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CORTIÇOS OU FAVELAS? QUAL DOS MALES O MENOR?

Ao reler “O Cortiço” de Aluísio Azevedo, veio-me a


seguinte questão, o que é (era – será) melhor, morar num
Cortiço ou numa Favela (já que tinha lido também Carolina
Maria de Jesus – Quarto de Despejo – O Diário de uma
Favelada)?

Ao fazer uma rápida pesquisa encontrei um site


denominado “Caos Planejado”, cujo artigo de Anthony Ling,
me aclarou razoavelmente a questão.

É óbvio que o ideal seria que todos os brasileiros


tivessem sua moradia condignamente, e esta deve ser a
utopia buscada com urgência.

A utopia nos serve de orientação para o caminho a ser


tomado, caminho este, que passa pelo conhecimento da
realidade, e isso que vamos fazer agora.

Cortiços eram Melhores que as Favelas?!?

No imaginário popular, cortiços eram o que existia de pior


como moradia nas cidades brasileiras. Como poderiam
então ser melhores que as nossas favelas? (Anthony Ling).

No imaginário popular, cortiços eram o que existia de


pior como moradia nas cidades brasileiras. Enraizado na
nossa cultura e registrado no clássico de Aluísio Azevedo,
cortiços eram moradias insalubres e dilapidadas, onde
doenças se proliferavam, onde habitava a escória da
sociedade e de onde proprietários exploravam os
moradores com aluguéis abusivos.

Tão forte é esta noção que, historicamente, a solução


simplista, de São Paulo a Recife, foi a proibição e a
destruição dos cortiços como medida de “saúde pública”.
No seu lugar, vias largas atravessaram os cortiços como na
Reforma Passos1, no Rio de Janeiro, abrindo caminho para
uma cidade mais “arejada”, noção importante na saúde
pública no passado, que acreditava que a aglomeração e os
“ares ruins” do “miasma2” ajudavam a proliferar doenças.

Acesso à moradia

Embora de má qualidade, cortiços providenciaram um


primeiro passo no acesso à moradia em uma sociedade
brasileira que ainda era muito pobre e mais desigual que
hoje. Como relata o urbanista Nabil Bonduki, migrantes que
chegavam a São Paulo no início do século XX tinham acesso
a um mercado onde:

“Uma espécie de ‘rentiers3 urbanos’ pôde


produzir uma ampla diversidade de
soluções habitacionais de aluguel para os
diferentes segmentos sociais e faixas de
renda, dando origem a uma gama variada
de tipologias que marcaram a paisagem da
cidade nas primeiras décadas do século,
quando a moradia operária se localizava
próxima à uma zona industrial”.

“Surgem, assim, inúmeras soluções


habitacionais, a maior parte buscando
economizar terrenos e materiais através da
geminação e da inexistência de recuos
laterais ou frontais, cada qual destinado a
uma capacidade de pagamente de aluguel”.

“Do cortiço, moradia operária por


excelência, sequência de pequenas
moradias ou cômodos insalubres ao longo
de um corredor, sem instalações
hidráulicas, aos palacetes padronizados
produzidos para uma classe média que
enriquecia, passando por soluções pobres,
mas decentes, de casas geminadas em
vilas ou ruas particulares, que perfuravam
quarteirões, para aumentar o
aproveitamento de um solo caro e
disputado pela especulação imobiliária.

“Superada a aguda carência de moradias


que ocorreu no início da República (lembrar
que São Paulo multiplicou por seis num
espaço de catorze anos!), a produção de
casa e cortiços atendeu, do ponto de vista
quantitativo, às necessidades da população,
com exceção dos períodos críticos da
Primeira Guerra Mundial e da revolução de
1924. Este relativo equilíbrio entre oferta e
procura de habitação, no entanto, era
proporcionado graças à produção ou
adaptação para moradia popular de
pequenas células insalubres, da área
reduzida e precárias condições
habitacionais, genericamente denominadas
‘cortiços’, consideradas o inimigo número
um da saúde pública”.

O relato histórico de Bonduki mostra que o mercado


habitacional, apesar de uma forma precária, conseguia
atender a demanda por moradia, deixando claras as
inegáveis más condições dos cortiços. Mas é preciso fazer
uma análise considerando a perspectiva da época em
contraponto com nossa situação de hoje. Como os
insalubres cortiços poderiam ser melhores que as nossas
favelas e porque compará-los?

Cortiços

Em primeiro lugar, é difícil apontar um único tipo ou


qualidade de cortiço. Como diz o próprio relato de Bonduki,
os tipos de cortiços eram vários e, comparando com o que
vemos hoje, não existia uma distância gigantesca entre o
que hoje chamamos de cidade formal e informal. Existiam
várias opções de moradia para diferentes faixas de renda,
sem o degrau praticamente inatingível para ascensão de
qualidade como é a realidade de hoje. De qualquer forma,
em grande parte, cortiços eram construções em alvenaria
e, embora mal acabadas, resistiam às intempéries de forma
superior aos barracos autoconstruídos, em sua maioria em
madeira, que marcaram o surgimento das favelas e que
ainda caracterizam muitas favelas de hoje. Ou seja, a
função básica da construção de proteger o habitante de
chuvas fortes, incêndios ou até deslizamentos estava mais
bem assegurada. Esta diferença de qualidade é exacerbada
quando comparamos uma tecnologia construtiva de cem
anos atrás, quando os cortiços surgiam no Brasil, com as
tecnologias construtivas de hoje. Provavelmente um
“cortiço” considerando tecnologias atuais teria sido
verticalizado, aproveitando melhor o espaço aumentando o
tamanho da edificação ao invés de diminuir o tamanho dos
cômodos. Este foi o resultado da evolução da moradia em
Shenzhen4 onde tais restrições não foram efetivadas da
mesma forma.

É importante destacar que, mesmo sendo um


problema, o tamanho dos cômodos e a “falta de espaços
arejados” não era questão principal na salubridade dos
cortiços como se acreditava e como ainda se difunde até
hoje. No Brasil, até o início do século XX, se acreditava que
cortiços eram focos de “miasma” e que, na ausência de
espaços arejados, poderiam levar à proliferação de
doenças, inclusive da febre amarela. Mesmo após a
desmistificação da teoria miasmática e da descoberta de
que a febre amarela era transmitida através do mosquito
Aedes, este pretexto continuou sendo usado para as
políticas higienistas de destruição de regiões pobres das
cidades, enraizando-se na percepção popular dos cortiços
até hoje.
A questão mais relevante para a salubridade é que
cortiços recebiam menos investimentos na sua
infraestrutura que áreas mais ricas da cidade. Assim, com
um saneamento comprometido, tornava-se foco de
proliferação de doenças através das redes de água e esgoto
contaminadas e, potencialmente, até mesmo a geração de
focos propícios para o mosquito Aedes e, então, da febre
amarela. Considerando o conhecimento científico atual, é
difícil argumentar que a construção privada do cortiço
propriamente dito era, em si, um grande agressor à saúde
pública ou até mesmo dos seus habitantes. Existem
exemplos atuais em cidades desenvolvidas como Hong
Kong ou Paris, onde é comum, habitantes morarem em
cômodos de até 9 metros quadrados, com janelas pequenas
ou inexistentes. Alguns estudos mostram possíveis relações
de tamanhos habitacionais reduzidos com o aumento do
stress, mas o impacto não é claro, e certamente muito
menos exagerados das alegações do início do século XX.

Cortiços, embora precários, também faziam parte de


um mercado imobiliário formal, embora em fase prematura.
Seus moradores eram pobres, mas não estavam às
margens da lei no quesito moradia, o que é a regra em
favelas. Assim, em teoria, haveria um incentivo maior à
segurança jurídica e legal da sua habitação, eliminando a
justificativa de derrubar suas casas por serem invasores ou
moradores ilegais.
Demolições dos Cortiços e Surgimento das Favelas

No entanto, infelizmente a história mostrou o


contrário, e os cortiços sofreram demolições em massa por
todo o Brasil. A reforma do prefeito Passos no Rio de
Janeiro (considerado o “Haussman à la carioca”), na
transição entre o século XIX e XX, exemplifica o movimento
de destruição dos cortiços e o surgimento das primeiras
favelas no Brasil. Do livro “Evolução Urbana do Rio de
Janeiro” de Maurício de A. Abreu (onde os comentários
entre a colchetes são do autor Anthony Ling).

“(...) em nome da higiene e da estética,


[Passos] declarou guerra aos quiosques da
cidade e proibiu a venda de vários produtos
por ambulantes, atingindo, por
conseguinte, as fontes de renda de grande
número de pessoas. Proibiu ainda o
exercício de mendicância e demoliu uma
série de cortiços, que já haviam sido
proibidos de sofrer reparos por lei municipal
em 10 de fevereiro de 1903”.

“A Reforma Passos (...) representa também


o primeiro exemplo de intervenção estatal
maciça sobre o urbano, reorganizado agora
sob novas bases econômicas e ideológicas,
que não mais condiziam com a presença de
pobres na área mais valorizada da cidade.
De fato, o alargamento das ruas centrais e
abertura de novas artérias, que
atravessaram preferencialmente as velhas
freguesias artesanais e industriais, ‘destruiu
quarteirões de cortiços, habitados pelos
proletários, e os armazéns e trapiches dos
bairros marítimos, numa extensão de
aproximadamente 13 hectares’. Grande
parte da população foi, então, forçada a
morar com outras famílias, a pagar
aluguéis altos (devido à diminuição da
oferta de habitações) ou a mudar-se para
os subúrbios, já que pouquíssimas foram as
habitações populares construídas pelo
Estado em substituição às que foram
destruídas”.

“É a partir daí que os morros situados no


centro da cidade (Providência São Carlos,
Santo Antônio e outros), até então pouco
habitados, passam a ser rapidamente
ocupados, dando origem a uma forma de
habitação popular que marcaria
profundamente a feição da cidade neste
século [XX] – a favela”.

Flávio Villaça, no texto “O que todo cidadão precisa


saber sobre habitação”, desenvolve exemplos semelhantes
para a cidade de São Paulo, que proibiram os cortiços em
diversas instâncias:

“O Código de Posturas Municipais do


Município de São Paulo de 1886, por
exemplo, contém uma série de dispositivos
regulamentando os cortiços. Não só
número e dimensões de cômodos,
instalações sanitárias, ventilação e
insolação, mas também suas localizações. A
construção de cortiços era proibida ‘no
perímetro do comércio’ e quando seus
terrenos fossem contíguos a ‘casa de
habitação’ deveriam ter no mínimo 15
metros de frente”

Ainda, em 1894 foi elaborado o Código Sanitário do


Estado de São Paulo, proibindo a construção de cortiços e
“convidando a administração municipal a providenciar a
destruição dos existentes”.

Villaça continua:

“Vê-se que estas regulamentações nada


tinham a ver com o combate a epidemia
nem com a proteção da saúde pública, mas
sim com o afastamento dos cortiços das
áreas onde as camadas de mais alta renda
residiam, circulavam e tinha seus imóveis
mais nobres. A proteção dos valores
imobiliários viria a ser nas décadas
subsequentes, até os dias de hoje, uma das
razões inconfessas de muitas leis
urbanísticas nos municípios brasileiros.”

“Nessa mesma época e utilizando o mesmo


discurso, teve início a longa aliança entre
os interesses imobiliários e a legislação
urbanística. A necessidade de demolição
dos cortiços insalubres era
sistematicamente invocada para a proteção
da saúde pública, porém eles somente
eram demolidos nas áreas mais centrais da
cidade, especialmente para dar lugar as
grandes avenidas que viriam para
“embelezar e modernizar” nossas cidades
(como se alegava na época), ou seja, abrir
espaços para a frutificação do capital
imobiliário (...) a demolição dos cortiços era
exigida e saudada, porém, somente se
concretizava quando eles se constituíam em
obstáculos à renovação urbana nas
direções ‘nobres’ da cidade”.

Processo semelhante ocorreu em Recife com a


destruição dos mocambos, construções típicas habitadas
majoritariamente por escravizados libertos que tinham uma
percepção pública semelhante aos cortiços. Segundo o blog
Recifaces:

“Os governos estadual e municipal


começaram a atestar que as comunidades
mocambas eram insalubres e foco de
imoralidades sociais, como prostituição e
‘bandidagem’, e que não permitiam ao
trabalhador uma condição de vida digna. Ao
mesmo tempo, o mercado imobiliário
começava a crescer na capital
pernambucana e o seu interesse era grande
sobre as áreas onde os mocambos estavam
alocados. Diante dessa pressão do governo
e do forte interesse do mercado imobiliário
sobre essas áreas, se iniciou uma ação por
toda a cidade para a derrubada dos
mocambos e a retirada das famílias que os
habitavam, essa ação ficou conhecida como
a ‘Liga Social contra o Mocambo’”.

“Se o objetivo era extinguir os mocambos,


através da Liga Social, por que eles foram
apenas removidos do centro urbano e
tolerados em áreas periféricas do Recife?
Esse é o ponto. O governo não estava
preocupado com as condições de vida da
população pobre do Recife e sim em limpar
o centro da cidade da ‘praga visual’ que
eram os mocambos, diz Thiago Pereira
Francisco, especialista em história da
favelização no Recife. A população expulsa
do centro de Recife migrou para essas
áreas remotas da cidade, onde começaram
a se instalar se o mínimo apoio do governo.
Na medida em que as famílias eram
proibidas de habitar o centro, elas
começaram a migrar para áreas que não
tinham intervenções do governo”.

A história mostra que as políticas de destruição das


formas populares de moradia tinham uma motivação
elitista sob falsas bases científicas. Caso não tivéssemos
seguido por esse caminho, poderíamos ter desenvolvido de
forma gradual a tipologia da moradia popular, utilizando
novas tecnologias para melhorar a sua qualidade e torná-la
cada vez mais acessível. No entanto, o caminho que
seguimos foi o de tentar “legislar a riqueza”, criando
políticas públicas que basicamente proibiram que o
mercado de moradias populares existisse, deixando uma
parcela significativa da população sem alternativa além de
construir o seu próprio barraco de forma irregular.

Fonte: Site Caos Planejado. Disponível em:


https://caosplanejado.com/corticos-eram-melhores-que-favelas/.
Acesso em 23 de abr. de 2022.
1
Reforma Passos – Pereira Passos foi um famoso engenheiro brasileiro que estudou na Europa, tornou-se empresário na
área da construção civil e por volta de 1887 fundou a serraria que se tornaria uma das maiores fornecedoras de madeira
para a construção de mansões e palacetes no Rio de Janeiro. No final de 1902, foi convidado pelo presidente Rodrigues
Alves (1902 -1906), recém-empossado, para assumir a prefeitura do Rio de Janeiro com a missão explícita de “consertar os
defeitos da capital que afetam e perturbam todo o desenvolvimento nacional”, como consta da mensagem presidencial
enviada ao Congresso Nacional em maio de 1903. Assim, incentivado pelo presidente, Pereira Passos começou as
reformas já em 1903. O presidente levantou os recursos e o prefeito pôde realizar as obras, a higienização ficou nas mãos
do médico Oswaldo Cruz, diretor do Serviço de Saúde Pública. A reforma urbana carioca foi inspirada na reforma feita em
Paris no século XIX, entre 1853 e 1870. Em sua gestão, Passos modernizou a Zona Portuária, criou a Avenida Central, hoje
Rio Branco, a Avenida Beira-Mar e a Avenida Maracanã. A Reforma Pereira Passos buscou adaptar a cidade também para
os automóveis. É nesse período que o Rio de Janeiro vê a chegada da energia elétrica e a reorganização do espaço urbano
carioca. O prefeito proibiu ainda a atuação de ambulantes e a derrubada dos cortiços que levou ao surgimento das favelas.

2
Miasma – substantivo masculino. História da Medicina: Emanação a que se atribuía, antes das descobertas da
microbiologia, a contaminação das doenças infecciosas e epidêmicas. Exalação pútrida que emana de animais ou vegetais
em decomposição.

3
Rentiers – do francês, sujeito masculino, plural de rentier que significa possuidor de rendimentos, capitalista,
proprietário que aluga para um inquilino.

4
Shenzhen – local na China, onde ex-agricultores tiveram suas terras expropriadas e estatizadas com casas mantidas,
decidindo espontaneamente e coletivamente reestruturar por inteiro a área com a construção de vários edifícios de até
cinco andares entre ruas de dois a três metros de largura, mostrando claramente a preferência por mais área habitável em
detrimento a ruas mais largas. O entorno dessas comunidades é servido com avenidas que têm infraestrutura urbana
completa, não ficando muito longe do próprio centro da cidade. O resultado é um aluguel mais barato, que atrai aqueles
cuja alternativa seria morar longe da cidade e sem acesso a oportunidades.

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