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EDIÇÃO 2428
11/MAIO/2019
Reportagem
A grande matança
de gatos na Austrália.
A bem da ecologia
Entrevista
De Cuba para Portugal.
Pablo Pichardo bate
recordes e quer
conquistar títulos
mundiais
A última
cruzada O seu nome é Steve Bannon
e a sua missão dinamitar
o projeto europeu. Retrato
da nova extrema-direita nas
vésperas das eleições mais
importantes para o futuro da
Europa. Por Ricardo Costa
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PLUMA CAPRICHOSA
GIVING A F*CK
C
O ESPETÁCULO DOS ÚLTIMOS DIAS EM PORTUGAL, COM O OBVIAMENTE
DEMITO-ME QUE DENUNCIOU A ESTUPIDEZ, É UM SINAL DA DECADÊNCIA
omprei um livro estúpido num aeroporto. O São necessárias a vontade e a capacidade de converter a ligeireza
gesto não é tão estúpido como parece. O livro e a cópia numa máquina de fazer dinheiro com a ajuda da
perseguia-me de aeroporto em aeroporto há audiência tecnológica. Mark Manson faz Paulo Coelho parecer um
meses, e de livraria em livraria, da Barnes & intelectual. Um verdadeiro Dostoievski.
Noble para a Waterstones, da Strand para a A coisa não teria importância se não fosse a contaminação de
WHSmith. Estava na fase Pague um e leve dois, toda a vida por esta deliberada atitude, a de nada ter importância
o que constitui uma vantagem quando não se suficiente para movimentar os neurónios. A atitude leviana
tem confiança nem no livro nem no autor. Um contaminou a política, a academia, a educação, a memória, a
dos colantes da capa assegurava que tinha sido biografia. Não se trata de nostalgia em relação ao século XX, ou
o best-seller #1, de quê e quando não dizia. ao passado, trata-se da estupidificação maciça que a tecnologia
Outros asseguravam que da lista de best-sellers está a introduzir na sociedade civilizada. A estupidificação, a ser
de “The New York Times”, o que não nos leva estudada e quantificada por cientistas, conduzirá ao apagão e à
muito longe. A razão pela qual o livro vendia era óbvia, tinha f*ck destruição da memória da civilização de que descendemos.
no título, exatamente assim, com um asterisco no lugar do u. Num inquérito aos passageiros, milhões deles, o aeroporto de
“The Subtle Art of Not Giving a F*ck”, A arte subtil de não ligar Heathrow perguntou qual a loja que desejavam ver nos terminais.
peva, com o subtítulo ‘Uma Abordagem Contraintuitiva para Ganhou a livraria. Mas a livraria que ganhou, a WHSmith, só
Viver uma Boa Vida’. O autor parece que é um blogger famoso e vende dois tipos de livros. Best-sellers com promoções, autoajuda
tem uma audiência de milhões. E descreve-se a si mesmo, no site, e finança e gestão à cabeça e, num canto discreto, longe da
como “Autor, Pensador, Entusiasta da Vida”. Dá conselhos aos multidão, uma reserva índia de clássicos. Entre Dickens e Tolstoi
tais milhões e uns julgam que ele é um idiota e outros que ele lhes de bolso e o nosso Manson entusiasta, nada floresce a não ser
salvou a vida, nas palavras do autor entusiasta. Pode ser um idiota, policiais e thrillers baratos, todos com a mesma intriga, e romances
mas é um daqueles idiotas que descobriram como fazer dinheiro cor-de-rosa, todos copiados. A poesia ou a filosofia não existem, a
a partir de coisa nenhuma, da idiotice, o que os portugueses ficção antes e depois do século XIX também não, com exceção de
chamam descobrir dinheiro na cabeça de um careca. um Salinger ou outro autor de culto, como García Márquez. A loja
Mark Manson, o entusiasta, não tem um único cabelo, real da Amazon em Nova Iorque é pior, só vende o que a Amazon
metaforicamente. O livro é um conjunto anódino de historietas vende e o que a Amazon vende em massa é lixo. Milhares de
pessoais e outras retiradas da rede, a que o entusiasta tenta dar um autores que ninguém sabe quem são, sustentados pela máquina da
significado profundo e algumas lições de autoajuda. O significado Amazon, e as críticas e estrelinhas (muitas fabricadas) do ‘público’
profundo é o de not giving a f*ck, não ligar peva, deixar andar, e as da Amazon, o menor denominador comum da inteligência. Não se
lições de autoajuda são sobre o modo de ser feliz não ligando peva. vislumbra um clássico. Ou um escritor. Abundam os super-heróis.
A palavra f*ck repete-se monotonamente ao longo das duzentas Esperar que a política, e os políticos, escapem a esta tendência é
e tal páginas, é a âncora estilística e epistemológica de todo o esperar demasiado. O espetáculo dos últimos dias em Portugal,
pensamento, e o bom do Mark diz-nos que já foi infeliz e agora com o obviamente demito-me que denunciou a estupidez, é um
é feliz não por ter deixado de ligar peva, mas por só ligar peva a sinal da decadência da coisa. O melhor para a saúde é seguir o
uma coisa de cada vez. No caso dele, concentrou-se em criar um conselho do autor entusiasta, não ligar peva. b
negócio na internet, casar-se, arranjar uma casa e sedimentar
numa vida de blogger. Um fracassado tornou-se um milionário
autor de livros e entusiasta dos direitos de autor e das leituras
e conferências de motivação, e vem aí o novo “Everything is
F*cked: A Book About Hope”, Tudo está F*dido: Um Livro sobre
a Esperança. Sustenta uma vida confortável em Nova Iorque com
os ganhos de best-sellers que os leitores atentos ao “NYTimes” e às
listas de best-sellers compram.
Há uma dúzia de anos, este entusiasta nunca seria publicado. O
livrinho resulta do poder da rede e das redes e resulta sobretudo
da indigência generalizada da livraria e da livralhada no mundo
anglo-saxónico, onde a literatura diminui de peso e os autores
vendidos, carregados por uma máquina promocional de milhões
de dólares, vendem por escreverem livros que apelam ao senso
comum e ao poder da audiência global para imitar o sucesso e a
receita dele. Assim se tornou Michele Obama, com o seu medíocre
manual de autoelogio e autoajuda, um dos autores mais vendidos / CLARA
de todos os tempos. E assim fez história.
O entusiasta Manson é só um dos que perceberam a tendência.
FERREIRA
A substância, na nossa cultura de imitação, não é necessária. ALVES
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SUMÁRIO
EDIÇÃO 2428 | 11/MAIO/2019
Coordenadores
CRÓNICAS Ricardo Marques
rmarques@expresso.impresa.pt
Rui Tentúgal
3 Pluma Caprichosa por Clara Ferreira Alves | 24 Cartas Abertas por Comendador Marques de Correia rtentugal@expresso.impresa.pt
69 Isto Anda Tudo Ligado por Ana Cristina Leonardo | 79 A Desarmonia das Esferas por João Lisboa Coordenadores Gerais de Arte
Jaime Figueiredo (Infografia)
88 Que Coisa São as Nuvens por José Tolentino Mendonça | 103 Diário de Um Psiquiatra por José Gameiro João Carlos Santos (Fotografia)
106 Fraco Consolo por Pedro Mexia Mário Henriques (Desenho)
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“QUEM SABE TUDO É PORQUE ANDA MUITO MAL INFORMADO”
O pálido ar
do mundo
A POLUIÇÃO NO AR MATA À ESCALA GLOBAL
E AS AMEAÇAS À NOSSA SAÚDE SÃO MUITAS VEZES
INVISÍVEIS. A ÁSIA É O CONTINENTE MAIS AFETADO,
MAS A EUROPA AINDA TEM UM LONGO CAMINHO
A PERCORRER PARA ERRADICAR O PROBLEMA
TEXTO TIAGO SOARES INFOGRAFIA LILIANA GONÇALVES
GETTY IMAGES
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fisga
N
o passado dia 30 de abril, uma mulher que a sua concentração ainda é significativa, do ar atinge níveis particularmente graves. A
italiana chamada Margherita Tolotto fez sobretudo nas cidades, onde vive a maior parte primeira cidade europeia é Lukavac, na Bósnia-
a seguinte afirmação: “É chocante que da população. A agência especifica ainda os Herzegovina, e surge apenas na posição 92º.
mais de metade dos governos da União Europeia três principais poluentes mais nocivos para a Até aí, o ranking é quase totalmente dominado
não tenha cumprido o prazo para algo tão saúde, e cujos níveis excedem regularmente o por cidades indianas e chinesas, sendo que as
importante.” Margherita não é uma professora recomendado: o ozono, o dióxido de nitrogénio e três cidades com o ar mais poluído do mundo
enfurecida com o desleixo dos seus alunos, mas as partículas inaláveis. são Gurugram e Ghaziabad, na Índia, seguidas
sim diretora de Políticas para o Ar e Ruído do Ora, é boa ideia dizer que o ozono é um gás bom. de Faisalabad, no Paquistão. Construindo o
Gabinete Europeu do Ambiente (GEA). E está O seu desaparecimento progressivo da estratosfera ranking por país, a Índia e o Paquistão são
preocupada com o ar que todos nós andámos — devido à poluição causada pelo homem — é um respetivamente o terceiro e o segundo países
a respirar: “Todos os dias de atraso no corte da problema sério. Mas quando entra em contacto com pior qualidade de ar. Em primeiro lugar
poluição do ar significam mais pessoas a sofrer direto com o “nosso” oxigénio, é extremamente está o Bangladesh, e a China surge no 12º lugar,
as consequências na sua saúde.” A explicação prejudicial aos pulmões, podendo causar sérias fruto dos recentes esforços governamentais para
é simples: 15 países da União Europeia não doenças respiratórias. E este “mau” ozono é gerado diminuir a poluição atmosférica. O primeiro país
cumpriram o prometido e falharam a entrega muito por culpa do Dióxido de Nitrogénio (NOx), da União Europeia a aparecer é a Bulgária, na 24º
dos seus programas estratégicos para reduzir a um gás igualmente tóxico libertado pela queima posição. Portugal surge apenas no 64º lugar, com
poluição do ar. Tinham até ao final de abril para o de combustíveis fósseis e, claro, pelos motores de um ar considerado “bom.” Mas, apesar de bom,
fazer. Entre os países em falta estão a Alemanha, carros e outros veículos. estima-se que em 2017 tenham morrido 4300
a França e a Espanha. pessoas em Portugal por razões diretamente
Este puxão de orelhas acontece poucos meses PERIGO INVISÍVEL ligadas ao problema.
depois de a Organização Mundial de Saúde Para abordar a ameaça das partículas Portugal está, no entanto, em 7º lugar no ranking
(OMS) ter revelado que a poluição do ar — tanto inaláveis, pense primeiro no seu cabelo. Mais dos países com o ar mais limpo da Europa,
a ambiental, na rua, como a interior, em casa precisamente, num único fio do seu cabelo. Esse próximo do objetivo da OMS (é na verdade, o
— causa a morte prematura de sete milhões fio terá, aproximadamente, 50 a 70 milionésimos melhor país não cumpridor). Os únicos países
de pessoas por ano, de várias formas: doenças de diâmetro. As partículas inaláveis são ainda europeus que já o cumprem são a Islândia,
cardíacas (31%), pneumonia (21%), acidentes mais minúsculas, totalmente microscópicas: Finlândia, Estónia, Suécia, Noruega e Irlanda. Já
vasculares cerebrais (20%), doença pulmonar têm entre 2,5 e 10 milionésimos de diâmetro (ou a Bósnia-Herzegovina é, a par da Macedónia, o
obstrutiva crónica (19%) e cancro do pulmão 2,5 µg). Por serem tão pequenas, conseguem país com o ar mais poluído do Velho Continente.
(7%). Ou seja, as consequências da poluição penetrar com facilidade nas vias respiratórias. A nível mundial, Portugal fica no 11º lugar,
no ar não se cingem apenas a irritações na As mais pequenas (com 2,5) chegam mesmo a num ranking com a presença não-europeia da
pele e náuseas. A esmagadora maioria dessas entrar nos alvéolos pulmonares, e os seus efeitos Austrália, Nova Zelândia, Canadá e Estados
mortes (91%) ocorrem em países pobres, de nocivos podem ser sentidos tanto a curto como Unidos da América.
baixo e médio rendimento, sobretudo na Ásia (4 a longo prazo. Ora, é praticamente impossível Os dados indicam portanto que a Europa tem
milhões de mortes prematuras) e em África, em eliminá-las por completo da atmosfera, mas um ar bastante mais limpo em comparação
que a poluição do ar mata em média 1 milhão há limites de exposição que, ultrapassados, com outros continentes, sobretudo a Ásia e a
de pessoas. Já na Europa, a OMS estima que significam um perigo para a saúde. Isto verifica- África, onde os níveis de poluição do ar são
a poluição atmosférica cause 500 mil mortes se com todos os gases poluentes, mas as PM2,5 bastante preocupantes. Das mais de 3000
evitáveis por ano, enquanto que na América o são tidas como o poluente mais perigoso e o que cidades incluídas no relatório da AirVisual, 64%
número é de 300 mil. afeta mais pessoas à escala mundial. Surgem excedem a diretriz da OMS no que diz respeito
A OMS adianta ainda que 91% da população na atmosfera através da combustão (motores às PM2,5. Em África e no Médio Oriente essa
mundial vive em locais onde o ar não é seguro, de veículos, indústria, queima de madeira e percentagem é mesmo de 100%, e na Ásia está
e 80% dos habitantes de cidades respiram mais carvão), mas também através da reação de também bastante próxima desse valor. Outra
poluição do que a OMS refere como o máximo outros poluentes. No fundo, representam um conclusão preocupante do relatório é a falta
aceitável. No que diz respeito à Europa, a Agência perigo invisível mas bem real. O objetivo da de conscientização da população para este
Europeia do Ambiente sublinha que as emissões Organização Mundial de Saúde é que a exposição problema, bem como a falta de acesso a algumas
de substâncias poluidoras do ar desceram anual à poluição atmosférica de partículas finas regiões do globo para a realização de testes
consideravelmente nas últimas décadas, mas (PM2,5) não seja superior a 10 microgramas por atmosféricos.
metro cúbico, ou 10 μg/m3. As crianças são particularmente vulneráveis
Para facilitar a organização da informação à poluição atmosférica. Um relatório da OMS
referente à poluição do ar, esta fórmula de indica que 93% das crianças de todo o mundo
“partícula inalável por metro quadrado” é são expostas a níveis de partículas poluentes
A ORGANIZAÇÃO MUNDIAL traduzida num sistema denominado “Air Quality superiores ao limite desejável, incluindo 630
DA SAÚDE ADIANTA QUE 91% DA Index” (ver ao lado). No ranking das cidades milhões de crianças com menos de cinco anos.
com o ar mais poluído do mundo da AirVisual O resultado dessa exposição é trágico: em 2016,
POPULAÇÃO MUNDIAL VIVE EM — referente a 2018 e organizado desta forma — 543 mil crianças com idades inferiores a cinco
LOCAIS ONDE O AR NÃO É SEGURO percebemos que é mesmo na Ásia que a poluição anos morreram com doenças relacionadas com
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PAÍSES COM O AR MAIS POLUÍDO PAÍSES COM O AR MAIS LIMPO AS TRÊS CIDADES COM O AR MAIS
'Air Quality Index’ (AQI) em 2018 ‘Air Quality Index’ (AQI) em 2018 POLUÍDO DO MUNDO SÃO GURUGRAM
NÍVEL MÉDIO DE AQI NÍVEL MÉDIO DE AQI E GHAZIABAD, NA ÍNDIA, SEGUIDAS DE
1 Bangladesh 97,1 1 Suécia 7,4 FAISALABAD, NO PAQUISTÃO
2 Paquistão 74,3 2 Estónia 7,2
3 Índia 72,5 3 Austrália 6,8
4 Afeganistão 61,8 4 Finlândia 6,6
5 Bahrain 59,8 5 Islândia 5,0
que foram bem sucedidas e contribuíram para
CAUSAS DAS MORTES ASSOCIADAS À FALTA DE reduzir a poluição no ar. No caso português,
QUALIDADE DO AR celebrou-se pela primeira vez no passado dia 12
Em 2018 de abril o Dia Nacional do Ar — uma data que
Portugal foi pioneiro a instituir — e o presidente
Cancro do pulmão
Doenças cardíacas da Agência Portuguesa do Ambiente Nuno
7%
31% Lacasta reforçou que “a qualidade do ar em
Portugal hoje é muito melhor do que aquela
que tínhamos, em geral, há dez ou 15 anos, e na
Doença pulmonar Europa também, porque fomos despoluindo as
obstrutiva crónica PORTUGAL
fontes de poluição”. Isso significou introduzir
19%
11º
PAÍS COM O AR MAIS LIMPO DO MUNDO
fontes renováveis ao nível da produção de
energia, e o aparecimento dos veículos elétricos e
híbridos, menos poluentes.
AVC A cidade de Londres introduziu recentemente o
20% Pneumonia ULEZ, um programa que taxa veículos poluentes
21% que circulem em algumas zonas específicas
do centro da cidade, e a intenção é alargar a
sua abrangência a mais zonas da cidade no
AR RECOMENDAÇÕES PARA A SAÚDE NÍVEL DE AQI futuro. Também nas eleições legislativas ainda
a decorrer da Índia — um dos países com pior
Bom A qualidade do ar é satisfatória e envolve pouco ou nenhum risco para a saúde. 0–50 qualidade de ar — a poluição atmosférica foi
Pessoas sensíveis devem evitar atividades ao ar livre, pois poderão sentir (finalmente) um dos temas da campanha. A
Moderado 51–100 tecnologia veio melhorar o acesso a informação
dificuldades respiratórias.
Pouco saudável para A população em geral, e em particular as pessoas sensíveis, estão em risco de sobre o problema, e existem atualmente vários
101–150 sites com informação pormenorizada sobre a
grupos sensíveis sofrer problemas respiratórios e irritações.
Probabilidade acrescida de efeitos adversos para o coração e pulmões da poluição atmosférica em tempo real. O World’s
Pouco saudável 151–200 Air Pollution: Real Time Air Quality Index
população em geral.
A população em geral será bastante afetada. As pessoas mais sensíveis devem (https://waqi.info/) é um deles.
Prejudicial 201–300 Infelizmente, um relatório do Tribunal de Contas
restringir as atividades ao ar livre.
Toda a população está em alto risco de sofrer fortes irritações e efeitos adversos Europeu de 2018 foi perentório ao concluir
Nocivo 301 ou + que “o mau ar ainda é comum na maioria
para a saúde. Evitar atividades ao ar livre.
dos Estados membros da União Europeia. (...)
FONTE: 2018 WORLD AIR QUALITY REPORT, IQAIR, AIRVISUAL, ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE Cidadãos europeus ainda respiram ar prejudicial,
sobretudo devido à fraca legislação e à pobre
implementação das medidas.” Recomendam
ainda que o Ambient Air Quality Directive — o
a poluição do ar, mais 52 mil com idades entre a veículos. E o ar poluído não está apenas nas principal pacote legislativo da União Europeia
os cinco e os 15 anos, sobretudo no continente grandes cidades, mas também em zonas rurais para atacar este problema — seja fortalecido,
africano. e até nas nossas casas: algumas práticas dentro e que sejam tomadas ações mais firmes não
de portas também podem ser prejudiciais ao só pelos comissários europeus mas pelos
MEDIDAS E INFORMAÇÃO DISPONÍVEL ambiente e à saúde, como fogos em lareiras Estados membros, ações essas que devem
As principais fontes de poluição atmosférica abertas e sem processos de filtragem, apesar de, incluir melhores estratégias e mais informação
são as atividades da indústria e de produção mais uma vez, este problema ter na Europa uma disponível ao público. No fundo, Margherita
de energia, a gestão do lixo, as práticas da dimensão residual. Tolotto, a diretora de Políticas para o Ar e Ruído
agricultura, e claro, os transportes. Mais de 40% Há vários exemplos de políticas nas áreas dos do Gabinete Europeu do Ambiente, tem todas as
das emissões primárias de PM2,5 são atribuídas transportes, indústrias e planeamento urbano razões para estar chateada. b
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DO CÉU AO INFERNO
A SEMANA EM REVISTA POR VALDEMAR CRUZ
Numa semana de muitos contorcionismos políticos, com Costa a insistir em profetizar a desgraça
para o país caso seja respeitado o tempo de serviço dos professores, Rio e Cristas a darem o dito
por não dito, salvou-se a coerência do PCP, BE e Verdes. Não se afastaram um milímetro do que
sempre defenderam. Com o mundo a precisar de humildade para salvar a sua biodiversidade,
coerência e altruísmo foi o que revelou Souto de Moura ao ceder o seu acervo à Casa da
Arquitectura, onde fica à disposição de quantos queiram estudar a obra do Prémio Pritzker.
Liverpool
O preço das
casas vai
O fascínio do futebol
Souto de Moura reside no modo como
continuar
tantos aparentes
A doação do seu acervo à
impossíveis se tornam
Casa da Arquitectura facilita
a subir?
realidade. A forma épica
o estudo e um mais fácil e
como a equipa inglesa
democrático acesso a uma das
eliminou o Barcelona ficará
grandes criações arquitetónicas
para a história como hino à O mais provável é que os
contemporâneas.
ideia de nunca desistir. preços tendam a estabilizar
ou, em alguns casos, a baixar.
Mário Nogueira Porquê? Essencialmente por
António Não haverá sindicalista tão
duas razões: por um lado, em
Costa vilipendiado e com tão má
alguns segmentos, nomea-
O brilharete imprensa como o dirigente da damente no luxo — depois
mediático não Fenprof. Não desiste. A sua das euforias e dos recordes
oculta a submissão luta não é pessoal. Reflete dos últimos dois anos —,
da governabilidade os anseios de uma classe além de haver muita oferta,
a um mero desrespeitada. Os professores.
a procura começa a retrair-
taticismo.
Serviu-se dos -se e a optar por outros
professores e das destinos (especialmente os
contradições do compradores estrangeiros);
PSD/CDS para por outro, muitos constru-
uma vitória que tores e promotores imobili-
logo se verá se não
é tão fugaz quanto
ários já entenderam que, se
pírrica. quiserem continuar a vender
casas, têm de as colocar no
mercado a preços acessíveis
às classes média e média
baixa. E isso só acontece-
Vida de pobre rá se se verificar uma de
Quase 1,8 milhões de Queima das Fitas duas variáveis: ou os preços
portugueses estão em Alguns estudantes tentam dar
risco de pobreza. Dados
caem ou os rendimentos
alguma dignidade às praxes
do INE sobre 2017 académicas, mas prevalece uma
das famílias sobem. Como a
revelam que 17,3% da infinita boçalidade. Ver finalistas segunda é menos provável, o
população, a maioria no de História, de Coimbra, mais natural é que os preços
Norte e no Centro do acharem inócua a diversão com se adaptem à realidade.
país, vivem com menos de o termo “Holocausto” não é Uma coisa é certa: 22 mil
€467 por mês. Vivem? apenas chocante. É trágico. euros por metro quadrado,
como chegou a acontecer,
em Lisboa, ou mesmo uma
Fim das espécies média de 10 ou 15 mil euros
A biodiversidade cai a um ritmo o metro quadrado, em algu-
nunca visto, alerta a ONU num mas zonas de luxo da capital,
estudo feito por 500 autores
em 50 países. Um milhão de
não voltará a acontecer tão
espécies de animais e plantas está cedo e nem sequer será uma
ameaçado de extinção a prazo. norma para o curto mercado
nacional. / VÍTOR ANDRADE
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entre as minhas pernas, à
frente e atrás, dizendo-me
que era o seu trabalho” MIL MORTOS NA SÍRIA DESDE 2011
a adversidade e a tua
simplificação da administração pública.
vontade imparável de
/ RAQUEL ALBUQUERQUE
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O QUE EU ANDEI PARA AQUI CHEGAR
UM CURRÍCULO VISUAL
Jürgen Klopp
Em miúdo, sonhou ser médico, mas desistiu da ideia porque não se achava suficientemente
inteligente. Filho de um antigo guarda-redes, começou a jogar futebol como avançado,
mas acabou convertido a central. Jogador modesto, revelou-se um treinador de exceção.
Primeiro no Dortmund, onde ganhou cinco troféus (dois campeonatos) e chegou a uma
final da Champions League, e agora no Liverpool, onde vai disputar a terceira final europeia
em quatro anos e ainda sonha com o título inglês. / NELSON MARQUES
1967
Os primeiros toques 2019
Nasce a 16 de junho em Estugarda, filho À terceira será de vez?
de um antigo guarda-redes amador e Após a derrota (3-0) em
de uma vendedora. Com os pais e as Barcelona, conduz o Liverpool a
duas irmãs, muda-se para Glatten, uma uma reviravolta épica (4-0) e à
vila na Floresta Negra. É no clube local final da competição pelo segundo
que começa a jogar futebol. ano consecutivo. Será a sua
quarta final europeia (a terceira na
Champions), onde a sorte ainda
não lhe sorriu. Será desta?
1990
Fiel ao Mainz 05
Depois de passagens tímidas por três
clubes amadores de Frankfurt, assina 2015
pelo Mainz 05, onde faz toda a carreira “The Normal One”
profissional. Inicialmente avançado, é
convertido a central a partir de 1995. Assume as rédeas do Liverpool a 8 de
PETER POWELL/EPA
2008
A grande
1995 oportunidade
Um passo para Apresenta a demissão
o canudo depois de não conseguir
fazer o Mainz regressar ao
Em miúdo, sonhara primeiro escalão e aceita
ser médico, mas não o convite do histórico
acreditava que fosse Borrussia de Dortmund.
suficientemente Começa a época a
inteligente. Acaba conquistar a Supertaça ao
por licenciar-se Bayern de Munique. 2012
em Desporto na 2001
Universidade Bicampeão da Alemanha
Goethe de Frankfurt, O homem do leme A 30 de abril de 2011, vence a Bundesliga,
com uma tese sobre... Após pendurar as chuteiras, assume o comando repetindo o triunfo um ano depois, com um
caminhar. do Mainz. Na terceira época, leva o clube à recorde de pontos. Na época seguinte, chega
Bundesliga pela primeira vez na sua história. à final da Champions League, perdendo com os
Dois anos depois, qualifica-o para a Taça UEFA. rivais do Bayern após um golo aos 89 minutos.
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PLANETÁRIO
NO CAMINHO DAS ESTRELAS
POR NUNO GALOPIM
NOVA IORQUE
MoMA reabre
em outubro
com novidades
O MoMA — Museum of Modern Art (em Nova Iorque), vai estar
fechado a partir de 15 de junho para que, durante os meses do
verão, se conclua a etapa final de um processo de remodelação
STUDIO NAB
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FLASHES ARTE NO ESPAÇO
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PASSEIO PÚBLICO O que é que lhe interessou no papel de Philomène?
Acho que, à partida, olhei para ela apenas como uma mulher
15 MINUTOS COM submissa que vive em função do marido. Depois dei-me conta
de que isso era um cliché. Philomène, na verdade, é uma dessas
heroínas matriarcais que têm muito mais poder do que aquilo que se
julga porque ela é o pilar de uma casa. Vive ao ritmo das estações,
LAETITIA
tem uma força e uma sabedoria que vêm da Terra, e a inteligência no
coração. Faz-me lembrar as minhas avós.
CASTA
Antes de ser contratada, o produtor deste filme duvidou que você
fosse capaz de interpretar uma camponesa porque, segundo ele, isso
não correspondia à sua imagem...
“EU NASCI
É verdade, e fartei-me de rir com isso porque eu venho da província,
de uma pequena localidade da Normandia. E passava férias na
Córsega. Eu nasci camponesa, não tenho nada de parisiense. Mas
o produtor não sabia... Há um cineasta que infelizmente já não está
CAMPONESA,
entre nós e que reconheceu imediatamente o meu lado rural: foi o
Raoul Ruiz. Ele viu-me desfilar numa ocasião, notou como eu andava
na passerelle e depois atirou-me esta: “Você anda como uma
NÃO TENHO
camponesa.” Tomei esta singularidade como um elogio. Para ele, a
minha forma de andar diferenciava-me de todas as outras modelos.
NADA DE
Quando aceita um novo papel, pensa se o filme em questão pode ou
não tornar-se popular?
Não raciocino assim. Aliás, a palavra ‘carreira’ não me agrada. Prefiro
procurar num papel, numa história, em cada novo filme, algo que me
PARISIENSE”
possa tocar ou comover e se encontro isso, basta-me. “A Incrível
História do Carteiro Cheval”, por exemplo, é um filme muito clássico.
O realizador espera que corra bem nas bilheteiras. E eu nem posso
dizer que é este o cinema de que mais gosto. Mas a personagem
de Philomène fez-me crescer e pensar em mim própria. É uma
personagem que eu não poderia ter interpretado há dez anos, por
A ATRIZ E MODELO FRANCESA FALA-NOS DE exemplo: não teria tido a mesma maturidade para lidar com ela. E se
“A INCRÍVEL HISTÓRIA DO CARTEIRO CHEVAL”, DE o tivesse feito, não teria feito mais do que uma caricatura.
NILS TAVERNIER, QUE JÁ SE ESTREOU NAS SALAS
Gostou de contracenar com Jacques Gamblin?
Bastante, ele é essencialmente um ator de teatro,
supercomprometido com tudo o que faz, um daqueles que estão
ENTREVISTA FRANCISCO FERREIRA EM PARIS sempre ‘em combate’ com a personagem. Se no guião está escrito
que a personagem corta lenha, então é preciso saber fazê-lo como
No termo do século XIX, Joseph Cheval, carteiro e homem deve ser, como um camponês o faz. Jacques perguntou-me isso no
modesto, casa-se com Philomène e da união nasce Alice, uma primeiro dia. “Sabes cortar lenha?” O trabalho passa por pormenores
filha que ele adora. Joseph decide então construir-lhe um palácio como este.
excêntrico e, nos 33 anos seguintes, à medida que lhe chamam
louco, vai dando forma a esse edifício que o tornará famoso e que
influenciará os surrealistas. Laetitia Casta interpreta Philomène e
contou-nos mais sobre “A Incrível História do Carteiro Cheval”,
filme que, apesar do seu título, é baseado em factos verídicos.
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PASSEIO PÚBLICO
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CARTAS ABERTAS
/ COMENDADOR
MARQUES DE CORREIA
A
ESTAVA A PREPARAR UMA CHIBANTE EXPLICAÇÃO SOBRE OS AVANÇOS DE
COSTA E AS DERROTAS DEFINITIVAS DOS OUTROS, QUANDO ACABOU A FESTA!
minha posição sobre a crise que se gere alguma confusão nesta matéria.
era muito original. Consegui Porém, o que mais me irritou é terem aproveitado eu ter lido o
enganar os analistas todos, começo do ‘Organon’, ou seja, as ‘Categorias’, cujas primeiras
que não perceberam nada do linhas dizem: “Chamam-se homónimos os nomes que só
que se passou e, ao contrário têm de comum o nome, enquanto a noção da sua essência é
deles, fiquei com a ideia de que distinta”, o que só por si é todo um programa; o que mais me
António Costa é um génio, meteu irritou, dizia eu, é terem aproveitado o meu desejo de cultivo
toda a gente no bolso, acabou acerca de homónimos, para acabarem com a crise.
com as europeias, deu cabo da Queriam, seguramente, que eu não fizesse o seguinte
‘geringonça’ mantendo a aliança raciocínio: se eles não são homónimos, uma vez que não são
com eles e abriu uma porta ao iguais no nome, mas não tendo também uma essência distinta,
PSD. Acho que ainda tentou serão o quê? A resposta tive que a encontrar por mim próprio:
a cura da piorreia e o fim do são homólogos, porque tendo nomes diferentes têm uma
aquecimento global, mas não chegou a ter tempo. substância, uma essência, uma logos, uma razão, uma palavra
Com Rio e Cristas metidos em casa, e cheios de medo do (ou várias) semelhantes.
SuperCosta, aquele homem invencível a quem só a oportunite Porém, se assim for, sinto-me na obrigação de retirar a
(mineral raro) pode derrubar, dediquei-me a ler as ‘Categorias’ santidade a Costa, a beatificação ao PS, sem porém retirar
de Aristóteles, coisa que já não fazia desde 1946, pelo que os saltos à retaguarda dos outros? Poderia dar-se o caso de
estava um pouco tomado pelo oblívio. Comparando as numa crise desta natureza, profunda e rápida como um golpe
traduções de Pinharanda Gomes do ‘Organon’, de que as de sabre, estarem todos a mentir? Não se trataria de uma
Categorias são o início, com a tradução de Ricardo Santos das impossibilidade haver tamanha coincidência na homologia e
‘Categorias’ em si mesmo, verifiquei que tanto uma como outra homologação de uma ideia pérfida? Claro! Pensei mais, mas
esqueciam a categoria de Bruno Fernandes, que fez um truque não saí desta conclusão triste de que todos estavam a mentir e
de chapéu no Jamor, naquele que foi o melhor jogo de futebol aplaudia-se aquele que melhor o faz. De repente fez-se-me luz:
no fim da tarde de domingo passado. Mas adiante, porque a alguém estava, como sempre, a dizer a verdade. Era eu! Ah!
vida não é futebol, cerveja, tremoços e Aristóteles... meus amigos, assim sendo, o mundo ainda se salva! b
De qualquer modo, entendi que podia deixar passar uns dias
até dar a minha opinião definitiva sobre diversas coisas que
vão da perfídia do PSD ao taticismo do CDS, passando pela
radicalização do PCP e esquerdalhização do BE, a fim de propor
a canonização de Costa e a beatificação do PS, além da Torre e
Espada a Marques Mendes (Torre é exagero, bastará Telhado e
Espada) e o enforcamento público do Mário Nogueira.
Deleitei-me, assim, com Aristóteles, e depois de ler o pequeno
opúsculo, comecei a pesquisar o material que daria corpo à
minha tese, pois como se sabe, primeiro faz-se a tese e depois
vai-se buscar os documentos, declarações, votos e tomadas de
posição que a sustentam. Andava, pois, nessa azáfama quando
reparo que Assunção Cristas tinha feito um mortal encarpado à
ILUSTRAÇÃO DE CRISTIANO SALGADO
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Um dia
a casa
vem
Steve Bannon, o americano que ajudou
Trump a chegar à Casa Branca, não
inventou o populismo. Mas conhece como
poucos a melhor forma de levar ideias
extremistas às massas. Instalou-se em
Itália e quer formar a geração que,
acredita, pode mudar a União Europeia.
O futuro não é necessariamente melhor
abaixo TEXTO
RICARDO
COSTA
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REDUX PICTURES
SOMBRA Steve Bannon, o
‘criador’ de Trump, percebeu
que as ideias simples e
poderosas são as que mais
rapidamente chegam às
massas. Hoje, é a partir de
um mosteiro em Itália que
tenta mudar o mundo. Uma
eleição de cada vez
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nde foi que isto começou? Onde foi que todos es- mediam as inquietações dos eleitores e acompa-
tes partidos desataram a somar votos a ponto de nhavam os seus descontentamentos. Sabiam que
talvez poderem valer um quarto ou um terço do as mensagens antissistema podiam ser poderosas,
próximo Parlamento Europeu, no mais anunciado se fossem bem trabalhadas e declinadas de forma
cavalo de Troia da história recente? Este exercício, profissional, e tinham consigo uma arma nova, ba-
de tentar encontrar um ponto de partida, tem tan- rata e disponível para um flirt com qualquer corren-
to de legítimo como de inútil. Não nos leva a um te política: a publicidade digital gerida pelas grandes
acontecimento preciso, ou melhor, leva-nos a tan- plataformas tecnológicas, sobretudo pelo Facebook
tos lugares, pessoas e momentos, que a pergunta e pelo YouTube. Eu dou-vos dados, vocês dão-me
fica sem a resposta fácil que quase sempre preten- dinheiro, eu escancaro a porta da privacidade e das
demos encontrar. emoções, vocês implantam as vossas ideias, eu re-
Neste caso nem vale a pena recorrer ao truque colho mais dados…
dos que se contentam em dizer que David Cameron Foi nesse momento que a célebre imagem da po-
é “o” responsável pelo ‘Brexit’, esquecendo a guer- lítica porta a porta britânica, o nec plus ultra da de-
ra interna e as deserções que dilaceravam o Partido mocracia liberal, foi ultrapassada, provavelmente
Conservador, as dificuldades que a crise financeira para sempre. Afinal, havia algo mais poderoso do
e das dívidas públicas tinham colocado aos gover- que o contacto direto entre eleitor e eleito, aquilo
nos do Reino Unido nas idas a Bruxelas e, acima de que fazia do Reino Unido uma aparente democracia
tudo, que o UKIP de Nigel Farage tinha vencido as exemplar, onde cada deputado sabia quem repre-
eleições europeias de 2014 com 26%. Sim, Farage sentava e o que queriam “os seus”. A enorme capi-
foi, de longe, o maior responsável pelo ‘Brexit’, ba- laridade das redes sociais e a procura de receitas de
talhando pela saída da UE durante vinte anos até que publicidade tinham lançado as plataformas digitais
conseguiu capturar a política britânica e encurralá- numa busca maciça de dados personalizados dos
-la num referendo em junho de 2016. consumidores. E isso permitia-lhes ver o que estava
Nessa época incrivelmente recente mas que pa- atrás da porta de cada casa. A política porta a porta
rece fazer parte de um tempo em que a política não morreu no referendo do ‘Brexit’, com o selo de Si-
nos pregava tantas surpresas, Farage ainda era o ex- licon Valley, do Facebook, da Cambridge Analytica
cêntrico dentro do sistema, o fanático anti-Bruxe- e de um punhado de génios políticos que arruma-
las que agitava o barco mas nunca o fazia virar, o ram com o project fear, a agitar o medo que domi-
demagogo que dizia tudo o que era politicamente nou a campanha dos que estavam a favor de manter
incorreto na capital dos eurocratas, permitindo aos o Reino Unido na UE. O medo de abandonar a UE
partidos incumbentes ter versões moderadas das perdeu para uma ideia que parecia impossível e ir-
mesmas ideias. O jogo perigoso da política britânica responsável, mas que se tornou popular por meios
ficou à vista de todos com a vitória de Nigel Farage nunca antes utilizados.
nas europeias de 2014, mas só deixou o mundo de
boca aberta, dois anos depois, no referendo sobre a MR. NIGEL GOES TO WASHINGON
continuidade na UE. Dois meses depois da espetacular vitória no refe-
Hoje, sabemos que Farage e a estrutura que to- rendo britânico, Nigel Farage estava num comí-
mou conta da campanha do ‘Brexit’ estavam mui- cio de Donald Trump no Mississípi, a vender mais
to à frente da política convencional na forma como uma ideia impossível: “Vocês conseguem ganhar
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às sondagens, vocês conseguem ganhar aos co- PIONEIRO Nigel Farage era uma espécie de bobo meios e pessoas disponíveis — com a única condi-
mentadores, vocês conseguem ganhar a Washin- da corte no Parlamento Europeu, a voz que fazia de ção de a empresa só destacar funcionários republi-
gton. E conseguem fazê-lo repetindo o que fize- qualquer eurodeputado um moderado. O ‘Brexit’ canos — para a mais precisa, metódica e eficaz cam-
mos no Reino Unido”. Faltavam três meses para foi a sua principal luta política e venceu-a. Bannon panha política da história dos EUA e provavelmente
as eleições americanas e Trump tinha acabado de percebeu o potencial do britânico e convidou-o do mundo, porque o xadrez eleitoral americano era
para um comício de Trump, que acabaria por
contratar para dirigir a sua campanha o polémico muitíssimo mais complexo do que o do referendo in-
ganhar as eleições. Um dos derrotados foi Mark
Steve Bannon, criador da Breitbart News — o po- glês. Enquanto no Reino Unido o take back control se
Zuckerberg, que viu o Facebook transformado
deroso site que servia de casa de família a todas numa zona de guerra política sem regras preocupou com a vitória num só círculo nacional, a
a ideias da alt-right americana, dos supremacis- equipa de Trump e do Facebook trabalhou Estado a
tas brancos aos antialterações climáticas, passan- Estado, com incrível pormenor.
do pelos mais fanáticos movimentos pró-vida ou Sabemos bem que a campanha de Trump ga-
criacionistas. Uma das primeiras decisões de Ban- nhou às sondagens, aos comentadores e a Washin-
non foi chamar Farage para ajudar na campanha gton e que isso provocou problemas enormes ao
de Donald Trump. Facebook, com Mark Zuckerberg a ser progressi-
Steve Bannon gosta de ideias simples e podero- vamente obrigado a valorizar um problema que co-
sas. É muito inteligente, mas não se deixa comover meçou por dizer que não existia. Como Brad Pars-
com ideias complexas, porque não movem mul- cale explicou um ano depois, quando veio a Lisboa
tidões. Sabe que as massas se movem por ideias à Websummit de 2017, a campanha de Trump limi-
simples e poderosas. Farage não foi uma persona- tou-se a perceber o poder imenso de uma invenção
gem-chave na vitória de Trump, mas cumpriu com liberal para a pôr ao serviço de uma revolução con-
perfeição o papel que Bannon lhe destinou, o de servadora, gastando muito menos dinheiro nisso
mostrar que era possível devolver o poder ao povo
(o célebre take back control, lema do referendo britâ-
Farage não foi do que em qualquer campanha clássica. Bastou ser
mais esperto e usar os poucos escrúpulos de uma
nico, era tão simples e eficaz como o make America
great again que estava em marcha). Foi isso que um
decisivo na vitória empresa tecnológica que estava ávida por testar o
que se podia fazer com uma imensidão de dados,
político estrangeiro foi dizer aos americanos, que era
possível vencer o sistema. Hillary Clinton era a en-
de Trump, mas nunca antes recolhidos por nenhuma organização,
empresa ou Estado.
carnação do sistema. Se acreditassem que a podiam
vencer, se não perdessem tempo com pormenores e
cumpriu com Convém lembrar, como Parscale fez nas muitas
entrevistas que entretanto deu, que Donald Trump
incongruências do seu candidato, se se concentras-
sem no poder do povo americano, podiam drenar o
perfeição o papel foi sempre muito cético em relação a esta estratégia
digital, preferindo que se investisse mais em cam-
pântano de Washington e tornar a América nova-
mente uma grande nação.
que Bannon lhe panhas televisivas. Mas Parscale estava certo, e os
estrategos de Hillary não perceberam a tempo como
Nessa altura, ganhava peso na campanha de
Donald Trump uma figura pouco conhecida, como
destinou, o de os eleitores de alguns Estados considerados seguros
pelos democratas estavam a ser conquistados de
chefe da estratégia digital. Brad Parscale, que hoje é
considerado, com toda a justiça, um génio das cam-
mostrar que era forma metódica e quase invisível. Exatamente como
no ‘Brexit’ uns meses antes — e este é o ponto que
panhas políticas, sabia o que tinha acontecido no possível devolver mostra a incompetência da campanha de Hillary
‘Brexit’ e conhecia o apetite do Facebook por testar —, Parscale conseguia fazer até mil versões do mes-
novas experiências: contratou-lhe todos os serviços, o poder ao povo mo anúncio, fatiando o eleitorado até à mais ínfima
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unidade, sabendo o que sensibilizava este ou aquele O assalto de Steve Bannon à Europa não é sim- seguiam no Facebook Live. Para que se perceba a
eleitor em função do seu histórico de likes, partilhas, ples de descrever. Começou com o lançamento de escala, o comício que Salvini fez em Milão no fim
comentários ou interações no Facebook. algumas versões locais do seu Breitbart News e com da campanha foi seguido por mais de um milhão e
uma ou outra ajuda política de forma pouco ordena- setecentas mil pessoas no Facebook Live, um valor
O ASSALTO AO VELHO CONTINENTE da. Mas cresceu exponencialmente quando passou a que ombreia com boas audiências televisivas. Nessa
Brad Parscale não tem qualquer intenção de con- ser presença assídua em Itália e a assessorar infor- altura, Luigi di Maio, o jovem lançado às feras como
quistar o mundo. Mantém o ar de agricultor ou malmente Matteo Salvini, o número dois do Gover- cabeça de cartaz do 5 Estrelas, também conseguiu
lenhador americano de sucesso, mesmo que te- no italiano que, na prática, lidera o Executivo e se um Live com 1,5 milhões de seguidores. Bannon per-
nha passado de gerir campanhas estaduais a na- prepara para vencer as eleições europeias de forma cebeu de imediato o que tinha pela frente e atuou.
cionais e seja uma referência absoluta na equipa clara. Salvini é o político europeu com mais segui- Em várias entrevistas, gaba-se de ter sido ele a con-
que vai tentar reeleger Donald Trump. Esse é o seu dores no Facebook, cerca de 3,5 milhões — contra vencer Salvini, numa conversa de cinco horas, a não
objetivo, mostrar que não foi por acaso que este- 2,5 milhões de Macron, o anterior senhor da inter- fazer um acordo de governo com o então regressado
ve certo em 2016 e que consegue repetir a façanha net política —, e conseguiu essa popularidade com Berlusconi — como estava previsto —, e a optar por
em 2020. Com um conhecimento pormenorizado extrema rapidez, usando muitas vezes um discur- fazer a ponte para os populistas de esquerda.
dos eleitores, mecanismos ainda mais sofistica- so claramente xenófobo e anti-Bruxelas, apesar de Não sabemos ao certo se Bannon foi ou não o pai
dos — por exemplo, o WhatsApp, que dominou as ter recuado na ideia de um referendo ao euro ou na da ideia, mas é indiscutível que a aliança da Liga de
eleições brasileiras e está a ser a grande arma de ameaça de sair da UE. Salvini com o Movimento 5 Estrelas de Luigi di Maio
comunicação nas eleições indianas, não teve qual- A Liga de Salvini não é propriamente um partido foi a mais inesperada do continente europeu e a que
quer relevância na primeira campanha de Trump novo. É a versão atualizada da Liga Norte, um partido mais assustou a zona euro desde os primeiros tem-
— e uma base militante perfeitamente identifica- que teve lugar de destaque em Itália nos tempos de pos do Governo do Syriza. De repente, os populistas
da, a probabilidade de o Presidente dos EUA ser Umberto Bossi quando defendia a independência da de direita juntaram-se aos populistas de esquerda e
reeleito é real. Padania, uma região geográfica e política que, gros- tomaram de assalto Roma. Como o próprio Bannon
Ao contrário de Parscale, Steve Bannon está so modo, corresponde ao vale do rio Pó, a zona mais disse numa das suas habituais frases, “foi como se
hoje menos interessado na política americana. a norte e mais rica do país. A Liga Norte foi funda- Donald Trump e Bernie Sanders tivessem feito um
Depois de ter sido nomeado estratego principal da mental na ascensão ao poder de Silvio Berlusconi e acordo. Revolucionário”.
Casa Branca, em reconhecimento do seu papel de a várias coligações de centro-direita mas apagou-se A simpatia que Bannon teve por um acordo com
ideólogo da candidatura, foi afastado com estron- na habitual confusão política italiana. Muitos anos um movimento populista de esquerda dificilmente
do numa das sucessivas remodelações de Donald depois, e após várias reconfigurações do sistema, a poderia ter réplica noutras paragens. O Movimento
Trump. O criador não resistiu aos modos da cria- Liga deixou de ser um movimento do norte contra o 5 Estrelas, popularizado pelo cómico Beppe Grillo
tura, mas não recuou na ideia de levar a revolução sul de Itália, para renascer como movimento nacio- durante muitos anos, está nos antípodas ideológicos
política e cultural a outros cantos do mundo. Des- nalista puro, numa das metamorfoses mais eficazes de Salvini, mas tem uma natureza que o aproxima
cobriu um terreno fértil para prosseguir o trabalho: de um partido europeu em tempos recentes. A eficá- dos seus “colegas” nacionalistas de direita. Assim
o Velho Continente. Gostemos ou não, a Europa é cia teve tudo que ver com o seu jovem líder e a forma como o líder da Liga Norte pôde gritar na noite de
o campo da última cruzada de Steve Bannon, que como falava com os seus simpatizantes através das eleições um célebre “grazie popolo della rete, gra-
percebeu muito cedo o poder de uma votação como redes sociais, numa campanha muito sofisticada. zie Facebook” (obrigado internautas, obrigado Fa-
a do ‘Brexit’ e para quem é indiferente que o pro- cebook), também o 5 Estrelas pode agradecer toda
cesso de saída da UE seja um caos. Pelo contrário, QUANDO DOIS POPULISMOS SE ABRAÇAM sua existência à internet, em particular a uma rede
um caos provocado por elites é a prova absoluta de Steve Bannon estava em Itália durante as últimas le- de democracia direta, que foi batizada pelos seus
que o poder deve ser devolvido às nações e aos po- gislativas e ficou impressionado com Matteo Salvini, criadores como Rousseau e que ainda hoje é a base
vos. Esse é o programa político de Bannon. sobretudo com o número brutal de apoiantes que o de funcionamento e de decisão do partido.
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FUTURO Mateo Salvini é a figura de proa do Foi isto que fascinou Bannon. De repente, a Itália preparados. O projeto — que tem forte oposição da
movimento populista que está a varrer a Europa. E é tinha do lado direito do sistema um líder popular que população local, que o tenta impedir — passa por
mais uma das criaturas preferidas de Bannon. O detesta imigrantes e muçulmanos e só fala com as ba- transformar o velho mosteiro na Academia Judai-
americano aconselhou-o a atacar o Papa, algo nunca ses pelo Facebook e, em simultâneo, do lado esquer- co-Cristã do Ocidente. No fundo, uma universida-
feito na política italiana. Salvini não para de subir nas do, um partido fundado por um guru da internet, em de Steve Bannon num mosteiro medieval italiano…
sondagens; Há pouco tempo, “The New York Times”
que todas as decisões, rigorosamente todas, são vo- O casamento de Bannon com alguns movimen-
descreveu Davide Casaleggio (à esq., em cima) de
tadas pelos militantes em rede. O guru chamava-se tos católicos radicais italianos foi extremamente fá-
43 anos, como o homem mais poderoso e misterioso
de Itália. É ele quem controla a plataforma online Gianroberto Casaleggio e nunca deixará de ser uma cil, pelo ódio comum ao Papa Francisco, que con-
— criada com o pai, Gianroberto Casaleggio (à esq., figura de segunda ordem da história da revolução di- sideram uma espécie de socialista perigoso. Aliás,
em baixo), falecido em 2016 — através da qual existe gital. Mas essa avaliação é injusta porque Gianroberto Bannon é apontado (ele, pelo menos, gaba-se disso)
politicamente o movimento 5 Estrelas; Brad (falecido em 2016) e o seu filho Davide são os verda- como sendo um dos responsáveis por uma viragem
Parscale, uma espécie de savant da demografia deiros criadores e donos do 5 Estrelas, dominando e histórica na política italiana, ao convencer Matteo
política norte-americana que surpreendeu tudo e detendo a estrutura tecnológica que serve de base ao Salvini a criticar abertamente o Papa pelo seu dis-
todos em 2016, está no terreno para garantir a funcionamento do partido. Sem a plataforma Rous- curso em relação aos imigrantes e refugiados. Cri-
reeleição de Donald Trump em 2020 seau não há 5 Estrelas. Beppe Grillo, frontman do mo- ticar o Papa era coisa que não costumava dar votos
vimento durante anos e anos, amigo e parceiro de ne- em Itália e que todos evitavam, mas Bannon perce-
gócios editoriais de Gianroberto, saiu de cena com a be melhor do que ninguém as raízes de uma políti-
chegada ao poder, mas o partido basista e tecnológi- ca radical, nacionalista, identitária e nativista, que
co do clã Casaleggio mantém-se intacto, sobre os es- pode e deve atacar um Vaticano socialista. Salvini
combros dos partidos clássicos que ajudou a enterrar. não parou de subir nas sondagens à medida que foi
“The New York Times” descreveu recentemen- perdendo o verniz nas críticas a Francisco.
O casamento te Davide Casaleggio, de 43 anos, como o homem
mais poderoso e misterioso de Itália. Misterioso é,
O mosteiro de Trisulti vai ser o braço intelec-
tual de um movimento — aliás, está mesmo bati-
de Bannon sem dúvida, porque não deve haver mais ninguém
no mundo a controlar desta forma o funcionamento
zado como The Movement — que pretende ser ofi-
cial e já tem sede em Bruxelas, comme il faut. Parece
com alguns de um partido de poder. Poderoso é bem mais dis-
cutível, porque essa posição foi ocupada por Matteo
uma brincadeira, mas o homem que não cobra pelos
seus serviços políticos — Bannon ficou oficialmente
movimentos Salvini, o político bulldozer que, aos olhos de Ban-
non, pode ser o motor da sua reconquista europeia.
rico em negócios anteriores — e quer destruir todas
as instituições, mandou uma parte dos seus assen-
católicos radicais BANNON, O CARTUXO
tarem arraiais numa vivenda de Bruxelas, daquelas
onde só acontecem coisas maçadoras, para jogarem
italianos foi Itália não tem só dois movimentos políticos de larga
escala ou dirigentes com milhões de seguidores nas
ao jogo da eurocracia e explorarem os corredores
dos edifícios que querem deitar abaixo. Enquanto
extremamente redes sociais. Tem outras razões para justificar que
Steve Bannon passe lá tantos dias de trabalho. O seu
em Bruxelas se trocam cartões de visita e se prepara
a chegada dos próximos eurodeputados, em Trisulti
fácil, pelo ódio novo lugar preferido é o mosteiro de Trisulti, anti-
ga morada de monges cartuxos, que Bannon quer
enfrenta-se a população local — nada como uma boa
batalha — e criam-se as condições para se ensinar o
comum ao Papa transformar, com a ajuda de movimentos católicos próximo Trump, Salvini, Orbán ou Le Pen.
ultraconservadores, numa espécie de academia para Steve Bannon é acusado por muitos analistas
Francisco que as suas ideias ganhem seguidores altamente e politólogos de se estar a aproveitar de uma onda
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FASCISMO,
FASCISTAS
E OUTROS
MALFEITORES
TEXTO
HENRIQUE
MONTEIRO
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MARCELO DEL POZO/REUTERS
CRIS TOALA OLIVARES/REUTERS
VINCENT KESSLER/REUTERS
EUROPA Santiago Abascal (à esq., em cima), líder que não criou e, sobretudo, de estar a recolher lou- logo a seguir à CDU de Merkel. Num parlamen-
do Vox, a força política espanhola de extrema-di- ros de vitórias para as quais não contribuiu com ri- to tão grande isso não é muito relevante, mas o
reita que ganhou um forte impulso com a questão gorosamente nada. É apontado por exagerar a sua simbolismo é evidente. Em Bruxelas, a palavra
da autonomia da Catalunha; Thierry Baudet (esq., importância de maestro num enorme movimento pânico já é usada sem receios. A razão oficial
em baixo) — um académico de 36 anos, bem político não coordenado. Exemplos não faltam. Por para que o medo seja assumido são as campa-
vestido e bem falante — faz citações em latim e
exemplo, e apesar de ter recebido em Washington nhas de desinformação e manipulação que toma-
discursos poéticos. É um ultraconservador que
uma tímida delegação do Vox em 2017 — quando o ram conta de quase todas as eleições, sobretudo
justifica a alegada decadência do Ocidente com
a imigração muçulmana. E lidera as sondagens partido espanhol valia apenas 0,2% dos votos —, no Leste europeu. Mas a verdadeira razão passa
para as europeias; Jordan Bardella, 23 anos, o não se lhe conhece grande ajuda ao partido de San- pela assunção (ao retardador) de que fenómenos
número um da lista de Marine Le Pen às eleições, tiago Abascal, que acabou por ser claramente im- como o referendo do ‘Brexit’ ou a eleição de Do-
veio dos subúrbios problemáticos para a linha da pulsionado pela crise da autonomia catalã. Como nald Trump não são cisnes negros, mas exemplos
frente da política francesa e europeia também não deu qualquer contributo ao mais po- de uma nova tendência que cruza um populismo
pular dos autocratas europeus, o polémico Viktor aparentemente básico com alta tecnologia. Os
Orbán, que transformou a Hungria numa demo- eurocratas estão atrasados, como quase sempre,
cracia musculada e encimou a frente contra os re- e só deram especial importância às questões re-
fugiados no dramático verão de 2015. Ou a Farage, gulatórias e de democracia que as plataformas
que começou a guerra muito antes dele. Ou à ex- tecnológicas colocavam quando viram os seus
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LÍDER Viktor Orbán, o autocrata que transfor- parecenças com Steve Bannon, apesar da enorme sondagens, ou outras que candidataram alguns
mou a democracia húngara e rosto da hostilida- diferença de idades. Um académico de 36 anos, dos seus porta-vozes nas listas.
de contra os migrantes, convidou Salvini a visitar começou por agitar a política holandesa em 2016 A ideia central de Bardella e da RN de Le Pen
a sua fronteira intransponível com a Sérvia. ao liderar a campanha por um referendo ao acordo nestas europeias — uma aliança da Europa das Na-
Orbán diz que o ministro do Interior de Itália é o feito com a Ucrânia, que conseguiu vencer inespe- ções — é Steve Bannon em estado puro. A velha
político mais importante da Europa atual
radamente contra os grandes partidos do sistema. Frente Nacional, herdeira da mais arreigada direi-
Bem vestido e bem falante — as suas citações em ta ultraconservadora francesa, já não quer sair da
latim e discursos poéticos são famosos — é a antí- União nem do euro, quer antes mudar o sistema por
tese de Salvini, que adora usar fatos de treino da se- dentro. Esta mudança, que decorre da violenta der-
leção italiana e debitar frases simples. Baudet, que rota contra Macron, é o efeito direto do terramoto
espantosamente lidera as sondagens das próximas político começado em 2016 com o ‘Brexit’ e com
europeias, partilha com Bannon o discurso ultra- a vitória de Trump. Quando muitos perdiam tem-
conservador que justifica a alegada decadência do po a sublinhar a anormalidade daqueles aconteci-
Ocidente com a imigração muçulmana. mentos, os seus fautores preocupavam-se com os
Na luta pelas capas de revista e pelo primeiro lu- fundamentos do que tinha acontecido. Farage para
gar nas eleições, Baudet só encontra par em Jordan gozar o prato, Bannon para espalhar a revolução.
Bardella, o número um da lista de Marine Le Pen às Três anos depois, a sua missão está longe de ter-
europeias. Com apenas 23 anos, representa o renas- minar. Farage voltou à liça com o novo ‘Brexit Par-
cimento da Frente Nacional (agora RN, ou Reagru- ty’, que quer acabar o seu próprio serviço, enca-
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Os gatos selvagens são uma ameaça
para os pequenos animais nativos
da Austrália. O país decidiu ripostar
e assim nasceu a grande caça ao felino
A matança
TEXTO JESSICA CAMILLE AGUIRRE/”THE NEW YORK TIMES”
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ADAM FERGUSON/THE NEW YORK TIMES MAGAZINE
ADAM FERGUSON/THE NEW YORK TIMES MAGAZINE
N
as semanas de inverno profundo em julho passa- Morte. Os ingredientes incluíam carne de cangu-
do, Shane Morse e Kevin Figliomeni levantavam- ru, gordura de galinha e uma mistura de ervas e
-se quase sempre antes de o sol aparecer. Acorda- especiarias, juntamente com um veneno chama-
vam junto aos restos de uma fogueira — ou, de vez do 1080, derivado das gastrolobium [NT: um géne-
em quando, em algum motel à beira da estrada — ro de plantas nativas da Austrália, conhecidas por
e na escuridão antes da madrugada começavam a acumularem um ácido venenoso] e altamente letal
descarregar salsichas envenenadas do seu camião- para animais como os gatos, cujo percurso evolu-
-frigorífico. A salsicha era para matar gatos. Uma cionário não lhes exigiu que desenvolvessem re-
manhã, quando a estação estava a chegar ao fim, sistência a ele (as armadilhas também eram letais
Morse e Figliomeni deixaram o Kalbarri Motor Ho- para outras espécies não-nativas, como as rapo-
tel na remota costa ocidental da Austrália, onde sas). À medida que o sol ia iluminando a bruma, os
tinham jantado bife e marisco na noite anterior, e iscos começaram a descongelar. A meio da manhã,
foram guiando costa abaixo. O clima era incerto, e quando Moore ajudou a descarregá-los para uma
eles tinham os olhos postos no céu. Caso chovesse, caixa de madeira dentro de uma Beechcraft Baron,
nesse dia não haveria caça. uma pequena aeronave bimotor, tinham um brilho
Descarregaram as suas caixas, com milhares de de óleo e emitiam um fedor de dar volta ao estô-
salsichas congeladas que produziam numa fábrica mago. O aparelho acelerou pela pista e foi subindo
a sul de Perth, segundo uma receita desenvolvida pelas colinas gentilmente onduladas das planícies
por um homem a quem chamavam, a brincar, dr. de areia junto ao oceano Índico.
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O Governo Durante esse período de largada de iscas, Morse
e Figliomeni passaram a maior do tempo ao volante
decidiu matar com ilhas pelo mundo fora, a vida na Austrália se-
guiu uma via bastante diferente da dos grandes con-
até 2020, por uma ordem predadora diferente, pelo que os gatos,
sem serem necessariamente mais prevalentes do que
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PISTAS Pat Hodgens treina um cão
na deteção de gatos selvagens. Hodgens
é um ecologista que trabalha para
o departamento ambiental de Kangaroo
Island, uma das zonas da Austrália onde as
políticas de abate de gatos selvagens são
mais agressivas — o objetivo
é a erradicação total dos felinos
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zona seca do país”, disse um pastoralista em 1885.
“Encontrei gatos, alguns deles enormes, pelo me-
nos a cinquenta milhas da água.”
Os gatos caçavam animais pequenos que inter-
feriam com a produção ou o armazenamento de co-
mida. Criaturas como o bettong escavador, ou boo
die, um primo do canguru com o tamanho de um
coelho, patas em gancho e um movimento saltador,
eram tão abundantes no século XIX que se vendiam
à dúzia, a nove pence por cabeça. Encontrados em
toda a Austrália Central até à ponta sul da penínsu-
la do Eyre e estendendo-se quase até à costa oeste,
os boodies eram um dos mais espalhados entre os
muitos mamíferos liliputianos no continente. A sua
prodigiosa escavação quase desestabilizou os carris
dos comboios em 1908. Nessa altura foram liberta-
dos gatos e os boodies, já atacados pelas doenças e
pela predação das raposas, começaram a desapa-
recer. Em meados do século XX, foram declarados
extintos no Austrália continental.
Não foram só os boodies. Eles até tiveram sor-
te — alguns pequenos grupos de bettongs escava-
dores conseguiram manter-se numas poucas ilhas
que estavam relativamente protegidas das devas-
tações que atingiam o continente. Desde a chega-
da da Primeira Frota, 34 espécies mamíferas extin-
guiram-se na Austrália. Nenhuma delas existia em
mais nenhum lugar da Terra; agora desapareceram.
Mais de cem espécies mamíferas da Austrália estão
classificadas entre o “quase ameaçado” e o “críti-
co” pela União Internacional para a Conservação da
Natureza. O continente tem a taxa mais elevada de
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O tema foi
apresentado
como um grande
esquema
para proteger
a vida selvagem
na Austrália,
uma guerra
contra os gatos
— e, como em
qualquer guerra,
a linguagem
falava de missão
e valores.
Os patriotas
aderiram à causa
ABATE Mark
Woods e um dos
gatos selvagens
que matou durante
uma viagem de caça
com dois amigos
numa quinta na zona
de Queensland
voluntários monitorizam, armadilham e matam ani- até uma criatura negra se esgueirar pela estrada até impacto do segundo tiro tinha-lhe rebentado com
mais indesejados. Embora iscos armadilhados em umas árvores. Os homens pararam o camião e fixa- a cabeça inteira e restava pouco dela, salvo os far-
vasta escala, como as salsichas largadas de aerona- ram a lanterna no campo. Era uma raposa. rapos de tecido que saíam do corpo.
ves, tenham sido eficazes a reduzir o número de ga- Oitocentos metros mais à frente, na borda de Ao longo das horas seguintes, os homens apenas
tos, muitas vezes para metade ou menos, os dados um campo junto a umas pereiras e umas acácias, acertaram tiros instantaneamente fatais na cabe-
do Real Instituto de Tecnologia de Melbourne mos- Mark W. viu algo à direita. “Guia devagar, por favor, ça, ou falharam de todo. Mark W. abriu uma fen-
tram que, em termos nacionais, os atiradores foram para podermos ver nas fileiras”, disse baixinho. Fi- da numa perna traseira de cada gato e pendurou-o
responsáveis por 83 por cento das mortes de gatos zeram marcha-atrás e dirigiram-se à zona, avan- num gancho ligado à carroçaria do camião, a fim de
selvagens durante o primeiro ano. çando devagarinho. Das sombras de cinzento que a lhe abrir o estômago e ver o que ele tinha andado
Na zona rural de Queensland, conheci Mark W., luz produzia, um par de globos verdes de néon bri- a comer. Já muito depois da meia-noite, quando o
Mark M. e Damien F. (os três pediram-me para não lharam — olhos de gato. O tiro da espingarda pare- carro ia de regresso às quintas e os homens mata-
usar os seus apelidos, por medo de retaliações). ceu eliminar todos os outros sons da noite, criando ram o seu quinto ou sexto gato, Mark W. abriu um
Uma hora depois de chegar a uma planície a oes- um vazio no espaço. Os homens ficaram quietos e descobriu que tinha dentro cinco pequenos be-
te de Brisbane, vestiram roupa extra por causa do durante um momento. O tiro atingira o gato, mas bés próximos de nascer. A pele deles era translúci-
frio e carregaram a carrinha. Partiram no meio da não fatalmente. Damien olhou por um monóculo da e aveludada e fizeram os seus primeiros barulhos
noite; o vento cheirava a folhas secas. termal. “Ainda está a mexer por ali”, disse. Mark quando ele os tirou da mãe.
Para afinar a mira das suas espingardas, puseram W. saiu do carro e foi a pisar os campos de sorgo. “Cinco pequenos assassinos”, disse. E para que
um bocado de cartão numa árvore e dispararam ti- Quando encontrou o gato, disparou-lhe à queima- não sofressem sozinhos na noite fria, usou uma faca
ros que produziram um enorme barulho reverbe- -roupa e levou-o pela cauda até ao carro. para lhes cortar as cabeças. b
rante e uma nuvem laranja diáfana, efémera contra O gato era malhado, com belas linhas pretas
a noite. Então um dos homens sentou-se no lugar descendo da espinha, quais sulcos de cortiça. Era e@expresso.impresa.pt
do condutor e o camião foi abanando ao longo dos de um leve cinzento; um animal saudável e mus-
campos de sorgo povoados de cangurus. Não tardou culado, no pico das suas capacidades de caçador. O Tradução Luís M. Faria
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A danação
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de Berlioz
TEXTO
JORGE CALADO
EM ESTRASBURGO
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O sesquicentenário da morte de Berlioz é assinalado
por uma série de gravações das suas obras maiores pelo
maestro John Nelson. Em Estrasburgo, foi a vez de “La Damnation
de Faust”, com a participação notável do Coro Gulbenkian.
Atormentado toda a vida por Mefistófeles, Berlioz é Fausto
I
perdidas, mas também com alguns triunfos isola- “Iphigénie en Tauride”, de Gluck, atingiu-o como
dos. Como ele dizia, “o amor e a música são as duas um corisco: “Jurei, ao sair da Ópera, que apesar do
asas da alma”. pai, mãe, tios, tias, avós e amigos, serei músico!”. O
William Shakespeare afirmara o mesmo na doutor Berlioz ainda tentou uma solução de com-
“Twelfth Night” ou “Noite de Reis”, pela boca do promisso (às escondidas da mulher): combinar os
Duque Orsino: “Já que a música alimenta o amor, estudos de medicina com a aprendizagem de com-
continuai a tocar”. Shakespeare quebrara as bar- posição. Não funcionou. Hector era impulsivo e in-
reiras do teatro misturando o cómico com o trági- domável, do tipo ‘antes quebrar que torcer’. Seguro
co, o povo com os aristocratas e os parvos, a alta de que a sua vocação era a música, nada nem nin-
cultura com a graça popularucha e escabrosa (e por guém o demoveria: “Iria à China, tornar-me-ia an-
isso demorou séculos a ser apreciado em França). tes marinheiro, flibusteiro, bucaneiro, selvagem, do
Berlioz rebentou com as formas musicais. Se o ob- que me render”. Quando soube da decisão, a mãe
.
jetivo final era compor óperas, os resultados incluí- amaldiçoou-o e rejeitou-o como filho! Hector, en-
ram também uma sinfonia e um monodrama lírico tretanto, perdera a fé, a ponto de escrever: “Deus,
para contar episódios da sua vida de artista (“Sym- mas que bagunçada fizeste ao criar o mundo. Foi
phonie fantastique”, 1830; “Lélio, ou le Retour à la um erro terrível descansares ao sétimo dia, quan-
vie”, 1831), um concerto para violeta e orquestra do havia ainda tanto por fazer”.
arremedado de sinfonia ou vice-versa (“Harold
DO CÉU PARA O INFERNO en Italie”, 1834), uma sinfonia dramática para vo- II. A PULSÃO ROMÂNTICA
“Em março, na Catedral de São Paulo, em Londres, zes e coros (“Roméo et Juliette”, 1839), uma len- Mais do qualquer outro compositor, Berlioz encar-
levei o público até ao Céu; aqui, em Estrasburgo, da dramática em quatro partes (“La Damnation de nou o espírito romântico do seu tempo. Romantis-
vou conduzi-lo ao Inferno”, dizia-me o maestro Faust”, 1846), etc. A música transcendia o teatro: o mo é errância, rebelião e ação, não um estado de
John Nelson. Não, não se referia ao tão nebuloso e drama, afinal, residia na orquestra. Por trás de to- passividade doentia. George, Lord Byron, correu
adiado ‘Brexit’; falava por obra e graça de Hector das estas obras estão a vida e os amores do compo- a Europa – há restos e memórias da sua passagem
Berlioz (1803-69), cujo sesquicentenário da morte sitor e os seus heróis de estimação: Virgílio (que lera por Sintra, esse “Éden glorioso” que os portugue-
se comemora este ano. Atualmente considerado o em menino, no original latino, com a ajuda do pai), ses não mereceriam — escreveu “Childe Harold”
maior intérprete de Berlioz, Nelson dirigira e gra- Shakespeare, Byron e Goethe. Berlioz fez a síntese (1816) e lutou pela independência da Grécia. Ficou
vara em Londres, no passado mês de março, o “Re- musical de todos estes génios criadores.
quiem” ou “Grande Messe des Morts” (1837); agora A influência de Shakespeare é particularmen-
em Estrasburgo preparava-se para fazer o mesmo te notória no carácter episódico das suas sinfoni-
com “La Damnation de Faust” (1846) no Palácio as e óperas, e diretamente em títulos como os da
da Música e dos Congressos. Trata-se de um longo abertura “Le Roi Lear” (1831), a balada “La Mort
projeto ainda em curso, suportado pela Ascanio’s d’Ophélie” (1842), ou a ópera “Béatrice et Béné-
Purse — uma fundação baseada em Denver, no es-
tado do Colorado, cuja missão é suportar concertos
dict” (1862), baseada na peça “Much Ado About
Nothing” (Muito Barulho para Nada). Mesmo “Les Berlioz
e gravações das obras de Hector Berlioz.
Apoiado e considerado por alguns — entre os
Troyens” (1863/90), a sua derradeira e colossal
obra-prima, é, nas suas palavras certeiras, “Virgí- encarnou
quais o insuspeito Niccolò Paganini — como o su-
cessor de Beethoven, Berlioz foi, durante quase
lio shakespearizado”. No fim da vida, ainda o ten-
taram convencer a compor uma ópera sobre An- o espírito
século e meio, um compositor incompreendido e
maldito em França. No país da racionalidade carte-
tónio e Cleópatra — talvez a mais complexa peça
de Shakespeare — mas sem sucesso. Para amos- romântico
siana e do burocrático código bonapartista, Berlioz
era um outsider. A sua rebeldia e exaltação român-
tra, ficou apenas a cena lírica “Cléopâtre” (1829),
uma peça de juventude composta para concorrer do seu tempo.
ticas levaram-no a abolir todas as regras, na vida
como nas suas criações inovadoras. Não eram para
ao Prix de Rome.
Oriundo de La Côte Saint-André, uma vila na Romantismo
ele as três unidades aristotélicas do teatro: ação,
espaço e tempo. Um drama ideal ou perfeito deve
região do Isère, a meio caminho entre Lyon e Gre-
noble, Hector era o primogénito de seis irmãos. é errância,
tratar de um único tema ou questão, a decorrer
sempre no mesmo lugar no decurso de um dia. Foi
Profundamente religioso (por influência da mãe),
muito bem educado nas ciências e humanidades rebelião e ação,
assim que no século XVII Jean Racine e Pierre Cor-
neille — este, após a célebre disputa de “Le Cid” —
pelo pai médico, proficiente na flauta e na guitarra,
estava-lhe destinado seguir a carreira paterna. Em não um estado
construíram as suas tragédias modelares em rigo-
rosos alexandrinos dodecassilábicos. Para Berlioz,
1821 chegava a Paris para estudar medicina, mas
aproveitou também para seguir as lições do famoso de passividade
porém, a vida e a criação artística foram aventuras
muito sofridas, cheias de frustrações e esperanças
químico Joseph Gay-Lussac e ir à Ópera. As aulas
de anatomia horrorizaram-no, mas a revelação da doentia
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1827/28 foram anos determinantes na vida do
jovem compositor, então com vinte e quatro anos:
leu a recém-publicada tradução francesa, por Gé-
rard de Nerval, da I parte do “Faust” (1808), de Jo-
hann Wolfgang von Goethe; ouviu pela primeira vez
as “Sinfonias nº 3, nº 5 e nº 7”, de Beethoven; e as-
sistiu no Teatro Odéon às representações de “Ham-
let” e de “Romeu e Julieta” por uma companhia in-
glesa dirigida pelo famoso ator Charles Kemble. Es-
tes espetáculos marcaram o início do “maior drama
da [sua] vida”. A descoberta de Shakespeare abriu-
-lhe “um novo universo de poesia”. De certo modo,
Berlioz encontrou no bardo inglês um substituto
para Deus. Ajudou o facto de os principais papéis
femininos terem sido entregues a uma bela e ver-
sátil atriz irlandesa, Harriet Smithson (1800-54),
que imediatamente conquistou Paris. Para Hec-
tor, foi paixão à primeira vista. Bombardeou-a com
cartas (nunca respondidas), enviou-lhe mensagens
por terceiros, frequentou a sua vizinhança, alu-
gou quartos perto da sua residência, mas Smithson
manteve-se inacessível. Pobre compositor! Sentia-
-se “um verme apaixonado por uma estrela”. O so-
frimento, porém, era motor de criação. Numa carta
de janeiro de 1829 escrevia: “Será que o meu destino
acabará engolido por esta paixão avassaladora? Por
outro lado, se o desfecho for feliz, os desgostos por
que passei reforçarão as minhas ideias musicais”. O
amor por uma mulher inatingível seria a ‘ideia fixa’
que perpassa pelas duas partes dos “Episodes de la
vie d’un artiste” (‘Sinfonia Fantástica’, 1830; ‘Lé-
lio, ou o Regresso à Vida’, 1831). A história (infeliz)
resolver-se-ia anos depois...
STEFANO BIANCHETTI/CORBIS/CORBIS VIA GETTY IMAGE
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e marido. A vingança, porém, não se concretizou... ao fim da vida, Berlioz terá o conforto e a compa- V. “A DANAÇÃO DE FAUSTO”
Os passeios pela Campagna Romana, as excursões nhia da sogra. Os amores, porém, não tinham ter- É preciso génio e um grão de loucura para emular
cinegéticas, as viagens (Florença, Nápoles, Pom- minado. Em 1864 restabeleceu contacto com Es- na música Goethe e Shakespeare. Vários composi-
peia, etc.), marcariam muitas das suas obras pos- telle Fornier, a sua primeira paixão de jovem im- tores franceses o tentaram, mas só um triunfou a
teriores, temperando os excessos românticos com berbe, agora uma respeitável viúva de sessenta e posteriori: Hector Berlioz. Nem Ambroise Thomas
alguns rigores do classicismo. Foi o caso não ape- sete anos. Não se viam há quase meio século! “Meu (1811-96), professor e futuro diretor do Conserva-
nas do byrónico “Harold en Italie” (1834) e de “Le Deus! Como o seu rosto se alterou — a pele escu- tório de Paris, com a “Mignon” (1866), baseada nos
Carnaval romain” (1844), mas também de “Roméo receu, o cabelo embranqueceu. Mesmo assim, o “Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister”, de
et Juliette” (1839) e das óperas “Benvenuto Celli- meu coração não hesitou um instante. Assim que Goethe, e “Hamlet” (1868), nem Charles Gounod
ni” (1838) e “Béatrice et Bénédict” (1862), todas a a vi, a minha alma saltou ao encontro do seu ído- (1818-93), com o “Faust” (1859) e o “Roméo et Ju-
decorrer em Itália. Até a II parte de “Les Troyens”, lo, como se ela ainda estivesse no esplendor da sua liette” (1867), se lhe comparam. Aliás, os alemães
“Les Troyens à Carthage” (1863), está impregnada beleza”. Berlioz viajará várias vezes para a visitar sempre se recusaram a aceitar o título da ópera
por uma beleza sensual tipicamente mediterrânica. e trocarão cartas até à morte do compositor em goetheana de Gounod; conhecem-na apenas pelo
1869. Aplica-se-lhe a frase célebre de James Joyce: nome de “Margarethe”...
IV. DRAMAS FAMILIARES “O amor ama amar o amor” (“Love loves to love Entusiasmado com a leitura da tradução france-
Berlioz regressou a Paris em 1832, e para sua sur- love”). Provavelmente Berlioz amaria também o sa da obra de Goethe, Berlioz compôs logo em 1828
presa descobriu que Harriet estava de volta aos ritmo desta frase... Em 1865, quando o compositor “Huit Scènes de Faust”. Já lá estão a balada do rei
palcos parisienses, desta vez sem grande sucesso publicou as suas “Memórias” — hoje consideradas de Tule (Marguerite) e as histórias do rato (Bran-
(os gostos teatrais haviam mudado). Os dois co- uma obra-prima da literatura francesa — o primei- der) e da pulga (Méphistophélès, um tenor!), mas
nheceram-se finalmente em dezembro de 1832 ro exemplar terá sido enviado a Estelle. (As citações curiosamente Faust é o grande ausente. Situação
num célebre concerto no Conservatório cujo pro- que acompanham este artigo foram colhidas nessa semelhante aconteceria com “Roméo et Juliette”
grama incluía ambas as partes dos “Episodes de la obra.) Por último, Louis, o filho adorado que fizera (1839), para vozes, coro e orquestra, onde apenas
vie d’un artiste”. Presentes também, Victor Hugo, com Harriet, então capitão da marinha mercan- figura Frei Lourenço. Os amantes exprimem-se
Alexandre Dumas-Pai, Alfred de Vigny, Heinrich te, sucumbiria em Cuba à febre amarela, em 1867. através da orquestra, aliás com a mais bela e insi-
Heine, Lesueur, Paganini, Liszt, Chopin, George Contava 33 anos. nuante música de amor jamais composta. Berlioz
Sand, etc. O concerto foi um triunfo. O poeta Hei- Amargurado e deprimido, no inverno de 1867/8 enviou a partitura a Goethe, que não lhe respondeu.
ne declararia Berlioz “um rouxinol colossal, uma Berlioz ainda arranjou forças para uma última série Os seus gostos musicais eram demasiado conser-
cotovia do tamanho de uma águia!” (O rouxinol e de concertos em São Petersburgo e Moscovo, onde vadores. Sabe-se que passou o trabalho a Carl Fri-
a cotovia apontam para noite de amor de Romeu e dirigiu obras suas e de Beethoven, e se encontrou edrich Zelter — que ensinara Felix Mendelssohn e
Julieta, em Shakespeare.) A velha paixão de 1827 com a nova geração de compositores, nomeada- Giacomo Meyerbeer — para uma avaliação crítica.
reacendeu-se. Desta vez, com o compositor na mó mente membros do chamado Grupo dos Cinco. O veredicto foi fatal: “Uma excrescência, o produto
de cima, Smithson aceitou a corte — mas o namoro Hector Berlioz morreu na sua casa no nº 4, Rue de abortado de um incesto hediondo”. Ficaria na his-
foi turbulento, levando Berlioz a tentar suicidar-se Calais, em Paris, a 8 de março de 1869, provavel- tória como um dos mais rancorosos ataques à mú-
com uma sobredose de ópio em frente da noiva! Os mente vítima da doença de Crohn, sem nunca ter sica de um jovem colega.
dois acabariam por se casar em 1833 na Embaixa- visto no palco as cinco horas dos cinco atos da sua Berlioz considerara as “Huit Scènes” como o
da Britânica em Paris, com Franz Liszt como uma obra máxima, “Les Troyens”; só assistira (1863) a seu opus nº1, a primeira obra a merecer ficar para
das testemunhas. A união originou um novo corte uma versão truncada da II parte, “Les Troyens à a posteridade. Não desistiu. Como explicou numa
de relações com a família. Músico, ainda vá; casa- Carthage”. A ópera completa só foi produzida em carta de 1828, Shakespeare e Goethe eram “os con-
do com uma atriz é que não! Paris em 2003, no bicentenário do nascimento de fidentes mudos dos meus tormentos, os explica-
O matrimónio — que gerou um filho, Louis — Berlioz, dirigida por John Eliot Gardiner. dores da minha vida”. Em 1838, “Benvenuto Cel-
não foi feliz. Nenhum deles falava fluentemente a lini” fora um fiasco no palco da Ópera de Paris. A
língua do outro. Eclipsada como atriz, Harriet pare- reconstrução das oito cenas do “Fausto” seria uma
cia ressentir a fama do marido; dada a depressões, ‘ópera em concerto em quatro atos’ (depois cha-
procurou refúgio no álcool. O casal acabou por se mada ‘lenda dramática em quatro partes’) que
separar em 1843, tanto mais que Berlioz começara se iniciaria com a invocação extática da Natureza
em 1841 uma relação com a cantora Marie Recio, pelo protagonista. “Escrevi os versos que faltavam,
uma mezzo-soprano medíocre da Opéra, onze anos
mais nova. Os anos 1840 e 1850 foram em grande É preciso génio quando e à medida que as ideias musicais me apa-
reciam; e compus a partitura com uma facilidade
parte passados em tournées pelo estrangeiro (Bél-
gica, Alemanha, Império Austro-Húngaro, Rússia, para emular que raramente experimentei em qualquer outra
obra. Escrevi-a quando e onde podia: em coches,
Inglaterra) dirigindo concertos. Quando a saúde de
Harriet se agravou, na sequência de várias trombo- a música comboios ou navios a vapor, até nas cidades que vi-
sitei (e isto apesar das múltiplas responsabilidades
ses que a deixaram semiparalisada, Berlioz passou
a viver uma vida dupla, providenciando-lhe to- de Goethe e que os meus concertos requeriam)”. Teatro men-
tal a ser imaginado pelo ouvinte, “La Damnation de
dos os cuidados médicos e visitando-a duas vezes
por dia. A morte de Harriet em 1854, provocou-lhe Shakespeare. Faust” estreou-se em 1846 na Opéra Comique pe-
rante a apatia do público. Para os franceses, Berli-
um desabafo: “Shakespeare! Shakespeare! Deves
ter sido humano; se ainda existes, deves acudir Vários oz não passava de um bom maestro e de um crítico
vigoroso e mordaz. O desapontamento foi terrível:
aos miseráveis! Tu és o nosso pai, tu que estás nos
céus, se houver céus. Deus é estúpido e atroz na compositores “Nada na minha carreira de artista me feriu tão
profundamente como esta inesperada indiferen-
sua indiferença infinita; só tu és o bom Deus para
as almas dos artistas; recebe-nos no teu seio, pai, franceses o ça”. Todavia, no fim do século XIX, “La Damnati-
on de Faust” já era uma das obras mais populares
abraça-nos!”.
Berlioz podia agora casar-se com Marie, o que tentaram, mas do compositor — uma dramatização da condição
humana e das relações do protagonista com Deus,
aconteceu ainda em 1854. A última década de vida
seria marcada por mortes sucessivas: a irmã mais só um triunfou: a Natureza e o amor.
É também uma obra cheia de contrastes, a um
nova Adèle (a sua preferida), em 1860, aos 46 anos;
a mulher, Marie, em 1862, de ataque cardíaco. Até Hector Berlioz tempo sombria e luminosa, irónica e brutal, apo-
calíptica e redentora, terrena, infernal e etérea,
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dificílima de produzir. São raros os tenores capazes
de arcar com a temível tessitura do papel de Faust. A narrativa posso deixar de concordar. No palco afunilado da
Sala Erasmo, o Coro Gulbenkian, esplendidamente
O coro, principalmente os naipes masculinos, des-
dobra-se por uma série de coletivos antagónicos: dramática de preparado pelo maestro Jorge Matta, formava uma
muralha sonora que arrebatou o público. A boa no-
povo e soldados, anjos e demónios, silfos, estudan-
tes e penitentes, etc. Por meios estritamente musi- Berlioz tem um tícia é que em 2021 John Nelson regressará à Fun-
dação Gulbenkian para dirigir a “Missa Solemnis”,
cais, Berlioz consegue conjurar todos os lugares e
situações. Logo a abrir, transporta-nos à Hungria, carácter de Beethoven. Quanto a gravações, a próxima (em
abril de 2020) será “Roméo et Juliette”, também
com a célebre ‘Marcha Húngara’, uma variação da
tradicional “Marcha Rákóczy”. Também não ha- cinematográfico, com DiDonato. Música que alimenta o amor, con-
fesso-lhe que é a minha preferida. Estende-me a
verá melhor evocação musical dos horrores infer-
nais do que a cena do ‘Pandæmonium’ com a sua meio século mão, num gesto de concordância: é também a sua
favorita!
inventada linguagem swedenborguiana. Ouvimos
os batimentos do coração de Marguerite, tal como antes do cinema Se o coro desempenha uma parte de leão em
“La Damnation”, o papel do protagonista é uma
seguimos os movimentos de Méphistophélès pelo
trombone ou pizzicati das cordas. É esta a magia da ter sido montanha quase inacessível a qualquer tenor. Ao
contrário de Marguerite que só aparece na III par-
música de Berlioz: transcende os ouvidos para ilu-
minar os olhos do espírito. Melodia, ritmo e timbre inventado te e nos primeiros minutos da IV, Faust abre a obra
com o belíssimo ‘Le vieil hiver a fait place au prin-
são usados para pintar lugares e ações. O melhor temps’ e intervém em todas as restantes partes. Joy-
teatro é o imaginário! ce DiDonato mostrou a sua classe de cantora inteli-
Devo acrescentar, porém, que Berlioz esteve gente e sensível, mas foi Michael Spyres quem do-
envolvido na apresentação (nunca concretizada) minou vocalmente a récita. Spyres conhece como
de uma versão encenada desta lenda dramática ninguém as técnicas do canto francês de Adolphe
em Londres, no Teatro em Drury Lane, sob o títu- Nourrit e Gilbert Duprez, e vibrou com Berlioz ao
lo de “Méphistophélès” (que literalmente significa gravações e concerto de “La Damnation de Faust” longo de toda a obra (sem necessidade de recorrer
‘o que não gosta da luz’). Hoje “La Damnation de em Estrasburgo, e também de falar com o maestro. à partitura, ao contrário dos colegas). Nunca ouvi
Faust” é correntemente encenada. Sê-lo-á ainda Descobri que a sua devoção a Berlioz data do início — nem espero ouvir — melhor Faust. Nicolas Cour-
este mês, por Richard Jones, a abrir o Festival de da sua carreira e deve-se ao conselho de um ami- jal (Narbal, em “Les Troyens”) compôs um Méphis-
Glyndebourne, e também na próxima temporada go. “Quando, no princípio dos anos 1960, acabei o tophélès incisivo, mercúrico e bem-humorado, e
do Met, por Robert Lepage, com Michael Spyres — curso na Juilliard School, em Nova Iorque, onde fui Alexandre Duhamel desembaraçou-se a conten-
o Faust de Estrasburgo — no papel titular. Mais do durante quatro anos aluno do maestro Jean Morel, to na ‘Canção do rato’. Embora se tratasse de um
que teatro, a narrativa dramática de Berlioz tem um nunca o ouvi falar de Berlioz. Comecei também a concerto, todos provaram ser excelentes atores. No
carácter cinematográfico, meio século antes do ci- ensinar a Juilliard, e foi nessa altura que um amigo entanto, a suprema glória da noite foi seguir a dire-
nema ter sido inventado. [agente de artistas] me aconselhou a pegar numa ção magistral de John Nelson. Dirigiu sem batuta.
coisa em grande para tornar o meu nome conhe- Como ele me disse, “Batuta para quê? Tenho dez
VI. A LIGAÇÃO INGLESA E AS GRAVAÇÕES cido no meio musical. ‘Vai à biblioteca’ — disse- batutas nas minhas mãos”.
Em vida, os maiores sucessos de Berlioz aconte- -me ele — ‘e requisita a partitura de ‘Les Troyens’.
ceram em Inglaterra (e na Rússia). Creio que tal Fiquei doido, porque nunca tinha visto ou ouvido VII. CODA
consonância terá sido mediada pelo seu amor a nada assim’”. Palavra puxa palavra, e pouco tempo Cento e cinquenta anos após a morte de Hector Ber-
Shakespeare. Quem entende Shakespeare aceita depois decidiram apresentar a ópera no Carnegie lioz, percebemos que o seu génio é único na histó-
naturalmente Berlioz. O compositor fez cinco vi- Hall. Alugaram a sala, contrataram uma orques- ria da música. Não descende de ninguém, nem dei-
sitas a Londres, longas de vários meses, entre 1847 tra, cantores como Evelyn Lear (Didon), etc., tudo xou sucessores óbvios. Talvez Gustav Mahler (que
e 1855. Na última encontrou-se demoradamente por cerca de $50 mil, e em 1972 Nova Iorque ouvia também abordou “Faust” na “Sinfonia nº 8”)...
com Richard Wagner, outro compositor revolu- pela primeira vez “Les Troyens”! “Foi um grande Com Berlioz, a música deixou de ser matemática
cionário em demanda da obra de arte total. En- sucesso” — acrescentou Nelson. “Ainda hoje te- e arquitetura para passar a ser literatura e pintu-
quanto em França a sua música caiu em desuso, nho encaixilhada em minha casa a crítica de Ha- ra e, talvez, cinema. Ampliou a orquestra, crian-
em Inglaterra prosperou. Ao longo do século XX, rold Schoenberg no ‘New York Times’! O pior é que do — tal como Wagner — novos instrumentos. Ri-
os seus campeões nas salas de concertos, teatros dez anos depois, quando voltei a ouvir a gravação chard Strauss foi ainda mais longe ao declarar que
de ópera e estúdios de gravação foram quase to- [privada] do concerto, achei que tinha sido horrí- Berlioz “inventara a orquestra moderna”. Conta-
dos ingleses: Sir Thomas Beacham, Sir Colin Da- vel! Mas Berlioz infetou-me para o resto da vida”. -se que ao ser-lhe apresentado Berlioz, o Príncipe
vis, John Eliot Gardiner. O considerado impossível Até hoje, Nelson já dirigiu oito produções de “Les de Metternich lhe terá perguntado: ‘Então é o se-
“Les Troyens” foi cantado pela primeira vez em Co- Troyens”, incluindo no Met em 1973, quando subs- nhor que compõe para 500 músicos?’ Ao que Ber-
vent Garden na versão original e integral em 1969 tituiu Rafael Kubelik, impossibilitado por doença, lioz terá respondido: ‘Nem sempre. Às vezes com-
(quase quarenta anos antes de Paris). Tanto Davis em duas récitas. (Nelson era então maestro-assis- ponho para apenas 450’. Berlioz é indefinível, mas
(como director musical da Royal Opera de Londres tente de Kubelik e preparara o Coro). está presente em quase todas as suas obras. Berlioz
nos anos 1970) como Gardiner (diretor musical da A Orquestra Filarmónica de Estrasburgo é a fa- é Fausto no seu amor à Natureza, na perseguição do
Opéra de Lyon nos anos 1980) foram responsáveis vorita de John Nelson para esta série de gravações, amor como ideia fixa, nos tormentos mefistofélicos
por brilhantes séries de gravações das obras máxi- que tem também a participação do magnífico Coro por que passou, na descrença em Deus. O credo de
mas de Berlioz — orquestrais, vocais e corais, ópe- Gulbenkian em “La Damnation de Faust”. O maes- Berlioz está inscrito na última ária de Faust, ‘Nature
ras e música sacra. tro nota que a orquestra “não é francesa, mas alsa- immense, impénétrable et fière’ (Natureza imensa,
Mais recentemente, o americano John Nelson ciana”, uma mais-valia em Berlioz. Quanto ao Coro impenetrável e altiva). Uma coisa é certa: tal como
iniciou, com enorme sucesso, tarefa semelhan- Gulbenkian, é “absolutamente assombroso. Não Shakespeare, nunca haverá outro compositor mai-
te para a Warner Classics. A sua recente gravação existe em França nenhum coro que lhe seja com- or, em França ou em qualquer parte do mundo. b
de “Les Troyens” com a Orquestra Filarmónica parável. [Os coralistas] são tão intensos, responsi-
de Estrasburgo, Michael Spyres (Enée), Joyce Di- vos e energéticos! São semiprofissionais, trabalham e@expresso.impresa.pt
Donato (Didon) e o resto do elenco todo francês, durante o dia, o que é uma vantagem. A entrega é
teve o aplauso unânime da crítica. Em abril tive total. O espírito deste coro é um sonho! Creio que O Expresso viajou a convite
a oportunidade de seguir os ensaios e assistir às esta vai ser uma gravação para a posteridade!”. Não da Fundação Calouste Gulbenkian
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Entrevista
Pedro Pablo Pichardo
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S
Portuguesa de Atletismo (FPA) e o é bom. É uma pena que ele não o veja difícil deixar de ser o melhor, quere-
Comité Olímpico de Portugal (COP) assim. É difícil aceitar deixar de ser o mos sempre cuidar do nosso estatuto,
tinham interesse em que eu repre- melhor para passar a ser o segundo, em todos os países em toda a parte é
sentasse Portugal e devem tê-lo ma- mas há que treinar. Imagina o Cristia- assim. Entendo isso, a sério. Mas eu
nifestado junto do SEF. É o que acho. no que está quase a terminar a carrei- também estou a defender o meu lado
Sei que há gente que está à espera dos ra e surge um melhor do que ele em e as pessoas que estão de fora têm de
documentos há anos. Mas as pesso- Portugal, que vai fazer o Cristiano? tentar perceber ambas as partes. Se
as têm de perceber que a culpa não É a vida, é normal. Se calhar daqui a eu não posso representar um país o
é minha. Eu não fui ao SEF com uma um tempo pode haver um atleta em que faço? Fico sem saltar durante
arma ameaçar ninguém ou obrigar a Portugal, não tem de vir de fora, me- oito, dez anos até que possa repre-
alguma coisa. Eu não fiz nada. As pes- lhor do que eu. Em qualquer área, em sentar um país?
soas que não têm documentos e estão qualquer trabalho. Ninguém fica para
à espera há algum tempo não enten- sempre. É a vida comum. O seu próximo objetivo é vencer os
dem que sou um atleta e que há um mundiais?
interesse do país. Não o choca ver, por exemplo nos Este ano, sim. Mas continuo focado
Jogos Olímpicos (JO), um pa- e a trabalhar para ser recordista do
Fica magoado com Nelson Évo- ís cujos atletas são na sua maioria mundo e campeão olímpico.
ra por também ter feito críticas naturalizados?
onha ser recordista do mundo e cam- abertamente? Não. Para mim o desporto é livre. A Começou a praticar atletismo aos
peão olímpico por Portugal e que de Não. Eu sou sempre um atleta, em Por- diferença é a bandeirinha que está seis anos. Quando surge o triplo
uma vez por todas o considerem por- tugal, em Cuba, onde quer que me en- ao lado do nome. Na Diamond Lea- salto?
tuguês em vez de luso-cubano. Não contre. Se digo que sou um bom atle- gue, quando ganhamos um título re- Comecei por fazer todas as discipli-
são tarefas fáceis. Mas, para quem ta, tenho de saltar para mostrar que presentamos a nós mesmos, não há nas. Aos oito, nove anos já fazia saltos,
teve de fugir do seu país de origem, sou um bom atleta sempre, em Cuba, bandeira nenhuma. Faz sentido eu mas triplo salto só mais tarde, com
Cuba, para poder continuar a ser em qualquer parte do mundo. Quan- deixar de disputar títulos, como já 14, 15 anos.
atleta de alta competição, nada é im- do chega um outro atleta e eu começo aconteceu, porque não tenho um país
possível. Aos 25 anos, Pedro Pichar- a atirar bocas porque é melhor do que a representar? Às pessoas choca uma Antes da opção pelo triplo salto qual
do, o atleta do triplo salto que assinou eu, então tenho de falar com o meu parte e a parte que me choca é no ano a disciplina de que mais gostava?
pelo Benfica, destronou Nelson Évora treinador e comigo próprio para trei- passado ter sido o melhor atleta do Eu fazia barreiras. Era a disciplina
e sem querer acentuou ainda mais a nar e ser melhor do que o atleta que ano e não ter podido fazer nenhuma onde poderia vir a ser um melhor
rivalidade dos grandes de Lisboa, faz chegou. Quando eu estava em Cuba já competição porque não tinha uma atleta, numa altura em que o meu pai
o seu dia a dia em Setúbal onde en- competia com o Nelson e nunca hou- bandeirinha a representar. Temos estava numa missão, como treinador,
controu a paz e as condições neces- ve problemas, nunca houve esta con- de fazer uma análise justa, não só na Venezuela. Como o meu pai estava
sárias para, ao lado da mulher e da fusão. Agora é diferente, estamos a uma análise a favor de mim. No caso fora, um amigo dele tomou conta de
filha, se concentrar naquilo que é o representar o mesmo país e para mim do Nelson, entendo que o chateia, é mim, mas como trabalhava barreiras
mais importante para si, debaixo da
supervisão do seu mentor, o pai. So-
bre voltar a Cuba, diz, nem pensar.
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A parte que me choca é no ano
passado ter sido o melhor
atleta do ano e não ter podido
competir porque não tinha
uma bandeirinha a representar”
e não sabia treinar saltos, tive de co- mas em Cuba não me deixavam tra- Os resultados começaram a cair de
meçar a fazer barreiras. Tinha 11 anos. balhar com o meu pai. Em Cuba há novo?
um mecanismo que não é fácil per- Sim.
O seu pai ficou fora quanto tempo? ceber para quem está de fora. É um
Quase dois anos. Ele não levou a sua país comunista que tem um regime. Mas porquê, se já era mais velho e ti-
missão na Venezuela até ao fim por- Mau ou bom é o regime deles, é as- nha mais conhecimentos?
que comecei a não ter bons resultados sim que eles pensam. Se não gostas, Sempre treinei com o meu pai, desde
e a escola da província de Santiago de não há nada a fazer, vai-te embora. os seis anos. Comecei a fazer triplo com
Cuba já não me queria. Ao saber disso Cuba é um país onde tudo é gerido e o meu pai. É ele que ensina e estrutura
o meu pai regressou logo a Cuba. Dis- dominado pelo Estado. Todas as ins- a minha técnica. Ele esteve a estudar
seram que eu não era bom para fazer tituições saem do Estado e são di- a biomecânica, parte de física, para
atletismo. O meu pai ficou espantado, rigidas pelo Estado. Lá não existem buscar os ângulos e as alturas perfeitas
dizia: “Como não é bom, se quando clubes como aqui. Disseram ao meu para mim. Para chegar à melhor forma.
o entreguei na escola era o melhor e pai que ele não pertencia ao siste- E isso requer um tipo de treino diferen-
tinha o recorde dos 60 metros?” Eu ma, quando ele estudou e se gradu- te. Para chegar a determinado objeti-
com 10 anos fazia os 60 metros em ou como professor no INDER (Ins- vo é preciso fazer este, este e mais este
oito segundos. Era o mais rápido do tituto Nacional de Desporto). Des- passo. As pessoas que estavam de fora
país e, se não me engano, ainda é o pediram-no para que não pudesse não conheciam, não sabiam o que era
recorde daquela categoria, em Cuba. treinar-me. Como não tinham mais preciso fazer para eu saltar bem. Cos-
O meu pai voltou e foi aí que come- nenhuma solução, fizeram isso. Ti- tumo dizer à minha família que eu sou
çou realmente a nossa luta em Cuba. nha eu 19, 20 anos. como um robô que o meu pai foi cons-
truindo peça por peça. Quando o me-
Que luta? O que fez o seu pai? cânico do robô não está o robô funci-
Puseram-me fora da escola da pro- Graças a contactos foi treinar para um ona, mas não funciona bem. Era o que
víncia, mas voltei a treinar com o meu clube da Suécia. Foi aí que começá- acontecia. Saltava bem no princípio da treinar. Quando chego à Alemanha
pai. O nosso primeiro objetivo era de- mos a planear a minha saída de Cuba. época mas depois ia piorando. começo a ouvir que tinha de competir.
monstrar aos dirigentes que me tira- Eu não tinha treinado para competir.
ram da escola que eu era verdadeira- Quais foram os primeiros passos? Quanto tempo ficou em Cuba sem o Mas estava calmo porque sabia que me
mente um bom atleta. Comecei a trei- A primeira coisa era ter paciência. seu pai? ia embora. Estive uma semana a es-
nar com ele e de um momento para o Havia que arranjar dois bons mo- Comecei a treinar com outro treina- tudar a forma de fazer tudo, porque a
outro já era o melhor em saltos, com- mentos. Um momento que ninguém dor em 2015, em 2016 tive a fratura no equipa de Cuba está sempre acompa-
primento e triplo, da minha província. suspeitasse e um momento em que tornozelo e não fui aos JO do Rio. Em nhada por um agente de segurança do
também pudéssemos estar juntos. 2017 fui-me embora. Fiquei dois anos Estado. Em cada competição, em cada
Quando os resultados reapareceram ainda em Cuba, mas só competi um. estágio. Ia falando com o meu pai, no
não o deixaram voltar para a escola O que fez em Cuba quando o seu pai quarto, através de mensagens. Não fa-
nacional de desporto? foi para a Suécia? Como prepararam a saída? lávamos ao telemóvel porque podiam
Não. Só me deixavam voltar sem o Estava na escola em Havana a treinar Percebemos que ia haver um momen- ouvir a voz. Era só por SMS.
meu pai. A verdade é que sempre que na equipa nacional, com outro trei- to em que eu e ele estaríamos fora de
trabalhei com outros treinadores os nador, com o mesmo treinador que Cuba. Porque já tinha acontecido eu O que combinaram em concreto?
meus resultados pioravam. era também diretor técnico nacional estar fora em estágio ou em compe- Depois de estudar todos os passos,
(DTN). Cá em Portugal, o DTN não tição mas ele estava em Cuba de fé- inclusivamente se alguém me apa-
Foi por isso que quiseram sair de pode treinar atletas, mas em Cuba rias. Havia que encontrar uma altura nhasse o que iria fazer, e senti que
Cuba? sim. Foi ele quem despediu o meu em que estivéssemos ambos fora de estava pronto, avisei o meu pai. Ele
Sim. Ou saía ou deixava de ser atleta. pai para me treinar. E continua a ser Cuba. Aconteceu em 2017. Eu vinha fez 30 horas de carro com um amigo,
Eu queria continuar a fazer desporto, o DTN de Cuba para a Alemanha supostamente para ficou num parque duas ou três horas
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a descansar e depois foi ter ao ho- telefonaram, mas foi para Cuba. Des- juntos porque acha que atrai proble- Nessa altura já tinham decidido fazer
tel onde eu estava. Primeiro ficou a de então não posso voltar a Cuba. O mas. Em Espanha há muitos. Querí- o processo de naturalização?
observar, depois ajudou-me com as meu passaporte cubano foi cancela- amos estar focados no nosso treino. Não. Nessa altura o que tínhamos em
malas. Escolhi o melhor momento, o do. A minha sorte foi terem telefona- mente era só voltar a saltar. Ser me-
segurança e os treinadores não me vi- do para Cuba e não para outro país. O que conheciam de Portugal? lhor atleta e continuar a ganhar.
ram e graças a Deus correu tudo bem. Nada, mas já tínhamos ouvido falar.
Não ficou na Suécia porquê? Quem propõe a mudança de
Foi de manhã, à noite? Na Suécia há muito frio [risos]. Não Como foi o primeiro impacto? nacionalidade?
Foi à noite. Jantei com a equipa, que gosto do frio. Muito bom. Imagina a sensação de Acho que houve vontade de todos.
era obrigatório, voltámos para o hotel chegar cá, em abril, e estar tempera- Nossa, do Benfica, da FPA. Acho que
e depois fui-me embora. Foram ou- Pensaram ir para onde nessa altura? turas de verão? Fomos para a Ericei- era um bocadinho a vontade de todos
tras 30 horas de carro para a Suécia. Tínhamos várias opções. Turquia, Itá- ra, para um hotel perto da praia. Ficá- e meti o processo.
O que me lembro mais dessa viagem lia, Espanha, Portugal, Bahamas. Mas mos logo encantados. Como é possí-
é da fronteira da Dinamarca. A polícia o boss [pai] começou a estudar, a fa- vel na Europa haver um país assim tão Não lhe fez confusão deixar de correr
mandou parar o carro, viram os pas- zer contas e decidimos vir para Por- quente? Vínhamos da Suécia, onde pelo país onde nasceu?
saportes, revistaram o carro, fizeram tugal. Não foi por causa do dinheiro, em abril havia neve, treinava-se em Não. Eu não queria nem quero repre-
perguntas. porque havia outros países que pa- pista coberta e tinha dores nos dedos sentar Cuba. Não os cubanos, por-
gavam mais do que o Benfica. O cli- dos pés, não os sentia. Apanho um que os cubanos não têm culpa, mas
Ficou com medo? ma aqui era bom e supostamente não avião, venho para outro país da Eu- os dirigentes e as pessoas que estão à
Claro que sim. Não sabia se al- havia muitos cubanos. O meu pai não ropa e é tudo diferente. Foi bom. Era frente do país, esses não quero repre-
guém tinha telefonado a alertar. E gosta de estar com muitos cubanos o que estávamos à procura. sentar. Nem gosto quando as pessoas
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falam em luso-cubano, quero que ti- Quando o Nelson Évora disse que a sua me ganhou uma vez, quase sempre Numa próxima competição, se che-
rem a parte do “cubano”. A minha vinda era uma vingança do Benfica ganhei-lhe, por isso da minha parte gar e o Nelson Évora já lá estiver vai
mulher até me diz: “Mas tu nasces- por causa da saída dele, o que pensou? não há essa coisa de “Ah, vou ganhar- cumprimentá-lo?
te em Cuba!” Não quero nada com Eu estava fora e não percebia muito. -lhe”, no sentido de fazê-lo sentir-se Acho que agora não. Porque foi ele
Cuba, só a minha família e chega. Com o tempo é que fui percebendo. mal. Não há isso da minha parte. que começou com essa atitude.
Passei tantos problemas em Cuba só
para fazer desporto. Aqui não tenho Há alguma coisa em que já se tenha E da parte dele? Ele é o seu principal rival?
problemas com ninguém. tornado português? Acho que sim. No meeting de Madrid O meu principal rival é 18m29, o re-
Não sei. Gosto muito de churrasco, de pista coberta, no ano passado, ga- corde mundial que ainda pertence a
Quando cá chegou disse que Portu- tanto de peixe como de carne. Gos- nhou-me e começou a dançar, a fes- Jonathan Edwards. É o resultado, não
gal é um país cheio de burocracia. Já to de sardinha assada. Tenho vári- tejar efusivamente. Eu não. Ganhei- é o Nelson ou outro atleta. Eu compito
mudou de opinião? os amigos portugueses também. E já -lhe e fico na mesma. Mas não fiquei contra a marca. Estou focado nos re-
Não. As pessoas que cá nasceram vejo alguns jogos do Benfica. zangado com ele. Continuo a fazer o sultados e nos títulos, essa é a minha
também se queixam. Para tudo é pre- meu trabalho. Eu gostava que as pes- motivação.
ciso um papel ou um carimbo. Está a pensar fazer salto em compri- soas percebessem que nós saímos de
mento também? Cuba simplesmente porque um pai Tirando o atletismo de que outro
Mas já tem mais facilidade em treinar Sim e uma ou duas competições de não podia estar ao lado do seu filho, desporto(s) gosta?
nas pistas portuguesas. velocidade em 100 e 200 metros. não podia treinar o seu filho. Não Boxe. Cheguei a praticar quando era
Esse aspeto sim, melhorou muito. queremos substituir ninguém, quere- miúdo. Antes gostava de Mike Ty-
Comprei casa no Pinhal Novo e es- No último campeonato nacional de mos apenas trabalhar. Não nos arre- son, agora gosto muito do Anthony
tou a treinar no complexo de Setúbal. clubes deu-lhe um gosto especial pendemos da decisão que tomámos. Joshua.
É muito melhor do que Lisboa para vencer o Nelson Évora?
treinar. Tenho o meu próprio espaço, Não. Eu não percebo porque é que O ano passado chegou a dizer que se as Continua a ouvir reggaeton e
o Benfica criou-me um ginásio para as pessoas continuam com essa condições não melhorassem, ia para kuduro?
poder treinar lá. A Câmara Municipal rivalidade. fora assim que tivesse a nacionalidade Sim e agora descobri cá que há uns
de Setúbal deu-me boas condições, portuguesa. Ainda pensa nisso? músicos, o Badoxa e a Yasmine, que
posso trabalhar na relva sem proble- Cumprimentaram-se? Não. Quando chegámos foi complica- têm algumas canções de que gosto.
mas. No Estádio da Luz, trabalhar na Não. do porque houve locais onde não me
relva era impossível. Se não joga fute- deixaram treinar ou porque as pessoas Vive cá com o seu pai, a sua mulher
bol não pode tocar na relva. Lá tenho Porquê? eram do Sporting, ou porque gostam e a sua filha, de 15 meses. A restante
quatro caixas de areia só para mim Eu estava lá a aquecer, ele chegou de mais do Nelson Évora, e eu vim de fora família está toda em Cuba?
[risos]. Estou agradecido ao Benfica e capuz na cabeça e não me cumpri- e tive alguns problemas. As coisas mu- Claro que sim. Sair de Cuba é difícil.
à Câmara. mentou. Foi ele que chegou. Quem daram, em Setúbal tenho boas condi- Não é como aqui, que podem sair à
chega é que cumprimenta. Não fala- ções para treinar. Mas quero fazer es- vontade para fazer turismo num outro
Sabia da rivalidade entre Benfica e mos um com o outro. Não sinto gosto tágios fora. Quando estiver mais frio país. Em Cuba tens de ser chamado por
Sporting? especial em ganhar ao Nelson. Sei que aqui, como em Setúbal não tenho pista alguém de fora, além de que ninguém
Já tinha ouvido falar, mas só agora, ele é campeão olímpico, mundial, da coberta, se calhar vou treinar para um tem dinheiro para conseguir viajar.
estando cá, é que entendo que é forte. Europa, como ele próprio diz, mas só país com um clima melhor.
O que fazem os seus irmãos
profissionalmente?
Estão em Cuba. Em Cuba as pessoas
não trabalham muito. A maioria das
pessoas arranja a sua vida na rua, fa-
zendo qualquer coisa. Eles estuda-
ram, têm diplomas, mas não exercem.
Estão ali por estar.
em luso-cubano, quero
de competição como atleta luso. Já
aprendeu o hino?
Em agosto vão ver se aprendi ou não. b
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O livro que levou
Natália ao tribunal
Proibida pela Censura há mais de 50 anos, alvo de julgamento e queima
de exemplares apreendidos, a “Antologia de Poesia Portuguesa Erótica
e Satírica” regressa em nova edição
TEXTO JOSÉ MÁRIO SILVA
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U
da Censura. Natália Correia, que
já vira os seus livros de poesia e
Informação entregou o calhamaço
a um dos seus “leitores” (Joaquim
“Hoje, a antologia
teatro proibidos, organizou uma Palhares) que passados três dias continua válida
monumental “Antologia da Poesia
Portuguesa Erótica e Satírica —
entregou o respetivo relatório,
sugerindo enfaticamente a
e representativa.
Dos Cancioneiros Medievais à “proibição rigorosa deste livro” dado Eu diria que 80%
Actualidade”, com 552 páginas, o seu “carácter pornográfico”. Já
abrangendo sete séculos e meio de prevendo este desfecho, Ribeiro de dos poemas são
versos do mais puro vernáculo. Das
cantigas de escárnio e maldizer
Mello contou com a cumplicidade do
livreiro Luís Alves Dias para lançar
intocáveis. Há
ns meses antes, a recém-criada aos experimentalismos de E. M. de rapidamente uma edição pirata, depois 10% que
Afrodite, de Fernando Ribeiro de
Mello (um portuense de 23 anos
Melo e Castro, passando por Nicolau
Tolentino, Bocage, Guerra Junqueiro,
sem a chancela da Afrodite (e sem
as ilustrações hors texte de Cruzeiro
poderiam mudar e
que chegara a Lisboa com fama de vários anónimos, Mário Cesariny, Seixas que embelezavam a edição 10% substituíveis
excêntrico diseur de poesia), lançara Jorge de Sena, Herberto Helder ou original), uma tiragem de três mil
a primeira de muitas pedradas a própria Natália, cabia tudo. Na exemplares que se venderam num por poemas
no charco do mundo literário
português: uma edição do “Kama
cinta promocional, não se fazia a
coisa por menos: “Finalmente num
ápice, fora dos circuitos oficiais.
O caso, porém, não se ficou por aqui.
escritos nos
Sutra”, logo proibida. Enquanto único livro: a poesia maldita dos Em janeiro de 1966, Natália prestou últimos 50 anos”
gesto provocatório, funcionou às nossos poetas; as cantigas satíricas declarações na Polícia Judiciária, nas
mil maravilhas. Mas foi com o livro medievais em linguagem atualizada; quais explicou a génese do projeto. VLADIMIRO NUNES
EDITOR
seguinte, lançado em vésperas dezenas de inéditos; a revelação do Estando a realizar um estudo para
do Natal de 1965, que a Afrodite erotismo em Fernando Pessoa”. a Fundação Gulbenkian sobre o
testou verdadeiramente a rigidez Lesta a agir, a comissão de Censura erotismo e a sátira na poesia medieval
do establishment e o funcionamento do Secretariado Nacional de portuguesa, decidiu organizar uma
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partiu de uma base sólida, a recolha
feita nos anos 30 pelo jornalista e
bibliófilo Manuel Cardoso Marta,
mas depois acrescentou as suas
ideias, nomeadamente no prefácio,
que é excelente. Hoje, creio que
a antologia continua válida e
representativa, apesar de uma
certa sobrerrepresentação dos seus
contemporâneos. Eu diria que 80%
dos poemas são intocáveis. Há
depois 10% que poderiam mudar
e 10% substituíveis por poemas
escritos nos últimos 50 anos.”
Tal como na edição feita no final
dos anos 90 pela Antígona e pela
Frenesi, Vladimiro Nunes optou por
não introduzir quaisquer alterações
no corpus da antologia, nem sequer
para corrigir as atribuições erróneas
de certos poemas a Bocage ou
António Botto. “Contextualizámos
esses erros e acrescentámos as datas
da morte dos autores entretanto
Em cima, o relatório da falecidos, mas não mexemos em
comissão de Censura que mais nada.” Por baixo da sobrecapa
proibiu a “Antologia de Poesia que respeita o grafismo da Ponto de
Portuguesa Erótica e Satírica Fuga, a capa verdadeira é uma cópia
– Dos cancioneiros medievais fiel da original. Além do texto de
à atualidade”, em dezembro de Francisco Topa sobre o julgamento
1965, devido ao seu alegado e da “crónica de um livro proibido”
“carácter pornográfico” assinada pelo editor, a nova versão
Ao lado, Natália Correia nos da “Antologia…” recupera ainda as
anos 60
magníficas ilustrações de Cruzeiro
À esquerda, duas das seis
Seixas.
ilustrações que Cruzeiro
Seixas criou para a edição Mais de meio século após o
original da “Antologia”, agora escândalo, os poemas continuam
recuperadas (estiveram a deslumbrar os espíritos abertos
ausentes tanto da edição e a fazer confusão a quem lida mal
pirata como da lançada pela com o sexo e a sátira. “É engraçado,
Antígona/Frenesi, em 1999) porque o Facebook barrou-nos os
materiais sobre o livro, por suspeita
de pornografia”, diz Vladimiro
compilação que alargava o foco do julgamento em que foram pública”. E se os dias de prisão foram Nunes. Serão os algoritmos os
daquela pesquisa ao todo da literatura arguidos, além de Natália e Ribeiro convertidos em multas, o julgamento novos equivalentes aos “leitores”
nacional. Embora tivesse recorrido de Mello, o também editor Luiz acabou mesmo com a simbólica da Censura? “Temo bem que
aos seus conhecimentos pessoais para Pacheco (incluído no livro, apesar destruição pelo fogo de 38 dos sim. Se calhar, é a ‘evolução
angariar autores contemporâneos, de só escrever prosa) e os poetas exemplares apreendidos. Não seria, na continuidade’ de que falava
que em muitos casos lhe facultaram Mário Cesariny, Ary dos Santos e de resto, exemplo único da mão firme Marcello Caetano…” b
textos inéditos, partira no essencial E. M. de Melo e Castro. Porquê só do regime contra quaisquer indícios
de trabalhos feitos por académicos estes e não outros dos colaboradores de liberdade sexual. Ainda em
reconhecidos, como Carolina ainda vivos? Em carta para Natália, 1966, os colaboradores da primeira
Michaëlis de Vasconcelos e Rodrigues Luiz Pacheco responde: “Dedução edição portuguesa de “A Filosofia
Lapa. Se muitos dos poemas obscenos fácil: estamos perante um processo na Alcova”, do Marquês de Sade,
da antologia já se encontravam em político camuflado de literário.” também foram condenados. E as três
coletâneas vendidas nas livrarias, O certo é que os réus foram Marias, autoras das “Novas Cartas
qual o sentido de a acusarem de um defendidos por alguns dos melhores Portuguesas”, só escaparam a igual
“agravo à moral pública”? advogados da época (Manuel João sorte, em 1974, porque entretanto
Indiferentes à lógica inatacável de da Palma Carlos, Fernando Luso aconteceu o 25 de Abril.
Natália, as autoridades preferiram Soares, José Vera Jardim, Francisco Vladimiro Nunes, editor da Ponto
deduzir uma acusação por “abuso Salgado Zenha), com estratégias de Fuga, admite que sempre
de liberdade de imprensa”. Tinha argumentativas por vezes brilhantes, esteve no seu horizonte reeditar ANTOLOGIA DE POESIA
assim início um longo processo que mas nem assim escaparam ao castigo a “Antologia da Poesia Erótica PORTUGUESA ERÓTICA E
se arrastaria por seis anos e meio, da Justiça salazarista (mesmo se já e Satírica”, não apenas pela SATÍRICA (DOS CANCIONEIROS
até junho de 1973. Num dos textos no consulado de Marcello Caetano). importância histórica do livro, mas MEDIEVAIS À ATUALIDADE)
introdutórios da presente edição da Acabaram todos condenados por também pela sua força literária: Natália Correia (seleção, prefácio e notas)
“Antologia”, Francisco Topa descreve “consciente e pública ofensa do “Continua a ser um trabalho de Ponto de Fuga, 2019, 560 págs., €24,40
pormenorizadamente os meandros pudor, da decência e da moralidade grande qualidade e erudição. Ela Poesia
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Cannes à espera de Tarantino
O
sobretudo, como compositor. com Chloé Sevigny, Adam Driver,
“Once Upon a Time... Na Competição (o cineasta mexi- Tilda Swinton, Bill Murray, Tom
in Hollywood” é o cano Alejandro Gonzalez Iñarritu
presidirá ao júri) estão 21 obras
Waits, Iggy Pop e Selena Gomez.
Outro realizador ‘da casa’, o nosso
filme mais aguardado a concurso e a mas esperada só vizinho Pedro Almodóvar, mostra-
chegou à corrida pela Palma em rá em “Dolor y Gloria” um filme
do festival — 25 anos ‘segundas núpcias’: Cannes não crepuscular sobre a vida, os amores
após o triunfo de sabia se Quentin Tarantino, 25 anos
volvidos sobre a vitória de “Pulp
e a mãe, com Antonio Banderas,
Penélope Cruz e Julieta Serrano. Já
“Pulp Fiction” — mas Fiction”, terminaria a tempo “Once se estreou em Espanha mas a exi-
Festival de Cannes de 2019, em Upon a Time... in Hollywood” (mas bição no país de origem não anula
também lá estão teoria, tem tudo para se tornar uma terminou, claro). O filme segue um a passagem em Cannes. “Mektoub,
Terrence Malick, Ken edição absolutamente memorável.
Comecemos pelas homenagens de
ator de TV que já teve melhores dias
(Leonardo DiCaprio) e o seu duplo
My Love : Intermezzo”, o novo de
Abdellatif Kechiche, terá cerca de
Loach, os Dardenne e maior relevo e por essa Palme d’Or (Brad Pitt). Estamos em 1969, em quatro horas e dará continuidade a
d’Honneur que fará Alain Delon, Los Angeles, e os dois homens estão “Mektoub, Meu Amor: Canto Pri-
Abdellatif Kechiche, aos 83 anos, descer à Croisette — o dispostos a construir uma equipa meiro”. “A Hidden Life”, nova obra
todos eles já prémio só é atribuído em ocasi-
ões especiais e a pessoas especiais
que os leve aos píncaros da fama
no mundo do cinema, numa fase
de Terrence Malick, traz Matthias
Schoenaerts na pele de um objetor
vencedores da Palma (como Manoel de Oliveira, que em que este atravessa uma profun- de consciência austríaco que se
também a recebeu em 2008). Já a da transformação. Acontece que a recusa a combater pelos nazis na
de Ouro. Começa Quinzena dos Realizadores, secção vontade deles vai coincidir com os II Guerra Mundial. Quem também
terça-feira paralela que é um festival dentro
do festival (tem um novo diretor
dias do ignóbil Helter Skelter e dos
ataques do clã de Charles Manson
não podia faltar é o britânico Ken
Loach (um crítico feroz do ‘Bre-
TEXTO FRANCISCO FERREIRA artístico, o programador italiano (que Damon Herriman interpreta). xit’) com “Sorry We Missed You”,
Paolo Moretti), ‘responde’ com “Once Upon a Time... in Hollywo- a seguir uma família de Newcastle
uma Carosse d’Or (outro prémio od” tem um elenco estonteante de em luta contra a crise. Já os irmãos
à carreira) para John Carpenter, estrelas: além de Pitt e DiCaprio, Dardenne (que tal como Loach têm
mestre do cinema de horror e um traz Margot Robbie, Al Pacino, Da- duas Palmas de Ouro — e note-
dos autores mais idolatrados pela kota Fanning, Kurt Russell, Emile -se que nunca nenhum cineasta
cinefilia. Carpenter, que não realiza Hirsch, Tim Robbins, Michael Mad- conquistou três) focam-se em “Le
um filme desde 2010 (“The Ward”) sen, Bruce Dern... Estreia-se por cá jeune Ahmed” num rapaz belga
e, tanto quanto se sabe, sem remor- a 8 de agosto. tentado pelo radicalismo islâmico.
sos: tem dito com ironia que prefere Jim Jarmusch também está de O canadiano Xavier Dolan (“Mat-
Quentin Tarantino numa foto hoje os jogos de vídeo... continua regresso com “The Dead Don’t thias et Maxime”), o brasileiro Klé-
de rodagem de “Once Upon ativo no cinema como produtor e, Die”, novo filme (e é de vampiros!) ber Mendonça Filho (“Bacurau”,
a Time... in Hollywood”
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Aspeto da passadeira vermelha de Cannes. Em baixo, Adam Driver em
“The Dead Don't Die”, novo filme de Jim Jarmusch (vai inaugurar o
concurso) e Pedro Almodóvar entre os atores de “Dolor y Gloria”
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Um modelo
estabilizado
À 4ª edição, a ARCOlisboa consolida-se como uma feira
de média dimensão capaz de atrair negócios e trazer à capital
colecionadores e figuras influentes do circuito da arte internacional
TEXTO CELSO MARTINS
S
ARCOlisboa arrancou com 44 gale-
rias, mas à semelhança do ano pas-
sado, junta este ano, no espaço da
Cordoaria Nacional, 70 participantes
provenientes de 17 países da Euro-
pa, das Américas e do continente
africano. Se a ampliação é razão de
otimismo ela também gera crises de
crescimento. Para Cera, que integra
o comité de seleção das galerias,
e o dinheiro gera dinheiro, o turismo “atualmente a feira tem uma pre-
gera turismo e... dinheiro também. sença ibérica muito forte. No futuro
Este silogismo simples não deve ter temos dois caminhos: se quisermos
estado fora da equação, quando, em ter mais galerias de outras latitudes
2016 a IFEMA, a entidade que orga- e se mantivermos a feira onde está, é
niza a feira ARCO em Madrid, criou óbvio que há galerias que vão ter de
pela primeira vez uma extensão sair porque o espaço da Cordoaria é
fora de Espanha. A vizinha Lisboa limitado. Se queremos crescer sem
não era exatamente uma metrópole deixar ninguém para trás temos de
do mercado de arte, mas era uma encontrar outro lugar”.
cidade redinamizada e segunda A abertura é, precisamente, o mote
residência de muitos cidadãos de de uma das novidades da edição de por este núcleo, “a secção ‘Ope-
altos rendimentos pelo mundo fora. 2019, com uma presença organizada ning Programme’ vai ter um núcleo
O laço antigo das galerias portugue- de galerias africanas (de Angola, que reflete a sua missão original de
sas à feira, uma maior visibilidade África do Sul, Moçambique e Ugan- dar visibilidade às novas galerias
internacional da arte portuguesa, a da) a que se juntam publicações e portuguesas e de ser também uma
proximidade de Madrid e a coope- curadores daquele continente como amostra de jovens galerias inter-
ração da autarquia lisboeta gera- Raphael Chikukwa (Zimbabwe) ou nacionais, principalmente euro-
vam uma aliciante combinação de Azu Nwagbogu (Nigéria) no progra- peias. É de sublinhar a presença
fatores. ma “África em foco”, comissariado pela primeira vez na secção de uma
Nas vésperas da abertura da 4ª pela curadora angolana Paula Nasci- galeria de Luanda, o fortalecimento
edição, a ARCOlisboa é um projeto mento, responsável pelo pavilhão do da presença de Londres com duas
estabilizado. Para as galerias portu- mesmo país que foi premiado com galerias, a presença continuada da
Enric Farres (à esq.); Rodrigo
guesas, tão relevante como a visita o Leão de Ouro na Bienal de Veneza cena Polaca, o interesse espanhol
Hernández e Mário Macilau
de estrangeiros é a existência de um de 2013. crescente (com a nova entrada da (em baixo); Axell Hutte e Suzy Gomez
momento em que o meio artístico As galerias, das quais 23 são portu- Fran Reus e a repetição da Bombom) (em cima), alguns dos artistas que
português converge no mesmo lu- guesas, integram os vários progra- e a nova participação de uma galeria vai ser possível ver na ARCOlisboa
gar. Como explica o galerista Pedro mas galerísticos. Além do geral onde Checa com a SVIT”.
Cera “a feira é importante para a se incluem 52 participantes, a feira Simultaneamente, uma secção de
afirmação no mercado interno e possui um “Opening Programme” projetos vai reunir nove apresenta-
para a sua dinamização, é a altura destinado a galerias com menos ções mais concentradas de trabalhos
do ano em que encontramos todos de sete anos que se espera seja individuais de artistas especialmen-
os colecionadores”. um suplemento de energia para o te preparadas para o espaço da feira.
Criada com o objetivo de ser uma mercado. Como explica o curador Num conjunto diversificado de pro-
feira de pequena dimensão, a português João Laia, responsável postas, contam-se as intervenções
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curadores a falar na primeira pessoa
sobre o seu trabalho. Para Filipa
Oliveira, responsável por esta ru-
brica, “é importante trazer artistas
que estejam a trabalhar em Lisboa,
como a Manon de Boer que falará
sobre um projeto que está a desen-
volver com a Gulbenkian onde vai
expor no próximo ano, mas também
o Jesper Just que inaugura no dia 15
uma exposição no MAAT”.
O impacto da feira na cidade não
se mede, porém, apenas pelo que
se passa no interior da Cordoa-
ria. Ela tem um efeito estimulante
na visibilidade internacional das
instituições que se lhe associaram
(como o MAAT, a Fundação Calouste
Gulbenkian, a Culturgest e o Museu
Coleção Berardo) que serão visitadas
pelas dezenas de colecionadores e
curadores convidados. Ao mesmo
tempo, a concentração de persona-
lidades do “Art World” em Lisboa
neste período favorece a realização
de outras feiras de menor dimensão
e de circuitos expositivos alterna-
tivos. Coincidindo com as datas da
ARCOlisboa realiza-se no Museu da
Carris a 2ª edição da JustLx, afiliada
da JustMad de Madrid, que reúne
45 galerias, entre nacionais (como
a Módulo, a 111 ou as Salgadeiras) e
estrangeiras (de Espanha, França,
de uma forma que o seu diretor, Peru, México e EUA) com particular
Rui Brito, considera questionável: atenção aos criadores emergentes.
“Concorremos no primeiro ano e, A decorrer entre 14 e 18 de maio,
cumprindo todos os critérios, não o Festival dos Espaços dos Artistas
fomos aceites. Foi incompreensível de Lisboa vai apresentar 29 exposi-
e, por isso, deixámos de concorrer.” ções individuais e coletivas em 27
Também este ano, a feira voltará a espaços independentes (Porta 14,
ter uma componente especulati- STET, nanogaleria, Las Palmas, Za-
va com vários programas de talks, ratan, Aposentadoria, Belo Campo,
nomeadamente sobre museus, co- Hangar, entre outros) reunindo 144
lecionismo ou, naturalmente, sobre artistas entre os quais nomes como
arte africana. A Lisboa, virão nomes Fernanda Fragateiro, Hector Zamo-
relevantes da curadoria e respon- ra, Miguel Palma, Tiago Miranda,
sáveis por instituições internacio- Adrien Missika, Marilá Dardot, Noé
nais como Rosa Ferré (Matadero), Sendas, Tatiana Macedo ou Filipa
Francesca von Habsburg (Museu César.
Thyssen-Bornemisza), Quentin Ba- Em 2018 visitaram a ARCOlisboa
jac (Jeu de Paume), Fernando Oliva cerca de 11 mil pessoas e uma cen-
(curador do MASP de São Paulo) ou tena de personalidades internacio-
o novo diretor do Museu de Serral- nais. Tudo indica que a romaria se
ves, Philippe Vergne, mas uma das repetirá em 2019. b
estrelas é um dos co-organizadores,
de Daniel García Andújar (Àngels, e ausências. Galerias como Vera com Pedro Gadanho (MAAT), do
Barcelona), um artista ligado à net Munro (Alemanha) ou Georg Kargl fórum sobre museus, Nicolas Bour-
art com participações na Docu- (Viena) participam pela primeira riaud. O francês, foi um dos teóricos
menta e na Manifesta; o alemão vez, enquanto Krinzinger (Viena), e curadores mais influentes da arte
Gerold Miller (Cassina Projects) que Greengrassi (Londres), Pietro Sparta contemporânea dos últimos 25
atualiza questões relacionadas com (Chagny) e a Vermelho (São Paulo) anos, trabalhando conceitos como a
a abstração geométrica e o suíço voltam a apostar no cenário comer- “estética relacional” e, mais recen-
Nicolás Grospierre (Alarcón Criado) cial lisboeta. Ausentes estão galerias temente, o de “altermodernidade” e
cujo trabalho fotográfico interroga o referenciais do circuito português é atualmente diretor do Mo.Co., de
urbanismo e a arquitetura. como a Módulo ou a 111. Esta última Montpellier. ARCOLISBOA 2019
Como é habitual, a edição deste concorreu à primeira edição e foi O fórum “Em que é que estou Cordoaria Nacional, Lisboa,
ano conta com estreias, regressos recusada pelo comité de seleção a trabalhar” quer pôr artistas e de 16 a 19 de maio
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O
novas gerações têm vindo a renovar
os estudos mais promissores acerca
do Estado Novo, conciliando o in-
quérito monográfico com o quadro
comparativo.
O livro intitulado “O Estado Novo
em Questão” (Edições 70, 2010),
organizado por Nuno Domingos
e Victor Pereira, onde colabora
Nuno Medeiros, constitui uma das
campo dos estudos sobre o Estado tentativas para renovar a história
Novo é hoje atravessado por um do Estado Novo no contacto com as
grande debate. Trata-se de um con- ciências sociais (é, aliás, nele que
fronto entre os defensores de uma se encontram as críticas mais duras
perspetiva de história política posta contra os usos indevidos de tipolo-
ao serviço de lutas contemporâneas e gias e taxonomias, que Rosas repete).
os que se reivindicam de um ângulo Porém, o desprezo a que são votadas
mais próximo das ciências sociais. perspetivas do Estado Novo inspi-
Numa das suas versões mais frontais, radas nas ciências sociais, por parte
Fernando Rosas expôs, recentemen- de Rosas, explica que nem sequer
te, o seu desconforto em relação aos faça parte da bibliografia do seu livro
estudos que, influenciados pelas mais recente.
ciências sociais, padeceriam de uma Uma listagem dos estudos sobre o
“comum vulnerabilidade”. Esta Estado Novo, próxima das ciências
estaria presente nas classificações sociais, deverá começar por incluir as
dos diversos tipos de autoritarismo, investigações relativas ao vinho e ao
consideradas meras abstrações; e bacalhau (por Dulce Freire e Álvaro
no facto de se acabar por “assumir Garrido), aos mendigos e vagabun-
o fascismo como uma espécie de dos (Susana Trovão), emigrantes e
corrente literária e intelectual que “criadas” (Victor Pereira e Inês Bra-
existiria por si só” (“Salazar e os Fas- são), operários, intelectuais e patrões
D. R.
cismos”, Tinta da China, 2019, p. 36). (Bruno Monteiro e João Pedro George,
No seu combate contra as ciên- Questiona-se se a política do Estado Novo era feita na desconfiança para o caso dos escritores), e institui-
cias sociais e políticas, com as suas das ciências sociais, políticas e económicas ções de controlo, vigilância e legiti-
O Estado
tipologias e aquilo que denomina mação do Estado (Jorge Ramos do Ó,
de sociologismos, Rosas não está só. Luís Nuno Rodrigues, Rita Carvalho,
Partilha das mesmas apreensões e Luís Bigotte Chorão, Nuno Estêvão,
da mesma agenda de uma história Rita Garnel, António Araújo, Diego
comprometida politicamente com Palacios e Paulo Silveira e Sousa).
Novo e o
os historiadores que valorizam os A esta listagem, acrescenta-se outra
sucessos do Estado Novo. Contudo, dividida por três grandes rubricas.
tem sobre estes a vantagem da dis- A primeira diz respeito às questões
tância, por ter exposto abertamente macroeconómicas do atraso, da
uma perspetiva comprometida com modernização e do desenvolvimento
a esquerda, logo, contrária ao autori- (inspiradas em Magalhães Godinho,
mundo
tarismo fascista. Sedas Nunes e Pereira de Moura,
No entanto, as interpretações do aprofundadas por Álvaro Ferreira da
Estado Novo mais elaboradas teo- Silva, Pedro Lains, José Reis e Lucia-
ricamente foram permeáveis aos no Amaral). A segunda prende-se
ensinamentos das ciências sociais e com a centralidade do império colo-
políticas, incluindo nelas o recurso nial (num campo em que Valentim
da edição
ao método comparativo, enquanto Alexandre foi pioneiro, trabalham
instrumento destinado a ganhar Nuno Domingos, Miguel Jerónimo,
distância em relação à politização da Fernando Pimenta, Cláudia Castelo,
história política. Hermínio Martins, Bárbara Direito, José Pedro Montei-
José Cutileiro, Manuel de Lucena, ro, Teresa Furtado e Bernardo Cruz).
Maria Filomena Mónica, Manuel Por último, considerem-se os estu-
Braga da Cruz e, sobretudo, Antó- dos sobre a cultura (às abordagens
nio Costa Pinto foram os pioneiros, sistemáticas de Luís Reis Torgal, su-
nas décadas de 1970 e 1980, de uma cederam-se as de Nuno Domingos,
história do Estado Novo mais infor-
mada porque feita no contacto com
As interpretações do Estado Novo mais José Neves, Luís Trindade, Daniel
Melo, Frederico Ágoas, Manuel De-
as ciências sociais e políticas. Claro elaboradas teoricamente têm sido niz Silva e Rahul Kumar).
que, no interior desta perspetiva, se
registaram diferentes prioridades permeáveis aos ensinamentos das ciências AS INVESTIGAÇÕES E O MÉTODO
na escolha dos temas e das escalas
de análise. O mesmo se diga acerca
sociais e políticas DE NUNO MEDEIROS
As investigações de Nuno Medeiros
do modo como, nesta mesma linha, TEXTO DIOGO RAMADA CURTO sobre a história do livro, da edição
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e da cultura tipográfica, no século
XX, têm vindo a questionar uma
lançada em 1943, favorecedora da
circulação internacional de modelos
As investigações Guimarães, Morais ou Verbo)
não parecem ser suficientemente
história política do Estado Novo feita de escrita e de leitura bastante apolí- de Nuno Medeiros representativos. Ausentes estão a
na desconfiança das ciências sociais, ticos (capítulo 4). Ática e a Sá da Costa, a Portugália de
políticas e económicas. Aliás, neste último caso, que conjuga
sobre a história do Agostinho Fernandes e a Bertrand,
A sua sociologia histórica ou história essencialmente traduções inglesas e livro, da edição e sobretudo a partir da sua aquisição
social do livro incide sobre as re- norte-americanas, com um trabalho por Manuel Bulhosa, já bem entrada
lações entre agentes e instituições, criativo de escritores portugueses da cultura a década de 1960. Sem esquecer,
no interior do campo constituído
pelo mercado dos bens impressos;
que se apresentavam sob pseudóni-
mo, haverá um campo extenso para
tipográfica, no porventura enquanto bastiões do
conservadorismo a Norte, a Lello, a
ao mesmo tempo, procura pensar o o desenvolvimento de alternativas à século XX, têm Porto Editora e a Livraria Civilização.
trabalho desses mesmos agentes e as literatura neorrealista também nor- Mais: ao alargar a amostra, talvez
representações por eles produzidas. te-americana, com Erskine Caldwell vindo a questionar fosse possível pôr em causa a nar-
Nessa ambição relacional e sociológi- à cabeça. Resta saber qual dos dois uma história rativa heroica do editor resistente
ca, foge-se tanto à ilusão biográfica, termos da equação foi mais impor- — substituindo-a por outra onde,
como à tentação de reduzir as deter- tante: o apolitismo do género do ro- política do Estado entre colaboradores e resistentes,
minações sociais a uma única instân-
cia, seja ela política ou económica.
mance policial (suscitado pelos seus
editores e procurado pelos leitores
Novo feita na figuraria a do editor autónomo, mas
conformado ou apolítico — e discutir
Mais: a exemplo do que Norbert em massa) ou a complacência com desconfiança das a periodização duvidosa que o livro
Elias procurou fazer, ao estudar os que o Estado rerrepresentavam como parece procurar estabelecer. Refiro-
processos de civilização com base no estando na posse dos mecanismos da ciências sociais, -me ao facto de Medeiros defender
desporto e no lazer, Nuno Medeiros distinção literária, em relação à de- políticas e a existência de uma continuidade
elege como objetos de estudo domí- nominada literatura industrial, mais entre a década de 1920 e o início dos
nios considerados, à primeira vista, preocupada com as vendas do que económicas anos 1970, ao mesmo tempo que,
como menos importantes do que com o conteúdo, marcou um mo- sublinhe-se, carreia muitos ele-
aqueles que se definem em função mento importante da constituição de mentos que ajudam a pôr em causa
dos aparatos políticos ou das elites uma literatura nacional, com Garrett essa mesma continuidade, a que a
governamentais, mas com os quais e Herculano. Porém, a dissociação tanto a partir dos seus interesses na entrada de um grande conglome-
mantêm relações de homologia. entre literatura nacional e literatura obtenção de lucros, como com base rado internacional, como o Círculo
O seu novo livro, intitulado “O Livro industrial, pouco prestigiada, porque na organização familiar ou, ainda, em dos Leitores, teria posto fim. Dois
no Portugal Contemporâneo”, numa massificada e suscitadora de modos conexões que resultavam da partici- momentos, assinalados por duas si-
coleção importante das Edições Ou- de alienação, não terá sido resolvida pação em redes que operavam a uma tuações que em muito transcendem
tro Modo, integra a mesma agenda pelo Estado Novo noutros termos? escala internacional, nomeadamente o mundo das edições, afiguraram-se
de uma sociologia histórica do livro. É que se pode pensar que o Estado entre Portugal e o Brasil (capítulo 3). decisivos: os anos da Segunda Guer-
Os seus quatro longos capítulos, Novo — longe de reivindicar para si Se a insistência nos modos de ra Mundial e as mudanças em finais
alguns já publicados noutros lugares, uma qualquer estratégia de aprovei- autonomização de uma esfera da década de 1950 e inícios de 1960.
mas que agora surgem em versão tamento de uma cultura de massas, propriamente editorial se constitui
revista, respondem a uma intenção seguindo uma linha cara aos Integra- em argumento principal destina- COMPARAÇÕES, ATRASOS
problematizadora, concretizada num listas — o que procurou foi difundir do a diminuir o peso excessivo da E CONEXÕES
trabalho analítico exemplar. Porém, uma literatura onde figurassem os dominação política, os próprios Um último problema que o livro
em lugar de procurar resumir, aqui, grandes escritores do século XIX. editores, durante o Estado Novo, coloca diz respeito à escala em que
o que poderá ser apreciado através também se consideravam mais do se colocam comparações e conexões
de uma leitura atenta, que o livro O ESTADO AUTORITÁRIO lado da dissidência e não tanto como em rede. Durante o Estado Novo, por
merece, concentrar-me-ei na enun- E A AUTONOMIA DO CAMPO colaboradores do regime. Esta mes- exemplo, assiste-se a uma inversão
ciação desses mesmos problemas. EDITORIAL ma constatação sugere um terceiro dos fluxos da edição e dos agentes
O segundo problema que este livro problema, passível de ser formulado correspondentes, entre Portugal e
FASCISMO E CULTURA DE MASSAS coloca é o de saber quais os limites da como uma simples questão. Brasil. A antiga colónia, constituída
A primeira questão que o livro dominação do Estado totalitário, fas- em mercado para o livro produ-
em apreço coloca é a de saber se a cista, autoritário ou, simplesmente, DISSIDENTES OU CONFORMADOS zido em Portugal até às primeiras
formação de uma cultura de massas salazarista. E a resposta é que o prin- Será que mundo da edição durante o décadas do século XX, teria sabido
se constituiu num veículo para as cipal limite se encontra na autonomia Estado Novo, além de autónomo em impor-se e ganho em supremacia e
máquinas de guerra ideológica que do mercado que organiza o mundo relação ao poder político, represen- capacidade de atração, colocando
difundiram mitos antiprogressivos da edição. Já Victor de Sá o intuíra tava uma cultura da dissidência? A em causa “o princípio histórico do
(nos termos de Rogério Fernandes, (“Cultura e Democracia”, Braga, 1961, resposta que Nuno Medeiros dá a direito à subordinação” do Brasil, a
“Ensino: sector em crise”, Prelo, 1967, pp. 48-49). Tal como a separação esta questão está cheia de matizes que os agentes portugueses do livro
p. 149). O que equivale a perguntar, de entre esferas protege as interferên- mas, de um modo geral, tende a ser se arrogavam.
modo ainda mais sucinto: a cultura de cias de umas em relação às outras, o positiva (capítulo 2). Isto é, os edito- Ao atraso estrutural português que
massas esteve na origem do fascismo? mesmo se terá passado no mundo da res eram, na sua maioria, dissidentes caracterizaria a construção de um
As componentes de uma cultura de edição durante o Estado Novo. e não colaboradores do regime. mercado para o livro, num país
massas tidas em conta por Medeiros Assim, para compreender o Estado No entanto, interrogo-me sobre a de analfabetos, sobrepôs-se a sua
são aquelas que se encontram relaci- Novo, na sua relação com a cultura dimensão da amostra. Apesar da subalternização. No entanto, o que
onadas com a denominada literatura impressa, não basta perceber quais os inédita enumeração de pequenas o livro acaba por não explicar é a
industrial, em folhetim e associada mecanismos da censura, da pro- editoras comerciais do último capí- relação entre, por um lado, redes
à publicação de jornais e revistas, a paganda ou dos prémios que foram tulo, os editores estudados (Romano de circulação, modelos editoriais
qual proliferou na segunda meta- capazes de interferir no mundo do Torres, Coimbra Editora, Socieda- ou géneros de grande difusão, e a
de do século XIX (capítulo 1), bem livro, das revistas e dos jornais. É pre- de de Expansão Cultural, Gleba, sua instrumentalização por centros
como a literatura policial, exemplifi- ciso reconstituir o modo de funcio- Álvaro Pinto, Edições Dois Mundos, hegemónicos em detrimento de
cada pela coleção da Romano Torres, namento das empresas e do mercado, Livros do Brasil, Europa-América, periferias retardadas. b
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Li
vros
GETTY IMAGES
da maternidade e do
seu impacto na vida
das mulheres
Mãe há só muitas
Nove contos escritos por mulheres sobre a experiência da maternidade: seus espantos
e flagelos, suas alegrias e tribulações. Nove vozes da ficção portuguesa actual
TEXTO JOSÉ MÁRIO SILVA
A
ideia da editora Clara Capitão descreve um gineceu fechado sobre enviado de táxi para casa da avó,
foi simples: pedir a várias si mesmo, num obscuro contexto agarrado ao cão, Pirata, o seu vínculo
ficcionistas portuguesas de guerra. Há uma casa onde só emocional a um mundo que se desfez
uma história sobre o que representa vivem mulheres e, do lado de fora, de repente. Leva consigo um único
“ser mãe, ter mãe, perder a mãe, o perigo, as insondáveis ameaças. O objeto, como se fosse um totem: “O
ser mãe da mãe”. Em suma, um nascimento de uma criança instaura lenço da minha mãe protegeu-me a
conjunto de aproximações literárias uma nova forma de silêncio, porque garganta, impedindo-me de dizer
ao conceito de maternidade, tema os ruídos naturais podem chamar o que se deve calar (…). Quando o
mil vezes explorado ao longo dos a atenção do inimigo e trazer meu corpo se movia, o corpo dela
séculos e sempre por explorar, a morte. É então nesse silêncio movia-se comigo. Quando as minhas
porque inesgotável. Responderam ao que se estabelece uma espécie pernas andavam, as suas pernas
desafio nove autoras: Ana Margarida de coreografia suspensa, com as caminhavam nas minhas. O lenço
de Carvalho, Cláudia Clemente, figuras femininas reduzidas a vultos, mantinha-nos ligados.” Sozinho com
Djaimilia Pereira de Almeida, olhares a substituir as palavras, toda a avó materna, em Mafra, longe do
Filipa Martins, Isabel Lucas, uma máquina invisível a trabalhar pai que se dissipa como fumo no ar,
Isabela Figueiredo, Luísa Costa com um único intuito: proteger ele crescerá em torno de um vazio,
Gomes, Marlene Ferraz e Raquel o bebé. A escrita meticulosa de “uma ausência que se notava”.
Ribeiro. O resultado é um mosaico mantém a tensão do huis clos, até A prosa, delicadíssima, acompanha
QQQ interessante, no modo como espelha ao desenlace de um terror que fica a essa lenta construção de si mesmo,
MÃES QUE TUDO sensibilidades e idiossincrasias ressoar, como um sino dos infernos. essa travessia do luto, sempre
Várias autoras estilísticas tão diversas, mas Mais convencional na estrutura, consciente de que pode haver
Companhia das Letras, 2019, 146 págs., qualitativamente desigual. ‘Terra’, de Isabela Figueiredo, é um “beleza na dureza”.
€16,90 Em ‘Aia ao contrário é sempre texto igualmente poderoso. Depois No conto de Luísa Costa Gomes,
Conto aia’, Ana Margarida de Carvalho da morte da mãe, um rapazinho é ‘Desertos, enseadas, covas abertas’, a
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narradora passa uma quinzena estival
na casa de uma amiga, junto a uma
ISTO ANDA
piscina, na mais completa solidão: TUDO LIGADO
“Não havia ninguém nas redondezas.
Só uma grande quantidade de mim
e um cão.” A mãe sofre de demência TEREMOS SEMPRE
e ela, a filha, não sabe como lidar
com isso. As férias são um ecrã SHAKESPEARE!
onde se projetam os seus fantasmas.
“Pergunto-me se haverá um padrão
na minha vida de me atirar às coisas.” A frase salta como uma
E quem diz coisas, diz a si mesma, D. R. lebre a meio da curva: “Eles
porque o movimento nesta história é que têm os livros!” Não
é sempre centrípeto: “Às duas da Némirovsky traça o retrato de uma geração de russos exilados é frase de sentido literal,
Contra os vidros,
manhã estou pronta para garimpar o o que nos dias de hoje
que em mim sou eu.” O corpo, tanto tende, por si só, a ser uma
como a mente, transforma-se em extravagância. Veja-se, por
campo de batalha, lugar de purga e
calcinação, “glória curta” como a do
cato que floriu durante a noite.
asas mortas / ANA
exemplo, o modo como
se interpreta a expressão:
“Não há dinheiro!”
D
Isabel Lucas, estreante na ficção urante mais de cinco décadas, Tatiana Ivanovna CRISTINA Pendendo sobre as nossas
com ‘E se ela chorar para sempre’, cuidou das crianças da família Karine. Agora LEONARDO cabeças como a espada de
surpreende-nos pela solidez septuagenária de “aspeto frágil”, com um Dâmocles, paralisa-nos
narrativa. O ponto de vista é o de olhar por vezes “penetrante”, outras vezes “exausto e os movimentos e desperta
uma filha, cuja relação com a mãe sereno”, a velha criada despede-se dos rapazes mais a gaguez mesmo nos mais tenazes. Semelhante
fica ensombrada por uma ameaça novos, enviados para a guerra civil entre “vermelhos” à morte, apresenta-se de capuz e gadanha: o
(doença fatal) que não se chega a e “brancos”, sabendo que nada voltará a ser como fora último argumento. Todos sabemos, porém, que
concretizar. Menos conseguidas são toda a vida. Uns meses mais tarde, a família já fugiu para o dinheiro — não crescendo nas árvores, nem
as prosas de Djaimilia Pereira de Odessa e só ela permaneceu, para tratar da propriedade, medrando nos rios — foi criado por nós à nossa
Almeida (‘Terra Santa’, monólogo testemunhando a sua ruína (“sob as folhas de acanto, o imagem e semelhança: os ricos têm muito, os
de uma mãe beata que mais parece estuque lascava-se, mostrando marcas esbranquiçadas pobres têm pouco, os miseráveis, nicles. Apesar
o desgarrado capítulo de um futuro como o traço das balas”), enquanto no horizonte, ao disto, referimo-nos à escassez do vil metal como
romance), Filipa Martins (‘12 longe, aldeias ardiam na noite. Nada sobrevive à voragem se de uma seca que nos privasse de pão e água se
milímetros’, ideia forte que se perde da História, a morte ronda, e ela acaba por se juntar aos tratasse. No limite, aceitamos ficar a pão e água.
pelo caminho), Cláudia Clemente patrões, levando-lhes, cosidas nas bainhas da roupa, Filhos de um realismo que já não é neo, apenas
(‘Duas mães’, um par de vidas as últimas joias. Em cenas rápidas, sem nada a mais autojustificativo e desgraçadamente narcísico,
decalcadas a papel vegetal, mas com nem a menos, seguimos depois a trajetória do exílio, deixámos de acreditar na multiplicação dos pães e
desfecho algo forçado) e Marlene até Paris, onde a família acaba por se instalar, no meio dos peixes: os peixes são de aquacultura e os pães
Ferraz (‘O coração mecânico’, de outros emigrantes russos resignados à sua sorte. Os de plástico, como o Portugal de O’Neill, embora
exercício quase escolar, inverosímil Karines perderam tudo: a riqueza, o estatuto social, não necessariamente mais baratos. Portanto, o
e pretensioso). a pátina aristocrata. Num apartamento minúsculo e homem disse, soltando a frase como uma lebre a
Num registo menos ficcional, abafado, assemelham-se às “moscas de outono”, voando meio da curva: “Eles é que têm os livros!” Discutia-
fazendo até tangentes ao ensaísmo “arreliadas, contra os vidros, arrastando as asas mortas”. se o preço dos bilhetes — se podiam ser comprados
de pendor biográfico, Raquel Aos poucos, acabam por se adaptar. Os mais velhos como (mais baratos) até ao destino final do viajante,
Ribeiro problematiza, em ‘Dez que aturdidos, tomados por um “espanto confuso”; ou tão-só até ao destino final da camioneta
pequenos passos para deserdar os mais jovens entregando-se a um desprendimento (pertencendo estas, evidentemente, à mesma
uma mulher’, o lugar de quem hedonista, uma “sombria leviandade”. Só Tatiana companhia). E assim como um condutor brasileiro
decide não ter filhos, abdicando se recusa a seguir em frente, ainda presa à aura do me surpreendeu com a pergunta: “A moça gosta
desse direito de procriar que é que se perdeu, sempre virada para o passado e seus de poesia?”, logo declamando, sem esperar pela
tantas vezes entendido socialmente ilusórios esplendores. Há algo da Félicité, de Flaubert, resposta, Mário Quintana: “O que tem de bom
como um dever. “Resistir ou a empregada doméstica de “Um Coração Simples”, numa galinha assada é que ela não cacareja”, assim
rejeitar essa inevitabilidade será nesta mulher para quem “nunca havia demasiado gelo o condutor português, lançando desabafo resignado
legítimo? Saber que contribuímos nem demasiado vento”, concentrando em si a essência sobre quem tem poder para fazer as regras: aqueles
para a extinção do humano com de um tempo de que não abdica. Subtil e incisiva, a que possuem os livros! A frase, com o seu quê de
os nossos ventres secos, crespos, escrita de Némirovsky faz dela uma personagem forte, extraordinário em época de smartphones, ganhou
inúteis, desperdiçados. (…) Saber inesquecível, ao mesmo tempo comovente, patética e um quê extra ao ter sido proferida na semana em
que somos párias — das religiões, trágica. No fim, em vez da neve pura da pátria distante, que António Costa disse que ameaçava demitir-se
das legislações, dos bons costumes, sobra-lhe essa “película fina de pó” que “caía do teto e e o ministro da Economia disse que, para satisfazer
das famílias. (…) Mal-amada, mal- cobria os objetos” como “uma cinza leve”. / J.M.S. os professores (que é suposto terem os livros...), só
fodida, fufa, puta, seca, estéril. se desinvestissem no Serviço Nacional de Saúde
Porque os ventres agrestes das e na ferrovia (como já desinvestiram no SNS e na
mulheres sem-filhos são sempre ferrovia sem terem satisfeito os professores, alvitro
propriedade verbal daqueles que QQQQ que a razão possa estar quiçá nas trotinetes...). Com
deles sempre quiseram dispor.” AS MOSCAS DE OUTONO um final aberto (à Popper?), aguarda-se agora a
Cada um à sua maneira, os contos Irène Némirovsky Parte II do drama, em que ficaremos a saber quem
de “Mães que Tudo” recuperam essa Cavalo de Ferro, 2019, trad. de Diogo Oliveira casa com quem. E para quem achou, como eu, o
propriedade verbal das mulheres Paiva, 85 págs., €10,99 drama fraquito, sobra Shakespeare e o ‘Brexit’.
sobre os seus corpos e narrativas. b Novela Nada mal. b
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QQQ
AS ORIGENS DE TUDO
Jürgen Kaube
Desassossego, 2019, trad. de
Neuza Faustino, 351 págs., €19,90
Não-ficção
Nem cá nem lá
etimologia, as origens fornece-
rem-nos uma chave qualquer para
entender os objetos em questão.
E no entanto não é forçosamente
assim; uma coisa pode ter começa-
do com um determinado sentido, e
B
oa parte das crónicas deste triunfam, despóticos, e ninguém lhes solilóquios. Criaturas descritas a seguir passar a ter outros, que se
volume que reúne ficção e escapa, ou só talvez os filhos muito como “vozes”, “fantasmas”, tornam dominantes. Jürgen Kaube,
não-ficção, originariamente pequenos das mulheres-a-dias, “ectoplasmas”, “aparições”, criaturas vencedor de prémios na área do
publicadas no “Diário de Lisboa”, enquanto são demasiado pequenos “nem cá nem lá”, incluindo uma jornalismo científico e autor de
foram coligidas por Maria Judite para serem desconsiderados pelos mulher feia com voz bonita e que, por vários livros, está bem ciente disso.
de Carvalho em “A Janela Fingida” outros como filhos de uma mulher- isso mesmo, só existe para os outros No final de “As Origens de Tudo”,
(1975) e em “O Homem no Arame” a-dias. ao telefone. Um caso típico em Maria alerta para a distinção entre o que
(1979). Umas quantas dedicam-se “Foi num dia de agosto que a Judite de Carvalho, tal como é típico, podemos saber ‘sobre’ as origens e
a típicos “assuntos de crónica”, as empregada resolveu suicidar-se”, no conto que dá título à colectânea, o que se poderá conhecer, ou não, ‘a
actualidades que vêm nos jornais, ou começa uma das crónicas, tão contrapor os eufemismos da partir’ delas. As interrogações mai-
vinham na altura, o doutor Barnard, semelhante aos melhores contos de infidelidade à crueza de uma doença ores até têm a ver com o primeiro
a Lua, os hippies, a Rodésia, ou então Maria Judite, texto todo em contenção mortal. Damiana, a personagem elemento, uma vez que o segundo é
a divagações sociológicas sobre a agreste e empática. As figuras que desse conto, vive emparedada entre sempre passível de ser (re)cons-
onomástica e os horóscopos; mas aparecem e desaparecem nestes uma ruptura emocional há muito truído a cada momento, e o modo
a maioria segue um princípio aqui textos de uma página ou pouco mais adiada e a mortalidade que talvez já como o fizermos dirá muito sobre
definido como “podia ser um conto descrevem-se quase invariavelmente não seja possível adiar mais. E tudo é quem o faz e porquê. Nenhuma
mas não é, aconteceu”. Ou seja, como infelizes, homens e mulheres decepcionante, deformado, fictício, história das origens é alheia às suas
são coisas vistas, verdadeiras. E as que dizem “para aqui ando”, cheios até as coisas, uma carteira de plástico circunstâncias. Não foi por acaso
personagens verdadeiras das crónicas de falsas certezas ou sem certeza a imitar crocodilo, um impermeável que Locke, Rousseau e companhia
de Maria Judite são, como as suas alguma, grandes iludidos e grandes de plástico a imitar cabedal, a “chuva falaram do homem e do Estado
personagens inventadas, pessoas desiludidos, arrogantes, pobres mansa e igual, fatigada”. Podia ser como falaram, nem os modos como
de quem ela gosta, que lamenta, envergonhados, candidatos fora de diferente, a vida?, perguntam estes o fizeram são alheios às respetivas
que compreende: os condutores de prazo a uma oferta de emprego. São contos. Podia, respondem, mas não é. épocas. Vale isto para dizer que
domingo e as crianças a quem os personagens com os quais a cronista / PEDRO MEXIA muito do que é fascinante na busca
pais desincentivam o idealismo, os se cruza em todo o lado, no metro, das origens tem a ver com a própria
homens de ombros descaídos e as nos grandes armazéns, nas avenidas, Pedro Mexia escreve de acordo busca e as especulações que ela
mulheres velhas antes do tempo, as no prédio em frente ao seu, na com a antiga ortografia produz. Algumas podem ser mais
meninas todo o dia metidas na gaiola “geometria gelada” de Lisboa, cidade plausíveis do que outras, e também
de um guichet e a costureira a quem desbotada e indiferente onde até pode mais inesperadas. Este livro fornece
nunca ofereceram flores. ser embaraçoso cumprimentar um uns quantos exemplos disso, e pode
Algumas das situações descritas, e desconhecido. Uma cidade hostil às ser lido como obra de divulgação
imaginadas para além da descrição, árvores, como já notou Baudelaire, e científica, mas com um acentuado
parecem o enredo de um conto breve, onde, diz-se numa crónica tristíssima, pendor sociológico. Logo à partida
ou o seu desenlace. Assim acontece nem vento pode haver: pois que o autor explica que não vai examinar
quando uma lojista se engana no coisa é o vento sem as árvores onde a origem de algo como a roda, pois
troco e pode ser despedida por causa visivelmente o vemos? isso não implica as relações sociais.
disso; quando há reencontros entre Quando chegamos aos contos, é Interessa-lhe refletir sobre o huma-
antigos colegas que mentem sobre a como se não houvesse transição. QQQQ no, a sociedade e a comunicação. O
vida que de facto têm; quando certos Em “Além do quadro” (1983) OBRAS COMPLETAS — VOL. IV que não impede os factos – e aqui
pedintes não têm o ar devidamente descobrimos a mesma fauna, de Maria Judite de Carvalho há muitos – de serem o que mais
desgraçado que deles se exige; forma, é certo, muito mais fracturada Minotauro, 2019, 354 págs., €15,90 cativa o próprio pensamento.
quando a beleza, a juventude e o statu e fragmentada, com inúmeros Contos e crónicas / LUÍS M. FARIA
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O SO M E A FÚR IA E IN N ER HAR BO UR FILM S AP R ESEN TAM
UM FILME DE
JÁ NOS CINEMAS
LISBOA • OEIRAS • CASCAIS • ALMADA • SETÚBAL • COIMBRA • AVEIRO • PORTO • VISEU
EM CO-PRODUÇÃO COM KNM SHORTCUTS INTERNATIONAL TITAN FILMS INTERNATIONAL COM KAM KWOK LEUNG COMO JIN SUN JIAJUN CÂNDIDO FERREIRA TIAGO ALDEIA FOTOGRAFIA SUSANA GOMES SOM RICARDO LEAL DIRECÇÃO DE ARTE ANDREW WONG GUARDA-ROUPA LUCHA D’OREY
MAQUILHAGEM E CABELOS NUNO ESTEVES (BLUE) MONTAGEM SANDRO AGUILAR MONTAGEM DE SOM E MISTURA TIAGO MATOS MÚSICA ORIGINAL JORGE SALGUEIRO PRODUTORA EXECUTIVA CRISTINA SOARES PRODUTOR ASSOCIADO NORMAN WANG PRODUTOR DELEGADO LUÍS URBANO CO-PRODUTORES MICHEL MERKT
GEORGES SCHOUCAIR LIN NAN LEI KENG WAI PRODUTORES LUÍS URBANO SANDRO AGUILAR PEDRO CARDEIRA IVO M. FERREIRA SUSANA GOMES EDGAR MEDINA ARGUMENTO IVO M. FERREIRA EDGAR MEDINA REALIZAÇÃO IVO M. FERREIRA © 2018 O SOM E A FÚRIA, INNER HARBOUR FILMS
©
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Vincent Lacoste
em “Agradar, Amar
e Correr Depressa”
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O intransigente luto
de Angela Schanelec
E
sta nova longa-metragem de “Hamlet”, de Shakespeare. Dito
da alemã Angela Schanelec isto, diga-se também que estes
(um dos nomes maiores que elementos nos chegam a partir
se firmou com a Escola de Berlim de uma narrativa completamente Q QQ
neste século) é seguramente um dos fragmentada. Só que o filme THE BEACH BUM: LUCIA CHEIA
filmes mais complexos e radicais revela-nos às tantas um elemento A VIDA NUMA BOA DE GRAÇA
dos últimos anos, tal como aqui que começa a dar-lhe sentido e a De Harmony Korine De Gianni Zanasi
já se apontou aquando da última reverberar na perceção que vamos Com Matthew McConaughey, Com Alba Rohrwacher,
Berlinale — e o IndieLisboa exibe-o tendo das coisas: é que Astrid, Snoop Dogg, Isla Fisher Elio Germano, Giuseppe
esta noite. “I Was at Home, but...” — sabe-se depois, perdeu o marido (Suíça/Reino Unido/França/EUA) Battiston (Itália)
título inspirado numa obra de Ozu (isto é, Phillipp perdeu o pai) algum Comédia M/16 Comédia dramática M/14
dos anos 30, “I Was Born, but…”, tempo antes. Fica então implícito
que também nos falava da dinâmica que a fuga do adolescente, a ideia ESTREIA O título refere-se a Moon- ESTREIA De vez em quando (mas é
de uma estrutura familiar — começa do “Hamlet” na escola (a ausência dog (McConaughey), um escritor de raro) o cinema traz-nos uma surpresa,
com um prólogo sobrenatural paterna) e a desordem que atravessa meia idade radicado em Miami que um filme que agarra uma boa ideia e se
(rodado na Sérvia) com um cão, aquela mulher estão ligadas à perda — à imagem de qualquer adoles- põe a trabalhar nela. A ideia não tem
um coelho e um burro a mirar o do pai dele/marido dela. Podemos cente — organiza a sua vida segundo de ser nova (se é que tal coisa existe),
horizonte. Não faltará quem logo resumir “I Was at Home, but...” a o ‘princípio da diversão’, dividindo-se apenas estimulante como desafio para
se recorde do burro de “Au Hasard um trabalho de sublimação de um salomonicamente entre o álcool, instalar uma ficção, personagens, uma
Balthazar”, de Bresson, cineasta, luto? Podemos, e ficaríamos por aí as mulheres e os charros. Estamos narrativa. E a ideia deste filme italia-
de resto, decisivo para Schanelec. se não soubéssemos que os filhos de perante um Charles Bukowski da no — que não quero revelar para não
Os humanos só chegam depois ao Astrid têm mais ou menos a mesma loja dos 300 (os poucos poemas estragar o prazer do inesperado que
ecrã e sabemos que Philipp, um idade dos filhos da cineasta na vida que o ouviremos recitar querem-se é um dos trunfos de “Lucia Cheia de
rapaz de 13 anos, desapareceu do real e que também esta perdeu um provocadores, mas são só inanes) Graça” — preenche bem esse objetivo
seu apartamento berlinense sem companheiro há não muito tempo. que, como acontece com os outros e tanto melhor quanto o assunto de
deixar rasto, voltando ao fim de E no entanto, não há aqui qualquer ‘heróis’ do seu cinema, Korine se re- onde parte é sério, a situação onde se
uma semana como se nada fosse. traço autobiográfico, qualquer cuará a julgar: aqui, o seu hedonismo manifesta não o é menos, mas o tom
A mãe dele, Astrid (Maren Eggert), sessão de terapia. Se Astrid é um será sempre matéria de descrição, em que decorre é de comédia. Tudo se
que aparenta uns 40 anos, atravessa alter ego de Schanelec, este jamais e nunca matéria de moral. Esse é, caldeia em torno de Alba Rohrwacher,
um período em que parece estar é declarado. E por isso preferimos aliás, o único mérito de um filme que, luminosa atriz (ela, sim, em estado de
absolutamente desnorteada. O ver em “I Was at Home, but...” o para evitar confrontar o protagonista graça) que compõe uma mulher que, na
quotidiano dela é preenchido por que nele há de universal, isto é: com qualquer tipo de adversidade, casa avançada dos 30 e mãe de uma
acontecimentos dispersos (e quase o ritual de uma família que não o condenará a habitar numa espécie adolescente com quem não se enten-
permeáveis ao absurdo, como na sabe se conseguirá reconfigurar-se de eterno presente. De facto, cada de por inteiro, ainda não estabilizou
sequência em que ela procura afetivamente. / FRANCISCO FERREIRA um dos episódios de “The Beach profissionalmente e ainda não desistiu
comprar uma bicicleta) mas a Bum” serve apenas para reiterar de tornar o mundo um bocadinho mais
confusão que existe em Astrid não ad nausem um retrato que ficará habitável. Lucia se chama e vemo-
vem apenas do recente sumiço do construído ao fim de cinco minutos: -la numa agitação onde se misturam
filho. Astrid tem também uma filha o de aparente génio libertino cuja determinação, perspicácia e imaturida-
ainda criança, irmã mais nova de I WAS AT HOME, BUT... propensão para o prazer por nada se de, entre um ex que está mortinho por
Phillipp. E a dada altura, também De Angela Schanelec deixa afetar (nem pela descoberta voltar para ela, uma situação profissio-
vemos o último na escola que ele IndieLisboa, Cinema São Jorge, hoje, 21h30 de que a mulher tem um affair com nal periclitante e um sentido do dever
frequenta a ensaiar uma passagem www.indielisboa.com o seu melhor amigo, nem pela morte que não a larga. Tudo decorre numa
de uma figura próxima...). A conduta pequena vila italiana, daquelas onde
pseudoinsurrecional de Moondog é nada se passa e o presidente da Câma-
assim acolchoada por uma narrativa ra conhece toda a gente, ele que anda
estacionária, que pretende sobre- sempre a ver se consegue um pouco
tudo escudá-lo de todo o contac- mais de progresso, um pouco mais
to emocional com o seu próprio de empregos — e até está disposto a
universo, acabando nesse gesto por fechar um bocadinho os olhos se algo
dessensibilizá-lo e por tornar as suas se perspetivar. Lucia, topógrafa, cai no
aventuras indiferentes para o espec- meio de um investimento enorme, num
tador (porque elas nunca se prestam terreno que lhe cometem agrimensar,
à dissonância). Há belos postais ilus- onde há qualquer coisa que não bate
trados de Miami, uma banda sonora certo e onde tem uma visão. E o filme
simpática (Van Morrison), mas o que faz-nos segui-la com gosto e a sabo-
levamos para casa é o mesmo que rosa avidez de ‘e depois?’ que não nos
teríamos levado se tivéssemos pas- larga. Tão bem nos leva pelo curso veloz
sado uma noite de copos a conver- da ficção que é deveras, uma pena, que
sar com um adolescente ganzado: o desfecho seja descoroçoante. Ainda
Maren Eggert e Dane Komljen no novo filme de Schanelec — valeu à cineasta cinco minutos de diversão, e várias assim, é mais interessante que a maioria
alemã um Urso de Prata de Melhor Realização em Berlim 2019 horas de tédio. / V.B.M. dos filmes que aí andam. / J.L.R.
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QQ Q
HOTEL IMPÉRIO VINGADORES:
De Ivo M. Ferreira ENDGAME
Com Margarida Vila Nova, Rhydian De Anthony Russo e Joe Russo
Vaughan, Tiago Aldeia (Portugal/ Com Robert Downey Jr., Mark
Macau/França/Alemanha/China) Ruffalo, Scarlett Johansson (EUA)
Drama M/14 Aventuras M/12
Charlize Theron
bem com ele. É uma respiração que Universo é passível de ser reforma-
se instala logo em torno da protago- tado, o tempo cavalgado, a vida e a
nista, Maria (estupenda Margarida morte reconfiguradas — de tal modo
Vila Nova!), cujo estatuto vai sendo que a própria aniquilação de alguns
à presidência!
continuamente fugidio — e, mesmo protagonistas no termo deste filme
quando julgamos dominar a situação (não estou a revelar nada que não
ficcional e os conflitos instalados, nos seja do domínio público...) não se
continua a escapar. E não é cobra ou pode dizer que seja trágica. Basta um
C
harlotte Field é uma daqueles fazem o registo deslizar que nem enguia, não é por visco ou ardil que se estalar de dedos dos argumentistas
mulheres de fazer parar o manteiga (destaque para June Diane descompromete com o que tínhamos de um próximo installment da Marvel
trânsito, tanto que o facto de Raphael que interpreta uma diretora acordado ela ser, é como areia nos (como é que se diz em português
o Presidente dos Estados Unidos (no de campanha snobe, exasperante dedos, é por ser alma descompac- — parcela, episódio, instalação?)
filme, um encartado idiota) a ter e sublimemente blasé). Depois tada, dissolvida pelas circunstâncias para que tudo o que ficou estabele-
nomeado para secretária de Estado o filme torna-se uma comédia da existência numa teimosa sobre- cido neste “Vingadores: Endgame”
acaba a desencadear uma onda de romântica insuflada com uma vivência, numa vida sem sentido. seja revertido. A regra suprema
comentários sexistas como não há energia um pouco maluca, um Temos, então, um drama e, se em dos filmes-Marvel é que ‘tanto faz’,
memória. Mas a senhora não é tola pouco excêntrica, pontualmente Maria ancorarmos e com ela seguir- tanto faz que seja assim como o seu
de todo, desde a escola secundária idiota, aqui e ali grosseira, que põe mos pelas muitas portas e cortinas e contrário, tanto faz que o super-he-
que é uma mulher de causas — e à prova, em grau extremo, a nossa véus, fumos e águas de Macau onde rói seja impoluto como corruptível,
aponta para se candidatar à Casa tolerância quanto aos patamares é, sobretudo, noite, teremos uma tanto faz que estejam todos unidos
Branca. É dos tempos da escola de inverosimilhança que estamos rota em labirinto, um enigma onde como cada um para seu lado ou uns
secundária de Charlotte que vem dispostos a alcançar. o exotismo não chega a instalar-se, contra outros, ou... tanto faz, pois. É
um tal Fred Flarsky, jornalista “Seduz-me Se És Capaz” (título com a energia de uma torrente onde por isso que a Capitão Marvel dá de
gordão, desajeitado, com ideias português desnecessariamente o peso do dinheiro e da violência frosques desta batalha final simples-
radicais, sempre de boné e vestido farfalhudo para o simples e direto que ele permite tudo arrasta. Nessa mente porque tem mais que fazer
às três pancadas de que, nessa “Long Shot” original) perde-se, torrente mora também um lastro (não estou a inventar, está no filme...).
época, ela foi nada mais nada assim, na estrada, despista-se. enorme, difuso e doloroso: o passado É por isso que Thor pode ficar gordo
menos que babysitter. E ele ainda Há cenas inteiras — como a da e a lama que por lá ficou. Desse pas- e alcoólico, Hulk pode ganhar um
se lembra de uma ereção juvenil secretária de Estado sob efeito de sado emana Chu/Rhydian Vaughan fácies híbrido & etc. Claro: o ‘tanto
que o deixou mesmo sem jeito... substâncias ilícitas a ter de tratar que não saberemos nunca de certeza faz’ permite uma ou outra coisa di-
Encontram-se, ela precisa de uma de uma emergência nacional — que feita se vem em busca de vingança vertidas, mas a maior parte do tempo
pessoa que escreva discursos para a nem por fiel amor ao mau gosto se se de paz — e também Edgar/Tiago é apenas uma arbitrária maçada.
campanha, ele decide arriscar, mais conseguem engolir. E a crença na Aldeia, o português sem escrúpulos Entretanto, a vontade de desmesura
por paixoneta que por convicção razoabilidade dos cidadãos eleitores, e desmedidamente rapace que é o encontra nos efeitos digitais um al-
política e já se está a ver onde tudo seduzidos por uma improvável lado mais fraco do filme, escancarado fobre incalculável (só a imaginação e
vai dar. história de amor, ainda menos... estereótipo; nesse lugar habita o pai o dinheiro lhe impõem confins) que a
Ela é Charlize Theron, ele é Seth / JORGE LEITÃO RAMOS de Maria que vive há tantos anos em produção usa. Rufam decibéis, à falta
Rogen, e o filme é uma comédia Macau que já não tem casa a que de vera magia, mas a fúria aparente
que funciona muito razoavelmente retornar e apodrece entre os restos com que tudo se embrulha fabrica
durante a primeira hora. É nesse de um passado que talvez tenha sido uma espetacularidade que se dá bem
período que o humor se joga radioso, mas, o mais provável é que com o prazer efémero que domina
nas diferenças abissais entre os QQ não. Temos em “Hotel Império” uma por estes dias. Cúmulo de uma saga
mundos de Charlotte e de Fred e SEDUZ-ME SE ÉS CAPAZ história arrumada? Não. Mas temos com fiéis seguidores, “Vingadores:
nos desajustamentos do segundo De Jonathan Levine uma deriva que o realizador Ivo M. Endgame” está em vias de se tornar
ante a sofisticação da primeira, tudo Com Charlize Theron, Seth Rogen, Ferreira delineou e a que a montagem um dos mais rentáveis filmes de to-
apoiado num conjunto de atores e June Diane Raphael (EUA) de Sandro Aguilar deu forma final. E a dos os tempos. Já superou os dois mil
de personagens secundários que Comédia M/12 deriva é boa de seguir. / J.L.R. milhões de dólares de receita. / J.L.R.
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b Q
UM ATO DE FÉ GUERRA SEM QUARTEL
De Roxann Dawson De Lior Geller
Com Chrissy Metz, Com Elijah Rodriguez,
Topher Grace, Jean-Claude Van Damme,
Marcel Ruiz (EUA) David Castañeda (Bulgária/EUA)
Genero M/14 Ação/Drama M/14
ESTRELAS DA SEMANA
Jorge Vasco
Francisco
Leitão Baptista
Ferreira
Ramos Marques
Um mUndo de
Diamantino QQQ QQ Q
Guerra Sem Quartel Q
PorCelana Chinesa
Hotel Império QQ QQ
Lucia Cheia de Graça QQ QQ
Menina QQ
Mr. Link
Quero-te Tanto!
QQ
Q
QQQ
QQ
A AntigA Coleção CunhA Alves
Seduz-me Se És Capaz
Vingadores: Endgame
QQ
www.museudooriente.pt Museu do oriente | A pArtir de 9 MAio
Q
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O lado negro
da política
A série de espionagem
“Deep State” regressa
esta segunda-feira
à FOX para novos
capítulos, agora com
a África subsariana
como fundo.
A segunda temporada
do thriller estreia-se
com episódio duplo
TEXTO JOÃO MIGUEL SALVADOR
Joe Dempsie
interpreta Harry
Clarke em
“Deep State”
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S
e é verdade que Joe Dempsie moral”. “Ambos temos um desejo
entrou em “Deep State” num de verdade e justiça”, ao qual se
papel que à partida seria junta uma vontade de ir sempre
menor — era o filho morto da além do que é expectável. Nas
personagem principal, Max Easton gravações desta segunda temporada
(Mark Strong) —, a sua relevância voltaram a ser transpostas algumas
rapidamente cresceu na produção barreiras, com a experiência de
e o ator é uma das principais waterboarding pela qual passou a
caras a transitar para os novos surgir no topo da lista.
episódios. A história “continua O ator foi sujeito ao instrumento de
onde parou” no último capítulo tortura que consiste na submersão
da temporada, garante Dempsie, da cabeça com vista a um potencial
mas isso não impede algumas afogamento, e essa não foi uma cena
flutuações temporais ao longo dos filmada com recurso a qualquer
episódios. Trata-se do rescaldo, artifício. Depois de ensaiada com
mas também haverá espaço para um duplo, foi filmada com o próprio
regressar ao início e incluir cenas ator, sujeito a waterboarding embora
que terão acontecido ainda antes da de forma controlada. Houve menos
temporada inicial. acting, mas a realidade da série
“Deep State”, que agora centra a (escrita por Matthew Parkhill, Chris
ação na África subsariana e nos Dunlop, Joshua St. Johnson, Simon
recursos naturais do Mali, está Maxwell e Steve Thompson) saiu a
longe de ser o primeiro projeto ganhar.
televisivo de Joe Dempsie, mas é um Ao génio de Matthew Parkhill
dos seus maiores desafios e agora — que assume as rédeas do
a ideia é aprofundar o lado mais projeto como produtor executivo,
obscuro da política internacional. cocriador, argumentista, realizador
É que neste thriller de espionagem e showrunner — e de Simon Maxwell
há espaço para tudo — da intriga (cocriador e produtor executivo)
à ação, passando pelas histórias junta-se mais uma vez Hilary
pessoais e pelo romance — e isso Bevan Jones (premiada produtora
requer profissionais preparados televisiva que se mantém como
como se de atletas de alta produtora executiva), aos quais
competição se tratassem. É o caso. se ligam agora o realizador Joss
Antes de interpretar Harry na Agnew e o produtor Paul Frift
primeira série da divisão europeia na frente da equipa responsável
da FOX, o ator britânico foi um dos por “Deep State”. Do grupo de
nomes grandes do fenómeno juvenil produtores executivos fazem
“Skins” (MTV) e está agora num ainda parte Walton Goggins, Alan
ponto alto da sua carreira. É que Greenspan, Helen Flint e Sara
enquanto desenvolvia a personagem Johnson (da FOX Networks Group,
de espião continuava com aquele Europa e África).
que pode ser encarado como o seu A segunda temporada de “Deep
maior papel de sempre. Dempsie é State” estreia-se esta segunda-feira
também Gendry em “A Guerra dos em episódio duplo na televisão
Tronos” (HBO Portugal/Syfy) e essa linear (às 22h15 na FOX), mas a
personagem — tão diferente da que antestreia deu-se em streaming. A
agora vive — pode ter sido um dos mais recente aposta do grupo FOX
grandes processos transformadores está já disponível através do serviço
pelo qual passou. As filmagens em de televisão FOX + (nos operadores
paisagens com condições extremas NOS, Vodafone e Nowo), onde é
na Irlanda do Norte cruzam-se também possível aceder a outros
com o calor de Marrocos e com a conteúdos dos estúdios. Até ao
África subsariana, num misto de fecho da edição, não foi anunciada
experiências que o têm feito crescer, qualquer intenção de seguir
ao mesmo tempo que consegue com o projeto para uma terceira
identificar-se em alguns pontos temporada. b
com as personagens que interpreta, jmsalvador@expresso.impresa.pt
como expressa em declarações
enviadas ao Expresso.
“Acho que eu e o Harry somos
parecidos em alguns aspetos”, diz,
para depois se fazer transportar DEEP STATE
para os novos capítulos. É que o ator De Matthew Parkhill, Simon Maxwell
partilha com o espião ficcional “a Com Joe Dempsie, Karima McAdams,
falta de esperança que vemos no Alistair Petrie, Walton Goggins
início da segunda temporada”, mas FOX, estreia segunda-feira, 22h15
também uma espécie de “bússola (Temporada 2)
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Gentrificação
Dessner que vive a dois passos,
numa quinta do século XVIII), em
Upstate New York, um pequeno
paraíso rural onde se ouvem os
uivos dos coiotes e o coaxar das rãs à
beira dos lagos, refúgio dos pintores
Menos tensos, menos ansiosos paisagistas românticos da Hudson
e menos urbanos: “I am easy to find”, River School oitocentista, vizinho
da lendária Big Pink da Band, e da
o novo disco dos The National, comunidade artística e suavemente
boémia da acolhedora cidade de
é o exato oposto polar do anterior Hudson. É o próprio Aaron que, à
TEXTO JOÃO LISBOA “Uncut”, estabelece essa relação:
“Foi muito importante mudarmo-
nos para aqui. Sentimos o legado de
E
m fevereiro do ano passado, era algo que realmente o preocupava. todos os artistas que aqui viveram.
faltavam oito dias para Exatamente o tipo de problemas Divertimo-nos mais, estamos menos
David Byrne colocar na rua com que The National não terão de tensos e ansiosos. Menos urbanos.
“American Utopia”, quando, após se defrontar agora que “I Am Easy Não sei se isso passa necessariamente
um post no seu blogue em que To Find”, o sucessor de “Sleep Well para a música mas influencia o modo
dava a conhecer os 25 músicos Beast”, é publicado: Carin Besser como trabalhamos.” A verdade é que
que com ele tinham colaborado, (mulher de Matt Berninger), Pauline passa, sim. Menos tensos, ansiosos
o céu lhe caiu em cima: na caixa de Lassus (alias, Mina Tindle, mulher e urbanos é o exato oposto polar
de comentários, dezenas de dedos de Bryce Dessner), Kate Stables (This de “Alligator” e “Boxer”. O anti-
apontavam-lhe o tremendo pecado Is The Kit), Gail Ann Dorsey (ex- The National. Laurel Canyon vs.
de, entre os 25, não existir uma baixista de David Bowie, Bryan Ferry, Brooklyn.
única mulher. Dificilmente poderia The The, Gang of Four e tutti quanti), Juntemos todas estas peças (e ainda
ter sido escolhido um alvo menos Sharon Van Etten, Lisa Hannigan, o facto de o realizador Mike Mills
adequado: o álbum anterior (“Love Mélissa Laveaux e Diane Sorel — que seria também responsável
This Giant”, 2012) havia sido escrito deverão surgir todas, com destaque por um filme de 24 minutos, com
e gravado a quatro mãos com St. variável, no genérico final. E dá-se Alicia Vikander, complemento visual
Vincent/Annie Clark e “Here Lies bastante por isso. do disco — ter atuado enquanto
Love” (2010) — uma peça conceptual Mas aquilo em que se repara muito produtor heterodoxo) e não será
sobre a figura de Imelda Marcos — também — e que já se pressentia em grande ousadia dizer que não se trata
registava a participação de duas “Sleep Well Beast” — é uma espécie verdadeiramente de um álbum dos
dezenas de cantoras, de Tori Amos de gentrificação da atmosfera mental National mas daquilo a que Aaron
a Natalie Merchant, Sharon Jones e criativa da banda que, não por chama “a community of voices”.
QQQ ou Shara Worden. Mas (humilde e acaso, tem uma correspondência A voz de Matt Berninger cede
I AM EASY TO FIND injustificadamente), Byrne admitiu assaz física: “I Am Easy To Find” frequentemente o primeiro plano ou
The National a terrível falha, pediu desculpa, e foi gravado no Long Pond Studio de deixa-se afogar no veludo coral das
4AD garantiu que a disparidade de género Hudson Valley (construído por Aaron de Gail, Kate, Lisa, Sharon, Pauline,
Mélissa, Diane, e do Brooklyn Youth
Chorus, os (belíssimos) arranjos de
piano, sopros e cordas aconchegam
um resignado desassossego (“But
I’m learning to lie in the quiet
light, while I watch the sky go from
black to gray, learning how not to
die inside a little every time” ou
“Maybe we’ll end up the ones who
eat chocolate chip pancakes next to
a charity swimming pool”) e a tépida
malaise apenas é perturbada, aqui
e ali, pela destrambelhada arritmia
da bateria de Bryan Devendorf e
por um ou outro raro olhar sobre
paisagens menos confortáveis,
caso da sublime e quase coheniana
‘Not in Kansas’: “My bedroom is
a stranger’s gunroom, Ohio’s in
a downward spiral, can’t go back
there anymore, since alt-right opium
went viral (...). Time has come now
to stop being human, time to find
a new creature to be, be a fish or a
Não se trata verdadeiramente de um álbum dos National weed or a sparrow, for the Earth has
mas daquilo a que Aaron Desser chama “a community of voices” grown tired and all of your time has
expired.” b
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A DESARMONIA
DAS ESFERAS
Descoberta nova
XENOFILIA
QQ gravação inédita de
SEEING OTHER PEOPLE Bill Evans em
concerto, de 1969 David Napier, professor de
JEAN-PIERRE LELOIR
Foxygen Antropologia Médica no
Jagjaguwar/Popstock University College de Londres,
publicou, em 2003, “The Age Of
Raramente a perceção de um músico Immunology” no qual explorava
sobre o seu próprio devir é tão cer- e denunciava a aterradora
teira. O sexto álbum dos norte-ame- ideia — contrabandeada
ricanos Foxygen — duo californiano
dado a saltos entre psicadelismo,
pop barroca e algo mais de permeio
Histórico / JOÃO
do âmbito médico para as
“ciências” sociais — de que,
tal como o organismo se
S
LISBOA
— é precisamente o que anuncia o empre que uma destas pérolas dá à costa, logo defende e sobrevive através da
frontman Sam France numa divertida vem à memória “Why Didn’t They Ask Evans?”, eliminação de corpos estranhos
carta de boas-vindas (com direito de Agatha Christie. Pois, a verdade é que até se e microorganismos invasivos, o mesmo deveria ocorrer
também a “obrigado” e pedido de poderia dar o caso — como uma e outra vez aconteceu na sociedade expulsando e combatendo tudo o que, há
desculpas, não vá alguém irritar-se): — de Bill Evans dizer que sim: desse modo, a legião de quase 40 anos, Peter Gabriel designava por “not one
um disco de adult contemporary. engenheiros de som que tirava o curso por sub-repção of us”. Não é preciso estar excessivamente atento ao
Esta contemporaneidade, entenda- nos seus concertos, noite após noite, poderia, enfim, mundo para nos apercebermos de que, em década e
-se, remete para uma estética que destapar os microfones e gravadores que mantinha meia, esse horror ideológico — ele, sim, verdadeiramente
— reabilitada pelos ironistas do rock ocultos sob as toalhas de mesa dos clubes de jazz. Um infetocontagioso — se converteu em venenosa pandemia
de iate na última década — conse- dos mais famosos reincidentes no delito era um francês a com consequências inquietantemente práticas e
guimos sinalizar primeiramente a que chamavam “Jo”, um fanático impossível de reabilitar que exige resposta rápida e intensamente xenófila.
meio daqueles anos 80 onde sinte- que durante 11 anos acompanhou as digressões de Evans Prontos a usar, os Vanishing Twin e o álbum que cita/
tizadores vencem guitarras, mullets pela Europa com material de espionagem atrás — com homenageia David Napier, “The Age of Immunology”,
derrotam tesouras, e a fancaria à Don um Beyerdynamic junto aos pés e um Uher preso entre os não poderiam constituir melhor e mais concreta
Johnson em “Miami Vice” dá goleada joelhos, foi ele que gravou este(s) concerto(s), no Ronnie terapêutica: oriundos da Bélgica, Japão, Itália, França
ao guarda-roupa de Bryan Ferry. Scott’s, em Londres, em dezembro de 1969, a tremer e EUA, Phil MFU, Susumu Mukai, Valentina Magaletti,
À chacun son goût, mas esta pop de medo e a reprimir a vontade de genufletir, calcula- Elliott Arndt e Cathy Lucas convergiram para Inglaterra
sofisticada, de colarinho branco e se. E não era para menos: um ano depois da tournée justamente na altura em que se aproximava o referendo
olhinho azul, traça uma linha contí- com Eddie Gómez e Jack DeJohnette (ouvir, na mesma do ‘Brexit’. Cantado nos idiomas de origem de cada
nua entre o mais frondoso roseiral e Resonance, “Some Other Time: The Lost Session from the um deles e gravado em diversas circunstâncias e com
uma cómoda artilhada com bolas de Black Forest” e “Another Time: The Hilversum Concert”, recursos pouco vulgares — num iPhone, em palco,
naftalina — em 2019 não tem outro captados em junho de 1968), Evans apresentava novo na ilha de Krk, na Croácia, num moinho abandonado
remédio senão ser autorreferencial, trio, com novo baterista, Marty Morell, cujo único crédito em Sudbury —, tanto se reclamam do espírito Dada e
muito exercício de si para si. Dirão digno de nota, embora com direito a errata (no LP lê-se da Bauhaus, como vasculham os arquivos de library
os mais atentos: também o era o Morrell), advinha da sua participação em “The Sorcerer”, music mas também as esquinas menos frequentadas
pomposo “Hang” (2017), frondoso de Gábor Szabó. Acima de tudo, porque, a tocarem de Jean-Claude Vannier, Morricone e Piero Umiliani,
lustre dos anos 70 desenterrado em juntos há um ano (e, já agora, ainda nesta editora, pode as tangentes funk à BSO sci-fi de “Planète Sauvage”,
areia de resort. Sim, mas aí não havia a confirmar-se que, aqui, não soam de todo ao que soavam o krautrock, ou o psych-jazz astral de Sun Ra. Não é,
modorra de ‘Mona’ (à moda do Bowie em outubro de 1968, quando ficou registado “Live at seguramente, uma coincidência que, neste labirinto,
mais aborrecido, precisamente o de Art D’Lugoff’s Top of the Gate”), criavam-se, por fim, todas as setas apontem indisfarçavelmente na direção
meados dos oitentas), o hediondo e novamente, as condições para que Evans tivesse à dos mais recentes Stereolab e Broadcast. Os territórios,
R&B jazzy de ‘Face the Facts’ ou o sua volta gente com que pudesse “verdadeiramente de facto, intersetam-se mas, neste ensaio sonoro acerca
pastiche de Beck em ‘The Conclu- conversar, interagir, dançar, cantar, produzir este tipo de de “um mundo que, a cada dia, se torna mais irreal na
sion’ (bem pior que outra colagem, energia cerebral mas muito expressiva”, conforme relata sua estranheza e dissimulação, e que, nos constrange
a ‘Glory Days’ de Bruce Springsteen, Gómez em notas de apresentação, e como não tinha a autorregular a imaginação ao serviço dos poderes”
em ‘The Thing Is’). Tematicamente, desde a dissolução do trio com LaFaro e Motian. De facto, (Cathy Lucas), ponto de partida para uma banda
este é um álbum ‘irmão’ do vindouro há poucos documentos, destes, ao vivo, em que o pianista sonora primitiva e futurista sobre a instável realidade e
livro de memórias de Sam France, e é se entregue incondicionalmente ao momento e desligue a ambiguidade identitária, o exercício de permanente
assumido como um disco de despe- o piloto automático, com ponto alto em ‘Sugar Plum’, e aquático shapeshifting musical desenrola-se frente
didas: “adeus às drogas, ao deboche, original cuja presente fixação antecipa a da cronologia a um cenário de exuberantes reflexos e cintilações,
aos meus ‘vintes’, ao meu corpo de oficial (havia sido estreado em 1971, em “The Bill Evans utópico e festivo. Como confessa também Lucas, “é um
modelo Yves Saint Laurent”, escreve Album”). Histórico, nem que seja por isso. / JOÃO SANTOS desejo profundo vir a ser, um dia, cidadã da Federação
a estrela indie. Tal como, em qualquer Planetária Unida”. b
relação, a mortífera tirada “talvez de-
vêssemos conhecer outras pessoas”
é o primeiro passo para o emagreci-
mento do dedo anelar, “Seeing Other QQQQ
People” decreta o fim da invencibili- EVANS IN ENGLAND THE AGE OF IMMUNOLOGY
dade dos Foxygen. Eles sabem-no e Bill Evans Vanishing Twin
nós também. / LUÍS GUERRA 2CD Resonance/Distrijazz Fire Records
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Diálogos com o medo QQQQ
BUXTEHUDE, DEBUSSY, ESTÉVEZ
Orquestra e Coro Gulbenkian,
Giancarlo Guerrero (d), Álvarez (t),
Martínez Yépes (b)
Gulbenkian, Lisboa, dia 3
N
os anos 1970 a Met Opera assentava no facto de a grande (e belíssima!) ária da ópera, na transmitir exuberância latina às várias
funcionava com um diretor soprano finlandesa Karita Mattila cena da Conciergerie do III ato; secções instrumentais da sua nova
de produções: o encenador cantar pela primeira vez o papel de a voz, porém, perdeu cores e orquestra, com a qual estabelece uma
inglês John Dexter, que fora diretor Mme de Croissy, a madre-abadessa substância, e os agudos soam relação muito cúmplice. Guerrero re-
associado do Teatro Nacional da que acolhe a protagonista, Blanche estridentes e forçados. Quando o gressou agora a Lisboa para dois con-
Grã-Bretanha durante o regime de la Force, nos tempos convulsos destaque vocal e dramático vai certos em que apresentou uma trans-
do fundador, Laurence Olivier. da Revolução Francesa. Aparece para Erin Morley, a intérprete da crição para orquestra da “Chaconne”
A sua missão era não só criar apenas em duas cenas, morrendo tagareleira Soeur Constance, algo de Buxtehude (dirigiu-a em tom de
novas produções, como revitalizar espetacularmente no fim do I ato. falhou na distribuição desta ópera. animadíssima dança afro-cubana),
produções antigas. Desses tempos Como se esperava, a soprano é Com um timbre feio, David Portillo seguindo-se “Ibéria” de Debussy e a
teatralmente impressionantes dramaticamente lancinante, mas faz o que pode com o Chevalier de “Cantata Criolla” do compositor Anto-
resta a montagem de “Dialogues o papel é demasiado grave para la Force (cantado em Lisboa por nio Estévez. Numa das suas gravações
des Carmélites” (1957), de Francis a sua voz. Não esqueço, porém, Alfredo Kraus nos idos de 1958). com a Orquestra Sinfónica Juvenil da
Poulenc (1899-1963), exemplo o seu rosto estampado de medo, O pecado maior é a dicção. O estilo é Venezuela Simón Bolívar, Gustavo Du-
maior do estilo geométrico e nesta ópera sobre os medos de conversacional, mas com um único damel já tinha chamado a atenção para
depurado, favorecido pelo grande ter medo. Assisti à estreia; creio cantor francês no elenco — Jean- uma outra obra de Estévez, “Mediodia
encenador. Estreada em 1977, tem que à terceira e última récita — a François Lapointe, correto mas em el Llano”, muito impressionista e
sido reposta regularmente ao longo da transmissão em direto — terá de voz pequena, em substituição influenciada pelo universo de Debussy,
dos últimos quarenta anos com resolvido o problema. Continuo de Dwayne Croft, no Marquis lenta e recheada de belas melodias. Na
intérpretes excecionais. É este o a não perceber o destaque dado de la Force — era difícil seguir o biografia de Idwer Álvarez, regista-se
problema da presente reposição: nesta temporada a Isabel Leonard texto. Era por estas e por outras que este tenor venezuelano já inter-
não apaga memórias das anteriores. (Blanche), uma cantora sofrível razões semelhantes que Poulenc pretou em mais de 160 ocasiões o pa-
Não se trata de ficção, mas de e atriz medíocre. Nem Karen preferia que a ópera fosse cantada pel de ‘Florentino’ na “Cantata Criolla”
um acontecimento histórico, o Cargill (Mère Marie) nem Adrianne na língua do público. Registo, do seu compatriota, deixando na peça
martírio das freiras Carmelitas de Pieczonka (Mme Lidoine, a no entanto, que não senti este uma marca muito especial. Escrita em
Compiègne em 1794. Na origem sucessora de Mme de Croissy) problema nas reposições anteriores 1954, ela é considerada uma das me-
da obra de Poulenc está a peça se destacaram pelas melhores das “Carmélites” no palco do Met, lhores obras clássicas latino-america-
homónima de Georges Bernanos — razões. O caso de Pieczonka — com cantoras da estirpe de Shirley nas. Inspirando-se num lendário poema
um êxito mundial nos anos 1950 — Chrysothemis na famosa “Elektra”, Verrett, Jessye Norman e Teresa da tradição da Venezuela da autoria de
por sua vez derivada da novela de de Patrice Chéreau — é o mais Stratas na Mme. Lidoine, ou Maria A. Arevalo Torrealba, os versos aludem
Gertrude von Le Fort, publicada em grave, até porque lhe cabe a única Ewing, Frederica von Stade e Dawn a um combate entre um camponês
1931. A ópera foi apresentada em Upshaw no papel de Blanche. Na e um diabo, papel interpretado pelo
São Carlos em 1958, um ano após a estreia desta produção em 1977, barítono Juantomás Martínez Yépez. A
estreia mundial no Scala de Milão, Régine Crespin, como Mme. de narrativa desenrola-se ao longo de um
na mesma produção de Margherita Croissy, fora um caso aparte e intenso desafio canoro com perguntas
Wallmann e com alguns dos inesquecível: cantara o papel de e respostas que vão resvalando entre
mesmos intérpretes. (Voltou a QQQQQ Mme. Lidoine na estreia da ópera em o coro e os dois solistas. Estabelecido
cantar-se no São Carlos em 2016, POULENC: “DIALOGUES Paris, em 1957. Resta assinalar que o contraste entre o timbre diáfano de
encenada por Luís Miguel Cintra.) DES CARMÉLITES” o diretor musical, Yannick Nézet- Álvarez e o muito escuro de Yépez,
A peça de Bernanos também subiu Leonard, Mattila, Cargill, Pieczonka, Séguin, nos deu, acertadamente, coube ao Coro Gulbenkian gerir alguns
ao palco de D. Maria II em 1959, um Morley, Dexter (e), Nézet-Séguin (d) uma intensa e violenta leitura confrontos em que o diabo procura
dos grandes êxitos da Companhia Met Opera, transmissão em direto e HD da partitura que se ajustou como vencer a todo o custo, escutando-se
Rey Colaço/Robles Monteiro. Gulbenkian, Lisboa, hoje às 17 h uma luva à beleza pungente da um ‘Dies Irae’ (um canto de ofício de
O maior interesse da atual Teatro Viriato, Viseu, em diferido, encenação. A não perder, por esta defuntos) que culmina com o triunfo
reposição da ópera no Met dia 12 às 16h razão. / JORGE CALADO do camponês. / ANA ROCHA
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www.cm-matosinhos.pt
No confessionário
Num podcast recente, a propósito a ofender, como um bom católico.
do recurso a instrumentos de época Atribuía tão radical mudança de
e das questões de legitimidade proposição à aquisição de um
que os acompanham, como uma instrumento particular: “O meu
rémora faz com um tubarão, Isabelle pianoforte foi construído por Franz
Faust revelou a conversar o mesmo Brodmann, em Viena. Em meu
controlo que manifesta a tocar: “Não entender, adequa-se como nenhum
gosto da expressão ‘historicamente outro à obra para teclado de
informada’. Prefiro falar em Schubert: há algo de profundamente
interpretação historicamente vienense no seu timbre, na sua terna
Conferências
curiosa.” Há coisa de 25 anos, delicadeza, na sua melancólica
Residência Dramatúrgica
a referir-se ao tema de modo cantabilità.” De facto, mais nos
Oficina Escrita Criativa
muitíssimo menos circunspecto, “Momentos Musicais” do que nas
Apresentação de Livros
András Schiff declarava o seguinte: sonatas, o Schubert que aí estava
e
“Por sorte, a música para piano de parecia falar tão baixinho e tão e qu
p o rtant gem
Schubert ainda não foi descoberta honestamente que se diria um im ia
pelos especialistas em réplicas da penitente num confessionário — nas Mais tino é a v
s en o
o de
ç
Graf.” Percebe-se perfeitamente o gravações ao Bösendorfer dava-se Lour rdo
que queria dizer, embora tomasse o pelo mesmo, o que sugere que a Edua 12 MAIO
A
instrumento errado para termos de faculdade de Schiff conceber estas RO
TEAT AL
• 10
IP
•
comparação: não obstante Schubert obras não depende assim tanto do N I C
Encontro com escritores MU SINHOS
AT O
o tocar, o pianoforte construído instrumento de que faz uso. Aqui, nas escolas DE M TANTINO
por Conrad Graf nunca se adaptou prolonga e de certa forma aprofunda CONS ERY
N
às necessidades da sua obra (ao esse efeito, sobretudo através dos
contrário de modelos criados “Improvisos” (D 899) e da “Sonata 2019
por Anton Walter ou Heinrich em Lá maior” (D 959), em que, Estacionamento gratuito para participantes com apresentação de credencial
no parque da Docapesca, 11 e 12 de maio.
Elwerkember, em que compôs os como poucos, lima as arestas ao ORGANIZAÇÃO PRODUÇÃO EXECUTIVA APOIOS
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Imagem de ensaio de “Annette,
Adele, e Lee”, de Rui Lopes Graça
D
ificilmente seriam mais desvios, mutações, reformulações é possível identificar essa origem,
diferentes os dois espetáculos sobre essa posição canónica, tal como mas há outros que produzem uma
que esta semana se estreiam encontramos a mesma tendência no estranheza desconcertante. Num outro
na Companhia Nacional de Bailado. conceito do espetáculo e no ambiente estúdio, 13 bailarinos entregam-se à
A dupla Rui Lopes Graça e João sonoro. Nada é o que parece. Rui “Madrugada”, de Victor Hugo Pontes.
Penalva apresenta “Annette, Adele, Lopes Graça dirá depois que partilha Por agora, para efeitos de ensaio,
e Lee”, e Victor Hugo Pontes traz- com Penalva esse entendimento as luzes estão baixas, criando uma
nos “Madrugada”. As duas peças de não partir de qualquer “ficção, penumbra que amplifica a vibração
partilham a noite, variando entre a emoção ou história”. Perante o olhar delirante do corpo, como que lançados
decomposição do puro movimento da observador, os dois, juntamente com numa trip individual, ao som da
dança clássica e o aparente puro prazer David Cunningham (responsável música eletrónica que Rui Lima vai
do corpo em delírio, respetivamente. pela música), vão tecendo um jogo partilhando, ainda em jeito djing. Esta
A quase duas semanas da estreia, os de “equívocos”, sugerindo ideias é a segunda peça que Victor Hugo
ensaios ainda se fazem nos estúdios que depois não têm correspondência cria para a CNB. A primeira também
de dança do Teatro Camões e, no no que é desenvolvido. O uso do foi em 2016, “Carnaval”. Esta é uma
caso de João Penalva e Rui Lopes arabesque é um exemplo, só a raiz experiência muito distinta, diz-nos.
Graça (cuja primeira colaboração permanece. Outro exemplo é o Deu-se conta que estes bailarinos
na criação para a CNB aconteceu princípio elementar que funda a peça, estão sempre a dançar para alguém, o
em 2016, com “Quinze bailarinos concebido por Penalva: os bailarinos coreógrafo ou o público. “Há sempre
e tempo incerto”), há uma raiz no dançam ao som da precursão feita por o ‘outro’ como projeção.” Por isso
movimento que sugere familiaridade bailarinos que não vemos dançar. O quis fazer uma viagem inversa com
e nos situa no vocabulário do bailado que significa isto? Penalva escolheu eles. Propôs-lhes: “Dancem como se
— o corpo equilibrado numa perna, três dançarinos de sapateado — os ninguém estivesse a ver.” O momento
ANNETTE, ADELE, E LEE um braço estendido para a frente e três nomes que constam do título da em que o espetáculo acontece é num
De Rui Lopes Graça para cima, e a outra perna e braço peça — para gravarem em estúdio o espaço-tempo de transição, “já não
esticados para trás. Rui Lopes Graça som da sua dança. O que resta desse sabemos se é dia ou noite, estamos
MADRUGADA regressa a arabesque, que já havia acontecimento é o som que foi depois num limbo”. São quase 13 solos, que
De Victor Hugo Pontes desmontado e reformulado há 20 anos, transformado por David Cunningham por vezes parecem encontrar-se, mas
Teatro Camões, Companhia Nacional nessa obra maior que é “Savalliana”. e que agora serve de ambiente ao perdidos algures “a dançar entre o céu
de Bailado, Lisboa, 16 a 19 de maio É novamente uma abordagem com espetáculo. Há momentos em que e a terra”. b
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António Ferreira Ramos, aos quais se violentas. Não é uma questão nova, é uma
pode atribuir, sem exagero, a “paternida- questão a que não se pode fugir, mas é
de da criança”. Aí estão também muitas também uma questão cujo tratamento
figuras que marcam esse fim de século, artístico, para Rui Neto, nem sempre terá
PEDRO MACEDO
CARLOS PINTO
2019
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Praga ou
transformação?
A inquietação e o medo nas imagens de uma pintora portuguesa
TEXTO JOSÉ LUÍS PORFÍRIO
Q
uantos gafanhotos é preciso em todas e cada uma destas obras impelidos pela mais imperiosa das
para formar uma praga? de Graça Morais. Quando olhamos necessidades a da sobrevivência.
Quantos é preciso contar, um gafanhoto de lado, vemos um Graça Morais sabe ouvir as vozes do
juntar, amontoar? Pelas descrições, gafanhoto, se o vemos de frente tempo presente a partir das notícias
muitos, quase tantos como as areias aqueles grandes olhos de máscara, do mundo e da vida da sua aldeia
do deserto, infindáveis, incontáveis. ou de astronauta, já vemos outra natal, Vieiro, mas também sabe
Assim sendo, os gafanhotos coisa e o que vemos pode ser o escutar ou reinventar um tempo
desenhados e pintados por Graça humano ou o infra-humano, vemos passado, mítico, da caça, do sacrifício,
Morais (n. 1948), que invadiram o a transformação que está tanto no da violência também, onde a fronteira
Museu do Chiado, algumas dezenas nosso olhar como em cada uma das entre o homem e o animal era outra
numa exposição com 82 trabalhos obras expostas, é aí que começa a ou, muito provavelmente, nem sequer
também serão uma praga? Se os inquietação, é aí que mora a raiz do existia, onde a metamorfose era um
contar, acho que não, se os olhar medo. continuum de vida e… de morte.
com atenção, acho que sim. Passo a O medo, “não deverá existir hoje O paleolítico assim como algum
explicar. Um a um, os bichos vão-se sentimento mais omnipresente, no românico, mais ligado às raízes e à
somando, mas é sempre um somatório mundo e na arte contemporânea”. terra, são invocações, por assim dizer,
de individualidades isoladas, desenho Tem razão Emília Ferreira ao naturais na arte de Graça Morais
a desenho, ou em grupos onde há dizê-lo no catálogo, sobretudo se que os reinventa sem, contudo,
pessoas também, mas nunca os entendermos o contemporâneo os citar. É assim mesmo que estão
encontramos naquele acumular em como uma atenção sensível ao certos e é nesta conjuntura que estas
que a quantidade se transforma em acontecer dos dias neste mundo em metamorfoses se podem encontrar
Os gafanhotos de Graça qualidade que o Equipo Crónica tão que os refugiados que fogem à fome, com as visões do Apocalipse de São
Morais para ver no Museu bem ilustrou nos anos 60; porém à seca e à violência inominável, João segundo o Beatus de Liébana
do Chiado, em Lisboa uma transformação inquietante mora são como gafanhotos humanos (séc. XI), onde a visão dos gafanhotos
se cruza com a malignidade das
sereias, as mais antigas e cruéis,
antes de serem donzelas das águas,
perfeitamente individualizadas na sua
monstruosidade. Esta metamorfose
pode ser entendida como uma
epidemia, porém não deixa de
acontecer, ou poder acontecer, caso
a caso, no corpo e na consciência
de cada um de nós. Graça Morais
funciona como um sismógrafo
certeiro das forças contraditórias que
moram no coração dos homens, ela
fala connosco num discurso pronto
e sem intermediários, porém não
ameaça, vê, regista, avisa. A nós cabe
sentir o medo, avaliar o perigo, e, se
possível, encontrar o antídoto antes
que seja tarde demais. b
QQQQQ
METAMORFOSES
DA HUMANIDADE
Graça Morais
Museu Nacional de Arte Contemporânea
do Chiado, Lisboa, até 2 de Junho
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QQ QQQQ
I’M YOUR MIRROR TÚLIA SALDANHA
Joana Vasconcelos Galeria Diferença, Lisboa,
Museu de Arte Contemporânea de até 18 de maio
Serralves, Porto, até 24 de junho
É sempre bom ver uma exposição, Onde está o tempo? Pergunta Túlia
quer para tirar dúvidas, quer para as Saldanha (1930-1988) a partir da cir-
acrescentar. Assim sendo vi, pela cularidade de um relógio sem ponteiros
primeira vez, uma exposição indivi- (1970). Onde está o espaço? Pergunta
dual de Joana Vasconcelos (n. 1971), Túlia Saldanha a partir de um outro ton-
em Serralves. Obras de sua autoria já do, uma colagem de radiografia sobre
me encontrara com elas em muitos papel (1969) onde o negro, a sua cor
lugares diferentes e com diferen- não cor, parece crescer para os lados
te fortuna em Lisboa, em Elvas, na e lá para dentro para o fundo do corpo
Barquinha, em Nisa, e, claro, os ecos que a radiografia sondou. São estas as
da fama chegavam-me um pouco peças que frontalmente nos recebem
de todo o lado um pouco à maneira na pequena sala da Diferença que nos
de outra celebrada vedeta interna- colocam uma primeira interrogação.
cional, oportunista, imbecil e muito Aos nossos pés um estrado baixo abre-
pior que Joana Vasconcelos: Joseph -se também ao negrume: uma caixa,
Koons. Problemas de escala, pro- restos de comida, uma mala de viagem
blemas de acumulação e de forma aberta com seus pertences, tudo negro,
(gestalt), estão no cerne destes acrescenta-se ainda sobre o estrado
trabalhos. Curiosamente a escala e em folha negra, mas aberto a branco,
funciona melhor dentro de portas, i.e., um itinerário que é um percurso vital:
só no interior se torna monumental, um ponto de partida, Macedo de Ca-
invasora, incómoda nos melhores valeiros a sua terra, Coimbra, a base de
casos, ou divertida com fortuna vária. onde irradiou através do Círculo de Ar-
No exterior, o magnífico espaço dos tes Plásticas que ajudou a fundar e diri-
jardins de Serralves reduz as peças giu (1968/88), Lisboa com a Diferença
transformando-as naquilo que, afinal, e o encontro cúmplice com o José
podem ou devem ser, obras de uma Ernesto de Sousa (1972) e Malpartida
decoração lúdica na grande tradição outro lugar de encontro e cumplicidade
das instalações efémeras. As acumu- com Wolf Vostell (1979). Esse desenho
lações das mais simples coisas (pa- é um itinerário e um resumo de vida e
nelas, telefones, talheres de plástico, tem um título que é todo um programa:
jantes de automóvel, copos) fun- “Os olhos são para quem com eles quer
cionam pela surpresa do contraste ver.” O ver de Túlia vai em busca do ne-
entre os seus componentes e a forma gro que cresce, mas não cega, é um ver
final numa dimensão de divertimento cinestésico onde entra todo o corpo
que transforma o vocábulo “giro” em com as mãos, os pés, as vísceras, o cé-
categoria estética. A arte popular: o rebro e os olhos também. Onde entra,
croché, o barro, o bordado, a cerâmi- além do corpo individual, o mito de um
ca incluindo obras de Rafael Bor- outro corpo utópico e participante que
dalo Pinheiro, desviada em proveito Túlia sempre soube invocar. O negro
próprio, constitui outra das bases, por com que nos deparamos está longe
ventura a mais discutível e ambígua, de ser fúnebre muito embora faça o
do seu trabalho. Temo que o seu êxi- luto da arte, pois vive a morte da arte
to, construído com grande trabalho a partir das dúvidas e das esperanças
e profissionalismo, lhe advenha não que geraram um novo corpo artístico
da exigência, mas do espalhafato, construído a partir de dúvida e não da
não da invenção, mas da simulação, certeza. É essa dúvida permanente e
não da alegria, mas do logro, temo e... criadora de obra que ficamos a dever a
tenho pena. / J. L.P. Túlia Saldanha. / J.L.P.
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Cinema
Obrigatório Música Teatro & Dança
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Top10
Cinema Semana de 25/04 a 01/05
ICA — O presente ranking resulta dos dados transmitidos pelos promotores dos espetáculos,
Número de Número de
espectadores espectadores
365.916
acumulados
396.026
centralidade do rosto nas representações e comu- memórias”. Resgatando tex- 1 1 José Afonso ao Vivo José Afonso
nicação humanas mostrando obras de artistas como tos antigos e pequenas histó-
2 - Respeitosa Mente Ricardo Ribeiro
Ângelo de Sousa, Dennis & Erik Oppenheim (na rias escritas à mão, em papéis
foto), Ana Mendieta, Daniel Blaufuks, Kader Attia, soltos, Leonor Xavier leva-nos 3 5 The Platinum Collection Queen
Constantin Brancuși, Lewis Hine, Lúcia Prancha, pelas alamedas do tempo, do 4 3 Paris, Lisboa Salvador Sobral
Cindy Sherman, Jorge Molder, Christian Boltanski, “balburdioso” instante em que
5 6 A Star Is Born L. Gaga & B. Cooper
de distribuição: livrarias/outros (hipermercados e supermercados). Esta monitorização é feita semanalmente, após a recolha
Estes tops foram elaborados pela GfK Portugal, através do estudo de um grupo estável de pontos de venda e de dois canais
de Tokyo (2015) e “Circuits (Interpassivities)” uma
da informação eletrónica (EPOS) do sell-out dos pontos de venda. A cobertura estimada do total do mercado é de 80%
anterior
obra multimédia encomendada pelo museu. 1 1 Foi Sem Querer Que Te Quis Raul Minh’Alma
1000 FRASES 2 4 Leandro Rei da Heliria Alice Vieira
HELENA ALMEIDA: HABITAR A OBRA DE CAMILO CASTELO
Museu de Arte Contemporânea Nadir Afonso, BRANCO 3 5 Uma Gaiola de Ouro Camilla Lackberg
Chaves, até 20 de outubro Luís Naves (recolha) 4 - O Tatuador de Auschwitz Heather Morris
Quetzal, €16,60
Uma seleção de obras pertencentes à coleção de 5 - O Ano da Morte de Ricardo Reis José Saramago
Serralves apresenta o trabalho de uma das artistas Escritor maior e polemista As categorias consideradas para a elaboração deste top foram:
Literatura; Infantil e Juvenil; BD e Literatura Importada
portuguesas mais relevantes da segunda metade do feroz, Camilo Castelo Branco
século XX, recentemente falecida. demonstrou inúmeras vezes a
sua verve em frases elegantes
Não ficção
ou demolidoras. Exemplos:
Semana
CHERNOBYL “neste mundo, ou tudo é anterior
HBO Portugal
verdade, ou não há verdade 1 1 Arte Subtil de Saber Dizer Que Se... Mark Manson
Em streaming nenhuma”; “Preferia uma mu-
lher feia, se as há, à mais nítida 2 - Recomeça - 9 Passos Que Vão... S. Castro Fernandes
(Temporada 1)
metáfora de Cícero”. Neste 3 - Tempo de Esperança H. Sacadura Cabral
Minissérie de cinco epi- volume, Luís Naves, ficcionis-
4 5 Não te F*das Gary John Bishop
sódios, criada por Craig ta, recolhe um milhar de péro-
Mazin, conta a história do las verbais que demonstram o 5 - Jesus Rodrigo Alvarez
desastre nuclear ocorrido brilho intelectual do autor de As categorias consideradas para a elaboração deste top foram:
Ciências; História e Política; Arte; Direito, Economia e Informática; Turismo, Lazer e Autoajuda
em 1986. “Amor de Perdição”.
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QUE COISA SÃO AS NUVENS
/ JOSÉ
TOLENTINO
MENDONÇA
A MAIS ANTIGA
FLOR DO MUNDO
U
Para Maria Teresa Horta
AS FLORES NÃO SÃO cuidarmos melhor dos recursos vegetais (e espirituais) a nível
planetário. Porque as flores não são apenas um argumento para a
APENAS UM ARGUMENTO botânica.
PARA A BOTÂNICA Conseguimos imaginar o que seria o desenho da nossa Humanidade
se não tivéssemos avistado nunca uma flor? Tonino Guerra repetia
ma das tarefas diárias do poeta muitas vezes que o dia mais feliz da sua vida fora aquele em que,
italiano Tonino Guerra era recortar tendo sido libertado do campo de concentração, olhou de novo
dos jornais (Tonino diria resgatar) para uma borboleta e não sentiu vontade de a comer. Conservar
notícias insólitas de que ele seria, intacta a possibilidade do espanto e do gratuito era a garantia de
porventura, o único interessado; ou, que não havia sido destruído. Seguramente uma etapa importante
então, colecionar aquelas imagens do desenvolvimento humano, semelhante àquele salto representado
de mundos desconhecidos que, pelos primeiros exemplares da arte rupestre, terá sido o gesto
por vezes, para ocupar inesperados de tomar uma flor não já para a meter dentro da boca, mas para
vazios ou por pura desatenção, os colocá-la, com silenciosa admiração, diante dos olhos.
editores deixam passar; bem como Sobre a Nanjinganthus dendrostyla, sei que Tonino Guerra não
uma infinidade de pequenos textos recortaria apenas a notícia, mas faria imediatamente dela um
sobre camponeses e estrelas cadentes, sobre curiosidades linguísticas acontecimento. Imagino-o em telefonemas a amigos para falar
e tesouros descobertos em barcos afundados; sobre tradições disso e perguntar-lhes, entre outras coisas, como acham que seria
populares ou a migração silenciosa que algumas espécies animais a sua cor ou o seu perfume. Não estava enganado em preocupar-se
realizam entre estações. Eram ninharias assim, completamente como isso: Rabindranath Tagore dizia que uma flor pode esconder-
inúteis e inatuais, que ele juntava com o despropósito de um detetive se entre as ervas ou as pedras ou os séculos, mas o vento espalhará
ocioso, apostado em resolver um quebra-cabeças que sabia, à o seu perfume. E, na mesma linha, o poeta japonês Matsuo Bashô
partida, sem solução. Mas depois, quando nos filmes de Antonioni, ensinou: “Quando o sino do templo emudece, / o seu som continua
Fellini, Tarkovsky, ou Theo Angelopoulos, em que ele colaborou a escutar-se / a partir das flores”. b
na escrita dos argumentos, vemos vestígios desta sua atividade
quotidiana, quedamo-nos maravilhados. Se nos dissessem que
ele recolhera aquelas informações dos mesmos cinzentíssimos CONSEGUIR EXPLICAR
jornais que folheámos teríamos dificuldade em acreditar. Colocados
ali, ganhavam uma intensidade expressiva flagrante, distinta, MELHOR A ORIGEM DAS
incrivelmente precisa e íntima.
Estes dias, deparei-me com uma notícia que Tonino Guerra, de
FLORES PERMITIRÁ, TALVEZ,
certeza, gostaria de resgatar. Foi encontrado na região chinesa de NO FUTURO, CUIDARMOS
Nanjing, a oeste de Xangai, o fóssil daquela que se pensa agora ser
a mais antiga flor do mundo. Chama-se Nanjinganthus dendrostyla, MELHOR DOS RECURSOS
e terá florido há 174 milhões de anos, quando apenas os extintos
dinossauros a podiam contemplar. É uma descoberta que parece
VEGETAIS (E ESPIRITUAIS)
irrisória, mas faz recuar a cronologia que a ciência estabelecera
para o aparecimento das primeiras flores sobre a terra (não antes
A NÍVEL PLANETÁRIO
de 140 milhões de anos atrás, pensava-se). Mais ainda: da análise
do fóssil, os paleontólogos deduziram que a dendrostyla de Nanjing
tinha pétalas em forma de colher, semelhantes àquelas da flor
da magnólia, dispostas em torno a um corpo central. Conseguir
explicar melhor a origem das flores permitirá, talvez, no futuro,
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vícios
“PESSOAS SEM VÍCIOS TÊM POUCAS VIRTUDES”
Portas da fé
abertas ao mundo
Com o 13 de maio a aproximar-se, o Expresso mostra-lhe lugares
cuja importância ultrapassou a própria religião. Caminhos e destinos
para serem vividos, independentemente da fé de cada um
TEXTO TIAGO SOARES
FOTOGRAFIAS GETTY IMAGES
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Karbala,no Iraque: o Santuário
Imã Husayn é o destino final
da peregrinação do Arbaeen,
40 dias depois do Dia de Ashura
E
ste texto é sobre o que une uma azinheira no cento têm ligações religiosas ou espirituais. São es- que culminaram no ‘milagre do Sol’, presenciado
concelho de Ourém a uma figueira no cora- tas as ligações que fazem o caminho e iluminam o por milhares de pessoas. Em 1930, a Igreja Católica
ção da Índia. Sobre o que une uma gruta no destino de crentes e turistas de todo o mundo. Pe- confirmou as aparições como verdadeiras. Na altura,
sul de França a uma flecha disparada na monta- regrinos e curiosos que, independentemente da fé, o cardeal Cerejeira assinalou que “Fátima se impôs à
nha e a uma mesquita construída sobre o sangue de procuram experiências universais. As palavras são Igreja”. A árvore das aparições dá hoje lugar ao San-
um profeta. Este texto é sobre estes e outros locais de Taleb Rifai, antigo secretário-geral da OMT: “O tuário de Nossa Senhora de Fátima, um dos pontos de
que, em diferentes momentos da história se torna- turismo religioso é um agente importante de paz. referência da fé cristã, visitado por cerca de seis mi-
ram locais de culto e símbolos religiosos, e acaba- É uma força transformadora que consegue demolir lhões de pessoas todos os anos. Um pouco por todo o
ram por se expandir para lá da própria religião que barreiras culturais e construir pontes entre pessoas, mundo, existem vários locais e acontecimentos que,
representam. São caminhos e destinos da fé, mas comunidades e nações.” independentemente da religião, continuam a ser vi-
não só. A Organização Mundial de Turismo (OMT) Passaram 102 anos desde que três pastorinhos vidos e celebrados como Fátima o é em Portugal.
estima que todos os anos cerca de 300 milhões de viram uma “senhora mais brilhante do que o sol”
pessoas visitem importantes locais religiosos nou- em cima de uma pequena azinheira. Antes, em três O FOGO INOFENSIVO
tros países — um quarto das pessoas que viaja em ocasiões, Lúcia, Jacinta e Francisco haviam avista- No dia da primeira aparição, a mãe não acreditou na
todo o mundo. Este número converte-se em 600 do um anjo — “uma luz mais branca do que a neve” filha e bateu-lhe. Três dias depois, Bernadette pediu
milhões de viagens com motivações religiosas — que se apresentou como o “Anjo de Portugal”. A para voltar à gruta. A mãe, depois de a fazer pro-
por ano. Além disso, de todo os locais distingui- primeira aparição da Virgem Maria às três crianças meter que teria cuidado para não cair ao rio e que
dos como património mundial da UNESCO, 20 por foi a 13 de maio de 1917; seguiram-se outras cinco, estaria de volta a tempo da oração de fim de dia,
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OUTROS LOCAIS DE Muitas delas fizeram 90 quilómetros a pé desde a
cidade de Najaf, atravessando território controlado
TURISMO RELIGIOSO pelo Estado Islâmico, terroristas perseguidores dos
xiitas. A importância destes dois momentos é enor-
Santuário Meiji me: mobiliza mais pessoas do que aquelas que visi-
Japão tam Meca anualmente. Aliás, ao contrário da cida-
Basílica de Nossa Senhora de Guadalupe de sagrada do Islão, tanto o Ashura como o Arbaeen
México não são celebrações fechadas ao resto do mundo e
intolerantes para com a fé alheia: além de turistas,
Monte Wutai o próprio Vaticano já percorreu aqueles mesmos ca-
China
minhos, lado a lado com os xiitas. Em paz.
Muro das Lamentações
Israel O TEMPLO DO TIGRE
Santiago de Compostela Sabarimala começou a ser construído quando um
Espanha rapaz de 12 anos regressou a casa montado em cima
de um tigre. Tinha-se voluntariado para se aventurar
Santuário do Bom Jesus do Monte na floresta e trazer para casa o leite do animal, que
Portugal seria a cura para a doença da mãe. Tudo não passa-
Templo Dourado va de um teste. Manikantha — assim se chamava o
Índia rapaz — era o filho adotivo do rei, e havia quem não
quisesse que se tornasse o príncipe herdeiro. Quan-
Santuário Fátima Masumeh do completou a missão impossível, o rei percebeu
Irão
que a criança que adotara não só era digna do trono
Monte do Templo como se tratava de uma divindade, e um santuário
Israel foi mandado construir em sua honra. Para escolher
a localização, o rapaz disparou uma flecha, que voou
Basílica de São Pedro
Vaticano
por 30 quilómetros até aterrar. Nesse momento, Ma-
nikantha transformou-se no deus Ayyappan, e o
santuário foi construído no exato local onde a flecha
havia parado. Este é uma das lendas fundadoras do
Hinduísmo enquanto religião e, apesar de todos os
a Bernadette Soubirous.” A Igreja Católica confir- contornos ficcionais, o santuário existe. O seu tem-
mou-o já depois de Bernadette morrer com 35 anos, plo principal — Sabarimala — está localizado des-
e canonizou-a em 1933. Lourdes tornou-se um lo- de o século XII na cidade de Kerala, na Índia, a 480
cal sagrado. Todos os anos, cerca de sete milhões metros de altitude, totalmente cercado por floresta e
de pessoas imitam Bernadette e visitam a Basílica montanha, e é o local de culto hindu onde mais fiéis
de São Pio X, parte do Santuário de Nossa Senhora vão: em média, recebe 30 milhões de visitantes por
de Lourdes, sobretudo a 18 de abril, dia da morte de ano, incluindo cristãos. Até 2018, mulheres em ida-
Bernadette. Na penúltima aparição, a única no mês de fértil não estavam autorizadas a entrar, mas uma
de abril, um médico da aldeia e outras testemunhas decisão do Supremo Tribunal Indiano reverteu essa
viram a criança a rezar com a mão esquerda sobre restrição, e, apesar dos protestos de fiéis mais tra-
uma vela acesa. Quinze minutos passaram. Quan- dicionais, Sabarimala já não é contemplado apenas
do Bernadette acabou de rezar, o médico examinou por homens.
a mão da menina: não havia qualquer vestígio de
queimaduras. A PRIMEIRA ÁRVORE DA TERRA
A lenda é contada a partir da cidade de Bodh Gaya,
A PAZ DEPOIS DA BATALHA na Índia, no ano de 589 a.C. O monge sentou-se
A batalha aconteceu em 680 a.C. e foi tão sangren- por baixo da figueira e ali ficou durante três dias e
ta que ainda hoje o luto do mundo muçulmano três noites. Meditou à procura de respostas. Quan-
permanece. O conflito deu-se na cidade de Kar- do as conseguiu — num momento de iluminação
permitiu. Nesse domingo, 14 de fevereiro de 1858, bala, no atual território do Iraque, e levou à morte — refletiu sobre o que tinha descoberto: encarou
a menina de 14 anos muniu-se de uma garrafa de de Husayn ibn Ali, neto do profeta Maomé. A sua a árvore, caminhou por outros pontos da cida-
água benta e voltou à gruta acompanhada de duas coragem e sacrifício é celebrada no décimo dia do de, voltou de novo ao sítio onde tudo floriu pela
amigas. As três crianças ajoelharam-se, tiraram os primeiro mês do calendário islâmico, 10 de outu- primeira vez. Todos esses locais por onde Sidar-
rosários dos bolsos e começaram a rezar. Depois da bro pelo calendário ocidental. A esse dia chama-se ta passou tornaram-se os caminhos essenciais
primeira prece, a aparição surgiu à frente da me- Ashura. É feriado nacional no Irão, Iraque, Afega- da religião Budista. No local da figueira, onde o
nina outra vez. Mais do que a água benta, o sorriso nistão, Líbano, Bahrein, Bangladesh e Paquistão, e despertar aconteceu, foi construído o Templo de
e a vénia da senhora convenceram Bernadette de assinalado por vários grupos religiosos e étnicos: é Mahabodhi. A cidade de Bodh Gaya é o local de
que estava na presença de Nossa Senhora. Acabou o clímax de várias celebrações um pouco por todo peregrinação mais importante do Budismo: todos
de rezar e voltou para casa, cumprindo a promessa o universo muçulmano, em memória da batalha os anos, milhões de crentes e turistas refazem os
que fez à mãe. Voltou no dia seguinte, e pela pri- sangrenta e da morte do líder xiita. Husayn ibn ali passos de Sidarta, o primeiro buda, recriando a sua
meira vez a senhora falou: “Terias a bondade de vir está sepultado na mesquita Imã Husayn, também experiência espiritual. A mitologia budista diz que
aqui durante 15 dias?” Bernadette Soubirous foi. em Karbala: além de uma mesquita, é um santuário a Figueira Sagrada é — e será sempre — o umbigo
Ao todo, a Virgem Maria apareceu-lhe 18 vezes na construído em sua honra. É lá que, 40 dias depois da Terra: no fim da existência será a última parte
vila de Lourdes, no sul de França. No final do últi- do Ashura, milhões de peregrinos se juntam para do mundo a desaparecer, mas também a primeira
mo encontro, a 18 de julho, declarou: “Nunca an- celebrar o Arbaeen. É considerada a maior reu- a renascer quando um novo ciclo se iniciar. Hoje,
tes a vi tão bonita.” Dois anos depois, o bispo local nião pacífica do mundo. Em 2017, entre 17 a 20 mi- uma estátua de buda marca o local onde a religião
declarou que “A Virgem Maria apareceu de facto lhões de pessoas fizeram a pé a viagem até Karbala. budista nasceu. b
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TIAGO MIRANDA
S Elogio
erá o segundo a apresentar-se
na coleção “Receitas para Par-
tilhar”, que acompanhará o Ex-
presso nas próximas semanas. Vítor
da simplicidade
Sobral é, porém, conhecido por ser o
primeiro dos chefes a trazer uma nova
forma de olhar para o que comemos.
É a partir desse legado que começa
esta conversa.
Com mais de 30 anos de carreira, Chefe do Ano para a Academia Portuguesa de Gastronomia em 1999,
imagino que se olhe para o passado.
Como vê o seu? Como o do tal “pai
Vítor Sobral está há mais de 30 anos no topo da cozinha portuguesa
da nova cozinha portuguesa”? (começou em 1987). Faz parte do grupo que mudou a face à
Ainda sou novo [risos]. Não sei se pai
é a palavra certa. Gastronomicamente
gastronomia do país, mas está constantemente a regressar aos pratos
nós somos muito ricos e a razão não das avós. Traz ideias de “Petiscadas” na edição de 24 de maio
é boa: é porque somos muito pobres.
Tivemos de ir criando e ter engenho
TEXTO JOÃO DIOGO CORREIA
e habilidade para, com pouco, fazer
bem. E tivemos de aprender a acoplar que alguma vez tivemos. Não são dois vender isso. Sempre achei que era próximo possível da raiz portuguesa.
culturas. Temos imensas influências. nem três. E, na alta cozinha, um chefe pouco justo e sempre tentei levar para Eles, se queriam ganhar estrelas, ti-
Fomos provavelmente o país que me- português parte à frente dos outros. fora aquilo que pensei que merecia. E nham de fazer uma cozinha mais in-
lhor soube aproveitar a mistura de to- depois veio uma nova geração fazer ternacional. E hoje já estão mais portu-
dos os que andaram por aqui. E eu, no Porquê? esse trabalho. Só acho que eles não o gueses, porque ganharam um estatuto
fundo, comecei a dar uma nova rou- Por alguma soberba dos outros. Acha fizeram tão bem como eu, porque fi- que lhes permite serem mais livres.
pagem à nossa tradição, mas de forma normal sermos o país onde mais se caram reféns do “Guia Michelin”.
a que as pessoas entendessem o que come arroz, mas se perguntar pelo Há um regresso às origens que antes
estava a ser feito. Mas houve outras mundo quem faz arroz na Europa, Todos dizem que não cozinham para não havia?
pessoas comigo. Só que, pelas entre- toda a gente fala do risotto italiano, da o “Guia”. Nós já tínhamos boa cozinha, bons
vistas que dei, pela consultoria que paella espanhola? Somos o país que Sim, mas se o disserem à minha fren- produtos, mas a forma de apresentar,
fiz, os livros que publiquei, acabei mais peixe come na Europa e alguém te sabem que não é assim. Não estou e mesmo tecnicamente, era muito
por levar isso ao público. E hoje temos sabe? Ninguém. Ficava aqui a tarde a dizer que eles estão errados, é uma descurada. As cozeduras, as gorduras,
chefes e restaurantes melhores do toda a pôr medalhas. Nunca soubemos opção. Eu sempre fiz as coisas o mais não havia muito cuidado, coisa que lá
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fora já acontecia. Nos meus primeiros
10 anos de cozinha, viajava pelo me-
é um mix de pó. Quem diz um bolo de
arroz, diz outras coisas. Porque é que “Esquecemo-
nos um mês por ano para conhecer
restaurantes de outros colegas e de
se deixou de fazer salgados?
nos do que
outros países. Pergunto-lhe.
Porque era um aproveitamento, se
comemos, não
Mas depois acaba a regressar aos
pratos das avós?
sobra peixe faço um rissol, se sobra
carne faço um pastel de massa ten-
lhe damos a
Acho que a base tem de ser a mesma.
ALMOÇARADAS
Henrique Sá Pessoa ra. Eram sempre aproveitamentos, só importância
Se tentamos copiar o que os outros têm, que feitos de forma minuciosa.
não ganhamos nada, nem cultural-
Com o Expresso de 18 de maio
que devíamos
mente nem em identidade. Nós temos
uma maneira portuguesa de comer. Por
E hoje não há tempo?
Não há. Esquecemo-nos do que come- dar. É uma
exemplo, você aloura azeite, alho, lou-
ro e dá-lhe um toque de vinho branco.
mos, não lhe damos a importância que
devíamos. Quando temos filhos, deve- obrigação
Isso é português. Podia dar mais 100
exemplos. Tem que ver com a nossa
mos ensiná-los mais sobre isso. É uma
obrigação dos pais. Por exemplo, quan-
dos pais ensinar”
forma de comer e com a nossa história. do se diz que temos de comer menos
Tento fazer o que, na minha referên- sal é o quê? É que o tradicional é uma
cia, as minhas avós, as minhas bisavós coisa, o industrializado é outra. Cha-
faziam. Tenho na peixaria [Peixaria da PETISCADAS ma-se o mesmo, mas são diferentes. feito este tipo de discurso quando va-
Esquina] peixe marinado, que é a par- Vítor Sobral Tudo o que é industrializado, fujam. As mos às escolas. E naquelas com crian-
te nova. Mas come lá um arroz de peixe Com o Expresso de 25 de maio pessoas têm de ser esclarecidas. O pão, ças com mais poder aquisitivo no-
e uma açorda como comia há 40 anos. por exemplo, é simples: água, farinha, tamos que se come menos sopa. Nas
uma levedura e sal. Agora leia o rótulo outras é ao contrário. Antigamente,
Não é preciso criar muito? Aquela de um pão no supermercado. havia sopa todos os dias, com um bo-
ideia de a nova cozinha ser sofistica- cado de carne lá para dentro. E sabia a
da, inventiva. É enorme. carne e dava para todos. Não há muito
É só fazer bem. Como é lógico, não E acha normal Lisboa só ter três ou que inventar, é aproveitar a tecnologia
vou cozer uma pescada como a mi- quatro padarias com pão de fermen- e, quando nos esquecermos do que fa-
nha mãe cozia. Mas eu consigo fazer tação natural? Para mais de dois mi- zer, é só olhar para o que eles faziam.
um prato de pescada cozida, que eu lhões de habitantes e mais de 15 mi-
adorava, com o peixe no ponto que JANTARADAS lhões de visitantes? Quando eu vim Vamos às “Petiscadas”. É mais fácil
eu quero, com o ovo na temperatura Kiko Martins trabalhar para Lisboa, havia 30 ou 40 surpreender com elas do que num
que eu quero, os legumes também. Aí Com o Expresso de 1 de junho destas padarias. Vi-as fechar todas. jantar?
é sofisticado. E agora o caminho é fazer isso tudo Não. Mas nós somos petisqueiros na-
para trás. turais. O francês, por exemplo, ha-
A tecnologia ao serviço da cozinha? bituou-se a comer salada, sopa, um
A tecnologia e a técnica. Sofisticado Onde entra a parte financeira? prato de carne, um de peixe, sobre-
não é complicado. Hoje eu sei que a Produtos melhores tendem a ser mesa. Nós não. O que para nós era o
proteína do peixe coze a 58 graus, a mais caros. menu de degustação eram os petiscos,
minha mãe não sabe isso. Eu consigo Um bom azeite é muito barato, um e às vezes um prato mais robusto no
fazer 100 peixes iguais utilizando esta bom vinagre também. Se não for tão fim. Numa petiscada consegue provar
técnica. Eu sei o que tenho de fazer barato não se vende. As pessoas ha- muitas coisas e isso deixa-o mais feliz.
para um legume ficar sempre verde. bituaram-se a comprar barato. Entre
Se eu fizer isso, estou a ser fiel à mi- DOÇARIAS um bom e um ruim deve haver uma E a simplicidade importa?
nha matriz e ao mesmo tempo a ter Marlene Vieira diferença de 30 ou 40 cêntimos. Acho Em tudo. O que é difícil é fazer simples
uma cozinha evoluída e sofisticada, Com o Expresso de 8 de junho que as pessoas têm de questionar o e surpreender. Pôr caviar com mui-
sem que as pessoas deixem de per- que comem. Já chegámos à conclu- ta manteiga ou pôr foie gras em cima
ceber o que estão a comer. são de que não precisamos de bife to- de uma preparação é fácil. Agora com
dos os dias. Comer bem é comer coi- alho, pão, coentros, azeite, um ovo
Essa cozinha complexa a certa altura sas boas, não é comer peixe ou carne. e um bocadinho de toucinho, fazer
não se tornou quase moda? Pode ser só legumes. uma coisa que a pessoa tem vontade
Posso parecer suspeito, mas não po- de chorar, isso é que já é mais difícil.
demos assumir que uma ida ao res- Estamos desabituados?
taurante é uma coisa de moda. Vamos Estamos porque viemos de um regi- A cozinha ainda lhe dá prazer? Ou é
porque queremos comer. me em que a proteína era escassa e mais gestor?
passámos a ter acesso a ela. Contra Eu cozinho muito. Tento levar a mi-
Mas escolhemos o tipo de mim falo. Mas, acima de tudo, devía- nha vida no sentido de ter uma equi-
restaurante. mos preocupar-nos em comer coisas pa que trate da parte da gestão. Eu
Sim, mas não posso pensar nisso en- boas e não baratas. Porque é que um vou de férias e gosto de cozinhar. Te-
quanto cozinheiro. Tudo o que é bem quilo de frango do campo custa 25 nho um filho de três anos e faço sem-
feito as pessoas gostam. E a idade é in- euros e o de aviário três? Temos de pre a comida para ele.
diferente. Na padaria é fácil perceber fazer essa pergunta.
quando uma criança come um bolo de Se houvesse uma petiscada num
arroz como nunca tinha comido. Eu Onde ficou a capacidade de grupo de amigos, era o Vítor que a
já tinha comido aquele bolo de arroz, inventar? fazia?
mas as crianças não comem, porque a Ainda a temos. Alguém come mais Num grupo de cozinheiros, era o Vítor
maior parte do que há nas pastelarias sopas do que nós? Eu também tenho que a fazia. b
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porque uma serra tem de ter sempre subidas e tem
de ter sempre descidas — é essa a sua natureza.
Uma caminhada “fácil”
E também toda a serra que se preze tem zonas
à descoberta dos segredos
da serra da Sintra privilegiadas e incontornáveis e na de Sintra —
também conhecida como Monte da Lua — há dois
espaços imperdíveis: o Adrenunes, com os seus 422
metros de altitude, e o Santuário da Peninha, situ-
ado no “caos de blocos” de onde se avistam, com
os seus 488 metros, os concelhos de Cascais, Oeiras
e Lisboa, assim como a serra da Arrábida e o Cabo
Espichel. O ponto mais alto, a Cruz Alta, no Parque
da Pena, tem 529 metros, e oferece uma vista mais
privilegiada sobre a cidade de Lisboa — mas isso
fica para outras caminhadas.
A serra de Sintra é conhecida pela instabilida-
de do seu clima — nem sempre o bom tempo que
se faz sentir lá em baixo, pelas terras de Cascais
ou de Sintra, tem correspondência lá em cima, em
especial na zona da Peninha, marcada pelo inten-
so nevoeiro e pelo vento que por vezes sopra de
forma impiedosa. Mas neste sábado 27 de abril o
tempo e a visibilidade estavam em sintonia com a
vontade dos 54 participantes que marcaram pre-
sença nesta caminhada conjunta promovida pelo
Expresso e pela empresa de viagens e de aventura
Green Trekker.
“Tivemos um grupo bastante heterogéneo, que
aderiu muito bem ao tipo de percurso proposto. O
Subir ao Monte da Lua facto de ser uma caminhada fácil e acessível para
todos também fez com que fosse bastante concorri-
F
oi um percurso curto e relativamente fácil, deia a ermida de São Saturnino e entra-se noutro
mas recheado de pontos altos — não só por dos pontos altos da serra — o chamado Bosque do
serem dos mais altos da serra de Sintra, mas Silêncio, de onde se destacam um conjunto muito
também pela beleza da paisagem e dos bosques relevante de cedros. É um carreiro que se vai des-
por onde a primeira iniciativa dos Roteiros Expres- cendo onde mal entra o sol e onde é visível a dis-
so passou. ponibilidade de água. Continua-se na direção do
“Ali está o Palácio da Pena e o Castelo dos Mou- Adrenunes e dali segue-se para mais um ponto
ros. Para aquele lado fica a Peninha. Deste lado o incontornável deste Monte da Lua — o parque de
Cabo da Roca. E aqui para a frente está toda a zona merendas das Pedras Irmãs, do qual se atinge fa-
de Mafra e da Ericeira”, ouve-se dizer num desses cilmente o estacionamento da Peninha.
pontos altos, a Anta de Adrenunes, um amonto- As reações dos participantes foram positivas e
ado de penedos que faz lembrar um monumento 1 Santuário da Peninha ficou expressa a “intenção de voltar para conhecer
megalítico. Subindo um pouco pelas “pedras” — 2 Ermida de S.Saturnino mais percursos em Sintra e noutros lugares”, diz
“caos de blocos” para não hostilizar os geólogos — 3 Adrenunes Patrícia Cabral. Ou seja, o ‘vício’ de caminhar em
que compõem esta serra, avista-se tudo isto, uma espaços naturais relevantes terá muito provavel-
espécie de posto avançado para contemplar a re- mente contaminado mais algumas pessoas e isso
gião de Lisboa. é um passo importante para o grande desígnio de
As subidas deste percurso não inspiram cui- conservação da natureza. Porque é difícil querer
dados, mas convém ver por onde se põem os pés, preservar se não se conhecer. b
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organiza
Lisboa
16 19 Maio
Cordoaria
Nacional
Feira
Internacional
de Arte
Contemporânea
19
International
Contemporary
Art Fair
arcolisboa.com
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R ECE I TA
POR JOSÉ AVILLEZ
GRUPO JOSÉ AVILLEZ
Bacalhau à Gomes de Sá
A pensar em toda a família
4 pessoas | Tempo de preparação: 50 minutos | Tempo de confecção: 1 hora
Ingredientes
C
omece por cozer o bacalhau em água abun- 500 g de bacalhau demolhado; metade da cebola refogada num robô de cozinha ou li-
dante a ferver, com um fio de azeite, a folha de 500 g de batata para cozer pelada; 4 ovos; quidificador até obter um puré liso e cremoso.
louro e o dente de alho esmagado, num tacho 1 dente de alho esmagado; Salsa em Numa travessa ou tabuleiro de forno, intercale ca-
largo, sobre lume médio. Assim que o bacalhau estiver brunoise q. b.; 1 folha de louro; Azeitona madas de batata cozida em rodelas, bacalhau lascado,
cozido, limpe-o de pele e espinhas e lasque-o com a galega q. b.; Vinagre q. b. creme de cebolada e cebolada, repetindo até terminar
ajuda de um garfo. Reserve. PARA A CEBOLADA com uma camada de cebolada.
De seguida, coza as batatas inteiras em água abun- E PARA O CREME DE CEBOLADA Pouco antes de servir, leve a travessa ao forno para
dante, num tacho médio, sobre lume médio. Quando 500 g de cebola em juliana; aquecer. Entretanto, enquanto o bacalhau aquece, es-
as batatas estiverem cozidas, deixe arrefecer um pouco 120 ml de azeite; 20 g de alho pelado, calfe os ovos em água a ferver com umas gotas de vi-
e corte em rodelas não muito espessas. sem gérmen e laminado; 1 folha de louro; nagre, num tacho médio, sobre lume médio.
Para preparar a cebolada, refogue a cebola, o alho e Sal marinho q. b. Assim que estiver quente, retire o pírex do forno.
o louro, no azeite quente, num tacho médio, sobre lume Antes de servir, finalize com os ovos escalfados, as
médio. Retifique os temperos com sal a meio da cozedu- azeitonas galegas, a salsa picada, um pouco de flor de
ra e deixe cozinhar até a cebola ficar translúcida. Triture sal e pimenta-preta moída no momento. b
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VI N H OS
POR JOÃO PAULO MARTINS
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Está aberta a época
Concursos, medalhas e desperdícios
E
sta crónica foi escrita antes de se iniciar, em vários itens em que o vinho é analisado conversa o tema do “será que este vinho vale
na Suíça, o Concurso Mundial de Bruxe- (numa escalda de 0 a 100). Cada mesa (de 5 o preço?”, assunto mais de uma vez tratado
las, certame anual que já decorreu em jurados) prova assim 150 vinhos nos três dias nestas crónicas. É o mercado que faz o preço,
vários países. No ano passado foi em Pequim, do concurso. Para os produtores as inscrições o resto é conversa académica. Mas para estes
Portugal já por duas vezes recebeu o evento, a “pesam” porque estamos a falar de €150 por concursos também é inútil enviar vinhos que
Suíça estreia-se como anfitriã. Serão avalia amostra, com o preço a baixar para €138 caso precisem de ser explicados e contextualiza-
das cerca de 10 mil amostras de vinho che- sejam 10 vinhos do mesmo produtor. Todos dos. Exemplo: se chegar a uma mesa de pro-
gadas das mais variadas partes do globo. Há esperam que as eventuais medalhas com- va um vinho de talha, com cheiros de resina,
tendências que se têm vindo a acentuar: vi- pensem o investimento. A escolha dos vinhos com muitas notas vegetais e sem fruta, vai ter
nhos cada vez menos alcoólicos e mais vi- a enviar é que deveria ter sempre em mente uma nota fraca e jamais chegará às medalhas.
nhos bio a concurso, embora, como se sabe, que a prova é cega, que aos provadores apenas Erro dos provadores? Não, uma vez que não
nem sempre é fácil perceber, em prova cega, é indicado a data da colheita, que não sabem sabendo a origem, não conhecendo o méto-
que um vinho é de agricultura biológica. O a casta, o país ou a região e, por isso, não se do, é muito complicado dar uma grande nota
número de amostras destes vinhos dupli- devem enviar amostras fora do mainstream. a um vinho que sai (muito) da média. Visto
cou do ano passado para este ano, mostran- Repare-se: um vinho que aqui pode custar nesta perspetiva, e com as devidas exceções,
do que é uma tendência com cada vez mais €50 porque é raro, muito apreciado ou ou- nomeadamente para os vinhos generosos (o
adeptos. A prova decorre rápida e em todas tra qualquer razão, pode não ter a “eviden- Porto costuma arrecadar muitas medalhas),
as mesas de prova de degustam 50 amostras te” medalha de ouro e, ao inverso, um vinho este e outros concursos que arrancam nesta
só da parte da manhã; à tarde há programas mais simples, muito bem feito e agradável época do ano destinam-se aos vinhos que,
sociais para quem o desejar. A quantidade pode vir de lá galardoado. Não é por acaso sendo bem feitos, não são nem ousados nem
pode parecer um exagero mas não é, uma que as grandes marcas, os vinhos famosos demasiado originais. Para esses guardam-se
vez que não se exige a escrita de uma nota de do mundo nunca se apresentam a concur- momentos de prova explicada e poupa-se
prova e apenas o preenchimento de cruzes sos. Não serve de nada chamar aqui para a muito dinheiro. Não está mal visto. b
DE CAMPO DE OURIQUE EM LISBOA)
(OS PREÇOS REFEREM-SE À GARRAFEIRA
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SO B R E M ESA
POR FORTUNATO DA CÂMARA
A
O reverso são os restauran-
fonso de Santa Maria é a fi- coloca em campo Celina, a heroína que maçã” (€11,50), servidas fatiadas, co-
tes apinhados de clientes
gura mais ilustre do concelho do alto do castelo derramou uma frigi- bertas com um molho rico em sabor,
que gerem esse ativo com
da Sertã. O bravo condestável deira (sertã) com azeite fervente sobre numa boa solução de degustação, em sobranceria, como se o mais
morreu ao serviço dos pobres há quase os inimigos, fazendo-os recuar. A gesto que se evidenciava o exterior carameli- importante fosse o conceito,
seis séculos, após uma vida de feitos e assertivo eternizou a “certã” no brasão zado da carne. Batatinha assada e puré o chefe e o seu ego, ou as
conquistas ante os castelhanos. Quan- da vila, cujo nome evoluiu depois para de maçã bem equilibrado. Reinou por pontuações inflacionadas
do nasceu, em 1360, em Cernache do Sertã. A vila é atravessada pela ribeira fim o “Cabrito estonado, batata assada, em sites alimentados por
Bonjardim, sob o nome de batismo de homónima, e a montante dela, na saí- hortaliça” (€17), com a carne estonada deslumbrados. Ironicamen-
Nuno Álvares Pereira, o futuro Santo da para Cernache, surge uma fachada (pelada), de pele bem dourada, como te, há uns anos uma revista
Condestável recebeu treino de cava- envidraçada de pala vistosa a fazer al- esperado, servido com um bom arroz pediu a... um cozinheiro de
leiro medieval. Esses recursos asso- pendre. De relance, mimetiza um hi- carolino de miúdos, de caldo corrido, Lisboa (!?) dicas para que os
ciados à sua visão estratégica viriam potético lóbi de hotel, mas na realidade quiçá um pouco exagerado no tónus de seus leitores pudessem ser
a ser fundamentais em diversas bata- é a pastelaria e entrada no restaurante hortelã que se impunha. clientes ‘bem-comportados’,
soubessem o que pedir, e
lhas, como a de Aljubarrota, quando Santo Amaro. Serviço simpático, qualificado e
como agradar para que assim
a padeira Brites deu igualmente o seu Um espaço de ambiente clássico, discreto, com uma oferta de vinhos
caíssem nas boas graças
contributo à vitória lusa. sala ampla, e mesas confortavelmente alargada em variedade e geografias, dos chefes: de cozinha e
O predestinado Santo Condestável aparelhadas, onde o menu é pontuado a preços convidativos. Na doçaria, o de sala. A perversão de se
tinha coragem e as suas origens em de pratos e especialidades locais. Nas “Toucinho do céu” (€2,70) veio numa misturarem papéis tem
terra de valentes, pois uma lenda lon- “Entradas variadas e pão da região” fatia baixa e húmida, com chila na destas coisas. O cliente não
gínqua já havia atribuído um papel de (€2/pax), a saladinha de bacalhau base, e topo alourado de creme de ovos tem sempre razão, mas é ele
relevo a outra mulher, ainda antes da com feijão branco, os ovos mexidos com amêndoa. O bom e regional “Car- a essência do negócio da
fundação do reino. Era Quinto Sertório, com farinheira, as rodelas de chouriço tucho de ovos e amêndoa de Cernache restauração. Basta que cada
exilado de Roma, o possessor das então grelhado, e as azeitonas verdes, foram do Bonjardim” (€3), era um delicado parte se saiba ver ao espelho.
terras lusitanas de Sartago, quando os um bom prenúncio inicial. Ícone da cone de massa amendoada, rechea-
romanos o quiseram expulsar. A lenda casa — e de outros espaços dos mes- do de doce de ovos, com a frescura e
mos proprietários na vila — é a “Sopa contraste de umas lamelas de ananás.
de peixe da D. Helena” (€2,50) servi- A frigideira quadrada de quatro bi-
da numa terrina, onde se pode provar cas lá está numa das entradas da vila,
SANTO AMARO (e repetir ou partilhar) com agrado um para relembrar feitos passados. Visi-
Rua 1º de Dezembro, 15 — Sertã creme base de cenoura e abóbora, cujo tem-se as atrativas praias fluviais que
Telefone: 274 604 115 pescado não é o sabor primordial, fi- rodeiam a Sertã, seguindo depois a boa
Encerra à quarta-feira cando essa vertente a cargo da guar- cozinha que se pratica no requintado
nição rica em lascas de pescada. Uma Santo Amaro. b
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EM PARCERIA COM
Evaristo
Praia do Evaristo, Sesmarias.
Thai Vilamoura
Avenida da Marina, Edifício
onde dormir
Tel. 289 591 666 Vila Lusa, loja 3, Vilamoura. Conversas de Alpendre
A fama vem da localização, em Tel. 289 302 370 Est. de Santa Rita, 36, V. N.
cima da areia, mas também dos É na avenida principal de Vilamou- de Cacela. Tel. 910 035 704
ingredientes oriundos do mar: ra que este restaurante se desta-
peixes e mariscos no carvão, lulas ca. Lá dentro, os aromas apelam
à Evaristo, carabineiros e camarão a uma experiência de sensações.
tigre. Pergunte pelos ingredientes Não é fácil escolher o caminho
frescos do dia, já que nesta casa certo, dada a extensão da lista, por
não se usa ementa. isso peça ajuda.
Preço médio: €45. Preço médio: €25.
Comecemos na Casa da
Veneza Senses Árvore, instalada na copa
Paderne, Albufeira. Cascade Wellness & Lifestyle de uma alfarrobeira, a 6,5
Tel. 289 367 129 Resort, Rua das Ilhas, Lagos. metros de altura, construída
São Gabriel O lavagante, a lagosta, o camarão Tel. 282 771 500 em madeira. A decoração é
Estrada de Vale do Lobo, Quinta do Lago. Tel. 289 394 521 e a sapateira são algumas das acolhedora e elegante e o terra-
Nos últimos anos, Leonel Pereira assumiu-se como um dos mais sugestões da lista dos mariscos. O ço oferece uma vista esplêndi-
completos chefes nacionais. Tem dois menus de degustação, o peixe só é confecionado median- da. Esta boa nova vem comple-
do Mar e o Contemporâneo, que incluem produtos como o ca- te reserva com dois dias de ante- mentar a oferta constituída por
viar de saboga do rio Guadiana, desenvolvido na Creative Cook cedência. Harmonize com vinho 11 espaços de alojamento
Garage, o laboratório onde tudo acontece. Pleno de sabor é o a copo ou com uma das mais de (a partir de: €140), entre suítes
tártaro de ferro de engomar, um búzio que o chefe reintroduziu três mil referências da magnífica e um apartamento familiar,
na gastronomia. Mas o São Gabriel é muito mais do que só a co- garrafeira. Preço médio: €25. todos com terraço privativo.
zinha. O serviço de sala, a cargo de Delfim João, é irrepreensível, Reinventam-se tradições, harmo- Não perca o pequeno-almoço
as harmonizações a cargo do escanção Vítor da Avó exemplares, Pezinhos N’Areia nizam-se com os melhores vinhos nem os sabores confecionados
secundados por uma equipa competente. Preço médio: €70. Praia Verde. Tel. 281 513 195 nacionais e desafia-se o palato ao jantar (de terça-feira
Peixe no forno ou ao sal, arroz de numa experiência em tudo me- a sábado), mediante marcação.
marisco com lavagante ou cara- morável. Tem a novidade de agora Refresque-se na piscina
bineiro e algumas carnes na grelha apresentar a mesa do chefe, onde de água salgada. Atividades
Algarve Ocean
Vila Vita Parc, Rua
compõem a carta curta deste
espaço, que conjuga madeira e
são servidos menus de degusta-
ção. Preço médio: €50.
não faltam!
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M O DA
POR GABRIELA PINHEIRO
Hot Orange
Exuberante, vivo e vibrante, o cor de laranja
é dado a extremos e não deixa ninguém
indiferente. É uma das cores da estação,
para usar sem medo em full look
ou em apontamentos cheios de energia
Q
uente, vibrante, energético, eli- que vários designers apresentaram para
tista... Este verão o cor de laran- esta temporada. A estética dos anos 70
ja vai chegar sem medo. Ainda foi uma aliada para aprimorar um look
mais exuberante do que habitualmente, desafiante, onde as calças flare e os es-
o cor de laranja é um tom que não deixa tampados psicadélicos atraem mesmo os
ninguém indiferente, tanto na hora de olhares mais distraídos. Para quem ain-
sair à rua como quando se trata de coor- da não se converteu à cor do fogo, pode
dená-lo com outras cores, e misturá-lo lentamente ir optando por arriscar em
em peças e estilos. As dúvidas não param acessórios, que por mais que sejam um
e a dificuldade em combinar harmonio- apontamento, não deixam de trazer for-
samente esta cor deve-se ao facto de ser ça e alegria a um outfit mais monótono.
tão intensa, quente e luminosa. Só alguns Embora pareça pouco versátil, a ver-
tons mais neutros resultam numa com- dade é que o cor de laranja oferece muito
binação bem sucedida, por isso é preci- mais possibilidades do que parece à pri-
so abrir os olhos e procurar as tonalida- meira vista. Este tom quente é usado tan-
Shopping ÓCULOS
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HÁ H O M E M
POR LUÍS PEDRO NUNES
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O Apocalipse é agora
Nos anos 90 fizeram-nos acreditar que estaríamos fritos. E não é que estamos?
A
final foi tudo um exagero. Os documentários alterações climáticas, com cheias e furacões, as po- permanente” tem como resultado um silêncio pre-
sobre o “fim do mundo” que passavam na TV pulações continuam a negar as alterações climáticas sencial. O smartphone integra o corpo.
nos anos 80 e 90 só serviram para assustar o para serem politicamente fiéis a um Presidente ne- — A privacidade deixou de ter importância. To-
pessoal. Contraproducentes. Era suposto estarmos gacionista. O trumpismo faz mal ao planeta. dos prescindem dos seus dados pessoais através de
num mundo apocalíptico, a ser grelhados pelo Sol e — Os atentados terroristas de grande dimensão informação que vão, de forma voluntária, cedendo a
a lutar implacavelmente por combustível, subjugados já só fazem notícia durante dois ou três dias. Não são terceiras partes. De dados sobre saúde, finanças a gos-
por robôs gigantes num cenário pós-nuclear. Pudesse cometidos em zonas de guerra. São atentados ale- tos pessoais de toda a espécie, mas também a sua lo-
enviar umas notas soltas para 1990 sobre a atualidade atórios em países “desenvolvidos”. Normalmente calização em todo o momento, as passwords que dão
para alguém escrever uma novela sobre o juízo final, visam locais de culto. Os cristãos radicalizados que acesso às caixas de correio, tudo pode ser vendido por
estes seriam os dados mais relevantes que teria para atacam muçulmanos ou judeus usam armas auto- grandes conglomerados que os humanos amam. Os
descrever o atual cenário que vivemos: máticas. Os muçulmanos preferem explosivos. Na humanos que até desconfiam que os computadores
— A “fé” na Ciência perde força, o que leva a epi- Grã-Bretanha, os ataques são feitos com facas. Nos os espiam, os aparelhos que compram para casa ser-
demias de doenças já extintas em zonas desenvolvi- EUA, se o ataque for perpetrado por um branco, não vem para os ouvir, os telefones os escutam. Mas não
das do planeta. O sarampo, que tem uma das vaci- se usa o termo terrorista. Neste país há a variante de se importam porque os adoram e os desejam. Gran-
nas mais eficazes alguma vez descobertas, é recusa- chacinas em escolas. O terrorismo entrou na nor- des potências como a China controlam o comporta-
da por grupos de pais, o que leva a surtos brutais da malidade noticiosa. Já só mesmo um ataque com mento dos seus cidadãos através de reconhecimento
doença. Há mesmo miúdos que vão às escondidas a grande mortandade e ligação emocional é capaz de facial e outras ditaduras querem importar esse siste-
hospitais vacinarem-se. Já o excesso de uso de an- captar a atenção das pessoas. Com brevidade. Mas ma de monitorização total. Amamos ser controlados.
tibióticos leva os humanos a ficarem imunes a estes, justifica o securitarismo. — O consumo maciço de pornografia desde a
surgindo estirpes de supervírus. Nas escolas ensi- — Os humanos deixaram de comunicar cara a adolescência leva a que o interesse pelo ato sexual
nam a teoria do Big Bang simultaneamente com a cara entre si, preferindo estar ligados por um peque- real vá diminuído, dado que em termos “comparati-
criação dos dinossauros por deus há sete mil anos. no intercomunicador de ecrã que transportam nas vos” o porno é mais interessante e visualmente esti-
Estamos em 2019. mãos 24 horas por dia. Têm uma dependência total mulante do que uma situação desconfortável de sexo
— Baleias começam dar à costa a morrer com em relação a este aparelho, de tal forma que, se lhos convencional — que rapidamente se torna aborreci-
dezenas de quilos de plástico no estômago e multi- retirarem, revelam sintomas de abstinência. Em pou- do. Assim, não só se fala numa crise como se come-
plicam-se as histórias de espécies que atingiram o cos anos perderam capacidades básicas de se opera- ça a equacionar se o sexo está a tornar-se obsoleto e
ponto de não-retorno da extinção. As temperaturas cionalizarem no “mundo real” sem este gadget. Em é melhor optar pela reprodução humana sempre in
continuam a subir. A quantidade de plástico deitado experiências recentes foi possível constatar que um vitro — até porque produz bebés mais “seguros”. O
nos oceanos não decresce. O acordo de Paris — ten- adolescente sem ligação a um serviço de meteorologia sexo está a morrer.
tativa vaga de abrandar este caminho para a auto- online era incapaz de saber se podia sair de casa por- — Para alterar ligeiramente este presente: im-
destruição — é denunciado. Os líderes dos grandes que poderia estar a chover. Não lhe ocorria que bas- pedir um puto de nome Zuckerberg de entrar na
países como os EUA voltam a apostar em indústrias tava olhar pela janela para o céu. Simples funções de Universidade nos anos 2000 e um bufão do imobi-
sujas, a desflorestação na Amazónia dispara, o de- orientação numa cidade ou de conversa sem recurso liário de Nova Iorque de ir ao Jantar de Correspon-
gelo aumenta. Microplásticos são encontrados na a um “motor de busca” para validar dados ou servir dentes em 2011, onde é humilhado e irá meter na
comida, nas entranhas de peixes, no cume dos Hi- para mnemónica é-lhes também impossível. Esse cabeça concorrer a Presidente dos EUA. Pode ser
malaias. O clima mudou. Nos Estados Unidos, em aparelho está hoje presente nas mesas de refeição, que resulte. b
zonas que estão a ser fortemente fustigadas pelas nas camas, no ginásio, em todo o lado. Esse “contacto lpnunesxxx@gmail.com
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ALTA
FIDELIDADE
A Audio Pro propõe uma coluna
DIÁRIO DE UM PSIQUIATRA POR JOSÉ GAMEIRO portátil que arrecadou três
prémios consecutivos da revista
um dos em que me senti mais “homenzinho” uma autonomia que pode durar
até 30 horas de reprodução e
uma impressionante qualidade
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PASSAT E M POS
POR MARCOS CRUZ
1 7
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11
5 8 9
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3 2 1 4
2
8 9 1 6 4 7 5 2
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Sudoku Difícil 6
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5 2 1 7 8
3 2 7 8
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4 1 6 7 10
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3 5 1 11
4
Horizontais Verticais Soluções nº 2272
1. Hipnotiza serpentes 2. O da gleba 1. Vem de fora 2. Nobel chileno. HORIZONTAIS
Soluções estava vinculado à terra. Expiatórios Goste muito 3. A verdade sai da sua 1. Bailarinas 2. ondas;
Fácil Difícil arcam com as culpas 3. Período de boca. Força de segurança nacional lados 3. questões; lá
4. ulmeiros; tb 5. ia; RAI;
4 1 6 2 8 3 9 7 5 8 3 5 9 1 2 4 6 7
1095 dias. Início de início 4. Onde 4. Chama-se raras a pessoas
evoe 6. ara; genro
3 2 5 9 4 7 6 8 1 7 9 1 5 6 4 3 8 2
se manifestam as pessoas. É de uma peculiares. Fiz como o cão 5. Ou a vã
7. Barreno; lt 8. mastigar
9 7 8 1 6 5 3 2 4 4 2 6 8 3 7 5 9 1
8 9 3 5 7 1 4 6 2 3 5 2 7 9 6 1 4 8 que trata “Roma” 5. Contém o código glória de mandar. São três terços
9. rias; átonos 10. todo;
2 5 7 4 3 6 1 9 8 6 4 9 1 5 8 2 7 3 genético. Filantropo filiado 6. Imagens ortodoxas. Metade de
leitão 11. ocaso; ae
6 4 1 8 2 9 7 5 3 1 8 7 2 4 3 9 5 6 6. Intrafronteiras 7. Regiões interiores três 7. Interromper a gestação. Vogal
7 6 4 3 5 2 8 1 9 9 7 4 3 8 1 6 2 5
8. As pontas da espada. Tosquiam-se. repetida 8. Já foi ut. Onde se reuniram VERTICAIS
Passa debaixo da Ponte Vecchia os líderes Aliados em fevereiro de 1. boquiaberto
1 3 2 6 9 8 5 4 7 5 1 8 6 2 9 7 3 4
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10 PERGUNTAS A...
HUGO
MOUTINHO
“DESCONFIO
SEMPRE DOS
DJ QUE NÃO
DANÇAM”
1. JÁ DESCOBRIU SE A MÚSICA É MAIS
REGENERADORA DE DIA OU DE NOITE?
O poder regenerador da música é infinito. Não depende
da hora do dia, mas sim do que se ouve. A música certa no
momento certo faz milagres!
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FRACO CONSOLO
/ PEDRO
MEXIA
P
AS BRUXAS DE ALLEN
ONDE NÃO HÁ PROVAS, alternativa aos parceiros europeus que o sustentaram durante uns
tempos; pois bem, a mesma Amazon recusou-se depois a estrear o
A AMÉRICA É PERITA primeiro quatro títulos, “A Rainy Day in New York”. Não o distribuiu,
NISSO, HÁ BRUXAS não o disponibilizou em plataformas digitais, pode ser que em Itália o
QUE É PRECISO QUEIMAR queiram, não se sabe bem, mas na América fica na gaveta, porque não
é conveniente. E o problema nem está nas alegações antigas contra o
cineasta, mas na histeria de agora. Allen tornou-se “tóxico”, explicaram-
rimeiro, foram os actores. Que não nos, traz “publicidade negativa e danos reputacionais”, e além disso
voltariam a trabalhar com ele, que se insiste em fazer declarações “insensíveis” ao ar do tempo, mesmo
arrependem de ter trabalhado com ele, quando o ar do tempo é fétido.
que já se desfizeram do dinheiro sujo E a última notícia, desta semana, é que Woody Allen está a escrever ou
que ganharam a trabalhar com ele. já terminou as suas memórias, livro que tem tudo para ser intrigante,
Chega a ser desgostante ouvir gente tocante e divertido, mas que as editoras contactadas, sem excepção,
como Rebecca Hall, que antes de “Vicky têm rejeitado, algumas sem ler uma linha do manuscrito. Porque Allen
Cristina Barcelona” devia quase toda a é um artista menor? Porque não tem nada de interessante para contar?
sua carreira ao pai, Peter Hall, a atacar Porque escreve mal? Não, porque qualquer associação a Woody Allen
Woody Allen (mas como já vi Molly Ringwald a cuspir no túmulo de se tornou impossível, uma vez que, como toda a gente sabe, ele abusou
John Hughes, que a celebrizou, e que não fez mal a ninguém, nada me da filha adoptiva, apesar de ter sido interrogado por polícias que não o
espanta). De Ellen Page e Timothée Chalamet não espero senão atitudes prenderam, por peritos que não detectaram nenhuma patologia, apesar
politicamente correctas, mas porquê Michael Caine, que tem idade para de nunca ter sido julgado em tribunal, apesar, enfim, de não haver
ter juízo? E porquê, valha-me Zeus, Mira Sorvino, a actriz de “Poderosa provas. E onde não há provas, a América é perita nisso, há bruxas que é
Afrodite”, comédia a que ela agora chama “um erro terrível”, do qual preciso queimar. b
tem “vergonha”? pedromexia@gmail.com
Depois dos actores, ou talvez tenha sido antes, foram os críticos Pedro Mexia escreve de acordo com a antiga ortografia
de cinema, incluindo Richard Brody, que num lamentável texto de
autocrítica soviética, “Watching Myself Watch Woody Allen Films” (o
título é todo um programa), descobriu, após investigação exaustiva,
que Allen gosta de raparigas novas e que escreve argumentos nos quais
“os poderosos abusam do seu poder aproveitando-se dos vulneráveis”.
É verdade que outros críticos, a começar por Jonathan Rosenbaum em
“Notes Toward the Devaluation of Woody Allen”, já tinham manifestado
algumas reservas, mas o artigo de Rosembaum é de há quase trinta anos,
quando Allen estava no auge, e baseia-se em argumentos discutíveis
mas, como dizer, argumentados (uma crítica à “representação de
intelectuais para não-intelectuais e anti-intelectuais que satisfaz a
curiosidade sobre as preocupações intelectuais sem nenhuma espécie de
desafio intelectual”). Não é possível confundir isso com o diz-que-disse
biográfico e a extrapolação biografista.
Em seguida, veio a Amazon do senhor Bezos, que assinou com Allen um
contrato de financiamento e distribuição de quatro longas-metragens,
modelo excelente para o tipo de cinema que Allen faz, e uma boa
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