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LUCA MARTINI

NÃO CONCORDO
NEM DISCORDO
MUITO PELO CONTRÁRIO!

T R A ND O SENTIDO
ENCON
NDO QUE
EM UM MU POTA
CA
NÃO GIRA,
PRÓLOGO
“Hey Google; um homem pode engravidar?”. Essa foi a
pergunta que fiz após assistir ao vídeo de um youtuber britâ-
nico que tirava o sarro da capacidade da internet de oferecer
respostas inimagináveis - e um tanto quanto bizarras - a per-
guntas aparentemente hilárias. Já faz cerca de cinco anos que
fiz esse questionamento, e na época, a resposta do meu ami-
go Google me arrancou algumas gargalhadas: ele respondeu
que sim, um homem poderia engravidar! Imediatamente, eu
tirei um print da tela como quem salva um meme ou um bug
do sistema para compartilhar com os amigos. Afinal, cinco
anos atrás, aquela resposta que me parecia absurda, poderia
ser facilmente identificada como prank ou falha da máqui-
na. Entretanto, hoje é diferente. Eu não posso classificar a
afirmação de que um homem pode engravidar como falha do
sistema de respostas, pois caso discorde do que o Google me
contou, eu poderei ser processado, e em muitos lugares, até
perder o emprego.
Para os nascidos de uma mulher, isso pode parecer confuso.
Também é muito nebuloso o como as pessoas LGBTQIAPN+,
especificamente, se sentem com a complexidade desse assunto.
Alguns dias atrás, eu me deparei com uma discussão entre um
bissexual e um não-binário. O homem bissexual se queixava, e
expunha uma confusão em relação a sua sexualidade: como ele
poderia se considerar bissexual, se a existência de pessoas não-
-binárias pressupõe a existência de mais do que dois gêneros?
Ora, essa é uma resposta que duvido até mesmo as maiores
mentes científicas conseguirem dar.

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Talvez, você esteja se perguntando sobre o que me levou
a começar a introdução de um livro abordando esse assunto.
Então, eu te devolvo com outra pergunta: de qual outra forma
eu poderia começar senão por meio de um assunto que está
entre os mais abordados na atualidade? Enquanto escrevo este
texto, acabamos de sair do Pride Month, que é o mês no qual
se comemora a diversidade de sexualidade. Na cidade em que
vivo, praticamente todas as grandes lojas aderiram à comemo-
ração, e em muitos lugares os logos das lojas foram pintados
nas cores do orgulho LGBTQIAPN+, ou substituídos por arco-
-íris. Em uma das principais avenidas de Londres, a bandeira
da Grã-Bretanha também deu lugar a Rainbow Flag (Bandeira
do Arco-Íris). Aliás, é possível que enquanto você lê esse livro,
a bandeira já tenha mudado de nome. Então, me desculpe, mas
o que posso fazer se as coisas estão mudando rápido demais,
e a cada dia se adiciona uma letra aos gêneros? Entendo caso
você fique ofendido com minha sinceridade, mas acredite, não
digo essas coisas por mal, é que realmente, como já disse: para
os nascidos de mulher, esse assunto ainda está muito confuso.
Está tão confuso, que encontra-se complexidade até na tenta-
tiva de responder à simples pergunta: “O que é uma mulher?”.
Seria esse o novo normal, e por isso devo fingir norma-
lidade? À custo de que eu faria isso? Com muita sinceridade,
olhando de fora, as coisas parecem cada vez mais confusas para
quem diz finalmente ter se encontrado. O que de fato torna-se
um grande paradoxo, pois como apontou Carl R. Trueman:
“Enquanto o sexo pode ser apresentado hoje como pouco mais
do que uma atividade recreativa, a sexualidade é apresentada
como aquilo que está no cerne do que significa ser uma pessoa

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autêntica”1. Desprezamos, e ao mesmo tempo, “divinizamos”,
aquilo que talvez nós pouco compreendemos de fato.
Não acredito que era exatamente isso que Rousseau tinha
em mente quando começou a apontar a verdade de si para seu
eu interior. Porém, é para esse lugar que estamos caminhando,
o da religião do mundo, que por mais que possa parecer, não é a
sexual, mas a do Self. Descartamos a religião como aquela que
antes nos religava a um ser superior a nós mesmos, pois agora,
encontramos no self a mais alta compreensão da realidade.
Sendo assim, não poderia começar um livro que sugere
uma busca por sentido, sem partir do lugar que nos encontra-
mos hoje. Seria injusto com a realidade não apontar fatos como
esses, principalmente no período em que vivemos, no qual até
mesmo o nosso vocabulário é constantemente atualizado para
se adequar às pautas identitárias. Se isso é uma coisa boa? Res-
pondo por mim: está cada vez mais confuso.
Talvez você ache que estou exagerando, mas eu discordo.
Imagine se alguém, vinte anos atrás, dissesse a um médico que em
seu interior se sente alguém diferente do que aparenta ser exterior-
mente? O que esse médico faria? Na melhor das intenções, bus-
caria ajudar a pessoa a se adequar à realidade exterior. Hoje, pelo
contrário, em casos mais extremos porém reais, médicos, na me-
lhor das intenções também, prescrevem tratamentos e até mesmo
cirurgias para alterar o exterior, assim se adequando ao interior.
Não quero aqui subestimar o longo caminho que a comunidade
LGBTQIAPN+ percorreu para o reconhecimento de alguns de
seus direitos fundamentais, e vitória sobre preconceitos desuma-

1. TRUEMAN R. CARL. The Rise and Triumph of Modern Self. 2020. Crossway

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nos, mesmo que ainda de forma parcial. No entanto o que enfatizo
aqui é que para as pessoas comuns que não lêem os grandes pen-
sadores das academias, tais mudanças sobre o entendimento do
eu, se deram drasticamente em um curto espaço de tempo, como
exemplo temos o próprio Barack Obama, hoje grande defensor de
pautas semelhantes às citadas, que até o ano de 2012 nem mesmo
apoiava o casamento homoafetivo, pelo contrário.
Com isso quero dizer que o passado era melhor do que o
presente? Qual passado seria esse? Aqueles gloriosos do século
XIX em que a Igreja crescia, os casamentos eram entre homens
e mulheres e as crianças trabalhavam nas minas de carvão? Ou o
passado de duas guerras mundiais? Fica claro que todos os perí-
odos da História tiveram suas dificuldades, e por isso não penso
que no passado encontraremos o que buscamos. Na realidade,
o que vivemos hoje é resultado do passado, pois o princípio é
esse: nenhum fenômeno histórico individual é resultado de sua
própria causa. Ou seja, não foi a Primeira Guerra Mundial que
causou a Primeira Guerra Mundial. O mundo se desenrolou até
ali. Por isso, não é por acidente que hoje estamos discutindo se
uma criança de 8 anos tem a capacidade de decidir se deve co-
meçar a tomar medicamentos bloqueadores da puberdade para
então passar por uma futura cirurgia de mudança de sexo.
Se está pensando que este livro é sobre sexualidade e suas
possíveis e constantes variações, você se enganou. Eu sei que
dei motivos para que essa seja sua impressão inicial ao ler este
prefácio. Mas, na verdade, não acredito que experiências sexu-
ais são o caminho para a descoberta do eu. Por isso, te convido
a avançar para as próximas páginas e perceber a verdadeira
reflexão que quero propor por meio desta obra.

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01.

AUTO
CONHECIMENTO
“CONHECE-TE
A TI MESMO.”
SÓCRATES

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AUTOCONHECIMENTO

um remoto passado, há algumas centenas de mi-


lhares de anos, no tempo em que o Homo sapiens
ainda vagava pelas trilhas da insipiência do pensa-
mento, se é que se permitia a tal abstração, ocorreu
um acontecimento inusitado. Um Homo sapiens,
cujas reflexões ainda estavam em estágio embrio-
nário, ou melhor dizendo, inexistentes, se deparou com um
pedaço de madeira no chão e, de forma inadvertida, desferiu
um golpe contra a própria cabeça, resultando em um nocaute
instantâneo. Com efeito digno dos gráficos de Hollywood, o
indivíduo desfalecido repousou junto a uma árvore - uma ma-
cieira de peculiar espécie, muito distinta das que conhecemos
atualmente, reminiscente de eras há algumas centenas de mi-
lhares de anos. Enquanto pequenas aves circulavam ao redor de
seu crânio amassado, um momento de iluminação se fez pre-
sente. A violência do golpe e a estrondosa repercussão em seus
neurônios deram ensejo a novos sentimentos, ou melhor, pen-
samentos, até então inexplorados. Em um verdadeiro lampejo,
emergiu em sua consciência um entendimento que o cativou.
Agora, permita-me esclarecer que nesta história, milagres
são estritamente proibidos. Portanto, não se trata de um mila-
gre, mas sim de um evento inexplicável pela ciência. Eis que,
de modo ainda não corroborado pelo conhecimento científico,
o Homo sapiens, que anteriormente não se percebia como um
ser individual, assim como todos os animais que comparti-

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AUTOCONHECIMENTO

lhavam de tal característica, lançou o olhar sobre sua própria


mão e ali contou cinco dedos. Claro, ele não atribuiu a essa
enumeração o conceito abstrato do número cinco, mas, con-
seguiu distinguir, de maneira ainda primitiva, os membros de
suas extremidades das patas que vislumbrava em seus contem-
porâneos, como o ilustre senhor Tiranossauro rex. Foi assim
que, de forma notável e inédita, o Homo sapiens percebeu que
se diferenciava pela ausência de patas. Surge, então, a célebre
indagação que viria a impactar o rumo de sua evolução intelec-
tual: “Se não possuo patas como um dinossauro, qual é então o
meu signo? Qual será o futuro que os astros têm preparado para
mim até o dia em que serei extinto para sempre?”. Ah, devo
admitir, seria cômico se não fosse uma realidade tão peculiar.
E, de fato, essa história se encaixa de forma perfeita na teoria
predominante do imaginário popular.

QUEM SOU EU?


Ora, caro leitor, a descoberta do eu não é tão simples
quanto pode parecer, pois dependendo daquele que pergunta, a
resposta provavelmente será diferente. Não posso então ousar
nem mesmo dar início ao desenvolvimento do raciocínio, sem
que antes consiga responder para mim mesmo o que parece ser
a pergunta mais importante da minha existência, pelo menos
agora, enquanto ainda não a respondi. Pois, como verá mais à
frente, minha resposta mudará completamente o sentido daqui-
lo que provavelmente aquele que pergunta sobre sua própria
existência deseja descobrir. De forma simples - vai além do
meu próprio umbigo.

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AUTOCONHECIMENTO

Confesso que estou preparando o leitor para as respostas


que menos espera, pois me parece que em um mundo no qual
proclama-se em alta voz que para descobrir quem você é bas-
ta olhar para dentro, a resposta que darei será no mínimo tida
como retrógrada e ultrapassada. Isso, claro, para os educados.
Já aqueles que possuem o livro de regras debaixo do braço, me
chamarão de idiota.
Mas, por quê? Para mim, um tanto ultrapassado é imagi-
nar que um indivíduo já se encontrou simplesmente por acei-
tar o que enxerga dentro de si, logo de cara, buscando em
seus sentimentos momentâneos as convicções mais profundas
sobre sua existência, sem nem mesmo se dar a possibilidade
do questionamento de acreditar que pode evoluir ou melhorar.
Afinal, por meio de muita prepotência, este indivíduo acredita
já saber com convicção quem é, e devido a esse fato, impõe
que eu, você e o mundo todo aceitemos ele assim, exatamen-
te como é. Isso sim, me parece primitivo, pois cresci com a
ideia de que todos precisamos reconhecer que temos muito a
melhorar e que não nascemos sabendo de tudo. No entanto,
caro leitor, você sabe, não é mais assim. Ou melhor, pode até
ser que seja assim, desde que minha resposta se adeque aquilo
que as regras permitem, isso é: sexual. Pois bem, mas isso não
é o suficiente para mim. Pois como
já te disse anteriormente, não é mi-
nha sexualidade que definirá quem N ÃO É M I N H A
sou. Poxa vida, será que existe mais S EX UA LI D A D E
do que isso? Ou de tanto vermos Q U E D EF I N I R Á
pornografia, sexo é tudo que conse- Q U EM S O U
guimos responder?

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AUTOCONHECIMENTO

Penso que aqui será o único ponto que irei concordar com
a maioria, eu não posso responder por outra pessoa, cada um
responde por si mesmo, cada um deve se descobrir. Ora, se é
assim, deixe-me então contar sobre a minha própria descober-
ta. A pergunta que fica é: ela será aceita? Ou serei excluído dos
debates sociais por pensar diferente da maioria?

PENSO, LOGO EXISTO?


Após contemplar minha imagem refletida no espelho,
enquanto mergulhava nas profundezas de um livro de bio-
logia, indagar sobre minha própria identidade pode parecer
idiota. No entanto, essa questão é de natureza filosófica e, ao
ponderá-la, sinto-me menos ignorante, pois compartilho da
capacidade de fazer os mesmos questionamentos que os mais
brilhantes filósofos fazem. De fato, é importante, e inclusive,
um alívio reconhecer que até mesmo os grandes pensadores
podem ter suas limitações e imperfeições, isso me oferece
esperança e um senso de conexão com eles. Pois, no caso de
suas conclusões serem suficientes, não haveria necessidade
de mais livros e respostas, mas como não são, não preciso
concordar com Descartes e acreditar que pensar é a única coi-
sa que me faz ser.
Pensar, em si, não é necessariamente uma virtude, mas
uma condição natural para aqueles cujo cérebro funciona
adequadamente. Além do fato de que simplesmente pensar,
pode não significar muita coisa, afinal, muitas vezes pensan-
do somos capazes de chegar a conclusões absurdas, como
no exemplo de um homem de 52 anos que abandonou sua

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AUTOCONHECIMENTO

família e filhos pois agora pensa ser uma menina de 6 anos


de idade.2 Um outro ponto é: Caso Descartes tenha razão, o
que poderíamos dizer sobre bebês anencéfalos? Por terem
uma má formação cerebral - ou em casos extremos não pos-
suírem cérebro3 - não são nada? Seriam eles destituídos de
existência e significado? Descarto. Para mim, é uma pers-
pectiva simplista demais.
Certamente, existe a possibilidade que eu esteja entrando
em um rabbit hole, e a única saída seja mesmo um show de
Stand-up Comedy, ou simplesmente ser brasileiro, pois só em
um espetáculo como esses é que conseguimos rir da terrível
realidade que nos encontramos.
No entanto, das muitas respostas possíveis aos aspectos
que tal pergunta possui, uma para mim, muito pertinente, preci-
sa ser respondida de bate-pronto. Sendo assim, começarei por
ela, não por ser a mais fácil de responder, mas por ser, acredito
eu, a mais importante e a grande divisora de águas, do mais
típico jeito Moisés de ser (piada de crente).
De imediato, talvez você não concorde comigo, porém,
para que esse livro possa ser considerado por mim mesmo um
verdadeiro sucesso, espero que ao fim da leitura, o leitor con-
corde que sem essa primeira resposta nada do que direi a seguir

2. ‘I’ve gone back to being a child’: Husband and father-of-seven, 52, leaves his wife and
kids to live as a transgender SIX-YEAR-OLD girl named Stefonknee: https://www.dailymail.
co.uk/femail/article-3356084/I-ve-gone-child-Husband-father-seven-52-leaves-wife-kids-
-live-transgender-SIX-YEAR-OLD-girl-named-Stefonknee.html

3. Bebê sem cérebro deixa hospital depois de cinco meses


Leia mais em: https://www.gazetadopovo.com.br/vida-publica/bebe-sem-cerebro-deixa-
-hospital-depois-de-cinco-meses-ag40ixb1sxxxc0kkza39o4s3y/ Copyright © 2023, Gaze-
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seria possível. Não por se tornar sem sentido, mas sim, porque
é a única base plausível para tudo o que será exposto.

SOU CRENTE, TE OFENDE?


Eu sou um cristão. Bom, o que isso significa e por que se-
ria tão importante? Do ponto de vista secular contemporâneo,
ao invés da cruz, provavelmente carrego uma suástica, sou ho-
mofóbico, machista, retrógrado e intolerante. Provavelmente
fiz parte de algum movimento conspiracionista, tenho posters e
livros QAnon, e com certeza, sou fiel a Mussolini. Sei bem que
esse assunto é muito intenso e os ânimos estão à flor da pele,
tanto de um lado, quanto do outro. Pois, se para a galera secu-
lar moderninha eu sou um careta quadrado que parou no tem-
po, para os quadrados que pararam no tempo, provavelmente
sou um mero “isentão” ou “canhoto” covarde de apartamento,
porque não honrei minha fé declarando meu voto em prol da
minha querida nação. A verdade é que sou um cristão comum
(o que se entende por comum nós veremos mais à frente), pos-
suo minhas crenças e valores, mas também tenho bom humor
e capacidade de rir de mim mesmo. E no fim das contas, acho
que todos esses rótulos não passam de generalizações bobas,
não é mesmo?
De novo, dá até um arrepiozinho ao escrever sobre esse
assunto. Imagino meus editores suando de terror, querendo ti-
rar essa parte do texto a qualquer custo. Mas por qual motivo?
Qual é o problema de falar o que é verdade? Ou vai dizer que
o jovem esquerdista do Twitter não pensa que sou um “gado”
burguês, enquanto o direitista reacionário, por sua vez, não me

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AUTOCONHECIMENTO

declararia um neo-abortista de iPhone? Ora, se ainda possuo o


direito de levantar uma bandeira em meio aos tiros de opinião
disparados contra mim, quero dizer que prefiro ser chamado de
vaca, cachorro, piranha, veado ou qualquer outro animal que
bem entendam, desde que, a comparação seja só hipotética e
não levada tão a sério a ponto de me colocarem na mesma ca-
tegoria de seres que são caçados e mortos sem o mínimo de
empatia, desconsiderando a realidade de que minha existência
humana é mais importante do que a de um animal.
É um fato que toda santa alma que pegar esse livro na
mão já tem - ou passará a ter - uma opinião formada sobre
mim e tudo o que eu disser. Opinião essa, que provavelmente,
nem será a partir do que estou escrevendo neste livro, e sim,
daquilo que a santa alma já acredita por si mesma. Nitidamen-
te, isso não se aplica somente a mim. O que quero dizer é que
todas as almas viventes neste planeta pós-moderno, demons-
tram possuir uma opinião formada sobre tudo o que acontece
no mundo, não acha?
Nos dias atuais, é de se questionar se mais um livro provo-
caria realmente algum impacto para além de preencher as pra-
teleiras digitais, visto que todo mundo já sabe tudo e as livra-
rias físicas estão fechando, não é mesmo? Quem nunca tentou,
por acaso, mudar a opinião de alguém sobre algo? Seu avô? O
que dizer do seu pai então? A turma do zap fez a cabeça dele.
É definitivamente impossível ganhar do tio Zé do bar quando o
assunto é futebol, mesmo ele afirmando que até sua avó caolha
joga mais que o camisa 10 da seleção, segundo ele: “Bom era
Zagallo (tem 13 letras)”. O que é injusto com a gente, afinal, os
caras tinham o Pelé.

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AUTOCONHECIMENTO

Esta é claramente uma era complicada de se discutir cer-


tas ideias, afinal, tem gente com mais de vinte anos que nunca
viu o Brasil ser campeão. Sendo assim, todo mundo tem ra-
zão, pelo menos para si, dentro de sua própria realidade. É aí
que se criam as narrativas, e se vivem elas. Não pense você
que sou daqueles que acham que não existe certo ou errado, se
fosse assim, escrevo para quê? Somente estou constatando um
fato. Nos dias em que vivemos é assim, nossa própria narrativa
se sobressai a qualquer outra realidade e até mesmo aos fatos.
Triste tragédia! Se antes 4+4= 8, hoje 4+4= meu gosto.

TEMOS OPINIÕES FORTES.


De certa forma, também serei réu da minha própria acusa-
ção. Tudo que escreverei aqui pode ser simplesmente a minha
própria narrativa, ou algum discurso que eu “escolhi”. O leitor
não estaria errado caso me chamasse de hipócrita ao ler as pri-
meiras páginas deste livro. Portanto, acredite se quiser em tudo
que verá, pois diferente do que muitos imaginam, não forçarei
ninguém a aceitar o que estou falando, afinal, a minha fé não me
permite fazer isso. Contudo, devido à minha cosmovisão (prefiro
esse termo a narrativa), não acredito que o relativismo absoluto
seja o caminho correto, e por isso, creio que existam cosmovi-
sões melhores ou piores (se escrevo um livro, é claro acredito
que as lentes pelas quais vejo o mundo são as preferíveis).
Embora não tenha a intenção de te forçar a nada, procura-
rei persuadi-lo a observar outras possibilidades de pensamento,
pois as nossas pressuposições e nosso modo de pensar sobre a
realidade certamente definem como agimos neste mundo. Nos-

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AUTOCONHECIMENTO

sa sociedade é ditada pelo modo como a maioria de nós pensa-


mos, ou seja, é democrática. A democracia é ótima e por algu-
mas vezes é terrível (a multidão que disse “hosana”, também
gritou “crucifica-o”), mas isso não exclui o fato de não existir
modelo melhor de governo do que o democrático, como disse
Churchill: “A democracia é a pior forma de governo – exceto
todas as outras que já foram tentadas”. Sendo assim, por mais
que eu acredite na liberdade de pensamento, também acredi-
to que se pensarmos errado, agiremos errado. Por isso, com a
esperança de dias melhores, busco responder a essa questão e
compartilhar o progresso dessa busca com o estimado leitor.
A partir desse pensamento, lhe pergunto: qual seria o pro-
blema de expressar o que realmente quero? Você também tem
o direito de fechar este livro agora e compartilhar seus pensa-
mentos sobre mim no Twitter. Falando nisso, maldito Twitter,
ainda me lembro do dia em que descobri que, ao buscar pelo
meu nome, encontraria opiniões de pessoas, algumas carinho-
sas, cheias de amor e certezas, usando da vastidão da internet
para expressarem seus pensamentos sobre mim (contém iro-
nia). Imagine então, após a publicação deste livro. Ainda bem
que ao longo da vida já enfrentei muitos desafios, estou expe-
riente nesse assunto de internet trolls.
Quando perguntei “quem sou eu?”, não pense que a ques-
tão foi direcionada a você, caro leitor. Eu jamais seria tão irres-
ponsável a ponto de entregar minha vida nas mãos de alguém
cujo verdadeiro nome nem sequer sei, não é mesmo? Oh meu
Deus, é exatamente isso que faço com os comentários no meu
canal do YouTube: permito que desconhecidos me afetem pro-
fundamente. Definitivamente, preciso repensar minha vida e

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AUTOCONHECIMENTO

autoestima; talvez seja mais saudável ouvir mais o reflexo do


meu espelho do que as opiniões virtuais da tela do computa-
dor. Irrevogavelmente, minha tese caminha para um caminho
correto. Acredito agora, mais do que antes, que devo continuar
escrevendo este livro, pois tamanhas inseguranças só podem
demonstrar uma falta de identidade. Não que o que pensamos
sobre nós seja necessariamente melhor do que aquilo que a in-
ternet diz, afinal, a opinião pública pode ser um fraco tirano
comparada à nossa opinião sobre nós mesmos4.
Responda com sinceridade: já tentou escrever algo so-
bre si mesmo, descrevendo suas características e habilidades,
como uma biografia que se coloca na contracapa de um livro?
Eu nunca consegui. Não foi por falta de tentativa. Pode ser que
seja mesmo por uma falsa humildade religiosa de não querer
me elogiar, sem perceber que isso já aponta minha arrogância.
Imagine isto: eu penso algo positivo acerca de mim, mas ao
tentar escrever sobre, tenho receio de estar “me achando”. Que
raios de pensamentos arrogantes tenho ao meu próprio respei-
to, a ponto de pensar que Deus se ofenderia com o que digo
sobre mim mesmo? Bom, fato é que nunca consegui.
O problema é que isto, o ato de escrever sobre si, parece
ser uma coisa boa, pelo menos no processo de autoconheci-
mento. Ter em mente algumas de suas características te ajuda
a melhorar. Claro, se essas características não forem iguais às
que eu queria colocar na biografia do meu livro e simplesmente
ofender a Deus. No entanto, é importante ter uma definição
de quem somos. Não como permanente e absoluta sem espa-

4. Thoreau, Henry. Desobediência Civil e Walden. 2010. L&PM Editores pág 50

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ço para melhoras, pois desse modo cairíamos no erro do sábio


que parou de aprender. Mas sim, como reconhecimento próprio
para uma possível melhora do ser. É importante, principalmen-
te em uma era de indefinições. Enquanto você pensa, começarei
por mim, com uma definição que, por tradição, deveria definir
todas as outras. Entretanto, infelizmente não é mais assim em
muitas cabeças, pois existem certos fatores que deveriam ante-
ceder todos os outros. Aqueles que seriam os responsáveis por
delinear o caminho a ser seguido. O que antes parecia óbvio em
tantos sentidos, hoje é quase que abstrato. Dando um exemplo
muito básico: defina o que é um cristão.

ISSO É UM CRISTÃO PARA VOCÊ?


Antes de irmos para o miolo do assunto, creio ser necessá-
rio dizer algumas coisas óbvias sobre o cristão.
Em primeiro lugar, é importante frisar que o cristão não
é alguém irracional, que crê em duendes - mesmo que nossa
linhagem literária conte com grandes escritores de contos de
fadas. Nenhum cristão sai por aí abraçando árvores na crença
de que elas irão responder com pólen mágico.
Em segundo lugar, é crucial compreender que o conheci-
mento cristão não surgiu de forma instantânea; sua evolução
levou milênios. Não foi uma ocorrência repentina, mas sim, um
longo processo contínuo, que ainda acontece.
Por fim, é relevante destacar que a mentalidade cristã não
se desenvolveu de maneira alheia à humanidade; ao contrário,
ela se moldou junto à cultura humana. A evolução da visão de
mundo cristã andou de mãos dadas com a evolução da humani-

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AUTOCONHECIMENTO

dade, pois o Cristo em que acreditamos não é um ser extrater-


restre ou alienígena.
Sempre foi tarefa difícil escrever sobre a definição do ser
cristão, no entanto, está ficando cada vez mais complicado.
Isso se dá pela falta da crença em absolutos que a nossa socie-
dade abraça, e que tem tomado também os debates religiosos.
Como já esbravejei lá em cima em alguns rodeios, o que define
um cristão hoje em dia depende muito do ponto de vista do
indivíduo. Não que eu concorde com isso, não estou dizendo
que essa deva ser a regra correta de análise. No entanto, em
geral, é assim que acontece. Basta perceber as diversas possibi-
lidades que estão disponíveis no menu das opiniões populares.
Antes que eu mesmo tente, me diga: O que seria um cristão
para seus amigos da faculdade? E para a galera do clube de
tiro? O que é um cristão para o repórter da tv? E para o youtu-
ber conservador? É o mesmo que para o revolucionário? Para
seus colegas do trabalho ou para o professor de filosofia da fe-
deral? Está vendo como fica difícil? Isto acontece porque com
o decorrer do tempo e com a forma com que as bases básicas
do conhecimento teológico foram tratadas (e o péssimo teste-
munho também), não só temos que definir o que é cristão, mas
indicar o tipo de cristão que estamos definindo, pois ficou claro
que somos todos especialistas em tudo, principalmente em um
assunto tão simples como esse, não é mesmo?
Aquilo que parece tão óbvio, não é. Veja bem, quem não
consegue definir um simples crente? A gente o vê passando
todo dia de terno e gravata com a Bíblia debaixo do braço,
girando e gritando “aleluia”. Bom, quero dizer, esse é mais
do que crente, é pentecostal, do manto e do fogo! Entretanto,

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AUTOCONHECIMENTO

existem aqueles outros tatuados, que para muitos do primeiro


exemplo citado, nem seriam salvos. Os tatuados congregam em
igrejas de paredes pretas e usam calças apertadas, bem pode-
riam ser chamados de cristãos da new wave do gospel, conhe-
cidos também como worshipeiros (não estou generalizando).
Certamente, não podemos esquecer dos mais intelectuais, com
as caras fechadas, e talvez até um charuto na mão, os famosos
reformados clássicos, do tipo de Dooyeweerd, Spurgeon e toda
a galera do suspensório.
Consegue perceber? Descrever o que é um cristão é árduo
ofício, caros leitores. No entanto, irei tentar. Com umas “filo-
sofadas” aqui e outras ali, espero conseguir entender o que é
esse ser, porque explicar são outros quinhentos.
Não é tarefa fácil escrever sobre qualquer assunto, e para
isso, sem dúvidas, é preciso uma certa coragem (ou loucura),
de modo a expor seus pensamentos e eternizá-los em um livro
(Verba volant, scripta manent).5 Aquele que escreve, meu caro
irmão ou irmã, leitor ou leitora, do meu coração, pode se tornar,
ou melhor, certamente irá se tornar um alvo de críticos severos,
desde aqueles mais incisivos até dos mais preguiçosos. Através
da pequena experiência que adquiri nos últimos anos, com al-
guns livros publicados, sei dos eventuais juízos que aquele que
ousa escrever, muito provavelmente receberá (dica importante
se for começar a escrever: não procure seu nome no Twitter).
Mas, além do que os haters podem dizer, preciso confessar que
meu olhos fazem “coraçãozinho” quando vejo as mensagens de

5. Verba volant, scripta manent é um provérbio em latim. Traduzido literalmente como “pa-
lavras faladas voam para longe, palavras escritas permanecem” ou “as palavras voam, os
escritos ficam” ou simplesmente “as palavras voam, mas permanecem quando escritas”.

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AUTOCONHECIMENTO

amor, aquelas queridas mensagens que recebi com o decorrer


dos anos, daqueles que gentilmente empenharam algumas ho-
ras de suas vidas prestando atenção a algo que tentei expressar
em um conjunto de palavras publicadas (obrigado leitores s2).
Entendo que em tempos de informações tão rápidas, e es-
sas em grande quantidade, o tempo que, já não é tanto, torna-se
ainda mais precioso. Considero-me muito privilegiado em ter
a oportunidade de compartilhar um pouco do que para mim foi
importante encontrar. Digo isso pois acredito de todo coração,
que a verdade, independente a qual assunto se refira, não se
inventa, se descobre.
Reconheço o fato de que ter a atenção de alguém por al-
gumas horas é, no mínimo, extremamente gratificante. Isto é,
pelo menos lendo meu livro, pois pessoalmente, não sou uma
pessoa tão sociável. Não é porque eu não goste de pessoas, ou
não goste de conversar. O motivo é que durmo muito cedo, e
não sei porque as pessoas preferem deixar as conversas mais
elaboradas para o fim do dia.
Dito isso, sei do valor que as horas têm na vida de alguém
(só não estou tão certo de que a maioria daqueles que formam
nossa época e cultura saibam dis-
so, ao menos, é isso que o screen-
time de nossos celulares insistem
SOMOS C ULPA DO S em nos jogar na cara, mostrando
PELO TEM P O todo o tempo que muitas vezes
QUE MATAMO S jogamos fora diariamente). Ora,
E, PORTAN TO , se Deus inventou o celular, foi
SUIC IDA S . o diabo o autor do screentime, e
assim como ele, essa ferramenta

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AUTOCONHECIMENTO

do inferno faz o papel de acusador. E por mais triste que seja,


quando vestido com a toga de promotor diante do juiz, ele não
estará mentindo ao nosso respeito quando apontar o crime que
cometemos: somos culpados pelo tempo que matamos e, por-
tanto, suicidas.6 Como se fosse possível matar o tempo sem
ofender a eternidade.7

6. Quem mata o tempo não é um assassino. É um suicida. - Millôr Fernandes.

7. Thoreau, Henry. Desobediência Civil e Walden. 2010. L&PM Editores

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