Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
A Iniciação Maçónica
A Iniciação Maçónica
Introdução
Este estudo tem por objectivo analisar as influências arquetípicas e, consequentemente,
mitológicas sobre a iniciação maçónica no Rito Escocês Antigo e Aceito, por
intermédio da teoria conhecida por Jornada do Herói.
Muitos talvez possam julgar os rituais maçónicos como obsoletos, sem sentido ou
mesmo inúteis. Serão apontadas as evidências de que os rituais maçónicos e a mitologia
que os estruturam têm forte efeito sobre o inconsciente dos seus praticantes (JUNG,
2005).
Há, sem dúvida, inúmeras diferenças entre as religiões e mitologias da humanidade, e
todas essas, de uma forma ou de outra, podem ser encontradas em alguma medida,
representadas nas alegorias maçónicas (MAXENCE, 2010).
Ao contrário da escola freudiana, que afirma que os mitos estão profundamente
enraizados dentro de um complexo do inconsciente, para Jung, a origem atemporal dos
mitos reside dentro de uma estrutura formal do inconsciente colectivo. Torna-se assim
uma diferença considerável para Freud, que nunca reconheceu a autonomia congénita da
mente e do inconsciente, enquanto que, para Jung havia uma dimensão colectiva inata e
com autonomia energética.
As ideias apresentadas por Jung foram a base científica que o estudioso das Religiões e
Mitologias Comparadas, Joseph Campbell, adoptou para sustentar as similaridades
existentes entre todas as religiões e mitologias da história. Tal conceito chamado
anteriormente de “Monomito” [1] por Jaymes Joyce, foi esmiuçado por Campbell, que
mostrou todo o roteiro da manifestação arquetípica do herói, que se encontra presente na
sociedade como um arquétipo do Inconsciente Colectivo (JUNG, 2005; JUNG, 2011a).
Desta forma, o presente estudo basear-se-á nos trabalhos de Campbell e Jung,
analisando e comparando a iniciação maçónica sob a luz da jornada do herói.
Compreende-se a validade e relevância de tal abordagem pelo facto da literatura
maçónica publicada no Brasil privilegiar as interpretações ritualísticas que seguem um
raciocínio estrito ao entendimento consciente dos seus ensinamentos morais (ISMAIL,
2012), desconsiderando os efeitos psicológicos produzidos pela prática ritualística
(JUNG, 2005).
O Monomito
Assim como a psique humana é dividida em três partes pela Psicologia Analítica, a
Jornada do Herói também o é, podendo ser classificada como: a) separação ou partida;
b) iniciação ou provas e vitórias; e c) o retorno (CAMPBELL, 2007). Este ternário
constitui a base essencial do mito, bem como dos Rituais de Passagem (VAN
GUENNEP, 2011). No que concerne a Iniciação Maçónica, essa pode perfeitamente ser
enquadrada neste postulado, como o estudo demonstrará abaixo.
A teoria da Jornada do Herói teve por base a ideia do Monomito difundida por James
Joyce, vindo a ser aperfeiçoada por Campbell pela associação com o conceito freudiano
de forças do Inconsciente, alcançando a sua base científica com a psicologia analítica ou
arquetípica de Jung, que propõe o conceito psicológico de Arquétipos e Inconsciente
Colectivo. A estruturação dos Ritos de Passagem pelo antropólogo Arnold Van
Guennep possibilitou a análise das diferentes fases da aventura do herói, bem como as
diversas manifestações do mesmo, nas sociedades tribais (VAN GUENNEP, 2011).
A recusa do chamado
Tem-se sempre, tanto na vida real como nos contos mitológicos, o triste caso do
chamado que não obtém resposta, havendo, pois, o desvio da atenção para outros
interesses. A recusa à convocação acaba por aprisionar o herói mitológico, seja pelo
tédio, pelo trabalho duro ou pela ignorância. A recusa é uma negação à atitude de
renunciar àquilo que a pessoa considera interesse próprio, e tal recusa caracteriza-se,
essencialmente, pela identificação da persona [2] com o seu ego [3] o que acarretaria no
conceito psicológico de Inflação (HALL; NORDBY, 2010).
Como exemplo, pode-se citar o caso da esposa de Ló, que se tornou uma estátua de sal
por ter olhado para trás, desobedecendo assim a instrução recebida. A forte emoção que
dominou Ló tornar-se-ia uma “recusa do chamado”, pois poderia efectivamente ter
rompido com a jornada [4].
A recusa do chamado na maioria das vezes é representada pelo medo nas suas várias
manifestações. É desta forma que, muitas vezes, ocorre a “recusa do chamado” na
jornada maçónica. Se por algumas vezes o medo do desconhecido ou oculto impede
candidatos de iniciar, outras vezes a própria cultura de certas sociedades trata de
cumprir esta função.
O auxílio sobrenatural
Para aqueles que não recusam o chamado, o primeiro encontro da jornada do herói dá-se
com uma figura protectora, que fornece ao candidato ajuda para o proteger na jornada
que estará prestes a deparar-se.
Na iniciação pelo Rito Escocês Antigo e Aceito da Maçonaria, fica evidente a figura de
auxílio na jornada na função do oficial chamado de Experto, que conduz o iniciando por
caminhos escabrosos, porém, oferecendo-lhe a devida protecção: “Eu serei o vosso
guia, tendes confiança em mim, e nada receeis”. A função do Experto durante a
iniciação é conduzir o candidato, que estando privado de certas faculdades, necessita
inexoravelmente do amparo do guia.
A passagem pelo primeiro limiar
Tendo resistido ao medo, muitas das vezes personificado como medo de morte,
simbolizado no Rito Escocês pela passagem pela câmara de reflexões, o herói segue na
sua aventura até chegar ao conhecido na Jornada do Herói por “guardião do limiar”
(CAMPBELL, 2008). Entende-se psicologicamente pelo limiar como a passagem do
consciente para o inconsciente, onde se entra num mundo de fantasias e imagens,
semelhantes aos sonhos. Ou seja, um mundo mítico.
Como exemplo podem-se citar alguns contos, como do Chapeuzinho Vermelho, no qual
ela é engolida pelo lobo. Da mesma forma, todo o panteão grego, excepto Zeus, foi
engolido pelo pai Cronos. Já na Bíblia e no Alcorão encontramos Jonas, que é engolido
por um peixe e passa três dias e três noites nas suas entranhas, e acaba por sair de lá
vivo [5]. Arnold Van Guennep (2011), salienta que a morte momentânea ou aparente é
tema principal das iniciações tribais.
Na jornada maçónica o iniciando é colocado à prova por testes simbólicos, para que
coloque a mostra a sua coragem de forma a persistir na senda da virtude. Curioso que o
ritual maçónico trata tais testes de forma a simbolicamente tentar afastar o candidato do
seu caminho, como, por exemplo, fazendo-o seguir por “caminhos escabrosos”.
Um mito interessante sobre este caminho de provas, e um dos mais antigos da história, é
o registo sumeriano da descida ao mundo inferior pelos portais da metamorfose, pela
deusa Inana. Tal mito era ritualisticamente praticado na antiguidade pelas Prostitutas
Sagradas [6] (VAN GUENNEP, 2011), que foi profanado e hoje é categorizado
como striptease e conhecido como a “Dança dos Sete Véus”. Muitas mitologias
retratam neste momento uma descida ao submundo, quando na verdade, tal descida
retrata a descida aos domínios da psique (CAMPBELL, 2002).
Estas novas provas, cada vez maiores em níveis, representam no processo iniciático
maçónico a passagem pelos quatro elementos, onde o iniciando vivencia e supera,
simbolicamente, os elementos. No passado, relatos indicam que os iniciandos de facto
se colocavam à prova, seja de um incêndio, a nado, ou tempestade (LEVI, 2012).
Provação difícil ou traumática: O encontro
com a Deusa
A aventura última, quando todas as barreiras foram vencidas, aparecerá como a
experiência mais profunda e traumática do enredo mitológico. Normalmente é
representado por uma morte efectiva e momentânea, ou mesmo por um renascimento
miraculoso (CAMPBELL, 2007). Em diversos ritos maçónicos e em diferentes graus
encontramos encenações de todo o tipo para representar esta etapa, seja por mais provas
iniciáticas ou por demonstrações fúnebres, funestas e sombrias, de forma que, pela
última vez, é dada a chance ao iniciando de desistir da senda da virtude, rendendo-se ao
medo. .
O encontro ou união com a Anima também pode ser chamado de “Encontro com a
Verdade”, pois a totalidade do ser e o completo conhecimento do inconsciente, além de
libertar, proporciona ao herói um conhecimento novo e inexplicável.
Os testes que o herói passou, preliminares das suas experiências e façanhas últimas,
simbolizaram as crises de percepção por meio das quais a sua consciência foi
amplificada e capacitada a enfrentar. Com isto, ele aprendeu que ele e a sua Deusa, ou
ainda, Anima, são um só, pois se casaram-uniram. Por derradeiro, o seu destino é
tornar-se o Mestre, que, variando de uma cultura para outra, pode ser um filósofo,
ancião, líder político ou religioso, entre outros tipos. Já no caso maçónico, um Mestre
Maçom, representante de Hiram Abiff.
Rafhael Guimarães
Publicado originalmente na Revista Fraternitas in Praxis
Notas
[1] O termo “Monomito” é de autoria de James Joyce, da obra “Finnegans Wake”.
[2] Em grego significa “máscara”.
[3] Na visão de Jung, Ego é o nome dado à organização da mente consciente,
constituindo-se de percepções conscientes, de recordações, pensamentos e sentimentos.
A menos que o Ego reconheça tais percepções elas não chegariam à nossa consciência.
Tais reconhecimentos do Ego são estabelecidos pela função dominante de cada pessoa
(sensibilidade, objectividade, etc.). Uma forte experiência pode forçar entrada pelo ego
ocasionando graves consequências (traumas). O Ego passa a falsa ideia de que ele é,
essencialmente, a nossa inteira consciência, ou melhor, a nossa Psique como um todo.
(HALL; NORDBY, 2010)
[4] Génesis 19:26: “E a mulher de Ló olhou para trás e ficou convertida numa estátua de
sal.”
[5] Jonas 1:17: “O Senhor fez que ali se encontrasse um grande peixe para engolir
Jonas, e este esteve três dias e três noites no ventre do peixe.”
[6] O termo Prostituta possuía outro significado diferente do que hoje é associado.
Significava “aquelas que se prostram”, em referência à Deusa ao qual elas eram
oferecidas e se tornavam sacerdotisas.
[7] Significa “Casamento Sagrado” e se refere à cópula de um deus ou homem com uma
deusa ou mulher.
[8] Lucas 17:21.
Bibliografia
BLAVATSKY, HELENA P. O ocultismo prático e as origens do ritual na Igreja e na
Maçonaria. São Paulo: Pensamento, 2009.
CAMPBELL, Joseph. Herói de mil faces. São Paulo: Editora Pensamento, 2007.
CAMPBELL, Joseph. Isto és Tu. São Paulo: Landy Editora, 2002.
CAMPBELL, Joseph. Mito e Transformação. São Paulo: Ed. Ágora,
DEL DEBBIO, Marcelo. Enciclopédia de Mitologia. São Paulo: Daemon Editora, 2008.
HALL, Calvin S.; NORDBY, Vernon J. Introdução à Psicologia Junguiana. São Paulo:
Cultrix, 2010.
ISMAIL, Kennyo. Desmistificando a Maçonaria. São Paulo: Universo dos Livros, 2012.
JUNG, Carl Gustav. Interpretação psicológica do Dogma da Trindade. Rio de Janeiro:
Vozes, 2011 a.
JUNG, Carl Gustav. O Homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira,
2005.
JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente colectivo. Rio de Janeiro: Vozes,
2011b.
JUNG, Carl Gustav. Psicologia do Inconsciente. Rio de Janeiro: Vozes, 1978.
JUNG, Carl Gustav. Psicologia e alquimia. Rio de Janeiro: Vozes, 2012.
JUNG, Carl Gustav. Psicologia e religião. Rio de Janeiro: Vozes, 2011c.
JUNG, Carl Gustav. Símbolos e interpretação dos sonhos. Rio de Janeiro: Vozes, 2011d.
LEVI, Eliphas. Dogma e Ritual da Alta Magia. 20ª Edição. São Paulo: Pensamento-Cultrix,
2012.
MAXENCE, Jean-Luc. Jung é a aurora da Maçonaria. São Paulo: Madras, 2010.
MURPHY, Tim Wallace. O código secreto das catedrais. São Paulo: Pensamento, 2007.
PRESTON, William. Illustrations of Masonry. New York: Masonic Publishing and
Manufacturing Co., 1867.
STAVISH, Mark. As origens ocultas da Maçonaria. São Paulo: Pensamento, 2011.
VAN GUENNEP, Arnold. Os Ritos de Passagem. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2011.
WAITE, A. E., A New Encyclopaedia of Freemasonry, 2 vols. Londres: William Rider and
Son Limited, 1921.