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book Page 1 Thursday, October 2, 2003 8:40 AM

IMPULSO ISSN 0103-7676 • PIRACICABA/SP • Volume 11 • Número 24 • P 1-160 • 1999

impulso 1 nº 24
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Universidade Metodista de Piracicaba


Reitor IMPULSO is a quarterly journal focused on social scien-
ALMIR DE SOUZA MAIA ces published by the Universidade Metodista de
Piracicaba-UNIMEP (São Paulo – Brazil). It features
Vice-reitor Acadêmico scholarly articles on the humanities, society and cul-
ELY ESER BARRETO CÉSAR ture in general. See editorial norms for submission
of articles in the back of this journal.
Vice-reitor Administrativo
GUSTAVO JACQUES DIAS ALVIM
Impulso é indexada por /
EDITORA UNIMEP Impulso is indexed by:
Conselho de Política Editorial Base de Dados do IBGE; Bibliografia Bíblica Latino-
ALMIR DE SOUZA MAIA (PRESIDENTE) Americana; Indice Bibliográfico Clase (UNAM); Sumá-
ANTONIO ROQUE DECHEN rios Correntes em Educação.
CASIMIRO CABRERA PERALTA
CLÁUDIA REGINA CAVAGLIERI FELIPPE
ELIAS BOAVENTURA Equipe Técnica
ELY ESER BARRETO CÉSAR (VICE-PRESIDENTE)
Edição de texto: Milena de Castro
FRANCISCO COCK FONTANELLA
GISLENE GARCIA FRANCO DO NASCIMENTO Revisão: Alexandre Bragion
NIVALDO LEMOS COPPINI Secretária: Ivonete Savino
Apoio administrativo: Altair Alves da Silva
Comissão Editorial Capa: Wesley Lopes Honório
AMÓS NASCIMENTO Impressão: Bandeirantes Indústria Gráfica
ELIAS BOAVENTURA (PRESIDENTE) DTP e produção: Gráfica UNIMEP
EVERALDO TADEU QUILICI GONZALEZ
JOSIANE MARIA DE SOUZA Impresso em Duplicadora Digital Xerox Docutech 135
TÂNIA MARA VIEIRA SAMPAIO Supervisão Gráfica: Carlos Terra
Ficha Catalográfica: Regina Fracceto
Editor-executivo
HEITOR AMÍLCAR DA SILVEIRA NETO (MTB 13.787) Produzida em abril / 1999
A revista IMPULSO é uma publicação quadrimestral
da Universidade Metodista de Piracicaba, produzida
pela Editora UNIMEP. As opiniões expressas nos arti-
gos, tanto os encomendados como os enviados
espontaneamente, são de responsabilidade dos seus
autores. Revista de Ciências Sociais e Humanas
da Universidade Metodista de Piracicaba
Administração, redação e assinaturas:
Editora UNIMEP Impulso, v.11 • Nº 24 • 1999
www.unimep.br/~editora
Piracicaba, Unimep. Quadrimestral
Rodovia do Açúcar, km 156
1- Ciências Sociais – periódicos
Telefone/fax: (019) 430-1620 / 1621
13.400-911 - Piracicaba, SP CDU – 3(05)
E-mail: editora@unimep.br ISNN 0103-7676

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Arte, Impressões

a
e Homenagem

A opção temática apresentada neste número da IMPULSO re-


monta a 1997, ano em que se deu no Rio de Janeiro e em São Paulo
a mostra “Monet – O Mestre do Impressionismo”. Sucesso histórico
de público no país, essa exposição fez retomar o debate sobre o Im-
pressionismo como germinador do processo histórico da pintura mo-
derna.
Na ocasião, o Centro Acadêmico do Curso de Filosofia da UNI-
MEP promoveu, como atividade de extensão, três palestras preparató-
rias à visita ao Museu de Arte de São Paulo. Essas conferências foram
posteriormente propostas à IMPULSO como núcleo temático sobre o
movimento Impressionista.
Naquele mesmo ano da mostra sobre Monet, aqui em Piracica-
ba o pintor Antônio Pacheco Ferraz expunha telas de
seu acervo, nas quais as marcas do Impressionismo,
assim como do Surrealismo, são facilmente perceptí-
veis. Do contato com o Pacheco durante sua exposi-
ção resultou a idéia da IMPULSO trazer em suas
páginas uma homenagem a este artista piracicaba-
no, que se indentifica plenamente como “pintor da
luz”.
Aos 94 anos, cinco dos quais passados na
França no final da década de 20, Pacheco man-
tém-se como um pintor que parece se refazer a
cada pincelada. Em plena atividade artística, per-
manece a testar cores, matizes, materiais, propos-
tas novas. É dele a bela tela que compõe a capa
deste número 24.
É dele também – assim como dos demais
artigos que discutem os seus tão queridos impres-
sionistas – a chancela com que, pela primeira
vez, a IMPULSO é dedicada centralmente à Arte.
A oportunidade não poderia ter sido melhor es-

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colhida. Certamente o justo reconhecimento da importância de um


artista do porte de Pacheco Ferraz harmoniza-se por inteiro à temática
impressionista desta edição.

ELIAS BOAVENTURA
PRESIDENTE DA COMISSÃO EDITORIAL DA IMPULSO

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...............................

Sumário
Artigos
Temáticos 07
Pacheco Ferraz:
um piracicabano na Bretanha
Márcio Mariguela & Heitor Amílcar da Silveira Neto 09
Cenário Histórico do Movimento Impressionista
Eduardo Ismael Murguia 25
M’olhar:
um olhar molhado de Monet
José Lima Jr. 43
Imagem & Magia:
fotografia e Impressionismo – um diálogo imagético
Jeziel De Paula 53
O Mundo da Arte e a Arte do Mundo:
Claude Monet e Vincent Van Gogh
Márcio Mariguela 73
Modernismo e Filosofia:
o caso Oswald
Sílvio Gallo 89

...............................
Artigos
Gerais 109
Louis Althusser:
o ressurgimento de um desaparecido
Marcos Cassin 111
Desenvolvimento Econômico e Regional:
uma reflexão sobre Piracicaba e região
Lilia A. de Toledo Piza 127
A Evolução de Alguns Indicadores Sociais no
Brasil na década de 80
Ana Maria Holland Ometto &
Maria Cristina Ortiz Furtuoso 147

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Antonio Pacheco
Ferraz:
um piracicabano na
Bretanha
MÁRCIO MARIGUELA

Antonio Pacheco Ferraz: Professor da Faculdade de Filosofia,


História e Letras (UNIMEP)
m.mariguela@zaz.com.br

a piracicabano in DA
HEITOR AMÍLCAR
SILVEIRA NETO

Bretagne Editor e jornalista, é o editor


executivo da Editora UNIMEP
hamilcar@unimep.br

RESUMO – O presente ensaio-narrativo (ou foto-biográfico) procura articular um


aspecto da obra do artista Antonio Pacheco Ferraz – seu amor pela Bretanha –
com a justa homenagem a este piracicabano que tem devotado a vida a olhar as
paisagens por onde passou, registrando-as em suas telas. Tem por base a entrevista
concedida pelo pintor aos 94 anos de idade, e ainda em atividade artística.
Palavras-chave: Ferraz, Antonio Pacheco – pintura – Bretanha – Piracicaba.
ABSCTRACT – This photo-biographical essay tries to articulate an aspect of Anto-
nio Pacheco Ferraz’s artistic work – his love for Bretagne – with the just hommage
to this piracicabano who has devoted his life to capture the landscapes through
where he passed, registering them in his paintings. The essay is based on the in-
terview given by the painter, who is 94 years old and still in artistic activity.
Keywords: Ferraz, Antonio Pacheco – painting – Bretagne – Piracicaba.

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Não copie demais a natureza. A arte é uma


abstração; extraí a arte da natureza enquan-
to sonhais em sua frente e prestai mais aten-
ção no ato de criação do que no resultado...
Estou progredindo bem com minhas últimas
obras, e acho que encontrarás nelas (...) a
afirmação de minhas tentativas anteriores de
sintetizar a forma e a cor, sem que nenhuma
das duas seja dominante.
PAUL GAUGUIN, Pont-Aven, ago/1888
André Alexandre

Close dos olhos de Pacheco Ferraz.

O primeiro encontro com Antonio Pacheco Ferraz foi no En-


genho Central de Piracicaba, numa tarde ensolarada, por
ocasião de uma exposição retrospectiva de seu trabalho. A
contemplação atenta aos botões de roupa com formas diversas fixa-
dos em suas telas leva o artista a se aproximar. Ele pergunta: “O que
está vendo?” “Olhos”, foi a resposta. Os intrusos botões na tela mar-
cavam a presença do olhar. A pintura é uma arte do olhar; os olhos
do pintor e do espectador se encontram na percepção estética do be-
lo. O primeiro, por um olhar vasto e preciso, o outro, por reconhecer
na tela o olho do pintor.

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André Alexandre

Pacheco em seu atêlie.

O convite para uma conversa sobre pintura impressionista foi


aceito de prontidão. Algum tempo depois fomos até sua residência,1
onde passamos horas ouvindo suas histórias e apreciando seu acervo.

Sou natural aqui de Piracicaba. Há um ponto até mui-


to interessante: não tenho certeza se nasci em Piraci-
caba ou Rio das Pedras, porque o meu pai tinha uma
fazenda lá quando eu era muito pequeno. Até, um dia,
eu preciso tirar a limpo isso. Mas moro aqui em Pira-
cicaba desde que me conheço por gente.

A minha mãe era pintora. Estudou com as irmãs fran-


cesas no Colégio Assunção, mas ela não se dedicou.
Herdei dela a arte, porque o meu pai não tinha nada
a ver com arte. Ele queria que eu fosse médico ou ad-
vogado. Aliás, na história da arte está cheio de gente
assim, que o pai queria que fosse isso ou aquilo e o fi-
lho não quis, teimou, teimou, e no fim o pai cedeu,
né? E eu, por exemplo, não me arrependo. Meu pai
me mandou para a Europa em 1926. Eu sou de 1904,
então eu estava com 23 anos.

1 Além dos autores deste artigo, participaram da entrevista com Pacheco Ferraz em 1o de abril de 1998:
Eduardo Murguia, doutor em Educação (Unicamp) e professor de História da Arte (UNIMEP), e André Ale-
xandre, fotógrafo da UNIMEP.

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Confesso aluno desinteressado, que “não queria saber nada da


escola”, Pacheco recorda ser, desde pequeno, absorvido pelo desenho.
Estudante do Grupo Moraes Barros, por sua desatenção certo dia o
professor o pegou pela orelha: “Eu tava desenhando uma penca de
ameixas e ele viu... Mas depois compreendeu e deu liberdade. Eu es-
tava sempre com desenho. Agora, para satisfazer o meu pai eu fiz um
curso de contabilidade, me formei. Sou contador formado aqui em Pi-
racicaba”.
Começou seu aprendizado com os irmãos Dutra: Alípio, que o
levaria mais tarde para a Europa, Nélio, João, Archimedes e Pádua.
Todos filhos de Joaquim Dutra, patriarca de uma família de pintores.
Também fez aulas com frei Paulo Maria de Sorocaba, capuchinho au-
tor de quadros com temas religiosos. E a atração de Pacheco era o Rio
Piracicaba, com sua famosa Rua do Porto, cenário que muito seria re-
tratado pelo pintor que então se esboçava. Mas foi com uma “paren-
ta” que ele teve os primeiros contatos com os pincéis e as tintas. Até
o dia em que, segundo conta, ela lhe disse: “Olha Nêne” – meu ape-
lido em família –, “o que eu sabia, já ensinei para você. Agora você
procura um pintor aí’. Saí e fui atrás do Joaquim Dutra, o pintor mais
famoso na cidade.”
Pacheco juntou-se aos irmãos Dutra e, assim como os pintores
impressionistas, ganhou as ruas em busca de paisagens para “tirar uma
vista”:

Eu ia cedo lá na casa dos irmãos Dutra. Tinha aula


uma vez por semana, muitas vezes eu ia acordar eles,
estavam ainda de camisolão... O Joaquim Dutra no co-
meço me dava aqueles cartões para copiar. Eu ficava lá
copiando, copiando, copiando... cartão com cachorro,
cartão com flores, com maçã... Daí, depois, logo ele
me encaminhou: “Vai pintar com os meus filhos”. Nós
íamos na Rua do Porto, tirava lá uma vista, pintava.
Tinta, o Alípio trazia da Europa, onde era diretor do
Instituto do Café. O Alípio vinha lá da Europa, via os
quadros da gente, corrigia, dava até umas pinceladas,
e assim foi indo.

Certa vez o pai de Pacheco foi procurar Joaquim Dutra para


queixar-se do filho estar afundando com a pintura, ao que ouviu como
resposta: “É, o senhor deve mandá-lo para a Europa”. Alípio, presente

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à conversa, prontificou-se: “E se quiser, eu estou às ordens. Eu vou


para lá em breve”.
Assim foi. Em 1926 Pacheco embarcava com Alípio a bordo do
Andes, vapor inglês que fazia a travessia do Atlântico. Saíram do Porto
de Santos, com escalas na Ilha da Madeira e na cidade do Porto, em
Portugal, até atracarem no Porto de Vico, Espanha. De lá tomaram
trem em direção a Paris. Pacheco conta-nos um caso da viagem no va-
por, digno de nota por retratar bem o recato que imperava naquele
tempo:

Deu-se um incidente muito interessante. Eu tava na se-


gunda classe e o Alípio, na primeira. Tinha uma pisci-
na a bordo, uma piscina de borracha, improvisada. Re-
solvi nadar e não tinha calção de banho. Peguei uma
calça velha do meu pai, cortei e fiz um calção. Entrei
na piscina e comecei a nadar; um marinheiro gritou,
em inglês, para eu sair de dentro d’agua. Eu disse “Pu-
xa vida!”, e saí de fininho. O marinheiro chegou e dis-
se para mim: “É proibido o senhor nadar de tórax
para fora, nu assim”.

Ao chegarem à Cidade Luz, Alípio deixou-o num hotel e foi para


o seu apartamento, onde vivia com a segunda mulher e as filhas. Pa-
checo ainda conserva vivazes suas impressões iniciais dos contrastes
entre o Rio Piracicaba e o Sena, da mata ciliar que margeia as turvas
águas piracicabanas e a arquitetura exuberante que cerca o Sena ao
cruzar Paris. Os primeiros dias foram de encantamento. “Eu não co-
nhecia nada; daqui pra lá pra mim foi um pulo de 2.000 anos de ci-
vilização, né? Fiquei encantado com Paris, adorei a França.”
Quase quarenta anos antes de Pacheco deparar-se com a então
capital mundial da arte, Friedrich Nietzsche – o filósofo trágico que fa-
lou do desejo de se viver pela arte para não morrer de verdade – afir-
mou em seu relato autobiográfico: “Creio apenas na cultura francesa
e vejo como um mal-entendido tudo o mais que se denomina ‘cultura’
na Europa, para não falar da cultura alemã”. Nietzsche registra ainda:
“Como artista, não se tem outra pátria na Europa além de Paris: a dé-
licatesse nos cinco sentidos artísticos que a arte de Wagner pressupõe,
os dedos para nuances, a morbidez psicológica encontram-se somente
em Paris”.2 Do final do século XIX à segunda metade do século se-
2 NIETZSCHE, F., 1888. Ecce Homo – Como alguém se torna o que é. Tradução, notas e pósfácio de
Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, pp. 41 e 44.

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guinte, quando o jovem piracicabano lá chegou pela primeira vez, Pa-


ris ainda era pujante como centro artístico mundial.
Dos escombros da Primeira Guerra Mundial, com o final da belle
époque, escritores, atores, pintores e um amplo leque de dedicados à
produção da arte começaram a se reunir em torno do Surrealismo, mo-
vimento artístico que teve início em 1924. Pode-se afirmar que Pacheco
encontrou a pintura parisiense nos anos 20 sofrendo os efeitos da re-
volução impressionista e também em plena ebulição com o movimento
surrealista e seu estímulo à total liberdade de expressão, influências es-
sas que iriam deixar marcas permanentes em
seu trabalho.
Heitor Amílcar

Alípio me levou a uma aca-


demia, a Academia Julien.
Esse quadro ganhou quinto
lugar na Academia Julien.
Não ganhei melhor lugar
porque pus um pouquinho
de verde e azul. O meu pro-
fessor lá queria uma palheta
só de quatro cores, cores fer-
rosas. E eu acho que eu já
nasci impressionista, sabe?
Então, punha um pouqui-
nho de azul, verde, e o pro-
fessor falou: “Olha, se você
não tivesse posto esse azulzi-
nho aí, você tinha tirado, tal-
vez, o primeiro lugar”. Por-
que tá bem novelado, né?
Você vê o tórax do homem,
Nu de Homem, 1928. tá saliente na tela.

Pacheco passou também pela Academia de Belas Artes, onde jo-


vens estrangeiros procuravam aprender com mestres franceses, mar-
cados pela tradição clássica do romantismo com as rupturas provoca-
das pelo trabalho dos impressionistas. “Tinha a Academia Renard, em
que fiquei muito tempo. Depois fui para outras academias noturnas:
La Rossi, Garçoniere... aquelas do Quartier Latin. E eu trabalhava de
dia, e à noite estava sempre pintando.” Mas foi na Academia Julien,
um porto de chegada para novas vitórias, que ele conheceu Tomás Pe-
laio Moreira Gonçalvez, um pintor português de Santo Tirso, já ex-
periente no cotidiano parisiense.

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Certa vez, Pelaio me disse: “Você vai morar comigo,


Pacheco. Nós vamos morar na Rue du Sentier [região
de Montmartre, o bairro dos jovens artistas], é mais
barato, você vai ver”. Então, fiquei morando lá. Eu fi-
cava no último andar e ele, no terceiro. Ele tinha um
quarto melhor que o meu, amplo e com aquecimento.
Ele me disse:
— Pacheco, eu quero pintar o seu retrato um dia.
Eu falei: “Tá bom!”.
— Então, fique aí.
Eu fiquei lá, posei, e ele esboçou em três tempos – ele
pintava como um relâmpago. Pintava numa tela dez
quadros. Ele pintava, virava a tela, pintava outro, por-
que ele era pobre e não tinha dinheiro para comprar
outra, então, pintava uma tela em cima da outra. Ele
falou:
— Pronto, Pacheco. Chega! Amanhã você vem na
mesma hora.
Na noite seguinte, ao invés de ir para lá eu fui a Mont-
martre. Fui passear, namorar, dançar, pintá o caneco3
lá. Daí, quando chegou no outro dia, eu voltei e disse:
— Pelaio, vamos continuar o retrato.
— Necas de Pitiritiba.4
— Por quê?, indaguei.
— Não, não quero pintar. Não estou inspirado.
Fiquei magoado com aquilo, porque eu fui culpado.
Eu disse para ele:
— Pelaio, já que você não quer pintar meu retrato, eu
mesmo vou pintar o meu retrato aqui no seu ateliê.
— Tá bom, pode pintar.
Peguei uma tela – que eu tinha obtido de um japonês
que veio de Nova York – e passei uma tinta neutra em
cima e desenhei o meu retrato. Levei quinze dias. Todo
dia ia trabalhar nele; o Pelaio ficava deitado na cama,
sossegado, fumando um cigarrinho de papel enrolado
com fumo vagabundo. Eu pintava e, de vez em quan-

3 “Pintá o caneco – Expressão jubilosa, denotando alegria, prazer, qualquer ação lúdica e saudável Nego,
convidando a amada para uma noite jubilosa: ‘Óia, benhe. Hoje, nói vai saí, vai passeá de tomove, vai pro
moter, nói vai pintá o caneco, ocê vai vê’.” In: Dicionário do Dialeto Caipiracicabano, ELIAS NETO, Cecí-
lio. São Paulo: Ed. Signos, 1996.
4 A palavra neca consta dos dicionários como brasileirismo, gíria. Em Piracicaba sempre foi muito usada,
com as características próprias da cidade, que é uma das últimas a preservar o chamado “dialeto do Vale do
Tietê Médio”, a região caipira de São Paulo, ao lado do Vale do Paraíba. Em Piracicaba, o neca sempre teve,
também, o significado de “nada”, “coisa alguma”. Para uma negação imperativa, dizia-se: “nanã, neca!”.
Ou seja: “não senhor(a), não tem”, “não vai fazer”etc. A negação absoluta passou a ser o “necas de Pitiri-
tiba”, que tinha o significado – ainda presente na linguagem do Pacheco – de “não haver coisa alguma em
lugar algum”. Pitiritiba era esse lugar nenhum. Hoje, seria oportuníssimo, frente ao hermetismo da lingua-
gem econômica, dizer-se que, diante do que esses doutores falam – aqui em Piracicaba, pelo menos –, não
se entende “necas de Pitiritiba”. (Nota do jornalista Elias Cecílio Netto, especialmente para este artigo).

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do, ele dava uma olhada. Dizia apenas: “Vai indo, vai
indo.” Então, depois de quinze dias, falei:
— Eu não sei mais o que fazer! Ele olhou:
— Tá bom? Se você acha que tá bom, tá bom!
— Não, eu não acho que tá bom. Agora é você que vai
falar para mim se tá bom!
— Olha – respondeu ele –, falta luz aí na cabeça, na
testa... A luz ilumina a parte de cima. A luz rembra-
nesca.
Segui suas indicações e coloquei luz. Ao findar, disse
que iria mandar o quadro para o Salon des Artistes
Français. Pelaio deu uma risada e disse:
— Você vai mandar esse quadro? Olha, eu estudei oito
anos na Escola do Porto, vim aqui e mandei meus qua-
dros para o Salão. Foi tudo recusado.

Isso se deu em 1928, quando Pacheco e Pelaio resolveram fre-


qüentar a Academia de Émile Renard. Pacheco mostrou a Renard as
telas pintadas nos dois anos anteriores. O mestre gostou do Auto-re-
trato e de uma pequena paisagem:

Assim que eu mostrei pro Renard, ele falou: “Pacheco,


você vai mandar esse quadro para o Salão”. E acres-
centou: “Mande esse tam-
bém”, referindo-se a uma pe-
Heitor Amílcar

quena paisagem de igreja. Eu


não tava com muita fé no qua-
drinho, mas no do retrato eu
tava. Resultado, dali uma se-
mana veio o resultado e o
auto-retrato foi aceito e a pai-
sagem pequena cortaram.

Contrastando com o vigor apresentado, já


desde então, pelo trabalho de Pacheco estava a
falta de formação acadêmica, da parte dele, em
pintura. No ano de sua chegada a Paris, o mun-
do recebeu a notícia da morte de Claude Monet
– um dos artistas ligados ao movimento impres-
sionista de maior destaque público na Europa e
nos Estados Unidos. Mas, indagado sobre qual
pintor se falava então nos meios artísticos pari-
sienses e de suas lembranças da repercussão da
Mon Portrait, 1928. morte de Monet, foi enfático:

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Falavam em Picasso, Matisse, Renoir, todos esses. Mas


eu não conhecia nenhuma dessas pessoas. Era um bi-
sonho lá em Paris, um caipira de Piracicaba que estava
pondo o pé numa civilização grande... não sabia nem
quem era Monet, Manet, Pissarro... não sabia nada.
Para mim, o Alípio era um Deus. Falava tanta besteira
que o meu amigo português perguntou:
— Esse seu Alípio, aí, tem quadro no Museu do Lou-
vre?
É porque, com a burrada que falei, o português pen-
sou: “Não é possível!”. De modo que eu era muito bi-
sonho, muito infantil mesmo. Eu tava sonhando, de-
lirando com aquela cidade luz.
(...) Bom, quando o meu quadro foi aceito no Salão
para mim foi uma festa, não esperava. Daí entrei em
contato com muita gente.

Num verão, Pacheco foi convidado por Pelaio a conhecer a Bre-


tanha, a província do noroeste francês. Tomaram o trem em direção
ao porto de Travertain, onde o piracicabano encantou-se com a praia
e com o mar: “Pintei uma porção de quadros lá, mas ainda sem grande
experiência... Lá na Europa, para mim, não tem coisa mais bonita que
a Bretanha”.5
Paul Gauguin havia encontrado nessa região a revelação da pró-
pria arte. O aspecto pitoresco da Bretanha tinha marcado a história da
pintura moderna desde 1888, quando um grupo de pintores e apren-
dizes, reunidos em torno de Gauguin, denominaram-se Escola de
Pont-Aven.6 Artistas vieram de muitos países; em certos dias, mais de
cem pintores podiam ser encontrados em Pont-Aven; vivendo num
dos vários hotéis e pousadas, animavam-se energeticamente por meio
5 “Isolada no ponto extremo oeste da Europa, a montanhosa e pitoresca província francesa da Bretanha
atraía artistas desde a década de 1820. A paisagem era dramática e variada, o custo de vida era baixo e a
cultura antiga – mas ainda vital – da Bretanha parecia maravilhosamente exótica para os pintores da
cidade que continuamente desprezavam a ‘civilização’ e almejavam uma vida simples. Os bretões desfila-
vam orgulhosamente suas roupas tradicionais e falavam uma linguagem mais relacionada ao galês do que
ao francês. Suas vidas eram formadas pelos fabulosos mitos celtas e contos folclóricos de sua tradição,
além de misteriosos monumentos de pedras espalhados pelo campo. Até mesmo o catolicismo da Breta-
nha tinha uma intensidade mística”. (Descrição retirada da apresentação de Gilian Wohlauer para a expo-
sição Gauguin e a Escola de Pont-Aven, organizada pelo Museum of Fine Arts de Boston, jun/set 1996.
Tradução: Margaret Ann Griesse.)
6 Natureza Morta com Perfil de Laval, a primeira pintura de Paul Gauguin na Bretanha, verão de 1886
(ano da oitava e última Exposição Impressionista), revelou os créditos do artista às cores de Cézanne. O
grupo de jovens pintores que formaram a Escola de Pont-Aven destacavam Paul Cézanne e Edgar Degas
como os seus precursores. O Dicionário da Pintura Moderna (São Paulo: Hemus, 1981) define as caracterís-
ticas estéticas do grupo: “O novo emprego da cor pura – à qual, segundo dizem, deve sacrificar tudo – sem
os matizes de luzes próprios ao Impressionismo, conduz à exaltação da superfície plana decorativa, a eleva-
ção da linha do horizonte, a supressão da perspectiva e do espaço naturalistas”

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do contato uns com os outros, saindo dia após dia para pintar – numa
grande variedade de estilos – a paisagem regional e seus habitantes.
Durante sua permanência na Bretanha, Pacheco foi aluno de Lu-
cien Simon, um dos representantes do Impressionismo na região. Re-
gistrou suas lembranças desse período num grande painel, o Sonho do
Pintor (1971), onde rende homenagem aos pintores que amaram a
Bretanha. Indicando o quadro, diz:

Leia só o que está escrito aqui: “Os artistas, pintores,


especialmente os aqui representados: Lucien Simon,
Lemordin, Charles Goude, Desiree Lucrasse, Gau-
guin, Dominee, Valença, Pelaio”. Esses foram os que
pintaram a Bretanha. E esse quadro eu comecei fazen-
do uma paisagem e depois transformei numa home-
nagem à Bretanha. Eu levei um ano para pintar. Olha,
queria que ele fosse exposto na França, compreende?
Nem no Rio de Janeiro eu consegui expor por uma es-
tupidez, burrice, pela desonestidade dos artistas, dos
membros do júri. Eu o levei com dificuldade de São
Paulo para lá e um rapaz que tomava conta disse:
“Olha, seu Pacheco, esse quadro aí não pode ser ins-
crito.” “Por quê?”, indaguei. Ele respondeu-me: “O
senhor chegou fora de hora”.

Gauguin dizia que as bretãs eram mulheres muito bonitas. “É


verdade?”, quisemos saber:

As mulheres da Bretanha são bonitas, mas são robus-


tas, camponesas fortes. Uma beleza sadia. Lá eu gosta-
va até mais das velhas. Fiz um quadro representando
três delas. Elas usavam umas toucas medievais chama-
da bigoben. Uma delas eu copiei de um quadro do Pe-
laio, o meu amigo português. Ele dizia assim: “Tomás
Pelaio Moreira Gonçalvez, o rapaz mais bonito de
Santo Tirso”, porque ele era vaidoso. Mas era bonito
mesmo, um talento na pintura.

Perguntado sobre o reconhecimento de seu trabalho como artis-


ta, após os anos de convívio com a pintura francesa das academias e
com os pintores que amavam a Bretanha, Pacheco repete: “Eu acho
que eu nasci impressionista”. E, dando vazão a seus pensamentos, con-
tinua:

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Eu estou lendo a biografia de Cézanne. Seu pai era um


banqueiro que desejava uma profissão de advogado
para o filho [o pai de Pacheco igualmente não preten-
dia a pintura como ocupação para o filho]. Ele dese-
nhava mal, não sentia os planos, compreende? Dese-
nhava uma figura, e a deformava. Ele tem um quadro
famoso, o Jogadores de Cartas (1892), em que o om-
bro do homem é uma coisa fantástica de tamanho. Ele
tá jogando cartas, não tá sentindo, a cabeça pequena,
fora de proporção.
De perspectiva, Cézanne não entendia necas de Pitiri-
tiba. Certa vez, até disse: “Vou largar mão de pintar
porque eu não sei desenhar. Não posso desenhar. Mas
eu vou continuar porque a pintura para mim não é de-
senho, não é nada. Perspectivas, essas bobagens aí dos
antigos, eu não posso fazer. É por isso que vou apelar
para a cor. Então vou jogar cores vivas, cores brilhan-
tes”. Como eu aqui.
André Alexandre

Pacheco em seu atêlie.

Ao chegar a Paris na segunda metade da década de 20, Pacheco


deparou-se com o caudal da cultura européia, cuja grandiosidade ele,
até então, jamais vislumbrara existir. E a expressão artística dela ocor-
ria especialmente na capital francesa: movimentos fecundos, como o
dos impressionistas, iriam lhe arrebatar definitivamente. Mas também
o Surrealismo, surgido como movimento em 1924, iria se tornar outra

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forte presença na pintura que esse piracicabano viria desenvolver. Foi


o que a estada na França, de intenso contato com “dois mil anos de
civilização” – conforme expressão do próprio Pacheco – e de amor à
Bretanha, legou ao estilo do artista.
Porém os últimos anos da década de 30 registrariam o medo
crescente da guerra que se aproximava. A intranqüilidade política fez
com que intelectuais, incluindo os artistas, passassem a buscar outros
refúgios, e que muitos se radicasse nos Estados Unidos. O êxodo iria
acelerar o declínio de Paris e resultar no estabelecimento de Nova York
como o novo centro das artes. Mas já então Pacheco teria regressado
à sua Piracicaba, o que reservou ainda momentos marcantes nas lem-
branças do pintor.

Ah! O regresso foi bem interessante! O meu pai teve


com a minha mãe sete filhos, eu era o mais velho. Se-
gui pra Europa quase que contrariando a vontade de-
le. Depois que eu tava lá, se pudesse, teria ficado 10
anos. Mas, após cinco anos, meu pai me escreveu uma
carta, dizendo: “Olha filho, o que eu pude fazer por
você, eu já fiz. Agora você volta pra cá porque você
tem outros irmãos para estudar”. Um irmão ficou
agrônomo, as outras irmãs professoras e só eu pintor.
O único pintor da família. Aliás, a minha mãe e eu.
Então, eu digo: “Vou embora”. Mandei fazer um cai-
xote lá e pus quase tudo que eu tinha dentro; arranjei
os documentos, os papéis, peguei o vapor, voltei. Fui
e voltei de vapor. Dezoito dias de viagem. Fiquei mui-
to contente com a volta. Disse pro meu pai: “Olha, o
que eu pude fazer, meu pai, tá aqui”. Era um caixote
grande, para caber todos os quadros que tinha feito.

Nele, o piracicabano (ou rio-pedrense?) transportou, materiali-


zadas em cores, suas impressões da vivência européia. O pai, manti-
nha-se indiferente com os “estudos” do filho na França; já a mãe, en-
tusiasmada pelo trabalho dele: “E, quando cheguei de lá, o único que
teve grande entusiasmo comigo foi minha mãe. Ela tinha afinidade co-
migo: era pintora. Mas o meu pai não; tinha mentalidade burguesa do
interior paulista”.
A memória do pintor divaga, e sua narrativa resgata lapsos de
tempo ainda anteriores:

Nem fazendeiro ele foi. Começou com uma fazenda,


mas tinha dinheiro e não trabalhava muito, pra falar a

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verdade. Então, acabou vendendo a fazenda. A fazen-


da era em Rio das Pedras, Fazenda do Lajeado.
Teve um incidente muito interessante: o meu pai esta-
va com o trole e tinha vendido a fazenda. E me disse:
— Olha meu filho, eu vendi a fazenda do Lajeado.
Quando chegamos na porteira eu falei:
— Papai, vamô vortá.
— Por quê, meu filho?
— Eu esqueci lá meus brinquedos – respondi.
— Que brinquedo coisa nenhuma! Eu vendi a fazenda
de porteira fechada.
Naquele tempo palavra era documento. Um fio de
barba era documento. Então, eu vim triste para Pira-
cicaba porque ficaram lá os meus brinquedos. Eu era
criança, devia ter uns seis anos. Um dos primeiros de-
senhos que fiz foi quando tinha uns seis anos. Eu es-
tava na cozinha da minha casa – devia ser lá mesmo na
fazenda – e pintei um prato e uma penca de banana.
Comecei a desenhar sem tirar o lápis do lugar. Até hoje
tenho esse desenho.

Mas acaba por retomar o fio da meada. E tenta nos responder


como reencontrou Piracicaba, após anos de ausência.

Os cinco anos passaram que nem um relâmpago. Eu


não notei muita diferença. Só lembro que queria fazer
uma exposição. E fiz. Mas como eu não vendi nada, e
também não quis vender, não sei, então fiquei naquela
pendura, uma sinuca de bico. Falei: “Como é que eu
vou fazer? Não ganhei nada. Meu pai tinha razão, pin-
tura não dá mesmo dinheiro”.
Daí apelei para a família Dutra. O Antonio de Pádua
Dutra, que era o mais chegado, disse:
— Pacheco, por que você está aborrecido?
— Pois é Pádua, eu tô triste porque fiquei tão pouco
tempo na Europa.
Pra mim tinha sido pouco, porque pra arte não há li-
mite, é uma vida inteira e a gente está estudando. Até
na hora de morrer, como esses pintores que tavam
com o pincel na mão, (...) e eu então também quero
morrer pintando.
Falei pro Pádua: “Olha, eu preciso ganhar a vida!”. E
ele respondeu: “Não tem importância. Você vai ser
professor em Casa Branca” [município paulista].
— Mas como? – perguntei. Eu não sou professor. Não
sou formado; estudei na Escola de Belas Artes de Paris,

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mas como aluno ouvinte. Aluno ouvinte não é aluno


oficial da Escola. E nem professor analista eu sou. Eu
sou contador. Contador.
E me disse: “Não tem importância”.

A laços políticos piracicabanos acabam por arrumar o caminho


profissional de Pacheco: tornar-se professor. Uma nobre profissão na-
queles tempos, “tempos em que a política mandava muito”. Pádua fa-
lara com João Dutra, que por sua vez era amigo do Sud Mennucci, in-
fluente político local: “Vamos consertar a vida do Pacheco, que ele é
gente de casa, é cria de casa”. Assim, foi nomeado professor de dese-
nho em Casa Branca.

Fui pra lá, completamente medroso, com medo dos alu-


nos. Eu pensava: “Como é que eu posso ir? Tem aluno
mais velho que eu”. O Dutra respondeu: “Olha, Pache-
co, como professor, aperte na nota porque senão o aluno
não respeita você. Porque você é professor de desenho”.
Desenho era considerada uma matéria quase inútil. Ele
deu a orientação, então eu apertava. Arrochava os alu-
nos: era zero para todos os lados. Mandava fazer no na-
tural e depois mandava pintar: galinha, galo, homem
correndo, vaca, bezerro, elefante. Os alunos tinham que
pelejar para fazer o meu trabalho.

Seus trabalhos mais recentes estão impregnados pela expressão


forte e audaciosa da cor, resquícios da abordagem naturalista assim
como do modernismo que influenciaram os primeiros impressionistas.
Mas, hoje, os quadros de Pacheco também podem ser compostos por
objetos (máscaras, rolhas, plástico, botões, recortes de papel), que são
fixados na tela. A liberdade de expressão conquistada pela revolução
surrealista continua sendo outra referência nas telas atuais do artista.
Apesar de todas as influências que possa ter recebido, recusou to-
dos os “ismos” que designam a arte contemporânea. “Pra mim tudo
quanto é arte é boa”, conclui o pintor, do alto do seu quase um século
de existência, sempre afeito a transformações. Mas referência mesmo
só escapa a que insiste ter dos impressionistas, cuja definição do que
seja próprio ao movimento ele tem bem claro: “Impressionista é aque-
le que vai pela impressão que tem. Por exemplo, eu olho e vejo aquelas
flores amarelas. Procuro colocar o mais puro que seja daquele amare-
lo. Eu quero até rivalizar com o Sol... quero a cor máxima...”. E con-
clui: “Eu faço muita experiência com a minha vista”.

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E lá está outra afinidade com vários pintores do movimento im-


pressionista: catarata nos olhos, do que Claude Monet foi o exemplo
clássico. “Olha, eu tinha catarata nos dois olhos; operei o direito. Fi-
cou ótimo. Hoje enxergo uma mosca voando e qualquer coisa. Com
o olho esquerdo não. Quando eu operei o médico disse: ‘Não convém
operar as duas porque pode acontecer qualquer coisa, e se perder’”.
No final do nosso encontro, Pacheco, quase que por descuido, dei-
xa antever a possibilidade de um ponto final ao trajeto imprevisível de sua
arte. Como que em um deslise, o nonagenário pintor, dono de produção
fértil e regular, parece conceber um fim à sua fecundidade artística.
André Alexandre

Quadro com colagens, 1998.

Eu acho que o pintor, para conseguir alguma coisa,


tem de arriscar tudo, tudo vale a pena. Até o que eu tô
fazendo aí, que é uma loucura, se alguém não gostar
não importa. Quer ver? O senhor, por exemplo, com-
praria um quadro desse? Esse quadro foi feito com
loucuras, aplicação de coisas: de rolhas, botões... Se
conseguir a cor, tudo vale.
Vejam bem! A loucura dessas cores aqui... eu tô pondo
cores aqui, jogo e não fico contente com as cores...
quero ainda fazer relevos... Olha essas figuras. Másca-
ras coladas aí. De modo que, depois que eu ponho a
tinta, pinto com spray. Quando eu não tô contente
com a pintura, pego um tubo desse aqui e vou em ci-
ma. Pronto, é assim que eu faço. Eu tô com muita

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pressa de fazer porque acho que essa é a última fase da


minha vida!

Quem já teve a oportunidade de deliciar os sentidos com tudo o


que este piracicabano já produziu – e continua a produzir – tem pleno
direito em duvidar de tal risco para tão breve...

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Cenário Histórico
do Movimento
Impressionista
The historic scenery
of the impressionist
movement
RESUMO – O artigo mostra os acontecimentos que serviram de cenário para o mo- EDUARDO ISMAEL MURGUIA
vimento impressionista. Relaciona esses acontecimentos com a dinâmica e o dire- Doutor em Educação (Unicamp) e
professor de História da Arte (UNI-
cionamento do movimento. Os elementos históricos que servem para explicar o MEP)
Impressionismo são identificados da seguinte maneira: a classe social à qual per- murguia@sol.com.br
tenceram tanto os pintores impressionistas como seu público e os ideais presentes
nessa classe; as reformas urbanas, em função das mudanças socioeconômicas do
século XIX, que serviram como espaço de atuação do movimento e como fonte de
temas; a influência da ciência e da técnica nos lineamentos teóricos e na execução
da pintura impressionista. O artigo finaliza com uma discussão sobre a influência
da modernidade do século XIX no movimento impressionista.

Palavras-chave: história da arte – século XIX – movimento impressionista.

ABSTRACT – The article shows the events that served as a set upon which the im-
pressionist movement was developed. It relates these events with the dinamism
and the orientation of the movement. The historic elements wich are used to ex-
plain Impressionism are identified as follows: the social class to which the im-
pressionist artists and their public belonged; the social and economic changes that
originated the urbanistic reform in the XIX century, which was a source of themes
for the impressionist paintings; the inflluence of the science and technique on the
theory and practice of impressionist execution. The article concludes with a dis-
cussion about modernity in the XIX century and its influence no on the impres-
sionist movement.

Keywords: history of art – XIX Century – impressionist movement.

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A presente reflexão tem como início o cenário histórico do movi-


mento impressionista a partir das duas coordenadas com as
quais a História trabalha: o espaço e o tempo, ou, em outras pa-
lavras, a França e o século XIX. Se quisermos entender esse movimen-
to, é preciso saber o que acontecia de importante no lugar e na época
em que ele se deu.
A França do século XIX havia se estruturado e adquirido signifi-
cado a partir de um fenômeno histórico que teve início na Europa e,
posteriormente, estendeu-se ao mundo inteiro, prolongando-se, de
certa forma, até a atualidade: a Revolução Industrial:

A revolução industrial supõe, em essência, uma mu-


dança acelerada nos métodos de produção de bens
não agrícolas. Uma mudança que representou o passo
da produção manual de bens com a ajuda de ferra-
mentas simples, a produção mediante máquinas e pro-
cessos químicos cada vez mais complexos. Dentro des-
ta grande transformação, que se acelerou espetacular-
mente durante a segunda metade do século XVIII, e
que continua até os dias de hoje, os inventos mecâni-
cos configuraram cada vez mais as tarefas humanas. As
máquinas começam a se movimentar com energia
extraída de fontes inanimadas, substituindo as fontes
de origem animal e humana.1

Como é sabido, a Revolução Industrial teve começo na Inglater-


ra. Sem pretender entrar nas causas pelas quais isso aconteceu, cabe re-
gistrar que em um período de 50 anos, ou seja, no começo do século
XIX, 30% dos bens consumidos na Europa eram de manufatura ingle-
sa. Obviamente esse impulso econômico trouxe também uma dupli-
cação da população deste país. E, o que talvez seja mais importante,
fez da Inglaterra a grande potência hegemônica, tanto militar como
política, desse século.
O modelo de desenvolvimento inglês sustentado na indústria,
modelo este que aliás ainda subsiste, torna-se norma a ser seguida pe-
los demais países europeus. Obviamente, a França do século XIX não
escapa dessa tendência; o berço do Impressionismo foi um país indus-
trial, um país convulsionado pelas tentativas, logros e fracassos na bus-
ca de uma economia não mais sustentada na agricultura, mas na pro-
dução industrial.

1 GARRATY & GAY, 1981, p. 151.

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O IMPRESSIONISMO COMO MOVIMENTO BURGUÊS


Em primeiro lugar, nessa França industrial do século XIX encon-
tramos um novo grupo social que começa a ter papel hegemônico: a
burguesia. Assumindo a clássica definição marxista de classe social
como o grupo que detém ou não os meios de produção, vemos que na
sociedade industrial se delineiam dois grupos: o que possui as fábricas
(burguesia) e o composto pelos excluídos, alienados da posse desses
meios (proletariado). Mas a percepção que intelectuais, artistas e poetas
da época têm da burguesia é difusa e contraditória. Tomemos três au-
tores, como exemplo, para ver como era interpretada essa classe.
Com exceção de Balzac, nenhum outro escritor conseguiu repre-
sentar melhor o espírito burguês do que Flaubert. Ele não somente era
um escritor de extração e de forma de vida burguesas como também
foi uma testemunha dos sentimentos burgueses. Em sua obra mais co-
nhecida, Madame Bovary, Flaubert apresenta-nos a burguesia como
modelo do anti-herói trágico do classicismo literário. A figura do herói
clássico define-se pelo seu sentido trágico da vida e das paixões. Mdme.
Bovary não se encaixa nesse padrão. Pelo contrário, ela representa uma
nova tragédia feita pelo acúmulo de pequenos desgostos do dia-a-dia,
da rotina: a tragédia burguesa.
Ainda mais, a antipatia de Flaubert pela burguesia está expressa
em suas cartas, nas quais se refere aos burgueses como ignorantes e ru-
des, incapazes de apreciar a verdadeira obra de arte. Na verdade, nelas
Flaubert não faz outra coisa que perpetuar a visão do movimento ro-
mântico sobre a burguesia.
Os ideais românticos da arte pela arte e da genialidade incom-
preendida aparecem como reação não somente ao novo gosto burguês
que começa a surgir, mas também como reação à nova forma das re-
lações sociais fundamentadas no livre mercado. Durante essa época,
para poder sobreviver o poeta precisa ser jornalista; o pintor, carica-
turista; e assim por diante. Por outro lado, a sociedade burguesa não
deixa lugar para a criação e, mesmo quando o faz, não entende o que
há de sublime e de belo na criação artística.
O segundo autor importante para entender a burguesia da época
é Karl Marx. Sobretudo o Marx do Manifesto do Partido Comunista,
escrito em 1848, texto dedicado principalmente a analisar a classe bur-
guesa, e no qual afirma que a burguesia é realmente a única classe re-
volucionária. A esse respeito Marx afirma no Manifesto:

O constante revolucionar da produção, a ininterrupta


perturbação de todas as relações sociais, a interminável
incerteza e agitação distinguem a época burguesa de

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todas as épocas anteriores. Todas as relações fixas,


imobilizadas, com sua aura de idéias e opiniões venerá-
veis, são descartadas; todas as relações, recém forma-
das, se tornam obsoletas antes que se ossifiquem. Tudo
o que é sólido se desmancha no ar, tudo o que é sa-
grado é profanado (...). A burguesia despiu o halo de
todas ocupações (feudais) até então honoráveis, enca-
radas com reverente respeito (...). A burguesia extir-
pou a família de seu véu sentimental e transformou a
relação familiar em simples relação monetária (...). Em
lugar da exploração mascarada sob ilusões religiosas e
políticas, ela colocou uma exploração aberta, desver-
gonhada, direta e nua.2

Tanto a visão de Flaubert como a de Marx estão marcadas por


uma crítica feroz contra a burguesia. Porém as duas se diferenciam
pelo enfoque dado ao estudo que a ela cada um deles dedica. Grosso
modo, essas opiniões poderiam ser consideradas como opiniões da di-
reita e da esquerda, respectivamente.
Síntese das duas visões anteriores, uma terceira via de interpre-
tação é representada por Charles Baudelaire,3 e pode ser chamada de
“visão pragmática”. Em dois trabalhos, “O Salão de 1846” e “Conse-
lhos aos Jovens Literatos”, Baudelaire faz uma crítica mordaz à visão
que o romantismo possuía. Esses textos buscaram abrir os olhos dos
escritores românticos que, por sua atitude de desprezo, estariam ne-
gligenciando seu verdadeiro público. Baudelaire afirma tratar-se de um
fato consumado e inegável estarem vivendo numa sociedade regida
pelas leis de mercado e, numa sociedade onde os bens são para con-
sumo, a arte não pode escapar do seu valor de mercadoria.
Sendo a obra de arte mercadoria, o ofício artístico deve ser en-
carado como um negócio; portanto, o artista precisa saber adminis-
trar-se para não cair na falência, tal como ocorre com muitas empre-
sas. Cabe ao escritor prestar atenção à forma com que apresenta sua
obra, por ser este elemento o que atrairá os leitores. Assim sendo, o
fracasso e a incompreensão, longe de serem sintomas de qualidade,
são aspectos ridículos. Não existe nada de errado na busca do artista
pelo sucesso e a aceitação do público. Tampouco adiantaria reclamar
e zombar da má qualidade dos romances folhetinescos, por ser justa-
mente esse o gênero que tirava o público do artista.
Por último, Baudelaire reconhece a falta de critério e gosto da
burguesia: ela é cega para apreciar a qualidade da arte. Segundo o es-
2 McLELLAN, 1988, pp. 223-224.
3 OELHER, 1997.

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critor, o artista deve aproveitar justamente essa falta de critério, en-


contrando uma brecha, um espaço para o exercício de sua liberdade
criativa. O artista não precisa fazer outra coisa senão mostrar sua obra
para o público.
Com isso, deve-se acrescentar que Baudelaire não foi só um au-
tor pragmático, como também maquiavélico. Mas a importância do
pensamento de Baudelaire está no fato dele ter-se adiantado, com di-
ferença de poucos anos, à atitude dos pintores impressionistas.
O movimento impressionista foi um movimento burguês, no
pleno sentido do termo. Em primeiro lugar pela extração social dos
seus pintores, a maior parte dos quais vinha de famílias de boa posição
econômica. A origem familiar de Manet, Degas, Bazille, Cézanne, Pis-
sarro e Morizot permitia que exercessem suas profissões sem ter que
se preocupar com sustento. Já casos como Monet e Renoir, que pre-
cisavam viver do próprio trabalho, ou seja, da venda de suas obras, po-
deriam ser enquadrados justamente nessa sociedade em que a obra de
arte é mercadoria.
Todos lutavam pelo reconhecimento. O reconhecimento do júri
dos salões, da crítica, da imprensa, não somente pelo fato de ser uma
glória social, mas também por isso significar o selo de garantia para
acesso às salas das residências dos burgueses, e assim poder decorar
suas paredes. Aliás, eram os burgueses os únicos que poderiam com-
prar suas obras.
Quando rejeitados, as estratégias para alcançar o reconhecimen-
to foram inúmeras; diferente de Édouard Manet, que abre sua própria
sala para expor suas obras, os impressionistas procuram espaços alter-
nativos como as galerias particulares. Não esqueçamos que Durand-
Ruel torna-se o grande marchand, o negociador intermediário das
obras impressionistas, conseguindo, dez anos após a primeira exposi-
ção, praticamente criar um público comprador nos EUA.
Resumindo, quando nos aprofundamos na história do movi-
mento impressionista, parece que os conselhos de Baudelaire encon-
traram pleno eco nos pintores impressionistas.

A REFORMA DE PARIS E O MOVIMENTO IMPRESSIONISTA


Um segundo acontecimento associado à Revolução Industrial,
que ajuda a explicar o cenário impressionista, foi a reforma por que
passou a cidade de Paris. Como se sabe, a sociedade feudal havia se ar-
ticulado em torno do campo e da economia agrária, com o que, du-
rante a Idade Média, as cidades passaram por uma longa sonolência,
da qual despertaram quando da intensificação do comércio, com o iní-
cio da Idade Moderna.

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Ao longo do período medieval, as cidades


comerciais configuravam-se como sedes do po-
der civil e religioso. Possuíam prédios que enal-
teciam esses poderes; mas, simultaneamente,
eram lugares de moradia de uma enorme mas-
sa de desocupados e mendigos. Cidades que
cresceram ao acaso, seguindo os altos e baixos
da topografia natural, as ladeiras, os vales, as
beiras dos rios, onde se foram criando ilhas de
riqueza e de miséria incomunicáveis entre si.
Já no século XIX, algumas dessas cidades
assistiram ao aparecimento de um novo tipo de
edificação que, em breve, iria se tornar parte do
cenário urbano: a fábrica. Esse novo espaço ur-
bano ganhou significado próprio: passou a ser
o ambiente onde grande número de pessoas
permaneciam a maior parte do seu tempo – o
lugar de trabalho havia se deslocado da casa
para outro espaço, agora alheio ao trabalhador.
A partir dele começavam a se articular também
novas as relações sociais e pessoais: racionaliza-
ção do tempo, da jornada, do salário.
A capital francesa era uma dessas cidades.
Na segunda metade do século passado, Paris e
O Jardim do Infante, Claude Monet, 1867.
Londres eram as duas maiores cidades da Eu-
ropa, cada uma delas com população de quase um milhão de pessoas.
Em Paris misturavam-se a cidade medieval, sede do rei, ponto de par-
tida da união francesa, e a cidade industrial, com suas já referidas
inovações. Se considerarmos unicamente a explosão demográfica de-
vido à migração de trabalhadores do campo para a cidade, a procura
de trabalho, isso por si só já indicaria condições de moradia imprati-
cáveis. Paris precisava ser reformada.
A esse respeito, relata Friedrich:

Às vezes surgiram autocratas como Pedro, o Grande,


decididos a construir cidade inteiras para sua própria
glória. Às vezes ocorriam cataclismos, como o incên-
dio de Londres de 1666, ou o terremoto de Lisboa de
1755, que propiciavam vasta reconstrução urbana.
Mas ninguém havia tentado isolar todo o centro de
uma cidade moderna e renová-lo inteiramente.4

4 FRIEDRICH, 1993, p. 138.

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O que se fez com Paris não foi somente abrir algumas avenidas,
derrubar outros tantos prédios, criar certas praças: significou reedificar
uma nova cidade, uma cidade moderna que respondesse às necessida-
des de um outro tipo de sociedade. Nesse sentido, Paris é o primeiro
projeto urbanístico da sociedade industrial. Uma mudança radical na
concepção do espaço da urbe. E, assim como a Inglaterra anos antes
tornara-se o exemplo a ser seguido para alcançar o desenvolvimento,
Paris passava a ser o modelo de cidade para o resto do mundo.
Tal modelo estava relacionado ao novo paradigma científico do
século XIX. O pensamento científico anterior havia sustentando-se
numa visão mecânica do universo, derivado do sistema de pensamento
newtoniano. O século XIX apresenta como modelo de pensamento o
organismo vivo, procedente do recém surgimento das disciplinas bio-
lógicas e expresso no próprio vocabulário urbanístico, segundo o qual
a cidade possui, por exemplo, artérias (de circulação viária) e coração
(centro da cidade).
A decisão de reformar Paris foi tomada pelo imperador Napo-
leão III em 1853. Incumbiu dessa missão o prefeito da cidade, por ele
nomeado, George Haussmann, que por 17 anos cuidaria do planeja-
mento da capital. O poder exercido pelo Segundo Império, denomi-
nação do reinado de Napoleão III, possibilitou tal empreitada. Seu go-
verno erguia-se sobre o predomínio do capital financeiro, além da
concentração de poderes, o que facilitou essa decisão.
A reforma significou:

Cento e treze quilômetros de vias construídas, 640


quilômetros de calçamento colocado, 27.500 casas de-
molidas, porém 102.500 construídas ou reconstruídas
(...), o conjunto de parques passou de 19 hectares em
1850 para 1.820 hectares em 1870. (...) Em meados
da década de 1860, quando atingiu o auge, a atividade
empregava cerca de vinte por cento de todos os tra-
balhadores parisienses. Haussmann calculou em 2,5
trilhões de francos a quantia gasta em construções en-
tre 1851 a 1869 – o que representava aproximada-
mente cinqüenta vezes o orçamento anual da cidade.5

Esses dados sobre sua envergadura e custos indicam uma obra


sem precedentes. Custos que não só se restringiram ao aspecto eco-
nômico, mas também ao aspecto social. A abertura de grandes aveni-
das e parques significou a expropriação de milhares de moradias, gran-
5 FRIEDRICH, 1993, pp. 145-146.

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de parte delas cortiços. Milhares de pessoas foram expulsas do centro


para a periferia, sem nenhum tipo de ajuda. Uma vez aberta a cidade,
a miséria de Paris foi exposta. Para se ter uma idéia, aproximadamente
15.000 pessoas moravam nos quarteirões insalubres que se amontoa-
vam circunvizinhos a Notre Dame, na Île de la Cité, e todos eles foram
derruídos. Em seu lugar ergueu-se uma praça no entorno daquela que,
hoje em dia, é a catedral mais famosa do mundo.
Por outro lado, a nova cidade devia ser saneada para assegurar
a saúde pública. A reforma significou quintuplicar o abastecimento de
água para uma população que, até então, para tanto valia-se de fontes
públicas. Da mesma forma, para uma cidade onde o esgoto corria a
céu aberto e as epidemias não eram raras, construiu-se uma enorme e
eficaz rede de esgoto.
Outro aspecto considerado e devidamente planejado foi a segu-
rança pública. As vias urbanas, estreitas e desordenadas, haviam pos-
sibilitado que movimentos populares de revolta freqüentemente er-
guessem barricadas. Haussmann teve muito presente que o alargamen-
to de ruas e avenidas, assim como o aplainamento delas, significava
também a possibilidade de aplacar qualquer levante, rápida e facilmen-
te. Agora esse controle poderia ser exercido através do urbanismo.
A importância dada à saúde, à segurança e ao urbanismo foi
complementada com a preocupação pelo ornamento da cidade. Mais
de 100.000 árvores foram plantadas em parques e avenidas, dando à
urbe um ar monumental e grandioso.
Como parte desse embelezamento, criaram-se os bulevares:

As calçadas de Haussmann, como os próprios buleva-


res, eram extravagantemente amplas, juncadas de ban-
cos e luxuriosamente arborizadas. Ilhas para pedestres
foram instaladas para tornar mais fácil a travessia, se-
parar o tráfico local do tráfico de longa distância e
abrir vias alternativas para as caminhadas. Grandes e
majestosas perspectivas foram desenhadas, com mo-
numentos erigidos no extremo dos bulevares, de
modo que cada passeio conduzisse a um clímax dra-
mático. Todas essas caraterísticas ajudaram a transfor-
mar Paris em um espetáculo particularmente sedutor,
uma festa para os olhos e para os sentidos. Cinco gera-
ções de pintores, escritores e fotógrafos (e, um pouco
mais tarde, de cineastas), começando com os impres-
sionistas em 1860, nutrir-se-iam da vida e da energia
que escoavam ao longo dos bulevares.
O que os bulevares fizeram às pessoas que para aí

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ocorreram, a fim de ocupá-los? Baudelaire nos mostra


alguns dos seus efeitos mais notáveis. Para os amantes,
como aqueles de “Os olhos dos pobres”, os bulevares
criaram uma nova cena primordial: um espaço priva-
do, em público, onde eles podiam dedicar-se à própria
intimidade, sem estar fisicamente sós.6

Os bulevares previam, ainda, a criação de cafés com mesas ao ar


livre, rapidamente transformados em símbolo da vida parisiense. Os
cafés eram lugares feitos para o lazer, aproveitados pela intelectualida-
de da cidade também como espaço de discussão. É justamente nessa
época que Paris se consolida como centro intelectual mundial. Artistas,
poetas e intelectuais de todos os cantos do planeta confluem a Paris
para estudar ou trabalhar.
E foram os cafés, em especial o Café Guerbois, que jogaram um
importante papel na constituição do grupo impressionista:

Esses artistas, que até então se encontravam em peque-


nos grupos separados, ora no ateliê de Fantin-Latour,
ora no de Édouard Manet, desejavam reunir-se de
modo mais eficaz, a fim de elaborar, em consonância
com o que discutiam, uma nova concepção pictórica.
Por isso decidiram passar a se encontrar uma vez por
semana, às quintas-feiras, num café mais calmo que o
café de Bade, freqüentado até então por Manet e al-
guns dentre eles. A escolha recaiu então sobre o Café
Guerbois.7

A mudança de café foi decisão de Manet, líder do grupo, além


de ser o mais velho, depois de Pissarro. Os pintores e escritores que o
seguiram fizeram-no devido ao interesse que possuíam pelo trabalho
de Manet. Entre eles, Zola, Duranty, Bazille eram membros assíduos;
Fantin, Renoir e Degas assistiam com freqüência; Guys e Nadar apa-
reciam de vez em quando. E, sempre que chegavam a Paris, Cézanne,
Sisley, Monet e Pissarro também por lá apareciam.
John Rewald faz interessantes observações sobre o temperamen-
to dos impressionistas nas discussões no Café Guerbois, por exemplo
a respeito da ironia e rivalidade estabelecidas entre Manet e Degas,
que, como Bazille, eram provenientes de classe social elevada e tam-
bém os mais cultos. Ou ainda sobre Monet, que, talvez por haver in-
terrompido seus estudos muito cedo, raramente intervia nas discus-
6 BERMAN, 1986, p. 147.
7 SERULLAZ, 1989, p. 40.

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sões, assim como Renoir; já Cézanne era considerado rude em suas


participações.8
Os debates giravam em torno da nova arte e sua oposição à arte
tradicional e acadêmica, por sua vez defendidas pela crítica e pelos
próprios acadêmicos, que impediam ou dificultavam os membros do
grupo impressionista expor nos salões. Discutia-se sobre técnicas pic-
tóricas e a importância dos mestres da pintura.
Pelo que tudo indica, o Café Guerbois foi o lugar onde deve ter
sido pensada a criação da Sociedade de Artistas Independentes, nome
do grupo na primeira exposição.
A Paris dos impressionistas; além dos bulevares e dos cafés, foi
tema constante nas telas destes pintores. Uma obra de arte urbana ser-
vindo como cenário para os inovadores artistas. No entanto, cabe re-
gistrar um pensamento de Friedrich a respeito da representação de Pa-
ris para os impressionistas:

O imperador tinha um gosto estético entre vulgar e


inexistente, e Haussmann parecia interessado basica-
mente em fazer seu trabalho e lucrar. E, no entanto,
quando consideramos a Paris que eles construíram (...),
não constatamos que criaram uma obra de arte extre-
mamente bela, de uma grandiosidade que ultrapassa
qualquer coisa imaginada até por um pintor como
Manet? Ou, até qualquer coisa concebida por todos os
impressionistas juntos, os quais pintaram com tanta
freqüência o que esses dois filisteus construíram?9

O IMPRESSIONISMO E A TECNOLOGIA INDUSTRIAL


A terceira via pela qual a Revolução Industrial se relacionou com
o Impressionismo foi a tecnologia, aliás um dos pilares sobre os quais
se sustentou a sociedade industrial e a Europa do século XIX para po-
der garantir seu desenvolvimento:

Outro aspecto a mais do segundo período da


industrialização européia viu-se representado pelas no-
táveis contribuições no campo da tecnologia e da me-
canização conseguidas no continente. William Sie-
mens, inglês de origem alemã, realizou importantes in-
ventos para o desenvolvimento e obtenção de méto-
dos que permitissem a rápida elaboração de aço (...).

8 REWALD, 1972.
9 FRIEDRICH, 1993, p. 140.

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Um inglês inventou o cimento Portland, mas foram os


franceses e os alemães quem melhoraram os métodos
para produzi-lo. Um alemão descobriu o alumínio;
Gottlieb Daimier, também alemão, aperfeiçoou o mo-
tor de combustão interna e o colocou em prática; o
processo eletrolítico para a produção de soda a partir
do sal comum foi desenvolvido pelo belga Ernest Sol-
vay; o sueco Alfred Nobel inventou um explosivo bara-
to chamado dinamite, enquanto que o italiano Gugli-
elmo Marconi inventou o rádio.10

Todavia, junto ao avanço tecnológico, a ciência exerceu um


importantíssimo papel no pensamento e na conduta da Europa do sé-
culo XIX. O que se constata com a publicação, em 1859, do livro de
Charles Darwin, A Origem das Espécies. O pensamento darwiniano
foi fruto da tradição racionalista e laica, cuja inovação abalou os fun-
damentos do pensamento religioso ainda existente, dando lugar à con-
cepção de mundo totalmente científica.
Foi neste clima de avanços e eclosões de inventos tecnológicos e
teorias científicas convergentes no industrialismo que aparece o Im-
pressionismo como movimento artístico, portando preocupações des-
sas duas atividades.
A inquietação do Impressionismo com a ciência ou a partir da ciência
– em todo caso, influenciado pela ciência – expressou-se basicamente em
sua preocupação com a luz. Assim, quando os pintores impressionistas
se animaram a sair do ateliê, o fizeram com a intenção de poder plasmar
em seus quadros os diferentes matizes da luminosidade do dia, o que
também possibilitou demonstrar as mutações cromáticas que a maior ou
menor incidência luminosa causava nos objetos. Com isso ficavam de-
monstrada a fugacidade da nossa visão e o constante movimento da na-
tureza.
A preocupação com a luz havia sido uma constante na história
da pintura, como no caso do Renascimento, ou do Barroco com o cla-
ro-escuro. Mas o que diferenciou a busca impressionista foi a procura
de uma realidade visual através da luminosidade baseada nos aportes
na ciência:

Ligados até então à sugestão de efeitos luminosos


extraídos diretamente da natureza, os novos pintores
descobrem, num determinado momento, uma nova
prática. Deixaram de representar a luz branca – essa

10 GARRATY & GAY, 1981, p. 175.

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poeira de prata, sonho dos coloristas – por aproxima-


ção e empirismo, passando a representá-la através do
método e ciência precisos. Ela passa a ser notada já não
somente nos seus efeitos, mas na sua realidade analíti-
ca: o feixe branco é representado pelas cores puras que
entram autenticamente na sua composição. (...) a par-
tir de agora se trata, se abstrairmos das formas, da aná-
lise física da luz em si; já não se trata de uma investi-
gação in loco, mas sim da aplicação de uma doutrina,
já não é o empirismo mas sim a ciência. O Impressio-
nismo deixa então de depender dos esforços inocentes
de alguns pintores e entra no movimento geral dos
gostos e das idéias.11

Todavia, essa preocupação com a luminosidade viu-se sustentada


em descobertas científicas da época:

Se, por um lado predomina neles [os impressionistas]


a preocupação de uma melhor apresentação das suas
emoções visuais, por outro lado também a sua técnica
irá ser influenciada pelas novas idéias sobre a natureza
e a composição da luz. Em 1878 foram publicados os
trabalhos de Helmholz sobre ótica e cor; as descober-
tas de Chevreul [De la Loi du Contraste Simultané des
Couleurs (1839); L’Enseignemant devant l’Étude de la
Vision, la Loi du Contraste Simultané des Couleurs
(1865)] e as experiências de Rood [Théorie Scientifique
des Couleurs et ses Applications à l’Art et à l’Industrie
(1881)] (...). Através de quem é que ficaram os impres-
sionistas a conhecê-las? De qualquer modo é difícil
não encarar como uma ligação de causa e efeito a sú-
bita evolução das teorias modernas.12

Esses estudos tratavam fundamentalmente de como as cores se


formavam a partir da decomposição da luz. O que dava lugar a grupos
cromáticos, chamados complementares, que ocupam naturalmente lu-
gar específico um ao lado de outro na escala da luz. Isso demonstrava
que as cores não eram superfícies separadas arbitrariamente como apa-
reciam nos quadros. Diluindo os contornos cromáticos das figuras, os
impressionistas aplicaram na pintura a continuidade tal como enunci-
ada pelas teorias óticas e físicas das cores complementárias.
11 FRANCASTEL, 1988, pp. 28-29.
12 Ibid., p. 30.

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No que diz respeito à tecnologia, o movimento impressionista


assinalou também outro importante diálogo da arte com essa expres-
são de desenvolvimento da época através da fotografia:

[o movimento impressionista] apresentou-se pela pri-


meira vez ao público em 1874, com uma exposição de
artistas “independentes” no estúdio do fotógrafo Na-
dar. É difícil dizer se era maior o interesse do fotógrafo
por aqueles pintores ou dos pintores pela fotografia; o
que é certo, em todo caso, é que um dos móveis da
reformulação pictórica foi a necessidade de redefinir
sua essência e finalidades frente ao novo instrumento
de apreensão mecânica da realidade.13

A partir de tecnologia muito avançada para a época, a fotografia


permitia uma representação muito verossímil da realidade, conseguin-
do fazer o que a pintura, de certa forma, não o fazia. A câmara, má-
quina “objetiva”, transmitia ao público uma sensação de realidade que,
no caso da pintura, foi sempre mediatizada pela personalidade e a for-
ma de representar do pintor. Sob esse aspecto, a mão do pintor, que
antigamente criara imagens, podia ser substituída pela mão do fotó-
grafo, que controlava os processos físicos no ato do registro de ima-
gens. É bom lembrar também a economia de gasto e tempo que a fo-
tografia ofereceria se comparada à pintura.
Por outro lado, essa relação trouxe novos desafios para a pintura.
As atividades a que se dedicavam pintores como retratistas, ilustrado-
res de jornais e de estampas de cidades e paisagens, passaram a ser exe-
cutadas por fotógrafos. Para os pintores não restou outro caminho a
não ser refugiar-se na atividade artística artesanal. O que, por sua vez,
significou a elitização da produção e recepção da pintura.

Em um nível mais elevado, as soluções que se apresen-


tam são duas: 1) evita-se o problema sustentando que
a arte é atividade espiritual que não pode ser substituída
por um meio mecânico (é a tese de Baudelaire e, pos-
teriormente, dos simbolistas e correntes afins); 2) reco-
nhece-se que o problema existente é um problema de
visão, que só pode ser resolvido definindo-se claramen-
te a distinção entre os tipos e as funções da imagem pic-
tórica e a imagem fotográfica (é a tese dos realistas e
dos impressionistas). No primeiro caso, a pintura tende
a se colocar como poesia ou literatura figurada; no se-

13 ARGAN, 1992, p. 71.

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gundo, a pintura, liberada da tarefa tradicional de “re-


presentar o verdadeiro”, tende a se colocar como pura
pintura, isto é, mostrar como se obtém, com procedi-
mentos pictóricos rigorosos, valores de outra maneira
irrealizáveis.14

Assim, perante a popularização da fotografia (inventada no final


da década de 1830), a pintura impressionista procurou encontrar uma
poética própria, sustentada basicamente na cromaticidade. Se a foto-
grafia criou um espaço representacional mecânico que superava o de-
senho (pela naturalidade com que captava a realidade), a pintura im-
pressionista introduziu um outro (o representacional cromático), de-
finindo um espaço próprio, essencialmente pictórico.
A influência da fotografia na pintura também foi notável, no sen-
tido de estabeleceu ângulos de visão até então inéditos. Os quadros de
Degas, praticante da fotografia, são exemplo claro disso. Sua obra de-
mostra o quanto a fotografia abria novos campos criativos: ângulos
inéditos, primeiros planos, decomposição do movimento, em última
instância: imagens como que instantâneas.
Ainda a respeito desse diálogo entre arte e tecnologia, outro im-
portante momento foi constituído pela relação entre arte e percepção
espacial, proporcionado pela difusão da locomotiva, que introduziu ao
olhar uma inédita velocidade. Com o incremento cada vez maior de
trens ao longo do século XIX, importantes mudanças foram trazidas à
paisagem européia. Construções de pontes, túneis, terraplanagens etc.
significaram que, pela primeira vez, a máquina fazia uma intromissão
racional e otimizadora no espaço e na natureza.
No caso específico da pintura, a locomotiva propiciou significa-
tivas mudanças na percepção visual tida até então como corriqueira
que se refletiriam na produção artística da época. Alguns testemunhos
demonstram isso. É o caso do escrito de Edward Stanley, para Bla-
ckwood’s Magazine, quando da inauguração da linha Liverpool-Man-
chester em 1830:

No rápido movimento destas máquinas existe uma ilu-


são óptica digna de notar-se. De fato, um espectador
que as veja aproximar-se quando vão em velocidade
máxima não pode libertasse da idéia de que, mais do
que mover-se, elas aumentam de tamanho. (...) Assim,
uma locomotiva enquanto se aproxima parece aumen-
tar de tamanho, como si tivesse que preencher todo o

14 ARGAN, 1992, p. 79.

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espaço entre as plataformas e absorver tudo em sua


turbina.15

Juntamente com a rapidez da locomotiva, aportou um outro ele-


mento: a perduração da velocidade. O centro de atenção deixou de ser
fixo, agora ele devia seguir o ritmo veloz da máquina. Quem estivesse
dentro do trem precisava aprender a ver as coisas de outro modo: em
movimento. A velocidade fez com que o usuário das estradas de ferro,
ao olhar através da janela, visse uma maior quantidade de coisas de
forma instantânea, iniciando-se assim um olhar impressionista, um
olhar das coisas no seu instante – a partir de uma dada impressão.
Desse modo, o movimento impressionista também significou um
importante momento no diálogo entre arte e ciência, e entre arte e téc-
nica. Diálogo que se havia interrompido no período em que esse mo-
vimento se separara da pintura renascentista. O diálogo entre técnica
e ciência significou um momento para reflexão e experimentação de
uma linguagem que, sem ignorar os fenômenos tecnológicos e cientí-
ficos surgidos na época, levou tais descobertas ao terreno da arte:

A técnica pictórica [impressionista] é, portanto, uma


técnica de conhecimento que não pode ser excluída do
sistema cultural do mundo moderno, eminentemente
científico. Não sustenta que, numa época científica, a
arte deva fingir ser científica; indaga-se sobre o caráter
e a função possíveis da arte numa época científica, e
como deve se transformar para ser uma técnica rigo-
rosa, como a técnica industrial, que depende da ciên-
cia.16

A pintura, com o Impressionismo, fundamentou-se na ciência e


passou a ser uma forma de conhecimento como outras atividades, às
quais – ou a partir das quais – aplicou-se uma aproximação baseada no
rigor do método científico. Além da busca de soluções a problemas co-
locados pela ciência e a técnica do século XIX, foram trazidos para o
campo da pintura outros questionamentos. Um movimento que rom-
pia com quatrocentos anos de tradição representativa e que propunha
a si mesmo estabelecer mudança, inevitavelmente abriu as portas para
novas pesquisas visuais no terreno das artes.
As possibilidades ocorridas pela inovação na pintura a partir des-
se movimento foram tão férteis que, inclusive dentro do próprio mo-
15 RAMIREZ, 1976, p. 53.
16 ARGAN, 1992, p. 76.

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vimento, tornaram inevitáveis que novas propostas começassem a ser


apontadas. Dissidências dentro do Impressionismo, como da parte de
Van Gogh, Cézanne e Seraut, anunciavam transformações que ocor-
reriam na pintura no século seguinte.

O IMPRESSIONISMO E A MODERNIDADE
A modernidade do século XIX foi detectada, ainda nesse período,
por Baudelaire. Importantes trabalhos sobre o tema, nos últimos anos,
tomam como ponto de partida a definição desse escritor:

A modernidade é o transitório, o fugitivo, o contin-


gente, a metade da arte, cuja outra metade é o eterno
e o imutável. Existiu uma modernidade para cada pin-
tor e o imutável. Existiu uma modernidade para cada
pintor antigo (...). Este elemento transitório, fugitivo,
cujas metamorfoses são tão freqüentes, não tendes o
direito de desprezar ou de dispensar.17

Segundo Baudelaire, o pintor precisa representar o que a vida


traz de transitório para justamente torná-lo imutável. Portanto, o pin-
tor moderno deveria representar esse lado efêmero da vida quotidia-
na, do pensamento, do sentir do homem da sociedade industrial. Nes-
se seu livro O Pintor da Vida Moderna, o poeta francês aludia especi-
ficamente ao problema do tema da pintura, o qual ele soube relacionar
à moda. Para Baudelaire, caberia ao pintor moderno deixar de repre-
sentar temas universais com personagens vestidos segundo a moda
clássica da Antigüidade ou da Renascença. Tais personagens deveriam
estar vestidas, isso sim, como as pessoas da própria época dos pintores
impressionistas.
O Impressionismo reuniu artistas insatisfeitos com o academicis-
mo estético. E a história deste movimento mostra, a cada momento,
as lutas por eles travadas com os representantes da pintura acadêmica
em prol de uma pintura realista que substituísse o idealismo tradicio-
nal. Para os impressionistas, a pintura de tradição renascentista ao lon-
go dos séculos havia se tornado um repertório vazio e oco de preceitos
rígidos que, longe de representar as coisas tal como eram, representava
meras idealizações.
Os princípios sustentados por esse movimento, como execução
da arte fora do ateliê, a busca por uma luminosidade natural, a repre-
sentação dos objetos em sua efemeridade e movimento, os temas cor-
17 BAUDELAIRE, Charles. O Pintor da Vida Moderna. Lisboa: Passagens, 1993, p. 22.

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riqueiros e urbanos como resposta a temas clássicos etc. obedeceram,


em última instância, a procura de uma nova arte, mais solta e natural.
Ou seja, uma arte não tradicional, não acadêmica, não circunscrita à
sala de desenho: uma arte moderna.
A modernidade, expressão cultural da sociedade industrial do sé-
culo XIX, ofereceu ao movimento impressionista a possibilidade de se
envolver com a sociedade, a cultura, a ciência e a tecnologia de sua épo-
ca. Em outras palavras, o Impressionismo pode ser definido como o
primeiro movimento moderno, devido à sua articulação com uma épo-
ca na qual a economia capitalista e industrial, o urbanismo, a ciência e
a técnica começaram a adquirir um papel hegemônico na sociedade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARGAN, G. Arte Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
BERMAN, M. Tudo que é Sólido Desmancha no Ar. A aventura da
modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
FRANCASTEL, P. O Impressionismo. Lisboa: Edições 70, 1988.
FRIEDRICH, O. Olimpya. Paris no tempo dos impressionistas. São
Paulo: Companhia das Letras, 1993.
GARRATY, J. & GAY, P. História Universal. Barcelona: Bruguera,
1981, v. 4.
McLELLAN, D. Karl Marx Selected Writings. Oxford: Oxford Univer-
sity Press, 1988.
OELHER, D. Quadros Parisienses. Estética antiburguesa 1830-1848.
São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
RAMIREZ, J.A. Medios de Masas e Historia del Arte. Madrid: Cáte-
dra, 1976.
REWALD, J. História del Impresionismo. Barcelona: Barral, 1972, 2 v.
SERULLAZ, M. O Impressionismo. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1989.

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M’olhar: um olhar
molhado de Monet
Monet: shimmering water
RESUMO – O Impressionismo de Monet se caracteriza por uma representação pic-
tórica muito original do fenômeno fotocromático. Se não há como pouparmos
elogios ao mestre francês, também nunca é demais destacarmos a assídua presença
de um determinado elemento nos quadros deste pintor: a água. No conjunto de
suas obras, percebermos o quanto ela é o referente (como suporte natural) para
os reflexos da luz, das cores.

Neste artigo são ligeiramente comentados uns vinte quadros em que, como em JOSÉ LIMA JR.
muitos outros, a água comparece. Para quem está familiarizado com o Impressio- Doutor em Comunicação
e Semiótica (PUC-SP),
nismo de Monet, a lembrança das telas citadas será fácil. De qualquer modo, o ob- professor no Curso
jetivo destas páginas é reconduzir os olhos dos leitores àquilo que o olhar molhado de Filosofia (UNIMEP)
do pintor traduziu em arte; restando, óbvio, que uma experiência estética diante
de um Monet não cabe em análises verbalizadas sobre seus rastros a pincel.

Palavras-chave: estética – Impressionismo – água.

ABSTRACT – The impressionism of Monet is characterised by a very original pic-


torial representation of the photo-chromatic phenomenon. If there is no way of
saving praises to the French master, it will never be too much to stand out the
constant presence of a certain element in this painter’s pictures: the water. In his
works, we notice how important it is as the reference (as a natural support) to the
reflex of light, of colours.

There are about twenty works which are briefly commented on in this article, in
which, as many others there is the presence of water. For those who are familia-
rized with Monet’s impressionism, it will be easy to remember the pictures men-
tioned. In any case, the aim of these pages is to conduct the reader’s eyes to the
wet look of the painter translated into arts. It remains obvious that an aesthetic ex-
perience in front of a Monet does not fit in any verbal analysis about the traces
made by his brush.

Keywords: aesthetics – Impressionism – water.

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Não podemos tomar banho duas vezes no mesmo rio.


HERÁCLITO DE ÉFESO

Cego às avessas, vejo o que desejo.


CAETANO VELOSO

P ois bem! Já que tudo é passageiro e teimosamente andamos


conforme nos arras(T)a o coração, quero dizer, logo de início,
que este artigo é um passatempo. Um intervalo despretensio-
so. Algo como hora do cafezinho, pra quebrar eventuais cansaços. As li-
nhas nas páginas vão compondo uma textura tramada com aquela coisa
meio desligada, própria do Impressionismo. Átimo de aparência. Epifa-
nia do mo(vi)mento. Uma espécie de hiato lúdico-estético. Só isso! Po-
rém, escapando de um imperdoável e inconseqüente desca(n)so, ao
mesmo tempo os parágrafos propõem um jogo-desafio: o delineamento
de um olhar molhado..., molhado de Monet.1
Trata-se, portanto, de um convite à imaginação. Imaginar um
pouco do como e quanto Monet se impressionava com as coisas mo-
lhadas. Imaginar se seus olhos se molhavam pela impressão das coisas
molhadas. Imaginar por que somos, depois de tantos anos, ainda le-
vados-e-lavados por sua cálida e úmida retina.
Aliás, já começando a divagar, subscrevemos as palavras de um
contemporâneo de Monet: Charles Baudelaire. Em seu artigo sobre o
Salão de 1859, o poeta e crítico de arte lembra que, de um determi-
nado ponto de vista estético, o universo é uma espécie de armazém de
imagens e de signos aos quais a imaginação atribui um lugar e um va-
lor relativos; o mundo é como que um alimento para ser digerido e
transformado pela imaginação. Na esfera da arte, todas as faculdades
da alma humana devem, ao mesmo tempo, estar subordinadas à ima-
ginação.
E, assim, entreguemo-nos à imaginação, a partir de uma única
referência bibliográfica: Monet,2 escrito por Karin Sagner-Düchting
(aqui citado por seu subtítulo, Uma Festa para os Olhos – UFO). Vamos
folheando esse livro, escolhendo algumas passagens que nos insinuem
um M’olhar. E se nessa ligeira odisséia a imaginação for alienada por
algum objeto voador não-identificado, folguemos os cintos! Talvez seja

1 Claude Monet nasceu em Paris em 1840 e morreu em 1926.


2 SAGNER-DÜCHTING, Karin. Monet - uma festa para os olhos. Köln: Benedikt Taschen Verlag GmbH,
1994.

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esse mesmo o desideratum dos que navegam pela lâmina-lágrima, com


olhos encharcados de mistério.
O Impressionismo de Monet começa com as telas Mulheres no
Jardim (1866), O Rio (1868) e O Charco das Rãs (1869). Portanto,
desses três, dois estão, explicitamente, traduzindo o elemento aquoso.
No quadro O Rio, “Monet atribui pela primeira vez um papel impor-
tante aos reflexos, pois dão-lhe a possibilidade particular de ligar a
idéia artística com o realmente percebido. O modelo real transforma-
se, pelos reflexos, em formas de cores abstratas” (UFO, p. 39). O estudo
com os reflexos se acentua, como inovação técnica impressionista, n’O
Charco das Rãs. O quadro tem originalmente o título La Grenouillère,
pois retrata essa ilha no Rio Sena, que era um dos locais preferidos pe-
los primeiros impressionistas para seus exercícios de pintura ao ar livre
(en plein-air). “Naqueles tempos, este lugar e o seu restaurante aos do-
mingos eram um ponto de atração para os que procuravam diverti-
mento, passando o tempo a andar de barco ou a tomar banho no rio.
Monet fez vários estudos sobre este motivo que queria utilizar mais
tarde numa grande composição destinada ao Salão. Mas este projeto
nunca chegou a ser realizado” (UFO, p. 45).
Nesses dois trabalhos, Monet encara uma aventura que também
vai seduzir muitos outros artistas depois dele: a ousadia de dissolver
um real convencionado. Monet dá as suas pinceladas no processo de
transformar o que é sólido em líquido e o que já é líquido em reflexo
so(m)briamente luminoso. As sensações de festa ou tranqüilidade fi-
cam adensadas por um tom impreciso. Sempre falta uma definição. A
nitidez é abolida em favor de fragmentos espessos, justapostos. Afinal,
a realidade não cabe na representação pictórica. Vaza.
Em 1871, Monet estava na Inglaterra. Seu quadro A Ponte de
Westminster em Londres reedita, na parte inferior direita da tela, os re-
flexos de La Grenouillère. Obviamente, todo o quadro exala uma at-
mosfera carregada de brumas. A predominância do cinza medeia entre
um preto pouco desbotado e um lilás bastante indeciso. O vapor é so-
berano. Nessa mesma época, vai para a Holanda e pinta mais de vinte
paisagens em, aproximadamente, seis meses. Relatando sua estada,
Monet registrou: “Atravessamos quase toda a Holanda, e, de fato,
aquilo que via parecia-me mais bonito ainda do que se diz (...). Zaan-
dam é muito atraente e aqui há que chegue para pintar durante uma
vida inteira (...) casas de todas as cores, moinhos por todos os lados e
barcos encantadores” (UFO, p. 52). O fog londrino é incendiado pelo
Sol flamengo e a recuperação de uma luminosidade mais alegre fica
evidente em seu O Porto de Zaandam. O espelho d’água, que recobre

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praticamente a metade do quadro, sugere chispas invadindo os sotur-


nos silêncios da lateral esquerda. O pincel lança faíscas, invejando a ex-
plosão da abóbada atmosférica.
Na maior parte da década de 70, Monet acabou morando em
Argenteuil, na margem direita do Sena, distante apenas dez quilôme-
tros da estação parisiense de Saint-Lazare. Dentre outras peculiarida-
des, era uma região que abrigava muitos clubes de regatas, competi-
ções e divertimentos. Argenteuil ia se tornando, assim, um contrapon-
to bucólico-esportivo, adequadamente inserido naquela modernidade
ávida não só por grandes fábricas e avenidas que marcava Paris, mas
também interessada pelo lazer, como parte do negócio capitalista. Afi-
nal, a diferença campo/cidade passava a se subordinar a uma nova or-
dem econômica, positiva e moderna, emblematicamente celebrada na
Exposição Universal de 1867.
Nas palavras do próprio Monet, “um belo dia (...) consegui di-
nheiro suficiente para comprar um barco em cima do qual ergui uma
cabina em madeira (...) para ali instalar os meus cavaletes” (UFO, p. 64).
Tanto Monet quanto Manet registraram em telas esse estúdio flutuan-
te. E foi a bordo do mesmo que Monet pintou sua Regata em Argen-
teuil (1872). E diante deste trabalho é inevitável uma reação de espan-
to maravilhado por causa da luminosidade que dele emana. A para-
doxal aplicação da tinta, espessa e sutil, adquire no reflexo da água um
frescor adolescente e onírico. Numa contigüidade cromo-térmica, fi-
cam avizinhados um calor quase rubro e um tépido clorofila, além de
auri-incandescências e resfriamentos celestes.
Em sua passagem por Havre, em 1873, da janela de um hotel,
Monet pintou o porto da cidade, numa tela de 48 X 63 cm. No ano
seguinte, ao lado de obras compostas por trinta artistas independentes,
o quadro foi exposto no atelier do fotógrafo Nadar, com o título Im-
pressão, Nascer do Sol. Nesse trabalho sobremodo plano, a pincelada
visivelmente rala, o caráter impreciso e o tom nebuloso chegam a fazer
uma espécie de fundo à figura do Sol e seus reflexos rabiscados na
água. O quadro apresenta um aspecto de esboço, rascunho, ensaio,
com “uma paleta de tonalidades bastante reduzida” (UFO, p. 76). Ape-
nas o laranja se destaca: carregado no Sol e esparramado em reflexos
hídricos.
Aliás, a referida exposição dos artistas independentes e, em par-
ticular, a tela de Monet motivaram o crítico Louis Leroy a batizar o es-
tilo como pintura impressionista. O termo, depreciando, soava pejo-
rativo. Pretendia denunciar a aparência da pressa, a falta de dedicação
na feitura dos contornos. Também servia para acusar Monet e seus co-

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legas de um sensualismo agarrado às cores em detrimento de um apu-


ro temático decorrente de uma racionalidade solidamente estruturada.
O Impressionismo pecava pela opção em favor do movimento e do
momento que se podiam ver instantâneos. Era um estilo em conso-
nância com o flagrante da fotografia. Só que, sem a pretensão de fi-
gurar tal como a nova técnica de registro da luz era capaz, compensava
essa desvantagem privilegiando o jogo cromático.
Contudo, essa prática impressionista não impedia Monet de pla-
nejar seus traços sobre o efêmero. Ao contrário, talvez devido à pró-
pria proposta impressionista, um mínimo de previsão e provisão sem-
pre se impunha. A propósito, dentre muitos, um fato e uma série de
telas ilustram esses recursos metodológicos. Relacionável a uma epis-
temologia atenta à complexidade dos fenômenos (que, posteriormen-
te, recebeu maiores atenções da ciência e da filosofia), Monet exerci-
tou uma techne (arte técnica) ao re-construir, numa linguagem estéti-
co-pictórica, uma dimensão constitutiva do real, ou seja, a sua fugaci-
dade. É o caso, por exemplo, das obras pintadas em 1877, sob o título
geral de A Estação de Saint-Lazare. Auguste Renoir comentou com seu
filho Jean que Monet o surpreendera, certa feita, com o projeto de
pintar La Gare para

fixar o brilho do Sol nas nuvens do vapor. Como estas


nuvens de vapor eram de tal maneira densas quando
os comboios partiam, que quase não se via nada, Mo-
net teve a idéia de atrasar em meia hora a partida do
comboio para Rouen, pois teria melhor luz. Monet,
com sua autoconsciência imbatível dirigiu-se ao dire-
tor [da estação] e “conseguiu tudo o que queria. Para-
ram-se os comboios, fecharam-se as gares e encheram-
se as locomotivas de tal maneira de material combus-
tível que estas cuspiam tanto vapor quanto Monet de-
sejava”. (UFO, pp. 94-95)

Em que pese a variação peculiar a toda obra seriada, também se


percebe nas estações outra especificidade bastante comum nas séries:
uma recorrência a algum elemento (muitas vezes, da natureza) como fa-
tor vinculante e veiculante das diferenças. Quanto aos quadros sobre o
terminal de Saint-Lazare (dos quais, restam doze), esse aspecto de liga-
ção e locomoção aparece num bafo quente e úmido, como que saído
de uma chaleira com água fervendo. As formas arquitetônicas e huma-
nas comparecem, assim, como sóbrias coadjuvantes de um protagonista
vaporosamente prateado.

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Se é verdade que há um heraclitismo embutido na teimosia mo-


netiana, tentando flagrar o instante fugidio, também é necessário re-
conhecer que as séries (da Estação de Saint-Lazare, da Catedral de
Rouen, dos feixes de feno, da ponte japonesa, das ninféias etc.) abri-
ram uma dessacralização da obra prima e única. Pela repetição daquilo
que está sempre em mutação, emerge uma idéia de continuidade que
relativiza a valoração. Com isso, a arte se lança ao mercado do con-
sumo contemporâneo. De algum modo, portanto, Monet represou
veios que desaguariam nas experimentações de cinqüenta anos depois.
Voltando para 1879, Monet e sua família, recém mudados para
Vétheuil, enfrentam graves dificuldades financeiras. Em setembro, sua
esposa Camille, com apenas 32 anos de idade, morre, debilitada desde
o parto do segundo filho do casal, em março do ano anterior. Nesta
época, em Vétheuil, os invernos foram prolongados e rigorosos, che-
gando aos 25 graus negativos. Nas palavras do próprio Monet,

em janeiro de 1879, pintei, por exemplo, em cima do


gelo. O Sena tinha gelado e instalei-me no rio, procu-
rando maneira de fixar os meus cavaletes e a minha ca-
deira de dobrar. De vez em quando traziam-me uma
botija com água quente – mas não para os pés! Não ti-
nha frio, era para os dedos enregelados que quase já
não conseguiam segurar o pincel. (UFO, p. 119)

Os invernos, portanto, também serviram para diversas telas em


que Monet registrou outros estados molhados. Merecem destaque os
trabalhos em que o Rio Sena se apresenta imóvel, congelado, tomando
geralmente a metade do quadro: A Igreja de Vétheuil na Neve (1879),
A Geada (1880) e Degelo (1880). Em cada uma destas pinturas, Mo-
net economiza na variação das cores. A intensidade das tintas é pe-
quena, exceto quando se destinam à sinalização cinzento-azulada das
partículas ou placas do gelo. Materialmente, relevos são conferidos,
como que a partir de palitadas largas, finas ou pontuais, sempre densas
de branco. Um branco que parece saltar quase diretamente das bisna-
gas às telas.
Em setembro de 1885, Monet voltou para a costa da Norman-
dia e pintou algumas marinhas. Dentre elas, Barcos na Praia de Etreat.
Esse quadro, que provocou imenso impacto em Van Gogh, amplia e
distribui um pouco mais as incidências cromáticas. Com isso fica va-
lorizada a brancura da espuma arrebentando próxima aos barcos en-
calhados na areia e os coloridos com fortes amarelo e vermelho. A
imagem de ondas agitadas e o salpicado nervoso de nuanças interme-

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diárias pelos passeios da praia e paredes do prédio sugerem sensações


da maresia.
A maior parte do verão de 1888 foi vivida por Monet em Gi-
verny, onde havia começado, no ano anterior, sua série de medas de
feno. Se os feixes sobre os campos já atraiam os olhos do impressio-
nista, um magnetismo mais forte exerceu a vegetação subaquática, ser-
penteando ao sabor das correntes fluviais. Monet “queria pintar água
com a erva a ondular por baixo da superfície, pois ‘é um aspecto ma-
ravilhoso, mas uma pessoa fica doida quando tenta fixar aquilo’” (UFO,
p. 152). A citada “doidice” aparece em duas telas exemplares: La Bar-
que (1887) e En Canot sur l’Epte (1890). A primeira reserva o canto
superior para o tema, na verdade, quase como um pretexto. Três quar-
tos da pintura são dedicados às sinuosas pinceladas em tons de abaca-
te, limão e caqui. A segunda tela (que, por sinal, pertence ao MASP),
além das características de proporção e colorido d’O Barco, apresenta
um enquadramento sobremodo bizarro. A canoa, em tom salmão, tem
um recorte inusitado, levando a imaginação do espectador a comple-
mentar a figura no extra-quadro. Dentro da embarcação, róseas como
sonhos inocentes, duas moçoilas deslizam suavemente. Uma delas,
sentada a remar, sofre o fatal fracionamento em suas costas, alijando-
a de seus centros somáticos.
Em 1893, Monet comprou um grande terreno perto de sua casa
em Giverny, dotado de um ribeiro e um pântano. A partir dessas águas
e ao longo de oito anos, o pintor foi compondo um jardim com nin-
féias exóticas, encomendadas do Japão. Também construiu uma ponte
em estilo nipônico e outro atelier. Com efeito, até o final de seus dias,
Monet fez deste jardim de água seu espaço de trabalho preferido. Du-
rante os 25 anos derradeiros, a ponte e as ninféias se constituíram em
duas séries de referência obrigatória. Mas, antes, convém lembrar suas
obras sobre Veneza.
O Pallazzo Contarini e O Pallazzo da Mula, ambos de 1908, ilus-
tram bem o deslumbramento que Veneza exerceu sobre Monet. Parece
que formas, águas, luzes e reflexos foram sintetizados por um impres-
sionismo monetiano mais maduro. O clima de sugestão se adensou:
sombras molhadas espelham com maior sutileza, vibrando por sobre
os canais. E, quem sabe, parcela desse amadurecimento tenha aconte-
cido “graças” aos seus problemas de visão, posto que, nessa época, sur-
giram os primeiros sintomas de sua catarata. Não gozando de boa saú-
de, desde antes de sua ida à cidade italiana, Monet concluiu os quadros
dessa série em seu atelier. De qualquer modo, “os palácios de Veneza
são os últimos motivos arquitetônicos de Monet; (...) também neles as

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formas arquitetônicas se tornaram fenômenos da natureza” (UFO, pp.


180 e 184). E essa naturalização obteve seu clímax nas séries da ponte
e das ninféias em seu jardim.
A primeira pintura que Monet fez d’A Ponte Japonesa foi em
1895, mas a série surgiu a partir de 1899. Observadas em seu conjun-
to, as pontes se diferenciam para serem sempre iguais. O enquadra-
mento não deixa espaço para o horizonte, por menor que pudesse ser.
O céu ficou abolido. O topo das árvores ausente. Ao passar dos anos,
também se esgarçam os traços. A ponte e as ninféias, os salgueiros e
seus ecos luminosos no riacho vão se transformando em borrões quase
intuitivos. A impressão passa a reinar cada vez mais desfigurada, abs-
tratamente. Em verde, em vermelho, em azul, em laranja etc., só uma
certeza sobrevive: a umidade.
Em paralelo, as ninféias (ainda que presentes nas telas que trata-
vam a ponte japonesa), como série (própria e particularmente posta),
passou por vários ciclos: 1897, 1903-1908, 1914-1925. Comentá-los
exigiria um fôlego que extrapola as pretensões deste artigo. Contudo,
dentro dos limites de um olhar molhado, não há como preterir a im-
portância plástico-metafórica d’As Ninféias, pintadas por Monet. Criada
apenas em meio a águas pantanosas e quentes, as ninféias simbolizam e
refletem, “com forte conotação feminina (...), as fontes misteriosas da vi-
da” (UFO, p. 199).
Considerando a etapa do processo de construção estético-per-
ceptiva na época em que foram pintadas, em certas oportunidades as
telas com as ninféias geravam alguma desorientação. Isso em virtude,
principalmente, da grande proximidade do assunto iconizado. As nin-
féias eram imagens concebidas em close, num enquadramento total-
mente imerso na água. Assim, elas posam entre registros muitas vezes
ambíguos. Ou seja, na série das ninféias, não fica evidente se nas partes
“em cores mais escuras se trata de reflexos da paisagem envolvente ou
de reproduções das ervas a flutuar debaixo da superfície da água. Nes-
tas paisagens de reflexos não há orientação espacial no sentido clássico,
com alto e baixo, frente e trás, figura e base. As formas dos nenúfares
parecem antes suspensas num espaço aberto e ilimitado” (UFO, p.
194). A desorientação figurativa se mostra interessada em sobrepor ou
confundir construtos culturais. Pelo reflexo, pelo espelho, acontece a
redução do Ser à Natureza.
E, juntando-se a esse expediente (formal-e-informado pela cul-
tura) uma dimensão mítica dos narcisos, as ninféias de Monet chegam
a resvalar numa poética pessoal panteísta. Nucleada no elemento água,
uma unidade complexa se produz (poiesis), pretendendo servir como

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invento portador de sentido existencial. E indo mais longe, comun-


gando com uma percepção estética que admita possíveis indícios de
símbolos nas imagens d’água, é plausível imaginar que, em sua pintura,
Monet nos remete a uma saudade oceânica..., pois o mistério nos evo-
ca chispas coloridas de desejos em derretimentos incontroláveis.

POST SCRIPTUM
Depois de longevos e criativos dias, bastante debilitado e comple-
tamente cego, Monet veio a falecer aos seis de dezembro de 1926, com
oitenta e seis anos. Passadas exatas sete semanas (7 vezes 7, quarenta e
nove manhãs), nasce, no Rio de Janeiro, Tom Jobim. E assim como o
nosso maestro nunca escondeu seu débito para com a musicalidade im-
pressionista de Debussy, também há quem defenda a tese de que a an-
tiga capital do país tenha algum crédito na obra revolucionária do es-
pecular cúmplice de Monet: Manet. É bastante provável que a luz e o
colorido fluminenses devam ter impactado o jovem marinheiro que,
olimpicamente, por aqui esteve na metade do século XIX, um pouqui-
nho antes de iniciar sua inovadora carreira de pintor. Cem anos de-
pois, num clima antropofágico, o Rio e Manet, Monet e Debussy se
encontram no mais impressionista dos compositores da música brasi-
leira. Tom Jobim, com seu pincel sonoro, num sincopado multicromá-
tico, inunda várias reservas da modernidade, deixando vazar aquela
impressão de que é a lama, é a lama..., é um passo, é uma ponte..., é
um sapo, é uma rã..., é um resto de mato na luz da manhã. São as
águas de março...

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Imagem & Magia:


fotografia e Impressionismo
– um diálogo imagético
IMAGE & MAGIC JEZIEL DE PAULA
Doutorando em História Social pela
Unicamp
jeziel@obelix.unicamp.br

Photography and Impressionism


– a imagery dialogue
RESUMO – Através de uma retrospectiva histórica da evolução tecnológica da fo-
tografia, este artigo aborda a polêmica – sempre presente – do realismo ou ilusio-
nismo da imagem. Ao analisar as mútuas influências ocorridas no século XIX, entre
a arte pictórica e a técnica fotográfica, o texto procura demarcar algumas contri-
buições responsáveis pelo surgimento de novas estruturas visuais para o conheci-
mento e interpretação do mundo sensível, dentre elas o movimento impressionista.
Palavras-chave: fotografia – Impressionismo – percepção & representação imagética.
ABSTRACT – This article is related to both influences that took place in the XIX
century between the pictorial art and the photograph technique, as well as the
always present question about “realism versus image ilusionism”. The text shows,
in synthesis, a historic retrospective through the evolution of photographic tech-
nology, and some contribution that led to a new visual structures for the know-
ledge and interpretation of the world, such as Impressionism.
Keywords: photography – Impressionism – perception & imagery – representation.

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A fotografia preserva para todo o sempre uma fração


finita do tempo infinito do Universo.
MARVIN KRONE

E stabelecer as possíveis relações entre o aparecimento da fo-


tografia e o desenvolvimento de novas formas de perceber e
interpretar o mundo – dentre elas o Impressionismo – con-
duz necessariamente à retomada de antigos questionamentos sobre a
própria objetividade da imagem fotográfica. A fotografia, originária da
cooperação da ciência e de novas necessidades de expressões artísticas,
tornou-se logo ao seu nascimento objeto de violentos litígios. Saber se
a máquina fotográfica era apenas um instrumento técnico, capaz de re-
produzir de modo puramente mecânico as aparências, ou se era pre-
ciso considerá-la como um verdadeiro meio de exprimir as impressões
artísticas individuais inflamou os espíritos de artistas, críticos e fotó-
grafos desde as primeiras décadas do século XIX até nossos dias.

A PRÉ-HISTÓRIA DA FOTOGRAFIA
Bem mais que uma invenção, a fotografia surge como um lento,
gradativo e longo processo de múltiplas descobertas, que somente se
consolidariam entre as décadas de 1820-1830. No entanto, o conhe-
cimento básico da câmara obscura remonta à Antigüidade e, como in-
dica seu próprio nome latino, significa um compartimento totalmente
escuro com apenas um pequeno orifício em uma de suas paredes, atra-
vés do qual se projeta uma imagem invertida da vista exterior sobre a
parede oposta. É também muito provável que em climas meridionais,
onde devido ao calor os interiores das casas são mantidos escuros, esse
fato já tivesse sido notado anteriormente à observação, feita pelo filó-
sofo macedônio Aristóteles (384-322 a.C.), do princípio óptico que o
produz: por volta do ano de 350 a.C., ele faz uma descrição detalhada
do fenômeno. Também observou que, quanto menor o orifício, mais
nítida seria a imagem projetada. Por outro lado, desde os primórdios
da civilização, o homem tem percebido a propriedade da luz em alte-
rar várias substâncias, por exemplo, a descoloração dos tecidos, o ene-
grecimento da prata e a própria cor tostada que adquire a pele exposta
ao Sol. Dessa forma, os conhecimentos básicos, tanto ópticos como
químicos, que possibilitariam a invenção da fotografia, estavam todos
estabelecidos há vários séculos.

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Primeira ilustração gráfica publicada da Câmara Obscura, 1544.

O que faltava era apenas uma maneira efetiva de fixar as imagens


produzidas pela luz na câmara obscura, que já vinha sendo utilizada
como objeto de apoio a pintores e desenhistas desde 1544, quando o
estudioso napolitano Giovanni Battista Della Porta, em seu livro Ma-
giae Naturalis, publica a melhor e mais completa descrição do fenô-
meno, recomendando seu uso como instrumento auxiliar para o de-
senho. Após um longo período de esquecimento, novas experiências
fotoquímicas seriam realizadas em diversos países da Europa no início
do século XVIII, na tentativa de obter-se um resultado satisfatório na
fixação da imagem.
Porém, somente na primeira metade do século XIX, em 1822,
um oficial do exército francês, Joseph Nicéphore Niepce (1765-
1833), seria o primeiro a obter uma verdadeira fotografia, se a defi-
nirmos como uma imagem inalterável, produzida pela ação direta da
luz. Niepce empregou um processo que denominou heliográfico. Para
isso, utilizou como substância sensível à luz um verniz de asfalto co-
nhecido por betume da Judéia, aplicado sobre vidro, além de uma mis-
tura de óleos destinada a fixar a imagem. Com esses materiais obteve
uma imagem razoável de uma natureza morta – alguns utensílios e ta-
lheres sobre uma mesa coberta com uma toalha. Mas o sistema se
mostrou pouco prático e inadequado, pois exigia longa exposição na
câmara obscura de no mínimo 12 horas. A descoberta decisiva que le-

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varia à invenção da fotografia caberia ao próprio sócio comercial de


Niepce, dezessete anos mais tarde.

FOTOGRAFIA PICTÓRICA – A TÉCNICA IMITANDO A ARTE


A data oficial do nascimento da fotografia foi estabelecida a 19
de agosto de 1839, quando o astrônomo e deputado francês François
Arago revela publicamente os detalhes do primeiro método prático de
fotografia, conhecido como daguerreótipo. É importante observar que
o evento ocorreu em uma reunião conjunta das Academias de Ciências
e Belas Artes, no Instituto de França. O nome da técnica é proveniente
de seu criador, o francês Louis-Jacques Mandé Daguerre (1789-1851),
pintor e desenhista de cenários para peças de teatro, que vende seu in-
vento ao governo da França no mês anterior à sua divulgação pública.
O procedimento do método foi publicado no manual Historique
et Description des Procédés du Daguerréotype, imediatamente após a
histórica reunião no Instituto de França. Consistia basicamente no se-
guinte: uma lâmina de cobre polida era sensibilizada com vapor de io-
do, que se transformava em iodeto de prata ao aderir à superfície da
placa. Depois de exposta aos raios luminosos na câmara obscura, a
imagem latente (imagem já sensibilizada pela ação da luz sobre a cha-
pa, porém ainda não visível) era revelada através de vapor de mercúrio
aquecido sobre um fogareiro a álcool. O mercúrio aderia às partes do
iodeto de prata que haviam sido afetadas pela luz, tornando a imagem
visível. A imagem era finalmente fixada com hipossulfito de sódio (pa-
ra que não continuasse sensível à luz), e lavada com água destilada. O
resultado era um positivo único, pois não havia negativos que permi-
tissem a confecção de cópias. Sua imagem de alta definição era, con-
tudo, invertida como em um espelho, além disso, a superfície extre-
mamente delicada da chapa de metal precisava ser protegida por uma
placa de vidro contra a abrasão e fechada hermeticamente em um es-
tojo para prevenir o contato com o ar.
Devido ao longo tempo de exposição (15 a 20 minutos) reque-
rido para impressionar a chapa, a daguerreotipia não pôde, em seus
primeiros anos, ser utilizada na confecção de retratos – precisamente
sua aplicação mais desejada. Essa limitação técnica levou um número
cada vez maior de fotógrafos a buscar inspiração na arte pictórica. A
impossibilidade de captar qualquer objeto em movimento, por menor
que fossem, restringiu os temas fotográficos desse período às naturezas
mortas, arquitetura e grandes paisagens estáticas. No entanto, o desejo
de possuir o próprio retrato era tão intenso nas pessoas que muitas se
sujeitavam a uma verdadeira seção de tortura para obtê-lo. Em 1841

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já era possível obter uma fotografia com cin-


co minutos de pose. Para isso, os fotografa-
dos suportavam a eternidade dos 300 segun-
dos absolutamente imóveis, amarrados a
uma cadeira e presos por barras de metal.
Somente no final da década de 1840,
novos aperfeiçoamentos tecnológicos seriam
introduzidos por inventores americanos, in-
gleses e austríacos, reduzindo o tempo de ex-
posição necessário para obter a imagem em
cerca de 40 segundos. Finalmente a arte de
representar a imagem de uma pessoa estava
agora acessível a um público cada vez mais
amplo.
Atualmente consideramos a fotografia
como algo tão natural e diluído em nosso co-
tidiano que se torna difícil compreender a in-
tensidade do deslumbramento que sua aura
mágica causava para os contemporâneos de
Daguerre. A idéia de que era possível fazer
com que a própria natureza produzisse es- Mahe, um bravo, c. 1841, fotógrafo desconhecido, Daguerreótipo.
pontaneamente uma representação gráfica
havia revolucionado o mundo. O filósofo alemão Walter Benjamin, re-
latando o clima de magia que envolvia o retrato fotográfico em seus
primórdios, bem como a timidez, espanto e até o temor que provo-
cava nas pessoas que o olhavam, cita as observações feitas por um fotó-
grafo chamado Dauthendey: “As pessoas não ousavam a princípio
olhar por muito tempo as primeiras imagens produzidas. A nitidez
dessas fisionomias assustava, e tinha-se a impressão de que os peque-
nos rostos humanos que apareciam na imagem eram capazes de ver-
nos, tão surpreendente era para todos a nitidez insólita dos primeiros
daguerreótipos”.1
Assim, nasceram a heliografia (escrita pelo Sol) e a fotografia (es-
crita pela luz). Ambos os termos referem-se a uma forma de registrar
a imagem real sem a participação ou interferência do homem, apenas
pela ação direta da luz natural. Nesse sentido, é também interessante
lembrar o significado do nome que o processo fotográfico recebe em
países não ocidentais. No Japão, por exemplo, é chamado de sha-shin,
que quer dizer “reflexo da realidade”. Nesse caso, ele é encarado

1 BENJAMIN, 1985, p. 95.

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como uma forma de reflexão luminosa da verdade. A fotografia in-


corporava desde o seu nascimento a condição de espelho do mundo,
só que um espelho dotado de memória. Obviamente, a luz – elemento
fundamental para a fotografia – estava longe de ser uma questão per-
tinente apenas para os fotógrafos. Pintores de todos os séculos sempre
souberam, em maior ou menor grau, que o problema da incidência e
reflexão da luz sobre um objeto era o próprio problema da pintura.
Com o passar dos anos, muitos outros usos e funções foram sendo
atribuídos à fotografia. Porém, dentre todos eles, sempre predominou
o caráter acentuadamente lúdico de uma novidade exótica, que encer-
rava em si mesma o aspecto misto de arte e ciência.
O caráter multifacetado da fotografia em seus aspectos de ilusão
e revelação demonstra o panorama ambíguo em que se define a ima-
gem fotográfica. Suas potencialidades, seu alcance e seus limites, em
dado momento, vislumbram-se como exatos e objetivos, em outro,
apresentam-se indecifráveis, obscuros, fragmentados e subjetivos. Tal
dilema tem sua origem no próprio nascimento da fotografia, assim
como no transcorrer de toda sua história. A ensaísta italiana Francesca
Alinovi afirma: “O nascimento da fotografia baseia-se num equívoco
estranho que tem a ver com sua dupla natureza de arte-mecânica: o de
ser um instrumento preciso e infalível como uma ciência e, ao mesmo
tempo, inexato e subjetivo como a arte. A fotografia, em outras pala-
vras, encarna a forma híbrida de uma arte-exata e, ao mesmo tempo,
de uma ciência-artística, o que não tem equivalentes na história do
pensamento ocidental”.2

NOVOS RUMOS – A FOTOGRAFIA DE GUERRA


Por volta da segunda metade do século XIX a utilização da ima-
gem fotográfica sofreria uma grande ruptura. Ao ser empregada em
reportagens de guerra, ela se transformaria definitivamente em docu-
mento. As imagens captadas nos campos de batalha se tornariam tes-
temunhas oculares de um certo tipo de evento, que até então só podia
ser imaginado pela população não combatente através de relatos es-
critos, orais ou desenhos e pinturas artísticas.
A representação gráfica da guerra sempre acompanhou a huma-
nidade desde seus primórdios. Pinturas rupestres de combates nos foram
legadas por habitantes do período Paleolítico Superior, milênios antes da
invenção da escrita, e o homem jamais interrompeu sua arte de repre-
sentar batalhas até nossos dias. Entretanto, o emprego da fotografia para
2 ALINOVI, Francesca. La Fotografia: illusione o rivelazione? Apud FABRIS, 1991. p. 173.

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documentar os conflitos armados, supera-


va em realismo tudo o que até então havia
sido feito. A partir desse momento, uma
nova dimensão documental era introduzi-
da no cotidiano das pessoas. A imagem fo-
tográfica podia mostrar exatamente aquilo
que havia acontecido, e isso representava
uma revolução para a informação, divul-
gação e comprovação do acontecimento.
Esses pioneiros da imagem docu-
mental de guerra eram quase sempre
profissionais contratados por grandes es-
túdios fotográficos. Rumavam para os lo-
cais de conflito munidos de carroções pu-
xados por parelhas de mulas, barracas de
lona, enormes tripés e câmaras fotográfi-
cas que pesavam em torno de 50kg, cen-
tenas de frágeis placas de vidro, que eram
utilizadas como suporte à emulsão sensí-
vel, ou seja, como filme fotográfico, além A carreta fotográfica de Roger Fenton na Guerra da Criméia, 1855.
de uma parafernália de soluções quími-
cas, vidrarias, bandejas e recipientes dos mais variados.
Nesse período, o processo técnico mais utilizado pelos fotógrafos
de guerra era conhecido como colódio úmido. Inventado no ano de
1851 pelo escultor inglês Frederick Scott Archer (1813-1853), tornou-
se o responsável por decretar a morte do já obsoleto daguerreótipo.
Além de muito mais barato, o colódio úmido não mostrava, como no
processo anterior, a imagem invertida igual a um espelho e, sobretudo,
graças ao negativo de vidro permitia um número ilimitado de cópias.
Tratava-se, como bem definiu o historiador francês Alain Corbin, do
início da “democratização da imagem”.3
Os horrores de um conflito armado seriam parcialmente mos-
trados durante a Guerra de Secessão nos Estados Unidos (1861 a
1865), entre o sul e o norte. Apesar de enfrentarem as grandes limi-
tações tecnológicas da época, porém com plena liberdade de ação, os
fotógrafos que fizeram a cobertura desse evento obtêm as imagens
mais impressionantes que jamais alguém havia anteriormente visto. As
fotografias mostravam ao público as primeiras cenas chocantes dos

3 CORBIN, 1993, p. 425.

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campos de batalha juncados de cadáveres. Todavia, a técnica disponí-


vel ainda não permitia nenhuma foto de ação ou movimento, obri-
gando que todas essas imagens de soldados mortos fossem feitas após
o término dos combates. Também devemos lembrar que nessa época
ainda não haviam sido inventados os processos gráficos que permiti-
riam a publicação de tais fotografias em livros, revistas e jornais. No
período em que foram produzidas, tais imagens somente puderam ser
divulgadas através de exposições públicas.

A Colheita da Morte, Timothy H. O’Sullivan, Campo de batalha de Gettysburg, julho


de 1863.

O caráter irrefutável de uma reprodução fiel da realidade atri-


buído a essas imagens fotográficas – registrando pela primeira vez na
história a guerra sem retoques – é tão evidente que, Mathew B. Brady,
o chefe da equipe de fotógrafos que fez a cobertura do conflito, consi-
derou a câmara fotográfica, numa expressão que se tornaria mundial-
mente conhecida, como “o olho da história”.4
A grande repercussão pública diante da visão dessas imagens
mostrando uma realidade crua, nunca antes imaginada apesar das re-
presentações artísticas, causou na vida das pessoas um impacto tão de-
vastador que, logo no início, alertou os governantes sobre o poder de
persuasão que a fotografia detinha. A imagem fotográfica possuía uma
eficácia documental comprovada e essa constatação veio acelerar si-
multaneamente os processos paralelos de censura e de propaganda po-
lítica através da fotografia, que perduram até nossos dias. Interessante
4 GERNSHEIM, 1966. BUSSELLE, 1977. LANGFORD, 1971.

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notar que, tanto no caso da censura como no de propaganda política,


não é negado o poder de convencimento do realismo fotográfico, ao
contrário, é exatamente nele que ambas as coisas se apóiam. Na cen-
sura, a fotografia é proibida para não mostrar uma realidade incômo-
da. Na propaganda política, ela é deliberadamente exposta para mos-
trar uma realidade desejada.

ETERNA QUESTÃO: A OBJETIVIDADE FOTOGRÁFICA


Sob a ótica da memória, a imagem fotográfica faz muito mais do
que apenas recordar-nos dos acontecimentos passados. Através dela
podemos sentir instantaneamente as impressões do momento fixado,
desencadeando reflexões e despertando novamente as emoções. O
apelo à lembrança é tão poderoso que muitos de nós seremos capazes
de recordar da própria ocasião em que vimos pela primeira vez deter-
minada fotografia.
Tudo isso é muito misterioso, pois, na verdade, cada fotografia
não passa de uma série microscópica de pontos e manchas com uma
gradação de tons que variam do preto ao branco, intermediada, no
caso da foto colorida, por uma combinação de três cores básicas de
pigmentos. Sua profundidade é uma ilusão, sua vida é apenas simbó-
lica, pois tudo está contido em uma única superfície pequena e plana.
Mas, mesmo assim, possui uma estranha riqueza que transcende todas
as suas limitações, fazendo com que as nossas impressões dos aconte-
cimentos mais significativos e complexos possam ser permanentemen-
te amoldadas por uma única foto.
Seria então a imagem fotográfica um conjunto de informações
transmitidas e compreendidas direta e imediatamente, ao contrário da
comunicação verbal em sua forma oral ou escrita, que necessitam de
uma mediação cultural – um idioma – para serem decodificadas? Exis-
tiria, também, alguma forma de leitura universal da fotografia capaz de
substituir ou equivaler à interpretação de documentos escritos ou de-
poimentos verbais? Até que ponto uma imagem valeria mais de mil pa-
lavras?
As possíveis respostas a esses questionamentos estão ainda longe
de caminharem em direção a um consenso. Para uns, o documento vi-
sual falaria por si mesmo, podendo transmitir, clara e diretamente, as
informações nele contidas. O semiólogo e ensaísta francês Roland Bar-
thes, em suas reflexões teóricas e filosóficas sobre a fotografia, consi-
dera a imagem fotográfica como a própria emanação do real e não
apenas uma simples cópia deste. Para ele, uma fotografia podia carre-
gar em si mesma e ao mesmo tempo a imagem e o objeto fotografado.

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Era o próprio modelo transferido para a emulsão sensível do filme, co-


lados e indissociáveis, como um decalque do real.

Os realistas, entre os quais estou, e entre os quais eu já


estava quando afirmava que a Fotografia era uma ima-
gem sem código – mesmo que, evidentemente, có-
digos venham infletir sua leitura –, não consideram de
modo algum a foto como uma cópia do real – mas
como uma emanação do real passado: uma magia,
não uma arte. Perguntar se a fotografia é analógica ou
codificada não é um bom caminho para análise. Na
Fotografia, de um ponto de vista fenomenológico, o
poder de autenticação sobrepõe-se ao poder de repre-
sentação.5

O filósofo tcheco Vilém Flusser, ao analisar alguns aspectos da


fotografia, faz uma interessante analogia entre imagem e janela:

O caráter aparentemente não-simbólico, objetivo, das


imagens fotográficas faz com que seu observador as
olhe como se fossem janelas e não imagens. O obser-
vador confia nas imagens técnicas tanto quanto confia
em seus próprios olhos. Quando critica as imagens
técnicas – se é que as critica –, não o faz enquanto ima-
gens, mas enquanto visões do mundo.6

O primeiro pesquisador a questionar o conceito de que a foto-


grafia reproduz um objeto tal como ele é, ou seja, como uma realidade
objetiva de algo fora de si mesmo, foi o historiador da arte Bernard Be-
renson em 1947. Berenson afirma que “Ver é tanto uma arte adquirida
quanto falar, embora sem dúvida mais fácil de aprender”.7 Explica
que, até há pouco menos de dois séculos, quando a ampla difusão dos
meios de comunicação ainda não havia começado a estabelecer uma
espécie de esperanto visual, havia no planeta vários grupos visualiza-
dores (latino cristão, ortodoxo, islamítico, indiano e chinês), da mesma
forma que existiam e ainda existem vários grupos lingüísticos. Naque-
la época, uma pessoa comum pertencente a um desses grupos não teria
a menor possibilidade de entender as representações visuais de um ou-
tro grupo. E mesmo atualmente, acrescenta Berenson, apesar dos mei-
os de comunicação de massa, ainda ficamos bastante desorientados
5 BARTHES, 1984, p. 132.
6 FLUSSER, 1983. p. 20.
7 BERENSON, 1972, p. 199.

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fora de nosso próprio ambiente visual, e não achamos fácil avaliar as


realizações de outras culturas menos conhecidas.
Ao analisar mais especificamente a fotografia, Berenson conclui
que se a câmara fosse o registrador impessoal que deveria ser, certa-
mente, nos ajudaria a ver muito mais do que nossos próprios olhos vê-
em. No entanto, para ele, isso não ocorre por que a câmara é apenas
um instrumento nas mãos do fotógrafo, e este, sendo humano, tende
a ser um operador descuidado, medíocre e ingenuamente imbuído de
preconceitos. Nada poderia induzir tal fotógrafo a ver com sua câmara
além daquilo que ele não pudesse ver com seus próprios olhos. O
olhar sem a mente não perceberia nas imagens nada além de manchas,
sombras e bolhas de luz, preenchendo determinada área. Conclui que
o ato de ver é uma questão de organização mental e construção inte-
lectual. O que o operador verá na câmara dependerá, portanto, de
seus dons, treinamento e habilidade, e até mais de sua instrução geral;
em última análise, dependerá de seu imaginário, sua visão de mundo,
e do que ele quer e espera tirar dele.8
Compartilhando dessa mesma opinião, Rudolf Arnheim, profes-
sor de psicologia visual da Universidade de Harvard, relata que equi-
pes de antropólogos ficaram totalmente surpresas ao descobrirem que,
em certos grupos tribais ainda não familiarizados com a fotografia, as
pessoas tinham grande dificuldade para identificar os objetos e até
mesmo suas próprias figuras humanas e fisionomias retratadas em fo-
tos que pareceriam, para nós, totalmente normais e realistas. Tal fenô-
meno deve-se ao fato de termos aprendido em nosso meio cultural,
desde crianças, a decifrar suas formas e linguagem específicas.9

O DESENVOLVIMENTO TECNOLÓGICO COMO RUPTURA


Trabalhando com o mesmo conceito – onde uma possível lin-
guagem visual seria culturalmente assimilada –, o historiador da arte E.
H. Gombrich fornece-nos um dos mais interessantes exemplos que de-
monstra como todos nós somos inclinados a aceitar imagens, formas
ou cores – admitidas em nossa cultura por convenção – como sendo
únicas, corretas e verdadeiramente reais. Gombrich analisa que, em-
bora ao longo dos milênios sucessivas gerações de seres humanos te-
nham visto por todo o planeta a cena comum de cavalos galopando,
ninguém parece ter conseguido observar o que realmente se passava
quando um cavalo corria. A totalidade das esculturas, gravuras e pin-
8 BERENSON, 1972, pp. 200-201.
9 ARNHEIM, 1980, p. 37.

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turas feitas sobre o tema e ainda preservadas – independente de cul-


tura, lugar ou época – sempre representaram os cavalos a galope com
suas quatro pernas esticadas, iguais aos cavalinhos de carrossel, como
se estivessem em pleno vôo.

Estudo de um cavalo a galope, 1883, Eadweard Muybridge.

Somente com o advento da fotografia e, mais especificamente,


após o aperfeiçoamento tecnológico da câmara e do filme – permitin-
do a obtenção de registros fotográficos de seres e objetos em movi-
mento rápido – é que se tornou possível provar acima de qualquer
contestação que tanto escultores e pintores como o público estavam
equivocados o tempo todo. As investigações do fotógrafo Eadweard
Muybridge sobre a locomoção animal tiveram origem em 1872 numa
controvérsia relativa ao movimento das patas de um cavalo a galope.
Essas séries fotográficas, realizadas entre 1878-79, foram obtidas com
uma fileira de 16 câmaras que, ligadas a longos cordões, disparavam
à passagem do cavalo.
Tais imagens expuseram, pela primeira vez ao mundo, o absurdo
da postura convencional adotadas nas pinturas e esculturas. Jamais um
cavalo a galope se movimentou da maneira que parecia a todos o
modo real e natural, ao contrário, no único instante em que o animal
deixa o solo (ver fotogramas 2, 3 e 4), suas quatro patas ficam agru-
padas para dentro. Exatamente o oposto das representações artísticas.

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Por sua vez, quando os primeiros pintores, já no início do século XX,


ousaram aplicar essa nova descoberta, e representaram cenas onde
apareciam os cavalos galopando como realmente fazem em seus com-
plicados movimentos de patas, houve inúmeras críticas de que estas
imagens pareciam absurdas, totalmente ridículas e completamente im-
possíveis. Mais do que relativizar o caráter universal de uma leitura da
imagem, Gombrich afirma o poder da objetividade fotográfica contri-
buindo para uma nova percepção da realidade visível.
Até então, a arte e o ofício da pintura servira para numerosos fins
utilitários. O pintor era o profissional que podia superar a natureza
transitória das coisas e preservar o aspecto de qualquer objeto para a
posteridade. O rápido desenvolvimento técnico da fotografia, permi-
tindo ao homem ver mais que seus próprios olhos, iria impulsionar
muitos artistas a novos caminhos de exploração e experimento. Já não
havia mais a necessidade da pintura, como arte, executar uma tarefa
que um dispositivo ótico, mecânico e químico podia realizar muito
melhor, mais rápido, barato e com a possibilidade de um número ili-
mitado de cópias idênticas.
As ilimitadas possibilidades técnicas oferecidas pela fotografia
iriam, paralelamente, acelerar um crescente processo de alteração da
função social da arte. Muitos artistas, embora objetivando a venda de
sua produção como meio de sobrevivência, passam a pintar em pura
especulação sem a preocupação imediata com o destino comercial de
sua obra.

A fotografia no século XIX estava prestes a assumir a


função da arte pictórica e isso representou um rude
golpe para os artistas, tão sério quanto a abolição das
imagens religiosas pelo Protestantismo. Antes dessa
invenção, quase toda pessoa que se prezava posava
para seu retrato, pelo menos uma vez na vida. Agora,
as pessoas raramente se sujeitavam a isso, a menos que
quisessem obsequiar e ajudar um pintor amigo. Assim
sendo, os artistas viram-se cada vez mais compelidos a
explorar regiões onde a fotografia não podia acompa-
nhá-los. De fato, a arte moderna dificilmente se con-
verteria no que é sem o impacto devastador dessa fan-
tástica invenção.10

As observações de Gombrich, de um lado, corroboram a hipó-


tese de Arnheim de que ver é algo culturalmente assimilado, e não ine-
10 GOMBRICH, 1977, p. 416.

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rente ao homem. Demonstra toda nossa relutância em mudarmos a


forma convencional que aprendemos a ver e reconhecer a realidade à
nossa volta. Evidencia o quanto resistimos em descartar hábitos e con-
ceitos adquiridos. Por outro lado, opondo-se diametralmente às idéias
de Berenson de que a câmara jamais poderia mostrar além daquilo que
não pudéssemos ver com nossos próprios olhos, comprova como a fo-
tografia permitiu descobrir a verdadeira imagem de certas coisas, an-
teriormente inacessíveis ao olho humano. Enfim, ao mostrar o encan-
to da cena instantânea, do movimento imperceptível e do ângulo im-
previsto; ao captar as sutis impressões das formas, reflexos, traços, lu-
zes e sombras, antes inimagináveis, a fotografia possibilitaria o advento
e a consolidação de novas e infinitas formas – dentre elas, o Impres-
sionismo – de subverter o ideal de beleza característico da estética aca-
dêmica.

IMPRESSIONISMO – A TÉCNICA INSPIRANDO A ARTE


Como movimento organizado, o Impressionismo durou de
1874 a 1886, período que delimitou a realização de suas oito expo-
sições gerais. A primeira mostra coletiva, entre 15 de abril e 15 de
maio de 1874 em Paris, foi inaugurada no atelier do fotógrafo Mau-
rice Nadar, circunstância que não deixa de possuir alto significado, já
que até certo ponto a fotografia viera desferir um golpe profundo na
pintura acadêmica. Sem lançar manifestos e sem produzir teorias abs-
tratas, esses artistas que se intitulavam uma Sociedade Anônima não se
pretendiam reformadores. Na verdade, não buscavam uma inovação
na técnica de pintar ou colocar em questão os preceitos acadêmicos
que ainda continuavam a representar o gosto oficial e popular. A pró-
pria conceituação da tendência é bastante difícil. Um deles, Eugène
Boudin, definiu o Impressionismo como “um movimento que leva a
pintura ao estudo da luz plena, do ar livre e da sinceridade na repro-
dução dos efeitos de céu”.11
É possível encontrar nas obras dos impressionistas os melhores
exemplos da influência da fotografia sobre as novas concepções artís-
ticas. Dentre vários, seria pertinente citar o trabalho de Edgar Degas
(1834-1917), sobretudo pelo acentuado sentido de movimento que
aplicava em seus quadros. Degas, um dos mais brilhantes desenhistas
de sua geração, foi um observador rigoroso do cotidiano e gostava de
banhar suas concepções fragmentárias na luz artificial – como holofo-
tes e refletores –, que lhes conferia uma inconfundível dimensão má-
11 LEITE, José Roberto Teixeira. Boudin no Brasil. Rio de Janeiro: Museu Nacional de Belas-Artes, 1961.

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gica. Suas célebres bailarinas são criaturas etéreas em constante


movimentação. Como na imagem fotográfica, ele se prendia, de pre-
ferência, às posições absurdas e aos equilíbrios inverossímeis. De fato
não buscava no balé a graça sedutora. O significado real não residia
apenas no tema, pois quando pintava uma bailarina, não era a dança
que o atraía, mas o espetáculo do corpo no espaço e o desafio de trans-
formá-lo em arte.

Carruagem nas corridas da Normandia, Edgar Degas, 1875. Nesse quadro, pintado três
anos antes dos estudos fotográficos sobre os movimentos dos animais, aparece o fla-
grante onde dois jóqueis galopam seus cavalinhos de carrossel (à esquerda).

Seu olhar se tornava impiedoso quando se voltava para a mulher


em sua toalete. Ele a flagrava exatamente quando ela se acreditava só,
quase grotescamente ocupada com seus cuidados íntimos. Enfim, ele
a descrevia com a força e a veracidade de um instantâneo fotográfico.

Em 1879-80, fez uma série de 22 águas-tintas com vá-


rios estágios da mesma mulher saindo do banho. “É
essencial retomar o mesmo tema dez vezes, cem ve-
zes”, escreveu a um amigo. Fascinavam-no as possibi-
lidades da máquina fotográfica, que ele usou com
grande habilidade, mas agora parecia interessado em
inventar o filme documentário – e isso cerca de dez
anos antes de Thomas Alva Edson.12

12 FRIEDRICH, 1992. p. 190.

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É visível a influência exercida pela fotografia nas composições de


Degas. Seus desenhos rápidos e precisos revelam sua rara habilidade
para romper o imobilismo de um quadro. Admirador da técnica fo-
tográfica e, ele próprio, fotógrafo, criava enquadramentos descentra-
lizados e subia ou descia a linha do horizonte arbitrariamente. Suas
imagens são sempre abruptamente cortadas nas bordas do quadro,
como se fixasse a cena de um instantâneo mal enquadrado com uma
câmara fotográfica. E o sentido de casualidade daí resultante encobre
o trabalhoso processo de elaboração de suas obras.

O Ensaio, Edgar Degas, 1877.

Neste quadro, Degas sutilmente aumentou a noção de movi-


mento pintando manchas escuras quase invisíveis no centro pratica-
mente vazio. Exatamente o mesmo efeito fotográfico de captar corpos
em movimento onde, devido à baixa velocidade de obturação da câ-
mara, o assunto aparecia tremido ou como manchas indefinidas.
Outro exemplo interessante estaria na obra de Henri de Toulou-
se-Lautrec (1864-1901), um dos maiores artistas gráficos de sua época.
Durante a primeira metade da década de 1890, atingiu o apogeu
como criador de cartazes arrojados sobre os artistas de casas noturnas
parisienses. Lautrec inovou a arte da gravação com a técnica chamada
crachis (cuspidela), onde, ao espirrar tinta na pedra litográfica com
uma escova de dentes, obtinha um efeito de pontilhado – exatamente
igual à granulação dos pontos de prata observada nas ampliações fo-
tográficas.

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Criar a ilusão de movimento é uma


das mais árduas tarefas de um pintor. No
quadro O Jóquei, Lautrec – como Degas –
cortou parte das pernas e das patas dos ca-
valos, dando a impressão de que galopam no
interior do próprio campo visual, na direção
de um espaço além do quadro. E, para refor-
çar a sensação de velocidade, colocou-os de
costas, em diagonal para aumentar a pers-
pectiva e dar a impressão de que se distanci-
am do observador. No entanto, nem mesmo
Toulouse-Lautrec, já conhecedor dos verda-
deiros movimentos das patas de um cavalo a
galope, ousou representá-los nesta pintura
feita 20 anos após os estudos fotográficos de
Eadweard Muybridge. Às vésperas do século
XX, os jóqueis continuavam a galopar seus
cavalinhos de carrossel.
Para concluir, seria imperdoável não
citar Claude Monet (1840-1926), sem dú-
vida, o mais dedicado dos impressionistas.
Monet, ainda na juventude, elaborou uma
técnica ágil que lhe permitisse captar no Le Divan Japonais, Henri de Toulouse-Lautrec, 1893.
próprio local uma imagem que não poderia
durar mais que alguns instantes. Era o próprio instantâneo fotográfico,
só que as durações da impressão e sua permanência perceptiva não
eram registradas pela câmara, mas pelos tempos indefinidos da exis-
tência psicológica. Com o passar dos anos Monet desenvolveu a forma
original das séries pictóricas – versões sobre o mesmo tema visto sob
variadas condições de luz e atmosféricas. São obras projetadas para se-
rem expostas em conjunto e, como cada tela capta um determinado
instante, a coleção em si registra a própria passagem do tempo. Não
seria totalmente improvável admitir-se aqui uma possível influência
exercida pela recente mania do Teatro Ótico de Émile Reynaud (1844-
1918), que desde 1888 exibia nos cafés de Paris fitas com até 700 ima-
gens, antecipando em sete anos a primeira exibição pública das Foto-
grafias Animadas dos irmãos Lumière. As dezoito vistas da fachada da
Catedral de Rouen integram essa fase, cada uma delas representadas
segundo a transição da luz no decorrer do dia. De uma tela para outra,
o ângulo teve mínimas alterações, mas a iluminação, apesar das dife-
renças referentes ao movimento do Sol, reflete sempre o clima do in-

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verno de 1894, ano em que a série foi cria-


da. Nessas variações sobre um mesmo te-
ma, percebe-se de imediato a extraordinária
habilidade de Monet em captar as mínimas
mudanças sofridas pela pedra quando sub-
metida a uma iluminação diferente. Esse
procedimento – exatamente idêntico à fo-
tografia – constitui um dos pilares da esté-
tica impressionista: o pintor apresenta o
que o olho capta e não o que a mente con-
cebe sobre o tema.
Assim, a fotografia, ao envolver os
múltiplos níveis em que se faz presente na
nossa civilização, criaria novos padrões cul-
turais, modificando e condicionando os há-
bitos do homem através da sua mensagem,
principalmente, quando multiplicada e in-
serida nos meios de comunicação. A ima-
gem fotográfica contribuiria para o nasci-
mento de uma nova estrutura visual e, si-
multaneamente, também seria influenciada
por ela. Uma outra ordem imaginária, até
então inédita, seria doravante utilizável
O Jóquei, Henri de Toulouse-Lautrec, 1899.
como verdadeiro modelo para conheci-
mento e interpretação do mundo sensível. Não se tratava de uma
moda ou de um simples processo técnico de representação imagética.
Era o próprio exercício da atividade perceptiva e figurativa que havia
mudado, dando um novo sentido ao ato de ver. Sua iMAGem ultra-
passaria os limites da iMAGinação, penetrando no mundo da MAGia.
Ela possuía o poder de fazer com que acreditássemos no inacreditável.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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ARNHEIM, Rudolf. Arte e Percepção Visual: uma psicologia da visão
criadora. São Paulo: Pioneira, 1980.
BARTHES, Roland. A Câmara Clara: nota sobre a fotografia. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

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BENJAMIN, Walter. Pequena história da fotografia. In: Magia e Téc-


nica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1985.
BERENSON, Bernard. Estética e História. São Paulo: Perspectiva,
1972.
BUSSELLE, Michael. Tudo sobre Fotografia. São Paulo: Círculo do
Livro, 1977.
CORBIN, Alain. O segredo do indivíduo. In: História da Vida Privada,
v. 4. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
FABRIS, Annateresa. (org.). Fotografia: usos e funções no século XIX.
São Paulo: Edusp, 1991.
FRANCASTEL, Pierre. A Realidade Figurativa. São Paulo: Perspectiva,
1993.
FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta. São Paulo: Hucitec, 1983.
FREUND, Gisèle. Fotografia e Sociedade. Lisboa: Vega, 1995.
FRIEDRICH, Otto. Olympia: Paris no tempo dos impressionistas. São
Paulo: Companhia das Letras, 1992.
GERNSHEIM, Helmut. Historia Gráfica de la Fotografía. Barcelona:
Omega, 1966.
GOMBRICH, E.H. História da Arte. São Paulo: Círculo do Livro,
1977.
LANGFORD, Michael. Fotografía Basica: iniciación a la fotografía
profesional. Barcelona: Omega, 1971.

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O Mundo de Arte e
a Arte do Mundo:
Claude Monet e
Vincent Van Gogh
The World of Art and the
Art of the World:
Claude Monet e
Vincent Van Gogh
RESUMO – A presença das telas de Claude Monet no Brasil em 1997 foi marcada
pelo renascimento dos debates sobre o movimento impressionista na história da
pintura moderna. A exposição no Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Ja- MÁRCIO MARIGUELA
Professor da Faculdade de Filosofia,
neiro e no Museu de Arte de São Paulo atraiu multidões e foi considerada um dos História e Letras (UNIMEP);
maiores eventos culturais da América Latina nos últimos anos. Os trabalhos mos- doutorando em Filosofia
trados compõem a série Ninféias, à qual Monet dedicou os últimos anos de sua (Unicamp); analista praticante (AP),
membro da Escola Lacaniana
vida, buscando capturar as variações luminosas de seu jardim em Giverny. de Psicanálise de Campinas
Neste ensaio, resgatamos um argumento de Clement Greenberg, de 1956, para m.mariguela@zaz.com.br
analisar as relações entre a série Ninféias, de Monet, e quadro O Carteiro Joseph
Roulin, de Vincent Van Gogh, no período de Arles. A comparação que Greenberg
estabelece entre ambos pareceu-nos inadequada, pois os trabalhos aqui comenta-
dos apontam que cada um deles, a seu modo, estabeleceu rupturas com a herança
impressionista e apontou novos caminhos para a pintura contemporânea. Ambos
são coloristas arbitrários.
Palavras-chave: Impressionismo – arte moderna – Monet – Van Gogh – ninféias
– pesquisa com cor – colorista arbitrário.
ABSTRACT – The presence of Claude Monet’s masterpieces in Brazil in 1997 was
marked by the renaissance of the debates about impressionist movement in the
history of modern painting. The exhibition in Rio de Janeiro’s National Museum
of Fine Arts and in São Paulo’s Museum of Art attracted crowds and it was con-
sidered one of Latin America’s greatest cultural events in the latest years. The exhi-
bited works were part of the series Nympheas, to which Monet dedicated the last
years of his life, trying to capture the luminous variations of his garden in Giverny.
In this essay, we rescued na argument by Clement Greenberg, from 1956, to
analyze the relationship between Monet’s series Nympheas and Vincent Van Go-

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gh’s The Postman Joseph Roulin, from the Arles’ period. The comparison that Gre-
enberg establishes between them seems inadequate to us, because the works here
commented show that each painter, in their own manner, established ruptures the
impressionist inheritance and showed new ways for the contemporary painting.
Both are arbitrary colorists.
Keywords: Impressionism – modern art – Monet – Van Gogh – nympheas – re-
searches with color – colorist arbitrary.

As coisas da arte são sempre resultado de ter estado a


perigo, de ter ido até o fim em uma experiência, até
um ponto que ninguém consegue ultrapassar. Quanto
mais se avança, tanto mais própria, tanto mais pes-
soal, tanto mais singular torna-se uma vivência, e a
coisa da arte é enfim a expressão necessária, irreprimí-
vel e o mais definitiva possível desta singularidade.
RAINER MARIA RILKE

Para Adriana

INTRODUÇÃO

A exposição de 21 telas de Claude Monet no Rio de Janeiro e


São Paulo foi divulgada pela imprensa como o maior evento
cultural no Brasil em 1997. Juntamente com caricaturas rea-
lizadas pelo pintor em sua juventude, foram incluídas na mostra “Mo-
net – O Mestre do Impressionismo”, objetos, fotografia, gravuras ja-
ponesas do acervo do Museu Nacional de Belas Artes e obras do pe-
ríodo pertencentes ao acervo do Museu de Arte de São Paulo. O adido
cultural da França, Romaric Sulger Byuel, afirmou que aquele seria o
maior evento cultural do ano no Brasil e na América Latina. Sem dú-
vida, as telas escolhidas para a exposição mostraram ao público brasi-
leiro o último período da vida de um dos maiores expoentes do mo-
vimento impressionista francês.1

1 Com o título “Monet traz sua luz ao MASP”, o jornal Folha de S.Paulo anunciou a exposição. A mostra foi
recordista de público. Foram gastos US$ 2,5 milhões para organizar a exposição no Museu de Belas Artes
do Rio de Janeiro. De modo ilustrativo, o jornal apontou a ruptura que os impressionistas criaram na histó-
ria da pintura. O articulista Marcelo Coelho, por exemplo, escreveu dizendo que “Monet é mais expressio-
nista do que se pensa” (Folha de S.Paulo, Ilustrada, 04/06/1997).

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As telas de Monet expostas no Brasil são do acervo do Museu


Marmottan-Monet de Paris. Pertenciam a Michel Monet, o segundo fi-
lho do pintor com Camille Doncieux. Com a prematura morte de Mi-
chel, os quadros foram doados à Academia de Belas Artes de Giverny e,
posteriormente, ao Museu Marmottan. O acervo é composto por mais
de 80 telas, além de quatro pastéis e três desenhos. Também possui obras
que foram da coleção pessoal de Monet, dentre elas encontram-se telas
de amigos contemporâneos: Caillebotte, Guillaumin, Manet, Morisot e
Renoir. A clássica tela Impressão, Nascer do Sol, de 1873 – que infeliz-
mente não esteve no Brasil –, foi acoplada à coleção de Monet no Mar-
mottan por doação da filha única do médico Georges de Bellio: Monet
havia pagado pela cirurgia de catarata com este quadro.
Claude Monet foi um destes artistas que sobreviveram pela obsti-
nada paixão pela arte. Filho de um próspero comerciante, desde criança
dedicou-se a desenhar caricaturas, passando do lápis ao pincel graças a
insistência de Eugène Boudin, seu primeiro mestre nas telas. Ao chegar
a Paris, em 1859, conheceu Camille Pissarro, com quem passou a sair
em busca de cenários urbanos da capital francesa para pintar. O serviço
militar prestado na Argélia foi decisivo para a carreira do pintor. Numa
carta afirmou: “as impressões de luz e cor que lá recebi só se organiza-
ram mais tarde; continham o germe de minhas futuras pesquisas com a
cor”.
De volta a Paris, em 1862, juntou-se ao grupo dos jovens Renoir,
Whistler, Sisley e Bazille, todos alunos do ateliê de Charles Gleyre. Inicia-
se, assim, a história do movimento artístico moderno na pintura, o Im-
pressionismo, que deu início ao caminho rumo à abstração. Obviamen-
te, os impressionistas não se sabiam impressionistas. O nome foi criado
por Louis Leroy, crítico de arte que escrevia para a revista satírica Cha-
vari. Com maliciosa hostilidade, Leroy referiu-se a primeira exposição de
Monet e seus amigos em 1874 como “exposição impressionista”.
As telas que vieram ao Brasil ofereceram um rico panorama da
última fase de Monet e é possível reconhecer nelas as rupturas do pin-
tor com sua própria trajetória impressionista. A série Ninféias retrata
a pesquisa incansável de Monet com a magia das cores. Suas telas são
verdadeiras explosões luminosas. Cores fortes e primárias predomi-
nam em pinceladas ligeiras e precisas. Monet parecia deter os segredos
do esgrimista: usou o pincel como uma espada em sua luta para cap-
turar as variações solares sobre os objetos do mundo. O jardim de Mo-
net em Giverny foi o palco onde a natureza despudoradamente exibia
suas cores aos olhos do artista.
A presença dos trabalhos de Claude Monet entre nós foi um mo-
mento de rara beleza, uma oportunidade única para conhecer um dos ex-

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poentes desse movimento artístico revolucionário que marcou os rumos


da pintura neste século que se despede. Toda a pintura moderna orbita
as rupturas provocadas originalmente pelos impressionistas. Monet foi
um dos mais ousados e talentosos pintores desse grupo e, por intermédio
de suas telas, somos arrebatados pelo magnífico esplendor das cores.

A PRESENÇA DOS IMPRESSIONISTAS NO LOUVRE


O Jardim das Tulherias, na capital francesa, originalmente fazia
parte da grande extensão do Palácio Imperial, incendiado em 1871
como resultado do confronto final da Comuna de Paris. Projetado no
século XVII pelo arquiteto André Le Nôtre, jardineiro real de Luís XIV,
atualmente compõe a paisagem da margem direita do Rio Sena que
vai do Museu do Louvre à Praça da Concórdia, de onde parte a Ave-
nida Champs-Elysées.
Monet pintou várias paisagens desse jardim, assim como
Édouard Manet (Música nas Tulherias, 1862) e outros de seus amigos.
O Jardim das Tulherias foi o cenário da vida burguesa parisiense na se-
gunda metade do século XIX, substituindo o Palais Royal. Théodore
Duret, amigo de Manet, disse em uma carta: “(...) o Palácio das Tu-
lherias, sede da corte imperial, era um centro da vida luxuosa, que se
estendia para os jardins. A música ali executada duas vezes por semana
atraía uma multidão cultivada e elegante”. Para lá Manet se dirigia “to-
dos os dias, das duas às quatro; fazia estudos ao ar livre, sob as árvores,
das crianças que ali brincavam e dos grupos de babás atiradas nos ban-
cos. Charles Baudelaire costumava acompanhá-lo”.2 É no jardim das
Tulherias que Monet e seus jovens amigos se encontram com Édouard
Manet, o mestre de todos.
Destaco inicialmente o cenário das Tulherias para representar,
por um lado, o cerne da vida parisiense e, por outro, a porta de en-
trada do Museu do Louvre, meca da arte ocidental. Além de possuir
uma das mais importantes coleções de arte do mundo, sua história re-
mete ao período medieval. Construído em 1190 para ser a fortaleza
do rei Felipe Augusto, passou por significativas transformações arqui-
tetônicas, tornando-se a residência oficial da corte de Luís XIV. Após a
Revolução Francesa, em 1793 a coleção das obras pertencentes à tra-
dição imperial foi aberta para visitação pública. O Louvre abriga em
seu acervo, as mais representativas telas da pintura clássica até a pri-
meira metade do século XIX, além de um conjunto de esculturas que
recobre o mesmo período.
2 FRIEDRICH, 1993, p. 115.

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Em 1908, as telas dos impressionistas foram incorporadas ao


acervo do Louvre. A presença dos impressionistas nesse museu foi mo-
tivo de vitória para os defensores da nova forma de expressão pictó-
rica, e motivo de indignação para os baluartes da pintura clássica. Di-
ziam que o Louvre havia sido maculado pelas cores primárias que
emanavam das telas dos impressionistas.

Olympia, Édouard Manet, 1863.

Otto Friedrich narrou, em torno da Olympia (1863) de Édouard


Manet, a história do movimento impressionista e conclui seu ensaio
com a entrada triunfante dessa tela no Louvre. Considerar a Olympia
como ponto de partida da trajetória dos impressionistas é um bom
exemplo para designar as rupturas estéticas que os amigos de Manet
iriam realizar na segunda metade do século XIX. A modelo Victorine
Meurent ficou imortalizada como Olympia: nua sobre almofadas, or-
nada por uma flor no cabelo, brincos, gargantilha, bracelete e taman-
cos, a mulher olha sem pudor para o espectador, interrogando-o. A
exposição pública da Olympia em 1865 foi motivo de escândalo so-
cial. O que produziu indignação nos espectadores e na crítica em ge-
ral? Certamente não foi o nu retratado.

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Nascimento de Vênus, Alexandre Cabanel, 1863.

Se o compararmos com o nu da tela O Nascimento de Vênus, de


Alexandre Cabanel, exposta no Salão de 1863 e adquirida posterior-
mente pelo Imperador Napoleão, veremos que o aspecto mais intri-
gante e instigante não é o nu, mas sim a mudança temática: Cabanel
utiliza a célebre referência mítica do nascimento de Afrodite: Cronos
castra seu pai Urano e lança ao mar os testículos. Da espessa espuma
do esperma, surgiu Afrodite, deusa do amor e da beleza, identificada
como Vênus, entre os romanos. Já Manet utiliza uma jovem cortesã
conhecida na sociedade parisiense e a retrata como uma deusa pagã:
a vida urbana invade o cenário das artes pictóricas.
Todos olham para Olympia e reconhecem na tela seu duplo re-
tratado. A pintura moderna inicia-se desta emergência da vida concre-
ta. O cotidiano é revestido pela beleza que emana das mãos dos artis-
tas. Telas, tintas e pincéis são os instrumentos para capturar uma ima-
gem e apresentá-la como composição de cores, traços e formas. A arte
do mundo é construída pelas vivências imediatas, o demasiado huma-
no, como diria Nietzsche. Um modo fulgurante de captura.
Em 1888, Claude Monet soube que Suzanne, esposa de Édouard
Manet, pretendia vender Olympia a um americano por 20 mil francos.
Monet fica indignado com a possibilidade da tela sair de Paris e iniciou
uma coleta de dinheiro junto aos amigos para adquirir a tela e oferecê-

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la ao Louvre. Quando conseguiu o montante, escreveu uma carta ao


Ministério da Instrução Pública e das Belas-Artes afirmando: “Tenho a
honra de oferecer ao Estado, Olympia de Édouard Manet (...) ele de-
sempenhou um importante papel individual, como ainda foi o repre-
sentante de uma grande e frutífera evolução. Assim, parece-nos impos-
sível que uma obra dessas não pertença a nossas coleções nacionais, que
ao mestre se negue ingresso onde seus discípulos já foram admitidos”.3
Por questões políticas, a tela de Manet só ingressou no Louvre
em 1907, após sua exposição no museu de Luxemburgo. Foi pendu-
rada em lugar de honra, na Salle des États. Atualmente encontra-se no
Museu d’Orsay, em Paris, dedicado à pintura impressionista. Numa
sala de honra, esta lá Olympia, atraindo multidões de espectadores,
que não conseguem esquivar-se ao olhar sedutor da jovem Victorine.
Também em 1907 ocorreu a segunda exposição de Vincent Van
Gogh em Paris. Cem telas do artista holandês foram reunidas para ce-
lebrar a entrada triunfante da Olympia no Louvre. O público parisiense
começa ser atraído pelo trabalho do jovem holandês, que em 1890 ha-
via se suicidado com um tiro no peito. Nessa época, o poeta Rainer
Maria Rilke estava em Paris e escreve diariamente para Clara, sua mu-
lher. Naquele verão, Rilke conta sua impressão sobre os trabalhos de
Van Gogh: “Imagino com freqüência quão absurdo teria sido, e quão
destrutivo para ele, se Van Gogh tivesse que partilhar com alguém a sin-
gularidade de suas visões, de contemplar com alguém os motivos, antes
fazer deles seus quadros, existências que lhe dão razão com todo o es-
pírito, que respondem por ele, que invocam sua realidade”.4
Por essa época começam a aparecer os primeiros sintomas de
uma doença nos olhos de Claude Monet. Ele decide conhecer Veneza
com Alice, sua segunda esposa, antes que seus olhos sejam tomado
pela catarata.

A PESQUISA COM A COR: VAN GOGH,


UM COLORISTA ARBITRÁRIO

Em 1956, o norte-americano Clement Greenberg, um dos mais


respeitados críticos de arte do período, diagnosticou um crescente in-
teresse pela série Ninféias de Claude Monet. Em um ensaio afirma que
o pintor tinha sobrevivido a si próprio e considera as Ninféias a síntese
de uma vida. No último parágrafo, escreve:
3 FRIEDRICH, 1993, p. 308.
4 RILKE, 1995, p.25.

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(...) a reabilitação de Monet está tendo um efeito desor-


ganizador sobre a opinião artística, assim como sobre a
própria arte. Ela faz com que percebamos, e nos ajuda
a esclarecer, uma certa insatisfação com Van Gogh, e
confirma nossa impaciência com a adoração acrítica de
Cézanne. Van Gogh foi um grande artista, mas o exem-
plo de Monet serve ainda melhor do que o de Cézanne
para nos lembrar que faltava a ele a amplitude de visão
mais bem estabelecida. Em Monet encontramos um
mundo de arte, com a variedade, o espaço e o confron-
to de um mundo; na curta vida de Van Gogh, que vi-
veu pouco, encontramos somente o relance de um
mundo.5

Observemos primeiramente que Greenberg fala de uma “ampli-


tude de visão” para designar a série de Monet. Grande parte da série
foi produzida no período em que a catarata recobria os olhos do pin-
tor. Outro aspecto que merece atenção é a posição do crítico sobre
Van Gogh: nele “encontramos somente o relance de um mundo”.
Analisemos as duas observações.
Comecemos pela segunda. Vincet Van Gogh escreveu a seu ir-
mão Théo em junho de 1879:

Não conheço melhor definição da palavra arte que es-


ta: “A arte é o homem acrescentado à natureza“; à na-
tureza, à realidade, à verdade, mas com um significa-
do, com uma concepção, com um caráter, que o artista
ressalta, e aos quais dá expressão, resgata, distingue, li-
berta, ilumina. Um quadro de Mauve ou de Maris ou
de Israels diz mais e fala mais claro que a própria na-
tureza.6

Van Gogh ainda não dominava as técnicas da pintura; esboçava


seus primeiros desenhos com carvão das minas do Borinage, onde vi-
via como pastor protestante. As densas cores primárias de suas telas se-
rão materializadas em anos posteriores. No entanto, os olhos do pin-
tor estavam impregnados por essa definição de arte; na sensibilidade
poética do artista com as cores é visível sua concepção de arte, formu-
lada nos anos em que trabalhou na filial da galeria Goupil, em Haia;
e por suas leituras de Shakespeare, Victor Hugo e Émile Zola.
5 GREENBERG, 1991, p. 16.
6 VAN GOGH, 1991, p. 16.

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As telas de Van Gogh resgatam a tradição de Delacroix e Millet:


“estou pensando no que diz Millet: não quero suprimir de maneira al-
guma o sofrimento, pois freqüentemente é ele que faz os artistas se ex-
pressarem mais energicamente”; estabelece interlocução com sua rea-
lidade existencial: “sou um pintor de camponeses, isto é bem real. Não
foi por nada que durante tantas noites meditei junto ao fogo entre os
mineiros, os turfeeiros e os tecelões, salvo quando o trabalho não me
deixava tempo para a reflexão”.7
Na carta 402, que faz parte do período em que vivia na Holanda
(dezembro de 1883 a novembro de 1885), Van Gogh tem uma posi-
ção bem clara sobre os impressionistas. Enquanto trabalhava na cria-
ção da tela Comedores de Batatas, escreveu:

Existe – eu acho – uma escola de impressionistas.


Mas não a conheço muito. Sei entretanto muito
bem quem são os artistas verdadeiros e originais em
torno dos quais girarão, como ao redor de um eixo,
os paisagistas e os pintores de camponeses. Dela-
croix, Millet, Corot e o resto. Isto é o que sinto, em-
bora mal expresso. Quero dizer com isto que, mais
que pessoas, existem regras, princípios ou verdades
fundamentais, tanto para o desenho quanto para a
cor. Aos quais é preciso recorrer quando se encon-
tra algo de verdadeiro.8

Van Gogh desembarca na tumultuada Paris dos impressionistas


em março de 1886. Como já apontamos, Édouard Manet havia apre-
sentado sua Olympia ao mundo parisiense, causando um escândalo de
proporções decisivas para os impressionistas. Em 1874 Edgar Degas e
Claude Monet reuniram um grupo de pintores (Renoir, Pissarro,
Cézanne, Sisley e Berthe Morisot, a única mulher do grupo) para apre-
sentarem suas telas. A maioria dos artistas estava na caso dos trinta
anos. Pissaro resume com elegância a identidade do grupo ao escrever
a um jovem estudante de seu ateliê: “Não tenha medo de usar a cor
(...). Não se prenda a regras e princípios, mas pinte o que você observa
e sente. Pinte generosamente e sem hesitações, pois é melhor não per-
der a primeira impressão. Não se intimide ante a natureza; precisamos
ousar, com o risco de nos decepcionar e cometer erros”.9
7 VAN GOGH, 1991, pp. 94 e 95.
8 Ibid., p. 98.
9 FRIEDRICH, 1993, p. 252.

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Ao chegar a Paris, Van Gogh ainda teve


tempo de visitar a oitava e última exposição
dos impressionistas. Descobre a pintura lumi-
nosa, onde as cores são a matéria-prima da ex-
pressão pictórica. Conhece Toulouse-Lautrec,
Gauguin, Seurat, Pissaro, Cézanne e o comer-
ciante de tintas Mrs.Tanguy. Defronta-se com
as estampas japonesas que inundavam a capital
francesa. Freqüenta os célebres cafés do bairro
Montmartre em companhia dos impressionis-
tas. Regado a muito absinto, Van Gogh envol-
ve-se cada vez mais com o estilo impressionis-
ta, mas logo sente saudade de sua vida no cam-
po. Em 1888 toma o trem e desembarca em
Arles, região da Province. Encanta-se com o es-
plendor das cores radiadas pelo Sol da prima-
vera em campos de trigo e girassóis. Escreveu
dizendo sentir-se no Japão. Em 06 de junho,
contou a seu irmão que está lendo um livro so-
O Carteiro Joseph Roulin, Vicent Van Gogh, 1888.
bre Wagner: “(...) que artista, um destes na pin-
tura, isso é que seria bom – ainda virá”.
No início de agosto de 1888 (período em que Monet construía seu
jardim em Giverny), Vincent escreve fazendo um balanço de sua estadia
em Paris e os contatos que manteve com o movimento impressionista.
Reconhece a importância histórica de Édouard Manet e o escândalo que
este causou com sua Olympia, no Salão de 1865. Van Gogh disse que
Manet esteve bem perto – assim como Courbert – de casar a forma com
a cor. É nesta carta que Vincent relata sua ruptura com o movimento im-
pressionista, muito embora reconheça em Manet e seus descendentes,
esse esforço de integração entre forma e cor.
Ao contar a Théo o início de seu trabalho sobre um carteiro de
uniforme azul, Vincent enuncia seu estilo como pintor, “a singularida-
de de suas visões”, como reconheceu o poeta. A figura do carteiro
Roulin é uma das telas representantes desse momento inaugural na
vida do pintor. Em suas próprias palavras: “Não há caminho melhor
e mais curto para melhorar o trabalho que o de fazer figuras. Ademais,
sempre me sinto confiante ao fazer retratos, sabendo ser este trabalho
bem mais sério – talvez não seja esta a palavra correta –, mas é o que
mais me permite cultivar o que tenho de melhor e mais sério”.10 Van

10 VAN GOGH, 1991, p. 183.

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Gogh conseguiu realizar o feliz casamento da forma com a cor na fi-


gura do carteiro e, certamente, tal ato estabeleceu uma surpreendente
ruptura no movimento impressionista.
O pintor holandês havia chegado a Paris no final da festa impres-
sionista. Sua estadia na cidade permitiu contato com alguns expoentes
do Impressionismo. No entanto, sua convivência com os mais jovens
seguidores do grupo apontava os caminhos para rupturas. É certo que
os grandes nomes do movimento moravam fora de Paris nessa época.
Monet, por exemplo, estava em viagem pela Holanda e Bretanha. Por
outro lado, foi em Paris que Vincent pôde entregar-se à sua grande pai-
xão: a pintura. Passava dias inteiros no museu do Louvre estudando
cada detalhe dos mestres da arte visual. A admiração que nutria por De-
lacroix é testemunha de seu apreço pelos clássicos.
O trabalho de todo pintor, tal como estabelecido desde o Renas-
cimento,11 situa-se nesse ponto: estabelecer relações entre a forma e a
cor. O que decide o estilo de um pintor é a maneira como cada um
realiza essa relação. A história da pintura é marcada por esse critério
estético.
Pelas mãos de Van Gogh podemos contemplar o casamento feliz
entre a forma e a cor. Suas telas são luminosas. As cores saltam e en-
chem nossos olhos de luz. Por vezes, a intensidade é tamanha que che-
ga a nos ofuscar, levando-nos como que à perda parcial dos sentidos.
As telas de Vincent são arrebatadoras.
Ainda na carta do início de agosto, Van Gogh escreveu:

Só que eu acho que o que eu aprendi em Paris se esvai,


e estou voltando às idéias que me surgiram no campo,
antes de conhecer os impressionistas. Eu não ficaria
muito impressionado se dentro em pouco os impres-
sionistas encontrassem o que censurar em minha ma-
neira de fazer, que foi fecundada mais pelas idéias de
Delacroix que pelas suas.12

E conclui dizendo que deseja ser um colorista arbitrário. Eis um


bom epíteto para designar seu trabalho.
Se compararmos a descrição que Van Gogh faz de si como pin-
tor, poderemos inserir a série Ninféias de Monet no âmbito da pes-
quisa com a cor, tal como ele mesmo referia-se em sua carta sobre o
11 Um exemplo é o tratado Da Pintura, escrito por Leon Battista Alberti em 1435. Nos três livros que o
compõe Alberti estabelece uma série de conceitos e conselhos técnicos que permitiram sistematizar uma
teoria da pintura e do ofício do pintor.
12 VAN GOGH, 1991, p. 188.

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Sol da Argélia. Nelas podemos reconhecer o desejo enunciado por Van


Gogh: um colorista arbitrário.

O MUNDO DA LUZ EM MONET


Passemos, portanto, ao outro aspecto ressaltado por Greenberg:
em Monet encontramos um mundo de arte. Mundo este estruturado
sobretudo no último período da vida do pintor, no qual produziu a cé-
lebre série de grande painéis, tendo como modelo as flores aquáticas
(ninfeáceas) que importou dos trópicos para decorar seu jardim.
As composições pictóricas iniciadas em 1899 ocuparão Monet
até sua morte, em 1926. Os problemas com a catarata, cujos primeiros
sinais surgem em 1908, serão diagnosticados em 1912. Duas opera-
ções restituem sua visão em 1923, quando retoma o trabalho nas
“Grandes Decorações” de seu terceiro atelier em Giverny. Parte dessas
telas compõe o acervo do Museu Marmottan de Paris e outra parte en-
contra-se no Museum of Modern Art de Nova York.
No início do século, Arsène Alexandre, o crítico de arte do jornal
Le Figaro, fez a seguinte descrição do jardim de Monet:

E Giverny vislumbra-se ao fim da estrada; a vila é bo-


nita mas sem grande caráter; semicampo, semicidade.
Mas, subitamente, ao atingir a saída do burgo e ao
continuar a estrada de Vernon um espetáculo novo,
extraordinário e inesperado como toda surpresa, saú-
da-nos. Apresenta-nos todas as cores de uma paleta,
todas as notas de uma fanfarra: é o jardim de Monet.13

A variação rítmica de sons tomada como metáfora para variação


da luz é uma bela imagem para designar as centenas de telas criadas
por Monet de seu jardim. Sobre as Ninféias, Maurice Sérullaz comen-
tou: “Miragem, fantasia, fantasmagoria, cintilações, realidade e abstra-
ção, verdade e cenário, encanto das cores e sutilezas infinitas dos cam-
biantes, eis o que são os nenúfares. À semelhança do músico que com-
põe variações sobre o mesmo tom, Monet modula sem repetições até
ao infinito”.14 A série dos Nenúfares – designação comum a diversas
plantas da família das ninfeáceas –, como traduzem alguns, represen-
tam a síntese de uma vida, um mundo de arte. As variações de cores
iluminam e arrebatam nosso olhar, encantam nossas vidas e estimula
nossa imaginação.
13 SÉRULLAZ, s/d, p. 71.
14 Ibid., p. 132

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Nenúfares, Claude Monet, 1897-98.

As Ninféias podem ser comparadas a opus incertum, tipo de


construção em blocos de pedra irregulares, mas que se ajustam entre
si. As telas que compõem a série são construções de estilo arquitetô-
nico. Linhas se entrecruzam numa sinfonia de cores, ajustando, na ho-
rizontalidade da superfície da água, folhas, ervas, flores; na verticali-
dade, os reflexos dos salgueiros e roseirais. Como esgrimista, Monet
luta com a luz solar capturando suas variações. Outro exemplo célebre
é a série de 30 telas da Catedral de Rouen, de 1894, nas quais o artista
procura fixar os efeitos fugidios da luz, as horas entre o momento
onde a bruma matinal se levanta e o momento onde se extinguem os
últimos raios de Sol.
Além disso, podemos reconhecer nas Ninféias uma referência
erótica através da própria etimologia. Isso porque ninféia é o feminino
de ninfeu, que por sua vez é adjetivo de ninfa, do grego nymphe, de-
signa “divindade fabulosa dos rios, dos bosques e dos montes; em sen-
tido figurado, mulher nova e formosa; anatomicamente, designa o pe-
queno lábio da vulva; e na zoologia nomeia a forma intermediária en-
tre a larva e o inseto adulto.

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A sensualidade das Ninféias foi capturada pelo filósofo-poeta


Gaston Bachelard:

a cada aurora, após o bom sono de uma noite de ve-


rão, a flor da ninféia, imensa sensitiva das águas, re-
nasce com a luz, flor sempre jovem, filha imaculada da
água e do Sol. Tanta juventude reencontrada, tão fiel
submissão ao ritmo do dia e da noite, tal pontualidade
em dizer o instante da aurora, eis que faz a ninféia a
própria flor do Impressionismo. A ninféia é um ins-
tante do mundo. É uma manhã dos olhos. É a surpre-
endente flor de uma alvorada de verão.15

As flores aquáticas ofereciam seu esplendor matinal aos olhos do


pintor, cansados pelo tempo. Os últimos anos da vida de Monet foram
dedicados à captura da beleza de suas flores através da luminosidade
que as cores expressam.

CONCLUSÃO
Concordo com a posição de Greenberg sobre Monet: nas Nin-
féias, encontramos um mundo de arte. A amplitude de visão guiada
unicamente pelas mãos que obedecem a imaginação criadora do ar-
tista comparece na sinfonia de cores, nas explosões luminosas de suas
telas. No entanto, pareceu-me inadequado comparar a série de Monet
com o conjunto das telas de Van Gogh e concluir que faltava a este
aquilo que sobra ao primeiro. Pelo exposto, não concordo que o pin-
tor holandês possuísse um relance do mundo de arte. Ao contrário,
Van Gogh expressou uma visão muito bem estabelecida de seu traba-
lho. Uma leitura atenda das cartas enviadas a Théo revela clara visão
do conjunto e dos procedimentos do labor pictórico sem igual. É pos-
sível acompanhar passo-a-passo a criação de Van Gogh: como um diário
de bordo, ele escrevia com a mesmo ímpeto com que pintava.
Em ambos, a pesquisa com a cor é o objetivo principal para cap-
turar as variações de luz sobre os objetos do mundo. Monet obteve re-
conhecimento público de seus trabalhos e passou a reinterpretá-los,
ampliando significativamente os limites formais da técnica por ele
construída. Sempre foi o pesquisador da cor, como ele próprio se de-
finiu no início de seus trabalhos como pintor. Van Gogh suicidou-se
dominado por perguntas que instigaram sua breve existência: o que
15 BACHELARD, 1994, p. 4.

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define as características de uma obra de arte? Qual é o ofício do pin-


tor? Como realizar o casamento feliz entre a forma e a cor?
A descrição de seu labor como pintor permitiu a Van Gogh vis-
lumbrar a arte do mundo. É assim que marca a singularidade do seu
trabalho artístico. É possível aplicar tanto ao artista holandês quanto
ao francês o epíteto de colorista arbitrário. Imprimiam às telas a beleza
que seus olhos capturavam no mundo das coisas, criando um novo
conjunto de procedimentos técnicos de grande amplitude. Cada um a
seu modo abriu caminhos para um novo estilo pictórico que marcou
a pintura contemporânea: o expressionismo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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impulso 87 nº24
Impulso24.book Page 88 Thursday, October 2, 2003 8:40 AM

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do Carmo Cary. Lisboa: Verbo, s/d.
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Porto Alegre: L&PM, 1991.

abril 88 99
Impulso24.book Page 89 Thursday, October 2, 2003 8:40 AM

Modernismo e Filosofia:
o caso Oswald
Modernism and Philosophy:
the case of Oswald de Andrade
SÍLVIO GALLO
Professor da Faculdade de Filosofia,
RESUMO – Comemoramos, em 1992, os setenta anos do movimento modernista. História e Letras da UNIMEP e do
Departamento de Filosofia e História
Ao mesmo tempo, o discurso reinante no país era o da modernização. O objetivo da Educação da Unicamp
deste artigo é o de resgatar as idéias filosóficas do poeta modernista Oswald de An- gallo@turing.unicamp.br
ou sdogallo@unimep.br
drade, crítico mordaz da cultura brasileira, e sua proposta de uma filosofia antro-
pofágica. O poeta parte da crítica de uma filosofia messiânica, que teria reinado
no ocidente, de Sócrates aos nossos dias, para propor uma filosofia dialética sui ge-
neris. Suas idéias podem contribuir para o debate em torno de uma filosofia bra-
sileira e para pensar as contradições dos projetos de modernização do país.

Palavras-chave: Modernismo – modernidade – filosofia brasileira – antropofagia.

ABSTRACT – In 1992 we commemorated the the seventieth year of the modernist


movement. At the same time, Brazil was taken by the modernization discourse.
The objective of this article is to rescue the philosophical ideas from Oswald de
Andrade, a modernist poet and mordant critic of Brazilian culture, and his pro-
posal of an antropophagic philosophy. The poet criticizes the messianic philoso-
phy that would have reigned in Western culture, from Socrates to our days, in or-
der to propose a sui generis dialectic philosophy. His ideas can contribute to the
debate around a Brazilian philosophy and to think the contradictions of the mo-
dernization process in this country.

Keywords: Modernism – modernity – Brazilian philosophy – anthropophagy.

impulso 89 nº24
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O sarcasmo, a cólera e até o distúrbio são necessidades


de ação e dignas operações de limpeza, principalmente
nas eras de caos, quando a vasa sobe, a subliteratura
trona e os poderes infernais se apossam do mundo em
clamor.
OSWALD DE ANDRADE, Meu Testamento

V ivemos uma época curiosa: crise econômico-social, crise po-


lítico-administrativa,1 crise dos valores, crise de identidade e,
coroando todas, uma crise da racionalidade, imersa num mi-
lenarismo obscurantista que busca em ecléticos misticismos uma porta
de salvação para a humanidade neste final de século e de milênio, que
promete ser duas vezes pior que a travessia para o ano mil.
A história mostra-nos que é justamente nessa época de crise agu-
da que a filosofia encontra um campo fecundo para o germinar de suas
reflexões, delas brotando uma nova compreensão do agir humano e
caminhos antes não vislumbrados. Entre nós, entretanto, o que vemos
é a eclosão de um “liberalismo social”, órfão híbrido de caducas con-
cepções de mundo com o qual as arcaicas elites proto-feudais e as
“modernosas” elites industriais tentam uma vez mais dar pretensas res-
postas e rotas esperanças para bilhões de pessoas alijadas de direitos so-
ciais e humanos básicos.2
É nesse contexto quase surrealista – se não fosse praticamente a
única matiz social à qual fomos apresentados nestes quatrocentos anos
de história – que percebemos muito mais acuidade e racionalidade em
um disco de Caetano Veloso que em artigos e ensaios da intelectuali-
dade a serviço dessas elites.
Por outro lado, em meio aos discursos oficiais de levar o país ao
patamar de modernidade das nações do primeiro mundo – das quais
nos afastamos cada vez mais – comemoramos este ano o septuagésimo
sétimo aniversário de um movimento que poderia já estar caduco, não

1 Esse texto foi escrito originariamente em 1992, ano da comemoração dos 70 anos da Semana de Arte
Moderna e quando estávamos perplexos frente à crise institucional do governo Collor. Retomando-o
agora, para publicação, embora o momento político do país seja outro, penso que o cenário de crise dese-
nhado naquele momento está mais atual do que nunca.
2 O liberalismo social era a proposta de alguns intelectuais reunidos em torno de Fernando Collor, notada-
mente José Guilherme Merquior. Com o governo Fernando Henrique, embora o título tenha sido deixado
de lado, não podemos deixar de perceber aproximações de suas tímidas ações nas questões sociais com o
ideário produzido no governo Collor.

abril 90 99
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fosse ele a base do que de melhor tem sido feito nas artes e na cultura
brasileiras, da poesia ao teatro e das artes plásticas à música e ao cinema.
Nossa questão é: teria o Modernismo, como movimento cultural
– cujo marco foi a agitação provida pela Semana de Arte Moderna de
1922 –, colocado já a questão da modernidade de forma global e não
apenas no contexto cultural, como é explorado insistentemente? Essa
questão, ampla, desdobra-se: tem o nosso Modernismo uma base
filosófica? Podemos partir dele para a construção de uma análise
filosófica da realidade nacional?
É na busca, senão de uma resposta, pelo menos de pistas que nos
permitam a sua gradual construção, que este despretensioso artigo
propõe-se a resgatar uma faceta quase desconhecida de uma figura co-
nhecidíssima do movimento modernista, o poeta paulistano – quiçá
seu representante mais radical e com certeza o mais polêmico –
Oswald de Andrade: a sua produção filosófica. Nesse ponto, os “filó-
sofos de carteirinha” já estarão com certeza rasgando raivosamente es-
tas páginas, ou pelo menos delas sorrindo desdenhosamente, do alto
de seu púlpito acadêmico... Mas sigamos em frente.

FILOSOFIA BRASILEIRA E/OU FILOSOFIA NO BRASIL?


Nossos cursos de graduação em Filosofia apresentam sempre
uma ou mais disciplinas que visam a estudar a produção desse ramo
do conhecimento em nosso país. Parece-me que são duas as posições
mais assumidas pelos nossos professores: a) a de que existe uma filo-
sofia genuinamente brasileira; b) a de que existe apenas uma divulga-
ção de idéias filosóficas entre nós sem que, entretanto, haja uma filo-
sofia de fato nativa.
Que existiram e existem entre nós profundos conhecedores do
assunto e autores de obras monumentais, é inegável; não citarei nomes
para não cometer a injustiça de esquecer alguns. Mas fizeram – e fa-
zem – essas figuras uma filosofia brasileira?
Roberto Gomes em seu delicioso ensaio Crítica da Razão Tupi-
niquim sustenta que não falta a eles a originalidade e a identidade com
nossos próprios problemas. Segundo Gomes, falta-nos enraizamento
em nossa realidade brasileira e latino-americana:

Antes disso, qualquer filosofia será, entre nós, pura in-


genuidade.
Aprendamos duas coisas. Que nesta altura dos aconte-
cimentos, um soco na mesa, violento e sonoro, é mais
importante do que sabermos da validade dos juízos sin-

impulso 91 nº24
Impulso24.book Page 92 Thursday, October 2, 2003 8:40 AM

téticos a priori. E que, do ponto de vista de um pensar


brasileiro, Noel Rosa tem mais a nos ensinar do que o
senhor Immanuel Kant, uma vez que a filosofia, como
o samba, não se aprende no colégio.3

Se é verdade que “todos os homens são filósofos”, como bem o


demonstrou o italiano Antonio Gramsci,4 não é menos verdadeiro que
existe uma Filosofia instituída, com um histórico e um corpo de pro-
blemas que são a matéria dos especialistas profissionais que a eles se
dedicam; nessa segunda acepção, nem todos os homens são filósofos:
na verdade, bem poucos o são.
Parece-me que quando questionamos a possibilidade de uma “fi-
losofia brasileira” estamos falando deste segundo sentido da filosofia,
de um tipo especial e específico de conhecimento. Sem dúvida alguma,
os nossos poetas, cantadores ou não, desvelam para nós muitos dos
sentidos do humano, e há filosofia – e não pouca – em Noel Rosa,
Caetano Veloso, Raul Seixas, Drummond, para citar apenas uns pou-
cos. Por outro lado, embora esses desveladores da alma humana tives-
sem assombrosos insights e os equacionassem maravilhosamente em
jogos de palavras que a maioria dos “grandes filósofos” jamais sonha-
ria conseguir, nunca escreveram tratados filosóficos, nem debruçaram-
se sistematicamente sobre os problemas que a filosofia logra pesquisar
– e obviamente nunca sentiram falta disso.
O que estou tentando afirmar é que, embora existam, por exem-
plo, em Caetano Veloso, belíssimos insights filosóficos e em uma mú-
sica sua possa até haver mais filosofia que em um tratado de Kant, é
um exagero, e mesmo um desrespeito – uma calúnia, até –, chamá-lo
de filósofo.
Ao falar dos sentidos do humano, os poetas fazem filosofia. Ao
falar das múltiplas perspectivas que têm os brasileiros dos sentidos do
humano, nossos poetas e cancioneiros fazem, até certo ponto, uma fi-
losofia brasileira. A outra filosofia, no entanto, aquela sistematizada
que venho chamando aqui de filosofia instituída, essa fala do humano
em geral, buscando a universalização dos sentidos. E, por ser universal,
não há e nem pode haver uma filosofia brasileira, como jamais existiu
3 GOMES, 1983, p. 107.
4 “Deve-se destruir o preconceito, muito difundido, de que a filosofia seja algo muito difícil pelo fato de ser
a atividade intelectual própria de uma determinada categoria de cientistas especializados ou de filósofos
profissionais e sistemáticos. Deve-se, portanto, demonstrar, preliminarmente, que todos os homens são
‘filósofos’” (GRAMSCI, Antonio. Concepção Dialética da História. Rio de Janeiro:, Civilização Brasileira,
1986, 6ª ed., p. 11).

abril 92 99
Impulso24.book Page 93 Thursday, October 2, 2003 8:40 AM

uma filosofia alemã, uma filosofia francesa ou mesmo uma filosofia


grega...
Existiram, isso sim, filósofos alemães, franceses e gregos que são
reconhecidos como grandes filósofos, justamente porque, partindo de
seu enraizamento espacial e temporal, lograram atingir a universalida-
de de falar a todos os homens, de todos os tempos. Nesse sentido, não
só Kant, mas também Platão, Nietzsche, Sartre etc. têm tanto a me di-
zer quanto Noel, Caetano ou Raul Seixas: é uma questão de comple-
mentaridade.
Enveredei por essa trilha que parece afastar-se de nosso tema por
uma razão bastante simples: como movimento artístico-cultural, o
Movimento Modernista tem ligações óbvias com a filosofia; por outro
lado, seus inúmeros poetas da prosa e do verso também desvelaram
muito de nossa alma e de nossa realidade. Seria, pois, fácil falar de uma
“filosofia modernista”; o objetivo deste artigo, entretanto, é ir além do
Oswald poeta e literato, o que já seria uma matéria-prima riquíssima,
e resgatar o Oswald filósofo – se não um pesquisador universitário, ao
menos um estudioso da filosofia e produtor de textos filosóficos. Tal
será a matéria de nossas próximas páginas.

OSWALD FILÓSOFO: A CONSTRUÇÃO


DE UMA “FILOSOFIA ANTROPOFÁGICA”
Roberto Gomes exige para o estatuto de uma filosofia genuina-
mente brasileira a originalidade do enraizamento em nossa realidade,
como vimos no ensaio anteriormente citado; mesmo discordando des-
sa exigência que chega um pouco às margens da xenofobia, como tam-
bém já demonstrei, poderíamos ver em Oswald de Andrade um ge-
nuíno “filósofo brasileiro”, mesmo segundo a concepção de Gomes.
Deixando de lado, por enquanto, a produção literária de Oswald (po-
esia, prosa e polêmicas), temos em seus dois manifestos poéticos duas
belas peças de filosofia da cultura.
O Manifesto da Poesia Pau-Brasil (março de 1924) e o Manifesto
Antropófago (maio de 1928 ou, como data o poeta, “Ano 374 da De-
glutição do Bispo Sardinha”) são um desvelamento da cultura brasileira
e uma declaração de intenções para um agir poético sobre essa realidade.
Mas são dois os textos eminentemente filosóficos de Oswald de
Andrade. O primeiro deles é A Marcha das Utopias, compilação edi-
tada nos Cadernos de Cultura do MEC em 1966 de uma série de ar-
tigos que apareceram originariamente em O Estado de S.Paulo, onde
ele analisa o desenvolvimento do pensamento utópico, de Morus a
Cabet:

impulso 93 nº24
Impulso24.book Page 94 Thursday, October 2, 2003 8:40 AM

Pode-se chamar de Ciclo das Utopias esse que se inicia


nos primeiros anos do século XVI, com a divulgação
das cartas de Vespúcio, e se encerra com o Manifesto
Comunista de Karl Marx e Friedrich Engels, em 1848,
documento esse que liquida o chamado Socialismo
Utópico, aberto com a obra de Morus e que, supera-
do, chega, no entanto, até o século XIX, quando o
francês Cabet publica a sua Viagem a Icária, último
país onde o puro sonho igualizante encontrou guarida
e afago.5

O estudo das utopias serve de pano de fundo para Oswald ana-


lisar a alma do homem brasileiro, mostrando que para os europeus nós
já aparecemos como o novo, antes de sucumbirmos ao colonialismo
econômico e cultural:

Apesar de desmembrado em mil seitas pitagóricas, ór-


ficas, satânicas ou cristãs, de que dá uma pálida ima-
gem o belo livro de Paulo Barreto – As Religiões no Rio
– ainda creio que nossa cultura religiosa venha a ven-
cer no mundo moderno a gélida concepção calvinista,
que faz da América do Norte uma terra inumana, que
expulsa Carlitos e cultiva McCarthy.
Na guerra holandesa, vencemos uma gente estranha
que sob um grande comando e com superioridade de
armas, queria impor-nos uma língua estranha e um
culto estranho. Nela se prefiguraram os limites do nos-
so destino.
As Utopias são, portanto, uma conseqüência da desco-
berta do Novo Mundo e sobretudo da descoberta do
novo homem, do homem diferente encontrado nas
terras da América.6

Curioso é que essa visão de Oswald tem sido colocada hoje, nas
mais diversas perspectivas, por pensadores europeus do calibre, por
exemplo, de um Félix Guattari.7
O verbo de Oswald passeia pelas mais diversas matizes filosófi-
cas, de Platão e Aristóteles a Sartre e Ortega y Gasset, de Morus e
Campanella a Marx, Nietzsche e Freud. Um dos focos centrais é, po-
5 ANDRADE, 1978, p. 147.
6 Ibid., p. 149.
7 Em uma palestra na Faculdade de Arquitetura da PUCCamp, Guattari afirmou ver nas favelas do terceiro
mundo uma criatividade há muito perdida pela arquitetura européia. Segundo ele, só as culturas terceiro-
mundistas poderiam dar vazão à construção de um novo mundo, posto que os europeus, imersos em seu
classicismo, não conseguiam ver novos horizontes.

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rém, Rousseau e a questão do “bom-selvagem”. O mérito de “Jean-Ja-


cques, que hoje já não é mais subversivo” – nas palavras de nosso fi-
lósofo tupiniquim –, reside no fato de, também ele um utopista a seu
modo, colocar a questão do homem em “estado de natureza”, dife-
rentemente dos filósofos liberais anteriores:

Desde então, mesmo que não identificado e compre-


endido, surgiu no horizonte das controvérsias essa ex-
traordinária questão do homem natural, sem culpa de
origem e sem necessidade alguma de redenção ou cas-
tigo.
As Utopias foram as caravelas ideológicas desse novo
achado – o homem como é, simples e natural.8

Culturalmente diferente do europeu cristão, o nativo americano


aparece como outra(s) possibilidade(s) do humano, como alargamento
de horizontes. Mas qual a resposta do europeu? Qual espelho esfín-
gico que não reconhece a própria identidade – e tem, pois, medo do
diferente – lança a terrível sentença: “imita-me ou devoro-te!”. Muitos
foram devorados; a maioria tornou-se uma cópia daquela identidade
em crise...
Os últimos artigos da série tratam da colonização da África, ana-
lisam as cartas de Vespúcio sobre a terra recém-descoberta, analisam
rapidamente a obra de Sartre sobre Genet e, por fim, tratam do tema
mais caro a Oswald no contexto do pensamento utópico: a noção de
um Matriarcado que estaria em oposição político-cultural ao Patriar-
cado, base de toda a história da opressão do homem pelo homem, que
veremos de forma mais aprofundada ao examinarmos seu outro texto
filosófico. Oswald conclui seu ciclo de ensaios relatando sua própria
utopia; anos cinqüenta, depois de toda uma trajetória de militância po-
lítica e cultural, do burguês irreverente ao militante extremado do Par-
tido Comunista, do inveterado Don Juan ao candidato a deputado fe-
deral pelo PRT (1950) sob o lema “Pão-teto-roupa-saúde-instrução-li-
berdade”, demonstrando o seu profundo conhecimento da natureza
humana e sua paixão por um mundo mais justo:

E encerrando, nada mais tenho a dizer senão que tam-


bém trago a minha Utopia, de caráter social. Por que
não se organizar o mundo numa política de dois tetos?
Ninguém terá mais do que tanto. Ninguém menos do
que tanto. No intervalo o homem poderá subir ou des-

8 ANDRADE, 1978, p. 190.

impulso 95 nº24
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cer como quer a sua ambiciosa natureza.


E por que não criar uma especialização vocacional? In-
clusive um corpo político de eleitores formados para
isso? Tenho dito.9

O principal escrito filosófico de Oswald intitula-se A Crise da Fi-


losofia Messiânica; antes de analisá-lo convém, porém, que seja citado
um artigo menor, mas também muito interessante, enviado como co-
municação ao Primeiro Congresso Brasileiro de Filosofia promovido
pelo Instituto Brasileiro de Filosofia (IBF), realizado em 1950 sob os
auspícios da reitoria da Universidade de São Paulo.
Nessa comunicação intitulada Um Aspecto Antropofágico da
Cultura Brasileira: o homem cordial, nosso poeta-filósofo discute de
forma bastante curiosa a constatação de diversos culturalistas, soció-
logos, etnólogos e historiadores da época – dentre eles o Sérgio Buar-
que de Raízes do Brasil – de que a cordialidade era uma das principais
características culturais do homem brasileiro.
Para o nosso eterno militante esse era um traço remanescente de
nossa arcaica cultura matriarcal, já apagada na personalidade européia
pelos séculos de cristianismo extremado:

No contraponto agressividade-cordialidade, se define


o primitivo em weltanschauung. A cultura matriarcal
produz este duplo aspecto.
Compreende a vida como devoração e a simboliza no
rito antropofágico, que é comunhão.10

Na concepção oswaldiana, o rito da devoração do outro é o re-


conhecimento máximo da alteridade, pois a devoração é o reconhe-
cimento do outro como outro e a sua aglutinação ao si-mesmo, a per-
feita comunhão. E embora a devoração leve a honra do reconheci-
mento de sua autenticidade e força pelo outro, a iminência da morte
traz em si o terror básico da existência humana. Por isso, a sempre pre-
sente possibilidade da devoração leva a uma solidariedade social em
torno da defesa mútua:11 “De outro lado, a devoração traz em si a
9 ANDRADE, 1978, p. 228.
10 Ibid., p. 143.
11 O naturalista russo Piotr Kropotkin trabalhou, no início do século, uma tese oposta à teoria da seleção
de Charles Darwin: as espécies que sobreviveriam na luta pela vida não seriam aquelas que adquiririam
força na união dos indivíduos através do mútuo apoio entre si. Parece um pouco o que afirma Oswald,
quanto a solidariedade social surgir no horizonte da defesa contra a antropologia. Há atualmente uma tra-
dução acessível do texto de Kropotkin em espanhol: El Apoyo Mutuo. Móstoles: Ediciones Madre Tierra,
1989, 3ª ed.

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imanência do perigo. E produz a solidariedade social que se define em


alteridade”.12
Já as sociedades de estrutura patriarcal baseadas na dominação e
na exploração – praticamente todas as sociedades históricas de que te-
mos conhecimento – e que substituem uma visão antropofágica da
vida por uma visão messiânica (é esse o assunto do texto de Oswald
que veremos a seguir) sublimam, no sentido freudiano, a sensação do
perigo, pois o fim da vida é, antes de tudo, o princípio da salvação e
de uma “vida eterna”. Essa concepção escatológica acaba por levar,
portanto, a uma vivência muito mais egoísta e “darwinista”, em sen-
tido contrário àquele da solidariedade:

Ao contrário, as civilizações que admitem uma conce-


pção messiânica da vida, fazendo o indivíduo objeto
de graça, de eleição, de imortalidade e de sobrevivên-
cia, se dessolidarizam, produzindo o egotismo do
mundo contemporâneo. Para elas, há a transcendência
do perigo e sua possível dirimição em Deus.13

A tese de Oswald, que aparece também no ciclo A Marcha das


Utopias, é a de que o contato com o homem americano revoluciona
também a cultura do europeu; apesar de sermos nós os violentados
pela dominação, também eles não saem impunes, e sua cultura se
transforma. As novas orientações da filosofia deste século são, para ele,
um claro indício de que os europeus aos poucos abandonam a segu-
rança intelectual de seu milenar messianismo, impelidos pela nietzs-
cheniana “morte de Deus”:

A angústia de Kierkegaard, o “cuidado” de Heidegger,


o sentimento do “naufrágio”, tanto em Mallarmé
como em Karl Jaspers, o Nada de Sartre, não são se-
não sinais de que volta a Filosofia ao medo ancestral
ante a vida que é a devoração. Trata-se de uma con-
cepção matriarcal do mundo sem Deus.14

Partindo dessa “confissão existencialista”, passemos agora ao


principal texto filosófico de Oswald, vendo como a própria “con-
fissão” se fundamenta e percebendo sua sutil originalidade.
12 ANDRADE, 1978, p. 143.
13 Ibid., p. 143.
14 Ibid., p. 144.

impulso 97 nº24
Impulso24.book Page 98 Thursday, October 2, 2003 8:40 AM

A CRISE DA FILOSOFIA MESSIÂNICA


Como agitador e pensador da cultura, Oswald é um verdadeiro
dialético, o que em parte pode ser explicado pelo seu engajamento no
Partido Comunista, levado pela bela Pagu (Patrícia Galvão). Mas em
um pequeno poema escrito ainda em 1925 já estava presente esse es-
pírito debochadamente dialético, ainda longe da ortodoxia que o faria
mais tarde um crítico do PC:

ERRO DE PORTUGUÊS
Quando o português chegou
Debaixo duma bruta chuva
Vestiu o índio
Que pena!
Fosse uma manhã de Sol
O índio tinha despido
O português15

É talvez essa sincera paixão por uma visão verdadeiramente di-


alética do mundo, aliada a um desejo de estudar mais seriamente16 as
conseqüências das afirmações já expostas poeticamente no Manifesto
Antropofágico, que leva Oswald ao terreno da filosofia e ao estudo que
culminaria com a redação de um texto em 1950, originariamente uma
tese para um concurso em que se disputava uma Cadeira de Filosofia
na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São
Paulo. A esse texto Oswald denominou “O antropófago – uma filo-
sofia do primitivo tecnizado” e, mais tarde, ganhou o título mais in-
teressante de “A crise da filosofia messiânica”.
Ao longo de mais ou menos sessenta laudas, ele desenvolve um
projeto em que a ambição dá de dez na modéstia: uma quase-revisão
de toda a história da filosofia, desde os tempos homéricos gregos até
nossos dias, para mostrar que a sociedade patriarcal enseja uma filo-
sofia messiânica, escatológica, que assume as mais diversas feições ao
longo da história, de Sócrates a Marx, de Platão a Hegel. Contempo-
raneamente, porém, os filósofos existencialistas, além de Nietzsche, es-
tariam levantando questões que vão de encontro à filosofia messiânica,
sendo o prenúncio de uma nova filosofia antropofágica, expressão de
uma sociedade matriarcal perdida no tempo mas que dialeticamente
15 ANDRADE, 1991, p. 95.
16 O adjetivo “seriamente” é usado aqui não no sentido do abandono do sarcasmo peculiar a Oswald, mas
sim no de um estudo bastante aprofundado.

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está sempre presente no Patriarcado como o Outro, como negativida-


de, crítica e possibilidade de superação.
Os “filósofos profissionais”, esses prostitutos da filosofia, pros-
trados humildes frente à autoridade dos grandes mestres, ficam, no mí-
nimo, irritados com essa ousadia de Oswald; mas não podemos dis-
cordar: sem a ousadia, não há originalidade. A originalidade de Aristó-
teles está em afrontar o mestre Platão, assim como não haveria Marx
se ele não tivesse ousado colocar o mestre Hegel de cabeça para baixo.
Pode-se objetar que o texto de Oswald carece de uma maior
“consistência filosófica”, dessa que pulula em tratados chatíssimos e
ininteligíveis, que só são compreendidos pelo próprio autor e por uns
poucos sacerdotes por ele treinados para oficiar o culto de sua santi-
dade. Mas o Oswald com certeza responderia a isso com uma grande
gargalhada, pois seu texto é exatamente o contrário: leve, inteligente,
alinhavando coerentemente uma enorme quantidade de conhecimen-
tos filosóficos, históricos e culturais em geral. Vamos a ele.
A tese básica é a seguinte: a história humana é a história do conflito
de duas organizações sóciopolíticas antagônicas, o Matriarcado (socieda-
des pré-históricas) e o Patriarcado (sociedades historicamente conheci-
das). Cada uma dessas formas enseja uma cultura e uma filosofia parti-
culares; a primeira caracterizar-se-ia por uma cultura antropofágica, en-
quanto que a segunda, por uma cultura messiânica. Ao longo da história
da humanidade assistimos ao domínio da sociedade patriarcal, mas uma
série de características que Oswald identifica na filosofia contemporânea
como uma crise do messianismo prenunciaria uma volta ao matriarcado,
obviamente modificado de forma substancial, e de sua filosofia antropo-
fágica, o que começa a ser prenunciado pelas utopias renascentistas e a
descoberta de um novo homem e uma nova cultura na América e que se
exprime, não em sua totalidade, na revolução soviética.
Aproveitemos a ruína da antiga República Soviética para perce-
ber o Oswald profeta:

7º) Que a URSS exprime um pequeno anseio da grande


revolução do parentesco que se realiza com o advento
do novo Matriarcado. A sua revolução se concentra
numa ênfase – a do setor da propriedade.
8º) Que, ao lado disso, a URSS, levada pela mística da
ação, perdeu o impulso dialético de seu movimento,
eqüidistando-se numa dogmática obreirista que lem-
bra, em síntese, a Reforma e a Contra-reforma.17

17 ANDRADE, 1978, p. 128.

impulso 99 nº24
Impulso24.book Page 100 Thursday, October 2, 2003 8:40 AM

O dialético radical já percebia, quatro décadas antes, que a


dogmatização de princípios que se baseiam no perpétuo movimento
acabariam com o “sonho socialista” na URSS,18 mas não com o advento
de uma nova visão de mundo e uma nova prática social de coletivi-
dade, pois a revolução soviética acabou por abarcar apenas um aspecto
da necessária reestruturação social, o econômico, por estar amparada
no messianismo escatológico de Marx.
Para mostrar que existe realmente uma “crise na filosofia messi-
ânica”, Oswald põe-se a analisar os principais traços da filosofia ociden-
tal, identificando o seu messianismo ao longo da história. Veremos aqui
apenas alguns poucos pontos, por duplo motivo: primeiro, para não
alongar demais essas modestas páginas e, segundo, para que o leitor,
com a curiosidade aguçada, corra para o texto do poeta-filósofo, po-
dendo deleitar-se também com suas palavras.
O ensaio inicia-se com a constatação de que a antropofagia exis-
tiu tanto entre os gregos primitivos quanto entre os povos da América
pré-colombiana. Entretanto, frisa o autor, a essência da antropofagia
não é saciar a fome, mas trazer o outro para si mesmo, assimilar a cul-
tura, transformá-la, torná-la única: “A operação metafísica que se liga
ao rito antropofágico é a da transformação do tabu em totem. Do va-
lor oposto, ao valor favorável. A vida é devoração pura. Nesse devorar
que ameaça a cada minuto a existência humana, cabe ao homem to-
temizar o tabu. Que é o tabu, senão o intocável, o limite?”.19
A cultura antropofágica ataca os limites, afronta-os e os incorpo-
ra; a cultura messiânica, por outro lado, faz do limite a escatologia, o
ponto de ruptura, de passagem e de salvação.
Após examinar as características sociais, políticas e culturais do
Matriarcado, sempre colocando-o em contraposição ao Patriarcado,
passa Oswald a analisar o momento histórico que marca o advento das
características patriarcais:

A ruptura histórica com o mundo matriarcal produ-


ziu-se quando o homem deixou de devorar o homem
para fazê-lo seu escravo. Friedrich Engels assinala o fe-
cundo progresso dialético que isso constituiu para a
humanidade.
De fato, da servidão derivou a divisão do trabalho e a

18 Antes mesmo de acontecer a Revolução Soviética, um anarquista russo, Mikhail Bakunin, polemizava
com Marx durante a I Internacional e denunciava o provável rumo a ser tomado por uma revolução socia-
lista no modelo pensado por Marx, com a instalação de uma “ditadura do proletariado”; os profetas de
plantão perdem longe para a lucidez das “previsões” de Bakunin...
19 ANDRADE, 1978, pp. 77-78.

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organização da sociedade em classes. Criou-se a técni-


ca e a hierarquia social. E a história do homem passou
a ser como disse Marx, a história da luta de classes.20

Acontece que além de significar a abertura de novas possibilida-


des, inclusive todo o avanço tecnológico que o homem alcançaria nos
séculos vindouros, a nova realidade social de exploração trouxe para
uma imensa maioria da humanidade o terror de uma vida de sofri-
mento e sem um sentido nela mesma. É aí que entra o messianismo e
sua promessa de uma “salvação”, de uma vida melhor após a morte:

Uma classe se sobrepôs a todas as outras. Foi a classe sa-


cerdotal. A um mundo sem compromissos com Deus,
sucedeu um mundo dependente de um Ser Supremo,
distribuidor de recompensas e punições. Sem a idéia de
uma vida futura, seria difícil ao homem suportar a sua
condição de escravo. Daí a importância do messianis-
mo na história do patriarcado.21

Oswald empreende então o monumental trabalho de demons-


trar o messianismo nas filosofias e nas religiões, de Sócrates até a mo-
dernidade e do cristianismo ao hinduísmo, passando pelos mais diver-
sos matizes religiosos; deixo ao leitor o prazer de tomar contato com
ele no texto original.
E chegamos ao século XIX e à formulação daquela filosofia que
é, no dizer de Sartre, a “filosofia insuperável de nosso tempo”, o mar-
xismo. Não é difícil mostrar que também o marxismo é uma filosofia
messiânica, o último grande sistema dessa filosofia, segundo Oswald:
há em Marx uma aguda escatologia, uma doutrina do fim da história,
que ele e Engels, mestres do discurso, conseguem mascarar como o
verdadeiro “início da história” que seria o advento do socialismo, a en-
trada no reino da liberdade humana. A estrutura de pensamento do
marxismo é a mesma do cristianismo, embora seus conteúdos sejam
bastante diferentes; há em Marx um germe de esperança para o pro-
letário na construção da sociedade socialista, muito parecido com a es-
perança do fiel no “reino dos céus”. Poder-se-ia objetar que para Marx
essa esperança pressupõe o engajamento do indivíduo nas lutas sociais,
pois a nova sociedade só pode ser conseguida com a ruína do capita-
lismo pelo acirramento da luta de classes; mas não diz também aquele
protestante radical que a graça divina só alcança aquele indivíduo que
20 ANDRADE, 1978, p. 81.
21 Ibid., p. 81.

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trabalha arduamente para consegui-la? Em suma, os escravos traba-


lham porque seu trabalho pode ser instrumento de libertação, do céu
ou da terra...
Mas se o conteúdo do discurso marxista era uma pequena cen-
telha de luz sobre uma nova sociedade de estrutura muito mais ma-
triarcal, esse conteúdo acabou sucumbindo ante a estrutura messiânica
do pensamento, que gerou uma prática também messiânica no mar-
xismo-leninismo que sustentou a construção da sociedade soviética
após a revolução de 1917.

O marxismo militante engajou-se na economia do Ha-


ver (Patriarcado) escapando às injunções históricas da
economia do Ser (Matriarcado).
E na alienação, no dinheiro, na filosofia do dinheiro,
prossegue dentro da atualidade russa, o surto enuncia-
do pela economia do renascimento. O Estado assume
a idolatria do dinheiro. E para ligar com as férreas ata-
duras policiais a massa sufocada, dentro da fórmula
áspera de Paulo, “quem não trabalha não come”, uti-
liza a lógica de Aristóteles e a metódica de Sorel, den-
tro da cortina de ferro e de seus limites geográficos
políticos.22

O marxismo abandona a busca de uma sociedade matriarcal a


ser fundada na não exploração do homem pelo homem, na coopera-
ção e tendo o ócio por objetivo, perdido que fica na lógica do capital.
Os jogos táticos e políticos para a sustentação do “socialismo real” le-
vam a uma idolatria do dinheiro que é própria do capitalismo, e o Es-
tado converte-se em explorador oficial e oficiado do trabalho huma-
no. Oswald não logrou ver o resultado do processo, embora suas pa-
lavras permitam-nos imaginar que ele já antevia tudo aquilo que pre-
senciamos hoje. Messianismo por messianismo, capital por capital, por
enquanto vence ainda o capitalismo, que tem alguns séculos mais de
experiência...

Quem poderia prever, quem ousaria sonhar que o


Messianismo em que se bipartiu a religião do Cristo
(Reforma e Contra-Reforma) iria medrar no terreno
sáfaro das reivindicações materialistas do marxismo?
Uma pequena correção no texto dos Exercícios Espi-
rituais daria esta proclamação comunista: “minha von-
tade é conquistar os povos que estão sob o domínio da

22 ANDRADE, 1978, p. 118.

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burguesia. Que lutem todos os povos que estão sob o


domínio da burguesia. Que lutem todos como eu para
que depois do sofrimento venham as festas da vitória”.
No fundo, refulge a promessa messiânica.
(...) Se Lorca foi assassinado em Granada, Maiakovski
suicidou-se em Moscou. São os imperativos da ação,
explicam os justificadores dos regimes de terror.23

Assim como o marxismo, também o existencialismo traz em si


um germe de cultura matriarcal, embora seja ainda uma filosofia
messiânica:

O que se tenta pelas formas audazes ou dissimuladas


da filosofia contemporânea é restaurar, através do exis-
tencialismo, da axiologia, da fenomenologia e mesmo
do marxismo-leninismo, o Ser como tal em seu trono
absolutista.24
O Existencialismo recolocou o homem na sua ansie-
dade ancestral. E isso basta. Tanto a equação Tempo e
Ser, o estar para a morte, o naufrágio de Jaspers como
a tensão de Sartre ante a Negatividade, tudo recoloca
o homem no meridiano da devoração.25

Para Oswald de Andrade, esse prenúncio na filosofia


contemporânea de vislumbres de uma cultura matriarcal mostra que
nossa época de crise demarca um novo período de transição e que as
condições histórico-sociais postas permitem a eclosão de uma nova
cultura mais matriarcal, baseada na solidariedade e na justiça. Histo-
ricamente, o homem natural das sociedades matriarcais primitivas deu
lugar ao homem tecnicizado pelas civilizações patriarcais. Estamos
hoje na emergência de um novo homem, o homem natural tecnizado,
síntese dialética de nosso agir histórico, incorporando na justiça e so-
lidariedade originais todo o aparato tecnológico produzido através de
séculos de exploração. E é esse aparato tecnológico que permitirá que
o homem frua, finalmente, de seu valor supremo: o ócio.

No mundo supertecnizado que se anuncia, quando ca-


írem as barreiras finais do Patriarcado, o homem po-
derá cevar a sua preguiça inata, mãe da fantasia, da
invenção e do amor. E restituir a si mesmo, no fim de
seu longo estado de negatividade, na síntese, enfim, da

23 ANDRADE, 1978, pp. 119-120.


24 Ibid., p. 122.
25 Ibid., p. 123.

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técnica que é civilização e da vida natural que é cultu-


ra, o seu instinto lúdico. Sobre o Faber, o Viator e o Sa-
piens, prevalecerá então o Homo Ludens. À espera se-
rena da devoração do planeta pelo imperativo do seu
destino cósmico.26

CRISE E MODERNIDADE: A ORIGINALIDADE DO PROJETO


Aí estão, delineadas de modo geral, as reflexões filosóficas deste
clown iconoclasta que sempre foi Oswald de Andrade. Militante e
combatente da cultura, soube encontrar em nós mesmos a porta para
o novo, nem imersos numa xenofobia cultural absurda, nem dissolvi-
dos no caldeirão do feitiço do dominador, mas afrontando-o, devo-
rando-o, incorporando-o. Antropofagia: eis nosso honroso destino
cultural de construção de um novo mundo.
Exatamente no ano em que se completaram cinco séculos da
chegada dos europeus ao Novo Mundo, comemoramos meio século
de vida de um oswaldiano convicto, o cantor e compositor Caetano
Veloso. Num documentário que foi ao ar no ano de seu cinqüentená-
rio, o compositor baiano fazia uma leitura da carta de Pero Vaz de Ca-
minha e comentava emocionado a narração de um primeiro contato
dos europeus com um nativo, um índio que foi levado à caravela de
Cabral e, após um contato que estendia uma tênue ponte sobre o qua-
se intransponível abismo entre duas culturas absolutamente distintas,
dormiu a noite toda no tombadilho do navio, embalado por sua ino-
cente confiança naquele outro tão diferente dele. Tomo a liberdade de
reproduzir aqui um trecho deste comentário:

Eu fico imaginando a fé profunda de uma pessoa des-


tas, que não temeu dormir ali, entre desconhecidos, de
uma cultura que deveria ser muito impressionante,
mas que ele acolheu com uma tranqüilidade... Como
se chegasse um disco voador aqui e você fosse dormir
lá, sem saber o que é, sem entender a língua deles...
Troca dois negocinhos e dorme lá dentro, depois sai,
volta pra praia, vem pra casa... É incrível isso.
A inocência me encanta, sim. Nessa cena da carta de
Pero Vaz o assunto da inocência é maravilhoso, porque
a descrição da nudez é muito bonita. A percepção de
que era uma sensação de pureza, no texto de Pero Vaz
aparece muito claramente. E, justamente, eles estavam
trazendo uma espécie de grandeza, que é a grandeza

26 ANDRADE, 1978, p. 83.

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da Europa, que de uma certa forma implica a perda da


inocência.27

Essa tensão dialética entre duas culturas que tanto emociona a


Caetano é o fundamento mesmo da filosofia da cultura de Oswald;
sua proposta antropofágica assenta-se não na dominação unilateral ou
na assimilação pura e simples, mas na vivência da multiplicidade cria-
dora do choque que é prenhe de sentidos e significados. O confronto,
além de inevitável, é definitivo para ambos os lados: se o índio perde
a inocência, o português perde a grandeza, não importa as atrocidades
de dominador que cometa na ânsia de preservar a sua aparência de su-
perioridade.
Podemos traçar um sutil paralelo, guardadas as devidas pro-
porções – que não são pequenas – entre a proposta oswaldiana e um
ensaio atual de Gilberto Kujawski, este de uma sisudez filosófica bem
maior.28 Segundo o filósofo mineiro, a crise do século XX é antes de
tudo a crise da racionalidade moderna, das categorias que permeiam
a nossa vivência do cotidiano, isto é, o habitar, o trabalhar, o conversar,
o passear, o comer. Isso nos torna ocos. E a crise da modernidade co-
loca em xeque a arquitetura básica do mundo moderno, os conceitos
de Nação, Razão, Ciência, Técnica, Progresso, Revolução e Paixão.
Acontece que, assinala Kujawski, essa crise da racionalidade é es-
sencialmente européia. A modernidade é uma realidade européia.
Nós, como Brasil e como América Latina, nunca fomos modernos. Es-
ses conceitos nunca enraizaram-se em nós; foram-nos impostos, nas
mais diversas formas, ao longo destes quinhentos anos de nossa his-
tória, como o sempre recorrente espelho em que deveríamos ver-nos
com a roupa do europeu, mas nunca assimilados em sua completude.
A farsa do espelho sempre aparecia, mais cedo ou mais tarde, reve-
lando a pureza de nossa nudez onde deveriam estar as vestes impor-
tadas. Daí decorre que a intensidade com que a crise abate-se sobre
nós – no aspecto cultural, não no econômico – é bem diferente da-
quela sentida pelos europeus, que vêem seu mundo dissolvendo-se
ante seus olhos; e torna-se, pois, mais fácil para nós a sua superação.
Embora partindo de bases e raízes bastante diferentes, os proje-
tos de Oswald e de Kujawski apresentam uma certa similaridade – ou
pelo menos podem ser assim interpretados: a nossa modernidade deve
ser buscada em nós mesmos, e não no modelo do colonizador. A res-
27Caderno Mais!, Folha de S.Paulo, 09/08/92.
28 “A Crise do Século XX”, em que, apoiado em Ortega y Gasset, Kujawski analisa a crise do século XX
como crise da modernidade.

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posta está em nós mesmos. E não apenas a nossa resposta, mas tam-
bém a resposta dele. O novo só pode brotar de quem não está essen-
cialmente comprometido com os conceitos que se encontram em crise
profunda.
Mas, voltemos ao Oswald. Sua poesia pau-brasil e sua poesia e
filosofia antropofágicas não se esgotaram nelas mesmas, mas influen-
ciaram outros movimentos de profunda renovação da cultura brasilei-
ra. Para ficar apenas nos mais significativos, lembremos, no teatro, as
estripulias do pessoal do Oficina; foi célebre sua montagem de O Rei
da Vela, peça de Oswald que radiografa a chegada da modernidade
para a burguesia paulista, no conflito com a aristocracia cafeeira. Tam-
bém o movimento político-cultural do Tropicalismo de fins dos anos
60, que partindo da música (Caetano, Gil, Tom Zé, Torquato Neto,
Duprat, Mutantes) lançou influências sobre as artes plásticas (Hélio
Oiticica) e outros âmbitos da cultura brasileira, e teve uma base antro-
pofágica. Exemplo representativo foi Caetano ter musicado o poema
Escapulário, de Oswald, com melodia e arranjo de samba-enredo. Na
poesia, a influência do poeta modernista fez-se sentir com maior in-
tensidade sobre a poesia concreta dos anos 50, nos irmãos Campos e
em Décio Pignatari em especial.
Para concluir, urge que reflitamos sobre o projeto antropofágico
de Oswald. A crise está posta e com ela a possibilidade de superação, a
possibilidade de criação do novo. Enquanto nos curvamos ante a ideais
caducos, prontos a seguir caminhos falidos na busca de uma moderni-
dade que está em ruínas, enquanto nos apoiarmos na farsa de um “so-
cial-liberalismo”, seremos levados de roldão no bojo de uma crise que,
em última análise, não é de todo nossa.
O futuro, como sempre, está nas mãos daqueles que se dispõem
a construí-lo, conscientes das determinações de sua circunstância.
Cabe a nós escolher o nosso, seja ele qual for. No ano 443 da Deglu-
tição do Bispo Sardinha.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDRADE, Oswald de. Do Pau-Brasil à Antropologia e às Utopias.
Rio de Janeiro: Civ. Brasileira, 1978, 2ª ed. (foi lançada em 1991
nova edição pela Ed. Globo: A Utopia Antropofágica)
___________. Teatro: A Morta, O Rei da Vela, O Homem e o Cavalo.
Rio de Janeiro: Civ. Brasileira, 1978, 3ª ed.

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___________. Serafim Ponte Grande. São Paulo: Círculo do Livro, s/d.


___________. Pau-Brasil (poesias). São Paulo: Globo, 1991, 2ª ed.
___________. Primeiro Caderno do Aluno de Poesia Oswald de
Andrade. São Paulo: Globo, 1991.
___________. O Santeiro do Mangue e Outros Poemas. São Paulo:
Globo, 1991.
GOMES, Roberto. Crítica da Razão Tupiniquim. São Paulo: Cortez
Editora, 1983, 6ª ed.
KUJAWSKI, Gilberto de Mello. A Crise do Século XX. São Paulo: Ática,
1988.

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Louis Althusser:
o ressurgimento de
um desaparecido
Louis Althusser: MARCOS CASSIN

the resurgence of a Professor do Departamento de


Ciências Sociais Geo-história
(UNIMEP); especialista em Educação

missing thinker pela PUC/SP; mestre (UNIMEP) e


doutorando em Educação (Unicamp)
mcassin@unimep.br

RESUMO – Este artigo propõe a retomada da leitura da obra do filósofo Louis Al-
thusser e seus conceitos sobre o Estado, ideologia, filosofia, marxismo, estrutura-
lismo, intelectual orgânico, filosofia e política, a materialidade da ideologia, Apa-
relhos Ideológicos de Estado e a aproximação do seu pensamento com o do ita-
liano Antonio Gramsci. Este retorno indica a contribuição que Louis Althusser
pode dar na análise das relações entre os processos sociais amplos e os resultados
amplos dos processos educacionais que atualmente o país vive.
Palavras-chave: Althusser, Louis – Estado – ideologia – marxismo.
ABSTRACT – This paper suggests the re-reading of the philosopher Louis Althusser
and of some of his concepts: the State, ideology, Marxism, structuralism, the or-
ganic intellctual, philosophy and politics, the materiality of ideology, ideological
apparatus of the State, including the proximity of his thinking to that of the Italian
Antonio Gramsci. This coming back points to the contribution that Louis Althus-
ser can give to the analysis of the relationships between the wide social processes
and the wide results of the educational processes that Brazil is living today.
Keywords: Althusser, Louis – State – ideology – marxism.

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L ouis Althusser, desaparecido em 1980, reaparece na década


de 90 em virtude de sua morte em 1990 e da publicação de
suas duas autobiografias lançadas em 1992, a primeira escrita
em 1976, intitulada Os Fatos, a segunda, em 1985, com o título O Fu-
turo Dura Muito Tempo.1
Ao nos referirmos ao desaparecimento de Althusser, o fazemos
em decorrência do assassinato de sua esposa, em meio a uma das crises
profundas de depressão do filósofo. Althusser não foi a julgamento
pelo crime que cometeu, beneficiado que foi pelo artigo 64 do Código
Penal francês, que o classificou em estado de não-responsabilidade ju-
rídico-legal.
Esse veredicto o levou diretamente à internação num hospital psi-
quiátrico e à condenação pública pelo resto de sua vida. Mesmo curado
de mais uma crise de sua doença, a opinião pública jamais o absolveu,
pois nunca soube distinguir a “loucura” dos estados agudos da “doença
mental”, qualificando-o como “louco” e condenando-o a ser um desa-
parecido, expressão que Foucault usou para designar o louco.
Sua condição de desaparecido não se restringiu à sua pessoa fí-
sica, mas também à do filósofo, do militante, do pensador marxista e
de tudo que representou nas décadas de 60 e 70.
A importância do reaparecimento de Althusser devolve à obra
deste autor a relevância que de fato tem e aponta contribuições que
seus escritos podem dar na compreensão das transformações ocorridas
na sociedade nos dias de hoje.
Louis Althusser2 nasceu em 16 de outubro de 1918, na cidade de
Argel, no distrito de Birmandrëis. Seu pai, Charles Althusser,3 era ban-
cário: iniciou a carreira como contínuo e, ao se aposentar, ocupava a
vice-diretoria do banco na cidade de Lyon. Sua mãe, Luciene Berger
era professora, mas ao se casar deixou de exercer a profissão para cui-
dar dos filhos. A família de Louis Althusser se completava com sua
irmã mais nova, Georgette.
Althusser viveu sua infância na capital da Argélia, de lá mudan-
do-se para Marseille, em 1930, em função de seu pai haver recebido
uma promoção e ter sido transferido. Nesta cidade ele fez seu curso se-
cundário no Liceu Saint-Charles, e lá vivendo até 1936.

1 Foram publicadas juntas pela Companhia das Letras.


2 Louis Althusser recebeu o mesmo nome de seu tio, morto em combate na Primeira Guerra Mundial,
noivo de sua mãe.
3 Charles, também combatente, em uma de suas licenças assumiu o compromisso do irmão, casando-se
com Luciene.

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De Marseille mudou-se para Lyon (novamente seu pai tinha sido


transferido), onde fez o curso preparatório, no Liceu do Parc, para a
Escola Normal Superior. Nesse período participou dos círculos cató-
licos conservadores da cidade. Em agosto de 1939 passou no concurso
de ingresso para a Escola Normal Superior, em Paris. Apesar de apro-
vado, Althusser não ingressou devido a convocação para servir, como
soldado, na guerra que havia iniciado.
Como soldado, deslocou-se para o norte da França e lá foi feito
prisioneiro e levado para a Alemanha, onde permaneceu até o final do
conflito em um campo de concentração. Na prisão tomou contato
com o marxismo. Quem o converteu foi o francês Pierre Corrèges.
Ao ser libertado, voltou para Paris e ingressou na Escola Normal
Superior, seis anos depois da aprovação no concurso. Nessa instituição
trabalhou mais de trinta anos como professor e secretário. E foi nela que
conheceu Georges Lesèvre, um ex-aluno de Lyon. Assim como ele,
Lesèvre atrasara-se no ingresso da escola, por ter participado da resis-
tência francesa durante a guerra. Através dele, Althusser entra na juven-
tude republicana e, também por meio dele, conhece Hélène, socióloga
e militante comunista que participara igualmente da resistência francesa
e viria a ser sua esposa.
Com Hélène, oito anos mais velha do que ele, Althusser vai ter
sua primeira relação sexual aos 29 anos, experiência que acaba por
levá-lo a uma profunda depressão, a primeira de sua doença mental, fa-
zendo-o passar alguns meses internado no hospital Sainte-Anne, em tra-
tamento à base de eletrochoque: sofria de psicose maníaco-depressiva.
Em 1948 entra para o Partido Comunista. Esse ano também é
marcado pela sua aprovação no exame de agrégation da Escola Nor-
mal Superior, tornando-se professor titular. É na Escola Normal que
sua vida intelectual foi construída e desenvolvida, como também en-
cerrada, com o trágico episódio de 1980, o assassinato de Hélène.
Althusser conheceu e conviveu na França com grandes pensado-
res de sua época. Foi aluno de Desanti e Merleau-Ponty, polemizou
com Sartre, foi amigo de Lacan, Foucault e Poulantzas, inspirou-se em
Cavaillès e Canguilhem, entre outros. Já em seus primeiros anos de es-
cola, era grande conhecedor do pensamento de Descartes, Malebran-
che, Pascal, Platão e um pouco de Hegel, Kant, Bachelard, Rousseau,
Spinosa e Bergson. Quanto a Marx, ao entrar na escola, tinha pouco
conhecimento, mas em pouco tempo passou a ser grande conhecedor
de sua obra.
Em 1962 passou a colaborar no periódico La Pensée. Com a pu-
blicação, em 1965, dos livros Por Marx e Ler O Capital, passa a ser re-

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conhecido como pensador marxista. Entre outros textos, publicou


“Freud e Lacan” (1965), “Lenin e a filosofia” (1968), “Aparelhos ideoló-
gicos de Estado” (1970), “Resposta a John Lewis” (1972), “Elementos
de autocrítica” (1973), “Posições” e “Marx e Freud” (1976); em 1978
escreveu uma severa crítica ao Partido Comunista Francês, “O que não
pode mais durar no PCF ”. Também é autor de duas autobiografias, só
publicadas após sua morte, em 1990: Os Fatos (1976) e O Futuro
Dura Muito Tempo (1985), esta escrita após o assassinato de sua es-
posa.
Sua obra teve grande repercussão na França e em vários países,
principalmente em países lantino-americanos. A influência de Althus-
ser na América Latina se deu, em grande parte, na primeira metade da
década de 60 através de uma de suas alunas, a chilena Marta Harne-
cker, que elaborou em Cuba um manual de materialismo histórico
que, apesar de não ser muito bom, na afirmação de Althusser, era a
única obra do gênero no continente. Sua tiragem de aproximadamen-
te dez milhões de exemplares serviu como importante instrumento de
formação teórica e política para milhares de militantes.
Essa influência fez de Althusser alvo de elogios, como o de ser um
grande pensador marxista, e ainda de críticas severas, como a de pos-
suir filiações a correntes filosóficas como a estruturalista e a funciona-
lista. Dentre as várias identificações filosóficas, a estabelecida com o es-
truturalismo é a que mais criou polêmica. Ela deve ser entendida numa
conjuntura em que o marxismo achava-se ameaçado, sobretudo depois
de 1956, data do XX Congresso do PCUS – período em que os limites
do Estado soviético passaram a ser o centro dos debates interno e ex-
ternos à União Soviética.
Althusser participou desse debate e sua contribuição deve ser en-
tendida em dois momentos distintos. No primeiro, que culmina em
1965, tenta demostrar o vigor científico do materialismo histórico, em
um momento histórico em que esta cientificidade estava encoberta por
ideologias. Para tal conclusão, utilizou-se da categoria de ruptura de Ba-
chelard e este procedimento levou ao exagero de opor a ciência à ideo-
logia, resultando na secundarização da luta de classes em suas análises.
O segundo momento inicia-se por volta de 1967, quando passa
a definir a filosofia como em última instância política da teoria, e não
mais como “teoria das práticas teóricas”, como havia definido no pe-
ríodo anterior. Essa nova classificação faz com que a luta de classes re-
torne a ser uma categoria fundamental no pensamento althusseriano.
Esse debates realizados por Althusser não se limitaram aos cír-
culos acadêmicos, mas, como membro do Partido Comunista, ele os

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levou também a seu interior, criticando a teoria oficial do PCF. Quanto


a essas críticas, François Dosse afirma:

(...) nem por isso Louis Althusser deixa de se apresen-


tar, aos olhos de muitos, como um salvador supremo
do marxismo. Ele tenta levar a bom termo um empre-
endimento difícil, uma verdadeira aposta que equivale
a colocar o marxismo no centro da racionalidade
contemporânea ao preço de seu desligamento da
práxis, da dialética hegeliana, a fim de suplantar a vul-
gata stalinista em uso, fundada num economicismo
mecânico.
Para realizar tal deslocamento, Althusser apóia-se no
estruturalismo e apresenta o marxismo o único capaz
de realizar a síntese global do saber e de instalar-se no
âmago do paradigma estrutural.4

A relação de Althusser com o estruturalismo não é unânime. Al-


guns, como Walter J. Evangelista, entendem que essa aproximação foi
uma tática para combater o dogmatismo stalinista e “certas antropo-
logias existencialistas e (...) filosofias do homem”. Para Evangelista, tal
aproximação não significou a adesão ao estruturalismo e nem o aban-
dono do marxismo:

Para espanto geral e pânico de alguns, vai mais longe:


parece passar para o lado dos estruturalistas. Na reali-
dade, aproveita-se, momentaneamente, dessa moda
para desvencilhar o marxismo de velhas filosofias e
promover um rejuvenescimento de alcance mundial,
que se tornou conhecido como um (re)começo do
Materialismo Dialético.5

Essa tese de Evangelista, justifica-se também na própria obra de


Althusser. Na autobiografia O Futuro Dura Muito Tempo escreve:

E quando veio a moda da ideologia “estruturalista”,


que apresentava a vantagem de romper com todo psi-
cologismo e historicismo, pareci seguir o movimento.
Não descobríamos em Marx a idéia não de combina-
tória (de elementos quaisquer), mas de combinação de
elementos distintos apropriados a constituir a unidade
de um modo de produção? (...) Ora, desde o início ha-

4 DOSSE, 1993, p. 329.


5 EVANGELISTA, in ALTHUSSER, 1991, p. 9.

impulso 115 nº24


Impulso24.book Page 116 Thursday, October 2, 2003 8:40 AM

víamos insistido na diferença estrutural entre combi-


natória (abstrata) e combinação (concreta), o que, jus-
tamente, era o problema. Mas quem percebeu isso?
Ninguém prestou atenção nessa diferença. Acusaram-
me, no mundo inteiro, de estruturalismo, de justificar
a imobilidade das estruturas na ordem estabelecida e a
impossibilidade da prática revolucionária, quando eu
tinha, no entanto, mais que esboçado, a propósito de
Lenin, uma teoria da conjuntura.6

Outra crítica a Althusser é quanto a ele trata-se de um autor vin-


culado à teoria funcionalista. Em Aparelhos Ideológicos de Estado (AIE),
defende-se:

A crítica que mais freqüentemente foi dirigida contra


meu ensaio de 1969/1970 sobre AIE foi de funciona-
lismo. Quiseram ver, em minhas notas teóricas, uma
tentativa de recuperar, em favor do marxismo, uma in-
terpretação que definisse os órgãos somente por suas
funções imediatas, fixando, desse modo, a sociedade
no interior de certas instituições ideológicas, encarre-
gadas de exercer funções de submetimento em última
análise, uma interpretação não dialética, cuja lógica
mais profunda excluísse toda a possibilidade de luta de
classes.
Penso, no entanto, que não leram, com suficiente aten-
ção, as notas finais de meu ensaio, em que sublinhava
o caráter abstrato de minha análise e punha explicita-
mente no centro de minha concepção a luta de clas-
ses.7

Quanto à crítica de formular uma teoria anti-humanista, Althus-


ser afirma:

Marx havia fundado seu pensamento na recusa de


todo fundamento filosófico no homem, na natureza
do homem, esse Marx que havia escrito: “Não parto
do homem, mas do período histórico considerado”,
esse Marx que havia escrito: “A sociedade não se com-
põe de indivíduos, mas de relações” etc. Isolado. Eu o
estava de fato, em filosofia e em política, ninguém,
nem mesmo o Partido, que caía na esparrela do hu-
manismo socialista ingênuo, não querendo reconhecer

6 ALTHUSSER, 1993, pp. 165-166.


7 ALTHUSSER, 1987, p. 109.

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que o anti-humanismo teórico era o único a autorizar


um real humanismo prático.8

A contribuição de Althusser para o desenvolvimento do marxis-


mo foi marcada, também, pela leitura que fez da obra de Marx. Se-
parando-a em obras do jovem Marx, carregada de influência hegelia-
na, e nas obras posteriores, estas marxistas de fato, obras escritas a par-
tir do método materialista histórico.
Segundo Althusser, A Ideologia Alemã, de Marx, apresenta uma
teoria explícita da ideologia, mas não é uma teoria da ideologia mar-
xista, pois está carregada de uma herança hegeliana, portanto, idealis-
ta. Para ele, “A Ideologia é uma ‘representação’ da relação imaginária
dos indivíduos com suas condições reais de existência”.9
Ainda no livro Aparelhos Ideológicos de Estado, Althusser vai me-
lhor definir sua compreensão de ideologia:

(...) não são as suas condições reais de existência, seu


mundo real que os “homens” “se representam” na
ideologia, o que é nelas representado é, antes de mais
nada, a sua relação com as suas condições reais de exis-
tência. É esta relação que está no centro de toda repre-
sentação ideológica, e portanto imaginária do mundo
real. É nesta relação que está a “causa” que deve dar
conta da deformação imaginária da representação ide-
ológica do mundo real.10

Uma segunda tese dele é a e que a ideologia possui uma existên-


cia material na prática ou práticas nos Aparelhos Ideológicos de Esta-
do:

(...) vejamos o que se passa com os indivíduos que vi-


vem na ideologia, isto é, numa representação do mun-
do determinada (religiosa, moral etc.) cuja deformação
imaginária depende de sua relação imaginária com
suas condições de existência, ou seja, em última ins-
tância das relações de produção e de classe (ideologia
= relação imaginária com as relações reais). Diremos
que esta relação imaginária é em si mesma dotada de
uma existência material.11

8 ALTHUSSER, 1993, p. 166.


9 ALTHUSSER., 1987, p. 85.
10 Ibid., p. 87.
11 Ibid., pp. 89-90.

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Em outras palavras, a ideologia se materializa nos atos dos indiví-


duos, para demostrar sua tese, utiliza a religião como exemplo da ma-
terialidade da ideologia:

(...) a existência das idéias de sua crença é material,


pois suas idéias são seus atos materiais inseridos em
práticas materiais, reguladas por rituais materiais, eles
mesmos definidos pelo aparelho ideológico material
de onde provêm as idéias do dito sujeito (...)
As idéias desaparecem enquanto tais (enquanto dota-
das de uma existência ideal, espiritual), na medida
mesma em que se evidenciava que sua existência esta-
va inscrita nos atos das práticas reguladas por um apa-
relho ideológico. O sujeito portanto atua enquanto
agente do seguinte sistema (enunciado em sua ordem
de determinação real): a ideologia existente em um
aparelho ideológico material, que prescreve práticas
materiais regulares por um ritual material, práticas es-
tas que existem nos atos materiais de um sujeito, que
age conscientemente segundo sua crença.12

No que se refere à ideologia em Althusser, a noção de sujeito é


central e enuncia duas teses simultâneas, “1– só há prática através de
e sob uma ideologia. 2– só há ideologia pelo sujeito e para o sujeito”.13
A partir destas duas teses o autor conclui: “A Ideologia interpela os
indivíduos enquanto sujeito”.14 A partir dessa conclusão, caracteriza a
função da ideologia como constituidora de indivíduos concretos em
sujeitos e de seu efeito elementar, o de impor (sem parecer que o faz,
pois se trata de “evidências”)

(...) as evidências como evidências, que podemos dei-


xar de reconhecer e diante das quais, inevitável e na-
turalmente, exclamamos (em voz alta, ou no “silêncio
da consciência”): “é evidente! É exatamente isso! É
verdade!”.
É nesta reação que se exerce a função de reconheci-
mento ideológico enquanto tal (sendo o desconheci-
mento a sua função inversa).15

12 ALTHUSSER, 1987, pp. 91-92.


13 Ibid., p. 93.
14 Ibid.
15 Ibid., pp. 94-95.

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Ao colocar que a ideologia interpela o indivíduo, supõe a exis-


tência de um outro Sujeito, o que interpela o sujeito interpelado, ou se-
ja, o Sujeito com letra maiúscula é o interpelador, e o com letra mi-
núscula é o interpelado que se reconhece no Sujeito.
Então formula um quádruplo sistema de interpelação, de sub-
missão ao Sujeito, de reconhecimento universal. O sistema comporta:
os indivíduos são interpelados como sujeitos; a submissão do sujeito ao
Sujeito; os sujeitos se reconhecem mutualmente e em relação ao Su-
jeito; e tudo funciona bem no reconhecimento dos sujeitos:

(...) envoltos neste quádruplo sistema de interpelação,


de submissão ao Sujeito, de reconhecimento universal
e de garantia absoluta, os sujeitos “caminham”, eles
“caminham por si mesmos” na imensa maioria dos ca-
sos, com exceção dos “maus sujeitos” que provocam a
intervenção de um ou de outro setor do aparelho (re-
pressivo) do Estado. Mas a imensa maioria dos (bons)
sujeitos caminha “por si”, isto é, entregues à ideologia
(cujas formas concretas se realizam nos Aparelhos
ideológicos do Estado). Eles se inserem nas práticas
governadas pelos rituais dos AIE.16

Para melhor entendermos sua compreensão de ideologia, faz-se


necessário buscarmos alguns elementos de sua elaboração sobre o Es-
tado. A contribuição de Althusser nessa discussão desloca a questão da
instrumentalidade (o Estado como instrumento de dominação de uma
classe) para a questão de seu funcionamento. O caráter do aparelho de
Estado e sua posição na luta de classes está em seu funcionamento, re-
pressivo ou ideológico. O Estado é repressivo por sua “natureza”, seu
produto é uma relação de subordinação entre classes.

(...) a “teoria marxista-leninista” de Estado toca o es-


sencial, e não se trata por nenhum momento de duvi-
dar que está ai o essencial. O aparelho de Estado que
define o Estado como força de execução e de inter-
venção repressiva “a serviço das classes dominantes”,
na luta de classes da burguesia e seus aliados contra o
proletariado é o Estado, e define perfeitamente a sua
“função” fundamental.17

16 ALTHUSSER, 1987, pp. 103.


17 Ibid., p. 63.

impulso 119 nº24


Impulso24.book Page 120 Thursday, October 2, 2003 8:40 AM

Em sua exposição sobre o Estado, Althusser argumenta que, ape-


sar da teoria marxista de Estado dar conta da essência de seu papel na
sociedade, ele é uma realidade mais complexa do que o exposto teo-
ricamente pelos clássicos do marxismo, apesar de suas práticas demos-
traram a compreensão dessa complexidade. Na tentativa de contribuir
para o avanço da teoria marxista-leninista de Estado, propõe:

Para fazer avançar a teoria do Estado é indispensável


ter em conta não somente a distinção entre poder de
Estado e aparelho de Estado, mas também outra rea-
lidade que se manifesta junto ao aparelho (repressivo)
do Estado, mas que não se confunde com ele. Chama-
remos esta realidade pelo seu conceito: os aparelhos
ideológicos do Estado.18

Ao fazer tal distinção entre aparelhos repressivos de Estado, que


funcionam predominantemente através da violência e secundariamente
através da ideologia, e aparelhos ideológicos de Estado, que funcionam
predominantemente através da ideologia e secundariamente através da
violência, Althusser retoma, como ele mesmo admite, o conceito de Es-
tado em Gramsci:

Ao que saibamos, Gramsci é o único que avançou no


caminho que retomamos. Ele teve a idéia “singular”
de que o Estado não se reduzia ao aparelho (repressi-
vo) de Estado, mas compreendia, como dizia, um cer-
to número de instituições da “sociedade civil: a Igreja,
as Escolas, os sindicatos etc. Infelizmente Gramsci não
sistematizou suas intuições, que permaneceram no es-
tado de anotações argutas mas parciais. (Cf. Gramsci:
Oeuvres Choisies, Ed. Sociales, pp. 290, 291 (nota 3),
293, 295 e 436; e Lettres de la Prison, Ed. Sociales, p.
313).19

A concepção de Estado em Althusser está carregada de uma he-


rança gramsciana; sua noção de Estado ampliada coloca as instituições
sociais (aparelhos ideológicos de Estado), assim como Gramsci, como
lugares da luta de classes que buscam a direção da sociedade.

(...) os Aparelhos ideológicos de Estado podem não


apenas ser os meios mas também o lugar da luta de

18 ALTHUSSER, 1987, p. 67.


19 Ibid.

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classes, e freqüentemente de formas encarniçadas da


luta de classes. A classe (ou aliança de classes) no poder
não dita tão facilmente a lei nos AIE como no aparelho
(repressivo) do Estado, não somente porque as antigas
classes dominantes podem conservar durante muito
tempo fortes posições naqueles, mas porque a resistên-
cia das classes exploradas pode encontrar o meio e a
ocasião de expressar-se, utilizando as contradições exis-
tentes ou conquistando posições de combate.20

Ainda sobre os aparelhos ideológicos de Estado como lugar da


luta de classes, no mesmo texto afirma:

A luta de classes se expressa e se exerce portanto nas


formas ideológicas, e portanto se exerce também nas
formas ideológicas dos AIE. Mas a luta de classes ultra-
passa amplamente estas formas, e é porque ela as ul-
trapassa que a luta das classes exploradas pode se exer-
cer nos AIE, voltando a arma da ideologia contra as
classes no poder.
Isto em função do segundo princípio: a luta de classes
ultrapassa os AIE porque ela não tem suas raízes na ide-
ologia, mas na Infra-estrutura, nas relações de produ-
ção, que são relações de exploração, e que constituem
a base das relações de classe.21

As aproximações com as elaborações teóricas de Gramsci não se li-


mitaram à categoria de Estado ampliado; elas também deram-se em ou-
tras categorias e conceitos. Como em sua tese “a ideologia tem uma exis-
tência material”, esta já aparecia no pensamento do filósofo italiano:

Tornam-se evidente, assim, as razões que fazem impos-


sível a separação entre a chamada filosofia “científica”
e a filosofia “vulgar” e popular, que é apenas um con-
junto desagregado de idéias e de opiniões.
Mas neste ponto, coloca-se o problema fundamental
de toda concepção do mundo, de toda filosofia que se
transformou em um movimento cultural, em uma “re-
ligião”, em uma “fé”, isto é, que produziu uma ativida-
de prática e uma vontade, nas quais esteja contida
como “premissa” teórica implícita (que é uma “ideolo-
gia”, podemos dizer, desde que se dê ao termo “ideo-
logia” o significado mais alto de uma concepção do

20 ALTHUSSER, 1987, pp. 71-72.


21 Ibid., p. 72.

impulso 121 nº24


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mundo, que se manifesta implicitamente na arte, no


direito, na atividade econômica, em todas as
manifestações da vida individual e coletivas).22

A relação que faz da filosofia com a política, principalmente no


segundo momento de sua produção teórica, é outro ponto que vai ao
encontro do pensamento de Gramsci:

Tentei conciliar essa crítica radical da filosofia como


impostura ideológica (...) com a minha experiência da
prática filosófica, e cheguei primeiramente a fórmulas
do tipo “a filosofia representa a ciência junto à política
e a política junto à ciência” e, mais tarde, “a filosofia é
‘em última instância’ luta de classes na teoria”. (...) Vê-
se que, de um jeito ou de outro, e sem então conhecer
Gramsci, eu vinculava estreitamente filosofia e políti-
ca...23

Em nota de rodapé de seu texto “Resposta a John Lewis”, Al-


thusser defini melhor a afirmação de que a filosofia é, em última ins-
tância, luta de classes.

Quero precisar bastante: em última instância; para


que não me façam dizer o que eu não disse. Eu digo:
a filosofia é, em última instância, luta de classe na te-
oria – e não; a filosofia é, pura e simplesmente, luta de
classes na teoria. Para orientar o leitor que poderia fi-
car desconcertado com essa fórmula, extremamente
condensada, dou aqui três indicações: 1º) por sua abs-
tração, sua racionalidade e sua sistematicidade, a filo-
sofia certamente figura “na” teoria, na vizinhança das
ciências, com as quais mantém relações específicas:
mas a filosofia não é (uma) ciência; 2º) ao contrário
das ciências, a filosofia mantém uma relação íntima
com a tendência de classe das ideologias que, em últi-
ma instância, são práticas e não pertencem à teoria (as
“ideologias teóricas” seriam, em última instância, des-
tacamentos das ideologias práticas na teoria); 3º) em
todas essas formulações, a expressão “em última ins-
tância” designa “a determinação em última instância”,
o aspecto principal, o “elo decisivo” da determinação:
implica, portanto, a existência de um ou vários aspec-
tos secundários, subordinados, superdeterminados, su-

22 GRAMSCI, 1986, p. 16.


23 ALTHUSSER, 1993, p. 152.

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perdeterminantes já que há outros. Assim, a filosofia


não é apenas luta de classes na teoria, nem as ideolo-
gias são apenas práticas: mas são “em última instân-
cia”. Talvez nem sempre se tenha apreendido o alcance
teórico da tese política de Lênin sobre o “elo decisi-
vo”.24

Outra aproximação ao pensamento gramsciano se refere à he-


gemonia ideológica como via de acesso para tomada do aparelho de
Estado: “Gramsci compreendeu muito bem, a hegemonia ideológica,
via de acesso para, simplesmente, tomar o aparelho de Estado – não
mediante seu cerco pela dita ‘sociedade civil’, mas mediante uma luta
política direta das organizações políticas operárias contra o próprio
aparelho de Estado”.25
Ainda sobre as aproximações de Althusser com Gramsci, pode-
mos citar uma passagem do texto “Marx e Freud”, no qual se refere
a Marx e Engels como intelectuais orgânicos do proletariado:

Marx e Engels não forjaram sua teoria de fora do mo-


vimento operário, mas dentro do movimento operá-
rio; não a partir de fora do proletariado e de suas po-
sições, mas a partir de dentro das posições e da prática
revolucionária do proletariado. Porque se haviam con-
vertido em intelectuais orgânicos do proletariado – e se
haviam convertido nisso por sua prática no movimen-
to operário, sem deixar de ser intelectuais – é que pu-
deram conceber sua teoria.26

Ao se utilizar do conceito de intelectual orgânico, teórico que toma


posição de classe, Althusser aponta a falsa compreensão da neutralidade
no conhecimento, crítica à teoria positivista do conhecimento:

(...) ver e compreender o que ocorre em uma sociedade


de classe é indispensável ocupar posições teóricas de
classe proletárias – existe a simples constatação de que,
numa realidade conflituosa, como é uma sociedade
desse tipo, não se pode ver tudo a partir de todas as
partes, não se pode descobrir a essência dessa realidade
conflituosa, a não ser sob a condição de se ocuparem
determinadas posições no conflito e não outras, uma
vez que ocupar passivamente outras posições é deixar-se

24 ALTHUSSER, 1978, p. 17.


25 ALTHUSSER, 1993, p. 214.
26 ALTHUSSER, 1991, p. 82.

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arrastar pela lógica da ilusão de classe que se chama


ideologia dominante. Evidentemente, uma tal condi-
ção se choca contra toda a tradição positivista.27

A necessidade de se ocupar posições nos conflitos que hoje se


apresentam nos leva a crer que a recuperação do referencial althusse-
riano pode contribuir na compreensão do processo de rearticulação
do capitalismo em sua base econômica como também em sua supe-
restrutura.
Recolocar o seu pensamento é também reafirmar o marxismo
como método de investigação atual. Segundo o professor Dermeval
Saviani,“o desmoronamento dos regimes do leste europeu, em lugar
de significar a superação de Marx, constitui, ao contrário, um indica-
dor de sua atualidade. Levando-se em conta que um filosofia é viva e
insuperável enquanto o momento histórico que ele representa não for
superado”.28
Portanto, a partir de Althusser, abre-se mais uma possibilidade de
compreender o complexo quadro que se apresenta hoje, uma totali-
dade que se rearticula com o objetivo de reprodução e acumulação do
capital. Sendo que o processo de reprodução realiza-se necessariamen-
te em sua base econômica, reproduzindo as relações sociais de produ-
ção, ou seja, reproduzindo as relações que os indivíduos têm com os
meios de produção. Mas para garantir essa reprodução, as classes do-
minantes também têm que reproduzir suas idéias como sendo domi-
nantes na sociedade. Segundo Marx:

Os pensamentos da classe dominante são também, em


todas as épocas, os pensamentos dominantes, ou seja,
a classe que tem o poder material dominante numa
dada sociedade é também a potência dominante espi-
ritual. A classe que dispõe dos meios de produção ma-
terial dispõe igualmente dos meios de produção inte-
lectual, de tal modo que o pensamento daqueles a
quem são recusados os meios de produção intelectual
está submetido igualmente à classe dominante. Os
pensamentos dominantes são apenas a expressão ideal
das relações materiais dominantes concebidas sob a
forma de idéias e, portanto, a expressão das relações
que fazem de uma classe a classe dominante; dizendo
de outro modo, são as idéias do seu domínio.29

27 ALTHUSSER, 1991, p. 81.


28 SAVIANI, 1991, p. 14.
29 MARX & ENGELS, 1980, pp. 55-56.

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Quanto à reprodução das idéias dominantes e sua manutenção


como tal, Althusser indica a escola como instrumento fundamental
para a reprodução da concepção de mundo burguesa e, ao mesmo
tempo que a põe como reprodutora da ideologia dominante, coloca-
a como meio e lugar da luta de classes, espaço em que se deve con-
quistar posições.
Essas questões nos levam para outras possibilidades de pesquisas
sobre o papel da escola no processo de participação do Brasil na
globalização do mercado e da implementação da política neoliberal.
Quanto ao papel da escola nesse processo, os debates e as pro-
duções literárias vêm apresentando-se, em geral, a partir da perspec-
tiva econômica: análises do papel que a escola tem que cumprir na for-
mação do novo trabalhador para dar conta de responder às exigências
do desenvolvimento das forças produtivas.
O seu quadro teórico nos possibilita pensar esse papel a partir da
perspectiva político-ideológica, entendendo a escola como Sujeito in-
terpelador, mas, ao mesmo tempo, como espaço de luta de Sujeitos in-
terpeladores. Portanto, aponta para a necessidade de construirmos Su-
jeitos que interpelem e sejam reconhecidos, pelos sujeitos, como alter-
nativa ao projeto neoliberal e ao próprio capitalismo.
Desse modo, para fazer incursões nesse campo de análise da re-
alidade de hoje, a partir do método marxista, há de se considerar a
obra de Althusser, não como verdade absoluta, mas de um pensador
que deu grande contribuição ao marxismo e à filosofia em geral. Re-
tomar Althusser é também recuperar a contribuição que ele, como ou-
tros, deram e podem continuar dando à análise do papel da educação
na sociedade. Esse referencial é importante para estudos que se pro-
põem à análise “das grandes relações entre processos sociais amplos e
resultados amplos dos processos educacionais”.30

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALTHUSSER, Louis. Aparelhos Ideológicos de Estado. 3ª ed. Rio de
Janeiro: Edições Graal, 1987.
___________. Freud e Lacan – Marx e Freud. 3ª ed. Rio de Janeiro:
Edições Graal, 1991.
___________. O Futuro Dura muito Tempo. São Paulo: Companhia
das Letras, 1993.
30 SILVA, 1992, p. 14.

impulso 125 nº24


Impulso24.book Page 126 Thursday, October 2, 2003 8:40 AM

___________. Lênin e a Filosofia. São Paulo: Edições Mandacaru,


1989.
___________. Resposta a John Lewis, in: Posições-1. Rio de Janeiro:
Edições Graal, 1978.
DOSSE, François. História do Estruturalismo. Campinas: Ensaio,
1993.
GRAMSCI, Antonio. Conçepção Dialética da História. 6ª ed. Rio
Janeiro: Civilização Brasileira, 1986.
MARX, Karl. Contribuição à Crítica da Economia Política. 2ª ed. São
Paulo: Martins Fontes, 1983.
___________. A Ideologia Alemã. 4ª ed. Lisboa: Editorial Presença,
1980.
SAVIANI, Dermeval. Educação e Questões da Atualidade. São Paulo:
Livros do Tatu/Cortez, 1991.
SILVA, Tomaz Tadeu da. O que Produz e o que Reproduz em Educa-
ção. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992.

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Impulso24.book Page 127 Thursday, October 2, 2003 8:40 AM

Desenvolvimento
Econômico e Regional:
uma reflexão sobre
Piracicaba e região
Economic Regional Development:
a reflection on the city
Piracicaba and its region LILIA A. DE TOLEDO PIZA MARTINS
Mestre em Economia Política e dou-
toranda em Ciências Socias (PUC-SP);
RESUMO – O presente texto diz respeito ao desenvolvimento da cidade de Pira- professora de Economia (UNIMEP)
cicaba nos aspectos socioeconômicos. Além disso, introduz o leitor a respeito do lamartin@unimep.br
desenvolvimento socioeconômico de algumas cidades próximas a Piracicaba e dis-
cute a razão de algumas dessas cidades terem um desenvolvimento mais rápido,
como Piracicaba, na década de 70. Também procura explanar sobre as perspecti-
vas do desenvolvimento da cidade de Piracicaba nos próximos anos e suas con-
seqüências regionais. Vale ressaltar que o tipo de desenvolvimento a que nos re-
ferimos é a possível implantação da Hidrovia Tietê-Paraná, que pode colocar essa
cidade como a porta de entrada do Mercosul.
Palavras-chave: desenvolvimento regional – meio ambiente – políticas públicas.
ABSTRACT – This text is concerned with the development of the city of Piracicaba,
in its economic and social aspects. Moreover, it introduces the reader to the eco-
nomics and social development of some cities near to Piracicaba and discusses why
these cities had a more accelerated development than Piracicaba in the decade of
1970. We also search to explain about the perspectives of the development in Pi-
racicaba in the next years and its regional consequences. It is important to explain
that the type of development we are discussing is related to the possible imple-
mentation of the Tietê-Paraná Waterway, that can put Piracicaba at the front door
of Mercosul.
Keywords: regional economic development – environment – public policies.

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INTRODUÇÃO

P iracicaba, cujo nome indígena significa “lugar onde o peixe


pára, ajunta, chega e passa”, é um município paulista bastante
antigo, cujo crescimento, desde seu início, deu-se em boa me-
dida impulsionado pela agroindústria canavieira. Na década de 70,
como diversos municípios do interior de São Paulo, Piracicaba passou
por um processo de diversificação e modernização industrial, expansão
agrícola e do setor terciário, tendo avançado, também, na urbanização.
Contudo, o crescimento do município, comparado ao de outros,
foi bem inferior. Americana, Santa Bárbara D’Oeste e Sumaré, por
exemplo, face à localização nas proximidades das Rodovias Anhangüe-
ra e Bandeirantes, receberam maior volume de investimento e maior
contingente populacional.
Nos últimos tempos, dada a situação econômica mais geral do
país e também a sua localização geográfica, Piracicaba vem enfrentan-
do dificuldades para sua expansão, chegando até mesmo a ser consi-
derada por alguns como cidade “fim de linha”.
Entretanto, há grandes perspectivas e expectativas de expansão
para o município, bem como para os demais da região, em decorrên-
cia de projetos existentes para a região. Um deles é o de navegabilidade
do Rio Piracicaba, integrando-o à Hidrovia Tietê-Paraná e transfor-
mando a região de Piracicaba em porta de entrada do Mercosul.
Considerando a existência e a possível viabilização desses proje-
tos, este artigo tem como objetivo central desenvolver uma reflexão
sobre as perspectivas de desenvolvimento de Piracicaba e região, ten-
tando apontar os fatores atrativos que poderão oferecer para a locali-
zação de novas atividades econômicas. Cabe ressaltar que, apesar de o
trabalho referir-se mais especificamente a Piracicaba, entende-se que os
impactos dos projetos sobre esse município são, também, em pro-
porções diferentes, extensivos aos demais municípios da região.1

TEORIAS DA LOCALIZAÇÃO DAS


ATIVIDADES SOCIOECONÔMICAS
Segundo Ferreira, as chamadas teorias da Localização dividem-se
em dois grupos. O primeiro é composto pelas teorias que consideram
os mercados consumidores puntiformes, ou seja, os consumidores se
concentram em pontos discretos do espaço geográfico. O segundo,

1 Considera-se, neste trabalho, como região de Piracicaba os municípios que lhe fazem fronteira (Anhembi,
Charqueada, Conchas, Iracemápolis, Laranjal Paulista, Limeira, Rio Claro, Rio das Pedras, Saltinho, Santa
Bárbara D’Oeste, Santa Gertrudes, Santa Maria da Serra, São Pedro e Tietê) e ainda alguns próximos a ele,
como Santa Bárbara D’Oeste e Águas de São Pedro.

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por sua vez, é formado pelas teorias que consideram os consumidores


dispersos em áreas de mercado de diversos tamanhos.2
As contribuições das teorias do primeiro grupo são de Alfred
Weber e John H. Von Thünem, e as do segundo são de August Lösch,
Harold Hotelling, Tord Palander, Frank A. Fetter e Edgard M. Hoo-
ver, entre outros.3
É importante mencionar que os dois grupos contam com teorias
de características e pressupostos conceituais que os diferenciam entre
si. E são esses aspectos diferenciadores que permitem avaliar suas pos-
sibilidades de explicar a formação econômica das regiões.4
Para efeito deste trabalho de refletir sobre as perspectivas futuras
de desenvolvimento da região de Piracicaba, no momento, apesar da
existência de importantes teorias, será tratada apenas a teoria webe-
riana da Localização Industrial, classificada como pertencente ao pri-
meiro grupo.
Em relação as teorias desse grupo, é bom destacar que elas con-
centram-se na minimização dos custos de transporte. Não possuem
preocupação com a demanda para o produto final e não conduzem a
maiores reflexões com respeito à dependência das decisões locacionais
de uma empresa às decisões locacionais das demais. Além do mais, não
se preocupam com as conseqüências, por exemplo, da escala de pro-
dução planejada sobre a escolha do melhor local para se implantar
uma fábrica, nem com a possibilidade de mudança de insumos.5
Teoria Weberiana da Localização Industrial – O modelo webe-
riano de localização industrial apresenta três fatores essenciais, que
acabam por influenciar a decisão locacional. Podem ser agrupados em
fatores gerais de âmbito regional, que são o custo de transporte e o
custo da mão-de-obra, e um fator local formado por forças de aglo-
meração e desaglomeração.6
Segundo Ferreira, Weber, em seu modelo, supunha que as fontes
de matérias-primas eram locais conhecidos e em número limitado, da
mesma forma o seriam os mercados consumidores. Além disso, os
mercados constituiriam-se de pontos de espaço geográfico onde esta-
riam presentes os consumidores.7
2 Ferreira, Carlos M. de C. As teorias da localização e a organização espacial da economia. In: HADDAD,
et al., 1989, p. 68.
3 Ibid.
4 Ibid., p. 69. No trabalho de Ferreira são apresentadas algumas das características marcantes das teorias de
Localização de cada grupo.
5 Ibid.
6 Ibid., p. 78.
7 Ibid.

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O objetivo da teoria weberiana da Localização é responder onde


será localizada uma atividade industrial.
a) A orientação pelo transporte
Como observa Ferreira, os custos de transportes desempenham
papel importante na teoria da Localização weberiana, orientando a lo-
calização das indústrias. Além disso, observa ele:

Em uma situação em que os custos totais, exclusive os


custos de transporte, são iguais em todas as partes, o
local que fará resultar o máximo lucro para a firma
será onde for o menor custo de transporte. Essa con-
clusão, também, implica admitir que a demanda, para
a firma individual seja perfeitamente elástica em qual-
quer localização, sendo fixo o preço do produto.8

No modelo weberiano, segundo Ferreira, a importância dos cus-


tos de transporte tanto maior será quanto maior for a participação re-
lativa no custo total de produção e também quanto maior for a varia-
ção na relação custo de transporte/custo total de produção no espaço
geográfico em estudo. Ainda, quanto maior for o custo de transporte,
maior será o grau de dispersão das localizações. A dispersão será ainda
maior para uma indústria que produza um produto homogêneo em
condição de concorrência perfeita. Um outro fator que exerce influên-
cia na dispersão das atividades industriais é a demanda do produto, já
que os elevados custos de transporte agem como tarifa protetora para
as indústrias locais. As indústrias, além da demanda, podem ser orien-
tadas para as matérias-primas. Geralmente tais indústrias possuem as se-
guintes características: os custos totais de transporte entre os diferentes
locais variam com maior intensidade do que os outros custos; as ma-
térias-primas perdem peso físico durante o processo de produção; as ta-
rifas de transporte das matérias-primas brutas excedem ou se igualam
à tarifa de transporte relativa ao produto final. As firmas podem, tam-
bém, ser orientadas para o mercado quando o custo de transporte do
produto final for mais caro do que o das matérias-primas, o produto
for perecível e a demanda do consumidor flutuar intensamente.9
Segundo Ferreira, a orientação, tanto para o mercado como para
a fonte de matéria-prima, em decorrência do fator transporte pode ser
caracterizada pelo seguinte exemplo:10
8 Ibid., p. 94.
9 Ibid., pp. 94-95.
10 Ibid., p. 95.

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[Weber] Estabelece, então, por meio de algumas rela-


ções, as condições gerais que determinam quando uma
indústria será necessariamente, orientada, quer para o
mercado, quer para a matéria-prima. Cria-se, então, o
que denomina de “índice de matérias-primas”, o qual
é definido como “a proporção do peso da matéria-pri-
ma localizada, necessária à produção, com relação ao
peso do produto final, ou seja, Pm/Pp, onde Pm é o peso
da matéria-prima localizada a ser transportada, por
unidade do produto, e o Pp, o peso de uma unidade do
produto”. Ainda conforme Ferreira, Weber introduz,
além do mais, o conceito de peso locacional, definido
como o peso do produto mais o peso das matérias-pri-
mas localizadas, por unidade do produto, ou seja,
W1m = Wp + 1.Wn1m, onde W1m é o peso locacional
da atividade e Wp e W1nm são os pesos dos produtos
e das matérias-primas, por unidade do produto.

Assim, um “índice de matérias primas” maior do que a unidade


sugere uma orientação para que a atividade se instale onde se encontra
a matéria-prima, isto porque o peso da matéria-prima localizada ne-
cessária ao processo produtivo excede o peso do produto acabado.
Entretanto, se as matérias-primas ubíquas constituem uma parcela ex-
pressiva do peso do produto acabado, derivando em um peso do pro-
duto final maior do que o peso da matéria-prima localizada e, portan-
to um índice menor que as unidades, a indústria deve se localizar junto
ao mercado.11
Segundo Ferreira o “peso locacional”, de Weber, possui um valor
mínimo de 1, quando o “índice de matérias-primas” é zero, ou me-
lhor, o processo de produção somente utiliza ubiqüidades. O “peso lo-
cacional” aumenta com o crescimento do “índice de matérias-primas”.
Desta forma, as indústrias com alto “peso locacional” são atraídas para
a matéria-prima, e aquelas com baixo “peso locacional” próximo da
unidade, são atraídas pelo mercado. Assim, com o referido “peso lo-
cacional” Weber expressa que a “mobilidade” da indústria depende do
peso a ser transportado durante todo processo de produção.12
Além disso, Weber, conforme Ferreira, denomina matérias-pri-
mas puras as que não perdem peso durante o processo de produção,
de tal forma que o peso total do produto supera o peso da matéria-
prima, de modo que o “índice de matérias-primas”, no caso das ma-
11 Ibid., p. 96.
12 Ibid.

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térias-primas puras, será menor do que a unidade, e a indústria tende


a se localizar próximo do mercado. As matérias-primas brutas que per-
dem peso no processo produtivo tendem a orientar a localização da
produção junto à matéria-prima. Quando o “índice de matérias-pri-
mas” for maior que a unidade, o “peso locacional” será maior que
dois, e quando o peso da matéria-prima bruta utilizada nesse processo
de produção for igual ou mais que o peso do produto final, mais o
peso das outras matérias-primas localizadas – que também entram nes-
se processo de produção –, a produção se localizará junto à fonte da-
quela matéria-prima.13 No máximo, a localização se dará junto a uma
fonte de matéria-prima ou junto ao mercado.
b) A orientação pela mão-de-obra
Weber, como expressa Ferreira, após a avaliação dos custos de
transporte, analisa os efeitos do custo da mão-de-obra, seu segundo fa-
tor de localização regional. Admite que exista um local onde a mão-
de-obra seja mais barata e analisa a influência desse fator sobre a lo-
calização no ponto de custo total de transporte mínimo.14
A idéia principal,

É que os centros, onde os custos da mão-de-obra se-


jam mais favoráveis para os produtos, atraem as indús-
trias do ponto de custos totais de transportes mínimos
para esses pontos onde a mão-de-obra é mais barata.
Esta reorientação das indústrias somente ocorre, caso
o montante economizado com a mão-de-obra exceda
o custo adicional de transporte que onera a empresa,
quando ele sai do ponto de custo mínimo de transpor-
tes.15

Na orientação pela mão-de-obra, segundo Ferreira, a atividade


produtiva será atraída no sentido da localidade em que o custo da
mão-de-obra seja mais favorável.16
A partir da localização da firma próxima à mão-de-obra, abre-se
a possibilidade de que certas matérias-primas, que anteriormente não
ofereciam vantagens para a exploração, possam ser vantajosas a partir
daí.17
Weber, segundo Ferreira,
13 Ibid., p. 96.
14 Ibid., p. 99.
15 Ibid., p. 95.
16 Ibid., p. 100.
17 Ibid., p. 101.

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Estabelece que a “força de atração” exercida pelo local


onde o custo de mão-de-obra é mais favorável depen-
de da proporção do custo da mão-de-obra da indús-
tria, com relação ao peso do produto, repetindo seu
raciocínio com relação às indústrias orientadas pelo
transporte. O custo da mão-de-obra por unidade do
produto se denomina “índice de custo de mão-de-
obra”. O autor afirma, ainda, que “o deslocamento de
uma indústria para o ponto de custo de mão-de-obra
mais favorável dependerá da combinação de “índice
de custo de mão-de-obra” com o “peso locacional”,
ou seja, da proporção do custo da mão-de-obra com
relação ao “peso locacional”, que se denomina coefi-
ciente de mão-de-obra.18

c) Fatores de aglomeração e desaglomeração


Os fatores transportes e mão-de-obra estimulam a distribuição
das indústrias sobre o espaço geográfico, fixando-as em locais de custo
mínimo regional.
Conforme Ferreira, os fatores de aglomeração tendem a reunir
as indústrias concentrando-as em alguns pontos do espaço geográfico
e os desaglomerativos tendem a dispersá-las. Os fatores que contribu-
em para aglomeração das indústrias causam-lhe certas economias de
custos básicos, em decorrência da proximidade a outras indústrias au-
xiliares, a melhores comunicações com o mercado etc. Já o fator de-
saglomerativo principal é a chamada “renda da terra”, que cresce com
o aumento da concentração das indústrias em um referido local.19
Com relação à teoria weberiana da Aglomeração e Desaglome-
ração, Ferreira observa que ela

Não analisa os fatores técnicos que levam à aglomera-


ção industrial com o mesmo nível de detalhes com que
analisa os fatores técnico-locacionais relacionados com
o custo de transporte e de mão-de-obra. Ele considera
que as economias de aglomeração consistem em mui-
tos fatores, e bastante heterogêneos.

PROJETOS DO GOVERNO DO ESTADO


A população de Piracicaba, segundo o recenseamento de 1991,
é de 282.492 habitantes e sua taxa de crescimento anual na década de
80 foi de 1,34% a.a. A população atualmente é estimada em 300.500
18 Ibid., pp. 101-102.
19 Ibid., pp. 102-103.

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pessoas; a área urbana, com apenas 12% da área total, abriga cerca de
95% da população e a área rural, com 88% da área total, abriga os
cerca de 5% restantes.20
No setor agrícola há o predomínio do cultivo da cana-de-açúcar,
sendo destinados ao seu cultivo cerca de 53% da área agrícola total
(63 mil ha). A área de pastagem é significativa, ocupando cerca de
25% da área total.21
O município conta com diversos estabelecimentos industriais dos
mais diversificados ramos da produção. Em 1988, contava com 712
estabelecimentos industriais, 530 deles pertencentes à indústria de
transformação, 70 à indústria de construção e 12 a outros ramos in-
dustriais. Destacam-se no município as indústrias metal-mecânica, quí-
mica, de alimentos e bebidas, de vestuário e de calçados, de minerais
não metálicos, de madeira e mobiliário, entre outros.22 Destacam-se
dentre os principais estabelecimentos industriais: M.Dedini S/A Meta-
lúrgica, Caterpillar do Brasil S/A, Dedini S/A Siderúrgica, Indústria de
Papel Simão S/A (Grupo Votorantim) Codistil S/A, General Motors do
Brasil, entre outras.
É possível considerar o moderno o setor terciário no município.
Em 1988 Piracicaba possuía 1.662 estabelecimentos comerciais, sendo
170 atacadistas e 1.483 varejistas. A atividade comercial concentra-se
principalmente na área central da cidade e conta com a presença de
comerciantes locais e grandes grupos que atuam em escala estadual e
nacional. Desde 1987 o município passou a contar com um grande
shopping center, que atraiu diversas lojas.
Além dos estabelecimentos comerciais, o município dispunha em
1988 de 1.250 estabelecimentos do setor de serviços predominando
os serviços pessoais, fundações e entidades não lucrativas, alimentação,
transporte etc. É importante ainda dizer que Piracicaba conta com 44
agências bancárias que atuam na esfera nacional, caracterizando o
município como importante praça financeira regional.23
Pelo exposto, é possível dizer que Piracicaba é um município que
conta com um aparelho produtivo significativo e pode ser considerado
um importante centro comercial regional. De fato, Piracicaba serve
para a maioria dos municípios com os quais faz fronteira como im-
portante praça comercial e financeira (ver nota 1 deste artigo).
20 MARTINS, 1994, p. 80.
21 Prefeitura Municipal de Piracicaba, Secretaria Municipal de Abastecimento, Piracicaba-SP, 1992.
22 Ministério do Trabalho - Relação Anual de Informações Sociais, 1988. In Sumário de Dados da Região
de Campinas. Emplasa - Governo do Estado de São Paulo, Secretaria de Planejamento e Gestão, 1992.
23 Ibid, p. 96.

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Expressiva parcela dos municípios que lhe são fronteiriços é de


pequeno porte e têm como atividade básica o cultivo da cana-de-açú-
car para atender às usinas da região. Assim, pode-se dizer que, na re-
gião, Piracicaba cumpre o papel mais alto da hierarquia dos municí-
pios citados.
Se atualmente Piracicaba, como foi exposto, conta com aparelho
produtivo moderno e diversificado e setor terciário relativamente mo-
derno, é importante destacar que o município, cuja origem remonta a
1767, passou por mudança na sua estrutura produtiva, principalmen-
te, no decorrer da década de 70. Nesses anos, dentro do processo de
interiorização do desenvolvimento econômico, Piracicaba passou a
contar com grandes estabelecimentos de diferentes ramos da produ-
ção e recebeu um grande contingente populacional.
Contudo, ao observar o desempenho do município em relação
ao desempenho de outros do interior, fica claro que teve crescimento
inferior. Assim como Piracicaba, Americana e Santa Barbara D’Oeste,
Sumaré, entre outros, passaram também por expressivo crescimento
econômico e populacional. Americana, no decorrer dos anos 70, apre-
sentou crescimento populacional explosivo. Sua população saltou de
66.316 habitantes, em 70, para 122.055 em 1980, atingindo uma taxa
média de 6,3% a.a. O mesmo aconteceu com Santa Bárbara D’Oeste
nessa década. Sua taxa de crescimento demográfico girou em torno de
9,4% a.a., dado que a população saltou de 31.018 habitantes para
76.630 habitantes. Já Piracicaba, no mesmo período, teve crescimento
populacional da ordem de 3,4% a.a.24
Não foi apenas em termos demográficos que esse município
apresentou crescimento inferior. O mesmo ocorreu com o crescimen-
to industrial.
Tanto Piracicaba como Americana e Santa Bárbara estão entre os
10 municípios mais industrializados da região de Campinas e também
da região da Bacia do Piracicaba. Em 1985, Americana respondia por
10,63% do valor de transformação industrial-VTI da Bacia do Piraci-
caba e 1,3% do VTI estadual, registrando crescimento em relação ao
início da década de 70, quando representava 9,63% do VTI da Bacia
e 0,59% do VTI do Estado. Piracicaba, por sua vez, em 1970, em ter-
mos de contribuição ao VTI da Bacia do Rio Piracicaba, era o terceiro
maior contribuidor, atrás apenas de Campinas e Paulínia. Em 1985 era
responsável por 7,48% do VTI da Bacia e por 0,95% do VTI estadual,
perdendo importância relativa e passando a quinto lugar em termos de
24 FIBGE, Censos Demográficos, 1970/1980.

impulso 135 nº24


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contribuição do VTI da Bacia, atrás de Sumaré, Americana, Campinas


e Paulínia.
Diversos motivos podem ter contribuído para Piracicaba ter de-
sempenho inferior ao de outros municípios, mas o mais explícito está
relacionado à sua localização, distantes das grandes rodovias (Anhan-
güera e Bandeirantes).
Atualmente, face às diversas medidas adotadas pelo governo fe-
deral no sentido de estabilizar a economia e estimular a modernização
– trazendo como um dos resultados a ampliação do desemprego, sem
dúvida, o principal problema regional –, prefeitos dos municípios da
região de Piracicaba, assim como de outras regiões, entraram numa
“disputa” para atração de indústrias para seus territórios, oferecendo
diversos incentivos e benefícios.
Nessa “disputa”, Piracicaba também não se encontra em posição
vantajosa, possuindo, ainda, desvantagens, principalmente no que tan-
ge a transporte. Todavia, tal situação pode mudar se os projetos ela-
borados pelo governo do Estado forem colocados definitivamente em
execução. Um deles é o que possibilita recuperar a navegabilidade do
Rio Piracicaba e, outro, a execução de obras de infra-estrutura esta-
dual. Certamente, se viabilizados, esses projetos terão forte impacto
para Piracicaba e os seus municípios circunvizinhos.
Navegabilidade do Rio Piracicaba – Segundo a CESP, a Hidrovia
Tietê-Paraná possui capacidade operacional para movimentar cerca de
20 milhões de toneladas de carga ao ano no trecho Tietê. Para que
todo potencial se viabilize é necessário que os terminais localizados na
região a montante da hidrovia tenham capacidade de movimentação
compatível. A capacidade operacional dos entroncamentos multimo-
dais já existentes permitem à Hidrovia Tietê-Paraná operar com cerca
de 60% de seu potencial. Assim, é importante desenvolver uma solu-
ção que viabilize a movimentação de 8 milhões de ton/ano.25
Conforme a CESP, o local que reúne as condições adequadas para
tanto é o entroncamento multimodal do distrito de Ártemis, em Pira-
cicaba, viabilizado pela construção de uma barragem.26 A construção
de uma barragem em Santa Maria da Serra, de acordo com o projeto,
possibilitará que a navegação comercial atinja a região de Ártemis. O
canal com cerca de 40 km, ligará a Hidrovia Tietê-Paraná à malha ro-
doviária existente na região de Campinas, Limeira e Piracicaba, e tam-
bém ao sistema ferroviário da Fepasa.27
25 FIBGE, Censos Demográficos, 1970/1980/1985.
26 CESP, RAP de Santa Maria da Serra. Resumo para apresentação, jun./1996, SP, pp. 1 e 2.
27 Ibid., p. 5.

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Os projetos elaborados pela CESP apontam a viabilidade técnica


da navegação alcançar as imediações do distrito de Ártemis, onde há
condições ideais para a implantação de entroncamento intermodal
com a necessária capacidade de transporte de 8 milhões de tonela-
das.28
Para concretizar a navegação até Ártemis é necessário a constru-
ção de uma barragem que aumente o nível d’água do reservatório de
Barra Bonita. A construção do reservatório do Empreendimento Hí-
drico Santa Maria da Serra, formado de barragem, eclusa, vertedouro,
escada para peixes e reservatório a fio d’água, permitirá que a nave-
gação alcance, durante o ano todo, a região de Ártemis. No local po-
derá ser implantado instalações portuárias e industriais, em área de
aproximadamente 600 hectares.29
Conforme relatório da CESP, o entroncamento intermodal de Ár-
temis será o ponto extremo da navegação no Rio Piracicaba, distante
apenas 15 km do centro urbano de Piracicaba.30
Recuperação de rodovias e expansão da Bandeirantes – No âm-
bito do governo estadual há o Programa Estadual de Participação da
Iniciativa Privada na Prestação de Serviços Públicos e na Execução de
Obras de Infra-Estrutura, envolvendo diversas áreas básicas de atua-
ção. A mais ligada e com maior interesse à região é a área de Con-
cessão de Serviços Públicos, com execução de obras de infra-estrutura.
Especificamente, na área de transporte, o programa abrange ro-
dovias, ferrovias, aeroportos e travessias hidroviárias. O Programa de
Concessão Rodoviária tem como meta a transferência para a iniciativa
privada da concessão de 5 mil quilômetros de cinco estradas pavimen-
tadas divididas em 22 lotes, abrangendo todas as regiões do Estado. Os
grupos privados serão remunerados pela receita do pedágio corres-
pondente por um período fixo.31
Dentre os lotes o que interessam mais diretamente a Piracicaba
e região está o lote número 21, constituído pelas rodovias SP-101, en-
tre Campinas e o entroncamento com a SP-127, SP-308 entre o en-
troncamento com a SP-101 e entre Tietê e o entroncamento com a SP-
101.32
28 Ibid., p. 6.
29 Ibid., p. 5.
30 Ibid., p. 6.
31 Ibid..
32 Governo do Estado de São Paulo, Secretaria dos Transportes, Audiência pública para concessão das
Rodovias SP-101, SP-306, SP-304 e SP-113, região de Campinas – Piracicaba – Tietê – Capivari – Lote 21 –
Rio das Pedras”, SP, fev./1996, p. 1.

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Além disto, está prevista a concessão à iniciativa privada do Siste-


ma Anhanguera-Bandeirantes, que inclui 200 quilômetros de rodovias já
existentes e mais 76 quilômetros correspondentes ao prolongamento da
Bandeirantes, de Campinas até Limeira, num total de 326 km.33
As obras previstas de recuperação e modernização do sistema ro-
doviário pertencem ao lote 21, bem ao dos lotes 1 (Anhangüera–Ban-
deirantes); 2 (Piracicaba/Nova Odessa/Rio Claro); 12 (Castelo Branco/
Raposo Tavares); e 13 (Piracicaba/Campinas/Sorocaba). Eles vão abrir
a possibilidade de conexão com a Hidrovia Tietê/Paraná, facilitando o
escoamento anual de 6,5 milhões de grãos procedentes da região Cen-
tro-Oeste em direção aos centros consumidores e ao Porto de Santos.
No outro sentido, o transporte de produtos destinados à agricultura –
calcário e fertilizantes – também será beneficiado, atingindo Minas Ge-
rais e Paraná, além de oferecer o intercâmbio com os países do Mer-
cosul.34
Para Piracicaba e região, particularmente, esses programas são
muito interessantes. Para viabilizar o projeto de integração, um termi-
nal intermodal de cargas (previsão de capacidade de oito a 10 milhões
de toneladas/ano, alimentado pelas rodovias adjacentes, será implan-
tado em Ártemis, na região de Piracicaba. Para se alcançar esse obje-
tivo, algumas obras complementares serão necessários e uma delas é a
duplicação, pela iniciativa privada, da SP-304 (Rod. Geraldo de Barros,
no trecho entre Piracicaba e Ártemis.35

VANTAGENS LOCACIONAIS
Como exposto, a localização de Piracicaba, sem ligação direta
com as grandes rodovias, se não impediu, também não facilitou a sua
expansão. Esse município e região, com a implementação dos projetos
– navegabilidade do Piracicaba e obras de expansão rodoviária – po-
derão se tornar pólo atrativo de novas indústrias e também de popu-
lação. As perspectivas são de que o problema da localização seja solu-
cionado e, assim, o que era desvantagem poderá se tornar vantagem.
Quando se apresenta a possibilidade de novas atividades econô-
micas se instalarem na região é importante pensar e explicitar que tipo
de atividade poderá ter interesse em investir na região. Pelo exposto,
fica claro que Piracicaba e região darão às indústrias facilidades de
transporte, o que será interessante para diversos setores.
33 Ibid., p. 3.
34 Ibid.
35 Ibid., p. 5.

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Como visto anteriormente, o modelo weberiano de Localização


Industrial apresenta três fatores essenciais que influenciam a decisão
locacional, os quais podem ser agrupados em fatores gerais de âmbito
regional – o custo de transporte e o custo de mão-de-obra –, e um fa-
tor local formado por forças de aglomeração e desaglomeração.
Partindo do modelo weberiano, pode-se entender que, possivel-
mente, as indústrias passíveis de terem mais interesse em se instalar em
Piracicaba são as que se orientam pelo custo de transporte. A possibi-
lidade de escoamento da produção por outras vias, como a mencio-
nada, poderá atrair indústrias que até o momento não planejam in-
vestir na região.
Segundo Weber, a importância dos custos de transporte tanto
maior será quanto maior for a sua participação relativa no custo total
de produção e quanto maior for a variação na relação custo de trans-
porte/custo total de produção no espaço geográfico em estudo. Weber
afirma ainda que as indústrias podem ser orientadas pelas matérias-pri-
mas; para estas, geralmente, os custos totais de transporte variam entre
os diferentes locais com maior intensidade que os outros custos: as ma-
térias-primas perdem peso físico durante o processo de produção e as
tarifas de transporte das matérias-primas brutas excedem ou se igua-
lam à tarefa de transporte relativo ao produto final. Além disso, as in-
dústrias podem também ser orientadas para o mercado quando, por
exemplo, o custo de transporte do produto final for mais caro do que
o das matérias-primas ou quando o produto for perecível.
Refletindo sobre a região, a partir do aqui exposto, é possível
compreender que as indústrias já localizadas na região de Piracicaba
poderão, face aos projetos propostos, ter maior vantagem, já que pos-
suirão meios mais vantajosos de escoar a produção. As possíveis in-
dústrias que poderão investir na região certamente serão atraídas pelas
facilidades de transporte potenciais a serem oferecidas.
Como já comentado, Weber indica que, além de se orientarem
pelo transporte, as indústrias podem ser orientadas pela mão-de-obra.
Admite que existe um local onde a mão-de-obra seja relativamente
mais barata e analisa a influência desse fator sobre a localização no
ponto de custo total de transporte mínimo. Assim, os centros onde os
custos da mão-de-obra sejam mais favoráveis para o produtor atraem
as indústrias dos pontos de custos totais de transportes mínimos. Se-
gundo ele, a reorientação das indústrias vai ocorrer, caso o montante
economizado com a mão-de-obra exceda o custo adicional de trans-
porte que opera a empresa, ao ela sair do ponto de custo mínimo.

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A partir do que destaca Weber sobre a mão-de-obra, é possível


dizer que Piracicaba e região contam com contingente expressivo de
população e mão-de-obra que, associado à vantagem do transporte,
poderá ainda ser mais atrativo para as indústrias.
Outra importante vantagem que Piracicaba poderá oferecer é
mão-de-obra qualificada. O município dispõe de institutos educacio-
nais técnicos e profissionalizantes, que oferecem diversos produtos e
serviços aos ramos de atividade industrial, comercial e de serviços. En-
tre eles estão Senac, Sesi e Senai.
Além disto, o município conta com instituições de ensino supe-
rior reconhecidas nacional e internacionalmente, formando profissio-
nais e mão-de-obra especializados para o mercado de trabalho. Para se
ter idéia, em 1993 havia na cidade mais de 14 mil alunos matriculados
em cursos de graduação, especialização, mestrado e doutorado.36 En-
tre as instituições presentes no município estão Esalq-USP, CENA/USP,
FOP/Unicamp e UNIMEP.

DESENVOLVIMENTO REGIONAL:
POTENCIALIDADES E PERSPECTIVAS

Pelo exposto é possível compreender que, em termos de pers-


pectivas, Piracicaba e região são alvos da implementação de importan-
tes projetos no plano estadual que, certamente, poderão impulsionar
o desenvolvimento regional. A concretização do projeto que possibilita
recuperar a navegabilidade do Rio Piracicaba, integrando-o à Hidrovia
Tietê-Paraná, poderá transformar a região em importante ponto de
entrada do Mercosul. O Programa de Recuperação da Infra-Estrutura
do Estado, com investimentos na recuperação e expansão das rodo-
vias, que engloba a região de Piracicaba, poderá servir de estímulo à
criação e expansão das atividades socioeconômicas.
Para Piracicaba e os municípios ao seu entorno as perspectivas
são positivas. Espera-se que novas atividades econômicas venham bus-
car um local para sua instalação nos municípios da região, gerando,
entre outros benefícios, novos empregos diretos e indiretos e maior
arrecadação de impostos.
A região de Piracicaba, que encontrava na sua localização
geográfica uma desvantagem na atração de novas atividades econômi-
cas, a partir da implementação desses projetos poderá ter nesse aspecto
uma importante vantagem. Entretanto, é importante a preocupação
36 Ibid.

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com outros possíveis impactos que os projetos podem trazer para a re-
gião.
Na década de 70, por exemplo, tanto o governo federal como o
estadual e o municipal, dentro do programa de estímulo a
descentralização industrial acabaram por estimular também o cresci-
mento de grandes problemas. Em São Paulo, particularmente os muni-
cípios do interior, num curto espaço de tempo, viram-se diante da
expansão industrial e do emprego; contudo, junto a tal expansão, pro-
blemas existentes em diversos municípios foram potencializados e ou-
tros tantos foram criados, tais como carência habitacional, falta de sa-
neamento básico e infra-estrutura e carência educacional.
A navegabilidade do Piracicaba, sem dúvida, poderá dar impulso
ao desenvolvimento de novas atividades e ao crescimento do emprego,
mas não se pode iludir. Se nada for feito no sentido de prevenir, junto
aos benefícios poderão vir os prejuízos. A experiência de diversos
municípios na década de 70 chama a atenção para a necessidade de se
buscar formas de evitar ou pelo menos minimizar os possíveis proble-
mas.
Em Piracicaba e em toda a região, atualmente, há um certo clima
de euforia entre os diferentes atores sociais quanto a essas possibilida-
des. Contudo, há que se ressaltar que os projetos em pauta não estão
sendo discutidos e avaliados adequadamente como deveriam. São im-
portantes projetos que empolgam e merecem ser discutidos com todos
os segmentos sociais, tanto de Piracicaba como da região. Os seus im-
pactos a médio e longo prazo merecem ser melhor avaliados pela re-
gião, que não pode e não deve ficar passiva diante dos projetos ela-
borados por outras instâncias públicas, no caso o governo estadual. É
preciso participar e também intervir neles. O poder público local pode
desempenhar importante papel nesse processo.
Assim, as perspectivas de desenvolvimento da região de Piraci-
caba são boas. A região possui potencialidades que podem ser bem
aproveitadas. Entretanto, não cabe se iludir. Há a necessidade de mai-
or participação dos diferentes atores sociais nos projetos propostos e
é preciso pensar e planejar o desenvolvimento da região a médio e lon-
go prazo.
Ao lado das boas perspectivas para a região é importante desta-
car que um problema possível de ter implicações negativas para os
municípios da região de Piracicaba diz respeito às condições ambien-
tais do Rio Piracicaba. Espera-se, para um futuro bem próximo, pos-
sibilitar a navegação nesse curso d’água, podendo ser utilizado para
múltiplos fins, sendo o turismo um dos mais importantes deles. Mas

impulso 141 nº24


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para tanto, um problema precisa ser tratado antes de tudo: o da de-


manda e poluição das águas.
A Bacia do Piracicaba é uma das regiões do Estado que mais so-
fre com o problema ambiental. Composta por 49 municípios e com
cerca de três milhões de habitantes, ela é uma das regiões mais indus-
trializadas e urbanizadas do Estado, bem como do País.37 Na década
de 70 o seu crescimento foi intenso, e intensa, também, sua degrada-
ção ambiental.
A demanda de água na Bacia em 1980 era da ordem de 32,6m3/
s. As indústrias absorviam 20,4m3/s; a população urbana, 9,0m3/s; e a
irrigação, 3,3m3/s. Para o ano 2010, a demanda total de água é esti-
mada em 63m3/s e o uso consuntivo, em 24m3/s. Considerando que
sua vazão mínima gira em torno de 40m3/s., verifica-se que em 2010
60% desta vazão estarão sendo perdidas através do uso consuntivo e
a demanda total projetada deverá superar a vazão em 1,6 vezes, im-
plicando elevado índice de censo da água.38
O Plano Estadual de Recursos Hídricos indica que, prosseguindo
o ritmo de crescimento industrial e urbano dos últimos tempos, a Ba-
cia terá dificuldades para oferecer água em quantidade suficiente para
a satisfação das demandas, pois a vazão mínima dará conta apenas dos
usos consuntivos globais. Neste sentido, o Plano prevê um futuro som-
brio para essa área.39
Além do problema da disponibilidade hídrica, a região da Bacia
do Piracicaba enfrentará, também, no longo prazo, problemas mais sé-
rios com relação à qualidade das águas. A carga poluidora total de ori-
gem orgânica da Bacia é da ordem de 279.269kg demanda bioquímica
de oxigênio-DBO/dia. Dessa carga, 56,6% são de origem industrial e
44,4%, de origem doméstica. A carga lançada nos seus rios é da ordem
de 136.137kg DBO/dia, sendo os municípios responsáveis por 69,1%
e as indústrias por 31,9% desse total.40
Embora a carga potencial industrial seja maior que a dos municí-
pios, a sua carga remanescente é inferior. Isso se deve ao fato de a re-
moção das indústrias ser superior à dos municípios. A Cetesb informa
que apenas 13 municípios na Bacia possuem algum tipo de tratamento
dos seus despejos, removendo cerce de 2% da carga poluidora urbana.41
37 PREFEITURA MUNICIPAL DE PIRACICABA, 1995, pp. 20-22.
38 MARTINS, L. & GALLO, Z.. Industrialização, urbanização: uma reflexão sobre a Bacia do Rio Piraci-
caba. Revista Impulso, Ciência e Cidadania, v. 9, n˚ 18, p. 144. Piracicaba: Editora UNIMEP. O uso consun-
tivo é o consumo de água. É água que não retorna aos corpos d’água.
39 GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO, 1990.
40 Ibid., pp. 111-112.
41 Ibid.

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Todo esse volume de carga lançada nos rios da Bacia torna a qua-
lidade das águas ruim, quase em todos os meses do ano. Assim, a si-
tuação da Bacia é altamente preocupante. As projeções para o ano
2010 sinalizam que, se o crescimento dos municípios da Bacia pros-
seguir no mesmo ritmo e forem mantidos os mesmos níveis de remo-
ção, a carga lançada nos rios será de ordem de 377 ton/DBO/dia. A po-
pulação urbana responderá por cerca de 71% de toda a carga e a in-
dústria, pelo restante.42
Se esse cenário se confirmar, o Plano Estadual de Recursos Hí-
dricos prevê que, face à deterioração da qualidade das águas, a saúde
pública poderá vir a ser comprometida. Para que tal cenário não se
confirme, torna-se imprescindível prosseguir com a política de contro-
le da poluição, visando aumentar cada vez mais a redução das cargas
poluidoras urbanas e industriais.
Pelo exposto, fica claro que os cenários para região, tanto em ter-
mos de quantidade como de qualidade das águas, são sombrios e os
conflitos entre os usuários das águas poderão surgir e se expandir.
Nos últimos tempos ocorreram importantes avanços, em termos
de legislação, no sentido de melhorar as condições ambientais da Ba-
cia, abrindo perspectivas de o cenário ruim não se realizar. Contudo,
a luta pela qualidade das águas está apenas começando.
As colocações sobre as condições ambientais da Bacia feitas an-
teriormente foram apresentadas com o intuito de mostrar que, antes
mesmo de se tornar o Rio Piracicaba navegável, é necessário conseguir
a sua despoluição, pois só assim ele poderá se tornar navegável e fa-
vorecer a prática do turismo ecológico na região.
Uma atitude consciente e louvável da classe dirigente regional,
antes mesmo de “lutar” pela navegabilidade do rio, é acima de tudo
“lutar” pela melhoria da qualidade das águas. Como diz o vereador
Juan A.M. Sebastianes:

Há necessidade de se recuperar a Bacia do Piracicaba.


Os usuários das águas precisam pagar pelo seu uso,
pois sem dinheiro não se faz a recuperação das águas
e, sem recuperação, a Hidrovia, pelo menos no meu
ponto de vista, pode vir a ser um fiasco; ela pode se
tornar um pantanal simplesmente bom para outras fi-
nalidades, mas não para a navegação, nem para o tu-
rismo, nem para lazer, nem para coisa nenhuma. Pre-
cisa se tomar esse cuidado todo. O tratamento de es-

42 CETESB, 1993. p. 6.

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goto é urgentíssimo, inclusive não há turismo com um


rio deste tipo. No centro da cidade, o turismo fica in-
viabilizado com o cheiro do Rio Piracicaba, agora ima-
ginem no próprio rio.43

CONCLUSÃO
Piracicaba é um município que pode ser considerado “moder-
no”; conta com expressivo parque industrial e o seu setor terciário é,
também, relativamente moderno. Ao redor dele estão diversos outros
municípios, a maioria de pequeno porte, sobre os quais Piracicaba
exerce o papel de importante praça comercial e financeira.
As perspectivas para o desenvolvimento da região são positivas,
dado que há grandes projetos a serem implementados pelo governo
estadual que possuem capacidade de alavancar o seu crescimento.
Na região de Piracicaba, certamente, o município de Piracicaba
poderá ser o grande beneficiado pelos projetos, já que possui impor-
tante estrutura produtiva e comercial com potencialidade de terem
suas ações potencializadas. Se até então a sua localização geográfica lhe
desfavorecia, com as perspectivas colocadas ela poderá passar a ser-lhe
muito vantajosa.
No entanto, há a necessidade de se olhar os grandes projetos
com seriedade, isto porque, assim como eles poderão trazer benefícios
ao desenvolvimento regional, igualmente trazem como risco novos
problemas ou potencialização dos já existentes. Os referidos projetos
precisam ser debatidos, discutidos e melhor avaliados pelos atores so-
ciais envolvidos. O poder público local, principalmente, não pode ficar
passivo frente a eles; precisa intervir, passar a ter um papel mais ativo.
Há a necessidade de o município de Piracicaba e os da região retoma-
rem as rédeas do seu desenvolvimento, planejando-o a médio e longo
prazo.
Além disto, o problema ambiental da Bacia é bastante sério e me-
rece ser visto com mais cuidado. Para se obter o desenvolvimento al-
mejado, o problema da poluição das águas precisa ser encarado de
frente, pois só com a melhoria da qualidade das águas será viável re-
cuperar a navegabilidade do Piracicaba e estimular mais o desenvolvi-
mento regional.
43 Ciclo de Debates sobre Planejamento e desenvolvimento das Bacias dos Rios Piracicaba, Capivari e Jun-
diaí, Auditoria Verde, UNIMEP, ago./1994.

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Impulso24.book Page 145 Thursday, October 2, 2003 8:40 AM

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CESP. Entroncamento Multimodal de Ártemis. São Paulo. 1995,
mimeo.
CETESB. Controle da Poluição Ambiental no Interior do Estado de
São Paulo, 1993.
___________. RAP de Santa Maria da Serra. Resumo para Apresenta-
ção. São Paulo, mimeo, jul/1996.
FIBGE. Censos Industriais, vários anos.
___________. Censos Demográficos, vários anos.
Governo do Estado de São Paulo. Plano Estadual de Recursos
Hídricos. São Paulo, 1990.
HADDAD, P.R. et al. Economia Regional, BNB/Etene. Fortaleza, 1989,
capítulo 2.
MARTINS, Lilia A. de T.P. Modernização, Atores Sociais e Gestão
Local: um estudo de Piracicaba-São Paulo, Dissertação de Mes-
trado, PUC-SP, 1994.
___________. Industrialização, Urbanização e Impactos Ambientais,
Revista Impulso, Piracicaba-SP, 9 (18) 1995.
MARTINS, Lilia A. de T.P. & Gallo, Z. Estudo sobre o Aproveita-
mento dos Recursos Regionais na Região de Piracicaba, Relatório
de Pesquisa, UNIMEP, 1995.
Prefeitura Municipal de Piracicaba, Welcome to Piracicaba. Publicação
Centro de Comunicação Social, 1995.

impulso 145 nº24


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A Evolução de Alguns
Indicadores Sociais no
Brasil na Década de 80
The evolution of some social
indicators in Brazil in the 1980’s
RESUMO – A profunda crise que se instalou no país na década de 80 interrompeu
a tendência de crescimento que a economia brasileira vinha apresentando nos anos
60 e 70 e resultou na estagnação do PIB per capita, no aumento das desigualdades
ANA MARIA HOLLAND OMETTO
de renda e na aceleração do processo inflacionário. MARIA CRISTINA ORTIZ FURTUOSO
O presente trabalho mostra que, apesar desse quadro econômico desfavorável, os Docentes da Escola Superior de
indicadores sociais nos anos 80 registraram ganhos significativos. A análise da evo- Agricultura Luiz de Queiroz
(Esalq/USP)
lução das estatísticas de esperança de vida e de mortalidade infantil nos últimos maometto@netyou.com.br
sessenta anos indica que a década de 80 não pode ser considerada “a década per-
dida” no que se refere ao aspecto social. As autoras apontam como fator condi-
cionante do processo de melhoria desses indicadores a ampliação dos dispêndios
do governo federal nas áreas de saúde e nutrição.

Palavras-chave: indicadores sociais – políticas sociais – padrão de vida.

ABSTRACT – The deep crisis set up in Brazil in the 1980’s interrupted the growing
tendency which the Brazilian economy had been achieving from the 1960’s throu-
gh the 1970’s. It resulted in a stagnant per capita GNP, na increasing income ine-
quality and a speeding inflationary process.
This paper shows that despite such unfavorable economic scenario the social in-
dicators in the 1980’s recorded significant gains. The analysis of the statistical evo-
lution of infant life and mortality expectancy in the past sixty years indicates that
the 1980’s cannot be considered as “the lost decade” concerning the social aspect.
The authors point the augmentation of federal government expenses in the health
and nutrition areas as a conditioning factor for the improvement process of these
indicators.

Keywords: social indicators – social policies – life standard.

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U ma análise sucinta da evolução da economia brasileira nas


três últimas décadas permite as considerações apresentadas a
seguir. Nos anos 60 o crescimento econômico foi moderado,
com o PIB per capita aumentando ao redor de 36%. Entretanto, os
ganhos potenciais desse crescimento, em termos do bem-estar da po-
pulação, não se concretizaram, em virtude do intenso processo de
concentração de renda verificado no período.
A década de 70 foi marcada por uma grande redução de pobre-
za, decorrente de dois condicionantes: o acentuado crescimento eco-
nômico e a desaceleração do processo de concentração de renda entre
pessoas.
A tabela 1, elaborada com base em dados obtidos dos Censos De-
mográficos de 1960, 1970 e 1980, mostra a evolução dos rendimentos,
dos níveis de desigualdade e de pobreza entre pessoas economicamente
ativas e entre famílias brasileiras. Verifica-se por essa tabela que a distri-
buição de renda entre famílias permanece praticamente inalterada na dé-
cada de 70. O moderado crescimento na concentração de renda entre
pessoas concomitante à manutenção da concentração de renda entre fa-
mílias é apontado por Hoffmann e Kageyama1 como resultante do cres-
cimento do número de pessoas economicamente ativas por família.

Tabela 1. Rendimento médio, desigualdade e pobreza absoluta na distribuição da


renda entre pessoas economicamente ativas com rendimento, e entre famílias no
Brasil, em 1960, 1970 e 1980.
ENTRE ENTRE
ESTATÍSTICA PESSOAS FAMÍLIAS
1960 1970 1980 1970 1980
Rendimento médio1 1,349 1,665 2,926 2,260 4,830
Rendimento mediano1 0,870 0,920 1,399 1,170 2,450
Índice de Gini 0,504 0,561 0,592 0,608 0,597
50% +
18,0 15,6 13,8 12,1 12,2
Participação na pobres
renda total dos 10% +
40,5 46,7 49,6 48,3 47,1
ricos
Porcentagem de pobres2 58 55 34 – –
1) Em unidades de valor real igual ao salário mínimo de agosto de 1980, usando o
deflator implícito das Contas Nacionais para o período 1960-70 e o índice de custo
de vida do DIEESE para o período 1970-80.
2) A linha de pobreza interpolada tem valor real igual ao salário mínimo de agosto
de 1980.
FONTE: HOFFMANN, 1992, HOFFMANN & KAGEYAMA 1986.

1 HOFFMANN & KAGEYAMA, 1986.

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O intenso crescimento do PIB observado na economia brasileira


na década de 70 (6,2% a.a.) se interrompe nos anos 80. A profunda
crise que se instalou no país se reflete numa diminuição do PIB per ca-
pita da ordem de 13% entre 1980 e 1983, e a tímida recuperação ob-
servada nos anos posteriores faz com que, no fim da década, o pib per
capita tenha apenas alcançado os níveis de 1980,2 levando os econo-
mistas a denominarem esse período de “década perdida”.
A tabela 2 apresenta a evolução dos rendimentos médio e dos ín-
dices de concentração de renda entre famílias entre 1979-90. Os efeitos
da crise econômica e os efeitos benéficos, mas passageiros, do Plano
Cruzado em termos da queda de rendimentos são claros. Nota-se, tam-
bém, que os indicadores de concentração de renda, que durante a pri-
meira metade da década estavam praticamente estabilizados, reduzem-
se bruscamente em 1986 e em seguida apresentam um aumento con-
tínuo até 1989, o que, conforme menciona Hoffmann,3 está aparente-
mente associado à aceleração da inflação observada no período.

Tabela 2.Distribuição das famílias de acordo com o rendimento familiar, no Brasil,


de 1979 a 1990: rendimento familiar médio (m), índice de Gini (G), porcentagem
da renda correspondente aos 50% mais pobres (50-), aos 10% mais ricos (10+)
e aos 5% mais ricos (5+).
ANO m1 G 50- 10+ 5+
19792 4,64 0,588 12,6 46,1 32,8
1980 4,83 0,597 12,2 17,1 33,8
19813 4,50 0,584 12,9 45,8 32,7
19823 4,59 0,587 12,6 45,7 32,6
19833 3,84 0,589 12,6 45,9 32,6
19843 3,83 0,588 12,8 46,3 33,2
19853 4,43 0,592 12,5 46,5 33,2
19863 6,06 0,586 12,9 45,6 32,4
19873 4,73 0,597 12,2 46,5 33,1
19883 4,67 0,606 11,8 47,5 33,9
19893 5,35 0,617 11,2 48,3 34,3
19903 4,26 0,603 11,7 46,4 32,9
Nota: dados básicos das PNAD e, apenas para 1980, do Censo Demográfico. As
perguntas sobre rendimento nas PNAD e no Censo são diferentes.
(1)Em múltiplos do salário mínimo de agosto de 1980, usando como deflator o
INPC restrito com período de referência ajustado para o mês civil nos anos ante-
riores a 1986.
(2)Excluindo a área rural da Região VII (Norte e Centro-Oeste, excluindo o DF).
(3)Excluindo a área rural da Região Norte.
FONTE: HOFFMANN, 1992.

2 HOFFMANN, 1992.
3 Ibid.

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Em decorrência da estagnação da economia brasileira na década


de 80 e da aceleração dos índices de concentração de renda observados,
registra-se uma elevação nos índices de pobreza. Dessa forma, enquan-
to 20,8% das famílias brasileiras tinham rendimento inferior a um sa-
lário mínimo em 1979, em 1990 essa proporção atinge 26,5%.4
Apesar desse quadro econômico desfavorável, os indicadores so-
ciais na década de 80 registram, surpreendentemente, ganhos signifi-
cativos. Aliás, considerando-se a evolução das estatísticas de esperança
de vida e de mortalidade infantil ao longo dos últimos sessenta anos,
percebe-se que a verdadeira década perdida no aspecto social foi a de
60, não a de 80, como poder-se-ia supor.
Dessa forma, a esperança de vida ao nascer do brasileiro, que vi-
nha desde a década de 30 registrando uma tendência contínua de
elevação, nos anos 60 permanece praticamente inalterada. No período
1960/70 para 1970/80 volta a se elevar acentuadamente, passando de
52,67 para 60,08 anos. Logicamente, há discrepâncias entre regiões,
sendo as menores estimativas observadas no Nordeste e as maiores na
Região Sul.

Tabela 3. Esperança de vida ao nascer, segundo as Grandes Regiões - 1930-1980.


ESPERANÇA DE VIDA AO NASCER (ANOS)
GRANDES
1930/ 1940/ 1950/ 1960/ 1970/
REGIÕES
1940 1950 1960 1970 19801
Brasil 42,74 45,90 52,37 52,67 60,08
Norte 40,44 44,26 52,62 54,06 64,17
Nordeste 38,17 38,69 43,51 44,38 51,57
Sudeste 44,00 48,81 56,96 56,89 63,59
Sul 50,09 53,33 60,34 60,26 66,98
Centro-Oeste 48,28 51,03 56,40 55,96 64,70
1) Estimativas sujeitas à revisão, em virtude de não estar concluído o processo de
avaliação de consistência das informações sobre filhos tidos nascidos vivos e nasci-
dos mortos do Censo Demográfico de 1980.
FONTE: IBGE, 1990a.

Os dados referentes à taxa de mortalidade infantil mostram uma


evolução em termos de ganhos sociais semelhante: um declínio acen-
tuado da década de 30 até a de 50, seguida por uma estagnação nos
anos 60 e novamente redução acentuada nos anos 70, quando cai de
116,94 para 87,88. Novamente registram-se diferenças regionais sig-
nificativas com as regiões Nordeste e Sul apresentando, respectiva-
mente, as piores e melhores estimativas.
4 Ibid.

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Tabela 4. Taxa de mortalidade infantil, segundo as Grandes Regiões - 1930-1980.


TAXA DE MORTALIDADE INFANTIL (%)
GRANDES
1930/ 1940/ 1950/ 1960/ 1970/
REGIÕES
1940 1950 1960 1970 19801
Brasil 158,27 144,73 118,13 116,94 087,88
Norte 168,42 151,70 117,14 111,39 072,31
Nordeste 178,71 176,34 154,94 151,18 121,36
Sudeste 152,82 132,62 099,97 100,24 074,50
Sul 127,37 114,31 086,88 087,19 061,80
Centro-Oeste 134,81 123,56 102,17 103,90 070,32
1) Estimativas sujeitas à revisão, em virtude de não estar concluído o processo de
avaliação de consistência das informações sobre filhos tidos nascidos vivos e nasci-
dos mortos do Censo Demográfico de 1980.
FONTE: IBGE, 1990a.

As estatísticas sociais desfavoráveis dos anos 60 encontram uma


série de justificativas, entre as quais pode-se mencionar o grave pro-
cesso de concentração de renda ocorrido e os baixos investimentos pú-
blicos na área social, resultantes não apenas de seu caráter não priori-
tário em termos da política vigente, como também da falência dos me-
canismos de financiamento do Estado então verificado.
O desempenho satisfatório desses indicadores na década seguin-
te pode ser explicado pelo acentuado crescimento econômico do pe-
ríodo, que foi acompanhado pela manutenção dos patamares dos ín-
dices de concentração de renda. Além disso, o processo de urbaniza-
ção verificado e a implementação das políticas de habitação e sanea-
mento básico, viabilizadas por mecanismos estabelecidos através da
criação do Sistema Financeiro da Habitação, a melhoria da assistência
prestada pela rede básica de saúde e a maior cobertura dos programas
de vacinação foram, também, pré-condições para o progresso obser-
vado nesses indicadores.5
É interessante verificar que a crise enfrentada pela economia bra-
sileira na primeira metade dos anos 80 e o aumento dos níveis de de-
sigualdade observado na segunda metade da década, embora resultas-
sem em elevação dos níveis de pobreza absoluta, não interrompem o
processo de melhoria dos indicadores sociais.
A tabela 5 apresenta as taxas de mortalidade infantil no Brasil e
em São Paulo no período 1980-89. Pode-se perceber que, embora
ocorram algumas oscilações, no cômputo geral a mortalidade infantil
no país se reduz em cerca de 40% nesse período.
5 MONTEIRO, 1988.

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Tabela 5. Taxa de mortalidade infantil no Brasil e Estado de São Paulo: 1980-89.


MORTALIDADE INFANTIL*
ANO
Brasil São Paulo
1980 75,0 51,2
1981 68,4 49,3
1982 64,5 47,9
1983 66,7 42,3
1984 65,9 44,9
1985 58,1 36,4
1986 53,2 36,2
1987 51,0 33,7
1988 47,5 33,9
1989 45,0 30,9
* Mortalidade de < de 1 ano/1.000 nascidos vivos.
FONTE: IBGE/Seade, 1990.

Novamente são apontadas como causas desse bom desempenho


a expansão da cobertura de determinados serviços públicos, entre os
quais os ligados à ampliação da rede de saneamento básico relatados
na tabela 6, as intervenções médico-sanitárias preventivas como, por
exemplo, os programas de vacinação e a expansão da cobertura dos
programas de suplementação alimentar.

Tabela 6. Distribuição dos domicílios particulares permanentes, segundo algumas


características - 1981-1989. Brasil.
DISTRIBUIÇÃO DOS DOMICÍLIOS PARTICULARES
PERMANENTES (%)
CARACTERÍSTICAS
1981 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989
Total1 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0
Situação do domicílio
Urbana 73,7 74,6 75,2 75,5 75,6 75,8 76,3 76,7
Rural 26,3 25,4 24,8 24,5 24,4 24,2 23,7 23,3
Forma de Abastecimento de água
Rede geral 60,1 64,6 66,2 67,9 69,9 70,0 70,9 72,7
Outra 39,9 35,4 33,8 32,1 30,1 30,0 29,1 27,3
Destino do lixo
Coletado 49,2 54,1 56,1 57,7 58,5 59,8 60,1 62,9
Outro 50,8 45,9 43,9 42,3 41,5 40,2 39,9 37,1
Existência de
Iluminação elétrica 74,9 77,9 79,4 81,1 83,2 84,4 85,9 86,9
Filtro 51,7 53,1 53,6 54,5 55,9 55,5 57,0 56,8
Nota: exclusive os domicílios da área rural da Região Norte.
1) Inclusive os domicílios sem declaração de qualquer característica.
FONTE: IBGE, 1990b.

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A tabela 7 mostra a evolução da participação relativa dos dispên-


dios do governo federal na área social.

Tabela 7. Brasil: Participação relativa das diferentes áreas nas despesas do governo
federal na área social - 1980-86.
ANOS
ÁREAS
1980 1981 1982 1983 1984 1985 1986
Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0
Alimentação e nutrição 000,6 000,7 000,7 001,0 001,2 002,0 002,6
Saúde 018,8 017,3 017,0 016,0 019,5 018,9 018,0
Saneamento 003,5 004,3 004,1 003,2 002,3 003,7 002,9
Educação e cultura 011,0 011,3 011,7 011,0 011,7 013,9 016,5
Habitação e urbanismo 012,2 009,4 009,2 008,5 005,8 004,9 003,9
Trabalho 000,4 000,4 000,4 000,5 000,4 000,5 000,7
Assist. e previdência 053,5 056,7 056,9 059,8 059,1 056,1 055,4
FONTE: VIANNA, MÉDICI & PIOLA, 1988.

Pode-se notar o grande crescimento relativo nos percentuais dis-


pendidos pelo setor público na área de alimentação e nutrição, a re-
lativa estagnação desses percentuais nas áreas de saúde e saneamento
e a redução significativa da participação na área de habitação, refletin-
do possivelmente as dificuldades enfrentadas pelo Sistema Financeiro
da Habitação.
A tabela 8 mostra a evolução dos gastos federais nos diferentes
programas na área de alimentação e nutrição no Brasil no período de
1976 a 1987. Além do crescimento real significativo observado nos dis-
pêndios públicos na área de alimentação e nutrição em praticamente
todos os anos desse período, pode-se perceber a crescente importância
da participação do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE),
que em 1986 vem absorver mais da metade dos gastos totais na área.
Deve-se ressaltar que, embora o padrão de gastos sociais adotado
pelo Estado brasileiro nos anos 80 estejam positivamente correlacio-
nados à evolução dos indicadores demográficos, esse tema tem sido
pouco explorado, merecendo uma análise mais profunda.
Cabe mencionar, também, que esses resultados favoráveis não
nos colocam em posição confortável na área social, nem mesmo quan-
do os demais países da América Latina são tomados como referência.
Apesar de sermos a principal economia industrial da região, ainda so-
mos o país com maior desigualdade de distribuição, o que tem uma
das maiores proporções da população abaixo da linha de pobreza e
consideráveis taxas de mortalidade infantil e de analfabetismo.
Para finalizar, deve-se salientar que, embora as políticas sociais te-
nham, aparentemente, um impacto positivo nos indicadores sociais,

impulso 153 nº24


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tais políticas devem ser encaradas como ações complementares, passí-


veis de implementação no curto prazo, na busca de amenizar os graves
problemas enfrentados pela população brasileira, e não como substi-
tutas das transformações mais profundas que devem ser perseguidas
pela nossa sociedade.

Tabela 8. Evolução dos gastos dos programas de alimentação e nutrição 1976-


1987. (Cz$ milhões de 1987)

ESPECIFI-
1976 1977 1978 1979 1980 1981 1982 1983 1984 1985 1986 19878
CAÇÕES
Alimentação e
2.483,3 3.715,81 5.923,0 6.343,7 7.042,0 7.258,7 9.079,3 9.517,7 10.520,6 21.192,8 30.298,0 30.371,31
nutrição
Taxa de cresci-
- (+ 46,6%) (+59,4%) (+7,1%) (+11,0%) (+3,1%) (+25,1%) (+4,8%) (+10,5%) (+101,5%) (+43,0%) (+0,2%)
mento (%)
Programa Nacio-
nal de Alimenta- 1.034,4 1.208,8 1.568,3 2.482,9 2.230,9 2.889,4 4.210,9 3.896,7 4.920,2 9.609,7 16.294,87 11.516,6
ção Escolar - PNAE
Prog. Nacional
de Suplementa-
1.260,3 1.936,4 2.189,0 1.630,7 2.467,7 1.955,2 2.637,1 3.491,0 3.780,5 6.103,6 7.737,5 6.008,2
ção Alimentar
(PSA)
Prog. Aquisição
Alim. Básicos
160,6 103,5 1.040,9 638,9 439,1 231,9 169,3 83,8 34,5 24,2 89,6 140,0
Áreas Baixa
Renda (Procab)
Prog. de Ali-
mentos Básicos
- - - - - 143,2 180,8 668,8 593,0 651,6 615,0 581,6
Áreas Baixa
Renda (Proab)
Combate Carên-
cias Nutricionais 28,0 27,4 21,1 8,6 0,7 2,6 1,2 11,2 12,5 16,2 60,6 8,9
Específicas
Combate ao 2 2 2 2 2
- - 36,4 92,9 124,93 111,94 124,1
Bócio Endêmico
Incentivo ao Alei- 5 5
- - - - - - - 1,0 1,2 0,2
tamento Materno
Prog. de Comple-
mentação Alimen- - 439,7 506,4 688,6 768,0 751,3 686,9 516,1 394,6 364,7 1.481,1 2.061,9
tar (PCA)
Prog. Nacional de
Leite para Crianças - - - - - - - - - - 2.131,9 9.900,0
Carentes (PNL)
Prog. de Alimenta-
- - - - - - - - - 3.891,66 1.136,8 30,0
ção Popular (PAP)
Prog. de Alimenta-
ção do Trabalha- - 000 597,3 894,0 1.135,6 1.285,1 1.193,1 812,7 691,2 406,1 638,8 000
dor (PAT)
FONTE: PELIANO, 1988.
Notas: 1) Não inclui gastos do PAT.
2) Recursos à conta de Pesquisa sem destaque de valor.
3) Recursos à conta de Carências Nutricionais Específicas.
4) Recursos à conta do PSA.
5) Recursos à conta de Carências Nutricionais Específicas sem destaque de valores.
6) Inclui Cz$ 200 milhões não liberados pelo BNDES à Cobal.

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7) Inclui os alunos matriculados na rede oficial e os irmãos dos escolares de quatro


a seis anos matriculados nas escolas (PPS).
8) Despesas Realizadas, dados preliminares.
Elaborado por Lúcia Pontes de Miranda Baptista (IPEA/Iplan/CSP).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
HOFFMANN, R. 1992. Crise econômica e pobreza no Brasil no período
1979-90. Relatório de pesquisa. Esalq/USP, p. 47.
HOFFMANN, R. & KAGEYAMA, A.A. 1986. Distribuição de renda
no Brasil, entre famílias e entre pessoas, em 1970 e 1980. Estu-
dos Econômicos, São Paulo, 16(1): 25-51, jan./abr.
IBGE 1990a. Estatísticas históricas do Brasil Séries Econômicas Demo-
gráficas e Sociais de 1950 a 1988. 2a ed. revisada e atualizada.
Rio de Janeiro.
___________. 1990b. Síntese de indicadores de pesquisa básica da
PNAD de 1981-1989. Rio de Janeiro.

IBGE/Seade 1990. Movimento do Registro Civil, 1970-1989. São


Paulo.
MONTEIRO, C.A. 1988. Saúde e Nutrição das Crianças de São Paulo.
São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo.
NEPP (Núcleo de Estudos de Políticas Públicas. Universidade Estadual
de Campinas), 1989. Relatório sobre a situação social do país.
PELIANO, A.M.T.M. Os programas alimentares e nutricionais no
contexto da recessão econômica: 1980-1984. In: CHAHAD,
J.P. & CERVINI, R. (org.). Crise e Infância no Brasil. São Paulo:
Unicef/IPE/USP, pp. 185-220.
VIANNA, S.M.; MÉDICI, A.C. & PIOLA, S.F. Os serviços de saúde
durante a recessão. In CHAHAD, J.P. & CERVINI, R. (org.),
1988. Crise e Infância no Brasil. São Paulo: Unicef/IPE/USP, pp.
139-183.

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Normas para
Apresentação de Artigos
REVISTA IMPULSO
PRINCÍPIOS GERAIS
1 A Revista IMPULSO publica artigos de pesquisa e reflexão, nas áreas de ciências sociais e huma-
nas, dedicando parte do espaço de cada edição a um tema principal.
2 Os temas podem ser desenvolvidos através dos seguintes tipos de artigo:
• ENSAIO (12 a 30 laudas) – reflexão a partir de pesquisa bibliográfica ou de campo sobre de-
terminado tema;
• COMUNICAÇÃO (10 a 18) - relato de pesquisa de campo, concluída ou em andamento;
• REVISÃO DE LITERATURA (8 a 12 laudas) – levantamento crítico de um tema, a partir da bi-
bliografia disponível;
• COMENTÁRIO (4 a 6 laudas) – nota sobre determinado tópico;
• RESENHA (2 a 4 laudas) – comentário crítico de livros e/ou teses.
3 Os artigos devem ser inéditos, vedado o seu encaminhamento simultâneo a outras revistas.
4 Na análise para a aceitação de um artigo serão observados os seguintes CRITÉRIOS, sendo o au-
tor informado do andamento do processo de seleção:
• adequação ao escopo da revista;
• qualidade científica, atestada pela Comissão Editorial e por consultores especialmente con-
vidados, cujos nomes não serão divulgados;
• cumprimento das presentes Normas para Apresentação de Artigos.
5 Uma vez aprovado o artigo, cabe à revista a exclusividade em sua publicação.
6 Os artigos podem sofrer alterações editoriais não substanciais (reparagrafações, correções gra-
maticais, adequações estilísticas e editoriais).
7 Não há remuneração pelos trabalhos. Cada autor recebe gratuitamente cinco exemplares da
edição. Acima disto, pode comprá-los com um desconto de 30% sobre o preço de capa. Para
a publicação de eventuais separatas, o autor deve entrar em contato com a Editora.
8 Os artigos devem ser encaminhados ao editor, acompanhados de ofício, do qual constem:
• cessão dos direitos autorais para publicação na revista;
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• informações sobre o autor: titulação acadêmica, unidade e instituição em que atua, ende-
reço para correspondência, telefone e e-mail.

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ESTRUTURA
9 Cada artigo deve conter os seguintes elementos, em folhas separadas:
a) IDENTIFICAÇÃO
• TÍTULO (e subtítulo, se for o caso), em português e inglês: conciso e indicando clara-
mente o conteúdo do texto;
• nome do AUTOR, titulação, área acadêmica em que atua e e-mail;
• SUBVENÇÃO: menção de apoio e financiamento recebidos;
• AGRADECIMENTO, se absolutamente indispensável.
b) RESUMO E PALAVRAS-CHAVE
• Resumo indicativo e informativo, em português (intitulado RESUMO) e inglês (denomi-
nado ABSTRACT), com cerca de 150 palavras cada um;
• para fins de indexação, o autor deve indicar os termos-chave (mínimo de três e máximo
de seis) do artigo, em português (palavras-chave) e inglês (keywords).
c) TEXTO
• O texto deve ter uma INTRODUÇÃO, um DESENVOLVIMENTO e uma CONCLUSÃO. Cabe
ao autor criar os entretítulos para o seu trabalho. Esses entretítulos, em letras maiús-
culas, não são numerados;
• no caso de RESENHAS, o texto deve conter todas as informações para a identificação do
livro comentado (autor; título; tradutor, se houver; edição, se não for a primeira; local,
editora; ano; total de páginas; título original, se houver). No caso de TESES, segue-se o
mesmo princípio, no que for aplicável, acrescido de informações sobre a instituição na
qual foi produzida.
d) ANEXOS
• Ilustrações (tabelas, gráficos, desenhos, mapas e fotografias).
e) DOCUMENTAÇÃO
As NOTAS EXPLICATIVAS1 serão dispostas no rodapé, remetidas por números sobrescritos no
corpo do texto.
A CITAÇÃO com até três linhas deve vir no bojo do parágrafo, destacada por aspas (e não em
itálico), após as quais um número sobrescrito remeterá à nota de rodapé com as indicações do SO-
BRENOME do autor, ano da publicação e página onde se encontra a citação.2
CITAÇÃO igual ou maior a quatro linhas: destacada em parágrafo próprio com recuo de quatro
centímetros das margens do texto (sem aspas) e separado dos parágrafos anterior e posterior por
uma linha a mais. Ao final da citação, um número sobrescrito remeterá à nota de rodapé, indi-
cando o SOBRENOME do autor, ano da publicação e a página em que se encontra esta citação.3
1 Esta numeração será disposta após a pontuação, quando esta ocorrer, sem que se deixe espaço entre ela e o número sobrescrito da nota. Como o
empregado nas Referências Bibliográficas, nas notas de rodapé o SOBRENOME dos autores, caso necessário, deve ser grafado em maiúscula, seguido
do ano da publicação da obra correspondente a esta citação. Ex.: CASTRO, 1989.
2 FARACO & GIL, 1997, pp. 74-75.
3 FARIA, 1996, p. 102.

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Os demais complementos (nome completo do autor, nome da obra, cidade, editora, ano de
publicação, etc.) constarão das REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS, ao final de cada artigo, seguindo o
padrão abaixo.
A lista de fontes (livros, artigos, etc.) que compõe as REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS deve apa-
recer no final do artigo, em ordem alfabética pelo sobrenome do autor e sem numeração, apli-
cando-se o seguinte padrão:

LIVROS
SOBRENOME, N.A. (nomes do autor abreviados, sem espaçamento entre eles; nomes de
até dois autores, separar por “&”, quando houver mais de dois, registrar o primeiro de-
les seguido da expressão “et al.”). Título: subtítulo. Cidade: Editora, ano completo, vo-
lume (ex.: v. 2). [Não deve constar o número total de páginas]. Ex.:
FARACO, C.E. & MOURA, F.M. Língua Portuguesa e Literatura. São Paulo: Ática, 1997, v. 3.
FARIA, J. A Tragédia da Consciência: ética, psicologia, identidade humana. Piracicaba: Edi-
tora UNIMEP, 1996.
GARCIA, E.E.C. et al. Embalagens Plásticas: propriedades de barreira. Campinas: CETES/
ITAL, 1984.
GIL, A.C. Técnicas de Pesquisa em Economia. São Paulo: Atlas, 1991.
• MAIS DE UMA CITAÇÃO DE UM MESMO AUTOR: após a primeira citação completa, in-
troduzir a nova obra da seguinte forma:
______________. Magic Paula. Piracicaba: Editora UNIMEP, 1995.
• OBRAS SEM AUTOR DEFINIDO:
Manual Geral de Redação. Folha de S.Paulo, 2° ed. São Paulo, 1987.
PERIÓDICOS
NOME DO PERIÓDICO. Cidade. Órgão publicador. Entidade de apoio (se houver). Data.
Ex.:
REFLEXÃO. Campinas. Instituto de Filosofia e Teologia. PUC. 1975.
• ARTIGOS DE REVISTA:
SOBRENOME, N.A. Título do artigo. Título da revista, Cidade, volume (número/fas-
cículo): páginas incursivas, ano. Ex.:
FERRAZ, Tércio S. Curva de demanda, tautologia e lógica da ciência. Ciências Eco-
nômicas e Sociais, Osasco, 6 (1): 97-105, 1971.
• ARTIGOS DE JORNAL:
SOBRENOME, N.A. Título do artigo, Título do jornal, Cidade, data, seção, páginas,
coluna. Ex.:
PINTO, J.N. Programa explora tema raro na TV, O Estado de São Paulo, 08/02/1975,
p. 7, c. 2.

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APRESENTAÇÃO
10 Os artigos devem ser escritos em português, podendo, contudo, a critério da Comissão Edi-
torial, ser aceitos trabalhos escritos em outros idiomas.
11 Os artigos devem ser digitados no EDITOR DE TEXTO WORD, em espaço dois, em papel branco,
não transparente e de um lado só da folha, com 30 linhas de 70 toques cada lauda (2.100 to-
ques). As laudas devem ter ao alto e à direita uma ‘retranca’ (isto é: a palavra-chave do título
abreviado), seguida do número da página. Cada trabalho deve ser entregue em duas vias (uma
para a redação e a outra para a Comissão Editorial), acompanhadas de uma cópia em disquete.
12 As ILUSTRAÇÕES (tabelas, gráficos, desenhos, mapas e fotografias) necessárias à compreensão do
texto devem ser numeradas seqüencialmente com algarismos arábicos e apresentadas de modo
a garantir uma boa qualidade de impressão. Precisam ter título conciso, grafados em letras mi-
núsculas. As tabelas devem ser editadas na versão Word.6 ou .7, lembrando-se que sua forma-
tação necessariamente precisa estar de acordo com as dimensões da revista. Devem vir inseridas
nos pontos exatos de suas apresentações ao longo do texto.
As TABELAS não devem ser muito grandes e nem ter fios verticais para se separar colunas.
As FOTOGRAFIAS devem ser em preto e branco, sobre papel brilhante, oferecendo um bom con-
traste e um foco bem nítido.
No caso de GRÁFICOS e DESENHOS, além de sua inclusão nos locais exatos do texto (tanto na
cópia impressa quanto no disquete em linguagem Word), eles precisam ser enviados necessa-
riamente em seus arquivos originais (p. ex., em Excel, CorelDraw, PhotoShop, PaintBrush, etc.)
em separado.
As fotografias devem oferecer bom contraste e foco nítido.
As figuras, gráficos e mapas, caso sejam enviados para digitalização, devem ser preparados em
tinta nanquim preta. As convenções precisam aparecer em sua área interna.
13 ETAPAS de encaminhamento dos artigos:
• ETAPA 1 – Apresentação de três cópias para submissão à Comissão Editorial da Revista e
aos consultores. Os pareceres, sigilosos, são encaminhados aos autores para as eventuais
mudanças;
• ETAPA 2 – Apresentação de uma via em papel e outra em disquete, com arquivo gravado
no formato Word. No caso da cópia em papel, o texto deve estar editorado. Devem acom-
panhar eventuais gráficos e desenhos suas respectivas cópias eletrônicas em linguagem ori-
ginal. Após a editoração final, o autor recebe uma prova para análise e autorização de im-
pressão.
14 O(s) autor(es) pode(m) retirar na própria Editora UNIMEP ou de sua home page (www.unimep.br/
~editora) um template (modelo) da formatação adotada na Revista IMPULSO, acima descrita, e
aplicá-lo diretamente ao seu texto.

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