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Sumário

Capa
Folha de Rosto
Epígrafe
Prólogo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo Extra
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo Extra
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo Extra
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Epílogo
Agradecimentos
De acordo com a mitologia grega, Heitor foi um general e príncipe de Troia. Seu nome vem do
grego Hektor e sua tradução significa “possuo, tenho em meu poder”
Prólogo

Sete anos atrás...

"Calma, tá tudo bem" — falou baixinho para si mesma enquanto via o último passageiro do
ônibus descer, deixando-a sozinha na companhia do motorista. Maya olhou através da janela de vidro
embaçada e observou que do lado de fora a negritude da noite já embalava a cidade e o farfalhar das
árvores era tudo o que se podia ouvir, além do motor do ônibus. Estava frio, mesmo ali dentro da
segurança do transporte. E além de gelada, ela se sentia sozinha e desprotegida, embora nunca fosse
uma garota medrosa ou chorona. Nem mesmo quando saía tarde da noite à procura do pai bêbado
pelos bares. Era sempre assim que acontecia, desde que era menina. Todavia agora Maya estava se
sentindo assustada, ainda que não fosse a primeira vez que estivesse saindo tarde do trabalho, o
supermercado onde estava trabalhando há uma semana.

Sua mente foi até Lucas, seu irmão, e calculou que ele já deveria estar dormindo àquela hora
enquanto seu pai provavelmente estava enfiado em algum bar do bairro. E isso fez Maya se recordar
novamente de que nem quando ainda era uma garota com seus treze ou catorze anos de idade sentira
tanto medo. Eram lembranças tristes aquelas da adolescência e não tão remotas como pensava.
Tempo em que sua mãe ainda estava viva, Maya suspirou com pesar.

Seu pai era um alcoólatra, isso era fato. Sempre fora. Desde que Maya se entendia por gente. E
além de alcoólatra, se revelara um maldito viciado em jogos. E Maya podia perfeitamente visualizá-
lo agora no meio de um grupo, gastando dinheiro e fazendo apostas. Os cassinos agora, para variar,
eram o novo point dele. Maya ainda podia se lembrar das reclamações que a mãe fazia quando o
cambaleante marido chegava em casa toda noite sem dinheiro. Podia ouvir as discussões dos pais e
mais uma vez pensar no quanto seu pai precisava de ajuda.

sim, ele precisava!

Sentiu a mão gelada na barra de ferro do banco do ônibus e então passou a se lamentar pelo fato
da jaqueta jeans surrada não ser agora tão quente quanto ela gostaria que fosse, nem tão nova assim,
já que fazia meses que não se dava ao luxo de comprar alguma coisa nova, especialmente roupa.
Então afastando a mão do ferro para se abraçar e dessa forma diminuir a sensação de frio, inspirou o
ar dos pulmões e o soltou lentamente pelo nariz. Suspirou em seguida e voltou a pensar no que a mãe
dela certamente passara ao longo dos anos de casamento. Não devia ser nada agradável suportar um
homem desajustado e irresponsável, e por isso Maya não queria nem sonhar que um dia pudesse ter o
mesmo fim da mãe. Nunca ficaria com um homem para ser infeliz ao lado dele e muito menos para
sofrer por ele.

Suspirou com tristeza e resolveu afastar aqueles desagradáveis pensamentos, visto que eles não
lhe traziam nenhuma boa recordação, pelo contrário, sempre lhe jogavam na cara a verdade de que
sua mãe nunca mais voltaria para eles. E era ruim ter que suportar a saudade, como ela vinha
tentando suportar desde que aquela mulher forte e carinhosa morrera, um ano atrás.

Maya ajeitou-se no banco esquentado pelo seu próprio corpo e decidiu se concentrar no cenário
escuro que se passava como um borrão a seu lado através do vidro da janela. Se deu conta de que já
começava a se sentir aquecida. Agradeceu em pensamento por isso e desejou chegar logo em casa
para poder dormir quentinha em sua cama. Então, quando o motorista deu a última curva, fazendo
com que o ônibus ficasse ainda mais perto do lugar onde vivia na companhia do pai e do irmão mais
velho, Maya se levantou para puxar a cigarra e só então reparou que lá fora estava tudo ainda mais
escuro do que ela esperava, preto como o carvão.

Tinha que tirar os sapatos e correr, exatamente como fazia há dias. E foi o que fez. Antes que a
porta traseira do ônibus se abrisse, a garota se preparou. Ao descer os degraus com habilidade, ainda
conseguiu ver através do espelho retrovisor o olhar preocupado do motorista. Aquele olhar que ele
sempre lhe lançava quando ela saltava, aquele olhar de alguém penalizado por ver uma garota tão
jovem estar tão solitária chegando num lugar deserto como aquele. Entretanto, a despeito do olhar
compassivo do homem, ela desceu.

Sem demora, logo olhou para os dois lados, tirou os sapatos dos pés e fez tudo o que planejara
minutos atrás: correu. Correndo descalça ainda olhou para trás a tempo de ver o ônibus esperar um
pouco por ela antes de dar a partida e sumir de sua vista. Pelo jeito o motorista estava mesmo
preocupado com seu bem-estar. Aquele homem deveria ser mesmo um sujeito decente, alguém do
bem. Pensando assim logo alcançou a metade do caminho, mas foi então que tudo aconteceu. O início
do pior momento de sua vida.
Não estava sozinha no beco e estava prestes a ser atropelada por uma motocicleta misteriosa.
Assustada e angustiada com aquele farol que lhe cegava os olhos, tentou continuar o caminho, mas foi
tarde demais. O motoqueiro logo abandonou a moto e avançou em Maya de um modo que a
encurralou. Maya tentou se defender, mas foi em vão.

—Não! Não! Nãoo!

Tentou se debater, mas não conseguiu. Só soube que estava perdida. Horrivelmente perdida. Ao
que parecia, o desconhecido não a deixaria em paz. Maya sentiu pavor, mas mesmo assustada,
mordeu a mão dele, o que fez com que o marginal a empurrasse com raiva, fazendo com que suas
costas encontrassem a dureza e a frieza do muro sujo que dava para um terreno baldio.

— Por favor, NÃO! — gritou, dominada pela ideia de ser violentada e morta por ele. No entanto
o cara a ignorou.

— Me deixe em paz, desgraçado! Me deixe em paz! — berrou, furiosa, tentando se desprender,


mas era tarde demais. Já estava dominada. Sem dúvida o estranho era mais forte que ela.

Maya chorou ao sentir o sabor da derrota. E então tudo aconteceu muito rápido. Gritou para que
ele parasse, para que ele não lhe fizesse nenhum mal, disse que ela tinha algum dinheiro na bolsa e
que poderia dar a ele. Esperneou. Lutou bravamente contra alguém mais robusto e forte que ela,
alguém que era seu algoz, lutou como uma leoa mesmo quando já não tinha mais forças para sequer
gritar, e então, ao contrário do que desejava e suplicava, o estranho lhe segurou com firmeza e tapou-
lhe a boca com alguma coisa. Um pedaço de pano sujo que também serviu para lhe cobrir o nariz e
fazê-la amolecer. Maya cambaleou, se sentindo mal. Ficou tonta... sua audição perdeu a perfeição,
sua razão ficou embaralhada e a partir de então não conseguiu fazer mais nada.

Me deixe em paz... por favor, me deixe em paz, gritou em pensamento, pois sua voz não saía.
Maya gritava na consciência, mas ninguém lhe ouvia. Sua boca estava aberta, mas dela não saía som
alíugum.

Então foi capaz de sentir a dor do medo.

Latejante.

Cruel.
Agonizante.

Suas roupas começaram a sair do lugar.

Mãos fortes e pesadas tomaram seus seios da forma mais repugnante e suja.

Sentiu um corpo bruto pesar sobre o seu...

— Não! Não... — gritava a voz da sua mente, aquela voz que só ela conseguia ouvir — Eu não
quero... que me toque... por favor, eu... não quero.

O homem não ouvia. Não se importava. E do modo que lhe arrancava as roupas, mesmo que lhe
ouvisse, não iria obedecer. Maya tentou não pensar no pior, tentou ver o rosto dele, tentou reconhecê-
lo, porém não conseguiu identificar nada a não ser que ele tinha a pele clara e os cabelos
escuros... um tipo bem comum.

E era ágil...

E impaciente...

E covarde...

Maya sentiu frio. Estava estirada no chão sujo e gelado, perto do matagal. E não gostava do modo
como estava deitada. Tentou olhar em redor. Sua vista ficava cada vez mais turva, confusa... as coisas
pareciam sair do lugar... sua audição não voltava ao normal. Não conseguiu ouvir sequer o som do
próprio grito quando o homem desconhecido a penetrou. Então ela só sentiu dor. Não conseguiu pôr
para fora todo o seu desespero naquela hora. Porque só sentia dor. A maldita dor. Não pôde xingar
nem soluçar porque sua boca até abria, mas dela não saía nada. Ou quase nada. E ela só sentia a
insuportável dor.

Seu corpo mole doía. Suas partes íntimas doíam.

O homem deitado sobre ela a feria a cada estocada, a cada movimento dado.

E ele a feria toda vez que lhe segurava as mãos com força e lhe mostrava quem era maior.
E tudo o que Maya sentia era a dor.

A maldita dor.
Capítulo 1
MAYA

Dias atuais...

OS ANOS de terapia me fizeram compreender que nem todos os homens são iguais.

Isso.

Os homens não são todos iguais, Maya. Nem todo homem é igual.

Respire fundo.

Aceite essa ideia.

Nem todos são iguais.

Nem todos são covardes e brutos como aquele motoqueiro.

Nem todos são criminosos.

Seu pai não é. É alcoólatra, mas não é um maldito estuprador.

Seu irmão também não é.

E Andreas. Bem, Andreas não é.

— Quem é a garota? — ouvi a voz não tão baixa do senhor Rachide ao cochichar com o filho. O
homem não tinha ideia do quanto Andreas era um garoto bom. Que além de bom, era generoso. Tive
vontade de dizer para o senhor Rachide que ele deveria ter mais orgulho do filho que tinha.

— É a Maya — Andreas cochichou, visivelmente constrangido com a forma com a qual seu pai o
tratava. Ou me tratava. Era óbvio que de onde eu estava podia ouvir a conversa dos dois e era claro
que Andreas já sabia perfeitamente disso.

O homem gordo e muito branco voltou a cochichar com o filho e ele certamente tinha a convicção
de que estava cochichando e não falando alto. Bom, ou talvez ele não se importasse com essa
diferença.

— Por que trouxe essa garota pra cá? Por acaso ela é alguma namoradinha sua?

— Não, ela não é. Ela é uma amiga, pai. Uma garota muito boa, que precisa de ajuda. Poxa, ela tá
passando por uma barra. O pai dela, o senhor Natanael... bom, ele é alcoólatra. Bebe tudo e gasta
todo o dinheiro que ganha na rua.

— Ah, eu sei o que é um alcoólatra e o que ele faz, Andreas. Não me trate como se fosse algum
burro ou ignorante.

— Então... a mãe dela morreu há alguns anos e o irmão dela, bem, é ele quem sustenta a casa.

— E por isso ela tá precisando de trabalho?

— É claro. E não custa nada ajudar, custa? Pensei no senhor, que o senhor poderia dar a ela
alguma função, sei lá, qualquer coisa aqui na lanchonete. A garota é legal e é trabalhadeira. Eu
conheço ela.

— E há quanto tempo você a conhece?

— Ah, pai, não importa...

— E o que ela sabe fazer? Não pense que esse rostinho bonito vai me convencer. Não sou um
garoto ingênuo e bobo.

— Shh. Ela pode ouvir... hum, ela sabe muitas coisas, pai, eu acho. Ela já trabalhou num
supermercado, sabe atender os clientes. Ah, e não tem nenhum mistério num trabalho de lanchonete.
Sejamos realistas.

— Ela sabe fazer algum sanduíche, por acaso?


— Ah, quem não sabe fazer um sanduíche? É claro que sabe.

— Então vamos fazer um teste. Se ela me preparar um dentro de meia hora, dou o trabalho a ela,
caso contrário, você vai pegar sua namoradinha pela mão e dar o fora daqui. Entendeu?

— Fechado.

Merda.

Eu tinha ouvido tudo.

O senhor Rachide queria que eu preparasse um sanduíche. E eu não sabia ao certo se podia fazer
um sanduíche. Bem, não do tipo que o pai de Andreas queria. Bom, vou explicar, é claro que eu sabia
fazer um sanduíche, mas talvez fosse mais complicado fazer um do gosto do dono da lanchonete.

Vamos lá, Maya, você consegue.

Massageei uma mão na outra, pensando no que deveria fazer, e concluindo que estava ferrada. O
problema era que se eu não passasse naquele teste ou se o pai de Andreas não gostasse do que eu
fizesse... bem, eu na verdade não dispunha de muito tempo para pensar, tinha que agir.

Andreas voltou do corredor com cara de derrota e me lançou um sorriso sem graça, que dizia
'lamento, garota, fiz o que pude'. Ok, até que ele era mesmo um cara legal.

— Ele vai te contratar, sei que vai, só precisa se convencer de que é confiável. Hã, conversei
com papai e ele pediu pra você preparar um sanduíche. Coisa rápida e fácil. Eu te ajudo.

— Um sanduíche? Hum, não sei se posso fazer um sanduíche... quer dizer, sei fazer um, é claro
que sei, mas nada comparado ao sanduíche que seu pai vai querer, eu acho.

— Se acalma. É só uma implicância do papai. Ele ás vezes é intolerante. Não, na verdade, ele é
sempre intolerante, mas... isso não vem ao caso.

— E se ele não gostar, Andreas? Quero dizer, e se ele não me aprovar nesse teste?

— Ele vai te aprovar. Agora fique tranquila e mãos à massa. Vamos lá?
— Certo — respirei fundo — E seja o que Deus quiser... é, isso aí, vamos lá, estou preparada.

— Vem, é por aqui.

Andreas me conduziu até à bancada de madeira velha da lanchonete e vi o senhor Rachide agora
seguir para a cozinha pronto para dar ordem num grupo de pequenos empregados. Percebi que os
dois homens e a garota não pareciam ter o semblante de quem trabalhava feliz. Mordi o lábio
pensando que se eu fosse aprovada, era melhor começar a me acostumar com o timbre de voz alta
com a qual o senhor Rachide falava.

— Tome, pegue isso aqui — prendi o avental que Andreas me estendeu e o amarrei na cintura, em
seguida peguei um elástico e amarrei meus cabelos num frouxo rabo de cavalo. Lavei as mãos na pia
ao lado. Diante dos ingredientes sobre uma bancada de madeira, respirei fundo. Peguei os pães e os
abri. Aquilo não podia ser tão ruim.

Ah, Maya, não seja fraca.

De repente senti a presença de um grupo chegando. Eram homens elegantes, que não pareciam
fazer parte daquela redondeza. Eles se sentaram numa mesa e Andreas logo correu para atendê-los.
Um deles era alto, loiro e muito atraente. Estava agora de costas para mim. Na verdade, o grupo,
embora misterioso, conversava animadamente e por isso não consegui deixar de desviar meus olhos
deles.

Foco, Maya, foco, garota. Precisa fazer esse bendito sanduíche ou então vai ficar sem
emprego.

— Tudo bem por aqui? — o senhor Rachide veio de repente, me assustando. Seu tom de voz era
mesmo alto e me senti desconfortável por imaginar que toda a lanchonete podia ouvir agora o que ele
falava para mim.

— Tá tudo bem, senhor Rachide.

— Ótimo — falou antes de se afastar de novo. Nesse momento vi um dos caras elegantes virar-se
para me encarar. Seus olhos se perderam por um momento nos meus. Logo desviei. Eu só queria que
Andreas voltasse sem demora para me ajudar com o sanduíche. Apenas para me dizer que estava
tudo do jeito que o pai dele gostava, mas para o meu desespero, Andreas passou por mim apressado
com uma lista de novos pedidos.

— Andreas? — chamei, mas ele não me ouviu. Nervosa, pensei em ir atrás dele e dizer que
precisava de ajuda, entretanto ele se afastara rápido demais.

— Oi— me surpreendi com o loiro lindo em minha frente. Quase estremeci. Era alto, bem alto,
forte e tinha um sorriso encantador, além de olhos ternos.

— O-oi — gaguejei.

— O que é isso que está fazendo? — desviou os olhos para as minhas mãos — Hum, não sei, não
mas algo me diz que está muito nervosa. Ouvi o homem falar que é seu primeiro dia. É verdade?

— Pois é — forcei um sorriso, querendo mostrar para ele e para mim mesma que estava tudo sob
o controle — Bem, na verdade, é só um teste. Não sei se vou ficar no emprego.

— Ah, você vai, me parece que está indo bem — voltei a olhar para ele e vi seus olhos ainda
presos nas minhas mãos inquietas. Tive vontade de pedir que ele parasse de me olhar.

— É, tô tentando.

— Por que não acrescenta mais um pedaço de tomate? — sugeriu, apontando.

— Mesmo? — o que ele pensava que estava fazendo? Eu era a cozinheira agora, certo? — Bom,
tá tudo bem, eu sei o que estou fazendo. Obrigada.

— Certo, não vou atrapalhar — se retirou, deixando o delicioso cheiro de seu perfume importado,
e só então percebi que alguém lhe chamava. O cara era bonito. E tinha um sorriso tranquilizador, do
tipo que nos dizia que estava tudo bem. Suspirei.

Tentei desviar o olhar, mas notei que o loiro desconhecido tinha voltado para perto dos amigos
dele. Nenhum deles tinha recebido seu pedido ainda e eu imaginei que Andreas estivesse todo
atolado lá dentro da cozinha enquanto levava uma senhora bronca do pai dele. Pensei no que o loiro
falara para mim segundos atrás sobre eu acrescentar mais um tomate no sanduíche e então comecei a
partir mais uma rodela para colocá-la entre os pães. Foi nesse momento que Andreas apareceu,
carregando uma grande bandeja com os pedidos dos homens elegantes da mesa. O senhor Rachide
veio logo atrás. Vi Andreas falar com os amigos do loiro bonito e perdi o ar quando senti a presença
do senhor Rachide perto de mim.

— Então, vamos ver como foi seu desempenho... hum...

— Ainda não acabei...

— Ah, acabou sim. Tá na hora. Aqui é tudo cronometrado, garota, não se esqueça nunca disso. Os
clientes têm pressa e eu também.

— Certo, senhor...

— Vamos ver... — e franziu a testa antes de fazer uma careta — O que você fez aqui, afinal?

— Um sanduíche... como o senhor pediu.

— Isso não é um sanduíche. Que porcaria é essa? Parece com aquelas coisas feitas nessas
barraquinhas de rua por aí.

— Se puder me dar mais tempo, garanto que posso fazer um outro melhor. É que fiquei nervosa...

— Não temos tempo pra nervosismos, mocinha. Isso é trabalho, não parque.

— Com licença? — alguém chamou, fazendo com que o senhor Rachide voltasse o rosto para
encontrar com o sujeito. Meu corpo gelou. Era o loiro monumental que estava há dois minutos me
espiando.

— Pois não? — o senhor Rachide amaciou dessa vez a voz —Tudo bem lá na mesa, cavalheiro?
Precisam de mais alguma coisa? O prato não ficou bom como esperava? Quer um outro?

— Na verdade, está tudo bem, senhor, é só que estou vendo essa moça preparar esse sanduíche aí
e pensei se meu apetite se renovava. Acho que sim. Ele está com uma cara ótima e tanto eu como os
meus amigos vamos gostar de provar um ou dois.

Eu fiquei chocada.
Era sério aquilo?

O senhor Rachide, assim como eu, piscou os olhos, confuso. Estreitou agora os olhos para o loiro
de sorriso fácil e depois mirou nos amigos elegantes dele na mesa.

— Oh, claro. Claro que ela vai preparar os sanduíches, senhor, ela está aqui mesmo pra isso.
Anda, mocinha, vamos lá, preparando esses mesmos sanduíches para os cavalheiros daquela mesa.

— Sim, senhor.

O loiro murmurou um “obrigado” mas nem pareceu se importar com o modo bajulador com o qual
o senhor Rachide falava com ele. Continuou a me encarar.

— E não custa nada dar o emprego à moça — deu um leve soco no ombro do senhor Rachide
antes de se afastar — Acho que ela já provou que sabe trabalhar.

O cara loiro voltou a se sentar em sua mesa e fiquei com os lábios entreabertos, pensando se eu
conseguiria me concentrar em mais alguma coisa que não fosse nele. Suspirei. Tentei em seguida
esconder meu sorriso, mas então fui agraciada com a voz autoritária do senhor Rachide.

— Mais sanduíches, mocinha! Anda, vamos lá!

***

Homens elegantes gastam dinheiro como água e depois vão embora em seus carrões. Homens
elegantes e ricos não dão a mínima para garotas pobres e iludidas como eu.

Desde que o loiro e os amigos dele foram embora, eu me senti uma ingrata por não ter dito nada a
ele, nenhum agradecimento. Eu devia ter tido mais coragem. Ao menos agradecer pela forma como
aquele cara bonito e simpático me ajudara, queria dizer para ele que ele tinha sido muito generoso e
legal comigo. Queria dizer para ele que Deus o abençoasse e que ele já tinha feito uma boa ação
naquela noite. Era por causa de caras assim como aquele que eu achava que todos eles tinham
salvação. E quando finalmente cheguei na porta para tentar lhe dizer um simples obrigado, já era
tarde demais. Eu não sabia para onde eles iriam ou se eu o veria outra vez. Provavelmente não.
— Maya! — Andreas chegou perto e ficamos lado a lado na porta — Que foi? — olhou para onde
eu estava olhando — Conhece aqueles caras?

— Eu? Não. E você?

— Também não. Não parecem da redondeza.

— É que um deles foi muito gentil hoje comigo. Se não fosse por ele, seu pai não teria me dado o
emprego.

— Meu pai falou que eles gostaram do seu sanduíche. Acho que você só provou que saber fazer
um.

Sorri para Andreas, que sorriu de volta. Voltei a olhar para fora da lanchonete. Fazia uma bela
noite.

— Eles não costumam vir aqui. Na verdade, foi a primeira vez que os vi. Gastaram uma boa soma
de dinheiro só esta noite e ainda deixaram gordas gorjetas. Papai falou que seria muito bom pra ser
verdade termos sempre fregueses assim.

Abaixei os olhos e sorri com tristeza. Um misto de melancolia e desânimo. Então nunca mais vou
vê-lo, pensei comigo mesma. Foi então que percebi que eu estava tendo devaneios e eu não era uma
garota que costumava ficar com a cabeça fora do lugar. Não que não sonhasse com um amor maior
que a vida, mas não costumava me apaixonar por cada cara bonito que aparecia sorrindo para mim.

— Maya?

— Hum, acho que é melhor voltar a trabalhar, antes que eu perca o emprego no mesmo dia em que
o ganhei.

— Quer horas vai pra casa?

— Depois das oito.

— Se quiser, posso levar você.


— Ok.

***

Já passavam das nove quando cheguei em casa. Não gostava de chegar tarde porque nunca
poderia esquecer quão perigosa era a noite, sobretudo para uma garota como eu. No entanto não era
algo que dependesse de mim. Eu simplesmente precisava trabalhar e precisava manter meu emprego.
Conclusão: tinha que me adaptar aos horários da lanchonete, mesmo sabendo que o emprego não era
tão bom assim. Na verdade, era o único que eu tinha. Andreas tinha me acompanhado até a esquina
de casa e depois voltado pelo caminho percorrido. E apesar de ter uma pessoa me acompanhando, eu
nunca iria esquecer o que acontecera sete anos atrás... ás vezes eu sonhava com o criminoso, via seu
rosto, sentia suas mãos ásperas em mim, e em meu sonho eu o matava. Matava-o sem piedade, com
meus próprios punhos. Em seguida acordava, suada, assustada, me sentindo mal. Ás vezes, em meus
sonhos, eu também só chorava e suplicava para que ele parasse e não me machucasse. E então eu
acordava. E percebia que era pesadelo.

— Por favor, Jarbas...

Agora as vozes do presente voltavam mais altas. As vozes... eram mais nítidas agora e pareciam
reais. Apressei os passos. As vozes ficavam mais próximas à medida que eu me aproximava. Uma
era a do meu pai, reconheci. Ele falava com alguém. Não, não era conversa. Era discussão. E a outra
voz parecia de alguém muito furioso com ele.

Avistei um carro preto um pouco familiar perto da casa, mas não pude identificar de onde eu o
conhecia e nem podia reconhecer ninguém lá dentro.

— Heitor foi muito compassivo com você, Natanael — a voz furiosa voltou a repetir — Tá
mesmo pedindo pra morrer, cara. Tá brincando com fogo e vai acabar se queimando.

— Eu vou pagar, juro que vou. Só preciso de mais tempo, talvez alguns dias...

— Tem até o fim da semana. Ou dá a merda da grana ou então vai sofrer as consequências. As
consequências vão levar você pra debaixo da terra, Natanael. Não diga que não avisei.
As consequências vão levá-lo pra debaixo da terra! O quê?!

Estremeci.

Jesus, sobre o que eles falavam? A voz do homem era fria e me passava a sensação de perigo.
Não vi quando o tal do Jarbas saiu porque assim que senti que era fim de conversa, me escondi na
lateral da casa, o rosto colado no muro cimentado. Senti meu coração bater assustadoramente
enquanto eu torcia para que ele não me visse ali.

Meu pai gaguejou. Pareceu tentar suplicar por mais misericórdia, no entanto o homem o ignorou e
só ouvi os berros que ele deu antes de seguir em direção à saída. A porta bateu, fazendo um estrondo,
depois ouvi passos rápidos, indicando que o desconhecido passara por ela. Ainda escondida, ouvi o
motor do carro preto ranger antes de dar a partida.

Quem eram aqueles caras?

Quem era Heitor?

O que eles queriam?


Capítulo 2
MAYA

QUANDO O CARRO fugiu do meu alcance, saí do esconderijo e entrei em casa. Encontrei meu
pai nervoso, aparência tensa. Era tocante ver o pai da gente assim, desesperado e humilhado,
chorando feito criança. As mãos ele mantinha no rosto enrugado e cansado. Estava alcoolizado, eu
sabia, mas parecia estar mais sóbrio do que o de costume. Seu corpo magro balançava a cada soluço
dado.

Larguei a bolsa na mesa de madeira e me juntei a ele. E eu já chorava a seu lado. Fosse o que
fosse, eu já lamentava. Sabia que era grave. Nunca antes nenhum carro com homens desconhecidos
surgira em frente à nossa casa e eu tinha medo do que ainda poderia acontecer.

Escutara boa parte da conversa. O homem sinistro chamado Jarbas ameaçara meu pai dizendo que
ele sofreria as consequências. Eu até podia imaginar a confusão: papai devia estar devendo algum
dinheiro relacionado a jogos no cassino. Todas as terças, quartas e quintas ele ia até lá. Ás vezes
passava noites fora e só voltava ao amanhecer do outro dia.

— Vamos dar um jeito nisso, pai, não sei o que aconteceu, mas sei que vamos dar um jeito —
sussurrei, agachada, abraçando-o — Vamos dar um jeito nisso, ok? Está tudo bem.

— Me desculpe, filha — meneou a cabeça, chorando — me desculpe, a culpa é toda minha.

Eu sabia que era dinheiro. Era óbvio que era dinheiro e pelo jeito dessa vez papai tinha passado
dos limites.

Sentindo o cheiro forte de bebida, me lembrei de quando era pequena e via papai e mamãe
brigarem. Na época eu ainda não tinha noção do que era exatamente uma pessoa alcoólatra. Não
entendia porque papai fazia todas aquelas coisas para irritar mamãe. Não conseguia compreender
porque ele a fazia chorar, mesmo dizendo que a amava.

Na adolescência comecei a me dar conta de que meu pai era doente e então logo depois que minha
mãe morreu ele se transformou num viciado em jogos. E eu não tinha mais força para combater
aquele mal, só sabia que precisava manter a cabeça no lugar e agir com sobriedade. Antes de
qualquer coisa, precisava entender em que confusão dessa vez meu pai estava. E apenas porque
ameacei ir à polícia, ele me explicou, algum tempo mais tarde, qual era o problema.

Havia um homem. Heitor. Heitor Romano. Meu pai devia algo em torno de cinquenta mil reais a
ele e isso só em dívidas com jogos. E obviamente não tínhamos nem como começar a pensar em
pagar aquele dinheiro. Sem falar que era muita grana para um prazo muito curto de tempo. E para
piorar tudo, o chefe da máfia tinha nos dado uma semana!

Uma semana!

Olhei para meu pai e voltei a falar que tudo ficaria bem e que nada estava perdido. Não era
exatamente o que eu pensava, mas era nisso também em que eu precisava acreditar.

— Tudo vai ficar bem, pai, acredite.

Lucas chegou pouco tempo mais tarde e ficou muito puto da vida quando descobriu em que
enrascada nosso pai estava envolvido agora. Meu irmão era o único que trabalhava fora e, portanto,
o responsável por pagar todas as contas, visto que a merreca que nosso pai ganhava da aposentadoria
dele saía da mesma forma que entrava.

— Não quero saber o que aconteceu! Eu tô fora! — Lucas explodiu, batendo a porta do quarto
com violência. Do lado de fora, suspirei e pensei em alguma solução. Infelizmente não havia muitas.

***

Na manhã seguinte acordei agitada. Na verdade, mal pregara os olhos na cama. Era difícil dormir
sabendo que seu pai e toda a sua família pereceria dentro de poucos dias se uma quantia astronômica
não fosse paga.

Durante toda a madrugada pensei em como conseguir levantar a grana, mas então me dei conta de
que não tinha muita saída. Pensei em pedir dinheiro emprestado a Andreas, mas mesmo ele sendo tão
legal e generoso comigo, era muito jovem para ter de onde tirar aquela quantia. Pensei em vender
tudo o que tínhamos. Não era muita coisa, contudo valia apostar tudo na hora de arrecadar dinheiro.
Sem perder tempo pensando no assunto, anunciei alguns móveis na internet e pensei que se ao menos
conseguíssemos arranjar a metade do dinheiro, já era alguma coisa, e depois eu poderia conseguir um
empréstimo...

Anunciei a cama, a geladeira, o fogão, a lavadora, entre outros móveis. Lucas, por fim, acabou
concordando em anunciar o carro velho que tinha. Também vendeu a bike. Aos poucos os
compradores começaram a surgir, para nos dar novas esperanças, embora nada daquilo ainda fosse o
suficiente. E a cada segundo que o relógio soava me deixava mais tensa e desesperada. Não queria
morrer. Acima de tudo, não queria ver meu pai e meu irmão morrerem. Já tinha perdido minha mãe e
sabia muito bem como era doloroso ver alguém querido partir. Principalmente de uma forma tão
trágica. Não suportava a ideia de papai ou Lucas morrer nas mãos da máfia. E papai também não
aguentaria nos perder.

Novos dias se passaram e não arrecadamos muita coisa, contudo ainda havia algum fio de
esperança. Certa manhã papai e Lucas me olharam, desanimados. Tínhamos conseguido apenas
dezenove mil e setecentos. Não era o suficiente. Estava longe de ser o suficiente. Precisávamos de
mais.

— Não vamos conseguir — Lucas resmungou, se afastando da mesa.

— Vou ao banco — afirmei.

— Não vai conseguir um empréstimo, Maya. Eles não emprestam dinheiro pra quem não tem
emprego.

— Tenho a lanchonete agora — dei de ombros.

— Ah, não é um bom emprego.

— Mas mesmo assim, vou tentar a sorte.

Foi duro perceber que Lucas tinha razão. Cheguei às nove no banco, enfrentei uma fila infernal e
quando finalmente consegui falar com o gerente e explicar toda a minha situação, ele foi categórico:
não aprovaria o empréstimo. Levei as mãos trêmulas à cabeça. Eu já tinha dormido mal aquela
madrugada, tinha ouvido desaforos do senhor Rachide por ter pedido para chegar mais tarde na
lanchonete e agora eu estava arrasada. Diante do homem bem alinhado de terno e gravata, expliquei
que precisava do dinheiro, mas isso não funcionou.
— Lamento, senhorita, mas infelizmente não será possível. Não tem emprego fixo, qualquer renda
fixa e, portanto, não podemos ajudá-la.

— Por favor, é um caso de vida ou morte.

— Lamento — despediu-se cortesmente antes de chamar um novo cliente, me fazendo


compreender que não poderia insistir.

Ok.

Meu mundo caiu.

Só havia mais um dia e não tínhamos conseguido nem a metade do dinheiro!

Voltei para casa e encontrei meu pai bêbado, a garrafa de bebida pela metade estava na mão.

— Ah, pai, mas que droga! Estamos nessa situação por causa de você e não para de beber!

Gritei. Esperneei. Xinguei. Tratei papai como criança porque naquele exato momento era isso o
que ele era: uma criança. Uma criança teimosa e inconsequente. E gritei com ele porque eu também
precisava extravasar um pouco e abandonar aquele pedestal da segurança em que estava.

Suspirei.

Me deixei cair no chão e levei as mãos ao rosto, assim como fiz no banco, desesperada, vazia de
esperanças. O soluço era capaz de balançar cada célula do meu corpo e como desejei ter mamãe de
volta em casa àquela hora para me dizer o que fazer, para me consolar e me fazer acreditar que tudo
no final ficaria bem. Mas ela não estava ali.

Papai sentou-se ao meu lado e me abraçou. Depois simplesmente deitou-se no chão e apagou.
Fiquei com pena dele. Larguei a garrafa de cachaça que ele segurava e a coloquei na mesa. Depois
eu jogaria todo o seu conteúdo fora.

— Por que faz isso, pai? Hã, por quê? — murmurei, sabendo que ele não escutava, e então
desejei que tudo fosse diferente, que a minha vida fosse um pouquinho melhor e não essa porcaria
que era. Lembrei do momento negro do meu passado e que papai também não estava lá para me
defender quando eu mais precisei dele. Ele não estava! Certamente estava enfiado em algum boteco
da vida, se embriagando desenfreadamente, sem se importar com o amanhã.

Chorei.

Nem o chão gelado arrancava de mim a vontade de chorar. Não tínhamos como conseguir mais
dinheiro. Nem que vendêssemos tudo o que possuíamos, não conseguiríamos, exceto se vendêssemos
a casa. Mas como venderíamos a velha casa em um dia?

Voltei a olhar para papai dormindo e tive pena dele. Eu queria tirá-lo dali daquele chão, mas não
era forte o bastante para segurá-lo e carregá-lo até o quarto. E Lucas não estava em casa para me
ajudar. Limpei as lágrimas com a costa da mão e fui até o quarto onde meu pai dormia para pegar um
lençol com o qual pudesse cobri-lo. Fosse o que fosse, não conseguia sentir raiva dele. Beijei sua
testa e desejei que ele estivesse melhor no dia seguinte. E que todos ficássemos bem. Era o meu
único desejo.

Quando a nova manhã chegou, liguei para Tati, uma amiga. Ela trabalhava num banco e tinha
ficado de tentar um novo empréstimo para mim.

— Consegui apenas três mil, Maya — falou, do outro lado da linha — Sei que não é o
suficiente. Lamento, amiga.

— Tudo bem. Você não tem culpa. Na verdade, não tem obrigação nenhuma de me ajudar e mesmo
assim tentou. Obrigada.

— Por que não tenta uma campanha na internet? Sei lá, talvez consiga uma boa arrecadação.

Eu conhecia as campanhas da internet. Eram sempre usadas por uma boa causa, o que não era o
meu caso. Não podia fazer uma campanha pedindo dinheiro porque meu pai bêbado estava devendo à
máfia. As pessoas criticariam e eu ainda terminaria presa. Ou algo pior. Além disso, tinha o tal do
Heitor Romano. E se ele descobrisse? E se soubesse que eu estava expondo toda aquela situação na
internet? Aí mesmo que me mataria!

— É gente da máfia — murmurei para ela.


— Oh, é verdade, não se brinca com a máfia. Esqueça o que disse, sou mesmo uma lesada.

— Tudo bem, vou dar um jeito — suspirei — Sempre dou um jeito e sempre acreditei que há um
jeito pra tudo.

— Eu vou tentar pesquisar mais contatos. Qualquer coisa, te falo.

— Obrigada.

Ainda naquela tarde recebi uma visita nem tão inesperada. Ele era mediano, cabelos curtos e
castanhos. Pela voz, parecia ter sido o mesmo cara que tinha gritado com meu pai. Jarbas.

— Já conseguiram o dinheiro?

— Por favor, senhor... estamos arrecadando. Estamos quase conseguindo. Só precisamos de


mais... hum, de mais um pouco de tempo.

— Nada de mais tempo. Heitor quer todo o dinheiro hoje. Ou então vão sofrer as consequências.

Engoli em seco.

Já odiava Heitor. Nem o conhecia e já o odiava. E odiava todos os integrantes do bando dele.

— Temos a metade. Se nos derem mais alguns dias, posso...

— Nada de mais dias, garota, não ouviu? O prazo termina hoje.

Engoli em seco.

Ele me olhou com desprezo e a impressão que tive era de que queria me balear agora. No entanto,
ao invés de fazer isso, pegou o celular e discou.

— Aqui é o Jarbas. Estamos na casa do safado. Ele não tá. Apenas a filha dele tá aqui implorando
por mais tempo... sim, sim. Ok. Vou fazer isso.
Engoli novamente em seco.

— Moço, pelo amor de Deus, aguardem só mais um tempo. Eu posso garantir que...

— Até meia noite — falou, categórico — E é melhor estar preparada.

Jarbas saiu pisando chumbo e eu afundei no sofá, já imaginando como seria minha morte à noite e
o noticiário da manhã mencionando a triste execução de uma família na zona mais humilde da cidade.
Aflita, tomei uma decisão. Iria procurar Heitor. Pessoalmente.

Quando meu pai chegou falei grosso com ele e o obriguei a me dar todas as informações que eu
precisava. Heitor Romano. Era esse o nome do chefe da máfia.

***

Cheguei na boate Del Romano às sete e concluí que o ambiente era tudo o que eu imaginava. O
lugar estava cheio. Havia música alta, mulheres dançando e se requebrando. Gente bonita. Eu já tinha
ido a boates e a bailes, mas aquele tipo de entretenimento já não me divertia mais. Pelo contrário,
detestava lugares como aquele e sempre que pisava em um eu me lembrava de algumas coisas ruins
que tinham acontecido em minha vida.

Driblando o mundo de pessoas, consegui chegar na recepção. Uma morena atrás do balcão me
encarou.

— Olá, boa noite — falei — Por favor, gostaria de falar com o Romano.

Ela riu.

— E quem não gostaria?

Estudei a mulher. Cabelo curtinho e muita maquiagem na face.

— Bom, por favor, é que realmente preciso falar com ele... é um assunto urgente.

— Lamento, mas ele é muito ocupado. Vários outros têm assuntos urgentes para tratarem com
Romano.

— Por favor, precisa me ajudar.

A mulher me estudou. Analisou meu semblante. Deve ter percebido que eu não estava blefando.

— Certo, talvez se comprar uma bebida possamos conversar — se afastou para atender outra
pessoa ali perto. Quando voltou, tirei uma nota de dez do bolso. Era uma das poucas que eu tinha.
Ainda naquela tarde eu tinha conseguido algum dinheiro emprestado com Andreas, que tentara
descobrir meu problema, em vão.

— Uma cerveja, por favor — pedi.

A morena voltou poucos minutos depois com a bebida na mão.

— O que deseja com Heitor? — me analisou da cabeça aos pés, sem disfarçar — Não parece
com as mulheres que andam com ele. Desculpe, mas é que elas costumam ser mais sofisticadas e
exuberantes.

Ah, é? O que importa? Não quero deitar na cama do chefe!

— Não tenho nada com ele — respondi, um pouco impaciente — Só preciso... hum, resolver um
problema sério. E infelizmente é só com Heitor.

— Não sei se posso ajudar, mas por que não tenta um dos guarda-costas dele? — apontou —Eles
ficam ali atrás fazendo a segurança dele. Eles podem levar o Puffy ao pote de mel, se é que me
entende — piscou — Mas aceita um conselho? É melhor não se meter com essa gente.

Engoli em seco, tendo a sensação de que estava para descer ao inferno, mas não iria desistir. Não
agora que tinha chegado tão perto.

Larguei o copo na metade e segui pelo corredor luxuoso da boate. Aquele lugar era, de fato,
incrível, entretanto eu estava muito tensa para admirar onde pisava. Tudo o que queria era encontrar
o chefe e resolver tudo o que precisava. O som da música alta e as cores coloridas que giravam o
tempo todo quase me deixaram tonta.
— Perdida? — uma voz grossa me assustou.

Ergui o rosto para conseguir ver a muralha à minha frente. Parecia um touro de tão forte. Negro.
De terno e gravata. Parado e sério. Nenhuma expressão no olhar. Era óbvio que era um dos
seguranças.

— Estou procurando por Heitor Romano.

Franziu o cenho.

— Quem é você?

— Maya.

O grandão me olhou com desprezo e desconfiança.

— Fique aqui, que vou ver o que posso fazer.

Assenti.

Logo senti um frio na espinha.

Os caras lá dentro eram enormes e mal-encarados. E se Romano fosse um monstro? Que tipo de
sujeito ameaçava matar os outros? Ah, mas é claro, ele era um mafioso. Administrava cassinos.
Cobrava taxas e muito dinheiro pelos jogos e lances dados. Era alguém mau, cruel e inescrupuloso. E
eu sabia que não devia estar ali, sabia que era perigoso. No entanto, não tinha nada mais a perder. Se
não morresse agora morreria mais tarde, de qualquer jeito, então realmente Heitor era minha última
salvação.

Heitor.
Capítulo 3
MAYA

APROVEITEI O INSTANTE em que o homem se afastou de mim para então eu estudar melhor a
boate. Era bonita, luxuosa, cheia de requinte. Sabia muito bem que eu não devia ficar fuxicando, eu
sabia que aquela boate, embora alegre e feita para gente riquíssima, tinha um quê de perigo e uma
coisa sombria no ar, mas mesmo assim não consegui ficar imune à curiosidade. E por mais que eu
soubesse que era mais recomendável ficar na minha, ficar no meu canto, e evitar qualquer tipo de
problema ao olhar mais do que devia, eu não pude me controlar.

Comecei a inspeção pelo carpete vermelho sangue que cheirava a estofado novo de alguma
poltrona de carro. As paredes que cercavam os cômodos eram muito sólidas e feitas de um material
aparentemente sofisticado, assim como toda a variedade dos móveis. Logo a ideia de que os
negócios ilícitos de Heitor Romano deviam dar-lhe muita grana tomou minha mente e uma revolta
irrompeu em meu peito.

Mas é claro que dão muita grana! Se não dessem, ele não seria um mafioso e meu pai não
estaria naquela condição, agora preso a uma dívida de cinquenta mil reais!

Então voltei a pensar no dinheiro que meu pai devia a Romano. Era, de fato, uma quantia
exorbitante. Estava na cara que o sujeito se beneficiava com os vícios e com a desgraça alheia e por
isso se enriquecia descaradamente. E mesmo sem conhecê-lo, eu já sentia um ódio profundo por ele,
mas antes que esse sentimento crescesse, um arrepio tocou a minha espinha e um pensamento invadiu
minha mente avisando que eu não devia demonstrar qualquer tipo de raiva ou desprezo por Heitor.
Pelo contrário. Devia me manter humilde diante dele, devia clamar por misericórdia e pedir que ele
nos desse mais um prazo para que pudéssemos finalmente quitar as dívidas. Talvez conseguíssemos
se houvesse mais tempo. E bom, se Heitor aceitasse me receber já seria um grande avanço e eu
estava agora esperançosa de que aquilo acontecesse, de que ele concordasse em ouvir o que eu tinha
para falar com ele. E que fosse mais humano e flexível que seu capanga.

Que os Céus me ajudem...

De onde eu estava podia ouvir o som da música internacional que vinha lá da frente da boate. Era
um som abafado que me informava de que eu estava mais distante da agitação do que eu imaginava e
meus pés mantinham-se presos no chão do hall que provavelmente levava ao cassino. Papai explicou
que ele ficava escondido e que era reservado, em geral, para gente de posses.

A olhos normais, a boate Del Romano era uma típica e agradável casa de shows, bonita,
requintada que servia como um bom entretenimento para agradar e divertir as melhores classes
sociais, mas eu sabia que tudo aquilo iria muito além de diversão. Sabia perfeitamente que rolava
coisas ilícitas ali dentro, como bebidas e jogos de azar. Talvez até drogas.

Heitor Romano, ao que parecia, dirigia uma facção e mantinha um cassino clandestino no fundo
do estabelecimento. Pelo o que meu pai falara, o cara não administrava tudo sozinho. Ele fazia parte
de uma grande gangue muito bem organizada e estruturada e era apenas o responsável pelos negócios
de São Paulo. Na verdade, havia uma série de danceterias espalhadas por outras partes do Brasil e
eles tinham planos de expandir ainda mais os horizontes, talvez até para fora do país.

De repente ouvi uma música da Katy Perry começar a tocar e me lembrei de quanto tempo não
sentia vontade de ir para a balada dançar. Fazia tempo que eu não tinha uma vida social, contudo,
isso não me fazia falta. Até porque bancar a mamãe de meu pai não me dava tempo para fazer nada.

— Ele tá ocupado, é melhor se mandar — o muralha voltou de repente, me assustando com a voz
grossa e ainda mais áspera.

— Ele falou isso?

Me olhou com desprezo, arqueando uma sobrancelha.

— Não é da sua conta o que ele falou. Agora se manda!

— E-eu — gaguejei — preciso realmente falar com ele, por favor, diga a ele qu...

— Tá surda? Disse pra se mandar!

— É que preciso... — antes que eu terminasse a frase, um outro cara apareceu e chamou o senhor
muralha para conversar. Os dois começaram a cochichar sem darem a mínima para o fato de eu estar
ainda presente, como se minha presença pouco importasse. Foi quando uma coisa louca passou pela
minha cabeça. Uma coisa muito louca mesmo. Aproveitei aquela brecha e o fato do segurança estar
distraído para dar um passo à frente e me afastar de mansinho, até alcançar o hall por onde o muralha
entrara minutos atrás.

Insegura e olhando toda hora para trás enquanto percorria silenciosamente o caminho, virei a
primeira esquerda para logo sair da mira do segurança, caso ele sentisse minha falta. Caminhei mais
alguns passos pelo corredor iluminado de vermelho quando escutei gemidos. Parei. Ouvi vozes.
Eram todas masculinas.

Mesmo tremendo e sabendo que não devia prosseguir, avancei. Parei novamente quando alguém
gritou. Era a mesma voz da pessoa que gemia e suplicava, mas eles estavam dentro de alguma sala
fechada. Os pelos de meu braço se eriçaram e me dei conta de que agira mal indo até ali. Não devia
ter driblado o segurança e entrado naquele corredor sombrio. Talvez não devesse nem ter procurado
Heitor... fiquei ainda mais apavorada quando os gemidos e pedidos de súplica aumentaram e
consequentemente as vozes irritadas também. Ouvi alguém mencionar Heitor. Mas eu não conseguia
distinguir qual delas era a voz do chefe.

Quando inesperadamente uma porta pareceu estar prestes a se abrir, sem pensar em mais nada,
entrei na primeira porta oposta que encontrei, girei a maçaneta e a fechei por dentro com cuidado.
Com o coração acelerado, corri meus olhos na sala vazia. Era completamente bonita e arrumada.

Temendo a possível câmera que estava instalada ali, me arrastei pela parede, como se daquela
forma eu pudesse me esconder. Olhei em volta e estudei rapidamente a sala bonita, de móveis caros e
escuros. As persianas eram as responsáveis por iluminar um pouco mais o ambiente, que era bem
arejado, e por mais estranho que fosse, me passava uma sensação de segurança. Não havia fotos na
mesa ou ao redor do lugar, todavia eu sabia de quem era aquela sala.

Dei mais alguns passos e algo me chamou a atenção. Obras de arte. Várias delas espalhadas pelas
paredes. De repente ouvi um novo barulho vindo do lado de fora e, sem pensar duas vezes, joguei-me
para baixo da mesa grande de mogno. Com o coração quase saindo pela boca, tapei meus lábios,
sabendo que de qualquer forma teria que controlar minha respiração. Vozes em segundos inundaram a
sala. Algumas mais grossas que as outras, algumas mais baixas e graves, todas novamente
masculinas.

Orando e fazendo um grande esforço para não entrar em pânico, avistei sapatos elegantes
desfilarem de um lado para o outro sobre o piso de madeira escura. Os sapatos eram pretos, marrons,
e todos eles pareciam muito bem engraxados, alguns até poderiam andar sobre o lençol de minha
cama. E Heitor Romano estava ali, eu tinha certeza.

— Heitor? — uma voz falou, confirmando minhas suspeitas, e reconheci aquele tom áspero. Era o
segurança grandalhão, o muralha que quase me machucou na recepção, aquele de quem eu me
escondera. Ele parecia nervoso e imaginei que fosse por causa de meu sumiço. Houve um rápido
silêncio e imaginei que o tal do Heitor fosse lhe perguntar o que acontecera. Deve ter sido
exatamente isso, pois o senhor muralha sibilou.

— É que... hã, uma garota o procurou.

— Uma garota? — a voz metálica e altiva pareceu desdenhar, Heitor tinha uma voz bonita e ela
era grossa — Várias garotas me procuram quase todos os dias, Ronan. Por que essa cara de espanto?
Não me diga que é a Claudete que está aí. Ou a amiga dela, a Belle. As duas são loucas. Uma me
agarrou outro dia desses e a outra ameaçou cortar os pulsos na minha frente se eu não lhe comesse.

Houve uma explosão de risos, falatórios e piadas, depois um silêncio e, enquanto isso eu suava
frio, tendo a impressão de que teria um ataque cardíaco caso suspeitassem de que eu estava ali no
chão. Levei as mãos ao rosto suado e fiz algumas orações mentalmente. Eu não sabia o que tinha na
cabeça quando entrei na sala do chefe e agora não tinha ideia de como sairia viva dali.

Ferrada, Maya! Ferrada!

As vozes trocaram algumas outras palavras que não escutei muito bem. Em seguida fui capaz de
ouvir um leve ranger de porta, avisando que alguém saía. Possivelmente o tal segurança. Outras
vozes continuaram conversando e ouvi novas risadas, piadas e menções de mulheres e negócios.

Quando a conversa terminou, escutei alguns caras se despedindo. Torci para que Heitor saísse da
sala também, para que assim eu pudesse escapar, todavia ele pareceu desafiar meus planos. E pior
que isso foi ver belos sapatos pretos se posicionarem exatamente na frente da mesa, me cedendo um
pouco da panorâmica de suas musculosas pernas. Prendi a respiração novamente. Eu sabia que só
havia um homem na sala e esse homem era o dono dela. E então o que aconteceu em seguida foi muito
rápido e assustador. Uma mão firme me puxou com um simples movimento e me trouxe para fora da
mesa, para o centro da sala. Apavorada, gritei.

— Quem é você, sua vadia? — a voz metálica perguntou, seu olhar perverso em minha direção.
Aquela voz estava brava e eu sentia minhas pernas fraquejarem por causa do susto e do medo. Tudo
poderia acontecer comigo ali.

— Por favor, eu... eu posso explicar...

— QUEM É VOCÊ? — berrou — Responda!

— E-eu... eu sou Maya — estremeci — sou Maya... filha de... Natanael.

Ele não me largou. Pelo contrário. Me jogou contra a parede e me encurralou lá, pousando um
braço ao lado do meu rosto e o outro acima de minha cabeça, me impedindo de passar.

— Ah, é, sua piranha? — me olhou com raiva — E o que a filha daquele traste viria fazer aqui?

Gaguejei. Olhei para o semblante de Heitor Romano e ele não era muito bom. Estava com raiva.
Com muita raiva de mim. No entanto, eu o conhecia de algum lugar...

— Senhor, eu — abri a boca, mas as palavras não se organizaram como eu gostaria — por favor,
só quero falar sobre a dívida... só quero falar que vamos pagar...

— É claro que vão pagar. Ou então vão morrer ainda esta noite. Todos vocês. A começar pelo
bêbado maldito do seu pai — e segurou meus cabelos na altura da nuca — Mas antes disso vai me
dizer como conseguiu entrar aqui e ficar embaixo da minha mesa.

— Eu só... eu só estava...

— Quem mandou você aqui?

— Ninguém! Ninguém me mandou... meu pai... eu estava querendo... bom, meu pai nem sabe que
vim...

Me segurando novamente com força, me conduzindo até à porta, então abriu-a e me jogou para
fora.

— Ronan! — gritou, exasperado.


O tal do Ronan apareceu em segundos, os olhos arregalados. E quando Heitor perguntou o que eu
estava fazendo lá dentro da sala dele, Ronan ficou sem explicações para dar.

— Eu a mandei ir embora. Juro pela minha vida que mandei!

— Pelo jeito ela não obedeceu. Tire-a daqui. Agora! — mandou, batendo a porta com raiva. Com
muito ódio, Ronan me puxou pelo braço, quase o quebrando. Resmungou pelo caminho que eu não
devia tê-lo feito de bobo e me teceu sérias ameaças enquanto me conduzia de volta hall afora.
Quando a música da boate estava bem mais perto e novos seguranças vieram a nosso encontro, Ronan
parou com o celular no ouvido — Sim... ok, está bem. Então não é pra despachar? Ok, claro, vou
voltar.

Desligou.

Eu fiquei apreensiva. Pelo teor da conversa, ele falava sobre mim.

— Ele resolveu atender você, cadela — urrou, e num piscar de olhos fez de volta todo o caminho
percorrido. E eu sabia que meu braço já estava roxo.

Então Heitor Romano mandara me trazer de volta? Então ele queria falar comigo? Talvez tivesse
pensado melhor e talvez quisesse ouvir o que eu tinha para lhe dizer. Ou talvez decidira me matar.

Assim que pisei no chão de madeira do cômodo sofisticado pela segunda vez avistei o sujeito
imponente diante da janela. Em pé. Elegante. De costas.

— Heitor? — o muralha falou — aqui está a cadela.

— Ótimo. Agora saia você — mandou.

Eu engoli em seco.

Tive medo.

Nesse momento me lembrei de que, sim, eu o tinha visto antes em algum lugar! Claro, na
lanchonete! Como eu poderia esquecer? Mas ele estava tão... tão diferente. Não parecia o mesmo
sujeito... não, ele na lanchonete fora amável e gentil...
A porta se fechou atrás de mim, avisando que o segurança tinha saído, então pude constatar o
quanto o chefe da máfia era terrivelmente autoritário e viril. Até sua voz forte tinha um quê de
comando e ameaça no ar. Abracei a mim mesma, sentindo calafrios. Pensei que seria o meu fim. O
que Heitor Romano faria comigo eu não sabia, mas não era nada bom.
Capítulo Extra
CHUCKY

— DIGA AO DIOGO que cheguei — falei assim que as portas duplas de vidro blindado se
abriram, me revelando mais nitidamente a imagem de Elena.

— Ele tá ocupado.

Era sempre assim que ela me recebia. Ele tá ocupado. Ele tá ocupado. Nunca perdendo a
oportunidade de esfregar na minha cara o quanto eu não era bem-vindo.

Vadia.

— Já falei com ele pelo celular — retruquei — Ele sabe que eu vinha.

Bastante contrariada, abriu um pouco mais as portas para que eu passasse por elas, mas não fez
nenhuma questão de perguntar como eu estava ou o que eu gostaria de beber assim que alcancei a
sala. Nem me convidou para me sentar, todavia, como eu estava me lixando para as nossas
diferenças, me afundei no sofá vermelho como o sangue.

Claro que não devia cutucar onça com vara curta, no entanto até mesmo Feroz sabia que minha
relação com a esposa dele era uma droga. Ela tinha ódio de mim, principalmente por eu tê-la
ameaçado várias vezes com uma pistola na mão, e claro que eu sabia que tinha pegado pesado com a
garota no passado. Se não fosse por Bruno Elena já estaria morta e enterrada. Sorte dela ter virado a
cabeça do chefe da máfia. Ficava a cada dia mais claro para todo mundo o quanto Feroz a amava.

A vida não é mole, Chucky, e as mulheres são perigosas.

Quando conheci Diogo, quase dez anos atrás, ele já era esse cara foda que é. Jovem, esperto,
poderoso, sabia exercer bem sua influência e convencer as pessoas a fazerem exatamente o que ele
queria. Fui levado até Feroz porque meu trabalho era bom e tinha lhe interessado. Mas eu balancei
antes de decidir ficar no bando. Achei Diogo jovem demais e irreverente demais para o meu gosto,
por um instante fiquei cabreiro com ele, queria entender o que tanto nego via num mauricinho filhinho
do general, até conhecê-lo melhor e perceber o quão malandro e habilidoso Diogo era.
Especialmente nesse mundo de máfia. Tinha a postura de um líder e sabia falar com as pessoas e
escutá-las como um exímio maestro.

]E o que mais me surpreendeu foi o lance do cara não fazer distinção entre seus homens. Nada de
regalias ou preferências. Nada de injustiça ou corrupção. Nada de muitos para uns e pouco para os
outros. Diogo era o que era e não aceitava babaquice de seus subordinados e ele também não era do
tipo que pisava em ninguém. Tinha suas manias e seus códigos de conduta. Também era generoso e
sábio o bastante para agradar a todos. Nunca nenhum de seus homens lhe traiu, exceto o idiota do
Tony, que morrera pelas mãos de Feroz.

Diogo também não aceitava drogas e exploração sexual. E nada de falsidade. Acima de tudo, Del
Rei prezava a união e a hombridade. Se alguém fosse pego, o que não era comum, morreria com a
boca fechada. E em troca disso receberia todas as homenagens cabíveis. Era isso ou melhor nem
entrar pra máfia.

A primeira vez que nos encontramos, Diogo Del Rei me olhou nos olhos e avisou que podia ver
minha alma, que sabia o que eu procurava ali em sua facção. "Então é o seguinte, se quer fazer
parte do bando, meus braços estão abertos. Se não quiser, vai ter que decidir agora". Esticou a
mão e eu a apertei. E nunca mais pensei em voltar atrás. Como eu tinha sido levado por Romão, logo
fui inserido ao grupo, então minha adaptação não foi uma das piores. Diogo não era do tipo que
confiava imediatamente, claro, então ficou um tempo todo de olho em mim, até que os anos passaram
e lhe apresentei provas de que era confiável. E ele confiava.

Se eu me a arrependo de ter entrado para o bando de Feroz? Não me arrependo. Ganho muito
mais grana trabalhando como seu capanga que qualquer outra coisa que poderia imaginar. O bando
tem uma boa sintonia e todos os caras são foda. E a ideia de uma família me faz acreditar que eu
devo esquecer o passado e voltar a viver.

— Aê, cara cortada! — a voz de Diogo soou, ecoando pela sala de estar. Logo o avistei descendo
a escada de mármore. Camisa branca neve, calça preta, nada de terno ou gravata — Se atrasou hoje.
Venha, vamos pro escritório. Os caras estão lá.

Vi Diogo dar um beijo em Elena, que andava mais devagar por causa da barriga de grávida. Após
o momento romântico do casal, os olhos castanhos escuros dela voltaram a me olhar, duros, como se
me reprovassem. E Feroz não estava indiferente ao nosso clima meio que hostil.
Eu ri em pensamento, pegando um cigarro do paletó. Se Elena me odiava, que se fodesse ela. Eu
não deixaria de frequentar a casa por causa dela.

— Vai demorar? — Elena quis saber, espalmando a pequena mão no peito de Diogo. Me
concentrei no cigarro agora aceso na minha boca.

— Logo vou subir — ele falou antes de lhe bater na bunda. Ambos riram. Elena seguiu em
direção à outra parte da casa e eu segui Diogo até o escritório dele, o caminho que eu conhecia de
cor.

Alguns caras já estavam lá à espera de Feroz, então ficamos conversando tempo suficiente para
resolver os trabalhos daquela semana. Boate, cassino, apadrinhados de Diogo, dívidas a serem
cobradas e uma porção de outras coisas burocráticas. Feroz também teria reuniões com os
esquadrões da alta e eu o acompanharia. Depois dos informes, era hora da diversão. Bebemos e
falamos sobre bobagens. Carros, mulheres, futebol. Jogamos conversa fora e fizemos piadas - todas
elas encabeçadas por Alvim e Jiraya. No final de tudo, voltamos para a sala de estar da mansão e foi
quando vi a pequenina de Diogo cair no jardim. Ela não chorou, mas fui até ela.

— Machucou? — perguntei, com um outro cigarro na boca.

Ela meneou a cabeça dizendo que não. Era esperta e corajosa. Mesmo com os olhos marejados,
não se rendeu ao choro.

— Deixa eu ver — analisei seu pequeno joelho ralado — Ah, isso não foi nada.

— Quero o papai — simulou choro e eu soube que o joelho dela ardia, visto que a Ferozinha não
era uma criança fresquinha.

— Vamos lá nele então — eu a ergui num braço e voltei com ela para dentro de casa. Foi quando
Elena apareceu.

Parou. Me encarou.

— Solte a minha filha imediatamente! — mandou, pegando a garota do meu colo.

Todos voltaram-se para nós e a pequenina, por causa da atitude da mãe, me olhou assustada, como
se eu fosse algum monstro. Elena me disse uns desaforos e avisou que não me queria outra vez com a
criança. Então Diogo apareceu outra vez na sala.

— O que tá pegando aqui?

— Ele. Seu capanga. Não quero mais esse homem com minha filha.

— Ei, ei, vamos com calma, ok? O que aconteceu aqui? — Diogo quis saber.

— Não importa, eu não quero!

— Ah, qual é, eu não fiz nada — falei — Só fui socorrer a garota.

— Não precisa, ela tem mãe e pai!

Eu ri, doido para mandar aquela mulher ir pro inferno, mas sabia que o Céu cairia sobre mim se
eu fizesse isso.

— Tá rindo do quê? Depois de tudo o que fez ainda se acha no direito de rir de mim?

Diogo continuou em silêncio, analisando a situação. Eu tentei não desdenhar mais, no entanto,
Elena se aproximou de mim, com a filha ainda nos braços, me estudou e sem que eu esperasse, me
estapeou. Bem na cara. Surpreso e irado, eu a fulminei com os olhos.

— O que deu em você, mulher? — grunhi, alterado.

Elena recuou dois passos e Diogo entrou em sua frente, me peitando.

— Cai fora daqui — mandou, seu tom alto e profundo como duas espadas cortantes. Seus olhos
também brilhavam e eu soube que ele perderia o controle dentro de alguns segundos.

— Você viu, ela bateu na minha cara — questionei.

— Sei o que aconteceu aqui, não sou cego. Com minha mulher converso depois, agora vaza.

— Feroz...
— Ninguém levanta a voz pra minha mulher na minha cara. Agora anda, cai fora.

— Não ia revidar o tapa — falei. E não ia mesmo, eu não era maluco. Até porque o tapa dado
nem doeu tanto assim. O problema era a minha reputação. Fui agredido na frente de todo mundo —
Certo, vou indo.

Bruno e os outros caras tentaram fingir que não tinham visto nada e Elena permaneceu me
encarando, escondida atrás do marido. Diogo fechou o punho, mas respirou fundo, parecendo menos
tenso agora.

Era melhor mesmo eu cair fora.


Capítulo 4
HEITOR

— HEITOR? — Ronan chamou logo após bater na porta — aqui está a cadela.

Assenti enquanto colocava o cigarro novamente na boca, pronto para saboreá-lo, para depois
então soltar sua fumaça para fora.

Eu estava de costas, olhava para a janela, mas devia lhe responder alguma coisa.

— Ótimo. Agora saia você — ordenei, sem mesmo me virar para encará-lo. Eu não podia deixar
de estar puto com Ronan por ele ter falhado e deixado que a garota entrasse em minha sala. Afinal,
que porra de segurança ele era? Como permitiu aquilo? E se a filha de Natanael fosse alguém
enviado para inspecionar ou para me matar? Não seria difícil me imaginar àquela hora já estirado no
chão do meu próprio escritório.

Porra.

Ouvi a porta bater de leve e soube que Ronan tinha se retirado da sala. Continuei olhando a noite
através do vidro blindado da janela e pensei em minha vida. Nascido numa família sulista, havia tido
uma infância amorosa e feliz, até me mudar para São Paulo e ver meus pais morrerem num acidente
de carro. E o homem que os matara estava bem perto de mim. E a filha dele mais ainda.

Dei mais uma tragada no cigarro.

Da janela olhei um homem cambaleando lá embaixo. Parecia alterado. Algum dos meus
seguranças agora o enxotavam. Provavelmente o elemento tinha aprontado alguma coisa no cassino.
Droga de bêbados idiotas. E aquele bêbado me fazia lembrar do sujeito que tinha acabado com parte
da minha vida. E sempre que eu me lembrava dele, eu sentia ódio. Muito ódio. Um ódio acumulado
que nem meu dinheiro e meu sucesso aplacavam. E eu sentia sede de vingança. Queria apertar o
pescoço daquele safado com minhas próprias mãos, mas não era a hora.

Não é a hora, Heitor, relaxa.

Respirei fundo. Me lembrei da garota que Ronan deixara na sala. A filha do canalha. Estava ali
atrás de mim. Merda. Aquele filho da puta não devia ter entrado em meu caminho, nem a filha dele.

Enfiei o cigarro novamente na boca e voltei a pensar em tudo o que acontecera àquela noite,
aquela garota bem que me parecia familiar... eu a tinha visto em algum lugar... talvez na lanchonete,
mais cedo. Isso, a garota dos sanduíches. Cacete, era ela! A mesma que precisava passar no teste.

Provavelmente já estava desesperada para trabalhar porque precisava do dinheiro para quitar a
dívida. No fundo eu sabia que eles nunca teriam como pagar. A ideia era mesmo dar-lhes corda, até
puxá-la.

A garota de repente pigarreou atrás de mim e foi possível detectar seu nervosismo, ainda que
meus olhos não mirassem os seus agora.

— Heitor, eu... — balbuciou — eu lamento muito por ter entrado em sua sala... me desculpe, é
que... por favor, pense numa garota desesperada, pense numa garota que tem até o fim da noite pra
pagar um dinheiro que não tem, então... bem, essa garota sou eu. Juro a você que não teria feito isso
se não estivesse apavorada. Seu segurança não me deixou outra alternativa... eu só queria... eu só
queria encontrar você e poder dizer o que estou dizendo agora.

Se calou. Heitor. Ela me chamara pelo nome. Pelo visto era mais ousada do que eu imaginava.

Soltei uma nova nuvem de fumaça pela boca, pensando que apesar do que acontecera, as
desculpas da garota conseguiram dissipar um pouco a minha raiva. Era ela, claro, a garota da
lanchonete. E eu tinha gostado dela. Gostara dela desde o momento em que a vi pela primeira vez
atrás daquele empoeirado balcão, toda trêmula com a ideia de preparar um sanduíche. E tudo o que
fiz foi tentar ajudá-la, tentar ser a porra de um cara bacana para ela. E me arrependia disso.

Um novo pigarro me chamou a atenção.

— Por favor, eu imploro... só vim porque...

— Diga logo o que quer — meu tom saiu mais duro que o metal, mas eu estava me lixando para
isso. A ideia daquela morena, embora atraente, ser sangue daquele ordinário cachaceiro me deixava
transtornado. Aquilo me fazia pensar que ele estava bem, com uma família feliz, enquanto a minha
tinha se acabado.
— Bom, eu sou Maya...

— Perguntei o que quer, não o seu nome.

Mais um silêncio e quase tive a impressão de ouvi-la engolir em seco. Imaginei que ela estivesse
mordendo o lábio. Estava nervosa, muito nervosa, e eu podia sentir seu coração quente agora
acelerado enquanto o meu estava cada vez mais gelado.

— Certo, vim pedir que... vim suplicar pra que nos dê um novo prazo — se calou.

Como eu não respondia, ela prosseguiu:

— Sei que meu pai fez uma coisa muito errada, que ele é um alcoólatra, e que não mede as
consequências quando bebe e sempre arranja problemas, mas... — fez uma pausa para respirar —
bom, ainda assim ele é meu pai. E estamos fazendo tudo o que podemos. Vendemos nossas coisas e
estamos quase sem nada... bom, tudo pra conseguir a metade do dinheiro, mas se nos der mais um
tempo, talvez...

— Nada de mais tempo. Já dei prazo suficiente. Diga isso ao verme que chama de pai — me virei
pela primeira vez desde que Ronan saíra.

Sim, era a garota. Seus olhos escuros não me deixavam dúvidas. Aqueles olhos bonitos estavam
vermelhos agora, como se ela tivesse passado boa parte do tempo chorando. Ela ficou sem fala. Não
era a primeira vez que me via, mas provavelmente se surpreendera com a minha aparência, talvez
estivesse impressionada, ou não tivesse me reconhecido. Gostei de ter causado aquela impressão
nela.

Voltei para perto da mesa. Afundei na poltrona preta de couro e relaxei minhas costas nela. Levei
os pés cruzados até o tampo de vidro e voltei a fumar meu cigarro enquanto a estudava.

Instaurou-se um novo silêncio e ela pareceu pensar em outras palavras, porém não falou nada.

— Já fui compassivo demais com vocês, então chega de apelação. Quero essa grana ainda hoje.
Vou aparecer na sua casa e nem seu choro vai me convencer a abrir mão do que é meu por direito —
pousei o cigarro no cinzeiro de madeira e continuei relaxando as costas e a cabeça no encosto macio
da poltrona. Meus olhos estudaram a garota, analisaram-na, intimidaram-na. Ela era bonita. Não uma
beleza espetacular, como tinham as modelos que saíam comigo, no entanto era bonita. Morena.
Cabelos longos e pretos. Olhos castanhos e assustados. Estatura média. Magra. Belo corpo. Meus
olhos desceram até seus pés e subiram pelo mesmo caminho. Ela vestia sapatilhas, jeans gastos e
uma blusa de renda branca.

A garota entreabriu os lábios, parecendo tentar falar algo, mas então desistiu à caminho ou não
conseguiu. Eu devia ser mesmo muito assustador. Olhou em redor e depois voltou a prender os olhos
em mim. Voltei a estudá-la, tentando entender o que se passava na sua cabecinha visivelmente
perturbada. E eu também tentava reconhecer nela a garota que encontrara mais cedo. Ela parecia
mais jovem do que aparentara, mas talvez fosse só minha impressão. Não deixei de examiná-la por
nenhum segundo nem enquanto dava mais uma tragada. E mesmo aparentemente nervosa ela me
encarava.

— Disseram que estava me procurando antes de ter tido o atrevimento de se enfiar embaixo da
minha mesa — quebrei o silêncio — Como é mesmo o seu nome?

—Maya... senhor.

— Maya — repeti — E nada de 'senhor'.

Gostava do nome Maya. Combinava com ela.

Suspirei, esfregando minha mão no rosto.

— Então era isso o que queria? Implorar por aquele fodido do teu pai? — meu tom ficou ácido
novamente enquanto pensava que a filha do miserável estava ali, diante de mim, e eu poderia liquidá-
la ali mesmo, se quisesse. Droga, e por que eu não conseguia? Bom, talvez porque ela não tinha culpa
de nada.

— Sei que meu pai tem uma dívida com você, senh... quer dizer, Heitor, mas estamos sendo
ameaçados por seus capangas há várias semanas...

— Quem tem dívidas deve pagar por elas, não acha, Maya? Um homem honrado sempre leva seus
compromissos a sério.

— Meu pai é honrado.


— Como é? — me contive para não explodir em gargalhadas.

Ela me lançou um olhar severo antes de recrutar:

— Ele tem sérios problemas com a bebida, eu sei, mas isso não significa que não seja honrado.
Bom, e eu só vim aqui pra negociar nossa dívida.

— Você não me deve nada, garota, na verdade quem me deve é ele. E nada de mais dias, então é
melhor voltar pra casa. Se quer um conselho, fique fora disso. Diga a seu velho que vou aparecer à
meia noite e que vou cumprir toda a minha promessa. E você e seu irmão podem se mandar, se forem
espertos.

Levantei pela segunda vez. Percebi que a garota ficara branca como papel e ficara em estado de
alerta. Fui até as persianas e abri um pedaço delas. Espiei pela segunda vez a noite lá fora. Nublada
e fria. De repente alguém bateu à porta e gritei para que entrasse. Jarbas, meu braço direito,
apareceu, com um celular na mão.

— Diogo Del Rei na linha — informou.

Feroz.

Peguei o aparelho de última geração que ele me entregava e simplesmente ignorei a garota.

— Heitor! Satisfação falar com você! — falou Diogo assim que atendi — E aí, como vão as
coisas?

— Sob o controle — dei as costas para Maya e Jarbas, que eu sabia, estavam ouvindo a ligação,
embora não pudessem escutar o que Diogo falava. E eu me sentia mais tranquilo por saber que Jarbas
tomava conta da garota e que qualquer gracinha que ela fizesse seria interceptada por ele.

— Preciso de um favor seu — Feroz falou — É o Chucky. Bom, você sabe, o cara é um dos
meus melhores homens, se não o melhor, mas se meteu numa encrenca sem tamanho e agora
preciso afastá-lo por um tempo. Não será para sempre, só por um tempo.

— Gosto do Chucky. Ele é sério e centrado, me passa segurança, embora tenha aquele jeito todo
esquisitão.
— O cara é leal, acima de tudo.

— Se é seu amigo, é meu também. Será bem recebido, não se preocupe. Quando ele vem?

— Ainda essa semana. Não se preocupe com gastos, o cara tem o suficiente pra se manter.
Meus capangas são ricos, meu chapa, se duvidar, mais ricos que eu e você — logo ouvi barulho de
choro infantil no fundo. Me lembrei de que Diogo tinha uma filha pequena e que sua mulher, Elena,
estava grávida pela segunda vez, agora de gêmeos. Certo dia ele havia comentado que me daria os
bebês para batizar. Zombei. Eu, padrinho de dois serzinhos? Mas então pensei em Del Rei e na sua
imagem de pai. Feroz era pai, caralho! Pai! Quem diria que Diogo fosse logo se tornar pai? E eu
comecei a lembrar que toda vez que minha família me sondava com aquele lance de casamento e
paternidade, eu dizia que não estava preparado para esse grande passo. Sinceramente esperava que
um dia, assim como chegara para Diogo, chegasse a minha vez.

— Certo, vou ter que desligar agora. A rolinhazinha tá aqui puxando meu braço, aos prantos.

"Rolinhazinha" — ri, pensando naquele apelido que ele colocara na garotinha que devia ter uns
três ou quatro anos. Bom, acho que não chamaria minha filha assim.

Feroz se despediu antes de desligar. Após um pigarro de Jarbas, me lembrei de que não estava
sozinho em minha sala e que além de meu capanga, estava ali a garota.

A garota atrevida.

Maya.

A mesma garota da lanchonete.

Me virei para encarar os dois.

— Jarbas, pode ir — guardei o celular no bolso da calça preta sob medida enquanto Jarbas me
indicava a morena com o olhar.

— Está tudo bem. Vou terminar minha conversa com ela.

Jarbas saiu devagar e voltei a me sentar na poltrona atrás da mesa. Estiquei minhas pernas e
novamente pus meus sapatos dobrados no tampo de vidro. Encostei as costas e cruzei as mãos sob a
nuca. Fiquei olhando para Maya. Poderia ficar ali a noite toda admirando-a, se quisesse. Admirando
sua beleza, sua coragem. Desejando-a.

Não. Desejando não. Ainda não.

Nunca esqueceria que ela era a filha de quem era. Nunca esqueceria que eu deveria torturá-la e
não desejá-la. E minha vingança deveria ser do meu jeito. E o fato da garota ser culpada ou inocente
não devia me importar, o que importava era a minha raiva. E eu estava com muita raiva acumulada
por todos aqueles anos de dor e injustiça.

— Você é muito corajosa, morena, tenho que admitir — falei.

— Por favor, será que pode... levar meu pedido em consideração?

— Quem tem dívida é seu pai, e como disse, não deve se preocupar com isso.

— Mas eu me preocupo... é claro que eu me preocupo. Afinal, ele é meu pai. Acho que
costumamos proteger quem amamos. Você não? Se ele tem uma dívida, ela também é minha.

— Uau, que emocionante. Garota corajosa, mas estúpida.

Apesar da zombaria, o que ela acabara de falar tinha lógica. A gente sempre protegia quem a
gente amava. Do mesmo modo como a gente também sempre se vingava de quem machucava quem a
gente amava. Certo? E era exatamente isso o que eu estava fazendo.

— Tem até a meia noite, Maya — falei, brincando com o cinzeiro — Agora é melhor dar o fora
daqui, se realmente preza pela sua vida.

Ela me olhou, perplexa e levou as mãos ao rosto.

— Oh, Deus, como pode ser tão cruel?!

— Cruel?! — me levantei de forma brusca, ouvi o ranger da poltrona —Sabe o que é cruel,
garota? Cruel é ver um filho da puta vir ao meu cassino, tomar minhas bebidas e se entreter com meus
jogos sem pagar. Sou um homem de negócios, não o Papai Noel! Quero meu dinheiro de volta e é
melhor que estejam preparados esta noite.

Na verdade, eu bem sabia, estava punindo Natanael não por ter gastado tanto dinheiro no cassino
e sim porque queria me vingar dele e de tudo o que ele tinha feito anos atrás. Ele tinha sido
negligente naquele maldito acidente de carro e provocado a morte de pessoas inocentes e mesmo
assim não fora devidamente punido pela justiça. E se a justiça não o punira, eu mesmo o faria. E que
se ferrasse a porra do Direito Penal!

— Então vai mesmo nos matar?

Eu sorri de lado.

— Confesso que seria um grande desperdício matar você.

Consegui o efeito que queria, pois Maya recuou, parecendo assustada com o comentário. Então
me afastei um pouco mais da mesa e avancei alguns passos.

— O que foi? Nervosa?

A morena recuou, parecendo paralisada. Ou como se estivesse muito chocada ou pensando no


erro que cometera em ter ido até ali. Contudo eu não queria machucá-la, só queria provocá-la, até
que ela fosse embora.

— É melhor ir embora — mandei.

Ela continuou sem ação, apenas com a boca entreaberta.

— É surda? Eu mandei cair fora.

Nem assim a garota se mexeu.

Sem paciência, avancei com raiva. Agarrei seu braço, sabendo que poderia assustá-la.

— Nada do que fizer vai me fazer mudar de ideia. Vou pegar seu pai dentro de algumas horas e
você não vai me impedir. Agora é melhor se mandar daqui! — abri a porta e joguei a garota para
fora, então Ronan apareceu para me auxiliar. Segurou a morena e a tirou da minha frente num passe
de mágica. Ainda pude ouvir as imprecações dela pelo caminho antes de fechar a porta e voltar para
o silêncio da minha sala.

Voltei a encostar minhas costas na poltrona, depois fechei os olhos e suspirei. Não estava
interessado no dinheiro. Grana eu tinha, e muita. Eu queria apenas ter o prazer de acabar com a vida
do desgraçado que bagunçara a minha. E antes de matá-lo, precisava vê-lo sentir na pele o desespero
que eu sentira quando ele quase acabou com a minha vida.
Capítulo 5
MAYA

O SEGURANÇA me puxou com força ao me conduzir pelos corredores barulhentos e


movimentados da boate. E então constatei que o tal do Heitor era mesmo um covarde, pois nem
coragem para me expulsar pessoalmente da sua sala ele tivera! Preferiu pedir que um outro sujeito
igualmente grande fizesse o serviço sujo. Fiquei com raiva. O brutamontes aproveitou o ódio que
estava sentindo de mim para se vingar.

Ao passar pela porta, pensei que fosse morrer. Ele estava armado e não parecia hesitar em
cumprir uma ordem dada, ainda que Heitor Romano não tivesse lhe dado uma ordem expressa para
que me matasse.

— Desapareça daqui! — vociferou o troglodita ao me jogar contra o vento, já na saída. Por causa
da violência com que me empurrara, caí de bunda no chão, dentro de uma poça d'água. O sangue
subiu à cabeça e quase mandei ele ir se foder, mas então controlei minha boca e lembrei que não
podia brincar com gente da máfia, que eles não precisavam de motivos para liquidar quem quer que
fosse.

Esses homens não prestam, Maya, matam por nada. Ainda não entendeu? São criminosos.
Matam e torturam. E sentem raiva de graça. Você não fez nada, não falou nada, mas mesmo assim
eles sentem raiva.

Me levantei com dificuldade, enquanto limpava o jeans sujo e molhado, me recusando a derramar
qualquer lágrima.

— Vão se ferrar todos vocês! — gritei, mas já não tinha ninguém ali para me ouvir. O cara já
tinha voltado para o interior da boate e então me dei conta de que o miserável tinha me enxotado pela
porta dos fundos. Desse jeito nenhum frequentador do lugar testemunharia a cena. Eu poderia ter
morrido ali cheia de tiros, que ninguém veria nada. Era um beco escondido e escuro.

Virei-me para a frente e apressei os passos. Melhor sair dali. Não era um lugar agradável.

A brisa da noite balançava os fios de meus cabelos à medida que eu andava, e me dava aquela
sensação de inverno, embora estivéssemos no outono. E talvez aquela sensação de frio também se
devesse pelo fato de eu estar completamente nervosa e assustada. E desesperada.

Peguei o ônibus e foi complicado conseguir pagar a passagem, já que meus dedos trêmulos me
impediam de contar as moedas, que logo caíram ao chão. Uma senhora me ajudou.

— Tudo bem, querida?

— Sim, obrigada... — balancei a cabeça em afirmação, mesmo não tão certa disso.

Sentei-me no fundo do ônibus, me sentindo um zumbi. Eu não dormia fazia dias, não comia, não
ria, não falava com ninguém, não tomava banho. Não tinha uma vida social. Minha vida nos últimos
dias se limitava a vender coisas de casa, contar dinheiro e chorar, até que decidi que teria mais fibra
e procurei Heitor. Mas aquilo não adiantou de nada.

Droga.

Segui todo o percurso de volta para casa, pensando que dentro de algumas horas eu morreria. E
não só eu, como toda a minha família. E eu nem tinha ideia de onde meu irmão estava. Pensando
nisso, peguei o celular do bolso e disquei. Lucas me atendeu após três chamadas.

— Alô.

— Lucas! Estou à caminho de casa. E você, onde está?

— Aonde esteve?

— Uma longa história, depois te conto — suspirei com tristeza — Onde está, Lucas?

— Em casa.

— E papai, está aí também?

— Bêbado como sempre — resmungou — E não temos a droga do dinheiro, Maya. Já pensou
nisso? Não temos a droga do dinheiro! Tô zoado com essa merda.
— É claro que pensei. Não penso em outra coisa há dias.

— A gente vai morrer, meu. Todos nós. E tudo por causa dele. Daquele maldito idiota. Eles vão
chegar e vão matar todos nós, sacou?

— Lucas, se acalma...

— Me acalmar? Me acalmar uma ova! Eu vou morrer, caralho! Antes que o dia clareie, vou
morrer! Se ficar em casa, vou morrer, Maya, mas não quero morrer, então não vou ficar em casa.
Tô arrumando minhas coisas, vou dar o fora daqui.

— Lucas? Vai pra onde? — soube que minha voz estava alterada. Nem o barulho do ônibus a
abafava. Senti algo na voz de meu irmão, algo diferente, uma apreensão e um nervosismo nunca
percebido antes.

— Não vou morrer por causa de ninguém, muito menos de um bêbado idiota, que não tá nem aí
pra gente. Se quiser morrer com ele, que morra, mas eu tô indo.

— Lucas, ele é nosso pai... — lágrimas brotaram em meus olhos pela milésima vez. Me senti
sozinha. Sozinha para segurar toda aquela barra. As pessoas mais queridas sempre iam embora ou
então morriam. Foi assim que senti quando mamãe morreu vitimada pelo câncer. E agora Lucas iria
embora.

— Desejo boa sorte, Maya. Adeus.

— Lucas?

O telefone começou a fazer 'tu tu tu' avisando que meu irmão tinha desligado e então desabei
abraçada em meus braços. Lucas estava indo embora e eu me sentia ainda mais perdida por isso. No
fundo também queria fazer o que ele fazia, queria mandar o mundo se danar, queria correr e fugir
daquele maldito pesadelo, no entanto não podia deixar meu pai sozinho em casa. Não conseguia
simplesmente dar as costas para ele e seguir, como se nada tivesse acontecido. Jamais me perdoaria
se eu o abandonasse.

Levei as mãos aos cabelos e não fui capaz de segurar o pranto. Estava com medo. Com tanto
medo e frio. Com tanto medo, que agora tremia. Eu tinha enfrentado Heitor Romano minutos atrás e
sentido na pele o nível da maldade dele. Eu tinha me enganado com aquele cara. Na lanchonete ele
parecera legal e gentil, tão amável e delicado. Me ajudou com os sanduíches e me fez acreditar que
ainda existia gente boa na face da Terra, até eu ver sua outra face.

Eu vira a maldade em seus olhos e constatado que ele não era flor que se cheirasse. Era perigoso
e frio e eu já tinha ouvido falar de homens como Heitor algum dia. Bonitos, jovens, ricos, bem-
educados e socialmente comuns, contudo escondiam uma faceta que muitas vezes nem a própria
família conhecia. E eu estava apavorada, mesmo sabendo que precisava ser forte. Por Lucas, por
papai, por mim. Mais por mim e por papai agora, já que Lucas estava indo embora. E eu não o
condenava, ele tinha razão. Nosso pai tinha passado dos limites. Não valeria a pena morrer por causa
dos erros de outra pessoa, mas ainda assim eu não conseguia virar minhas costas.

Estremeci quando a imagem de papai abandonado dentro de casa me veio à mente. Ele certamente
passara o dia todo bebendo para fugir do momento terrível que estava por vir, tentando fugir da
nuvem negra que estava para cair sobre nossas cabeças. E como eu queria agora ter minha mãe por
perto para me dizer que estava tudo bem, que tudo simplesmente ficaria bem. Mas mamãe não
estava...

Quando o ônibus me deixou na esquina de casa, tempo mais tarde, vi um grupinho conversando.
Não pude deixar de sentir aquele cheiro horrível da porcaria que eles fumavam. Uma das vozes era
de Doca, um ex-namoradinho da adolescência. Virando o rosto para que ele não me visse, apressei
os passos. Doca tinha se viciado na juventude, logo depois que terminamos, e agora se intitulava o
dono do morro.

Era uma merda morar perto de um lugar perigoso, que era dominado pelo tráfico, e era uma merda
ainda maior morar perto do cara que falava mentiras a meu respeito. E então eu me lembrava de
outros capítulos da minha história. Bastava fechar os olhos para lembrar do que o desconhecido
fizera a mim, ele tinha me deixado marcas. E eu sequer podia reclamar, questionar, pois não sabia
quem era ele. E eu era uma refém do medo. E tinha raiva de mim mesma por não conseguir ser mais
forte que aquele sentimento que ainda me aprisionara, não tanto como antes, mas ainda me deixava
marcada. E voltando a pensar em Doca, ele só não me violentara também, porque dizia que não
precisava agarrar nenhuma mina para tê-la em sua cama. Todavia eu bem sabia quais os meios de
persuasão que ele usava.

— Mas que porra, Maya, não tá me ouvindo? — Doca já estava ao meu lado e sua mão suja já
segurava meu braço, me obrigando a virar-se para ele.

O desgraçado não conseguia ser delicado. Devia se alistar para fazer parte do bando dos ogros de
Heitor Romano. Talvez lá ele ganhasse mais dinheiro que ganhava com as porcarias que vendia.

— Tá vindo da onde? — perguntou, aquele bafo de cerveja.

— Tô vindo do trabalho, Doca — menti — por favor, só quero jantar e dormir. Estou exausta.

— Vamos lá pro meu apê, que tem comida à vontade e você pode descansar.

— Não, obrigada.

Ele me olhou com desconfiança, e por fim me soltou. Devo ter passado a imagem de quem
realmente estava cansada. E, de fato, eu estava. E ficar com Doca seria o meu maior castigo. Mas...
pensando bem... e se ele pudesse me ajudar? Ele devia ter algum dinheiro. E se me ajudasse com o
dinheiro que Romano queria? Eu cheguei a pensar em fazer uma loucura dias atrás, tinha pensando
em roubar a lanchonete do senhor Rachide, no entanto logo abandonei aquele horrível pensamento,
dizendo a mim mesma que eu não era uma ladra. O problema é que quando você está com problemas
e desesperada, você fica cega, e eu tinha todos os motivos para ficar cega.

Confusa, meus lábios tomaram vida.

— Doca, hum, será que posso falar com você?

Me olhou, desconfiado.

— Tava agora mesmo me dispensando. Não sou palhaço, sacou? Se liga.

— É um assunto sério.

— Desembucha logo.

— É que tô precisando de uma grana. De uma grana alta.

Me olhou de um jeito estranho.


— Que grana? Tá pensando que sou banco? — riu, levando todo mundo a rir com ele.

— Será que podemos falar em particular?

Me olhou, com desdém.

— Eu e você?

— Bem, acho que... acho que posso dar a você o que tanto quer... — toquei seus ombros de modo
sugestivo e ele parou. Pareceu avaliar a proposta.

Olhou para minhas mãos trêmulas em sua pele e depois ergueu de novo os olhos para me estudar.

— Desde quando tá se prostituindo? Ah, então é assim que anda ganhando dinheiro?

— Não é nada disso... é só que... que preciso de um empréstimo.

Ele explodiu em gargalhada antes de se afastar de mim.

— Se eu quisesse você, Maya, eu pegava de graça. Entendeu? Não preciso pagar. A hora que
quiser, você iria ter que tá lá. Agora mete o pé.

Atônita, os olhos piscando sem parar, me sentindo péssima e suja por ter falado aquelas besteiras
e feito Doca acreditar que eu o queria, me virei e fui embora. Comecei a correr, tentando lutar
bravamente contra as lágrimas que queriam descer enquanto Doca e o grupinho dele gargalhavam,
zombando de mim. Empurrei o portão de madeira de casa logo assim que a alcancei e encontrei
silêncio ao passar pela porta da sala. Lucas já devia ter ido embora. Fui até seu quarto e constatei
que seu armário estava vazio. Fui até o quarto ao lado e achei papai roncando na cama, sujo, os
sapatos nos pés, uma garrafa de cachaça na metade largada no chão.

— Ei, pai, acorda! Acorde! Os homens vão chegar! Acorda!

Sonolento, resmungou que queria dormir mais.

— Acorda, pai! Mas que merda! A culpa é toda sua, sabia? Toda sua! Seu bêbado irresponsável!
Vamos, acorde!
Ele não despertou.

Irritada e cansada por insistir, desci da cama e fui até à cozinha. Preparei um café. Talvez aquela
fosse a última xícara que eu beberia na vida, então caprichei. Calculei a quantidade certa para uma
pessoa. Largada no sofá, tomei o líquido quente e pensei no que aconteceria dentro de poucas horas.
Nós dois morreríamos. Papai e eu.

Tempo depois meu pai apareceu na entrada da sala. Aparentemente mais sóbrio.

— Que horas são? — perguntou.

— Onze e cinquenta.

— Eles vão vir, não é?

Pensei naquilo. Pensei que queria dar uma resposta diferente, mas não podia.

— É, eles vão.

— E não temos o dinheiro.

Dei de ombros.

O que ele queria que eu falasse?

— É, não temos, pai.

Meu pai levou de repente as mãos ao rosto e começou a chorar. Seu corpo começou a balançar,
me deixando penalizada. Saí do sofá e fui ao seu encontro. Meu pai chorava feito criança desolada,
uma coisa que cortava o coração.

— Ei, fique calmo. Vai ficar tudo bem. Por favor, fique calmo.

— Eles vão matar você, Maya. Tudo por minha culpa. Tem que fugir, tem que correr antes que
seja tarde demais.
— Não. Eu vou ficar. Não posso deixá-lo aqui sozinho. Vamos enfrentar isso juntos. Você e eu.

— Não, não pode, filha, tem que ir. Eu sou velho e acabado. Vivi muita coisa nessa vida, mas
você... você não tem culpa de nada. É tão jovem... tão bonita... vá, Maya. Vá logo.

— Não posso deixá-lo aqui, já disse — o choro começou a me tomar e o tremor também — Por
favor, pai, não insista. Vou ficar... tá decidido.

— Você é tão boa, filha... tão boa pra mim... e eu não mereço nada disso... seu irmão tem razão —
chorou mais ainda, as lágrimas deixando seu rosto vermelho e molhado.

— Você fez o que pôde, pai, eu acredito nisso.

Meneou a cabeça em negativa.

— Não, eu não fiz, eu não fiz nada pra ser um pai melhor. Poderia ser melhor, poderia ser um pai
mais amoroso, mais responsável, mas não fui. Me perdoa, filha — voltou a prantear — por favor,
não conseguiria partir em paz sem o seu perdão.

Nesse instante a emoção me tomou e quase explodi em pranto. Era muito difícil ver as pessoas
que amávamos naquela situação.

— É claro que perdoo você, é claro que o perdoo — eu o abracei forte.

Papai não parava de chorar. E eu chorava com ele. Ambos chorávamos juntos. Nossos corpos
balançando a cada soluço trocado. Apesar de tudo, eu o amava. E se aquela era a nossa despedida,
era a melhor despedida que poderíamos ter, a melhor em que pudesse pensar. Quando nos
acalmamos, me afastei dele. Logo algo me chamou a atenção. Mesmo com a visão turva por causa
das lágrimas, vi a luz de um farol iluminando tudo lá fora e soube na hora que era Heitor Romano que
chegava.

Heitor. Heitor chegava. E eu sabia que dentro de alguns minutos eu estaria morta.
Capítulo Extra
ELENA

QUANDO DIOGO entrou no quarto, eu estava dobrando algumas roupinhas de bebê na cama,
tentando não pensar muito no que tinha acontecido algumas horas atrás na sala de estar comigo e com
Chucky. Eu deveria saber que Diogo ficaria aborrecido. Ele sempre ficava aborrecido quando eu,
segundo ele, me metia nos assuntos dele. Além do mais, era fácil detectar quando meu marido estava
chateado.

Quando isso acontecia, ele me ignorava por algum tempo e até mesmo ficava horas afastado. Se
metia no escritório para receber seus apadrinhados por lá. Noutras vezes Diogo saía e só voltava
tempo depois, geralmente mais calmo. E por isso eu não me preocupava quando ele sumia a tarde
inteira, pois eu sabia que quando seu humor fosse restituído, Diogo voltaria a ser quem ele era. E
muitas vezes voltava me beijando ou cheirando, como um cachorrinho arrependido clamando por
perdão por ter passado dos limites. E sempre eu o enchia de beijos e então a gente tinha uma nova
noite de amor, que culminaria com um largado nos braços do outro.

Entretanto naquele exato momento em que Diogo apareceu no quarto, eu não me sentia a errada da
história. E não me arrependia do tapa dado no capanga dele.

— Oi — Diogo se sentou na poltrona que ficava diante da cama — Posso saber o que deu em
você hoje?

Dei de ombros. Não ergui os olhos para falar com ele.

— Já tinha avisado que não o queria com minha filha — respondi, seca.

— E precisava todo aquele show?

— Show? Bom, talvez eu também não esteja satisfeita com o rumo com o qual o episódio fora
levado, mas ele mereceu — falei — na verdade, fazia tempo que ele merecia aquele tapa. E ele riu
na minha cara, Diogo, você não viu?

Diogo suspirou, agora parecendo mais relaxado na poltrona.


— Mas não se bate na cara de um cara, Elena. Muito menos na frente dos amigos dele.

Dessa vez ergui os olhos para encontrar os dele.

— Não se sequestra um bebê, Diogo. Nem com a desculpa de levá-lo pro pai dele.

Ele se inclinou para a frente e me estudou.

— Ok, você tem razão, no entanto o que passou passou, paixão. O importante é que a pequena tá
bem agora com a gente.

— Mas nunca vou esquecer isso. E como eu disse, ele zombou na minha cara. Na sua frente. E eu
perdi a cabeça.

Ele coçou os cabelos escuros e fartos, saiu da poltrona e se agachou diante de mim.

— Certo, vamos esquecer então o que aconteceu... O que é isso que está fazendo? Arrumando as
coisas deles?— sorriu, enquanto seus olhos castanhos brilhavam, da mesma forma que brilhavam
toda vez que falávamos sobre nossos pimpolhos que iriam nascer. Diogo especialmente estava na
expectativa, pois aquela era sua primeira vez acompanhando toda a gravidez. Parei o que estava
fazendo e alisei a barrigona.

— Não vejo a hora. Aposto que vão ser bonitos como o pai.

— Nada disso, vão puxar a beleza da mãe. E até esse jeitão todo marrento que ela tem.

— Você que é marrento, eu não!

— Não sou.

— É sim — calei-me quando Diogo colou os lábios na minha barriga para beijar os filhos. E
então o acontecido com Chucky voltou à minha mente.

— Diogo... hum, não quero mais o Chucky perto dos nossos filhos, e não gosto da ideia de ter a
presença dele na nossa casa.
Ele se afastou da barriga, me olhou e pareceu pensar um pouco.

— Acho que estamos tendo um probleminha aqui, paixão — sua voz falou baixa — Recebo meus
homens nesta casa e isso nunca foi problema. Ok, sei que você não gosta muito disso e por isso
reduzi os encontros. Os caras estão acostumados a vir aqui, Elena, e Chucky, querendo ou não, é um
deles.

— Ele sequestrou nossa filha! Sua filha!

— Porque queria trazê-la até mim, caralho! E sabe de uma coisa? Ele fez isso porque o idiota é
tão leal, que pensou que estaria fazendo a coisa mais certa do mundo. Você não entende essa merda?
Chucky foi leal, Elena. Leal como um cão. Tão leal, que arriscou o próprio pescoço para me trazer
Esmeralda.

— Dane-se vocês. Ele pegou minha filha! Não pensou nenhum pouco em como eu sofreria. O que
ele fez foi criminoso! Ele deveria estar atrás das grades agora!

— Eu também deveria estar atrás das grades, paixão, por várias coisas erradas que fiz. Então me
diga, você gostaria disso?

Me calei.

Bem, não tinha pensado nisso. E por mais que não concordasse com a vida que meu marido
levava, não queria nem imaginar Diogo em alguma prisão. Só aquele pensamento me dava arrepios.

— Bom, mas Chucky tentou me matar várias vezes! Nunca gostou de mim e agora me deu motivos
pra eu nunca gostar ou confiar nele. Então não me venha com discurso, acho que agora ele e eu
estamos quites.

— Ele se arrependeu do que fez com Esmeralda. Sei que se arrependeu. E também sei que só fez
aquilo porque estava tentando me ajudar.

— Mas não gosto da ideia dele perto dos meus filhos. Não confio, Diogo. Tenho o direito de não
confiar. Sou a mãe deles.

— E eu sou o pai. Nunca esqueça disso. Acha que não me importo com eles? Acha que não penso
no bem estar dos meus filhos também? Sempre penso neles, Elena, desde que acordo. São as
primeiras coisas que me vêm à cabeça. E você é logo a segunda. E a terceira é que se alguém sonhar
em tocar em qualquer um deles é um cara morto. E todos os meus homens sabem disso. E sabem
também que não brinco em serviço, principalmente quando o assunto são as pessoas que mais amo no
mundo. Portanto, Elena, nunca mais aja como se eu não me importasse com eles.

— Diogo...

— Então pare de se preocupar com essas bobagens. A casa é segura. Tem câmera por tudo que é
lado. Você também poderia contratar uma babá pra ficar o tempo todo com a rolinhazinha. Assim
você ficaria menos preocupada. Principalmente agora que está prestes a receber essa galerinha aí.

— Posso cuidar eu mesma da minha filha — ri, agora alisando seu rosto bonito — E, amor, não
quero dizer que você não se importa com a gente... é que eu só queria um pouco mais de privacidade,
sabe?... todo tempo esses caras andando pela casa... falando, rindo... ás vezes eu me sinto invadida.

Ele segurou meu joelho e voltou a suspirar.

— Ok, vou pensar melhor no assunto. Prometo que vou. E vou mudar tudo isso a partir de hoje.
Quero que tenha mais privacidade e que fique menos preocupada. Vou reduzir ainda mais os
encontros e providenciar um outro lugar para todas as reuniões. Satisfeita agora?

— Acho que assim vai ser melhor — sorri antes de beijá-lo — Imagine quando os meninos
nascerem. Tanto homem dentro de casa com bebês tão pequenos. Imagine o estresse. Crianças
precisam de um lugar tranquilo e familiar, amor.

Ele balançou a cabeça, analisando aquelas minhas palavras.

— É, tem razão. Vou resolver isso, dou a minha palavra — correspondeu ao meu beijo.

— E quanto ao Chucky?

Diogo suspirou.

— Bom, disso já cuidei. Vou mandá-lo pra São Paulo. Só pra passar alguns dias por lá.
— Ah, é?

— É, e pensei na ideia dele passar uma temporada com o Heitor. Você sabe, lugar novo, pessoas
novas, problemas novos. Lá ele poderá esfriar mais a cabeça.

— E ele aceitou ir?

— Manda quem pode e obedece quem tem juízo, Chucky entende perfeitamente isso. Além do
mais, vai ser temporário. Até a poeira baixar e você ficar mais calma com a presença dele. Além
disso, tem os bebês. Como você mesma falou, é melhor que eles nasçam num lugar mais sossegado e
familiar. Chucky também vai estar melhor quando voltar. E ele não a odeia como você pensa.

— E eu não o odeio, eu só não confio nele. Prefiro que eu fique no meu canto e que ele fique no
dele.

— Certo, agora quero falar sobre outra coisa... onde está minha princesinha?

Sorri.

— Dormindo. Tomou um banho e foi dormir um pouco. Só assim eu também descanso um pouco.
Ás vezes me sinto esgotada — ri.

— Ela me lembra tanto você, sereia... só não quero que aja mais do jeito que agiu esta tarde, ok?

— Diogo...

— Você sabe, não devia ter passado por cima de mim e enfrentado Chucky. Muito menos na frente
de todo mundo. Tenho meus negócios, Elena, e os caras são meus capangas, precisa tratá-los bem,
mesmo que não goste nenhum pouco deles. Não só envergonhou o cara em público, como me
constrangeu também. Sou o chefe e preciso dar o exemplo. E esse exemplo precisa vir de dentro da
minha casa.

Pronto! Já estávamos discutindo de novo!

— Então se recomponha e mantenha seus capangas longe de mim! — me afastei, mas Diogo me
segurou.
— Não vamos começar a brigar de novo, ok?

Diogo me agarrou e com um novo beijo me calou. E eu decidi que era infinitamente impossível
ficar tanto tempo com raiva dele. Além do mais, o importante era saber que Chucky passaria um bom
tempo em São Paulo e ficaria longe da gente.
Capítulo 6
HEITOR

O AUDI ESTACIONOU.

Abandonei o conforto do carro e ergui o terno carvão para poder me proteger da chuva que descia
fina dos céus de São Paulo. Jarbas e Oscar iam na minha frente enquanto outros dois iam às minhas
costas e o restante dos caras aguardava espalhados pelos carros. Alguém bateu à porta da humilde
casa. Um sobradinho simples e mal pintado. A tinta desgastada estava feia, nos dando aquele aspecto
de velhice e pobreza, e me fazendo pensar em como um homem poderia chegar naquela condição de
viver como um animal. O desgraçado não tinha muito a oferecer e o pouco que ainda lhe restava ele
gastava com bebidas e jogos, deixando a família quase sem nada.

Alguém bateu a porta pela segunda vez, mas ninguém atendeu. Jarbas bateu de novo, dessa vez
com mais força, e quando não recebemos uma resposta positiva, fiz sinal para que ele arrombasse.
Nesse momento a porta de madeira se abriu, fazendo um pequeno ranger, nos lembrando do quanto
era velha e frágil. Do outro lado, o homem com a aparência relaxada apareceu.

Natanael.

— Heitor — seu olhar inseguro fixou-se em mim — Você por aqui...

Sem pedir licença, entrei. Andei pela casa pequena e olhei tudo em redor antes de voltar a
encarar Natanael. Ele tinha o olhar assustado, de quem estava receoso, mas que ao menos parecia
estar conformado com o fim trágico que teria dentro de alguns minutos. Também parecia sóbrio,
ainda que o cheiro de cachaça sobrepusesse sua carne fedida, lhe dando um aspecto ainda mais
repugnante e indicando que tinha passado toda aquela tarde bebendo.

— Você precisa de um banho — torci o nariz antes de me afastar. De repente ouvi barulho de
móveis sendo jogados ao chão.

— Ei, esperem! Não precisam quebrar minha casa! — Natanael protestou enquanto os caras
davam uma geral em tudo o que ele tinha— Heitor! Faça alguma coisa... mande-os pararem...

— Onde tá a grana? Dei a você um prazo, e esse prazo termina hoje — tirei um cigarro do bolso
do paletó e, sem pressa, eu o acendi — Vamos lá, tô esperando.

— Heitor, eu... — ergueu as mãos em rendição — eu juro, eu juro, rapaz, vou pagar tudo. Só peço
que tenha mais paciência, deixe-me explicar... se fosse possível, eu pagaria agora, juro por Deus que
pagaria, mas...

— Não enfie Deus nas suas roubadas.

— Mas...

— Sem mas, seu filho da puta, eu quero a minha grana! Hoje e agora! — voltei a andar pela casa.
Apertei o cigarro contra os lábios e observei aquele cubículo em que Natanael vivia. Móveis
simples, pouco espaço, coisas fora do lugar. Uma mesinha de madeira no canto da sala e sobre ela
mais de uma garrafa de cachaça. Segurei uma que estava vazia.

— Será que você não consegue ficar um dia sem beber, miserável? — arremessei a garrafa contra
a parede, levando-a a se espatifar antes de se encontrar com o chão.

— Por favor, eu... posso vender a casa. Posso vender a casa, Heitor, é isso. Só preciso de mais
tempo...

Eu ri. Dei uma segunda tragada no cigarro enquanto Natanael parecia pensar em outros
argumentos para me dar. Visivelmente estava tentando me fazer de otário. Indo além dele, meu olhar
foi captado pela garota que surgira do nada. Como era mesmo o nome dela? Ah, sim. Maya. Ela
estava ainda mais bonita agora de jeans e blusa de algodão. Estava com um semblante mais calmo e
segurava uma mochila na mão. Um dos caras a interceptou e ela me olhou como quem pedisse ajuda.

— Deixem ela passar — mandei, tirando o cigarro da boca.

Oscar obedeceu e vi a morena lançar a ele um olhar de desprezo.

— O que tem nessa mochila, guria? — perguntei quando ela chegou um pouco mais perto.

— O dinheiro.

— Ah, é mesmo? Então abra, que eu quero ver.


— Se esse ogro aqui sair de cima de mim... — respondeu, indicando Oscar com o olhar e eu ri.
Algo em Maya me fascinava, embora eu a conhecesse há pouco tempo. Talvez fosse sua forma de
falar ou de agir. Na lanchonete a impressão que eu tivera era que como as abelhas eram atraídas pelo
mel, Maya me atraía até ela.

— É destemida, morena. Fala como quem não tem medo de nada. Não é qualquer um que chama
Oscar de ogro na cara dele, sabia?

Maya não respondeu. Recuei um passo. Com contato visual, dei ordem para que Oscar se
afastasse dela. Não precisava assustar a garota. Não era com ela meu real problema. A morena então
pôs a mochila sobre a mesa e a abriu. Vi que, de fato, havia muitas notas de dinheiro lá dentro,
todavia aquilo não me dizia nada. Eu não queria o dinheiro, queria algo que ia muito além dele.
Mesmo assim mandei que contassem, só por garantia. Na realidade nada seria o suficiente porque o
que eu queria mesmo era a minha vingança. A merda da minha vingança. Eu clamava por ela, e
ninguém sabia o quanto em oculto eu a queria.

— Isso não é o suficiente — colei as costas na parede enquanto cruzava os pés no chão e dava
mais uma tragada no cigarro. Vi alguns caras se posicionarem na janela, e eu agora olhava para
Maya. Não queria fixar meu olhar no bêbado miserável do pai dela ou então acabaria o matando ali
mesmo à queima-roupa. E meu plano era torturá-lo.

Mais um pouco de diversão, Heitor, vamos lá.

Ouvi o barulho da mochila se fechando. Maya a fechava. Continuei com meus olhos fitos na
garota. Mãos de fada, pele de pêssego, rosto agradável. Bem diferente da peste que ela chamava de
pai. Como aquele miserável tinha conseguido fazer algo tão macio e delicado como ela ainda era um
mistério.

A garota pigarreou, então me encarou.

— Se pudesse nos dar mais alguns dias...

—Nada de mais dias — soltei a fumaça pela boca. Aquilo me aliviada, e me impedia de fazer
qualquer merda impensada.

— Heitor! — o cretino do bêbado se jogou de repente aos meus pés — Por favor, eu posso pagar
por tudo, só me dê mais tempo... eu posso trabalhar pra você, se quiser! Sou velho, mas ainda tenho
saúde... posso ser seu escravo! Posso trabalhar pro resto da minha vida no seu cassino e...

A garota protestou e pai e filha começaram a falar junto.

— Fique quieta, Maya! Fui eu que comecei isso tudo. Teu irmão tem razão, é tudo culpa minha!

Era a primeira vez que eu concordava com alguma coisa que aquele bosta falava.

— Pai, não! — a menina agarrava no braço do homem, determinada a fazê-lo mudar de ideia.
Agora eu admirava sua força, e considerando o quanto devia ser difícil para ela aquela situação, me
senti culpado por zombar. Analisei a situação: um pai idiota, uma dívida e um iminente risco de
morte.

— Heitor, me prenda! — o homem insistiu, ainda ajoelhado — Me prenda, que posso trabalhar de
graça até meus últimos dias... mas por favor, não machuque minha filha — pausa — não machuque
minha filha... porque ela é tudo pra mim.

Ah, tudo pra você, é?

Olhei para a garota à minha frente. Era graciosa, delicada, interessante.

E era tudo para ele.

Tudo para ele.

Pus o cigarro novamente na boca, sentindo uma inquietação me queimar, até que o joguei no chão
e o apaguei com o pé. Natanael tinha razão. Sua filha não tinha culpa de nada. Ele era o responsável
por tirar a vida de meus pais e por fazer da minha um inferno, entretanto o que eu queria agora era
vê-lo sofre, apenas sofrer, e não me importava o fato de sua filha ser inocente. Queria vê-lo se
desesperar, definhar, e talvez ver a própria filha em perigo, sem nenhuma condição de fugir, fosse a
melhor maneira de lhe punir, e por isso a ideia de levar a garota embora comigo começou a parecer
boa aos meus olhos. Além do mais, Maya era atraente e sem dúvida alguma ter a sua companhia me
renderia muito mais prazer que eu poderia imaginar.

— Tem razão, sua filha não tem culpa de nada.


— Então me leve! Me deixe pagar pela dívida dessa forma. Mas deixe Maya em paz.

— E o que eu faria com um bêbado inútil como você, hã? — afastei meus pés do alcance das
mãos dele — Me diga, seu saco de bosta, o que eu faria com você? Agora levanta desse chão e seja
homem! Anda, antes que eu o mate na frente da sua filha!

Natanael resmungou e com o auxílio da garota, conseguiu se erguer. Voltei meu olhar duro para ele
e ignorei o olhar fulminante de Maya em minha direção.

— Vou matá-lo com minhas próprias mãos, Natanael, e nada vai me impedir — prometi — E
você...

— Então leve a mim! — a garota gritou de repente — Leve a mim no lugar da dívida!

— O quê?

— Maya, não! — o pai protestou.

Olhei nos olhos quase pretos da garota e tive vontade de dizer que ela não sabia com quem estava
brincando. Natanael, por outro lado, começou a choramingar enquanto suas mãos trêmulas voltavam a
agarrar meus pés.

— Não nos mate, Heitor! Não nos mate, por favor! Por favor não nos mate!

— Seja homem, merda! — eu o ergui com violência — e pare de choramingar na frente da sua
filha!

— Eu vou com você! — ela gritou.

Eu o larguei. E pensei naquela ideia de levar Maya comigo. A garota atrevida no lugar da dívida.
Era uma ideia bizarra, embora agradável. E então naquele momento algo ficou bem claro para mim:
havia ali um pai preocupado com a filha e uma filha que tentava a qualquer custo proteger seu
miserável pai. Me veio a vontade de matá-lo sem demora e acabar com todo aquele burlesco
espetáculo, mas então o pânico nos olhos de Maya me impediu de executá-lo em sua frente.

Não seria dessa vez. Eu seria muito mais inteligente se levasse tudo de precioso que ele tinha. E
ele iria sofrer.

Decidido, puxei a garota, assustando-a. Seus olhos castanhos escuros agora brilhavam em minha
direção e me surpreendi ao vê-la me encarar, apesar do medo. Ela já não tremia mais, embora eu
soubesse que estava com medo.

O pai levantou-se desesperado, mas um dos caras o interceptou, xingando.

— Não tem medo de mim? — perguntei e Maya me fitou nos olhos.

— Não.

— Ótimo. E tem razão, você me terá muito mais serventia — desci meus olhos sugestivamente em
seus seios, deixando-a apavorada com a implícita ideia.

E ver Natanael resmungar, atormentado com aquela situação, me bastava. Não precisava somar
um mais um para saber que o miserável sofreria ainda muito mais com a distância da filha, que de
uma forma ou outra pagaria pelos erros que ele, apenas ele, cometera.

— Por que não matamos logo os dois? — alguém sugeriu às minhas costas.

Ergui uma mão para que quem quer que tivesse falado aquilo se calasse. Não iria matá-la. Não
fazia sentido matá-la. E voltei a pensar na ideia de Maya me servir de uma outra maneira, de uma
maneira mais divertida e excitante.

Maya. Maya. Maya.

Garota destemida.

— O que ainda tá esperando? Me leve! — ela gritou, cheia de atitude, como se estivesse aflita
por dar fim àquilo tudo.

— Tem noção do que está me pedindo, garota?

Vi seus olhos brilharem por causa das lágrimas que agora se acumulavam em sua íris preta.
— Faço qualquer coisa pela vida de meu pai.

Eu não a soltei.

Olhei para o bêbado maltrapilha e pensei que ele não merecia a filha que tinha. Não merecia
alguém que o amasse incondicionalmente. Ele não merecia porra nenhuma, apenas punição!

Olhei para os caras.

— Vamos cair fora daqui.

— E o dinheiro?

Eu ri.

— Isso aí mal serve pra limpar a bunda.

Antes que eu a segurasse com mais firmeza, a garota correu para os braços do pai. Chorou
enquanto se despedia dele. Aguardei aqueles segundos completamente sem ação, então eu a puxei e a
levei para fora da casa. Ao alcançarmos o banco traseiro do audi, empurrei Maya para lá dentro.
Depois me acomodei a seu lado. Imediatamente atendi o celular que tocava.

— Fala, Jarbas.

— O que fazemos com o bêbado?

— Por enquanto só fiquem de olho nele. Não quero que ele saia por aí falando besteira.

Sem me despedir, desliguei o celular e voltei a guardá-lo no bolso do paletó. Dei ordem para que
o carro andasse. O beco onde Maya morava era deserto e escuro. Aprovei a ideia de não haver
testemunhas enquanto a morena chorava a centímetros de mim. Evitei olhar para ela.

— Não podem matar meu pai! Deu sua palavra! Estou aqui pela vida dele! —protestou.

— Na verdade, está pela dívida, guria. E vou matá-lo. Quer queira, quer não.
***

Ela me odiava.

A garota.

Maya.

E ainda chorava no carro. Um choro baixo, som regular, mas incômodo. Era como se seu choro
me lembrasse do quão carrasco eu era ou como se me tirasse a posição de vítima da história. Mas eu
era a vítima. Bom, tinha sido a vítima durante anos. Eu era o cara que só estava atrás do meu
objetivo, que clamava por vingança, e que não teria sossego enquanto não conseguisse obter aquilo.

O telefone tocou pela segunda vez e agradeci em pensamento por algo me livrar do resmungo
daquela morena melancólica.

— Heitor!

A voz de Theo soou do outro lado.

— Fala.

— O pessoal da transportadora chegou. Precisam que assine um documento para a liberação


das bebidas. Tentei assinar, mas disseram que é só com você.

— Ok — olhei o pulso — Peça que esperem um pouco. Vou mudar o trajeto e seguir direto para o
cassino.

— Certo... Hum, quem tá aí com você? Tô ouvindo choro de mulher.

— Não é nada — falei antes de desligar.

Olhei para Sony, que dirigia lá na frente.

— Mudança de planos, Sony. Vamos seguir para o cassino.


A garota finalmente parou de chorar. Talvez ela chorasse ainda, mas silenciosamente. Achei
melhor assim. Ela mantinha o rosto virado para a janela, o que achei ótimo porque não queria mesmo
olhar para os cornos dela e ver o quanto me odiava. No entanto eu não estava nem aí para os
sentimentos dela em relação a mim. Se ela me achava mau e insensível, ficaria assombrada com o
que eu pensava em relação ao pai dela. Estávamos quites. Além disso, fora ela quem inventara a
ideia de se doar pela dívida. Eu apenas concordara. E, pensando bem, tinha sido uma troca deliciosa.
Capítulo 7
HEITOR

— HEITOR! Preciso falar com você. Sou sua mãe! Por que tenho a impressão de que não sou
nada pra você? Não me liga, não me visita... — interrompi a voz de Nora que soava alterada e
visivelmente magoada através do aparelho antes que ela revelasse mais do que devia a todos os que
estavam no carro, inclusive Maya. A merda da mensagem de voz entrara sem mesmo eu ter me dado
conta de que ela existia, e quando vi, era tarde demais. Depois eu falaria com ela. Conversaria e
explicaria à Nora que eu a amava e que ela, sim, era muito importante para mim.

Olhando para a janela do carro, pude contemplar através do vidro molhado pela chuva que já
estávamos contornando à avenida que dava acesso ao cassino. E quando Sony conduziu o carro em
frente ao prédio da boate, um automóvel vermelho e familiar, estacionado do outro lado da calçada,
me chamou a atenção. Safira, a mulher que eu não via há muitos meses, estava ali. Não fui capaz de
controlar a irritação pelo fato de Theo não ter me avisado nada a respeito dela. Theo. Como meu
irmão estava virando um grande inútil para mim, assim como alguns dos seguranças. Peguei
novamente o celular e disquei para ele, que não demorou a entrar na linha.

— Fala, Heitor.

— Por que não me avisou que Safira está aí dentro com você?

Ele calou-se, certamente por ser pego de surpresa. Aguardei a resposta.

— Bom, porque na verdade ela não estava. Só chegou há uns três minutos depois de eu ter falado
com você. Quando terminei a ligação é que vi o carro da perua estacionar, então concluí que você a
aguardava.

— Não, há meses não me encontro com Safira e não gostei de saber que ela está aí.

— Aprenda a domar suas amantes então.

— Droga, tô entrando.

Desliguei o telefone, pensando. De fato, fazia meses que eu não procurava a mulher e talvez por
isso a presença dela me incomodasse. Não estava a fim de aturar resmungos e DR's uma hora
daquela. Vou falar sobre Safira: ela é linda. Iniciou sua carreira de modelo e logo se destacou em
muitas revistas. Só não teve uma carreira brilhante porque, segundo ela, o ciúme descontrolado de
seu marido não permitira. Apenas quando ele morreu, alguns anos atrás, é que ela se tornou esse
furacão que era, e foi então que nos conhecemos.

Safira era experiente, insaciável e discreta. Nossa química fora instantânea e nosso
relacionamento marcado por momentos tórridos e muitas idas e vindas. No entanto as coisas
começaram a mudar quando os negócios me fizeram rico demais e outras mulheres ainda mais
interessantes aparecerem, então logo Safira perdeu sua posição de única mulher na minha vida. Nem
mesmo seus ataques de ciúme me impediram de ser esse mulherengo incorrigível que todo mundo diz
que sou. Então rompemos. Mas Safira nunca ficava exatamente fora de minha vida. Tirando a mulher
da cabeça, me lembrei de que Maya estava ao meu lado no carro.

— É o seguinte, morena — disse a ela, sem olhar para sua fisionomia agora — Vou entrar na
boate e não quero saber que deu trabalho pros caras.

Ela não me encarou, mas percebi que entendera bem o recado. Afinal, não era surda. Nem burra.
Saí do audi e cerca de minutos depois já estava inspecionando todo o trabalho que os funcionários da
transportadora faziam na boate. Antes de assinar qualquer papel conferi todo o produto. Era de boa
qualidade. Provei um uísque, enquanto orientava os trabalhadores a deixarem as bebidas nos
depósitos. Quando eles saíram de lá, enfiei a mão nos bolsos da calça, à espera de Safira. Eu sabia
que ela apareceria. Theo, a essa altura, já espiava pela janela o que se passava lá fora.

— Tem uma garota no carro?

De lá onde ele estava não podia ver nada, já que o vidro dos audis eram escuros e filmados, mas
meu irmão tinha escutado a voz de Maya pelo celular e eu sabia que queria plantar verde para colher
maduro. E pensando bem, eu ouvira sua pergunta, mas não estava a fim de lhe responder. Segui para
o hall que dava acesso o cassino e atravessei o salão mais luxuoso que conhecia. Aliseis as toalhas
vermelho-sangue das mesas. Por um momento esqueci Safira. Por um momento esqueci também
Maya.

— Uma namorada nova? — Theo indagou atrás de mim. Pelo visto ainda não tinha esquecido a
garota do carro.
— Nada de garotas.

— Me engana que eu gosto.

— Como sempre mulherengo, não é, Heitor? — a figura imponente e vistosa apareceu diante de
meus olhos, me fazendo voltar-se para a mulher deslumbrante que estava à minha frente. Loira, alta,
como sempre elegante, cabelos presos num coque perfeito, toda de preto, até as belas luvas.

— Safira.

— Como vai, Heitor? — forçou um sorriso nos lábios vermelhos — Bem, além de mulherengo,
sempre impecável e perfeito.

Theo pigarreou, revelando constrangimento diante de um ex-casal de amantes. Sempre conhecera


Safira, embora os dois nunca tivessem parado para conversar mais sério e para virarem grandes
amigos.

— Hum, acho que vou sair e deixar vocês à vontade.

— Oh, não, tudo bem, não vou demorar — Safira disse, para a minha surpresa — Não vou
demorar. Tenho que terminar de organizar algumas coisas a tempo da convenção no clube amanhã de
manhã. Então... só quero dizer, Heitor, que estou de volta na cidade. Estava em Londres. Uma
temporada. Não me adaptei ao clima e por isso voltei mais cedo — pareceu sem graça — Bem, é
isso. Se qualquer dia quiser conversar, sabe onde me procurar.

Vi Safira se afastar e tão logo ela sumiu de vista detectei um sorrisinho debochado no canto da
boca de meu irmão. Não me segurei e então liberei meu riso.

— Que é? Inveja das mulheres que pego?

— Até teria inveja se você não vivesse sempre tão enrolado com elas — encheu duas taças de
vinho. Me entregou uma.

— Devia ter me avisado sobre ela — bebi um gole da taça.

— Já disse, ela chegou logo após eu desligar o telefone. Não posso fazer nada se não sabe
controlar suas amantes.

— Ela é passado.

Consultei a hora no pulso e vi que passavam de meia noite. Ignorei o que Theo começou a falar
sobre bebidas e mulheres enquanto observava o salão principal do cassino. Voltei a olhar para o que
os caras da transportadora tinham feito minutos atrás, que era a alocação das bebidas nos depósitos.
Depois de tudo fiscalizado, tranquei todas as portas.

— Ainda não me falou sobre a garota que estava chorando em seu carro. Fiquei curioso. Você não
costuma machucar mulheres. O que tá havendo?

— Algumas garotas choram por qualquer coisa, e não podemos fazer nada a respeito —
massageei as toalhas vermelhas, tentando driblar a curiosidade de Theo — Essas toalhas estão sujas.
Precisam ser trocadas. É melhor ligar pro serviço de limpeza amanhã e resolver isso.

Theo cruzou os braços, os pés e eu soube que ele não terminaria aquela conversa. Não ainda.
Igual a mim, estava vestindo uma calça preta e uma camisa social branca.

— Você manda, chefe. Vai pra casa?

— Já tô lá — mas então pisquei, confuso. Merda. Se eu iria para casa, para aonde a garota iria?
Bem, ainda não tinha pensado nisso, mas era óbvio que seria minha hóspede. Na verdade, não fazia
parte dos meus planos levá-la comigo. E agora eu me perguntava onde a deixaria. O que faria com
aquela morena destemida?

— Que foi? Deixei Heitor Romano sem palavras?

— Desde pequeno tem um grave defeito, Theo: falar demais.

Riu.

— E Nora sempre dizia que você escondia as coisas.

— Sua curiosidade ás vezes me mata.


— Bom pros seus inimigos saberem disso — zombou.

— É sério, pare de cuidar da minha vida e vá cuidar da limpeza das toalhas — segui o caminho
de volta — E sonhe com uma ruiva gostosa!

— Prefiro morenas! — gritou de volta enquanto eu caminhava em direção à saída.

Voltando a colocar o terno na cabeça por causa da garoa que descia pelos céus cinzentos de São
Paulo, olhei para os dois lados antes de atravessar a rua, até caminhar para o carro de onde eu saíra
meia hora atrás. E onde a garota estava sentada. A morena perturbadora.

Maya.

Nossas mãos se tocaram rapidamente e logo senti as dela se afastarem de mim, como se eu fosse
algum tipo de doença contagiosa. Espiei sua fisionomia, Maya agora estava olhando para a janela,
tentando me ignorar. Parecia mais calma, mas eu sabia do seu ódio profundo por mim. Pensei em
dizer algo reconfortante para ela, mas não fazia ideia do quê. Melhor não. Melhor manter a boca
fechada. De repente um barulho de celular irrompeu no carro. Percebi que era o meu.

— Alô?

— Ei, bonitão — a voz grave de Safira entrou na linha — achei que fosse perceber que eu
precisava ver você esta noite. Achei que fosse me ligar ou fosse vir atrás de mim.

Prendi um riso, pensando numa desculpa bem elaborada para dar a ela. A mulher sempre fora
pegajosa e mesmo assim nunca a deixei porque gostava muito das nossas trepadas, entretanto não
estava mais a fim de uma transa fora de hora com ela.

— Hoje não vai dar, Safira. Tenho coisas pra resolver. Quem sabe uma outra noite?

— Nunca esqueci você, Heitor, e nunca vou esquecer. Sonhe comigo, gostoso. Vou fazer isso
com nós dois.

Desliguei o celular e o guardei no bolso do paletó. O novo silêncio no carro me fez voltar a
pensar na presença de Maya. Eu poderia até tá zoado, mas ficar perto dela estava me agradando. Eu
gostava de seu cheiro, de seus olhos sérios me olhando, de quase tudo na garota. Pensei em provocá-
la, mas resolvi ficar na minha.

Quando o carro estacionou na mansão, meia hora depois, segurei Maya pelo braço e a conduzi
pela casa. Eu já não queria mais machucá-la. Seu braço era bem mais fino que o meu, bem como todo
o seu corpo era pequeno. Minha mãe sempre me ensinou a ser cavalheiro com as garotas e eu me
envergonhava de ter sido um animal com ela. Conduzi a morena até o andar de cima, tendo o cuidado
de não voltar a ser um ogro.

— O que vai fazer comigo? — indagou, insegura — Onde estou? Que lugar é esse?

— Sem perguntas.

Ela se calou e logo alcançamos um dos quartos de hóspede.

— É aqui que vai ficar — informei quando entramos — Regra número um, morena: nada de
perguntas. Se já sabe quem eu sou, então vamos dispensar as apresentações. Regra número dois: vai
tentar ser gentil e fazer de sua estada uma coisa agradável aos meus olhos. E regra número três: Nada
de me desafiar — fui até a janela e a fechei. Em seguida comecei a organizar as coisas do quarto, me
agachando, arrumando, tirando outras coisas do lugar, desligando tomadas. Não queria deixar nada
que dessa a Maya condições de planejar uma possível fuga.

— Vou ficar isolada aqui?

Não respondi.

— O que vão fazer com meu pai? Por favor, só me diga que não vão matá-lo. Precisa cumprir sua
palavra.

Eu a ignorei. Meus olhos estavam concentrados numa extensão de tomadas. Eu a enrolava em


volta do braço.

— O que vão fazer com ele, seu filho da puta? — gritou, me surpreendendo.

Quê?

Parei.
Soltei a tomada e a estudei. Ela estava pálida e nervosa, com os olhos bem abertos. Seus lábios
rosados estavam trêmulos. Ou ela era mesmo muito corajosa ou então era uma idiota. Levantei.
Maya, aparentemente arrependida, recuou dois passos.

— Olha pra mim, garota!

Avancei dois passos e colei meu rosto no dela.

— Olha pra mim, cadela, que eu tô mandando! Acha mesmo que não posso fazer o que quiser com
você? Pois bem, eu posso fazer. Sou o dono dessa porra toda, sacou? E você é só uma garotinha
indefesa. Então nada de berros. Isso não vai funcionar comigo.

— Disse que não ia matá-lo — murmurou, os olhos acusatórios sobre mim — Por isso que vim no
lugar... foi o combinado. Pensei que tivesse palavra.

Voltei a me afastar dela.

— Eu sempre mantenho minha palavra — falei.

Sem dizer mais nada, abri a porta e passei por ela. Aquela estranha tinha me tirado do sério.
Passei a chave na fechadura pelo lado de fora e percorri de volta o caminho até o primeiro andar. Eu
precisava comer alguma coisa e depois precisava de um banho. E talvez minha relação com a
prisioneira começasse a ficar melhor amanhã.

***

Passara de uma da manhã e eu não conseguia pegar no sono. Com a cabeça pousada na poltrona
do escritório e um copo de uísque na mão, divaguei sobre todos os acontecimentos daquela noite. Eu
tinha na mente a ideia de me livrar de Natanael, mas então amarelei e acabei voltando para casa com
a filha dele na minha cola. Ela estava lá em cima, num dos quartos, numa das minhas camas, como
uma simples visita, todavia não era minha hóspede — era minha prisioneira. Cerrei os olhos e me
lembrei de suas mãos delicadas tocando os pães na lanchonete. Droga, eu tinha gostado dela!

Abri os olhos e me desencostei da poltrona antes de ligar o aparelho que me dava todas as
imagens das câmeras de segurança. Selecionei o quarto onde Maya estava e tão logo a imagem se
abriu vi a garota deitada sobre a cama, chorando. Inspirei fundo, me sentindo mal por isso. Voltei a
encostar na poltrona, pensando no que fazer. A garota estava ali contra a própria vontade. Aquilo
nunca tinha acontecido comigo.

Olhando de longe para a tela que me mostrava uma Maya ainda deitada com o corpo balançando
por causa dos soluços, voltei a pensar em como eu a tinha visto na lanchonete. Ela tinha me chamado
atenção. Não como uma atração arrebatadora, daquelas que eu tinha e que horas depois estava com a
mulher na cama. Mas tinha sido uma coisa bacana, diferente, mais terna. Maya à princípio não
despertou uma atração sexual em mim, era algo além disso. Uma admiração. Gostara do modo como
ela se concentrava nos pães, como suas mãos pequenas e trêmulas tocavam-nos e como seus olhos
escuros brilhavam como se pedissem ajuda. E eu só não imaginava que ela seria a filha de quem era.
Como eu poderia imaginar algo com ela quando não suportava o sangue que lhe corria nas veias?

Inferno.

Desativei a cena de Maya e desliguei o aparelho. Era melhor deixar aquela garota para lá. Em
seguida deixei o escritório. Passei pelo hall antes de encontrar a escada. Já no segundo andar, passei
pelo quarto onde Maya estava e pensei em lhe dizer alguma coisa. Toquei a porta, como se pudesse
sentir seu calor humano através dela. Me senti um idiota. Segui para o meu quarto e lá tirei a camisa.
Diante do espelho, alisei as poucas sardas marrons nas minhas costas. As garotas gostavam. Eu tinha
uma tatuagem no braço. Um coração ferido. Troquei a calça preta por um moletom da mesma cor e
me deitei na cama. Com a mão sobre a testa, tentei pensar em algo que não fosse a tal garota
hospedada no quarto. Precisava tirar aquela morena ardente da cabeça.
Capítulo 8
MAYA

HEITOR ROMANO era bonito.

Isso. Mau, mas bonito. Tipo garoto-propaganda de comerciais de TV.

E agora mesmo eu o via saltar do carro.

Loiro, alto, charmoso, pinta de modelo ou de algum artista. Não parecia bandido. Não combinava
com a profissão de mafioso, se é que aquilo era profissão. Acompanhei seus passos. Eu o vi ajeitar o
terno preto sobre a cabeça para se livrar da chuva. Eu o vi atravessar a rua estreita e logo em seguida
entrar na boate. Outros homens entraram depois dele. Notei um caminhão de bebida estacionado do
lado de fora. Olhei para o vidro de trás e vi outros carros, todos pretos e iguais àquele onde eu
estava, exceto um.

No carro em que eu estava tinha um sujeito no volante e outro no lado carona. Os dois fumavam
cigarro e trocavam poucas palavras sobre bebidas e sobre o quanto queriam uma cerveja gelada,
mesmo numa noite gélida como aquela.

Eu não tinha mais medo. Por incrível que parecesse, não sentia medo, não me dava ao direito
disso. Ajeitei minhas pernas no estofado macio, que mais parecia poltrona de uma casa de tão
confortável, e evitei pensar no meu pai e no desespero que vira em seu semblante quando fui embora.
Evitar pensar nele me impedia de mergulhar na tristeza. É preciso ser forte, não fraca. Inspirei o ar
com força e em seguida o soltei pelo nariz. O perfume másculo de Heitor reunia sândalo e almíscar e
refrescava minhas narinas.

Olhei para a porta do carro por onde o loiro perigoso saíra segundos atrás e constatei que seria
suicídio tentar qualquer coisa. Seus capangas certamente não me poupariam. Olhei novamente para
os caras no banco da frente e eles iniciavam uma conversa sobre corrida de cavalos. Pelo vidro da
janela do meu lado reparei a noite nublada que estava fazendo lá fora. Pensei em Lucas. Onde estaria
meu irmão agora e o que ele estaria fazendo? Bom, eu só esperava que ele estivesse bem.

Descansei a cabeça no material duro que ficava em volta da janela e esperei que novos minutos se
passassem. Fechei os olhos, aspirando aquele aroma de carro novo, aparentemente recém comprado.
Me recusei a ficar pensando que estava sob a custódia de um mafioso, que na verdade eu tinha me
oferecido para ele, e que eu seria o que ele decidisse que eu fosse. O que ele quisesse. Bloqueei esse
pensamento ou então ficaria louca. O importante é que a dívida estava paga e que tudo ficaria bem, se
todos respeitassem o combinado. Todos: Heitor e eu.

Seja forte, Maya! Forte!

Heitor saiu da boate justamente no instante em que eu olhei para a janela. Nossos olhos não se
encontraram, para o me alívio, e pude observá-lo novamente. Alto, loiro, forte, mas pensei no quanto
aquela era cruel e frio. Vi Heitor mexer o terno e erguê-lo novamente até a cabeça para se proteger
da chuva que estava agora ainda um pouco mais forte, enquanto olhava para os dois lados da rua.

Tão logo atravessou, já estava acomodado ao meu lado. Seu cheiro novamente perfumou o
ambiente e reavivou minhas emoções. E comecei a ter medo de me acostumar com aquele cheiro que
vinha dele.

Me afastei um pouco, tentando não me concentrar no perfume bom. Nossas mãos se tocaram
rapidamente, então me afastei, virando o rosto. Ele pareceu olhar para mim, pude sentir de canto de
olho, pude sentir também sua respiração, mas fiz de conta que nada me incomodava. Detestava a
ideia de ser observada por ele. Talvez Heitor não tivesse gostado do fato de eu ter me virado. Azar o
dele! Talvez me maltratasse ou me matasse. Dei de ombros em pensamento. Talvez o carrasco me
violentasse... e isso seria o fim. Mordi os lábios, sabendo que os machucaria de nervoso, tentei
deletar aqueles pensamentos ruins e me concentrar em sobreviver. Apenas sobreviver.

O telefone tocou e Heitor o atendeu. Pela conversa, era uma mulher. Pensei se ele era delicado e
gentil com elas. Pelo jeito era só furioso comigo. A ligação fora rápida e logo o silêncio predominou
outra vez no carro. Um dos capangas da frente puxou uma conversa com o chefe e Heitor desistiu de
me olhar. Me senti mais segura com isso, longe de seu alcance, embora agora fosse toda dele.

Quando o carro entrou, cerca de uma hora depois, numa mansão cercada por um lindo jardim,
percebi que era fim de linha. Por alguma razão voltei a ficar nervosa. Estava claro que estava na casa
de Heitor e que agora eu saberia os planos que ele tinha para mim. Será que eu morreria? E se sim,
como seria minha morte? Rápida? Lenta? Dolorosa? Mordi o lábio inferior novamente. Não estava
preparada para morrer. Nunca estaria.
— Chegamos — a voz autoritária murmurou antes de sairmos do carro.

Assim que meus pés tocaram o chão de paralelepípedo inacreditavelmente limpo, notei o jardim
bem cuidado e muros cercados por pedras. A mansão era moderna e não havia como eu me localizar,
visto que uma mão firme de longos dedos segurava meu braço, me obrigando a andar. Heitor me
conduziu até o interior da bela casa e neste instante ergui os olhos para ele.

— O que vão fazer comigo? Que lugar é esse?

— Sem perguntas.

A sala era bonita, os cômodos por onde passávamos me faziam lembrar da vida ostentante que
aquele cara obviamente tinha. Me obrigou a subir uma longa escada decorada com tapete vermelho.
Ele era forte. Tão forte, que com uma mão me segurava e me carregava até o segundo andar sem
dificuldade. E não me machucava. Apesar de não ser gentil e de me segurar com firmeza, não me
machucava, o que era uma coisa boa, pois não era tão bruto quanto eu imaginava. E era como se ele
me carregasse e eu apenas flutuasse. Era difícil acompanhar seu passo.

Alcançamos um hall tão logo passamos por uma porta de madeira escura. Olhei para a ampla
cama, depois voltei os olhos para Heitor. Tinha olhos azuis. Mais claros do que eu me lembrava. Os
cabelos de um loiro escuro num penteado moderno, num topete bonito. E ele era viril. Atraente e
viril. Não dava para ver seu corpo por causa do terno preto, mas ele era malhado. Tinha todo jeito de
caras preocupados com a estética.

— É aqui que vai ficar. Regra número um, morena: nada de perguntas. Bem, já deve saber quem
eu sou, então esse detalhe dispensa apresentações. Regra número dois: vai tentar ser gentil e vai
tentar fazer de sua estada uma coisa agradável aos meus olhos. E regra número três: nada de me
desafiar — foi até a janela e a fechou. Segui seus movimentos bruscos, tentando não parecer tão
intimidada. Estremeci com sua força. Achei que a janela fosse se quebrar, mas Heitor apenas a
fechou. E de uma forma magistral. Pisquei os olhos, perseguindo seus passos. Agora ele estava
caçando várias coisas do quarto, se agachando, arrumando, tirando outras coisas do lugar, desligando
tomadas. Ao que parecia, queria manter tudo fora do meu alcance.

— Vou ficar isolada aqui?


Não respondeu.

Engoli em seco.

— O que vão fazer com meu pai? Por favor, só me diga que não vão matá-lo. Precisa cumprir sua
palavra.

Ele me ignorou. Seus olhos estavam concentrados numa extensão de tomadas. Ele a enrolava em
volta do braço musculoso. Aquilo fez meu sangue subir.

— O que vão fazer com ele, seu filho da puta?!

Ele parou.

Soltou a tomada lentamente e me olhou. Um olhar indiferente e que revelava desprezo. Levantou-
se e eu recuei dois passos, mas logo ele avançou em mim.

— Olha pra mim, garota!

Virei o rosto, agora realmente apavorada.

— Olha pra mim, cadela, que eu tô mandando! — bradou.

Avançou e colou o rosto no meu.

— Acha mesmo que não posso fazer o que quiser com você? Pois bem, sabe quem sou? Sou o
dono dessa porra toda e você não passa de uma garotinha indefesa. Então nada de berros. Isso não
vai funcionar comigo.

Quase chorei, mas tentei ser mais resistente. Não só porque Heitor parecia furioso, mas porque
também eu não sabia como ficaria a situação de meu pai. E se Heitor decidisse descumprir o acordo?

— Disse que não ia matá-lo — murmurei — foi por isso que vim no lugar da dívida... foi o
combinado. Pensei que tivesse palavra.

Ele voltou a se afastar, para meu completo alívio.


— Eu sempre mantenho minha palavra.

Saiu pela porta e a bateu com força por fora. Ouvi o barulho da chave passando pela fechadura,
em seguida ouvi seus passos apressados se afastarem pelo corredor. Seu delicioso cheiro, todavia,
ficara no quarto, mais uma vez avisando que iria me torturar.

Eu estava presa.

Eu era agora a escrava dele.

Me deitei em posição fetal, só agora permitindo que os soluços saíssem livremente e castigassem
todo o meu corpo. Pensei nos mafiosos voltarem para matar meu pai, pensei neles destruindo toda a
minha família e depois tacando fogo na nossa casa. Pensei na ideia de ficar presa a vida inteira e no
tormento que seria viver sob o domínio de um criminoso. Pensei na droga que era o vício de bebida e
na droga que era conviver e amar uma pessoa alcoólatra, pensei que não acordaria mais viva. Pensei
que Heitor Romano era lindo por fora, mas terrível por dentro.

***

Na manhã seguinte a porta se abriu, me despertando de um terrível sono e me revelando alguém.


Com um salto, me refugiei no canto da cama e afastei mechas de cabelo do rosto para ver melhor
quem estava ali. O desconhecido sorriu para mim. Ele não era Heitor. Tinha cabelos e olhos
castanhos e me estudou. Seu rosto não era tão bonito como o do loiro perigoso, todavia seu
semblante era mais sereno. Ele usava terno e parecia um executivo. Não era assustador. Arriscou um
novo sorriso.

— Bom dia, senhorita. Dormiu bem?

O quê?

Como ele achava que eu dormira?

Não respondi.

— Não vai falar comigo?


— Quem é você?

Ele avançou um passo.

— Theo. Irmão do carinha que te prendeu aqui.

Irmão?

Me afastei ainda mais um pouco, até sentir minhas costas tocarem a parede fria. Se era irmão do
loiro e estava ali, então era porque também não valia nada.

— O que você quer?

— Nada em especial. Vim só ver como você está.

— Como vê, seu irmão ainda não me matou. Aquele troglodita.

Ele gargalhou, me fazendo sentir um bicho exótico que estava preso numa gaiola do zoológico.
Olhou para trás, como se conferisse se alguém vinha às suas costas.

— Ainda bem que ele não tá aqui pra escutar seu elogio. Aliás — coçou o queixo antes de olhar
para o alto, um ponto acima da janela — Tenho más notícias: há câmeras por toda a casa, inclusive
neste quarto. Sugiro que seja mais educada.

Segui o dedo dele e vi que, de fato, havia uma câmera escondida. Bem, não tão escondida assim.

— Onde ele está? Por que mandou você aqui? Não tem coragem de me enfrentar, então mandou o
irmãozinho?

Ele voltou a rir. E eu não gostava de quando me avaliavam. Engoli em seco e me arrependi de ter
sido tão desaforada. Me senti estranha. De repente alguém surgiu atrás do moreno. O loiro. Era ele,
Heitor. O loiro perigoso. Se não fosse tão mau, eu até morreria de amores por ele. Heitor divisou o
olhar entre mim e o irmão dele.

— Que tá pegando aqui?


— Nada. Só tô dando as boas-vindas à convidada.

Heitor passou pelo irmão e me fitou.

— Bom dia, malagueta. O café tá pronto. Quero que desça.

Malagueta?

Ah, vá pro inferno!

— Não quero café nenhum — vi o irmão do loiro fazer um gemido de deboche. O semblante do
Heitor logo se fechou, mas seus olhos azuis brilhantes continuaram fitos em mim. Ergui o queixo. Não
era só porque estava ali como prisioneira que me atiraria no chão para que ele acabasse de pisar em
mim. E se ele estava disposto a me matar, então que me matasse de uma vez!

Mas ao contrário de me apontar uma arma, Heitor estreitou os olhos e pareceu me estudar.
Pareceu pensar em alguma coisa para dizer. Pensei que fosse explodir, que fosse berrar, que fosse
xingar um monte de palavrão e me obrigar a descer, todavia, para a minha grande surpresa, apenas
voltou a sorrir. Um sorriso zombeteiro, que agora me lembrava o cara que ele fora na lanchonete. A
confusão embaralhou minha mente. Pisquei. Ele não devia ser tão mau como parecia...

— Sabe — falou, a voz perigosamente suave — Se não quer tomar café comigo, então que se
foda. Morra de fome.

Girou nos calcanhares e saiu do mesmo modo como entrou, silenciosamente.

— Delicado ele — o irmão zombou e me perguntei o que ele ainda estava fazendo parado ali. Por
que não saía também?

Ajeitei meu rosto entre os joelhos e me escondi. Queria ficar sozinha. Queria definhar sozinha e
não ter que olhar para ninguém. Se era para morrer, que a morte fosse solitária e silenciosa. E, de
preferência, sem plateia para me assistir.

— Acho melhor não desafiá-lo — Theo piscou — Ele não costuma prender garotinhas indefesas,
mas não é bom cutucar bicho com vara curta. E talvez fosse bom dançar conforme a música.
Girou nos calcanhares também, assim como o loiro fez anteriormente, e saiu. Sozinha, pensei no
assunto. Pensei no que o irmão de Heitor falara sobre dançar conforme a música e então uma luz
clareou minha mente.

As coisas poderiam não ser assim tão ruins se...

... se eu fosse mais esperta.

Eu queria ir embora, queria voltar para casa. E talvez precisasse entrar no jogo de Heitor. Talvez
precisasse ser mais agradável com ele. Pensando assim, deixei a cama bagunçada e pensei no que
poderia fazer para me manter viva. Eu devia tomar café com ele lá embaixo. Devia também agir com
menos irritação. Devia lavar o rosto e ajeitar os cabelos... não para tentar seduzi-lo... claro que não.

Eu não tinha escova de dentes...

Não tinha minha bolsa, nem tinha levado nada para a casa de Heitor. Não podia ficar sentada na
cama esperando minha vida inteira passar, ainda que minha vida inteira se resumisse a apenas mais
alguns dias.

O quarto, agora eu via melhor, era bonito e másculo. Tão másculo como o dono dele. Os móveis
tinham o tom escuro e sóbrio, nada exagerado. Havia uma cama confortável, armário alto e grande,
com gavetas e várias repartições. Havia um tapete azul escuro com tons cinza no chão e uma
televisão LED enorme em frente à cama. As janelas estavam fechadas. Tentei espiar alguma coisa lá
fora, mas era impossível.

Atravessei o quarto à procura da suíte. Lá fiz minha higiene pessoal do jeito que consegui,
lavando a boca com pasta dental. Já de volta ao centro do quarto, encarei a porta e virei a maçaneta.
Ela se abriu como num passe de mágica. Bem que eu não tinha ouvido o barulho de chave quando o
irmão de Heitor saiu. Provavelmente eles ainda me esperavam para o café. Empurrei a porta com
cuidado. Não vi ninguém pelo corredor, mas era óbvio que tinha câmeras por ali. Caminhei em
direção à escada, mas ao chegar lá, engoli um grito de espanto.

Alguém estava lá embaixo, parado na base da escada.

O loiro.
Heitor.

Tinha os pés cruzados de uma forma máscula e elegante. Era como se estivesse me esperando
descer. Petrifiquei e pensei.

O que, afinal, ele estava fazendo ali?


Capítulo 9
HEITOR

— QUE GURIA ERA AQUELA?

Descendo as escadas de mármore de dois e dois degraus, pensei no que tinha acontecido segundos
atrás e no modo como Maya tinha me desafiado.

Ela tinha me desafiado!

Quem aquela garota abusada pensava que era? E eu estava sendo tolerante com ela! Estava
tentando não descontar toda a minha fúria no raio dos cornos dela. Mas ao que parecia, a guria queria
mesmo dificultar as coisas. Então veria o que era bom para a tosse!

Maldita morena estúpida.

Maldita morena estúpida e tinhosa!

E ardente!

Alcancei a sala de estar, admitindo a mim mesmo a minha derrota. Pelo menos tinha sido mais
seguro ter saído do quarto antes de iniciar uma discussão com ela. Eu não devia começar a explodir.

Segui o caminho, pensando que se tinha uma merda que eu aprendera ao longo daqueles anos no
mundo da máfia era que um bom líder nunca perdia o controle por qualquer coisa, principalmente por
causa de uma garota. E eu não era o cara que era, não tinha alcançado aquela posição para que um
dia uma garota folgada e qualquer me colocasse à prova. Maya era apenas uma mocinha atrevida e
malcriada que fora trazida praticamente à força por mim e por isso estava revoltada.

Bem, ela tinha suas razões. Não devia ser nenhum pouco agradável ser obrigada a ficar com
alguém. Muito menos com um cara como eu. A droga é que não podia nem condenar a garota por
aquele seu mau humor, mesmo não gostando de ser confrontado como ela me confrontava.

Arranquei uma garrafa de uísque do bar e preenchi o copo com duas doses amarelas. Não devia
estar sendo fácil para ela. Merda. E Maya não saía da minha cabeça. Aquela coisinha malcriada.
Engoli o uísque com uma só golada. E me convenci de que não valeria a pena gastar minhas
energias com a garota. Tinha mais coisa a fazer. Abandonei o copo vazio em algum móvel da sala e
segui por um outro corredor que terminava na cozinha. Ouvi uma voz agradável de lá, uma voz que
me acalmava um pouco.

Carla estava arrumando as coisas na imensa despensa enquanto cantarolava uma canção serena.
Uma que eu não conhecia.

— Bom dia, Heitor!

— Oi, bom dia.

Fui até a pia enquanto ela parecia lutar contra vários potes grandes de mantimentos. Havia uma
toalha de mesa em sua mão direita e um pano de prato na outra. Ás vezes eu tinha tanta coisa na
cabeça que até esquecia os dias que Carla aparecia na casa.

— A mesa do café tá pronta — informou — Quer que eu prepare mais alguma coisa?

— Não, obrigado, tudo bem — dei um sorriso gentil, me lembrando da vida complicada que
aquela mulher tinha — Como andam o marido e os filhos?

O marido dela, Cauê, ficara paraplégico desde que sofrera um acidente de moto anos atrás e os
dois filhos que o casal tinha eram pequenos e agora só contavam com a mãe. Garantir-lhe o emprego
foi ideia de minha mãe e algo do qual nunca me arrependi.

— Ah, estão todos muito bem. Cauê lhe mandou um forte abraço. As crianças estão animadas com
o passeio que vão ter esta tarde na escola.

— Ah, legal. Bom, então neste caso pode ir pra casa ficar com elas. Não quero que Cauê pense
que estou explorando a esposa dele.

— Ah, bobagem, ele é muito grato a você, Heitor. Se não fosse por sua ajuda e a de Nora só Deus
saberia como estaríamos vivendo agora.

— Diga a ele que está tudo bem. E, sério, pode ir. Eu sei me virar aqui em casa.
— Posso antes preparar alguma coisa pra deixar pro almoço... Ah! O serviço da lavanderia vai
passar depois do café e a passadeira acabou de me entregar todas as roupas que faltavam. Mas ainda
posso fazer muita coisa antes de ir. Tem certeza de que não precisa de nada?

Lembrei da garota que estava no quarto. Maya. Ela precisava de roupas.

— Bom, talvez possa me ajudar com alguma coisa. Hum, estou com uma hóspede — pigarreei —
Sabe como é, né? Ela passou a noite aqui e só está com a roupa do corpo...

— Ok, vou resolver isso num instante. Das coisas que a lavanderia deixou deve ter alguma coisa
que caiba nela.

— Pode encontrá-la depois do café. Ela tá no quarto. Se chama Maya.

— Certo, enquanto isso vou organizando a limpeza do quarto.

Carla saiu e pensei no quanto ela seria uma boa companhia para Maya, se a morena fosse mesmo
ficar mais algum tempo do que eu planejava na minha casa. Carla era uma mulher íntegra e gentil. E
confiável. Devia ter uns trinta e poucos anos, mas tinha uma sabedoria que poderia dar inveja à
minha avó. Ela trabalhava para mim havia quase cinco anos. Se orgulhava de se intitular minha
governanta. Não era exatamente isso, mas eu não fazia questão de corrigi-la.

Assim como Diogo Del Rei, não curtia esse lance de ter gente entrando e saindo o tempo todo da
minha casa, exceto os mais íntimos. Contava a dedo as pessoas que frequentavam a mansão. Carla
era uma delas. Organizava todo o trabalho doméstico, mandava as roupas para a passadeira, para a
lavanderia, contatava o serviço de limpeza e cuidava pessoalmente da cozinha. E não trabalhava todo
dia. Apenas duas vezes na semana. Além dela, eu tinha um outro funcionário que também não tinha
nada a ver com a máfia: o João, que cuidava do jardim e da parte exterior da casa.

Voltei à sala de jantar, onde encontrei tudo arrumado e um manjar à minha espera. Aquela imagem
abriu meu apetite e puxando a cadeira para me sentar, não perdi tempo. Era sempre bom tomar o café
pela manhã na minha própria casa. Muitas vezes alguma garota seminua descia as escadas e logo se
sentava em minha companhia. E depois que se alimentava, eu mandava alguém a levar para casa e
depois disso nunca mais a procurava. Ás vezes ainda rolava uma segunda ou terceira saída. Assim
que parti o pão, vi um vulto na porta, me revelando Theo.
— Uma mesa tão farta pra um cara só, que desperdício — apoiou as mãos numa cadeira de
madeira e sem esperar ser convidado, se sentou nela. Além de meu irmão, era meu contador e o
responsável por boa parte da administração dos cassinos, e, obviamente, tinha acesso à minha casa e
aos meus negócios. Não a tudo, mas à boa parte das coisas que eu controlava.

Não éramos irmãos de sangue, entretanto tínhamos sido criados juntos desde que Nora nos adotou,
e isso ocorrera logo após eu perder meus pais. O negócio é que Theo e eu sempre nos demos bem,
embora fôssemos diferentes em vários pontos. Em primeiro lugar: ele era mais sereno e manso que
eu. Nora sempre nos dizia: Theo, você é carinhoso e sensível; Heitor, você é atencioso e admirável.

Levei o copo de suco à boca, pensando naquilo. Também tínhamos um outro irmão de criação. O
caçula tinha chegado com apenas cinco anos de idade e era o xodó da casa.

— Tô preocupado com você — Theo falou de repente, me fazendo fitá-lo.

— É mesmo? Por quê?

— Tá acontecendo alguma coisa estranha, só ainda não sei o que é.

— Estou bem, relaxa — mastiguei e não contive o riso vendo-o todo alinhado. Quem costumava
ficar daquele jeito era eu e não Theo.

— Tá rindo de quê? — perguntou, partindo um pão.

— Você todo arrumadinho já pela manhã. Que foi? Vai a algum casamento?

— Só se for o seu — retrucou, provando o pão — Na verdade, você sabe, não faço tanto sucesso
com as mulheres como você faz. Estou pensando em andar conforme a sua semelhança.

— E o que aconteceu com a espanhola dos lábios vermelhos? Penélope era o nome dela, não?

— Foi só um lance casual.

— Você estava vidrado nela.

— Ah, não venha mudar de assunto. Tô falando de você. Suas atitudes também têm me
surpreendido. Ainda não engoli essa história da garota lá em cima. Nada me tira da cabeça que é a
mesma de ontem. A que estava chorando no seu carro.

Levei o copo de suco novamente aos lábios, agora sério, pensando que não estava a fim de falar
sobre Maya ou sobre a dívida do pai dela. Nem com meu irmão.

— Quem é ela, Heitor? Abra o jogo.

— Uma garota qualquer, já disse. E ela só tá de passagem.

— Ah, qual é, não vem com essa. A princípio achei que fosse uma garota da noitada, mas o jeito
como ela nos recebeu deixou muito claro que tem ódio mortal de você. O que naturalmente é
estranho, afinal, sempre faz sucesso com a mulherada.

— Talvez essa não tenha caído nos meus encantos.

Tomei mais um pouco de suco. Tinha contado aquela manhã parte daquela história para Theo
quando ele chegou, mas tinha também ocultado muitas coisas importantes, especialmente as minhas
razões para ter trazido Maya para dentro de casa. Na verdade, não era meu plano trazê-la, aquilo
acabou tomando proporções não planejadas.

— Me pediu pra ir até lá em cima e convencer a garota a tomar café, mas não me explicou sequer
porque a trouxe pra cá.

— Talvez porque não seja da sua conta — mastiguei um pedaço de maçã — Já disseram que você
é chato pra caralho?

— Sou seu braço direito, seu contador e além disso, seu irmão. Tem alguém mais confiável que
eu? O que tá pegando? O que essa garota fez? Ela não tem cara de criminosa.

— Certo — limpei a boca com o guardanapo de pano, Nora sempre nos ensinou a fazer isso ao
invés de limpar na manga da camisa — Ela não fez porra nenhuma, a garota é inocente. O problema é
o pai dela. O infeliz é que fez uma borrada. E me deve uma grana. Estava querendo pegar o canalha
há muito tempo.

Theo permaneceu em silêncio, me esperando continuar.


— Mas a garota entrou em meu caminho — vi Theo me fitar — o fato é que fui ontem à noite na
casa do miserável, decidido a puni-lo, mas a filha dele se pôs na frente, chorou, esperneou, gritou,
implorou para que eu a trouxesse no lugar da dívida. Foi essa a merda. Satisfeito?

— E você, muito bonzinho, atendeu a solicitação da moça — desdenhou — Tá, mas isso pode dá
problema, não preciso avisar.

— Sei o que estou fazendo. E ainda estou pensando no que fazer com a garota. Pra falar a
verdade, só quero que se empenhe nos assuntos da boate e do cassino. Do resto pode deixar que eu
cuido.

— E o pai dela? Não acha que pode dar com a língua nos dentes? Não esqueça que é alcoólatra.

— Está sendo vigiado 24 horas. É alcoólatra, mas não é nenhum idiota. E pra falar a verdade,
aquela garota é muito mais macho que o pai e o irmão dela juntos.

— Sei quem é o bêbado. Mas não consigo entender porque concordou em trazer a filha dele pra
morar com você.

— Vi como o filho da puta ama essa garota, Theo. Quero ver o miserável sofrendo e não apenas
morrendo. Quero que ele chore e passe todos os dias e noites sentindo como é ruim a sensação de
não ter mais as pessoas que você ama por perto, como é ter a sensação de que eles não vão voltar
mais.

Vi um círculo se formar em seus lábios e seus olhos castanhos se arregalarem. Acho que eu tinha
falado demais.

— Do que tá falando?

Cacete.

Theo não tinha ideia da minha vingança contra Natanael. Eu nunca havia contado isso para
ninguém.

— Então é isso? Vai usar a garota pra punir o pai? Que cara mau.
— Vou tentar dar um tratamento vip pra ela, não se preocupe — provei mais alguma coisa da
mesa, aliviado por ele finalmente terminar o assunto — Agora me deixe tomar o café em paz.

— Interessante esse seu plano, sabe, e até lógico, embora perverso. Só tem um problema,
irmãozinho.

— Eu sei — eu o cortei — Não vai ser tão fácil manter uma pessoa por tanto tempo em cárcere
privado. Ela certamente tem amigos, namorado, conhecidos, uma vida social. Mas não pense que sou
idiota, Theo, já pensei em tudo bem antes de você falar e já disse, ainda estou decidindo o que fazer.
Só quero manter a garota em minhas mãos por enquanto.

De repente ouvi um barulho.

— É, Heitor, mas, prec...

Fiz sinal para que Theo fechasse a boca e na mesma hora me levantei, deixando a mesa. Eu tinha
ouvido barulho de passos que vinham lá de cima. Passos leves.

Deixei a sala de jantar e voei pelo hall. Cheguei até ao pé da escada antes da garota descer. Era
bom surpreendê-la. Encostei minhas costas na parede e cruzei os braços no peito de um modo bem
relaxado e arrogante.

E eis que havia três coisas que eu já sabia sobre Maya: era atrevida, corajosa e bonita. E mexia
com a minha libido. Essa era uma merda que eu não podia negar. E ela poderia despertar a fera que
estava adormecida em mim. E o pior de tudo era saber que eu estava acostumado a ter mulheres de
todos os tipos, mas nunca levara nenhuma delas para morar em minha casa. E Maya, uma estranha,
estava ali. E embora eu quisesse me vingar, embora quisesse usá-la para punir o pai dela, eu tinha a
plena consciência de que ela era atraente demais para ser deixada de lado num quarto, e que eu era
um homem acostumado a ter uma vida sexual ativa. E Maya era uma molécula que desafiava a porra
da minha física.
Capítulo 10
MAYA

OLHEI PARA A parede do corredor, estranhamente tentada a alisá-la. Isso mesmo. Era a primeira
vez que andava por uma casa tão imensa e sofisticada, com paredes que se apresentavam muito lisas
e brancas, o que me levava a crer que Heitor era rico e todo aquele dinheiro que meu pai estava lhe
devendo não fazia falta. Aliás, eu tinha visto o modo como ele desdenhara da quantia. Contudo não
podia esquecer que estava rodeada de homens armados e sinistros, que mais pareciam me
acompanhar a cada passo que eu dava. E aquilo era real. Não um pesadelo.

Olhando novamente para a parede branca do corredor, acabei passando o dedo por ela, que mais
parecia ter sido feito à base de creme de leite ou algo muito macio e cremoso, ao invés de tinta, e
esse pensamento idiota conseguiu me distrair até o instante em que cheguei no topo da escada
circular e engoli um gemido de espanto. Ele estava ali! Heitor. Parado de uma forma arrogante e
máscula, na base da escada. E se eu achara que ele me perturbara, agora tinha certeza disso. E o cara
já devia estar ciente de que um pequeno círculo se formara em minha boca e que possivelmente meu
coração batia mais forte que as trombetas dos Jogos Vorazes. E o mais curioso e estranho era saber
que o único sentimento que eu devia sentir por aquele homem perigoso era o desprezo, e mesmo
assim olhando agora para ele lá embaixo eu não conseguia deixar de pensar no quanto ele era forte,
bonito e charmoso, mesmo sendo quem era e mesmo tendo feito o que fizera comigo.

Que idiotice, Maya! Ele é o carrasco, não o mocinho da história!

Heitor fez um rápido movimento com os olhos e parei instantaneamente, como se tivesse acabado
de sair da corrida São Silvestre.

Se tá nervosa, não deixe que ele perceba. Heitor não precisa saber o quanto tem medo dele.

Ele vestia uma camisa extremamente branca e por ela eu podia ver alguns pelos escuros fugirem
de seu peito. Não podia negar o quanto aquela cara era sexy, além de bonito. Com certeza um pedaço
de mão caminho para a maioria das mulheres. Não para mim, que tinha todas as razões para sentir
raiva e pavor dele.

Isso mesmo! Romano tinha invadido minha casa! Humilhado meu pai e me levado para a
mansão onde eu estava agora vivendo como sua escrava! E para ser bem sincera, eu não tinha
tempo para sentir atração por ninguém, muito menos por um cara frio e inflexível como ele.

Heitor ainda estava me analisando. Eu podia sentir seu olhar azul fixo em mim, como se ele
estivesse mesmo interessado em começar uma inspeção. Então a imagem dele na lanchonete me veio
de repente, mas logo a afastei dos pensamentos. Que idiotice, Maya! Ele é o carrasco e não o
mocinho da história! Oh, não, esqueça. Aquele cara gentil e atencioso da lanchonete ficou pra
trás. Heitor não era ele.

— Não achei que fosse me obedecer, morena tinhosa — falou, a voz estranhamente macia, indo na
contramão de seus olhares provocativos. Petrifiquei no degrau e engoli em seco, especialmente
quando Heitor fez um gesto que era para eu descer. Oh, droga. Dei o próximo passo, torcendo para
não ter que ficar tão perto dele. Mas então, quando passei da metade do caminho, eu vacilei e foram
seus braços que me ampararam. Seu rosto ficou bem mais próximo do meu e suas mãos grandes e
macias me sustentaram.

— Não vai cair, malagueta. Não enquanto estiver comigo — piscou, charmoso.

Se era pra ser sedutor, não achei a menor graça!

Fitei seus olhos bonitos e murmurei um agradecimento, nervosa com aquela proximidade, mas
Heitor não se afastou. Permaneceu me encarando, como se fosse a primeira vez que me olhasse.
Como se quisesse reconhecer a garota que eu era ou a garota que pensara que eu era. Então, como ele
me encarava, ergui os olhos para sustentar seu olhar e me surpreendi por vê-los quase violeta. Nunca
tinha visto olhos com aquela tonalidade e nunca tinha ligado para homens bonitos como Heitor, nem
mesmo compreendido por que muitas mulheres suspiravam e molhavam suas calcinhas por eles,
entretanto, ao vê-lo agora tão perto de mim, perfumado e um pouco mais agradável, começava a
entender o porquê.

Heitor, sem dúvida, era magnífico! E se não estivesse me aprisionando em sua casa, eu poderia
até mesmo me apaixonar por ele. Na verdade, ele já tinha me perturbado na lanchonete. Não devia
ficar envergonhada... isso, Maya. Era fácil se apaixonar por um cara como ele, principalmente se nos
tratasse bem. Não era mesmo?

— Maya? — duas sobrancelhas arqueadas me entregavam que ele percebia meu desconforto.
— Quero dizer que... — mordi o lábio inferior, pensando em qualquer palavra para dizer, mas
não sabia muito bem o quê — é que mudei de ideia, estou com fome... e como você deixou a porta
destrancada, pensei que eu poderia descer.

Ele continuou me olhando, agora com um olhar mais relaxado e com uma expressão na boca que
me fazia pensar num sorrisinho disfarçado. Uma de suas sobrancelhas grossas também estava um
pouco mais arqueada agora, como se desconfiasse de minha mudança de atitude. Ou como se
divertisse com a minha resposta.

— Fez o certo — continuou me estudando enquanto voltava para a posição inicial e por um
instante tive a impressão de que ele estava me comendo com os olhos, inspecionando meu corpo com
interesse. Sua cabeça se inclinou um pouco mais para me ver melhor e não havia como não me sentir
exposta. Todavia agora eu podia também avaliar Heitor melhor. Era uma espécie de avaliação mútua.

Seu rosto tinha uma estrutura quadrada, o queixo duro, firme, face bem desenhada e máscula.
Absolutamente másculo. Seus olhos, como eu pensava, pareciam realmente ternos na maioria das
vezes, principalmente quando não estavam enfurecidos, e seu corpo exalava magnitude e virilidade.
Ele era alto, grande, o próprio deus grego em carne e osso! Tinha maçãs do rosto salientes e um
topete maravilhoso que deixava seus cabelos loiros escuros em evidência. Era saudável e tinha peso
proporcional ao corpo. Tudo nele era proporcional. Mas ele me trancafiava. E ás vezes eu achava
que me violentaria.

Prendi o ar e o soltei pela boca com um pouco de dificuldade.

— Maya, Maya — repetiu meu nome, como se divertisse com meu completo desconforto —
Venha, guria, vamos tomar o café.

Droga, eu não devia parecer tão perturbada!

Seu tom novamente soou gentil e por mais que fosse ruim ficar à mercê das vontades dele, eu me
sentia mais aliviada agora, mesmo que ainda quisesse distância. Eu precisava de forças para
batalhar, precisava manter meus sentimentos intactos.

Heitor se adiantou, ainda me olhando. E como eu precisava mesmo que a nossa convivência fosse
suportável, aceitei sua mão estendida num gesto de selar a paz.
Desci os degraus com cuidado e me senti estranha quando o loiro parou e sinalizou que eu
passasse primeiro. Era como se quisesse ser cavalheiro. Tão logo passamos pelo corredor da casa,
encontrei uma mesa infinita e farta nos dando as boas-vindas. Theo, que já estava se servindo, voltou
o rosto para me encarar e sorriu, mostrando os belos dentes que tinha. Era a primeira vez que não me
sentia tão desconfortável na presença dos dois.

— Vamos lá, pimenta malagueta. Sente-se. Nenhum de nós aqui morde — vi Heitor puxar uma
cadeira para mim, e em seguida se sentar na dele, como um típico anfitrião. E se estava sendo
civilizado comigo, não me custava nada ser civilizada com ele também.

Seja inteligente, Maya. Inteligência é tudo.

Os dois irmãos começaram uma conversa boba sobre carros e percebi que eram muito diferentes
fisicamente. Visivelmente Theo era mais baixo e tinha olhos e cabelos castanhos. O formato dos
rostos também não lembrava um ao outro. Imaginei que um filho tivesse puxado ao pai e o outro
puxado à mãe. Só não dava para saber ainda quem era o mais velho entre os dois. Pela posição de
liderança, talvez Heitor fosse o primogênito.

Peguei uma bisnaga na bandeja de vime e enchi um copo de suco. Não queria que eles ficassem
me olhando comer, entretanto não podia impedi-los de fazerem isso. No novo segundo nós três
ficamos em silêncio. Comecei a me servir lentamente. Imaginei o dia-a-dia deles e deduzi que fosse
muito mais eletrizante e assustador. E eu não conseguia tirar da minha cabeça que Heitor era
perverso, embora fosse lindo e agora estivesse sendo atencioso e agradável comigo.

— Então, moça, como se chama? — Theo, me arrancou dos meus pensamentos.

— Maya — Heitor respondeu, antes mesmo que eu abrisse a boca para me apresentar.

Theo largou o guardanapo na mesa e se ajeitou na cadeira.

— Hum, belo nome.

Assenti em silêncio, provando um pedaço de bolo.

— É intrigante, forte e sexy — Heitor me surpreendeu novamente e acabou que nossos olhos se
encontraram pela primeira vez ali na mesa. Pensei que ele desviaria, mas ele não o fez, então coube a
mim fazê-lo. Mirei os olhos na comida. Eram mais confiáveis e menos intimidadoras. Peguei uma uva
e a pus na boca. Era melhor mantê-la ocupada mastigando do que respondendo alguma coisa.

Um novo silêncio pairou no ar e notei que Theo divisava nossos olhares. Ele comentou algo com
o irmão e de repente um celular tocou. Alto. Uma música em inglês. Heitor se levantou com o
aparelho no ouvido.

— Fala, Jarbas — se afastou um pouco — Estou tomando café. Ok, certo. Sim, podem vir.

Voltou para a mesa, guardando novamente o celular no bolso da calça preta.

— Sony e Jarbas chegaram. Os outros estão à caminho — falou ao irmão, que parecia bem mais
calmo também.

Theo levantou-se sem pressa da mesa e arrumou a cadeira antes de olhar para mim.

— A gente se vê por aí, Maya. Não vou esquecer mais seu nome — piscou e eu o vi sumir pela
porta por onde entrara. Theo combinava com o terno que usava, embora agora vendo-o melhor, ele
não estava com terno preto e sim com um marrom escuro. Percebi que Heitor acompanhava meu
olhar.

— Os caras estão vindo. É melhor terminar seu café lá em cima — voltou a pegar o celular do
bolso da calça e me senti estranha com aquele movimento dele. Sabia que devia parar de pensar no
quanto sua imagem me atraía.

— Já terminei — murmurei.

— Não precisa correr. Não quero que se engasgue — olhei para ele e pensei se aquilo era
gozação. Bom, não valeria a pena perguntar.

— Não, tudo bem, já acabei.

— Bebeu o suco? Beba um pouco. Vai te fazer bem.

— Obrigada, eu não quero.


Me fazer bem? Bom, o que me faria bem era poder voltar para minha casa e para o meu
trabalho e também para a minha família. Isso com certeza me faria bem, e não tomar o café
naquela mesa.

— Beba.O.Suco.Maya. É sério.

Eu o fitei, alarmada.

— Uau. Então é isso? Acha que pode mandar na minha vontade também?

Aguardei pela resposta dele, que não veio. Mas seu olhar me estudava. E me desafiava. Meio que
me desafiava a não desafiá-lo. Ou talvez a sim, a desafiá-lo. Era uma loucura, mas era isso o que eu
pensava. Ele era uma incógnita. E agora tinha a certeza absoluta: Heitor era mandão e gostava das
coisas conforme o jeito dele.

— Posso não estar com sede — falei, não querendo dar o braço a torcer.

Ele deu de ombros, parecendo divertido.

— Certo. Então suba para o quarto — tentou ser menos áspero agora.

— Como quiser, senhor — me levantei bruscamente da cadeira sem me importar em colocá-la no


lugar.

Heitor deu um passo à frente, agora, sim, parecendo chateado. Podia ver isso em sua expressão
fechada.

— Tá curtindo com a minha cara?

Ergui o queixo e sustentei seu olhar sério.

— Você me deu uma ordem, então... — eu sabia que ainda estava sendo debochada.

— Sabe, não gosto de sarcasmo. Não em todo tempo.

Me recusei a responder. Mas de repente ele riu, parecendo mudar de tática.


— Ok. Então vamos lá, Maya, já que quer começar esse jogo, que tal começarmos por algo mais
gostoso? Que tal um beijo? E se eu mandasse você me dar um beijo? Você oparia?

Com os olhos arregalados, recuei dois passos.

— É claro que não.

— Vamos lá, só um beijo, garota tinhosa. Na boca. Gostoso e ardente. Como nunca beijou antes.

Recuei mais um passo, me dando conta de que ele não brincava e de que eu não era suscetível a
ameaças.

— Você não tá falando sério.

— Ah, não? Quer pagar pra ver? — avançou um passo, me tirando o fôlego — E se eu mandar,
pimenta malagueta, você me obedecer, o que vai fazer?

— Vá se ferrar!

Riu. Me estudou outra vez. Agora sua mão estava alisando meu rosto.

— Você é mesmo uma fera, garota. Desculpe pela minha falta de modos. Seja bem-vinda.

Franzi o nariz.

— Só tem uma coisinha — falou no meu ouvido — Não vou beijar você, Maya. Não agora. Mas é
melhor estar preparada se um dia isso acontecer.

— Fique longe de mim!

Virei o rosto, pensando no pior, mas então Heitor se afastou. Passou pela porta da cozinha e logo
sumiu da minha vista, deixando apenas seu cheiro perturbador com a função de me torturar. Meus
seios subiam e desciam por causa da respiração acelerada e ainda podia me lembrar das últimas
palavras que ele ditara. Ele queria me beijar. Queria me tocar. Prometeu fazer isso!

O suor brotou na minha testa. Bem, Heitor tinha sido gentil e delicado dias atrás quando eu sequer
imaginara quem ele era. Se aproximara de mim sem saber sobre meu pai, então talvez tivesse de
verdade sentido alguma atração verdadeira por mim, assim como eu sentira por ele antes de também
saber o quão terrível ele podia ser. No fundo tinha muito medo da aproximação dele e de ficar
confusa em relação ao seu possível beijo. Nenhum homem me deixara com o coração tão disparado
como Heitor acabara de me deixar, nenhum outro homem me deixara com as pernas bambas ou com a
respiração suspensa como ele me deixara na lanchonete e também como me deixava agora.

Com a mão no peito, tentando ver se ele estava no lugar, afastei-me da parede e respirei fundo.
Tão logo me senti renovada, saí da sala de jantar, passei rapidamente pelo corredor que dava à
escada (ainda pude ouvir as vozes masculinas num dos cômodos ali perto da sala), subi a escada e
segui de volta para o quarto. Ao passar pela porta, levei minhas duas mãos ao rosto. O que fora
aquilo lá embaixo? Heitor ameaçara me beijar? E o que eu faria se ele me agarrasse?
Capítulo Extra
HEITOR

— MÃEEEEE? Paiiiiii?

Nãooooo!!!

Olho em volta e está tudo muito escuro e deserto. A chuva cai fraca e me sinto abandonado
naquela rua desconhecida. Nem o sobretudo preto no meu corpo está me aquecendo. Tá muito frio e
tenho medo. Só penso que tenho medo.

— Mãeeeeeee? Paiiiiii? Cadê vocês?

O choro vem sem pedir licença e a ideia que garotos não choram me acusa. Olho em volta de
novo e penso que ninguém está ali para me ver chorar, então tudo bem. Pensando bem, estou tão
desesperado, que não me importo mais se estivessem mesmo. Eu não me importo.

Dou alguns passos e vejo um carro todo amassado, uma das rodas ainda está girando sem parar.
Ele está bem amassado. Parece com o carro que papai usa quando vai trabalhar ou quando vai a
eventos importantes. Me aproximo dele. Com insegurança, toco na lataria e tento puxar. Tem alguém
ali embaixo, eu sei que tem.

— Mãeee? Paii?

Minha voz ecoa pela rua escura.

Eu paro de chorar porque agora algo sério vem na minha cabeça. Eles só poderiam estar ali
embaixo, ali dentro do carro amassado. Então com mais determinação puxo lataria por lataria, mas
não consigo. É muito pesado, é tudo muito pesado... é pesado.

Eu não consigo salvá-los. Não consigo tirá-los dali. Me desculpem, eu não consigo.

— Mãeeeeeeee?? Paiiiiiiiii??? Nãooooo!

Levanto com um salto e sinto a respiração acelerada e o coração bombardeando meu


peito. Respira, Heitor, respira. Parece que vou morrer. Olho a escuridão ao redor e tento me adaptar
a ela. Calma, tá tudo bem, tá tudo bem. Não é uma rua, estou no meu quarto. Estou sobre a minha
cama. Não sou mais uma criança. Sou um homem feito agora. É, é isso.

— Foi só um sonho, droga — murmuro para mim mesmo, mais relaxado, enquanto volto a deitar a
cabeça no travesseiro — só uma droga de sonho.

Faz anos que não tenho esse tipo de sonho. Na infância, logo na época do acidente, eles se
tornaram frequentes, quase diários. Quando aconteciam, eu acordava com Nora na cama ao meu lado.
Ela sempre me abraçava em seu corpo fofinho, acariciava meus cabelos com sua mão macia e dizia
que estava tudo bem, que eu poderia chorar, que fazia bem chorar e botar tudo para fora. Ficava
comigo quase uma hora ali. Ás vezes perguntava se eu queria sua companhia até voltar a dormir. Eu
dizia que não, que não precisava, que eu era forte, mas eu sabia que ela ficava atrás da porta, só me
esperando, até eu pegar outra vez no sono.

Olho para o teto escuro agora, penso na mulher que me criou desde meus dez anos. Forte,
corajosa, incrível. Eu só tinha a agradecer. Ás vezes ela era mandona e pegajosa, mas não deixava de
ser uma mãe.

Amanhã vou ligar para ela. Vou deixar que ela saiba o quanto a amo, ainda que não demonstre
muito isso.

Fecho os olhos e tento pegar outra vez no sono.

***

A porta se abre e vejo a mulher que há anos chamo de mãe. Com um sorriso no rosto, Nora estica
os braços suculentos para mim, que me perco neles.

— Até que enfim lembrou do caminho de casa — fala com aquele ar dramático que só ela é
mestra em fazer.

— Minha fofinha— abraço seu corpo macio e faço um movimento para pegá-la no colo,
brincando. Ela grita e me xinga, e diz que vou deixá-la cair no chão e se isso acontecer, vai me dar
uma surra.

— Acha que não aguento você? — eu a ergo do chão novamente e entro com ela agarrada em meu
pescoço até a sala de visitas. Lá vejo Mauro, meu pai adotivo, e Theo. Não temos ligação sanguínea,
nenhum dos quatro, mas somos uma família.

— Joana! — Nora grita, assim que a ponho no chão, e logo uma jovem empregada aparece na
entrada da sala — Nos prepare um lanche, por favor, querida. Heitor chegou.

— Sim, senhora — pisca a simpática Joana e sorri para mim — Quanto tempo, Heitor. Como vai?

— Vou bem, Joana. E a cada dia que venho você está ainda mais bonita.

Ela abre ainda mais o sorriso e tenho a impressão que suspira. Antes que fale mais alguma coisa,
minha mãe briga com ela e me puxa para o sofá. Lá acaricia meu pulso e diz o quanto está feliz por
aquela visita inesperada.

— Quer um biscoitinho, filho? — oferece e vejo um prato sobre a mesinha de centro — fiz esta
tarde. Disseram que está delicioso.

— Sabe que adoro seus biscoitinhos — pego três do prato e os jogo um de cada vez na boca.

— Parece até que Heitor é o único filho que tem — Theo reclama, do outro lado do sofá, e por
causa disso ganha um tapa na mão.

— Deixa de ser ciumento. É que você vive na casa provando minhas guloseimas.

Debocho de Theo, dou língua para ele por trás de Nora e ele faz queixa para ela, que também me
dá um tapa na mão.

Volto a pegar mais biscoitos do prato, mas então Joana volta com uma bandeja de novas coisas
gostosas para comer e meus olhos brilham, eu sei que sim. Joana lança um olhar sensual para mim
quando se abaixa para alojar a bandeja na mesinha. Em seguida ela sai, rebolando.

— Ô menina assanhada! — Nora murmura e segura meu braço e depois puxa o de Theo para perto
dela também — Estou muito feliz por terem aparecido aqui hoje, os dois fujões mal- agradecidos —
dá um beijo na bochecha dele e depois um beijo na minha — Sei que são muito ocupados com esse
negócio de cassino e que por isso não podem demorar. Então só quero saber se está tudo bem e se
estão felizes. É tudo o que me importa.

— Estamos bem, mãe — Theo fala, pegando um pedaço de bolo — parece até que há anos não
nos vê — zomba.

Nora não admite que a chamamos pelo seu nome. Sempre foi assim. Era "mãe", não importava se
nossas mães biológicas estivessem ainda presentes em nossa consciência.

— Não posso demorar, mas vim aqui pra dizer o quanto me importo com você— abraço seu
corpo redondo e fofinho, que sempre me trouxe calor e conforto e beijo forte sua bochecha macia.
Ela sorri. Mesmo não vendo, sei que ela sorri.

— Ok. Se comportem! — Nora fala, minutos depois, quando Theo e eu saímos juntos. Lá no lado
de fora da casa, ponho os óculos escuros no rosto e olho em volta. Nunca tive problemas na casa de
minha mãe. E sempre que é preciso, deixo seguranças nas proximidades da casa. Nora não gosta de
ser vigiada e sei que não suportaria deixar de ter uma vida normal. Ela sabe o que fazemos, mas na
maioria das vezes faz de conta de que não sabe de nada. Sei que é uma forma de ela dizer para si
mesma que está tudo bem.

— Que bom que veio de carro. Eu cheguei de táxi. A moto foi pro conserto — Theo fala, se
acomodando no lado carona da minha Mercedes.

— Ponha o cinto de segurança! — falo, antes de abrir um sorriso traquinas. Eu não corro muito ao
dirigir, mas ele acha que sim.
Capítulo 11
HEITOR

MAS QUE PORRA! O que tinha acontecido? Eu estava doidão? Eu tinha tentado beijar a garota?
Tinha acariciado ela? O rosto dela? Que porcaria era aquela?!

Caralho.

Saindo da cozinha com passos largos, ouvi as vozes que viam lá do corredor perto da sala de
estar. Os caras. Eu tinha feito o máximo para que eles não me vissem com Maya e agora não sabia ao
certo o que eles tinham escutado.

Abotoei um botão da camisa, segurando-o porque fazia questão de estar sempre impecável. Nunca
podia esquecer um líder de uma facção que conheci. Era enorme, barrigudo e tão relaxado quanto um
mendigo. Jurei a mim mesmo que nunca seria como ele quando me tornei um chefe da máfia.

Alguns caras diziam que sou vaidoso ao extremo e que isso é uma grande merda de exagero. Não
me importo com o que falam. Imagem é tudo, certo? Além do mais, você consegue mulheres mesmo
sendo feio e descuidado, mas se for cheiroso e arrumado, vai perceber que elas não estão com você
só por causa da grana.

— Namorada nova, Heitor? — alguém me tirou dos devaneios e percebi que já chegava na sala
de estar.

— Quê?

— Ops, nada — deve ter olhado meus traços e notado que eu não estava para brincadeira.

— Vamos lá pro escritório — segui primeiro até minha sala. Era lá que fazíamos a maioria das
reuniões. Quando entrei no cômodo decorado por móveis de maneira imbuia, me ajeitei na poltrona
preta de couro — meu trono —enquanto os caras se espalhavam pelo restante da sala e outros
permaneciam em pé. Alguém pigarreou.

— Heitor. Jeremias Fontes mandou isso pra você — me entregou um envelope elegante de cor
marfim.
— Que porra é essa? Um convite?

— Aniversário da filha dele. Quinze anos.

Com o delicado envelope na palma da mão, eu o avaliei entre meus dedos.

— Hum, festa — me recostei na poltrona preta e descansei meus pés sobre o tampo de vidro da
mesa — Bom saber que ele se lembrou da gente. Já vou até mandar preparar a roupa — zombei — E
obviamente vai ser uma grande oportunidade pra tratarmos de negócios. Comida livre, bebida regada
e mulher bonita dando sopa.

— Vamos apertar o desgraçado na festa da filha dele?

— O que você acha, meu? — relaxei os antebraços atrás da nuca e cruzei meus pés sobre a mesa,
pensando que uma das coisas boas de ser chefe era poder dar a palavra final — Mas ele não vai
querer espetáculo. Nem nós. Portanto vamos entrar na maior elegância e fazer tudo por trás dos
panos. Até porque não queremos acabar com a festa da guria.

— E desde quando se importa com gurias? — Theo zombou, com uma ponta de malícia que só eu
identificava.

— Já cuidou da limpeza das toalhas?

— Toalhas? Ah, claro, as vermelhas? Não se preocupe, vou resolver, chefe.

Jogando o convite de quinze anos na mesa, me lembrei do telefonema que Diogo me dera na noite
anterior falando sobre a chegada de Chucky. Era um bom momento para informar aos caras.

— Ah, tenho algo pra falar: vamos receber um cara novo, de confiança. Chucky. Acho que todos
já devem ter ouvido falar dele. Como sabem, é um sujeito frio, habilidoso e focado. É bom no que
faz. Portanto vamos recebê-lo como se fosse um de nós, pois é isso o que ele é agora.

Theo saiu de onde estava e se sentou numa outra ponta perto de mim. Ás vezes eu achava que ele
gostava de competir com Jarbas, como se quisesse ver quem era mais importante. Oscar, que estava
perto da porta, fumava um cigarro enquanto parecia pensar em minhas palavras. Olhando para ele,
lembrei do pai de Maya.
— Como ficou Natanael?

— Dois caras estão de olho nele. Parece mais calmo. Perguntou pela filha, mas não falamos nada.

— E o que fizeram com ele?

— Apenas uma sutil ameaça pra que fique com a boca fechada. Acho que estava sóbrio o bastante
pra entender.

— Ótimo.

— Quais são os planos pra hoje, Heitor? — alguém perguntou.

— O de sempre — aceitei o cigarro que alguém me ofereceu — Vamos aumentar a quantidade de


jogos e a variedade das bebidas, é sempre bom agradar quem é fiel à casa. Se ouviram dizer que
o Del Romano ainda não está no nível do Esmeralda é porque não estamos dando a devida
prioridade à qualidade. Vamos contratar um novo pessoal e cortar algumas coisas que deram errado.
Theo, não vamos renovar o contrato com aquela empresa de limpeza. Ela só me provou ser uma
bosta.

— Vou cuidar disso.

— Bom, senhores, por hoje e é só. Vejo todos vocês mais tarde.

***

Era ótimo ficar um tempo sem nada para fazer. Na maioria das vezes, quando isso acontecia, eu
sacava o cigarro do bolso e o acendia. Passava minutos relaxado e perdido em meus próprios
pensamentos, apenas soltando a fumaça pela boca. Agora mesmo eu fazia isso. Só que agora era
diferente, agora vez ou outra a imagem da garota surgia em minha mente. Queria parar de pensar nela,
queria parar de me preocupar com ela ou recordar de seu olhar de surpresa quando lhe falei sobre o
beijo, horas mais cedo. Mas por que diabos não conseguia? Maya. Que droga de nome mágico era
esse?

E pior que combinava com ela.


Era rebelde e genioso como ela.

Alguém bateu na porta, me sobressaltando, então logo a cabeça de meu irmão apareceu dentro da
sala.

— Ocupado?

— Entra logo, cabeção. E feche a porta.

Pus o cigarro na boca. Theo me pediu um também no instante em que sentou numa poltrona em
frente à minha, parecia interessado em alguma coisa.

— Bem, eu estava aqui pensando nesse seu plano de vingança — acendeu o cigarro tão logo lhe
ofereci — é sério que vai seguir com ele?

— De novo com essa merda? — eu o analisei — Não devia gastar suas preocupações com o que
faço ou deixo de fazer. Sou o chefe. Lembra?

— Tá bom, te conheço. Não quer machucar a garota. Não vai fazer isso.

— É um assunto particular. Não tem que ficar se metendo. Qual é?

— Não costuma prender garotinhas indefesas. Tem algo muito estranho nessa história toda.

Eu evitei fitá-lo e ao invés disso, relaxei meus pés sobre a mesa. Fechei os olhos, querendo
apenas sentir um momento de paz naquela sala. Era difícil admitir que Theo estava certo, além de me
fazer pensar no quanto eu estava sendo injusto e vingativo com Maya.

— Heitor?

— Que é, mano? Veio aqui defender a guria? Vai me dizer que seu pau já tá duro por ela?

— Ah, qual é? Nada disso.

Abri os olhos e o examinei.


— Você não me engana. E faz tempo que não o vejo com uma garota.

Deu de ombros.

— Não estou a fim de garotas no momento. Bem, não há nenhuma em especial.

— Já disse, da malagueta cuido eu.

— Malagueta— riu— Saquei. Não vou mais tocar no assunto, já que o incomoda. Bem, na
verdade também vim aqui porque preciso te falar uma coisa: preciso ir a São Bernardo do Campo.
Vou ficar alguns dias fora. Algum problema? Espero voltar a tempo do seu casamento.

— Vá se ferrar.

Theo gargalhou. Em seguida se levantou.

— Tá brincalhão demais pro meu gosto — resmunguei.

— Sei que vou falar uma coisa estúpida, mas o amor e o ódio andam juntos — levantou as mãos
em rendição — Calma, não me mate... outra coisa: tente não maltratar a garota. Não quero que ela
pense que é um mal de família.

Vi meu irmão sair pela porta. E minutos mais tarde eu estava na janela quando avistei a
lamborghini dele deixar a casa. Então segui para uma chuveirada fria.

Os seguranças estavam em posição lá fora, como sempre. Não precisava me preocupar. Após sair
do banho e deixar o quarto, desci as escadas e segui para a cozinha. Na maioria das vezes eu
apreciava ficar sozinho em casa. Me sentia mais concentrado e com mais liberdade. Aquele era meu
espaço, e até que esquecer a presença de Maya por um tempo me fez lembrar quem eu era. Ela estava
trancada no quarto desde o café. Sem água, sem comida, sem nada.

Caralho.

A garota estava sem nada! Larguei o prato na mesa, me sentindo um maldito estúpido por não ter
me lembrado de seu bem-estar antes. Percorri o caminho feito anteriormente e subi com pressa até o
segundo andar. Lá no quarto encontrei Maya na cama, o rosto afundado no travesseiro. Ela devia
estar chorando. Eu pensei no que dizer.

— Malagueta?

Sem resposta. Não se mexeu. Devia ser porque não a chamei pelo nome.

— Ei, guria, o almoço tá na mesa.

— Estou sem fome — murmurou e percebi que não estava chorando. Era mais forte do que eu
imaginava.

Lembrei do que Theo falara sobre não maltratar a garota, então respirei fundo e dei uma batidinha
na parede, isso tudo para manter a minha calma.

— Certo, vamos fazer de um jeito mais prático: não perguntei se está com fome, morena. Só
informei que precisa descer pra comer. Você será a minha companhia.

Ela ergueu um pouco a cabeça e me fitou, os olhos como duas chamas de fogo.

— Bom, não pode me obrigar a comer — questionou — Se eu não quiser, não como. Sou sua
prisioneira, não seu robozinho.

Robozinho? Se fosse mesmo um robozinho, não seria tão audaciosa como ela era!

— Quer saber, isso já tá me irritando. Quero que desça agora, garota, é uma ordem!

Girei os calcanhares a tempo de ver Maya sentar na cama e parecer analisar a oferta.

Fiz o mesmo trajeto e voltei para a sala de jantar. Novamente na mesa, fiz uma oração silenciosa.
Pedi paciência. E auto-controle para não fazer nada do que me arrependesse depois. Comecei a
comer a comida e torci para que a garota não demorasse. Para meu alívio, Maya apareceu. Não
sorridente, é claro. Pelo contrário. Tinha os cabelos soltos e a expressão bem fechada. Parecia
abatida e magra.

— Senta aí e come. Cara feia é fome. Não precisa me fulminar com raiva. Guarde sua revolta pra
quando realmente precisar dela— falei.
Não falou nada, puxou a cadeira com raiva e afundou nela. Pensei no quanto aquela garota deveria
ser ardente na cama. Levantei os olhos para ela.

— Pode não parecer, mas me importo com você. Não há necessidade de fazer greve de fome. Já é
bem magra.

— Desculpe, mas não preciso da sua compaixão. Estou aqui presa sem poder fazer nada da minha
vida. O que importa se como ou não como quando já estou morta por dentro?

Uau.

Ela me deixou sem palavras. Um sensor de sensibilidade apitou em mim e pigarreei, tentando me
sentir melhor. Estudei Maya sem pressa e ela parecia mais conformada agora. Voltei a comer quando
vi que ela faria o mesmo. Comemos em silêncio. Pensei nela sendo minha companhia na mansão de
Diogo. Seria uma boa ideia ir acompanhado.

Geralmente eu andava com uma mulher exuberante em cada braço, mas ás vezes era bom variar.
Além disso seria bom poder passar mais tempo perto de Maya, ainda que não pudesse lhe roubar um
beijo ou um abraço. Droga. Por falar em beijo... eu tinha pensado no quanto aquilo me tocara aquela
manhã. E agora era melhor esquecer o assunto. E não queria que Maya achasse que eu tinha segundas
intenções com ela.

— Vamos às compras amanhã — informei, pensando no assunto pela primeira vez.

— Compras?

— É.

— E posso saber por quê?

— Vamos ao Rio.

Calou-se. Pareceu pensar no assunto.

— Rio? Quer dizer Rio... de Janeiro?


— Isso mesmo. O que significa que não vai poder aparecer como uma mendiga ao meu lado.

Vi um pequeno círculo se formar em sua boca.

— Vou deixar que ligue pros seus amigos e seus conhecidos, malagueta, não quero que pensem
que sumiu de repente do mapa — bebi um gole de suco.

Maya pareceu levar ainda um bom tempo para absorver àquela ideia.

— Achei que fosse ser sua prisioneira...

— E é — comi uma nova colher do rosbife de frango — Só que seria um desperdício mantê-la
trancafiada no quarto, guria — provei uma batata frita e a mastiguei — você é formosa demais pra
viver esquecida. Além disso tá na cara que pode ser bem mais útil pra mim.

Ela engoliu em seco. Sempre parecia desconfortável quando eu insinuava que ela era bonita e
interessante.

— E quanto ao meu pai? O que vai realmente fazer com ele?

— Enquanto estiver comigo, ele permanecerá vivo — Maya arregalou os olhos, e depois pareceu
suspirar aliviada — Mas se fugir de mim, saiba que não hesitarei em matá-lo.

— Não vou fugir.

— Ótimo. Vamos seguir pro Rio no fim de semana. Será apresentada como minha namorada. E
não me pergunte o porquê disso.

— Namorada?

Ela pareceu ficar chocada.

— Mas...

— Coma!
***

Depois do almoço era hora de relaxar um pouco. Geralmente eu me distraía com os games do
smartphone ou então com a minha série favorita, Supernatural. Deixei que Maya fizesse faxina na
sala. Foi uma condição para que ela saísse do quarto. Era uma forma também de eu poder vê-la, era
bom vê-la limpar a sala enquanto eu assistia à TV, sentado no sofá. Meu copo de uísque descansava
na mesinha perto de mim e à medida que uma tragada descia amarga pela minha garganta o corpo
curvilíneo da garota ficava ainda mais em evidência diante de meus olhos. De repente ela gemeu e
me levantei para ver o que tinha acontecido.

— O que foi?

— Nada...

— Deixe-me ver... — levantei do sofá e peguei sua mão.

— Hum... foi só um cortinho de nada...

— Não cortou. Foi uma farpa que entrou. Deve ter saído da vassoura...

— Ok, tudo bem... eu estou bem...— murmurou, puxando a mão de volta, mas eu a impedi.

— Fique quieta, vou tirar pra você.

Achei que ela fosse insistir que não, mas ao invés disso, cerrou os olhos, fazendo uma expressão
de desconforto. Acho que no fundo estava apavorada. Segurei seu dedo diante de meus olhos e o
espremi de modo que toda a farpa saísse em seguida.

— Pronto. Saiu.

— Obrigada — puxou a mão, parecendo nervosa. Talvez ficasse muito insegura com a minha
proximidade. Não sabia se Maya tinha raiva de mim ou medo de sentir alguma coisa diferente.

— Não precisa trabalhar tanto, morena. Pode sentar comigo pra ver TV.
Ela me olhou desconfiada e pude ver dois pontos de interrogação em seu rosto.

— Eu prefiro trabalhar... eu gosto.

Dei de ombros.

— Então fique aí.

Estava começando a me acostumar com aquela garota me fazendo companhia e não sabia se isso
era bom ou ruim.

Maya voltou para o quarto, minutos depois, no mesmo instante em que o programa da TV acabou.
Decidido a me exercitar, segui para o fundo da casa. Era sempre lá que fazia minhas abdominais e a
minha barra. Gostava do sol e do calor que me alcançavam na área externa da mansão. E de lá de
baixo eu podia olhar para cima e ver o movimento do quarto onde Maya estava. E malhar me ajudava
a parar de pensar nela.
Capítulo 12
MAYA

A LUZ DA TARDE se infiltrou pelas cortinas e iluminou quase todo o cômodo perfeitamente
organizado. Sobre o quarto onde eu estava "hospedada", bom, ele era grande e confortável. Formato
retangular. Tudo nele combinava com a figura imponente do homem que me prendia naquela casa e eu
me perguntava se todos os outros quartos eram assim. Me senti estranhamente confortável ao abrir os
olhos lentamente e a me concentrar na imagem do belo dia que fazia lá fora. Eu tinha cochilado. Sem
perceber. Talvez estivesse fraca e cansada por causa da pouca comida que tinha ingerido no almoço.

Ajeitei os cabelos desarrumados. Ouvi um barulho que vinha lá de fora. Como se alguém
estivesse gemendo ou fazendo algum grande esforço. Abandonando rapidamente a cama para poder
espiar, me aproximei do batente da janela e me surpreendi ao me deparar com a figura do homem lá
embaixo. Heitor. Forte e ainda mais vistoso sem camisa. Grunhia a cada movimento que seus bíceps
bem tonificados davam, subindo e descendo com os braços apoiados numa barra. Pude ver o suor
descer pelo seu rosto e percorrer seu corpo agora dourado por causa do sol. O ombro e o peito
largos guiavam nossos olhos até o abdome perfeito e zerado, terminando no umbigo e formando o
incrível V.

Heitor não era do tipo que precisava impor respeito. Seu porte físico, sua voz firme e seu
semblante, embora bonito, deixavam claro aquilo. E só uma pessoa estúpida ou louca o desafiaria.
Talvez eu fosse estúpida e louca. Bom, não me importava. Talvez eu fosse tão estúpida que me
cedera no lugar da dívida de meu pai. Tinha aprendido que a gente defendia quem a gente amava,
ainda que essa pessoa não fosse a melhor pessoa do mundo.

Meu pai não era o melhor pai do mundo, mas era o único que eu tinha. Além disso, após perder
minha mãe, ele se tornou a pessoa mais importante da minha vida. Pensei se ele teria feito aquele
sacrifício se fosse o contrário, se no seu lugar estivesse eu, no entanto não adiantaria ficar
imaginando o que poderia ter acontecido, afinal a minha escolha já havia sido feita.

Voltei a espiar Heitor e refleti sobre quantas horas diárias ele se utilizava para conseguir aquele
corpo sarado. Bom, que se danasse. Eu não devia me imaginar com ele. Nunca seria feliz com um
sujeito como aquele. Heitor tinha sido amável comigo na lanchonete e também tinha sido delicado
após o almoço daquela tarde, todavia nada mudaria a verdade de que ele era um mafioso. Segurando
a ponta da cortina azul escura com força, me senti estranha, mas mesmo assim mantive meus olhos no
loiro se exercitando lá embaixo. Ao menos ele era focado. Seus bíceps cresciam e se erguiam à
medida que ele fazia esforço. Seus cabelos úmidos, bem como sua pele, ficavam mais loiros sob a
claridade da tarde e uma imagem voluntária de nós dois juntos invadiu minha mente
involuntariamente.

Droga.

Meneei a cabeça, me odiando por dentro. Que loucura! Toquei a testa, me sentindo zonza, todavia
um novo movimento dele lá embaixo me fez engolir em seco e em seguida reprimir um gemido de
espanto. Ele me olhava!

Caraca.

Me pegava no flagra!

Me afastei da janela e me escondi atrás da cortina. Esperei alguns segundos. Afastei os cabelos
do rosto, meu coração batendo forte, pensando no que ele iria pensar de minha inspeção. De repente,
no impulso eu lentamente voltei a olhar para fora. Merda. Merda. Merda. Nossos olhos se
encontraram pela segunda vez. Dessa vez ele tinha uma expressão mais leve e pude detectar um
pequeno sorriso se inclinando no canto de sua boca. Brava comigo mesma, voltei para o centro do
quarto e me joguei na cama macia, com a barriga para cima e os olhos no teto. Pus as mãos no rosto e
me perguntei se ele me atormentaria por causa disso, por tê-lo espiado malhando. Esperava que não,
mas provavelmente isso aconteceria. Fiz um muxoxo. Devia ter parado de observá-lo logo no instante
em que apareci na janela. Não devia ter ficado olhando. Meu estômago de repente reclamou e me
arrependi amargamente por não ter comido bem no almoço.

***

Alguém bateu na porta, me sobressaltando. Não devia ser Heitor. Ele não precisava bater na porta
para entrar.

Seja quem fosse, bateu de novo.


— Quem é?

— Olá. É a Carla!

Carla? Quem era Carla?

Me levantei e girei a maçaneta. A porta se abriu, me revelando uma mulher de cabelos castanhos.

— Oi — olhos amistosos — Heitor me mandou vir aqui. Sou meio que a governanta da casa. É
um prazer conhecê-la.

Devia dizer o mesmo para ela, mas não era aquilo o que eu estava sentindo. E também não sabia
se devia confiar em Carla.

— Sou Maya.

A mulher deve ter percebido que eu não era de muitos amigos, então pediu licença, atravessou o
quarto e trocou algumas roupas de cama.

— Heitor falou que você está precisando de roupas. Vou ver o que tenho lá embaixo.

— A porta estava aberta? — perguntei, pensando naquilo repentinamente. Carla me encarou,


como se eu fosse esquisita ou como se não tivesse entendido a pergunta.

— Aberta? Como assim? Ela sempre fica aberta — forçou um sorriso e como vira confusão em
seus olhos, resolvi explicar:

— Bom, é que pensei que ela estivesse trancada.

Novamente a mulher me olhou como se eu fosse um ET ou como se eu fosse uma verdadeira


idiota. Percebi que era melhor fechar a matraca.

— Bom, desculpe, acho que estou meio zonza hoje.

— Não faz mal. Talvez esteja com fome. Precisa de alguma coisa em especial? Quer que eu traga
alguma coisa pra comer?
— Na verdade almocei, mas não comi muito bem... — olhei para as mudas de roupa ainda no meu
corpo — acho que eu também gostaria de um banho e de poder trocar de roupa.

— Ok, vou trazer algumas coisas pra você. Não vai ser difícil de encontrar algo que sirva —
parou o que estava fazendo para me analisar — É magrinha, tem uma boa estatura, cintura fina...
certo, vou descer e logo volto.

— Obrigada.

— E por que não anda um pouco pela casa? O dia está bonito lá fora pra ficar dentro de um
quarto.

— Quem sabe uma outra hora? — estava óbvio que aquela mulher não sabia quem eu era e muito
menos o que eu estava fazendo ali, e talvez nem soubesse o que o chefe dela fazia.

Piscou amistosamente antes de sair, me dando a sensação de que eu já a conhecia há muito tempo.
Suspirei profundamente e me joguei de volta na cama, imaginando que minha temporada sem banho
terminaria tão logo a funcionária de Heitor voltasse. Ela era jovem e amável. Até poderia ser uma
das conquistas do chefe se Heitor não parecesse ser tão superficial em relação a mulheres. Porque se
me lembrava bem, de acordo com a recepcionista da boate, Heitor só andava com beldades. E assim
como eu, aquela moça simpática e prestativa não era uma beldade.

***

Cerca de dez minutos depois Heitor apareceu na porta. Tinha novamente a voz mais controlada e a
expressão mais amistosa que a que estava tendo nos últimos dias. Seus dedos longos seguraram a
porta aberta.

— Tenho novidades, malagueta — informou. Tentei não pensar no episódio em que eu tinha
espiado ele malhar. Heitor parecia bem-humorado e sorria.

— Estive pensando... vou ser bonzinho com você. Vou deixar que passe um dia em casa. O que
acha?

Eu o fitei.
— É brincadeira, né?

— Não, é sério. Muito sério — entrou devagar e cruzou os braços firmemente na altura do
peitoral forte, que agora estava coberto por uma camiseta azul petróleo. Seus cabelos estavam
úmidos e seu cheiro de sabonete me revelava que ele tinha tomado um banho há alguns minutos.

— E por que vai fazer isso? — dei de ombros, me sentindo acuada. Não podia confiar em tudo o
que ele me dizia. Mordi o lábio, preocupada com a sua possível resposta.

— É o seguinte, morena, não sou esse cara mau que pensa que sou. Sabe, acho que assustei você.
Sei que não teve uma boa impressão de mim, então... — seus olhos violeta me desconsertavam, que
saco! — Bom, também sabemos, precisa encontrar seus amigos e dizer que está tudo bem. É bom
avisar que vai passar uma temporada fora.

— E quando vou fazer isso?

— Em breve. Vai matar a saudade do seu velho e conversar com seus amigos e namorado, se tiver
um.

— Não tenho namorado.

— Mesmo? Que desperdício — achei que ele fosse rir, mas não riu — É melhor fazê-los
acreditar que está bem. E se for esperta, vai aconselhar seu pai a ficar longe de problemas.

— Então não vou ter mesmo minha vida própria de volta — concluí, com tristeza, olhando para a
janela e vendo o sol da tarde se recolher. O fato de voltar para casa e saber que era só um dia, como
uma despedida, me deixava deprimida. Mas pelo menos mais uma vez eu voltaria a ver meu pai.

— Sei que não gosta da ideia, mas vai ter que se acostumar com a minha presença, guria. E,
vamos ser sinceros, ela não é tão ruim assim — deu de ombros e senti um tom malicioso em sua
expressão. Pensei que fosse falar mais alguma coisa, mas se limitou a me olhar.

— Agora desça pra comer alguma coisa comigo.

Dito isso, saiu do quarto, me deixando perturbada com sua fragrância e com suas atitudes que,
embora suaves, eram inesperadas. Ás vezes eu me imaginava numa disputa de cabo de força. E se eu
não fosse tão inteligente como pensava, Heitor levaria a melhor. Não restavam dúvidas.

— Senta — a voz dele soou fria meia hora depois, já lá embaixo, quando Carla já tinha me
entregado algumas peças de roupa e eu já tinha tomado um banho.

Dei um passo à frente, voltando a questionar como aquela mesa era grande e farta. O cheirinho de
café fresco era aconchegante e familiar. Meu estômago reclamou mais uma vez. Obviamente eu
estava faminta, e mesmo que não me importasse com esse fato, aquela visão de bolos e pães frescos,
bem como de café recém passado, renovou meu apetite. Será que Carla preparara tudo aquilo?

— Vejo que já tem roupas novas — ele comentou assim que sentei.

— A governanta foi muito gentil.

— Ela é sempre gentil.

"Ao contrário de você", tive vontade de retrucar, mas me controlei e para isso quase machuquei a
língua. Bem, na realidade, Heitor não era tão ogro como eu acusava. Os momentos de grosseria já
tinham cessado, eu esperava.

— Você não tem mesmo namorado? — seu tom soou de uma forma diferente agora.

Fitei seu rosto e vi Heitor levar uma xícara de café naturalmente aos lábios, como se nada
pudesse lhe chatear ou como se aquela pergunta fosse a mais inocente o possível.

— Não tenho.

Levou um pedaço de pão até a boca e eu não sabia se fazia de propósito ou se era mesmo sexy até
comendo.

— Uma garota tão atraente como você sem um cara em cima. Não dá pra acreditar.

— Não preciso de homens na minha vida — ergui meu queixo e repeti a frase que eu sempre
falava para todos que tocavam naquele assunto. Meu estômago, no entanto, novamente reclamou por
comida. Heitor pareceu chocado com a minha resposta, embora sorrisse, como se estivesse gostando
do rumo da conversa.

— Não gosta de homens ou têm problemas com eles? — me surpreendeu novamente e ao olhar em
seus olhos detectei um quê de desafio.

Pensei rápido em que tipo de resposta deveria dar. Talvez o lance não fosse o quê responder a ele
e sim como responder. Isso fazia a diferença.

— Não tenho problemas com os homens. Não com a maioria deles.

— É verdade. Caso contrário não estaria me espiando pela janela uma hora mais cedo.

Aquilo tinha sido golpe baixo! Eu fiquei perplexa.

— Não estava espiando você— tentei falar com a maior calma possível — Eu estava... bom, eu
estava...

— Não consegue falar?

— Estava olhando por olhar. Sempre olho pela janela... não sabia que estava ali.

— Bom, fico feliz por saber que me aprova, morena — comeu um novo pedaço de pão, ignorando
minhas desculpas — ficaria preocupado se não gostasse de homens.

— Não sei do que está falando.

— Ah, sabe sim. E se não me falha a memória, adorou ver meu peito de fora. Ou não teria ficado
tanto tempo me examinando feito urubu sobre a carniça.

— Por favor, será que podemos mudar de assunto? Na verdade, gostaria de saber como vai ser
quando eu... bom, quando eu for pra casa.

Ele sorriu, provocador, ao dar um gole no suco.

— Fugindo da raia? Pensei que fosse mais corajosa.


Pisquei novamente sem palavras, então achei melhor ignorar.

— Gostaria de voltar pro meu quarto, se não se importa...

— Você nem começou a comer.

— Estou sem fome — me levantei, insegura.

— Senta aí e come — mandou, me fazendo olhar para o meu prato de porcelana cheio — E não se
preocupe, não vou agarrar você — pôs o garfo dentro da boca e pude notar um sorriso debochado —
A não ser que implore.

Decidi não entrar no jogo. O lanche prosseguiu na mais calma paz e me aliviei ao ouvir apenas os
tilintares dos pratos e talheres. Ás vezes nossos olhares se cruzavam e eu tinha a certeza de que
Heitor se divertia com a ideia de me atormentar. Provavelmente era essa a sua intenção. Quando tudo
terminou, finalmente, e eu já estava com o estômago cheio, segui para o quarto e esperei que Romano
me chamasse. Uma sensação estranha me tomou. Um misto de prazer e insegurança por voltar para
casa. E medo do que poderia ou não acontecer.

O carro, cerca de uma hora mais tarde, parou em frente ao muro pequeno que eu conhecia tão
bem. Assim que estacionou vi os olhos sérios de Heitor sobre mim.

— Tem até amanhã pra fazer todos acreditarem que está bem e que não pretende voltar tão cedo
pra casa, guria. E depois disso vai voltar pros meus braços.

Na minha cabeça só ecoava "vai voltar pros meus braços". "vai voltar pros meus braços". Tive
vontade de perguntar o que aconteceria se eu, por acaso, ignorasse suas instruções. Bom, pensando
bem, seria a pergunta mais idiota do mundo e eu não queria ouvir sua resposta.

Vai voltar pros meus braços, Maya.


Capítulo 13
MAYA

— MAYA?

Papai estava diante de mim com os olhos castanhos escuros esbugalhados, como se estivesse
vendo um fantasma.

— É você mesma?

— Sou eu — ri, sentindo o quão bom era estar de volta. Tive vontade de dizer para papai que
estava morrendo de saudades, queria abraçá-lo e dizer que estava tudo bem, até que algo aconteceu.
Uma mulher. Ela apareceu. Tinha os cabelos tingidos de ruivos e olhos grandes que me lembravam a
boneca Betty Boop. Estava atrás de meu pai e pelo modo como se debruçava nos ombros dele
detectei um forte grau de intimidade.

Pisquei duas vezes, tentando entender o que se passava ali em nossa casa.

— Maya, essa é Beth — papai falou com o sorriso agora amarelo e então eu soube de imediato
que o meu sumira de meu rosto — Eu não esperava vê-la tão cedo, filha... meu Deus — veio até mim,
como se percebesse que aquilo era o certo a se fazer — Eles finalmente soltaram você, Maya! Como
eu pedi a Deus!

Por mais que meu pai me abraçasse e falasse que estava feliz por me ver, eu não conseguia parar
de pensar no que estava acontecendo ali na minha casa. Quem era aquela mulher? O que ela fazia
com meu pai? Papai estava com ela enquanto eu me mantinha trancafiada na mansão de um
mafioso que concordou em me prender?

Papai me soltou e pigarreou, percebendo que me devia alguma explicação. Olhei para a mulher
que ficara parada no mesmo lugar em que ele estivera antes de me abraçar e pensei no que eles
estavam fazendo ali em casa até eu chegar.

— Maya, como eu já disse... então... Beth é minha... hum, minha namorada. Deixe-me explicar,
filha... eu fiquei muito mal com tudo o que aconteceu com você... fiquei mal mesmo... bebi todas e
quase tive uma overdose de álcool... se é que esse é o nome certo pra iss... — riu, sem graça —
Bom, foi Beth que me ajudou... esteve comigo em todos os momentos quando mais precisei e...

O quê?! Aquilo que ele dizia era sério? Ele falava da mulher como se ela fosse a pessoa mais
magnífica do mundo quando na verdade quem dera a vida por ele tinha sido eu, a única que o
aturava!

Eu só tentava agora reorganizar meus pensamentos e compreender o que, de fato, estava


acontecendo. Bom, mas o que estava claro para mim era que meu pai estava ali com uma namorada
nova enquanto eu vivia presa, comendo o pão que o diabo amassara no lugar da dívida que ele
contraíra!

— Olá, Maya, seu pai falou muito bem de você — a mulher esticou a mão para mim, mas não a
cumprimentei. Ainda estava tentando absorver aquelas informações. Percebendo minha cara abalada,
Beth puxou a mão de volta. Não falou mais nada.

— Filha, venha, sente-se aqui. Me explique o que aconteceu para aquele miserável do Heitor
libertar você assim tão fácil. Ele te fez alguma coisa? Se aproveitou de você? Maya, me diga, por
favor, como você está?

— É sério isso? — estreitei meus olhos, tentando fitá-lo melhor — É sério que mesmo que se
preocupa comigo ou com meu estado?

Eu ficava olhando para papai e me perguntando como ele podia agir como se nada tivesse
acontecido comigo. Ou pior, parecia agir como se eu fosse uma filha que acabava de voltar de uma
colônia de férias! Esquivei-me dele, mas continuei fulminando-o com os olhos.

— Eu estive há mais de 24 horas nas mãos do cara que me prendeu por sua causa enquanto você
esteve todo esse tempo aqui bebendo e trepando com sua nova namorada. E ainda quer que eu
acredite que você realmente se importa comigo? É isso mesmo? Bom, quer saber? Eu vou pro meu
quarto.

Bati a porta com raiva assim que entrei no lugar que por toda a minha vida me trazia refúgio e
segurança. Sim, eu estava com raiva. Com raiva por ter sido estúpida esse tempo todo, com raiva por
estar sempre pronta para me sacrificar em prol dos outros.

Suspirei.
Era estranho achar que sabia muito sobre as pessoas quando na verdade eu não sabia nada.
Mesmo as pessoas que sempre estiveram perto de mim. Sempre achei que conhecesse de verdade
meu pai e meu irmão, mas agora me sentia uma tola. Eu nunca tinha conhecido nenhum dos dois.
Papai eu achava que era só um cara inconsequente, irresponsável e doente. Todas as suas atitudes
ruins eram justificadas pela maldita bebida que o dominava, mas agora eu conseguia perceber que o
problema não era só a bebida e, sim, ele. Na verdade, meu pai não era quem eu realmente pensava
que era. Podia ver o quanto ele era um sujeito egoísta e individualista, um sujeito que só pensava em
si mesmo antes de qualquer outra coisa.

Esqueça isso, Maya. Relaxe.

Mas não dava. Minha mente voltou ao passado: minha mãe passara toda a vida aturando meu pai e
o amando, houve uma época em que teve apenas duas mudas de roupa para usar. Isso porque papai
nunca lhe dava dinheiro para comprar quase nada e quando sobrava alguma coisa que ele lhe dava,
ela sempre abria mão do dinheiro para dar prioridade a meu irmão e eu. Preferia se privar de
comprar roupas novas ou outras coisas para a casa porque seus filhos mereciam mais do que ela,
segundo minha mamãe pensava. E lembro que quando meu pai chegava em casa sem o dinheiro que
gastara com a bebida, ele fazia a tão famosa cena que nós conhecíamos.

Quantas vezes ouvi mamãe dizer que ia abandoná-lo, que não dava mais, que ele estava acabando
com tudo, e então papai chorava feito criança, dizia que ia mudar, que precisava de uma nova chance,
até ser perdoado e começar a fazer tudo errado de novo. Eu agora também conseguia entender que
meu pai se aproveitara do coração mole de minha mãe e depois que ela morreu ele passou a se
aproveitar do meu.

Quando eu ficava brava com alguma coisa que ele fazia, meu pai chorava, pedia perdão e se
ajoelhava, me fazendo sentir pena dele. E então, de uma hora para outra eu passava a ser o carrasco e
a errada da história, a filha dura e insensível que não se compadecia do pobre pai alcoólatra. Só que
agora estava claro para mim o quanto meu pai era frio, meticuloso e manipulador. E usava a bebida
para mascarar sua falta de caráter, bem como sua irresponsabilidade.

Chorei. Não por fraqueza ou por tristeza, mas por mágoa. Por pensar que tinha aberto os olhos
somente agora. Não que eu me arrependesse de defendê-lo. Claro que não, afinal de contas, ele era
meu pai e eu nunca iria querer ver seu mal. Contudo, se tivesse me dado conta antes de como meu pai
era de verdade, não teria sido cega a ponto de me ceder no lugar da dívida dele. Caramba! Eu
poderia estar morta agora, poderia ter sido estuprada por uma dezena de homens, e nada disso
mudaria o fato de meu pai ser exatamente quem ele escolhera ser.

Suspirando, deitei na cama e tentei pensar em alguma coisa boa. Quando me dei conta, uma hora
já tinha se passado. De repente alguém bateu na porta e eu gritei que entrasse. Eu sabia quem era.
Papai apareceu, o semblante preocupado. Apesar de tudo, não sabia se ele estava sendo sincero de
verdade.

— Maya... desculpe por ter apresentado Beth daquele jeito. Eu juro que não queria que fosse
assim, mas não sabia que você voltaria de repente... — o cheiro forte de bebida saía por seu hálito.

Eu me ajeitei na cama e o estudei.

— Aposto que ela é uma alcoólatra como você. Pra estarem juntos, devem dividir a mesma
garrafa.

— Ah, filha, ela não bebe, na verdade ela mudou minha vida, já falei. Quando você foi levada,
Maya, eu fiquei muito mal. Pensei em me matar, então um dia eu estava no bar onde Beth trabalha,
começamos a conversar e eu passei a me abrir com ela. Chorei igual criança. Ela me ajudou com
bons conselhos. Depois me ajudou a chegar em casa e tudo aconteceu...

— Uau. Rápido, hein. Enquanto isso sua filha estava em algum canto da cidade trancafiada e
assustada. E tudo por sua culpa! Tudo por sua culpa, pai! Nunca se deu conta disso?

— Por favor, Maya, me perdoe... — suspirou, mas eu não conseguia detectar franqueza — Eu
queria tanto ir até lá e ficar no seu lugar.

— Ah, que mentira — a mágoa me tomou e não me senti mal por ser dura com meu pai, na
verdade, ele precisava ouvir algumas verdades — Não acredito em você. Desculpe, mas não
acredito que se importou tanto assim.

Ele engoliu em seco. Não retrucou. Provavelmente achava que eu estava com raiva dele e de
Beth. Bem, na verdade eu não estava. Só que estava muito magoada para me alegrar com o romance
do casal. Isso ia passar, eu sabia, mas eu estava magoada. E isso também me levava a crer que ele
tinha encontrado uma forma de se distrair enquanto eu estava sem minha vida há dias. Mas nem por
isso odiava meu pai e a namorada dele. Era claro também que nunca mais nossa relação de pai e
filha seria a mesma, até porque eu já não confiava mais no homem que tentei entender e proteger
durante minha vida inteira. E já não aceitaria deixar de viver por ele. Nunca mais.

— Não estou com raiva de vocês. Só quero ficar sozinha. Por favor, me deixe sozinha — voltei a
afundar a cabeça no travesseiro. Queria que meu pai compreendesse que com aquele gesto eu não
queria mais conversar com ele.

— Entendo... estou muito feliz por ter voltado, filha, muito feliz mesmo.

— Não voltei, pai. Só tenho um dia.

Ergui os olhos e vi um ponto de interrogação em sua face.

— Isso mesmo, vim só pra dizer aos meus amigos que estou bem. Satisfeito? Esse foi o trato.
Disse a Heitor que ficaria no lugar da dívida, então vou ficar.

— Vai ter que voltar a ser prisioneira dele? Oh, mas que merda, que safado! Não vou permitir.
Vou ir lá falar com ele, posso...

—Não force ser uma coisa que você não é, ok? Sabemos que não é um bom pai e que não é
corajoso. Eu não estou com raiva de você ou de Beth, já falei. Só quero ficar mesmo sozinha... por
favor — sussurrei.

— Ok

Meu pai se aproximou da porta e saiu por ela, me deixando novamente sozinha no quarto. Fechei
os olhos e comecei a pensar que ali não era mais o meu lugar.

***

Quando o novo dia chegou, eu cumprimentei papai no café da manhã e tentei ser mais flexível com
ele. A raiva já tinha diminuído um pouco, mas ainda assim eu não conseguia ficar super feliz com a
alegria de Beth e dele. Por causa disso, assim que foi possível, deixei a casa. Passei boa parte da
manhã visitando Tati, minha amiga. Ela era uma garota legal e prestativa, daquele tipo que estava
sempre pronta para ajudar se alguém precisasse de uma força. O problema é que tinha uma língua
comprida e eu não sabia se poderia me abrir e falar sobre os meus problemas com ela. Achei melhor
não arriscar. Limitei-me a dizer que estava trabalhando numa casa de família num bairro nobre da
cidade.

— Andei tão preocupada com você, Maya. E aquela dívida com o tal mafioso? O que aconteceu?
Sua família conseguiu quitar? Lamento por não ter conseguido ajudar mais.

— Quitamos, está tudo bem, não se preocupe. Eu agora estou bem— menti. Bom, ao menos Heitor
estava começando a me tratar como gente e também tinha me deixado passar um dia em casa.

— Ok, nesse caso fico mais aliviada... Andreas esteve outro dia desses te procurando. Falei que
não sabia sobre você. O coitado foi embora cabisbaixo. É melhor procurá-lo, se não quer ver o
garoto chorando — piscou.

Ah, Andreas.

Deixei a casa de Tati após um bom tempo de conversa e um almoço delicioso que ela mesma
preparara. Aquele convite havia surgido numa boa hora, afinal, eu não queria mesmo voltar tão cedo
para casa e ter que lidar com os olhares desconfortáveis de papai e de Beth.

Cerca de meia hora mais tarde, procurei por Andreas na lanchonete. Precisava também explicar
para ele e para o senhor Rachide o porquê de não poder voltar a trabalhar lá.

— Por onde andou? Fiquei preocupado... você sumiu e não deu mais notícias... ninguém sabia
sobre você... nem seu pai sabia dizer.

— Estou bem. Só tive um imprevisto... bom, como expliquei a seu pai assim que cheguei, eu
arranjei um novo emprego, Andreas. Quer dizer, não é algo tão maravilhoso assim, mas gosto de
trabalhar em casa de família. Me sinto bem.

— Tá falando sério?

— Sim, e o patrão... — mordi o lábio, pensando no diria sobre aquele loiro perigoso — Bom, ele
me trata muito bem.
Andreas enxugou as mãos no pano de prato e olhou para os dois lados, como se quisesse se
certificar de que ninguém nos veria ali, então abriu a abertura do móvel de madeira e passou por ela,
ficando bem mais perto de mim.

— Nesse caso, gostaria de te convidar pra sair. Podíamos pegar um cinema ou ir a algum evento
hoje. Você pode escolher.

Olhei para Andreas e no fundo senti pena dele e daquela sua persistência. Ele nunca entendera
que não havia nenhuma possibilidade de nós dois ficarmos juntos. E o problema é que mesmo não
querendo ser dura com o garoto, eu precisava dizer 'não' a ele.

— Não posso. Tenho que voltar pro trabalho ainda hoje. Dei minha palavra ao chefe.

— Então vamos sair agora mesmo, ainda há tempo. Podemos pegar a sessão das...

— Eu adoraria, Andreas, você sabe — cortei — mas eu... é que eu realmente não posso, entende?
Vamos deixar pra uma próxima vez.

Sem que eu esperasse, senti lábios macios sobre os meus e duas mãos segurarem minha cintura.
Eu me afastei. Não queria beijá-lo, muito menos dar falsas esperanças para ele, que sempre fora um
amigo bom e companheiro.

Andreas não era feio ou estranho, mas era jovem demais e não me atraía da forma como eu
imaginava que um homem deveria atrair uma mulher. E eu não sentia nada por ele que não fosse
carinho.

No início, até pensei na ideia de nós dois juntos, afinal, ele tinha sido o primeiro cara com o qual
eu me sentia à vontade desde o episódio trágico, mas um romance entre nós dois nunca aconteceu.
Também cheguei a pensar que não gostava de Andreas porque tinha ficado com aversão a homens, até
um loiro intrigante e selvagem surgir na minha frente naquela mesma lanchonete onde agora eu
pisava. Não sabia que um dia chegaria a conviver com Heitor, mas desde o momento em que o vi e
que senti seu sorriso em minha direção, reconheci que aquilo poderia se tornar paixão.

—Desculpe, fui um idiota — Andreas se afastou, me libertando dos devaneios — Não devia tê-la
beijado... foi mal, Maya.
— Tudo bem, esquece.

— Me desculpe, é sério.

— Eu desculpo você, mas agora tenho que ir, ok? — dei-lhe um beijo carinhoso no rosto.

— E quando vai aparecer de novo?

— Eu não sei... agora tenho que ir, Andreas. Adeus.

Ele me lançou aquele olhar de cachorrinho abandonado e senti pena. Saí antes que a despedida
ficasse melancólica demais e também porque estava atordoada. O beijo que Andreas acabara de me
dar só me esfregava na cara o quanto Heitor me perturbava, pois eu não conseguia pensar num beijo
que não fosse o dele. Além disso, tinha medo de querer voltar para os braços fortes de Romano,
mesmo dizendo a mim mesma que essa possibilidade de desejar estar com ele era fruto, apenas fruto
de minha cabeça...

***

— Filha, eu sinto tanto... — falou papai assim que se aproximou para me dar o último abraço, o
de despedida. Eu sabia que o carro de Heitor poderia estacionar a qualquer momento lá fora e, na
verdade, não estava deprimida com a possibilidade de voltar para o domínio dele. No entanto queria
aguardá-lo na esquina da rua e não no portão de casa. Talvez não gostasse da ideia de chamar a
atenção da vizinhança.

Senti o abraço apertado de meu pai, mas eu ainda estava muito magoada para abraçá-lo de volta.
Tão logo me senti livre, peguei a única mala com as coisas que levaria para a mansão, dei passos
firmes e atravessei a porta. Meu pai fez menção de me acompanhar, mas pareceu mudar de ideia ao
notar minha cara fechada.

Sabe quando as coisas começam a deixar de ser tão importantes e você se sente a pessoa mais
indiferente do planeta? Bom, era assim que eu estava me sentindo agora. Como se nada mais valesse
a pena, nem mesmo minha casa ou minha família. Caminhei pela rua, percorri o trajeto, até chegar na
esquina. E foi então que algo surgiu no meu interior. Eu poderia fugir. Sim! Heitor não estava ali para
me ver... ele ainda não tinha chegado... bem, eu podia sumir, afinal, voltar para a mansão de Heitor
ou para a minha casa já não fazia diferença nenhuma. Na realidade eu só queria mesmo desaparecer...
Capítulo 14
HEITOR

— ONDE ESTÁ A GAROTA?

— Ela fugiu!

— Fugiu como? Você é algum idiota, por acaso? —puxei Oscar pelo colarinho da camisa e me
contive para não jogá-lo contra a lataria do carro — Pra onde ela foi?

— Heitor, calma! —pediu, as mãos em rendição — Foi tudo muito rápido... eu fiquei todo o
momento tomando conta da casa, mas quando a garota saiu, achei que fosse pra esquina esperar por
vocês lá —ele falava sozinho porque eu já me afastava e pousava o celular no ouvido.

— Jarbas, Maya não está. Encontre a garota.

— Ok.

Olhei em redor.

Maya tinha sumido. Provavelmente fugido — O que me deixava puto da vida, porque tínhamos
feito um acordo. Ela e eu.

Merda.

— Heitor, ela não pode ter ido tão longe... —alguém atrás de mim falou.

Irritado, segui para a casa de Natanael e sem mesmo chamar, eu a invadi. O homem arregalou os
olhos quando me viu.

— Heitor?

— Cadê Maya? — Natanael tremeu e recuou enquanto segurava uma garrafa de cerveja. Vi uma
mulher a seu lado e ambos me olhavam assustados. Avancei em Natanael e o segurei pelo colarinho
da camisa — Cadê ela? Me fala!
— Eu não sei... eu não sei — estremeceu, parecendo tentar se lembrar do que tinha acontecido
alguns minutos atrás — Maya saiu há meia hora. Ela saiu... ela saiu pra te encontrar, Heitor...

Contrariado e contendo a vontade de esmurrá-lo ali mesmo, soltei Natanael e mandei que os caras
revirassem a casa. Olhei no pulso e eram mais que onze da noite. Peguei o celular do bolso da calça
e pensei em ligar para Jarbas, mas então alguém me interrompeu.

— Nada da garota, já olhamos tudo.

— Certo, ela deve ter mesmo fugido.

Abandonamos a casa. Encontrei outros homens no caminho e dei ordens expressas para que eles
se espalhassem pela região. Queria que Maya fosse encontrada e trazida de volta para mim. E que
isso não demorasse, afinal de contas, logo viraria madrugada e eu não queria ficar perambulando
pelas avenidas sem uma direção específica. Maya não poderia ter ido longe. Estava sem dinheiro e
sem telefone celular. Olhei em redor. Soquei o ar, revoltado por ter sido ingênuo, por ter confiado na
pilantra. Para aplacar minha raiva, acendi um cigarro. Neste momento atendi um telefonema de
Jarbas.

— Heitor?

— Nada da garota. Vamos rodar as avenidas. Quero que volte pra casa do pai dela e fique de
guarda, caso ela apareça. É provável que tente.

— E se aparecer, o que faço?

— Trague-a pra mim. O resto eu resolvo. E, Jarbas, não vai tocar na garota.

— Tá certo.

Desliguei.

Enquanto dava mais uma tragada no cigarro, o telefone voltou a tocar. Era Theo.

— Fala, mano.
— Heitor! Aquele cara chegou. Esqueci o nome dele... ah, o comparsa do Del Rei.

— Chucky — Maya tinha consumido todos os meus pensamentos e eu esquecera completamente


de Chucky e de que ele chegaria a qualquer momento. Eu devia recepcioná-lo com minhas honrosas
boas-vindas, entretanto não era o momento certo para a chegada de um amigo. Ou no caso de Chucky,
amigo de um amigo.

— O cara veio se apresentar. Procurou por você.

— Receba-o com todas as pompas, como se deve a um dos nossos. Infelizmente não vou poder
voltar tão cedo. Maya fugiu e vou procurá-la.

— A garota fugiu? —pareceu conter uma gargalhada.

— Vou encontrá-la, Theo, não tenha dúvidas. Receba o comparsa de Feroz e avise a ele que em
breve vou estar de volta. E com Maya. Pode acreditar.

Rompi a ligação. Pensei no que Theo devia estar pensando que eu faria com a garota. Eu não a
machucaria. Ela estava se tornando muito especial para mim. Mais do que devia. Entrei num dos
carros e joguei o cigarro para fora da janela. Inspirei o ar, embora ele não fosse tão puro agora.
Percebi que as horas voavam e que à medida que a noite ia indo embora, a ideia de achar a morena
audaciosa ficava ainda mais urgente.

***

Mais de uma hora e nada.

Fiz sinal para que o carro desse mais uma volta pelo local onde estivéramos tempo atrás.
Tínhamos nos afastado por causa da polícia que havia parado numa das avenidas principais. Quando
voltamos, a viatura já não estava mais lá. Foi quando decidi descer para averiguar o lugar. Sem falar
que ficar por horas sentado no estofado do carro já estava me deixando mal-humorado. Vi uma
carrocinha de cachorro quente. O homem já estava prestes a ir embora quando eu o abordei. Ainda
havia um pequeno movimento de carros e pessoas, e quando perguntei se ele tinha visto alguma
mulher com as características de Maya ele me deu novas pistas.
— Eu vi sim uma garota do jeito que o senhor tá falando... ela era morena, cabelos longos e
pretos. Parecia assustada, meio nervosa. Estava pedindo dinheiro no ponto do ônibus e acho que
pensaram que ela era viciada em drogas.

— E pra onde ela foi? Você viu?

— Infelizmente não, mas deve ter se metido no meio dos trombadinhas...

— Há muitos deles por aqui?

— Se tem —riu, fazendo um gesto com os dedos — Ás vezes os safados batem na carroça e me
lançam pedras. Ás vezes me ameaçam com pau se eu me recuso a dar lanche pra eles. Ás vezes os
filhos da mãe querem meu dinheiro e eu grito: vão trabalhar, seu bando de vagabundos!

Dei mais uma mordida no hot dog que o sujeito vendera, pensando na ideia de Maya caminhar
sozinha e sem dinheiro pelos pontos perigosos da cidade. Senti um embrulho no estômago, um
sentimento estranho. E agora mais do que nunca decidi que não iria embora até encontrar a garota. E
tinha que ser o mais rápido o possível. A noite ia embora e a madrugada se aproximava, e por mais
que eu não devesse me importar com a integridade física daquela cretina mentirosa e fujona, eu me
importava. Me sentiria mal se alguma coisa acontecesse com ela.

— Deseja mais alguma coisa, senhor? —o ambulante perguntou — Vejo que não é daqui.

— Está tudo bem — limpei a boca com o guardanapo quando terminei o lanche. Bebi um último
gole do refrigerante e amassei todo o lixo, formando uma bola de papel, então lancei tudo numa cesta
de lixo à distância, como se fosse uma bola de basquete. Acertei. Sorri. Era bom naquilo. O homem
me olhou impressionado. Tirei mais uma nota do bolso da calça preta, que provavelmente ainda
estava alinhada, e ofereci uma generosa gorjeta a ele, que olhou o dinheiro entre os dedos, admirado.

— Obrigado, senhor, obrigado! Que Deus lhe pague! Obrigado.

— Valeu pelas informações. E o podrão estava muito bom.

Os olhos do homem brilharam enquanto ele assentia em silêncio.

Dei-lhe as costas e segui sem rumo. O audi me aguardava na esquina da rua e Sony e Oscar
também não me perderiam de vista. Percebi que o carroceiro seguiu feliz da vida seu caminho e
então a rua ficou completamente silenciosa e deserta. Algo me dizia que encontraria Maya. Se ela
não estava na casa do pai, não poderia ter ido a lugar nenhum. Deixei os caras espalhados em pontos
estratégicos. Alguns estavam sondando a casa da amiga dela e outros sondavam a do amigo — as
únicas pessoas que ela conhecia, além do pai. Olhei pelos cantos sujos do bairro, pensando que não
seria difícil se a garota estivesse escondida por ali. Algum lugar bem escondido, mas não tão seguro
assim.

Eu estava cansado e faminto. O lanche comido, embora delicioso, não aplacara minha fome.
Caminhei mais alguns metros e foi então que ouvi um barulho. Vozes. Mais de uma pessoa. Alcancei
a esquina da outra rua e de longe vi a cena. Três trombadinhas tentavam agarrar uma garota. Ela se
debatia, tentando se defender. Não conseguia lutar contra eles, mas ao menos ela tentava. Estreitei os
olhos e reconheci Maya. Era ela, eu não tinha dúvidas.

O sangue subiu e com uma fúria insana, avancei no primeiro miserável, o que estava mais perto
de mim. Com um puxão, eu o virei e o acertei com um soco bem dado, que o fez voar longe. Chutei
seu canivete para dentro de um ralo. O miserável saiu cambaleando. Puxei o segundo pivete e o
joguei com força contra o muro sujo da avenida e lá esfreguei sua cara. Ele gritou e gemeu, e então
encontrou o chão. E foi então que o terceiro trombadinha me encarou, também com um canivete na
mão.

Com mais raiva ainda, me dirigi ao terceiro verme. Ele ergueu a arma, me ameaçando, e quando
se inclinou para me dar o primeiro golpe, eu me desviei e em seguida o acertei com um murro que o
fez quase cair para trás. Puxei-o pelos cabelos imundos e o esmurrei outras vezes, até o filho da puta
desmoronar, quase sem sentidos. Os outros dois primeiros saíram correndo sem rumo pelo outro lado
da avenida. Olhei para o que ficara estirado no chão e constatei que estava mesmo grogue.

Com a respiração acelerada por causa da adrenalina, voltei-me para Maya, que estava em estado
de choque, agachada num canto do muro, como um animal indefeso. Estava suja, trêmula e abatida.

Sem dizer nada, ergui a morena como se ela fosse uma folha de árvore e gostei quando suas mãos
frágeis abraçaram meu pescoço. Não pensei em mais nada. Não pensei em brigar, xingar ou mesmo
reclamar por ela ter fugido. Apenas percorri o caminho de volta com ela em meus braços. Eu a tinha
encontrado. Era isso o que importava.
Maya pousou a cabeça em meu ombro e pareceu estar aliviada.

***
MAYA

PASSEI TODO o fim de noite pedindo, implorando, suplicando por ajuda. E quando desconfiava
de que um dos capangas de Heitor iria aparecer por algum ponto onde eu estava, eu me escondia em
outro. As pessoas passavam por mim com o nariz retorcido e com o olhar acusatório cheio de
desconfiança. Era porque eu estava suada, cansada, descabelada e com uma aparência de quem não
comia há vários dias. Mal sabiam que eu era apenas uma garota confusa, que precisava de ajuda.
Estava com fome e exausta por andar durante tanto tempo sem rumo, sem ter dinheiro para comer ou
para matar a minha sede. E não podia sair dali, já que ninguém aceitava pagar minha passagem de
volta para casa. E os motoristas dos ônibus se recusavam a dar carona.

Tempo mais tarde, a noite ficou ainda mais fria e por isso me abracei, pensando que agora meu
pai morreria e seria tudo culpa minha. Eu tinha fugido e quebrado a promessa que fizera a Heitor. Eu
tinha agido como uma garota imatura e estúpida.

Eu estava confusa.

Eu estava com medo.

Levei as duas mãos ao rosto e chorei. O que eu tinha feito? Por que tinha colocado tudo a perder?
E se meu pai morresse? E se todos morressem por minha causa?

Sentada no canto da calçada, olhei ao redor e me senti como uma mendiga ao lado de outros
moradores de rua. Todos muito sujos e mal alimentados. Pensei se logo me igualaria a eles.

As pernas estavam doloridas de tanto caminhar à procura de ajuda, mas me levantei decidida a
encontrar abrigo e refúgio para poder passar aquela noite. Não tinha mais forças nem vontade para
voltar para casa caminhando. Rezei em silêncio para que a garoa não caísse e para que eu
conseguisse ficar bem.

Havia pivetes andando por tudo que era parte e as viaturas da polícia passavam tão depressa que
eu não conseguia sequer pedir ajuda.

Quando a noite finalmente findou, dando lugar a uma quase madrugada escura e traiçoeira, peguei
uma caixa de papelão para me proteger do frio. Ponderei o quanto era ruim passar a noite fora de
casa, sem abrigo, sem proteção. E além disso, preocupada com quem amávamos. Eu estava com
medo. Mas acima de tudo, estava com raiva de mim mesma por ter colocado a vida de outras pessoas
em risco. A culpa tinha sido toda minha.

Abri os olhos minutos depois, percebendo que o sono tinha me pegado. Eu cochilara. Pisquei e
deparei com uma rua estreita e deserta. Agora eu sentia o que os moradores de rua sentiam. Era ruim
ficar sozinho na rua. As pessoas tinham desaparecido e eu me sentia abandonada e excluída. E o
medo não dava trégua. Tentei me encolher, mas então um rosto estranho surgiu. Ele não tinha todos os
dentes na boca e estava com uma roupa marrom de sujeira. E sorria para mim enquanto se
aproximava, olhando para os dois lados para ver se mais alguém apareceria. Assustada, me afastei.
Aquele sorriso me dava medo. O pivete chegou bem mais perto e procurei algo com o qual pudesse
me defender, mas havia apenas um pequeno pedaço de madeira no chão. Apontei a madeira para ele.
Não sabia de onde havia tirado tanta coragem, mas eu o enfrentaria. Ele não me mataria a bel prazer.
Todavia outros dois pivetes apareceram. Dois deles começaram a dar risadas sinistras enquanto os
três me encurralavam. Xinguei.

O primeiro pivete tomou a madeira de minha mão enquanto os outros dois me tocavam. Gritei.
Eles davam risadas e eu tentava inutilmente brigar como um cão. Eles levariam a melhor, eu sei que
levariam. Era aquela frase que eu repetia a vida toda. Meus olhos estavam parados enquanto os dois
me chupavam e me seguravam. Eles iam levar a melhor. Eu já não tinha forças para lutar. Foi quando
de repente uma quarta sombra surgiu e afastou o primeiro pivete para longe de meu corpo. O
desgraçado caiu ao chão e só então me dei conta de que Heitor estava ali comigo.

Heitor! Sua expressão era de raiva e seu olhar como duas brasas de fogo estavam fixos no sujeito
que estava atrás de mim. Heitor o jogou contra o muro gelado e sujo. Tentei me livrar dos outros
dois, mas não consegui. Vi Heitor puxar o segundo delinquente e surrá-lo, e então este também ficou
estirado no chão. Me vendo livre do último deles, me refugiei no outro lado do muro. Me deixei cair
ali enquanto observava a cena.

Heitor agora avançava no terceiro rapaz e me assustei quando o desconhecido apontou para ele
um canivete. Mas tudo foi muito rápido e então Heitor o socou, até ele cair quase sem sentidos. Neste
momento vi os outros dois primeiros correrem desesperadamente. Tive ânsia de vômito. Achei que
fosse morrer. Estava gelada e trêmula, ainda agachada no muro sujo.
Heitor ignorou o pivete que estava quase desmaiado antes de dar passos determinados em minha
direção. Nossos olhos se encontraram e me perguntei se ele me mataria agora. Mas não. Ao invés de
me apontar uma arma, me ergueu com facilidade e pela primeira vez me senti bem em sua companhia.
Abracei seu pescoço cheiroso e deixei que minha cabeça pousasse em seu ombro largo e
reconfortante.

Eu só queria ir para casa.

Cerrei os olhos e desejei que Heitor nunca mais me soltasse.


Capítulo 15
MAYA

ERA BOM ESTAR nos braços de Heitor. Era bom porque ele era forte, cheiroso e agora era
também delicado comigo. Mais do que fora antes. E isso me deixava ainda mais confusa, como se
minha mente fosse uma névoa ou uma carta bagunçada numa mesa de baralho. E eu não tinha mais
medo, nem sentia desprezo. Heitor tinha me salvado. E seu peito era sólido... muito sólido e
aconchegante. Suas mãos grandes e mornas me davam a sensação de conforto e segurança. Estar em
seus braços era como ficar em paz... e sua fragrância deliciosa em minhas narinas me deixava
completamente vulnerável... mais do que era recomendável. Talvez eu só estivesse atordoada...
talvez eu só estivesse ficando louca... talvez eu só estivesse começando a ficar apaixonada... Céus!
Apaixonada por Heitor Romano?!

Mantive meu rosto contra seu peito musculoso enquanto ele andava. Pensando bem, não
importava. Amá-lo não parecia ser algo tão horrível agora. Ele tinha me salvado, tinha demonstrado
mais preocupação que meu irmão e meu pai demonstraram em anos. Heitor tinha passado a noite toda
me procurando.

Entramos no carro e foi só desta vez que abri os olhos. Lá dentro era quentinho e silencioso e eu
gostava da sensação de calor e aconchego humano, apesar de eu ter a plena consciência de que
estava de volta às garras do meu algoz, do homem que mantinha vários capangas à seu dispor, e mais
que isso, que possuía a estranha capacidade de me desestabilizar. Querendo ou não, eu precisava
admitir isso.

— Eles machucaram você? — Heitor sussurrou baixinho, mas não tive condições de erguer os
olhos para encarar os dele. Eu lutava contra os tremores do corpo, que visivelmente ainda me
dominavam, lutava contra meu medo e contra a minha insegurança. Era estranho me sentir bem e
segura logo na presença do cara que era o meu carrasco, contudo eu não podia fingir que estava
indiferente à sua nova maneira de me tratar. Ele podia ter vários defeitos, mas foi quem me protegeu
e quem agora me levara para a segurança do próprio carro. Heitor poderia não ter dado a mínima
para mim, poderia ter se divertido com a cena dos caras me violentando, poderia ter me ignorado ou
me abandonado lá na avenida à minha própria sorte, mas ao invés disso me resgatou. De alguma
forma ele se importou.
O carro andou. Durante o longo trajeto, nenhuma voz foi entoada, nenhum suspiro ou mesmo um
sussurro fora ouvido. Os caras do banco da frente seguiram, calados, e pensei se não era por alguma
ordem velada de Heitor.

Eu já não tremia mais. Ás vezes eu achava que Heitor me olhava. Ás vezes eu achava que ele me
estudava, ás vezes aquele banco traseiro parecia muito pequeno para nós dois e ás vezes também seu
cheiro perigosamente gostoso me desestruturava.

— Ligue o aquecedor, Sony — a voz grossa mandou e logo a sensação de quentura me envolveu
completamente, me fazendo pensar no quanto estava começando a apreciar a companhia dele. A cada
minuto que passava Romano me impressionava mais.

Quando Heitor se distraiu com algum dos comparsas da frente, espiei pela primeira vez. Ele
parecia cansado. Notei que seus olhos estavam abatidos e sua voz afetada. Pensei no quanto me
procurar lhe custara tempo e energia.

Como eu ainda o fitava, ele pareceu ter me flagrado. Nossos olhares se cruzaram por dois
segundos, até eu voltar a pousar minha cabeça em seu peito quente, pensando que deveria agradecer.
Ao menos agradecer.

Isso, Maya, agradeça. Não custa nada.

Voltei a encará-lo. Tentei dizer algo, mas o azul violeta dos seus olhos em minha direção me
deixou hipnotizada. Ele continuou me fitando. Parecíamos estar disputando quem daria o braço a
torcer primeiro.

— Obrigada — murmurei, por fim.

Heitor não mudou de expressão. Continuou me olhando serenamente, calmamente, até que
finalmente acarinhou meu queixo e respondeu com um leve "de nada". Notei que seus traços eram
suaves quando ele não estava bravo. E apesar de seu rosto ser um pouco quadrado, o queixo firme,
completamente másculo, Heitor Romano tinha algo enternecedor em sua fisionomia.

Quando o carro estacionou no belo jardim da casa, algum tempo mais tarde, concluí que tínhamos
voltado à mansão. Fui agredida pela fúria dos ventos frios daquela madrugada gélida ao sair do
automóvel. Não consegui deixar de me abraçar, principalmente pelo fato de ter saído da quentura de
onde em momentos atrás eu me banhada. Sensível ao meu estremeço, Heitor fez algo ainda mais
surpreendente: tirou o paletó do próprio corpo e me cobriu com ele. Atônita com aquele gesto
delicado, fitei seus olhos, mas não encontrei nada neles que não revelasse piedade. Heitor tinha pena
de mim. Bom, ao menos naquele instante ele tinha.

— Venha, morena, vamos entrar — me tocou de modo contido enquanto me conduzia pela casa. E
pela primeira vez em dias eu me senti segura naquele lugar.

Subi a escada em direção ao quarto onde eu me "hospedara" desde que aceitara viver com Heitor
e por alguma razão ainda não tão clara em minha cabeça adorei sentir o perfume do paletó dele
quente inebriando-me, que ainda de quebra baralhava minha mente. E desde então já lamentava por
ter que em algum momento me afastar daquele cheiro.

— Não devia ter fugido, morena— falou, segurando a porta do quarto ainda aberta — Achei que
tivéssemos um acordo.

— Você machucou meu pai?

Ele pensou no que dizer e por um instante meu coração disparou.

— Não, não machuquei.

— Prometo não fugir mais. Nem tentar— mordi o lábio, me sentindo patética — eu acho que
estava... um tanto confusa.

Heitor largou a porta e deu três passos, ficando bem próximo a mim. Ergueu a mão e, insegura,
virei o rosto, pensando que ele fosse me bater. Mas para o meu alívio e a minha surpresa, ele me
beijou. Um beijo fraco e delicado, superficial. Achei que ele fosse insistir no ato, mas então, para a
minha confusão, Heitor se afastou.

— É melhor descansar, Maya— murmurou, me dando as costas, e então sumiu de meu campo de
visão. Só neste momento liberei o ar acumulado no pulmão. Afundei na beirada da cama e levei a
mão aos lábios. Ele tinha me beijado. E aquilo não tinha sido ruim.

Deitei na cama e pensei.


***

A porta se abriu e avistei alguém parado nela. O moreno. Theo. Ele estava num terno cinza. Não
estava sorrindo, mas sua expressão me tranquilizava. Ele era um desconhecido, mas ainda assim não
me assustava. Bom, era estranho pensar em dois mafiosos ou seja lá o que Theo fosse (talvez ele só
fosse o pau mandado do irmão) mas o curioso era imaginar que ele não me intimidava ou colocava
medo. E ao contrário do Heitor, que estava sempre mais agitado e dando ordens, Theo parecia levar
tudo na brincadeira.

— Então quer dizer que você tentou fugir, moça difícil?

Não respondi, mas aquela mania dele falar não me deixava incomodada, embora não tivéssemos
trocado muitas palavras ao longo dos dias que eu ficara presa naquela casa. Theo tomou a liberdade
de entrar no quarto e me perguntei o que ele queria uma hora daquela falar comigo. Será que ele não
tinha relógio? Não, ele tinha. Olhei para seu pulso e mesmo coberto pelo paletó dava para ver o
reflexo de algo brilhante, que deveria ser o relógio de ouro. Bem, eu é que não tinha nenhum relógio
ali perto para consultar a hora, mas nem por isso eu deixava de perceber que era madrugada.

— Sabe, Maya... é Maya o seu nome, não?

— É — murmurei, séria, dizendo a mim mesma que por mais que ele e o irmão dele fossem
homens fortes e poderosos, eu não abaixaria minha cabeça. Afinal, já tinha até mesmo fugido de
Heitor. O que me faltaria agora?

— Isso, Maya. Sabe, Maya... acho que você fez uma coisa incrível esta noite.

Analisei sua feição e me perguntei o que ele queria dizer com aquilo, todavia me recusei a
questionar. Me ajeitei na cama. Theo continuou:

— Sim, incrível. Tem noção do que Heitor está sentindo por você agora?

— Raiva?

— Não — me olhou como se algo muito maravilhoso tivesse acontecido e que ele não quisesse
me contar. E se ele não falava, eu é que não ia perguntar. Não podia esquecer que por mais que Theo
parecesse um sujeito mais maleável, ele era o irmão do Heitor, e nunca ficaria contra Heitor. Por isso
resolvi manter uma postura séria, até mesmo para me preservar de Theo ou das perguntas dele.

— O que você quer?

— Não é boa com as palavras, né, moça?

Pela primeira vez pensei nisso. Dei de ombros. É, eu não devia mesmo ser.

— Ao contrário de você — rebati e, diferente do que imaginei, ele riu. Apenas riu.

Theo ajeitou a calça social antes de se sentar numa mesinha perto da cama.

— Sabe, Maya, quando éramos pequenos, Heitor e eu, bom, minha mãe sempre nos dizia que eu
era afetuoso e terno, e ele escondia as coisas. Acho que ela queria dizer os sentimentos. Heitor nunca
foi bom em revelá-los. E agora pensando no que aconteceu hoje entre vocês dois, eu não sei, mas... o
fato é que você conquistou meu irmão. Isso. O que é fabuloso porque ele é um cara mulherengo, que
não tá nem aí pra nada. E vou além: ouso dizer que nunca antes uma garota mexeu tanto com Heitor
como hoje você mexeu.

Pisquei os olhos que por segundos estiveram parados, atentos aos movimentos de Theo enquanto
ele falava.

— Tá brincando.

— Não.

Engoli em seco.

— Bom, e provavelmente você acha que eu deveria ficar lisonjeada com isso, não é?

Ele sorriu, debochado.

— Mas é claro. Que garota não ficaria?

— Bom, eu ainda estou presa aqui, então... não sei ao certo o que pensar disso tudo, embora
Heitor tenha me salvado.

Parei de falar e só agora comecei a me sentir incomodada com a forma como Theo me olhava. Na
verdade, eu queria ficar sozinha. Por que ele não me deixava sozinha e em paz? Não precisava ficar
falando aquelas coisas sobre Heitor e eu. Até porque eu não podia mesmo confiar na ideia de que
Heitor gostava de mim, apesar do beijo. Ele me salvara, claro, também me beijara, mas era tudo
ainda muito... relativo.

— Lembra quando eu sugeri que dançasse conforme a música, moça? Acho que fez direitinho seu
trabalho de casa. Meus parabéns— piscou antes de se levantar. Theo fechou o botão do paletó cinza.
Percebi que sua camisa era azul escura por dentro. Pensei no que ele acabara de dizer, mas não quis
lhe dar o gosto de perguntar. Me senti mais aliviada quando ele simplesmente seguiu até à porta. Com
ela aberta, se virou novamente para mim, como se tivesse lembrado de alguma coisa.

— Se precisar de uma força, pode contar comigo. À propósito, sabe o que dizem sobre os irmãos
do meio?

Hã?

Meneei a cabeça, dizendo que não.

— Bom, dizem que eles são sempre os mediadores das situações. Por isso ficam no meio —
piscou outra vez, oblíquo. Em seguida, saiu.

Voltei a pousar a cabeça no travesseiro, aliviada por estar sozinha outra vez. Mexendo na ponta
de meu cabelo, pensei nas palavras de Theo e no que ele dissera a respeito de Heitor gostar de mim.
Pensei principalmente no meu loiro perigoso e no que acontecera desde o minuto que ele me
resgatara na rua. Eu poderia estar morta agora. Poderia ter sido violentada por três caras antes disso.
Mas Heitor chegou na hora.

Lembrei do beijo que ele me dera. E pelas coisas que Theo falara, era bom saber que Heitor não
tinha raiva de mim e principalmente, era bom estar de volta em sua casa. Era doideira pensar assim,
mas como a minha casa já não era mais tão especial para mim, não achava tão difícil me acostumar a
ficar na mansão.
Capítulo 16
MAYA

OS DIAS SE PASSARAM e as horas não eram tão insuportáveis como foram nos primeiros dias
em que cheguei naquela mansão. Heitor desde o episódio da avenida me tratava melhor. Porém não
estava mais perto como eu imaginava que ele fosse ficar. Eu até me animara com a ideia, porém ele
estava afastado. Como se quisesse de alguma forma me evitar. Como se tivesse se abalado também
com a maneira como ficamos mais próximos nos últimos dias e eu não entendia a confusão que estava
misturando meus sentimentos. Era um misto de tristeza, frustração e decepção.

Ás vezes eu queria Heitor por perto e queria que ele me chamasse para tomar o café da manhã a
seu lado. Ás vezes eu queria ele distante de mim e tinha medo das minhas reações em relação a ele.
Ás vezes eu descia para fazer algum serviço da casa e tinha uma sensação boa quando Heitor estava
presente no cômodo. E quando ele não estava, eu me sentia desanimada, frustrada, como se o dia não
fosse tão mágico sem a presença dele.

Era como se minha razão não fizesse mais sentido. Eu era uma espécie de prisioneira voluntária e
não tinha mais nada a esperar da vida. Meu emprego já havia ficado para trás, meus amigos também,
no entanto eu já não me importava mais tanto com o fato de Heitor me afastar de todos que eu gostava
porque agora eu também gostava dele e a sua companhia meio que também me deixava mais feliz a
cada manhã em que eu despertava.

Eu não queria namorados. Aliás, fazia anos que eu não tinha nada com homem algum. Muitos
anos. Ás vezes eu tinha pavor dos homens, ás vezes também eu tinha medo de mim, ás vezes eu
achava que nunca seria feliz com ninguém, que eu nunca encontraria alguém que me passasse
seriedade e segurança. Ás vezes eu ficava confusa. Ás vezes desejava esquecer o que aconteceu
comigo e mergulhar numa relação amorosa. O problema é que ás vezes também eu perdia fé no amor.

Heitor tinha saído desde cedo naquela tarde. Tinha me deixado na companhia de Carla e de
Chucky. Carla era uma mulher legal, justa, gentil. Me arranjara roupas e sempre conversávamos
quando não tinha ninguém nos espiando. Ela gostava de Heitor, respeitava-o. Talvez ela visse nele o
que levei algum tempo para ver. Sim, pois Heitor não era insensível como eu pensava. Tinha suas
limitações, mas era bom em outras coisas e eu agora enxergava-o de um jeito diferente.
Ouvi um pigarro de repente e percebi que Chucky estava por ali. Ele era mal-encarado. Tinha
cabelos fartos e rubros, olhos severos e uma cicatriz um pouco assustadora no rosto. Tinha algumas
tatuagens estranhas pelos braços. Ele não sorria. Nunca sorria. Ao menos desde que o conhecera
nunca o vi sorrindo. Era diferente de Heitor, que na maioria das vezes tinha a expressão facial mais
suave e feliz.

O sorriso de Heitor era lindo e verdadeiro. Já o de Chucky eu não conhecia. Ele era novo no
grupo, mas ao que parecia, Heitor gostava dele. E confiava nele. Confiava tanto, que me deixava
sozinha na companhia do homem.

Bom, ou talvez Heitor não se importasse comigo tanto quanto eu gostaria que se importasse.

Voltei a varrer o chão quando vi a porta dupla de madeira se abrir e ouvi vozes entrarem por ela.
Apesar dos tremores do corpo, tentei me concentrar na vassoura que estava em minhas mãos. Logo vi
Heitor e o irmão dele, Theo, entrarem, porém me recusei a virar para eles..

— Tudo bem por aqui? — Heitor perguntou a Chucky, que deve ter feito algum sinal positivo,
porque depois não ouvi ninguém perguntar mais nada.

— Certo, vamos ver o futebol.

Futebol? Eles viam futebol? Não achei que mafiosos daquele porte perdessem tempo com
televisão. Aliás, não pensava que aqueles homens sempre tão elegantes e ocupados, tivessem tempo
para qualquer outro entretenimento que fosse, além de bebidas e mulheres.

— Opa, que tal alguma coisa pra comer? Liguem a TV — Heitor mandou antes de passar por mim
e murmurar que eu o acompanhasse, me puxando pelo braço e me surpreendendo.

Passamos pelo longo corredor, mas antes de sair da sala pude avistar Theo e Chucky sentados no
sofá. O primeiro procurava os canais no controle remoto e o segundo só olhava, parecendo relaxar
com um cigarro na boca.

Segui Heitor até à cozinha imperiosa da mansão e pensei que era a primeira vez que eu entrava
ali. Desde que chegara naquela imensa casa ele só me deixava ficar na sala de estar, na sala de jantar
ou fazer arrumações em outras partes do lugar. Nunca na cozinha, no escritório e, claro, nunca no
quarto dele, que ficava no mesmo corredor que o meu.
— Por que varre a casa? Já disse que não precisa bancar a empregada — sorriu, debruçado na
bancada de mármore, me fitando.

— É algo que gosto de fazer — dei de ombros — Me distrai.

E, de fato, me distraía mesmo. A ideia de eu fazer as tarefas na mansão era também uma forma de
driblar Carla, a governanta, para que ela não desconfiasse de quem eu verdadeiramente era e do que
eu representava para Heitor.

— Que tal me ajudar a preparar alguma coisa pra comer? — segurou minha mão e a massageou
carinhosamente. Depois do beijo que me dera dias atrás, não sabia claramente o que Heitor queria
comigo. Ás vezes tinha a impressão de que assim como eu, ele também estava confuso.

— Não sou muito boa na cozinha — resmunguei, no mesmo instante em que ele soltou minha mão
e passou a andar pelo lugar. De onde estava, Heitor me olhou. Por um momento achei que fosse
explodir em gargalhadas. O semblante era de sarcasmo e de divertimento.

— Ah, não brinca — pegou algo da geladeira duplex inox e vi que eram embalagens de pizzas e
outras coisinhas gostosas. Não consegui entender como ele conseguia manter aquele físico impecável
comendo tantas porcarias — Isso aqui, Maya, é só assar — seu ar era de brincadeira — Pode usar o
microondas, guria. Tá vendo ali no canto? Temos um. Além do mais, eu mesmo poderia fazer isso
sozinho, mas eu queria mesmo você aqui comigo — chegou tão perto que pude sentir o frescor de seu
hálito menta em meu rosto.

— Quer que eu prepare as pizzas então? — murmurei, me sentindo confusa com toda aquela
proximidade.

— Não, quero um beijo seu, na verdade — riu, me olhando como quem só queria me testar.

Nos encaramos. Heitor inclinou um pouco o rosto, parecendo tentar decifrar o que meus olhos
queriam dizer, até diminuir a distância entre nós dois.

— Isso é tão terrível assim? Um beijo meu?

Virei o rosto, me sentindo desconfortável, mas então voltei a me virar para ele. Por mais que
sentisse medo de me envolver e de quebrar a cara, gostava da companhia de Heitor e não podia mais
negar que estava tocada por sua presença. O cara forçava toda aquela casca grossa, parecia ser
marrento e tudo, mas tinha uma forma de me proteger que nenhuma pessoa demonstrara ter antes. E
me deixava balançada.

De repente, sem que eu estivesse preparada, Heitor colou os lábios nos meus, e fechei os olhos,
me preparando para ele. Na verdade, precisava dele. Precisava muito dele.

— Quero muito você... — sussurrou em minha boca entreaberta, despertando em mim sentimentos
confusos e contraditórios, me atormentando, me fazendo desejá-lo ainda mais — É sério, quero muito
você, morena...

Sem ponderar o que fazia, fiquei na ponta dos pés e agarrei seu pescoço duro. Heitor desceu suas
grandes mãos em minha cintura, em seguida em meu traseiro, me deixando ainda mais afetada. Adorei
a sensação de estar quase flutuando. Era bom ter suas mãos grandes ao redor de meu corpo, me
sustentando. Também era bom sentir sua barba em meu rosto enquanto sua língua cobria a minha e
virava minha face de um lado para o outro num beijo ardente e poderoso. Seu gosto era bom, ele era
cheiroso e a temperatura de seu corpo era quente. Não queria mais que ele parasse... oh não... estava
muito bom... não pare, Heitor... não pare, por favor.

Quando seus lábios abandonaram os meus e percorreram o meu rosto, descendo agora em meu
pescoço, eu gemi baixinho. Toquei sua face bonita carinhosamente e voltei a beijá-lo, dessa vez
voltando a tomar a iniciativa.

De repente alguém gritou por Heitor e ele acabou se afastando.

— Acho melhor eu preparar as pizzas... — murmurei, levando os dedos aos lábios molhados.

Uau.

O que tinha sido aquilo?

Quando Heitor se foi, me deixou ao mesmo tempo atônita e viva. Pensei no que aconteceria se
ninguém tivesse o chamado. Bom, eu poderia ter me entregado a ele. Céus! Poderia ter me entregado
naquela cozinha! E apesar da loucura que seria, aquela ideia não me assustava. Obviamente eu devia
ter resistido ao beijo, mas não foi o que fiz.
Caramba.

Deixando os devaneios de lado, peguei as embalagens das pizzas e fui com elas até o microondas.
Até que era legal ficar naquela cozinha adornada, era bom olhar em redor e admirar sua decoração.
Ela era grande, ampla, bonita, luxuosa, tinha tudo o que qualquer pessoa poderia querer ou precisar.

Sem gastar muito tempo, abri o forno, tirei a massa da embalagem e a pus dentro de um prato. Em
seguida olhei as indicações. Não tinha microondas em casa e não sabia mexer direito em um. Papai
bebia tanto e estava sempre afundado em dívidas que nunca tínhamos dinheiro para comprar uma
lavadora, ar-condicionado ou um forno desse. Suspirei aliviada por saber que apesar de tudo meu
pai estava bem. Mesmo quando eu fugi, Heitor não se vingou dele. E aquilo, de uma certa forma,
também contribuiu para eu me encantar ainda mais por Romano.

Alguém apareceu na cozinha, tomando minha atenção.

— Olá.

Era Theo.

— Oi — forcei um sorriso. Fazia dias que costumava ser assim. Heitor saía e Theo aparecia. E eu
nunca conseguia entender direito suas reais intenções. Não conseguia decifrar se eram boas ou más.
Theo agora mesmo, por exemplo, sorria para mim.

— Relaxe, vim só pegar as cervejas... então você vai preparar os lanchinhos pra gente? — abriu a
geladeira compactada e tirou três latinhas de cerveja lá de dentro.

— É, parece que essa é a minha função — dei de ombros, pensando se seria bom fazer uma
amizade bacana com ele. Ao menos ele era irmão do Heitor. E era óbvio que poderia me dar muitas
informações sobre o loiro perigoso, mesmo que indiretamente.

— Bom, pelo menos já pode sair do quarto — seu tom era de brincadeira. Não respondi dessa
vez. De repente Theo se aproximou de mim e me senti desconfortável com aquele olhar escuro em
minha direção. Seus olhos eram castanhos, bem diferentes dos azuis violeta do irmão.

— Você tem namorado, Maya?


— Eu? Bom, não... por quê?

— Ah, entendo, senão ele estaria louco atrás de você.

Inspirei o ar e o soltei levemente. Desviei meus olhos dele, não querendo falar sobre minha vida
pessoal, ainda que Theo não parecesse ser uma pessoa má. Bem, na verdade eu não sabia nada sobre
ele, exceto que era irmão de Heitor, que Theo também lidava com os negócios da máfia e que era o
filho do meio. E, evidentemente, se Theo era o filho do meio, significava que ainda havia um
terceiro.

— Você tem olhos bonitos — me dei conta de que ou ele queria ser simpático demais ou queria
me cantar. Resolvi ficar com a segunda opção. Mas eu não estava nenhum pouco interessada em sua
paquera, nem em seus sorrisos ou elogios. Não quando não parava de pensar em Heitor e no que
fizéramos minutos atrás.

De repente o timer apitou e corri para ver a pizza. Tirei ela com cuidado do forno e me assustei
ao me deparar com Theo. Tentando não me sentir tão intimidada com sua maneira de me encarar,
pousei o prato na bancada. Theo ergueu um braço e o posicionou acima de minha cabeça. E eu jurei a
mim mesma que eu o morderia se ele me beijasse.
Capítulo 17
HEITOR

NO DIA SEGUINTE Maya e eu quase não nos esbarramos. Eu tentava evitá-la, por isso arranjei
várias maneiras de passar o tempo fora de casa. Apenas às onze da noite, Theo e eu deixamos o
cassino e seguimos para a minha mansão. Quem dirigia o carro era Sony e quando saltamos em
segurança diante do portão imenso rebuscado de pedra, cumprimentei os seguranças. Era um time
excelente que vigiava minha casa e lá dentro eu já tinha Chucky, o melhor capanga do Rio de Janeiro,
a meu dispor.

— Que tal um futebol? Tá passando no replay — meu irmão falou.

— Futebol de replay? Ah, porra, tá de brincadeira!

Riu.

— Qual é? Pelo menos é alguma coisa.

Tão logo adentramos a sala de estar, encontrei a morena varrendo o chão. Pensei no quanto Maya
era interessante até bancando a faxineira.

Putz. Que idiotice, Heitor.

Chucky, ali perto, estava parado, as costas recostadas na parede, sem nenhum indício de sono ou
cansaço, enquanto fumava um cigarro. Ele era um sujeito estranho. Ás vezes sua dedicação ao
trabalho me fazia duvidar de que aquele cara era de verdade. Eu o cumprimentei enquanto Theo
cumprimentava Maya. Ela murmurou alguma coisa e então depois disso não consegui mais tirar meus
olhos dela.

— Certo, vamos ver o futebol — voltei a mim, me lembrando da sugestão que Theo dera minutos
atrás. Depois disso meu irmão iria embora para a casa dele e Chucky também. E algo em meu íntimo
retumbou com a ideia de ficar à sós com Maya. A noite toda apenas a malagueta e eu.

— Opa, que tal alguma coisa pra comer? — Theo sugeriu, sentando no sofá.
— Vou preparar umas pizzas, liguem a TV — passei por Maya e puxei suavemente seu cotovelo.
Ela não questionou.

Na cozinha rolou um clima entre a gente e depois de finalmente conseguir um beijo por livre e
espontânea vontade, deixei Maya sozinha lá, sentindo meu senso de humor restaurado. Já na sala, me
juntei a Chucky e Theo e tentei prestar atenção nos primeiros minutos do jogo.
Chucky, como um bom carioca, se dizia torcer pelo Flamengo, mas também apreciava uma boa
partida de futebol, mesmo que fosse replay. Theo e eu éramos ambos corintianos.

Logo meu irmão se levantou, avisando que iria pegar uma cerveja. Depois de achar que ele
demorava demais, fui atrás.

— Você tem namorado, Maya? — ouvi a voz de Theo perguntar, enquanto eu me escondia na
lateral da entrada da cozinha. Meu irmão parecia completamente à vontade na companhia da garota.

— Eu? Bem, não... por quê?

De onde eu estava eles não podiam me ver, todavia eu não estava completamente escondido atrás
da porta. Pensei em entrar, mas a ideia de espiar o que Theo falava me prendeu.

— Ah, entendo, senão ele estaria louco atrás de você.

O que Theo queria e aonde pensava em chegar com aquela merda? Me concentrei na resposta de
Maya, mas ela não veio. Então Theo continuou:

— Você tem olhos bonitos.

Nesse instante inclinei um pouco o rosto e vi meu irmão dar um passo em direção à morena.
Assim como eu, ela devia estar tentando entender o que estava acontecendo. Então Theo queria
azarar a garota? Que grande filho da puta!

Com o sangue esquentando, me posicionei para entrar na cozinha e acabar com aquela farra dele.
Talvez ele merecesse também uma porrada. Contudo de repente o timer apitou, avisando que a pizza
estava pronta. Nesse momento vi Maya correr para o microondas e Theo ir atrás dela. Ela virou-se e
pareceu assustada com a proximidade dele. Theo ergueu um braço e o pousou acima da cabeça da
morena. Impaciente, eu entrei na cozinha, segurando meu punho para não partir para cima dele.
— O que tá rolando aqui? — afundei as mãos nos bolsos da calça. Antes que qualquer um deles
me desse alguma resposta, dei um novo passo e recostei minhas costas na geladeira, como quem não
queria nada. Respirei fundo. Eu não era um cara tão passivo. Maya e Theo me encararam, meu irmão
parecia um garoto envergonhado quando pego no flagrante.

— Incomodando a Maya, Theo?

Ele riu, sem graça, se afastando da garota.

— Estava espiando a gente esse tempo todo?

— Espiando? Isso não é coisa do meu feitio. Só que essa cozinha é minha, então posso vir aqui a
hora que quiser.

— Certo, saquei — se afastou mais, ainda sorrindo — Bom, Maya e eu só estávamos


conversando sobre as pizzas. Eu disse pra ela que você sempre preferiu a de calabresa... — pegou
um pedaço da pizza do prato que estava nas mãos da garota — Hum, boa... muito boa. Bom, estou
indo.

Theo murmurou uma despedida antes de sair da cozinha, deixando Maya e eu sozinhos. Ficamos
algum tempo em silêncio e estudei as feições dela. Cheguei mais perto e gostei de ver que ela me
encarava, sem medo ou sem culpa.

— Ele estava azarando você, que eu sei — Maya logo se movimentou pela bancada para começar
a partir as pizzas. Ao que parecia, tentava se mostrar inabalada.

— Estou bem... vou levar logo as pizzas.

Percebi que ela também não queria demonstrar o quanto ainda estava afetada pelo nosso beijo
trocado meia hora atrás. Resolvi não forçar a barra.

— Certo, estarei esperando.

Saí da cozinha e percorri o corredor de volta até a sala. Eu sabia que assim como Theo, também
deveria ficar longe de Maya.
Eu deveria ficar longe dela, merda!

Voltei para a sala e encontrei Chucky distraído com a televisão. Eram raras as vezes em que eu o
via daquele jeito. Me deixei cair outra vez no sofá exatamente no momento em que um botafoguense
alcançava a grande área para chutar ao gol. Theo que acompanhava o lance, reclamou, mas por sorte
a jogada não fora finalizada.

— Oba, o lanchinho chegou — Theo sorriu, minutos mais tarde, assim que Maya apareceu na sala,
com a pizza, pratos e talheres nas mãos.

Gostei do modo como a morena colocou tudo na mesa de centro e pensei se ela já tinha trabalhado
como garçonete em algum lugar antes.

— Mais alguma coisa? — ela perguntou, solícita, me encarando.

— Já trabalhou nisso antes?

— Como?

— Em servir. Já fez isso antes? Em algum restaurante?

— Não — pareceu confusa com a pergunta.

— Ah.

— Quer mais alguma coisa?

— Não, pode ir. Se eu quiser, eu mesmo pego.

Ela me olhou, por um instante parecendo perplexa como o modo áspero como eu falara, sem saber
o que dizer. Na verdade, eu agira daquela forma para disfarçar o que estava rolando entre a gente.
Não queria que Chucky ou mesmo Theo desconfiasse.

— Pra cozinha? — Maya perguntou.

— Pra onde seria, morena? — peguei a lata de cerveja com arrogância e a levei até a boca, sem
mesmo olhar para Maya.

Maya deve ter engolido em seco e fechado a cara. Não respondeu mais nada. Apenas girou os
calcanhares e voltou pelo caminho por onde tinha vindo.

— Coitada da moça — Theo desdenhou, levando um pedaço de pizza à boca.

— Sei como lidar com ela.

— Tô vendo.

— E sei como lidar com você também.

Theo franziu a testa.

— Que foi?

— Fique longe dela. E da cozinha também.

— Saquei.

Mais uma jogada na televisão nos despertou a atenção.

***

Encontrei Maya sentada numa das altas cadeiras do balcão de mármore. Ela lia alguma coisa.
Não, na verdade, ela lia e escrevia. Palavras cruzadas. Quando sentiu minha presença logo se
recompôs.

— Gosta disso? — perguntei, apontando, enquanto me dirigia à geladeira.

— É, gosto — falou, friamente, e voltou a se concentrar no que estava fazendo. E pensei se ainda
estava chateada com a forma como eu lhe tratara minutos atrás. Peguei uma garrafa de cerveja e bebi
no gargalo mesmo. Eu também queria um tempo com Maya. O jogo estava no intervalo e eu queria
saber mais sobre ela.
— Você tem mais de um irmão? — cheguei mais perto.

Ela me encarou, com um ponto de interrogação na testa. Pareceu pensar. Talvez estivesse insegura
de revelar.

— Ah, qual é. Não vou mandar irem atrás de ninguém, relaxa.

— Tenho só um irmão — mordeu o lábio inferior, como se nesse instante se lembrasse dele.

— E o que aconteceu com ele? Deixou vocês?

Ela abaixou a cabeça, parecendo desconfortável com a minha presença. Provavelmente estava
muito chateada e agora não queria nem olhar para a minha cara.

— Sim.

— E quanto a sua mãe?

— Ela já morreu — me fitou brevemente e então voltou a olhar para a palavra cruzada — Quando
eu era adolescente.

Pensei naquilo. Pensei no que dizer, mas não consegui nada realmente bom para falar. Na
verdade, nem sempre eu era bom com as palavras.

— Eu lamento, guria — murmurei, por fim.

Vi seus olhos escuros brilharem.

— É, eu também.

Silêncio.

Tive vontade de me aproximar dela e de lhe dizer o quanto realmente eu lamentava e o quanto eu a
queria bem, o quanto me doía saber que ela estava sofrendo ou infeliz, bem como detestava saber que
alguém lhe machucara, mas ao invés disso, eu permaneci em silêncio.
— Por que me ajudou naquela noite, Heitor? — sua voz me libertou do pequeno devaneio.
Ponderei se ela havia ficado mesmo chateada por eu tê-la tratado mal na sala de estar na frente de
Chucky e de Theo. Talvez a raiva estivesse se dissipando agora.

— Você estava em apuros, morena. Precisava de mim.

Maya me fitava e seus olhos pareciam tentar desvendar o que se passava em todo o meu ser. Não
era sempre que alguém me olhava daquele jeito. Ás vezes Nora fazia isso e era como se me estudasse
ou examinasse. Mas nenhuma outra garota um dia me fitou assim, como se quisesse se adentrar no
fundo da minha alma, mas agora Maya fazia isso. E Apesar de tudo, aprovei aquela sua atitude.

— E desde quando se importa?

Pensei naquela pergunta. Eu poderia dar de ombros e dizer qualquer idiotice em forma de
palavra, contudo, eu me importava com ela. Não devia mesmo me importar, afinal de contas, ela era
filha do cretino que tinha matado minha mãe e meu pai. E uma ferida ainda estava aberta em meu
peito e parecia nunca querer cicatrizar. Eu não devia mesmo me importar com Maya, mas ainda assim
eu me importava. Era sinal de que Maya mexia comigo.

— Não queria que se machucasse. Nunca vou querer.

Ela não respondeu. Piscou os olhos, parecendo ficar pensativa ou desconfortável com aquela
minha resposta.

Mais um silêncio.

Um longo silêncio.

Um maldito e longo silêncio.

Me aproximei mais dela.

— Não parece óbvio, guria? — toquei seu rosto com ternura, mas ela se esquivou um pouco.
Mesmo assim eu insisti. Foi minha vez de examiná-la. Puxei sua mão, num pedido silencioso para
que ela ficasse em pé, depois segurei sua cintura fina e trouxe todo o seu corpo para mais perto de
mim. A morena estremeceu baixo, e novamente virou o rosto, tentando me evitar.
— O que foi? — beijei sua orelha e seus cabelos cheirosos — Está com raiva de mim?

— Você foi estúpido há meia hora...

— Eu sei que fui, mas... foi tudo encenação, acredite.

Ela não pareceu muito convencida disso e então se esquivou mais uma vez.

— Não... — murmurou e afastou meu peito — só quero que me deixe em paz, é isso.

Parei, entretanto não me afastei dela. Olhamo-nos por algum tempo. Olho no olho, boca na boca.
Foquei em seus lábios rosados. Senti a respiração dela descompassada e as aceleradas batidas de
seu coração. Sem pensar mais uma vez, avancei um novo passo e enterrei meu rosto em seu pescoço
delicado para inspirar a fragrância de seu cheiro. Dessa vez Maya não reclamou ou tentou se afastar.
Talvez só estivesse com um pouco de medo ou um tanto assustada. Suas mãos em meu peito estavam
um pouco trêmulas.

Fechei os olhos e afundei minha mão livre no emaranhado de seus cabelos negros. Maya deve ter
fechado os olhos enquanto estremecia baixinho a cada movimento que eu dava. Mas não era de medo,
era de prazer. A morena parecia compartilhar das mesmas sensações boas que eu compartilhava.

Retirei meu rosto de seu pescoço e voltei a mirar sua boca. Aproximei meus lábios e forcei
entrada. Maya não resistiu como eu esperava que fosse resistir. Pelo contrário. Entreabriu a boca por
livre e espontânea vontade e a cedeu a mim, como na outra vez.

Suas mãos de boneca espalmaram meu peito e sua língua passou a dançar com a minha numa
dança sensual e maliciosa. Senti meu membro endurecer e dei novos passos, espremendo a garota na
bancada. Queria ela. Queria muito me afundar nela. Queria ardentemente mergulhar nela. Maya
envolveu meu pescoço com seus braços e quando apalpei seu traseiro a voz de Theo me chamou lá
de fora.

Merda.

Era para avisar que o segundo tempo do jogo começava.

— É melhor você ir... — ela sussurrou, um pouco sem fôlego.


— Ok... — lembrei que era a segunda vez que meu irmão atrasava a minha vida. Toquei o rosto de
Maya com gentileza e fixei meus olhos nos seus.

— Me espere esta noite no quarto, ok? — sussurrei.


Capítulo 18
MAYA

O TOQUE DAS MÃOS de Heitor era firme, embora delicado, e seu beijo possessivo era muito
quente e me fazia balançar, além de me fazer sentir aquela sensação gostosa de ser desejada. Mas
quando alguém de repente o chamou, Heitor parou o que estava fazendo comigo, me deixando com a
boca entreaberta, ainda abalada pelo impulsivo desejo, e então, segurando meu queixo, falou:

— Me espere esta noite no quarto, ok?

Ok.

Sem esperar pela minha resposta, se afastou. Contemplei as costas sólidas e bonitas que aquele
homem tinha, que mesmo através da camisa social branca eu podia vislumbrar. Certamente havia
colecionado muitos amores nesses trinta e poucos anos de vida e aquilo me deixava apavorada.
Principalmente porque eu começava a sentir algo assustadoramente forte e diferente por ele. Algo
novo e estranho.

Estranho porque Heitor era um dos últimos caras na vida por quem eu deveria me apaixonar. Ele
tinha machucado meu pai, nos ameaçado e me separado do seio de minha família. Por causa dele meu
irmão tinha sumido no mundo e eu estava presa como uma refém. Por causa de Heitor eu tinha
perdido o restante da pouca luz que havia em meu sorriso, no entanto eu agora começava a sentir algo
completamente bom em relação a ele e isso estava me deixando doida. E desestruturada.

Ele tinha sido gentil e carinhoso comigo, tinha sido bom e protetor. E agora eu desejava sua
presença, seus beijos e seu toque em minha pele. Eu começava a pensar num futuro com ele e toda
essa loucura me afetava.

Respirei fundo.

Heitor sumiu de meu campo de visão e aproveitei para me recuperar do que tinha acabado de
acontecer ali na cozinha. A gente tinha se beijado. Pela segunda vez naquela noite. Um beijo firme e
decidido, de quem não estava disposto a aceitar recusa. Um beijo gostoso e com pegada.

Ele definitivamente tinha pegada e aquilo era outro fator que me abalava porque se Heitor fosse
só um cara qualquer eu saberia logo que minha atração ou seja lá o que eu estivesse sentindo por ele
passaria, no entanto, o fato dele mexer ardentemente comigo me deixava vulnerável. E por incrível
que pudesse parecer, não odiei os beijos que Heitor me dera, nem recuei. Eu gostara. Gostara de
sentir o cheiro delicioso dele próximo às minhas narinas, sua pele quente na minha, sua barba
pinicando meu queixo, suas mãos firmes e grandes me sustentando e me dando aquela maravilhosa
sensação de segurança. Eu gostava de sua presença, embora não admitisse aquilo, gostava do jeito
que Heitor me olhava e falava.

Me espere está noite no quarto, ok?

Peguei um pedaço de pizza, abri a geladeira duplex inox para pegar um refrigerante e tomei um
lanche. Aquilo também serviu para me deixar mais relaxada. Depois lavei a louça e em seguida
caminhei em direção ao hall que acabava na sala de estar. Heitor, Chucky e Theo ainda assistiam ao
jogo. Aproveitei que os três estavam concentrados na televisão e segui para a escada. Antes disso, no
entanto, vi o olhar de Heitor em minha direção e por um momento desejei que ele me seguisse. Que
ele subisse a escada atrás de mim e me beijasse uma outra vez. E eu cederia. E me entregaria. Ainda
que me arrependesse no dia seguinte ou até mesmo nas horas seguintes, mas eu me entregaria a ele
sem qualquer medo ou reserva.

Isso também poderia ser porque eu sentia falta de alguém que me fizesse bem, de alguém que
reavivasse em mim a chama de ser amada, tocada, desejada. E Heitor agora mexia com a minha
libido, ainda que eu soubesse que me envolver com ele não era a coisa mais inteligente a se fazer.
Pelo contrário, era uma das coisas mais burras. Ele era um mafioso implacável que possivelmente
machucava as pessoas. Mas ainda assim eu não parava de desejar a companhia de Heitor Romano.

Atravessei o quarto decidida a lembrar do que se passara lá embaixo e me deixei cair na cama,
aliviada, encantada, apavorada. Minha cabeça se tornara a base de um grande bombardeio e eu me
sentia a cada segundo mais confusa. Contudo desde que Heitor me salvara e me levara de volta para
sua mansão eu me sentia mais aberta e mais calma na presença dele.

De repente alguém bateu à porta. Aguardei. Meus lábios inferiores a essa altura já estavam sendo
dilacerados pelos meus dentes como se esses fossem facas afiadas. A porta se abriu, me revelando
Heitor parado nela. Nos encaramos por um tempo e me ergui da cama. Eu sabia que não haveria mais
volta. Ele atravessou o quarto com passos lentos e calculados e tocou meu rosto devagar de uma
forma que só me restou gemer ao entregar minha boca para ele. O beijo foi gostoso e profundo e logo
suas mãos percorreram minha bunda e a apertaram. Senti seu membro duro em meu ventre e não me
apavorei com o que estava acontecendo, com as consequências de nossos atos. Eu estava preparada.
Eu o queria. Mais do que devia!

Heitor segurou meus cabelos na altura da nuca e devorou minha boca novamente com um beijo
ávido e exigente. Segurou também uma de minhas coxas e a ergueu até sua cintura. Me senti livre e
segura. Eu queria isso. Como nunca quis antes... Heitor gemeu na minha boca entreaberta e sussurrou
que eu era tudo o que ele precisava naquela hora, me fazendo acreditar nele. Apertou minha bunda,
despertando em mim sensações nunca sentidas antes, me colando em seu peito sólido. Quando
finalmente fomos para a cama e caí nela com as coxas abertas, sentindo o corpo forte e másculo de
Heitor deitar sobre o meu, ele se afastou poucos centímetros apenas para tirar a camisa, me dando a
imagem maravilhosa de seu peitoral amplo e descoberto. Não contendo a curiosidade, toquei nele.
Além de forte, era rígido e quente.

Heitor passou a tirar a calça social azul marinho, me revelando suas coxas grossas e pelos
escuros em suas pernas. De onde estava poderia ver muito bem o volume na sua cueca boxer, que
logo foi retirada também, deixando à vista seu membro grande e ereto. Não me assustei. Deitei
novamente a cabeça na cama, dizendo a mim mesma que estava preparada. Cerrei os olhos e logo
senti Heitor puxar meu short jeans para baixo e abrir o zíper dele, depois senti suas duas mãos firmes
puxarem o short com mais determinação, até que esse deslizasse por minhas pernas e por fim se
amontoasse em meus pés.

Heitor passou a se livrar de minha blusa, me deixando nua, mas não constrangida por isso. Pousou
suas duas mãos enormes em meus seios e lentamente os acariciou, me fazendo gemer baixinho, ainda
com os olhos semicerrados. Senti meu corpo esquentar e mesmo sabendo que era uma experiência
nova, eu gostei dela. Meu corpo parecia ter vida própria ao corresponder aos toques das mãos e da
boca hábil daquele homem. E quando Heitor finalmente cobriu-me com o seu peso, cruzei minhas
pernas em volta de seu quadril e me agarrei às suas costas largas. Não tinha como não estremecer
com a dureza de seu membro na minha entrada já úmida. Heitor não falou nada. Apenas beijou o vão
de meu pescoço, afundando sua cabeça em meu ombro, fazendo declarações de amor. Eu não sabia se
devia acreditar em suas palavras, mas era bom ouvi-las. Ergui as mãos e acarinhei seus cabelos.
Fechei os olhos novamente. Heitor largou meu pescoço e abocanhou outra vez meus seios, chupando-
os, enquanto suas mãos apertavam minha bunda.

Eu queria... nossa, como eu queria...


Sem mais demora, Heitor se afundou em mim com uma investida só, me fazendo estremecer. Eu
gemi. Um gemido agudo, seguido de um grunhido abafado de prazer. Ele esperou. Passou a se
movimentar devagar. Dessa forma consegui relaxar aos poucos. Segurou minhas mãos e as entrelaçou
nas suas, na busca por mais intimidade. Enquanto investia em mim, bem devagar e me fazia gemer
baixinho, não deixava de beijar minha boca e sussurrar o quanto eu era perfeita, o quanto eu era tudo
o que ele sonhava... era bom sentir as palmas de suas mãos coladas nas minhas, bem como sentir seu
peso, seu calor, seu suor em mim. Heitor acelerou as estocadas e passou a me penetrar com mais
impaciência e desejo agora. Entrou e saiu de mim sem qualquer pudor. E eu estremeci,
completamente envolvida pelo prazer que envolvia nossos corpos. Não queria que ele parasse... oh,
não... estava muito bom! Heitor voltou a abocanhar minha boca e pousou os cotovelos em volta do
meu rosto, me mostrando que a partir daquele momento eu era toda dele. E gostei disso. Era bom ser
dele...

Quando finalmente terminamos o ato e o cansaço me venceu, eu me agarrei a seu peito suado e
vigoroso. Deitei a cabeça em seu peitoral, adorando sentir as batidas aceleradas de seu coração.
Passei a acariciá-lo devagar, sem falar nada. Não tinha muito o que falar, bastava sentir. Eu só queria
sentir o que tínhamos compartilhado segundos atrás. Não tinha sido doloroso, não tinha sido ruim.
Pelo contrário, tinha sido bom demais. Heitor beijou meus cabelos e fechei os olhos, feliz por estar
segura ao lado dele, até que novos minutos se passaram e minha mente foi vencida pelo cansaço e
pelo sono.

***

Quando acordei, avistei Heitor na porta. Ainda sonolenta, ajeitei os cabelos, afastando-os do
rosto, para ser capaz de vê-lo melhor.

— Está me olhando há muito tempo? — perguntei, a voz rouca de sono.

— Não se preocupe, cheguei agora há pouco — se sentou na poltrona diante da cama e gostei
daquele movimento que suas coxas grossas fizeram. No entanto, queria saber porque ele não
acordara junto comigo.

Heitor demorou os olhos em mim assim como perdi os meus nele. Me protegi com a colcha
branca, percebendo que ele já tinha tomado um banho e se trocado. Ficamos nos encarando por algum
tempo, o suficiente para ver que as maçãs de seu rosto eram ainda mais agradáveis quando ele estava
sereno. E agora na minha frente ele parecia tranquilo. Não o mafioso que eu conhecera dias atrás.

Consultei o relógio digital que no dia anterior Heitor deixara sobre o criado-mudo do meu quarto
e notei que as horas tinham avançado e que eu realmente parecia mais à vontade na casa e na
companhia dele.

— Como te disse mais cedo, não matei seu pai, morena — falou, de repente — Se isso te
conforta, não o matei.

Assenti com a cabeça.

Me senti melhor, sim, principalmente por ele não ter acrescentado o "ainda". Ainda não matei seu
pai, morena. Ainda.

Me dei conta de que deveria dizer alguma coisa. Qualquer coisa que fosse.

— Obrigada — sussurrei.

Ele suspirou. Tocou nos próprios joelhos e pareceu desconfortável com aquela conversa. Se
levantou. Mordi o lábio, temendo o que ele falaria em seguida.

— Tem ideia do que fizemos? — perguntou.

— Sim. E você?

— Foi muito gostoso. Espero não ter sido bruto com você.

— Não foi.

— Bom, eu quero que saiba que... não vou forçá-la a nada, Maya. Nunca.

— Eu sei que não. E... — mordi o lábio outra vez — na verdade, também gostei do que fizemos.

— Ótimo — se aproximou novamente de mim, se inclinou para me dar um beijo — E lembra que
comentei que iria comigo para o Rio? Chegou a hora, morena. Vamos partir.
— Quando?

— Amanhã à tarde. Na verdade, iremos você, Chucky e eu. E não se preocupe com o que levar,
vamos comprar tudo do que precisar quando amanhecer.

— Certo.

— Agora preciso ir. Vai ficar bem aqui?

— É, acho que sim.

— Ok.

***
HEITOR

EU ESTAVA lascado!

Analisei meu semblante diante do espelho e por um momento tive a certeza de que estava vendo
outra pessoa ali, que não era eu. Bufei.

Olhei através do meu reflexo, e ali atrás vi Maya novamente adormecia na cama ampla e
desarrumada. Horas atrás estávamos nos amando fervorosamente. A garota era gostosa, quente e
carinhosa. Apertara meu pescoço e arranhara meu peito e minhas costas com vontade. A nossa
primeira vez tinha sido completamente satisfatória.

Abandonei o espelho e me posicionei na janela. Era quase madrugada e os seguranças tomavam


conta da casa. Era uma droga viver rodeado por um bando deles, mas era um mal necessário, como
dizia meu pai.

Me afastei da cortina e mesmo sem camisa, senti calor. E esse calor repentino atendia pelo nome
de Maya. Olhei meu físico e pensei em quanto tempo estava sem uma garota. Talvez algumas
semanas.

As mulheres costumavam me elogiar e dizer que se amarravam no meu peitoral largo, no abdome
bem trabalhado, nos olhos azuis e até mesmo nas minhas poucas sardas. E como eu gostava de ouvir
aquilo, especialmente em cima de uma cama ou sobre um corpo macio e delicioso, eu à medida do
possível tentava ser vaidoso. Entretanto a sede por vingança me consumira. Desde que descobri
quem Natanael era o cara que frequentava meu cassino não sosseguei. E então tudo pareceu ficar em
segundo plano, até as mulheres, exceto os negócios no Del Romano.

E então surgira Maya.

Passando a mão pelos cabelos enquanto andava pelo quarto, olhei para a morena dormindo,
mesmo sabendo que não devia ficar ali espiando. Fazia dias que eu estava me segurando para não
ficar babando por ela, mas horas atrás eu via a porra das minhas forças ruírem. Meu corpo pegava
fogo, meu membro endurecia, minha mente soltava fumaça e eu só ansiava por poder relaxar nela.
Segui até a porta e de lá observei Maya. Por um instante fechei os olhos, me sentindo um grande
idiota por não conseguir me segurar. Abri os olhos novamente e pensei que eu poderia tê-la a
qualquer momento, se quisesse, mas não voltaria a tocar nela. Por dois motivos: porque Maya era
filha de quem era e porque eu não era nenhum aproveitador desgraçado. Se não queria me envolver
com a garota, devia mantê-la livre das minhas garras.

Larguei a porta e caminhei pelo hall que acabava na escada. Mesmo decidido a não tocar mais em
Maya, precisava admirá-la de alguma forma, nem que fosse através das imagens, das malditas
imagens da câmera.

Tão logo cheguei no primeiro andar, empurrei a porta do escritório e me deixei cair na poltrona
de couro importado. Puxei a tela para poder ver melhor. Liguei o aparelho e acessei o quarto. Maya
estava ainda deitada na cama. Era lá que ela ficava na maioria das vezes. Ás vezes ela lembrava que
estava sendo filmada e evitava tirar a roupa ou fazer qualquer coisa comprometedora. Ás vezes ela
tentava se esconder. Ás vezes eu me sentia um monstro por prendê-la.

Nesse momento a morena, adormecida, parecia estar mais serena e eu gostava de saber que ela
estava assim. Percebi que desde que eu a salvara das mãos dos delinquentes, Maya passou a confiar
em mim. Não esperava que ela seria tão receptível, mas sua maneira de agir no sexo só me provara o
quanto estava envolvida também. Talvez até mais do que nós dois imaginávamos. Provavelmente
ainda desejava voltar para casa, no entanto já não me odiava e aquilo era bom.

O sono começou a me testar e notei através da câmera que Maya não acordara mais, nem sentiria
mais minha falta na cama. Esfreguei o rosto e decidi que era hora de voltar para o meu quarto, que
ficava ao lado do dela. No dia seguinte voaríamos para o Rio de Janeiro e depois da viagem eu teria
que decidir o que fazer com a garota.
Capítulo 19
MAYA

CHEGAMOS BEM ao Rio de Janeiro. A cidade era linda. Acesa. Tinha glamour e aquela magia
toda da qual as pessoas falavam. Sempre achei que seria difícil não me sentir seduzida pelos ares
cariocas. E, de fato, estava deslumbrada. E estava sendo um máximo conhecer um lugar novo. O
problema era que Heitor não parecia o mesmo cara interessado em mim como parecera até ontem à
noite.

— Vamos, há um carro nos esperando — Heitor seguiu na minha frente, empurrando o carrinho
com as malas. Estava com óculos escuros pretos que lhe dava um aspecto ainda mais sexy e
charmoso. Não vestia um terno, dessa vez ele o substituíra por camiseta branca, uma jaqueta marrom
de couro, calça jeans e tênis. Eu também vestia um simples jeans e uma camiseta rosa. Eu passara
boa parte do tempo naquela manhã comprando roupas que ele exigira. Não questionei porque, afinal
de contas, eu não poderia ir mesmo para uma viagem sem boa coisa na mala. Então não me importei
com a ideia de que Heitor comprava coisas para mim.

Logo Heitor me conduziu até a saída do aeroporto. Chucky nos seguia, como se fosse algum
guarda-costas. Se bem que ele era mesmo um. E eu ficava intrigada com o fato do cara nunca parecer
relaxar, nem dizer nada. Chucky era realmente assustador, porém não era tão odiável como Ronan ou
Oscar. Ao menos não tinha gritado comigo nem me tratado com agressividade.

Assim que alcançamos o meio fio, eu olhei para o carro preto estacionado e avistei um par de
olhos azuis.

— Olá, paulistada! Vocês demoraram. Sou Alvim, o braço direito do Feroz — gargalhou em
seguida, nos revelando que aquilo era piada, transbordando simpatia e bom humor.

— Que tal falar menos e dirigir mais, retardado? — Chucky o cumprimentou com um cascudo na
cabeça, falando pela primeira vez em horas, e de imediato percebi que os dois se davam bem. Heitor
também cumprimentou nosso simpático chofer e se ajeitou ao meu lado no banco traseiro do carro.
Logo pôs o celular na orelha. Ao que parecia, falava com Diogo, o sujeito que iria nos receber.

***
— Aeee! Até que enfim chegaram! — uma voz masculina soou, me fazendo olhar para cima e dar
de cara com um sujeito moreno, olhos castanhos, cabelos selvagens, camiseta branca, sorriso fácil.

Eu sempre ouvira dizer que os cariocas eram pessoas dadas e que sabiam recepcionar bem as
pessoas, e até aquele momento aquilo estava coincidindo com o que falavam.

— Então, meu, por que não desce daí e vem receber suas visitas da forma mais educada? —
Heitor sorriu ao olhar para o moreno e percebi que assim como Alvim e Chucky se davam bem,
Heitor e Diogo também tinham muita intimidade.

— Elena, meu amor, temos visita! — gritou Diogo para alguém ali no segundo andar antes dele
começar a descer a escada, e então avistei uma menininha correr até seu colo. Ela lhe envolveu o
pescoço com um bracinho e vi que sua outra mão segurava uma boneca quase de seu tamanho. Diogo
usou apenas um braço para segurar a pequena, que se parecia muito com ele, e por isso deduzi que
fosse sua filha.

— Diogo, esta é Maya — Heitor falou assim que o nosso anfitrião alcançou a base da escada —
minha garota — pigarreou, claramente desconfortável com o título que me dera.

— Seja bem-vinda — Diogo esticou a mão para mim, sorrindo. Agora pude ver que seus olhos
eram de uma tonalidade de castanhos bem mais claros, quase mel, e que seus cabelos fartos tinham a
cor de chocolate e me diziam que ele estivera numa cama minutos atrás — Como Heitor falou um dia,
amigo dos meus amigos é meu amigo também — piscou.

— Obrigada.

— Quem é ela, papai? — a garotinha em sua companhia perguntou, me olhando. Sua voz era
fininha e açucarada como um algodão doce, e me roubou um sorriso.

— Oh, ela é a namorada do tio Heitor, princesa... lembra-se dele? Ah, Maya, essa aqui é
Esmeralda, minha rolinhazinha.

— Filhinha, sou sua filhinha! — a pequena corrigiu, puxando o rosto do pai para si, exigindo a
atenção dele, que lhe beijou a testa miúda carinhosamente.
— Não gosta de rolinhazinha? Ora, sempre a chamei assim — pai e filha demoraram segundos
trocando carinhos e acusações, parecendo serem muito próximos um do outro, e então uma mulher
bonita apareceu na sacada. Cabelos longos e escuros. Bem morena. Com um barrigão de grávida.
Sorriu e começou a descer a escada devagar, com um pouco de dificuldade. Heitor, muito solícito,
saiu do meu lado e subiu alguns degraus para auxiliar a nossa anfitriã.

— Como vai, Elena?

— Olá, Heitor. Como pode ver, ando muito pesada — riu, aceitando a mão dele — Mas estou
bem. E é bom ver você aqui.

— Sereia, Heitor está com companhia. Venha conhecer a Maya — Diogo falou assim que a esposa
se aproximou de todos nós.

— Oi, Maya, como vai? Seja bem-vinda.

Trocamos beijos no rosto e de cara percebi que iria gosta dela. Elena parecia gentil, simpática e
muito educada, assim como o marido dela.

— E eu sou Esmeralda! — a pequenina falou outra vez e puxou o rosto do pai novamente, como
se o lembrasse de que ela também era importante, e portanto, deveria ser mencionada, o que me fez
dar uma risada.

— Eu sei que é, pacotinho, e Maya também já sabe. Já apresentei você a ela, não se lembra?

— Não sou pacotinho! E essa é Lilica, minha bebê — a garotinha cheia de personalidade fez
questão de me mostrar a boneca negra com cabelos longos e encaracolados.

— Meu Deus, como ela é linda! Assim como você! E quase do seu tamanho! Quantos anos você
tem, Esmeralda?

— Três! Quer ver as outras bonecas?

— Depois, amorzinho. Agora a Maya precisa descansar da viagem — Elena sorriu para a filha e
depois me puxou pela mão — Venha, Maya, vou te mostrar o quarto. Assim poderá guardar suas
coisas e tomar um banho. Você deve estar cansada — e olhou para o marido — E amor, que tal levar
Heitor para dar uma olhada no terraço? E nada de bebidas por ora, ok?

Diogo fez uma careta engraçada para a mulher, que riu e lhe mandou beijos no ar. Ele então gritou:

— Ei! Não quero que fique subindo e descendo a escada toda hora — Diogo, com um movimento
rápido, carregou a esposa nos braços. Elena brincou, divertida, enquanto agarrava o pescoço do
marido. Os dois começaram a brincar e a trocar beijinhos nos lábios. Eu estava há dez minutos ali e
já gostava da harmonia que envolvia o casal.

Esmeralda, ao meu lado, me deu a mãozinha enquanto nós duas subíamos atrás dos apaixonados
pais dela e Heitor nos seguia, carregando as malas. Tanto as minhas quanto as dele. E eu novamente
olhei para trás apenas para trocar olhares com ele. Desejei ter com Heitor um relacionamento bonito
e gostoso assim como parecia ser o de Elena e Diogo.

***
HEITOR

DESCI A ESCADA, me sentindo estranhamente à vontade na mansão de Diogo. Não era a


primeira vez que ficava hospedado lá, embora isso já fizesse algum tempo. Na época Diogo nem
sonhava em se casar com Elena. Tinha sido seis ou sete anos atrás e a gente já era amigo do peito.

Vendo a sala de visitas vazia, abri as portas duplas para alcançar o jardim. Encontrei Diogo
debruçado no muro que o separava da piscina. Me juntei a ele e inspirei o ar fresco daquela tarde
gostosa do Rio de Janeiro. Diogo esticou a mão para me oferecer um cigarro e eu o aceitei. Após
usar meu isqueiro importado, dei a primeira tragada.

— Isso aqui é o paraíso, não é? E aposto que você se sente um deus.

Ele apenas sorriu.

— Obrigado pelo convite — pus o cigarro na boca — Estava mesmo precisando sair um pouco
de casa, precisando sentir ares novos. Nada melhor que sumir um pouco.

— Você é sempre bem-vindo — bateu em meu ombro e de repente começou a rir — E quanto a
garota lá em cima, é mesmo um caso sério?

Ri com ele.

— Maya? Hum, bom, eu não sei... eu juro que ainda não sei... sério.

— Saquei.

Diogo voltou a olhar para a paisagem e eu segui seu olhar. Arbustos verdejantes, gramado bem
cortado e delineado, pedras brancas contornando o lindo jardim. Além disso era bom ver a claridade
do sol batendo nelas.

Como ele não falara mais sobre Maya, achei melhor também me calar. Nem eu sabia ao certo o
que aconteceria entre a garota e eu, se teríamos um futuro juntos ou não. Mas no fundo eu achava que
não haveria como.
— Ela é bonita e combina com você.

— O problema é que não sei se sou o cara adequado pra ela.

— Putz — pareceu pensar naquela minha afirmação — Bom, as garotas têm uma forma meio
peculiar de lidar com romances. Elas são mais complicadas do que podemos sonhar. Quando ela te
faz acreditar que é o cara errado, vai por mim, é porque você é o cara certo.

Ri da teoria do Diogo. Não, na verdade, gargalhei. Zombei dele também. Ás vezes ele me divertia
como ninguém. Mas então voltei a pensar em Maya e na nossa relação meio maluca.

— Bom, talvez ela não tenha tido como recusar minha presença.

— Do que tá falando? — levou o cigarro a boca, sem me olhar;

Dei de ombros.

— Nada. Qualquer dia te conto. É um assunto meio delicado.

— Tô vendo — debruçou-se novamente na grade que nos separava da piscina azul celeste.

— E você, como anda sendo a experiência de pai? — achei melhor trocar de assunto.

— Formidável, meu chapa — seus olhos brilharam e soube que Diogo se sentia realizado, como
há anos eu não o via — Nunca pensei que seria tão divertido. Viu como ela é esperta? E carinhosa.
Toda manhã me acorda com um beijo no rosto. Tem coisa melhor que isso?

— E não cansa de 'papai, papai' o tempo todo? — imitei uma voz infantil e Diogo riu.

— Oh, cara, não sabe como me desmancho com isso. Adoro quando ela me chama desse jeito. É a
coisa mais linda do mundo. E é incrível saber que aquela pessoinha ali saiu de mim.

— É, deve ser mesmo foda — pensei, me debruçando ainda mais na grade.

— Quando for pai pela primeira vez vai saber do que estou falando.
— Posso imaginar.

— Ah, estão aqui! — alguém falou de repente, nos fazendo voltar os olhos e avistar Elena —
Dois irresponsáveis. Não se envergonham de detonarem os próprios pulmões?

— Foi o cretino do seu marido que me ofereceu.

— Ah, eu sempre soube que ele podia ser uma má influência, mas você não é nenhum santo,
Heitor.

— Mentira, paixão. Heitor fuma desde que se conhece por gente.

— É claro que é mentira!

— Não quero nenhum dos dois perto dos meus filhos — Elena puxou a orelha do marido,
simulando estar brava e Diogo começou a rir.

— Difícil. Um vai ser o pai e o outro o padrinho — Diogo zombou, simulando dor por causa do
puxão de orelha.

— Posso mudar tudo isso, se eu quiser.

— Acho difícil.

— Ok, ok, se for pro bem da nação e pela felicidade dos meus afilhados, diga ao povo que não
fumo mais — joguei o cigarro no chão e pisei nele — Prontinho.

— Muito bem — Elena cruzou as mãos na cintura agora escondida pela barriga — E você,
Diogo? Não devia ter uma atitude sensata como essa do seu amigo?

— Tá vendo só como ela pode ser autoritária e persuasiva? — Diogo resmungou, também
jogando o cigarro dele no chão e pisando em seguida.

Elena gargalhou, então segurou o rosto do marido e o beijou com ternura.

— Amo você, amor, e faço isso pro seu bem, sabe disso. E não pense que vou largar do pé de
vocês. Vão tomar jeito enquanto Heitor estiver aqui e vou aproveitar para pedir a ajuda de Maya.

— Caralho, Heitor. Elena quando põe uma coisa na cabeça não tira por nada.

— Sabe, é o que tenho ouvido ultimamente. Assim como o quanto estou gorda.

— Nunca disse que está gorda, paixão! Ah, não comece com o drama.

— Eu estou gorda, eu sei que estou gorda e que você pensa nisso!

Diogo suspirou e simulou estar chateado.

— Você não está gorda, Elena, só um pouco inchada. E mesmo que estivesse, qual o problema?
Tem dois moleques aí dentro e eles são super esfomeados. E mesmo assim você me faz o cara mais
feliz do mundo por isso.

— Oh, amor, que fofo!

Barulhos de beijos, abraços, sussurros de amor. Pigarreei, notando que era hora de me mandar
dali.

— Ok, pessoal, vou lá dentro ver como Maya está.

— Heitor! — Elena riu — ei, volta aqui, não quero atrapalhar a conversa de vocês!

— Fiquem à vontade. Depois da sessão de amassos, eu volto.

Ouvi a gargalhada de Elena enquanto Diogo parecia lhe sussurrar coisas carinhosas e safadas.
Balancei a cabeça, pensando em como amar era algo bom e ridículo ao mesmo tempo. Sorri. Subi os
degraus lentamente e logo alcancei o quarto onde Maya e eu dividiríamos enquanto estivéssemos no
Rio, como um casal de namorados. Pensei se a veria com roupas íntimas assim que abrisse a porta.
Pensei se deveria bater na porta antes de entrar. Bom, talvez fosse melhor dar a meia volta e voltar
só depois que soubesse ao certo o que dizer para ela.
Capítulo 20
MAYA

A PORTA BATEU UMA. Duas. Três vezes.

E obviamente não era Heitor que estava lá fora.

Ah, claro, porque Heitor não precisava bater na porta do próprio quarto quando queria entrar,
mesmo que aquele quarto em questão não fosse exatamente dele, e sim um quarto onde ele estava
hospedado. Que nós estávamos hospedados — como um casal. E azar o meu se eu estivesse nua ou
me trocando. Era a namorada fictícia dele, não era? Suspirei. Bem que eu queria ser a namorada dele
de verdade, mas pelo jeito como Heitor me ignorava agora, estava bem claro que o que tinha
acontecido entre a gente ficara em São Paulo.

— Maya? Tudo bem aí? Sou eu, Elena!

Elena, a dona da casa. Era ela quem estava lá fora.

Corri para abrir a porta. Do outro lado a morena simpática sorriu para mim. Era bonita. Cabelos
ondulados que batiam nos ombros, olhos castanhos amendoados e um sorriso terno que me passava
paz. E embora Diogo e ela não fossem tão parecidos como um casal (se é que um casal deveria ser
parecido, sei lá, não sei de onde eu tirara essa ideia), eu enxergava a sintonia e a química que os dois
possuíam. Era bonito vê-los juntos. Dava gosto. Um dia queria amar alguém como eles pareciam se
amar. Não era inveja, era só um desejo.

Heitor veio de repente em minha mente. Ah, bobagem, Maya. Não é só porque transaram uma
vez que ele vai se tornar o seu príncipe encantado. Aliás, Heitor tem te ignorado esse tempo todo,
como você mesma disse há alguns minutos. Na verdade, ele a ignora desde a madrugada na qual
você despertara sozinha após fazerem amor.

— Oi, Maya, desculpe interromper, só vim ver se estava tudo bem e se estava precisando de
alguma coisa.

— Sim, tá tudo bem sim — cruzei uma mão na outra — Estou ótima, sua casa é linda e muito
confortável. Vocês estão sendo muito gentis conosco. Não tenho do que reclamar.
— Imagina. É o mínimo que podemos fazer. Heitor e Diogo são amigos de longa data. Gosto da
relação dos dois. Certo, qualquer coisa que precisar, me avise, está bem? Quero que tenham o melhor
tratamento em minha casa.

— Obrigada.

— Bem, os meninos saíram por aí e ao que parece vão demorar. Não quer se juntar a nós lá
embaixo? Estamos fazendo um piquenique no lugar do lanche da tarde.

— Nós?

— É, Lia, uma amiga minha, também chegou pra uma visita. Vou apresentar vocês duas. Vai gostar
dela, é uma ótima pessoa.

— Acredito que sim. Está bem, vou adorar me juntar a vocês. Me dá só um minutinho pra trocar
de roupa?

— Claro. A gente vai ficar esperando lá embaixo — piscou e de repente ouvimos um grito infantil
que vinha lá do primeiro andar — Esmeralda está agitada. Ela adora piqueniques. Bem, vou descer.
Até daqui a pouco então, Maya.

Quando Elena se afastou, fechei a porta delicadamente e fui em busca da minha escova de
cabelos. As meninas iam ficar me esperando lá embaixo e eu não podia deixá-las esperando
por tanto tempo. Substituí a calça por um short jeans, mudei a blusa, calcei uma sandália baixa e
depois deixei o quarto. Desci a bela escada de mármore preto devagar, minhas mãos tocando o
corrimão morno e por sorte não tive dificuldade para encontrar o outro lado do jardim.

A mansão era mesmo linda e incrível, mas mesmo assim não fora difícil me localizar. Avistei
Elena deitada numa toalha de mesa, e ao lado dela, a pequena Esmeralda estava sentada numa
toalhinha infantil. Perto delas estava uma loira com um macacão verde. A desconhecida, que devia
ser Lia, incentivava a pequena Esmeralda a comer algo parecido com salada de frutas.

— A dindinha vai ficar chateada se não provar nada! — Lia ralhou.

A pequenina, dona de uma expressão geniosa, cruzou os bracinhos, meneou a cabeça e disse que
não iria comer.
— Ah, peraí que vou chamar o Bruno pra falar com você!

— Maya! — de repente Elena me chamou — Venha se juntar a nós! Essa é Lia, minha amiga e
madrinha da Esme.

— Oi, é um prazer — estiquei a mão para a loira simpática quando me aproximei delas. Lia e eu
nos cumprimentamos e percebi seus olhos claros me inspecionando.

— Elena disse que é a sua primeira vez no Rio. Você vai adorar conhecer os pontos turísticos da
cidade. Vou pedir que Bruno nos leve pra um tour qualquer dia desses.

— Bruno?

— É o meu namorado. Ele também é amigo do Diogo. Os dois também trabalham juntos no
cassino.

— Ah, entendi — me sentei ao lado delas na toalha e imaginei se o tal do Bruno era algum outro
mafioso também. Diogo, o anfitrião da casa e marido de Elena, eu sabia que era, aliás, ele era o
principal chefe da máfia, e estava até mesmo acima de Heitor. Meu Heitor.

Não, nada de seu Heitor, Maya. Ele não é mais seu, caramba!

Passamos todo o piquenique conversando sobre música e filme. E o assunto sobre homens e
casamento não pôde faltar. Elena explicou que estava tendo mais complicações nessa sua segunda
gravidez do que na primeira e que esperava dois meninos. Miguel e Artur. Comentou também que ás
vezes ficava insegura com a ideia de Diogo ter outras mulheres, já que ele era um cara lindo, rico e
poderoso.

— Ah, ele não tem, Lena. Sabe que Diogo te ama loucamente — falou Lia — Pare com essa
neurose. Todo mundo sabe que Diogo é louco por você.

— Eu sei, mas sei lá... ás vezes essas coisas me passam pela cabeça.

— Bobagem.

Concordei.
Um silêncio pairou no ar. Esmeralda tinha adormecido e Lia a levantou no colo falando que a
levaria para a cama. Elena agradeceu e Lia logo se afastou da gente.

— E você e Heitor, como se conheceram?

— Hum... — pus um pedaço de abacaxi na boca — numa lanchonete. Eu estava trabalhando lá e


um dia ele apareceu.

— Sabe, ele é um cara legal. De todos os amigos do Diogo, é um dos poucos que gosto — falou
tão naturalmente, que ambas achamos graça — É sério, Heitor parece ter esse jeitão de superficial e
mulherengo, mas possui um bom coração.

— Eu acredito que ele tem — provei um outro pedaço de abacaxi.

— E vocês formam um belo casal.

Limitei-me a sorrir. Contudo era um sorriso triste. No fundo algo me dizia que Heitor e eu não
tínhamos nascido para ficarmos juntos. Entretanto deixei que Elena pensasse que estava tudo bem
entre a gente e que éramos o casal mais feliz do mundo.

Conversamos sobre outras coisas, gargalhamos, e mais tarde, depois que Lia foi embora, voltei
para o quarto, pensando em tomar um banho. Mas então parei.

Heitor perfumara o quarto e meu coração estupidamente começou a retumbar como se Romano
fosse uma espécie de deus grego ou meu super-heroi em carne e osso. Me envergonhei daquela
situação ridícula e nova. Na verdade, nem tão nova assim. Meu coração já vinha sofrendo
palpitações por ele fazia algum tempo, desde que o loiro perigoso me olhou pela primeira vez.

Naquele instante, quando seus olhos azuis brilhantes e zombeteiros sorriram para mim, eu soube
que nenhum outro homem me envolveria como ele me envolvia e que por mais que eu tivesse passado
momentos terríveis na companhia dele, estava claro para mim que Heitor ainda era o único que me
fazia feliz.

Além do mais, ele tinha sido corajoso ao me salvar dos trombadinhas, tinha sido carinhoso,
protetor, tínhamos feito amor e eu começava a me perguntar se a cada passo que ele desse naquele
quarto onde estávamos vivendo como um casal de namorados meu órgão seria arrancado do peito
apenas para ficar exposto a ele.

— Que bom saber que saiu do quarto — a voz grossa agora um pouco mais grave falou ao se
aproximar do closet.

— Pois é. Desci pra tomar o lanche com as garotas e também fiquei um pouco no jardim depois
de um tempo, tentando conhecer a casa.

— Não me diga que tentou planejar uma fuga — brincou, vi seu semblante e ele estava rindo.
Então sorri também.

— Acho que não seria uma má ideia — dei de ombros.

— Tá gostando daqui?

— O lugar é ótimo. Lia, a amiga de Elena, me convidou pra conhecer os pontos turísticos da
cidade.

— Hum.

Heitor de repente abriu a porta do closet e passou a tirar a própria camisa. Pega de surpresa, fixei
o olhar em outro ponto do quarto.

— Tudo bem? — ele perguntou, parecendo perceber meu desconforto.

— Sim, tudo...

— Se incomoda de me ver sem camisa?

Engoli em seco.

— Bem, não é nada do que não tenha visto antes...

— Se isso a incomoda, posso tentar mudar...

Pigarreei.
— Certo, prefiro ver você com camisa.

— Mentira — riu, debochado, se virando de frente para me estudar — eu sei que curte meu peito,
que gosta de ver quão largos meus ombros são — largou a camisa na beirada da cama — Diga a
verdade, Maya.

— Prefiro falar sobre outra coisa — recuei dois passos.

Antes que eu pudesse dar um novo suspiro, Heitor já estava diante de mim, tão cheiroso e tão
perto, me espremendo contra a parede. Ergueu um antebraço sobre minha cabeça, me prendendo,
inclinou um pouco o rosto e começou a mordiscar o lóbulo de minha orelha, me deixando afetada.

— O que está fazendo? — murmurei, com um fio de voz, me excitando de uma forma
surpreendente. E por mais que eu desconfiasse de que ele estava me provocando ou me testando, não
conseguia deixar de cair em tentação.

— Toque meu peito, Maya — sussurrou, delicado.

— Não, eu não quero... — menti.

— É claro que quer...

Seu peito musculoso e firme estava na minha frente e eu poderia ver o quanto os bíceps eram bem
trabalhados, como suas pintinhas marrons em volta do corpo eram charmosas. Ele era selvagem com
roupa e sem roupa. E parte de mim queria tocar sua pele, queria tocar a solidez debaixo de sua carne
e me perder em seu peito duro e protetor. Queria que Heitor me abraçasse e nunca mais me soltasse.
E queria beijar sua boca, sentir sua mão morna deslizar pelo meu braço. Queria colar em Heitor para
sempre... oh, Céus!

Antes que eu finalizasse meu pensamento, sua boca habilidosa cobriu a minha enquanto suas mãos
fortes me apalparam. Lentamente nossas peles se colaram e me embriaguei com sua colônia. Com os
olhos novamente cerrados, tudo o que sentia era que era muito bom ser amada e beijada por ele,
mesmo que aquilo não fosse para sempre.

Heitor afundou o rosto em meus cabelos enquanto suas mãos me puxavam mais para si. Com as
mãos espalmadas em seu largo peito, me deixei levar pela quentura da emoção e da sua língua
percorrendo todo o meu corpo. Então ele segurou meu cabelo com força e me beijou furiosamente,
fazendo com que meu rosto virasse de um lado para o outro. Meus seios intumesceram contra o
sólido peito e senti borboletas em meu estômago, além de uma quentura bem abaixo do baixo ventre.

De repente alguém bateu na porta, nos sobressaltando e então Heitor se afastou de mim.
Atordoada, como se saísse de um transe, petrifiquei. Levei a mão aos lábios enquanto Heitor atendia
o dono da casa.

Minutos depois, a porta se fechou novamente e vi Heitor se dirigir para a beirada da cama, onde
tinha deixado a camisa. Ele a vestiu novamente. Ajeitou-se e depois me fitou, como se sentisse na
obrigação de me dar alguma satisfação.

— Não vou demorar, malagueta.

— Aonde você vai?

— Volto já — falou antes de se retirar. E eu afundei na poltrona, com medo de me acostumar com
aquela maneira gostosa de Heitor me tratar.

***

Eu tinha lido em alguns artigos que era muito difícil para uma mulher conseguir se recuperar
completamente depois de ter sofrido um abuso sexual e que na maioria dos casos era muito
complicado a vítima voltar a ter uma vida normal, no entanto eu era uma privilegiada. Obviamente eu
ainda levaria mais alguns anos até conseguir confiar em outro homem, mas eu já conseguia fazer sexo
e até sentir desejo, sem qualquer medo ou neurose. Eu até já havia conseguido ter uma amizade
saudável com alguns caras, como por exemplo, Andreas. E por mais que a ideia de fazer sexo fosse
ainda um pouco delicada para mim, eu conseguia muito bem ficar com Heitor. Podia sentir seu
cheiro, aprovar o peso de seu corpo sobre o meu e seus beijos na minha boca enquanto suas mãos
muito másculas me apalpassem e me deixassem com arrepios.

***
Depois que saiu naquela tarde do quarto, Heitor só voltou à noite, me chamando para jantar.
Agimos como um casal feliz, porém reservado, lá embaixo na companhia de Elena, Diogo e amigos,
e após o jantar, Heitor deitou-se na cama, cruzou os pés e se ajeitou nela. Pegou o controle remoto
com um movimento rápido e ligou a TV.

Comecei a pensar que devia me manter afastada dele, afinal, estava bem claro que Heitor não
queria nada sério comigo, apenas trocar beijos e fazer sexo quando fosse conveniente a ele.

Pronta para dormir, peguei o lençol, uma colcha e um travesseiro. Forrei tudo no carpete macio
quando ouvi o pigarro de Heitor.

— O que é isso?

— Hã? Bom, é onde vou dormir.

Ele ignorou a televisão e me estudou. Seus olhos azuis violeta estavam ainda mais brilhantes
agora.

— Tá brincando! Se acha que precisa fugir de mim, a resposta é não, guria. Não precisa. Veja
essa cama aqui. Ela é grande e confortável o suficiente pra nós dois.

— Não me importo de dormir no chão. Já deitei em lugares muito piores.

— Mas eu me importo. Sabe, sou um homem à moda antiga quando o assunto é a diferença de
gêneros, Maya. Você é uma garota. Não vai ficar no chão enquanto eu fico na cama. Claro que não.
Venha, deite-se aqui. Se acha que minha presença vai incomodá-la, eu desço.

Fiquei em pé, estática, analisando suas palavras. Vi Heitor pegar o controle remoto e abandonar a
cama. Ele vestia agora uma calça de moletom cinza claro, camiseta preta e meias da mesma cor da
calça.

— Sabe, guria, minha mãe sempre me ensinou a ser um cavalheiro com as garotas. É, sério, não
vou permitir que durma no chão.
—Ok, se prefere assim...

Deitei na cama e com o rabo de olho espiei Heitor improvisar sua própria cama lá no chão, sobre
o carpete. Bom, para o meu bem e o da minha sanidade mental, eu deveria ficar mesmo longe dele.
Deitei a cabeça no travesseiro e tentei ignorar a presença de Heitor lá embaixo, que ainda assistia a
TV.

— Boa noite, malagueta — sua voz, apesar de suave, saíra em tom de divertimento.

Sem responder, fechei os olhos. Respirei fundo. Eu queria mesmo conseguir dormir.
Capítulo 21
HEITOR

O FILME ESTAVA me cansando. Estava indo muito bem até o cara voltar da guerra e começar
uma melação com a garota da história. Massageando o rosto, exausto, peguei o controle remoto e
desliguei a TV. Depois me ajeitei na cama improvisada no chão. Não era macia e gostosa como uma
cama de verdade, mas ainda assim era confortável. Lembrei de Maya. Pensei se ela já estaria
dormindo. Me ergui um pouco com cuidado só para espiar.

Ela estava mesmo adormecida.

Observei a garota. Pensei em velar seu sono.

Maya não tinha ideia de como mexia comigo. Na verdade, não tinha a mínima ideia de como
deixava meu corpo em chamas toda vez que me tocava ou simplesmente se aproximava de mim.

Voltei a deitar a cabeça no travesseiro, respirando fundo. Precisava tirar aquela guria da cabeça.

Concentra, Heitor, concentra. Nada de garotas. Nada de pensar em Maya. Ela não quer, você
não quer. É melhor assim. Em breve você terá sua vida de volta, inclusive, todas as outras garotas
dando sopa. Não pire.

Não pire por Mayaaaaaaa, porra!

Respirei fundo mais uma vez.

Cerrei os olhos e tentei dormir. Mas depois de alguns minutos ouvi um gemido vindo da cama.

Afastei o lençol do corpo e me levantei calmamente até chegar onde a garota estava. Senti sua
respiração quente. Ela estava realmente apagada. Em pé, fiquei admirando-a. Afundei as mãos nos
bolsos do moletom cinza enquanto estudava suas feições. Tinha a pele de pêssego, cabelos muito
escuros e as sobrancelhas bem delineadas. Tinha uma graça e eu não podia negar que ela mexia
comigo. Principalmente por causa de seu jeito de me olhar, de me responder e de tentar a todo custo
se manter afastada de mim.
Maya era diferente das garotas que rolavam pela minha cama. Era corajosa, natural, real demais,
e não parecia ser do tipo que se derretia por um cara como eu. Nem mesmo pelo meu dinheiro. E isso
me intrigava. Ela não era como as outras. Era autêntica, dona do próprio destino e jeito de ser. No
entanto, eu a desejava e queria que ela me desejasse.

No fundo tinha uma grande admiração por ela, mas não podia deixar de ficar mal quando Maya
abalava meu ego. E pensar que ás vezes ela realmente me desprezava me deixava furioso. Furioso
porque quanto mais ela se afastava, mais eu a queria por perto, mais eu a queria para mim. Era como
se ela fosse um desafio. E eu adorava desafios.

Aquela garota era como uma montanha linda, esbelta e alta, muito difícil de ser escalada e por
isso eu precisava alcançá-la, precisava ficar perto, conquistá-la, até mesmo para me sentir mais
poderoso, mais homem. Ela era difícil e ás vezes parecia me querer pelas costas quando todas as
outras mulheres dariam tudo para deitarem ao meu lado. As outras queriam ser exibidas e mimadas e
Maya não queria nada disso. Só queria voltar para a sua vidinha pacata e para as pessoas idiotas que
ela amava.

Ergui a mão devagar e toquei seus lábios rosados com a ponta de meu dedo indicador com
cuidado para não acordá-la. Já tinha provado aqueles doces lábios e já tinha provado todo aquele
corpo macio e gostoso. E ainda que eu não quisesse mais e Maya também não me quisesse, sabíamos
perfeitamente que um mexia com o outro. Era uma atração boa e desenfreada, que ia além da nossa
razão.

De repente a garota se mexeu e me afastei rapidamente. Foi quando Maya começou a balançar a
cabeça, murmurando algo, parecendo angustiada.

— Não... não... por favor, não... eu não quero. Não...

Eu franzi a testa. Analisei sua feição. Era de medo, de desespero e pensei se ela estava sonhando
comigo.

— Não, por favor... não.

Cheguei um pouco mais perto. Ela estava tendo um pesadelo.

— Ei, Maya... ei, tá tudo bem— sussurrei — Você tá bem.


— Não, eu não quero... ele vai me machucar... ele... vai... me... machucar.

— Ele quem?

— Heitor... ele não é... confiável... mas eu.. eu gosto dele.

Engoli em seco. Eu não era confiável? Mas ela gostava de mim? Mesmo não querendo admitir, me
senti desapontado com a ideia que ela tinha sobre mim. Me senti chateado também.

— Ei, tá tudo bem... você vai ficar bem, eu prometo.

— Ele vai me violentar... o outro... homem... tenho medo... — e começou a chorar — eu tenho
tanto medo...

— Ninguém vai violentar você. Ei, ninguém vai machucá-la, eu prometo.

— Ele me machucou... ele... vai fazer de novo... ele... me... ele... oh, meu Deus, foi tão horrível...

— Quem machucou você? — sussurrei em seu ouvido, agora ansioso para que ela falasse mais —
Me fale. Quem machucou você?

Me senti mal por isso. Algo me dizia que uma coisa muito ruim havia acontecido na vida daquela
garota e eu precisava desesperadamente saber o que era.

— Me fale o nome dele — sussurrei novamente — O nome. Me diga o nome.

— Ele... ele...

— O que ele fez com você?

Maya parou de falar de repente, apertando minha mão. Então deitei a seu lado, sentindo sua
respiração voltar aos poucos, até ficar regular, e depois ela voltou a dormir calmamente. Resolvi não
perguntar mais nada. Analisei seu rosto agora mais tranquilo e pensei novamente no que teria
acontecido na vida de Maya. Não era difícil pensar. Sem mãe, um pai bêbado e irresponsável, um
irmão que tinha fugido da raia quando ela mais precisara dele. Afinal, que cara deixaria a própria
irmã sozinha na companhia de um pai bêbado, aguardando homens da máfia? Que porra de irmão era
aquela? Senti raiva. Raiva de todos aqueles que tinham permitido que ela fosse machucada, raiva
especialmente do vagabundo que lhe tocara.

Quando Maya finalmente largou minha mão, me afastei da cama, não querendo pensar em assustá-
la, caso ela acordasse no meio da noite e me visse ali deitado a seu lado.

Voltei para o chão, deitei minha cabeça sobre o meu braço e pensei em minha vida, em todas as
garotas que passaram pela minha cama. E pensei que Theo tinha razão quando um dia falou que eu
precisava esquecer meu passado e simplesmente seguir. Tinha sido um acidente. Um maldito
acidente. Não podia culpar as pessoas pelo resto de suas vidas. Natanael tinha tido sua parcela de
culpa, claro, tinha sido um irresponsável e causador da morte de quem eu amava, no entanto fora um
acidente.

Suspirei.

E agora tinha Maya. Uma garota inocente e corajosa. Uma garota que obviamente passara por
muitas experiências difíceis e dolorosas ao longo da vida e eu estava castigando aquela garota sem
ela ter feito nada. Massageei minha testa, me sentindo o maior cretino do mundo, e decidi que
deixaria Maya voltar em paz para casa, que eu a livraria de toda aquela droga de vida que estava
proporcionando a ela.

***

Despertei às sete e me senti aliviado por ver Maya dormindo serenamente. Desfiz a cama no chão
e me inclinei um pouco, tentando aliviar a dor que estava sentindo no corpo, a dor que me chamava
de burro por eu ter cedido o lugar à garota quando tinha uma cama imensa e quentinha para passar a
noite.

Corri para o banheiro e tomei uma chuveirada fria. Pensei em malhar. Sabia que Diogo costumava
manter sua forma física no terraço e inclusive tinha me convidado para uns exercícios via torpedo
logo pela manhã. Vesti uma camiseta branca e uma outra calça de moletom. Com as mãos ajeitei o
topete na cabeça. Pus o relógio no pulso e nesse momento ouvi o celular tocar. Antes que o hip hop
acordasse Maya, atendi e ouvi a voz de Nora do outro lado da linha.

— Heitor?

— Oi, mãe.

— Bom dia pra você, querido! Como vai o Rio? Tudo bem por aí?

— Tudo ótimo. Um sol radiante olhando pra mim agora — entrei no banheiro, não querendo
acordar Maya.

— Oh, e imagino quantas garotas lindas vão estar com você antes do almoço. De preferência
com aqueles pequenos biquínis indecentes. Certo, não quero tomar seu tempo. Liguei porque seu
irmão comentou que você e a moça só voltam na semana que vem.

— Como é?

— Você e a garota. Theo me falou sobre ela... esqueci o nome dela agora. Hum, é um nome
difícil...

Droga. Theo tinha falado demais. Feito Nora acreditar que eu estava tendo um relacionamento
sério. Que salafrário!

— Heitor?

— Estou ouvindo, pode falar.

— Seu irmão tá preocupado com você... disse que você tem agido estranho ultimamente, e
também tenho notado que tem trabalhado demais, menino, então pensei em dar um almoço. Theo
também falou que a moça é muito reservada e por isso pensei num almoço de família.

Pigarreei, da porta do banheiro, percebendo que Maya se balançava na cama, como se estivesse
prestes a acordar.

— Bom, mãe, vamos ver... que tal conversarmos numa outra hora? Estou prestes a malhar agora.
Diogo está me esperando.
— Certo, mande um beijo pro Diogo e fale que ainda estou esperando uma visita dele. Como
vai a família dele?

— Vão bem, todos vão bem.

— Ok, se cuide.

— Você também, mãe. Te amo.

Desliguei o telefone, com uma fúria capaz de esmurrar Theo, caso ele estivesse ali na minha
frente. Quem ele pensava que era para dar com a língua nos dentes sobre Maya e eu? E ainda por
cima falar mentira! Maya não era minha namorada! Ela brevemente voltaria para a vida dela e eu
voltaria para a minha. Simples assim.

Novamente de volta ao quarto, sentei na poltrona branca para calçar o tênis. Maya ainda estava
dormindo e me senti aliviado por isso. Terminei de amarrar o cadarço do último pé e me levantei
para espiar o dia ensolarado que fazia lá fora. Depois voltei a espiar aquela intrigante garota. Ela
parecia realmente adormecida, a respiração bem regular. Se não estava dormindo, era muito boa
atriz. Eu mesmo já tinha passado por várias situações tensas em que fora necessário forjar morte e
sabia exatamente como era deixar a respiração lenta ou bem suave. Mas Maya não era ninguém da
máfia, afinal.

Passei a mão pelo cabelo, jogando aqueles pensamentos idiotas para o lado, antes de pensar em
deixar um bilhete para quando ela acordasse. Num pedaço de papel escrevi:

bom dia, malagueta! vou malhar, mas não vou demorar

Deixei o bilhete na cama ao lado de Maya e me dei o direito de olhar para ela mais uma vez. Era
fácil fazer isso com ela dormindo. E comecei a pensar no quanto ela ficava mais charmosa e serena
enquanto adormecida. Me olhei no espelho pela última vez antes de deixar o quarto à procura de
Feroz. Desci a escada de dois e dois degraus e encontrei os caras na sala de estar.

— Chegou numa boa hora.

— Bom dia. Fala aí, Bruno — cumprimentei ele, depois falei com cada um dos outros caras do
bando. Apesar de não estar sempre com eles, conhecia todos os rostos e fazia questão de tratá-los
bem. Até porque eles sabiam quem exatamente eu era e compreendiam perfeitamente que naquela
hierarquia, acima de mim vinha somente Diogo. O curioso também era que do mesmo modo como os
caras apareciam na casa, eles iam embora. E dez minutos depois, sem mesmo tomar o desjejum,
Diogo e eu seguimos para o terraço.

— Então, como foi a noite? — ele perguntou — aprovou nossos cômodos?

— Sabe que me sinto um Sheik na sua casa. Agradeça a Elena por isso, pois sei que a ideia partiu
dela.

Diogo deu uma risada.

— Atrás de um grande homem, há sempre uma grande mulher, meu chapa. Nunca ouviu falarem
isso? Não acha que vou perder meu tempo com essas coisas de quarto, acha? Pra mim é tudo a
mesma coisa, mas Elena sabe identificar exatamente qual cômodo está no nível 7 e qual deles está no
nível 10. Essa mulher é fabulosa.

Eu ri, pensando em como a atrevida Elena amansara Diogo de vez. No entanto, ele continuava o
mesmo debochado de sempre. Entre nós dois, eu era o mais mulherengo e ele era o mais carismático.
Todavia tínhamos muitas coisas em comum. Como por exemplo, talento para liderança e para os
negócios. E como Diogo se apaixonou perdidamente por uma garota que ele nunca imaginou que se
apaixonaria um dia, eu também corria o risco de começar a amar Maya.

Minha pequena Maya.

Minha doce e atrevida Maya..

Melhor de parar de pensar nisso.

Ignorando os devaneios que sempre me levavam até a morena, agarrei a barra de ferro, enquanto
Diogo se deitava na esteira para fazer suas abdominais. Ao menos daquela forma eu me esquecia da
garota perturbadora que estava à minha espera lá no quarto na casa de Feroz.
Capítulo 22
MAYA

DESPERTEI COM o freixo de luz solar em meus olhos. Me espreguicei um pouco e me sentei na
cama. Afastei as mechas de cabelos do rosto e olhei em volta. Voltei a olhar para a cama e percebi a
marca do corpo de Heitor a meu lado.

Espere aí.

Heitor?

Ele estivera comigo na cama?

Olhei em redor novamente e não encontrei Heitor. Nem sinal dele.

Que doideira era essa? Ele tinha dormido na cama comigo? Não. Ele tinha dormido no chão na
noite anterior. Me lembrava muito bem que eu mesma tinha forrado o lençol sobre o tapete felpudo e
depois do discurso de cavalheirismo dele, Heitor se aconchegara lá. Até achei que fosse zangar, que
fosse implicar, mas ele aceitou a ideia de ir para o chão numa boa.

Engatinhei até a beirada da cama e olhei para o chão onde devia estar sua cama improvisada, mas
lá não havia nada. Nem sinal de lençol ou de algum travesseiro. Me endireitei, ajeitei as mechas de
cabelos atrás da orelha e pus os pés no chão. Um chão macio e bem quentinho, igual ao do quarto
onde eu dormia na mansão de Heitor em São Paulo. E por falar em Heitor, onde estava ele? Dei uma
corrida até o banheiro. Espiei por uma frecha da porta. Nada. Corri até a janela que dava para uma
vista linda da manhã carioca e o procurei lá embaixo, mas no lugar de Heitor, avistei Lia e alguém ao
lado dela, um rapaz negro e elegante, que devia ser Bruno.

Voltei para o centro do quarto e peguei minha escova de dentes antes de seguir novamente para o
banheiro. Após toda a higiene matinal, tomei um banho e vesti um short jeans e uma camiseta branca
de algodão. Heitor me fizera comprar muitas coisas antes da viagem, ainda que não me agradasse o
fato de ficar me beneficiando com o dinheiro dele. Escovei os cabelos e os prendi num coque frouxo.
Estava calçando uma sandália baixa quando a porta se abriu e uma garotinha apareceu.

— Oiii!
Era Esmeralda.

— Oiii — sorri para ela, que entrou eufórica.

— Vamos tomar banho de piscina? — a vozinha era tão doce e infantil, que me fazia lembrar dos
desenhos animados que eu via quando era pequena — Veja, essa é a Lady Bug — mostrou-me com
orgulho a boneca enorme como roupa vermelha cheia de bolinhas pretas.

— Uau, que linda a sua filha.

— Ela é uma super heroína! — percebi que ela misturava ainda um pouco as palavras, o que era
normal para uma criança da sua idade — Vamos tomar banho de piscina?

— Bom, eu...

— Esmeralda? — a voz de Elena soou atrás da gente — Ah, aqui está você! O que a mamãe falou
sobre deixar os brinquedos espalhados na sala?

— O tio Alvim vai guardar, mamãe!

— O tio Alvim está ocupado, meu bem, ele não pode fazer isso. Oh, me desculpe, Maya, pela
invasão. Bom dia.

— Oh, não, tudo bem. Ela é uma garotinha muito simpática e estava me convidando pra nadar na
piscina juntamente com ela e com a Lady Bug.

— Ah, ela não larga essa boneca... uma outra hora, amor. Venha. A Maya agora não pode nadar.
Além do mais, o tio Jiraya está limpando a piscina e ainda não terminou.

— Então depois você nada comigo, Maya? — os olhos castanhos mel me fitaram. Percebi que
aquela menininha linda e esperta se parecia muito com os pais. Era um misto dos dois. Os cabelos
escuros e a pele eram como os de Diogo e as feições eram como as de Elena.

— Depois a Maya pensa no seu convite, Esme. Agora venha, vamos arrumar os brinquedos, que
da última vez que você deixou eles espalhados pela sala, o tio Alvim caiu feio. E se machucou.
Esmeralda tentou esconder um riso com a mãozinha pequena, me fazendo ficar divertida, mesmo
sem saber sobre a história.

— O papai chamou ele de filho da pluta! — gargalhou alto, a voz estalada, no colo da mãe.

— Hum, o papai anda falando muita palavra feia fora de hora e pelo jeito vou ter que voltar a ter
uma conversinha com ele. Agora vamos deixar a Maya se arrumar em paz. Diga tchau a ela.

— Tchau, Maya!

— Tchau, minha linda! — acenei — Hum, Elena?

— Sim?

— Por acaso sabe onde o Heitor está? Não o vi acordar, então...

— Ah, ele saiu com o Diogo. Os dois malharam no terraço e depois saíram cedo. Acho que logo
estarão de volta.

— Ok.

Elena saiu e me levantei novamente, dessa vez para me ver no espelho. Eu estava bem. Nenhum
pouco abatida, completamente diferente da menina que eu era quando cheguei na mansão de Heitor.
Peguei um frasco do perfume masculino (que era dele) e passei um pouco no pulso e no pescoço.

Olhei o dia lá fora e fiquei encantada. Parecia que o sol de alguma ilha tinha vindo especialmente
nos visitar. Pensei que se fosse em outros tempos eu planejaria aproveitar a distração de Heitor e de
toda a casa para poder fugir. Mas seria loucura. Havia certamente capangas espalhados por toda a
casa. Além disso, como iria me virar numa cidade como aquela? E agora também eu queria ficar por
perto... e precisava entender o que acontecera para Heitor ter ido parar na cama ao meu lado. Eu não
queria nem pensar nos olhos azuis dele me observando dormir. Ah, que merda! Eu devia estar
horrível. E se eu tivesse roncado? Será que eu roncava?

De repente ouvi vozes lá fora e corri até a varanda. Vi que Diogo e Heitor chegavam. Ambos, de
fato, estavam com roupa social e não a de corrida. Então abri a porta e, curiosa, corri até o hall para
tentar ouvir alguma coisa da conversa. Qualquer coisa.
— Heitor! — uma mulher o chamou e eu o vi voltar-se para ela. Uma morena bem vestida, de
cabelos longos não tão escuros.

— Carol! — ele sorriu e os dois se cumprimentaram com um beijo no rosto.

— Que surpresa boa encontrar você aqui! — ela se pendurou em seu pescoço e por alguma razão
idiota, não gostei disso, não gostei de toda aquela intimidade que os dois pareciam possuir.

— Heitor só vem à base de intimação — ouvi Diogo brincar antes de seguir para dentro de casa
— Paixão, o café tá pronto? Heitor e eu estamos morrendo de fome! — gritou, indo em direção à
mulher e imaginei que Elena, com aquele barrigão, devia estar coordenando as coisas na cozinha.
Pensei em como ela era organizada e poderosa, como era a principal condutora daquela casa enorme,
que aparentemente só vivia movimentada. E ela ainda tinha uma filha pequena para cuidar e estava
grávida!

Elena, sem dúvidas, já era uma de minhas heroínas e eu teria o maior prazer de dizer aquilo um
dia para ela. Pensando bem, me dei conta de que estava hospedada em sua casa e que, portanto, não
custava nada tentar ajudar. Era claro que uma mansão como aquela tinha funcionários na cozinha e na
limpeza, no entanto eu poderia fazer algum serviço para demonstrar mais utilidade. E a ideia de
compreender quem era a desconhecida que flertava agora mesmo com Heitor enquanto os dois
estavam à sós na entrada da casa me deixou ainda mais incentivada a descer.

Ergui o queixo e segurei o corrimão. Desci as escadas lentamente, até ficar diante da morena e de
Heitor, que conversavam. Olhos azuis pousaram-se em mim e vi quando os castanhos da
desconhecida os seguiram.

— Bom dia — falei, tentando ser educada.

— Maya — sussurrou Heitor, me olhando, como se não esperasse me ver tão cedo.

— Olá, querido, eu li o bilhetinho que me deixou — forcei um sorriso.

Eu vi as sobrancelhas da morena se arquearem e Heitor pareceu se dar conta do que estava


acontecendo ali.

— Oh, perdão, hum, Carol, essa é Maya, minha... namorada.


Me senti um pouco desapontada por ele ter falado 'namorada' com tão pouco entusiasmo. Eu sabia
que estávamos encenando, mas esperava mais ânimo da parte dele.

— Oh — a moça pareceu tentar esconder uma constrangida surpresa — claro, como vai? —
esticou a mão para mim e nos cumprimentamos como duas garotas civilizadas.

— Carol é a irmã de Diogo — Heitor esclareceu.

— Ah, sim. Percebi a fisionomia.

Bom, Diogo é muito mais agradável que ela e não parece dar em cima dos parceiros dos outros!

— Bom, então vocês estão juntos há muito tempo? — Carol perguntou, divisando nossos olhares.

— Há poucas semanas.

— Ah.

De repente Esmeralda surgiu correndo na direção da tia.

— Tia Carol! Tia Carol!

— Olá, minha pulguinha arteira! — ergueu a menina no colo, como uma tia carinhosa e atenciosa
faria.

Elena e Diogo, que vinham atrás, se aproximaram.

— Bom dia, pessoal. O café tá na mesa — Elena falou antes de me puxar pela mão — Venha,
Maya, quero que se sente ao meu lado, tenho umas coisas sobre o Heitor pra contar.

Vi Diogo seguir pela varanda, num sentido oposto ao nosso, enquanto Heitor se afastava para
atender ao celular na sala de estar. Carol ficou mimando a sobrinha e algo nos olhos dela e no modo
como olhava de longe para Heitor me fez perceber que havia mais alguma coisa no ar. E eu queria
saber o que era. Não devia estar tão interessada no clima dos dois, mas eu estava.
***

— Por que você dormiu na cama? — quis saber, uma hora depois, quando já estávamos no quarto.

— O quê? — Heitor estava de costas e ao que parecia, colocava o relógio importado outra vez no
pulso esquerdo.

— Pelo que me lembro, você fez questão de ir ontem para o chão, mas hoje quando acordei vi a
marca de seu corpo na cama ao meu lado. Por que você foi pra cama, Heitor?

Ele resmungou, agora tirando a camisa, me ignorando.

— Heitor?

— O que você quer, guria?

— Só quero que me explique por que passou por cima da minha vontade e deitou ao meu lado.
Não me diga que...

Ele virou-se para me encarar.

— Bem, você pareceu ter um pesadelo de madrugada, malagueta. Eu posso ser rude algumas
vezes, mas sei muito bem tratar uma mulher. Não sei se você entende, mas se eu quisesse te obrigar a
alguma coisa, eu faria isso e você não seria louca de impedir.

Arregalei os olhos, furiosa.

— Ah, é mesmo? Então porque ESSA PALHAÇADA DE FINGIR QUE SOMOS NAMORADOS?

Ele virou-se, evidentemente impressionado com minha maneira de berrar e pausou os dedos no
botão da camisa azul que já tinha vestido.

— Palhaçada? — seu peitoral nu e largo, mesmo escondido pela camisa, quase fez meu coração
explodir — Não tem palhaçada nenhuma. Presta atenção aqui, guria, estamos de visita na casa de um
amigo. E não é porque Diogo é meu amigo que ele precisa saber todos os detalhes da minha vida,
sacou? Inclusive que o bêbado desgraçado do teu pai deixou de me pagar uma fortuna e por isso você
decidiu se tributar no lugar dela!

Engoli em seco. Pensei em dar uma resposta à altura, mas não consegui pensar em nada, a não ser
em berros. E não seria nada legal ficar gritando na casa de estranhos.

— Não entendo porque você tem tanto ódio no coração assim. Você, sem dúvida, não teve uma
vida tão difícil como a minha — girei os calcanhares, mas antes que eu lhe desse as costas, Heitor
me segurou pelo braço e me puxou para si. Arregalei os olhos ao encará-lo. Sua fisionomia era
tranquila, embora sua firmeza era evidente em me segurar. Ele era forte. Bem forte. Mas naquele
momento sua atitude não me assustava.

— O que aconteceu com você, Maya? — ao contrário do que fora antes, sua voz era um sussurro
agora — Conte seus segredos. Preciso saber.

— Do que está falando? — pisquei os olhos, confusa, tentando não ficar tão sensível ao calor do
corpo dele.

— Quem machucou você? Eu sei que foi alguém.

— Não, não sabe de nada... — tentei me afastar, mas ele me impediu.

— Diga o nome dele. Diga pra mim. Eu pego o desgraçado, juro que pego, e arranco a cabeça
dele e a dou numa bandeja pra você. Fale pra mim.

— Me solta... Heitor.

Achei que ele não fosse obedecer, mas então, para a minha surpresa, Heitor me soltou. Inspirei o
ar e o liberei lentamente pelo nariz. Heitor voltou a me dar as costas.

— Quer saber porque a marca de meu corpo ficou na cama a seu lado? Vou dizer: você estava
muito vulnerável na madrugada, morena. Estava agitada, tendo um pesadelo. Não sou um covarde
insensível. Me senti mal por vê-la tão desprotegida lá na cama enquanto falava coisas desconexas.
Não sou o maldito troglodita que pensa. Sou melhor que isso, Maya.

— Foi só isso?
Ele arqueou as sobrancelhas, dessa vez confuso e ofendido.

— Como assim foi só isso? Eu fiquei com você apenas um tempo na cama. O que acha que eu
faria? Que eu me aproveitaria de você dormindo e a violentaria? Não sou esse tipo de cara. Anda me
confundindo com alguém, morena. Não sei com quem, mas anda.

— Só fiz uma pergunta.

— Você estava dormindo. E mesmo que não estivesse, não tocaria em nenhuma unha de sua mão
sem o seu consentimento. Preste atenção — me fulminou com os olhos mais uma vez — Eu nunca,
jamais, faria uma coisa dessa. Tá entendendo? Não sou um estuprador desgraçado.

Entreabri os lábios, enquanto inspirava o ar dos pulmões e em seguida o soltei pela boca.

— Ok, me sinto mais aliviada. Obrigada.

Heitor voltou a me dar as costas e pegou alguma outra camisa no closet, como se estivesse
planejando seguir para o banheiro para poder tomar uma chuveirada.

— Eu passei toda a noite no chão, se isso a consola. Não dormimos juntos na cama a noite toda
como pensa — seguiu para o banheiro, me deixando sozinha no quarto.

Pensativa, afundei minha bunda na poltrona e pensei em tudo o que Heitor falara. Então eu tinha
tido um pesadelo e ele se preocupara? Tinha ficado o tempo todo comigo. Então ele tinha sido mais
fofo e cavalheiro do que eu imaginava. Sim! Era claro que sim. E era claro também que Heitor
Romano a cada dia me impressionava.
Capítulo 23
HEITOR

É MELHOR LIGAR pra casa — era o que estava escrito na primeira mensagem quando abri o
iphone. Mensagem de Theo. Na mesma hora disquei o número dele. Enquanto eu esperava meu irmão
atender, olhei para Alvim distraído e segui seu olhar. Estava em Maya debruçada na janela do quarto.
Alvim me viu e sorriu sem graça como uma forma de se desculpar. Eu não sorri de volta. Ao
contrário. Lancei a ele o olhar mais fechado e ameaçador do mundo, e por sorte dele a voz de Theo
me chamou do outro lado da linha.

— Fala, Heitor.

— Qual o seu problema? Não posso nem viajar que começa a me mandar mensagem como se
fosse minha namorada?

Riu.

— O mundo gira em torno de você, poderoso chefão, o que posso fazer? Nora está em agitada.
Onde tá Heitor? Onde tá Heitor? É só o que sabe falar. Acusa o ingrato filhote de ter viajado sem
lhe dar qualquer satisfação.

Suspirei.

— Diga pra ela que estou bem. E não devia ter falado pra Nora sobre a garota. O que passou pela
sua cabeça de vento, Theo?

— Foi a primeira coisa que veio na mente quando ela perguntou sobre sua ida ao Rio.

— Você fala demais, meu. Fala demais mesmo. E agora, como vou me safar dessa?

— É só pensar em alguma coisa bem do seu estilo. Diga que já chutou a garota e que está à
procura de novas emoções. Sempre dá certo.

— Vá se ferrar — ri, sabendo que era bem assim que eu agia mesmo, feito um filho da puta
desgraçado — Certo, vamos esquecer essa merda... quero saber, como andam as coisas no cassino?
Falou com Jarbas? Diga a ele que quero ficar por dentro de tudo.

— Vou dizer. Tudo bem por aqui. Nada de problemas.

— Ótimo, logo estarei de volta.

— Max quer falar com você.

Pensei um pouco naquela notícia.

— Não gosto dos trabalhos dele.

— Acho que devia ao menos escutar o que o cara tem pra dizer, Heitor...

— Depois a gente se fala, tenho que desligar agora.

Pus o aparelho no bolso e procurei por Alvim, que já tinha sumido dali. O cara não era trouxa. Ao
que parecia, tinha ido lá fora só para fumar um cigarro.

Diogo não gostava que fumassem dentro de casa. E mais uma vez ele estava tentando largar o
vício. Pensando nisso, tirei um cigarro do bolso e o acendi. Olhei para a janela onde Maya estivera
minutos atrás e não encontrei mais vestígio dela, até que de repente a morena apareceu. Dei a
primeira tragada ainda olhando para ela. Maya me encarou. Ficamos nos encarando por alguns
segundos, até que alguém se aproximou de mim.

— Touro Heitor — Carol sorriu para mim — O mundo é pequeno demais pra nós dois. Ando
pensando em matar a saudade.

Inclinei os lábios num sorriso.

— É mesmo? — joguei a fumaça para fora e voltei a pôr o cigarro na boca.

— Desde o casamento do Diogo não nos encontramos, eu acho. Certas experiências nunca saem
de nossas lembranças. Você é uma delas.

— Bem, estive outras vezes por aqui, mas foram ocasiões rápidas, Carol. Você certamente não
soube e por isso não rolou nada.

— Você continua o mesmo mulherengo, não é? Por isso nunca daria certo — se aproximou demais
e tocou meu rosto do jeito que uma mulher que me desejava fazia — E nunca canso de admirar seus
olhos.

— Ah, é?

Joguei o cigarro no gramado bem cuidado e olhei para o chão enquanto pisava no cigarro para
apagar o vestígio de fogo. Fingia não entender que Carol me dava mole, mas então imaginei que
Maya ainda estivesse na janela nos espiando e por isso uma vontade estúpida de provocá-la surgiu.

Carol era bonita. Tinha cabelos longos, corpão delineado e um olhar interessante. Já tínhamos
namorado por algum tempo no passado e o fato de morarmos em cidades diferentes acabou sendo um
banho de água fria em nossa relação. No entanto, toda vez que nos encontrávamos, rolava alguma
coisa. Houve vezes em que ela foi a São Paulo me procurar. Houve vezes em que eu a encontrei no
Rio e sempre que isso acontecia tínhamos transas maravilhosas.

Carol avançou dois passos e ficou bem perto de mim de modo que nossas respirações se
misturassem, e faltou poucos centímetros para que nos beijássemos. Eu me perguntei se alguém nos
veria ali. Carol de repente me beijou enquanto suas mãos macias e delicadas envolveram meu
pescoço. Ela estava na ponta do pé e aceitei seu beijo molhado.

— Carol — murmurei — não é uma boa ideia...

— Por que não? — sussurrou em minha boca — você nunca dispensa um bom sexo, Heitor
Romano. O que tá esperando? Fala pra mim.

— Tenho alguém agora...

Até pensei em entrar em seu jogo. Talvez fosse uma boa ideia. Enquanto estivesse beijando Carol,
dançando minha língua dentro de sua boca, eu não estaria pensando em Maya. Enquanto estivesse
segurando a cintura fina de Carolina e descendo minhas mãos em sua bunda, apertando-a, não estaria
também pensando em Maya. Na verdade, era uma merda pensar em Maya e no que eu estava
começando a nutrir por ela. Aquilo estava saindo do meu controle.
Maldição.

Maya era bonita, sedutora, interessante, tinha uma voz sensual e uma personalidade que me
intrigava, no entanto era complicado gostar dela e pensar em nós dois juntos como um casal de
namorados e amantes.

Carol se apertou ainda mais em meu corpo duro e foi bom sentir suas formas curvilíneas e macias.
Pela resposta de seu corpo, eu sabia que ela queria mais. Muito mais. E eu adoraria querer dar muito
mais a ela. Eu adoraria querer ir agora mesmo para uma cama ou para qualquer outro lugar da casa e
aliviar toda a tensão de meu corpo em seu corpo, num sexo selvagem e prazeroso, como a gente
sempre fazia. Todavia enquanto meu corpo estava em Carolina, minha cabeça estava em Maya.

Maya. Maya. Que porra. Eu não parava de pensar em Maya.

— Você é tão forte, Heitor, tão másculo e tão musculoso... — Carol balbuciou em meu ouvido, me
fazendo ficar ainda mais tentado a ir às últimas consequências — Oh, Heitor...

E eu era sensível aos gemidos de uma mulher. Adorava quando elas murmuravam que me
amavam, que eu era foda e que eu fazia maravilhas na vagina delas. Adorava quando elas
estremeciam e rugiam de prazer, sem reservas, sem pudor. Me fazia bem sentir a satisfação que eu
dava para elas. Todavia enquanto eu beijava e tocava Carol eu pensava e sentia como se fosse Maya
em meus braços. Porque era com ela que eu queria estar. Queria beijar sua boca como das outras
vezes, tocar seu corpo e mergulhar nele novamente, queria puxar seus cabelos negros e adentrar
loucamente em seu corpo a noite inteira.

O celular tocou alto, nos tirando a concentração. Carol se desgarrou de mim e recuou um passo.
Assim que encontrei o aparelho eu atendi.

— Heitor?

Era a voz de Jarbas.

— Fala.

— Max procurou por você.


Max era um mafioso. Trabalhava com tráfico de drogas, entre outras coisas. Era uma espécie de
pessoa que Diogo e eu não aprovávamos na ideia de estreitar laços e ampliar negócios. Eu tinha
conhecido o homem através de um negociante. Embora o Rio fosse a sede dos nossos negócios, em
especial o Esmeralda, era em São Paulo que se concentrava a maior parte dos nossos fornecedores
de equipamentos e armas. E eu era como uma ponte entre eles e Diogo. Ás vezes eu mesmo resolvia
tudo sozinho. Eu era um Del Rei em São Paulo.

— O que ele quer?

— Não explicou, só disse que tem uma proposta a fazer.

Carol ajeitou os próprios cabelos que estavam bagunçados pelo vento e murmurou alguma coisa
antes de se afastar. Eu mal acenei ao vê-la ir embora.

— Certo, fique de olho nele — mandei — Como andam as coisas por aí, Jarbas? Disse a Theo
que quero ficar por dentro de tudo.

— Ok. Está tudo bem... já tem ideia de quando vai voltar?

— No meio da semana. Quando for a hora, vou avisar.

Desliguei o telefone após me despedir de meu braço direito, pensando em como conseguiria
elevar o Del Romano aos padrões do Esmeralda. Na verdade, as boates e os cassinos eram
praticamente idênticos, a diferença estava na tradição. Enquanto o Del Romano em São Paulo era
novo e luxuoso, o Esmeralda do Rio era sofisticado e já tinha nome e clientela fiel. Os caras não
entendiam, mas a principal razão para eu passar alguns dias no Rio era debater com Diogo sobre as
melhores estratégias para tornar o Del Romano tão especial quanto o Esmeralda era.

Guardei o iphone no bolso da calça e então o nome de Maya veio em minhas lembranças. Voltei a
olhar para a janela, mas ela já não estava mais lá. Já devia ter se afastado há muito tempo. Talvez
tivesse sentido ciúmes ao me ver aos beijos com Carol. Talvez tivesse ficado com raiva ou enojada.
Ou talvez tivesse dado de ombros e voltado para o centro do quarto. Talvez me detestasse agora.

Era latente que havia uma forte atração entre a gente. Era óbvio que todas as sensações que eu
sentia, ela sentia também, mesmo que de forma diferente. Estava claro que quando nossos olhos se
encontravam eles levavam a mensagem ao cérebro e esse fazia nossos corpos faiscarem. Tínhamos
trocado beijos e feito amor uma vez e tanto eu quanto Maya estávamos envolvidos. Contudo ela agora
devia me odiar. E eu odiava o pai de Maya. E por isso, só por isso, nosso romance estava
condenado.

Entrando outra vez na casa, encontrei Diogo e Elena tendo algo que parecia ser uma pequena
discussão. Ele estava com a pequenina deles no colo e tentava enrolar a mulher.

— Prometeu almoçar em casa, Diogo, mas ontem saiu e ficou horas sem dar notícias. E hoje
pretende fazer a mesma coisa, que eu sei. O que está havendo com você? O que tá me escondendo?

— Elena — falou — não estou escondendo nada de você, paixão. Só vamos na boate ver algumas
coisas. Hoje é sexta, dia de receber muita gente da alta, você sabe.

— Você vai sair também à noite? Vai passar horas fora e voltar quase de madrugada? Quer saber?
Pode fazer o que quiser da sua vida! — pegou a filha deles dos braços do pai e, mesmo com aquele
barrigão, pôs a menina no colo e seguiu em direção a outro cômodo da casa. Diogo ficou sem saber o
que falar quando notou minha presença ali.

— Cara, sabe de uma coisa? Se tá pensando em casar um dia, é melhor pensar muito antes de
entrar nessa roubada — foi até o bar e abriu uma garrafa enquanto eu ria, cruzando os braços — É
sério, é uma tremenda furada, meu chapa. Ás vezes pode não parecer, mas fico a ponto de surtar —
voltou-se e esticou um copo de uísque para mim antes de levar o dele à boca.

— Não pode ser tão ruim assim. Você parece feliz.

— E sou, Heitor, mas não pense que é só paraíso o tempo todo. Ás vezes também enfrento
tempestades e terremotos. Não acabou de ver o que aconteceu agora?

— Vou lembrar das suas palavras quando chegar a minha hora — pisquei antes de tomar mais um
gole da bebida do copo.

— E por falar em relacionamentos — Diogo afundou no sofá da sala e inclinou a cabeça para
trás, apoiando a nuca no móvel duro — Desculpe a indiscrição, mas não pude deixar de observar
você e minha irmã há poucos minutos lá fora. Confesso que fiquei confuso. Não quero bancar o
moralista ou o intrometido, mas a paulistana que você trouxe com você não significa nada? Pensei
que fosse um caso sério.
Pigarreei. Não era muito fácil falar sobre Maya. Não era fácil justamente porque eu tinha que
mentir dizendo que não gostava dela e isso ás vezes me deixava desconfortável.

— Bom, mas como vê, não é tão sério como imagina — sentei no sofá oposto ao de Diogo e
imitei seu gesto, inclinando minha cabeça para trás, só que cerrando os olhos. Depois levei o copo
do uísque à boca e bebi tudo de uma só vez — é um caso meio complicado. Quando precisar de um
momento divã, me abro com você, tá legal?

— Falou, quem sou eu pra julgar? Mas se quer um conselho? Não se meta em confusão. Eu sei
que você é o rei das garotas, um mulherengo incorrigível, mas é meu sócio e vou precisar de sua
completa concentração, sobretudo esta noite, Heitor — respirou fundo — nem sei se vou conseguir
cuidar de tudo. Elena, você viu, está carente pra caralho. Dizendo que só trabalho e que ela sente
minha falta. Tá se sentindo deprimida e gorda. Acredita nisso? Ela tá se sentindo gorda! E agora, pra
completar, tá achando que estou tendo um caso.

— Talvez seja melhor dar mais atenção a ela, meu, é sério. Sua mulher vale a pena. Estou por
aqui, posso cuidar de tudo.

— É, estou pensando. É uma boa tê-lo por aqui esses dias. Talvez seja sua hora de assumir todo o
controle das coisas no Esmeralda.
Capítulo 24
HEITOR

— PREPARADO? — Diogo perguntou.

— Sempre.

Nos serviu com duas doses de uísque enquanto Bruno e a namorada dele surgiram risonhos e bem
vestidos na sala onde estávamos. Braço direito de Feroz no dia-a-dia, Bruno usava um smoking
branco elegante que destacava sua pele negra, e a simpática loira dele estava bela num vestido azul
noite. Pronta para matar, como a gente costumava dizer. Elena, ao lado, dizia para a amiga o quanto
ela estava bonita e bem naquele modelito. As duas pareciam empolgadas.

Elena era mesmo uma garota incrível, pensei. E não iria ao cassino àquela noite por conta do
cansaço da gravidez. E por causa dela, Diogo resolveu ficar também em casa. Após uma discussão
dos dois naquela tarde, Feroz resolveu ceder às súplicas da mulher e provar para ela que a família
era o ponto mais importante na vida dele, o que bem achei justo. Afinal, ela estava grávida e
precisava de mais atenção. E então acabou sobrando para mim a responsabilidade de dirigir o
Esmeralda àquela noite.

— A clientela do Esmeralda é bem exigente, Heitor, mas muito generosa, você verá. É simples, o
mundo está à sua volta, conquiste-o — Diogo piscou, e a seu lado pude contemplar uma Elena muito
satisfeita e serena, que massageava orgulhosamente o braço do marido — Tá vendo o que faço por
você, rolinha?

O casal se beijou e começou a trocar uma série de juras de amor ali em público. Coçando a nuca,
me afastei deles, tentando controlar a impaciência que estava sentindo com o fato de que até agora
Maya não tinha dado às caras. Segui para o bar e me servi com duas doses de uísque. Acrescentei o
gelo e olhei o pulso pela milésima vez, pensando no que teria acontecido para a garota ainda não ter
descido. Talvez Maya tivesse mesmo ficado chateada com o episódio de Carol e eu no jardim. Eu
tinha subido ao quarto naquela tarde e avisado que sairíamos à noite, e ela pareceu me ignorar, então
acabei passando o resto do dia longe dela. Agora sentia na pele o quão brava Maya estava.

Pensei em subir, em ir até o quarto e trazê-la à força, como na época das cavernas, todavia, após
respirar fundo um pouco, olhei para trás e avistei a garota no topo da escada.

Uau.

Meus lábios se entreabriram automaticamente e tudo ao meu redor pareceu ficar em segundo
plano. Maya estava perfeita. Perfeita como uma estrela. Segurava o vestido vermelho sangue e
começava a descer degrau por degrau, sem pressa, de uma forma muito, mas muito graciosa. Não
pude deixar de mirar a abertura sexy que deixava sua perna esquerda um pouco à mostra.

Caralho. Que sensual ela estava!

Como era sensual e não tinha ideia disso! Sensual até dizer chega. E eu não parava de olhar para
ela. Sabia que estava com a boca entreaberta e os olhos arregalados, mas nada me importava. Eu só
queria ver Maya descer.

Enquanto ela se movimentava, seu quadril e suas pernas balançavam a cada passo que seus pés
delicados ornamentados pelos saltos davam. Fui arrebatado por uma onda de encantamento. Maya
estava esplêndida! Os cabelos soltos e bem escovados caíam como uma cascata negra e brilhosa
pelos seus ombros e iam até as costas, sua boca vermelha era convidativa, seus olhos negros
brilhantes, havia um pequeno decote entre seus seios e então eu soube que dentro de poucos segundos
eu perderia o ar.

Parei de piscar.

Pensei se estava babando.

Ela não sabia que era tão gostosa assim. Não era possível. E agora eu mal conseguia encontrar
palavras! Nada passava por meu pensamento, exceto a ideia de que precisava dela. Cacete, eu
precisava dela! Especialmente gritando e gemendo embaixo de meu corpo, precisava estar entre suas
pernas e me deliciar com a maciez de sua pele.

Vi Elena abraçar Maya e tecer elogios sinceros e incentivadores. Quando me dei conta, Maya já
estava diante de mim. Estava me olhando, talvez sem ideia do que tinha me causado ao descer.

Era hora de me recompor. Ajeitei a gravata borboleta e lhe estendi a mão.


— Está linda, morena — cumprimentei.

Linda apenas não. Fabulosa!

Maya agradeceu, pegando minha mão e chegou tão perto, que mesmo de salto alto constatei que
não conseguia bater sequer em meus ombros. Abaixei os olhos e pude analisá-la ainda melhor. Me
lembrei de que deveria parecer um namorado atencioso e apaixonado. E eu sabia muito bem como
elogiar e agradar uma mulher. Peguei sua mão e a levei delicadamente aos meus lábios.

— Na verdade, está perfeita, malagueta — sussurrei.

Ela não sorriu. Apenas pigarreou.

— Então, podemos ir?

— Vocês podem ir no segundo carro. Lia e eu vamos no terceiro — Bruno falou enquanto
segurava as costas da namorada e a conduzia pela saída da casa.

—Divirtam-se! — gritou Elena, abraçada em Diogo.

Tão logo nos aproximamos do audi estacionado lá fora, abri a porta do carro para que Maya
entrasse primeiro. Depois sentei a seu lado, adorando a ideia de Bruno e a loira dele irem no outro
carro. Eu queria ficar à vontade com Maya, queria ter todo o tempo do mundo para ficar sozinho com
ela e apenas sua presença me bastava.

— Não precisa se preocupar — falei, cinco minutos depois, vendo-a tensa, enquanto o carro
percorria uma avenida movimentada — Não vai ter que falar nada lá. Apenas ouvir.

— Ouvir?

— Bom, nada do que não ouviu antes, guria. Sabe, esse tipo de gente é assim: eles te beijam pela
frente e te amaldiçoam pelas costas. É só sorrir com as palavras arrogantes que disserem e então vão
aceitá-la como se fosse uma do rol.

— Ah, entendi.
Ela me pareceu séria.

O celular tocou em meu bolso e olhei o número antes de atender. Theo. Não devia ter nada de
importante para dizer, então não hesitei em interromper a chamada. Depois retornaria a ligação.
Agora só queria me distrair com Maya. Não, só queria ficar perto dela.

Voltei a guardar o aparelho e voltei a mirar Maya. Ela estava olhando para o lado de fora através
da janela. Parecia segura de si. Não mais aquela Maya apática e abatida que estava sendo desde que
chegamos ali.

— Já esteve num cassino antes? — perguntei, tentando puxar assunto e tentando fazer com que ela
se voltasse para mim.

— Não — me olhou. E por mais que não visse mais aquele desprezo de antigamente em seus
olhos, eu notei que ela estava zangada. Provavelmente porque me vira com Carol no jardim aquela
tarde.

— Bom, Maya, o que viu hoje à tarde da janela...

— Não quero saber. Não somos mesmo namorados. Só é encenação, você já me explicou.

— Certo. Melhor assim.

Pensei em mudar de assunto. Queria que Maya se sentisse à vontade na minha companhia e que se
soltasse. Queria que ela quisesse conversar. Queria me reaproximar. Queria poder desejá-la e
investir nela. Queria terminar a noite entre suas coxas, tendo meus braços em volta de seu corpo e
minha boca dentro da sua. Daquela noite não passaria. Queria tanto seu corpo embaixo do meu como
o ar que eu respirava, com uma urgência que me deixava atordoado. Queria seus beijos e sentir seus
cabelos pretos entre minhas palmas. Queria acariciar seus seios duros e apalpar sua bunda
arredondada e nua, queria segurar sua cintura fina e me perder na maciez de seu corpo quente e
macio. Queria fazê-la minha, toda minha.

— Gosta de música clássica?

Ela me olhou. Pareceu não entender a pergunta.


— Música clássica — repeti.

— Não ouço muito.

— Nem eu — peguei um cigarro do bolso e o acendi — Fuma?

— Não, obrigada.

— Você bebe, Maya?

— Não, eu detesto bebidas alcoólicas. Elas me lembram meu pai — por um segundo detectei um
pouco de tristeza em seus olhos e não gostei. Não queria vê-la triste, nunca mais. Tomei a liberdade
de erguer um dedo e tocar seu rosto com o polegar e o dedo indicador, mas Maya se esquivou.

— Minha mãe também não gosta que bebo, mas não costumo exagerar — afastei minha mão de
seu rosto, não querendo incomodá-la.

Silêncio.

Voltei a fumar e me dei conta de que estava poluindo todo o oxigênio que havia no carro.

— Desculpe, vou jogar fora — abri um pouco o vidro da janela e joguei o cigarro por ela.

Percebi que Maya agora voltava a olhar pela janela e não gostei disso. Mesmo que não devesse
dormir novamente com ela, eu queria isso. Queria muito.

— Você está linda. Sei que já disse isso antes, lá na casa do Diogo, mas preciso dizer de novo.
Além disso, não foi encenação, guria. Você está mesmo deslumbrante. E eu estou me contendo aqui
pra...

Sem conseguir me conter, beijei seus lábios e adorei sentir o toque de suas mãos pequenas em
meu rosto. Achei que ela fosse recuar ou gritar, mas quando seus lábios se afastaram dos meus,
encarei seu rosto, atordoado.

— Maya, eu... — ia dizer o quanto ainda a queria, mas de repente a voz do motorista lá da frente
avisou que estávamos chegando. Ajeitei meu paletó e me preparei. Era hora de ser Heitor Romano.
Depois que o audi parou no amplo estacionamento reservado para os frequentadores Vips do
cassino e da boate, saí do automóvel e dei a volta, para só então poder abrir a porta para que Maya
também saísse. Eu a auxiliei a descer. Ela quase se desequilibrou e adorei quando se apoiou em meus
ombros. Me deu novamente o braço, após se ajeitar e descer do carro. Me restou dar as instruções ao
motorista. Ele devia estar atento para nos pegar, pois eu ligaria a qualquer momento.

Com Maya entrelaçada no meu braço esquerdo, alcancei a entrada, depois o hall, até chegar no
salão principal do Esmeralda. O magnífico Esmeralda. Os homens de Diogo vieram logo atrás.
Depois se espalharam pelo amplo lugar. Cada um tinha sua função e sabia exatamente como
desempenhar bem ela. Ficou a cargo de Bruno me apresentar para os clientes que ainda não me
conheciam e gostei de saber que todos tinham a consciência de que na ausência de Diogo a
autoridade ali era eu.

Não tivemos problemas na noite, bem como Feroz avisou. Os clientes foram respeitadores e
gentis, todos querendo me conhecer. Alguns já me conheciam e, portanto, só colocamos os assuntos
em dia. O único fator chato foi ter meus olhos percorrendo todo o salão à procura de Maya, que
sumira. Tentando ser discreto ao máximo, dei um gole da taça de champanhe e olhei novamente em
redor. Nem sinal dela. Aonde ela poderia ter ido? Droga. E se Maya tivesse fugido? Não, para onde
ela iria? Não conhecia ninguém no Rio de Janeiro. No entanto, por questão de segurança, achei
melhor procurá-la e assegurar que não a perderia de vista. Não toleraria fazer papel de tolo.

— Heitor?

— Agora não, Romão.

Com passos largos, me aproximei de Bruno e cochichei.

— Viu Maya por aí?

— Não. Relaxa, talvez esteja no banheiro refazendo a maquiagem. Lia também sumiu.

Eu não tinha certeza disso.

Maya não era como Lia. Era esperta, arisca, e não uma namorada comum. Estava ali encenando,
mas na verdade era uma prisioneira.
— Vamos fazer o seguinte: tome conta de tudo por aqui, que já volto. Qualquer coisa me ligue.
Estou com o celular.

— Claro.

— Tudo bem mesmo?

— Sempre fica, relaxa. Vá procurar sua garota.

Segui.

Só fui encontrar Maya depois de percorrer boa parte do cassino e entrar na sala oeste.

— O que tá fazendo aqui? — segurei seu braço, examinando seu semblante. Não gostava de
explodir com ela, mas detestava a ideia de ela ter sumido sem me dizer nada. Maya me olhou, séria,
seus olhos escuros muito desafiadores.
Capítulo 25
HEITOR

— PODE ME SOLTAR?

Ela me encarou. Os olhos pretos, de fato, pareciam me desafiar.

— Quer me provocar, morena?

— Será que dá pra me soltar? — insistiu.

— Aonde estava?

— Não achei que fosse ser sua prisioneira aqui... fui ao banheiro. Mas que droga! Será que pode
me soltar agora?

— Não devia desaparecer sem me dizer onde iria — afrouxei minha mão em seu braço, pois não
queria machucá-la, e sussurrei outras coisas perto de sua orelha.

— Está me confundindo com suas piranhas, Heitor!

— O quê? Você seria uma delas, se eu quisesse!

Deu-me uma bofetada.

— Nunca aceitaria isso! Prefiro morrer!

Sem responder, puxei Maya para mim como se ela fosse uma boneca de borracha, mas neste
momento, para a sorte de Maya, ou para a minha sorte, alguém apareceu.

— Heitor! Ah, desculpe interromper...

Olhei para trás e reconheci um dos senadores que também estava acostumado a frequentar o Del
Romano lá em São Paulo.
— Oi, Marcus, tudo bem — ajeitei minha gravata, me recompondo — Quero que conheça, hum...
minha, namorada. Maya.

— Como vai, senhorita? É um prazer. Heitor, e Diogo, onde está?

— Teve um imprevisto essa noite e não pode vir. Se precisar falar algo com urgência, estou aqui.

— Ah, preciso sim, mas nada que não possa esperar até o fim da noite. Continue a conversa com
sua namorada. Vou ali apostar mais um pouco e depois volto quando estiver menos ocupado. Foi um
prazer, senhorita — se despediu e se retirou.

Voltei a fitar Maya e a conduzi para a primeira sala livre que encontrei. Não me importei com as
câmeras que estavam nos filmando àquela hora.

— O que vai fazer comigo? — ela perguntou, os olhos arregalados — Por que me trouxe pra cá?

Olhei bem para seu rosto e a prensei na parede. Me aproximei tanto, que quase amassei seu corpo
macio contra o meu. Meu membro estava ardendo e queria se soltar. Eu já tinha tentado ficar com
outras mulheres depois de conhecer Maya, mas agora se tornava cada vez mais difícil me distrair
com quem quer que fosse.

Ergui meus braços e pousei minhas mãos em volta de sua cabeça, cada braço em cada lado, de
modo que Maya ficasse presa, me observando. Cheguei perto de seu rosto a ponto de sentir sua
respiração regular. Ela me encarava. Mesmo intimidada, sustentava seu olhar sem medo algum. E eu
sabia que assim como eu a queria, Maya também me queria.

— Você é tão destemida, guria... tão destemida, que me deixa alucinado. E quer saber? Estou me
contendo para não tomá-la aqui mesmo dentro desta sala.

— O que há de verdade entre você e a irmã do Diogo? Será que foi só mesmo um beijo? Se nosso
caso não é sério, não devia ficar me beijando pelos cantos! Por que não vai tomar ela em seus
braços? — reclamou, mas parecia falar por falar. Na verdade, o que seus olhos e seu corpo me
diziam é que ela estava muito a fim de mim.

— Você não quer que eu a deixe em paz, Maya. Sei que não quer. Você me deseja, morena, assim
como desejo você — inclinei meu pescoço e passei a tocar levemente a parte próxima à sua orelha.
Maya estremeceu, fechando os olhos e engolindo em seco, o que me deixou ainda mais excitado.
Abaixei uma mão e a pus por dentro de seu vestido, por entre a abertura sexy dele e subi, até apalpar
sua bunda. Ela estremeceu mais uma vez e meu pau se inchou de uma forma que parecia rasgar
minhas calças.

— Quero você — sussurrei — quero muito você...

Voltei a lhe apalpar e logo provei sua boca. Doce e suave. Maya entreabriu os lábios e fiz uma
inspeção geral lá dentro. Era bom beijar Maya e sentir seu gosto. Era bom também sentir seus braços
delicados em volta de meu pescoço e a ponta de seus seios se intumescerem contra meu peitoral. Ela
estava excitada. Ela me queria com a mesma proporção que eu a queria. Maya se entregou aos beijos
e nos envolvemos numa dança erótica sem volta. Logo passei a tirar o terno e ela me ajudou. Passei a
abrir os botões da camisa e ela ficou esperando. Com a camisa de fora, me livrei do cinto e comecei
a abrir a calça. Foi quando senti as mãos delicadas espalmadas em meu peito.

— Como você é forte... — sussurrou, me deixando ainda mais louco por ela — muito forte... e eu
o quero... não devia, mas eu o quero — sussurrou, os olhos fechados, parecendo ansiar por meu calor
— Muito...

Já nu, tirei seu vestido enquanto Maya se mantinha submissa e pronta para facilitar meu serviço.
Quando a deixei despida, ela voltou a me beijar e a massagear meus cabelos. Abraçou meu pescoço,
me deixando maluco. Logo sua calcinha saiu do lugar e eu não consegui mais me controlar. Cheguei
bem perto dela e a puxei para a mesa. Forcei meu peso contra o seu e me ajeitei entre suas coxas.
Meu pau alisou sua região molhada. Eu queria muito, estava em chamas por sexo há horas.

Maya fechou os olhos e arranhou minhas costas, parecendo uma felina pronta para atacar. Após
beijá-la uma única vez, ajeitei-me em seu corpo lânguido e febril, e investi firme. Ela arqueou-se
para trás, gemendo.

— Ohm, Heitor... — sussurrou e eu soube que precisava de mais — Oh... Heitor...

Esperei um pouco mais para que ela relaxasse. Voltei a me movimentar devagar, uma estocada de
cada vez, enquanto ela gemia e pedia por mais. Mais. Mais. Ela queria mais!

Passei a me movimentar com dureza, enquanto ela me agarrava e arranhava. Meu corpo começou
a acelerar e eu entrava e saía com desespero, como se Maya fosse uma droga com a qual eu
precisasse relaxar. Entrei, afundando até o fim, e saí outra vez. Era esse o movimento. Entrava até o
fundo e saía, até entrar de novo e fazer aquele movimento várias outras vezes, até que não queria
mais parar, queria entrar e sair de seu corpo, até cansar.

Enquanto ela gemia e grunhia de modo excitante, eu queria mais. Era muito bom mergulhar nela e
saber que do mesmo jeito que estava sendo bom para mim, estava sendo para Maya. Então passei a
rebolar, primeiro devagar, depois com mais vontade, até finalmente explodir e sentir as unhas de
Maya me apertarem com força, e então ela também gozou. E eu me senti o cara mais completo do
mundo por isso. Beijei sua boca fina e acarinhei seu rosto ainda abalado pela adrenalina.

— Já era, você é minha, morena... só minha.

***

Tínhamos trepado na mesa, em plena ala oeste do cassino. As câmeras obviamente tinham filmado
tudo e aquilo era mais um problema que eu teria que resolver. Por ora, eu só queria ficar ali
abraçado à Maya.

Ainda estávamos deitados sobre a mesa. Aquilo tinha sido sensacional e eu não conseguia parar
de olhar para ela, toda linda e quente, ao meu lado.

— Você é lindo, sabia? — acarinhou meu rosto com ternura, me olhando, um olhar cheio de amor.

Sem responder, peguei a mesma mão com a qual ela me acarinhava e levei aos meus lábios.

— E gostoso também — ela prosseguiu, risonha, e depois pareceu ficar tímida. Ri com aquela
ideia, pensando se Maya ficava tímida após o sexo. Provavelmente sim.

— Obrigado. Você é maravilhosa.

Se ajeitou em meu peito e começou a admitir que era a pessoa mais louca do mundo. No entanto,
me explicou que não era hora para pensar com a cabeça no lugar, era hora só deixar rolar. E eu
ponderava se ela tinha razão. Sim, ela tinha.
Maya comentou que havia passado toda a sua vida fazendo o que as pessoas queriam que ela
fizesse, o que as pessoas esperavam dela e que nunca parara para pensar no quanto isso poderia ser
destrutivo a ela mesma. Os problemas de seu pai, a doença da mãe, as dificuldades de seu irmão,
tudo isso ela carregava nas costas como um fardo que era impossível de largar enquanto nada do que
acontecia com ela era partilhado com as outras pessoas.

— E por que não se abre? — perguntei, tomando seus dedos delicados e levando-os aos meus
lábios.

— É que eu não gosto de... bom, de aborrecer as pessoas.

— Se abrir e compartilhar suas coisas, mesmo seus problemas, não vai aborrecer ninguém que te
ama, guria. Pelo contrário. E faz bem.

— Eu sei, é o que dizem, mas... ás vezes eu não consigo.

— É que pensa muito nos outros e acaba se esquecendo de você mesma e do que realmente
importa.

Ela me olhou, sorrindo, seu semblante bonito e suave.

— É, deve ser — ela parecia feliz ali sobre a mesa comigo e aquilo me fez sentir muito melhor.
Então Maya não me odiava como eu pensava. Claro que não. Pelo contrário, a gente se amava. Nosso
sexo deixara aquilo bem claro. E não era só atração. Estávamos mais envolvidos do que
pensávamos, mesmo não sabendo até onde aquilo tudo iria nos levar.

— Heitor? — acariciou meu rosto outra vez, me fazendo erguer-se novamente sobre seu corpo —
o que foi isso que aconteceu? Bom, quero dizer, não foi a primeira vez, mas... o que foi isso que
aconteceu entre a gente?

Sorri, contornando seus lábios com meu dedo.

— Eu não sei. Talvez tenha passado da hora de você me odiar — pisquei.

— Eu não odeio você.


— Ah, não? Mas odiou antes.

— Não odiei não... na verdade, só não entendia você e tinha medo.

Ela ainda acarinhava meu rosto, minha barba, e pensei no quanto isso era bom. Se dependesse de
mim, Maya passaria o resto da noite me alisando e eu dormiria feliz.

— Você me conquistou, morena — sussurrei, já novamente sobre seu corpo — desde o primeiro
dia em que a vi.

Maya ergueu os lábios para um novo beijo. Trocamos um beijo lento, gostoso, sem pressa, cheio
de promessas e sem reservas. E quando finalmente terminamos, apoiei meus cotovelos em volta de
sua cabeça e lhe admirei por mais algum tempo.

— Você é tão linda, morena... — olhei em seus olhos — e quero te amar mais uma vez... aliás,
não canso de te amar. Nunca vou cansar.

Ela me puxou para si e então ajeitei-me em seu corpo novamente. E em seguida já estava
enterrado de novo nela. Comecei devagar e aos poucos fui aumentando os movimentos e
aprofundando-os. Maya gemeu, mais solta desta vez, e mordiscou meu ombro, meu braço. Lambi sua
pele e mordisquei seu corpo à medida que entrava nela, que ia até bem fundo e saía de dentro dela,
para novamente fazer todo aquele mesmo processo. No final do sexo, me lembrando que eu estava no
Esmeralda para trabalhar e não para transar, nos vestimos e atendi o celular que tocava. Era Bruno.

— Ei, Heitor, aonde está?

— Na ala oeste. Já estou à caminho. Tudo bem por aí?

— Tudo na paz... encontrou sua garota?

— Sim, eu a encontrei, e nós já estamos indo — eu na verdade abotoava minha camisa, enquanto
do outro lado da mesa, Maya voltava a colocar o vestido. Quando me despedi de Bruno e desliguei a
ligação, pus o celular sobre a mesa e me aproximei de Maya para poder ajudá-la.

— Tudo bem? — perguntei a ela.


— Quem era no telefone?

— Bruno. Venha, temos que ir.

Mas antes de fazer aquilo, me lembrei das câmeras. Peguei novamente o celular e liguei para
Jiraya, que eu sabia, era o responsável por esse departamento.

— Fala, Heitor — Jiraya atendeu. Era interessante como os caras de Diogo eram profissionais e
sabiam entender as coisas como elas são.

— Me faz um favor? Apague o que se passou na sala oeste nessa última hora.

Ele fez uma pausa e pensei no quanto deveria estar se divertido com a ideia.

— Falou. Deixa comigo.

Segurei a mão de Maya e imprensei a garota na porta antes de sairmos da sala. Roubei-lhe um
beijo ávido e demorado.

— Não vejo a hora de voltar pra casa e terminarmos o que começamos aqui — sussurrei.
Capítulo 26
MAYA

HEITOR ESTAVA sendo muito agradável comigo desde que saímos do cassino. Ele estava feliz e
satisfeito e dizia que tudo tinha dado certo aquela noite. Era bom vê-lo assim e pensei se não
estávamos ambos felizes por tudo o que tinha acontecido lá numa das salas do cassino. Uma sessão
de sexo gostosa e ardente. E quer saber de uma coisa? Eu também estava feliz.

— Tudo bem? — Heitor perguntou ao me beijar no rosto, como quem beijava uma pétala de rosa.
Para mostrar que ele estava errado a meu respeito em vários aspectos, avancei em seu pescoço e
beijei sua boca, mostrando a Romano que eu não era tão inexperiente ou delicada como ele
imaginava.

Segurei seu rosto com minhas duas mãos e forcei meus lábios contra os dele. Em fração de
segundos nossas bocas quase se comeram numa luta desenfreada e árdua. Logo sua língua passou a
inspecionar a minha boca e desejei que o beijo fosse prolongado. Nos beijamos por um bom tempo,
parando apenas para poder respirar. E eu desejava em pensamento que aquela viagem fosse rápida,
pois queria logo voltar para o quarto e poder fazer amor com Heitor.

Eu não podia acreditar no que estava acontecendo. Eu estava apaixonada! E como uma mocinha
de um romance policial, eu me sentia deslumbrada e fora de razão. Nunca tinha sido tão
inconsequente na vida, até encontrar Heitor, o homem que surgira para despertar em mim todos os
sentimentos mais profundos e contraditórios. Em um dado momento eu o odiava e no outro eu o
endeusava.

Além disso a cada dia que se passava a ideia de ficar com Heitor não me incomodava, não me
enojava ou assustava. Na verdade, ficar longe dele era o que me desesperava agora. Há tempos sua
companhia me fazia bem. Antes mesmo de termos feito amor pela primeira vez em São Paulo. E eu
me sentia segura e protegida em sua presença. E também me sentia querida e amada. Não da forma
como eu me sentia quando estava com minha família. Era uma forma diferente, agora com Heitor
havia uma maneira nova de eu me sentir. E algo que apenas ele me proporcionava.

Dei graças a Deus quando chegamos na mansão e cumprimentamos Diogo, que estava ao telefone
na sala de estar, então subi as escadas ansiosa para tomar um banho e ficar cheirosa. Sabia que
Heitor me procuraria, dessa vez no quarto. Excitada e animada com a ideia, entrei embaixo do
chuveiro e desejei que a conversa entre Heitor e Diogo lá embaixo não se prolongasse. Desejava que
Heitor não parasse para beber e que Diogo fosse logo dormir na cama com Elena. E eu não sabia o
que aconteceria com a gente dali para a frente e então só pensava em aproveitar o momento. Era o
hoje que valia, não o amanhã, não o ontem. E não podia me basear em garantias ou em promessas.
Precisava viver o agora e deixar rolar, esquecer o que poderia ser e não levar tão a sério o que não
deveria ser.

Não queria também pensar em papai e no ódio mortal que Heitor parecia sentir por ele, não
queria pensar em nada de ruim entre nós dois. Só queria que Heitor aparecesse pela porta do quarto,
me beijasse e me amasse da forma mais gostosa o possível, como fizera horas atrás no cassino.

Saí do banheiro, alguns minutos depois, já vestida com uma camisola, e antes que pensasse em
qualquer outra coisa, a porta do quarto se abriu, me revelando um Heitor maravilhoso já livre do
paletó. Eu não tinha comentado com ele o quanto ele ficara lindo e charmoso com smoking preto, mas
ele ficara. Heitor me encarou. Os olhos azuis profundos. Tirou as mãos dos bolsos e, usando o
calcanhar, fechou a porta atrás de si. Eu fiquei esperando pelo seu próximo passo. Tinha acabado de
vestir a camisola preta e mesmo depois de ter saído de uma água fresca, estava com meu corpo em
chamas. Queria Heitor. Com loucura. E seu olhar também me dizia que ele me queria.

Avançando em mim, Heitor me puxou pela cintura e mal tive chance para respirar ou dizer
qualquer coisa.

— Estou viciado em você, morena... muito viciado... — sussurrou, em meu ouvido, me deixando
com a sensação de que não aguentaria ficar mais nenhum segundo longe dele. Tiha detestado vê-lo
com a irmã de Diogo naquela tarde e detestado imaginar os dois juntos na cama.

Sem conseguir me segurar, fiquei na ponta dos pés, agarrei seu pescoço grosso e fui ao encontro
de sua boca. O cheiro de sua pele me dava arrepios e eu só sabia que era bom demais poder sentir
seu corpo rijo e poderoso contra o meu.

Venha, Heitor, por favor, tive vontade de sussurrar.

— O que está fazendo comigo, hein? — sussurrou em meu ouvido, me deixando zonza de prazer.
Eu queria algo além de palavras e beijos. Estava na hora de Heitor me carregar para a cama e me
possuir. Queria que ele me pegasse e me amasse urgentemente, queria que ele me provasse do mesmo
modo como fizera horas atrás.

— Não sei o que está acontecendo comigo... — prosseguiu, sem deixar de mordiscar a pele de
meu pescoço enquanto suas mãos grandes e macias alisavam minha cintura — Você é gostosa
demais...

— Por favor, faça amor comigo... — implorei.

Sem falar mais nada, Heitor rodopiou comigo, usando uma de suas mãos firmes para erguer uma
de minhas coxas até seu quadril. Depois disso me jogou na cama. Pousou um joelho ao meu lado para
se apoiar e começou a desabotoar a camisa enquanto eu olhava admirada para seu peitoral que
começava a aparecer. Era duro, bonito, largo e agora eu não tinha mais receio de acarinhá-lo e
mordiscá-lo.

Vi Heitor se livrar da camisa, da gravata de borboleta, da calça preta e por último da cueca
branca da Gucci. Me impressionei com a extensão de seu membro, todavia não comentei nada. Nem
fiquei apavorada. Ele se sentou lentamente na cama e ergueu a mão para alisar a minha perna.

Mordi o lábio inferior e fechei os olhos, adorando a sensação de sua mão grande e morna em
minha coxa e dela ir subindo até minhas partes íntimas. Ele puxou minhas pernas para me trazer mais
para si. Adorei quando Heitor se aproximou e se ajeitou entre minhas coxas. Puxei seu corpo para
mim, querendo-o todo, completamente, sem nada pela metade. Sua boca estava novamente dentro da
minha e suas mãos másculas eram hábeis o bastante para brincar com o bico intumescidos de meus
seios. Logo inclinou o rosto para mordiscar meu pescoço enquanto uma de suas mãos passava a
apalpar minha bunda.

Após um beijo de me tirar o fôlego, Heitor entrou em mim numa mergulhada maravilhosa. Passou
a se movimentar aos poucos, até se intensificar mais. Eu gemi, adorando a sensação de seu corpo no
meu e de suas mãos agora entrelaçadas nas minhas, como se me prendessem ali na cama, enquanto
sua boca faminta se apoderava da minha.

— Oh, Maya... como é deliciosa...— grunhiu, entrando mais fundo, me fazendo adorar aquela
dança erótica, meio animal. E eu não sabia o que era melhor, se era ter Heitor gemendo ou
sussurrando palavras sujas em meu ouvido.
— Continue... — implorei, revirando os olhos, sentindo que algo ainda mais maravilhoso estava
por vir — Oh, continue... por favor, só continue...

À medida que ele mergulhava em meu corpo em chamas, me proporcionando sensações


inexplicáveis numa sequência ininterrupta de prazer, eu me contorcia e pedia que ele nunca mais
parasse.

Não pare, Heitor, não pare.

Minhas unhas cravavam-se em sua bunda bem feita, empurrando-a, incentivando seu corpo a se
enterrar cada vez mais no meu, adorando sua barba em minha pele e seus braços fortes ao redor de
meu rosto, enquanto Heitor não parava de me estocar e seus movimentos firmes e rápidos faziam com
que nossos corpos unidos e colados de suor se balançassem.

Era bom sentir seu peso, sua extensão e toda aquela sua dureza. Era bom ver como ele era grande,
ardente e poderoso. Era boa a sensação de tê-lo entrando cada vez mais, se alojando lá no fundo de
meu corpo, e saindo novamente, até repetir todo o processo quente e delicioso.

Toda vez que Heitor entrava e saía com menos dificuldade, eu me perguntava se meu corpo já
estava se adaptando ao dele. Provavelmente sim. E eu me contorcia, lânguida, enquanto seu
antebraço tocava meus cabelos e seus lábios abocanhavam minha boca, como se ela fosse uma fonte
de prazer. Era a terceira vez na noite que Heitor e eu transávamos e eu não me importava nem com a
possível ideia de começar a ficar ardida por isso. Se levasse em consideração que Heitor era grande,
eu provavelmente amanheceria muito mais afetada no dia seguinte.

— Você é tão deliciosa, morena... tão apertada e quente...

Quanto mais ele falava, mais eu ia me abrindo mais para que seu sexo tivesse mais acesso ao meu
corpo, molhado e dilatado, me servindo como uma bandeja para ele, para que Heitor entrasse e
fizesse o que bem entendesse comigo. Era bom fazer sexo com ele, e era bom saber que eu já não
tinha mais nenhum receio. Era bom fazer sexo com quem a gente amava. Era bom saber que por causa
de Heitor eu estava curada.

— Diga que me quer... — supliquei — por favor...

— Eu a quero... — entrou mais uma vez em mim de uma forma muito, muito dura e profunda —
muito... eu a quero muito...

Gemi, grunhi, eu queria mais. Muito mais.

Heitor me puxou para seu colo e agora ficamos transando sentados. Eu pulava em cima dele
enquanto nossos corpos balançavam e meus cabelos voavam. Me pendurei em seu pescoço e
mordisquei seu ombro largo. Ele era completamente gostoso, em forma, braços músculos, peito, em
tudo, e com certeza tinha ganhado aquela forma em anos de academia. E eu amava aquilo. Amava
Heitor forte e poderoso sob minhas mãos. E não queria mais pensar em ficar longe dele.

Abracei seu pescoço e passamos a nos beijar suavemente, até ele voltar a me jogar novamente no
colchão. Heitor ergueu meus braços para o alto e começou a beijar e mordiscar meus seios, indo até
meu baixo ventre, até me fazer sussurrar e gemer. E embora aquilo fosse gostoso, de o toque de seus
lábios ser delicioso, eu o queria perto de mim, novamente corpo no corpo, pele na pele, boca na
boca.

— Vem... por favor...

— Já vou...

Alcançou minhas pernas, meu calcanhar. Me fez cócegas. Trêmula, brinquei que ele deveria subir
e que eu não conseguia mais aguentar esperar.

— Ah, safadinha... — chupou meu ventre, voltando a me envolver com seu corpo duro e forte —
Você me quer?

— Muito...

— Eu também quero você... agora e sempre. Vai ser minha mulher, Maya...

Sorri, não pensando muito naquilo. O que queria era que ele não parasse mais de me amar e me
beijar, que seu corpo nunca mais se desgrudasse do meu. Talvez Heitor só estivesse falando aquilo
movido à emoção do momento, mas não importava. Mesmo que no dia seguinte acordasse e
percebesse que tudo fora um erro, nada me importava. O importante era o que estávamos vivendo
agora, naquele momento só nosso.
Heitor voltou a se afundar em mim e gemi baixo, revirando os olhos, não conseguindo deixar de
gemer ainda mais alto à medida que ele se aprofundava, se intensificava, se deliciava, me provando,
me beijando, fazendo com que nossas respirações irregulares se misturassem e nossos corações
selvagens batessem loucamente. Ele voltou a beijar minha boca enquanto seu corpo se movia contra o
meu, enquanto seu rosto suado colava no meu e suas mãos grandes e macias me apalpavam com
desespero.

E eu estava apaixonada. E nunca mais queria ficar longe de Heitor Romano...


Capítulo 27
MAYA

AMANHECI COM OS raios solares em meus olhos e com o som de vozes infantis ao longe.
Virando de um lado para o outro na cama, desejei não acordar nunca mais.

Não. Não. Não.

Estava tão bom...

Por que eu tinha que acordar?

Ah, não, que droga... não!

Não queria sair daquele sonho mágico, daquela felicidade plena, de toda aquela satisfação que eu
experimentara. Mas precisava!

Abri um olho e depois o outro e então pisquei, meio fora de órbita, tentando me localizar. Aquela
casa... aquele lugar. Estava no Rio de Janeiro, hospedada na casa de Elena e Diogo, amigos de
Heitor. Isso.

Meu Heitor

Onde ele estava?

Sentei na cama quente e espaçosa e olhei em redor. Ajeitei os cabelos para trás e voltei a
contemplar o dia maravilhoso que se estendia lá fora. Céu azul claro, sol brilhante e brisa que não
chegava a tirar meus cabelos do lugar. Foi então que tudo fez sentido. Nada tinha sido sonho. Eu
dormira com Heitor! Tínhamos passado a noite toda nos amando!

Tudo começara com um beijo... a gente se beijara. Eu beijara Heitor, ele correspondera. Fizemos
amor mais de uma vez. Primeiro no cassino e depois em casa, no quarto onde agora eu podia
relembrar os instantes que compartilhamos. E não podia negar que Heitor tinha sido fofo comigo, e
romântico, e gentil. E gostoso. Tinha me tocado de várias formas possíveis na cama sem me
machucar.
Heitor não fora bruto como imaginei que seria, nem abusivo. De forma alguma. Fora terno e
delicado, como na nossa primeira vez em São Paulo. Palavras doces saíram de seus lábios em forma
de cascata e eu me entreguei sem culpa e sem arrependimento. E nem agora eu me sentia errada por
ter passado a noite nos braços daquele homem viril e poderoso.

Saí da cama e apenas nessa hora senti um pouco de desconforto nas partes íntimas. Sentei
novamente e recordei que Heitor não tinha usado camisinha em nenhuma das vezes em que ficamos
juntos. Bom, que a sorte nos ajudasse.

Com as mãos nos cabelos, admiti a mim mesma que isso tinha sido muita irresponsabilidade. E,
afinal, o que estava acontecendo comigo? Eu sempre fui uma garota responsável e ajuizada! Por que
agora estava com a cabeça fora do lugar? Por que estava me deitando com um cara que eu sabia que
fazia coisas erradas e que odiava meu pai? Bom, devia ser porque eu estava apaixonada! Não só
apaixonada, completamente apaixonada!

Me joguei na cama pela segunda vez, com as mãos no rosto, tentando esconder um sorriso
travesso.

Eu estou apaixonada por ele!

E como o dia estava lindo naquela manhã!

Era engraçado como tudo ficava perfeito e mágico quando a gente estava apaixonada. Eu via
pássaros cantando, nuvens passeando lá em cima no Céu azul e o sol piscando com uma carinha
alegre para mim. E no firmamento o nome Heitor espumava em forma de vários coraçõezinhos.

Heitor. Heitor. Meu Heitor.

Ai, que ridícula, Maya.

Saí da cama pela segunda vez, rindo de mim mesma pelas idiotices pensadas. Escovei os cabelos
e substituí a camisola por uma saia jeans e uma blusa de tecido. De repente os gritinhos infantis lá de
fora voltaram a soar em meus ouvidos, agora parecendo mais próximos.

Largando a penteadeira, dei passos até à janela e espiei a tempo de ver um homem feliz brincando
com uma garotinha. Um homem feliz e carinhoso. Diogo. Diogo pegava sua filhinha e a erguia no alto.
Bem lá no alto. Esmeralda parecia não ter medo de nada. Estava com os bracinhos esticados e
gargalhava, pedindo mais ao pai.

— Mais, papai! Mais, papai! Mais alto!

Eu ri. Que família bonita era aquela! E feliz. Não havia como não ser contagiado com o amor que
transbordava dali. Logo avistei Elena se aproximar dos dois. Ela batia palmas e sorria, aprovando a
brincadeira entre pai e filha. Por um momento me lembrei de quando meu pai me segurava daquele
jeito que Diogo segurava sua pequenina. Por um momento me senti melancólica. Papai não era o
mesmo pai amoroso há muitos anos...

Sem conseguir me afastar da janela, sorri novamente ao acompanhar a cena da família lá embaixo.
Até que de repente uma batida na porta me chamou a atenção e então uma bandeja de madeira farta se
revelou para mim. Um homem lindo e perfeito apareceu atrás dela. Heitor. Seu sorriso radiante
aqueceu meu coração. Não tive como não sorrir de volta. Que engraçado. Há poucos dias eu o
odiava! Ou tentava odiá-lo.

— Bom dia, guria — fechou a porta atrás de si com o calcanhar — dormiu bem? Espero não ter
decepcionado.

— Me decepcionado? Por quê? — abandonei a janela e pulei em seu pescoço assim que ele
pousou a bandeja farta sobre a cama — Hmm, isso tudo é pra mim?

— Só pra você — me cheirou, carinhoso.

— Não sabia que prisioneiras recebiam todo esse conforto — dei-lhe um beijo na boca e Heitor
correspondeu.

— Você não é minha prisioneira, é minha garota agora.

— Sua o quê? Sua garota? É sério? Tem certeza?

— É claro que tenho — sentou na cama ao lado da bandeja e ergueu sua grande mão, me
convidando a me unir a ele. Nem preciso dizer que aceitei. Deitamos. Ficamos face a face, Heitor e
eu, e a bandeja entre nós dois. Havia muita coisa gostosa ali, como suco de maracujá, pães frescos,
geleia, bolachas e outras guloseimas. Toda aquela gostosura abriu meu apetite.
— Acho que sou bom nesse negócio de preparar café da manhã, guria. O que acha? Bom, pelo
menos nunca me falaram o contrário.

— Vou dar a nota final depois de provar tudo, seu convencido — joguei meus cabelos para trás,
animada com aquele dia.

— Prove esse — colocou um pedaço de doce em minha boca.

— Hum... muito bom, é uma...

— Bolacha. Aqui eles chamam de biscoito.

— Biscoito — eu ri — Já sabia disso. Adoro comer biscoitos então.

Heitor pegou uma colher de iogurte e também a levou até minha boca. Abri o lábio para receber o
segundo alimento do dia.

— Vai me dar o café todo na boca, é? — ri, limpando o vestígio de iogurte que ficara em volta da
boca, me sentindo cuidada. Era bom me sentir cuidada assim. Olhei para Heitor, aqueles olhos azuis
cor violeta e fiquei pensando em como ele era gentil e carinhoso quando não estava bravo.

— Vou mimar você — encheu outra colher para me dar — É o mínimo que posso fazer pra tentar
me redimir pelas coisas terríveis que fiz. Vai ser tratada como princesa a partir de hoje, malagueta. A
princesa Malagueta, a mais apimentada de todas — tocou meu rosto com carinho.

— Sério isso? — eu gargalhei e ele gargalhou em seguida. Encostou sua boca na minha para um
novo beijo. Heitor era outra pessoa agora. Bem diferente do cara que até dias atrás eu tinha
conhecido. Na verdade, ele agora me lembrava muito mais o sujeito com o qual eu tinha esbarrado na
lanchonete. Era novamente mais carinhoso, mais atencioso e delicado. Seu sorriso era confortante e
suas feições me passavam segurança e não mais medo.

Após afastar sua boca da minha, beijou minha testa, depois minhas bochechas. E adorei aquela
forma carinhosa dele me tratar. Ninguém me tratara assim com carinho e devoção.

— Vou cuidar de você, pequena. Juro que vou.


Peguei um pedaço de pão e o levei à boca. Heitor me olhava e aquilo me deixava encabulada.

— Vai ficar me olhando comer?

— Ah, não diga que tá envergonhada. Não fique envergonhada. Você é linda de qualquer jeito,
Maya. Comendo, rindo, brigando, dormindo...

— Dormindo também? Ah, meu Deus, você me viu!

— É claro que vi. Também é linda dormindo, fugindo, chorando.

— Chorando?

— Mas não quero que chore mais — voltou a tocar meu rosto delicadamente e me olhou
fixamente — Não vai mais chorar, morena. Não comigo.

Uau.

Aquilo foi a melhor coisa que eu ouvi!

Ergui a mão e toquei seu rosto másculo e bonito.

— Acho que isso é um sonho. Me diga por favor que não vou acordar de repente e ver que tudo
não existe.

— É mais que um sonho — mordiscou minha bochecha, me fazendo cócegas com a pressão da sua
barba — Estamos juntos, Malagueta. Você e eu. E não vou deixar se afastar de mim tão fácil assim.

— É uma promessa?

— É claro que é — beijou minha boca, me conduzindo a uma viagem gostosa e louca. Com direito
a muitas viradas de rosto — eu garanto a você.

Heitor disse que garantia. Se ele garantia, então eu devia confiar em sua palavra.
***

Naquela noite não precisamos mais encenar nada. Éramos um casal comum e apaixonado que agia
como tal. Durante o jantar tive uma não tão agradável surpresa. A irmã de Diogo, Carol, a mesma que
beijara Heitor no jardim, apareceu. E para o meu desconforto, estava desacompanhada.

— Então, Heitor, até quando vai ficar no Rio? — indagou Carol, olhando para ele. Ela não olhava
para mim e pensei se era uma forma de me provocar. Mesmo que desconfiasse de que não éramos
namorados de verdade, deveria ser mais sensata e saber respeitar. Não agir na maior cara de pau,
como se eu não existisse ali.

Heitor mexeu o garfo no prato de porcelana, antes de responder:

— Vamos ficar até amanhã, Carol. O trabalho em São Paulo me chama.

— Ah, que pena.

— E Maya nunca ficou tanto tempo longe de casa — falou, me incluindo na conversa. Eu assenti
em silêncio. Gostei daquela maneira dele agir, como se eu fosse importante. Heitor pegou minha mão
e a levou aos lábios. Trocamos olhares apaixonados e Carol certamente ficou sem graça. Ouvi
pigarros.

— Bom, então seria bom que aproveitassem o último dia no Rio — a morena não se deu por
vencida — Se ela não conhece a cidade, sugiro que passeiem muito o dia inteiro. Quem sabe o Cristo
Redentor? Turistas curtem muito. Ou o Mirante Dona Marta. Ou talvez as praias. Tem feito sol de
rachar. Devia levar sua namorada pra se banhar. A gente sempre nadou juntos em Copacabana ou em
Ipanema.

Novo pigarro que eu não soube de onde partira.

— Eu adoraria — forcei um sorriso educado e então Heitor se levantou calmamente da mesa,


surpreendendo a todos.

— Bom, a conversa está muito boa, mas se nos derem licença, Maya e eu vamos subir. Estamos
cansados. Ainda não nos recuperamos da noite de ontem.
— Espero que não tenham sido atrapalhados pelo barulho que fizemos pela manhã — Elena falou,
preocupada, ao lado de Diogo, que agora atendia ao telefone. Se Heitor era ocupado, Diogo parecia
ser o dobro.

— Oh, não, é que demoramos muito a pegar no sono ontem — sorri para Elena — Mais do que
deveríamos.

Heitor me puxou pela cintura e antes de nos despedirmos de todos à mesa notei a expressão de
surpresa no semblante de Carol. Não me importei com isso. Subimos as escadas brincando e quando
chegamos no hall, já no segundo andar, Heitor me segurou nos braços e me jogou contra seus ombros
largos.

— Não acredito que tá fazendo isso! — estapeei suas costas — acho bom me soltar, homem das
cavernas, ou vai ficar marcado até chegarmos ao quarto.

— Essas mãos de fada? Sem chances — desdenhou.

— Presunçoso!

— Marrenta!

Quando alcançamos o quarto, meu loiro perigoso me pôs no chão e me puxou para um novo beijo.
Um mais lento e demorado, que fez abrir meu apetite, mas dessa vez o sexual.

— O que foi aquilo lá embaixo, hã? — Heitor riu, me mantendo colada em seu corpo.

— Aquilo o quê?

— Uma indireta para a concorrência?

Eu gargalhei. Sabia que ele se referia à minha resposta áspera a Carol. Abracei seu pescoço com
os meus dois braços e fiquei na ponta dos pés, afinal, Heitor era muito mais alto.

— Nem percebi o que falei.

— Você é muito ciumenta, malagueta, e saber disso foi uma surpresa.


— Não sou não! — protestei, sabendo que ele tinha razão — você que é muito convencido!

— Eu assumo que sou convencido, mas por ora, vamos continuar o que começamos a fazer ontem.

***

A viagem ao Rio terminou rápido e dentro de dois dias já estávamos de volta a São Paulo. Eu
agora me perguntava se as coisas voltariam a ser como antes entre a gente. Tive medo. Heitor na
frente de seus comparsas parecia me tratar com frieza. Provavelmente porque não queria demonstrar
fraqueza ou talvez porque não quisesse demonstrar para eles que nós dois estávamos nos acertando.

Ao pisar na sala de estar, já na mansão, algum tempo depois de termos chegado, estranhei o fato
de não ter visto Heitor a manhã inteira. Na realidade, desde nossa volta para casa ele estivera
distante. Embora respeitador, no voo de volta para São Paulo, Heitor não tinha sido tão atencioso e
romântico como fora no Rio de Janeiro. Fora gentil, claro, quando me ajudou com as malas e também
quando me orientou sobre as questões de segurança do avião, todavia suas palavras e seus gestos
tinham sido todos muito bem contidos.

— Cadê o seu chefe? — indaguei a Chucky, que como sempre, parecia estar sério e mal encarado.
Não era de falar. Mal respondia quando perguntávamos algo a ele. Agora acendia um cigarro e eu me
perguntava se me ignoraria.

— Onde está o Heitor? — insisti.

Chucky deu uma nova tragada e soltou a fumaça pela boca. Ponderei se até sua baforada era
sinistra.

— Foi resolver alguns problemas — murmurou, por fim, com a cara de quem não estava com saco
para aturar uma garota chata e apaixonada atrás de seu par romântico.

— Ele falou isso pra você?

Chucky se limitou a dar de ombros, como se dissesse 'o que você acha?'.
— Ele deixou algum recado pra mim?

Chucky não me olhou e simplesmente se afastou, me deixando no vácuo.

Engoli em seco.

Não era possível que os capangas de Heitor não tivessem testemunhado nosso romance lá nas
terras cariocas, entretanto, pensando bem, talvez eles só achassem que era mesmo uma encenação.
Afinal, o próprio Heitor fizera questão de deixar isso bem claro.

Segurei o corrimão da escada, pensando se voltaria a ser uma prisioneira. Então Heitor não
tinha coragem de me encontrar para falar isso? Tinha se mantido todo esse período de viagem
longe de mim só por que queria voltar para onde tínhamos parado e lhe faltava coragem para me
explicar?

Sem querer pensar nessa questão, subi os degraus e percorri de volta o hall, até chegar no quarto.
Estava chateada, magoada e decepcionada. Pensei se Heitor só se aproveitara de mim, se ele só me
enganara e iludira. Talvez até tivesse tido boa intenção no início, todavia, pode ter pensado melhor e
mudado de ideia. Ou talvez eu estivesse chateada demais para pensar com a cabeça... isso. Não
custava nada esperar que Heitor voltasse para então questioná-lo pessoalmente. Pois bem, era isso o
que eu faria. E eu torcia para que ele não demorasse tanto.
Capítulo 28
HEITOR

— VOCÊS SABEM QUAL é o lance de Max — falei enquanto olhava para Jarbas e Theo, que
ficaram encarregados de me dizer tudo o que tinha acontecido enquanto eu ficara fora.

Max era um mafioso como eu e como Diogo Del Rei, só que ao contrário de nós dois que
trabalhávamos com cassinos e rede de boates, o negócio dele envolvia drogas e tráfico de mulheres,
algo que Feroz e eu não aprovávamos. Já tínhamos sido contatados por Max anos atrás e ele nunca
conseguira nos convencer a abrir uma sociedade com ele. E apesar de Jarbas ter dado ao sujeito o
meu recado, dizendo que eu não iria encontrar Max, para a minha surpresa, Theo me convenceu a
fazê-lo.

— Ao menos ouça o cara, Heitor. Escute o que ele tem a dizer. Não precisa concordar com ele,
nem fechar o negócio, só escute o que Max tem pra falar.

— Tá sabendo, por acaso, de alguma coisa que eu não sei?

— Heitor, só estou pedindo que tenha consideração com Max.

— Sempre tenho consideração com os homens que me procuram, Theo, não é essa a questão. A
porra da questão é: sabemos do lance de Max e sabemos principalmente que não nos envolvemos
com esse tipo de merda.

Theo suspirou e se sentou mais perto de minha poltrona.

— Engane Max, Heitor. Faça o que sempre faz. E quando ele pensar que estamos na dele, você dá
o bote.

Dei uma tragada no cigarro e soltei sua fumaça para o alto, pensando se meu irmão tinha razão. E
então, duas horas depois, concordei em encontrar o sujeito num restaurante discreto da cidade.

— Heitor — Max levantou-se para me cumprimentar quando sentei numa cadeira diante dele —
Fico feliz que tenha mudado de ideia e vindo escutar o que tenho a dizer. Vou ser breve porque sei
que não tem tempo a perder.
— Ótimo.

Sabendo que meus homens estavam montados como guardas lá do lado de fora, fiz um pedido ao
maitre. Jarbas e Theo também se sentaram à mesa para participarem da conversa. Os dois tomariam
mais champanhe do que falariam qualquer coisa.

— Certo, Max, por favor, vamos direto ao ponto. Qual é a proposta?

— Muiro bem, gosto disso em você, Heitor — Max riu — Bom, é o seguinte. Em primeiro lugar,
quero dizer que vai rolar uma grana alta. Grana preta mesmo, muita grana envolvida. Em segundo
lugar, quero dizer que o negócio é seguro. Temos tudo sob o controle, não precisa se preocupar, que
não é nenhuma furada.

— Do que se trata?

Max bebeu um gole do champanhe da taça.

— Negócio com garotas...

— Tráfico? Tá falando sério? Eu sinto muito, mas não vou perder meu tempo aqui — abotoei um
dos botões de cima do paletó, pronto para me levantar.

— Ei, Heitor, calma, calma, espere — Max pediu — Sei que seu lema é diferente do meu, mas...

— Heitor — Theo suplicou, mas eu o ignorei.

— Heitor, meu novo esquema pode nos render muitos milhões de dólares, cara! É um negócio
vantajoso, não tem ideia de como. Além do mais, Diogo Del Rei é Diogo Del Rei. Não precisa
seguir os trâmites dele, ainda que...

Fiquei com raiva porque o cara queria a todo custo me convencer a fechar uma sociedade com
negócios que eu não apoiava. Inclinei-me próximo a seu ouvido e me contive para não perder minha
gentileza com ele. Apenas sussurrei.

— Não é por Diogo que estou aqui, Max, é por mim. Já disse que não pactuo com esse tipo de
coisa. Essa é a minha resposta final. Sacou?
Ajeitei-me novamente, antes de seguir pelas mesas organizadas e do restaurante. Tirei os óculos
escuros do paletó e os pus nos olhos. Percebi que Jarbas logo veio atrás de mim, então quando
cheguei no lado externo do estabelecimento, fiz sinal com a cabeça para que Chucky e Oscar
soubessem que era hora de irmos embora. Percebi que após olharem mais uma vez em volta, os dois
me acompanharam até o audi que estava estacionado lá fora.

***
THEO

HEITOR SE RETIROU e tive que me virar com o olhar de raiva que Max me lançava. Vi Jarbas
seguir meu irmão e num dado momento olhar para trás, com um pouco de desconfiança. Não gostava
dele, mas para disfarçar, fiz sinal positivo com a mão.

— Que merda é essa, Theo? — Max sussurrou, o rosto redondo e gordo vermelho de raiva.

— Max, calma — pedi — ele vai voltar atrás, confie em mim.

— Não, ele não vai voltar atrás. Não viu como ele ficou furioso? Ele vai voltar atrás uma ova,
Theo! Você me enganou, porra!

— Max...

— Seu irmão é cabeça dura! Ele só faltou dizer na minha cara que era pra eu tomar naquele lugar,
entende? E você me fez perder tempo vindo aqui também!

— Posso convencer Heitor, Max. Relaxa. Esse nosso negócio vai se concretizar.

Mas ao contrário de relaxar, Max levantou-se, prestes a dar um murro na mesa. Acho que só não
deu porque se lembrou de que estava num restaurante, o que significava que estava num local
público.

— Disse que traria teu irmão aqui e que ele me daria o que procuro. Disse que ele aceitaria o
acordo. Você me enrolou e não vou mais perder meu tempo!

— Eu atraí Heitor até aqui, Max. Acho que mereço um voto a mais de confiança — retruquei —
Se dependesse do Jarbas, você não teria nada. Pense nisso. Mas não foi minha culpa se não
conseguiu convencer Heitor a aceitar o negócio. Agora, por favor, senta.

Max voltou a se sentar. Resmungou, mas pareceu levar a sério o que eu falava.

— Conheço meu irmão como ninguém — prossegui — E mesmo que ele não esteja interessado no
negócio, posso convencê-lo de uma outra forma — bebi mais um pouco do vinho branco que estava
na mesa — Bom, você não sabe, mas tenho um trunfo na manga.

— Trunfo? Que trunfo? — arqueou uma sobrancelha — Preciso do dinheiro de Heitor e não de
trunfo nenhum.

— Uma garota.

Max piscou. Pensou. Depois começou a rir.

— Tá falando sério? Uma garota?

— É sério, uma garota.

— Uma garota? — zombou — E o que é? Acha que Heitor vai voltar atrás por causa de uma
garota?

— Não é uma garota qualquer. É alguém especial.

— Não vou mexer com nenhuma namorada do Heitor. Não sou maluco de fazer isso.

— Não é nada do que está pensando, Max. Relaxa.

***

Após deixar Max no restaurante e convencê-lo a esperar um pouco mais, que Heitor me ouviria e
que eu o convenceria a nos ajudar com o projeto, ajeitei meus cabelos escuros e segui em direção ao
estacionamento onde estava minha moto. Por falar em moto, a grande razão para eu gostar tanto de
montar uma era porque elas me davam a sensação de liberdade, de força e controle. Quando eu
estava sobre uma delas era como se eu não precisasse mais encenar nada, era como se eu pudesse ser
eu mesmo, um cara sedento por poder e status.

Estacionei em frente ao segundo restaurante luxuoso meia hora depois. Guardei as chaves no
bolso do paletó e entrei. Me informei na recepção. Descobri que a mulher estava à minha espera na
mesa cinco. Olhei em redor e não demorei a avistar a loira linda e estonteante. Safira. Eu a amava.
Havia anos que sentia uma fissura por ela, desde quando Safira era uma modelo de passarelas e
desde que começou a se envolver com Heitor. Por um tempo tentei esquecê-la, mas em vão. E fora
uma droga saber do romance dela com meu irmão todos esses anos.

Agora eu caminhava e me aproximava dela, me sentindo o cara mais afortunado do mundo, aquela
noite eu teria a companhia de Safira. E dessa vez ela seria minha, não me restavam mais dúvidas.

— Olá — sorri ao me aproximar.

Ela murmurou um palavrão, aparentemente furiosa, e levantou-se, com um pouco de elegância.

— Disse que estaria aqui às sete. São sete e vinte —falou, irritada —Nunca levei um bolo de
alguém. Devia saber que não é nada elegante deixar uma mulher esperando. Foi um erro ter vindo
aqui, vou embora — antes mesmo que seguisse eu lhe segurei o braço delicadamente. Ela me
encarou.

— Quer perder a chance de reconquistar Heitor?

Ela se desvencilhou. Eu sorri. Eu sabia que ela ficaria. Virei-me para ela e Safira me olhou,
parecendo me estudar, indecisa. Sua sombra nos olhos era azul e sua boca vermelha de batom estava
trêmula. Era louca por Heitor, eu sabia.

— Sente-se, Safira, por favor — pedi, calmamente.

Lentamente ela concordou e voltou a se sentar. Comemos alguma coisa e expliquei a ela que
Heitor estava trabalhando demais e por isso não estava tendo tempo para vê-la.

— Ele tem outra, não tem? É isso. Fale a verdade. Quem é a vadia que está saindo com seu
irmão?

— Safira, Safira — sorri — não sei da vida íntima de meu irmão. Confie em mim, Heitor gosta de
você, mas precisa de mais tempo.

— Não acredito nisso — resmungou.


— Ok.

Ela me olhou com expectativa.

— Certo, é outra, sim. Heitor anda com a cabeça no meio da lua por causa dela, mas calma, vou
ajudá-la a reconquistá-lo. Confie em mim.

A mulher pousou as mãos lindas na boca, parecendo desolada.

— Ela o enfeitiçou, Safira. A culpa não é dele, é dela, mas sei o que posso fazer.

— O quê? Qual é o plano?

— Bom — suspirei — Pra começo de conversa, Heitor precisa de um tempo. Você precisa
desapegar um pouco. Tem que parar de ficar em cima dele. E tem outra coisa...

— Que coisa?

Toquei seu rosto carinhosamente e ela me olhou, surpresa. Piscou. No entanto, logo percebeu o
que eu queria dizer. Tanto que cerca de uma hora depois seguimos para o quarto do hotel onde ela
estava hospedada. Safira estava chorosa, tinha bebido além da conta e agora se sentia a pior das
criaturas. Sempre desconfiei de que aquela mulher bonita fosse carente ao extremo e eu estava certo.

— Theo, ela é bonita? Me fale se ela é bonita. Por favor, eu preciso saber. Ela é mais bonita do
que eu?

— Não, ela não é. Você é linda.

— É mais jovem, não é? Ela é mais jovem que eu.

— Ah, não importa — puxei a loira para um abraço e ela se desmanchou em seguida.

Quando nos demos conta eu já estava em cima de seu corpo branco numa cama ampla. Safira era
boa de cama e por isso Heitor ficara tanto tempo com ela. A mulher gritava e gemia feito uma louca
enquanto eu entrava e saía de seu corpo pálido e febril.
Eu sabia que ela pensava em Heitor enquanto se entregava a mim, mas não me importava. Não
tinha nada a perder. Aliás, era um extra, o que valia era uma boa noite de sexo. Uma boa transa com a
mulher que sempre desejei ter em meus braços. Beijei aquela boca borrada de batom vermelho e
apertei seus seios macios. Depois os abocanhei. De repente vi seus olhos azuis se transformarem em
castanhos. De repente ao invés de ver Safira, vi a morena de Heitor ali. Maya. Merda. Por que ela
nunca saía de minha cabeça?

Quando tudo terminou, me mantive deitado na cama enquanto Safira chorava e me acusava de ser
um maldito aproveitador. Levantei, ainda nu, e vi a mulher recuar dois passos. Ela colou as costas
brancas na parede gelada.

— Ah, qual é, Safira. Todo mundo sabe que você já deu pra dezenas de homens enquanto ainda
desfilava. Agora não se faça de santa nem de moça de família.

— Acho melhor você ir embora.

— Você quer o Heitor de volta, não quer? Então é melhor fazer o que eu disser. Escutou? Senão tô
fora.

Com os olhos pensativos, ela mordeu o lábio, antes de assentir com a cabeça. E eu sabia que
passaríamos a nos encontrar esporadicamente. E seria assim: Safira deitaria em minha cama e eu
teria todo o seu corpo para mim. Ela ainda estava em boa forma, embora tivesse tido vários homens
ao longo dos anos e embora tivesse colecionado muitas transas com meu irmão.

Pensei no quanto Heitor tinha se divertido com aquele corpinho branco como a neve que desde o
início deveria ter sido só meu. Não podia fazer nada, mas era sempre assim. Sempre Heitor, nunca
Theo. Heitor era sempre o mais bonito, o mais gostoso, o mais poderoso e o mais rico. As mulheres
suspiravam por ele e gritavam aos quatro cantos que ele era fabuloso e fazia atrocidades na cama.
Sempre se atiravam nos braços dele, sempre preferiam ele. Nunca Theo. E eu tinha que viver com
isso.

No final do encontro com Safira, eu me olhei no espelho e ajeitei meu cabelo. Pensei que sairia e
que ainda naquela semana voltaria a ter a mulher na cama. E dessa forma eu viveria minha paixão
doentia por ela.
E mesmo sabendo que na cama Safira me dava enquanto pensava em Heitor, eu não me importava.
Capítulo 29
MAYA

O AMOR ERA perigoso. Ardente. Colérico. E se em frasco e tomado de uma forma impensada,
virava veneno.

Eu passei a manhã toda e o restante da tarde me sentindo solitária e pensando aonde Heitor estaria
e o que seria de nosso romance agora que tínhamos voltado para São Paulo. Suspirei. Bom, será que
nosso conto de fadas estava com os dias contados? Pelo jeito sim. E um medo ridículo e ao mesmo
tempo insuportável me assombrou, me dizendo que tudo vivenciado lá no Rio de Janeiro não passara
de um sonho, de uma doce ilusão. E tudo agora poderia acontecer: até mesmo Heitor voltar a ser o
cara seco e vingativo que era. E se ele me desprezasse, seria o meu maior castigo. Não era justo ele
me desprezar justo agora que eu ainda suspirava com os dias maravilhosos que tivemos.

Para, Maya, para e não se atormente. Não se torture. Você merece mais que isso, pense. E se
tudo terminar, é porque Heitor nunca valeu a pena.

De repente um zumbido lá fora me fez correr para a janela. Vi um movimento na área externa da
casa e soube que Heitor chegava. De lá de cima pude vê-lo, impecável e poderoso como sempre, os
cabelos no lugar, o terno de um azul marinho vivo e a postura de um modelo de passarelas. Ele falava
com alguns caras e sem que eu esperasse, o azul violeta de seus olhos se encontraram com os meus.
Forcei um semblante tranquilo, não querendo demonstrar o quanto eu estava ansiosa e aflita pela sua
chegada enquanto tentava detectar um sorriso no canto de seus lábios. Qualquer sorrisinho que fosse,
mas não encontrei nada.

Ao menos rezei para que ele me procurasse tão logo seus pés subissem a escada e suas mãos
tocassem o corrimão. Um borbulhar no estômago me assaltou. Era bom estar amando alguém. Nunca
tinha sentido isso antes e agora a ideia de perder toda aquela sensação me deprimia. No entanto, era
bom amar e ser amado e não receber aquele desprezo que Heitor parecia estar decidido a me dar. Se
Romano não podia mais demonstrar o que sentia por mim, se não podia mais compartilhar comigo os
mesmos sentimentos, então era melhor deixar de amá-lo de uma vez também.

Minha mão se ergueu até a janela e acenei para ele, e para meu desapontamento, Heitor não
acenou de volta, contudo piscou daquele jeito lindo e charmoso, que só ele sabia fazer, me deixando
ainda mais exposta. Depois desviou os olhos quando alguém o chamou e foi quando me afastei da
janela.

Ele iria me procurar, eu sabia que ia, e eu ansiava por isso. Mordi o lábio, quase machucando-o.
Soltei o elástico que prendia meu rabo de cavalo e ajeitei com as mãos a minha cabeleira negra. Em
seguida respirei fundo. Inquieta como uma adolescente apaixonada, eu o aguardei. Só que a espera
me deixava angustiada, então comecei a cravar as unhas na palma das mãos, quase machucando-as.
Aflita, abandonei o quarto e disparei pelo corredor, logo alcançando a escada circular. Me apoiei no
corrimão antes de ouvir a voz de Heitor soar na sala de estar.

Quando meus pés tocaram o piso de madeira brilhante, vários olhares vieram em minha direção,
alguns deles eram acusatórios e outros um tanto desdenhosos. Sem saber o que fazer ou dizer, apertei
novamente uma de minhas mãos, cravando as unhas nela, e novamente quase machucando-a.

— Pessoal, me esperem no escritório — Heitor deu um passo à frente, ainda me fitando, e mesmo
sabendo que seus amigos ainda estavam ali, sorri para ele, que não sorriu de volta. Depois de um dia
inteiro afastados, ele me parecia muito mais alto do que era.

— Você é linda, sabia disso? — falou, quando seus amigos já tinham se retirado.

— Hum. Obrigada.

Tocou meu rosto com carinho e devoção, mas eu tinha medo de pensar que havia algo além de
seus olhos e de suas palavras.

— Como ficou?

— Bem. Mas senti saudades — me contive para não me atirar em seus braços assim que ele
chegou mais perto e estremeci com o toque de seus lábios na altura de minha orelha, numa parte
sensível dela. Ri, adorando aquela sensação de ter seu corpo duro e másculo contra o meu. Agora
desejava tê-lo na cama, sobre mim, me beijando com aquela boca doce e ao mesmo tempo selvagem,
me tocando em regiões que eu nem sonhava que tinha sensibilidade, com aquelas mãos grandes e me
olhando com aqueles olhos azuis maravilhosos.

— O que foi? — ergueu meu queixo com delicadeza.


— Demorou tanto, que achei que queria ficar longe de mim — fui sincera.

— Pensou errado — seus lábios passaram a deslizar em minha boca e nos entregamos ao beijo
que começou lento e passou a ficar ávido, quase desesperado.

— Adoraria carregá-la pro quarto agora, mas não posso... — sussurrou em meu ouvido —Tenho
que dar uma reunião no escritório.

— Está bem — me soltei lentamente de seus braços. Não queria parecer desesperada por ele nem
queria admitir a mim mesma que eu estava desesperada, ainda que eu, de fato, estivesse. Heitor era
maravilhoso, mas ele não parecia ser do tipo de cara que aprovava mulheres pegajosas.

— Não vou demorar — prometeu ao piscar os olhos de um jeito charmoso — se comporte,


malagueta.

— Vou tentar.

Ajeitei uma mecha de cabelo atrás da orelha enquanto via Heitor sumir pelo corredor. Me dei
conta de que ele não se importara com a ideia de seus capangas nos verem juntos ali na sala. Ao
contrário do que eu imaginava, ele não tentara ocultar nosso romance. E isso era um bom sinal. E
isso reacendeu a chama do amor no meu coração.

***

Uma batida na porta fez meu coração disparar. Tão logo ela se abriu, Heitor apareceu com o
semblante sereno. Seu breve sorriso iluminou seu rosto, me fazendo confirmar o quanto ele estava
feliz ao meu lado.

— Oi.

— Oi — dei um passo à frente, decidindo se me atirava no pescoço dele ou não. Achei melhor
esperar um pouco, mais uma vez pensando em não parecer tão ansiosa. Mas antes que fizesse
qualquer coisa, Heitor se desencostou da porta e avançou em mim. Me puxou para si e me ergueu em
seguida, segurando minha cintura, elevando-me do chão. Ainda comigo no ar, me beijou. Um beijo
cálido e exagerado. Um beijo demorado e gostoso, que me dizia que ele ainda estava louco pelo meu
corpo.

— Você revela o melhor de mim, Maya. Sabia disso? — sussurrou ao me colocar novamente no
chão.

— Ok... — falei, os olhos cerrados, adorando ter meu rosto contra seu peito forte e seu perfume
entrando pelas minhas narinas, então me agarrei mais forte em seu pescoço rígido e mergulhei meu
rosto em seu ombro, ficando na ponta do pé.

Sem mais declarações de amor, Heitor se inclinou para me beijar e uma de suas mãos mergulhou
em meus cabelos. Eu não era experiente na arte do amor mas sabia que estava sendo uma experiência
maravilhosa aprender com ele.

Voltando a beijar-me, Heitor me conduziu à cama e aos poucos nos despimos. Admirei o V em seu
corpo, que ia do peito até o abdome, e mordi o lábio, desejando aquele peitoral duro e anguloso
novamente em cima de mim. Era engraçado não ter mais medo de nada, nem do sexo, nem de Heitor.
Era engraçado pensar que eu começava a gostar daquilo, de ter momentos íntimos com ele e de me
entregar sem repulsa ao prazer. Compreendia cada vez mais que o sexo poderia ser muito bom e
prazeroso, se feito com carinho, respeito e amor.

Heitor deitou sobre mim, forçando o peso contra o meu, então afastei minhas pernas uma da outra
para poder recebê-lo. Era a quinta vez que faríamos amor e a cada experiência a coisa ficava ainda
mais natural e gostosa. Arrastei meus dedos por suas costas largas, ora alisando-as, ora cravando
minhas unhas em sua pele, enquanto que com os olhos cerrados eu não pensava em nada a não ser no
quanto aquilo era bom.

Assim que sua boca tomou a minha, sugando todas as minhas energias, ergui meus dedos nos seus
cabelos e os puxei com sôfrego. Seus braços musculosos e malhados se apoiaram em torno de meu
rosto e eu os alisei. Era bom sentir sua dureza contra meu corpo, sentir toda a sua masculinidade
exacerbada. Heitor me beijou mais uma vez, um beijo quente e demorado, enquanto minhas mãos o
puxavam mais para perto. Sua ereção, que já estava no auge, se endureceu ainda mais, clamando por
liberdade em frente à minha entrada. Então ele mergulhou em meu corpo, suavemente, devagar, bem
lentamente, de modo que gemi baixinho, adorando aquela sensação de liberdade e desejo. Heitor me
desejava, assim como eu o desejava. Puxei-o mais para perto enquanto me perdia no calor de seu
corpo e no prazer que suas investidas me proporcionavam. Era bom ficar com ele, era gostoso, era
mágico. E Heitor fazia eu me sentir mais especial.

***

Acordei no meio da noite em seu peito cheiroso e me dei o direito de ficar olhando para Heitor
enquanto ele dormia. Meu peito encheu-se de orgulho. Não me importava mais com os julgamentos,
não me importava mais para quem ele era e o para o que ele fazia. Era claro que estava tudo errado e
fora do lugar entre a gente. Era claro que eu estava sendo equivocada e irresponsável. Era claro que
não devia estar ali, que eu devia estar na minha casa. No entanto eu não queria pensar no que deveria
ser e sim no que estava sendo.

Simplesmente apertei os olhos enquanto voltava a pousar minha cabeça em seu peito, decidida a
continuar. Por mais um tempo eu queria aproveitar nossos momentos e imaginar que aquela nossa
troca de carinhos e amor nunca acabaria. Queria viver o presente sem me preocupar com o futuro ou
lamentar o que acontecera no passado. Eu queria viver o agora, o momento. Era tudo em que eu
pensava, em viver.

Talvez o amanhã me tirasse Heitor para sempre ou talvez o amanhã nunca viesse. No momento eu
não queria pensar em nada disso, queria ficar aconchegada e juntinha do homem que mudava a minha
vida de uma forma estranha e curiosa. E se eu neste momento me sentia mais viva e também pronta
para começar a viver, sem ser mais refém das fagulhas do passado, parte disso tudo, dessa minha
liberdade, eu devia a Heitor. Graças a ele eu estava curada e só queria aproveitar aquela cura que
ele me proporcionava. E além disso, nem que fosse por um momento cronometrado, um momento com
data para acabar, eu queria ser a sua amada.
Capítulo 30
HEITOR

— QUE FOI, FOFINHA? — beijei Nora no rosto, ignorando sua suposta chateação por eu ter
ficado alguns dias sem procurá-la, não permitindo que ela se esquivasse de mim, embora eu soubesse
que ela adorava fazer drama apenas para ganhar mais atenção. Bom, no entanto, dinheiro nenhum do
mundo pagaria o que aquela mulher fizera por mim no passado. Ela tinha me dado amor, carinho, e
me mostrado que era possível ter uma nova família. E eu também sabia que estava sendo negligente
com Nora e me envergonhava disso. Bastava reconhecer o que aquela mulher impressionante fizera
em todos esses anos e lhe dar mais amor e consideração. Era só isso o que ela esperava de mim:
amor e consideração.

Nora fazia questão que a chamássemos de mãe. No início achei aquilo tudo muito estranho e
complicado. Com o tempo, todavia, as coisas começaram a ficar mais naturais e eu não a via de outra
forma que não fosse como uma figura materna. E se para ela era importante ser chamada assim, por
que não lhe agradar? Eu não tinha outra mãe no mundo, então que fosse Nora mesmo.

— São pra você — entreguei-lhe o buquê de flores. Eu sabia que ela gostava de orquídeas,
especialmente as azuis.

Nora pegou as flores como quem não queria nada e fez um muxoxo. Em seguida sorriu e aspirou o
cheiro gostoso que vinha das pétalas.

— Então chega com um buquê cheiroso e pensa que vai me comprar, né, seu sem vergonha?

Dei minha sonora gargalhada e em seguida a puxei para um novo abraço.

— Desculpe — beijei-lhe os cabelos escuros que ainda não tinham muitos fios brancos.

— Ah, para de graça!

Com um sorriso que não cabia no rosto, bem diferente da face fechada que antes tinha, Nora se
afastou com as flores nas mãos, dizendo que ia arranjar um bom lugar para elas ficarem,
provavelmente perto da janela da sala de estar.
— Perdoado agora? — gritei de onde estava para ela, enquanto puxava uma cadeira para me
sentar — Hum, o que temos hoje nessa mesa? — olhei para os pratos recheados e variados.

— Você pegou no ponto fraco dela — Theo falou, limpando a boca com um guardanapo de tecido
— Isso não vale.

Ocupei uma cadeira de madeira e olhei para Maurinho que estava ouvindo som nos fones. Um
garoto de vinte anos. Não trabalhava, mas estudava e eu sabia que ia longe. Entretanto por um tempo
ele andara dando dor de cabeça para Nora e Mauro e eu esperava que aquela fase já tivesse
superado.

— Que é? Tá com essa cara fechada por quê? — perguntei ao meu irmão caçula. Assim como
Nora, ele era negro. A diferença era que Maurinho era magro como um palito de fósforo, ao contrário
de nossa mãe adotiva.

— Nada — ele murmurou, aparentemente desconfortável com minha maneira de examiná-lo.

Peguei um pedaço de pão da mesa, ainda examinando meu irmão caçula. Eu não tinha irmãos
biológicos no Rio Grande do Sul, mas com Nora ganhei uma família completa. Theo e Maurinho
eram mais novos que eu e por causa disso de alguma forma tomei para mim a obrigação de cuidar
deles. Era sempre assim, desde o tempo de colégio. Theo apanhava e eu ia lá comprar o barulho
dele. Já Maurinho, quando Nora o adotou, ele tinha 2 e eu tinha quinze. Com o tempo não foi difícil
me sentir o pai dele.

— Maurinho está emburrado e você anda todo animado, né, Heitor? — Theo zombou, me
olhando.

— Animado? Acho que nem tanto — levei o pedaço de pão à boca.

Theo me examinou, mas neste momento Nora voltou tagarelando e se sentou ao lado de Maurinho.
Arregalou aqueles olhos pretos e expressivos que tinha para ver o que o garoto fazia. Só agora eu
percebia que ela estava com um enorme avental em volta do corpo e que estava secando a mão num
pano de prato.

— E a garota, Heitor? — perguntou de repente, quase me fazendo cuspir o pão que eu estava
comendo. Em seguida desceu novamente os olhos no caçula, que estava cantarolando uma música
horrível de funk.

Olhei para Theo em tom de ameaça por ele ter dado com a língua nos dentes sobre mim e Maya.

— Heitor? — Nora insistiu.

Pigarreei.

— Hum, não é nada sério — murmurei, não querendo falar muito sobre o assunto. Na verdade,
estava interessado em Maya, sim, mais do que deveria, só não queria ficar gritando aquilo a quatro
ventos.

— É a mesma que foi pro Rio de Janeiro com você? Aquela de nome difícil? Bom, e por que ela
não está hoje aqui?

— Boa pergunta — Theo pôs lenha na fogueira.

— Entendi... então ela pode ir pro Rio com você, mas não pode almoçar na casa de sua mãe. Que
consideração — Nora resmungou.

— Ah, mãe, deixe pra uma próxima vez.

— Vou cobrar — me lançou aquele olhar terno e ao mesmo tempo ameaçador que só ela sabia dar
— E sabe que cobro mesmo... — balançou a cabeça negativamente — Heitor, Heitor, menino, o que
anda acontecendo com você? O que tem aprontado? Você não me engana... aliás, nenhum dos três me
engana — e lançou um olhar acusatório a Theo antes de começar a nos servir. Maurinho foi o
primeiro e Nora gritou com ele: — Tire esses cotovelos da mesa, menino!

— Onde está Mauro? — perguntei, olhando em redor.

Mauro era um homem bom, contudo parado demais. Foi ele quem nos criou ao lado de Nora. Era
seu companheiro.

— Está lá dentro fumando cigarro. Já avisei que não quero ninguém fumando aqui na mesa
enquanto almoçamos.
Eu ri. Pensei em como era bom estar ali, naquele clima familiar e ver o quanto Nora era divertida,
mesmo sendo autoritária.

***

Após o delicioso almoço, encontrei Mauro vendo um filme na sala de estar. Ele parecia sereno
enquanto olhava para a tela LED.

— Tudo bem?

— Tudo indo, e você? Senta aí — tinha os braços esticados em volta do sofá.

— Os problemas vêm e a gente não pode se livrar deles — me sentei a seu lado — O que tá
vendo?

— Um filme de guerra. Adoro filmes de guerra, sabe disso.

— É, eu sei — peguei um cigarro do bolso e ofereci um a ele. Nós dois passamos a fumar
enquanto olhávamos para o filme europeu ou americano. Eu não sabia dizer. Olhei para Mauro e
percebi que ele quase não piscava enquanto olhava, vidrado, para a TV.

— Me diga, ainda andam tendo problemas com Maurinho? — perguntei.

— Bom, nunca podemos nos livrar dos problemas — sorriu, repetindo a frase que eu comentara
quando cheguei.

— Que droga. Pensei que ele tivesse superado.

— Ele tem dado dor de cabeça ainda, mas nada diferente do que passamos com Theo ou mesmo
com você.

— Nunca usei drogas.

Suspirei profundamente.
Ao contrário de mim, Theo havia tido problemas com drogas no passado. Então um belo dia
aceitou ir para uma clínica de reabilitação e passado algum tempo voltou liberto do vício.

— Ele é jovem, Heitor, e rebelde, isso vai passar. É coisa de adolescente.

— Ele tem 20 — suspirei, desanimado — Certo, vou lá falar com ele.

— Hum.

Sem esperar por uma resposta mais concreta de Mauro, deixei a sala e segui em direção a escada
que ficava perto do corredor da cozinha. A casa não tinha mistério. Era grande, bonita, mas fácil de
achar os cômodos. Eu a comprara para Nora e Mauro logo assim que comecei a ganhar dinheiro com
os negócios no cassino. Nora e Mauro, no fundo sabiam o que eu fazia. Também sabiam sobre Theo.
E por mais que aquele discurso de eu desejar corrigir meu irmão caçula por conta das drogas que ele
usava fosse um tanto hipócrita, eu na verdade, não queria que Maurinho se destruísse daquela forma.
Além disso também não desejava que ele algum dia seguisse os meus passos que eu na máfia.

Subi degrau por degrau, até chegar no andar de cima. Eu sabia que Maurinho estava lá, afinal, foi
o primeiro a deixar a mesa do almoço, uma hora atrás. Assim que encontrei seu quarto, vi uma
legenda feita a mão na porta: "não entre sem bater". Respeitei o pedido. Bati. No entanto ele não
atendeu.

— Maurinho, abra!

Bati de novo. E nada.

— Maurinho? Tá aí?

Ele não respondeu. Foi então que ouvi o som que vinha lá de dentro e me dei conta de que estava
com a música alta.

Segurei a maçaneta e a girei. Em segundos estava dentro do quarto, ouvindo aquela música
eletrônica horrorosa e sendo infestado pelas porcarias que ele fumava. Impaciente, apertei a tecla e
desliguei aquela porra de som que estava no último volume.

Meu irmão caçula me lançou olhar acusatório.


— Quê? Não leu a legenda?

— Dane-se a legenda! Vim aqui falar com você!

— O quarto é meu, Heitor, cai fora!

— Como é?

Dei um passo e pensei em como ele estava se tornando um sujeitinho mal-criado. E pensar que
tinha sido um moleque educado e gentil, até poucos anos atrás. De nós três, sempre achei que
Maurinho fosse o melhor. Sempre apostei minhas fichas nele.

— Tá pensando que tá falando com quem, moleque? — cheguei mais perto e o fulminei com os
olhos — Hã? É assim que fala comigo?

— Qual é, Heitor?

Furioso, dei um tapa forte em sua mão e então a porcaria que ele segurava voou longe.

— Porra, Heitor! Que merda é essa, cara? — gritou e pensei que ele fosse chorar como uma
criança.

— Que é? Vai chorar? Chora, neném. Sabe que está fazendo coisa errada, não sabe? — dei-lhe
um cascudo — Sabe que tá fazendo merda, né? Levanta daí e vá arrumar essa porcaria de quarto.
Isso tá lixo.

— O quarto é meu, caralho! Me deixe em paz! — gritou, mas sua raiva era como a de um garoto
frustrado.

— O que falou? Vai me encarar agora, é? Agora é assim? Todo machão pra me enfrentar? — dei-
lhe outro cascudo e ele se afastou. Peguei a droga que tinha voado longe e me segurei para não lhe
esfregar no rosto.

— Tem ideia da besteira que está fazendo? Tem? Tem noção do que é isso aqui, seu bosta?

— Para, Heitor, me deixe em paz — chorou.


— Você tem uma família, seu filho da puta! — dei-lhe um terceiro cascudo — Gente que se
importa e que cuida de você! Agora levanta daí e vá arrumar esse quarto! AGORA!

Mesmo contrariado, Maurinho se levantou e começou a colocar as coisas no lugar. A porta se


abriu de repente e Nora passou por ela.

— O que está acontecendo aqui? Vocês estão brigando... meu Deus — levou as mãos à boca
quando viu em que situação estava o quarto do caçula — Você ainda está fumando essas porcarias,
seu menino rebelde? — partiu para cima dele, dando-lhe tapas nos braços e nos ombros, mas
Maurinho se encolheu. Nora estava furiosa e todos nós sabíamos que quando ela ficava assim ainda
era pior do que eu.

Saí do quarto e deixei que ela terminasse a conversa com o filho mais novo. Desci a escada e
encontrei Theo lá embaixo, na varanda. Ele também iria para casa. Theo morava numa cobertura num
bairro vizinho ao meu.

— Quer carona? — perguntei.

— Não, hoje estou com a moto — colocou o capacete e o ajeitou na cabeça — Ela já voltou do
conserto.

— Saquei.

— Gostei do que fez lá em cima com Maurinho, Heitor — falou, pegando no guidau — Já tinha
tentado falar com ele, conversa de irmão pra irmão, mas não adiantou. Eu disse a ele que com você
as coisas seriam piores.

Peguei os óculos escuros do bolso da camisa azul celeste e os pus nos olhos.

— Ele vai tomar jeito agora.

— Assim também espero.

Theo ligou a moto e saiu debagar com ela. Aos poucos tomou distância e desapareceu. Antes de
sair da casa de Nora, consultei o celular e vi uma notificação de mensagem nova. Era Maya.
Comecei a ler.
já estou com saudades

Sorri. Escrevi de volta:

tô voltando pra casa, ansioso pra te ver

Não esperei que ela respondesse. Saí de casa e me alojei na Mercedes. Liguei o carro e logo dei
a partida.

***

É fácil agradar uma mulher.

Quer agradar uma mulher? Então NUNCA, JAMAIS chegue em casa com as mãos abanando. Pois
é. Era bem uma lição que eu tinha aprendido há muitos anos e nunca esquecera dela. Gentileza é tudo
e agrados ajudam muito. Além disso, eu bem tinha percebido o efeito positivo que aquilo fizera na
minha relação com Nora momentos atrás. Então resolvi seguir o mesmo script com Maya. Passei
numa floricultura antes de seguir para casa. Assim que cheguei na mansão, meia hora mais tarde,
larguei as chaves na mesinha de vidro que ficava ao lado da porta dupla de madeira e gostei do
silêncio que senti ao chegar na sala. Maya devia estar lá em cima, me esperando.

Como eu queria fazer surpresa, andei na ponta do pé e comecei a subir as escadas devagar, sem
fazer barulho. Tão logo abri a porta do quarto vi uma Maya abatida na cama. As cortinas estavam
fechadas, dando ao ambiente um aspecto escuro, como se estivesse quase anoitecendo e notei que o
ar condicionado estava desligado. E pior, a morena estava sob um edredom grosso.

— Maya? Ei, que foi? — pousei o buquê de flores na poltrona e fui em direção à cama. Maya
estava com os olhos fechados. Me aproximei mais um pouco.

— Ei — sussurrei — O que foi, morena? Tudo bem?

Ela balançou a cabeça lentamente, resmungando.

— Não me olha, por favor... estou horrível.


Eu ri. Ela claramente estava doente e ainda parava para se preocupar com o que eu ia achar de
sua imagem?

— Malagueta, tarde demais pra pensar nisso. Só me diz o que está sentindo.

— Um pouco... de mal-estar, eu acho... logo vai passar.

Verifiquei sua temperatura com minha mão e percebi que ela estava bastante quente.

— Está com febre. Vou arranjar alguns analgésicos. Calma aí, que já volto.

Ela não respondeu. Parecia querer dormir. Respeitei isso. Já tinha ficado doente muitas vezes na
vida e sabia o quanto era ruim. Nessas horas Nora sempre cuidava de mim. E Maya não tinha
ninguém para cuidar dela, exceto eu. Então eu cuidaria dela.

Após pegar um comprimido e um copo de água fresca na cozinha, voltei para o quarto às pressas
e encontrei Maya ainda sonolenta na cama. Me agachei ao seu lado e sussurrei.

— Ei, linda, tome isso, vai te fazer bem.

Ela resmungou novamente e virou-se para mim. Os cabelos estavam bagunçados no rosto e os
olhos estavam vermelhos e abatidos. Tossiu um pouco. Mas logo pegou o remédio de minha mão e o
engoliu. Em seguida bebeu dois goles de água.

— Agora descanse. Só descanse — ajudei Maya a se deitar e puxei o edredom grosso até seu
pescoço — Logo vai ficar boa, vou cuidar de você. Não se preocupe.

— Heitor?

— Sim?

— Obrigada...

— De nada, guria. Quer alguma coisa?

— Não, tudo bem... vou ficar legal...


Beijei sua testa e segui até à porta. Olhei para Maya deitada novamente e saí. Fechei a porta com
cuidado. Tomaria um banho e voltaria para ficar com ela. Aquela guria era preciosa demais para
ficar sozinha e abandonada.
Capítulo 31
MAYA

AS APARÊNCIAS ENGANAM. Essa é uma grande verdade. Aos meus vinte e quatro anos eu
achava que sabia de tudo, ou quase de tudo nessa vida, e agora eu me dava conta de que estava
errada. O fato é que nunca esperei que alguém como Heitor Romano, por exemplo, fosse cuidar de
mim do jeito que cuidara toda a noite passada. Sim, ele tinha passado a tarde inteira entrando e
saindo do quarto, me trazendo remédio, verificando minha temperatura, colocando bolsa térmica em
minha testa, me dando água fresca para beber e me auxiliando a ir ao banheiro. Em nenhum momento
resmungou ou perdeu a paciência comigo ou com meu estado combalido. Nem mesmo nas horas em
que me recusei a comer o que ele mandava.

Nas idas ao banheiro, Heitor me suspendia nos braços e me deixava sentada no vaso sanitário.
Esperava lá fora e só voltava quando eu o chamava, e então me carregava de volta para a cama. Na
hora do banho fazia a mesma coisa e ficou atrás do box, esperando, pronto para qualquer emergência.
E agora, pensando nisso, me dava conta de que meu pai nunca cuidou de mim durante a vida toda
como Heitor cuidou em um dia.

Na verdade, eu sempre passara a vida inteira me preocupando ou pensando no bem-estar das


pessoas que eu amava, quando muitas vezes quem precisava de cuidado era eu. Eu podia me recordar
também dos momentos em que eu estive doente em casa, e em todos eles eu passara sozinha. Houve
uma vez, inclusive, que eu ficara o dia inteiro esquecida no quarto. Nem comida, nem ajuda para
tomar o banho eu conseguira. E agora podia ver como as coisas eram mesmo surpreendentes. Heitor
não era ninguém da minha família, mas demonstrou mais amor e solidariedade.

O novo dia se iniciou nublado, mas eu não estava preocupada com isso, afinal, eu estava bem.
Bem melhor do que estivera na noite passada. A febre já havia me dado uma trégua e as dores
musculares não castigavam mais o meu corpo como antes.

Levantando devagar o tronco e expulsando os cabelos do rosto, eu realmente me senti melhor. A


cabeça já não girava como se ela fosse descolar do meu pescoço e meu corpo já não parecia tão
fraco e leve como uma borracha. Consegui pôr meus pés no piso de madeira e agradeci em
pensamento por ele ser morno e não frio como o piso de cerâmica lá de casa, então fiquei ainda mais
aliviada quando notei que conseguia ficar de pé, sem me sentir tonta ou precisar voltar à segurança
da beirada da cama. Eu estava melhor.

Afastando as cortinas da janela, tive que fechar os olhos antes de abri-los novamente, tendo o
cuidado de ir me acostumando com a claridade que vinha dela. O dia não estava feio lá fora, nem
fazia frio. E a entrada da mansão estava silenciosa, como se não houvesse nenhum movimento por ali.

Heitor. Onde será que ele estava?

— Que horas são? — murmurei comigo mesma, voltando para perto da cama, até avistar o relógio
digital no criado-mudo. Marcavam onze e vinte. Heitor tinha aparecido pela última vez no quarto
uma hora atrás e comentado algo sobre ir ao cassino. Talvez ele não estivesse em casa àquela hora.

Abri a porta do quarto devagar e não ouvi movimento algum. Será que eu estava sozinha? Voltei a
fechá-la e voltei também a me sentar na cama. Tão logo isso aconteceu, a porta se abriu de repente,
me revelando um Heitor preocupado.

— Oi, morena, não devia se levantar!

— Oi, estou melhor... — me senti bem com a sua presença. Era assim que estava sendo
ultimamente. Bastava Heitor passar pela porta ou chegar onde eu estava para eu me sentir mais
segura.Ás vezes bastava eu escutar sua voz ou saber que ele estava por perto para tudo ao meu redor
ficar mais colorido e interessante. Ás vezes me bastava seu cheiro.

— Como se sente?

— Bem melhor, obrigada pela ajuda.

— Não foi nada — se aproximou com cuidado, como se temesse que eu me machucasse — Vai
voltar agora mesmo pra cama.

— Estou bem, é sério... — ri, quando ele me ergueu, adorando aquele jeito fofo dele me tratar.
Enlacei seu pescoço com meus braços e toquei seus lábios com os meus. Automaticamente as mãos
másculas e poderosas me apertaram e ele se manteve um bom tempo em pé comigo nos braços.
Adorei a sensação de ter um namorado forte. Senti uma leve excitação com esse pensamento, mas não
precisava ficar louca por sexo, afinal, tínhamos todo o tempo do mundo para aproveitar, assim que eu
ficasse melhor.
— Vai sair agora? — indaguei quando ele me pousou na cama.

— Vou, mas não vou demorar. Prometo voltar pra cuidar de você.

— Já estou melhor, Heitor.

— Mesmo assim, vou voltar cedo pra ver como está.

— Está bem — adorei a forma como ele me cobriu com o lençol e pensei que a minha vontade era
ficar com ele a tarde toda, e mesmo que não rolasse sexo, queria poder ficar beijando sua boca,
receber seus beijos, suas carícias, seu corpo forte e viril sobre mim. De repente endireitei a cabeça
no travesseiro e fechei os olhos, já contando os segundos para voltar a ficar com Heitor. Era bom
ficar abraçada em seu corpo e sentir o cheiro de sua pele e o de sua roupa.

— Vai ficar bem mesmo? — perguntou, parecendo ainda preocupado. Então achei melhor agir
como a garota forte que eu era.

— Vou sim, não se preocupe, está tudo bem. Posso muito bem me virar. Além do mais, não quero
atrapalhar seu trabalho.

Beijou minha testa antes de se afastar.

— Vê se não apronta, malagueta. Vou ficar com o celular ligado. Qualquer coisa, não hesite em
me ligar

— Está bem.

Heitor atendeu o celular quando ele tocou e saiu enquanto encostava a porta com cuidado.
Aproveitei o momento de solidão para olhar o smartphone que ele trouxera para mim dias antes de eu
ficar doente. Segundo ele, era para a gente poder se comunicar melhor, agora que estávamos nos
entendendo.

Com o smartphone em minhas mãos, eu fiquei lendo e relendo as mensagens de amor que tínhamos
trocado. Ele sabia ser carinhoso e romântico quando queria e não somente quando precisava. E eu me
perguntava até quando viveríamos assim. Eu esperava que fosse para sempre, embora o para sempre
muitas vezes não existisse. Além do mais, no nosso caso, eu devia ser realista, o para sempre era
quase impossível. O para sempre era coisa de livros de romance e filmes e eu não era nenhum pouco
como as meninas românticas que conhecia. Bom, não até conhecer Heitor Romano.

Depois de repetir várias vezes as mensagens e babar por elas, voltei a descansar a cabeça no
travesseiro confortável e voltei a pensar em papai e em Lucas e no que eles estariam fazendo agora.
Pensei em minha casa e em como sentia falta da minha vida, embora também gostasse de ficar com
Heitor. Encarei o aparelho e mordi o lábio, puxando na memória o número de meu irmão. Agora que
Heitor tinha me dado um celular, eu podia ligar para quem quisesse, sem restrição. Então disquei.
Lucas atendeu no quarto toque.

— Lucas! — senti a emoção me tomar, sem que eu a esperasse.

— Maya? É você? — pareceu sorrir do outro lado e imaginei a expressão que ele fazia agora
— Caraca, é você mesmo? Como você tá, magrela?

— Estou bem — sentei na cama, tentando falar mais confortavelmente e cravei minhas unhas no
lençol grosso que estava em cima de minhas pernas.

— Sério?

— Sim, pode acreditar, eu estou bem. E você, me diga como está? Onde está, Lucas? O que
aconteceu com você?

— Tô na casa de uma garota. Hum, uma namorada. A gente tá morando junto. Estive lá em
casa dias atrás, preocupado com você, mas então pra minha surpresa estava tudo no lugar. E o
velho já tá com uma namorada. Tá sabendo disso?

— Pois é — suspirei — as coisas acontecem rapidamente pra vocês.

— Ele parece bem. Não falei com ele. Os homens sinistros ainda estão tomando conta do local.
Perguntei por você e disseram que estava em segurança. O que aconteceu, Maya? Tá mesmo na
casa do chefe da máfia? Bom, você está me lingando, então não deve estar numa situação tão
terrível assim...

Achei melhor não revelar os mínimos detalhes ao meu irmão, pois dificilmente ele iria entender
as minhas razões para ficar com Heitor. Na verdade, Lucas ficaria indignado e me falaria coisas das
quais não estava preparada para ouvir.

— Lucas, não dá pra conversar muito bem agora pelo telefone, mas... — pensei no que dizer —
Bom, é uma situação meio difícil de explicar, mas estou bem e estou sendo muito bem tratada. Não se
preocupe.

— E esse cara, o chefe, o que quer com você?

— Bom, eu escolhi vir no lugar da dívida. Achei que eles fossem me matar, mas Heitor tem me
tratado muito bem. Não é o mostro que pensávamos. Ele sabe ser generoso. E como disse, tem até
cuidado de mim... hum, inclusive acabo de me recuperar de uma gripe e foi Heitor que ficou ao meu
lado.

— Tá brincando! Que loucura é essa? O cara prendeu você? Ele te obrigou a...?

— Não, ele não fez nada do que eu não quisesse... hum, é sério, acredite, eu estou bem.

Lucas não pareceu convencido, mas também não insistiu no assunto. Suspirou.

— E por que não volta pra casa, Maya? Até quando vai ficar nas mãos desse cara?

Foi minha vez de suspirar. Era uma coisa que eu não fazia ideia.

— Bom, eu ainda não sei... — na realidade, desde que Heitor e eu ficamos juntos eu queria
esquecer o passado e poder adiar o futuro. Só queria focar no presente e não queria que nada
estragasse o que estávamos vivendo hoje. Talvez o amanhã viesse rápido demais e talvez ele não
trouxesse coisas muito boas e talvez aquilo tudo logo virasse uma página virada, mas no momento eu
só queria pensar que Heitor era meu e que eu estava vivendo um momento maravilhoso ao lado dele,
mesmo que tudo fosse uma grande loucura. E mesmo sendo loucura, eu estava feliz.

— Maya? Ainda tá aí?

— Oi, estou na linha...

— Certo, bom... é bom saber que está viva e bem. Eu me senti muito culpado por tudo o que
aconteceu. Me desculpa. Sei que falei coisas horríveis quando fui embora, mas eu estava
assustado e revoltado demais. Não com você, com nosso pai. Eu devia ter chamado você pra vir
comigo, mas nem pensei nisso. Só pensei mesmo em salvar a minha pele. Sei que devo desculpas.

Pensei naquilo. Agora eu já conseguia pensar no pesadelo que tinha vivido sem chorar ou sofrer,
mas até pouco tempo atrás era algo muito horrível até mesmo para falar.

— Lucas, eu sei que você estava assustado. Eu também estava assustada e sei que mesmo que
você me chamasse, eu não iria. Nós dois sabemos que eu não iria. Não conseguiria deixar nosso pai
sozinho.

— Você é forte, Maya. Bem mais forte que eu. E mais corajosa.

— Lucas, tenho que desligar agora. Foi maravilhoso falar com você e saber que está bem. O pior
já passou, eu acho. Só espero um dia podermos superar tudo isso.

Mordi o lábio inferior, pensando novamente naquilo. Pensei também se Lucas compreenderia que
eu estava me envolvendo com Heitor e que me apaixonara por ele. Achei realmente melhor não
comentar nada. Não, meu irmão não entenderia.

— Ei, Maya, se cuida.

***

— Fiquei a noite inteira esperando seu telefonema e ele não veio — falou Heitor em tom de
repreensão, algumas horas mais tarde, tocando delicadamente meus cabelos. Estava deitado de frente
e eu estava deitada com o rosto em seu peito cheiroso. Tínhamos tomado banho juntos, mas não
tínhamos feito amor, e agora só estávamos conversando, de bobeira, apenas por conversar. Era bom e
gostoso ficar coladinha nele, trocando carícias e beijinhos. Era bom construirmos uma relação que
não fosse baseada em sexo. Respeito e carinho eram essenciais.

— Como você ficou durante toda a tarde sem mim, guria? — ele quis saber.

— Eu fiquei bem... o celular me distraiu um pouco.


— Ah, é? Você ligou pra alguém?

Pensei em dizer.

— Sim — mordi o lábio, e pensei também se ele gostaria de saber. Bom, era melhor começar
tudo com cartas limpas. Nada de mentiras. Se eu queria um relacionamento sério e bacana com
Heitor, teria que ser sincera com ele, e esperava que ele agisse da mesma forma comigo.

— Liguei pro meu irmão e depois pra uma amiga... — eu, de fato, tinha ligado mais tarde para
Tati. Logo após despedir-me de Lucas. E ficamos um bom tempo conversando.

— E foi bom falar com eles? — era bom sentir seu toque em meus cabelos.

— Sim, muito bom.

Ele se calou. Continuou enrolando mechas de meus cabelos em seus dedos. Eu me ajeitei em seu
peitoral vigoroso e nu, e apoiei meus cotovelos nele enquanto aproveitava aquela posição para vê-lo
melhor.

— Estive pensando... agora que estamos juntos... o que vai ser da gente, Heitor? Quero dizer,
como vai ser tudo depois que a realidade chegar?

— Como vai ser? — agora parava de alisar meus cabelos — Bom, continuaremos o que estamos
vivendo hoje. Eu quero você, morena, e acho que me quer também — passou a aspirar o cheiro de
meus cabelos.

Balancei a cabeça em positivo e respirei fundo.

— E quanto a mim? Vai me deixar voltar a ter minha vida?

Ele parou de me cheirar e pensou naquilo, em seguida respirou fundo.

— Tem razão. Não tinha pensado nisso ainda... sente muita saudade de casa, não é?

— Muita... mas não só disso.


Suspirou profundamente.

— Ok.

Pensei que fosse se afastar de mim, mas não fez isso. Pelo contrário, continuou me examinando.

— Quer ter sua vida de volta, eu sei, e está completamente certa. Vou dá-la de volta a você,
morena. Prometo.

— Então quer dizer que vai me deixar voltar pra casa?

Ele me olhou e seus olhos brilharam. Por um momento a ideia de Heitor não me libertar me
deixou assustada, mas então ele sorriu.

— Vou. Você está livre, guria. A partir de hoje. Pode fazer o que quiser da sua vida. E se quiser
cair fora e não me ver mais, também pode fazer.

Me aproximando de seus lábios, eu o beijei.

— Não quero deixar você — falei.


Capítulo 32
HEITOR

O TOQUE DO CELULAR me acordou. Abri os olhos e ainda morto de cansaço usei a mão para
tentar pegar o aparelho. Estava muito escuro no quarto e eu me dei conta de que era por causa das
cortinas que estavam fechadas. Sentei na beirada da cama, tentando vencer o sono e pensando que
não seria nada legal se o barulho do telefone acordasse Maya que dormia ao meu lado.

— Alô? — falei, pondo o aparelho no ouvido.

— Heitor!

Era a voz de Theo. Ele parecia agitado. Esfreguei o rosto e me perguntei porque meu irmão tinha
sempre que ligar nas horas mais indevidas.

— Tá brincando. Sabe que horas são, meu? — eu mesmo espiei a hora no relógio digital e vi que
eram duas e quarenta da madrugada.

— Heitor, é sério... acabei de receber um telefonema de Mauro. Estão no hospital. Nora e ele.

— Como é? No hospital? O que Mauro e Nora estão fazendo no hospital? Aconteceu alguma
coisa? — levantei, preocupado, e mesmo descalço segui para o banheiro da suíte. Lá cliquei no
interruptor para acender a luz e fechei a porta — Aconteceu alguma coisa com a Nora? Fala logo,
Theo!

— Não, não foi com ela, relaxa, Nora está bem. Foi com Maurinho. Ele foi atropelado na avenida
no fim da noite.

—Maurinho? Atropelado? Como assim atropelado? E como é que ele está?

— Eu ainda não sei. Mauro me ligou agora há pouco e disse que não estava conseguindo
encontrar seu telefone.

— Certo, me diga o nome do hospital onde estão, que vou pra lá — equilibrei o celular entre o
ouvido e o ombro, enquanto ajeitava a calça.
Depois que Theo me passou o endereço e se despediu, guardei o telefone no bolso e voltei para o
quarto escuro. Maya ainda dormia sossegada. Logo substituí o moletom por uma calça social preta e
vesti uma camisa da mesma cor. Calcei sapatos, pensando que precisava chegar no hospital para
saber como todo mundo estava. Theo seguiria para lá de moto.

Atropelamento.

Merda.

Me aproximei da cama e olhei para Maya. Não achei justo acordá-la para falar que eu iria sair.
Beijei sua testa suavemente e me afastei do quarto em silêncio.

***

Cheguei no hospital meia hora depois e encontrei Theo logo na recepção, me aguardando.

— Heitor!

— E então, como ele está?

— Fora de perigo. Parece que sofreu poucas fraturas, mas pode ser que tenha que se submeter a
alguma cirurgia.

— E Nora, como está?

— Está bem. Menos nervosa agora. Venha, ela vai ficar mais tranquila quando encontrar você.
Queremos transferir Maurinho para uma clínica particular. Estou cuidando disso.

— Certo, faça isso.

Theo e eu seguimos pelo corredor extenso do hospital e logo avistamos Nora e Mauro sentados
num dos bancos de espera.

— Heitor! — Nora gritou ao me ver e fui ao seu encontro — Ainda bem que chegou! É bom ver
toda a família reunida.

— Está tudo bem, ele vai ficar bem. Theo falou que não foi nada grave. O garoto é forte.

— Deus te ouça — me puxou para um abraço apertado e depois puxou Theo também. Ficamos
assim por alguns segundos — Meus filhos — sussurrou — não sei o que faria sem vocês... fico louca
só de pensar no que pode acontecer com qualquer um dos três... eu falei tanto pra ele não ficar
andando de madrugada, mas Maurinho não me escuta... não sei o que tá acontecendo com esse
menino.

— Vai ficar tudo bem, mãe — Theo falou, tentando acalmá-la.

Mauro, que tinha se afastado para pegar um pouco de café, se aproximou de nós e neste momento
um dos médicos apareceu.

— Ei, doutor — me soltei de Nora e me dirigi a ele — Sou um dos irmãos da vítima. Será que
pode me dizer como ele está?

— Está bem melhor. Sei que desejam transferi-lo para um outro hospital. Quero dizer que não há
problema algum. Só peço que aguardem por mais algum tempo.

— Claro. Certo. Obrigado.

Voltei para perto de Nora e me lembrei do que tinha acontecido anos atrás com meus pais.
Acidente. Por causa de um bêbado. Ficara sabendo também que o suspeito de atropelar meu irmão
mais novo era um homem alcoolizado. Lembrei do momento terrível de quando recebi a notícia de
que minha mãe não tinha resistido aos ferimentos. Papai ainda resistiu por mais alguns dias e então
depois também morreu. Eu era muito garoto na época e só não surtei porque Nora apareceu na minha
vida como um anjo. Ela era enfermeira do hospital local onde meus pais biológicos ficaram
internados. Como eu não tinha ninguém na família, ela me adotou. O processo de adoção não fora
complicado, o difícil mesmo para mim foi superar o trauma com o qual eu ficara. Era uma ferida
antiga, que nunca cicatrizava.

— Heitor? Tudo bem, querido? — a voz de Nora me tirou dos devaneios.

— Hã?
— Tudo bem?

— Sim... está... está tudo bem.

— Heitor, Nora e eu vamos pra casa. Ela precisa descansar. Se importa de ficar mais um tempo
no hospital com Theo?

— Não, é claro que não. Podem ir pra casa.

— Qualquer coisa, nos liguem.

Nora e Mauro se despediram e seguiram pelo corredor silencioso. Eu sabia que eles estavam
muito cansados e precisavam descansar um pouco. Olhei para Theo que estava sentado numa das
poltronas, com os olhos fechados, tentando cochilar. Decidido a não dormir, segui até a lateral do
corredor para pegar um pouco de café.

***

Na manhã seguinte saí do hospital, angustiado. E exausto. Não só fisicamente como


emocionalmente também. E saí pensando pela primeira vez a respeito do meu romance com Maya. Eu
até que gostava da garota, mas não era sensato ficar com ela e isso agora estava me matando.

Theo seguira para casa às cinco da manhã para tentar descansar um pouco. Quando ele voltou, às
dez, foi a minha vez de ir para casa. No entanto, ao invés de seguir para a mansão, resolvi visitar o
túmulo dos meus pais. Fazia anos que eu não ia lá. Era perda de tempo, muitas vezes eu dizia a mim
mesmo. Eles já estão mortos, Heitor, e nunca mais vão voltar. Mas naquela tarde eu senti vontade.
Naquela tarde eu pensei muito neles, em todos os momentos bons que tivemos, em todas as festas, em
todas as brincadeiras, em todas as risadas e em toda a convivência em casa, pensei em tudo o que
tinha acontecido e em tudo que tinha perdido... agora não doía tanto como doera um dia, mas a ideia
de quase perder Maurinho me lembrou muito do que acontecera anos atrás. Seja forte, Heitor. Seja
forte.

Olhei as lápides e fiquei sentado diante delas, desejando perder mesmo a noção do tempo. Eu não
estava com pressa de voltar para casa... lágrimas se acumularam em meus olhos, mas eu me livrei
delas. Fiquei durante algum tempo ali parado. Limpei o rosto e então o cansaço me derrotou.

Quando acordei, pisquei os olhos, confuso, e olhei em redor. Me dei conta de que eu havia
cochilado no cemitério. Ajeitei a roupa cheia de terra e vi a hora no pulso. Quase meio dia. Era hora
de voltar para casa. Mas Maya estava lá e agora minha mente só conseguia pensar no que o maldito
do pai dela fizera. Como eu poderia continuar com ela se nunca esqueceria o que acontecera? Era
óbvio que eu tinha me deixado levar pelo beijo e o corpo gostoso da garota, por sua voz fina e seu
toque delicado, por uma atração física louca, e agora me arrependia amargamente disso.

Não tinha jeito. Eu não devia ter me envolvido com Maya. Devia deixá-la livre e de preferência
bem longe de mim. Não queria mais vingança, queria superar tudo, mas também não queria mais ficar
perto de nada que me lembrasse a Natanael, inclusive Maya. Eu precisava seguir, e não havia
possibilidade de seguir se ao olhar para Maya eu me lembrasse do pai dela e de tudo o que
aconteceu. Como seríamos felizes assim? Como pensaria em construir uma vida ao lado dela com
filhos que teriam o sangue daquele homem? Era impossível.

Voltando para o carro, peguei no volante e logo dei a partida. Iria para a casa. E iria dizer para
Maya que seria melhor terminar tudo agora do que adiar um término que seria inevitável no futuro.
Era melhor isso antes de nos envolvermos ainda mais.

***

Cheguei em casa depois do almoço, sabendo que Maya estava provavelmente à minha espera.
Sabendo também que seria difícil tocar no assunto com ela, então tentei ao máximo me distrair com
outras coisas. Convoquei Jarbas e Oscar para uma reunião em meu escritório enquanto Theo cuidava
das coisas no hospital e vez ou outra me ligava para me deixar a par de tudo o que acontecia por lá.

— Ficamos sabendo do que aconteceu com seu irmão caçula, Heitor. Que droga, hein— Jarbas
tocou meu ombro como uma forma de conforto.

— Ele vai ficar bem. Foi só um susto. Uma droga de susto.

— Certo.
— Mas por conta disso, mesmo sabendo que ele vai ficar legal, não sei se vou ter tempo para
ficar a noite toda no Del Romano, então quero que assumam as coisas por mim. Não quero que nada
saia do controle, Jarbas, é sério.

— Tamo junto.

— Outra coisa — falei e ele aguardou — Vou deixar a garota ir embora. Maya, a filha de
Natanael. Quero que deixem a casa do bêbado em paz e que esqueçam que ele existe. E só cuidem
pra que ele nunca mais apareça no cassino.

— Entendi.

— É só isso.

Jarbas e Oscar se retiraram. Esfreguei meu rosto, tenso porque tinha feito uma escolha difícil
àquela tarde. Não queria mais a garota comigo, não queria mais vê-la nem pensar nela porque sabia
que se a visse ou ficasse recordando os nossos momentos bons eu ia fraquejar.

Eu estava apaixonado, era claro que estava! No fundo eu a queria, mas minha mente me dizia que
eu precisava manter Maya à distância. Para o bem dela e para o meu. E se tinha algo que deveria
guiar um homem era a consciência dele e não o coração. Afinal, o coração sempre fazia escolhas
baseadas na emoção.

Subi as escadas, meia hora mais tarde, e segui para o meu quarto. Não queria encontrar Maya.
Não agora. Não estava ainda preparado para ter a conversa definitiva com ela. Precisava de um
banho e precisava também colocar a cabeça no lugar.

Atravessei o quarto e logo entrei na suíte. Lá tomei um banho demorado e por vezes deixei a
cabeça no centro do chuveiro, me sentindo bem com o jato de água que caía sobre mim. Aquilo me
ajudava a encarar o que ainda estava por vir. Pensei. Bom, eu nunca tinha tido problemas para
romper com alguma garota. Na verdade, nunca precisara romper com elas, apenas me afastava,
deixava de telefonar, deixava de procurar, e então elas entendiam por si só que era o fim. No entanto
com Maya seria um término expresso e eu não voltaria atrás. Também não achava que ela espernearia
ou brigaria. Do jeito que era orgulhosa, sairia com a cabeça erguida. E eu só tinha medo de no futuro
me arrepender da escolha feita.
Capítulo 33
MAYA

ACORDEI PELA manhã e não encontrei Heitor. Nem sinal dele. Nenhum bilhetinho largado na
cama propositalmente para que eu visse assim que acordasse e nenhuma mensagem enviada para o
celular.

Deixei a cama, pensando se ele tinha ido correr ou se tinha ido atender a algum problema de
trabalho. Bem, eu precisava me acostumar com o trabalho de Heitor. Era estranho pensar sobre isso,
que estava tendo um amor bandido com um cara que dominava a máfia, mas era bem exatamente o
que estava acontecendo. E eu estava cega, tão cega de amor, que nada mais importava. Meus valores
morais não tinham importância e nem minha conduta parecia tão errada quando Heitor se aproximava
de mim e me tratava como se eu fosse a coisa mais preciosa do mundo. É, era daquela maneira que
ele também me ganhava. Ele sabia tratar bem as pessoas, especialmente quando gostava delas. E eu
me sentia feliz por ser parte do grupo de pessoas que Heitor gostava.

Suspirei.

Caminhei pelo quarto bonito e silencioso que aprendi a amar e contemplei a vista lá fora. Também
olhei para baixo, para a área que ficava perto do jardim. Nenhum sinal de Heitor ou dos amigos dele.
Apenas os seguranças rodeavam a casa lá fora, eu sabia.

Era estranho pensar em como alguém, especialmente alguém que até pouco tempo era um
desconhecido para mim, poderia simplesmente chegar e virar minha vida do avesso, e até mesmo
transformá-la. Ou talvez a palavra certa fosse dar sentido a ela. Isso. Talvez Heitor só tivesse surgido
para me dizer que, sim, que era possível amar, que era possível ser feliz, que as coisas não eram tão
ruins como elas pareciam ser e que eu poderia, de fato, me curar. E a verdade também é que nunca
imaginei que um homem fosse me tirar da posição de sofrida um dia para me encher de fé. E era isso
o que Heitor fazia comigo. Me enchia também de coragem para seguir em frente e tentar ser feliz. Era
assim que eu me sentia quando Heitor estava por perto — uma garota renovada, com sede de
redescobrir a própria vida.

Me afastei da janela, tempo mais tarde, atravessei o quarto e abri a porta. Desci a escada circular,
pensando e desejando encontrar meu loiro perigoso, que ficara toda aquela manhã longe de mim. Ele
já tinha chegado em casa. Há poucos segundos havia ouvido o toque de seu celular em algum lugar da
casa e escutado sua voz grossa atender. E ao mesmo tempo em que queria correr até seus braços e me
atirar em seu pescoço, eu não queria parecer tão nervosa e desesperada. Eu estava com medo. Com
medo de toda a nossa história transformar-se em nada de uma hora para outra, com a mesma
proporção com a qual se iniciara.

Tão logo cheguei na metade da escada avistei o hall silencioso. Tão silencioso que poderia ser
capaz de ouvir o som de uma agulha se alguma por acaso caísse no carpete vinho e marrom. Segurei
o corrimão da escada e desci o último degrau que faltava. Tentei olhar ao redor, mas não vi ninguém.
Então dei novos passos, até encontrar uma antessala vazia e muda. Arrisquei outros passos,
atravessei a sala de estar e foi lá que finalmente avistei Heitor. Não sabia se ele sentia a minha
presença, se ele sabia perfeitamente que eu estava ali às suas costas. Provavelmente sim. Como
sempre arisco e desconfiado, era provável que sim. No entanto, resolvi me manter calada, até ele se
virar para me olhar.

Mas Heitor não se virou para me olhar, nem mesmo para me cumprimentar. Parecia mais
misterioso do que o de costume e bem mais charmoso. Ereto diante das persianas grossas, parecia
distraído com alguma coisa lá fora. Ou talvez estivesse pensativo. Mordi o lábio inferior, pensando
se era uma boa ideia interrompê-lo de seu momento de reflexão. Respirei fundo como um ato de
injeção de ânimo e com coragem avancei mais alguns passos, até ficar mais perto de Heitor. Logo
não me contive e lentamente o abracei pelas costas. Devagar, não querendo incomodá-lo. Ele relaxou
os músculos diante de meu toque, mas mesmo assim não correspondeu ao meu abraço.

— Tudo bem? — sussurrei.

Heitor não respondeu. Nem se virou para mim. Continuei agarrada às suas costas, com o queixo
pousado em seu ombro. Para isso precisei ficar na ponta dos pés.

— Heitor?

— Tive que resolver um problema — murmurou, a voz sem muito afeto — espero que tenha
ficado bem.

— Fiquei.
Heitor não falou mais nada. Talvez tivesse acontecido alguma coisa grave no trabalho ou... em
outro lugar. Mesmo assim, me sentindo inconveniente, me afastei. Não era difícil perceber que ele
estava diferente comigo. Talvez um pouco mais frio. Então um pensamento ruim passou pela minha
cabeça.

— Tudo bem mesmo? — insisti.

Sem resposta.

— Heitor, aconteceu alguma coisa?

Ele virou-se um pouco para me olhar e pareceu procurar as palavras para dizer. Seus olhos azuis
violeta estavam um pouco mais escuros do que o normal e mesmo sem ouvir suas palavras, soube que
algo não tão bom havia acontecido ou estava prestes a acontecer.

— Foi um erro, morena, eu... foi um erro você e eu, quero dizer — calou-se em seguida — eu
lamento.

Engoli em seco e senti um gosto horrível descer pela minha garganta. Ele não me queria mais. Era
isso? Estava tentando acabar com tudo entre a gente?

— Pode voltar pra sua casa, Maya, está livre. Desde ontem disse que a deixaria livre. Pode ir
embora e nunca mais se preocupar. Já dei ordens para os caras saírem da casa do seu pai. Não vão
mais ameaçar vocês, dou minha palavra. Dei ordens expressas também para que eles esqueçam quem
vocês são e onde vocês moram.

— Está dizendo que está tudo acabado entre a gente? — eu estava atônita.

Ele me encarou.

— Maya, eu...

— Certo, entendi. Vou embora — dei-lhe as costas, furiosa, mas em seguida parei no caminho.
Não entendia por que aquilo estava acontecendo. Voltei a encará-lo. As lágrimas começaram a
ameaçar descer, mas eu não queria dar esse gostinho a Heitor. Com raiva, eu as limpei — Sabe o que
aconteceu comigo no passado, Heitor? — falei, mesmo não sabendo se devia lhe contar minha
história — Bom, eu fui violentada uma noite. Por um homem. Por um homem que nunca conheci o
rosto. Ele simplesmente me pegou quando cheguei perto de casa e me abordou. Ninguém viu, ninguém
soube de nada, também nunca prestei queixa... sei, fui uma burra — limpei outra lágrima e dei pausa
para respirar — Achei que fosse mesmo morrer naquela noite e achei que fosse morrer depois
também, mas... bom, como vê, aqui estou eu — voltei a chorar, agora era sério — Mas então os anos
passaram e conheci você. Você fez o inferno na minha vida, Heitor, e por semanas pensei em odiá-lo,
por semanas pensei em ficar longe de você, mas então descobri que poderia amar... — outra pausa
porque o choro me vencia — Vivi momentos felizes nessas últimas semanas e mesmo que agora tudo
esteja acabando, só quero dizer que sim, vou superar. Vou superar o término. Eu estou curada, Heitor.
E seja lá o que aconteceu na sua vida, acho que você também precisa se curar.

Engoli as novas lágrimas e vi que Heitor só me olhava, petrificado, os lábios entreabertos, como
se estivesse em choque. Deu dois passos em minha direção.

— Quem machucou você? Me conta, que preciso saber.

— Não importa agora — meneei a cabela, abalada — Na verdade, nem eu sei... o que quis dizer é
que seja lá o que aconteceu com você, precisa superar também, precisa se curar disso, porque isso só
te faz mal.

Ele respirou fundo e desviou o olhar. Abaixou a cabeça. Pareceu tentar se abrir.

— Sabe por que não posso me envolver com você, Maya? — voltou a me olhar, agora mais tenso
— Porque não posso amar uma garota cujo pai bêbado matou os meus pais num acidente de carro —
vi seus olhos ficarem vermelhos e soube que ele chorava — Foi isso... agora você sabe o que
aconteceu. E agora pode ter a ideia do quanto sou duro por dentro, do quanto ainda sou assombrado
por isso. Não queria ser, mas sou... lamento.

Chocada, pisquei várias vezes e novamente as lágrimas desceram. Então entendi tudo. Então por
isso Heitor odiava meu pai. Então por isso Heitor nunca mais iria querer ficar comigo...

Arrasada, limpei novamente as lágrimas que molhavam meu rosto. Éramos duas pessoas
quebradas, Heitor e eu. Ele com seus motivos e eu com os meus. Ao menos eu tentei ser feliz. Ao
menos tentei. Queria que ele tentasse também.
— Desculpe por ter feito você sofrer, Maya. Juro que tentei passar por cima de tudo isso, mas não
posso — meneou a cabeça, atormentado — Confie em mim, vai ser melhor assim... pra você... e
quanto ao homem que te machucou, vou descobrir quem é e vou acabar com ele.

Balancei a cabeça novamente. Não era isso o que queria. Não queria vingança. Chega de
vingança.

— Você está cheio de ressentimento acumulado no peito, Heitor — dei passos e toquei seu peito
— Precisa se libertar disso, é sério, tudo isso faz muito mal a você.

— Já me curei, Maya — se afastou de mim e me deu as costas. Ele estava abalado, eu sabia —
Me curei... tanto que não anseio mais pela morte de seu pai. Não quero mais me vingar de vocês.
Está livre, guria. Você e toda a sua família.

— Então essa é a sua palavra final? — perguntei, os olhos novamente cheios de água.

Ele não respondeu. Continuou de costas.

— Certo, vou arrumar minhas coisas então — murmurei, antes de girar os calcanhares e voltar
pelo caminho que tinha percorrido antes de chegar na sala de estar em busca de Heitor.

Subi as escadas correndo, sentindo toda a região do meu peito doer. Doer demais, como se
alguém tivesse me batido ali. Lágrimas desceram livremente dos olhos e o soluço finalmente se
libertou quando alcancei o quarto e me recostei na porta. Era o fim, eu sabia que era, e o problema
era que eu não estava preparada para ele.
Capítulo 34
MAYA

OS DIAS SE PASSARAM e logo viraram semanas. Eu tentava me readaptar à minha vida e


tentava aprender a conviver com Beth, a namorada de meu pai. Bom, querendo ou não, ela era agora
a mulher da vida dele e praticamente a dona da casa. E eu era a filha que retornava ao lar após uma
significativa temporada fora, na mansão do chefe da máfia. E para piorar tudo, eu estava arrasada.
Meu coração estava dilacerado e a impressão que eu tinha era a de que uma máquina de triturar tinha
passado por cima dele.

Conversei com meu pai e pedi que ele me contasse a sua versão da história sobre o acidente de
carro que tirara a vida dos pais de Heitor. Meu pai não se omitiu, como a princípio imaginei que
fosse fazer, nem negou nada. Pelo contrário. Ele confirmou tudo e chorou. Chorou como criança.
Disse que se envergonhava do acontecido e que por isso nunca mais pegara num carro. Disse também
que por isso nunca permitira que eu e meu irmão, que éramos muito pequenos na época, soubéssemos
do acontecido.

Nos primeiros dias que voltei para casa me peguei chorando que nem uma boba e até pensei que
ficaria doente por isso. E briguei comigo mesma também por isso e só então decidi que seria mais
forte. Agora não chorava mais e agora também tentava não pensar mais em Heitor como antes, nem
nos momentos maravilhosos que tivemos juntos, porque isso me fazia sofrer. E eu não queria mais
sofrer. Queria passar uma borracha em tudo o que tinha dado errado na minha vida e seguir.
Simplesmente seguir.

Andreas voltou a me procurar e precisei inventar toda uma fantasia para despistar o período de
pesadelo em que vivi por causa da dívida de meu pai. No entanto ele pareceu desconfiado.

— Fale a verdade, não estava trabalhando numa casa de família.

— Estava sim — menti.

— Eu soube que você esteve nas mãos de bandidos, Maya, só não pude entrar em contato com a
polícia porque...
— Não faça isso. Nem pense nisso. Por favor.

— Por que não?

— Não devia ter me procurado. Eu disse que estava bem, não disse?

— É, eu sei, mas... certo dia encontrei seu irmão e ele soltou algumas coisas sem querer. Somei
dois mais dois e entendi tudo. E não ia conseguir ficar parado sabendo que você corria perigo.

— O que pensou em fazer era arriscado. Não pense mais nisso, é sério, estou bem agora.
Portanto, vamos esquecer tudo.

— O que fizeram com você lá dentro, Maya? Espero que não tenham...

Respirei fundo e decidi que era melhor falar a verdade a ele.

— Estou bem. Eles não fizeram nada de mal comigo, é sério, acredite. Não me machucaram.

— É uma quadrilha, Maya. E perigosa. Não devia ter tentado negociar com eles.

— Eu sei que você tem razão, Andreas, mas... acabou, ok? O pesadelo acabou. Estou bem. Já
disse, eles não me machucaram. Quer dizer, Heitor, o chefe, ele não permitiu que me machucassem.
Ele... — sussurrei, sofrendo com a menção do nome.

Andreas me olhou, como se desconfiasse de algo, de um jeito que me fazia lembrar o Gaston
quando desconfiara de que a Bela estava apaixonada pela Fera.

— O que foi, Andreas? — estudei sua expressão, ele tinha agora as sobrancelhas arqueadas e a
boca entreaberta, como se estivesse espantado com alguma coisa.

— Não sei, tive a impressão de que está caidinha por ele. Quando falou o nome do cara, sei lá,
seu semblante de repente ficou diferente.

— Ah, bobagem — abaixei os olhos. Ele tinha razão.

— Não me diz que... ah, Maya, por favor — e estreitou os olhos para me ver melhor — hum, não
me diz que se apaixonou por ele.

— Andreas!

— Só estou perguntando e seria bom que falasse a verdade.

— Não, não me apaixonei por ele, tá legal? — menti pela segunda vez — Agora me deixe em paz.
É uma página virada em minha vida e... bom, é algo que pretendo esquecer pra sempre.

— Certo, o importante é que está aqui de volta e bem — me puxou para um abraço. No entanto
quando fechei os olhos só pensei em Heitor.

Onde estaria Heitor? Eu queria saber.

***

Meia hora depois eu estava com a cabeça nas pernas de Tati, contando a ela tudo o que tinha
acontecido comigo na mansão de Heitor, abrindo meu coração e desabafando. Não conseguia mais
ficar calada, eu precisava dividir o que sentia com alguém e só queria que esse alguém me
entendesse. Ou ao menos se esforçasse para me entender. Sabia muito bem que não era a coisa mais
fácil do mundo compreender as razões que levavam uma garota a dormir e a se apaixonar por um
cara que era o seu carrasco e o chefe da máfia, que ainda por cima, tinha a ameaçado e a mantido em
cárcere privado, todavia eu não precisava de julgamentos agora e sim de um ombro amigo no qual
pudesse descarregar todo o peso que eu estava sentindo.

— Chore, isso faz bem — Tati acarinhou meus cabelos enquanto eu chorava deitada em seu colo
— você disse que ele era charmoso e que a tratou bem. Então não vejo isso tão estranho de
acontecer. Quer dizer, não é difícil pensar que uma garota frágil e assustada possa se apaixonar por
um cara lindo e gostoso. Qualquer uma poderia cometer esse erro, Maya. Não só você. Não se
martirize por isso. Andreas não sabe do que fala. Tá na cara que ele ficou com ciúmes.

— Eu não sei mais quem eu sou, Tati, pelo amor de Deus! Não sei mais o que faço da minha vida,
pra onde vou. Voltei pra casa e encontrei tudo diferente, minha vida pareceu perder todo o sentido...
eu estou tão perdida... não devia me importar, não devia me apegar a ele, mas estou apegada, e me
sinto uma fraca por isso.

— Você não é. Você é incrível. Pare de besteira. Você é tão incrível que conseguiu salvar sua
família, tão incrível que conseguir abalar o coração do cara. Não percebe que ele te mandou embora
justamente por que tem medo de se envolver? Você é incrível, Maya, não se esqueça disso. Tenho
orgulho de você.

Tentando acreditar nas palavras que saíam pela boca de Tati, limpei uma lágrima dos olhos.

— Obrigada por me consolar. Não tem ideia do quanto estava precisando.

— É isso o que as amigas fazem. E estou muito feliz que esteja de volta. Não sabe a falta que me
fez. E também estou muito orgulhosa, absolutamente orgulhosa. O que fez, o fato de ter ido no lugar
do seu pai e da dívida, foi a coisa mais corajosa e surpreendente que já vi. E louca também, claro —
ambas rimos — Coisa de Hollywood... devia parar de pensar na sua fraqueza em relação a Heitor e
se concentrar em tudo o que fez em prol de sua família. E eles deviam se ajoelhar nos seus pés e
beijá-los agora, garota. Ah, deviam.

***

No início da noite recebi uma visita inesperada. Quando eu o vi tive a certeza de que um grande
círculo se formava em minha boca. Era o irmão de Heitor que estava ali na minha frente.

— Theo? O que... faz aqui?

— Olá, malagueta — riu — é assim que Heitor a chama, não é?

Cruzei os braços, tentando me esquecer de Heitor e de tudo o que eu passara com ele. Voltei a
focar Theo e me perguntei o que ele fazia ali.

— Se veio falar de seu irmão, desculpe, mas perdeu seu tempo.

— Não vim falar de Heitor com você. Vim lhe fazer uma proposta.
— Uma proposta?

— É, uma proposta.

Theo estava elegante como habitualmente, de terno preto e cabelos bem escovados. Seu rosto
sereno e seus olhos castanhos me passavam tranquilidade. Avistei uma moto estacionada na calçada e
pisquei os olhos, confusa. De repente um flash veio em minha mente. Algo estranho. Completamente
perturbador. Afastei aqueles pensamentos.

— Maya? — sua voz me resgatou e eu voltei a fitá-lo — tudo bem com você?

— Sim — balancei a cabeça, me sentindo estranha. Olhei novamente para a moto dele
estacionada e era como se ela me intimidasse, como se ela de alguma forma me trouxesse lembranças
desagradáveis. Eu não gostava de motos.

— Bom, pra começar, me desculpe vir sem avisar. Na verdade, não tenho seu telefone, então não
dava mesmo pra avisar.

Ajeitei a alça da blusinha que caía dos ombros e cruzei meus braços novamente na altura do peito,
como uma forma de me proteger. Ele não devia estar ali. E eu não queria que ele estivesse ali. O que
Theo queria? Que proposta era essa que queria fazer?

— Foi Heitor que mandou você aqui? Que foi? Vão voltar a nos vigiar?

— Nada disso, e não foi Heitor que me mandou. Tenho uma proposta pra você. E ela é minha.

— Desculpe, mas não estou interessada...

— Vim oferecer minha ajuda.

— Sua ajuda? Pra quê?

— Um emprego. Bom, pra começar, acho que precisa de um, não?

— Por favor, acho melhor ir embora.


— Sei que tentou voltar pra lanchonete que trabalhou antes, mas não conseguiu... sei que está
tentando recomeçar do zero, então...

— Está me seguindo?

— Não, não estou, mas eu sei. Eu estive na lanchonete procurando por você, então descobri tudo.

Era verdade. Eu havia tentado voltar para a lanchonete, mas o seu Rachide fora categórico ao
dizer que não me daria uma nova chance.

Respirei fundo, pensando que só queria ficar em paz agora, até pensar numa outra forma de
reorganizar minha vida.

— Por favor, olhe só, é muita gentileza de sua parte, sabe, mas... eu só quero ficar em paz. De
verdade. Acho melhor ir embora.

— Posso dar a você um emprego. Vamos lá, seja sincera consigo mesma, precisa de um. Seu
irmão não mora mais aí e seu pai agora tem uma mulher. Você só tem a si mesma, Maya, sabe disso.

Pensei rápido e detestei admitir que ele tinha razão.

— Certo, e que tipo de emprego me daria? No cassino do seu irmão? Não, obrigada, não preciso
mais do Heitor e de nada dele em meus planos.

— Bom — começou a procurar algo no bolso e em seguida me entregou um cartão — aqui está
meu telefone. Se por acaso mudar de ideia, pode me procurar.

— Obrigada, mas não vou precisar.

— Nunca se sabe. Bom, eu já vou. Boa noite, Maya — seus olhos escuros brilhavam de uma
forma mais misteriosa — foi bom rever você.

Não respondi. Vi Theo se afastar todo elegante, subir na moto e dar a partida. Toquei o cartão
dele entre meus dedos e respirei fundo. Eu queria ficar longe de Heitor, sabia que devia ficar longe
de Heitor, que devia me afastar dele, mas por outro lado, eu não tinha certeza disso. Olhei novamente
para o cartão que Theo me entregara e não soube o que fazer.
Entrei na segurança de casa e encontrei papai e Beth no sofá da sala, trocando beijos e juras de
amor. Bem, enquanto eu estava mal para cacete, meu querido pai estava lá, curtindo sua amada, e se
agora não torrava mais o dinheiro com a cachaça, era porque torrava com Beth. Revirei os olhos e
segui para o quarto. Já na cama, me abracei ao travesseiro e tentei não pensar no homem que tinha
mudado completamente a minha vida.

Heitor.

Onde ele estaria uma hora daquela?

Com o travesseiro ainda colado ao meu corpo, sussurrei:

— Onde está você, Heitor?


Capítulo 35
MAYA

— QUE TAL FAZERMOS um programinha só nós três? Precisamos comemorar que você arranjou
um novo emprego — Tati falou enquanto ela, Andreas e eu tomávamos um sorvete de casquinha numa
das mesas da sorveteria que ficava perto da rua onde eu morava.

— Não disse que vou aceitar o emprego. Na verdade, nem devia considerar a ideia... E quer
saber, sabe o que eu acho? — limpei toda aquela melação que respingava em minha blusa — que
devíamos fazer algo diferente dessa vez.

— Que tipo de coisa diferente? Saltar de paraquedas?

— Seria uma boa ideia.

De repente os olhos dos meus amigos se desviaram e pude perceber pelo semblante deles que
havia alguém atrás da minha cadeira. Virei-me para trás e encontrei Chucky me encarando. Ele não
parecia tão assustador agora vestindo jeans surrado e uma jaqueta marrom de couro, todavia seu
semblante fechado era capaz de fazer qualquer um que não o conhecesse se mijar nas calças.

— Heitor quer falar com você — falou, sem me cumprimentar ou sorrir. Olhei para a janela da
sorveteria e através do vidro avistei um Heitor todo charmoso encostado num carro preto
estacionado lá fora. Tentei não me abalar com aquela figura imponente, mesmo que essa fosse uma
tarefa árdua. Heitor vestia uma camisa social branca que deixava pelos de seu peito forte à mostra e
usava óculos de sol tão pretos quanto seus sapatos e seu cinto. Ele não olhava para onde estávamos.
Parecia distraído no celular. Mesmo não querendo deixar de examiná-lo, voltei a encarar Chucky,
que até o momento parecia civilizado, ainda que mal-encarado.

— Diga a ele que não vou, que não temos nada pra falar. E se ele esqueceu, lembre ao seu chefe
que foi ele que terminou comigo.

Droga. Acho que fui dura demais. E acho que Chucky não é do tipo de cara que está
acostumado a ouvir um não.

Meus amigos me olharam como se eu fosse uma louca da pedra, mas ninguém se atreveu a dizer
isso. Tati engoliu em seco e Andreas parecia assustado, com os olhos esbugalhados.

— Não sou um garotinho de recados, garota — Chucky me segurou pelo braço e em fração de
segundos me conduziu para fora da sorveteria. Imaginei o quanto meus amigos deveriam estar
assustados, então olhei para eles como uma forma de acalmá-los.

— Precisa ser mais gentil com as garotas, brinquedo assassino! — Heitor riu, assim que
chegamos, movendo o braço para guardar o celular de volta no bolso. Pelo jeito tinha acabado de
terminar a ligação. Agora me olhava. Eu não podia ver seus olhos porque eles ainda estavam
escondidos atrás dos óculos escuros — Como vai, Maya?

— Como você acha? Mande esse ogro tirar as mãos de mim, por favor!

— Pode soltá-la, Chucky.

Chucky obedeceu e em seguida se afastou. Também não parecia ser do tipo que gostava de
presenciar conversa de ex-namorados. Aproveitei o momento para ajeitar meus ombros, depois
joguei uma mecha de cabelo atrás da orelha. Respirei fundo e cruzei os braços, sabendo que devia
ficar calma e que não deveria misturar as coisas. Tínhamos terminado, então que Heitor me deixasse
em paz.

— Tudo bem, guria? Se acalmou?

— O que você quer?

Olhou para o lado e suspirou, parecendo pensar um pouco no que dizer. Provavelmente me caçar
pelas sorveterias do bairro não era uma coisa à qual estava acostumado a fazer.

— Estou com saudade de você.

— O quê? Tá brincando!

— É, sei que fiz uma merda. Agi mal com você... fui um babaca, admito. Não devia ter terminado
nada entre a gente, mas...

Mesmo surpresa, não pude deixar de me sentir bem com o que ele falava, todavia recuei.
— Guria, sei que falei aquelas coisas pra você, só que fiz na hora da raiva, da emoção... entende?
— desencostou do carro — Na verdade, eu estava confuso. Meu irmão tinha sofrido um acidente e
toda a morte de meus pais veio à tona, me enlouquecendo. Então lembrei de seu pai, de tudo o que
aconteceu, de que você era filha dele...

— Eu entendi, Heitor.

— Não, não entendeu — tirou os óculos escuros do rosto, me revelando o olhar azul violeta —
Na verdade, nunca quis me afastar de você. Nunca quis romper de verdade. Estou muito envolvido,
morena. Mais do que pensa. Mais do eu mesmo penso.

— Heitor, eu... hum, não acho que seja uma boa ideia. Você fez a coisa certa. Foi bom nos
afastarmos. Agora preciso voltar pros meus amigos, então... adeus.

— Maya, escute... — segurou meu braço — Não gosta mais de mim? É isso? Vai me dizer que
deixou de me amar assim de um dia pro outro?

— Não foi de um dia pro outro...

— Foram dias — riu, contrariado — Ah, qual é. Não vai me dizer que me esqueceu de uma hora
pra outra, morena. Estava louca por mim, fez juras de amor.

— Ah, me deixe em paz! — dei-lhe as costas, sabendo que Heitor ficaria bravo e irritado, mas eu
sabia também que se não me afastasse agora não conseguiria mais resistir a ele. Imediatamente senti
sua mão me puxar novamente e me obrigar a encará-lo.

— Não terminamos ainda. Precisa me escutar.

Forcei os braços, tentando me desvencilhar dele, mas Heitor era forte demais e conseguiu me
dominar. Me segurou com firmeza e me pediu para que eu ficasse calma, que afinal de contas,
estávamos em plena avenida.

— Por que não me deixe em paz? — berrei, tentando dizer a mim mesma que era o fim, que eu
tinha superado — Não vou voltar pra você! Acabou!

— Ei, deixe-a em paz! — uma terceira voz falou e Heitor e eu voltamos os olhos para olhar quem
era. Vi Andreas.

— Quem é você? — Heitor falou, me soltando. Agora parecia mais interessado em Andreas do
que em mim.

Com medo do que poderia acontecer, entrei no meio dos dois, tentando apaziguar a situação.
Chucky, de onde estava, fumava um cigarro, mas parecia pronto para qualquer batalha. Ás vezes eu
me perguntava se aquele cara tinha nascido no meio de uma guerra. Sei lá.

— O guri parece valente — Heitor estudou Andreas calmamente — Quem é você, mané? Não
acha melhor dar o fora daqui?

— Heitor, está tudo bem, ele não tem culpa de nada. É só um amigo. Por favor, deixe-o em paz —
Andreas, é melhor você ir. Está tudo bem.

Andreas, mesmo receoso, olhou para mim.

— Tem certeza?

— Tenho. Tá tudo bem, pode ir.

Heitor observou Andreas ir e depois me encarou.

— É seu namoradinho novo?

— Já disse que é um amigo — cruzei os braços na altura do peito e emburrei a cara.

— Ok. Entre no carro, malagueta. É sério, só quero conversar.

— Só se prometer que não vai fazer nada contra Andreas.

— Você não me conhece, guria. Olhe pro moleque. O frangote me lembra meu irmão caçula. Mal
aguenta umas mocas — deu a volta no carro antes de lançar um olhar divertido para Chucky — Ei,
brinquedo assassino! Pode esquecer o garoto!

Chucky fez um sinal positivo com a mão.


Concordei em entrar no carro e Heitor se sentou ao meu lado. De onde eu estava vi Chucky entrar
no segundo carro, que estivera todo esse tempo atrás da gente. Ele nos seguiu.

— Fiz uma merda, guria, deixando você. Só quero uma chance. Uma porra de uma nova chance.

— E se eu não quiser mais voltar? Vai tentar me obrigar?

Ele deu um risinho de lado, antes de desviar um pouco o olhar. Depois voltou a me fitar.

— Ah, não seja má comigo, Maya. Já ficamos tempo demais longe... sei, eu fui um idiota, mas...
quero ficar com você, é sério — inclinou o rosto para cheirar meus cabelos e só então me dei conta
de que seria impossível sair dali intocável — Pensei em ficar longe de você, Maya, mas não
consegui. Fiz de tudo pra virar a página, mas toda noite que me via dormindo na cama não parava de
pensar no quão babaca eu fui e no quanto a queria de volta. Eu a quero de volta, malagueta... quero
muito — afundou o rosto na curva do meu ombro e não conseguir resistir.

— Você gosta mesmo de mim, Heitor? — sussurrei, os olhos fechados, louca por ele — Mesmo?
— eu o queria... como o queria.

— É claro que gosto... sou apaixonado por você... louco por você... — pousou os lábios
entreabertos nos meus e logo alcançou a minha boca.

— Heitor...

— Fique comigo...

— Não sei...

— Por favor...

Sem pedir uma outra vez, se aproximou tanto e me roubou um novo beijo. Dessa vez a paixão
falou mais alto e nos beijamos loucamente. Num movimento rápido, subi em seu colo e comecei a
tirar minha blusa enquanto ele ainda dominava minha boca. Sabia que estava fazendo uma loucura,
que não era sensato ficar com ele, mas não conseguia controlar o meu coração. É amor, é paixão, é
atração, é tudo misturado. Heitor me mordiscou e imaginei o quanto o motorista deveria estar se
divertindo às nossas custas. Todavia, o telefone de Heitor de repente começou a tocar.
Enquanto ele atendia o telefone, voltei a sentar do seu lado e aproveitei para vestir minha blusa e
para ajeitar meus cabelos.

Que merda, Maya. O que deu em você?

Olhei para o peito de Heitor meio descoberto e senti uma vontade louca de tocá-lo e beijá-lo
novamente. Então fiz isso. Sentei em seu colo outra vez e mordisquei seu peitoral largo e definido.
Fiquei aliviada por ele não reclamar de meus carinhos. Bom, não devo estar atrapalhando. Quando
ele terminou a ligação, segurou minha bunda e me apalpou, me deixando mais excitada. Abri minha
boca para que ele enfiasse sua língua selvagem nela e a vasculhasse toda.

— Você é muito quente, malagueta... fervente, caralho.

Ri na boca dele.

— Você me corrompeu, cachorro.

Sua sonora gargalhada me deixou ainda mais excitada. Toquei seu rosto bonito e olhei bem em
seus olhos. Eram perfeitos. Heitor era todo másculo e fabuloso e aquilo me deixava ainda mais
empolgada para continuar agarrando-o ali mesmo no carro, sem nenhum pudor.

— Chegamos, Heitor — o motorista falou lá da frente, de repente, me assustando.

Droga.

Me afastei do colo de Romano pela segunda vez.

— Que lugar é esse? — perguntei para Heitor, que sorriu, malicioso.

— É a casa da minha mãe.

— É? E por que estamos aqui?

— Está na hora de vocês se conhecerem, guria.

— Mas não estou arrumada! — levei as mãos ao peito — Heitor! Não! E estou melada de
sorvete! Não acredito que fez isso!

— Não importa — deu uma risadinha marota, antes de dar um beijinho em minha boca — Vamos
lá, Maya, está na hora.

Preocupada, voltei a ajeitar minha roupa e meus cabelos. Mordi o lábio inferior, me sentindo mal-
vestida e horrível. Heitor, ao meu lado, abotoou a camisa amassada. Estava amassado porque eu o
amassara com meus abraços e beijos. Ele ajeitou o cabelo e pôs de volta os óculos escuros no rosto,
ficando simplesmente divino, mesmo amassadinho como estava.

Entramos na casa bonita, algum tempo depois, e Heitor me conduziu pela sala de estar
completamente arrumada e ornamentada. Percebi que a mãe dele tinha bom gosto para decoração.
Uma dorzinha na barriga me acometeu. E se ela não gostasse de mim? Andei um pouco e logo uma
morena sorridente cumprimentou Heitor com alguma intimidade.

— Como vai, Joana?

Joana.

Quando a tal da Joana me olhou, seu sorriso logo se desfez. Ao menos ela deveria aprender
melhor a disfarçar, assim como a receber bem as pessoas.

— Joana, esta é Maya, minha namorada. Onde está minha mãe?

— Lá no jardim, com o restante dos convidados. Vou chamá-la.

— Não precisa, cheguei — disse uma mulher negra, entrando na sala. Era gordinha, elegante e
parecia bem nova para ser mãe de um rapagão feito Heitor. A mulher me olhou dos pés a cabeça e
mordi o lábio inferior novamente, pensando se ela me reprovaria na hora.

— Maya, quero que conheço Nora, minha mãe— Heitor falou, me fitando, os olhos brilhando de
orgulho.

— Oi — forcei um sorriso e estiquei a mão para ela — É um prazer conhecê-la.

— Então você é a moça bonita de nome difícil que vem fisgando esse marmanjo — apertou minha
mão, sorrindo pela primeira vez — É bom finalmente poder conhecê-la. Ele é escorregadio como
água, então, se trouxe você até aqui é porque realmente é uma garota que vale a pena. Venha, vamos
lá pro jardim nos juntar a todos os outros convidados.

— Obrigada — sorri para Nora, que seguiu na nossa frente. Sorri para Heitor, que sorriu de volta
e apertou minha mão, me dando apoio. Eu não imaginava que ele fosse tão 'família' assim. Aquilo era
bom.

Quando chegamos no jardim cheio de gente, me senti mal. Olhei para Heitor e confidenciei que
ele não devia ter me levado para um almoço sem me dar condições de eu me arrumar. Ele me
abraçou e disse que estava tudo bem, que só havia mesmo gente da família. Respirando fundo, segui
com ele e logo avistei Theo, ali perto, auxiliando uma criança na bicicleta. Theo me olhou, mas não
sorriu. Nem se aproximou para me cumprimentar. Achei um pouco estranha aquela atitude, mas não
comentei nada com Heitor. Logo concluí que Theo não tinha gostado da ideia de eu não ter telefonado
e aceitado o emprego que ele me oferecera.

***

— Você acha que ele vai ficar com você? Então é mesmo bem iludida, queridinha. Ele não vai.
No final das contas, ele sempre volta pra mim — falou a loira que estivera todo o tempo com Theo.
Eu sabia que seu nome era Safira e que ela tinha tido um romance com Heitor no passado.

— É mesmo?

Olhei para a mulher e mesmo sabendo que não devia ficar ali discutindo com ela, principalmente
porque estava na casa da mãe de Heitor, não pude deixar de rebater os insultos que ela falava.

— Escute bem, sua cínica... — segurou meu braço, mas eu a empurrei.

— Está louca? Escute bem você. Não toque em mim! Nunca mais — gritei com a mulher alta e
não me importei com o fato de que muitos convidados ali perto já nos ouviam — se você sabe fazer
escândalo, eu também sei. Não vai acabar com a minha tarde só porque o homem que você ama não
te quer mais.
Furiosa, a loira partiu para cima de mim, mas quando ela veio, eu já estava preparada. Trocamos
puxões de cabelo e gritamos uma com a outra, até cairmos no tapete da sala e rolarmos por ele. No
entanto, antes que tudo ficasse pior, senti braços fortes me puxaram e soube que Heitor me segurava.
Vi Theo segurar a loira escandalosa. No instante seguinte a mãe deles chegou.

— Mas o que está acontecendo aqui? Que bagunça é essa na minha casa?

— Essa garota! — a loira falou, me apontando — É tudo culpa dela!

— Pra começo de conversa, nem devia estar aqui, Safira — Heitor se meteu, parecendo zangado.

— Theo me convidou! Foi ele, seu irmão que me convidou, não você, seu desgraçado!

— Epa, epa, epa, ninguém chama filho meu de desgraçado na minha frente. Principalmente após
fazer um vexame desse na minha casa. Sei que deve ter seus problemas, moça, mas eu também já
tenho os meus, obrigada. Por gentileza, Theo, tire essa garota daqui. E depois vou ter uma
conversinha séria com você.

Theo não respondeu, mas obedeceu. Conduziu a loira pela saída da sala. Contrariada e revoltada,
a mulher saiu gritando e sua voz pôde ser ouvida até onde estávamos. Neste momento olhei para
Nora e soube que devia a ela desculpas.

— Desculpe, eu sei que devia ter resistido à provocação dela. Não costumo me meter nesse tipo
de encrenca.

Nora respirou fundo.

— Vocês, garotas, precisam se conter mais. Mas venha, vamos voltar pra festa. Não quero que ela
se estrague por causa desse episódio.

Respirei fundo e senti que Heitor, ao meu lado, fazia o mesmo.


Capítulo 36
HEITOR

— PREPARADA?

— Estou — Maya se levantou e percorri meus olhos por todo o seu corpo. Ela usava um longo
vermelho que combinava perfeitamente com seu batom e com seu cabelo que estava preso num coque
perfeito. Não conseguia esconder minha satisfação a olhar para seus olhos quase negros.

— Estou bem?

— Deslumbrante.

— Não está falando isso só por que quer me agradar, né?

— Não — peguei suas mãos com delicadeza — Sabe que costumo ser sincero. Se digo que está
bonita, acredite, é porque está.

Ela sorriu e não podia imaginar o quanto aquele ato fazia bem para a minha alma. Seu sorriso.
Como aquela garota conseguira me fisgar ainda era um mistério, mas eu sabia que não podia mais
abrir mão dela.

— Ei, espere — falei — falta uma coisa.

Seus olhos pretos me olharam com surpresa. E então peguei a caixa retangular que estava em todo
esse tempo guardada no meu bolso. Abri diante de seus olhos. Logo um colar de diamantes nos foi
revelado e sorri porque sabia que ele iria ficar perfeito em Maya.

— São pra você.

— Ah, Heitor...

— O que foi?

— Eu não devo...
— É claro que deve — tirei o colar da caixa com cuidado, me movi para trás de Maya e tomei a
liberdade de ajeitar a joia em seu pescoço delicado.

Quando terminei ela virou-se para mim, com os dedos no colar.

— Vou apresentá-la esta noite como minha namorada e dessa vez não é encenação, guria — toquei
seu rosto.

Com um sorriso tímido, Maya assentiu, então me aproximei de sua testa e lhe dei um beijo. Desse
modo não borraria sua maquiagem.

— Agora venha, não devo chegar atrasado.

***

— Está dizendo que tem alguém me traindo? — perguntei a Jarbas, algumas horas mais tarde, já
no cassino. Maya e eu tínhamos chegado e quando Jarbas me chamou num canto para falar que
precisávamos ter uma conversa séria, pedi a Maya que ficasse perto de Theo, que eu não iria
demorar. Ela assentiu.

— Isso mesmo — Jarbas falou.

— Quem é o safado? Fala, quero saber.

— Heitor — suspirou — acho que não vai gostar de ver...

— Quem é o miserável, Jarbas? Fala logo, porra! — massageei o queixo, me sentindo tenso.

— Certo, quero que veja isso — pegou o laptop que estava sobre a mesa, teclou um pouco e em
segundos uma imagem apareceu. Eram dois homens. Um deles era Max. O outro era... Theo.

— Theo? O que significa isso? — me inclinei para ver melhor, não acreditando no que via.

— Achei melhor você ver com seus próprios olhos.


— Theo? Tá dizendo que meu irmão é o traíra?

— Há semanas tenho desconfiado de Theo e ido atrás dele, tentando buscar evidências, Heitor.
Theo não é quem pensa que é. Ele convenceu você a se encontrar com Max no restaurante como
também prometeu a Max uma sociedade com o tráfico de drogas. Parece que os dois estão
determinados a seguir com o negócio, mesmo depois de você dizer "não". E não é só isso...

Fitei-o, perplexo.

— Ainda tem mais?

— Parece que Theo já anda envolvido com Max há anos. Dizem que seu irmão voltou a usar
drogas.

— Caralho — desapontado, dei as costas para o laptop. Pus uma mão na cintura e bati a testa na
parede, pensando em que merda de pesadelo era aquele. Jarbas continuou falando, mas eu não
conseguia pensar mais em nada que não fosse que Theo, meu irmão, meu parceiro, estava me traíndo
esse tempo todo. Bom, eu também sabia dos problemas de Theo em relação a drogas, ele tinha
superado isso, tinha sido no passado, quando Theo era bem mais jovem. Theo tinha frequentado a
reabilitação, tinha superado tudo... bem, ao menos, eu pensava. Além disso, era meu irmão, nunca
poderia pensar no pior dele.

Ainda perplexo, puxei na memória todos os momentos em que Theo saíra misteriosamente. Como
meu irmão e meu grande amigo, nunca desconfiei de nada, de nenhum de seus passos e por isso nunca
me preocupei em mandar alguém segui-lo. Como eu tinha sido idiota... esse tempo todo.

— O que vamos fazer em relação a Theo, Heitor? Ele não pode continuar sabendo de todas as
informações do grupo.

— Eu sei disso. Vou cuidar do meu irmão.

— Certo. E quanto a Max?

— Não vamos participar das sujeiras dele.

Inspirei o ar e o soltei pela boca.


Ainda arrasado com toda aquela bomba que Jarbas me deixara, voltei-me novamente para a mesa,
olhei outra vez para a tela do computador e vi a imagem de Theo conversando com Max. Se eu não
visse com meus próprios olhos nunca teria acreditado. Nunca teria acreditado na ideia de que o filho
da puta do meu irmão era um grande Judas!

— Deixe-me um tempo sozinho, Jarbas. Por favor — pousei as duas mãos na mesa polida de
madeira, tentando aplacar a raiva que me dominava. Raiva e mágoa. Era uma notícia muito pesada.
Eu precisava me recuperar e me recompor. E precisava decidir o que fazer com Theo.

— Certo. Vou ver como está tudo lá fora.

— Isso, faça isso. E Jarbas?

— Sim?

— Guarde esse segredo a sete chaves, sacou? Isso vai ficar entre nós dois por enquanto, até eu
decidir o que fazer.

— Claro.

Jarbas saiu e minutos depois abandonei a mesa. Precisava de uma bebida, de uma merda de uma
bebida forte. Respirei fundo e alcancei o bar que ficava ao lado da porta. Peguei uma garrafa de lá e
me servi com duas doses. Bebi uma de cada vez, enquanto pensava no que Jarbas me mostrara sobre
Theo. Era duro aceitar, mas meu irmão era um tremendo desgraçado. Um canalha safado! Ficara esse
tempo todo posando de fiel, mas era o maior traíra do grupo! Como eu poderia ter confiado nele esse
tempo todo? E o que Theo ganharia com aquela falsidade dele? Achava que eu não descobriria? Com
raiva, tive vontade de encontrá-lo e de resolver aquilo tudo entre nós dois. Eu queria dar um
corretivo nele. Com minhas próprias mãos.

De repente alguém bateu na porta e pensei se era Jarbas ou mesmo Theo. Apressadamente
abandonei o copo da mesa e desliguei o laptop. Abri a porta, que me revelou Safira.

— Posso entrar?

— O que foi, Safira?


— Heitor, é sério — antes que eu permitisse, passou pela porta. Sua maquiagem estava borrada e
seus olhos pareciam tensos.

— O que você quer, Safira? Não tenho tempo pra discursos de ex-namorada.

— Tenho umas coisas pra falar.

Olhei a mulher à minha frente.

— Sobre seu irmão.

De repente a presença de Safira ficou mais interessante.

— Fale, quero ouvir.

Safira ajeitou a bolsa no ombro, parecendo encontrar uma forma de começar. Suspirou.

— Bom, não sou um copo descartável como todo mundo pensa que sou, Heitor. Estou cansada de
ser tratada dessa forma. Por você, por seus inimigos, por seu irmão...

— O que tem a me falar sobre Theo?

— Bom, eu e ele ficamos juntos. Na verdade, Theo me obrigou a transar com ele durante semanas
em troca de...

— Em troca de?

— Ameaças. Com aquela carinha de santo ele vai longe — riu, amarga, — ele me chantageou,
Heitor. Ele abusou de mim e me tratou como uma vagabunda. No começo disse que ia me ajudar a
conquistar você, depois disse que me amava e que sempre foi louco por mim. Tudo bobagem.

— E por que aceitou ser tratada como lixo por ele, Safira?

Deu de ombros.

— Porque... bom, porque eu queria você. O que acha? Por que amo você e aquele desgraçado me
ameaçou! Eu não queria, Heitor... eu juro que não queria encontrar com Max.

— Você se encontrou com Max?

— Isso, mas... é uma outra história.

— Quando você encontrou com Max? O que disse a ele?

— Nada que seu irmão não tenha dito... — avançou um passo — Heitor, ouça. Eu amo você. Fiz
tudo por amor. Amo você. E Theo é um falso. Ele odeia você, ele tem inveja de você, ele não é
confiável.

De repente um barulho de explosão me assustou. Uma gritaria veio lá de fora.

— O que é isso? Heitor! — Safira gritou.

— Fique aqui e não saia por nada.

— Heitor, não me deixe!

Voltei-me para ela e olhei em seus olhos.

— Fique aqui, Safira, confie em mim. Vai ficar tudo bem.

— Tá — murmurou, os lábios vermelhos trêmulos.

Peguei a pistola da cintura e espiei pela fresta da porta. Vi pessoas saírem correndo, agitadas.
Abri a porta e saí. Me juntei aos caras e perguntei o que estava acontecendo. Alguém falou que o
problema era na sala de controle, que as câmeras tinham sido desligadas e que uma bomba tinha sido
colocada perto do salão de jogos. As pessoas corriam gritando e pensei que tudo aquilo, aquela
bomba, era uma forma de causar pânico. Com a pistola em punho, decidi seguir até a sala de
controle. Pensei em Theo. Pensei na falsidade dele. Ele era um dos poucos que sabia tudo sobre
aquela ala do Del Romano.

***
MAYA

EU TINHA OUVIDO o barulho que vinha lá de fora. Era uma explosão. Claro que era. Mas
quando tentei correr, pensando em encontrar Heitor, alguém me segurou e me levou para uma outra
sala.

Era Theo.

Recuei dois passos e tentei decifrar seu olhar enigmático em minha direção.

— Olá, Maya — falou, ainda segurando a maçaneta da porta — como vai?

Não respondi. Continuei recuando. Não gostava do jeito que Theo me olhava. Era um olhar
estranho, sinistro, meio que me dizia que algo muito ruim tinha acontecido ou então estava prestes a
acontecer.

— O que você quer? — perguntei — O que está acontecendo? O que houve lá fora?

— Não se preocupe, eu a trouxe pra cá porque ninguém vai nos interromper. O cassino está cheio,
como sempre.

— As pessoas estão gritando, Theo. Ouvi o barulho. Aconteceu alguma coisa muito ruim. Onde
está Heitor?

— Onde está Heitor? Onde está Heitor? — imitou uma voz feminina — É sempre isso que ouço.
Sempre isso que ouvi quase a vida inteira.

Engoli em seco.

Algo estava estranho, muito estranho. Na verdade, eu tinha sentido algo diferente no ar desde que
Theo me procurara em casa, me oferecendo emprego. Depois disso Theo me olhou de uma forma
estranha no almoço na casa de Nora. Mesmo assim eu não disse nada para Heitor porque achava que
Theo só queria me paquerar, e por isso agira daquela forma comigo.
— Você é bem mais corajosa do que eu pensava — falou, me fazendo examinar aquele sujeito de
cabelos e olhos castanhos escuros, aquele sujeito que sempre pensei que fosse do bem.

— O que você quer? — recuei mais passos, querendo me afastar dele, precisando me manter
longe dele — Espero que não tenha ficado chateado porque recusei a oferta de emprego.

— Ah, não fiquei — afundou as mãos nos bolsos do paletó e agradeci por ele não ter trancado a
porta. Provavelmente tinha se distraído. Theo deu novos passos em minha direção — entendo que
pensou melhor na ideia e que teve seus motivos.

— Isso, eu pensei, mas... obrigada de qualquer forma.

Ele parou. Me analisou.

— Ótimo, não está assustada com a bomba que explodiu lá fora?

— E deveria? — mordi o lábio, pensando no que ele faria.

Mas Theo riu. Apenas riu.

— Sabe quem eu sou, Maya?

Tentei respirar devagar.

— O irmão de Heitor. E sempre foi um cara legal comigo.

— Não só isso. Já venci Heitor, sabia? Um dia. Um dia eu tive algo antes dele. Ele não sabe,
você não sabe, ninguém sabe, mas eu sei. Ele sempre leva a melhor, mas acho que não tem ideia do
que rolou entre a gente.

Fiquei assustada.

— Não rolou nada entre a gente...

— Acho que não tem certeza do que fala.


— Do que está falando?

— De nós dois.

Fiquei sem fala, esperando que ele continuasse. Não sabia que Theo era doido, mas pelo jeito ele
era.

— Uma esquina escura, deserta, uma moto... não se lembra disso, Maya? Deve ter o quê? Hum,
uns seis ou sete anos atrás. Você era quente, gostosa, inexperiente...

De repente um desespero me tomou e uma revolta acumulada pareceu me invadir.

— DESGRAÇADO!

Theo não riu. Nem falou nada. Apenas me encarou. Levei a mão à boca, tentando controlar a raiva
e o choro. Aquelas lembranças me faziam mal. Ele não tinha ideia de como me feriam... então tinha
sido Theo? Theo me violentara daquela forma nojenta e covarde anos atrás?

— Eu era um drogado... vi você quando você estava chegando em casa. Eu tinha ido atrás do
bêbado que havia no passado matado os pais de Heitor. Isso. Foi na época em que comecei a pensar
numa forma de atrair Natanael ao cassino. Então assim Heitor descobriria sobre ele e ficaria surtado.
Era tudo o que eu queria. E foi o que aconteceu. Tudo deu certo depois daquela noite, Maya. Acho
que você me deu sorte, morena.

— VÁ PRO INFERNO! FIQUE LONGE DE MIM!

— É mesmo? Quer que eu fique longe de você?

Ele avançou. Antes que Theo me agarrasse novamente, dei um chute em seu saco e corri.
Desesperada. Atordoada. Não sei como consegui abrir a porta. Sem rumo, corri. Só pensava em
correr e fugir dali. As lembranças voltavam vivas em minha mente e o pranto me tomava. Olhei para
os dois lados, tentando me orientar, mas então levei as mãos ao rosto e liberei o pranto.

— Maya? — alguém me abraçou.

Era Heitor.
Eu sabia que era Heitor.

Era Heitor, não era Theo.

Eu o abracei de volta, me segurei nele. Ainda chorando e ouvindo meu coração bater
assustadoramente, eu o abracei. Sem forças para falar, sem forças até mesmo para chorar, me abracei
nele.

— O que aconteceu com você? Está bem?

— Foi Theo! — gritei, segundos depois, quando fui capaz — foi Theo, Heitor! Foi Theo que me
violentou anos atrás! Foi Theo! Ele falou! — voltei a ser derrubada pelo pranto — Ele confessou...
Oh, meu Deus, ele confessou! — eu sabia que estava em estado de choque, mas não conseguia parar
de gritar ou chorar.

Nesse instante, senti a presença de mais alguém às minhas costas. Eu sabia que era Theo. Heitor
se movimentou de modo a ficar na minha frente, como se fosse meu escudo humano, e então me
refugiei em suas costas. Fechei os olhos e chorei, simplesmente chorei, porque sabia que poderia ser
o fim.

— Não escute o que ela disse — ouvi Theo gritar.

— Abaixe a pistola e vamos resolver isso de homem para homem. Só eu e você, Theo. Deixe
Maya ir embora. Acho que já fez muito mal a ela.

— Ah, vá pro inferno!

Ouvi o primeiro tiro.

Estremeci.

Em seguida chorei.

Não queria perder Heitor! Não podia ficar sem Heitor! Não era justo ele morrer! Theo era o
vilão! Mas Theo era quem estava com a arma apontada!
Ouvi outro disparo.

Oh, meu Deus!

Chorei, abraçada a Heitor. Desesperada. Me apertei mais a Heitor e tive um medo terrível de
perdê-lo. Não, não e não! Pranteei, mas então percebi que ele não caíra. Ele ainda estava de pé, me
protegendo. Ao abrir rapidamente os olhos vi Theo estirado no chão. Novamente vi que Heitor
continuava em pé e que sua pistola continuava no lugar. Com as lágrimas embaçando minha vista,
olhei para trás e vi Chucky com a arma apontada. Foi ele que acertou Theo.

Heitor segurou minha mão e a massageou devagar. Virou o rosto e soube que estava sofrendo, que
estava sofrendo muito, e eu estava sofrendo também.

— Tudo bem com você? — ele conseguiu me perguntou, antes de me puxar para si e beijar minha
cabeça.

Assenti.

Apenas assenti.

— Vai ficar tudo bem, guria — sussurrou — vai ficar tudo bem. Vamos sair daqui.

Balancei a cabeça em afirmativo, acreditando nele.

Eu acreditava nele.

Eu confiava nele.

Eu o amava.
Epílogo

A CENA ERA LINDA. Heitor estava todo encantado com o bebê nos braços. Eu não sabia se era
Miguel ou Artur, acho que era o Artur. A seu lado estava Carol, a irmã de Diogo, e agora eu não tinha
mais ciúmes dos dois juntos. Ambos, Carol e Heitor, tinham sido escolhidos para serem padrinhos
dos gêmeos. Isso fora bem antes de eu entrar na vida de Heitor e participar de sua história.

Agora de longe eu admirava toda a cena. Heitor virou-se para mim num dado momento e piscou,
dizendo com os lábios que em breve teríamos o nosso. Eu ri. Ele estava certo. Em breve teríamos
mesmo o nosso pequenino. Heitor não sabia, mas ele já estava no meu ventre. Nosso primogênito.
Ainda não sabia o sexo, mas já tinha quase certeza de que era um menino. Bonito, valente e forte
como o pai. Também seria cheiroso. E teria os cabelos loiros.

Sorri comigo mesma, imaginando o momento da descoberta. Heitor ficaria embasbacado. Ele
seria um pai exemplar, do tipo que brigaria, mas que saberia também dar amor. Carregaria nosso
pimpolho no pescoço e jogaria futebol com ele. Também teria a devida paciência para pô-lo toda
noite para dormir. Pensei também em como seria quando Heitor e eu fôssemos pensar nos nomes.
Todas as noites na cama, enquanto eu apoiava a cabeça no peitoral musculoso dele, conversávamos
sobre várias coisas. O nome do bebê seria o próximo assunto em pauta. Eu já tinha várias ideias, mas
não queria me decidir sem antes conversar com Heitor. Aliás, sem antes dar a notícia da gravidez
para ele - uma novidade que eu só descobrira aquela manhã.

Pensei também que já era hora de sermos felizes, depois de tantas coisas ruins vividas não tão
remotamente. A traição de Theo, a descoberta de que ele era o meu agressor, sua morte, tudo isso
trouxe bastante tristeza para nossas vidas, mas tudo isso também de alguma forma me trouxe alívio.
Eu estava aliviada agora porque, afinal de contas, tinha descoberto quem me fizera todo aquele mal
no passado. Agora estava em paz. Não porque Theo tinha morrido, mas porque de alguma forma a
descoberta de sua identidade me libertou. Bem como Heitor também estava liberto da mágoa que
sentia por meu pai. Aliás, papai pedira perdão pessoalmente e os dois selaram a paz. Eu sabia muito
bem que genro e sogro nunca chegariam no nível de serem grandes amigos, mas já me deixava feliz
saber que eles não se odiavam mais.
— Maya?

— Hum? — voltei dos devaneios e encontrei os olhos azuis violeta que eu mais amava no mundo.
Depois desci o olhar no bebê suculento de seis meses que estava em seus braços meio desajeitados e
não contive uma risada. Artur tinha as pernas e coxas grossas, os cabelos chocolate como os de
Diogo e os olhos castanhos. Na verdade, tanto ele quanto seu irmão gêmeo, Miguel, eram a perfeita
miniatura do pai, mas eu não falaria aquilo para Elena.

Os olhos expressivos do bebê me filmavam.

— Oh, meu Deus, mas que coisinha mais gostosa! — gritei com Artur e comecei a apertar suas
coxas não tão expostas por causa da calça jeans — Deixe-me pegá-lo um pouco... e como você fica
bem de pai, amor! Fica tão lindo de papai!

Heitor riu, achando que era gozação, enquanto me entregava Artur. Segurei o bebê gostoso,
brinquei novamente com ele e o embalei. Era tão lindo e cheiroso! Avistei Carol de longe com o
outro gêmeo e olhando para outro lado vi Elena e Diogo a todo momento sendo cumprimentados
pelos convidados. Esmeralda, de vestido rodado azul florido, ali perto, fazia questão de ser o centro
das atenções e puxava os padrinhos Lia e Bruno para lhes mostrar um novo passo de balé. O almoço
de batizado estava sendo no jardim da mansão sob o calor maravilhoso e a tarde ensolarada do Rio
de Janeiro. Heitor e eu tínhamos chegado no dia anterior.

— Você também fica linda de mamãe, sabia? — ele falou, me olhando — Será que não é uma boa
hora pra pensarmos em termos um? — sussurrou, agora malicioso em meu ouvido antes de me dar um
beijo na orelha — Posso resolver essa situação ainda esta noite.

— Quer saber? — ergui os olhos para ele — Acho que não precisa se incomodar, pois já temos
uma encomenda à caminho — pisquei, enquanto beijava a barriga gorducha de Artur.

Soube que Heitor ficou sem palavras. Ele se afastou um pouco para me olhar e seus olhos estavam
brilhantes e abertos de uma forma que me fazia rir.

— Está falando sério?

— Hmm-hmm — peguei os pezinhos de Artur (inclusive um deles já estava com o sapato


perdido) e os esfreguei no rosto de Heitor — Fala pro dindinho que você já vai ganhar um
amiguinho, Artur, fala pra ele.

— Meu Deus, meu! Tá falando, sério mesmo? — gargalhou, antes de me carregar nos braços, com
o bebê e tudo!

— Heitor! — ri enquanto segurava Artur com mais firmeza para que ele não caísse ao chão. De
repente o bebê me olhou assustado e liberou um choro estridente.

Quando Heitor finalmente me colocou outra vez no chão, beijou-me na boca, enquanto o pequeno
Artur continuava inquieto no meio da gente.

— Ah, entendi, querem mesmo matar meu filho sufocado — Diogo apareceu de repente e resgatou
o pobre garoto das nossas garras. Ambos gargalhamos. Enquanto Diogo se afastava todo orgulhoso
com um dos meninos de cabelos chocolate exatamente como os dele, Heitor se ajoelhou diante de
mim e acarinhou minha barriga ainda seca.

— Bom, agora que vai ser mãe dos meus filhos, não vejo outra opção senão a fazer isso. Pode me
achar meio careta, mas... — pigarreou — Maya, quer ser minha mulher?

Levei as duas mãos ao rosto, com uma emoção que não cabia dentro do peito, e não pensei em
outra resposta que não fosse o "sim".

— Sim! Minha resposta é sim! Mil vezes sim! Sempre sim! — inclinei-me um pouco e beijei seus
cabelos loiros.

Heitor sorriu, dizendo que me devia um anel de noivado, e continuou beijando minha barriga.
Mergulhei minhas mãos em seus cabelos e passamos o restante da tarde trocando infinitas juras de
amor.

Eu o amava.

E Heitor também me amava.

E era isso o que importava.


FIM
Agradecimentos

EM PRIMEIRO LUGAR, quero agradecer a Deus por todas as coisas, em especial, o dom para
escrever. E também quero dizer que me sinto grandemente honrada por poder compartilhar esse dom
com várias outras pessoas. Agradeço também a oportunidade.

Também quero agradecer aos meus familiares e amigos por sempre serem compreensivos comigo.

E como não podia ser diferente, quero agradecer especialmente às garotas ferozes super
malaguetas que me acompanharam desde o início da Série Cassino e foram as grandes responsáveis
por fazerem do HEITOR o que ele é. Assim como aconteceu com FEROZ e com AINDA FEROZ,
recebi muito apoio, carinho e feedback. Quero agradecer por sempre estarem comigo e por sempre
me incentivarem com comentários mais que especiais! Vocês são incríveis! Obrigada!

E um grande beijo a todos vocês que estão lendo agora! Que vocês guardem Heitor e Maya num
cantinho especial do coração.

ISADORA RAES

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