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0000_Impulso_33.

book Page 1 Thursday, September 18, 2003 9:40 AM

IMPULSO, Piracicaba, v. 14, n. 33, p. 1-191, jan./abr. 2003


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Revista de Ciências Sociais e Humanas


Journal of Social Sciences and Humanities

Universidade Metodista de Piracicaba Gráfica UNIMEP


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Editorial

Disciplinas e práticas jurídicas


no processo de globalização

O presente número da Impulso congrega contribuições de profis-


sionais e pesquisadores das áreas jurídica, sociológica, filosófica e histó-
rica, interessados na discussão do papel do direito em face do fenômeno
da globalização. Quais os temas e os desafios que se colocam à reflexão
dos operadores do direito no século XXI ?
Na busca de respostas a essa questão, esta edição é aberta pelo en-
saio de Gunther Teubner a respeito da “Bukowina global sobre a
emergência de um pluralismo jurídico transnacional”. Nele, o autor de-
fende a idéia de que o direito global não é necessariamente universal, mas
calcado em novas fontes do direito independentes das esferas estatais e
interestatais, oriundos dos processos sociais e econômicos, acoplados a
discursos sociais altamente especializados e politizados.
A seguir, Isabelle Duplessis contrapõe e complementa essa pers-
pectiva, afirmando em seu texto que, apesar da utilização ampla da ex-
pressão “comunidade internacional”, faz-se necessário pensar os funda-
mentos filosóficos e jurídicos desse conceito. Um dos pontos por ela es-
tudado é a contradição entre a concepção de um Estado nacional sobe-
rano e a visão de uma comunidade internacional.
O foco passa a ser direcionado para o direito do trabalho, na se-
qüência, com o artigo de Dorothée Susanne Rüdiger, acerca da
globalização, justiça social e emancipação, no qual examina a flexibiliza-
ção do direito do trabalho como fruto da negociação coletiva em detri-
mento do direito estatal, receptáculo do processo de desconstrução, ca-
racterístico da pós-modernidade. Por sua vez, em “Globalização e mun-
do do trabalho – perspectivas jurídicas”, Ulrich Zachert trata da mesma
questão, concentrando-se, porém, na recente experiência alemã com ne-
gociações trabalhistas, relacionando-a com as regulamentações gerais so-
bre o assunto no âmbito da União Européia e com as mudanças na eco-
nomia global.
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Outra dimensão tratada neste número 33 é o direito do indivíduo


a agir em juízo para a proteção do ambiente, tema abordado por Tullio
Scovazzi em seu ensaio, a partir do estudo da jurisprudência européia so-
bre o assunto, objetivando uma melhor definição dos procedimentos e
do papel do Estado na proteção do meio ambiente. Já as impressões de
Jorge Luís Mialhe sobre os desafios no ensino do direito internacional
público e do direito da integração em tempos de globalização denun-
ciam as limitações no ensino dessas disciplinas, especialmente diante da
atual falta de confiança no sistema das Nações Unidas – ao mesmo tem-
po em que indica a necessidade da busca de alternativas de equilíbrio nas
relações internacionais.
O tema da mudança do Estado nacional para o Estado global, por
sua vez, é objeto das considerações de Ingeborg Maus, que, além de cri-
ticar a tendência atual de se aceitar tacitamente a globalização econômica
como modelo de globalização política e jurídica, revela os perigos vela-
dos e irrefletidos das propostas de substituição do Estado-nação pela
idéia de Estado mundial. José Augusto Lindgren Alves desenvolve, no
ensaio que assina, suas preocupações com as medidas, internas e exter-
nas, atentatórias aos direitos humanos, tomadas pelo governo dos
EUA, após os atentados terroristas, em Nova York e Washington, de 11
de setembro de 2001. Se efetivadas tais posturas estadunidenses, segun-
do Lindgren, “os terroristas terão alcançado mais plenamente seus ob-
jetivos antiocidentais do que os ataques ao World Trade Center e ao
Pentágono”.
Em linha complementar, partindo do 11 de setembro para tecer
considerações sobre as transformações no âmbito do direito, Daniele
Archibugi e Iris Young argumentam, em “Visando a um Estado de di-
reito global”, que existem elementos jurídicos no âmbito do direito in-
ternacional, os quais possibilitam o combate aos efeitos funestos das
ações terroristas recentes. Criticam, desse modo, qualquer tentativa de
se deslegitimar o Estado de direito como desculpa para o combate ao
terrorismo.
Por fim, o trabalho de Rubén Biselli, Maria del Carmen Fernán-
dez & Maria Elisa Welti, “Imagen y conocimiento escolar: el Orbis Sen-
sualium Pictus, primer manual ilustrado”, mostra de modo bastante
ilustrativo um elemento aparentemente desconectado dessa discussão,
mas que na realidade revela um importante antecedente à globalização:
a nova concepção de mundo e sua respectiva representação nos mapas
modernos a partir do século XVI, especialmente o Orbis Sensualium
Pictus.
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Partindo da questão levantada no início deste editorial, esse con-


junto de ensaios apresenta, portanto, as várias facetas do processo de
globalização, indicando, ademais, como elas afetam e, ao mesmo tempo,
são influenciadas pelas distintas disciplinas e práticas jurídicas, com seus
respectivos pontos de vista e contextos. Com isso, espera-se que o sub-
sídio dos autores, nesta edição da Impulso, seja de grande valia para a re-
flexão e o aprofundamento dos estudos sobre as possíveis respostas a
essa questão.
O direito contemporâneo se encontra diante de desafios conside-
ráveis que requerem uma visão global, já que questionado não apenas
pela relativização da ordem internacional por interesses econômicos e
políticos hegemônicos, mas também pelas afirmações categóricas e de-
mandas insistentes, no nível local, por reformas e justiça social. Ao arti-
cular, uma vez mais, o local e o global, o direito e a globalização, bem
como o ponto de vista das mais variadas disciplinas e países, nossa revista
busca ir mais além do dogma, das preocupações pontuais e da resposta
unívoca.
Sem dúvida, esperamos que contribua para a ampliação de hori-
zontes e ao descortinar de novas perspectivas àqueles que buscam os
fundamentos de uma teoria crítica do direito e de seu papel no processo
de transformação pelo qual passa a sociedade contemporânea.

COMISSÃO EDITORIAL
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Sumário
A Bukowina Global sobre a Emergência
de um Pluralismo Jurídico Transnacional
The Global Bukowina on the Emergence
of a Transnational Legal Pluralism
GUNTHER TEUBNER (Universität Frankfurt a.M., Alemanha) 9

Os Fundamentos Filosóficos e Jurídicos


de uma Comunidade Internacional
Philosophical and Legal Basis
of an International Community
ISABELLE DUPLESSIS (Université de Montréal, Canadá) 33

Globalização, Justiça Social e Emancipação:


um debate na perspectiva do direito do trabalho
Globalization, Social Justice and Emancipation:
a debate on the labor law perspective
DOROTHEE SUSANNE RÜDIGER (UNIMEP, Brasil) 41

Globalização e Mundo do Trabalho –


perspectivas jurídicas
Globalization and the Labor World –
juridical perspectives
ULRICH ZACHERT (Hochschule für Wirtschaft
und Politik Hamburg, Alemanha) 57

O Direito do Indivíduo a Agir em Juízo


para a Proteção do Ambiente
The Individual Right to Bring an Action Before
a Courtin Behalf of the Environment’s Protection
TULLIO SCOVAZZI (Università di Milano-Bicocca, Itália) 73

Desafios no Ensino do Direito Internacional


Público e do Direito da Integração em
Tempos de Globalização
Challenges in Teaching Public International
Law and Integration Law in Times of Globalization
JORGE LUÍS MIALHE (UNIMEP, Brasil) 85

Do Estado Nacional para o Estado Global:


o declínio da democracia
From the National-State to the Global State,
or the decline of democracy
INGEBORG MAUS (Universität Frankfurt a.M., Alemanha) 113
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Sumário O Onze de Setembro e os Direitos Humanos


September 11th and Human Rights
J.A. LINDGREN ALVES (Itamaraty/Brasil e ONU) 135

Visando a um Estado de Direito Global


Envisioning a Global Rule of Law
DANIELE ARCHIBUGI (Consiglio Nazionale delle
Ricerche, Itália) & IRIS YOUNG (University of Chicago, EUA) 151

...............................
Gerais
Imagen y Conocimiento Escolar: el
Orbis Sensualium Pictus, primer manual ilustrado
Image and School Knowledge: the Orbis
Sensualium Pictus, first illustrated manual
RUBÉN BISELLI, MARIA DEL CARMEN FERNÁNDEZ & MARIA
ELISA WELTI (Universidad Nacional de Rosario, Argentina) 161

...............................
Resenhas
Claves Politico-Juridicas para la Integracion
Latinoamericana, de Stella Maris Biocca
ERCÍLIO ANTÔNIO DENNY (UNIMEP, Brasil) 183

NORMAS PARA PUBLICAÇÃO 187


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A Bukowina Global sobre a


Emergência de um Pluralismo
Jurídico Transnacional*
THE GLOBAL BUKOWINA ON THE EMERGENCE
OF A TRANSNATIONAL LEGAL PLURALISM
Resumo O presente ensaio trata de um ordenamento jurídico mundial que repousa
sobre a sociedade civil internacional. Seu objeto principal são as feições de um direito
mundial além das ordens políticas nacional e internacional, apresentando, como base
de suas reflexões jurídicas, demonstrações de que setores sociais produzem normas
com autonomia relativa diante do Estado-nação, formando um ordenamento jurídico
sui generis. A reflexão é feita com base em três teses sobre o direito global. A primeira
versa sobre a teoria do pluralismo jurídico como teoria jurídica readequada às novas
fontes do direito, levando em conta, assim, os processos espontâneos da formação de
direito na sociedade mundial que se revelam independentes das esferas estatais e in-
terestatais. A segunda afirma que direito global não é direito internacional, mas cons-
titui, isso sim, um ordenamento jurídico distinto do Estado-nação acoplado a pro-
cessos sociais e econômicos, dos quais recebe seus maiores impulsos. Finalmente, de-
senvolve-se a tese de que a distância desse novo direito mundial da política nacional
e do direito internacional não significa a formação de um direito apolítico, alegando
que o jeito de agir dos novos atores jurídicos globais contribui para a sua repolitização
não por meio de políticas institucionais tradicionais, mas de processos pelos quais o
direito é acoplado a discursos sociais altamente especializados e politizados.
Palavras-chave SOCIEDADE CIVIL MUNDIAL – ORDENAMENTO JURÍDICO GUNTHER TEUBNER
MUNDIAL – DIREITO E ESTADO-NAÇÃO – PLURALISMO JURÍDICO MUNDIAL Universität Frankfurt am
– FONTES DE DIREITO MUNDIAL. Main, Alemanha
Abstract The present assay deals with a world juridical ordering that affects the in- G.Teubner@jur.uni-frankfurt.de
ternational civil society. Its main object are the features of a world law beyond the na-
tional and international political orders, presenting, as the foundation of its juridical
reflections, proofs that show that the social sectors produce norms with relative au-
tonomy before the State-Nation, forming a sui generis juridical ordering. The reflec-
tion is based on three thesis on the global law. The first one consists of the theory of
legal pluralism as a legal theory readjusted to the new law sources, thus considering
the spontaneous processes of law development in the world society which are inde-
pendent from the state and interstate spheres. The second affirms that the global law
is not an international law, but it does constitute a juridical ordering which is distinct
from the State-Nation attached to social and economical processes, from which it re-
ceives its higher impulses. Finally, the assay develops the thesis that the distance be-
tween this new world law and the national politics and the international law does not
mean the creation of a non-political law, pleading that the way of acting of the new
global legal actors contribute to its repolitization not through traditional institutional
politics, but through processes by which the law is attached to highly specialized and
politicized social discourses.
Keywords WORLD CIVIL SOCIETY – WORLD JURIDICAL ORDERING – LAW AND
STATE-NATION – WORLD JURIDICAL PLURALISM – SOURCES OF WORLD LAW.

* Agradeço a Jens Kellerhoff, do Europäisches Hochschulinstitut, de Florença, pela crítica construtiva. Tra-
dução do alemão: Peter Naumann. Revisão técnica: Dorothee Susanne Rüdiger.

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Na nossa época como em todas as épocas, a ênfase do desenvolvimento do


direito não recai nem sobre a legislação nem sobre a jurisprudência, mas
sobre a própria sociedade.
EUGEN EHRLICH, 1913

I.

Q
uem tem razão: Bill Clinton ou Eugen Ehrlich?
Ambos acalentam a idéia utópica de um ordena-
mento jurídico mundial, o ex-presidente dos EUA
tanto quanto o hoje em dia amplamente esqueci-
do professor de direito da cidade de Czernowitz,
da distante Bukowina, que desenvolveu nessa re-
mota paragem da Monarquia austro-húngara a sua
idéia do direito vivo.1 Assim como a Pax Ameri-
cana, a Pax Bukowina é a visão de uma ordem fundada na paz mundial e
de um ordenamento jurídico mundial. Mas Clinton e Ehrlich discordam
quanto ao caminho em direção ao novo direito mundial. Na nova ordem
mundial de Bill Clinton, o novo direito comum para o mundo deverá vir
no bojo da política internacional. O ordenamento jurídico mundial do
ex-presidente dos EUA deverá assentar na gestão política de um sistema
de blocos regionais.
Em contrapartida, na “Bukowina global”, de Eugen Ehrlich, justa-
mente não é a política, mas a própria sociedade civil que cria para si mesma
o seu direito vivo – a uma distância relativa, e mesmo em oposição à polí-
tica. Embora Ehrlich tenha errado no seu prognóstico para o direito na-
cional austríaco, essa conjetura provará, na minha opinião, ser correta para
o ordenamento jurídico mundial em via de formação, dos pontos de vista
tanto descritivo quanto normativo. Descritivamente, Ehrlich tem razão,
pois o complexo industrial-militar – como já se pode prever hoje em dia –
não estará em condições de dominar as múltiplas forças centrífugas de uma
sociedade civil mundial. Sob o aspecto normativo ele também tem razão,
pois a democracia terá, de qualquer forma, maiores chances de consenso, se
a política for definida, na medida do possível, no plano local.
Historicamente a lex mercatoria, ordenamento jurídico transnacio-
nal dos mercados mundiais, provou até agora ser o caso mais exitoso de
um “direito mundial” além da ordem política internacional.2 Mas o sig-
nificado da “Bukowina global” ultrapassa em muito o mero direito do co-
mércio. Nos dias de hoje estão se constituindo em “autonomia relativa”
diante do Estado-nação, bem como diante da política internacional3 se-
tores distintos da sociedade mundial que produzem a partir de si mesmos
ordenamentos jurídicos globais sui generis. Os candidatos para um tal
“direito mundial sem Estado” são inicialmente os ordenamentos jurídi-

1 EHRLICH, 1989.
2 STEIN, 1995.
3 GIDDENS, 1990, p. 70.

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cos de grupos empresariais multinacionais.4 Do idade moderna. Hoje em dia ela deveria nova-
mesmo modo, encontramos no direito do traba- mente ajustar o seu foco – do direito dos grupos
lho uma tal combinação de globalização e infor- para o direito dos discursos. Do mesmo modo,
malidade, quando a instituição do direito está nas uma teoria jurídica das fontes do direito deveria
mãos de empresas e sindicatos na condição de concentrar a sua atenção em processos “espontâ-
atores privados.5 neos” de formação do direito que compõem uma
Na área da padronização técnica e do auto- nova espécie e se desenvolveram – independente-
controle profissional existem ainda tendências a mente do direito instituído pelos Estados indivi-
formas de coordenação em escala mundial, nas duais ou no plano interestatal – em diversas áreas
quais a política oficial interfere apenas minima- da sociedade mundial.
mente. Mas também o discurso dos direitos hu- 2. O direito global (não: “inter-nacional”!),
manos, atualmente conduzido em princípio em nesse sentido, é um ordenamento jurídico sui ge-
esfera global, exige um direito sui generis, cuja neris que não pode ser avaliado segundo os crité-
fonte de direito não independe apenas dos orde- rios de aferição de sistemas jurídicos nacionais.
namentos jurídicos nacionais, mas se dirige justa- Não se trata, como muitos supõem, de um direi-
mente contra práticas dos Estados-nações.6 No to atrasado no seu desenvolvimento, apresentan-
caso específico dos direitos humanos, podemos do ainda, em comparação com o direito nacional,
ver “quão insuportável seria abandonar o sistema determinados déficits estruturais. Muito pelo
jurídico ao arbítrio de processos políticos regio- contrário, esse ordenamento jurídico, já ampla-
nais”.7 Também na área da proteção ambiental é mente configurado nos dias atuais, distingue-se
possível reconhecer tendências na direção de uma do direito tradicional dos Estados-nações por de-
globalização do direito em relativa independência terminadas características, que podem ser expli-
das instituições estatais. E mesmo no universo do cadas por processos de diferenciação no bojo da
esporte discute-se a emergência de uma lex spor- própria sociedade mundial. Porque, por um lado,
tiva internationalis.8 se o direito global possui pouco respaldo político
Vemos, portanto, uma série de formas não e institucional no plano mundial, por outro, ele
mais apenas rudimentares de um ordenamento está estreitamente acoplado a processos sociais e
jurídico mundial, que surge independentemente econômicos dos quais recebe os seus impulsos
dos ordenamentos jurídicos nacionais e do clás- mais essenciais.
sico direito das gentes. Tendo em vista essas for- 3. A relativa distância à política internacional
mas, quero defender aqui três teses. e ao direito internacional não preservará o “direito
1. O direito global só pode ser interpretado mundial sem Estado” de uma repolitização. Muito
adequadamente por meio de uma teoria do plu- pelo contrário: justamente a reconstrução de
ralismo jurídico e de uma teoria das fontes do di- (trans)ações sociais e econômicas como atos jurí-
reito, correspondentemente concebida em ter- dicos globais solapa o caráter apolítico do direito
mos pluralistas. Somente há pouco tempo a teo- global e fornece dessarte o fundamento da sua re-
ria do pluralismo jurídico passou por uma trans- politização. Ela, porém, ocorrerá previsivelmente
formação bem-sucedida, deslocando o seu foco sob novas formas, pouco conhecidas até agora.9
do direito das sociedades coloniais para as formas Suspeito que o direito mundial não será repolitiza-
jurídicas de diferentes comunidades étnicas, cul- do por instituições políticas tradicionais, e.g. de na-
turais e religiosas no âmbito do Estado-nação da tureza por assim dizer parlamentar, mas justamen-
te pela via daqueles processos nos quais o direito
4 ROBÉ, 1996, cap. 3; e MUCHLINSKI, 1996, cap. 4. mundial se “acopla estruturalmente” a discursos
5 BERCUSSON, 1996, cap. 6.
6
altamente especializados, isolados.
BIANCHI, 1996, cap. 7.
7 LUHMANN, 1993, p. 577.
8 SIMON, 1990; e SUMMERER, 1990. 9 WILDER, 1996, cap. 8; e SCHÜTZ, 1996, cap. 9.

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II. espécie de confederação política.13 Uma globaliza-


Um pensador indicou o caminho a Bill ção unitária de outros aspectos sociais seria, en-
Clinton, que, com boas razões, invoca a sua au- tão, possível, assim e.g. um direito genérico de
toridade: Immanuel Kant, cujo tratado A Paz Per- hospitalidade como um ius cosmopoliticum. Mas
pétua é o precursor legítimo da nova Pax Ameri- a nova experiência não é uma globalização unitá-
cana.10 Segundo Kant, a globalização do direito é ria da sociedade sob a condução da política, e sim
tão-somente a conseqüência de uma codificação processos globalizadores fragmentados da socie-
da política internacional. Se todos os Estados so- dade civil em relativa independência da política.
beranos subscrevessem determinados princípios O que podemos observar hoje em dia, em
jurídicos num tratado internacionalmente vincu- matéria de globalização, não é a sociedade mundial
lante, desenvolver-se-ia um novo e justo ordena- paulatinamente configurada pela política internacio-
mento jurídico para toda a humanidade.11 E jus- nal, mas um processo extremamente contraditó-
tamente nesses fundamentos a Pax Americana as- rio, integralmente fragmentado de globalização,
senta a sua nova ordem mundial: a globalização impulsionado pelos sistemas parciais individuais
do direito deve seguir a globalização da política, da sociedade em velocidades distintas. Em tais
mais exatamente a política globalizada dos Esta- processos, a política não apenas perdeu o seu pa-
dos Unidos, que, por sua vez, sabidamente se ba- pel de liderança, mas regrediu nitidamente em
seia no “rule of law”. Provavelmente Kant consi- comparação com outras áreas parciais da socieda-
deraria a metáfora do seu opúsculo bastante ade- de. Em que pesem toda a internacionalidade da
política e todo o direito internacional, a ênfase da
quada para caracterizar o novo direito mundial: a
política e do direito ainda nos dias de hoje recai
tabuleta do estalajadeiro holandês, na qual estava
no Estado-nação. E mais: fazem-se sentir tendên-
pintado um cemitério com a inscrição “A paz
cias nítidas, até dramáticas, a uma maior regionali-
perpétua”.
zação e localização da política. Na via da globaliza-
Ocorre que a história desautorizou os filó- ção, a política foi claramente ultrapassada pelos
sofos políticos Immanuel Kant e Bill Clinton, ao outros sistemas sociais. Já há muito tempo ela
passo que já podemos ver atualmente como a está a caminho das suas global villages respectiva-
Bukowina global de Eugen Ehrlich assume con- mente próprias. E essas global villages se prepa-
tornos cada vez mais nítidos. A globalização hoje ram para defender tenazmente a sua autonomia
em dia não é mais nenhuma utopia, mas a nossa diante das pretensões hegemônicas da política.
realidade cotidiana.12 Ela obedece, porém, a uma Isso vale, em grau especial, para a globalização do
dinâmica inteiramente distinta da suspeitada por direito.
Kant e Clinton. Para Kant, uma precondição ne- De um lado, esse argumento endossa clara-
cessária de uma paz mundial consistia em que os mente a crítica de Wallerstein das relações inter-
Estados nacionais individuais se outorgassem nacionais; de outro, ele prefere, ao modelo das
uma Constituição republicana e formassem uma world wide economies, desse autor, a alternativa
10
dos discursos fragmentados em escala mundial.
KANT, 1795, p. 346.
11 Ibid., p. 343ss. Atualmente a globalização não-política não é
12 O conceito de globalização conduz a raciocínios falhos, na medida
mais exclusivamente o resultado da lógica própria
em que sugere que um grupo de sociedade nacionalmente organizado
se move agora na direção de uma sociedade mundial (GIDDENS, da ordem econômica capitalista, mas decorre das
1990, p. 12). Seria mais adequado falar da existência de uma sociedade dinâmicas próprias de uma multiplicidade de sub-
mundial a partir do momento em que a comunicação passa a abranger
o globo. Por sua vez, os Estados-nações não “têm” sociedades autôno- sistemas sociais.14 “O capital nunca permitiu que
mas, mas são formas da diferenciação territorial interna da sociedade os seus desejos fossem restringidos por frontei-
mundial. Na sua forma atual, globalização é sinônimo de uma transfor-
mação do princípio fundamental da diferenciação: uma mudança da
diferenciação territorial rumo à diferenciação funcional no plano mun- 13
KANT, 1795, p. 357ss.
dial (LUHMANN, 1982 e 1993, p. 571ss; STICHWEH, 1995; e 14WALLERSTEIN, 1979; GIDDENS, 1990, p. 65ss.; e LUH-
SCHÜTZ, 1996, cap. 9). MANN, 1983 e 1993, p. 571ss.

12 Impulso, Piracicaba, 14(33): 9-31, 2003


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ras nacionais.” Esse chamamento à vigência glo- sistema jurídico por meio de constituições não
bal também parte de outras províncias culturais, conta com uma instância correspondente no pla-
como Karl Mannheim denominou as áreas autô- no da sociedade mundial”.16
nomas da sociedade. Não só a economia é hoje Se teorias políticas do direito não se reve-
em dia um sistema autônomo no plano global – lam suficientes, o que dizer então das teorias do
a ciência, a cultura, a técnica, o sistema de saúde, direito autônomo? Será que podemos divisar, no
a previdência social, o transporte, os militares, a direito dos juristas, de Ehrlich,17 uma dinâmica da
mídia e o turismo são sistemas mundiais auto-re- globalização? Será que estamos vivenciando algo
produtores, no sentido de Wallerstein, e concor- parecido com a globalização do direito autônomo,
rem, assim, com sucesso com a política interna- no sentido de Nonet e Selznick,18 conforme po-
cional dos Estados-nações. Mais ainda: enquanto deríamos continuar as idéias de Wallerstein no
a política apenas atingiu, na forma das “relações âmbito de um modelo da diferenciação sistêmica
inter-nacionais”, um estado de “proto-globalida- global? Ocorre que a situação não é nada boa no
de” – quer dizer, não muito mais do que relações tocante à documentação histórica. Há poucos
intersistêmicas entre unidades nacionais com ele- indícios de um desenvolvimento forte, indepen-
mentos transnacionais relativamente fracos –, dente de instituições jurídicas autônomas em es-
outros subsistemas sociais já começaram a for- cala mundial. Um exemplo convincente seria um
mar uma autêntica sociedade mundial, ou me- forte Judiciário internacional.19 Mas as experiên-
lhor, uma quantidade fragmentada de sistemas cias feitas até agora com Haia há muito não são
mundiais distintos. promissoras. Tentativas mais recentes de retomar
Ora, que significado esse cenário da “globaliza- a tradição do Tribunal de Nürnberg parecem es-
ção com velocidades distintas” possui para o direito? tar predestinadas a terminar em desastres políti-
Para a atual sociedade mundial parece estar confirma- cos e financeiros. E a legislação no plano mundial
da a opinião de Eugen Ehrlich, de que um direito é um processo demorado, em virtude das restri-
político centralmente produzido é claramente ções impostas pelo direito internacional e do re-
marginal, em oposição ao direito dos juristas, da gionalismo da política. Apesar da existência de
decisão prática de conflitos jurídicos, e sobretudo numerosas organizações internacionais, pratica-
em oposição ao direito vivo da Bukowina.15 As- mente não há como falar de uma administração
sim, teorias “políticas” do direito seriam prova- internacional. Um fenômeno dinâmico do direi-
velmente de pouca serventia para interpretar a to autônomo ainda pode ser percebido mais fa-
globalização do direito. Isso vale para as teorias cilmente no surgimento de escritórios multina-
positivistas com ênfase na unidade de Estado e cionais de advocacia atuando em escala mundial
direito, tanto como para as teorias críticas, na me- e promovendo a solução de conflitos em pers-
dida em que essas tendem a dissolver o direito na pectiva.20
política. Enquanto elas ainda fitam, com os olhos Se, por conseguinte, nem o direito estatal
arregalados, as lutas pelo poder no palco mundial de Ehrlich nem o seu direito dos juristas apontam
da política internacional – no qual a globalização o caminho à law’s global village, o seu direito vivo
jurídica somente transcorre com abrangência li- parece ser o candidato fadado ao sucesso. Para re-
mitada –, ignoram os processos dinâmicos, em petir a célebre citação: “Na nossa época como em
todas as épocas, a ênfase do desenvolvimento do
outros setores da sociedade mundial, que produ-
direito não recai nem sobre a legislação nem so-
zem os fenômenos do direito global à distância
da política. A razão decisiva dessa produção jurí- 16 LUHMANN, 1993, p. 582.
dica distante da política reside no fato “de que o 17 EHRLICH, 1989.
18
acoplamento estrutural do sistema político e do NONET & SELZNICK, 1978.
19 HIGGINS, 1994.
20 Cf., a respeito, DEZALAY & GARTH, 1995; e FLOOD &
15 EHRLICH, 1989. SKORDAKI, 1996.

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bre a jurisprudência, mas sobre a própria socieda- pusera no antigo “direito vivo” ou se continua
de”.21 supondo, ainda nos dias de hoje, no direito do
Ehrlich, naturalmente, transfigura e idealiza patchwork of minorities.25
aqui o papel criador de direito dos costumes, A fonte do direito mundial não jorra no
usos e práticas em sociedades rurais. No entanto, “mundo vivido” de grupos e comunidades distin-
nos processos de globalização do presente, o seu tas. As teorias do pluralismo jurídico deverão re-
direito vivo adquire um outro significado, bastan- formular as suas concepções. Deverão reorientar-
te dramático. Baseia-se em processos sociais téc- se, de grupos e comunidades para discursos e re-
nicos e frios, não em vínculos que recendem à fa- des de comunicação.26 A fonte social do direito
miliaridade comunitária. Como não é a política, mundial não pode ser encontrada em redes glo-
mas a própria sociedade civil que impulsiona uma balizadas de relações pessoais, mas no “proto-di-
globalização de seus diferentes discursos frag- reito” de redes especializadas, formalmente orga-
mentados, a globalização do direito também se- nizadas e funcionais, que criam uma identidade
guirá essas evoluções no caminho de um efeito de global, porém estritamente setorial. O novo di-
spill over.22 Disso resulta a nossa tese principal: o reito mundial não se nutre de estoques de tra-
direito mundial desenvolve-se a partir das periferias dições, e sim da auto-reprodução contínua de re-
sociais, a partir das zonas de contato com outros sis- des globais especializadas, muitas vezes formal-
temas sociais, e não no centro de instituições de Es- mente organizadas e definidas de modo relativa-
tados-nações ou de instituições internacionais. As mente estreito, de natureza cultural, científica ou
global villages de áreas sociais parciais autônomas técnica.
formam a nova Bukowina da sociedade mundial, Pudemos partir da suposição de que o di-
na qual o direito vivo, de Eugen Ehrlich, ressurge reito mundial se distingue do atualmente conhe-
nos nossos tempos. Aqui se localiza a razão mais cido direito dos Estados-nações, no tocante a ca-
profunda do fato de que nem as teorias políticas racterísticas essenciais:
nem as teorias institucionais do direito, mas tão- 1. diferenciação interna: o direito mundial
somente uma teoria – renovada – do pluralismo não define as suas fronteiras internas sobre o fun-
jurídico, pode fornecer explicações adequadas da damento territorial dos Estados-nações, preser-
globalização do direito.23 vado em meio ao simultâneo desenvolvimento
Evidentemente há diferenças importantes gradativo de elementos federativos, como Kant já
em relação ao direito vivo da Bukowina, de Ehr- tinha percebido. Muito pelo contrário, o direito
lich. Novas teorias do pluralismo jurídico afasta- mundial diferencia-se internamente em “colégios
ram-se, como já foi dito, da análise do direito co- invisíveis”, “mercados e ramos de negócios invisí-
lonial e concentram-se, nos dias de hoje, nas re- veis”, “comunidades profissionais invisíveis” e
lações entre o direito do Estado-nação e as dife- “redes sociais invisíveis”, estendendo-se por cima
rentes formas jurídicas de comunidades étnicas, de fronteiras territoriais, mas, apesar disso, bus-
culturais ou religiosas.24 Será necessária mais uma cando insistentemente a formação de formas ju-
virada se as teorias quiserem estar à altura de um rídicas autônomas. Forma-se um novo direito de
pluralismo jurídico mundial. O “direito vivo” regulamentação de conflitos, que deriva de con-
global dos tempos atuais não extrai o seu vigor da flitos “inter-sistêmicos”, em vez de conflitos “in-
coesão de comunidades étnicas, conforme se su- ter-nacionais”;27
2. fontes do direito: no curso da globaliza-
21 EHRLICH, 1989, p. 390. ção, órgãos legislativos gerais perderão em im-
22 Nota do tradutor (NT): em inglês no original; o sentido é “efeito de portância. O direito mundial se forma antes em
difusão”.
23 ROBÉ, 1996, cap. 3.
24 SANTOS, 1984; FITZPATRICK, 1984; HENRY, 1983 e 1987; 25 NT: “colcha de retalhos de minorias”.
MACAULAY, 1986; GRIFFITHS, 1986; MERRY, 1988, p. 873ss.; e 26 TEUBNER, 1995, p. 208ss.
GOTSBACHNER, 1995. 27 Idem, 1989b, cap. 5, e 1996a.

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processos auto-organizados de “acoplamento es- que só podem ser transformadas em direito por
trutural” do direito a processos globalizados cor- meio de uma decisão dos Estados-nações?
rentes de natureza altamente especializada e tec- Evidentemente trata-se de uma guerra re-
nicizada;28 presentativa. A controvérsia em questão tem um
3. independência: ao passo que o direito de- caráter paradigmático, pois remete, como já foi
senvolveu, ao menos em alguns Estados-nações, dito anteriormente, não apenas ao próprio direito
um grau relativamente elevado de isolamento ins- do comércio mundial, mas também a outras áreas
titucional, continuará existindo nos próximos do direito mundial formadas em relativo isola-
tempos, no plano dos ordenamentos jurídicos mento da política internacional oficial – o direito
globais, uma dependência difusa, mas estreita da interno de empresas multinacionais, o direito tra-
sua respectiva área social especializada, com to- balhista, o direito ambiental, os direitos huma-
dos os problemáticos efeitos colaterais conexos nos, o direito das organizações profissionais. A
dessa espécie de “corrupção”. Tais efeitos colate- lex mercatoria representa um caso paradigmático
rais são e.g. uma forte dependência de interesses dessas novas áreas do direito mundial indepen-
estrangeiros e uma relativa fraqueza das garantias dentes do Estado. Na sua longa história, que re-
do Estado de direito. Isso naturalmente enseja o monta até o merchant law medieval, ela desenvol-
surgimento de uma forte necessidade política de veu um rico acervo de experiências como
reformas do direito; configuração jurídica autônoma, não-nacional.30
4. unidade do direito: para as formações es- O que outras configurações jurídicas globais po-
tatais do passado, a unidade do direito era um dos dem aprender com a lex mercatoria?
bens políticos supremos, símbolo da identidade O debate em torno da lex mercatoria é si-
nacional e, simultaneamente, de justiça (quase) multaneamente um dos casos raros nos quais de-
universal. Uma unidade do direito em escala cisões jurídicas práticas dependem diretamente
mundial tenderia, porém, a ameaçar a cultura ju- de encaminhamentos da teoria do direito. Tanto
rídica. O problema central da evolução do direito mais espanta constatar a fragilidade da constitui-
será assegurar, em um direito mundialmente uni- ção das construções teóricas aqui utilizadas. Toda
ficado, uma variedade ainda suficiente de fontes essa discussão recorre a modelos bastante empoei-
do direito. Eventualmente, pode-se esperar até rados da teoria jurídica, que parecem vir à memó-
por tentativas políticas conscientes de instituir ria dos agentes jurídicos quando eles lembram
variações do direito, e.g. no plano regional. dos seus tempos de faculdade. Se os confrontar-
mos com conceitos-chave da teoria jurídica
III. contemporânea, será possível fazer novas desco-
De momento, está sendo conduzida uma bertas acerca da lex mercatoria e de outras formas
verdadeira guerra confessional na área do direito de um direito mundial além do Estado?
econômico internacional. Especialistas em direito Se passarmos em revista as ofertas das teo-
econômico internacional combatem em uma rias dos agentes jurídicos, encontraremos por um
Guerra de Trinta Anos, em torno da questão da lado juristas – especialmente franceses – que qua-
independência da lex mercatoria, sem que, no en- lificam a nova lex mercatoria como um ordena-
tanto, possamos divisar no horizonte tratados de mento jurídico global emergente. Na opinião de-
Münster ou Osnabrück.29 Seria a lex mercatoria les, as fontes desse direito positivo estão nas prá-
um ordenamento jurídico positivo independente? ticas comerciais usuais no mundo inteiro, nas di-
Ou se trata de um conjunto de normas sociais, retivas unitárias, nos contratos padronizados, nas
28
atividades de associações econômicas globais, em
Idem, 1991.
29NT: os tratados de Münster e Osnabrück, na Vestfália, na Alema-
nha, encerraram a Guerra dos 30 Anos (1618-1648) e trouxeram a Pax 30 Cf. sobre a história da lex mercatoria: BAKER, 1979; BERMAN,
Westfalica. 1983, p. 3ss.; e MEYER, 1994, p. 48ss.

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códigos de conduta e nas decisões das cortes ar- quer fundamento no direito nacional ou interna-
bitrais internacionais. Eles afirmam que esse di- cional. Essa construção está ao menos condenada
reito positivo seria independente de qualquer so- ao fracasso assim que ela tenta seguir a tradicional
berano estatal.31 teoria das fontes do direito: de acordo com essa
No entanto, tais defensores da lex mercato- opinião, ordenamentos jurídicos nacionais deve-
ria desenvolveram argumentos teóricos cuja po- riam assegurar a liberdade de contratar para po-
breza de idéias só é desafiada pela indigência das der ser eleita como um direito global não-nacio-
concepções dos seus oponentes. Um primeiro nal.36
grupo empenha-se pela revitalização do direito A posição contrária é representada sobre-
consuetudinário.32 Porém, quais são os critérios tudo por autores britânicos e norte-americanos
com cuja ajuda eles querem comprovar uma con- que invocam a soberania dos Estados-nações para
suetudo lunga? Além disso, eles também não for- atacar a lex mercatoria como “ilusão de professo-
necem uma concepção adequada de uma opinio res da Sorbonne, propensos a especulações”.37
iuris no plano do direito mundial, sem falar aqui Seus argumentos assentam, em princípio, na re-
do experimento ainda não realizado de compro- presentação da necessária unidade de direito e Es-
var a legitimidade do direito consuetudinário sob tado, bastante limitada em termos históricos e de
as condições gerais do direito positivado dos direito comparado. Um direito assim chamado
tempos modernos.33 Um segundo grupo preten- “a-nacional” seria impensável (!). Todo e qual-
de mobilizar o institucionalismo de proveniência quer fenômeno jurídico no mundo, afirmam eles,
italiana e francesa do início do século XX,34 sem, deveria radicar necessariamente em um ordena-
no entanto, atingir o seu nível conceitual. Seus mento jurídico nacional; teria, ao menos, de mos-
membros postulam um droit corporatif de atores trar possuir um vínculo mínimo com o direito
econômicos em escala mundial, lembrando de nacional. A lex mercatoria nunca poderia aceder à
longe o merchant law medieval.35 Essa versão ins- condição de ordenamento jurídico autônomo,
titucionalizada quase compreende a sociedade pois não disporia de um território fechado com o
mundial dos comerciantes – uma societas merca- correspondente monopólio do uso da força.
torum que forma um denso tecido – como uma Usos e costumes comerciais por si só não esta-
organização formal. Alguns chegam a compará-la riam em condições de criar direito; só poderiam
a um Rotary Clube, outros, às velhas guildas co- ser transformados em direito por um ato formal
merciais, atribuindo-lhe um sentimento de soli- do Estado-nação. O mesmo deveria valer para
dariedade ou um direito associacionista interno, contratos padronizados, devendo estar sujeitos
dotado de um código disciplinar e de sanções da ao controle político do ordenamento jurídico
associação como registros em uma lista negra ou nacional.
exclusão do quadro de membros. Diante da di- Por um lado, associações privadas poderiam
nâmica da concorrência nos mercados mundiais criar o seu “simulacro de direito” (Quasi-Recht),38
da atualidade, tal corporativismo de dimensões mas tais regras não possuiriam nenhum caráter
globais se afigura um pouco antiquado, para dizê- juridicamente vinculante. Por fim, a arbitragem
lo em termos suaves. Por fim, uma terceira cor- internacional também não poderia formar ne-
rente de opinião excogitou a construção algo te- nhum case-law autônomo com efeito de caso
merária de um contrat sans loi que deveria ba- precedente. Isso seria em razão de que as senten-
sear-se em contratos auto-reguladores sem qual-
36 SCHMITTHOFF, 1964 e 1982; e CREMADES & PLEHN, 1984,
31 GOLDMAN, 1964, 1979, 1986 e 1993; FOUCHARD, 1965 e p. 328ss.
1983; KAHN, 1982 e 1992; e LOQUIN, 1986. 37 MANN, 1968 e 1984; KASSIS, 1984; MUSTILL, 1987;
32 GOLDMAN, 1986, p. 114, e sua escola.
DELAUME, 1989; e HIGHET, 1989. Cf. também BAR, 1987, p.
33 Cf., a respeito, ESSER, 1967; FREITAG, 1976; e ZAMORA, 1989. 76ss.; SANDROCK, 1989, p. 77ss.; e SPICKHOFF, 1992.
34 ROMANO, 1918; e HAURIOU, 1933. 38 NT: a tradução literal de Quasi-Recht, seguindo o sentido latino de
35 GOLDMAN, 1964; FOUCHARD, 1965 e 1983; e KAHN, 1982. quasi, seria “o seu por assim dizer direito”.

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ças de cortes arbitrais internacionais sempre po- nais”. Como o direito válido pode se formar “es-
deriam ser contestadas mediante a invocação dos pontaneamente” no plano transnacional, sem a
tribunais nacionais e os procedimentos de exe- autoridade do Estado, sem a sua capacidade de
quatur no âmbito dos Estados-nações. As doutri- impor sanções, sem o seu controle político e sem
nas tradicionais do direito internacional privado a legitimidade de um processo democrático?
estariam em condições de solucionar adequada- Onde está a norma fundamental no plano glo-
mente todo e qualquer conflito econômico en- bal?41 Onde está a rule of recognition global?42
volvendo o direito internacional. Se a globaliza-
ção jurídica fosse efetivamente necessária, os IV.
contratos e as convenções internacionais sob a Como a atual discussão sociológica do di-
autoridade do direito internacional conteriam a reito lidaria com a lex mercatoria e outras formas
única fonte legítima. do direito global além do Estado? Obviamente, a
O endurecimento das posições indica es- teoria do direito não pode vincular as práticas ju-
tarmos na proximidade de um tabu fortemente rídicas da lex mercatoria às suas definições de di-
enraizado em práticas, doutrinas e teorias jurídi- reito e não-direito.43 Mas quem jamais afirmou is-
cas. A profundidade do seu enraizamento é de- so? E naturalmente muitas teorias do direito ope-
monstrada pelo tom apocalíptico com o qual se ram com definições voluntaristas do conceito de
apresenta a crítica da lex mercatoria: “It is difficult direito.44 No entanto, há modalidades da teoria
to imagine a more dangerous, more undesirable do direito que partem explicitamente de autodes-
and more ill-founded view which denies any mea- crições do direito e dessarte vinculam-se, por sua
sure of predictability and certainty and confers vez, às delimitações da própria práxis jurídica.
upon the parties to an international commercial Observam o direito como um processo que or-
contract or their arbitrators powers that non system ganiza a si mesmo, que define com autonomia os
of law permits and no court could exercise”.39 seus próprios limites.45 Observam como as ope-
Isso permite pressentir a imensa resistência rações jurídicas, por sua vez, examinam o mundo.
à qual se vê exposta a Bukowina global de Eugen Tal teoria não define por iniciativa própria ou,
Ehrlich num universo jurídico conceitualmente como se diz, “analiticamente” o que está e o que
ainda dominado pela idéia do Estado-nação. E, não está nos limites do direito. Em vez disso,
com efeito, a lex mercatoria rompe com o tabu da opera como observação de segundo grau. Obser-
unidade de Estado e direito duas vezes. A primei- ving systems: uma tal teoria do direito está envol-
ra quebra de um tabu está na sua afirmação de vida nisso, no duplo sentido do termo. O direito
que só disposições de natureza jusprivatista (con- é simultaneamente objeto e sujeito de observa-
tratos e fusões) poderiam produzir direito vigen- ções. A teoria observa como a práxis jurídica
te, sem autorização ou controle por parte do Es- identifica o mundo e a si mesma. Em contrapar-
tado. Desde Savigny foram negadas ao contrato tida, a práxis jurídica poderia aprender alguma
as honras de fonte do direito; como mero fenô- coisa, se fosse informada sobre esse modo da sua
meno da realidade do direito, ele foi entregue à própria observação. Poderia redefinir os seus cri-
competência da sociologia do direito.40 Como a térios de validade.
lex mercatoria representa um contrato sem direi- Tal teoria não condenaria sem mais nem
to, trata-se de uma lex illegitima nesse sentido. menos a opinião positivista que coloca a lex mer-
Mas existe ainda uma segunda quebra de tabus: a catoria na dependência de atos jurídicos gerados
lex mercatoria reivindica validade entre os Esta-
41 KELSEN, 1960.
dos-nações e até além das relações “inter-nacio- 42 HART, 1961, p. 92ss.
43 MERTENS, 1996, cap. 2.
39 MANN, 1984, p. 197. 44 Ibid.
40 SAVIGNY, 1840, p. 12. 45 LUHMANN, 1993, p. 61.

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pelo Estado. A guerra confessional poderia che- Isso nos colocaria na posição de identificar
gar a um termo pacífico – sob a condição de que diversos fenômenos no direito econômico global
global reach do direito não fosse mais formulado que possuem – em consonância com as teorias
como questão de definição dogmática, mas como positivistas tradicionais – um fundamento ine-
empírica, admitindo variações. O nosso experi- quivocadamente nacional e internacional. Exem-
mentum crucis seria o seguinte: onde ocorre efe- plo disso seria a harmonização do direito econô-
tivamente a produção de normas concretas? Na mico por meio de tratados internacionais ou de
política nacional ou em relações internacionais? atos de instituições e tribunais nacionais, que
Diante de cortes nacionais ou internacionais? Ou adaptem o seu ordenamento jurídico nacional às
em processos econômicos e outros processos so- exigências globais. Mas qual é o status da própria
ciais, num contexto a-nacional global? A experiên- lex mercatoria, o caso mais difícil de produção
cia do direito parece admitir a hipótese de que o di- pluralista do direito em bases não-políticas e não-
reito econômico global evolui em todas as três di- nacionais?
mensões.46 Isso, no entanto, pressupõe uma teoria O que observamos aqui é um discurso jurí-
pluralista da produção da norma, que reconheça a dico auto-reprodutor de dimensões globais que cer-
ra as suas fronteiras mediante recurso ao código bi-
produção de direito por processos políticos, jurí-
nário “direito/não-direito” (Recht/Unrecht) e re-
dicos e sociais de uma maneira igualitária.47
produz a si mesmo mediante o processamento de
Se, porém, incluirmos adicionalmente a um símbolo de vigência global (não: nacional). O
globalização fragmentada por diferentes sistemas primeiro critério – codificação binária – distingue
sociais na perspectiva de análise, fica simultanea- o direito global de processos econômicos e ou-
mente claro que uma tal teoria deveria conceder tros processos sociais. O segundo – vigência glo-
um peso muito distinto aos diferentes tipos de bal – delimita o direito global de fenômenos jurí-
produção da norma. Uma teoria pluralista do di- dicos nacionais e internacionais. Ambos os crité-
reito compreenderia o direito econômico global rios são instrumentos da observação de segundo
como um processo extremamente assimétrico de grau, conforme mencionado anteriormente. As-
auto-reprodução jurídica. O direito econômico sim, o direito observa as suas próprias observa-
global é uma forma do direito com um centro ções em seus ambientes dos ordenamentos jurí-
subdesenvolvido, mas, ao mesmo tempo, uma dicos nacionais e do sistema social global.
periferia altamente desenvolvida. Mais precisa- Com essa definição rendemos homenagem
mente, é uma forma jurídica cujo “centro” foi cria- ao linguistic turn na sociologia e o aplicamos si-
do pelas “periferias” e permanece dependente de- multaneamente ao “direito no contexto”. Cor-
las.48 A lex mercatoria representaria, nessa pers- respondentemente, conceitos-chave da sociolo-
pectiva, aquela parte do direito econômico global gia clássica do direito, como norma, sanção e con-
que opera na periferia do sistema jurídico em trole social passam para o segundo plano; seu lu-
“acoplamento estrutural” direto com empresas e gar é assumido pelos conceitos-chave centrais das
transações econômicas globais. Ela representa controvérsias contemporâneas, como ato de fala,
um ordenamento jurídico paralegal, criado à mar- énoncé, codificação, gramática, transformação de
gem do direito, nas interfaces com os processos diferenças e paradoxos.50 Elas prometem uma
econômicos e sociais.49
50 Apesar das diferenças entre diferentes teorias jurídicas pós-estrutura-
listas, causa espécie constatar o quanto os seus conjuntos de instrumen-
46 Cf. a sistematização do direito econômico internacional em tos analíticos se assemelham. Cf., com relação a teorias pós-modernas:
SCHANZE, 1986, p. 34ss. LYOTARD, 1983; DERRIDA, 1990; ARNAUD, 1990; LADEUR,
47 LUHMANN, 1993, p. 100ss. e 320ss.; GOTSBACHNER, 1995; 1992; e DOUZINAS & WARRINGTON, 1994; sobre a teoria do dis-
TEUBNER, 1995; e ROBÉ, 1996, cap. 3. curso: JACKSON, 1988; sobre a teoria crítica: HABERMAS, 1992;
48 Sobre a diferenciação interna de centro e periferia, cf. LUHMANN, WIETHÖLTER, 1989; e LENOBLE & BERTEN, 1990; sobre a teoria
1993, p. 320ss. sistêmica: LUHMANN, 1993; e SCHÜTZ, 1994 e 1996; e sobre uma
49 BRAECKMANS, 1986. variante da teoria do jogo: KERCHOVE & OST, 1988 e 1992.

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compreensão mais aprofundada da lex mercatoria curso da transformação da “estrutura” em “pro-


e do pluralismo jurídico global, além daquela que cesso”, os énoncés, eventos comunicativos e atos
as categorias da tradicional sociologia do direito jurídicos. Depois de longo debate, verificou-se
podem oferecer. que não faz sentido buscar um critério para a dis-
A sanção perde o seu papel tradicional tinção entre normas sociais e normas jurídicas. A
como concepção central para a definição do di- transformação decisiva não pode ser encontrada
reito, para a delimitação entre as esferas jurídica e nas características inerentes às regras, mas na sua
social, e as esferas global e nacional. Naturalmen- introdução constitutiva no contexto de diferen-
te, esse conceito fora importante para a tradição: tes discursos. As regras transformam-se em re-
na teoria do direito, de Austin (commands backed gras jurídicas assim que são referidas em atos co-
by sanctions), no conceito de direito, de Max We- municativos ao código binário direito/não-direi-
ber (administração por uma equipe jurídica pro- to e produzem microvariações na estrutura jurí-
fissionalizada), na distinção de Ehrlich entre nor- dica.
mas jurídicas e normas não-jurídicas, e, finalmen- Como já foi dito, o fato da relativa indeter-
te, no behaviorismo da teoria jurídica de Geiger minação por regras foi usado na discussão em
(alternativa obediência à norma/sanção).51 torno da lex mercatoria como argumento contra a
Porém, nos debates atuais, as sanções são sua posição independente.55 Mas a determinação
percebidas mais no papel de um apoio simbólico por regras é um critério enganoso. Decisiva não é
a existência de um corpo bem elaborado de re-
da normatização.52 A realidade simbólica da vi-
gras; muito pelo contrário, está em pauta um pro-
gência jurídica não é mais definida por intermé-
cesso auto-organizado de constituição recíproca
dio de sanções. Também na discussão em torno
de atos e estruturas jurídicas.56
da lex mercatoria, o fato de esse tipo de direito
O conceito de controle social é igualmente
desconhecer sanções jurídicas autônomas, embo-
um meio insuficiente, se quisermos identificar os
ra dependa das sanções impostas por tribunais
elementos de um discurso jurídico autônomo. O
nacionais, sempre foi usado como argumento
atual pluralismo jurídico tende a substituir o fator
contra o seu papel autonomamente global.53 Esse
propriamente jurídico pelo controle social.57 De
argumento, entretanto, sobreestima em muito a
acordo com essa leitura, a lex mercatoria abrange-
relevância de sanções. De importância decisiva, é
ria, como forma de controle social, tanto usos e
como o discurso jurídico concreto comunica a
práticas comerciais mundiais quanto padrões de
sua pretensão de vigência. Se um discurso jurídi-
transações e a rotina organizacional de empresas
co especializado reivindica vigência mundial do
multinacionais. Ela iria a ponto de incluir neces-
mesmo modo que o discurso econômico, é irrele-
sidades puramente econômicas e o mero exercí-
vante de onde vêm o apoio simbólico da sua pre-
cio do poder em mercados internacionais. Mas se
tensão de vigência como sanção, seja de
o pluralismo jurídico abrangesse tudo o que serve
instituições locais ou regionais seja de instituições
à função do controle social, ele seria idêntico a
nacionais.
um pluralismo que compreende qualquer coação
De maneira bastante similar, as “normas” social.58
perdem a posição estratégica que outrora ocupa- Por que, no entanto, deveríamos definir o
ram como elementos-chave do direito.54 Em vez pluralismo jurídico exclusivamente segundo a
de regras jurídicas, os elementos propriamente função do controle social,59 e não, conforme ar-
ditos do ordenamento jurídico passam a ser, no
55 LANGEN, 1973; BERMAN, 1983, p. 51; DAVID, 1977, p. 51;
51 AUSTIN, 1954, p. 13ss.; WEBER, 1972; EHRLICH, 1989; e GEI- BAR, 1987, p. 79; MUSTILL, 1987; e SANDROCK, 1989, p. 77.
GER, 1987, p. 68ss. 56 Mais detalhes em TEUBNER, 1995.
52 Cf. LUHMANN, 1983, cap. II.3, e 1993, p. 134ss. 57 GRIFFITHS, 1986, p. 50, nota 41, e 1995.
53 Cf. e.g. BAR, 1987, p. 80ss. 58 COHEN, 1983, p. 101.
54 KELSEN, 1960; e HART, 1961. 59 GRIFFITHS, 1986, p. 50.

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gumentam as teorias da private justice,60 consoan- plícita – do código jurídico, eles serão constituí-
te a função da solução de conflitos? Por que as dos como fenômenos jurídicos – em todo o es-
funções da “coordenação da conduta”, “acumu- pectro do pluralismo jurídico, desde o direito ofi-
lação do poder” ou “regulação privada”, que res- cial do Estado até o direito não-oficial dos mer-
saltam teorias do private government, não deveriam cados mundiais.
ser aduzidas para a definição do pluralismo jurí- Para evitar mal-entendidos, deveríamos
dico? E por que não os critérios disciplina e pu- acrescentar de imediato que o código binário di-
nição, segundo os quais cada mecanismo, mesmo reito/não-direito não deve ser compreendido
minúsculo, do poder de exercício da coação, que como sinônimo do direito estatal. Esse modo de
influi na vida social, estaria englobado?61 Cada apreciação também não tem nada a ver com legal
um desses critérios de delimitação conduziria os centralism,63 pois rejeita categoricamente toda e
diferentes mecanismos sociais em mercados glo-
qualquer exigência do direito oficial do Estado-
bais e empresas multinacionais para dentro do
nação, das Nações Unidas ou de instituições inter-
âmbito de investigação do pluralismo jurídico.
nacionais a uma posição hierarquicamente superior.
Uma análise funcional dessa espécie não se presta
Muito pelo contrário, ele parte de uma heteroar-
à distinção entre os fatores jurídico e não-jurídico
quia64 de diferentes discursos jurídicos, cujo cará-
no âmbito da lex mercatoria.
ter genuinamente jurídico não deve ser reconheci-
Se, no entanto, acompanharmos o linguistic
do apenas pela sociologia ou pela teoria do direito,
turn, o centro da análise desloca-se não apenas da
como também pela dogmática jurídica.
estrutura para o processo, da norma para a ação,
da unidade para a diferença, e sim – com o maior Um direito econômico global faria, assim,
significado para a identificação do fator especifi- parte do conjunto de discursos jurídicos frag-
camente jurídico – da função para o código.62 mentados que, na forma do direito estatal, das
Essa mudança de foco não só ressalta o caráter normas de direito internacional, mas também de
dinâmico do pluralismo jurídico, mas simultane- regras da private justice ou de prescrições de pri-
amente delimita o fator jurídico nitidamente de vate government, desempenham um papel no
outros tipos da ação social. O pluralismo jurídi- processo dinâmico da constituição recíproca de
co, então, não estará mais definido por um grupo ações e estruturas na vida social global. E não é o
de normas sociais conflitantes num determinado direito dos Estados-nações, e sim a encarnação
campo social, mas como coexistência de diferen- simbólica de pretensões de validade o que define
tes processos comunicativos que observam ações a natureza local, nacional ou global de discursos
sociais na ótica do código binário direito/não-di- jurídicos fragmentados. Os diversos sistemas de
reito. pluralismo jurídico produzem constantemente
As exigências à ação econômica racional es- expectativas normativas, mas simultaneamente
tariam excluídas tanto quanto as normas da lógi- excluem meras convenções sociais ou normas
ca política, o mesmo ocorrendo com as meras morais como não fundamentadas no código di-
convenções com relação às normas morais, aos reito/não-direito. Elas podem também servir a
padrões de transações ou às rotinas organizacio- diferentes funções: controle social, regulação de
nais. Porém, assim que tais fenômenos não-jurí- conflitos, estabilização de expectativas, coorde-
dicos forem observados com ajuda da distinction nação de conduta ou disciplinamento físico ou
directrice direito/não-direito, assim que forem mental. A dimensão “especificamente jurídica”
ajuizados por via da invocação – implícita ou ex- no pluralismo jurídico local ou global não reside

60HENRY, 1983. 63 GRIFFITHS, 1986, p. 2ss.


61FOUCAULT, 1975; e FITZPATRICK, 1992. 64 NT: o termo ainda não está dicionarizado, mas é corretamente for-
62 Cf. LADEUR, 1992; LUHMANN, 1993, cap. 2; TEUBNER, mado (v. HOUAISS: “heteroagressão”, “heteroátomo”) e, conforme
1995. o leitor logo verá, antônimo de autarquia.

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na estrutura nem na função das expectativas, mas sans loi. Desde Émile Durckheim, a grande crítica
na observação secundária sobre o código binário. sociológica de toda e qualquer autonomia contra-
tual insistiu que a força vinculante do contrato
V. assentasse num contexto social mais amplo.66
Até agora vimos que uma teoria do plura- Diante de uma lex mercatoria sem funda-
lismo jurídico está em condições de identificar fe- mentação num ordenamento jurídico, os repre-
nômenos jurídicos autônomos “apátridas” (staa- sentantes da sociologia do direito fariam a se-
tenlose Rechtsphänomene) no plano global, mes- guinte pergunta: em que consistem os “pressu-
mo sem o recurso legitimador ao direito estatal postos não-contratuais” da celebração de contra-
(ou interestatal). Mas com isso permanece ainda tos globais? Porventura nos próprios contratos?
sem resposta a seguinte questão: como se pode No entanto, esse parece ser um beco sem saída,
conceber que, sem a existência de um sistema po- pois cada autocolocação em vigor de um contrato
lítico global ou de instituições jurídicas globais, conduz automaticamente a um paradoxo – o da
um discurso jurídico fundado na codificação bi- auto-referência, versão contratualista do parado-
nária e com pretensão de validade global se esta- xo do cretense mendaz.67 Sua variante positiva
beleça sem fundamentação em um direito nacio- (“Acordamos que o nosso acordo tem validade”)
nal? A resposta à pergunta sobre o take-off de um equivaleria a uma pura e simples tautologia. Já em
direito global sem um Estado é a seguinte: o di- sua variante negativa (“Acordamos que o nosso
reito econômico global é constituído de modo acordo não tem validade”), estamos diante do tí-
paradoxal. Fundamenta a sua validade no parado- pico paradoxo auto-referencial que conduz tão-
xo da autovalidação do contrato. Se for possível somente à oscilação sem fim (válido – inválido –
“explicitar” esse paradoxo da auto-referencialida- válido...) e ao bloqueio. O resultado é a impossi-
de contratual, um direito econômico global po- bilidade de tomar uma decisão. Em virtude so-
derá ser colocado exitosamente em marcha.65 bretudo desse paradoxo subjacente, os juristas e
sociólogos declaram inconcebíveis os contratos
No âmbito da lex mercatoria, a práxis con-
que se autocolocam em vigor, operando, assim, a
tratual ultrapassa as fronteiras nacionais e trans-
reductio ad absurdum da lex mercatoria.
forma a produção jurídica puramente nacional
em produção jurídica global: inúmeras transações Mas a práxis social é mais criativa do que os
internacionais individuais, contratos padroniza- sonhos aos quais a dogmática jurídica e a teoria
dos de associações profissionais internacionais, social se integram. Na condição de kautelarjuris-
contratos pré-formulados de organizações inter- prudenz,68 a prática de contratos internacionais
nacionais e projetos de investimentos em países encontrou possibilidade de esconder de tal modo
em desenvolvimento. Assim que tais contratos o paradoxo de contratos que colocam em vigor a
reivindicam vigência transnacional, eles não só si mesmos, que tais contratos tornam possível o
estão separados das suas raízes no direito nacio- aparentemente impossível, isto é, contratos glo-
nal, como também perdem toda sustentação em bais criando para si mesmos os seus fundamentos
qualquer ordenamento jurídico. Isso poderia re- não-contratuais. Essas práticas desenvolveram
sultar em conseqüências funestas. Não só os ju- três métodos de dissolução do paradoxo – a tem-
ristas consideram impensáveis contratos sem poralização, a hierarquização e a externalização –,
fundamento jurídico. Não é apenas um axioma 66 DURCKHEIM, 1977, cap. 7.
jurídico que cada contrato deve estar enraizado 67 Cf. DUPUY & TEUBNER, 1990.
em um ordenamento jurídico previamente exis- 68 NT: dicionários brasileiros e portugueses (Plácido e Silva, João Melo
Franco & Herlander Antunes Martins, Ana Prata, Othon Moacir
tente: também os sociólogos haverão de lançar, Sidou etc.) não explicam esse termo, sucintamente apresentado no
ao lado dos juristas, ataques contra um contrat clássico dicionário alemão Rechtswörterbuch (originalmente fundado
por Carl Creifelds): “conceito do direito romano. Antes da Lei das
Doze Tábuas, o estudo do direito, a sua configuração e a jurisprudên-
65 TEUBNER, 1996b. cia foram quase sempre da alçada dos sacerdotes, que desenvolveram

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que se apóiam reciprocamente e permitem ao di- nos se entrelaçam, mas não impede as normas de
reito global da periferia construir o seu próprio grau superior de monitorar as de grau inferior.71
centro, sem invocar a ajuda do Estado. Em segundo lugar, tais contratos tempora-
Empiricamente a dissolução perfeita do pa- lizam o paradoxo e transformam a sua circulari-
radoxo pode ser comprovada com base em tais dade da autovalidação contratual em um proces-
transações internacionais que constroem um as- so contínuo de atos jurídicos, uma seqüência da
sim chamado closed circuit arbitration.69 Trata-se constituição recorrente recíproca de atos jurídi-
de um contrato auto-regulador que transcende a cos e estruturas jurídicas. Cada contrato possui
simples relação de intercâmbio econômico, na um componente prospectivo e um componente
medida em que cria um ordenamento jurídico retrospectivo. Na medida em que remete, retros-
privado autônomo com pretensão de validade pectivamente, a um conjunto de regras já existen-
universal. Ao lado de regras substantivas, tais tes e, prospectivamente, a soluções de conflitos
contratos contêm também prescrições que reme- futuros, ele mesmo se torna um elemento de um
tem a solução de conflitos a uma corte arbitral, si- processo em continuação permanente, auto-re-
multaneamente idêntica ao grêmio que origina- produtor, no qual a rede reproduz continuamen-
riamente criou o contrato modelo. Nisso consis- te novos elementos sistêmicos.
te o closet circuit. Em terceiro lugar, e esse é o ponto mais im-
Esses contratos erigem, num primeiro mo- portante, o contrato auto-referencial vale-se da
mento, uma hierarquia interna de regras contra- técnica da dissolução de paradoxos mediante a
tuais. Ela não é feita somente de regras primárias, externalização. Ele externaliza a inevitável autova-
no sentido de Hart,70 destinadas a regular a con- lidação do contrato, uma vez que atribui o ajui-
duta futura das partes, mas contém também re- zamento das condições de validade e a solução de
gras especiais, mediante as quais assegura o pro- conflitos futuros a instituições externas, não-
cedimento de identificação de regras primárias e contratuais, que no entanto são “contratuais”,
controla a sua interpretação e os procedimentos pois meros produtos internos do próprio contra-
de solução de conflitos. Assim, o paradoxo da to. Uma dessas instituições autocriadas são os
autocolocação em vigor continua subsistindo,
tribunais de arbitragem, aos quais compete o ajui-
apesar de ser “explicitado” pela separação de pla-
zamento da validade de contratos, apesar de a sua
nos hierárquicos, os planos das normas e das me-
própria legitimação assentar justamente nos mes-
tanormas. As metarregras são autônomas diante
mos contratos cuja validade eles devem ajuizar.
das regras, embora ambas tenham a mesma ori-
Nesse ponto, o círculo vicioso da autocolocação
gem contratual. Isso quer dizer que a hierarquia é
em vigor do contrato revela-se o círculo estável
perfeitamente tangled, no sentido de que os pla-
da dirimição contratual de litígios. Uma relação
68 nas esferas sacra bem como secular formulários para negócios e pro-
interna circular é transformada, dessa maneira,
cessos, prestavam informações e elaboravam pareceres sobre matérias em relação externa. Descobrimos, na relação cir-
de direito. No tocante aos negócios jurídicos privados, juristas laicos cular entre os dois pólos institucionais do contra-
oriundos do patriciado passaram mais tarde a assumir essa atividade,
nomeadamente no tocante à formulação das condições dos contratos to e da corte arbitral, mecanismos reflexivos72
(cautelas); por meio dessa assim chamada jurisprudência cautelar, eles como base de um sistema jurídico autônomo.
deram início à primeira época do direito romano. Hoje o conceito é
usado freqüentemente para designar a configuração de relações jurídi- Elementos nucleares do emergente discur-
cas mediante o uso de acordos pré-formulados ou de “condições gerais
de contratação”, genericamente também para designar a atividade pre- so jurídico global são o uso de um código binário
vidente, planejadora, configuradora de contratos, desenvolvida pelos especializado, a distinção entre direito e não-di-
operadores do direito (especialmente pelos tabeliãos, advogados, juris-
tas especializados em matérias econômicas), em oposição à atividade reito e o processamento de um símbolo de vali-
forense” (KAUFFMANN, H. [ed.]. Rechtswörterbuch. 11. Aufl. dade não-nacional, até mesmo internacional, jus-
München: C.H. Beck’sche Verlagsbuchhandlung, 1992, p. 639).
69 CREMADES & PLEHN, 1984, com documentação comprobató-
ria adicional. 71 HOFSTADTER, 1979, p. 648ss., e 1985, p. 70ss.; e SUBER, 1990.
70 HART, 1961, p. 77ss. 72 STEIN 1995, p. 164ss.

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tamente global. Uma outra externalização, ao lado jurídico oficial e em um ordenamento jurídico
dessa constituição contratual de instâncias com não-oficial. No entanto, contrariamente à afirma-
aparência de tribunais (Quasi-Gerichte), consiste ção dos defensores de uma lex mercatoria, isso
na qualificação contratual como instituições por não tem nada a ver com o direito consuetudiná-
assim dizer legislativas (quasi-legislative Institutio- rio, pois, em termos já meramente empíricos, o
nen), como a Câmara de Comércio Internacio- discurso jurídico global não assenta em práticas
nal, em Paris, a associação jurídica internacional, nobilitadas por uma opinio iuris.76 Como outras
em Londres, a Comissão Marítima Internacional, formas jurídicas, não-consuetudinárias, ele assen-
em Antuérpia, ou outros tipos de associações co- ta em decisões de instituição “positiva” do direito
merciais internacionais. Desse modo, celebrações nas formas de legislação privada, jurisprudência e
de contratos transnacionais criam ex nihilo um contrato. À guisa de segurança, acrescentemos o
triângulo institucional de jurisprudência, legisla- seguinte: existem evidentemente usos e costumes
ção e contrato, funcionando de modo circular si- introduzidos como “práticas comerciais” nos
multaneamente como fundamento não-contra- contratos. Mas essa espécie de direito consuetu-
tual do contrato global. dinário só desempenha um papel bastante limita-
Por que justamente a externalização pela via do diante do direito positivado da lex mercatoria.
de mecanismos reflexivos73 é tão importante para Também deveria ter ficado claro que a lex
a criação de um direito global autônomo? Ela não mercatoria não pode ser equiparada a um droit cor-
desconstitui o paradoxo da autovalidação contra- poratif. No mercado mundial não existe nada se-
tual, mas gera simultaneamente uma dinâmica in- melhante a uma corporação abrangente a controlar
terativa entre as versões oficial e não-oficial do di- os seus membros. Naturalmente há organizações
reito global, característica do direito moderno, formalmente estruturadas, profissionais em áreas
pois introduz uma diferenciação interna entre a parciais, mas não existe nenhuma instituição co-
produção jurídica organizada e espontânea que mercial estruturada de modo abrangentemente
produz o equivalente funcional da separação do que possa regulamentar um direito organizacio-
direito contratual-judicial e do ordenamento nal interno sobre os mecanismos da filiação, do
contratual com autonomia privada.74 Desse mo- ingresso e do desligamento. Fontes formais da
do, as cortes de arbitragem e a legislação privada validade jurídica são as transações individuais do
alteram dramaticamente o papel do próprio con- mercado mundial não constituído como organi-
trato internacional, uma vez que tanto a corte ar- zação formal.
bitral quanto as cláusulas gerais do contrato ba- Por fim, a lex mercatoria também não apre-
seiam-se, elas mesmas, no contrato, por transfor- senta muitos traços comuns com o contrat sans
marem os direitos e deveres contratuais em “di- loi concebido por alguns representantes do direi-
reito não-oficial”, posteriormente controlado e to internacional.77 Certamente o contrato, e não
disciplinado pelo “direito oficial” das cortes de o direito nacional, é o mecanismo decisivo da
arbitragem. Cortes arbitrais privadas e legislação transferência de validade, dos usos e costumes
privada tornam-se, assim, o centro de um sistema comerciais ou qualquer forma de corporativismo
decisório que começa a erigir uma hierarquia de global. Por outro lado, esses autores continuam
normas e instâncias decisórias. Isso possibilita a ainda procurando a legitimação do contrato auto-
reflexividade da lex mercatoria.75 regulador no direito nacional: “É apenas lógico
O discurso jurídico global fundamenta-se, [!] que se os ordenamentos jurídicos nacionais
dessa maneira, no paradoxo da autovalidação permitem às partes de um contrato internacional
contratual e diferencia-se em um ordenamento optar pelo direito aplicável a esse contrato, eles

73 Ibid. 76 BERMAN, 1983, p. 50ss.


74 Cf. LUHMANN, 1993, p. 320ss. 77 SCHMITTHOFF, 1964 e 1982; CREMADES & PLEHN, 1984,
75 STEIN, 1995, p. 164ss. p. 328ss.; e MERTENS, 1996, cap. 2.

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também devem admitir que as partes configurem reconhecimento não é constitutivo da existência
as suas determinações contratuais em si mesmas de um ordenamento jurídico.
de forma tão completa que praticamente não res-
te mais nenhum espaço para a aplicação do direi- VI.
to nacional”.78 Equivaleria a um mal-entendido prenhe de
Salta aos olhos que isso não é “lógico”. A conseqüências chegar, na comparação entre a lex
concessão de um direito à opção pelo direito mercatoria e um ordenamento jurídico nacional,
aplicável de modo nenhum significa simultanea- ao resultado de caracterizar as diferenças entre
mente também a licença para a criação de um ambos como “fraquezas” inerentes à lex mercato-
novo direito anacional fora do ordenamento ju- ria, com o resultado de que ela seria um ordena-
rídico nacional. A comitas de Estados-nações so- mento jurídico ainda subdesenvolvido no plano
beranos remete outros ordenamentos jurídicos global.80 A assimetria de um centro institucional
nacionais, mas não ordenamentos jurídicos não- fraco, dependente de uma periferia econômica
nacionais. Em oposição a uma tal petição de prin- forte, é mais do que um assunto apenas transitó-
cípio, o nosso conceito de pluralismo jurídico glo- rio: deve ser retro-referido a mercados e empre-
bal assenta no fundamento de duas hipóteses sas globais, por um lado, e a políticas regionais
muito mais radicais do que uma delegação implí- com uma rede apenas internacional, por outro.
cita de poder estatal. Em razão disso, podemos esperar que o discurso
A primeira delas diz respeito à tradicional de um direito econômico global atinja, por si só,
doutrina da fonte do direito. O contexto global, uma estabilidade dinâmica, desenvolvendo uma
no qual nenhum ordenamento jurídico já exis- lógica interna específica, nitidamente distinta dos
ordenamentos jurídicos nacionais:
tente constitui uma fonte de validade de contra-
tos globais, força-nos a reconhecer o próprio 1. Acoplamento estrutural com processos eco-
contrato como fonte de direito, em grau hierár- nômicos globais: eis o principal traço distintivo da
quico igual ao lado do direito judicial e da legis- lex mercatoria. Trata-se de uma área do direito
lação. Já a segunda hipótese refere-se à legitimi- que cresce e se transforma em correspondência
com as transações econômicas globais.81 Por isso,
dade do direito. “Regras de reconhecimento” não
é extremamente vulnerável à injunção dos interes-
necessariamente devem ser produzidas de modo
ses e ao exercício do poder por parte dos atores
hetero-referencial por um ordenamento jurídico
econômicos. Com base no isolamento apenas re-
independente, de caráter público, e depois aplica-
duzido da sua paralegislação e parajurisprudência
das a arranjos contratuais privados. Vivenciamos
aparentes (Quasi-Gesetzgebung und Quasi-Rechts-
aqui uma situação “autolegitimadora”, só compa-
prechung), a autonomia e a independência relati-
rável à de revoluções autênticas, nas quais tam- vas alcançadas no passado pelos ordenamentos
bém a violência da primeira diferenciação produz jurídicos nacionais provavelmente não serão atin-
efeitos de criação de direito. “In ogni violenza vi gidas aqui. Também no futuro, a lex mercatoria
è um carattere di creazione giuridica.”79 Evidente- continuará sendo, nesse sentido, um direito cor-
mente essa revolução silenciosa da lex mercatoria rupto. Ao mesmo tempo, a falta de autonomia
– como todo e qualquer direito que tem por base torna esse ordenamento jurídico vulnerável a ata-
num ato revolucionário – depende do reconheci- ques políticos à sua legitimidade política.82
mento por outros ordenamentos jurídicos. No 2. Caráter episódico: sistemas auto-repro-
entanto, tendo em vista a questão da validade, dutores consistem de episódios interagentes liga-
isso é tão-somente um problema secundário. O
80 VIRALLY, 1982, p. 385; SIEHR, 1985, p. 117.
78 SCHMITTHOFF, 1964, p. 69. 81 BRAECKMANS, 1986.
79 RESTA, 1984, p. 10, e 1985, p. 59ss. 82 JOERGES, 1974, p. 41; e BONELL, 1978.

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dos entre si por um segundo círculo comunicativo pressuposto a independência de mecanismos ju-
(prejulgados, dogmática, codificação), represen- rídicos de variação e seleção. Ocorre que a varia-
tando o mecanismo evolutivo da estabilização.83 ção e a seleção autônomas da lex mercatoria são
Esse é o tendão de Aquiles da lex mercatoria. Ela tão subdesenvolvidas que o detalhamento desse
consiste de episódios concatenados de modo re- direito deverá ficar a reboque da evolução externa
lativamente tênue. Encontramos uma multiplici- do sistema econômico, sem, contudo, engendrar
dade de regimes contratuais, cuidadosamente ela- uma evolução autônoma.88
borados, que – como nos projetos de investimen- A longo prazo, as concatenações de episó-
tos em países em desenvolvimento84 – podem ga- dios da lex mercatoria se reforçarão onde for pos-
nhar extrema importância para a economia e a sível, de modo a permitir o início de uma evolu-
política de uma região inteira. Entretanto, os vín- ção jurídica autônoma, dependente do caminho.
culos entre esses regimes feudais contratuais são Mas podemos prognosticar desde já que tais
relativamente tênues, de modo que o Império concatenações de episódios distinguir-se-ão niti-
global do direito se assemelha um pouco à colcha damente dos seus correspondentes nacionais –
de retalhos do Sacro Império Romano de Nação hierarquias de tribunais, legislação parlamentar.
Germânica, um conjunto não-coordenado de Como foi dito anteriormente, delineia-se nos
muitos pequenos domínios. Os vínculos princi- dias atuais uma tendência ao sistema de prejulga-
pais entre eles sempre se produzem por organiza- dos e stare decisis das sentenças arbitrais interna-
ções privadas responsáveis pela formulação de cionais. E é digno de nota como a falta de uma
contratos-tipo.85 hierarquia judiciária “vertical” institucionalizada
Cortes arbitrais também são fortes na pro- fica compensada pela observação “horizontal” re-
dução de episódios e relativamente fracas na sua cíproca das cortes arbitrais e pela crescente
interligação. Há certos indícios da formação de dominância dos Big Three da arbitragem interna-
um sistema em matérias arbitrais, começando cional – a Chambre de Commerce International,
com a publicação de sentenças arbitrais funda- United States Claims Tribunal e o International
mentadas, primeiros sinais de um sistema de pre- Center for Settlement of Investment Disputes.89
julgados.86 “O fluxo permanente de decisões ar- O que isso significa? Hierarquias organizacionais
bitrais nutre um novo ordenamento jurídico que tradicionais dos tribunais são substituídas por re-
descende dos negócios internacionais e está di- des heteroárquicas e hierarquias de reputações.
mensionado especificamente às suas necessida- Tampouco as concatenações tipicamente
des. Costumes e regras profissionais são juridifi- político-parlamentares de episódios judiciais,
cadas na medida em que se tornam fundamento próprias do direito nacional, se repetirão no pla-
de decisões arbitrais.”87 no global. Uma concatenação de episódios no
Existem, por outro lado, obstáculos estru- plano global será realizada antes pelos regimes
turais para o desenvolvimento de um case-law, dos private governments, por organizações asso-
bem como para a formação de uma hierarquia de ciativistas econômicas e profissionais e por toda
cortes arbitrais que possam produzir uma coe- uma rede amplamente ramificada de organiza-
rência no interior do segundo círculo comunica- ções internacionais de natureza privada ou públi-
tivo. Por esse motivo, as perspectivas de uma ca. No futuro, uma multiplicação desses tipos
evolução jurídica independente da lex mercatoria específicos de concatenações de episódios poderá
são bastante ruins, pois tal evolução teria como levar a uma situação na qual a diferenciação inter-
na da lex mercatoria será mais uma vez nitidamen-
83 TEUBNER, 1987 e 1989b, cap. 3.
84
te potenciada, ensejando, por força da estabiliza-
Cf. SCHANZE, 1986.
85 SCHMITTHOFF, 1982; e STEIN, 1995, cap. 3.
86 CARBONNEAU, 1985; PAULSSON, 1990; BERGER, 1992; e 88 Sobre a evolução interna e externa do direito, cf. TEUBNER,
STEIN, 1995, p. 165ss. 1989b, cap. 4.
87 CREMADES, 1983, p. 533. 89 STEIN, 1995, p. 167

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ção e separação de mecanismos de variações de representa um inequívoco desafio à ingerência da


normas, seleção de decisões e retenção de dog- política. Embora seja extremamente difícil para a
mas, uma evolução jurídica autônoma com rela- política, nos planos nacional e internacional, “di-
ção ao seu entorno econômico. rigir” processos econômicos globais ou empresas
3. Soft Law: a substância normativa da lex multinacionais, as coisas mudam drasticamente
mercatoria é extremamente indeterminada. Em com o ingresso da juridificação formal. Tão logo
vez de normas jusprivatistas concretas, ela pro- o mecanismo contratual tiver produzido o aco-
duz uma série de princípios abertos cuja aplicação plamento estrutural do direito e da economia, a
se altera segundo o caso.90 Essa é uma das razões política tenderá a servir-se desse acoplamento
pelas quais alguns juristas negam-se a atribuir-lhe para os seus próprios fins. Isso pode ser observa-
a qualidade de um ordenamento jurídico.91 Po- do no caso da lex mercatoria, que não logrou sub-
rém, os argumentos precedentes deverão ter trair-se à ingerência da política internacional. No
mostrado onde se localiza o erro categorial: pro- futuro, essa ingerência provavelmente será mais
cura-se um corpo de regras como essência de um dura.94
ordenamento jurídico autônomo, em vez de ob- Por duas razões a lex mercatoria não poderá
servar o processo de comunicação que processa o permanecer no seu estatuto idílico de sistema ju-
símbolo de validade em conformidade com o có- rídico criado em regime privado. Em primeiro lu-
digo jurídico binário. Não obstante todas as ten- gar, por causa da renacionalização: quanto mais o
tativas de codificar as normas jurídicas do direito problema da competitividade de economias nacio-
econômico global,92 justamente a flexibilidade da nais ou de blocos regionais ocupar o primeiro
lex mercatoria é digna de nota: trata-se antes de plano da política internacional, tanto mais a lex
um direito de valores e princípios do que de um mercatoria também se verá pressionada a adaptar-
direito de estruturas e formas.93 Será a flexibilida- se às políticas econômicas nacionais. Um bom
de sinal de força ou de fraqueza? Uma vez mais, exemplo é a evolução do direito internacional de
não deveríamos vê-la como uma desvantagem, e propriedade intelectual. Em cada caso, a lex mer-
sim como uma característica do direito mundial. catoria se tornará uma esfera abertamente politi-
Ela é a compensação pela impossibilidade de im- zada, na qual o papel político de organizações in-
plementar o direito mundial. Torna esse ordena- ternacionais passará a ocupar o primeiro plano. A
mento jurídico mais maleável e adaptável a con- segunda razão é o conflito Norte-Sul: a discussão
dições gerais em via de transformação, e a lex sobre a “nova ordem econômica mundial” pro-
mercatoria mais adequada a uma uniformização
duziu efeitos sobre o direito econômico global.
global do direito. E a deixa relativamente resis-
Isso se pode ver e.g. nas codificações da Organi-
tente à destruição simbólica, no caso do desvio da
zação das Nações Unidas (ONU) sobre o direito
norma. A estabilidade é o resultado da sua dispo-
de compra e venda (Kaufrecht) ou nos contratos
sição a ceder. A lex mercatoria é soft law, mas não
pré-formulados pela Comissão Econômica das
um direito fraco.
Nações Unidas para a Europa.
Contudo, trata-se sempre de mecanismos
VII.
de repolitização que são, para a lex mercatoria, o
No entanto, a sua origem e o seu caráter “entorno”. Ocorre que a política da lex mercato-
apolíticos não podem preservar a lex mercatoria ria somente experimentará uma transformação
de uma repolitização no longo prazo. Muito pelo substancial se também os mecanismos internos
contrário: a juridificação das relações econômicas desse mecanismo global de criação de direito fo-
90
rem politizados: se também as estruturas e os
HOFFMANN, 1987, p. 22ss.; e MUSTILL, 1987.
91 BAR, 1987, p. 79.
92 UNIDROIT, 1994. 94 Cf., a respeito, JOERGES, 1974, p. 41; BONELL, 1978; KAR-
93 MEYER, 1994, p. 128ss. NELL, 1985; BÉGUIN, 1985; e STEIN, 1995, p. 247ss.

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processos internos da geração do direito – as ins- cedimentos dos tribunais de arbitragem – entra-
tâncias instituidoras de direito nas organizações rem mais no campo visual do debate e controle
internacionais privadas e a composição e os pro- públicos.

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Dados do autor
Sociólogo do direito, professor na Universidade
de Frankfurt am Main, doutor em sociologia do
direito pela Universidade de Tübingen e
membro da Academia Européia em Londres.
Recebimento do artigo: 22/jan./02
Consultoria: 14/fev./02 a 27/maio/02
Aprovado: 1.º/nov./02

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Os Fundamentos Filosóficos
e Jurídicos de uma
Comunidade Internacional*
PHILOSOPHICAL AND LEGAL BASIS OF AN
INTERNATIONAL COMMUNITY
Resumo Apesar da difundida utilização da expressão comunidade internacional pela
mídia, pelos Estados, pela literatura e pelas instituições internacionais, o conceito per-
manece como algo impensado nos planos jurídico e filosófico. A vontade de se em-
preender uma reflexão sobre o assunto esbarra, todavia, em um obstáculo prévio.
Como conceber conjuntamente a soberania dos Estados e a comunidade internacional? ISABELLE DUPLESSIS
Até o momento, tudo tem acontecido no pensamento político moderno como se Université de Montréal,
houvesse uma irredutível antinomia entre esses dois termos. Nosso propósito é de- Canadá
monstrar que tal antinomia é superável, contanto que se parta de uma releitura para- isabelle.duplessis@umontreal.ca
lela das noções de soberania nacional e de comunidade internacional.

Palavras-chave COMUNIDADE INTERNACIONAL – SOBERANIA ESTATAL – FUNDA-


MENTOS FILOSÓFICOS E JURÍDICOS.

Abstract Despite the divulged use of the expression international community by the
media, the States, literature and the international institutions, the concept is still so-
mething unacceptable in the legal and philosophical plans. Nonetheless, the purpose
to reflect on the matter collides with a previous obstacle. How to conceive both the
States’ sovereignty and the international community? Until this moment, everything
has happened in the modern political thought as if there was an irreducible antinomy
between these two terms. Our purpose is to show that such antinomy is surmoun-
table, as long as we begin with a parallel rereading of the notions of national sove-
reignty and international community.

Keywords INTERNATIONAL COMMUNITY – STATE SOVEREIGNTY – PHILOSOPHI-


CAL AND LEGAL BASIS.

* Texto apresentado inicialmente durante o seminário de inverno de 1999, na Université du Québec au

Montréal (UQÀM), Canadá. Tradução do francês: Anna Magdalena Machado Bracher.

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O PROBLEMA

H
á certas coisas que se discutem sem necessaria-
mente precisar-se remetê-las a seus fundamen-
tos. Nesse sentido, o estudo da retórica com
base em Aristóteles nos ensina que os homens
argumentam essencialmente sobre aquilo que
representa um problema. Enquanto não se le-
vanta um problema, pode-se deduzir verossi-
milmente que tal problema não existe. De fa-
to, não se discute sobre acontecimentos que dependem da necessidade e,
por conseqüência, escapam ao controle do homem, nem mesmo sobre
conceitos ou regras que não são alvo de nenhuma polêmica, uma vez que
seu uso, seguindo nesse ponto a explicação de Wittgenstein, determina
com segurança sua significação. No caso em questão, e diante do uso di-
fundido do termo comunidade internacional, teríamos o direito de pensar
que ocorre o mesmo.
Nesse caso, a exceção confirma a regra. Além de sua utilização ple-
tórica pela mídia, pelos Estados, pela literatura e pelas instituições inter-
nacionais, o conceito de comunidade internacional é tudo, exceto unívo-
co. Ele permanece como uma coisa impensada. É um pouco como se a
retórica da comunidade internacional esvaziasse aqui o caráter impreciso,
ideológico e mesmo polêmico da expressão, sem se preocupar com ne-
nhuma argumentação ou reflexão. A expressão remete, entretanto, e cer-
tamente, a uma dada realidade. Seu uso corrente sugere uma função prag-
mática do discurso na construção da realidade cujas grandezas e misérias
nos são cotidianamente relatadas.
Contudo, continua sendo, tanto em âmbito semântico quanto no
pragmático, um conceito vago e, portanto, altamente susceptível a
apropriações estratégicas de todos os tipos. Esse uso lingüístico corres-
ponde, mas, em nossa opinião, não deve ser confundido com uma mun-
dialização factual ou, retomando o pensamento de Jürgen Habermas,
com uma globalização dos riscos unindo objetivamente, embora invo-
luntariamente, o mundo.1 A utilização pletórica do termo comunidade
internacional contribui para a confusão dessa última com uma mundiali-
zação de facto, mas que evoca um novo espaço sociossimbólico,2 ultra-
passando, dessa vez, o universo nacional tradicional.
Qual é precisamente a composição dessa comunidade? Ela agrupa
o conjunto dos Estados, as Nações Unidas, os atores transnacionais e os
indivíduos? Limita-se, nesse caso particular, a um organismo internacio-
nal como o Conselho de Segurança, a um braço executivo como a Or-
ganização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), a um agrupamento de
cunho regional à semelhança da Comunidade Européia ou a uma potên-

1 HABERMAS, 1996. Essa idéia é retomada por DELMAS-MARTY, 1998, e anunciada por GAETE,
1995.
2 BOULAD-AYOUB, 1995.

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cia estatal pretensamente, não importa como, a distintamente, em instrumentos normativos, como
grande justiceira, cujo nome preferimos não a carta das Nações Unidas3 e a declaração sobre as
mencionar? A reflexão sobre os fundamentos da relações amigáveis,4 interpretante dessa carta, além
comunidade internacional é urgente, sobretudo de confirmar a sua utilização contemporânea cada
quando se ignoram as divisões em seu interior e vez mais difundida, e de forma explícita, em instru-
se lhe outorga desde já a responsabilidade em mentos recentes, como o tratado de proibição com-
caso de inação. Pensemos especialmente no pleta dos testes nucleares5 e o estatuto de uma corte
genocídio em Ruanda e nas exigências, por parte criminal internacional.6
de cidadãos belgas, de investigação sobre o papel O desejo de suprir essa carência de reflexão
assumido, na época, pelo atual secretário-geral sobre comunidade internacional, esse déficit
das Nações Unidas, Kofi Annan, ou ainda, nos filosófico e jurídico, esbarra inevitavelmente em
últimos acontecimentos em Kosovo. um obstáculo. De fato, como conceber, apesar da
Estamos, então, diante de um simples soberania dos Estados, a idéia de uma comunida-
artifício instrumental, podendo ser utilizado con- de internacional como sujeito de ação? Tudo
forme se queira e conferindo certa legitimidade a aconteceu e ainda acontece como se a soberania
fins diversos, até mesmo contraditórios? É pos- nacional e a comunidade internacional fossem
sível dar à comunidade internacional outro senti- mutuamente excludentes, como se existisse, en-
do que não o de um logro coincidente, dessa vez, tre os dois conceitos, uma antinomia insuperável.
com o fim da Guerra Fria e o discurso sobre a Para os autores “clássicos”7 (Vitoria, Sua-
globalização? Como refletir sobre a comunidade rez, Gentili), isso não seria realmente um parado-
internacional em um contexto político em que a xo, uma vez que a virtualidade de um conflito en-
soberania dos Estados se impõe sempre, a despei- tre a soberania nacional e a comunidade interna-
to das transformações que ela possa sofrer? cional poderia simplesmente resultar em nada. As
divergências e os particularismos se confundiam,
A SOBERANIA NACIONAL E A então, no interior de um pensamento jusnatura-
COMUNIDADE INTERNACIONAL: lista, às vezes mesmo teológico-político ou tele-
DUAS IDÉIAS ANTITÉTICAS? ológico de alcance universal. É necessário já ver aí
o início da articulação de um dualismo entre a so-
As dificuldades berania nacional e a comunidade internacional.
Contrariamente ao conceito de soberania, Os autores “clássicos” foram levados a refletir e a
que, desde a criação do Estado moderno, vem sen- escrever sobre a comunidade internacional com a
do sistematizada tanto no plano jurídico quanto no conquista do Novo Mundo, a ruptura continen-
filosófico – tendo como prova o modelo contra- tal da cristandade e a ascendência do Estado. Tal
tualista –, não houve nenhuma tentativa desse gê- tarefa tornou-se verdadeiramente paradoxal, com
nero e desse porte para pensar a comunidade inter- o recuo de um esquema transcendente que absor-
nacional e seu caráter propriamente jurídico. Certa- via os particularismos, além da consolidação do
mente, encontram-se reflexões bastante próximas
disso em Grotius, no Abade de Saint-Pierre, em 3 Conferência das Nações Unidas para a Criação de uma Organização
Internacional (CNUCIO), de 26/jun./1945, 1999, v. 15, p. 365; (1945)
Leibniz e, mais particularmente, em Kant, em sua R.T. Can. n. 7. Cf., por exemplo, FASSBENDER, 1998.
obra sobre A Paz Perpétua, alvo de inúmeros co- 4 Declarações sobre os Princípios de direito internacional relativos às
relações amigáveis e de cooperação entre Estados, de acordo com a
mentários de filósofos contemporâneos (entre eles, Carta das Nações Unidas, Doc. of. A.G., 25.a sessão, sup. n.° 28, p.
Habermas e Höffe). Entretanto, essas reflexões não 131, Doc. N.U. A/5217 (1970).
5 Doc. N.U. A/50/1027, Anexo, 26/ago./1996.
abordam especificamente o conceito comunidade 6 Estatuto da Corte Penal Internacional, adotado em 17/jul./1998 (120

internacional, muito menos a fundação possível de votos a favor, 7 contra e 21 abstenções), Doc. N.U. Conf. 183/9.
7 Para rever a literatura que destaca precisamente a ausência de antino-
sua dimensão normativa. Ora, tal expressão remete mia nesses autores, cf. KENNEDY, 1986; e TRUYOL Y SERRA,
efetivamente a uma realidade delineada, mesmo in- 1995.

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Estado moderno ao longo do tempo. A sobera- Diante dessas explicações representativas


nia tranformou-se cada vez mais, no plano inter- do espectro das posições, deparamo-nos com o
no, em sinônimo do domínio absoluto de um go- seguinte problema: na medida em que se aceite a
verno sobre um território delimitado e uma po- possibilidade de uma normatividade internacio-
pulação definida, tendo por corolário, no plano nal, rejeitada explicitamente pela realpolitik, o di-
externo, uma independência diante de toda auto- reito se resume a uma descrição sociológica ou à
ridade normativa, sem importar a fonte de sua codificação das veleidades e práticas estatais.9 Daí
emanação. procedem as críticas feitas, com razão, ao direito
Como os “modernos” podem conciliar es- internacional. De acordo com elas, o direito in-
ses particularismos estatais na ausência de um es- ternacional comporta uma deficiência normativa
quema transcendente ou de uma autoridade que inaceitável, por evencer espontaneamente qual-
se pretende universal? Geralmente, e indepen- quer capacidade de guiar o agir internacional ou
dentemente de seu campo de estudo, eles apaga- qualquer obrigação internacional. Por outro lado,
rão o conceito de comunidade internacional em se o direito internacional acolhe verdadeiramente
prol da soberania nacional. Por exemplo, o real- uma normatividade independente e possivelmen-
politik atual (ciências políticas e relações interna- te contrária aos interesses imediatos dos Estados,
cionais) se inspirará em Hobbes para aproximar o quem, então, poderá empregá-lo? Toda a questão
cenário internacional de um Estado de natureza da efetividade do direito está aqui colocada.
excessivamente violento, um Estado de natureza O paradoxo soberania nacional e comuni-
sui generis que não precisa de nenhum contrato dade internacional continua, de toda maneira, ir-
social para assegurar a sobrevida e a segurança das resoluto à luz das teorias ou dos conjuntos de te-
individualidades estatais. O jogo internacional orias de que dispomos. Para os “clássicos”, esses
dos particularismos confunde-se com uma estru- dois termos não se apresentavam apenas sob uma
tura tecida de relações de poder. Sai de cena a forma antitética. Quanto aos “modernos”, em-
normatividade. bora herdem completamente a tarefa paradoxal,
As respostas dos juristas são mais atenua- suas soluções se mostram insatisfatórias, pois
das, e até mesmo divididas, pois eles bem sabem consistem invariavelmente em desviar o curso da
comunidade internacional em prol da soberania
que o direito não pode nascer e se impor com
nacional.
base na ausência de uma sociedade. Encadeados
com essa condição sine qua non, mas igualmente
pela força teórica e prática da soberania, os juris- PROPOSTA DE SOLUÇÃO: E SE O
tas farão com que a obrigatoriedade das normas PARADOXO FOSSE APENAS APARENTE...
do direito internacional decorra da vontade ou do Estamos, assim, verdadeiramente diante de
consentimento expresso dos Estados.8 A socieda- termos antitéticos? Devemos, a fim de explicar o
de internacional – pois hesitamos em chamá-la co- uso renovado do termo comunidade internacio-
munidade – se construiria, então, sobre o consen- nal, e por uma espécie de retorno do pêndulo,
timento pontual e explícito dos Estados-nações. apagar por nossa vez o conceito de soberania na-
Dessa forma, a vontade do Estado nacional predo- cional? Algumas abordagens contemporâneas
mina e deixa à comunidade internacional um papel privilegiam esse retorno do pêndulo,10 chegando
bastante subsidiário. mesmo a mencionar ou anunciar a morte do Es-
tado e, ao mesmo tempo, da soberania nacional.
8 A Convenção de Viena sobre o direito dos tratados (1980), 1.155
As teses sobre o esfacelamento ou a dissolução
RTNU 354; (1980) R.T. Can. n. 37, faz do consentimento a pedra
principal das relações contratuais entre os Estados, ao passo que a teo-
ria do consentimento necessitou sofrer verdadeiras contorções para 9Cf. KOSKENNIEMI, 1989.
explicar o costume de maneira mais ou menos satisfatória. Cf. por 10Para um resumo conciso e eficaz dessas abordagens, cf. KOSKEN-
exemplo KELSEN, 1986; e SUR, 1986. NIEMI, 1994.

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do Estado podem basear-se, por um lado, na sua do romantismo, as reflexões sobre a comunidade
incapacidade de responder às exigências factuais internacional eliminam os particularismos esta-
da globalização e à evanescência das fronteiras tais, em razão da sua artificialidade, substituindo-
geográficas e conceptuais ou, em outras palavras, os por uma multiplicidade de pequenas comuni-
à interdependência econômica, militar, ecológica dades autênticas ou, ainda, como parte de um
e social. Por outro lado, elas podem se apoiar em grande todo planetário e orgânico. Essa última
uma exigência ética, dividida, por sua vez, tam- concepção não permite, em nossa opinião, enten-
bém em dois campos. Desse modo, a exigência der a comunidade internacional como um con-
ética liberal ou cosmopolítica rejeita conferir junto funcional e viável formado de individuali-
qualquer primazia moral ao Estado, instrumento dades políticas não redutíveis.
histórico de repressão, para o advento internacio- Gostaríamos, assim, de conservar as idéias
nal do indivíduo e dos direitos do homem.11 A de soberania e de comunidade internacional, na
exigência ética comunitariana censura sobretudo tentativa de uma releitura conjunta desses dois
a criação e a perpetuação pelo Estado de distin- termos. Inicialmente, e por uma simples mudan-
ções artificiais e contingentes, em detrimento de ça de perspectiva, não se poderia entender a idéia
laços autênticos e espontâneos da comunidade de soberania sem a de comunidade internacional,
cultural, étnica ou lingüística,12 ou ainda da hu- uma vez que somente é possível pensar a sobera-
manidade como um todo. nia com relação a uma individuação, uma singu-
Nossa pretensão aqui não é a demonstra- larização. Essa individuação passa obrigatoria-
ção das dificuldades teóricas, filosóficas e prag- mente pelo reconhecimento dado pelos outros
máticas dessas abordagens contemporâneas, seja Estados às práticas políticas e institucionais de
o que for que elas demonstrem ser. Até provar-se uma nação em particular. A comunidade interna-
o contrário, e apesar das transformações que pos- cional funciona como condição indispensável,
sa sofrer, o Estado existe para permanecer, e o pois permite a individuação e a individualidade
conceito de soberania não pode, conseqüente- dos Estados. Tal individualidade completa-se ape-
mente, ser evicto. Por outro lado, é necessário de- nas na presença do Outro, sob o olhar dos ou-
fender e assumir o paradoxo soberania nacional e tros. Diante da alteridade, o Estado nacional se dá
comunidade internacional, talvez apenas aparen- conta de sua singularidade, toma consciência de
te. De fato, a antinomia depende fundamental- sua condição de ator internacional.
mente da representação feita da soberania, por Conseqüentemente, o Estado se atualiza na
um lado, e da idéia tida de comunidade interna- forma como concebe a si mesmo, nos seus dis-
cional, por outro. Uma vez que a interpretação cursos e nos que os outros fazem sobre ele. A
daquela tendeu irresistivelmente para a radicaliza- globalização ocupa aqui um papel de primeira im-
ção e a atomização dos Estados-nações, a comu- portância, cuja intensidade, porém, é variável,
nidade internacional não podia advir, ao menos transformando as funções tradicionais do Estado
no plano conceitual. Na melhor das hipóteses, moderno e ampliando a categoria dos demais, de
essa última se resumiria a uma coleção numérica modo a incluir atores não-estatais ou transacio-
e justaposta de particularismos estatais. nais e as organizações internacionais, regionais e
A comunidade internacional perde, é ne- não-governamentais. A identidade estatal se
cessário dizê-lo, qualquer especificidade e não au- constrói pela utilização da retórica, dessa cons-
toriza nenhuma normatividade independente- tante negociação discursiva entre ele, como Esta-
mente da vontade estrita dos Estados. No senti- do soberano isolável, mas não concebível em ter-
do contrário, e seguindo uma filosofia próxima mos de mônada, e os outros Estados. Essa retó-
rica se articula por meio das regras jurídicas, de
11Cf. a argumentação de TESON, 1992a e b.
12 Essa exigência comunitariana serve de base às reivindicações inter-
sua interpretação e das justificações trazidas por
nacionais autoctonistas, para citar apenas essas. uma ação ou um dissenso. Tais discursos inse-

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rem-se, por sua vez, em um conjunto de práticas por sua vez, tornarão o mundo inteligível, por ser
intersubjetivas. precisamente construído pelo conjunto dos ato-
Em resumo, por exigir apresentar-se aos res. Nesse sentido, o horizonte da comunidade
outros por meio dos discursos, da utilização das internacional jamais se determinou com base na
regras e práticas internacionais que nenhum Es- simples existência de fenômenos globalizantes.
tado recusa realmente, ou mesmo factualmente, Antes, a comunidade internacional é uma cons-
embora alguns exijam uma interpretação diferen- trução permanente, mas bastante real, que pro-
cial, a individualidade participa da construção duz seu próprio sentido irredutível ao universo
ininterrupta de uma comunidade internacional. nacional.
Essa afirmação, por si só, sugere uma comunida- Evidentemente, e para finalizar esse tópico,
de internacional existente como fato jurídico ati- a comunidade internacional sobre a qual deseja-
vo, cujo discurso pode ser, em muitos casos, por- mos refletir afasta-se da definição convencional
tador de normatividade. Isso significa que, mes- que a limita a uma institucionalização política, so-
mo independentemente de uma soberania nor- cial e geográfica.14 Ela é uma comunidade, uma
malmente concebida monadicamente, certos cultura, composta certamente por seres artificiais,
modelos comunitários guiavam o agir e permiti- mas reais, uma associação existente como fenô-
am justamente a autonomia estatal.13 Entretanto, meno, ainda que muitas vezes inconsciente, au-
tais modelos comunitários, que consentiam e torizando a compreensão dos acontecimentos
continuam a reforçar a soberania concebida mo- políticos em esfera mundial e a posição dos Es-
nadicamente, restringem a extensão de uma nor- tados individuais em que vivemos, em compara-
matividade independente do Estado. Para justifi- ção com esse conjunto que constitui o objeto de
car a transgressão de uma regra, o Estado muitas nossa pesquisa, a comunidade internacional.
vezes recorreu à noção de jurisdição exclusiva.
Não havia aí, na verdade, uma justificação jurídica PROGRAMA DE PESQUISA
para as suas ações diante dos outros Estados ou Após ter retraçado os contornos da sobe-
de uma organização internacional. Nessas situa- rania com a consolidação do Estado moderno e,
ções, assistiu-se a uma recusa e ao aborto, pelos sobretudo, as conseqüências dessa representação
modelos comunitários, da construção de uma co- para o direito internacional, teremos condições
munidade internacional interpretativa. de perceber que a soberania foi conceitualizada
A intensificação do discurso contemporâneo na história de tal forma que impedia a existência
que cita, como foi dito no início deste texto, a co- de uma comunidade internacional.
munidade internacional de forma repetitiva per- Será ainda necessário nos perguntarmos se
mite antever uma mudança nos modelos comu- o discurso soberano conserva toda a sua perti-
nitários. Daí procede a urgência de uma reflexão nência na compreensão e na organização políti-
sobre a comunidade internacional, pois ela pode co-jurídica do cenário internacional. Em outras
realmente, nesses momentos de profundas mu- palavras, é a soberania sempre necessária e, na
danças práticas e teóricas, influir na forma de tais eventualidade de uma resposta positiva, consti-
modelos. Esses últimos remetem, desde sempre, tui-se realmente como antinômica a uma comu-
um conjunto móvel de práticas e discursos que nidade internacional normativa? Caso contrário,
conferem em troca um sentido aos sujeitos e a como se deve articular uma comunidade interna-
suas ações. Eles definirão a maneira como as in- cional na ausência da soberania?
dividualidades estatais deverão reconhecer a si Essa questão da necessidade da soberania
mesmas, gerarão categorias, lugares comuns, que, surge inevitavelmente com as teses sobre a cadu-
13
cidade, o esfacelamento ou o desaparecimento do
Pensemos aqui nas regras incontornáveis sobre a igualdade soberana
e a independência dos Estados, a não-ingerência em seus assuntos inte-
riores, a proibição da ameaça ou do uso da força e a legítima defesa. 14 WINTER, 1991.

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Estado. Teses que, a propósito, coincidem com a necessários a uma releitura da soberania, o pensa-
utilização cada vez mais difundida do termo co- mento cosmopolítico e o comunitariano não per-
munidade internacional, confirmando, assim, o mitem, por si sós, fundar uma comunidade inter-
movimento antinômico e oscilatório entre a so- nacional. Além de certos problemas intrínsecos
berania e a comunidade internacional. Se as pre- que implica, o pensamento cosmopolítico baseia-
visões sobre o deperecimento do Estado e sobre se na extensão mundial do Estado de direito libe-
o caráter inútil ou indesejável da soberania fun- ral e democrático. Considerando-se, de maneira
dam-se, por menos que possa parecer, na realida- reservada, que a grande maioria dos Estados não
de, quais serão a composição e o funcionamento atende a essa condição, tal pensamento permane-
da comunidade internacional? De um modo ou ce inaplicável aqui e agora. Do mesmo modo, as
de outro, essas teses apontam dificuldades tanto críticas comunitarianas não atendem ao critério
teóricas como práticas que teremos de responder. funcional. Elas esvaziam, além disso, os funda-
Considerando a diversidade e a quantidade de mentos de uma ordem jurídica internacional em
opiniões, agruparemos em dois grupos as críticas prol de uma moral da autenticidade cultural, ét-
ao Estado e à soberania, até para melhor tratá-las. nica, religiosa ou qualquer outra, que podem cau-
A primeira crítica, qualificada aqui prelimi- sar conflitos potenciais entre particularismos. Por
narmente de sociológica, associa-se estritamente ter-se esvaziado o fórum jurídico que poderia re-
ao fenômeno da mundialização ou globalização. solvê-los, esses conflitos tenderão a se perpetuar.
Após haver circunscrito tal fenômeno ao domí- Ao contrário, postularemos a perduração
nio factual, constataremos que a mundialização por um tempo indefinido do Estado e ele conti-
perturba efetivamente o funcionamento tradicio- nuará a ser, conseqüentemente, uma unidade de
nal e o discurso soberano do Estado, bem como análise primordial a nossas pesquisas sobre os
a produção do direito. Entretanto, essa globaliza- fundamentos filosóficos e jurídicos de uma co-
ção factual e involuntária não nos diz nada em si munidade internacional. No entanto, esse postu-
sobre os fundamentos possíveis de uma comuni- lado deverá acolher, por um lado, as transforma-
dade internacional normativa. Além disso, ela ções factuais do Estado geradas pela globalização
não significa automaticamente a evanescência do e, por outro, as críticas cosmopolítica e comuni-
Estado moderno. O campo de ação do Estado tariana ao Estado. Com base em tais elementos
parece, antes, deslocar-se, e não desaparecer, ao práticos e teóricos, poderemos proceder a uma
passo que a produção do direito tende para um releitura da soberania diante da necessidade de
modelo de regulação, em oposição ao modelo hie- pensar a comunidade internacional, erguendo, as-
rárquico e positivista. sim, o véu antinômico entre esses dois conceitos.
A segunda crítica ao Estado moderno e à so- Com o propósito de eliminar tal antinomia, em-
ciedade internacional ressalta preocupações éticas preenderemos uma reflexão renovada sobre os
e agrupa tanto os partidários de um direito cosmo- fundamentos filosóficos e jurídicos da comuni-
político quanto os de um comunitarismo. Se tal dade internacional, com a ajuda, especialmente,
crítica fornece elementos sérios e indispensáveis, da filosofia da interpretação e da fenomenologia.

Referências Bibliográficas
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KOSKENNIEMI, M. From Apology to Utopia. The structure of international legal argument. Helsinki: Lakimiesliiton
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Dados da autora
Doutora em direito e professora da Faculdade de
Direito da Université de Montréal (Canadá)
Recebimento artigo: 28/maio/02
Consultoria: 17/dez./02 a 7/fev./03
Aprovado: 25/mar./03

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Globalização, Justiça Social e


Emancipação: um debate na
perspectiva do direito do
trabalho
GLOBALIZATION, SOCIAL JUSTICE AND
EMANCIPATION: A DEBATE ON THE LABOR
LAW PERSPECTIVE
Resumo O presente artigo trata a globalização, com enfoque nas suas conseqüências
para o direito do trabalho no Brasil. Distinguindo sobretudo duas fases históricas – de
um lado, o período entre o fim da 2.ª Guerra Mundial e a crise econômica do começo DOROTHEE SUSANNE
dos anos 70 e, de outro, a partir de 1973 até os dias de hoje –, analisa as transformações RÜDIGER
econômicas, políticas e culturais que influenciam o desenvolvimento do direito do Universidade Metodista de
trabalho. O fenômeno principal das mudanças (flexibilização do direito do trabalho) Piracicaba (UNIMEP, Brasil)
é examinado como um fato inerente à administração flexível do trabalho. A dimensão dsrudige@unimep.br
normativa da flexibilização é demonstrada no exemplo das últimas transformações
das normas jurídicas do trabalho no Brasil, que dão ênfase às normas coletivamente
negociadas, em detrimento do direito estatal.

Palavras-chave DIREITO E GLOBALIZAÇÃO – TRANSFORMAÇÕES DO DIREITO DO


TRABALHO NO SÉCULO XXI – DIREITO E PÓS-MODERNIDADE.

Abstract The present article deals with globalization focusing its consequences in
Brazil’s labor laws. Distinguishing mainly two historical phases – the years between
the end of World War Second and the economic crisis of the early seventies, on the
one hand, and the years from 1973 until today, on the other hand –, the study analyses
the economical, political and cultural changes that act on the development of the la-
bor laws. The changes’ central phenomenon (the flexibilization of the labor laws) is
considered inherent to the labor management. The normative dimension of flexibi-
lization is shown through the recent example of the changes in Brazil’s labor rules,
which emphasize the collectively bargained rules to the detriment of the legal ones.

Keywords LAW AND GLOBALIZATION – CHANGES IN LABOUR LAW IN THE 21st


CENTURY – LAW AND POSTMODERNITY.

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GLOBALIZAÇÃO E CRISE PARADIGMÁTICA


DO DIREITO DO TRABALHO

A
história do tempo da qual somos testemunhas oculares
nos prepara sensações de surpresa a cada dia que abrimos
nossos jornais impressos ou virtuais. Se, de um lado, es-
tamos, no início desse século XXI, outra vez ameaçados
de uma guerra com dimensões mundiais, de outro, po-
demos também perceber a formação de uma sociedade
civil mundial. Essa não só é capaz de se reunir periodi-
camente em fóruns de debates, cujo escopo é buscar soluções para pro-
blemas também mundiais, como também de mobilizar, num único dia,
como ocorreu em 15 de fevereiro de 2003, milhões de pessoas, pelo globo
inteiro, em manifestações a favor da paz. No entanto, esses fatos da his-
tória contemporânea nos colocam diante da globalização como um fe-
nômeno tão complexo quanto a sociedade mundial por ele criada. Muito
se escreve, pois, sobre os efeitos nefastos da expansão do mercado em es-
cala global. Atingidos são particularmente os trabalhadores, que, por sua
vez, sentem na carne a concorrência mundial capaz de minar seus direitos
conquistados ao longo dos séculos XIX e XX.
Dessa maneira, é quase um paradigma, para os mais recentes deba-
tes no direito do trabalho, a globalização econômica. Estamos, de fato,
diante de uma crise do direito do trabalho estreitamente ligada à descons-
trução e à reorganização do trabalhador coletivo em escala mundial, com
seus desdobramentos na esfera jurídica pelo esfarelamento do regramen-
to da relação de emprego em múltiplas formas atípicas de normatização
das relações de trabalho. O trabalho é contratado no mercado mundial
por meio de formas jurídicas diversificadas e flexíveis que têm em co-
mum alguns traços principais: 1. a transferência dos riscos das atividades
econômicas para trabalhadores autônomos, pessoas físicas ou jurídicas; 2.
a possibilidade na contratação de serviços, subordinados ou autônomos,
de o capital recorrer para o trabalho just in time; 3. a organização das ati-
vidades empresariais em redes de empresas aparentemente horizontais,
mas em que se constata um forte controle das grandes organizações so-
bre as demais.1
Por outro lado, as transformações contemporâneas do direito do
trabalho são analisadas também à luz de um debate de cunho teórico ju-
rídico. Essa discussão acerca do princípio protetor e da regra da norma
mais favorável ao trabalhador teve início, no Brasil, logo após a promul-
gação da Constituição de 1988. Hoje em dia já pode se falar na existência
de uma teoria da flexibilização.2 Curioso é que a discussão em torno de
questões de fundo surge antes mesmo da tomada, no Brasil, de decisões
políticas para a abertura do mercado à globalização – portanto, antes de

1CASTELLS, 1999, p. 176.


2MAGANO, 1989, p. 531-537; PASTORE, 1994, p. 403; ROBORTELLA,1994, p. 97; e, de certa
maneira, MANNRICH, 1998, p. 16.

42 Impulso, Piracicaba, 14(33): 41-55, 2003


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qualquer discussão da flexibilização do mercado do não à sua emancipação, mas sim a melhorar a
de trabalho e de suas regras. Assim, o debate da performance do mercado. Esse torna a ser a me-
norma mais favorável ao trabalhador suscita, pri- dida do direito, colonizando-o com seu “monote-
meiro, questões axiológicas, que assumem forte ísmo econômico”.8
coloração política, uma vez que, em última análi- O presente texto não pretende aprofundar
se, discute-se a própria função do direito do tra- esse debate, já publicado em outra ocasião.9 O
balho. que preocupa aqui é revelar as formas de des-
Desperta interesse igualmente a proximida- construção do direito do trabalho no século XXI
de da teoria da flexibilização do direito do traba- e sua correlação com a reorganização das relações
lho com a filosofia pós-moderna, intimamente li- de trabalho, denunciando, ao mesmo tempo, as
gada à crise paradigmática que atinge também o dificuldades jurídicas encontradas pelos sindica-
direito, no final do século XX.3 Resumidamente, tos brasileiros de lidar com o fenômeno, uma vez
trata-se do “declínio do poder unificador e legi- que ainda se acham em sua camisa de força estru-
timador dos grandes relatos da especulação e da tural corporativista.
emancipação”,4 atingindo o direito em sua uni-
versalidade e em seu paradigma até então inques- GLOBALIZAÇÃO, ESTADO NACIONAL E
tionável: a Justiça. Denunciada e enterrada como RELAÇÕES DE TRABALHO (1945-1973)
“grande narrativa”,5 a Justiça não constitui mais a
A globalização que experimentamos no iní-
finalidade última do direito. Sua morte como
cio do século XXI é um fenômeno dialético:10 se,
grande relato implica um direito que repousa so-
de um lado, significa um fato econômico que im-
bre pequenos relatos, isto é, um direito centrado
plica maior facilidade de circulação de capital, de
no procedimento e no contrato. O que interessa
outro, gera tecnologia, mormente na área da co-
é, em última análise, a sua “performance”6 na so-
municação e dos transportes, facilitando à socie-
lução de conflitos tópicos. Esse pragmatismo
dade civil mundial articular-se para debater seus
atinge também a política, não mais guiada pela
problemas. Mais que um dado político, econômi-
busca de emancipação.
co, social e cultural, a globalização tornou-se pa-
Para o direito do trabalho, no entanto, todo radigma de nosso pensamento, até mesmo do
esse debate significa não somente a deslegitima- pensamento jurídico.11 Problema central que o fe-
ção do paradigma da justiça social. Isso porque o nômeno da globalização coloca para as ciências so-
direito do trabalho é um direito politizado por ciais é a dissociação do conceito de sociedade do Es-
excelência. Sendo em parte resultado também do tado nacional. Com o desenvolvimento dos meios
movimento operário, repolitiza a esfera da pro- de comunicação e das empresas multinacionais, as
dução, despolitizada pelo direito burguês do sé- sociedades deixam de operar no contexto de re-
culo XIX.7 Assim, paradigma do direito do traba- lações intersocietárias para ser analisadas dentro
lho é também a emancipação dos trabalhadores de uma nova base de contextualização teórica. As
conquistada dentro e fora dos estabelecimentos. transformações sociais ligadas à globalização de-
Essa luta pelo poder no mundo do trabalho, essa vem ser vistas, portanto, também no contexto da
procura de cidadania operária não é mais objeto crise do Estado nacional, inserido nessa dialética
do direito coletivo do trabalho. Cada vez mais, o entre a expansão de relações sociais globais, de
sindicato é colocado diante do papel do negocia- um lado, e de conflitos regionais, de outro.
dor permanente das condições de trabalho visan-
8 TEUBNER, in LINDGREN ALVES et al., 2002, p. 93.
3 Cf., para a abordagem desse tema, LINDGREN ALVES et al., 2002. 9 Ibid.
4 LYOTARD, 1998, p. 69. 10 Agradeço ao colega Fábio Marcelli pela idéia de iniciar dessa forma
5 Ibid., p. 111. o debate sobre globalização e direito, tal como ele abriu sua palestra
6 Ibid., p. 80ss. sobre o tema, em 7/fev./2002, na UNIMEP.
7 MARX, 1991. 11 Isso se faz visível pela vasta bibliografia dedicada ao assunto.

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Fenômeno relativamente recente, o Estado outro lado, é imprescindível compreender o que


nacional acompanha a evolução do capitalismo. se passa na sociedade para obtermos um instru-
Sua organização permite ao capitalismo desen- mental de interpretação de nosso ordenamento
volver-se no interior de uma unidade cultural. É o jurídico nacional ou global. Para tanto, convém
Estado nacional que incentiva e dá sustento ao fazer uma tentativa de resgate histórico das raízes
mercado interno, ao desenvolvimento do sistema da atual fase globalizante no segundo pós-guerra.
de comunicação, à urbanização e, com isso, à A destruição provocada pela 2.ª Guerra
industrialização. Finalmente, é o ordenamento Mundial exige enormes investimentos para a
jurídico nacional que possibilita ao capitalismo reconstrução da economia, mormente na Euro-
encontrar regras apropriadas ao seu funciona- pa. Serão os Estados nacionais os responsáveis
mento. por uma política de investimentos maciços na
Observamos, de outra perspectiva, num economia e na área social. Nesse contexto, em
movimento concomitante e contraditório, a ten- 1948, os Estados Unidos e os países da Europa
dência de o capitalismo, desde o começo de sua Ocidental celebram o Acordo Geral de Tarifas e
existência, expandir-se pelo globo. Lembramos que, Comércio (GATT), pedra fundamental para um
já na Antigüidade, o comércio ocupa o mundo en- “regime comum e internacional de comércio”.13
tão conhecido. São características da globalização a A reconstrução das economias nacionais e a
integração econômica internacional e a expansão do globalização caminham, desde então, de mãos da-
comércio, do sistema financeiro, do transporte, das. É também nesse contexto que nasce a União
da tecnologia e dos meios de comunicação para Européia.
além das fronteiras locais e regionais, presentes Interessa aqui o fato de que, nesse período
historicamente desde a colonização grega do Me- histórico, o mercado se expande não apenas para
diterrâneo, o Império Romano, o reino de Carlos suprir as demandas de reconstrução dos países
V e o imperialismo do século XIX, para citar al- destruídos pela guerra, mas também, e além das
guns exemplos. fronteiras nacionais, em busca de novos merca-
Na história moderna, ao mesmo tempo em dos. Nesse quadro estão o Brasil e o chamado
que o capitalismo apresenta um movimento cen- milagre brasileiro.
trípeto, isto é, para dentro do Estado nacional, ele Essa expansão econômica requer uma es-
ultrapassa as fronteiras desse Estado, obedecendo trutura estatal própria. Seguindo a teoria de John
a um movimento centrífugo. Existem, portanto, Maynard Keynes, o Estado é planejador, investi-
fases históricas globalizantes, durante as quais o dor e provedor de benefícios sociais para uma po-
capital se expande fora do contexto nacional, al- pulação cuja mão-de-obra é requisitada. Diante
ternadas com etapas históricas nacionalistas, da existência dos países socialistas, os Estados ca-
quando o capital concentra seu desenvolvimento pitalistas têm a necessidade de legitimação do sis-
dentro do Estado nacional. A dialética entre os tema de mercado, com concessões para os traba-
desenvolvimentos centrípeto e centrífugo permi- lhadores, acarretando conseqüências no direito
te ao capital atingir seu maior objetivo: a acumu- do trabalho. Cabe ao Estado suprir o crescimen-
lação de riquezas. to econômico do país e a proteção social do
Tornou-se lugar-comum dizer que é difícil indivíduo, enfim, ser instrumento de transforma-
analisar a atual fase histórica e seus desdobramen- ção e regulação social, vetor do progresso.14
tos econômicos, políticos, sociais, culturais e, fi- Em contrapartida, a necessidade de suprir a
nalmente, jurídicos, no momento em que ela está demanda de um mercado em expansão exige uma
sendo vivida, pois “a globalização não é um fato estrutura empresarial voltada à produção em
acabado, mas um processo em marcha”.12 Por
13 MARTIN & SCHUMANN, 1999, p. 152.
12 IANNI, 1997, p. 24. 14 ROTH, 1998, p. 17.

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massa dos bens com seus compradores garanti- tratégias corporativas cognatas para aumentar a
dos. Fundamental é garantir a previsibilidade da produtividade”.15 A negociação coletiva contri-
atividade econômica a longo prazo e, nessa esfera, bui, não por último, para organizar a “repartição
a estabilidade das relações de trabalho – o que se dos ganhos de produtividade no seio da empresa,
reflete na organização da empresa e, por conse- o que permitiu a preservação da estabilidade da
guinte, no direito do trabalho, dirigido a fixar o repartição do valor agregado”.16 Fundamental é
trabalhador na empresa e garantir sua lealdade ao apontar, ainda, para o papel do Estado de, por
sistema. Modelo de organização empresarial, nes- meio de políticas fiscais e monetárias e de inves-
se sentido, é o chamado fordismo, ao qual retor- timentos públicos, incentivar o crescimento da
naremos. produção. Por outro lado, como Estado de bem-
A fase de reconstrução do capitalismo, en- estar social, é criador e garantidor da aplicação de
tre 1945 e 1973, é acompanhada de um pensa- uma vasta legislação trabalhista destinada à regula-
mento com ênfase na organização e no planeja- mentação – e, com isso, à previsibilidade – das re-
mento das forças econômicas. Papel central cabe lações de trabalho. Funcionalidade e eficiência são
ao Estado, como instrumento de regulamentação
as palavras de ordem não somente no plano eco-
da sociedade capitalista. O regulamento estatal
nômico, mas também no estético e no jurídico.
imprime a fixidez necessária à fluidez do merca-
do, em fase de expansão. O próprio Estado in- Tais funcionalidade e eficiência são assegu-
veste não apenas na reconstrução da economia, radas na administração das empresas, com a já
após sua destruição na 2.ª Guerra Mundial. Não mencionada organização fordista de suas ativida-
somente os setores de produção de automóveis, des. O que carateriza o modelo fordista é, em pri-
de transportes e petroquímico recebem incenti- meiro lugar, a produção em larga escala para o
vos, mas também a construção civil e a indústria mercado. Os produtos são fabricados numa linha
de eletrodomésticos. É importante frisar que a de montagem, em unidades fabris concentradas
estabilidade como paradigma vale também para o que, por sua vez, juntam muitos trabalhadores
setor financeiro da economia. Já em 1944, antes, em torno de uma produção fragmentada, mas co-
portanto, do final da 2.ª Guerra Mundial, foi fir- letiva. Existem um rigoroso controle de tempo e
mado o Tratado de Bretton Woods, lançando o uma hierarquia que garante a separação funcional
dólar norte-americano como moeda mundial an- entre a concepção e a execução das diversas tare-
corada a um fundo em ouro, com taxas de câmbio fas. Como a empresa fordista produz para um
fixas em relação às demais moedas. Fiel à política mercado em expansão, ela visa manter a sua mão-
preconizada por Keynes, essa política monetária de-obra a médio e longo prazo. Condições de
também previa a exigência de um equilíbrio do or- trabalho estáveis, garantidas por normas rígidas,
çamento público e da balança comercial. aumentam sua capacidade de planejamento. A
Efeito colateral da expansão da economia norma jurídica trabalhista ideal para proporcionar
mundial no segundo pós-guerra é a elevação do essa estabilidade e manter seguro o funcionamen-
padrão de vida dos trabalhadores. Mostra-se im- to da empresa fordista é a lei, que dificilmente
portante o papel da negociação coletiva das con- pode ser reformada, uma vez que exige para tanto
dições de trabalho nesse contexto histórico, por- todo um procedimento legislativo, moroso por
que, por meio dela, os sindicatos ganham poder e
natureza. Como a gênese da lei é morosa, a lei
espaço político na sociedade capitalista. Mas a
tende a ter vida longa e a permitir o planejamento
conquista desse espaço tem um preço: os sindi-
do emprego do trabalho a longo prazo.
catos “adquiriram e mantiveram esses direitos em
troca da adoção de uma atitude cooperativa no 15 HARVEY, 1998, p. 128ss.
tocante às técnicas fordistas de produção e às es- 16 PLIHON, 2002, p. 4.

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MUDANÇAS NO REGIME DE endividamento do Estado norte-americano e os


ACUMULAÇÃO CAPITALISTA lucros externos de empresas multinacionais não
Seja por uma crise de superacumulação, seja repatriados. Os Estados Unidos abandonam as
pelas crises do petróleo de 1973 e 1979, seja pela taxas de câmbio fixas do dólar e libertam o mo-
incapacidade de muitos Estados de controlar o vimento dos capitais do rígido controle estatal,
déficit público e a inflação, a organização da so- diminuindo, ainda, os impostos sobre os rendi-
ciedade mundial vai mudar. Seguindo as conce- mentos do capital.
pções de economistas como Milton Friedman e De 1980 em diante, a liberalização e o des-
Friedrich August von Hayek, o Estado deve se li- regulamento do mercado financeiro são impostos
mitar a garantir a ordem política e econômica, re- também aos países de “industrialização recente”.
tirando-se do papel de investidor e interventor Com o “consenso de Washington”, em 1990, a es-
no mercado. Para a retomada da prosperidade, se- peculação financeira torna-se mundial. Acompa-
gundo o chamado neoliberalismo, devem ser as- nhado é esse processo por uma reestruturação do
seguradas a liberdade de atuação das empresas pri- setor financeiro da economia, pelo fenômeno da
vadas e de expansão do mercado em escala mun- “securitização”18 dos títulos da dívida pública. As
dial. Desregramento, liberalização e privatização companhias de seguros, os fundos de previdência
das atividades estatais são as palavras de ordem privada por capitalização e os fundos de investi-
dessa política. mento mútuo, chamados fundos próprios, ganham
A partir de 1973, a par dessas “mudanças relevo em detrimento dos bancos, cujo papel até
no regime de acumulação”,17 há também trans- então era de “garantir continuidade das trocas en-
formações na regulamentação social e política do tre as indústrias e lhes permitem aguardar o mo-
capitalismo, para a qual o debate filosófico em mento da validade social da produção pela venda
torno da pós-modernidade contribui em grande no mercado final”.19
parte. O modo de pensar, perceber e sentir deno- A liberalização e desregulamentação do
minado pós-moderno não reflete uma mudança mercado financeiro retirou dos bancos essa ativi-
fundamental no status quo da sociedade. O capi- dade exclusiva, colocada agora nas mãos dos fun-
talismo persiste, mas altera-se o seu formato. Na dos de investimento. “A participação dos fundos
crise de 1973, o movimento do capital começa a próprios não parou de aumentar desde a metade
deixar mais nítido o seu caráter fragmentário, efê-
dos anos 70, até atingir um valor próximo de
mero, caótico e desconstrutivo. O imaginário so-
100% dos recursos financeiros das empresas a
cial expresso na idéia pós-moderna da descons-
partir de meados dos anos 90.”20 Os fundos não
trução – visível na arquitetura a partir da década
somente investem nas empresas, como também
de 1970 – e da deslegitimação acompanha a crise
são responsáveis pelos empréstimos aos Estados
do capital como crise paradigmática, para a qual a
endividados. Assim, para citar um exemplo, em
universalidade do mercado é apontada como úni-
1990 os Estados Unidos destinaram 20% de seu
ca saída.
orçamento federal ao serviço da dívida com os
A palavra de ordem da época, flexibilidade,
fundos. Ao invés de os Estados tributarem o ca-
vale também, e, em primeiro lugar, para o novo
pital financeiro, pagam para esse os rendimentos
regime de acumulação financeira instalado a par-
de seus empréstimos. Tal processo leva a uma
tir de 1970, quando os Estados Unidos rompem,
mobilidade financeira muito grande, implicando
de forma unilateral, com o tratado de Bretton
Woods e o regime de controle do setor financei- mais redução de impostos, na tentativa dos Esta-
ro. Tal rompimento ocorre por uma confluência dos de fixar o capital em suas praças.
de fatores, entre os quais podem ser elencados o 18 CHESNAIS, 1999, p. 21.
19 Ibid., p. 23.
17 HARVEY, 1998, p. 117. 20 PLIHON, 2002, p. 1.

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O mercado financeiro flexibilizado gera todo de administração da prestação de serviços, o


também um deslocamento dos investimentos no kaban,23 aplicado desde os anos 50 no Japão. Ele
setor privado. As empresas reduzem seus inves- implica uma inversão dos parâmetros do setor
timentos na atividade produtiva em prol das apli- produtivo, de um lado, e a extrema economia de
cações financeiras nos fundos. Isso traz como mão-de-obra, de outro. Segundo esse método, a
conseqüência a submissão das empresas a uma empresa não produz para o mercado, e sim sub-
política de rentabilidade pré-fixada. “Os grupos mete-se à sua demanda. Isso pressupõe a neces-
empresariais devem obter taxas de lucro em tor- sidade de, em curto prazo de tempo, reduzir ou
no de 15%. Cada vez que a cotação de suas ações ampliar o quadro de seus trabalhadores.
cai, os investidores institucionais exigem que a A unidade produtiva toyotista trabalha no
empresa atingida reaja demitindo empregados.”21 sentido inverso da unidade produtiva conhecida
O desemprego conseqüente fragiliza as negocia- até então, a fordista. A produção é adaptada à de-
ções salariais dos trabalhadores ativos, que têm manda do mercado. O consumo determina a
seus salários arrochados. Isso pode ser examina- produção, e não o contrário. As demandas do
do, por exemplo, na queda da participação dos sa- mercado são individualizadas, e só se repõe o
lários no PIB da França. Entre 1971 e 1978, essa produto após a verificação de cada uma delas. O
taxa era de 75,5%, caindo, em 1995, para 69,6%. sistema exige uma produção flexível, uma orga-
Finalmente, com base no exame desses fe- nização de trabalho que aproveita ao máximo o
nômenos, dá para chegar à reestruturação da ati- tempo dos trabalhadores disponíveis. Para tanto,
vidade produtiva das empresas. Com as elas pre- a mão-de-obra fixa da empresa deve ser poliva-
ocupadas em maximizar os valores das ações, lente e organizada de maneira horizontal, de
“objetivos que antes prevaleciam – como o de- modo a poder planejar e executar diversas tarefas
senvolvimento da produção e do emprego – tor- na hora em que elas se fazem necessárias. Além
nam-se secundários. Daí resulta uma “financeiri- dessa mão-de-obra fixa polivalente, ela contrata,
zação da gestão das empresas”.22 Novos métodos conforme a demanda do mercado, trabalhadores
de gestão são destinados a ganhos em produtivi- de empresas prestadoras de serviços ou empresas
dade pela redução do efetivo de assalariados, não fornecedoras, que complementam sua atividade
por último pelo deslocamento da produção para quando necessário.
setores fora do âmbito da empresa. Nesse con- Tal fenômeno, denominado just in time ou
texto, vale abordar o método toyotista de admi- descentralização produtiva, é uma das característi-
nistração da empresa. cas mais marcantes do toyotismo. Para a contra-
A volta ao laissez-faire em escala mundial, a tação dos bens e serviços, geralmente chamados
partir da década de 1970, coloca as organizações terceirizados, a empresa recorre, preferencialmen-
diante da necessidade de reforma de suas ativida- te, a contratos bilaterais de fornecimento ou de
des. Se antes, durante a expansão econômica, a prestação de serviços autônomos. O escopo é
ação delas voltava-se para o mercado de bens e passar parte do risco da atividade econômica para
serviços, agora devem reagir às oscilações desse essas empresas fornecedoras, o que traz consigo
mesmo mercado, o que requer uma estruturação uma série de problemas relacionados à assimetria
empresarial mais flexível. Para os trabalhadores, das relações entre empresas não contempladas
isso significa uma verdadeira reviravolta em suas pelas normas jurídicas que as regem. As grandes
condições de trabalho.
23 O kaban, curiosamente, teve suas origens nos Estados Unidos. Foi
A abertura das fronteiras pelo processo de inventado por alguns supermercados norte-americanos, que começa-
globalização traz consigo a divulgação de um mé- ram a repor seus estoques nas prateleiras somente após a verificação
criteriosa da demanda. Esse método de administração empresarial,
também chamado just in time, foi aplicado na indústria, pela primeira
21 CHESNAIS, 1999, p. 37. vez e em larga escala, nas fábricas da Toyota (ANTUNES, 1995, p.
22 PLIHON, 2002, p. 7. 13ss).

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organizações clientes das fornecedoras de bens e clientes, fato também constatado nas relações de
serviços conseguem reduzir seu capital fixo fa- trabalho triangulares ocorridas no Brasil.
zendo das pequenas e médias empresas amorte- As relações jurídicas entre a empresa e seus
cedores das flutuações conjunturais, uma vez que trabalhadores, de um lado, e entre a empresa e
existe uma hierarquia relativa entre elas. Isso se seus fornecedores, de outro, inserem-se num
reflete nos contratos de referência, moldados se- contexto maior, que apresenta como problema
gundo os interesses da grande empresa cliente. central as diferenças percebidas nos mais diversos
Esta e suas satélites vivem num estado de quase ordenamentos jurídicos trabalhistas nacionais. A
integração,24 lembrando a figura do grupo de em- reorganização da atividade empresarial em mol-
presas. des toyotistas e a conseqüente acumulação flexí-
A organização toyotista da empresa requer vel nutrem-se do desenvolvimento desigual de
uma mudança radical quanto às normas que re- setores e de regiões geográficas do globo no que
gem o trabalho. A flexibilidade com que a empre- diz respeito à sua legislação trabalhista. A
sa deve reagir às demandas do mercado perpassa globalização econômica, política e social é conditio
sine qua non dessa acumulação flexível, em razão da
também as relações jurídicas com seus fornece-
diversidade das condições de trabalho no planeta. O
dores, prestadores de serviços e trabalhadores.
Estado-nação, afinal, não deixou de existir. O mer-
Mais do que a lei, o contrato é capaz de prover a
cado de trabalho tornou-se mundial, o que traz para
flexibilidade com a qual a empresa opera. Os con-
o trabalho o seguinte efeito: “O trabalho organiza-
tratos têm, a rigor, vida curta. Para sua duração,
do foi solapado pela reconstrução de focos de acu-
prevalece o prazo estabelecido pelas partes. Em mulação flexível em regiões que careciam de tra-
termos de formalização das relações de trabalho, dições industriais anteriores e pela reimportação,
isso significa que as condições de trabalho dos para centros mais antigos, das normas e práticas re-
empregados são, agora, objeto de constante ne- gressivas estabelecidas nessas novas áreas”.26
gociação coletiva, pois o contrato coletivo, resul-
Nesse sentido, são importantes os resulta-
tado normativo dessa negociação, é uma norma dos da pesquisa de Helena Hirata sobre a reorga-
jurídica caseira, uma self made law25 capaz de se nização da produção nos ditames toyotistas, isto
amoldar à situação econômica em que a empresa é, por meio de empresas subcontratadas. Segundo
ou a categoria econômica se encontra. As normas seu levantamento de dados, para as multinacionais
jurídicas seguem, assim, a idéia do just in time, da européias, o laboratório das experiências de flexi-
flexibilidade. bilização da organização do trabalho é o Brasil,
Para suprir a demanda momentânea de que já chegou a exportar seu modo de funciona-
prestação de serviços periféricos, a empresa orga- mento para a Alemanha (Volkswagen) e para a
nizada conforme o modelo Toyota recorre a re- França (Mercedes Benz). Os trabalhadores con-
lações triangulares de trabalho, nas quais aparece frontam-se com uma situação de competição du-
apenas como cliente de mão-de-obra fornecida pla. Competem no mercado mundial e no mer-
por empresas terceiras. Dessa forma, pode usu- cado interno, numa situação de desemprego es-
fruir a prestação de serviços just in time sem car- trutural generalizado. A divisão do mercado de
regar os riscos de sua contratação e manutenção, trabalho mundial, caracterizado pela desigualdade
que permanecem a cargo da empresa contratada. das condições de trabalho nas diversas regiões do
A experiência japonesa mostra que as condições mundo, é complementada por uma divisão do
de trabalho nessas organizações costumam ser mercado de trabalho interno, que distingue entre
mais precárias do que as existentes nas empresas a mão-de-obra competente, autônoma, responsá-
vel e comunicativa (o núcleo da produção toyo-
24 CORIAT, 1994, p. 132.
25 O conceito self made law é atribuído a Otto Kahn-Freund. 26 HARVEY, 1998, p. 141.

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tista) e a mão-de-obra precária (empregada por GLOBALIZAÇÃO E O DIREITO


redes de subcontratação de bens e serviços). Im- DO TRABALHO NO BRASIL
portante, ainda, é informar que a precariedade das O Brasil, que resistiu à abertura de suas
relações de trabalho recai, em razão de sua maior fronteiras ao mercado mundial em expansão du-
vulnerabilidade, sobre as mulheres, verdadeiras rante os anos 1980, insere-se no contexto global
cobaias nas experiências de flexibilização. a partir de 1990, adotando uma política de favo-
Finalmente, convém lembrar que a situação recimento da concorrência e da desregulação do
do mercado de trabalho é apenas aparentemente mercado, cujo pressuposto jurídico já está dese-
flexível e desregulamentada. Ocorre que a retira- nhado na Constituição de 1988. O Estado aban-
da do Estado como poder regulador do mercado dona a “normatização das relações econômicas,
de trabalho e o enfraquecimento dos sindicatos individuais, setoriais, nacionais e internacio-
como representantes, inclusive jurídicos, dos tra- nais”31 não por último, mas diante da dificuldade
balhadores somente fortalecem o poder corpora- de aplicar seu programa legislativo. Assim, o Es-
tivo das grandes empresas. Ligadas numa rede de tado perde gradativamente seu monopólio de
relações econômicas, sociais e jurídicas, as promulgar regras, o que leva a uma “particulariza-
organizações empresariais centrais conseguem ção e privatização da regulação jurídica”.32
coordenar sua atividade como melhor lhes con- A empresa brasileira passa por um processo
vém. A tecnologia da informação viabiliza essa de internalização de inovações tecnológicas e or-
conexão em rede e proporciona flexibilidade or- ganizacionais, ao mesmo tempo em que externa-
ganizacional.27 Se, de um lado, existem redes de liza custos por meio da terceirização de parcelas
empresas horizontais, cuja finalidade é a coorde- menos rentáveis da produção. Juntam-se a isso
nação da atividade delas, de outro, há redes ver- cortes de pessoal, compensados pela elevação da
ticais, em que reina a subordinação de um sem- jornada de trabalho dos empregados remanes-
número de empresas a uma grande corporação, centes. As relações de trabalho tornam-se ainda
como é o caso da Toyota e de outras multinacio- mais precárias. A organização das empresas nos
nais japonesas. moldes da descentralização produtiva faz com
Vale lembrar que, com a conexão em rede, que as relações de trabalho precárias ganhem uma
legitimidade que antes não possuíam. Coincidên-
dirigida pela empresa central do sistema toyotis-
cia ou não, a partir dos anos 1990, o discurso da
ta, as fornecedoras de peças e serviços tornam-se
flexibilidade no ajuste econômico tem seu corres-
cada vez mais proletárias.28 As normas jurídicas a
pondente no discurso jurídico da flexibilização
que são submetidas, por meio de contratos de
do direito do trabalho.
adesão impostos pela empresa central, constitu-
em com ela um verdadeiro grupo econômico de A teoria da flexibilização do direito do tra-
balho ganha corpo na década de 1990, na medida
fato. O que preocupa aqui é o rompimento com
em que as empresas vão organizar, de forma sis-
o princípio de que o rendimento tem sua contra-
temática, o emprego toyotista de mão-de-obra. A
partida no risco. Há, hoje em dia, uma cadeia de
descentralização produtiva, chamada nos meios
riscos que começa por transferi-los das atividades
administrativos e jurídicos trabalhistas de tercei-
financeiras para as empresas,29 acabando por dei-
rização, cria uma série de medidas normativas im-
xar o risco da atividade econômica nas mãos das
plicando a transformação gradativa do direito do
empresas terceirizadas30 e, finalmente, nas dos
trabalho. A Consolidação das Leis do Trabalho
trabalhadores. (CLT), síntese dialética entre antigas reivindica-
27
ções dos trabalhadores e, ao mesmo tempo, obra
CASTELLS, 1999, p. 181.
28 A expressão empresa proletária foi forjada por Gérard Farjat.
29 PLIHON, 2002, p. 10. 31 MATTOSO, 1996, p. 31.
30 CORIAT, 1994, p. 115ss. 32 ROTH, 1998, p. 21.

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de um Estado corporativista, criada em circuns- de trabalho”,33 pela interposição de uma empresa


tâncias históricas de acumulação fordista, cede lu- entre a empresa-cliente e o trabalhador. Exemplo
gar a um direito do trabalho que se adequa às exi- típico é o funcionamento da empresa de trabalho
gências de uma organização descentralizada da temporário, regulamentado pela lei n.º 6.019, de 3
empresa. de janeiro de 1974, pela qual a intermediação de
mão-de-obra só é permitida em casos de extrema
O ESFARELAMENTO DO DIREITO necessidade da empresa-cliente. Outro caso de
DO TRABALHO relação de trabalho triangular é a subempreitada,
Característica das novas tendências no di- prevista no artigo 455 da CLT. Um terceiro caso
reito do trabalho brasileiro é a possibilidade legal de relação de trabalho triangular é o trabalho
do emprego cada vez mais freqüente de trabalha- avulso na estiva dos portos. Esse tipo de trabalho
dores em situações atípicas. O contrato de traba- é intermediado por um órgão gestor (lei n.º
lho por tempo determinado sofria, até janeiro de 8.630, de 25 de fevereiro de 1993). É curioso que
1998, as restrições dos artigos 443 e seguintes da esse modo específico de organização do trabalho
CLT. A lei n.º 9.601, de 21 de janeiro de 1998, per- portuário está se espalhando pelo interior do Bra-
mite uma extensão de seu uso por meio da nego- sil, encontrando formas de aplicação no trabalho
ciação coletiva. Pelo contrato de trabalho a rural.
domicílio, a empresa pode contar com uma reser- A prestação de serviços subordinados a
va de mão-de-obra fora de seus estabelecimentos. duas ou mais empresas de um mesmo grupo em-
Muitas vezes, os trabalhadores a domicílio são presarial (art. 2.o, § 2, da CLT) também constitui
contratados por empresas interpostas, simples
uma relação triangular de trabalho. Finalmente, o
distribuidoras de serviços que atuam na ilegalida-
artigo 442, parágrafo único, da CLT permite o
de e, cada vez mais, alegam a legitimidade de sua
funcionamento de cooperativas de trabalho que,
atuação como empresas terceirizadas.
desvirtuadas de seu escopo societário, funcionam
As formas de prestação de serviços autôno-
como intermediárias entre empresas tomadoras
mos proliferam. Muitas vezes, antigos emprega-
de serviços e parte de sua mão-de-obra. Ao lado
dos são obrigados a fundar sociedades comerciais
dessas cooperativas, existem associações de tra-
sob pena de perdem sua fonte de trabalho. Como
na maioria desses casos caracteriza-se uma rela- balhadores a domicílio, organizadas para eliminar
ção de subordinação entre os autônomos e os to- os intermediários entre as fábricas e esses operá-
madores de serviço, essa autonomia é falsa. No rios. Tais associações não contam com uma legis-
mínimo curiosa é a lei que dá regras à prestação de lação própria; seu funcionamento é amparado
serviços voluntários, lei n.º 9.608, de 18 de feve- pelo artigo 5.o da Constituição Federal, que ga-
reiro de 1998. Ela beneficia entidades públicas ou rante a liberdade de associação.
privadas sem fins lucrativos em suas atividades cí- Permitida pela jurisprudência do Tribunal
vicas, culturais, educacionais, científicas, recreati- Superior do Trabalho, em seu Enunciado n.º 331,
vas ou de assistência social, estabelecendo um está a prestação de serviços por empresas terceiras,
tipo de trabalho sem vínculo empregatício, mas chamada de atividade-meio. Exemplos dessas ati-
prevendo um ressarcimento das despesas do vidades, fornecidos pelo próprio Tribunal, são os
prestador de serviço. Dá margem, assim, para a serviços de limpeza e de vigilância, esses últimos
criação de relações de trabalho subordinado em regulamentados pela lei n.º 7.102, de 20 de junho
troca do pagamento de despesas, mas sem os di- de 1983. A permissão da prestação de serviços em
reitos correlatos aos gerados pela relação de em- atividades-meio significa o sinal verde do Tribu-
prego. nal para uso da descentralização produtiva toyo-
Finalmente, a flexibilização da prestação de
serviços cria cada vez mais “relações triangulares 33 PRUNES, 1995, p. 13ss.

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tista como método de gestão da mão-de-obra no vidualizadas para a categoria ou para um determi-
Brasil. nado grupo de trabalhadores de uma empresa. A
A transformação do direito do trabalho negociação coletiva das normas jurídicas traba-
mais significativa está na “mudança dos procedi- lhistas atinge, ainda, o direito processual do tra-
mentos de produção de regras”.34 Em vez de ser balho, quando a lei n.º 9.958, de 12 de janeiro de
submetida a um longo processo legislativo, a nor- 2000, reforma o artigo 625 da CLT, introduzindo
ma jurídica é coletivamente negociada, o que não a figura da comissão de conciliação prévia na le-
significa uma desregulação do direito do traba- gislação brasileira.
lho, e sim uma outra forma (mais precária) de re- Todas essas medidas na esfera jurídica im-
gulação das relações de trabalho: “A flexibilização plicam a implantação de um modelo jurídico fle-
desloca o Estado da posição de protagonista dos xível de organização do mercado de trabalho no
procedimentos reguladores, conferindo aos par- Brasil. Na prática, esse modelo flexível (eufemis-
tícipes de certas relações sociais o poder de auto- mo para a precarização das relações de trabalho)
regulamentar seus interesses”.35 já vem sendo implantado desde o começo dos
A flexibilização do direito do trabalho bra- anos 90 e coincidindo com uma política econô-
sileiro por intermédio do procedimento da nego- mica orientada pelo Consenso de Washington. Se-
ciação coletiva está prevista não somente nos in- gundo dados do Departamento Intersindical de
cisos VI, XIII e XIV do artigo 7.o da Constituição Estatística e Estudo Sócio-Econômicos (DIEESE),
Federal de 1988. Ela atinge, também, normas da na década de 1990, a urbanização do Brasil pro-
Consolidação das Leis do Trabalho. Depois de grediu ainda mais. Em 1999, 80% de sua popula-
quase uma década, o primeiro passo no sentido ção era urbana.36 Esse perfil de país modernizado
da flexibilização do direito do trabalho pela legis- contrasta com os problemas sociais, como, por
lação ordinária é dado pela lei n.º 9.601, de 1998. exemplo, o trabalho infantil, pois, no mesmo ano
Essa lei abre exceções nas regras estabelecidas de referência, 8,5% dos trabalhadores ocupados
pela CLT a respeito do contrato por prazo deter- tinha entre 10 e 17 anos de idade.37 Houve, nos
minado, além de reduzir direitos trabalhistas, últimos dez anos, segundo o estudo do DIEESE,
como a contribuição patronal para o Fundo de uma reestruturação do mercado de trabalho bra-
Garantia por Tempo de Serviço. A lei tem valor sileiro que aponta para as conseqüências da polí-
mais teórico do que prático, uma vez que torna as tica da flexibilização do mercado, do trabalho e
condições de sua execução dependentes da nego- das normas trabalhistas. O número de emprega-
ciação coletiva, significando, portanto, um avan- dos no setor industrial decresceu para atingir ape-
ço em direção à aplicação prática da teoria da fle- nas 12,7% dos empregos. O setor de serviços, em
xibilização e também um fracasso, porque, na rea- contrapartida, cresceu para uma participação de
lidade, as partes negam-se a negociar. 41,2% dos postos de trabalho. O conjunto desses
Pela Medida Provisória n.º 1.709-4, de 27 dados (urbanização, desindustrialização, cresci-
de novembro de 1998, sucessivamente reeditada mento do setor de serviços) prova que, de fato, há
pelo Poder Executivo federal, são introduzidos um deslocamento dos investimentos do capital e
na legislação ordinária brasileira o banco de horas que a reestruturação das empresas está aconte-
(art. 59, § 2 da CLT), a suspensão do contrato de cendo, no Brasil.
trabalho para fins de profissionalização (art. 476 Isso tem, para os trabalhadores, efeitos de-
A da CLT) e o regime de tempo parcial (art. 58 A sastrosos, pois, além de enfrentarem o desempre-
e 130 A da CLT). Tais normas repetem a exigência go aberto, suas ocupações tornaram-se mais pre-
de negociação coletiva em torno das regras indi- cárias. Nas regiões metropolitanas brasileiras, a

34 JEAMMAUD, 1998, p. 9-31. 36 DIEESE, 2001, p. 45.


35 FREITAS JÚNIOR, 1988, p. 805. 37 Ibid., p. 47.

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taxa de desemprego estava, em 1999, entre 17,9% balho, que ganha corpo já a partir da promulga-
e 27,7%. Impulsionados pelo desemprego, os tra- ção da Constituição Federal de 1988.
balhadores aceitam ocupações precárias, como O movimento sindical representa, histori-
trabalhos avulsos, ocasionais e de auto-ocupação. camente, um contrapoder ao poder econômico
Nos grandes centros, entre 4% e 8% da popula- do capital. Nesse contexto, os direitos atualmen-
ção economicamente ativa sobrevive dessa ma- te atribuídos aos sindicatos são uma conquista de
neira, chamada pelos estudiosos do DIEESE de seu movimento e o seu exercício é necessário à
“desemprego oculto”. Se a necessidade de sobre- defesa dos interesses dos trabalhadores. Esses,
viver com bicos se explica pela precariedade do que sentem constantemente o drama do trabalho
sistema de seguridade social (seguro-desempre- subordinado, são obrigados a tomar a iniciativa
go), a proliferação de relações de trabalho nas de conflitos trabalhistas, sob pena de suas condi-
quais os trabalhadores não são cadastrados na ções de trabalho e de vida decaírem.40 Por sua
previdência social preocupa. Entre 1989 e 1999, a vez, o sindicato de trabalhadores forma-se com
contratação de trabalhadores, sem carteira assina- base em uma comunidade de destino,41 no âmbi-
da, terceirizados ou autônomos que trabalham to da atividade econômica, cujo caráter é comum
exclusivamente para uma fonte de trabalho au- a outras organizações sociais, como as associa-
mentou. O segmento desses trabalhadores no ções de consumidores. Nesse mesmo campo de
mercado de trabalho da Grande São Paulo repre- ação, estão, do outro lado, os representantes do
sentava, em 1989, 20,9%. Já em 1999, perto de capital.
um terço dos trabalhadores ocupados na região No direito do trabalho, o sindicato é defi-
(33,1%) foi contratado nessas condições.38 Com nido como “a associação de pessoas físicas ou ju-
isso, a distribuição segundo formas de contrata- rídicas, que exercem atividade profissional ou
ção dos postos de trabalho das empresas paulis- econômica, para a defesa dos repetidos interes-
tanas aproximou-se, em 1999, da distribuição ses”.42 O sindicato possui, no direito brasileiro,
constatada em Salvador e em Recife.39 sua área de atuação conceituada pela noção de ca-
Como se isso não bastasse, no final de tegoria (profissional ou econômica). Ela é consi-
2001, o Ministério do Trabalho propôs ao Con- derada a base de sua representação. O artigo 511
gresso Nacional o projeto de lei n.º 5.483/01 vi- da CLT define a categoria profissional dos traba-
sando a alterar o disposto no artigo 618 da CLT, lhadores com base na categoria econômica à qual
que deverá obter a seguinte versão: “As condições pertencem seus empregadores. Essa conceituação
de trabalho ajustadas mediante convenção ou legal, porém, não está de acordo com a liberdade
acordo coletivo prevalecem sobre o disposto em sindical garantida pela Constituição Federal, em
lei, desde que não contrariem a Constituição Fe- seu artigo 8.o, caput. A contradição no direito sin-
deral e as normas de segurança e saúde do traba- dical brasileiro está entre a garantia constitucional
lho”. Por enquanto esse projeto está retirado da da liberdade sindical e a atribuição de uma juris-
pauta do Senado, mas, se for “desengavetado” e dição aos sindicatos via conceito, também cons-
titucional, contida no artigo 8.o, III, de categoria e
vingar, as normas coletivamente negociadas serão
território.
capazes de deixar cair em desuso a lei que contém
direitos tão importantes como, por exemplo, os A liberdade sindical, no entanto, é “a pedra
que versam sobre o período de férias, cair em de- angular do direito sindical”:43 fiéis à convenção
suso. Isso porque a reforma do artigo 618 deve n.o 87 da OIT, não assinada pelo Brasil, os sindi-
ser vista no contexto da estrutura sindical brasi- catos gozam de liberdade de organização, de cria-
leira e da teoria da flexibilização do direito do tra- 40 WEISS, 1977, p. 82; e LA-PLANCHE-SERVIGNE, 1980, p. 42.
41 GOMES & GOTTSCHALK, 1990, p. 631.
38 Ibid., p. 64. 42 MAGANO. 1990, p. 83.
39 Ibid., p. 67. 43 NASCIMENTO, 1989, p. 113.

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ção de sindicatos, de filiação e desfiliação sem mar contratos coletivos exclusivamente para eles
autorização do Estado, e atuam dentro do prin- mesmos. À autonomia privada coletiva, ou seja,
cípio da pluralidade sindical, que consiste no di- ao exercício da “potestà di darsi um ordinamen-
reito de “fundação, na mesma base territorial de to”48 falta, no Brasil, o seu principal pressuposto,
tantos sindicatos quantos os grupos pretende- a liberdade sindical.
rem”.44 Essa pluralidade sindical, como se sabe, Vestidos com essa verdadeira camisa de for-
não é garantida pela legislação brasileira. Pelo ça, os sindicatos brasileiros dificilmente são capa-
contrário, veda o artigo 8.o, II da Constituição zes de realizar uma livre negociação. Junte-se a
Federal a existência dessa pluralidade sindical. O esse fato a situação bastante precária dos traba-
sindicato brasileiro tem uma longa história de or- lhadores brasileiros num mercado de trabalho
ganização corporativa em que o Estado “o absor- flexibilizado, a reforma do artigo 618 da CLT
veu, fazendo dele uma espécie de órgão do Esta- pode significar, na realidade, um retrocesso his-
do em matéria profissional. O sindicato esva- tórico que traz de volta a ditadura das cláusulas
ziou-se de seu conteúdo característico para o qual contratuais pelos representantes do capital, so-
surgiu e ia se firmando, para se tornar uma espé- mente agora legitimada pelo aparente procedi-
cie de molde no qual o Estado verteu, por como- mento do collectif bargaining.
didade organizativa, parte de seu conteúdo”.45
Resquícios dessa organização corporativa REFLEXÕES FINAIS
ainda encontram-se na Constituição Federal, so-
Se o presente artigo iniciou com a crise pa-
bretudo no que diz respeito à unicidade sindical,
radigmática do direito do trabalho, é legítimo fe-
“com a autodeterminação das bases territoriais
chá-lo com o debate de possíveis saídas. Não se
não sendo, todavia, admitida a criação de um sin-
trata aqui de querer assegurar o emprego de ad-
dicato se já existe outro na mesma base e catego- vogados trabalhistas, de juízes do trabalho, de
ria” e à “manutenção do sistema confederativo sindicalistas e de professores universitários da
com os sindicatos, federações e confederações, área. Se há relações de trabalho, existe um direito
sem menção das centrais sindicais”.46 que as regula, independentemente da questão de
Se no direito sindical brasileiro permanece esse direito se alocar no âmbito do direito do tra-
o ranço de sua história corporativista, a realidade balho, do direito civil ou do direito comercial. O
da atuação sindical brasileira é pautada pelos prin- questionamento final dirige-se às mudanças na
cípios da autonomia privada coletiva. Formam-se esfera normativa que possam, ao mesmo tempo,
espontaneamente entidades representativas “à acompanhar a reorganização do trabalho em es-
margem e até mesmo em desacordo com as exi- cala global e assegurar aos trabalhadores os seus
gências legais, como na acepção de poder de ne- direitos individuais e coletivos conquistados du-
gociação de condições de trabalho que se forma- rante séculos.
lizam através de procedimentos diretos entre os A globalização econômica abre também um
próprios interessados”.47 Além disso, têm grande espaço para o nascimento de uma sociedade civil
importância política as centrais sindicais que le- mundial, velho sonho, aliás, dos contestadores do
galmente existem em razão da liberdade de asso- capitalismo, desde que foi lançado, em 1848, o Ma-
ciação garantida pelo artigo 5.o, XVIII, da nifesto Comunista. Os fóruns sociais mundiais,
Constituição Federal, mas cujo âmbito de atua- por exemplo, que reúnem um caleidoscópio de
ção jurídica é travada pela estrutura sindical que, movimentos sociais globais pós-modernos são
por sua vez, confere aos sindicatos o poder de fir- provas de uma repolitização do espaço privado
44
em escala mundial.49 Essa repolitização abre uma
Ibid., p. 83.
45 GOMES & GOTTSCHALK, 1990, p. 629.
46 NASCIMENTO, 1989, p. 76-77. 48 PUGLIATTI, 1959, p. 367.
47 Ibid., p. 111. 49 SANTOS, 1997; e OFFE, 1989.

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chance também para o movimento dos trabalha- possível pensar na reorganização do trabalhador
dores reorganizar-se, tanto na microesfera do es- coletivo e na reconstrução de um contrapoder50
tabelecimento local quanto na macroesfera mun- capaz de fazer frente ao exercício do poder de-
dial. A formação de redes de empresas e a des- senfreado das maiores empresas globais. A orga-
construção do padrão fordista/taylorista da orga- nização de centrais sindicais internacionais e de
nização da empresa não é, por si só, um “Mal” ou comissões gerais de empresas transnacionais re-
um “Bem”, e sim uma nova forma de o capital se presentando os interesses de todos os trabalha-
articular. dores, independentemente do país em que este-
Evidentemente, essa organização do capital jam empregados, é apenas um exemplo. E, dentro
exige nova organização dos sujeitos (no sentido do contexto de uma sociedade global pós-moder-
literal da palavra) que participam de suas redes. na, reúnem-se também os mais diversos movi-
Isso implica a talvez dolorosa quebra de uma es- mentos sociais que têm com o movimento dos
trutura sindical ainda organizada pelos ditames trabalhadores uma bandeira comum: a paz, a jus-
do fordismo. Novas categorias de trabalhadores tiça e a emancipação.
estão se formando, incluindo pessoas que pres-
tam serviços como pessoas jurídicas “proletárias”
controladas pelos núcleos das redes. Assim, é 50 REICH, 1977, p. 196.

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Dados da autora
Professora de direito do trabalho nos cursos de
Graduação e de Mestrado da UNIMEP
Recebimento artigo: 6/mar./02
Consultoria: 1.º/abr./02 a 6/maio/02
Aprovado: 27/maio/02

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Globalização e Mundo do
Trabalho – perspectivas
jurídicas*
GLOBALIZATION AND THE LABOR WORLD –
JURIDICAL PERSPECTIVES
Resumo A presente proposta de discussão sobre a questão da globalização e do mun-
do do trabalho busca, inicialmente, definir o conceito de globalização e, valendo-se de-
le, avaliar a influência desse fenômeno nos campos do direito do trabalho. Como
referência a tais temas, trata de identificar e pôr em relevo uma tendência de busca da
flexibilização nas relações do trabalho. Essa flexibilização vem, por um lado, substituir
parcialmente as relações trabalhistas permanentes e, por outro, determinar as crescen-
tes dificuldades que afetam não somente a definição dos próprios conceitos de esta-
belecimento e de empresa, mas também as novas estratégias de gestão e, finalmente, a
controvérsia sobre a crise dos contratos, com base no contrato coletivo de trabalho
no contexto do direito do trabalho alemão. O artigo ainda esclarece algumas alterna-
tivas viáveis para o direito estatal e o direito autônomo, bem como as condições para
regulamentar e evitar os efeitos negativos da globalização em vários níveis – nacional,
europeu e mundial. Por fim, apresenta questões relativas a um modelo europeu de di-
reito do trabalho e das relações na indústria, sugerindo a retomada de alguns funda-
mentos básicos do princípio do Estado social.
Palavras-chave DIREITO DO TRABALHO – GLOBALIZAÇÃO – REESTRUTURAÇÃO ULRICH ZACHERT
DE EMPRESA – NEGOCIAÇÃO COLETIVA. Hochschule für Wirtschaft und
Politik Hamburg/Alemanha
ZachertU@hwp-hamburg.de
Abstract The present discussion proposal on globalization and the labor world seeks,
first of all, to define the concept of globalization and then evaluate the influence of
such phenomenon in the field of the labor law. As a reference to such themes, it iden-
tifies and emphasizes the trend to seek flexibilization in the labor relationships. On
the one hand, such flexibilization partially replaces the permanent labor relationships
and, on the other, determines the growing difficulties that affect not only the defini-
tion of the concepts of establishment and company, but also the new management stra-
tegies. The article approaches the controversy on the crisis of the contracts based on
the collective bargain agreement in the context of the German labor law. It also cla-
rifies some feasible alternatives for the State law and the autonomous law, as well as
the conditions to regulate and avoid the negative effects of globalization in the na-
tional, European and world levels. Finally, it presents some questions relative to the
European model of labor law and of relationships in industry, suggesting the retaking
of some basics of the social State principle.
Keywords LABOR LAW – GLOBALIZATION – COMPANY RESTRUCTURING –
COLLECTIVE BARGAIN.

* Este ensaio é a versão atualizada de uma palestra apresentada no I Tübinger Forum, sobre o tema “Der
Mensch im Umbruch der Arbeitswelt”, realizado em 29-30/jun./2001. A forma original da palestra, mais
informal, foi mantida nesta versão. Tradução do alemão: Amós Nascimento; revisão técnica: Dorothee
Susanne Rüdiger.

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GLOBALIZAÇÃOE MUNDO DO TRABALHO –


UM CAMPO AMPLO

N
ão são poucos os desafios que a questão geral e ampla
relativa à apresentação desse tema nos traz. A discussão
sobre globalização e mundo do trabalho do ponto de
vista jurídico trata de aspectos tão abrangentes quanto
aqueles referentes aos fluxos e à movimentação de
mercadorias, de pessoas, de prestação de serviços e de
capitais,1 bem como questões que dizem respeito às
suas implicações internacionais. Mas a nossa temática pretende, em todo
caso, colocar de modo claro as relações entre a globalização, o mundo do
trabalho e o direito. Em razão dessas complexas inter-relações, sinto-me
obrigado a oferecer pelo menos um esboço simples do que se define
como fenômeno da globalização.
Ensaio de aproximação ao “fenômeno da globalização”
Nos debates especializados na área econômica são várias as tenta-
tivas de definição do conceito de globalização,2 mencionadas especial-
mente as seguintes formas de sua manifestação, buscando captar a parti-
cularidade e a contemporaneidade de um processo que se encontra em
desenvolvimento há duas décadas. São elas: a intensificação do comércio
mundial, particularmente no nível dos mercados financeiros internacio-
nais; o grande número de companhias transnacionais com estratégias de
produção e gestão, indo além das fronteiras de seu país de origem – com-
preendendo-se aqui as redes internacionais –;3 o aumento da produção
no exterior por meio de maior ênfase nos investimentos diretos em ou-
tros países e também pelo aumento de uma concorrência internacional
acirrada, como ocorre especialmente entre a Europa, a América do Norte
e o Sudeste Asiático, que conformam os pontos angulares da chamada
Tríade do Comércio Mundial.4 Tais processos têm sido facilitados e até
sobrepostos pela mobilização de modernas tecnologias de informação e
de comunicação, que, por sua vez, exigem a articulação do mundo em vá-
rias áreas integradas em rede. Depois do chamado “Descobrimento da
América”, por Cristóvão Colombo, em 1492, o mundo tornou-se incon-
cebivelmente grande. Mas a internet e as modernas vias de informação
nos levam a um processo inverso, fazendo com que o mundo se torne
cada vez menor. Geram, simultaneamente, mudanças na organização do
trabalho, não mais limitado ao espaço imediatamente próximo, redun-
dando, então, no estabelecimento de estruturas novas e flexíveis nas
organizações empresariais.

1 Aplica-se aqui a formulação do art. 14, inciso 2.o do Tratado da Unão Européia, na versão de Amster-
dam.
2 Quanto à conceitualização, cf., por exemplo, HOFFMANN, 2000, pp. 3-10.
3 Cf., com mais detalhes, ALTMEYER, 2001, pp. 23-27.
4 Conceito utilizado pela primeira vez em OHMAE, 1985.

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Embora as ciências econômicas e as sociais máticos que me servem de “exemplos”, já que


pareçam estar de acordo, em princípio, na descrição têm tido um papel importante nas discussões
desse fenômeno, muitas questões se apresentam recentes na área do direito do trabalho.
como controversas e imprecisas, quando se consi-
dera esse fenômeno de modo mais detalhado. Isso EFEITOS DA GLOBALIZAÇÃO NO DIREITO
se aplica, acima de tudo, à necessidade de se avaliar DO TRABALHO E NAS RELAÇÕES NA
o alcance e o impacto do efeito da globalização so- INDÚSTRIA
bre as estruturas sociais. E, relacionado a isso, surge
a questão sobre as conseqüências sociais para as pes- 1. Mudanças do contrato de trabalho:
soas afetadas por esse fenômeno: se tais transfor- dissolução dos modelos de proteção tra-
mações de fato trazem vantagens ou, em primeira balhista tradicionais, aumento de “for-
mas contratuais atípicas”, desemprego
linha, mais desvantagens e riscos. Não posso aqui
Quando se coloca em perspectiva o nível
tratar esses aspectos de maneira detalhada e apro-
básico das relações contratuais trabalhistas – o
fundada, mas quero pelo menos indicar que a ca-
contrato de trabalho –, percebe-se que, desde o
racterização taxativa de uma pluralidade de posi-
início da década de 1980, se processa uma ten-
ções – como as que defendem os efeitos da
dência à perda de força de validade da chamada
globalização e as que oscilam entre os pólos da
“relação normal de trabalho”, ou seja, a relação de
expectativa de salvação, de um lado, e os cenários
trabalho em tempo integral por tempo indeter-
catastróficos, de outro5 – em nada facilita a ava-
minado. Em seu lugar, cresce o número de rela-
liação dos efeitos da globalização sobre o direito
ções de trabalho com prazo limitado, por exem-
do trabalho e as relações na indústria.
plo, a locação de serviços, bem como o trabalho
Para o direito do trabalho, por um lado, em tempo parcial e as atividades com baixa remu-
tem-se como válido, desde sempre, que uma se- neração. Além disso, observa-se um aumento na
mana já é tempo suficientemente longo,6 ou se- cobrança de resultados, na forma de trabalho au-
ja, que estamos submetidos a um processo con- tônomo por empresas formadas por um só
tínuo de mutação cuja velocidade de implemen- indivíduo. Com esse último fenômeno, chega-se
tação – aparentemente ocorrente também sob a e, na verdade, se ultrapassa a área limite do direito
influência de fatores externos, como a globaliza- trabalhista. O surgimento de falsos autônomos
ção – aumentou muito nos últimos anos.7 À levanta a questão – bastante discutida – de que se
medida que passemos, a seguir, à discussão des- nesse caso não se origina pelo menos uma forma
ses aspectos e perspectivas jurídicas, tratarei de de relação trabalhista abusiva, permitindo, enfim,
ir colocando e pressupondo essa conceitualiza- um “escape dos limites do direito do trabalho”.
ção do fenômeno da globalização como uma hi- Por um lado, não há, na minha opinião,
pótese de trabalho – a despeito de toda a sua fal- qualquer razão para dramatizações – já que o tra-
ta de nitidez – e, assim, tentar tornar mais clara balho em tempo integral por tempo indetermina-
do permanece ainda como a forma mais comum
a questão da existência e da extensão das respec-
de atividade profissional, tanto na Alemanha
tivas conexões e relações entre a globalização e
como nos países europeus vizinhos.8 Mesmo as-
as mudanças ocorridas no mundo do trabalho.
sim, existem, por outro lado, evidências esta-
Para tanto, faço a opção por alguns campos te- tísticas comprovando claramente e a uma só voz
5
que, na última década, observou-se a continuida-
Em vez de referências bibliográficas de caráter enciclopédico, per-
mitam-me mencionar dois artigos recentes que fazem resenhas e
indicações sobre o tema: UCHATIUS, 2001, p. 471; e SALZWE- 8 Na Alemanha, na metade da década de 1990, esse índice era de quase
DEL, Weltbürger in der Drehtür. Der Spiegel, Hamburg, jan./1999, 70%. Cf. o relatório Kommission für Zukunftsfragen der Freistaaten
pp. 154-157. Bayern und Sachsen, Erwerbstätigkeit und Arbeitslosigkeit in Deuts-
6 Cf. GAMILLSCHEG, 1997, p. VII. chland, Entwickung, Ursachen und Massnahmen, Teil 1, Bonn, 1996,
7 Cf. ZACHERT, 1999, pp. 699-729, com amplas referências. pp. 62 e 143.

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de na tendência de diminuição na porcentagem de 1970 e se amplia cada vez mais após os pro-
de relações de trabalho por tempo indeterminado cessos de reformulação econômica e estrutural
(“relações trabalhistas normais”) e, atrelado a is- ocorridos em muitos países europeus que estive-
so, registrou-se o aumento nas concepções de ram sob a liderança política conservadora e liberal
formas de “ocupações empregatícias atípicas”. desde o início dos anos 1980. No que tange ao
Enquanto, em 1988, as atividades mais significa- impacto da globalização sobre todas essas mu-
tivas identificadas como “relações trabalhistas atí- danças, pode-se dizer – conforme aqui mencio-
picas” correspondiam, em toda a Europa, a cerca nado – que é muito difícil determinar especifica-
de 25% das atividades ocupacionais, dez anos de- mente como esse impacto se dá. Porém, nesse
pois, em 1998, tal proporção chegou a algo em conjunto de fatores, é possível pelo menos obser-
torno de 29% (ou 26%, no caso da Alemanha).9 var a política empresarial do chamado “bench ma-
As razões para tal evolução são as mais va- rking” e do “share-holder value”,12 cujo modelo
riadas. Nesse caso, estão em jogo fatores defini- foi apropriado do contexto anglo-saxão e se im-
dos e discutidos no âmbito das ciências sociais põe com base na pressão exercida pela maior con-
sob a denominação conceitual de mudança de va- corrência hoje em dia existente no mercado eu-
lores.10 A elas se acrescenta o fato de que os meios ropeu e internacional. Deve-se acrescentar, ainda,
sociais se desfazem e as relações e os papéis se- a influência exercida pelos modelos de uma polí-
xuais se alteram parcial e significativamente, ao tica neoliberal que foi e ainda têm sido desenhada
passo que a individualidade e a pluralidade to- e praticada, sobretudo nos Estados Unidos.
mam o lugar das conexões tradicionais. Observa- Quando se fala de tendências flexibilizado-
se sobretudo a alteração no modelo de economia ras no direito do trabalho, não se deveria perder
doméstica, à medida que vai desaparecendo o ho- de vista, de forma alguma, que tais tendências ter-
mem como único responsável pelo orçamento minam gerando um impacto muito maior em
familiar e a mulher passa a incorporar-se cada vez épocas de grande desemprego do que teriam nas
mais ao mercado de trabalho. Os debates na área fases marcadas pelas atividades ocupacionais de
das ciências sociais têm tratado de modo polêmi- tempo integral. É notório que os níveis médios
co aspectos como os seguintes: qual a extensão de desemprego em toda a Europa encontram-se,
de tais mudanças e seu impacto no cômputo ge- desde sempre, na média de 10% – sendo esse ín-
ral, como se deve avaliar a contraditoriedade en- dice um pouco menor na Alemanha.13 Não se
tre os efeitos liberadores para o indivíduo, por trata de discutir aqui qual o impacto exercido,
um lado, e o desmonte de estruturas de segurança nesse caso, por megatrends como a globalização,
social por meio da “flexibilização do direito do nem de tentar caracterizar o modo como cada
trabalho”, por outro.11 nação reage a tais tendências em termos de “good
Nisso inclui-se o fato de que tendências de practice” ou “bad practice”, ou de ver como po-
uma “dissolução das chamadas relações trabalhis- dem ser encontradas soluções para grupos espe-
tas normais” de modo algum devem ser vistas so- cíficos de problemas no âmbito do mercado de
mente como resultado da ampliação do campo de trabalho – especialmente o de empregados mais
alternativas profissionais individuais. Elas tam- antigos, com deficiências de formação ou limita-
bém trazem consigo outra conseqüência, a utili- dos por questões de saúde.14 Mesmo assim, de-
zação mais eficiente e gerenciada da força de tra- sejo pelo menos indicar – já antecipando uma en-
balho sob o pano de fundo de uma política em- tre as várias teses que afirmarei sobre as perspec-
presarial que restringe ainda mais os recursos hu- tivas possíveis diante desse cenário – que não se
manos, como acontece desde a metade da década
12 Cf. DIETERICH, 1997, pp. 1-8 (em especial p. 4ss).
9 HOFFMANN & WALLWEI, 14-25/out./2000, pp. 1-7. 13 Cf., por exemplo, HOFFMANN & PUTZE, 2000, pp. 18-24.
10 De modo claro, por exemplo, em BECK, 1999. 14 Sobre isso há muitos dados empíricos em KLEINHENZ, 2000, pp.
11 OPPOLZER, 1998, pp. 45-46 e 52ss; e SENNET, 1998. 1-78.

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deve exagerar a contribuição do direito do traba- mais enxuta (lean production).18 Já se fala em “fá-
lho de brindar à necessária discussão de todos es- bricas fractais”,19 “redes híbridas”20 ou mesmo
ses múltiplos problemas com suas mais variadas “virtualização das relações de trabalho”.21 Ainda
facetas.15 Permitam-me apresentar um único que não seja prudente ir tão longe e afirmar que
exemplo, a fim de deixar esse ponto claro: em mi- aqui, já nesse ponto, jaz o fundamento para uma
nha visão, não se vai muito longe com a sugestão nova arquitetura de empresas para o século XXI,22
de para se resolver o problema do desemprego não devemos deixar de reconhecer que os limites
apertando-se ainda mais a porca no parafuso que que antes definiam o negócio como unidade bási-
sustenta os direitos de proteção à rescisão de vín- ca econômica já não são tão claros, resultando daí
culos trabalhistas até o ponto de ela espanar e, as- algo como uma nova “intransparência” no que
sim – segundo o modelo vigente nos Estados diz respeito à defesa dos interesses de estabeleci-
Unidos –, desmantelar passo a passo as garantias mentos empresariais.23
de estabilidade no emprego.16 No que tange a processos segundo os tipos
2. Dissolução do conceito de empresa, anteriormente mencionados, e seus efeitos tanto
novas estratégias de organização e ges- sobre a organização do trabalho como nas estra-
tão tégias de gestão, os resultados de pesquisas na
Muito mais adequados e factíveis de apreen- área da sociologia da indústria mostram que, já
são concreta, do que as possíveis relações causais em meado da década de 1980, observava-se um
entre a globalização e o desemprego, são as aná- desvio com relação ao modelo taylorista de pro-
lises das articulações entre a globalização e os pro- dução em massa. Em seu lugar surgiam novas
cessos de mudança nas estruturas empresariais, na formas de organização do trabalho nas unidades
organização de empreendimentos e nas novas es- empresariais, exigindo maiores conhecimentos,
tratégias corporativas.17 qualificações e responsabilidades dos ocupantes
Na verdade, a crescente pressão da concor- de cargos (isto é, de seus recursos humanos).24
rência mundial ocorrida por meio da internacio- Tudo isso segue de mãos dadas com os novos
nalização da economia e da ampliação dos mer- conceitos de gestão, como gestão participativa,
cados contribuiu muito para que estruturas – seja descentralização, hierarquias mais flexíveis, novas
nas áreas da produção seja na provisão de serviços formas de trabalho em equipe, grupos e projetos
– se alterassem de modo significativo. Na busca de trabalho, que, por sua vez, poderiam apresen-
pela maior contenção possível de gastos coloca- tar a possibilidade de as pessoas envolvidas orga-
se à prova tanto a formatação jurídica das empre- nizarem seu trabalho de maneira mais autôno-
sas quanto a capacidade de fabricação de um pro- ma.25 Mesmo quando limitamos tal perspectiva,
duto: uma expressão clara desse fato são as sub- ao enfatizar que, com a referência a todos esses
divisões administrativas e cisões em empresas desenvolvimentos, se consegue descrever somen-
como resultado da racionalização de aspectos re- te uma parte da realidade,26 não podemos deixar
lacionados à organização corporativa e à diminui- de reconhecer que essa tendência pós-fordista (e
ção de estoques e procedimentos nas atividades
18 Dentre a grande produção bibliográfica na área, cf., entre as obras
empresariais (outsourcing), fazendo, então, com mais recentes, KREUDER, 2000, com amplas referências e indicações.
que tais empresas se tornem externamente mais 19 WARNECKE, 1996.
20 TEUBNER, 1993, pp. 307-392.
econômicas, em decorrência de uma produção 21 Cf., por exemplo, LINNEKOHL, 1998, pp. 45-50.
22 Para referências com base na bibliografia na área de administração
15 Cf., por exemplo, ibid. (nota 15), p. 65ss., sobre a proteção à resci- de empresas, cf. SYDOW & WINDELER, 1997, pp. 1-21.
são de vínculos trabalhistas. 23 Sobre a situação do debate sociojurídico mais recente, cf. PREIS,
16 Porém, existem algumas orientações que funcionam como forma de 2000, pp. 257-279; e WISSMANN, 2001, pp. 409-414.
proteção nesses casos e têm continuidade pelo menos parcialmente. 24 KERN & SCHUMANN, 1981.

Para o caso alemão, cf. KITTNER & KOHLER, 2000, pp. 1-29; e 25 Para mais detalhes, cf. KREUDER, 1998, pp. 35-56, com várias
GRASER, 2000, pp. 604-613 (em especial p. 605). referências.
17 Mais recentemente, cf. o resumo de ALTMEYER, 2001, pp. 22-37. 26 Referências em ZACHERT, 1999, pp. 699 e 705ss.

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não-taylorista) da organização do trabalho e das tema discutido há alguns anos, de modo intenso
técnicas de gestão torna possível um atendimen- e controverso, que se refere à chamada “crise da
to mais flexível dos desejos cada vez mais exigen- conveção coletiva de trabalho”.29 As razões para
tes da clientela, além de permitir uma produção o fato de que as regulamentações coletivas te-
mais elástica com uma quota menor de erro. To- nham perdido sua autoridade e eficiência em vá-
dos esses são fatores que permitem a entrada no rias regiões e setores são, também nesse caso, as
mercado e a realização de negócios em meio à mais variadas.30 Menciono algumas de maneira
concorrência de uma esfera internacional (alta- um tanto taxativa: a capacidade de articulação das
mente) competitiva. associações, sindicatos e empregadores tornou-se
As características organizacionais aqui esbo- muito menor. Isso se evidencia nos números re-
çadas levam a uma forma de auto-organização ain- lativamente pequenos de membros atualmente
da mais forte, além do maior autocontrole das pes- nelas aglutinados, o que, no âmbito dos empre-
soas envolvidas, como se dá, por exemplo, no âm- gadores, expressa uma posição parcialmente
bito do trabalho em grupo ou dos centros (das contrária ou pelo menos cética com relação às
unidades) de lucro. Novos estudos nas ciências so- crescentes estruturas salariais negociadas. No que
ciais indicam que, no contexto dos processos de diz respeito ao tipo de membros nos sindicatos,
outsourcing e de aparente independência no traba- observa-se que o dominante é o trabalhador técni-
lho, começa a surgir um novo tipo de empregador, co do sexo masculino. Nota-se que especialmente
o chamado “empresário da força do trabalho”. os mais jovens e os empregados com maiores ga-
Esse novo agente empresarial já não espera mais rantias profissionais raramente colocam seus pés
até receber ordens, mas tem sua motivação como nessas agremiações.
um trabalhador (ou uma trabalhadora) indepen- Essa constatação relaciona-se com a influên-
dente, que promove os objetivos empresariais por cia de concepções neoliberais, segundo as quais as
iniciativa própria, como se a empresa fosse de fato regulamentações coletivas têm valor apenas mar-
sua propriedade. Assim, esse novo profissional ginal ou mesmo nenhum valor. Ainda que aqui já
contribui com os interesses da empresa ao aplicar
possamos fazer uma aproximação ao fenômeno
nela a sua criatividade.27 Esse novo tipo de força de
da globalização como um fator causador do pro-
trabalho pode ser encontrado, por exemplo, nas
blema do piso salarial, carece acrescentar um fa-
atividades voltadas a serviços ou ao desenvolvi-
tor complementar que está sempre em jogo nas
mento de softwares na indústria da informação e
empresas que operam em nível transnacional –
da comunicação – sendo esses dois grupos os que
geralmente com filiais no exterior –, qual seja,
mostram maior grau de liberdade no trabalho,28 o
para elas há uma perda de peso e importância em
que, por sua vez, produz efeitos sobre o compor-
uma função essencial dos contratos com piso sa-
tamento no serviço, os quais não podem deixar de
larial: a progressiva equalização das condições
ser considerados, pois têm como conseqüência a
que regem o salário, o tempo de serviço e o tra-
criação de novas expectativas no que diz respeito à
balho no contexto das discussões sobre o piso sala-
representatividade coletiva de associações profissio-
nais e sindicatos. rial (“a função de cartel”). Isso se mostra claramente
no caso bastante discutido – para mencionar apenas
3. A crise da convenção coletiva de tra- um exemplo – do conflito com a Viessmann, em-
balho presa produtora de equipamentos de aquecimen-
Como último exemplo dos efeitos da to. Em total contradição com a prática válida do
globalização sobre o direito do trabalho e as re-
lações na indústria deve-se mencionar, ainda, um 29 Entre a vasta produção bibliográfica surgida recentemente, cf.
OPPOLZER & ZACHERT, 2000, com referências complementares.
30 Dados empíricos confirmam ser grande a força que ainda impregna
27 VOSS & PONGRATZ, 1998, pp. 131-158. os contratos com base na definição de um piso salarial, apesar de toda a
28 BAUKROWITZ & BOES, 2/mar./2000, p. 22. crítica contra eles levantada. Sobre isso, cf. CLASEN, 2001, pp. 12-16.

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contrato com piso salarial definido em negocia- parte trabalhados e realizados. Isso vale desde a
ção por meio de uma comissão de fábrica, ela op- retirada de algumas emendas impostas pelo go-
tou por uma conversação informal com os inte- verno conservador anterior – formado pela alian-
ressados de modo a entrar em acordo sobre sua ça entre o Partido da União Democrática Cristã
proposta de acrescentar três horas de trabalho (CDU) e o Partido Democrático Livre (FDP),
não remunerado como condição para deixar de que, entre outras mudanças, já havia desmontado
lado, por um prazo de três anos – condicional a as formas de proteção à demissão e limitado as de
resultados –, a possibilidade de efetuar demis- compensação nos casos de licença saúde. Ele che-
sões. gou até a propor algumas alternativas bastante
O pano de fundo para tal acordo foi a in- peculiares à redação de nova regulamentação para
formação dada pela sua diretoria de que, caso o falso trabalho autônomo, para as atividades de
contrário, a empresa não mais produziria o novo baixa remuneração (os então chamados “contra-
modelo de aquecedor a gás em suas fábricas na tos até 630 marcos”) e, mais recentemente, para a
Alemanha, e sim na República Tcheca.31 Esse Lei de Trabalho Temporário e a Lei do Trabalho
exemplo demonstra a existência de possibilidades por Tempo Determinado, além das regulamenta-
e alternativas para as empresas transnacionais que ções para a licença de pais e mães (Elternurlaub)
buscam desvincular-se da exigência de um piso e a reforma da Lei sobre os Estatutos do Estabe-
salarial para determinada classe. Desde 1989, após lecimento (Betriebsverfassungsgesetz).32
a queda do Muro de Berlim, essas possibilidades Mas essa série de propósitos já realizados
se apresentam bem à nossa frente: daí o moto ou em andamento não pode nem ser vista como
“Rio Oder e Rio Neisse” – referindo-se a rios li- algo monocausal, resultante da globalização dos
mítrofes entre a Alemanha e outros países – mercados, nem conectada diretamente, em cada
como complemento europeu ao moto “Rio caso, com as tendências aqui já mencionadas, a
Grande”, o qual diz respeito ao rio que separa Es- não ser de maneira um tanto tênue. Contudo,
tados Unidos e México, indicando a possibilidade não há dúvida de que algumas dessas reformas se
de migração de empresas estadunidenses para pa- dão no contexto dos desenvolvimentos aqui re-
íses latino-americanos, onde é possível pagar me- feridos. Algumas relacionam-se à dissolução das
nores salários. relações normais de trabalho, o que vale especial-
mente para aquelas que receberam maiores críti-
PERSPECTIVAS: MARGENS DE AÇÃO E cas, como as novas regulamentações do falso tra-
INFLUÊNCIA DAS REGULAMENTAÇÕES balho autônomo e das atividades de baixa remu-
ESTATAIS E AUTÔNOMAS neração. Outras indicam pelo menos uma relação
parcial com algumas das tendências de transfor-
1. Margens de ação no nível nacional mação no conceito de empresa, nas novas estru-
Se trouxermos à memória o quanto o Le- turas de organização e novas formas de gestão,
gislativo tem incentivado e tomado como sua como no caso da reforma da Lei sobre os Esta-
uma série de propostas na área do direito do tra- tutos do Estabelecimento.
balho, durante o período legislativo sob a influên- Antes de tratar esses tópicos com base em
cia da coalizão entre o Partido Social-Democrata alguns exemplos,33 gostaria de mencionar de an-
Alemão (SPD) e o Partido Verde (Grüne), é pos- temão o seguinte: se for mesmo correto postular
sível concluir desde já que os propósitos defini- que o direito do trabalho também recebeu novos
dos no acordo da coalizão entre estes partidos, impulsos a partir das mudanças ocorridas no ce-
em 20 de outubro de 1998, já foram em grande
32 Para o programa jurídico-trabalhista do acorde de coalizão, cf., por
31Sobre a pertinência jurídica de práticas desse tipo, cf. ArbG Marburg, exemplo, AuR, 1998, pp. 476-480.
7/ago./1996, AuR, 1996, p. 461. O conflito, nesse caso, encerrou-se na 33 Outras considerações sore o tema podem ser vistas em DÄU-
segunda instância, com um acordo. BLER, 1998, pp. 699-708.

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nário político alemão, as quais reverteram algu- das alternativas hoje em dia existentes – especial-
mas medidas conservadoras anteriores, então, mente no contexto anglo-americano –,36 verá a
contradiz-se aqui a tese, bastante propagada, de regulamentação acima mencionada como uma
que a formação de espaços para ação do Estado delimitação demasiada da liberdade de estabelecer
social tende a se anular, em vista da coerção exer- contratos.37 Por outro lado, quem, ao contrário,
cida pelos mercados globais.34 defende que a pluralidade de alternativas pressu-
No que diz respeito à nova regulamentação põe um marco de referência e também regula-
das atividades de baixa remuneração e ao trabalho mentações, para que, assim, o indivíduo não seja
autônomo, é possível afirmar que, a despeito da visto como mero objeto de uma flexibilidade mo-
imprecisão das estatísticas disponíveis, não há tivada por simples questões de mercado, verá
fundamentação para as profecias de cenários ca- nessas iniciativas do legislador um avanço na di-
tastróficos tão temidos, para as dificuldades exis- reção correta.
tenciais em determinados setores (imprensa es- Nesse caso, trata-se de uma tentativa de es-
crita, indústria hoteleira e turística) ou para a fuga tabelecer uma conexão entre mobilidade e segu-
maciça de pessoas ao trabalho no mercado clan- rança no trabalho, tentativa essa muito influencia-
destino, a fim de escapar dos sistemas de taxação da pelos debates dinamarqueses e holandeses so-
e arrecadação, já que nada disso ocorreu de modo bre o conceito de uma segurança flexível (flexicu-
significativo. Os chamados “contratos de 630 rity),38 que tem sido vista e valorizada, até mesmo
marcos” obviamente não se tornaram caros para em discussões no contexto anglo-americano,
os empregadores e, ao invés de se notar uma li- como um dos pontos fortes do modelo alemão e
mitação no pagamento do imposto único de europeu de relações trabalhistas diante da con-
22%, observa-se que as contribuições para a se- corrência internacional.39 Tal modelo pode ser
guridade social continuam sendo pagas nos mes- percebido de modos diferenciados na prática –
mos níveis anteriores. O número de envolvidos dependendo de cada país. Mas, de qualquer ma-
em atividades de baixa remuneração, que contri- neira, eles contradizem os conceitos neoliberais,
buem para a seguridade social – especialmente baseados na premissa fundamental de que so-
mulheres –, tem sido crescente e se encontra pre- mente com o desmantelamento dos padrões do
sentemente na faixa de 4 milhões de pessoas. sistema de seguridade social (por meio da flexi-
Mesmo a nova regulamentação do trabalho bilização) e a diminuição dos custos salariais é
autônomo, que havia levado a conjecturas infun- possível manter e aumentar a capacidade de con-
dadas da comunidade de empregadores quanto à corrência das empresas no mercado internacional
exaustão do direito social, no caso do cumpri- e, ao mesmo tempo, melhorar a situação na polí-
mento de alguns direitos, parece ter sido bem as- tica do mercado de trabalho.40
similada na prática cotidiana, após uma rápida Quanto às novas emendas na Lei sobre os Es-
correção dessa emenda, ainda no ano em que a lei tatutos dos Estabelecimentos, gostaria de mencio-
entrara em vigor (1990).35 Esse exemplo, mais nar, em conexão com a discussão aqui desenvol-
precisamente, mostra que, em casos concretos, é vida, que se trata, nesse caso, de uma reforma
de fato difícil estabelecer limites entre o mal uso 36 De modo claro na comissão de desregulamentação, abertura de
da lei e a necessidade de estabelecer uma flexibi- mercado e competitividade, 1991.
37 Isso se reflete nos pareceres e na discussão do 63.o Deutscher Juris-
lidade que possa ser legitimada em termos socio-
tentag. Nesse congresso, Heinze insistiu em mais aberturas e flexibili-
políticos. Quem é, por princípio, a favor de uma zação, ao passo que Däubler enfatizou a perspectiva social e estatal. Cf.
desregulamentação do direito do trabalho, à luz também o relatório sobre o congresso, de ENGELMANN, 2000, pp.
1.322-1.325 (NZA, München, Bd. 17); SEIFERT, 2001, pp. 289-291; e
WALTER, 2000, pp. 417-421.
34 Uma visão geral sobre essa discussão é dada por HOFFMANN, 38 ZACHERT, 2000a, pp. 283-290; ZACHERT, 1999, pp. 21-31; e

1998, pp. 336-340. HANAU, 2000, pp. 1-92.


35 Em vez de mencionar o mais recente, remeto aqui a KLEINHENZ, 39 KOHLER, 1996, pp. 213-234; e WEVER, 1995.

2000, p. 46 e referências. 40 Referências em RIEBLE, 1996, pp. 1-13.

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para a garantia de estruturas41 e que, portanto, ticas salariais baseada no argumento de que elas
nada alterará no sistema das co-determinações têm sido muito rígidas. É necessário, com relação
clássicas sobre a matéria. Algumas regulamenta- a isso, complementar que uma posição específica –
ções jurídico-organizacionais, no sentido de faci- inspirada sobretudo em perspectivas anglo-ameri-
litar a criação de outras formas complementares canas – vem insistindo, quase sem disfarces, na re-
de comissões de fábrica em redes empresariais ou vogação do contrato coletivo de trabalho. O re-
estruturas de grupos empresariais atípicas (§ 3.º presentante-mor dessa posição, no plano das agre-
da Emenda) e a possibilidade de uma transferên- miações envolvidas nesse processo, foi o ex-presi-
cia de tarefas da comissão de fábrica a grupos de dente da Federação Nacional da Indústria Alemã,
trabalho (§ 28.o da Emenda), devem ser entendi- Olaf Henkel, que recentemente lançou o prog-
das mais simplesmente como reações aos desafios nóstico de que o cartel salarial na Alemanha estaria
surgidos sob a influência da globalização. De
com os dias contados.43 Observando essa questão
qualquer maneira, a nova Lei sobre Comissões de
da perspectiva oposta, pode-se ver, na minha opi-
Fábrica na Europa, aprovada pelo governo ante-
nião, que os desafios apresentados às federações de
rior, em 1996, e baseada em diretrizes que orien-
empregadores se dão sobretudo na mudança de
tam uma iniciativa européia, me parece muito
mais importante nesse contexto. Por conseguin- expectativa dos empregados dos mais variados se-
te, passarei a discuti-la a seguir. tores influenciados pela globalização – como é o
caso das empresas e serviços da “new economy”,
Antes de entrar mais diretamente na dis-
em melhor situação com a provisão de salários e
cussão européia, gostaria de acrescentar algumas
considerações sobre as opções de formatação de benefícios mais competitivos a longo prazo do que
relações na indústria já disponíveis no âmbito na- segundo o modelo antigo.
cional, como, por exemplo, as reações dos sindi- Como prova dessa tendência, pode-se men-
catos – mais precisamente, a reação das associa- cionar a Pesquisa-Delphi realizada pelo Fraunho-
ções – às tendências aqui referidas sobre a fer Institut, demonstrando que, a partir do ano
globalização dos mercados. Limito-me ao plano 2005 (até 2013), as novas e modernas formas de
básico e mais importante da regulamentação ju- organização permitirão o surgimento de empresas
rídica do trabalho: a convenção coletiva. Já foi e atividades mais eficientes, e também que os con-
comprovado empiricamente que, nos últimos tratos de trabalho por tempo determinado serão
anos, a flexibilização da convenção coletiva au- da ordem de mais de 40%. Essa pesquisa também
mentou muito. Isso se mostra nas aberturas cria- indica que, no período entre 2003 e 2010, haverá
das em contratos permitindo a inclusão de regras falta de trabalhadores altamente especializados, de
empresariais complementares ao crédito de horas modo que as empresas mais produtivas terão de
de trabalho, cláusulas para períodos de baixa per- atrair pessoal qualificado por meio do oferecimen-
formance possibilitando a submissão dos níveis to de ambientes de trabalho amigáveis para a famí-
salariais às condições de uma empresa em situa- lia e outras vantagens.44 Se, por um lado, não se
ção de crise, definição salarial diferenciada para deve desconsiderar esses e outros importantes
grupos com maiores problemas no mercado de campos surgidos nas relações de trabalho, não se
trabalho e até mesmo de procedimentos especí- pode também deixar de notar que, dentro e por
ficos de remuneração em alguns setores, entre
meio das associações e federações, ainda se faz ne-
outras iniciativas.42
cessário um trabalho de esclarecimento e conven-
Contudo, há também uma crítica funda- cimento sobre tais mudanças. A decisão conjunta
mental à crescente mudança na estrutura das polí- de cinco sindicatos alemães em unir-se para formar
41
o sindicato de prestadores de serviços “ver. di” pa-
Nessa direção, e em concordância com os pontos fundamentais
dessa linha, cf., por exemplo, RICHARDI & ANNUSS, 2001, pp. 41-
46; e WENDELING-SCHRÖDER, 2001, pp. 357-361. 43 HENKEL, O. “Das Deutsche Tarifkartell wird zerbrechen”, Han-
42 Por exemplo, BISPINCK, 1997, pp. 551-569; e CLASEN, 1998, pp. delsblatt de 21/fev./2000, p. 5; e idem, 1998, p. 148ss.
5-11. 44 CUHLS, BLIND & GRUPP, 1998, p. 26.

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rece ter sido um importante passo nessa direção, tegrá-la. Isso diferencia a integração européia do
por possibilitar o desenvolvimento e a realização mero processo de criação de uma zona de livre
de acordos salariais mais favoráveis em áreas bas- comércio, como a Nafta, na América do Norte, e
tante dinâmicas, como os serviços nos setores da o Mercosul, no extremo sul do continente ame-
informação e da comunicação. ricano, ou como a grande Área de Livre Comér-
cio das Américas (Alca), que atualmente tenta se
2. Margens de ação no nível europeu e expandir por todo o continente americano, desde
mundial o norte até o sul.
a) Os poucos exemplos mencionados já de- Esses elementos característicos do meio so-
monstram que, também no âmbito nacional do cial europeu podem ser vistos de fato como reação
direito do trabalho, já existem algumas formata- aos desafios da globalização: o trânsito livre de
ções fundamentadas nos princípios do Estado so- mercadorias, pessoas, serviços e capital (art. 14, in-
cial que permanecem válidas e podem ser vistas ciso 2.o do Tratado da União Européia) não deve
como alternativas, a despeito das respostas ainda ocorrer por meio do dumping social ou ser por ele
deficitárias aos problemas relativos à globaliza- substituído. Mais do que isso, os membros da
ção, alguns dos quais talvez nunca sejam passíveis União Européia buscam estabelecer um modelo
de resolução. de contrato válido em toda a Comunidade Eu-
Uma outra dimensão que vem ganhando ropéia, segundo os seguintes objetivos: promoção
mais relevância, nos últimos anos, se dá no plano da ocupação profissional e melhora das condições
do direito social e do direito do trabalho europeu. de trabalho e qualidade de vida para, assim, possibi-
Em todas as controvérsias sobre a viabilidade e os litar uma equalização social ao longo do processo de
efeitos de medidas particulares – especialmente as desenvolvimento, incluindo também a seguridade
Diretrizes da União Européia ou as decisões do social e, além do mais, estabelecendo um diálogo e o
Tribunal Europeu –, se reconhece que, em várias desenvolvimento nas questões relativas à promoção
das áreas sob sua jurisdição, o direito europeu do potencial de trabalho, como forma de manter
tem tido uma influência sobre o direito do traba- um alto nível de empregabilidade de longa duração
lho na Alemanha.45 Nem sempre é fácil ver isso e evitar a exclusão (art. 136, inciso 1.o do Tratado
clara e imediatamente nas emendas propostas da União Européia).
para as leis nacionais, como nas do direito do tra- Mesmo quando se observa alguns parágra-
balho sobre o tratamento igualitário em questões fos e temas destacados e tratados à parte no âm-
de gênero (§ 611a BGB46), da proteção do empre- bito europeu, deve-se considerar que as normas
gado nos processos de transição da empresa (§ validadas até agora por meio desses procedimen-
613a BGB), de proteção ao trabalho (lei de 1996) tos cobrem o campo do direito do trabalho ape-
ou a proteção contra o dumping salarial na cons- nas parcialmente, faltando ainda uma visão de
trução civil (Lei de Transferência dos Trabalhado- seus conteúdos e a sua articulação sistemática
res, de 1996 e 1998). Da mesma forma, não é evi- com todo o processo acima relatado. Como já se
dente que tais mudanças recorrem às diretrizes disse aqui, foi dada, no contexto da legislação eu-
européias e têm sido influenciadas pelas decisões ropéia, especial importância à definição das Dire-
do Tribunal Europeu em Luxemburgo. Em todas trizes sobre as Comissões de Fábrica Européias
essas áreas do direito do trabalho há, porém, (Instrução 94/45 da Comunidade Européia) –
determinações legais básicas, válidas atualmente surgidas como resposta do continente europeu
nos países membros da União Européia e, em aos desafios da globalização e implementadas
breve, também em outros países que deverão in- também no âmbito nacional alemão, por meio da
Lei das Comissões de Fábrica, de 1996. Nesse ca-
45 Mais recentemente, apenas SCHAUB, 1999, pp. 519-548, com
referências.
so, trata-se, na minha opinião, não tanto de defi-
46 Código Civil Almemão. nir em lei as competências das comissões de tra-

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balho européias nas grandes empresas cujo raio sos de globalização, implementados no âmbito
de ação alcança toda a Europa, pois tais compe- europeu propositalmente pela própria Comuni-
tências se limitam ao papel de prover informação dade Econômica Européia: na reunião extraordi-
e consultoria às decisões estratégicas tomadas pe- nária da Cúpula dos Chefes de Estado e de Go-
las empresas. Mas, mais do que isso, trata-se de verno, realizada em Nizza, os 15 países membros
possibilitar que a prática do intercâmbio organi- concordaram em firmar a Carta dos Direitos
zado e institucionalizado de experiências contri- Fundamentais, que entrou em vigor por meio de
bua, a médio prazo, com a implementação cada uma proclamação festiva, em 8/dez./2000.51 Sob
vez maior de uma cultura de melhores relações o título “Solidariedade”, encontram-se de modo
nas indústrias européias. Nesse caso, a Europa é expresso, entre outros, os direitos à informação e
um processo de aprendizagem diante dos desafi- à voz dos empregados em suas empresas (art.
os trazidos pela globalização e a internacionaliza- 27), assim como o direito a negociações coletivas
ção dos mercados.47 e a medidas coletivas (art. 28). Embora a questão
Em contraposição a tais resultados de mé- sobre a obrigatoriedade dos direitos, expressos
dio prazo, devemos reconhecer que haverá de nessa Carta dos Direitos Fundamentais, ainda es-
passar ainda um longo tempo até se chegar à de- teja em aberto e muitos aspectos a ela inerentes
finição e à negociação de contratos com base em necessitem de interpretação,52 deu-se com ela,
um piso salarial comum a toda a Europa. Sem dú- apesar de tudo, um passo importante no sentido
vida, devemos partir do pressuposto de que, no de fortalecer uma identidade européia comum,
futuro, a dinâmica da integração européia – espe- baseada em valores e perspectivas gerais que vão
cialmente a integração já realizada no que diz res- mais além das leis e das forças coercitivas do mer-
peito à união monetária (e à adoção do euro cado. Por essa razão, a Carta afirma, logo em seu
como moeda única) – deverá forçar os diferentes preâmbulo: a União Européia funda-se nos valo-
atores sociais a pensar e agir cada vez mais sob a res universais indissociáveis da dignidade huma-
perspectiva de um espaço maior estendendo-se na, da liberdade, da igualdade e da solidariedade.
por sobre vários países.48 Já que as diferenças na- Acrescentaremos ainda alguns comentários sobre
cionais e a variedade de estruturas salariais nos tais aspectos ao concluir este ensaio.
respectivos países membros da União Européia b) A inspiração para iniciativas de caráter
provavelmente ainda permanecerão diferenciadas normativo, ou mesmo para ações nos respectivos
por longo tempo – o que, na minha opinião, não países, buscando minimizar o impacto e as conse-
deve ser visto necessariamente como algo negati- qüências prejudiciais da globalização, seria pífia, se
vo –,49 a força motivadora para o surgimento de nos limitássemos à esfera da Comunidade Eu-
uma “europeização da política salarial” deverá ropéia e não nos movêssemos também no plano
surgir inicialmente de uma harmonização da po- do “direito mundial do trabalho”. Para mencionar
lítica salarial ocorrida no nível de cada setor e um exemplo atual, poderíamos perguntar: seria re-
classe industrial.50 alista ou possível demandar e articular a solidarie-
Cabe aqui, ainda, aproveitar a oportunidade dade de empregados na sede da Daimler-Chrysler,
para acrescentar um último comentário sobre a na cidade alemã de Stuttgart, para com as dificul-
europeização do direito como reação aos proces- dades econômicas de sua filial, na cidade americana
de Detroit, quando tais ações pudessem compro-
47 Sobre esse ponto, cf., mais recentemente, ALTMEYER, 2001, pp. meter o futuro dessa empresa transnacional como
361-365; LECHER, NAGEL & PLATZER, 1998, pp. 230-241; e
EBERWEIN, THOLEN & SCHUSTER, 2000, pp. 202-212.
48 GOLBACH & SCHULTEN, 1999, pp. 456-464. 51 Charta der Grundrechte der EU. Suplemento especial de NJW,
49 Sobre as razões para tando, cf. KEMPEN, 1996, pp. 201-213. EuZW. NVwZ e JuS, dez./2000, com comentários de HILF, pp. 1-15
50 Quanto aos resultados, e também sobre o déficit do chamado “diá- 52 DÄUBLER, 2000, pp. 1.315-1.321. Sobre a pré-história dessa dis-
logo social”, cf. ZACHERT, 1998, pp. 811-828; e KELLER, 1999, pp. cussão, cf. ZACHERT, 2000b, pp. 621-626; e, com base no debate
109-118. internacional, VENEZIANI, 2000, pp. 779-840.

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um todo? Como se deveria proceder no caso in- rede, e bem abertos. Contudo, espero ter conse-
verso?53 A solidariedade internacional é uma exi- guido mediar aqui alguns aspectos concretos e
gência antiga e tradicional do movimento trabalha- palpáveis sobre o assunto, bem como estabelecer
dor, para a qual, sem dúvida, existem vários exem- e indicar algumas relações entre o fenômeno da
plos.54 Mas, na prática, ela é verdadeiramente de globalização e o mundo do trabalho.
difícil implementação, já que muitas vezes as dúvi- Concluindo este ensaio, desejo ainda me
das quanto aos reais valores e interesses nessas referir à Europa, mas agora como europeu. Dian-
ações acabam por ter maior impacto, inibindo, as- te do quadro de competitividade global – e sem
sim, as possíveis atividades solidárias. querer, com isso, exagerar o nosso papel –, con-
Dificuldades similares surgem também nos sidero os europeus talvez em condições de poder
casos de afirmação normativa de cláusulas sociais dar alguma contribuição útil pelo menos aos ou-
como instrumento para a inclusão de aspectos so- tros países que, presentemente, se encontram
ciais nas ações em mercados globalizados. Atual- fora do triângulo de concorrência comercial, for-
mente, vivemos a experiência da discussão para de- mado pelos Estados Unidos, a Europa e o Japão,
finir a quem cabe a responsabilidade por normas sem a pretensão de dizer que devam desconside-
fundamentais tão elementares, como a não explo- rar ou estar fora dessa concorrência. Pelo contrá-
ração do trabalho infantil, se à Organização Mun- rio! Entre as contribuições que se poderia men-
dial do Comércio (OMC) ou à Organização Inter- cionar encontra-se o reconhecimento fundamen-
nacional do Trabalho (OIT).55 Em todo o mundo, tal de um princípio igualitário que postula a
estima-se que haja cerca de 250 milhões de crianças proteção social e a justiça social para todos, im-
trabalhando, nas piores condições, em plantações, plicando, portanto, a não exclusão de qualquer
fábricas e minas.56 Muitos países no Hemisfério forma ou classe de trabalhadores.58
Sul temem, porém, que as cláusulas sociais sejam
Além disso, incluir-se-ia aqui o reconhecimen-
somente pretextos para a implementação e o mal
to dos sindicatos como organizações intermediárias
uso de políticas protecionistas.57
com um espaço substancial, garantindo sua liberdade
de ação. Finalmente, cabe citar também, como parte
VISÃO PANORÂMICA: UM MODELO desse contexto, o respeito aos direitos autônomos –
EUROPEU PARA AS RELAÇÕES NO TRABALHO? até mesmo na área das políticas salariais –, os quais de-
Um tradicional provérbio espanhol afirma vem ser complementados com possibilidades de par-
o seguinte: “El que mucho abarca, poco aprieta”, o ticipação e de informação quanto aos processos de-
que poderia ser traduzido da seguinte maneira: cisórios nas empresas. No que diz respeito ao campo
“Quem trabalha com rede aberta, muito abarca e da economia, estou totalmente de acordo com o his-
pouco aperta”. A globalização e o mundo do tra- toriador Eric Hobsbawn, quando ele afirma o se-
balho são um tema que nos força a trabalhar em guinte: a globalização não deveria nos levar a que, por
exemplo, a França venha a importar tudo o que ne-
53 Veja a crítica sob a perspectiva dos Estados Unidos: MARKOVITS,
2001, pp. 186-188. A situação, no caso da crise da empresa Rover,
cessite para a alimentação de seu povo, ou que todos
braço da transnacional BMW na Grã-Bretanha, foi a mesma. Cf. os programas de TV sejam produzidos na Cidade do
VILLIERS, 2000, pp. 886-894.
54 Deve-se mencionar aqui a conferência mundial reunindo os emprega- México, mesmo quando tudo isso se justifique como
dos da empresa VW: KEMPE, 1998, pp. 29-31; e a contribuição do sin- mais barato.59
dicato IG Metal na superação do apartheid, na África do Sul:
KIAUSCH, 1988, pp. 133-136. Cf. visão geral mais recente, sobre o Portanto, chegará a hora em que seremos
assunto, em SEGGERN, 2001, pp. 281-301; e RUB, 2001, pp. 257-264.
55 “Regie für Seattle entzweit EU und USA”, Handelsblatt, 12/out./
forçados a definir o que é essencial em nossa cul-
1999, p. 2. tura, sobretudo em nossa cultura social, e, no
56 “Einer der rangeht: Die Arbeitsorganisation ILO hat einen neue
momento certo, nos engajar em sua defesa.
Chef”, Die Zeit, 8/abr./1999, p. 33.
57 Entre as monografias sobre esse tema, cf. SCHERRER, GREVEN
& FRAN, 1998; e PERULLI, 1999. Mais novidades sobre o tema em 58 Cf., mais recentemente, HABERMAS, 28/jun./2001, p. 7.
WEISS, 2001, pp. 369-382 (em especial p. 379ss). 59 HOBSBAWN, 1995, p. 573.

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Dados do autor
Professor doutor do direito do trabalho, autor de
comentários de grande porte sobre o
direito do trabalho alemão.
Site: <www.hwp-hamburg.de/fach/fg_jura/dozentinnen/zachert/htm>
Recebimento artigo: 20/jan./02
Consultoria: 12/abr./02 a 26/ago./02
Aprovado: 1.º/jul./02

Impulso, Piracicaba, 14(33): 57-71, 2003 71


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O Direito do Indivíduo a
Agir em Juízo para a
Proteção do Ambiente*
THE INDIVIDUAL RIGHT TO BRING AN
ACTION BEFORE A COURT IN BEHALF OF
THE ENVIRONMENT’S PROTECTION
Resumo O direito entrar com uma ação para a proteção do meio ambiente está su-
jeito a regimes muito diferentes dentro dos vários sistemas legais. A questão é: até que
ponto um indivíduo ou uma organização não-governamental teria o direito de agir
em favor dos interesses de uma figura geral, como no caso da proteção ambiental? Em
alguns países, somente alguns órgãos estatais podem entrar com tais ações; em outros,
algumas organizações não-governamentais também têm acesso garantido à corte sob
condições específicas; em outros, ainda, qualquer indivíduo, seja ele ou ela diretamen-
te afetado ou não, pode entrar com recursos legais. Este ensaio discute alguns casos
relevantes nos quais diferentes abordagens foram seguidas de acordo com a legislação
e as decisões de alguns países (Índia, Argentina, Estados Unidos e Filipinas). Abor-
da, também, o regime uniforme estabelecido na Convenção sobre o acesso à infor-
mação, a participação pública na tomada de decisão e o acesso à Justiça nas questões
ambientais (Aarhus, 1998).
TULLIO SCOVAZZI
Palavras-chave DIREITO AMBIENTAL – DIREITO A AGIR EM JUÍZO – PROTEÇÃO DO Università di Milano-Bicocca,
MEIO AMBIENTE. Milão/Itália
tullio.scovazzi@unimib.it

Abstract The right to bring an action before a court for the protection of the envi-
ronment is subject to very different regimes in the various domestic legal systems.
The question is to what extent an individual or a non-governmental organization
should be entitled to act in behalf of a general character’s interest, such as the envi-
ronment protection. In some countries, only some State organs can bring such acti-
ons; in others, some non-governmental organizations also have guaranteed access to
courts under specific conditions; in others, every person, whether he/she is directly
affected or not, can ask for legal remedies. The paper discusses a few relevant cases
where different approaches have been followed according to the legislation and de-
cisions of some countries (India, Argentina, the United States, and the Philippines).
It also focuses the uniform regime established under the Convention on access to in-
formation, public participation in decision-making and access to justice in environ-
mental matters (Aarhus, 1998).

Keywords ENVIRONMENTAL LAW – THE RIGHT TO BRING AN ACTION BEFORE


COURT – ENVIRONMENTAL PROTECTION.

* Conferência apresentada no curso de direito ambiental, ministrada em set./2002, na UNIMEP. Tradução

do italiano: Gabriele Cornelli.

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O PROBLEMA EM GERAL

E
m matéria de proteção do meio ambiente, o direito do
indivíduo a agir em juízo, tanto em sede civil como em
sede administrativa (nos países em que existe uma
jurisprudência administrativa distinta daquela ordinária),
apresenta algumas particularidades que tornam interes-
sante uma análise de tipo comparativo.1
Via de regra, somente aquele que é diretamente lesado
em seu direito pode agir diante de um juiz para obter jus-
tiça (é o chamado interesse de agir, do qual deriva o direito de agir). Não
se pode agir para fazer valer direitos alheios. Apesar disso, porém, o con-
ceito de interesse de agir encontra certas dificuldades quando diz respeito
à tutela dos direitos coletivos (ou difusos), que se referem globalmente
a um amplo grupo de sujeitos ou à coletividade como um todo, sem ser
possível distinguir a situação de cada um dos sujeitos. Uma solução con-
siste na atribuição do direito de agir ao Estado, que o exercita por meio
dos órgãos deputados como agente fiduciário da coletividade. Outra so-
lução consiste na atribuição do direito em questão a grupos associados de
indivíduos (trata-se, em muitos casos, de organizações não-governamen-
tais) ou até a indivíduos, que podem agir em concorrência com os órgãos
do Estado. Nesses casos, o interesse de agir do indivíduo, que não pode
ser considerado parte lesada strictu senso, torna-se muito fraco ou com-
pletamente ausente.
A alternativa indicada anteriormente manifesta-se com particular fre-
qüência com relação ao chamado direito ambiental e às ações dirigidas à
proteção ou à recuperação da qualidade ambiental. Alguns sistemas de di-
reito interno fizeram, por meio de leis especiais, certas escolhas referentes
à titularidade do direito a agir em matéria ambiental. Em outros sistemas,
nos quais faltam precisas indicações legislativas, a jurisprudência elaborou
soluções mais apropriadas às diferentes situações. Verificam-se também ca-
sos em que a jurisprudência interpreta com liberdade o texto da lei, che-
gando a soluções de duvidosa conformidade a seu significado literal.
Porém, a análise dos casos concretos revela ampla gama de
soluções, tornando difíceis os esforços de enquadramento teórico. Os
exemplos a seguir são particularmente significativos nesse sentido.2

BHOPAL GAS LEAK DISASTER (PROCESSING OF CLAIMS)


BILL, 1985
Apesar do enunciado anteriormente, verificou-se pelo menos um
caso em que o indivíduo diretamente lesado viu-se privado do direito de

1 Por exigências de brevidade, a análise comparativa a ser desenvolvida estará limitada à apresentação de
alguns exemplos especialmente significativos.
2 Não serão tomados em consideração, logo a seguir, os casos em que os direitos do indivíduo em maté-
ria ambiental foram pleiteados diante de órgãos judiciários internacionais. Cf., a esse respeito, as senten-
ças da Corte Européia dos Direitos do Homem, de 9/dez./1994 (caso “López Ostra versus Espanha”) e
de 19/fev./1998 (caso “Guerra versus Itália”), nas quais a Corte aplicou o art. 8.o (direito à vida privada)
da convenção européia dos direitos do homem. Cf. <www.echr.coe.int/FR/Judgments.htm>.

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agir. O exemplo é ainda mais significativo, ao pas- Claims) Act, 1985 era constitucionalmente válido.
so que os atores potenciais, mais do que tutelar A corte argumentou que as características únicas
um genérico direito coletivo ao meio ambiente, do desastre de Bhopal acarretavam repercussões
teriam agido com a intenção de obter um ressar- também no plano processual:
cimento de danos, em muitos casos fatais e gra-
víssimos, que haviam sofrido em sua integridade Where citizens of a country are victims of a
física. tragedy because of the negligence of any
multinational, a peculiar situation arises
Na noite entre 2 e 3 de dezembro de 1984,
which calls for suitable effective machinery
produziu-se uma fuga letal (isocianato de metile) to articulate and effectuate the grievances
de uma indústria química operada pela sociedade and demands of the victims, for which the
Union Carbide India Limited (UCIL), na cidade conventional adversary system would be
de Bhopal, no Estado de Madhya Pradesh, na Ín- totally inadequate. The State in discharge of
dia. No desastre mais devastador causado pelo its sovereign obligation must come forward.
homem em tempo de paz morreram em torno de The Indian State because of its constitutio-
2.660 pessoas (o número exato dificilmente po- nal commitment is obliged to take upon it-
derá ser determinado) e cerca de outras 40 mil so- self the claims of the victims and to protect
freram danos físicos. A UCIL era uma sociedade them in their hour of need.5
indiana, parte de um grupo transnacional. Mais
precisamente, 50,9% de suas ações pertenciam à Conforme a corte, a lei em questão, longe
Union Carbide Corporation, uma sociedade de privar as vítimas do desastre de um direito seu,
americana; entre 20% e 22%, a entidades finan- representava a única maneira de defender tais in-
ceiras de direito público indianas; e o restante, a teresses. Tratava-se de uma “lei especial, que pre-
mais ou menos 23.500 investidores privados. via um procedimento especial para uma classe es-
Com o objetivo de fazer com que “as pre- pecial de vítimas”:
tensões derivantes do incidente de Bhopal fos- In view of the enormity of the disaster the
sem gerenciadas de maneira rápida, efetiva e jus- victims of the Bhopal gas leak disaster, as
ta”, a Índia emitiu o Bhopal Gas Leak Disaster they were placed against the multinational
(Processing of Claims) Bill, 1985.3 Como conse- and a big Indian corporation and in view
qüência dessa lei, esse país substituía-se, em via of the presence of foreign contingency la-
exclusiva, no direito a agir em juízo a todos os wyers to whom the victims were exposed,
que avançavam em pretensões derivantes do in- the claimants and victims can legitimately
cidente de Bhopal: “The Central Government be described as a class by themselves diffe-
shall, and shall have the exclusive right to, represent, rent and distinct, sufficiently separate and
and act in place of (whether within or outside In- identifiable to be entitled to special treat-
dia) every person who has made, or is entitled to ment for effective, speedy, equitable and best
make, a claim for all purposes connected with such advantageous settlement of their claims.6
claim in the same manner and to the same effect as Apesar disso, porém, a Corte Suprema, va-
such person”.4 Por sua vez, o governo indiano era lendo-se do poder de interpretar a lei com “intui-
obrigado a registrar todos os pedidos e versar aos
ção construtiva”, acrescentou que o governo in-
postulantes as somas que receberia como satisfa-
diano era obrigado, a título provisório, a fornecer
ção a esses pedidos.
às vítimas os seus meios de sustentação. Tal obri-
Em 1989, a Corte Suprema da Índia decla- gação era também uma conseqüência do fato de
rou que o Bhopal Gas Leak Disaster (Processing of
5 Sentença de 22/dez./1989 no caso “Charan Lal Sahu versus Union of
3 International Legal Materials, 1986, v. 24, p. 884. India”. Supreme Court Almanac, 1989, p. 31.
4 Bhopal Gas Leak Disaster (Processing of Claims) Bill, 1985, seção 3, § 1. 6 Ibid., p. 51.

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que as vítimas haviam sido privadas do direito de proteção ambiental. Serão apresentados, a seguir,
agir em juízo: três exemplos, em uma escala progressiva.
Há alguns anos, Juan Schroder, cidadão ar-
After all, the Act was passed to give relief to gentino residente na província de Buenos Aires,
the victims who, it was thought, were una- agiu em juízo para pedir a anulação da decisão de
ble to establish their own rights and fight for
uma entidade governamental, a Secretaría de Re-
themselves. It is common knowledge that
cursos Naturales y Ambiente Humano (SRNAH),
the victims were poor and impoverished.
How could they survive the long ordeal of
que autorizava a construção de uma usina de tra-
litigation and ultimate execution of the de- tamento de lixo perigoso numa localidade da mes-
cree or the orders unless provisions be made ma região. Segundo Schroder, a autorização havia
for their sustenance and maintenance, espe- sido emitida sem avaliação prévia do impacto am-
cially when they have been deprived of the biental, requerida pela lei n.o 24.051, de 1992 (lei
right to fight for their rights themselves? We, nacional sobre o lixo perigoso). Em decisão de 8
therefore, read the Act accordingly.7 de setembro de 1994, o juiz administrativo argen-
tino (Cámera Federal en lo Contencioso Admi-
Exatamente as características únicas do nistrativo) acolheu o pedido de Schroder.11
caso explicam uma solução legislativa sem prece- A corte rejeitou a exceção preliminar da SR-
dentes. Permanecem, no entanto, algumas per- NAH, segundo a qual Schroder não teria o direito
plexidades, sobretudo lá onde a lei em questão de agir em juízo por não poder demonstrar-se di-
havia de fato privado as vítimas da possibilidade retamente lesado pela realização do projeto. A
de fazer valer eventuais responsabilidades do pró- corte argumentou que a simples conexão política
prio Estado indiano.8 De fato, a legislação indiana de ser um morador da província dava-lhe título
mais recente (National Environment Tribunal suficiente para agir em juízo. A esse respeito, a
Act, 1995), baseada na experiência do desastre de corte seguiu uma interpretação amplamente ex-
Bhopal,9 atribui o direito de agir em juízo para tensiva dos artigos 41 e 43 da Constituição argen-
pedir o ressarcimento dos danos tanto à pessoa tina (em sua modificação de 1994), de maneira
diretamente lesada quanto ao Estado.10 especial no que diz respeito ao conceito de pessoa
lesada (el afectado), assim definida:
O MORADOR DA PROVÍNCIA DE Todos los habitantes gozan del derecho a un
BUENOS AIRES ambiente sano, equilibrado, apto para el
Em direção contrária caminham os casos desarrollo humano y para que las activida-
des productivas satisfagan las necesidades
em que foi reconhecido, a pessoas não direta-
presentes sin comprometer las de las genera-
mente lesadas, o direito de agir em matéria de ciones futuras; y tienen el deber de preser-
varlo. (art. 41)
7 Ibid., p. 54.
8 No decorrer do processo instaurado na Índia, a Union Carbide Cor- Podrán interponer esta acción [= la acción
poration apresentou pedidos pouco convencionais ao governo central
indiano e ao Estado de Madhya Pradesh, argumentando que eles
de amparo] contra cualquier forma de dis-
teriam tolerado a multiplicação de loteamentos habitacionais ilegais criminación y en lo relativo a los derechos
junto à indústria de Bhopal e desenvolvido um papel decisivo no pro- que protegen al ambiente (...) el afectado, el
jeto, instalação e gestão dessa indústria. É evidente que pedidos desse defensor del pueblo y las asociaciones que
tipo teriam como ser apresentados pelas mesmas vítimas, se elas
pudessem continuar como titulares do direito de agir em juízo. propendan a esos fines, registradas confor-
9 O objetivo da lei é “to provide for strict liability for damages arising out me a la ley, la que determinará los requisi-
of any accident occurring while handling any hazardous substance and for tos y formas de su organización. (art. 43)
the establishment of a National Environment Tribunal for effective and
expeditious disposal of cases arising from such accident, with a view to
giving relief and compensation for damages to persons, property and the 11 Sobre o caso “Juan Schroder versus Estado nacional (Secretaría de
environment and for matters connected therewith or incidental thereto”. Recursos Naturales)”, cf. a lei de 6/dez./1994, p. 7 (com comentários
10 Cf. a seção 4 da lei, sobre a qual não será possível estender-se neste de Walsh e de Kaufman). A decisão tomada na corte de apelação con-
ensaio. firma uma precedente sentença favorável a Schroder.

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DESAFIANDO AS LEIS DE SEU PRÓPRIO sentença, de 16 de fevereiro de 1996, da Corte de


PAÍS E AS LEIS DO MUNDO TODO Comércio Internacional dos Estados Unidos
A legislação dos Estados Unidos (High (United States Court of International Trade) no
Seas Driftnet Fisheries Act, lei n.o 102-582, de 2 de caso “The Humane Society of the United States
novembro de 1992) prevê especial procedimento and others versus Ron Brown, Secretary of Com-
de retaliação contra os países que permitem ou, merce, and Warren Christopher, Secretary of Sta-
simplesmente, não reprimem o uso, em alto-mar, te”.15 O contencioso via como atrizes algumas
de redes derivantes12 de amplo raio (isto é, mais associações ambientalistas não-governamentais e
longas que 2,5 km)13 por parte de navios de sua como imputados dois ministros dos Estados
bandeira ou de seus cidadãos. Conforme esse Unidos.
procedimento, o secretário do Comércio deve No mérito, a corte decidiu que o governo
identificar os países em questão e, até 30 dias da norte-americano era obrigado a identificar a Itália
identificação, o presidente dos Estados Unidos como país que permitia o uso de redes derivantes
por parte de navios e cidadãos italianos, “desafian-
terá de entrar em diálogo com eles, com a finali-
do as leis de seu próprio país e as leis do mundo
dade de chegar a um acordo sobre a imediata
todo”: “All the documents and materials produced
cessação do uso de redes derivantes. Se até o ter-
by the defendants (...) give reason in the mind of an
mo de 90 dias os diálogos não se concluírem sa- ordinarily intelligent person to believe that Italians
tisfatoriamente, o presidente norte-americano continue to engage in large-scale driftnet fishing in
deverá dar instruções ao secretário do Tesouro the Mediterranean Sea in defiance of the law of
para proibir a importação de peixe, produtos de- their own country and of the rest of the world”.16
rivados e ferramentas de pesca provenientes do De maneira especial, a corte argumentou
país identificado. que o High Seas Driftnet Fisheries Act obrigava o
Novas sanções podem ser adotadas no caso governo norte-americano a identificar os países
de as sanções já aplicadas mostrarem-se insuficien- estrangeiros em todos os casos em que existissem
tes para fazer cessar o uso das redes derivantes ou de fato pressupostos para a sua aplicação. Assim,
se o país identificado empregar, por sua vez, me- acabou rejeitada a tese, apresentada pelo governo,
didas de retaliação contra os Estados Unidos. No de que uma não-identificação podia ser justifica-
controle sobre os eventuais usos em mar aberto da pelo exercício de um poder de decisão desse
de redes derivantes, o governo norte-americano governo acerca da oportunidade de não prejudi-
pode servir-se dos meios de controle fornecidos car as boas relações políticas intercorrentes com
pelo seu departamento de defesa.14 alguns países estrangeiros.
A legislação norte-americana sobre as redes Interessante é o uso que a corte fez das
derivantes em mar aberto foi aplicada em uma provas. A Marinha americana, que anteriormente
havia recebido a tarefa de vigiar o emprego das re-
12 As redes pelágicas derivantes de amplo raio, que podem superar até des derivantes no Mar Mediterrâneo, reportou
30 milhas náuticas de comprimento, são mantidas por pesos e bóias, apenas um caso em que um navio de pesca tinha
em posição vertical um pouco abaixo da superfície da água. Essas
redes, usadas para a pesca do atum e do peixe-espada, são pouco seleti- usado uma rede de 6 milhas de comprimento, a
vas. Com freqüência, espécies que não são objeto de exploração ou são 12,5 milhas de distância da costa.17 Contudo, ar-
dela protegidas (como mamíferos, tartarugas ou aves marinhas) aca-
bam presas nas redes. gumentando que a Marinha militar provavelmen-
13 Mais precisamente, o termo large scale-driftnet fishing indica “a
te ocupara-se de prioridades operativas mais im-
method of fishing in which a gillnet composed of a panel or panels of web-
bing, or a series of such gillnets, with a total length of two and one-half portantes do que a observação de redes derivan-
kilometers or more is placed in the water and allowed to drift with the tes,18 a corte preferiu dar crédito a provas resultan-
currents and winds for the purpose of entangling fish in the webbing”
(seção 206c da lei n.o 94-265, chamada Magnuson-Stevens Fishery Con-
15 Federal Supplement, v. 920, p. 178.
servation and Management Act, como emendada em 1996).
14 Não interessa nesse ensaio indagar se a legislação americana tem 16 Ibid., p. 192.
efeitos extraterritoriais contrastantes com as normas gerais do direito 17 Ibid., p. 189.
internacional ou com os tratados em vigor nos Estados Unidos. 18 Ibid., p. 189.

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tes de campanhas do Greenpeace International are used, the net only extends 500 meters
(associação ambientalista não-governamental),19 behind the boat. Since swordfish do not
de relações da Comissão Européia20 e das próprias travel in schools, the limit is not econo-
declarações feitas, antes do julgamento, por mem- mically feasible.23
bros do corpo diplomático americano21 e pelo se- Como conseqüência dessa sentença, o se-
cretário de Estado.22 cretário de Comércio identificou a Itália, em 28
Enfim, a impressão da corte acerca da efe- de março de 1996. Os dois governos iniciaram diá-
tiva vontade do governo italiano de fazer aplicar logos, cujos resultados impediram até agora a
as normas em vigor no direito italiano e comuni- adoção de sanções econômicas por parte dos Es-
tário sobre a proibição das redes derivantes aca- tados Unidos.
bou bastante frustrante, como demonstra o se- Mas resta ainda considerar a questão que
guinte trecho (que inclui alguns detalhes folcló- aqui mais nos interessa. A corte demonstrou no-
ricos):
tável grau de fantasia em dar uma resposta afir-
All of the Sicilian port directors told of the mativa sobre a existência de uma lesão de um di-
great pressure fishermen are putting on them reito das associações americanas postulantes e o
to cease and desist their enforcement efforts. conseqüente direito delas de agir em juízo. Entre
Many fishermen are relatives or lifelong outras coisas, destacou que, tendo as associações
friends of the authorities, making their job o objetivo de observar os mamíferos marinhos
especially difficult. Also adding to the diffi-
(whale watching), espécies altamente migratórias,
culty has been the wavering position of the
GOI [Government of Italy] on the issue.
a possibilidade de que baleias e golfinhos fossem
The director of the port of Isola Delle Fem- presos nas redes derivantes usadas no Mar Medi-
mine said that in the mid-1980's the GOI is- terrâneo diminuía o direito das postulantes de re-
sued driftnet licenses very liberally, hence alizar seu propósito em todos os mares do mun-
the fleet grew past market saturation to over do: “Members of the plaintiff organizations are har-
600 boats. Then when the GOI supported med by the diminishing numbers of dolphins and
the UN moratorium on driftnets over 2.5 whales in and around the Mediterranean Sea as a
km, they had not realized that this length
result of large-scale driftnet fishing in Italy. (...) Be-
was not economically feasible for their fleet.
He claims the GOI then told fishermen to cause cetaceans are migratory, cetacean fatalities
continue as they had been and ignore the from driftnet fishing in the Mediterranean may di-
law. After being pressured by environmen- minish the number of dolphins and whales to be viewed
talist groups, in international fora, and by by their watchers elsewhere”.24
the USG [United States Government], the Fica evidente, nesse caso, que a conexão en-
GOI finally decided to enforce the law. This
tre o fato lamentado e o evento lesivo que pode-
vacillating policy has left fishermen frustra-
ria acontecer com danos aos postulantes é extre-
ted and angry.
mamente fraca.
All the port directors pointed to the fact
that a driftnet fisherman cannot make a AS AÇÕES DAS GERAÇÕES FUTURAS
living using less than eight kilometers of
O caso mais surpreendente, porém, consti-
driftnet line since the net is cast in zigzag
formation and does not proceed straight
tui-se de uma decisão pela qual foi atribuído o di-
backward from the boat. If only 2.5 km reito de agir em juízo a pessoas que não existem.
Com a sentença de 30 de julho de 1993, no caso
19 Ibid., p. 185.
20 Ibid., p. 186. 23 Relatório redigido em 1994 por um funcionário norte-americano e
21 Ibid., p. 186. citada na sentença. Ibid., p. 194.
22 Ibid., p. 188. 24 Ibid., p. 204.

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“Minors Oposa versus Secretary of the Depart- sadio e equilibrado, e de receber, para isso, a
ment of Environment and Natural Resources proteção do Estado como parens patriae27 (além
(DENR)”, a Corte Suprema das Filipinas acolheu da violação de outros princípios estabelecidos no
o princípio pelo qual as gerações futuras são legi- plano nacional e na Constituição do Estado). A
timadas a agir em juízo para fazer valer seus di- fora isso, a ação do secretário era, segundo os ato-
reitos em matéria de proteção ao meio ambien- res, “contrária ao mais alto direito da humanidade
te.25 – o direito natural – e lesiva do direito dos atores
Os autores do pedido eram 43 menores fi- à autopreservação e à perpetuação”.28
lipinos, seus 36 pais (agentes tanto como repre- O quadro desenhando pelos atores (e reto-
sentantes dos filhos, como também deles mes- mado na sentença) era claramente preocupante e
mos) e The Philippine Ecological Network, Inc., merece ser aqui citado em detalhes:
associação não-governamental filipina. Imputado
The Philippine archipelago of 7,100 islands
em juízo era o secretário do Departamento de has an area of thirty million (30,000,000)
Meio Ambiente e dos Recursos Naturais das Fi- hectares and is endowed with rich, lush and
lipinas, isto é, um órgão do governo nacional. verdant rainforests in which varied, rare
A questão substancial deduzida em juízo and unique species of flora and fauna may
apresentava enorme importância, sobretudo para be found; these rainforests contain a genetic,
um país com as características naturais das Filipi- biological and chemical pool which is irre-
nas. Os atores invocavam o direito de “impedir a placeable; they are also the habitat of indi-
genous Philippine cultures which have exis-
usurpação e a danificação das florestas pluviais
ted since time immemorial; scientific evi-
das Filipinas e de parar a incessante hemorragia
dence reveals that in order to maintain a
dos sistemas vitais de sustentação da vida no país, balanced and and healthful ecology, the
além da contínua violência contra a mãe Terra”.26 country's land area should be utilized on the
Pediam ao juiz que ordenasse ao intimado a basis of a ratio of fifty-four per cent (54%)
anulação de todas as licenças de exploração da for forest cover and forty-six per cent
madeira (Timber License Agreements) existentes (46%) for agricultural, residential, indus-
no país e não conceder ou renovar mais nenhuma trial, commercial and other uses; the distor-
licença de tal gênero. tion and disturbance of this balance as a
consequence of deforestation have resulted
Os atores faziam valer o fato de que a ex-
in a host of environmental tragedies, such
tensão do território ocupado por florestas pluviais as: a. water shortages resulting from the
havia se reduzido, ao longo de 25 anos, de 53% drying up of the water table, otherwise kno-
para 2,8%. Considerando a taxa corrente de des- wn as the “aquifer”, as well as of rivers,
florestamento (25 hectares por hora) e as licenças brooks and streams; b. salinization of the
concedidas e renovadas pelo secretário, as Filipi- water table as a result of the intrusion the-
nas perderiam toda e qualquer área de floresta rein of salt water (...); c. massive erosion
pluvial até o final daquele decênio. Daí derivaria and consequential loss of soil fertility and
um dano sério e irreparável, atingindo sobretudo agricultural productivity, with the volume
os atores menores de idade e as gerações futuras, of soil eroded estimated at one billion
(1,000,000,000) cubic meters per annum
que, dessa maneira, não poderiam ver, usar e go-
(...); d. the endangering and extinction of
zar desse raro e único tesouro natural.
the country's unique, rare and varied flora
A persistente recusa do secretário em anu- and fauna; e. the disturbance and dislocation
lar as licenças constituía, segundo os atores, uma of cultural communities, including the di-
violação de seu direito de gozar de um ambiente sappearance of the Filipino's indigenous

25 International Legal Materials, 1994, v. 33, p. 173. 27 “Pai da pátria” (nota do tradutor).
26 Ibid., p. 176. 28 International Legal Materials, 1994, v. 33, p. 181.

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cultures; f. the siltation of rivers and seabeds mente mencionadas as gerações futuras, embora
and consequential destruction of corals and não com a finalidade de atribuir-lhes o específico
other aquatic life leading to a critical reduc- direito de agir em juízo. A seção 1, livro IV, título
tion in marine resource productivity; g. re- XIV do código administrativo de 1987, por exem-
current spells of drought as is presently ex-
plo, prevê o seguinte:
perienced by the entire country; h. increa-
sing velocity of typhoon winds which result Declaration of policy: 1. the State shall en-
from the absence of windbreakers; i. the sure, for the benefit of the Filipino people,
flooding of lowlands and agricultural plains the full exploration and development, as
arising from the absence of the absorbent well as the judiciuos disposition, utilization,
mechanism of forests; j. the siltation and management, renewal and conservation of
shortening of the lifespan of multi-billion the country's forest, mineral, land, waters,
peso dams constructed and operated for the fisheries, wildlife, off-shore areas and other
purpose of supplying water for domestic natural resources, consistent with the neces-
uses, irrigation and the generation of electric sity of maintaining a sound ecological ba-
power; and k. the reduction of the earth's ca- lance and protecting and enhancing the
pacity to process carbon dioxide gases which quality of the environment and the objecti-
has led to perplexing and catastrophic cli- ve of making the exploration, development
matic changes such as the phenomenon of and utilization of such natural resources
global warming, otherwise known as the equitably accessible to the different segments
“greenhouse effect”.29 of the present as well as future generations; 2.
the State shall likewise recognize and apply a
Em sua defesa, o secretário invocava dois true value system that takes into account so-
argumentos: que os atores não possuíam legiti- cial and environmental cost implications re-
midade para agir e que a questão levantada era de lative to the utilization, development and
natureza política, não dizendo respeito, portanto, conservation of our natural resources.
à competência do Poder Judiciário. Segundo o se-
cretário, os atores levavam em juízo asserções va- Mais relevante, apesar de per se não decisiva,
gas e nebulosas acerca de um pretenso “direito era a seção 2 do decreto presidencial n.o 1.151, de
natural”, levantando na realidade uma questão 6 de junho de 1977, que atribui a cada geração de
(quais seriam os limites permitidos para a explo- filipinos o papel de fiduciário e tutor do meio am-
ração dos recursos florestais nacionais) que deve- biente para as gerações sucessivas.30
ria ser mais apropriadamente submetida ao Poder Tomando essa base legislativa, a Corte Su-
Legislativo. prema deduz, tanto no plano substancial como
O raciocínio desenvolvido pela corte, para no processual, conseqüências originais e muito
chegar a conclusões completamente diferentes, interessantes, apesar de discutíveis. Segundo a
funda-se em alguns dados legislativos e, em boa corte, “o direito a uma ecologia equilibrada e sa-
medida, em uma interpretação amplamente ex- dia” (the right to a balanced and healthful ecology)
tensiva do significado desses dados, que são, pri- possui importância superior àquela das mesmas
meiramente, a seção 16 da Constituição filipina normas de grau constitucional, sendo inerente à
de 1987: “The State shall protect and advance the preservação e à reprodução do gênero humano:31
right of the people to a balanced and healthful eco-
30 Mais precisamente a seção 2 menciona as “responsibilities of each
logy in accord with the rhythm and harmony of na- generation as trustee and guardian of the environment for succeeding
ture”. generations”.
31 É interessante a citação, nesse contexto, de um conceito muito
Destaca, a seguir, algumas disposições le- semelhante àquele do direito natural. O problema enfrentado pela
gislativas, no interior das quais eram expressa- Corte Suprema é certamente novo. Mas a função desenvolvida pelo
instrumento do direito natural é a mesma já desenvolvida no século
XVII: limitar o poder do Estado diante das exigências insopprimibili
29 Ibid., p. 177. dos indivíduos.

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“Such a right (...) concerns nothing less than self- and conservation of the country's forest, mi-
preservation and self-perpetuation – aptly and fit- neral, land, waters, fisheries, wildlife, off-
tingly stressed by the petitioners – the advancement shore areas and other natural resources to
of which may even be said to predate all govern- the end that their exploration, development
ments and constitutions. As a matter of fact, these and utilization be equitably accessible to the
present as well as future generations. Need-
basic rights need not even be written in the Cons-
less to say, every generation has a responsi-
titution for they are assumed to exist from the in-
bility to the next to preserve that rhythm and
ception of humankind”.32 harmony for the full enjoyment of a balanced
O direito a uma ecologia equilibrada e sadia and healthful ecology. Put a little differently,
comporta as conseqüentes obrigações de se abs- the minors' assertion of their right to a
ter de danificar o meio ambiente e de gerenciar sound environment constitutes, at the same
corretamente e conservar as florestas do país. time, the performance of their obligation to
Não se trata, segundo a corte, de uma questão ensure the protection of that right for the ge-
política, pois o caso é uma aplicação de um direito nerations to come.33
derivante de um programa formulado anterior-
mente e expresso na legislação filipina. Não é fácil tecer um comentário, mesmo
que aproximativo, à sentença. A um olhar atento,
Com relação aos aspectos processuais do
os direitos das gerações futuras são uma fórmula,
caso, a corte qualifica a ação deduzida em juízo
emotivamente muito sugestiva, que subentende
como uma ação de classe (class action), requerin-
um novo direito do homem, operante no plano
do, assim, ao juiz decidir sobre um pedido de in-
político e social.34 O conceito direitos das gerações
teresse geral e comum a todos os cidadãos das Fi-
futuras traduz-se na obrigação das autoridades
lipinas. Com palavras muito simples, como se
tratasse de uma solução evidente, em vez de uma públicas de gerenciar os recursos naturais de ma-
inovação de radical importância na prática jurídi- neira correta para não destruir o uso que deles
ca, a corte aceita a idéia de os atores menores re- poderia se fazer a longo termo. Se a tendência da
presentarem não somente eles mesmos e os ou- Corte Suprema filipina encontrar difusão, o ins-
tros de sua geração, mas também as gerações su- trumento dos direitos das gerações futuras cons-
cessivas: tituirá mais uma arma nas mãos dos indivíduos e,
sobretudo, das associações não-governamentais
This case, however, has a special and novel ambientalistas, a fim de sindicar e limitar eventuais
element. Petitioners minors assert that they abusos de autoridades públicas não suficiente-
represent their generation as well as genera- mente sensíveis às exigências de uma gestão racio-
tions yet unborn. We find no difficulty in nal da natureza.
ruling that they can, for themselves, for
others of their generation and for the succe-
eding generations, file a class suit. Their per- A CONVENÇÃO DE AARHUS
sonality to sue in behalf of the succeeding Por iniciativa da Comissão Econômica das
generations can only be based on the con- Nações Unidas para a Europa, foi recentemente
cept of intergenerational responsibility inso- aberta à assinatura a convenção sobre o acesso à
far as the right to a balanced and healthful
informação, a participação do público na tomada
ecology is concerned. Such a right (...) con-
siders the “rhythm and harmony of nature”.
de decisão e o acesso à Justiça no setor ambiental
Nature means the created word in its enti-
33 Ibid., p. 185.
rety. Such rhythm and harmony indispen- 34 Se esse é o sentido dos direitos das gerações futuras, a sentença
sably include, inter alia, the judicious dis- parece criticável lá onde atribui um direito de agir a crianças. É opor-
position, utilization, management, renewal tuno considerar que, apesar das aparências, as crianças não tenham
nada a ver com os direitos das gerações futuras, dado que a matéria diz
respeito aos direitos do ser humano como tal, e não aos direitos relati-
32 Ibid., p. 187. vos àquela específica categoria de indivíduo que é a criança.

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(Aarhus, 25 de junho de 1998). Essa convenção (a) having a sufficient interest or, alternati-
fornece importante contribuição à especificação vely;
do conceito de direito do homem ao meio ambiente, (b) maintaining impairment of a right,
tomando em consideração, de maneira especial, where the administrative procedural law of
como indica o próprio título, três de seus princi- a Party requires this as a precondition, have
pais elementos:35 “In order to contribute to the access to a review procedure before a court
protection of the right of every person of present and of law and/or another independent and
future generations to live in an environment ade- impartial body established by law to chal-
quate to his or her health and well-being, each Party lenge the substantive and procedural legali-
shall guarantee the rights of access to information, ty of any decision, act or omission subject to
public participation in decision-making, and access the provisions of article 6 [public participa-
tion in decisions on specific activities] and,
to justice in environmental matters in accordance
where so provided for under national law
with the provisions of this Convention”.36
and without prejudice to paragraph 3 be-
Apesar de seu caráter avançado, do ponto low, of other relevant provisions of this
de vista da proteção ambiental, a Convenção de Convention. (art. 9.o, § 2)37
Aarhus apresenta, com relação à questão crucial
do direito de agir em juízo, uma regulamentação Existe também uma norma que toma em
particularmente complicada e subordinada, em consideração, mas sempre de maneira subordi-
boa medida, ao direito interno das partes. Um di- nada ao direito interno das partes, os procedi-
reito ao acesso à Justiça é previsto, no caso em mentos administrativos e judiciários possíveis,
que não sejam observadas as outras duas obriga- em geral, de ser abertos contra sujeitos privados
ções fundamentais assumidas pelos Estados-par- ou autoridades públicas (por exemplo, os pro-
tes com a convenção, isto é, a obrigação de dar ao cedimentos a fim de obter a anulação de uma
público o acesso às informações relativas ao meio
autorização ou pedir o ressarcimento para dano
ambiente e de assegurar-lhe a participação na to-
ambiental):
mada das decisões referentes a atividades que
possam resultar prejudiciais ao ambiente (como In addition and without prejudice to the re-
indicadas no alegado I à convenção): view procedures referred to in paragraphs 1
and 2 above, each Party shall ensure that,
Each Party shall, within the framework of
where they meet the criteria, if any, laid
its national legislation, ensure that any per-
down in its national law, members of the
son who considers that his or her request for
public have access to administrative or ju-
information under article 4 [access to envi-
ronmental information] has been ignored, dicial procedures to challenge acts and
wrongfully refused, whether in part or in omissions by private persons and public au-
full, inadequately answered, or otherwise thorities which contravene provisions of its
not dealt with in accordance with the pro- national law relating to the environment.38
visions of that article, has access to a review
37 Importantes detalhamentos acerca do interesse em agir são dadas
procedure before a court of law or another
em um capoverso sucessivo do § 2 do art. 9.o: “What constitutes a sufficient
independent and impartial body established interest and impairment of a right shall be determined in accordance with
by law. (art. 9.o, § 1) the requirements of national law and consistently with the objective of
giving the public concerned wide access to justice within the scope of this
Each Party shall, within the framework of Convention. To this end, the interest of any non-governmental organiza-
its national legislation, ensure that members tion meeting the requirements referred to in article 2, paragraph 5 [non-
of the public concerned: govermental organizations promoting environmental protection and
meeting any requirements under national law], shall be deemed sufficient
for the purpose of subparagraph (a) above. Such organizations shall also
35 Existem outros elementos no conceito de direito do homem ao be deemed to have rights capable of being impaired for the purpose of
ambiente? A dúvida tem razão de subsistir. subparagraph (b) above”.
36 Convenção de Aarhus, de 25/jun./1998, art. 1.o. 38 Convenção de Aarhus, de 25/jun./1998, art. 9.o, § 3.

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Importante, até para seus reflexos no plano UMA IMPRESSÃO CONCLUSIVA


da prática, é a norma que especifica várias garan- O caráter heterogêneo e ocasional da pes-
tias processuais que tutelam o acesso à Justiça por quisa aqui apresentada não permite chegar a con-
parte do público: clusões e propor soluções. É oportuna, porém, a
In addition and without prejudice to para- pergunta sobre o papel mais apropriado a ser de-
graph 1 above, the procedures referred to in senvolvido pelo Estado nos procedimentos rela-
paragraphs 1, 2 and 3 above shall provide tivos à proteção ambiental.
adequate and effective remedies, including Manifesta-se, a esse respeito, a impressão
injunctive relief as appropriate, and be fair, de que a proteção do meio ambiente e, mais am-
equitable, timely and not prohibitively ex- plamente, a tutela dos direitos coletivos devem
pensive. Decisions under this article shall be constituir um “jogo” que possa prever a partici-
given or recorded in writing. Decisions of pação de três “jogadores”: os eventuais responsá-
courts, and whenever possible of other bo- veis por comportamentos danosos, o Estado en-
dies, shall be publicly accessible.39
tendido como o conjunto das instituições públi-
cas e, também, os indivíduos ou as associações ti-
tulares de um direito de fazer valer, também em
39 Idem, art. 9.o, § 4. juízo, os interesses de relevo geral.

Dados do autor
Professor de direito internacional da
Universidade de Milano-Bicocca (Milão/Itália)
Recebimento artigo: 18/out./02
Consultoria: 12/dez./02 a 7/fev./03
Aprovado: 24/fev./03

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Desafios no Ensino do
Direito Internacional Público
e do Direito da Integração
em Tempos de Globalização
CHALLENGES IN TEACHING PUBLIC
INTERNATIONAL LAW AND INTEGRATION
LAW IN TIMES OF GLOBALIZATION
Resumo Este artigo objetiva indicar desafios no ensino do direito internacional pú-
blico e do direito da integração, em tempos de globalização, à luz das políticas de pes-
quisa e acadêmica da Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP). São focados
alguns dos problemas econômicos e sociais presentes na era da globalização, sua in-
fluência na construção do direito internacional público e do direito da integração e as
limitações do ensino dessas disciplinas, tendo em vista as mudanças nas relações in-
ternacionais após o fim da Guerra Fria. Nesse sentido, é dado destaque ao questio-
namento acerca da eficácia do direito internacional público, particularmente diante do
descumprimento das resoluções do Conselho de Segurança da ONU, à necessidade de
ser resgatada a confiança no sistema das Nações Unidas, mediante a reforma do Con-
selho de Segurança, ao desafio da sobrevivência do Mercosul diante das negociações
para a formação da Alca, e, finalmente, à importância do direito comunitário e do cha-
JORGE LUÍS MIALHE
mamento à responsabilidade da União Européia, como possível paradigma de uma
Universidade Metodista de
globalização humanizada, e seu papel de fiel da balança de poder no atual sistema in-
Piracicaba (UNIMEP, Brasil)
ternacional. jlmialhe@unimep.br
Palavras-chave GLOBALIZAÇÃO – DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO – DIREITO
DA INTEGRAÇÃO – ENSINO JURÍDICO/UNIMEP.

Abstract The present article aims at presenting some challenges to the teaching of the
public international law and the integration law in times of globalization, in the light
of the research and academic policies of the Methodist University of Piracicaba
(UNIMEP). It focuses some of the economic and social problems of the globalization
era, its influence on the building of the public international law and the limitations to
the teaching of these disciplines, considering the changes in the international relati-
onships after the end of the Cold War. In such sense, it emphasizes the questioning
on the efficacy of the public international law, particularly regarding the unfulfilment
of UN Security Council’s Resolutions; the need to recover the trust in the United
Nations’ system through the Security Council’s reform; the challenge of Mercosul’s
survival considering the negotiations for the creation of Nafta; and finally the impor-
tance of the community law and the call to the European Union’s responsibility, as
a possible paradigm of a humanized globalization and its role in keeping the power
balance in the present international system.

Keywords GLOBALIZATION – PUBLIC INTERNATIONAL LAW – INTEGRATION LAW


– LAW TEACHING/UNIMEP.

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INTRODUÇÃO

G
lobalização é, de vários pontos de vista, uma falsa no-
vidade. Instalou-se uma discussão nos meios acadêmi-
cos dando nova roupagem a acontecimentos e ten-
dências que constituem quase que a reedição de fenô-
menos como aqueles observados na expansão ultra-
marina européia, a partir do final do século XV.
É possível, por exemplo, fazer-se um paralelo entre o
início do fenômeno da globalização e o conceito de eco-
nomia-mundo, concebido pelo historiador mais importante no século XX,
Fernand Braudel, integrante da missão universitária francesa responsável
pela edificação acadêmica da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Hu-
manas da USP, em 1934, e, posteriormente, professor na mais conceituada
academia francesa, o Collège de France, criado por François I no século
XVI. Para Braudel, na economia-mundo os Estados acumulavam riquezas e
investiam em grandes navegações como forma de expansão e, embrionaria-
mente, começaram a busca por um único espaço de convivência numa Mo-
narquia universal1 gerida pelo imperador Carlos V.
Foi, coincidentemente, no mesmo ano do descobrimento da Amé-
rica que nasceu um dos pais do direito internacional moderno, o frei do-
minicano espanhol Francisco de Vitória (1492-1546), defensor da idéia de
a sociedade internacional ser “orgânica e solidária”, o que conduz à con-
cepção de que os Estados têm uma soberania limitada. É exatamente essa
soberania, como se aprende no primeiro ano das faculdades de direito,
um dos elementos constitutivos do Estado. Entretanto, esse modelo de
Estado moderno, decorrente da assinatura dos Tratados de Westphalia,2
passados 355 anos de sua assinatura está decrépito e moribundo, pois a
concepção clássica de soberania tornou-se anacrônica diante da globaliza-
ção econômica desse fim de século.
Assim, como é possível a maioria dos autores brasileiros de teoria
geral do Estado, disciplina de base do direito internacional, continuar de-
fendendo a existência de uma soberania do Estado, usando como prin-
cipal fonte doutrinária Les Six Livres de la République, de Jean Bodin, em
pleno terceiro milênio? Como podem autores neo-hegelianos da teoria
geral do Estado insistirem na tese do monopólio do Estado nas relações
internacionais? Como podem pregar a soberania absoluta, a impossibili-
dade de o Estado sofrer limitações que não tenham origem na sua própria

1 De acordo com Braudel, “Depois da eleição de 1519, a política de Carlos V desgarra-se do solo, perde-
se em sonhos de monarquia universal (...). Sire – escrevia-lhe Guattinara –, depois da vossa eleição, agora
que Deus vos fez a prodigiosa graça de vos elevar acima de todos os reis e de todos os príncipes da cris-
tandade, a um tal grau de poder, que só até aqui tinha conhecido o vosso predecessor Carlos Magno,
estais no caminho da monarquia universal, no ponto de reunir a cristandade sob um único pastor”
(BRAUDEL, 1984, p. 35).
2 Principal instrumento de direito internacional público, que pôs fim, em 1648, a três décadas de guerras
religiosas entre monarcas católicos e protestantes e definiu fronteiras e territórios (outro elemento cons-
titutivo do Estado) na Europa moderna.

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vontade? Como é admissível, num cenário de ou, pelo menos, pelos mais poderosos. Esses ga-
globalização econômica, caracterizada por um nham cada vez mais espaço na “macdonaldiza-
alto grau de integração dos mercados, pela vola- ção”5 do direito, pois, nas palavras de Klaes,
tilização e virtualização dos capitais, pela drástica
a internacionalização dos campos jurídi-
redução do poder de intervenção dos Estados na-
cos e a de áreas transnacionais nada mais
cionais e pelo predomínio das atividades comer- é do que a crescente dominação de um
ciais capitaneadas por empresas transnacionais,3 modo particular de produção do direito,
com poderes de dissolução das fronteiras; trata- que emergiu primeiramente nos EUA, tem
rem o elemento soberania de forma tão alienada? seu centro na empresa de direito, com
O maior desafio do direito, conforme a múltiplas propostas orientadas para o di-
lição de Rüdiger, “esfarelado pela teoria pós-mo- reito comercial (e empresarial), transcen-
derna”, está justamente em poder “contribuir dendo o campo dos litígios e da prepara-
para a igualdade de condições ao desenvolvimento ção de documentos, incluindo a prepara-
da pluralidade de discursos. Ou seja, o direito deve ção de legislação e regulamentação admi-
garantir o altera pars auditur”,4 um Estado que pre- nistrativa, a prática de “lobing” e outras
práticas de advocacia não judiciais (...). A
serve, no mínimo, a paz com justiça social. Caso
partir deste aspecto do modelo norte-
contrário, para que serviria o Estado? Na visão americano, surgiu, nos últimos vinte
hobbesiana de contrato social, o Estado leviatâ- anos, um novo tipo de jurista, que encon-
nico garantiria a segurança do indivíduo, afastan- tra-se cada vez mais dissociado da dimen-
do-o dos perigos do estado de natureza, no qual são social do direito e mais imbuído de
o homem era o lobo do homem e travava-se uma sua dimensão técnica, reduzindo a prática
guerra permanente de todos contra todos. do direito a uma espécie de negócio, apro-
Paradoxalmente, o estado de natureza, de ximando-o mais da realidade econômica e
Hobbes, aproxima-se muito do nosso cotidiano financeira. A internacionalização do mo-
– basta ler as matérias policiais estampadas na delo jurídico norte-americano, o predo-
mínio da língua inglesa e dos métodos le-
grande imprensa para perceber a sociedade pa-
gais anglo-saxões nos acordos contratuais
gando um preço altíssimo por uma segurança
internacionais e nos processos de arbitra-
que, na esfera do dever ser, de Kelsen, deveria ser mento levaram ao predomínio destes pa-
garantida a todos os cidadãos brasileiros e aos es- drões nos procedimentos legais que go-
trangeiros residentes no País, conforme redação vernam as relações transfronteiriças em
do caput do artigo 5.o da Constituição. Onerados todo o mundo.6
com uma das mais pesadas cargas tributárias do
planeta, eles são, todavia, alvos de uma crescente O direito internacional público e o direito
escalada de violência urbana. da integração têm ocupado, particularmente na
Jamais houve, na realidade, uma soberania última década, lugar de destaque na formação do
absoluta. Pelo simples fato de existir, a sociedade jurista sintonizado com as complexas questões
internacional gera, naturalmente, restrições aos econômicas, sociais, políticas e culturais decor-
atores que a integram. Se tais limitações não fos- rentes do relacionamento entre os diferentes po-
sem criadas, a própria sociedade acabaria por de- vos, organizações não-governamentais, empresas
saparecer. Entretanto, as normas redutoras da so- transnacionais e Estados-nações, atores atuando
berania só funcionam quando aceitas pela maioria no palco cujo cenário é o da economia globaliza-
da.
3 De acordo com Mello, “o termo transnacionais é utilizado pela ONU,
uma vez que durante um largo período foram chamados de empresas 5 Conforme expressão de Mitchel Lasser (“La MacDonaldisation du
multinacionais, com o objetivo de ocultar que em mais de 80% delas a discours juridiaire français”, in Archives de Philosophie du Droit, dedi-
matriz tinha a nacionalidade norte-americana” (MELLO, 1996, p. 15). cados à americanização do direito. Paris: Ed. Dalloz, 2001, t. 45, p.
4 RÜDIGER, D. “Transformações do direito do trabalho na pós- 137-148).
modernidade”. In: LINDGREN ALVES et al., 2002, p. 192-193. 6 KLAES, 1998, p. 191.

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Após o término da 2.ª Guerra Mundial, o talecer a capacidade de decisão de nossos


direito internacional público foi sensivelmente países quanto ao seu novo modelo de
revigorado. Parodiando Morin, podemos compa- inserção internacional.10
rá-lo ao som de um violino emergindo dos des-
Dificilmente, entretanto, uma ampla inserção
troços das cidades destruídas pela insanidade hu-
(política, econômica, social e cultural) do Mercosul
mana: “Par-delà les guerres et les massacres, ce violon
no cenário internacional será possível na atual
qui chantait pour la pierre, pour les ruines, pour la
proposta em discussão para a formação da Alca,
mort, me semblait annoncer l’avènement lointain
pelas razões que serão posteriormente analisadas.
d’un âge de tendresse”.7
A globalização provocou o enfraquecimen-
Todavia, a emergência do direito internacio-
to do Estado e o surgimento de uma legalidade
nal público e a criação de um direito da integração
supra-estatal que pode estar ou não comprome-
contribuíram para a alteração da base de sobera-
tida com uma ética democrática e a transparência
nia das nações. A globalização da sociedade capi-
nas relações internacionais. Habermas insiste na
talista, prossegue Klaes, “ao promover a mercan-
necessidade de uma relação estreita entre o direi-
tilização das relações sociais e dos campos jurídi-
to e a moral, como condição básica para a reali-
cos nacionais, vem abalando a ordem jurídico-po-
zação do projeto emancipatório da modernidade.
lítica e as diferentes instituições estatais e civis
Sua crítica à visão weberiana aponta a submissão
que a regulam, além de afetar a própria face do
“do conceito de direito a recortes positivistas a tal
Estado”.8 O Estado em tempos de globalização
ponto que a racionalização do direito pode passar
perdeu ou reduziu os seus papéis, em matéria de
a minimizar o aspecto prático-moral (princípio
produção, política social, regulação econômica e
de fundamentação) e limitar-se a considerar ex-
ordenamento territorial. Tal condição favoreceu,
clusivamente seu aspecto cognitivo-instrumental
nas palavras de Bourdieu, “a coerção econômica
(princípio de positivação)”,11 muito ao gosto de
disfarçada muitas vezes de razões jurídicas”, na
alguns juízes e ilustres operadores do direito que
medida em que “o racionalismo das law firms,
se proclamam “escravos da lei”. Ora, como ensi-
grandes multinacionais jurídicas, impõe as tra-
na Dallari,
dições do direito americano ao planeta inteiro
(...) como expressão e uma caução de uma Com alguma consciência esse juiz perce-
arrogância ocidental que leva a agir como se al- beria a contradição de um juiz-escravo e
guns homens tivessem o monopólio da razão e saberia que um julgador só poderá ser jus-
pudessem instituir-se (...) como polícia do mun- to se for independente. Um juiz não pode
do”.9 Nesse cenário, a nova divisão internacional ser escravo de ninguém nem de nada,
do trabalho, destaca Ciccolella, coloca os países nem mesmo da lei (...) apenas formal, fa-
bricada artificialmente pelos Legislativos,
menos desenvolvidos diante de duas opções:
sem qualquer preocupação com a justiça,
especialização produtiva mais ou menos os direitos humanos fundamentais e os
autônoma, com base em suas vantagens interesses sociais. (...) A expressão mais
competitivas, ou subcontratação desqua- degenerada dessa deformação, que escon-
lificada. No primeiro caso, obviamente, o de o arbítrio de alguns homens atrás da
mais alentador, cabe assinalar que se ob- máscara só aparentemente neutra das leis,
servam fortes condicionamentos da parte é a corrupção grosseira de legisladores,
dos centros mundiais de poder. Diante que em troca de dinheiro e de vantagens
desses condicionamentos, os processos pessoais vendem seu apoio a um projeto
de integração no Cone Sul poderiam for- de lei. (...) Como fica evidente, o juiz-es-
cravo da lei tem grande possibilidade de
7 MORIN, 1990, p. 9.
8 KLAES, 1998, p. 191. 10 CICCOLELLA, 1996, p. 300.
9 BOURDIEU, 1998, p. 31. 11 HABERMAS apud WARAT & PÊPE, 1996, p. 84.

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ser, na realidade, escravo dos comprado- subtração aos Estados do comércio inter-
res de leis.12 nacional, seja porque este é constituído
sempre mais das trocas internas aos con-
Nessa perspectiva, é de fundamental im- glomerados e que ocorrem diretamente
portância a existência de um direito internacional entre eles, seja porque se desenrola segun-
que regule o mercado de forma eficiente. É mo- do regras que dão vida a uma nova lex
ralmente inadmissível a ação livre e predatória do mercatoria. A sua base é a business comu-
capitalismo não domesticado por leis que levem nity, uma sociedade civil supranacional que
prescinde dos Estados, ergue-se sempre
em consideração os pressupostos de justiça social.
mais autônoma e potente diante deles e
A limitação jurídica do laissez-faire deve ser uma
com seus movimentos uniformiza e su-
constante preocupação dos operadores do direi- bordina os ordenamentos e as decisões
to. Nas palavras de Campilongo, deles. A manifestação mais significativa
disso é o desenvolvimento de um direito
se o sistema jurídico estivesse por conta civil internacional cuja fonte principal são
da globalização, se confundindo com a os contratos atípicos e cuja jurisdição é
imposição da lei do mais forte, com os consuetudinária. Um novo direito que se
procedimentos financeiros ou com as unifica em continuação à unificação de
práticas comerciais internacionais, ou se- mercados e segue o critério das civiliza-
ja, com o sistema econômico, não haveria ções jurídicas afins.16
razão para que continuasse sendo chama-
do de direito ou para que se distinguisse Nesse sentido, as disciplinas Direito Inter-
da economia. (...) reduzir o direito à eco- nacional Público e Direito da Integração, lecio-
nomia ou à política é sucumbir a formas nadas nos cursos de graduação e pós-graduação
difusas de autoritarismo.13 em direito da UNIMEP, deverão sempre estar in-
seridas “no universo da ética, garantir a indigna-
Diferentemente daqueles que acreditavam
ção e o repúdio a práticas e políticas que colo-
que a queda do muro de Berlim tenha significado
quem a exclusão e a servidão dos indivíduos
o fim da história, vale lembrar, como Lafer, que “a
como algo natural na organização de uma socie-
história não terminou, ao contrário, os conflitos
dade”.17 Deverão, ainda, reforçar os fundamentos
tendem a ser ainda mais complexos e integrais do
éticos presentes no projeto pedagógico dessa
que ao tempo da Guerra Fria (...) a globalização
universidade, quais sejam, aqueles comprometi-
não elimina os termos da hegemonia e da desi-
dos com a “construção da cidadania enquanto pa-
gualdade, mas os torna mais complexos”.14 Nesse
trimônio coletivo da sociedade civil”, que “deve
sentido, a recente declaração de Frei Betto desta-
ser compreendida como a utopia a ser buscada no
ca que “o neoliberalismo, a partir do momento universo unimepiano e na relação com o conjun-
em que produziu a mercantilização do planeta, to da sociedade. Com isso, transforma-se numa
fechou as portas da utopia”.15 É necessário, por- tese aberta como possibilidade de ação para a
tanto, pensar no desafio da globalização da inclu- transformação conjuntural e estrutural da socie-
são, não da exclusão. Devem ser produzidas, em dade, mas é precisa na negação da manutenção de
escala internacional, normas disciplinadoras do uma sociedade que relega o homem à condição
mercado. Como observou Vacca, entre as déca- de objeto de exploração e opressão”.18
das de 1970 e de 1990, a crise do modelo wes- Para atingir tais objetivos, a reitoria da
tphaliano de soberania acentuou-se graças à UNIMEP não poupou esforços no sentido de
12
equipar a biblioteca do campus Taquaral com o
DALLARI, 1996, p. 80-82.
13 CAMPILONGO, 1999, p. 92.
14 LAFER, 1995/1996, p. 68. 16 VACCA, 1996, p. 74.
15 Entrevista à revista Veja, ed. 1.782, ano 35, n.o 50, 18/dez./2002, p. 17 UNIMEP, 1998, p. 31-32.
14. 18 UNIMEP, 1996, p. 21.

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que há de melhor em matéria de periódicos na Exatamente por conta desse artigo, a Co-
área de direito internacional público. Nessa esfe- missão de Direito Internacional efetuou desde
ra, certamente não existe, no interior do Estado 1947 importantes estudos para codificar esse
de São Paulo, acervo de tão alto nível disponível ramo do direito. A Resolução 1.816 (XVII), refor-
aos alunos de graduação e pós-graduação. O re- çada pela Resolução 1.968 (XVIII), da Assembléia
sultado das pesquisas realizadas por alunos e pro- Geral da ONU, afirma a pertinência do jurídico
fessores, no primeiro ano de funcionamento do para alcançar soluções duradouras aos graves pro-
Núcleo de Estudos de Direito e Relações Inter- blemas internacionais e destaca a necessidade da
nacionais (NEDRI), do Programa de Mestrado em ampliação e da difusão do ensino, do estudo, da
Direito da UNIMEP,19 atesta a importância do divulgação e de uma compreensão mais ampla do
direito internacional. Contudo, como bem iden-
acervo bibliográfico em formação, importante
tificou Miaille, os Estados, elementos basilares da
instigador de novas investigações em direito in-
ordem internacional, são normalmente apresen-
ternacional. Assim, tendo como norteadores a
tados, na literatura de direito internacional públi-
política de pesquisa e a política acadêmica da co,
UNIMEP, pretende-se indicar neste artigo alguns
desafios no ensino do direito internacional públi- apenas sob a aparência jurídica; nunca os
co e do direito da integração no contexto da autores se preocupam em saber qual o seu
globalização. conteúdo de classe real. Há Estados gran-
des e pequenos, mas sempre definidos da
mesma maneira; o resto pertence aos so-
O ENSINO DO DIREITO INTERNACIONAL ciólogos ou aos politicólogos – na verda-
PÚBLICO NA ERA DO “TALIBUSH” de! Ao darem, assim, uma imagem mais
O termo Talibush é da autoria do profeta amável, mais sorridente da sociedade in-
ternacional, quer dizer, ao porem o acen-
Leonardo Boff20 e sintetiza, muito bem, a dificul-
to sobre a homogeneidade dessa socieda-
dade no processo de ensino-aprendizagem do di- de, os autores fazem mais do que simpli-
reito internacional público diante dos fundamen- ficar a realidade: eles a falseiam. Com efei-
talismos que dominam, de um lado, as ações dos to, deixa de se compreender então como
terroristas e, de outro, a resposta do governo de os conflitos podem surgir num mundo
George Walker Bush. Ambas as partes pecam aparentemente tão estável.22
pela intolerância e pela lógica linear absolutamen-
Outro embaraço no ensino do direito in-
te incompatíveis com a promoção do direito in- ternacional diz respeito, particularmente, à falta
ternacional, conforme indicado na letra “a”, do de eficácia das resoluções23 do Conselho de Se-
inciso 1, do artigo 13 da Carta da ONU: “A As- gurança da ONU, sobretudo no tocante aos con-
sembléia Geral iniciará estudos e fará recomenda- flitos na Palestina e aos atentados às liberdades
ções destinadas a promover a cooperação inter-
nacional no terreno político e incentivar o desen- 22 MIAILLE, 1979, p. 130.
23 Como lembra Chemillier-Gendreau, “une importance essentiale a
volvimento progressivo do direito internacional e longtemps été attribué aux catégories formelles. Et um ensemble de textes
de sua codificação”.21 relevant de certains organes ou de certaines catégories (par exemple, les
résolutions, et plutôt de l’Assemblée Genérales des Nations Unies ou de la
CNUCEC) a été qualifié de soft-law (‘droit-mou’) ou encore droit pro-
19 Cf. os artigos dos membros do NEDRI/UNIMEP, mestrandos Érika
grammatoire. Mais cette analyse ne rend pas compte des réalités et certains
Seguchi, Rogério Duarte Fernandes dos Passos e Rui Aurélio de traités internationaux (qui devaient être du ‘droit dur’), ou parties de
Lacerda Badaró, publicados nos Cadernos de Direito, 1 (2), 2002, e a traités, restent ineffectives ou le deviennent, y compris certains articles de
recente dissertação de mestrado defendida por Antonio José Iatarola. la Charte des Nations Unies, ainsi que de nombreuses résolutions du
20 Em palestra proferida no Teatro UNIMEP em 28/set./2002.
Conseil de Sécurité. A l’inverse, certaines résolutions, y compris d’organes
21 Carta de São Francisco, assinada em 26/jun./1945, aprovada pelo
faibles, sont vite et bien appliquées. La distinction traverse l’emsemble des
decreto-lei n.o 7.935, de 4/set./1945. Ratificado pelo governo brasileiro formes juridiques et la surproduction incantatoire (et inassurée de ses
em 12/set./1945 e promulgada pelo decreto n.o 19.841, de 22/out./ résultats) relève d’un procédé de guidage particulier” (CHEMILLIER-
1945. GENDREAU, 1995, p. 63).

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fundamentais. Por exemplo, no dia 19 de janeiro 1941, foi a aplicação da velha teoria germânica da
de 2002, o governo de Ariel Sharon deu provas responsabilidade coletiva do clã e da tribo. Como
definitivas de que o governo de Israel não tem li- destaca Agulhon,25 para cada soldado alemão
mites, nem bom senso, na resposta aos atentados morto pela Resistência, 50 franceses deveriam pa-
praticados por alguns palestinos desinteressados gar pelo dano causado.
em cumprir as determinações de 1988, do Con- A raison d’Etat israelense baseada no “olho
selho Nacional Palestino, sobre rejeitar e conde- por olho”, na demolição de dezenas de habita-
nar o terrorismo em todas as suas formas, bem ções civis como resposta aos atentados cometi-
como aceitar as resoluções da ONU adotadas des- dos por “homens-bomba” e, em seguida, a
de 1947. Naquele ano, a ONU propôs a partilha “prisão domiciliar” de Arafat acompanhada da
da Palestina, atribuindo aproximadamente 56,5% explosão da sede da Rádio Voz Palestina, em Ra-
do seu território ao futuro Estado judeu e por mallah, empreendida pelo Exército de Israel, são
volta de 42,9% ao futuro Estado palestino, con- demonstrações inequívocas do desrespeito do
cedendo status internacional à cidade de Jerusa- governo israelense à liberdade de locomoção e de
lém, que, em razão da sua importância religiosa e expressão. Tais atitudes colocam os docentes de
política, passaria a ser administrada pela própria direito internacional público na incômoda posi-
ONU. ção de ter que justificar aos seus alunos que a efe-
O artigo 33 da Carta da ONU afirma que tividade do seu objeto de estudo depende, em
“as partes em uma controvérsia, que possa consti- grande medida, da boa vontade dos Estados, do
tuir uma ameaça à paz e à segurança internacionais, respeito, nas palavras de Villey, às regras de mo-
procurarão, antes de tudo, chegar a uma solução ralidade:
por negociação, inquérito, mediação, conciliação,
arbitragem, solução judicial, recurso a entidades L’art “d’attribuer à chacun le sien” n’est pas
aplicable aux rapports internationaux.
ou acordos regionais, ou a qualquer outro meio
Dans le conflit entre Israël et ses voisins,
pacífico à sua escolha”.24 Infelizmente, a lógica li-
nous serions en peine d’affirmer à qui revient
near de Sharon, ao responder com operações de selon la justice tel des morceaux disputes de la
guerra aos atentados, só fez aumentar a reação Palestine. La commnunauté entre nations
daqueles palestinos que não reconhecem Yasser est trop vague, inorganisée, pour que la
Arafat como representante legítimo da Autorida- question reçoive une réponse. Pas de place
de Palestina e, tampouco, acreditam na negocia- pour le jeu de la justice strictement dite.
ção de uma solução pacífica para os conflitos no Que peut-on demander à Israël et ses en-
Oriente Médio. Nesse particular, Sharon e os ter- nemis? De respecter certaines lois commu-
roristas possuem algo em comum: ambos não de- nes qui sont règles de moralité (c’est-à-dire
sejam a paz. de justice “générale”). On leur demande de
ne pas torturer, de ne pas bombarder des ci-
Sharon ignora totalmente as regras comezi-
vils ou prendre des otages, de montrer um
nhas de direito internacional, responde ao dano certain esprit de paix, um minimum d’hu-
causado pelas ações terroristas de forma assimé- manité – et, dans la mesure du possible, si
trica. O governo israelense não aplica apenas a lei les choses n’ont pas trop changé, d’observer
do talião, vai além: utiliza mísseis contra pedras. les trêves, les traités, de tenir leurs promes-
Tamanha desproporção do “direito de resposta” ses. Application d’une certaine morale co-
lembra as ações dos alemães durante a ocupação mune, sauf à tenir compte du rapport des
da França. A resposta dada pelos nazistas, a partir forces en présence. Observant les activités
dos atentados praticados pela Resistência em de M. Kissinger, nous em retirons l’impres-
sion que ce genre de problème relève de la
24 CARTA DA ONU, 1945, art. 33, in MAROTTA RANGEL, 1981,
p. 23. 25 AGULHON, 1997, p. 134.

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politique, de la diplomatie, plutôt que du perioso reconhecer que o direito internacional


droit au sens strict.26 público tenha “a primazia na condução das rela-
ções internacionais e que suas normas sejam as
Entretanto, aqueles que criticam a fragilida-
que regulem os diversos processos internacio-
de e a especificidade do direito internacional pú-
nais”.28 Esse parece ter sido um compromisso as-
blico, bem como suas formas menos elaboradas,
sumido pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva
desacompanhadas, muitas vezes, da garantia esta-
no seu discurso de posse, ao defender que
tal, como no direito interno, esquecem que a efe-
tividade da norma no direito interno depende, as resoluções do Conselho de Segurança
também, da vontade política do Estado, v.g. a im- devem ser fielmente cumpridas. Crises in-
punidade que grassa em terra brasilis. Em síntese, ternacionais, como a do Oriente Médio,
ruim com o direito internacional público, pior devem ser resolvidas por meios pacíficos e
sem ele. pela negociação. Defenderemos um Con-
A esperança e a fé na capacidade humana de selho de Segurança reformado, representa-
tivo da realidade contemporânea, com pa-
buscar o diálogo, a via diplomática, mesmo em si-
íses desenvolvidos e em desenvolvimento
tuações adversas, cada vez mais impulsiona para- das várias regiões do mundo. Enfrentare-
doxalmente as novas gerações de estudantes de mos os desafios da hora atual, como o ter-
direito e de relações internacionais a pesquisar al- rorismo e o crime organizado, valendo-nos
ternativas ao encaminhamento de soluções nos da cooperação internacional e com base
conflitos internacionais. Eco afirma que “talvez nos princípios do multilateralismo e do
tenhamos chegado ao ponto em que a humani- Direito Internacional.29
dade começa a perceber a necessidade de trans-
formar a guerra em tabu (...) é dever intelectual Atualmente, nas relações internacionais, al-
proclamar a impossibilidade da guerra (...) o pri- gumas atitudes e discursos belicistas pregam a in-
meiro dever é dizer que a guerra, hoje, anula qual- tolerância, o choque, e não o diálogo entre
quer iniciativa humana”.27 Prova disso é o grande civilizações, o combate ao denominado “eixo do
interesse demonstrado pelo estudo do instituto mal”, ignorando os mecanismos de soluções de
da arbitragem internacional, pública e privada, e controvérsias adotados pela ONU, cujo primeiro
de sua prática na busca de soluções pacíficas de propósito é, exatamente, manter a paz e a segu-
controvérsias. Um elemento fundamental para o rança internacionais.30 Ao mesmo tempo, essa
sucesso da arbitragem reside na fiducia deposita- organização internacional deve, ainda, desenvol-
da nos árbitros pelas partes. Sem ela, qualquer ver relações amistosas entre as nações, baseadas
tentativa de solução estaria fatalmente condenada no respeito ao princípio de igualdade de direito e
ao fracasso. de autodeterminação dos povos, conseguir uma
Não seria, pois, o caso de restabelecer-se as cooperação internacional de caráter econômico,
condições minimamente adequadas para que a social, cultural ou humanitário, promover e esti-
confiança no direito internacional reconquistasse mular o respeito aos direitos humanos e às liber-
o seu lugar nesse novo milênio? Seria esse um dos dades fundamentais para todos, sem distinção de
principais desafios políticos na reestruturação do raça, sexo, língua ou religião, e ser um centro des-
único organismo multilateral, de caráter univer- tinado a harmonizar a ação das nações para a con-
sal, a Organização das Nações Unidas, baseado secução desses objetivos comuns.
não nos “valores” do mercado, mas na coopera- 28 Segundo Seminário sobre la Enseñanza Del Derecho Internacional,
ção e numa ética internacionalmente aceita pelos Informe Final. Bogotá: OEA, 1979, p. 24, apud MAROTTA RAN-
cidadãos dos seus 190 Estados-membros? É im- GEL, 1981, p. XVI.
29 Capturado em <http://www.estado.estadao.com.br/editorias/
2003/01/02/pol058.html>. Acesso em: 2/jan./2003.
26 VILLEY, 1975, p. 86. 30 CARTA DA ONU, 1945, art. 1.o, in MAROTTA RANGEL, 1981,
27 ECO, 1998, p. 26. p. 15.

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Os Estados são juridicamente iguais, dife- rídico: no Império há paz, no Império há


rindo apenas em seu sistema econômico, político garantia de justiça para todos. O conceito
e no poder militar. Essas diferenças é que deter- de Império é apresentado como um con-
minam o sistema internacional assimétrico a ser- ceito global, sob a direção de um único
maestro, um poder unitário que mantém
viço da hegemonia estadunidense. Porém, o di-
a paz social e produz suas verdades éticas.
reito internacional nasceu no século XVII exata-
E, para atingir esses objetivos, ao poder
mente para afastar a idéia de que apenas uma único é dada a força necessária para con-
nação ou um grupo restrito de nações pudesse, duzir, quando preciso for, “guerras justas”
de modo arrogante, ditar simplesmente suas nor- nas fronteiras contra os bárbaros e, no
mas ao resto do mundo. Um dos pais do direito plano interno, contra os rebeldes.33
internacional, o holandês Hugo Grotius – autor
do clássico De Jure Belli ac Pacis, publicado em A sociedade tem necessidade de uma orien-
1625 –, teórico de um direito natural racional, de- tação ética e política que subordine a economia à
fensor da liberdade do comércio internacional, da política, por intermédio, inclusive, de um ordena-
guerra justa31 (como forma de legítima defesa) e mento jurídico internacional claro e eficaz, limi-
do respeito à alteridade, tinha certamente uma vi- tador desse lassez-faire sans frontières. Os proble-
são mais clara e equilibrada das relações interna- mas da globalização exigem uma solução que só
cionais do que os atuais assessores do homem pode vir das autoridades públicas cujos poderes,
que, desafortunadamente, comanda hoje em dia constituição e meios de ação tomaram também
o país mais poderoso do mundo. dimensões mundiais, principalmente no âmbito
das organizações internacionais, capítulo inte-
Como é possível preservar o multilateralis-
grante do estudo do direito internacional públi-
mo e o direito internacional clássico diante da
co. Não obstante, deve ser destacada, de forma
mudança de paradigma, muito bem analisada por
complementar à ação pública, a crescente militân-
Hardt e Negri, da soberania estatal para a sobe-
cia internacional das ONGs, porta-vozes da socie-
rania imperial, esse “novo registro de autoridade”
dade civil internacional, que ocupam o espaço de
capaz de promover “a transição a que estamos as-
interlocutores dos Estados e das organizações in-
sistindo, da lei internacional tradicional, que era
ternacionais, na busca de soluções, legitimamente
definida por contratos e tratados, para a definição
respaldadas, para os problemas na esfera do direi-
e constituição de um novo poder soberano e su-
to e das relações internacionais.
pranacional”?32 Na percepção desses autores,

cada sistema jurídico é, de certa maneira, O MERCOSUL DIANTE DAS


a cristalização de um conjunto de valores NEGOCIAÇÕES SOBRE A ALCA
específicos, pois a ética faz parte da mate-
Outro desafio no ensino do direito inter-
rialidade de qualquer fundação jurídica,
mas o Império – e em particular a tradição
nacional e do direito da integração é tentar com-
romana de direito imperial – é peculiar na preender a inserção jurídica do Brasil no Merco-
medida em que leva ao extremo a coinci- sul diante do processo de negociação da Área de
dência e a universalidade do ético e do ju- Livre Comércio das Américas (Alca), concebida
pelos EUA.
31 A primeira distinção entre “guerra justa” e “guerra injusta” é de
Os EUA, historicamente, jamais reconhece-
Santo Agostinho, mas foi com São Tomás de Aquino que se concebe-
ram três condições necessárias para tornar “justa” uma guerra: sua ram em sua política externa a existência de uma
declaração deveria ser empreendida por quem tivesse autoridade para autoridade política internacional hierarquicamen-
tanto, era preciso uma “causa justa” e a guerra teria de ser empregada
com a “intenção correta” de fazer o bem e alcançar a paz. Os tomistas te superior à autoridade do Estado. Sempre con-
posteriores acrescentariam uma quarta condição, a de que a guerra sideraram a possibilidade da existência de paz no
fosse empreendida debito modo, com meios adequados e, portanto,
apropriadamente limitados.
32 HARDT & NEGRI, 2001, p. 27. 33 Ibid., p. 27.

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concerto das nações, desde que subordinada aos apresenta significativa relevância, especial-
seus interesses domésticos. Como bem prelecio- mente quando se está recebendo, em con-
na Maria da Conceição Tavares, trapartida, uma proposta, por parte dos
EUA, que estabelecia justamente o contrá-
No estágio atual da arrogância, ignorância rio: o Mercosul não como entidade, mas
e autismo dos vários senhores que dispu- os quatro países, com suas respectivas in-
tam o poder na capital do Império, é im- dividualidades, negociando com os EUA,
possível estabelecer qualquer ordem jurí- segundo os moldes ditados pela estratégia
dica global – quanto a direitos humanos, a estadunidense de centro-e-raio.35
energia, a ambiente ou a negociação das
dívidas. Eles não aceitam nenhuma regra A capacidade de os Estados mercosulinos
universal que se aplique aos próprios EUA resistirem aos apelos de atratividade do Nafta não
e consideram-se os defensores “naturais” elidiu, todavia, o propósito norte-americano de
da civilização ocidental.34 persistir no enfraquecimento do poder de arti-
culação do Cone Sul. Em 1994, reunidos em Mi-
Em 1991, por ocasião da assinatura do Rose ami, os chefes de governo de 34 países do He-
Garden Agreement/Acordo Mercosul EUA misfério Ocidental pactuaram negociar a criação
(4+1), ficou assim decidido, conforme seu artigo de uma Área de Livre Comércio das Américas
9.o, § 2.o: (Alca) até 2005. A iniciativa foi comandada pelos
Em qualquer momento depois que o EUA, aparentemente incomodados com a aproxi-
mercado comum, em processo de forma- mação da União Européia do Mercosul. Nesse
ção pela Argentina, Brasil, Paraguai e particular, é impossível deixar de observar, mes-
Uruguai, ou órgão por ele constituído, mo que superficialmente, um certo desafio à
adquirir capacidade jurídica para celebrar mensagem dirigida ao Congresso norte-america-
acordos internacionais, em representação no pelo presidente Monroe, em 2 de dezembro
do mercado comum, este Acordo poderá de 1823. Ele afirmava ser “impossível que as po-
ser substituído por um outro assinado pe- tências aliadas” – entenda-se a Europa – “esten-
los EUA e pelo referido mercado comum,
dam seu sistema político a qualquer parte dos
através de representantes devidamente
continentes americanos, sem por em perigo a
autorizados para esta finalidade.
nossa paz” – entenda-se a dos EUA – “e seguran-
Todavia, com a assinatura do Tratado de ça, nem se pode supor que nossos irmãos do Sul
Assunção, em vez de acordos concluídos indivi- o adotassem de livre vontade, caso os abandonás-
dualmente por cada um dos Estados-partes no semos a sua própria sorte”.36
formato “4+1”, a personalidade jurídica de direi- Oliveira Lima,37 o “diplomata rebelde”, em
to internacional do Mercosul, prevista no artigo sua obra Pan-Americanismo, publicada em 1907,
34 do Protocolo de Ouro Preto de 1994, permi- já alertava para os perigos dessa doutrina, revigo-
tiu à negociação do Mercosul passar a ser feita no rada pelo big steack do presidente Theodore
formato “1+1”. Nesse particular, registra Silva: Roosevelt, autor da “pérola”: “Estou procurando
o mínimo de interferência necessária para torná-
foi a União Européia que estabeleceu
los bons”.38 Para Oliveira Lima, “o monroísmo
como requisito, para negociar um Acordo
não é, pois, panacéia sem perigos, e de outra ban-
Quadro Inter-regional com o Mercosul,
que este tivesse personalidade jurídica e da não constitui, por enquanto, princípio reco-
que, por conseguinte, a negociação fosse nhecido do direito internacional, mesmo ameri-
realizada no formato “1+1”. Embora pa-
35 SILVA, 1999, p. 128.
reça um detalhe menor, essa exigência 36 Apud MELLO, 1950, p. 19.
37 LIMA, 1980, p. 35.
34 TAVARES, 2002. 38 Apud SCHOULTZ, 2000, p. 203.

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cano (...). As disposições do direito das gentes uma clara regulamentação jurídica”,44 mas que,
têm que se derivar de um acordo internacional”, acrescenta Dupas, diz respeito “a liderança asso-
e não de um “direito do mais forte que Roosevelt ciada à capacidade de um Estado de se apresentar
quer fazer lei deste mundo que Colombo desco- como o portador de um interesse geral e ser as-
briu para maior proveito e glória da raça anglo-sa- sim percebido pelos outros”.45 Para esse autor,
xônica”.39
a nação hegemônica é aquela que conduz
O plano dos EUA de estabelecer a Alca par- o sistema de nações a uma direção dese-
tindo de uma simples extensão do Nafta não jada por ela, mas, ao fazê-lo, consegue ser
atende aos interesses do Mercosul, que, na visão percebida como buscando o interesse ge-
de Castells, “vem confirmando sua independên- ral. Para tanto, as soluções oferecidas pela
cia na América do Sul por meio de aumentos sig- nação hegemônica devem criar contínuas
nificativos no volume de transações comerciais condições de governabilidade mundial,
com a Europa em relação aos Estados Unidos”.40 respondendo à demanda das outras
O acordo hemisférico só terá validade se levar em nações pressionadas por suas próprias
conta a questão multilateral protegida pela OMC e tensões. Se isso nunca ocorrer, hegemonia
a agenda de compromissos negociada em 1995 transforma-se em tirania e só poderá ser
mantida com grande coerção.46
pelo Tratado de Madri com a União Européia –
tendo como foco principal a criação de uma Zona Diante dessa hipótese, vale lembrar, com
de Livre Comércio em 2005. Parece pouco pro- Kuttner, que “uma política democrática opera ne-
vável que o Brasil venha a ter maior acesso ao cessariamente no plano do Estado nacional. Sou
mercado norte-americano, via Alca, do que aque- cidadão e eleitor nos Estados Unidos da Améri-
le obtido durante as últimas negociações realiza- ca, não da República do Nafta. (...) é bom que
das no âmbito da OMC e da União Européia.41 não exista um governo global: pode ser que eu
Os parceiros da Alca deverão avaliar se as não gostasse dele e ele não gostasse de mim”.47
normas propostas e colocadas em discussão pro- Todavia, os acordos intergovernamentais não co-
tegem adequadamente seus interesses, se lhes locam em jogo a responsabilidade do Estado so-
convêm e se, por isso, podem ou devem aceitá- mente para com os demais signatários, como
las. Uma tendência de todos os movimentos de também diante dos seus cidadãos. Nesse ponto o
integração, observa Baptista,42 tem sido a impacto da Alca pode se fazer sentir de modo
harmonização do direito que pode descaracterizar pungente. As pessoas não estão informadas sufi-
a cultura jurídica dos Estados, levando à criação de cientemente sobre o que vem sendo discutido e
um modo de pensar único,43 em geral o de quem como estão sendo elaboradas as minutas que ser-
detém a hegemonia. Esse fenômeno poderia virão de base para a celebração do acordo.
ocorrer na Alca. No estágio atual das conversações, espera-
Como destaca Belligni, o conceito de hege- se que o déficit de controle democrático das ne-
monia não é “um conceito jurídico, de direito pú- gociações da Alca seja eliminado no atual gover-
blico ou privado internacional; implica antes uma no. A transparência é um dever do Estado e um
relação interestatal de potência, que prescinde de direito do cidadão, que, naturalmente, arcará com
o ônus de todo o processo. A perda da soberania
39
40
LIMA, 1980, p. 35. pode se agravar com o advento da Alca, pois,
CASTELLS, 1999, p. 312.
41 Cf. CAPARELLI, 2001, p. 38. com a globalização do direito, vem ocorrendo o
42 BAPTISTA, 1999, p. 174.
esgarçamento do monopólio legislativo do Esta-
43 A lógica do pensamento único parece ter atingido, com Hunting-
ton, seu ápice. Prova disso é a afirmação dele de que o êxito do pro-
44 In: BOBBIO, 1992, p. 579.
cesso de absorção do México no Nafta “a longo prazo depende
45 DUPAS, 2002, p. 17.
essencialmente da capacidade do México de se redefinir culturalmente de
latino-americano para norte-americano” (HUNTINGTON, 1998, 46 Ibid., p. 17 (grifo acrescido).
p.156, grifos acrescidos). 47 KUTTNER, 1998, p. 21.

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do. Os textos da Segunda Minuta de Acordo da com a “confidencialidade” e a “transparência”,


Alca,48 com confidencialidade anulada em 1.o de prevêem que:
novembro de 2002, disponibilizados no site do
Ministério das Relações Exteriores,49 são confu- 208. Toda a documentação e os atos vin-
culados ao procedimento estabelecido no
sos na medida em que indicam uma considerável
presente capítulo, inclusive as audiências
variedade de redações alternativas, estampadas
perante o grupo neutro, deliberações [o
entre colchetes, na maioria dos artigos, em todos relatório preliminar] e todos os escritos e
os 15 capítulos das minutas, sem exceção. Nos as comunicações feitas ao grupo, bem
esboços das minutas, cujo traço comum parece como as sessões do grupo neutro [e de
ser a dubiedade, foram estabelecidos parâmetros órgãos de apelação], terão confidenciali-
ou princípios gerais, a serem observados tanto na dade [exceto os relatórios finais].52
prática do dia-a-dia do comércio como na edição 209. [Em nenhum caso uma organização,
de novas normas. um indivíduo ou grupo de indivíduos, por
Via de regra, os artigos mostram-se, por um iniciativa própria, poderá apresentar, em
qualquer fase do procedimento, uma co-
lado, extremamente detalhistas quando são toca-
municação ou escrito, ou comparecer às
dos os interesses sensíveis do establishment e, por
audiências do grupo neutro.]53
outro lado, muito vagos e confusos ao anunciar a
relação entre os Estados-membros da Alca como Os parágrafos 208 e 209 admitem uma con-
assentada no “tratamento justo e eqüitativo (...) fidencialidade que impossibilita o acompanha-
acorde com o direito internacional”,50 historica- mento do andamento do processo de solução de
mente ignorado pelos Estados Unidos. Para Ta- controvérsias pari passu, em suas várias fases, pela
vares, os EUA opinião pública dos países do hemisfério. Por si-
nal, a ausência de transparência no encaminha-
quando falam de “livre mercado”, leia-se
defesa do mercado deles: o interno e o de
mento das discussões sobre a Alca parece ser uma
milhares de filiais norte-americanas no das características mais marcantes do verdadeiro
exterior. Quando falam em déficit do ba- fosso cavado entre a sociedade civil e os governos
lanço de pagamentos e risco cambial, leia- que deveriam representá-la nas negociações do
se o dos outros. (...) quem perde são os acordo. Entretanto, essa posição é amenizada no
outros países, já que a desregulamentação texto do parágrafo 210, do mesmo capítulo, so-
das contas de capital e das praças financei- bre solução de controvérsias, uma vez que dis-
ras nacionais é um mecanismo de arbitra- põe:
gem de perdas a favor do centro.51
210. [Todas as notificações estipuladas no
São inúmeros os problemas identificados a presente Capítulo, todos os documentos
partir da leitura das minutas. O capítulo sobre so- apresentados com relação aos procedi-
lução de controvérsias, por exemplo, prima pela mentos previstos no presente capítulo, o
ausência de eqüidade. Inexiste, em seu bojo, qual- relatório final e as decisões procedimen-
quer esboço do denominado “Código de Con- tais dos grupos neutros serão disponibili-
duta”, previsto na letra “c”, do parágrafo 65, do zados ao público, salvo se tais documen-
artigo 12 (referente à “lista dos integrantes do tos contiverem informação comercial
grupo neutro”, ma non troppo!). Paralelamente, os confidencial conforme definida no pre-
sente Artigo. Além disso, o público será
parágrafos 208 e 209, do artigo 39, preocupados
imediatamente notificado após o estabe-
48
lecimento do grupo neutro. O grupo
FTTA.TNC/w/133/Rev.2.
49 Segunda Minuta de Acordo da Alca. <www.mre.gov.br>. Acesso
em: 31/jan./2003. 52 Minuta da Segunda Minuta de Acordo da Alca. Capítulo sobre solu-
50 Art. 6.o da minuta sobre investimentos. ção de controvérsias.
51 TAVARES, 2002. 53 Idem.

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neutro realizará suas deliberações em ca- As despesas, inclusive de viagens e diárias,


ráter privativo. As audiências do grupo das pessoas que venham a integrar a “Comissão
neutro serão abertas ao público, a não ser de Conciliação” deveriam ser cobertas com re-
se necessário para se impedir a divulgação cursos do orçamento da Alca. Essa previsão está
de informação confidencial conforme de-
contida no parágrafo 268, do citado Anexo XX,
finido no presente artigo. Os documen-
tão-somente para a cobertura das despesas dos
tos apresentados por escrito pelas Partes
da controvérsia e pelas demais Partes que “grupos neutros” e do “órgão de Apelação”.
intervierem na controvérsia e qualquer Como foi divulgado na imprensa, o governo bra-
outro documento apresentado conforme sileiro deverá ainda, na próxima reunião prepara-
previsto no presente artigo serão dados a tória da Alca,
conhecer ao público imediatamente.]54
apresentar apenas uma proposta parcial
Também quanto ao capítulo sobre solução para a Área de Livre Comércio das Amé-
de controvérsias, o parágrafo 267, do Anexo XX, ricas (Alca) no dia 15 de fevereiro, prazo
referente às despesas processuais decorrentes da fixado para apresentação de ofertas de li-
remuneração e do pagamento de despesas da beralização de comércio no hemisfério.
Em uma reunião encerrada na noite de
“Comissão de Conciliação”, não leva em
ontem, os quatro ministros que lidam
consideração a situação dos países pequenos e com esse tema decidiram encaminhar só
sem recursos para arcar com tais encargos. Esse propostas sobre como se dará a liberaliza-
dispositivo reproduz, em escala internacional, a ção do mercado brasileiro no setor de
triste realidade observada no interior da maioria bens agrícolas e industriais, depois de no-
dos Estados americanos: a elitização dos serviços vas consultas com a iniciativa privada. (...)
judiciários e, na lição de Dallari, afastando-se o Os tópicos que o governo considera mais
direito da justiça.55 As despesas correndo por delicados, como compras governamentais
conta dos Estados afastariam do sistema de con- e investimentos, serão decididos com
ciliação, por falta de recursos, os países pobres, a maior cautela e “devem continuar a ser
menos que recebessem “auxílio” dos países mais objeto de reflexão”, de acordo com nota
divulgada pelo Itamaraty. (...) Tanto
poderosos, os quais, com certa freqüência, exer-
Amorim quanto o secretário-geral das
citam pressões e influências, de caráter econômi-
Relações Exteriores, Samuel Pinheiro
co e político, nas decisões de organismos multi- Guimarães, vêm ressaltando desde que as-
laterais. sumiram a cúpula do Itamaraty que temas
Nesse sentido, a mais escandalosa ocorrên- como compras governamentais e investi-
cia noticiada56 foi o caso “OPAQ-Bustani”, em mentos devem ser analisados com extre-
que os representantes dos países pobres, mem- mo cuidado pelo Brasil e seus sócios na
bros da Organização para a Proibição das Armas negociação da Alca. Nos textos prelimi-
Químicas (OPAQ), sediada em Haia, tiveram suas nares, existem cláusulas que poderiam, na
despesas de viagem pagas, por Washington, para visão dos diplomatas, interferir na sobera-
nia nacional. Nem mesmo no âmbito do
apoiar a manobra dos Estados Unidos visando à
Mercosul, existe uma posição fechada so-
destituição do diplomata brasileiro João Maurício
bre investimentos, compras governamen-
Bustani da condição de secretário-geral da OPAQ tais e serviços.58
e, recentemente,57 indicado para assumir o posto
de embaixador do Brasil na Corte de St. James. As análises de todas as minutas do Acordo
da Alca, que tiveram suas confidencialidades anu-
54 Idem.
55
ladas, realizadas em conjunto com os alunos (ad-
DALLARI, 1996, p. 82-83.
56 Cf. O Estado de S.Paulo, 21/abr./2002, p. A25.
57 Cf. O Estado de S.Paulo, 13/jan./2003, p. A19. 58 Cf. O Estado de S.Paulo, 21/jan./2003, p. A20.

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vogados especialistas em direito internacional, a decisão soberana dos cidadãos desses Estados
tributário, bancário, processual, ambiental e do sobre se os seus países deverão ou não aderir à
turismo) da disciplina de direito da integração: o Alca.
Mercosul diante da Alca, do Programa de Mes-
trado em Direito da UNIMEP, oferecida no se- A UNIÃO EUROPÉIA E O DIREITO
gundo semestre de 2002, apontam no sentido da COMUNITÁRIO: PARADIGMA PARA
estruturação não de um direito da integração, O MERCOSUL?
como almejam os parceiros do Mercosul, e sim Pelas características do seu processo de in-
de um direito da “entregação”. Ao contrário do tegração, a União Européia tornou-se um labo-
Mercosul, que colocou para si, como objetivo, a ratório de ricas experiências jurídicas que podem
harmonização do direito, no modelo da Alca tal em muito contribuir para o estudo sobre a pas-
harmonização não será visada, mas terá seu lugar sagem do direito internacional público para o di-
ocupado pela exigência de que os Estados-mem- reito supranacional, consubstanciado no direito
bros respeitem a regra do tratamento nacional e comunitário, cuja lógica interna deve ser com-
evitem a imposição de novas restrições comer- preendida pelas novas gerações de estudantes de
ciais. direito globalizados, cada vez mais próximos de
Enquanto o Mercosul busca a formação de uma atuação conjunta com seus futuros colegas
uma união aduaneira, na qual circulem livremente de profissão, operadores do direito, estabelecidos
todos os fatores de produção (capital, tecnologia, no outro lado do Atlântico. Nesse sentido, o pri-
mão-de-obra e serviços) e existam órgãos com meiro desafio do estudante de direito da integra-
atribuições supranacionais, encarregados de har- ção é compreender a formação da União Eu-
monizar as políticas econômicas e sociais dos pa- ropéia e conhecer as fontes do direito comunitá-
íses integrados, inclusive com a colaboração de rio.
políticas comuns, a Alca almeja a constituição de A gênese da União Européia, estágio
uma simples zona de livre comércio, com a eli- contemporâneo da evolução da Comunidade Eu-
minação das tarifas que incidem sobre importa- ropéia, foi objeto de inúmeras análises nos últi-
ções aduaneiras e as restrições que impedem a li- mos 50 anos. De forma sintética, verifica-se que,
vre circulação de produtos originários dos países já antes da formação da Comunidade Européia, a
da área. Finalmente, cabe concluir, com Lafer, imagem de uma aliança consistente entre os Es-
que tados europeus tinha encontrado a sua manifesta-
a Alca não é destino para o Brasil, mas sim ção política sob as mais diferentes configurações.
uma opção. Se as negociações em curso Inicialmente tentou-se diversos esforços objeti-
resultarem na elaboração de um texto de vando a imposição da unidade ao continente, res-
acordo para o estabelecimento de uma guardada pela supremacia ou pela opressão de um
área de livre comércio nas Américas, o ditador. Nesse sentido, dois exemplos clássicos
Brasil poderá no devido momento decidir são a tentativa de Napoleão Bonaparte, que pre-
voluntariamente, a partir de sua própria tendia a unificação européia sob o Império da
avaliação do interesse nacional, se lhe França, e a de Adolf Hitler, que ambicionava sub-
convém ou não participar do esquema de
jugar a Europa, pela violência, ao domínio do III
livre comércio hemisférico.59
Reich.
Para tanto é indispensável, após uma ampla Entretanto, mormente após o desastre da
campanha de esclarecimento e debates, em todos 1.ª Guerra Mundial, nota-se também o desenvol-
os setores da sociedade dos países membros do vimento de algumas idéias sobre formas de união
Mercosul, a convocação de um plebiscito oficial e espontânea e pacífica entre Estados. Assim, no
ano de 1923, o conde Condehove Kalergi, da
59 LAFER, 2001. Áustria, e o Movimento Pan-Europeu, por ele

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fundado, exigiam a criação dos “Estados Unidos ao da Europa dividida em Estados isolados. As-
da Europa”. Os modelos seguidos para a concre- sim, no espaço de meio século, um sistema mul-
tização de tal projeto foram os empenhos de uni- tilateral de equilíbrio, cujo centro era a Europa,
ficação da Confederação Helvética, em 1648, a foi substituído por um sistema de bipolaridade
fundação do Império Alemão, em 1871, e, espe- global, o equilíbrio do terror nuclear.
cialmente, a criação dos Estados Unidos da Amé- A exortação para a constituição das comu-
rica, com a sua Declaração de Independência, em nidades européias partiu, como ensina Fonseca,60
1776. do governo francês, por intermédio do seu mi-
No século XX, os esforços no sentido da nistro dos Negócios Estrangeiros, Robert Schu-
unidade européia foram empreendidos por Aris- mann, que, em 9 de maio de 1950, no salon d’hor-
tid Briand, ministro dos Negócios Estrangeiros loge do Quai d’Orsay, propôs que toda a produ-
da França (com a anuência de seu colega alemão, ção franco-germânica de carvão e de aço fosse co-
Gustav Stresemann), quando da apresentação, locada sob fiscalização de uma alta autoridade
aos governos europeus, em seu famoso discurso comum, numa organização aberta aos outros pa-
pronunciado em 5 de setembro de 1929 perante íses da Europa. Nessa ocasião, esse continente
a Sociedade das Nações, de um projeto de ins- encontrava-se em plena recuperação. O receio de
tituição de uma União Européia no âmbito da uma expansão soviética, em direção ao oeste eu-
Sociedade das Nações. Buscava-se, de início, tão- ropeu, levou os EUA a uma dupla ofensiva: uma
somente uma cooperação mais próxima entre os econômica, pelo Plano Marshall, outra militar,
Estados europeus, deixando-se íntegra a sobera- pela Organização do Tratado do Atlântico Norte
nia de cada um desses Estados. Contudo, tais (OTAN), visando a isolar os comunistas.
tentativas de uma unificação pacífica da Europa Surgia, entretanto, o problema de como re-
falharam completamente, em virtude dos ideais construir a Alemanha de maneira aceitável pela
de nacionalismo e imperialismo ainda dominan- França, três vezes sua vítima nos 100 anos ante-
tes naquele período. riores. A resposta foi dada por Jean Monnet, fi-
Após a destruição ocorrida durante a 2.ª nancista e banqueiro, então responsável pela
Guerra Mundial, a sociedade européia finalmente reconstrução econômica da França. Segundo
tomou consciência de que uma concorrência in- Monnet, seria necessário reunir sob uma autori-
cessante entre seus membros seria funesta para o dade supranacional os recursos comuns em car-
continente. Winston Churchill, no célebre dis- vão e aço existentes no Rhur, no Sarre e na Lo-
curso proferido em Zurich, em 19 de setembro de rena.61 Em outras palavras, pretendia-se, median-
1946, exortou os governos europeus para a criação te a eliminação de barreiras alfandegárias, a am-
dos Estados Unidos da Europa, sonho de Victor pliação do mercado consumidor, a unificação da
Hugo um século antes. Somente com o colapso política de produção, de mão-de-obra e de trans-
e o aniquilamento político e econômico dos Es- portes, bem como a criação de um complexo de
tados europeus, com suas decrépitas estruturas interesses econômicos capaz de, em última análi-
nacionais, foram estabelecidas as condições ne- se, conduzir a uma unificação política.
cessárias para o desenvolvimento de um pensa- Embora significasse uma inesperada revira-
mento muito mais arrojado em relação à União volta na tradicional política francesa de prevenção
Européia. E também para a constatação de que, e animosidade para com a Alemanha, o plano ob-
com o final da guerra, a Europa ocidental tinha teve a aprovação dos Parlamentos da França, Re-
perdido sua posição secular de centro dos acon-
pública Federal Alemã, Bélgica, Itália, Luxembur-
tecimentos mundiais para a disputa entre super-
go e Países Baixos. Em 18 de abril de 1951 foi as-
potências, EUA e URSS, no novo tabuleiro geopo-
lítico da Guerra Fria, dispondo ambas de um po- 60 FONSECA, 1978, p. 480.
der militar, político e econômico muito superior 61 MONNET, 1986, p. 262.

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sinado o tratado criando a Comunidade Européia tados-membros integrantes da CECA, da CEE e da


do Carvão e do Aço (CECA), em vigor a partir de CEEN decidiram reunir não as três comunidades,
25 de julho de 1952. Esse tratado, comenta Aja mas os organismos dirigentes das três comunida-
Espil, é o primeiro ensaio de introdução de um des”.64 Dessa forma, conclui Fonseca, “passariam
poder orgânico supranacional,62 isto é, de subtra- a coexistir os três mercados; porém, os três teriam
ção de certas matérias à competência dos Esta- a mesma direção, a ser exercida, a partir de então,
dos-membros, para serem encomendadas a ór- por um mesmo Conselho de Ministros, uma
gãos independentes da sua autoridade. mesma Comissão, um mesmo Parlamento e uma
Nesse mesmo sentido, salienta Fonseca, mesma Corte de Justiça”.65
Tal estrutura tinha por objetivo a constitui-
o fato mais importante, do ponto de vista
ção de um mercado comum que ultrapassasse,
jurídico internacional, foi que, para cria-
ção de tal organismo, foi necessário que
com segurança e rapidez, suas fases precedentes
empreendessem os Estados-membros re- de zona de livre comércio e de união aduaneira,
forma em suas Constituições internas, promovendo as quatro liberdades de circulação:
para que nas referidas Cartas ficasse con- livre circulação de mercadorias; livre circulação
signada a possibilidade, em tese, da dele- de pessoas (com a conseqüente criação do passa-
gação de parte da soberania nacional em porte comunitário); livre circulação de capitais
favor de entidades supranacionais. Fato (com exclusão dos capitais comunitários do esta-
também importante é que, como conse- tuto do capital estrangeiro); e livre circulação de
qüência, foi possível surgir na direção da serviços (evolvendo a liberdade para o estabeleci-
comunidade criada, como um de seus ór-
mento de fundo de comércio, como também
gãos diretivos ao lado do Conselho de
Ministros (colegiado tipicamente interna- para o exercício de profissão técnica ou liberal).
cional, no sentido clássico e convencional, O êxito dessas políticas atraiu o interesse
do tipo cooperativo), uma Alta Autorida- de outros países europeus. Assim, essas comuni-
de (colegiado, pelo contrário, tipicamente dades tiveram a adesão, em 1973, do Reino Unido,
supranacional, cujos membros, embora da Irlanda e da Dinamarca. Pelos tratados comu-
designados de comum acordo pelos go- nitários, todos os Estados europeus que pleiteiam
vernos dos Estados-membros, desliga- um lugar na União Européia devem ser, necessaria-
vam-se obrigatoriamente e desde logo
mente, democracias consolidadas. Mesmo assim, é
dos interesses do respectivo Estado-
membro de origem, comprometendo-se a
interessante notar que, só após a morte do Gene-
atuar e decidir segundo os superiores e ral De Gaulle, o Reino Unido foi aceito pela Co-
transcendentes interesses da comunida- munidade. Em 1961, lembra Duroselle, o Reino
de).63 Unido apresentou sua candidatura às comunida-
des, rejeitada pelo então presidente francês.66 Aos
Seis anos mais tarde, após negociações, fo- olhos de De Gaulle, o Reino Unido não tinha seu
ram assinados os tratados criando a Comunidade lugar na Europa. Ele o declarou em 14 de janeiro
Européia de Energia Atômica (CEEN, ou Eura- de 1963, durante uma de suas mais retumbantes
tom) e a Comunidade Econômica Européia conferências de imprensa. A partir de 30 de ju-
(CEE). Os respectivos tratados foram firmados, nho de 1965, por seis meses, os representantes
em março de 1957, em Roma, pelos seis Estados- franceses obstruíram o processo de adesão do
membros da CECA, entrando em vigor em 1.o de Reino Unido, retirando-se das organizações co-
janeiro de 1958. Por meio do tratado celebrado munitárias, em Bruxelas.
em Bruxelas, em 8 de abril de 1965, “os seis Es-
64 Ibid., p. 480.
62 AJA ESPIL, 1977, p. 274. 65 Ibid., p. 480.
63 FONSECA, 1978, p. 480. 66 DUROSELLE, 1989, p. 121.

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Em 1981 a Grécia, redemocratizada, ingres- por outras convenções responsáveis pela perma-
sou no que passou a ser correntemente designado nente atualização do ordenamento jurídico co-
como o grupo dos “Dez”; em 1986, o alargamen- munitário. Como bem salienta Cerexhe, essas
to a Portugal e Espanha, também redemocratiza- fontes originárias do direito comunitário “são,
dos, mostrou uma vez mais que a dinâmica da assim e da mesma forma que as constituições de
construção européia não estava extinta, mas ao cada um de nossos Estados, o fundamento jurí-
contrário, prosseguia após a reunificação alemã, dico de uma ordem jurídica autônoma, gozam de
em 1989, e com a entrada para a União Européia, primazia em relação às outras fontes do direito
em 1995, da Suécia, da Finlândia e da Áustria (pa- comunitário”,69 garantida pela Corte de Justiça
ís, até então, historicamente “neutro”). A partir da União Européia.
de 2004, mais dez países serão incorporados ao Como resultado desses tratados e conven-
bloco, a maioria deles do Leste Europeu (Polô- ções, foram elaboradas outras regras jurídicas
nia, Hungria, República Checa, Eslováquia, para a sua regulamentação, segunda fonte do di-
Eslovênia, Estônia, Lituânia, Letônia, Chipre e reito comunitário. Esse conjunto de normas de-
Malta). Dessa forma, o grande mercado europeu nomina-se direito comunitário derivado e decor-
dos “Vinte e Cinco” atingirá mais de 445 milhões re do artigo 161 do Tratado da CEEA e do artigo
de habitantes, distribuídos numa superfície de 249, ex-artigo 189, do Tratado da CEE, que dis-
aproximadamente 4 milhões de quilômetros qua- põem: “para o cumprimento das suas atribuições,
drados. e nos termos do presente tratado, o Parlamento
Todavia, muitos europeus são ferozes opo- Europeu em conjunto com o Conselho e a Co-
sitores à União Européia. Tais “eurocéticos” ja- missão adotam regulamentos e diretivas, tomam
mais acreditaram que, a partir de 1.o de janeiro de decisões e formulam recomendações ou parece-
2002, os “eurocidadãos” pudessem utilizar o Eu- res”.70
ro, a nova moeda comunitária, em 13 dos 15 Es- Por não ser um sistema completo, o direito
tados-membros, numa perspectiva irreversível da comunitário recebe, em certos momentos, e de
forma supletiva, o aporte das disposições do di-
edificação daquilo denominado por Gorbachev,
reito internacional, terceira fonte do direito co-
em discurso pronunciado três semanas antes da
munitário. Nas palavras de Gautron, o direito in-
queda do muro de Berlim, de a casa comum eu-
ternacional pode ser aplicado nos seus princípios
ropéia. Realizara-se a previsão de Valladão de que
gerais,71 a Corte de Justiça da União Européia
os Estados se aproximariam, unindo-se em gran-
pode operar um reenvio às regras de direito in-
des realizações, de alto interesse econômico e so-
ternacional para determinar as competências da
cial, para o bem geral de seus povos, com novas
União Européia, como, por exemplo, no caso da
e poderosas organizações de caráter supranacio-
pesca em alto-mar.72
nal fundadas no direito comunitário.67
Assim, os acordos externos, de natureza
Na clássica formulação da Corte de Justiça, técnico-científica, socioeconômica ou político-
o direito comunitário constitui “uma ordem ju- estratégica, celebrados pela União Européia com
rídica própria, integrada ao sistema jurídico dos países terceiros e outras organizações internacio-
Estados-membros”.68 De forma mais ampla, nais, implicam que “as disposições do acordo for-
pode-se designá-lo como sendo o conjunto de mam parte integrante, a partir de sua entrada em
regras que asseguram, por seus próprios meios, a vigor, da ordem jurídico-comunitária”.73 A Corte
concretização dos objetivos definidos nos trata-
dos criadores das Comunidades Européias, mo- 69 CEREXHE, 1979, p. 227.
70
dificados ao longo das últimas quatro décadas Cf. art. 161 do Tratado da CEEA e art. 249 do Tratado da CEE (25/
mar./1957).
71 GAUTRON, 1999, p. 141.
67 VALLADÃO, 1970, p. 69. 72 Acórdão Kramer, de 14/jul./1976.
68 Cf. acórdão Costa versus ENEL, de 15/jul./1964. 73 Acórdão Haegeman, de 30/abr./1974.

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de Justiça, lembra Favret, consagra os princípios ca Européia (CEE) e a Comunidade Européia de


de direito internacional público74 (Pacta sunt ser- Energia Atômica (CEEA ou Euratom, 25/mar./
vanda e Rebus sic stantibus, por exemplo), afas- 1957, em vigência desde 1.o/jan./1958). Eles fo-
tando, entretanto, todo princípio de direito inter- ram alterados e atualizados por uma série de ou-
nacional incompatível com a natureza e a estru- tras convenções e tratados, entre os quais, a con-
tura da União Européia. venção relativa a certas instituições comuns às
O direito comunitário pode receber, ainda, Comunidades Européias (1957), o tratado que
o aporte do direito interno e dos princípios gerais fundiu os poderes executivos da CECA, CEE e CE-
de direito, a fim de evitar a denegação de justiça.75 EA, criando um conselho e uma comissão única
Visando a minimizar as lacunas da lei, escreve Bo- para as Comunidades Européias (1965), o que in-
chardt,76 a Corte de Justiça da União Européia troduziu modificações no tratado anteriormente
formulou os seguintes princípios gerais de direi- citado, em matéria de orçamento (1970), e o tra-
to, reconhecidos como fontes não escritas do di- tado de adesão da Dinamarca, Irlanda e Grã-Bre-
reito comunitário: tanha às Comunidades Européias (1972).
• modalidades da responsabilidade extra- Destacam-se ainda o tratado que alterou
contratual da União Européia por danos certas regras de natureza financeira no âmbito
causados pelas suas instituições ou pelos dos tratados de 1951 e 1957 supra-indicados
seus agentes; (1975), os de adesão da Grécia (1979), Espanha e
• princípio da legalidade dos atos adminis- Portugal (1986), Áustria, Suécia, e Finlândia
trativos; (1994) às Comunidades Européias, o Ato Único
• princípio da proporcionalidade; Europeu (17 e 28/fev./1986, em vigor a partir de
• princípio da segurança jurídica; 1.o/jul./1987), o Tratado da União Européia, mais
• princípio da boa-fé; conhecido como Tratado de Maastricht (cidade
dos Países Baixos onde ele foi assinado, 7/fev./
• princípio de proibição de discriminações
1992, em vigor a partir de 1.o/nov./1993), o Tra-
e princípio da igualdade;
tado de Amsterdã, que altera o Tratado da União
• direitos de defesa;
Européia e os Tratados das Comunidades Eu-
• direitos fundamentais.
ropéias (2/out./1997) e, finalmente, o Tratado de
No tocante aos métodos do direito comu- Nice (26/fev./2001, em vigor a partir de 1.o/fev./
nitário, Molinier destaca a existência de quatro 2003).
métodos de aproximação ou de uniformização As instituições da União Européia possuem
dos direitos nacionais, tendo em vista a homoge- legitimidade política e autonomia jurídica suficien-
neização da cultura jurídica comunitária: reco- tes para produzir uma legislação que, de acordo
nhecimento mútuo, coordenação, harmonização com o artigo 249 (ex-artigo 189) do Tratado da
e substituição de uma fonte nacional de direito CEE, classifica-se em quatro tipos:
por uma fonte comunitária.77
1. “O regulamento tem caráter geral. É
Os textos básicos constitutivos das Comu- obrigatório em todos os seus elementos e direta-
nidades Européias e da União Européia são o mente aplicável em todos os Estados-mem-
Tratado de Paris, instituindo a Comunidade Eu- bros.”78 Os regulamentos, preleciona Simon, são
ropéia do Carvão e do Aço (CECA, 18/abr./1951, normas de caráter geral que estabelecem prescri-
em vigor a partir de 23/jul./1952) e o Tratado de ções impessoais e abstratas, dotadas de um valor
Roma, que estabeleceu a Comunidade Econômi- obrigatório erga omnes.79 Sua direta aplicabilida-
74
de, lembra Louis,80 significa que, sem interposi-
FAVRET, 1996, p. 200.
75 Acórdão Algera et al. versus Assembléia Comum da CECA, de 12/
jul./1957. 78 Art. 249 do Tratado da CEE, 25/mar./1957.
76 BOCHARDT, 1986, p. 38. 79 SIMON, 1998, p. 219.
77 MOLINIER, 1998, p. 113. 80 LOUIS, 1993, p. 103.

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ção do poder normativo nacional, possuem uma ça permitindo-lhes importar carne de peru da
validade e, como tais, estão aptos a conferir direi- França. Naquele ano, o ministro britânico da
tos e impor obrigações aos Estados-membros, a agricultura decidiu modificar o sistema de licen-
seus órgãos e aos particulares, como faz a lei na- ça, a fim de impedir a propagação da doença de
cional. Os regulamentos, informa Soder, “obri- Newcastle, que atingia os perus franceses. As
gam diretamente os Estados-membros. Equiva- licenças só foram concedidas aos importadores
lem a uma lei nacional”.81 São, majoritariamente, dinamarqueses e irlandeses. Agindo dessa forma,
concebidos com o objetivo de regulamentar ati- o Reino Unido foi condenado pela Corte por im-
vidades comunitárias, por exemplo, as dos seto- pedir a livre circulação de mercadorias (prevista
res alfandegário, agrícola e de transportes. no art. 28, ex-art. 30, do Tratado de Roma). A
2. “A diretiva vincula o outro Estado-mem- Corte de Justiça não entendeu que a medida to-
bro destinatário quanto ao resultado a alcançar, mada pelo ministro justificava-se pela proteção
deixando, no entanto, às instâncias nacionais a da saúde dos animais (CJCE, 15/jul./82). Após a
competência quanto à forma e aos meios.”82 As divulgação do acórdão, as empresas foram auto-
diretivas, segundo Manin, constituem “a princi- rizadas a retomar suas importações. Elas reclama-
pal ‘técnica legislativa’ da União Européia”.83 ram a reparação pelo prejuízo causado, negado
Possuem o perfil de leis quadros obrigando os Es- pela High Court of Justice, em 1984. Essa posição,
tados destinatários quanto ao resultado a atingir e no entanto, deverá ser revista, pois, de acordo
deixando, entretanto, para a órbita nacional a com Haguenau, a Câmara dos Lordes, segundo a
competência com relação aos meios e às formas declaração de Lord Goff, deixou entender clara-
utilizadas para a sua implementação, no prazo fi- mente obter dictum que a jurisprudência Bourgo-
xado pela própria diretiva. Caso esse prazo não in terá de ser reexaminada à luz dos desenvolvi-
seja cumprido, os particulares têm o “direito de mentos do direito comunitário.86
obter reparação dos danos resultantes da não Na verdade, para Simon, existem algumas
transposição dessa diretiva”, de acordo com o obrigações ligadas à operação de transposição das
acórdão Francovich e Bonifaci (13/nov./1991). diretivas para o ordenamento interno dos Esta-
Para a compreensão desse acórdão é neces- dos-membros:87 o respeito do “sentimento co-
sário recordar que, desde 1990, como escreve So- munitário”, vale dizer, as diretivas devendo ser
der, a Comissão Européia havia estabelecido, por objeto de uma interpretação e aplicação uniforme
meio de uma diretiva, que os Estados-membros ao conjunto dos direitos nacionais. Isso supõe
deveriam “conceder aos seus súditos, em caso de que as noções jurídicas figurantes numa diretiva
insolvência do empregador, ao menos a garantia sejam transcritas em todos os direitos nacionais,
do salário mínimo. A Itália não fez entrar essa di- num vocabulário fiel àquele composto pela dire-
retiva em sua legislação social. Em 1989, a Corte tiva, independentemente das qualificações diver-
de Justiça advertiu o país de que estava sendo gentes e das diferentes tradições jurídicas. Ade-
omisso. Agora, dois operários que se encontra- mais, o respeito à obrigação de resultado, garan-
vam na situação descrita denunciaram seu Estado tido pela precisão na redação do texto da diretiva,
perante a Corte, que lhes deu razão”.84 e o respeito ao conjunto das regras comunitárias,
Em outro caso, estudado por Haguenau,85 em suma, o respeito ao princípio da legalidade
a empresa britânica Bourgoin e seis outras homó- comunitária.
logas eram beneficiadas, até 1981, por uma licen- Lembra Soder que as diretivas só atingem
cidadãos depois que o parlamento nacional as
81 SODER, 1995, p. 115.
82
transformou em direito interno e são muito uti-
Art. 249 do Tratado da CEE, 25/mar./1957.
83 MANIN, 1996, p. 265.
84 SODER, 1995, p. 116. 86 Ibid., p. 486.
85 HAGUENAU, 1995, p. 483. 87 SIMON, 1997, p. 47.

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lizadas, por exemplo, para padronizar a fabrica- referente à ratificação de convenções sobre segu-
ção de produtos, obedecendo a normas comuni- rança dos transportes marítimos (DOCE, n.°
tárias de direito do consumidor e de direito am- L.194, de 19/jul./1978).94 Em virtude dessa
biental.88 O sistema normativo da União Eu- recomendação, o Conselho exerceu verdadeira
ropéia, ensina Bochardt, “obedece ao princípio pressão política sobre os Estados-membros,
segundo o qual as disposições nacionais devem exortando-os a ratificar, no prazo fixado pela
ser substituídas por um ato comunitário sempre recomendação, diversas convenções relativas à
que uma regulamentação precisa, comum a todos segurança dos transportes marítimos.
os Estados-membros, seja necessária; caso con- A jurisprudência da Corte de Justiça da
trário, é necessário ter devidamente em conta as União Européia constitui uma fonte de direito
ordens jurídicas nacionais”.89 essencial. Como foi visto anteriormente, sobre
3. “A decisão é obrigatória em todos os seus vários aspectos, a Corte, por sua jurisprudência,
elementos para os destinatários que designar.”90 completa e esclarece as disposições dos tratados,
As decisões consistem em normas que, em seu ao mesmo tempo em que lhes assegura o respei-
conjunto, são obrigatórias apenas para os desti- to. Os acórdãos da Corte de Justiça da União Eu-
natários envolvidos, tanto empresas quanto Esta- ropéia, de acordo com os artigos 220 e seguintes
dos-membros. Para Bochardt, as decisões equiva- do Tratado de Roma, obedecem três princípios:
lem aos atos administrativos por meio dos quais • aplicação direta e imediata do direito co-
“as instituições comunitárias podem exigir a um munitário, que prevê a adoção integral
país-membro ou a um cidadão agir ou não agir, de uma diretiva ou de uma decisão sem
assim como conferir-lhes direitos e impor-lhes a possibilidade de retardamento no seu
obrigações”.91 Nesse sentido, conforme Bou- cumprimento ou, muito menos, de alte-
louis, a motivação das decisões reveste-se de um ração do seu conteúdo por parte dos po-
grande rigor, testemunhado pela jurisprudência deres legislativos dos Estados-membros
relativa à violação das formas substanciais.92 Essa da União Européia;
motivação deve explicitar, da maneira mais clara • efeito diretivo, que possibilita ao particu-
possível, os principais pontos de fato e de direito lar invocar em sua defesa, perante seu
que servem de suporte à decisão e são necessários juiz nacional, direitos oriundos da apli-
para a sua compreensão e o controle jurisdicional. cação dos tratados da União Européia
4. “As recomendações e os pareceres não ou do direito comunitário derivado. Tal
são vinculativos.”93 As primeiras podem originar- princípio decorre do próprio espírito
se do Conselho, da Comissão, dos Estados- norteador da construção do espaço úni-
membros, ao passo que os pareceres podem ser co europeu, na medida em que os direi-
solicitados pelo Conselho à Comissão e pela Co- tos foram criados em benefício dos cida-
missão a empresas da CECA. Tais normas são dãos que, de forma inédita, viram seus plei-
emanadas do Conselho de Ministros, por pro- tos serem reconhecidos pela jurisprudên-
posta da Comissão, após manifestação (co-deci- cia da Corte de Justiça da UE e, como
são, parecer favorável, cooperação legislativa) do nunca antes visto, terem a possibilidade de
Parlamento Europeu. Para Cartou, um exemplo invocar o reconhecimento desses direi-
importante de recomendação do Conselho é o tos pelos tribunais de seus países;
• primado do direito comunitário sobre o
88 SODER, 1995, p. 115. direito nacional, que constitui, como as-
89 BOCHARDT, 1986, p. 29.
90
severa Fontaine,95 a contribuição mais
Art. 249 do Tratado da CEE, 25/mar./1957.
91 Ibid., p. 37.
92 BOULOUIS, 1997, p. 227. 94 CARTOU, p. 1996, p. 133.
93 Art. 249 do Tratado da CEE, 25/mar./1957. 95 FONTAINE, 1998, p. 38.

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importante da Corte de Justiça, pois não tribunal a verificação do seu direito de residência
figura expressamente nos tratados e é no Reino Unido para aí exercer a sua profissão e,
condição sine qua non da autonomia e por isso, a autorização para entrar no país. No
do respeito do direito comunitário. âmbito de um processo de decisão prejudicial ini-
Nesse sentido, a possibilidade de a pessoa ciado pela High Court of Justice, a Corte de Jus-
física ser parte numa ação junto à Corte de Jus- tiça da União Européia declarou como direta-
tiça da União Européia tem provocado, destaca mente aplicável o direito previsto no artigo 39,
L’Ecotais,96 uma lenta emergência de um verda- ex-artigo 48, do Tratado da CEE, conferindo, assim,
deiro continente jurídico surgido no interior de aos cidadãos direitos que eles também podiam fazer
todos os direitos nacionais: um tribunal italiano valer junto aos tribunais dos Estados-membros.
julga as decisões de uma das assembléias regio- Essas são, pois, as principais características
nais, ilegais aos olhos do direito comunitário; um do direito comunitário que poderiam servir de
cidadão francês é bem-sucedido ao obter da Cor- paradigma para o Mercosul, caso o bloco prefira
te de Justiça a nulidade de uma lei nacional, com alterar sua personalidade jurídica de direito inter-
base no Tratado de Roma; em outro país, uma nacional para supranacional.
multinacional é obrigada a mudar completamen-
te suas práticas comerciais de distribuição para se AS RESPONSABILIDADES DA UNIÃO
adequar ao processo de integração dos mercados EUROPÉIA NO CENÁRIO INTERNACIONAL
europeus. Tudo isso provocado não por uma ação Mesmo com todas as críticas dos “eurocé-
política, mas, essencialmente, pela incisiva ação ticos” acerca do processo de constituição da
dos cidadãos da Europa e de seus tribunais, tendo União Européia, malgrado a carga considerável
à frente a Corte de Justiça da União Européia, de “eurohipocrisia” de vários “eurocratas”, parti-
apoiada num tratado de mais de 40 anos. Qual- cularmente durante e após o conflito na ex-
quer cidadão da União Européia pode dar queixa Iugoslávia, a União Européia continua sendo o
junto à Comissão da União Européia, no caso de mais bem-sucedido paradigma para outras tenta-
um Estado-membro, um organismo ou uma em- tivas de formação de blocos econômicos nos di-
presa não respeitarem as normas do direito co- ferentes quadrantes do planeta.
munitário, conforme o modelo reproduzido no Graças ao empenho tenaz de alguns ho-
Anexo do presente trabalho. mens públicos, a Europa dos 15 vem sendo cons-
O exemplo clássico de acesso do cidadão à truída pelos seus povos e instituições na busca de
Corte de Justiça é o caso “Van Duyn” (acórdão avanços nos campos econômico, social e cultural.
da CJCE, de 4/dez./1974), sobre a livre circulação Apesar dos atrasos, da lentidão do processo e até
de trabalhadores. Os fatos causadores do litígio, de alguns desencantos, a União Européia está
esclarece Bochardt, remontam a maio de 1973, conseguindo libertar-se das visões estritamente
quando a holandesa Van Duyn “viu ser-lhe recu- nacionais e por demais tributárias do passado res-
sada a entrada no Reino Unido por aí querer tra- ponsável, no século passado, por dois conflitos
balhar como secretária na Church of Scientology, mundiais. Prova disso, foi a comemoração do
que o ministério do Interior britânico considera- 40.o aniversário da assinatura do Tratado do Ely-
va socialmente perigosa”.97 Invocando as disposi- sée, celebrado entre Adenauer e de Gaulle, em 22
ções de direito comunitário sobre livre circula- de janeiro de 1963. Os atuais governos dos dois
ção, em especial o artigo 39, ex-artigo 48, do Tra- países, por meio de uma declaração comum fran-
tado da CEE, a sra. Van Duyn apresentou um pe- co-alemã,98 reforçaram o intuito de exercer suas
dido a High Court of Justice, solicitando a esse responsabilidades de forma comum, estimulando

96 L’ECOTAIS, 1987, p. 33. 98 <http://www.france.diplomatie.gouv.fr/actul/dossiers/traite_elysee/>.


97 BOCHARDT, 1988, p. 46. Acesso em: 31/jan./2003.

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uma cooperação exemplar entre a Alemanha e a União Européia vem provocando a reflexão acer-
França, no seio da União Européia, e se empe- ca do bem-comum mais vasto que aquele dimen-
nhar na promoção da solidariedade com os países sionado pelos Estados nacionais.
do Sul, a fim de assegurar particularmente o de- Para atingir seus objetivos, a União Européia
senvolvimento das nações mais pobres, notada- deve superar a distância entre suas instituições e a
mente no quadro das negociações estabelecidas opinião pública, fazendo emergir um poder político
sob a égide da Organização Mundial do Comér- de nível europeu comprometido com seus reais fins,
cio. No parágrafo 22 da Declaração Comum, é suscitando a participação ativa de todos os seus ci-
salientada a necessidade de intensificação da dadãos, jovens em particular, de modo a garantir-
harmonização do direito de ambos os países, in- lhes o poder obtido legítima e democraticamente.
clusive, com a seguinte recomendação: Sozinhas, as instituições não farão a Europa. São os
homens que irão construí-la, os eurocidadãos do sé-
Nous appelons nos ministres, lors de la culo XXI.
préparation des projets de loi, à consulter
systématiquement leurs homologues et à
Sem abandonar a exigência de uma força de
mieux prendre em compte l´état et l´évolu- intervenção a serviço da paz, a Europa unida dei-
tion de la législation du pays partenaire xa clara a sua vontade de renunciar para sempre à
afim de rechercher toutes les convergences guerra e incentivar a cultura da paz. Ela traz tam-
possibles. Nous souhaitons em particulier bém consigo uma certa concepção de pessoa hu-
que soient presentes des projets visant à um mana, obrigando os Estados-membros da União
rapprochement des législations sur le droit Européia a promover e praticar escrupulosamen-
civil, notamment le droit de famille. Nous te os direitos do homem na sua universalidade e
devons ainsi permetrre à nos ressortis- indivisibilidade. Daí o papel fundamental desem-
sants de bénéficier, s´ils le souhaitent, de penhado pela Corte Européia dos Direitos do
la nationalité de nos deux pays.99 Homem, parte integrante do Conselho da Euro-
A possibilidade de todos os cidadãos dos pa, instituição paralela à União Européia. Como
dois países de, futuramente, gozar de dupla-nacio- primeira jurisdição internacional desse tipo, ela é
nalidade representa um marco na história dos a intérprete suprema da Convenção de Salvaguar-
dois Estados e um renovado impulso no proces- da dos Direitos do Homem e das Liberdades
so de integração ampla entre alemães e franceses. Fundamentais, legislação aplicada diretamente
nos territórios dos países integrantes da União
A União Européia não é apenas um grande mer-
Européia.
cado, pois a política não pode reduzir-se à econo-
mia. A única finalidade legítima da economia, en- Contudo, a União Européia não pode fe-
sina Généreux, “é a qualidade de vida (...) um sis- char-se sobre si mesma. A idéia da Europa como
tema econômico plenamente eficaz é aquele que fortaleza, lembra Enzensberger, foi um slogan
melhor satisfaz o conjunto das exigências da hu- cunhado por Goëbels: “A Fortaleza Europa,
manidade, a começar pela exigência de justiça”.100 [que] antes tinha um sentido militar, volta como
A União Européia tem sido cada vez mais cha- um conceito econômico e demográfico. Nessas
mada a assumir uma dimensão social, cultural e circunstâncias, a Europa cada vez mais próspera
humana, como também a incitar e estimular seus fará bem de lembrar-se de uma Europa em ruínas,
governos a ultrapassar as fronteiras nacionais, re- da qual apenas algumas décadas a separam”.101
avaliar o sentido de nação e redimensionar o cam- Ao constituir-se como a mais antiga e a me-
po de competências dos Estados, das regiões, na lhor experiência de ampla integração de diferen-
busca de um equilíbrio entre os poderes. A tes países, a Europa pode tornar-se um modelo a
ser seguido pelo Mercado Comum do Sul. Daí a
99 Idem (grifo acrescido).
100 GÉNÉREUX, 2001, p. 105. 101 ENZENSBERGER, 1995, p. 93.

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importância do estudo da estrutura e do funcio- neoliberal a outro modelo preocupado mais com
namento da União Européia, sobretudo de seu um desenvolvimento social, durável e solidário.
direito comunitário gestado no seio dos tratados Nesse sentido, a globalização é um desafio para a
comunitários de Paris a Nice. Tais tratados, com- democracia.
prometidos com os valores da democracia, do
respeito aos direitos do homem e das liberdades CONCLUSÃO
fundamentais, são permanentemente interpreta- A globalização, essa fatalidade aparente,
dos pela Corte de Justiça da União Européia, exige cada vez mais, e de forma urgente, uma re-
guardiã do direito comunitário. No desempenho gulação coletiva. Como lembra Berranger, é na
dessa tarefa, como reza o artigo F, parágrafo 1.º, do esfera global que tudo se desenvolve atualmente:
Tratado de Amsterdã, de 1997, a Corte vela pela a moeda, a economia, o meio ambiente, a paz e a
manutenção dos elementos vitais indispensáveis guerra, a luta contra as drogas, a segurança cole-
ao desenvolvimento do processo de integração. tiva e mesmo o direito e a justiça.103 Desde 1967,
A União Européia deve estar aberta para o a Encíclica Populorum Progressio, declarava: “A
mundo, precisa ser uma referência às outras ex- questão social tornou-se mundial” e “o desenvol-
periências de integração, praticadas por outros vimento é o novo nome para a paz”.
Estados em outros continentes, e um fator de Atualmente a globalização aterroriza. Apa-
equilíbrio para um mundo em desequilíbrio des- rece menos como uma nova dimensão das ativi-
de o fim da Guerra Fria. Nesse particular, cabe dades humanas e mais como uma espécie de des-
lembrar que o Mercosul é diretamente inspirado graça imposta a todos. Para aqueles que a defen-
pela União Européia, seu mais importante parcei- dem de forma intransigente, trata-se uma etapa
ro comercial. Muito embora, escreve Dallari, obrigatória para se atingir o bem-estar da huma-
nidade. Na verdade, a globalização econômica, fi-
não se cogite constitucionalmente da
transferência de soberania para organiza-
nanceira e das comunicações, que varre fronteiras
ções supranacionais – como já se configu- e culturas, apresenta-se como um terrível desafio
ra no caso da Comunidade Européia –, o para a democracia e o futuro da humanidade.
parágrafo único do art. 4.° da Carta de Se a globalização for regida apenas pelas leis
1988 retoma, de maneira mais tímida, é do mercado, aplicadas segundo o interesse das
bem verdade, perspectiva expressa, por grandes potências, as conseqüências não poderão
exemplo, no art. 24 da Lei Fundamental ser positivas. Tais são, por exemplo, a atribuição
da República Federal da Alemanha, na de um valor absoluto à economia, trazendo con-
qual, entre suas disposições, se estabelece sigo o aumento do desemprego, a diminuição e a
que a Federação pode transferir direitos de
deterioração de certos serviços públicos, a des-
soberania para organizações supranacio-
nais.102
truição do meio ambiente e da natureza, o au-
mento das diferenças entre ricos e pobres e a
A Europa unificada deve aprender a repar- concorrência desleal e injusta colocando as
tir com os outros povos do sul e do leste, bem nações pobres numa situação de inferioridade
como dar mais importância ao gênero de vida do cada vez mais gritante.
que ao nível de vida de seus cidadãos, às qualida- A globalização não é nenhuma calamidade,
des das relações de reciprocidade, ao respeito à al- nem deve ser entendida como onipresente: será
teridade do que à acumulação de bens. Com a aquilo que determinarem os grupos humanos e
União Européia será possível, se assim desejarem seus representantes. Ao invés de exorcizá-la, me-
seus cidadãos, passar de um modelo que privile- lhor tentar humanizá-la, reforçando a solidarie-
gia um tipo de crescimento econômico, global e dade entre os povos, moralizando o mercado, re-

102 DALLARI, 1994, p. 185. 103 BERRANGER, 1999, p. 21.

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conhecendo toda pessoa humana na sua inaliená- Todavia, até agora, as autoridades brasileiras
vel dignidade. Nesse cenário, as novas realidades, não têm estimulado as respostas a esses desafios.
relações, instituições e estruturas, afirma Ianni, Um dos mais ilustres internacionalistas brasilei-
“não só econômicas, mas também sociais, políti- ros, Celso Duvivier de Albuquerque Mello, dire-
cas, culturais, religiosas, lingüísticas, demográfi- tor da Faculdade de Direito da UERJ, ao prefaciar
cas, geográficas e outras estabelecem condições e a 10.a edição de seu famoso Curso de Direito In-
possibilidades de novos intercâmbios, ordena- ternacional Público, em maio de 1994, critica o
mentos, estatutos”104 com base em um sistema desprezo com que essa disciplina é tratada em
jurídico preocupado com o estreitamento das re- nosso país, bem como a:
lações das instituições com a comunidade inter-
nacional. incongruência da política dos governos
brasileiros, neste caso em relação ao Di-
Os países mais fragilizados economica-
reito Internacional Público (DIP). Os Es-
mente devem, em nome das exigências do bem tados se internacionalizam e luta-se pela
comum, desenvolver mecanismos jurídicos para implantação do Mercosul, mas o DIP há
se defender da ação predatória dos capitais inter- mais de 20 anos não é disciplina obrigató-
nacionais especulativos, responsáveis por danos ria nos cursos jurídicos. Ele está morren-
consideráveis nas reservas cambiais de alguns países do e só tem alguns sobreviventes em S.
em desenvolvimento, vítimas preferenciais da ação Paulo, Brasília, Porto Alegre e Rio de Ja-
livre desses capitais voláteis. A ação da sociedade ci- neiro. Inúmeras Faculdades de Direito de
vil internacionalmente organizada deve prosse- Universidades Federais não o incluem no
guir sua ação de pressão legítima sobre seus go- currículo, ou o lecionam em apenas um
vernos, especialmente aqueles membros da semestre como disciplina eletiva (...). Por
União Européia, chamando a atenção para as suas favor, requeiro às nossas Autoridades da
responsabilidades internacionais, no sentido da área da Educação que comuniquem aos
demais governantes que não falem em
implementação de uma política de solidariedade,
processo de internacionalização da eco-
visando à melhoria das condições de vida, com
nomia ou do Estado, porque não consigo
mais justiça social, baseada no respeito universal explicar esta aparente contradição aos es-
dos direitos do homem e de liberdades individuais tudantes.105
e coletivas, fundamentais à vida democrática.
Deve ser encorajada a mudança de atitudes Felizmente, a Faculdade de Direito da Uni-
dos empreendedores em matéria econômica, so- versidade Metodista de Piracicaba, consciente da
cial e cultural, como também a modificação dos importância do direito internacional para a cons-
sistemas educativos e de formação engendrando trução de um moderno curso de direito, está con-
uma nova cultura capaz de recompensar a inicia- tribuindo, com a adoção do direito internacional
tiva e a criatividade dos indivíduos. Para respon- público e do direito da integração no seu rol de
der adequadamente aos desafios da globalização, disciplinas de graduação e pós-graduação, respec-
é necessário assegurar maior transparência do sis- tivamente, para a formação de profissionais mais
tema financeiro internacional, a abolição dos pa- críticos e detentores de instrumentos teórico-
raísos fiscais, a instituição, sob os auspícios das metodológicos pouco conhecidos do alunado na
Nações Unidas, de um conselho de segurança área jurídica. Somente com a valorização do en-
econômica e a proteção ativa dos ecossistemas. sino e da pesquisa na área, será possível a mudan-
Esses são alguns dos desafios no ensino do direi- ça de uma triste constatação: no Brasil, o interes-
to internacional público e do direito da integra- se pelo direito internacional é inversamente pro-
ção. porcional ao seu tamanho.

104 IANNI, 1996, p. 120. 105 MELLO, 2000, p. 25.

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Dados do autor
Pós-doutorado na Universidade de Paris, doutor
em história social (USP), mestre em direito
internacional (USP), bacharel em direito e em
história (USP) e professor do Programa de
Mestrado em Direito da UNIMEP.
Recebimento artigo: 27/jan./03
Aprovado: 24/fev./03

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Do Estado Nacional para


o Estado Global: o declínio
da democracia*
FROM THE NATIONAL-STATE TO THE GLOBAL
STATE, OR THE DECLINE OF DEMOCRACY
Resumo Este artigo busca criticar a tendência atual de se aceitar tacitamente a
globalização econômica como modelo de globalização política e jurídica, como se vê
em distintas propostas de substituição do conceito de Estado nacional pela idéia de
um Estado mundial. Tais propostas jogariam por terra muitos dos avanços das teorias
clássicas sobre o Estado nacional, a soberania do povo e as formas modernas de par-
ticipação democrática, como desenvolvidas na época do Esclarecimento europeu.
Para alertar contra os mal-entendidos e o perigo de retrocesso na aceitação simplista
da globalização, propõe-se aqui examinar a compreensão atual de democracia, apre-
sentando uma crítica a dois aspectos da discussão em vigor sobre o Estado global: a
tese segundo a qual uma política internacional somente seria possível em contraste
com a concepção de Estado nacional e a sugestão de que é necessário reconstruir a de-
mocracia segundo o modelo da economia global. INGEBORG MAUS
Universität Frankfurt am
Palavras-chave ESTADO (NACIONAL, MUNDIAL, GLOBAL) – SOBERANIA POPULAR Main, Alemanha
– DEMOCRACIA. maus@soz.uni-frankfurt.de

Abstract This essay aims at criticizing the present trend of tacitly accepting the
economic globalization as a model of political and juridical globalization. This
is currently seen in several proposals that replace the concept of National-State
for that of World-State. Such proposals would jeopardize many of the princi-
ples put forward by classical political theories concerning concepts such as the
National-State, the people’s sovereignty, and modern forms of political parti-
cipation that were developed during the European Enlightenment. To prevent
misunderstandings and the danger of retroceding to a simplistic acceptance of
globalization, this essay will examine the present understanding of democracy
by presenting a critique of two aspects of the discussion around the idea of a
Global-State: the thesis that international politics can only be possible in opposi-
tion to the concept of a National-State, and the suggestion to reconstruct demo-
cracy according to the model of global economy.
Keywords STATE (NATIONAL, WORLD, GLOBAL) – POPULAR SOVEREIGNTY –
DEMOCRACY.

* Tradução do alemão: Amós Nascimento. Revisão técnica: Dorothee Susanne Rüdiger.

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J
á se pode perceber um saliente contraste entre a presente
justificativa dominante para o desenvolvimento de dis-
tintos modelos de Estado mundial (ou fusões suprana-
cionais) e a recusa em se demonstrar a obsolescência do
Estado nacional democrático. Por um lado, aceita-se ge-
ralmente como fato consumado que a “globalização”,
tanto econômica como social, seja um acontecimento
real e existente (com suas conseqüências necessárias para
a institucionalização da política), e, no qual, o princípio
da soberania do Estado seria considerado simplesmente como um singelo
anacronismo. Por outro, afirma-se que a forma de organização do Estado
nacional impediria a solução de qualquer problema que extrapolasse as
fronteiras nacionais ou se referisse à situação global, já que essa forma
presumidamente divide o mundo em pequenas facções. Projetos filosó-
ficos apressam-se em justificar construções alternativas de um Estado
mundial para a sociedade global supostamente já estabelecida, embora es-
tudos empiricamente ricos sobre o tema da globalização não dêem qual-
quer base para a fundamentação desses argumentos.1
A discussão sobre o princípio da soberania isola quase que total-
mente o aspecto externo da soberania nacional e normalmente confunde
a soberania, quando de fato chega a tematizá-la, com o monopólio estatal
do poder – isto é, com questões relativas às tarefas executivas e adminis-
trativas de manutenção da segurança e da ordem.2 Nesse debate, deixa-
se de perceber que a soberania interna do Estado nacional democrático é
definida absolutamente, desde o início, por meio da função legislativa, e
nada mais significa do que a soberania do povo. Onde quer que a con-
trovérsia atual esbarre nesse princípio da soberania do povo, surgem fre-
qüentemente suspeitas que hoje em dia servem para subestimar a reivin-
dicação de participação democrática, de modo a fazer com que ela se dê
somente no nível dos mecanismos de decisão transnacionais. E, ainda por
cima, o debate atual dominante sobre a questão do Estado nacional de-
mocrático é limitada, mostrando certa ignorância fundamental sobre as
discussões clássicas nessa área.
Não raro, uma história do Estado nacional é construída de tal for-
ma que se projeta no Estado nacional do século XVIII tudo aquilo que le-
vou ao nacional-socialismo no século XX: um conceito exclusivo de povo
e um chauvinismo agressivo projetando como inferior tudo o que esteja
além das próprias fronteiras nacionais.3 É fácil mostrar que, desse modo,
projeta-se no conceito original do Estado nacional democrático uma série
de substancializações surgidas no curso do século XIX. Porém, de maior
importância ainda parecem ser os diagnósticos que, embora não cheguem

1 ZÜRN, 1998, p. 64ss e 77ss.


2 Até mesmo Franz Neumann comete esse mal-entendido – no contexto de sua reabilitação do conceito
de soberania. Cf. NEUMANN, 1967, p. 100-141 (em especial p. 121). Para a discussão atual, em vez de
se referir a muitos, cf. o verbete “Souveränität”, in: NOHLEN, 1995, p. 566ss.
3 GLOTZ, 1990.

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tanto a demonizar virtualmente o Estado nacio- política aberta. Nessa perspectiva, projetos de Es-
nal, alcançam a sutil explicação de que ele já seja tado global serão criticados, seguindo dois pas-
obsoleto. Tais diagnósticos são a razão para a atual sos: serão julgados com base em sua própria rei-
crítica à incapacidade do Estado de conectar ha- vindicação, de que: 1. uma política internacional
bilmente a presumida exclusividade de suas fron- somente seria possível em contraste com a con-
teiras com os condicionamentos de uma política cepção de Estado nacional; 2. é mister reconstruir
de abertura internacional – ainda que ocasional- a democracia segundo um modelo global.
mente se faça referência, nesse mesmo contexto,
às “novas fronteiras e à rearticulação dos limites” O ESTADO NACIONAL DEMOCRÁTICO E
(Neue Grenzen und Grenzziehungen) como con- O SIGNIFICADO DE SEUS LIMITES
seqüência do processo atual de desnacionaliza-
Quando se anuncia o “fim da democracia” é
ção.4
porque já se considera a época do Estado nacional
Se a discussão atual considera, de modo um como passado, embora esse dito de Jean-Marie
tanto simplista, que a questão da soberania do Guéhenno5 difira da discussão mainstream atual,
povo e do Estado nacional é algo anacrônico e pelo menos no que se refere ao reconhecimento
obsoleto, resta, então, a pergunta: Conhecemos público de que uma democracia ainda merecedo-
realmente os princípios aos quais se quer dar, nos ra desse nome já não pode ser organizada nos
dias de hoje, um adeus? Para responder a essa âmbitos supranacionais ou até mesmo em um Es-
questão, proponho seguir uma visão retrospecti- tado mundial. De qualquer maneira, existe acor-
va sobre o difícil e exigente conceito de democra- do total na identificação da característica princi-
cia relacionado ao Estado nacional. Sigo o obje- pal que fundamenta o aspecto antiquado do Es-
tivo de ativar o elemento da memória como re- tado nacional: o princípio de fronteiras rígidas
curso crítico de uma teoria social, já que nos en- entre Estados. Segundo essa argumentação, trata-
contramos em uma situação na qual há o perigo se de um princípio que estabelece o particularismo
de aceitar a “globalização” econômica como uma político por meio da demarcação territorial e se de-
abolição real e objetiva de formas institucionais, genera, na maioria das vezes, em um provincialis-
que deveriam ser presumidamente adaptadas de mo simples, que surge como alternativa ao proces-
modo rápido e automático. Tais figuras dominan- so de efetiva superação dos limites (Entgrenzung)
tes de argumentação vêem as formas de organi- das agendas políticas locais, processo esse que
zação política como pura reflexão da base econô- também se dá por meio da globalização do poder
mica e sugerem, com suspeita irônica, que os teo- econômico, da destruição do meio ambiente e
remas do marxismo vulgar teriam achado uma também pela movimentação migratória.
casa nova no Ocidente, depois do colapso do so-
Desde essa perspectiva atual de redes inter-
cialismo estatal e autoritário. Diante disso, cabe
nacionais de relações econômicas, o Estado nacio-
averiguar, a partir de uma perspectiva normativa,
nal democrático aparece, tanto em sua versão fe-
se as concepções atuais de “democracia” global
deralista como na centralista, como o resultado de
ainda podem se referir a esse conceito ou se não
uma época na qual “a dependência imediata da ter-
estariam subsumidas aos padrões uma vez conec-
ra e do solo [Abhängigkeit von Grund und Boden]
tados a esse princípio.
ainda determinava as relações sociais”.6 Desse
Esse olhar retrospectivo sobre os conceitos ponto de vista, a nação moderna seria definida
de soberania do povo e Estado nacional serve, por- como o “local” para a realização da história co-
tanto, mormente para examinar e entender a mum, o lugar em relação ao qual as fronteiras
compreensão atual de democracia, e, ao mesmo exatas e fechadas da área nacional se definem, ao
tempo, para fundamentar uma outra forma de
5 GUÉHENNO, 1996.
4 ZÜRN, 1998, p. 30. 6 Ibid., p. 36.

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passo que o Estado nacional é encarado como se territorial” (Gebietsherrschaft) como um aspec-
produto de uma “concepção espacial de poder” to dos direitos individuais.9 Kant, por sua vez,
determinada na época do enraizamento do povo isolou, sob o signo da soberania popular,10 preci-
na polis. Seria, assim, uma formação política ba- samente a perspectiva do povo de um Estado. A
seada na dominância do direito de propriedade perspicácia da formulação de Kant voltava-se contra
no sistema jurídico geral.7 Partindo-se dessa in- a prática dos Estados absolutistas contemporâneos,
terpretação do Estado nacional, é fácil demons- que, por meio das formas, anteriormente citadas,
trar seu necessário colapso em virtude da exten- de aquisição de uma área, tratavam os seres hu-
são atual da mobilidade das pessoas e da econo- manos em determinado território como meros
mia. Porém, esse diagnóstico apóia-se em uma in- apêndices do solo, podendo ser adquiridos ou
terpretação substancialista do Estado nacional – vendidos junto com o correspondente terreno.
que implica uma continuidade na concepção,
Ao identificar o Estado com o povo – “On-
oriunda do contexto medieval, da relação entre
de o Estado e o Povo forem vistos como duas
terra e poder.
personificações diferentes, existe despotismo”11
Apenas no sentido mais abstrato pode-se –, Kant sugere que a identidade nacional das pes-
ainda considerar que, no Estado moderno abso- soas socializadas não possa mais ser determinada
lutista, a pura expansão do território relaciona-se pelo território onde elas vivem. Na medida em
à determinação de fronteiras. Porém, a subs- que esse último elemento é considerado uma si-
tituição do princípio territorial pelo de associação
tuação acidental, constitui-se um novo momento
de pessoas é exatamente o que identifica a tran-
para a definição da identidade: a lei democrática,
sição para o Estado nacional democrático. Essa
que só pode ser imposta de forma legítima sobre
alteração nos preceitos que constituem o Estado
os cidadãos quando eles tenham participado an-
moderno é formulada com grande precisão no
teriormente do processo legislativo como prota-
escrito A Paz Perpétua, de Kant: “Nenhum Esta-
gonistas.
do autônomo (pequeno ou grande, pois isso vale
para todos) pode ser adquirido por outro Estado Já a construção do contrato social dá legi-
por meio de herança, troca, compra ou doação”, timação a um Estado moderno, que depende de
com a seguinte justificativa: “Um Estado não é um ato fictício de acordo jurídico entre as partes
(como o solo sobre o qual ele tem seu lugar) uma envolvidas, abstraindo-se, assim, de todas as
coisa a ser possuída (…). Ele é uma sociedade de condições já estabelecidas, de toda tradição ba-
pessoas”.8 seada na origem, de toda comunidade de destino
Ao contrário da visão de Kant, todas as (Schicksalsgemeinschaft), da homogeneidade cul-
doutrinas gerais sobre o Estado no fim do século tural, bem como de todas as hierarquias feudais
XIX, por exemplo, a de Georg Jellineks, conside- e sociais, além da dominação política existentes.
ram o território estatal, ao lado do povo de um Desse modo, libera-se – segundo o modelo de
Estado e da administração estatal, um dos “ele- organização de um contrato fictício entre par-
mentos” do Estado. Dessa forma, ao Estado é de tes livres e iguais – a estrutura de legislação de-
fato aplicada a característica de sua “situação ter- mocrática futura. Segundo a crítica feita desde
ritorial” (Sesshaftigkeit), mas, ainda assim (em Hegel até o comunitarismo atual, esse modelo
contraste com Guéhenno), para enfatizar a “pos- parece algo incompreensível por conta de suas
premissas serem “a-históricas” e “não socioló-
7 Ibid., p. 21ss e 37. gicas”.
8 KANT [1796], “Zum ewigen Frieden. Ein philosophischer Entwurf
(ZeF)”, in: ______, 1974, p. 196ss. Esse e outros dos escritos serão
9 JELLINEK, 1960, p. 394ss (especialmente p. 398ss).
citados segundo Werke, de Kant, na edição organizada por Wilhelm
Weischedel (Frankfurt, 1974ss), e os manuscritos do seu espólio (Der 10 Cf. MAUS, 1994.
Handschriftliche Nachlaß) serão mencionados de acordo com a edição 11 KANT [1795], “Vorarbeiten zum ewigen Frieden”, in: ______, AA,
da Akademie-Ausgabe (AA) (Berlim, 1900ss). 1900ss, v. XXIII, p. 193 (cf. nota 5).

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Essa dessubstancialização da nova identida- de tous les jours.13 Se, de fato – conforme a dife-
de do Estado nacional contém vários aspectos da renciação de Lyotard14 –, os Estados nacionais
superação de fronteiras (Entgrenzung). Uma vez democráticos já não manifestam suas identidades
que todos os conteúdos de uma integração polí- e origens com os relatos mitológicos (como o fa-
tica, por meio das abstrações desse novo modelo zem as comunidades tradicionais, que confirmam
de legitimação, são exauridos e substituídos por a peculiaridade concreta de seu grupo, olhando
procedimentos democráticos, nos quais os con- para trás e endossando sua proteção e existência)
tentos são decididos pelos vários juízos dos cida- – mas, ao contrário, declaram suas identidades
dãos, as fronteiras do Estado nacional tornam-se com base em relatos de “emancipação” ou de “fu-
nada mais do que o âmbito de validez da turo” (permitindo à nação apoiar-se em acordos
Constituição democrática e das leis instaladas normativos e democráticos) –, então, não há
pelo processo constitucional e democrático. Esse qualquer barreira para a participação de “estran-
tipo de fronteira é, desde o começo, pensado para geiros” integrados ao processo de construção da
ser superado. Nem a radicação territorial, nem a nação.
origem, nem o destino histórico, nem mesmo a Essa superação do espaço-tempo também
cultura de uma sociedade podem ser utilizados impregna a estrutura do direito no contexto do
para justificar a inclusão ou a exclusão em um Es- Estado nacional democrático. Existe uma estreita
tado nacional particular. relação entre o direito moderno, positivo, orien-
Tais fronteiras não constituem mais um ter- tado para o futuro, e a forma democrática de or-
ritório com pessoas residentes, conteúdos pré- ganização. Porém, o direito positivo não mantém
políticos ou valores culturais, mas são permeáveis sua legitimidade por corresponder a um princípio
para todos que reconhecem sua ordem jurídica e de Justiça de conteúdos tradicionais, mas por ba-
constitucional. Nesse sentido, a abertura mais ex- sear-se num procedimento justo por sua estrutu-
tensa das fronteiras manifesta-se quando se dá o ra, ou seja, democrático.15 Isso, entretanto, tam-
direito aos imigrantes de colaborarem na forma- bém significa o seguinte: o direito é válido não
ção do ordenamento jurídico nacional. Assim, a por ser antigo, habitual ou já testado, e sim por
Constituição francesa de 1793 oferece o direito não ter sido ainda alterado.
da cidadania ativa, implicando até mesmo o direi- Em primeiro lugar, essa positivação com-
to de voto democrático, dentro das leis da assem- pleta do direito é, ao mesmo tempo, a condição
bléia nacional, a cada estrangeiro residente por prévia para a compatibilização dos ordenamentos
um ano na França e, além disso, capaz de satisfa- jurídicos dos Estados nacionais particulares. A
zer as condições mínimas de subsistência (isto é, capacidade de aprendizagem observada no direito
viver com os recursos de seu próprio trabalho).12 moderno, como o visto no processo de mudan-
Esse último exemplo demonstra, de manei- ças permanentes na legislação, ultrapassa o hori-
ra bastante clara, que a superação do espaço tam- zonte de sociedades estáticas e reage aos proble-
bém está relacionada à superação do tempo. Li- mas provenientes da dinâmica rápida e crescente
berar o Estado nacional democrático do solo sig- de desenvolvimento dentro da sociedade. Assim,
nifica também a abertura para o futuro. Uma a capacidade de aprendizagem permite uma adap-
identidade única do Estado nacional democrático tação aos novos desafios surgidos em razão do
não existe, mas se estabelece novamente com aumento nas interações econômicas entre vários
cada ato da legislação democrática e por meio de Estados nacionais com suas respectivas ordens
discursos e discussões públicas (des öffentlichen jurídicas. Acima de tudo, no entanto, desenvolve-
Diskurses). A nação é, apenas e afinal, o plebiscite 13 RENAN, 1995, p. 57.
14 LYOTARD, 1990, p. 54-75, especialmente p. 62 e 65ss.
12 Constituição francesa de 1793: Ato constitucional, arts. 4.o, 7.o e 15 Sobre essa “reflexividade” da legitimação moderna, cf. HABER-
10.o, in: FRANZ, 1964, p. 379-381. MAS, 1976, p. 271-303 (em especial p. 278).

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se com isso um instrumento de aprendizagem legislador” e trata da Constituinte (Verfassungge-


pontual, dentro dos sistemas legais dos Estados ber),17 ao mesmo tempo fundadora do Estado ou
nacionais, consentindo que, com base em cada nação, já aparece claramente que a fundação de
caso de superação de fronteiras por sujeitos pri- uma nação não pode ocorrer por nada mais, se-
vados, se chegue à validez do direito estrangeiro não pelo consentimento dos indivíduos no pro-
dentro do próprio território. cesso de criação de uma legislação constitucional.
Já no esboço de um “direito cosmopolita” Ele refere-se a Lykurg e a Moisés como exemplos
(Weltbürgerrecht), proposto por Kant, trata-se do de figuras históricas fundamentais. Nos seus
efetivo problema do movimento das fronteiras “Fragmentos políticos”, encontra-se uma passa-
entre as ordens jurídicas de diferentes Estados gem que, além de considerar essa “legislação” o
nacionais. O “direito cosmopolita” de Kant não elemento constitutivo de uma associação de pes-
se coloca, como é freqüentemente mal-entendi- soas, estabelece uma dissociação total entre lei e
do, em contraste com o princípio do Estado na- território.
cional, e tampouco contém, como muitas vezes Para esse elemento iluminador, Rousseau
se considera, uma antecipação indireta da idéia de cita uns exemplos da lei judaica como protótipos
uma República mundial (Weltrepublik), não mais a todas as legislações. Após enfatizar a anulação
por ele favorecida. Na verdade, esse “direito cos- da territorialidade das pessoas e demonstrar a
mopolita” dita as regras a serem observadas quan- mistura de todas as raças até a impossibilidade de
do uma determinada ordem jurídica nacional diferenciação, indica o significado disso:
adentra o âmbito de validez de uma outra ordem.
Mas é realmente surpreendente e verda-
O “direito de visita” (Besuchsrecht) recí-
deiramente extraordinário ver um povo
proco como direito do respectivo “estrangeiro”
sem pátria, que durante 2 mil anos não
(Fremdlings) no “solo de outro” (Boden eines tem tido mais seu solo e sua pátria; um
Anderen)16 não leva ao desaparecimento das povo que, desde muito tempo, foi muti-
fronteiras do Estado nacional, mas, na verdade, lado, imposto e misturado com estrangei-
pressupõe a existência delas. O direito cosmopolita, ros; (...) e que, não obstante, protegeu
proposto por Kant, não define nenhuma ordem su- seus costumes, leis, tradições, patriotismo
pranacional, mas antecipa parcialmente o moder- e sua unidade social, mesmo com todas as
no direito internacional privado, que trabalha a condições antagônicas. Os judeus nos
simultaneidade de ordens jurídicas nacionais e o dão esse exemplo surpreendente. As leis
movimento internacional entre sujeitos de direi- de Solon, de Numa, de Lykurg já não
to privado, sob o ponto de vista dos conflitos le- existem, enquanto as leis ainda mais anti-
gas, atribuídas a Moisés, ainda vivem.
gais. Quanto à questão relativa a quais normas de
Atenas, Sparta e Roma pereceram e não
qual Estado envolvido seriam válidas em um caso deixaram nenhum filho sob a terra. As ruínas
jurídico específico, haveria de se pressupor desde de Sião não deixaram que seus filhos se
sempre a validez extraterritorial do direito. perdessem. Eles sobrevivem, multipli-
Para um autor bastante adverso aos princí- cam-se, estendem-se por toda a parte. Re-
pios do tráfico internacional de mercadorias, e conhecem-se mutuamente, misturam-se
para quem as infrações de fronteira por razões com todos os outros povos, mas nunca
não-econômicas possuíam pouca importância, são totalmente dissolvidos. Não têm ne-
isto é, para Rousseau, o mito da dependência do nhum líder e sempre permanecem um po-
solo ou território deveria ser destruído, como, de 17 ROUSSEAU, 1977. O conceito de Constituição, no sentido de lei
fato, ele o fez radicalmente. Precisamente no ca- constitucional, surge inicialmente no contexto dos processos constituin-
pítulo do Contrato Social, que leva o título “Do tes americano e francês, na década de 1780, ganhando depois uso cor-
rente (cf. LUHMANN, 1990, p. 179). Portanto, o conceito de
Constituinte (Verfassunggeber) ainda não era disponível na época de
16 KANT [1796], “ZeF”, in: ______, 1974, p. 213. Rousseau.

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vo; não têm nenhuma pátria e são sempre constituintes lhes dá a base de legitimidade, tal
cidadãos. Quanta força deve ter uma le- como se via desde a época da República de Wei-
gislação para ser capaz de tal milagre.18 mar. Carl Schmitt mobiliza, desde 1914,23 “o que
é próprio ao solo” (Bodenständiges), e indisponí-
É esse “milagre extraordinário” que se deve
vel substancialmente, para assim fazer frente ao
preferir por sobre “todos os sistemas de legisla-
decisionismo positivista do processo legislativo
ção conhecidos”, a despeito “de tudo o que a
(Gesetzgebung), confiando as decisões sobre o
Grécia e Roma nos ofereceram como admirável
que é indisponível ao Executivo. Quando esse
em instituições políticas e humanas”.19
autor joga o nomos ligado ao solo contra a “lei”
Trata-se aqui da mais enfática expressão de
abstrata, o “espaço”, o “solo” e a “pátria” são
simpatia por um princípio que, ao mesmo tempo,
sempre vistos simultaneamente como metáforas
significa a estrutura mais íntima do direito mo-
para o que é estabelecido como pertinente ao
derno: a não restrição à mobilidade social. Pode-
solo em sentido mais amplo: as estruturas e
se encontrar a identificação do mesmo princípio
instituições sociais instituídas, devendo ser pro-
em Marx, com as devidas reservas anticapitalistas,
tegidas em seus mecanismos internos, contra as
e também em uma expressão anti-semita em Carl
inovações legais. Baseadas fundamentalmente na
Schmitt. Quando Marx se refere à “nacionalidade
regra da maioria, tais inovações poderiam levar,
quimérica” e à “lei sem solo e sem base dos ju-
em determinadas circunstâncias, à transformação
deus”20 – dentro de um contexto no qual “o ju-
legal do sistema vigente em um sistema socialista.
daísmo” não corresponde aos estereótipos de um
Mesmo quando Carl Schmitt aparece como
grupo social, mas à metáfora do caráter capitalista
advogado do espaço,24 no sentido concreto do ter-
da sociedade civil como um todo –, utiliza essa
mo, como quando joga a visão mundial dos que
formulação com a intenção de relacionar o nacio-
“pisam a terra” (Landtreter) contra a mobilidade
nalismo e a estrutura jurídica do capitalismo inci-
dos povos do mar (Seevölker), ou defende o “no-
piente ao conceito de desfronteirização (Entgren-
mos da terra” (Nomos der Erde) como uma forma
zung) territorial. Essa noção mostrou-se útil para
beligerante de divisão do mundo em territórios,
a mobilidade do capital. Como linhas divisórias
em oposição à globalização de conflitos,25 ainda
relevantes para o direito moderno, Marx define
assim inclui virtualmente nisso a dimensão de
somente as que estabelecem os limites entre a
proteção (Absicherung) contra a superação de
vida pública e a privada, assim como aquelas que
fronteiras temporais (zeitliche Entgrenzung). Tal
definem as barreiras entre as esferas de livre arbí-
dimensão é colocada em movimento, junto com
trio dos “indivíduos limitados”.21
a mobilização do próprio processo constituinte,
No caso de Carl Schmitt, a questão da “lei por meio de uma mudança permanente da legis-
sem solo e sem base dos judeus”22 surge depois lação (Änderungsgesetzgebung) segundo valores
de 1933, e de um outro modo pejorativo. Aqui se não disponibilizados e com base em um “direito
condensa, em um momento bastante oportuno, superior” não definido, que surge de modo orgâ-
um ataque contra os defensores judeus do posi- nico com base nas estruturas sociais de poder.
tivismo jurídico, algo que motivou, desde o iní- Em nome dos “ordenamentos concretos”,26 Carl
cio, a intenção da teoria de Carl Schmitt: a luta Schmitt aparece como o profeta precoce do pro-
contra as abstrações de um sistema de legalidade, cesso vigente, no qual se dá uma extensa
cuja correção formal se baseava no princípio se- desregulação legal. Portanto, quando ele ataca a
gundo o qual a gênese democrática das decisões
23 Idem, 1914.
18 ROUSSEAU, 1995, p. 230ss. 24 Sobre esse último, cf. SCHMITT, 1958a, p. 263-350, em especial p.
19 Ibid., p. 230ss. 268 e 300ss, e 1958b, p. 181-231, particularmente p. 108ss), além de
20 MARX, 1974, p. 375. 1957, p. 30ss e 35ss.
21 Ibid., p. 364. 25 SCHMITT, 1942 e 1950.
22 SCHMITT, 1982, p. 110. 26 Idem, 1934.

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“lei sem solo e sem base dos judeus” depois de chaftliche “Vergrößrungsvorgänge”), pelos quais o
1933, acusa-se maldosamente um grupo social – “nível individualista da organização capitalista é
invertendo, assim, a análise de Marx –, pelo que o superado”.30 Embora tenha subordinado a “rela-
próprio Carl Schmitt já havia reconhecido e de- cionalidade com o Estado” (Staatsbezogenheit),
nunciado há muito tempo como o caráter formal própria do direito internacional clássico, à espa-
do direito burguês moderno. Foi Carl Schmitt cialidade mínima (Kleinräumigkeit) do pensa-
quem trouxe à tona o caráter “telúrico” dos guer- mento característico da classe pequeno-burguesa,
reiros prussianos, em oposição ao legalismo des- ele também reconheceu que a base para a nova
territorializado27 trazido pelos defensores da Re- organização política de uma ordem espacial além
volução Francesa para solo alemão. de povos e Estados dava-se com o desempenho
Há, ao mesmo tempo, uma relação de Carl da grande indústria moderna e sua expansão eco-
Schmitt com as fronteiras estatais concretas do nômica sobre vários territórios por meio de
Estado nacional exatamente oposta ao que se via inovações técnicas.
em Kant. Observando essa oposição, pode-se, Indica-se expressamente, nesse contexto,
ademais, extrair o que se deve pensar sobre a de- “a obsolescência do pensamento da soberania
monização atual do Estado nacional. Quando territorial”, ao sugerir a superação de espaços li-
Carl Schmitt determinou, em 1963, de maneira mitados por meio da técnica.31 Assim como na
lapidar, “a época do ser estatal (Staatlichkeit) che- discussão atual, a falsa concepção de uma territo-
ga agora ao seu fim”, já havia preparado tal afirma- rialidade opaca ser a principal característica do
ção em 1932, quando estabeleceu a diferenciação Estado nacional serve para induzir à idéia de que
entre os conceitos de estatal e político,28 e, acima esse Estado é incompatível com os novos desen-
de tudo, em 1939, ao elaborar seu antimodelo ao volvimentos sociais, de tal modo que é então des-
Estado nacional, defendendo a idéia de ampliação qualificado como um modo obsoleto de integra-
de espaço (Großraum).29 Longe de ser um nível ção política. Acima de tudo, porém, vê-se que,
prévio da concepção nacional-socialista de espa- em ambas as argumentações, ocorre um reducio-
ço, a idéia de Estado nacional foi, na verdade, eli- nismo econômico, tratando a forma de organiza-
minada justamente no momento em que essa ção política simplesmente como “superstrutura”
noção de espaço além das fronteiras entrou em (Überbau) do correspondente nível de desenvol-
ação. A nova “ordem espacial” caracterizou-se vimento das relações de produção. Destarte, Carl
pela peculiaridade de que, de fato, abria os espa- Schmitt defendeu uma versão “de direita” da teoria
ços territoriais nacionais para fins de sua conquis- do reflexo da situação social, própria do marxis-
ta hegemônica, mas, ao mesmo tempo, impunha mo vulgar – tanto que depois se viu forçado a dar
novamente a perspectiva do espaço. uma explicação se era marxista ou não.32
O juízo expresso por Carl Schmitt, em Isso se aplica ao caso de Schmitt, quando se
1939, quanto à obsolescência do Estado nacional é trata de argumentar a obsolescência do parlamen-
inequívoco, e argumentos similares aos seus en- tarismo em vista da transição histórica do capita-
contram-se hoje em dia – o que infelizmente deve lismo liberal competitivo para o capitalismo “or-
ser dito – em evidência na discussão mainstream ganizado”, por meio da concentração econômica
sobre o tema. Quando Carl Schmitt exigia, já na- e da susceptibilidade a crises, isto é, da necessida-
quela época, uma nova “ordem espacial que supe- de situacional de controlar demandas do próprio
rasse o mero pensamento de um Estado nacional do
século XIX”, isso ocorre segundo a perspectiva de 30 Ibid., p. 311 e 314.
“processos de amplificação” econômicos (wirts- 31 Ibid., p. 51 e 310ss.
32 Espresso, 11/nov./1979, p. 175. Na publicação das cartas – então atuais
– de Carl Schmitt a seus destinatários italianos, encontra-se a seguinte
27 Idem, 1963b, p. 11ss e 45ss. passagem: “Io sono marxista in quanto ho portato alla loro conclusione
28 Idem, 1963a, p. 10 (na edição de 1932, p. 20ss). politica i concetti economici del marxismo”. Sua diferença com o mar-
29 Idem, 1941. xismo é explicitada com relação à categoria de mais-valia (Mehrwert).

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capitalismo.33 Esse último elemento permanece de visita” (Besuchsrecht), e não um “direito de es-
encoberto nos projetos atuais de transformação tada” (Gastrecht).34
do Estado nacional, por meio da criação de uma Na perspectiva atual, e à primeira vista, essa
ordem supranacional, e, nesses projetos, a sobe- diferenciação bastante estranha a insistir que “a
rania do povo é demonizada ou o princípio de autoridade dos que chegam do estrangeiro não
controle democrático das ações do Executivo é pode ser aplicada mais além do que às condições
substituído sorrateiramente pela crítica da opi- da possibilidade da tentativa de um intercâmbio
nião pública – cuja forma de raciocínio não é, ne- com os habitantes do lugar”35 é admitidamente di-
cessariamente, politicamente conseqüente. Nesse rigida de modo mui concreto contra as invasões de
momento, ocorre, então, de maneira tácita, uma fronteira com interesses hegemônicos, como no
óbvia congruência entre as duas linhas de caso do terror da ação dos colonizadores ociden-
argumentação, referente à idéia da inadequação tais, que Kant tinha em mente. A maneira como
econômica do Estado nacional. A discussão atual, eles levaram a “opressão aos nativos” implicava a
que não apenas acredita piamente na palavra de tomada de suas terras. Nas palavras de Kant: “A
ordem da globalização econômica, mas também a América, as terras dos negros, as ilhas com espe-
trata como algo objetivo, sobre o qual não se tem ciarias, os cabos etc. eram terras que a ninguém
responsabilidade política, devendo resultar na pertenciam, quando foram descobertas; pois os
correspondente transição a um Estado político seus habitantes não tinham nenhum valor”.36 So-
global como única possibilidade em uma situação mente dessa perspectiva defensiva de repúdio às
sem alternativas, é coerente com a teoria do re- invasões hegemônicas e tomadas de terra torna-
flexo da condição social e com o “realismo herói- se relevante a questão do direito à terra. É o di-
co” da Revolução Conservadora. reito do primeiro proprietário,37 no sentido de
Enquanto as ideologias de “ampliação do es- um direito de defesa contra a agressão exterior. No
paço”, sobretudo em sua versão nacional-socialis- entanto, esse direito não defende simplesmente,
ta, buscam a superação ou a invasão das fronteiras como aparece nas implementações feitas nele por
para fins hegemônicos – fazendo com que os po- Kant, a integridade do território per se, mas consi-
vos das nações dominadas transformem-se em dera esse último como condição prévia para a li-
escravos a serviço de um novo “Reich” que reúna berdade e a autodeterminação de seus habitantes.
terras antes perdidas, portanto, novamente trata- Os conceitos atuais de um Estado mundial
dos como meros apêndices dos territórios con- não somente compartilham o esquematismo da
quistados e, assim, subordinados à opressão de base-superstrutura, tomado por Carl Schmitt,
uma nova dominação territorial –, Kant fala oca- em sua fundamentação da ordem espacial de
sionalmente do solo e de suas fronteiras com um 1939. Eles também aceitam – segundo uma ana-
outro sentido, mais defensivo. Já na construção logia formal – a dominância da perspectiva espa-
do direito cosmopolita, ele tinha se referido vee- cial, pelo menos no que diz respeito à necessida-
mentemente aos problemas originados com a de de se expandir globalmente a função do Esta-
chegada de um “estrangeiro” ao “solo de outro”. do como conseqüência natural da expansão glo-
A certificação dada por Kant ao princípio origi- bal da economia. Em Kant vê-se, pelo contrário,
nal, segundo o qual “ninguém em um lugar da o espaço territorial meramente como um meio
terra tem mais direitos do que o outro”, justifica-
se – como já foi dito – não em uma superação 34 KANT [1796], “ZeF”, in: ______, 1974, p. 213ss.
global de todas as fronteiras, mas – o que é mais 35
36
Ibid., p. 214.
Ibid., p. 214ss.
importante! – em uma permeabilidade muito 37 Idem [1797], “Die Metaphysik der Sitten (MdS)”, in: ______, 1974,

específica delas, as quais concedem um “direito p. 377. Cf. também as definições gerais de Kant (p. 359ss e 376) em
contraste com a justificativa de John Locke à propriedade obtida por
meio do trabalho, idéia essa que dá margem à questão do colonialismo,
33 SCHMITT, 1969, p. 77ss, e 1958a, pp. 319ss e 335. ao qual Kant se opunha.

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para o propósito maior de garantir a soberania do Estado em particular é a condição de possibilida-


povo. Além da questão da tomada global de terra, de para a soberania do povo.40
com vistas a um monopólio ilimitado de poder e Essa argumentação de Kant dirige-se tam-
força, os conceitos atuais de Estado mundial tra- bém contra a formação de uma unidade suprana-
tam apenas dos catálogos de tarefas para um Es- cional de caráter regional, em que a soberania dos
tado global, que somente poderiam ser levadas a Estados nacionais desapareça. Assim, Kant chega
cabo, de modo eficiente, se fossem aplicadas glo- a pensar “a Europa inteira” como uma confedera-
balmente. Para a teoria de Kant, a prioridade ção assumindo funções de arbitragem em casos
máxima era dada à estrutura de auto-organização de disputas internacionais entre Estados, “não
democrática, na qual se deve decidir, em primeiro [porém] como uma união que (tal qual se vê nos
lugar, que tarefas serão cumpridas pelo Estado. estados americanos) se baseie em uma constitui-
Assim, as considerações de Kant, quanto ao ção estabelecida”.41 Os argumentos de Kant são,
tamanho apropriado dos Estados, também são portanto, análogos aos dos antifederalistas ame-
vistas exclusivamente do ponto de vista da com- ricanos. A defesa desses últimos da confederação
patibilidade da expansão territorial com a demo- americana baseia-se sobretudo na democracia de
cracia. Assim como era comum no século XIX, base, fundamentada nos artigos da Confederação
também é válido para Kant que a liberdade, a de 1777 e colocada em oposição ao estabeleci-
autodeterminação e a soberania do povo somente mento de um Estado unitário, tal como proposto
podem ser bem organizadas em espaços limita- na Constituição da União de 1787. Tais argumen-
dos. Como se sabe, tanto Montesquieu (embora tos foram utilizados contra as opções dos fede-
ele assim o faça não em nome da democracia, mas ralistas, finalmente vencedores, que implicavam
sim da liberdade aos súdidos, contra os caprichos maior concentração das competências políticas
do poder estatal) como Rousseau e Kant, bem na autoridade de um Estado geral.
como os antifederalistas americanos advertem da
O argumento apresentado pelos antifedera-
imposição de um inevitável despotismo, próprio
listas referiu-se ao problema do “tamanho despro-
de “Estados muito grandes” – contexto em que
porcional” da União: somente nos pequenos esta-
se toma freqüentemente o exemplo da China.
dos particulares, as decisões políticas ainda pode-
No escrito de Kant A Paz Perpétua, a recusa riam ser acompanhadas pelo povo, ao passo que a
de um Estado mundial em favor de uma Liga dos pura expansão da União faria com que o controle
Povos (Völkerbund) baseia-se, em grande parte, democrático eficiente se tornasse impossível. Des-
nessa perspectiva. O forte veredicto de Kant não
sa maneira, os antifederalistas defenderam a sobe-
visa necessariamente à crítica a uma estrutura
rania dos estados particulares, e alguns desses es-
específica do Estado mundial – como se vê na sua
tados – a Pennsylvania, por exemplo – tiveram suas
identificação pejorativa da República mundial
próprias constituições em bases altamente demo-
com a Monarquia mundial38 –, mas se opõe ao ta-
cráticas. O forte republicanismo de Kant, que pre-
manho dessa estrutura como tal. Quanto maior o
tendia a submissão completa do monopólio de po-
Estado, mais eficiente deve ser o Executivo, já di-
der e a subjugação de todos os aparatos de Estado
zia Rousseau,39 até o ponto em que o Estado al-
sob a legislação do povo, teve de levar em conta e
cança tal nível de crescimento, que não pode ser
concordar objetivamente com esses argumentos
controlado nem pelo Executivo, nem pelo Legis-
críticos à idéia da união.
lativo e nem mesmo pela base social. Por essa ra-
zão, Kant defende uma Liga dos Povos (Völker- A arrogância das gerações posteriores acre-
bund), na qual a soberania indisputável de cada dita poder dispensar a organização da democracia
em espaços menores, defendendo, para isso, que
38 Idem [1793], “Gemeinspruch”, e [1796] “ZeF”, in: ______, 1974, p.
169 e 225, respectivamente. 40 KANT [1796], “ZeF”, in: ______, 1974, p. 209-211.
39 ROUSSEAU, 1959. 41 Idem [1797], “MdS”, in: ______, 1974, p. 475.

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a tecnologia de comunicação global atualmente líticas se submeterem ao controle da vontade po-


disponível pode ser adotada também para a for- pular, os problemas de uma organização global da
mação de processos democráticos. Mesmo que democracia são insolúveis.
aqui não se fale ainda da participação democrática
nos processos legislativos e constituintes, pode- SOBERANIA DO ESTADO COMO
se, mesmo assim, considerar esse argumento inó- SOBERANIA DAS PESSOAS E O DILEMA
cuo, quando confrontado com formas clássicas DE DEMOCRACIA GLOBAL
de protesto, nas quais a base social busca exercer Há pelo menos três aspectos a considerar
a sua influência sobre os representantes, no nível com relação aos problemas da democracia global.
do Estado nacional. Essa questão diz respeito ao 1. Já as primeiras antecipações de um monopólio
sentido e à possibilidade de se exercer o direito de do poder global para fazer prevalecer, de forma
petição ou o direito de demonstração perante um homogênea, os padrões para os direitos humanos
Parlamento mundial. Em ambos os casos, trata-se e para a democracia nos Estados nacionais desse
do direito de impor informações aos represen- mundo – como se apresentam, por exemplo, nas
tantes (mesmo se o uso de tais informações esti- sugestões para a reforma da ONU e nas denomi-
ver nas mãos das elites que exercem funções po- nadas “intervenções humanitárias” (justamente
líticas). sob amparo da ONU) já praticadas – não deixa-
As enormes listas de abaixo-assinados ou ram critérios para essa homogeneização, nem re-
os grandes protestos de massa nas ruas têm, de conheceram a interdependência entre direitos
algum modo, a chance de colocar um tema polí- humanos e democracia. 2. Sugestões para a cons-
tico na ordem do dia. Porém, não parece de todo trução de um Estado global violam princípios ele-
modo tão óbvio que o caráter necessário desse mentares da democracia constitucionalmente or-
processo de transmissão de informação ao públi- ganizada, por tentar adaptar o modelo democráti-
co possa ser incorporado no caso de um Parla- co à hipercomplexidade da sociedade mundial. 3.
mento mundial: enquanto as mensagens eletrô- O problema mais difícil para o projeto de um Es-
nicas entopem os gabinetes de representantes tado mundial, mesmo quando uma reconstrução
parlamentares dos Estados nacionais, as notícias da democracia pudesse ser alcançada, consistiria na
eletrônicas enviadas por um Parlamento mundial questão da sua execução, em virtude da heteroge-
são mais facilmente ignoradas – sem falar da so- neidade efetiva dos atuais Estados existentes, en-
brecarga de informação, que tornaria um direito tre os quais a democracia liberal é minoritária. O
de petição global impossível em si mesmo. No conceito do Estado global sem defeito seria, na ver-
momento em que as democracias dos Estados dade, um programa de guerra mundial – pelo me-
nacionais (conscientes da dimensão territorial li- nos quanto à sua realização de acordo com as
mitada) discutem a anulação de medidas em seus condições dadas.
parlamentos, os eleitos ao Parlamento mundial 1. Que a soberania do Estado nacional deve
poderiam fazer uma demonstração em massa de ser defendida como meio para o propósito da so-
suas antípodas por meio da televisão, trazendo berania do povo é uma premissa também identi-
essa informação ao público. Mas também nesse ficada nas considerações de Kant sobre os Esta-
caso, os deputados eleitos, e não a base social que dos que ainda se encontram longe de uma orga-
os elegeu, seriam a instância de decisão sobre a nização democrática. Aqui, especialmente, vale o
necessidade de anunciar uma devida informação. postulado democrático e conseqüente de Kant, se-
No entanto, quando se trata daquilo que Her- gundo o qual nem mesmo a democracia pode ser
mann Heller define como democracia,42 segundo introduzida contra a vontade do povo.43 A teoria
a qual existe uma obrigação legal de as elites po- de Kant sobre processos autônomos de auto-es-

42 HELLER, 1971, v. 2, p. 96 e 98. 43 Idem [1797], “MdS”, in: ______, 1974, p. 463.

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clarecimento social une-se ao princípio de uma Na Carta da ONU foi declarada a “igualda-
evolução constitucional, em conseqüência da de soberana de todos os seus membros” como o
qual, “porém, qualquer constituição legal, mesmo princípio fundamental dessa organização, consi-
sendo legítima somente em medida reduzida [is- derando a integridade territorial ou a indepen-
to é, republicana], é melhor que nenhuma”,44 dência política de um Estado o único bem de-
pois só no interior de uma “constituição enquan- fensável, no qual, em seu favor, sanções militares
to tal” (Verfassung überhaupt) pode ser alcançada poderiam ser envolvidas em defesa contra a amea-
uma constituição republicana. ça ou ruptura da paz mundial e da segurança in-
Esses pontos de vista, em seu conjunto, ternacional. Por outro lado, a autorização da
justificam o veredicto rígido de Kant contra cada ONU para intervir em questões relativas a “assun-
intervenção militar dentro dos assuntos internos tos que por sua natureza pertencem à responsa-
de um Estado. A exigência de que “nenhum Es- bilidade interna de um Estado” é expressamente
tado deveria interferir violentamente na consti- negada.46 A lógica dessa construção significa que
tuição e no governo de outro Estado”45 não se “o respeito aos direitos humanos” deve ser pro-
restringe ao grau já alcançado de qualidade repu- movido dentro do quadro desses princípios de
blicana dessa constituição e organização governa- paz democrática,47 e não forçado.
mental, mas implica o respeito perante a integri- Porém, o pequeno intervalo de algumas dé-
dade de qualquer Estado constitucional à luz do cadas não protegeu essa carta da tendência opos-
potencial nele implícito. Tal potencial se dá por ta: de uma ordem de intervenção e guerra. O sim-
meio da passagem por processos de aprendiza- ples fato de que as resoluções do Conselho de Se-
gem e ações autônomas dos cidadãos, visando a gurança da ONU redefinem a crescente violação
alcançar uma Constituição republicana no futu- interna dos direitos humanos, em ameaça à paz
ro. Ao reconhecer os distintos caminhos para de- mundial e à segurança internacional, foi suficien-
senvolvimentos sociais específicos, Kant baseia- te para que a atual doutrina do direito internacio-
se nas condições da viabilidade de soberania do nal público constatasse, com base nas práticas
povo. existentes, uma norma já em vigor: o “direito” da
intervenção humanitária.48 De modo correspon-
A prática atual mostra-se contrária a essa dente, as sugestões atuais para a reforma da ONU
concepção. Ela se caracteriza por intervenções levam à alegada contradição entre a Declaração
militares globais, as quais estão construindo, de dos Direitos Humanos e a garantia do princípio
fato, um monopólio militar global, incluindo de soberania mediante a eliminação desse último,
também uma nova interpretação legal da Carta da além da reforma das estruturas de decisão dessa
ONU, com o fim de validar a destruição de todas organização no sentido de construir sua disposi-
as realizações da democracia e do direito. O do- ção mais eficiente para a intervenção.49
cumento legal dessa carta contém ainda, de forma Sem entrar na relação complexa entre ques-
positiva, todos os princípios essenciais da teoria tões de direitos humanos, soberania do povo e
da soberania democrática e a filosofia de paz de paz,50 cabe aqui ao menos insistir no fato de que
Kant. A Carta da ONU foi traçada após a 2.ª o direito à autodeterminação pode ser violado
Guerra Mundial, como uma ordem de paz, em por intervenções militares de cidadãos persuadi-
resposta às transgressões de fronteiras do sistema
nacional-socialista com propósitos hegemônicos 46 Carta das Nações Unidas, 26/jun./1945, arts. 2.o (§s 1 e 4), 39, 42 e
– elas destruíram, juntamente com a integridade 2.o (§ 7).
47 Ibid., art. 1.o, § 2.
nacional das terras invadidas, a autonomia políti- 48 Cf., por exemplo, GREENWOOD, 1998, p. 15-36 (em especial p.

ca dos cidadãos afetados. 19 e 33).


49 MENZEL, 1998, p. 259ss. Cf. também SENGHAAS, 2000, p. 99-
114. Um tanto cético quanto à possibilidade de se estabelecer a paz por
44 Idem [1796], “ZeF”, in: ______, 1974, p. 234 (nota de rodapé). meio da força é CZEMPIEL, 1994, p. 68ss e 185.
45 Ibid., p. 199. 50 Cf. MAUS, 1999, p. 276-292.

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dos, quando eles concordam com a interpretação 2. No princípio da soberania do povo repe-
de direitos humanos dos poderes intervenientes. te-se o atual processo de projeção. Certas formas
Se existe, num caso concreto, outra compreensão de substancialização lhe são impostas, as quais
de direitos humanos, a “intervenção humanitária” definem um vetor de desenvolvimento fáctico em
torna-se nada mais que uma infração hegemônica direção à globalização. Na esfera dos conceitos
e temporária de fronteira. Em ambas as situações, teóricos do Estado global, a interpretação demoni-
civis são novamente considerados – e de maneira zante do princípio da soberania do povo possui
bastante perturbadora – apêndices de territórios precisamente a função de dar um adeus a um
cujos campos são marcados para ser bombardea- princípio que não pode mais ser incluído no nível
dos. do Estado global. No que diz respeito ao primei-
A tendência simultânea de um crescente na- ro componente desse conceito, acusado hoje em
cionalismo étnico com direito à segregação e de dia de privilegiar o “popular” ou “étnico”
uma nova demarcação territorial, em que a (Völkisches), pode-se ler, num pequeno exemplo
“autodeterminação do povo” – compreendida por da discussão atual sobre a substituição do termo
Kant e garantida na Carta51 – transforma o direito povo (Volk) por habitantes ou população (Be-
de autonomia democrática em direito de identida- völkerung),52 que a conceituação de uma exigente
de pré-política, inclui ainda outra substancializa- teoria da democracia não parece mais estar dispo-
ção. Já que a vontade ocidental, especialmente ale- nível à consciência contemporânea. Isso demons-
mã, é recompensar o nacionalismo extremista da tra, ao mesmo tempo, que o abuso nacional-so-
Croácia com um Estado autônomo, pode-se dei- cialista desse termo acabou efetivamente vitorio-
xar entrever claramente que o conceito atual de Es- so. O alegado avanço dessa alteração proposta
tado nacional reduz-se precisamente ao elemento consiste, na realidade, em traduzir um conceito
altamente abstrato e com implicações jurídico-
que lhe dá, conforme o discurso globalizante ofi-
políticas como o de povo (Volk) em uma dimen-
cial, justamente um caráter demoníaco.
são pré-política.
Ocorreu uma ruptura com a civilização oci-
Ainda que a concepção de povo tivesse um
dental, a partir do reconhecimento da segregação
sentido exclusivamente constitucional na teoria
na Croácia, cuja retórica étnica regressou de for-
da democracia própria do período do Esclareci-
ma múltipla para a simbologia de Ustascha, le-
mento europeu, uma vez que identificava a co-
vando a uma reação em cadeia de desintegração
munidade étnica (Volksgemeinschaft) e a comuni-
do Estado nacional multicultural da Iugoslávia e
dade jurídica (Rechtsgemeinschaft) – isto é, não
formando comunidades etnonacionalistas. Ne-
somente a comunidade de origem e solo comum,
gligenciando a existência de um programa gigan-
como também aquela que transcendia as conota-
tesco, criado nesse caso para a obtenção de tra-
ções sociológicas e, mais além delas, caracterizava
balho para as “intervenções humanitárias” no
o ato jurídico de estabelecimento (Herstellung) de
processo sangrento de designar novas fronteiras,
um povo,53 ao mesmo tempo em que se dava a
pode-se concluir o seguinte: a acusação dirigida
constituição da soberania democrática54 –, con-
ao Estado nacional democrático, de basear-se nos
clui-se que um aspecto lhe era bastante claro: so-
princípios obsoletos de espaço e povos exclusi-
mente quando a população ganhava o status de
vos, recai sobre os conceitos atuais em cujo nome
se pronuncia. A globalização política já conduz 52 Cf. o jornal Frankfurter Rundschau, de 25/fev./2000, sobre a instala-

exatamente, desde o seu início, à substancializa- ção de Hans Haackes para o novo parlamento alemão, o Berliner Rei-
chtagsgebäude.
ção daquilo que pretende evitar: a dominância do 53 ROUSSEAU, 1959, p. 5; e KANT, “Reflexionen” 7.769, in: ______,

espaço e da etnicidade. 1900ss, v. XIX, p. 511.


54 Segundo Rousseau, em uma comunidade não apoiada na soberania
do povo, não existe nenhum “povo”, mas somente uma reunião de
51 Carta das Nações Unidas, art. 1.o, § 2. escravos submissos a um senhor. Cf. ROUSSEAU, 1959, v. I, p. 5.

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“povo” (Volk) é que se incluía a dimensão da ati- correção mútua. É exatamente essa realização da
vidade política. democracia moderna – essa conexão de opostos
Contrárias a essa acepção, as contribuições não divisíveis da soberania (legislativa) e a divi-
atuais ao entendimento do moto “o povo, o so- são rígida e estrita de poder entre a determina-
berano”,55 ou seja, as discussões dedicadas a tratar ção da lei (Rechtssetzung) e a execução da lei
uma categoria do direito constitucional limitam- (Rechtsdurchsetzung)59 – que as concepções atuais
se a fazer comentários (impressionistas) à ques- de Estado global deixam para trás, mesmo sem
tão da população, por identificar o “povo” a vá- oferecer nenhuma função equivalente para o
rias alternativas: confundindo o termo com des- processo positivo que ora se perde.
privilegiados sociais, massa a flutuar livremente, Ao criticar os conceitos de Estado global
proletariado, membros de um grupo de lazer ou com base na soberania do povo, como farei a se-
não-intelectuais – para, enfim, defini-lo como guir, é preciso ainda esclarecer e eliminar outro
“objeto de uma política social” (Gegenstand von engano sempre recorrente. Democracias apoia-
Sozialpolitik).56 Com base nessas confusões, das no princípio da soberania do povo não são
pode-se denunciar a democracia muito facilmen- “democracias diretas” eo ipso. A soberania do
te como “dominação das classes inferiores” povo pode se realizar por meio de uma democra-
(Minderwertigen). cia de base ou um Legislativo eleito como repre-
Mas a “soberania” da soberania do povo tam- sentante do povo. Na verdade, somente essa úl-
bém tem sido demonizada presentemente. Por tima necessita de fundamentação. Por isso, Lo-
conta de a soberania do povo aparecer vez por ou- cke, Rousseau e Kant foram, com a mesma in-
tra na história como reflexo e repetição da sobera- tensidade, protagonistas da idéia de soberania do
nia dos principados (Fürstensouveranität),57 os re- povo, na medida em que a atribuíram exclusiva-
presentantes das concepções de Estado mundial mente ao Legislativo, que, por sua vez, subordina
tendem a ver até mesmo implicações tirânicas no o Executivo em sua função de aplicar a lei. Isso
termo58 – como se a teoria da soberania do povo ocorre – segundo minha interpretação – justa-
não tivesse servido ao único propósito de prevenir mente para traçar um modelo de divisão hierár-
a tirania dos aparatos de Estado por meio de um quica de poderes,60 embora cada um desses auto-
procedimento segundo o qual o monopólio de po- res se expresse de modo diferente, quando se tra-
der seria confrontado com o direito exclusivo do ta do caráter representativo do Legislativo.
povo (e também de seus representantes) de legis- O sistema que mais contrasta atualmente
lar (e a “soberania não dividida” do povo nada mais com o sistema da soberania do povo não é, por-
significa do que isso). Pelo contrário, a tirania do tanto, o parlamentar, mas o presidencialista. Para
povo seria evitada, em razão de que o povo somen- esse último, vale a divisão de poderes vertical, não
te pode legislar, sem, no entanto, deter o monopó- a horizontal, muitas vezes considerada a única
lio do poder. possível: segundo o modelo de Montesquieu, aos
A “soberania do povo” não representa mais poderes correspondem partes da soberania, e eles
do que uma declaração normativa sobre a aloca- se completam e se controlam mutuamente. En-
ção do poder político: ao reconhecimento da mo- tretanto, todos participam do Legislativo (o pre-
nopolização assimétrica da soberania do poder sidente, pelo direito de veto, e o Judiciário, ao
administrativo no Executivo contrapôs-se o re- cuidar do controle das normas), ao passo que nos
conhecimento da monopolização assimétrica da sistemas parlamentares somente o Legislativo
soberania no Legislativo, como forma de tem o privilégio de legislar, sendo o controle de-
mocrático exercido a partir da base. A preferência
55 Kursbuch, n.o 117: “Das Volk, der Souverän”.
56 TÖNNIES, 1994, p. 66. 59 Isso vale para a democracia do tipo parlamentar, e não para aquela de
57 KIELMANSEGG, 1977, p. 230ss. tipo presidencial.
58 HELD, 1991, p. 197-235, em especial p. 227. 60 Sobre Locke, cf. nota 69.

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pelo padrão do princípio da soberania do povo primeiro lugar, em que as observações nem mes-
implica, nos dias de hoje, a aceitação de que o pa- mo chegam mais aos centros de decisão (como já
triotismo constitucional europeu afirma-se aqui, se indicou, por exemplo, no caso de abaixo-assi-
ao mesmo tempo, contra a dominância crescente nados e do direito de demonstração), que se vê a
dos sistemas presidencialistas. Somente a lem- perfeita separação entre a auto-referência dos cir-
brança dos princípios parlamentaristas é suficien- cuitos de comunicação dos sistemas de decisão
te para chamar a atenção sobre a dificuldade de política e a “opinião pública crítica”. O discurso e
institucionalizar uma Constituição global. as discussões públicas apenas são possíveis como
A existência de uma opinião pública crítica no monólogos.
mundo inteiro é vista freqüentemente como o úni- Mas mesmo nos casos em que a participa-
co critério para fundamentar uma democracia glo- ção democrática continua sendo uma preocupa-
bal,61 mas esse exemplo já demonstra a dominação ção central, como na concepção de David Held,
exercida pelo sistema presidencialista. A teoria da o dilema do Estado global democrático surge no-
democracia própria do iluminismo havia pressupos- vamente. A sugestão de David Held, a qual tra-
to a otimização recíproca da soberania do povo e da tarei aqui como um dos exemplos possíveis,
opinião pública,62 de modo que o soberano demo- comparte com os demais intentos similares a in-
crático seria instruído por meio de um discurso e de tenção de tentar evitar um hiperpoder global. Por
discussões públicas (öffentlicher Diskurs), que orien- isso, ele evita tanto um governo complexo mun-
tariam as suas decisões, ao mesmo tempo em que, dial (komplexes Weltregieren) – como combinação
inversamente, os resultados dessas discussões públi- de instituições internacionais e transnacionais64 –
cas ganhariam de fato o caráter de norma legal. Já a quanto mesmo uma “República mundial” (Wel-
visão atual, ao propor uma bisseção da democracia e trepublik) – como nível possível de organização
estatal com áreas subsidiárias de autoridade e
reduzi-la à questão de opinião pública, evita tratar a
competência.65 A genuína intenção democrática
questão da participação dos cidadãos nos processos
do complexo modelo de Held coaduna-se, po-
de decisão do Legislativo.
rém (como normalmente ocorre), com a recusa
Esse isolamento do princípio de opinião em aceitar o conceito de soberania. Tal recusa ser-
pública crítica – que pode ser institucionalizado viria para limitar a possibilidade de articular os
em um sistema presidencialista na reivindicação processos democráticos de decisão política com
de absolutização do free speech – permitiria até os procedimentos próprios do direito público.
mesmo o direito a se expressar de forma racista, Na perspectiva desse modelo de Estado
já que os resultados do discurso e das discussões global, as objeções levantadas por Kant, em sua
públicas praticamente não têm nenhuma chance teoria da soberania, à idéia de uma República
de se reproduzir no âmbito do setor responsável mundial são apenas resultados de um problema
pelas decisões políticas.63 Quando amplificado criado por ele mesmo: elas se devem à opção “ou
no nível global, esse processo conduz à própria tudo ou nada”, apresentada quando ele trata
eliminação da opinião pública. E é nesse nível, em questões relativas à soberania. Sobre essa base,
David Held sugere uma posição intermediária
61 Assim o faz, por exemplo, BOHMAN, 1996, na esperança de ver
inovações constitucionais por meio de uma opinião pública cosmopolita. entre uma confederação e um Estado mundial, e
62 Isso vale não apenas para Kant, mas também para ROUSSEAU, 1959. desenvolve um sistema de divisão da soberania
63 No caso de sistemas parlamentaristas é diferente. Neles, numa única
votação – ratificada não somente pela assembléia do Legislativo, mas incluindo várias instâncias sobrepostas de autori-
também pelo Executivo, dela independente – poderia decidir sobre o dade, e envolvendo unidades organizacionais de
início de uma política racista, uma vez que os partidos no Parlamento
são obrigados a respeitar o mandato dado por seus respectivos eleito- competência global, internacional e supranacio-
res e votar de acordo com a disciplina de suas respectivas frações. A
solução do problema, nesse caso, não se daria com a superação da
64 ZÜRN, 1998. Nessa concepção, porém, a eficiência do “governo”
soberania do povo, mas na atenção e criminalização das expressões
racistas (única limitação possível da liberdade de expressão), desde que domina por sobre as condições da democracia.
sancionada em ato jurídico decisório do soberano democrático. 65 HÖFFE, 1999, p. 315ss e 426ss. Cf. também MENZEL, 1998, p. 261.

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nal, nacional e subnacional. Além disso, inclui o Executivo segundo o arcabouço legal que define
procedimento democrático de base nos níveis lo- a ação desse último.
cais e regionais, e vislumbra a organização econô- Essa linha já contém uma rígida divisão dos
mico-democrática em vários níveis para, enfim, poderes (Gewaltenteilung) e a diferenciação de
acrescentar a exigência do referendo de grupos procedimentos. Segundo tais procedimentos, os
específicos, quando se trata de questões transna- casos particulares não devem conhecidos pelo
cionais conflitantes.66 Legislativo, já que a ele compete orientar a futura
Há efetivamente uma dimensão participati- aplicação da legislação, ao mesmo tempo em que
va e de base democrática nesse modelo, mas, ao as instâncias executantes da lei, e, portanto, co-
mesmo tempo, ele é limitado, por não prever nhecedoras dos casos particulares em que ela
funções de controle com bases democráticas, que deve ser aplicada, não podem alterar a legisla-
adviriam precisamente com o princípio da sobe- ção.70 É essa articulação entre uma forte demo-
cracia e o Estado de direito71 que a discussão atual
rania do povo. Held entende mal esse princípio,
sobre o Estado global deixa de lado, embora tal co-
atualmente colocado sob suspeita,67 e isso fica
nexão tenha sido originalmente montada para
claro na sua tentativa de desvincular John Locke
evitar arbitrariedades, justamente ao reconhecer
da tradição da teoria da soberania do povo, vendo
que a soberania do povo, sem uma rígida divisão
o filósofo inglês como representante de um con- funcional de poderes, não é praticável e que a
ceito de comunidade um tanto estilizado, no qual submissão dos aparatos estatais de poder à lei de-
a soberania não se concentraria nem no povo mocrática não pode ocorrer sem um controle
nem nas elites. Ao encarar Locke como um dos complementar.
precursores dessa diversificação do princípio de O modelo global de David Held sofre des-
soberania,68 na realidade, base das concepções se déficit. O seu programa, visando a garantir a
atuais de Estado global, Held acaba deixando de democracia por meio de “uma série de centros in-
lado os procedimentos jurídicos da fundamenta- terconectados de poder e autoridade”,72 deixa de
ção do sistema parlamentarista, articulados por lado as separações internas que dão sustento ao
Locke ao princípio da soberania do povo. Estado de direito. Em seu “system of global gover-
Precisamente na medida em que Locke nance”, Held prevê uma divisão da soberania en-
identifica expressamente o Legislativo com a so- tre estruturas, processos, forças e relações “so-
berania (insistindo, aliás, com isso, na soberania brepostas” (overlapping), “interpostas” (interlo-
do povo como um ato original, distinto da com- cking) e “interseccionadas” (intersecting) em re-
petência derivada que caracteriza o Legislativo de,73 de tal forma que não se pode mais organizar
eleito pelo povo) e define o Executivo, no seu a divisão dos poderes. O perigo de as responsa-
sentido mais literal, como o poder executor su- bilidades claramente imputáveis (zurechenbare
bordinado ao Legislativo, ele garante que a socie- Verantwortlichkeiten) desaparecerem com essa vi-
dade será guiada apenas por “leis bem ampara- são limitada é mascarado por um certo otimismo,
das”, e não por decisões arbitrárias particulares.69 segundo o qual a descentralização e a diversifica-
Trata-se, exatamente, de uma linha vertical de le- ção do poder já supõem formas de impor limites.
gitimação e controle: o povo legitima e controla Como contrapeso e compensação para a
o Legislativo por meio da eleição e das formas de perda das correspondentes instâncias de controle
protesto livre; o Legislativo legitima e controla o nos múltiplos sistemas, Held sugere simplesmen-
te uma cláusula de obrigatoriedade de cooperação
66 HELD, 1995, especialmente p. 278ss.
67 Idem, 1991, p. 227. 70 Para maiores detalhes, cf. MAUS, 1994, p. 271ss.
68 Ibid., p. 228. 71 HABERMAS, 1996c, p. 293-305.
69 LOCKE, 1967, §s 134ss, 149, 150, 214 e 227 (citado de acordo com 72 HELD, 1996, p. 220-239, em especial p. 232.
edição de Walter Euchner, dos dois escritos sobre governo). 73 Idem, 1991, p. 222ss e 232.

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entre todas as partes e a sua articulação em uma um reino medieval. O que se traça aqui, de modo
ordem geral que não se apoiaria tanto em uma otimista, como uma sociedade anárquica espalha-
Constituição obrigatória, e sim em linhas mestras da pelo mundo inteiro já havia sido descrito, por
constitucionais (constitutional guidelines), nem Franz Neumann, como o “não-Estado” de um
seria guiada por normas jurídicas, mas por prin- sistema de aparatos de poder concorrentes tanto
cípios similares (similar principles), não tendo, no plano horizontal quanto no vertical, identifi-
portanto, regras comuns, mas somente uma es- cado com o sistema nacional-socialista.76
trutura comum (common structure).74 Nesse ca- Longe de nós equiparar a autodescrição
so, não se trata apenas de substituir a soberania desse sistema como correspondente ao “Estado
do povo pela soberania do direito, e sim de dar do Führer”. Entretanto, com suas burocracias de
um caráter desformalizado (entformalisierten Estados, partidos e economias, o sistema nacio-
Charakter) ao ordenamento jurídico, correspon- nal-socialista muitas vezes sobrepôs responsabili-
dente à impenetrabilidade do arranjo institucio- dades por meio do estabelecimento contínuo de
nal proposto. ordenamentos jurídicos, garantindo excepciona-
A auto-recriminação de Held, pelo menos lidade e privilégios (Sonderrechtsordnungen) e a
em parte, com relação ao seu conceito global, delegação de competências jurídicas e normativas
qual seja, esse modelo como contraparte moder- (Rechtsetzungsbefugnissen) a setores privados77
na ao Império medieval, já nos diz muito.75 A para, assim, poder compatibilizar as suas partes
mistura de matérias jurídicas heterogêneas, origi- fragmentadas. E o fez de tal modo que foi das
nárias de ordens e fontes jurídicas especiais e con- normas jurídicas formais à imposição de valores e
flitantes, sedimentadas no decorrer da história, princípios legais, chegando a desbancar o Legis-
somente poderia ser útil em casos de conciliação lativo como centro do desenvolvimento do direi-
concreta de conflitos. Isso deveria ocorrer por to para transferir esse poder ao Judiciário. Tendo
meio da Justiça, visando a um equilíbrio respec- em vista esse totalitarismo parcelado, é necessário
tivo em cada caso, desde que esse não fosse com- aos modelos de um Estado global – que, de fato,
pletamente arbitrário, nem tão longo e situacio- demonstram uma intenção totalmente diferente
nal – como se vê no exemplo da “Europa cristã”, – não confundir a descentralização eo ipso com a
que ainda imaginava uma ordem mundial unitária democratização, além de explicar até que ponto
e contava com mudanças sociais somente a longo um sistema global fragmentado, tão similar ao ci-
tado neste artigo, possui realmente condições de
prazo. Esse retorno à Idade Média, quando se
dispor de um ordenamento jurídico que ainda
trata de discutir a estrutura da ordem global no
mereça esse nome.
futuro, deixa claro o abandono inconseqüente da
idéia de o Estado de direito democrático ter subs- 3. Até mesmo com o sucesso de um mode-
tituído o desenvolvimento pré-moderno do di- lo de Estado global, permaneceriam problemas a
resolver. Ainda que se pudesse inverter a forma de
reito formado por decisões caso a caso.
integração política e passar do processo de hierar-
No presente, porém, em que uma ordem quização democrática dos procedimentos de con-
mundial, tal como geralmente aceita, ainda não trole ao modelo de redes, e mesmo que tais redes
existe no nível do Estado nacional, e muito me- pudessem levar à auto-organização de economias
nos no global, e quando as decisões sobre maté- em expansão, salvando, não obstante, a democra-
rias políticas e as regras das disciplinas jurídicas cia no plano global, permaneceria o problema de
transformam-se a uma velocidade antes não ima- como realizar na prática um modelo desses. O
ginada, o modelo acima introduzido leva infeliz- próprio David Held chega a dizer que atingir um
mente a associações ainda piores do que à idéia de
76 NEUMANN, 1977. Sobre isso cf., em uma versão mais recente,
74 Ibid., p. 226. BAST, 1999.
75 Ibid., p. 223ss. 77 KIRCHHEIMER, 1972, p. 115-142.

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consenso internacional sobre questões referentes contra a ridicularização dos “práticos”, os quais
à representação global seria, “para usar um tom só têm uma única objeção a lhe fazer: a falta de
moderado, difícil”.78 correspondência empírica.84 De qualquer manei-
Enquanto alguns autores simplesmente de- ra, no tocante à possibilidade de implementação
mandam um “catálogo unificado de normas e valo- dessa idéia, de modo a ela permanecer intacta
res” como base de uma política interna mundial,79 como ideal, tanto Rousseau quanto Kant perma-
sem, contudo, resolver o problema da sua exe- necem em uníssono, quando se referem à neces-
cução, o fato de John Rawls reduzir visivelmente sidade de reversão da idéia de paz no caso de uma
a problemática a um padrão mínimo, somente in- guerra efetiva – contanto que a paz seja garantida
dicando o sistema político adequado a uma socie- na instância de um Estado mundial.
dade bem organizada (well ordered society),80 A argumentação de Kant (um tanto compli-
mostra a presença sutil do princípio de paz pro- cada) recusa, no entanto, aplicar a mesma solução
posto por Kant. Já Otfried Höffe quer evitar o à situação análoga, isto é, garantir que se possa até
dilema específico do estabelecimento de um Es- mesmo empregar a força no processo de fundação
tado global por meio de uma recomendação, se- de um Estado nacional ou de um Estado mundial,
gundo a qual esse processo não deveria ocorrer “a quando indivíduos ou Estados saem de sua condi-
um só golpe”, mas por etapas intermediárias, ção natural (Naturzustand) para assumir uma situ-
com uniões subcontinentais e continentais, em ação ou condição jurídica (Rechtszustand). Nesse
que já existem grandes traços comuns.81 Por ou- último caso, as constituições já existentes no âm-
tro lado, as considerações de Ulrich Beck sobre a bito interno ao Estado que se deseja criar seriam
situação pós-nacional contêm a clara advertência destruídas, ao passo que o funcionamento de uma
para se evitar um “abuso imperialista da missão Constituição mundial não teria qualquer garantia.
cosmopolita”: a “autopotencialização de um hu- Em contraste com essa forma de fundação do Es-
manismo militar ilimitado” conduziria, na sua tado, a tentativa de instituição de um Estado mun-
opinião, a uma “guerra infinita”, por conta da dial não surgiria do Estado ou da condição natural
existência de várias ditaduras no mundo.82 dos seres humanos (Naturzustand), mas levaria de
A tudo isso não há nada a acrescentar – ex- volta a essa condição.
ceto que esse problema já era notório nas discus- Em minha interpretação, isso significa o se-
sões sobre o Estado mundial, no século XVIII. guinte: de acordo com Kant, essa maneira de bus-
Nos embates de Rousseau e Kant, com as con- car a paz seria idêntica à provocação de uma guer-
cepções de paz de sua época, estava já em jogo, ra.85 Rousseau também se refere, por meio de
entre outras complexas conseqüências de argu- formulações conclusivas, ao mesmo problema: a
mentos diversos, a questão central referente ao paz eterna num Estado mundial “não pode ser
problema da relação entre uma idéia e sua imple- justificada por meio de um livro [o tratado do
mentação. A identificação entre paz mundial, or- Abbé]”, mas somente em sua implementação
dem global e Estado mundial também dominara hegemônica mediante uma guerra. Rousseau re-
o projeto de paz proposto pelo Abbé de Saint-Pierre, sumiu: “nos admiramos (...) com tal plano tão
que recebeu atenção ainda maior depois da versão belo, mas nos consolamos com o fato de que não
preparada por Rousseau.83 Assim como Kant, testemunharemos sua realização”.86 Essa con-
Rousseau defendeu a idéia de paz desse projeto clusão admitida por Rousseau já não se aplica à si-
78 HELD, 1996, p. 235. 84 Idem, 1981, p. 393-395; e KANT [1793], “Gemeinspruch”, in:
79 MENZEL, 1998, p. 259. ______, 1974, p. 172.
80 RAWLS, 1996, p. 53ss. 85 KANT [1796], “ZeF”, in: ______, 1974, p. 211. A respeito do tra-
81 HÖFFE, 1999, p. 427. tado de Kant sobre a paz perpétua, estou preparando uma publicação
82 BECK, 2000, p. 232-241, em especial p. 240ss. especial, que deverá surgir em breve.
83 ROUSSEAU, 1953, p. 343ss. 86 ROUSSEAU, 1981, p. 404.

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tuação presente, uma vez que a ameaça de guerra desenvolvimento que acentua a separação entre o
não nos serve de consolo. desenvolvimento do Estado e da nação90 não
conduz nem a uma sociedade livre nem a um Es-
OBSERVAÇÕES FINAIS tado democrático. Mais do que nada, é a
conceituação jurídica “francesa” herdada e amplia-
Diante dessa estrutura perigosa e proble-
da por Kant que permite identificar o povo, a
mática do projeto de um Estado global, deve-se
nação e o Estado de um modo tão abstrato, que
perguntar: quais são as possibilidades de uma
o Estado nacional nada mais significa do que um
“política sem fronteiras” (entgrenzter Politik) que
Estado na mão do povo, isto é, um Estado de-
não prejudique as estruturas inteligentes do Es-
mocrático. Essa mesma abstração legal prescinde
tado nacional democrático, pelo contrário, que o
de todos os elementos pré-políticos e evita qual-
sirva de modo inovador, tendo em vista a atual
quer tipo de exclusão de critérios concretos, es-
mobilidade internacional das pessoas, a economia
tabelecendo o princípio da igualdade de direitos
globalizada e a danificação do meio ambiente?
(Rechtsgleichheit), apesar de diferenças.
Mais além de “modernizar-se”,87 o Estado nacio-
nal precisa, na verdade, livrar-se das regressões Esse aspecto explica tanto a relação entre a
que o atravancam desde o século XIX. Diante da construção da nação e a emancipação dos judeus
histórica “codificação dupla” (doppelten Codie- no contexto da Revolução Francesa quanto a
rung) do conceito de nação, atualmente oscilante imensa habilidade de inclusão do Estado nacional
entre a liberdade republicana de associação e a da americano (independentemente das discrepân-
comunidade quase que natural, coloca-se, na ver- cias ocorridas no processo de construção da
dade, uma “questão empírica”: em que sentido as Constituição da União dos Estados Norte-Ame-
sociedades politicamente integradas em cada caso ricanos). Como sempre, a capacidade futura do
se compreeendem?88 Estado nacional em relação à agenda política in-
ternacional pode ser julgada da seguinte forma:
Contudo, o assunto principal nos debates
sua clássica definição jurídica serve de critério
atuais sobre as transações políticas entre Estados,
para o julgamento de reivindicações conflitantes
ou entre eles e as organizações supranacionais
no mundo atual, de maneira que as metas do po-
existentes, diz respeito a questões de direito, e,
der de intervenção se orientem pelo parâmetro de
na perspectiva dessas questões, o puro empiris-
autonomia política e, por outro lado, não confun-
mo sempre tem de dar lugar a uma reivindicação
dam as organizações terroristas e racistas com
normativa. Assim, os presentes conflitos e as rei-
movimentos democráticos de libertação.
vindicações levantadas de modo concreto devem
ser julgados e avaliados segundo o conceito jurí- Mas, no que diz respeito à questão da sua
dico de nação, embora o direito internacional capacidade de estabelecer uma “política sem
(Völkerrecht) vigente nunca deva orientar-se ou fronteiras”, a idéia de que os problemas do mun-
do inteiro poderiam ser resolvidos por meio de
adaptar-se ao etnonacionalismo, que, nos dias de
uma legislação global com uma aplicação global
hoje, se encontra em expansão.
que reagiria às reivindicações globais sofre, pos-
O recurso bastante comum à formação de sivelmente, de uma falta de complexidade. Além
um Estado nacional, seguindo o caminho de de- disso, a improbabilidade da hipótese de um par-
senvolvimento que vai de uma nação pré-política lamento mundial poder funcionar mais facilmen-
à constituição do Estado (tal como se vê, por te do que um Estado nacional, quando se trata da
exemplo, no caso dos alemães),89 seria de pouca necessidade de leis urgentes contra o abuso de
ajuda aos oprimidos do planeta. Esse caminho de poder econômico ou a favor da proteção das for-
87
ças de trabalho e do meio ambiente, força-nos a
É o que diz HÖFFE, 1999, p. 173ss e 182ss.
88 HABERMAS, 1996b, p. 154-184, em especial p. 156.
89 Idem, 1996a, p. 128-153, particularmente p. 128. 90 Ibid., p. 130ss.

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procurar alternativas mais plausíveis. Tais alterna- ambiente. Com o objetivo de prevenir, por exem-
tivas teriam de garantir, por um lado, que as plo, os “global players” que exploram o trabalho
normatizações com relação a problemas estendi- de crianças ou o trabalho compulsório em países
dos além das fronteiras fossem coordenadas de do chamado “Terceiro Mundo”, seria suficiente
tal forma que a competição deplorável dos Esta- estabelecer acordos entre os Estados industriais
dos nacionais como provedores de espaços que para que, em conjunto com os protagonistas, se-
trazem vantagens para a economia possa termi- jam obrigados a respeitar os padrões atuais, até
nar. Por outro lado, deve-se tomar em conta as mesmo quando as partes do processo de produ-
diversas condições e possibilidades nas regiões do ção são instaladas fora desses Estados.
mundo, com seu distinto desenvolvimento, onde
Além disso, antes de reforçar as normas
as “leis gerais” de uma legislação global ainda não
ambientais, devem ser levadas em consideração as
são aplicáveis.
condições de reprodução de uma determinada
Dentro dessas condições contraditórias, a
sociedade subdesenvolvida. Essa simultaneidade
extraterritorialidade da validade jurídica precisa
ser reforçada, pois sempre possibilitou o direito nos na necessidade de regulamentações supra-regio-
Estados nacionais democráticos. A meu ver, esse se- nais e de reconhecimento das peculiaridades re-
ria o princípio em que se baseou o entusiasmo de gionais pode ser mais facilmente alcançada por
Rousseau: a lei judaica é válida em todos lugares meio de acordos entre Estados (sob o controle
do mundo onde os judeus estiverem, revestida democrático de uma ordem nacional) do que pela
das atuais condições de regulamentação. Daí po- existência de um poder legislativo e constituinte
demos concluir, por um lado, o seguinte: regula- globais ou, até mesmo, por um novo “contrato
mentações específicas para a proteção do traba- social global”. Esse não seria nenhum contrato
lho devem ser válidas em todos lugares onde se entre pessoas “livres” e “iguais”, não podendo,
trabalha de modo comparável; regulamentações por isso, ser considerado um contrato, mas so-
específicas para a proteção ambiental valeriam em mente um documento hegemônico destinado à
todos locais em que há perigos similares ao meio apropriação global de terra.

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Dados da autora
Professora de ciência política na Johann
Wolfgang Goethe – Universität Frankfurt am
Main (Alemanha). Pesquisadora nas áreas de
teoria política e de história das idéias.
Recebimento artigo: 8/jan./02
Consultoria: 12/abr./02 a 18/jun./02
Aprovado: 1.º/jul./02

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O Onze de Setembro
e os Direitos Humanos*
SEPTEMBER 11th AND HUMAN RIGHTS
Resumo Os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 em Nova York e Washing-
ton, ademais de abalarem a idéia de segurança que prevalecia nos Estados Unidos, ins-
piraram a adoção de uma série de medidas, internas e externas, atentatórias aos direi- J.A. LINDGREN ALVES
tos humanos. Ao optar por esse curso de ação, o governo norte-americano, que já vi- Diplomata e membro do
nha adotando posturas unilaterais, despicientes do direito internacional, pode estar Comitê para a Eliminação da
destruindo o movimento pelos direitos humanos no contexto planetário. Se essa des- Discriminação Racial (ONU)
truição ocorrer, os terroristas terão alcançado mais plenamente seus objetivos antio- Lindgren@spnet.net
cidentais do que os ataques ao World Trade Center e ao Pentágono.
Palavras-chaves TERRORISMO – FUNDAMENTALISMO – DIREITOS HUMANOS –
GLOBALIZAÇÃO – ESTADOS UNIDOS – BRASIL.

Abstract The terrorist attacks of September 11, 2001, in New York and Washington,
besides shaking the idea of security that used to prevail in the United States, have ins-
pired the adoption of a series of internal and external measures that go against human
rights. On choosing such a course of action, the American Government, which had
already been taking unilateral stances, with no concern for international law, may be
destroying the movement for human rights on a world scale. If such destruction
takes place, terrorists will have attained their aims against the West far more deeeply
than with the attacks to the World Trade Center and the Pentagon.
Keywords TERRORISM – FUNDAMENTALISM – HUMAN RIGHTS – GLOBALIZATION
– UNITES STATES – BRAZIL.

* O presente texto contém opiniões e observações exclusivamente pessoais, que não refletem, nem
podem ser interpretadas como se refletissem, posições do Itamaraty.

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CALAMIDADE E EMPATIA

Q
uando terroristas organizados planejaram os ata-
ques de 11 de setembro de 2001 ao World Trade
Center e ao Pentágono, juntos com um terceiro
alvo que não chegaram a alcançar, sabiam que, ao
golpearem em território norte-americano sím-
bolos tão significativos do poderio dos Estados
Unidos, abalariam em todo o mundo aquilo que
se denomina “segurança”. Esta, como conhecido
na ciência política desde Hobbes, constitui a primeira justificativa para a
existência do Estado, por mais que sua garantia por ele tenha sempre sido
limitada.1
Em termos de relações internacionais, desde a 2.ª Guerra Mundial,
independentemente de definições mais amplas que lhe desse a Carta das
Nações Unidas, segurança para o Ocidente parecia corresponder sobre-
tudo à incolumidade militar da “fortaleza americana”, nunca atacada do
exterior no solo continental em todo o século XX. E foram justamente as
muralhas emblemáticas dessa fortaleza enorme que os terroristas se pro-
puseram expugnar, primeiro, com êxito relativo, no atentado a bomba de
1993, depois em 2001, com efeito devastador.
Sabiam, também, os mentores daquelas operações que os choques
de grandes Boeings abastecidos (de combustível e de passageiros) contra
prédios tão imponentes produziriam cenas dantescas. Que, ao vivo e na
televisão, elas representariam um espetáculo cataclísmico, capaz de ame-
drontar a todos. Talvez não tivessem previsto (assim consta ter dito Bin
Laden a seus acólitos, conforme vídeo apreendido no Afeganistão, atri-
buindo o “excedente de êxito” a uma confirmação do apoio divino) que
a destruição das duas torres em Manhattan seria, como foi, tão completa.
Que conseguiriam reduzir toda aquela colossal geometria a escombros
fumegantes de aspecto surrealista, com costelas de aço eretas em cenário
de pesadelo. Menos provável terá sido sua inconsciência de que – sem
competir com os nazistas na racionalidade genocida do holocausto judeu
– os ataques do Onze de Setembro produziriam, em ações precisas, um
novo, gigantesco holokauston, sacrificando “pelo fogo”, com motivação
religiosa, o maior número de inocentes imolados em atentados congêne-
res.
Os terroristas deviam esperar, com certeza, retaliações virulentas da
superpotência machucada. Elas poderiam ser, de início, como foram, im-
pulsivas agressões xenofóbicas contra estrangeiros em geral, sobretudo
árabes e muçulmanos ou com eles fisicamente parecidos, dentro do pró-

1 Segurança é algo pouco contemplado ou praticamente inexistente para quem, por exemplo, vive na
miséria; ou, sendo miserável ou não, vive em área dominada pelo crime; ou, ainda, simplesmente circula
em megalópole anômica de sociedade injusta. Isso sem falar das minorias perseguidas, por motivos de
ordem vária (políticos, raciais ou étnicos, religiosos, de gênero etc.), às quais segurança é algo deliberada-
mente negado.

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prio país. Seriam depois, sem dúvida, planejadas onde mais rentável, onívoros e excludentes, mas
com todos os recursos militares, na forma de cortejados por todos no capitalismo global.
operações bélicas contra países específicos. Essa Ferido o Ocidente se acha em primeiro lu-
segunda forma de reação é, na interpretação de gar, evidentemente, pelo sofrimento e morte das
todos os estudiosos da violência religiosa atual, vítimas dos ataques, diretas e mediatas, que se
aquela que mais conviria aos autores intelectuais contam aos milhares, de múltiplas procedências,
da tenebrosa operação.2 Ao se assemelhar a uma algumas do mundo islâmico. Ferido se acha tam-
nova cruzada em terras de fé islâmica, a retaliação bém pela cabal superação da segurança ilusória
maciça facilitaria a expansão do fundamentalismo até então desfrutada pelos Estados Unidos – e
entre os seguidores de Maomé e a coordenação apenas pelos Estados Unidos, não a Europa Oci-
da luta extremista contra o Ocidente incréu. dental – por conta da geografia. A insegurança
Talvez os idealizadores sinistros do Onze em que se projetou a sociedade norte-americana,
de Setembro não tivessem chegado a esperar uma antes do mesmo tipo inerente a qualquer grande
identificação tão simétrica entre eles e o Mal ab- comunidade desigual, traduz-se hoje em pavores
soluto por parte de um país supostamente “ilu- quotidianos. Meticulosamente alimentada pela
minista”, que viam como encarnação do demô- divulgação obsessiva de ameaças dadas como
nio, a ser combatido em “guerra cósmica” de próximas, estas se formulam como possíveis
manifestação material.3 Afinal, os Estados Uni- agressões terroristas com armas químicas e bio-
dos é que haviam sido primeiro chamados de lógicas, estancamentos totais do sistema econô-
“grande Satã” (pelo Ayatolá Khomeini). Talvez mico por vírus eletrônicos (a exemplo do tão te-
não esperassem, assim, que a simetria de interpre- mido bug do milênio) e, para cúmulo dos
tações “transcendentes” provocasse na nação ata- cúmulos, atentados nucleares dos mais variados
cada, não-atéia, mas weberianamente materialista, tipos, inclusive com bombas de fundo de quintal
reações bem mais abrangentes do que suas ações com alto poder destrutivo4 – tudo o que possa
fanáticas no contexto da djihad integrista. justificar, enfim, uma nova “corrida armamentis-
O que muito provavelmente os terroristas ta”, com um único participante.
não haviam chegado a avaliar sobretudo é o nível Pior do que tudo, porém, para a civilização
de profundidade com que suas agressões do ocidental no contexto planetário, é a ferida que
Onze de Setembro iriam ferir a idéia do Ociden- os Estados Unidos, em reação aos atentados, op-
te. Não os aspectos levianos da civilização oci- taram por se auto-infligir (e infligir aos outros)
dental, com seus modismos e seduções de con- na qualidade de berço da democracia moderna e
sumo, praticamente irresistíveis no nosso plane- nação inspiradora do discurso universalizante dos
ta-mercado. Nem, muito menos, os recursos fi- direitos humanos. Isso porque, sendo o país mais
nanceiros do Primeiro Mundo afluente, aplicados influente, espécie de metonímia do Ocidente
como um todo, ao optarem por medidas que des-
2 Cf. inter alia CHOMSKY, 2001; JUERGENSMEYER, 2001a e b;
consideram valores e direitos fundamentais, do-
MARTINS, 2001/2002; JAGUARIBE, 2001/2002.
3 O professor Mark Juergensmeyer, da Universidade de Santa Bárbara,
Califórnia, que estuda e define essa “guerra cósmica” de todos os 4 Além de dar como plausível a ocorrência de chantagem nuclear de
extremistas religiosos, conta que em fevereiro de 1998, meses antes das ordem vária, a imprensa norte-americana, adepta entusiástica de pâni-
bombas colocadas nas embaixadas norte-americanas em Nairóbi e cos coletivos (vide a grita provocada pelo “vírus do milênio”, na virada
Dar-Es-Salam, Osama Bin Laden já afirmara, em fatwa (de natureza de 1999 para 2000), tem proliferado informações “científicas” de que é
sagrada), que “o mundo” estaria em conflito contra os Estados Uni- mais fácil produzir artesanalmente bombas de até dez quilotons do
dos, cuja política no Oriente Médio corresponderia de per si a uma que dirigir os complexos Boeings do fatídico Onze de Setembro.
“declaração de guerra, contra Deus, Seu mensageiro (Maomé) e os Exemplo disso são as declarações do físico Frank Von Nippel, de Prin-
muçulmanos em geral” (JUERGENSMEYER, 2001a, p. 145). É essa ceton, de que uma carga de 50 kg de urânio arremessada de uma altura
“guerra cósmica” que permitiria aos terroristas religiosos (islâmicos, de metro e meio contra outra massa de urânio também de 50 kg pode
judeus, sikhs, budistas e cristãos) sempre se verem como primeiras causar uma explosão semelhante à de Hiroshima (cf. WALD, 23/jan./
vítimas. 2002).

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méstica e externamente, podem estar destruindo (para o controle da emissão de gases poluentes) e
esperanças de melhora para a humanidade inteira. de reforçar sua rejeição ao Tribunal Penal Inter-
Não que isso fosse necessário. Os ataques nacional com legislação que proíbe a ratificação
do Onze de Setembro, ubiquamente vistos em de seu estatuto (depois complementada, em
sua monstruosidade, além de horrorizar pessoas 2002, pela iniciativa inédita de “desassinar” esse
de todos os credos e nações (com algumas estatuto),6 assumira diversas outras atitudes uni-
exceções sofridas, entre, por exemplo, palestinos lateralistas,7 a mais recente das quais fora a reti-
de territórios ocupados manifestando júbilo pela rada de sua delegação, no início de setembro, jun-
ilusão de vingança) propiciaram, como é justo, a tamente com a de Israel, da Conferência de Dur-
maior onda de solidariedade com uma potência ban contra o Racismo, a Discriminação Racial, a
agredida a que jamais se assistiu. “Somos todos Xenofobia e Intolerância Correlata.
americanos!” declarava em Paris o Le Monde, no Ainda que o abandono de Durban não te-
dia seguinte aos atentados. A própria facilidade nha passado de mais um gesto de menosprezo
com que Washington montou sua coalizão con- pela diplomacia parlamentar e por menos que se
tra o Afeganistão dela decorria. E ela era, em estabeleça nexo de causa e efeito entre ele e os
princípio, alvissareira (poderia ter sido usada, por atentados (conquanto algumas das causas simbó-
exemplo, para tentar pôr fim ao conflito do Oriente licas possam ser correlacionadas),8 o fato é que os
Médio). Tanto que, em final de outubro, no apo- ataques terroristas em Nova York e Washington,
geu das operações militares no teatro afegão, um ocorridos pouco depois, puseram fim a um certo
sociólogo do peso do britânico Anthony Giddens tipo de isolacionismo da administração republica-
previa a reinserção dos Estados Unidos no fulcro na. Esta começou a fazer acenos mais simpáticos
da diplomacia multilateral que vinham abando- à ONU, passou a tratar como amigos países de
nando desde a posse de George W. Bush. que antes se distanciava, enviou seu secretário de
Defensor da globalização como fenômeno Estado, Colin Powell, a uma infinidade de capi-
positivo, Anthony Giddens afirmava que “os ata- tais euro-asiáticas, para obter apoio à intervenção
ques obrigaram o governo americano a reconhe- no Afeganistão, e endossou os périplos explicati-
cer a natureza interdependente do mundo vos do Primeiro Ministro Tony Blair, seu maior
contemporâneo”, para declarar adiante: “A aliado, por antigas colônias britânicas.
globalização diz respeito, entre outras coisas, ao A Administração George W. Bush fez
progresso do direito internacional”.5 Que pro- tudo isso, porém, em sentido contrário ao que
gresso via ele em outubro de 2001, e, até mesmo,
que “direito internacional”? – era o caso de per- 6 O Estatuto do Tribunal Penal Internacional havia sido assinado pelo
guntar. governo de Bill Clinton em 31 de dezembro de 2000; para evitar sua
aplicabilidade, bastaria aos Estados Unidos não o ratificar.
7 Por exemplo, durante a 57.ª Sessão da Comissão dos Direitos

MULTILATERALISMO OU Humanos da ONU, em abril, os Estados Unidos, cuja indústria farma-


cêutica vinha criando problemas para o Brasil na Organização Mundial
UNILATERALISMO MULTILATERAL? do Comércio (OMC) pela produção de medicamentos para distri-
buição no programa de combate à aids, foram o único país a abster-se –
Desde janeiro de 2001, quando tomou pos- enquanto todos os demais votaram a favor – na resolução, de iniciativa
se, a nova administração em Washington, ademais brasileira, que qualificava o tratamento dos portadores de HIV/aids
como um direito humano fundamental. Em função dessas posições, e
de haver anunciado a intenção de retirar o país de da falta de articulação adequada dentro do próprio Grupo Ocidental,
várias operações de paz; de exumar o projeto ar- nas eleições de maio, pelo Conselho Econômico e Social (ECOSOC) da
ONU para a Comissão dos Direitos Humanos, os Estados Unidos não
mamentista “guerra nas estrelas” dos tempos do foram reeleitos (pela primeira vez desde que a Comissão fora criada
presidente Reagan (para isso dispondo-se a de- em 1946), perdendo, em escrutínio secreto, para suas concorrentes:
França, Suécia e Áustria.
nunciar o acordo ABM de 1972 com Moscou); de 8 A principal razão alegada para a retirada dos Estados Unidos e de

retirar os Estados Unidos do Protocolo de Kyoto Israel da Conferência de Durban era a tentativa árabe-muçulmana de
reinserir na documentação a ser aprovada linguagem que restabeleceria
a equivalência entre sionismo e racismo, antes endossada pela ONU e
5 GIDDENS, 28/out./2001. rejeitada em 1992.

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desejavam os opositores do isolacionismo. Ela drado pelo Onze de Setembro é mais sutil do que
não modificou seu curso porque tivesse reco- isso. Situa-se nas entranhas do modelo de Ociden-
nhecido, no dizer de Anthony Giddens, a im- te, liberal e universalista, exportado para o mundo.
portância do progresso do direito internacional.
Não passou a reconhecer a interdependência ge- O FRONT INTERNO DA GUERRA
ral do mundo contemporâneo e a valorizar a ne-
A “guerra contra o terrorismo” declarada
cessidade de articulação de todos os atores para
por Washington é heterodoxa em muitos sentidos.
enfrentarem os desafios planetários da miséria,
A começar pelo fato de que, não abordando as
das discriminações, das violações de direitos hu-
causas que levam ao extremismo contra o Ociden-
manos, da destruição ambiental, da marginalização
te, ela se auto-alimenta, não podendo ser vencida.
social, por mais que essas mazelas sabidamente
Cada vitória produz novos inimigos, de identifica-
agravem as condições conducentes à violência cri-
ção difícil e localização variável. Mais do que
minal e a fundamentalismos agressivos (o que não
quer dizer que todos os criminosos e todos os ter- “mundial”, nos sentido das Grandes Guerras do
roristas sejam pobres e marginalizados). Ao invés século passado, ela precisa ser realmente planetária.
de combater causas profundas que alimentam o Domesticamente a “guerra contra o terro-
terrorismo, o governo norte-americano optou por rismo” não é propriamente militar. Nem se con-
combatê-lo somente pela repressão, transforman- cretiza nas longas inspeções em aeroportos e ou-
do suas causas em tabus. Declarou, assim, dentro tras instalações públicas, que ninguém se propõe
dos cânones mais conservadores, uma “guerra ao contestar. O front doméstico norte-americano
terrorismo”, de feições militares. tem objetivos justos, retributivos e preventivos, e
Foi, portanto, para estabelecer e manter se desenvolve por meio de diversas medidas. Es-
uma vasta coalizão de países por ele liderados e tas visam essencialmente a prender e punir terro-
para assegurar o selo de legitimidade da ONU – ristas e seus comparsas no território nacional,
única instância universal existente, juridicamente além de prevenir novas agressões. O problema
capaz de o fazer – para quaisquer ações por ele desse front, visto por críticos locais que não com-
contempladas que o governo de George W. Bush pactuam, nem simpatizam com as ações do ter-
abandonou por princípio o isolacionismo republi- ror, é que – nas palavras de Michael Ratner – to-
cano. As atitudes somente não permaneceram das as medidas “envolvem o cerceamento de nos-
iguais às de antes do Onze de Setembro porque sas liberdades e direitos constitucionais”.10 E fo-
se encontram, desde então, exacerbadas pelo pa- ram tomadas em atmosfera de maniqueísmo e
triotismo inflamado de superpotência ferida. autocensura a tal ponto esmagadora que os bol-
Mas não é pelo unilateralismo, agora “mul- sões de liberdade de expressão resistentes preci-
tilateralista”, da política externa norte-americana, savam recordar, não sem retaliações, ser o dissen-
nem pela insistência de Washington numa guerra so inerente à democracia.11
ilimitada de retaliação e captura, com grande nú-
10 RATNER, 2001a, p. 3 (grifo acrescido).
mero de vítimas, muitas das quais inocentes, 11 Entre uma infinidade de acontecimentos congêneres, a editora do jornal
miseráveis e famélicas, que a idéia do Ocidente The Sacramento Bee, Janis Besler Heaphy, precisou ser retirada de cerimônia
aparece ferida. Afinal, os Estados Unidos nunca em que atuava como oradora, na Universidade Estadual da Califórnia, ante a
ira dos presentes ao ouvirem referência sua à necessidade de respeito às liber-
foram realmente multilateralistas, nem deixaram dades civis, em particular ao habeas corpus, na luta contra o terrorismo – luta,
aliás, por ela louvada, juntamente com chamamentos ao patriotismo dos
de intervir no exterior por falta de apoios9 – tal ouvintes (EGAN, 21/dez./2001). Na mesma linha, o radialista Davey D.
como o faziam, aliás, todas as potências imperiais Cook foi demitido de rádio de S. Francisco por transmitir entrevista com a
deputada Barbara Lee, única parlamentar que votara contra a guerra ao terro-
do passado. O ferimento mais profundo engen- rismo (RATNER, 2001b). A livraria Citylights, de S. Francisco, berço do
movimento beatnik na década de 50 e marco cultural da cidade, de proprie-
dade do poeta Lawrence Ferlinghetti (do mesmo grupo de Jack Kerouak e
9 Para uma esclarecedora análise da aparente “involução” de Bill Clin- Allen Ginsberg), houve por bem ostentar, em sua fachada, desenhos de figu-
ton para George W. Bush nessa matéria, cf. VIGEVANI & OLI- ras amordaçadas por bandeiras dos Estados Unidos, cujo conjunto dizia:
VEIRA, 2001. Dissent is not un-American (“A dissenção não é antiamericana”).

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Não era, porém, contra nacionais dissiden- da internet, assim como a coibir a lavagem de di-
tes que se dirigiam as medidas mais drásticas do nheiro, foi aprovado e sancionado em fins de ou-
front interno. Elas se voltavam sobretudo contra tubro de 2001. As detenções arbitrárias de estran-
os estrangeiros no país. Sua primeira manifestação geiros começaram, porém, muito antes, sem
se deu na autorização à polícia, procedimental- autorização parlamentar, já havendo atingido 977
mente legal mas substancialmente ilegítima, para na data da sanção que as legalizou (26 de outu-
a detenção incomunicável de estrangeiros, por bro).14 Cerca de um mês mais tarde, segundo no-
qualquer motivo considerados suspeitos, por ticiado,15 “duas dúzias” eram mantidos em situa-
tempo indeterminado (o termo jurídico usado ção de incomunicabilidade, não por terem qual-
para essa violação do art. 9.º da Declaração Uni- quer culpa, mas por serem considerados “teste-
versal dos Direitos Humanos é “detenção arbi- munhas materiais”, detentoras de informações a
trária”). serem prestadas em juízo (não confundir essa
Por mais que a “opção preferencial” – às detenção com iniciativas de proteção às testemu-
avessas – pelos estrangeiros, em situação ilegal ou nhas).16
regular (temporária ou como imigrantes) repre- Não cabe aqui esmiuçar todos os atos ado-
sentasse uma incongruência num país onde as tados nesse front de uma guerra não-tradicional
agressões terroristas – com exceção dos primei- contra um inimigo heterodoxo. Cabe, sim, assi-
ros explosivos colocados e acionados no World nalar que, para o governo norte-americano, a
Trade Center em 1993 – foram sempre praticadas “guerra contra o terrorismo” não é uma simples
por cidadãos nacionais,12 ela ainda constituía uma metáfora. Além de declarada por lei (“reso-
discriminação “deglutível”. A nação se encontra- lução”) aprovada no Congresso, ela consiste em
va profundamente abalada, e todos os participan- ações ilimitadas de mobilização total: de contin-
tes identificados nos ataques de 11 de setembro
(assim como os ideólogos e autores do atentado 14 Essa quantidade se elevara a 1.147 em 3 de novembro de 2001,

precedente, de 1993, contra o World Trade Cen- quando o Departamento de Justiça parou de anunciar o número de
indivíduos detidos secretamente, mais da metade dos quais, segundo
ter) eram efetivamente estrangeiros – e muçulma- transpirado de fontes oficiosas, por infrações como a simples expira-
ção de vistos.
nos (sendo quinze sauditas, um egípcio, um ie- 15 Cf. PURDY, 25/nov./2001.
menita e nenhum afegão). Mais difícil é aceitar 16 Foi o clamor dos defensores do Estado de direito, particularmente

como “compreensíveis” as arbitrariedades prati- de advogados e entidades voltadas para a proteção dos direitos huma-
nos, que forçou o Departamento de Justiça a fornecer alguns dados
cadas contra quem se comprova inocente do cri- informativos sobre os indivíduos detidos nessas circunstâncias. Assim,
me de terrorismo e prossegue preso indefinida- em 27 de novembro de 2001, o procurador geral Ashcroft divulgou,
pela primeira vez, os nomes de 93 pessoas acusadas de crimes decor-
mente.13 rentes do inquérito antiterrorista e reconheceu a permanência “sob
custódia” de 548 outros estrangeiros não-identificados para o público,
O principal projeto de lei antiterrorismo, a respeito dos quais se relacionavam apenas os países de origem – a
originário do Executivo, que sofreu várias maioria do Oriente Médio (havia também um brasileiro). Nessa
mesma época, o Comitê Judiciário do Senado iniciaria uma série de
modificações no Congresso destinadas a facilitar audiências sobre o “arrastão” policial que se realizava (a expressão
a escuta de comunicações telefônicas e o controle empregada para essa vasta operação era mesmo “arrastão” – dragnet em
inglês), cobrindo “desde a detenção de centenas de imigrantes com
acusações relacionadas a infrações imigratórias até os interrogatórios a
12 Sem falar nos históricos linchamentos de negros, nas recentes agres- que são regularmente submetidos 5.000 homens muçulmanos” legal-
sões contra clínicas e médicos que praticam legalmente o aborto, nas mente ingressados no país (cf. LEWIS & NATTA, 28/nov./2001).
variadas ações das “milícias” armadas, amplamente conhecidas em Mas também nessa mesma época os instrumentos de “caça a estrangei-
vários estados da federação, nos atos de indivíduos isolados que se ros” se expandiram sensivelmente por outra decisão do Executivo. De
põem a matar pessoas em escolas e supermercados, a explosão do pré- acordo com novo regulamento do Departamento de Justiça, o famoso
dio público em Oklahoma City pelo terrorista branco e protestante INS (sigla em inglês do Serviço de Imigração e Naturalização, temido
Timothy McVeigh, que causou 168 mortes e mais de 500 feridos, em por todos os indocumentados que vivem de biscates no país para esca-
1995, é emblemática por ter sido, até o Onze de Setembro, o pior aten- par da miséria em suas terras de origem) a ele subordinado, recebia
tado terrorista havido no país. permissão para manter encarcerado qualquer alienígena sobre o qual
13 Ainda em 18 de fevereiro de 2002, Christopher Drew e Judith Mil- tivesse suspeita de representar risco para a comunidade, ainda que con-
ler noticiavam que 87 imigrantes com vistos expirados permaneciam trariando ordem de soltura dada por juiz federal competente. Para isso
detidos sem previsão de saída, embora tivessem recebido ordem de bastaria o INS formalizar a intenção de impetrar recurso contra a sen-
deportação (DREW & MILLER, 18/fev./2002). tença liberatória.

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gentes militares para combates externos, dos no próprio local de apreensão dos suspeitos (par-
meios de comunicação para forjar a união em tor- ticularmente no Afeganistão e no Paquistão), ale-
no do presidente, da polícia e agências de vigilân- gadamente em função de sua alta periculosidade.
cia para detectar suspeitos, dos cidadãos comuns Com base nessas explicações, o decreto de 13 de
para apoiar suas operações. A razão é evidente. novembro de 2001 se enquadra mais apropriada-
Como diz Barbara Ehrenreich: “O amor por mente como medida do front externo do que do
nossos vizinhos pode mover-nos, mas a ameaça front interno.
de um inimigo comum nos move ainda mais”.17
Por isso o discurso chamando à guerra se mostra O FRONT EXTERNO E GUANTÁNAMO
concretamente tão forte. No front externo, a “guerra ao terrorismo”
É o discurso da guerra que pretende justi- custou mais a começar. Primeiro envolveu inten-
ficar exceções ao Estado de direito. É esse discur- sa movimentação diplomática para a obtenção de
so que tem dado azo nos Estados Unidos – para alianças e autorizações para uso de bases e espaço
surpresa de todos, inclusive do Brasil – à redis- aéreo estrangeiros para os ataques ao Afeganis-
cussão daquilo que antes parecia incogitável, por- tão. Quando se iniciou, em 7 de outubro, no ter-
que ingnominioso: a relegitimação da tortura ritório afegão, lembrava a guerra da Organização
como forma de interrogatório.18 É a idéia de do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) à Iugos-
guerra que embasa o decreto presidencial de 13 lávia pelo Kossovo, de 1999, com seus bombar-
de novembro de 2001, pelo qual se permite o jul- deios aéreos e tropas de ocupação, com a diferen-
gamento de réus estrangeiros (non-citizens) por ça de que se tratava de país ainda mais miserável,
tribunais militares especiais, “não necessariamen- já previamente destruído por longos conflitos in-
te transparentes ao público” (conforme anuncia- ternos e intervenções externas. E que, dessa vez,
do). Esses tribunais especiais se aplicariam apenas a guerra era travada contra aqueles que no passa-
a indivíduos “envolvidos em atos ou conspiração do haviam sido financiados e estimulados pelos
de terrorismo internacional (…) com o objetivo atacantes atuais na qualidade de aliados contra o
de ferir ou tentar afetar adversamente os Estados invasor soviético.
Unidos”. A qualificação como terroristas cabe ao Dada a desproporção de forças, a guerra no
Executivo na pessoa do presidente da Repúbli- Afeganistão foi vencida em tempo não-supreen-
ca.19 dentemente recorde. Em dezembro de 2001 já
havia praticamente acabado contra (e com) os ta-
Segundo explicações fornecidas adicional-
libãs de Kabul.
mente, tais tribunais especiais seriam montados
No Fórum Econômico Mundial de janeiro
17 EHRENREICH, 1998, p. 224. de 2002, transferido de Davos para Manhattan
18 A rediscussão, lançada originalmente em outubro de 2001 em diver- em solidariedade com esta última, políticos e exe-
sos artigos de imprensa, inspirada no “uso moderado de força” autori-
zado nos interrogatórios israelenses de palestinos, contemplava desde
cutivos de grandes corporações não pouparam
a injeção de drogas para debilitar as resistências dos presos interroga- elogios ao governo dos Estados Unidos pelo êxi-
dos nos Estados Unidos, até seu envio a “outros países”, onde a tor-
tura fosse juridicamente tolerada para a extração de informações.
to fulminante dessa guerra – embora o paradeiro
Conquanto repudiada por todos os militantes de direitos humanos, de Osama Bin Laden nunca se tenha materializa-
em janeiro de 2002, o renomado advogado e professor de direito em
Harvard Alan Dershowitz, que havia defendido em programa de tele-
do. Em contrapartida aos elogios a essa atuação
visão a legalização da tortura, “de qualquer forma praticada” [sic], con- militar, muitos dos mesmos participantes do Fó-
tinuava a propor, na imprensa diária, a realização de torturas
autorizadas por mandado judicial. Chegava até à “sofisticação” de
rum Econômico no Hotel Waldorf Astoria ex-
recomendar que a tortura fosse não-letal, do tipo daquela modalidade pressaram seu desagrado pela afirmação do pre-
“feita com agulhas esterilizadas enfiadas debaixo das unhas, de maneira
a provocar dor excruciante sem ameaçar a vida” (DERSHOWITZ, 22/
sidente Bush, no discurso denominado State of
jan./2002). the Union, de pretender estender o combate bé-
19 O texto integral desse decreto – imediatamente criticado por advo-
gados e articulistas em vários periódicos respeitáveis de ampla circula-
lico ao terror aonde ele encontrasse abrigo, sin-
ção – foi publicado no The New York Times de 14/nov./2001, p. B8. gularizando o Iraque, o Irã e a Coréia do Norte

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como “Eixo do Mal”. Não se acreditava, porém, se- transportados para Guantánamo, fossem eles sol-
riamente, que esse discurso messiânico, acentuado dados “regulares” talibãs, fossem indivíduos de
ao longo do ano contra o Iraque, fosse para valer. outras nacionalidades que lutavam do lado do go-
E que se consubstanciaria em nova guerra em verno afegão (da época, não o atual, formado
março/abril de 2003. Mas isso já é outra história. com elementos da chamada “Aliança do Norte”),
Assim como a imagem mais marcante do parecia claramente aplicar-se a definição dos pa-
ano de 2001 foi a do desmoronamento das torres rágrafos 1.º e 2.º da alínea A. Seu texto diz:
do World Trade Center, repetida ad nauseam pelas
Prisioneiros de guerra, no sentido da pre-
redes de televisão,20 as imagens da chegada a
sente Convenção, são pessoas pertencen-
Cuba dos homens aprisionados no Afeganistão e tes a uma das seguintes categorias, que te-
de sua permanência na base militar norte-ameri- nham caído em poder do inimigo: 1.
cana de Guantánamo foram as mais marcantes do membros das forças armadas de uma Par-
início de 2002. Mostradas em diferentes veículos te em conflito, assim como membros de
de comunicação, as fotos dos prisioneiros enca- milícias ou corpos de voluntários que for-
puzados, de braços amarrados às costas e pés ata- mem parte dessas forças armadas; 2.
dos por correntes, praticamente arrastados por membros de outras milícias e membros
soldados de science fiction,21 depois, dos mesmos de outros corpos de voluntários, inclusive
cativos, amordaçados e vendados, maniatados em os de movimentos de resistência organi-
gesto de prece, ajoelhados e curvos (não se sabe zada, pertencentes a uma das Partes em
se para Alá ou porque fisicamente impedidos de conflito, operando dentro ou fora do seu
assumir outra posição), em cubículos alambrados próprio território, ainda que esse territó-
encimados por arame farpado, sob a vigilância de rio esteja ocupado, contanto que tais mi-
marines,22 não somente impressionaram. Provo- lícias ou corpos de voluntários, inclusive
caram em todo o mundo reações de repúdio, des- esses movimentos de resistência, preen-
sa feita acusando os Estados Unidos de maus tra- cham as seguintes condições: (a) sejam
tos e exigindo o enquadramento dos detidos na comandados por uma pessoa responsável
Terceira Convenção de Genebra (relativa ao tra- por seus subordinados; (b) portem um si-
nal distintivo fixo reconhecível à distân-
tamento de prisioneiros de guerra).
cia; (c) portem armas ostensivamente; (d)
A Convenção (III) Relativa ao Tratamento conduzam suas operações de acordo com
de Prisioneiros de Guerra, de que são partes tan- as leis e costumes da guerra.23
to os Estados Unidos como o Afeganistão, é a
terceira das quatro convenções reguladoras da Nas críticas e contra-argumentos multipli-
conduta de beligerantes adotadas pela conferên- cados sobre a questão, arguia a “linha dura” (ou
cia diplomática de Genebra de 1949, em vigor “falcões”, termo altaneiro com que são chamados
desde 1950. Seu artigo 4.º relaciona nas alíneas A, os direitistas mais ferrenhos) que a Convenção
B e C as pessoas qualificadas como prisioneiros de de Genebra não se aplicaria a terroristas, que ata-
guerra, sendo o dispositivo da alínea A subdividi- cam civis inocentes, como os membros da Al-
do em seis parágrafos, todos bastante claros. Para Qaeda. Com efeito, os integrantes de qualquer
os inimigos capturados em território afegão e organização terrorista não parecem preencher as
condições estabelecidas nas letras (b), (c) e (d)
20 Menos no Afeganistão, cujo governo, com seu “puritanismo”,
acima transcritas, embora pareça incoerente ale-
banira, havia anos, porque reputados “pecaminosos”, não somente a
figura feminina, obrigada a esconder-se em casa ou debaixo de burqas, gar, como ocorreu,24 que ataques a civis, ou a pré-
mas também a televisão, o cinema, a música e qualquer outra diversão.
21 Cf., por exemplo, S. Francisco Chronicle, 22/jan./2002, p. A12.
dios não-militares não se enquadrem nos costu-
22 Cf., por exemplo, The New York Times, 23/jan./2002, p. A9, ou, no

Brasil, Veja, ed. 1.736, ano 35, n.o 4, de 30/jan./2002, p. 44, e IstoÉ, n.o 23 SCHINDLER & TOMAN, 1988, p. 430-431 (tradução do autor).
1.687, ed. de 30/jan./2002, p. 72-73. 24 SEELYE, 28/jan./2002.

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mes das guerras atuais.25 Sem precisar ir mais lon- rização. Não obstante essa notícias, a imprensa e
ge, foram, como é notório, ataques desse tipo pe- a televisão continuavam a mostrar cenas de
las forças da OTAN que venceram os sérvios no Guantánamo em que cativos eram conduzidos a
Kossovo, levando o Exército de Milosevic à capi- interrogatórios até mesmo em macas (porque su-
tulação. Sabe-se, de qualquer forma, que, pela postamente feridos), tolhidos por instrumentos
Terceira Convenção de Genebra, não cabe ao de restrição aos movimentos. Na qualidade de
Executivo dos Estados vencedores decidir quais prisioneiros de guerra, a Convenção de Genebra
dos cativos têm direito às proteções asseguradas não permite interrogatórios além do mínimo im-
aos prisioneiros de guerra. Como lembrado pelo prescindível para sua identificação.
Comitê Internacional da Cruz Vermelha, entida- A recusa em aceitar a caracterização dos de-
de suíça obrigatoriamente neutra que implemen- tidos em Guantánamo como prisioneiros de
ta as disposições das Convenções de Genebra, o guerra, protegidos pela Terceira Convenção de
artigo 5.º da Terceira Convenção estabelece que, Genebra, teria o objetivo de permitir que todos
em caso de dúvida sobre a categorização das pes- sejam não somente interrogados como têm sido,
soas capturadas, elas, não obstante, gozam da sem advogado de defesa e sem controles externos
proteção daquele instrumento do direito interna- para a obtenção de informações preventivas de
cional “até que seu status seja determinado por outros ataques terroristas.27 Permitiria também
tribunal competente”. A Anistia Internacional, que eles fossem julgados nos tribunais previstos
por sua vez, acrescentava, de maneira apazigua- no decreto presidencial de 13 de novembro de
dora, que tal tribunal não necessitaria ser interna- 2001.28 Pela Convenção de Genebra, os prisionei-
cional. Poderia ser norte-americano, desde que
ros deveriam ser devolvidos ao território de ori-
respeitados os procedimentos legais. A Anistia
gem no fim das hostilidades (e estas já haviam
recordava, ainda, que os detidos, no front interno
acabado, na medida em que o Afeganistão tinha
e no front externo, eram, como qualquer pessoa,
um novo governo, ou não acabarão jamais). Ou
não apenas objeto de proteção pelo direito hu-
então, quando indiciados em crimes de guerra, os
manitário de Genebra, nas situações de conflito
prisioneiros deveriam ser julgados por tribunal
armado, mas igualmente sujeitos de direitos hu-
civil ou corte marcial normal, sempre transparen-
manos, regulados nesse caso pelo Pacto Interna-
te e conforme procedimentos que assegurem os
cional de Direitos Civis e Políticos, que os Esta-
direitos humanos dos réus.
dos Unidos ratificaram.26
Em 7 de fevereiro de 2002 noticiou-se fi- Em declarações prestadas por ocasião do
nalmente que o presidente Bush teria decidido anúncio de que o presidente Bush decidira aplicar
dar tratamento de prisioneiros de guerra aos as disposições da Convenção (III) de Genebra
indivíduos talibãs, sem os reconhecer formal- aos guerreiros talibãs, mas não aos terroristas da
mente nessa categoria, mas não aos integrantes Al Qaeda, o porta-voz da Casa Branca tentou ex-
da Al Qaeda. O próprio noticiário informava não plicar as dúvidas remanescentes, recordando que,
ter ficado claro o que isso queria dizer. Pode-se, 27 Assinale-se que ninguém dizia estarem eles sendo torturados nesses
porém, inferir que, diante das críticas nacionais e interrogatórios. Alegações de torturas pelos norte-americanos, parti-
estrangeiras, e dos pedidos de Colin Powell (en- cularmente espancamentos, havia, divulgadas pela imprensa, mas todas
no Afeganistão (cf., por exemplo, GALL, 11/fev./2002).
tão porta-voz de posturas moderadoras), o go- 28 Praticamente esquecidos à medida que aumentavam as preocupa-

verno estaria buscando algum tipo de contempo- ções com o Iraque, somente em 9 de abril de 2003, dia da entrada
norte-americana em Bagdá, a imprensa anunciava que o Pentágono
havia definido, após dezoito meses de estudos, o sistema de tribunais
25 Ehrenreich recorda que, em contraste com os 15% de civis vitima- militares a serem instalados em Guantánamo para o julgamento de 640
dos na Primeira Guerra Mundial, nas chamadas “guerras de baixa detidos. A notícia acrescentava que, a menos que o presidente Bush
intensidade” do final do século XX, entre as quais as da antiga Iugoslá- emendasse sua military order de novembro de 2001, pessoas captura-
via, os civis correspondem a 90% dos mortos (EHRENREICH, 1998, das na guerra contra o Iraque não poderiam ser julgadas por eles. Isso
p. 227). porque os tribunais se destinam tão somente a pessoas envolvidas em
26 ANISTIA INTERNACIONAL, 15/jan./2002. atividades terroristas contra os Estados Unidos (cf. LEWIS, 2003).

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quando as convenções de Genebra foram assina- Essa personificação de Bin Laden como “o
das em 1949, ninguém tinha tido em mente a inimigo” dos Estados Unidos induz a confusões
proteção de terroristas transnacionais, até porque muito mais absurdas entre ativistas ocidentais
não se contemplava então uma guerra ao terro- que lutam contra o neoliberalismo e a exclusão
rismo.29 Isso é um fato, sem dúvida. A ele se po- social. É incongruente para quem defenda ideais
deria agregar que, se, por um lado, os (ou alguns de justiça transformar um fundamentalista agres-
dos) cativos de Guantánamo não são prisioneiros sivo e alienado em ícone dos oprimidos. Osama
de guerra porque o espírito de Genebra não era o Bin Laden não é, em nenhuma acepção consis-
de proteger terroristas, por outro lado a guerra ao tente, um “Che” Guevara redivivo. Como obser-
terrorismo tampouco é guerra, já que nenhuma va Noam Chomsky, o milionário saudita e seus
das convenções sobre a matéria a havia contem- associados de todos os estratos econômicos nun-
plado. ca fizeram nada pelos pobres (salvo, talvez, na es-
cala micro, da filantropia atraente para a causa),
ALERTA NECESSÁRIO: NÃO nem parecem entender nada do capitalismo do-
CONFUNDIR FUNDAMENTALISMO COM minante. Nas palavras de Chomsky:
ANTIIMPERIALISMO Com relação à rede de Bin Laden e seus
Qualquer pessoa que atente para o fato de seguidores, eles têm tão pouca preocupa-
que os terroristas islâmicos são potenciais suici- ção com a globalização ou com a hege-
das, mujahedins dispostos ao auto-martírio que monia cultural quanto com os povos po-
lhes asseguraria o céu, entenderá que o bombar- bres e oprimidos do Oriente Médio, a
deio de cidadãos miseráveis, muitos do quais ci- quem têm prejudicado seriamente há
anos. Eles próprios têm dito a todos, em
vis, por forças da maior potência da Terra, não
alto e bom som, quais são suas preocupa-
pode ser dissuasivo. Dá, ao contrário, convicção
ções: estão numa Guerra Santa contra re-
redobrada a esses crentes fanáticos em luta contra gimes corruptos, repressivos e anti-islâ-
o demônio, representado pelos Estados Unidos e micos, e contra aqueles que os apóiam, tal
pelos políticos por eles apoiados no mundo ma- como lutaram uma Guerra Santa contra
ometano. Não causa surpresa, pois, a admiração os russos na década de 1980 (e o fazem
por Osama Bin Laden, crescente em todo o Islã, agora na Chechênia, no oeste da China,
desde que os bombardeios ao território afegão no Egito – neste caso desde 1981, quando
começaram, particularmente entre indivíduos assassinaram Sadat – e ainda em outras
marginalizados.30 Isso não significa que todos os partes). Bin Laden provavelmente nunca
muçulmanos sejam simpatizantes de Bin Laden. sequer ouviu falar em globalização.31
Nem que os atuais simpatizantes do suposto lí- A veemência com que Chomsky rejeita o
der da Al Qaeda tenham sido favoráveis aos aten- “antiimperialismo” de Bin Laden e seus seguidores
tados do Onze de Setembro. Nem, muito me- radicais visa a dissociar em definitivo o extremis-
nos, que Bin Laden represente alguma variante mo retrógrado, misógino e repressivo, da luta in-
do antiimperialismo ou de movimentos contrári- ternacional progressista para controlar a globaliza-
os à globalização sem controles. Ele apenas sim- ção. Tal propaganda ou engodo, em que às vezes
boliza uma resistência obstinada à superpotência cai a esquerda, apenas fortalece a direita e tudo o
“corruptora de líderes e povos”, que ainda por que há de mais reacionário no “sistema” domi-
cima apóia invariavelmente Israel contra os pales- nante. O fundamentalismo talibã e o terrorismo
tinos. da Al Qaeda pouco diferem dos diversos outros
29
tipos de fundamentalismos religiosos cujo reacio-
SEELYE, 8/fev./2002.
30Fenômeno assemelhado se assiste mais de um ano depois com rela-
ção ao Iraque de Saddam Hussein. 31 CHOMSKY, 2001, p. 31-32 (tradução do autor).

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narismo conservador jamais foi posto em ques- medidas já então adotadas ou em consideração
tão.32 A diferença entre estes e os seguidores de pelos Estados Unidos, no texto de seu discurso
Bin Laden é que os outros nunca chegaram a em seminário em Madri, em parte que não che-
atingir diretamente símbolos tão expressivos do gou a ler, mas tornou público, em outubro de
poderio norte-americano – em contraste, por si- 2001 (ainda antes da divulgação das fotografias de
nal, com as “milícias” paramilitares, protestantes Guantánamo): “Um dos grandes desafios que
e antiestatais dos Estados Unidos (de cuja inspi- nos são impostos na luta contra o terrorismo é o
ração ideológica decorrem a persona de Timothy de fazer com que nossa vitória não se faça ao cus-
McVeigh e a explosão de Oklahoma City), que to de nossa própria derrota. Se, para vencer o ter-
jamais seriam confundidas com movimentos an- ror, tivermos que abrir mão das liberdades indi-
tiimperialistas. viduais, das garantias dos direitos civis, da proibi-
Nem todos os fundamentalismos são terro- ção do uso da tortura, então nossa vitória será re-
ristas, ou têm inspiração religiosa. Nenhum funda- almente um contra-senso”.34
mentalismo atual, porém, seja ele religioso ou lai- Como que a repetir o então presidente bra-
co, de gênero ou cultural, nacional ou identitário, sileiro, mas motivado pelo tratamento dos indiví-
tem preocupações de justiça universalista ou pro- duos aprisionados, o espanhol Javier Solana, na
gramas abrangentes de emancipação social. Todos função de chanceler da União Européia, pouco
depois diria que, apesar das atrocidades do Onze
servem, ainda que não o queiram, à fragmentação
de Setembro, “a mudança de nossos valores e
de nosso mundo “pós-moderno” e “pós-político”,
nossa maneira de viver seria a primeira vitória do
adequada à afirmação do mercado como força uni-
terrorismo”.35 Afirmações de igual jaez foram
ficadora. Todos eles fortalecem o fenômeno da feitas pela alta comissária das Nações Unidas para
globalização sem freios, com tudo o que esta acar- os Direitos Humanos, a irlandesa Mary Robin-
reta em matéria de “efeitos colaterais”. son (que já havia criticado na Assembléia Geral a
Quem carrega a figura de Bin Laden como detenção arbitrária de estrangeiros no território
insígnia de protesto contra o neoliberalismo domi- norte-americano e a ampliação desmesurada do
nante não está ostentando postura contrária aos Es- que poderia ser considerado, para fins repressivo-
tados Unidos ou ao Ocidente imperialista. Está in- punitivos, pelos Estados Unidos, uma “organiza-
genuamente indo contra suas próprias aspirações.33 ção terrorista”).36
De início acolhida por manifestações de
O SORRISO E O RISO DO TERROR apoio cauteloso, ou por um silêncio mais ou me-
nos conivente, uma vez que todos no exterior
Conforme assinalaria o então presidente queriam ser solidários com a nação agredida, a
Fernando Henrique Cardoso, motivado pelas “guerra contra o terrorismo” dos Estados Uni-
dos, tal como concretizada, logo passou a ser ge-
32 Como o do Gush Emunin judaico e dos seguidores do rabino Meir
Kahane (entre os quais Yigal Amir, assassino de Yitzhak Rabin), dos
neralizadamente criticada – exceto pelo primeiro
sikhs indianos que mataram, em ocasiões distintas, Indira e Rajiv Gan- ministro britânico Tony Blair. Até mesmo o au-
dhi, dos egípcios executores de Anwar Sadat ou dos fous de Dieu arge- tor da frase significativa “Somos todos america-
linos do Front Islamique du Salut. O que esses movimentos carolas
combatem com violência são os mesmo alvos de sempre: a corrupção e nos!”, Jean-Marie Colombani, editor de Le Mon-
a repressão de governos laicos (como se a história não exibisse tantos de, iria indagar-se, em livro, se, diante das foto-
exemplos de corrupção e repressão nas teocracias), tendo como princi-
pal preocupação a influência “corruptora” do secularismo iluminista grafias dos prisioneiros em Guantánamo, seu ar-
(cf. KEPEL, 1991, e JUERGENSMEYER, 2001). roubo de solidariedade permaneceria válido.37
33 Tudo o que aqui é dito sobre Bin Laden se aplica, com conotações
diferentes, a Saddam Hussein. Este nunca foi fundamentalista, nem se
34 Excertos publicados na Folha de S.Paulo, 27/out./2001, p. A4.
sabe ao certo até que ponto sua fé era autenticamente islâmica. O fato
35 S. Francisco Chronicle, 23/jan./2002, p. A9.
de ter sido fustigado por uma guerra ensandecida não o transforma em
herói antiimperialista. Essa confusão é feita por impulsão da linha dura, 36 E em função dessas posições acabou perdendo suas funções em
que pinta os opositores da agressão “preventiva” ao Iraque (em alegada agosto de 2002.
autodefesa contra seu “vasto arsenal de armas de destruição maciça”, 37 COLOMBANI, 2002. Sua conclusão, em março de 2002, era ainda
afinal nunca encontrado) como defensores do ditador sanguinário. afirmativa, conquanto qualificada.

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Para isso contribuiu a controvertidamente céle- “instituições de não-direito, dentro de um Estado


bre afirmação do presidente Bush, em seu discur- de direito”, havendo-se dotado de poderes de
so no Congresso, de que Iraque, Irã e Coréia do investigação e intervenção globais, assim como
Norte eram um “Eixo do Mal”, dando a entender de uma justiça paralela por ele controlada que
que os Estados Unidos estariam dispostos a ata- nem as guerras da Coréia e do Vietnã haviam pro-
cá-los, com ou sem aprovação alheia. Mal se sabia piciado.39
então que o unilateralismo – dessa feita apenas Aparentando estarem todos numa “guerra
parcialmente “multilateralista” – de Washington mundial contra o terrorismo”, os próprios países
muito em breve iria traduzir-se em ações bélicas europeus, que sempre enfrentaram o desafio de
maciças contra o Iraque de Saddam Hussein. atos terroristas nos respectivos territórios sem
Sem pretender entrar aqui no tema da se- modificar sua concepção do Estado de direito,
gunda Guerra do Golfo, de efeitos ainda incalcu- passaram a adotar novas medidas internas de vi-
láveis, é importante assinalar uma vez mais o im- gilância, investigação e detenção inspiradas na-
pacto terrível que o unilateralismo dos hoje cha- quelas dos Estados Unidos. Daí a observação de
mados “neoconservadores” norte-americanos Ignatio Ramonet, em artigo de janeiro de 2002,
vem tendo sobre o sistema internacional de intitulado “Adieu libertés”, de que “o movimento
proteção aos direitos humanos e sobre o direito geral de nossas sociedades, tendente a um respei-
internacional em geral. to sempre crescente pelo indivíduo e suas liber-
Aprovada em ação conjunta da Câmara e dades, foi brutalmente estancado”.40
do Senado (com um único voto dissidente) em Como se isso tudo não bastasse, o profes-
14 de setembro de 2001, sob o impacto muito sor de direitos humanos em Harvard, Michael Ig-
próximo da tragédia vivida pelo país, a “declara- natieff, em fevereiro de 2002 perguntava se, dian-
ção de guerra ao terrorimo” autoriza ao presiden- te de considerações estratégicas que buscam ex-
te dos Estados Unidos da América “o uso de clusivamente apoio na guerra contra o terroris-
toda força necessária e apropriada contra aquelas mo, não estaríamos no fim da era dos direitos.
nações, organizações e pessoas que ele considere Para explicitar suas dúvidas sobre o futuro do
que tenham, de forma determinante, planejado, movimento internacional pelos direitos huma-
permitido, cometido ou ajudado o ataque terro- nos, dizia ele, com crueza: “Alguns veteranos de
rista ocorrido em 11 de setembro, ou contra aque- campanhas da guerra fria recusam-se a admitir
les que amparam tais organizações ou pessoas, de que o clima esteja agora pior do que naquela épo-
modo a prevenir qualquer ato futuro de terroris- ca. Mas nos anos de Reagan, o movimento sim-
mo internacional contra os Estados Unidos”.38 plesmente corria o risco de tornar-se impopular.
Compreeensível na época em que foi votada, essa Na era de Bush, ele se arrisca a tornar-se irrele-
resolução legislativa (que daria embasamento le- vante”.41
gal à nova doutrina, formulada em 2002, que au- Não é apenas em função da adoção de leis
toriza ações bélicas “preventivas” contra os cha- arbitrárias e medidas discriminatórias nos Esta-
mados “estados vilões”), associada às medidas dos Unidos que o terrorismo erigido em preocu-
cerceadoras de liberdades e discriminatórias con- pação exclusiva ameaça os direitos humanos. É
tra estrangeiros, em vigor cinco meses após os fato que, com a adoção de tais novidades pelo
atentados, assim como o decreto que prevê tri- Ocidente desenvolvido, ficará difícil aos respecti-
bunais especiais para estrangeiros qualificados de vos países criticarem violações alheias. Como po-
terroristas pelo Executivo estabeleceu, na prática, 39 GOLUB, 2002. Golub cita ainda, a propósito dos tribunais militares
o que Philip S. Golub denomina “uma presidên- especiais, William Safire como um “partidário entusiasta dos republica-
cia imperial”. Por ela o Executivo teria criado nos”, que nem por isso teria deixado de ver na iniciativa “uma tomada
ditatorial de poder”.
40 RAMONET, jan./2002, p. 1.
38 Apud MARTINS, 2001/2002, p. 30. 41 IGNATIEV, 5/fev./2002 (tradução do autor).

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derão, por exemplo, condenar um Fujimori por contra alvos específicos. A “guerra pela justiça”,
excessos praticados contra o Sendero Lumino- que interessa a todos, nem militar, nem cósmica,
so?42 Como criticar a Turquia por abusos come- nem religiosa, terá sido vencida, não pelo antiim-
tidos na luta contra rebeldes kurdos que põem perialismo libertário, mas pelo obscurantismo
bombas em alvos civis? Como condenar Slobo- brutal.
dan Milosevic pelas brutalidades na Bósnia, se
consta que a rede Al Qaeda foi das poucas enti- SAÍDAS OU BARREIRAS FATAIS?
dades que procurou auxiliar a sério os muçulma- Estaríamos, então, todos os que acredita-
nos massacrados, sem armas e sem saída, sob o mos na causa dos direitos humanos realmente
olhar neutro da Europa e do Ocidente em geral? num beco sem saída? Não é, com certeza, esse o
Contudo, a pior ameaça ao movimento interna- caso. O próprio Michael Ignatieff, que vê de for-
cional pelos direitos humanos ocorrerá se a pre- ma tão dura a situação atual do movimento pelos
ocupação com o terrorismo fizer esquecer a to- direitos humanos, aponta saídas possíveis. Em
dos os efeitos colaterais da globalização nos ter- primeiro lugar ele lembra, com pertinência, que
mos em que se tem desenvolvido (a Argentina “os direitos humanos se tornaram globais ao se
que o diga!). Particularmente agora, quando as fazerem locais, ancorando-se nas lutas por justi-
sociedades civis se demonstram dispostas a com- ça, que podem sobreviver sem inspiração ou lide-
batê-los em atos de resistência eloqüentes – assim rança americana”. Em seguida opina que o movi-
como se manifestou em massa contra a “segunda mento precisa mudar de discurso para vencer no
Guerra do Golfo”, alegadamente preemptiva. campo das idéias. Para isso seria necessário desa-
Num dos vídeos apreeendidos pelas forças fiar a assertiva – ora vigente nos Estados Unidos
norte-americanas em caverna do Afeganistão, cir- e alhures – de que a segurança nacional se sobre-
culados sob censura nos meios de comunicação põe aos direitos, com a afirmação de que os di-
do Ocidente, Bin Laden aparece mais do que sor- reitos humanos constituem, ao contrário, a me-
rindo, rindo de algo que não se compreende (su- lhor garantia que existe para a segurança nacio-
ponho que até mesmo para quem fala árabe, pois nal.43
quase não se ouve o que é dito na ocasião). Se- No Brasil, como em outros países que vi-
gundo explicado pelos media sob controle, Bin veram a experiência do arbítrio, os dois elemen-
Laden estaria rindo do fato de que participantes tos discursivos indicados por Ignatieff são nossos
dos seqüestros de aviões no Onze de Setembro velhos conhecidos. O primeiro fundamentava
não teriam sabido com antecedência que iriam nossa “doutrina da segurança nacional”, de triste
participar de operações suicidas. A própria im- memória, superada exatamente pelo argumento
prensa escrita dos Estados Unidos, em artigos proposto. Sabemos, também, por outro lado,
isolados, contestou tal interpretação. O líder dos com dolorosa experiência estendida até hoje, que
seqüestradores não estaria rindo dos suicidas de- os direitos humanos sozinhos, como utopia abs-
sinformados, mas sim sorrindo para eles, mártires trata, não-aplicados no ser humano concreto,
recém-entrados no céu. pouco podem fazer contra a criminalidade margi-
Sorrindo, rindo ou gargalhando de conten- nal, bem menos sofisticada, quanto mais contra
tamento os terroristas estarão, se conseguirem um terrorismo capaz de transformar em bombas
fazer sepultar em definitivo a movimentação in- aviões de passageiros! Por isso, no Brasil e em to-
ternacional pelos direitos humanos. Com isso dos os demais países, é preciso fortalecer a luta pe-
eles terão atingido mais profundamente a idéia do los direitos além do juridicismo. Mas – e também
Ocidente do que com bombas e aviões dirigidos aí o argumento de Ignatieff se aplica, com algumas
qualificações – essa luta não poderá ser fortalecida
42 Fujimori tem-se, aliás, insinuado desde o Japão como conselheiro
útil na guerra contra o terrorismo. 43 IGNATIEV, 5/fev./2002.

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com base no modelo e no discurso dos “america- como de Marte, enquanto a Europa enfraquecida
nos”. Salvo exceções honrosas e pouco influentes, é da feminina Vênus. É esse fato inexorável que
eles jamais reconheceram os direitos econômicos, levaria a Europa a ser necessariamente kantiana
sociais e culturais. Nós, brasileiros de todas as clas- num mundo de interesses, realisticamente hob-
ses e rincões, sabemos à saciedade a que aflições besiano.44
coletivas, além das individuais, a denegação histó- Com a queda de Bagdá e das estátuas de Sa-
rica desses direitos, igualmente fundamentais, ten- ddam Hussein, malgrado os saques que perduram e
de sempre a conduzir. a crise humanitária que se alastra, o clima interna-
Os direitos humanos de todas as categorias cional parece um pouco menos sombrio. Ao se dis-
precisam ser, com urgência, resgatados e reafir- cutir sobretudo a reconstrução do Iraque, tem-se ao
mados. Não porque essa constitua a melhor ma- menos a impressão de que novas intervenções alhu-
neira de salvar o movimento pelos direitos huma- res estão, por enquanto, adiadas.
nos, tão assertivo na década de 90, agora sob risco Procurei reler este texto “antigo” menos
de tornar-se irrelevante. A reafirmação de todos negativamente e concluí que, com algumas pin-
os direitos humanos é necessária e urgente por- celadas, ele seria útil a um leitor brasileiro. As
que aparece como a única maneira minimamente pinceladas não o pretendem atualizar. Isso seria
realista de enfrentar o terror. impossível. Mas a descrição desses fatos ocorri-
dos logo após o Onze de Setembro e que estão
POST SCRIPTUM na origem de tudo o que hoje se vê, talvez ainda
O texto acima foi escrito em São Francisco, possa servir para esclarecer um ou outro brasilei-
Califórnia, no início de 2002, poucos meses após ro, não sobre acontecimentos que todos sem dú-
os atentados do Onze de Setembro, quando as vida conhecem, mas sobre a falácia de achar que
primeiras medidas da “guerra contra o terroris- as melhores soluções vêm de fora.
mo” causavam apreensão e revolta de parte dos Somos reconhecidamente uma nação inter-
injustiçados. Em abril de 2003, na Bulgária, antes namente insegura, com disparidades absurdas e
de escrever estas linhas, eu havia chegado a pedir muitos problemas imensos, quase todos de nossa
aos editores da Impulso que não mais o publicas- alçada. Mas, como este texto tem a ambição de
sem. Ele me parecia ultrapassado diante dos hor- demonstrar, eles são mais administráveis do que
rores, mostrados ao longo dos dias na televisão os que se vêem cá fora. Se o universalismo dos va-
filtrada, de uma guerra “preventiva” contra um lores se acha concretamente enterrado, esses va-
Iraque “detentor de arsenais terríveis”. Além dis- lores ainda existem para alguns gatos pingados.
so toda a situação internacional mudara no cami- Tentemos ser desses gatos, molhados pelas pre-
nho dessa guerra. Hoje não são apenas os “valo- ciosas gotas. Elas ainda borrifam de esperança
res universalizantes” que correm risco de vida, nosso terreiro encardido. Essencial é saber que, o
nem somente os direitos humanos que se acham terreiro sendo nosso, assim como nossa a sujeira,
em perigo. Tudo está abalado pelo que agora se é preciso que usemos nossa água tão escassa de
chama “neoconservadorismo”. Tão belicoso a maneira criativa, sem copiar modelos que a nós
ponto de tornar pacifista a “velha Europa” guer- não se podem aplicar.
reira e tão sagaz a ponto de atribuir à busca de
soluções pacíficas os males do multilateralismo, o Sófia, 11 de abril de 2003
neoconservadorismo apresenta, na interpretação
de Robert Kagan, a superpotência americana 44 KAGAN, 2002.

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Dados do autor
Diplomata, atual embaixador do Brasil em Sófia (Bulgária) e
membro do Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial
(ONU/Genebra), ex-cônsul geral do Brasil em São Francisco (EUA) e
ex-diretor geral do Departamento de Direitos Humanos e Temas
Sociais do Ministério das Relações Exteriores (Brasília)
Recebimento artigo: 20/fev./02
Consultoria: 1.º/abr./02 a 24/abr./02
Aprovado: 27/maio/02

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Visando a um Estado de
Direito Global*
ENVISIONING A GLOBAL RULE OF LAW
DANIELE ARCHIBUGI
Resumo O presente ensaio questiona a visão de que os atentados, em 2001, ao World Consiglio Nazionale delle
Trade Center, em Nova York, e ao Pentágono, em Washington, constituíram ataques Ricerche (Itália)
ao Estado norte-americano e ao seu povo. Ao mesmo tempo, indica possibilidades de urp@urp.cnr.it
ação para os Estados Unidos e outras forças globais sob uma interpretação mais cos-
mopolita da situação. Para tanto, aventa uma regulamentação de lei global, em res- IRIS YOUNG
posta ao terrorismo, tendo em vista aspirações a um sistema internacional justo e de- University of Chicago (EUA)
mocrático. iyoung@uchicago.edu

Palavras-chave ESTADO – POLÍTICA MUNDIAL – DIREITO GLOBAL – TERRORISMO.

Abstract The present essay questions the view according to wich the attacks to the
World Trade Center, in New York, and the Pentagon, in Washington, in 2001, were
attacks to the US-American State and its people. At the same time, it discusses pos-
sibilities of action to the United States and other global forces under a more cosmo-
politan interpretation of the situation. For such, it suggests a global rule of law, in res-
ponse to terrorism, having in mind aspirations to a fair and democratic international
system.

Keywords STATE – WORLD POLITICS – GLOBAL LAW – TERRORISM.

* Tradução do inglês: Cristina Paixão Lopes.

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O
s ataques ao World Trade Center e ao Pentágono, em
setembro de 2001, nos Estados Unidos, podem ser
entendidos partindo-se de duas interpretações dife-
rentes. A primeira os vê como ataques aos Estados
Unidos, como Estado, e ao seu povo; a segunda,
como crimes contra a humanidade. A diferença na
interpretação não é técnica, mas política, e cada uma
implica diferentes estratégias de reação. Embora al-
gumas figuras públicas tenham recomendado a segunda interpretação
pouco depois do ataque, sabemos que a primeira prevaleceu. Neste breve
ensaio, questionamos a reação estatista aos ataques terroristas e oferece-
mos uma visão de como os Estados Unidos e outros atores globais po-
deriam conceber suas possibilidades de ação sob uma interpretação mais
cosmopolita da situação.

A INTERPRETAÇÃO ESTATISTA
A administração Bush encarou os ataques como um ato de guerra
contra os Estados Unidos, cuja resposta apropriada seria a retaliação mi-
litar. Essa concepção implicava encontrar um Estado ou Estados contra
quem guerrear, e os EUA escolheram o Afeganistão, com base no fato de
que o governo talibã acolheu e apoiou a Al Qaeda. Elegeram o Irã, o Ira-
que e a Coréia do Norte como países adicionais contra os quais poderiam
voltar suas ações militares. A estruturação de uma resposta aos ataques
como um conflito militar de um Estado contra outro, no entanto, nunca
caiu bem. Mesmo em uma política mundial centrada no Estado, o fato de
o governo do Afeganistão ter permitido que os líderes da Al Qaeda
acampassem em seus territórios é uma justificativa muito frágil para en-
trar em guerra contra o país e eliminar seu governo. Consciente dessa fra-
gilidade, os Estados Unidos modificaram suas razões para a guerra contra
o Talibã, passando de uma lógica de autodefesa à defesa humanitária, de
modo a libertar o povo afegão da opressão, particularmente suas mulhe-
res. Consideramos essa lógica cínica e oportunista, já que nem a admi-
nistração de Bush nem a de Clinton haviam antes se preocupado publi-
camente com a situação do povo afegão.
Reagir aos ataques terroristas com base no sistema estatista e, as-
sim, entrar em guerra contra um país não só não era o caso, como tam-
bém não foi eficaz para transformar o mundo em um lugar mais seguro.
Embora a guerra tenha destruído algumas bases da Al Qaeda e os EUA te-
nham capturado alguns membros desse grupo, até agora o mundo não
tem motivos para pensar que tais militantes estejam especificamente li-
gados aos ataques suicidas de 11 de setembro. As estimativas de mortes
de civis, amplamente difundidas, vão de mil a 3,7 mil, e outras centenas
provavelmente morrerão por bombas não detonadas. O número de re-
fugiados que sofrem de fome e congelam de frio por causa da guerra é
impossível de ser calculado. Não há razão para pensar que a guerra tenha
detido outros supostos terroristas ao redor do mundo. Talvez haja con-

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tribuído para desestabilizar a região da Ásia Cen- se os regimes reguladores globais representarão
tral, com conseqüências ainda desconhecidas. apenas os interesses dos atores mais poderosos
Embora os Estados Unidos não tenham do mundo ou se incluirão as vozes e os interesses
agido sozinhos na instauração da guerra, a luta foi da maioria global em instituições transparentes e
convocada por eles. Decidiram com quem coo- responsáveis.
perar e atribuíram o papel dos outros agentes. É Baseamos a visão de uma resposta alterna-
difícil não interpretar a política americana, nos tiva ao terrorismo nessas aspirações de um gover-
meses mais recentes, como um esforço para con- no global justo e democrático. Até agora, as dis-
solidar ainda mais sua posição de soberana do cussões sobre uma regulamentação internacional
mundo. Na última década, os Estados Unidos e os sistemas regulares globais prestaram menos
usaram sua força militar no Golfo Pérsico, Somá- atenção à prevenção e à investigação de crimes, e
lia, Panamá, Bálcãs e em muitos outros lugares. à instauração de processos em um sistema inter-
Em todo caso, as intervenções dos Estados Uni- nacional, do que a aspectos como comércio in-
dos fizeram vítimas, mas poucas delas foram ternacional, investimentos ou proteção ambien-
americanas. A magnitude do poderio militar e tal. Propomos, então, duas premissas para uma
econômico e a disposição dos Estados Unidos reflexão sobre o que uma resposta alternativa ao
em manejá-lo assimetricamente, e com apenas a
ataque terrorista de 11 de setembro poderia ter
mais fina aparência de multilateralismo, provo-
sido e ainda pode ser.
cam reações hostis em todo o mundo, mesmo de
povos considerados aliados. Primeiro, a situação deveria ter sido concei-
tuada como de pessoa para pessoa, em vez de país
Uma pesquisa conduzida pelo Pew Research
Center e pelo International Herald Tribune, em para país. Os terroristas não eram representantes
dezembro de 2001, concluiu que a maioria dos de um Estado, mas membros de organizações
não-americanos, entre os 275 líderes políticos e particulares, e as pessoas mortas por eles eram, na
comerciais entrevistados acredita que os Estados maioria, cidadãos de pelo menos 70 diferentes paí-
Unidos usam incorretamente o seu poder e que ses. Assim, em segundo lugar, os eventos deveri-
algumas de suas políticas são responsáveis pelo am ser conceituados como crimes, e não como
crescimento das disparidades no bem-estar no atos de guerra, cuja resposta apropriada teria de
mundo. Em resposta a tal hegemonia, parece-nos ser a investigação criminal e o julgamento dentro
imperativo que os líderes e cidadãos ao redor do de um regulamento de lei, tomando-se as medi-
mundo tenham em vista uma regulamentação de das legais para prevenir e impedir outros crimes
lei global e pressionem os Estados Unidos a agir semelhantes.
mais em conformidade com tal visão. Os Estados democráticos geralmente não
respondem – e jamais deveriam fazê-lo – arbitra-
UMA VISÃO INTERNACIONAL riamente e pela força militar aos ataques terroris-
As aspirações a uma sociedade global go- tas cometidos dentro de suas fronteiras. A Espa-
vernada por regras justas devem ser computadas nha, em resposta às ameaças da ETA, a Itália, ao li-
entre as perdas de 11 de setembro. A queda do dar com as Brigadas Vermelhas, os Estados Uni-
Muro de Berlim trouxe a esperança de se consti- dos, enfrentando a explosão na cidade de
tuir uma ordem mundial fundamentada na lega- Oklahoma, todos mobilizaram os instrumentos
lidade internacional e com instituições fortaleci- de lei e a força policial. Ultrapassar os limites le-
das de cooperação mundial. Recentes debates e gais, como fez o governo espanhol, por algum
demonstrações sobre as políticas e os procedi- tempo, quando autorizou agentes do Estado a
mentos de comércio internacional e de organiza- usar métodos extrajudiciais para combater o ter-
ções financeiras assumiram a emergência de um rorismo, parece ter o efeito de aumentar o risco
governo de nível mais global. A questão tem sido de ataque.

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O mundo deveria responder às organiza- panhas de saúde e desenvolver muitas outras ati-
ções terroristas – essa é nossa sugestão – de acor- vidades, em dezenas de regiões do mundo
do com os mesmos princípios da lei empregada simultaneamente. Por outro lado, os Estados-
por esses governos para responder às organiza- membros negam-lhe regularmente os meios para
ções terroristas nacionais. Reagir aos atos e amea- cumprir tais missões, não apenas deixando de lhe
ças de terrorismo e às redes terroristas transnacio- prover fundos, mas também limitando a sua au-
nais com base em uma regulamentação não im- toridade. Quando os esforços da ONU se mos-
plica ser mais “brando” com os terroristas do que tram inadequados para solucionar problemas,
pelo uso de uma resposta de país para país perpe- como freqüentemente acontece, os líderes mun-
trada por um Estado hegemônico. Ao contrário, diais acusam a organização de ser indiferente e
a execução de uma lei cooperativa genuinamente inepta. Os Estados Unidos e outras potências
global seria mais eficaz na identificação e na mundiais não podem continuar a descarregar as
prisão de culpados, bem como na prevenção de conseqüências de suas guerras e decisões econô-
futuros ataques, ao mesmo tempo ferindo menor micas sobre as Nações Unidas, encorajando ao
número de pessoas e destruindo menos bens do mesmo tempo as pessoas a desdenhar da organi-
que a guerra contra o Afeganistão. zação.
Finalmente, a criação de um mundo mais A atual estrutura do Conselho de Seguran-
pacífico e justo exige mudanças básicas nas ça das Nações Unidas, com seus cinco membros
instituições políticas, econômicas e sociais. No permanentes refletindo a política global de 1945,
entanto, como temos de começar em alguma par- necessita de séria reforma. Esse Conselho de Se-
te, oferecemos a seguir cinco princípios capazes gurança, no entanto, aprovou duas resoluções
de nortear a política internacional, agora de modo após os ataques de 11 de setembro – a Resolução
significativo, para responder a ataques e proble- 1.368 (12/set./2001) e a Resolução 1.373 (28/
mas, e, ao mesmo tempo, favorecer tais objetivos set./2001) – solicitando a cooperação transnacio-
de transformação. nal entre todos os Estados-membros para deter e
investigar o terrorismo e outras atividades crimino-
1. Legitimar e Fortalecer as Instituições sas transnacionais. Se os líderes de governo se alias-
Internacionais sem aos movimentos sociais, os Estados Unidos
As ações e políticas que tratam o terroris- poderiam ser pressionados a apresentar esforços
mo e as ameaças de terrorismo como envolvendo multilaterais mais genuínos contra as redes crimi-
todos os povos do mundo dentro de uma regu- nosas transnacionais, possibilitando ao mundo
lamentação de lei deveriam utilizar organizações menos desenvolvido uma participação com maior
e instrumentos legais internacionais. O sistema tomada de decisão.
das Nações Unidas é absolutamente importante 2. Coordenar a Execução da Lei e da
aqui. Embora haja muitas imperfeições em seu Inteligência Reunindo Instituições por
projeto e em suas operações que deveriam ser todo o Mundo
corrigidas, as Nações Unidas são a única ins- O Congresso dos Estados Unidos tem
tituição transnacional com representação de qua- aparentemente pouco interesse em investigar
se todos os povos do mundo. Além disso, as como duas das mais sofisticadas organizações de
instituições, políticas e convenções das Nações investigação e inteligência no mundo – a CIA e o
Unidas cobrem muitos dos problemas mais ur- FBI – puderam ser pegos tão desprevenidamente
gentes do mundo. por um crime de tão grandes proporções. Suge-
Atualmente, a ONU está numa posição im- rimos que uma explicação é o fato de ambas as
possível. Por um lado, é chamada à cena para res- agências estarem centradas no Estado, assim
taurar a paz, estruturar governos e construir in- como as agências de investigação e inteligência da
fra-estruturas, auxiliar refugiados, conduzir cam- maioria dos países. Simultaneamente à maior or-

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ganização transnacional e ao movimento de capi- nal. Ela requisita, especificamente, assistência téc-
tal, trabalho, tecnologia e cultura se dão a orga- nica aos países menos desenvolvidos para melho-
nização e o deslocamento do crime. No entanto, rar sua capacidade de lidar com o crime organi-
as instituições de inteligência e execução da lei es- zado. Embora, nesse momento, essa convenção
tão muito atrás dessa realidade. seja pouco mais que um pedaço de papel, como
A inteligência continua a ser sobretudo um alguns outros tratados e convenções das Nações
instrumento usado por um país contra outros; Unidas, ela pode ser usada, por líderes políticos e
numa cultura de espionagem, um Estado envol- movimentos sociais, com o objetivo de exigir
ve-se em ações secretas em relação a outros Es- instituições e recursos que coloquem seus prin-
tados, explicitamente sem confiar uns nos ou- cípios em ação.
tros. As agências nacionais para o cumprimento Os Estados Unidos, juntamente com
da lei, ademais, possuem cada uma o seu próprio quaisquer outros Estados, podem agir para melho-
sistema, o que dificulta a comunicação e a coope- rar a cooperação internacional no cumprimento da
ração entre fronteiras. Os ataques de setembro lei, tanto doméstica quanto transnacional, bem
deveriam servir de alarme para reverter-se essas como criar e fortalecer agências globais. Isso im-
estruturas de inteligência e cumprimento de leis, plica romper a distinção estatista entre a polícia
permitindo maior cooperação entre agências, de interna e as agências de espionagem voltadas para
modo a proteger os cidadãos do mundo, e não os o exterior. Porém, a atual política adotada nos Es-
Estados. tados Unidos e em muitos países ocidentais man-
Existem alguns instrumentos internacio- cha essa distinção, seguindo na direção exata-
nais em que se basear para atingir tal propósito. A mente contrária. Ao permitir à CIA e ao FBI coo-
Interpol, a organização policial internacional, perar dentro dos EUA, o governo alimenta um
com 179 nações-membros, trabalha há décadas Estado interno mais repressivo, tornando-se, ao
contra o terrorismo, tráfico de drogas, lavagem mesmo tempo, mais defensivo e desconfiado ex-
de dinheiro, crimes de colarinho branco, crimes ternamente. A cooperação transnacional para
de computação, falsificação de dinheiro, crime cumprimento da lei deveria apresentar procedi-
organizado e tráfico de mulheres e de crianças. mentos de responsabilidade e transparência, de
Embora seu orçamento seja minúsculo, compa- modo a proteger os direitos dos indivíduos.
rado à tamanha tarefa, ela mantém vastos bancos
de dados de terroristas e criminosos conhecidos 3. Aumentar o Controle Financeiro
e suspeitos. Organiza informações sobre passa- Uma das maneiras mais inteligentes de ata-
portes falsos e cartões de crédito roubados que car as redes de terrorismo, e o crime organizado de
poderiam ser úteis aos agentes de cumprimento modo geral, é atingir o seu dinheiro. É surpreen-
da lei em quase qualquer país. No entanto, as dente que, embora Osama Bin Laden seja conhe-
agências de inteligência estatais pouco trabalham cido por chefiar e financiar operações terroristas
com essa organização e pouco acesso têm aos há anos, a Al Qaeda continuasse com liberdade
seus dados. para movimentar o capital necessário às suas ope-
Em sua reunião do milênio, em novembro rações. Por que ninguém, até agora, conseguiu
de 2000, a Assembléia Geral das Nações Unidas atacar suas finanças? Acreditamos que a resposta
adotou a Convenção contra o Crime Organizado está, em parte, no fato de os líderes comerciais
Transnacional, assinada já por 140 países, incluin- mundiais resistirem ao controle financeiro. As
do os Estados Unidos. Essa convenção exige dos empresas movimentam regularmente o seu di-
Estados fortalecer suas leis nacionais com alvo no nheiro por todo o mundo, por exemplo, para evi-
controle do crime organizado e os encoraja a me- tar o pagamento de impostos.
lhorar os sistemas de cooperação transnacional O rastreamento e o controle do movimen-
em perícia legal, extradição e investigação crimi- to de capitais podem secar seu fluxo para o sus-

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tento de atividades criminosas. Uma guerra con- processo judicial: cabe presumivelmente aos pro-
tra o livre fluxo de dinheiro não produz “prejuí- cedimentos judiciais determinar quem é e quem
zos colaterais”, não cria refugiados, nem polui o não é criminoso.
ar. Os Estados Unidos, sem dúvida, aumentaram Se os ataques de 11 de setembro fossem
sua capacidade de investigar e controlar os fluxos vistos como crimes contra a humanidade, e não
de dinheiro. Nessa área, obviamente mesmo a apenas contra os EUA, um tribunal internacional
mais admirável potência militar do mundo de- instituído pelas Nações Unidas, apoiado no mo-
pende de outros governos, sobretudo daqueles delo daqueles estabelecidos contra a ex-Iugoslá-
que desgostam da política externa dos Estados via e Ruanda, com juízes de países ocidentais e is-
Unidos. Essa cooperação, tão necessária, é difícil lâmicos, seria o apropriado. Isso também teria a
de ser mantida quando os mesmos governos ou vantagem de não aparecer como um conflito en-
seus aliados enfrentam ameaças militares ou en- tre os Estados Unidos e o Islã, mas entre toda a
cobrem as operações da inteligência dos Estados comunidade internacional e um grupo limitado
Unidos. de criminosos. No final, tribunais ad hoc seriam
cedidos a uma Corte Criminal Internacional per-
4. Usar Cortes Internacionais manente, aprovada por tratado firmado em Ro-
Os Estados Unidos responderam aos ata- ma, em julho de 1998 (com a oposição dos EUA),
ques e ameaças de terrorismo num plano de Es- e lentamente ratificada pelos países ao redor do
tado a Estado somente enquanto isso lhes servia mundo.
para atingir seus objetivos. Ao se recusarem a tra- Ouvimos diversos argumentos contrários à
tar os capturados na guerra contra o Afeganistão adoção de cortes internacionais para o julgamen-
como prisioneiros de guerra, abandonam essa es- to de pessoas suspeitas de praticar ou contribuir
trutura estatista. A administração Bush argumen- materialmente com atos terroristas. Afirma-se
ta que os prisioneiros são combatentes ilegais, que é muito lento, muito caro e daria aos terro-
não cobertos pela lei internacional aprovada na ristas um fórum para divulgar suas idéias. Consi-
Convenção de Genebra. Ao mesmo tempo, os deramos falsas todas essas razões. Um processo
EUA decretam a não aplicação de seus princípios judicial em âmbito internacional não seria mais
nacionais de processo judicial a suspeitos não-ci- lento do que em âmbito nacional; a rapidez bus-
dadãos, presos no país ou em qualquer outra par- cada pelos Estados Unidos parece ser à custa do
te. Dessa forma, proclamam diante do mundo processo jurídico. Não deve, igualmente, ser
que não concederão a proteção da lei a qualquer muito mais caro um julgamento internacional
não-americano preso desde então e afirmando ter que um nacional, se ambos forem justos. Por fim,
ligações com o terrorismo. Essa postura é tão ul- qualquer procedimento judicial público, em qual-
trajante que fomentou dissensões até mesmo no quer nível, oferece oportunidades para os atores
interior da administração Bush e de seu aliado expressarem seus pontos de vista acerca dos su-
mais leal, a Inglaterra. Em resposta, o governo postos crimes; para isso eles existem e, por isso,
norte-americano alterou levemente sua posição, naturalmente, os tribunais militares planejados
mas não seu tratamento aos prisioneiros. pela administração Bush não serão abertos ao pú-
O vice-presidente dos Estados Unidos, blico.
Cheney, disse que “Os terroristas não merecem
as mesmas garantias e salvaguardas dadas aos ci- 5. Reduzir as Desigualdades Mundiais
dadãos americanos que enfrentam o processo ju- Desde setembro de 2001, muitos comenta-
dicial normal”.1 Tal afirmação revela o desprezo ristas têm sugerido que as imensas disparidades
de Cheney aos princípios mais elementares do de riqueza e bem-estar entre as sociedades do
Hemisfério Norte, como EUA, UE ou Japão, de
1 International Herald Tribune, 16/nov./2001, p. 5. um lado, e Oriente Médio e Sul da Ásia, de outro,

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devem ser consideradas na compreensão das cau- dos poderosos atores econômicos do mundo pa-
sas e motivos que levam os indivíduos a se unir rar com a exploração de seus recursos e trabalha-
ou formar grupos terroristas. Concordamos com dores e iniciar programas de verdadeiro investi-
aqueles que afirmam que tais injustiças estrutu- mento na infra-estrutura e nos seres humanos
rais não justificam nem desculpam atos crimino- dos países pobres. Ainda assim, o mundo desen-
sos. Essas circunstâncias também não explicam volvido permanece indiferente a essa calamidade.
os atos terroristas, pois há inúmeros lugares po- A assistência oficial para o desenvolvimento dos
bres onde não há pessoas ligadas a organizações países da OECD foi de 0,24% da soma de seus
terroristas internacionais. PIBs, e os fundos privados também são insignifi-
Imensa parcela da população mundial vive, cantes. Enquanto escrevemos este artigo, algo em
entretanto, em situação de pobreza deplorável. torno de 60 mil pessoas chegam a Porto Alegre,
Acreditamos, assim como muitos outros, tanto no Brasil, para uma segunda reunião anual de or-
nos países menos desenvolvidos como nas regiões ganização de campanhas transnacionais de auxílio
mais adiantadas do mundo, que essa pobreza per- mútuo, educação pública, pressão e protesto por
siste, pelo menos em parte, por conta das políti- justiça econômica global.
cas dos países ricos, das empresas privadas esta- Mesmo a administração Bush não pode dei-
belecidas nesses países e de organizações interna- xar de reconhecer esse imperativo moral. Os EUA
cionais em que esses países e corporações ricos não tiveram como ficar de fora do encontro patro-
possuem poder desproporcional. Porém, até cinado pelas Nações Unidas para a reconstrução
mesmo os céticos em relação a essa afirmação de- do Afeganistão, em janeiro de 2002, como ti-
veriam condenar a aparente relutância dos povos nham feito na Conferência sobre o Racismo, em
e governos dos Estados Unidos, Europa e Japão agosto de 2001, e na Conferência sobre Mudan-
em efetuar significativa transferência de capital, ças do Clima, em dezembro do mesmo ano. No
capacidade tecnológica e bens, no sentido de ele- encontro de janeiro de 2002, os Estados Unidos
var a qualidade de vida das populações mais po- ofertaram meros 300 milhões de dólares para o
bres. Não resta dúvida de que tal indiferença em primeiro ano, e o Japão e a Europa ofereceram,
meio à abundância alimenta o ressentimento em cada um, 500 milhões de dólares para os primei-
muitos cantos do mundo, colocando em risco a ros dois anos e meio de reconstrução afegã. O
paz e a prosperidade para muitos dos que vivem Banco Mundial estima que pelo menos 4,9 bi-
fora das favelas. lhões de dólares serão necessários aos primeiros
Em outro momento trágico da história, a dois anos e meio para ajudar a reerguer minima-
derrota do fascismo no final da 2.ª Guerra Mun- mente esse país. Mesmo nesse momento de crise,
dial levou os EUA a entender que sua segurança e as nações ricas permanecem inacreditavelmente
prosperidade dependiam do renascimento da Eu- mesquinhas, e os povos pobres do mundo estão
ropa. Para permitir que isso ocorresse, esse país observando-as.
dedicou imensa quantia de recursos ao Plano O mundo não poderá caminhar para um
Marshall, a fim de reconstruir a infra-estrutura de governo justo, inclusivo e efetivo sem uma maior
sociedades européias devastadas. Desde então, realocação das capacidades econômicas, tecnoló-
nunca houve outro programa de auxílio ao desen- gicas e organizacionais a fim de reduzir as atuais
volvimento em tão grande escala, nem tão eficaz. disparidades globais na qualidade de vida e na or-
Isso ter acontecido uma vez deveria dar esperan- dem institucional. Para isso, necessita de novas e
ça de que, havendo vontade, pode-se abrir o ca- mais fortes instituições internacionais, mais re-
minho ao investimento em sociedades pobres, presentativas das vozes e perspectivas de todos os
para lhes possibilitar florescer. povos do que as atuais instituições internacionais
Durante décadas, movimentos sociais e go- de financiamento e desenvolvimento, como o
vernos do mundo menos desenvolvido exigem Banco Mundial, e com maior capacidade de pro-

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mover a redistribuição global. Sem um equivalen- der ao crime organizado transnacional só conse-
te global do Plano Marshall, mesmo os esforços guirão ser defensivos e intermitentes em sua efi-
cooperativos mais bem projetados para respon- cácia. Se não há justiça, não há paz.

Dados das autoras


DANIELE ARCHIBUGI
Dirigente do Consiglio Nazionale delle Ricerche
(Itália) <http://www.cnr.it>
IRIS MARION YOUNG
Professora de ciência política na University of Chicago.
Entre outros, publicou Justice and the Politics of Difference
(Princeton University Press, 1990), Intersecting Voices:
dilemmas of gender, political philosophy, and policy (Princeton
University Press, 1997) e Inclusion and Democracy
(Oxford University Press, 2000).
Recebimento artigo: 18/fev./02
Consultoria: 26/ago./02 a 6/jan./03
Aprovado: 24/fev./03

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Imagen y Conocimiento
Escolar: el Orbis Sensualium
Pictus, primer manual
ilustrado
IMAGE AND SCHOOL KNOWLEDGE:
THE ORBIS SENSUALIUM PICTUS, FIRST
ILLUSTRATED MANUAL
Resumen Una rápida mirada en torno a las innovaciones pedagógicas actuales no pu-
RUBÉN BISELLI
ede obviar el papel decisivo otorgado en las mismas a la imagen en cualquiera de sus
Universidad Nacional de
diferentes soportes. Esto se torna evidente en la renovación de las propuestas edito- Rosario, Argentina
riales referidas a los textos escolares, en las cuales la imagen ha devenido un organi- rbiselli@fcpolit.unr.edu.ar
zador central e insoslayable de la información. Si la extensión y la generalización inu-
sitadas de este dispositivo induciría a pensar en una radical novedad, el análisis del mis-
MARIA DEL CARMEN
mo desde una perspectiva histórica permite comprenderlo como parte de un proceso
FERNÁNDEZ
plurisecular que se remonta a los orígenes mismos de la Modernidad, con la aparición
Universidad Nacional de
en 1658 del primer “manual” ilustrado: el Orbis Sensualium Pictus de Comenio, en
Rosario, Argentina
cuyo análisis nos centraremos en el presente trabajo. mcfer@ciudad.com.ar
Palabras clave TEXTO ESCOLAR – IMAGEN – MODERNIDAD – COMENIUS.
MARIA ELISA WELTI
Abstract A quick glance at current pedagogic innovations cannot ignore the decisive Universidad Nacional de
role that has been granted to image – in any of its means of support. This is evident Rosario, Argentina
arcano@tau.org.ar
in the renewal of publishing proposals pertinent to school texts, in which image has
become a central and unavoidable means of organizing information. If the infrequent
extension and generalization of this device would lead one to think of a radical no-
velty, then its analysis from a historical perspective allows it to be understood as part
of a plurisecular process that dates back to the origins of Modernity with the appe-
arance, in 1658, of the first illustrated “manual” – the Orbis Sensualium Pictus of Co-
menio –, on which this paper will focus its analysis.

Keywords SCHOOL TEXT – IMAGE – MODERNITY – COMENIUS.

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L
as formas escolares del conocimiento suponen un
campo de definiciones sociales acerca del sujeto y de
sus representaciones que remiten a estrategias de orga-
nización del saber en tanto saber enseñable. Los “for-
matos escolares”1 se sustentan en una racionalidad, una
lógica, ordenadora y ordenada del mundo. En este te-
rritorio se pueden identificar algunos dispositivos que
operan como un mapa, en los que se establecen prio-
ridades, órdenes, jerarquías, secuencias, ritmos.
Uno de esos dispositivos es el libro de uso escolar. La expansión de
los saberes escolares se encuentra ligada a la escritura y a los soportes tex-
tuales, entre ellos particularmente al mencionado libro de uso escolar. Li-
bro que, tanto por su formato como por su utilización, se tornó orde-
nador de tiempos, de espacios, de conocimientos y de conductas. Sopor-
te que, no sólo “traduce” y “simplifica” los saberes, sino que promueve
una determinada apropiación de ellos. El manual, en definitiva, intenta
compendiar el saber que el alumno debe aprender. En este sentido se or-
ganiza igual que el curriculum, a partir de una lógica regida por los prin-
cipios de totalidad y completud.
El objetivo de este artículo es indagar la compleja relación entre so-
porte tecnológico y conocimiento escolar, centrando nuestro análisis en
una configuración histórica precisa de dicha relación: el momento en el
que, por primera vez, aparece la imagen impresa como elemento de peso
en los textos escolares. En especial, nos detendremos en un texto que
creemos esencial para caracterizar dicha configuración histórica: el Orbis
Sensualium Pictus, de J. Amos Comenius,2 publicado por primera vez en
1658.
La elección no es aleatoria: por un lado, el Orbis se constituirá a
partir de su éxito y de la utilización sistemática de su formato innovador
en un paradigma del texto escolar moderno;3 por otro, pone en escena de
manera ejemplar la conjunción necesaria y las tensiones ineludibles entre
las tres fuerzas que han regido las grandes mutaciones pedagógicas de la
Modernidad: tranformaciones del saber, innovaciones tecnológicas co-

1 CULLEN, C. Crítica de las Razones de Educar. Buenos Aires: Paidós, 1997, p. 36.
2 J. Amos Comenius (1592-1670), nacido en Moravia, conocido reformador de la enseñanza, escribió
una gran cantidad de textos dedicados a la educación.
Nota do Editor: Comenius é considerado um dos mais importantes filósofos da educação alemães. Na
verdade, nasceu no que é, nos dias de hoje, a República Tcheca (anteriormente Morávia, uma parte do
Império Alemão, mais exatamente, da Prússia), com o nome Jan Amos Komensk_. A variável latina do
seu nome é Iohannes Amos Comenius; a alemã, Johann Amos Commenius; e a espanhola, Juan Amos
Comenio.
3 El texto escrito por Comenius fue un éxito inmediato y, al año siguiente de su primera edición, se
publicó en Londres en una versión latina e inglesa. Posteriormente se hicieron numerosas ediciones en
diferentes idiomas. Se inicia asi una tradición de libros de texto destinada a ponerse en las manos mismas
de los niños. A todo lo largo del siglo XVIII fueron apareciendo también otros libros de texto ilustrados,
que reflejaban la influencia del Orbis. Uno de los más notables fue el New England Primer, que se publica
por primera vez en 1690. Más tarde, en 1770, Basedow publica en Leipzig su Cartilla Elemental o Das
Elementawerk que es una mezcla de consejos para padres y libro ilustrado de primera lectura para los
niños siguiendo la línea “enciclopédica” definida por el Orbis. Cf., a esse respecto, BOWEN, 1985.

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municacionales y cambios en las propias teorías y lidad” y que no son ajenas al desarrollo creciente
prácticas pedagógicas. de la burguesía ni a sus intereses.
Entender, pues, qué se juega en el Orbis es, Esta perspectiva es acompañada por una re-
sin dudas, visualizar cómo aparece en un momen- valorización de lo cotidiano – de la vida cotidiana
to en que esas fuerzas consolidan un desarrollo burguesa, sus usos y sus objetos –, de la indivi-
que se anticipa en el Renacimiento y tienden ha- dualidad, de lo privado, tal como puede apreciar-
cia una complementación que posibilita una mu- se en no pocas pinturas de carácter “intimista”
tación pedagógica, pero es también visualizar
(particularmente del arte flamenco o del barroco
cómo en el texto mismo sus tensiones diagraman
holandés) que revelan esta dimensión y nos in-
problemáticas y sueñan pequeñas utopías que to-
troducen en un siglo ávido de instalar al hombre
davía hoy tienen algo que decirnos sobre las com-
plejas relaciones entre pedagogía, tecnología y sa- y sus ámbitos en todos los territorios. Como ve-
ber. Trabajemos, pues, en ambos sentidos. remos más adelante el Orbis da cuenta de esta
nueva “cotidianeidad” así como de la importancia
ENSEÑANZA, SABER Y MODERNIDAD central que asume la mirada (lo sensorial) – ins-
La modernidad inaugura un tiempo signa- cribiéndose en la tradición empirista de la época
do por transformaciones en diversos órdenes. – en el proceso de aproximación al saber, que ob-
Los saberes, su producción y distribución, se viamente es ya un saber de las cosas, del mundo,
constituyen en uno de los ámbitos de renovación de la naturaleza.5
radical. Ya en el Renacimiento se produce un vi- En este contexto pródigo en transformacio-
raje que posiciona al hombre en el centro de la es- nes hace su aparición la escuela moderna, en un
cena del pensamiento moderno y desde allí da escenario marcado además por la Reforma y las
origen a una actividad de indagación metódica e guerras religiosas sin el cual es imposible pensar
incansable de la naturaleza y del mundo todo. Se en la emergencia de esta nueva institución. El
definen, entonces, nuevos códigos frente al co- conflicto religioso obliga a las iglesias a replante-
nocimiento, que se torna en sí mismo objeto de arse la comunicación con sus fieles: católicos y
reflexión. Reflexión sobre el conocimiento que protestantes inician una ofensiva doctrinaria con
conducirá, más adelante, en definitiva al desarro- la finalidad de reforzar las creencias. Esto condu-
llo de las posiciones filosóficas que se definen y
ce a la preocupación por sistematizar las modali-
se polarizan como empiristas o racionalistas, pero
dades de transmisión, especialmente en lo referi-
que en uno u otro caso sitúan como cuestión
do a la catequización de la infancia,6 situación
central la preocupación por el método y su cre-
ciente sistematización. que, en definitiva, genera un paulatino desplaza-
El énfasis que sitúa al conocimiento en la ór- miento: el sacerdote o ministro y los ritos litúr-
bita del hombre y de la naturaleza le adjudica a los 5 Esto se hace evidente en Comenius y sus obras, a pesar de Comenius
sentidos y, fundamentalmente, a la observación – mismo, en quien encontramos aún una fuerte impronta de un pensa-
tal como señalan las vertientes empiristas – una di- miento religioso metafísico que se conjuga, de modo a veces complejo
y paradójico, con estas transformaciones propias ya del pensamiento
mensión antes impensada e impensable. Por otra moderno. En este sentido, afirma Fernández Enguita que resulta difícil
parte, Bacon,4 en la temprana modernidad, expli- conciliar el misticismo y el sensualismo de Comenius. Cf. FERNÁN-
DEZ ENGUITA, M. “Introducción”. In: COMENIUS, J.A. Didác-
cita esta nueva relación entre el hombre, el saber y tica Magna. Madrid: Akal, 1986.
la naturaleza, formulando la importancia (y la ne- 6 Aries (1990) señala que la infancia como la conocemos en la actuali-
dad comienza a configurarse en sentido amplio y poco delimitado fun-
cesidad) del carácter “práctico y operativo” del co- damentalmente a partir del siglo XVI. Durante el siglo siguiente se
nocimiento. Categorías estas que destacan la “uti- continúa esta construcción separando la infancia de la juventud y adju-
dicándosele una serie de características. En este sentido, puede afir-
marse que “la infancia fue minuciosa y puntualmente construida en
4 Nos referimos al inglés Francis Bacon (1561-1626) cuya influencia una sutil trama de dispositivos discursivos e institucionales” (NARO-
en el pensamiento de Comenius (al igual que en el de buena parte de DOWSKI, M. & BAQUERO, R. ¿Existe la infancia? Revista IIC.
sus contemporáneos) no puede dejar de señalarse. Buenos Aires, (4): 65, 1994).

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gicos son reemplazados paulatinamente por la es- En ese momento también la escuela se convierte
cuela, la alfabetización y el libro. en un lugar que articula alfabetización y formación
Dentro de la cultura religiosa, es posible di- religiosa.
ferenciar entre la tradición católica y la protestan- Los siglos XVI y XVII constituyen el esce-
te. Los reformadores se caracterizan por, en pri- nario donde se produce la operación de “elemen-
mer lugar, proponer un retorno a la doctrina, y en talizar” a las ciencias sagradas, mediante el uso de
segundo lugar, eliminar la figura de mediador que catecismos, para ser enseñados en las escuelas. La
tenía el clérigo en la otra tradición, en la medida invención de la imprenta contribuyó a la difusión
en que cada sujeto es el responsable de su propia de un conjunto de saberes que fueron considera-
salvación. En este sentido, la alfabetización fue dos necesarios y demandados por la sociedad de
considerada necesaria para el aprendizaje de la la época, de manera que los sujetos debían apren-
doctrina. El protestantismo promovió la apertura derlos. Su distribución la monopolizó la escuela,
de escuelas elementales para su enseñanza. Lute- y entre ellos se destacaron la lectura y la escritura.
ro además de traducir las Sagradas Escrituras del Pronto se convirtieron en los “saberes elementa-
latín a la lengua vulgar, solicitaba a los alcaldes de les” que son, de este modo, una invención mo-
las ciudades el apoyo material y político para la derna al igual que la escuela.7
apertura de escuelas que permitiesen enseñar a la
vez la lengua vernácula y la palabra divina. En este LOS SOPORTES EN LA ENSEÑANZA:
sentido, Hebrard señala que fue el calvinismo el NUEVOS USOS, NUEVAS PRÁCTICAS
que aportó dos instrumentos que articularon al-
Este proceso de configuración de los sabe-
fabetización y catequesis: un abecedario que uti-
res elementales y enseñables, que se opera con-
lizaba la lengua francesa en lugar del latín para los
juntamente con la aparición de la escuela como
primeros textos de lectura y un catecismo, impre-
ámbito específico de transmisión de conocimien-
so en 1542 y destinado a los niños y no a quienes
tos, se conjuga con la generalización del uso de
les enseñan, compuesto por la alternancia de pre-
las nuevas tecnologías de impresión. Es de este
guntas y respuestas fácilmente memorizables.
modo que el libro de texto escolar asume un lu-
Como respuesta, la Contrarreforma crea el gar central en la dinámica pedagógica.
Catecismo Romano pero con dos diferencias: es-
El libro escolar, soporte físico y objeto/espa-
taba escrito en latín y estaba dirigido al sacerdote.
cio privilegiado de los procesos de lectura, se cons-
La Iglesia católica no adoptó enseguida una cate-
tituye como un lugar de registro escrito, cuya inten-
quesis que utilizara como soporte el libro; la lec-
ción es la lectura, a diferencia de otros elementos es-
tura y la escritura eran saberes que en manos de
colares como el cuaderno o el pizarrón. Las prácti-
los laicos inspiraban desconfianza: en primer lu-
cas escolares lo han “naturalizado”, apareciendo su
gar, por considerar que el sacerdote es el interme-
configuración como la única posible, sin advertir
diario entre las Sagradas Escrituras y los fieles; y
que se trata de un producto histórico – cultural.
en segundo lugar, porque asociaba los “errores”
de la Reforma con la difusión de la imprenta. A 7 Según Hebrard tanto la lectura y la escritura, antes de ser incorpora-
estas dos cuestiones se debe agregar un problema dos como saberes elementales en las escuelas, fueron saberes proce-
dentes de ambientes profesionales específicos. Por un lado, la cultura
difícil de resolver, ya que si bien la predicación se de los clérigos durante el período escolástico, produce una nueva arti-
efectuaba en lengua vernácula, los textos sagra- culación entre lectura y escritura que se manifiesta en el hecho de que
los copistas de manuscritos comienzan a atender a la lectura, y los lec-
dos estaban escritos en la lengua litúrgica oficial, tores empiezan a aprender a escribir. Por otro lado, entre los siglos XIII
es decir, en latín. Hasta casi finales del siglo XVII, y XV, el desarrollo del comercio en las ciudades y la progresiva comple-
jidad que van adquiriendo los procesos de producción y circulación de
cuando se comienza a utilizar la imprenta en la mercancías, propician, de hecho, la difusión de las prácticas de escri-
edición de pequeños catecismos diocesanos para tura y lectura – en este caso, obviamente, en las lenguas vernáculas en
procesos de consolidación – referidos al registro de transacciones y a la
el uso de los niños, la transmisión de la doctrina comunicación en los ámbitos del comercio y de la vida privada. Cf., a
católica sigue vinculada a la memorización oral. este respecto, HERBRARD, 1989.

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De este modo, la escritura y el libro, en tan- el texto. Hay una gradualidad, un orden que se
to tecnologías, promueven un modo de conoci- insinúa en el modo en que se organiza el libro de
miento y no otro. La aparición del libro de uso texto: el saber que en él se propone es ya un saber
escolar no implicó solamente un cambio de tec- escolarizado.
nología, o un elemento didáctico más, sino que Siguiendo el itinerario que el libro de uso
constituyó un elemento pedagógico estructuran- didáctico recorre en la modernidad, encontramos
te que formó parte de una propuesta político-pe- que otro de los textos producidos y empleados
dagógica más general. especialmente en la enseñanza parece haber sido
Es en el transcurso del Renacimiento cuan- el del jesuita irlandés del Colegio de Salamanca,
do comienza a operarse una renovación en los li- William Bateus, que en 1611 había preparado un
bros de texto empleados para la enseñanza, en libro para enseñar el latín a través del español ver-
primera instancia, de las lenguas clásicas. Hasta náculo, colocando ambos textos en columnas pa-
este momento se utilizaban para su enseñanza la ralelas: el Janua linguarum. Este texto ejerce una
gramática de Donato, que data del siglo IV, y la de singular influencia en los que le siguen. En esta tra-
Alejandro, elaborada en el siglo XII.8 En ambos dición se inscribe Comenius cuando publica en
casos el “método” que subyace en los textos em- 1631, en Lezno, su Janua Linguarum Reserata, una
pleados apunta a la repetición y al uso de la me- sencilla compilación sobre una amplia variedad de
moria como elemento central dentro del proceso temas, que tenía el mismo objetivo: enseñar el latín
de enseñanza-aprendizaje. La oralidad, el texto en simultáneo con una lengua vernácula.10
verbalizado, la lectura en voz alta, constituyen De este modo, la primera renovación de los
elementos de este proceso. libros de uso escolar se da fundamentalmente en
Más adelante, en el 1500, Erasmo publica los textos de gramática a partir de los siglos XV y
Adagios, una compilación de proverbios emplea- XVI. Esta renovación tiene como rasgos caracterís-
dos para la enseñanza del latín. En 1512, publica ticos: el uso paralelo – por lo general en columnas
su segundo manual escolar De Copia Verborum, – de la lengua vulgar con el latín, la explicación de
una breve antología de autores clásicos. Estaba las reglas latinas en el idioma vernáculo del alumno
pensado como un libro de gramática para niños: y la tentativa de usar caracteres de imprenta para
trata en su primera parte del vocabulario y en la estimular el aprendizaje visual. También se incluye
segunda articula ese vocabulario en frases y pasa- en algunos textos el uso sistemático de lo que hoy
jes completos. De este libro se hicieron aproxi- denominamos cuadros sinópticos.
madamente treinta ediciones en los siguientes Vemos, entonces, que aparece una intencio-
cincuenta años. La figura de Erasmo no carece de nalidad visual en la organización de estos textos:
importancia para comprender el devenir de los en el uso de columnas, en el tipo de caracteres que
textos escolares, puesto que su propuesta peda- se emplean y en el modo “gráfico” de su disposi-
gógica se sitúa en torno a determinados textos se- ción. Aún no encontramos imágenes o ilustracio-
leccionados especialmente para la enseñanza de nes, pero sí una clara vocación gráfica que apela a
modo que “la forma de leerlos e interpretarlos se un modo de leer, de mirar, de organizar el conoci-
convirtió en la base de lo que se entendía por co- miento de modo que sea visualmente “atractivo”.11
nocimiento”.9 En estos textos encontramos ya la
10 BOWEN, 1985, p. 128.
idea de que el libro debe ser usado como “herra- 11 En este sentido, Chartier (1995) menciona “nuevas formas de legibili-
mienta” por el alumno: la intención que subyace dad” vinculadas a las variaciones de las modalidades más formales de pre-
sentación de los textos y cómo éstas modifican el registro de referencia y
es que se acceda directamente al conocimiento a el modo de interpretación. Menciona Chartier a Henry-Jean Martin,
partir de la lectura guiada, pautada, que propone quien ha trabajado las mutaciones de la impresión en los siglos XVI y
XVII, apuntando que lo que más se destaca es el triunfo definitivo de los
blancos sobre los negros, la “ventilación” de la página por el uso del
8 Cf., a este respecto, BOWEN, 1985. párrafo, que rompe la continuidad ininterrumpida del texto, y la de los
9 LUNDGREN, 1997, p. 27. punto y aparte que permiten visualizar el orden discursivo.

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Este tipo de organización textual generó esenciales: la Didactica Magna y el Orbis Pictus.
con su uso cambios en los modos de lectura, y Comenius es sin dudas el precursor de la escuela
dio lugar a un modo de lectura “escolar” al dife- de las “lecciones de cosas” del “método objeti-
renciar las lecturas realizadas dentro y fuera de la vo”, de los “subsidios didácticos” – los más inge-
escuela. Es así que, el manual12 puede ser consi- niosos y perfectos posibles – y, quizá también, de
derado a la vez como producto escolar y produc- los experimentos públicamente verificados por el
tor de saberes escolares, como legitimador de maestro.13 En sus textos la enseñanza se define a
sentido de la dinámica escolar y generador de sa- partir de una normatividad altamente estructura-
beres vinculados a los modos de conocer que la da, con sólidas prescripciones acerca del saber ha-
escuela propone. Dentro de estos últimos se en- cer del maestro para lograr el deber ser del mo-
cuentran aquellos saberes necesarios para poder delo pedagógico propuesto. Con él se instauran
operar con él, ya que como producto social y cul- algunos de los más relevantes mecanismos que
tural específico requiere para su utilización de la configuran las ideas y las prácticas pedagógicas
elaboración, enseñanza y aprendizaje de un con- modernas, algunos de los dispositivos fundantes
junto de reglas que posibilitan su funcionamien- de las nuevas relaciones educativas propiciadas
to. Algunas son comunes a las utilizadas para por la Pedagogía; sobre todo los que tienen que
operar con otras tecnologías de lectura, y otras ver con algunos de sus organizadores básicos: la
solamente tienen sentido dentro del ámbito es- simultaneidad, la gradualidad y la universalidad.14
colar. El proceso de construcción de reglas de esa Estos organizadores pedagógicos dan
modalidad de lectura está determinado tanto por cuenta de los modos de conocer así como de las
la conformación material del libro como por las concepciones modernas acerca del mundo y de lo
prácticas propias de la institución escolar. real, de un universo que se define como accesible,
En síntesis, el uso de los textos anteriores al aprehensible, ordenado. El conocimiento se basa
Renacimiento suponía un mínimo de elementos: en un equilibrio, en una armonía, donde hay una
un maestro que lee o explica y alumnos que sim- linealidad, una gradualidad, una lógica. Esta lógica
plemente se limitan a escuchar y repetir. A partir para pensar y conocer es la lógica de la racionali-
del Renacimiento, y en consonancia con la inven- dad moderna. La lógica clasificadora, nominadora
ción de la imprenta, el abaratamiento del papel y del mundo.
la difusión de la pizarra, aparecen otros libros de El orden, categoría central del pensamiento
texto diseñados para el uso por parte de los mis- moderno, alcanza en Comenius tanto al método
mos niños, y se introduce también, en el ámbito de enseñanza como al saber mismo que ha de ser
escolar, otra tecnología que se tornará central en enseñado. Esta intencionalidad puede percibirse
el proceso didáctico moderno: el cuaderno de no- con claridad en toda su obra. Participa de una vi-
tas. Ambos elementos, el libro para uso del alu- sión utópica, fuertemente teñida por sus creencias
mno y los cuadernos, suponen una nueva orga- religiosas: su pretensión es la de crear una panso-
nización pedagógica de la clase y un nuevo modo fía o ciencia universal. Pretensión que se sustenta
de pensar la relación entre maestros, alumnos y en la idea de que todo puede conocerse puesto
conocimiento.
13 Cf., a este respecto, ABBAGNANO, 1987.
Es en este contexto de transformación me- 14 Comenius instala una simultaneidad en dos niveles, por un lado la
tódica y tecnológica de la Pedagogía en el que hay simultaneidad sistémica, todas las instituciones al mismo tiempo con el
mismo currículum y, por otro, una simultaneidad institucional, esto es,
que evaluar históricamente el papel jugado por J. un docente frente a un grupo homogéneo de alumnos (lo cual supone
Amos Comenius y, sobre todo, de sus libros como mecanismo la gradualidad, que es un proceso central en la peda-
gogización). Esta simultaneidad sistémica, principio de homogenei-
dad, implica que no solamente todos deben ir a la escuela sino que
12 Este uso del libro por parte de los mismos alumnos lo predetermina todos deben ir al mismo tiempo (en lo que respecta a la edad, a la época
como un soporte de fácil manipulación, cabría decir entonces que se del año y a las horas del día). Comenius propone uniformidad en todo,
trata de un libro manuable o manual, destinado a ser portado por en el método, en lo que se ha de enseñar etc. Cf., a este respecto,
niños. NARODOWSKI, 1994.

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que participa de un orden que es común y que Imagen del cap. II: El mundo (COMENIO, J.A. Orbis Sen-
nos es común. En este sentido, afirma Bowen sualium Pictus).16
que “Comenius había decidido reformar todo el
conocimiento sobre la base de una ordenación
apropiada” (...) “todo el mundo es uno y el co-
nocimiento también lo es. Alcanzar el conocimi-
ento equivale a llegar hasta Dios: al conseguir una
visión totalmente unificada de toda la existencia
corpórea y espiritual, el hombre realiza su fin na-
tural. De ahí se seguirán necesariamente la armo-
nía y la paz. Tal era la gran visión educativa de
Comenius: sencilla, precisa, incitante”.15
De este modo, Comenius sienta las bases
de la estructura escolar moderna aún cuando su
objetivo último era lograr la difusión del mensaje
divino. Su propuesta parte de un orden natural Cada uno de los capítulos posee una ilustra-
incuestionable, en tanto que orden instaurado ción, en blanco y negro, grabada en madera; el cor-
relato entre texto e imagen se encuentra pautado,
por Dios: de este gran supuesto deriva su método
cada segmento del texto tiene su correlato en la
de enseñanza. A través de un conjunto de expli-
imagen que lo ilustra. Para que la evidencia de esta
caciones y normas establece que el conocimiento correlación sea seguida por el lector encontramos
puede ser sistematizado y luego puede ser trans- que en las ilustraciones hay números indicadores
mitido. El encargado de esa transmisión es el ma- que tienen su respectivo segmento, también nu-
estro, quien ocupa un lugar central, ya que es el merado, en el texto escrito. En la primera edición,
responsable de mostrar el orden presente en la el texto aparecía organizado en columnas paralelas,
naturaleza. Ese orden debe ser mostrado ordena- el latín a la izquierda y el alemán a la derecha. In-
damente. El secreto reside en el respetar un mé- cluía una rara combinación de cuatro tipos de letra,
todo especialmente formulado para garantizar los apareciendo el texto latino con los caracteres ro-
aprendizajes. Y el libro escolar es parte central de mánicos acostumbrados, y el alemán con negrita o
dicho método y, es por ello, por lo que Comenius letra gótica y con tipos más destacados para las pa-
labras especialmente enumeradas.17
se abocará a la tarea de elaborar un texto escolar
específico: el Orbis Sensualium Pictus.
LA IMAGEN IMPRESA COMO
Hacia 1650 Comenius elabora en Hungría
TECNOLOGÍA DE COMUNICACIÓN
el borrador del Orbis, que consistía en una sim-
CIENTÍFICA Y PEDAGÓGICA
plificación del Janua – ya mencionado – con ilus-
Como ya hemos explicado, una de las in-
traciones añadidas. El texto finalmente se publica
novaciones esenciales del Orbis, en tanto manual
en 1658 en latín y en alemán. De reducidas di- escolar, consiste en la utilización sistemática de
mensiones, pero con la intención de poseer un al- imágenes impresas como estrategia didáctica.
cance enciclopédico, se organiza en torno a una Ahora bien, más allá de la extensa tradición
tecnología educativa innovadora: el empleo de que vincula el conocimiento con la imagen, nos
imágenes impresas en libros destinados a la en-
señanza elemental. 16 Imagen tomada de la edición con tres columnas paralelas (inglés,
español y latín) de Miguel Angel Porrúa Ed. (México, 1996).
17 El uso de esas técnicas de énfasis visual en un libro escolar también
15 BOWEN, 1985, p. 130. constituyó una innovación considerable. Cf. BOWEN, 1985, p. 127.

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encontramos aquí con una tecnología – la de la de finales del siglo XV, tal vez sintamos tentacio-
imprenta – que posibilitó su articulación sistemá- nes de reír ante la mayoría de ellos, pero sigue en
tica a partir de mediados del siglo XV, con la pu- pie el hecho de que eran obras muy serias que
blicación de los primeros libros ilustrados con xi- transmitían la mejor información posible dadas
lografías. las circunstancias”.19
Los logros de la imprenta como tecnología En este sentido, el Orbis, se hace cargo de
comunicacional han sido circunscriptos, en gene- esa tradición casi bicentenaria de la imagen im-
ral, a la difusión masiva de la palabra escrita; po- presa de carácter informativo – científico y explo-
cos se han ocupado, en cambio, de las transfor- ra sus potencialidades cognitivas y motivadoras
maciones que operó en la difusión de imágenes y para los inicios de la enseñanza elemental. Más
en las implicancias de dicha transformación. Un aún, en muchos casos se torna evidente que cier-
ejemplo pionero en este sentido fue el del libro tas xilografías emigran directamente de los libros
de Ivins Jr. Imagen Impresa y Conocimiento – pu- científicos – entendiendo este término en su de-
blicado en los años 50 – que defiende la tesis que bida contextualización histórica – a las páginas
las transformaciones científicas occidentales pro- del Orbis no sin evidenciar, a veces, ciertas in-
ducidas a partir del Renacimiento dependieron compatibilidades con sus usos supuestos o con lo
en gran medida de la posibilidad de imprimir y di- que aparecería como conveniente para sus lecto-
fundir imágenes. De esta manera, Ivins equipara res potenciales: los niños.
la posibilidad de producir manifestaciones gráfi- Otra tecnología de la imagen concebida en
cas repetibles a los mayores logros artísticos, el Renacimiento, esta vez de carácter intelectual,
científicos o técnicos del siglo XV.18 será esencial en la constitución de la imagen de
Este autor considera que debe abandonarse carácter científico – informativo: nos estamos re-
la concepción de la imagen impresa como un firiendo al método geométrico de la perspectiva
mero elemento decorativo de los libros y valori- artificialis tal como se desarrolló a partir del libro
zarse su importancia como instrumento cognos- de Alberti Sobre la Pintura de 1435. Este método,
citivo, operante como tal desde la invención mis- cuya importancia no cesó de crecer en los dos si-
ma de la imprenta. Al respecto, señala que ya en glos siguientes, logró estabilizar un dispositivo
1472 aparece en Verona una edición del Arte de la para construir imágenes verosímiles capaces de
Guerra de Valturius con ilustraciones de restituir hasta cierto punto la experiencia visual
máquinas de guerra realizadas a través de xilogra- del mundo real. El valor de esta tecnología para
fías grandes y pequeñas y que en 1475 se publica afianzar las potencialidades cognitivas y comuni-
en Augsburgo el Libro de la Naturaleza de Kon- cativas de las imágenes – más allá del que poseyó
rad von Megenburg que constituye – con las li- en la historia del arte – no fue menor que el de la
mitaciones propias de los métodos de impresión anterior, y tampoco lo fue su influencia decisiva
de la época – la primera enciclopedia impresa e en las imágenes del Orbis: muchas de ellas son en
ilustrada que se conoce. Hacia fines del siglo XV realidad – volveremos sobre ello – verdaderos es-
son impresos numerosos libros de viajes y pro- tudios perspectivísticos.
tocientíficos ilustrados y durante el siglo XVI, len- El Orbis, pues, dentro de las posibilidades
tamente, la nueva tecnología comunicacional se que se abren para la utilización en libros de imá-
extiende a todas las ciencias. Concluye Ivins: genes impresas, opta claramente por la imagen de
“Volviendo a los libros informativos e ilustrados tipo comunicacional, cognitivo, racionalizante. Y
18
su opción tiene que ver, obviamente, con la elec-
“Dejando a un lado lo que hicieron inventores, técnicos, explorado-
res y gobernantes, en la primera mitad del siglo XV ocurrieron varios ción de las tecnologías más apropiadas – aunque
acontecimientos que no reciben la debida atención en los relatos usua- sea de manera potencial – para lograr sus metas
les de la época. Uno de estos acontecimientos fue la generalización de
procedimientos para obtener imágenes impresas o, en otras palabras,
de hacer manifestaciones gráficas repetibles” (IVINS, 1975, p. 34-40). 19 IVINS, 1975, p. 60-62.

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pedagógicas, sin reparar en las tradiciones acep- Sin dudas se encuentra detrás de estas co-
tadas ni en las mismas limitaciones epocales de incidencias la búsqueda común de una reforma
dichas tecnologías. social, cultural y religiosa sostenida en el mito na-
Suele citarse la relación existente entre el ciente de la ciencia empírica,23 pero la insistencia
proyecto mismo del Orbis y la fundamentación en la imagen como recurso utópico formativo
del uso de imágenes que se hace en el Prefacio del sólo puede ser explicado, creemos, a partir de la
mismo, o fragmentos de la Didactica Magna como potenciación de los poderes de lo visual en el
el siguiente: imaginario social gracias al afianzamiento de las
tecnologías de la imagen arriba mencionadas. En
También reportará gran utilidad que el con-
este sentido, el Orbis aparece como una modesta
tenido de los libros se reproduzca en las pa-
concreción realista de la imaginación utópica de
redes de la clase, ya los textos (con enérgica
concisión), ya dibujos de imágenes o emble- sus predecesores: ya no la dilución del libro en un
mas que continuamente impresionen los mundo devenido libro, sino un libro que a partir
sentidos, la memoria y el entendimiento de de la acción combinada de imágenes de cosas y de
los discípulos (...). Dios, nuestro señor, ha imágenes de sonidos intenta apoderarse del mun-
llenado este inmenso teatro del mundo de do. Pero el paso dado no es menor, y de allí su in-
pinturas, estatuas e imágenes como señales fluencia y su potencial utópico todavía vigente: es
vivas de su Sabiduría y quiere que nos ins- el pequeño paso decisivo que va de la ensoñación
truyamos por medio de ellas20 tecnológica a la tecnología en acción, aun cuando
con fragmentos de La ciudad del sol de Campa- los efectos buscados todavía queden lejos de sus
nella (1602) quien, por ejemplo, describiendo su alcances y de sus logros.
ciudad imaginaria de siete murallas concéntricas
había escrito: “La Sabiduría hizo adornar las pa- EL ORBIS SENSUALIUM PICTUS
redes interiores y exteriores, inferiores y superio- Que el Orbis haya sido precedido por un
res, con excelentes pinturas que en admirable or- Prefacio lúcido y minucioso en el que Comenius
den representan todas las ciencias (...). Hay ma- explicita sus intenciones, fundamenta sus opcio-
estros dedicados a explicar las pinturas, los cuales nes teóricas – didácticas y postula condiciones
acostumbraban a los niños a aprender todas las ideales de uso del libro, ha contribuido sin dudas
ciencias sin esfuerzo y como jugando (...)”,21 o a hacer visible desde muy temprano la vocación
con afirmaciones de la Christianópolis de Andrëa de innovación pedagógica que lo sostiene. Ha
(1619) como las siguientes referidas a otra ciudad contribuido, también, en no menor medida, a que
ideal: el análisis concreto de la estructuración de su uni-
verso temático y, en especial, de la peculiar rela-
Se enseñan las ciencias naturales y la quí-
mica alquímica, poniéndose un fuerte én- 23 En este sentido, Yates, en el libro citado, defiende la existencia de un
fasis en la medicina. Existe un edificio es- iluminismo rosacruz – responsable no sólo de las famosas sociedades
secretas sino de las primeras sociedades científicas y de reformas cultu-
pecial dedicado a la disección y la anato- rales y científicas precisas como la transformación pedagógica impul-
mía, y por todas partes hay cuadros que sada por Comenius –, que se hubo difundido por los países
ayudan a enseñar y a estudiar. En el labo- protestantes un siglo antes que la Ilustración propiamente dicha y en el
cual tanto Andrëa como Comenius ocuparían un lugar central. Por su
ratorio de historia natural, las paredes es- parte, AGUIRRE LORA (1993b, p. 48) sostiene que “entre Come-
tán pintadas con ilustraciones de los fenó- nius y aquellos en quienes reconoce dos de las influencias más fuertes
menos allí estudiados, en representacio- de su obra, Campanella y Andrëa, se percibe una línea de contiunidad,
ya que sueñan ciudades circulares y cuadradas – llenas de simbologías –
nes de animales, peces, piedras preciosas, como el espacio propicio para la sociedad restaurada, unificada, armo-
etc.22 niosa y trabajadora, en la cual el saber se dispone enciclopédicamente y
se ilustra con imágenes para ponerlo al alcance de todos los habitantes
a través de la educación. La intención que anima esta renovación edu-
20 COMENIO, J.A. Didáctica Magna. Madrid: Akal, 1986, p. 72. cativa consiste en superar al libro como exclusivo recurso y propiciar
21 CAMPANELLA, 1991, p. 147 y 150. su vinculación con la realidad, exaltando para ello la cultura científica
22 Citado en YATES, 1981, p. 185. que emerge en el horizonte cultural”.

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ción que en sus páginas sostienen imágenes y pa- aristotélica – tomista que oscilará – con acuerdos
labras, haya sido sustituido por la glosa o la filia- y desacuerdos – entre un polo deductivo mate-
ción teórica o epistémica de las opiniones del Pre- mático y formal y un polo empirista sostenido en
facio. Más productivo, creemos, sería una la observación minuciosa de la naturaleza a través
confrontación y análisis conjunto del Prefacio y de la libre disposición de los sentidos y de la in-
del cuerpo del libro para leer no sólo la feliz con- teligencia. Son estas nuevas concepciones del sa-
creción de un propósito, sino fundamentalmente ber las que de hecho exigen una nueva enseñanza
las dificultades que el entrecruzamiento de tec- ya desde los primeros años de la instrucción ele-
nología disponible, saber en juego e intencionali- mental: una enseñanza verdadera, si útil a la vida
dades pedagógicas impone a dicha concreción. Y (“Será verdadera si se enseña y se aprende con ex-
para leer también lo que en el Orbis excede la au- clusividad lo que es útil en la vida, evitando así la-
toconciencia de Comenius – por cierto alta – so- mentaciones tardías”), una enseñanza clara y or-
bre su intento de renovación radical de la peda- denada (“todo claro, diferenciado, articulado
gogía. como los dedos de la mano”), una enseñanza, so-
Leyendo con detenimiento el Prefacio, no bre todo, sustentada en un libre acceso a la expe-
deja de sorprender, por cierto, la nitidez con que riencia sensible (“El fundamento para todo lo an-
pueden delimitarse los efectos de las tres líneas terior está en que todas las cosas sensibles se pre-
transformacionales que, según afirmábamos al senten a nuestros sentidos de una forma tan ade-
comienzo de este trabajo, confluyen en toda mu- cuada que no puedan menos de ser captadas. (...)
tación pedagógica – en este caso, la instauración Nada tenemos en el entendimiento que no estu-
del manual ilustrado para uso del alumno como sos- viera antes en los sentidos”).
tén de la enseñanza elemental inicial. No deja de Ahora bien, si Comenius no cesa de hablar
sorprender tampoco la habilidad con que Come- de una enseñanza, son en realidad tres cuestiones
nius coloca la cuestión de la imagen en el centro de diferentes las que se juegan aquí: una reformula-
esta encrucijada, eludiendo por cierto problemas ción temática o, si se quiere, de ámbitos de apli-
que no dejarán de reaparecer en el cuerpo del libro. cación del saber escolar; un método; un funda-
Así, dos cuestiones diferentes en torno a la mento epistemológico de la actividad cognosciti-
problemática del conocimiento de filiación clara- va. Es esta heterogeneidad – que a su manera re-
mente moderna24 recorren en filigrana los prime- fleja las tensiones epistémicas de la Modernidad –
ros párrafos: por un lado, la progresiva incorpo- la que, precisamente, el Orbis intentará superar
ración a un campo de sistematización y trasmisi- (estuviese Comenius consciente de ello o no)
ón formal en ámbitos educativos de todo un sa- con la utilización de una tecnología comunicacio-
ber tecnológico – ligado de hecho a las nal novedosa, la imagen impresa.25 Así, toda una
actividades de la vida cotidiana – cada vez más in- segunda parte del Prefacio se dedica a detallar lo
dispensable para el funcionamiento del nuevo que el Orbis es, su intrínsica novedad didáctica
mundo de desarrollo capitalista en vías de conso- basada en la interacción de imágenes y palabras
lidación; por otro, la conformación definitiva de impresas (“Aquí presentamos un novedoso re-
un paradigma epistémico alternativo a la tradición curso para las escuelas: ¡Las imágenes y la no-
menclatura de todas las cosas fundamentales del
24 Que la terminología, las fundamentaciones epistémicas o las citas de
Comenius, tanto en el Orbis como en la Didáctica Magna, remitan mundo y de las acciones en la vida!”). Y en esta
muchas veces a Aristóteles o a la tradición retórica-epistemológica interacción, la imagen es no sólo la novedad sino
medieval (cf., a este respecto, AGUIRRE LORA, 1993b, p. 36ss.), a
veces no nos parece razón suficiente para impugnar esta idea. En terri- lo esencial. Por un lado, por su carácter mimético,
torios marginales y no centrales de una transformación epistémica, por su capacidad para dar cuenta de un real con-
muchas veces lo nuevo – que todavía no ha logrado estabilizarse o
canonizarse, o que apenas se sospecha – sólo puede ser dicho o pen-
sado a través de un léxico y un marco conceptual que no sólo no son 25 El éxito o el fracaso de ese intento es en realidad el cuerpo del Orbis
los suyos, sino a los que, de hecho se opone radicalmente. y volveremos sobre ello cuando lo analicemos más en detalle.

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creto, la imagen permitiría que los alumnos acce- modelo de una nueva enseñanza elemental, colu-
dieran a lo esencial del mundo y de la vida no a mna vertebral de la nueva “escuela de lo sensible,
partir de una intelección abstracta a la que el len- preludio de la escuela universal”.
guaje obliga por su carácter conceptual, sino Que la incorporación de imágenes impresas
como si se partiera de la experiencia misma de las en función didáctica constituya la gran novedad
cosas y de las acciones a las que aquélla suplanta- del Orbis, no debe hacernos perder de vista el he-
ría; por otro, por su carácter de signo instaurado cho que lo que se busca a través de él es tanto en-
por los hombres, la imagen puede relacionarse señar a nombrar – ya en una lengua, ya en otra –
con otros signos – la palabra, por ejemplo – e in- como a explicitar, a desplegar, lo que en ciertas
tegrarse en un orden y en un espacio cerrado y palabras se condensa. No es casual pues que el li-
completo: los propios del manual ilustrado, que bro tome como epígrafe el versículo del Génesis
se opondrían al caos y a la dispersión de las cosas en el que Dios otorga al hombre – como primer
y las acciones del mundo y de la vida y habilitarían don – el poder de nominación de los otros ani-
un acceso claro y secuenciado a dicho mundo y a males (y nuevamente quedan en claro aquí las in-
dicha vida, garantizando así su conocimiento. tenciones milenaristas del proyecto comeniano)
Así, pues, sin poseer, obviamente, el entra- ni que el cuerpo del Orbis se estructure en torno
mado conceptual para expresarlo con precisión, a la problemática relación entre imágenes, sabe-
la justificación teórica de la introducción de la res, cosas y palabras.
imagen en la enseñanza elemental resulta clara: Es precisamente esta relación la que marca-
existirían ciertas constantes psicológicas (facili- rá la historia de los textos escolares ilustrados – y,
dad para aprehender lo concreto, dificultad o im- desde su aparición en el siglo XX, de las tecnolo-
posibilidad para captar lo abstracto, fascinación gías didácticas de origen audiovisual – por lo que
por las imágenes, vocación por el juego y la di- resulta importante, creemos, concluir este trabajo
versión) que se encuentran en la base de todo analizando las modalides que adopta, más allá de
aprendizaje posible y, por lo tanto, para una edu- las intenciones del Prefacio, en el desarrollo mis-
cación eficiente se torna necesaria una didáctica mo de este texto fundante.
que tome en cuenta dicha especificidad psicoló- Hay una primera cuestión que atraviesa
gica. Las imágenes permitirán ligar lo abstracto – todo el proyecto del Orbis, a la que hemos ya he-
las palabras, las ideas – a lo concreto – las cosas, cho referencia en varias oportunidades, que está
las acciones –, permitirán, por su poder de fasci- en la base misma de su concepción y que se hace
nación, atraer a los niños al saber (“Pues es bien necesario desplegar para evaluar sus logros y los
sabido que los niños (normalmente desde sus alcances de su legado. Nos estamos refiriendo al
primeros años) gustan de las pinturas y deleitan carácter de mímesis absoluta que Comenius pos-
sus ojos contemplándolas”), permitirán lograr la tula como propio de las imágenes y que lo lleva a
concentración de las dispersas mentes infantiles equipararlas a las cosas mismas. En la primera pá-
(“pues es una realidad que los sentidos (...) van gina del cuerpo del Orbis, en una “Invitatio” a re-
tras los objetos y al no encontrarlos se vuelven correr el libro – de hecho, a introducirse en el rei-
hastiados en derredor; pero al tenerlos delante, se no del saber – organizada como un diálogo entre
reviven, se alegran y se aferran a ellos”), permiti- maestro y discípulo, aquél le dice a éste: “Te con-
rán, finalmente, sacar a la educación elemental de duciré por todas las cosas, te las mostraré todas y
los límites de lo penible para conducirla por los les pondré un nombre para ti”. La relación entre
senderos del juego y de la diversión (“como en cosas y palabras a la que arriba nos referíamos se
un juego y pasatiempo”). De allí que el Orbis se transforma sin mediaciones en una relación entre
proponga como algo más que un mero libro para imágenes y palabras, que es en realidad el recor-
enseñar latín: la “pequeña enciclopedia de las co- rido que el libro propone. En ese pasaje de un or-
sas sensibles”, el “primer libro visual” se sueña den al otro parece entreverse una fe tan profunda

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e inconmovible en la capacidad de la imagen para chas cosas. ¿Qué caracteres deberían poseer, pu-
sustituir a las cosas no menor a la fe que profesa es, para garantizar dicha semejanza? Todo depen-
Comenius en el carácter divino de la sabiduría. de de aquello que es objeto de representación.
No es difícil entender los orígenes de la só- Una imagen puede representar la apariencia visual
lida convicción comeniana; ya nos hemos referi- de las cosas, o bien su esencia funcional, o bien su
do brevemente a una de sus causas posibles: el estructura formal; en todos estos casos la imagen
impacto de la difusión masiva de dos tecnologías, se “parecería” al objeto, pero en cada caso estarí-
la de la reproducción mecánica de imágenes a tra- amos ante una imagen completamente diferente a
vés de la imprenta y, sobre todo, la de la perspec- la anterior. En todos los casos también, muchos
tiva artificialis como modalidad productiva de aspectos de las cosas no estarían en dichas imá-
imágenes bidimensionales. Sólo cabría agregar, en genes. Por lo tanto toda imagen implica un pro-
lo referido a esta última – y sobre todo por sus re- ceso de selección y de descarte, en cierta medida,
sonancias tanto en la composición formal como también, una abstracción.
en el contenido temático de las xilografías del Or- Que en algunos casos – como en las imá-
bis – que probablemente Comenius fue influencia- genes perspectivísticas – el proceso de selección y
do por los logros de la pintura holandesa del siglo descarte coincida en gran medida (no totalmen-
XVII con la que sin dudas tuvo un fluido contac- te) con el de la percepción natural puede hacer
to.26 Dicha pintura no solamente desarrolló al creer que éste no existe, pero obviamente se trata
máximo y con un elevado grado de conciencia teó- de una actitud ingenua. En una fotografía o en un
rica las potencialidades representativas de la pers- diagrama lo representado está presente y ausente
pectiva, sino que constituyó uno de los intentos al mismo tiempo, aunque de diferente manera;
más decisivos del arte occidental por construir que en un caso necesitemos de un saber científico
una imagen simulacro capaz de reproducir hasta o de un código específico para captar el parecido
el más mínimo detalle de la textura visual de la rea- y en otro no – algunos teóricos sostienen, inclu-
lidad sensible. Este logro formal se conjugó con so, que siempre hay algún código en juego,28 es
una transformación radical en la temática pictó- otra cuestión. En resumen, una imagen nunca re-
rica admitida: por primera vez, cualquier activi- emplazaría una cosa sino que desplegaría algunos
dad de la vida cotidiana, cualquier persona, cual- de sus atributos.
quier objeto del mundo pudo constituirse en el Ahora bien, que una imagen “elija” desple-
motivo central de una obra plástica.27 Ahora bien, gar tal o cual atributo de las cosas o de las accio-
lo que Comenius no llega a comprender – o no nes del mundo como fundamento de su mímesis,
quiere admitir – son tanto los problemas inheren-
no depende solamente – ni principalmente – ni
tes al concepto de mímesis o imitación como los
de la voluntad de su productor ni de imperativos
límites de la xilografía para construir imágenes si-
estilísticos: las diferentes tecnologías de producci-
quiera verosímiles.
ón de imágenes habilitan o impiden una determi-
En semiótica de la imagen, hay un proble- nada modalidad mimética. Un dibujo al grafito o
ma teórico que suele denominarse “cuestión del una xilografía, una fotografía o una imagen al
iconismo”. Los términos de este problema son óleo, un grabado al buril o una infografía, una
más o menos los siguientes: si bien puede decirse imagen cinematográfica o una electrónica de
que algunas imágenes se parecen a las cosas que transmisión directa, no poseen las mismas apti-
representan, esto no significa que dichas imá- tudes miméticas. Tampoco hay una exclusiva de-
genes posean todos los caracteres propios de di- terminación “evolutiva”: una fotografía no es ne-
26 Comenius residió muchos años en Holanda e incluso se conserva
cesariamente más apta que un dibujo para repro-
un retrato suyo ejecutado por Rembrandt.
27 Cf., a este respecto, TODOROV, T. Éloge du Quotidien. Paris: Du 28Cf., a este respecto, ECO, U. La Estructura Ausente (Barcelona:
Seuil, 1997. Lumen, 1979) y Tratado de Semiótica. (Barcelona: Lumen, 1985).

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ducir, por ejemplo, la esencia funcional de una del mundo que jamás coincidirían en un espacio
máquina determinada, ni una imagen videográfica real, o bien espacios poblados por entes que los
es superior a una cinematográfica para represen- ojos jamás podrían observar. Esto no está tan ale-
tar detalles en profundidad de campo. jado de la idea de mímesis como puede pensarse:
En este sentido, uno puede encontrar apti- una realidad abstracta – como una clase de ele-
tudes y discapacidades miméticas compartidas o mentos, por ejemplo – puede ser representada
contrapuestas en las tecnologías de la imagen “miméticamente” de esta manera.
esenciales en épocas de Comenius y que directa o
Así pues, en el cruce de las potencialidades
indirectamente posibilitaron las ilustraciones del
de una específica tecnología comunicacional, de
Orbis: la pintura – en especial al óleo –, el dibujo
en tinta o al grafito, la xilografía y el grabado. determinadas intenciones pedagógicas y de diver-
Así, por ejemplo, la pintura al óleo o las di- sos saberes culturales, el Orbis generará diferen-
ferentes modalidades del dibujo poseían idéntica tes modalidades de la imagen-manual:
capacidad para producir imágenes perspectivísti- 1. Una primera modalidad tiene lugar cuan-
cas, pero la primera era insuperable, en sus mejo- do el contenido a ser enseñado es un concepto
res expresiones, en la aptitud para reproducir ma- que, como tal, sólo existe determinado por un sa-
tices de colores, juegos de luces y sombras, apa- ber específico. Supongamos, por ejemplo, la idea
riencia visual de las texturas: constituía, en suma, de “eclipse”como juego de intersecciones entre la
el mejor simulacro posible de los datos de la per- luna, la tierra y el sol. En este caso, lo que la ima-
cepción natural. El segundo, en cambio, era sin gen debe construir es un diagrama, no una repre-
dudas más apto para reproducir estructuras for- sentación de la apariencia visual de las cosas. Es
males; los diagramas de todo tipo, donde no era ésta la modalidad en la que las aspiraciones come-
la apariencia visual el objeto de la mímesis, donde
nianas se cumplen en mayor medida: la xilografía
las esencias abstractas se imponían, eran también
aparece como apta para la elaboración de ese tipo
un territorio exclusivo de las despojadas líneas del
dibujo. Las tecnologías de impresión de imágenes de imagen y dicha imagen, facilita la comprensión
y sobre todo la xilografía, heredaron con limita- de un concepto que resulta más complejo cuando
ciones – en el grado de perfección de los detalles, sólo se expresa con palabras. Esta última aptitud
en la nitidez de los rasgos, en la capacidad de re- sigue sosteniendo, aún hoy, la eficacia del dibujo
producir juegos lumínicos – las habilidades del diagramático en los manuales escolares.
dibujo, así como, totalmente agravadas, sus inca- 2. La segunda modalidad se organiza en
pacidades (reproducción de color, de texturas, de torno a la imagen figurativa, en tanto que repre-
la detallada apariencia visual de las cosas concre- sentación de la apariencia visual de las cosas. Es,
tas) en comparación con la pintura. En resumen, sin dudas, la modalidad más extendida del Orbis:
la xilografía – cuya gran virtud residía en la posi- con ella, las cosas mismas serían puestas ante los
bilidad de reproducir imágenes en forma masiva –
ojos de los niños; a partir de ella, el placer icónico
era excelente para la impresión de diagramas sim-
atribuido a la infancia no cesaría de renovarse una
ples, medianamente apta para reproducir de ma-
nera muy general la apariencia visual de objetos y y otra vez; en ella, el nombre abstracto y la cosa
seres no demasiado pequeños, totalmente inútil concreta se enlazarían en un espacio común.
para imitar un detalle minúsculo o para reprodu- Algo falla, sin embargo, en el plan de Comenius:
cir, obviamente, el movimiento. sólo cuenta con la xilografía. Como ya explica-
Por último, hay que remarcar una capaci- mos, ésta logra reproducir de manera aproximada
dad de todas estas tecnologías no por obvia me- la apariencia visual de las cosas (dejando de lado,
nos significativa: la posibilidad de crear espacios naturalmente, el color) sólo en determinada es-
imaginarios donde coexistieran objetos y seres cala y obviando detalles específicos.

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Imagen del cap. VI: Eclipses (Orbis Sensualium Pictus, p. 195). Imagen del cap. VII: Las Nubes (Orbis Sensualium Pictus, p. 89).

Dado que el Orbis se ve condenado al tamaño


Es necesario, sin embargo, detenerse en otra
de la página de libro – en la cual, además, la xilografía
sólo ocupa un espacio relativamente menor – y cuestión relacionada con esta modalidad de la ima-
dado que la mayoría de los capítulos del Orbis in- gen-manual, que despliega una de las contradiccio-
tentan enseñar el nombre o las características o bien nes que el Prefacio intentaba obviar: la que se juega
de elementos que integran una clase (ejemplo: “Ani- entre el mundo de las cosas y el espacio de los sa-
males salvajes”, donde se quiere enseñar la aparien- beres. El Prefacio pretendía que la imagen sustitui-
cia del león, la pantera, el tigre, el lince etc.) o bien de ría a las cosas y acciones concretas del mundo y
partes de una cosa (ejemplo: “El árbol”, donde se in- que del contacto del niño con ellas surgiría el saber.
tenta mostrar la apariencia de la raíz, rama, copa, En realidad los capítulos del Orbis, inclusive aque-
corteza, hojas, follaje, muérdago, mata etc.), el fra- llos que en última instancia referirían a cosas y ac-
caso, en mayor o menor grado, asedia al proyecto ciones concretas no a ideas o valores como “La jus-
comeniano. Las xilografías del Orbis logran hacer ticia” o “La generosidad”, tratan o bien de cosas y
visible la distinción entre copa y tronco de un árbol acciones específicas entendidas como conceptos o
en el capítulo que acabamos de nombrar; son irre- prototipos (“El árbol” o “La casa”) o bien de clases
mediablemente ineptas, sin embargo, para distinguir de los mismos (“Peces del mar y moluscos” “El
la lluvia del aguacero, el granizo de la nieve, la bur- arte de escribir”), ambos organizados a partir de
buja de la espuma (capítulo “Las nubes”). Come- saberes específicos que constituyen dichas clases o
nius actúa como si en su libro nos encontráramos, determinan el alcance de dichos conceptos.
en lugar de las esforzadas xilografías, con pinturas
de Vermeer o con fotografías de alta definición. No En este sentido, las imágenes del Orbis no
asombra tanto esto – es en definitiva la conducta de “reproducen” las cosas concretas tal como el niño
los pioneros – sino el hecho de que sus conte- podría encontrarlas en el mundo en el que vive: si el
mporáneos y las generaciones que los siguieron vie- carácter figurativo de sus componentes específicos
ran en el Orbis un modelo a difundir e imitar: clara- las sigue ligando a dichas cosas, su organización glo-
mente, la “utopía” de un saber por la imagen nos ha- bal en cuadros constituidos a partir de algún princi-
bla más de una necesidad profunda de reforma pe- pio de montaje, no remite a ningún ordo naturalis
dagógica que de la ensoñación o el capricho de un sino a un orden pedagógico – fundamentado en sa-
talento singular. beres específicos – totalmente cultural y arbitrario. Es

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por ello por lo que palabras e imágenes no se en- Imagen del cap. XLI: Sentidos externos e internos (Orbis Sen-
frentan en el Orbis sino que constituyen dos moda- sualium Pictus, p. 125).
lidades – con aptitudes específicas, por cierto, para
activar diferentes estrategias cognitivas – de un mis-
mo espacio pedagógico-epistémico. Y es por ello, y
esto es fundamental, por lo cual, más allá de lo de-
clarado en el Prefacio, circula por las imágenes del
Orbis un saber diferenciado del saber de las cosas.
Lejos del naturalismo, estos cuadros montados (ej.:
“Los metales”: en un interior de cuadro de bode-
gón: barras de hierro y plomo, lingotes de estaño y
cobre, jarrones y monedas y algo que se dice es mer-
curio; “Sentidos externos e internos”: como pega-
dos a un telón: un ojo, una lengua peluda, una nariz,
una oreja, una cabeza con el cráneo abierto dejando
ver el cerebro, una mano en movimiento) organizan
territorios singulares, en muchos casos definitiva-
mente bizarros. Paradójicamente, cabe presumir
que las virtudes mnemotécnicas de estas imágenes –
en relación con las palabras que ilustran – han resi-
dido, para generaciones de niños, más en su
extrañeza, en su irrealidad constitutiva, que en sus
virtudes figurativas.
Es interesante remarcar que lo real concre- Naturalmente, ni estas imágenes con un pie
to, que el espacio de la vida cotidiana, con todas en las cosas y un pie en los saberes, ni estos mon-
las virtudes que Comenius les otorga, no se re- tajes de orden libresco, son propiedad del Orbis.
signan a verse abolidos o subordinados por la Enciclopedias, diccionarios ilustrados y manuales
abstracción que substiende a estas imágenes-cua- escolares, los han utilizado durante siglos,
dros: si las figuras responden a la idealidad de la desprendiéndose poco a poco de los intentos ve-
clase o el concepto, la cotidianeidad, lo real-vivi- rosimilizantes del conjunto. Perdura en ellos, sin
do intenta cercarlas constituyendo el fondo. embargo, el conflicto producido por un saber que
Como señalábamos en los ejemplos que descri- necesita al mismo tiempo de la figuración y de la
bíamos, los elementos figurativos de los cuadros abstracción y que la aparición de la fotografía im-
montados nunca aparecen reunidos meramente presa no solucionó de manera satisfactoria. Dema-
por un marco vacío sino, inclusive en los casos en siado ligada a lo real concreto – técnica e ideológi-
que no se representa ninguna “escena”, yuxtapu- camente – ha podido solucionar, hasta un cierto
estos sobre un fondo que reproduce un espacio punto, los problemas de precisión en la figuración,
del mundo “real”: un interior burgués, un paisaje pero se muestra bastante incapaz de dar cuenta
rural o urbano, un telón de teatro. También para- del concepto o del prototipo, de “naturalizar” la
dójicamente en este caso, el fondo “realista” – de extrañeza constitutiva de las clases siempre más o
hecho construido, en gran medida, a partir de las menos arbitrarias. De allí, quizás, que en los ma-
convenciones pictóricas de la pintura de la época nuales, muchísimas veces, sus aptitudes “decora-
de temática burguesa – más que verosimilizar el tivas” se impongan a sus potencialidades cogniti-
montaje, refuerza su carácter extraño e irreal. vas.

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3. La tercera modalidad es, en definitiva, un Si en pintura estas “soluciones” siempre


apéndice de la anterior. Su principio organizador fueron discutibles, en xilografías en función
también gira en torno a la necesidad de figuración, didáctica se tornan bastante más ineficaces, no
pero lo que se busca con estas imágenes es la re- sólo por cuestiones de visibilidad sino porque
presentación de una acción que implica necesaria- leer la sucesión en estas imágenes – que también,
a su manera, impugnan la concepción de la ima-
mente el movimiento y/o el desarrollo temporal.
gen – espejo – implica el aprendizaje de una con-
Un ejemplo de ello es el capítulo denominado
vención (al que sirve de ayuda, sin dudas, el pro-
“La Batalla Naval”, otro, el denominado “El Ca- cedimiento propio del Orbis de ligar por núme-
minante”, un tercero “Los juegos de los niños”. ros palabras e imágenes). Sin embargo, otra vez,
Aquí obviamente la dificultad radica en la incapa- se vuelve a imponer la fe comeniana en la imagen,
cidad de la imagen fija – y no sólo de la xilografía fe que, tomada hoy como posibilidad de práctica
– para dar cuenta del movimiento (aunque en el pedagógica, nos remitiría fuera de los límites de la
caso de la xilografía el mismo se “agrava” porque imagen impresa del manual escolar para situarnos
ni siquiera puede dar una versión verosímil de un en los territorios del cine, de la TV y del video –
instante cualquiera del discurrir temporal), y si se aunque reaparecerían aquí los conflictos entre fi-
constituye en un problema para el Orbis es por su guración y abstracción que tratamos al desarro-
insistencia – una de sus innovaciones más brillan- llar la modalidad anterior – y en los bastante inex-
plorados, por cierto, de la infografía.
tes, por cierto – en incluir en el universo temático
4. Una cuarta modalidad tiene que ver con
del manual no sólo las cosas del mundo sino las
las imágenes alegóricas que aparecen en el Orbis.
acciones de la vida cotidiana. La solución que
Constituidas a través de siglos en la cultura occi-
proponen estas imágenes del Orbis pasa por la dental, Comenius las utiliza, fundamentalmente,
tradicional de la pintura: traducir en distancia es- para intentar enseñar a través de ellas el universo
pacial la sucesión temporal, o tomar un instante temático de las virtudes morales (“La diligencia”,
como representación de la acción en su totalidad. “La prudencia” etc.) y el relacionado con ciertas
ideas religiosas (“El ser humano” – según la ver-
Imagen del cap. CXLII: Batalla naval (Orbis Sensualium Pictu, sión bíblica de la creación –), y para representar
p. 235). ciertos entes naturales “irrepresentables” (“El ai-
re”, en el alfabeto natural que inicia el libro “El viento
sopla”).
Con un estatuto intermedio entre las imá-
genes figurativas y el diagrama, la relación que
mantienen con las palabras, dentro y fuera del Or-
bis, también es singular. Imágenes hechas a partir
de palabras en la fragua de la historia cultural, se re-
lacionan de una manera problemática con las pala-
bras que las rodean en los capítulos del Orbis. El
origen cultural de estas imágenes las alejan de
aquellas construidas ex-profeso, en gran medida,
para adecuarse a las palabras con las que están liga-
das; en algunos casos, inclusive, la relación pala-
bras-imágenes parece invertirse. “La diligencia”,
“La prudencia”, “La justicia” no están presentadas
como conceptos abstractos que la imagen alegóri-
ca tornaría metafóricamente “sensibles” o “con-

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cretos”, sino que quedan reducidas a la descripción Imagen del cap. CXLVII: El Cristianismo (Orbis Sensualium Pic-
exhaustiva de cada detalle de la imagen alegórica: tus, p. 242).
como si el “saber”, de hecho, emergiera de una
imagen que lo resguardara en su seno.
Sin dudas se trata de una de las tantas estra-
tegias de Comenius de hacer sensible lo inteligible,
incluso allí donde nada sensible existe; pero es
también un claro ejemplo de la pervivencia de la
tradición medieval cristiana y del papel que en ella
jugó la imagen como instrumento privilegiado de
homogeneización ideológica, en un texto, que, de-
cididamente, pero no sin contradicciones, se ins-
cribe en un horizonte epistémico moderno.
5. Una última modalidad de la imagen-ma-
nual que aparece en el Orbis se liga también con
la tradición medieval. Nos encontramos ante una
imagen que intenta representar, como las imá-
genes de la tercera modalidad, ciertos aconteci-
mientos desarrollados a lo largo del tiempo, aun-
que se trata de aquí de un tiempo que conlleva
una carga histórica decisiva. No es ésta sin em-
bargo la diferencia esencial: ella reside en la mo-
dalidad icónica de representación adoptada. Para
los capítulos dedicados a “El cristianismo” y “El
judaísmo”, Comenius opta por la vieja técnica del convención que la lectura de palabras instauró, en
retablo medieval. Los momentos esenciales de la nuestra cultura, para pasar del antes al después: el
historia de esas religiones son presentados, no en pasaje de la izquierda a la derecha y el cambio de
un solo cuadro a partir de diferentes planos espa- “renglón”. Hay que remarcar, por otra parte, que
ciales que deberían leerse como planos tempora- la mayoría de las imágenes que componen los
les distintos, sino en un marco dividido en seis cuadros – en gran medida casi ilegibles por cues-
pequeños cuadros en los cuales, de derecha a iz- tiones de tamaño – son imágenes alegóricas.
quierda, en dos renglones, cada uno de dichos En el contexto, pues, de las relaciones entre
momentos – es decir, las imágenes que los repre- imágenes y palabras y de las tensiones entre Pre-
sentan – aparecen ordenados cronológicamente. facio y Corpus que se juegan en el Orbis, esta úl-
Este tipo de organización de la imagen
tima modalidad vuelve a impugnar la idea de una
(que, en su origen, para un pueblo analfabeto, su-
imagen espejo de las cosas: no sólo su contenido
plía, en lo referido al relato religioso, los poderes
mnemotécnicos de la escritura), es muy peculiar es una construcción cultural, como ya explica-
porque su misma estructura básica intenta refle- mos, basada en las palabras, sino que su mismo
jar icónicamente algo del contenido representa- mecanismo de lectura proviene, también, del
do – su dimensión temporal – pero utilizando la campo del lenguaje.

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Dados dos autores


RUBÉN BISELLI
Graduado em letras, docente de introdução às
linguagens (comunicação social) na Faculdade de
Ciência Política e Relações Internacionais
e de análises e crítica I (letras),
na Faculdade de Humanidades e Artes
(UNR/Argentina)
MARIA DEL CARMEN FERNÁNDEZ
Graduada em ciências da educação e mestre em
educação. Docente no Núcleo Histórico
Epistemológico (ciências da educação) e de
história sociopolítica do sistema educativo argentino
(formação docente) na Faculdade de Humanidades e Artes
(UNR/Argentina)
MARIA ELISA WELTI
Graduada em ciências da educação,
docente no Núcleo Histórico Epistemológico (ciências da educação)
e de curriculum e didática (formação docente) na
Faculdade de Humanidades e Artes
(UNR/Argentina)
Recebimento artigo: 7/ago./01
Consultoria: 10/set./01 a 20/fev./02
Aprovado: 1.º/abr./02

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Claves Politico-Juridicas
para la Integracion
Latinoamericana,
de Stella Maris Biocca
Buenos Aires: Zavalia, 2001
302p., ISNB 950-572-577-9

A integração dos países latino-americanos é a única forma


de inserção da América Latina no mundo globalizado.
Essa é a tese central dessa obra.

N
a integração a comunidade dos Estados defende inte-
resses regionais que não coincidem necessariamente
com os interesses nacionais. A integração é o conjun-
to das competências exercidas pelo Estado antes do
processo integrativo constitutivo da comunidade.
A debilitação do Estado nacional na América Latina é ERCÍLIO ANTÔNIO
conseqüência da globalização política hegemônica da DENNY
deterioração dos termos do intercâmbio e do endividamento externo que Professor do Programa de
impossibilita o seu pagamento. A integração preserva as identidades das Pós-Graduação em Direito da
regiões e o Estado nacional adquire maior poder na comunidade inter- UNIMEP, Brasil
nacional. edenny@unimep.br
Os objetivos da integração são: o desenvolvimento econômico
com justiça social, uma melhor qualidade de vida para os habitantes dos
países membros, com desenvolvimento científico e tecnológico, e a
proteção do meio ambiente. Outra grande meta é a inserção adequada no
mercado internacional, já que, na atual ordem, a relação entre os Estados
isolados só é possível se demonstrado força e poder. Isso é inviável para
os Estados subdesenvolvidos diante dos países poderosos, que, além do
mais, se organizam em blocos ou agrupamentos.
Conforme a concepção de integração que se afirme, se determinará
o método usado. A análise das variáveis políticas, econômicas, sociais e
culturais indicará que sistema requer o processo para um desenvolvimen-
to equilibrado com justiça social, e quais os princípios e regras adequados,
bem como se correspondem com a realidade que deve ser regulada.
Um dos fins buscados pelo direito comunitário é a segurança. Ela
é um valor que fundamenta o direito. Segurança tem o sentido de conhe-
cer, de ter certeza das normas reguladoras das condutas.

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Outra finalidade do direito comunitário é a mais adequado falar de interdependência como


justiça. Conseguir o equilíbrio entre o indivíduo noção explicativa das relações internacionais.
e o Estado, entre o indivíduo e a comunidade, en- Quando se aborda o problema constitucional
tre o Estado e a comunidade, entre a faculdade derivado da integração, é colocado o tema da ne-
individual e o poder social. Com justiça social, as cessidade da reforma constitucional. Isso é trata-
obrigações nascem da solidariedade entre os ho- do no capítulo 4. As constituições do Brasil e do
mens e entre os povos. Daí falar-se de justiça so- Uruguai criam dificuldades para a implantação do
cial internacional. direito comunitário, pois possuem em seu âmago
O direito comunitário tem por objetivo os uma idéia arcaica de soberania, encarada como
interesses regionais, mas isso não implica desin- absoluta.
teressar-se dos interesses nacionais. O direito co- No Brasil, um tratado internacional pode
munitário protege os interesses regionais. Ele de- ser ab-rogado por uma lei interna posterior. Um
seja coordenar e equilibrar os interesses nacio- verdadeiro órgão comunitário independe dos ór-
nais. Mas se um desses interesses erige-se domi- gãos do Estado, como também de seus funcioná-
nante destrói o equilíbrio regional, a integração rios, nem de ordens ou instruções estatais.
degrada, perdendo o equilíbrio, a harmonia, a não Com relação às fontes, abordadas no capí-
dependência e a solidariedade. tulo 5, muitas dificuldades impedem a formação
O capítulo 2 do livro de Stella Maris Biocca de um verdadeiro direito comunitário, entre as
traz um estudo sobre os antecedentes do proces- quais, a “cessão da soberania”, até que se admita
so de integração européia, dos da integração na tratar-se do exercício conjunto da soberania.
América Latina e, por último, daqueles do Mer- Nesse ponto, maior perfeição conseguiu a União
cosul. A autora apresenta uma comparação entre Européia. Nela, o direito comunitário insere-se
o Mercosul e a Alca, cujo fim específico é o es- no ordenamento jurídico do Estado integrado,
tabelecimento na região do livre comércio. sem necessidade de procedimento especial, dife-
A chave do Mercosul está na preservação rentemente dos tratados próprios do direito in-
dos interesses comuns, sem deteriorar nem afetar ternacional tradicional, mantendo sua natureza
os interesses particulares das nações soberanas comunitária.
que o integram. A experiência demonstrou que O direito comunitário pode ser originário e
isso só pode ser conseguido com a criação de ór- derivado. O direito originário diz respeito àque-
gãos comunitários. les dos tratados constitutivos e dos que os modi-
No capítulo 3, na análise dos sistemas ins- ficam e complementam. Já o direito derivado é
titucionais, é examinada a estrutura orgânica do ditado pelos órgãos criados pelo direito originá-
Mercosul, estabelecida pelo acordo de Ouro Pre- rio que lhes atribui competência para isso. Exerce
to, de 17/dez./1994. Posteriormente, faz uma primazia sobre o direito dos Estados-membros.
apreciação da União Européia. O direito comunitário aplica-se diretamente, não
A noção de soberania não é mais mesma, requer nenhum procedimento nacional e tem
por seu conteúdo, nem por sua extensão, a dos efeito direto, porque os particulares podem pro-
séculos anteriores, como se verifica no capítulo 4. vocá-lo.
Houve uma mudança na comunidade internacio- As normas emanadas dos órgãos do Mer-
nal, na qual agem outros sujeitos que não os Es- cosul não podem ser qualificadas como direito
tados. Hoje em dia existem diversos organismos comunitário, pois vinculam-se a uma aprovação
internacionais que, de uma forma ou de outra, re- interna, à necessidade de um ato formal de recep-
ceberam parte da soberania estatal. A ação dos ção nos ordenamentos nacionais. A supremacia
organismos financeiros internacionais indica, de das normas comunitárias é da essência de um
maneira clara, que a soberania é relativa. Seria processo de integração.

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A legislação no Mercosul, tratada no capí- Mercosul. Por sua vez, os fatores de mudança no
tulo 6, pode ser feita de formas diferentes, como Mercosul são tratados no capítulo 9. Em todos os
a “coordenação comunitária”, a “harmonização Estados do Mercosul, aparecem falhas na cultura
legislativa” e a unificação. Já a solução de confli- comunitária, o que é compreensível em razão da
tos no Mercosul, no capítulo 7, foi estabelecida cultura dominante – até há pouco, a do conflito
pelo Tratado de Assunção, em um sistema pro- internacional. Atualmente se vislumbra a possibi-
visório para a solução das controvérsias, determi-
lidade de uma cultura integracionista.
nando que eles devem ser resolvidos mediante
negociação direta. Se essa não obtiver o resultado Os fatores de mudança para se conseguir
de solução, volta-se para a solução arbitral. Daí a consciência e cultura comunitárias serão os que
constituição de um Tribunal Arbitral. se referem à educação formal e à jurisdicional,
O capítulo 8 constitui extensa exemplifica- além de um parlamento que assegure a cultura
ção de laudos arbitrais acontecidos no âmbito do comunitária e a participação dos povos.

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REVISTA IMPULSO

NORMAS PARA PUBLICAÇÃO


PRINCÍPIOS GERAIS
1 A Revista IMPULSO publica artigos de pesquisa e reflexão acadêmicas, estudos analíticos e resenhas
nas áreas de ciências sociais e humanas, e cultura em geral, dedicando parte central do espaço de
cada edição a um tema principal.
2 Os temas podem ser desenvolvidos através dos seguintes tipos de trabalho:
• ENSAIO (12 a 30 laudas) – reflexão a partir de pesquisa bibliográfica ou de campo sobre determi-
nado tema;
• COMUNICAÇÃO (10 a 18 laudas) – relato de pesquisa de campo, concluída ou em andamento;
• REVISÃO DE LITERATURA (8 a 12 laudas) – levantamento crítico de um tema, a partir da bibliogra-
fia disponível;
• COMENTÁRIO (4 a 6 laudas) – nota sobre determinado tópico;
• RESENHA (2 a 4 laudas) – comentário crítico de livros e/ou trabalhos acadêmicos.
Obs.: cada lauda compreende 1.400 toques, incluindo-se os espaços entre palavras.
3 Os artigos devem ser inéditos, vedado o seu encaminhamento simultâneo a outras revistas.
4 Na análise para a aceitação de um artigo serão observados os seguintes critérios, sendo o autor infor-
mado do andamento do processo de seleção:
• adequação ao escopo da revista;
• qualidade científica, atestada pela Comissão Editorial e por processo anônimo de avaliação por
pares (peer review), com consultores não remunerados, especialmente convidados, cujos nomes
são divulgados anualmente, como forma de reconhecimento;
• cumprimento das presentes Normas para Publicação.
5 Uma vez aceito o artigo, cabe à revista a exclusividade em sua publicação.
6 Os artigos podem sofrer alterações editoriais não substanciais (reparagrafações, correções gramati-
cais, adequações estilísticas e editoriais).
7 Não há remuneração pelos trabalhos. O(s) autor(es) recebe(m) 1 (um) exemplar da revista e 10
(dez) separatas do seu artigo. Ele(s) pode(m) ainda adquirir exemplares da revista com desconto de
30% sobre o preço de capa, bem como a quantidade que desejar(em) de separatas, a preço de custo
equivalente ao número de páginas e de cópias delas.
8 Os artigos devem ser encaminhados ao editor da Impulso, em três cópias, sendo uma com os dados
do autor e as outras duas apenas com o título do artigo (portanto, sem identificação de autoria),
acompanhadas de ofício, do qual constem:
• cessão dos direitos autorais para publicação na revista;
• concordância com as presentes normatizações;
• informações sobre o autor: titulação acadêmica, unidade e instituição em que atua, endereço para
correspondência, telefone fax e e-mail.

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ESTRUTURA
9 Elementos do artigo (em folhas separadas):
a)IDENTIFICAÇÃO
• TÍTULO (e subtítulo, se for o caso), em português e inglês: conciso e indicando claramente o con-
teúdo do texto;
• nome do AUTOR, titulação, área acadêmica em que atua e e-mail;
• SUBVENÇÃO: menção de apoio e financiamento eventualmente recebidos;
• AGRADECIMENTO, se absolutamente indispensável.
b)RESUMO E PALAVRAS-CHAVE
• Resumo indicativo e informativo, em português (intitulado RESUMO) e inglês (denominado
ABSTRACT), com cerca de 150 palavras cada um;
• para fins de indexação, o autor deve indicar os termos-chave (mínimo de três e máximo de seis)
do artigo, em português (palavras-chave) e inglês (keywords).
c)TEXTO
• deve ter INTRODUÇÃO, DESENVOLVIMENTO e CONCLUSÃO. Cabe ao autor criar os entretítulos
para o seu trabalho. Esses entretítulos, em letras maiúsculas, não são numerados;
• no caso de RESENHAS, o texto deve conter todas as informações para a identificação do livro
comentado (autor; título; tradutor, se houver; edição, se não for a primeira; local, editora; ano;
total de páginas; e, se houver, título original e ISBN). No caso de trabalhos acadêmicos a serem
resenhados, segue-se o mesmo princípio, no que for aplicável, acrescido de informações sobre a
instituição na qual foi produzida.
d)ANEXOS
• Ilustrações (tabelas, gráficos, desenhos, mapas e fotografias).
e)DOCUMENTAÇÃO
NOTAS EXPLICATIVAS: serão dispostas no rodapé, remetidas por números sobrescritos no corpo do
texto.1
CITAÇÃO com até três linhas: deve vir no bojo do parágrafo, destacada por aspas (sem itálico), após
as quais um número sobrescrito remeterá à nota de rodapé com as indicações do SOBRENOME do autor,
ano da publicação e página em que se encontra a citação.2
CITAÇÃO igual ou maior a quatro linhas: destacada em parágrafo próprio com recuo de quatro
centímetros da margem esquerda do texto (sem aspas) e separado dos parágrafos anterior e posterior por
uma linha a mais. Ao fim da citação, um número sobrescrito remeterá à nota de rodapé, indicando o SO-
BRENOME do autor, ano da publicação e a página em que se encontra esta citação.3
Os demais complementos (nome completo do autor, nome da obra, cidade, editora, ano de publi-
cação etc.) constarão das REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS, ao fim de cada artigo, seguindo o padrão abaixo.
A lista de fontes (livros, artigos etc.) que compõe as Referências Bibliográficas deve aparecer no fim
do artigo, em ordem alfabética pelo sobrenome do autor e sem numeração, aplicando-se o seguinte padrão:

LIVROS
SOBRENOME, N.A. (nomes do autor abreviados, sem espaçamento entre eles; nomes de até três autores: separar por “;”,
mais de três: registrar o primeiro deles seguido da expressão “et al.”). Título: subtítulo. Cidade: Editora, ano com-
pleto, volume). Ex.:

1 Essa numeração será disposta após a pontuação, quando esta ocorrer, sem que se deixe espaço entre ela e o número sobrescrito da nota. Como o empre-
gado nas Referências Bibliográficas, nas notas de rodapé o SOBRENOME dos autores que tenham sido citados deve ser grafado em maiúscula, seguido
do ano da publicação da obra correspondente a esta citação. Ex.: CASTRO, 1989.
2 FARACO; GIL, 1997, p. 74-75.
3 FARIA, 1996, p. 102.

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GARCIA, E.E.C. et al.Embalagens Plásticas: propriedades de barreira. Campinas: CETES/ITAL, 1984.
OLIVEIRA, N.R.-de-; ZUIN, A.A.S.; PUCCI, B. (orgs.) Teoria Crítica, Estética e Educação. Piracicaba/Campinas: Editora Unimep/
Editora Autores Associados, 2001.
• MAIS DE UMA CITAÇÃO DE UM mesmo autor: após a primeira citação completa, introduzir a nova
obra da seguinte forma:
• _________. Empregabilidade e Educação. São Paulo: Educ, 1997.
• OBRAS sem autor definido:
• Manual Geral de Redação. Folha de S.Paulo, 2.ª ed. São Paulo, 1987.

PERIÓDICOS
NOME DO PERIÓDICO. Cidade. Órgão publicador. Entidade de apoio (se houver). Data. Ex.:
REFLEXÃO. Campinas. Instituto de Filosofia e Teologia. PUC, 1975.
• ARTIGOS DE revista:
AUTOR DO ARTIGO.4 “Título do artigo”.Título da revista (abreviado ou não), local de publicação, número do volume,
número do fascículo, páginas inicial-final, mês5* e ano.
ESPOSITO, I. et al. Repercussões da fadiga psíquica no trabalho e na empresa. Revista Brasileira de Saúde, São Paulo, v.
8, n. 32, p. 37-45, out.-dez./1979.
• ARTIGOS DE jornal:
AUTOR DO ARTIGO.* “Título do artigo”.Título do jornal, local de publicação, dia, mês** e ano. Número ou título do
caderno, seção ou suplemento e página inicial e final do artigo.
OLIVEIRA, W.P. de. Judô: educação física e moral. O Estado de Minas, Belo Horizonte, 17/mar./1981. Caderno de
esporte, p. 7.

FONTES ELETRÔNICAS
A documentação de arquivos virtuais deve conter as seguintes informações, quando disponíveis:
• sobrenome e nome do autor;
• título completo do documento (entre aspas);
• título do trabalho no qual está inserido (em itálico);
• data (dia, mês e/ou ano) da disponibilização ou da última atualização;
• endereço eletrônico (URL) completo (entre parênteses angulares: < >);
• data de acesso.
Exemplos:
Site genérico
LANCASHIRE, I. Home page. 13/set./1998. <http://www.chass.utoronto.ca:8080/~ian/index.html>. Acesso em:
10/dez./1998.
Artigo de origem impressa
COSTA, F. Há 30 anos, o mergulho nas trevas do AI-5. O Globo, 6.12.98. <http://www.oglobo.com.br>. Acesso em:
6/dez./1998.
Dados/textos retirados de CD-rom
ENCICLOPÉDIA ENCARTA 99. São Paulo: Microsoft, 1999.Verbete“Abolicionistas”.CD-rom.

4 * Em caso de autoria desconhecida, a entrada é feita pelo título do artigo, colocando-se a primeira palavra toda em caixa maiúsculo.
5 * Os meses devem ser abreviados de acordo com o idioma da publicação. Quando não houver seção, caderno ou parte, a paginação do artigo precede a data.

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Artigo de origem eletrônica


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cranber/cranb_04.html>. Acesso em: 12/jul./1997.
OITICICA FILHO, F. “Fotojornalismo, ilustração e retórica”. <http://www.transmidia.al.org.br/retoric.htm>. Acesso
em: 6/dez./1998
Livro de origem impressa
LOCKE, J. A Letter Concerning Toleration. Translated by William Popple. 1689. <http://www. constitution.org/jl/
tolerati.htm>.
Livro de origem eletrônica
GUAY, T. A Brief Look at McLuhan’s Theories. Web Publishing Paradigms. <http://hoshi.cic.sfu. ca/~guay/Para-
digm/McLuhan.html>. Acesso em: 10/dez./1998.
KRISTOL, I. Keeping Up With Ourselves. 30/jun./1996. <http://www.english.upenn.edu/~afilreis/50s/kristol-
endofi.html>. Acesso em: 7/ago./1998.
Verbete
ZIEGER, H.E.“Aldehyde”.The Software Toolworks Multimedia Encyclopedia. Vers. 1.5. Software Toolworks. Boston:
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eb.com:180.
E-mail
BARTSCH, R. <abnt@abnt.org.br>“Normas técnicas ABNT - Internet”.13/nov./1998. Comunicação pessoal.
Comunicação sincrônica (MOOs, MUDs, IRC etc.)
ARAÚJO, C.S. Participação em chat no IRC #Pelotas. <http://www.ircpel.com.br>. Acesso em: 2/set./1997.
Lista de discussão
SEABROOK, R.H.C. <seabrook@clark.net> “Community and Progress”. 22/jan./1994. <cybermind@jefferson.
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Newsgroup (Usenet)
SLADE,R.<res@maths.bath.ac.uk>“UNIX Made Easy”.26/mar./1996.<alt.books.reviews>.Acesso em:31/mar./1996.
10 Os artigos devem ser escritos em português ou espanhol, podendo, contudo, a critério da
Comissão Editorial, serem aceitos trabalhos escritos em outros idiomas.
11 Os trabalhos devem ser digitados no EDITOR DE TEXTO WORD, em espaço 1,5, corpo 12, em papel
branco, não transparente e de um lado só da folha, com páginas numeradas.
As ILUSTRAÇÕES (tabelas, gráficos, desenhos, mapas e fotografias) necessárias à compreensão do
texto devem ser numeradas seqüencialmente com algarismos arábicos e apresentadas de modo a
garantir uma boa qualidade de impressão. Precisam ter título conciso, grafados em letras minúsculas.
As TABELAS devem ser editadas na versão Word.6 ou 7, com formatação necessariamente de acordo
com as dimensões da revista. Devem vir inseridas nos pontos exatos de suas apresentações ao longo
do texto; não podem ser muito grandes e nem ter fios verticais para separar colunas. As FOTOGRA-
FIAS devem ser em preto e branco, sobre papel brilhante, oferecendo bom contraste e foco bem
nítido. GRÁFICOS e DESENHOS devem ser incluídos nos locais exatos do texto. No caso de aprovação

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para publicação, essas ilustrações precisarão ser enviados em disquete, e necessariamente em seus
arquivos originais (p. ex., em Excel, CorelDraw, PhotoShop, PaintBrush etc.) em separado. As figu-
ras, gráficos e mapas, caso sejam enviados para digitalização, devem ser preparados em tinta nanquim
preta. As convenções precisam aparecer em sua área interna.
12 ETAPAS de encaminhamento dos artigos: 1. apresentação de três cópias impressas do artigo para sub-
missão à Comissão Editorial da Revista e aos consultores, constando de uma delas os dados comple-
tos do autor e, das outras duas, apenas o título da obra (sem identificação), juntamente com
brevíssimo currículo do autor. Os pareceres, sigilosos, são encaminhados aos autores para as even-
tuais mudanças; 2. se aprovado para publicação, o artigo deve ser reapresentado à Editora já com as
devidas alterações eventualmente sugeridas pela Comissão Editorial, em uma via em papel e outra em
disquete, com arquivo gravado no formato Word. Devem acompanhar eventuais gráficos e desenhos
suas respectivas cópias eletrônicas em linguagem original. Após a editoração final, o autor recebe
uma prova para análise e autorização de impressão.

Impulso, Piracicaba, 14(33): 187-191, 2003 191


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