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Sobre as paixões humanas em Thomas Hobbes e Jean-Jacques

Rousseau1
On human passions in Thomas Hobbes and Jean-Jacques Rousseau

Pedro Augusto Pereira Guimarães2

Resumo: O objetivo deste artigo é analisar e comparar a teoria das paixões humanas em
Thomas Hobbes (1588-1679) e Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). Se, por um lado, Rousseau
tece elogios a Hobbes no que concerne à soberania, por outro, ele o confronta diretamente no
que diz respeito às paixões humanas. Em Hobbes os homens naturalmente se encontram
subjugados por um périplo de paixões, e, diante da irregularidade das paixões, a guerra é
inevitável. Daí, Hobbes concebe o Estado com um poder irresistível para que os homens atuem
não seguindo apenas as paixões, mas também a razão. Em Rousseau, as únicas paixões naturais
são o amour de soi-même e a pitié, as paixões que geram a guerra entre os homens só existem
em sociedade. Portanto, Hobbes não poderia ter deduzido a ordem política dessa concepção de
natureza humana. O pormenor é que tanto em Rousseau quanto em Hobbes a vida cívica seria
impossível sem as paixões.

Palavras-chave: Estado. Hobbes. Paixões. Rousseau.

Abstract: The purpose of this article is to analyze and compare the theory of human passions in
Thomas Hobbes (1588-1679) and Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). If on the one hand,
Rousseau weaves praise to Hobbes regarding the sovereignty, on the other hand faces Hobbes
directly with respect to human passions. In Hobbes man are naturally subjugated by a tour of
passions, and, on the irregularity of the passions the war is unavoidable. Hence Hobbes
conceives the State with an irresistible power that man act not only following the passions, but
also the reason. In Rousseau, the only natural passions are the amour de soi-même and pitié, the
passions that cause war between men only exist in society. Therefore, Hobbes couldn’t have
deduced the political order from this conception of human nature. The detail is that both in
Rousseau as in Hobbes the civilian life would be impossible without the passions.

Keywords: Hobbes. Passions. Rousseau. State.

***

Introdução

Quando falamos de Hobbes e Rousseau, a comparação compartilhada pelo


senso comum é a mesma que foi feita por Diderot em seu artigo intitulado
Hobbesianismo ou Filosofia de Hobbes:

1
O presente artigo foi apresentado pela primeira vez como uma comunicação proferida durante o I
Congresso Nacional Jean-Jacques Rousseau: Idiossincrasias e Diálogos – realizado entre os dias
08/04/2014 e 11/04/2014 na cidade de São Luís-MA. Posteriormente foi modificado e aperfeiçoado até
encontrar sua forma final de artigo.
2
Graduando em Filosofia pela Universidade Federal de São João Del Rei - UFSJ. Orientador: Prof. Dr.
Fabio de Barros Silva. E-mail: pedrobaependi@hotmail.com
Sobre as paixões humanas em Thomas Hobbes e Jean-Jacques Rousseau

A filosofia de Rousseau de Genebra é quase o inverso da de Hobbes.


Um crê que o homem da natureza é bom, e o outro o crê mau.
Segundo o filósofo de Genebra, o estado de natureza é um estado de
paz; segundo o filósofo de Malmesbury, trata-se de um estado de
guerra. Foram as leis e a formação da sociedade que tornaram o
homem melhor se acreditarmos em Hobbes; e que o depravaram, se
acreditarmos em Rousseau. Um tinha nascido no meio do tumulto e
das facções; o outro vivia na sociedade mundana entre os sábios.
Outra época, outras circunstâncias, outro filósofo (DIDEROT,
D’ALEMBERT, 2006, p. 189).

Como observa Derathé (2009), essa comparação é um tanto simplista e


provavelmente foi escrita antes da publicação Do Contrato Social [1762]. Afinal, o
ponto central de convergência entre os dois autores está na teoria da soberania
desenvolvida pelo genebrino no contrato.
Se o principal ponto de convergência entre Hobbes e Rousseau é a teoria da
soberania, o principal ponto de divergência é, de fato, a concepção de natureza humana,
principalmente no que concerne às paixões, e a maneira como deduzem dela a ordem
política.
Em Hobbes, a centralidade do tema das paixões humanas está explícita no
próprio título de sua maior obra: Leviathan [1651-1670]. Leviatã é um monstro da
mitologia hebraica descrito no livro de Jó, capítulo 41, como um monstro enviado por
Deus para reinar sobre os filhos do orgulho, feito para não temer e ser temido.
Em Rousseau, o tema está inserido no problema da desnaturação. A passagem
de um estado apolítico (estado de natureza) para um político (sociedade política) se deu
ao acaso, tendo como resultado o homem subjugado pelas formas corrompidas do
amour-propre agravando ainda mais o quadro de injustiça e ilegitimidade da sociedade
política nascente.
O homem natural, para Hobbes, não é naturalmente mau como afirmam: é de
fato não sociável. Como o critério que definirá o moralmente correto e incorreto são as
leis positivas, não podemos julgar o homem natural como mau. O que o filósofo de
Malmesbury afirma é que, diante da irregularidade das paixões, a guerra entre os
homens é inevitável. O genebrino, por sua vez, afirma que as paixões que geram a
guerra são paixões artificiais. As únicas paixões naturais são o amour de soi-même
(amor de si mesmo) e a pitié (piedade). Portanto, a guerra não pode existir entre os
indivíduos isolados, mas sim entre os Estados, no âmbito das relações internacionais.

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O pormenor é que, para os dois autores, a vida cívica seria impossível sem as
paixões.

Thomas Hobbes

Norberto Bobbio (1991), em sua célebre obra intitulada Thomas Hobbes, afirma
que Hobbes concebe o Estado como um remédio para a natureza corrompida do homem,
em que o indivíduo não é caracterizado pelo pecado, mas pelas prepotentes paixões, e
que é tarefa da filosofia descrever e classificar as paixões tal como se descrevem e
classificam as partes do corpo. Bobbio (1991) e, convergentemente, Leo Strauss (2009)
reconheceram o Estado hobbesiano não como um aniquilador das paixões que valoriza
apenas o lado racional do homem, mas sim como um disciplinador das paixões.
As paixões são descobertas pelo método introspectivo “looketh into himself”
(olhando para si mesmo). Como comenta Glen Newey (2014), a maneira de satisfazer as
paixões é pelas leis da razão natural, com a qual deduzimos teoremas (natural laws) que
demonstram o que é mais útil para nossa preservação.
A descrição e a classificação das paixões são feitas por Hobbes principalmente
no sexto capítulo do Leviatã3. Para Hobbes, os objetos não possuem valor intrínseco.
Além disso, o critério que irá determinar as ações como moralmente corretas e
incorretas são as leis positivas. O estado de natureza é, portanto, amoral.
Quando os objetos são percebidos pelos sentidos, provoca um movimento nos
órgãos e partes inferiores do corpo do homem denominado sensação. Diante da
experiência, e da comprovação desse efeito sobre si mesmo e sobre os outros, é
derivado um sentimento de desejo e aversão. Por conseguinte, as ideias de bom e mal
estão intrinsecamente relacionadas a esse sentimento de desejo e aversão: bom é aquilo
que desejo provocando a aproximação, e mal é aquilo pelo que sinto aversão,
provocando o afastamento.
Hobbes define desprezo como imobilidade. Ou seja, diante daquilo que não
desejamos nem odiamos, sentimo-nos indiferentes e nos mantemos imóveis. Nos
Elementos, Hobbes (2005) comenta que o conatus é o começo interno do movimento
animal, identificando o conatus com as paixões: “nossos apetites nos inclinam a agir e
nossos medos nos impedem de prosseguir” (SKINNER, 2010, p. 39).

3
Também em Elementos da lei natural e política capítulo IX e Leviatã capítulo XI.

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Entre as paixões destacadas por Hobbes estão a (van)glória, o medo e a


esperança.
O homem tem necessidade de ter sua estima reconhecida pelo outro, e
eventualmente atribui a si mesmo qualidades e atributos que nem sempre possui: é isto
que Hobbes chama de vanglória. Quando esse reconhecimento que o homem tanto
deseja lhe é negado, seu orgulho é ferido, germinando o sentimento de vingança.
Bobbio (1991) comenta que a glória é uma espécie de testemunho da natureza egoística
do homem que ama suas próprias capacidades. A glória acompanhada do interesse torna
o homem um ser não-sociável, que busca na companhia dos outros satisfazer seu desejo
de honra e bens materiais.
No décimo terceiro capítulo do Leviatã, Hobbes identifica a glória como uma
das causas de conflito que resulta na guerra de todos contra todos. Bobbio (1991)
observa que o destaque que Hobbes confere à glória depende do fato de considerá-la a
mais visível manifestação do desejo de poder.
Hobbes concebe a felicidade como “um contínuo progresso do desejo de um
objeto para outro, não sendo a obtenção outra coisa senão o caminho para conseguir o
segundo” (2004, III, p. 85). Desse modo, a felicidade não é estática, mas sim dinâmica.
Assim, para satisfazer essa contínua corrente de desejos, é necessário obter poder.
Constatamos, portanto, que a própria felicidade depende também das paixões. Em
outras palavras, para Hobbes, um homem sem paixões não pode ser feliz.
Como resultado, as pessoas desejando mais, e almejando poder para satisfazer
seus desejos, entram em disputa umas com as outras. Além disso, a impossibilidade do
objeto desejado ser partilhado por mais de uma pessoa e a condição de igualdade na
disputa vai fomentar o conflito entre os homens.
As paixões humanas recebem maior importância no tratamento que Hobbes
confere às leis naturais. Como esclarece Leo Strauss (2009), a escola de direito natural
clássica deriva as leis naturais de uma ideia de perfeição. Para Hobbes em contrapartida,
as leis da natureza só serão eficazes se forem deduzidas do modo como os homens
efetivamente vivem, em outras palavras: das paixões.
Do medo da morte violenta é suscitado no homem o maior de todos os desejos,
que é a preservação da vida. Como a vida não pode ser preservada numa condição de
guerra e insegurança generalizada, torna-se necessário estabelecer a paz. A primeira lei
natural “ordena”, portanto, a autopreservação e o provimento da paz.

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Da primeira lei natural, são deduzidas várias outras que são de acordo com
Hobbes deveres ou virtudes morais indispensáveis para o estabelecimento da paz.
Embora a gratidão (quarta lei natural), a piedade (quinta lei natural), o perdão
(sexta lei natural) e a humildade (oitava lei natural) sejam indispensáveis para o
estabelecimento da paz, na ausência de uma autoridade política elas exercem pouca
influência sobre o comportamento dos homens. Essas virtudes que poderiam ser vistas
como “paixões benéficas”, como a piedade e a gratidão, estão longe de ser um
sentimento natural. Elas são um dever que o homem só cumpre quando sente segurança
para fazê-lo, senão, quando coagido. Na ausência do Estado, as paixões que exercem
maior influência sobre os homens continuam sendo a glória, a esperança e o medo.
Temendo a morte violenta, os homens transferem sua liberdade absoluta e
direito a todas as coisas a um terceiro, que é o soberano, instituindo assim o Estado. Em
outras palavras, os homens, movidos pelo medo da morte violenta, e pela esperança de
poder desfrutar com segurança de uma vida mais satisfeita, pactuam estabelecendo a
sociedade política. Como Hobbes afirma em Behemoth: “Todos os reinos do mundo
[...] precedem do consentimento do povo, por medo ou esperança” (HOBBES, 2004, VI,
p. 179).
O homem, sendo o artífice e conteúdo da sociedade política, pode resolver os
conflitos do homem enquanto conteúdo dessa sociedade. Como comenta Strauss (2009,
p. 167), “o homem pode garantir a realização da ordem social justa porque é capaz de
conquistar a natureza humana através da compreensão e manipulação do mecanismo das
paixões”. Rawls (2012a), por sua vez, esclarece que Hobbes não reconhece na grande
maioria das pessoas a capacidade de autocontrole, o que legitima um Estado mais
coercitivo.
A respeito do medo e da glória, Hobbes (2005, III, p. 128) comenta:

Dado que a força das palavras é demasiada fraca para obrigar os


homens a cumprirem seus pactos, só é possível conceber, na natureza
do homem, duas maneiras de reforçá-la. Estas são o medo da
consequência de faltar à palavra dada, ou a glória ou orgulho de
apresentar não precisar faltar a ela [...] A paixão com que se pode
contar é o medo.

Se no estado de natureza o medo e a vanglória são as paixões que suscitam a


guerra entre os homens, após a instituição do Estado o medo e a glória apresentam-se
como essenciais para o cumprimento dos contratos e estabelecimento da paz.

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Entretanto, o Estado proposto por Hobbes não pode ser considerado despótico ou
totalitário por valer-se do medo para garantir a observância das leis e os cumprimentos
dos contratos. O medo estimulado pelo Estado não é um medo que não sabemos o
porquê, denominado por Hobbes de panic terror. Esse tipo de medo que Hobbes nos
fala é necessário para o provimento da paz. Ora, se o medo é a paixão que nos impede
de agir, o Estado deve valer-se do medo da punição para impedir que os súditos
cometam infrações.
Além disso, como Hobbes regularmente descreve o Leviatã como um Deus
mortal, o medo que o autor tem em mente é o mesmo que os cristãos sentem diante de
Deus todo-poderoso, e não o medo do Déspota. Nas palavras de Janine Ribeiro (2013,
p. 101):
Não cabe para a filosofia hobbesiana o mito totalitário, que em nosso
tempo funde o indivíduo no Estado. Pode-se aproximá-la do
absolutismo, seu contemporâneo, completado pela economia
mercantilista: procurando conservar a vida do corpo político e a de
cada cidadão quando possível.

No décimo primeiro capítulo do Leviatã, Hobbes enumera as paixões necessárias


à vida cívica, que predispõe os homens à obediência e à paz: desejo daquelas coisas que
são necessárias para uma vida confortável e a esperança de conquista-las por meio do
trabalho; medo da morte; desejo de conhecimento e das artes da paz; desejo de louvores
(ou seja, glória); e medo da opressão.
Entre as paixões que devem ser banidas da vida cívica, estão o ódio, a
concupiscência, a ambição, a cobiça e a pusilanimidade. Elas devem ser banidas porque
são “enfermidades tão inerentes à natureza, tanto do homem como de todas outras
criaturas vivas, que seus efeitos só podem ser evitados por um extraordinário uso da
razão ou por uma constante severidade do castigo” (HOBBES, 2004, III, p. 284).
Desse modo, tendo estabelecido a sociedade política, e o código de leis que a
acompanha, “cada um deve, meditando sobre a lei, corrigir a irregularidade das
paixões” (HOBBES, 2004, III, p. 291).

Jean-Jacques Rousseau

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Rousseau aceita a premissa de Hobbes de que o homem não é naturalmente


sociável. Também aceita o percurso: definir a verdadeira natureza do homem para, a
partir dela, deduzir a boa ordem política.
Rousseau traça uma relação entre as nossas necessidades e as paixões: “as
paixões, por sua vez, parecem ter sua origem nas nossas necessidades” (ROUSSEAU,
1964a OC, III, p. 143). O primeiro tipo de necessidade que Rousseau identifica são
aquelas relacionadas com a nossa própria conservação. São necessidades puramente
físicas e fáceis de serem satisfeitas. Conectada com a conservação está a necessidade de
promover nosso bem-estar. Desse segundo tipo de necessidade está o luxo da
sensualidade, a união entre homem e mulher. O terceiro tipo de necessidades são
aquelas relacionadas à opinião. Em outras palavras, o desejo ou necessidade de ser
estimado pelo outro.
Apenas o primeiro e, em menor medida, o segundo tipo são necessidades que o
selvagem possui. O terceiro tipo existe apenas em sociedade. Por isso, as únicas paixões
naturais que Rousseau chama de “princípios anteriores à razão” 4
são o amour de soi-
même (amor de si mesmo), que faz o homem velar por sua própria sobrevivência e bem-
estar, e a pitié (piedade), que gera repulsa ao ver o outro da mesma espécie sofrendo ou
morrendo, impedindo o homem de causar dano ao seu semelhante (ROUSSEAU,
1964a, OC, III, p. 126).
Este é um ponto central de divergência entre Hobbes e Rousseau. Para o
primeiro, a piedade é uma virtude ou lei moral que o homem só obedece quando se
sente seguro ou quando obrigado. Para o segundo, é um sentimento natural. É
principalmente por Hobbes não ter reconhecido a piedade como um sentimento natural
que Rousseau o confronta. Robert Wolker esclarece:

Rousseau acreditava que Hobbes, em especial, havia ignorado a pitié


ou compaixão natural dos homens por ter uma impressão equivocada
do amour de soi. Ele imaginara que os indivíduos, para preservarem a
sua existência, precisavam resistir aos ataques dos outros tentando
destruí-los, e assim, no estado de natureza, seria impossível ser
compassivo e, ao mesmo tempo, viver em segurança. Mas, para
Rousseau, cuidar de si não exclui a preocupação com o bem-estar dos
outros; pelo contrário, ele pensava que o desejo impiedoso de

4
No Ensaio sobre a origem das línguas, iniciado praticamente ao mesmo tempo do Segundo Discurso,
Rousseau afirma que a pitié (piedade) depende da reflexão, o que contradiz o inatismo do Segundo
Discurso. Nicholas Dent (2005) argumenta que como o Ensaio sobre a origem das línguas é inacabado
ele não deve ser tomado como referência. Esse tema é desenvolvido posteriormente no Emílio ou da
Educação, em que o genebrino reafirma o inatismo da piedade.

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segurança pessoal à custa de outrem dá origem apenas àquela vaidade


e desprezo que transformaram o mero estranho num inimigo [...] O
conceito hobbesiano de amour-propre, a vaidade, um sentimento
puramente relativo e artificial que, em sociedade, leva os indivíduos a
se exibirem, querendo parecer que são mais do que os outros, e dá
origem, como sugere Rousseau, ao “senso de honra” ao qual Hobbes
atribuía um papel tão central, e tão equivocado, na natureza humana
em geral (2012, p. 67, grifos do autor).

A honra ou glória, que Hobbes destaca como a paixão que causa a guerra, não é
um sentimento natural do homem, ao passo que a pitié, negada por ele para legitimar
um Estado mais coercitivo, é.
Rousseau considera que a concepção de natureza humana da qual Hobbes deduz
a ordem política não dizia respeito ao homem no estado de natureza, mas sim ao homem
após a instituição do Estado civil: era o homem civilizado que Hobbes tinha diante de
seus olhos. Portanto, a ordem política estabelecida por Hobbes é, para Rousseau,
equivocada.
É apenas quando os homens estabelecem um liame social mais forte, formando
laços de dependência e dando origem a novas necessidades que as paixões naturais
amour de soi-même e a pitié cedem lugar ao amour propre, paixão artificial.
No Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens
[1755], conhecido como Segundo Discurso, Rousseau comenta o surgimento do amour
propre:
Cada um começou a olhar os outros e a desejar ser ele próprio olhado,
passando assim a estima pública a ter um preço. Aquele que cantava
ou dançava melhor, o mais belo, o mais forte, o mais astuto ou o mais
eloquente, passou a ser o mais considerado, e foi esse o primeiro passo
tanto para a desigualdade quanto para o vício; dessas primeiras
preferências nasceram, de um lado, a vaidade e o desprezo, e, de outro
a vergonha e a inveja (1964a, OC, III, p. 169-170, grifo nosso).

Seguindo no Segundo Discurso, em uma eloquente passagem Rousseau


menciona o aspecto da sociedade nascente:

Assim, os mais poderosos ou os mais miseráveis, fazendo de suas


forças ou de suas necessidades uma espécie de direito ao bem alheio,
equivalente, segundo eles, ao de propriedade, seguiu-se à rompida
sociedade a pior desordem; assim as usurpações dos ricos, as
extorsões dos pobres, as paixões desenfreadas de todos, abafando a
piedade natural e a voz ainda fraca da justiça tornaram os homens
avaros, ambiciosos e maus (1964a, OC, III, p. 176, grifo nosso).

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Esse momento descrito no Segundo Discurso entre o início da sociedade e o


advento da autoridade política estabelecido pelo contrato fraudulento é, como afirma
Rawls (2012b), inspirado na concepção hobbesiana de estado de natureza, em que os
indivíduos são caracterizados pela irregularidade das paixões e pelo conflito. O que o
genebrino pretende mostrar é que a glória ou a vaidade é uma manifestação corrompida
do amour propre que existe apenas em sociedade e não pertence à constituição
primitiva do homem.
Nicholas Dent (2005) afirma que apesar de Rousseau enfatizar a manifestação
corrompida do amour propre no Segundo Discurso, o amour propre também possui
uma manifestação benéfica que, quando cultivada, possibilita a liberdade, a paz, a
virtude e a felicidade, sendo essa uma premissa para seu projeto pedagógico. Para Dent
(2005), o amour propre não precisa se manifestar como agressão, crueldade e desejo de
domínio ou como a vanglória hobbesiana. A principal exigência do amour propre
quando bem estimulado é receber o reconhecimento e o respeito das outras pessoas,
estabelecendo uma condição de respeito mútuo e igualdade. Por isso, Rousseau (1969,
OC, IV, p. 536) afirma que “o amour propre é um instrumento útil, mas perigoso”, pois
pode se manifestar como a vanglória hobbesiana ou como exigência de respeito mútuo e
igualdade.
Dent (2005, p. 149) nos convida a imaginar uma sociedade em que os indivíduos
não possuem amour propre:

Vamos considerar como as coisas iriam ficar se entrássemos em uma


associação que não possui uma igualdade fundamental de
reconhecimento e status oferecidos para cada um dos membros. Nesse
tipo de sociedade, haveria pequenas ou muitas distinções entre aqueles
que têm riqueza, poder, status, etc. e aqueles que não têm. O dano a
esse último grupo é óbvio. Eles não apenas sofreriam materialmente
de várias formas, eles seriam também marginalizados, com o
reconhecimento humano negado, não seria tratado como ‘uma parte
indivisível do todo’ mas na verdade seria dividido dele.

Uma sociedade como essa, em que o amour propre não se manifesta


corretamente, seria certamente um quadro semelhante ou pior do que aquele narrado no
Segundo Discurso, porque teria como consequência inevitável o domínio de pessoa ou
grupo sobre outras estabelecendo uma condição de escravidão e dependência.
Além disso, no Discurso sobre a economia política [1755], Rousseau afirma que
“não devemos desejar destruir neles suas paixões, e que a execução de um tal projeto

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seria tão indesejável quanto impossível. Conviria com tudo isso, sobretudo porque um
homem que não tivesse nenhuma paixão seria certamente péssimo cidadão” (1964b,
OC, III, p. 259).
Na Carta a D’Alembert [1755] Rousseau aponta que o meio pelo qual o governo
deve agir sobre os costumes é a opinião pública: e aqui, o amour propre manifestado
como honra e infâmia tem sua utilidade. O genebrino tem em mente um tribunal
público, ou uma corte de honra como ele próprio prefere chamar, onde os cidadãos
atuem como censores uns dos outros, agindo sobre duas paixões de seus concidadãos: a
honra e a infâmia. O medo ou reforço negativo são desnecessários. Se quisermos que
determinada pessoa tenha determinado tipo de comportamento devemos honrá-la, se
não, difamá-la.
Outro instrumento que devemos utilizar para manifestar o aspecto positivo do
amour propre é a religião civil, que é abordada no último capítulo Do Contrato Social.
Cada Estado deve ter seu próprio culto em que ocorre a sacralização das leis e dos
deveres, fomentando o amor à pátria e o respeito às leis e às autoridades, ligando
intimamente as leis e os costumes no coração dos cidadãos. Esse elo é impossível sem
as paixões. Esse vínculo entre leis e costumes resultará no direito consuetudinário, “que
não se grava no mármore nem no bronze, mas nos corações dos cidadãos; que faz a
verdadeira constituição de um Estado” (ROUSSEAU, 1964c, OC, III, p. 394).

Considerações finais

Uma das inovações feitas na filosofia por Thomas Hobbes deve-se ao


desenvolvimento de sua teoria das paixões humanas que resultou na refutação de um
pressuposto que até então era tido como certo. Santo Agostinho (1995) na sua obra O
livre-arbítrio, por exemplo, constata que o mau moral aparece no mundo quando os
homens obedecem a suas paixões ao invés de obedecer à razão.
Como bem observou Skinner (2010), um dos pontos capitais da teoria das
paixões humanas desenvolvida por Thomas Hobbes é a refutação desse pressuposto que
perdurou séculos:
Um dos pressupostos filosóficos de seu tempo, quase inquestionável,
era que os agentes autenticamente livres são invariavelmente movidos
a agir pela razão, enquanto oposta à paixão ou ao apetite. Era
amplamente aceito que agir impelido pela paixão não é agir como um

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homem livre, ou até mesmo agir especificamente como homem


(SKINNER, 2010, p. 44).

Esse pressuposto é refutado por Hobbes ao identificar o princípio do movimento,


o conatus, com as paixões, e por não conceber as paixões como um obstáculo a
liberdade humana. Se, por um lado, é devido à irregularidade das paixões que os
homens iniciam a “guerra de todos contra todos”, é também devido às paixões,
notadamente o medo e a esperança, que os homens instituem o Estado e estabelecem a
paz.
A teoria da soberania desenvolvida por Hobbes pode ser considerada absolutista,
entretanto, o Estado defendido por ele não pode ser considerado despótico ou totalitário
devido à centralidade dada ao medo. Se o medo é a paixão que nos impede de agir, o
Estado, valendo-se do medo da punição impede a infração e consolida a ordem política.
Ora, a soberania de acordo com Rousseau também é inalienável e indivisível
(Cf. ROUSSEAU, 1964c, OC, III, p. 368-369). A diferença em relação a Hobbes está
obviamente nas mãos de quem a soberania se encontra e como se da o controle do
mecanismo das paixões.
A primeira inovação feita por Rousseau no que concernem as paixões humanas
foi em estabelecer uma relação entre as necessidades e as paixões ignorada por Hobbes,
que identificava a origem das paixões na sensação. Desse modo, os selvagens possuindo
poucas necessidades possuíam, consequentemente, apenas duas paixões naturais: amor
de si mesmo e a piedade.
Como resultado, enquanto que Hobbes destaca o medo, a glória e a esperança,
Rousseau destaca a piedade, o amor de si e o amor próprio, sendo a última a origem das
paixões nocivas que suscitam o conflito entre os homens.
A outra diferença está nos recursos que o genebrino utiliza para controlar as
paixões. Enquanto Hobbes aposta no medo e na educação, Rousseau aposta na educação
negativa, na opinião pública e na religião civil para impedir a manifestação corrompida
do amor próprio.
Por conseguinte, a piedade, o amor de si e o amor próprio quando corretamente
estimulado, são essenciais para que tenhamos relações humanas benéficas e para que se
consolide uma condição de igualdade e respeito mútuo.

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Referências

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www.marilia.unesp.br/filogenese 115

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