 de janeiro de 2021. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda Mendes.
Acervo pessoal.
23
Correio do Ceará (CE). 06/01/1971. “As origens da fazenda Japuara”. Matéria produzida por Elysio Serra.
32
propriedade com o açude. As terras Saco dos Aragões ou Serrinha dos Aragões confrontavam com
outra propriedade de César Campos, ou seja, o proprietário almejava estender as suas posses para
além dos limites impostos, caso de Serrinha dos Aragões e da própria Japuara. O comerciante já era
dono de duas outras propriedades nessa região (BARREIRA, 1992). Como podemos observar, no
sentido norte das terras Aragões, localizava-se outra propriedade de César Campos:
Figura 1 – Mapa inserido no processo de titulação do parceleiro Jorge Ferreira de Araújo. O lote 09, nas terras
Sacos dos Aragões ao centro, seria destinado ao lavrador.
A fazenda Japuara em Canindé foi adquirida pelo sr. Júlio César Campos, de dona Hebe
Barroso Frota, filha do seu antigo proprietário Antônio Braga Barroso, também dono das
propriedades Mela Pinto e Saco dos Aragões, nas mesmas confluências. O antigo
proprietário ainda em vida, teve sua situação financeira arruinada e entregou a faixa de
terra a seu parente, Firmino Amorim da Silva, que conseguiu com muito trabalho levantar
da falência. O velho proprietário morre, em seguida e ficam os herdeiros Dona Hebe
33
Portanto, Hebe Braga desrespeita o acordo outrora firmado com Firmino Amorim
e, por extensão, com José Fenelon, que compraria a propriedade conjuntamente com o
administrador de Japuara. César Campos, ao comprar a propriedade sozinho, invalidava perante
camponeses o meio de aquisição de Japuara, inclusive, na visão dos moradores o processo de
compra e negociação foi feito sem o conhecimento dos mesmos, inclusive, sem o conhecimento
de Firmino Amorim e José Fenelon. Um “negócio feito por trás”, como atesta o depoimento do
sr. Alfredo Ramos Fernandes, que também nasceu em Japuara e é irmão do seu Jacó Ramos
Fernandes, ambos diretamente envolvidos no conflito. De acordo o sr. Alfredo Fernandes, o
princípio do conflito de Japuara associa-se ao endividamento dos antigos proprietários que os
leva a hipotecarem Japuara. No seu relato, ele também enfatiza que Fenelon já tinha pago uma
parte em dinheiro à herdeira de Japuara, Hebe Braga, contudo o negócio foi desfeito pelo
advogado e a fazenda vendida para o César Campos:
24
Destaque-se que Firmino Amorim não era parente de Anastácio Braga, como afirma matéria do jornal O Povo
(CE) de 4 de fevereiro de 1971, em que possivelmente ocorreu uma troca em relação ao parentesco. Firmino
Amorim e Pio Nogueira é que possuíam parentesco. As autoras Marta Cioccari e Djane Torre, que escreveram a
introdução do livro de Blaudes Barros, enfatizam que Firmino Amorim já havia pago à herdeira Hebe Braga uma
primeira parcela da aquisição de Japuara. BARROS, F. B. de S. Op. cit., p. 20-21.
25
FERNANDES, Alfredo Ramos. Entrevista, 23 de setembro de 2020. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda
Mendes. Acervo pessoal.
34
Observa-se que o fato de a preferência da oferta de Japuara não ter sido respeitada
trouxe implicações para a ocorrência de desentendimentos entre o novo proprietário e os
moradores-parceiros. Era esperado que a preferência da compra fosse para aquele que era o
administrador da fazenda há anos e que, inclusive, tinha atendido aos apelos de ajuda do antigo
proprietário quando este passava por dificuldades financeiras. Além de que Firmino Amorim
possuía relação de parentesco com diversos moradores de Japuara (GOMES, 2013, p. 3).
Portanto, existia uma expectativa de que as relações que ali se desenvolviam seriam continuadas
e os moradores teriam garantido o direito de permanecer na terra: “A venda feita por D. Hebe
Braga Barroso ao sr. Júlio César Campos sempre aparece como o início dos descontentamentos
dos agricultores que pelo passar dos tempos já reconheciam o sr. Firmino Amorim como
legítimo dono, tanto por seus serviços como bom capataz [...]” (GOMES, 2006, p. 52).
De acordo com o sr. Jacó Ramos Fernandes, o tempo em que Firmino Amorim
administrava Japuara foi uma época marcada por bonança para os moradores, ninguém passava
fome. Até hoje o sr. Jacó chama Firmino Amorim como “o nosso patrão” e guarda, entre os
seus objetos pessoais, uma fotografia da família de Firmino Amorim denominada por ele como
uma família grande e educada. É importante considerar que os camponeses que viviam nas
terras de outrem costumavam se identificar pela relação de morada que mantinham com tais
proprietários, tanto que o sr. Jacó ainda se identifica como um morador da família Amorim. Ao
ser questionado do porquê de ele considerar o antigo administrador de Japuara um bom patrão,
ele forneceu a seguinte resposta:
Entrevistadora: Seu Jacó, quer dizer que o Firmino Amorim que morava aqui, ele era
um bom patrão. Ele era bom para os moradores na época, era?
Jacó: Quando eu morava aqui na Japuara mais o Amorim, uma época dessa, não tinha
fome pra morador. Era o melhor patrão, vou contar a história à senhora. A redor de
todos, os fazendeiros era quinze conto e o Amorim era quarenta e o almoço e a
merenda e os outros era quinze. Foi quem puxou a família de Mariano pra cá, foi o
Amorim. Por causa do preço e não cobrava renda de algodão nem nada, do mocó, só
do herbáceo que é desse capucho que tem aqui. Acho que é o herbáceo aqui (Seu Jacó
me mostra um novelo de algodão que ele tinha no bolso). O herbáceo é esse aqui. Esse
aqui é do herbáceo, que ele plantava. Do mocó ele não queria saber de nada, os
algodão mocó que tinha aqui, tanto fazia Pio, como Joaquim Abreu, Zé Sutero,
Antônio Franco.26
26
FERNANDES, Jacó Ramos. Entrevista, 7 de janeiro de 2021. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda Mendes.
Acervo pessoal.
35
Como foi visto, segundo o sr. Jacó, todos os fazendeiros próximos de Japuara
pagavam um preço inferior pela diária de trabalho dos camponeses.27 O sr. Jacó também destaca
que, na época em que Firmino Amorim administrava a fazenda, os moradores entregavam
repartição somente do algodão herbáceo. Do algodão mocó, também plantado pelos moradores
de Japuara, assim como os demais cultivos dedicados ao abastecimento das famílias, não se
pagava renda.
Devido às boas condições de trabalho em Japuara, algumas famílias camponesas da
região foram atraídas para a propriedade, como a família Mariano, cujos membros eram
conhecidos pelo apelido de “Mundocas”. Os Mariano eram uma das famílias moradoras de
Japuara envolvidas de forma mais direta no conflito. O sr. Jacó, em seu depoimento, chegou a
cogitar que, se um dia a família Amorim fossem reconhecidos pelo Incra como sendo
proprietários de Japuara, nenhum dos moradores seriam expulsos, pois, segundo ele, era uma
família educada e não colocava morador para fora da terra:
Bom, o Amorim tem direito aqui a oitocentos hectares pago pelo Zeca Fenelon, eu
sou morador do Amorim, Zé Batista, Expedito Arruda. Quase tudo é morador do
Amorim véi, do tempo que a terra foi desapropriada. Zé Mariano, Zé Batista. Então,
se eu conto essa história é porque foi aprovada. Tudo é morador do Amorim e essa
parcela aqui é minha com o documento, é minha. Entregada pelo governo, do Incra.
Mas os Amorins são uns homens educados, doutor formado. O que eu penso é isso,
se um dia ele pegasse essa proposta que foi comprada, o Pio não sabia. Se ele soubesse
ele tinha dito o Incra não era? Seu Pio não sabia ainda não, disso aí que os Amorins
tinham comprado. Os Amorins como educado e doutor formado, se fizerem uma força
pro governo, pra receber os oitocentos hectares de terra dele, se o governo conhecer
que os Amorins são homem, ele entrega os oitocentos hectares e eu sou um dos
morador. A metade da terra pra cá que pega ali do Geraldo Mariano pra cá...até acolá.
Isso é o que eu penso e os Amorins não botava morador pra fora não, porque são
educados e eu faço um acordo com ele pra deixar nossa família aqui cumprindo o que
nós cumpria com o Amorim que eles são educados e me conhecem.28
Afirmando-se como “morador” da família Amorim, ainda nos dias atuais, conforme
dissemos, o sr. Jacó se mostra nostálgico em sua narrativa e ainda cogita o retorno da família
Amorim a Japuara como verdadeiros proprietários da terra e a possibilidade de ele próprio
voltar às antigas condições de trabalho.
Segundo a narrativa dos moradores, na época em que Amorim foi administrador de
Japuara, preponderava uma boa relação entre moradores e patrão. Firmino atendia as
expectativas do que se esperava de um “bom patrão”, isto é, cobrava uma renda justa, oferecia
boa remuneração pela diária de trabalho e os moradores tinham acesso livre ao açude existente
27
Alguns moradores de Japuara entrevistados por Gomes (2006), também enfatizaram que os antigos proprietários
pagavam melhor diária de trabalho e que Japuara oferecia melhores condições de vida aos camponeses.
28
Id., Ibid.
36
no interior da propriedade. Essa situação de trabalho de Japuara tida como justa pelos
moradores de Japuara foi rompida com a venda da propriedade a César Campos, que passa
exigir a metade de toda a produção dos moradores, inclusive do roçado, que anteriormente era
poupado da repartição:
Quando venderam pro seu César Campos. O Zeca comprou e disse: “Eu quero que
trabalhe pra fazer forragem pros bichos que eu vivo de criar gado”. Tudo bem. Quando
seu César comprou, soubemos que ele tinha comprado. Nós fiquemos imaginando,
rapaz e o Zeca!? Seu Zeca Fenelão apareceu aqui.
[Fenelão] “Venderam a fazenda da Japuara pro seu César Campos?
[Moradores]: “Nós já tamo sabendo aqui seu Zequinha que venderam”.
[Fenelão] “Como é que vende uma coisa duas vezes?”
Mas é isso mesmo, a advogada vendeu. De tarde, de noite ele chegou: Ele [César
Campos] disse: “Eu quero”, convidou todo mundo que não era pra faltar ninguém, até
o pessoal da Serrinha do Aragão, desligada daqui, é um anexo daqui. [...] Aí veio, fez
a reunião com nós, que queria a terra desocupada. O que ficasse... se plantasse uma
melancia, ele queria uma banda da melancia nem que fosse pra rebolar no mato! 29
29
FERNANDES, Alfredo Ramos. Entrevista, 23 de setembro de 2020. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda
Mendes. Acervo pessoal.
30
Cf. KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro:
Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006.
31
A forragem para alimentar o gado era resultante das plantações dos moradores que era utilizada como pasto pelo
gado. Normalmente, após o fim da colheita, o gado era colocado para se alimentar do que restava da colheita.
37
moradores, diversos cenários de possibilidade, isto é, eles refletem como o conflito poderia ter
sido evitado caso Japuara tivesse ficado nas mãos de Firmino Amorim ou de José Fenelon.
Não se pode esquecer que, com o antigo administrador de Japuara, Firmino
Amorim, a renda incidia apenas sobre a produção do algodão herbáceo e se poupavam as
culturas destinadas ao abastecimento dos moradores. Afora que, ao antigo proprietário,
entregava-se somente 1/3 da produção do algodão, diferente do que impunha César Campos ao
exigir metade de toda a produção, inclusive do roçado. Condição esta que os moradores
consideraram injusta e insustentável, como atesta o depoimento do agricultor sr. Luzardo
Barros, morador de Japuara e filho de Pio Nogueira Barros. Ele evidencia em seu relato o
embate entre o novo proprietário e os moradores, já que os camponeses vão se recusar a entregar
a meia da produção:
Quando chegaram aqui foram impor uma situação que não existia. Aí meu pai disse
pra eles que tiveram na reunião, disse pra eles que não tinha condição de trabalhar na
fazenda dando 50%. Aí ele disse que não tinha condição, se ele quisesse trabalhar com
os agricultores até 30% se respeitava [..]. Aí ele disse (César Campos): “Não, mas não
pode, se você produzir uma cabaça você tem que cortar ela no meio e mandar uma
banda pra lá e fica outra aqui pra você”.32
32
BARROS, Luzardo. Entrevista, 5 de outubro de 2020. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda Mendes. Acervo
pessoal.
38
caracterizada tanto pela divisão dos custos, entre parceiros e proprietários, quanto pela divisão
da produção:
A parceria pode ser descrita do seguinte modo: num determinado local, existe o
proprietário da terra e o não proprietário. Este, pode ou não ser morador da terra do
primeiro. O importante é que trabalha na mesma. Pelo uso da terra paga um percentual
do que produz. O pagamento é feito após a colheita, e se por um motivo ou outro
(seca, enchente, praga ou doenças nas plantações) não houver produção, o parceiro
não tem nada a pagar por esse uso da terra (VIEIRA, 1979, p. 178).
renda pelos moradores ao proprietário, comumente, era por meio da destinação de parte da produção
do algodão. Era por meio da entrega da produção que os camponeses garantiam terra para cultivo e
morada. Para Forman (1979, p. 93), o sistema de repartição da parceria não era restrito somente
a safras comerciais e poderia se estender também às outras culturas cultivadas na propriedade
dedicadas prioritariamente ao abastecimento dos camponeses. De acordo com Vieira (1979, p.
179), quando se refere a parceria, tanto proprietários quanto trabalhadores a denominavam de
“renda” que diz respeito ao percentual de repartição pago pela utilização da terra pelos camponeses.
A renda da terra poderia ser cobrada sobre toda a produção dos parceiros, mas, normalmente,
possuía algumas distinções: era mais alta sobre as culturas destinadas ao mercado (como o algodão),
e mais baixa sobre os produtos destinado ao abastecimento da família dos parceiros (o roçado).
Entretanto, poderia acontecer de o proprietário exigir dos parceiros a metade de toda a produção,
mesmo sendo mais raro, como apontado por Caio Prado Júnior: “Na lavoura algodoeira da mesma
região (Nordeste), os trabalhadores são parceiros que têm a meação do algodão colhido; e
cultivavam por sua conta gêneros de subsistência de que às vezes – em geral nas propriedades
menos importantes – pagam a meação ao proprietário” (PRADO JÚNIOR, 1979, p. 61).
Esse pagamento da renda em produtos, de acordo com Oliveira (2007), dá-se
quando o trabalhador cede parte da sua produção pelo direito de cultivar na terra do proprietário.
A renda da terra poderia ainda, segundo o mesmo autor, ser paga em dia de trabalho gratuito
(renda da terra em trabalho) ou também em dinheiro, quando o trabalhador rural converteria a
sua produção em dinheiro e o entregaria ao proprietário pelo direito de cultivo na terra (renda
da terra em dinheiro). Para Oliveira, a parceria na qual o camponês paga a renda em produtos
adquiriu regionalmente muitas formas na agricultura brasileira, tais como meação, terça, quarta
(OLIVEIRA, 2007, p. 60). No caso do semiárido do Ceará, a exigência comumente era entregar
metade da produção aos proprietários de terra, sistema denominado como meação ou, entre os
camponeses e os proprietários, simplesmente “meia”.
De acordo com Almeida e Esterci (1979, p. 107), que produziram um estudo sobre
as relações de trabalho e subordinação no sertão do Ceará, ser parceiro não excluía a
possibilidade de ser morador, rendeiro ou mesmo proprietário. Poderia acontecer, como em
Japuara, uma combinação dessas categorias, e isto estava condicionado a alguns fatores: ser
morador e entregar parte da produção pelo direito de cultivar e residir na terra; ser um pequeno
proprietário, o que possibilitava aos camponeses escapar da “sujeição”33 por não ser um
33
“Sujeição” eram os dias de trabalho gratuito que os proprietários exigiam dos moradores de suas propriedades.
O trabalho na condição de sujeição era estendido a todos os membros da família, os filhos solteiros trabalhavam
nos roçados dos patrões, e as mulheres tinham que trabalhar prestando serviços domésticos no interior das casas.
40
morador, todavia, devido a ganhos incipientes na sua terra, trabalhar no regime de repartição
em outra propriedade; da mesma forma, ser rendeiro em uma terra e trabalhar no regime de
parceria em outra. Portanto, a parceria poderia acontecer combinada e envolver uma série de
outras relações de trabalho, e isto dependia do interesse do proprietário em ter o camponês
residindo ou não dentro da propriedade.
Segundo Carvalho (1979), a parceria era comumente empregada na produção do
algodão no semiárido do Ceará, justamente porque, ao compartilhar os riscos e custos com os
parceiros, os proprietários poderiam dispender o seu capital financeiro em atividades
consideradas mais atraentes para eles: “Convém esclarecer que ao grande proprietário interessa
que o algodão seja produzido, mas não lhe interessa comprometer recursos que teriam
alternativas de aplicação mais atraentes” (CARVALHO, 1979, p. 135). No caso, para os
proprietários, mesmo o cultivo do algodão sendo combinado com a pecuária, o interesse
principal dos proprietários do Ceará, segundo a autora, voltava-se mais para a criação do gado
que se mostrava como atividade mais atraente a esses proprietários e o algodão aparece
associado a pecuária por sua forragem servir de alimento para o gado:
Muitos camponeses associavam o sistema de morada a “ser sujeito” ou “ser cativo”. De acordo com Palmeira, a
moradia e a sujeição são faces de uma mesma moeda, por isso constituem-se como sinônimos e, não raro, os
camponeses se denominam “moradores de condição”, o que remete justamente ao trabalho gratuito (2009, p. 208).
O fato de não possuírem moradia implicava em uma maior subordinação aos proprietários de terra. No caso do
semiárido do Ceará, os proprietários comumente cobravam metade da produção da cultura destinada à partilha dos
moradores-parceiros, era comum exigir que a outra metade lhes fosse vendida por um preço inferior ao de mercado.
Neste sentido, o sistema de morada, não raro, aparece associado como uma “condição” que lhes impunham uma
intensa exploração por parte dos proprietários de terra.
41
Assim, muito além de um acordo de vontades entre "iguais diante do direito", o ritual
de solicitar abrigo em grande domínio rural enfatizava a dissimetria entre o patrão que
acolhe um novo cliente e o indivíduo que se desqualifica como homem ao pedir apoio
e proteção: ao entrar na propriedade, todo chefe de família contraía de imediato uma
dívida moral com o proprietário, que ultrapassava de muito o valor material dos
elementos de vida que era provido pelo novo patrão (GARCIA JR, 2002, p. 50).
Segundo Almeida e Esterci (1979), diversos conflitos podem surgir entre os parceiros
e proprietários, principalmente, em relação ao uso da terra: interferência dos proprietários sobre
o que deve ser cultivado pelas famílias nas propriedades; a exigência de que a produção seja
vendida ao proprietário por um preço inferior ao de mercado; repartição da produção e
antagonismo de interesses entre o proprietário, que almeja obter o máximo de ganho possível não
só da terra, mas do trabalho dos parceiros, e estes, que, por sua vez, almejam tirar uma boa
produtividade da terra para a sua sobrevivência, recusando-se, portanto, de acordo com os autores,
a plantar somente o produto destinado à partilha (no caso do Ceará, principalmente, a cultura do
algodão), diversificando, sempre que possível, a produção:
Neste sentido, o parceiro procura cultivar, além dos produtos destinados à partilha, a
maior quantidade e variedade possível de produtos destinados à sua manutenção; o
proprietário recusa-lhe, pelo menos em parte, esta pretensão, alegando que
42
Eles queriam 50% de tudo né!? A metade de tudo, aí o meu pai não aceitou e disse:
[Pio]: “Vocês querem aceitar, pra viver sossegado com ele? Ou não querem aceitar e
vamos partir pra uma decisão acertada e disseram [moradores]: “Não, nós não vamos
fazer tudo de graça pra ele não. Se ele quiser os 30% do algodão, nós ainda damos.
Mas dar o pão dos nosso filhos pra ele ficar enricando cada vez mais e comprando
fazenda e matando o povo por lá também. Então, nós não vamos fazer isso não. 34
34
BARROS, Luzardo. Entrevista, 5 de outubro de 2020. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda Mendes. Acervo
pessoal.
43
Chayanov (1974) esclarece que a família camponesa visa unicamente a maneira mais
fácil de satisfazer suas necessidades em consonância com o gasto da força de trabalho.
É fundamentalmente isso que distingue a família camponesa do empresário
capitalista, pois enquanto o capitalista investe nos setores mais lucrativos, visando o
máximo de retorno possível, a família camponesa cessa imediatamente o trabalho ao
alcançar o equilíbrio trabalho/consumo, pois seu objetivo é reproduzir-se enquanto
unidade de produção econômica camponesa (PAULINO; ALMEIDA, 2010, p. 43).
Assim, por mais vantajoso que possa parecer um determinado investimento em que o
uso do capital resulte em aumento dos ganhos, isso não representa, necessariamente, um
estímulo para o camponês. Ele não trabalha com o princípio capitalista de valorização
do capital e sim, com uma análise do balanço trabalho-consumo que é subjetiva porque
baseada nas necessidades da família (PAULINO; ALMEIDA, 2010, p. 36).
na agricultura comercial como o algodão e não somente nas culturas destinadas ao abastecimento
da família (roçado). Daí resulta uma recusa em entregar uma maior repartição ao proprietário da
produção algodão, além de ser o cultivo que trazia maior retorno financeiro aos parceiros. A renda
advinda do algodão era essencial para a garantia do bem-estar das famílias de Japuara, por isso a
recusa em ceder às exigências do novo proprietário.
Palacios (2009), em seu estudo sobre cultivadores pobres e livres no Nordeste Oriental,
afirma que, a partir do século XVIII, mais precisamente entre os anos de 1700 a 1760, forma-se o
campesinato das capitanias de Pernambuco, Alagoas, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará em
decorrência da crise do sistema açucareiro. Essa crise possibilitou o surgimento da “brecha
camponesa”, a qual, segundo o autor, permitiu furar o mecanismo agroexportador que conferia à
produção camponesa um lugar de marginalidade nesse sistema. Assim, nesse período, tanto esses
homens livres e pobres passam a produzir culturas destinadas à subsistência, como também cultivos
destinados à comercialização, como tabaco, mandioca e, posteriormente, o algodão. Em
decorrência do espaço conquistado por esses homens livres e pobres em tais atividades, eles
passam a sofrer repressão para que voltassem a ocupar um lugar de marginalidade no sistema
agroexportador. Apesar de o recorte temporal de Palacios (2009) ser distinto do proposto neste
estudo, destaque-se a contribuição desse historiador, pois rompe com o paradigma de uma produção
agrícola camponesa somente interessada em produzir culturas de “subsistência” e desinteressada
nos plantios destinados à comercialização, como o algodão. Do mesmo modo, pode-se perceber
que essa combinação de plantios comerciais (destinados à venda) com os cultivos destinados ao
abastecimento das famílias (roçado) era uma prática que perpassou gerações de camponeses no
Ceará.
Como enfatizado, o cultivo do algodão plantado pelos camponeses de Japuara era
totalmente voltado à comercialização, mas possuía implicação significativa na vida dessas famílias,
já que o suprimento de certos bens de uso doméstico somente se dava por meio da compra em
dinheiro:
Há cultivos voltados exclusivamente para venda, nos quais a produtividade valor por
hectare e por recursos despendidos constitui a motivação básica, porque uma parte do
orçamento doméstico só pode ser suprida por compra de mercadorias a dinheiro (sal,
açúcar, querosene ou luz elétrica, produtos de limpeza, vestuário etc.) (GARCIA
JÚNIOR; HEREDIA, 2009, p. 233).
proprietário: terra já limpa, moradia, entre outros elementos especificados no próprio Estatuto.
César Campos poderia até cobrar 50%, ou seja, a meia, desde que atendesse a determinadas
exigências estabelecidas no Estatuto da Terra, como o fornecimento de maquinário e
implementos agrícolas entre uma série de outros requisitos, que não eram poucos:
De acordo com Alencar et al. (2013), muitos proprietários no Ceará cobravam renda
de 50% da produção, a “meia”, dos moradores e, geralmente, ofereciam terra nua aos
camponeses. Assim, os proprietários só poderiam cobrar 10% da produção, de acordo com o
estabelecido pelo Estatuto da Terra (ALENCAR ET AL., 2013, p. 41). Assim, trata-se de
situações conflitivas, de acordo com Carvalho (1982), entre a “lei da renda” do Estado,
estabelecida pelo Estatuto da Terra, e a renda costumeiramente cobrada pelos patrões no interior
de suas fazendas, ou seja, a meia: “o movimento se legitima por seu próprio caráter de
legalidade, ressaltado por dirigentes sindicais e trabalhadores. É na verdade a partir da oposição
entre a ‘lei da renda’ do governo e a ‘lei dos patrões’ que os esquemas de enfrentamento são
montados” (CARVALHO,1982, p. 6).
A legislação agrária enseja dificuldades para que os proprietários continuassem a
manipular, de forma arbitrária, a porcentagem da repartição exigida como uma contrapartida ao
direito de cultivo e morada. Tendo em vista que o Estatuto da Terra passa a regulamentar as
relações de parceria, arrendamento da terra e também outras relações de trabalho no campo
anteriormente não sujeitas a nenhum tipo de atos normativos na esfera legal. Antes do Estatuto
da Terra, esses acordos eram regidos por acordos que melhor favoreciam os proprietários de
terra, no caso, cobrava-se a meia dos camponeses moradores devido à maior vulnerabilidade
social desses camponeses e por não existir nenhum instrumento legal que regulasse essas
relações.
35
Lei N° 4.504, de 30 de novembro de 1964. Dispõe sobre o Estatuto da Terra. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l4504.htm. Acesso em: 24 abr. 2020.
46
36
O historiador E. P. Thompson enfatizou o costume, como a interface entre a lei e a prática, fundamentado
principalmente na práxis. Ver THOMPSON, E. P. Costume, lei e direito comum. In:____ Costumes em comum:
estudos sobre cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. De acordo com Esterci (2009),
os pequenos produtores reivindicam direitos tanto “de acordo com as formas costumeiras de apropriação por eles
firmadas ao longo de anos, mas apelavam também para a lei na defesa de outros direitos que lhes eram facultados”
(2009, p. 223). No caso dos parceiros de Japuara, observamos primeiro uma mobilização para assegurar que o
sistema de parceria não fosse modificado, permanecesse como outrora, pagando-se os 30% somente da produção
do algodão como cobrava o antigo proprietário, Braga Barroso. Entretanto, com o envolvimento do advogado da
Fetraece no conflito essa reivindicação passa a se assentar em torno do que era estabelecido também pela legislação
agrária, o Estatuto da Terra. César Campos não cumpria os requisitos legais estabelecidos pelo Estatuto para exigir
o que pretendia dos camponeses. Como evidencia Esterci (2009), as reivindicações dos camponeses tanto poderiam
se fundamentar no que era estabelecido pela apropriação costumeira firmada no decorrer do tempo quanto pela lei
ou mesmo em uma combinação de ambos. Assim, observamos que os camponeses de Japuara reivindicam a
manutenção de permanecerem entregando a terça parte da produção, cobrando a continuidade de acordos de
apropriação do uso da terra firmada ao longo dos anos, quanto também pelo que o advogado orienta, isto é, pelo
que era estabelecido pelo Estatuto da Terra.
37
FERNANDES, Alfredo Ramos. Entrevista, 23 de setembro de 2020. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda
Mendes. Acervo pessoal.
47
César Campos desejava que vigorasse a meia do algodão na fazenda, como em tempos
anteriores à existência de legislações que regulamentavam o sistema de parceria.
Outro elemento de conflito cotidiano entre o novo proprietário e os moradores foi
a proibição de criar animais pelos ocupantes de Japuara. Esse impedimento contrariava o
disposto do artigo 96, inciso IV do Estatuto da Terra, que previa que o proprietário deveria
oferecer moradia higiênica, roçado para plantio exclusivo da família dos moradores (portanto,
não destinada à repartição) e área para criação de animais de pequeno porte aos parceiros: “IV
– o proprietário assegurará ao parceiro que residir no imóvel rural, e para atender ao uso
exclusivo da família deste, casa de moradia higiênica e área suficiente para horta e criação de
animais de pequeno porte”. Em resumo, o Estatuto da Terra garantia aos parceiros o direito de
criação de animais e proibia a incidência da repartição sobre o plantio do roçado. Nesse sentido,
o novo proprietário de Japuara violara uma série de dispositivos da legislação agrária ao impedir
a criação de animais e de cobrar a renda da produção destinada ao autoconsumo das famílias.
Além de animais de pequeno porte, os moradores de Japuara também criavam gado,
como atestou o depoimento sr. Alfredo Ramos Fernandes. Segundo ele, a criação de animais
pelos moradores de Japuara era parca, mas tinha a função de “atenuar” a condição de vida dos
camponeses. Como ele mesmo definiu, todo mundo tinha uns “bichinhos” que serviam para
suprir uma eventualidade, “mediar”:
38
FERNANDES, Alfredo Ramos. Entrevista, 23 de setembro de 2020. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda
Mendes. Acervo pessoal.
48
[...] quando os produtos do roçado – que são os responsáveis por ele – não são
suficientes para atingir seu objetivo, ou seja, em situações de precisão, os animais de
propriedade da mãe de família contribuem para esse consumo ser obtido. Neste
sentido, os bichos de terreiro são complementares ao roçado e, ao mesmo tempo,
estão subordinados a ele, na medida em que suprem as necessidades reconhecidas
como secundárias quando os produtos do roçado são suficientes para abastecer o
consumo coletivo considerado prioritário (HEREDIA, 2013, p. 70).
A criação supõe a agricultura e serve mesmo para paliar sua eventual insuficiência. A
expansão da agricultura que possibilita o acréscimo de plantel é assim instrumento
privilegiado de acumulação camponesa. Numerosas foram as etnografias que
registraram posteriormente a posse da criação como meio de acumular para o
casamento e as despesas de instalação de novo grupo doméstico.
Exatamente por ser a criação de animais o instrumento por excelência de reserva e
acumulação de grupos domésticos camponeses [...] (GARCIA JÚNIOR; HEREDIA,
2009, p. 228).
A criação de gado, de acordo com Garcia Júnior e Heredia (2009), poderia ser
utilizada para suprir um gasto eventual que os camponeses pudessem ter, além de servir para
realização de uma grande despesa da família devido à possibilidade de maior retorno financeiro
que a criação de gado propiciava. A criação de animais exercia papel essencial no modo de vida
do ser camponês e, não à toa, foi acompanhada por atos de resistência dos moradores em
cumprir o que era estabelecido, pois, segundo o sr. Luzardo, apesar da proibição do novo
proprietário, os moradores “compraram a questão” e permaneciam criando animais.
César Campos também tentou impedir a utilização do açude pelos moradores, seja
o uso das águas, como também das pescarias que ali ocorriam, pois, segundo o proprietário, os
ocupantes de Japuara faziam “mau uso das águas”, o que inviabilizava seu consumo pelo gado:
proposital, desejando acrescentar que as referidas águas não vinham servindo mais
nem para o gado do depoente.39
39
O Povo (CE), 2 fev. 1971.
50
para que os camponeses possam fazer uso daquelas terras para cultivo e também morada, por
exemplo:
No entanto, o equilíbrio continua tão frágil, que todo elemento gerador de uma ligeira
modificação o perturbará profundamente. Pode-se tratar do crescimento demográfico,
de acidentes climáticos, da deterioração momentânea dos preços agrícolas, de uma
sobrecarga temporária de impostos pelo Estado, do aparecimento de novas
necessidades da parte do produtor agrícola, etc. (SCHWARZ , 1990, p. 86).
São intimidações que visavam a forçar a retirada dos moradores de Japuara. Essas
atitudes de César Campos revelam um modus operandi dos proprietários de terra quando a
permanência dos camponeses passa a ser indesejada no interior das propriedades rurais em
decorrência de situações conflitivas. Como bem observado por Almeida e Esterci (1979), que
ouviram diversos depoimentos de camponeses no Ceará, os proprietários utilizavam essas
intimidações para tornar inviável a permanência dos moradores na fazenda, como uma maneira
de vencê-los pelo cansaço:
Segundo informantes quando o patrão quer botar pra fora o morador ele provoca tais
atritos. Pode, por exemplo, deixar mal fechada uma porteira de tal modo que à noite,
o gado invade a roça do morador. O patrão alega, então, que a culpa é do próprio
morador: “foi seus meninos mesmo que abriram”. Dizem os informantes que quando
o patrão assim deseja, torna-se impossível para o morador manter-se na propriedade,
pois, então para o patrão é “matar na unha” provocando situações insuportáveis
(ALMEIDA; ESTERCI, 1979, p. 114).
40
BARROS, Luzardo. Entrevista, 5 de outubro de 2020. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda Mendes. Acervo
pessoal.
52
Pretende-se, neste tópico, trazer à torna as disputas judiciais por Japuara, todavia
dando ênfase à utilização do Estatuto da Terra pelo advogado dos moradores, Lindolfo Cordeiro,
para assegurar o cumprimento da referida Lei, visando à resolução do conflito. Em um contexto
marcado pela repressão aos camponeses e apoiadores, as disputas dentro da esfera judicial
mostravam-se um horizonte possível de mobilização e de resolução dos conflitos de terra
(ESTERCI, 2009, p. 223).
Recorde-se que, de acordo com Medeiros (2014), ocorreram, em 1967, eleições para
a Contag. Foi quando uma chapa encabeçada por José Francisco da Silva, liderança sindical do
Estado de Pernambuco, conseguiu derrotar a chapa do interventor José Motta (MEDEIROS,
2014, p. 97). Assim, a autora enfatiza que, com a retomada da direção da Contag pelo
movimento sindical camponês, o órgão orienta tanto os STRs quanto as Federações Estaduais
dos Trabalhadores Rurais para que pautem a mobilização camponesa em torno do âmbito legal,
isto é, o movimento sindical camponês passa a atuar cobrando o que era estabelecido pela
legislação agrária, tanto pelo Estatuto do Trabalhador Rural, quanto pelo Estatuto da Terra
(MEDEIROS, 2014, p. 97). O movimento sindical camponês, durante a ditadura civil-militar,
será pautado em torno da efetivação da legislação trabalhista e agrária assumindo o que a
Contag definiu como uma “defesa intransigente dos direitos dos trabalhadores rurais”
(CONTAG, 1980, p. 7).
Assim, o fato de Lindolfo Cordeiro, assessor jurídico da Fetraece, atuar no conflito
de Japuara cobrando a efetivação do Estatuto da Terra não foi um fato isolado, tendo em vista
que tanto a Fetraece quanto os STRs vinculados à Contag passam a seguir esse direcionamento
em torno da cobrança por direitos e aplicação das novas leis. Portanto, quando a Fetraece
assume conflito de Japuara como mediadora, esta passa a cobrar nos Tribunais a efetivação da
53
41
Em 1979, ocorre o III Congresso Nacional organizando pela Contag, e ela assume uma postura crítica em relação
ao rumo que o movimento sindical camponês tomava até então, isto é, eles perceberam que a luta em torno da
efetivação dos direitos não alcançou os resultados esperados, já que existia um entrave do próprio governo
ditatorial em efetivar tais legislações, principalmente, o Estatuto da Terra. Desse modo, a Contag percebeu que
não existia um esforço por parte do governo ditatorial em efetivar tais legislações, muito menos em promover a
Reforma Agrária e rompe com este direcionamento em torno da cobrança da efetivação da legislação agrária
(GARCIA; PALMEIRA, 2001, p. 68).
54
“peças chave” nos conflitos de terra (MEDEIROS,1989, p. 93). Portanto, um campo de disputa
se abre aos camponeses e apoiadores com os conflitos de terra sendo travados também dentro
do espaço jurídico, cobrando o cumprimento da legislação e contrapondo diferentes concepções
sobre o direito de propriedade da terra.
Quando toma conhecimento de que a propriedade fora vendida a César Campos,
Firmino Amorim (administrador e arrendatário de Japuara) entra com duas ações judiciais: uma
ação preferencial de compra e outra cominatória para cobrar as benfeitorias realizadas na
fazenda.42 Além de existir um acordo entre Anastácio Braga e Firmino quanto à preferência da
oferta da terra, o próprio Estatuto da Terra, em seu Capítulo IV, que dispõe sobre o uso ou da
posse temporária da terra, garantia ao arrendatário a preferência da oferta da terra, não podendo
esta ser vendida ou negociada sem o conhecimento do mesmo:
No caso de Japuara, tanto não se respeitou a primeira oferta da terra, mesmo com
Firmino Amorim tendo pago uma primeira parcela à herdeira de Japuara, Hebe Braga, como o
processo de venda e negociação com César Campos aconteceu, como afirmou Blaudes Barros,
“por debaixo dos panos”. Dessa forma, contrariava o disposto pelo Estatuto da Terra e abria
margem para que Firmino Amorim, que não fora notificado sobre a venda de Japuara, pudesse,
por exemplo, “haver para si o imóvel: “§ 4° O arrendatário a quem não se notificar a venda
poderá, depositando o preço, haver para si o imóvel arrendado, se o requerer no prazo de seis
meses, a contar da transcrição do ato de alienação no Registro de Imóveis”.44
Em 12 de fevereiro de 1968, a escritura da terra foi passada a César Campos. O
comerciante, já investido da escritura do imóvel, entra com uma ação de imissão de posse na
Justiça de Canindé contra Firmino Amorim e sua mulher, dando um prazo de dez dias para que
eles abandonassem a propriedade: “Assim sendo o suplicante requer a v. excia. a citação de
FIRMINO AMORIM DA SILVA, brasileiro, casado, agricultor, inclusive de sua mulher, se
casado fôr, para dentro do prazo de dez dias demitir-se da posse dos imóveis retro indicados”.45
42
Informações disponíveis na matéria do jornal O Povo (CE), 4 fev. 1971 e BARREIRA, C. Op. cit., p. 50-51.
43
Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964. Op. cit.
44
Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964. Op. cit.
45
Mandado de imissão de posse. Autores: Júlio César Campos. Réus: Firmino Amorim da Silva e sua mulher.
Ação movida na comarca de Canindé em 26 de fevereiro de 1968. O processo encontra-se disponível em formato
digital na página do Brasil Nunca Mais: Ministério Público Federal/BNM 082/Ação Penal 40/72. Consultar:
http://bnmdigital.mpf.mp.br/pt-br/. Acesso em: 7 ago. 2020. fls 1266.
55
Em 14 de março de 1968, Firmino Amorim recorre, alegando ter um contrato de compra e venda
da terra e sustenta que já teria pago uma primeira parcela à herdeira de Edite Braga. Além de
reivindicar as benfeitorias realizadas na propriedade.46 O juiz da comarca de Canindé não
atende o pedido de Firmino Amorim, sustenta a legitimidade da compra da propriedade por
César Campos e alega que as benfeitorias sejam cobradas da herdeira, Hebe Braga e não do
novo proprietário, César Campos. Além de condenar a parte que perdeu, no caso Firmino
Amorim, ao pagamento dos custos do processo, deveria ele também se abster da disputa judicial
pela propriedade de Japuara:
Assim, dúvida não há de que Júlio César Campos e sua mulher são legítimos donos
da fazenda Japuara e tem direito à posse da mesma.
Tentando alterar o estado da lide, os réus esboçaram agravo no auto do processo,
alegando “jus retentions” por benfeitorias, no terreno litigioso.
Se os réus acham que tem direitos de ressarcimento por gasto no imóvel em
alusão, que o façam, se for o caso, com ação própria, contra o espólio de EDITE
DA COSTA BRAGA, não contra os autores que adquiriram o referido imóvel
livre de quaisquer ônus.
Condeno os réus ao pagamento das custas processuais, bem como se absterem de
quais atos de posse do imóvel em questão e a pagarem aos advogados dos autores
a importância referente a dez por cento do valor da causa, como honorários de
advogados.47
46
Contestação da imissão de posse. Ação movida na comarca de Canindé pelo advogado de Firmino Amorim da
Silva. 14 de março de 1968. Op. cit., fls. 1267-1269.
47
Vistos do juiz de direito da comarca de Canindé. 30 de abril de 1968. Op., Cit., fls: 1271-1272. Grifo nosso.
48
Petição movida pelo advogado de César Campos. Comarca de Canindé, 24 de março de 1969. Op. cit., fls 1275.
49
Expedição de mandado de imissão de posse pela juíza de direito da comarca de Canindé. 26 de março de 1969.
Op. cit., fls: 1277 – 1278.
50
Certidão de cumprimento do mandado redigido pelos oficiais de Justiça. Comarca de Canindé. 27 de março de
1969. Op. cit.
56
É viável que entre os moradores e rendeiros que exerçam suas atividades nos terrenos
denominados “Japuara”, também conhecidos como “Mela Pinto”, e “Vaca Morta”
queiram ficar onde estão exercendo suas atividades, subordinando-se as condições de
rendeiros e parceiros agrícolas, do mesmo modo como estavam nestas terras sob
administração do sr. Firmino Amorim.
Por outro lado, é presumido que o senhor César Campos precise dos trabalhos
agrícolas daqueles que considerar convenientes e que aceitarem as suas condições,
para continuarem exercendo suas atividades, sem solução de continuidade. Assim
sendo, não se torna despropositado que se dê um prazo de quinze dias improrrogável
a essa gente para que regularize a sua situação de rendeiros ou parceiros agrícolas para
com os exequentes, a fim de que esse Juízo fique apto a fazer a separação entre o
“joio” e o “trigo”.52
Todavia, aceitar as condições do proprietário seria abrir mão dos direitos, já que
César Campos negava-se a cumprir o Estatuto da Terra e estabelecia relações de parceria tidas
como insustentáveis pelos moradores, tais como a imposição da meia da produção. Assim, as
tentativas de despejo passam a atingir todos os moradores de Japuara, os quais não receberiam
qualquer tipo de indenização pelos anos de trabalho na propriedade e pelas benfeitorias
realizadas na terra, tais como casas, cercas, plantações e o açude. Como bem afirma Palmeira
(2013), “Sempre que pode, o que o proprietário faz é simplesmente expulsar seus moradores,
dando-lhes uma indenização irrisória (em termos do que eles teriam direito pela lei) ou, o que
talvez seja mais frequente, indenização nenhuma” (2013, p. 33).
51
Petição movida pelo advogado de César Campos. Comarca de Canindé. 7 de abril de 1969. Op. cit., fls: 1281.
52
Despacho da juíza de direito da comarca de Canindé. 16 de abril de 1969. Op. cit., fls 1282.
57
Veio uma Juíza aqui passar uma semana aqui mais nós aqui, ela trouxe uns papel pra
nós assinar. Ela chamou logo nós. [Juíza] “Os primeiros que forem chegando, vão
avisando pros outros. Esse papel aqui se você assinarem, esse documento aqui, vocês
tão assinando o despejo de vocês. Já tem o despejo pra vocês, já encaminhado”. Já
tinham avisado que nós não assinassem. Passou o dia mais nós, comeu feijão mais
nós. Nesse fuxico, passemos a semana todinha. Quando ela chegou, ela tava
hospedada no hotel São Francisco, hotel São Francisco nesse tempo era dele né!? Do
César Campos. Ela chegou de noite, saiu daqui de noite, pegava o carro e ia.
[César Campos]: “Aí: o que que resolveu lá?”
[Juíza] “Eu resolvi nada não, os homens não assinaram”.
[César Campos]: “Mas a senhora é Juíza, a senhora tem por obrigação mandar eles
assinarem é a força.
[Juíza] “A força não! Eu não tenho ordem de fazer isso. Peço desistência do meu
trabalho, mas a assinar a força não pode não”.
Aí pronto ele endoidou. Diz a delegada que andou aqui que tinha três despejos
cancelado, grampeado.53
53
FERNANDES, Alfredo Ramos. Entrevista, 23 de setembro de 2020. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda
Mendes. Acervo pessoal.
54
Id., Ibid.
58
que os moradores teriam sidos ali colocados pelo administrador Firmino Amorim da Silva e
não pelos antigos donos.
Assim a Justiça de Canindé defende que, por serem dependentes de Firmino
Amorim, não poderiam permanecer em Japuara e não tinham quaisquer direitos. Logo,
reafirmam a versão de César Campos de que este comprou a terra “desocupada”, negando
reconhecer que os moradores foram postos em Japuara pelos antigos proprietários e que,
inclusive, exerciam posse imemorial nas terras:
Os moradores que se rebelam contra a execução da sentença foram postos ali pelo
referido administrador, com seus prepostos, razão porque não precisavam serem
citados para a ação intentada, uma vez que que exerciam posse precária no terreno,
visto estarem sob a dependência do referido administrador.
Os promoventes compraram a propriedade livre de todos os ônus e de qualquer
embaraço, mas foram embaraçados no seu recebimento pela oposição criada por
Firmino Amorim.
Ninguém pode recusar-lhes o direito de se imitirem na propriedade “livres” e
“desembaraçadas” tal qual como adquiriram.55
Com o abandono do litígio por Firmino Amorim, Pio Nogueira Barros, camponês
que residia em Japuara desde 1950, assume o posto de liderança dos moradores e se recusará,
assim como os demais moradores, a se retirar da propriedade sem qualquer indenização pelas
benfeitorias realizadas no local. Pio possuía parentesco com Firmino Amorim, que era seu
cunhado.
Uma série dessas benfeitorias realizadas na fazenda por seus moradores pode ser
creditada às expectativas nutridas por estes de permanecerem em Japuara. Quando os
camponeses chegaram à terra, só existiam 12 casas construídas. Em 1971, ano de ocorrência
dos confrontos na propriedade, existiam 64 moradias, além de plantações, cercas e construções
como o próprio açude.56 Em 1968, chegou a ser realizada uma perícia pela Justiça do Trabalho
em Japuara para o levantamento das benfeitorias realizadas pelos moradores.
55
Despacho da juíza de direito da comarca de Canindé. 16 de abril de 1969. Op. cit., fls 1282.
56
Informação verbal do advogado dos agricultores, Lindolfo Cordeiro, ao jornal Gazeta de Notícias, 5 jan. 1971.
59
96, inciso V, item e), estabelecia indenizações aos parceiros, quando estes realizavam
benfeitorias na terra:
O Pio era delegado sindical, delegado sindical, o Pio aqui. Tinha os delegados do
sindicato nas região né!? Ele foi delegado aqui. Ainda houve um acordo entre o César
Campos e ele, nós fomos para o Baturité. Nós fomos pra uma reunião lá, 9 pessoas.
Quando chegou só entrou dois. Ele ia dar uma indenização de dois mil conto, nós ia
sair, mas ele só dava pro Pio e a passagem do carro pra onde o cara fosse né!? Mas
quando ele chamou lá que só ia pagar o Pio, os outros ficava sem. [Pio Nogueira]
“Pois eu não quero não, não aceito não. Eles são sindicalizados, eu sou delegado deles,
se pagarem eles que são de acordo, já tão de acordo comigo pra nós sair, mas só pra
mim não.” Deixaram nós no meio da rua, começou a reunião e foi até 11 horas da
noite...58
57
Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964. Op. cit.
58
FERNANDES, Alfredo Ramos. Entrevista, 23 de setembro de 2020. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda
Mendes. Acervo pessoal.
60
59
O Instituto Brasileiro de Reforma Agrária (IBRA), foi um órgão criado pelo Estatuto da Terra (Lei nº 4.504, de
30 de novembro de 1964) e tinha como propósito tornar efetivo o Estatuto da Terra, além de “aliviar as tensões”
no campo, atuando principalmente no que se referia a questões relativas à propriedade da terra. Funcionava
paralelamente com o Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrário (Inda). Em 1970, surge o Instituto Nacional
de Colonização e Reforma Agrária (Incra), uma autarquia federal criada pelo Decreto – Lei nº 1.110, de 9 de julho
de 1970. Com o seu surgimento, esses dois órgãos foram unificados, no caso o Ibra e o Inda. Informações
consultadas no site FGV/ CPDOC. Pesquisar pelo verbete “Ibra”. Disponível em:
http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/instituto-brasileiro-de-reforma-agraria-ibra. Ver
também: Medeiros, Leonilde Sérvolo de. História dos movimentos sociais no campo. Rio de Janeiro FASE. 1989.
p. 89.
60
O Código Civil de 1939, no artigo 707, estabelecia o seguinte sobre embargo de terceiro: “Quem não fôr parte
no feito e sofrer turbação ou esbulho em sua posse, ou direito, por efeito de penhora, depósito, arresto, sequestro,
venda judicial, arrecadação, partilha ou outro ato de apreensão judicial, poderá defender seus bens, por via de
embargos de terceiro”. O embargo de terceiro prejudicado ocorre pelo fato de Pio e os demais moradores não
fazerem parte do processo anterior, no caso, não faziam parte da disputa judicial entre César Campos e Firmino
Amorim e com a saída de Firmino da propriedade e por consequência da disputa judicial, o terceiro prejudicado
passa a ser Pio Nogueira e os demais ocupantes que permaneciam residindo em Japuara e cobravam pelas
benfeitorias realizadas por eles. Consultar: Decreto – Lei nº 1.608, de 18 de setembro de 1939. Código de Processo
Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1937-1946/del1608.htm> Acesso em: 13
jun. 2020.
61
de Japuara para que abandonassem a propriedade. O processo de disputa por Japuara torna-se
então coletivo.
Mencione-se que os “advogados sindicais” que atuaram defendendo trabalhadores
rurais durante a ditadura civil-militar evitavam, de acordo com Tavares e Quintans (2018),
entrar com ações individuais na Justiça e buscavam, sempre que possível, envolver o maior
número de trabalhadores rurais no litígio por meio das ações coletivas. Os advogados
colaboravam para a coletivização dos conflitos de terra com mobilização de todos os
trabalhadores:
Que, em vista, do que determina a lei, os peticionantes não têm situação a regularizar
com os atuais proprietários, uma vez que sua situação como parceiros outorgados ou
61
Lei n° 4.504, de 30 de novembro de 1964. Op. cit.
62
Defendia ainda que os camponeses não foram postos em Japuara por Firmino
Amorim, mas sim pelos antigos proprietários. Desse modo, contrapunha a versão do advogado
de César Campos de que os moradores eram dependentes de Firmino Amorim e, por isso, não
tinham quaisquer direitos assegurados pelo Estatuto da Terra.
A utilização do Estatuto da Terra pelo advogado dos moradores reconfigura o status
da disputa judicial. O Estatuto da Terra garantia a posse da terra aos camponeses até que estes
fossem ressarcidos pelas benfeitorias que construíram na propriedade para que pudessem viver
e trabalhar. Portanto, nem Firmino Amorim, nem os demais camponeses poderiam ser expulsos
de Japuara antes de serem indenizados pelas referidas construções. Nesse sentido, a Justiça de
Canindé, em diferentes momentos da disputa judicial, ignora o que era estabelecido pela
legislação agrária:
62
Juntada de petição aos autos. Ação movida por Lindolfo Cordeiro. Comarca de Canindé. 10 de maio de 1969.
Op. cit.
63
Lei n° 4.504, de 30 de novembro de 1964. Op. cit.
64
Lei n° 4.504, de 30 de novembro de 1964. Op. cit.
63
Terra no que diz respeito ao ressarcimento pelas benfeitorias para garantir a posse da terra aos
camponeses e sustenta ainda que eles tinham direito ao gozo das vantagens que a terra lhes
oferecia, não podendo eles sofrerem ação de despejo enquanto não fossem indenizados, já que
os moradores eram constantemente ameaçados por milícias do proprietário e mesmo pela
polícia local.
Entretanto, o embargo de terceiro possuidor prejudicado foi rejeitado sumariamente
pela juíza de Canindé. Lindolfo, então, entra com um agravo de instrumento no Tribunal de
Justiça do Estado. Observa-se que, de acordo com art. 842 do Código de Processo Civil de
1939, o agravo de instrumento permitia recorrer de decisão judicial que não admitisse a
intervenção de terceiros: “Art. 842. Além dos casos que a lei expressamente permite, dar-se
agravo de instrumento das decisões; I. que não admitem a intervenção de terceiro na causa”.65
Lindolfo retira, então, as ações de uma rede de poder local, já que os camponeses não tinham
obtido até aquele momento nenhum julgamento favorável a estes na Comarca de Canindé, com
juízes que reiteravam constantemente o direito de propriedade de César Campos e não
reconheciam qualquer direito aos camponeses, mesmo isto sendo amparado pelo Estatuto da
Terra.
Em julho de 1969, o advogado de César Campos entra novamente com um pedido
de imissão de posse e uma nova tentativa de despejo dos moradores na comarca de Canindé,
solicitando por parte da juíza daquela comarca uma decisão “enérgica” para retirar os
moradores da propriedade.66 A juíza novamente atende ao pedido do advogado e, dessa vez, o
despejo seria realizado com aparato policial.
Neste juízo, em petição requerida por Júlio César Campos e sua mulher, assinado pelo
advogado, bel Antônio Barros dos Santos, doc. nos autos pediram para serem imitidos
na posse dos imóveis descritos na inicial das fls. citados no mandado expedido e
entregue aos Oficiais de Justiça para cumprimento da imissão.
No despacho exarado por êste Poder Judiciário, determino que se oficialize ao
Delegado Especial desta cidade, a quem solicitava sua cooperação no sentido de
adotar providências para garantir o cumprimento do mandado expedido.67
65
Decreto – Lei nº 1.608, de 18 de setembro de 1939. Código de Processo Civil. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1937-1946/del1608.htm. Acesso em: 13 jun. 2020.
66
Petição movida pelo advogado, Barros dos Santos. 2 de julho de 1969. Comarca de Canindé. Op. cit., fls. 1288.
67
Ofício 47/69. Da juíza de direito da comarca de Canindé ao major Antônio Onofre (delegado especial de
Canindé). 23 de julho de 1969. Op. cit., fls. 1299.
64
derrotas judiciais sofre uma reviravolta. O advogado desloca o conflito do âmbito local em que
a Justiça de Canindé demonstrava-se comprometida com os interesses do proprietário.
Lindolfo entra com um mandado de segurança no Tribunal de Justiça do Estado
para sustar a ação de despejo e conseguir manter temporariamente os moradores na terra. O
desembargador do órgão aceita a liminar que susta a ação de despejo, enquanto o agravo de
instrumento fosse julgado no Tribunal de Justiça do Estado. Em 19 de novembro de 1969, o
agravo, finalmente, é julgado pelos procuradores do Tribunal, com decisão favorável aos
moradores de Japuara, reconhecendo que os contratos de parceria permaneciam vigentes com
a venda da propriedade e que estes não prescindiriam de provas escritas para serem validados.
Do mesmo modo, alegava que o novo proprietário tinha a obrigação de tomar conhecimento
das relações contratuais existentes antes de adquirir a propriedade: “A parceria prescinde de
instrumento escrito como condição de validade. – Ao adquirente de propriedade agrícola, cuja
exploração se faça mediante o concurso de trabalho de terceiros, corre o dever de tomar
conhecimento das relações contratuais dêstes com os alienantes”.68 Os contratos de parceria
permaneceriam vigentes e teriam de ser respeitados por César Campos, já que, quando este
adquirira a propriedade, não se preocupara em tomar conhecimento das relações contratuais
existentes entre os antigos proprietários e os moradores. A Justiça de Canindé ainda teria de
aceitar receber os embargos de terceiro prejudicado no nome de Pio e de todos os moradores:
“Acorda a turma Julgadora da Segunda Câmara Civil do Tribunal de Justiça do Estado, por
maioria dos votos, por dar provimento ao agravo, para, cassando a decisão recorrida mandar
que o Juiz a que receba os embargos e os processe na forma da Lei”.69 Portanto, o Tribunal de
Justiça do Estado reconhece que os moradores tinham direitos adquiridos e que o proprietário
não comprara a terra desocupada como alegava o seu advogado.
Mesmo com uma vitória jurídica no Tribunal de Justiça do Estado, os embargos de
terceiro prejudicados não tiveram andamento na Justiça de Canindé, e as ações permaneceram
engavetadas enquanto o conflito entre os moradores e César Campos se acirrava: “Não
entendendo o porquê — explica Lindolfo Cordeiro — os recursos não tiveram andamento e,
com o início do período eleitoral, tudo voltou à estaca zero”.70 Entretanto, mesmo com os
recursos paralisados, Lindolfo Cordeiro conseguiu assegurar a posse da terra aos camponeses,
68
Acórdão do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado. 19 de novembro de 1969. Em 26 de junho de 1970, Lindolfo
entra com uma petição na Comarca de Canindé, solicitando que o juiz de Canindé juntasse aos autos do processo
a Certidão Acórdão do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado. Op. cit.
69
Acórdão do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado. 19 de novembro de 1969. Op. cit.
70
O Povo (CE) 4 fev. 1971. “Desapropriada a Fazenda Japuara”.
65
71
Francisco Julião, advogado e ex-deputado pelo estado de Pernambuco, tornou-se notoriamente conhecido como
uma figura de liderança das ligas camponesas no Nordeste, entre os anos de 1954 a 1964. “Ligas camponesas” é a
denominação que populariza a mobilização camponesa por todo o país, iniciam-se no Engenho da Galileia,
localizado no estado de Pernambuco, no munícipio de Vitória de Santo Antão. Em 1954, um grupo de foreiros do
Engenho da Galileia fundam a Sociedade Agrícola de Plantadores e Pecuaristas de Pernambuco – SAAP. Em
66
judicial por anos com os proprietários de terra. O propósito era que, durante o interstício da
disputa judicial, mesmo que os camponeses perdessem, estes tinham como se preparar para se
retirar da propriedade. Assim, o advogado interpunha recursos em diferentes instâncias e
tentava se utilizar da legislação para garantir o maior tempo de permanência dos moradores na
propriedade:
Eu utilizava sempre tudo aquilo que a lei me permitia. Sempre que havia possibilidade
eu recorria da instância inferior para a instância superior, utilizava os recursos que a
lei me permitia. Quando o juiz tomava uma medida que eu não considerava correta,
ou quando o laudo não me contentava, eu podia usar uma série de recursos. E eu os
usava também, para paralisar o processo. Nos recursos de efeito suspensivo, a
demanda ia toda para o Tribunal e lá passava três, quatro, cinco meses. Enquanto isso,
o camponês ficava descansado e eu tratando de outras coisas.72
princípio, essa sociedade figura-se como uma organização assistencialista para os moradores do engenho,
posteriormente, quando os galileus passam a ser ameaçados de expulsão, estes decidem procurar ajuda externa e
encontram esse apoio na Assembleia Legislativa do Estado de Pernambuco, por intermédio do deputado Francisco
Julião, que passa a representar os galileus e se torna a figura de maior notoriedade das ligas camponesas. Elide
Bastos divide o movimento em três momentos: entre os anos de 1955 a 1961, momento de articulação e de
expansão regional do movimento, o segundo momento, entre os anos de 1961-1963, quando ocorre a sua expansão
nacional. Em 1964, em decorrência do golpe militar, as ligas são desarticuladas devido à forte repressão ao
movimento. Sobre as ligas camponesas ver: BASTOS, E. R. As ligas camponesas. Petrópolis: Vozes, 1984.
AZEVEDO, F. A. As ligas camponesas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
72
JULIÃO, Francisco. Entrevista concedida à pesquisadora Aspásia Camargo em Morelos (México). Rio de
Janeiro: FGV/ CPDOC, 1977.
73
A Lei Negra, aprovada em 1723, estabelecia uma série de delitos, cujo descumprimento era passível de
condenação com a pena de morte. Por isso, foi tida como uma lei extremamente severa já que atos como a caça, a
coleta e pesca poderiam levar os indivíduos à pena máxima de morte pelo Estado. Daí reside a sua extrema
crueldade em estabelecer o que passa a ser configurado pelo Estado como propriedade privada a partir de tal
dispositivo legal. Portanto, foi uma lei que reconfigurou a propriedade privada com extrema rigidez já que as
pessoas tinham anteriormente um acesso mais livre às florestas e aos campos. Não à toa, essa lei encontrou atos
de resistência, apesar da extrema severidade. Enfatiza-se que alguns grupos de caçadores clandestinos eram
conhecidos como “Negros”, pois costumavam pintar os seus rostos de preto para dificultar de serem identificados
67
O autor apresenta que esta lei suscitou conflitos entre as classes ao ampliar o direito de
propriedade privada e punir com pena capital as populações florestanas que insistissem em caçar,
coletar ou pescar nas áreas florestais, campos privados de caça ou locais de pesca. Essa lei findou
por ampliar e proteger a apropriação privada sobre os campos e florestas outrora partes de um
modus vivendi coletivo. A partir da Lei Negra, os sujeitos pegos caçando em áreas florestais,
parques particulares de caça ou locais de pescas eram punidos severamente com a pena capital.
Por outro lado, Thompson (1997) entende que, apesar de a Lei Negra ter servido para ampliar a
apropriação privada e punir severamente aqueles que a descumprissem, ela também impôs limites
ao poder exercido pelas classes dominantes e tornou-se um campo de disputa:
De tal modo, para o autor, a lei tanto poderia ser utilizada para legitimar o poder
exercido pelas classes dominantes, quanto, por outro lado, também inibiria esse poder, podendo
servir para proteger “os destituídos de poder”. De acordo com Esterci (2009): “Thompson se
atreveu, mesmo assim, a questionar a noção, forte na época, de que as leis servem apenas aos
interesses dos poderosos e argumentou que a existência de alguma lei é melhor do que a de
nenhuma lei [...]” (ESTERCI, 2009, p. 225). Assim, a autora enfatiza a visão de Thompson da
importância da lei para “proteger os mais frágeis” da sociedade dos “arbítrios” das classes
dominante. Para ela, Thompson se atreve a perceber as distintas dimensões que envolvem uma
legislação que não necessariamente somente protege os que estão em uma condição de
dominantes. A existência de uma lei que mediasse as relações entre as classes, poderia
representar um entrave ao exercício de poder desmedido:
É verdade que, na história, pode-se ver a lei a mediar e legitimar as relações de classe
existentes. Suas formas e procedimentos podem cristalizar essas relações e mascarar
injustiças inconfessas. Mas, essa mediação, através das formas da lei, é totalmente
diferente do exercício da força sem mediações. As formas e a retórica da lei adquirem
uma identidade distinta que, às vezes, inibe o poder e oferece alguma proteção aos
facilmente pelos guardas florestais ou outras autoridades quando iam caçar animais em áreas florestais ou nos
campos privados, por isso o nome “Lei Negra”.
68
destituídos de poder [...] Como tal, a lei não foi apenas imposta de cima sobre os
homens: tem sido um meio onde outros conflitos sociais têm se travado
(THOMPSON, 1997, p. 558).
O que muitas vezes estava em questão não era a propriedade defendida pela lei contra
a não propriedade; eram as outras definições dos direitos de propriedade: para o
proprietário de terras, o fechamento das terras comunais; para o trabalhador rural, os
direitos comunais; para os funcionários das florestas, "terrenos preservados" para os
cervos; para os habitantes da floresta, o direito de apanhar torrões de grama
(THOMPSON, 1997, p. 351).
Assim, o autor propõe que, ao estudar uma lei, é necessário levar em conta as suas
diferentes dimensões e implicações, não enxergá-la somente como um meio de uma classe
exercer o poder sobre a outra, ou simplesmente como um elemento de superestrutura em que
os indivíduos pouco ou nada podem fazer para modificar a realidade. A lei, em sua concepção,
deve ser abordada como um espaço de conflito entre as classes.
A abordagem de Thompson suscita algumas questões que precisam ser discutidas
em torno da própria utilização do Estatuto da Terra pelo advogado, Lindolfo Cordeiro, para
assegurar direitos e a posse da terra aos camponeses de Japuara. O Estatuto da Terra é
comumente referido pelos autores como uma lei que visava tanto a garantir a Segurança
Nacional, contendo os conflitos de terra, quanto a promover a modernização no campo
(beneficiando os grandes projetos de colonização da Amazônia) e que colaborou para barrar o
acesso dos camponeses à terra:
Apesar de ter sido pensado para conter a tensão social no campo e dificultar o acesso
das classes mais pobres à terra, quando os camponeses passam a cobrar a aplicação desta lei
69
A tática não tem por lugar senão o do outro. E por isso deve jogar com o terreno que
lhe é imposto tal como o organiza a lei de uma força estranha. Não tem meios para se
manter em si mesma, à distância, numa posição recuada, de previsão e de convocação
própria: a tática é movimento "dentro do campo de visão do inimigo", como dizia von
Büllow, e no espaço por ele controlado (CERTEAU, 1998, p. 100).
Assim, não são apenas os pobres de hoje que aprenderam a lidar com o emaranhado
de leis, mas os pequenos posseiros, agregados e arrendatários de outrora – ou para
usar uma terminologia atual os sem terra de ontem já haviam aprendido a defender
legal ou juridicamente seus direitos à terra ocupada. Assim, os conflitos de terra no
Brasil foram e são permeados por lutas diversas: pela história das ocupações, pela
interpretação das normas legais, pelo direito a terra ocupada e muito mais (MOTTA,
1996, p. 19).
Em vista disso, utilizar a Justiça e a Lei, como campo de reivindicação por direitos e
na garantia da ocupação coletiva da terra, não foi um elemento inaugurado com os sindicatos dos
trabalhadores rurais, durante a ditadura civil-militar. De acordo com Motta, os camponeses já se
mobilizavam desde o século XIX, utilizando o campo legal como espaço de reivindicação pela
terra; no caso, utilizavam-se, principalmente, da Lei de Terras de 1850. Na interpretação de
muitos autores clássicos, segundo Motta, a Lei de Terras teria consagrado a propriedade privada
71
da terra e assegurado direitos somente aos grandes proprietários de terra. Assim, a autora os
contrapõe e critica os que defenderam que esta lei se tornou apenas uma “expressão jurídica da
classe dominante” (1996, p. 14) e propõe que seja compreendida levando em consideração as
concepções conflitantes entre as classes sobre esta lei, inclusive, como os posseiros também a
mobilizaram na defesa dos seus interesses e possuíam uma interpretação distinta das classes
dominantes sobre a Lei de Terras. A abordagem que Motta propõe se aproxima da defendida por
Thompson, ao reafirmar que uma lei não pode ser entendida apenas como uma expressão do
interesse das classes dominantes. É preciso considerar como as diferentes concepções sobre uma
mesma legislação podem abrir um espaço de conflito e também como os “destituídos de poder”
(MOTTA, 1996), foram-se apropriando do campo legal como um espaço de reivindicação. As
próprias ligas camponesas travaram seus embates com os proprietários de terra, principalmente,
dentro do campo legal utilizando para isto, como embasamento jurídico, o Código de Processo
Civil de 1939:
74
Huizer observa que os camponeses tendem a devotar um grande respeito pela ordem e lei e muitas mobilizações
camponesas iniciaram com algum tipo de cobrança legal, por isso são acusados de serem “legalistas”. O autor
pondera essa forte necessidade dos camponeses de lutarem pela efetivação da legislação tem relação com o fato
dos governos não desejarem ou terem dificuldades em aplicar as legislações existentes quando estas protegem
mais os camponeses do que os proprietários de terra. Em decorrência disso, a cobrança pela efetivação da
legislação pode adquirir radicalidade: “[...] resulta un estímulo vigorosamente radicalizador en las zonas rurales”
(1974, p. 262).
72
agir de modo violento com os camponeses que permaneciam residindo e cultivando nas terras
que eram objeto de litígio. O fato de os advogados conseguirem manter os camponeses na terra
era um elemento que, por si só, de acordo com Julião, já radicalizava o conflito, pois os
proprietários percebiam isto como uma afronta, um questionamento de sua autoridade
tradicional:
Sabendo de antemão que a luta judiciária duraria o prazo mínimo de dois anos, por
causa das audiências sujeitas a adiamento em virtude de interposição dos recursos,
aconselhávamos o rendeiro a plantar as lavouras necessárias à sua subsistência, como
a mandioca, o milho, o feijão e outras de ciclo vegetativo mais curto. Esse fato, por si
só, concorria para radicalizar a luta. É que o proprietário não se conformava em ter as
terras em litígio cultivadas pelo rendeiro (JULIÃO, 2013, p. 142).
A entrada dos moradores de Japuara na disputa judicial pode ser apontado como
um fator crucial para o desencadeamento de conflitos entre os moradores e César Campos
dentro da esfera cotidiana, com visitas intimidatórias aos camponeses e comprometimento da
permanência dos ocupantes dentro da propriedade, ameaças que muito possivelmente buscavam
inibir que as ações judiciais fossem levadas adiante. Com o envolvimento da Fetraece no
conflito, essas intimidações são intensificadas:
Após o litígio, Pio Nogueira foi instruído a procurar os direitos através da Federação
dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Ceará (Fetraece), pois o caso poderia
revidar com um novo requerimento e pegar a todos desprevenidos, deixando-os em
maus lençóis.
A notícia vazou e novas pressões começaram a surgir. A mando de Júlio César
Campos, seus homens, prestadores de serviços, cometiam os piores absurdos. Durante
a noite queimavam cercas, soltavam animais para que destruíssem as roças,
principalmente campos de algodão (BARROS, 2013, p. 59).
pelos autores, como visto, diz respeito a uma afronta à autoridade tradicional que essas disputas
jurídicas com os proprietários traziam à tona. Era o momento em que se rompiam relações
assentadas no paternalismo e se desgastava a imagem do “homem bom que dá a terra para
plantar”75 perante os camponeses. Como levantado por Julião (2013), depois que os camponeses
entravam em disputa na esfera legal com os proprietários, o conflito adquiria certa
“radicalidade”, já que os camponeses permaneciam na terra sem o consentimento do
proprietário. Assim, as vitórias dos advogados dos camponeses nos tribunais não significavam
uma acomodação do conflito. Pelo contrário, poderiam intensificar as situações conflitivas e,
não raro, eram acompanhadas com atitudes violentas por parte dos proprietários.
No caso de Japuara, essas intimidações também foram intensificadas, seja com o
proprietário ordenando para que se apreendessem animais de criação dos moradores, destruindo
cercas, queimando roçados, prendendo moradores que utilizavam o açude da propriedade (haja
vista que César Campos proibira os moradores de pescarem no açude, mediante o uso tanto de
violência privada (milícias) quanto pública (polícia local)). Assim a própria polícia passa a ser
um elemento atuante no conflito, cometendo violência contra os moradores e servindo enquanto
instrumento de defesa privado dos interesses do fazendeiro. Pio Nogueira chegou a ser preso
pela polícia local antes mesmo dos confrontos e ficou 56 horas detido sem qualquer
justificativa: “Que duas semanas após o depoente vindo a Canindé fazer compras recebeu voz
de prisão do Maj. ONOFRE que havia chegado naquela semana a Canindé como delegado de
polícia, que o depoente indagou o motivo da prisão e o Maj. ONOFRE disse que não
interessava”.76 O conflito, então, torna-se um caso de polícia e evidencia uma histórica
articulação entre Estado e latifúndio, “agentes privados e públicos na efetivação da violência”
(MAIA, 2018, p. 408). Do mesmo modo, são perceptíveis as diferentes estratégias de
intimidação aos moradores, utilizadas por César Campos.
Um elemento que aparece no relato dos moradores, são as violências contra os
animais de criação. Não custa recordar que o proprietário proibira os moradores de Japuara de
criarem animais. De acordo com o sr. Luzardo, os animais de Pio chegaram a ser apreendidos
por ordens do proprietário e só foram devolvidos ao seu pai, quando já se encontravam bastante
75
De acordo com Barreira (1979, p. 152), muitos moradores-parceiros construíam uma certa imagem idílica dos
proprietários de terra, já que eram estes que forneciam a casa de morada e terra de trabalho. Portanto, as relações
entre moradores e proprietários era perpassada por paternalismo e não se restringiam a ser mera relações
contratuais de trabalho.
76
Depoimento de Pio Nogueira à Justiça Militar, prestado em 1974. O depoimento do camponês foi
disponibilizado na página do Brasil Nunca Mais. Ministério Público Federal/BNM 082/Ação Penal 40/72.
Disponível em: http://bnmdigital.mpf.mp.br/pt-br/. Acesso em: 7 ago. 2020.
74
debilitados, e boa parte da criação não escapou em decorrência dos maus tratos infligidos aos
animais:
Papai, um dia, tinha umas cinquenta... sessenta cabeças de cabra. Aí eles pegaram,
botaram em cima de uma caçamba e levaram. Chegaram lá no curral onde o gado
ficava, o matadouro. Aí botava lá no curral do matadouro e realmente servia de
matadouro mesmo, porque o meu pai tinha umas 60 cabeça de cabra e quando
disseram que era pra ele ir buscar ele disse [Pio]: “Não vou não. Vou não e a Justiça
tá com tudo isso aí no caderno”. Aí eles vinham deixar, soltavam nas estradas e elas
vinham bater na casa dele, dessas aí talvez tenham escapado umas 10 ou 12.77
O próprio Pio Nogueira denunciou tal situação à Justiça Militar, quando prestou
depoimento sobre o conflito. Ele enfatizou que os animais foram levados por Cidio Martins,
delegado morto nos confrontos, isto sinaliza o quanto a polícia já era parte atuante nas
intimidações aos moradores e colaborava com o proprietário: “QUE SIDIO MARTINS,
delegado substituto, veio ao sítio e apreendeu a criação do depoente, com 26 cabeças,
conduzindo a criação numa caçamba atrelada a um trator de propriedade de César Campos, até
Canindé, que treze dias após restituíram a criação em péssimo estado”.78 O sr. Alfredo também
fez questão de enfatizar, em seu relato, a violência contra os animais de Pio: “Levaram as
criação do finado Pio, botaram no curral da delegacia quando tava morrendo, o advogado foi lá
e eles mandaram deixar. Rebolava as bichinhas lá de cima do caminhão”.79
É possível perceber a dimensão assumida pela violência em um conflito de terra,
violência não necessariamente traduzida em punições físicas impostas aos moradores, mas
também em intimidações que até hoje provocam um sentimento de injustiça nos camponeses
de Japuara.
Outra marca dos anos de disputas judiciais, que é dimensionado pelos moradores
nos dias de hoje como atitudes de extrema violência, foi a proibição estabelecida por César
Campos de cultivarem os seus roçados na propriedade. Assim, eles recordam as muitas
dificuldades passadas durante o período de mais de dois anos de disputas jurídicas com César
Campos, inclusive, porque todos eles foram impelidos à fome pelo proprietário para que
desistissem de lutar por seus direitos.
Segundo o sr. Jacó, esses dois anos de disputas judiciais com César Campos foram
marcados pela fome, o “tempo de prisão” em que os moradores foram proibidos de plantar pelo
77
Barros, Luzardo, Entrevista, 5 de outubro de 2020, Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda Timbó Mendes. Acervo
pessoal.
78
Depoimento de Pio Nogueira prestado à Justiça Militar, em 1974. Op. cit.
79
FERNANDES, Alfredo Ramos. Entrevista, 23 de setembro de 2020. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda
Mendes. Acervo pessoal.
75
Aí na questão, na questão. Nós passemos dois anos sem plantar aqui na Japuara um
acorde de cabaça proibido por César Campos, tem homem que tá vivo...vai no Lauro
Pelado pra testemunha. Aqui duma família. Dois anos sem plantar um acorde de
cabaça. Tanto fazia Pio, como todos os morador. Seu Pio pra viver, pra criar doze
filhos, que era treze, mas um é sobrinho meu. Pra criar doze filhos, precisou arranjar
um roçadinho no Pedro Pelado ali em cima, um de setenta litros e outro de sessenta.
Pio Nogueira Barros, nas eras de 70 pra 71. A senhora pode anotar isso aí que os
homens tão vivo ainda a família de Pelado, gravar também pode gravar.80
A moradora de Japuara, dona Maria Paes Fernandes (esposa do sr. Jacó), também
destacou, em seu depoimento, as dificuldades vivenciadas durante o período em que os
camponeses foram proibidos de cultivar seus roçados na propriedade:
Vamos criar coragem...vamos trabalhar. Como é que trabalha? Inverno tinha, mas não
tinha serviço. Não tinha serviço pros homens e ninguém podia plantar como ele (sr.
Jacó) disse. Não podia plantar. Foi dois anos a gente vendo a água no chão cair e a
gente não plantar. Foi dois anos sem plantar coisa nenhuma, minha filha. Todo mundo
encostado. A gente via a água caindo no chão e não poder plantar nada. E a fome?
Rum, a fome é o que é. Eu sei que eu não queria ver meus filhos com fome, hora
dessas eu vinha chegando com um saco de mandioca pra relar no ralo pra poder dar
de comer a essas crianças. E nisso, minha filha, passei o ano todinho relando mandioca
e pedindo força a Deus todo tempo que eu tivesse coragem pra eu relar meno a
mandioca pros meus filhos comer. Eu tinha duas...Seu Pio deu umas duas cabrinhas
ao Jacó que eles eram muito amigos e onde ele tiver, ele tá ouvindo. Eu sei que deu
essas cabras dois litros de leite e eu fazia os beijuzinho né? E os bichinhos comia com
leite. Isso era pro almoço e janta.81
80
FERNANDES, Jacó Ramos. Entrevista, 7 de janeiro de 2021. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda Mendes.
Acervo pessoal.
81
FERNANDES, Maria Paes. Entrevista, 7 de janeiro de 2021. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda Mendes.
Acervo pessoal.
76
marcado pelo trabalho árduo dos camponeses, adquiriu outra conotação, já que eles foram
impedidos de cultivarem a terra para assegurarem a alimentação durante o ano. Segundo Moore
Júnior (1987), a privação dos frutos do trabalho árduo, a fome e a violência física provocam
dor nos seres humanos e ninguém almeja “o sofrimento como fim” (MOORE JÚNIOR, 1987,
p. 623).
Assim, é preciso considerar esses relatos como testemunhas do sofrimento
vivenciados pelos moradores de Japuara. Esses narradores impõem aos seus relatos um caráter
de denúncia do que eles passaram durante o processo de disputa judicial com o proprietário e
também nos ajudam a entender o que os moradores definem como violência.
Evidencia-se o quanto entrar em uma disputa judicial com esses fazendeiros, ou
melhor, entrar em uma “questão de terra” como bem definiu o sr. Jacó, trazia consigo muitas
dificuldades e desafios a serem enfrentados pelos camponeses, principalmente, quando estes
residiam nessas fazendas. A dominação, como relatada pelos camponeses, era acompanhada de
uma intensificação da violência por parte dos proprietários. Do mesmo modo, o conflito de
Japuara evidencia as diversas estratégias para forçar a retirada dos camponeses da terra,
principalmente, quando as disputas se prolongavam, fazendo com que a tensão entre os
moradores e César Campos fosse se tornando crescente.
Segundo Garcia Júnior (1989), a violência era um elemento constituidor da relação
de dependência entre proprietários e camponeses, sendo utilizada como instrumento de
manutenção de poder por parte desses patrões, que se valiam de milícias privadas para se
fazerem respeitar dentro e fora do seu âmbito de domínio (GARCIA JÚNIOR, 1989, p. 47). Em
outros termos, para o autor, os camponeses moradores eram constantemente submetidos aos
arbítrios dos proprietários quando faziam algo que desagradasse ou questionasse esse poder
pessoal, e a resposta mais comum dos fazendeiros era a violência contra os camponeses. Do
mesmo modo, era usual os proprietários recorrerem à violência contra os moradores para
preservar a sua autoridade patronal. Assim, faziam também uso da violência como instrumento
para pôr fim aos processos de disputas judiciais. De acordo com Garcia Júnior, os proprietários
costumavam ameaçar os trabalhadores e as suas testemunhas, além de atentar contra suas
moradias e violar os animais de criação dos moradores (1989, p. 80-81). Tudo isso para que os
camponeses desistissem de levar as reivindicações adiante, inclusive, para evitar que outros
camponeses também entrassem em tais disputas jurídicas com os fazendeiros. Assim, para o
autor, são intimidações que visavam também a recuperar a dominação perdida, principalmente,
quando estes proprietários tinham sua imagem combalida em decorrência das disputas jurídicas
com os trabalhadores de suas fazendas.
77
Conforme visto, essas intimidações eram vistas pelos camponeses com indignação
e provocavam um sentimento de injustiça. No caso de Japuara, essas ameaças eram
direcionadas à liderança dos moradores, mas também aos demais camponeses com o propósito
de inibir e desarticular a mobilização, isto é, fazer com que os camponeses desistissem de tais
disputas judiciais com os proprietários ou mesmo que abandonassem a propriedade, já que a
proibição de cultivar os roçados na fazenda comprometia a sobrevivência e a permanência dos
camponeses nesses locais.
Destaque-se que não era a primeira vez que César Campos se envolvia em conflitos
de terra e se incomodava com a organização dos camponeses, agindo de modo violento com
moradores de suas propriedades quando estes questionavam o seu poder pessoal. Faz-se
imprescindível, portanto, discutir o processo de sindicalização dos camponeses de Japuara, em
um contexto autoritário, e as implicações do envolvimento de uma entidade de representação
sindical no conflito.
criação de novos STRs. O líder sindical João Felismino enfatiza, em seu relato, o retorno vagaroso
do movimento sindical no Ceará devido justamente à repressão que se abate sobre os sindicatos
rurais de imediato após o golpe militar. Assim, de acordo com Felismino, o retorno do movimento
sindical camponês ocorre mais aliado às políticas de Estado e com características, segundo ele,
mais assistencialistas do que os sindicatos rurais do pré-golpe militar. No final da década de 1960,
salienta-se a (re)organização da Fetraece e da propaganda sindical, sob nova roupagem, devido
ao temor de uma possível acusação de subversão. Não se podia mais mencionar a reivindicação
por Reforma Agrária:
O estudo dos historiadores Linhares e Silva (1999) defende que, a partir de 1966,
com relação aos padrões de organização do espaço agrário, incidirá a chamada “modernização
autoritária”, definida pelos autores pela inserção de mecanização técnica pautada numa
reorganização neoliberal da economia. Esse momento é definido, no estudo citado, como de
incentivo à industrialização do campo e de mecanismos das chamadas políticas de “bem-estar
social” para os trabalhadores rurais, como o Funrural.83
De acordo com Aldiva Diniz (2008), o retorno do movimento sindical ocorre no final da
década de 1960 e início da década de 1970, aliado às políticas assistencialistas promovidas pelo
Estado, como o próprio Funrural, que incentiva a criação de novos STRs:
No final dos anos de 1960 e início da década de 1970, iniciou-se no Ceará um novo
período de expansão dos sindicatos rurais. Talvez esta expansão seja explicada pela
criação do FUNRURAL, em 1967, que assegurava a assistência médico-social aos
82
Entrevista concedida pelo sindicalista João Felismino de Souza, ex-presidente da Fetraece (1977 a 1980) à
pesquisadora Glória Ochoa, realizada em 15/08/83, p. 8. Documento sob guarda do Nudoc-UFC.
83
Em 1963, foi sancionada a Lei nº 4.214, que aprovou o Estatuto do Trabalhador Rural e criou o Fundo de
Assistência e Previdência do Trabalhador Rural – Funrural. Contudo, de acordo com Ferrante (1975), com relação
à questão previdenciária, o Estatuto do Trabalhador Rural não conseguiu aplicações concretas. Segundo a autora,
somente com a Lei Complementar de 25 de maio de 1971, que institui o Programa de Assistência ao Trabalhador
Rural – Prorural, é que, de fato, esse sistema entra em vigor. O Prorural, segundo a autora, previa aposentadoria
por velhice, por invalidez, pensão, auxílio funeral, além de serviços voltados à saúde e estabelecia o Funrural como
órgão gestor.
79
Parente (1985) afirma que, de 1968 a 1972, foram fundadas mais 71 organizações
sindicais no Ceará, um crescimento súbito de sindicatos rurais atribuído pela autora ao Funrural,
que, ainda segundo ela, transformou os sindicatos em uma “espécie de agência governamental
para prestação de serviços assistenciais e de previdência aos beneficiados, o Estado recria uma
nova forma de intervenção freando a capacidade reivindicativa destas organizações”
(PARENTE, 1985, p. 102). Para a autora, o sindicalismo rural, no regime autoritário, sobrepõe
as políticas assistenciais ao interesse de classe, e isto explicaria o empenho dos proprietários
rurais e políticos na criação dos sindicatos rurais. Por consequência, os sindicatos rurais teriam
sido convertidos em “cabides de emprego”, assentados na política de favores e clientelismo:
“Para os políticos as novas funções atribuídas aos sindicatos representavam oportunidades de
emprego que deveriam ser ocupados pelos seus “afilhados”, donde a importância de influir na
criação desses órgãos e “manipulá-los politicamente” (PARENTE, 1985, p. 102). Portanto, os
sindicatos rurais, durante o regime autoritário, na visão da autora, com o aparelhamento do
Estado, contribuíram para fortalecer as relações tradicionais no campo e não para rompê-las.
Para Alencar et al. (2013), nem todos os sindicatos dos trabalhadores rurais teriam sido
“cooptados” no processo de (re)organização pelo qual o movimento sindical passou no Ceará
depois do golpe militar. Aliás, alguns sindicatos rurais teriam tido uma participação ativa nos
conflitos com proprietários de terra, ainda durante a década de 1970, mesmo sendo um período
marcado pela repressão e pela sobreposição das pautas assistenciais. Entre estes que se mantiveram
ativos, encontra-se o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Canindé:
No caso dos sindicatos que não abandonaram a luta por terra e por reforma agrária,
então enfrentaram e resistiram as determinações da ditadura militar resultou em
conflitos violentos, nos quais trabalhadores e policiais foram mortos. Foi o caso da
Fazenda Japuara, 1971, município de Canindé, envolvendo 60 famílias; Fazenda
Jardim, 1979, município de Aratuba, 5 famílias, e Monte Castelo, 1978, município de
Quixadá, 35 famílias (ALENCAR et al., 2013, p. 41).
Matos (2017) também defende a relevância do papel exercido pelos sindicatos rurais
nos conflitos com os proprietários de terra durante a década de 1970. Mesmo reconhecendo que, de
fato, durante o regime militar, muitos sindicatos possuíam um caráter mais assistencialista e
abandonaram as reivindicações de outrora ensejadas pelo movimento antes do período autoritário,
como a cobrança por direitos e reivindicação por reforma agrária. A autora destaca a mediação do
Sindicato Rural de Canindé no conflito da Fazenda Japuara:
80
É no início da década de 1970 que se intensificou no Ceará uma série de conflitos por
terra e garantia de direitos trabalhistas cujos envolvidos são os trabalhadores rurais
por intermédio dos sindicatos e os grandes proprietários de terra. Uma das lutas
mais emblemáticas e noticiadas desse período foi a da Fazenda Japuara, no município
de Canindé que envolveu os moradores do local e o dono da terra: o comerciante César
Campos [...] (MATOS, 2017, p. 168. Grifo nosso)
Todavia, o Sindicato Rural de Canindé, para alguns estudiosos, não teria tido uma
relevância no conflito de Japuara, tendo a Fetraece sim exercido papel central no processo de
organização dos moradores e na mediação do dissídio. Para esses autores, o Sindicato Rural de
Canindé estaria com uma atuação mais voltada às políticas assistenciais e não possuía um
departamento jurídico bem estruturado para prestar assistência aos agricultores envolvidos em
conflitos com proprietários:
Em Japuara os trabalhadores rurais não tiveram tanto apoio do STR de Canindé, mas
sim da Federação dos Trabalhadores Rurais do Ceará. Isso ocorreu porque, conforme
sindicalistas da época, este cuidava mais de problemas previdenciários e direitos
trabalhistas nas comunidades rurais, reconhecendo que o departamento jurídico não
estava ainda bem estruturado para receber causas dessa natureza (LIMA; SAMPAIO,
2006, p. 9).
Para o agricultor José Ferreira de Almeida, o Sindicato sob sua direção tem cuidado
especialmente dos problemas sanitários e educacionais dos camponeses, muito
embora também deva prestar auxílio também nos casos dessa natureza. Por isto
mesmo, ainda não tomou qualquer posição com relação ao caso de Japuara, mesmo
por que êste está entregue à Federação dos Trabalhadores na Agricultura. 84
De acordo com o sr. Luzardo, o STR de Canindé não teve atuação tão ativa no
conflito de Japuara, pois, na época, temia sofrer represálias. Em contrapartida, considerou mais
relevante o papel exercido pela Fetraece na mediação do conflito, pois foi por meio desta que
os camponeses de Japuara obtiveram assessoria jurídica. Ressaltou a presença constante de
Lindolfo Cordeiro nas reuniões ocorridas na propriedade:
84
O Jornal Gazeta de Notícias (CE) errou o nome do Presidente do Sindicato Rural de Canindé neste trecho,
tratava-se de Francisco Almeida e não José Ferreira de Almeida, na primeira menção ao sindicalista, a reportagem
transcreveu o nome correto, contudo, no trecho selecionado, ocorreu um erro. Essa entrevista foi concedida depois
do confronto de 2 de janeiro de 1971, portanto, quando o conflito passa a ser notícia nos jornais.
81
Segundo Moacir Palmeira (1985), os sindicatos rurais, após o golpe militar, tiveram
de atender às “regras do jogo” impostas pelo regime autoritário. Assim, para o autor, os
sindicatos tiveram de pôr em prática um “legalismo de sobrevivência”. Portanto, passa a ser
uma atuação colada com o estabelecido pela legislação. Os STRs, de acordo com o autor,
recortariam, quando inquiridos a mencionarem sobre os conflitos por terra em sua área, somente
aqueles que pudessem realmente ser enquadrados na legislação trabalhista ou agrária. Assim
sendo, a conjuntura autoritária limitou o envolvimento dos sindicatos rurais em conflitos
agrários, isto é, estes passam a agir com certa “precaução” em atuar como agentes mediadores
ou mesmo a “tomar esses conflitos como seus” (PALMEIRA, 2013, p. 48-49). Todavia, por
mais que o Sindicato Rural de Canindé sobrepusesse, durante o período autoritário, as questões
“assistenciais” e não tivesse força suficiente para mediar um conflito de terra, o STR de Canindé
estava inserido em um “sistema sindical mais amplo”, com representação na esfera estadual
(Fetraece) e nacional (Contag), que também poderiam intervir no conflito de Japuara:
O sindicato por menos atuante que seja, é um corpo estranho que se introduz numa
relação, cuja exclusividade é parte de sua própria natureza. Se a legislação e a própria
justiça podem ser neutralizadas pela função de mediação dos grandes proprietários e
chefes políticos locais, o sindicato é o novo mediador, dificilmente “capturável” pela
sua própria vinculação a um sistema sindical mais amplo, que se introduz nas relações
entre campesinato e o Estado. É a lei do fazendeiro que passa a ser relativizada
(PALMEIRA, 1985, p. 48).
85
BARROS, Luzardo. Entrevista, 5 de outubro de 2020. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda Mendes. Acervo
pessoal.
82
86
FERNANDES, Jacó Ramos. Entrevista, 7 de janeiro de 2021. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda Mendes.
Acervo pessoal.
87
Depoimento de Pio Nogueira à Justiça Militar, prestado em 1974. O depoimento do camponês foi
disponibilizado na página do Brasil Nunca Mais. Ministério Público Federal/BNM 082/Ação Penal 40/72.
Disponível em: http://bnmdigital.mpf.mp.br/pt-br. Acesso em: 7 ago. 2020.
83
QUE o depoente antes procurou saber as “Mercedes” que o tal sindicato traria para o
pessoal; QUE foi explicado pelo então Presidente da Federação que isto
proporcionaria assistência de dentista, para extrair dentes, assistência medica para
operação de hérnia estrangulada, e advogacia para defesa do que fosse do interesse do
trabalhador rural e quanto mais que o depoente procurasse o presidente do sindicato
de Canindé.88
88
Id., Ibid.
84
os camponeses e esses fazendeiros. Por outro lado, o autor também pondera que isto envolve
algumas desvantagens como o aparelhamento de tais organizações camponesas por aqueles que
controlam tais recursos (HUIZER, 1976, p. 277). De todo modo, é preciso levar em
consideração que a oferta de tais serviços assistenciais aos camponeses faz com que estes
ponderem os riscos e custos de se vincularem aos STRs e como esta vinculação significava, não
raro, ter acesso a direitos até então negados a eles, como serviços médicos, acesso à escola e
assistência jurídica. Por isso, o sr. Jacó denomina a carteira de membro do STRs de Canindé
como a “carteira da aposentaria”, porque, para ele, foi por meio da vinculação a tal entidade
que os camponeses tiveram acesso a esse direito. Isto também é perpassado, em certa medida,
por um sentimento de gratidão dos camponeses voltado agora às entidades sindicais e não mais
aos proprietários de terra.
Para o sr. Alfredo, a vinculação ao STR de Canindé era um meio de ter acesso à
Federação dos Trabalhadores Rurais: “Ai se não fosse o Sindicato, porque o sindicato tinha a
Federação dos Trabalhador né!?”.89 O camponês fez ainda questão de sublinhar que os
moradores se inseriram nessa estrutura sindical que envolvia diferentes instâncias de
representação e formaram um sindicato próprio: “Nós fizemos o sindicato, nós tinha o sindicato,
nós tinha a Federação dos Trabalhador que ajudava nós também”.90 Desse modo, ele percebe
toda uma estrutura sindical envolvida na organização dos moradores, ele relata que até hoje faz
questão de pagar a mensalidade do STR de Canindé, por ter considerado relevante o papel
exercido pela entidade no conflito:
89
FERNANDES, Alfredo Ramos. Entrevista, 23 de setembro de 2020. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda
Mendes. Acervo pessoal
90
Id., Ibid.
91
Id., Ibid.
85
contavam com a presença do advogado Lindolfo Cordeiro, que passa a ser parte atuante do
conflito, assim como também eram acompanhadas de perto pelo advogado dos proprietários,
Barros dos Santos. Segundo o sr. Luzardo, Lindolfo Cordeiro era um advogado “experiente nas
leis”, pois conhecia “os novos estatutos” que resguardavam os direitos dos trabalhadores rurais,
diferente de Barros dos Santos, advogado de César Campos, que somente conhecia “os estatutos
velhos”. De modo que, para o sr. Luzardo, Lindolfo Cordeiro apresentava-se um intelectual que
dominava o formalismo jurídico ao conhecer “as novas leis” e utilizá-las na defesa dos
moradores:
92
BARROS, Luzardo. Entrevista, 5 de outubro de 2020. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda Mendes. Acervo
pessoal.
86
conhecimento jurídico, quanto o deslocamento aos locais dos conflitos colaboravam para a
mobilização de todos dos trabalhadores e para que estes se apropriassem do espaço legal como
um campo de disputa com os proprietários de terra (TAVARES; QUINTANS, 2018, p. 626).
Assim, no relato do sr. Luzardo, evidencia-se o papel ativo exercido por Lindolfo
Cordeiro na socialização do conhecimento jurídico ao discutir com os camponeses estes
“estatutos novos” (Estatuto do Trabalhador Rural e Estatuto da Terra), os quais, naquele
contexto específico, eram legislações recentes. Os camponeses ainda estavam se apropriando
desse âmbito legal na defesa dos seus direitos, daí por que os narradores as denomina
“estatutos novos” em suas falas. Em sua entrevista, o sr. Luzardo, embora sequer se refira pelo
nome aos dois estatutos citados, é capaz, assim como os demais camponeses, de dimensionar a
importância das novas leis, os novos estatutos, que passam a garantir-lhes uma série de direitos.
Pio Nogueira, em seu depoimento prestado à Justiça Militar, enfatizou que,
quando buscou orientação jurídica de Lindolfo Cordeiro, o advogado orientou que os
moradores permanecessem pagando a renda da terra, os 30% do algodão, conforme pagavam
a Anastácio Braga Barroso, antigo proprietário. Um ponto que desperta atenção no
depoimento de Pio Nogueira é que ele, então, explica aos militares como devia ser o
pagamento da renda da terra aos proprietários, conforme o disposto no Estatuto da Terra. Ele
relatou que o advogado do proprietário, Barros dos Santos, participou de uma reunião em
Japuara e o indagou sobre o percentual de renda paga pelos camponeses. Ele então começa a
explicar aos militares quais as condições previstas na legislação agrária com relação ao
percentual da renda da terra que poderia ser cobrada dos camponeses pelos proprietários:
“QUE BARROS SANTOS passou a indagar sobre o percentual de renda pago pelo
trabalhador, tendo o depoente explicado 30% sobre o algodão tendo a terra nua e 10% sobre
tudo que produzisse sobre a terra nua, 50% do algodão sobre o algodão da terra cercada”.93 É
perceptível, então, a apropriação do texto legal pelos camponeses. Isto é um ponto relevante,
pois indica como os camponeses sustentaram a mobilização amparados no texto legal do
Estatuto da Terra, além de mostrar como a propriedade passa a ser utilizada como local de
encontro dos camponeses e de apropriação das novas leis.
Portanto, esses novos agentes mediadores foram fundamentais para levar ao
conhecimento dos trabalhadores rurais às legislações trabalhistas e agrárias que resguardavam
93
Depoimento de Pio Nogueira à Justiça Militar, prestado em 1974. O depoimento do camponês foi
disponibilizado na página do Brasil Nunca Mais. Ministério Público Federal/BNM 082/Ação Penal 40/72.
Consultar o site http://bnmdigital.mpf.mp.br/pt-br/. Acesso em: 7 ago. 2020.
87
seus direitos. Por isso, tais agentes encontraram resistência em atuar no meio rural, já que os
proprietários os enxergavam como “inimigos” por orientarem os trabalhadores rurais.
(BARREIRA, 1992, p. 55).
Assim, a participação de um advogado sindical no conflito significou o rompimento
de relações tradicionais: “Contratar um advogado era uma forma de dizer ao senhor que a
relação de direitos e deveres entre os donos da terra e os trabalhadores não seria mais
estabelecida apenas verbalmente ou por meio da política do que eram considerados “pequenos
favores [...]” (MONTENEGRO, 2004, p. 395). Por isso, existia um processo de resistência por
parte dos proprietários em aceitar que os moradores se vinculassem aos STRs, tendo em vista
que isto significava ter acesso ao formalismo jurídico e entrar em disputas judiciais com esses
proprietários. Da mesma forma, com a mediação dos advogados sindicais nos conflitos, os
camponeses vão-se apropriando sobre o que diziam os textos legais que resguardavam os seus
direitos.
Devido às reuniões que ocorriam na fazenda agregarem camponeses de regiões
circunvizinhas, Japuara transformou-se em uma Delegacia Sindical, ampliando seu campo de
atuação. Os camponeses então perceberam que enfrentavam problemas em comum não
restritos ao interior de cada propriedade rural. Esses encontros fortalecem a mobilização dos
moradores de Japuara, que passam a contar com a participação de agricultores não
necessariamente implicados no conflito com César Campos: “Devido ao sucesso em número
de associados de lugares remotos, os sindicalistas decidiram, com o aval dos sócios, fundar
uma delegacia no local, ficando assim a sede regional com direitos a expandir o movimento
em seus limites geográficos” (BARROS, 2013, p. 63). Assim, é importante considerar que, a
mobilização dos moradores de Japuara não se iniciou a partir da sindicalização rural e da
apropriação do texto legal, mas com o envolvimento das entidades sindicais e a apropriação da
legislação agrária abriu um campo de possibilidades aos camponeses na reivindicação dos seus
direitos.
Conforme visto, a organização dos moradores foi envolvendo diferentes etapas até
que eles decidissem pautar as suas lutas em torno da sindicalização rural, levando em
consideração os riscos e benefícios envolvidos. É importante considerar ainda como o
envolvimento das entidades sindicais no conflito os fortaleceu e deu ainda mais organicidade
ao movimento dos moradores, isto é, a mobilização dos moradores por seus direitos se inicia
antes da sindicalização, mas, ao se vincularem às entidades sindicais, fortaleceu.
Uma questão que desperta atenção é o incômodo gerado ao advogado do
proprietário em decorrência das reuniões dos camponeses, as quais passam a ocorrer em Japuara
88
com a fundação de uma Delegacia Sindical. O próprio Pio Nogueira também enfatizou, em seu
depoimento à Justiça Militar o incômodo, gerado a Barros dos Santos ao tomar conhecimento
de que os moradores fundariam uma organização sindical dentro de Japuara. Segundo tal
depoimento de Pio, os representantes do proprietário acompanhavam de perto tais encontros
dos camponeses, inclusive, acompanharam a fundação da Delegacia Sindical: “QUE no dia da
fundação chegam ao local dr. Barros, Cesinha Campos e Fernando Honorato. Que então
BARROS DOS SANTOS indagou que movimento era aquele e que o depoente esclareceu que
estava sendo fundada uma Delegacia Sindical.94 O advogado do proprietário teria, então,
questionado a Pio se tal encontro era do conhecimento do proprietário, e o camponês afirmará
que não, pois César Campos se recusava a conversar com ele e com os demais moradores.
Portanto, a fala de Pio indica que os encontros em Japuara não eram autorizados pelo
proprietário.
James Scott afirma que qualquer encontro de subalternos que não seja de iniciativa
do senhor, proprietário ou mestre é visto com desconfiança e encarado pelas autoridades como
uma ameaça implícita à ordem estabelecida (SCOTT, 2013, p.103-104). Ele define tais
encontros dos subordinados, quando desautorizados pela elite que os governa, como “reuniões
clandestinas”. Para Scott, tais encontros provocam nos grupos dominantes um sentimento de
ameaça, pois indicam uma maior autonomia dos dominados e constituem “um estímulo à
ousadia dos subordinados (SCOTT, 2013, p. 107).
Esse acompanhamento da reunião dos camponeses de Japuara por representantes
de César Campos indica esse sentimento de ameaça que tais reuniões provocavam nestes grupos
dominantes, tendo em vista que esses encontros contavam com a presença de entidades sindicais
e de camponeses de outras propriedades da região, além do fato de que tais encontros dos
camponeses passam a acontecer mesmo à revelia dos patrões. Em outros termos, as reuniões
claramente ameaçavam a ordem estabelecida e colocava em xeque o poder de tais proprietários.
Por isso, as reuniões dos moradores de Japuara eram constantemente vigiadas, pois
explicitavam claramente o questionamento de uma hierarquia de poder.
A Delegacia Sindical de Japuara funcionava na casa do agricultor Pio Nogueira
Barros, a liderança dos moradores. Como atesta o depoimento do sr. Luzardo, durante as
reuniões, a Fetraece e os camponeses discutiam os “novos estatutos”, contribuindo, dessa
94
Depoimento de Pio Nogueira à Justiça Militar, prestado em 1974. O depoimento do camponês foi
disponibilizado na página do Brasil Nunca Mais. Ministério Público Federal/BNM 082/Ação Penal 40/72.
Disponível em: http://bnmdigital.mpf.mp.br/pt-br/. Acesso em: 7 ago. 2020.
89
forma, para que os moradores se apropriassem do que estava disposto na legislação trabalhista
e agrária. As reuniões tanto exerciam o papel de atrair camponeses de outras propriedades da
região para participar desses encontros, quanto representavam o momento de “socialização
do conhecimento jurídico” com os camponeses (TAVARES; QUINTANS, 2018, p. 626).
É preciso lembrar que a Lei nº 4.214, de 2 de março de 1963, que dispõe sobre o
Estatuto do Trabalhador Rural,95 não faz menção à existência de delegacias sindicais dentro da
estrutura dos sindicatos dos trabalhadores rurais. Contudo, o parágrafo 2º do artigo 517, do
Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943 – Consolidação das Leis do Trabalho (CLT),
estabelecia que ficava a cargo dos sindicatos instituir delegacias ou seções para tornar mais
efetiva a presença do sindicato: “§2º Dentro da base territorial que lhe for determinada é
facultado ao sindicato instituir delegacias ou secções para melhor proteção dos associados e da
categoria econômica ou profissional ou profissão liberal representada”.96
A função das delegacias sindicais era exercer uma espécie de ponte entre os
camponeses de determinados locais e a diretoria do sindicato rural, já que os trabalhadores
rurais se concentravam em regiões, não raro, afastadas da sede do sindicato. Assim, era uma
forma de a entidade estender os seus “tentáculos” para regiões mais longínquas e tornar o
sindicato mais ativo nas comunidades.
As reuniões para fundar as primeiras Delegacias Sindicais em Canindé e estudar o
Estatuto da Terra aconteciam no interior das propriedades rurais embaixo das árvores ou em
casas escondidas, isto é, eram reuniões desautorizadas pelos proprietários de terra:
O nosso Sindicato foi criado para conseguirmos a Reforma Agrária pois existiam em
Canindé muitos latifúndios e a “meia” do algodão era cobrada sem perdão por estes
patrões que ainda colocavam o gado para invadir nossos roçados. Tudo isso e muito
mais ia de encontro a lei do Estatuto da Terra nº 4.504 de 1964 (Lei da Reforma
Agrária). As reuniões para articular as primeiras delegacias sindicais e estudar a lei
4.504 eram feitas muitas vezes embaixo de árvores ou em casas escondidas”. 97
95
Lei nº 4.214, de 2 de março de 1963. Dispõe sobre o Estatuto do Trabalhador Rural. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1950-1969/L4214.htm. Acesso em: 13 jul. 2020.
96
Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943. Aprova a Consolidação das Leis do Trabalho. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm. Acesso em: 13 jul. 2020.
97
Informação fornecida por Alfredo Paz, membro do Sindicato Rural de Canindé. O sindicalista nos entregou um
cordel de sua autoria em comemoração aos 50 anos de fundação do sindicato, escrito em 2018, e um texto escrito
a punho sobre a história da fundação do Sindicato Rural de Canindé, que, segundo ele, complementa e explica o
cordel.
90
representação dos trabalhadores rurais: “[...] procurar também crescer o número de associados e
representar a diretoria em problemas que aparecem entre trabalhador e empregador”.98
Segundo Francisco Julião, as delegacias sindicais, que também despontaram nos
Engenhos de Pernambuco, eram uma forma de os camponeses perderem o medo de uma outra
delegacia, a de polícia: “Preferimos dar a cada núcleo o nome de Delegacia. É. uma maneira de
fazer o camponês perder o mêdo da outra Delegacia – a de polícia. Dêsse modo, o soldado de
polícia tem a sua Delegacia, e o camponês tem a dele” (JULIÃO, 1962, p. 47).
Assim, as Delegacia Sindicais não são uma peculiaridade de organização dos
camponeses do Ceará, mas podem ser apontadas como uma particularidade do sindicalismo
rural em relação ao urbano, já que os camponeses viviam em regiões mais longínquas das sedes
dos STRs. Do mesmo modo, pode-se refletir como fundar uma Delegacia Sindical dentro das
propriedades rurais constituíam uma declaração aberta de conflito com os proprietários de terra.
O papel de delegado sindical de Japuara e região do entorno ficou a cargo de Pio
Nogueira Barros. Portanto, o agricultor transformou-se em uma liderança camponesa com
atuação não circunscrita aos limites de Japuara. De acordo com Felismino, o delegado sindical
era uma figura que ligava as bases ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais:
98
Entrevista concedida pelo sindicalista João Felismino de Souza. Op. cit., p. 11.
99
Entrevista concedida pelo sindicalista João Felismino de Souza. Op. cit., p. 11.
100
Consolidação das Leis do Trabalho – CLT (Decreto-lei n° 542, de 1º de maio de 1943). Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm. Acesso em: 4 jul. 2021.
91
ele resolve, e se não é possível, então, esse elemento faz o apanhado de todas as ocorrências e
traz e representa a diretoria juntamente com o trabalhador prejudicado”.101 A diretoria do
sindicato, no que lhe concerne, caso não resolvesse o conflito, poderia acionar a entidade de
representação sindical de 2ª instância, caso, por exemplo, da Fetraece, que passou a prestar
assessoria jurídica aos moradores de Japuara, e esta, por sua vez, poderia acionar a Contag,
representação sindical de 3ª instância.
Pio, ao se tornar Delegado Sindical da região, torna-se um mediador de possíveis
questões que surgissem entre trabalhadores rurais e proprietários de terra, tornando-se um
representante do STR de Canindé em Japuara e nas propriedades vizinhas. O camponês torna-
se uma liderança sindical dos camponeses da região. Com a fundação de uma delegacia sindical,
Japuara torna-se, então, um local de mobilização de camponeses provindos de outras
propriedades. Isto é, o conflito deixa de se circunscrever aos limites de sua unidade geográfica:
“A quebra da crença da legitimidade do poder tradicional, fundado sobre relações pessoais, que
acompanhou a implantação dos sindicatos, rompeu com a possibilidade de conflito ‘locais’, isto
é, limitados a uma única unidade geográfica ou social [...]” (PALMEIRA, 2013, p. 48). Assim,
os espaços de morada dos camponeses foram transformados em tentáculos do STR de Canindé,
reconfigurando as relações entre proprietários e moradores.
De acordo com Barreira (1979), o fato de os camponeses residirem dentro das
propriedades implicava maior controle sobre os moradores por parte dos patrões. Por outra via,
esse sistema favorecia uma aglutinação desses camponeses que poderiam vir a se organizar para
questionarem essas relações de trabalho e poder. Dessa forma, os moradores passam a utilizar
as fazendas, locais onde residiam e trabalhavam, como espaços de mobilização para fundar as
Delegacias Sindicais e estudarem a legislação agrária – o Estatuto da Terra.
Sigaud (1979) observa a ruptura de práticas tracionais que implicaram no fim da
morada em decorrência da reivindicação por direitos dos trabalhadores dos engenhos de
Pernambuco. Para a autora, o trabalhador tornar-se morador implicava colocar-se à inteira
disposição do patrão, assumindo as “lutas” desse proprietário, por exemplo, nos momentos de
eleição, votando em seu candidato, “entregando parte da produção”, sem que, para isso, fosse
necessária a firmação de contratos formais. Sigaud enfatiza que os proprietários enxergavam
esses moradores praticamente como um “patrimônio incorporado à propriedade”. A partir do
momento em que esses trabalhadores começam a utilizar as fazendas como espaços de
organização coletiva, os proprietários dos Engenhos observam o sistema de morada como uma
101
Entrevista concedida pelo sindicalista João Felismino de Souza. Op. cit., p. 11.
92
ameaça a sua autoridade e passam a recusar esses camponeses como forma de desarticulá-los e
evitar que as propriedades continuassem a ser locais de mobilização camponesa.
Dessa forma, quando os camponeses passam a utilizar as fazendas, ou seja, os seus
locais de morada e trabalho como espaços de organização, ameaçam as relações anteriormente
existentes e implicadas diretamente com o ser morador. Assim, passam a sofrer ameaças de
despejo. A criação de uma Delegacia Sindical em Japuara pode ser apontada como mais um
elemento conflitivo com César Campos, já que Japuara tornou-se um espaço de congregação
de trabalhadores rurais da região e o comerciante era avesso à sindicalização de moradores de
suas propriedades.
Merece atenção especial o fato de a criação de uma delegacia sindical e as vitórias
jurídicas no Tribunal de Justiça do Estado trouxeram mais confiança aos moradores de Japuara
na possibilidade de permanecer na terra, mesmo com as constantes ameaças de despejo: “Foi
quando o povo confiou e teve um pouco de firmeza na Justiça, que se apresentava de outro
ângulo. A criação da delegacia sindical foi como botar lenha na fogueira. E haja madeira para
queimar! A situação, de crise, passou de mal a pior” (BARROS, 2013, p. 63). Assim, os
moradores entendem que o “presente estado das coisas” não era permanente ou mesmo
inevitável” e que a situação poderia ser revertida em favor dos camponeses (MOORE JÚNIOR,
1987 p. 626). Assim, eles adquirem mais confiança ao perceberem a própria capacidade de
organização com a criação de uma delegacia sindical na propriedade. Ao mesmo tempo, a
interferência dos agentes externos, tais como a Fetraece e a criação da Delegacia Sindical em
Japuara intensificou as situações conflitivas com César Campos:
102
BARROS, Luzardo. Entrevista, 5 de outubro de 2020. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda Mendes. Acervo
pessoal.
93
chamada para a matéria: “Proprietário de Canindé quer liquidar camponeses”, informando que o
proprietário teria soltado animais com o propósito de destruir as plantações dos agricultores e
intimidá-los:
Esta história do sr. César Campos, mandar decretadamente, 200 homens atacar
campôneses que desejam, a mando comunista, se apossarem de certa faixa de terra
denominada “Cobra de Veado”, dêste munícipio, é verdadeiramente falsa. Houve
sim, no dia 12 último, o assalto à Fazenda, mas planejado por livre vontade de
pessoas populares, as quais cientes dos inacábíveis propósitos dos moradores
daquela Fazenda até lá se deslocaram a fim de desfazerem os planos subversivos a
103
Correio do Ceará (CE), 7 set. 1963.
104
O Nordeste (CE), 15 set. 1963.
105
Terra Livre (SP), set. 1963.
94
que ali estavam acontecendo. Contra os legítimos direitos de propriedade do sr. Cesar
Campos.106
Portanto, nas entrelinhas do texto, José Alves admite a invasão da Fazenda Cobra
de Veado e o ataque aos camponeses. Entretanto, eximia o proprietário da responsabilidade ao
defender que o ataque fora uma iniciativa do que ele denominou como “ação de pessoas
populares”, que teriam se dirigido à fazenda com o propósito de pôr fim aos “planos
subversivos” dos camponeses. Esses sujeitos teriam atacado os camponeses por conta própria,
sem envolvimento do comerciante. Nesse sentido, o autor desvinculou César Campos do
conflito ocorrido na Fazenda Cobra de Veado e legitimou a ação orquestrada por esses
“populares”, pois os camponeses estariam atentando contra o direito de propriedade.
O deputado estadual e também advogado de César Campos, Barros dos Santos, que
também o defendeu no conflito de Japuara, realizou um pronunciamento na Assembleia
Legislativa do Estado do Ceará, alegando que a única verdade divulgada pelos jornais era a
prisão do presidente do Sindicato Rural de Canindé:
O sr. César Campos jamais – assinalou – pensou em tacar fogo em roçados de seus
moradores. E a única coisa verdadeira em tudo que foi divulgado, é a prisão do
Presidente do Sindicato dos Trabalhadores Agrícolas por ter desacatado, em plena rua,
o sr. Cesar Campos. O deputado Barros dos Santos observou, em aparte, que se forem
respeitados os termos do acordo celebrado entre os rendeiros e o sr. César Campos e
se não houver interferências estranhas no problema, o incidente será superado de
pronto. “O que houve – acentuou – foi o envolvimento dos camponeses por uma onda
comunista. 107
106
O Estado (CE), 18 set. 1963.
107
O Povo (CE) 17 set. 1963.
95
de Maia (2008), “[...] dimensões de violência, que mesmo antes do golpe de 1964, se abatia
contra os lavradores, bem como as resistências que contras elas foram se delineando” (2018, p.
373). Portanto, é possível perceber que, mesmo em um contexto democrático, os proprietários
de terra já agiam de modo violento quando os camponeses pautavam a sua organização sindical,
do mesmo modo, é perceptível como estes buscavam articular em seus discursos a ameaça
comunista à organização dos camponeses.
Por outra via, a organização dos camponeses de Cobra de Veado indica, de acordo
com Matos, que os camponeses de Canindé já acumulavam forças muito antes da mobilização
de Japuara: “Esse fato mostra que as lutas por terra e melhores condições trabalhistas já eram
vivenciadas em Canindé em anos anteriores, mas atingiram seu estopim com o episódio violento
e sanguinário de Japuara” (MATOS, 2017, p. 168).
O episódio ocorrido em Cobra de Veado apareceu no relato dos camponeses de
Japuara, indicando a extrema violência do proprietário quando este desejava efetivar o despejo
de moradores de suas propriedades:
Teve um despejo por conta dele aqui, Cobra de Veado, mandou fazer. Morreu gente,
morreu uma mulher, acabou de parir, de ter uma criança, morreu. Pegaram os tambor
de feijão, tambor de milho e botaram no meio, passaram o carro por cima. Ficou só os
bagaços, os tambor véi. Aí uma véia da boca santa jogou uma praga no motorista. O
motorista saiu mangando, ficou mangando: “Agora vão fazer o sindicato de vocês
debaixo do Juazeiro”.108
Tinha uma na fazenda... Fazenda Oiticica, mas o nome de lá antes era...deixar eu ver
se eu me lembro antes...Até uma mulher que tava em tempo de dar à luz a uma criança,
eles mataram. Botaram ela dentro de uma rede, isso foi um voluntário que andava com
eles, teve dó dela. Armaram uma rede debaixo de uma moita, talvez fosse uma moita
tipo essa aí, ficava na sombra. Mas ela de tanto sofrer vexame não resistiu, morreu lá
dentro da redinha mesmo e eles atirando. As cabacinhas tudo cheias de feijão e eles
tacavam fogo, fogo que eu digo bala, as cabacinhas caía no chão e ficava tudo
derramado. Eu acho que ele tá pagando, se ele tá pagando é uma coisa que Deus
determinou o sofrimento dele. Até que ele pague tudo que ele fez com os pobres.109
108
FERNANDES, Alfredo Ramos. Entrevista, 23 de setembro de 2020. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda
Mendes. Acervo pessoal.
109
BARROS, Luzardo. Entrevista, 5 de outubro de 2020. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda Mendes. Acervo
pessoal.
96
modo semelhante com camponeses moradores em outras propriedades na região. Assim, como
Barros dos Santos, que também fazia uso de sua posição política para safar o proprietário das
acusações dos camponeses que reverberavam na imprensa.
Os moradores mobilizam a história de outros conflitos por terra, para chamar
atenção ao fato de que o ocorrido em Japuara se insere em uma mobilização mais ampla de
moradores das fazendas da região que também se rebelaram contra César Campos e sofreram
represálias. Ao mesmo tempo, são narrativas que trazem à torna experiências distintas da luta
pela terra, inclusive, remetem às experiências de derrota vivenciadas pelos moradores de Cobra
de Veado, cujo desfecho foi distinto do de Japuara, já que César Campos conseguiu efetivar o
despejo dos moradores. Assim, são memórias de derrota e vitória que coabitam em tais relatos.
Os fatos que ocorreram em Cobra de Veado eram utilizados pelo filho de César
Campos conhecido por “Cesinha” como “exemplares” do que poderia acontecer com os
moradores de Japuara, caso estes continuassem a confrontá-los. Em um depoimento prestado
por Pio Nogueira à Justiça Militar, este sinaliza como esses fatos eram empregados pelo
proprietário e sua parentela para frear a organização dos moradores de Japuara:
Que Cesinha então modificou e voltando-se para o depoente disse que iria resolver
aquele caso como fizera na “COBRA DE VEADO”; QUE o depoente quer esclarecer
que esse sitio “COBRA DE VEADO” fica mais ou menos uma légua de Japuara e que
Cesinha havia desalojado o morador de lá FRANCISCO ALMEIDA e FRANCISCO
NOVO e outros moradores utilizando-se de um caminhão e determinando que
derrubasse a casa de ré, o que foi feito não obstante estar uma senhora em estado
interessante; QUE esta senhora foi removida e colocada debaixo de um pé de pau em
uma rede junto com uma criança de um ano e pouco. QUE o motorista que derrubou
a casa chamava-se FRANCISCO BERTULINO; QUE em consequência disso a
mulher de FRANCISCO NOVO que fora alojada debaixo de um pé de pau começou
a ter suores e tremores e a noite por volta das oito horas terminou seus dias de vida.
QUE o depoente alertou a Cesinha que aquilo não podia dar certo em JAPUARA
porque a casa do depoente era de parede dupla e podia ocorrer que no momento da
demolição morresse morador e o carro ficasse destruído. 110
110
Depoimento de Pio Nogueira à Justiça Militar, prestado em 1974. O depoimento do camponês foi
disponibilizado na página do Brasil Nunca Mais. Ministério Público Federal/BNM 082/Ação Penal 40/72.
Consultar o site: http://bnmdigital.mpf.mp.br/pt-br/. Acesso em: 7 ago. 2020.
97
às entidades sindicais, o que, naquele contexto, representava aos olhos dos patrões uma afronta
ao direito de propriedade, além de subversão.
O processo de organização dos moradores de Japuara acirrou um conflito cada vez
mais aberto. Os camponeses relataram que a destruição dos roçados por capatazes de César
Campos ocorriam normalmente à noite, entretanto, aos poucos, as intimidações do proprietário
vão deixando de serem veladas, e essa destruição dos roçados passa a ocorrer também durante
o dia, conforme o depoimento do sr. Luzardo: “Quando deram fé eles tavam eram queimando
a cerca era de dia!”.111 Dessa forma, os enfrentamentos entre camponeses e proprietário se
circunscreviam, em um primeiro momento, a intimidações silenciosas que evitavam, em
princípio, o embate aberto. O caminhar do conflito mostrou ao proprietário que as ameaças
veladas não surtiram o efeito esperado, isto é, os moradores permaneciam contestando sua
autoridade. César Campos, então, passa a agir de modo cada vez mais incisivo, deixando claro
aos camponeses de Japuara o rompimento da relação de morada e o seu descontentamento com
a permanência destes na terra.
Esse fato fica evidente na fala do sr. Luzardo, quando ele relatou que a destruição
das cercas que protegiam os roçados passa a ocorrer também durante o dia, tendo em vista que
antes a queima do roçado e a destruição das cercas aconteciam durante a noite. O que sinaliza
que tradicionalmente esses embates entre os moradores e patrões eram travados de modo
dissimulado. Isto é, normalmente os proprietários agiam de modo velado, mas provocando
atritos que tornavam a permanência dos moradores inviável. Era o “matar na unha”, como bem
definiu um dos camponeses entrevistados por Almeida e Esterci (1979, p. 114).
Assim, os proprietários se utilizavam de estratégias distintas quando visavam a
romper a relação de morada. Agiam furtivamente evitando os confrontos declarados e, aos
poucos, essas intimidações se tornavam abertas. Existia por parte dos proprietários a percepção
de que o confronto travado dessa maneira poderia reverberar de modo negativo e corroer sua
imagem (como foi o caso de Cobra de Veado, que ganhou repercussão na imprensa e que
provocou o desgaste da figura César Campos perante a sociedade.
Os conflitos por terra ocorriam em “terrenos distintos” até se tornarem
declaradamente abertos entre os fazendeiros e os moradores (SCOTT, 2002, p.14). Mesmo
quando os camponeses saíam derrotados, somente o fato de o conflito ser francamente
declarado e ganhar notabilidade na imprensa também era, mesmo que parcialmente, uma
derrota para esses fazendeiros. O patronato agrícola tinha então os seus motivos para evitar, na
111
BARROS, Luzardo. Entrevista, 5 de outubro de 2020. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda Mendes. Acervo
pessoal.
98
medida do possível, tornar explícito esse choque com os moradores das fazendas e
sorrateiramente intimidavam estes na tentativa de expulsá-los das terras, mas evitando que o
conflito ganhasse maiores repercussões, pois poderia ocasionar envolvimento de entidades
sindicais ou mesmo ganhar visibilidade na imprensa.
Se César Campos modificou a sua estratégia no encaminhar do conflito de Japuara,
isto é, foi deixando de agir de modo sorrateiro e passando a intimidar os moradores de modo
mais aberto, igual atitude adotaram os camponeses, que passam a vislumbrar outras estratégias
de enfrentamento ao se organizarem em “mutirão”.112 Em outros termos, compuseram uma
“turma”, como relatou o sr. Luzardo, para evitar que o gado do proprietário fosse colocado por
capatazes nos roçados dos moradores:
Chegaram lá, eles [Capatazes de César Campos] já estavam era abrindo o buraco pra
colocar o gado. Aí quando eles se ajeitaram pra botar o gado dentro, aí chegou cinco
[moradores] e ficou no buraco onde eles já tinham aberto e disse:
[Moradores] “Olha, é daí pra lá. Gado aqui hoje não entra nenhum aqui.”
[Capatazes de César Campos] “Por que que não entra?”
[Moradores]: “Porque não entra”.
Aí o doutor Lindolfo veio e disse: “É assim que se trabalha, não trabalhe sozinho. Tem
que ser grupo de pessoas, de 20 pessoas pra cima que é pra segurar a justiça”. E assim
ele fazia tudo por onde mandava o Estatuto, ele nunca fazia por onde a justiça pegar
ele né!? 113
112
Tradicionalmente os camponeses realizam o chamado “mutirão” que consiste em trabalhos coletivos com
alguma finalidade. Normalmente, são formados mutirões em momentos de colheita ou de algum trabalho árduo
que demande a cooperação coletiva destes, como a “farinhada”. No caso de Japuara, percebemos que o mutirão é
ressignificado como uma estratégia de enfrentamento coletivo que se insere dentro de um modus vivendi dos
camponeses.
113
Os moradores sempre mencionam uma parte da propriedade que era conhecida como “Manga”. BARROS,
Luzardo. Entrevista, 5 de outubro de 2020. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda Mendes. Acervo pessoal.
99
114
Cordel do “Cinquentenário do Sindicato” (1968-2018). Alfredo Paz, membro do Sindicato Rural de Canindé.
20 de outubro de 2018.
101
recrutamento de trabalhadores da obra de emergência contra a seca, para seguirem até a fazenda.
Nesse dia, teriam recebido uma importância de 10 cruzeiros para efetivar ações como arrombar
a parede do açude, destelhar as moradias dos residentes de Japuara e destruir as cercas
(GOMES, 2006; BARROS, 2013).
O número de trabalhadores da frente de emergência de Canindé contratados por
César Campos variava, nos relatos sobre o conflito, entre 30 até 180 homens, que optaram por
faltar o dia de serviço, em troca de uma melhor remuneração oferecida pelo proprietário.
Portanto, talvez não tenham cogitado muito em se deslocarem até Japuara para cumprir as
ordens de César Campos:
Arrombar uma barragem de açude poderia exigir muitos braços humanos, o que foi
percebido pelo proprietário na frente de trabalho comandado pelo DNER em Canindé, ou seja,
mão de obra abundante e de baixo custo. César Campos, então, aproveita-se da situação de
maior vulnerabilidade imposta pela seca e contrata os que costumeiramente eram conhecidos
como “cassacos”, já que dificilmente teria que despender um custo elevado em contratar essa
mão de obra. Nesse sentido, o proprietário redimensionou a mão de obra dos “flagelados da
seca” para cometer atos de violência contra os moradores de Japuara
De acordo com Barreira (1992), o açude, foi o principal sujeito desse primeiro
confronto em Japuara: “No primeiro, o personagem principal é o açude, cujo papel é vital no
cotidiano dos residentes da fazenda... É ele que fornece o peixe e a água. Interessado no despejo
dos moradores, o proprietário contratou homens para arrombar o açude, destelhar casas” (1992,
p.48).
É importante considerar que, na narrativa dos moradores, o proprietário não queria
arrombar o açude. O que César Campos desejava era destruir as moradia dos camponeses e
provocar o despejo. Durante a entrevista, questionei aos moradores se, no dia nos confrontos, o
proprietário enviou os trabalhadores da frente de serviço para destruir o açude, fato este que foi
negado por mais de um entrevistado. Conforme relatou o sr. Luzardo, filho de Pio Nogueira
Barros, o estopim do primeiro conflito foi a derrubada da casa da liderança:
Aí aconteceu que meu pai era meio disposto pra não aceitar as coisas que eles iam
impondo né!? Até que um dia aconteceu o pior, exatamente foi a chacina de 4 mortos,
102
um avô do Alfredo 21 e o resto foram deles. Um que foi destelhar a casa, a casa era
ali do outro lado de frente aquele mercantilzinho ali, só que do outro lado da pista,
aonde a gente morava. Aí procuraram derrubar a casa e no sistema deles arrombar o
açude, mas não queria arrombar o açude não, eles queriam era derrubar as casas e
botar todo mundo pra fora.115
Nesse sentido, a casa de Pio adquire uma centralidade na memória dos moradores
de Japuara sobre os confrontos, mais do que o próprio açude. Aquela personifica o despejo e
representa o ponto alto do conflito com César Campos, que já se arrastava por anos. Assim, eles
constantemente ressaltam que o fazendeiro não desejava arrombar o açude, pois ele próprio
ficaria sem água para prover o gado que criava em Japuara. O questionamento feito aos
moradores, isto é, se o objetivo do proprietário, ao enviar tais homens da frente de serviço a
Japuara, era destruir o açude que existia na fazenda, causou certa indignação entre os
moradores, tendo em vista que a versão do proprietário era esta, isto é, ele teria enviado os
trabalhadores para arrombar o açude e estes teriam se desviado da tarefa para a qual haviam
sido contratados e teriam resolvido por conta própria destruir as moradias dos camponeses.
Segundo a versão dos camponeses, o proprietário não teria ordenado que os
trabalhadores da frente de serviço destruíssem o açude. Isto é sustentado mediante algumas
observações. Por exemplo, o fato de os trabalhadores das frentes de serviço não terem ido até o
açude no dia do confronto e, de imediato, terem iniciado o destelhamento da casa de Pio:
Entrevistadora: Sr. Alfredo, lá naquele tempo lá que esses homens vieram pra cá, os
da frente de serviço, eles vieram era pra arrombar o açude?
Alfredo: Era uma lábia, não ia arrombar açude não, foi uma sugesta que fizeram.
Porque aqui tinha duas mil e tanto gados numa fazenda, de onde é que esse gado ia
beber?
Nesse tempo o açude tava quase cheio né!? Uma sugesta que eles inventaram,
trouxeram os cassacos pra abrir, pra arrombar o açude e lá não pisaram. Ele foi pra
audiência no juiz, ele tava mais nós lá, dono da terra, seu César Campos e o juiz
perguntou: “Como é que o senhor ia arrombar o açude? O senhor com mais de 2 mil
gado na fazenda, esse seu gado ia beber aonde?” O Seu César: “A gente dava um
jeito”. Foi sugesta, eles vieram fazer o despejo, vieram fazer o despejo, já tinham
arranjado três despejo.116
115
BARROS, Luzardo. Entrevista, 5 de outubro de 2020. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda Mendes. Acervo
pessoal.
116
FERNANDES, Alfredo Ramos. Entrevista, 23 de setembro de 2020. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda
Mendes. Acervo pessoal.
103
sim promover o despejo dos camponeses, conforme também relatou o sr. Jacó: “Aí lá vem o
despejo, mandado pelo juiz. O despejo mandado pelo Juiz de Pio Nogueira Barros com todos
os moradores. Como é o despejo? Derrubar todas casas e deixar só a Casa Grande e a Cachoeira.
César Campos fazendo isso.”117
Ainda é relevante enfatizar que a casa de Pio Nogueira era a sede da Delegacia
Sindical de Japuara, portanto, simbolizava a própria organização dos moradores e representava
uma afronta direta a César Campos. Não por acaso, foi a residência escolhida para se iniciar o
destelhamento pelos trabalhadores da frente de serviço.
É importante considerar que o rompimento da relação de morada não ocorre de
modo repentino. Na verdade, os proprietários evitavam confrontar-se de modo direto com os
camponeses, na medida do possível, mas alguns conflitos cotidianos já sinalizavam aos
camponeses o desgaste dessa relação. Como fora visto, o conflito de Japuara foi em decorrência
de um “acúmulo de situações cotidianas”, como bem define Scott (2013), e a destruição da casa
é apontada pelos camponeses como a gota d’água, o ponto de não retorno da relação com César
Campos.
É interessante notar que um dos indícios de que a relação entre camponeses e
proprietários já se encontrava corroída era a deterioração das residências oferecidas aos
camponeses. Maupeou (2015) observou como os proprietários dos Engenhos, em Pernambuco,
deixavam de realizar a manutenção das moradias, com vistas a uma deterioração destas,
tornando, aos poucos, insustentável a permanência dos camponeses na terra: “A redução do sítio
e o abandono da casa levariam, portanto, o trabalhador a deixar a terra, sem que para isso tivesse
sido expulso pelo empregador” (2015, p.47). Ele ainda observou que os camponeses entrariam
em uma arena de disputas judiciais cobrando dos proprietários dos Engenho de Pernambuco o
oferecimento de moradia higiênica e em boas condições, além do sítio para cultivo, provocando
disputas com os proprietários rurais.
Nesse sentido, as residências eram corriqueiramente objeto de tensão entre
camponeses e proprietários de terra. A deterioração das moradias já indicava aos camponeses
que a presença deles se tornara indesejada no interior dessas fazendas e sinalizava que eles
deveriam buscar um novo lugar para residir. Observa-se ainda como os proprietários deixavam
de realizar a manutenção das residências com o propósito de impor aos camponeses que estes
se retirassem daqueles locais, isto é, a deterioração da habitação era utilizada por esses
proprietários para evitar, na medida do possível, conflitos declarados com os camponeses.
117
FERNANDES, Jacó Ramos. Entrevista, 7 de janeiro de 2021. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda Mendes.
Acervo pessoal.
104
Um dos motivos que levavam os camponeses a buscar uma nova morada em outras
propriedades, inclusive, eram as condições das instalações oferecidas a eles pelo patronato
agrícola. Como pode ser visto no depoimento do camponês e sindicalista João Felismino, que
relatou os inúmeros motivos de rompimento da relação de morada entre camponeses e o
patronato agrícola no Ceará:
Dali a gente se mudou para o Sítio Pelado. Lá não havia condição da gente ficar. O
dono da terra era muito pobre e também muito ruim. E a casa que ele dera pra gente
morar era uma casa que não oferecia condição. Começava a chover e, quando chuva
passava, ficava chovendo mais dentro da casa de que a chuva que tinha chovido do
lado de fora, que a casa era coberta de palha, muito mal coberta. 118
118
Entrevista concedida pelo sindicalista João Felismino de Souza, ex-presidente da Fetraece (1977 a 1980) à
pesquisadora Glória Ochoa, realizada em 15/08/83, p. 8. Documento sob guarda do Nudoc-UFC.
105
normalmente as casas das lideranças camponesas, locais que também passam a ser utilizados
como espaços de mobilização sindical.
Dezemone (2008) também observou que, quando os proprietários não desejavam
mais os colonos em suas terras, uma das primeiras atitudes tomadas era o destelhamento das
casas dos camponeses. Segundo ele, os proprietários davam um prazo para os colonos
abandonarem as residências; caso estes não se retirassem dentro do período estabelecido, tinha
início a retirada das telhas das casas dos colonos: “A ‘lei deles’ seriam determinações
particulares dos fazendeiros, que caso não aceitas, motivariam a expulsão em vinte e quatro
horas da fazenda. Se o prazo exíguo não fosse obedecido ocorria a retirada das telhas da casa
do colono” (DEZEMONE, 2008, p. 126). A retirada das telhas das moradias sinalizava que eles
deveriam abandonar de imediato a propriedade. Assim representava o rompimento definitivo
da relação entre o proprietário e os colonos: “As vinte quatro horas e a retirada das telhas,
comuns nas fazendas da região, encerravam o contrato social implícito, sem ressarcimento ou
indenizações de qualquer natureza pelo trabalho e benfeitorias do colono” (DEZEMONE, 2008,
p. 127). Portanto, a retirada das telhas das habitações dos camponeses ou a sua destruição eram
práticas recorrentes entre os proprietários de terra tanto do Sudeste quanto do Nordeste. Isto
indica o quanto as residências dos moradores adquiriam uma centralidade nos conflitos de terra.
A destruição das habitações, além de caracterizar o modus operandi dos
proprietários nos confrontos com os camponeses, buscava resguardar a autoridade que se
encontrava ameaçada pelos camponeses, principalmente, quando estes passam a utilizar as
fazendas como espaços de mobilização sindical. Isto é, o fato de César Campos ordenar a
destruição das casas das lideranças dos camponeses de suas propriedades não constitui fato
isolado. Segundo Palmeira (1989), a interferência dos sindicatos colabora “para enfraquecer os
padrões tradicionais de dominação” e representa ainda uma “negação personalizada do poder
do latifúndio” (1989, p. 101-102). Assim, atentar contra as moradias era algo corriqueiro entre
os proprietários de terra quando estes desejavam despejar os camponeses das fazendas,
principalmente, em uma situação de perda de poder pessoal que se encontrava ameaçada com
a interferência dos STRs em tais relações.
Observa-se ainda que o processo de organização dos moradores ocorria no interior
dessas fazendas e a estrutura da casa da liderança camponesa servia como ponto de apoio ao
STR local, a exemplo, da residência de Pio, que era sede de uma Delegacia Sindical. Então,
atentar contra a moradia dessas lideranças sindicais tornou-se um modo de intimidar e
desarticular a mobilização sindical dos camponeses que utilizavam a morada como espaço de
organização coletiva.
106
E assim graças a Deus aconteceu. Ele chegou, tinha 8 na frente da casa apreciando os
outros derrubando a casa. Aí ele chegou:
[Pio]: “Eu vou ter que fazer o que o meu coração não pede”.
Mas ele se segurou, chegou até aonde eles tavam, aí conversou com eles. Ele tava com
a espingarda e o facão, porque tava derrubando as bananeiras. Aí quando ele chegou,
diz ele que bateu, bateu o facão assim na perna e ficou brincando, batendo na perna.
Aí quando... quando ele viu as pessoas destelhando a casa, jogando as telhas no chão,
quebrando tudo aí ele disse:
[Pio] “Meus amigos, por que vocês estão tomando essa decisão contra mim e a minha
família?”
Aí eles disseram:
[Trabalhadores da frente de serviço]: “Seu Pio, nós não tamo aqui pra fazer nada com
o senhor e nem estamos aqui pra ordenar ninguém. Nós tamo aqui é fazendo com que
nós sejamos o seu futuro testemunho e se o senhor precisar, pode chamar que a gente
vai.”
Aí quando... quando eles observaram que ele tava entrando dentro de casa, aí saíram
mais ou menos quatro ou cinco, desceram e os outros ficaram em cima da casa. Aí
tinha um, que até tirava ele do sério, ele dizia pra ele:
[Trabalhador]: “Véi, manda as meninas fazer o café que quando nós terminar de
sacudir a última telha embaixo, nós vamos tomar o café”.
Aí ele disse:
[Pio]: “Meus amigos, eu quero fazer um convite a vocês a descerem daí. A escada
ainda tá aqui, vocês desçam e deixe que o patrão de vocês venham fazer o que vocês
estão fazendo”.
Aí eles continuaram com a prosa, mandando que as meninas fizessem o café, que
tavam com vontade de tomar o café. Aí ele começou a ficar um pouco injuriado com
o que tava vendo, aí quando ele fez o pedido pra descer, aí desceram mais uns três, só
ficou dois. Aí ele perguntou:
[Pio]: “E vocês dois? Vão ficar aí mesmo em cima da casa?”
[Trabalhadores da frente de serviço] Nós só saímos daqui, quando não tiver uma telha
em cima”.
Aí ele disse:
[Pio]: “Tudo bem”.
Diz ele que era um sistema tão pesado como tava acontecendo, aí ele disse:
[Pio]: “Eu não vou resistir tanto insulto não, vou reagir”. Aí mandou eles descerem,
eles tornaram a dizer:
[Trabalhadores]: “Manda as meninas fazer o café, nós só saímos daqui quando tomar
o café e quando não tiver mais uma telha em cima”.
Aí ele pegou a espingarda, ficou olhando os dois. Quando os dois ficaram em posição,
de um tiro só derrubar todos os dois, aí ele fez.
Ele disse[Pio]: “Então vocês não querem me ouvir, vocês querem é fazer a derruba da
minha casa.
Eles disseram [Trabalhadores]: “É pra derrubar, o patrão quer a casa limpa, sem
ninguém”.119
É importante considerar que o sr. Luzardo não estava presente no dia dos
confrontos, mas ele personifica a figura do pai em sua narrativa e traz, em seus diálogos, o que
ele passa a considerar como insultos por parte dos trabalhadores da frente de serviço que
levaram a figura paterna a agir daquele modo: fazer o que o seu coração não desejava e atirar
em direção a esses trabalhadores que se recusaram a atender aos clamores de Pio. A liderança
dos camponeses aparece como um herói injustiçado que, por anos, aguentou humilhações do
119
BARROS, Luzardo. Entrevista, 5 de outubro de 2020. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda Mendes. Acervo
pessoal
108
proprietário e que foi levado a agir de modo contrário aos seus princípios. Para os camponeses,
Pio só atirou contra os trabalhadores da frente de serviço porque foi impelido a isto, não resistiu
aos insultos desses trabalhadores e fez o que o seu coração não desejava. No relato dos
camponeses, aparecem os elementos que vão conduzindo aquele ao clímax da história do
conflito. Assim, a narrativa do sr. Luzardo consiste no intercâmbio de experiência entre ele e
os demais moradores de Japuara, pois ele relata o que escutou de outrem: “O narrador retira da
experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as
coisas narradas as experiências de seus ouvintes” (BENJAMIN, 1987, p. 201).
De acordo com Benjamin (1987), a arte de narrar está cada vez mais cara entre os
homens, principalmente após a Segunda Grande Guerra, já que, segundo ele, tais homens
retornavam emudecidos dos campos de batalha e não mais ricos em experiências: “É a
experiência de que a arte está em vias de extinção. São cada vez mais raras as pessoas que
sabem narrar devidamente (1987, p.197). É interessante refletir como ainda alguns grupos de
camponeses conseguiram preservar essa habilidade narrativa, cujas histórias contadas buscam
não só envolver aquele que escuta, mas também retiram uma lição do que relatam, pois, para
Benjamin, “o narrador é um homem que sabe dar conselhos” (1987, p. 200). Assim, o sr.
Luzardo pode ser apontado como um exímio narrador, já que ele consegue envolver aquele que
escuta e tem a capacidade de intercambiar experiências.
A narrativa do sr. Luzardo nos mostra ainda capacidade imaginativa envolta nos
relatos memorialísticos das classes populares, no caso dos camponeses: “Fontes orais de classes
não hegemônicas são ligadas à tradição da narrativa popular” (PORTELLI, 1997, p. 30). Os
elementos factuais são narrados de modo imaginativo e poético que não se limita a relatar os
fatos, mas produz uma narrativa que envolve também aquele que escuta. Existe ainda uma
diluição entre o acontecimento e a imaginação, entre o indivíduo e o grupo. A imaginação, no
caso desse relato, toma ainda mais vazão pelo fato de ele não ser uma testemunha ocular dos
confrontos. A sua memória é produzida a partir de uma imaginação social compartilhada entre
ele e os demais moradores:
Em certo sentido, o que chama atenção no relato do sr. Luzardo é justamente isto:
a capacidade de imaginar, de criar diálogos entre os personagens, mais do que restringir-se à
109
mera detenção nos fatos, tendo em vista a riqueza de detalhes e diálogos em que é construída a
sua representação sobre o conflito. Ele refaz o caminho do seu pai, buscando esclarecer o que
teria levado Pio a tomar uma atitude violenta contra os trabalhadores da frente de serviço. É
fundamental perceber que são os diálogos entre Pio e os trabalhadores que justificam a reação
do camponês, foi necessário reagir diante dos insultos desses homens.
É perceptível como os relatos orais são carregados de imaginação por parte de seus
narradores, o passado é contado a partir de experiências que produzam sentidos no tempo
presente: “[...] mas talvez mais ainda pelas habilidades imaginativas e narrativas com que são
construídas, que podemos perceber a mais profunda consciência histórica dos falantes”
(THOMPSON, 1998, p. 309). Assim, a riqueza testemunhal reside também na capacidade do
narrador de se distanciar do fato e dar vazão a sua imaginação: “A importância do testemunho
oral pode se situar não em sua aderência ao fato, mas de preferência em seu afastamento dele,
como imaginação, simbolismo e desejo de emergir. Por isso não há falsas fontes orais”
(PORTELLI, 1997, p. 32).
Segundo Portelli (1986), não temos como ter a certeza do “fato”, tendo em vista
que o que as fontes relatam pode não ter “sucedido verdadeiramente” daquela maneira, mas é
relatado de modo verdadeiro. Dito isto, tomam-se neste trabalho as narrativas orais como uma
representação dos fatos ou mesmo interpretações dos acontecimentos, pois, como afirma o
autor, seria ilusório tratar qualquer relato testemunhal como uma tomada dos fatos de modo fiel
e autêntico ao acontecimento, pois “recordar e contar já é interpretar” (PORTELLI, 1996, p. 2).
De tal modo, a narrativa do sr. Luzardo está inserida em uma memória coletiva
construída sobre os fatos, mas carregada de representações: “As histórias que relembramos não
são representações exatas do nosso passado, mas trazem aspectos desse passado e os moldam
para que se ajustem às nossas identidades e aspirações atuais” (THOMSON, 1997, p. 57). As
narrativas divergem a partir do lugar social ocupado por esse sujeito e também de acordo com
as expectavas atuais dos narradores: “a memória é uma operação de sujeitos historicamente
situados, que se realiza na medida em que acontece uma (re)composição do passado sob direta
influência de experiências do presente”. (RAMOS, 1997, p. 364). Além de serem atravessadas
por escolhas do que lembrar e esquecer: “Esse movimento está apoiado por em um processo de
escolhas onde as pessoas elegem o que lembrar e o que narrar” (CARDOSO, 2010, p. 39).
Assim, os narradores trazem, em seus discursos, uma interpretação dos
acontecimentos e expectativas que não podem ser enquadrados como reprodução fiel dos fatos:
“fontes orais contam-nos não apenas o que o povo fez, mas o que queria fazer, o que acreditava
estar fazendo e o que agora pensa que fez” (PORTELLI, 1997 p. 31). Portanto, é necessário
110
compreender o relato oral como uma representação que faz uso dos fatos, mas que não se detém
em relatar somente o que se passou: “os fatos são reconhecidos e organizados de acordo com
as representações” (PORTELLI, 2006, p.111). O fato de a casa de Pio ter sido destelhada pelos
trabalhadores da frente de serviço é inegável, bem como um desses trabalhadores ter sido morto
durante tal confronto, mas a interpretação de tais acontecimentos emerge de imediato a partir
do relato do sr. Luzardo, que não esteve presente nos confrontos, mas disse que transmitiria os
acontecimentos conforme o que o seu pai havia contado.
É fundamental salientar que o relato do sr. Luzardo são registros da memória
individual entrelaçada e diluída em uma memória coletiva sobre os acontecimentos e que
buscam se respaldar dentro do grupo: “Certamente, se nossa impressão pode apoiar-se não
somente sobre nossa lembrança, mas também sobre a dos outros, nossa confiança na exatidão
da evocação será maior, como se uma mesma experiência fosse recomeçada não somente pela
mesma pessoa, mas por várias” (HALBWACHS, 1990, p. 25). Por mais que o seu corpo físico
não tenha se tornado testemunha dos confrontos em Japuara, o simples fato de ele se afirmar
enquanto filho da principal liderança e divulgador dos acontecimentos conforme as lembranças
do seu pai o sedimentam como um narrador confiável para recontar a história do conflito. Assim
ele se coloca.
De acordo com Cardoso (2010), as narrativas orais possibilitam ao historiador
compreender experiências sociais compartilhadas entre os sujeitos em tempos cruzados: o do
acontecido e o do relato (2010, p. 32). Trabalhar com narrativas orais, segundo a autora,
permitem ainda discutir como o mundo social é construído por esses sujeitos em seus
relacionamentos com os demais e também inserir na História os grupos socialmente
marginalizados. Todavia, é importante considerar que o historiador não deve trabalhar com os
relatos orais apenas para dar voz a esses sujeitos, mas sim para compreender a esfera social em
que estes se encontram inseridos com as “suas experiências nos debates diários com outros
sujeitos dominantes ou não” (CARDOSO, 2010, p. 38) e, também, como estes narradores se
constroem enquanto sujeitos. Trabalhar com relatos orais, em uma perspectiva da história
social, significa trabalhar com essas narrativas por meio de um olhar que traz à tona as questões
do historiador “voltadas para a compreensão do social e de seus interlocutores” (2010, p. 38).
De tal modo, é possível utilizar as memórias para tentar compreender o mundo social dos
sujeitos e sua ligação com os diferentes estratos sociais, sejam eles dominantes ou não.
Nesse sentido, toda memória individual é também atravessada por esses aspectos
sociais que dizem respeito a uma construção de uma memória coletiva sobre tais
acontecimentos. O passado passa a ser sentido pessoalmente pelos sujeitos por meio dessa
111
Aí ele disse [Pio]: “Meu filho é o seguinte: os gritos que eles estão fazendo e
acontecendo é uma coisa que é para nos amedrontar, mas nós não podemos ter
assombro nenhum com isso não. Eles não valem nada é igual a nós ou pior”.
Aí quando começaram a subir na casa né!? Destelharam a casa toda.
O Alfredo contou dessa maneira?120
O que indica a preocupação de ter uma consonância entre o seu relato e o do grupo,
principalmente com os narradores enquadrados como testemunhas oculares do conflito. De
acordo com Alistair Thomson, do mesmo modo que se busca a afirmação da identidade pessoal
dentro de comunidade específica, as reminiscências também necessitam ser (re)afirmadas
dentro de um grupo ao qual o sujeito se vincula (THOMSON, 1997, p. 58). Assim, as memórias
dos narradores oculares servem de fios condutores para os demais camponeses para recontarem
a história do conflito. Portanto, são narrativas, numa perspectiva de Walter Benjamin (1987),
que recorrem à experiência individual e vivida por outros para construir uma memória de si e
do grupo. A memória desses camponeses pode ser compreendida como um espaço de
intercâmbio de experiências constituídas pela memória do narrador e da vivida pelos outros,
especialmente, no caso do sr. Luzardo, uma memória paterna sobre os confrontos que se
confunde no seu relato com as suas próprias lembranças e com a sua própria interpretação desse
passado.
Do mesmo modo, é inegável como os trabalhadores, ao promoverem o
destelhamento da casa de Pio, afrontam-no na esfera de uma honra masculina, principalmente,
quando o sr. Luzardo enfatiza constantemente que os trabalhadores afirmaram que, depois que
retirassem a última telha da casa de Pio, tomariam o café feito pelas meninas que estavam no
120
BARROS, Luzardo. Entrevista, 5 de outubro de 2020. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda Mendes. Acervo
pessoal.
112
Aí ele disse:
[Pio]: “Eu vou derrubar todos dois, eles não querem me ouvir e eu não vou mais pedir
nada pra eles. Já pedi umas cinquenta vezes e não querem”.
Aí ele foi, botou a espingarda no rumo dos dois, aí apertou o dedo. Quando ele apertou
o dedo, aí caiu o segundo que ele atirou entre as pernas do outro. Aí o chumbo pegou
no segundo, que era o que mais fazia ele ficar injuriado com eles. Aí ele apertou o
dedo. Quando ele apertou o dedo, o que tava na frente pulou. Aí quando bateu
embaixo, entortou o pé né!? O pé saiu da junta e ficou sem resistência e mesmo assim
ele fez carreira na estrada. A estrada era a 020 de hoje. Aí ele foi...quando... quando o
outro pulou, o que estava atrás dele, saiu bolando em cima dos caibros, até que desceu
e caiu em cima das madeiras. Só o tiro não matava ele não, mas ele caiu em cima da
própria madeira que os amigos dele tavam quebrando, tanto quebrava como cortava e
tudo ficando com as pontas pra cima. Ele bateu em cima das pontas de madeira e
morreu todo estrepado também, coitado. Aí meu pai foi... nessa hora o meu pai tava
sozinho, não tava só porque Deus tava encostado dele, proteção dele né!? Porque eu
até lendo a bíblia eu vejo em Matheus, tem exatamente sobre os injustiçados, então
eu fiquei pensando nisso depois de tudo.123
Nos depoimentos dos moradores, fica evidente que Pio agiu daquela forma em
decorrência da necessidade de defender a si e aos seus que se encontravam no interior da casa:
a sua mulher e os seus filhos. Foi uma reação dos injustiçados, como pôde ser visto no
121
Id., Ibid.
122
FERNANDES, Jacó Ramos. Entrevista, 7 de janeiro de 2021. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda Mendes.
Acervo pessoal.
123
BARROS, Luzardo. Entrevista, 5 de outubro de 2020. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda Mendes. Acervo
pessoal.
113
depoimento do sr. Luzardo ao citar uma passagem bíblica e enfatizar que os moradores tiveram
que fazer justiça pelas próprias mãos, já que em certa medida eles se sentiram abandonados
pela justiça dos homens.
Nesse sentido, a narrativa sobre o episódio do primeiro confronto busca destacar
situações que constrangeram Pio no momento do despejo e que o levaram a reagir de modo
violento contra os trabalhadores da frente de serviço. Um desses episódios que evidenciam esse
constrangimento se relaciona com as palavras ditas por Joaquim Piau tomadas como insultos
ao submeterem Pio a uma situação vexatória diante dos demais camponeses. Principalmente,
quando o trabalhador da frente de serviço afirmou que, depois que despejasse a família de Pio,
tomaria o café feito pelas meninas que estavam no interior da casa presenciando o despejo. Para
os moradores, tais palavras rompem o limite do tolerável.
Assim, na interpretação dos conflitos de terra, também é necessário compreender
os sentimentos dos sujeitos e as situações consideradas humilhantes: “Uma compreensão da
história da luta pela terra deve voltar para estes momentos de resistência teimosa, de análise das
necessidades materiais e dos afetos, tais como sentimentos de humilhação, injustiça e
desumanização” (BRITO, 2017, p. 20). Para os camponeses entrevistados, esses trabalhadores
da frente de serviço, ao pronunciarem tais palavras, durante o despejo, tocam profundamente
os sentimentos e a intimidade de Pio.
Nesse sentido, os relatos induzem a refletir como o conflito de Japuara também foi
ocasionado por uma quebra de determinados códigos de conduta do mundo masculino e como
os entrevistados percebem determinadas atitudes dos trabalhadores da frente de serviço como
uma afronta direta à honra de Pio ao submeterem a uma humilhação diante do grupo de
camponeses. Segundo Velasco e Sutil, a honra alicerça-se em princípios ligados tanto à
virilidade quanto aos valores morais considerados essenciais pelos sujeitos na constituição
individual e a sua posição no grupo: “A honra é compreendida como um cálculo individual a
respeito do que a sociedade espera como aceitável e necessário para efeito de afirmação e defesa
da posição social do indivíduo” (VELASCO; SUTIL, 2017, p. 278). De acordo com Büschges
(1997), a ideia de honra, em determinadas regiões ou sociedades, impõe aos indivíduos modelos
e regras de comportamento nos relacionamentos pessoais e social (1997, p. 57). Para Farge
(2009), a valorização da honra não é exclusividade das classes dominantes, e os “menos
afortunados” também percebem a honra como um valor fundamental ligado à sua existência:
“Longe de ser apanágio dos grandes, a honra é um bem que as pessoas do povo pleiteiam com
veemência. Assim, os sujeitos do povo convivem constantemente com os sentimentos do que
consideram enquanto injúrias, ofensas e os limites do que deve ou não ser tolerado” (FARGE,
114
2009, p. 565). Em outros termos, existe uma linha tênue entre a honra e a desonra, e os
indivíduos sabem que isto pode ser determinante na forma como aquele sujeito é visto pelos
demais do seu grupo: “[..] percorrem as comunidades populares perpétuos movimentos de honra
e desonra que no âmago de fenômeno de solidariedade perfeitamente visíveis, conduzem o jogo
do destino individual” (FARGE, 2009, p. 561).
De acordo com Büschges (1997), é necessário considerar ainda que a honra não se
alicerça somente em valores morais dos indivíduos ou grupo, ela também está fundamentada
em valores como a coragem e a bravura: “Además, no sólo se consideraba el honor en su esencia
y en su más alta expresión como una virtud en el sentido moral, sino tambíen en el sentido de
ànimo (corage) y valentia (bravura)” (1997, p.61) Considera-se ainda como a honra é
estreitamente fundamentada sobre papéis previamente estabelecidos na sociedade sobre o que
se concebe sobre o masculino e o feminino, isto é, as convenções de gênero como ressalta Farge
(2009): “Não surpreende, pois, que os meios mais utilizados para atacar indivíduos e famílias
sejam a agressividade do homem contra a mulher e as formas de afrontamento seculares reais
e míticas, entre o mundo masculino e o feminino. Basta colocar em dúvida a virtude das
mulheres” (FARGE, 2009, p. 570). Portanto, salienta-se como a autora observa que uma das
formas de atingir a honra masculina é por meio da difamação dirigida às mulheres, com palavras
que questionem a virtude feminina: “a difamação da virtude é uma arma que pode servir para
atingir mais de um alvo: ora a própria mulher, ora o homem a ela ligado” (FARGE, 2009, p.
570). De tal modo, existe uma diferença na manutenção da honra para homens e mulheres, além
de ser necessário levar em consideração que o masculino e o feminino são atingidos em sua
intimidade de modos distintos. Segundo Büschges (1997), enquanto no universo masculino
existe uma sobrevalorização de valores como a coragem e a bravura, no mundo feminino, a
honra assenta-se mais sobre os comportamentos sexuais (1997, p. 63). Assim, colocar em xeque
tais valores gera tensão: seja questionando a virtude feminina normalmente associada à esfera
sexual ou, no caso dos homens, colocando em dúvida a capacidade de reagir com bravura e
coragem quando provocados.
No caso das narrativas dos camponeses de Japuara, é possível perceber como eles
enfatizam o comportamento considerado ofensivo por parte dos trabalhares da frente de serviço
direcionado às mulheres, mas que, na verdade, atingem a honra de Pio, que se valerá da coragem
e valentia para defender tais valores. Em outros termos, o camponês age conforme o que era
convencionalmente esperado que um homem fizesse para defender as mulheres e as crianças
da família: agir com bravura e firmeza.
115
preferível a ter a honra desfeita publicamente diante dos seus iguais, ou melhor definindo, do
grupo social ao qual esse sujeito se vincula.
Nos relatos dos camponeses, emerge a imagem de Pio associada justamente aos
ideais de masculinidade, tais como a coragem, a valentia, virilidade e a macheza como seus
atributos (ALBUQUERQUE, 2013, p. 208). A própria defesa da casa também aparece dentro
dessa esfera do universo masculino, isto é, cabia a Pio (o homem da casa) defender o seu lar e
a sua família daquela situação intimidadora e vexatória. Destaque-se que os narradores fizeram
questão de afirmar que boa parte dos trabalhadores da frente de serviço se retiram do telhado
da casa a partir do momento em que Pio adentra o espaço doméstico quando ocorria o
destelhamento. As narrativas buscam, então, enfatizar que Pio era um homem respeitado entre
os trabalhadores da frente de serviço. Contudo, os dois trabalhadores contratados pelo
proprietário que resolvem permanecer no telhado destelhando a residência de Pio, ao afirmarem
que tomariam o café feito pelas mulheres da família, acendem o estopim do conflito. Naquele
contexto, tais palavras são tomadas como insultos pelos camponeses, o que gerou efeitos reais
e instantâneos: “qualquer palavra insinuante, provocativa, até mesmo evasiva sobre a reputação
do outro acarreta uma série de consequências imediatas” (FARGE, 2009, p. 569). Esses
trabalhadores, ao atentarem contra o lar de Pio e o insultarem em sua intimidade, transpuseram
os limites do aceitável.
Mesmo as intimidações constantes como destruição dos roçados, apreensão dos
animais de criação, prisões dos moradores estavam dentro do que então podia ser suportado, já
que eles estavam aguardando as providências judiciais. Contudo, aquelas palavras provocativas
direcionadas às mulheres e o destelhamento da casa de morada, deflagram o conflito e
provocam uma reação dos camponeses.
A emergência do segundo confronto se dá também no dia 2 de janeiro de 1971,
também na casa de Pio Nogueira Barros. Depois da morte de Joaquim Piau, os camponeses vão
se concentrar em frente à residência de Pio, e, dessa vez, os enviados pelo proprietário serão a
Polícia local. Os policiais, ao chegarem à propriedade, já agem com hostilidade e provocam o
segundo confronto ao assassinarem um ancião que se encontrava junto aos demais moradores
em frente à residência de Pio, o sr. Nonato Paes Fernandes. O delegado local teria tido uma
discussão com Nonato, o qual estava com uma foice nas mãos. Conforme nos relatou o sr.
Alfredo, sobrinho de Nonato, ele considerava Nonato como um pai e também se incomodava
com o fato de a violência ter sido associada somente aos camponeses e não aos policiais, como
fica evidente em seu relato:
117
Essa delegada que veio pra cá, passou o dia por aqui conversando e ela disse: “Seu
Alfredo por que tanta agressão?” Digo: Doutora, a agressão não partiu dos trabalhador
não, a agressão partiu da pessoa que veio fazer, o delegado que veio né!? Já tinha
acontecido já uma morte né!? O Piau, derrubaram o Piau do Pio, de cima da casa dele
né!? Pode-se chamar bandido né!? Aí foi... chegaram, mas chegou logo foi batendo,
atirando no pessoal, atirou... matou o véi meu tio, pai de criação.124
Aí a Polícia já estava saindo de Canindé, mais ou menos nessa hora. Mais ou menos
dez minutos depois a Polícia chegou e quando a Polícia chegou tinha o Nonatinho,
avô do Alfredo, aí ele tava com a foicinha dele na mão, aí o carro da polícia parou,
era muito atrevido esse delegado. Aí disse pra ele [Delegado Cidio]: “Velho, solta a
foice, velho”. Aí o nome dele era Cidio né!? Aí ele disse [Nonatinho]: “Seu Cidio, a
minha foicinha né pra briga não, eu tô aqui porque eu tô pelejando pra tirar o meu
filho que tá aqui, e eu quero levar ele pra casa com vida”. Aí foi e ele disse [Delegado
Cidio]: “Não conversa não, velho. Solta a foice. Ele disse [Nonatinho]: “Sim senhor,
vou soltar.” Quando ele disse que ele ia soltar, ele foi e tacou dois tiros na cara dele,
uma bala ficou dentro da boca, a outra passou pro outro lado, furou o rosto dele de um
lado pra outro.125
Depois desse episódio em que Nonato foi atingido por um tiro, policiais e
agricultores entraram em confronto direto. Os dois confrontos terminaram com quatro mortos:
o trabalhador da frente de emergência, Joaquim Piau; o delegado Cidio Martins; o soldado de
polícia Paulo Freitas; e o último a falecer, o morador de Japuara, Nonato Paz, que, durante os
confrontos, teria recebido um segundo tiro do irmão do delegado.
O assassinato do camponês, até hoje causa muita indignação, principalmente entre
os parentes de Nonato, caso também do sr. Jacó, sobrinho de Nonato. Esse sentimento de
injustiça e de denúncia é muito latente, principalmente, porque nenhum dos policiais respondeu
criminalmente pelo assassinato de Nonato.
Pode botar aí no papel. Nonato Paes Fernandes quem matou foi o Cidio Martins! Com
a foicinha na mão, sem bulir...nunca puxou um cabelo dentro da Japuara, moradores
de César Campos e dos Cruz. Nonato Pais Fernandes que aquele que tava no... que eu
mostrei a senhora ontem (ele me mostrou uma fotografia de Nonato).126
124
FERNANDES, Alfredo Ramos. Entrevista, 23 de setembro de 2020. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda
Mendes. Acervo pessoal.
125
BARROS, Luzardo. Entrevista, 5 de outubro de 2020. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda Mendes. Acervo
pessoal.
126
Idem.
118
Até os dias de hoje, o sr. Jacó, lamenta o fato de não ter conseguido evitar a morte
do seu tio:
Meu tio tinha merendado um pão quando eu entrei em casa, tinha uma criação do
finado Pio que eu passei a dizer e desceu ali pra baixo: “Jacó, vem já pra nós olhar a
madeira”. Se eu soubesse que ia acontecer isso, eu tinha tirado o meu tio. Tinha
desviado ele pra olhar madeira por aqui que eu conhecia os caminhos tudinho.127
Apesar do sentimento de impotência, por não ter impedido que seu tio fosse morto
pelos policiais, outros elementos evidentes em sua narrativa provocam certo orgulho e
permitem uma melhor convivência com o passado. Um desses acontecimentos relaciona-se ao
fato de o sr. Jacó ter escondido as armas dos policiais e evitado, segundo ele, que houvesse um
maior saldo de mortes no segundo confronto com os agentes do Estado:
Aí acontece que a Polícia fecharam a rosca em cima do Jacó véi. Tomei dois
mosquetão da Polícia pra não matar uns aos outros que eu não tava vendo ninguém de
briga lá. Pra brigar, não tinha ninguém, só os que tinha...tinha os que tava lá no conflito
e eu não vi ele, não deu tempo. Aí dois eu tomei os mosquetão dele, botei no quintal
do Pio. O derradeiro foi o Magalhães, José Ratinho, um magrinho. Pode botar dois
soldados. Tomei e botei no quintal do Pio, o Jacó Paes Fernandes. Isso já tá escrito, lá
embaixo, lá na justiça, lá em Fortaleza.128
A casa da bodega que o Pio tava, que era do Amorim com o Edgar, cortou de bala
todinha pensando que o Pio tava dentro, mas não tava. Na hora que eu botei as armas
pra dentro e vim embora, tava o Seu Pio, coitado, na casa de cá que num era pra nós
ter desmanchado aquela casa não, ter deixado que um dia aparecia gente, desmanchou.
Mas tava o Seu Pio na porta, por lado de dentro, tava na porta lá de dentro e um tio
meu andando, esse que levou a bala, pisou em cima do sangue, Nonato Paes
Fernandes. Em cima do sangue! Pegou lá nele assim e saiu assim (fez gestual
127
FERNANDES, Jacó Ramos. Entrevista, 7 de janeiro de 2021. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda Mendes.
Acervo pessoal.
128
Id., Ibid.
119
O Seu Pio não soube trabalhar, devia ter ficado na Casa Grande como cunhado do
Amorim e compadre. O Pio Nogueira Barros! Mas veio pra cá né? Lá era custoso do
povo ir (risadas) toda cercada de arame, fechava a cocheira e não entrava ninguém à
força não. Que era do Amorim, mas não... tudo aberto aqui. Só tinha o arame do César
que encostava ali, da minha terra mais da comadre Irene. Assim, a gente vai dizendo
as coisas e o povo acreditando aí, nas coisas que eu conto.131
Ucronia é “aquele perturbador tema, no qual o autor imagina o que poderia ter
sucedido se um determinado evento histórico não tivesse acontecido”; a representação
de “um presente alternativo, uma espécie de universo paralelo no qual se cogita sobre
um desdobramento de um evento histórico que não se efetuou” (PORTELLI, 1993, p.
50).
Assim, o relato do sr. Jacó não incide efetivamente no âmbito concreto, isto é, no
que de fato ocorreu, tendo em vista que ele também relatou fatos inseridos no campo da
“possibilidade”, do que não ocorreu, e sim do que poderia ter sido. Existe, então, uma tentativa,
por parte dele, de construir uma história diferente dos confrontos. A sua memória atua no
âmbito do “desejo”, da possibilidade de o conflito ter tomado um outro rumo em que não
houvesse mortes.
Depois do confronto com os policiais, os moradores resolveram se refugiar nas
matas locais. O grupo de agricultores diretamente implicados no conflito era formado por Pio
Nogueira; seu filho Francisco Blaudes Sousa Barros; Joaquim Abreu – sogro de um dos filhos
129
Id., Ibid.
130
Os moradores de Japuara denominavam a residência do proprietário ou do administrador da fazenda como a
“Casa Grande”.
131
Id., Ibid.
120
de Pio (Plauto Barros); Alfredo Ramos Fernandes (pseudônimo Alfredo 21); Antônio Soares
Mariano (pseudônimo Antônio Mundoca) e Luís Mariano da Silva (pseudônimo Luís
Mundoca), mesmo bastante feridos dos confrontos, refugiam-se nas matas. Inclusive, o
agricultor Luís Mundoca encontrava-se ferido por um projétil (BARROS, 2013, p. 28-29).
Desse modo, são três famílias envolvidas diretamente no conflito: a família de Pio; a de Nonato
Pais, conhecidos como “21” e a família Mariano, conhecida como “Mundoca”. Os agricultores
permaneceram escondidos no Serrote de Santa Teresa por três dias
Apesar de a Polícia de Canindé estar diretamente implicada nos confrontos, ficou a
cargo desta realizar as investigações. Enquanto os agricultores permaneceram refugiados nas
matas, a polícia local cometia arbitrariedades com as famílias de Japuara: mulheres e crianças,
parentes dos agricultores refugiados. A dona Maria relatou sobre o tratamento violento da
polícia com as pessoas que permaneceram em Japuara para que revelassem o paradeiro dos
camponeses:
Uma hora dessas tava longe com as crianças por dentro do mato tudo chorando com
fome. Que o Jacó já tinha saído e eu só fiz fechar as portas e saí. Com nove meses,
com oito meses de grávida e quatro (crianças) andando.
O maiorzinho era o Pedro que tinha mais ou menos uns três...uns quatros anos. A mais
velha tinha cinco, seis anos que era a Heleninha né!? Aí quando foi no dia mesmo, da
Guerra mesmo aqui. Que eles tavam caçando os homens, eu ia saindo na porta da
cozinha e minha filha quando eu olhei assim pra porta da cozinha, tava assim de
polícia (gesto com mão indicando ser muitos policiais) o bucho por acolá.
Aí chegou um e disse:
(Polícia) “Cadê o seu marido”? (Alteração de voz, imitando o policial) (Dona Maria):
“Ah, meu filho eu não sei não. Só deus é quem sabe! Só deus é quem sabe!”
Aí os bichinhos (crianças) ficaram tudo nos meus pés.
(Polícia): “Entre pra dentro, seu bocado de nego.”
Desse jeito ele dizendo com as crianças e os bichinhos ficaram tudo assombrado.
Criança não tinha visto esse horror de polícia né!? Aí ele disse assim:
(Polícia): “Você vai ter que saber onde tá o seu marido”.
(Dona Maria) “Sei não, meu filho. Eu juro como eu não sei onde ele tá. Tô aqui com
essas crianças aqui até uma hora dessas com fome, chorando com fome”.
Aí ele olhou assim e pegou aqui, meu braço aqui. E do jeito que você tava aí, ele
puxou assim pra cima dele, só faltou ele encostar no meu bucho. Mal educado!
Aí eu...aí eu fiquei assim.... e quando foi uma polícia olhou, olhou assim e disse:
(Polícia): “Faz isso não, macho! A pobrezinha sofredora, faça isso não com ela não,
que ela tá grávida”.
(Polícia) “Eu não tenho nada com isso”.
Desse jeito. Ah, minha filha... eu criei uma raiva tão grande. Menino, quando eu
olhei... quando eu olhava pra esse homem, chega eu me tremia todinha. Ele disse:
(Polícia) “Pois é.... pois você vai dar conta dele.
Eu digo:
(Dona Maria): “É.... se eu der conta, tá certo. Mas eu não sei nem onde tá esse homem.
Tá tudo espalhado, o pessoal tá tudo espalhado e eu não sei de nada”.
Ele disse:
(Polícia): “Tem uma coisa, se você não der fim nele, no dia que eu achar ele eu arranco
a língua dele e trago pra você comer assada”.
121
É interessante salientar que ela iniciou a sua narrativa sobre o conflito a partir do
questionamento de como teria sido a sua infância, o que a remeteu a falar não sobre o seu tempo
de criança, mas sim a relatar o que as crianças e mulheres sofreram nas mãos dos policiais
durante os três dias em que os camponeses estiveram no Serrote de Santa Teresa. Como nos
lembra Sarlo (2007), a memória não é espontânea, as intervenções, durante as entrevistas, são
uma forma de forçar essa memória espontânea a produzir uma narrativa sobre esse passado.
São as “imposições da memória” que forçam a lembrar o que se deseja esquecer e que atendem
a uma pressão de conhecimento dimensionada dentro do que esse presente deseja saber sobre o
passado (SARLO, 2007, p.56-57). Nesse sentido, as perguntas do entrevistador conduzem a
uma determinada narrativa sobre o passado e também podem conduzir a rememorações que não
estão dentro do campo da expectativa daquele que conduz a entrevista.
Destaca-se que, se, em princípio, a dona Maria disse que não queria rememorar os
acontecimentos dos confrontos de Japuara, pois considerava tais lembranças dolorosas e,
sempre que narrava os episódios, era impelida ao choro, ela, entretanto, se dispôs a relatar os
acontecimentos. Isto leva a questionar sobre o que impulsionou tal narrativa, mesmo quando
ela afirmou que a rememoração causava sofrimento. De acordo com Lopes (1998), as memórias
podem emergir quando a revolta se torna mais impulsiva do que o trauma. Nesse momento, as
narrativas passam a ser atravessadas pelo tom de denúncia, o silenciamento torna-se mais
doloroso do que a própria memória: “Há situações em que a dor do calar-se é maior que o
sofrimento de operar as tramas da memória (1998, p. 367)”. Para dona Maria, o tratamento dos
policiais com as mulheres e crianças para revelar o paradeiro dos camponeses foi intolerável,
principalmente ela estando grávida. Assim, o seu relato é impulsionado pelo trauma e pela
necessidade de denunciar o Estado representado pelo seu aparelhamento armado.
Dona Maria representa a voz das esposas dos agricultores que tiveram de enfrentar
a brutalidade policial. Por sua vez, um dos filhos de Pio, o sr. Haroldo, representa um pouco o
sofrimento das crianças, ao relatar o episódio em que um dos seus irmãos, o Francisco, uma
criança com cerca de dez anos de idade, foi levado pelos policiais e submetido a torturas:
Na época meu irmão, o Francisco, foi levado com os policiais pra dentro da mata, de
pés descalços só de bermuda e ameaçado de morte na época. Carregando caixas de
balas dos policial e além... além desse sofrimento dele, ele era ameaçado a todo o
momento dizendo que se não encontrasse meu pai, ele morreria. Nisso esse meu irmão
ficou até com um problema psicológico por causa desse tipo de coisa e chegou até a
132
FERNANDES, Maria Paes. Entrevista, 7 de janeiro de 2021. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda Mendes.
Acervo pessoal.
122
ficar um pouco desorientado, ele era um pouco desorientado por causa provocado por
esse episódio que aconteceu, pelo sofrimento que ele teve de andar dentro da mata
com os soldados procurando meu pai e obrigado a carregar caixa de bala na cabeça e
a todo momento sofrendo esse tipo de ameaça se não encontrasse meu pai ele iria
morrer.133
Na época eu tinha um ano de idade, não dá pra lembrar de nada...uma criança com um
ano de idade. Mas segundo os meus pais foram momentos difíceis porque minha mãe
se vendo que ia morrer comigo nos braços e teve que adentrar de mata adentro comigo
nos braços, correndo comigo nos braços pra que pudesse salvar a sua vida e salvar a
minha ao mesmo tempo. Foi uma coisa muito triste segundo eles me contaram, porque
na época como eu lhe falei eu tinha um ano de idade, não me lembro do que aconteceu.
Para os meus pais, segundo eles, foram momentos muito tristes que eles passaram
naquela época, porque tanto minha mãe como meu pai tiveram que se embrenhar na
mata pra não morrer porque a ordem vinda do proprietário era liquidar o que tivesse
pela frente, era a ordem que vinha. Então, eles se viram acuados, então eles tiveram
que fugir porque se não fugissem teriam morrido, tanto meu pai quanto minha mãe.134
Aí fumo, duas da madrugada por dentro do mato, por cima de espinho, de cobra,
jararaca, cascavel, onça pintada tinha nesse trecho, nesse tempo também. O Pio
Nogueira lá no mato viu uma onça pintada mais com os que andava mais ele, não
matou com medo da Polícia, tava com uma espingarda, uma 20. Uma onça pintada, o
João do Felix escapou de ser comida por ela.136
133
BARROS, Haroldo. Entrevista, 5 de janeiro de 2021. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda Mendes. Acervo
pessoal.
134
Id., Ibid.
135
FERNANDES, Alfredo Ramos. Entrevista, 23 de setembro de 2020. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda
Mendes. Acervo pessoal.
136
FERNANDES, Jacó Ramos. Entrevista, 7 de janeiro de 2021. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda Mendes.
Acervo pessoal.
123
137
FERNANDES, Alfredo Ramos. Entrevista, 23 de setembro de 2020. Canindé-CE. Entrevistadora: Brenda
Mendes. Acervo pessoal.
138
Segundo o Correio do Ceará, a agência estadunidense United Press Internacional – UPI, repercutiu o conflito
de Japuara no noticiário internacional tanto por meio de relatos quanto por meio da divulgação de radiofotos
(Correio do Ceará, 6 de janeiro de 1971, p. 1).
124
139
O Caldeirão de Santa Cruz do Deserto é considerado um dos principais movimentos religiosos populares do
Brasil do século XX. A comunidade organizava-se no município de Crato (CE), que congregou camponeses em
uma comunidade em torno de uma liderança religiosa, o beato José Lourenço, apoiado por Padre Cícero. A
comunidade sofreu dois ataques amparados pelas forças repressivas do Estado: o primeiro em 1936 e a sua
destruição completa em 1937. O general Góis de Campos Barros (à época, ocupava o cargo de tenente) esteve à
frente do massacre ordenado pelo Estado a comunidade do Caldeirão e escreveu uma série de artigos no jornal
sobre a destruição da comunidade que, posteriormente, foram reunidos no livro intitulado: “A ordem dos
penitentes” (1937), que associava o Caldeirão ao fanatismo religioso. Cf. RAMOS, Francisco Régis Lopes.
Caldeirão: um estudo histórico sobre o beato José Lourenço e suas comunidades. 2. ed. rev. ampl. Fortaleza:
Instituto Frei Tito de Alencar/Núcleo de Documentação Cultural – NUDOC/ UFC, 2011. 220p.
125
É ainda importante considerar, antes de tudo, que os jornais não produzem notícias
de modo neutro e imparcial e mesmo a dita grande imprensa manifesta o seu posicionamento
político no fluxo de notícias (SODRÉ, 1999, p. 4). Segundo Marcondes Filho, o jornal não só
transmite determinado posicionamento, como também é capaz de conduzir a opinião dos
leitores e ditar comportamentos: “Ocorre, entretanto, que os jornais efetivamente colaboram
com a formação de opinião. É incorreto dizer que eles somente a reforçam: em alguns sentidos
e em casos muito específicos eles exercem uma ação verdadeiramente condutora”
(MARCONDES FILHO,1989, p. 21). A imprensa exerce papel fundamental na formação de
opinião pública sobre os conflitos de terra e a violência no campo. Seria um equívoco considerar
que os jornais produzem notícias de modo objetivo e neutro. Como nos lembra Capelato, todo
jornal busca atrair o público leitor e conseguir adeptos para uma causa, conquistando mentes e
corações (CAPELATO, 1988, p. 15). Para a autora, o jornal não é um transmissor imparcial de
notícias, antes, a imprensa constitui-se um instrumento de manipulação de interesses e de
intervenção social. Não se pode então tratar a imprensa como uma reprodutora fiel da realidade
social ou de factualidades. Muito menos, considerar que as notícias são transmitidas ao público
leitor sem qualquer interesse por parte do jornal. O que vira notícia, os destaques de primeira
página, os termos empregados nas chamadas das matérias, tudo isto transforma e torna
relevantes determinados acontecimentos, tudo isto é perpassado por escolhas: “O jornal extrai
da realidade o que lhe interessa (ou a seus leitores) e isso se transforma em notícia [...] o enfoque
da matéria, o tamanho que esta deve ter (linhas), o tamanho e os tipos de títulos e a colocação
da página” (MARCONDES FILHO, 1989, p. 50). Existe, portanto, uma série de elementos
subjetivos por trás da produção das matérias desses periódicos e do que é selecionado para virar
notícia.
Considera-se, então, relevante situar quais os grupos políticos estavam por trás de
cada periódico e também analisar o contexto político em que foram produzidas as notícias sobre
o conflito de Japuara, tendo em vista que esses elementos influenciaram na produção narrativa
de cada jornal sobre a violência no campo. Buscamos responder as seguintes proposições que,
de acordo com Capelato (1988), são relevantes para compreender o papel do jornal na história:
“quem são seus proprietários, a quem se dirige? com que objetivos e quais os recursos utilizados
na batalha para a conquista de mentes e corações” (CAPELATO, 1988, p. 14). Assim, existem
indagações que devem ser respondidas pelos historiadores ao elegerem os jornais como fontes
para produção do conhecimento histórico.
Vejamos então um pouco da história dos principais periódicos da época
responsáveis pela cobertura do conflito em questão. O Correio do Ceará foi fundado pelo
126
cearense Álvaro da Cunha Mendes, em 2 de março de 1915, e surge como um jornal político.
Em 1937, o periódico passa a ser controlado pelo grupo Diário dos Associados pertencente a
Assis Chateaubriand. Então, por fazer parte de um grande conglomerado de comunicação, o
Correio do Ceará não falava sozinho, e a voz desse grupo, à qual pertencia, inegavelmente
ressoava no modo de fazer notícias deste jornal (MARCONDES FILHO, 1989).
O jornal O Povo, por sua vez, foi fundado por Demócrito Rocha em 7 de janeiro de
1928 e surge como um jornal político: “o jornal nascera político, nos seus primeiros dias falava
pelo partido, por muitos anos fez da política partidária a sua bandeira” (COSTA, 1988, p. 17).
O periódico costuma ser considerado um jornal liberal, por suas origens como opositor das
oligarquias e do latifúndio:
Com um discurso em tom liberal, O Povo apresenta-se como um opositor das velhas
tradições políticas. Um ano antes da criação do jornal, o seu fundador, Demócrito
Rocha, envolvido nos movimentos de contestação às oligarquias dominantes, junto
com outros membros da classe média urbana cearense; jornalistas, intelectuais,
estudantes, organizou o Partido da Mocidade, que se proclamava contra o latifúndio
e a favor da moralização do processo eleitoral (SIPRIANO, 2014, p. 75).
reportagens, separando melhor cada setor do jornal e deixando um repórter responsável por
produzir a matéria de cada seção (GIRÃO, 2004, p. 61). De acordo com Nobre (2006), a Gazeta
de Notícia era um dos periódicos com maior aderência de “leitores populares”, sendo conhecido
por sua tradição de “combatividade” (2006, p. 159).
Lembre-se que a década de 1970 foi caracterizada pelo recrudescimento da ditadura
civil-militar. Os anos do governo Emilio Garrastazu Médici (1969-1973) foram marcados pela
intensificação da repressão contra aos opositores do regime e o cerceamento da liberdade de
imprensa, principalmente, com a aprovação do Ato Institucional nº 5, que fortaleceu a censura
no país (CARVALHO, 2006, p.1). Todavia, de acordo com Carvalho (2006), essa intensificação
da censura aos veículos de imprensa, no Ceará, não foi necessária, tendo em vista que os jornais
que circulavam no estado apoiaram incontinente a instalação do golpe militar. Os jornais do
Ceará não manifestaram resistência à ditadura civil-militar e escaparam de sofrer censura,
inclusive, os sujeitos que ocupavam as chefias desses periódicos, tais como Eduardo Campos,
dirigente do Correio do Ceará, e Paulo Sarasate, ligado ao jornal O Povo. ambos possuíam
ligações estreitas com o regime militar e exerceram papéis relevantes na deflagração do golpe
militar em 1964:
– vespertino e o Unitário – matutino (PONTE, 2004, p. 175). Desse modo, pode-se ter uma
dimensão do poder exercido por Assis Chateaubriand na década de 1970,140 no Ceará, que
detinha o controle de rádio, canal televiso e dois grandes jornais que concorriam diretamente
com os jornais locais. Tratava-se de verdadeiro conglomerado. Chateaubriand era conhecido
por ter constituindo um verdadeiro império na imprensa, inclusive, estendendo sua influência
ao campo político. Em uma entrevista do jornalista cearense Lustosa da Costa (que chegou a
ocupar o cargo de editor chefe do Correio do Ceará e também escreveu para o Unitário)
concedida ao historiador Sebastião Rogério Ponte, o jornalista definiu do seguinte modo o papel
exercido pelo Diário dos Associados na deflagração do golpe de 64, no Ceará:
(Entrevistador): Qual foi o papel dos Diários dos Associados no golpe de 1964,
principalmente, aqui no Ceará?
(Entrevistado) Ah, eles se aliaram decididamente ao golpe de 61, a tentativa do golpe
de 1961 e ao golpe de 1964.
(Entrevistador): E aqui, como é que o Diário dos Associados se comportaram?
(Entrevistado):Eram os porta-vozes do golpe contra João Goulart, contra Leonel
Brizola. O João Calmon, que morreu um dia desses, era um dos porta-vozes da reação
às reformas de base preconizadas, era o diretor-geral dos Associados; e aqui no plano
estadual, um dos líderes dessa mesma orientação, era Eduardo Campos (DA COSTA,
2004, p. 293).
140
O próprio fundador do grupo Diário dos Associados, Assis Chateaubriand, foi um dos engajadores da “Marcha
da Família com Deus pela Liberdade”, portanto, um dos articuladores civis da defesa do golpe militar em 1964
(LAURENZA, 2012, p. 83).
129
O periódico O Povo, por ser um jornal liberal, em tese, seria avesso aos pressupostos de um
governo autoritário, mas isto também não se sustenta. O jornal se torna opositor do regime
autoritário apenas tardiamente, no final da década de 1970 e, mesmo assim, de modo bastante
vagaroso, como atesta Carvalho (2006): “Tal situação começou a se reverter, paulatina e
timidamente, quando Demócrito Dummar assumiu o controle da empresa e sacudiu o mofo
acumulado de anos de convivência com o autoritarismo” (CARVALHO, 2006, p. 2).
Evidencia-se, pois, a atitude colaboracionista da imprensa cearense no contexto
autoritário. Os jornais eram porta-vozes do regime autoritário, levando em consideração a
estreita relação por eles mantida com a própria ditadura.
Destaque-se ademais que os periódicos que ora pretendemos analisar eram
classificados em vespertinos ou matutinos, de acordo com o horário que circulavam. Os
vespertinos, considerados de maior envergadura, eram o Correio do Ceará e O Povo, enquanto
os matutinos mais robustos eram O Unitário (também vinculado aos Associados) e o Gazeta
de Notícias (GIRÃO, 2004, p. 62). Portanto, o Correio do Ceará concorria diretamente com o
jornal O Povo, já que ambos circulavam no mesmo horário.
Com relação à tiragem desses jornais, de onde se pode deduzir quais eram
supostamente os jornais mais lidos pela população cearense, segundo o jornalista Eduardo
Campos, que dirigia o conglomerado do Diário dos Associados no Ceará e que concedeu uma
entrevista ao historiador Rogério Ponte, o jornal O Povo era o mais vendido e superava o seu
concorrente o Correio do Ceará: “Os jornais do Ceará vendiam muito pouco, isto é que é a
verdade, mas naquele tempo enquanto vendíamos na base de 12 mil, sete mil, oito mil jornais,
o Povo vendia quase o dobro, vendia 15 mil, 16 mil por aí assim” (CAMPOS, 2004, p. 182).
Partindo desses pressupostos iniciais, almeja-se analisar como cada jornal local
constituiu a sua narrativa sobre o conflito de Japuara e a violência no campo. Destaca-se que as
primeiras matérias sobre o conflito de Japuara foram produzidas pelos jornais enquanto o grupo
de camponeses encontrava-se foragido e a polícia realizava investigações sobre os confrontos,
sendo os resultados das investigações divulgados diariamente aos leitores. De tal modo que os
moradores diretamente envolvidos no conflito ainda não tinham apresentado a sua versão, tendo
em vista que só se apresentaram no dia 6 de janeiro de 1971, quando foram resgatados pelo
Fetraece e pela equipe do Diário dos Associados.
Lembre-se que o conflito aconteceu em um sábado (2 de janeiro de 1971) e que os
jornais locais analisados não circulavam aos domingos.141 Contudo, na segunda feira, 4 de
141
Os periódicos cearenses circulavam seis dias por semana. Entretanto, nenhum dos jornais analisados circulava
aos domingos.
130
janeiro de 1971, os três periódicos locais já tinham colhido vastas informações sobre os
confrontos, com depoimentos e fotografias. Os três periódicos enviaram correspondentes até
Canindé para apurar as notícias sobre Japuara.
À época, os jornais locais possuíam as seguintes seções: noticiário nacional e
internacional; as ocorrências policiais, parte esportiva, acontecimentos políticos e
administrativos e ainda tinha a coluna de opinião (NOBRE, 2006, p. 159). O conflito da fazenda
Japuara despontará nos primeiros dias de cobertura da imprensa ocupando sempre as principais
páginas dos jornais e a seção das ocorrências policiais. Figurar nas páginas policiais revela-se
um dado interessante na cobertura jornalística do conflito, pois induzia certa leitura no público
consumidor do jornal. Entretanto, cabe salientar que, ao longo da cobertura, os jornais trarão o
conflito em outras seções do jornal, por exemplo, dentro das colunas de opinião, o que significa
dizer que o posicionamento o político desses periódicos sobre a violência no campo se
manifestará de forma mais contundente.
O Correio do Ceará destacou, em sua primeira reportagem sobre o conflito de
Japuara, a violência dos confrontos. Trouxe estampadas, em sua primeira página, as fotografias
dos quatros mortos. Foi o único dos três jornais que trouxe imagens de todas as vítimas. Abaixo
das fotografias, introduziu-se uma imagem menor, no canto esquerdo da página, da esposa de
Pio Nogueira, Maria José de Sousa Barros, acompanhada do pároco de Canindé, Frei Luca
Dolle, ambos conversando com a equipe do jornal Correio do Ceará. Portanto, mostrava o
trabalho de apuração das notícias. Ao mesmo tempo, buscava transmitir ao leitor certa
autoridade ao discurso da reportagem. A equipe estava no local do conflito, conversou com os
implicados e estava acompanhando de perto o desenrolar dos acontecimentos:
o conflito foi composta com fotografias da polícia realizando buscas na casa de Pio (imagem à
direita da página); da cadeia de Canindé (local para onde os corpos foram levados e em frente
do qual se reuniu curiosa a população local); de Nonato Paz embalsado, possivelmente, em uma
rede (o corpo teria sido talvez abandonado após os confrontos); de Maria José Barros batendo
em uma porta buscando por Pio Nogueira (seu marido); e uma imagem menor, no canto direito
da página, do enterro do delegado Cidio Martins, mostrando uma grande concentração de
pessoas, posicionadas para o registro fotográfico. Assim, diferentes locais aparecem na matéria:
a propriedade (local dos confrontos); o cemitério (local do enterro do delegado); e a delegacia
de Canindé:
Figura 3. Correio do Ceará, 4 de janeiro de 1971, p. 7.
De acordo com Burke (2004), as imagens são registro tão relevante quanto o texto
e os testemunhos orais (BURKE, 2004, p. 17). Assim, compõem uma importante evidência
histórica que deve ser levada em consideração pelo historiador. O estudioso estabelece que as
imagens “registram atos de testemunha ocular”, ou seja, registram aquilo que um sujeito viu
em um “ponto específico num dado momento” (2004, p. 18), isto é, somente aquele que esteve
presente poderia relatá-lo. Barthes (1984), por sua vez, compreende que a fotografia não
“rememora o passado” e não restabelece o que foi revogado seja pelo tempo ou distância (1984,
134
p. 123). O autor também destaca o carácter testemunhal das fotografias, isto é, a fotografia
atesta que o que se vê, de fato, existiu. Cita, por exemplo, a fotografia de um escravo como um
fato irrevogável que testemunharia, por sua vez, a existência da escravidão: “Penso novamente
na fotografia de William Casby, “nascido escravo”, fotografado por Avedon. O noema aqui é
intenso; pois aquele que vejo aí foi escravo: ele certifica que a escravidão existiu, não tão longe
de nós [...]” (1984, p. 119. Grifo do autor) ou mesmo a comoção que ele sentiu ao ver uma
fotografia do último irmão de Napoleão Bonaparte e afirmar que: “Vejo os olhos que viram o
imperador” (1984, p. 11). Portanto, para o autor, a foto atesta a existência da coisa: “Na
fotografia jamais posso negar que a coisa este lá” (1984, p. 115), e, segundo ele, o “noema” da
fotografia, isto é, o seu traço inigualável, é que a fotografia atesta que alguém viu a pessoa ou
objeto fotografado “em carne e osso” (1984, p.118). O noema da fotografia, portanto, segundo
o autor, reside em poder afirmar que “Isto foi”. Entretanto, dizer que as fotografias constituem
uma evidência história, pois são “testemunhas oculares”, não significa afirmar que a fotografia
constitui, de acordo com Burke (2004), um “reflexo puro” da realidade (2004, p. 36) e tratá-la
assim levaria a uma “interpretação errônea” ou uma utilização equivocada da imagem pelo
historiador (2004, p.143). Portanto, estamos levando em consideração que as fotografias não
são reproduções fiéis da realidade e consistem em uma representação desta, como atesta Mauad
(2008):
[...] a fotografia, que nasce do desejo de retratar fielmente a realidade, é, por sua vez,
mais uma interpretação desta mesma realidade, pois, ao mesmo tempo que apresenta
o referente, o representa através de linguagem codificada, invalidando, com isso, a
ambição de cópia fiel da realidade. A fotografia é sempre uma outra coisa, uma
imagem, um signo (2008, p. 95).
(BARBOSA, 2007, p. 36). Assim, para a autora, a imagem transmite ao leitor a “sensação de
captação da realidade” pelo repórter com a sua câmera. Ele não só estava no local do crime
como também congelava aquele momento captado pela máquina fotográfica. O repórter então
adquire o caráter de uma “testemunha ocular”, registrando aquilo que somente ele poderia ter
visto naquele instante: “Ao ser vista por um aparelho técnico – e, portanto, carregada de
neutralidade – a imagem estanca o tempo. Não é só o repórter que está presente na cena do
acontecimento, mas o repórter e a máquina capaz de captar o real” (BARBOSA, 2007, p. 36-
37). Portanto, tornava crível a narrativa do jornal e imprimia certa neutralidade ao que estava
sendo relatado ao leitor, como se o repórter estivesse apenas registrando o acontecimento, as
cenas e os personagens que compunham a matéria. Além de, claro, como se vê nas imagens
divulgadas pelo Correio do Ceará, captar os sujeitos ainda em ação congelando aquele presente
na fotografia.
As fotografias, de acordo com Capelato (1988), imprimem ainda uma ideia de
movimento ao texto impresso e rompem com a monotonia da escrita (1988, p. 17). Por isso, o
Correio do Ceará empregou o texto escrito sempre acompanhado de muitas fotografias, que
tanto dialogam com o texto, quanto falam por si. Assim, existe uma combinação de elementos
intertextuais para se comunicar com o leitor. Outra questão interessante, do vasto emprego das
fotografias pelos jornais, diz respeito à capacidade do jornal de se comunicar com o público
leitor, por outro meio que não o texto impresso, principalmente, em uma sociedade que ainda
detinha grande contingente de população analfabeta: “a textualidade da imprensa se faz pela
capacidade de transmitir a informação através da imagem” (BARBOSA, 2007, p. 32). De tal
modo, as imagens permitem outro tipo de leitura ao público que consumia o jornal e sinaliza o
destaque dado ao conflito de Japuara pelo jornal, já que são imagens que ocupam mais de uma
página do periódico.
Destaque-se ainda que o Correio do Ceará foi, entre os periódicos locais
analisados, o mais apelativo na abordagem do conflito de Japuara, tendo em vista que expôs na
reportagem os corpos das vítimas sem qualquer pudor. O agricultor Nonato Paz teve exposta,
na matéria principal, a imagem de seu corpo embalsamado, enquanto os corpos de todas as
vítimas do conflito foram abandonados. Então, cabe interrogar: por que somente o agricultor
sofreu tal exposição? É notória ademais a intenção do jornal de utilizar as fotografias com o
objetivo de chocar e causar uma sensação de “horror” nos leitores, buscando atrair a atenção
destes. Assim, as fotografias buscam mexer com as “sensações dos leitores” e, claro, aumentar
a vendagem do jornal (CAPELATO, 1988, p. 16).
137
143
Enfatiza-se que atribuir determinadas características aos camponeses não é um elemento novo no discurso
produzido pelo Correio do Ceará. Porfírio (2016) observou como a imprensa mobiliza narrativas e imagens para
associar os camponeses ao perigo e a subversão.
138
jornal, a violência no campo seria em decorrência, principalmente, das atitudes dos camponeses,
que são retratados agindo com hostilidade e extrema brutalidade contra os policiais.
Pode-se, então, compreender essa violência desproporcional atribuída pelo Correio
do Ceará aos moradores de Japuara por meio do pensamento de James Scott. Segundo o autor,
as imagens atribuídas aos camponeses contrastam entre a “submissão, medo, cautela” de
períodos normais, com a de momentos em que as “revoltas camponesas” vem à tona e as ações
dos sujeitos são retratadas como atos viscerais de “fúria cega”, isto sem mencionar que as
disputas ocorreram, previamente, em outro terreno e de forma racional (SCOTT, 2002, p.14).
Portanto, percebe-se como o Correio do Ceará produziu uma narrativa sobre os camponeses de
Japuara, tentando enquadrá-los como sujeitos irracionais e extremamente agressivos. Essa
imagem ficou associada, principalmente, a Pio Nogueira Barros, que acabou personificando o
conflito.
A Gazeta de Notícias, no dia 4 de janeiro de 1971, trouxe estampada, em sua
primeira página, a fotografia da filha do delegado do Dops (Cidio Martins), debruçada sobre o
caixão do seu pai e não trouxe imagens dos demais mortos. Trouxe o seguinte título como
chamada central da primeira página: “Luta entre policiais e campôneses em Canindé termina
com seis mortos” (GAZETA DE NOTÍCIAS, 4 de janeiro de 1971). Ao centro uma imagem do
que o jornal denominou como “populares” concentrados na frente da delegacia de Canindé.
Assim, mostrava-se ao leitor como o conflito alterara o cotidiano da cidade:
139
Na manhã de ontem, por causa de uma pequena pescaria que o agricultor fêz no açude
do sítio, para alimentar sua esposa e uma nora que se encontrava doentes, o
comerciante reuniu 80 homens, entre os desocupados da rua, com ordens para
arrombar o reservatório d’água e destruir plantações” (GAZETA DE NOTÍCIA, 4 jan.
1971, p. 1).
O jornal inicia acusando o proprietário, já que o confronto teria ocorrido por algo
banal: “uma pequena pescaria” em decorrência de o agricultor querer alimentar a sua família
que se encontrava doente. Na matéria principal, trouxe como chamada a seguinte proposição:
“Velha questão de terra provoca batalha com 6 mortos” (GAZETA DE NOTÍCIAS, 4 jan.
1971), enfatizando que os conflitos de terra no estado eram já familiares e recorrentes. No texto,
a Gazeta de Notícia passa a reforçar a agressividade dos camponeses, retratados como movidos
por uma brutalidade desproporcional. Essa agressividade é atribuída principalmente a Pio
Nogueira Barros, apresentado, de pronto, pela identidade de “posseiro”, pois, segundo a
matéria, o camponês se recusava a sair da propriedade em decorrência de ter “direitos
adquiridos”. O texto alertava ainda ao leitor que Pio Nogueira Barros era membro do Sindicato
dos Trabalhadores Rurais, portanto, passível de certa desconfiança por parte dos leitores:
Julgando-se com direito de posse da terra que ocupava há mais de vinte anos, o
pequeno agricultor, delegado do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Canindé,
Francisco Nogueira mais conhecido por Pio, resistiu ferozmente ontem, à invasão
determinada pelo proprietário César Campos, provocando um conflito no qual
morrerem quatros homens e muitos outros saíram feridos.
O primeiro a se aproximar da casa foi o carreteiro Joaquim de Sousa, e subiu no teto,
disposto a derrubá-lo na família de Pio, muito embora êste fizesse inúmeros apelos
para que não executasse o plano. Como o carreteiro não atendeu a seus pedidos o
posseiro de terras atacou a pauladas.
A luta: Chegando no Sítio Japuara o subdelegado dirigiu-se ao agricultor Pio,
disposto a prendê-lo, mas estê reagiu a golpes de foice, abatendo imediatamente o
policial. Sômente depois que matou o subdelegado, Pio usou arma de fogo, pois
apanhou o revólver de sua vítima e com elê atacou os policiais que lutavam sob o
comando do cabo Francisco Silva da Rocha.
Nessa luta, Pio foi auxiliado por familiares seus e outros moradores do sítio e ao
mesmo tempo em que a luta se prolongava, outros civis se incorporavam as fileiras
dos agricultores, procurando exterminar os cinco policiais que resistiam (GAZETA
DE NOTÍCIAS, 4 jan. 1971, p. 6).
De antemão, o jornal acusa Pio de todas as mortes de Japuara, teria ele então,
segundo o jornal, matado o carreteiro a pauladas, desarmado sozinho a Polícia de Canindé e
assassinado o delegado e o policial. Os demais moradores de Japuara aparecem como
141
Esse episódio serviu para reforçar a periculosidade dos moradores, ao divulgar que
estes possuíam armas pesadas na propriedade e que já estavam, portanto, previamente
preparados para um confronto com o proprietário ou até mesmo com a Polícia. Do mesmo
modo, sinalizava ao leitor que o confronto com a Polícia só ocorreu porque os moradores se
recusaram a cumprir as ordens destes agentes. O jornal ainda se utiliza de dois elementos para
sustentar que os moradores de Japuara seriam os responsáveis pelo confronto: o primeiro
elemento mobilizado foi apresentar previamente que os sujeitos do conflito não seriam simples
agricultores, tendo em vista que o jornal, antes de descrever as circunstâncias em que se deram
os confrontos de Japuara, antecipa que Pio Nogueira Barros era um “posseiro de terras” e um
“indivíduo sindicalizado”. A Gazeta, então, utiliza-se de elementos previamente estabelecidos
142
do proprietário pelos embates e dava margem para que o leitor interpretasse que os confrontos
foram previamente planejados pelos camponeses. Esse fato serviu para reforçar a culpa em
torno dos moradores e isentar o proprietário do conflito. Já que, segundo essa reportagem, César
Campos só reagiu enviando trabalhadores para cometer arbitrariedades contra os moradores,
pois este tomou conhecimento da possível “emboscada” articulada pelos camponeses de
Japuara. Nesse sentido, o jornal mobiliza o limiar entre o falso e o verdadeiro com determinado
objetivo, no caso, apresentar os moradores de Japuara como “sujeitos perigosos” e dignos de
“suspeitas” (PORFÍRIO, 2016, p. 75) por parte do leitor e retirar a responsabilidade do
proprietário pelo conflito. De acordo com Capelato (1998), o historiador não pode tratar o jornal
como um reprodutor fiel da realidade. Isto é, a historiadora compreende que o jornal, assim
como qualquer outra fonte, consiste em fatos fabricados e estabelece que é importante distinguir
o que é “falso” ou “verdadeiro” (1988, p. 22). Contudo mais importante do que isto, é
compreender como os sujeitos mobilizam os acontecimentos e o porquê de as notícias terem
sido produzidas de determinada maneira: “A distinção entre o falso e o verdadeiro é necessária,
mas hoje entende-se que o documento falso é um documento histórico tão relevante quanto o
verdadeiro, cabendo averiguar porquê e como foi produzido” (CAPELATO, 1988, p. 23-24).
Assim, os jornais reproduzem, em suas páginas, determinada versão sobre o
conflito, tendo um propósito. Ao afirmar que os moradores tramaram uma emboscada para
César Campos, o jornal previamente justificava a violência do proprietário contra os moradores.
Do mesmo modo, ao reforçarem que os moradores possuíam armamento na fazenda, o
periódico também respaldava a violência do aparelho do Estado contra os camponeses.
A situação de intranquilidade retratada na primeira página do jornal O Povo foi
reforçada ao afirmar que os agricultores, após os confrontos, teriam permanecido
“entrincheirados” e armados. Inclusive, segundo a reportagem, estes atiravam contra
proprietários de terra que passavam por perto. Tratava-se de perigosos agricultores tomados por
uma espécie de “ódio de classe”, agindo com hostilidade contra a classe proprietária de
Canindé:
Após o conflito os elementos que tomaram parte na luta – mais de vinte homens –
ficaram entrincheirados, todos empunhando armas e dispostos ainda a matar.
Ninguém se aproximava da fazenda, passava pela estrada em seu jipe, o fazendeiro
Francisco Estevão da Silva, conhecido por Dourado e sofreu atentado. Os homens
entrincheirados dispararam tiros contra o seu veículo. Isso declarou José Francisco
Mivali, gerente do Bar Canindé, logo que chegou a cidade. (O POVO, 4 jan. 1971, p.
8).
146
Então, percebe-se, por parte do O Povo, uma tentativa de isentar os policiais dos confrontos,
assim como o proprietário, César Campos.
Essas matérias sobre o conflito de Japuara produzidos no “calor da hora” pela
imprensa não teceram críticas em relação à atuação da polícia de Canindé, que é retratada
sempre agindo no cumprimento do seu dever. Assim como enfatizaram que a situação de
intranquilidade no campo ainda permanecia, pois os moradores continuavam supostamente
entrincheirados e reagindo à ação policial e também contra os proprietários de terra da região.
É perceptível o quanto essa versão apresentada pelos jornais buscava isentar os agentes públicos
envolvidos no conflito, construindo uma narrativa que justificasse e respaldasse a atuação do
Estado nos conflitos de terra, atribuindo principalmente aos camponeses a responsabilidade
pela violência no campo.
Pode-se refletir como os jornais locais, ao vincularem determinadas identidades aos
moradores de Japuara – como denominá-los “posseiros de terra” ou afirmar que eles eram
vinculados ao STR –, buscavam respaldar uma narrativa que atribui aos indivíduos
sindicalizados uma imagem de hostilidade contra os proprietários de terra e policiais. Portanto,
quando os periódicos conformam determinadas características aos moradores, esse processo é
perpassado por escolhas que evidenciam parcialidades patentes nos periódicos em torno dos
conflitos de terra. Essa imprensa assume um lado ao retratar estes embates entre proprietários
e camponeses. Isto significa dizer que os periódicos mobilizavam as possíveis crenças e valores
do público leitor para conformar determinados posicionamentos sobre os conflitos agrários,
tendo em vista que já existia uma conjuntura favorável que associava sindicalismo rural à
violência no campo, principalmente, no Nordeste. Essas notícias produzidas logo após os
confrontos estavam carregadas de julgamentos prévios que, ao realizar determinadas
afirmativas, buscavam influenciar o posicionamento do leitor sobre violência no campo e os
sujeitos envolvidos.
Uma questão que despertou atenção foi a linguagem utilizada pelos jornais na
construção discursiva das matérias, termos empregados tais como “entrincheirados”, “campo
de batalha” ou mesmo denominar o conflito uma “guerra” fortaleceu essa situação de
intranquilidade no campo e criou uma atmosfera de tensão social e medo144 de que os episódios
144
Existem dois textos relevantes que analisam os discursos dos jornais que associaram camponeses e medo. O
primeiro é um artigo escrito pelo historiador Antônio Montenegro intitulado “Labirintos do medo: o comunismo
(1950-1964)”, que trata como a imprensa de Pernambuco politizou os incêndios dos canaviais de Pernambuco. A
pesquisa empreendida pelo historiador demonstra que incêndios nos canaviais eram bastante recorrentes e
ocorriam por diversos motivos, inclusive, pelo fato de os canaviais já serem propícios a incêndios. Entretanto, ele
percebe que a imprensa começa a reproduzir, em suas páginas, que tais incêndios eram provocados por
trabalhadores rurais, especialmente, dando a entender que tais ocorrências possuíam relação com os comunistas,
148
buscando criar uma atmosfera de medo na sociedade, principalmente, nos setores médios. Ao mesmo tempo,
existia uma clara tentativa, por parte dos jornais, que, ao politizar esses incêndios, associar a mobilização dos
trabalhadores rurais à desordem e a violência no campo. O segundo texto é a dissertação de mestrado do historiador
Pablo Porfírio intitulada “Pernambuco em perigo: pobreza, revolução e comunismo (1959-1964)”. Porfírio, em
sua dissertação de mestrado, demonstra que os discursos dos jornais e das autoridades norte-americanas
vislumbravam o Nordeste brasileiro como “um potencial” para a eclosão de uma revolução social semelhante à de
Cuba, em decorrência da própria pobreza que preponderava no Nordeste brasileiro e que passa a ser associada ao
perigo de uma possível sublevação desses pobres. Ambos os textos possuem como recorte cronológico o período
que antecede ao golpe militar, isto significa dizer que estes textos tratam de um período fortemente marcado pela
mobilização dos trabalhadores rurais e estes pesquisadores, por sua vez, analisaram como o discurso da imprensa
buscava, por sua vez, associar tais movimentos camponeses ao comunismo e até mesmo criavam um temor de um
possível espraiamento na América Latina da Revolução Cubana, principalmente, no Nordeste do Brasil com a
atuação das Ligas Camponesas de Francisco Julião associadas naquele contexto a uma postura “radicalizadora”.
Portanto, os discursos dos jornais que associavam camponeses e medo não eram um elemento novo mobilizado
pela imprensa como ocorreu com o conflito de Japuara, tendo em vista que isto já ocorria mesmo antes da ditadura
civil-militar e permanece sendo utilizado pelos jornais para criar um clima de tensão social e medo no setor médio
da sociedade leitora desses jornais, como fica evidente pelas pesquisas desses historiadores. Assim, os conflitos
camponeses são retratados na imprensa como um “alerta” para a sociedade, por isso aparecem associados ao
perigo, medo de uma possível eclosão de uma “guerrilha rural” que facilmente poderia se alastrar no campo.
149
dizer que mesmo jornais dito informativos, conhecidos por um modo de produzir notícia
“sério”, podem ter uma abordagem mais apelativa em suas páginas com o objetivo de se
destacar entre os demais e tornar a sua mercadoria (notícia) mais atraente para o leitor ou mesmo
possuir o objetivo de “chocar”, causar um certo furor na sociedade.
Segundo Adísia Sá (2004), a maior parte dos recursos dos jornais cearenses
provinha das assinaturas, entretanto, ela enfatiza que a venda variava de acordo com a
manchete. Assim, se a manchete era atrativa, o jornal poderia ter um retorno financeiro melhor.
As seções que normalmente despertavam maior interesse no público eram o esporte e o policial:
Entrevistador: Mas, algum jornal procurava ser mais sensacionalista do que outro,
colocar a manchete de primeira página em letras maiores com fotos maiores?
Entrevistada: Infelizmente, o policial e o esporte eram os grandes chamarizes, sem
sombras de dúvidas. Como ainda hoje, ainda chama o leitor esse tipo de coisa
sensacionalista, principalmente o policial que veio com o resquício da Ditadura
Vargas em que não se podia falar de política, economia, não se podia falar de nada.
Eles só tiveram um caminho: ir para o esporte, ou para o policial (2004, p. 19).
conflito,145 seja com o proprietário ou com os policiais, e com uma abordagem apelativa.
Considera-se, então, fundamental destacar como a imprensa trará, em suas páginas, o discurso
dos camponeses de Japuara e o debate público da questão agrária.
145
Cubas (2012, p. 129) observou, no que diz respeito à representação do Movimento dos Trabalhadores Rurais –
MST na imprensa paulista, que esta costuma retratá-los como os agressores, os responsáveis por causarem os
conflitos de terra. Isto, em certa medida, aproxima-se da representação na imprensa dos camponeses de Japuara já
estes foram retratados, naquele momento, como os provocadores dos confrontos, os que foram apontados como os
principais responsáveis pelas mortes.
152
e o proprietário (César Campos) e os agentes do Estado, do outro, tendo em vista que as partes
envolvidas entraram em choque nestes jornais e buscaram construir representações distintas
sobre um mesmo conflito de terra.
Antes de tudo, é necessário enfatizar de acordo com Silva (1994), que a questão
agrária, durante o período do “milagre brasileiro”, pouco foi discutida pela imprensa. O
primeiro motivo diz respeito ao “esquecimento” ou o silenciamento imposto pela intensificação
da repressão política e também devido ao aumento da produtividade no campo, o que ocasionará
uma ideia equivocada de que a questão agrária tinha sido solucionada pelos militares:
De um lado, ela havia sido esquecida ou deixada de ser tema da grande imprensa. Do
outro lado, da parte daqueles que não podiam esquecer, porque a questão agrária faz
parte de sua vida diária, os trabalhadores rurais, ela fora silenciada. Para isso foi
necessário fechar sindicatos, prender e matar líderes camponeses, além de outra série
de violência que todos conhecem ou pelo menos imagina (SILVA, 1994, p. 9-10).
campo, “os excluídos de sempre”, sobre os quais antes se depositavam todas as suas
esperanças messiânicas, foram excluídos também delas. A julgar por tais análises, a
luta de classes no Brasil encerrou-se em 1964 (PALMEIRA, 2013, p. 24).
De acordo com Grynszpan (2003, p. 325), mesmo que o Estado autoritário tenha
imposto a desmobilização aos camponeses, isto não foi capaz de conter os conflitos de terra.
Estes, inclusive, persistiram e foram até mesmo ampliados durante a ditadura. Do mesmo modo,
ele enfatiza que a questão agrária, mesmo após o golpe militar, manteve-se uma problemática
central em decorrência das recomendações do próprio governo norte-americano, que temia a
possível eclosão de revoltas camponesas na América Latina semelhantes à Revolução Cubana.
A reforma agrária era vista como mecanismo de controle e de eliminação dos conflitos e
revoltas de luta pela terra durante o regime militar brasileiro (GRYNSZPAN, 2003, p. 321).
Portanto, com a emergência do conflito da fazenda Japuara, as páginas dos
principais periódicos do país mostravam que os conflitos de classe no meio rural não haviam
desaparecido com a ascensão dos militares ao poder e que tais conflitos ainda representavam
uma ameaça, pois as revoltas camponesas poderiam se espraiar brevemente por todo o estado.
A questão agrária e os conflitos de classes revelam-se, então, problemáticas sociais latentes
durante a ditadura. A imprensa, inclusive, passa a defender que Japuara seja tratada como um
“problema social” e não apenas como um “caso de polícia”. Nesse sentido, pretende-se chamar
a atenção para o modo como o maior espaço cedido às entidades sindicais foi essencial na
mudança de abordagem do conflito de Japuara nos jornais que passam a tratar como um
problema social os conflitos entre as classes do campo.
A “arena de disputa imaterial” pela representação do conflito vai reverberar com
mais força nas páginas dos jornais com a apresentação dos moradores de Japuara (CUBAS,
2012). De tal modo, as vozes dissonantes sobre a atuação dos agentes do Estado e dos
proprietários nos conflitos de terra ganharão maior veemência. Esse momento se apresentará
como uma oportunidade para os camponeses de Japuara e seus representantes sindicais tentarem
reverter a imagem do conflito que vinha sendo construída pela imprensa, ao mesmo tempo que
também passa a existir uma clara defesa da desapropriação como a solução mais viável para os
conflitos de terra.
Os agricultores envolvidos diretamente nos confrontos estavam escondidos no
Serrote de Santa Teresa e, com a apresentação dos moradores em 6 de janeiro de 1971, estes
também confrontarão as versões apresentadas pelos próprios jornais que os colocavam como
os principais responsáveis pelos confrontos e isentava os policiais e o proprietário. Diga-se de
154
passagem, os jornais cederão espaço para que os moradores pudessem contrapor as falas oficiais
que legitimavam a ação do Estado nos conflitos de terra.
O jornal Correio da Manhã, em sua reportagem de 6 de janeiro de 1971, trouxe, em
sua primeira página, fotografias dos moradores resgatados no Serrote de Santa Teresa. Na
primeira página, o jornal divulgou a seguinte manchete “Correio localiza fugitivos de Canindé”,
inclusive, o termo “fugitivos” dialogava diretamente com a fotografia dos camponeses expostos
lado a lado numa espécie de “retrato falado”:
César Campos e a polícia de Canindé são os únicos responsáveis pelo que ocorreu
sábado último na fazenda Japuara – afirmou que o agricultor Francisco Nogueira
Barros, Pio, ainda nas matas do conflagrado município cearense, onde o foi localizar
a reportagem “associada” acrescentou que dias antes do conflito, a 22 de dezembro,
soldados da Polícia Militar a mando de César Campos, foram a Japuara arrancar
cancelas e tomar tarrafas de pescadores, enquanto outro elemento queimava os
roçados dos moradores da propriedade. (CORREIO DO CEARÁ, 6 jan. 1971, p. 7).
156
tiveram mais espaço para se contrapor às versões oficiais sobre o conflito, além de indicar que
os jornais aparentemente estavam mais interessados no que os camponeses tinham a dizer.
De toda forma, é relevante analisar o discurso do proprietário sobre Japuara e os
camponeses. O jornal Povo trouxe como manchete da matéria a seguinte proposição: “César
acusa sindicato no conflito de Canindé”. A reportagem reproduziu, de modo direto, o
depoimento do proprietário com as questões realizadas pela polícia e as respostas dele. Segue
um desses trechos:
contratados pelo proprietário não tiveram suas identidades reveladas e sempre aparecem sob a
identidade genérica de “homens” ou “cassacos”.146
O proprietário também responsabilizou o Sindicato dos Trabalhadores Rurais pelo
início do conflito. No seu depoimento, ele deixa claro que o conflito com os moradores se
iniciou a partir do momento em que Pio Nogueira e os demais moradores se filiaram ao STR:
146
De acordo com Castro (2014), a denominação “cassaco” associa-se, no Ceará e também em outros estados do
Nordeste, a animais feios e fedorentos. Normalmente, os trabalhadores da frente de emergência eram conhecidos
por essa alcunha (2014, p. 2). Então, era um termo que estigmatizava esses trabalhadores das frentes de serviço e
que permanece sendo utilizado mesmo durante a década de 1970.
160
agrária, inclusive, respaldadas principalmente no Estatuto da Terra, poderia fazer com que a
mobilização dos moradores adquirisse uma conotação distinta e as ações dos camponeses fossem
encaradas como atos “subversivos” durante o regime autoritário. Talvez tenha sido este o propósito
de César Campos.
Por conseguinte, da mesma forma que era conveniente para o novo proprietário
acusar os trabalhadores da frente de emergência pelos atos arbitrários na propriedade, alegando
que não os autorizara a destruir as casas dos moradores e as cercas, também era conveniente
afirmar que a situação de intranquilidade entre ele e os moradores só se iniciou a partir da
orientação do sindicato para que os camponeses cobrassem pelos seus direitos. Dessa forma, o
proprietário enfatiza que essas reivindicações só ocorreram a partir da interferência do
sindicato. Sendo este, portanto, o responsável por romper “a ordem e paz no campo”
(MONTENEGRO, 2004, p. 396).
Segundo Barreira (1992), com a emergência do conflito de Japuara, os sindicatos
rurais despontam como os grandes adversários dos proprietários de terra: “Outro resultado do
conflito foi o Sindicato dos Trabalhadores passar a ser considerado o grande inimigo dos
proprietários de terra e o agente da subversão social e do conflito no campo, na medida em que
deu orientação aos camponeses” (1992, p. 55). Portanto, o sindicato rural vai aparecendo nos
discursos dos proprietários na imprensa e de seus representantes, sempre associado à subversão
no campo.
Observa-se, desse modo, como foi tornando-se latente o conflito das classes do
campo, dimensionado agora para dentro das páginas dos periódicos do estado do Ceará com
deferimento de acusações de ambos os lados. São discursos que constantemente passam a se
contrapor nos jornais. Assim, vê-se que, em Japuara, o conflito de classes entre os camponeses
e o proprietário também passou a travar-se “nesse território imaterial” (CUBAS, 2012): a
disputa pela forma como seria representado nas páginas dos jornais o conflito na imprensa e o
modo como deveria ser conduzida a questão agrária.
O discurso que dava ênfase à intranquilidade no meio rural e que almejava criar um
temor na sociedade de novos conflitos de terra começa também a ser utilizado pelos
representantes sindicais. Isto é, os advogados dos moradores de Japuara e os sindicalistas
passam a se valer de um discurso alarmante sobre os conflitos de terra no Ceará.
O sindicalista Francisco Almeida, presidente do Sindicato dos Trabalhadores
Rurais de Canindé, concedeu uma entrevista à Gazeta de Notícias, enfatizando a situação de
intranquilidade que preponderava no meio rural. O sindicalista, em sua fala ao jornal, destacou
que, em Canindé, predominava certo clima de hostilidade entre moradores e proprietários em
161
147
Lei N° 4.504, de 30 de novembro de 1964. Dispõe sobre o Estatuto da Terra. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l4504.htm. Acesso em: 24 abr. 2020.
162
acalmar os ânimos. Inclusive, esses sujeitos ganham cada vez mais espaço nos jornais e vão
suscitar um debate mais aprofundado na imprensa sobre a questão agrária.
É fundamental salientar que, possivelmente, essa exploração do temor de novos
conflitos de terra no Ceará pelos advogados ligados às Federações dos Trabalhadores foi
utilizada como estratégia para acelerarem a desapropriação de Japuara. Alegava-se, então, que
tais áreas eram caracterizadas como locais de “grave tensão social no campo”, sujeitas a
medidas desapropriatórias como estabelecido pelo Estatuto da Terra. Lindolfo Cordeiro e as
entidades sindicais passam, dessa forma, a explorar o suposto caráter violento associado ao
conflito de Japuara com o objetivo de conquistarem uma decisão favorável aos camponeses.
Grynszpan (2009), em seu estudo sobre as ocupações de terra na Baixada fluminense, observou
uma mudança de estratégica dos camponeses e de seus representantes sindicais na luta pela
conquista da terra. Se, durante a década de 1950, eram comuns as ações envolvendo o usucapião
para a conquista da terra, essa estratégia de luta passa por mudanças a partir da década de 1960,
com a projeção do movimento camponês no cenário político e o debate em torno da
consolidação da reforma agrária por meio de desapropriações de terra previstas, inclusive, na
Constituição:
Nesse contexto, o que passavam a buscar as lideranças era não mais o usucapião, mas
sim, expondo a violência e a radicalidade das lutas, caracterizar os locais onde vinham
ocorrendo despejos como áreas de conflito, de tensão social. Seu objetivo era forçar a
desapropriação daquelas áreas e sua entrega aos lavradores (GRYNSZPAN, 2009, p.
47).
cobrança do Estatuto da Terra, portanto, torna-se objeto central de debate da imprensa graças à
articulação dos sindicalistas e advogados dos camponeses.
Como já dito, a imprensa, ao longo da cobertura do conflito de Japuara, passa a
debater as inúmeras dimensões que envolviam as questões de terra, buscando até conduzir a
opinião dos seus leitores sobre a Reforma Agrária e as novas legislações existentes sobre os
direitos dos camponeses. Assim, é fundamental analisar tais artigos publicados pela imprensa,
com a finalidade de compreender como esses discursos favoreceram a celeridade da
desapropriação de Japuara.
Em um artigo intitulado “Questão delicada”, o jornal O Povo propôs-se a discutir o
“problema da terra” com o seu público leitor. No artigo, o jornal defende que a terra é tanto um
fator de produção, quanto motivo de tensão social, principalmente, quando o problema da terra
era tratado à margem da legislação agrária. O jornal reflete que os conflitos de terra ocorriam
quando não se respeitavam as leis agrárias e citava o caso de Japuara como um desses casos.
Segundo O Povo, a aprovação do Estatuto do Trabalhador Rural e do Estatuto da Terra surgiu
justamente para solucionar a “questão agrária”, tendo em vista que a “Revolução de março”
tratou, de forma lúcida, os problemas oriundos das relações de trabalho no campo. Dessa forma,
o regime militar, desde o princípio, segundo o jornal, mostrou-se preocupado tanto com a
“produtividade” quanto com o restabelecimento de uma “paz social” no campo.
O Povo ainda enfatizou que o governo ditatorial estimulava a aplicação da
legislação agrária por meio da organização dos trabalhadores rurais em diferentes instâncias de
representação sindical, assim como estimulou a organização dos “empresários do campo”.
Portanto, o jornal atribui ao regime militar tanto a existência da legislação agrária, quanto a
organização dos camponeses e também dos proprietários. O jornal também definiu, como o
cerne do conflito de Japuara e de outros conflitos de terra do Estado, o desrespeito da legislação
pelos fazendeiros mais tradicionais e os criticou por se oporem ao “espírito das leis”, por serem
apegados a “privilégios caducos” (O POVO, 6 jan. 1971, p. 3). Portanto, foi deixando evidente
o seu posicionamento mais liberal e se opondo à oligarquia do campo mais tradicional,
conservadora e resistente à modernização das relações de trabalho no campo, que atuava à
margem da lei.
Assim, para a imprensa, esse segmento de proprietários avessos à aplicação da
legislação agrária representava um obstáculo ao pleno desenvolvimento do capitalismo no
campo, oposto ao que supostamente era vislumbrado pelo regime militar, além de ocasionarem
os conflitos de terra: “O episódio de Canindé tumultuado ao primeiro impacto pela
desinformação decorrente, ora da ignorância, ora da má fé, é característico da oposição de certos
164
setores dos proprietários de terra à legislação em vigor” (O POVO, 6 jan. 1971, p. 3). Do mesmo
modo, ressaltava que a cobrança da aplicação do Estatuto da Terra pelos camponeses de Japuara
fora a causa do conflito e gerara uma reação violenta de César Campos: “A persistência dos
lavradores na defesa dessas disposições legais é que gerou a questão, sendo de lamentar que,
talvez mal orientado haja o proprietário das terras se antecipado ao pronunciamento da justiça,
apelando para uma solução violenta” (O POVO, 6 jan. 1971, p. 3).
O jornal Gazeta de Notícias também entrará de forma profunda no debate da
questão agrária, inclusive, mais ainda do que O Povo. O periódico, em 18 de janeiro de 1971,
retoma a entrevista do presidente do Sindicatos dos Trabalhadores de Canindé, Francisco
Almeida, para cobrar providências das autoridades públicas como meio de sanar o clima de
intranquilidade supostamente preponderante no meio rural no Ceará: “O lamentável incidente
do dia 2 de janeiro, em Canindé, poderá se repetir a qualquer momento, se as autoridades não
tomarem providências imediatas” (GAZETA DE NOTÍCIAS, 18 jan. 1971, p. 8).
Para o jornal, o conflito de Japuara poderia ter sido evitado caso tivessem sidos
tomadas as medidas necessárias e as autoridades públicas tivessem atuado como mediadoras do
conflito entre os proprietários e os camponeses. A Gazeta expressa esse posicionamento
trazendo a voz de Francisco Almeida: “Na mesma entrevista, adianta o líder rural que o caso
da Fazenda Japuara teria sido evitado se as autoridades judiciais tivessem agido com mais
rapidez, antes que o tempo se encarregasse de criar um clima de ódio entre proprietários e
posseiros” (GAZETA DE NOTÍCIAS, 18 jan. 1971, p. 8). Entretanto, o jornal ainda permanece
enfatizando que a violência no campo acontecia, muitas vezes, por uma certa “rudez” do homem
do campo que, ao não ter os seus direitos respeitados, via-se impelido a “agir pela força”: “Por
esta razão não se pode agora cruzar os braços, visto que os agricultores são homens de pouca
instrução e podem chegar a atos violentos, na defesa dos seus direitos se a justiça for morosa”
(GAZETA DE NOTÍCIAS, 18 jan. 1971, p. 8). Então, a imprensa, mesmo modificando o seu
posicionamento sobre os camponeses, ainda difunde uma visão estereotipada sobre eles.
A Gazeta, neste mesmo dia, trouxe ainda uma coluna de opinião do jornalista
Francisco Pires Saboia intitulada “Questões de Terra: um problema social”. Esse texto vai-se
inserir em uma série de matérias em que o jornal se disporá a discutir a questão agrária com os
seus leitores. Saboia realizará uma reflexão em torno da questão agrária, o que significa dizer
que o jornalista discutirá os problemas do arrendamento da terra, os contratos de parceria, a
concentração de terras e as relações de trabalho no campo. O colunista ainda retoma uma
suposta fala de Lindolfo Cordeiro para enfatizar a necessidade de discussão das leis agrárias,
pois tanto o patronato agrícola quanto autoridades judiciais “desconheciam” o sistema legal que
165
regia as relações de trabalho no campo, principalmente, as novas leis, tais como o Estatuto do
Trabalhador Rural e, principalmente, Estatuto da Terra (objeto central dos debates): “Para o
advogado Lindolfo Cordeiro, a violência nasce do desconhecimento das normas jurídicas em
vigor, por parte dos proprietários que vêem o posseiro como uma pessoa que pode ser despedida
a qualquer momento” (GAZETA DE NOTÍCIAS, 18 jan. 1971, p. 8). Assim, a Gazeta de
Notícias enfatiza que existe um problema que precisa ser melhor debatido e que o cerne da
questão agrária no Ceará reside no desrespeito às leis pelos fazendeiros. O periódico atribui-se
assim a missão de discutir essa problemática com os leitores.
Observa-se ainda como o jornal vai “legitimando o seu discurso”, utilizando-se,
para tanto, do que diziam os advogados sindicais ou lideranças sindicais, tendo em vista que
estes se respaldavam pela lei agrária (CUBAS, 2012, p. 121). Portanto, os jornais passam a
embasar o seu posicionamento sobre os conflitos de terra por meio do que estava sendo
defendido pelos advogados sindicais e pelas lideranças sindicais camponesas e não mais pelos
proprietários de terra ou mesmo pelos agentes do Estado. Assim, as falas de outros sujeitos vão
ganhando mais eco nas páginas dos jornais e passam a ser utilizadas para respaldar o
posicionamento político assumido pelos periódicos.
No dia seguinte, o jornal Gazeta manifesta-se, de forma bastante clara, a favor da
desapropriação de Japuara como uma resolução para o conflito, já que, segundo o periódico,
uma decisão favorável aos camponeses acalmaria a situação de intranquilidade no campo e
evitaria o aparecimento de novos conflitos no Ceará:
Uma decisão favorável aos lavradores, sem que resultasse em prejuízo para a outra,
poderia servir de exemplo, possibilitando o entendimento mútuo entre proprietários e
agricultores noutras questões existentes em nosso Estado e que podem resultar no
surgimento de novos conflitos de consequências imprevisíveis (GAZETA DE
NOTÍCIAS, 19 jan. 1971, p. 3).
Destarte, com as colunas de opinião, os jornais demonstram ao leitor que existe uma
relação entre cobrança por direitos e violência no campo, já que os proprietários de terra agiam
com hostilidades contra os camponeses justamente por resistirem a cumprir os dispositivos
legais e negarem-se a conceder direitos aos moradores. Assim, atribui-se ao patronato agrícola,
em parte, a responsabilidade pelos conflitos de terra, enquanto a imprensa relaciona que a
cobrança por direitos gera violência no campo, pois existia um processo de resistência dos
proprietários em acatar o estabelecido pela legislação agrária.
Saboia ainda enfatiza que o sistema legal que regulamentava as relações de trabalho
no campo, tais como o Estatuto da Terra, era fruto da elaboração do regime militar e trouxe
consigo a possibilidade da concretização da Reforma Agrária: “Com a Revolução de 31 de
março de 1964, a coisa tomou outro sentido, especialmente porque a idéia de Reforma Agrária
aparecia de maneira promissora nos países em desenvolvimento” (GAZETA DE NOTÍCIAS,
25 jan. 1971, p. 6). Assim, não poderia se associar a cobrança da aplicação da legislação agrária
como atos de subversão dos camponeses ou das entidades sindicais que os representavam. A
legislação agrária não seria dotada de um “caráter ideológico”, como sustentavam os
proprietários: “Muito tem se falado que o aparecimento dos sindicatos deu aos rurícolas uma
informação distorcida, levada por um caráter político diferente, tendencioso e de esquerda.
Entretanto, as normas jurídicas em vigor, defendendo os interesses dos agricultores, surgiram
com a Revolução de Março de 1964” (GAZETA DE NOTÍCIAS, 25 jan. 1971, p. 6).
Nesse sentido, os jornais passam a confrontar a associação entre a cobrança por
direitos e subversão no campo, tendo em vista que os proprietários de terra associavam tais
reivindicações a uma atuação ativa do sindicato dos trabalhadores rurais e tentavam, por sua
vez, associar tais reivindicações à violência no campo. Para o jornal, o desrespeito à legislação
167
agrária tornara-se comum entre os proprietários de terra do estado. Assim, são os fazendeiros
que não estão agindo conforme os preceitos do regime autoritário. Nesse momento, percebe-se
ainda que os “antagonistas” dos conflitos de terra passam a ser os fazendeiros e não mais os
camponeses e as entidades sindicais (CUBAS, 2012).
Portanto, conflitos de terra não ocorriam somente em decorrência do
desconhecimento da lei agrária pelos fazendeiros. Na verdade, os jornais agora passam a
reforçar a ideia de que os proprietários não cumpriam o Estatuto da Terra e outros dispositivos
legais porque se recusavam a conceder direitos aos moradores por serem “atrasados” e
contrários ao “espírito das leis”. Não se tratava apenas de mero desconhecimento do que estava
disposto na legislação, como fora defendido em princípio, mas sim uma resistência proposital
operada por esses proprietários.
A terceira e última coluna sobre a questão agrária foi publicada no dia em que os
moradores de Japuara foram liberados pela polícia. O jornalista Saboia inicia o seu texto
enfatizando a recorrência dos conflitos de terra devido à cobrança do cumprimento da legislação
agrária pelos camponeses:
Questões de terra III: um problema social
Diariamente, pelo menos três casos envolvendo agricultores e proprietários chega ao
conhecimento da Federação dos Trabalhadores na Agricultura no Estado do Ceará.
Cada questão apresenta um problema diferente, mas todas têm sempre um detalhe em
comum. O não reconhecimento dos direitos que assistem o operário por parte dos
proprietários (GAZETA DE NOTÍCIAS, 1 fev. 1971, p. 6. Grifo do autor).
NOTÍCIAS, 1º fev. 1971, p. 6). Dessa forma, ele também observa o papel colaborador do
Estado com os proprietários de terra: mesmo quando este intervém no conflito com o seu
aparato policial, atua em conluio com os fazendeiros. Portanto, críticas são tecidas contra o
Estado, que contribui para a manutenção “dessa ordem” estabelecida pelos fazendeiros no
campo.
O jornalista, então, observa que a negativa de conceder indenizações aos moradores
foi o cerne do conflito de Japuara, já que os fazendeiros, tais como o próprio César Campos,
recusavam-se a reconhecer quaisquer direitos aos moradores. Saboia constata um modus de agir
comum entre os fazendeiros quando os camponeses cobravam pelos seus direitos: “Para não
cumprir esta determinação legal, qualquer fazendeiro emprega métodos grosseiros e sua
primeira cartada é contratar policiais do destacamento local para ameaçar rurícolas. Muitas
vezes a ameaça se torna luta e acontece crimes de homicídio como o caso de Japuara”
(GAZETA DE NOTÍCIAS, 1º fev. 1971, p. 6). O jornalista observa como a violência era
articulada pelos proprietários para inibir a reivindicação pela aplicação da legislação agrária.
Percebe-se ainda que tal posicionamento favorável aos camponeses de Japuara se
relaciona ao fato de as reivindicações deles terem sido pautadas pelo Estatuto da Terra,
instrumento jurídico aprovado pelo presidente Castelo Branco. Afinal, se o regime autoritário,
em tese, era favorável à Reforma Agrária, isto, em parte, facilitou certa simpatia do jornal pela
mobilização dos moradores de Japuara em torno do cumprimento da lei elaborada pelo próprio
regime militar. A reivindicação dos camponeses de Japuara era legítima e estava conforme o
que era pregado pelo regime militar.
É importante ainda considerar que, segundo Barreira (1992), a imprensa do Ceará
observa, por meio do conflito de Japuara, que os proprietários de terra eram “atrasados” e que
não desejavam modernizar as relações de trabalho e de produção no campo: “Foram
denunciadas as formas arcaicas, não capitalistas, da relação de produção no campo; a baixa
produtividade da agricultura do sertão, o viés conservador dos proprietários de terra, etc.”
(1992, p. 55). Ainda segundo o autor, os jornais também constataram o quanto os fazendeiros
eram “autoritários” e “absolutistas” no tratamento dado aos camponeses. A única lei que
imperava no interior dessas fazendas era a “vontade pessoal” desses proprietários. Para esses
fazendeiros, os mecanismos legais só deveriam ser postos em pratica quando lhes beneficiassem
(1992, p. 54-55).
Os proprietários de terra passam, dessa maneira, a personificar um modelo de
agricultura a ser superado no Ceará para possibilitar o pleno desenvolvimento do capitalismo
no campo. A imprensa passa a defender a Reforma Agrária, mas desde que fosse concretizada
169
nos moldes capitalistas como advogava o Estatuto da Terra. Portanto, existe uma ênfase
econômica em tais debates conduzidos pela imprensa em torno da Reforma Agrária, a qual
conduziria a uma modernização das relações de trabalho no campo, visando ainda à substituição
dos proprietários mais tradicionais por uma classe rural mais moderna.
Assim, a existência de leis regulamentadoras das relações no campo entrou em
debate na imprensa em decorrência da existência de um conflito de grande repercussão. Os
jornais viram-se impelidos a levar ao conhecimento da sociedade “as questões de terra”.
Observa-se, por parte dos jornais, uma clara tentativa de conduzir opinião pública sobre os
conflitos de terra e a violência no campo, já que lhes era forçoso trazer à torna o debate sobre a
nova legislação agrária. Merece destaque ainda o fato de que a imprensa se posiciona a favor
do esclarecimento dos dispositivos legais que passam a regulamentar a relação entre moradores
e proprietários, inclusive, defendendo que o patronato agrícola cumpra o disposto na lei como
forma de evitar a emergência de novos confrontos entre as classes. Foi nítida ainda a defesa dos
jornais da desapropriação como medida mais cabível na resolução dos conflitos de terra, quando
estes já estavam instalados.
A desapropriação é retratada nestes discursos como a medida mais precisa, rápida
e eficaz para sanar conflitos de terra, seria o meio de atacar o “mal pela raiz” (BARREIRA,
1992, p. 57). Assim, a questão agrária passa a ser considerada pelos jornais locais um “problema
delicado”, isto é, os periódicos passam a problematizar como o desrespeito disseminado entre
os fazendeiros ao Estatuto da Terra e a suposta tendência dos camponeses de cobrarem por seus
direitos fazendo uso da “força” poderiam ocasionar revoltas camponesas.
A imprensa observa com temor a insatisfação dos camponeses ao terem os seus
direitos negados e relacionava o fato a uma possível insurgência generalizada desses
camponeses contra os desmandos dos fazendeiros. O conflito de Japuara trouxe um sinal de
alerta à sociedade, da possível emergência de novos confrontos entre as classes do campo, o
que exigia medidas imediatas para sanar o clima de intranquilidade no meio rural.
O medo foi mobilizado pelos jornais e pelas entidades sindicais para cobrar uma
resolução para Japuara e alertar que este conflito não era um caso isolado no Ceará. Se o Estado
do Ceará estava ou não acometido por diversos conflitos pela terra que poderiam se desdobrar
em casos semelhantes ao de Japuara, não temos como saber. Entretanto, foi nítida a mobilização
do medo pela imprensa como fator preponderante na celeridade da desapropriação de Japuara
(PORFÍRIO, 2008; MONTENEGRO, 2004).
170
148
Aviso nº 15. Brasília, 26 de janeiro de 1971. O processo encontra-se disponível em formato digital na página
do Brasil Nunca Mais: Ministério Público Federal/BNM 082/Ação Penal 40/72. Disponível em:
http://bnmdigital.mpf.mp.br/pt-br/. Acesso em: 7 ago. 2020. Fls. 1061.
149
Idem. Ibidem, fls.1061.
171
150
Vicente Pompeu foi preso duas vezes durante a ditadura civil militar. Pompeu ocupava a presidência da
Federação dos Trabalhadores Autônomos Rurais na Agricultura do Estado do Ceará quando foi preso a primeira
vez, em 3 de abril de 1964. A segunda ocorreu em abril de 1973, momento de recrudescimento dos chamados anos
de chumbo da ditadura. Pompeu foi preso no Ceará, mas levado a Pernambuco, um dos Estados do Nordeste de
maior repressão aos camponeses e apoiadores da causa e lá foi submetido à tortura.
173
Vicente Pompeu da Silva, na década de 1970, era uma importante liderança sindical
camponesa, atuava no movimento desde a década de 1950, tendo, inclusive ocupado vários
cargos importantes, como presidente do Sindicato Rural de Fortaleza, participou da fundação
da Fetraece e possuía ligação com o Partido Comunista Brasileiro. Desde a instalação do golpe
militar, Pompeu sofria com perseguição política e já havia sido preso, acusado de subversão.
Tanto Lindolfo Cordeiro, quanto Vicente Pompeu, ganharam destaque nas páginas dos jornais
como os principais mentores dos conflitos de terra no Ceará durante a ditadura.
Na manchete de primeira página do jornal Correio do Ceará, a chamada principal
trouxe como título “Advogado comandava no Ceará esquema visando luta entre camponeses e
proprietários” e, em letras garrafais, trouxe o título principal da matéria do dia “Subversão no
Campo”. Para compor a matéria, foram utilizadas ainda fotografias de Lindolfo Cordeiro e
Vicente Pompeu da Silva, apontados como os “cabeças” da subversão:
174
Observa-se ainda que as chamadas das matérias procuraram dar um maior destaque
à figura de Lindolfo Cordeiro como mentor intelectual desse plano de incitação à “luta de
classes no meio rural”. Segundo o Correio do Ceará, ele utilizava-se de sua posição como
advogado da Fetraece para difundir ideias comunistas: “Advogado da Federação dos
Trabalhadores Rurais passou a negar a existência do direito de propriedade e segundo suas teses
a terra não era de ninguém, conduzindo habilmente, a uma ação de violência. Citava, inclusive,
exemplos de países comunistas com relação aos problemas” (CORREIO DO CEARÁ, 19 abr.
1972).
É interessante observar que a perseguição política aos envolvidos nos conflitos de
terra no Ceará se intensifica após a desapropriação da Fazenda Japuara. A imprensa passa a ser
utilizada como meio de persuasão no convencimento da sociedade quanto à existência de perigo
iminente no meio rural, uma ameaça articulada por advogados e lideranças sindicais que
estariam fomentando a luta de classes no campo. Assim, se anteriormente a imprensa mobilizou
uma narrativa favorável à desapropriação de Japuara, na defesa do cumprimento da legislação
175
como justificativa para a perseguição política aos que não se adaptavam aos preceitos do regime
autoritário.
Segundo Padrós (2005), a Doutrina de Segurança Nacional fundamentou todos os
regimes ditatoriais do Cone Sul, mesmo cada local guardando suas particularidades. A Doutrina
de Segurança Nacional, segundo ele, fomentou a ideia de um “estado de guerra permanente”
contra um suposto “inimigo interno” (2005, p. 26). No caso específico do Brasil, segundo Alves
(2005), a Doutrina de Segurança Nacional foi formulada pela Escola Superior de Guerra,
contando com a colaboração do IPES e IBAD, que se constitui como escopo teórico formado
por “elementos ideológicos e diretrizes para a infiltração, coleta de informações e planejamento
político-econômicos de programas governamentais” (2005, p. 42). Nesse sentido, a Doutrina
de Segurança Nacional, segundo Borges (2003), foi tanto recepcionada quanto elaborada
intelectualmente pela Escola Superior de Guerra, sendo que esta contou tanto com a
participação de militares quanto de civis na sua formulação doutrinária (2003, p. 17). Ainda
segundo Alves, uma das premissas fundamentais em que a DSN se sustenta são as diferentes
noções de guerra definidas pelo Manual da Escola Superior de Guerra: “guerra total; guerra
limitada e localizada, guerra subversiva ou revolucionária; guerra indireta ou psicológica”
(2005, p. 42). Com relação à Guerra Revolucionária, que estaria sendo promovida pelo
“comunismo internacional”, segundo a autora, esse tipo de enfrentamento tem noções distintas
de uma guerra convencional, pois não se restringe aos limites definidos pelas fronteiras
territoriais de cada país e não é exclusivamente voltada a combater as forças externas daquela
nação. Assim, a noção de uma Guerra Revolucionária não possui dimensões bem esclarecidas
como uma guerra convencional, isto é, a noção de que o inimigo se difere daquela nação ou que
este se encontra fora das fronteiras territoriais.
Existe assim uma maior plasticidade da noção de fronteira em uma guerra
revolucionária, pois as fronteiras são ideológicas e não existe uma clara separação entre um
Estado-Nação e outro (BORGES, 2003). É interessante observar que essas diferentes noções de
guerra inseridas em tal manual possuem ligação com a Guerra Fria e a bipolarização entre países
capitalistas e comunistas que vai reverberar nos países da América Latina ao formularem a
ideologia de segurança nacional em que pese uma luta anticomunista (ALVES, 2005). Segundo
Borges, a guerra fria não se adapta à formulação clássica de guerra, mas também não é um
estado de paz. O autor a define como um “hiato” entre esses dois estados: já que não existe um
clima amistoso, mas também não se adapta à formulação mais comum do que se entende por
guerra. O autor também pondera sobre o caráter ideológico da Guerra Fria como um dos seus
elementos constitutivos: “Em síntese, a guerra fria pode ser definida como um antagonismo à
177
elemento basilar o terror praticado contra a sua própria população: “O TDE aplicado na
América Latina, entre as décadas de 60 a 80, através das orientações da DSN e na forma de
guerra contra-insurgente, é um terrorismo de grande escala, dirigido desde o centro do poder
estatal, dentro ou fora das suas fronteiras” (PADRÓS, 2005, p. 77).
A existência de uma suposta guerra interna e permanente justifica a utilização do
aparato repressivo pelo Estado. É interessante observar que, na guerra contra a “subversão”,
existe a diluição do inimigo que pode ser onipresente, justamente por não ser uma “guerra
declarada” (ALVES, 2005, p. 47). Fica clara, então, a estreita ligação entre a Doutrina de
Segurança Nacional, ao ter como elemento basilar o caráter de uma guerra antissubversiva ou
revolucionária, e o modo como Estado autoritário passa a se valer do seu aparato repressivo
para coibir esse suposto inimigo interno, atuando com violência contra a sua população.
A divulgação, nos veículos de imprensa, da descoberta pela polícia federal de um
“plano de agitação que pregava violência no meio rural” sedimenta na sociedade um clima de
medo e suspeição, pois demonstrava aos setores médios a existência de indivíduos
“camuflados”, ou seja, a existência de inimigos internos que estariam tramando silenciosamente
guerrilhas no meio rural. Isto fica ainda mais evidente na matéria publicada pelo Jornal do
Brasil que divulgou uma nota da Polícia Federal em que esta detalha como ocorriam as reuniões
organizadas por Lindolfo Cordeiro:
com os sujeitos que não se adaptassem aos preceitos de pertencimento à nação e não se
comportassem conforme os valores de um regime autoritário, tais como prisões, torturas e
punições violentas. Assim, o Terror de Estado possui um caráter pedagógico, repressor e
preventivo coibindo possíveis novas manifestações dos setores populares (PADRÓS, 2005, p.
35).
A prisão ou indiciamento de Lindolfo Cordeiro e de Vicente Pompeu tomam as
páginas dos jornais como ações intimidadoras. Era necessário demonstrar ao movimento
sindical camponês o que ocorreria com os demais advogados e camponeses, caso perdurasse a
mobilização em torno da aplicação das leis agrárias e por direitos. A cobrança pelo
cumprimento de direitos ou da legislação agrária, em um regime autoritário, assume caráter
subversivo: “buscar o cumprimento dos direitos por menores que fossem em um quadro
dominado pelo arbítrio, era já uma forma atuadora de tensões” (GRYNSZPAN, 2003, p. 326).
Na verdade, os conflitos entre as classes, nesse discurso da imprensa, não ocorrem devido à
cobrança por direitos, mas sim em decorrência da difusão de ideias comunistas entre os
camponeses. O debate anteriormente travado na imprensa sobre a questão agrária e as novas
legislações é posto de lado em decorrência das acusações de subversão sofridas por Lindolfo
Cordeiro e os demais camponeses.
A exposição, nos jornais, dos sujeitos considerados subversivos no meio rural se
insere na noção de guerra psicológica pautada dentro da Doutrina de Segurança Nacional. De
acordo com Borges (2003), uma das premissas da guerra psicológica é a destruição moral do
indivíduo visando a separá-los dos demais cidadãos e como forma de assegurar a não oposição
da sociedade a determinado projeto político. Os meios de comunicação podem ser utilizados
para desmoralizar os considerados “inimigos internos” da nação, além de servirem para
provocar medo e a intimidação na sociedade (BORGES, 2003, p. 28-29). Do mesmo modo,
quando a imprensa apresenta a existência de subversivos e agitadores perigosos no campo,
sedimenta-se, em seus leitores, a noção da necessidade de maior controle por parte do Estado
na manutenção da ordem, o que, por sua vez, relaciona-se com a noção de uma “guerra
permanente” contra os subversivos, justificando, então, o uso do aparato repressivo contra o
inimigo interno, ou seja, justifica-se o Estado de Terror voltado contra a população:
caracterizam pelo clima de suspeição generalizado, qualquer sujeito pode representar uma
ameaça pelo simples fato de possuir a capacidade de pensar e mudar de ideia. Qualquer
indivíduo poderia, então, se tornar um oponente do Estado, mesmo aqueles que, em princípio,
não foram tidos como inimigos:
advogados, lideranças camponesas ou qualquer outro sujeito da sociedade civil podiam ser
ameaças à coesão da nação.
O Estado autoritário monta uma estrutura repressiva armada na identificação desse
“inimigo interno”, assim como mantém uma rede de informação para identificar e neutralizar
os setores da população supostamente influenciados ou mesmo contaminados por ideias
comunistas (ALVES, 2005, p. 48). Segundo Gonçalves (2017), um dos pressupostos
fundamentais da Doutrina de Segurança Nacional é a ideia de que o inimigo se encontra
“camuflado” entre a população, sendo, por isso, relevantes os órgãos de informação para sua
detecção (GONÇALVES, 2017, p. 22). Para Borges (2003, p. 23), a Doutrina de Segurança
Nacional é estruturada em dois pilares principais. O primeiro diz respeito ao aparato repressivo
responsável pela coerção, enquanto o segundo é a montagem de uma rede de informação para
identificar os possíveis inimigos internos. O aparelho repressivo, segundo ele, foi organizado e
implementado com base na Doutrina de Segurança Nacional e será utilizado na estruturação do
Serviço Nacional de Informação – SNI. Portanto, o SNI torna-se umas das principais estruturas
do Estado autoritário, pois mantém sob constante vigilância a oposição política e aparelha o
poder executivo. Este órgão, durante a ditadura militar no Brasil, adquiriu tamanha relevância
que somente devia satisfação ao presidente da República (ALVES,2005, p. 58).
A existência de um inimigo interno é a principal fundamentação para que o Estado
autoritário monte um aparelho de vigilância da população e sustente a política repressiva. Os
serviços de vigilância são responsáveis pela coleta, análise e ainda por julgar tais informações.
A partir daí, definem os possíveis inimigos internos do Estado autoritário. Assim, é a crença na
existência de uma guerra interna constante que fundamenta a suspeição generalizada da
população (BORGES, 2003, p. 28). Isto significa dizer que, quando os sujeitos aparecem nos
jornais sob a alcunha de “subversivos”, antes estes já passaram pelo crivo desses serviços de
informação e já se encontravam anteriormente sob vigilância do Estado. São esses serviços de
informação que os definiram como inimigos internos da nação. Portanto, os discursos que
vieram à torna nos jornais sobre a subversão no meio rural representam apenas a ponta de um
iceberg das informações coletadas pelos órgãos de vigilância. Necessário também enfatizar que
essas informações divulgadas na imprensa passaram antes por um crivo do que deveria ser dito
à sociedade sobre o indiciamento de Lindolfo Cordeiro e Vicente Pompeu. Isto é, o discurso
público foi previamente arquitetado. São matérias que estabelecem culpados, que
representavam os advogados e sindicalistas como uma ameaça à nação, pois possuíam relação
com ideologias estrangeiras contrárias ao regime autoritário.
183
Ubirajara Alves iniciou suas atividades, na Federação em janeiro de 1971, logo que
eclodiu o conflito na Japuara, a convite do então presidente daquela entidade, Otávio
Ferreira Gomes, um antigo conhecido e conterrâneo da cidade de Itapipoca. Em
decorrência das discórdias existentes entre ele e os membros da Federação,
principalmente Lindolfo Cordeiro, pouco tempo permaneceu por lá, cerca de oito
meses, pois, logo após realizar as denúncias, pediu demissão, assumindo em seu lugar
Francisco de Jesus Nogueira Lima (ALBUQUERQUE, 2016, p. 91).
184
Visto minha disposição de servir à Pátria e lutar contra àqueles que querem subvertê-
la foi que aceitei o cargo de assessor jurídico da Federação dos Trabalhadores da
Agricultura do Estado do Ceará [...]. Assumi meu trabalho alí na hora da eclosão da
tragédia da Fazenda Japuara, no Município de Canindé, a convite do então presidente
da Federação, Otávio Ferreira Gomes, trabalhador rural de Itapipoca, que conhecia
meus atos e atitudes como advogado naquela cidade.
Chegando ali encontrei um ambiente intranquilo, agitado intencionalmente preparado
para a luta violenta entre trabalhadores e proprietários, incitação à desordem em todo
o meio cearense.151
Desde 1962 que venho empreendendo uma luta árdua contra a subversão e
subversivos em minha terra, onde meus primeiros adversários encontrei na
universidade.
Após isso, onde quer que encontre esses inimigos do regime e da ordem sempre
procurei eliminá-los e evitar sua proliferação ideológica e de métodos que possam
levar ao terror.
Como advogado que V. EXc, me conhece, lidando com vários tipos de pessoas em
várias partes do Ceará, procurei sempre sentir onde o inimigo moureja.152
É perceptível como a ideia da existência de inimigos internos a serem eliminados
pelo Estado autoritário esteve presente até mesmo nos discursos dos indivíduos que atuavam
junto ao movimento sindical camponês, tais como o Ubirajara Alves, assessor jurídico da
Federação, mas que utiliza, em suas correspondências com a 10ª região militar, termos ligados
a essa “guerra ideológica”:
Excelentíssimo, sr. Ten. Cel., é êsse meu pequeno relatório em face das atividades do
meio rural no Ceará, seus órgãos de classe e a maneira como os agentes da subversão
e terror procuram me eliminar como advogado dali [...]
Destarte, espero contar com a pronta cooperação de V. Excia., para que não seja
concretizada essa vitória da subversão e da agitação no meio rural, onde o seu chefe
supremo é o Dr. Lindolfo Cordeiro e de tôda a cúpula esquerdista de nossa terra que
infelizmente não dorme, está presente em todas as horas que há condições.153
151
Correspondência de Ubirajara Alves com a 10ª Circunscrição Judiciária Militar, 15 de setembro de 1971. In:
Militar Ministério Público Federal/BNM 082 1-4/Ação Penal 40/72. Disponível em:
http://bnmdigital.mpf.mp.br/pt-br/. Acesso em: 7 ago. 2020. Fls 14.
152
Op. cit., fls 14. Grifo nosso.
153
Op. cit., fls 17.
185
Ubirajara alegava ter divergências com diversos membros das entidades e, por isso,
não teria permanecido como assessor jurídico da Fetraece. Assim, procura afastar-se dos
membros da entidade que estariam usando a Federação para fomentar conflitos de classes. Ele,
inclusive, relatou que Lindolfo teria desfeito acordos realizados por ele entre patrões e
trabalhadores, o que gerou um desgaste entre os dois advogados.
O advogado ainda enviou mais dois relatórios aos órgãos de vigilância do Estado.
Em um deles, destinado ao tenente-coronel Eider Nogueira, chefe da 2ª seção da 10ª região
militar, citou o camponês Pio Nogueira Barros, que, segundo ele, também era considerado um
indivíduo perigoso. O documento acusava Pio de insuflar os camponeses contra os proprietários
de terra em Canindé e Itatira:
Francisco Nogueira Barros - vulgo “Pio” – apesar de estar sendo processado por estar
envolvido no “caso Japuara”, continua em plena atividade no Município de Canindé
e Itatira, como sempre fiel cumpridor das ordens do Dr. Lindolfo, insuflando humildes
agricultores à revolta, à insurreição, baseando seus ensinamentos na “Japuara” que
para eles é bom exemplo e que o governo dá pleno apoio [...].154
154
Segunda correspondência de Ubirajara Alves com a 10ª Circunscrição Judiciária Militar, sem data. In: Militar
Ministério Público Federal/BNM 082 1-4/Ação Penal 40/72. Disponível em: http://bnmdigital.mpf.mp.br/pt-br/.
Acesso em: 7 ago. 2020. Fls. 27.
186
Sr. Ten. Cel., é por isso que o Dr. Lindolfo não deseja que eu continuasse na Federação
dos Trabalhadores, é porque eu não tenho a intenção de usar os humildes e miseráveis
como instrumento de subversão, para intranquilizar a Pátria, para fins demagógicos e
contra a Segurança Nacional, porque na diretriz que vai ou que deseja o Dr. Lindolfo
em pouco tempo está apto a atender os desejos de Cuba, China ou Rússia. 155
Não é difícil imaginar a que vilanias não serviram esses documentos, pois são
conhecidos os casos de pessoas impedidas de tomar posse em cargos públicos em
função de perseguição políticas impelidas através das comunidades de informação.
Um simples chefe de repartição, por exemplo, que não desejasse a ascensão funcional
de um desafeto, poderia acusa-lo de “agitador” ou contrário à “Revolução” (FICO,
2003, p. 179).
155
Op. cit., fls 30.
187
156
Correspondência entre a Associação dos Criadores do Ceará e o Serviço Nacional de Informação e a Polícia
Federal, 5 de janeiro de 1972. In: Militar Ministério Público Federal/BNM 082 1-4/Ação Penal 40/72. Consultar:
http://bnmdigital.mpf.mp.br/pt-br/. Acesso em: 7 ago. 2020. Fls. 62.
188
neutralização pronta e eficaz dessa entidade, que está dispondo de impunidade ostensiva”.157
Portanto, existia uma pressão por parte da classe proprietária para que a Fetraece fosse
investigada e desmobilizada.
Depois da denúncia de Ubirajara Alves, ocorreu a abertura de um inquérito policial
com o propósito de investigar as “atividades subversivas no meio rural”. Foram colhidos
depoimentos de lideranças sindicais, camponeses, proprietários de terra, entre outros sujeitos
ligados de alguma forma à questão agrária. Foram ainda solicitadas ao SEI/CE informações
referentes à atuação de Lindolfo Cordeiro no meio rural. No relatório desse órgão de vigilância,
fica evidente a vigilância constante a que estavam submetidos os advogados e as lideranças
sindicais, tendo em vista a vasta documentação existente referente à atuação desses sujeitos. O
SEI/CE enviou as informações sobre a atuação de Lindolfo e outros líderes sindicais
acompanhadas de um relatório em que elencou alguns fatores que estariam contribuindo para a
eclosão de conflitos de terra no Ceará no que eles denominaram de “considerações de ordem
no campo psicossocial”. O primeiro fator apresentado pelo SEI, com relação à emergência dos
conflitos entre as classes do campo, seria a própria concentração de terra que, de acordo com o
relatório, estaria gerando um “clima de insatisfação e descontentamento muito forte” entre os
camponeses. O segundo seria a “infiltração” nos sindicatos rurais de sujeitos vinculados ao
comunismo internacional, tais como o Lindolfo Cordeiro, apontado como um desses infiltrados
que estariam difundindo ideias “comuno-subversivas” entre os camponeses:
Segundo esse mesmo relatório produzido pelo SEI/ CE, o ambiente social favorecia
para parte da população cearense a aderência a determinadas ideias subversivas: “Com o
advento da seca, flagelados e desajustados sociais emigram para as frentes de serviço, onde lá
são inoculados com o germe venenoso dos subversivos[...]”.159 Depois que saíam das Frentes
de Serviço, segundo o relatório, os camponeses iam “engrossar as fileiras dos sindicatos
revoltados”.
157
Op. cit., fls. 62.
158
Sumário de registros existentes no Sei/CE, sobre atividades do advogado Lindolfo Cordeiro, 17 de fevereiro de
1972. In: Militar Ministério Público Federal/BNM 082 1-4/Ação Penal 40/72. Disponível em:
http://bnmdigital.mpf.mp.br/pt-br/. Acesso em: 7 ago. 2020.
159
Op. cit., fls. 441.
189
160
Op. cit., fls. 441.
161
Processo Secom nº 52.023 (1972). p. 2. Grifo nosso. Fundo: Serviço Nacional de Informação. Disponível em:
https://www.gov.br/memoriasreveladas/pt-br/bancodedadosmr.jpg/view. Acesso em: 5 jul. 2022.
190
Portanto, é necessário entender o que esses órgãos passam a considerar como atos
de subversão ou o que eles consideravam como indivíduos perigosos. O inspetor responsabiliza
os assessores jurídicos e os STRs por essas ações tidas como subversivas que estariam
acontecendo no Ceará, e essas atividades seriam fruto da organização dos camponeses como
também da reivindicação por direitos. Os novos os mediadores de conflitos de terra seriam os
responsáveis por perturbar a paz no campo, segundo a concepção dos serviços de vigilância.
Segundo ainda tal relatório, Lindolfo Cordeiro e outros sujeitos vinculados às
entidades sindicais estariam tramando uma espécie de “guerrilha rural”, um movimento
subversivo no Ceará de caráter global, ou seja, vinculado ao comunismo internacional. Os
camponeses seriam uma espécie de massa manobra usada por Lindolfo na conquista de
objetivos maiores, contando ainda com a colaboração de Vicente Pompeu:
Homem culto e conhecedor das leis, encontrou na massa que lhe foi dada trabalhar
presa fácil para a consecução de seus objetivos, de vez que, desconhecedores das leis
e com poucas luzes, passaram os Presidentes dos Sindicatos a serem verdadeiros
teleguiados nas mãos de quem os preparava para um movimento de caráter
subversivo, de âmbito global para o Estado do Ceará, correndo pari passo com
objetivos de organização de esquerda, para implantação de guerrilha rural, conforme
afirma o próprio Vicente Pompeu da Silva.163
162
Processo Secom nº 52.023 (1972), p. 17. Fundo: Serviço Nacional de Informação. Disponível em:
https://www.gov.br/memoriasreveladas/pt-br/bancodedadosmr.jpg/view. Acesso em: 5 jul. 2022.
163
Inquérito para apurar atividades subversivas no meio rural, 15 de abril de 1972. In: Militar Ministério Público
Federal/BNM 082 1-4/Ação Penal 40/72. Disponível em: http://bnmdigital.mpf.mp.br/pt-br/. Acesso em: 7 ago.
2020. Fls. fls. 661
191
Com esse discurso, os órgãos de vigilância inserem tais sujeitos em uma guerra
ideológica, o que, por outro lado, os transforma automaticamente em inimigos da ordem social.
Por estarem ligados ao comunismo internacional, esses sujeitos são apresentados como os que
corrompem os demais com as ideias estrangeiras e geram conflitos entre as classes. Nesse
sentido, são retratados como “infiltrados”, “germes” que estariam tentando difundir ou
“inocular” a ideologia comunista entre os camponeses, nos próprios termos do inspetor Xavier.
Estes, estariam corroendo, por sua vez, internamente a harmonia entre as classes: “A
representação do comunismo como enfermidade remete ao tema correlato da “infiltração”. Tal
qual uma doença, os comunistas foram denunciados como um grupo dedicado a infiltrar-se nos
organismos sociais, debilitando-os internamente” (MOTTA, 2000, p. 80). Assim, o comunismo
é retratado como uma patologia social, sempre associado ao perigo externo, uma doença capaz
de contaminar a todos e que tem a capacidade de seduzir os camponeses considerados ingênuos
pelos serviços de informação. Levando em consideração que, em uma “guerra revolucionária”,
o inimigo seria quem tem a capacidade de persuadir, induzir e conquistar as mentes do povo
para difundir determinadas ideologias (ALVES, 2005, p. 45), assim, os advogados e lideranças
sindicais são retratados como uma ameaça à nação. São sujeitos que deveriam ser expurgados
da sociedade por supostamente fomentarem a luta de classes no campo ao disseminarem e
persuadirem os camponeses com ideias comunistas:
preconiza homogênea e sem conflitos internos: “Segundo princípios da DSN, o cidadão não se
realiza enquanto indivíduo ou em função de uma identidade de classe. É a consciência de
pertencimento a uma comunidade coesa o que potencializa o ser humano e viabiliza a satisfação
de suas demandas” (PADRÓS, 2005, p. 52). Qualquer tipo de ameaça à coesão da nação que
represente conflito social entre as classes pode vir a ser apresentada como uma justificativa para
pôr em prática o Terror de Estado contra os denominados subversivos. Destaque-se ainda que
o subversivo é aquele que faz parte da população, mas não do povo:
O comunismo aparece, nesses relatórios, como uma patologia social que corrompe
os valores da sociedade e que tem a capacidade de “contaminar”, de adoecer os demais por
meio da difusão de determinadas ideias, caso não seja freado:
João Batista Xavier finaliza o seu relatório afirmando que as prisões administrativas
de Lindolfo Cordeiro, Vicente Pompeu e também de Joaquim Mendes Fernandes foram eficazes
em refrear a subversão no meio rural: “Esse movimento que vinha num crescendo de forma a
alertar os órgãos de segurança da área, cuja a documentação a eles relacionados e constante nos
autos, sofreu um resfriamento com as prisões de [...]”.164 Afirmou que o líder sindical Joaquim
Mendes Fernandes se tornou subversivo em decorrência da influência exercida por Lindolfo
Cordeiro. Os demais camponeses, tais como Pio Nogueira Barros, citado por Ubirajara, não
foram indiciados. Por fim, o inspetor Xavier defendeu, ainda no mesmo relatório, que Lindolfo,
Vicente e Joaquim deveriam permanecer presos como medida mais eficaz para “garantir a
ordem pública no campo” e afirmou que o relacionamento entre trabalhadores e proprietários
de terra voltou à paz com o expurgo de tais sujeitos. Em sua concepção, a imobilização dos
advogados e lideranças sindicais da Fetraece atacou o mal pela raiz.
164
Inquérito para apurar atividades subversivas no meio rural, 15 de abril de 1972. In: Militar Ministério Público
Federal/BNM 082 1-4/Ação Penal 40/72. Disponível em: http://bnmdigital.mpf.mp.br/pt-br/. Acesso em: 7 ago.
2020. Fls. fls. 662.
193
Com efeito, daquelas peças se extrai a convicção de que as mortes produzidas nas
pessoas de Joaquim Rodrigues de Oliveira, Cidio Martins, José Paulo de Freitas e
Raimundo Nonato Paz, na Fazenda JAPUARA, município de Canindé, deste Estado,
pelos agricultores Francisco Nogueira Barros, Francisco Plauto de Souza Barros, Luiz
194
Mariano da Silva, Raimundo Mariano Filho, Alfredo Ramos Paz, Jacó Ramos Paz,
Joaquim Abreu de Souza, Antonio Soares Mariano, Francisco Blaudo de Souza
Barros, Valdemar Ramos Paz e Valnir Abreu, decorreram do incitamento levado a
efeito pelo denunciado a que estes últimos permanecem nas suas posses erigidas
na Fazenda referida e resistissem a qualquer ato contrário de Júlio César
Campos, proprietário da mesma.165
Faz-se necessário salientar que o Estatuto da Terra no artigo 95, inciso VIII, previa
que os camponeses arrendatários poderiam permanecer nas fazendas até o pagamento das
benfeitorias úteis:
165
Auditória da 10º Circunscrição Judiciária Militar. Autuação. Juiz Auditor: Alzir Carvalhães Fraga. 4 de agosto
de 1972. In: Militar Ministério Público Federal/BNM 082 1-4/Ação Penal 40/72. Disponível em:
http://bnmdigital.mpf.mp.br/pt-br/. Acesso em: 7 ago. 2020. Fls.,9. Grifo nosso.
166
Id., Ibid., fls. 10.
167
Id., Ibid., fls. 10-11.
195
A denúncia do procurador Júlio Crispino Leite, ressalte-se, fora recusada pelo juiz
auditor militar Alzir Fraga. Este alegou que Lindolfo Cordeiro não poderia ser enquadrado na
Lei de Segurança Nacional e ser acusado de subversão pelo fato de orientar os camponeses a
seguir o que estava disposto nas leis agrárias e por cumprir sua função de advogado:
[...] Não se pode receber a denúncia quando esta atribui ao advogado ter, no exercício
de sua profissão, dados conselhos a seus constituintes para que não abandonassem as
suas casas por mera ordem de seus adversários na lide judicial para que pagassem as
rendas que lhes eram por êstes exigidas, para que recusassem acordos que o causídico
ruinosos a seus clientes.171
168
Lei N° 4.504, de 30 de novembro de 1964. Dispõe sobre o Estatuto da Terra. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l4504.htm. Acesso em: 24 abr. 2020.
169
Lei N° 4.504, de 30 de novembro de 1964. Dispõe sobre o Estatuto da Terra. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l4504.htm. Acesso em: 24 abr. 2020.
170
Auditória da 10ª Circunscrição Judiciária Militar. Autuação. Juiz auditor: Alzir Carvalhães Fraga. 4 de agosto
de 1972. In: Militar Ministério Público Federal/BNM 082 1-4/Ação Penal 40/72. Disponível em:
http://bnmdigital.mpf.mp.br/pt-br/. Acesso em: 7 ago. 2020. fls. 9.
171
Vistos do procurador militar: Júlio Crispino Leite. 18 de agosto de 1972. In: BNM 082 1-4/Ação Penal 40/72.
Disponível em: http://bnmdigital.mpf.mp.br/pt-br/. Acesso em: 7 ago. 2020. fls. 684.
196
Para o juiz auditor, Lindolfo estava sendo acusado de subversão por justamente se
interpor nesta relação tradicional entre camponeses e proprietários. O magistrado ironizou sobre
a resistência dos proprietários de terra cearenses em seguir as novas leis agrárias e conceder
direitos aos camponeses, estabelecendo que isto era um dos motivos dos conflitos de terra:
Este é o grande crime do denunciado, pois aconselhar lavradores que não obedeçam
ao proprietário da terra é inteiramente inadmissível na sociedade atrasadíssima do
“interland” cearense. É o mesmo que dizer-se, algum tempo atrás que o operário
deveria exigir salário mínimo, o repouso semanal, as férias, o 13º salário, previdência
social. É o cumulo da subversão!172
Pode-se chamar de incitamento o conselho dado pelo advogado a seus clientes a que
permanecessem em suas casas enquanto a Justiça não os mandasse sair e não fosse
paga a indenização de determinada sentença? É o fato descrito na denúncia um crime?
Há que se ter presente que o acusado não aconselhou nem mesmo que disparassem
sobre esses oitenta jagunços contratos pelo proprietário para destelhar as casas dos
lavradores.175
172
Id., Ibid., fls. 684.
173
Id., Ibid., fls. 684.
174
Id., Ibid., fls. 686.
175
Id., Ibid., fls. 683.
197
Uma ditadura militar que cumpre decisões judiciais e que afasta de suas funções de
que não gosta ou que considera inconvenientes, mandando-os para casa com
vencimentos iguais aos que receberiam na atividade é, sem dúvida, uma coisa
diferente. Nem por isso deixa de agir ditatorialmente, ou pelo menos autoritariamente,
nem de violentar a ordem jurídica no que ela tem de mais importante (ROSA, 1985,
p. 18-19).
de terra. O indiciamento de Lindolfo pela Promotoria Militar foi noticiado pela imprensa que
afirmara que ele provocara conflitos de terra em diversas localidades do Ceará:
Não se pode esquecer que a Lei de Segurança Nacional no artigo 39, incisos I e IV
estabelecia que era crime incitar: “I – A guerra ou à subversão da ordem político-social; IV –
A luta pela violência entre as classes sociais”.176 Se do crime de “incitamento” decorresse
morte, o sujeito seria apenado severamente. Em decorrência de alguns conflitos de terra em que
Lindolfo atuou como mediador terem resultado em mortes, o advogado seria condenado à pena
de morte por fuzilamento, conforme estabelecido pela Lei de Segurança Nacional de 1969.
O enquadramento de Lindolfo na Lei de Segurança Nacional ganhou repercussão
pública. Buscava-se estabelecer que os indivíduos que passavam pelo crivo da Justiça Militar
representavam uma ameaça à sociedade e que a ditadura julgava seus inimigos políticos
amparados por mecanismos legais:
De modo geral parece correto afirmar que o regime militar, pelo menos durante o
tempo em que ocupou o poder, conseguiu retratar esses julgamentos como medidas
necessárias para proteger a segurança e o bem-estar dos cidadãos comuns e
cumpridores da lei contra terroristas perigosos, subversivos, comunistas e seus
cúmplices (PEREIRA, 2010, p. 138).
176
Decreto-Lei nº 898, de 29 de setembro de 1969. Define os crimes contra a segurança nacional, a ordem política
e social, estabelece seu processo e julgamento e dá outras providências. Disponível em:
https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1960-1969/decreto-lei-898-29-setembro-1969-377568-
publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em: 17 jun. 2022.
199
(PEREIRA, 2010, p. 39). Foi o caso do próprio Lindolfo Cordeiro, processado como o
responsável por incitar conflitos entre as classes, mas que não tinha qualquer participação em
ações armadas. Assim, a Justiça Militar não ficou responsável apenas por julgar civis que
participassem de ações mais incisivas contra a ditadura militar, os cidadãos comuns
considerados como opositores políticos também passaram pelo crivo do Tribunal Castrense e
sofreram com severas sanções penais desproporcionais aos supostos crimes cometidos.
Antes de tudo, é importante considerar também que, com a aprovação do Ato
Institucional nº 2, em 1965, a Justiça Militar fica encarregada de julgar os civis que cometessem
crimes políticos, ou melhor definindo, crimes contra a Segurança Nacional (FACHIN, 2014, p.
3). Uma das características das ditaduras do Cone Sul foi a utilização dos tribunais militares no
amparo à perseguição aos considerados inimigos políticos, o que foi utilizado para conferir uma
imagem de legalidade aos regimes autoritários: “[...] é muito comum que os regimes autoritários
usem a lei e os tribunais para reforçar seu poder de modo a tornar obscura a distinção simplista
entre regime de facto e regime constitucionais (ou de jure). Em particular, muitos regimes
levaram seus opositores políticos a julgamentos” (PEREIRA, 2010, p. 36).
Historicamente, a Justiça Militar sempre funcionou em paralelo à Justiça Comum
no Brasil, todavia sua atribuição era julgar os militares e não os civis (PEREIRA, 2010, p. 11).
Segundo Fachin (2014, p. 1), com relação ao Tribunal Castrense brasileiro, esta constitui o ramo
da justiça especializada mais antiga do Brasil, com mais de 200 anos de existência, remontando
ainda ao tempo do Brasil Império. De acordo com Silva (2013, p. 1), a Justiça Militar surge em
1808, em decorrência da vinda da família real ao Brasil e ordenava-se em torno de duas
instituições: os Conselhos de Guerra e o Conselho Supremo Militar e de Justiça. Apesar da sua
remota existência, somente com a promulgação da Constituição de 1934 é que a Justiça Militar
passa a ser parte constituinte da estrutura funcional do Poder Judiciário:
No Brasil, tanto a prática de usar a lei para reprimir os adversários políticos quanto a
Doutrina de Segurança Nacional já existiam bem antes do golpe militar de 1964. A
prática da repressão judicial da oposição política, é portanto, uma característica não
do regime de 1963-1985, mas sim do Estado brasileiro (PEREIRA, 2010, p. 84).
É significativo o fato de que durante os primeiros anos do regime militar que subiu
ao poder em 1964, a Lei de Segurança Nacional de 1953 tenha sido considerada
embasamento legal mais que suficiente para a instauração de processo contra
pessoas suspeitas de serem comunistas, sindicalistas e partidários do governo
deposto de João Goulart (PEREIRA, 2010, p. 88).
201
Entretanto, nenhuma dessas leis oferecia embasamento jurídico para julgar civis em
Tribunais Militares acusados de crimes políticos. Os civis que cometessem crimes contra a
Segurança Nacional eram julgados pela Justiça Comum. No transcorrer da ditadura militar, os
crimes políticos cometidos por civis passam novamente a ficar a cargo da Justiça Militar com
a aprovação do AI-2 e de novos dispositivos legais que vão amparar os julgamentos de civis
pelo Tribunal Castrense. Como observado por Coitinho, os ministros que compunham o
Superior Tribunal Militar, durante o período do regime militar, buscavam demonstrar que a
tarefa de julgar civis que cometiam crimes contra a Segurança Nacional era melhor
desempenhada pela Justiça Militar:
177
Ato Institucional nº 2, de 27 de outubro de 1965. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ait/ait-
02-65.htm. Acesso em: 17 jun. 2022.
203
julgar crimes políticos vão ser de sua responsabilidade, inclusive aqueles que já estavam em
andamento” (SILVA, 2007, p. 55). Fica a cargo da Justiça Militar a jurisdição dos crimes
políticos cometidos por civis: “[...] o AI-2 tornou a Justiça Militar legítima aplicadora da Lei
de Segurança Nacional” (FACHIN, 2014, p. 4). Segundo Fragoso (1980), essas leis surgem
com as premissas fundamentais tanto de reprimir como de prevenir a subversão associada ao
“perigo vermelho”, além de representarem uma institucionalização da perseguição política pela
esfera jurídica (1980, p. 13-14).
O enfraquecimento ou mesmo a diluição do Poder Legislativo e Judiciário em
decorrência da aprovação dos Atos Institucionais ofereceu subsídios para a atuação arbitrária
do Executivo durante a ditadura militar brasileira: “O regime brasileiro foi claramente uma
ditadura. Um alto grau de arbitrariedade determinava o tratamento dado os presos políticos, e
havia pouca separação entre os poderes, o que permitia que o executivo alterasse as regras do
jogo da forma como bem entendesse” (PEREIRA, 2010, p. 230). Assim, o AI-2 modificou a
Constituição de modo que oferecesse aparato legal para levar os opositores civis que cometiam
crimes políticos a serem julgados pelos tribunais militares: “O regime militar brasileiro usou os
tribunais militares de tempos de paz para processar dissidentes e opositores políticos, sem
jamais abolir a Constituição” (PEREIRA, 2010, p. 34). É necessário refletir, portanto, sobre
como a perseguição aos inimigos internos da nação vai sendo amparada por dispositivos legais
como os atos institucionais. Do mesmo modo, observa-se um enrijecimento da ditadura no
tratamento dispensado aos acusados de crimes políticos, que passam a sofrer perseguição e ter
os seus julgamentos deixados a cargo do Tribunal Castrense.
Com relação à composição do Tribunal Castrense, durante o regime militar
brasileiro, este se organizava em duas instâncias: a primeira era formada pelas auditorias
militares, enquanto a segunda instância era constituída pelo Superior Tribunal Militar (SILVA,
2007, p. 55). As auditorias militares eram localizadas em cada circunscrição militar e existiam
cerca de doze no país: “Na primeira instância, os Conselhos de Justiça eram compostos por um
juiz auditor civil, três oficiais militares com patente de capitão ou tenente capitão e um militar
com patente superior que atuava como presidente da sessão de julgamento” (COITINHO, 2015
p. 8). Dentro das auditorias militares, situadas em cada circunscrição, existiam duas espécies
de conselhos militares, que possuíam as seguintes atribuições:
[...] são compostas por dois tipos de Conselho que se dignam a examinar as denúncias
oferecidas pela Procuradoria Militar: Conselho Especial de Justiça constituído para
processar e julgar oficiais, exceto generais, que só poderiam ser julgados pelo STM,
bem como os casos nos quais havia sido pedida a pena de morte; Conselho Permanente
204
um desejo dos militares que desejavam uma punição mais severa aos opositores políticos: “Há
indicações de que a pena de morte contava com forte apoio em meio as forças armadas [...]”
(PEREIRA, 2010, p. 140).
Assim, esses aparatos legais institucionalizaram o enrijecimento da ditadura com o
restabelecimento da pena de morte aos considerados inimigos internos que, por estarem
vinculados ao comunismo internacional, na concepção militar, deveriam ser eliminados:
Vale lembrar que a pena de morte sempre esteve presente nos códigos penais militares
republicanos, para o caso de guerra externa. Considerar os guerrilheiros como
inimigos externos, por sua filiação ao movimento comunista internacional, seria uma
estratégia de justificar o restabelecimento da pena de morte como um ato legítimo, ou
seja, sem fugir a tradição “constitucional brasileira” (SILVA, 2007, p. 71).
A pena de morte foi restabelecida pelo regime militar com o objetivo de intimidar
os opositores políticos e, segundo Fragoso (1980), também como um elemento “preventivo” da
subversão: “a lei, em seu conjunto, adotou a política intimidatória e feroz, reintroduzindo a pena
de morte” (1980, p. 15). De acordo ainda com Fragoso, a lei mostrava todo “o seu extremo
rigor” ao estabelecer a pena de morte, cuja pena alternativa era a prisão perpétua, além de
estabelecer punições desproporcionais aos crimes cometidos (1980, p.15). Assim, o
restabelecimento da pena de morte foi uma clara resposta aos que participaram do sequestro do
embaixador norte-americano, mas também àqueles que ainda insistiam em fazer oposição aos
militares:
Por ter existido em momentos de crise política, durante regimes e governos de cunho
ditatorial ou autoritário, percebeu-se que, diferente da presença da pena de morte para
crimes comuns – que não vigeu em momento algum desde 1889 -, a pena capital como
medida da força contra inimigos políticos foi bastante utilizada como recurso
intimidatória e preventivo (SILVA, 2007, p. 10).
Os indícios de absolvição não bastam para contar toda a história desses julgamentos,
uma vez que não mostram o tempo que os réus passaram na prisão aguardando
julgamentos, nem refletem a capacidade que esses julgamentos públicos tinham de
intimidar e desmoralizar a oposição (PEREIRA, 2010, p. 129).
206
Portanto, o caso do próprio Lindolfo foi um dos poucos em que a Lei de Segurança
Nacional foi utilizada para punir de modo severo um opositor político do regime, ou melhor,
alguém que passa a ser visto como inimigo interno por supostamente incentivar a luta de classes
no campo. A condenação de Lindolfo foi embasada com o máximo rigor possível, mesmo este
sendo um advogado que não tinha qualquer participação em movimentos da esquerda armada
que atuaram durante o regime militar brasileiro. A severidade da sua punição surge como uma
resposta da ditadura militar aos advogados que atuavam junto ao movimento sindical camponês
e que insistiam na reivindicação por direitos, mesmo quando amparados pelas leis agrárias
elaboradas pelo próprio regime militar brasileiro. Assim, se Lindolfo, no primeiro momento,
utiliza os instrumentos legais da ditadura na conquista de direitos aos camponeses. A sua
utilização das leis agrárias passa a ser vista como uma atuação subversiva ao atuar como
mediador dos conflitos de classe. Quando os advogados atuam nas margens do regime militar,
apresentando as leis aos camponeses, estes passam a serem vistos como inimigos internos da
nação que deveriam ser banidos e terem suas ações refreadas.
Retornando à análise do processo, em 6 de dezembro de 1976, o Conselho
Permanente de Justiça para o Exército reuniu-se na sede da 10ª Circunscrição Judiciária Militar
para julgar os acusados de subversão pela Lei de Segurança Nacional, no caso, Joaquim Mendes
Fernandes, Lindolfo Cordeiro e Vicente Pompeu. Todos eles compareceram com os seus
respectivos advogados, que apresentaram suas teses de defesa.
O advogado de Lindolfo Cordeiro, de imediato, em sua tese de defesa, buscou
desvincular o seu cliente de qualquer ligação com o comunismo internacional ou outra ideologia
vinculada à esquerda, buscando provar que Lindolfo não possuía qualquer ligação com os
movimentos tidos como subversivos que atuaram contra a ditadura. Do mesmo modo, fez
questão ainda de destacar que Lindolfo, desde a instalação do golpe militar, apresentou-se como
um sujeito entusiasta do regime. Assim, ele não devia ser tido como um inimigo interno em
decorrência de suas crenças ou simpatias políticas, pois o mesmo compactuava com os preceitos
do regime autoritário:
acusado poderia ser suspeitada, porém nunca foi homens de elogiar quem está de cima
e que teve foi um excesso de entusiasmo pela Revolução de 1964.178
Que tudo que o acusado idealizou foi baseado no Direito e na Justiça, tentando, a
rigor, a aplicação da legislação agrária vigente; Que assim não pode ser
responsabilizado pela prática de crime simples de incitamento sem o gravame de
resultado de morte; Que a dispensa da responsabilidade objetiva pelo resultado morte
nos conflito de “Japuara” e “São Felipe” equivale ao reconhecimento da inexistência
de INCITAÇÃO; Que é impiedoso e perverso dizer-se que partira do réu a agressão,
quando, na verdade o fora de César Campos; Que se não lhes foi paga a indenização,
eles agricultores não tinha obrigação de sair da terra; Que na verdade o que fez
Lindolfo foi conclamar os trabalhadores rurais e não aliciá-los para a luta.179
É importante considerar que o julgamento dos acusados por subversão era tido pelos
advogados de defesa como o momento de desvincular qualquer ligação dos réus com a
esquerda. Afirmar que os acusados eram simpatizantes da ditadura era um meio de conseguir
decisões favoráveis aos réus nos tribunais militares. Isto é, se Lindolfo era ou não um entusiasta
da Revolução de 1964, não vem ao caso, mas é necessário perceber a estratégia da defesa em
se tratando de um julgamento em que um civil havia sido acusado de subversão por compactuar
com ideologias estrangeiras. Portanto, cabia à defesa a tentativa de desvincular o seu cliente
dos movimentos de esquerda, mesmo que isso custasse afirmar que o réu era favorável ao
regime militar: “Os advogados de defesa, em geral, convenciam seus clientes a evitar defesas
políticas, optando por um dos dois tipos de defesa. A defesa jurídica significa o réu abjurar
qualquer crença em ideias tidas como subversivas e negar que houvesse infringido as leis de
segurança nacional (PEREIRA, 2010, p. 213).
Ao término dessa sessão, os juízes absolveram Lindolfo Cordeiro e Joaquim
Mendes Fernandes por não existirem provas consistentes para condená-los pela Lei de
Segurança Nacional (ALBUQUERQUE, 2016, p. 111). O Conselho Especial de Justiça utilizou
178
Ata da 29ª sessão do Conselho Permanente de Justiça para o Exército. Auditor: Ângelo Rattacaso Júnior. 6 de
dezembro de 1976. In: Militar Ministério Público Federal/BNM 082 3-4/Ação Penal 40/72. Disponível em:
http://bnmdigital.mpf.mp.br/pt-br/. Acesso em: 7 ago. 2020. fls. 191-192.
179
Id., Ibid., fls. 192.
208
como embasamento jurídico para inocentá-los o artigo 439, letra e, do Código de Processo Penal
Militar, que trata sobre os requisitos de absolvição dos réus pelo Conselho de Justiça: “Art. 439.
O Conselho de Justiça absolverá o acusado, mencionando os motivos na parte expositiva da
sentença, desde que reconheça: [...] e) não existir prova suficiente para a condenação”.180
Assim, Lindolfo e Joaquim foram absolvidos por não existir embasamento suficiente para a
condenação:
[...] no mérito de quatro (04) votos contra hum (01) de seus Juízes, vencido o Juiz
Major Geraldo Amorim Navarro, absolver como absolvido tem o acusado Francisco
Lindolfo Cordeiro da imputação que lhe fora feita da prática de crime previsto no art.
39, n° IV do Decreto-lei n° 898, de 29.09.69 (LSN), e bem, assim, absolver, por
unanimidade de votos, o acusado Joaquim Mendes Fernandes, também da mesma
imputação, ambas as absolvições proferidas com fundamento no art. 39, letra e, do
C.P.P. M.181
Vicente Pompeu, por sua vez, já havia sido processado e cumprido prisão por dois
anos. Portanto, não poderia ser novamente julgado e apenado pelo mesmo crime. Fato este
alegado pelo seu advogado e acolhido pelo Conselho, que também o absolveu. Destaque-se que
Lindolfo contou ainda com dois depoimentos favoráveis que foram relevantes na sentença de
absolvição, no caso, do delegado do DOPS, Luiz Coelho de Carvalho, e do ex-secretário de
Segurança do Estado, ten. Hamilton Holanda, que, na época do seu depoimento, ocupava o
cargo de coordenador regional do Incra. É fundamental observar, então, como tais depoimentos
foram relevantes na sua absolvição de Lindolfo, já que eram testemunhas que faziam parte da
máquina de vigilância e punição gestada pela ditadura militar.
Entretanto, apesar do julgamento favorável a Lindolfo e Joaquim Mendes
Fernandes, essa história prolongou-se por ainda mais tempo:
Com base no art. 439, letra ‘e’, o Juiz Ângelo Rattacaso Júnior concluiu, portanto, que
não havia provas suficientes para a condenação. O representante do Mistério Público
Militar, João Alfredo da Silva, não se conformando com a decisão do Conselho
Especial, em março de 1977 apelou ao Supremo Tribunal Militar (ALBUQUERQUE,
2016, p. 111).
180
Decreto-lei nº 1.002, de 21 de outubro de 1969. Dispõe sobre o Código de Processo Penal Militar. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del1002.htm. Acesso em: 17 jun. 2022.
181
Ata da 29ª sessão do Conselho Permanente de Justiça para o Exército. Auditor: Ângelo Rattacaso Júnior. 6 de
dezembro de 1976. In: Militar Ministério Público Federal/BNM 082 3-4/Ação Penal 40/72. Disponível em:
http://bnmdigital.mpf.mp.br/pt-br/. Acesso em: 7 ago. 2020. fls.192-193.
209
Egrégio Superior Tribunal Militar. O processo então passa a ser movido na 2ª instância da
Justiça Militar.
O MPM, ao enviar as razões da apelação ao Superior Tribunal Militar, aceitou a
decisão do Conselho Especial Militar com relação à absolvição de Joaquim Mendes Fernandes,
mas não de Lindolfo Cordeiro e defendeu o seguinte:
182
Colendo Superior Tribunal Militar, Procurador Militar: João Alfredo Silva. 31 de março de 1977. In: Ministério
Público Federal/BNM 082 3-4/Ação Penal 40/72. Disponível em: http://bnmdigital.mpf.mp.br/pt-br/. Acesso em:
7 ago. 2020. fls. 252-253
210
de morte por fuzilamento, era necessário que não houvesse qualquer dúvida quanto à atuação
subversiva do réu. A Procuradoria, por sua vez, alegou que não encontrara subsídios suficientes
nos autos que sustentassem a condenação na Lei de Segurança Nacional. Em 5 de abril de 1978,
Lindolfo foi absolvido pelo Supremo Tribunal Militar, tendo sua inocência provada:
Portanto, a batalha judicial travada por Lindolfo Cordeiro para provar a sua
inocência perante a Justiça Militar alongou-se por praticamente seis anos, durante os quais ele
permaneceu respondendo à Justiça Militar. O seu envolvimento nos conflitos de terra trouxe
implicações para ele e os demais acusados de subversão, tais como Vicente Pompeu e Joaquim
Mendes Fernandes. Assim, foi desencadeado um processo de perseguição política aos
envolvidos em conflitos de terra, tidos como mentores intelectuais da luta de classes no campo.
Para tanto, mobilizavam-se tanto os aparelhos de vigilância do Estado Autoritário quanto os
mecanismos judiciais.
O enquadramento de Lindolfo na Lei de Segurança Nacional com a penalização
máxima demostra que, mesmo quando o Estado autoritário cedia nas pautas reivindicatórias
dos camponeses, caso da desapropriação da Fazenda Japuara, isto não significava que os
envolvidos nos conflitos de terra estivessem a salvo de sofrerem posteriormente sanções
punitivas por suas atuações e por suas conquistas. Assim, é importante considerar que tanto os
camponeses envolvidos no conflito de Japuara quanto os seus mediadores sofreram sanções por
cobrarem por seus direitos e pela conquista da desapropriação da fazenda.
183
Superior Tribunal Militar. Apelação nº 41.662. 5 de abril de 1978. In: Ministério Público Federal/BNM 082 3-
4/Ação Penal 40/72. Disponível em: http://bnmdigital.mpf.mp.br/pt-br/. Acesso em: 7 ago. 2020. fls.309.
211
5 CONCLUSÃO
184
Comunicado Interno/ CR (02) 128/82. 13 de julho de 1982. In: Divisão técnica CR (02) Titulação de ocupantes
de parcelas da Fazenda Japuara Canindé – CE. Envolvidos diretamente em processo criminal, p. 3. Sob guarda do
INCRA (CE).
185
CR(O2) nº 225/ 82/ CI. Andamento do processo crime movido pela justiça pública contra FRANCISCO
NOGUEIRA BARROS E OUTROS. 20 de set. de 1982. In: Op., Cit., p.5. Sob guarda do INCRA (CE).
212
Assim, não se sabe ao certo se o mandante do seu assassinato foi algum político de
Tianguá, cidade em que residia Lindolfo, ou se foi algum proprietário incomodado com a sua
atuação enquanto advogado.
Pela morte de Nonato de Paz (Nonato 21), ninguém respondeu criminalmente
(BARREIRA, 1992, p.49). Em 2008, a família do camponês recebeu indenização em
decorrência do seu assassinato que contou com participação de um agente público do Estado
durante o conflito em Japuara. O camponês teve o seu caso reconhecido e sua família foi
indenizada pela Lei dos Desaparecidos Políticos186 considerado, portanto, uma vítima da
ditadura-civil militar.
César Campos não foi de forma alguma implicado judicialmente pelas mortes dos
confrontos, mesmo tendo orquestrado todo o cenário de violência em Japuara. Escondendo-se
atrás dos trabalhadores da obra de emergência contra a seca e, posteriormente, atuando em
186
A apuração dos crimes de violação de direitos humanos, cometidos durante a ditadura, iniciou na década de 90
com a aprovação da Lei nº 9.140 de 04 de dezembro de 1995, que ficou conhecida como a Lei dos Desaparecidos
Políticos, que reconheceu 136 casos de opositores mortos em decorrência do regime militar e com participação do
Estado. Consultar: AMORIM, Gilney. (Coord.) Camponeses mortos e desaparecidos: excluídos da justiça de
transição. Brasília: Secretária de Direitos Humanos da Presidência da República, 2013. p. 12-15.
213
conluio com a polícia local e culpando o Sindicato Rural de Canindé e a Fetraece pelos
confrontos, safou-se de ser responsabilizado criminalmente.
Assim, apesar de os moradores terem conquistado a desapropriação de Japuara, o
conflito teve implicações significativas na vida dos principais envolvidos, principalmente, dos
camponeses e do advogado que atuou na defesa destes. Neste sentido, o conflito evidencia o
processo de repressão e perseguição política aos sujeitos do campo mobilizados politicamente
durante o regime autoritário, principalmente, aos que atuavam enquanto mediadores das
disputas travadas entre camponeses e proprietários de terra.
Foi perceptível o papel da imprensa na celeridade da desapropriação de Japuara. O
Estado foi conclamado pela sociedade para se posicionar em torno da questão agrária, das
relações trabalhistas no campo e como a nova legislação agrária estava tensionando as relações
entre camponeses e proprietários de terra.
Conflitos camponeses foram deflagrados durante o período autoritário e
representaram importantes conquistas para o movimento sindical do Ceará com a conquista da
primeira desapropriação do Estado em decorrência de tensão social. Contudo, tais
reivindicações trouxeram ônus aos sujeitos que permaneceram mobilizados politicamente
cobrando os direitos dos campesinos.
Dito isto, o propósito dessa dissertação foi discutir o conflito da Fazenda Japuara,
delineando as disputas travadas em torno da posse e propriedade da terra, o processo de
organização dos camponeses e como estes fizeram uso dos aparatos legais, em especial do
Estatuto da Terra na reivindicação do que eles passam a conceber como seus direitos.
214
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