Você está na página 1de 187

2777.

BK Page 1 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

UNIVERSIDADE METODISTA DE PIRACICABA

VOLUME 9 • 1996 • ISSN 0103-7676

Revista de Ciências Sociais

O DIREITO
NOS ANOS 90

20
impulso ISSN 0103-7676  PIRACICABA/SP  VOLUME 9  Nº 20  P 1-184  1997
2777.BK Page 2 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

UNIVERSIDADE METODISTA DE PIRACICABA


Reitor EDITORA UNIMEP
CONSELHO DE POLÍTICA EDITORIAL
ALMIR DE SOUZA MAIA Almir de Souza Maia (presidente)
Antonio Roque Dechen
Vice-Reitor Acadêmico Casimiro Cabrera Peralta
Davi Ferreira Barros
ELY ESER BARRETO CÉSAR Elias Boaventura
Ely Eser Barreto César (vice-presidente)
Francisco Cock Fontanella
Vice-Reitor Administrativo Gislene Garcia Franco do Nascimento
José Antonio Arantes Salles
GUSTAVO JACQUES DIAS ALVIM José Ranali

impulso
REVISTA DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS
da Universidade Metodista de Piracicaba
Volume 9  1996  Número 20
COMISSÃO EDITORIAL
Elias Boaventura (presidente)
Elizabeth Maria Alcântara
Marcelo Fabri
Maria Thereza Miguel Peres
Valdemar Sguissardi
EDITOR
Heitor Amílcar da Silveira Neto (MTb 13.787)
A revista IMPULSO é uma publicação quadrimestral Impulso is a journal focused on social sciences published three
da Universidade Metodista de Piracicaba, produzida pela times a year by Universidade Metodista de Piracicaba (São Paulo
Editora UNIMEP. – Brazil). It contains papers on scientific and technological
issues. See abstracts in the end of this journal. Editorial norms
for submission of articles can be requested to the Editor.
As opiniões expressas nos artigos, tanto os encomendados
como os enviados espontaneamente, são de responsabilidade Impulso é indexada por – Impulso is indexed by
dos seus autores. Base de Dados do IBGE; Bibliografia Bíblica Latino-
Americana; Índice Bibliográfico Clase (UNAM);
Sumários Correntes em Educação.
ASSINATURAS, REDAÇÃO E EQUIPE TÉCNICA
ADMINISTRAÇÃO Edição executiva: Heitor Amílcar da Silveira Neto e Israel Belo
Rodovia do Açúcar, km 156 de Azevedo
13400-901 – PIRACICABA (SP) Assistência editorial: Francisco Cock Fontanella
Telefone: (019) 422-1515 (ramal 134) Secretaria editorial: Geci Souza Silva
Capa: Genival Cardoso
Fax: (019) 422-2500 Imagem: Stock Photos
E-mail: editora@unimep.br Impressão da capa: Gráfica Editora Camargo Soares
Supervisão gráfica: Carlos Terra
DTP e produção: Gráfica Unimep
Impressa em Duplicadora Digital Xerox Docutech 135
HOME PAGE UNIMEP
http://www.unimep.br EDITADA EM SETEMBRO /1997
2777.BK Page 3 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

O Direito nos Anos 90


O Direito dos anos 90 nos deixa uma dúvida e nos impõe uma dificuldade. O jurista
brasileiro, adepto de um formalismo exacerbado, preso ao positivismo jurídico, não
parou para avaliar as conseqüências sociais desta limitação e insiste em tratar o Estado
Democrático de Direito brasileiro com instrumentos inadequados.
No momento de romper com as ilusões do Direito clássico, alguns poucos se sujei-
tam a deixar o ontologismo, mas o fazem com restrições, temerosos que venha a lume
uma crise que persegue nosso Direito e, com instrumentos puramente pragmáticos, ten-
tam criar espantalhos revestidos de ideologias superadas para aparentar harmonia,
onde só existe confrontação.
De um lado, há o recurso aos princípios do processo, como forma de acelerar a
aplicação da justiça, numa tentativa de torná-la acessível a todos, e diante da crise de
legitimação, procuram justificar a ampliação da máquina Estatal. Este caminho, palia-
tivo, se mostra saturado em pouco tempo. Faltam fundamentos e propostas sérias para
serem enfrentados os problemas de uma sociedade complexa e mutante, que não mais
admite a universalidade imperativa dos preceitos normativos.
A dignidade da pessoa humana não tem conceitos absolutos, apriorísticos, que pos-
sam ser impostos como o caminho real e concreto para os objetivos do homem. Há um
consenso entre os homens, que decorre da consciência do seu papel na construção desta
sociedade, presente e futura, o da necessidade de reconhecimento de seus direitos huma-
nos por órgãos legítimos e confiáveis.
A base de toda esta reestruturação, o mínimo exigido para que possamos enfrentar
os novos tempos, está na Universidade. A reformulação do ensino, com novas metodolo-
gias, novas visões críticas que nos permitam compreender o Direito e adequá-lo à vida
social moderna.
As publicações científicas, como esta, possibilitarão amplos debates sobre os rumos
do Direito, num compasso uniforme, ou bem próximo do contexto social.
Do contrário, continuaremos mantendo a aparência de legitimidade e de justiça,
fundada num pseudo saber atual, produto das migalhas que recebemos do continente
europeu.

A. L. CHAVES CAMARGO
2777.BK Page 4 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

SUMÁRIO

O DIREITO NOS ANOS 90

7 Reforma curricular:
perfumarias fundamentais
ALOYSIO FERRAZ PEREIRA

15 Leituras e debates em torno da


interpretação no Direito Constitucional
nos anos 90
JOSÉ RIBAS VIEIRA

21 Do processo legislativo:
breves considerações
JOÃO MIGUEL DA LUZ RIVERO

31 Filosofia do Direito em Habermas


JOÃO BOSCO DA ENCARNAÇÃO

39 A teoria da Justiça de
John Rawls e algumas dificuldades:
uma leitura
JORGE ATÍLIO SILVA IULIANELLI

57 O método do Direito:
questões de lógica jurídica
ERCÍLIO A. DENNY

67 Segurança pública e garantias individuais


sob a ameaça da criminalidade comum e
organizada, na visão de Winfried Hassemer
SAMUEL ZEM
2777.BK Page 5 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

81 Bases do Direito Penal no


Estado Democrático de Direito
A. L. CHAVES CAMARGO

95 A relevância causal da omissão


EDUARDO SILVEIRA MELO RODRIGUES

123 Limitações ao poder punitivo do Estado


EDSON JOSÉ MENEGHETTI

137 Sistemas de transmissão


do Direito de Propriedade:
um estudo no Direito Alemão
VICTOR HUGO TEJERINA VELÁSQUEZ

159 União estável:


antiga forma de casamento de fato
ÁLVARO VILLAÇA AZEVEDO

RESENHAS
169 O direito à vida
JOSÉ RENATO SCHMAEDECKE

RESUMOS/ABSTRACTS
173 Resumos/abstracts
2777.BK Page 6 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM
2777.BK Page 7 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

REFORMA CURRICULAR:
PERFUMARIAS FUNDAMENTAIS
ALOYSIO FERRAZ PEREIRA

O Ministério da Educação baixou, a 30 de dezembro de


1994, a portaria nº 1886, que “fixa as diretrizes curriculares e o
conteúdo do curso jurídico” no Brasil em nível de graduação.
No artigo 6º classifica e enumera, sob a denominação de
“matérias fundamentais”, as seguintes: Introdução ao Direito,
Filosofia (Geral e Jurídica; Ética Geral e Profissional), Sociologia
(Geral e Jurídica), Economia e Ciência Política (com Teoria do
Estado).
Ao lado dessas, a Portaria refere outra classe de matérias, as
“profissionalizantes”, tradicionalmente chamadas “jurídicas”. Com
exceção de Introdução ao Direito, as primeiras não podem, a rigor,
ser qualificadas de jurídicas e passam, portanto, agora a ser legal-
mente consideradas fundamentais ao ensino dos cursos jurídicos.
São profissionalizantes, segundo a nova norma, os Direitos
Constitucional, Civil, Administrativo, Tributário, Penal, Processual
Civil, Processual Penal, do Trabalho, Comercial e Internacional.
Além disso, a portaria modifica substancialmente o sistema
de avaliação do trabalho discente ao estabelecer no artigo 9º: “Para
conclusão do curso, será obrigatória apresentação e defesa de
monografia final, perante banca examinadora, com tema e orienta-
dor escolhidos pelo aluno”.
Essas “diretrizes curriculares” (art. 16) “são obrigatórias aos
novos alunos matriculados a partir de 1996 nos cursos jurídicos que,
no exercício de sua autonomia, podem aplicá-los imediatamente”.
Outras modificações foram igualmente introduzidas pela norma.

impulso 7
2777.BK Page 8 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

O curso jurídico de graduação se completará “em pelo menos


cinco e no máximo oito anos letivos”. A função prática do ensino
mereceu, na lei, cuidadosa regulamentação referente ao estágio
supervisionado. O texto legal informa também que o seu teor se
apoia no “que foi recomendado nos Seminários Regionais e Nacio-
nal dos Cursos Jurídicos, e pela Comissão de Especialistas de
Ensino de Direito, da SESU-MEC”. Neste artigo, porém, se há de
focalizar tão somente a transformação legal no que toca às duas
grandes classes das matérias a serem ensinadas em graduação.

PRIMEIRA REAÇÃO
Na primeira reação à portaria ministerial se constata já, em
algumas universidades, no terreno do imediatismo corporativo,
sob a forma de disputa em torno da questão de se saber se as dis-
ciplinas não-jurídicas – filosofia geral e jurídica, ética geral e pro-
fissional, economia e ciência política (com teoria do Estado) –
devam ser ensinadas por professores juristas ou por não-juristas,
que as lecionam em outras unidades destinadas propriamente ao
seu cultivo. Assim, por exemplo, na Universidade de São Paulo,
filosofia, ética e sociologia gerais, ciência política (com teoria do
Estado) e economia deveriam ser confiadas a docentes que as pro-
fessam na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, e a
última, na de Economia e Administração.
Observe-se que, na Faculdade de Direito da USP, a sociolo-
gia geral já é ensinada por professor indicado pela Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, mas a filosofia do direito foi
sempre entregue a professores da casa, desde a sua fundação, há
168 anos. Parece-me correto confiar as disciplinas não-jurídicas a
professores das áreas que propriamente as incluem: filosofia geral,
sociologia geral, ética geral, economia e ciência política, dei-
xando-se ao curso jurídico: filosofia do direito, sociologia jurídica,
ética profissional e teoria do Estado. Embora a filosofia do direito
e a sociologia do direito não sejam, a rigor, jurídicas – pois são
apenas a filosofia e a sociologia tout court enquanto se voltam para
os fenômenos jurídicos, tomando-os como objeto de sua preocu-
pação e exame, segundo a abordagem que lhes é peculiar –, é pru-
dente serem ensinadas por juristas que tenham também formação
ou estudos aprofundados de filosofia e sociologia. A ética geral,
matéria filosófica entre as que mais o são, segue o destino de sua
matriz, a filosofia, mas a profissional deve atribuir-se a jurista, pois
supõe-se que este domine nos detalhes, as suas regras, implicações

8 impulso
2777.BK Page 9 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

e natureza, cujos problemas pedem vivência na prática operativa


do direito.
A filosofia do direito é bom, seja mesmo confiada a jurista-
filósofo, isto é, jurista que medita e pensa o direito criticamente
como filósofo. Isto não quer dizer que não possa este assunto ser
professado por filósofo-jurista, como disto a história dá testemu-
nho nos casos de Aristóteles, Tomás de Aquino, Hobbes, Rous-
seau, Kant, Hegel, Marx e outros, que influíram profundamente no
direito, embora não militassem em profissão jurídica nem lecio-
nassem direito. De resto, o desamor que o jurista médio, em sua
maioria, manifesta à filosofia, aconselha preferir a sua atribuição
ao filósofo, sobretudo se se tem em conta a inexistência de filoso-
fia no curso de humanidades.
A ciência política e a economia, como é óbvio, são matérias
intimamente ligadas ao direito enquanto fenômeno e como conhe-
cimento prático ou teórico. A respeito, temos o exemplo do que, há
décadas, acontece na Europa, onde várias faculdades de direito são,
ao mesmo tempo, de ciências políticas ou econômicas ou sociais.
Têm então, em sua própria estrutura pedagógica e em seus quadros,
os recursos necessários a se proverem de docentes em política,
economia e sociologia. Quanto à “teoria do Estado” (entende-se:
teoria geral do Estado é disciplina que, nas escolas de direito, tem
sido sucedânea à da ciência política, incluindo esta última ao lado
de outras como filosofia e sociologia políticas, história institucio-
nal, áreas comuns ao direito, etc. A sua adoção como obrigatória na
quase unanimidade dos currículos, entre nós, constitui prova do
reconhecimento da relação congênita que interliga política e
direito; sem falar da história dos cursos jurídicos no Brasil, onde as
academias de Recife e São Paulo sempre manifestaram fortíssima
vocação política, pelo menos enquanto não existiram universida-
des ou escolas destinadas especificamente aos estudos políticos e
sociais. Mas deixemos aí essa questão entregue à rixa entre os inte-
ressados em melhorar o próprio salário ou currículo.

SEGUNDA REAÇÃO
Outra reação à portaria ministerial nº 18.886 parte, para usar
termo simplificador, do técnico do direito. O espectro de suas
modalidades vai do rábula portador de diploma ao legista traves-
tido de kelseniano. De um lado, a técnica tem seu lugar próprio na
atividade jurídica, mas sua função é subordinada ou preordenada
aos fins a que tem de servir. De outro lado a técnica resulta de

impulso 9
2777.BK Page 10 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

condições e causas que a abrangem e ultrapassam, de princípios


que estão fora do seu campo visual. Contentar-se com ser técnico
em direito significa limitar-se ao empírico utilitário, renunciar à
racionalidade científica e à lúcida compreensão do direito em seu
contexto social, existencial e ontológico. Esta compreensão
revela-se indispensável ao próprio exercício das profissões jurídicas.
Limitar-se à técnica seria resignar-se a agir e trabalhar como disse
fazê-lo aquele inseto que Machado de Assis imaginou interpelar:
“Meu senhor, respondeu-me um longo verme gordo, nós não sabe-
mos absolutamente nada dos textos que roemos, nem amamos ou
detestamos o que roemos: nós roemos”. 1
Os que se autodenominam técnicos ainda demonstram algum
espírito crítico. Mas, os que pretendem o título de professor,
quando, na realidade jurássica não passam de técnicos da espécie
normativista, estes só podem mesmo espantar-se diante da portaria
inovadora e combatê-la e rejeitá-la. Estes são os costumeiros adver-
sários de filósofos e sociólogos, a manifestarem agora, no limiar
desta reforma do ensino jurídico, a mesma incompreensão que,
quinhentos anos antes de Cristo, Heráclito de Éfeso agredia, no seu
obscuro estilo: “os cães ladram contra os que não conhecem”.
Mas é tempo de mostrar aos tecno-juristas, ou “juristas”,
que houve um juiz mineiro, ministro do Supremo Tribunal Fede-
ral, professor de filosofia na Faculdade do Largo de São Fran-
cisco, chamado Pedro Lessa, que afirmou, e conseguiu demons-
trá-lo com facilidade, que o direito só será ciência quando sua
elaboração e aplicação resultarem do trabalho científico da socio-
logia (em sentido amplo) e da reflexão crítica da filosofia. 2 Não
se diga que Lessa é antigo e Kelsen, atual. A primeira edição dos
Estudos é de 1911, mas a segunda foi revista e veio à luz em
1916. Abrindo o prefácio à primeira edição de sua Teoria pura
(1934), Kelsen informava: “Há mais de duas décadas empreendi
desenvolver uma teoria jurídica pura”. Isto equivale a dizer que a
teoria pura data da mesmíssima época em que Pedro Lessa publi-
cava a sua obra principal...
Os tecno-juristas definem-se como aqueles operadores e teó-
1 Dom Casmurro, cap. XVII. ricos que reduzem a disciplina direito “à análise do Direito positivo
2 LESSA, Pedro. Estudos de filo- como sendo a realidade jurídica”. 3 Circunscrevem-na à dogmática
sofia do Direito. São Paulo, 1916. jurídica que, como “o indica a própria expressão, tem por objeto o
3 KELSEN. Teoria pura da di-
reita. Prefácio à 2ª ed. e início
dogma do direito, (...) isto é, as leis (no sentido técnico, especial,
do cap. I. do termo)”, “normas para fins práticos, que se impõem à vontade.

10 impulso
2777.BK Page 11 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

Não se confundem com as afirmações científicas, que se dirigem à


inteligência”. 4
O direito positivo (um código, uma lei extravagante, etc.)
encerra um conjunto de preceitos ou regras, “imposto à atividade
voluntária do homem”, pelos quais “se ordena que se faça, ou
deixe de fazer, alguma coisa”. A dogmática jurídica, enquanto
explanação da arte do direito positivo e a “teoria pura”, como
exposição da “análise” do mesmo direito, constituem, no mínimo,
uma tecnologia e, no máximo, uma dialética do tipo retórico tradi-
cional. Confundi-las com a ciência é, para usar a expressão de
Lessa, “desconhecer um dos mais vulgares elementos da lógica”. 5
Todavia, as leis, as “normas de conduta, os preceitos artísti-
cos, não podem deixar de ter por base verdades científicas”. “Aqui
passamos para o domínio da ciência”. Resumindo Pedro Lessa: 6 as
leis jurídicas estão sujeitas a leis “no sentido em que o termo é
empregado pelos cultores de todas as ciências”. 7 Também nós juris-
tas podemos, ao fazer as leis jurídicas, “observar os fatos sociais e
formular as leis a que estão subordinados, determinar o que há de
constante e necessário na sua produção”. 8
Assim, na perspectiva de Lessa, o que hoje predominante-
mente se ensina como direito (disciplina escolar teórico-prática)
nos cursos jurídicos do Brasil (como também em outros países) e
o que ainda agora se publica como tal, não constituem ciência, já
no sentido em que a entendia o jurista-filósofo brasileiro.
As “leis devem ser formuladas de acordo com a teoria cientí-
fica do direito. À consagração em disposições legais preexistem
lógicamente os direitos, estudados e reconhecidos pela ciência
jurídica”. 9 E Pedro Lessa conclui: “a filosofia do direito é a síntese
final dessa ciência”.
Dir-se-ia que a portaria ministerial de 30 de dezembro de
1994 tem por objetivo, no essencial, realizar, com um atraso de 79
anos, o projeto de Pedro Lessa: conduzir o ensino à concepção
teórica e à atividade prática de uma verdadeira ciência do direito.
E, para alcançar esse fim, elegeu os meios: as disciplinas que
donomina fundamentais, entre as quais inclui – fato inédito na
4 LESSA, Pedro, op. cit., p. 66.
legislação federal – filosofia, sociologia, ética e ciência política.
5 LESSA, Pedro, op. cit.
Sob reserva de um reforço de subsídios, também atuais e
6 LESSA, Pedro, op. cit., p. 77
variados (incabíveis neste espaço), já é possível afirmar, sem exa-
gero ou contundência, que se vai tornando irresponsável, quando 7 LESSA, Pedro, op. cit.
não hilariante, o desespero dos defensores do positivismo tecno- 8 LESSA, Pedro, op. cit.
jurídico, ao apostrofar as “perfumarias jurídicas”. 9 LESSA, Pedro, op. cit., p. 86.

impulso 11
2777.BK Page 12 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

Instalados com segurança na civilização do capital e do con-


sumo, os tecno-burocratas do direito exigem a manutenção do esta-
blishment jurídico, a perpetuação do status quo no seu aparelho
ideológico universitário e a conservação do Estado burguês de
direito. Ao seu olfato, as perfumarias, tornadas obrigatórias pela
portaria, ameaçam o ensino do direito com uma perigosa exalação
do veneno crítico, componente necessário da filosofia, da livre pes-
quisa e da reflexão científica. A tecno-burocracia, no ramo da peda-
gogia jurídica, quer cumprir a sua sagrada missão de reproduzir a
ordem lógico-teológica, aquela imutável estrutura piramidal que,
assentada na base sobre as sentenças judiciais, é aureolada, no vér-
tice, por um único mandamento “divino”: pacta sunt servanda.
Percebendo que se movem na direção da história, os técno-
juristas se agitam contra legem, contra o estatuto científico do seu
mester, enfim contra a filosofia, esse cavalo de Tróia que a portaria
vem de introduzir dentro dos muros da cidadania neo-liberal, para
dispersar o seu devaneio social-democrático.
E até um professor de escatologia, que outrora viemos a
conhecer, apostaria hoje em que a reforma ministerial será revo-
gada, por razões contrárias às dos tecno-juristas, aflitos por abolir
as perfumarias. O nosso escatologista diria que todos nós, homens
comuns, sociólogos, filósofos, juristas, professores, sendo apenas
seres-humanos, seguimos fatalmente para o nada, aonde nos leva
este caminho errado chamado história, processo inelutável do nii-
lismo, destino da civilização tecno-cristã. Ele diria ainda que con-
tinuamos em perigo e que não há sinal de salvação. A portaria, lei
precária humana, deve pois cair sob o rolo compressor da técnica
e, se vingar, terá a aplicação disfigurada, quiçá oposta às intenções
transformadoras que lhe deram origem e sentido.

TERCEIRA REAÇÃO (CONCLUSIVA)


E eis que aí uma terceira reação à portaria ministerial nos
pareceu observável, na qual convergem, de uma parte, juristas de
atualizada formação humanística e larga experiência profissional
e, de outra, sociólogos, filósofos e historiadores, atentos aos desen-
volvimentos do direito e do seu ensino, capazes de penetrante
compreensão da sua significação e papel. Com as opiniões e refle-
xões que externaram, interpretando a portaria, é possível, quem
sabe? modelar representativamente uma figura escultural 10 do
10 Existindo no espaço, na luz e
no tempo, a estátua contém uma
jurista, para servir de paradigma aos professores de direito, por defi-
infinidade de perfis ou de faces. nição dedicados a formar e instruir conscienciosamente os alunos.

12 impulso
2777.BK Page 13 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

Quer dizer: formar juristas cientes da situação profissional e polí-


tica em que se encontram, conscientes do dever moral ou religioso
que assumem, preocupadamente cônscios de que, no âmbito que a
liberdade concede a cada um, avançam abertos à realização da ver-
dade, disponíveis para o seu destino.
A partir dessa metáfora plástica, cabe observar que não há
um único perfil de jurista ou do jurista, como frequentemente se
supõe ou se propõe. Os Romanos tinham perfeita noção de que
havia, entre eles, pelo menos, dois perfis ou duas faces diferentes
de jurista: o perfil do advogado e o do jurisprudente: Cícero e Hor-
tênsio, por exemplo, realizavam o primeiro perfil, Labeão e Papi-
niano, entre outros, respondiam ao perfil de jurisprudente. Uma
faculdade de direito deve pois ter em mira uma série aberta de
paradigmas ou perfis: juiz e legislador, assessores e auxiliares de
um e de outro, delegados de polícia, com seus escrivães e funcio-
nários, advogados das mais variadas especialidades e funções... A
luz gira e circula sobre a efígie do jurista: seu perfil muda no pas-
sar do tempo, no deslocar-se do observador à sua roda. Deixemos
também à espontaneidade, à vocação e à liberdade dos alunos a
escolha do perfil que projetam. Apegar-se ou impor um só perfil
de jurista na universidade seria dirigismo totalitário, como ao
tempo de Stalin e de Hitler.
Mas é tempo de parar aqui estas considerações, para voltar
nosso enfoque à portaria em questão. Com ela, depois dela, “cessa
tudo quanto a antiga musa canta”: legem habemus. Só nos restava,
antes de cumprí-la, interpretá-la. Questão de hermenêutica, só...
A portaria tem por fim, evidentemente, operar profunda
transformação no ensino do direito e na formação dos seus opera-
dores, noutras palavras, dos juristas. Este fim pedagógico preor-
dena-se, como meio, a objetivo de valor social, político e humano
superior: a transformação do próprio direito, como instrumento de
mudança e atualização de toda a sociedade brasileira e da nação,
que têm necessidade de justiça. Ora, para alcançar esses objetivos,
tão desejados por todo o povo brasileiro, é necessário elaborar e
manter um direito dinâmico, o mais possível adequado à realidade
econômica, social e política. Para isso é indispensável a ação
incessante das ciências sociais, postas a serviço da criação de um
direito justo e da manutenção de um aparelho judicial lúcido e atu-
alizado. E é indispensável também, e principalmente, o exercício –
a nível do ensino jurídico universitário – da crítica filosófica livre
e permanente. Tais desideratos só se atingem, a nível universitário,

impulso 13
2777.BK Page 14 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

pela conexão entre as ciências sociais e o conhecimento jurídico,


em seus aspectos teórico e prático. Cabe à filosofia o papel de
coordenar e julgar, dialética e criticamente, as interrelações entre
aquelas ciências e o direito, entre as suas visões do real, prepa-
rando-se o terreno a opções e projetos coletivos, inclusive os pla-
nos econômicos e políticos. Tal é o sentido profundo e determi-
nante da portaria em exame. Se os fins são esses, os principais
meios consistem: 1º no ensino desenvolvido das denominadas
“disciplinas fundamentais”, ao lado das “profissionalizantes”; 2º
na implementação da estrutura de preparação e realização da
prova monográfica; e 3º na instauração do estágio prático supervi-
sionado.
Eis aí o caminho que sabiamente a portaria elegeu para liber-
tar o nosso direito do empirismo, da improvisação, do imobilismo,
da ignorância e dos interesses criados em benefício das elites retró-
gradas, com sua tradicional clientela de bacharéis. Essa lei é uma
rara oportunidade de contribuir para superar a trágica e histórica
inércia de uma “sociedade nacional” de desigualdades e injustiça.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
LESSA, Pedro. Estudos de filosofia do Direito. São Paulo, 1916.
KELSEN, H. Teoria pura do direito. Coimbra: Martins Fontes.
Prefácio à 2ª ed. e início do cap. I.

14 impulso
2777.BK Page 15 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

LEITURAS E DEBATES EM
TORNO DA INTERPRETAÇÃO
NO DIREITO CONSTITUCIONAL
NOS ANOS 90 *
JOSÉ RIBAS VIEIRA

Uma reflexão a respeito da temática de interpretação consti-


tucional vem sendo suscitada, nos últimos tempos, por algumas
dinâmicas importantes.
Podemos, por exemplo, compreendê-la pelo novo papel
advindo com a presença do Judiciário na atual crise do Estado e da
própria ordem política. Assiste-se, assim, a um processo de juris-
dicização de todo o discurso político. Lembra Antoine Garapon, 1
por exemplo, como as reivindicações políticas estão materializa-
das, hoje, numa mensagem nitidamente jurídica de luta por direi-
tos individuais e coletivos. Seguindo ainda a lição do referido
autor francês quanto ao fenômeno da jurisdicização do discurso
político, encontramos como no nosso quotidiano social são incor-
poradas categorias próprias do universo do Direito, a saber: impar-
cialidade, transparência, contraditória, argumentação, etc.
Acresce a esse contexto da presença do Judiciário o fato de
que vivenciamos uma ordem internacional articulada a uma força * Palestra proferida no Progra-
de integração econômica e política a qual jamais foi presenciada. ma de Pós-Graduação de Direito
UNIMEP, em 29 de maio de
Nesse quadro integracionista, pode ser visualizado o que ocorre na 1996.
União Européia com a existência de um Direito Comunitário em 1 GARAPON, Antoine. Le Gar-
cujo âmbito institucional a ordem estatal fica enfraquecida. Quanto dien des promesses. Justice et
Démocratie. Paris: Odile Jacob,
a esse caso específico, mais uma vez, o Direito e o Judiciário 1996, p. 41.

impulso 15
2777.BK Page 16 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

(o Juiz Nacional) passam a ser mecanismos necessários de arti-


culação entre o Estado e a ordem jurídica supra-nacional (no caso
a União Européia). Garapon na sua obra citada observa, também,
que o impulso integracionista via Direito Comunitário tem servido
como elemento para estabelecer, pela primeira vez, uma comuni-
cação e transmigração de institutos e experiências jurídicas de
caráter inédito.
Na sociedade brasileira, é fácil constatar também a presença
em todos os níveis de nossa vida social dessa jurisdização do dis-
curso político. Convivemos também, tanto pela força da vigência
da própria Constituição Federal de 1988, quanto dos resultados de
um processo de profunda integração econômica em escala mun-
dial (globalização), com fenômeno da recepção e interrelaciona-
mento de novos institutos jurídicos.
Não precisaríamos aprofundar mais a nossa análise para indi-
car que se depara, atualmente, com uma nova forma de dizer o
direito. Este surge com toda a pujança não de uma estrutura codi-
ficada, mas sim de uma perspectiva, cada vez maior, de sentido
jurisprudencial. Sem dúvida nenhuma, nesse quadro de valoriza-
ção de papel do juiz há um fortalecimento da força dos instrumen-
tos interpretativos.
Dentro desse retorno da importância jurídica, temos de reco-
nhecer a posição de destaque que ocupa o Direito Constitucional.
Essa presença central desse campo de conhecimento deve-se, entre
outros fatores, à relevância assumida pelos textos constitucionais
como elementos irradiadores de toda a vida social. 2 Não podemos
esquecer, também, que determinados institutos ou princípios cons-
titucionais passaram a ser norteadores para a própria resolução de
conflitos. É o caso, por exemplo, da posição de grandeza como
assume o princípio da proporcionalidade para dirimir e limitar as
diferenças de aplicações normativas.
2
Em conseqüência do espaço ocupado pelo Direito Constitu-
V. a obra de HESSE Konrad.
Derecho Constitucional y Dere- cional dentro desse universo social crescente de jurisdicização, a
cho Privado. Madrid: Civitas metodologia da interpretação constitucional vem merecendo um
S.A., 1995; na qual esse consti-
tucionalista alemão discute, por maior destaque de atenção. Tal fato materializa-se na importância
exemplo, a invasão dos parâ-
metros do texto constitucional assumida pela jurisdição constitucional via modelo concentrado de
no campo do Direito Privado. controle de constitucionalidade dos Tribunais Constitucionais.
Assim, ele aponta alguns critéri-
os para diferenciar a ordem jurí- Vale sublinhar que o fenômeno social da jurisdicização e o
dica privada do Direito Consti-
tucional. alargamento da presença do Direito levam Antoine Garapon 3 a
3 V. GARAPON, Antoine, op.
manifestar a sua preocupação quanto a um paradoxo. Neste
cit. momento, as ordens jurídicas articuladas com um de seus operadores

16 impulso
2777.BK Page 17 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

principais, que é o juiz, desempenham uma função essencial de


assegurar o processo democrático, ao reconhecer direitos individu-
ais ou coletivos pleiteados pelos cidadãos. Entretanto, há um risco
sério, no sentido da continuidade dessa autonomização do direito e
do avanço da prestação jurisdicional em todos os níveis da socie-
dade, de virmos a assistir a substituição do jogo democrático pelo
império da estrutura jurídica. Devemos acrescentar as ponderações
de Garapon à indagação de como poderemos equilibrar o mundo
legal para evitar o enfraquecimento do quadro democrático.
Sem dúvida nenhuma, a interpretação constitucional através
de sua jurisdição própria é um exemplo concreto da validade da
reflexão levantada pelo mencionado estudioso francês. 4 Assim,
privilegiaremos os métodos interpretativos constitucionais para
responder a esse nosso questionamento.
Com esse intuito é que nós pretendemos discutir as próximas
etapas de nossa análise, direcionando o problema da interpretação
constitucional sob duas perspectivas: 4 LARENZ, Kark. Metodolo-
gia da Ciência do Direito. 2ª ed.
• a sua finalidade; e Lisboa: Fundação Calouste Gul-
• a delimitação de seus limites e atores. benksian, 1989. Kark Larenz
lembra que, de um lado, a inter-
pretação constitucional não se-
diferencia em substância dos
A FINALIDADE DA INTERPRETAÇÃO outros critérios de interpretação,
mas, de outro lado, aquela forma
CONSTITUCIONAL interpretativa apresenta uma re-
Numa postura tradicional e de fundamentos dentro de uma percursão diferente de metodo-
logias de compreensão de outras
roupagem de liberalismo, a interpretação constitucional foi sempre disciplinas do direito.
enquadrada no sentido de estabelecer uma adequação da lei ou do 5 Cabe observar que o nosso
ato administrativo ao texto constitucional. Nessa linha de raciocí- Supremo Tribunal Constitucio-
nal, mesmo após a ampliação
nio, esse entendimento reduzia a metodologia interpretativa cons- de suas competências de con-
trato da constitucionalidade, a
titucional e o seu instrumento de viabilização (Jurisdição Constitu- partir da Constituição Federal
cional) a um mero exame da noção de supremacia da norma cons- de 1988, está adstrito, ainda, a
essa posição clássica da preva-
titucional dentro da ordem jurídica. 5 lência pura e simples do Texto
Constitucional.
Entretanto, em razão do caráter mais arrojado da jurisdição 6 Vide SCHNEIDER, Hans Pe-
constitucional em nossos dias e de uma definição mais ampla do ter. Democracia y Constitución.
sentido do Texto Constitucional, 6 a interpretação constitucional Madrid: Centro de Estudios
Constitucionales, 1991. Aqui, o
passou a assumir um aspecto teleológico dentro da estrutura nor- autor define a Constituição atra-
vés de três estruturas: a pro-di-
mativa de sua dinamização e de adequação constante com a pró- nâmica (que tem de estar adap-
pria realidade social. Daí, é pertinente lembrar, agora, das inquie- tada à realidade social); a pro-
gramática (estabelecendo uma
tudes levantadas por Antoine Garapon de contarmos com um utopia social); e a fragamentária
(na qual, ao estar aberta à socie-
Direito e um de seus operadores (no caso o Juiz Constitucional) dade, cabe à jurisdição constitu-
que passariam a substituir, perigosamente, o próprio sistema cional compatibilizar seus prin-
cípios, lacunas e conflitos nor-
democrático. mativos constitucionais).

impulso 17
2777.BK Page 18 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

LIMITES E ATORES DA INTERPRETAÇÃO


CONSTITUCIONAL
Dentro de uma perspectiva de mapeamento das leituras e dos
debates da metodologia interpretativa constitucional, podemos
visualizar que há dois conjuntos teóricos para a análise de suas
contribuições: o de base norte-americana e o de origem alemã.
Todos esses dois sistemas interpretativos postam-se diante de
uma reflexão com o objetivo de perquirir quais seriam as delimita-
ções possíveis da função interpretativa em relação à norma consti-
tucional. Na lição de J. H. Ely, 7 teríamos nos Estados duas corren-
tes: uma de caráter interpretativista, de não só adotar os métodos
clássicos de interpretação, como também, de procurar respeitar ao
máximo os parâmetros da norma constitucional; a outra de um
perfil não interpretativista estando voltada para buscar uma com-
preensão da norma constitucional além de suas fronteiras. Nessa
linha não interpretativista, por exemplo, está Ronald Dworkin, 8 o
qual defende uma adequação do texto constitucional norte-ameri-
cano a padrões morais dentro do que esse estudioso denomina do
conjunto amplo do Bill of Rights. Na teoria alemã, essa delimita-
ção de interpretativista e não interpretativista aparece em relação
àqueles constitucionalistas que estariam mais vinculados a uma
visão tradicional de metodologia interpretativa na esteira de
Savigny, ou aqueles que estariam mais abertos à sociedade através
das posições do jurista alemão Smend, defendidas na República de
Weimar nos anos 20.
Contudo, não se trata apenas de apontar esses marcos restri-
tivos da interpretação constitucional, é necessário, ainda, delimitar
quem são os seus reais participantes. Dentro desse raciocínio, tere-
7ELY, J.H. Democracy and
Distrust; a theory of Judicial
mos os questionamentos se a metodologia de entendimento da
Review. Cambridge: Harvard norma constitucional deva estar meramente resumida aos contor-
University Press, 1980.
nos institucionais da jurisdição constitucional. Dworkin defende
8 DWORKIN, Ronald. Free-
doms Law: the moral reading
que a postura de um juiz constitucional poderia estar aberta aos
of the American Constitution. padrões morais do que ele denomina de comunidade, como consta
Cambridge: Harvard University
Press, 1996. da sua última obra já referida por nós. O constitucionalista alemão,
9
Peter Häberle, 9 já apresenta uma postura mais radical no sentido
HÄBERLE, Peter. Le libertá
fondamentali nello Stato Cons- de que a sociedade estabelece um consenso inspirado para uma
tituzionale. Roma: La Nuova abertura do Tribunal Constitucional se fundamentar. É importante
Italia Cientifica, 1993. Nessa
obra, é óbvio que Häberle dis- registrar que, apesar de posições semelhantes de abertura para
cute a sua teoria institucional
dos Direitos Fundamentais para sociedade, assumida por esses dois autores, cremos existirem algu-
culminar com a defesa de uma mas diferenças de graus entre eles. Ronald Dworkin caracteriza-se
abertura da interpretação cons-
titucional. para nós mais numa direção valorativa e moral. E em relação a

18 impulso
2777.BK Page 19 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

Peter Häberle, seu pensamento sobre o papel da interpretação


constitucional traduz-se numa defesa mais arraigada de um com-
promisso democrático para a jurisdição constitucional.
É nessas posições mais radicais a respeito da função dos
instrumentos interpretativos que vale sublinhar as observações
ponderadas de um antigo integrante do Tribunal Constitucional
alemão, que é Ernst Wolfgang Böckenford. 10 Lembra esse jurista
alemão que a metodologia interpretativa não pode assumir uma
postura dissolvedora ou destruidora da própria norma consti-
tucional.

CRITÉRIOS E MARCOS PARA A INTERPRETAÇÃO


CONSTITUCIONAL
Nessa parte do nosso estudo, é importante para nós aprofun-
dar o pensamento de Böckenford. O jurista alemão está consciente
de estabelecer critérios para demarcar a função interpretativa cons-
titucional. Lembra o autor de Escritos sobre Derechos Constitucio-
nales que não importa que o método de interpretação seja de um
Ernst Forstroff (respeitando a norma constitucional através de ele-
mentos interpretativos tradicionais), ou de um Peter Häberle (tra-
tando-se, como já vimos, de uma perspectiva tópica a respeito dos
dispositivos constitucionais abertos à sociedade), ou então a figura
de um Rudolf Smend, preocupado com o papel integrador da
constituição, ou a presença de Konrad Hesse, direcionado para o
problema da concretização normativa ou, ainda, a noção da norma
tratada através de um programa estruturante de interpretação 11
onde, com maior ou menor diferença, o sentido da norma consti-
tucional através desses métodos interpretativos seria atingido.
Defende Böckenford uma posição de que o único meio de evitar
esse problema, é do intérprete por meio de sua metodologia esta-
belecer o seu entendimento prévio a respeito da função do texto
constitucional 12 e da sua jurisdição. Esse pensador alemão reitera 10 BÖCKENFORD, Ernst-Wol-
que tem de haver, por exemplo, por parte do intérprete constitucio- fgang. Escritos sobre Derechos
Constitucionales. Baden-Ba-
nal uma postura mais moderada em relação à constituição e aos den: Nomos Verlagsgesellchaft,
instrumentos de controle de constitucionalidade. Exemplificando, 1993.
Böckenford sustenta que a jurisdição constitucional não pode ser 11 V. MÜLLER, Friedrich. Dis-
cours de la méthode juridique.
um espaço substitutivo de órgãos judiciários, ao transformar-se, Paris: PUF, 1996.
automaticamente, em mecanismo de revisão de todas as decisões 12Por exemplo, SCHNEIDER,
judiciais, ao exercer a sua competência de controle de constitucio- Hans Peter, op. cit., tem uma
posição bastante instrumental
nalidade. da Constituição.

impulso 19
2777.BK Page 20 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

CONCLUSÃO
Acreditamos, assim, que essa advertência e critério aponta-
dos por Böckenford, respondem claramente, à preocupação indi-
cada por Garapon. 13 Isto é, de que as atuais posições assumidas
pelo direito e o papel do juiz podem acarretar uma perigosa subs-
tituição do jurídico pela ordem democrática. A saída é, por conse-
qüência, na direção de refletirmos mecanismos de equilíbrio para
a função de prestação jurisdicional, mas, ao mesmo tempo, que
assegure a manutenção não só das garantias constitucionais de for-
talecimento da cidadania, como também, e principalmente, do
jogo democrático.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BÖCKENFORD, Ernst-Wolfgang. Escritos sobre Derechos Cons-
titucionales. Baden-Baden: Nomos Verlagsgesellchaft, 1993.
DWORKIN, Ronald. Freedoms law: the moral reading of the
American Constitution. Cambridge: Harvard University Press,
1996.
ELY, J.H. Democracy and Distrust; a theory of Judicial Review.
Cambridge: Harvard University Press, 1980.
GARAPON, Antoine. Le gardien des promesses. Justice et
démocratie. Paris: Odile Jacob, 1996.
HÄBERLE, Peter. Le libertá fondamentali nello Stato Constituzio-
nale. Roma: La Nuova Italia Cientifica, 1993.
HESSE, Konrad. Derecho Constitucional y Derecho Privado.
Madrid: Civitas, 1995.
LARENZ, Kark. Metodologia da Ciência do Direito. 2ª ed. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 1989.
13 VIEIRA, José Ribas. A Pers- MÜLLER, Friedrich. Discours de la Méthode Juridique. Paris:
pectiva do espaço público na PUF, 1996.
compreensão democrática do
Direito. Direito, Estado e Socie- SCHNEIDER, Hans Peter. Democracia y Constitución. Madrid:
dade, Rio de Janeiro, n. 7, jul./ Centro de Estudios Constitucionales, 1991.
dez. p. 59-72, 1995. Neste arti-
go, já advertíamos as dificulda- VIEIRA, José Ribas. A Perspectiva do espaço público na com-
des do direito de trabalhar com a
democracia. Assim, na mesma
preensão Democrática do Direito. Direito, Estado e Sociedade,
linha de raciocínio de Garapon, Rio de Janeiro, n. 7, jul./dez. 1995.
mostrávamos como a excessiva
institucionalização materializa-
da pelo jurídico estereliza qual-
quer pretensão democrática atra-
vés (por exemplo) das deman-
das dos movimentos sociais.

20 impulso
2777.BK Page 21 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

DO PROCESSO LEGISLATIVO:
BREVES CONSIDERAÇÕES
JOÃO MIGUEL DA LUZ RIVERO

Para fazermos algumas considerações sobre o processo legis-


lativo, faz-se necessário destacar que estaremos a estudar sobre a
função legislativa, que tem sua origem no Poder Legislativo de
acordo com a doutrina clássica, segundo ensina Montesquieu, em
sua obra célebre O Espírito das Leis e sua evolução até este final
de século.
Diz Montesquieu:

A liberdade política em um cidadão é aquela


tranqüilidade de espírito que provém da convicção que
cada um tem da sua segurança. Para ter-se essa liber-
dade, precisa que o Governo seja tal que cada cidadão
não possa temer outro.
Quando, na mesma pessoa ou no mesmo corpo de
Magistratura, o Poder Legislativo é reunido ao Execu-
tivo, não há liberdade. Porque pode temer-se que o
mesmo Monarca ou o mesmo Senado faça leis tirânicas
para executá-las tiranicamente.
Também não haverá liberdade se o Poder de Julgar não
estiver separado do Executivo e do Legislativo. Se esti-
vesse junto com o Legislativo, o poder sobre a vida e a
liberdade dos cidadãos seria arbitrário: pois o Juiz
seria Legislador. Se estivesse junto com o Executivo, o
Juiz poderia ter a força de opressor.

impulso 21
2777.BK Page 22 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

Estaria tudo perdido se um mesmo homem, ou um


mesmo corpo de principais ou de nobres, ou de Povo,
exercesse estes três poderes: o de fazer as leis; o de
executar resoluções públicas; e o de julgar os crimes
ou as demandas dos particulares. 1

Destaca ainda Montesquieu que o Poder Executivo deve ter


sua participação no processo legislativo limitada à faculdade de
impedir (o que hoje conhecemos como veto), sendo a ele vedada a
faculdade de estatuir, da mesma forma como o Poder Legislativo
não deverá executar.
Lembrando ainda que o processo legislativo estará a comple-
tar-se pela participação do Poder Legislativo no exercício da sua
faculdade nata de estatuir e pelo Poder Executivo no exercício de
sua faculdade de impedir. Desta forma podemos dizer que da inte-
gração harmônica, como preconiza Montesquieu, teremos poderes
que, por um movimento necessário, serão compelidos a caminhar
em concerto.
Montesquieu e Locke elaboraram idéias opostas ao poder
soberano dos reis, assim colocando em xeque a teoria do absolu-
tismo (todo poder emana de Deus; o rei o exerce em nome de
Deus) objetivando controlar o poder soberano em nome de Deus,
através das leis e da divisão dos poderes. Ambos convergem na
assertiva de que o Poder Legislativo é que deve elaborar as leis, o
Poder Executivo deve cuidar da execução das leis e o Poder Judi-
ciário somente estaria a administrar a execução da lei em situação
de conflito.
Segundo nos orienta Sampaio (1967), o processo legislativo
pode ser entendido também em um sentido sociológico, que seria
o conjunto de fatores reais ou fáticos que põem em movimento os
legisladores e o modo como eles costumam proceder ao realizar a
tarefa legislativa. Neste momento nos referimos às influências que
o processo legislativo sofre através da opinião pública, das crises
sociais, das pressões de grupos organizados, lobbying, dos acordos
de partidos, das compensações políticas, da composição partidária
ou social da assembléia, da troca de votos (logrolling) entre os
1 MONTESQUIEU, Charles de,
parlamentares, etc.
SECONDAT, Baron de. (1689- Sampaio (1967), destaca que, ao observarmos o processo
1755.) O espírito das leis.
Introdução, tradução e notas de legislativo em sentido sociológico, na verdade estamos a analisar a
Pedro Vieira Mota. 3ª ed. aum. conduta ou comportamento legislativo, e assim, conclui que o
São Paulo: Saraiva, 1994,
p. 165. mais recomendável é reservar a expressão processo legislativo

22 impulso
2777.BK Page 23 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

para a linguagem jurídica, pois de outra forma estaremos apenas a


demonstrar os resultados das relações entre as condições sociais e
o processo legislativo para o jurista, o político e o legislador, com
a finalidade de melhor ajustá-lo às necessidades políticas.
Ferdinand Lassalle entende que a Constituição de um país é
em essência, a soma dos fatores reais do poder, que regem nesse
país, sendo esta a Constituição real e efetiva, não passando a
Constituição escrita de uma folha de papel 2 (Constituição em sen-
tido sociológico).
Carl Schmitt considera a Constituição como uma decisão fun-
damental, decisão concreta de conjunto sobre o modo e a forma de
existência da unidade política, fazendo distinção entre Constituição
e leis constitucionais 3 (Constituição em sentido político).
Para Hans Kelsen a Constituição é norma pura, puro dever-
ser, sem qualquer pretensão a fundamentação sociológica, política
ou filosófica 4 (Constituição em sentido jurídico).
A partir destas reflexões iniciais, tentaremos apresentar, pre-
liminarmente, algumas breves considerações sobre o processo
legislativo em seu significado jurídico, sendo que por ele o direito
revela a sua própria criação, a produção, e criação, a modificação
ou revogação de normas gerais ou individualizadas e diz quem
participa e como deve participar.
Estaremos ainda engajados na tarefa de mostrar como o pro-
cesso legislativo evoluiu em nosso direito interno durante os 173
anos do Brasil como nação independente.

(BREVE) HISTÓRICO DO PROCESSO


LEGISLATIVO NA BRASIL
Com o fim da fase colonial, (época em que o processo legis-
lativo era marcadamente autocrático) e com o surgimento do Bra-
sil independente tivemos, a partir de 7 de setembro de 1822, a
regra do processo representativo, sendo apenas interrompido pelo
processo autocrático, nos interregnos de governos de fato:
• De 7/9/1822 (data da proclamação da Independência do
Brasil) a 3/5/1823 (data da instalação da Assembléia Geral Cons- 2APEED, José Afonso da Silva.
Curso de Direito Constitucional
tituinte e Legislativa do Império do Brasil); Positivo. 9ª ed. rev. e ampl. São
• De 12/11/1823 (Dissolução da Constituinte) a 6/5/1826 Paulo: Malheiros, 1992, p. 40.
3APEED, José Afonso da Silva,
(Instalação da 1ª Legislatura Monárquica); op. cit.
• De 15/11/1889 (data da Proclamação da República) a 24/ 4APEED, José Afonso da Silva,
02/1891 (data da Promulgação da 1ª Constituição Republicana); op. cit.

impulso 23
2777.BK Page 24 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

• De 24/10/1930 (Revolução de 1930) a 16/7/1934


(Constituição da Revolução de 1930);
• De 10/11/1937 (Outorga da Constituição do Estado Novo)
a 18/9/1946 (Promulgação da Constituição Liberal).
• De 9/4/1964 a 27/10/65 (Período em que não se baixou
decreto-lei e se teve a curiosa coexistência do processo autocrático
e do representativo).
• De 27/10/1965 (Ato Institucional nº 2) a 15/03/67 (Posse
do Pres. Costa e Silva)
Até a Carta de 1934 mantivemo-nos sob a orientação da dou-
trina clássica da separação dos poderes, mesmo durante a fase
imperial e a existência do Poder Moderador.
Apesar da Constituição de 1824 ter sido outorgada pelo Impe-
rador, destacamos a inteligência do art. 178, que diz: É só constitu-
cional o que diz respeito aos limites, e atribuições respectivas dos
poderes políticos, e aos direitos políticos, e individuais dos cida-
dãos. Tudo, o que não é constitucional, pode ser alterado sem as
formalidades referidas, pelas legislaturas ordinárias. 5 Desta forma
tivemos uma Constituição semi – rígida, que em parte, dependendo
da matéria, poderia ser alterada pelo procedimento padrão.
Em seu art. 174 encontramos a limitação temporal para
reforma, de 4 anos após ter sido jurada a Constituição
Na Constituição de 1824 (do Império), art. 52 ao 70; a
Constituição de 1891 (da República), art. 36 ao 40; a Constituição
de 1934 (da Revolução de 1930) em seus artigos 41 ao 49 obser-
vamos a existência de emendas à Constituição e leis ordinárias,
sendo que nas duas Constituições republicanas citadas incluem-se
as resoluções.
É em 1937, na Constituição do Estado Novo, outorgada por
Getúlio Vargas, que localizamos a maior diversidade de atos legis-
lativos, sendo um constitucional (emenda à Constituição) e doze
ordinários, que elencamos a seguir:
1) lei comum, votada pelo Parlamento (Câmara dos Deputa-
dos e Conselho Federal);
2) lei votada apenas pelo Conselho Federal, para o Distrito
Federal e os Territórios (art. 53);
3) atos normativos do Conselho da Economia Nacional
5 CAMPANHOLE, Adriano, sobre as matérias das letras b e c do art. 61, sujeitos a veto abso-
CAMPANHOLE, Hilton Lobo.
Constituições do Brasil. compil. luto implícito do Presidente da República (art. 62);
e atual. dos textos, notas revisão 4) legislação baixada pelo Conselho de Economia Nacional,
e índices. 11ª ed. São Paulo:
Atlas, 1994, p. 775-776. autorizada por plebiscito da iniciativa do Chefe de Estado (art. 63);

24 impulso
2777.BK Page 25 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

5) decretos-leis presidenciais até que se reunisse o Parla-


mento (art. 180);
6) decretos-leis baixados pelo Presidente da República, por
delegação do Parlamento (art. 12);
7) decretos-leis do Presidente da República para atender às
necessidades do Estado, durante o recesso ou dissolução do Parla-
mento (art. 13);
8) decretos-leis expedidos livremente pelo Presidente da
República sobre as matérias especificadas no art. 14;
9) decretos-leis modificativos do Orçamento, por proposta fun-
damentada do Departamento Administrativo (art. 69, parágrafo 2º);
10) atos do Presidente da República, determinando a exe-
cução provisória de tratados ou convenções internacionais (que,
materialmente, podem ser de natureza legislativa, nos termos do
art. 74, n);
11) decretos legislativos, ou que outro nome tivessem, para o
referendum do Parlamento aos tratados e à celebração da paz, bem
como para autorização de declaração de guerra ou a passagem de
forças estrangeiras pelo território nacional, pois seria absurdo con-
cluir, do silêncio da Constituição, que tais atos (art. 74, d, g, h e i)
ficassem sujeitos a sanção presidencial;
12) resoluções de cada ramo do Parlamento, que só podia
funcionar separadamente (art. 40). 6
Notadamente foi a Carta constitucional que maior número de
atos legislativos abrigou, da mesma forma como se demonstram
terem sido desnecessários na medida em que a maioria da legisla-
ção ordinária veio sob a forma de decreto-lei, conforme previa o
art. 180. Registre-se ainda que o número de decretos-leis alcançou
a marca histórica de 9.908 nesse período, incluindo-se entre eles a
maioria dos Códigos vigentes como por exemplo: Código Penal,
Código Penal Militar, Código de Propriedade Industrial, Código
de Processo Penal, C.L.T. (Consolidação das Leis do Trabalho).
Não podemos esquecer o momento político representado
pelo regime de exceção que caracterizou a era Vargas, daí termos
um processo legislativo tão esdrúxulo quanto compreensível.
Em 1946, a Constituição (Liberal para uns e Conservadora
para outros) recupera a doutrina clássica da divisão dos poderes,
consagrando em seu art. 36, parágrafo 2º a indelegabilidade de
atribuições entre os poderes da União.
6 SAMPAIO, Nelson de Souza.
É em 1956, no Governo de Juscelino Kubitschek, que surge a O processo legislativo. São Pau-
idéia de Revisão do Processo Legislativo, de autoria da Comissão lo: Saraiva, 1967.

impulso 25
2777.BK Page 26 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

de Juristas que apresenta anteprojeto de forma cautelosa, a fim de


aconselhar a delegação legislativa a comissões de qualquer das
casas do Congresso; a autorização do Executivo para elaborar pro-
jeto de lei; a fixação de prazo para a apreciação dos projetos de
iniciativa presidencial bem como, qualquer que fosse a iniciativa,
para a revisão do projeto pela Câmara, sob pena de serem conside-
rados aprovados, entre outras disposições.
É neste período que começamos a antever o fracasso do pro-
cesso de democratização que deveria consolidar-se à luz da
Constituição de 1946.
A proposta de Revisão do Processo Legislativo nos mostra a
intenção do fortalecimento do Executivo em detrimento do Poder
Legislativo como expressão máxima da democracia e com atribui-
ção exclusiva sobre o processo de elaboração das leis.
Com a eleição e renúncia do então Presidente Jânio Quadros
chega-se ao auge de uma crise institucional, ratificada com os
esforços que visavam ao impedimento do Vice-Presidente João
Goulart em assumir a Presidência.
Tal crise teve como desdobramento a Emenda Constitucional
nº 4, de 2 de setembro de 1961, que adotou o parlamentarismo,
consagrou a delegação legislativa e a categoria de lei complemen-
tar (art. 22).
Com este cenário político e com a vigência da Emenda nº 4,
caminhamos a passos largos para o movimento de 1964 (Golpe
militar), que culminara com o Ato Institucional nº 1, de 9 de abril
de 1964 e a instalação do primeiro Governo Militar, tendo como
Presidente H. Castelo Branco.
A Emenda nº 4, de 1964 traz inovações que irão vigorar até
31 de janeiro de 1966, quais sejam: direito de iniciativa do Execu-
tivo para Reforma Constitucional, marcando prazo para sua trami-
tação no Congresso; limite de tempo para deliberação dos projetos
presidenciais pelo Legislativo, os quais seriam considerados apro-
vados pelo esgotamento do prazo; inclusão dos projetos de criação
ou aumento de despesa na iniciativa do Presidente da República,
proibidas emendas que elevassem as despesas propostas.
Com os ideais liberais somados aos governos da década de
60, calcados em justificativas como a procrastinação legislativa e a
necessidade de modernizar o processo legislativo com vista à
necessidade de obter-se uma celeridade legislativa necessária ao
novo regime político e modelo econômico adotado, parte-se para
uma reforma do processo legislativo através da Constituição de 24

26 impulso
2777.BK Page 27 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

de janeiro de 1967, que fixa o processo legislativo através de seu


art. 49, onde lê-se: O processo legislativo compreende a elabora-
ção de: I – Emendas à Constituição; II – Leis Complementares da
Constituição; III – Leis Ordinárias; IV – Lei Delegadas; V –
Decretos-Leis; VI – Decretos Legislativos; VII- Resoluções. 7
Desta forma a Constituição do Regime autoritário de 1967
estabelece uma clara ruptura com a ordem constitucional anterior
no momento em que propõe, através de novas orientações, uma
quebra com a doutrina clássica da separação dos poderes pela
indelegabilidade do poder legislativo. Assim sendo, passa o Poder
Executivo a participar efetivamente do processo legislativo e já
não mais se limitando, juridicamente, à iniciativa do veto.
Com o aumento da tensão social e a intensificação dos con-
flitos ideológicos inaugura-se, no Brasil, sob o comando do Presi-
dente A. Costa e Silva, a chamada democracia excludente, especial-
mente pela edição do ato institucional nº 5, de 13/12/68, que
reveste o Executivo de verdadeiro poder imperial.
Em 17/10/69, os Ministros Militares, no uso de suas atribui-
ções conferidas pelo art. 3º, do A. I. nº 10, de 14/10/69, combinado
com o parágrafo 1º, do art. 2º, do A. I. nº 5, de 13/12/68 e consi-
derando o fechamento do Congresso Nacional através do Ato
Complementar nº 38, de 13/12/68, dão ao Brasil a Emenda Cons-
titucional nº 1, com 217 artigos que, em seu art. 46, repete a reda-
ção do art. 49 da Constituição de 1967. Porém vale destacar a
ampliação material que o Decreto-Lei recebe através do art. 55, da
Emenda nº 1, que diz:

O Presidente da República, em casos de urgência ou de


interesse público relevante, e desde que não haja
aumento de despesa, poderá expedir decretos-leis sobre
as seguintes matérias:
I – Segurança nacional; 7 Constituição do Brasil, pro-
II – finanças públicas, inclusive normas tributárias; e mulgada em 24 de janeiro de
1967. Em: CAMPANHOLE,
III – criação de cargos públicos e fixação de vencimentos. 8 Adriano, CAMPANHOLE, Hil-
ton Lobo. op. cit., p. 343.
Neste contexto o país atravessa a década de 70; em seu final, 8 Constituição da República
com o General Ernesto Geisel, inicia-se o processo de abertura Federativa do Brasil, com reda-
política e anistia, processo este que teve sua continuidade garan- ção dada pela Emenda Constitu-
tida durante o Governo do General João Batista Figueiredo. Neste cional nº 1/1969. Em: CAMPA-
NHOLE, Adriano, CAMPA-
momento histórico os reclamos dos diversos segmentos da socie- NHOLE, Hilton Lobo, op. cit.,
dade civil não deixaram dúvida de que o momento seguinte, já na p. 224.

impulso 27
2777.BK Page 28 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

década de 80, deveria ser o da efetiva democratização do país,


onde já não havia mais terreno fértil para a Ordem Constitucional
vigente, que ruía junto com o Regime Militar, portanto, o Brasil
passava a viver a chamada Situação Constituinte, 9 conforme inti-
tula o Senador Severo Gomes, o momento político-social vivido
pelos brasileiros.
Para a sucessão do Presidente João B. Figueiredo o Brasil se
mobiliza para a aprovação da Emenda Dante de Oliveira que pre-
via eleições diretas para presidente, não sendo aprovada pelo Con-
gresso Nacional. Desta forma a eleição ocorre através do Colégio
Eleitoral, tendo como resultado, a eleição de Tancredo Neves
como Presidente e José Sarney como Vice – Presidente.
Por uma fatalidade histórica Tancredo Neves é impedido, por
sua morte, de assumir a Presidência da República, que é assumida
por José Sarney para o cumprimento do mandato que, em cumpri-
mento às promessas eleitorais de Tancredo de instalar uma Assem-
bléia Nacional Constituinte e consequentemente dar uma nova
Constituição ao Brasil, convoca a Assembléia Nacional Constitu-
inte através da Emenda nº 26, de 27 de novembro de 1985.
A Constituição de 1988, cognominada de Constituição
Cidadã, por Ulisses Guimarães, na verdade traz em si uma das
maiores e mais graves contradições. Isto é facilmente observado
nos artigo 59 e seguintes que tratam do Processo Legislativo.
A alteração mais significativa é a eliminação do Decreto-Lei,
que naquele contexto significava o maior entulho do regime autori-
tário de 1964, porém ao apagar das luzes dos trabalhos constituin-
tes, são engendradas no texto constitucional as chamadas Medidas
Provisórias (art. 59 e 62 da Constituição Federal de 1988).
Os atos legislativos estão elencados atualmente em nosso
direito positivo no art. 59, onde se lê:
9 GOMES, Sen. Severo. Situa-
ção constituinte. Em: ABRA-
O processo legislativo compreende a elaboração de:
MO, Claudio, ROSSI, Clóvis, I – emendas à Constituição;
DALLARI, Dalmo de Abreu
(org.). Constituinte e democra- II – leis complementares;
cia no Brasil hoje. São Paulo:
Brasiliense, 1985, p. 81-84. III – leis ordinárias;
10 Constituição da República IV – leis delegadas;
Federativa do Brasil: promul- V – medidas provisórias;
gada em 5 de outubro de 1988.
Em: CAMPANHOLE, Adria- VI – decretos legislativos;
no, CAMPANHOLE, Hilton
Lobo, op. cit., p. 44. VII – resoluções. 10

28 impulso
2777.BK Page 29 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

Os atuais atos legislativos elencados no art. 59 estão divididos


em duas categorias: 1º) Atos jurídicos de força constitucional:
emendas à Constituição; 2º) Atos Infraconstitucionais: leis comple-
mentares, leis ordinárias, leis delegadas, decretos legislativos, reso-
luções e extraordinariamente medidas provisórias que deverão ser
convertidas em lei pelo Congresso Nacional, num prazo de 30 dias.
O processo legislativo padrão se abre por uma fase introdutó-
ria, a iniciativa (art. 61) passa por uma fase constitutiva, que com-
preende a deliberação (arts. 64, parágrafo 1º, 65) e a sanção (art.
66) e uma fase complementar, (art. 66, parágrafo 5º e 7º) e também
a publicação (art. 1º, da Lei 4657/42 – L.I.C.C. e art. 84, IV).

CONCLUSÃO
Consideramos que o processo legislativo, como se mostra na
atual Constituição, extrapola a intenção de modernizar o Estado no
que tange ao processo de elaboração das leis, ferindo, desta forma,
a consolidação do Estado Democrático de Direito, na medida em
que se mostra apenas e tão somente com vocação de estabelecer
um fortalecimento do Executivo e um conseqüente desequilíbrio
entre os Poderes, não desejado e nem tão pouco recomendado pela
doutrina constitucional.
A Constituição, como lei fundamental da nação (escrita ou
costumeira), deve considerar que, anteriormente, a sociedade já se
mostrava constituída naturalmente com um ordenamento prévio a
que, todos os indivíduos se submetem e reconhecem, de forma
legítima, e de modo mais involuntário que voluntário.
O objetivo da Constituição é substituir o governo dos reis
pelo governo das leis, observando que o legislador não elabora ou
cria, mas revela a lei natural de forma racional.
Assim, concluímos que o processo legislativo, por suas pecu-
liaridades, deve garantir em todo o seu procedimento, um mínimo
de legitimidade eliminando, ao máximo, as distorções existentes
como, por exemplo, o exercício da função legislativa pelo Execu-
tivo que, quando permitido através do art. 62, transforma a
Constituição do país, que deve ser um instrumento estável e garan-
tidor dos direitos e limitador do poder, em um documento frágil e
praticamente comparado a um programa de governo, que pode ser
alterado a cada mandato presidencial e a qualquer tempo, gerando,
dessa forma, instabilidade e insegurança aos seus destinatários.

impulso 29
2777.BK Page 30 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS
ABRAMO, Claudio, ROSSI, Clóvis, DALLARI, Dalmo de Abreu
(org.). Constituinte e democracia no Brasil hoje. São Paulo:
Brasiliense, 1985.
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 16ª ed.
ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 1994.
CAMPANHOLE, Adriano, CAMPANHOLE, Hilton Lobo.
Constituições do Brasil. Compilação e atualização dos textos,
notas, revisão e índices. 11ª ed. São Paulo: Atlas, 1994.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL:
promulgada em 5 de outubro de 1988. Organização dos textos,
notas remissivas e índices por Juarez de Oliveira. 11ª ed. atual. e
ampl. São Paulo: Saraiva, 1995. (Coleção Saraiva de legislação)
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à
Constituição brasileira de 1988. v. 2, São Paulo: Saraiva,
1992.
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Consti-
tucional. 18ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 1990.
MONTESQUIEU, Charles de, SECONDAT, Baron de. (1689-
1755). O espírito das leis. Introdução, tradução e notas de
Pedro Vieira Mota. 3ª ed. aum. São Paulo: Saraiva, 1994.
SAMPAIO, Nelson de Souza. O Processo Legislativo. São Paulo:
Saraiva, 1967.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo.
9ª ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 1992.

30 impulso
2777.BK Page 31 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

FILOSOFIA DO DIREITO
EM HABERMAS
JOÃO BOSCO DA ENCARNAÇÃO

O presente estudo tem por escopo entender o conceito de


Direito em Jürgen Habermas contribuindo para a identificação da
crise do Direito.
Partindo da “curiosidade” científica acerca do que poderia ser
o Direito na época “pós-moderna”, examinamos a visão desse filó-
sofo contemporâneo, para ver nela, quem sabe, uma identidade.
Sua trajetória parte de uma orientação inicialmente situada
na chamada “teoria crítica” da Escola de Frankfurt, mas logo
envereda por caminhos próprios, que são, na verdade, um feixe
eclético de doutrinas de várias linhas. Trazem consigo, no entanto,
algo em comum: certo positivismo.
Não é de admirar que Habermas, que começa com a crítica
ao positivismo, venha a desembocar num rigor tão grande contra
esse mesmo positivismo, que acaba dogmatizando seus princípios,
para depurá-los de quaisquer influências ou interesses que possam
“perturbar” a comunicação, cujo modelo ideal vem perseguindo.
Em Conhecimento e interesse, Habermas ainda dizia que o
positivismo é a negação da reflexão, 1 entendendo que a “neutrali-
dade axiológica”, que o caracteriza, devia ser criticada, inclusive 1 Erkenntnis und Interesse, p. 3.
no pensamento de Max Weber, cujo “neokantismo” 2 constitui 2 Zur Logik der Sozialwissens-
uma forma de positivismo, particularmente cínica da consciência chaften, p. 96.
burguesa”. 3 3 Zur Reconstruktion des His-
Depois, no entanto, entendeu que o positivismo jurídico seria torischen Materialismus, p. 12.
4 Zur Reconstruktion des His-
útil como instrumento de “integração social”, 4 inobstante o forma- torischen Materialismus, p. 42
lismo burocrático de Weber tenha provocado um empobrecimento e 144.

impulso 31
2777.BK Page 32 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

do direito como instrumento organizativo, 5 criticando ainda a


expansão da burocracia jurídica, 6 pois, como alertou Foucault, a
expansão do direito acaba sendo um risco para os seus supostos
beneficiários. 7 Isso, no entanto, não o impediu de ser reconhecido
como um “positivista”, aliás, de um “positivismo vulgar”, como
ele próprio refere 8 e acaba assumindo a adoção do “dogmatismo”
na sua última obra, como instrumento de preservação da vontade
pública.
É essa mesma vontade pública que, no início, ao atribuí-la à
“esfera pública burguesa”, julgava ser “dominadora”, 9 pois o
público não participa da formação da vontade, mas apenas aclama
o resultado do processo político. 10
Habermas negou a “pretensão de universalidade da Herme-
nêutica”, mas cai no equívoco de universalizar a comunicação
lingüística, como se tudo se resumisse no problema da linguagem.
E mais que isso, fica na utopia da “situação ideal de fala”, que
jamais ocorrerá.
Isso é coerente com o “funcionalismo”, o “estruturalismo” e
o “sistemismo”, próprios do positivismo sociológico-jurídico ou
sociologismo jurídico, que, reagindo ao dogmatismo, numa “volta
aos fatos”, apresenta, nas palavras de Juarez Cirino dos Santos, 11
a visão de uma falsa unidade social (negando a existência das clas-
ses e a luta das classes) para propor, em síntese, mais integração e
maior comunicação como formas de solução de conflitos sociais
ou de superação da anomia.
Enquanto isso, vamos nos arranjando como podemos! Marx
não gostava dos “socialistas utópicos”, querendo logo partir para
uma práxis dentro do que havia de real. Habermas, no entanto,
pretende cumprir o testamento de Marx com uma figura ideal que,
5 RH, p. 369 a 376. se ocorrer, tornará desnecessária a sua própria teoria. Habermas
6Der Philosophische Diskurs busca em Marx o Marx sociólogo, em detrimento do Marx econo-
der Moderne, p. 331.
7
mista, certamente em razão da sua procedência da sociologia. De
Der Philosophische Diskurs
der Moderne, p. 272. outro lado, pode-se observar também, que sua teoria supõe uma
8 Zur Logik der Sozialwissens- sociedade organizada de maneira tal que dificilmente encontraria
chaften, p. 96. um Lebenswelt maduro para sua aplicação.
9 Strukturwandel der Öffentli- A discussão com Luhmann, que não nos interessou em pri-
chkeit, p. 109.
10 Strukturwandel der Öffentli-
meiro plano, pode acabar inócua, uma vez que o “purismo” da
chkeit, 212. Teoria do Agir Comunicativo acaba minando-a justamente por não
11 Cf. SANTOS, Juarez Cirino querer tomar partido, por temer o papel de ideologia. Se não o
dos. Direito Penal: a nova parte assume, entretanto, acaba sendo ideologia assim mesmo. A
geral. Rio de Janeiro: Forense,
1985. “Razão Comunicativa” é um canal vazio, onde se pode colocar

32 impulso
2777.BK Page 33 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

qualquer líquido. Mais que isso, porém, uma forma vazia e elás-
tica, que se amolda procedimentalmente conforme o seu conteúdo.
E isso, paradoxalmente, é devido à sua rigidez dogmática, bastante
visível. Embora a partir de princípios alocados topicamente, e
visando um fim, não se impede que passe a ser, daí por diante,
uma “ética de princípios”, mormente quando esse fim pragmatica-
mente colocado, é apenas e puramente o da comunicação ideal,
quando interesse e razão coicidem, quando o interesse que guia o
conhecimento é o interesse na emancipação.
Como distinguiu O. Höffe, Habermas trabalha com algo abs-
trato, uma analogia, que é a linguagem, enquanto há toda uma rea-
lidade a sua volta. 12
Se a sua filosofia, pretensamente “pós-moderna”, por “des-
fundamentalizar” a razão, junta Marx com Kant, através das diver-
sas linhas filosóficas, do Pragmatismo, que entende uma filosofia
prática, ao Estruturalismo Genético, que entende um modelo de
diagnóstico crítico que pode ser transplantado para a crítica da
sociedade, de modo “reconstrutivo”, não consegue escapar por
isso dos modernos que pretende aperfeiçoar. É certo que o Estru-
turalismo pode se coadunar com o pensamento oriundo do Mar-
xismo. Marx mesmo utilizou esse termo “estrutura” para se referir
às ideologias sociais de modo geral. E não é contraditório também
que Habermas junte Kant com Darwin, ainda nos moldes do velho
positivismo comteano, pois o “Estruturalismo” tem a ver com a
Biologia de Spencer, ao que Habermas junta o Pragmatismo, que
se alia à Fenomenologia, segundo os princípios kantianos. 13
Em suma, Kant com Marx, ou um Kant marxista e um Marx
kantianizado, ambos “desfundamentalizados”, resulta num Haber-
mas. Mas vai perdendo Marx de vista. Na área particular da filo-
sofia do direito, Habermas é um Savigny com Kelsen.
A diferença da sua teoria para o Direito Natural Moderno é
que este se fundava na lei como “declaração” de direitos (direitos
naturais) e para ele a lei também é uma declaração, mas não passa
de uma declaração de vontades estabelecidas pelo consenso.
O relativismo de Habermas, que ele tenta consertar com uma
dose excessiva de dogmatismo, é mais grave do que o da Teoria do
Conhecimento. Kant ainda conciliava “Razão Pura” e ”Razão Prá- 12 HÖFFE, Otfried, p. 14.
tica”, deixando um lugar para o que a razão não era capaz: a reli- 13 Cf. História do pensamento.
São Paulo: Nova Cultural, v. IV,
gião. Talvez o seu fundamentalismo permitisse isso. No caso de p. 705; e também BONOMI,
Habermas, entrentanto, o sonho de criar algo sutil como a Razão Andrea. Fenomenologia e estru-
turalismo. São Paulo: Perspecti-
Comunicativa, que paira num abstrato sem ligação alguma com va, 1974.

impulso 33
2777.BK Page 34 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

qualquer tipo de fundamentação (diga-se aliás, fundação, o que


subentende tradição), acabou ironizado por ele mesmo. Após ana-
lisar a recente tentativa de volta à metafísica, 14 diz que para o euro-
peu o termo “metafísica” lembra religião, ou seja, a história da
salvação judaico-cristã. 15 Inobstante, incluiu entre os “metafísicos”
Kant, Fichte e Hegel, de cujos pensamentos não consegue escapar.
Por fim, confessa que um cotidiano totalmente profanizado não é
possível: a religião é insubstituível e o pensamento pós-metafísico
coexiste com uma práxis religiosa, pois a filosofia, em sua forma
pós-metafísica, não pode substituí-la e nem eliminá-la. 16 A pre-
tensa indiferença positivista para com a metafísica só mostra o
receio do confronto. Ainda aqui acaba seguindo uma tradição:
aquela que separa fé e razão.
Trata-se, com efeito, de uma “esperança desesperada” de
quem está por um fio. O próprio Habermas responde às críticas: A
Razão Comunicativa é certamente uma tábua insegura e vacilante,
mas não se afunda no mar das contingências, ainda quando tal
estremecimento em alto mar seja o único modo como pode “domi-
nar” as contingências. 17 Ou seja, sobrevive do não confronto, do
conformar-se de uma tábua que não enfrenta, mas que se mantém
sempre ao sabor das ondas. Um caniço que não racha porque se
curva na direção do vento. Parece que não se trata de uma dialé-
tica, mas de uma aceitação. A luta contra a tradição, tão propug-
nada pelo Iluminismo, se mantém com as mesmas armas do
adversário.
Habermas quer ser crítico, mas se insere como nenhum
outro, no seio de uma tradição.
Seu conceito de Direito segue essa filosofia. O Direito como
instrumento, compondo normas de segundo grau, sugere questões
interessantes. A denúncia de uma tendência à burocratização e à
expansão do Direito como meio de controle estatal, por exemplo,
faz sentido. Contra isso é o princípio do “Direito Mínimo” que, é
um princípio do Liberalismo, seguindo a idéia de que o Estado é
um mal necessário e, pois quanto menos melhor. Revela-se, por-
14 Cf. ND, p. 9. tanto, e ainda, um liberal, e, por mais que procure inaugurar um
15 Nachmetaphysisches Denken, “pós-modernismo”, não se desprende das raízes modernas.
p. 25.
Revela-se, no entanto, um arauto do governo das leis, as mesmas
16 Nachmetaphysisches Denken,
p. 62; cf. p. 186.
que sugeriu não estarem cumprindo a função de garantir a liber-
17 Nachmetaphysisches Denken,
dade, mas pesando como definidora de deveres. Ao mesmo tempo
p. 186. sustenta que só o dogmatismo pode garantir a liberdade!

34 impulso
2777.BK Page 35 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

Se olharmos por dentro de um “tridimensionalismo” frag-


mentado, que considera “fato”, “valor” e “norma” isoladamente,
sendo “fato” relacionado com o sociologismo jurídico, “valor”
com um certo direito natural ou a preocupação pelo justo, e
“norma” como dogmatismo do positivismo jurídico, a crítica de
Habermas se situa claramente contra “valor” e “norma”, privilegi-
ando a ocorrência sociológica (fato), o que não impedirá de cair
também num dogmatismo de ordem sociológica. É por isso que
dizíamos anteriormente que o verdadeiro embate se dá contra a
Ontologia, de modo especial contra a Hermenêutica Filosófica e
contra as perspectivas de um certo Direito Natural. 18
Na sua última obra, “Faktizität und Geltung...”, absorve-se
no estudo mais direto da filosofia do direito e ali demonstra que
“fato” e “norma”, ou seja, “eficácia” e “vigência”, são os dois ele-
mentos consideráveis do Direito. Entretanto, quando se fala de
norma, supõe-se valorações de condutas e, pois, uma ideologia.
Se concordarmos com o diagnóstico de Habermas, não acei-
tamos a colocação do Direito em si como instrumento meramente
comunicativo, produto ainda da mera comunicação, na forma de
um culturalismo ou, como o quer Habermas, de uma “razão comu-
nicacional pura”.
Em primeiro lugar, devemos nos perguntar se a vontade geral
é possível. Aristóteles 19 já havia alertado para a possibilidade da
“democracia”, ou seja, para um governo pela vontade popular, pois
esta é vulnerável à “demagogia”, à ação dos condutores do povo,
que são exatamente os líderes políticos que deverão representar o
povo e discutir sua vontade no parlamento, como asseveram clás-
sicos como Rousseau ou mesmo Savigny. Isso é válido para socie-
dades mal organizadas ou para sociedades altamente organizadas,
embora nos meios menos estruturados, como são países como o
18 Há muitos conceitos de Direi-
Brasil, fique mais fácil entender a insuficiência dessa teoria. to Natural. Sobre Direito Natu-
O próprio Habermas, no início, ao apontar para a circunstân- ral, o pensamento de Heidegger
e a Hermenêutica, cf. a obra do
cia de que a vontade popular, fruto do consenso, é na verdade pro- prof. Aloysio Ferraz Pereira, se-
gundo o qual nos orientamos e
vocada pela propaganda, que domestica, 20 responde negativa- que está relacionada na Biblio-
mente a essa questão. Mas posteriormente, acabou entendendo que grafia.
“compreender” é “concordar”, 21 acreditando numa “ética do dis- 19 Política, Capítulo IV.
curso”, que implica não em valores, mas apenas numa validez 20Strukturwandel der Öffentli-
chkeit, p. 229.
deôntica. 22 É a conexão essencial entre “eficácia” e “vigência”,
21 Vorstudien und Ergänzun-
tema de sua última obra, “Faktizität und Geltung...” gen Zur Theorie des Komunica-
Por outro lado, subtraindo-se a verdade à Ontologia, dei- tiven Handelns, p. 704 a 707.
xando-a ao sabor da vontade popular, se é que essa vontade sem 22 MH, p. 126.

impulso 35
2777.BK Page 36 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

condução é possível, caímos num relativismo e não temos parâ-


metros. O período do Nazismo, por exemplo, que Habermas cita
como um período de “distorção” do Direito, demonstra a ele
mesmo que o Direito como mera expressão da vontade, pelo
Estado, corre esse tipo de risco. Uma comoção popular, um povo
comovido, um povo conduzido, uma vontade entusiasmada... Um
grande perigo.
Finalmente, em relação às conseqüências hermenêuticas da
teoria habermasiana, basta dizer que ele mesmo confessou-se
inapto para a discussão de caráter jurídico. 23
Realmente, falta-lhe a experiência do aplicador do Direito. A
lei, por ser genérica, contém, na sua própria essência, a lacuna da
generalidade. O momento e a ocasião da feitura da norma são
necessariamente diversos do momento e ocasião da sua aplicação,
seja pelo dinamismo da vida social, seja pela individualidade de
cada um.
Aristóteles 24 já ensinava que a eqüidade é necessária para cor-
rigir o erro da lei, feita não pela inspiração do justo, mas do conve-
niente. Sua generalidade compõe seu erro e na prática da sua aplica-
ção, quando esta se realiza, faz-se mister torná-la equitativa, justa.
Habermas acredita que a interpretação hermenêutica só é
necessária diante do “entendimento perturbado”, encarando a her-
menêutica como mero “procedimento” que não pode interferir
materialmente para não comprometer a vontade popular já forma-
lizada na norma. É por isso que assevera que a “ética do discurso”
não abstrai conteúdos, ou seja, assegura-se conteúdos (eficácia)
pela validez (vigência) da norma.
Entretanto, a não interpretação, como ponderou Carlos Maxi-
miliano, 25 é impossível. A intransigência do “Code de Napoleón”
23 FG, 11. não durou muito e logo se teve que facilitar a individualização da
24 Ética a Nicômaco, Livro V. aplicação da lei, inclusive da lei penal, com sua então rígica lega-
25 MAXIMILIANO, Carlos.
“Hermenêntica e aplicação do
lidade. 26
direito.”,op. cit., p. 33. A proibição de interpretar só faz mascarar a ideologia do
26 Cf. GILISSEN, John. Intro- aplicador e a “corrupção” da ordem legal. Afinal a lei tem uma
dução histórica ao Direito.
Trad. A.M. Hespanha e L.M. razão primeira, um fim último, e para seu cumprimento é que deve
Macaísta Malheiros. Lisboa: ser adaptada a cada instante da sua “realização”. A lei é instru-
Fundação C. Gulbenkian, 1988.
No âmbito específico do Direi- mento e não fim em si mesmo: visa prevalecer a harmonia do
to Penal e da aplicação da pena,
cf. o clássico estudo de SALEI- justo, da conduta segundo a verdade. O Direito em si é que não
LLES, R. L'individualisation pode ser instrumento, pois deve ser o arcabouço da verdade em si
de la peine. 2ª ed. Paris: Felix
Alcan, 1909. mesma, privilegiando a sua realização prática como justo.

36 impulso
2777.BK Page 37 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

Se a questão é “verdade” ou “método”, Habermas opta pelo


método, querendo um paradigma procedimental para o Direito, o
que não é novo na História do pensamento.
A semelhança de Habermas com Tobias Barreto não fica só
no fato de ambos acharem difícil a prática do pensar num país
como o Brasil.
Para Tobias Barreto, que seguia o pensamento alemão do seu
tempo bem de perto e, portanto, a mesma tradição de Habermas, o
Direito não é revelado e nem descoberto (abandona os conceitos
de Direito Natural Clássico e Moderno), mas é produzido pelo
grupamento humano e suas condições concretas de estruturação e
reprodução. 27 Tobias era um positivista de primeira geração.
Evidentemente, para um pensamento oriundo da Sociologia,
interessa (e aqui entra o interesse que guia o conhecimento) o esta-
belecimento de uma prática social. Esse cotidiano social, a reali-
dade em que o Direito se encontra, não pode ser ignorada. O cres-
cimento do Direito positivo como forma de controle da vida social
evidentemente também é um “uso” do Direito. Mas isso diagnos-
ticado, não permite um empirismo tal, ainda que revestido de uma
“Razão Comunicacional”, que faça das combinações tópicas um
determinante para o conceito de justiça.
Há que entender isso, sob pena de não termos um parâmetro
de verdade e justiça e acabarmos fomentando uma ideologia!
Nesse ponto ao menos concordamos com Ricoeur: Uma busca da
verdade, sem crítica da própria busca, torna-se uma ideologia, assim
como é ideologia uma crítica tal que não permita a busca. E acres-
centamos: a crítica diagnostica, mas não cura. Para a solução do
problema diagnosticado, o método não basta. É preciso corrigir a
cada instante a generalidade do comando legal, ainda que obediente
a um procedimento constitucional, convertendo-o topicamente
naquilo para o que foi predestinado: instrumento de aplicação da
justiça. Ao contrário do que pretende Habermas, como solução, a
lei é meio e o Direito é fim, pois o Justo independe da vontade e é
a aplicação de um princípio teórico de Verdade, a Igualdade. Eqüi-
dade, mais que a mera busca da solução quando não há lei, é a
manutenção ou resgate da Igualdade, no cumprimento da finali- 27 Introdução ao Estudo do Di-
dade da lei como instrumento, que é a realização do Direito. Para reito. Estudos de Direito. Rio de
Janeiro: Laemmert, 1892, p. 36;
isso, não há método eficaz, pois como sabiamente ponderou Gada- cf. BATISTA, Nilo. Introdução
mer, o homem experiente sabe da fragilidade de todos os planos e crítica ao Direito Penal brasi-
leiro. Rio de Janeiro: Revan,
é, assim, um decepcionado, na medida em que não pode determi- 1990, p. 18.

impulso 37
2777.BK Page 38 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

nar a realidade conforme a sua vontade num arremedo de ontolo-


gia que é o dogmatismo. Ao contrário, a verdade vem por si só.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao Direito Penal brasileiro.
Rio de Janeiro: Revan, 1990.
BONOMI, Andrea. Fenomenologia e estruturalismo. São Paulo:
Perspectiva, 1974.
GILISSEN, John. Introdução histórica ao Direito. Trad. A.M.
Hespanha e L.M. Macaísta Malheiros. Lisboa: Fundação C.
Gulbenkian, 1988.
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito.
10ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1988.
PEREIRA, Aloysio Ferraz. Estado e direito na perspectiva da liber-
tação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980.
PEREIRA, Aloysio Ferraz. O direito como ciência. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1980.
PEREIRA, Aloysio Ferraz. História da filosofia do direito. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1980.
SALEILLES, R. L'individualisation de la peine. 2ª ed. Paris: Felix
Alcan, 1909.
SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: a nova parte geral.
Rio de Janeiro: Forense, 1985.

38 impulso
2777.BK Page 39 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

A TEORIA DA JUSTIÇA
DE JOHN RAWLS E
ALGUMAS DIFICULDADES:
UMA LEITURA
JORGE ATÍLIO SILVA IULIANELLI

A abordagem que Rawls faz da justiça é apresentada não


como uma teoria moral, mas como uma teoria da justiça stricto
sensu. 1 Ele, portanto, pretende discutir quais princípios devem
orientar a ação justa dos indivíduos e da sociedade, mas não pre-
tende abordar o conjunto de normas que deve reger a vida dos
indivíduos. Por outro lado, como seria impossível travar tal discus-
são sem reconhecer-se comprometido com a lguma teoria moral,
ele assume estar falando desde uma perspectiva que chama de kan-
tiana. 2 Assim, sua postura moral é deontológica e não teleológica:
a conduta seria orientada por valores subjetivamente assumidos,
autonomamente, e não em vista a alcançar algum bem. Assim, uma
das teorias da justiça que assume como concorrente é o utilita-
rismo, na medida em que esse possui o princípio da benevolência 3
(alcançar o maior bem possível com a ação moral). 1 RAWLS, John. Uma teoria da
A teoria da justiça construída por Rawls possui alguns con- justiça. Trad. Vamireh Chacon.
ceitos básicos, quais sejam, posição original, véu da ignorância, Brasília: UNB, 1981, p. 37.
2
equilíbrio reflexivo ou ponderação racional, sujeito racional, princí- RAWLS, John, loc. cit., p. 22.
Falando de seus propósitos com
pio da igualdade democrática e da diferença, justiça processual ou Uma teoria da justiça, afirma:
procedural. Esses conceitos querem expressar primeiramente, que “A teoria resultante é muito
próxima da de Kant”.
o sujeito da justiça é a estrutura básica da sociedade e, por conse- 3FRANKENA, W. Ética. São
guinte, a justiça é estabelecida contratualmente. A estrutura básica Paulo: Zahar, 1981, p. 59.

impulso 39
2777.BK Page 40 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

é composta pelo conjunto dos indivíduos de uma dada sociedade.


Isso implica numa atitude procedural da justiça. Assim, a justiça
possibilita a ação justa e não, necessariamente, a boa ação. Embora
entre o bem e a justiça exista uma relação de proximidade e seme-
lhança, eles não se confundem, nem a justiça esgota a moralidade
da ação.
A visão contratualista da teoria da justiça Rawls remonta a
Locke, Rousseau e Kant. Sua intenção é, a partir dessas teorias,
apresentar uma da justiça capaz de, em disputa com o utilitarismo
e o intuicionismo, estabelecer uma concepção de justiça orientada
por princípios e orientadora da ação que possa ultrapassar os limi-
tes da ação dirigida para a consecução do maior bem possível,
apenas, ou guiada pelo sentimento ou emoção. “A linha mestra é a
produção de uma teoria de justiça que seja uma alternativa viável
4 RAWLS, John, op. cit., p. 27.
a estas doutrinas, que têm dominado por muito tempo nossas tra-
5
dições filosóficas”. 4
RAWLS, John, op. cit.,
p. 57ss. (par. 9) A proposta de nossa reflexão é identificar os principais pas-
6 TUGENDHAT, E. Proble- sos na construção da teoria da justiça de Rawls, identificando suas
mas de la ética. México, 1983,
p. 15-38. contribuições, especialmente no que tange à discussão do equilí-
7 Estou pensando efetivamente
brio reflexivo. 5 Em seguida, discutirei as críticas metodológicas
em duas possibilidades de sen- apresentadas por Tugendhat. 6 Finalmente, procurarei expor breve-
tido para comunidade ética.
Uma é tomista, como expressa, mente algumas considerações sobre o seguinte problema: é possí-
por exemplo, Marcelo Perine vel considerar a estrutura básica da sociedade como uma comuni-
(PERINE, M. Precisamos de
uma nova moral? Impulso, Pi- dade ética? 7 Em outros termos, a apresentação de uma posição ori-
racicaba, v. 14, n. 7, p. 92,
1994.): “A tradição tomista ginal, que seria um acordo entre os membros de uma dada socie-
cristã permite, por exemplo, dade constitui uma comunidade ética?
uma compreensão da sociedade
humana como comunidade éti-
ca. Por comunidade ética enten-
de-se aqui um 'modo de vida A TEORIA DA JUSTIÇA DE JOHN RAWLS:
em sociedade no qual as rela-
ções intersubjetivas são regra- O EQUILÍBRIO REFLEXIVO
das por leis concebidas como O equilíbrio reflexivo, como metodologia, oferece um grave
leis públicas'”. A outra conce-
pção nos é oferecida por Haber- problema quanto a sua exeqüibilidade. Rawls propõe-se discutir
mas ao compreender a comuni-
dade lingüística como comuni- infindavelmente sua concepção de justiça (interessam apenas as
dade regulativa (HABERMAS, dele e as do leitor), de modo a dirimir as dúvidas. Trata-se de um
J. Justification and application.
Cambridge: MIT Press, 1993, conjunto de ponderações: parte-se das afirmações do senso comum
p. 40.), conforme ao falar de
proibições, obrigações e senti- sobre justiça, investiga-se sua plausibilidade e procede-se de forma
mentos morais, afirma: “Eles a questionar-lhes as pretensões ou antepondo dúvidas possíveis.
todos pertencem a uma comu-
nidade na qual relações inter- Verificado erro nas concepções, procede-se à verificação de sua
pessoais e ações são reguladas
por normas de interação e po- extensão. Nesse sentido, o recurso a outras teorias concorrentes é
dem ser julgadas à luz dessas tão legítimo como o recurso a exemplos de fatos de justiça tomados
normas como justificáveis ou
injustificáveis”. do cotidiano, que, no entanto, são preferíveis àquelas.

40 impulso
2777.BK Page 41 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

Por outro lado, dado o caráter primitivo das abordagens sobre


a teoria da justiça, o recurso à teoria do contrato fica legitimado. 8
Uma das mais interessantes afirmações sobre a noção de equilíbrio
reflexivo refere-se ao papel temporário ou transitório das defi-
nições, elas não estão num primeiro plano, mas sim à possibili-
dade do questionamento enquanto permanecer alguma dúvida
possível:

do ponto de vista da filosofia moral, o melhor apa-


nhado do sentido de justiça de uma pessoa, não é o que
se adaptava anteriormente a seus julgamentos no exame
de qualquer conceito de justiça, mas será o que con-
fronta seus julgamentos em equilíbrio reflexivo. 9

A primeira idéia realmente importante na concepção de


Rawls é que justiça possui um papel fundamental na regulamenta-
ção das instituições e da vida das sociedades, isso porque “justiça
é a primeira virtude para as instituições sociais como a verdade
para o pensamento” (§ 1). Assim sendo, é necessário considerar
como a justiça pode ordenar as instituições ou a ordem na socie-
dade, assim como a verdade pode ser orientadora do pensamento.
Ou seja, é necessário verificar a afirmação da prioridade da virtude
da justiça. Há três ordens de problemas para o estabelecimento da
justiça como capaz de desempenhar o papel de instituir a boa
ordem na sociedade: é necessário que haja algum entendimento
sobre o que é justiça; em segundo lugar, é necessário que exista
uma compreensão desse conceito que seja eficaz, i.e., capaz de
estabelecer a boa ordem; finalmente, é necessário que a justiça
estabeleça efeitos desejáveis, que seja estabilizadora das relações.
Rawls afirma que essas suas idéias, expostas no primeiro
parágrafo da primeira parte, guardam o básico de sua teoria da jus-
8 Este recurso à teoria do con-
tiça. Isso significa ao menos três coisas: justiça é um acordo da trato é tão legítimo como o seria
estrutura básica da sociedade; tal acordo, necessariamente conduz à qualquer outro, apesar das im-
precações de Rawls contra o in-
boa ordem, à estabilidade-equilíbrio; o sujeito da justiça é a estru- tuicionismo e o perfeccionismo.
tura básica da sociedade – as instituições sociais. Assim a principal No entanto, isso não afeta o fun-
damental da noção de equilíbrio
idéia de justiça (§ 3) é a do estabelecimento de um contrato social reflexivo, muito embora não
apresente nenhum argumento
que, acima de ser um acordo capaz de erigir a sociedade ou seu em favor de sua exeqüibilidade,
governo, deve ser compreendido como o acordo original, numa a não ser no sentido de tratar-se
de uma tentativa filosófica infin-
posição original de igualdade entre todas as partes, reunidas pelos dável.
mesmos interesses, elegendo princípios orientadores (reguladores) 9 RAWLS, John, op. cit., p. 59.

impulso 41
2777.BK Page 42 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

de entendimentos e cooperações sociais. “A esta maneira de ver os


princípios de justiça chamaremos de eqüidade” (p. 33).
O mais complicado desse acordo na posição original é que
ele é celebrado entre seres racionais. Nesse ponto, Rawls está
assumindo uma das complexas opções da ética kantiana, qual
seja, a proposição de que a razão é o móvel da lei moral, e,
portanto, a obrigação moral, a responsabilidade moral, que é a
outra face da obrigação, são frutos de uma decisão racional, um
juízo racional construído autonomamente pelo sujeito da ação.
Assim, a moralidade do ato não se encontra na relação exclusiva
com o bem, mas, principalmente, na consciência moral do agente
(Cf. CrPr I, I). A máxima se erige em lei universal porque é uma
decisão racional, aplicável, pois, a todos os seres de razão.
Frankena, por exemplo, apresenta como dificuldade a isso o fato
de nem toda máxima, racional, desejável, poder ser erigida como
lei universal. (Ver FRANKENA, W. op. cit. p. 48) Mas as ques-
tões emergentes dessa opção kantiana são ainda maiores quando
consideramos o problema da racionalidade: por que considerar
que os homens, como agentes morais, identificam-se como seres
de razão? Qual a legitimidade da afirmação da moralidade ser
regida por uma razão, ainda que prática? Não obstante concordar
com as afirmações questionadas, é necessário advertir que aí se
trata de uma opção complexa.
Esse conceito de racionalidade não está explicado, mas
Rawls fala em “juízos racionais”, que elegem uma compreensão
de bem; fala, também, em “metas racionais” no sentido de objeti-
vos. Isso, a racionalidade do acordo e a igualdade dos contraentes,
estabelece a justiça como eqüidade.
A posição original é fundamental para o estabelecimento da
justiça. Ela corresponde ao estado de natureza no contrato social.
Nela os contratantes encontram-se todos numa situação de ignorân-
cia sobre a própria situação social (status), posição de classe ou
quanto cabe a cada um na distribuição de bens ou capacidades natu-
rais, como inteligência, força e outras. Eles também desconhecem
conceitos de bem ou propensões psicológicas específicas. Para que
a justiça como eqüidade possa ser estabelecida, é necessário supor
um acordo fundamentado nessa mútua ignorância, nessa condição
de igualdade, na qual ninguém leva vantagem ou é prejudicado. A
esse “desconhecimento” Rawls chama “véu da ignorância”. 10
10 RAWLS, John, op. cit., p. Mas, esse “véu da ignorância”, que promove a igualdade
119. fundamental da posição original, supõe alguns conhecimentos:

42 impulso
2777.BK Page 43 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

“sua sociedade está sujeita às circunstâncias da justiça e do que


isto implica”, “entendem os assuntos políticos e os princípios da
teoria econômica; sabem a base da organização social e as leis da
psicologia humana”. Isso é assim por um motivo simples, no
entanto, não evidente: os princípios de justiça que regulam a boa
ordem “precisam se adaptar às características do sistema de coo-
peração social, às quais devem regular, e não há razão para excluir
esses fatos”. Há duas possibilidades de explicação do véu da
ignorância, uma mais próxima à teoria kantiana, outra mais prag-
mática. Tomaremos a possibilidade kantiana adiante ao falarmos
da racionalidade pressuposta.
O véu da ignorância o que é? Trata-se de uma defesa da eqüi-
dade, para que possa ser escolhida uma concepção de justiça que
afete a todos sem o comprometimento das diferenças naturais. Isto
é, o véu da ignorância permite uma decisão unânime sobre a con-
cepção de justiça. Isso porque, se tal desconhecimento está estabe-
lecido, ninguém vai negociar melhores favorecimentos que outros.
Além disso, qualquer um poderá participar da posição original em
qualquer momento. Mesmo as gerações futuras ficam garantidas
pela concepção de justiça estabelecida nessa posição original, na
medida em que não há ponderações sobre a necessidade de poupar
ou não, de reagir ou não às soluções de justiça que a história já
ofereceu. Não há concepção de justiça existente na posição origi-
nal; apenas existe uma situação de igualdade fundamental, que
permite a ereção de uma concepção de justiça: “cada um está for-
çado a escolher por todos”.
Dessa forma, a concepção de justiça nasce com dois princí-
pios fundamentais, necessariamente: o princípio da igualdade
democrática e o da diferença distributiva. Pois, se na posição origi-
nal há uma igualdade fundamental, o princípio da igualdade demo-
crática como que decorre dela; e, por outro lado, como ninguém
deseja tirar vantagens da situação do outro, a justiça distributiva é
eqüitativa. Na verdade, Rawls afirma que estes dois princípios são
aqueles possíveis de “serem escolhidos na posição inicial” (§ 11,
p. 67). Esses princípios devem ser compreendidos de forma serial,
isto é, a igualdade democrática deve preceder à diferença distribu-
tiva. No entanto, de forma alguma Rawls está afirmando que a jus-
tiça é conduzida apenas por estes princípios, mas sim que estes são
fundamentais e que quaisquer outros a eles estão subordinados.
É na descrição desses princípios que se dará a afirmação de
uma teoria da justiça que seja uma “alternativa viável”. Todo o

impulso 43
2777.BK Page 44 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

capítulo 2 da primeira parte (§§ 10-19), bem como a segunda parte


(§§ 31-50), especialmente), explicam os dois princípios e suas
decorrências, assim como os princípios auxiliares, por assim dizer. 11
A noção dos princípios ficará, para Rawls, vinculada à racionali-
dade da Teoria da Justiça. Mas, de certa forma, a descrição dos
princípios independe dessa racionalidade pretendida. Eles estão
ordenados em acordo com o “bom senso” (senso comum). A obri-
gatoriedade que pretendem também advém da força do contrato.
Há duas ordens de princípios de justiça: os que se aplicam às
instituições 12 e os que se aplicam aos indivíduos. 13 Estas ordens
não devem ser confundidas, pois se aplicam a sujeitos diferentes.
Para o que interessa inicialmente, a saber, a análise da opção por
princípios na posição original, é necessário conceber a estrutura
básica da sociedade como constituída por instituições e essas sub-
metidas a uma concepção comum de justiça, sem o que seria
impossível escolher princípios que pudessem torná-la exeqüível.
Sem dúvida, há vários problemas sobre esse ponto de partida
que Rawls adota, e ele os reconhece e procura refutá-los. Basica-
mente podem ser resumidos em dois: as instituições podem ser
injustas? Ou, elas não podem estar inseridas em um sistema social
injusto apesar de serem justas? Ao que ele responde o óbvio: é evi-
11 Os princípios da igualdade dente que as instituições não estão isentas da possibilidade da
democrática e da diferença dis-
tributiva referem-se às injustiça delas mesmas ou do sistema social efetivamente.
instituições sociais. Rawls ad- No entanto, “a justiça formal, ou a justiça como método,
verte que apenas na segunda
parte discute qual dos princípios exclui tipos significativos de justiça. Supondo-se que as instituições
deve ser adotado (Ver RAWLS,
John, op. cit., p. 63.). Os princí- sejam razoavelmente justas, então será de grande importância que
pios dão sustentabilidade a idéia as autoridades sejam imparciais e não influenciáveis por pessoas,
de justiça processual, que será
explicada adiante. dinheiro, ou outras considerações irrelevantes, quando tratando de
12 Entende-se por instituições casos particulares”. Por outro lado, “a força das reivindicações de
“um sistema público de regras justiça formal, de obediência ao sistema, depende claramente da
que determina ocupações e po-
sições acompanhadas por seus justiça real ou substantiva das instituições e da possibilidade de
respectivos direitos e deveres,
poderes, imunidades e seme- reformulá-los”. 14 Há uma relação entre justiça formal e justiça
lhantes”. Cf. RAWLS, John, substantiva que é de dependência dessa última com relação à cons-
op. cit., p. 63.
13 Os parágrafos 10-17, assim
trução de seus argumentos: ela não pode reivindicar o impossível.
como toda a segunda parte, tra- A justiça substantiva, de certo modo, é o limite da justiça formal.
tam das instituições. Os pará-
grafos 18-19 e 51-52, embora Portanto, não é uma questão simples. As instituições são con-
existam outros dispersos (66- sideradas por Rawls, não apenas formalmente, mas efetivamente.
67; 78 e 82), dizem respeito aos
princípios orientadores dos A efetividade das instituições, levando-se em consideração uma
indivíduos e serão abordados concepção comum de justiça, pode ser injusta, assim como a do
adiante.
14
sistema social onde elas estão envolvidas, sendo possível mesmo a
RAWLS, John, op. cit., p.
66-67. hipótese de um sistema injusto apesar da justeza de todas as suas

44 impulso
2777.BK Page 45 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

instituições. Todavia, o objeto da reflexão é a possibilidade de,


numa situação de posição original, na qual os indivíduos assumem
o véu da ignorância, para si e para as instituições, optar-se por
princípios constituintes de uma concepção de justiça válida igual-
mente para todos. Isso não está impedido. Fica mesmo afirmada a
possibilidade de erigir-se uma concepção procedural de justiça, i.e,
uma concepção formal de justiça que sirva como método.
Quais princípios de justiça são possíveis serem adotados na
posição original? Já dissemos anteriormente: igualdade democrá-
tica e diferença distributiva. Resta, porém, apresentar porque
motivo 15 esses dois princípios podem ser adotados na posição
original. Tal possibilidade está vinculada a uma concepção mais
ampla de justiça, expressa da seguinte forma:

Todos os valores sociais – liberdade, oportunidade,


rendas, bens e as bases do respeito próprio – deveriam
ser distribuídas igualmente, a menos que uma distri-
buição desigual de um desses valores, ou de todos,
viesse a trazer vantagens para alguns. A injustiça não é
apenas a desigualdade que não traz benefícios para
todos. 16

No que diz respeito à fundamentação dos princípios, Rawls


apresenta as teses da necessidade de publicidade e finalidade para
a eleição dos princípios de justiça, coerentes com a concepção de
justiça como eqüidade. Antes de mais nada, parece ser significativo
destacar que, para Rawls, a concepção de justiça assenta-se em
uma compreensão das instituições sociais básicas como mutantes,
portanto, a ordem social é mutante e a escolha de princípios de jus-
tiça, que são princípios racionais, podem modificar-se de acordo
com a maior ou menor racionalidade que a sociedade tenha. 17 Os
princípios de justiça devem estar fundamentados na contratuali-
dade. Isto quer dizer que eles devem ser os mais públicos e publi- 15 RAWLS, John, op. cit. No úl-
cizáveis e atender o mais possível à finalidade do contrato – e a timo parágrafo, ele explica o
porquê da prioridade do princí-
finalidade dos contraentes (referência ao reino dos fins, de Kant). pio da liberdade na ordenação
A argumentação de Rawls na defesa dessas duas característi- léxica ou serial dos princípios.
16
cas motivacionais dos princípios de liberdade democrática e dife- RAWLS, John, op. cit., p.
68-69. Ele termina dizendo: “É
rença distributiva é bastante truncada. Ele faz, primeiramente, com óbvio que esta concepção é ex-
que a idéia de publicidade esteja vinculada à necessidade de limi- tremamente vaga e necessita de
interpretação”.
tar as diferenças injustas, ou seja, vincula-se a capacidade de pro- 17RAWLS, John, op. cit., p.
duzir um bem maior para a própria sociedade. Ele atribui isso ao 398.

impulso 45
2777.BK Page 46 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

efeito psicológico das pessoas se amarem, desejarem seu próprio


bem. E é público que uma ordem justa pode conduzir a isso.
Assim, os princípios de liberdade e diferença conduziriam ao
auto-respeito, a afirmação de mútua cooperação entre as partes, e,
portanto, de vantagens para todos. 18
Mais truncado ainda é seu empenho em fazer reconhecer que
o contrato efetivado na posição original seja conseqüência da fina-
lidade do ser humano. Assim, numa leitura de Kant, afirma que por
ser o homem um fim e não um meio, os princípios de justiça se
impõem por garantir que sacrifícios possam ser feitos, num acordo
de que o que se perde não contribui em nada para as expectativas
representativas. 19 Ele considera que a cooperação social fica forta-
lecida com essa noção de ser humano como fim. Assim, a finali-
dade do auto-respeito permite o mútuo respeito, conforme Rawls.
A discussão seguinte, com referência às motivações, diz res-
peito à prioridade da liberdade. Ele argumenta que o princípio da
liberdade é regulador do princípio da diferença. Isso significa que
a concepção de bondade, enquanto racionalidade, permite admitir
que, em vista da excelência e fins a que as pessoas são atraídas, a
liberdade é o principal interesse regulador, pois senão as pessoas
estariam arbitrariamente discriminadas em conformidade às dife-
renças de posição social ou diferenças naturais. Ele supõe, ainda,
que essa afirmação da prioridade da liberdade é mais possível em
uma sociedade “bem estruturada”, i.e., regulada pelo Estado de
18 Toda essa argumentação é al-
tamente utilitarista; o que ele
Direito. 20
não quer. Porém, ele afirma não O primeiro princípio, da liberdade democrática, expõe que a
o ser na medida em que afirma a
noção de sacrifício: as pessoas, extensão da liberdade deve ser a maior possível e igual para todos
em vista do bem de todos, acei-
tariam o sacrifício, na medida (“compatível e similar com a liberdade de outros indivíduos”,
em que isso implicasse também § 11). Os dois princípios são seriais, segundo Rawls, o primeiro
em vantagens para elas mesmas,
desde que movidas por senti- princípio antecedendo ao outro, não apenas logicamente, mas efe-
mentos morais, tais como o de
auto-respeito. Os sacrifícios, tivamente. Ele não apresenta muita dificuldade de compreensão
por outro lado, são demanda-
dos pela estrutura básica da so- para esse primeiro princípio. Na verdade, nem o discute muito.
ciedade, como uma questão de
justiça. Cf. RAWLS, John, op. Como que supõe que a justiça, para ser efetivada, dependa do exer-
cit., p. 146. cício mais pleno possível de uma igualdade democrática, o que sig-
19RAWLS, John, op. cit., p.
147-148.
nifica o exercício das, assim chamadas, liberdades civis burguesas,
20 Estado de Direito é compreen-
que possuem duas expressões básicas: liberdade política ou civil
dido no estilo do Estado Cons- (eleitoral, expressão e pensar, reunião e associação) e liberdade
titucional dos Estados Unidos
da América. pessoal (associada ao direito à propriedade). Na verdade, a igual-

46 impulso
2777.BK Page 47 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

dade democrática, de acordo com Rawls, está assentada nos direi-


tos à propriedade e à organização (divergência) política.
O segundo princípio, porém, é bastante mais complexo e a
ele Rawls vai dedicar muito mais atenção. 21 Ele se expressa, de
forma geral, do modo seguinte: as desigualdades econômicas e
sociais devem ser distribuídas de forma que (a) tragam vantagens
para todos e (b) “que sejam ligados a posições e a órgãos abertos
para todos”. Rawls afirmara que o véu da ignorância supunha
todos esquecerem seu status e condição social, assim como quais-
quer diferenças naturais (tais como inteligência, força, etc.), a fim
de que a concepção de justiça partilhada não fosse fruto da barga-
nha ou dos jogos de interesse particulares, mas que a concepção
de justiça fosse a mais equânime possível. Ora, esse princípio da
desigualdade distributiva aparentemente contrapõe-se a essa orien-
tação. Contudo, não é isso que ele conclui.
Ele propõe uma explicação do segundo princípio – supondo
21 Muito embora estes princípi-
um sentido único para o primeiro – que o combina ao princípio da os, por serem derivados da es-
eficiência (que não tinha aparecido até aqui, e que não é um dos trutura básica da sociedade,
apresentarem suas raízes nos
princípios fundamentais da concepção de justiça que ele está apre- valores sociais como expostos
sentando). Resumirei a explicação, afirmando o seguinte: o princí- acima (nota 12), eles encontram
uma centralidade, na exposição
pio da eficiência garante a exeqüibilidade da distribuição desigual de de Rawls, no valor “liberdade”.
Apesar desse valor constituir
modo que ninguém possa ser prejudicado, mas que as vantagens muito mais ao primeiro princí-
possam ser distintas conforme as capacidades. Isto é, supõe-se a pio que ao segundo, ele não dei-
xa de participar também deste.
diferença dos indivíduos (e das instituições) em base às eficiências Na verdade, o segundo princí-
comparadas: um é mais eficiente que outro. Ora, se as vantagens são pio será mais importante para a
concepção de justiça eqüitativa
possíveis a todos (a), de acordo com a posição de cada um (b), isso que o anterior. Sem o anterior
seria impossível propor uma re-
significa que ninguém é ludibriado nesse sistema de distribuição e gulação eqüitativa, pois faltaria
aos menos providos de capacidade ficam garantidas as vantagens o acesso aos bens. Mas, sem o
segundo, o equilíbrio diferenci-
possíveis de tal distribuição. Ou seja, a distribuição é diferenciada, ado da vida social seria inacces-
sível. Resta verificar o quanto
uns têm mais vantagens que outros, mas todos têm vantagens. 22 essa noção de boa ordem é me-
A segunda parte de Teoria da Justiça debruça-se sobre os dois ramente ideológica.
princípios, sobre as possibilidades de aplicabilidade, discorrendo 22 RAWLS, John, op. cit., p.
72s. Isso só pode ser assim con-
ainda sobre os princípios de justiça atinentes às instituições. Em siderado, segundo Rawls, se ao
princípio, é formulada uma teoria dos quatro estágios 23 da posição princípio da eficiência for
acrescido o princípio da dife-
original, procurando tornar mais compreensível a aplicação dos rença, que garante, segundo ele,
que se, corretamente, os melho-
princípios. O primeiro estágio é o véu da ignorância, a posição ori- res posicionados têm melhores
ginal propriamente dita, na qual as orientações são dadas apenas vantagens, fica assegurado ao
menos afortunados serem bene-
pelos conhecimentos decorrentes da justiça. O consenso firmado ficiados com isso, graças à rea-
nesse estágio é produzido em torno dos princípios coerentes com a ção em cadeia provocada por
esse outro princípio.
concepção de justiça como eqüidade. Em seguida, o segundo está- 23RAWLS, John, op. cit., p.
gio, corresponde à etapa constituinte. Isso por que a justiça é con- 159-162.

impulso 47
2777.BK Page 48 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

siderada a partir da estrutura básica da sociedade, e, por conse-


guinte, em conformidade com o estabelecimento do Estado de
Direito, supondo-se que ele seja a melhor forma possível de estru-
tura social. Nesse estágio, o conhecimento das estruturas econômi-
cas, políticas, sociais e culturais da sociedade é suposto, pois o que
está sendo estabelecido é o pacto constituinte, orientado pelos dois
princípios de justiça. O terceiro estágio, pois, é o momento legisla-
tivo, no qual se estabelecem as regulamentações da vivência dos
princípios. O quarto e último estágio é o da aplicabilidade dessas
regulamentações. Os outros parágrafos (§ 32-40) desse capítulo,
que se intitula liberdade igual, tratam da liberdade de consciência
e expressão e da liberdade política – além de uma consideração
sobre o tema da eqüidade em Kant. 24
Na verdade, o próprio Rawls considera que essas observa-
ções dizem respeito propriamente a uma filosofia política. Não
obstante, cabe ressaltar três questões. Primeiramente, há uma
lacuna que precisa ser notada. Quanto ao princípio da igualdade
democrática, uma das liberdades constituintes era a liberdade do
direito de propriedade. Esse direito não é abordado nesse momento,
mas, indiretamente, no próximo capítulo, quando será tratado o
princípio da diferença distributiva. A segunda questão diz respeito
ao princípio de tolerância. A liberdade de consciência e expressão,
numa sociedade ordenada pelos princípios de justiça, que constitui
um Estado de Direito, deve ter espaço para os intolerantes? Sim,
com reservas. Ou seja, deve haver limites para a intolerância, seu
limite é positivamente a liberdade de expressão e consciência dos
outros grupos (religiosos ou políticos). A tolerância está subordi-
nada ao interesse comum. A outra questão diz respeito ao direito
de participação política. A liberdade política deve ser a mais
extensa possível. Em geral se admite nos Estados de Direitos a
relação 1 cidadão = 1 voto. Mas, há exceções: crianças, idosos,
incapazes...
Enfim, há limites também para a participação. O princípio de
liberdade conduz ao princípio de responsabilidade. Os limites à
liberdade são encontrados no princípio de responsabilidade. Os
limites à liberdade são conseqüência da responsabilidade pela
constituição/manutenção do Estado de Direito.
O segundo princípio de justiça, o da diferença distributiva,
24Mais adiante abordaremos a orienta principalmente à vida econômica da sociedade. Uma teoria
proximidade entre Rawls e Kant da justiça, um princípio de justiça em relação à economia, tem a
ao tratarmos do tema da racio-
nalidade. função de orientar os cidadãos na busca de algum critério para a

48 impulso
2777.BK Page 49 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

justa distribuição das vantagens sociais. E aí repousa a questão:


como pode, diante de interesses socialmente estabelecidos, impor-
se algum princípio de justiça, numa concepção de justiça como
eqüidade? A solução proposta por Rawls consiste em fazer decor-
rer os princípios de justiça não de alguma concepção ideal, ou a
priori, mas da concepção de uma estrutura social básica que seja
justa, ou que tenda à justiça, e na qual fossem valorizados não
todos os interesses, mas alguns interesses/desejos básicos, os quais
sejam comuns. (§ 41) A conseqüência disso não é o estabeleci-
mento de um nível geral/comum de pobreza, mas é, por um lado,
a proteção dos desafortunados com os níveis de elevação da
riqueza (por meio da tributação); por outro, até que a sociedade
chegue a um estágio no qual a poupança seja desnecessária, é justo
que se preveja o suficiente para que as gerações futuras possam
chegar até este justo estágio, visto que é justo cada um fazer sua
parte no processo de desenvolvimento das sociedades (isto deve
ser feito por meio da poupança justa).
Duas observações a respeito do papel do mercado nesse prin-
cípio regulativo: (1) Para Rawls, o sistema de mercado é mais
compatível com liberdades iguais e justa igualdade de oportuni-
dade (diferentemente distribuída); (2) o mercado deve ser regulado
pelo Estado (por meio da tributação, fazendo com que ele esteja
voltado para o bem comum), porém, o mercado é orientado,
necessariamente pelo princípio do benefício e não pelo princípio
da justiça. Portanto, ficam reconhecidas prioridades na condução
da vida econômica e política: prioridade da liberdade e prioridade
da justiça sobre o bem-estar e a eficiência.
Caberia considerar agora os princípios orientadores dos
indivíduos. Rawls considera que há uma hierarquia na adoção dos
princípios, que ele adota em sua exposição. Tal hierarquia confere
prioridade aos princípios orientadores das instituições básicas da
sociedade, em especial considerando-se a efetividade de uma posi-
ção original. Em seguida adviriam os princípios orientadores dos
indivíduos, que vivem em sociedade, e supõe-se uma boa ordem,
qual seja uma sociedade justa ou tão justa como razoavelmente
pode sê-lo. Ainda se apresentaria, numa consideração sobre os
princípios de justiça, o direito internacional.
Eles são apresentados como sendo apenas dois: a eqüidade e
o dever natural. Na verdade, o princípio de eqüidade é suposto
como a concepção de justiça comum, ou seja, aquela decorrente
da aplicação dos dois princípios das instituições, os da liberdade

impulso 49
2777.BK Page 50 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

democrática e da diferenciação distributiva. A eqüidade deve


orientar o indivíduo nas suas relações com os outros indivíduos
favorecendo a perceber suas obrigações, no sentido de tarefas.
Nesse sentido há dois tipos de obrigações, distintos e comple-
mentares: a obrigação política e a pública. A primeira refere-se
especialmente aos cidadãos que ocupam cargos públicos; estes
devem cumprir as tarefas que lhes cabem, sem querer avantajar-se
com isso, em vista do bem comum, por obrigação do cargo.
A outra, a obrigação pública, diz respeito a todos. Ou seja, pelo
princípio de eqüidade cada um deve ocupar o papel social que lhe
cabe, visto que se supõe uma boa ordem, como expresso acima.
O princípio do dever natural pode ser considerado positiva e
negativamente, como aqueles deveres relacionados à mútua coope-
ração entre os indivíduos. Entre os deveres naturais se destaca o
dever de justiça, a saber, o de ajustar-se, adequar-se à ordem esta-
belecida, cooperando para que ela possa atingir sua própria justiça.
Disso decorre que, ao avaliar dessa forma a obrigação e o dever
natural, Rawls faz algumas considerações a respeito da desobe-
diência civil e da recusa por motivos de consciência.
O mais importante, parece-me, é a constatação de que apenas
em alguns casos são justificáveis essas atitudes num Estado de
Direito, a saber, naquelas em que grupos minoritários, ou indiví-
duos, sentindo-se injustiçados, não participem das orientações
legais, supostamente justas para a maioria, sem prejudicar ao con-
junto intencionalmente, além do descumprimento da lei.
Até esse momento, optamos por apresentar as idéias de Rawls
sem o recurso às suas justificativas propriamente racionais e suas
discussões sobre a razão prática. Propositalmente procuramos per-
ceber como a Teoria da Justiça, como eqüidade, e suas idéias mais
importantes, do ponto de vista da própria teoria e de uma filosofia
política, estão como que, por assim dizer, absolutamente apresenta-
das. Terminando a exposição das idéias que considerei serem as
mais importantes em Teoria da Justiça, discutiremos a concepção
de sujeito racional e a relação dessa concepção estabelecida, por
Rawls, com uma possível teoria de Kant sobre a eqüidade.
Primeiramente, deve-se estabelecer o que é compreendido
por racionalidade. Racionalidade é a capacidade de se decidir por
uma meta e planejar os meios para sua execução. Assim, consi-
dera-se que, na situação original, seres racionais estabelecem um
pacto (contrato) para construírem uma concepção de justiça.
A racionalidade desses sujeitos possibilita que eles escolham entre

50 impulso
2777.BK Page 51 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

as diversas concepções de justiça aquela que mais se aproxima da


eqüidade e possam optar pelos princípios orientadores das
instituições (liberdade democrática e diferença distributiva) e dos
indivíduos (eqüidade e dever natural). Essa decisão racional tem
uma meta, a de constituir uma concepção de justiça o mais pró-
ximo possível da justiça substantiva; assim, esse ser racional é
extremamente autônomo, pois, na situação original está livre de
qualquer limite obsessor de sua decisão.
Ora, essa concepção de racionalidade e sujeito racional é
propriamente retirada de Kant. A consideração da situação original
é, assim, numa versão kantiana,

o ponto de vista, a partir do qual os noumenos olham o


mundo. (...) Devem, então decidir quais princípios
quando seguidos e acompanhados conscienciosamente
na vida cotidiana, manifestarão essa liberdade na sua
comunidade, revelarão mais plenamente sua indepen-
dência diante das contingências naturais e do acidente
social. 25

Os princípios são vistos como imperativos categóricos, os


contratantes como noumenos, e a posição original como uma
interpretação processual da autonomia. Assim, ele mantém, dessa
forma sua proximidade a Kant, por meio da teoria do contrato e
por uma concepção de razão prática não comunicável com a razão
teórica.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE


A TEORIA DA JUSTIÇA
Uma observação que Tugendhat faz e parece-me extrema-
mente pertinente é sobre a postura teórica de Rawls. John Rawls
afirma-se próximo a Kant, mas pelo modo com que organiza sua
teoria parece muito mais próximo dos normo-utilitaristas. Senão,
vejamos. Ele orienta a escolha dos princípios fundamentais não a
partir da racionalidade de um ponto de vista moral qualquer, mas
pela regulação dos jogos de interesse numa dada estrutura social.
A suposição básica é que ninguém queira ser prejudicado, e não 25RAWLS, John, op. cit., p.
apenas que todos queiram igualdade de acesso às vantagens possí- 200.
veis. Ora, esse princípio é orientado por uma vantagem, ou seja, 26 BLOOM, A. Declínio da

uma finalidade e ações com vista a um fim são teleológicas e cultura ocidental. São Paulo:
Nova Cultural & Best Sellers,
deontológicas (orientadas racionalmente). 1989, p. 35-36.

impulso 51
2777.BK Page 52 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

Uma outra observação que me parece pertinente é feita por


Bloom, 26 que nota em Rawls uma atitude de defesa da ordem esta-
belecida estado-unidense, acima de tudo das atitudes não discrimi-
natórias. “A indiscriminabilidade, portanto, é um imperativo moral,
porque o seu antônimo é a discriminação”. É claro que isso é uma
caricatura de Rawls, mas segundo Bloom, isso é um processo no
qual a sociedade estado-unidense sempre esteve: manutenção das
igualdades civis. Como ele diz, “a igualdade perante a lei não pro-
tege o ser humano judeu, italiano ou negro do menosprezo e do
ódio”. Poder-se-ia contra-argumentar dizendo que Rawls não está
propondo uma concepção de justiça substancial, mas uma conce-
pção formal, que seja procedural: que indique possibilidades de
procedimento. Mas, também é verdade que Rawls procurou tratar o
mais próximo possível de uma concepção substancial de justiça,
chegando mesmo a avaliar determinados sentimentos morais, como
a vergonha ou a tolerância. Mas, não indicou nenhuma possibili-
dade de reverter sentimentos de intolerância agressivos...
Queria considerar o modo com o qual a idéia de estrutura
básica da sociedade é trabalhado. Ele tem a ver com duas funções
básicas do Estado de Direito: manutenção dos direitos políticos e
do direito à propriedade. Ora, isso significa depreender das estru-
turas do Estado Constitucional e do Mercado os princípios de jus-
tiça. O que significa, por sua vez, considerar que as estruturas do
Estado Constitucional e do Mercado sejam justas. E, ainda, uma
pressuposição anterior, como o Estado é o responsável por regular
as liberdades, supõe-se que ele esteja subordinado às regras do
Mercado. Antes que eu seja acusado de fazer afirmações indevidas,
não nos esqueçamos das considerações de Rawls acerca do Mer-
cado como instituição. Tanto é assim que Rawls procura estabelecer
como prioritárias a liberdade e a justiça em relação ao bem-estar e
à eficiência. Se é necessário estabelecer tais prioridades, é porque
o natural seria que elas não existissem. Elas são fruto de um
acordo para regular o Mercado.
Uma última observação diz respeito à disparidade entre as
teorias contratualista e racional da justiça. A teoria contratualista
não depende, necessariamente, das considerações da moral como
conduzida pela razão prática. Nesse sentido, como já assinalei
anteriormente, Rawls é muito mais um normo-utilitarista que kan-
tiano. Mesmo a afirmação de que o contrato é celebrado entre
seres racionais está subordinada a um mundo social, das
instituições básicas, que constroem princípios aos quais os princí-

52 impulso
2777.BK Page 53 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

pios também devem estar subordinados, em vista de uma conce-


pção de justiça como eqüidade. A postura de Rawls é antes a de
alguém que procura justificar o Estado Constitucional, como é
conhecido nos Estados Unidos da América, do que de alguém pro-
curando uma concepção de justiça como eqüidade, que seja
generalizável e universal, conceitos, como admitido por Rawls,
insuficientes do ponto de vista epistemológico, mas necessários.

CRÍTICA DE TUGENDHAT À TEORIA DA JUSTIÇA


A tese de Tugendhat é a seguinte: Rawls não consegue apre-
sentar uma teoria da justiça substantiva por não se dar conta da
insuficiência de seu método proposto (equilíbrio reflexivo) em
relação a iniciar sua análise a partir do ponto de vista moral. Para
ele, Rawls incorre em um equívoco metodológico que implica em
imprecisões graves na teoria. Ele não propõe o abandono da teoria
do contrato como possibilidade de expressar uma teoria da justiça
próxima à justiça substantiva, mas avalia que, perseguindo os pres-
supostos de Rawls, a saber, o método do equilíbrio reflexivo e a
não discussão do ponto zero na constituição da posição inicial,
esse intento é infundado.
Sua argumentação procede em duas etapas. Primeiramente,
observando a questão metodológica, adverte que a premissa de
que o estabelecimento de um equilíbrio reflexivo, que permita
atingir por ponderação racional uma concepção de justiça que seja
adequada moralmente, é insuficientemente argumentada. Segundo
ele, o primeiro equívoco consiste em procurar estabelecer uma
teoria da justiça em primeira e segunda pessoa e não em terceira.
Essa opção, que não permite a visão do observador, é, em si, pro-
blemática. E, apresenta-se problemática na teoria por propor asser-
toricamente crenças morais/crenças de justiça. O que justifica a
opção pelos princípios de justiça propostos? Não há uma funda-
mentação suficiente, na medida que simplesmente depreende-se
que seriam os melhores princípios em vista da construção da jus-
tiça como eqüidade. Isto é apresentado como um argumento ad
hominem, considera apenas as improváveis teses do utilitarismo.
Na segunda etapa, avalia o que decorrera, segundo ele, do
engano cometido. Nesse sentido, questiona o fato de Rawls optar
por uma posição original ao invés de ter como ponto de partida um
ponto de vista moral. Mais: afirma que Rawls, propondo que a
posição original fosse compreendida de forma processual em qua-
tro estágios, não reconhece um estágio anterior, estágio zero, no

impulso 53
2777.BK Page 54 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

qual ele optou por determinado conjunto de valores como impar-


cialidade, racionalidade dos agentes, justiça processual construída
contratualmente. Critica a inadequação de levantar-se completa-
mente o véu da ignorância no quarto estágio, fazendo com que não
haja mais nada que contenha o instinto de competição; assim, a
imparcialidade na execução da justiça fica comprometida.
Segundo Tugendhat, isso criaria um argumento ad hominem con-
tra Rawls e sequer poderia serem sustentados os princípios de jus-
tiça, no quarto estágio, diante dos juízos morais ponderados frutos
do equilíbrio reflexivo.
A impressão é que as críticas de Tugenhadt a Rawls são fruto
de uma incompreensão das intenções expressas por ele. O equilíbrio
reflexivo como método não quer abandonar a hipótese de uma teoria
da justiça em terceira pessoa, apenas quer dedicar-se a explorar a
possibilidade de construção de uma teoria da justiça mais próxima
da vida cotidiana. Isso garante que uma teoria em terceira pessoa
não permitiria uma teoria substantiva? Por que deixar de partir das
definições seria garantia maior de imparcialidade na construção de
uma teoria da justiça? Na verdade, uma teoria em terceira pessoa
necessariamente é mais distante do modo como as experiências coti-
dianas e intersubjetivas são vividas. Ademais, a teoria em primeira e
segunda pessoa é mais adequada a uma proposta contratualista.
Mas, realmente, não creio que o fato da teoria não ser elaborada em
terceira pessoa garanta maior imparcialidade a ela.
A crítica à inexistência do nível zero procede. Há um con-
junto de pressupostos que não estão apresentados na proposta de
Rawls. Ele não explica porque supõe a racionalidade dos sujeitos,
a não ser no parágrafo 40, no qual afirma estar assumindo a leitura
que Kant faz da autonomia. Mesmo assim, a consideração de seres
racionais, iguais e livres não é apresentada como pressuposto para
a existência da posição original. Também a imparcialidade, assu-
mida como uma postura adequada para assumir-se a concepção
comum de justiça como eqüidade, fica pressuposta, sem ser expli-
citada. Enfim, a posição original é um artifício necessário para o
estabelecimento de uma teoria contratualista da justiça como eqüi-
dade, mas seus pressupostos não foram justificados.

A PRETENSÃO A UMA COMUNIDADE ÉTICA 27


Rawls afirma no parágrafo 40 que na posição original estaria
27 PERINE, M., op. cit.; HA- constituída uma comunidade ética de noumenos. Tal pretensão
BERMAS, J., op. cit. pode ser sustentada sem problemas? Em que sentido Rawls está

54 impulso
2777.BK Page 55 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

afirmando a existência de uma comunidade ética na posição origi-


nal? A idéia expressa sobre a posição original, que dá início à teo-
ria, o contrato donde são originados os princípios de justiça, é cla-
ramente apresentada no referido parágrafo como uma assembléia
de noumenos livres, iguais e racionais que decidem a respeito de
como deverão conduzir-se numa estrutura básica de sociedade
considerada como sendo uma boa ordem.
Definitivamente Rawls atribui à posição original o status de
comunidade ética por ela, primeiramente, considerar os indivíduos
em sua condição social, a saber em sua situação relacional. Em
segundo lugar, estes indivíduos racionais são, até mesmo, despro-
vidos de inveja. 28 Isso significa a existência de uma postura orien-
tada pela razão (prática) e não por quaisquer níveis externos ao
agente. Além do mais, na posição original, como foi visto anterior-
mente, os indivíduos estão preocupados com o bem de todos, o
bem comum, e, em assim sendo, sacrificam-se espontaneamente,
autonomamente.
Ora, o conceito de comunidade ética, quer como apresentado
no tomismo, quer como defendido pelos adeptos da ética do dis-
curso, supõe, especialmente, o caráter intersubjetivo (social) dessa
comunidade. O que caracteriza uma comunidade ética é o fato de
a referência não serem os interesses privados, mas aqueles que
podem ser partilhados moralmente pelos outros seres humanos
(quer seja pela consideração da igualdade fundamental da pessoa
humana, quer pela consideração da pertença a uma mesma comu-
nidade do mundo da vida social, ou comunidade lingüística). Nes-
sas condições, a comunidade é ética se, e somente se, for regula-
dora dos princípios orientadores da vida comum. 28 Esta é uma idéia acidental,
Nesse sentido, Rawls está plenamente habilitado a considerar bastante discutida por Rawls,
mas que não nos pareceu uma de
que, na posição original, tal comunidade foi estabelecida. Na ver- suas principais idéias, no entan-
to, ele estabelece que sem essa
dade, a teoria do contrato supõe a existência de tal comunidade. consideração da ausência de in-
Mas, o fundamento dessa comunidade é o estabelecimento de um veja na posição original seria
inadmissível que os contraentes
mundo social hipotético. Assim, não se trata de uma comunidade pudessem buscar os princípios
ética substancial, mas formal. Tanto o tomismo, como os adeptos de uma concepção comum de
justiça que significasse vanta-
da ética do discurso, supõem a comunidade ética como parte do gens para todos.
mundo da vida 29 dos indivíduos. A comunidade ética de tomistas 29 Estou entendo por mundo da
e adeptos da ética do discurso situa-se como uma condição da exis- vida o conjunto de relações so-
ciais e culturais pré-existentes
tência de sujeitos-atores éticos, e não apenas como uma contingên- ao indivíduo, substrato da vida
do indivíduo, espaço contextual
cia na teoria. de sua existência. Cf. HABER-
Para Rawls, o mundo social hipotético é apenas um pressu- MAS, J. Para a reconstrução
do materialismo dialético. São
posto suficiente para estabelecer o esforço em vista de uma conce- Paulo: Brasiliense, 1981.

impulso 55
2777.BK Page 56 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

pção de justiça como eqüidade. Suficiente, mas não necessário. Na


verdade, é necessário e suficiente para o esforço em vista do esta-
belecimento de qualquer concepção moral que exista uma comuni-
dade ética. Disso concluímos que, por um lado, Rawls, de fato, a
estabelece, formalmente, muito embora, por outro lado, isso não
signifique que seja necessário supor como tal a assembléia dos
contraentes que vise estabelecer uma concepção de justiça como
eqüidade, por meio de um método como o equilíbrio reflexivo.
Em síntese, a comunidade ética, como suposta por Rawls,
não é suficiente e necessária para o estabelecimento da justiça
como modus vivendi, ainda que pudesse ser assumida como
modus operandi, ao menos por quem assume o normo-utilitarismo
como orientador ético.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Trad. Vamireh Chacon.
Brasília: UNB, 1981.
TUGENDHAT, E. Problemas de la ética. México, 1983.
HABERMAS, J. Justification and application. Cambridge: MIT
Press, 1993.
HABERMAS, J. Para a reconstrução do materialismo dialético.
São Paulo: Brasiliense, 1981.
PERINE, M. Precisamos de uma nova moral? Impulso, v. 14, n. 7,
Piracicaba: UNIMEP, p. 97-114, 1994.
FRANKENA, W. Ética. São Paulo: Zahar, 1981.
BLOOM, A. Declínio da cultura ocidental. São Paulo: Nova
Cultural & Best Sellers, 1989.

56 impulso
2777.BK Page 57 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

O MÉTODO DO DIREITO:
QUESTÕES DE LÓGICA JURÍDICA
ERCÍLIO A. DENNY

Quando se trata de conceituar o que é a lógica jurídica, isto


é, qual parte da lógica é aplicável ao direito, há necessidade de
definir o que se entende por “direito”.
Existem duas formas de se conceituar o direito: a primeira
compreende-o como um “conjunto de normas”. A segunda
maneira é o de percebê-lo como “o justo” (tó díkaion).

O DIREITO COMO “CONJUNTO DE NORMAS”


O que caracteriza o pensamento jurídico contemporâneo é
considerar o direito como uma produção do espírito humano. Ele
seria constituído de normas, através das quais os homem comanda
os fatos da natureza. Atrás desta visão está o dualismo essencial da
filosofia cartesiana que separa, como dois mundos distintos, o
espírito e o corpo, ou do pensamento kantiano que aparta o “ser
em si” do “fenômeno”, o ser do dever ser.
Este modo de filosofar comporta inumeráveis variantes.
Savigny (1779-1861) e a Escola Pandectista entendem que a regra
de direito não é o produto do espírito do homem individual, mas
do espírito coletivo dos povos. Pode-se distinguir na filosofia que
entende o direito como norma, duas principais direções:
a) Para alguns pensadores, a regra de direito é o produto da
razão humana. Um exemplo típico desta tendência é dado pela
teoria de Hugo Grócio (1583-1645), que pretende tirar o seu sis-
tema de regras de direito, a partir de alguns princípios racionais de
moralidade, como “não furtar”, “cumprir as promessas”, “reparar

impulso 57
2777.BK Page 58 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

os danos causados”... De forma parecida, Kant (1724-1804) tentou


construir seu direito natural sobre alguns axiomas racionais da
razão pura prática.
b) Outros teóricos atribuem as regras do direito à vontade
humana. Esta tendência é típica de Hobbes (1588-1679) e de todo
o positivismo jurídico. O direito, então, é constituído pela vontade
do legislador, estabelecido pelo contrato social.
Pouco importa aqui que o direito provenha da razão ou da
vontade, ou ainda da mistura de uma e outra, pois, de qualquer
maneira, ele é produto do espírito humano, sendo constituído de
regras postas e concebidas pelo espírito do homem. Tanto numa
teoria como em outra, o direito é definido como “um conjunto de
regras”, e isto é o que se ensina tradicionalmente nas Faculdades
de Direito.
Para esta visão de direito, o método jurídico a ser seguido é
o de que toda a solução jurídica deve ser encontrada, por inferên-
cia, a partir de regras que residem no pensamento humano, provin-
das ou de sua razão ou de sua vontade. A solução de direito só
poderá ser fundamentada e a sua validade só pode ser demons-
trada se ela estiver ligada dedutivamente a determinada regra jurí-
dica; e esta mesma precisa estar unida a um princípio.
As grandes obras da doutrina jurídica a partir da Idade
Moderna cultivam apenas o método dedutivo. Trata-se da elabora-
ção de um corpo de regras jurídicas. É um tempo de criação de
grandes sistemas. Quando se trata da aplicação do direito na esfera
judiciária, a doutrina moderna convida a tirar a sentença dedutiva-
mente da regra de direito, seja ele codificado nas grandes obras da
doutrina, seja ele colocado nos textos das leis pela vontade mais
ou menos arbitrária do legislador. Tal é a forma da qual se reves-
tem, em última análise, os tratados de direito. Isto não pode ser
diferente, a partir do momento em que se admite que o direito é
“um conjunto de normas” ou que ele é aquilo que se deduz destas
regras positivas.
Daí já se pode prever a noção que estes teóricos têm da lógica
jurídica. A concepção de lógica aceita por estes pensadores para o
direito é a da lógica matemática, daquela das ciências exatas.
A lógica, no mundo moderno, está ligada especialmente à
ciência e ao uso do raciocínio dedutivo. Ensina-se que ela, em
sentido estrito, é o estudo das inferências, que permitem passar,
com rigor, de uma proposição a outra. A análise dos conceitos e
dos juízos têm, assim, o papel auxiliar e secundário. Até o início da

58 impulso
2777.BK Page 59 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

Idade Moderna, a lógica admitia o silogismo, procedente dos


Analíticos de Aristóteles. A partir de Descartes (1596-1650),
houve o abandono da lógica formal e o descrédito do estudo do
raciocínio silogístico. Quer-se usar o raciocínio matemático não só
no estudo dos nomes e das forma, mas na ciência universal, indo
até à filosofia. O raciocínio ao modo de Euclides (450-380 a.C.) é
considerado um substituto da antiga lógica formal. Trata-se sem-
pre de um raciocínio dedutivo.
Qual seria o instrumento mais adequado às necessidades da
arte jurídica? O direito, tal como o imaginam os positivistas e os
normativistas, é o paraíso da lógica, entendida como a arte da
dedução. É a partir daí que dá para entender o aparecimento de
numerosos tratados de metodologia jurídica, a começar do século
17, que apresentam esta espécie de lógica jurídica. Todos se esfor-
çam para reduzir a ciência jurídica a um conjunto de teoremas.
Procuram a matematização do direito.
Para os positivistas, as regras de direito se unem num con-
junto sistemático em razão de sua forma e de seu regime de pro-
dução, e não em razão de seu conteúdo. Assim, a dedução tem
papel central no direito, principalmente na etapa da aplicação das
leis às situações concretas, na passagem da regra de direito para a
sentença judicial. Para alguns, o silogismo tem a preferência em
relação ao modelo matemático. A obra do juiz seria um silogismo:
a “menor” seria o caso em espécie, o “maior” seria expressa pela
regra jurídica, e a “conclusão” seria constituída pela sentença judi-
cial. É claro que há dificuldade de adaptar o caso concreto à norma
jurídica, neste sistema conceptual. Entretanto, o importante é que
a sentença seja deduzida analiticamente da regra, com ou sem silo-
gismo. De outra forma não seria uma “solução jurídica”. O que é
importante é a lógica, a lógica da dedução, que tem o seu lugar no
mundo do direito, em razão deste ser uma produção ou uma cons-
trução do espírito humano.
A atitude de indiferença, que Descartes e muitos de seus dis-
cípulos manifestaram com relação à lógica formal, pode explicar a
duração, até atualmente, da ficção da construção de uma ciência
do direito dedutiva. Não se sabe até quando os juristas levarão a
lógica a sério na aplicação do direito. Indo às últimas consequên-
cias, a lógica jurídica dedutiva traz efeitos catastróficos. Acei-
tando-se como direito apenas o que se deduz da regra, chega-se a
monstruosidades na vida prática. Foi o que percebeu Von Jhering
(1818-1892), quando combateu a “lógica jurídica”, aquela levada

impulso 59
2777.BK Page 60 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

ao extremo pela ciência do direito pandectista, a denominada


“jurisprudência dos conceitos”.
A crise de fé do jurista no valor da lógica chega a exageros.
Ele deixa a produção das regras de direito ao capricho dos poderes
de fato, à força, ao “curso da História”... Reagindo às doutrinas
legalistas, aparecem o “intuitivismo”, o “direito livre”, a indepen-
dência com relação à lei ou à lógica... Desta forma se torna impos-
sível constituir uma ciência do direito. A realidade é que o deduti-
vismo lógico-jurídico da modernidade trouxe uma reação igual e
contrária, que foi o irracionalismo jurídico...
Direito e lógica jurídica se casam mal. Esta é opinião da
maior parte dos lógicos, que não vêem com bons olhos a preten-
dida “ciência” do direito e nem o alegado “rigor” dos raciocínios
jurídicos. Com relação aos juristas, bom número deles desconfia
desta espécie de lógica.
Na busca de uma solução viável, há que se evitar tanto o
logicismo quanto o irracionalismo. Para isso há necessidade de se
repensar o que seja a lógica jurídica e a idéia que se tem de direito.
O direito como “o justo” é como entendiam os Antigos. Com
efeito, entre os gregos o direito é “o justo” (tó díkaion). Aristóteles
(384-322 a.C.) afirma que “vemos que todos os homens entendem
por justiça aquela disposição de caráter que torna as pessoas pre-
pensão a fazer o que é justo, que as faz agir justamente, e desejar
o que é justo”. 1 O Digesto, também, afirma que o direito “é aquilo
que é justo”. 2 A mesma visão foi continuada pelos glosadores e
repetida por Tomás de Aquino (1225-1274). 3
A solução justa, a boa solução jurídica, deve ser procurada
para cada caso, necessitando ser adaptada a cada situação litigiosa.
O direito dos Antigos era casuístico. Ele não é identificado com
regras abstratas e gerais, saídas da cabeça do legislador ou de qual-
quer outro, mas com a solução concreta, que deve ser encontrada
para cada caso.
Isto não quer dizer que não haja regras. A vida social evoluiu
tanto que não pode se dar ao luxo de viver sem normas. Entre-
tanto, a relação das leis com o direito é que precisa ser determi-
nada. Tanto na Grécia como em Roma, o Estado também legisla.
Entretanto, as leis são tão pouco numerosas que se pode fazer abs-
1 Ética a Nicômaco, 1129a tração delas. O que existe, principalmente, são regras doutrinais
2 Digesto, 1, 1, 6: “id quod
produzidas pelos jurisconsultos. Elas servem de modelos, nascidos
justum est”. espontaneamente das relações jurídicas justas. Elas servem de
3 S. Th. 2 - 2ae, q. 57 a. 1 guias para outras decisões. Contudo, essas regras não constituem

60 impulso
2777.BK Page 61 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

“o direito”, porque elas são falíveis. Seus autores são particulares


e, aparentemente, contraditórios. Há, pois, necessidade de com-
pará-las a novos fatos e, para responder exatamente às condições
de cada caso, cada solução deve se adaptar à “natureza da coisa”,
à essência de cada caso.
O método para isso é diferente. O discurso é outro. É uma
outra espécie de ciência do direito. O método dos juristas romanos
era controversial. As questões de direito aconteciam com disputas
longas e rigorosamente conduzidas. Coisa totalmente diferente do
“intuitivismo”, do apelo ao “sentimento” do direito, do “irraciona-
lismo”...
Os juristas romanos raciocinavam a partir de regras, pois
existiam normas de direito neste regime: encontram-se leis positi-
vas e, muito mais ainda, dispositivos doutrinais. O Digesto, que
representa apenas uma pequena parte da literatura dos jurisconsul-
tos romanos, foi uma fonte rica de inspiração para as codificações
do século passado e início deste, principalmente no que se refere
ao ramo do Direito Civil. Durante a Idade Média foi acrescentado
um grande número de máximas e de brocardos.
Nota-se que o método destes juristas não era o da passagem
das regras à sentença. Não é um trabalho de pura dedução do
direito a partir de normas.
Por primeiro, não é possível extrair o direito de um processo
de pura dedução, pois as regras são muito numerosas e, além
disso, contraditórias. A ilusão, cara a Leibniz (1646-1716), de que
as regras de direito romano formassem um todo homogêneo, está
abandonada pelos romanistas. Os textos dos juristas romanos pare-
cem constituir um conjunto de contradições. As regras de direito
não formam a “unidade da ordem jurídica” com a qual sonhou
Kelsen (1881-1973).
Diante de tantas regras, de qual delas se extrairia o direito?
Uma serve à causa de determinado pretendente, enquanto que
outra serve à do seu adversário. A função do juiz seria a de esco-
lher entre as normas aquela da qual ele extrairia o direito. O certo
é que este trabalho não se executa pela via dedutiva.
Em segundo lugar, existe uma razão que exclui a possibili-
dade de que a solução seja encontrada por inferência dedutiva:
nenhuma das regras usadas pelos juristas consegue inferir a solu-
ção plenamente adaptada ao caso concreto. As normas foram esta-
belecidas pelos jurisconsultos trabalhando sobre precedentes, sobre

impulso 61
2777.BK Page 62 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

casos mais ou menos parecidos, e não sobre princípios da razão


pura ou a partir de uma lei da razão previamente conhecida.
Nenhum destes precedentes é exatamente idêntico ao caso que se
vai julgar. E o direito é entendido aqui como a solução concreta
apropriada ao caso em espécie, à própria natureza da causa. A solu-
ção apropriada não pode ser extraída exclusivamente da lei prevista
para casos diferentes. Há necessidade, pois, de uma outra fonte.
A sentença, para ser justa, idealmente deveria se apoiar sobre
uma regra. Entretanto, não existe esta regra pré-estabelecida. Ela é
descoberta ao mesmo tempo em que é exarada a sentença. Se exis-
tisse esta norma pré-estabelecida, seria a “lei eterna”, na língua
neotomista. 4 Entretanto, dela o homem não tem o respectivo
segredo: Tomás de Aquino convida a procurar a ordem da lei
eterna em seu reflexo, isto é, na natureza das coisas que mudam.
O arsenal de regras oferecido pelos códigos é insuficiente. O
Digesto proclama expressamente: Jus non a regula sumatur (o
direito não seja tirado da regra). Os romanos não aceitavam um
método exclusivamente dedutivo.
Então, qual seria o método? Pode-se seguir o seguinte
esboço:
a) Por primeiro, o trabalho de pesquisa do direito não é
monódico. A busca do direito se faz de várias formas, é uma obra
polifônica. Com efeito, no esquema do judiciário, de onde sai a
solução do direito, estão necessariamente presentes os advogados
das partes, e também imprescindivelmente o representante da
sociedade, dos terceiros que têm algum interesse no processo, e
por último, o juiz que dá a conclusão. A luz sairá do embate entre
os contendores contrários. O lugar da busca do direito era a con-
trovérsia.
b) Na controvérsia, exerciam-se ações diversas. Usava-se a
dedução, pois o homem usa-a sempre. Cada advogado trazia os
dispositivos legais que eram do interesse de seu cliente, e destes
textos ele deduzia as conclusões que lhe interessavam. Entretanto,
não é só o advogado que faz o direito. Não é ele que o faz em
definitivo. Existe a figura do juiz, cuja função é presidir o con-
fronto entre as diferentes regras alegadas. Discute-se a pertinência
de cada regra, e sua relevância para o caso, ao tipo de processo
4 Cf. S. Th. 1 – 2ae, q. 93, a. 6 em questão, à espécie em particular. Tudo isto tem a finalidade de

62 impulso
2777.BK Page 63 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

escolher entre diferentes regras, por uma contínua referência ao


caso concreto, dentro do arsenal contraditório de regras alegadas no
processo; de procurar as mais adequadas no encontro da solução.
Este trabalho nada tem de dedutivo.
c) A solução não será tirada analiticamente, através do
método dedutivo, de uma regra pré-existente. As regras servem de
meio para se chegar à solução definitiva. Esta decorre da natureza
do caso e não da análise da regra.
Assim, se tal é o processo normal de invenção do direito, se
não é da sua essência ser rigorosamente conforme a uma regra
pré-estabelecida, compreende-se que a “ciência do direito” difi-
cilmente terá uma forma axiomática. Com efeito, os “sistemas de
direito” da Antiguidade, da Idade Média e até do século XVI têm
uma estrutura diferente dos sistemas da época moderna: são clas-
sificações de casos, de tipos de negócios ou de questões, e não
sistemas dedutivos de regras; Assim são o Digesto e as Institutas.
É o contrário do que acontece com os tratados teóricos e abstra-
tos, que afirmam um sistema dedutivo de regras; não merecem o
nome de direito, pois não conseguem encontrar solução nova para
o caso concreto. A idéia de direito construída por tais pensadores
perdeu a sua essência. O direito não constitui pura dedução.
Assim, também, a lógica jurídica pode ser tudo, menos um
complexo de operações puramente dedutivas. Se há uma lógica,
não é no sentido rigoroso do termo. Não é o desdobramento ana-
lítico de determinada questão dada previamente, mas a arte de
conduzir dentro de certa ordem uma pesquisa ativa.
Não se trata, aqui, de uma “lógica do necessário”. Os racio-
cínios da controvérsia jurídica não são do tipo constrangente. Só
há premissas razoáveis, cujas inferências levam a uma solução
jurídica. A verossimilhança está fundada em regras doutrinais ou
na opinião de uma autoridade, podendo ambas ser discutidas.
Este procedimento, se bem que seja racional, está contido inteira-
mente dentro do provável. A controvérsia judiciária do direito
romano ou medieval tinha por objetivo chegar a um acordo o
mais amplo possível entre as opiniões. Havia uma tentativa de se
aproximar da verdade. Só, então, vinha a sentença.
Não se trata, portanto, de uma lógica pura, da lógica formal.
O discurso que levava das regras de direito à sentença não era

impulso 63
2777.BK Page 64 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

feito através de “formas puras” do pensamento. Havia um vai-e-


vem permanente entre os conceitos e o caso concreto que estava
sendo analisado. No pensamento aristotélico-tomista, o mundo do
pensamento não era separado do mundo das coisas, como aconte-
ceu depois de Descartes e de Kant.
Aristóteles sublinhava que existem setores imensos da obra
intelectual humana onde não dá para usar o método perfeito da
lógica formal descrita principalmente nos Analíticos. Como
exemplo, citava a descoberta dos princípios na própria ciência e o
universo da vida prática. O Estagirita tinha cultura universal:
conhecia não só matemática, física, biologia, mas também as pes-
quisas ordenadas à vida prática, como aquelas que se usavam na
ágora e nos tribunais. Ele sabia que aí devem ser adotados proce-
dimentos adequados às controvérsias políticas e jurídicas.
Para os que se interessam pela lógica do direito, há que se
estudar as obras dialéticas de Aristóteles, principalmente os
“Tópicos” e a “Retórica”. Ele estuda nos “Tópicos” a dialética.
Esta é um método e uma arte, que permite responder sobre todas
as questões, e que ensina a raciocinar, sem contradições, sobre a
opinião. Em razão de estar fundada na “dóxa” (opinião), a dialé-
tica é uma arte, não uma ciência. Como lógica do provável, ela
participa da verdade, já que ensina a raciocinar corretamente, par-
tindo de proposições plausíveis.
A “Retórica” de Aristóteles é uma verdadeira técnica, uma
arte. Considera-a como um método persuasivo, cuja temática é
“comum” a outras artes, e que a partir do comum estrutura as
suas argumentações. Ela não trata dos princípios ou premissas
básicas de cada ciência particular, mas dos tópicos, dos lugares
ou conceitos que de u'a maneira semelhante são comuns a todas
as coisas. Assim Aristóteles pode dizer que a retórica é correlativa
da dialética. 5
Nem a retórica e nem a dialética são disciplinas especiais.
Todas as pessoas as usam durante a vida. Sempre que se ataca ou
de defende uma opinião, pratica-se a dialética. Cada vez que se
acusa ou se defende, sempre que se aconselha, que se censura ou
se louva alguém, usa-se da retórica. Como a dialética e a retórica
não se propõem demonstrar, elas podem estabelecer duas pro-
5 Ret. I, 1 e 14. posições opostas, em suas diversas modalidades. Entretanto, é o

64 impulso
2777.BK Page 65 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

verdadeiro que se presta melhor para o raciocínio e a persuasão


do que o falso. Como o médico, o dialético e o retórico não são
obrigados a triunfar; uma vez feito o que podiam fazer, estão
desobrigados de tudo o mais.

CONCLUSÃO
Hoje, a humanidade está longe do regime de produção do
direito que existia na Roma clássica. Longe porque a educação
hodierna condicionou o homem a crer que o direito é o produto do
espírito do legislador. Há uma crença que direito é o direito posi-
tivo estabelecido nos códigos e demais dispositivos legais. A her-
menêutica jurídica consiste na dedução de normas gerais de dispo-
sitivo que deve ser aplicado no caso concreto. Assim, o juiz deve
deduzir automaticamente a sua sentença do código. Esta crença
tem o seu fundamento: o mundo moderno o sacrificou por razões
de segurança e de previsibilidade da vida social; ele é desconfiado
do arbítrio do juiz. Em razão disso, o direito positivo cresceu
incomparavelmente ao que era antes.
Sabe-se que o trabalho efetivo do juiz consiste, ontem como
hoje, em procurar a solução de direito pela via da dialética. Ele
escolhe no conjunto das regras legais alegadas de parte a parte
normas que não são concordantes entre si, e que não constituem
nenhuma “ordem jurídica” homogênea. Busca além da regra legal,
se for necessário. Cria novas regras para tornar a sentença ade-
quada ao caso em espécie, que é sempre novo. As coisas mudam
menos do que as novas maneiras de as ver.
Nestas circunstâncias, existe na produção do direito uma
parte que é viva e imprevisível. É ilusório querer construir uma
ciência do direito totalmente axiomática. Um sistema coerente de
regras, dentro de uma ordem jurídica, pode ser admirado como
obra-prima de lógica formal, entretanto, ele está fora da realidade
do direito. O direito, que deseja ser uma ciência, não pode jamais
atender ao estatuto de uma ciência estável e rigorosa. Os sistemas
não constituem o direito, estando ao seu lado. A verdadeira solu-
ção lhes escapa, porque a sua verdadeira fonte não reside nas
regras, mas nas coisas.
A melhor garantia contra o arbítrio do juiz e contra o “julga-
mento por eqüidade” não está na ficção de um regime dedutivo do
direito, mas num sólido e consciente procedimento controversial.
O cerne da lógica jurídica está no estudo da dialética.

impulso 65
2777.BK Page 66 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AQUINATIS, Sanctus Thomas. Summa theologiae. 2ª ed. Madrid:
BAC, 1956.
ARISTÓTELES. Obras. 2ª ed. Madrid: Aguilar, 1973.
AUGUSTI, Justiniani. Digesta. Milano: F. Vallardi, 1931.
FASSÒ, Guido. Historia de la filosofía del derecho. 3ª ed. Madrid:
Pirámide, 1982.
KAUFMANN, Arthur, HASSEMER, Winfried. El pensamiento
jurídico contemporaneo. Madrid: Debate, 1992.
VILLEY, Michel. Seize essais de philosophie du droit. Paris: Dalloz,
1969.
VILLEY, Michel. Critique de la pensée juridique moderne. Paris:
Dalloz, 1976.

66 impulso
2777.BK Page 67 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

SEGURANÇA PÚBLICA E
GARANTIAS INDIVIDUAIS SOB A
AMEAÇA DA CRIMINALIDADE
COMUM E ORGANIZADA NA
VISÃO DE WINFRIED HASSEMER
SAMUEL ZEM

SOBRE A SITUAÇÃO ATUAL DA POLÍTICA


DE SEGURANÇA NA ALEMANHA

A criminalidade e a violência preocupam, atualmente,


de modo intenso, os cidadãos na República Federal
Alemã. Uma política, com base antes na “garantia da
liberdade” do que no “combate à criminalidade”, não
pode minimizar o tema. 1

1. Hassemer nos coloca hoje, na Alemanha, frente ao debate


deste problema, que não é novo, embora muito importante. Nota-
mos pelo que se noticia que, tanto lá, como cá, a dificuldade está
em encontrar-se uma política que concilie, ao mesmo tempo, segu-
rança pública, liberdades individuais, combate ao crime organi-
zado e à criminalidade. Lá, todavia, a questão das garantias indivi-
1 HASSEMER, Winfried. Pers-
duais assume um contorno mais nítido, e toda a discussão em pektiven einer neuen Kriminal-
torno do combate ao crime se passa, necessariamente, respeitando- politik. Innere Sicherheit im
Rechtsstaat, Straftverteidigertag,
se esses princípios. v. 19, p. 15, Freiburg 1995.

impulso 67
2777.BK Page 68 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

A atual política neoliberal, que predomina, começa a preocupar.


Não tem dado resultados satisfatórios, porque não privilegia um
adequado modo para enfrentar a criminalidade, falta-lhe criativi-
dade nos meios de intervenção. Houve por esta política uma ade-
quação a um método, no qual a ênfase foi a uma maior pressão à
opinião pública e aos meios típicos de investigação dos atos crimi-
nosos. Depara-se com o primeiro problema: como reduzir a
recente intensificação da violência e da criminalidade sobre eles.
A criminalidade e a violência sempre assustam, mas, em
compensação, quando o Estado escolhe o recrudescimento das
normas e os métodos usados chegam a ameaçar os direitos funda-
mentais, surge uma situação no mínimo curiosa: aqueles que não
vêem com bons olhos tais métodos se escandalizam, enquanto os
outros ficam fascinados. Por que tais métodos atraem? Certamente
quem acredita vê neles a solução.
Mas, não é tão simples assim. Temos não apenas um tipo de
criminalidade, mas pelo menos dois. Hassemer não quer que seja-
mos ingênuos. A criminalidade organizada, por este mesmo
motivo, não se deixa conhecer em profundidade; por isto dá ensejo
a que se ameace o plano de combate com propostas que podem
interferir na privacidade. Por outro lado, a criminalidade de massa,
por seu volume, já não é mais possível controlar. A impotência dos
atuais métodos põe o Estado em xeque. Surge daí a ameaça de se
lançar mão de métodos que possam ferir a dignidade das pessoas.
O processo de intervenção do Estado no combate ao crime,
em vez de ser de ordem da Política Criminal, vira apenas caso de
polícia, não há o debate político. Sabe-se que na Alemanha as
questões de segurança interna são sempre um tema tabu, porque se
teme que uma eficiente intervenção estatal com polícia secreta e
seu aparato descambe para um Estado do tipo intervencionista. A
tendência da atual política, no entanto, é sempre no sentido de
aumentar a intervenção policial.
A presença da polícia não deve ser afastada, na visão de Has-
semer, porém não se pode creditar a ela a solução de todo o pro-
blema. Nem tudo o que é desejável é factível.
2. Sabe-se que a política conservadora usa do tema criminali-
dade e seu combate para sua sustentação, e vem sendo pressionada
pelas exigências de um combate eficaz. Aparece aí um conflito.
Não se pode sacrificar a liberdade em nome da segurança, e a polí-
tica de liberdade com segurança, além de não estar sendo lembrada,
fica impotente frente aos arroubos populistas destes conservadores.

68 impulso
2777.BK Page 69 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

Desta política conservadora resulta que a ênfase acaba sendo


no Direito e na Ordem, por serem um campo onde eles têm maior
atuação, e acabam resultando no acatamento pela opinião pública.
O sentimento de ameaça e a impotência dos Estados acabam
determinando que se apóie tal tipo política.
Por que ênfase no Direito e na Ordem? Como adiante se
verá, não se resolve questão dessa envergadura apenas com mais
leis e mais policiamento. O Direito aqui é o ordenamento positivo
penal, enquanto a Ordem representa o sistema policial organizado
e repressivo. A opinião pública aceita a implementação desta polí-
tica, porque, acuada pelo clima geral de insegurança gerada pela
mídia, se predispõe favoravelmente a este tipo de discurso.
Os conservadores exploram a opinião pública, temerosa
frente ao aumento da criminalidade organizada, porém não tomam
atitudes frente ao problema, limitam-se a apontá-lo, sem todavia
encaminhá-lo para uma solução. E os crimes aumentam.
Essa tranquilidade do poder criminoso atua no sentido de
levar-se a pensar em sacrificar as liberdades individuais. Os direi-
tos fundamentais dos cidadãos são informalmente quebrados, e
qualquer proteção aos dados pessoais não é vista pelos combaten-
tes do crime senão como qualquer direito liberal e são rotulados
de exagerados e distantes da vida. Isso significa que, em nome do
combate ao crime, se vilipendiam os valores humanos e seus
direitos. Revela, como já se disse acima, falta de criatividade
frente ao problema.
A crítica não é somente aos conservadores, mas também
àqueles que deveriam expor e defender as tradições, especialmente
uma política criminal estatal de liberdade com segurança pública e
direitos fundamentais de segurança que não é adequadamente
exposta. Significa que aqueles que têm o bastão da defesa dos
direitos individuais deveriam se esforçar mais, pois o recrudesci-
mento da intervenção policial não é só o resultado de uma política
conservadora, mas também da inércia daqueles.

CRIMINALIDADE DE MASSA E
CRIMINALIDADE ORGANIZADA
3. O fato de a população acreditar que a questão central da
criminalidade reside no combate à criminalidade de massa, difi-
culta o combate a criminidade em geral. Todavia, frente às garan-
tias constitucionais, o crime organizado, que é em grande parte

impulso 69
2777.BK Page 70 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

responsável por aquele, tem seu combate obstruído, tornando a


situação tensa. Esta é a questão-chave do problema; precisa-se
tocar naquelas garantias para tentar resolvê-la.
Face aos diversos tipos de crime, que aumentam em quanti-
dade, enquanto os casos solucionados diminuem, fica a população
à mercê, impotente, não só corporal e economicamente falando,
mas psicológica e normativamente. Essa estranha isenção e inércia
coloca a população em xeque diante da força do Direito.
A colocação é crucial: deseja-se sempre que a prepotência
social, que aponta sempre para uma solução de intervenção, seja
minimizada, porém, a necessidade de combate ao crime com as
medidas que devem ser tomadas vai em sentido contrário. Torna-
se então, em ausência de segurança para os mais fracos. O Direito
tem, entre outras tarefas, a de garantir o cidadão frente à prepotên-
cia do Estado. Surge, por isto, a necessidade de se discutir a utili-
zação de outros métodos, que não somente o uso da Polícia e do
Direito, porque nas formas de criminalidade organizada, na maio-
ria das vezes, não estão presentes. Pode-se pensar na aplicação de
prevenção técnica, maior presença policial, mudança no modo de
vida da juventude, inovação na política de drogas, etc.
Desta forma, o problema é relativizado e trazido para a dis-
cussão dentro do contexto da necessidade diária das pessoas com
segurança e liberdade.
4. Todavia, a tática que se utiliza do medo das pessoas diante
da criminalidade de massa, mantendo-as alheias ao debate do pro-
blema da criminalidade de massa, é de cunho populista. O temor
ao criminoso e a debilidade estatal frente a isto tornam-se um
grave problema.
A criminalidade tem estado aí por um longo tempo: arromba-
mento de residências, roubo e usualmente a violência contra os
fracos na rua, furtos de automóveis e bicicletas, e recentemente a
dissimulada violência contra os estrangeiros. É obvio que a origem
destas formas de criminalidade está mais profunda, como por
exemplo, o comércio internacional de drogas e armas, e exige
outras formas de intervenção. Uma nova política de intervenção
aponta para o combate deste tipo de criminalidade como forma de
se diminuir a criminalidade de massa.
Como método de trabalho, teríamos primeiro que fazer um
completo levantamento das formas de criminalidade, para conhecer-
mos nas suas origens, e, a partir daí darmos combate a eles.

70 impulso
2777.BK Page 71 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

5. A criminalidade organizada é bem menor que a de massa,


e certamente não subsiste sozinha, ela depende da criminalidade
de massa e a fomenta. Então, ao combater a criminalidade organi-
zada, estaríamos combatendo a criminalidade de massa. Também
a corrupção no legislativo, executivo e judiciário.
Necessitamos conhecer melhor a criminalidade organizada,
as investigações estão no início e existe a possibilidade de uma
confiante explicação criminológica.
Há explicações que o colocam com um enorme potencial de
ameaça, o que provocou até agora mudanças quantitativas na
estrutura de seu combate, como pena e Direito Processual Penal.
Porém não se pode olvidar que no combate ao crime organizado
deve-se passar por uma mudança qualitativa. O potencial de ame-
aça do crime organizado manifesta-se pela usurpação das instân-
cias estatais, que influenciam a definição, esclarecimento ou con-
denação do criminoso. Confunde-se, portanto, as fronteiras de cri-
minalidade e combate à criminalidade. O combate ao crime orga-
nizado deve guiar-se pela prevenção oportuna.
Hassemer descreve a criminalidade organizada como um
fenômeno ágil, que acompanha o mercado, um tanto escasso (lá),
e que conta com múltiplos meios de acobertamento. No Brasil, o
que se observa, no caso do tráfico, em especial no Rio de Janeiro,
é a substituição do próprio Estado, inclusive nas questões sociais
dos moradores dos morros e subúrbios.
Um Estado duplamente impotente gera este tipo de solução,
os espaços antes ocupados pela assistência social e policial estatal,
agora são reduto do crime organizado. Ouve-se falar em divisão
dos espaços de atuação dos diversos grupos, e mais recentemente,
a partilha por atividade, em que determinado grupo se encarrega
do tráfico de armas, enquanto outros se concentram na distribuição
de drogas ou assaltos a carros-fortes e seqüestros. De um modo
geral, o fenônemo tende a seguir a mesma técnica de divisão e
atribuição das tarefas que qualquer empresa capitalista organizada
pratica.
Uma das questões sérias, a nosso ver, diz respeito ao argu-
mento que países produtores usam, quando países consumidores
como os Estados Unidos os acusam de lassidão no combate a pro-
dução. Este argumento é o de que se não houvesse mercado não
haveria produtor. Nada mais óbvio; no entanto, sempre haverão

impulso 71
2777.BK Page 72 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

produtores e consumidores, e a minimização do problema certa-


mente não se faz com penas duras e repressão policial.
Ele pensa que até se saberia como combatê-la, mas seria uma
postura ingênua. Seria, frente a uma situação ameaçadora e frente
a um inimigo desconhecido, por ignorância criminológica, sair
“atirando às cegas”. Uma política criminal, no caso, deve lançar
mão de considerável força, engajando-a para o esclarecimento cri-
minológico. Necessita ao máximo se assegurar dos meios para
atingir o alvo. A experimentação científica dos assertos das ciên-
cias filosóficas deve ser permanente e feita de modo seguro.

O ESTREITAMENTO DO DIREITO
6. O sistema policial é impotente diante da criminalidade
organizada. Também o Direito Penal tem sido reduzido em detri-
mento dos direitos fundamentais. Resulta que princípios consagra-
dos são postos de lado, como o in dubio pro reo, a lisura na averi-
guação. Embora colocados como legítimos pelas autoridades,
diversos meios como vigilância telefônica, grampos, confisco,
penalização pela lavagem do dinheiro, etc, o que não é pouco,
muita coisa ainda deve ser feita.
Mas não é esse o ponto da discussão. As autoridades põem
esses meios como irrenunciáveis, o que é prova da debilidade
argumentativa, de uma orientação com base no direito de uma
política de segurança.
7. A aceitação desses métodos leva à transformação do
direito estatal, nivela os limites entre polícia e direito processual
penal, os métodos de investigação como vigilância telefônica,
observação policial, observação velada, estendem-se necessaria-
mente sobre um terceiro “desinteressado”, vale dizer, inocente.
Estes métodos levam a um agravamento, como a ampliação da
escuta telefônica, ao flagrante preparado e à entrada dos meios ofi-
ciais secretos no combate à criminalidade. Isto não traz muitas uti-
lidades, mas certamente muitos danos.
Não dá para se dizer que resultado tem dado o agravamento,
se positivo ou negativo. A necessidade de informação não é uma
ciência teórica da vontade, mas a preocupação de intervenção do
Direito, que observa de cima, vale dizer, do ponto de vista do
poder.
Embora tudo isso tenha sido posto em ação, sabe-se que o
foram de maneira superficial. Os legisladores conhecem que, por

72 impulso
2777.BK Page 73 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

exemplos: a vigilância telefônica esbarra nos avanços tecnológi-


cos, os bloqueios de rua, na correta conduta das pessoas. O acom-
panhamento do suspeito, na Alemanha, choca com problemas
étnicos, não se dispõem. Não se pode usar indiscriminadamente
as permissões constitucionais.
O Estado não deve usar dos mesmos métodos, que persegue,
por exemplo, a privacidade do cidadão é invadida, quando ele abre
as portas de sua residência para o levantamento de um crime ocor-
rido dentro dela, mas é legitimada em nome da elucidação. O con-
trário se dá, quando ela é invadida, pela polícia para uma batida;
aí, o Estado se coloca no mesmo nível do criminoso. Então, a
fronteira entre crime e seu combate desaparece.
Se o Estado usa desses métodos, mesmo sendo constitucio-
nal, acaba a transparência, tanto para o surpreendido como para a
publicidade em geral.
Hassemer anota que as pessoas de um modo geral, quando a
ameaça é especialmente grave, abrem mão de suas garantias cons-
titucionais. Porém, frente a tal situação, requer-se uma posição de
ponderação, cuja visão não seja restrita ao caso.

QUESTÕES DE FUNDO
8. Não se pode falar em sociedade sem pensar nos riscos que
existem; eles fazem parte do nosso cotidiano. A sociedade de risco
vislumbra crescente dificuldade; essas relações crescentes anteci-
pam ameaças difusas. Significa que não devemos pressupor menos
prejuízo do o esperado, nem melhorar o prejuízo já ocorrido. Isso
gera uma tendência: há a fortificação dos fortes e o enfraque-
cimento dos fracos. As instituições de controle social, como a
família, a vizinhança, e a comunidade escolar têm perdido a suas
força. Diante disso, fazer-se normas, sem profundas investigações,
é anacrônico.
Uma visão não científica reforça a tese de que deve haver um
recrudescimento dos meios de repressão. Enquanto isso, um
grande número de pessoas faz seu futuro incerto. A falta de ins-
trução, de empregos, o aumento das rendas, do aluguel, dos custos
com saúde, resulta: a crescente chance dos hábeis para enriquecer
e ascender socialmente; o relativo empobrecimento dos outros.
Esta postura é que nos leva a ser contrários à criminalidade e a
violência. A norma social, da qual a norma do Direito depende,
deve ser modificada a longo prazo. Num mundo de “diabos”, nem
a polícia nem o Direito têm chance.

impulso 73
2777.BK Page 74 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

9. Contrariamente existem fenômenos superficiais. A vio-


lência na televisão, que é feita para o prazer, não é a fonte da
desgraça, mas o prenúncio. Essa orientação para a violência é
nata, a sua representação não teria resultado se não o fosse. Isto
significa que se fosse possível atingir a personalidade das pessoas
com a violência pela televisão seria possível também modificá-las
para o bem.
Não é apenas a ameaça que determina a política de segurança
pública, porém a observação das reações das pessoas. O Estado é
mais sensível a este fator. São exigências para uma maior interven-
ção estatal, elas autorizam a ação e a intervenção. Em vista disso,
não há uma relação direta entre a ameaça e o sentimento de ame-
aça; um crime de reduzida probabilidade pode gerar um clamor
maior pelo sentimento de ameaça do que crimes mais freqüentes,
porém com potencial de ameaça menor. Pequenos furtos aconte-
cem em maior número, seqüestros em número reduzidíssimos,
porém o potencial de ameaça é maior neste último.
A política deve, então, trabalhar com as condições de origem
da ameaça, e isto se complica à primeira vista. Os detalhes não
foram ainda pesquisados, quais os fatores que tornam a ameaça
concreta. O processo de erosão da norma baseia-se que eles são o
resultado da desestabilização normativa. O sentimento de ameaça
é difuso e então não há diferenças, por princípio, da ameaça crimi-
nal e ameaça concreta.

CAMINHOS
10. A posição de estabilidade da norma se justifica porque
não há uma panacéia atuante contra a violência e criminalidade. O
caminho correto tende muito mais para uma política interna prag-
mática, diferenciada e orientada para o futuro.
Tanto o receio da criminalidade como a criminalidade tem
raízes profundas. Uma correta política criminal deve procurar e
identificar as prioridades e reduzir as intervenções permitidas, que
estejam na lista das autoridades. Deve também procurar e anular a
ingerência que a política de segurança tem hoje, para adequá-la à
medida correta.
Isto significa que a política de segurança pública deve conci-
liar a efetividade policial com garantias de direito constitucional e
penal. Tem que se mostrar: é política de segurança sem respeito à
juventude, trabalho, o social; cultura por muito tempo de uma

74 impulso
2777.BK Page 75 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

organização sem esperança. Isto torna a política de segurança


interna sem sentido.
A reflexão sobre a política de segurança deve ser pragmática.
A ocupação científica criminológica deve selecionar os temas a
tratar, para não ficar apenas nos problemas do dia-a-dia; deve recu-
sar medidas dogmáticas escolásticas como a escuta clandestina.
Precisamos tomar uma posição frente aos problemas da violência
para sabermos quais meios usar em contrário.
Uma política pragmática deve ser versátil e reconhecer
quando necessário fazer as mudanças e então fazê-las. O que tem
ocorrido é de uma intervenção ser posta no Código Penal e lá per-
manecer. A política pragmática, ao contrário, não conta somente
com a obtenção de acerto ou erro, mas também com resultados
aproximados, não claramente entendidos, mas necessários. Além
do endurecimento, a política de segurança deve ter em seu pro-
grama também consideração correção e moderação.
A resposta política para a criminalidade deve ser apta para
distinguir entre criminalidade de massa e criminalidade organi-
zada. Podemos, é claro, por causa da ameaça, pensar em mudança
do processo não a longo prazo, porém devem ser pensadas sob
uma perspectiva de longo prazo. Significa que não devemos ser
imediatistas.
11. A política criminal atual deve abrandar os meios, como
conseqüência da sociedade de risco. Deve diminuir o fechamento
da sociedade e a conseqüência disto e um abrandamento para as
pessoas.
Intervenções nas normas, na economia e na solidarização da
sociedade são intervenções políticas diretas. Mas em que ampli-
tude seria desejável o retrocesso. “Modernização não se pode
‘recusar’, vive-se nela”. 2
A politica interna pode também até certo ponto desgastar ou
distribuir o resultado da modernização, quer apele para o retro-
cesso ou para a modernização. Aqui há uma chance de vida, dos
fracos, das crianças, da juventude, dos velhos e dos estrangeiros. A
política social, que é a melhor política criminal, vale nesta relação
desde antigamente. 3
Isto ainda não é um programa prestimoso, mas é uma política
de curto prazo, para obter resultados de longo prazo.
O patriotismo leva a uma solidarização da sociedade (nacio- 2 HASSEMER, Winfried, op.
cit., p. 19.
nalismo). Uma política de fechamento, não só econômico, mas de
3 HASSEMER, Winfried, op.
parâmetros normativos, pode tornar, pela tradição dos países cit., p. 19.

impulso 75
2777.BK Page 76 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

europeus e em especial pela história recente da Alemanha um


fermento e desenvolver uma consciência de solidariedade e
comunhão no cidadão. Seria uma barreira contra a decadência da
sociedade e o deslize para a criminalidade. Mas, precisamos pon-
derar os direitos fundamentais, quando pensarmos em efetividade
policial um contra o outro.
Para uma perspectiva de longo prazo, nossa discussão favo-
rece a segurança em detrimento do aspecto político. Devemos ter
em vista que os elementos de um eficiente e técnico controle do
crime são fixados a longo prazo, porém apenas superficialmente os
olhamos. Uma política de segurança seria melhor debatida entre
os cidadão interessados do que com os experts. O debate entre
estes contempla apenas questões criminalísticas. Isto, sem dúvida,
não parece ser favorável, pelo enfraquecimento do meio político,
pois retira uma tendencial solução do problema pelo meio, através
do acobertamento da observação. Para a política de segurança
interna, é, a longo prazo, perigoso o estar orientada sob este setor,
pois a sociedade sozinha pode não se livrar do problema da vio-
lência e da criminalidade.
12. Uma política pragmática deve prevalecer sobre os confli-
tos de crença. Nós devemos a distintas forma de criminalidade
com distintas formas de combate responder. Precisa-se caminhar a
passos firmes.
A atual política policial dá resultados, por exemplo, sobre
aquelas formas de crime que assustam diretamente os cidadãos,
que se utilizam de seguranças profissionais particulares, o que é
uma política de segurança escandalosa, direito estatal perigoso,
pois privatiza um meio natural que é o âmago da estatização, tam-
bém desproporção entre rico e pobre em segurança diante do cri-
minoso, prejuízo na construção da norma, nos direitos fundamen-
tais de segurança e no controle estatal do combate aos criminosos.
Uma política de segurança pragmática se assentará não
somente em um novo regulamento de direito policial e processual
penal, mas numa mudança não muito acentuada: equipamento e
presença da polícia, posição política melhorada, preparação e
remuneração, prevenção técnica melhorada, regulamentação da
entrada para serviços de segurança e vigilância, ênfase reforçada
no fator humano em vez do tecnológico, etc. Certamente com
esses meios será obtida uma segurança muito mais eficaz dos
cidadãos.

76 impulso
2777.BK Page 77 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

Outro aspecto importante é abrandar o direito penal, até des-


criminalizar, naqueles casos em que este, mesmo sendo brando (na
Alemanha), age contraprodutivo, em especial a política das drogas.
A política de drogas é um dos poucos campos onde a criminali-
dade de massa e a criminalidade organizada tocam-se um no
outro: criminalidade organizada é antes de tudo o comércio inter-
nacional com narcóticos; o recrutamento da criminalidade entre
dependentes de drogas constitui de novo uma boa parte de nossa
criminalidade de massa. Também é urgente encontrar aqui uma
saída segura politicamente. 4
Como se pode observar, o consumo de drogas é combatido
pelos males que causa à saúde e pela dependência que cria. Mas
também não se pode negar, como observa Hassemer, que a depen-
dência leva a prática de outros crimes, de natureza criminal desor-
ganizada, tais como furtos, roubos, extorsão, etc; também leva o
dependente a participar do esquema organizado, pois aí há um
plus de exigência comercial do meio: dependentes se relacionam
melhor com outros dependentes; também para dissimular o tráfico,
já que na maioria das vezes os traficantes-dependentes são pessoas
de bom nível social. O tráfico não sobreviveria somente com os
consumidores de baixa renda. Desse comprometimento depen-
dente-traficante nascem problemas de todo tipo que não se pode
resolver com apenas proibição e pena.
Desta forma, o problema das drogas deixa de ser só do
Direito Penal, mas também da saúde pública. O mercado negro
agradece a esses tipos de intervenção, que lhes dá ganhos exorbi-
tantes. Enquanto seus lucros sobem, sobem também o número dos
contágios, dos óbitos e a tentação do dependente. Hassemer não
defende a “heroína na drogaria”, mas uma gradual liberalização no
direito penal das drogas e uma experiência controlada, de trata-
mento dos dependentes, acompanhando passo a passo e prote-
gendo-os, e ao final estabelecendo-se uma política de drogas,
semelhante às que existem para o tabaco, álcool e medicamentos,
com severo controle estatal da produção e distribuição, porém sem
penas. Proscrição das drogas, porém, com ajuda diferenciada aos
dependentes.
Este entendimento se baseia em que não é possível o exter-
mínio total das drogas. Isto vem sendo tentado há muito tempo,
não é nem viável nem suportável pelo Estado. Então, uma política
pragmática no sentido não de liberar mas de a médio prazo contro- 4 HASSEMER, Winfried, op.
lar é uma perspectiva. A criminalidade existe na sociedade, é uma cit., p. 20.

impulso 77
2777.BK Page 78 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

“sociedade de risco” e o ser humano tem que conviver com ela, e


essa criminalidade em grande parte é gerada pelos fatores acima
apontados.
Sempre foi o sonho de países autoritários, como a ex-DDR,
uma sociedade livre da criminalidade, como nos contos de fada,
porém a realidade mostra que se tem que afrouxar os parafusos
dessa regulagem. Política criminal pragmática deve trabalhar com
a possibilidade da continuidade da criminalidade. Com isso se
evita o exacerbamento dos meios policiais e penais e se restabe-
lece um equilíbrio entre o direito à segurança e o direito dos atin-
gidos por esse flagelo.
13. E volta-se ao começo: tudo deve ser amplamente deba-
tido, acerca das dimensões do direito à liberdade que foi quase por
inteiro perdido. Deve-se angariar a compreensão dos ultrapassados
para com os direitos fundamentais, os quais não são estorvo para
um trabalho policial razoável. Não podemos esquecer que o crimi-
noso não traz uma marca identificável; assim, uma investigação
ilimitada pode não saber fazer a distinção entre o “bom” e o
“mau” cidadão. Na Europa a presunção de inocência vale, e, no
entanto, se investiga mesmo não havendo um autor, mas apenas
um suspeito. Quem debate o tema deve afastar esse tipo de mani-
pulação verbal.
Toda intervenção deve, apesar dos conflitos de crença, pre-
servar os direitos fundamentais. Isto significa que devemos con-
centrar e controlar toda intervenção. Não se pode generalizar a
intervenção estatal nas investigações. Quanto mais precisa a inter-
venção sobre seu alvo for posta, tanto mais antes pode ela ser
aceita, porque ela tanto menos dano normativo faz. 5 Pois atinge-
se, na melhor das hipóteses, o suspeito, também o inocente e um
realmente não envolvido. Quanto mais exatamente se atingir o
alvo, menos dano jurídico se traz e torna a intervenção aceitável.
O princípio determina: quanto menos, para o ofendido e a opinião
pública, um direito fundamental de intervenção é controlável,
tanto mais é ele insuportável normativamente. 6
O que se pretende é um controle dos meios investigatórios do
Estado. Não se pode em nome do combate à criminalidade organi-
zada deixar ao arbítrio da polícia o uso de meios intervencionistas
na privacidade dos cidadãos, tais como escuta clandestina de tele-
5 HASSEMER, Winfried, op.
cit., p. 20.
fone (grampo), invasão de residências, prisão de suspeitos etc,
6 HASSEMER, Winfried, op.
porque pode ocorrer que, em virtude da ameaça, o cidadão concorde
cit., p. 21. com tais arbítrios. Aqui cabe uma indagação: mas seria preferível

78 impulso
2777.BK Page 79 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

sacrificar as garantias individuais em nome do combate ao crime


organizado, sendo que há outros meios, como uma política de saúde
com gradual liberalização do uso das drogas pelos dependentes, que
certamente determina uma redução na criminalidade comum.

CONCLUSÃO
14. As questões levantadas por Hassemer estão na ordem do
dia em todos os países em que o Estado Democrático de Direito
impera e que adotam em suas constituições os princípios da digni-
dade humana, da liberdade, do respeito à privacidade, à intimidade
e a segurança e a livre disposição dos bens etc.
Exatamente por isto é que o debate se inflama. A questão é
como conciliar estes direitos conquistados, com o combate à
criminalidade, se o crime se acoberta atrás desses.
Outro ponto que se levanta relativamente a este é: se não dá
para conciliar, qual deles se deve sacrificar? Se a opção for a favor
da segurança e da propriedade, onde poderá chegar; ou se for
pelos primeiros, que conseqüências trará. Creio que a segunda
alternativa é a única que realmente não traz prejuízos. Os direitos
individuais constitucionais conquistados a duras penas, não podem
ser sacrificados em nome de uma falsa segurança, aliás o discurso
da segurança sempre norteou as iniciativas políticas que acabaram
por destruí-la.
Os povos, via de regra, apoiam o recrudescimento dos meios
repressivos, mas se esquecem facilmente dos seus resultados tão
logo eles cessam. A violência deste meios não é sempre visível nem
se dá a eles o mesmo destaque que se dá à criminalidade comum.
Assim, é recomendável a aplicação de novas política de
segurança e de saúde públicas com outros meios, alguns já dispo-
níveis, e que têm eficácia estatisticamente comprovada, como a
educação, a melhoria do nível sócio-econômico, e, no caso dos
dependentes, o tratamento controlado e outros. Seus custos não
são baixos, mas se comparados às demais medidas como o
aumento do aparato policial, construção de presídios, etc, certa-
mente não haverá prejuízo. A outra opção é muito perigosa e seu
implemento por si só já é uma insegurança.

impulso 79
2777.BK Page 80 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
HASSEMER, Winfried. Prespektiven einer neuen Kriminalpolitik.
Innere Sicherheit im Rechtsstaat, Straftverteidigertag, v. 19,
Freiburg 1995.

80 impulso
2777.BK Page 81 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

BASES DO DIREITO PENAL


NO ESTADO DEMOCRÁTICO
DE DIREITO
A. L. CHAVES CAMARGO

Os direitos fundamentais, em geral, são objeto de sérios con-


flitos no âmbito do Direito Penal, diante do significado ambiva-
lente, que ainda pauta nossa sistemática.
Busca-se um meio para prevenir a delinqüência, ao mesmo
tempo em que a intervenção indiscriminada do Estado colide com
os princípios básicos do direito penal, no Estado Democrático de
Direito.
O conflito está em cada setor da atividade jurídica brasileira,
tendo sido criadas várias comissões, que pretendem fazer cumprir
a Constituição Federal, no que diz respeito aos direitos fundamen-
tais, porque estes são os reflexos da dignidade da pessoa humana. 1
A discussão, entretanto, se mantém sob uma diretriz mera-
mente formal, pois ainda não há uma consciência, ou uma linha,
para a aplicação e execução das normas penais. Este fato está, inti-
mamente, ligado à estagnação das idéias penais, no Brasil, que não 1 A dignidade da pessoa huma-
conseguiu superar a fase de um dogmatismo exagerado, ou seja, na é um dos fundamentos do
Estado Democrático de Direito,
uma postura crítica direcionada para um direito penal moderno. artigo 1º, III, da Constituição
Federal.
A pretensão de avanço das idéias penais esbarra num reflexo,
2 Vide a lei dos chamados “cri-
ainda patente, de um longo período autoritário, onde a intervenção mes hediondos”, que tem fun-
do Estado não tinha limites, justificada pelo aumento da criminali- damento na Constituição Fede-
ral, artigo 5º, XLIII, totalmente
dade e paralela repressão punitiva, com penas exacerbadas e argu- incompatível com os princí-
pios do Estado Democrático de
mentos de caráter moral, já afastados do direito penal moderno. 2 Direito.

impulso 81
2777.BK Page 82 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

A própria denominação de “crimes hediondos” reflete a


índole moral, que ainda sustenta várias posturas de juristas pátrios,
causando, na prática, sérias conseqüências pela rigidez das penas e
pelo impedimento de benefícios previstos para os demais crimes.
O sistema progressivo, na execução penal, foi deixado de lado, e
os institutos, já consagrados em nosso Direito, da fiança, liberdade
provisória e da prescrição foram esquecidos.
Até o momento, não se conseguiu conceituar o que é crime
hediondo, a não ser através da retrógrada visão do direito penal do
resultado. A discussão dos direitos humanos, no âmbito jurídico,
deve ter como meta o respeito à dignidade da pessoa humana,
afastadas as dimensões meramente formais, que colidem com o
fundamento da legitimação.
O caráter social dos direitos humanos é dado, na sociedade
moderna, por ser uma sociedade pluralista, que oferece condições
para o exercício efetivo destes direitos, não só pela maioria, mas
também, pela minoria.
A Constituição Brasileira no seu artigo 5º enumera os direi-
tos fundamentais, ao mesmo tempo em que estabelece a proteção
destes direitos. A complexidade do Estado moderno, entretanto,
leva a conflitos entre a regulamentação da proteção destes direitos
fundamentais e a tarefa dos legisladores. Muitas vezes, na ânsia de
proteção a determinados direitos, o legislador ultrapassa a barreira
ou limites estabelecidos pelos direitos fundamentais.
O conflito se acentua quando há necessidade de proteção a
determinados bens jurídicos e, para tanto, o legislador, visando à
segurança social, vê-se diante de um problema, que deve ser resol-
vido, em razão do futuro da própria sociedade. Temos, como
exemplo, as leis sobre genética, aborto, transexualidade e, ainda,
as que regulam os direitos trabalhistas. 3
A solução, muitas vezes, é atribuída ao direito penal, com
3 No caso brasileiro, quando se
trata da discussão sobre temas, consequências irreparáveis, deixando-se de lado as específicas
tabus, como, por exemplo, im-
putabilidade penal, aborto, tran- funções deste no Estado Democrático de Direito.
sexualismo, etc., a pauta dos O esclarecimento da questão se encontra no papel, que
debates é o aspecto moral, ou
moralista, das diversas facções, exerce o Direito Penal, através de sua sistematização e do signifi-
sem muita preocupação com os
direitos fundamentais. cado da dogmática, na atualidade.

82 impulso
2777.BK Page 83 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

CONSTRUÇÃO SISTEMÁTICA DO
DIREITO PENAL
Devemos entender por sistema científico uma ordenação
lógica dos conhecimentos particulares, compatíveis entre si, não
apresentando contradição.

Positivismo empírico
O direito penal, até o final do século XVIII, consegue se
separar do direito canônico e do civil, mas o autêntico início com
qualidades autônomas acontece no começo o século XIX, sob a
influência iluminista do século XVIII, após as idéias reformistas
de Beccaria. As primeiras construções científicas são atribuídas a
Bentham, Filangieri, Romagnosi e Feuerbach. 4
Nesta primeira época da denominada Escola Clássica, a ciên-
cia do direito penal é dominada por um naturalismo que tenta
reproduzir no sistema de direito os elementos naturais do delito.
O sistema Liszt-Beling adota o conceito de delito, que tem
por base um comportamento dominado pela vontade, enquanto a
tipicidade era um acontecer externo, descrito na Parte Especial,
sem necessidade de qualquer valoração. A reprodução dos fatos da
natureza não impede, entretanto, que se atenha aos fundamentos
metafísicos para a descrição do crime como ente jurídico, prévio,
capaz de perpertuar-se no tempo e no espaço, para atingir seu
objetivo final, a paz social.
A antijuridicidade, neste sistema, se apresenta como algo
estranho à natureza, com um caráter meramente normativo, consi-
derando a ação contrária à lei e ao direito.
O elemento subjetivo (dolo e culpa) estava na culpabilidade
representado pela relação entre o autor e o resultado, de modo a
possibilitar a gradação destes elementos, influindo diretamente na
fixação da pena, na medida em que se apresentasse com maior ou
menor intensidade.
4CUEVA, Lorenzo Morillas.
Há o predomínio da lógica formal na construção dogmática, Metodología y Ciencia Penal.
que, na concepção de Von Liszt, reconhece dois aspectos na ciên- Granada: Comares, p. 14.
cia jurídico-penal: o sistemático e o prático. 5 SCHÜNEMANN, Bernd. In-
troducción al razonamento sis-
Este sistema naturalístico de Liszt-Beling se manteve, temácito en Derecho Penal.
Em: El sistema moderno del
durante muito tempo, devido ao conceito de causalidade, com o derecho penal: cuestiones fun-
triunfo da teoria da equivalência que, com seu monismo causalista, damentales. Trad. Jesús-María
Silva Sánchez. Madrid: Tecnos,
impedia qualquer valoração normativa. 5 1992, p. 46.

impulso 83
2777.BK Page 84 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

O formalismo
Outra influência na evolução sistemática do direito penal foi
a de Hans Kelsen, que, com base na distinção entre ser e dever ser,
atribui à Ciência do Direito uma característica normativa. Esta
não se ocupa de fatos, ou acontecimentos, mas, do conjunto de
normas.
Entre nós, este tecnicismo-jurídico, com a supervalorização
da letra da lei em detrimento de seu espírito, atinge uma exuberân-
cia formalista. O formalismo impede a análise de elementos
importantes da realidade social, pois tudo se converte no império
da lei, determinando em muitos aspectos contradições inadmis-
síveis. 6

Neokantismo
Outra forma de superação do naturalismo e do formalismo
kelseniano foi o surgimento de uma nova fase da sistemática do
direito penal, sob a influência da Escola Sudocidental Alemã, de
origem kantiana.
O formalismo se impôs pela recusa de qualquer postulado
metafísico, afastando do Direito considerações filosóficas, políti-
cas ou religiosas e, através da jurisprudência dos interesses, procu-
rou negar à causalidade conceitos causais em relação ao resultado.
Toda solução jurídica deveria ser encontrada nos limites do jus
positum.
A reação neokantiana adota um logicismo axiológico e
aplica uma teoria dos valores para elaborar a teoria jurídica. A
dogmática e a sistemática estabelecem critérios de valor para uma
6 A influência do tecnicismo-
jurídico, no Brasil, foi decisiva, decisão especificamente jurídica. 7
ainda persistindo sentenças que A influência ocorre no âmbito da antijuridicidade, que deixa
simplificam o Direito Penal num
argumento lógico-dedutivo, que de ser uma categoria meramente formal do sistema Liszt-Beling,
tem como premissa maior a lei,
e como premissa menor o fato para determinar o surgimento da “antijuridicidade material”. Esta
e, a decisão, como conclusão. é definida como o comportamento socialmente danoso, permi-
Não há, em geral, preocupação
com outros acontecimentos so- tindo, assim, a aplicação da excludente da antijuridicidade, através
ciais, ou fatores, que possam de-
terminar a falsidade de qualquer do que se denominou meio adequado para um fim justo, ou prin-
das premissas. cípio de mais proveito que dano.
7 SHÜNEMANN, Bernd, op. Seguindo a doutrina de Rickert e Lask, segundo a qual os
cit., p. 49.
conceitos em Direito deveriam sempre se referir a valores, a tipici-
8 JESCHECK, H. H. Tratado
de Derecho Penal. Trad. José dade supera a jurisprudência dos conceitos e interpreta teleologi-
Luis Manzanares Samaniego. camente o tipo a partir do bem jurídico protegido, o que de certa
4ª ed. Granada: Comares, 1993,
p. 124-125. forma persiste até hoje. 8

84 impulso
2777.BK Page 85 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

O direito penal recebe a nova sistemática como solução dos


problemas complexos até então não resolvidos pelos sistemas
anteriores, mantendo, entretanto, os mesmos elementos do crime
(ação, tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade) na mesma
ordem.
A culpabilidade é entendida com novos elementos e, a partir
de Frank, se reconhece a existência de elementos objetivos, manti-
dos o dolo e a culpa, como formas e elementos desta culpabili-
dade. A concepção normativa da culpabilidade se impôs com des-
tacados penalistas, como Mezger, com seu causalismo valorativo,
colocando em destaque, a inexigibilidade de conduta diversa como
causa da exclusão ou diminuição da responsabilidade.
O normativismo, que pauta o direito penal, ainda é “novi-
dade” para os juristas brasileiros, que não conseguiram assimilar
no seu todo este sistema e insistem em manter como válidos seus
conceitos, não aceitando os aspectos decisivos, que impossibilitam
a manutenção deste positivismo na atualidade.

Finalismo
Após o período totalizador, representado pelo nacional-soci-
alismo, onde prevaleceu o direito penal da vontade, Welzel investe
contra o pensamento neokantiano, em especial contra o relati-
vismo valorativo e o normativismo.
O neokantismo se caracteriza pelo subjetivismo, pois exclui
os valores do objeto, condicionando seu conhecimento à aplicação
dos conceitos jurídicos a priori. Esta metodologia resulta no rela-
tivismo gnoseológico, pois os valores, que não provêm do objeto,
são subjetivos.
O finalismo repudia o subjetivismo neokantiano, pregando a
necessidade de se retornar a uma epistemologia objetivista. Ao
mesmo tempo, afirma a necessidade de determinar-se o método
segundo o objeto. 9
Postula, assim, duas ordens do real: a ordem do suceder
(Ordnung des Geschehens) e a ordem do pensar (Ordnung des
Meinens). Esta última se caracteriza no direito penal pelo caráter 9 Cf. MIR PUIG, Santiago. In-
final da ação. O conceito naturalístico de ação não mais serve ao troducción a las bases del Dere-
Direito Penal, pois a dogmática jurídico-penal parte de um conceito cho Penal. Barcelona: Bosch, p.
253.
pré-jurídico de ação final e de uma estrutura lógico-objetiva. 10 10WELZEL, Hans. Introducci-
As mudanças, introduzidas pelo finalismo de Welzel, atingem ón a la filosofía del derecho.
o conceito de tipo, que não mais pode limitar-se a um tipo formal Trad. Felipe González Vicen. 2ª
ed. Madrid: Biblioteca Jurídica
objetivo, mas, com a estrutura final da ação, tem de apresentar um Aguillar, l974, p. 257.

impulso 85
2777.BK Page 86 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

tipo subjetivo, que surge junto daquele. No crime doloso este ele-
mento se encontra no próprio verbo da ação, restanto à culpabili-
dade não mais a concepção normativa, afastada de modo completo,
mas, o conhecimento potencial da proibição.
A influência do finalismo no direito penal alemão e europeu
fez-se sentir com profundidade com alguns efeitos no direito penal
brasileiro, a partir do Código Penal de 1984. Ocorre que, entre
nós, ainda não mereceu um interesse acentuado o estudo de todos
os aspectos desta corrente sistemática, mas insistimos em afirmar
seus preceitos, com ímpeto de positivistas jurídicos, o que cria
conflitos insuperáveis na doutrina e jurisprudência diante do anta-
gonismo metodológico destes sistemas de direito penal.
Hassemer salienta que, contra o finalismo não “germinou
nenhuma erva dogmática”, mas os opositores se limitaram às críti-
cas metodológicas, o que não abalou seus alicerces. 11 Seus
seguidores continuaram a desenvolver a teoria numa busca inces-
sante, para suprir as lacunas, que surgiram com este sistema apli-
cado ao Direito Penal.

Sistema atual
Na atualidade, o Direito Penal sofre os abalos naturais em
busca de uma eficácia para fazer frente à nova criminalidade. Ao
mesmo tempo em que se pretende adotar os princípios, que decor-
rem do Estado Democrático de Direito, procura-se atribuir às deci-
sões jurídicas uma estruturação científica. Neste sentido, há exi-
gências de precisão e clareza nas decisões jurídicas que apontam
para uma maleabilidade hermenêutica de um sistema aberto.
A norma penal não mais se apresenta como hermética, ligada
simplesmente ao autor, nem mesmo naquela relação empírica e
material, puramente causal, capaz de impor uma sanção penal
pelos atos de uma pessoa no querer volitivo e final, sem qualquer
valoração legislativa.
O direito penal pressupõe um sistema aberto, que tem por
11 HASSEMER, Winfried. Três base uma norma jurídico-penal que, na dinâmica interpretativa terá
temas penais. Porto Alegre e em vista o pluralismo da sociedade. 12
São Paulo: Fundação Escola
Superior do Ministério Público, O pluralismo aceita a sociedade como grupos de pessoas,
1993, p. 23 ss.
que no seu conjunto representam o Estado. A maioria é dominante
12 A Constituição Federal de
1988 indica como um dos fun- com respeito integral às minorias. Isto se contrapõe à idéia que
damentos do Estado Democrá- predomina entre nós de uma sociedade unitária com valores pré-
tico de Direito brasileiro o plu-
ralismo político. Artigo 1º, IV. vios e aceitos por todos como verdadeiros.

86 impulso
2777.BK Page 87 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

Nesta visão de sociedade, os participantes da comunicação


pertencem a um grupo e garantem a solidariedade, compondo as
ordens legítimas. 13 Desta forma, as pessoas, como estruturas
simbólicas, no agir comunicativo, constituem-se reciprocamente
com a sociedade através da ação e da fala. Os conceitos valora-
tivos se uniformizam pela maioria e numa interação dos grupos,
sob o ponto de vista social, há a coesão solidária, determinando a
estabilização da sociedade. 14
Assim, para um sistema moderno de direito penal há a neces-
sidade da apreensão pelo interpréte destas variantes de relações
interpessoais, ou mesmo intergrupais, que revelam o conceito
vigente dos bens jurídicos protegidos pela norma. 15
Há uma tendência atual de atribuir, como missão específica
do direito penal, a proteção ao bem jurídico diante de possíveis
lesões ou colocação em perigo. Esta opinião majoritária, na Ale-
manha e na Espanha, encontra críticos, uma vez que não se conse-
gue esclarecer o conceito deste bem jurídico e muito menos de
dano social relevante.
De acordo com Hassemer, 16 estas críticas são infundadas,
pois não levam em conta outros critérios, como por exemplo, o
dano social, a subsidiariedade, a tolerância, etc. Estes possibilitam
fixar as metas do Direito Penal dentro dos limites traçados pela
Constituição e pela idéia de Estado de Direito.
Nesta linha de idéias constata-se o dinamismo do conceito de
bem jurídico, que merecerá a proteção penal, ou estará no âmbito
de proteção do tipo penal. Haverá neste aspecto uma preocupação 13 HABERMAS, Jürgen. Pen-
da metodologia jurídico-penal para uma aproximação com a rea- samento pós-metafísico. Trad.
Flávio Beno Sibeneichler. Rio
lidade. de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1992, p. 96.
A realidade, conforme já referimos, se reflete na coesão mais
14 HABERMAS, Jürgen, op.
ou menos solidária das redes de interação dos grupos sociais. cit., p. 101.
Assim, a ciência do direito penal, como ciência social, estará mais 15 Sobre a formação da cons-
próxima desta realidade e dentro do âmbito específico da vida ciência da ilicitude com base na
teoria habermasiana do agir co-
social. municativo, vide nosso livro:
Os conceitos valorativos do bem jurídico não mais serão pré- Culpabilidade e reprovação pe-
nal. São Paulo: Sugestões Lite-
vios, como pretendia o positivismo jurídico, ou ontológicos, como rárias, 1993, p. 165 ss.
no finalismo, mas dependerão, em cada fato, do agir comunica- 16 HASSEMER, Winfried. In-
tivo, determinando a ocorrência do dano relevante social, quando troducción a la criminología y
al derecho penal. Valência: Ti-
o dissenso na comunicação concretizar este dano capaz da interfe- rant le Blanch, 1989, p. 113.
rência do direito penal. 17 17Estudo mais pormenorizado
O direito penal possui instrumentos eficazes de controle desta posição se encontra em
nosso livro citado, Culpabili-
social, que o diferenciam dos demais pela imposição de sanções dade...., p. 161 ss.

impulso 87
2777.BK Page 88 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

restritivas da liberdade e, ao interferir no dissenso, atua de forma


pedagógico-social, pois reforça os conceitos valorativos vigentes
num determinado grupo, resolvendo os conflitos mais graves, que
decorreram deste mesmo dissenso na comunicação.
Junto a esta interferência o direito penal consegue através de
institutos, que constituem o sistema codificado, aplicar uma san-
ção penal, para atingir a finalidade, que é oferecer uma oportuni-
dade ao condenado para um esforço individual de convívio com
seu grupo social. 18
Evidentemente, dentro desta proximidade do direito penal
com a realidade social, a Política-Criminal exerce acentuada influ-
ência, havendo mesmo uma tendência na Alemanha em admitir
como um avanço o interesse pelas consequências do direito penal,
não mais se limitando à dogmática. 19
Esta união entre a dogmática e a política criminal foi deno-
minada de dogmática realista, 20 pois, esta última, como ciência
social, permite a concretização da lei baseada na realidade, objeto
da regulação, tendo em vista as necessidades político-criminais.
Todo o debate do Direito Penal moderno na Europa, diversa-
mente do que ocorre entre nós, ainda adormecidos num positi-
vismo jurídico ortodoxo, está voltado para a busca de norma mais
eficaz para a reprovação criminal, sem abandonar os princípios,
que regem o direito penal no Estado Democrático de Direito.

PRINCÍPIOS NORTEADORES DO
DIREITO PENAL MODERNO
A partir de 1988, com a promulgação da Constituição Federal,
ficou patente no seu artigo 1º que o Brasil é um Estado Democrá-
tico de Direito e tem como fundamento:
I – a soberania;
II – a cidadania;
III – a dignidade da pessoa humana;
18 V. nosso livro. Culpabili- IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; e
dade..., p. 231. V – o pluralismo político.
19 HASSEMER, Winfried. Pers-
pectivas de uma moderna políti-
Estes fundamentos com certeza são os limites da interferên-
ca criminal. Em: Três temas de cia do Estado na vida do cidadão, refletindo nos princípios, que
Direito Penal, op. cit., p. 84.
20 MIR PUIG, Santiago, op.
regem o Direito Penal no Estado Democrático de Direito, bem
cit., p. 345. como, delimitando o poder de punir do Estado.

88 impulso
2777.BK Page 89 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

Princípio da intervenção mínima


O direito penal no Estado Democrático de Direito depara-se
com uma ambivalência, que leva a uma antinomia: restringe a
liberdade ao mesmo tempo em que tem por função proteger os
bens jurídicos, utilizando-se do instrumento mais severo, que é a
interferência nos direitos humanos dos cidadãos através da aplica-
ção de penas.
Desde o início da sistematização com a denominada Escola
Clássica até os nossos dias, parece não ter havido problemas, toda
vez em que se encara o direito penal como compensatório ou retri-
butivo. Cominada a pena e adequada ao tipo praticado, esta surgia
como a manifestação do poder do Estado, para reconduzir ao equi-
líbrio social.
O desenvolvimento da ciência penal paralela às novas formas
de Estado determinou o conflito entre esta postura, que tinha como
limite o mínimo e máximo das penas cominadas e a fórmula de
adequação da pena à culpabilidade do autor com respeito aos
direitos fundamentais não atingidos pela sanção penal.
A interferência do Estado ficou limitada ao âmbito do indis-
21 HASSEMER Winfried ad-
pensável para solução de conflitos, mas somente quando se tratar de verte que: “tanto os estudantes
fatos, que atingem de forma relevante o bem jurídico protegido. principiantes como os avançados
que preparam os temas memo-
A necessidade de interferência estatal encontra, ainda, uma risticamente, quando superam o
barreira, que é justificar a pena não só com um objetivo preven- estágio da tipicidade, repetem,
em seus exames e informes jurí-
tivo, ne peccetur, mas, como um ne punietur, em que o réu não dico-penais a frase “a tipicidade
é indício de antijuridicidade. E
sofra indevidamente um abuso maior com uma pena inadequada. esclarece que esta afirmativa re-
Para concretizar-se o princípio da intervenção mímina, deve- vela pobreza de linguagem,
bem como de conhecimentos
se ter em conta o caráter fragmentário do direito penal. jurídicos”. Em: Fundamientos
de Derecho Penal. Trad. Fran-
A fragmentariedade se expressa naquela intervenção do cisco Munhóz Conde. Barcelo-
direito penal, quando há uma antijuridicidade específica decor- na: Bosch, 1984, p. 265, nota de
radapé n. 86.
rente do âmbito de proteção da norma, com um conceito de bem
22 Ainda sobre a fragmen-
jurídico adequado ao momento social e, ainda, respeitando o tariedade do Direito Penal,
código de comunicação do grupo social. Isto quer dizer que nem MAIWALD, Manfred. Zum
fragmentarischen charakter des
sempre aquilo que se apresenta como um ilícito pode ser resolvido Strafrechts. Em: Festschrift für.
no âmbito penal. Neste sentido, há a afirmativa de Hassemer, Karlsruhe, p. 9ss, 1972.

segundo a qual há de se fazer uma distinção entre tipicidade e anti- 23 Já afirmamos que “o direito
penal mínimo, assim entendido
juridicidade, para manter-se a sensibililidade do jurista. 21 22 como limite para a imposição
Assim o direito penal é a ultima ratio da intervenção estatal violenta da restrição à liberda-
de, é o caminho mais curto no
na proteção aos bens jurídicos. 23 Isto é, haverá interferência do momento para se construir uma
sociedade pautada no respeito à
Estado através do direito penal, somente quando não houver outro dignidade da pessoa humana e
meio de controle social, ou seja, quando o dissenso comunicativo nas demais garantias funda-
mentais”. Em: nosso livro, Cul-
atingir um bem jurídico, causando-lhe um dano relevante. pabilidade..., p. 241.

impulso 89
2777.BK Page 90 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

Decorre, ainda, do princípio de intervenção mínima o caráter


subsidiário do direito penal como o último recurso a ser utilizado,
quando outros de caráter social não surtiram o efeito desejado.

Princípio da legalidade
Também denominado princípio da reserva legal é adotado
como basilar pelo direito penal desde a sistematização, quando
formulado por Feuerbach, na Alemanha. 24 Desde sua adoção
sofreu várias interpretações com base na filosofia e ideologia, que
inspiraram sua compreensão. Desta forma, na atualidade é a
garantia à própria liberdade, enquanto direito fundamental, pois
tem como consequência assegurar um sistema de garantias no
âmbito penal (dos tipos), no da execução (das penas e medidas de
segurança) e no judicial (processo regular).
A primeira garantia de âmbito penal é o consagrado nullum
crimen, nulla poena sine previa lege. Há, portanto, necessidade de
lei anterior, clara e certa, que descreva um tipo penal e impeça a
irretroatividade em prejuízo do agente.
A clareza e a certeza são requisitos inerentes à descrição
típica. A proibição à analogia e à interpretação extensiva obriga o
legislador à formulação típica, dentro de um sistema de proteção ao
bem jurídico. Isto não significa que se deva adotar um sistema com
24
base metafísica ou ontológica com conceitos prévios, nem mesmo
Na nossa Constituição, artigo
5º, XXXIX, dispõe: “não há cri- o axiomático, não realizável, mas um sistema aberto, de forma a
me sem lei anterior que o defi- não constituir-se num obstáculo ao desenvolvimento social.
na, nem pena sem prévia
cominação legal”. A partir dos conceitos técnico-jurídicos, semanticamente
25 Esclarece SCHÜNEMANN, adequados ao momento social, na definição do bem jurídico há de
Bernd, op. cit., p. 37; “assim, a
opção por um sistema aberto de se levar em conta o mundo de vida dos partícipes da comunicação,
Direito penal implica, por um que orienta a valoração do fato passível de reprovação penal. 25
lado, que o conhecimento exis-
tente se dispõe numa ordem re- A outra garantia, que decorre do princípio da legalidade, é o
movível a qualquer momento; nulla poena sine previa lege. O ius puniendi terá por base única as
e, por outro lado, que os casos e
problemas não advertidos não penas cominadas abstratamente pelo legislador, no nosso caso,
se julgarão sem reparos pelo
mesmo “rasero”, senão que entre o mínimo e o máximo para cada tipo penal.
sempre haverá ocasião para O grande problema na atualidade tem sido a forma de fixa-
modificar o sistema dado”.
26 Assim, podemos indicar: ar-
ção da pena, para ajustá-la dentro do princípio da culpabilidade a
tigo 5º, XLV: “nenhuma pena cada autor. O Direito Penal do resultado foi abandonado, há tem-
passará da pessoa do condena- pos, pela doutrina penal moderna, embora ainda entre nós preva-
do...; XLVIII – a pena será
cumprida em estabelecimentos leça a idéia de retribuição da pena.
distintos, de acordo com a natu-
reza do delito, a idade e o sexo Nossa Constituição Federal procurou fundamentar em nível
do apenado; XLIX – é assegu- de garantia constitucional a individualização da pena, apontando-a
rado aos presos o respeito à in-
tegridade física e moral”. em vários incisos do artigo 5º. 26 Ao mesmo tempo garantiu, de

90 impulso
2777.BK Page 91 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

modo claro e preciso, o cumprimento da pena dentro das previsões


legais, no caso, a lei de execução penal. O cumprimento da pena
deve observar as prescrições das garantias penitenciárias, o que no
momento é uma utopia no sistema penal brasileiro. O castigo,
ainda emoldurando a execução penal brasileira, determina o cum-
primento da pena por uma pequena parcela dos condenados. 27
No Estado Democrático de Direito, com base no princípio da
intervenção mímina, a pena tem por objetivo a prevenção geral e a
prevenção especial, não mais nos moldes clássicos. Aquela serve
de exemplo para que outros não delinqüem, e esta última atua no
próprio condenado, para que atinja a ressocialização ou reinserção
social. Estas teorias já estão superadas e abandonadas pelo direito
penal moderno.
A lei penal sob o prisma da prevenção geral exerce uma fun-
ção positiva, motivadora, que estimula a compreensão semântica
dos valores vigentes, garantidos através do bem jurídico protegido,
de modo a atuar como estímulo ao grupo social para evitar a prá-
tica de atos proibidos. Sob o aspecto da prevenção especial, tam-
bém positiva, a influência da lei visa a reafirmar no condenado os
conceitos de valores vigentes, de modo a convencê-lo a não prati-
car aquelas condutas reprovadas pelo grupo social. Dá-se adeus,
neste aspecto, aos mitos da ressocialização e da reinserção social
tão enaltecidos pelo direito penal clássico.
Deduz-se, portanto, que as bases para a reprovação penal se
estabelecem no sentido da aplicação de uma pena, somente 27 Há dezenas de milhares de
quando for necessária e indispensável. mandados de prisão a serem
cumpridos em todo o Brasil, o
que revela a falência do sistema
penal, ainda em vigor, apesar
Princípio da culpabilidade das modificações constitucio-
O direito penal retributivo tem como seu argumento mais nais e da lei de execução penal.
O condenado ainda é visto
sólido a possibilidade de livre arbítrio ou, entre nós, o superado como uma mera estatística, e a
construção dos presídios tem
poder atuar de maneira diversa. A base para estas alternativas, no sido a meta dos governantes,
sentido de justificar-se a punição, é a imagem do homem médio, sem atentar para outros proble-
mas decorrentes da postura rígi-
que, como o homem das neves, jamais foi definido ou concreti- da da justiça brasileira, como,
zado. É pura imaginação... por exemplo, as condenações
arbitrárias e o reinado da reinci-
Assim, o conceito clássico de culpabilidade com seu ele- dência, que impede qualquer
substitutivo penal. Podemos di-
mentos dolo e culpa já não mais faz parte dos princípios constitu- zer que o número de mandados
cionais. de prisão supera em muito o dos
condenados, que cumprem pe-
O fundamento constitucional do princípio da culpabilidade, na, o que significa uma cifra ne-
gra a merecer uma meditação
que decorre do princípio da legalidade, é o reflexo da dignidade da criminológica séria.
pessoa humana, encontrado na totalidade das restrições à interven- 28 Nosso livro: Culpabilida-
ção do Estado na vida privada. 28 de..., p. 93.

impulso 91
2777.BK Page 92 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

A concepção moderna da culpabilidade traz em si algumas


regras, que devem ser observadas, impossibilitando a sanção de
um fato. O limite e a individualização da pena são garantias, impe-
dindo que a mesma exceda a responsabilidade do autor.
Estas exigências se refletem no conteúdo da culpabilidade
material, pois a motivação pela norma, isto é, a consciência da ili-
citude, é indispensável para a existência da culpabilidade e decor-
rente punição. Esta motivação atualmente é reconhecida como
uma imputação subjetiva, 29 pois o agente no momento da ação
deve ser capaz de culpabilidade. Além do elemento subjetivo da
ação, há necessidade de ter a capacidade de compreender a ilici-
tude do fato e estar em situação de conhecer a proibição.
Este quadro, na atualidade, representa o que denominamos
de capacidade de reprovação, pois a prática do crime é uma situa-
ção de dissenso, na qual o agente, conhecendo a validade da
norma num determinado momento social, procurou modificá-la,
determinando uma condição de sanção ou reprovação. 30
No âmbito de um direito penal do resultado ainda eficaz
entre nós, como já dissemos, este entendimento se torna difícil,
visto que alguns o consideram surrealista, indicando um total des-
conhecimento do que ocorre na atualidade.
Não se pode, entretanto, deixar de atender aos dispositivos
constitucionais, esquecendo-se do princípio da culpabilidade no
momento mais importante de todo o fato social, que é a reprovação
através do direito penal. Além de ser uma garantia constitucional
foi consagrado pelo Código Penal de 1984, estando expresso no
seu artigo 59. 31
O mencionado artigo da lei é claro ao estabelecer que a fixa-
ção da pena tem em vista o necessário e o suficiente para a repro-
vação.
29 HASSEMER, Winfried, op.
Conseqüência imediata do Estado Democrático de Direito,
cit., p. 269. os princípios da proporcionalidade e da necessidade são, também,
30 Nosso livro: Culpabilida- acolhidos pelo direito penal.
de..., p. 225.
31 Artigo 59 do Código Penal:
Princípio da proporcionalidade e da necessidade da pena
“O juiz, atendendo à culpabili-
dade, aos antecedentes, à con- É o limite do ius puniendi, isto é, a pena deve ser necessária,
duta social, à personalidade do não podendo ser superior à intensidade do dano causado ao bem
agente, aos motivos, às circuns-
tâncias e consequências do cri- jurídico protegido. Ao mesmo tempo deve ser adequada à culpabi-
me, bem como ao comporta-
mento da vítima, estabelecerá, lidade do agente.
conforme seja necessário e sufi- Este princípio não se refere tão somente à quantidade da
ciente para reprovação e pre-
venção do crime...” pena a ser aplicada, mas leva em consideração a importância

92 impulso
2777.BK Page 93 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

social do fato, bem como as circunstâncias do ato de comunicação


e as características dos partícipes. A prevenção geral neste sentido
não é mais intimidatória, mas motivadora, no sentido de poder
afirmar os valores vigentes naquele momento, sendo, portanto,
uma prevenção geral positiva. Como já afirmamos, a necessidade
da pena será o exame da situação individual de compreensão da
validade da norma e da intenção de causar dano social: a vida coti-
diana é o pressuposto da análise do agente numa tentativa de ade-
quar o conceito de norma à validade social desta. 32
A necessidade da pena está ligada à humanização, que, hoje,
influencia o direito penal, apesar de algumas tendências em agra-
var as punições como meio de diminuir a criminalidade.
No Estado Democrático de Direito a pena deve ser aplicada
somente quando necessária e indispensável à reafirmação dos
valores vigentes. Os fins das penas, que as justificavam, tais como,
ressocialização, reeducação, reintegração social, não mais podem
servir de parâmetro para sua fixação concreta, nem mesmo para
afirmar sua necessidade.
No momento atual, há uma tendência do direito penal à apro-
ximação da realidade através de um pensamento sistemático, em
substituição ao pensamento-problema adotado a partir do direito
de caso, próprio do pensmaento anglo-saxão. Esta tendência
requer uma especial atenção da política criminal, ao mesmo tempo
em que determina um direito penal aberto, que se socorre de
outras ciências, como um conjunto, para melhor deduzir a sanção
a ser aplicada.
O que é certo, no moderno direito penal, quanto à concreta
aplicação da pena; deve-se prestar atenção à prevenção especial,
que desempenha um papel mais relacionado com o prognóstico,
possibilitando, o quanto possível, a substituição da privativa de
liberdade, de caráter mais grave, dentre as sanções existentes, por
outras de cunho social, como a suspensão condicional, as restriti-
vas de direito e as pecuniárias.
Esta política criminal não é aquela proposta pelo direito
penal funcional, que nem mesmo se preocupou em investigar suas
conseqüências, mas, dentro de um sistema jurídico-penal, possibi-
lita ao direito penal cumprir sua restrita e verdadeira missão, a
proteção aos bens jurídicos.
Restringindo o campo do direito penal, somente sancio-
nando-se aquelas situações de fato, que não podem deixar de ser 32 Nosso livro: Culpabilidade...,
reprovadas por ausência de outros meios de controle social, pode- p. 224.

impulso 93
2777.BK Page 94 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

mos nos deparar com uma nova ordem de idéias: a criminalidade


organizada, criminalidade econômica, avanços bioéticos, crimes
ecológicos, tráfico de entorpecentes, etc.
Este tipo de fato é a preocupação mais intensa do momento,
pois não se trata de um campo capaz de ser enfrentado pelos prin-
cípios do direito penal vigente. Esta criminalidade, assim denomi-
nada moderna, não é simplesmente um caso de danos materiais,
mas um caso de risco, de perigo. 33 Para esta criminalidade deve-
mos ter um direito penal diferenciado, que Hassemer 34 a princípio
denomina “Direito de Intervenção”, mas, pela sua complexidade,
será matéria para novas meditações.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CAMARGO, A. L. Chaves. Culpabilidade e reprovação penal. São
Paulo: Sugetões Literárias, 1993.
CUEVA, Lorenzo Morillas. Metodología y ciencia penal. Granada:
Comares.
HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico. Trad. Flávio
Beno Sibeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1992.
HASSEMER, Winfried. Fundamientos de Derecho Penal. Trad.
Francisco Munhoz Conde. Barcelona: Bosch, 1984.
HASSEMER, Winfried. Introducción a la criminología e al
Derecho Penal. Valência: Tirant le Blanch, 1989.
HASSEMER, Winfried. Três temas penais. Porto Alegre e São
Paulo: Fundação Escola Superior do Ministério Público, 1993.
JESCHECK, H. H. Tratado de Derecho Penal. Trad. José Luis
Manzanares Samaniego. 4ª ed. Granada: Comares, 1935.
MAIWALD, Manfred. Zum fragmentarischen Charakter des Stra-
frechts. Em: Festschrift für. Karlsruhe: R. Maurach, 1972.
MIR PUIG, Santiago. Introducción a las bases del Derecho Penal.
Barcelona: Bosch.
SCHÜNEMANN, Bernd. Introducción al razonamento sistemático
en Derecho Penal. Em: El sistema moderno del derecho penal:
cuestiones fundamentales. Trad. Jesús-María Silva Sánchez.
Madrid: Tecnos, 1992,
33 HASSEMER, Winfried. Três
Temas...., p. 95. WELZEL, Hans. Introducción a la filosofía del Derecho. Trad.
34HASSEMER, Winfried. Três Felipe González Vicen. 2ª ed. Madrid: Biblioteca Jurídica
Temas...., p. 96. Aguillar, l974.

94 impulso
2777.BK Page 95 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

A RELEVÂNCIA CAUSAL
DA OMISSÃO
EDUARDO SILVEIRA MELO RODRIGUES

– Nós, disse Madame Stäel – só poderemos ser incrimi-


nados pelo que não fizemos.
– Eis o ponto.
Disse Olynthe Rodrigues, logo depois decapitado”.
(Excerto imaginado de um programa ideal de um partido verdadei-
ramente revolucionário)

A QUESTÃO DOS CRIMES COMISSIVOS


POR OMISSÃO
Apesar da enorme dificuldade que cerca o tema da relevância
causal da omissão, ou talvez precisamente devido à necessidade de
se buscar a sua clarificação, é que o abordamos neste trabalho.
Trata-se de “um dos temas mais difíceis e uma das questões mais
tormentosas da ciência do Direito Penal”, 1 não acolhido como fór-
mula expressa porque entendido desnecessário pelo legislador de
1940, conforme justificativa apresentada à época por um, e talvez
o principal, dos artífices da reforma:

Fez bem a Comissão Revisora em riscar o dispositivo.


Desde que se reconhece, do ângulo de vista lógico
(como já fazia o Projeto Alcântara, que a omissão é
CAUSAL, redunda numa incoerência declarar-se, em
seguida, que a omissão equivale a causa. E inteiramente
ocioso é dizer-se que a omissão só tem relevância penal, 1FRAGOSO, Heleno Cláudio.
como causa, quando represente o descumprimento de Comentários, v. I, t. II, n. 12.

impulso 95
2777.BK Page 96 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

um dever jurídico. Ora, também a ação só tem sentido


penal, como causa, quando é contrária ao dever jurí-
dico. O evento lesivo resultante de uma omissão LÍCITA
não pode entrar na estrutura de um crime: é objetiva-
mente lícito. 2

Alcançava já, portanto, o renomado Hungria, que a relevân-


cia causal da omissão repousava em muito no caráter de antijuridi-
cidade da conduta, mas não antevia com o costumeiro acerto o
vazio tipológico, que adviria da falta de disposição a respeito.
Redimindo-se de tal falha, o próprio grande doutrinador aco-
lheu dispositivo semelhante ao proposto por Alcântara Machado,
assim se justificando:

Importante é o que agora aparece como referência aos


crimes comissivos por omissão. Não se encontram
especificados na lei vigente, nem nos Códigos de sua
época, os pressupostos da conduta típica, dessa catego-
ria de delitos, defeito que as legislações penais moder-
nas vêm corrigindo. Como se demonstrou, amplamente,
a ilicitude aqui surge, não porque o agente tenha cau-
sado o resultado, mas porque o não impediu, violando
o seu dever de garantidor. É indispensável fixar na lei
as fontes de tal dever de atuar. 3

Deve-se verificar, portanto, que Hungria ia além da justifica-


tiva, para afirmar, nas entrelinhas, incompleta a proposta Alcântara,
por prever expressamente a hipótese em que a omissão valesse
como causa, mas não frizar as suas fontes de dever jurídico. Tal
não fora, entretanto, e como visto, o motivo da supressão anterior-
mente feita.
Sabido, mais, que a reforma que instituiu a nova Parte Geral
do Código Penal (Lei nº 7.209/1984) acolheu dispositivo pratica-
mente idêntico ao redigido por Hungria (art. 13, § 2º). Nada mais
interessante que analisar o instituto dos crimes comissivos por
omissão também sob a perspectiva histórica positiva, no Brasil,
2 HUNGRIA, Nelson. Comen- indagando se a proposta de Alcântara Machado era efetivamente
tários ao Código Penal, v. I, t. errônea, ou incompleta; se melhor seria efetivamente a supressão
II, n. 60.
3
da previsão legal, como o fez o nosso CP de 1940, deixando à
Exposição de Motivos. n. 1,
D.O.U. de 21.10.69, n. 9. jurisprudência e à doutrina a sua solução; ou se a fórmula proposta

96 impulso
2777.BK Page 97 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

por Hungria (CP de 1969 e CP vigente) era a mais adequada à


solução do problema. É o que ousadamente passamos a fazer.

A PROPOSTA DE ALCÂNTARA MACHADO


Assim se redigia o aludido dispositivo no Projeto Alcântara
Machado:

Art. 9 – O agente só responderá pelo evento que for


efeito de sua ação ou omissão.
§ 1º – Faltar à obrigação de impedir o evento equivale
a causá-lo.

Se insurgência houve, ainda que morigerada, quanto ao


CAPUT (Costa e Silva, principalmente, discutiu sua necessidade),
muito maior foi a reação ao parágrafo primeiro, na qual se sobres-
saiu o próprio Hungria. A previsão, para ele haurida do Códito ita-
liano, fora reproduzida no uruguaio e era, ao ser ver, incoerente.
De tais críticas procurou defender-se o próprio Alcântara,
com a proverbial clareza de sempre:

Toda a atoarda vem, afinal de contas, de mero equívoco


do censor. O de que trata o dispositivo é, pura e simples-
mente, de afirmar que na espécie há um nexo causal
entre a omissão e o evento. Mas o reconhecimento da
relação de causalidade não importa evidentissima-
mente, por si só, no reconhecimento da responsabili-
dade criminal do omitente em apreço. De fato, sabe
toda a gente que, além do elemento material ou obje-
tivo, a responsabilidade pressupõe o elemento subjetivo
ou psicológico, isto é, o dolo ou a culpa. De sorte que se
não houver dolo ou culpa, da parte do omitente, este
não responderá pelo evento. Ainda mais: se o evento
relacionado com a omissão realizar hipótese conside-
rada pelo legislador sómente quando dolosa, e culposa
for a omissão, não existirá para o omitente responsabi-
lidade penal, embora exista o nexo de causalidade. 4

O que pretendia o venerando mestre, pois, era demonstrar 4 MACHADO, Alcântara. O


que o dispositivo não implicava em estruturar o crime, vale dizer, Projeto do Código perante a
que só o reconhecimento do nexo causal com o resultado não Crítica. Revista da Faculdade
de Direito, v. 35, fasc. 1, jan./
esgotava o delito, da mesma forma quanto aos comissivos puros, abr. 1939, p. 63-64.

impulso 97
2777.BK Page 98 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

porque havia que se indagar, ainda, do tipo subjetivo, do dolo ou


da culpa. Cabia, assim, a previsão genérica quanto à omissão, por-
que, quanto a esta, havia que se estabelecer um nexo normativo,
diferentemente da ação, em que o nexo era naturalmente causal.
Estabeleça-se desde logo: não havia dissidência doutrinária
quanto à causalidade omissiva em si, afirmada por todos, desde
Costa e Silva, resultante do dever jurídico de impedir o evento. O
que se discutia era a necessidade de se estabelecer a equivalência
causal entre a ação e a omissão expressamente, bem como os pres-
supostos da conduta típica omissiva.
Se o legislador de 1940 repudiou a fórmula de Alcântara
Machado (que era reconhecidamente colhida na lei italiana), não o
fêz porque a considerasse de pioneirismo temerário. Já a admi-
tiam, viu-se, os códigos italiano e uruguaio mencionados, o pro-
jeto penal alemão de 1913 (§ 14), e até o Código Penal Chinês de
1935. 5
Alcântara Machado, entretanto, apenas propôs que a relevên-
cia omissiva ficasse consignada, adquirindo base normativa. Não
se propôs a fixar as hipóteses do dever jurídico. Isto foi objeto do
CP de 1969, acolhido pelo legislador de 1984. Como num aliviar
de seu erro, diga-se, Hungria desenvolveu e ampliou a fórmula de
Alcântara, como a afirmar publicamente que errara, mas também
errara o seu criticado.

A RELEVÂNCIA DA OMISSÃO PERANTE


O CÓDIGO PENAL DE 1940
O silêncio do legislador de 1940 suscitou reações doutriná-
rias díspares. Àquela altura já se consolidara, mundo afora, a idéia
de que a lei penal procura sempre um fim de tutela para certos
interesses, e que toda e qualquer conduta, desde que resulte em
ofensa ou ameaça a tais interesses, deve ser condenável, “quer
5 Art. 15 – Where the preventi-
on of a specified result is an consista num facere ou num omittere”. 6
obligation under the law, the fai- E a doutrina alienígena, como a nacional, bem estabelecia os
lure to prevent what is preventa-
ble is equivalente to the active pressupostos do dever de evitar um resultado, como os oriundos da
commission of such a result.
The Criminal Code of Republic lei, da ordem de superior hierárquico, de uma situação contratual
of China. Shangai: Kelly & ou profissional. A estes, a doutrina portuguesa acrescentaria os
Walsh Ltd., 1936.
resultantes de uma situação de fato (o que adviria de uma ação
6 ARAÚJO, Laurentino da Sil-
va, FAVEIRO, Vitor Antonio anterior lícita, como o do que promove queimada e tem que impe-
Duarte. Código Penal portugu- dir que alastre) ou dos deveres resultantes da moral e dos costu-
ês anotado. 4ª ed. Coimbra:
Coimbra Ltda., 1966, p. 11-13. mes, numa ampliação arrojada para a época (exemplificava-se

98 impulso
2777.BK Page 99 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

com o não andar nu pelas ruas, quando, aí, a conduta era nitida-
mente comissiva). 7
Em sua obra principal, o mestre Basileu Garcia teceu comen-
tário bastante sucinto quanto aos próprios delitos comissivos por
omissão, sem qualquer preocupação de detalhamento: “caracte-
riza-se a existência da infração quando o sujeito ativo tem o dever
jurídico de praticar o ato de que se abstém”. 8
Calava-se quanto ao tema, seguindo os passos do legislador,
ao tratar da relação causal.
Aníbal Bruno igualmente pouco discorre acerca da matéria,
limitando-se a pouco mais que dizer: “a punibilidade da omissão é
outro problema, cuja solução depende da comprovação de concor-
rência de outros elementos do fato punível, a partir da antijuridici-
dade, resultante do dever jurídico de agir, que incumbia ao omi-
tente”. 9
Afirma, pois, o grande mestre do Recife, um elemento natu-
ral na ação omissiva (em nota de rodapé inclusive anota a diver-
gência entre as teorias naturalística e normativa quanto à omissão),
que deveria ser melhor explicitado com a análise da antijuri-
dicidade da conduta. Assim, resolvida a questão de que se hou-
vesse a ação omitida o resultado desapareceria (omissão causal, na
CONDITIO SINE QUA NON), haver-se-ia de perquirir o outro ele-
mento do crime, o antijurídico, verificando se o agente tinha o
dever jurídico de agir. Isto significa que a omissão, revelada causa,
seria típica desde logo, restando a indagar de sua antijuridicidade,
que seria afirmada se o agente tivesse o dever jurídico de evitar o
resultado (cujas bases não vinham afirmadas na lei), e seria arre-
dada se não tivesse o agente tal dever jurídico (quando, entretanto,
as causas de exclusão de antijuridicidade deviam ser expressas,
como entendido à época).
Magalhães Noronha parece ter sido um dos que mais atento
olhar dirigiu à questão. Admitiu expressamente a omissão sob um
ponto de vista naturalístico, lembrando percuciente indagação de
7 ARAÚJO, Laurentino da Sil-
Masimo Punzo: “se não é exato que as flores secam tanto quando va, FAVEIRO, Vitor Antonio
o jardineiro não as rega, como quando as rega com uma solução Duarte, op. cit.
de sublimado”, depois de ter afirmado que “quanto à ação nega- 8 GARCIA, Basileu.
Instituições de Direito Penal. 5ª
tiva, ou omissão, entra no conceito de ação (Genus) de que é espé- ed. Max Limonad, v. 1, t. 1, p.
cie. É também um comportamento ou conduta e, consequente- 222.
mente, manifestação externa, que, embora não se concretize na 9BRUNO, Aníbal. Direito Pe-
nal, Parte Geral. 3ª ed. São
materialidade de um movimento corpóreo – antes é a abstenção Paulo: Forense, tomo I, 1967, p.

impulso 99
2777.BK Page 100 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

desse movimento –, por nós percebida como REALIDADE, como


SUCEDIDO ou REALIZADO”.
Para o renomado autor, razão se encontra na Teoria Natura-
lística, portanto. Mas, nem por isso afasta a necessidade da afirma-
ção de seu conteúdo antijurídico: “Mas, ao Direito Penal elas só
interessam quando têm relevância, quando importam o descumpri-
mento de um dever jurídico ou se opõem ao COMANDO da
norma legal, o que lhes dá o conteúdo normativo”. 10
Não se cansa de demonstrar que a omissão é um fato e não
uma abstração:

Ela é tão real como a ação, pois é expressão da von-


tade do omitente, porque é reconhecível e verificável no
tempo e no espaço, e porque não é um NÃO-SER,
porém, modo de SER do autor. E, se tem um conteúdo
real, não é um nada, mas alguma coisa suscetível de
determinação e percepção. Como tal, pode dar lugar a
um processo causal. 11

Para arrematar, quanto à nossa indagação primária: “o


Código Penal italiano é expresso: “não impedir um acontecimento
que se tem a obrigação jurídica de evitar equivale a causá-lo”. Tal
dispositivo, entretanto, é superfetação, desde que se declare ser a
omissão causa, como faz o legislador pátrio no art. 11”. 12
Desde então, refutando-o e aos adeptos de tal superfetação,
erguia-se a voz de Paulo José da Costa Jr., de formação nitidida-
mente clássica italiana: “o Projeto Alcântara Machado, que antece-
deu o Código Penal de 1940, continha dispositivo que a Comissão
Revisora deliberou suprimir”: não poderia o legislador brasileiro
de forma alguma suprimir o dispositivo em questão. Sem ele não
será possível promover a condicionalidade hipotética omissiva à
categoria de causa. Necessário, portanto, o decreto de promoção
321. normativa. Ausente a ficção legal, a omissão perde sentido. Diluiu-
se, desnorteia-se.
Dois, portanto, os pressupostos da causalidade omissiva: “a
conexão condicional hipotética entre conduta e evento; e a viola-
ção de uma obrigação jurídica de intervir”. 13
Vê-se, pois, e claramente, que o ex-Professor Titular de
Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade de São
Paulo afirmava o que outros apenas intuíam: a falta de tipicidade
dos delitos comissivos por omissão.

100 impulso
2777.BK Page 101 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

Esta, precisamente, a grande crítica que se fazia, e cada vez


mais tomando espaço na doutrina mundial. Se faltava tipicidade
aos denominados delitos omissivos impróprios, faltava-lhes legali-
dade, ou seja, constituíam-se em violação do vetusto e básico
Princípio da Legalidade.

O CRIME COMISSIVO POR OMISSÃO E


O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE
O que parece é que o legislador de 1940, e os doutrinadores
que o influenciaram, além de boa parcela dos comentaristas da
época, não se deram conta do grave problema da infringência, que
o tratamento dado à questão representava para o Princípio da
Reserva Legal.
É verdade que Paulo José da Costa Júnior, bem mais tarde,
afirmaria a necessidade da previsão legal dos crimes omissivos
impróprios. Mas afirmaria, também, que “no crime comissivo,
uma única violação se perpetra da norma principal. No crime
comissivo-omissivo, duas: da principal e da acessória, que estabe-
lece o dever de agir. Consequentemente somente uma parte do tipo
acha-se legalmente descrita. A outra incumbe ao Juiz construir,
complementando o tipo”. 14
Assim o afirmou, quando já aceita a reforma que introduziu
em 1984 o dispositivo acerca da relevância causal da omissão.
Entretanto, vê-se, deixava a solução pela metade, incumbindo ao
Juiz parcela do tipo a realizar, o que significa menos que o arbítrio
tão só pela segura orientação doutrinária a respeito.
Sobre o assunto, discorre Carlos Creus, sendo de se lembrar
que o Código Penal argentino não acolhe a previsão, em tipo pró-
prio da Parte Geral, da causalidade omissiva:

Sin duda, lo que más preocupa a la doctrina contem-


poranea al tractar de los delitos de Comisión por
Omisión, es el hecho de que su reconocimiento puede
colisionar con el principio de legalidad encuanto se
trata de tipos ‘no escritos’ (son ‘tipos de interpretación’,
Schmidthäuser): la ley pune al que mata, peropor un
lado se plantea esa objeción, pero por el otro, dejar de
reconecerlos importaría poner al descubierto un amplio
campo de permisividad al ataque del bien jurídico que 10NORONHA, E. Magalhães.
el mismo tipo omisivos improprios aparecerían como el Direito penal. 17ª ed. São Paulo:

impulso 101
2777.BK Page 102 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

agotamiento necesario del contenido prohibitivo del


tipo escrito (Zaffarini).

Elide, entretanto, a suposta agressão ao princípio da legali-


dade, da seguinte forma:

Por supuesto que la objeción del principio de legalidad


se rebate cuando la omisión impropria es tractada
legalmente como una extensión del tipo (como lo hizo
nuestro Proyecto de 1960 – Soler, en su art. 10), o
cuando excepcionalmente el legislador lo prevé taxati-
vamente (entre nosotros ciertos casos de abandono de
personas del art. 106, Cód. Penal). Creemos que la cor-
rección jurídica de la causalidad permite incluir en ella
toda condición típica de un resultado, sea esta la de
producirlo – cuando no se lo debía producir – o la de no
impedirlo – cuando se lo debía impedir –, por lo cual no
nos parece violatoria del principio de legalidad la con-
sideración de la comisión por omisión (en un signifi-
cado socialmente adecuado de la acción de “matar”,
tanto mata el que quita la vida a otro, como el que per-
mite que se extinga la vida cuando puede imperdirlo). 15

E prossegue com observação a ser pensada:

Por muchas razones el tema puede parecer sobredimen-


sionado en la doctrina con abundancia del debate teó-
rico, sin poner demasiada atención a suas verdaderas
consecuencias prácticas (dogmáticas). 16

A questão, todavia, subsiste. Não ofenderia ao princípio da


legalidade a inexistência de uma norma que expressamente pre-
visse a extensão ao tipo incriminador? A conduta incriminada só o
poderia ser, se fosse hipótese de adequação típica de subordinação
mediata, como o é a tentativa, ou o são as modalidades culposas,
mas para tanto deveria haver a previsão genérica da relevância
Saraiva, v.1, p. 106. causal da omissão e a específica, a cada tipo penal em que
11 NORONHA, E. Magalhães, cabente, como se faz com os delitos culposos.
op. cit., p. 125-126. Ainda em terras argentinas, Ricardo C. Nuñes dá uma solu-
12 NORONHA, E. Magalhães, ção simplista ao problema:

102 impulso
2777.BK Page 103 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

Fracasada la tesis de la relación causal física, la atri-


bución del resultado físico al omitente encontró un
nuevo fundamento en el princípio de la “acción espe-
rada”... la omisión es causal si el resultado desa-
probado por el ordenamiento jurídico hubiera sido
impedido por la acción que se “esperaba del autor”.

E apressa-se em corrigir a fórmula:

La acción esperada no puede, empero, explicar satis-


factoriamente el fundamento jurídico de la obligación
de actuar para evitar el resultado delectivo en el caso
de ingerencia, esto es, en el caso en que ese deber tiene
como fuente un hecho precedente a la omisión reali-
zada por el autor. 17

Aponta, a seguir, fórmula simplista ou, pelo menos, insufi-


ciente para tão magno problema, ao afirmar que a responsabili-
dade do omitente por um resultado delitivo é uma questão de tipi-
cidade inerente aos tipos dos delitos de comissão, que são aqueles
que prevêem um comportamento contrário a uma norma proibitiva.
A infração a tal espécie de norma tanto se dá pela causação física
do resultado como pela omissão, quando se tenha uma situação
jurídica particular, que lhe atribua a responsabilidade.
Com a costumeira clareza inovadora, afirma Welzel:

Si se desea desarrollar los tipos de los delitos de omi-


sión improprios mediante una conversión de los tipos
de comisión, se evidencia un sensible vacío en la elabo-
ración de los tipos legales.
El no evitar el resultado típico en el sentido de un delito
de comisión, por una persona con poder para ello,
nunca es suficiente para fundamentar la autoría, en el
sentido de correspondiente delito de omisión improprio.
En estos casos, más bien, la autoria tiene que ser fun- op. cit., p. 125-126.
dada independientemente, junto a la conducta típica, 13 COSTA, Paulo José da. Di-
por características especiales de autor: sólo el no evitar reito Penal Objetivo. São Pau-
lo: Forense Universitária, 1989,
un resultado típico por parte de una determinada per- p. 32.
sona con poder para ello, convierte a dicha persona en
autor en el sentido de un delito de omisión impróprio. 18

impulso 103
2777.BK Page 104 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

Pretende, portanto, o renomado autor resolver o tema (ou


buscar o seu campo de solução) sob um outro ângulo, o dos crimes
próprios, em que só determinados autores podem fundamentar o
injusto punível. Assim, se um qualquer revela segredo privado
alheio, a conduta é atípica. Se se trata de um sacerdote, entretanto,
há crime. Também só haveria o delito comissivo impróprio para o
autor que tivesse o dever jurídico de impedir o resultado que a
norma pretende evitar.

El no evitar el resultado típico es típico en el sentido de


un delito de omisión improprio sólo para determinadas
personas con poder del hecho, que de antemano estén
en una relación estrecha respecto al bien jurídico. Los
delitos de omisión improprios comparten, por lo tanto,
con los delitos especiales proprios, la particularidad de
carácter típico de que la antijuridicidad de la conducta
del autor sólo se funda mediante la adición de caracte-
rísticas objetivas especiales del autor. 19

E conclui, aceitando a exceção ao Princípio da Legalidade:

En los delitos de omisión improprios, el juez mismo


mediante una complementación del tipo, tiene que
encontrar las características objetivas del autor... “El
principio NULLA POENA SINE LEGE experimenta en
estos casos una profunda limitación: sólo la conducta
del autor está ‘legalmente determinada’ y no las carac-
terísticas objetivas de autor. Por esta razón, se han
hecho valer siempre reparos de índole constitucional en
contra de los delitos de omisión improprios. Del vacío
en la descripción legal típica resulta dogmáticamente
la inseguridad para el juez de circunscribir con sufi-
ciente precisión las características típicas no escritas
del autor de la omisión. Esta dificuldad dogmática no
radica en las deficiencias de una ley determinada, sino
en la naturaleza de la cosa. Es imposible, por princi-
14 COSTA, Paulo José da, op. pio, circunscribir concreta e exaustivamente en tipos
cit.
legales la inmensa variedad de posibles autores de
omisión [grifo nosso]. 20

104 impulso
2777.BK Page 105 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

Se assim o é, como, ao menos, minorar tais defeitos congêni-


tos da espécie normativa em questão?

Sin embargo, estos deberes señalados expresamente en


la ley, son sólo parte de un círculo de deberes más
amplios que está detrás de ellos. Así, por ejemplo, el
deber de garante jurídico penal de salvar la vida no
debe identificarse con el deber civil de dar alimentos.
Por otra parte, se corre el peligro de que mediante la
‘des-positivation’ de los deberes de acción, se pierda la
linea divisoria entre un deber meramente ético-social y
otro consolidado juridicamente; la antigua fundamenta-
ción formal de los deberes es sustituida en medida cre-
ciente por la figura de la ‘estrecha comunidad de vida’.
Sin embargo, aunque no se pueda volver al primitivo y
restringido punto de partida de un deber jurídico formu-
lado en la ley, hay que exigir la consolidación jurírica
del deber de garante: esto es, la responsabilidad del
garante, aunque se lea directamente en la ley, tiene que
poder ser confirmada por la ley. 21

Ora, assim, rechaça o mestre de Bonn a fórmula, entre nós


preconizada por vultos da estatura de Alcides Munhoz Netto, da
inclusão, na Parte Geral, de cláusula, pela qual a omissão impró-
pria só fosse punida em casos expressos, excepcionais, em que a
conduta constasse do preceito da parte especial, assim como
ocorre com os delitos culposos. 22 Neste mesmo sentido aponta o
preconizado na Segunda Reunião da Comissão Redatora do
Código Penal Tipo para a América Latina. 23
De qualquer modo, vê-se, é eivada de dificuldades a proposta
de uma fórmula genérica com as hipóteses de dever jurídico,
quando o que se tem, antes de tanto, é a figura do devedor jurídico,
imprevisível genericamente. Por outro lado, o nível de detalha-
mento por alguns preconizado na Parte Especial seria mais um, 15 CREUS, Carlos. Derecho Pe-
nal, Parte General. 3ª ed.
entre tantos outros, imenso óbice ao já abalado dogma do “conhe- Astrea, p. 181.
cimento presumido da lei”, ante a sua extensão e diversidade. 16 CREUS, Carlos, op. cit.,
Teria sido, indaque-se, mais feliz o legislador de 1940, p. 184.
calando-se quanto ao não positivável, que o atual?
Esta era a resposta dada à época por doutrinador do porte de
Luis Jiménes de Asúa, que, após esmiuçar as várias correntes
explicadoras da natureza do delito comissivo por omissão, analisou

impulso 105
2777.BK Page 106 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

a oportunidade do art. 40 do Código Penal italiano, onde a pro-


posta de Alcântara confessadamente abeberou-se, além de trazer à
colação autorizadas vozes do país de Carrara, cada uma a trazer
sua fundação à necessidade do dispositivo, tendo por base sua fun-
damentação para a própria natureza da omissão enquanto causa. O
grande mestre não deixou de observar, após demonstrar as muitas
dificuldades, que: “Cuanto antecede es aplicable a los Códigos
Iberoamericanos que han copiado lo dispuesto por el Código de
Italia, y ante las dudas que existen para esclarecerlo, queda justifi-
cada nestra censura a cuantos han transcrito, sin demasiadas preo-
cupaciones, un precepto que origina tantos debates”. 24
A dificuldade, entretanto, não poderia justificar o gravame
da aceitação da ofensa ao princípio da legalidade. O Código
Penal de 1940, pode-se afirmar hoje sem medo, perdeu excelente
oportunidade de, pela previsão normativa ainda que sumária, ini-
ciar o grande esforço no sentido de que a tipificação dos delitos
omissivos impróprios não seja aberta, como incrivelmente pre-
gado por alguns.
“O Direito Penal, todavia, pelo princípio da legalidade e da
tipicidade, não pode abrir mão da exigência de ligar o juízo, de
responsabilidade a uma norma-comando. Por isso, a omissão
juridicamente relevante é a que infringe uma OBRIGAÇÃO
JURÍDICA DE FAZER”. 25
Essa obrigação, a que se refere Nuvolone, pode estar especi-
ficamente prevista pela própria lei, e assim o deve ser, embora
possa estar sancionada por uma norma jurídica diferente: e esta
norma pode, ainda, ser deduzida do sistema. Sem dúvida, entre-
tanto, a única maneira de cumprir o rigor da reserva legal será a
previsão expressa no próprio texto penal.
É preciso não esquecer a advertência de Zaffaroni, lembrada
por Alcides Munhoz Netto: “e o uso indiscriminado da tipificação
17 NUÑEZ, Ricardo C. Manual
de Derecho Penal, Parte Gene-
pode redundar num autoritarismo penal muito restritivo do âmbito
ral. 3ª ed. Córdoba: Marcos ou espaço da liberdade das pessoas e em abertas violações a direi-
Lerner, p. 160.
18 WELZEL, Hans. Derecho
tos fundamentais do homem”. 26
Penal Alemán. 3ª ed. Santiago: Refere-se, o autor, à necessidade de limitar a faculdade do
Editorial Jurídica de Chile, p.
286-287. legislador na citação de figuras delituosas da espécie, e assim o
deve ser de fato. Todavia, nada impede a previsão genérica e a
sequente especificação, como se tem com os crimes culposos.
Bem por isso afirma o mesmo consagrado estudioso:

106 impulso
2777.BK Page 107 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

Sob outro prisma, para os crimes omissivos impróprios,


enquanto permanecer o critério de não limitar sua puni-
bilidade na parte especial, nem definir legislativamente
as situações de que surge o dever de evitar o resultado,
tais delitos continuarão previstos em tipos abertos, que
necessitam de complementação judicial, para que neles
possam ser subsumidas determinadas inações.
A segurança do direito impõe que não se deixe ao livre
critério dos Juízes o equiparar a omissão à comissão,
para castigá-la como se também esta fosse causadora
do resultado. Sem limites obrigatórios, quanto ao dever
do omitente em evitar a lesão, e quanto à punibilidade
do comportamento, se enfraquece a garantia do nullum
crimen sine lege, mediante a qual se afirma a função
limitadora do Direito Penal. Importante, pois, o esforço
de condensar, em fórmulas legislativas precisas, as hipó-
teses em que alguém possa ser responsabilizado por um
resultado que não causou, mas que poderia e deveria
evitar. Importante, igualmente, estudar a maneira de
criar tipos fechados de crimes omissivos impróprios. 27

Discorria o professor paranaense sobre a matéria às vésperas


da reforma da parte geral do CP, efetivada em 1984. Suas palavras
encontraram eco, sabe-se, mas são de total atualidade:

Enquanto a expressa previsão das hipóteses de evitar o


resultado não for incorporada ao nosso Direito Posi-
tivo, persistirá o problema de compatibilizar os crimes
de omissão imprópria com o princípio da anterioridade
da lei penal. 28 É geral, em conseqüência, o reconheci-
mento de que compete à doutrina e à jurisprudência
determinar as posições de garantidor, dos quais se
deduz aquele dever. Com isso, o princípio do nulla
poena sine lege experimenta profunda limitação, já que
a conduta não está inteiramente determinada. A lei só
comina a pena para a produção comissiva do resultado
e estende a mesma responsabilidade a quem não o
evita, sem especificar, contudo, quando ocorre tal
19WELZEL, Hans, op. cit., p.
dever de impedi-lo. Assim, só uma parte do tipo está 287.
legalmente descrita; a outra tem que ser construída 20WELZEL, Hans, op. cit., p.
pelo Juiz, a quem fica a tarefa de complementá-lo. 288.

impulso 107
2777.BK Page 108 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

Quanto à segurança do Direito, o atual sistema de dis-


ciplina legislativa dos crimes omissivos impróprios
comporta, destarte, todos os reparos opostos aos tipos
penais abertos. 29

Já advertia Anibal Bruno, que o princípio da legalidade não


se limita à necessidade de previsão penal anterior, mas à exigência
da não formulação de tipos penais abertos.
Everardo da Cunha Luna, por sua vez, aborda especifica-
mente soluções, para obviar o entrave:

Como os crimes comissivos por omissão, regra geral,


não estão explicitados nos tipos penais, surge o pro-
blema da constitucionalidade da punção por omissão
imprópria. Não haveria, na tipificação desses crimes,
considerados implícitos nos tipos penais de resultado,
uma ofensa ao princípio da reserva legal? Tendo como
conteúdo deveres jurídicos emanados de outras fontes,
que não a própria lei penal, não escapariam esses tipos
penais ao controle do salutar princípio da legalidade?
Quanto à implicitude, deve-se lembrar que, em muitos
tipos penais, elementos constitutivos do crime estão
implícitos, exigindo, desse modo, uma investigação
especial. E quanto a outras fontes de deveres jurídicos,
que vão além das palavras descritivas da lei penal, exi-
gindo juízos de valorização, deve-se lembrar, igual-
mente, que existem, em muitos tipos penais, elementos
constitutivos do crime de natureza valorativa. A ques-
tão básica, fundamental, portanto, não está na própria
essência da omissão imprópria, mas no modo como
deve ela ser disciplinada pelo Direito Penal.
A técnica da construção de tipos penais, na Parte Espe-
cial, destinados aos crimes comissivos por omissão,
não pode ser escolhida como a única constitucional-
mente adequada e praticamente eficaz. Dois defeitos
apresenta: ou deixa escapar uma grande quantidade de
fatos que merecem punição, ou procurando abarcá-los
a todos, tarefa tortuosa, peca contra a economia legal.
Tem a virtude, porém, de limitar o número de bens jurí-
21
dicos e de agrupar, num tipo omissivo, vários crimes da
WELZEL, Hans, op. cit., p.
293. mesma natureza. 30

108 impulso
2777.BK Page 109 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

Em nível de proposta, entretanto, não avança mais do que no


postular um aumento de previsões típicas de crimes omissivos,
quer próprios quer impróprios. A questão do dogma da reserva
legal persiste irresolvida; reconhece, apenas acrescentando que se
devam evitar, o quanto possível, os chamados tipos penais abertos.

A FÓRMULA ADOTADA NA REFORMA PENAL DE 1984


O atual dispositivo repete, quase que identicamente, a pro-
posta de Nelson Hungria, que constituiu o malfadado Código de
1969:

Relação de causalidade

Art. 13 - O resultado, de que depende a existência do


crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Con-
sidera-se a ação ou omissão sem a qual o resutado não
teria ocorrido.
§1º - ..............................................
Relevância da omissão
§2º - A omissão é penalmente relevante quando o omi-
tente devia e podia agir para evitar o resultado. O
dever incumbe a quem:
a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou
vigilância;
b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impe-
dir o resultado;
c) com seu comportamento anterior, criou o risco da
ocorrência do resultado.

De início, constata-se a convivência de um critério mecani-


cista (caput) e de uma forma normativa (§2º) no preceito, o que é
incongruente, como alertou René Ariel Dotti, lembrado por Damá-
sio. A explicação para tanto é dada pelo último doutrinador, no
sentido de que “a incongruência do texto atual não se encontra no 22 Crimes Omissivos. Revista
Projeto de CP. Deveu-se à Emenda no Congresso Nacional”, 31 não da Associação dos Magistrados
do Paraná, Curitiba, v. 326,
convence, na medida em que o mesmo defeito ostentava a fórmula jul./dez. 1984.
proposta por Hungria em 1963.
23 Código Penal Tipo para La-
A explicação dada por Ricardo Antunes Andreucci e Sérgio tinoamérica. México: Acade-
Marcos de Moraes Pitombo, membros da comissão responsável mia Mexicana de Ciencias Pe-
nales, 1967, p. 84-109 e 493.
pela atualização da reforma, é mais convincente: (2ª Reunião Plenária)

impulso 109
2777.BK Page 110 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

Volveu-se, neste passo, seguindo a linha dos legislado-


res atuais, à fórmula que se continha no Código de
1969, para disciplinar a relevância etiológica da omis-
são, estabelecendo-se os destinatários do preceito pri-
mário, para o que se concretizou, em elenco, o prévio
dever de agir. 32
O conteúdo da norma, contudo, não implica a adesão,
pura e simples a um conceito normativo, mesmo por-
que, mantida a referência, de origem naturalística, à
omissão no CAPUT, as hipóteses em que se instaura o
dever de agir melhor se ajustam à antijuridicidade do
que ao tipo.
O legislador, nesta matéria, como em outras, não assu-
miu compromisso doutrinário que transcendesse a sua
tarefa específica. 33

Já de muito os analistas do Código italiano, entretanto, vis-


lumbram explicação mais correta:

Acaso el menos imperfecto de todos os comentarios que


sucita ese inciso segundo el art. 40 del Código italiano,
sea el que hace Francisco Antolisei: el artículo 40, en
su párrafo 1º, afirma el ligamen causal, y en el segundo
se delimita la responsabilidad del que se omite: “Por
efecto de esta disposición quien determina un resultado
mediante una omisión no responde siempre de ella... La
causalidad, pues, no basta: se necesita, además, la
existencia de la obligación, para el sujeto, de ejecutar
una acción dada, y precisamente la acción que habría
impedido la realización del resultado. Tal obligación
debe ser jurídica, es decir, impuesta por el derecho, sin
que la simple violación de un deber moral sea sufi-
24 ASÚA, Luis Jiménez de.
Tractado de Derecho Penal. Bu- ciente”. 34
enos Aires: Losada, t. III, 1951,
n. 1154, p. 600.
Interessante notar que, sob os aplausos do não menos aplau-
25 NUVOLONE, Pietro. O sis- dido Jiménez de Asúa, volvia-se à singela explicação prestada pelo
tema do Direito Penal. São
Paulo: Revista dos Tribunais, v. próprio Alcântara Machado, ao início da “atoarda”, como se tem
1, 1981, p. 198. da referência de nº 04.
26 MUNHOZ, Alcides Netto. E, portanto, definitivamente, incorporava o legislador à lei
Os crimes omissivos no Brasil. penal brasileira o que a grande maioria dos doutrinadores da
Ajuris, Porto Alegre, n. 29, ano
10, nov. 1983, p. 35. época do Código de 1940, e a quase totalidade dos da época atual

110 impulso
2777.BK Page 111 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

o faziam: a relevância jurídica da omissão e os casos de tal


relevância/dever. Para que o princípio da legalidade não sofresse
qualquer esbarrão, só restava, se possível, a explicitação dos tipos
penais, que comportassem a forma omissiva imprópria, o que
ficou para o futuro.
Procedente, como sempre, a observação de Alberto Silva
Franco:

Diante da alternativa ou enumerar, em artigo de lei, as


fontes geradoras do dever de atuar, ou compor, tal
como ocorre com o crime culposo, figuras atípicas de
omissão imprópria, não há dúvida de que a opção que
melhor atende ao direito de liberdade do cidadão é a
segunda. O legislador de 84 preferiu, contudo, definir-
se pela primeira, acolhendo, em linhas gerais, no texto
legal, a tipologia clássica das fontes geradoras do
dever de atuar, sem concessão alguma às considera-
ções da doutrina mais moderna, a respeito de fontes
desse dever, de conotação ética ou moral.

E indaga: “não se ajustaria a tal hipótese o caso do transe-


unte, única testemunha do fato, que, sem nenhum esforço maior,
poderia salvar uma criança de tenra idade que caiu numa fonte de
praça pública? (Günter Stratenwerth, ob. cit., p. 302)”. 35
Assim, vê-se, a previsão legal vigente não é satisfatória,
conforme abalizadas vozes, porque incompleto o tipo genérico e
ofensiva ao princípio da reserva legal a inexistência de tipos omis-
sivos impróprios na parte especial, ao lado dos tipos comissivos,
da mesma forma que ao lado dos tipos dolosos arrolam-se alguns
culposos.
Todavia, e a data venia aqui é irresistível, a verdade é que
doutrinadores como Damásio e Mirabete preferiram o silêncio
quanto a tão importante questão, quem sabe considerando-a, como
a considerou Creus (referência nº 16), tema superdimensionado,
de decorrências mais teóricas que práticas-dogmáticas, com o que
não se pode concordar.
Merece destaque, entretanto, o posicionamento de Francisco 27NETTO, Alcides Munhoz,
de Assis Toledo, sem dúvida o grande mentor da reforma da Parte op. cit., p. 36.

Geral do CP, em 1984: 28 NETTO, Alcides Munhoz,

impulso 111
2777.BK Page 112 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

O problema da causalidade nesses delitos comissivos


por omissão tem ensejado inúmeras disputas doutriná-
rias que, entre nós, com a reforma penal, perde
relevância. Com efeito, o legislador pátrio estabeleceu
um nexo de causalidade normativo entre a omissão e o
resultado, no art. 13 e parágrafos do Código Penal,
especificando as hipóteses em que esse nexo deva ser
reputado presente, a saber:
A omissão terá o mesmo valor penalístico da ação
quando o omitente se colocar, por força de um dever
jurídico (art. 13, §2º), na posição de garantidor da
não-ocorrência do resultado. 36

Será assim, efetivamente? A posição de garante esgotaria a


questão da tipicidade de tais delitos? A previsão legal é, portanto,
suficiente? Afinal, qual o seu campo de abrangência? O risco pes-
soal afasta ou não o dever jurídico? São questões ainda pendentes,
sobre as quais nos debruçamos a seguir.

ALGUNS ASPECTOS RELEVANTES


A natureza da omissão imprópria
Após tantos debates doutrinários e propostas legislativas, a
indagação permanece para a perplexidade de muitos ou a adesão,
até hoje, às Teorias Causal e Normativa da omissão.
Valha-nos uma solução. Indubitável é que se encontra supe-
rada a “falsa máxima ‘de nada, nada puede resultar’”, 37 mas não
há negar que persista uma concepção causal para a omissão. Por
outro lado, a ela se antepondo, alguns professam explicação pura-
mente normativa para a causalidade omissiva.
TEORIA CAUSAL – Para os que ainda acreditam na reali-
dade da causalidade omissiva, a melhor das explicações é aquela,
que parte de um conceito puramente dinâmico do real, pelo qual
as coisas estão sempre acontecendo num fluir incessante. Não há
para esta concepção atos que rompam a inércia e determinem um
resultado, qualquer que seja. Há, só, atos que impulsionam movi-
mentos previamente tendentes a um determinado resultado e
op. cit., p. 49. outros que vão contra tal movimentação, desviando o fluxo dos
acontecimentos para outro, que não aquele ao qual inicialmente
tendia o ato (deslocar) considerado. O que chamamos causa, por-
tanto, seria, sempre, concausa ou contracausa, inexistindo causali-
dade pura, primária.

112 impulso
2777.BK Page 113 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

A inércia, a omissão, não passam de atos que aceleram a dis-


posição prévia do movimento. A comissão, ao contrário, é a con-
duta, que se antepõe ao resultado a que se dirigia o movimento
fático. Ambos são ação, vê-se, determinando resultados, mas não
ação pura. A omissão é a que apóia o fluxo dos acontecimentos
naturais. A comissão, a que o nega. Assim, Tício, matando Caio a
tiros, impediu a continuidade do movimento vida, em Caio;
enquanto Tício, não socorrendo Caio que caíra numa lagoa, foi
concausa para o resultado morte, que já se desenvolvia natural-
mente.
Esta visão, de modo geral, coincide com a de Pietro Nuvo-
lone, para quem não procede a aparência enigmática do problema
da causalidade omissiva:

Isso significa que a materialidade do fato consiste em


não ter interrompido uma sucessão causal já in itinere,
colocando em ação outra sucessão causal capaz de
interromper a primeira. 38

Seguindo-se tal corrente, sob a idéia motriz de uma sucessão


permanente dos fatos, seria ação a omissão, porque aquela prece-
deria esta, tanto quanto omissão a ação, porque contrária à ordem
natural das coisas.
Como distinguir, assim, num campo de pura especulação,
ação e omissão? Impossível. Tal só se resolveria no campo ético,
de valores, no qual ação seria contrariar o movimento natural,
enquanto omissão seria apoiá-lo. O movimento natural, contudo,
só importaria ao Direito Penal, enquanto bom, enquanto justo. Ter-
se-ia a relevância causal resolvida meramente no campo ético, e,
depois, do Direito. Daí que a relevância jurídica, tanto da ação
como da omissão, reside no campo da antijuridicidade, acentu-
ando-se tal característica na omissão (porque, quanto a esta, só
alguma é considerada, e só o é se antijurídica). Por isso a afirma-
ção de Andreucci e Pitombo, de que “as hipóteses em que se ins-
taura o dever de agir melhor se ajustam à antijuridicidade que ao
tipo” (referência nº 30).
Tal posicionamento, vê-se, resumir-se-ia na aceitação da cau-
salidade omissiva (como relevância no mundo dos fatos) condicio-
nada à sua antijuridicidade (pertinente à condição de garante), o
que foi, em termos gerais, o posicionamento do legislador de 29NETTO, Alcides Munhoz,
1984. op. cit., p. 49.

impulso 113
2777.BK Page 114 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

Com tão pouco de tipicidade, e tanto de antijuridicidade,


fácil de concluir que se ameniza a questão de ofensa ao Princípio
da Reserva Legal.
TEORIA NORMATIVA – Sustenta-se, entretanto e ainda,
uma opção meramente normativa, para fundamentar a conduta
omissiva. Aí se inseriria o pensamento de Max Ernst Mayer, no
sentido de que o descarrilhamento de um trem pode dever-se tanto
à conduta omissiva de um guarda-vias desatento, como à comissiva
do que empreende manobra errada. Para tal escritor, a conduta
omissiva é causação em sentido filosófico. 39
Do mesmo modo Guex, para quem

También los hechos negativos son condiciones. Noso-


tros decimos que la causa del incendio por el rayo es la
falta de pararrayos, y la causa de la derrota de Water-
loo ha sido la ausencia de Grouchy. 40

A todos assistiria a “teoria da ação esperada”, de Mezger:

La pregunda decisiva se formula así: Hubiera sido impe-


dido por la acción ‘esperada’ el resultado que el derecho
desaprueba? Cuando esta pregunta se responde afirmati-
vamente, la omissión es causal en orden al resultado. 41

Nessa linha, coube a Grispigni, para o esclarecimento do art.


40 do Código Penal italiano, a melhor formulação normativa:

en el párrafo primero – dice – se trata de enunciar en


general la causalidad; y en el segundo se afirma en
punto de vista normativo, que es el único que permite
concebir causalmente da comisión por omisión. 42

A afirmação supra, para nossas terras transpostas, encontra


30
perfeito eco na crítica ao dispositivo equivalente de nosso Código.
LUNA, Everardo da Cunha.
O Crime de omissão e a respon- Porque a omissão é causal, afirma-o o ‘caput’ do art. 13, no sen-
sabilidade penal por omissão.
Em: LEGIS, Vox. Ano XV, v. tido mesmo que estabelece o nexo: não houvesse a omissão, não
173, p. 07-08, mai. 1983. se daria o resultado. Mas nem toda omissão é penalmente rele-
31 JESUS, Damásio E. de. vante, porque só se é punido, por não evitar o que se tem o dever
Direito Penal, Parte Geral. 15ª. de evitar, nas hipóteses normativamente alcançadas, que se resol-
ed. São Paulo: Saraiva, p. 222,
nota 18. vem no terreno da antijuridicidade.

114 impulso
2777.BK Page 115 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

A teoria nenhuma unem-se, pois e ao final, ambas as teorias,


em fórmula híbrida, sendo de se aceitar que a omissão é causal,
mas tal não basta para que seja relevante, precisando ser antijurí-
dica. Daí que a enumeração expressa das hipóteses de dever jurí-
dico se faz necessária.

O campo de abrangência dos crimes comissivos impróprios


a) SUA GENERALIDADE – Ousamos afirmar, de pronto,
que praticamente todos os delitos comissivos podem vir a ser
cometidos por omissão, daí a dificuldade criada pela ausência da
previsão específica da punibilidade em cada tipo penal. Como
acentua Zaffaroni, até mesmo um estupro, ou um furto, podem ser
cometidos por omissão, figurando-se o primeiro no caso do
médico encarregado da guarda de um manicômio que, enquanto
toma banho de sol, deixa que uma paciente pratique com ele o
coito, sem fazer qualquer movimento; o segundo no caso do
encarregado de vigiar a correia transportadora de jóias de uma
fábrica, que deixa o seu trabalho, levando conscientemente jóia
por acidente caída e enroscada em suas calças. 43
b) CRIMES COMISSIVOS IMPRÓPRIOS CULPOSOS –
Apesar da oposição de notáveis cultores da ciência jurídico-penal,
entendemos que o crime comissivo impróprio possa ser atribuído
ao agente a título também de culpa.
Conforme Heleno Cláudio Fragoso, tanto comete crime
comissivo por omissão o garantidor, que se abstém de evitar o
resultado, por desejar a sua superveniência, quanto o que, embora
não a querendo, aquiesce em seu advento, ou o que simplesmente
omite deveres de cuidado, conhecendo ou podendo conhecer o
resultado que lhe cumpria evitar. 44 Ora, a este o crime será impu-
32 Cf. trabalhos apresentados ao
tado por culpa. Colóquio Nacional Preparatório
É que, como assinala H. H. Jescheck, sempre que o corres- do 12º. Congresso Internacional
de Direito Penal (In: Revista de
pondente tipo de comissão admita a forma culposa, os delitos de Direito Penal, nº. 33).
omissão imprópria podem ser cometidos com culpa. Trata-se,
33ANDREUCCI, Ricardo A.,
como nos crimes comissivos, da inobservância do dever de cui- PITOMBO, Sérgio Marques de
dado. 45 Moraes. Notas ao quadro com-
parativo da Lei nº. 7209/1984 e
Como resume Delmanto, configurando-se a obrigação de parte geral do Código Penal.
agir com a possibilidade de agir, “se não agir para evitar o resul- Apamagis, Nota 7, 1985.
tado, poderá ser responsável por este, a título de dolo ou de 34 ASÚA, Luis Jiménez de, op.
culpa”. 46 E o reitera Jescheck: cit., n. 1153.

impulso 115
2777.BK Page 116 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

Los delitos de omisión impropria no regulados en la ley


pueden cometerse por imprudencia siempre que el cor-
respondiente tipo de comisión considere suficiente la
culpa. 47

Merece verificação, a respeito, a abrangente visão de Nuvo-


lune:

(...) a obrigação de não omitir todas as cautelas neces-


sárias para evitar que se verifique uma situação peri-
gosa, da qual surja um evento lesivo, está implícita em
todas as normas sobre culpa (a esse propósito, como se
verá, convém esclarecer que, em muitos casos, os crimes
culposos são crimes cometidos mediante omissão). 48

Ao analisar casos colhidos no Direito positivado, Asúa men-


ciona um da jurisprudência argentina, de crime comissivo por
omissão culposo, julgado em 1941, no qual um rapaz caíra num
poço de cal, morrendo em conseqüência de queimaduras, e o réu
(o construtor) teria omitido as cautelas indispensáveis:

El hecho debe calificarse de homicidio omisivo por


negligencia, categoria de delito que, al decir de Bin-
ding, ‘ha merecido el honor de ser, en la escala de los
delitos, el más pequeño entre los pequenos. 49

c) CRIMES COMISSIVOS IMPRÓPRIOS TENTADOS –


Dúvida não há quanto à figuração da tentativa em tais delitos. Dis-
corre a respeito, com a normal clareza, Munhoz Netto:

Delitos de resultado, os omissivos impróprios sempre


comportam a tentativa. Neles o fazer não importa
necessariamente em consumação. Entre a omissão e o
summatum opus pode surgir circunstância imprevista
que impeça o advento do resultado (ex.: a inesperada
atuação de terceiro impede a morte do filho, não alei-
35 FRANCO, Alberto Silva. Có- tado pela mãe).
digo Penal e sua interpretação
jurisprudencial 4ª ed. São Pau- O limite mínimo da tentativa punível não pode, entre-
lo: Revista dos Tribunais, p. 74. tanto, ser fixado pelo começo da execução a que alude
o CP (art. 12, II). No comportamento omissivo não há
nada comparável ao início da comissão ativa. Deve-se

116 impulso
2777.BK Page 117 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

recorrer, portanto, ao critério da exposição do bem


tutelado a perigo. A tentativa começa no momento em
que a demora da ação salvadora faz surgir ou aumenta
o perigo imediato. 50

d) A PARTICIPAÇÃO POR OMISSÃO – Aqui, deve-se dis-


tinguir: trata-se da participação por omissão em crime comissivo.
A participação é que é omissiva, caracterizando responsabilidade
penal à guiza de crime omissivo impróprio. Da mesma forma é
possível participação omissiva no próprio crime comissivo impró-
prio. A respeito, ensina Everardo da Cunha Luna:

É admissível a participação por omissão em crime de


ação ou de omissão. Assim, o vigia de uma casa que,
na ausência dos moradores, assiste, impassível, à
entrada de estranhos na casa, sem o consentimento ou
contra a vontade de quem de direito, participa, por
omissão, da violação de domicílio. Assim também o pai
de uma criança que, impassível, assiste à esposa
matando por inanição o filho comum, participa, por
omissão, do homocídio. 51

A QUESTÃO DA POSSIBILIDADE DE AGIR


Não se caracterizará o delito comissivo por omissão, se não
tiver o sujeito ativo a possibilidade de agir. Isto significa a possibi-
lidade material, física, no terreno da possibilidade fática, daí resul-
tando que, se tentando evitar o resultado, não se o consegue,
dando-se o evento lesivo, não se poderá imputar ao agente a res-
ponsabilidade penal, porque não podia o que não pode. Desde que,
é claro, sejam lançadas mãos das possibilidades existentes e cons-
cientizadas.
Porém, significa mais: significa que só há possibilidade de
agir se não houver risco pessoal para o agente. Trata-se, é claro, do
risco ponderável, capaz de expô-lo a lesão tão ou mais grave que
aquela a que já está exposto o bem jurídico em perigo. O Direito
Penal não pode exigir o sacrifício pessoal, contrário à natureza
36 TOLEDO, Francisco de As-
humana, adstrita ao instinto da sobrevivência.
sis. Princípios básicos de Direi-
Neste passo, não nos convence o sempre convincente Mira- to Penal. 4ª ed. São Paulo:
bete: Saraiva, p. 116.

impulso 117
2777.BK Page 118 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

Pode ocorrer que haja risco para aquele que se omite,


indagando-se assim se deve ser responsabilizado pelo
delito caracterizado pela omissão, ou seja, se é respon-
sável pelo resultado quando se omitiu pelo perigo exis-
tente para um bem jurídico próprio ou alheio que lhe
causaria a ação exigida para evitar o evento. É preciso
verificar se a ação era juridicamente exigida ao omi-
tente. Embora preveja a lei que o dever de agir só
existe quando o sujeito pode agir, deve ele arrostar o
perigo desde que no caso haja a probabilidade de evi-
tar o resultado. A conclusão se impõe pelo sistema do
Código. Basta observar que, ao tratar do estado de
necessidade, a lei nega a justificativa àquele que tem o
dever legal de enfrentar o perigo (art. 24, §1º). Se se
adotasse a solução oposta, chegar-se-ia à conclusão de
que a lei contém uma contradição: de um lado permiti-
ria a justificação pela existência de risco para o omi-
tente (art. 13, §2º) e de outro excluiria a justificativa do
fato quando houvesse perigo para quem tem o dever de
enfrentá-lo (art. 24, §1º). 52

Ora, não se justificaria, por um lado, que se sacrificasse


direito de qualquer terceiro que, nada tendo com o fato, acabaria
sendo o único lesado, por outro, a ninguém e em nenhuma cir-
cunstância pode o Direito Penal exigir a emulação.
Poucos discorrem a respeito, no Brasil. Delmanto, entretanto,
afirma que “tanto a consciência da obrigação de agir como a possi-
bilidade real de fazê-lo, sem risco pessoal, devem estar presentes”. 53
Francisco de Assis Toledo contrariamente afirma que “não basta,
pois, o dever de agir. É preciso que, além do dever tivesse a possibi-
lidade física de agir, ainda que com risco para sua pessoa”. 54

A situação de fato de que se origina o dever de agir é o


37 ASÚA, Luis Jiménes de, op.
cit., n. 1150. estado de perigo iminente e evitável em que se encontra
o bem jurídico, cuja incolumidade deve ser garantida
pelo autor. 55

Ora, só é evitável o que não implique dano apreciável no


agente, porque não evitar resultado, causando outro tão mais
lesivo, é pior que evitá-lo.

118 impulso
2777.BK Page 119 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

Ainda que seja por evocação de uma causa supra legal de 38 ASÚA, Luis Jiménes de, op.
exclusão da antijuridicidade, não se poderia configurar relevância cit., p. 198.
omissiva ao agente que esteja obstado de impedir o resultado pelo
grave risco a que fica submetido. (Assim, quem lança alguém em
piscina de águas profundas, sem saber que o ofendido não sabe
nadar está, evidentemente, obrigado a evitar o resultado, se sabe
nadar ele próprio. Se não o sabe, não estará obrigado. Responderá
por homicídio doloso, se não socorrer a vítima, no primeiro caso;
e por culposo no segundo, bastando-se a análise na da sua conduta
comissiva.) É-lhe inexigível conduta diversa.
As incertezas, oriundas da falta de previsão legal a respeito,
estão a reclamar igualmente a prefixação na lei do verdadeiro sig-
nificado da expressão: poder evitar o resultado.

CONCLUSÃO
A natureza dos crimes comissivos por omissão, no que tange à
relevância causal, é precipuamente normativa, decorrendo do caráter
de antijuridicidade, da abstenção de atuar, a sua punibilidade.
Assim sendo, é necessário, como o faz o Código atual, que se
determine a sua relevância, ocorrível quando houver o poder e o
dever jurídico de evitar o resultado, sendo que o dever é de três
espécies básicas: o legal; o contratual ou de ‘garante’; o decorrente
da criação da situação de risco.
Mais que isto, entretanto, seria necessário especificar, nos
diversos tipos penais, expressamente, a possibilidade da configura-
ção omissiva, assim atendendo aos pressupostos do Princípio da
Reserva Legal e ao mesmo tempo imprimindo maior segurança
normativa.
O elemento subjetivo dos crimes omissivos impróprios é o
mesmo dos comissivos: o dolo e a culpa, esta quando prevista no
tipo penal respectivo.
É admissível a tentativa de crime comissivo por omissão,
devendo-se atentar, entretanto, que o início da execução, no sen-
tido normativo, do delito, dá-se quando o bem jurídico passe à
exposição ao risco pela demora na ação obstadora.
Pode ocorrer participação em crime comissivo por omissão.
É o caso referido do marido que não impede a mulher de não alei-
tar o filho comum. Tal não se confunde com a chamada participa-
ção por omissão em crime comissivo próprio, como no caso de
empregada que deixa a porta aberta para a entrada do gatuno.

impulso 119
2777.BK Page 120 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

39 ASÚA, Luis Jiménez de, op. Só o dever jurídico não basta para a responsabilidade penal
cit., p. 592. por omissão: é preciso que o agente tenha o domínio fático de
40 ASÚA, Luis Jiménez de, op.
impedir o resultado. Isto significa não só que tenha meios físicos
cit., p. 593.
41 ASÚA, Luis Jiménez de, op.
como também que a atitude salvadora não implique um sacrifício
cit., p. 596. que se configuraria excludente, ainda que da inexigibilidade da con-
42 ASÚA, Luis Jiménez de, op. duta diversa.
cit., p. 599. É indubitável a necessidade de que conste do texto legal, ao
menos, a previsão da relevância omissiva, sem o que se operaria
em clara infringência ao Princípio da Legalidade, daí porque cor-
reto o posicionamento adotado no Projeto Alcântara Machado, e
equivocado o do legislador de 1940 em excluí-lo.
Mais que isto, ainda, há de se adotar (como feito em 1984) a
enumeração hipotética dos deveres de agir, bem como, um passo
adiante, a previsão, no próprio tipo penal, da possibilidade omissiva.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDREUCCI, Ricardo Antunes et al. Notas ao quadro compara-
tivo da Lei nº. 7209/1984 e Parte Geral do Código Penal. Apa-
magis, 1985.
ARAÚJO, Laurentino da Silva, FAVEIRO, Vítor António Duarte.
Código Penal português anotado. 4ª ed. Coimbra: Coimbra
Ltda., 1966.
ASÚA, Luis Jiménez de. Tractado de Derecho Penal. Buenos
Aires: Losada, Tomo III, 1951.
BRUNO, Aníbal. Direito Penal, Parte Geral. 3ª ed. São Paulo:
Forense, Tomo I, 1967.
COSTA, Paulo José da. Direito Penal Objetivo. São Paulo: Forense
Universitária, 1989.
CREUS, Carlos. Derecho Penal, Parte General. 3ª ed. Astrea.
DELMANTO, Celso. Código Penal comentado. São Paulo:
Saraiva, 1976.
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Comentários ao Código Penal. V. I,
t. 2.
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal, Parte Geral.
4ª ed. São Paulo: Forense.
FRANCO, Alberto Silva e outros. Código Penal e sua interpretação
jurisprudencial. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais.
GARCIA, Basileu. Instituições de Direito Penal. 5ª ed. Max Limo-
nad, v. 1, t. 1.

120 impulso
2777.BK Page 121 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. 2ª ed. São 43 ZAFFARONI, Eugênio Raul.
Paulo: Forense, v. I, t. 2, 1953. Trabalho apresentado ao Coló-
quio de Direito Penal. Rio de
JESCHECK, Hans-Heinrich. Tratado de Derecho Penal, Parte janeiro, 20 a 23/10/82.
General. Barcelona: Bosch, 1981. 44 FRAGOSO, Heleno Cláudio.
Lições de Direito Penal, Parte
JESUS, Damásio E. de. Direito Penal, Parte Geral. 15ª ed. São Geral. 4ª ed. São Paulo: Forense,
Paulo: Saraiva, 1991. p. 225.
45 JESCHECK, Hans Heinrich.
LUNA, Everardo da Cunha. O crime de omissão e a responsabili- Tratado de Derecho Penal, Par-
dade penal por omissão. Voxlegis, ano 15, v. 173, mai. 1983. te General. Barcelona: Bosch,
1981.
MACHADO, Alcântara. O projeto do código criminal perante a 46DELMANTO, Celso. Código
crítica. Revista da Faculdade de Direito, v. 35, fasc. 1, jan./abr. Penal comentado. São Paulo:
Saraiva, p. 20.
1939.
MARQUES, José Frederico. Curso de Direito Penal. São Paulo:
Saraiva, 1954, v. 1.
MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal, Parte
Geral. 7ª ed. São Paulo: Atlas.
MUNHOZ, Alcides Netto. Os crimes omissivos no Brasil. Ajuris,
Porto Alegre, n. 29, ano 10, nov. 1983.
NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal. 17ª ed. São Paulo:
Saraiva, v. 1.
NUÑEZ, Ricardo C. Manual de Derecho Penal, Parte General. 3ª
ed. Córdoba: Marcos Lerner.
NUVOLONE, Pietro. O sistema do Direito Penal. São Paulo:
Revista dos Tribunais, v. 1, 1981.
PITOMBO, Sérgio Marques de Moraes. Notas ao Quadro Compa-
rativo da Lei nº. 7209/1984 e Parte Geral do Código Penal.
Apamagis, 1985.
TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de Direito Penal.
4ª. ed. São Paulo: Saraiva.
WELZEL, Hans. Derecho Penal Alemán. 3ª ed. Santiago: Editorial
Jurídica de Chile.
ZAFFARONI, Eugênio Raul. Trabalho apresentado ao Colóquio
de Direito Penal. Rio de janeiro, 20 a 23/10/82.
Também:
The Criminal Code of the Republic of China. Shangai: Kelly &
Walsh Ltd., 1936.
Código Penal Tipo para Latinoamérica. México: Academia Mexi-
cana de Ciencias Penales, 1967. (2ª Reunião Plenária)
Exposição de Motivos. n. 1, do CP de 1969, D.O.U. de 21/10/69.

impulso 121
2777.BK Page 122 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

47JESCHECK, Hans Heinrich,


op. cit., p. 868.
48 JESCHECK, Hans Heinrich,
op. cit., p. 199.
49 ASÚA, Luis Jiménez de, op.
cit., p. 600.

122 impulso
2777.BK Page 123 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

50NETTO, Alcides Munhoz,


op. cit., p. 58.
51LUNA, Everardo da Cunha,
op. cit., p. 10.

impulso 123
2777.BK Page 124 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

52 MIRABETE, Julio Fabbrini.


Manual de Direito Penal, Parte
Geral. 7ª ed. São Paulo: Atlas,
p. 104.
53 DELMANTO, Celso, op.
cit., p. 118.
54 DELMANTO, Celso, op.
cit., p. 118.
55 DELMANTO, Celso, op. cit.

124 impulso
2777.BK Page 123 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

LIMITAÇÕES AO PODER
PUNITIVO DO ESTADO
EDSON JOSÉ MENEGHETTI

O homem, em sua história social, sempre demonstrou preo-


cupação no sentido de conseguir um equilíbrio em suas interrela-
ções que lhe propiciasse uma paz social duradoura, adequada e
justa. Nessa linha de raciocínio percebe-se um esforço constante
no sentido de se adequar o poder punitivo do Estado, de forma tal
que se possa preservar os valores sociais, sem colocar em risco os
direitos individuais de cada um. Modernamente, o princípio da
culpabilidade, em que pesem os entraves que se apresentam, vem
provocando uma evolução sensível na forma de tratamento dos
fatos afetos ao Direito Penal.
Apesar da dificuldade natural em se fixar um momento pre-
ciso a partir do qual essa idéia se materializou, o certo é que a
Revolução Francesa se constituiu no marco mais evidente do
momento histórico em que o poder do Estado passou a sofrer, por
parte da sociedade, controle e limitação, ao menos em termos teó-
ricos. A partir dessa época, o Direito Penal passa a ser considerado
instrumento de defesa dos valores fundamentais da sociedade, que
só deve ser empregado contra ataques de real gravidade contra tais
valores, porém, de uma forma controlada e limitada. A evolução
histórica do Direito Penal, passando pelos períodos clássico, posi-
tivista, finalista e chegando até o Direito Penal como Ciência
Social, demonstrou que esse ramo do Direito vem deixando de ser
o aguilhão nas mãos dos poderosos para transformar-se em garan-
tia das liberdades humanas.

impulso 123
2777.BK Page 124 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

Tal evolução evidentemente não se processa por águas cal-


mas, sendo que tal estado de coisas sofreu profundas alterações
em Estados, onde foram impostos regimes totalitários, o que aca-
bou demonstrando o acerto dessa busca de um controle efetivo e
equilibrado do poder de punir do Estado, que tenha em vista o res-
peito à dignidade humana, inserto em um verdadeiro ideal de Jus-
tiça. Para tanto tem-se, como princípios limitadores do poder de
punir do Estado, princípios fundamentais, como o princípio de
intervenção mínima, princípio da legalidade ou da reserva legal e
o princípio da culpabilidade, entre outros.

PRINCÍPIO DA CULPABILIDADE
O Estado, para se desincumbir do exercício de seu poder de
punir, sempre buscou formas de interferir em relação ao seu com-
ponente humano. Uma dessas formas foi a adoção do princípio da
culpabilidade. É certo que esse princípio permaneceu por muito
tempo sem ser questionado, entretanto, na atualidade, os estudio-
sos do Direito Penal têm voltado seus olhos para esse aspecto rele-
vante desse ramo do Direito. A tendência atual de tratar o Direito
Penal como Ciência Social muito tem colaborado para o desenvol-
vimento do princípio da culpabilidade, observando-se em certos
aspectos uma forma de desgaste desse princípio, inclusive por
parte do próprio legislador que, para levar a efeito uma adequada
política criminal, acaba encontrando obstáculos nesse princípio,
buscando contorná-lo, ou até mesmo afastá-lo em parte.
Na Alemanha tem-se outras alternativas para se buscar
soluções para a situação atual, tendo-se em vista a permanência do
sistema do duplo binário, havendo até a possibilidade de que se
aplique, por primeiro, a medida de segurança e, em seguida, a
pena, havendo casos, inclusive, em que é possível ocorrer a total
substituição da pena pela medida de segurança. 1 Ressalte-se, por
oportuno, que o próprio sistema do duplo binário sofre restrições
hodiernamente.
Graças à evolução que tem ocorrido com relação à discussão
1 HASSEMER, Winfried. ¿Al- sobre os fundamentos da pena, se tem percebido que o princípio da
ternativas al principio de culpa- culpabilidade não se constitui como o único desses fundamentos.
bilidad? Cuadernos de política
criminal, Madrid, n. 18, 2ª p. do Inclusive, há uma atenuação importante quanto ao poder indivi-
Artigo Editoriales de Derecho
Reunidas, 1982. dual para atuar de outro modo 2 do agente.
2 CAMARGO, Antonio Luís Entretanto, pelo menos em termos atuais, o princípio da
Chaves. Culpabilidade e repro- culpabilidade vem apresentando importância crescente. Assim
vação penal. São Paulo: Suges-
tões Literárias, 1994, p. 20. sendo, não se tem como manter a possibilidade de se ter a imputação

124 impulso
2777.BK Page 125 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

subjetiva, sem que se baseie no princípio da culpabilidade, ou seja,


na possibilidade de se manter o vínculo subjetivo entre o agente e
o ato injusto por ele praticado. Como se poderia manter essa liga-
ção entre o agente e o fato criminoso sem esse princípio?
Aponta-se, como outra alternativa ao princípio da culpabili-
dade, admitir-se a responsabilidade pelo resultado, ou seja, atri-
buir-se o fato ao agente pela sorte, ou, digamos assim, pelo azar.
Aqui fica claro o aspecto de responsabilidade objetiva, aspecto
esse, de início, incompatível com o Estado Democrático de Direito
e que vem sendo combatido no Brasil há muito tempo e, por isso,
nem deve ser estudado, a não ser para se demarcar com precisão
os limites entre o caso fortuito e a culpa em sentido estrito decor-
rente da imprudência.
Outro aspecto importante do princípio da culpabilidade apre-
senta-se na forma ou na possibilidade de se valorar os graus de res-
ponsabilidade, diferenciando-os. Hassemer denomina essas dife-
renças como graus de participação interna no sucesso externo. 3
Aqui vamos encontrar uma escala de comportamentos internos e
subjetivos, que vai desde a culpa inconsciente até o cometimento
intencional de uma crime. Cogita-se, nesse passo, de todo o
aspecto subjetivo do crime, ou seja da culpa inconsciente, pas-
sando pela culpa consciente, chegando-se até o dolo.
É de se notar, ainda, que o princípio da culpabilidade propi-
cia a concretização do princípio da proporcionalidade da pena, do
princípio de proibição de excessos na atribuição da pena e do prin-
cípio de limites de sacrifício. Como diz Hassemer, a intensidade
da participação interna é um critério plausível e decisivo para a
medição de conseqüências jurído-penais proporcionadas. 4
O princípio da culpabilidade, é verdade, sofreu e vem
sofrendo um desgaste que se constitui num verdadeiro burila-
mento desse princípio, fazendo com que se afastem os excessos,
para que se tenha a permanência de sua essência, no sentido de
que o Direito Penal realmente, sem perder suas características
3 HASSEMER, Winfried. Fun-
essenciais, possa transformar-se numa Ciência Social, que pre- damentos del Derecho Penal.
serve as garantias individuais segundo os princípios basilares de um Trad. Muñoz Conde y Luis Ar-
royo Zapatero. Barcelona: Bo-
Estado Democrático de Direito, o qual não pode ir além de uma ch, 1984, p. 279.
intervenção mínima na vida de seus cidadãos para garantir-lhes os 4 HASSEMER, Winfried. ¿Al-
ternativas al principio de culpa-
bens jurídicos. bilidad? op. cit., p. 6.

impulso 125
2777.BK Page 126 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

INTERVENÇÃO MÍNIMA
O Estado deve ter seu jus puniendi delimitado e regulado
também pelo princípio da intervenção mínima. Ou seja, o Direito
Penal só deve intervir nos casos de ataques graves aos bens jurídi-
cos mais importantes. É de se pensar, por isso, no crime tentado,
se deve e como deve ser punido.
Por outro lado, é de se avaliar se o homicídio culposo deve
ou não ser tratado à luz do Direito Penal, uma vez que o bem jurí-
dico atingido é de importância indiscutível, entretanto, o ataque
em si considerado pode não ser tido como grave. Não se pode per-
der de vista também o princípio da culpabilidade, uma vez que a
morte provocada culposamente pode resultar de uma conduta que
só poderia provocar, quando muito, ferimentos leves e, portanto,
jamais a morte.
Nesse contexto, deixando-se de lado o resultado causado e
levando-se em conta a culpabilidade do agente, pode-se chegar a
um tratamento adequado da situação daquele, de modo a, respei-
tando sua dignidade humana, dar-lhe um tratamento consentâneo
com os princípios do Estado Democrático de Direito. É provável
que no futuro tais fatos até mesmo saiam da esfera de aplicação do
Direito Penal e sejam tratados exclusivamente à luz do Direito
Civil. Fica claro que as perturbações leves da ordem jurídica são
objeto de outros ramos do Direito, ou deveriam sê-lo; assim, as
contravenções penais, o crime de adultério, ou mesmo os crimes
contra a honra, ainda que somente os praticados contra particulares.
Nesse aspecto, em se tratando da criminalidade de bagatela,
se pode incluir as ações típicas informadas pela culpabilidade
escassa, ou aquelas onde ocorre a reprovabilidade relativa; tam-
bém nos casos em que ocorre a reparação do dano causado. Este
aspecto é que demonstra o caráter subsidiário do Direito Penal
com relação aos outros ramos do Direito. O dano de grande
monta, porém, culposo, dá uma idéia da presente colocação, por
não se constituir ilícito penal.
É de se notar que a subsidiariedade do Direito Penal é tam-
bém conhecida como acessoriedade ou secundariedade do Direito
Penal e se constitui em uma conseqüência da aceitação do princí-
pio da intervenção mínima.
O ordenamento jurídico tem por função a proteção aos bens
jurídicos, cabendo ao Direito Penal uma parte dessa proteção que,
entretanto, deve ser a última; quando todas as demais falharem.
Daí se afirmar o caráter subsidiário do Direito Penal. Esse caráter
do Direito Penal assume vital importância, na medida em que se
propicia a possibilidade dos conflitos de interesses passarem por

126 impulso
2777.BK Page 127 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

vários crivos, antes de chegarem à área de incidência da norma


penal. Somente quando falharem todas as normas de outra natu-
reza, ou quando faltarem tais normas, é que se poderá buscar o
Direito Penal para solucionar o problema apresentado.
Conforme afirmativa de Beling, o Direito Penal é um ramo
do Direito que se constrói sobre os demais, que se refere a estes e
que somente em relação com estes pode funcionar. 5
Na doutrina italiana, Grispigni afirma que a particularidade,
que caracteriza o Direito Penal no conjunto do ordenamento jurí-
dico e que determina suas relações com os diversos ramos desse
ordenamento, é o caráter ulteriormente sancionatório que apre-
senta, e que deriva do fato de que sua função específica consiste
em reforçar, com sua sanção própria, os preceitos e as sanções dos
outros ramos do Direito. 6
A razão disso encontra-se no fato de que o delito, além de ser
proibido pelo preceito penal, também o é por outra norma não
penal e, de regra, antes mesmo de ser proibido pelo próprio
Direito Penal. Por isso, todas as vezes que a tutela de um bem
pode ser assegurada por meio de uma sanção mais branda em rela-
ção a outra mais grave, deve-se preferir a mais branda, somente se
devendo recorrer à mais grave quando a outra mostrar-se insufici-
ente. Por que se processar alguém pela prática de direção perigosa
de veículo, por ter excedido a velocidade com seu conduzido, se a
multa de trânsito resolve o problema?
Carrara afirma ser autônomo o Direito Penal e critica a posi-
ção de Rousseau, quando este afirma que o Direito Penal não é
uma lei autônoma por si mesma, senão a sanção das outras leis.
Com esse entendimento, afirmava o autor italiano, se reduz a
tarefa do Direito Penal ao mero castigo, sem que se tenha em
conta a proibição que é, contudo, parte dele integrante. 7
Fica claro que as duas posições apresentam acertos e erros.
Posição interessante é de Maurach, o qual afirma que, diante
dos demais ramos do Direito, o Direito Penal é independente em
seus efeitos e relativamente dependente em seus pressupostos. 8 5 MUÑOZ CONDE, Francisco.
Introducion al Derecho Penal.
De acordo com esse entendimento, os efeitos característicos Barcelona: Boch, p. 61.
ou privativos do Direito Penal são a pena e a medida de segurança. 6MUÑOZ CONDE, Francisco,
op. cit.
O uso delas se destina ou deveria se destinar exclusivamente ao
7MUÑOZ CONDE, Francisco,
Direito Penal, mesmo nos casos em que possam coexistir com op. cit., p. 62.
outras sanções civis ou administrativas. Entretanto, é certo que não 8MUÑOZ CONDE, Francisco,
se constata diferença substancial entre esses tipos de sanção. op. cit., p. 63.

impulso 127
2777.BK Page 128 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

Por outro lado, é de se verificar que se constitui um perigo


evidente a aplicação de penas administrativas de privação de
liberdade. De lege ferenda seria interessante que se reservasse
exclusivamente ao Direito Penal essa espécie de medida coativa.
O fato de o Direito Penal não ser independente em seus pres-
supostos é que demonstra o ponto polêmico referente à subsidiari-
edade desse ramo do Direito.
Existem crimes cuja criação é genuinamente penal, como os
crimes contra a vida, contra a liberdade sexual. Por outro lado,
existem crimes, cuja relação com outros ramos do Direito é muito
íntima, a ponto de muitas vezes confundirem-se os delineamentos
penais com os de outros ramos do Direito, como ocorre nos crimes
contra o patrimônio, como a apropriação indébita, o furto e
mesmo os crimes falimentares. Não se pode perder de vista o pro-
blema referente à norma penal em branco, onde, além de depender
de outros ramos do Direito, o Direito Penal fica em íntima relação
de dependência com órgãos administrativos, como ocorre, por
exemplo, com os crimes relativos a entorpecentes, em que são os
órgãos da saúde que determinam quais as substâncias que se irão
constituir no objeto material de um crime tratado como hediondo.
Outras conseqüências decorrem do princípio da intervenção
mínima. A absoluta autonomia do Direito Penal não significa que
suas medidas possam ser empregadas em qualquer quantidade e
qualidade para proteger bens jurídicos, mas, pelo princípio da
intervenção mínima se pretende que os bens jurídicos devem ser
protegidos, não só pelo Direito Penal, como também em face do
Direito Penal. Se medidas de natureza civil ou administrativa
puderem resolver a situação, estas devem ser empregadas antes
das de Direito Penal. Na seleção dos recursos utilizados pelo
Estado, o Direito Penal deve representar a ultima ratio legis, sendo
empregado somente quando se tornar imprescindível para a manu-
tenção da ordem jurídica, quando não houver outra alternativa.
Dessa forma o princípio da intervenção mínima se constitui
num princípio limitador do poder punitivo do Estado, apresen-
tando conseqüências não só de ordem quantitativa com também de
ordem qualitativa.
Quantitativamente esse princípio se refere ao número de con-
dutas puníveis que devem ser criadas pelo legislador e a quanti-
dade de pena que deve ser imposta ao infrator. Para isso deve
haver um critério rígido, tendo-se em vista que nem todas as ações
que atacam bens jurídicos são proibidas pelo Direito Penal, nem

128 impulso
2777.BK Page 129 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

tampouco todos os bens jurídicos são protegidos por esse ramo do


Direito. Isto porque somente se devem tratar pela ótica penal as
ações mais graves contra os bens jurídicos mais importantes. Daí
o caráter fragmentário do Direito Penal, que não deve ser aplicado
a toda e qualquer lesão a bens jurídicos, mas só aos fragmentos
mais importantes do universo desses bens jurídicos. Aqui também
se deve considerar se o crime tentado deve ser punido e como deve
ser punido.
Qualitativamente tal princípio se refere à gravidade das penas
impostas. A pena é um mal necessário. Portanto, quanto a este
aspecto, o importante é que se deva preferir sempre a sanção mais
leve à mais grave, se com este procedimento se consegue restabe-
lecer a ordem jurídica perturbada pelo crime. Um exemplo de apli-
cação deste princípio é o da retroatividade da lei mais benigna.
São decorrentes desse princípio o princípio da humanidade e
o de proporcionalidade das penas.
O princípio da humanidade interfere tanto no Direito Penal,
como no Direito Processual Penal e na execução da pena,
devendo-se a ele a abolição da tortura, das penas infamantes e da
pena de morte, por exemplo.
O princípio de proporcionalidade determina que a cada um
se deve dar segundo seus merecimentos e que os desiguais devem
ser tratados desigualmente, individualizando-se e adequando-se a
sanção a cada indivíduo que infringiu a lei penal.

PRINCÍPIO DA LEGALIDADE
O princípio da legalidade, hoje, se constitui numa garantia de
liberdade dos cidadãos, chocando-se frontalmente com a suspei-
ção. Ou seja, por ser meramente suspeito, ninguém pode sofrer
cerceamento de liberdade, segundo aquele princípio.
Por isso a gravidade dos meios que o Estado emprega na
repressão dos delitos, a drástica intervenção nos direitos elemen-
tares e, assim, fundamentais da pessoa humana, e o caráter de
ultima ratio que tal intervenção apresenta obrigam que se busque
um princípio que controle o poder punitivo estatal e confine sua
aplicação dentro de limites, de modo a excluir toda arbitrariedade
e excesso por parte dos que ostentam ou exercem esse poder
punitivo. Esse princípio conhecido como princípio da legalidade,
ou princípio da reserva legal, estabelece que a intervenção puni-
tiva do Estado, tanto ao configurar o delito como ao determinar a

impulso 129
2777.BK Page 130 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

aplicação e execução de suas conseqüências, deve estar regida


pelo império da lei.
Tem por escopo o princípio da legalidade, afastar ou evitar o
exercício arbitrário e ilimitado do poder de punir do Estado.
Embora seja considerado como um princípio do Direito Natural,
ou mesmo uma decorrência da inviolabilidade da dignidade da
pessoa humana, seu reconhecimento e desenvolvimento não foi
automático e pacífico, ao contrário, sofreu reveses intoleráveis por
parte do autoritarismo, tanto de direita como de esquerda. Esse
princípio é incompatível com o pensamento de que os fins justifi-
cam os meios, quando se pretende adotar medidas radicais para
acabar com a criminalidade, impondo-se sanções não previstas
nem reguladas em lei em sentido estrito.
O princípio da legalidade provoca para o Direito Penal uma
série de conseqüências, que condicionam todo seu conteúdo e que
o distinguem das demais disciplinas jurídicas, tanto no que tange
às fontes como a sua interpretação e a sua elaboração científica.
Esse princípio apareceu com o Estado de Direito, após longo pro-
cesso de elaboração.
Há quem vislumbre seu fulcro no Direito Romano. Entre-
tanto, costuma-se identificar seus precedentes mais claros na
Magna Carta de 1215 da Inglaterra e no Decreto de Alfonso IX do
Reino de León de 1188. 9
A origem do princípio da legalidade, entretanto, encontra-se
no momento em que o povo deixa de ser instrumento e sujeito pas-
sivo do poder absoluto do Monarca e passa a controlar e participar
desse poder, o que ocorreu com o advento da Revolução Francesa.
O princípio da legalidade apresenta um claro fundamento
político, o do Estado Liberal de Direito, e também fundamentos
jurídicos.

ASPECTOS POLÍTICOS DO PRINCÍPIO


DA LEGALIDADE
Politicamente o princípio da legalidade é produto do espírito
liberal, que criou o Estado Liberal de Direito. Tal Estado apresenta
quatro características: o império da lei; a divisão dos poderes; a
9 NORONHA, Edgard Maga- legalidade na atuação administrativa; e a garantia dos direitos e
lhães. Direito Penal. 23ª ed. São liberdades fundamentais.
Paulo: Saraiva, 1985, v. 1, p. 68;
FRAGOSO, Heleno. Lições de 1. O império da lei supõe que o detentor do poder estatal não
Direito Penal – a nova parte ge- pode castigar as pessoas arbitrariamente e que seu poder punitivo
ral. 12ª ed. Rio de Jneiro: Fo-
rense, 1990, p. 90. está vinculado à lei.

130 impulso
2777.BK Page 131 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

2. A divisão dos poderes garante o princípio da legalidade


penal, repartindo o poder punitivo estatal entre o legislativo – que
se encarrega de determinar os delitos e as penas através de um pro-
cesso democrático em que participam os representantes do povo –
e o judiciário – que se encarrega de sua aplicação no caso concreto.
3. Diante do quadro exposto, chega-se à conclusão de que o
poder executivo não tem, ou não deve ter, atuação importante na
elaboração do Direito Penal, por isso o princípio da legalidade
administrativa não afeta tanto o Direito Penal.
4. Em resumo, tem-se que o objetivo fundamental do princí-
pio da intervenção legalizada é o de garantir os direitos e liberda-
des fundamentais das pessoas. Fica evidenciado que a melhor
maneira de protegê-los é concretizá-los e formulá-los em leis e
sancionar com penas sua lesão ou violação.
Na verdade, no Estado em que não vigora o império da lei ou
em que o princípio da divisão dos poderes se constitui em mera
aparência, o princípio da legalidade não passa de mera formali-
dade estéril.
Evidentemente o quadro apresentado sofreu ataque frontal de
governos autoritários, cuja vocação é a de não respeitar os direitos
individuais, exacerbando o poder dos que dominam. Isso ocorreu,
por exemplo, na União Soviética e na Alemanha Nazista.

ASPECTOS JURÍDICOS DO PRINCÍPIO


DA LEGALIDADE
Juridicamente também se pode falar em fundamento do prin-
cípio da legalidade. A base jurídica desse princípio nasceu com
Feuerbach na expressão latina nullum crimen, nulla poena sine
lege. É de se verificar, entretanto, que tal princípio constitui-se
numa conseqüência imediata da teoria da pena do citado autor,
entendida como coação psicológica. Para essa teoria, era necessá-
rio que todos conhecessem os crimes e as penas previstas para
quem os cometesse, de forma tal que a pena pudesse exercer uma
coação psicológica, de modo a motivar as pessoas a não comete-
rem tais crimes; a rigor, ainda não tinha o escopo de limitar o
poder de punir do Estado.
O princípio da legalidade constitui-se em garantia jurídica
dos cidadãos frente ao poder punitivo do Estado, controlando esse
poder:
a) como garantia criminal, qualificando como crime só o que,
como tal, é previsto em lei;

impulso 131
2777.BK Page 132 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

b) como garantia penal, impondo somente a pena fixada em


lei para o crime cometido;
c) como garantia jurisdicional, garantindo que não se poderá
executar pena alguma senão em razão de sentença com trânsito em
julgado; e
d) como garantia de execução, impedindo que se permita a
execução de outra forma que não a descrita em lei e regulamentos,
nem com outras circunstâncias ou acidentes diversos dos expres-
sos em seu texto.

Conseqüências do princípio da legalidade


A adoção do princípio da legalidade implica uma série de
conseqüências para o Direito Penal. Desta forma se consegue
resumir toda a problemática do delito e da pena ao trazer configu-
rados estes conceitos pela lei penal, vinculando-se assim o julga-
dor e o intérprete.
As conseqüências aludidas aparecem principalmente na hora
de se estudar as fontes do Direito Penal, em sua interpretação, na
proibição da retroatividade e na tipificação das condutas proibidas.
Inicialmente parece evidente que, da adoção do princípio da
legalidade decorra o fato de que a única fonte do Direito Penal é a
lei. Entretanto, tal princípio significa que a lei deve ser a fonte cri-
adora dos delitos, das penas e de suas causas de agravação e das
medidas de segurança. Nestas matérias fica evidente a exclusão da
analogia e dos costumes. Todavia, fora dessa área cessa o
monopólio da lei. Portanto, para atenuar ou excluir a punibilidade
tal monopólio desaparece, admitindo-se a utilização da analogia e
do costume com tal escopo, em determinados casos.
Outra conseqüência do princípio da legalidade é a proibição
da analogia em Direito Penal. Essa proibição fica clara quando se
busca fundamentar a responsabilidade: isto é indiscutível. Intolerá-
vel seria qualquer concessão em sentido inverso.
Quando, entretanto, a analogia é empregada para beneficiar o
violador da lei penal, tem-se posições a favor e contra sua aplica-
ção. No Brasil, prevalece a possibilidade de aplicação da analogia
in bonam partem.
Um tema que apresenta íntima relação com o princípio da
legalidade é a proibição da retroatividade das leis penais. A proibi-
ção da retroatividade da lei penal é complemento indispensável do
princípio da legalidade que, sem ele, representaria mais uma burla
do que uma garantia dos direitos individuais.

132 impulso
2777.BK Page 133 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

Admite-se, entretanto, a retroatividade benéfica como exce-


ção ao princípio da irretroatividade da lei penal, até porque seria
insustentável a manutenção de alguém no cárcere pelo cometi-
mento de um ato que o próprio legislador deixou de considerar
crime. Nesse ponto, fica evidente a necessidade de se discutir a
aplicação do princípio da ultratividade da lei excepcional e da
temporária, à luz da evolução do Direito Penal. Discutível se
torna, inclusive, a existência dessas leis.
Aspecto importante a ser observado é que o princípio da
legalidade é condicionado, na prática, pela técnica legislativa
empregada na descrição das condutas proibidas (condutas típicas)
e na determinação da gravidade das penas.
A forma em que o princípio de intervenção legalizada se rea-
liza se constitui na descrição das condutas proibidas em tipos
legais, o que vale dizer: é a tipificação das condutas que se pre-
tende proibir. Neste sentido o tipo cumpre a função de garantia do
princípio de intervenção legalizada.
No sentido de cumprir essa função de garantia, o tipo precisa
estar redigido de tal modo que, através do seu texto se possa
entender com clareza e certeza em que se constitui a conduta proi-
bida, a matéria de proibição. Para tanto, um dos aspectos mais
importantes que se deve observar é que o legislador descreva os
tipos com uma linguagem clara, concisa e precisa, inteligível pelos
cidadãos de nível cultural médio, valendo-se de termos simples,
que todos possam entender. Nesse sentido, deve-se evitar, quanto
possível, os elementos normativos, que dependem de valoração
para o entendimento do fato e, conseqüentemente, em que consiste
a proibição.
Quanto ao aspecto em estudo, tem-se o problema apresen-
tado pela necessidade de se encontrar um ponto adequado de equi-
líbrio entre o emprego das especificidades e das cláusulas genera-
lizantes. A especificidade tende a provocar lacunas importantes,
que deixam a descoberto certas lesões mais específicas a bens jurí-
dicos. Já as cláusulas generalizantes supõem um alto grau de abs-
tração e quase não apresentam lacunas, porém, apresentam o
perigo da indeterminação, podendo com isso lesar o princípio da
legalidade. Exemplo disso tem-se no período: atingir de qualquer
modo o pudor e os bons costumes.
No que tange à generalização, existem opções por conceitos
indeterminados, como alteração da ordem e dos bons costumes ou

impulso 133
2777.BK Page 134 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

relaxar o sentimento nacional etc., que apresentam dificuldades


importantes com relação à indeterminação.
Deve-se analisar também com atenção o problema relativo à
fixação da pena, tanto no aspecto qualitativo como no aspecto
quantitativo. As penas absolutamente determinadas excluem qual-
quer possibilidade de individualização da reprimenda, levando-se
em conta a pessoa do delinqüente. Por outro lado, as penas abso-
lutamente indeterminadas supõem uma clara infração ao princípio
da intervenção legalizada, pois deixam ao arbítrio do juiz a fixação
de sua duração, natureza, regime de cumprimento de pena, etc.
Neste aspecto, o ideal consiste no sistema das penas relativa-
mente determinadas. Tais penas têm fixados seus limites máximo
e mínimo de duração, o que permite uma adequação à personali-
dade do agente e às distintas circunstâncias que se apresentam
com relação ao crime, ao agente e à própria vítima. Esses limites
devem ser suficientemente precisos no sentido de excluir o
excesso de arbitrariedade judicial e evitar que o juiz se converta
em legislador. Aponta-se, ainda, como solução mais condizente
com o princípio democrático, e com isso se comtempla também o
princípio da culpabilidade, somente a fixação da pena máxima,
deixando-se a mínima ao prudente arbítrio do julgador diante do
caso concreto.
Como se verifica, existe uma preocupação constante em se
buscar formas adequadas e convenientes para o convívio social, de
tal forma que se permita a interação tranqüila e pacífica dos com-
ponentes de uma coletividade. Entretanto, em face da natureza
humana, fica evidente a possibilidade da existência de conflitos de
interesses, que acabam desaguando na violação de bens jurídicos,
até porque não existe uniformidade acerca da valoração dos bens
jurídicos, por parte dos grupos sociais que convivem em determi-
nado espaço físico. Tais violações podem apresentar importância
tal, que não possam passar em branco, sem que se tomem medidas
no sentido de repará-las e de evitar que venham a ocorrer nova-
mente. Um dos meios que se tem para se conseguir esse escopo é
o emprego do Direito Penal. Entretanto, a utilização desse ramo do
Direito não pode ser levada a efeito sem que se tomem medidas
acauteladoras, uma vez que o direito de punir do Estado interfere
de forma incisiva em direitos elementares da pessoa humana,
como a liberdade, a pretexto de proteger bens jurídicos, influindo
sobre aqueles direitos. Portanto, é necessário se defender a digni-
dade humana até contra o Estado e aqueles que o representam na

134 impulso
2777.BK Page 135 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

função de exercer seu poder de punir. Por isso existe uma necessi-
dade indeclinável do Estado Democrático de Direito de instituir
limitações ao Poder de punir do Estado, no sentido de se preservar
o respeito à dignidade da pessoa humana.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Texto básico: MUÑOZ CONDE, Francisco. Introdución al Derecho
Penal (principios limitadores del poder de punir del Estado).
Barcelona: Boch.
BRUNO, Aníbal. Direito Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1967.
CAMARGO, A.L. Chaves. Culpabilidade e reprovação penal. São
Paulo: Sugestões Literárias, 1994.
CAMARGO, A.L. Chaves. Tipo penal e linguagem. Rio de
Janeiro: Forense, 1982.
FRAGOSO, Heleno Claudio. Lições de Direito Penal – a nova
parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 1990.
GARCIA, Basileu. Instituições de Direito Penal. São Paulo: Max
Limonad, 1954.
HASSEMER, Winfried. ¿Alternativas al principio de culpabilidad?
Cuadernos de política criminal, Madrid, n. 18, 2ª p. do Artigo
Editoriales de Dercho Reunidas, 1982.
HASSEMER, Winfried. Fundamentos del Derecho Penal. Trad.
Muñoz Conde y Luis Arroyo Zapatero. Barcelona: Boch,
1984.
HASSEMER, Winfried. Três temas de Direito Penal. Porto Alegre:
Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul,
1993.
NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal. São Paulo: Saraiva,
v. 1, 1985.

impulso 135
2777.BK Page 136 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

136 impulso
2777.BK Page 137 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

SISTEMAS DE TRANSMISSÃO DO
DIREITO DE PROPRIEDADE:
UM ESTUDO NO DIREITO ALEMÃO
VICTOR HUGO TEJERINA VELÁZQUEZ

Avaliar o sistema de transferência de domínio no direito ale-


mão pode ser mais pedagógico, se feito a partir do Registro imo-
biliário, 1 considerado o melhor elaborado e firme entre os regis-
tros do mundo.
Contudo, deve-se dizer que no Direito alemão, o Código civil
(BGB) dedicou o Livro III aos Bens, e embora não exista uma
rigorosa diferença entre bens móveis e imóveis, o que deve desta- 1 No contexto do § 873 do
car-se, quanto aos bens imóveis, é que para a modificação jurí- BGB, a dupla exigência ali des-
dico-real, funciona o Livro Fundiário (Registro Imobiliário) que crita (Einigung – convênio e
Eintragung – inscrição) afeta a
cumpre funções de registro e de publicidade. Nada parecido há transmissão da propriedade, a
oneração de um prédio com um
previsto para bens móveis, sendo que o princípio da inscrição é direito, a transmissão de um tal
substituído pelo princípio da tradição, em virtude do qual a trans- direito e ao gravame do mesmo
direito. Ao processo de inscri-
ferência da propriedade e a criação de um direito real sobre bens ção no Registro (da transferên-
cia) do tráfico jurídico de
móveis, exige, em geral, a entrega da coisa. 2 A tradição também imóveis, denomina-se o Siste-
cumpre aqui o papel de publicidade: o princípio da inscrição é ma do Registro Imobiliário
(Grundbuchsystem). V. HEDE-
substituído pelo princípio da tradição. MANN, J.W. Tratado de Dere-
cho Civil. Madrid: Revista de
Certos direitos sobre imóveis são juridicamente assimiláveis Derecho Privado, v. 2, 1955,
aos imóveis. O caso mais característico é o direito de superfície versão espanhola de José Luis
Díez Pastor e Manuel Gonzá-
(Erbbaurecht), para o qual se aplicam todas as regras referentes a les Enríquez, p. 117.
bens imóveis, a não ser que exista uma restrição específica da lei, 2V. FROMONT, Michel, RIEG,
Alfred e outros. Introduction au
já que é um direito cessível e transmissível, e sujeito a gravames Droit Allemand. République
de todos os direitos reais limitados, mesmo que se trate de uma Fédérale, Paris, t. 3, Droit Privé,
Éditions Cujas, Paris, 1991, p.
servidão fundiária ou de um ônus imobiliário. 134-135.

impulso 137
2777.BK Page 138 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

No Direito Pátrio, a Clovis Beviláqua, quando da apresenta-


ção do “Projecto de Codigo Civil Brazileiro”, lhe pareceu ociosa a
inclusão do direito de superfície, dizendo que no Direito Alemão se
reduziu a um direito cessível e transmissível, como se acaba de des-
crever. O Projeto nº 634 B, aprovado pela Câmara dos Deputados e
em tramitação no Senado Federal sob o nº 118/84, inclui entre os
direito reais o direito de superfície (art. 1226). É caracterizado
como um direito cessível e temporário de construir ou de plantar, a
título gratuito ou oneroso, trasmissível a terceiro, inter vivos, ou
mortis causa, aos herdeiros, constituído através de escritura pública
inscrita no Registro de Imóveis (V. arts. 1368-1375). 3
Por determinação legal, aeronaves e navios, bens móveis por
natureza, não são assimiláveis aos bens imóveis, mas em função
do valor que representam como investimento de uma empresa,
junto com as construções navais (em fase de construção), têm
regras especiais calcadas sobre as dos direitos imobiliários. Navios
e aeronaves são objeto de registro especial. Por outro lado, se
admite que navios, aeronaves e construções navais não terminadas
sejam objeto de hipotecas, direitos que, normalmente, só são pos-
síveis de serem constituídos para os direitos imobiliários.
Há de destacar-se também que a influência do Direito
público sobre os direitos reais, uma parte do direito privado, se dá,
especialmente, em forma de restrições sobre o poder jurídico que
o titular tem sobre a coisa. Hans Stoll 4 explica que, se bem o
direito dado ao proprietário fundiário de construir sobre seu ter-
reno é direito resultante da liberdade do proprietário (§ 903 do
BGB), não pode ser exercido senão nas condições previstas pelo
direito urbanístico, especialmente, pela lei federal sobre urba-
nismo com redação dada em 08 de dezembro de 1986, (Baugeset-
3 Sobre a história do Direito de zbuch), como pelas leis complementares dos Länder. A venda,
Superfície e proposta de ins- continua Stoll, de uma propriedade utilizada para uma exploração
tituição na legislação brasileira
V. TEIXEIRA, José Guilherme agrícola ou florestal precisa, em princípio, do acordo da autoridade
Braga. O Direito Real de Super-
fície, Edit. Revista dos Tribu- competente, segundo as modalidades previstas pela lei de 1961
nais, São Paulo, 1993, págs. 45-
49 e 117-121. sobre as modificações fundiárias (Grundstückverkehrsgesetz). É
4V. FROMONT, Michel, RIEG, dificil, em matéria de direitos reais e de toda a disciplina sobre
Alfred e outros, op. cit., p. 136. bens, traçar uma linha divisória, entre direito público e direito pri-
Hans Stoll, professor na Uni-
versidade de Fribourg-Brisgau, vado, em parte porque é diferente, por exemplo, de outros direitos,
é o autor do capítulo sobre
bens. como o francês, por exemplo.

138 impulso
2777.BK Page 139 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

HISTÓRIA 5
1. A princípio, a entrega dos imóveis operava-se atendendo a
forma solene e perante testemunhas (é o testemunho judicial medie-
val alemão), era a Auflassung. 6
2. Mais tarde, o ato solene transferiu-se 7 à presença do Tri-
bunal ou do Município das cidades em formação, e começou-se a
apresentar documentos entregues às partes, dotados de enorme
força probatória.
3. No século 12, os negócios sobre imóveis começaram a ser
assentados em repertórios oficiais, que depois passaram a ser
livros permanentes (os livros de Colônia se conservam em seu
texto original de 1135 a 1142).
4. Paulatinamente, a inscrição caminha em direção de uma
categoria mais elevada, tornando-se ato criador de direitos. Ennec-
cerus dirá: “la inscripción en el registro, en sus orígenes medio 5 V. HEDEMANN, J.W., op.
cit., p. 76ss. V. ENNECCERUS,
probatorio de la modificación jurídica realizada se convirtió en KIPP, WOLFF. Tratado de De-
parte del supuesto de hecho constitutivo de la modificación jurí- recho Civil. Barcelona: Bosch,
t. 1, v. 3, 1935, p. 133ss.
dica”. 8 O princípio da inscrição não nasce de repente, segura- 6 V. Código Civil Alemão
mente, mas no início de um longo processo, não se tem a consciên- (BGB) § 925. Trad. Souza Di-
niz. Rio de Janeiro: Record,
cia que uma transmissão sem o registro não é completa. Só mais 1960, p. 154. Segundo EN-
tarde se elabora a idéia jurídica que só a alteração ou modificação NECCERUS, KIPP, WOLFF,
op. cit., p. 124, nas suas origens
das relações jurídicas sobre o imóvel se verifica a partir da inscrição a palavra Auflassung significava
mesma. Nasceu assim o princípio da inscrição, o que significa que “deixação” (corporal) unilateral
da posse. Mas sobretudo signi-
não há aquisição sem inscrição. Melhor ainda é o princípio da eficá- ficava a declaração do alienante
mais a aceitação da mesma pelo
cia jurídica formal do registro imobiliário. 9 Para haver modificação adquirente. Finalmente (depois
na situação jurídica de um imóvel, no último período desta evolu- da extinção da Gewere ideal)
chegou a significar já o acordo
ção, houve necessidade de cumprir dois requisitos: Auflassung, ou das partes com relação à trans-
missão da propriedade, baseada
acordo de vontades e a inscrição no livro (princípio do consenti- em dito acordo e na inscrição
mento material para Enneccerus), já que são elementos constituti- no Registro imobiliário.
vos. Sem eles ou sem um deles não há aquisição. 7V. ENNECCERUS, KIPP,
WOLFF, op. cit., p. 133.
A Auflassung 10 deve criar relações claras e definitivas, não se
8V. ENNECCERUS, KIPP,
admitindo fazer sob condições ou prazos (V. infra: Reserva de WOLFF, op. cit., p. 135.
domínio). É normalmente emitida como consequência de relação 9 V. ENNECCERUS, KIPP,
causal básica (ex.: contrato de compra e venda). A relação obriga- WOLFF, op. cit., p. 136; v.
HEDEMANN, J.W., op. cit., p.
tória é definida pelo BGB (§ 241) como uma relação jurídica onde 77, denominava-o princípio da
“está o credor autorizado a exigir do devedor uma prestação”. inscrição.
10 Na alienação da propriedade
A “Recepção” do direito romano (ou ítalo-romano como agrícola ou florestal ou na im-
alguns autores entendem), na Alemanha, como se sabe, exerceu posição de ônus reais como o
usufruto, precisa-se para expe-
forte influência no desenvolvimento do direito privado e até no dir a Auflassung de autorização
BGB, o que deu lugar a múltiplas discussões e explicações, no da autoridade alemã competen-
te. V. HEDEMANN, J.W., op.
século XIX, sobre as razões de tal recepção. Segundo Michel cit., p. 165.

impulso 139
2777.BK Page 140 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

Fromont e Alfred Rieg, a influência do Direito romano no Oci-


dente ficou latente do século VII ao XI. Por causa da descoberta
em Pisa, na segunda metade do século XI, de um manuscrito do
século VI ou VII contendo o texto original do Digesto, voltou
renovado. Seguiu-se um trabalho científico considerável, obra, pri-
meiro, dos glosadores, na escola de direito de Bolonha, entre o
século XI e meados do XIII e dos posglosadores, depois. Durante
esse período se redige abundantes notas, as glossæ sobre o texto
do Corpus juris, primeiro, e dos posglosadores, mais tarde. O
resultado desse trabalho metódico é a glossæ ordinariae de Acúr-
sio, verdadeira súmula de todas as glosas de seus predecessores.
Mas como ainda faltava o caráter sistemático, os posglosadores
entre 1250 e 1500 vão se dedicar a esta tarefa. Um novo direito
apareceu graças aos esforços de homens eminentes como Bártolo
(1314-1357) e Baldo (1327-1400).
As causas da penetração do Direito romano, segundo estes
autores, não deve ser procurada na inadaptação do Direito germâ-
nico à situação econômica, no final da Idade Média, pois, as cida-
des pelo comércio florescente tinham, desde o século XIV, elabo-
rado um direito comercial perfeitamente adaptado às mudanças
econômicas da época, o que favoreceu em grande parte à recepção
do Direito romano. Deve, pelo contrário, encontrar-se em razões
de ordem intelectual que explicam, se não exclusivamente, o fenô-
meno da recepção. Deve lembrar-se, dizem, que o Império alemão
era o Império Romano e que os imperadores alemães se conside-
ravam os sucessores dos imperadores romanos. De outro lado,
numerosos foram os alemães que atravessando os Alpes, desde o
século XII foram estudar nas escolas e universidades italianas o
direito canônico e sobretudo o “novo direito romano”. Com a fun-
dação das primeiras universidades alemãs no século XIV (Univer-
sidade de Praga em 1348; Viena, 1365; Heidelberg, 1386; Colônia,
1388; Erfurt, 1392, Leipzig, 1409, onde primeiro começou-se ensi-
nando direito dos cânones, e mais tarde, a partir do século XV, se
ensina Direito romano como matéria autônoma) e, com a influência
dos professores conhecedores do direito estrangeiro, rapidamente
se vê nascer uma classe de “juristas sabedores (sábios)” (gelehrter
Juristenstand) – cuja influência na administração e na justiça se
faz cada vez mais notória – é que a recepção tem operado. Embora
não seja o objeto deste trabalho discutir as causas e a verdadeira
influência que teve a chamada recepção do Direito romano na Ale-
manha, parece pertinente lembrar a quase nenhuma influência no

140 impulso
2777.BK Page 141 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

Direito público, pela dificuldade de adaptação das normas roma-


nas às germânicas. Assim em matéria penal a influência deve ter
sido bastante restrita, levando em conta que Carlos V tinha sancio-
nado a sua famosa Ordenança Criminal de 1532. Mesmo em
matéria civil teria sido irregular, no direito das obrigações e das
coisas muito forte e, menos no direito das pessoas e da família, 11
porém, “estorvou temporariamente” 12 a evolução dos registros e a
posterior difusão do sistema do Registro Imobiliário.
Afirma Enneccerus que o princípio romano segundo o qual a
transmissão e o gravame dos imóveis se efetuam do mesmo modo
que para os móveis e o de que a transmissão podia ser feita por
tradição, fazendo-se o ônus tacitamente, passaram a constituir
direito comum.
Para melhor compreender o sistema dos direitos reais no
direito alemão, deve-se levar em conta que, designa-se sob o nome
de direito de bens, no sentido objetivo (Sachenrecht), ao conjunto de 11FROMONT, Michel e RI-
normas que se referem ao poder de fato (tatsächliche Herrschaft) EG, Alfred, op. cit., Tome I, Les
Fondements, págs. 57-64.
que se tem sobre as coisas – a posse (Besitz) –, assim como, aos 12 V. ENNECCERUS, KIPP,
direitos reais, no sentido subjetivo, ou seja, aos direitos subjetivos WOLFF, op. cit., p. 135; v. HE-
DEMANN, J.W., op. cit., p. 78,
sobre as coisas. 13 considerava que a “Recepção”
Segue o BGB o sistema da tradição 14 sob a forma original prejudicou o posterior desen-
volvimento e a difusão do siste-
do direito romano, que entrou na Alemanha, como foi dito pela ma do Registro imobiliário, já
que tais aparatos registrais eram
chamada “Recepção”: traditionibus et usucapionibus dominia alheios à concepção jurídica
rerum non nudis pactis transferuntur. dos romanos. Por outro lado, o
pensamento jurídico romano
Isto quer dizer que a modificação das relações jurídicas sobre afinou a lógica jurídica germâ-
um bem imóvel não se verifica senão por força da inscrição nica, se entendida como uma
recepção de “métodos e de
mesma: é o princípio da inscrição, “o que está no registro é exato, compreensão, de noções jurídi-
cas, de categorias legais, mais
porque o registro o diz”. 15 do que regras de fundo...” (V.
A elaboração do BGB uniformizou o direito imobiliário também, FROMONT, Michel e
RIEG, Alfred, op cit., o § 3., so-
material do Reich, bem como, um ano mais tarde, adotou idêntica bre os limites da recepção).
posição em matéria instrumental (GBO – 1897 ou Ordenança do 13V. FROMONT, Michel, RI-
Registro Imobiliário), que fora objeto de inúmeras críticas. Só em EG, Alfred et al., op. cit., p. 133.
14 Para os imóveis, ocorre a
1935, quando da redação da nova GBO, conseguiu-se total unifi- inscrição no livro Fundiário
cação, já que, até então, a redação dos “formulários”, por ex., era (§ 873) e, para os móveis (V.
§ 929) a transferência se dá
facultativa dos Estados). com a entrega (tradição), salvo
o constitutum possessorium em
que é suficiente o acordo trans-
DO REGISTRO IMOBILIÁRIO 16 lativo (§ 930).
O registro (da jurisdição voluntária) compete ao Cartório de 15
V. ENNECCERUS, KIPP,
Registro, que se subordina ao Tribunal distrital, e está na dependên- WOLFF, op. cit., p. 136.
16 V. HEDEMANN, J.W., op.
cia de um juiz. A função prática do agrimensor é também funda- cit., p. 75ss; ENNECCERUS,
mental, pesando responsabilidades sobre este e outros funcionários, KIPP, WOLFF, op. cit., p. 138ss.

impulso 141
2777.BK Page 142 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

já que o registro obedece ao princípio de exatidão, tanto na identi-


dade das pessoas, como nas operações matemáticas que o registro
demanda. Exatidão que é base de toda transação imobiliária e, que
se completa com o princípio da publicidade do registro. Mesmo
público o registro, o acesso a ele é limitado: só quem tiver inte-
resse jurídico justificado poderá ter acesso aos registros, é o caso
de um titular de direitos reais ou de quem deseja adquirir um pré-
dio. Considera-se que o “interesse justificado” seja um conceito
mais amplo que o “interesse jurídico”. 17 O Registro alemão reflete
a situação jurídico-real do imóvel.
Para Hedemann, 18 há cinco princípios que inspiram o Regis-
tro: 1) o princípio do sistema imobiliário onde constam todas as
relações jurídicas referentes ao imóvel; 2) o princípio da inscrição,
entendendo-se que todas as relações jurídicas, enquanto direitos
reais procedem do tráfico dos negócios jurídicos, nascem só a par-
17
ENNECCERUS, KIPP,
tir da sua inscrição no Registro; 3) o princípio do consentimento,
WOLFF, op. cit., p. 147-148. pelo qual basta a declaração abstrata 19 de vontade dirigida a obter
18 V. HEDEMANN, J.W., op. a modificação jurídica em si mesma, deixando fora de cogitação a
cit., p. 135-136. “legalidade” do negócio causal obrigacional; 4) o princípio da pri-
19 Com o princípio de abstração,
o Direito alemão formula uma
oridade, o que significa que os diversos direitos, que possam existir
regra diversa de outros direitos, sobre um imóvel, não estão entre si num mesmo plano de igual-
como o francês, por exemplo, e
se distancia deles. O “princípio dade, mas que se ordenam por estratos, segundo um sistema visível
de abstração” significa que os no Registro (sistema do lugar e sistema da data); 5) o princípio de
contratos, obrigacional ou casu-
al e real, são, por princípio, inde- publicidade, segundo o qual o Registro há de formar a base de toda
pendentes um do outro; cada um a transferência sobre imóveis e por isso é acessível ao público. Em
existe “abstração feita” do outro,
dissociado do outro. Uma fun- sentido mais estrito, trata-se implicitamente de confirmação gerada
ção essencial do princípio de
abstração está em limitar às par- pelo Registro, pela sua exatidão, embutida no princípio.
tes interessadas das conseqüên- Os elementos materiais necessários para modificar uma rela-
cias viciosas que maculam a
conclusão do contrato criador de ção jurídica real no registro são: a solicitação da inscrição, Antrag
obrigações e de evitar que os ter-
ceiros fiquem prejudicados. O (ato de mera forma processual) e o consentimento translativo
caráter abstrato do negócio jurí- (princípio do consentimento formal) indispensável para consumar
dico real precisa de um elemen-
to objetivo, o acordo das partes a transmissão do direito de propriedade, Einigung (fato modifica-
sobre a modificação jurídica do
direito real (e até de uma decla- dor do direito no ordenamento jurídico substantivo), e que é o con-
ração unilateral) onde o acordo sentimento bilateral de inscrição feita em termo ou instrumento
obrigacional, causal, não figura,
quer dizer, não consta, por não público. A natureza do consentimento de inscrição, sendo uma
ser necessário para que o acordo declaração de vontade, para Enneccerus, 20 constitui parte de um
real produza efeitos e, claro, da
inscrição no Registro imobiliário negócio de disposição, embora Von Thur apenas a considere como
ou entrega da coisa, se móvel.
Nesse sentido, V. FROMONT, preparo da mesma.
Michel, RIEG, Alfred, op. cit., O Registro obedece a uma cadeia de transmissões não inter-
p. 70 e 138-139.
20 V. ENNECCERUS, KIPP,
rompida, o que sugere a necessidade de inscrição prévia de quem
WOLFF, op. cit., p. 165. outorgou permissão para o novo registro.

142 impulso
2777.BK Page 143 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

A categoria dos direitos no Registro se organiza conforme o


lugar (ordenação pelo lugar – Locussystem) que ocupa nos livros,
se os direitos inscritos na mesma secção, ou pela data, se os direi-
tos forem inscritos em secções distintas. A prioridade no registro
determina, em caso de execução, o não pagamento proporcional,
se vários forem os credores colocados em diversas categorias, e
sim pagamento integral dos primeiros até onde alcançar o valor
garantido, sendo que o lugar que se ocupa no registro (categoria) é
adjunto e independente, todavia é possível trocar essa posição,
mas não podem afetar direitos intermédios.
Por outro lado, a solicitação, como o ato bilateral modifica-
dor, deve ser objeto de prévia qualificação do Juiz Registrador,
embora os limites de tal qualificação devam estar definidos pela lei
(princípio de legalidade).
O princípio do consentimento fundamenta-se numa abstra-
ção, ou seja, separa a vontade modificadora jurídico-real do outro,
o acordo voluntário causal. Mas o princípio de legalidade obriga o
Registrador a comprovar a legalidade do processo como um todo,
inclusive, a validade jurídica do negócio jurídico-causal (obrigacio-
nal), porém bastam para o registro as declarações abstratas e for-
mais feitas.
Na ausência do acordo bilateral abstrato e havendo uma
pretensão pessoal (obrigacional), pode exigir-se uma prenotação
(Vormerkung) por exemplo, o comprador tem o contrato de com-
pra e venda com efeitos puramente obrigacionais, com pretensões
para extinguir ou ceder um direito. Não outorga a seu titular direito
real e não impede ao anotado (prejudicado) de sua capacidade de
alienação; claro que estes atos posteriores à anotação preventiva,
serão ineficazes na medida em que representam um prejuízo (óbice)
à pretensão previamente anotada (§ 883), assegurando preferência
na sua classe (categoria) ao direito em questão, se constituído defi-
nitivamente.
Este deve ser o único caso em que a responsabilidade limitada
do herdeiro (intra vires hereditatis) não poderia ser oposta ao titu- 21In Otto v. Gierke, Dt. Priv.-
R, II, p. 336ss, cit. por HEDE-
lar da prenotação (§ 884). MANN, J.W., op. cit., p. 106.
A prenotação é resultado de pretensão pessoal, e não passa 22 Hedemann relata as seguintes:
de obrigacional em relação ao direito real. Na terminologia do a) tem-se inscrito um direi-
to não existente;
direito romano, seria um ius ad rem. O crédito anotado é parecido, b) tem-se deixado de inscre-
ver um direito existente;
por conseguinte, com a figura do direito à coisa. 21 c) cancelamento indevido de
Para eventuais inexatidões 22 do Registro, quase impossível um direito existente, inscrito;
d) expressado equivocada-
de acontecer, há remédios como: mente o conteúdo de um direito.

impulso 143
2777.BK Page 144 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

I) A retificação de ofício: há dois requisitos:


a) a denominada retificação obrigatória (requerer ao herdeiro,
atual proprietário, fornecer documentos para atualizar o Registro);
o cancelamento de inscrições antiquadas e confusão nas relações de
prioridade, praticando-se de ofício esclarecimento e nova inscrição;
b) por faltas cometidas pelo Registro, como inscrições defei-
tuosas e inscrições improcedentes.
II) A retificação também pode ser pedida pelo prejudicado
(§ 894), pretensão que pode ser dirigida contra o próprio Ofício do
Registro ou contra o que foi falsamente inscrito, exigindo dele
assentimento e demais atos de cooperação (§ 894 última parte), e
não é suscetível de prescrever (§ 898). Uma vez obtida a retifica-
ção, retroage à data da inexatidão do registro, diverso, portanto, da
prenotação.
Resumindo, no registro imobiliário, fora das indicações de
fato, que servem para individualização do bem, só podem ser ins-
critos os direitos reais sobre o bem ou sobre um direito imobiliário
inscrivível (como também pode inscrever-se o direito de garantia
sobre direito inscrito do herdeiro fideicomissário, ou o direito de
garantia sobre a quota de um co-herdeiro), as limitações de dispor
que existem a favor de determinadas pessoas (como por exemplo
o resultado de concurso, administração de herença, herança fidei-
comissária, nomeação de testamenteiro etc.), as anotações preven-
tivas e os assentos de contradição. 23 [A contradição (§ 899) se edi-
fica sobre o fundamento de uma inexatidão registral diversa da
prenotação, portanto, funda sua pretensão em direito real todavia
não existente 24].
Com a inscrição fica definitivamente concluída a modifica-
ção jurídico-real, mas não só isso, fica invariável. 25
Nos cancelamentos (extinção total ou parcial de um assento
anterior ou não existência de uma relação jurídica) são sublinha-
dos com traço vermelho, além de praticar-se assento especial em
que conste o cancelamento.
As inscrições, de um modo geral, só cobrem inscrições de
direitos, mas não de fatos, embora constem do registro para fins de
individualização, como situação do bem, exploração econômica,
23 ENNECCERUS, op. cit., edifícios existentes, preço de aquisição, etc.
p. 156. As inscrições podem ser de caráter constitutivo (é o caso da
24 HEDEMANN, J.W., op. cit.,
p. 113-115.
transmissão do direito de propriedade, ou de garantia gravados
25
com uma hipoteca), ou também meramente declarativas (que
HEDEMANN, J.W., op. cit.,
p. 101. retroagem ao momento em que ocorreu a inexatidão), destinadas a

144 impulso
2777.BK Page 145 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

eliminar uma dissensão entre a situação jurídica inscrita e a real,


ou por haver inscrições equivocadas, que provocam inexatidão no
registro.
As inscrições feitas não se extinguem pela confusão (reunião
numa mesma pessoa de direito e obrigação), ao contrário, se con-
solida (§ 889). Esta subsistência da inscrição tem importância prá-
tica na denominada hipoteca de proprietário.
Como já foi descrito, há, além das inscrições, os cancelamen-
tos, que não se praticam inutilizando os registros, mas subli-
nhando-os com traço encarnado, além de constar inscrição especial
a respeito. Nas prenotações 26 (Vormerkung do § 883 ao § 888 do
BGB) (ver supra) o suposto de fato material é a existência de uma
pretensão pessoal (quase sempre obrigacional) para exigir uma ins-
crição determinada, seja porque é permitido ao prejudicado (pactu-
ado), ou por providência provisional de um Tribunal. Mas os efei-
tos destes são relativos (eficácia relativa), já que se trata de uma
inscrição provisória. Simetricamente, por outro lado, os atos produ-
zidos após a prenotação estão sujeitos a uma ineficácia relativa, 27
mesmo em se tratando de disposições de caráter forçoso ou, em
26 Sobre a natureza da preno-
outras situações, porque assegura a preferência na sua classe ao tação o § 883 prescreve:
direito pretendido, ou porque o herdeiro não pode opor ao titular da “Para garantia da pretensão à
constituição ou extinção de um
prenotação a sua responsabilidade limitada (supra § 884). direito sobre um prédio, ou so-
bre um direito onerando um
prédio, ou a modificação do
TRADIÇÃO E BENS MÓVEIS conteúdo ou da ordem (de ins-
crição) de um tal direito... ou
O Direito alemão faz distinção entre “ato criador de obriga- para garantia de uma pretensão
futura ou condicional” (§ 883).
ções” (Verpflichtungsgeschäft) e “ato de disposição” (Verfügun- Versão Souza Diniz do BGB,
Edit. Record, Rio, 1960, p. 148.
gsgeschäft), sendo este último de domínio dos Direitos Reais.
27 O § 883, II, 1ª parte, pres-
Quanto à aquisição da propriedade mobiliária, o BGB (§ 929 creve:
a § 931) considera vários casos. O primeiro deles, aquisição por “Uma disposição que, depois
da inscrição da prenotação, for
transmissão, é o mais importante. 28 Aqui nos interessa porque, tomado sobre o prédio ou o di-
entre os processos de aquisição, se inclui a traditio como um meio reito, é ineficaz desde que ve-
nha a frustrar ou prejudicar a
de transmissão [os outros dois são a) a compra e venda (§ 433 e pretensão”.
ss.), contrato puramente obrigacional, pelo qual, como já mencio- 28 Os outros são:
a) aquisição por usucapião;
nado, não é suficiente para transmitir o direito de propriedade, b) aquisição por adjunção,
com ela só se cria um vínculo pessoal e a sua função, na transmis- comistão e especificação;
c) aquisição dos frutos e de-
são do direito real é apenas servir de fundamento, de “causa” (à mais partes da coisa;
d) aquisição por ocupação;
modificação da relação real), é a “relação causal” e b) o “convê- e) aquisição por invenção e
nio” ou o acordo translativo (V. § 929), que é uma “figura dificil- outros alheios ao Direito das
Coisas como a sucessão heredi-
mente intelegible para los juristas”, 29 diverso, portanto, da com- tária, a desapropriação, etc.
pra e venda (abstração causal)]. 29 HEDEMANN, op. cit. p. 170.

impulso 145
2777.BK Page 146 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

Isto quer dizer que a entrega (traditio) e, portanto, a posse


aparece aqui como modo de transmissão. Embora criticado o
denominado sistema (da Traditionssystem) da tradição, no caso
alemão, vigora o princípio romano (Codex 2.3.20 do Traditioni-
bus...), que na visão de Hedemann respondia, nesse período histó-
rico a realidades vitais urgentes mas que, entre nós, apenas se tor-
nou uma construção doutrinária, encartilhada no princípio de
“publicidade”, aplicável para todos os processos do Direito das
coisas, que devem ser, de algum modo, “publicados”. A entrega
corporal serviu para essa finalidade, esquecendo que, como o prin-
cípio não fora levado às suas últimas consequências, junto a um
processo paralelo, de espiritualização da traditio, estava-se per-
dendo, na verdade, a essência mesma da “publicidade”, ou seja, o
elemento corporal perceptível da entrega. Embora criticada esta
posição de Hedemann pelos seus tradutores, por mesclar duas
questões diferentes, possibilidade de eliminar o requisito e possibi-
lidade de substituir a tradição real pela forma espiritualizada, a crí-
tica não nos parece pertinente, já que o autor apenas levanta as
inconsequências a que foi levado o princípio da tradição, tudo
imposto pela realidade.
O § 929 (BGB), ao tratar da transmissão dos direitos de pro-
priedade de bens móveis, considera, além do acordo de transmis-
são, a entrega corporal, salvo se o adquirente estiver na posse ime-
diata da coisa, em que bastará apenas o acordo para a transferência
da propriedade.
O acordo translativo, nos termos do § 929 do BGB, não é o
negócio causal puramente obrigacional, mas um acordo que,
fazendo abstração da causa, representa um novo ato de vontade, de
ambas as partes. Faltando o acordo, não há transferência da proprie-
dade. Significa que, em matéria de móveis, não basta a entrega da
coisa, mas é necessário o acordo translativo, embora não haja neces-
sidade de que se verifique a presença simultânea das partes;
podendo cumprir-se pelo mero silêncio. Isto quer dizer que não se
verifica a transferência quando, por exemplo, se paga o preço.
Importa sobretudo cumprir com as exigências da entrega do acordo
de transmissão, nos termos do artigo antes citado, para haver aliena-
ção (§ 929), sendo indiferente o momento em que se pagou.
A transferência da coisa não se opera na data da entrega
(traditio), e sim na data em que se verifica o acordo translativo. O
clássico exemplo de Hedemann ilustra a respeito: o Sr. A encarre-
gou em 03 de maio para o alfaiate B um terno sob medida

146 impulso
2777.BK Page 147 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

(contrato de obra). Em 11 de maio é entregue o terno a domicílio,


mas como A está viajando, a empregada – servidora da posse –
o recebe. Nos termos do § 929, a entrega se consumou mas faltou
o acordo translativo, que só aconteceu em 14 de maio, quando A
regressou à sua casa, tendo visto o terno, não dizendo nada. Com
o isto deu a sua aprovação. 30 Assim a transferência se deu só em
14 de maio, e não na data da entrega.
O sistema alemão admite a aquisição de bens móveis a non
domino, desde que cumpridas as condições estabelecidas pelos
§§ 929 a 931 BGB, e desde que haja entrega do bem, suposta a
boa-fé do adquirente (§ 932 I e II BGB). As disposições referentes
à aquisição de boa-fé supõem que o proprietário tenha livremente
abandonado o controle direto do bem (quer dizer, que estava na
posse direta e a perdeu contra a sua vontade) e que tenha aceitado
o risco de um terceiro dispor sem sua autorização. Daí que estão
excluídas, em princípio, aquisições de uma pessoa que não é titu-
lar de direitos sobre o bem, ou daqueles que tenham sido rouba-
dos, ou tenham sido perdidos ou até entregues a um terceiro por
outra causa.
O BGB prevê uma hipótese excepcional (§ 934, I), havendo
boa-fé, em que seria possível a aquisição de um bem não perdido,
mesmo sem tradição, se quem tiver o bem, não sendo titular do
direito, é um possuidor indireto e transfere essa posse ao adqui-
rente por cessão de um direito de pretensão (de agir em restitui-
ção). A segunda parte dessa norma, determina que, em caso con-
trário, só se tornará proprietário quando obtiver a posse da coisa,
do terceiro, a não ser que no tempo da cessão ou da aquisição da
posse não estivesse de boa-fé (§ 934, II). (V. infra, cessão de pre-
tensão reivindicatória).
Diferentemente, o sistema brasileiro, em função de disposi-
ção expressa de nosso Código Civil (art. 622), “não adotou o prin-
cípio da validade das aquisições a non domino com base na posse
e na boa-fé do adquirente. Seguiu neste passo a posição firmada
pelo direito romano que, em face do conflito entre os interesses
preponderantes do verdadeiro proprietário e os do adquirente de
boa fé protegidos pelo tráfico jurídico, pendeu em favor daqueles,
em atenção ao princípio Nemo plus juris ad alium transferre
potest quam ipse haberet, estabelecendo que o adquirente se bene-
ficiaria com a posse apta para o usucapião (Hedemann, op. cit.,
Derechos Reales, v. II, p. 182, § 212, e Dernburg, Dirritti Reali, v. 30 HEDEMANN, J.W., op. cit.,
I, Parte II, p. 158, § 212).” Conclui-se que no sistema pátrio “a tra- p. 170-171.

impulso 147
2777.BK Page 148 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

dição feita pelo não dono não produz a transferência da proprie-


dade em favor do adquirente de boa-fé... admitindo, no art. 521, a
reivindicação das coisas perdidas ou furtadas.” 31
Quando o convênio (acordo translativo) é claro, não haveria
dificuldade e/ou necessidade de interpretação da vontade das par-
tes para saber se houve ou não o acordo abstrato de transmissão.
Nos casos duvidosos em que se exige interpretação da vontade das
partes, está por exemplo a do penhor. Se entregou a coisa a título
de penhor e, portanto, conservando a propriedade? Ou se fez uma
transmissão em garantia? (V. infra: Transmissão em Garantia). A
hipótese exige examinar, em cada caso, a natureza de tal conven-
ção. Nos arrendamentos em que há objetos constantes de um
inventário pelo valor da estimativa e obrigação de restituí-los, (§
587) nos termos dos §§ 588 e 589, como seguramente acontece
com freqüência com utensílios da lavoura, inventariados no arren-
damento da propriedade rural: o arrendatário os toma a título de
compra e venda e os retrovende ao arrendador assim que expirar o
prazo? Se trata aqui de um arrendamento em que se transmite o
risco de eventuais perdas dos objetos do inventário ao arrendatário
(§ 588), mas com a promessa de devolvê-los ao arrendador,
porém, sem que este último suporte os riscos de perecimento
casual, já que aquele tem obrigação de devolver o inventário, de
conformidade com uma exploração regular, nas condições em que
lhe foi entregue, e, as partes por ele fornecidas tornam-se, com a
incorporação ao inventário, propriedade do arrendador (§ 588,
última parte). E se houver um prazo muito longo, em que aconte-
ceram alterações monetárias profundas e há desvalorização da
moeda e, correlativamente, aumenta o valor desses bens móveis?
Embora o Código não responda a esta hipótese, evidentemente, há
um paradoxo: se atribui ao arrendatário aumento do valor do
inventário (§ 589, última parte), mas se declara que o arrendador
sempre foi proprietário, aliás conserva a propriedade dos objetos
do inventário (§ 588, segunda parte).
As denominadas formas supletórias da tradição, segundo
Hedemann (op.cit. p. 175) previstas no BGB são:
a) Brevi manu traditio, prevista pelo § 929, 2, na suposição de
que a coisa já está, antecipadamente, em poder do adquirente, sendo
31 MAGALHÃES, Vilobaldo
Bastos de. Compra e Venda e que careceria de objeto voltar a entregar-se-lhe (algo que já exista
Sistemas de Transmissão da em mãos do novo proprietário e que exigiria prévia devolução ao
Propriedade, Edit. Forense, Rio
de Janeiro, 1981, ps. 68-73. transmitente). Aqui basta o convênio ou acordo transmissivo.

148 impulso
2777.BK Page 149 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

b) Constitutum possessorium (§ 930 BGB), pelo qual se


troca o conceito de posse, caso em que o alienante conserva pro-
visioriamente a coisa, mas entendendo-se que é propriedade do
adquirente, de tal sorte que, daí em diante, não a guarda mais para
si e sim para o adquirente. Há de convir-se que, neste caso, há
uma quebra do princípio de publicidade que cumpre a tradição.
Hedemann, assegura que o BGB encontrou uma solução, denomi-
nada, construtiva, restringindo este meio de transmissão do direito
de propriedade a casos em que “sobreviene entre el adquirente y el
enajenante una súbita disgregación de las relaciones posesorias en
cuanto el enajenante conserva la posesión ‘inmediata’, mientras
que transmite la posesión ‘mediata’ o superior al adquirente” (op.
cit. págs. 175-176), mas não basta esta mera desagregação do
estado possessório, é necessário, “que se estipule una relación
jurídica”, em virtude da qual, tal desagregação se efetua. Para
compreendê-lo, há que fazer referência a uma antiga controvérsia
da época do Direito comum. Já nessa época se tentava evitar um
desbordamento do constitutum possessorium, diferenciando-o da
chamada forma abstrata de estabelecê-lo, de uma maneira inde-
terminada, de outra, adotada pelo código, individualizada. A esta
última forma se refere o BGB quando exige uma relação jurí-
dica, arrendamento, depósito, aluguel, etc. Reconhece, por outra
parte, que há inúmeros problemas com esta solução, especial-
mente no caso do depósito.
Ainda existe uma outra forma de transmissão que deve ser
estudada, embora pertença ao Direito Comercial. Trata-se da aqui-
sição de títulos-valores, mediante tradição. Trata-se, na verdade,
de mercadorias que estão sendo transportadas ou depositadas em
determinados armazéns. O documento expedido toma diversos
nomes, carta de conhecimento no transporte marítimo, carta de
porte no terrestre e de warrants quando depositados em armazéns.
É possível transmitir através de endosso ao próprio comprador das
mercadorias e este a um terceiro; tal documento e esta tradição
têm o efeito não só de representar a entrega corporal, mas e sobre-
tudo de transmitir o direito de propriedade (§ 424, 450, 647 HGB);
por outras palavras, significa que por este modo se transmite a
posse mediata dos bens e também a propriedade através da traditio
simbolica, na suposição de que medeia o acordo transmissivo
(Einigung), necessário conforme exigência do Direito civil.

impulso 149
2777.BK Page 150 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

Por esta razão, diz, Hedemann, se chama a estes documentos


“títulos traditórios” (Traditionspapiere e também títulos reais ou
títulos de disposição: Waren-oder Dispositionspapiere) (op. cit., p.
179).
Serick, 32 referindo-se às garantias mobiliárias “made in Ger-
many”, assinala que faltam normas específicas que se ocupem das
questões fundamentais, dos requisitos e da configuração da trans-
missão em garantia, e em especial da questão de se uma transmis-
são desse tipo (transmissão, não da propriedade plena, mas só da
titularidade fiduciária) é admissível através do acordo sobre a
transmissão da propriedade e o convênio de uma relação jurídica
de mediação possessória (segundo o § 930 BGB), permanecendo
o constituinte da garantia como possuidor imediato, mesmo depois
da tramissão. Este problema, para ele, levantou uma discussão
(que mais tarde se teria tornado obsoleta), sobre a opinião de que
na transmissão em garantia oculta, por meio do constituto posses-
sório (§ 930 BGB) estávamos diante de uma forma de fraude à lei,
já que o BGB, tinha disposto normas relativas ao penhor mobiliá-
rio como sendo o caminho adequado para afetar um bem móvel
em garantia de um crédito, sendo que estas normas estão governa-
das pelo princípio da publicidade.
Há de entender-se que o constitutum possessorium não é
forma admitida para a pignoração, embora seja perfeitamente
admissível, desde o ponto de vista teórico, que alguém possa pro-
por dar em penhor uma ou várias coisas, mas que a causa do tipo
de trabalho do devedor, as precise diariamente, e por isso quer
conservar (de acordo com o § 868 BGB) a posse imediata delas,
transmitindo para o credor a posse mediata, sendo o próprio deve-
dor, o mediador possessório. Mas, a lei não permite esta forma de
negócio. Daí que, por via indireta, é só possível através da trans-
missão em garantia (V. infra).
c) Cessão da pretensão reivindicatória, chamada também,
cessio vindicationis (§ 931 BGB). Esta é a terceira forma suple-
32 SERICK, Rolf. Garantías
Mobiliarias en Derecho Ale- tória, assinalada por Hedemann, que consiste em que o alienante
mán, Edit Tecnos, trad. de Angel não tem em seu poder a coisa mesma, mas que se encontra em
Carrasco Perera, Madrid, 1990,
p. 105-106, v. tb. p. 80-81. mãos de um terceiro, a título de empréstimo, ou por outra razão,
33 A obra de SERICK. Garanti- um roubo, por exemplo. Como não pode entregá-la, mas como
as Mobiliárias en Derecho Ale-
mán, Edit. Tecnos, traduc. de tem uma pretensão contra esse terceiro para que lhe devolva a
Angel Carrasco Perera, Madrid, coisa, (obrigacional ou real ou ambas de vez), cede esta pretensão,
1990, é a base de nossos argu-
mentos. quer dizer, transmite ao adquirente uma pretensão.

150 impulso
2777.BK Page 151 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

TRANSMISSÃO EM GARANTIA 33
O BGB (§ 1204 e ss.) prevê transmissão de bens para garantir
um crédito. É o caso do penhor, em que se exige que a coisa seja
entregue (posse imediata) ao credor pignoratício (§ 1205, 1ª parte).
Trata-se de uma garantia possessória, não sempre conveniente,
quando o devedor precisa da coisa para trabalhar (maquinário,
equipamento), transformar (matéria prima) ou, alienar (mercado-
rias). O penhor funciona sim, no Direito alemão como no Direito
brasileiro, para pequenos empréstimos de dinheiro com garantia
de objetos preciosos (jóias, por exemplo).
Há poucos casos em que o sistema exige, em matéria de
penhor, a inscrição em um registro especial em lugar da tradição
do bem: cabos submarinos, (L. de 25 de março de 1925, RGBl. I,
p. 37) e aeronaves (L. de 25 de fevereiro de 1959, Gezetz über
Rechte an Luftfahrzeungen, BGBl. I, p. 57). Também é possível,
dar em penhor, sem deslocamento do bem, no penhor agrícola, se
feito por escrito e depositado no Tribunal Cantonal (L. de 5 de
agosto de 1951 sobre a organização de arrendamentos agrícolas,
Pachtkreditgesetz, BGBl. I, p. 494). O direito de penhor pode se
dar sem desposse, como é o caso do penhor legal atribuído ao
locador de um prédio sobre os bens móveis introduzidos pelo
locatário (§§ 559 a 561 BGB) 34.
Entende Hedemann que no Direito alemão está excluída a
utilização do constitutum possessorium para a pignoração,
devendo dar-se um rodeio, utilizando-se de uma via quase clan-
destina para chegarmos à transmissão em garantia. 35
A transmissão em garantia no Direito alemão (não penhor)
de coisas móveis, se faz valer hoje graças ao direito consuetudiná-
rio, já que no BGB não há previsão a respeito. 36
De um modo geral, o estudo da transmissão de bens móveis,
créditos ou direitos, quando se trata de negócios de garantia, é
assunto complexo, já que nas garantias mobiliárias, há, de parte do
adquirente, uma retenção não definitiva, e mesmo que seu titular o 34 FROMONT, Michel et RIEG,
seja de um direito pleno, conserva a propriedade só de um modo Alfred, op. cit. Tome III Droit
Privé, p. 185.
temporário (em fidúcia) para a segurança de um crédito.
35 HEDEMANN, J. W. op. cit.
Nos empréstimos (mútuo, especialmente) é comum este tipo p. 178.
de garantia (os bancos são exemplo disto) com a diferença do tra- 36 A base estaria no art. 2º da
tamento dado pelos administradores de bens que utilizam da Lei de Introdução ao Código
reserva de domínio como garantia. Civil (BGB) no entendimento
de que “lei” é toda norma jurí-
No Direito alemão, tecnicamente é possível transmitir em dica escrita ou não. Nesse senti-
do V. SERICK, Rolf, op. cit.,
garantia não só bens móveis como imóveis, mas, parece que neste p. 26-27.

impulso 151
2777.BK Page 152 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

último caso, seria mais efetivo impor um ônus hipotecário, por


exemplo, do que fazer um ato translativo do bem em garantia, quer
por resultar custosa a documentação, quer por razões fiscais (dupla
tributação).
Quanto à cessão de créditos ou de direitos em garantia, há no
BGB regulação sobre sua penhora, mas nada sobre transmissão
em garantia de créditos ou direitos. A origem é consuetudinária no
sentido já expressado.
O Supremo Tribunal Federal (em sentença proferida em 24-
10-79) entendeu que propriedade em garantia, não é um domínio
pleno: o objeto desta propriedade é garantir satisfação plena de um
crédito, permancendo o devedor, no uso e exploração da coisa. 37
Prevê o § 930 do BGB transmissão em garantia através do
constituto possessório, quando por exemplo o concedente da garan-
tia continua na posse (imediata) do bem não como proprietário mas
como depositário (§ 868) e o adquirente fica com a posse mediata.

RESERVA DE DOMÍNIO
O BGB prescreve que, se o vendedor de uma coisa móvel
tem-se reservado a propriedade até o pagamento do preço, deve
entender-se que a transmissão de propriedade está sujeita à condi-
ção suspensiva do pagamento completo do preço (§ 455). Quer
dizer que o negócio obrigacional não está submetido à condição,
ele é puro e simples; o negócio de cumprimento é que está sujeito
à condição. A regra é apenas válida para bens móveis. Não acon-
tece isto com a transmissão da propriedade de bens imóveis por
expressa proibição do § 925 concordante com o § 873: o entendi-
mento é que o negócio obrigacional (Auflassung) não pode nem
deve ser submetido à condição.
Serick, 38 chama a atenção para o fato de que a reserva de
domínio e a transmissão em garantia têm tido um desenvolvi-
mento com assombrosa vida própria fora do direito escrito desde a
entrada em vigor do BGB em 1900 até nossos dias, sendo que o §
455 previu a forma básica da reserva de domínio. Sem embargo,
esta forma básica tem derivado em direção de uma obra de arte
juridicamente mais perfeita, devido sobretudo às técnicas de pro-
longação e ampliação da reserva de domínio e ao direito de expec-
tativa do comprador sob reserva. Adverte também que faltam
37 SERICK, op. cit., p. 33. regras sobre a transmissão em garantia, – quer dizer, sobre a trans-
38 SERICK, op. cit., p. 101. missão em garantia de bens móveis, a cessão em garantia de cré-

152 impulso
2777.BK Page 153 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

ditos e direitos –, e que só aparece aludida no § 223 do BGB, rela-


tivo à prescrição.
Nos bens móveis, o contrato de compra e venda, sujeito ao
Direito obrigacional, é a causa da transmissão da propriedade, e
não só causa como razão que dá fundamento ao comprador para
permanecer com a coisa. Mas não é suficiente, há necessidade de
um segundo ato, o acordo transmissivo. Pode ser que a causa seja
considerada ineficaz e o acordo transmissivo eficaz, isto graças ao
princípio de abstração do Direito alemão.
Portanto, como já lembrado por Hedemann, a transmissão do
direito da propriedade se dá por acordo e entrega da coisa (§ 925),
ou pelas formas subrogadas dos § 930 (constituto possessório) e §
931 (cessão da pretensão à devolução).
Daí que, o acordo transmissivo é um convênio abstrato, inde-
pende da causa, quer dizer, do acordo obrigacional, que pode até
ser, em princípio, nulo e que daria lugar a que haja enriquecimento
ilícito, caso em que deveria seguir-se o caminho inverso (§ 929).
Nesse contexto a compra e venda com reserva de domínio é
uma venda, que no acordo obrigacional em nada se diferencia do
negócio puro e simples de compra e venda de bens móveis; dife-
rencia-se sim, na transmissão, que a lei supõe, sujeita à condição
suspensiva. O vendedor permanece como proprietário pleno pen-
dente conditione, mas por outro lado, cumprida a condição, o direito
de propriedade passa automaticamente ao comprador (§ 158).
Como Serick, 39 entendemos que neste caso, reserva de domínio, há
uma quebra do princípio de abstração, pelo qual a condição faz o
papel de nó que une ambos negócios, o obrigacional com o real.
Segundo Rodríguez-Cano, 40 foi tese de Blomeyer (1939) a
que equipara a reserva de domínio à constituição de um direito de
penhor sobre a coisa vendida na compra-venda a prazos das coisas
móveis. Posição que sofreu muitas críticas; segundo as quais, esta
doutrina,

“presupone, someter la tradición, del vendedor al com-


prador, a una condición resolutoria, (puesto que al
39 SERICK, op. cit. p. 46.
acreedor prendario, es decir, al vendedor, se le trans-
mite, la propriedad de la prenda bajo la condición sus- 40 BERCOVITZ, RODRÍGUEZ-
pensiva del impago del precio) y ello es claramente CANO, Rodrigo. La Cláusula
de Reserva de Dominio. Estudio
contradictorio con el § 455 del BGB que construye la sobre su naturaleza jurídica en
reserva de dominio como un sometimiento a condición la compraventa a plazos de bie-
nes muebles, Edit. Moneda y
suspensiva de la mencionada tradición”. Crédito, Madrid, 1971, p. 15-17.

impulso 153
2777.BK Page 154 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

Sobre a cláusula de reserva de domínio e o tipo de condição


a que estaria submetido o negócio, deve lembrar-se que quando da
redação do Código Civil alemão, as duas comissões 41 designadas
tinham pareceres contraditórios a respeito. Enquanto a primeira
delas assegurava que a venda com reserva de domínio estava sub-
metida a uma condição resolutiva, a segunda afirmava estar sub-
metida a condição suspensiva, critério que prevaleceu no § 455 do
BGB. Segundo a doutrina da condição resolutiva, não é verdade
que seja a vontade das partes a vinculação da transmissão da posse
com a tradição, e que a solução dada pelo BGB é duplamente cho-
cante, porque contradizia múltiplas legislações particulares (o
Código Civil de Saxônia equipara a reserva de domínio ao direito
de penhor ou ao de hipoteca, quando tem por finalidade garantir
um direito de crédito).
A conseqüência lógica, segundo Rodríguez-Cano, de ver na
reserva de domínio um direito de penhor seria, na realidade, seu
efeito principal: que o vendedor poderá dar lugar a uma alienação
da coisa sobre a que constitui a garantia, cobrando seu preço sobre
41Faz-se referência à nomeação o preço conseguido, mas em momento algum, poderá apropriar-se
pelo Conselho Federal em ju-
nho de 1874 de uma “Primeira diretamente da coisa.
Comissão” (Erste Kommision) Pergunta Rodríguez-Cano, por que Blomeyer não se acolhe a
de 11 membros, entre altos fun-
cionários do MInistério da Jus- uma solução tão simples e totalmente compaginada com a sua
tiça, magistrados e de dois
professores universitários, entre tese? Uma razão, diz, há de ser as conseqüências práticas que a
os quais o célebre romanista doutrina alemã atribui à reserva de domínio. A outra razão, deve
WINDSCHEID; este “Primeiro
Projeto” (I. Entwurf, E I), publi- ser o fato de que Blomeyer
cado em 1888, acompanhado de
uma Exposição de Motivos
(Motive) de 5 volumes, recebeu “apuntaba que la especialidad que presenta (de acuerdo
vivas críticas pelo seu caráter
doutrinário e extremamente téc- com la doctrina alemana), la reserva de dominio como
nico, ininteligível para a grande derecho de prenda en cuanto a sua ejecución, se debía
massa alemã e muito pesado
para os próprios juristas e, da a que dicha reserva de dominio no solo garantizaba el
nomeação de uma “Segunda
Comissão” (Zweite Kommission) pago del precio, sino también la recuperación de la
feita pelo mesmo Conselho em cosa por el vendedor en cualquier supuesto de inefica-
dezembro de 1890 formada de
11 membros permanentes e 12 cia originaria o sobrevenida de la compra venta. Y es
não permanentes, cujo projeto, o que frente al principio de la abstracción, vigente en
“Segundo Projeto” (Zweiter En-
twurf, E II), com algumas Alemania para las transmisiones patrimoniales, la
modificações de importância
variável foi submetido pelo cláusula de reserva de dominio da lugar a una cone-
Conselho Federal ao Reichstag xión de la tradición (causalización del negocio disposi-
em 1º de julho de 1896 sob a
denominação de “Terceiro Pro- tivo) con el negocio obligacional de compra venta, en
jeto” (Dritter Entwurf, E III). Ver
nesse sentido, FROMONT, Mi- tanto en cuanto su eficacia definitiva depende de la
chel e RIEG, Alfred (et alii), op. vigencia y cumplimiento de éste. Es, pues, esta segunda
cit., Tome I Les Fondements, pá-
gs. 70-75. función de la reserva de dominio la que obliga a man-

154 impulso
2777.BK Page 155 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

tener esa eficacia, aunque se pudiese afirmar también


en Alemania que dicha reserva implica una condición
resolutoria, impuesta al negocio dispositivo”. 42

Concluindo, para Rodríguez-Cano, seria um desastre permitir


que na reserva de domínio se garanta diretamente ao vendedor com
a propriedade da coisa. Seria a via para defraudar a proibição do
pacto comissório, o que reforça a idéia de que a reserva de domínio
submete o negócio dispositivo a uma condição suspensiva
Esta posição, submetimento à condição suspensiva, foi,
segundo Rodríguez-Cano, a mantida por Candil, em 1915, na sua
monografia sobre o “Pactum reservati dominii”, o primeiro a estu-
dar no ordenamento espanhol esta figura, o que a torna de obriga-
tória referência, segundo este autor, sendo que só Oertmann em
1930 publicou um artigo na Revista de Direito Privado.
Candil considera que no Direito romano a transmissão da
propriedade não se produzia, apesar da entrega da coisa, até o
pagamento do preço desta. Comenta ainda que essa norma não é
senão uma acertadíssima interpretação da vontade das partes; daí
que essa suposta vontade pudesse modificar-se por outra contrária
expressada por elas mesmas: quando se oferecia uma garantia real
ou pessoal para o pagamento do preço ou quando o vendedor se
fiava simplesmente do comprador (o que se entendia sempre que
se assinalava um prazo para a paga do preço). De acordo com esta
intepretação do Direito romano, parece lógico admitir, nele, a vali-
dade do pactum reservati dominii, embora se conceda crédito (adi-
antamento do pago do preço) ao comprador: posto que com a von-
tade das partes se pode evitar a aplicação da regra geral, (precisa-
mente por que esta é interpretação da vontade normal das mes-
mas), lógico é que essa mesma vontade, devidamente expressa,
possa produzir o efeito de voltar a essa regra geral. 43
A diferença entre a propriedade sujeita a garantia fiduciária e
a propriedade reservada está na função que cumpre a garantia nes-
tas duas formas de propriedade. Aparece com maior nitidez no
concurso de credores. 42 BERCOVITZ, RODRÍGUEZ-
CANO, Rodrigo, op. cit. p. 93-
Na propriedade em garantia, decorrente de um convênio (de 94. V. também, pp. 73-94 em
que trata da Reserva de domínio
garantia), em que há apenas uma pretensão obrigacional de restitui- e a classe de condição a que se
ção, se satisfeito o crédito, o credor tem um direito de preferência submete a tradição.
para ser pago sobre uma coisa que é da massa. Na propriedade 43BERCOVITZ, RODRÍGUEZ-
CANO, Rodrigo, op. cit. p. 75-
reservada, que é um domínio ordinário, o pretendente tem direito 78.

impulso 155
2777.BK Page 156 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

a exigir separação da massa, já que se trata de propriedade sepa-


rada e distinta daquela. 44
Diferentemente do entendimento doutrinário e jurisprudencial
alemão, na alienação fiduciária em garantia, o Tribunal pátrio
entendeu que a propriedade é do credor, dizendo que o bem é impe-
nhorável, distinto da massa. “Ademais, o bem disputado é de exclu-
siva propriedade do credor, por se tratar de contrato com cláusula de
alienação fiduciária (D.L. 911/69, art.. 1º), não podendo, destarte,
haver arrecadação em favor da massa no processo de insolvência
(CPC art. 776). É que apenas os bens penhoráveis serão objeto de
arrecadação (art. 775), e entre eles não se inclui o entregue ao deve-
dor mediante garantia fiduciária”. “Na alienação em garantia não
há dupla propriedade. Há propriedade única e exclusiva do credor
fiduciário, que se extingue com o pagamento da dívida, quando se
transfere automaticamente ao devedor. Este, antes do pagamento, é
mero depositário, não podendo por isso incidir penhora sobre o
bem alienado, para garantir crédito de outros credores” (RT 450/
270, 504/150 e 531/235”. “Tem-se decidido, aliás, que, “em caso
de falência do devedor, o proprietário da coisa alienada, conforme
o D.L. 911/69, pode pleitear a restituição do objeto da alienação
fiduciária (RT 440/118, 453/175, 478/73, 507/185, 534/67, 551/77 e
599/249)”. [V. RT 629/408 (RHC 65.748-6-SP 1ª turma J. 12-02-88,
relator M. O Correia DJU 11-03-88)].
Como lembrado, o vendedor com reserva de domínio sujeito
a condição resolutiva (desde o ponto de vista do vendedor), ou
melhor, cuja obrigação de entrega está sujeita a condição suspen-
siva do pagamento total do preço, conserva esta posição até dar-se
situação de condição cumprida. O comprador tem, por sua vez,
certeza de que adquirirá a propriedade assim que terminar de
pagar o preço: ele tem uma expectativa de direito. O Supremo Tri-
bunal Federal alemão [in BGH de 20-02-84, ZIP, 1984, pp. 420 e
ss. (primer grado de la propiedad)] 45 tem declarado que “o direito
44 De conformidade com os §§
48 e 43 KO (Ordenança Con- de expectativa é um primeiro grau (Vorstufe) da propriedade”.
cursal de 10-02-1977), no pri- Esta expectativa representa, pois, um valor patrimonial, capaz
meiro caso apenas há direito a
exigir preferência sobre a coisa de ser transmitido em garantia para obtenção de um crédito
para satisfazer o crédito; já no
segundo, trata-se de um proprie- (transmissível a um credor do comprador nos termos dos §§ 929,
tário pleno com direito a separa- 930 BGB). [BGH de 24-10-1979 (Az VIII, ZR 289/78), BGHZ, 75,
ção. Nesse sentido V. SERICK,
op. cit. p. 43 e 120 a 122. pp. 221, 227], 46 mas deve advertir-se, imediatamente, que esta
45 SERICK, op. cit. p. 45. transmissão pode resultar ineficaz se a expectativa decorrente de
46 SERICK, op. cit. p. 44. contrato obrigacional resulta nula, ou melhor, resulta diminuída na

156 impulso
2777.BK Page 157 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

sua eficácia real, por ser dependente de um negócio obrigacional


causal.
Assim, acordo e tradição (ou às vezes só acordo, nos termos
dos §§ 929 e 930 BGB) passam ao segundo adquirente (o credor
em garantia de um direito de expectativa) com esta limitação.
A transmissão de um direito de expectativa está sujeita, como
deve ter sido advertido, a uma condição resolutiva, na medida em
que o devedor, ao pagar o débito, recupera a propriedade automa-
ticamente.
O direito de expectativa, não regulado pelo Código Civil, mas
reconhecido pela doutrina e pela jurispendência, é de natureza
híbrida, já que participa do Direito das Obrigações e do Direito das
Coisas. Precisa, para nascer, de sua causa jurídica: o contrato de
venda com reserva de domínio, de inteiro domínio do Direito obri-
gacional. Porém, seus efeitos, se cumprida a condição, são reais.
Com efeito, Serick entende que este “direito de expectativa”
(Antwartschaftrecht) tem uma dupla natureza obrigacional-real, e
afirma que o Supremo Tribunal Federal tem subscrito esta posição,
refirindo-se

à transmissão em garantia do direito de expectativa e à


situação do segundo adquirente a respeito da relação
vendedor-comprador sustenta que: na primeira relação
jurídica, não existe nehum direito de expectativa quando
o contrato obrigacional não existe, ou o resultado é nulo
ou ineficaz; nestas condicções resulta excluída a possi-
bilidade de uma aquisição a non dominio do direito de
expectativa, pois, não resulta protegida a errônea
crença sobre a existência do crédito sobre o preço de
venda. 47 Igualmente, extingue-se automaticamente o
direito de expectativa do segundo adquirente do mesmo
quando o vendedor, titular da reserva rescinde o contrato
por mora do comprador (BGHZ – Repertório de
Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal alemão –
35, 85, 94) ou quando o contrato é impugnado. O direito
de expectativa, um primeiro grau da propriedade
(BGHZ, 28,16,27) resulta diminuído na sua eficácia
própria do direito real como conseqüência de sua
dependência com o negócio obrigacional causal. 48
47RAISER, op. cit., p. 38;
A exigência de um ato de entrega, no penhor, regulado pelos SERICK, op. cit., p. 271.
§§ 1204 a 1258 BGB, única forma de garantia para um empréstimo 48 SERICK, op. cit., p. 45.

impulso 157
2777.BK Page 158 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

com feição de coisa móvel, deriva do princípio da publicidade.


Cumpre a entrega função de exteriozação, concordante com o
§ 929 relativa à transmissão de uma coisa móvel. Para ambas, a
situação de entrega em garantia ou transmissão da propriedade
modificadora da situação jurídica se exterioriza através da entrega.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BERCOVITZ RODRÍGUEZ-CANO, Rodrigo. La Cláusula de
Reserva de Dominio. Estudio sobre su naturaleza jurídica en la
compra y venta a plazos de bienes muebles, Madrid: Edit.
Moneda y Crédito, 1971.
Código Civil Alemão (BGB) §925. Trad. Souza Diniz. Rio de
Janeiro: Record, 1960.
ENNECCERUS, KIPP, WOLFF. Tratado de Derecho Civil. Barce-
lona: Bosch, 1935.
FROMONT, Michel, RIEG, Alfred e outros. Introduction au Droit
Allemand. République Fédérale. Paris: Éditions Cujas, Droit
Privé, 1991.
HEDEMANN, J.W. Tratado de Derecho Civil. Madrid: Revista de
Derecho Privado, 1955.
MAGALHÃES, Vilobaldo Bastos de. Compra e Venda e Sistemas
de Transmissão da Propriedade. Rio de Janeiro: Forense, 1981.
SERICK, Rolf. Garantias mobiliarias en Derecho Alemán. Trad.
Angel Carrasco Perera. Madrid: Tecnos, 1990.
TEIXEIRA, José Guilherme Braga. O Direito Real de Superfície.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993.
Abreviações
BGB Bügerliches Gesetzbuch (Código Civil)
BGBI Bundesgesetzblatt (Diário Oficial)
BGHZ Entscheidungen des Budesgerichtshofs in Zivilsachen
(Acórdãos do Supremo Tribunal Federal em matéria civil)
CPC Código do Processo Civil
D.L. Decreto Lei
GBO Ordenança do Registro Imobiliário
HGB Haldelsgesetzbuch (Código do Comércio)
RHC Recurso de Habeas Corpus
RT Revista dos Tribunais (Jurisprudência)

158 impulso
2777.BK Page 159 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

ZIP Zeitschrift für Wirtschaftsrecht und Insolvenzpraxis,


1980 ss. (desde 1983: Zeitschrift für Wirtschaftsrecht.

impulso 159
2777.BK Page 159 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

UNIÃO ESTÁVEL:
ANTIGA FORMA DE CASAMENTO DE FATO
ÁLVARO VILLAÇA AZEVEDO

Foi aprovado, na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº


1.888, de 1991, de autoria da Deputada Beth Azize, em que figu-
rou como Relator o Deputado Edesio Passos, fundamentado parcial-
mente no Esboço de Anteprojeto de lei, às páginas 280 a 283, de
meu livro “Do concubinato ao casamento de fato” (2ª ed. Belém:
Cejup, 1987. 306 p.).
Atualmente, esse mesmo Projeto de Lei encaminhou-se ao
Senado Federal, tomando o nº 84, de 1994, tendo como relator o
senador Wilson Martins. Este projeto, mais completo, resgatou
artigos do meu aludido Esboço, que tinham sido retirados do Pro-
jeto originário, da Câmara dos Deputados. Tudo para que seja
regulamentada a União Estável, prevista no parágrafo 3º do artigo
226 da Constituição Federal, como uma das formas de instituição
da família brasileira.

BREVES ASPECTOS HISTÓRICOS


Na antigüidade a família era em geral constituída por meio
de celebrações religiosas ou por meio de simples convivência. No
Direito Romano a mulher passava a integrar a família de seu
marido, pela conventio in manum, sujeitando-se à manus, que era
o poder marital, por uma das seguintes formas de constituição
familiar: a) pela confarreatio, que consistia em uma cerimônia
religiosa, reservada ao patriciado, com excessivas formalidades,
com a oferta a Júpiter de um pão de farinha (panis farreum), que

impulso 159
2777.BK Page 160 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

os nubentes comiam, juntos, realizada perante dez testemunhas e


perante o Sacerdote de Júpiter (flamen Dialis); b) pela coemptio,
casamento privativo dos plebeus, que implicava a venda simbólica
da mulher ao marido, assemelhando-se pela forma à mancipatio; e
c) pelo usus, que era o casamento pela convivência ininterrupta do
homem e da mulher, por um ano, em estado possessório, que auto-
maticamente fazia nascer o poder marital, a não ser que, em cada
período de um ano, a mulher passasse três noites fora do lar con-
jugal (trinoctii usurpatio).
Além dessas formas de casamento, existiu o concubinato em
Roma, regulamentado de modo indireto à época do Imperador
Augusto pelas Lex Iulia e Papia Poppaea de maritandis ordinibus.
Embora tendo reprovado o concubinato, como forma de
constituição de família, a Igreja Católica tolerou-o, quando não se
cuidasse de união comprometedora do casamento ou quando
incestuosa, até sua proibição pelo Concílio de Trento, em 1563.
Ressalte-se em verdade que a existência do casamento nos
moldes de antigamente, sem os formalismos exagerados de hoje,
não possibilitava, praticamente, a formação familiar sob o modo
concubinário.
Realmente, bastava que um homem convivesse com uma
mulher, por algum tempo, como se casados, com ou sem celebra-
ção religiosa, para que se considerassem sob casamento. Isto, por-
que, nessa época, o concubinato puro, não adulterino nem inces-
tuoso, que é utilizado hoje como modo de constituição de família,
era o casamento de fato, provado por escritura pública ou por duas
testemunhas.
Esse o casamento de fato, que, sob a singela forma de convi-
vência no lar, selava a união dos cônjuges, sob o pálio do Direito
Natural.
O concubinato, portanto, existia, somente, adulterino, como
concorrente e paralelamente ao casamento, de modo excepcional e
desabonador da família.
Todavia, desrespeitando essa lei natural e simples, entendeu
o legislador de criar formalismos ao casamento, criando-o de
modo artificial, na lei, quando em verdade ele é um fato social,
que a legislação deve regular somente no tocante a seus efeitos,
para impedir violações de direitos.
Assim, editou-se no Brasil o Decreto nº 181, de 24 de janeiro
de 1890, que secularizou o casamento. A partir dele, o formalismo

160 impulso
2777.BK Page 161 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

tomou conta da legislação brasileira, em matéria de casamento,


reeditando-se o sistema no Código Civil.
Com isso, deixou o Estado brasileiro não só de considerar o
casamento de fato (por mera convivência duradoura dos cônjuges),
bem como o casamento religioso, que, hoje, por si só, sem o poste-
rior registro civil, é considerado concubinato. Não tem ele existên-
cia autônoma, independente, como antes desse Decreto de 1890.

CAUSAS DO CONCUBINATO
A par desse sistema formal, com muitos óbices à separação,
e a par das dificuldades ao registro do casamento religioso, surgiu
paralelamente uma nova tendência de constituição de família, pelo
concubinato, que existe com grande intensidade nos países latino-
americanos.
Ressalte-se, como visto, e mais uma vez que, entre nós, a
falta de registro civil do casamento religioso, base secular de cons-
tituição de família, importa concubinato.
É certo ainda que, com o advento do progresso e a agitação
nos centros urbanos, diminuiu sobremaneira e paulatinamente a
tolerância e a compreensão dos problemas aflitivos dos casais,
levando esse estado de coisas aos desquites (hoje, separações judi-
ciais). Como crescesse o número de desquites, era preciso que se
possibilitasse a existência do divórcio pela reforma constitucional,
que só ocorreu em meados de 1977.
Embora a sociedade brasileira reprovasse o concubinato,
também como forma de constituição familiar, no começo do
século, o certo é que, com esse número crescente de desquitados,
impossibilitados de se casarem, eles constituíram suas novas famí-
lias à margem da proteção legal, cumprindo o desígnio da lei natu-
ral de que o homem é animal gregário e necessita dessa convivên-
cia no lar.
Quando surgiu a lei do divórcio, a par de nova filosofia libe-
ral do povo, já a sociedade acostumara-se à família concubinária,
que preenche atualmente grande espaço de nossa sociedade, com
problemas seríssimos que necessitam de cuidados legislativos.

CONCEITO E ESPÉCIES DE CONCUBINATO


Todavia, neste passo é indispensável que se conceitue o con-
cubinato por suas espécies, para diferenciá-las devidamente.
Em sentido etimológico, concubinatus, do verbo concumbere ou

impulso 161
2777.BK Page 162 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

concubare (derivado do grego), significava, então, mancebia, abar-


regamento, amasiamento.
Apresenta-se esse vocábulo atualmente com dois sentidos:
amplo e estrito. Pelo sentido amplo ou “lato”, significa todo e
qualquer relacionamento sexual livre; pelo sentido estrito, é a
união duradoura, constituindo a sociedade familiar de fato, com
affectio societatis, respeito e lealdade recíprocos.
Como se pode aquilatar, esse sentido amplo compreende
inclusive a concubinagem, com relacionamentos reprováveis, tal,
por exemplo, o adulterino, que leva uma pessoa casada a conviver,
concubinariamente, em concorrência com sua vida conjugal.
Daí a necessidade de fixar-se o conceito de concubinato em
sua significação estrita, com fundamento no artigo 1.363 do
Código Civil, onde se assegura que a sociedade de fato nasce do
somatório recíproco de esforços, pessoais ou materiais, para a
obtenção de fins comuns.
À falta de outro dispositivo legal mais específico, é nesse que
se encontra a base da constituição da família de fato, que se mostra
pela coabitação dos concubinos, como se casados fossem, presos
pela affectio societatis, com a responsabilidade de provisão do lar
pelo concubino, com o auxílio de sua mulher, cuidando ambos de
sua prole. Por isso que nenhuma sociedade pode existir sem a
colaboração e a lealdade dos sócios.
Com esses dados e elementos é possível agora conceituar o
concubinato, abrangendo todas as suas espécies, como a união
estável, duradoura, pública e contínua, de um homem e de uma
mulher, não ligados por vínculo matrimonial ou concubinário, mas
convivendo como se casados, sob o mesmo teto ou não, consti-
tuindo, assim, sua família de fato.
Desses elementos surgem as espécies de concubinato: puro e
impuro. É puro o concubinato, quando se constitui a família de
fato, sem qualquer detrimento da família legítima ou de outra
família de fato (este poderá rotular-se, também, de concubinato
leal). Assim, ocorre, por exemplo, quando coabitam solteiros,
viúvos e separados judicialmente, sob essa forma familiar.
Impuro é o concubinato, se for adulterino, incestuoso ou des-
leal, como, respectivamente, o de um homem casado, que mante-
nha, paralelamente a seu lar, outro de fato; o de um pai com sua
filha; e o de um concubino formando um outro concubinato.
Ressalte-se, neste passo, que, segundo meu entendimento, se
o concubinato for adulterino ou desleal, mas o concubino faltoso

162 impulso
2777.BK Page 163 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

estiver separado de fato de seu cônjuge ou de seu concubino ante-


rior, cessará a adulterinidade ou a deslealdade, tornando-se puro
seu concubinato.
Entendo que o concubinato puro ou concubinato simples-
mente, ou união estável, na expressão atual de nossa Constituição,
deve merecer por parte dos Poderes Públicos completa proteção;
diferentemente do que deve suceder com o concubinato impuro ou
concubinagem. Aduz-se que deste último não devem em geral ser
protegidos seus efeitos, a não ser no concubinato de boa fé, como
acontece analogamente com o casamento putativo, e para evitar
locupletamento indevido, quando a concubina, mesmo em adul-
tério, aumenta o patrimônio do concubino casado.

CONCUBINATO E SOCIEDADE DE FATO


Nossas Doutrina e Jurisprudência têm diferenciado a situa-
ção concubinária da sociedade de fato.
Realmente, a par do concubinato, vislumbrado em conceito
já expendido, a comprovação da existência de sociedade de fato,
patrimonial, entre os concubinos, é exigida pelo Supremo Tribunal
Federal, pelo princípio sumulado sob nº 380, para que se possibi-
lite a dissolução judicial societária, com a partilha dos bens adqui-
ridos pelo esforço comum.
Em apoio a essa súmula, têm entendido nossos Tribunais que
o simples concubinato não gera direitos ao patrimônio do compa-
nheiro, sendo indispensável a prova para formação da sociedade
de fato, com a efetiva colaboração econômica ou financeira dos
concubinos, a realização de seu patrimônio comum.
Em que pese esse posicionamento de torrencial jurispru-
dência, entendo que, sendo o concubinato puro, união estável,
basta a convivência concubinária, para que seja de admitir-se o
condomínio. Neste caso, deve presumir-se o esforço comum dos
concubinos, pois não se uniram eles sob mera sociedade de fato,
em qualquer empresa em que se vislumbre interesse meramente
econômico, mas com o propósito de constituírem sua família.
Esta última posição encontra respaldo em alguns acórdãos de
nossos Tribunais.
Mas esse apoio à relação concubinária pura, que pretendo,
deve ser retirado quanto ao concubinato impuro ou desleal; nesse
caso deve ser exigida prova da aquisição patrimonial.
Entretanto, a atual súmula 380, citada, não diferencia entre as
espécies de concubinato, exigindo essa participação comum, na

impulso 163
2777.BK Page 164 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

aquisição proprietária, tanto numa quanto noutra espécie de con-


cubinato. E, exigindo essa participação efetiva, de cunho econô-
mico, a mesma súmula iguala a sociedade concubinária com outra
qualquer, alheia aos desígnios familiares, negando o cunho de
contribuição espiritual, que existe no lar.

REGULAMENTAÇÃO DO CONCUBINATO
É certo que a família de fato vive em maior clima de liber-
dade, do que a família de direito.
Todavia, a excessiva liberdade, em Direito, é muito perigosa,
pois acaba por escravizar o mais fraco. Tudo porque essa liber-
dade não pode ser totalmente desapegada de regulamentação, há
que ser condicionada, pois ela termina, onde outra começa.
Assim, o Estado tem interesse em proteger as pessoas, evitando
lesões de direito.
No fundo, o amor que liga os conviventes, ao primeiro
impacto da união, é como a afeição dos sócios em uma empresa
qualquer: pode acabar. Entretanto, quando uma sociedade civil ou
comercial termina, não é o mesmo que o findar de uma sociedade
de família. Esta é mais apegada a regras morais e religiosas, ao
Direito Natural, devendo ter uma proteção maior, no âmbito do
Direito de Família, para que se respeite a célula, onde, no mais das
vezes, com o nascimento de filhos, grava-se a natureza pela des-
cendência, contrariando qualquer reprovação, que possa existir
contra essa situação fática.
Na sociedade familiar de fato, como na de direito, os interes-
ses são, preponderantemente, de cunho pessoal e imaterial. Isto,
sem se cogitar do interesse maior do Estado, em preservar sua pró-
pria existência, mantendo no lar, as famílias, em relativo estado de
felicidade e de segurança financeira.
Porém, ao lado dessa liberdade convivencial, impõe-se a res-
ponsabilidade, para que, em nome daquela não cresça demais o
direito de um concubino, a ponto de lesar o do outro.
A família de fato não pode viver sob um clima de liberdade
sem responsabilidade, tanto que, mesmo sem estar regulamentada,
legalmente, em um só todo, já algumas normas existem a seu res-
peito, talhadas na lei, na jurisprudência e na doutrina.
Não se pode em sã consciência admitir que o regramento de
conduta, na família de fato, seja inibidora da liberdade, porque, em
Direito, cuida-se da liberdade jurídica, que vive no complexo do
relacionamento humano, com as limitações necessárias.

164 impulso
2777.BK Page 165 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

Realmente, se é licito que duas pessoas vivam como marido


e mulher, sem serem casadas, não há que admitir-se que, em caso
de abandono ou de falecimento, bens fiquem em nome de uma
delas, embora, por justiça, pertençam a ambos. Essa liberdade seria
escravizante a possibilitar lesão, enriquecimento ilícito, o que é
incompatível com o pensamento jurídico. O Estado há que intervir
nessas situações, sendo melhor que o faça antes, regulamentando a
matéria relativa à família de fato. Essa regulamentação, pelo Esta-
tuto da União Estável, que venho propondo, deve mantê-la em sua
forma natural, preservando-se a liberdade dos conviventes, mas
sob clima de responsabilidade, para que exista segurança, em caso
de lesão. Esta deve ser, sempre, prevista, para ser repelida.
Esse é o meu lema, para a regulamentação da união estável:
Liberdade com Responsabilidade.

CONSTITUIÇÃO DE 1988
A Constituição de 1988, pelo parágrafo 3º de seu artigo 226,
reconheceu o concubinato puro, não adulterino nem incestuoso,
como forma de constituição de família, como instituto, portanto,
de Direito de Família.
Houve, por bem, ainda, o legislador constituinte substituir a
palavra concubinato, pela expressão união estável, para inaugurar
nova era de compreensão aos conviventes, respeitando seus direi-
tos e sua sociedade de fato, que sempre existiu, antes do Decreto
nº 181, de 1890, sob forma de casamento de fato ou presumido.
Por outro lado, entretanto, não estendeu essa mesma
Constituição ao casamento religioso, como entendo correto, os
efeitos do casamento civil, para recuperar sua antiga dignidade,
ante o Estado. Limita-se ela, por seu artigo 226, parágrafo 2º, a
dizer, do mesmo modo que a anterior, que “O casamento religioso
tem efeito civil, nos termos da lei”. Esta, entretanto (Lei nº 1.110,
de 23 de maio de 1950), só admite tal efeito quando pré ou pós-
existe a habilitação para o casamento civil.
Assim, tanto o casamento civil, como o religioso, com suas
formalidades próprias, devem existir, no meu entender, automática
e independentemente.
A união estável precisa ser regulamentada, para que não exis-
tam abusos entre os conviventes, que devem ser livres na convi-
vência, mas responsáveis.

impulso 165
2777.BK Page 166 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

CASAMENTO DE FATO E UNIÃO ESTÁVEL


Como visto, tanto a união estável como o antigo casamento
de fato nascem espontânea e naturalmente na sociedade, isentos de
formalismos. Em verdade, a união estável de hoje, nada mais é, na
sua aparência, do que o antigo casamento de fato ou presumido.
Entretanto, no casamento de fato os conviventes sentem-se
casados, como esposos, porque são casados, tal como no casa-
mento da common law, que existe hoje em alguns Estados ameri-
canos, assim como por comportamento do Estado de Tamaulipas,
no México, no da Escócia e no casamento de fato ou clandestino
admitido pelas Ordenações Filipinas, até o advento do aludido
Decreto nº 181, de 1890, que instituiu entre nós o casamento civil.
Desse modo, pelo casamento de fato, desde o início da con-
vivência, sem quaisquer formalidades de celebração, ainda que
religiosa, existe o casamento presumido.
Na união estável a liberdade dos conviventes é maior porque
vivem como se fossem marido e mulher, mas sem o serem em ver-
dade. Não existe o estado conjugal, mas, meramente, o conviven-
cial ou concubinário.
Por outro lado, destaque-se que, sob o prisma psicológico,
atualmente, as pessoas casadas só religiosamente, sem que tenha
existido registro de seu casamento, embora se sintam casadas,
vivem sob o regime da união estável.

LEI 8.971, DE 29.12.1994


Com a edição da Lei nº 8.971, de 29/12/1994, regulou-se o
“direito dos companheiros a alimentos e à sucessão”.
O art. 1º, dessa lei, concede à companheira ou ao compa-
nheiro, na união estável (concubinato puro), após a convivência de
cinco anos ou a existência de prole, o direito de alimentos, nos
moldes da Lei nº 5.478, de 25/07/1968, “enquanto não constituir
nova união e desde que prove a necessidade”.
Confesso que, em princípio e pelo meu Esboço de Antepro-
jeto de “Estatuto dos Concubinos”, não fui favorável à concessão
de direito a alimentos entre conviventes, a não ser quando contra-
tados, por escrito.
Acontece que já existia uma tendência jurisprudencial à con-
cessão desses alimentos, após a edição da Constituição de 1988;

166 impulso
2777.BK Page 167 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

talvez por esta, em seu art. 226, § 3º, recomendar que a lei facilite
a conversão da união estável em casamento.
Desse modo, concedendo direito alimentar aos conviventes,
reconhece a lei sob cogitação os mesmos direitos e deveres exis-
tentes entre cônjuges, constantes da aludida Lei de Alimentos, nº
5.478, de 1968.
Todavia, entre os conviventes esse direito-dever alimentar
surge tão somente após o decurso do prazo de cinco anos ou o nas-
cimento de filho. O dispositivo sob análise estabelece que o pos-
tulante de alimentos comprove a necessidade destes; não sendo,
portanto, automática a aquisição desse direito alimentar. Estabe-
lece, ainda, causa de cessação desse pensionamento, com a consti-
tuição, pelo alimentando, de nova união, seja concubinária ou
matrimonial.
Porém, esse art. 1º não menciona a hipótese de mau compor-
tamento do convivente alimentando, que é prevista, corretamente,
pela Jurisprudência, como causa de perda da pensão alimentícia.
Não é correto que o convivente se entregue a maus costumes,
como a prostituição, por exemplo, e continue a receber alimentos
de seu companheiro.
Também não entendo que seja justo que o convivente cul-
pado da rescisão do contrato concubinário, seja escrito ou não,
possa pleitear alimentos do inocente.
Por seu turno, o art. 2º da lei sob comentário cuida do direito
sucessório dos conviventes, nos parâmetros mencionados em seus
três incisos. Os dois primeiros reeditam o preceituado no pará-
grafo 1º do art. 1.611 do Código Civil, que trata de iguais direitos,
mas do cônjuge viúvo, que era casado sob regime de bens diverso
do da comunhão universal (usufruto vidual).
Entendo não conveniente essa reafirmação, para os conviven-
tes, do aludido direito a usufruto, pois na prática ele estorva o
direito dos herdeiros. Melhor seria tornar o convivente sobrevivo
herdeiro, adquirindo sua parte na herança concorrendo com os alu-
didos filhos loco filiae ou loco filii, conforme o caso (como filha
ou filho). Assim, por exemplo, a (o) sobrevivente, concorrendo
com dois filhos, receberia cota da herança correspondente a um
terço, ficando cada qual com o seu, sem o atrapalho do usufruto,
gravando direito dos filhos herdeiros.

impulso 167
2777.BK Page 168 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

MEU ENTENDIMENTO
Entendo que deveria voltar a existir o casamento religioso,
só com celebração religiosa, ao lado do casamento civil, com os
formalismos abrandados, inclusive no tocante à separação e ao
divórcio.
Assim, com maior ou menor liberdade, teríamos o casamento
sob todos os seus aspectos histórico-existenciais mais importantes.
A sociedade moderna está repelindo os excessos de forma-
lismo com uma tendência ao casamento simples, do passado. É
certo, pois os rigores de forma, hoje existentes no Brasil, datam do
Decreto nº 181, de 1890, que instituiu somente há pouco mais de
cem anos entre nós o casamento civil. Antes, tudo era natural em
matéria de casamento, como sempre foi no passado.
Todavia, ainda que existam as aludidas modalidades matri-
moniais, preferindo a sociedade constituir família sob a forma de
união estável, não pode o Estado impedi-lo por qualquer de seus
Poderes. O Poder maior e do povo. O Estado deve regulamentar o
que existe, impedindo lesões de direito.
Mas, mesmo assim, é preciso que exista a possibilidade de
considerar a união estável como uma espécie nova de casamento
de fato, que proponho.
Assim, para mim, já com esse espírito de iure constituendo,
casamento de fato ou união estável e a convivência não adulterina
nem incestuosa, duradoura, pública e contínua, de um homem e
de uma mulher, sem vínculo matrimonial, convivendo como se
casados, sob o mesmo teto ou não, constituem, assim, a família
de fato.

168 impulso
2777.BK Page 169 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

R E S E N H A S

O DIREITO À VIDA
Resenhas de
NIÑO, Luis Fernando. Eutanasia, morir con dignidad, consecuencias
jurídico-penales. Buenos Aires: Editorial Universidad, 1994.
MARTÍNEZ, Stella Maris. Manipulación genética y Derecho Penal.
Buenos Aires: Editorial Universidad, 1994.

JOSÉ RENATO SCHMAEDECKE

Eutanasia, morir con dignidad é um trabalho extraordinário


do autor que é Juiz e Professor de Direito Penal da Universidade
de Buenos Aires.
Tudo o que se refere à eutanásia sugere mudanças e pronun-
ciamentos, que precisam ser comentados. “Dar morte suave-
mente” provoca avalanche de problemas doutrinários tão
complexos quanto apaixonantes.
Não adianta ficar de fora, pretendendo chegar ao atalho do
reducionismo ou deslocar problemas morais para esta espécie de
religião do cientificismo neutro.
É oportuno lembrar o caso da atriz polonesa Stansilawa
Uminska. O namorado, Juan Zinowsky, acometido de câncer e
tuberculose, sofrendo dores terríveis conseguiu que ela voltasse a
seu lado. Encerrada em sua rígida angústia, ela sofre uma intensa
comoção ante as dores atrozes que o afligem e, embora recusando-
se no início, o sofrimento do seu amado dobra a sua vontade, e ela
acaba cedendo a seus desesperados pedidos: a 15/07/1924,
enquanto ele dorme sob o efeito da morfina, ela descarrega sobre
ele o seu revólver!

impulso 169
2777.BK Page 170 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

Impossível não recordar também o José Pelo contrário, quando Nancy Cruzan,
Ingenieros da “piedade homicida”: Um de 32 anos, teve um acidente de carro, e
pobre esfarrapado, de 40 anos, tartamudo, ficou três semanas em coma, sem funções do
com câncer na garganta, não pode mais coração e dos pulmões, os pais pediram à
engolir nada, não lhe restando senão morrer Corte de Missouri para que fossem desliga-
ou de fome, ou do câncer. Vendeu tudo e dos os tubos que a mantinham em vida. A
ficou na miséria total. No desespero da dor, corte negou, dizendo que os pais não tinham
pediu a seu melhor amigo, que o estrangu- o direito de fazer esse pedido. Mas assim
lasse. Agarrou as mãos do amigo e as levou mesmo a corte admitiu que a Constituição
ao pescoço... Mais tarde este amigo diria ao dos EE.UU. não proíbe pedir evidência do
comissário: “O infeliz ficou tranqüilo, com desejo de um doente incapacitado a manifes-
se eu lhe tivesse feito o maior benefício!...” tar-se. E em minoria, o juiz Brennan afir-
Outro caso famoso foi o de um jovem mou: “A paciente tem direito fundamental de
inglês, Richard Corbett, que matou a mãe ver-se livre dos tubos... e tem direito de
que sofria de dores atrozes de um câncer, escolher e morrer com dignidade”.
tendo declarado no tribunal: “Fiz uso de um O problema é complexo e polêmico,
direito humanitário: não teria sido necessário devido a fatores religiosos, éticos, médicos,
se o Estado tivesse leis que permitam aos biogenéticos, e muitos outros.
médicos acabar com o sofrimento de um O livro tenta apresentar sérias respostas
paciente incurável”. Foi absolvido sob a grandes perguntas sobre o direito de mor-
aplausos do público!... rer com dignidade. O autor optou por reduzir
Cadetes chilenos, viajando em trem a análise da eutanásia à ação médica que,
para Buenos Aires, sofreram um acidente ademais, está em consonância com as escas-
fatal, no qual um deles teve as duas pernas sas legislações contemporâneas que abor-
decepadas num choque frontal. Sem recur- dam a questão.
sos médicos por perto, com dores insuportá- A matéria ultrapassa o mundo jurídico
veis, ele estava morrendo lentamente. e social, e alcança a problemática dos médi-
Movido pela comiseração, um soldado des- cos, que costumam adotar uma atitude inal-
carregou o fuzil e acabou com o sofrimento terável, levados pelo princípio de que,
do coleta. “enquanto há vida, há esperança”, mas que,
Seguiam-se exemplos diários seme- no fundo, reconhecem que é preciso acabar
lhantes, e a lei silenciando, minorando san- com sofrimentos dilacerantes que torturam o
ções, ou sugerindo formas inovadoras e paciente, os familiares e os amigos.
compreensivas... No capítulo I Niño aborda algumas
É conhecido o caso da Karen Quinlan, concessões religiosas a respeito de certas
que, levando vida vegetativa, levou os pais a ações homicidas e a ocultação da morte em
pedirem à Suprema Corte de New Jersey sistemas sociais contemporâneos conforma-
para que fossem desligados os aparelhos, no tivos do marco em que cabe situar historica-
que foram atendidos, não sem antes ouvirem mente o tema.
o comitê de ética médica, e os médicos, é No capítulo II ele se aprofunda em
claro. redefinir os limites da vida segundo as ciên-

170 impulso
2777.BK Page 171 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

cias especializadas e reordenar as diversas O grande mérito da autora é de abordar


hipóteses da eutanásia. um tema inédito, vasto e complexo, onde
O II capítulo se baseia nos assinala- estão em jogo dados e elementos de suma
mentos jurídicos, sociológicos e culturais importância para o futuro da humanidade
que emergem do capítulo anterior. Niño pro- toda. A Bioética é a ciência auxiliar que nos
cura nova visão e síntese do problema, agru- ajudará a encontrar rumos seguros nesta difí-
pando em dois tipos os casos mais cil caminhada.
necessitados de tratamento legal: Chama-se a atenção para uma opor-
1) a retirada dos meios artificiais de tuna, mas feliz constante nessa investigação.
reanimação desproporcionais ao caso; trata-se da efetiva necessidade de normas
2) a eutanásia passiva: abstenção ou claras e diretivas, assim como o âmbito em
retirada de medidas e meios terapêuticos que que devem reger, descartando expressamente
levam de modo paralelo e conexo à abrevia- a auto-regulação como exclusiva pauta de
ção do curso vital. controle.
Há fortes referências a objeções de Martínez analisa a função da Ética a
consciência, além de uma atualização precisar o seu conteúdo essencial: a dicoto-
panorâmica da eutanásia no Direito Compa- mia homem-natureza, e o respeito que este
rado, e uma proposta de reforma legal que homem deve, tanto a sua própria substância
humana como a seu contorno, à luz da digni-
significam uma resposta aos problemas trata-
dade essencial que o distingue do resto das
dos neste livro.
espécies.
Quanto ao livro Manipulación genética
Ao descrever as descobertas da Bioé-
y Derecho Penal, hoje existe no mundo um
tica, a autora se pronuncia pela necessidade
temor onipresente quando se percebe que,
de um “minimum” de ética obrigatória,
mediante a ciência, o homem pode chegar a
segundo Jellinek, para fundamentar o papel
auto-reproduzir-se. Esse temor resulta do da obrigatoriedade do direito no âmbito da
fato extremo a que se pode chegar, que é a investigação e manipulação genética.
manipulação dos genes. No Capítulo III se define o fruto da
Será que o homem pretende alterar a concepção em suas diferentes etapas e se
essência e a transcendência da vida? Ou sim- determina o seu “status” jurídico. Aí está a
plesmente se trata de dar vida e felicidade a mola mestra do pensamento de Martínez,
quem não pode obtê-la, porque a natureza que caracteriza toda a sua tese: embora não
decretou a deserção da semente procriativa? considere o pré-embrião como vida humana,
A engenharia genética realiza grandes e sim, um ser de valor insubstituível para a
avanços e novos campos vêm surgindo a humanidade, e por isso, necessitado de
cada dia. Nesta obra, Stella Maris Martínez, proteção jurídico-penal. Ela afirma que a
Professora de Direito Penal na Universidade única e grande dona deste bem é a própria
de Buenos Aires, traz noções básicas que humanidade.
devem servir para nos orientar nesta proble- Assim se pode responder a um dos
mática, apresentando postulados éticos mais agudos interrogativos dos cientistas do
impressionantes que devem reger a matéria. futuro: “É legítimo fazer experimentos com

impulso 171
2777.BK Page 172 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

embriões humanos?” A resposta a que chega técnicas de identificação pessoal por meio do
é afirmativa. Mas só depois de muito anali- ADN, do diagnóstico pré-natal, e os recentes
sar a totalidade dos valiosos bens em jogo. avanços na investigação histórico-genética.
Nesta ótica, aborda a árdua questão das Assunto sério é o que se refere à avali-
técnicas de engenharia genética, para saber ação das possibilidades eugenésicas medi-
como e quando podem lesar ou pôr em ante novas tecnologias, que levam a
perigo o embrião, já caracterizado como um Humanidade outra vez a um ponto temível: a
bem jurídico, ou a vida humana que ele pre- tentação de modificar o gênero humano!
cede, atingindo as diferentes etapas do Extremos como a “Rocca Tarpea” e a abo-
desenvolvimento uterino do nascituro. Elo- minável loucura hitleriana.
gia o papel do experimento definindo a sua Modificar ou tentar modificar a compo-
necessidade, mas também sem esquecer suas sição do gênero humano implica a destruição
eventuais limitações. do que se conceitua como seres defeituosos.
Quando se refere à parte jurídica, E agora os riscos seriam muito maiores, pois
cita exemplos de leis e documentos de é cientificamente possível, como se acredita,
outros países, já que a investigação gené- erradicar definitivamente o gene do patrimô-
tica não pode prescindir a contribuição do nio da espécie. Seria algo de terrível o resul-
que pode vir de além das fronteiras nacio- tado de tal loucura humana e social.
nais. É necessário levar em consideração O trabalho culmina com um projeto de
substanciais decisões internacionais sobre legislação que postula a penalização de
a matéria. quem faz experimentos com pré-embriões
São estudados cuidadosamente os ou os gera em laboratório com um fim que
motivos de manipulação sob a ótica da não seja o de conseguir o seu desenvolvi-
incidência sobre o patrimônio genético da mento no útero da gestante. Fica incorporada
Humanidade, insistindo na diversidade de uma cláusula de justificativa para quem rea-
técnicas e em suas eventuais conseqüências lize tais atividades com uma autorização pré-
à luz de concepções básicas da política cri- via para uma investigação que beneficie de
minal. Vem destacada a importância da modo direto a sobrevivência da Humanidade
intangibilidade do patrimônio hereditário, e ou uma eficiente melhora da chamada quali-
do grave risco do surgimento de teorias dade de vida.
extremas de genética criminal. A obra nos parece excelente e de
Merecem especial atenção a necessi- grande ajuda para os profissionais do Direito
dade e as funções dos bancos genéticos, as e Legislação.

172 impulso
2777.BK Page 173 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

RESUMOS
Abstracts
REFORMA CURRICULAR:
PERFUMARIAS FUNDAMENTAIS
CURRICULAR REFORM:
FUNDAMENTAL PERFUMERIES

Aloysio Ferraz Pereira


Ex-professor associado da Faculdade de Direito da USP
e ex-professor do Programa de Pós-Graduação
em Direito da UNIMEP

RESUMO: Não há um único perfil de jurista ou do jurista,


como frequentemente se supõe ou se propõe. Os Romanos
tinham perfeita noção de que havia, entre eles, pelo menos, dois
perfis ou duas faces diferentes de jurista: o perfil do advogado e
o do jurisprudente. Uma Faculdade de Direito deve ter em mira
uma série aberta de paradigmas ou perfis: juiz e legislador,
assessores e auxiliares de um e de outro, delegados de polícia,
com seus escrivães e funcionários, advogados das mais variadas
especialidades e funções. Apegar-se ou impor um só perfil de
jurista na universidade seria dirigismo totalitário, como ao
tempo de Stalin e de Hitler. O texto apresenta um caminho para
libertar o nosso Direito do empirismo, da improvisação, do imo-
bilismo, da ignorância e dos interesses criados em benefício das
elites retrógradas, com sua tradicional clientela de bacharéis.
Palavras-chaves: ENSINO DE DIREITO – FACULDADES DE
DIREITO

ABSTRACT: There is not a single profile of a Jurist or of the


Jurist, as is frequently supposed or proposed. The Romans had
a perfect notion that there were, amongst them, at least two
profiles or two different faces of the Jurist: the profile of the
Advocate and of the Jurisprudent. A Faculty of Law should
have in view an open series of paradigms or profiles: judge and
legislator, assessors and auxiliaries of one and of the other,
police delegates, with their scribes and workers, advocates of
the most varied specialities and functions. Attach oneself to, or

impulso 173
2777.BK Page 174 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

impose only one profile of the jurist at the university would be


totalitarian control, as in the time of Stalin and Hitler. The text
presents a way of liberating our Law from empirism, improvi-
sation, immobilism, ignorance and from the interests created
to benefit the retrograde elite, with their traditional clientele of
Bachelors.
Keywords: FACULTIS OF LAW – TEACHING OF LAW

LEITURAS E DEBATES EM
TORNO DA INTERPRETAÇÃO NO DIREITO
CONSTITUCIONAL NOS ANOS 90
Readings and Debates Concerning Interpretation In
Constutional Law During The 1990s.

José Ribas Vieira


Professor titular da Faculdade de Direito da UUFF –
Doutor em Direito

RESUMO: Uma reflexão a respeito da temática de interpreta-


ção constitucional. Na sociedade brasileira, é fácil constatar a
presença, em todos os níveis de nossa vida social, da
“jurisdização do discurso político”. As atuais posições assumi-
das pelo Direito e o papel do juiz podem acarretar uma peri-
gosa substituição do jurídico pela ordem democrática.
Segundo o autor, a saída é, por conseqüência, a reflexão de
mecanismos de equilíbrio para a função de prestação jurisdici-
onal, o que assegura a manutenção não só das garantias cons-
titucionais de fortalecimento da cidadania, como, também, e
principalmente, do jogo democrático.
Palavras-chaves: CIDADANIA – CONSTITUIÇÃO BRASI-
LEIRA – ESTADO DE DIREITO – DIREITO CONSTITU-
CIONAL

ABSTRACT: A reflection with respect to the theme of consti-


tutional interpretation. In Brazilian society, it is easy to find the
presence, at all levels of our social life, of jurisdiction of the
political discourse. The current positions assumed by the Law
and the role of judge may carry a dangerous substitution of the
legal by the democratic order. According to the author, the way
out, consequently, is a re-election of the mechanisms of equili-
brium for the function of jurisdictional service, which would

174 impulso
2777.BK Page 175 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

assure the maintenance not only of constitutional warranties


for strengthening citizenship, but also, and mainly, the demo-
cratic game.
Keywords: BRAZILIAN LAW – CITZENSHIP – CONSTITU-
TIONAL LAW – DEMOCRATIC STATE OF LAW

DO PROCESSO LEGISLATIVO:
BREVES CONSIDERAÇÕES
From The Legislative Process: Brief Considerations

João Miguel da Luz Rivero


Professor do curso de Direito da UNIMEP –
mestrando em Direito

RESUMO: O autor nos mostra um estudo sobre a função legis-


lativa. O processo legislativo, por suas peculiaridades, deve
garantir em todo o seu procedimento um mínimo de legitimi-
dade, para eliminar as distorções existentes, como, por exemplo,
o exercício da função legislativa pelo Executivo que, quando
permitido através do art. 62, transforma a Constituição do país,
que deve ser um instrumento estável e garantidor dos direitos e
garantias e limitador do poder, em um documento frágil e prati-
camente comparado a um programa de governo, que pode ser
alterado a cada mandato presidencial e a qualquer tempo,
gerando, dessa forma, instabilidade e insegurança aos seus des-
tinatários.
Palavras-chaves: CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA – DIREITO
CONSTICIONAL – DEMOCRATIC STATE OF LAW –
PODER LEGISLATIVO

ABSTRACT: The author shows us a study about the legislative


function. The legislative process, for all it peculiarities, in its
entire procedure should warrant a minimum of legitimacy to
eliminate the existing distortions, such as for example, the exer-
cise of the legislative function by the Executive, which, when
permitted by means of Art. 62, transforms the Constitution of
the country, which should be a stable instrument and warrant of
rights and warranties and limiter of power, into a fragile docu-
ment and practically compared to a government program,
which may be altered during each presidential mandate at any

impulso 175
2777.BK Page 176 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

time, thus generating instability and insecurity to those for


whom it is destined.
Keywords: BRAZILIAN LAW – CONSTITUTIONAL LAW
– DEMOCRATIC STATE OF LAW – LEGISLATIVE
FUNCTION

FILOSOFIA DO DIREITO EM HABERMAS


Philosophy of Law In Habermas

João Bosco da Encarnação


Promotor de Justiça do Estado de São Paulo

RESUMO: O presente estudo tem por escopo entender o con-


ceito de Direito em Jürgen Habermas, o que contribui para a
identificação da crise do Direito. Partindo da “curiosidade”
científica acerca do que poderia ser o Direito na época “pós-
moderna”, o autor examina a visão desse filósofo
contemporâneo, para ver nela, quem sabe, uma identidade. Sua
trajetória parte de uma orientação inicialmente situada na cha-
mada “teoria crítica” da Escola de Frankfurt, mas logo envereda
por caminhos próprios, que são, na verdade, um feixe eclético
de doutrinas de várias linhas. Trazem consigo, no entanto, algo
em comum: certo positivismo. Há que entender isso, sob pena
de não termos um parâmetro de verdade e justiça e acabarmos
fomentando uma ideologia!
Palavras-chaves: FILOSOFIA DO DIREITO – HABERMAS,
JÜRGEN

ABSTRACT: The scope of the present study is to understand the


concept of Law in Jürgen Habermas, which contributes to the
identification of the Crisis of Law. Starting from the scientific
curiosity around what could be Law in the post modern era, the
author examines the vision of this contemporary philospher, to
find in it, perhaps, an identity. Its trajectory starts with guidance
initially situated in the so called critical theory of the Frankfurt
School, but soon goes its own ways, which are, in truth, an eclec-
tic bundle of doctrines of various lines. They bring with them,
however, something in common: a certain positivism. This
should be understood, on pain of not having a parameter of truth
and justice, and we end up fomenting an ideology!
Keywords: HABERMAS, JÜRGEN – PHILOSOPHY OF LAW

176 impulso
2777.BK Page 177 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

A TEORIA DA JUSTIÇA DE JOHN RAWLS E


ALGUMAS DIFICULDADES: UMA LEITURA
John Rawlss Theory of Justice and
Some Difficulties: A Reading

Jorge Atílio Silva Lulianelli


Professor das Faculdades Integradas Bennett
e do Seminário Diocesano

RESUMO: A abordagem que Rawls faz da justiça é apresentada


não como uma teoria moral, mas como uma teoria da justiça
stricto sensu. Ele pretende discutir quais princípios devem
orientar a ação justa dos indivíduos e da sociedade, mas não pre-
tende abordar o conjunto de normas que deve reger a vida dos
indivíduos. Para Rawls, o mundo social hipotético é apenas um
pressuposto suficiente para estabelecer o esforço em vista de
uma concepção de justiça como eqüidade. Em síntese, a comu-
nidade ética, como suposta por Rawls, não é suficiente e neces-
sária para o estabelecimento da justiça como modus vivendi,
ainda que pudesse ser assumido como modus operandi, ao
menos por quem assume o normo-utilitarismo como orientador
ético.
Palavras-chaves: FILOSOFIA DO DIREITO – RAWLS, JOHN
– TEORIA DA JUSTIÇA

ABSTRACT: The approach Rawls makes to justice is presented


not as a moral theory, but as a theory of justice stricto sensu. He
intends to discuss which principles should guide just action of
individuals and of society, but does not intends to approach the
set of norms which should rule the life of individuals. For
Rawls, the hypothetical social world is only a pre-supposition
sufficient for establishing the effort in view of a concept of jus-
tice as equity. In synthesis, the ethical community, as supposed
by Rawls, is not sufficient and necessary for the establishment
of justice as a modus vivendi, even though it could be assumed
as modus operandi, at least by whom the ultilitarism-norm is
assumed as ethical guide.
Keywords: PHILOSOPHY OF LAW – RAWLS, JOHN –
THEORY OF JUSTICE

impulso 177
2777.BK Page 178 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

O MÉTODO DO DIREITO:
QUESTÕES DE LÓGICA JURÍDICA
The Method of Law: Questions of Judicial Logic

ERCÍLIO A. DENNY
Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito e
do Curso de Direito da UNIMEP – doutor em Direito

RESUMO: Existem duas formas de se conceituar o Direito: a


primeira compreende-o como um “conjunto de normas”. A
segunda maneira é o de percebê-lo como “o justo” (tó díkaion).
Hoje, a humanidade está longe do regime de produção do
Direito que existia na Roma clássica. Longe porque a educação
hodierna condicionou o homem a crer que o Direito é o produto
do espírito do legislador. Há uma crença que Direito é o Direito
positivo estabelecido nos códigos e demais dispositivos legais.
Existe na produção do Direito uma parte que é viva e imprevisí-
vel. É ilusório querer construir uma Ciência do Direito total-
mente axiomática. Um sistema coerente de regras, dentro de
uma ordem jurídica, pode ser admirado como obra-prima de
lógica formal, entretanto, ele está fora da realidade do Direito. O
Direito, que deseja ser uma ciência, não pode jamais atender ao
estatuto de uma ciência estável e rigorosa.
Palavras-chaves: – DIREITO COMO CIÊNCIA – FILOSOFIA
DO DIREITO – LóGICA JURÍDICA

ABSTRACT: There are two forms in which the Law may be


conceived: the first understands it as a set of norms. The second
is that of perceiving it as the just (tó díkaion). Today, humanity
is far from the regime of the production of Law which existed in
classical Rome. It is far from it because Hodiern education con-
ditioned man to believe that the Law is a product of the legisla-
tor mind. There is a belief that Law is the positive Law establi-
shed in the codes and other legal devices. There is a part in the
production of the Law which is alive and unpredictable. It is
illusory to wish to construct a totally axiomatic Science of Law.
A coherent system of rules within a judicial order may be admi-
red as a masterpiece of formal logic, however, it is outside the
reality of the Law. Law, which desires to be a science, could
never meet the statute of a stable and rigorous science.
Keywords: – LAW AS SCIENCE – JUDICIAL LOGIC – PHI-
LOSOPHY OF LAW

178 impulso
2777.BK Page 179 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

SEGURANÇA PÚBLICA E
GARANTIAS INDIVIDUAIS SOB A
AMEAÇA DA CRIMINALIDADE COMUM
E ORGANIZADA, NA VISÃO DE
WINFRIED HASSEMER
Public Safety and Individual Warranties:
the Threat of Common Criminality and Organized
Criminality, the View of Winfried Hassemer

Samuel Zem
Advogado – OAB – Secção de São Paulo –
mestre em Direito

RESUMO: As questões levantadas por Hassemer estão na


ordem do dia em todos os países em que o Estado Democrático
de Direito impera, e que adotam em suas constituições os prin-
cípios da dignidade humana, da liberdade, do respeito à privaci-
dade, à intimidade, à segurança, à livre disposição dos bens, etc.
Exatamente por isto é que o debate se inflama. A questão é
como conciliar estes direitos conquistados, com o combate à cri-
minalidade, se o crime se acoberta atrás desses. Para o autor, a
atual política neo-liberal, que predomina, começa a preocupar,
pois não tem dado resultados satisfatórios porque não privilegia
um adequado modo para enfrentar a criminalidade. Falta-lhe cri-
atividade nos meios de intervenção.
Palavras-chaves: ESTADO DE DIREITO – HASSEMER,
WINFRIED – SEGURANÇA PÚBLICA

ABSTRACT: The questions raised by Hassemer are in todays


agenda in all the countries in which the Democratic State of
Law reigns, and which adopt in their constitutions the principles
of human dignity, liberty, respect for privacy, for intimacy and
the safety and free disposal of assets, etc. Exactly for this reason
the debate becomes inflamed. The question is how to conciliate
these conquered rights with the combat of criminality, if crime
takes shelter behind this. For the author, the current neo-liberal
policy, which predominates, begins to cause concern for it has
not given satisfactory results because it does not privelige an
adequate manner to face criminality, it lacks creativity in the
means of intervention.
Keywords: DEMOCRATIC STATE OF LAW – HASSEMER,
WINFRIED – PUBLIC SAFETY

impulso 179
2777.BK Page 180 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

BASES DO DIREITO PENAL NO ESTADO


DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Bases of Penal Law In the Democratic State of Law
A. L. CHAVES CAMARGO
Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito e
do Curso de Direito da UNIMEP – Doutor em Direito
RESUMO: Os direitos fundamentais, em geral, são objeto de
sérios conflitos no âmbito do Direito Penal, diante do signifi-
cado ambivalente, que ainda pauta nossa sistemática. Busca-se
um meio para prevenir a delinqüência, ao mesmo tempo em que
a intervenção indiscriminada do Estado colide com os princípios
básicos do Direito Penal, no Estado Democrático de Direito.
Neste estudo, o autor nos mostra que a pretensão de avanço das
idéias penais esbarra num reflexo, ainda patente, de um longo
período autoritário, onde a intervenção do Estado não tinha limi-
tes, justificada pelo aumento da criminalidade e paralela repres-
são punitiva, com penas exacerbadas e argumentos de caráter
moral, já afastados do Direito Penal moderno.
Palavras-chaves: ESTADO DE DIREITO – DIREITO PENAL

ABSTRACT: Fundamental rights, in general, are the object of


serious conflicts in the ambit of Penal Law, in the face of signi-
ficant ambivalence, which still features in our system. Means are
sought for preventing delinquency, at the same time in which
indiscriminate State intervention collides with the basic princi-
ples of Penal Law, in the Democratic State of Law. In this study
the author shows us that the pretension of the advance of penal
ideas clashes in a reflection, still patent, of a long authoritarian
period, where the intervention of the State did not have limits,
justified by the increase in criminality and parallel punitive
repression, with exacerbated punishment and arguments of
moral character, already removed from modern Penal Law.
Keywords: DEMOCRATIC STATE OF LAW – PENAL LAW

A RELEVÂNCIA CAUSAL DA OMISSÃO


The Causal Relevance of Omission
Eduardo Silveira Melo Rodrigues
Ex-Professor do Curso de Direito da UNIMEP e
Promotor de Justiça do Estado de São Paulo
RESUMO: A natureza dos crimes comissivos por omissão, no
que tange à relevância causal, é precipuamente normativa,

180 impulso
2777.BK Page 181 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

decorrendo do caráter de antijuridicidade, da abstenção de atuar,


a sua punibilidade. É necessário, como o faz o Código atual, que
se determine a sua relevância, ocorrível quando houver o poder
e o dever jurídico de evitar o resultado, sendo que o dever é de
três espécies básicas: o legal, o contratual ou de “garante” e o
decorrente da criação da situação de risco. O elemento subjetivo
dos crimes omissivos impróprios é o mesmo dos comissivos: o
dolo e a culpa. Neste texto, o autor chama a atenção para o fato
de que só o dever jurídico não basta para a responsabilidade
penal por omissão: é preciso que o agente tenha o domínio
fático de impedir o resultado.
Palavras-chaves: DIREITO PENAL – OMISSÃO

ABSTRACT: The nature of crimes committed by omission,


with regard to causal relevance, is mainly normative, arising
from the anti-jurisdictive character of the abstention from acting,
to its punishability. It is necessary, as the current Code does, to
determine its relevance, which occurs where there is the power
and the judicial duty to avoid the result, the duty being of three
basic kinds: the legal, the contractual or guarantee and that ari-
sing from the creation of a risk situation. The subjective element
of improper omissive crimes is the same as those of comissive
ones: the fraud and the blame. In this text, the authors draws
attention to the fact that only judicial duty is not sufficient for
the penal responsibility by omission: it is neceesary for the agent
to have effective dominion to impede the result.
Keywords: OMISSION – PENAL LAW

LIMITAÇÕES AO PODER PUNITIVO


DO ESTADO
Limitations to the Punitive Power of the State

Edson José Meneghetti


Professor do Curso de Direito da UNIMEP –
Mestrando em Direito

RESUMO: O homem, em sua história social, sempre demons-


trou preocupação no sentido de conseguir um equilíbrio em suas
interrelações, que lhe propiciasse uma paz social duradoura,
adequada e justa. Como se verifica, existe uma preocupação
constante em se buscar formas adequadas e convenientes para o
convívio social. Para tanto, é necessário se defender a dignidade

impulso 181
2777.BK Page 182 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

humana até contra o Estado e aqueles que o representam na fun-


ção de exercer seu poder de punir. Por isso, existe uma necessi-
dade indeclinável, do Estado Democrático de Direito, de insti-
tuir limitações ao Poder de punir do Estado, no sentido de se
preservar o respeito à dignidade da pessoa humana.
Palavras-chaves: ESTADO DE DIREITO – LEI PENAL

ABSTRACT: Man, in his social history has always demonstra-


ted concern in the sense of achieving equilibrium in his interre-
lations which would propitiate to him lasting, adequate and just
social peace. As can be seen, there is a constant concern for
seeking adequate and convenient forms of social intercourse.
Thus it is necessary to defend human dignity even against the
State and those who represent it in the function of exercising its
power to punish. For this, there is an indeclinable necessity for
the Democratic State of Law to institute limitations to the States
Power to punish, in the sense of preserving respect for the dig-
nity of the human person.
Keywords: DEMOCRATIC STATE OF LAW – PENAL LAW

SISTEMAS DE TRANSMISSÃO
DO DIREITO DE PROPRIEDADE:
UM ESTUDO NO DIREITO ALEMÃO
Systems of Transferring the Right to Property:
A Study In German Law

Victor Hugo Tejerina Velázquez


Professor do Curso de Direito da UNIMEP –
Mestre e doutorando em Direito

RESUMO: O texto se propõe a avaliar o sistema de transferên-


cia de domínio no Direito alemão a partir do Registro imobiliá-
rio, considerado o melhor elaborado e firme entre os registros do
mundo. De acordo com o autor, a transmissão de um direito de
expectativa está sujeita a uma condição resolutiva, na medida
em que o devedor, ao pagar o débito, recupera a propriedade
automaticamente.
Palavras-chaves: DIREITO ALEMÃO – DIREITO COMPA-
RADO – DIREITO IMOBILIÁRIO – DIREITO DE PROPRIE-
DADE

182 impulso
2777.BK Page 183 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

ABSTRACT: The text proposes to evaluate the system of trans-


ference of dominion under German Law from the real estate
register, considered the best elaborated and firm among those
registers in the world. According to the author, transfer of a right
of expectation is subject to a resolutive condition, as the debtor,
in paying the debt, recovers the property automatically.
Keywords: COMPARATIVE LAW – GERMAN LAW – PRO-
PERTY LAW – REAL ESTATE LAW

UNIÃO ESTÁVEL:
ANTIGA FORMA DE CASAMENTO DE FATO
Stable Union: Ancient Form of de Facto Marriage

Álvaro Villaça Azevedo


Professor do Programa de Pós-Graduação em
Direito da USP e da Universidade Mackenzie e
professor titular da Faculdade de Direito da USP e
da Universidade Mackenzie – Doutor em Direito
RESUMO: Na antigüidade, a família era, em geral, constituída
por meio de celebrações religiosas ou por meio de simples con-
vivência. De acordo com o autor, deveria voltar a existir o casa-
mento religioso, só com celebração religiosa, ao lado do casa-
mento civil, com os formalismos abrandados, inclusive no
tocante a separação e ao divórcio. Assim, com maior ou menor
liberdade, teríamos o casamento sob todos os seus aspectos his-
tórico-existenciais mais importantes. Ele propõe que se considere
a união estável como uma espécie nova de casamento de fato.
Assim, casamento de fato ou união estável e a convivência não
adulterina nem incestuosa, duradoura, pública e contínua, de um
homem e de uma mulher, sem vínculo matrimonial, convivendo
como se casados, sob o mesmo teto ou não, constitui uma família
de fato.
Palavras-chaves: CASAMENTO – DIREITO CIVIL –
DIREITO DE FAMÍLIA

ABSTRACT: In ancient times, the family was, in general, cons-


tited by means of religous celebrations or by means of simple
living together. According to the author, religious marriage
should come back into existence, only with religious celebra-
tion, alongside of civil marriage, with its milder formalisms, as
well as with religeous celebration, alongside of civil marriage,

impulso 183
2777.BK Page 184 Thursday, October 2, 2003 10:20 AM

with its milder formalisms, as well as with regard to separation


and divorce. Thus, with greater or less liberty, we would have
marriage under all of its most important historical-existential
aspects. He proposes to consider a stable union as a new kind of
de facto marriage. Thus a de facto marriage or stable union and
a non adulterous nor incestuous living together, lasting, public
and continuous, of a man and a woman, without matrimonal
ties, living as though they were married, under the same roof or
not, constitutes a de facto family.
Keywords: CIVIL LAW – FAMILY LAW – MARRIAGE

184 impulso

Você também pode gostar