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001922_Impulso_34.

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IMPULSO, Piracicaba, v. 14, n. 34, p. 1-183, maio/ago. 2003


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Revista de Ciências Sociais e Humanas


Journal of Social Sciences and Humanities

INSTITUTO EDUCACIONAL PIRACICABANO Edição de texto: MILENA DE CASTRO


Revisão em inglês: CRISTINA PAIXÃO LOPES
Presidente do Conselho Diretor Revisão em alemão: AMÓS NASCIMENTO
ELISEU DE CARVALHO Revisão de texto em espanhol: ROBERTO VALDÉS PUENTES
Diretor Geral Gráfica UNIMEP
ALMIR DE SOUZA MAIA Coordenação: CARLOS TERRA
Vice-Diretor Capa: WESLEY LOPES HONÓRIO
Editoração eletrônica: CARLA CYNTHIA SMANIOTO
GUSTAVO JACQUES DIAS ALVIM Revisão Gráfica: JURACI VITTI
A revista IMPULSO é uma publicação quadrimestral da Universidade
Universidade Metodista de Piracicaba Metodista de Piracicaba-UNIMEP (São Paulo, Brasil). Aceitam-se artigos
acadêmicos, estudos analíticos e resenhas, nas áreas das ciências huma-
Reitor nas e sociais, e de cultura em geral. Os textos são selecionados por pro-
GUSTAVO JACQUES DIAS ALVIM cesso anônimo de avaliação por pares (blind peer review). Para a
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SÉRGIO MARCUS PINTO LOPES pais no fim da revista].
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ANTÔNIO ROQUE DECHEN (German): Duden – Rechtschreibung der deutschen Sprache (Stuttgart, Klett-
BELARMINO CESAR GUIMARÃES DA COSTA Verlag, 2001) [Bitte Stadt, Verlag und Erscheinungsjahr angeben].
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DENISE GIÁCOMO MOTTA Aceita-se permuta / Exchange is desired.
ELIAS BOAVENTURA Tiragem / issue: 1.000 exemplares
MARCO POLO MARCHESE Disponibilizada em / available at:
NIVALDO LEMOS COPPINI <www.unimep.br/editora>
IMPULSO 34 (maio/ago. / 2003) Impulso é indexada por / Impulso is indexed by
“Religião em Diálogo” Bibliografia Bíblica Latino-Americana; Hispanic American Periodicals Index
Comissão Editorial / Editorial Board (HAPI); Índice Bibliográfico Clase (UNAM); latindex (Sistema Regional de
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Coordenação temática: TÂNIA MARA VIEIRA SAMPAIO ISSN 0103-7676
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Apoio administrativo: ALTAIR ALVES DA SILVA CDU – 3 (05)
Bolsista-atividade: JANICE VAN SEBROECK
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Editorial

Tradição & Renovação

Religião é um tema que constitui importante desafio para as


ciências humanas e sociais. Sem dúvida, trata-se de um assunto plural,
difícil, polêmico e sobretudo atual, como de resto o tem sido desde há
séculos – ou, na realidade, milênios. Nesta edição da Impulso, a ques-
tão da religião acompanha a tendência geral de ser tratada cada vez
mais sob a perspectiva transdisciplinar, sendo um tópico não somente
da teologia, mas também da antropologia, da sociologia, da economia,
da arte e estética, assim como da teoria política e do direito. Leis, guer-
ras, políticas econômicas, produtos e comportamentos se dão hoje a
partir de credos, práticas, convicções, rituais e ideologias que remetem
à dimensão do religioso. Do mesmo modo, os atentados terroristas aos
Estados Unidos em 11 de setembro de 2001 e a reação do presidente
norte-americano George W. Bush naquele momento não podem ser
entendidos sem que se discuta tal tema. Justifica-se, assim, o título “re-
ligião em diálogo” desta nossa 34.a edição.
Este número, porém, se concentra em duas questões gerais, re-
presentadas por seções específicas: “Religião e Modernidade” e “Re-
ligião, Cultura e Gênero”. Na primeira delas, os vários artigos mos-
tram a relação da religião com a filosofia, com a sociologia, com a tec-
nologia e com as novas técnicas de administração e comunicação.
Matthias Lutz-Bachmann trata da crítica filosófica da religião na mo-
dernidade européia, enquanto Johann Goudsblom se dedica a uma
análise sociohistórica do tema à luz da teoria de Norbert Elias. Nabor
Nunes Filho mostra como a dimensão tecnológica se apresenta na re-
ligião, enquanto Elisabete Stradiotto Siqueira e Valéria Elias Spers, a
forma de organização institucional de determinado grupo religioso, o
que é complementado com a análise que Ana Keila Pinzezi e Geraldo
Romanelli fazem da cura divina no neo-pentecostalismo.
A segunda seção trata de questões relativas à cultura, à lingua-
gem, ao gênero e a comportamentos sociais. Matthias Presiwerk parte
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do contexto boliviano para apresentar os desafios de uma visão inter-


cultural da religião. Edivaldo Bortoletto, trata da relação entre litera-
tura e teologia, a partir de uma perspectiva cristã, enquanto Tânia
Sampaio se dedica à questão de gênero, concentrando-se no gênero fe-
minino, ao mesmo tempo em que discute o diálogo da religião com
outras ciências. André Musskopf apresenta uma discussão ainda iné-
dita no Brasil, mas muito atual nos Estados Unidos, sobre uma teologia
que dialogue com o movimento gay, ampliando assim a sua abertura
a questões de gênero.
Por fim, a revista traz uma seção de artigos gerais, com uma aná-
lise da visão sobre ética e ciência em Platão e também fazendo referên-
cia à concepção platônica de teologia. Essa seção é complementada
por outra, que traz três resenhas de publicações recentes sobre o tema
da religião. Uma delas marca os trezentos anos do nascimento de Wes-
ley, uma outra apresenta os escritos recentes de Jürgen Habermas sobre
religião, sua crítica à apropriação política da questão e sua concepção
de “sociedade pós-secular”. Este é um ponto polêmico, que certamen-
te dará o que pensar e cujo debate deverá ter continuidade nas pró-
ximos edições da revista. No número 35, por exemplo, estaremos tra-
zendo a reação de destacada membro de nosso Comitê Científico à
posição de Habermas, além de darmos espaço ao filósofo alemão para
que esclareça sua posição.
Assim, a Impulso mostra-se cada vez mais aberta à pluralidade de
temas, com várias seções dedicadas mais claramente a distintas formas
de se pensar as ciências humanas e sociais. Mas esta edição dedica-se
ainda a outros objetivos. Em primeiro lugar, homenagear um dos pri-
Professores Elias Boaventura e meiros editores da revista, Hugo Assmann, que completa setenta anos
Hugo Assmann, pioneiros na em 2003, e expressar o agradecimento a Elias Boaventura, pelos anos
condução da Impulso.
dedicados à presidência da Comissão Editorial da revista. Por fim,
apresentar a nova Comis-
são Editorial e algumas
propostas de desenvolvi-
mento para este periódi-
co.
Os professores Ass-
mann e Boaventura esti-
veram presentes no nas-
cedouro deste que é o
Fabio Brandi

mais longevo periódico


unimepiano, contribuin-
do, desde 1987, de forma
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Fabio Brandi

Hugo Assmann em pleno


exercício de sala aula.

decisiva para que fosse alcançado o atual patamar de qualidade da Im-


pulso. Além de anteceder a própria Editora da Universidade, que foi
oficializada em 1992, a Impulso nasce com um grande papel: apoiar
a constituição da Pós-Graduação na UNIMEP, estabelecendo espaço
editorial para o debate das grandes questões que norteavam, então, a
área da Educação. Conferiu, assim, condições para publicação de tra-
balhos dos professores e alunos da casa, o que muito ajudou na for-
mação da Pós e de nosso espírito universitário.
HUGO ASSMANN fez parte do primeiro Conselho de Política Edi-
torial da UNIMEP. Como intelectual, tem sido pioneiro em várias fren-
tes. Foi o primeiro cidadão de Venâncio Aires, no interior do Rio
Grande do Sul, a sair de sua terra e ganhar projeção nacional e inter-
nacional. Já em seus estudos doutorais, preocupava-se com a questão
social, de modo até então não pensado sob o ponto de vista teológico.
Sua atividade pedagógica por todo o Brasil o colocou ao lado de par-
ceiros como Paulo Freire. Um dos primeiros livros sobre a teologia da
libertação é de sua autoria, havendo aberto com isso o caminho para,
entre outros, Leonardo Boff. Além disso, tem participado de inúmeros
debates nacionais e internacionais, mantendo-se sempre à frente de seu
tempo. Esse pioneirismo se deu também em seu envolvimento com a
UNIMEP, onde leciona há mais de duas décadas, e sobretudo em sua
atuação na Editora da Universidade. Ao completar setenta anos, rece-
be aqui a justa homenagem, enquanto igualmente nos ajuda a reme-
morar os primórdios da revista.
ELIAS BOAVENTURA, por sua vez, foi o responsável por todo um
processo de consolidação da Impulso, emprestando a ela sua experiên-
cia e visão universitária e social como presidente da Comissão Editorial
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Fabio Brandi

da revista a partir de 1995, e por 17 edições consecuti-


vas. Nos últimos anos a Impulso dedicou suas páginas
centralmente a enfoques específicos, de interesse às ciên-
cias humanas e sociais. Pesquisadores de universidades
do Brasil, da América Latina e de outros continentes têm
publicado cada vez mais seus artigos neste periódico.
Desse modo, tem registrado discussões sobre temas im-
portantes, como os centenários de Freud e de Nietzsche,
a questão da pós-modernidade, a arte do expressionis-
mo, inclusão social, direito e blocos econômicos regio-
nais, além da globalização. A revista fortaleceu sua Co-
missão Editorial e seu Comitê Científico com a partici-
pação efetiva de membros brasileiros e do exterior. Por
fim, ampliou-se o raio de leitores, sendo indexada por
várias instituições nacionais e internacionais, além de es-
tar nos catálogos das melhores bibliotecas do Brasil, do
Continente Americano e da Europa.
Mas nem só de tradição vive a Impulso. Recente-
Elias Boaventura presidiu a mente, já sob a composição de uma nova Comissão Editorial, o perió-
Comissão Editorial da Impulso
ao longo de 17 edições. dico tem dado continuidade a seu trabalho e implemetado algumas
inovações. Vem buscando destacar uma maior abrangência temática,
conferindo maior espaço a abordagens mais diversificadas a cada edi-
ção, ao ampliar a seção dedicada a artigos gerais.
Como parte dessas iniciativas, o presente número demarca mais
claramente as distintas seções, indicando a leitores e autores – de todos
os gêneros – as modalidades que apresenta: a seção “Temática”, dedi-
cada a um tema principal; “Conexões Gerais”, para ensaios sobre te-
mas diversos; “Comunicações & Debates”, para textos, curtos, deba-
tes e discussões; e “Resumos & Impressões”, voltada a resenhas, crí-
ticas e comentários em geral. As próximas edições, dedicadas a “Éti-
ca”, “Biotecnologia”, “Bicentenário da morte de Kant”, “Violência e
Cidadania”, entre outros, seguirão tal formato. Abre-se, assim, uma
gama maior de possibilidades de envolvimento com a Impulso. Com
isso, fica registrado o convite para que também um artigo de sua au-
toria seja submetido à revista.

COMISSÃO EDITORIAL
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...............................
Religião & Modernidade
Religion & Modernity
Religião depois da Crítica à Religião
Religion After the Criticism of Religion
MATTHIAS LUTZ-BACHMANN (Universität Frankfurt, Alemanha) 13

A Religião Cristã e o Processo


Civilizador Europeu
Christian Religion and the
European Civilizing Process
JOHAN GOUDSBLOM (Universiteit van Amsterdam, Holanda) 27

Religião e Tecnologia
Religion and Technology
NABOR NUNES FILHO (UNIMEP, Brasil) 41

Religião e Organizações – antagonismo


aparente, proximidade latente: uma reflexão
sobre a economia de comunhão
Religion and Organizations – apparent
antagonism, latent proximity: a
reflexion on communion economy
ELISABETE STRADIOTTO SIQUEIRA (UNIMEP, Brasil)
& VALÉRIA RUEDA ELIAS SPERS (UNIMEP, Brasil) 53

O Mal Exorcizado: cura divina entre os Summary


neopentecostais da Igreja Internacional
Sumário
da Graça de Deus
Exorcised Evil: Divine Cure Among Neopetencostals
of the International Church of the Grace of God
ANA KEILA PINEZI (Faculdades COC, Brasil) &
GERALDO ROMANELLI (USP, Brasil) 65

...............................
Religião, Cultura & Gênero
Religion, Culture & Gender
Hacia una Educación Teológica Intercultural
On the Way of an Intercultural Theological Education
MATTHIAS PREISWERK (ISEAT, Bolívia) 77
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O Quinto Impossível – ou quando Deus


é impossível e a impossibilidade do
ofício do teólogo
The Fifth Impossible – or when God is impossible and
the impossibility of the teologist’s office
EDIVALDO JOSÉ BORTOLETO (UNIMEP, Brasil) 95

Gênero e os Desafios Espistêmicos


para a Teologia e outros Saberes
Gender and Epistemic Challenges
for Theology and other Knowledges
TÂNIA MARA VIEIRA SAMPAIO (UNIMEP, Brasil) 107

A Teologia que sai do Armário:


um depoimento teológico
A Theology that Comes Out of the Closet:
a theological testimony
ANDRÉ SIDNEI MUSSKOPF (IEPG/EST, Brasil) 129

...............................
Conexões Gerais
General Connections
O Diálogo da Ciência Platônica com
o Materialismo Antigo: a ética do
escritor-filósofo
Dialogue Between Platonic Science and old
Summary

Materialism: the ethics of the “writer-philosopher”


Sumário

MARIA CAROLINA ALVES DOS SANTOS (Unicamp, Brasil) 149

...............................
Resenhas & Impressões
Reviews & Impressions
Obras de Wesley, de Justo L. González
JOSÉ CARLOS BARBOSA (UNIMEP, Brasil) 163

Pelos muitos Caminhos de Deus:


desafios do pluralismo religioso à teologia
da libertação, de Franz Damen
NILTON CÉSAR ARTHUR (UNIMEP, Brasil) 167
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Novas Publicações sobre Religião na


Alemanha: do cristianismo policêntrico à
“sociedade pós-secular” em Habermas
AMÓS NASCIMENTO (UNIMEP, Brasil) 171

NORMAS PARA PUBLICAÇÃO 179

Summary
Sumário
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001922_Impulso_34.book Page 11 Wednesday, February 18, 2004 3:38 PM

Religião & Modernidade


Religion & Modernity
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Religião depois da
Crítica à Religião*
RELIGION AFTER THE
CRITICISM OF RELIGION
Resumo Sustentado em razões sistemáticas ligadas à história dos conceitos, este artigo
defende que, diante do desenvolvimento da filosofia pós-hegeliana, cabe falar da supe-
ração da crítica da religião pela reflexão filosófica sobre a religião. O artigo traça re-
flexões sobre a história do conceito de religião e de filosofia da religião, chegando, na
filosofia da Era Moderna, à crítica da religião. Identifica, porém, que, ao desenvolver
uma concepção de razão crítica passível de concordância universal, a filosofia
contemporânea prescinde da idéia de filosofia da religião como crítica à religião. Na
medida em que o programa de uma crítica da religião filosoficamente fundamentada
se torna cada vez mais questionável, faz-se necessária a redefinição da relação entre fi- MATTHIAS
losofia e religião. LUTZ-BACHMANN
Universität Frankfurt, Alemanha
Palavras-chave FILOSOFIA – RELIGIÃO – FILOSOFIA DA RELIGIÃO – CRÍTICA À RE- Lutz-Bachmann@
LIGIÃO. em.uni-frankfurt.de

Abstract Based on systematic reasons related to the history of concepts, the present
article sustains that, in the face of post-Hegelian philosophy, it is necessary to deal
with the overcoming of the criticism of religion through the philosophical reflection
of religion. The article reflects on the history of religion and philosophy of religion
concepts, reaching, in the Modern Era’s philosophy, the criticism of religion. None-
theless, it shows that upon developing a concept of critical reason susceptible of uni-
versal agreement, the contemporary philosophy renounces the idea of philosophy of
religion as the criticism of religion. Since the program of a criticism of religion phi-
losophically grounded becomes more and more questionable, it is necessary to rede-
fine the relation between philosophy and religion.

Keywords PHILOSOPHY – RELIGION – PHILOSOPHY OF RELIGION – CRITICISM OF


RELIGION.

* Tradução, do alemão para o português, de PAULO ASTOR SOETHE (UFPR).

Impulso, Piracicaba, 14(34): 13-25, 2003 13


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E
m face do desenvolvimento da filosofia depois de Hegel,
temos de falar, hoje em dia, de um fim da crítica à reli-
gião. Essa tese apóia-se em razões sistemáticas ligadas à
história dos conceitos. Assim, começo com algumas re-
flexões sobre a história dos conceitos de religião (I) e de
filosofia da religião, firmada na filosofia da Era Moderna
como crítica à religião (II). Com a tarefa de desenvolver
uma concepção de razão crítica passível de concordância universal, no en-
tanto, tal como esboçado em nos nossos dias, a filosofia prescinde da
noção de filosofia da religião como crítica à religião (III). Contudo, sob o
pressuposto de que os argumentos em favor de um afastamento da idéia
de uma razão pública não se mostram convincentes do ponto de vista
filosófico, oferece-se atualmente a possibilidade de redefinir, de maneira
sistemática, a relação entre filosofia e religião (IV).

I.
Cícero deriva o conceito de religião (religio, em latim) do verbo re-
legere (reler, observar conscienciosamente).1 Religio significa aqui a virtude
do cumprimento cuidadoso de obrigações, em face da esfera dos numina
ou do que é divino. Conforme ele afirma, em seu diálogo “De natura de-
orum”, pela boca do estóico Balbus, essa virtude inclui a cuidadosa adora-
ção dos deuses em ações culturais e em oração. À virtude da religio con-
trapõe-se o vício da superstitio. Tal atitude, segundo Cícero, demonstra
que as pessoas honram os deuses não por causa deles em si, ou da ordem
do que é divino, e sim com a intenção de obter proveito próprio.2 Religio
e pietas (piedade) caracterizam, em Cícero, duas virtudes aparentadas en-
tre si de pessoas que, com um posicionamento adequado e a devida cons-
ciência, participam das atividades de culto, o deorum pius cultus.3
Diferentemente de Cícero, Lactâncio deriva religio do verbo re-ligare
(ligar, religar) e a articula com a concepção de que é Deus que se liga aos
seres humanos.4 Agostinho vincula-se a essa etimologia de Lactâncio
quando afirma, em “De vera religione”, que religio liga-nos com o Deus
todo-poderoso.5 Paralelamente, Agostinho atribui também à religio o sig-
nificado de uma escolha ou eleição, derivados do verbo religere (escolher,
eleger).6 Mesmo que Agostinho fale da fé cristã como um todo, no sen-

1 CÍCERO, De natura Deorum II, p. 72 (Leipzig: Teubner, 1933): “Qui autem omnia, quae ad cultum
deorum pertinent, diligenter retractarent et tamquam relegerent, sunt dicti religiosi ex relegendo” (“Aqueles,
porém, que praticam cuidadosamente tudo o que tem a ver com a louvação dos deuses e que, por assim
dizer, sempre lêem por completo/sempre analisam atentamente [re-legere] são chamados ‘religiosi’, por
derivação da palavra ‘relegere’ [ler por completo/analisar atentamente]).
2 A “superstitio”, contraposta à “religio”, deriva etimologicamente, para Cícero, do desejo dos seres
humanos de que “ut sibi sui liberi supeerstites essent” (“para eles, seus filhos logrem permanecer vivos”).
3 Idem, I, p. 116ss.
4 LACTÂNCIO, 1890, p. 391: “diximus nomen religionis a vinculo pietatis esse deductum, quod hominem
sibi deus religaverit et pietate constrinxerit, quia servire nos ei ut domino et obsequi ut patri necesse est” (“Dis-
semos que a palavra religião é derivada de liame da piedade religiosa, já que Deus ligou o homem a si e
prendeu-o através da piedade, por ser necessário que nós o sirvamos como a um senhor e lhe obedeça-
mos como a um pai”).
5 AGOSTINHO, 1961, p. 80: “Religet ergo nos religio uni omnipotenti deo”.
6 Idem, 1902, p. 64.

14 Impulso, Piracicaba, 14(34): 13-25, 2003


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tido de uma vera religio, atribuindo-lhe a caracte- neira controversa já contém em si um consenso
rística de uma procura por discernimento não de que um significado específico é próprio à reli-
apenas comparável à filosofia antiga, mas também gião como sistema social parcial.12
incluindo-a, continua central para ele o motivo, já Da perspectiva sociológica, reflete-se no
destacado por Lactâncio, de uma ligação do ser conceito moderno de religião a história de uma
humano com Deus, assim como de uma vincula- autonomização e diferenciação de esferas de va-
ção para o ser humano (religatio). lidação e sentido, no interior das sociedades oci-
Com essa tradição coincide ainda o uso dentais, desde o século XI. A elaboração intelec-
medieval da palavra religio. Na Idade Média ela tual da experiência social de diferença interna e
também designa a ordem religiosa, assim como externa surge como constitutiva para essa histó-
status religiones indica o estatuto da ordem. Um ria. Assim também é possível entender conflitos
monge, por exemplo, pode ser nomeado simples- característicos da história européia entre Igreja e
mente como religiosus pelo fato de estar vincula- Estado, ciência universitária e política, economia,
do a uma forma de vida especial. Tomás de Aqui- arte e moral, todos como expressão de esferas de
no ainda designa de religio a virtude da adoração validação especiais formadas no interior das socie-
a Deus, que orienta o ser humano rumo a Deus,7 dades ocidentais. De muitas maneiras, o discerni-
e, entre outras virtudes naturais, por sua força mento ainda insuficiente das partes conflituosas
vinculativa, o faz cumprir aquilo que deve a quanto à necessidade de tratar diferenciadamente
Deus.8 Com isso, associa a religio à justiça, a mais as pretensões de validação dos sistemas sociais
superior das virtudes naturais. parciais correspondeu à veemência desses debates
Distintamente da história conceitual antiga intelectuais históricos. Isso porque, se na socie-
e medieval, em nossa linguagem atual referimos o dade medieval foram rechaçadas, em primeiro lu-
conceito de religião não a uma atitude ou virtude gar, as pretensões exageradas dos representantes
individual, mas à complexa unidade de um todo da religião – seja pelos representantes do Estado
que integra posicionamentos, convicções e ações seja pelas ciências nas universidades, inclusive
teóricas e práticas. Poderíamos designar essa uni- pela própria teologia –, mais tarde foram os pró-
dade, com Wittgenstein, como um jogo de lingua- prios sistemas da ciência e da religião, da econo-
gem9 que segue suas próprias regras ou, com mia e da arte que se puseram em atitude defensiva
Ernst Cassirer, como uma forma simbólica.10 À contra a pretensão de dominação incondicionada
noção moderna de religião, em todo caso, é deci- do Estado moderno.13
sivo associar uma generalidade significativa ou Além disso, deve-se atribuir à autocompre-
uma validação de seus enunciados, símbolos e ensão cientificista das ciências, difundida no sé-
práticas distinta especificamente da pretensão de culo XIX, o fato de que a autonomização e dife-
validação dos enunciados, símbolos e práticas de renciação das esferas culturais de validação e sen-
outros sistemas sensivos, como a arte, a ciência e tido, presentes nas sociedades ocidentais, tenham
o direito. O que perfaz o sentido validativo de sido interpretadas como secularização da socie-
enunciados e práticas religiosas em particular é (e dade e como desautorização da religião. O que se
deve continuar sendo) polêmico, do ponto de percebeu, nesse processo, nada mais foi do que a
vista do conteúdo entre as diferentes disciplinas troca de um sistema de sentido dominante por
que se ocupam da religião.11 Entretanto, a cir- um outro, a saber, ao recalcamento da religião
cunstância de poder aqui falar sobre isso de ma- pela ciência.14 Mostra-se, então, à luz da tese da
7
diferenciação como um processo complexo de
TOMÁS DE AQUINO, 1980, II-II, q. 81: “religio importat ordinem
ad deum”.
8 Ibid., q. 60, a 3: “Religio est (virtus), per quam redditur debitum Deo”. 12 Cf. LUHMAN, 2000.
9 WITTGENSTEIN, 1967, p. 42ss. 13 Cf. KAUFMANN, 1989.
10 CASSIRER, 1933, segunda parte, p. 281-311. 14 Cf., de forma paradigmática sobre a questão: COMTE, 1966, p. 5-
11 ELSAS, 1975. 41.

Impulso, Piracicaba, 14(34): 13-25, 2003 15


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perfilamento de sistemas parciais, isso que, se- significará mais tarde no hegelianismo de esquer-
gundo nos ensina a história mais recente das so- da –, mas sobretudo uma submissão geral a pro-
ciedades européias e norte-americana, não con- vas de concordância com a faculdade natural do
duz necessariamente a um enfraquecimento da conhecimento ou à razão do ser humano.17 Ain-
religião como sistema de sentido, nem de seu sig- da que não nesse programa, mas em seu cumpri-
nificado social. Assim, por exemplo, a separação mento, diferenciem-se, provavelmente, duas im-
entre direito secular e religião no Estado moder- portantes correntes da filosofia da Era Moderna:
no teve diferentes conseqüências para o papel pú- o empirismo e o racionalismo.
blico da religião, que não pode ser apreendido em A filosofia da religião – diferentemente da
uma interpretação cientificista unidimensional. teologia natural ou filosófica, que continuou a ser
O processo de diferenciação social interna defendida pela filosofia especulativa e pela meta-
decorre, em todo caso, de maneira mais complexa física – não tem a ver, como disciplina nova fun-
do que poderia compreender a tese de inspiração dada pela filosofia moderna, com a questão do
cientificista de uma secularização irrefreável princípio primeiro, mas sobretudo com o ser hu-
ocorrida em detrimento da religião. Em seu estu- mano e a religião dele. Como problema central da
do sobre a sociologia da religião, o próprio Max filosofia da religião moderna revela-se, especial-
Weber, que por certo não estava totalmente livre mente, a procura por uma religião natural univer-
de preconceitos cientificistas, pôde reconhecer a sal capaz de abranger os limites das comunidades
participação religiosa no desencantamento do confessionais e religiosas históricas, isto é, uma
mundo no Ocidente.15 Assim, a diferenciação e religião em conformidade com o ser humano ou
autonomização das esferas de validação nas socie- então à sua faculdade natural da razão. Tal ques-
dades ocidentais ligam-se só em parte a um recuo tionamento vincula a filosofia da religião do de-
dos modelos religiosos de interpretação da vida. ísmo inglês do século XVII à neologia protestante
No âmbito da formação de diferentes campos de ou à filosofia do esclarecimento do século XVIII.18
validação, podem observar-se processos de perfi- Em “Essay on the concerning human un-
lamento de interpretações religiosas de mundo derstanding”, de John Locke, publicado em 1689,
que têm por conseqüência uma intensificação da encontramos um exemplo clássico de fundamen-
interpretação religiosa da vida, ocasionando, por tação epistemológica da filosofia, e de suas impli-
essa via, uma elevação do significado social da re- cações sistemáticas, em face da recém-desenvol-
ligião. vida filosofia da religião. Como já se depreende
da “Carta ao leitor”, anexada por Locke a esse en-
II. saio, estão subjacentes à teoria filosófica do co-
O conceito moderno de religião deve-se à nhecimento por ele concebida algumas conversas
filosofia da Era Moderna.16 Ele reflete o progra- com amigos sobre um “tema muito distante”19 da
ma epistemológico de uma fundamentação da fi- epistemologia. Um dos participantes desses co-
losofia por meio de uma crítica desenvolvida me- lóquios, um certo James Tyrrell, os descreve
todicamente acerca do conhecimento e da razão. como discussões “sobre os princípios da moral e
Dessa autocompreensão da filosofia já modifica- da religião revelada”.20 Como o debate sobre esse
da surge também o perfil de uma nova disciplina conjunto de questões colocou os participantes
filosófica, a saber, a filosofia da religião, que, por diante de problemas insolúveis, ocorreu a Locke
sua vez, carece ser entendida como crítica da re- “a idéia de que teríamos escolhido um caminho
ligião. Contudo, esse termo não quer dizer, aqui, errado e que precisaríamos necessariamente, an-
uma refutação ou superação da religião – como 17 Cf. LUTZ-BACHMANN, 1998.
18 Cf. FEIEREIS, 1965.
15 Cf. WEBER, 1978. 19 LOCKE, “Sendschreiben an den Leser”, in: ______, 1981, p. 7.
16 Cf. os estudos de FEIL, 1986 e 1997. 20 RAMSEY, 1996, p. 9.

16 Impulso, Piracicaba, 14(34): 13-25, 2003


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tes de dar início a essas investigações, submeter com as idéias claras e límpidas da razão ou reve-
nossas próprias bases intelectuais à prova e então lam-se incompatíveis com elas.26
ter clareza sobre quais são os objetos de que nos- Uma vez que essas últimas proposições
so entendimento estaria em condições de tra- têm de ser refutadas pela razão, o campo dos
tar”.21 Esse motivo vem novamente à baila no iní- enunciados cujo teor ultrapassa a capacidade cog-
cio de seu ensaio, em que Locke descreve o seu nitiva natural do ser humano, sem contudo con-
objetivo de “investigar a origem, certeza e abran- trariar a razão, constitui, para Locke, o verdadeiro
gência do conhecimento humano, ao lado dos objeto da fé religiosa. Em questões que não po-
fundamentos e gradações da fé [belief], da opi- dem ser de modo algum julgadas pela razão, ou
nião [opinion] e do assentimento [assent]”.22 que o possam, fundadas tão-somente em proba-
Ao final de suas investigações, e dando con- bilidades, as pessoas são conclamadas, com boas
tinuidade à refutação das idéias inatas23 defendi- razões, a ouvir a revelação de Deus: a ela cabe prio-
das por Descartes, e da remissão das idéias – ridade nas perguntas “em que foi do agrado de
como objetos do pensamento – à sensation e à re- Deus propô-las, mesmo diante de suposições
flection,24 Locke dedica-se, no quarto livro de seu apenas prováveis da razão”.27 A revelação (reve-
ensaio, à questão do saber humano em sua tota- lation) é tomada por Locke, por conseguinte,
lidade, sua abrangência e potencial de verdade.25 como um outro princípio da verdade e uma outra
Nesse contexto, encontram-se finalmente suas razão para o assentimento, “pois nesse caso espe-
famosas considerações sobre a relação entre ra- cial”, segundo ele, “em que a razão não pode ir
zão (reason) e fé (faith), que fundamentam o seu além da probabilidade, é a fé quem se mostra de-
posicionamento diante da religião cristã. Aqui ele terminante, porque a razão se comprova como
insuficiente. Aqui a revelação desvendou de que
se faz conduzir por dois princípios. Em primeiro
lado está a verdade”.28
lugar, parte da exigência de que razão e fé não po-
O texto “Essay concerning human unders-
dem contradizer-se. Entendida por Locke como
tanding”, de Locke, descreve o programa da filo-
uma faculdade finita do ser humano (faculty in
sofia da religião da Era Moderna. Em seu núcleo,
man), a razão serve, em segundo lugar, de parâ-
ele consiste na checagem crítica da conformidade
metro para o julgamento da fé religiosa. Para ele,
racional dos enunciados da religião,29 mais preci-
só são comprovadamente legítimos os enuncia-
samente daqueles que, em virtude de uma episte-
dos da fé que correspondam ou ultrapassem o
mologia e crítica do conhecimento gerais, podem
discernimento da razão. São conformes à razão
ser adequadamente entendidos como tal e, por is-
(according to reason) os enunciados cuja verdade
so, não contraditórios à razão. Também em Im-
pode ser demonstrada ao deduzir as idéias que
manuel Kant encontramos uma crítica da religião
lhes são subjacentes, com base na sensation e na
semelhante. No prefácio à primeira edição da
reflection, e ao comprovar seu conteúdo como
Crítica à Razão Pura, de 1781, o autor descreve a
verdadeiro, ou ao menos verossímil, por meio da tarefa que marcou época na filosofia como “uma
dedução natural. Por outro lado, ultrapassam a conclamação da razão a que volte a assumir o
razão (above the reason) os enunciados cuja ver- mais oneroso de seus afazeres, a saber, o da au-
dade ou verossimilhança não podem derivar de tocrítica, e que instaure um tribunal que a asse-
princípios como esses. Contrários à razão (con- gure em suas pretensões justas”.30 Para Kant, a ta-
trary to reason), e portanto repudiáveis, são, no refa de uma autocrítica da razão, colocada, desse
entanto, os enunciados que não podem subsistir
26 Ibid., p. 390-392.
21 LOCKE, “Sendschreiben an den Leser”, in: ______, 1981. 27 Ibid., p. 401.
22 Ibid., p. 22. 28 Ibid., p. 402.
23 Ibid., Livro Segundo, p. 29-105. 29 Cf. idem, “The reasonableness of Christianity”, in: ______, 1981.
24 Ibid., p. 107-158. 30 KANT, Kritik der reinen Vernunft (KrV), in: ______, 1974, pref. à 1.ª
25 Ibid., Livro Quarto, v. II, p. 167-256. ed. (1781), A XI.

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modo, no centro das atribuições da filosofia, é da Razão Prática, encontramos o conceito de


iniludível, pois esta fundamenta-se no destino es- Bem supremo. Ele designa a unidade de virtude e
pecial da própria razão humana, qual seja, ocupar- bem-aventurança, que, segundo Kant, corres-
se de perguntas das quais, por um lado, não pode ponde ao pleno querer de um ser racional36 e,
prescindir, mas que, por outro, pode tampouco como tal, deve ser considerado um fim último de
responder, já que “ultrapassam toda a faculdade seu anseio. Nesse ponto, as reflexões moral-
da razão humana”.31 Entre elas, incluem-se ques- filosóficas de Kant transformam-se expressa-
tões sobre a realidade da liberdade humana, a mente em filosofia da religião, pois a idéia inilu-
existência de Deus e a certeza de um mundo vin- dível de um Bem supremo torna necessário, se-
douro. gundo Kant, aceitar a existência de Deus37 como a
O caminho crítico que, segundo Kant, ain- “de um legislador moral que detém poder e ex-
da está aberto,32 após o fracasso do racionalismo terno ao ser humano” e “em cuja vontade está o
dogmático de Christian Wolff e do método céti- propósito último [da criação do mundo], o qual
co de David Hume, contém a crítica não apenas pode e deve ser ao mesmo tempo o propósito úl-
da faculdade cognitiva e racional humana, mas timo do ser humano”.38
também das instituições sociais e estruturas polí- Dessa maneira, a filosofia da religião torna
ticas. Como já se evidenciou no prefácio à Crítica explícitas, para Kant, as implicações necessárias
da Razão Pura, também a religião e o poder po- do conceito de Bem supremo, revelado, pela crí-
lítico legislativo não estão excluídos da crítica à tica da razão teórica, como um ideal da razão
razão aí exigida. Escreve Kant: pura e, pela crítica da razão prática, como impres-
Nossa época é a verdadeira época da crí- cindível. Ao mesmo tempo, é sua tarefa estabele-
tica, à qual tudo deve submeter-se. A re- cer uma relação entre a realidade do moralmente
ligião, por meio de sua sacralidade, e a ati- mau como uma dimensão da liberdade da natu-
vidade legislativa, por meio de sua majes- reza humana e a disposição original do ser huma-
tade, comumente querem eximir-se dela. no para o Bem. No prefácio de seus escritos so-
Mas em vez disso suscitam assim a sus- bre a religião, de 1793, Kant atribui grande valor
peita contra si mesmas, e não podem fa- à constatação de que as reflexões ali apresentadas
zer exigências de atenção inequívoca, que – como evidencia o próprio título de forma pro-
a razão só concede àquilo que é capaz de
gramática – permanecem estritamente nos limites
suportar sua provação livre e pública.33
da simples razão,39 apesar de não se poder negar
A referência temática à pergunta sobre que elas estejam fortemente orientadas por mo-
como os enunciados da religião podem ser julga- tivos bíblicos, sobretudo neotestamentários. De
dos (criticados) de forma filosoficamente adequa- sua parte, nessa limitação aos afazeres cognitivo-
da já perpassa, como fio condutor, a crítica da fa- críticos da filosofia, elas não manifestam preten-
culdade cognitiva humana em Kant. Em Crítica são de impor quaisquer preceitos, metódicos ou
da Razão Pura estão especialmente presentes as de conteúdo, à religião cristã ou à sua conforma-
reflexões de Kant sobre o status filosófico do ção reflexiva, à teologia como outra faculdade
conceito de Deus, tratado na dialética transcen-
dental sob a noção de um ideal da razão pura34 e, 35 Ibid., KrV, “Transzendentale Methodenlehre”, 2. Parte principal:
“Der Kanon der reinen Vernunft”, 2.o §: “Von dem Ideal des Guts als
na metodologia transcendental,35 sob a concepção einem Bestimmungsgrund des letzten Zwecks der reinen Vernunft”,
de um ideal do Bem supremo. Também na Crítica 1974, B 832, A 804 - B 859, A 831.
36 Idem, Kritik der praktischen Vernunft (KpV), 2. Parte principal:
“Vond er Dialektik der reinen Vernunft in Bestimmung des Begriffs
31 Ibid., KrV, A VII. vom höchsten Gut”, A 199, in: ______, 1974.
32 Ibid. 37 Ibid., KpV A 223.
33 Ibid., KrV, pref. à 1.a ed. (1781), A X, XI. 38 Idem, Die Religion innerhalb der Grenzen der bloßen Vernunft, BA X,
34 Ibid., KrV, “Die transzendentale Dialektik”, 3. Parte principal: “Das XI, in: ______, 1974.
Ideal der reinen Vernunft”, B 595, A 567 - B 670, A 642. 39 Cf. RICKEN; MARTY, 1992.

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científica da universidade. Ao contrário, ele tam- cientificamente, Deus é em primeiro lu-


bém exige para a filosofia uma liberdade ilimitada gar um nome geral abstrato, que ainda
da razão em assuntos de religião, pois “uma reli- não pode receber teor verdadeiro algum.
gião que irrefletidamente declara guerra à razão Pois somente a filosofia da religião é um
desenvolvimento como esse, é conheci-
não poderá sustentá-la ao longo do tempo”.40 Os
mento do que Deus é, e só por meio dela
escritos de Kant sobre a religião contribuem, des-
descobre-se de maneira elucidativa o que
sa maneira, a que se apresentem, de maneira Deus é.44
filosófica, não apenas a conformidade racional da
religião em geral, mas também os motivos cen- Para a religião, no entanto, diferentemente
trais da tradição neotestamentária. Com isso, da filosofia, Deus é “essa noção bem difundida,
esse autor mostra-se em condições de superar a mas cientificamente ainda não desenvolvida, ain-
alternativa formulada pela filosofia deísta da reli- da não conhecida”.45 A filosofia da religião de
gião, proposta pelo iluminismo da fase inicial, en- Hegel marca, portanto, não apenas o apogeu da
tre um conceito geral de uma religião natural, de concepção de filosofia da religião como crítica
um lado, e de uma religião revelada, de outro. filosófica da religião, mas também seu limite in-
A essa noção kantiana de filosofia da reli- terno: com ele já tem início a história de uma
gião, no sentido de uma crítica da religião orien- suprassunção da religião pela filosofia. Eis justa-
tada pela razão, seguem-se pensadores tão distin- mente aí a tarefa da filosofia da religião hegeliana.
tos quanto Schleiermacher e Hegel: o primeiro, Depois de Hegel, no entanto, e sob a influência
ao tentar legitimar a religião na trilha de um ques- de uma crítica radical ao hegelianismo, a filosofia
tionamento cognitivo-crítico ampliado (em com- da religião e a crítica da religião trilham caminhos
paração ao de Kant) como sensibilidade e gosto cada vez mais separados.
pelo infinito41 e ao identificar a combinação de
intuição e sentimento como faculdade cognitiva III.
da religião;42 o segundo, por sua vez, ao apresen- A concepção de filosofia defendida pelos re-
tar a comprovação da racionalidade da religião no presentantes do hegelianismo de esquerda volta-
âmbito de seu sistema de um idealismo especula- se não apenas contra o programa da sua funda-
tivo. Por tal êxito, Hegel paga, no sistema, o pre- mentação como teoria do conhecimento ou crí-
ço de atribuir à filosofia da cognição de um filó- tica da razão; ela também assume uma distância
sofo conceitualmente operante a força de um dis- crítica em relação à autocompreensão tradicional
cernimento superior quanto ao absoluto, se com- da filosofia como um todo. Nesse sentido, o he-
parado ao discernimento da linguagem simbólica gelianismo de esquerda revela-se filho legítimo da
da religião, vinculada a representações.43 Com is- compreensão cientificista da ciência no século
so, a filosofia especulativa, pretendendo um co- XIX, pois, mesmo que o plano de uma superação
nhecimento mais adequado do absoluto, toma o da filosofia vise primeiramente, até então, como
lugar da religião, que assume, segundo Hegel, um em Ludwig Feuerbach, a filosofia hegeliana, que
grau menor de discernimento. “O que é Deus”, encena a si mesma como ponto alto e perfeição
escreve Hegel, referindo-se também a si mesmo, da procura filosófica por discernimento, a crítica
de Marx a Feuerbach pretende ir claramente além
é para nós que temos religião algo conhe- do programa de conhecimento filosófico, para
cido, um conteúdo que está presente na mudar o mundo46 por meio da práxis social. Na
consciência subjetiva; mas considerado corrente desse desenvolvimento das ciências para
40 KANT, Die Religion innerhalb der Grenzen der bloßen Vernunft,
além da filosofia, característico do século XIX,
pref. B A XIX, in: ______, 1974.
41 SCHLEIERMACHER, 1970, p. 30. 44 Ibid., p. 92.
42 Ibid., p. 41. 45 Ibid., p. 92.
43 Cf. HEGEL, 1969, p. 16-54. 46 MARX, 1969, p. 7.

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chega-se também a uma mudança do lugar con- Feuerbach, e na linha de sua crítica tanto ao he-
cernente à crítica da religião: ela não é mais feita gelianismo de esquerda quanto a Hegel, Marx
em nome da filosofia. Porém, uma crítica da re- argumenta que o ser humano identificado por
ligião que já não se entende como um momento Feuerbach como o teor da religião (cristã) não é
da filosofia da religião perde cada vez mais, por “um ser abstrato, situado fora do mundo”, e sim
razões que ainda veremos, o status de uma crítica “o mundo do ser humano, Estado, sociedade”.
que vindica para si pretensões gerais de verdade. “Esse Estado e essa sociedade produzem a reli-
Em face da história da filosofia, gostaria de expli- gião, uma consciência de mundo às avessas, por-
car rapidamente essa tese. que eles mesmos são um mundo às avessas.”52
Com suas “Teses sobre a reforma da filoso- Contudo, religião não se esgota, para o jovem
fia”, de 1842, Ludwig Feuerbach ainda segue o Marx, em ser a expressão da miséria real – ela é
programa de crítica e renovação da filosofia. Ele também o protesto contra a miséria real e o suspiro
escreve: “O filósofo precisa acolher no texto da criatura oprimida. Isso nada muda a exigência
filosófico o que há no ser humano e ainda não te- defendida por Marx de uma suprassunção da reli-
nha sido tratado pela filosofia, o que nele seja até gião como condição para o ser humano alcançar
mesmo contrário à filosofia e se oponha ao pen- sua felicidade efetiva. Assim, a crítica à religião re-
samento abstrato: tudo isso que, em Hegel, é re- vela-se em Marx, em última instância, como “exi-
baixado somente a uma nota secundária”.47 A gência de renúncia a um estado que carece de ilu-
corporeidade do ser humano, recalcada pela filo- são”.53
sofia especulativa do idealismo alemão em Hegel Enquanto a opção de Feuerbach contra
e Schelling, deve não apenas ser reconduzida para uma interpretação teológica da religião ainda per-
dentro da filosofia; cabe, sim, fundamentar a fi- manece vinculada a seu programa de reformar a
losofia em geral como antropologia sensualista. filosofia com base em uma antropologia sensua-
A filosofia do futuro deve começar sua atividade lista, a crítica marxista da religião já constitui um
cognitiva a partir do não-pensar, da realidade con- passo decisivo para além dos limites da filosofia.
creta, da não-filosofia. Feuerbach denomina isso Não obstante, Marx utiliza-se aqui, inequivoca-
claramente de princípio do sensualismo.48 Sua crí- mente, de um discernimento filosófico, a saber, a
tica da religião segue esse mesmo princípio – ela negação do negativo. Continua não se tendo aí
é menos uma crítica da religião, já que, para esse uma explicação sistemática sobre a possibilidade
autor, a essência sensualista do homem também do recurso materialista pretendido por Marx ao
se articula na religião, e muito mais uma crítica da modelo de crítica fundado na teoria idealista da
visão teológica da religião. A nova filosofia anun- razão de Hegel, sem que, com isso, se apresen-
ciada por Feuerbach “é portanto, como negação tem problemas graves de consistência. A própria
da teologia, que nega a verdade dos afetos religio- descrição do mundo social como miséria não
sos, o posicionamento da religião”.49 pressupõe uma posição refletida e fundada, que,
Constatando de forma lapidar que, com a no âmbito exclusivo das premissas admitidas pela
crítica do hegelianismo de esquerda, “a crítica à concepção marxista do materialismo histórico, e
religião já está essencialmente concluída na Ale- atinentes à sua argumentação, não se poderia ob-
manha”,50 Marx filia-se à tese, defendida por ter sem outras assumpções adicionais? Também
Feuerbach, de que se deve conceber o antropoteísmo diante de Feuerbach cabe perguntar se a opção
como “religião autoconsciente – a religião que ontológica fundamental, subjacente à sua visão
se entende a si mesma”.51 No entanto, contra de filosofia e religião, não incorre, por sua vez, no
erro de trair sua própria crítica ao status secun-
47 FEUERBACH, 1967, p. 91.
48 Ibid. 51 Idem, 1969, p. 93.
49 Ibid., p. 93. 52 Idem, 1958, p. 30
50 MARX, 1958, p. 30. 53 Ibid., p. 31.

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dário da filosofia em face da vida, e se ela não faz da história da filosofia do século XIX. Elas repre-
do princípio cognitivo sensualista um dogma sentam também um tipo de afastamento da filo-
metafísico. sofia, freqüente no debate intelectual do século
Entretanto, o debate em torno da consis- XX, que contou com um considerável assenti-
tência argumentativa das posições de Feuerbach e mento, desde o positivismo lógico até Richard
Marx tem, para mim, nesse contexto, importân- Rorty.55 Ao longo desse desenvolvimento, no en-
cia menor. Para a reconstrução que faço do des- tanto, a crítica à religião abandona sua pretensão
tino da crítica à religião após Hegel basta ter pre- de fazer restrições à religião – as quais mostram-
sente que Feuerbach e Marx, por razões filosófi- se, em geral, passíveis de aprovação –, pois perde
cas internas, formulam contestações fundamen- nesse caminho sua base racional e transforma-se
tais contra a religião ou, então, uma determinada naquilo que os críticos da religião costumam nela
autocompreensão da religião que mutatis mutan- condenar: uma mera visão de mundo. Essa cons-
dis também vale para a filosofia, ou, em todo ca- telação marca o estado da crítica à religião no pre-
so, para um certo entendimento de filosofia. É sente: ela esfacelou-se junto com a pretensão de
justamente isso que contribui para a mudança do racionalidade da filosofia e o que resta é a religião
posicionamento da crítica à religião: de uma crí- depois da crítica à religião.
tica à religião ou à filosofia ainda filosoficamente
motivada, em Feuerbach ou Marx, faz-se mais IV.
abrangente, na corrente de uma história do pen- À medida que vai sendo abandonada, no in-
samento do século XIX, uma crítica à religião que terior da filosofia, a tentativa de fundamentar um
não abdica de um conceito forte de razão, mas conceito (publicamente aceito) de crítica e de ra-
que renuncia, sim, da própria filosofia. Em zão publicamente aceitável, revela-se também
Nietzsche e Freud, já não mais a busca da verda- sempre mais inexeqüível o programa de uma crí-
de filosófica orienta a crítica à religião, pois am- tica da religião filosoficamente fundamentada, tal
bos logram abdicar radicalmente do programa como proposto pela filosofia da Era Moderna.
cognitivo da filosofia – Freud, ao entender-se de Independentemente das pesquisas histórico-em-
uma ótica cientificista (quiçá equivocada) como píricas sobre a religião (feitas, portanto, no interior
pesquisador empírico, e Nietzsche, por outro la- da filosofia), é concebível, em todo caso, diante de
do, pela via de seu ataque fundamental à capaci- uma premissa como essa, uma situação argumen-
dade humana do conhecimento da verdade. No- tativa relativa ao tema, na qual, por um lado, uma
tadamente, Nietzsche vincula sua investida con- epistemologia de tom cientificista ignore o factum
tra a crença filosófica na gramática à uma opção da religião como irrelevante, do ponto de vista da
contrária à idéia de Deus, escrevendo, por exem- teoria da ciência, e um naturalismo de
plo, no “Crepúsculo dos deuses”, que “A ‘razão’ argumentação reducionista atribua enunciados
na linguagem: ah! que velha senhora cheia de tru- religiosos às condições socioculturais de seu sur-
ques! Temo que não nos livremos de Deus por- gimento. Por outro lado, ainda nessa situação ar-
que ainda cremos na gramática…”.54 gumentativa, adeptos da hermenêutica, da feno-
A crítica de ambos – Nietzsche e Freud – à menologia ou de teorias da cultura de abordagem
religião deixou para trás o discurso de fundamen- lingüístico-pragmática procurem entender-se,
tação da filosofia e da crítica filosófica à raciona- com maior ou menor êxito, sobre teorias da com-
lidade ou à razão. Assim, as posições desses dois preensão de enunciados religiosos, teorias da
pensadores não são apenas uma comprovação de consistência de práticas religiosas, do ponto de
minha tese, de que os caminhos da filosofia da re- vista do mundo da vida, ou teorias da gramática
ligião e da crítica à religião separam-se ao longo dos jogos de linguagem religiosos. Se as posições

54 NIETZSCHE, 1969, p. 960. 55 Cf. RORTY, 1987.

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mencionadas por último podem reclamar para si pessoas, aludindo explicitamente a um mundo da
o título de filosofia da religião, e em que medida vida e a experiências aí vividas, repartidas com os
podem fazê-lo, é, no mínimo, uma pergunta pro- demais. A profissão de fé também segue a estru-
blemática, em face da história do surgimento da tura gramatical de um língua partilhada com os
filosofia da religião como crítica à religião – no outros. Normalmente, ela supõe um mundo ex-
contexto de minhas reflexões, a propósito, essa terior real, referido para manifestar enunciados
pergunta é também secundária. sobre Deus, o Santo ou o inteiramente Outro,
Não é de menor importância, porém, a ca- por contraste ou concordância. Esses enuncia-
racterização dessa constelação como uma situa- dos não se eximem por completo de uma com-
ção posterior à crítica da religião aplicada, ao me- preensibilidade intersubjetiva, ainda que seja
nos em parte, à filosofia contemporânea. Isso, mesmo impossível definir cabalmente os con-
por sua vez, não traz em si a idéia de que uma for- ceitos religiosos centrais, como Deus, eternida-
ma qualquer de crítica à religião seja impensável já de e transcendência.
de saída. Assim, em razão de diversos critérios, é Tal status, no entanto, eles têm em comum
possível fazer reparos em particular contra religiões com outros conceitos-limite, como ocorrem na
ou práticas religiosas, mas uma crítica a religiões, no filosofia. Um subjetivismo radical da interpreta-
sentido de uma prova geral da verdade ou da ade- ção religiosa da fé precisa negar essa descrição ou,
quação racional de seus enunciados e práticas, então, admitir que os enunciados religiosos,
está fora de cogitação. Se ela quisesse apresentar- como as profissões de fé, encontram-se sob pre-
se como tal, certamente não poderia fazê-lo com missas semióticas que tornam necessário formu-
o tom de autoridade de uma concepção filosófica lar também para elas critérios de veracidade sub-
de razão ou de uma pretensão de verdade que, em jetiva e compreensibilidade intersubjetiva, bem
princípio, os participantes estivessem conclama- como descrever as condições de cumprimento de
dos a aceitar. No que tange às religiões, uma cor- seus anseios de verdade. De outro modo, não ha-
respondência a esse desenrolar das coisas está na veria mais como distinguir entre tais enunciados e
atitude retraída de seus representantes, manifes- a autenticidade da arte, e eles, portanto, estariam
tada de muitas maneiras e limitada a um tomar situados epistemologicamente num mesmo nível
por verdadeiro, em âmbito particular. De acordo dos eventos biográficos meramente contingen-
com essa atitude, o discurso sobre uma verdade tes, que podem ser compreendidos apenas da
subjetiva atribuível aos enunciados da fé religiosa perspectiva do narrador em primeira pessoa, sem
revela-se obsoleto. a possibilidade de julgá-los ou comunicá-los. As-
Em tal visão dos enunciados da religião é sim, a interpretação radical de enunciados religio-
problemático que, com ela, tornem-se invisíveis sos como jogo de linguagem conduz epistemolo-
as pretensões de verdade, vinculadas normalmen- gicamente ao erro.
te à declaração de fé, por parte da própria pessoa A renúncia da filosofia e das ciências
que crê. Mesmo admitindo que uma declaração contemporâneas – pressuposta em uma visão radi-
de fé religiosa não possa ser senão proferida da calmente subjetivista da religião – aos conceitos de
perspectiva da primeira pessoa e que, portanto, o uma linguagem intersubjetivamente compreensí-
declarante esteja envolvido no conteúdo e no vel, de uma crítica discursiva e de uma razão pú-
cumprimento do que declara, ainda assim a de- blica não ficou sem contestação, nem mesmo no
claração de fé também pleiteia a si uma validação interior da própria filosofia. Em “Dialética do es-
para além da particularidade ou da evidência in- clarecimento”,56 os representantes da teoria críti-
terior do sujeito individual. As profissões de fé ca mais antiga, Max Horkheimer e Theodor W.
religiosas também têm uma referência intersub- Adorno, já haviam estabelecido um nexo entre a
jetiva, pois, via de regra, não seguem a estrutura
do monólogo, mas dirigem-se a Deus ou a outras 56 HORKHEIMER; ADORNO, 1969, especialmente p. 1-7 e 9-49.

22 Impulso, Piracicaba, 14(34): 13-25, 2003


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crise da filosofia e as catástrofes políticas do sé- como um esquema, para então perpetuar-se a si
culo XX e começado a reconquistar para a filoso- mesmo”.58
fia contemporânea um conceito de razão pública Nesse recurso de ambos, vejo uma virada
filosoficamente reabilitado e isento das restrições copernicana na relação entre religião e crítica
de uma racionalidade procedimental cientificista. filosófica à razão, com o despontar de novas pers-
Como eles tinham boas razões para defender a pectivas. Se o programa de uma filosofia da religião
opinião de que não se poderia chegar a tal con- como crítica racional da religião, favorecido pela fi-
ceito mediante o recurso às noções de entendi- losofia da Era Moderna e do esclarecimento, to-
mento das ciências particulares, e como o cami- mava como ponto de partida um conceito de razão
nho até as teorias idealistas da razão do idealismo fortalecido, segundo o qual se devia julgar a pre-
alemão lhes pareceu interditado após a crítica de tensão de validação de enunciados religiosos,
Marx, optaram por recorrer às tradições da arte e Horkheimer e Adorno, de sua parte, procuram al-
da religião, no sentido de pensar quais os discer- cançar, sob a palavra de ordem de uma dialética do
nimentos aproveitáveis para a refundamentação esclarecimento, e em face da crise da razão, a aber-
de uma concepção filosófica de crítica racional. tura para uma noção sustentável e filosófica de ra-
Horkheimer e Adorno vêem no motivo da zão, baseada em discernimentos formulados e pre-
negação determinada uma vinculação entre o pen- servados na linguagem da arte e da religião. A vi-
sar crítico por eles almejado e as figuras autênti- rada, de que falamos, na relação entre filosofia e re-
cas de sentido provindas da arte e da religião. As- ligião consiste justamente no fato de que a
sim, na “Dialética do Esclarecimento”, eles afir- filosofia, na nova constelação posterior à crítica da
mam: “A religião judaica não admite palavra algu- religião, não surge mais com a pretensão de repre-
ma que garanta consolo ao desespero de todo e sentar ela mesma o parâmetro segundo o qual se
qualquer mortal. Ela só vincula esperança à proi- comprova o teor de verdade dos enunciados da re-
bição de que se designe algo falso como sendo ligião e, com isso, sua adequação racional.
Deus, o finito como sendo infinito, a mentira Religião e filosofia, mas também ciência e
como sendo verdade”.57 A religião, a arte abstrata arte, surgem na constelação da modernidade, es-
e o pensamento independente e vinculado apenas tabelecendo entre si uma nova relação. Elas estão
à questão da verdade representam, para Horkhei- teoricamente vinculadas uma à outra, quando se
mer e Adorno, o potencial que havia impulsiona- trata de fundamentar um novo conceito amplia-
do a corrente do esclarecimento, que já se mos- do de razão pública, isento das restrições de um
trava então fracassado – reproduziam esse poten- positivismo cientificista ou de um naturalismo
cial, cuja perda fez adoecer o esclarecimento. epistemológico. A particularidade dessa vincula-
Nesse sentido, as análises do tempo e da razão, na ção racional entre elas consiste no reconhecimen-
“Dialética do Esclarecimento”, não são um docu- to de que os discernimentos e os resultados fun-
mento de desespero, ironia negra e liquidação pa- dadores, alcançados pelos enunciados da religião,
radoxal do pensamento, como já se declarou in- da ciência e da filosofia, foram conquistados de
justamente. Mais do que isso, elas articulam uma maneira própria, em cada um dos casos, e subme-
esperança tênue de poder elaborar um conceito tidos a um julgamento geral. Tal singularidade
reabilitado de razão, por meio de um recurso ao constitui também o reconhecimento de que eles
projeto crítico do esclarecimento, à religião (ju- não apenas podem, mas, de certo modo, devem
daica) e à arte moderna, pois “sem esperança não necessariamente complementar-se uns aos ou-
há a existência, mas sim o saber que, no símbolo tros, sem ser, no entanto, exaustivamente tradu-
gráfico ou matemático, apropria-se da existência zíveis de um sistema parcial a outro.

57 Ibid., p. 30. 58 Ibid., p. 34.

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Dados do autor
Professor de filosofia na Universidade de
Frankfurt (Alemanha) e na Saint Louis
University (Estados Unidos), fundador do
Instituto de Pesquisa sobre Filosofia da
Religião, em Frankfurt, e membro de vários
comitês internacionais.

Recebimento artigo: 14/jan./03


Consultoria: 2/abr./03 a 26/set./03
Aprovado: 31/out./03

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A Religião Cristã e o Processo


Civilizador Europeu*
CHRISTIAN RELIGION AND THE EUROPEAN
CIVILIZING PROCESS
Resumo O presente ensaio aborda as visões de Norbert Elias e Max Weber, compa-
radas no contexto das tradições agostiniana e lucreciana. A visão agostiniana da his-
tória da civilização, antiga tradição no pensamento europeu, mantém-se bastante pre-
sente: de acordo com ela, a religião, particularmente a cristã, foi a principal força mo-
triz no processo civilizador na Europa. Assim, valendo-se de breve esboço da tradição
dominante, é feito o contraste com sua contraparte recessiva, chamada aqui de tra-
dição lucreciana, escola de pensamento à qual a abordagem de Elias estava alinhada. JOHAN GOUDSBLOM
Universiteit van Amsterdam
Palavras-chave NORBERT ELIAS – MAX WEBER– PROCESSO CIVILIZATÓRIO EURO- Amsterdã, Holanda
PEU – TRADIÇÕES AGOSTINIANA E LUCRECIANA. jgoudsblom@fmg.uva.nl

Abstract The present essay approaches Norbert Elias and Max Weber views, com-
pared in the context of the Augustinian and Lucretian traditions. The Augustinian
view of the history of civilization, an old tradition in the European thought, is much
present: according to it, religion, particularly the Christian religion, was the main mo-
ving force in the civilizing process in Europe. Thus, making use of a brief outline of
the dominant tradition, the author contrasts it with its recessive counterpart, called
Lucretian tradition, school of thought to which Elias’ approach was aligned.

Keywords NORBERT ELIAS – MAX WEBER – EUROPEAN CIVILIZING PROCESS –


AUGUSTINIAN AND LUCRETIAN TRADITIONS.

* Este artigo tem uma longa história. Foi apresentado, pela primeira vez, como ensaio, em seminários

organizados por Bryan Wilson, na All Souls College, em Oxford, por Dilwyn Knox, no Institute of
Romance Studies, na Universidade de Londres, e na Fundação para Pesquisas Interacadêmicas em Ciên-
cias Sociais), em Amsterdã. Versões mais antigas foram publicadas em holandês, em Amsterdams Sociolo-
gisch Tijdschrift (21, 1995, p. 90-101) e em meu livro Het regime van de tijd (Amsterdan: Meulenhoff,
1997, p. 144-155). Agradeço a Eric Dunning, Stephen Mennel e Nico Wilterdink pelos comentários úteis
a um rascunho desta versão. Tradução do inglês para o português: CRISTINA PAIXÃO LOPES. Revisão
técnica: AMÓS NASCIMENTO (Assessoria para Assuntos Internacionais/UNIMEP).

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INTRODUÇÃO

A
religião não tem um papel proeminente em O Processo
Civilizador,1 estudo de Norbert Elias que se tornou um
clássico nos dias de hoje. Isso levanta uma questão: será
que Elias, como crítico, negligenciou a religião? Ou, mais
precisamente, terá ele subestimado a influência do cris-
tianismo no processo civilizador na Europa ocidental?2
Sem dúvida, a ausência de uma discussão sistemática so-
bre o papel da religião em O Processo Civilizador reflete
uma decisão intencional. Uma provável razão para ela foi a relação de Elias
com a obra de Max Weber. Já se disse que, por trás de boa parte do tra-
balho de Weber, há uma discussão contínua com o fantasma de Karl
Marx. Observação semelhante pode ser feita a respeito de Elias: muitos
de seus escritos podem ser lidos como um debate contínuo com Max
Weber, às vezes explícito, mais freqüentemente tácito, sem ao menos
mencionar-lhe o nome. Assim, Elias discorda da concepção de Weber so-
bre a sociologia partindo da ação subjetiva, do tratamento dado por este
à noção de carisma e de sua ênfase no capitalismo e no protestantismo e
(por implicação) nas linhas burguesa e eclesiástica no processo de civili-
zação europeu.3
Neste artigo, concentrarei minhas reflexões nesse último ponto e
estenderei o argumento além de Weber. Além dele, há uma antiga e forte
tradição no pensamento europeu ainda bastante viva: a visão agostiniana
da história da civilização, de acordo com a qual a religião, em particular
a cristã, foi a principal força motriz no processo civilizador na Europa.
Farei um breve esboço da tradição dominante e o contrastarei com sua
contraparte recessiva, à qual chamarei tradição lucreciana. A abordagem
de Elias alinha-se com essa última escola de pensamento.

ELIAS E WEBER
O Processo Civilizador é um livro muito rico – não tentarei resumi-
lo aqui. Como afirmei anteriormente, na primeira frase do prefácio à edi-
ção alemã, escrita em 1936, Elias estava preocupado, antes de tudo, com
os modos de comportamento considerados civilizados pelos membros
das sociedades ocidentais modernas do princípio do século XX. Para mui-
tas pessoas, essas condutas pareciam dispensar explicações, mas, obser-
vando-as mais de perto, eram extremamente problemáticas. A tarefa que
Elias se impôs foi alcançar um melhor entendimento, baseado em ques-
tionamento empírico e reflexão teórica, sobre como esses modos de

1 ELIAS, 1983 (ed. brasileira).


2 O primeiro crítico a perceber a pouca atenção dada à religião pelo livro O Processo Civilizador foi
Franz Borkenau. Já a afirmação de que Elias negligenciou a religião é do sociólogo holandês I. Gadourek.
Cf. GOUDSBLOM, 1977.
3 Cf. ELIAS, 1978, sobre ação subjetiva; GOUDSBLOM; MENNELL, 1998, com relação a carisma; e
ELIAS, 2000, no que diz respeito a protestantismo e linha burguesa no processo civilizador europeu.

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comportamento se desenvolveram num processo trar-lhe uma explicação. Para facilitar a compara-
de mudanças sociopsicológicas que se estendeu ção de suas idéias com as de Elias, resumirei aqui
por muitas gerações. criticamente o trabalho de Weber.
Em O Processo Civilizador, ele apresentou Na introdução aos três volumes de Collec-
provas documentais para as mudanças de condu- ted Essays in the Sociology of Religion (Estudos
ta e de sentimentos entre as classes altas seculares Reunidos sobre Sociologia da Religião), escritos
da sociedade européia, desde o fim da Idade Mé- em 1920, Weber afirmou que a civilização ociden-
dia. Começou com trechos de livros de boas ma- tal era marcada por um nível excepcionalmente
neiras, que continham instruções sobre a conduta alto de racionalidade na ciência, na lei, na música,
julgada apropriada. As edições seguintes desses na arquitetura, na arte, na organização do Estado
livros de boas maneiras apresentaram transfor- e na “força mais decisiva de nossa vida moderna,
mações notáveis, levando Elias à conclusão de o capitalismo”.5 Para ele, o capitalismo não deve
que, com o decorrer do tempo, a camada social ser equiparado à busca de riquezas – isso poderia
dominante na Europa ocidental cultivava padrões ser uma tendência humana universal. O que dis-
de conduta cada vez mais refinados e que exigiam tingue o capitalismo é “a restrição, ou pelo menos
um autocontrole sempre vigilante. Padrões seme- uma têmpera racional, desse impulso irracional”.6
lhantes, reclamando um autodomínio igualmente Um empreendimento capitalista apóia-se, para
atento, espalharam-se também para outros cír- seu sucesso, em lucros recorrentes e calculáveis
culos sociais. As diferentes classes continuavam na “utilização de oportunidades de troca, isto é,
certamente com seus próprios costumes, mas, de em oportunidades (formalmente) pacíficas de lu-
modo geral, as formas pelas quais controlavam cro”.7 Aventureiros e especuladores em busca de
suas emoções tendiam a convergir. Em resumo, uma oportunidade única existiram em toda parte;
Elias concluiu que, “a partir do fim da Idade Mé- no entanto, a aquisição de recompensas pela for-
dia e princípio do Renascimento, houve uma mu- ça é muito diferente do capitalismo racional.
dança particularmente forte no autocontrole in- O mesmo espírito racional, característico
dividual – acima de tudo, no autocontrole que do empreendimento capitalista, também pode ser
agia independentemente de agentes externos, observado na tecnologia, na ciência, na lei, na
como um automatismo auto-ativador”.4 guerra, na educação e em outras áreas da vida mo-
Há uma surpreendente semelhança entre derna. Em todas elas, encontramos a “capacidade
essa transformação das condutas sociais verifica- e disposição dos homens para adotar certos tipos
da por Elias e a mudança na mentalidade descrita de conduta racional e prática”.8 A primeira tarefa
por Max Weber, em seu famoso ensaio A Ética colocada por Weber a si mesmo, em suas Obras
Protestante e o Espírito do Capitalismo, publicado Reunidas, foi alcançar um melhor entendimento
primeiramente na Alemanha, em 1905-1906, e, do espírito de racionalidade, investigando a ori-
há muito, o trabalho de sociologia mais famoso e gem desse “sóbrio capitalismo burguês com sua
prestigioso, no que diz respeito ao processo civi- organização racional do trabalho livre”.9
lizador europeu. Embora não tenha usado o ter- Ele pretendia fazê-lo concentrando-se nas
mo processo civilizador, Weber abordou tema forças que eram, tradicionalmente, “as mais im-
muito semelhante ao de Elias, em seu magnun portantes influências formativas sobre a condu-
opus. Assim como Elias, observou, em seu traba- ta”, ou seja, as idéias éticas de dever amparadas
lho sobre o protestantismo e o capitalismo, uma pelas crenças religiosas sobre a boa vida na Terra
profunda mudança histórica na mentalidade e
nos costumes sociais – no sentido de um auto- 5 WEBER, 1958, p. 17.
6 Ibid., p. 17.
domínio mais regular e amplo – e tentou encon- 7 Ibid., p. 17.
8 Ibid., p. 26.
4 ELIAS, 2000, p. 478. 9 Ibid., p. 24.

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e sobre as recompensas e punições na vida por vir. valor, de acordo com ele, mais que puramente
Acrescentou, imediatamente, duas advertências a utilitário.
esse programa. Primeiro, observou que, ao se Havia, é claro, como Weber admitiu, um
concentrar em idéias, abordaria apenas um lado tom prático nas recomendações de Franklin: seja
da cadeia causal.10 Segundo, salientou que o valor diligente e frugal; mostre-se digno de confiança;
relativo das culturas aqui comparadas não será alvo lembre-se de que tempo é dinheiro e que o di-
de uma única palavra.11 Grifei essas advertências nheiro, bem investido, produz mais dinheiro. To-
porque voltarei a elas posteriormente. Sua função das essas virtudes são úteis, pois garantem boa re-
parece ter sido, particularmente, servir como putação e aumentam o crédito do indivíduo. Mas,
válvulas de segurança contra a crítica. O texto, na acrescentou Weber, as atitudes morais de Frank-
realidade, contém muitas passagens que ignoram lin também continham algo “inteiramente trans-
cendental e absolutamente irracional”.16
totalmente tais advertências.
No comentário sobre Franklin, Weber per-
Assim, já no primeiro capítulo substancial
deu de vista sua própria advertência de que estaria
de Collected Essays in the Sociology of Religion, tratando de apenas um lado da cadeia causal. Ob-
Weber argumenta haver uma tendência mais forte servou enfaticamente que o espírito de diligência
à racionalidade econômica entre os protestantes e frugalidade não poderia ser explicado simples-
do que entre os católicos, devendo a principal ex- mente como uma adaptação (uma estratégia de
plicação para essa diferença “ser encontrada no sobrevivência, poderíamos dizer) às condições ca-
caráter permanente e intrínseco de suas crenças pitalistas. Tal explicação, nos termos chamados
religiosas”.12 Pouca ou nenhuma atenção é dada por Weber de materialista, estaria colocando o car-
aqui à advertência de estarmos lidando com ape- ro na frente dos bois, uma vez que o capitalismo
nas um lado da cadeia causal. Semelhantemente, a não teria como se desenvolver sem o espírito do
intenção de não fazer juízos de valor parece es- capitalismo. Esse espírito exigia uma explicação:
quecida, quando Weber discorre sobre a tirania “a relação causal é certamente o inverso daquilo
singular do puritanismo,13 segundo ele, infinita- que é sugerido pelo ponto de vista materialista”.17
mente penoso14 e “para nós a forma mais absolu- Numa quase personificação, fazendo a his-
tamente insuportável de controle eclesiástico do tória econômica soar como uma tragédia antiga,
indivíduo que poderia existir”.15 Weber afirmou que “o espírito do capitalismo
Diferentemente de Elias em O Processo Ci- (...), para alcançar a supremacia, teve que lutar
vilizador, Weber não apresentou uma série de contra todo um mundo de forças hostis”.18
Como seu oponente mais importante, apontou
citações reveladoras de uma seqüência de mudan-
“aquele tipo de atitude e reação a novas situações
ças. Começou sua análise sobre o espírito do ca-
que poderíamos designar tradicionalismo”.19 As-
pitalismo com uma longa citação de Benjamin
sim, em sua rejeição ao materialismo histórico,
Franklin, em Advice to a Young Tradesman (Con- ele adotou um tipo de idealismo heróico. E foi
selho a um Jovem Comerciante), de 1748, e Ne- bem longe nisso:
cessary Hints to Those that would be Rich (Dicas
Necessárias aos que poderiam ser Ricos), de 1736. A questão das forças motrizes na
Weber interpretou esses textos como exemplos expansão do capitalismo moderno não é,
em primeira instância, uma questão da
de uma ética de dever – um credo racional e de
origem das somas de capital disponíveis
10
para usos capitalistas, mas, acima de tudo,
Ibid., p. 27.
11 Ibid., p. 29.
12 Ibid., p. 40. 16 Ibid., p. 53.
13 Ibid., p. 37. 17 Ibid., p. 56 (grifo acrescido).
14 Ibid., p. 36. 18 Ibid., p. 56.
15 Ibid., p. 37. 19 Ibid., p. 58-59.

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do desenvolvimento do espírito do capi- sua salvação eterna, ele era forçado a seguir seu
talismo. Onde ele aparece e consegue se caminho sozinho para encontrar um destino que
impor, produz seu próprio capital e supri- lhe tinha sido decretado desde a eternidade”.23
mentos monetários como meios para Nenhuma mágica, nenhum sacramento lhe eram
seus fins, mas o contrário não é verdadei-
permitidos nessa jornada solitária.
ro.20
Nesse ponto, o argumento de Weber deu
Essa afirmação está muito distante da pri- uma virada decisiva: traduziu a lógica da predes-
meira advertência de Weber, sobre um lado da ca- tinação numa teoria de motivação pessoal, con-
deia causal. Contrária aos juízos de valor, a sua se- vertendo, de certo modo, a teologia em psicolo-
gunda observação também não é observada nas gia. Dessa ótica, o calvinista buscava alívio para
passagens posteriores, que descrevem a persona- sua agonia religiosa numa atitude de autoconfian-
lidade do empreendedor capitalista em termos de ça, consolando-se com a impressão de que, de fa-
qualidades éticas, entre elas, caráter surpreenden- to, pertencia aos eleitos. Para se mostrar digno do
temente forte, delicado autocontrole, clareza de vi- estado de graça, forçava-se a viver uma vida de sis-
são, força para superar inúmeros obstáculos – um temático autocontrole.24
conjunto de “qualidades éticas bastante definidas Os calvinistas não precisaram inventar to-
e altamente desenvolvidas”.21 das as regras do ascetismo, pois elas já tinham
Em sua análise posterior sobre as origens sido cultivadas em mosteiros medievais. O mo-
desses traços de caráter, Weber não se voltou às nasticismo ocidental
restrições e oportunidades que impulsionavam as
pessoas a cultivar particularmente tal mentalida- tinha desenvolvido um método sistemáti-
de. Mencionou as restrições sociais somente al- co de conduta racional com o propósito
gumas poucas vezes, de passagem. Sua principal de vencer a status naturae, para livrar o ho-
preocupação era encontrar “as origens, precisa- mem do poder dos impulsos irracionais e
mente, do elemento irracional que nela se encon- sua dependência do mundo e da natureza.
Ele tentava sujeitar o homem à suprema-
tra, bem como em toda concepção de uma voca-
cia de uma vontade intencional, de man-
ção”.22 Portanto, reduziu seu questionamento a
ter suas ações sob constante autocontrole
uma busca por idéias e práticas teológicas que
com uma cuidadosa consideração de suas
apresentavam uma insistência semelhante em re- conseqüências éticas.25
lação ao dever para com a vocação de um indiví-
duo na vida. Essa forma de “discreto autocontrole”, for-
Essa abordagem o levou a uma discussão talecendo as motivações da constância contra as
erudita e eloqüente sobre, em primeiro lugar, os emoções voláteis, foi assumida pelos puritanos
fundamentos religiosos do ascetismo mundano e, com o objetivo de destruir o “prazer espontâneo
depois, como passo final, o ascetismo e o espírito e impulsivo”.26 A “deprimente doutrina do calvi-
do capitalismo. nismo” trouxe um regime de “constante auto-
Weber esboçou um retrato deprimente do controle”.27 A resultante “racionalização da con-
ideal e típico puritano calvinista, crente firme na duta dentro do mundo, mas para o bem do mun-
doutrina da predestinação, marcada por uma do além, foi a conseqüência do conceito de voca-
magnífica consistência, bem como por uma extre- ção do protestantismo ascético”.28
ma desumanidade: “Naquilo que para o homem
23 Ibid., p. 104.
da Reforma era a coisa mais importante na vida, 24 Ibid., p. 115.
25 Ibid., p. 118-119.
20 Ibid., p. 68-69 (grifo acrescido). 26 Ibid., p. 119.
21 Ibid., p. 69. 27 Ibid., p. 126.
22 Ibid., p. 78. 28 Ibid., p. 154 (grifo acrescido).

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O passo seguinte o levou a Benjamin A TRADIÇÃO AGOSTINIANA


Franklin e à época do próprio Weber. Desde o sé- A atitude de Weber para com o credo cal-
culo XVII, “a intensidade da busca pelo reino de vinista, em seu estudo sobre o protestantismo e o
Deus começou lentamente a dar caminho à vir- capitalismo, estava longe de ser simpática. No en-
tude econômica; as raízes religiosas foram mor- tanto, apesar de sua postura crítica, ele atribuiu
rendo lentamente, abrindo caminho ao sobrena- grande importância ao impacto social e cultural
tural”.29 A grande época religiosa do século XVII do calvinismo. Ao eleger a religião como uma po-
legou às gerações posteriores uma “surpreenden- derosa força no processo civilizador, Weber se-
temente boa (…) consciência na aquisição de di- guiu uma tradição intelectual da época na qual o
nheiro, desde que ocorresse legalmente”.30 padre da Igreja, santo Agostinho, era figura de
A origem é clara: “Um dos elementos fun- destaque.
damentais do espírito do capitalismo moderno Agostinho (354-430) pertenceu a uma ge-
(…) nasceu do espírito do ascetismo cristão”; “O ração de bispos altamente bem-sucedidos duran-
ascetismo resolveu remodelar o mundo”; “A idéia te um período formativo da Igreja Católica Ro-
do dever na vocação ronda em nossas vidas como mana, que, em mútua colaboração e concorrên-
o fantasma de crenças religiosas mortas”; “Os cia, muito fizeram para fortalecer sua organização
puritanos queriam praticar a vocação; éramos e canonizar sua doutrina. Como um convertido
forçados a fazê-lo”.31 De acordo com um antigo bastante culto, Agostinho foi capaz de combinar
puritano, o cuidado com os bens externos só de- a aprendizagem romana com o ensino cristão.
veria pesar “sobre os ombros dos santos como Seus escritos logo ganharam o interesse da teolo-
um manto leve, que pode ser jogado de lado a gia e da filosofia européias. Seus livros Confissões
qualquer momento”. Weber utilizou essas pala- e, mais ainda, A Cidade de Deus deixaram forte
vras com o ominoso acréscimo: “Mas o destino marca no desenvolvimento das idéias sobre mo-
determinou que o manto se tornasse uma gaiola ralidade e sociedade. Em Confissões, ele relatou
de ferro”.32 como a sua conversão ao cristianismo o levou
pessoalmente ao caminho da salvação, tornando-
A essa passagem semifinal, cheia de metá-
o um homem melhor; em A Cidade de Deus, des-
foras cativantes, segue-se uma repetição de duas
creveu as bênçãos do cristianismo para a huma-
negações iniciais de Weber, agora em ordem in-
nidade como um todo.
versa. Primeiro, “isso nos leva ao mundo dos juí-
A Cidade de Deus foi escrito após o saque
zos de valor e fé, com o qual essa discussão pu-
de Roma pelos visigodos, em 410. Romanos con-
ramente histórica não precisa se sobrecarregar”.33
servadores tendiam a atribuir esse acontecimento
Segundo, “não é meu objetivo, naturalmente,
humilhante à influência enfraquecedora do cristia-
substituir uma interpretação causal materialista e
nismo, que minara as antigas virtudes romanas da
parcial da cultura e da história por outra espiritual
coragem e do patriotismo. Em oposição a essa vi-
e igualmente parcial”.34 Essas negações não po-
são prevalecente, Agostinho surgiu com uma in-
dem remover o tom teórico global do ensaio, que
terpretação bastante diferente. Chamou atenção
sugere uma genealogia direta: o capitalismo é um para o fato de que a história romana consistia
produto do espírito do capitalismo, por sua vez, numa brutal sucessão de embates militares e
produto do calvinismo ascético, que encontrou guerras civis, todas sacudidas por terrível cruelda-
inspiração no monasticismo medieval. de. Avaliado nesse contexto, o comportamento
29
dos soldados do norte, após sua conquista de Ro-
Ibid., p. 176.
30 Ibid., p. 176. ma, não se comparava muito favoravelmente com
31 Ibid., p. 180-181. as assustadoras atrocidades cometidas repetida-
32 Ibid., p. 181.
33 Ibid., p. 182.
mente pelos próprios romanos? Os cidadãos ro-
34 Ibid., p. 183. manos que consideravam bárbaros seus recentes

32 Impulso, Piracicaba, 14(34): 27-39, 2003


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invasores não percebiam os altos padrões éticos mar uma nova imagem mediante a qual a civiliza-
esposados por esses homens graças ao fato de se- ção em desenvolvimento era conduzida pela mão
rem cristãos: de Deus. Se as gerações posteriores se considera-
vam mais cultas e de modos e costumes mais re-
Toda a devastação, carnificina, pilhagem,
finados que seus ancestrais, podiam declarar, hu-
conflagração e toda angústia que acompa-
nhou o recente desastre em Roma esta-
mildemente, ter devido esse avanço especialmente
vam de acordo com a prática geral de à sua religião, ao cristianismo personificado pela
guerra. Mas houve algo que estabeleceu Igreja e por seus representantes, o clero.
um novo costume, algo que mudou todo De fato, no início da Idade Média, as
o cenário; a selvageria dos bárbaros assu- instituições religiosas, sobretudo os mosteiros,
miu um tal aspecto de bondade que as eram focos de instrução. Ali antigos textos foram
maiores basílicas foram escolhidas e reser- redescobertos, relidos e reinterpretados, incluin-
vadas para acolher as pessoas que deveriam
do os escritos de filósofos “pagãos”, como Sêne-
ser poupadas pelo inimigo. Ninguém de-
ca e Cícero. Assim como elementos da lei roma-
veria ser violentamente usado ali, nem ti-
rado dali. Muitos foram levados para lá na ajudaram a reestruturar a organização legal e
para libertação por inimigos misericor- política, idéias clássicas sobre moralidade e bem-
diosos; ninguém deveria ser levado de lá estar pessoal forneceram orientação para o auto-
para o cativeiro, mesmo por inimigos domínio individual.
cruéis. Isto deve ser atribuído ao nome de Em virtude da posição dominante da Igreja
Cristo e à influência do cristianismo. e das instituições clericais, os textos a princípio
Quem não perceber isso é cego; quem eram lidos, de modo geral, no ambiente monásti-
perceber e não o exaltar é ingrato; quem
co, o que lhes deu uma aura de religiosidade – eles
tentar impedir que outro o exalte é lou-
tornaram-se sacralizados. Suas origens seculares
co.35
foram amplamente ignoradas e esquecidas, e os
Grande parte de A Cidade de Deus consti- modelos de temperança e moderação provindos
tui uma revisão completa da história da Grécia e desses textos tendiam a ser pregados como se re-
de Roma. Todos os conhecidos episódios são re- presentassem exclusivamente as virtudes cris-
visados, mas aparecem num novo contexto, junto tãs.36
com a história de Israel, do modo como está re- A mistura de antigas idéias pagãs e cristãs
gistrada nos livros da tradição judaico-cristã. As- continuou por toda a Idade Média. Assim, o ideal
sim como Confissões descrevia a vida do próprio de temperança, defendido pelos estóicos e por
Agostinho, no plano de uma psicologia morali- outras escolas romanas de filosofia, acabou culti-
zante do desenvolvimento, A Cidade de Deus re- vado e formalizado no regime ascético de ordens
sumia, numa síntese teológica, a história de toda monásticas recém-fundadas, como os benediti-
a humanidade conhecida. Cada evento ganhou nos. Uma herança pagã era transmitida de forma
um lugar nessa síntese – mesmo os fatos que, à religiosa. Sacerdotes de paróquias e monges tor-
primeira vista, pareceriam contradizer a visão te- naram-se agentes civilizadores autodesignados.
leológica de Agostinho foram astutamente reves- Adotando as imagens de Weber, podería-
tidos de uma importância que os fazia encaixar-se mos dizer que o antigo espírito de ascetismo re-
no plano divino subjacente à história humana. viveu nos mosteiros cristãos, de onde se espalhou
A Cidade de Deus é um livro admirável. Em novamente para círculos mais mundanos. Como
virtude de sua erudição e de seu argumento lúcido mostra o medievalista C. Stephen Jaeger, os clé-
e habilidoso, tornou-se um texto oficial no mun- rigos tiveram um papel importante entre os altos
do em expansão da cristandade, ajudando a for-
36Muitos exemplos são dados por: BAST, 1995; JAEGER, 1985; e
35 AGOSTINHO, 1972, p. 7. KNOX 1991 e 1995.

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dignitários das cortes medievais,37 sendo muitos A TRADIÇÃO LUCRECIANA


deles descendentes de nobres. O cristianismo medieval podia absorver fa-
A duradoura influência do clero amparava- cilmente os ensinamentos morais práticos de au-
se, em grande parte, em seu quase monopólio do tores como Cícero. Os inovadores da disciplina
conhecimento. Como classe instruída, proclama- monástica encontraram, na filosofia clássica, uma
ram-se o Primeiro Estado. Transformaram seu fonte de inspiração para as suas regras. Uma linha
campo de conhecimento, a teologia, na primeira interior à tradição das antigas Grécia e Roma
faculdade das novas instituições de ensino supe- continha, no entanto, elementos vistos pelos teó-
rior, as universidades, exercendo, assim, forte in- logos medievais como repulsivos. Era a filosofia
fluência não apenas sobre a conduta prática, mas epicurista, representada na sua forma mais elabo-
também na justificação intelectual das regras de rada e elegante pelo poeta latino Lucrécio (96?-
ética e etiqueta. 55 a.C.).
Sua influência foi muito longe, a ponto de, A República e o Antigo Império romanos
na Idade Moderna, críticos não religiosos, como constituíam entidades políticas numa sociedade
Friedrich Nietzsche e Menno ter Braak, conse- militar e agrária que, notavelmente, não possuía
guirem detectar resíduos de crenças cristãs nos uma classe sacerdotal forte. Não havia nada, na
sistemas de pensamento professados como intei- estrutura social republicana e do Antigo Império,
ramente seculares e reconhecer o ideal cristão de comparável à organização dos administradores
igualdade diante de Deus nas ideologias políticas eclesiásticos emergentes no tempo de Agostinho.
populares de seu próprio tempo. De modo seme- Na falta de um forte estabelecimento de sacerdo-
lhante, era possível mostrar que a idéia de provi- tes, uma onda de secularização do pensamento
pôde manifestar-se na era mais primitiva, sendo
dência divina repercutia na noção de uma mão
novamente varrida a partir do fim do século IV
invisível governando a ação econômica, central à
a.D. por um processo de sacralização, sob a in-
ideologia do liberalismo, bem como na doutrina
fluência da triunfante Igreja cristã.38
marxista das leis da história.
Um dos autores mais radicalmente secula-
Tais resíduos também podem ser detecta-
res no final da República foi Lucrécio. Em seu
dos no ensaio de Weber sobre o protestantismo e didático poema De Rerum Natura V (Sobre a Na-
o capitalismo. Assim como Elias em O Processo tureza das Coisas), ele apresentou um relato coe-
Civilizador, Weber preocupava-se com as conse- rente sobre o desenvolvimento do mundo e da
qüências involuntárias de processos sociais de humanidade, antecipando surpreendentemente,
longa duração. No entanto, não tentou trazer à de muitas maneiras, a moderna teoria da evolu-
luz as dinâmicas geradas pelas interdependências ção. Escreveu o poema, declaradamente, como
sociais; bastou-lhe falar de um espírito que apa- um antídoto contra a religião – a crença em coisas
rentemente seguia seu próprio caminho e deter- sobrenaturais e numa vida após a morte, com o
minava o curso das relações humanas. A sugestão espectro assustador da punição eterna. De acordo
implícita desse autor, de que expressões como es- com Lucrécio, as pessoas eram suscetíveis às
pírito e destino referem-se a atores decisivos no crenças religiosas, porque desconheciam os prin-
palco da história, dá testemunho da tenacidade cípios subjacentes ao cosmo e à vida na Terra. Em
da tradição agostiniana: embora determinado a sua ignorância, atribuíam os muitos eventos que
não permitir que suas próprias idéias religiosas não compreendiam à vontade dos deuses, diante
interferissem na sua análise sociológica, Weber de quem tremiam com temor obsessivo. Uma
ainda aderia a uma filosofia quase-teológica da investigação racional da verdadeira natureza do
história. universo afastaria esse medo, ajudando-as a apre-

37 JAEGER, 1985. 38 Cf. ELIAS, 1991a, p. 136.

34 Impulso, Piracicaba, 14(34): 27-39, 2003


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ciar suas próprias forças limitadas e a conformar- por ter ingerido um afrodisíaco, e cometeu suicí-
se com o fato de que, para cada indivíduo, a mor- dio aos 44 anos, após ter escrito, em seus inter-
te é inevitável e final. Ensinaria “que o universo valos de lucidez, alguns livros que mais tarde Cí-
certamente não foi criado para nós pelo poder di- cero corrigiu”.41 Essa breve vida de um pagão,
vino”.39 E poderia também mostrar a capacidade exato oposto da hagiografia, é praticamente toda
dos seres humanos de melhorar as condições de a informação disponível sobre Lucrécio. Seus tra-
suas vidas. ços negativos ainda se sucedem nas enciclopédias
modernas, nas quais ele continua a ser caracteri-
Portanto, descobrimos que não somente zado com expressões como espírito torturado.
as artes, a navegação e a agricultura, os
Lucrécio foi desacreditado, mas nunca
muros da cidade e as leis, as armas, estra-
das e roupas, mas também, sem exceção, completamente esquecido. Um manuscrito dani-
as amenidades e os refinamentos da vida, ficado de seu poema foi descoberto, em 1414, por
canções, pinturas e estátuas, habilmente Poggio Bracciolini, e, daí para frente, escritores
esculpidas e polidas, tudo foi ensinado humanistas começaram a se referir novamente às
gradualmente pelo uso e pela experiência idéias lucrecianas sobre a condição e a história
da mente ativa, quando homens tatearam humanas – a princípio, com circunspeção e, de-
seu caminho passo a passo. Portanto, cada pois, com aberta concordância. Pensadores livres
desenvolvimento particular é trazido gra- do século XVIII, como Edward Gibbon e Voltaire,
dualmente à frente pelo avanço do tempo, escreveram obras de história nas quais a religião
e a razão o traz à luz do dia. Homens vi- era tratada em termos puramente seculares – não
ram uma noção após a outra tomar forma
como algo que havia chegado às pessoas pela
dentro de suas mentes, até que pelas suas
revelação divina de alguma fonte externa e sobre-
artes eles escalaram até o pico mais alto.40
natural, mas como uma instituição com funções
Em razão de os epicuristas não estarem dis- sociais específicas. Isso tornou-se um ponto de
postos a participar dos cultos religiosos obrigató- partida quase patente para o historiador inglês
rios, eles foram acusados de ateísmo. Mais tarde, Henry Thomas Buckle (1821-1862), que, em seu
tal incriminação também recaiu sobre os primei- livro largamente lido History of Civilization in
ros cristãos, que igualmente rejeitaram as supersti- England (História da Civilização na Inglaterra),
ções prevalecentes e se recusaram a cultuar os ído- publicado em 1865, declarou sua visão sobre a re-
los oficialmente venerados. A não ser por essa ligião representar um importante impulsionador
acusação (que, desnecessário dizer, era injusta das relações humanas para ser obsoleta e comple-
para os cristãos), epicuristas e cristãos tinham tamente errônea. Em vez de encarar a religião
pouco em comum – a hostilidade para com a re- como uma causa da civilização, deveríamos en-
ligião fez da filosofia epicurista um anátema para tendê-la como um efeito.
os cristãos. Ao que eu saiba, nem Max Weber nem
Conseqüentemente, a reputação de Lucré- Norbert Elias jamais se referiram a Buckle. Por
cio terminou muito manchada e quase totalmen- ser materialista, Weber provavelmente teria des-
te apagada pela censura da triunfante Igreja pri- considerado a posição desse historiador. Sua con-
mitiva. As únicas informações que se autorizou cepção seria mais apropriada a Elias, mas com al-
chegar até nós são as palavras mencionadas na gumas qualificações significativas. Elias não par-
crônica de um contemporâneo de Agostinho, o tilhava da fé absoluta no progresso, professada
padre da Igreja São Jerônimo, segundo o qual “o por Buckle, assim como por Lucrécio. Ele evitava
poeta Tito Lucrécio Caro (…) perdeu a cabeça estruturar as relações entre religião e processo ci-
vilizador num modelo simples de causa e efeito.
39 LUCRÉCIO, 1951, V: 232.
40 Ibid, V: 1.448-1457. 41 HIERONYMUS, 1994, p. 149.

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AS DUAS TRADIÇÕES RECONSIDERADAS ambíguas, sugerindo que tais processos eram de-
O risco de fazer distinções é, naturalmente, terminados pelo destino.42
que elas possam bloquear a visão de semelhanças Em algumas passagens, Weber também se-
e interligações. Após o renascimento da tradição guiu a tendência, comum entre os adeptos de
lucreciana no século XV, houve muitas trocas en- quase toda religião, de apresentar as doutrinas e
tre essa e a tradição agostiniana que, de fato, obs- os rituais religiosos como eternos e imutáveis.
cureceram a distinção. Na maioria de seus escri- Assim, ao falar sobre os puritanos, referia-se ao
tos, Max Weber também tendeu à tradição lucre- “caráter permanente e intrínseco de suas crenças
ciana, cuja influência é visível até em A Ética Pro- religiosas”.43 Ao mesmo tempo, sabia bem que a
testante e o Espírito do Capitalismo, a publicação religião nunca é um fator constante, apesar da
mais agostiniana desse autor. propensão entre os próprios crentes de eternizar
Ainda assim, é incontestável a duradoura suas crenças.
predominância da tradição agostiniana no pensa- Na verdade, tanto as idéias religiosas quan-
mento europeu acerca do processo civilizador. to as seculares mudaram, claramente, com o pas-
Ela promoveu, primeiramente, uma persistente sar do tempo e, notavelmente, no curso da mu-
tendência de conceber tal processo em termos de dança, tenderam, no final das contas, a convergir.
providência e teleologia – como se ele tivesse sido Desde o início da Idade Média, o processo civili-
sempre guiado por um plano divino ou transcen- zador na Europa afetou todas as principais classes
dental. Em segundo lugar, deu lugar de honra à sociais – o clero, a nobreza, a burguesia e a quarta
Igreja ou, mais amplamente, à religião como for- classe dos fazendeiros e trabalhadores – e as
ça condutora de todo o processo. Terceiro, como instituições com as quais seus membros estavam
um forte efeito colateral, todas as teorias do de- originalmente envolvidos. A religião, reino do
senvolvimento sociocultural – incluindo aquelas clero par excellence, não escapou das forças da
em que as idéias de providência e teleologia são ex- mudança que interferiram na sociedade como um
plicitamente rejeitadas (como no livro de Elias, O todo. Por essa razão, Elias concluiu, em palavras
Processo Civilizador) – tendem a ser interpreta- freqüentemente citadas, lembrando de longe as
das por muitos leitores como se também se ba- de Buckle: “A religião, a crença na onipotência
seassem nas suposições agostinianas. punitiva ou recompensadora de Deus, nunca
A idéia de que a religião constitui um anti- tem, em si mesma, um efeito ‘civilizador’ ou re-
go elemento da cultura humana é compatível pressor das paixões. Ao contrário, a religião sem-
com a tradição agostiniana, bem como com a lu- pre é exatamente tão ‘civilizada’ quanto a socie-
creciana. A divergência, no entanto, está em que dade ou classe que a sustenta”.44
a tradição lucreciana considera a religião um meio Elias evitou cuidadosamente a palavra cau-
de orientação que perdeu sua validade: assim sa, usada tanto por Buckle quanto por Weber.
como a mágica foi suplantada pela tecnologia, a Também insistiu na inutilidade de procurar um
religião o foi pela ciência. Enquanto, de modo ge- ponto zero no processo civilizador europeu: esse
ral, Elias aceitava a tese lucreciana, Max Weber nunca começou do zero. Numa obra posterior
evitava uma declaração franca acerca dessa ques- sobre a sociologia do conhecimento, sugeriu
tão. No entanto, ele chegou bem perto da visão como experimento mental que seus leitores ten-
lucreciana ao escrever sobre o avanço inevitável tassem imaginar um grupo sem conhecimento.
da racionalização e o concomitante desencanta- Nossa imaginação certamente falharia nesse in-
mento do mundo. Ainda assim, sempre resistiu a tento: um grupo humano assim jamais poderia
abraçar o que considerava uma perspectiva ter existido, tampouco podemos conceber um
evolucionária da sociedade e da cultura. De modo
42 WEBER, 1958, p. 181.
a dar conta do longo processo de racionalização e 43 Ibid., p. 40.
secularização, recorreu finalmente a expressões 44 ELIAS, 2000, p. 169.

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grupo sem civilização ou completamente não-ci- Os sacerdotes proporcionavam orientação e disci-


vilizado, com membros sem nenhuma forma de plina que ajudavam as comunidades agrícolas a li-
autodomínio socialmente adquirido.45 dar com uma ampla gama de problemas produzi-
Nesse ponto, uma analogia com a teoria da dos pela existência agrária –relacionados ao traba-
evolução pode ser esclarecedora. Não há vida na lho e à produção, mas também ao armazenamen-
Terra em unidades menores que uma célula – uma to, à distribuição e ao consumo de alimentos. No
vida semicelular não pode existir. Conclui-se, re- entanto, não afirmei com todas as palavras que os
correndo a Stephen J. Gould (1996), que uma vez sacerdotes estimulavam um avanço no processo
que a vida unicelular passou a existir, ela não po- civilizador – observei apenas que eles insistiam
deria evoluir para unidades menores; qualquer num maior autodomínio (socialmente induzido).
desenvolvimento nessa direção seria bloqueado Agora estou preparado para argumentar,
por um muro de impossibilidade – se a vida pu- em termos mais gerais, que os grupos humanos
desse evoluir, só poderia fazê-lo formando unida- avançados no processo civilizador têm melhor
des maiores, com níveis mais altos de organiza- chance de sobrevivência a longo prazo do que os
ção. Gould usou esse argumento para demons- grupos que apresentam defasagem nesse sentido.
trar que a teoria da evolução não precisa envolver Essa é uma enorme generalização, sendo indis-
qualquer apelo à teleologia. A mesma linha de ra- pensável para sustentá-la a expressão a longo pra-
ciocínio também se aplica ao processo civilizador: zo. A formulação não descarta tendências tempo-
assim como a evolução da vida, o processo civili- rárias (ou lapsos) na direção oposta, tanto que,
zador também poderia seguir por inúmeras em vários casos históricos, grupos com menor
direções, mas uma direção estaria vetada. O que atenção às restrições civilizadas acabaram levando
Gould descreveu como um muro imaginário vantagem sobre outros com maior apreço por
também pode ser entendido como um ponto (ou elas. A longo prazo, no entanto, as restrições da
linha) sem volta, pois qualquer grupo que vá além concorrência e da colaboração recompensaram o
dele, numa direção negativa, encontraria a autoa- autodomínio socialmente induzido.47
niquilação. Por outro lado, podemos conceber É uma generalização empírica, e não apenas
uma vasta gama de direções positivas para as quais uma suposição teórica, que, a longo prazo, toda a
o processo civilizador pode mover-se num deter- rede de relações humanas tenha mudado, e con-
minado estágio, podendo essa gama de direções tinue a mudar, no sentido de um maior alcance de
incluir possíveis regressões, no sentido de um interdependência social e uma maior complexida-
afrouxamento do autodomínio. Porém, mais de. O processo principal é a expansão externa da
uma vez, existe um limite para tais regressões. antroposfera, inseparavelmente acompanhada de
Nenhum grupo humano pode funcionar sua transformação interna.48 Como parte dessa
sem um mínimo de autodomínio por parte de transformação, as sensibilidades humanas têm
seus membros. Esse autodomínio tem de ser mudado, incluindo sua sensibilidade pelas idéias e
aprendido dos outros. Os processos civilizadores práticas religiosas.
são, portanto, universais; ocorrem em todos os
grupos humanos, mas assumem formas diferentes CONCLUSÃO
em diversos estágios de desenvolvimento social. As tradições agostiniana e lucreciana enxer-
Como argumentei anteriormente, em um gam o processo civilizador de ângulos opostos.
certo estágio do desenvolvimento agrário, as so- Isso leva a diferentes impressões, com diversas
ciedades com sacerdotes tinham maiores chances ênfases. Se a tradição agostiniana superestima a
de sobrevivência do que as sociedades sem eles.46
47 Como exemplo (que, em si, não oferece prova alguma), menciono o
45 Sobre as ligações entre a teoria de Elias, sobre o processo civilizador, Terceiro Reich: embora pretendesse durar mil anos, não conseguiu
e a sociologia do conhecimento, cf. MENNELL, 1989, p. 159-199. sobreviver mais do que 20.
46 GOUDSBLOM, 1996, p. 42. 48 GOUDSBLOM, 2002.

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importância da religião no processo civilizador, a lizadoras, está sempre presente. Na Europa oci-
lucreciana contém um aguilhão anticlerical que dental, no período estudado por Elias, mudanças
pode produzir uma subestimação. Não há dúvida civilizadoras decisivas foram iniciadas por dife-
de que aquilo que, hoje em dia, classificamos rentes grupos poderosos: cortesãos, sacerdotes,
como forças religiosas exerceu, em determinadas advogados, homens de negócios, políticos – até
épocas, forte pressão no sentido do autodomínio os militares tiveram participação.50
socialmente induzido. Tal pressão poderia ser en- Com a expansão e a diferenciação das redes
carada, no entanto, no contexto de pressões so- de interdependência humana, as configurações
ciais e ecológicas mais amplas. Qualquer influên- sociais têm se tornado, de modo geral, mais de-
cia que a religião tenha tido esteve sempre sujeita pendentes de formas de autodomínio mais afina-
a circunstâncias históricas. A religião nunca foi das com essas complexas interdependências.
o único fator civilizador – em muitos casos, deu Pode-se conceber que, como sugere a tradição
ímpeto a esforços descivilizadores, como as cru- agostiniana, as instituições voltadas à religião fa-
zadas, perseguições, guerras civis e, como vêm voreçam tal processo civilizador socialmente di-
sendo chamadas em nossos dias, “purificações rigido. No entanto, conforme a tradição lucrecia-
étnicas”. na, é difícil imaginar como esse processo poderia
O conceito de processo civilizador aplica-se continuar, se as pessoas dependessem apenas de
a sociedades de indivíduos, isto é, a indivíduos li-
suas religiões.
gados a outros indivíduos em configurações so-
ciais.49 Em todas essas configurações, o potencial 49 ELIAS, 2000.
para tendências civilizadoras, bem como descivi- 50 Cf. McNEILL, 1982, p. 125-139.

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Dados do autor
Professor emérito na cátedra de sociologia da
Universidade de Amsterdã, onde estudou psicologia
social e realizou doutorado sobre o tema
“O niilismo na cultura” (1960). Seu trabalho relaciona-se de
modo intensivo com a obra de Norbert Elias,
na qual ele se inspirou para fundar a Escola de
Sociologia Figurativa de Amsterdã. Suas pesquisas
atuais concentram-se em sociologia dos processos
de longo prazo, alcançando, numa ótica
interdisciplinar, novas perspectivas de
interpretação, para além dos limites das distintas
disciplinas.“Minha especialização é o
generalismo”,afirma Goudsblom.

Recebimento artigo: 7/mar./03


Consultoria: 12/mar./03 a 14/ago./03
Aprovado: 25/ago./03

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Religião e Tecnologia
RELIGION AND TECHNOLOGY
Resumo Em certos círculos acadêmicos, desenvolveu-se a idéia da obsolescência da
religião em face do avanço extraordinário e inexorável da tecnologia. Por essa razão,
ainda se atribui uma superioridade à tecnologia em comparação à religião. No entan-
to, ambas são fatores igualmente determinantes no processo da evolução cultural do
ser humano. Tanto uma quanto a outra atuam na natureza humana, insuflando os de-
sejos que constroem nossa história e nosso cotidiano. Estão ligadas uma à outra por
NABOR NUNES FILHO
laços mais estreitos do que costumamos imaginar. Embora sejam construções autô- Universidade Metodista de
nomas, guardam entre si relações que vão desde o estabelecimento das primeiras con- Piracicaba (UNIMEP, Brasil)
dições fundamentais de vida da espécie à criação dos mitos que permeiam nosso ima- nanfilho@unimep.br
ginário ainda nos dias de hoje. Além disso, ambas atuam nas pessoas, inspirando o de-
sejo de transcendência, conjugação, descoberta sobre o mistério, prazer e sedução.

Palavras-chave TECNOLOGIA – RELIGIÃO – TRANSCENDÊNCIA – CONSCIÊNCIA –


SER HUMANO – DEUSES.

Abstract The obsolescence of religion in the face of technology progress is an idea de-
veloped around some academic circles. For that reason, to technology is attributed a
great superiority over religion. However, both technology and religion have been de-
cisive agents on the human being’s process of cultural evolution. They both operate
in the human nature exciting those desires that daily build our history and life. They
are attached to each other through ties that are closer than we usually imagine. Al-
though they are independent cultural constructions, they keep between themselves
some relationships that extend from the establishment of the first basic life conditi-
ons to the creation of myths which permeate our imaginary world. Moreover, they
both act on the human being awakening the desires of transcendence, union, the dis-
covery of mystery, pleasure, and seduction.

Keywords TECHNOLOGY – RELIGION – TRANSCENDENCE – CONSCIENCE –


HUMAN BEING – GODS.

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C
omo nasceram e se desenvolveram a religião e a tecno-
logia? Haverá alguma precedência de uma em relação
à outra? São antagônicas entre si?
A irrupção do racionalismo na modernidade contri-
buiu para que herdássemos uma visão bipartida a res-
peito das coisas que nos cercam. A oposição cartesiana
entre a razão, res cogitans, e o corpo, res extensa, trouxe
à reflexão sobre a realidade uma exacerbação do dua-
lismo inaugurado por Platão e corroborado pela teologia cristã, tornando
difícil uma análise do mundo sem dividi-lo em pares de opostos exclu-
dentes: bem e mal, certo e errado, vida e morte etc. Diante disso, desen-
volve-se uma visão da realidade segundo a qual tudo gira em torno de ei-
xos contrários e inconciliáveis. Tal visão é transportada do universo do
pensamento ao contexto das ações e atitudes do cotidiano, e até das de-
cisões políticas em nível internacional. Ainda hoje, em algumas rodas de
cientistas e pensadores, a religião e a ciência são consideradas forças es-
sencialmente antagônicas. Não deixando por menos, o positivismo de
Augusto Comte, no século XIX, valendo-se de sua hierarquização dos
três estados evolutivos do conhecimento, preconizou a derrocada do es-
tado religioso, substituído pelo estado positivo. Inaugura-se, dessa forma,
a concepção de superioridade da tecnologia (atributo do último estado)
sobre a religião, situação ainda firmemente sustentada por alguns cien-
tistas e duramente atacada por religiosos que apregoam o inverso.
O propósito do presente texto é mostrar que, conquanto estejam
em lados diversos e empreguem diferentes métodos, religião e tecnologia
são partes integrantes do desenvolvimento humano como elementos es-
senciais, indispensáveis e complementares da nossa aventura histórica.

O PASSAPORTE PARA A TRANSCENDÊNCIA


Uma das marcas dos seres humanos, talvez a razão intrínseca de sua
peculiaridade, é o que se pode chamar de transcendência. Trata-se da ca-
pacidade de ir além dos limites estabelecidos e impostos. A sobrevivência
da espécie humana deve-se à sua capacidade de transcender as fronteiras
da realidade perceptível. Essa transcendência manifesta-se em vários as-
pectos da aventura humana. A primeira estrofe do poema de Augusto
dos Anjos, intitulado “Eu”, pode nos ajudar a refletir sobre esses aspec-
tos.
Sou uma sombra! Venho de outras eras,
Do cosmopolitismo das moneras...
Polipo de recônditas reentrâncias,
Larva do caos telúrico, procedo
Da escuridão do cósmico segredo,
Da substância de todas as substâncias.1

1 ANJOS, 1982, p. 12.

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Sem fazer uso da palavra, o poeta vale-se de apenas no aspecto físico, mas no seu contexto
uma afirmação eloqüente dessa transcendência pessoal. Escrevo agora este texto porque decidi
humana sob, pelo menos, três aspectos. O pri- fazê-lo antes desse momento, que passa a ser a
meiro é o espacial. Nós não ocupamos os espaços cumulação de um passado próximo. Portanto, o
senão em razão de espaços transcendentes a eles. meu instante não é o agora, mas o de há pouco
Em outras palavras, os motivos de estarmos em até agora. Por sua vez, tudo o que fazemos desse
determinado lugar são resultado da nossa neces- presente é transformá-lo numa plataforma para
sidade de ocupar um espaço situado sempre além outros tempos que virão. O que nos move em
daquele ocupado. Não desejamos estar apenas nosso hoje é sempre um hoje que ainda não acon-
em um determinado lugar, mas em outros, ao teceu.
mesmo tempo. Nossos espaços reais são, via de Há também o aspecto histórico da
regra, menores do que os queremos. Com a ex- transcendência. Não somos produtos desse mo-
pressão Do cosmopolitismo das moneras, o poeta mento histórico que passa. Venho de outras eras,
sugere que são muitos nossos lugares de origem ou seja, o que sou é um resultado do que foi se
e dos nossos desejos de estar. Na realidade, nós formando ao longo dos muitos séculos da histó-
nascemos e renascemos em muitos lugares, ou ria humana, e até da pré-história. Sou a cumula-
seja, em cada lugar em que, por exemplo, estive- ção de processos há muitos séculos iniciados. O
mos com alguém, quer na presença, quer na es- que vivo hoje foi criado antes de mim. Isso não
pera, quer na lembrança. Dessa forma constata-se só do ponto de vista de uma evolução natural,
a grandeza da vida humana, no fato de penetrar- como ocorre com os demais seres vivos, mas me-
mos e permanecermos em muitos e diferentes lu- diante o complexo processo a que chamamos de
gares, e de a eles passarmos a pertencer. Nossa história. Ao lado das injunções de caráter bioló-
vida não se deixa caber dentro de quaisquer limi- gico que a espécie humana sofreu igualmente
tes geográficos. Nosso coração está atado, como com os outros organismos, ela mesma produziu,
por uma espécie de fio elástico, a muitas cidades, por seus próprios atributos, um conjunto de
ruas, praças, bosques e jardins pelos quais transi- transformações de natureza mais complexa que, a
taram nossos desejos, e em que foram vividos cada era e em cada diferente lugar, foram aos pou-
momentos de grande significação. Nosso mundo cos plasmando o que somos hoje. Isso também,
é do tamanho desse elástico, que se alonga inde- não apenas do ponto de vista do passado. A his-
finidamente sem jamais partir-se. tória não é somente o registro do que foi, mas é
O segundo aspecto dessa transcendência é a projeção do que será, mediante a análise do que
o cronológico. Nosso tempo não é o agora. O foi e do que está sendo. Ela também se precipita
instante que estamos passando, ou que está pas- no futuro, embora nem sempre assim seja enten-
sando por nós, não nos contém. Ele depende do dida. O valor da história reside na sua capacidade
que vivemos em instantes anteriores e do que de nos fornecer dados para nossos posiciona-
projetamos para os vindouros, próximos ou dis- mentos hoje e nossa preparação para o que virá
tantes. Podemos até dizer que o instante que pas- amanhã.
sa é uma síntese de todos os instantes, passados e A religião e a tecnologia são instrumentos
futuros. Na verdade, o tempo presente é uma ilu- dessa transcendência. Elas surgem no contexto
são. A luz do sol que ilumina o ambiente onde da humanidade para atender aos anseios dos seres
trabalho é de dez minutos atrás. Hoje se desco- humanos de verem ultrapassadas as condições
bre a existência de corpos celestes com um atraso impostas pela natureza. Enquanto a máquina nos
de milhões de anos. Isso também se dá nas di- torna mais rápidos e fortes do que fisicamente
mensões menores. Há um ínfimo lapso de tempo somos, transcendendo, dessa forma, os limites
até que eu consiga enxergar aquela foto na minha que a natureza nos instituiu, a fé religiosa nos
parede. Nosso hoje é um tempo passado, e não transporta para universos mágicos onde as lógi-

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cas e as leis naturais são transpostas. Ambas pro- todo esse processo de hominização, foi emergindo
porcionam ao ser humano, cada uma ao seu pró- uma função complexa denominada consciência.
prio modo e dentro de suas peculiaridades, o Nos últimos cem mil anos, o ser humano domi-
mergulho nas realidades incomensuráveis do uni- naria os metais e, nos últimos dez mil, esboçam-se
verso. Assim, por meio de sofisticados telescó- as primeiras manifestações da escrita organizada e,
pios, a tecnologia nos permite hoje penetrar os conseqüentemente, da cultura. A formação da
segredos das galáxias, em busca da revelação dos consciência atinge um nível próximo do que te-
mistérios do cosmo. Enquanto isso, a religião, mos hoje.
através de mitos e rituais, procura trazer esses Há, no entanto, uma dimensão da consciên-
mistérios para dentro de nós, a ponto de fazê-los
cia que talvez não possa ser detectada pelos mé-
parecer estar sempre ao nosso alcance. A obser-
todos científicos. O desenvolvimento da cultura
vação dos céus nos permite entrar em contato di-
deve-se a dois elementos fundamentais de que a
reto com o passado até de milhões de anos, ao
consciência dotou os hominídeos. O primeiro re-
mesmo tempo em que faz precisas previsões de
fere-se à descoberta de sua fragilidade, face aos
futuros fenômenos estelares, enquanto pela reli-
novos desafios do mundo ao redor, e o segundo,
gião redescobrimos as influências de nossos an-
cestrais e projetamos o tempo da vida para depois à recusa a aceitar essa fragilidade. Albert Camus
da vida. afirma que “o homem é a única criatura que se re-
cusa a ser o que ela é”.2 Imaginemos uma cena,
que pode ter durado algumas dezenas, e até cen-
A DIMENSÃO HUMANA
tenas, de milhares de anos, em que um dos nos-
A espécie humana surgiu no cenário do pla-
sos ancestrais precisa remover uma pedra que
neta, estimam os estudiosos, há cerca de quatro
bloqueia a entrada de uma caverna. Ele usa seu
milhões de anos. Durante todo esse tempo desen-
corpo e toda sua força muscular em vão. Desco-
volveu-se o processo complexo a que se chamou
bre, então, que é frágil. Porém, não desiste e põe-
de hominização. As mais atualizadas teorias dão
se a observar o problema de outra maneira. Tem-
conta de que essa hominização se deu a partir da
pos depois, percebe que há nas imediações uma
era terciária, com a crescente diminuição das áreas
florestais, onde os primatas dividiam e competiam pedra menor e um tronco de árvore caído. De re-
entre si os cada vez menores recursos das árvores. pente (esse de repente pode ter durado alguns sé-
Aos poucos, as savanas foram engolindo as flores- culos), surge-lhe uma idéia: coloca a pedra menor
tas, obrigando alguns desses primatas a se aventu- mais próxima da maior, enfia uma das extremida-
rar nas planícies emergentes. Ao descerem das ár- des do tronco ao pé desta e, usando como base a
vores, entretanto, esses primeiros hominídeos pas- menor, faz um movimento para baixo, pressio-
saram a enfrentar problemas vários, entre os quais, nando a outra extremidade do tronco. Aos pou-
a escassez de alimentos e a ameaça de poderosos cos, a pedra maior vai se movendo, até ser total-
predadores. É dessa época que datam os primeiros mente removida da entrada da caverna. Assim
vestígios do Homo faber, há aproximadamente um surgiu, de acordo com essa imagem, a alavanca
milhão de anos. Há cerca de oitocentos mil anos, que, nesse contexto, representa a tecnologia.
os hominídeos dominaram o fogo. Nascem, as- Ninguém sabe se foi exatamente dessa maneira
sim, os primeiros indícios de uma tecnologia rudi- que aconteceu, porém, poderia ter sido. Também
mentar, representada pela confecção e manipula- sabemos que Ícaro não foi um personagem his-
ção de utensílios e instrumentos de caça. A cres- toricamente verídico, mas sua estória é uma exce-
cente utilização das mãos proporcionou um me- lente metáfora do surgimento dos artefatos voa-
nor esforço nas mandíbulas, de modo a redesenhar dores.
as configurações do crânio, abrindo espaço para a
expansão da massa cerebral. Destarte, durante 2 ALVES, 1983, p. 14.

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Vemos aí, em ação, dois momentos funda- até os nossos dias. Não é possível privilegiar uma
mentais da consciência. O primeiro é a constata- em detrimento da outra sem correr o risco de co-
ção da fragilidade: o indivíduo humano não pode meter sérios equívocos conceituais. E nem se
mover a pedra, nem alçar vôo, usando seus pró- pode dizer que elas surgiram dentro de um con-
prios recursos físicos. O segundo é a recusa: ele texto de franca oposição, como até pretendem al-
não aceita ser frágil, nem ser condenado ao apri- guns, porém, numa situação de complexa intera-
sionamento sobre a Terra, e cria os mecanismos ção.
para superar seus limites.
Mas o processo da consciência não se limita O ASPECTO MÍSTICO DA TECNOLOGIA
ao contexto do universo biofísico. Ela abrange o Não há aqui nenhuma intenção de trans-
universo existencial por meio de uma constatação formar a tecnologia em categoria religiosa. No
mais preocupante, ligada à contingência extrema entanto, queremos mostrar alguns componentes
da morte. O ser humano sabe que vai morrer. místicos que a cercam. Ordinariamente, se tem
Ocorre que ele se recusa também a se submeter pensado que a experiência mística é privilégio de
a mais essa contingência. Precisa resolver mais alguns escolhidos e acontece tão somente através
esse problema e cria as diversas soluções vincula- da linguagem religiosa. De acordo com Victor
das à perspectiva da imortalidade. O poeta Fer- Hellen, Henry Notaker e Jostein Gaarder, “a ex-
nando Pessoa se expressa de uma maneira elo- periência mística pode ser caracterizada, resumi-
qüente quando afirma: “Todos nós sabemos que damente, como uma sensação direta de ser um só
morremos; todos nós sentimos que não morre- com Deus ou com o espírito do universo. (...) O
remos. Não é bem um desejo, nem uma esperan- místico experimenta, pelo menos por instantes, a
ça, que nos traz essa visão no escuro de que a sensação de ser indivisível de um eu maior – não
morte é um mal-entendido: é um raciocínio feito importando que ele dê a isso o nome de Deus, es-
com as entranhas, que repudia”.3 Nasce, assim, a pírito universal, o eu, o vazio, o universo ou qual-
religião, que é um conjunto de mediações cultu- quer outra coisa”.4
rais destinadas a ajudar o gênero humano a lidar Segundo essa visão, a experiência mística
com a morte e a encontrar uma expressão para não está necessariamente ligada a alguma divin-
sua recusa a morrer. Todos os povos e civilizações dade formalmente estabelecida, mas configura-se
que se desenvolveram, na história oficial ou fora numa relação de intimidade com algo ou alguém
dela, organizaram sua vida social e política, sua com quem a pessoa se sente uma. Assim, desco-
economia, sua ética de acordo com alguma pers- brir a beleza de um pôr-do-sol e sentindo-se par-
pectiva de imortalidade. te desse fenômeno, e ele parte de nosso mundo,
Diante disso, podemos afirmar que a reli- é um momento de êxtase místico. Uma certa len-
gião e a tecnologia possuem uma origem comum, da conta que um monge saiu para dar uma volta
ou seja, o desenvolvimento da consciência huma- fora dos limites do mosteiro e, havendo se assen-
na. É significativo o fato de os arqueólogos des- tado num banco de jardim, pôs-se a contemplar
cobrirem que os mais antigos indícios de utensí- atentamente a cena de um passarinho cantando
lios e instrumentos de caça encontrados são do num galho de árvore próximo. Passado algum
mesmo período dos vestígios de sepulturas. A tempo, ele retornou ao mosteiro, mas percebeu
construção de sepultura denuncia a existência de que o porteiro era desconhecido e não o reconhe-
alguma maneira pela qual uma comunidade lida ceu. Apresentou-se declinando seu nome, mas
com a morte. Desde então, tanto a religião como este não constava no livro oficial da portaria da
a tecnologia têm contribuído de forma eqüitativa instituição. Após muito se procurar, devido à sua
no desenvolvimento cultural da espécie humana natural insistência, finalmente seu nome veio a

3 PESSOA, 1986, p. 179. 4 HELLERS; NOTAKER; GAARDER, 2000, p. 33-34.

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ser descoberto num livro muito antigo e empo- namento da máquina, porém, se o dono dela sur-
eirado. Havia trezentos anos que ele saíra para preender o seu autor, será capaz de ir com ele às
dar um simples passeio. Essa estória nos faz pen- vias de fato. Por outro lado, é impossível não sen-
sar na singular experiência dos místicos. tir a emoção que a velocidade cria em nosso sis-
Mas e a tecnologia? Ela é capaz de facultar tema nervoso ao pilotar um veículo possante e
esse tipo de experiência? Numa entrevista recen- dos mais velozes. Uma das causas prováveis de
te, o ex-piloto de Fórmula Um, Émerson Fitti- acidentes automobilísticos pode ser a entrega to-
paldi, afirmava algo dessa possibilidade ao dizer tal da pessoa a essa emoção, uma espécie de êx-
que, às vezes, sentia-se como se ele e o seu auto- tase ao volante. A relação homem/máquina é ca-
móvel fossem uma só pessoa. É bem verdade que paz até de produzir sentimentos, como, por
a máquina em si mesma não é nenhum deus. No exemplo, o ciúme, e até a saudade. Não seria essa
entanto, ela possui esse atributo de comunhão situação uma espécie de ensaio a uma experiência
com o ser humano. Os seres humanos criaram a mística?
máquina como Deus criou os seres humanos, Além da dimensão detectada pelos nossos
ambos com a finalidade de manter uma comu- sentidos e os instrumentos tecnológicos mais so-
nhão com sua respectiva criação. fisticados, existe uma espécie de mundo diferen-
Além disso, a máquina nos ajuda a nos te, movido por leis absurdas que contrariam as
aproximarmos dos deuses. Uma das razões disso regras impostas pela experiência quotidiana. Re-
é que a máquina está muito ligada aos mitos. Jo- fere-se isso ao mundo da magia. É nesse universo
seph Campbell afirma: mágico que existem lugares e acontecem fatos
fantásticos, como milagres, paraísos, infernos,
os automóveis adentraram a mitologia. encarnações, nascimentos virginais etc., e onde
Adentraram os sonhos. E as aeronaves es-
habitam seres maravilhosos, como mitos, deuses,
tão a serviço da imaginação. O vôo da ae-
ronave, por exemplo, atua na imaginação
demônios, fadas, bruxas etc. Esse mundo dos so-
como libertação da terra. É a mesma coisa nhos e mistérios existe. Sua existência, porém,
que os pássaros simbolizam, de certo mo- possui natureza diferente da dos elementos de-
do. O pássaro é um símbolo da libertação tectáveis pelos sentidos e pelo método científico.
em relação ao aprisionamento à terra, as- É uma existência extrafísica, que se manifesta na
sim como a serpente simboliza o aprisio- dimensão do imaginário, coletivo ou individual, e
namento à terra. A aeronave desempenha tem origem na nossa capacidade de sonhar. Se-
esse papel hoje.5 gundo Gaston Bachelard,
Talvez não seja por acaso que os autódro- antes da cultura o mundo sonhou muito.
mos fiquem lotados e que os mezaninos dos ae- Os mitos saíam da terra, abriam a Terra
roportos sejam os seus lugares mais freqüenta- para que, com o olho dos seus lagos, ela
dos, pois, em ambos os espaços, as pessoas bus- contemplasse o céu. Um destino de altu-
cam ao menos testemunhar uma experiência ras subia dos abismos. Os mitos encon-
mística, ou algo próximo a ela. A máquina ofere- travam assim, imediatamente, vozes de
homem, a voz do homem que sonha o
ce ao homem essa chance de comunhão com algo
mundo dos seus sonhos. O homem ex-
além de si mesmo, pois atua como uma espécie
primia a terra, o céu, as águas. O homem
de extensão do nosso corpo. Talvez também não era a palavra desse macroântropos que é o
seja por acaso que o proprietário de um automó- corpo monstruoso da terra. Nos devaneios
vel, de tão ligado ao seu veículo, perturbe-se ao cósmicos primitivos, o mundo é corpo
perceber um leve arranhão em sua pintura. Ora, humano, olhar humano, sopro humano,
esse leve risco não interfere em nada no funcio- voz humana.6

5 CAMPBELL, 1992, p. 19. 6 BACHELARD, 1996, p. 180.

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A tecnologia também está ligada a esse uni- Milagre pode ser entendido como uma rup-
verso mágico. Primeiramente, porque constrói os tura momentânea das leis físicas e biológicas,
meios para o adentrarmos. O cinema, por meio provocada por forças extranaturais e mediante a
dos efeitos tecnológicos especiais, pode abrir o vontade soberana de um ser sobrenatural. Assim,
Mar Vermelho de forma visível e incontestável são milagres o andar por sobre as águas, a
para todos os olhos, afundar várias vezes o Tita- ressurreição de um morto, a multiplicação de
nic e fazer o Superman voar a incríveis velocida- pães etc. No vôo de um supersônico não está
des. Tudo isso é fruto da tecnologia aliada à ima- presente uma força sobrenatural, nem a vontade
ginação humana. Através do computador pode- soberana de um deus. Além do mais, não se pode
se hoje navegar pelo imenso mundo da virtuali- dizer que exista aí uma ruptura dos processos da
dade, o chamado ciberespaço. Aliás, falando so- natureza, porém, uma utilização diferenciada e
bre o interior de um computador, Joseph Cam- complexificada das próprias leis naturais. Todavia,
pbell assim se expressa: “É um milagre o que a máquina mexe com a área sensível da natureza
acontece naquela tela? Você já examinou por den- humana, suscitando emoções e expectativas bem
tro uma dessas coisas? Não dá para acreditar. É próximas da dimensão do milagre. Está claro que
toda uma hierarquia de anjos... todos sobre as tecnologia não produz os milagres. Entretanto,
placas. E aqueles pequenos tubos – aquilo são mi- ela é capaz de fazer emergir, de dentro da subje-
lagres”.7 tividade humana, o desejo, que é a principal fonte
Em segundo lugar, a máquina abre as pers- dos milagres. Também a religião não os opera,
pectivas dos milagres que os seres humanos mo- mas atua na vida humana de maneira idêntica.
dernos esperam. Esses milagres estão, em geral, Ambas influem na nossa vida, provocando dese-
vinculados ao fenômeno da velocidade. Um jato jos de que a realidade seja ao menos diferente.
supersônico, um carro de corrida, uma nave es-
pacial são bons exemplos disso. Eles permitem à CONTATO COM O SAGRADO
pessoa humana a proeza de quase manipular o Campbell faz alusão a uma anedota envol-
tempo e o espaço, transformando-os em elemen- vendo um ex-presidente norte-americano. “Eise-
tos dóceis aos seus comandos. Provavelmente nhower entrou numa sala repleta de computado-
não cheguemos jamais a ponto de esse controle res e propôs às máquinas a seguinte questão: exis-
ser total, uma vez que, para isso acontecer, tería- te um Deus? Todas começam a funcionar, luzes
mos de atingir a velocidade da luz. Ocorre que se acendem, carretéis giram e após algum tempo
todos sabemos que chegaremos a velocidades uma diz: Agora existe”.8 Talvez seja essa uma ma-
cada vez maiores que a do som. Isso porque a tec- neira bem-humorada de falar sobre tal proximi-
nologia não pode prescindir da capacidade huma- dade com o sagrado que a máquina nos propor-
na de sonhar, que é, em suma, a mesma causa e ciona, ou seja, a intimidade da tecnologia com as
efeito dos milagres. divindades.
Não está sendo aqui afirmado que a tecno- Os seres humanos são criadores de deuses,
logia faz milagres, mas apenas que ela abre as pos- que são criadores de seres humanos, que são cria-
sibilidades para experimentar a sua influência, ao dores de deuses, formando, assim, um fantástico
menos no desejo das pessoas, o que é, sem dúvi- ciclo vicioso que não se fecha e nem possui um
da, algo grandioso. Não é um milagre voar à ve- começo definido. Não se pode dizer quem criou
locidade do som, ou falar com alguém que está quem primeiro. Assim, os seres humanos têm
do outro lado do mundo através de um aparelho necessidade de serem criados para criar, e os deu-
celular. O milagre reside no desejo de que isso ses, necessidade de criar para serem criados e
pudesse vir acontecer. vice-versa. Essa é a fórmula dialética que encon-

7 Ibid., p. 21. 8 CAMPBELL, 1992, p. 20.

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tramos para expressar a relação entre o humano e astros da TV e do cinema, como se estivessem to-
o divino. Nessa relação, porém, existem frontei- cando e abraçando o próprio Deus, ou alguns dos
ras bem claras, limites estabelecidos: o ser huma- seus anjos. Essas estrelas e esses astros, embora
no não pode ser deus e o deus não pode ser hu- não se confundindo com deuses, são posiciona-
mano. Somente o cristianismo é que quebrou dos, pelos meios tecnológicos, numa zona mais
esse segundo princípio, por meio da teologia da próxima da fronteira. São como sacerdotes que
encarnação do Verbo de Deus. Embora essa teo- quase chegaram lá.
logia represente uma espécie de ruptura com o Nosso alvo, no entanto, não é apenas che-
paradigma religioso, o cristianismo ainda preser- gar perto. É a ultrapassagem, a invasão dos espa-
va, inclusive na sua prática litúrgica, a consciência ços do segredo – sagrado, secreto, sacro – dos
dessa separação. Além do mais, a encarnação só deuses o que desejamos. Por pretender ultrapas-
se manifesta numa única direção, ou seja, a hu- sar é que chegamos perto. Essa proximidade é pe-
manização de Deus, porém, não a divinização do rigosa, mas traz momentos de extrema emoção.
homem. Tratando-se ainda da velocidade, podemos dizer
Essa fronteira foi um dia estabelecida e as que não é apenas com a finalidade de chegar mais
várias tradições religiosas desenvolveram suas re- cedo ao trabalho ou em casa que se pesquisa e se
presentações míticas para explicar como isso investe em projetos de veículos mais rápidos. O
aconteceu. A tradição judaica conta a estória da objetivo é atingir o limite que faz a diferença en-
quebra de um interdito divino de não se comer tre ser humano e ser divino. Daí, provavelmente,
do fruto que representava o conhecimento do vem a grande admiração popular pelos pilotos de
Bem e do Mal. O resultado foi a expulsão do jar- corrida. Eles chegam mais perto desses limites. E,
dim e a separação total entre a criatura humana e falando em tecnologia, não podemos omitir os
Deus. Ocorre que, em virtude de uma necessida- programas de exploração espacial, mediante os
de mútua, há uma tentativa de religação. Essa re- quais essa aproximação toma uma forma mais
ligação só é possível em face da separação em que fascinante. Os astronautas passam a ser os sacer-
ambas as partes buscam sinais da presença da ou- dotes de uma nova investida em busca das novas
tra. Dessa forma, os deuses revelam-se de várias dimensões do mistério, ou seja, os espaços da di-
maneiras e os seres humanos respondem de ma- vindade, quer para confirmá-la quer mesmo para
neiras várias e vice-versa. No entanto, tudo o que negá-la. É significativo o fato de os chamados fil-
podem conseguir é chegar o mais perto possível mes de ficção científica carregarem uma forte dose
da linha divisória, sem jamais atingi-la, menos de misticismo. O clássico de Stanley Kubrick,
ainda ultrapassá-la. Assim, os seres humanos cria- 2001: uma odisséia no espaço, é um bom exemplo
ram os mais variados meios para chegar perto da disso. Em várias ocasiões do filme está presente
fronteira. Entre eles estão os rituais religiosos, um objeto misterioso, uma espécie de paralelepí-
mas não só. Há também os meios criados e de- pedo metálico. Sua primeira aparição se dá diante
senvolvidos pela tecnologia. dos primatas que, ao descobrirem-no numa certa
Entramos numa sala de projeções cinema- manhã, dele se aproximam hesitantes e excitados,
tográficas ou ligamos o aparelho de televisão e chegando até a tocá-lo. Segue-se a isso a cena
vemos, nas respectivas telas, imagens de pessoas prodigiosa que retrata o despertar da consciência.
comuns em variadas situações. Mas essas pessoas Em outra ocasião, esse mesmo objeto causa uma
deixam de ser comuns pelo fato de parecerem es- série de transtornos numa base estabelecida num
tar em muitos lugares ao mesmo tempo. A tec- planeta próximo, suscitando a necessidade de
nologia é capaz de transformá-las em quase deu- uma investigação. Quando a expedição chega ao
ses, conferindo-lhes até o atributo da onipresen- local, e se posiciona para uma foto diante da coisa
ça. Talvez seja por essa razão que milhares de pes- desconhecida, seus membros são mortos, vitima-
soas procuram ver, tocar, abraçar as estrelas e os dos por um som tenebroso. No final do filme, o

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mesmo objeto está numa sala diante do leito de mundo. Precisam ser salientadas, nesse conceito,
um bebê, espécie de mutante de um ancião. Há pelo menos três implicações do jogo. A primeira
nesse filme, e em outros, uma nítida intenção de diz respeito ao aspecto do convite. Convite é algo
mostrar a tecnologia como um instrumento de que pode ser ou não aceito. Não se trata de uma
aproximação com o sagrado. imposição ou qualquer forma de chantagem,
A religião cumpre sua função, nesse senti- como freqüentemente acontece nas estratégias
do, através dos diversos gestos e ritos que cada burguesas de persuasão. A pessoa verdadeira-
cultura desenvolve. A dança, a oração, os sacrifí- mente sedutora é capaz de lidar com a possibili-
cios, as oferendas etc. são formas de uma espécie dade concreta de sua sedução não resultar em su-
de conspiração que representam caminhos e mo- cesso. Seduzir não é reivindicar ou exigir alguma
vimentos também em busca da invasão do espaço coisa. Pelo contrário, a sedução é uma promessa
sagrado. Ocorre, porém, que o religioso preten- de dádiva de um objeto para cuja fruição se faz o
de, na realidade, que o sagrado o invada de volta. convite. Porém, o que é oferecido não pertence
Seus objetivos estão mais vinculados a uma ne- ao universo físico, mas ao universo simbólico.
cessidade de ser tomado, possuído, atingido pelo A segunda implicação é que o jogo da se-
sagrado, do que somente atingi-lo. Ora-se, dan- dução pressupõe a absoluta igualdade de condi-
ça-se, oferecem-se sacrifícios etc. para aplacar, ou ções entre os parceiros. No processo de sedução
até despertar a nosso favor, a fúria dos deuses. Na não se concebem as idéias da dominação e da
primeira hipótese, dizemo-lhes que nos deixem submissão. A sutileza desse jogo consiste em que
em paz e, na segunda, que nos perturbem. Em jamais se pode saber quem é que seduz ou quem
ambas, está também clara a necessidade divina de é o seduzido. Não é possível saber de onde surgiu
invadir e ser invadido. a iniciativa desse convite. Nesse sentido, Jean
Baudrillard nos dá uma significativa contribuição:
SEDUÇÃO A lei da sedução é primeiro a de uma tro-
É nesse contexto que acontece um jogo de ca ritual ininterrupta, de um lance maior
sedução. Queremos tentar aqui salientar o aspec- onde os jogos nunca são feitos, de quem
to erótico da religião, como também da tecnolo- seduz e de quem é seduzido e, em virtude
gia. Tirante a arte, nada é mais sedutor na cultura disso, a linha divisória que definiria a vi-
humana do que a tecnologia e a religião. tória de um e a derrota de outro é ilegível
Em geral, se pensa que o jogo da sedução é – e não há outro limite para esse desafio
um jogo apenas entre sexos diferentes. Para mui- ao outro de ser ainda mais seduzido ou de
amar mais do que eu amo senão a morte.9
tos, seduzir significa conseguir convencer alguém
do outro sexo a ser seu parceiro numa conjuga- Uma terceira implicação é que a sedução
ção genital, efêmera ou permanente. Acontece pressupõe uma promessa de prazer. O mundo
que a sedução independe da sexualidade. Ela per- para o qual eu convido alguém a participar é um
tence a uma ordem que desestrutura as ordens. A mundo presumivelmente fascinante, do qual vale
palavra sedução tem origem latina – se-ducere: a pena alguém especial também tomar parte. É
afastar, desviar de seu caminho. Tem a ver, por- um mundo prazeroso. Portanto, o sedutor preci-
tanto, com uma certa dose de transgressão. Trata- sa formar um lastro de prazerosidade em seu cor-
se do jogo mais fascinante a que somos levados po, e, só assim, adquire a prerrogativa de fazer um
pela nossa sensualidade. Seduzir é fazer certa pes- convite a alguém para a doação de um prazer.
soa mudar de direção, é transviar, ou seja, tirar de Quando isso ocorre, não é mais necessário recor-
certo itinerário previamente determinado. Essa rer aos subterfúgios econômicos e sociais das
mudança de rumo não é feita por força de alguma chantagens, pois o próprio corpo se encarrega de
ordem infligida, mas mediante um convite. Sedu-
zir é convidar alguém a fazer parte do nosso 9 BAUDRILLARD, 1992, p. 29.

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emitir os signos dessa prazerosidade e irradiá-la gozo eterno, mas não apenas isso. Há uma onda
ao redor, tornando-se a pessoa uma pessoa atra- de prazer que invade as pessoas participantes de
ente. É a isso que, em linguagem teológica, cha- cerimônias religiosas, especialmente quando per-
ma-se graça, palavra originada do termo grego ká- meadas pelas manifestações corpóreas. Uma ce-
ris. Assim se conhece o indivíduo carismático, ou lebração religiosa é, portanto, a aceitação indivi-
seja, aquele em cuja presença sentimos uma onda dual e coletiva de um convite dos deuses a que as
de prazer a nos invadir. pessoas participem do seu mundo de prazer. Aí,
Essas três implicações se aplicam à sedução nesse momento, homem e deus são parceiros,
da religião e da tecnologia. Os deuses são pródi- sem nenhuma espécie de dominação ou submis-
gos em atrair; as máquinas igualmente. Há uma são de qualquer um deles.
espécie de carisma no mecanismo de uma máqui- Por sua vez, a tecnologia é igualmente um
na que nos chama e atrai. O autor deste texto se instrumento de gozo. Há sempre uma perspecti-
recorda bem de sua infância, como os trens que va de prazer vinculada ao uso de uma máquina.
passavam em frente à sua casa exerciam sobre ele Certamente não se pode afirmar ser uma sensa-
uma fascinação até perigosa, pois ele queria se ção dolorosa a experiência de pilotar um automó-
aproximar o mais possível para ver de mais perto vel. Não se trata, entretanto, somente de uma
o funcionamento das alavancas que moviam as sensação física, sensitiva, como a de aspirar um
rodas das antigas locomotivas a vapor. São fasci- perfume, fazer ou receber uma carícia, ou mesmo
nantes tanto a decolagem de um Boeing quanto a a da experiência do orgasmo. Trata-se de um pra-
tela de uma televisão ou de um computador. Ao zer que se expressa mais simbolicamente na sen-
indivíduo humano primitivo devem ter causado a sação de controlar um universo complexo de me-
mesma fascinação as primeiras lanças atiradas e as canismos engenhosos. É prazerosa, sem dúvida, a
primeiras gravuras nas paredes das cavernas. São sensação de voar em asa delta, não só pela expo-
convites a que participemos do seu mundo. sição do corpo a novos estímulos sensitivos, mas
Os deuses são igualmente fascinantes, mas, também pela perspectiva de estar acima da mera
por uma razão inversa, nos seduzem porque não condição de mortal.
se revelam. Ao contrário, eles se escondem. A se- Há outro aspecto no jogo da sedução que
dução da religião implica a fascinação pelo distan- não se pode omitir. Trata-se do processo de fra-
te e inalcançável. Tudo o que simboliza o inaces- gilização dos parceiros. Segundo Jean Baudrillard,
sível pode se transformar num elemento de sedu- “Seduzir é fragilizar. Seduzir é desfalecer. É atra-
ção. É assim que, na Idade Média, quando os ca- vés da nossa fragilidade que seduzimos, jamais
valeiros e guerreiros deixavam suas esposas por poderes ou signos fortes. É essa fragilidade
protegidas nos famosos cintos de castidade, por que pomos em jogo na sedução, e é isso que lhe
ocasião de sua participação em longas campa- confere seu poder”.10
nhas, dava-se o fenômeno da sedução àquelas Não por acaso o próprio Baudrillard afirma
mulheres pelos desconhecidos trovadores. A pai- que a sedução reside no mundo feminino. Bache-
xão daqueles poetas pelas mulheres nobres estava lard certamente diria que a ela pertence ao com-
vinculada à sua condição de inacessíveis. Quem ponente feminino anima, que reside nas profun-
sabe tenha daí nascido a prática da verdadeira se- dezas da personalidade humana e representa,
dução. E é essa a sedução cultivada pela religião contrariamente ao masculino animus, a sensibili-
ao longo de todo esse tempo, da pré-história até dade, a ternura, a delicadeza. É bom observar que
os dias de hoje. não se está necessariamente referindo, ao falar em
Além disso, está embutida, tanto na religião masculino e feminino, ao aspecto da diferença
como na tecnologia, uma promessa de prazer. hormonal entre macho e fêmea. Feminino retrata
Ambas estão a serviço da prazerosidade humana.
A religião aponta especialmente a perspectiva do 10 Ibid., p. 94.

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uma força que atua tanto nas mulheres quanto CONCLUINDO


nos homens. Expressa tudo o que diz respeito à Como é sabido, os primeiros hominídeos,
delicadeza, à graça, à sensibilidade. Quando nos há cerca de três milhões de anos, já manejavam al-
invadem as necessidades de exercer carinho e afe- guns objetos, como ossos de grandes animais, pe-
tividade, é o lado anima que está atuando. Isto daços de troncos de árvores caídas, pedras etc.
pode acontecer até aos mais arrogantes machões. como instrumentos de defesa e ataque. Era o
Uma pessoa que se permite ser seduzida é porque Homo habilis. Não se pode afirmar que já hou-
se deixou domar pela anima. Esse é um dos gran- vesse uma tecnologia. Mais tarde, aproximada-
des receios do ser humano nos dias de hoje, o de mente um milhão e meio de anos, o Homo habilis
ser seduzido, porque a sedução implica evidenciar manufaturava seus instrumentos, desenvolvendo
a fragilidade tanto do sedutor quanto do seduzi- a capacidade de dar uma forma mais anatômica
do. aos seus artefatos e até ensaiar um tratamento es-
Permitir ser seduzido ou permitir-se sedu- tético. Era o Homo faber. Até se pode dizer que
zir é um exercício penoso a homens e mulheres aí já se plantavam as primeiras sementes da tec-
hodiernos, em geral movidos pelo animus, que se nologia, como hoje a entendemos. Ainda não há,
consideram sérios e apostam no poder e na força. nesse período, indícios de atividades de caráter
Seduzir e ser seduzido significa depor as armas. religioso, além da existência das sepulturas, po-
Os heróis clássicos sempre se entregam, fragili- rém, são dados os primeiros passos para a com-
zados, aos braços de suas amadas. E esse é outro plexificação da sociedade e da linguagem, culmi-
efeito da religião e da tecnologia: elas nos fragili- nando no surgimento do Homo sapiens, que apa-
zam, desarmam nossas defesas e nos preparam rece há aproximadamente cem mil anos. Para a
para a grande entrega. Não é possível não se sen- sobrevivência de uma sociedade tão complexa,
tir fragilizado quando da contemplação de um são criadas as regras de controle social e os inter-
fruto da tecnologia, como um moderno transa- ditos. Com o objetivo de que esses últimos fos-
tlântico ou um computador. Ocorre, por outro sem gravados de maneira indelével nas mentes
lado, que a máquina possui suas limitações. Em- dos indivíduos, entraram aos poucos em cena os
bora se apresente com uma manifestação de po- mitos, os espíritos e os deuses, que, por sua vez,
der e infalibilidade, elas também falham. Seus me- acumulavam as funções de provedores de meios
canismos, para funcionar a contento, precisam de de sobrevivência e de proteção. Isso, no entanto,
cuidados meticulosos que se efetuam em escalas não substituiu a técnica, mas representou um re-
milimétricas. Elas precisam do carinho cuidadoso forço a ela. Edgar Morin afirma que “mito, rito,
dos humanos, que, às vezes, as tratam como se magia rematam a integração interna da sociedade,
fossem crianças indefesas ou amantes carentes. envolvendo, precedendo, acompanhando as ativi-
Por sua vez, os deuses só podem ser alcan- dades práticas, as operações de funcionamento,
çados pelo caminho da fragilização da pessoa hu- assim como o ciclo da vida individual, da nascen-
mana. Mas eles também são frágeis. Possuem ça até a morte. Longe de eliminar os modos téc-
sentimentos e emoções. Na tradição cristã, te- nicos ou de se fazer eliminar por eles, os modos
mos um deus que se torna homem e chora, en- mágicos completam-nos e protegem-nos”.11
tregue totalmente à gama de sentimentos que Assim, a sociedade pré-histórica desenvol-
compõem a fragilidade humana. É bem verdade veu-se por meio do aprimoramento de uma nas-
que eles são poderosos e, muitas vezes, destrui- cente tecnologia e da criação de elementos de
dores. No entanto, apresentam também um qua- onde surgem as grandes religiões. Da interação
dro de carência de afetividade, de ternura, de desses elementos nasce essa complexa rede de
atenção especial. É aqui, em essência, que tanto as mediações a que chamamos de cultura.
máquinas como os deuses são realmente seduto-
res. 11 MORIN, 1997, p. 163.

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Portanto, separar a religião e a tecnologia nas chamadas guerras religiosas e já foi até utili-
em compartimentos fechados, dando-lhes cami- zada na criação dos instrumentos de torturas dos
nhos opostos e estabelecendo uma hierarquiza- inquisidores. E quantas vezes, por outro lado, a
ção, é uma forma equivocada de pensar a cultura tecnologia bélica, para se manifestar em seu po-
e o próprio ser humano. Religião e tecnologia são derio a serviço de conquistadores ou de déspotas,
construções autônomas, é verdade, mas guardam tem necessitado dos argumentos oriundos da re-
entre si mais semelhanças que diferenças, no con- ligião para a legitimação de uma hostilidade! Em
texto do desenvolvimento da humanidade. Uma tempos normais, no entanto, a religião precisa da
não fere a outra, nem se deixa pela outra ferir. Ao tecnologia que lhe constrói os meios, como tem-
contrário, ambas se reforçam, ou seja, contribuem plos, instrumentos musicais, utensílios sagrados
para um desenvolvimento mútuo. Cada uma etc., para sua atuação e comunicação no mundo
pode atuar exercendo uma forma de controle so- moderno. Por sua vez, a tecnologia precisa da re-
bre as tendências de excesso da outra, restabele- ligião, de cujo mundo mágico se alimenta, para
cendo-se o equilíbrio, sem o qual corremos reais manter sobre nós seu carisma e sua fascinação.
riscos de extinção como espécie. Ambas têm estado igualmente presentes nos
Até mesmo quando fica em evidência o mais decisivos momentos da vida humana e con-
lado cruel que ambas possuem, elas se comple- tribuído juntas, dialeticamente integradas, para o
mentam. Quando a religião assume a forma de encantamento dos seres humanos em relação à
fanatismo, vale-se da tecnologia para a destruição vida e ao cosmo.

Referências Bibliográficas
ALVES, R. O Que é Religião. São Paulo: Brasiliense, 1983.
ANJOS, A. dos. Eu. São Paulo: Abril, 1982. (Literatura Comentada).
BACHELARD, G. A Poética do Devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
BAUDRILLARD, J. Da Sedução. Campinas: Papirus, 1992.
CAMPBELL, J. O Poder do Mito. São Paulo: Palas Atena, 1992.
HELLERS, V.; NOTAKER, H.; GAARDER, J. O Livro das Religiões. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
MORIN, E. O Paradigma Perdido: a natureza humana. Lisboa: Europa-América, 1997.
PESSOA, F. Obra em Prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986.
______. O Livro do Desassossego. Lisboa: Europa-América, s/d.

Dados do autor
Teólogo, músico e poeta; mestre e doutor em
educação pela Universidade Metodista de
Piracicaba (UNIMEP), onde é compositor musical
no Núcleo Universitário de Cultura e professor na
Faculdade de Ciências da Religião.

Recebimento artigo: 31/mar./03


Consultoria: 1.º/abr./03 a 16/abr./03
Aprovado: 12/maio/03

52 Impulso, Piracicaba, 14(34): 41-52, 2003


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Religião e Organizações:
antagonismo aparente,
proximidade latente.
Uma reflexão sobre a
economia de comunhão
RELIGION AND ORGANIZATIONS – APPARENT
ANTAGONISM, LATENT PROXIMITY:
A REFLEXION ON COMMUNION ECONOMY
Resumo Durante o século XX, as organizações foram alvo de mudanças significativas,
tanto do ponto de vista formal quanto simbólico. Como promessa de uma vida me-
lhor, frustraram as expectativas da sociedade, expondo seus dirigentes a questiona-
mentos sobre a relevância de sua atuação social. Este texto propõe uma análise do pa-
pel da religião como amenizadora dos conflitos organizacionais, sob sua ótica interna ELISABETE STRADIOTTO
assim como em relação à sociedade, na medida em que é capaz de oferecer um quadro SIQUEIRA
de referências valorativas que transcendem a finitude terrestre e criam compromissos Universidade Metodista de
dos dirigentes e de suas organizações com um projeto mais amplo. A análise toma por Piracicaba (UNIMEP, Brasil)
base o percurso da economia de comunhão, e suas relações com as organizações e a betebop@uol.com.br
sociedade, na busca de identificar suas contribuições para mudanças, sobretudo na di-
mensão valorativa, do processo organizacional. VALÉRIA RUEDA
Palavras-chave RELIGIÃO – CULTURA ORGANIZACIONAL – SIMBOLISMO ORGANI- ELIAS SPERS
ZACIONAL.
Universidade Metodista de
Piracicaba (UNIMEP, Brasil)
vrueda@unimep.br
Abstract During the 20TH century, organizations were the target of significant chan-
ges, both from the formal and symbolic point of views. As a promise of better life,
they frustrated society’s expectations. Their leaders were questioned about the rele-
vance of their social acting. This text offers an analysis of religion’s role as a soothing
agent of organizational conflicts, both of its internal view and its view of society, since
it is able to offer a frame of valorative references that transcend the worldly finitude
and promote the commitment of leaders and organizations to a wider project. The
analysis is based on the communion economy’s course and its relationship with or-
ganizations and the society, seeking to identify its contributions to changes, mainly in
the valorative dimension of the organizational process.

Keywords RELIGION – ORGANIZATIONAL CULTURE – ORGANIZATIONAL


SYMBOLISM.

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INTRODUÇÃO

A
sociedade industrial está marcada pela presença das
organizações como lugar privilegiado de convivência das
dimensões culturais, sociais, tecnológicas e econômicas,
a ponto de ser considerada sociedade organizacional.1
Como ícones do novo modo de vida, as organizações
marcaram o cotidiano das pessoas e ritmaram a socieda-
de contemporânea em suas formas de sobrevivência, de-
terminando a lógica de tempo e espaço possível para
cada indivíduo. Na verdade, ocorre uma inversão do cadenciamento da
vida. Enquanto na civilização pré-tecnológica o tempo era estabelecido
pelo ritmo vital, aquele pessoal das atividades física e intelectual,2 ou seja,
tomava o ser humano como referência, na sociedade tecnológica o mo-
vimento das organizações passa a definir a lógica do tempo e do espaço
da sociedade. Segundo Harvey, “A certeza do espaço e do lugar absolutos
foi substituída pelas inseguranças de um espaço relativo em mudança, em
que os eventos de um lugar podiam ter efeitos imediatos e ramificadores
sobre vários outros”.3
Nesse sentido, o homem passa a desenvolver suas relações em uma
velocidade determinada pelas organizações. A construção da identidade
individual também é mediada por elas, na medida em que direcionam a
construção da auto-imagem de seus funcionários e pessoas que com elas
se relacionam por meio de signos socialmente aceitos, como roupas, car-
ros e restaurantes.
O advento das organizações associa-se intimamente a uma nova
concepção de mundo que institui a racionalidade instrumental como orien-
tadora e legitimadora das práticas sociais. A noção de razão instrumental
está vinculada a um reducionismo da concepção de ciência, ou seja, a
ciência deixa de ser uma forma de acesso ao conhecimento e, portanto,
de sua capacidade de provocar melhorias nas condições de vida da huma-
nidade e passa a ser apropriada somente pelo mundo produtivo, estabe-
lecendo-se como um instrumento de poder e exploração.4 Contudo, a ra-
zão instrumental também assume um caráter legitimador, uma vez que
toma a ciência como sua base explicativa e, conseqüentemente, neutra de
intencionalidades e jogos de poder.
Institucionalizar tal concepção de mundo requereu do processo
histórico e social transformações significativas do ponto de vista valora-
tivo da sociedade, ou seja, um novo modo de crer e ver estava apoiado em

1 Segundo GUERREIRO RAMOS, “Weber compreendeu que a sociedade moderna é sem paralelo na
medida em que, nela, a organização formal (burocracia) se tornou um modelo social fundamental, e sua
racionalidade calculista imanente passou a ser o padrão dominante de racionalidade para a existência
humana. Graças a essa circunstância, a sociedade moderna merece a rotulação de sociedade organizacio-
nal, como tem sido apropriadamente chamada” (1981, p. 125).
2 MORAIS, 1988, p. 108.
3 HARVEY, 1992, p. 238.
4 CHAUI, 1997, p. 283.

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uma transformação importante nos valores que adequada à racionalidade e fomentada por
sustentavam aquela sociedade. Estamos nos refe- ela. A ideologia do progresso se materia-
rindo aqui à transição da sociedade medieval para liza na revolução industrial, iniciada na In-
a industrial, que mudou drasticamente a susten- glaterra contemporaneamente ao ilumi-
nismo francês e à fermentação política
tação simbólica da concepção de bom, belo e ver-
que culminaria na Revolução Francesa,
dadeiro. Se a sociedade medieval tinha, na reli-
mas só se desenvolve no processo que se
gião, sua principal fonte provedora de valores, chama “industrialização” no século se-
atribuindo ao sagrado a explicação da dinâmica guinte, o que faz com que se entenda essa
social e, por conseguinte, das relações de poder, a revolução como a realização dos progres-
sociedade industrial transfere sua matriz explica- sos científicos do século das luzes.6
tiva para a ciência e esta, por sua vez, expande,
por meio da disseminação da tecnologia, sua ver- De fato, em determinado período, a
tente aplicativa no processo produtivo. disseminação da ciência como fonte explicativa
As organizações são o lugar privilegiado da dos fenômenos assegurou ao homem um certo
visibilidade do poder da tecnologia e de seus im- poderio sobre seu destino. Contraditoriamente,
pactos sociais, e evidenciam o caráter de aplicabi- contudo, a fonte de libertação trazia em si a
lidade da ciência5 no meio produtivo, fator cen- ambigüidade, pois, ao mesmo tempo em que
tral na determinação das condições de vida da so- apontava para uma vida melhor, também ame-
ciedade contemporânea. Estamos abordando a drontava aqueles que com ela se relacionavam.
transição entre dois mundos, nos quais a ciência De acordo com Menezes, a forte aproximação do
e a tecnologia têm papel fundamental, como di- homem com a máquina trazia o receio de que ele
visores de águas, em sua concepção. perdesse sua humanidade e passasse a assumir-lhe
De início, uma sociedade apoiada na conce- as características e, ainda, que a inserção dela no
pção de ciência procurava estabelecer laços de li- processo produtivo o conduzisse a tal ponto de
berdade do homem do jugo das determinações alienação que anularia a sua condição de indiví-
divinas, controladas apenas por uma pequena cas- duo.7
ta de nobres e sobretudo do alto clero. A capaci- Durante a Segunda Guerra Mundial, ainda
dade do homem de explicar a sua relação com a outros fatores apontaram novos riscos da relação
natureza, a fim de controlá-la a critério da neces- do homem com a tecnologia. O próprio desen-
sidade humana, delineia relações de poder bastan- volvimento da sociedade evidencia seu caráter
te diferentes da sociedade anterior, ou seja, em restrito, do ponto de vista tanto da melhoria da
certa medida, a promessa indicava um homem li- qualidade de vida da sociedade como, especial-
berto das incertezas. Tais valores apoiavam-se mente, da socialização das relações de poder. Mo-
numa idealização do futuro, numa concepção de rais afirma que dois fatores foram determinantes
progresso contínuo, linearmente desenvolvido, na explicitação do papel ameaçador da ciência.8
com a finalidade última de levar a humanidade a Um deles foi a atitude ocidental com relação à
um futuro sob o controle do homem. natureza: o ser humano deixou de ter uma rela-
ção contemplativa para assumir uma postura de
Inerente à idealização do futuro, está a
exploração. O outro foi a redução da ciência à di-
noção de progresso contínuo, uniforme,
mensão técnica, deixando de responder às neces-
em direção a uma realidade sempre mais
sidades humanas para limitar-se, apenas, às de-
5 Ainda que se considere o binômio ciência-tecnologia como fator mandas do capital, submetendo, dessa forma, o
fundamental na definição da lógica de poder da sociedade social ao econômico. “Ora, o ambiente tecnoló-
contemporânea, cabe salientar que a revolução industrial ainda não tra-
zia tal relação de forma tão direta. Segundo Bairoch (apud Menezes), o
6 Ibid., p. 34.
aparato técnico desenvolvido nas primeiras décadas da revolução
industrial foi fruto do trabalho dos artesãos, e não de cientistas. Cf. 7 Ibid., p. 35-36.
MENEZES, 1994, p. 34. 8 MORAIS, 1988, p. 103-104.

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gico é exatamente o que resultou da subversão da Martelli procura estabelecer suas possibili-
ciência e da técnica pelos interesses industriais, dades no mundo contemporâneo e sinaliza algu-
destituídos de consideração pelos valores huma- mas questões, ao analisar estudiosos da teoria da
nos e fascinados pelo lucro.”9 secularização e da sociologia da religião. Ele re-
Na época em que a racionalidade científica corre a autores como Durkheim para indicar o
orientou as práticas sociais, pareceu ocorrer um deslocamento do lugar da religião, que abandona
certo desaparecimento do papel da religião nos sua evidência marcante no plano institucional,
processos produtivos. As organizações constitu- como ocorria na sociedade medieval, para ocupar
íram-se como estruturas burocráticas altamente o plano individual. Em outras palavras, o suposto
racionalizadas e pragmáticas, a ponto de serem enfraquecimento da religião, no que diz respeito
denominadas a partir de sua dimensão mecâni- à sua visibilidade no plano econômico, sobretudo
ca.10 A dimensão formal das organizações, que, como fator de influência nas organizações, des-
tendencialmente, levariam a ações também racio- loca-se das práticas institucionalizadas para as
nalizadas por parte de seus integrantes, não pode ações individuais.
ser tomada como possibilidade única. De acordo Em seu estudo sobre a sociedade america-
com Guerreiro Ramos, na, Parsons, nesse mesmo sentido, conclui que
Durkheim “Nega que, na sociedade americana,
As finalidades da vida humana são diver-
haja um declínio da Religião; para ele, assiste-se,
sas e só umas poucas, dentre elas, perten-
cem, essencialmente, à esfera das nela, a redefinição das relações entre Religião e
organizações econômicas formais. Na sociedade, em base à qual é atribuída, à primeira,
tentativa de criar e maximizar os recursos a esfera pessoal e privada, com o abandono da es-
necessários a seu bem-estar material, o fera pública”.13 Esse trânsito da esfera pública
indivíduo pode-se permitir atividades me- para privada, conforme esse autor, é conseqüên-
canomórficas, que são aquelas específicas cia de uma institucionalização dos valores do
da organização econômica formal. No cristianismo. Dessa forma, a religião atuaria no
entanto, regras operacionais mecânicas nível das emoções individuais e poderíamos con-
não se ajustam a todo o espectro da con-
siderar que, nas organizações, a discussão a res-
duta humana.11
peito dos valores que norteiam sua ética estariam
Vista dessa ótica, a ação humana destoava impregnados dos fundamentos cristãos.
do processo administrativo; daí a dificuldade em O desenvolvimento das organizações passa
prever e controlar o comportamento social, que pelo período de consumo de massa, que apresen-
produzia, nas organizações, disfunções a serem ta, como contrapartida, uma produção lineariza-
corrigidas pelo processo de racionalização. Com da e homogênea; no entanto, as transformações
relação a isso, Martelli explica que, “Nessa pers- no plano econômico e social colocam em xeque
pectiva, autolegitimada por uma filosofia unilinear tal concepção produtiva. O novo contexto so-
e progressiva da história, que encontrou em He- cioeconômico requer uma estrutura de produção
gel uma expressão insuperada, a racionalização flexível, em que a inovação constitui-se como ele-
crescente da vida social era vista como causa ine- mento fundamental nos ganhos de produtivida-
vitável de retraimento da religião, por sua vez de, competitividade e lucratividade. As estruturas
considerada como sinônimo de irracionalidade e organizacionais, até então fixas e previsíveis, co-
tradicionalismo”.12 meçam a ser assediadas por novas concepções
mais hologramáticas,14 que reconfiguram as rela-
9 Ibid., p. 105.
10
ções de poder e valorização individual.
Para maior aprofundamento da concepção de organização mecânica,
cf. MORGAN, 1996, p. 21-42.
11 GUERREIRO RAMOS, 1981, p. 125. 13 PARSONS apud MARTELLI, 1995, p. 96.
12 MARTELLI, 1995, p. 14. 14 MOTTA, 2002, p. 110-146.

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O trabalho humano é direcionado para a permite perceber numerosos fenômenos


dimensão do conhecimento, deixando as funções de dessecularização.17
produtivas, cada vez mais, a serviço do processo
As organizações ocupam, ao mesmo tem-
de automação. A inovação não se configurava
po, um lugar de morte e de possibilidade de
como o dado de novidade, perdeu seu status e se
transcendência. A morte está relacionada às
rotinizou na dimensão industrial, transferindo-se
inovações constantes, que retiram do sujeito sua
para o mundo das artes. Como afirma Menezes,
estabilidade. É o que Freitas denomina concepção
“Ao transferir-se para o âmbito das artes o pathos
de excelência,18 que traz a necessidade de supera-
da novidade, lá, onde, justamente, é impossível ção constante, de si e dos outros, e, portanto,
aferir o conteúdo da inovação em termos de pro- rompe com as possibilidades de permanência, ou
gresso, ocorre uma dissolução da noção de evo- seja, determina um estado sempre provisório. De
lução. A passagem desse pathos da ciência e tec- outro lado, essa mesma organização também ace-
nologia para as artes, denominada ‘secularização na sua potencialidade de vida ao prometer juven-
da visão histórica’, produz, assim, um esvazia- tude eterna. Nesse caso, rompe a barreira do tem-
mento do sentido do progresso”.15 po e do espaço, declarando sua condição de per-
Começa a ocorrer, nas organizações, um manência. O rejuvenescimento da organização e,
progressivo questionamento de seus fundamen- por conseguinte, de seus quadros é atingido por
tos básicos, válidos desde o início do século. A meio da flexibilidade.
hierarquia, o trabalho controlado, o planejamen- “É quase como se as empresas tivessem
to vão perdendo espaço na dimensão organizacio- descoberto a fórmula da imortalidade. É preciso
nal e cedendo lugar a uma concepção mais frag- negar a morte, é preciso ser jovem sempre. É a
mentada e carregada de incertezas. Tais aconteci- necessidade transformada em qualidade, em vir-
mentos fazem parte do conceito de pós-moder- tude, criando exigências cada vez mais acentuadas
nidade,16 que provoca uma releitura na dimensão de agilidade, rapidez e força.”19 Contudo, quando
valorativa e, por conseguinte, na questão da secu- a flexibilidade é tomada como um valor em si,
larização. não permite qualquer possibilidade de permanên-
cia. Cria uma sensação de instabilidade que se aproxi-
O “pós-moderno” caracteriza-se pela au- ma da noção de morte. Nesse plano de fragmentação
sência daquelas contraposições fortes das
de valores e crise das referências formulamos a hi-
quais a tese da secularização tomava vigor.
pótese de que a aproximação do fenômeno reli-
Na ausência de fundamentos absolutos e
com a transformação da própria idéia de
gioso da esfera organizacional está ligada à neces-
verdade, o “pós- moderno” não se apre- sidade de construção de valores de transcendência
senta de fato, nem como a superação da e permanência, buscando amenizar os reflexos de
modernidade, nem como oposição a ela, um contexto extremamente incerto e provisório.
mas, sim, como a sua derivação e a sua A religião poderia ocupar esse lugar, uma
dissolução. Em outras palavras, a socieda- vez que, no plano individual, já tem preenchido o
de “pós-moderna” seria uma sociedade, espaço de amortecimento daquilo que Martelli
“pós–secular”, na qual a ênfase no trend chama de situações-limite:20 “Sob o ponto de vista
secularizante, finalmente deixada de lado, do sistema social, observamos que é muito difícil,
prescindindo-se da Religião, satisfazer a necessi-
15 MENEZES, 1994, p. 161.
16 Ibid., p. 160, conceitua a pós-modernidade, em seu momento de
17 MARTELLI, 1995, p. 18.
ruptura com o moderno, com base no abandono da visão de história
18 FREITAS, 2000.
como processo evolutivo. Para ele, a ênfase no processo de inovação
técnico-científico permanente a rotiniza e rompe sua possibilidade de 19 Ibid., p. 12.
impacto transformador radical. Portanto, a configuração do pós- 20 Como situações limite, Martelli define aquelas que podem levar o
moderno está marcada, notadamente, pela ausência de um projeto uni- homem à morte, do ponto de vista tanto físico como psíquico, e,
ficador que direcione as forças sociais. ainda, ampliar-se no campo social. Cf. MARTELLI, 1995.

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dade de segurança diante do medo da morte, as- Mundial, na região de Trento, na Itália. Sua fun-
sim como dar sentido ao sofrimento conexo às dadora, com suas primeiras colaboradoras, reali-
doenças crônicas”.21 zaram, em um pequeno apartamento, aquilo que
O contexto contemporâneo tem oferecido Gallagher denomina uma verdadeira revolução.23
ameaças em todos os sentidos. A proteção da vi- A idéia da criadora desse movimento foi colocar
da, por meio dos direitos sociais, encontra difi- em comum seus pertences, tomando como eixo
culdades, diante do declínio do welfare state, em a palavra das Escrituras: “Dai e vos será dado”.
estabelecer o Estado como uma possibilidade de Assim, em Trento, Chiara Lubich e suas compa-
segurança. Por sua vez, as organizações também nheiras passaram a ser conhecidas como focola-
apresentam-se como lugar de transitoriedade e rinas, de focolare, palavra traduzida normalmente
incerteza. No plano individual, a incapacidade da do italiano como lareira ou fogo no lar.24 Porém,
ciência de achar cura para as doenças terminais as focolarinas começaram a ter problemas com a
reafirma a fragilidade humana. Igreja e com pessoas em geral, que as viam como
Diante disso, a religião coloca-se como comunistas, pois, segundo Chiara, naquela época
uma possibilidade de diálogo com tais instabili- somente os comunistas falavam em unidade.
dades. “Além dos fracassos que os equivalentes No bojo dessas pressões, a Igreja passou a
funcionais encontram no controle das situações exigir de Chiara a formalização de seu ideal. Ela
extremas conexas com a finitude humana, exis- marcou audiência com o arcebispo local, D. Car-
tem, também, os limites intrínsecos à possibilida- lo De Ferrari, que a encorajou a escrever uma es-
de de enfrentar as necessidades sociais, conexas pécie de regra para o movimento. Mesmo assim,
com a dimensão material dos próprios equivalen- somente em 1956 foi feita uma declaração pública
tes funcionais.”22 pelo arcebispo de Trento e pelos bispos italianos
Em tal contexto, partimos da hipótese de de não censurar o focolare. Em 1957, alguns bis-
que a aproximação de grupos religiosos de orien- pos comparecerem ao encontro de verão do fo-
tação para empresários tem encontrado receptivi- colare para viver mais de perto o seu estilo de vi-
dade e, de alguma forma, interferido na cultura da.25 Chiara descreveu a experiência como a
das organizações, contribuindo para a modifica- “construção da cidade de Maria da mesma forma
ção dos estilos de gestão e da lógica orientadora que Maria deu Jesus ao mundo. Os participantes,
do processo de decisão. A título de ilustração, to- então, levariam essa experiência de volta às suas
maremos a economia de comunhão, analisando cidades, aldeias, paróquias, famílias e ambiente de
suas propostas e possibilidades de interferência no trabalho”.26
processo organizacional. Partimos da premissa de Assim, uma experiência que partiu infor-
que a dimensão da racionalidade instrumental não malmente de um grupo passou a enfrentar um
foi abandonada, mas divide espaço com outras va- processo de institucionalização, como decorrên-
riáveis simbólicas, que, juntas, desenham novas cia de uma necessidade de controle por parte da
formas de gestão parametrizadas por valores que Igreja. O movimento era composto por focolari-
articulam a esfera racional e a simbólica. nos que faziam promessas de pobreza, castidade
e obediência e viviam em comunidade. Somente
A ECONOMIA DE COMUNHÃO: em 1956, foram reforçados com os primeiros vo-
UM POUCO DE HISTÓRIA luntários e focolares casados, que viviam as mes-
A economia de comunhão nasce no berço mas promessas de vida nas próprias famílias. No
do movimento focolare, fundado por Chiara Lu- decorrer dos anos, o movimento foi se fortale-
bich e estabelecido nos idos da Segunda Guerra 23 GALLAGHER, 1998, p. 69.
24 Ibid., p. 70.
21 Ibid., p. 128. 25 Esse encontro ficou conhecido como Mariápolis, cidade de Maria.
22 Ibid., p. 129. 26 GALLAGHER, 1998, p. 71.

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cendo e recebendo novas adesões, chegando ao Nesse sentido, ao propor valores de atua-
Brasil em 1967, com a criação de Mariápolis,27 em ção para as empresas onde se faz presente, eco-
Vargem Grande Paulista, no Estado de São Paulo. nomia de comunhão constrói, de alguma forma,
Com o desenvolvimento crescente de Ma- uma lógica administrativa própria, ainda que in-
riápolis, Chiara visita o Brasil, em 1991, e não dei- corpore ações já existentes, mas agora em um
xa de notar o quadro de desigualdade social no corpo filosófico que lhe dá sentido. Propõe que
País. Em maio desse mesmo ano, anuncia um os bens sejam colocados ativamente em circula-
novo plano para o movimento focolare, primei- ção no corpo social, de modo a produzir outros
ramente no Brasil, e, em seguida, para o mundo bens. “Passa-se de uma comunhão de bens a uma
inteiro, conhecido como economia de comunhão. economia de comunhão que diz respeito a inves-
A novidade estava em colocar o lucro, obtido nas timentos, lucros, distribuição de riquezas, gera-
ção de empregos. Este novo modo de agir eco-
empresas cujos empresários eram filiados ao mo-
nômico pressupõe homens novos.”29
vimento, em comum, destinando um terço do
total para os necessitados, outro terço para a em- Araújo afirma que a economia de comu-
presa, visando a estimular o seu desenvolvimento nhão insere-se no discurso da Doutrina Social da
e crescimento, e o último terço para construir, Igreja, apoiada nas seguintes considerações de
âmbito mais geral:30 1. a propriedade privada é
desenvolver e apoiar as cidadezinhas do movi-
um direito, e não algo que possa alimentar a sede
mento. A construção das cidades, que reuniam
consumista. Assim, na economia de comunhão, a
empresas com essa filosofia, objetivava formar o
propriedade das empresas não é acumular, mas
homem novo, o pilar da nova sociedade, que teria
gerar emprego, sanar a necessidade dos mais po-
como eixo central de sua conduta a comunhão
bres; 2. a criatividade, a iniciativa, a capacidade, a
dos bens. Esse propósito foi anunciado, no Bra-
responsabilidade e a participação são tratadas
sil, em 29 de maio de 1991.
como expressões típicas das pessoas e podem im-
Tais inspirações, conforme Gallagher, vin- pulsionar o trabalho e a empresa. Aqui a idéia não
culavam-se à Doutrina Social da Igreja, particu- é o lucro pelo lucro, mas a sua distribuição e ge-
larmente à Encíclica Centesimus Annus, no que se ração de empregos; 3. a empresa é vista, compre-
refere às questões sociais.28 Essa encíclica reafir- endida e funciona não só como uma estrutura
ma a defesa da propriedade privada, da livre ini- econômica, mas como uma comunidade de pes-
ciativa e da liberdade de associar-se, consideran- soas com funções diferenciadas mas iguais na co-
do, contudo, que elas não podem ocorrer em de- mum natureza humana, na convivência de irmãos
trimento dos direitos humanos. A vertente eco- filhos do mesmo Pai, portanto, não se trata de uto-
nômica do movimento está centrada nas pia; 4. a economia de comunhão não é algo fe-
possibilidades de intermediação das empresas chado em si mesmo, pois, conforme a autora, já
com relação ao social, tanto no que diz respeito à nasceu com dimensão planetária, ou seja, as capa-
sua dimensão interna (relações trabalhistas e in- cidades, competências e habilidades são coloca-
terpessoais) quanto ao âmbito externo (governo, das em comum para todos os continentes; 5.
concorrentes, fornecedores, clientes e a socieda- existe a liberdade de decisão de como o lucro se
de como um todo). Portanto, as organizações transformará em bem comum.
empresariais são o locus privilegiado de materia- No que diz respeito, mais especificamente,
lização dessa filosofia. ao processo organizacional, a economia de co-
munhão propõe o respeito às regras definidas pe-
27 O termo Mariápolis não se refere a uma cidade específica, mas a um
las legislações vigentes, que, combinadas com as-
local que aglutina as atividades dos focolarinos. Diz respeito, portanto,
ao núcleo de organização do movimento. Hoje em dia, no Brasil, tais
atividades estão situadas em Vargem Grande Paulista (SP). 29 SORGI, 1992, p. 8.
28 GALLAGHER, 1998, p. 222. 30 ARAÚJO, 1992, p. 52.

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pectos específicos, devem reger a criação de so- Assim, o objetivo maior da economia de
ciedades empresariais dentro do movimento, a comunhão, segundo Sorgi, é chegar ao cerne da
saber: economia, buscando redescobrir o seu lugar socio-
lógico, a sua radicalidade social “como dimensão
1. deve predominar um amplo quadro de da vida social objetivamente necessária e também
acionistas com amplas cotas de peque-
como um privilegiado caminho disponível à sub-
nas ações não dispensando cotas impor-
tantes;
jetividade de cada indivíduo que deseja fazer a sua
parte na reativação do aspecto social adormecido
2. a gestão deve ser entregue a profissio-
nais competentes e motivados pela eco-
e construir, com todos os demais, uma sociedade
nomia de comunhão, capazes de con- mais humana em todos os campos, uma socieda-
quistar a confiança da totalidade dos acio- de efetivamente solidária”. 32
nistas; A ação do movimento tem a sua essência
3. o comportamento empresarial deve no partilhar, no dar, colocando em comunhão
ser ético quanto a questões de ordem aquilo que se tem agora. Ele toma uma dimensão
fiscal, administrativa, política salarial, se- no setor produtivo e incorpora uma forma parti-
gurança e salubridade; cular do agir econômico.33 O esforço está em
4. o relacionamento entre os acionistas, multiplicar os próprios bens e colocá-los para o
clientes, funcionários, fornecedores, ad- Bem comum. Nas palavras de Chiara,
ministração pública deve estar coerente
com a economia de comunhão; as experiências vividas pelo Movimento: o
5. a gestão econômica deve respeitar as exercício, ao longo dos anos, do dar, do
regras de eficiência e produtividade para partilhar; a promoção da solidariedade
caminhar por si própria; para como os necessitados do próprio
bairro e para com as populações de terras
6. para que a empresa se engaje na eco-
longínquas – humilhadas pela fome e doen-
nomia de comunhão precisa ter a adesão
ças ou atingidas por catástrofes naturais
de todos ou, pelo menos, da maioria dos
ou políticas –; o considerar “capital de
acionistas; empregar o lucro na ajuda
Deus” aquilo que foi produzido e em se-
aos acionistas e na formação das novas
guida doado com total generosidade.34
gerações na “cultura do dar”; criar uma
atividade produtiva para as novas gera- A extensão do movimento vem ganhando
ções; respeitar a liberdade dos acionistas novos adeptos dia após dia, envolvendo, atual-
ou herdeiros que queiram reaver o capi-
mente, cerca de 800 empresas no mundo, 90 de-
tal investido (para isto é necessário que
las no Brasil. No congresso realizado em junho
anualmente se reveja a decisão de distri-
buição do lucro).31 de 2003, em Cotia (SP), estiveram representantes
de 24 Estados brasileiros e ainda outros da Ar-
Como pode ser percebido, a economia de gentina, Uruguai, Peru, México e Itália, totalizan-
comunhão está centrada em um movimento que do aproximadamente 600 pessoas, entre elas, 150
nasce no berço do catolicismo, norteia-se pela empresários, além de economistas, políticos e
doutrina cristã e encontra acolhimento nas Encí- profissionais de diversas áreas. Na área de expo-
clicas, Rerum Novarum, Centesimus Annus, Qua- sição do evento participaram 51 empresas, 29 a
dragesimo Anno, Sollicitudo Rei Sociallis, com um mais do que em 2002, representando os setores
corpo social bastante marcado, e trazem em seu
32 SORGI, 1992, p. 58.
bojo reflexões relativas à propriedade privada, ao 33 Em nossa compreensão, o agir econômico referido por Sorgi não
trabalho, à questão operária, à solidariedade e à está relacionado com uma mudança na concepção da lógica capitalista,
destinação universal de bens. mas com uma forma particular de abordar questões sociais e subjetivas
em tal contexto. Trata-se de buscar uma maneira de humanização das
relações de trabalho fundada na subjetividade da religiosidade.
31 Cf. FERRUCCI, A. in: COSTA et al., 1992, p. 84-85. 34 LUBICH, C. apud SORGI, 1992, p. 65.

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de saúde, indústria, agropecuária, vestuário, turis- volvimento das organizações em ações de res-
mo, construção, informática, telecomunicações, ponsabilidade social,35 a economia de comunhão
segurança, alimentação, educação, contabilidade, também não traz novidades. A delimitação de seu
tradução de textos, joalheria e artes gráficas, e os campo específico possa talvez dar-se no movi-
Estados de Amazonas, Sergipe, Pernambuco, Mi- mento de aglutinação de várias organizações, sus-
nas Gerais, São Paulo, Paraná, Rio Grande do Sul tentado pelo comprometimento econômico de
e Distrito Federal. cada uma delas com um projeto comum.36
A temática da economia de comunhão já No campo simbólico, parece-nos que a
foi objeto de estudo de cem trabalhos da gradu- economia de comunhão responde a algumas ex-
ação ao doutorado, entre os quais, 20 feitos no pectativas colocadas na relação sociedade-
Brasil. O movimento no País conta ainda com organizações. O primeiro traço que gostaríamos
um projeto industrial denominado Empreendi- de apontar diz respeito à identidade organizacio-
mentos, Serviços e Projetos Industriais (Espri nal. Há que se considerar que o século XX foi
S.A.), com cerca de 3.600 acionistas, variando o
marcado por um avanço das organizações nos
investimento de acordo com as possibilidades fi-
planos econômico, social e cultural. Se, num pri-
nanceiras de cada envolvido, caracterizadas tanto
meiro momento, o processo de industrialização
como participações modestas quanto de maior
significou a possibilidade de mobilidade social,
envergadura. O Pólo Industrial Spartaco é a pri-
no decorrer do tempo foi se evidenciando-lhe
meira experiência desenvolvida pela Espri S.A.,
uma face mais perversa.37
com seis empresas, em Cotia, orientadas pela eco-
nomia de comunhão. Existe a expectativa de que, A precarização das condições de trabalho, a
até 2010, ele poderá contar com dez empresas. relação predatória com a natureza e a postura, às
A economia de comunhão tem, em seu cer- vezes imperialista, das multinacionais provoca-
ne, a comunhão dos bens, lógica pautada no dar, ram, no imaginário social, uma certa aversão ao
no distribuir o lucro obtido na organização, e, mundo empresarial. De heróis a bandidos, os em-
como eixo, a caridade e a solidariedade. presários deixaram de ser vistos como provedo-
res e protetores dos recursos da sociedade para
CONSIDERAÇÕES FINAIS assumir a figura de exploradores desleais. Como
Como pudemos perceber aqui, a economia sujeitos providos de desejo, os empresários pro-
de comunhão é uma orientação de conduta para curam, em sua atividade, formas de romper com
empresários e tem como berço o movimento fo- tal perspectiva. A construção de uma imagem al-
colare. Ainda que suas origens estejam ancoradas ternativa passa a ser um esforço planejado, haja
no catolicismo, ela é concebida como ecumênica vista as ações do marketing social.38
e orientada pelos princípios cristãos.
35 “Responsabilidade social corporativa é o comprometimento permanente
Do ponto de vista de mudanças radicais no dos empresários de adotar um comportamento ético e contribuir para o
processo produtivo, ou mesmo da lógica econô- desenvolvimento econômico, melhorando, simultaneamente, a qualidade de
vida de seus empregados e de suas famílias, da comunidade local e da socie-
mica, não é possível perceber proposições signi- dade como um todo” (MELO NETO; FROES, 1999, p. 88)
ficativas, questões como o direito de proprieda- 36 A noção de projeto comum está relacionada a valores compartilhados
que norteiam a prática administrativa e são reproduzidos pela criação
de, a livre iniciativa e a liberdade de associação são de redes de organizações, cuja filosofia é socializada. A dimensão eco-
traços marcantes do capitalismo. Dessa forma, o nômica que sustenta tal processo é materializada em dois âmbitos: na
filiação subjetiva, ao assumir os valores, e na filiação econômica, ao
que se propõe no movimento está vinculado à destinar parte de seu lucro para a sustentação dessa proposta.
preservação do sistema econômico. 37 Para maiores detalhes sobre a dimensão perversa da organização, cf.
MORGAN, 1996, p. 279-326, em que ele discute as relações de poder
Não há uma distinção formal entre as na dimensão do controle e da dominação.
organizações filiadas à economia de comunhão e 38 “Tecnologia de administração da mudança social, associada ao projeto,
à implantação e ao controle de programas voltados para o aumento da
outras que atuam na sociedade: ambas estão re- disposição de aceitação de uma idéia ou prática social em um ou mais
gidas pela lógica capitalista. No que tange ao en- grupos adotantes escolhidos como alvo” (KOTLER, 1978, p. 45).

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Contudo, esse tipo de direcionamento nem experiência, que nos explica Manzini-Covre,42
sempre é suficiente: dependendo das crenças do possibilitando aos sujeitos atuar e criar uma auto-
empresário, a ação racional vinculada ao marke- imagem que lhes dê potência de ação. “Por isso
ting social não repara as suas penas. A vinculação distinguimos que a compreensão de uma organi-
de uma organização com a economia de comu- zação nunca é uma compreensão identificativa
nhão transfere-lhe valores que norteiam a cons- (como supomos a apreensão de Pagés), mas uma
trução de sua identidade, e é nessa vertente que compreensão identificatória ou um rumo identi-
apoiamos a nossa hipótese. ficatório, nunca determinado. Tornar desvelados
Ao analisar a identidade individual, Caldas aspectos do rumo, e então o que se quer e o que
conclui que o ser humano é composto de um se pode fazer vão indicar a força e potência de
mosaico de identidades que interagem e se arti- ação.”43
culam de forma dialógica.39 Se transpusermos A identificação permitida pela economia de
esse conceito para as organizações, poderíamos comunhão está articulada a duas dimensões. A
afirmar a possibilidade de convivência de várias primeira está entre as organizações que optam
identidades organizacionais, entre elas, a religio- por tal ideário, a ponto de se organizar em cida-
sa. Ainda segundo esse autor, “a conclusão é que des (as Mariápolis), e também na esfera do ho-
a identidade moderna é múltipla: um self que cor- mem novo, que toca mais diretamente o plano do
responde a um contexto social-plural”.40 indivíduo. Essas relações, tornadas possíveis pela
Mazini-Covre também aborda o aspecto economia da comunhão, respondem ainda à pos-
multifacetado da identidade, denominando-o de sibilidade de transcendência. A organização deixa
identificações. Em outras palavras, a organização de ser um ente isolado, perdido em uma econo-
estabelece identificações múltiplas que lhe permi- mia capitalista, e passa a fazer parte de um projeto
tem atuar e que estão sempre em movimento: que transcende a finitude terrena, tanto dos su-
“Toda organização, para prosseguir em seu fun- jeitos quanto da própria organização. Isso pode
cionamento, carece de uma imagem. E, para um ser observado na criação da Espri S.A., dos pólos
funcionamento progressivo, precisa também ter industriais e, ainda, na destinação de parte do lu-
um certo ideal e uma causa a defender. Para tal há cro da empresa para sustentação de uma estrutura
que se entender isso como um processo de iden- que articule a rede de organizações filiadas a tal
tificações e não por uma identidade”.41 proposta.
É interessante notar que essa autora acres-
A segunda dimensão na qual tal ideário
centa um elemento a mais, qual seja, um ideal a
pode produzir interferências é o estilo gerencial.
ser defendido. Já abordamos a questão do esgo-
Como vimos anteriormente, os gestores que op-
tamento da dimensão do lucro como único pro-
tam pela economia de comunhão deveriam ob-
pulsor das organizações. Do ponto de vista sub-
servar uma série de orientações, entre elas, a maior
jetivo, os empresários, e também os funcionários,
socialização possível das cotas acionárias, e a ética
precisam de motivos que transcendam a dimen-
articulada a eficiência e produtividade, a fim de
são da lucratividade e incorporem outras, como a
gerar autonomia para a organização, comporta-
realização no trabalho, a liberdade de criar e, nes-
mento ético com relação a funcionários, socieda-
se caso, a identificação com um ideário religioso.
de, governo, fornecedores, concorrentes e clientes
A contribuição da economia de comu-
e gestão profissional.
nhão é justamente a construção dos espaços da
Do ponto de vista da gestão contemporânea,
39 Segundo Morin, a complexidade baseia-se em três princípios, entre essas questões, com exceção da maior socialização
os quais, o dialógico. “O princípio dialógico permite-nos manter a possível das cotas, não são novidades: o compor-
dualidade no seio da unidade. Associa dois termos ao mesmo tempo
complementares e antagônicos” (MORIN, 2001, p. 108).
40 CALDAS; WOOD, 1997, p. 15. 42 Idem, 1996, p. 113.
41 MANZINI-COVRE, 2001, p. 62. 43 Idem, 2001, p. 63.

62 Impulso, Piracicaba, 14(34): 53-64, 2003


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tamento ético está se transformando em uma exi- mos a desenvolver profundamente essa questão,
gência de mercado, a ponto de já existir, na bolsa mas apenas apontar um outro fio desse novelo
de valores, uma avaliação dessa dimensão do pro- já bastante emaranhado. Ao abordar as relações
cesso de gestão. No entanto, como orientação ad- entre economia e religião, Weber formula a hi-
vinda da adesão a um projeto, poderíamos dizer pótese de uma tensão inconciliável entre elas,45
que a economia de comunhão está tentando mo- sustentando tal argumento no tratamento dado
delar uma cultura administrativa.44 por cada uma delas à impessoalidade. Enquanto
Os traços dessa cultura colocam, num mes- a impessoalidade capitalista é regida pelo valor
mo patamar, a produtividade, lucratividade e econômico, materializado no dinheiro e na ação
competitividade com a dimensão religiosa, mas racional, as religiões de salvação vão tratá-la na
essa última não se apresenta de forma explícita na dimensão do acosmismo, ou seja, instituindo
organização. Ela procura introjetar valores sem a Deus como única realidade possível e negando
sua nomeação, ou seja, a cúpula da organização qualquer possibilidade de uma realidade inde-
busca incorporar formas de ação para que os fun-
pendente.
cionários percebam uma diferença no modo de
agir. Como a ação não é explícita, sua interpreta- Os valores norteadores da economia e da
ção depende da referência de quem a recebe; as- religião, de acordo com tal abordagem, consti-
sim, do ponto de vista dos funcionários, eles po- tuem-se de forma antagônica46 e, portanto, uma
dem perceber a diferença, mas, por não conseguir ação religiosa no âmbito organizacional seria
nomeá-la, sofrem com a dúvida de ser tratados de bastante improvável. A economia de comunhão
forma distinta, sem poder identificar-lhe o fun- consistiria, assim, numa tentativa de reconcilia-
damento. ção entre economia e religião, procurando des-
Tais considerações nos levam a crer que, de locar o eixo de despersonalização do dinheiro
fato, a economia de comunhão tem uma poten- para Deus, ou seja, modificando o fim último do
cialidade de trazer mudanças para as organiza- capitalismo do valor econômico para o homem.
ções. Contudo, dificilmente teríamos como afir- Seria ela uma possibilidade viável? Tal hipótese
mar de que maneira tais mudanças poderiam me- contraria a nossa afirmação anterior, de que a
lhorar a qualidade de vida geral da organização e economia de comunhão não traz mudanças na
dela com a sociedade. concepção econômica do mundo. Ainda assim,
A relação entre religiosidade e economia é entendemos que esse é um fenômeno merece-
outra vertente a ser abordada. Não nos propo- dor de maiores estudos.

44 Cultura administrativa é a expressão mais apropriada para dar conta 45 WEBER, 1982, p. 379-382.
da dimensão simbólica da vida empresarial e administrativa. O con- 46 Weber estabelece apenas duas exceções quanto a essa questão: o
ceito não se restringe a um único tipo de instituição, focalizando a puritanismo e o misticismo. O puritanismo, segundo ele, “aceitou a
dimensão simbólica da tarefa de administrar, e não as instituições que a rotinização do cosmos econômico, que, como a totalidade do mundo,
executam. “Poderíamos então definir cultura administrativa como o desvalorizou como coisa da criatura imperfeita”. Já o misticismo é
conjunto de lógicas e valores contextualizados de forma recorrente na caracterizado por Weber como “prostituição sagrada da alma”, uma
maneira de administrar de diferentes sociedades” (BARBOSA, 1999, fuga do mundo e perda do interesse pela pessoa. Cf. WEBER, 1982, p.
p. 160). 381.

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Dados das autoras


ELISABETE STRADIOTTO SIQUEIRA
Doutora em ciências sociais e docente da
Faculdade de Gestão e Negócios da UNIMEP.
VALÉRIA RUEDA ELIAS SPERS
Mestre em educação, doutoranda em ciências
sociais e docente da Faculdade de Gestão e
Negócios da UNIMEP.

Recebimento artigo: 31/mar./03


Consultoria: 1.º/abr./03 a 24/jun./03
Aprovado: 27/jun./03

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O Mal Exorcizado: cura divina


entre os neopentecostais
da Igreja Internacional da
Graça de Deus
EXORCISED EVIL: DIVINE CURE AMONG
NEOPETENCOSTALS OF THE INTERNATIONAL
CHURCH OF THE GRACE OF GOD
Resumo A procura de cura mágico-religiosa para males físicos ou emocionais – in-
cluindo, em certos casos, a prática do exorcismo – é parte integrante de diversas re-
ligiões que compõem o acervo cultural da sociedade brasileira e tem se ampliado con-
sideravelmente nos últimos anos, sobretudo entre as denominações neopentecostais.
Apoiado em pesquisa realizada nos cultos de um grupo neopentecostal da Igreja In-
ternacional da Graça de Deus, em Ribeirão Preto (SP), este trabalho examina como tal
denominação organiza suas práticas de cura e solução de problemas imediatos de seus
fiéis. Os dados coletados em entrevistas com os fiéis, e mediante a observação parti-
cipante nos cultos, mostram como rituais de cura, associados ao exorcismo, possuem ANA KEILA PINEZI
a marca da exterioridade e são impregnados de emocionalismo religioso, que chega ao Faculdades COC, Brasil
pinezi@usp.br
limite da catarse. Essa postura contrapõe-se à idéia de cura divina, presente entre os
protestantes históricos, cuja doutrina é claramente racional e ética.
GERALDO ROMANELLI
Palavras-chave CURA DIVINA – EXORCISMO – NEOPENTECOSTAIS – IGREJA INTER- Universidade de São Paulo
NACIONAL DA GRAÇA DE DEUS.
(USP, Brasil)
geromane@ffclrp.usp.br
Abstract The search for a magical religious cure of physical or mental disorders,
which includes, in certain cases, the practice of exorcism, is an integral part of some
religions that compose the Brazilian’s cultural heritage and it has considerably ex-
panded in the last few years, particularly among neopentecostal denominations.
Based on a study conducted during the services of a neopentecostal group of the In-
ternational Church of the Grace of God’ in Ribeirão Preto (SP, Brazil) this work eva-
luates how such denomination organizes its cure practices as well as those applied in
the solution of their followers’ immediate problems. The data collected through in-
terviews with followers and through participant observation during services show
how cure rituals associated with exorcism present the mark of exteriority and are im-
pregnated with religious emotionalism that reaches the limits of a catharsis. This at-
titude opposes the idea of divine cure present among historical protestants whose
doctrine is clearly rational and ethical.

Keywords DIVINE CURE – EXORCISM – NEOPENTECOSTALS – INTERNATIONAL


CHURCH OF THE GRACE OF GOD.

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INTRODUÇÃO

D
urante o período colonial, ocorre, na sociedade brasileira,
o contato entre a cultura do colonizador português e as
das várias etnias indígenas e africanas. A riqueza da diver-
sidade cultural enfrenta o etnocídio1 exercido pelo colo-
nizador, cuja prática objetiva a eliminação das manifesta-
ções simbólicas dos dominados e a construção de uma
homogeneidade cultural, de modo a facilitar a empresa
colonizadora. Apesar dos esforços do colonizador, a prá-
tica etnocidária não consegue eliminar completamente as criações cultu-
rais dos povos dominados, entre as quais incluem-se suas expressões re-
ligiosas. Se a pluralidade de credos molda, inicialmente, a cultura brasi-
leira, dando origem a um sincretismo religioso, o catolicismo, entroniza-
do como crença oficial, constitui-se como religião hegemônica.2
Após a independência do País, a separação entre Igreja e Estado
contribui para o processo de secularização3 e para a redução da hegemo-
nia do catolicismo, diminuindo a segregação em que se encontram os cul-
tos afro-brasileiros. Além disso, propicia a gradual penetração do protes-
tantismo no Brasil, particularmente por meio de missões norte-america-
nas, e também da atuação de imigrantes europeus, e cria condições para
o estabelecimento de um mercado religioso livre.4 Com as missões pro-
venientes dos Estados Unidos, chegam, já no século xix, as primeiras
igrejas filiadas ao protestantismo histórico, entre elas, a Igreja Presbite-
riana do Brasil, que se instala no Rio de Janeiro, em 1859, as Igrejas Ba-
tista e Metodista, além da Igreja Luterana, que aporta no País com a vinda
de imigrantes alemães.5
No início do século xx, ocorre o que Freston6 designa como pri-
meira onda da criação institucional de denominações pentecostais, com
a instalação da Congregação Cristã no Brasil, em São Paulo, em 1910, e
da Assembléia de Deus, em Belém do Pará, na década seguinte.7 A partir
dos anos 1950, dá-se a segunda onda de expansão do pentecostalismo,
com o surgimento da Igreja do Evangelho Quadrangular, da Igreja Nova
Vida, da Igreja Pentecostal Deus é Amor e Brasil para Cristo. A terceira
onda registra-se na década de 1970,8 com a emergência do movimento
neopentecostal, representado pela Igreja Universal do Reino de Deus,
Igreja Internacional da Graça de Deus, Deus é Amor, Renascer em Cris-
to e Casa da Bênção.

1 CLASTRES, 1982.
2 PRANDI, 1997.
3 WEBER, 1999.
4 PIERUCCI, 1999.
5 MENDONÇA, 1990.
6 FRESTON, 1996.
7 Idem, 1994.
8 Idem, 1996.

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A Igreja Internacional da Graça de Deus, O recurso ao universo mágico-religioso em


comumente denominada Igreja da Graça, é uma busca da cura divina – incluindo, em certos casos,
dissidência da Igreja Universal do Reino de Deus a prática do exorcismo – tem sido parte integran-
e foi criada em 1980, no Rio de Janeiro, por Ro- te de diversas religiões que compõem o acervo
mildo Ribeiro Soares. Conta com 700 templos, cultural do País, como as afro-brasileiras, o espi-
concentrados no sudeste do País, e com outros ritismo kardecista, as pentecostais e as neopente-
no exterior, mais exatamente no Uruguai e em costais, bem como a vertente carismática da Igre-
Portugal.9 ja Católica.14
O número de evangélicos – categoria que A busca da cura mágico-religiosa para ma-
inclui protestantes históricos, pentecostais e ne- les físicos ou emocionais vem se ampliando, em
opentecostais – tem crescido constantemente. O parte graças à precariedade dos serviços públicos
censo de 1980 totaliza 7.885.846 evangélicos10 no de saúde, que não conseguem atender, de modo
satisfatório, às demandas da população de baixa
Brasil, divididos em 4.022.343 protestantes histó-
renda. Ao lado da dificuldade da população em
ricos e 3.863.503 pentecostais. Em 1991, os
ter acesso a esses serviços, a medicina oficial passa
evangélicos perfazem 12.517.97711 – 4.338.311
a concorrer mais intensamente com uma multi-
das igrejas históricas e 8.179.666 pentecostais – e,
plicidade de sistemas de cura, como os da medi-
em 2000, atingem a cifra de 26.184.942.12 Os da-
cina alternativa e os de cunho mágico-religioso.15
dos dos censos de 1980 e de 1991 não especifi- De fato, a redução da hegemonia da medicina
cam a quantidade de pentecostais e de neopente- pode aproximar-se daquela registrada no catoli-
costais, nem fornecem indicadores acerca do nú- cismo e que abre caminho para a ampliação das
mero de fiéis das várias denominações; já o censo religiões voltadas à oferta de serviços de cura di-
de 2000 registra apenas o número de evangélicos. vina, que constituem parte essencial dos cultos
Todavia, a comparação entre os dados de 1980 e das denominações neopentecostais.
de 1991 indica que a expansão de evangélicos é
desigual, uma vez que o aumento dos protestan- RITUAL DE CURA ENTRE OS NEOPENTE-
tes históricos é menor do que o das outras COSTAIS: O MUNDO REMAGICIZADO
denominações.13
As igrejas do protestantismo histórico, en-
O crescimento das igrejas pentecostais e tre elas, a Presbiteriana, a Batista, a Metodista e a
neopentecostais ocorre em uma sociedade pauta- Luterana, fundam-se em uma doutrina claramen-
da por imensa desigualdade social, em que a po- te racional, expressa em sua liturgia ritual e fun-
pulação pobre enfrenta inúmeros problemas, damentada numa rotinização das práticas e dos
como salários reduzidos, desemprego, doença, discursos. Já as denominações pentecostais valo-
falta de segurança, dificuldade de acesso a servi- rizam o carisma como elemento estruturador do
ços de saúde e à educação. Nesse quadro de es- culto e a postura exterior dos fiéis, sobretudo no
cassez, a adesão às denominações neopentecos- que se refere ao tipo de indumentária e a sinais
tais pode ser, em parte, tributada às soluções prá- corporais, como o uso de cabelo longo para as
ticas e imediatas para problemas do cotidiano e mulheres e de cabelo curto e barba raspada para
também à modalidade dos cultos, com forte teor os homens, que constituem recursos simbólicos
emocional, nos quais a participação dos fiéis co- para traduzir uma identidade religiosa.
loca-os em relação direta com a divindade. Os neopentecostais, por sua vez, dispen-
sam essas representações em torno do corpo e
9 MARIANO, 1999.
10
suas práticas incluem a guerra espiritual contra o
IBGE, 1983.
11 Idem, 1996.
12 Idem, 2002. 14 PRANDI, 1997.
13 PRANDI, 1997; PIERUCCI, 1999. 15 MONTERO, 1985.

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mal, expressa na cura divina pelo exorcismo, o que confere a ambos uma dimensão sincrética,
transe, a subjetividade individual concretizada em traço presente na constituição de algumas religi-
surtos emocionais e a prática da glossolalia, sinal ões brasileiras desde o período colonial.
do batismo pelo Espírito Santo. A relação com o Considerando as peculiaridades das diver-
sagrado funda-se numa troca mediada pela fé, por sas igrejas neopentecostais, o foco deste trabalho
meio da qual o fiel oferece bens materiais para re- está posto na Igreja da Graça, sobretudo nos ri-
ceber bênçãos divinas. Desse modo, a teologia da tuais de cura e exorcismo. Para analisá-los, pro-
prosperidade é elemento nuclear da doutrina e cedeu-se a uma pesquisa nos cultos de uma igreja
constitui característica significativa, sobretudo desse grupo neopentecostal, em Ribeirão Preto,
para a população pobre, que utiliza o corpo dou- no Estado de São Paulo. A cidade conta com
trinário a fim de enfrentar e resolver problemas 504.923 habitantes, dos quais 67.774 evangélicos
do cotidiano, desde questões financeiras ou fami- correspondem a 13,42% da população.18 Os da-
liares até problemas de recuperação da saúde físi- dos do IBGE registram apenas o total de evangé-
ca ou mental. licos na cidade, inviabilizando a comparação com
Alguns elementos referentes à doutrinação o número de fiéis das diversas denominações.
dos neopentecostais os diferenciam e distanciam Os cultos e rituais específicos foram obser-
do pentecostalismo clássico, como sintetiza vados de acordo com os pressupostos da antro-
Mendonça: pologia, mediante observação participante numa
igreja situada próximo ao centro da cidade e que
Hoje, o pentecostalismo clássico não di- congrega aproximadamente 1.200 adeptos, como
fere tanto do protestantismo, a não ser na também por meio de entrevistas com os fiéis. A
sua insistência na repetição da experiência observação foi feita desde o segundo semestre de
do Pentecostes que o protestantismo re-
2000 até o primeiro semestre de 2002 nessa igre-
cusa. O pentecostalismo posterior, cuja
explosão e expansão se deu nos anos 50,
ja, considerada, na cidade, a catedral da fé. Com
enfatizou a cura divina, o que o afastou base na observação, as impressões, os aconteci-
ainda mais do protestantismo. Os poste- mentos, os pequenos incidentes e o tom do com-
riores movimentos, que têm recebido o portamento19 foram registrados no diário de cam-
nome genérico de neopentecostalismo, po, assim como trechos da fala do pastor, que
representam uma ruptura final com o também concordou em ser entrevistado. O exer-
protestantismo. Qualquer observador cício da observação resulta não em mera des-
atento e conhecedor do protestantismo crição, mas, como postula Geertz,20 em uma des-
sabe que nesses movimentos a Bíblia foi crição densa da realidade, levando em conta as
relegada a espaço secundário, o “livre exa- teias de significado presentes nas relações sociais
me” cedeu lugar ao uso mágico da mesma
desse grupo religioso.
e assim por diante. Surgiram práticas má-
gicas, objetos com poderes especializa-
Nessas circunstâncias, o trabalho etnográ-
dos, correntes espirituais e mesmo alguns fico de observação participante dos cultos, acom-
deuses estranhos ao cristianismo como, panhado de entrevistas com os fiéis, foi funda-
por exemplo, o “deus da corda”, ou do mental para investigar o modo como essa igreja
“nó”, especializado em amarrar ou neutra- neopentecostal organiza suas práticas, no interior
lizar os poderes malignos (os demônios).16 de um mercado religioso competitivo, e de que
maneira oferece seus serviços a crentes, antes de
Ao lado dessas diferenças, pentecostalismo tudo, carentes de bens materiais e, sobretudo, de
e neopentecostalismo têm em comum o fato de soluções simbólicas para os inúmeros problemas
incorporar elementos do catolicismo popular,17 o
18 IBGE, 2002.
16 MENDONÇA, 2000, p. 96. 19 MALINOWSKI, 1984.
17 Idem, 1997. 20 GEERTZ, 1978.

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que enfrentam no dia-a-dia. Para efetuar uma verso moderno, e constituir, ao mesmo tempo,
análise comparativa, os dados acerca desse grupo uma forma de adaptação dos grupos religiosos a
são confrontados com os de um grupo protes- este novo dado cultural”.23 O emocionalismo
tante histórico, da Igreja Presbiteriana do Brasil. presente na experiência religiosa corresponderia
Nos cultos observados na Igreja da Graça, “às tendências culturais da modernidade avança-
constata-se a exterioridade como um traço mar- da, centralizada sobre o direito do indivíduo à
cante dos rituais de cura. A religião, qualquer que subjetividade, inclusive em matéria de religião”.24
seja, por sua própria natureza, oscila entre dois Formadas especialmente por fiéis das cama-
pólos: o da vontade interior e o da representação das populares, o que não exclui a presença de seg-
exterior.21 Partindo dessa idéia, pode-se pensar o mentos das camadas médias, as igrejas neopente-
protestantismo histórico em comparação com o costais constituem um fenômeno religioso, em
neopentecostalismo. O protestantismo traz, no razão de seu crescimento acelerado, em número
seu âmago, uma crítica severa à representação ex- de templos e de adeptos, e de sua doutrina volta-
terior, ou seja, critica os rituais, por tornarem-se da à solução dos problemas do presente imediato.
potencialmente esvaziados de seu sentido e, con- Essas igrejas desafiam as que fazem parte do pro-
seqüentemente, serem práticas que nada acres- testantismo histórico, cuja expansão é bastante
centam à religiosidade interior. Ao longo do tem- modesta e vinculada sobretudo à transmissão da
po, o protestantismo acabou por dicotomizar tradição de geração em geração. Uma doutrina
vontade interior e representação exterior. Opon- claramente racional e ética dos protestantes his-
do-se violentamente aos ritos, como se fossem tóricos choca-se com a quebra do tradicionalis-
uma formalidade vazia de significados, ele afirma- mo neopentecostal, no sentido de adentrar a mo-
se como a religião verdadeira, porque bane os ri- dernidade25 e estabelecer uma relação clientelísti-
tuais em defesa da religião interior. No entanto, ca com os adeptos. Com o oferecimento da so-
essa postura protestante não atesta o fim dos ri- lução dos problemas cotidianos como um
tuais. Nem poderia, “pois é um erro supor que produto advindo da teologia da saúde e prosperi-
pode haver religião que seja completamente inte- dade, o neopentecostalismo transforma o fiel em
rior, sem regras, sem liturgia, sem sinais exterio- cliente.
res de estados internos”.22 Se para os fiéis da Igreja da Graça o ritual de
Se o protestantismo colocou sob suspeita cura, associado ao exorcismo, traz a marca da ex-
os antigos rituais, acabou por criar outros. O terioridade, para os presbiterianos a interioridade
anti-ritualismo protestante refere-se, na verdade, é o seu traço marcante, no que se refere à idéia de
a determinadas formas ritualísticas realizadas, pri- cura divina. Aliás, é bom lembrar que, entre os
meiramente, sob o comando dos doutores da Lei protestantes históricos, a cura é vista de forma
na história de Israel e, posteriormente, pela Igreja bastante diferenciada dos neopentecostais. Entre
Católica. Diante desse quadro, o pentecostalismo os primeiros, não pode haver ninguém com dom
e, depois, o neopentecostalismo mostram-se especial de cura intermediando a relação dos ho-
contrários ao protestantismo histórico. Há um mens com Deus, com exceção de Jesus Cristo,
resgate dos rituais pelo pentecostalismo e pelo mas todos os fiéis podem pedir a cura a Deus. Po-
neopentecostalismo por meio da inserção do que rém, a idéia de que a vontade de Deus está acima
pode ser denominado de emocionalismo religio- de qualquer desejo humano acaba por enfraque-
so, que chega ao limite da catarse. A manifestação 23 HERVIEU-LÉGER, 1997, p. 42.
de uma religiosidade emocional “bem poderia 24 Ibid., p. 42.
acompanhar o esvaziamento simbólico do uni- 25 STEIL (2000) esclarece que a modernidade concretizou-se de modo
contraditório nas sociedades latino-americanas. De um lado, o projeto
moderno não conseguiu estender o bem-estar social ao conjunto da
21 DOUGLAS, 1976. população; de outro lado, a modernidade reordenou o campo religioso,
22 Ibid., p. 80. em que diferentes formas de religiosidade convivem.

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cer a esperança de cura por meio da intervenção chamados à frente do templo pelo pastor. Nesse
divina. Assim, entre o grupo presbiteriano, não momento, uma música apocalíptica, retumbante
há um ritual relacionado especificamente à cura e e assustadora começa a ser ouvida por todos. O
a “liturgia é meramente formal e, na prática indi- pastor inicia, então, a sua oração, carregada de
vidual da visitação aos enfermos, a oração nunca emoção. O grito está sempre presente nessa ora-
significa um pedido de cura, mas expressa conso- ção de “libertação”. Enquanto isso, o volume da
lo e, às vezes, até introduz boa preparação para a música vai aumentando. A oração não é dirigida
morte”.26 somente a Deus, a fim de pedir sua intervenção
Para os presbiterianos, o Mal é conseqüên- na vida das pessoas doentes, mas também aos
cia do desvio do indivíduo em relação às coisas e “demônios”, responsáveis pelas doenças.
atitudes consideradas como padrão no universo Geralmente, o pastor dirige-se a eles como
religioso. Portanto, a responsabilidade do pecado “demônios de enfermidade”, mas sempre faz alu-
é do indivíduo, embora haja a parcela de culpa são às figuras do repertório dos cultos afro-bra-
dos demônios que o tentam para desviar-se. O sileiros, como Exu Tranca-Rua, Pombagira, Maria
mal, então, entre os protestantes históricos, está Padilha e Exu Caveira.27 Dessa forma, o grupo ne-
na interioridade do sujeito e cabe a ele arrepen- opentecostal demarca a fronteira com as religiões
der-se, purificar-se e reconciliar-se com Deus. afro-brasileiras, estabelecendo, no plano simbóli-
Especificamente no grupo neopentecostal co, o seu inimigo no mercado religioso e colo-
aqui estudado, pelo fato de o Mal ser exterior ao cando-se como capaz de liquidar o mal. O pastor
indivíduo, tanto as suas atitudes quanto as cir- “conversa” com os demônios e manda, com vee-
cunstâncias desagradáveis pelas quais ele passa – mência, eles saírem da vida daquelas pessoas. Ao
entre elas, a doença – são de responsabilidade dos mesmo tempo, obreiros e obreiras as seguram.
espíritos malignos. Para esse grupo, há demônios Quando tocados pelos obreiros, os fiéis, em ge-
responsáveis especificamente pela enfermidade, ral, começam a se retorcer, gritar e cair ao chão,
assim como existem os que respondem pelos demonstrando que realmente estão possessos.
problemas de ordem financeira ou familiar, entre Água abençoada é borrifada pelo pastor sobre
outros, e os que se apossam do corpo e da vida aqueles que se mostram possuídos.
das pessoas. O sintoma de possessão por espíri- Depois do ápice dessa “guerra espiritual”,
tos malignos está ligado a problemas constantes, em que os gritos se intensificam e a catarse acon-
que afetam o corpo dos fiéis, seus relacionamen- tece, após a expulsão dos demônios, a música se
tos ou a sua vida profissional. O exorcismo é o modifica: é tranqüila, calma e alimenta a sensação
primeiro passo para o fiel libertar-se dos seus de alívio. Os que estavam no chão levantam-se e
problemas e o pastor inicia os rituais de cura per- voltam para os seus lugares. Essas pessoas não
guntando quem se encontra doente. são vistas como perigosas, nem como estranhas.
A observação dos cultos aponta que a maio- Elas voltam aos seus lugares e tudo continua
ria das pessoas que se manifestam, descrevendo suas como antes do ritual. O pastor oferece, então,
doenças, é do gênero feminino. O pastor comen- algo mágico, possibilitando a cura de doenças que
ta cada manifestação e coloca em dúvida, com eventualmente ocorram. Saquinhos com sabão
ironia e desprezo, o poder da medicina tradicio- em pó abençoado, pasta de figo, água e óleo são
nal e de outras religiões que também têm forte oferecidos aos fiéis como “remédio divino” para
relação com a magia. Em especial as práticas po- qualquer doença. A magia é materializada ou os
pulares de cura, como a benzedura, e os rituais do 27 SANCHIS afirma o seguinte: “O mundo dos espíritos é tornado
candomblé e da umbanda são intensamente criti- presente nos cultos dramáticos de ‘libertação’ e ‘expulsão’. Não se
cados. Os fiéis que declaram estar doentes são trata, aliás, de espíritos quaisquer, mas daqueles bem conhecidos dos
fiéis candomblecistas ou umbandistas: os exus e pombagiras, transfor-
mados em demônios e chamados a manifestar-se, para serem humilha-
26 MENDONÇA, 1992, p. 50. dos e destituídos” (1997, p. 125).

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elementos materiais são magicizados, deixando como receptáculo da alma, deve ser cuidado; mas
de ser comuns para tornar-se mediadores do pro- é temporário e, por isso, deve-se dar maior aten-
cesso de cura, o que distancia ainda mais o neo- ção à alma, que guarda um caráter de eternidade.
pentecostalismo do protestantismo histórico. A corporeidade, entre o grupo presbiteriano,
No ritual de exorcismo e cura, pode-se possui um valor relativizado somente pela pre-
apreender a importância do pastor como uma es- sença da alma e, no caso dos conversos, do Espí-
pécie de sacerdote-mágico, com status privilegiado, rito Santo. Cuidar do corpo significa, para os
exatamente porque, em situações “em que as pes- presbiterianos, respeitá-lo como templo do Espí-
soas passaram a descrer na racionalidade das rito Santo.
instituições e na eficácia da religião, a magia assu- O corpo está relacionado ao futuro celestial,
me a função de fonte de todo conhecimento e da e não ao presente aqui na Terra. Esse futuro, para
conseqüente eficácia”.28 Com freqüência, as pes- os neopentecostais, é visto como distante e a sua
soas que se achavam doentes e depois curadas
representação é incapaz de produzir completa-
testemunham para toda a congregação. Uma se-
mente um alento para o sofrimento dos fiéis no
nhora, certa vez, disse que a ferida de sua perna
tempo presente. Enquanto suportar a dor e o so-
havia sumido depois de usar o sabão em pó aben-
frimento, para os presbiterianos, significa saber
çoado, sinalizando o local onde antes havia a fe-
aceitar a vontade de Deus, compreender os seus
rida.
desígnios e fortalecer a alma, para o grupo da
Certamente a eficácia da ação simbólica
Igreja da Graça, o estado de sofrimento e dor
não está sendo aqui colocada em dúvida, pois o
poder dos símbolos opera mudanças – no nível guarda relação direta com os ataques do mundo
da psicologia individual e no da vida social29 –, dos espíritos malignos. Portanto, vencer esse es-
que se complementam e reforçam o poder da efi- tado significa ganhar a guerra espiritual entre o
cácia simbólica.30 O ritual é, por excelência, uma Bem e o Mal. Analisando o tema da cura nos mo-
prática social em que os atos simbólicos são ex- vimentos cristãos de renovação religiosa – em
pressos e legitimados, pois “não somente nos aju- particular naqueles associados a correntes caris-
da a selecionar experiências para concentrar a máticas –, Augé e Herzlich demonstram que,
atenção. Também é criativo quanto ao nível de nesses movimentos, a salvação não está mais liga-
desempenho. Pois um símbolo exterior pode da à espera de vida plena em outro mundo,32 mas
misteriosamente ajudar a coordenação do cére- que a busca da cura abarca outros aspectos da re-
bro e do corpo”.31 alização do sujeito, condizente com a cultura mo-
derna de valorização do indivíduo.
ENTRE O CORPO E A ALMA, ENTRE A Ainda outra representação sobre o corpo
TERRA E O CÉU pode ser analisada. Entre os presbiterianos, o cor-
A importância do ritual de cura nos cultos po, desvalorizado pelo seu caráter mortal em
provoca, ainda, outra questão: a da velha dialética contraposição à alma imortal, é também o meio
entre corpo e alma. O oferecimento de soluções pelo qual o pecado se manifesta. Por definição, o
para os problemas do tempo presente, entre esse corpo ou a carne consiste, para os protestantes
grupo de neopentecostais, vincula-se ao valor históricos, em algo ruim e sujeito ao pecado. So-
dado à cura do corpo. Ao contrário, os protes- mente uma alma purificada mostra-se capaz de
tantes históricos têm como centralidade em sua tornar o corpo bom, produtor de atos que agra-
doutrina a salvação da alma. Para eles, o corpo, dem a divindade. Não por acaso há regras tácitas,
e mesmo explícitas, de como o fiel deve lidar, por
28 MENDONÇA, 1992, p. 5.
29
exemplo, com a sua sexualidade.
DOUGLAS, 1976.
30 LÉVI-STRAUSS, 1970.
31 DOUGLAS, 1976, p. 81. 32 AUGÉ, M. & HERZLICH, C. apud HERVIEU-LÉGER, 1997.

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Já para os neopentecostais, por meio do E Deus pensou: Opa, esse aí [Davi] é um


corpo é que se experimentam os prazeres. Claro vaso bom, ele não tem medo, ele tem fu-
que há padrões acerca deles, mas que parecem turo, ele não é um derrotado! Deus não
trouxe você aqui para entrar e sair da mes-
bem mais flexíveis do que os dos protestantes
ma forma. Ele quer curar, libertar das
históricos. Depois da purificação ritual feita pelo drogas, para dar prosperidade. [...] Por
exorcismo, “O corpo então se torna um lugar isso que a consulta, o remédio não está
privilegiado, o ponto de encontro entre o ho- funcionando, porque o problema não é
mem e o transcendente, seja esse sagrado ‘bom’ material, é espiritual, é um espírito de en-
ou ‘mau’”.33 Assim, o repúdio ao corpo não está fermidade.34
presente entre os neopentecostais. No entanto, o
O pastor continua: “O meu corpo tem
prazer que pode ser vivenciado pelo corpo sujei-
cura, meu marido tem jeito, a minha casa tem jei-
ta-se a restrições claras, que proíbem o homosse-
to [...]. Para Ele tudo tem jeito. Se a dor é no es-
xualismo, a prostituição, a utilização de drogas,
tômago, eu posso colocar minha mão sobre ele e
inclusive o uso de cigarro, e o excesso de bebidas
dizer: ‘Satanás, sai agora, eu não admito mais vi-
alcoólicas. Aliás, para esse grupo, é pelo corpo
ver com essa dor!’”. Em seguida, pergunta:
que a alma experimenta os prazeres. É aqui, na “Quem foi ao médico?”. Uma senhora manifes-
Terra, que o que incomoda o corpo deve ser “ex- ta-se, dizendo ter problema de coluna. O pastor
pulso”, a fim de o fiel usufruir o que é prazeroso. toma novamente a palavra: “O que o médico dis-
A dicotomia entre corpo e alma, fortemen- se? Inflamação? Qual o nome que deram lá? Hé-
te marcada na doutrina do protestantismo ascé- rnia de disco? É isso que o médico vai falar! Mas
tico, é substituída, entre os neopentecostais, por Jesus olhou para aquela mulher que estava encur-
uma complementaridade que anseia o bem-estar vada e disse: ‘Espírito de enfermidade’. [...] Bas-
e uma vida presente que lhes dê acesso a uma si- tou uma ordem de Jesus e o Diabo foi embora”.35
tuação melhor. Nas representações dos neopen- Depois disso, o pastor manda que todos fi-
tecostais, um corpo doente é igual a uma alma quem em pé para o momento da oração, cujo
perturbada pelos espíritos malignos, ao passo teor é o seguinte:
que, para os presbiterianos, um corpo doente é
Sai, em nome de Jesus, doença que a me-
diferente de uma alma doente. Uma alma plena
dicina chama de faringe, traquéia, [sic.]
de Deus suporta um corpo doente. A doença é
em nome de Jesus, pegue esse mal e aban-
uma provação de Deus e passar por ela, de forma done o corpo dessa pessoa agora. Traba-
a aceitar a vontade divina, significa ser vencedor, lho de macumbaria sai em nome de Jesus.
mesmo não havendo cura, mesmo ocorrendo a [...] Sai, sai, em nome de Jesus. Diga: “Es-
morte. tou livre de todo o mal. O milagre me
Pode-se ilustrar aqui, com o fragmento de pertence, eu creio nessa vitória em nome
do Deus pai, do Deus filho e do Deus Es-
um culto do grupo da Igreja da Graça, as ques-
pírito Santo”.36
tões até aqui abordadas. No momento ritual de
cura, o pastor diz que fará uma “oração forte” e O ato simbólico e a explicação para o fra-
irá ungir o fiel com óleo. Depois, lê um trecho da casso do tratamento médico tendo em vista a
Bíblia sobre Davi e a unção que este recebera do cura do corpo estão aqui presentes para que os fiéis
profeta Samuel, vindo de Deus. Ao contar a his- encontrem uma maneira de expressar suas dores
tória de Davi e Golias, e da luta de Davi contra o e sofrimentos por meio da catarse, que lhes con-
leão, o pastor faz uma relação do texto bíblico
34 Conforme registro efetuado pelos autores deste artigo, durante o
com a vida dos fiéis, ao afirmar:
culto.
35 Idem.
33 CAMPOS, 1996, p. 101. 36 Idem.

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cede alívio das tensões e a conseqüente sensação exteriores a ele. Pela mediação do pastor, nos cul-
de bem-estar. A matéria e o efêmero são ampla- tos de cura e exorcismo, os fiéis estão certos de
mente valorizados. Expulso o mal, palmas, gestos ter acesso ao sagrado e que o mal, fruto de forças
e cantos fazem parte da finalização do ritual. É o espirituais exteriores a eles, pode ser expulso de
corpo em movimento, atestando que está solto seus corpos.
para usufruir o bem-estar, a libertação do sofri- Se a Igreja da Graça, em um processo de
mento, ao menos naquele espaço temporal da sincretismo – comum a outras religiões da socie-
igreja. dade brasileira –, incorpora algumas característi-
cas do catolicismo popular, ocorre o inverso com
CONSIDERAÇÕES FINAIS as religiões afro-brasileiras, com as quais ela entra
Com base neste trabalho etnográfico,
em confronto, atribuindo-lhes um potencial pro-
pode-se considerar que as práticas do grupo da
fundamente negativo, no plano da prática religiosa.
Igreja da Graça apresentam-se como uma pro-
Essa desqualificação pretende colocar a Igreja da
posta religiosa bastante eficaz, que possibilita aos
Graça em um plano de superioridade diante dos
fiéis de diferentes segmentos sociais da popula-
ção enfrentar adversidades do cotidiano e encon- cultos de raízes africanas, investindo-a da capaci-
trar respostas práticas – inclusive referentes a dade divina de exorcizar o Mal e de oferecer a
questões financeiras – e simbólicas. No entanto, seus fiéis a eliminação de seus problemas para que
é importante deixar claro que a opção religiosa eles vivam melhor aqui e agora. Desse modo, o
por essa igreja não está calcada somente na reso- grupo da Igreja da Graça desloca para o presente
lução de problemas de ordem econômica. A dou- concreto do cotidiano a idéia de uma vida plena
trina da Igreja da Graça cria condições para os fi- no futuro celestial, em contraposição à forte re-
éis estabelecerem uma relação sensível com a es- presentação de futuro no céu, considerada como
fera de um sagrado mágico e encontrarem signi- perspectiva de vida melhor do que a existência
ficado para as vicissitudes cotidianas cujas causas mundana, que nutre as expectativas do grupo
independem da vontade do indivíduo, pois são presbiteriano.

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Dados dos autores


ANA KEILA PINEZI
Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em
Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e
Letras de Ribeirão Preto/Universidade de São Paulo (USP).
GERALDO ROMANELLI
Professor assistente doutor da Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto/
Universidade de São Paulo (USP).

Recebimento artigo: 18/fev./03


Consultoria: 14/abr./03 a 30/jun./03
Aprovado: 22/jul./03
Pesquisa realizada com apoio da Fapesp.

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Religião, Cultura & Gênero


Religion, Culture &
Gender
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Hacia una Educación


Teológica Intercultural*
ON THE WAY OF AN INTERCULTURAL
THEOLOGICAL EDUCATION
Resumen En la Comunidad de Educación Teológica Ecuménica Latinoamericana y
Caribeña se ha iniciado un debate sobre teología y pedagogía. En estos últimos años,
la teología latinoamericana de la liberación ha explorado y encontrado nuevas expre-
siones ligadas con nuevas y nuevos actores y experimenta ciertas dificultades en rela-
cionarlos entre sí. Por otra parte esos avances, con muy pocas excepciones, no se vi-
sibilizan todavía ni en los contenidos ni menos en la metodología de la teología que
se enseña en nuestros centros de educación teológica. El autor propone que la mejor
forma de relacionar entre sí los nuevos sujetos de la teología y, además, de entablar un
verdadero diálogo entre teología liberadora y pedagogía popular pasa por la construc-
ción de un paradigma común y fundante: el paradigma intercultural. Este paradigma,
predominantemente filosófico, permite redimensionar la tarea de la teología, de la
educación teológica y de la educación popular. Efectivamente esta ha avanzado mu-
cho en el camino de la negociación cultural, método directamente ligado con el pa-
radigma mencionado.

Palabras clave INTERCULTURALIDAD – PARADIGMA INTERCULTURAL – EDU-


CACIÓN TEOLÓGICA – DIÁLOGO TEOLOGÍA PEDAGOGÍA – NEGOCIACIÓN
CULTURAL. MATTHIAS
PREISWERK
Instituto Superior Ecumênico
Abstract In the Latin American and Caribbean Community of Ecumenical Theolo- Andino de Teologia (ISEAT,
gical Education, a debate on Theology and Pedagogy has begun. In these last years, Bolívia)
the Latin American Liberation Theology has explored and found new expressions re- maticar@ceibo.entelnet.bo
lated to new actors and has experienced certain difficulties to bring them into relation.
On the other hand, these advances, with few exceptions, are not being practiced yet,
both in the contents and in the methodology of Theology which is taught in our the-
ological education centers. The author proposes that the best way to connect Theo-
logy’s new subjects and also to start a real dialogue between a liberating Theology and
popular Pedagogy involves the construction of a common and founding paradigm:
the intercultural paradigm. Such predominantly philosophical paradigm allows the re-
establishment of the tasks of Theology, of theological education and of popular edu-
cation. It has really advanced a lot on the way of cultural negotiation, a method that
is directly linked to the referred paradigm.

Keywords INTERCULTURALITY – INTERCULTURAL PARADIGM – THEOLOGICAL


EDUCATION –THEOLOGY-PEDAGOGY DIALOGUE – CULTURAL NEGOCIATION.

* Apresentado em reunião da Comunidade Teológica Latino-Americana, em jul./2003, na Bolívia, o pre-

sente trabalho tem a perspectiva de iniciar o diálogo sobre tal discussão e dar-lhe prosseguimento, com
base nos comentários que possam ser gerados com sua leitura.

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a
VARIAS PUERTAS DE ENTRADA
. “¿Con quién compararé a los hombres de esta gene-
ración? Y ¿a quién se parecen? Se parecen a los chi-
quillos que están sentados en la plaza y se gritan unos
a otros diciendo: “Les hemos tocado la flauta y uste-
des no bailaron; les hemos tocado canciones tristes y
ustedes no lloraron”. Lucas 7: 31-32
b. Los zorros de Arguedas.1
c. Columpiarse en La Paz de Dorothee Sölle.2

I. INTRODUCCIÓN
La educación teológica “realmente existente” tiene una patología
seria que caricaturaría así: sus dos componentes, la pedagogía y la teolo-
gía, parecen sufrir de alergia recíproca. Cuando se encuentran tienden a
neutralizarse y en última instancia a eliminarse. Muchos teólogos sonríen
prepotentemente cuando leen o analizan los contenidos teológicos im-
partidos en nuestras instituciones. Casi todos los pedagogos que mere-
cen este nombre llorarían si supieran cómo estamos enseñando nuestras
materias. Parece que, cuando se casan institucionalmente la teología y la
pedagogía, no logran un matrimonio muy feliz. Da la impresión que lo
mejor o lo más reconocido de la producción teológica no se elabora en
nuestros “centros de formación” (sino en la calle, en la comunidad cris-
tiana y en el escritorio de la o del teólogo) y que, cuando se otorga algún
lugar a la pedagogía en este proceso es, cuando mucho, el de un instru-
mento de reproducción de verdades germinadas en otras tierras.
Para salir de debates entre tuertos y ciegos propongo en este aporte
descentrar el debate entre teología y pedagogía acudiendo a un terreno
que incluye ambas disciplinas y que les permite revisar y recomponer sus
relaciones sobre bases nuevas.
Esta reflexión sale de una práctica educativa y teológica en un es-
pacio intercultural como es el Instituto Superior Ecuménico Andino de
Teología (ISEAT) y asume algo de la dinámica de reflexión (más que de ac-
ción educativa) vivida en los últimos años de la Comunidad de Educación
Teológica Ecuménica Latinoamericana y Caribeña (CETELA).
Me atrevo a pensar que las relaciones entre teología y pedagogía re-
quieren de un debate interdisciplinario mayor, más allá de la práctica y de
la reflexión de la educación teológica aunque ésta sea un terreno de ve-
rificación muy exigente. A su vez, las relaciones entre tradiciones teoló-
gicas, pastorales y eclesiales necesitan ser abarcadas en un debate que vaya
más allá de lo ecuménico entendido como interconfesional o interdeno-
minacional. De igual manera para el diálogo interreligioso: este requiere
de condiciones de posibilidad que rebasan el solo mundo religioso. La hi-

1 ORTEGA, 1999.
2 SÖLLE, 1993, p. 118-119.

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pótesis que sostiene las reflexiones que siguen es los horizontes más amplios y significativos y el
que el paradigma de la interculturalidad puede quehacer cotidiano, tanto pedagógico como teo-
ofrecer un marco teórico práctico para sentar el lógico de las instancias que lo conforman.
diálogo entre pedagogía y teología, entre diversas Lo que sigue no tiene la pretensión de re-
expresiones de la fe cristiana o entre religiones solver el problema pero de poner un granito de
sobre nuevas bases. arena.
Mi reflexión está inspirada en el proceso de
las jornadas teológicas de CETELA.3 Me referiré a II. EL PARADIGMA INTERCULTURAL4
algunos de los breves aportes más pedagógicos No se puede hablar de paradigma intercul-
que tuve la suerte de hacer en las últimas Jornadas tural sin explicitar algo sobre las culturas, enten-
de Cumbayá, Ecuador en el año 2000. Insistía en- didas precisamente en plural. Se trata apenas de
tonces sobre el valor metodológico de esas jor- una aclaración previa y no de una nueva defini-
nadas al dar la posibilidad que se expresaran las ción.
teologías de los diferentes rostros de Abya-Yala Por culturas entenderé unas matrices diná-
(feminista, indígena, afroamericano, campesino, micas y complejas de producción de imaginación,
pentecostal). Mencionaba que desde Matanzas de creencia, de comprensión, de interpretación y
(Cuba) con una pedagogía estrictamente deduc- de acción que las personas y los grupos sociales
tiva y centrada sobre “grandes teólogos” se había construyen e interiorizan para dar sentido y ra-
pasado a un enfoque unilateralmente inductivo zón a su vida y a su comunidad en sus contextos
en Cumbayá. Sugería finalmente que siguiendo propios.
los pasos de la Educación Popular se intentara pa- De esta afirmación se desprenden algunas
sar de un diálogo de saberes a una verdadera ne- características de las culturas:
gociación cultural en la que las sospechas mutuas • son vivas,5 abiertas6 y móviles;
pudieran ser explicitadas y trabajadas. • son plurales y heterogéneas;7
Con un poco de distancia habría que pro- • están interrelacionadas entre sí;
fundizar el porqué y el cómo del desfase entre los
• condicionan pero no pueden absorber el
“rostros”, sus teologías y las mismas instituciones
espacio biográfico de la persona;
de educación teológica. Estas últimas parecían no
• son asimétricas en sus relaciones y vehi-
tener rostro sino una mala cara que en todo caso
culan capitales simbólicos desiguales;
miraba en otra dirección. Esta polémica solamen-
• están contextualizadas y por lo tanto
te para hacer una última observación introducto-
atravesadas por intereses y por conflic-
ria. Considero que las jornadas de CETELA hasta
tos de poder;
el momento no han superado un divorcio (peli-
• están polarizadas ideológicamente: en
groso para una red de instituciones de educación
ellas conviven tradición de opresión y de
teológica) entre la exploración teológica abierta a
liberación;
3 De las de San Jerónimo, Medellín en 1995, me inspira particular-
4 Los apuntes que siguen se deben principalmente a la lectura de
mente el aporte de PERESSON, 1996, p. 267-298. De las de Matanzas
en 1997, recuerdo las 13 tesis de Enrique Dussel y particularmente la FORNET-BETANCOURT, 1994, p. 124. Artículos “Supuestos
duodécima: “Desde la teología de la liberación a una meta-teología de filosóficos del diálogo intercultural” (VALLESCAR, 2000;
las diversas teologías de la liberación”. “La TL2 tiene entonces como ABDALLAH-PRETCEILLE, 1999, p. 126).
5 “Las culturas son tradiciones vivas presentes aquí y ahora (…) len-
una meta-teología o teología de la liberación fundamental, y una plura-
lidad de discursos específicos. La tendencia de éstos es a absolutizar guas vivas que transitan” (VALLESCAR, 2000, p. 336).
cada uno de ellos. Es necesario tender a comprender que en cada una 6 “Cada cultura es un pluriverso propio, abierto, comunicable y transi-

de esas teologías de la liberación específicas se encuentran, en planos table; tiene reservas de humanidad que ella misma desconoce” (ibid., p.
de profundidad, todas las otras. La TL2 deberá aprender el ejercicio de 336).
una razón teológica transversal con la que se profundiza en la diversi- 7 “Siempre han existido en el interior de toda tradición cultural diver-
dad (la mujer, el pobre, la nación periférica, las generaciones futuras, la sas tradiciones, grandes y pequeñas, en conflicto. La imagen homoge-
ecología, la raza discriminada etc.: el doulos de Flp. 2:7), la universali- neizadora de la cultura es un mito.” “En sociedades multiculturales se
dad de la liberación del Reino de Dios, la Jerusalén celeste ataviada manifiestan como universos fragmentados, provocativos e híbridos”
como la esposa del Cordero” (DUQUE, 1997, p. 37-38). (ibid., p. 336).

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• son acción y comunicación. 1. La Interculturalidad se da en Contextos


En la palabra interculturalidad, el prefijo in- de Poder y de Exclusión
ter indica una relación, una consideración de las El paradigma de la interculturalidad se
relaciones y acciones entre varios grupos, perso- construye a partir del reconocimiento de diferen-
nas o identidades. Inter sugiere necesariamente cias interpretadas desde contextos específicos
también diferencias. Hablar de interculturalidad que no son asépticos sino en los cuales las perso-
es asumir que esos grupos personas o identidades nas, los grupos sociales y las culturas no tienen
interactúan es decir se influencian mutuamente los mismos intereses ni las mismas oportunida-
aunque de manera desigual en el caso de relacio- des para vivir, desarrollarse, comunicar etc. Las
nes asimétricas por motivos económicos, políti- relaciones económicas, sociales, políticas y cultu-
cos, sociales, de clase, de género, de edad etc. rales son asimétricas y no se puede postular la in-
El prefijo inter remite tanto a la manera de terculturalidad al margen de esa realidad. Dicho
ver al otro, como a la manera de verse a sí mismo. de otra manera las culturas sean dominantes o
En el lenguaje común se utiliza muchas ve- emergentes no entran al diálogo en las mismas
ces el adjetivo intercultural en un sentido lato y condiciones. Aclarar esas condiciones es por lo
débil y como sinónimo de multicultural. Así se tanto el primer paso de un diálogo intercultural.
queda en un nivel descriptivo y a veces determi- El diálogo cultural, matriz del paradigma
nista, el mismo que ve a la cultura como un con- intercultural, implica la creación de condiciones
junto de rasgos internos autónomos del contexto de igualdades entre las partes que comunican.9 Es
y de las relaciones con los otros; la cultura vista lo que plantea Panikkar cuando exige a las cultu-
como orden, como sistema, como estructura ras dominantes que empiecen por un “desarme
homogénea. cultural” es decir que estén dispuestas a cuestio-
Por todo ello, interculturalidad se distingue nar su poder, a abandonar por ejemplo varias de
de multi o pluriculturalidad,8 no se limita a reco- las creencias y de los mitos sobre los que la mo-
nocer las diferencias, a compararlas, a coleccio- dernidad ha construido su poder.10
narlas, sino que las radicaliza, les da valor, las El diálogo entre teologías (dentro como
pone en juego y las ubica en perspectiva. fuera del cristianismo) requiere también la cons-
Proponemos algunas características de la trucción de un espacio de igualdad y de instru-
interculturalidad considerada como paradigma. mentos diversificados. La teología cristiana no
No la presentamos en forma ni exhaustiva, ni de- puede dialogar así no más con una teología andi-
sarrollada. Considerarlas independientemente las na, oral, no sistematizada, perseguida durante si-
unas de las otras sería ajeno al modo de pensar in- glos etc. Nuestros centros de educación teológica
tercultural. no han viabilizado todavía esos diálogos.
Para varias de esas características esbozare- En las acciones educativas, educandos y
mos apenas unos ecos (no unas aplicaciones) que educadores no se presentan en una relación edu-
resuenan dentro del quehacer teológico o peda- cativa con igualdad de posibilidad. La asimetría
gógico en general. está presente entre ellos lo que no quiere decir
que impida toda comunicación.
8 El concepto de multiculturalidad (o pluriculturalidad) se refiere
sobre todo a una descripción de las diferencias culturales analizadas en 9 “Hay que darse cuenta de que el diálogo, del que tanto se presume, es

forma interna a cada cultura y aislada de otras culturas. Es un término absolutamente imposible si no se dan condiciones de igualdad. Es
amplio que integra de alguna manera a los siguientes porque plantea la incluso una afrenta hablar de diálogo a quien se está muriendo de ham-
condición previa a cualquier tipo de relaciones entre culturas: la exis- bre, a quien se le ha despojado de su dignidad humana o a quien ni
tencia de una variedad de ellas. La transculturalidad se refiere a las evo- siquiera sabe de qué estamos hablando, porque su sufrimiento o su
luciones o modificaciones que sufre una cultura en el transcurso del diferente cultura le incapacitan para ello” (PANIKKAR, 1993, p. 62).
tiempo. La inter-transculturalidad considera tanto los cambios 10 El diálogo entre culturas implica entonces la desmitificación de los
diacrónicos de una determinada cultura (transculturalidad) como las mitos de la modernidad como entre otros, para Panikkar, la evolución,
interacciones sincrónicas entre esa cultura y otras presentes aquí y el progreso, la ciencia, la tecnología, la democracia, el mercado econó-
ahora (interculturalidad). mico mundial, el desarrollo etc.

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2. La Interculturalidad Brota de y se Abre cer, tarea de parturienta, responsabilidad de la


a lo Inédito educación cualquiera sea la concepción de ese sa-
Lo inédito no es necesariamente lo nuevo; ber por nacer (ya constituido, por reminiscencia,
puede ser lo ancestral, esa memoria cargada de por construirse etc.)
sufrimiento y de esperanza y que todavía no en-
cuentra causes para comunicarse. 3. Dimensión Relacional y Multipolar
El enfoque intercultural quiere pensar y dar La dimensión relacional y multipolar del
forma prioritariamente a culturas que no logran paradigma intercultural parte de la dialéctica
todavía explicitarse, hacerse presente en la arena identidad/alteridad a condición de no considerar
de los sistemas de pensamiento, de las creencias ambos términos como esencias anteriores a la re-
organizadas, de las propuestas políticas, de las es- lación entre ambos.
tructuras sociales, de los aparatos religiosos etc. “Las diferencias culturales tienen sentido
Las culturas, en particular las culturas populares, solamente en un contexto y dentro de una rela-
a pesar de su enorme potencial de resistencia no ción. El enfoque intercultural se define desde un
logran siempre consolidarse ni comunicarse. Son contexto relacional y no desde una lógica de atri-
itinerantes. bución que utiliza la cultura para justificar y ex-
El enfoque intercultural es un proceso abierto plicar situaciones (…). Los rasgos culturales son
a todas las culturas y a todas las experiencias de la menos signos que síntomas.”12
humanidad “un proceso eminentemente poli- Esta afirmación incluye una tensión. Por
fónico donde se consigue la sintonía y armonía una parte la alteridad es previa a la relación.13 Es
de las diversas voces por el continuo contraste con decir que el otro está comprendido como otro y
el otro y el continuo aprender de sus opiniones y no por comparación con lo mismo tal como lo
experiencias”.11 hace la lógica de la diferencia que generalmente
Esta característica de la interculturalidad no busca cuantificar la alteridad sobre una escala et-
es ajena al lenguaje de la fe cristiana y de la teo- nocentrada. Por otra parte, las características cul-
logía. Lo inédito es una forma precisa para expre- turales dependen de las relaciones establecidas o
sar la tensión constitutiva de la existencia cristia- preestablecidas entre dichas culturas. No son las
na y eclesial entre el ya de la revelación en Cristo características que definen a las relaciones. Por
y el todavía no del Reino. La teología está cons- ejemplo quienes repiten los estereotipos racistas
tantemente frente al desafío de discernir y señalar
(contra indios, negros, judíos, homosexuales
lo inédito del proyecto de Jesús en medio de tan-
etc.) no lo hacen desde su relación y su experien-
tas concreciones históricas, sociales, políticas
cia con esos grupos sino que viven sus relaciones
que, a pesar de llevar su nombre, lo desmienten.
en función de prejuicios no verificados que con-
De ahí el carácter provisorio de cualquier teología
dicionan y dictan una actitud distorsionada hacia
que corre siempre el riesgo de aferrarse a lo co-
ese otro.
nocido y a lo seguro en vez de apostar por lo nue-
vo o por lo antiguo no advenido todavía. El paradigma de la interculturalidad renun-
Una teología abierta no deja de representar cia al reduccionismo y asume varias lecturas e in-
un enorme desafío: abierta a otras teologías, a terpretaciones de la diversidad.14
otros contenidos, a otros actores etc.
12 ABDALLAH-PRETCEILLE, 1999, p. 61 [traducción de M.P.].
La educación en la medida en que no es so- 13 “La alteridad es previa a la relación y no posterior. La lógica de la
lamente reproducción sino también producción diferencia trata de cuantificar la alteridad fijándola mientras que el dis-
curso intercultural se ocupa de las interacciones en el sentido de un
de conocimientos y de saberes, está frente a un enfoque comunicacional de la persona” (ibid., p. 55).
desafío semejante: dar forma a lo que está por na- 14 “La interpretación de lo propio y del otro va brotando como resul-
tado de la interpelación común, mutua, donde la voz de cada uno es
percibida al mismo tiempo como un modelo de interpretación tam-
11 FORNET-BETANCOURT, 1994, p. 12-13. bién posible” (FORNET-BETANCOURT, 1994, p. 13).

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La dialéctica identidad/alteridad es central Piaget escribiendo un artículo justo des-


en teología porque el otro se vuelve también pués de la firma de la Declaración de los Dere-
Otro y es precisamente en la relación con ese chos Humanos retoma el concepto para indicar
Otro, hecho semejante a mi, que encuentro mi que la capacidad de descentramiento que aparece
identidad. en una determinada etapa del desarrollo de la per-
En pedagogía, la relación educativa está sona no ha sido adquirida todavía por la mayor
marcada por esa dialéctica y por la tentación de parte de los grupos sociales y de los Estados que
hacer que el otro se vuelva como yo o que se for- se mantienen en posturas etnocéntricas.
talezca solo sin mi intervención. Sería muy interesante hacer una lectura y
En las instituciones educativas, el educando una hermenéutica bíblica desde la perspectiva del
está considerado muchas veces en función de ca- descentramiento. Abundan los ejemplos como el
racterísticas establecidas previamente, fuera o de la parábola del Buen Samaritano con la terrible
dentro del ámbito de la institución. Trae consigo pregunta descentradora y en este caso acusatoria:
una imagen y unas características sociales ajenas ¿Cuál fue el prójimo del hombre asaltado? (Lu-
al mundo escolar (condición social, etnia, identi- cas 10:36).
dad religiosa, sexo etc.). Pero hay rasgos no me- En el Antiguo Testamento es interesante
nos determinantes que se construyen dentro de comparar los discursos xenófobos sobre los ex-
la institución: su recorrido académico, su “con- tranjeros y contrastarlos con la visión de los israeli-
ducta”, los conflictos por los que ha atravesado tas después de que hayan vivido la condición del
etc., rasgos que lo marcan y condicionan su situa- extranjero en tiempo del Exilio.17
ción.15 En teología cristiana el descentramiento tie-
ne mucha resonancia: entre muchas se reemplaza
4. Racionalidad Descentrada la lógica del mérito y de la ley por la lógica del
La dimensión relacional y multipolar ante- don y de la gracia.
rior implica que el paradigma intercultural expre-
sa una dinámica descentrada, la misma que valora 5. Racionalidad Intersubjetiva
el ámbito cultural, que no lo sacraliza y que está El paradigma intercultural confronta diver-
también dispuesta a criticarlo. sos sujetos y los invita a comunicar desde sus di-
Para el otro, el diferente soy yo; o como ferencias. “Es una racionalidad dialógica porque
dice Vallescar, “El otro no se comprende a sí mis- considera la realidad y la existencia humana como
mo como otro, más aún, el otro, para la otra cul- lugares de encuentro sorpresivo, nunca acabado,
tura, somos nosotros”.16 ni tematizado totalmente. Por eso opera a partir
De manera impresionista recordamos dos de un ‘duólogo’ entre dos ‘tú’ – ambos fuentes de
ejemplos conocidos para ilustrar lo que es el des- conocimiento – pero abierto a cada una de las
centramiento. El primero viene de las investiga- personas gramaticales, inclusive al ello-cos-
ciones de Piaget quién pregunta a un niño de 7 mos.”18
años cuántos hermanos tiene él. El niño contesta: El paradigma intercultural implica la posi-
Tengo un hermano. Se le pregunta después. Y tu bilidad del diálogo basado en la libertad humana
hermano, ¿cuántos hermanos tiene? A lo que considerada como invariante antropológico. Ha-
contesta el chico: “No, él no tiene ningún her- blar de invariante antropológico no es lo mismo
mano”. que hablar de invariantes culturales; estos últimos
están invocados a menudo cuando una cultura
15 Cf. “Pigmalión en la escuela”. Investigación realizada en los EUA en dominante quiere imponer su dominio sobre otra
las que se demuestra cómo la información que recibe un docente sobre pretendiendo que ésta ya tiene las mismas carac-
un alumno va a determinar y condicionar la relación que el tendrá des-
pués con ese alumno que llega con la etiqueta de “brillante”, “conflic-
tivo” etc. 17 Comparar, por ejemplo, Dt. 23:4-7 con Ex. 23:9.
16 VALLESCAR, 2000, p. 399. 18 VALLESCAR, 2000.

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terísticas que ella. En este caso se habla de supra- molde cultural de su generación, clase, etnia, ge-
culturalidad para camuflar un monoculturalismo. neración etc.
El culturalismo (entendido como un siste-
6. Racionalidad Interdependiente
ma de pensamiento que quiere explicar todo a
partir de la cultura entendida principalmente El paradigma intercultural descansa sobre
como un conjunto de rasgos distintivos) corre el una racionalidad que rebasa ampliamente el racio-
nalismo vigente y dominante de la modernidad eu-
riesgo de hacer ver al otro en su total singulari-
ropea.
dad, subrayando rasgos o características escogi-
das arbitrariamente. Del otro lado, abandonar Es una racionalidad interindependiente,
toda perspectiva cultural lleva a ver al otro en su es decir es una razón que se plantea la rea-
absoluta universalidad subrayando constantes an- lidad de manera integral y sabe que ésta se
tropológicas que se vuelven desarraigadas de su encuentra tejida por relaciones complejas,
historia y contexto. La relación con el otro im- que conllevan niveles distintos de profun-
plica comunicación e intercambio. didad… Esto significa admitir en filosofía
una triple dimensión: la de lo pensado (lo-
La alteridad, como relación y no como
gos), lo impensado (mitos) y lo impensa-
esencia se enmarca, tanto como la singularidad ble (pneuma). Lo cual permite reconocer
dentro de la universalidad.19 un espacio de libertad en el ser y que la ra-
El paradigma intercultural implica una racio- cionalidad no lo es todo en el hombre, ni
nalidad intersubjetiva que busca una nueva visión de siquiera su elemento más distintivo. De
la universalidad no en torno a una pretendida uni- ahí que apoye de manera decisiva su im-
dad sino alrededor de la “solidaridad consecuente plicación e interacción con los demás –
entre todos los universos que componen nuestro principio de intersubjetividad – Además
mundo”.20 Tiene una dimensión profundamente es una racionalidad que sólo nace en qui-
en no se siente autosuficiente, ni cree po-
ética.
der comprender y alcanzarlo todo por su
Esta racionalidad desafía a los discursos teo- propia cuenta.21
lógicos que corren siempre el riesgo de conside-
rar a sus productores y a sus destinatarios aleja- En este sentido es una racionalidad vital,
dos de su contexto e insertos dentro de una es- narrativa y sentiente. Mario Peressón, en el artí-
pecie de “condición humana” alejada de todo culo ya mencionado, habla de una racionalidad
condicionamiento histórico o cultural, de univer- plural que integra “la racionalidad experiencial y
salismo ingenuo cuando no es conquistador y co- su expresión testimonial-narrativa; la racionali-
lonial. dad simbólica, la racionalidad sapiencial”.22 Junto
La educación también está siempre entre con el equipo de teología de Dimensión Educa-
esos polos que consisten en considerar al educan- tiva en Colombia llevaron a cabo muchas inves-
do como un destinatario vacío, autónomo, virgen tigaciones y eventos formativos a partir de esas
o al contrario condicionado y encerrado en el categorías, las mismas que están reflejadas en sen-
das publicaciones.
19 “La alteridad descansa sobre el principio de universalidad. Se trata de La teología cristiana sigue pagando un tri-
encontrar un equilibrio entre una total singularidad del otro y su
inscripción en una total universalidad. No se puede conocer al otro si buto muy caro a una racionalidad, mejor dicho a
se le atribuye autoritariamente las características de un grupo cultural un racionalismo marcado de positivismo e inca-
definido hipotéticamente hasta arbitrariamente. No se puede conocer
al otro sin comunicar, sin intercambiar sin darle la posibilidad de paz de asumir otras facetas de la misma razón hu-
expresarse como sujeto. El objetivo es aprender el encuentro y no mana en la línea de Vallescar. Las teologías femi-
aprender la cultura del otro; aprender a reconocer en el otro un sujeto
singular y un sujeto universal” (ABDALLAH-PRETCEILLE, 1999,
p. 57-58). 21 VALLESCAR, 2000, p. 342.
20 FORNET-BETANCOURT, 1994, p. 14. 22 PERESSÓN, 1996, p. 296.

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nistas, enriqueciendo aún la perspectiva de Valles- de un producto cultural latinoamericano que ha


car, hablan de una racionalidad del cuerpo. logrado niveles muy significativos de interdisci-
Se ha trabajado también mucho el paradig- plinariedad, gracias a su claridad metodológica y
ma del cuerpo o de la corporeidad en pedagogía. epistemológica y su capacidad de superar la imi-
Insisto en que no se trata de suavizar o tación y la repetición respecto a otras teologías.
completar la razón o la racionalidad logocéntrica La teología latinoamericana ha logrado transfor-
por unas “sensibilidades” más sensuales o espiri- mar su propia racionalidad e introducir cambios
tuales, sino de afirmar y construir su integralidad en la teología gracias al trabajo interdisciplinario
material, lócia, mítica, pneumática y somática. interactuando con las ciencias sociales y abrién-
dose a la poesía y a la literatura popular particu-
7. Racionalidad Interdisciplinaria larmente. Ilustra la transformación de la teología
Si la interculturalidad asume como condición también a partir de su capacidad de tomar en
de partida la relación y la toma en cuenta de di- cuenta la diversidad cultural y religiosa de Amé-
versas perspectivas, de distintos tipos de análisis, rica Latina mediante la teología india y la teología
con instrumentos diferentes etc., esto implica afroamericana.
una racionalidad interdisciplinaria es decir capaz La teología latinoamericana “se cualifica
de pensar a partir de diversos enfoques y discipli- justo como teología que, por hundir sus raíces en
nas del saber. Para que esto sea posible se puede un suelo intercultural e interreligioso, no puede
extrapolar a las relaciones entre ciencias o disci- ya sino expresarse en formas plurales: teología in-
plinas lo que se ha dicho en cuanto a las relacio- dia, teología afroamericana, etc.”.24
nes humanas y lo que se tendrá que decir de las Fornet plantea la necesidad de un descen-
relaciones sociales. tramiento para la filosofía intercultural latinoa-
Según Fornet-Betancourt, la interdiscipli- mericana con unas exigencias que, a pesar de los
nariedad requiere por lo menos lo siguiente: que avances ya realizados valen, según mi punto de
cada disciplina entre en una dinámica de “consul- vista, para la teología: “Este programa conlleva un
ta” y demuestre al mismo tiempo su capacidad de doble descentramiento de la filosofía: descentra-
“exponerse”; que sea capaz de descentrarse; que miento en el orden de sus referencias culturales
se abra a otras formas de conocimiento; que sea propias y descentramiento en el campo de sus re-
más que una yuxtaposición de saberes; y que im- ferencias conceptuales específicas (…) no es por
plique interacción, interdependencia e interfe- tanto un simple añadido o un complemento ac-
cundación. cidental que puede darse o no”.25
La autonomía propia a cada disciplina par-
ticular no se abandona en el diálogo interdiscipli- 8. Racionalidad Liberadora
nario sino que busca relacionarse con las autono- Indiqué al inicio de la descripción del para-
mías de las demás. Lo anterior implica una refle- digma intercultural que un diálogo verdadero im-
xión crítica sobre la propia autonomía para en- plica igualdad entre sus actores. El paradigma es
contrar la especificidad del modo de conocer de por lo tanto liberador: no se contenta con una re-
esa disciplina particular en relación con otras es- alidad en la que las diferencias son sinónimos
pecificidades. exclusión, opresión etc. “Es una racionalidad li-
La interdisciplinariedad tiene que ver con beradora por eso concreta y comprometida, indi-
“la tarea de repensar la posibilidad de una unidad sociable de la problemática social y política de
no reduccionista de los saberes”.23 cada contexto.”26 Es una racionalidad capaz de
En el último capítulo de su libro, el autor disentir: no se conforma con lo que hay.
toma a la teología latinoamericana como ejemplo 24 Ibid., p. 79.
25 Ibid., p. 66.
23 FORNET-BETANCOURT, 1994, p. 72. 26 VALLESCAR, 2000, p. 344.

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En otro trabajo sobre los supuestos filosó- • es más un proyecto que una realidad
ficos del diálogo intercultural Fornet-Betan- de hecho, particularmente en contexto
court27 recuerda que la cultura de origen no es el de globalización que nivela las diferen-
cias;
destino de la persona sino su “situación histórica
• pretende sustituir la asimilación de la
original”, una herencia que la persona debe traba-
alteridad en una “cultura mundial” por
jar hermenéuticamente para discernir en ella qué relaciones de cooperación y de comu-
es lo suyo propio y qué no. De ahí plantea el de- nicación solidaria entre diferentes uni-
recho a la “desobediencia cultural”. De hecho, la versos culturales;
persona no es nunca reductible a una determina- • “el diálogo intercultural se entiende
da cultura ya que ésta no puede borrar la biografía como método para aprender a relati-
individual. “El ser humano es a la vez, paciente y vizar las tradiciones consolidadas
agente cultural. (…) Para el ser humano no hay como ‘propias’ dentro de cada cultura
y para agudizar en las culturas la ten-
uso de la libertad, ni lógicamente de la razón, sin
sión o el conflicto entre los sujetos o
condicionamiento cultural, pero tampoco hay fuerzas interesadas en conservar y/o
cultura humana sin la praxis de la libertad ni el defender y aquellos interesados en
ejercicio reflexivo de la razón.”28 Más allá de di- transformar. Por esa vía compleja de
ferencias individuales hay en la conformación y apertura, relativización y toma de con-
estabilización de una cultura unas contradiccio- ciencia de la posibilidad de cambio el
nes internas (sociales, económicas, políticas etc.) diálogo intercultural prepara a las cul-
base de conflictos de tradiciones e interpretacio- turas para que se conozcan mejor en-
tre sí y para que, mediante ese conoci-
nes que pueden producir fragmentaciones y dife-
miento de las otras, se conozca cada
renciaciones dentro de una misma matriz cultu- una mejor a sí misma”.31
ral. Así, en cualquier universo cultural, no se da
solamente la dialéctica entre determinación y li- En teología, ¿se podría traducir el derecho
bertad sino también la de opresión y liberación. a la desobediencia cultural por un derecho a la de-
Los miembros de una cultura determinada tienen sobediencia eclesial? Teóricamente esto hace mu-
la responsabilidad de discernir lo que en ella es cho sentido en teología protestante pero en la
opresor y cómo se identifican con esos aspectos práctica las iglesias y los sistemas teológicos dejan
desde una perspectiva ética.29 a veces poco espacio a la libertad.
“El postulado de la afirmación de la plura- 9. La Interculturalidad Implica Intracultu-
lidad cultural se inscribe en un proyecto alterna- ralidad
tivo de comunicación e intercambio entre las cul- Ya señalamos que no se puede hablar de
turas como horizontes complejos y ambivalen- una identidad cultural al margen de las relacio-
tes, cargados por contradicciones y conflictos in- nes que tejen las culturas entre ellas, general-
ternos. A este proyecto alternativo le doy el mente dentro de condiciones asimétricas. La
nombre de diálogo intercultural.”30 identidad cultural no es un conjunto de rasgos
El autor señala las características de ese diá- ni una esencia sino una construcción resultante
logo: de diversas interacciones.
La filosofía del sujeto de un Descartes (yo
27 FORNET-BETANCOURT, 1998, p. 11. pienso por ende yo soy) plantea que la persona
28 Ibid., p. 4.
29
puede acceder directamente al yo. Ricoeur en su
“En todo universo cultural concreto, o si se prefiere en las llamadas
diferencias culturales, hay diferencias biográficas y diferencias de opci- obra “Sí mismo como otro” refuta esa pretensión
ones ético-políticas que reflejan tensiones, contradicciones y alternati- y plantea que el sujeto no puede encontrar en él
vas que impiden reducirlas a la forma estabilizada (…) las culturas no
son expresión de tradiciones homogéneas” (ibid., p. 6).
30 Ibid, p. 6-7. 31 Ibid, p. 7.

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su fundamento último: debe pasar por una serie Esta filosofía pone en práctica una actitud
de mediaciones. Para Ricoeur, la búsqueda y la hermenéutica “que parte del supuesto de la fini-
definición de la identidad es una tarea hermenéu- tud humana, tanto a nivel individual como cultu-
tica que trabaja sobre las diferentes manifestacio- ral y que impone renunciar a la tendencia, tan
nes de ese yo en cuanto persona humana. Plantea propia a cada cultura, de absolutizar o de sacrali-
cuatro condiciones para que el ser humano se zar lo propio”.33
haga persona con identidad: que se reconozca
como locutor de su palabra; que se reconozca CONCLUSIÓN
como autor de sus acciones; que pueda narrar su Reitero que los aspectos del paradigma que
vida proyectándose como protagonista de su his- esbozamos hasta ahora no son los únicos. Sin
toria; y que reivindique sus actos asumiendo las embargo, bastan para que quede claro que la in-
consecuencias de los mismos. terculturalidad es un paradigma y no es solamen-
En esa tarea filosófica, Ricoeur opone el sí te un método para analizar las relaciones entre di-
al yo, quiere decir que ese sí no puede ser pensa- ferentes. Es una ontología que se va construyen-
do sin el otro, sin el tú, él, ella etc. do a medida que se van desarrollando y analizan-
La identidad no es un sustrato inmutable. do las relaciones entre diferentes, una
El problema es que en castellano, contraria- epistemología y principalmente una hermenéuti-
mente al latín, el alemán o el inglés, existe una ca que, partiendo de la incompletud humana, se
sola palabra para hablar de lo idéntico, de lo mis- resiste a sacralizar lo próprio.34
mo. Ricoeur distingue entre la mismidad (para
referirse a lo mismo, lo que no cambia en el tiempo, III. ALGUNOS FUNDAMENTOS
idem en latín) de la ipseidad (del latín ipse, que TEOLÓGICOS Y PEDAGÓGICOS
incluye el cambio y la interacción con el otro).
La alteridad no es algo solamente externo a Fundamentos Teológicos
sí mismo sino que es parte de él. Quiere decir que En estos apuntes destacaré, entre muchos
mi persona es múltiple, por eso hablamos de in- otros posibles, algunos fundamentos teológicos
traculturalidad. para una educación teológica intercultural. Obvia-
En esta línea se podrá hablar de intrasubje- mente es una tarea más modesta y provisoria que la
tividad, intradisciplinariedad etc. elaboración de una teología de la educación. Creo
Dicho de manera simple el paradigma in- que ambas tareas han sido descuidadas y ese vacío
tercultural no rige solamente las relaciones entre llama más la atención aquí en América Latina por el
grupos y culturas diferentes, sino también las re- hecho de que nos encontramos frente a teologías
laciones internas a esos grupos culturas y hasta que están en pleno proceso de formación, que na-
personas individuales. cieron de o desencadenaron prácticas educativas
significativas, generalmente fuera de los centros ofi-
Para Fornet, el ser humano es un “universal
ciales de educación teológica.
singular”. “Queda siempre en ese universal sin-
gular que es el ser humano, un ‘resto no culturi- Mencionaré cuatro fundamentos,35 insistien-
zado’ que trasciende los respectivos universos do una vez más sobre el carácter abierto e inacabado
culturales”. Esta reflexión subjetiva está tanto en de esa propuesta.
la comunicación intra como intercultural; “la re- 33 Idem., 1994, p. 13.
flexión subjetiva convierte los límites en fronte- 34 “Es una racionalidad hermenéutica, capaz de leer e interpretar, ‘mirar a
ras, es decir, en zonas de comunicación, obligan- través de’ la capa superficial de la existencia, ya que asume el valor y el
sentido de la vida como interpretación y creación permanente, articulada
do con ello a que cada ser humano revise su con- a una historia que sufre continuas transformaciones culturales y de pers-
cepción de identidad cultural de origen”.32 pectivas del universo” (VALLESCAR, 2000, p. 344).
35 Sintetizo y prolongo aquí una reflexión iniciada en el artículo “Fe,
pueblo y educación teológica”, publicado en la revista del ISEAT Fe y
32 Ibid, p. 10. Pueblo (segunda época) # 1, La Paz, junio de 2002.

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1. Opción por los Pobres – Una educación interculturalidad? ¿De qué manera nuestros ob-
teológica intercultural en el contexto actual de jetivos asumen esa diversidad, luchan contra las
Abya Yala no puede sino reivindicar el alma de la diferencias creadoras de desigualdades, superan el
producción teológica latinoamericana de estas úl- eclesiocentrismo casado casi siempre con un mo-
timas décadas reafirmando sin matices ni regateos la noculturalismo (inclusive cuando la iglesia misma
opción por las y los pobres. En esta perspectiva, tenga algún rostro como el indígena o pentecos-
hay que asumir los avances y la diversificación de tal, por ejemplo).
la categoría de pobres desde el género, las etnias, Las y los actores de nuestra educación teo-
las culturas, las edades, las minorías sexuales etc. lógica provienen por cierto en gran medida (o
sin olvidar las clases subalternas. Se asume la ca- casi exclusivamente en algunos de nuestros cen-
tegoría de pobres desde la lógica de quienes su- tros) de sectores populares pero queda por ana-
fren exclusiones y discriminaciones. En este sen- lizar más críticamente cuál es el perfil de egresada
tido la opción por los pobres es parte del para- y egresado que tenemos.
digma intercultural. Este no plantea nada que se Esto nos lleva directamente al segundo fun-
acerque a una especie de “alianzas de clases” o de damento propuesto.
hibridaciones ideológicas, o de mestizajes cultu- 2. El Sacerdocio Universal de las y los
rales. Plantea que el respeto por las diferencias Creyentes – Este principio tan bíblico como te-
complementado con la lucha por un mundo que ológico y nodal para la Reforma protestante es
erradique la exclusión parte de una opción por las profundamente intercultural. Parte del reconoci-
y los pobres reconocidos diversos. miento de una diversidad de dones y de carismas
Sugiero que en América Latina, hasta el dentro de la comunidad cristiana, diversidad que
momento, la opción por los pobres ha tenido nunca justifica la diferencia en cuanto a acceso al
más consecuencia en la producción de la teología poder, a la producción y administración de los bi-
que en la construcción de una educación teológi- enes simbólicos (¡o materiales!). Todas las y los
ca que responda a sus desafíos. Más precisamen- bautizados son iguales en dignidad y participan
te, lanzo la hipótesis que esa opción se puede vi- de una misión común. La salvación no está me-
sibilizar más en algunos contenidos de la educa- diatizada por un sacerdocio personal ni por fun-
ción teológica que en sus objetivos, métodos y, cionarios acreditados por la iglesia. Dicho de otra
sobretodo, actores. manera la separación entre laicos y clérigos no ti-
Si fuera así, se confirmaría que el origen, el ene fundamento ni valor: ambos son ministros,
desarrollo y los alcances de la teología de la libe- aunque no cumplan todos el mismo ministerio.
ración ha transitado más por comunidades cristia- Recontextualizando ese principio dentro
nas populares, movimientos políticos y sociales de la educación teológica se puede afirmar que
que por los espacios eclesiales oficiales y las ins- todas y todos los creyentes son teólogos pero no
tituciones de educación teológica. Que algunas todos cumplen de la misma manera su función de
de ellas estén mal vistas por hacerse eco de dicha teólogos. En consecuencia todas y todos los
teología, no basta para desmentir lo afirmado. creyentes tienen derecho a cualificar su práctica y
Que destacadas teólogas y teólogos latinoameri- a reflexionar sobre su fe, es decir a hacer y a es-
canos se desempeñen a nivel docente, tampoco. tudiar teología, independientemente de una vo-
Aquí recaemos sobre varios interrogantes cación para el sacerdocio, considerado como un
ya plantados en CETELA: ¿en qué medida la lógi- ministerio en medio de muchos otros. Democra-
ca, la simbólica, la sensibilidad propia a los ros- tizar el acceso al sacerdocio tendría que implicar
tros y cuerpos de la teología de Abya Yala están una verdadera democratización de los estudios
asumidos en nuestros centros de formación al teológicos y recíprocamente.
momento de producir teología? ¿En qué mo- ¿En qué medida la teología que impartimos
mento nuestros métodos teológicos asumen la en nuestros centros de educación teológica es un

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saber que se transforma en poder dentro y fuera se transforme en legitimación ideológica de cual-
de la Iglesia? Mejor dicho ¿en qué medida ese po- quier desviación de una iglesia.
der está redistribuido en la iglesia y en la socie- 4. La Encarnación: fundamento de la in-
dad? terculturalidad y de la contextualidad – La en-
Volviendo al principio del sacerdocio uni- carnación marca la apuesta del Dios de los cristianos
versal aplicado a la teología se puede afirmar que la por la condición humana, con sus invariantes an-
o el teólogo (al margen de su nivel de especializa- tropológicos. Esta condición se plenifica en to-
ción) no tiene porque ser necesariamente ni pas- dos sus aspectos y en toda su diversidad. La en-
tor ni sacerdote. Una consecuencia directa de eso carnación es tanto particular como universal. Pu-
es que la institución de educación teológica no ti- ede ser leída y reinterpretada desde el paradigma
ene porque ser una “fábrica de pastor” lo que de la interculturalidad. El mensaje de Jesús es un
tampoco le quita su responsabilidad de acom- mensaje contextual y contextualizado que, en la
pañar a las diferentes iglesias en la tarea específica fe, tiene una reserva de sentidos a descubrir en
que les incumbe de cualificar a sus pastores. cada cultura, circunstancia y momento particular.
3. La Primacía del Reino sobre la Iglesia – La educación teológica intercultural expre-
Biblistas y teólogos cristianos de buena fe no es- sa su contextualidad dentro de la situación exis-
tán lejos de ponerse de acuerdo sobre el hecho de tencial de sus actores. Se articula con las pregun-
que la Iglesia está al servicio y existe en función tas que el ser humano en su incompletud se plan-
del Reino inaugurado por Jesús y no el contrario, tea desde que existe, pero lo hace de manera siempre
tal como la historia lo ha mostrado en tantos parcial, particular y renovada.
proyectos de “Cristiandad”. Este principio da
La educación teológica al responder a la di-
pautas para replantear las relaciones entre cultu-
námica de la encarnación se vuelve intercultural
ras, educación teológica e iglesias.
en la confrontación entre diferentes culturas y re-
Si las iglesias son fieles al proyecto del Rei-
ligiones. Desde su aparición, la teología cristiana
no, el tronco común existente entre las diferentes
ha sido intercultural, obligada a dialogar y a ne-
expresiones de la fe cristiana será más sustancial y
gociar sus diferencias con otras interpretaciones
significativo que sus ramificaciones. Esto abre la
del mundo, con otras maneras de vivir frente a
puerta a una educación teológica realmente ecu-
Dios, entre los seres humanos y con la naturale-
ménica o intercultural, por decirlo con un sinó-
za. La confrontación permanente con situaciones
nimo. No se trata de imaginar un curriculum
y culturas nuevas le obliga a crear nuevas síntesis,
común híbrido ni sincretista. Se trata de hacer so-
nar las diferencias dentro de una caja de resonan- nuevos sentidos, nuevas acciones en la trama
cia común sin ocultar las divisiones creadas tantas multicolor y entrelazada del tejido cultural.
veces por factores no teológicos. La fidelidad a La educación teológica, al ser contextual,
una tradición, el derecho a la diferencia, no des- está cruzada también por los conflictos de clase
dice el reconocimiento de una diversidad que se de la sociedad en la que está inserta. Refleja cons-
define en oposición a la exclusión. cientemente o no las diferentes perspectivas de
Si la Iglesia no es dueña del Reino, tampoco género que se dan en cualquier empresa humana.
lo es de la teología. Admitir esto vendría a plan- La contextualidad existencial, cultural, so-
tear una relativa autonomía de la teología con res- cial y de género representa un desafío hermenéu-
pecto a las instancias de control que tienen las tico para el quehacer teológico en la medida en
iglesias para preservar su identidad y su doctrina que cuestiona no solamente nuestra manera de
propia. La fidelidad al Reino no debe ser enten- hacer teología, sino todas las formas y condicio-
dida como motivo de infidelidad a la iglesia o a su namientos que marcaron la teología cristiana
tradición sino como una instancia de regulación y desde sus inicios y desde sus testigos menos
de control para que el ejercicio de la teología no cuestionados.

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En nuestro contexto andino se asimila mu- ma y, a su vez se ve transformado por ingresar en


chas veces la necesidad de tener una teología con- una cultura o religión diferente a la que le servía
textualizada por inculturación. Esta palabra, con- de soporte. “Se trata de un acto de verdadera ‘re-
trariamente a las de enculturación36 y aculturación creación’ de la fe cristiana a partir de nuevos con-
pertenece a un vocabulario más teológico que an- textos, desde nuevas matrices culturales”.37 La
tropológico. pregunta compleja queda en saber hasta qué pun-
La palabra inculturación tiene cercanía con to el Evangelio, o mejor dicho quienes lo anun-
la aculturación pero en un sentido decididamente cian, están dispuestos a reinterpretarlo desde la
orientado y parcializado. La inculturación no se matriz de la otra cultura o religión.
refiere al encuentro entre dos culturas sino entre Por falta de espacio no desarrollamos aquí
el Evangelio y alguna cultura específica, aunque otros fundamentos para una educación teológica
fenomenológicamente hablando no sea nada fácil intercultural que podrían provenir por ejemplo
distinguir el Evangelio de la cultura a través de la de una teología de la Creación releída desde la
cual se comunica en determinado tiempo y espa- educación considerada como creación y produc-
cio. ción de conocimiento.
La inculturación está por lo tanto estrecha- Otra veta rica para trabajar en la fundamenta-
mente ligada a la encarnación como principio y mo- ción de una educación teológica intercultural tiene
dalidad de la Revelación. Por tratarse de un concep- que ver con la doctrina de la Trinidad y el con-
to teológico tiene también connotaciones diversas cepto de perijoresis para cualificar las relaciones de
en función de las presuposiciones de quienes lo uti- complementariedad entre las tres personas de la
lizan. Trinidad.38 Esta vendría a ser considerada, entre
La inculturación puede en un polo referirse otras cosas, como comunidad intercultural de co-
a una empresa unilateral, de cooptación de valo- municación.
res y de refundación de matrices culturales o re-
ligiosas para injertar o imponer un proyecto cris- Fundamentos Pedagógicos
tiano ya predeterminado en todos sus alcances, Buscamos fundamentos pedagógicos que
creencias y valores. Por haber estado ligado du- recojan e interioricen el paradigma intercultural.
rante tantos siglos a proyectos dominantes y co- A partir de él la pedagogía es considerada como
loniales el Evangelio corre siempre el riesgo de una empresa intercultural, es decir multipolar,
ser percibido como conquistador o de trastornar descentrada, intersubjetiva e interdisciplinaria. Se
definitivamente la cultura o la religión en la cual constituye asumiendo la diversidad de sus actores
quiere penetrar. así como la lucha contra las desigualdades en las
En el otro polo, insistiendo sobre la kenosis que les toca aprender o enseñar.
(Fil.2: 6ss) se entenderá a la inculturación como Si la educación teológica quiere superar el
el proceso a través del cual el Evangelio transfor- elitismo vigente en nuestras sociedades y en nues-
tras comunidades cristianas no podrá satisfacerse
36 Enculturación es un concepto antropológico para referirse a los con los modelos pedagógicos dominantes de las
mecanismos con los cuales una determinada cultura se va transmiti-
endo y recreando y a través de los cuales recibe un legado anterior. Está universidades. Si quiere lograr metas tanto teoló-
íntimamente ligado con un proceso de socialización y con una práctica gicas como pedagógicas, tendrá que tomar en se-
educativa: implica un proceso de enseñanza aprendizaje, de transmi-
sión, reproducción y producción de conocimientos, habilidades, acti- rio los desafíos que la pedagogía le plantea. Mu-
tudes y valores. La enculturación busca la continuidad cultural. El chas instituciones aquí representadas acompañan
término aculturación, particularmente en los ámbitos pastorales, está
utilizado en un sentido erróneo para referirse a la pérdida de los rasgos en su formación a: mujeres, indígenas, campesinos,
culturales y en último a la alineación cultural, como si la a de la palabra pentecostales, afroamericanos, minorías sexuales
fuera privativa. Para ello es más correcto hablar de desculturación. En
antropología la palabra aculturación se refiere mayormente al cambio
que resulta del contacto permanente entre varias culturas o grupos 37PERESSÓN, 1996, p. 288.
sociales sin calificar el tipo de contacto, respetuoso o destructivo que 38 Se encontrarán importantes precisiones sobre este concepto en
tengan. BOFF, 1987, particularmente p. 93-95, 118, 167-184.

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etc. Muchas acompañan también a jóvenes que Me referiré a continuación a un represen-


viven en el marco de las culturas juveniles urba- tante de la corriente de refundamentación de la
nas o a sectores populares cuya identidad cultural EP: el pedagogo colombiano Marco Raúl Mejía y
no se vislumbra bajo ninguno de los rostros an- a su aporte sobre la Negociación Cultural.39 Sin
teriores. En una palabra, pocas de nuestras insti- regatear ninguna de las metas políticas que dieron
tuciones son funcionales a un sistema universita- a la EP sus letras de nobleza, esta corriente asume,
rio blanco, occidentalizante y elitista cuyo pro- recontextualiza y aplica la teoría del aprendizaje
ducto pretendería ser el modelo de la o del teó- en su vertiente constructivista (teoría de moda en
logo académico erudito, desconectado de la particular en casi todas las reformas educativas
comunidad eclesial y de los excluidos del Merca- que se han implementado durante los 15 últimos
do unipolar. años en América Latina).
Con estos actores nuestra tarea de educa- No se puede hablar de negociación cultural
ción teológica se confronta con dificultades que sin recordar algunas características de la Educación
no sabemos, no podemos y a veces no queremos Popular; tampoco podemos entrar en toda la ri-
asumir: queza de esa vertiente ya que hablamos aquí de
educación teológica.
• déficit en cuanto a lectura crítica, comu-
La EP es un campo de saber práctico y teó-
nicación escrita, investigación etc., défi-
rico a la vez definido como “una intervención in-
cit que, generalmente, es producto de
tencionada con instrumentos, dentro del mundo
una escolaridad deficiente pero que a la
del saber y del conocimiento, que busca el empo-
vez puede tener raíces más profundas;
deramiento de sujetos y grupos excluidos –, se-
• dificultades de comunicación entre nu- gregados, desiguales – quienes en el proceso, se
estro lenguaje académico y el de nues- constituyen en actores sociales”.40 El empodera-
tros estudiantes: nosotros no hablamos miento, concepto acuñado por la teoría feminis-
su lenguaje ni entendemos el suyo y re- ta, enriquece la visión de una EP muy marcada por
cíprocamente; existe como un bilingüis- el proyecto político de conquista del poder. El
mo larvado y no reconocido que entor- empoderamiento no desconoce esa otra dimen-
pece la comunicación; sión pero la relaciona con la capacidad de los ac-
• convivencia entre distintas lógicas y tores sociales de tomar su destino en sus manos,
epistemologías, inequitativamente ela- de fortalecerse en su autonomía, en su identidad,
boradas, construidas, comunicadas. en sus relaciones y en su organización desde los
Sobre ese trasfondo planteo desde hace ámbitos más pequeños de la vida cotidiana hasta
mucho tiempo que la educación teológica debe la construcción de una sociedad diferente.
dejarse inspirar por las prácticas y los avances te- La EP se inscribe dentro del paradigma in-
óricos de la Educación Popular latinoamericana. tercultural.41 No pierde su vertiente política sino
Puede ser que las prácticas de la EP hayan perdido que la complejiza dejando de lado las “verdades
el impulso de las décadas pasadas y estén presas únicas” y estimulando las “búsquedas colectivas
de alguna manera de la morosidad o de la disper- de caminos diversos y múltiples para el conoci-
sión que caracteriza a los movimientos sociales miento y la transformación, dando cabida a la di-
en su búsqueda de sustituir a los anteriores y de- ferencias pero siendo fuerte con la desigual-
cadentes partidos políticos de izquierda. Lo que dad”.42
es indiscutible es que la EP (más y mejor que la
39 MEJÍA; AWAD, 2000, p. 212.
TL, según mi punto de vista) ha aprovechado to- 40 Ibid., p. 24-25.
dos estos años para recomponerse teóricamente, 41 “Privilegiamos la vía del empoderamiento de sujetos y organizacio-
nes, la construcción de puentes entre la cultura de expertos y la vida
algo que interesa a quienes toman en serio el pa- cotidiana y la integración e inclusión de todos los excluidos en lo
radigma intercultural. nuevo universal reconstruido desde las diferencias” (ibid., p. 33).

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En la EP la pedagogía se descentra ya que prevalencia de imágenes dominantes, estereoti-


se enfatizan los procesos de aprendizaje y la re- pos etc. ya que funciona como un “filtro que se-
lación educativa siempre dentro de las relaciones lecciona lo nuevo que se puede integrar”.
sociales. El proceso mismo de aprendizaje se vuelve
“La EP reconoce a los sujetos populares una negociación cultural que implica una cons-
como dialogantes que confluyen al acto educati- trucción colectiva de prácticas, de confrontación
vo con lo que poseen, y que interactúan con de saberes, de conocimientos y de acciones. Im-
otros, hijos de culturas, prácticas sociales y sabe- plica también una identificación de visiones com-
res diferentes, con el fin de construir colectiva- partidas, un reconocimiento y una construcción
mente nuevos saberes, conocimientos y prácticas de las diferencias. Todo ello desemboca en la
sociales, nuevos horizontes y nuevas opciones.”43 transformación del individuo y del grupo. Es un
La construcción de lo pedagógico de la EP proceso conflictivo y por ello la negociación cul-
se hace mediante una negociación cultural.44 Con tural implica siempre una pedagogía del conflicto
este concepto, estamos muy cerca de lo que R ya que en el proceso se manifiestan resistencias y
Fornet-Betancourt llama Diálogo intercultural oposiciones, avances y retrocesos. Al mismo
que busca dar razón de cómo diferentes actores tiempo la práctica de la participación, de la demo-
(educandos y educadores) hacen el tránsito (en cracia, la posibilidad de crítica mutua son elemen-
determinados espacios sociales e instituciona- tos que hacen avanzar la negociación.
les) hacia nuevos aprendizajes, conocimientos y La negociación cultural entre las diversas
acciones. lógicas, percepciones y visiones desemboca en
Gracias a la negociación cultural, que los “productos colectivos resultantes tengan
sentido y unidad práctica para cada sujeto”.46
La actividad educativa construye un pu-
El aprendizaje parte de las habilidades del
ente entre imágenes, saberes previos, pa-
sujeto, es contextualizado y no se manifiesta so-
trones y elementos culturales, representa-
ciones y símbolos, es decir, entre la es- lamente en procesos verbales y construcción ló-
tructura previa con la que llegan los ac- gica sino en formas organizativas.
tores y los procesos críticos planteados
La negociación cultural busca crear los
desde las diferentes prácticas de la EP. Un
nexos entre las formas del conocimiento
puente entre ese saber común y el saber
formalizado y las del saber común y las
formalizado de tipo académico que supo-
actuaciones derivadas de éstos. Por eso es
ne una relación de encuentro entre dife-
tan importante para los educadores popu-
rentes lógicas, percepciones y visiones
lares construir las condiciones previas
que constituyen no sólo la base del pro-
más propicias para que los actores sociales
ceso sino también el insumo desde el cual
organicen sus interacciones básicas ha-
se parte y sobre el cual se vuelve para re-
ciendo del acto educativo un acto global
conceptualizar, recontextualizar y cons-
de recontextualización, en cuanto los sa-
truir lo nuevo.45
beres, metodologías, concepciones peda-
Es fundamental explicitar y trabajar ese gógicas y procesos de aprendizaje, son re-
cogidos desde el lugar social y cultural del
pensamiento previo caracterizado entre otros por
“otro”.
explicaciones unicausales, narración descriptiva,
La negociación cultural ocurre en un lu-
42
gar intermedio, entre el aprendizaje clási-
Ibid., p. 45.
43 Ibid., p. 50. co (que establece conexiones entre activi-
44 El autor llega a ese concepto retomando la rica vertiente del Diálogo dades, fines e instrumentos) y un tipo de
de saberes que ha marcado la EP en los años 80 en particular enrique- aprendizaje reconstructivo que recons-
cido por el concepto de diálogo cultural que viene del constructivista J.
Brunner.
45 MEJÍA; AWAD, 2000, p. 63. 46 Ibid., p. 68.

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truye vivencias a partir de la realidad, ge- la individuación para la acción social mientras
nera acciones que propician nuevos inte- que en otro apuntan hacia la institucionalidad
reses, construye una motivación con ca- social.
pacidad de acción y permite necesidades
En el primer caso se negocian culturas, me-
de formación/autoformación, todo ello
diaciones, sentidos, símbolos, representaciones,
para hacer posible la transformación. Por
eso la negociación cultural no es sólo de saberes técnicos, institucionalidades, lógicas in-
contenidos, sino también de estilo de ternas de aprendizaje.48
aprendizaje.47 En los aprendizajes de institucionalidades
sociales se negocian una estructura de acuerdos y
La negociación cultural implica una peda- disensos, es decir, un uso público del conflicto;
gogía flexible que se pueda recrear en cada con- representaciones de identidades colectivas, nue-
texto, abierta al encuentro de comprensiones di- vas identidades sociales, culturales y políticas.
ferentes, capaz de contrastar lo aprendido en la “Esto logra configurar procesos de solidaridad
acción e que reconozca e interactúe con otras pe- con actores que además de autonomía, cons-
dagogías. truyen responsabilidad social entre ellos. Es el
La EP busca tanto el empoderamiento de aprendizaje de lo colectivo”.49
los actores como la transformación de la reali-
dad en la que viven. Los aprendizajes apuntan 48 “El lenguaje, los códigos y los imaginarios con los cuales nos expre-

todos a la acción, pero en un caso van más hacia samos requieren de procedimientos, mecanismos y formas coherentes
con los sentidos y símbolos de los grupos participantes ya que son cul-
turas diferentes pero también desiguales” (ibid., p. 77).
47 Ibid., p. 69. 49 Ibid., p. 83.

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Dados do autor
Suíço, desde 1976 radicado em La Paz. Doutor
em teologia pela Universidade de Lausanne,
Suíça. Reitor do ISEAT. Autor do livro Educação
Popular e Teologia da Libertação, publicado
pela DEI, em espanhol, e pela Vozes, em
português.

Recebimento artigo: 1.o/abr./03


Consultoria: 16/abr./03 a 26/jun./03
Aprovado: 27/jun./03

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O Quinto Impossível – ou
quando Deus é impossível
e a impossibilidade do
ofício do teólogo
THE FIFTH IMPOSSIBLE – OR WHEN GOD
IS IMPOSSIBLE AND THE IMPOSSIBILITY
OF THE TEOLOGIST’S OFFICE
Aos nonos paternos Fioriavante e Filomena, que, desde as formas de
devoção popular e tradicional do catolicismo, me ensinaram, já na
infância, a abertura ao transcendente e à alteridade.

Resumo Este artigo tem por objetivo refletir sobre a questão religiosa na moderni-
dade e na pós-modernidade, estabelecendo as possíveis conexões com o Oriente e
com a medievalidade, sem deixar de perguntar o que significa fazer a experiência de
Deus no pós-moderno. No cenário contemporâneo, faz-se necessário reconhecer
que toda e qualquer crítica ao mundo das coisas existentes passa, fundamentalmente,
pela crítica à religião. Marx já dizia – mas também Nietzsche, Freud e Proudhon – que
toda crítica à economia política deveria passar pela crítica à religião. Se o nosso tempo
é essencialmente o tempo do diálogo necessário – na diferença, com o outro distinto, EDIVALDO JOSÉ
com a cultura do outro diferente –, tal diálogo passa, inevitavelmente, pelo diálogo das BORTOLETO
diferenças religiosas das diversas culturas. Sobretudo para uma cultura da paz – como Universidade Metodista de
lugar de conflito, realidades não apaziguadas e mal-estar necessário, mas também de Piracicaba (UNIMEP, Brasil)
justiça e direito. ejbortol@unimep.br

Palavras-chave MEDIEVALIDADE – MODERNIDADE – PÓS-MODERNIDADE – FILO-


SOFIA – TEOLOGIA – ALTERIDADE.

Abstract The aim of this paper is to reflect upon the question of religion in the modern
and post-modern ages, establishing possible connections with the East, and with the
medieval age, taking care to ask what it means to experience God in the post-modern
age. In the contemporary world, it must be acknowledged that each and every criti-
cism of the world of existing things basically goes through criticism of religion. Marx
said – as did Nietzsche, Freud, Proudhon – that every criticism of political economics
should go through criticism of religion. If our age is basically that of essential dialogue
– in differences, with others who are different, with the culture of others who are
different – this dialogue necessarily goes through the dialogue of religious differences
in different cultures. Especially for a culture of peace – on one hand a place of conflict
and unappeased reality and discomfort which are unavoidable, but also a place of jus-
tice and uprightness.

Keywords MEDIEVALITY – MODERNITY – POST-MODERNITY – PHILOSOPHY


– THEOLOGY – ALTERITY.

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Demonstrar a existência de Deus é, pois, demonstrar 1. que o universo aparente tem uma
causa que não está nesse universo aparente como aparente, 2. que essa causa é inteligente,
isto é, conscientemente ativa. Nada mais está substancialmente incluído na demonstração
da existência de Deus, propriamente dita.
Reduzido assim o conteúdo do problema às suas proporções racionais, resta saber se existe
no raciocínio humano o poder de chegar até ali, e, chegando até ali, de ir mais além, ainda
que esse além não seja já parte do problema em si, tal como o devemos pôr.1
Só Deus é que está acima do ser como do não-ser; superior à possibilidade de contradição;
acima de lhe haver mesmo um não-Deus oposto. Bem sei que isto se torna incompreensí-
vel, mas com a nossa limitação, não podemos senão chegar a este apontar ridículo para
uma porta fechada.2

O
Ocidente latino cristão iluminista positivista vive seu
momento ímpar, uma crise histórica da maior mag-
nitude. Ele só pode ser pensado no movimento dia-
lético em relação ao Oriente e vice-versa.
Essa história é longa. Muito longa. Medida em sécu-
los. Mas hoje em dia, de forma especial, a relação
Ocidente-Oriente ganha significação especial, pois o
aparente/evidente conflito Ocidente-Oriente aponta tão-somente a pon-
ta do iceberg.
Entre os vários problemas que permeiam esses dois mundos, dis-
tintos e diferentes, um chama a atenção: o problema de Deus. Talvez, para
o Ocidente, isso não seja relevante, pois a ciência e a técnica se impõem
com tamanha envergadura que obscurecem a questão. Mas nem assim
deixa de ser menos importante. Quanto ao Oriente, Deus não é um pro-
blema, uma vez que Ele é. Nele se respira, Nele tudo se passa e ganha
sempre novo sentido (inclusive as guerras!).
A origem de tal diferença está no fato de o Ocidente e o Oriente te-
rem saído da Idade Média de formas distintas. E como se deram tais saídas?
Falar em Idade Média em um mundo moderno e pós-moderno sig-
nifica tocar num significante carregado de densidade; aí está condensada
toda uma carga valorativa, não das melhores. Os preconceitos e estigmas
não são poucos, ainda mais quando se trata de pensamento medieval, de
filosofia medieval, de ciência medieval. Muitos indagam: o que aí se teria
produzido culturalmente de tão significativo? Teria existido, de fato, um
pensamento medieval de densidade filosófica, teológica e científica?
Atribui-se, freqüentemente, duas notas em relação à Idade Média:
a de mediocridade e a de mediação. No tocante à mediação, “é verdade,
carregada de conotações negativas: entre o esplendor greco-romano da
Antigüidade e as fervilhantes transformações do Renascimento, a Idade
Média apresentava-se como a ‘idade das trevas’, a ‘longa noite dos mil

1 PESSOA, 1985, p. 552.


2 Ibid., p. 710.

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anos’ durante os quais a civilização ocidental teria vez seja até mais moderna que a própria moder-
quedado ‘adormecida’, soterrada em sangue, nidade. E os seus pensadores, como Tomás de
ignorância e fanatismo religioso”.3 No referente à Aquino e Duns Escoto – além de Avicena,
mediocridade, quer se dizer que aí nada foi pro- Averróis e Moisés Maimônides –, tenham, quem
duzido, nada criou-se ou inovou-se; ao contrário, sabe, entendido algo de filosofia mais do que os
estagnou-se, conservou-se. modernos, no dizer de Martin Heidegger.6
Mas, diz Alain De Libera,
No campo do pensamento científico e
filosófico, o período medieval seria mar- a primeira coisa que um estudante deve
cado pelo “obscurantismo” e a única vir- aprender ao abordar a Idade Média é que
tude de seus pensadores teria sido a de a Idade Média não existe. A duração con-
preservar – ainda que precariamente – as tínua, o referencial único em que o histo-
valiosíssimas riquezas do pensamento an- riador da filosofia inscreve a sucessão das
tigo, cujo desenvolvimento seria apenas doutrinas e das trajetórias individuais que,
retomado no Renascimento, preparando- a seus olhos, compõem uma história, a
se então o advento das “luzes” do Ilumi- “história da filosofia medieval”, não exis-
nismo. Tratar-se-ia portanto de uma épo- tem. São várias as durações: uma duração
ca de total mediocridade, preocupada ex- latina, uma grega, uma árabo-muçulmana,
clusivamente em guardar um tesouro cujo uma judaica. Como inscrever o primeiro
valor desconhecia e para o qual em nada século da Hégira na “Idade Média” sem
contribuíra. Para muitas pessoas, ainda considerar que, para o historiador da filo-
hoje, a única luz que a Idade Média viu sofia medieval, o primeiro século da Hé-
brilhar foi a das fogueiras sistematicamen- gira é o século VII da Era Cristã – ele “cor-
te alimentadas pela perseguição contínua responde ao século VII”; é, precisamente,
e implacável que a Igreja – senhora abso- “o século VII”, dito de outro modo, o
luta de corações e mentes – movia a toda “nosso” século VII. O cristianismo latino,
e qualquer “ovelha desgarrada”: judeus, aquele que fala no “nós” da historiografia
hereges, infiéis ou pecadores de qualquer e nos chega, ventríloquo, como a palavra
espécie que atentassem contra a ortodo- de uma estrela morta, erigiu seu tempo
xia moral e ideológica por ela exercida.4 em tempo universal.7

Penetrar no universo da Idade Média, que E De Libera assim prossegue:


se estende cronologicamente do século V ao sé- Filosoficamente, o mundo medieval não
culo XIV, significa necessariamente ter a sensibili- tem centro. Não só porque o mundo me-
dade e a coragem para rasgar as tintas e os verni- dieval ocidental tem uma pluralidade de
zes dos estigmas e preconceitos e, ao mesmo centros (o que é admitido por muitos his-
tempo, romper com uma visão de história advin- toriadores), mas, sobretudo, porque há
da do homem moderno: período da mediocridade muitos mundos medievais. A Bagdad do
e da mediação. Ela não é isso, e está para além dis- século III da Hégira e a Aix do século IX
so: “A Idade Média é um conceito plurissignifi- da Era Cristã são contemporâneas, sem
cativo”.5 estar no mesmo tempo, no mesmo mun-
do, na mesma história. Quando duas his-
O que significa isso? Significa que se tem tórias se encontram (o que ocorre no caso
de des-cobrir os múltiplos sentidos dessa Idade aqui citado), o historiador da filosofia que
Média que é dos cristãos, dos não-cristãos, dos testemunha o fenômeno – e a que distân-
judeus, dos muçulmanos. Essa Idade Média tal- cia! – tem, como primeira obrigação, de

3 INÁCIO; DE LUCA, 1988, p. 7. 6 PIRES, C. “Filosofia e filosofias na Idade Média”, p. 11-33, in:
4 Ibid., p. 7-8. SOUZA, 1983, p. 16.
5 KUJAWSKI, 1983, p. 15. 7 DE LIBERA, 1988, p. 7-8.

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deixar que esses universos espácio-tem- Mar dos Árabes (Oceano Índico) e o Mar
porais e geopolíticos se encontrem no do Sul (Oceano Pacífico).9
mesmo nível de consideração. São dois
mundos epistemologicamente iguais em O Ocidente sai da Idade Média como cen-
direitos que convergem ou divergem sob tro. A Europa-Centro é o que há de civilizado,
seu olhar. O lugar do especialista não é ao ocidental e cristão. O Oriente, juntamente com
lado de Carlos Magno nem de Hârûn al- outros mundos, como a América, a África e a
Rashid; é do lado de ambos, isto é, em lu-
Ásia, são periferias.
gar nenhum.8
Mas não nos esqueçamos: esse universo mo-
Ora, num mundo concebido e representa- derno, agora centro do mundo, do ponto de vista
do como um universo fechado, finito e hierárqui- da física e da astronomia, agora representado
co, sob a ótica da física e da astronomia, ou seja, como um mundo infinito, aberto e homogêneo,
um mundo geocêntrico, pode-se visualizar uni- foi, na Idade Média, educado e pedagogizado pelo
versos espácio-temporais de grande complexida- Oriente, e, de modo especial, pelos árabes. “Assim,
de geopolítica e cultural. E se esse mundo é assim foram os árabes os mestres e educadores do Oci-
representado, também o é teocentricamente, mas dente latino.”10
com concepções de Deus totalmente distintas: o
Ao tratar a presença de Platão e de Aristó-
deus Javé ou Adonai dos judeus, o deus trinitário
teles na Idade Média, escreve Alexandre Koyré:
dos cristãos, o deus Alá dos muçulmanos, o deus
dos pagãos, as deusas das bruxas e os deuses dos Frisei: mestres e educadores, e não apenas e
alquimistas, sem falar no oriente hindu, no orien- simplesmente, como se costuma dizer
te chinês e em outros cantos de tempo e espaço, com freqüência, intermediários entre o
como a África e a América não medievais. mundo grego e o mundo latino. Pois se as
Além do mais, fomos educados no Oci- primeiras traduções de obras filosóficas e
dente cristão a ler a Idade Média numa duração científicas gregas para o latim foram fei-
contínua de referencial único: o do etnocentris- tas, não diretamente do grego, mas atra-
mo cristão e do eurocentrismo iluminista. Os vés do árabe, isso não ocorreu somente
universos e mundos espácio-temporais e geopo- porque não mais havia – ou ainda não há
lítico-culturais serão lidos desde um centro, de – ninguém, no Ocidente, que soubesse
um centro agora moderno: grego, mas também e talvez principal-
mente porque não havia ninguém capaz
A Europa, desde 1492, que fora usada de compreender livros tão difíceis como a
desde antigamente, mas num sentido Física ou a Metafísica, de Aristóteles, ou o
mais amplo, diz Enrique Dussel, se con- Almagesto, de Ptolomeu, e porque, sem a
solida definitivamente no século XVI, para ajuda de Alfarabi, de Avicena ou de
distinguir esse continente da América, e Averróis, os latinos nunca teriam tido
da África e Ásia antigas. Mas agora a Eu- acesso a tais obras. É que não basta saber
ropa é a parte restrita latino-germânica si- grego para compreender Aristóteles ou
tiada pelo mundo muçulmano (de Viena a Platão – eis aí um erro freqüente entre os
Granada). Além disso agora, pela primei- filólogos clássicos –; é preciso, além disso,
ra vez, havendo uma “quarta parte” do saber filosofia. Ora, os latinos nunca sou-
mundo (América), é o “Centro” (Europa beram grande coisa de filosofia. A
como “Centro”). As outras três partes
Antigüidade latina pagã simplesmente
(América, África e Ásia) começam sua
ignorou a filosofia.11
história de “Periferia”. O “Oriente” é
agora o continente entre a Ásia Menor, o 9 DUSSEL, 1993, p. 182.
10 KOYRÉ, 1991, p. 23.
8 Ibid., p. 8. 11 Ibid., p. 23-24.

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No entanto, o Oriente também saiu da me- bniz, que criou a palavra, a justificativa da bonda-
dievalidade, particularmente os árabes, que co- de divina em resposta ao problema da existência
nheciam filosofia, teologia, traduziam os antigos do mal. Depois tornou-se sinônimo de ‘teologia
em suas escolas de tradutores, e conhecima física, natural’, que procura – à luz da simples razão hu-
medicina, óptica, literatura (e que literatura, diga- mana, isto é, da filosofia – responder às duas
se de passagem! Bastariam Las Mil y Una No- questões ‘an sit Deus’ – se Deus existe – e ‘quid sit
ches,12 como as góticas catedrais para os latinos!), Deus’ – qual é a essência de Deus”.15
astronomia, matemática, direito etc. Esses mes- Do lado da experiência cristã no Ocidente,
mos árabes que também reagiram, em razão de iremos encontrar algo totalmente distinto da ex-
sua ortodoxia islâmica e de outros fatores, como periência cristã no medievo. Com o movimento
o arruinamento da civilização árabe por invasões da reforma protestante, será possível visualizar
bárbaras, turcas e mongólicas, que lançou o Islã duas experiências também distintas de compre-
numa religião fanática, ferozmente hostil à filo- ensão e de vivência do cristianismo. No dizer de
sofia, no dizer de Koyré.13 Mas saíram com Deus Max Weber, a modernidade ocidental inaugurará,
e com ele se mantêm. O Oriente, sem cair nas ar- ao que tange à experiência cristã, um duplo asce-
madilhas das lógicas redutoras, pode-se dizer, tismo. Isso será desenvolvido em sua obra A Éti-
continua grosso modo teocêntrico. ca Protestante e o Espírito do Capitalismo.16
Já o Ocidente, que por muito tempo igno- O ascetismo extramundano, ou seja, o re-
rou a filosofia, entra diferentemente na moderni- tirar-se do mundo, será o traço característico do
dade, apropriando-se de todo um complexo cul- catolicismo. Pode-se dizer, então, que essa será a
tural, como a filosofia, a ciência, a literatura, a ar- estratégia da Contra-Reforma, caracterizando a
te, incluindo a arte da conquista e da guerra, em recusa do mundo moderno e do próprio protes-
nome agora do Cogito, ergo sum, traduzido como tantismo nascentes.
Cogito, ergo conquiro. Mas saiu sem Deus. Pelo Já o ascetismo intramundano será a nota
menos sem o Deus da revelação. Da experiência distintiva da Reforma. Aqui também estaria a es-
teológica de Deus e de um mundo e de um ho- tratégia desse movimento religioso de, perdendo-
mem criado a imago Dei, o homem moderno, no se no próprio mundo, fazer nele a abstenção por
contexto da subjetividade, vai fazer uma experiên- meio de uma ética antieudemonista, anti-hedo-
cia de Deus cuja inteligibilidade será dada, agora, nista e pró-aquisitiva. É o que Weber irá chamar
pela Teodicéia. de ética do capitalismo moderno, nascido de vários
A Teodicéia será invenção do homem mo- grupos protestantes, como calvinista, pietista,
derno ocidental, como a teoria do conhecimento, metodista e de seitas surgidas do movimento ba-
como o direito internacional, para defender as tista, entre elas, os quakers.
guerras justas, por exemplo, a obra de Juan Ginés Tanto a experiência da Reforma quanto a da
de Sepúlveda (1490-1573) e Francisco de Vitória Contra-Reforma, cada uma à sua maneira, vivem
(1486-1546), que, em nome de uma teologia po- um universo muito próprio e singular no Oci-
lítica, defendem a iusti belli iure naturali et divino dente, notadamente marcadas por modos tam-
(a causa da guerra justa por direito natural e di- bém diferentes de fazer teologia, organizar as vi-
vino).14 vências eclesiásticas, vivenciar a fé, estabelecer
No dizer de João Batista Libânio e Afonso seus ritos etc. Dizendo d’outra maneira, as expe-
Murad, a “Teodicéia significa, na acepção de Lei- riências de Deus terão significações muito pró-
prias. Esse cristianismo ocidental terá marca
12 Las Mil y Una Noches. Trad. diretamente do árabe: J.C. Mardrus.
completamente distinta – para ficarmos no âmbi-
Versão em espanhol: Vicente Blasco Ibañez (t. I, II e III). Barcelona:
Editorial Oriente, 1996.
13 KOYRÉ, 1991, p. 25. 15 LIBÂNIO; MURAD, 1996, p. 63.
14 DUSSEL, E. in: PELAEZ, 1981, p. 167 e notas da p. 189. 16 WEBER, 2001.

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to do cristianismo – do cristianismo também vi- uma demonstração embaraçosa.


vido no Oriente. Sua interrogação não nos deixa ilesos: po-
Aliás, vale reconhecer que, do ponto de vis- demos “ter fé” assim como se herda uma
ta da história, a experiência da fé, do ser igreja, do propriedade de família? Ou a fé, em um
mundo sempre em transformação que
fazer teologia, como forma de sistematização e
nos intima a agir, é uma “aposta”, sempre
de inteligibilidade dessa mesma experiência, dá-se
renovada, na busca do sentido e dos fins
de modo dividido: rupturas entre Roma e Bizân- últimos de nossa vida?
cio (na medievalidade) e Reforma e Contra-Re- Talvez fosse preciso, para falar de Deus à
forma (na modernidade), grosso modo, com três “consciência moderna”, partir do zero: do
eixos teológicos no contexto da cristandade (a te- ateísmo.
ologia ortodoxa, a teologia romana e a teologia O que o Ocidente, pela parte que lhe ca-
protestante). Visualizam-se três modus operandi be, apresenta de menos adulterado não é a
de o teólogo realizar seu ofício. técnica que, muito freqüentemente, mis-
Essa experiência religiosa, no âmbito da tura a maravilhosos benefícios um terrível
matriz cristã, construída na modernidade, será poder de destruição da natureza e dos ho-
mens, nem uma “liberdade” equívoca que,
colocada sob suspeita, assim como a modernida-
entendida como liberdade ilimitada do
de, por pelo menos um grupo de pensadores cha- mercado, gera as desigualdades mais no-
mados de mestres das suspeitas. Eles formarão a civas. Uma liberdade desse gênero é in-
qüinqüinaridade que, movendo-se no âmbito da- compatível com a justiça.
quilo que o próprio Ocidente inventou – a crítica A principal contribuição do Ocidente é a
–, irá colocar em cheque a religião no Ocidente e crítica. A negação, a destruição – ou me-
o próprio Ocidente cristão. São eles: Marx, lhor, esse desentulho necessário –, para
Freud, Darwin, Nietzsche e Kierkegaard. reconstruir sobre alicerces sólidos.17
Pode-se, então, por oposição, falar de dois
O AGNOSTICISMO como um outro mo-
outros modos de experiência religiosa que o Oci-
mento necessário à fé:
dente irá inventar: o agnosticismo e o ateísmo.
Uma terceira, distinta das duas anteriores no Dostoievski ironizava a propósito dos ci-
conteúdo e na forma, criada na experiência reli- entistas que julgavam ver no universo um
giosa da América Latina Caribenha, será a antii- “palácio de cristal” donde fora expulso o
dolatria. mistério. Sabemos hoje que, quanto mais
O ATEÍSMO como momento necessário da fé: a ciência progride, mais se alarga o círculo
de sombra que envolve a zona dos nossos
Kierkegaard, Marx e Nietzsche foram as conhecimentos. O optimismo racionalis-
etapas decisivas na minha experiência da ta pertence ao passado. Mas – outra ver-
passagem do ateísmo à fé. Não quero di- tente da situação atual – assistimos, em
zer como isso que sejam etapas necessá- especial no Ocidente, a uma pulverização
rias e universais, nem que a minha leitura das nossas referências, a um abalo dos
seja a única possível. Acho apenas que se nossos valores, a uma contestação da fé
nós os ignoramos ou nos atemos às ima- tradicional. As nossas pistas baralham-se,
gens tradicionais que, às vezes, lhes são os nossos pontos de referência desapare-
atribuídas, corremos o risco de privar a fé cem, vacilam as nossas certezas. Será o ag-
dessa tensão trágica com a dúvida que a nosticismo a religião de amanhã? Ou será
distingue de uma crença, que seria a ade- que, em desespero de causa, nos iremos
são mansa e pré-crítica às verdades esta- refugiar em cidadelas doutrinais guarda-
belecidas. das por homens armados?18
Apresento um testemunho, fruto de mi-
nha experiência pessoal, sobre os “mes- 17 GARAUDY, 1995, p. 131.
tres da suspeitas”, sem pretender impor 18 DELUMEAU, 1999, p. 15.

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A ANTIIDOLATRIA como um outro mo- bém desponta sob a forma da experiência cristã
mento ainda necessário à fé: dividida, como já visto, em suas duas asceses.20
Na continuidade e na des-continuidade, di-
Na América Latina de hoje, o problema
aleticamente falando, a pós-modernidade se vê
central não é a questão do ateísmo, o pro-
herdeira de toda essa experiência cultural. Ao
blema ontológico da existência ou não
existência de Deus. Ser ou não ser, não é mesmo tempo, defronta-se com processos extre-
essa a questão. A discussão não se dá no mamente complexos, como o capitalismo em sua
âmbito metafísico que tradicionalmente a forma globalizada gerando exclusão, uma mídia
caracterizava, o âmbito ontológico, uni- onipresente estabelecendo infinitas conexões em
versal e abstrato. E também não versa so- rede e em expansão (já se fala em internet dois,
bre o problema do ateísmo, ligado ao se- com seus processos ainda mais intricados em
cularismo e à crise própria da modernida- rede do que a internet tradicional) e a presença de
de ocidental européia. um outro modelo de homem, o homem do con-
O problema central está na idolatria sumo e da imagem – o Homo videns.21
como culto aos falsos deuses do sistema Na continuidade e des-continuidade que é o
de opressão. Mais trágico que o ateísmo é
pós-moderno, ocorre uma transformação signifi-
o problema da fé e da esperança nos falsos
cativa da experiência religiosa que o Ocidente co-
deuses do sistema. Todo sistema de
opressão caracteriza-se precisamente por
meçou a construir. Vive-se, nos dias de hoje, no
criar deuses e gerar ídolos sacralizadores Ocidente pós-moderno, uma explosão religiosa
da opressão e da antivida. sem igual, para muitos, sinal de renascimento da-
Bem ao contrário do que se poderia ima- quelas verdades religiosas há muito deixadas para
ginar, os falsos deuses não apenas existem trás ou esquecidas, graças ao ateísmo, ao agnos-
como também gozam de boa saúde. São ticismo e à antiidolatria.
muitos os seus adoradores e os invocado- Há até quem classifique o mundo pós-mo-
res de sua providência, seu amor e seu po- derno como neomedieval. E, sob certo aspecto, o
der, como abundante é a teologia que ra- é, uma vez que muitos dos problemas vividos
cionaliza uma falsa prática de libertação. hoje em dia são semelhantes aos vivenciados no
A busca do Deus verdadeiro nessa luta
medievo.22 No entanto, nesse mundo, em que
dos deuses leva-nos ao discernimento an-
pese ser neomedieval, não se pode escrever ou
tiidolátrico dos falsos deuses dos fetiches
que matam e de suas mortais armas reli-
construir as grandes provas ou vias da existência
giosas. A fé no Deus libertador, no Deus de Deus. Santo Anselmo, Santo Tomás de Aqui-
que revela seu rosto e seu mistério na luta no e São Boaventura fizeram essas construções
dos pobres contra a opressão, passa ne- filosófico-teológicas, verdadeiros edifícios seme-
cessariamente pela negação e a apostasia lhantes às catedrais góticas, pela sua beleza arqui-
dos falsos deuses. A fé torna-se antiidolá- tetônica.
trica.19 No entanto, atualmente, não mais pode-
mos construir ou arquitetar semelhantes precio-
O ateísmo, o agnosticismo e a antiidolatria
constituem, na prática oposta e inversa, o avesso 20 Cf. WEBER, 2001.
das experiências religiosas de Deus no Ocidente 21 Sobre o Homo videns, cf. SARTORI, 1998.
22 Cf. DUBY, 1999. Igualmente para Smart, “Vivemos em tempos
moderno. Essa modernidade ocidental que nasce interessantes, embora bastante confusos. A combinação da sensação
sob o signo da ciência, da técnica, da matemática, de estarmos a viver novos tempos com a existência de problemas anti-
gos tem sido descrita como um fenômeno tipicamente ‘pós-moderno’
de estruturas racionais do direito e da administra- (Eco, 1987). No mundo pós-moderno, parece que ‘o passado, o pre-
ção, que irão formatar o mundo capitalista, tam- sente e o futuro coexistem em todos os discursos’ (Tyler, 1986), uma
opinião que recebe apoio nos comentários de [Umberto] Eco sobre o
contínuo retorno da Idade Moderna à Idade Média e sobre a identifi-
19 RICHARD, 1985, p. 7. cação da nossa época como ‘neomedieval’” (SMART, 1993, p. 131).

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sidades, pois tão-somente o medievo foi capaz de visto tanto sob a ótica interna – fim dos
tal proeza. Nosso tempo, ao contrário, somente praticantes, fim do clero, destruição ou
pode elaborar ou tecer relatos da história de ilegitimação da estrutura eclesial etc. –
Deus,23 pois falar de Deus no mundo pós-mo- como visto sob a ótica externa – grau de
credibilidade do cristianismo, capacidade
derno virou um grande sintoma. Se Deus e as
de diálogo com a cultura de seu tempo,
construções das vias eram possíveis no medievo,
nível de atração de sua mensagem etc.).24
os nossos dias não mais comportam essa possibi-
lidade. Hoje isso não é mais possível no Ocidente Se com Kant movemo-nos em dois impos-
moderno, a despeito da explosão religiosa. Essa síveis – o educar e o governar –, se com Freud
explosão, além de reveladora de uma experiência deslocamo-nos em mais um impossível – o psica-
autêntica de Deus, é, antes de tudo, um grande nalisar – e se com Lacan, em mais um outro im-
sintoma indicador, ao mesmo tempo, de uma possível – o amar –, a questão central dessa refle-
nova doença, uma nova doença na/da alma/cor- xão está para o crer. Essa quinta impossibilidade,
po/espírito do homem pós-moderno. portanto, coloca a possibilidade de Deus e do dis-
Depois da qüinqüinaridade filosófica, ou curso de Deus, ou seja, a teologia.
seja, após Marx, Freud, Nietzsche, Darwin e Ki- Cabe aqui fazer uma distinção entre Deus
erkegaard, que já apontam para essa impossibili- enquanto impossível e a impossibilidade de Deus
dade de Deus no pós-moderno, o Ocidente não no Ocidente. Deus enquanto impossível é entendi-
pode mais caminhar movendo-se na crença da do aqui à maneira dos outros quatro impossíveis,
possibilidade d’Ele. Algo mudou. Na pós-moder- como impossibilidade estrutural, ou seja, não se
nidade não só modificou-se a forma de represen- pode acessar a numinosidade, ou a coisidade da
tação de Deus, mas a possibilidade de acesso a coisa, kantianamente falando. Vale dizer, a essên-
Deus, muito distinta das experiências do homem cia da coisa. Já sobre a impossibilidade de Deus no
medieval e do homem moderno. Ocidente, supõe-se a idéia de sua impossibilidade
O quinto impossível ou quando Deus é im- estrutural, mais o fato de que no Ocidente tudo
possível e a impossibilidade do ofício do teólogo, é, antes de tudo, mediatizado pelo mercado e pe-
então, é uma reflexão necessária sobre a questão las linguagens constitutivas do próprio mercado.
religiosa na modernidade e na pós-modernidade, Portanto, se a primeira impossibilidade está tanto
sem deixar as conexões com a medievalidade, para o Oriente como para o Ocidente em virtude
sem abandonar as associações do Ocidente com de algo estrutural, no Ocidente, além da impossi-
o Oriente, nem de fazer a pergunta central à con- bilidade, do ponto de vista estrutural, a outra im-
temporaneidade: o que significa fazer a experiência possibilidade se faz real, pelo fato de tudo neces-
de Deus no pós-moderno? sariamente passar pelas malhas do mundo merca-
dológico. O que são o amor, a sexualidade, a fé, o
Em comparação com estes modelos, saber, o corpo etc. senão mercadorias!
como é o modelo de religiosidade do ho-
O mercado atual, em sua fase re-signi-fica-
mem pós-moderno? Que acontece com
da em forma de imperialismo e totalitarismo glo-
os interesses religiosos quando as energias
da utopia moderna se esgotam? Existe bal, impõe-se como critério de verdade. É ele que
um retorno de valores ou apenas uma determina: as políticas de um país, particularmen-
queda de valores? Que futuro resta ao te o pagamento daquilo que é impagável; os cur-
cristianismo numa época denominada sos e os seus respectivos conteúdos nas universi-
precisamente pós-cristã? (E este futuro, dades, e suas respectivas políticas, tendo em vista
formar os alunos e, conseqüentemente, os pro-
23 Sobre os relatos da história de Deus, conferir as seguintes obras,
fessores à sua imagem e semelhança; o modo de
entre as muitas que abundam as livrarias: CARLSON & SHIELD,
2002; ARMSTRONG, 2001 e 1998; SADLEIR, 2001; QUAKNIN;
BOTTERO; MOINGT, 2001. 24 CASTIÑEIRA, 1997, p. 163.

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se vestir e de se portar no convívio social, portan- de de linguagem, de diálogo, portanto. A guerra,


to, a moda; as relações de classes sociais; as rela- sendo barbárie, significa ausência de toda e qual-
ções amorosas, pois o matrimônio é hoje muito quer mediação de linguagens, sob o aspecto se-
mais uma relação contratual estabelecida pelos miótico.
bens, prática reforçada pelos fóruns, advogados e Faz-se necessário, à maneira de um impera-
cartórios, ou seja, o amor virou um ato cartorial; tivo, voltar a três fontes, duas européias e uma la-
os que se mantém no sistema como produtivos e tino-americana-caribenha. As européias a que me
os que são abortados dele, como improdutivos, refiro são: a Paz Perpétua, de Immanuel Kant,
isto é, os velhos, as crianças de rua, os analfabetos obra de 1795, e as correspondências entre Eins-
etc.; a fé numa teologia fundamentalista e de tein e Freud. Vale, pelo menos, reter o que Eins-
prosperidade; inclusive a morte, pois ela virou tein diz:
uma mercadoria rentável, uma vez que o exercí-
cio de poder sobre os velórios – pois não se vela O intenso desejo de poder, que caracteri-
mais em casa – consiste em redes especializadas e za a classe governante em cada nação, é
hostil a qualquer limitação de sua sobera-
de alto nível.
nia nacional. Essa fome de poder político
Por outro lado, mais grave ainda é a identi- está acostumada a medrar nas atividades de
ficação do mercado com a sua própria diviniza- um outro grupo, cujas aspirações são de ca-
ção. O mercado é da ordem do divino, do onis- ráter econômico, puramente mercenário.
ciente, do onipotente, do incriado, cuja mão Refiro-me especialmente a esse grupo re-
invisível distribui suas graças, e regula, aquece, duzido, porém decidido, existente em
salva, cura, mediatizado pela sua teologia revela- cada nação, composto de indivíduos que,
da, a economia: in God we trust! indiferentes às condições e aos controles
sociais, consideram a guerra, a fabricação
Esse mercado divinizado determina aqueles
e venda de armas simplesmente como
que são do eixo do Bem e os do eixo do Mal, por uma oportunidade de expandir seus inte-
exemplo Irã, Iraque e Coréia do Norte. Ou seja, resses pessoais e ampliar a sua autoridade
há um novo céu e uma nova Terra. As guerras se pessoal.25
dão em forma de novas cruzadas, agora com um
arsenal todo sofisticado pela técnica e pela ciên- Outra fonte, essa para as nossas paisagens
cia. Cruzadas pontuais, cirúrgicas, higiênicas, te- latino-americana-caribenhas, vem de Frei Barto-
levisionadas em tempo real. Em nome de deus, lomé de Las Casas, do século XVI. De toda a ope-
por conseguinte, continua se fazendo guerras, ra omnia de Las Casas, a Brevísima Relación de la
destruindo o outro diferente, a cultura do outro Destruición de las Indias26 é ilustrativa para se
diferente, a religião do outro diferente, o ethos compreender o primeiro grande holocausto reali-
do outro diferente, como modo de ser, sentir, zado nesse mundo, que não é europeu, nem
pensar, agir, amar, querer, desejar. ameríndio, mas outra coisa, no dizer de Enrique
Há uma impossibilidade estrutural como Dussel, que não sabemos. Essa obra, nossa pri-
impossibilidade de Deus. Há uma outra impossi- meira forma de fazer história, teologia e filosofia
bilidade de Deus, inaugurada pelo Ocidente, esse para além ou aquém da lógica ocidental moderna
Ocidente moderno latino e cristão. A cristandade da ilustração, mostra, de maneira contundente,
ocidental defronta-se com sua própria impossibili- como uma guerra foi justificada em nome da con-
dade. A única possibilidade de o Ocidente se re- quista e da evangelização – o que tem a ver com o
encontrar de forma autêntica, reconhecendo a im- sinalizado anteriormente sobre a iusti belli iure
possibilidade estrutural que também está para o naturali et divino.
Oriente, é a via do diálogo. A guerra, santa ou
25 EINSTEIN e FREUD, “Por que a Guerra?” (“Warum Krieg?”),
não, de prevenção ou não, é sempre barbárie, é 1933 [1932], in: FREUD, 1976, p. 242-243 (grifos acrescidos).
sempre destruição de toda e qualquer possibilida- 26 LAS CASAS, 1997.

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Nesse contexto, Kant, Freud, Einstein e mundo uno necessita de uma ética básica.
Las Casas devem ser revisitados para nos ajudar Certamente a sociedade mundial não ne-
a compreender ou, pelo menos, a melhorar a cessita de uma religião unitária, nem de
formulação da pergunta do teólogo europeu uma ideologia única. Necessita, porém,
de normas, valores, ideais e objetivos que
Hans Küng. Por ter mexido com os dogmas e as
interliguem todas as pessoas e que todas
questões da infalibilidade papal, Küng perdeu a
sejam válidas.29
cátedra de teologia católica e, mais, teve negado
“o título de teólogo e até o de cristão”.27 Em sua Sem essa possibilidade real do diálogo dife-
obra Existe Deus? Resposta ao problema de Deus rencial entre Ocidente e Oriente, entre os mun-
em nosso tempo (Existiert Gott?), ele questiona: dos das várias culturas, entre as gentes dos ethos
“pode-se como ocidental e cristão seguir falan- mais distintos, não haverá paz. E paz aqui não é
do hoje de Deus e de Cristo como se a conce- ausência de conflito, de tensão, de mal-estar ne-
pção de Deus existente no Ocidente e, particu- cessário. Esses elementos são fundamentais por-
larmente, no cristianismo fora a única possí- que estruturantes da diversidade da espécie.
vel?”28 Aquele que primeiro se assumiu como anarquis-
Em outro livro, Küng sinaliza que o nosso ta, Pierre-Joseph Proudhon, em A Guerra e A
tempo é tempo de diferenças, portanto, de dife- Paz, não faz nenhuma apologia da guerra, como
renças religiosas, ideológicas. Não é possível muitos pensaram, e ainda pensam. Ao contrário,
mais uma única ideologia, nem uma única reli- nessa obra, Proudhon
gião que se apresente como critério único de
queria mostrar que a sociedade se encon-
verdade, mas uma ética para todos é de funda-
trava num estado de tensões perpétuas
mental necessidade e importância. Em Projeto entre os diferentes grupos sociais que a
de Ética Mundial: uma moral ecumênica em vista compõem, que o máximo de tensão, quer
da sobrevivência humana (Projekt wltethos), de dizer a guerra, não era, nas sociedades ca-
1990, esse autor, em sua maturidade e responsa- pitalistas, mais um dos meios mais brutais
bilidade como teólogo, propõe uma programá- de resolução das contradições econômicas.
tica para um indispensável diálogo entre as reli- Que a vida em sociedade tem lugar sob o
giões, acreditando que o tempo está maduro signo do conflito, que a criatividade, quer
para esse desafio. dizer a livre expressão da vida, e o pro-
gresso não podem realizar-se a não ser
Dialogando no âmbito da problemática da
que se faça luz para se resolverem. Que é
modernidade e da pós-modernidade, e tendo
preciso procurar, em permanência, as for-
como fundamentos os elementos teórico-herme- mas de organização social que permitam
nêuticos por ele construídos, Küng afirma: aos conflitos aparecer e aprender a supor-
O que para mim se coloca como resulta- tar os estados de tensão.30
do é a necessidade de uma ética para toda
Para Hans Küng, “não haverá coexistência
a humanidade. Nos últimos anos, ficou-
me cada vez mais claro que este mundo humana sem uma ética mundial por parte das
em que vivemos somente terá uma nações. Não haverá paz entre as nações sem paz
chance de sobreviver se nele não mais entre as religiões. Não haverá paz entre as religiões
existirem espaços para éticas diferentes, sem o diálogo entre as religiões”.31
contraditórias ou até conflitantes. Este
29 Idem, 1993, p. 8.
27 SANTIDRIÁN, 1998, p. 319. 30 TRINDADE, 2001, p. 73 (grifos acrescidos).
28 KÜNG, 1979, p. 798. 31 KÜNG, 1993, p. 186.

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Dados do autor
Professor de filosofia e teologia na UNIMEP,
professor de filosofia no Seminário dos Frades
Capuchinhos de Piracicaba (SP) e no Colégio
Piracicabano. Doutor em comunicação e
semiótica pela Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo (PUC-SP).

Recebimento artigo: 7/abr./03


Consultoria: 15/abr./03 a 12/maio/03
Aprovado: 12/maio/03

106 Impulso, Piracicaba, 14(34): 95-106, 2003


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Gênero e os Desafios
Epistêmicos para a Teologia
e outros Saberes
GENDER AND EPISTEMIC CHALLENGES
FOR THEOLOGY AND OTHER KNOWLEDGES
Resumo Em uma hermenêutica de gênero, o processo de leitura da realidade procura
privilegiar os movimentos e momentos de encontro e diálogo entre as experiências de
vida de quem procede à leitura e as das pessoas identificadas no processo analítico, em
suas sucessivas realidades cotidianas. A concepção das relações sociais de gênero apre-
TÂNIA MARA VIEIRA
senta-se como um novo paradigma, capaz de não simplesmente visibilizar mulheres
SAMPAIO
e/ou grupos oprimidos, mas de iluminar as descobertas sobre a estruturação das
Universidade Metodista de
opressões e dos jogos de poder que organizam discursos normativos e estabelecem Piracicaba (UNIMEP, Brasil)
controles sociais. Mais que um encontro entre histórias de vida, esse jeito de ler a re- tsampaio@unimep.br
alidade quer demarcar uma nova trajetória dos paradigmas de construção dos conhe-
cimentos e de decodificação dos discursos, sejam eles teológicos ou oriundos de ou-
tras áreas de saber.

Palavras-chave GÊNERO – COTIDIANO – COMPLEXIDADE – PODER – CÂNTICO


DOS CÂNTICOS.

Abstract In the gender hermeneutics, the process of reading reality attempts to pri-
vilege movements and moments of encounter and dialogue between life experiences
of the person who makes such reading and those of the people identified in the analy-
tical process, in their successive daily realities. The conception of social relations of
gender presents itself as a new paradigm, capable not only of making women or the
oppressed groups visible, but also of illuminating the discoveries concerning the
structure of oppression and of power games that organize normative discourses and
establish social controls. More than an encounter between life histories, this way of
reading defines a new path for paradigms that build knowledge and decode discour-
ses, whether theological or deriving from other fields of knowledge.

Keywords GENDER – DAILY-LIFE – COMPLEXITY – POWER – SONGS OF SONGS.

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INTRODUÇÃO

A
presente reflexão visa identificar aportes das teorias de gê-
nero na perspectiva de instrumentais de análise tanto da
área de conhecimento da teologia e das ciências da reli-
gião quanto de seus desdobramentos para a interlocução
com outras áreas de conhecimento. O propósito é ins-
taurar a discussão sobre os paradigmas que orientam a
socialização do saber acumulado, a produção de conheci-
mentos novos e os parâmetros que definem a relevância
social das pesquisas e das intervenções em realização. Confrontar o pro-
cesso da indissociabilidade do ensino-pesquisa-extensão da universidade
à luz da categoria de gênero significa enfrentar alguns dos atuais questiona-
mentos acerca das relações sociais de poder que estruturam o cotidiano de
vida e de produção do conhecimento das pessoas.
A proposta analítica aqui pretendida depende de que a categoria gê-
nero seja compreendida como referencial de análise fundado nas concre-
tas relações sociais de gênero e que se estruturam na realidade relacional
dos seres humanos. Não se trata, portanto, de isolar a mulher como ca-
tegoria específica, mas de exigir que a relação mesma entre homens e mu-
lheres seja o foco da análise. O eixo fundamental é identificar as estru-
turas de poder e controle imbricadas nas relações e sua respectiva pro-
dução e reprodução do saber.1

GÊNERO: UMA CONSTRUÇÃO HISTÓRICO-CULTURAL


É importante considerar gênero como uma categoria tanto de aná-
lise quanto histórica. Não há sociedade que não elabore imagens vincu-
ladas ao masculino e ao feminino e em que essas construções não sejam
datadas e contextualizadas.2 As ações humanas não são apenas fruto de
decisões racionais, mas estruturam-se a partir do imaginário social, com
seus simbolismos que subsistem nas culturas. “São produções de sentido
que circulam na sociedade e permitem a regulação dos comportamentos,
de identificação, de distribuição de papéis sociais.”3 Esse complexo me-
canismo de construção de um saber com características de algo natural e
aparência de imutabilidade precisa ser desvelado por uma atitude cientí-
fica de suspeita e superação epistemológica.
O caráter fundamentalmente social das distinções baseadas no sexo
adverte para a compreensão de que a dimensão de sexo não se restringe
ao aspecto puramente biológico, mas transita nas construções sociais.
Esse dado nos permite não naturalizar processos de caráter histórico, in-
terpondo-se aqui a categoria gênero como algo distinto de sexo.4 A per-
cepção do sexo anatômico de uma criança, logo após o seu nascimento,

1 NUNES, 1995.
2 GUEDES, 1995.
3 TEVES, 2000, p. 190.
4 SCOTT, 1991.

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não necessariamente corresponderá ao seu gêne- cabilidade analítica aos processos estruturais. Na
ro. As matrizes de gênero desenhadas nas cultu- visão da autora, a articulação das categorias de
ras e nos processos históricos têm força de im- classe, de etnia/raça e de gênero assinala um duplo
primir aos corpos algo que transcende sua anato- compromisso, o da inclusão dos discursos das
mia. Na visão de Heleieth Saffioti, Jo Ann Scott pessoas que experimentam a opressão e o da re-
avança ao dizer que o sexo é o que percebemos do alização de uma análise do sentido e da natureza
sexo anatômico de uma genitália de macho ou de dessas opressões.6
fêmea. A partir daí inicia-se o processo de Mais do que articulados, classe-etnia-gênero
socialização desses corpos com as imagens do estão enovelados, segundo Heleieth Saffioti, por-
masculino e do feminino disponíveis na cultura. que, em sua análise, articulação se faz de coisas
Por exemplo, vestir o corpo masculino de azul e distintas e separadas. E classe-etnia-gênero, assim
o corpo feminino de cor-de-rosa é um dos mui- como exploração-dominação não são distintas e
tos sinais desse processo de construção da iden- separadas, mas constituem faces de uma mesma
tidade de gênero.5 moeda/realidade, a exemplo da produção-repro-
Gênero apresenta-se como uma possibili- dução – duas facetas importantes da vida ou as-
dade teórica que enfrenta a pergunta pelas rela- pectos de um mesmo fenômeno. Conceber um
ções sociais de poder e, portanto, é capaz de ar- separado do outro é pensar no político (domina-
ticular não só a confluência das relações de sexo, ção) desconectado do econômico (exploração),
mas também étnicas e de classe, que atravessam quando, de fato, um nunca se desvincula do ou-
as diferentes parcelas da humanidade. O referen- tro; ambos acontecem não apenas no espaço pú-
cial teórico dessa reflexão demarca-se pela ênfase blico, mas também no privado. Analogamente se
no poder presente nas relações de gênero e nas pode dizer o mesmo do trinômio classe-etnia-gê-
demais relações sociais entre as quais se nomeia nero.7
as étnicas e as de classe. Não se pretende homo-
geneizar o corpo acadêmico e sua cotidiana lida PRODUÇÃO DO SABER E EXERCÍCIO DE
com o saber construído e a ser construído, sob
PODER
pena de não se chegar ao nível analítico com sua
exigência de des-construção dos mecanismos que A identificação das questões de poder que
produzem e reproduzem, de modo sutil, as hie- estão em jogo nos processos de construção do
rarquizações das diferenças. saber, ou na estruturação da realidade, permite
avaliar a relevância de uma análise da produção
O saber, em sua construção e transmissão
acadêmica pelo viés de gênero. Não se trata de
teórica, igualmente à realidade, tem por base re-
um aspecto de fácil compreensão e possibilidade
lações sociais de poder. As relações de gênero, em
de detecção na realidade, uma vez que o poder
ambas as situações, apresentam-se marcadas por
encontra-se como que pulverizado. Perceber o
interesses e associações assimétricas que, muitas
poder como algo molecularmente presente nas vá-
vezes, subordinam as mulheres, bem como ou-
rias esferas sociais, e em sua característica de dis-
tros grupos sociais.
persão, dificulta a localização dos mecanismos de
Segundo Jo Ann Scott, na medida em que
controle e, conseqüentemente, sua des-instala-
gênero constitui uma categoria de análise, é pos-
ção.8
sível estabelecer analogias com a classe e a raça,
levando em consideração que as desigualdades de Compreender o conceito de relações de gê-
poder organizam-se, no mínimo, segundo esses nero como instrumento capaz de captar a trama
três eixos – muito embora não se possa afirmar das relações sociais, bem como as transformações
uma paridade entre esses três termos e sua apli- 6 SCOTT, 1991.
7 SAFFIOTI, 2000.
5 SAFFIOTI, 2000. 8 TEVES, 2000.

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historicamente sofridas por meio dos mais distin- de processos socialmente construídos e a análise
tos processos sociais, implica admitir que o pro- das relações sociais de poder. Esse procedimento
cesso de dominação-exploração não presume o analítico considera o poder não como uma ins-
total esmagamento da personagem que figura no tância absoluta e estática, mas como um conjunto
pólo de dominada-explorada. Esse dado é de fun- de forças que se move entre/contra/sobre/com
damental importância quando desejamos superar os diversos sujeitos sociais. Portanto, trata-se da
o debate com a sociedade patriarcal, como se suas análise das distintas parcelas de poder vividas pe-
estruturas retirassem totalmente, ou absoluta- los grupos sociais em uma determinada estrutura
mente, o poder das mulheres, das minorias étni- social.
cas etc. “Homem e mulher jogam, cada um com Nesse sentido, a concepção de poder de
seus poderes, o primeiro para preservar sua su- Foucault tem sido apreciada, e utilizada em mui-
premacia, a segunda para tornar menos incom- tas reflexões teóricas feministas, por sua perspec-
pleta sua cidadania.”9 Certamente, o acesso ao tiva de considerar que o poder apresenta-se como
poder é desigual, imprimindo essa marca nas re-
constelações dispersas, em parcelas apropriadas
lações sociais, sejam elas de gênero, de classe, se-
diferentemente pelos grupos sociais e em contra-
jam de etnia/raça.
posição a uma visão de poder como bloco
A compreensão dos acontecimentos no homogêneo e único por parte das esferas domi-
viés das relações sociais de poder converte-se em nantes.10 “Enfim, precisamos substituir a noção
uma chave de leitura que capta a multiplicidade de que o poder social é unificado, coerente e cen-
de relações que se entrecruzam e se entredeter- tralizado por alguma coisa que esteja próxima do
minam. Admitir a perspectiva de que falar em re-
conceito foucaultiano de poder, entendido como
lações sociais é falar de relações de poder faz aflo-
constelações dispersas de relações desiguais cons-
rar a realidade da existência de grupos sociais em
tituídas pelo discurso nos ‘campos de força’.”11
confronto. O desafio que se instala é o de olhar
a questão de modo mais dialético, dinâmico, pois O processo de visibilização das pessoas
a própria condição de subordinação está acompa- apagadas da história é importante, mas insuficiente.
nhada de movimentos de resistência e apropria- Seu protagonismo deve ser visto dentro dos limi-
ção desses espaços. Exaltar a participação da mu- tes das condições sociais. A contradição perpassa
lher, do negro, do empobrecido (em qualquer toda a análise, não é absolutamente nítida e uní-
coisa), como justificativa de que não há discrimi- voca. Por exemplo, “as mulheres não sobrevivem
nação, é obscurecer o conflito. Se, de um lado, as- graças exclusivamente aos poderes reconhecida-
sumir a conflitividade da relação entre os grupos mente femininos, mas também mercê da luta que
sociais ajuda no reconhecimento dos grupos do- travam com os homens pela ampliação-modifica-
minantes, de outro, a exaltação nega o conflito e ção da estrutura do campo de poder”.12
encobre que, entre os próprios grupos sociais, A categoria de gênero pressupõe o enfren-
não há homogeneidade. O protagonismo social/ tamento dos jogos de poder, inserindo a leitura
real limitado para mulheres, negros, indígenas, da realidade e dos processos de produção do sa-
empobrecidos precisa ser olhado no interior das ber em um novo horizonte, não apenas metodo-
relações sociais de dominação vividas por esses lógico, mas epistemológico. Tal fato promove o
grupos. diálogo entre pessoas envolvidas em pesquisa/en-
Os estudos mediados pela categoria de gê- sino/extensão que desejam construir suas ações
nero evidenciam os processos normativos de
10 GUEDES, 1995; SAFFIOTI, Heleieth I.B. “Rearticulando gênero
construção do saber, visando a des-naturalização
e classe social”. In: COSTA; BRUSCHINI, 1992; e TEVES, 2000.
11 SCOTT, 1991, p. 14.
9 SAFFIOTI, Heleieth I.B. “Rearticulando gênero e classe social”. In: 12 SAFFIOTI, Heleieth I.B. “Rearticulando gênero e classe social”. In:
COSTA; BRUSCHINI, 1992, p. 184. COSTA; BRUSCHINI, 1992, p. 184.

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cotidianas como resposta às exigências e urgên- ça a reflexão analítica de Fritjof Capra sobre es-
cias dos corpos para viver uma vida digna. tarmos diante de uma crise de percepção. A mu-
Essa nova maneira de compreender o mun- dança de percepção e de construção do pensa-
do e o ser humano coopera para desvelar o poder mento parece ao autor um dado irreversível. Em
dos mecanismos de estruturação do conhecimen- questão está a necessidade de superar o paradig-
to e influir nos seus processos de transmissão, ma dominante, e quase universal, de percepção
bem como para mudar a estrutura hierárquica de do universo e do ser humano como um sistema
poder estabelecido. “Produção do saber e exercí- mecânico no qual a crença no progresso material
cio do poder, longe de se constituírem em esferas ilimitado anda par e passo com a crença em uma
estanques e separadas, aparecem historicamente sociedade em que a mulher é classificada em po-
indissociadas.”13 A correlação entre poder e saber sição inferior ao homem (o que seguiria uma lei
traz consigo a pergunta sobre o método de cons- básica da natureza), bem como a própria natureza
trução do conhecimento e seus pressupostos se encontra em posição subalterna ao ser huma-
básicos. no.16
A esse modelo de percepção do mundo
apresenta-se a perspectiva de reconhecer a inter-
DEBATE EPISTEMOLÓGICO
dependência fundamental de todos os fenôme-
DECORRENTE DA ANÁLISE DE GÊNERO nos e seres vivos do ecossistema. Sua proposta de
Na visão de Ivone Gebara, as epistemolo- acercamento da realidade para a construção do
gias tradicionais precisam ser desafiadas não ape- conhecimento apresenta-se nos seguintes ter-
nas pela agregação de aspectos novos, mas care- mos: “do ponto de vista sistêmico as únicas
cem de uma revisão de seu núcleo básico. Entre soluções viáveis são as soluções ‘sustentáveis’
outras coisas, tal visão implica uma nova antro- (...). Uma sociedade sustentável é aquela que sa-
pologia. Exige que os seres humanos tomem po- tisfaz suas necessidades sem diminuir as perspec-
sição ante a si mesmos, aos demais seres huma- tivas das gerações futuras”.17 A perspectiva da in-
nos, aos seres vivos e ao ecossistema. Requer, terdependência introduz uma nova compreensão
dessa maneira, perguntar sobre a percepção de do conhecimento e repercute nas posturas éticas.
mundo que se tem a fim de superar dogmatismos Segundo Ivone Gebara, a concepção de interde-
contra os quais propõe o movimento da vida. E pendência no conhecimento “é a experiência mais
esse, como dinâmica instigadora do que parece básica de todos os seres, anterior à nossa cons-
óbvio e definitivo.14 Nas palavras de outros auto- ciência dela (...). Temos de abrir-nos para expe-
res que instigam novas perspectivas epistemoló- riências mais amplas do que aquelas a que nos ha-
gicas, pode-se conferir a afirmação de que “a di- bituamos secularmente. Temos de introduzir nos
nâmica da vida é essencialmente processual, e processos educacionais a perspectiva de ‘comu-
suas metáforas-guias não podem ser emprestadas nhão com’ e não a de conquista da Terra e do
da mecânica, porque precisam provir de proces- Cosmo”.18
sos vivos. Todos os sistemas vivos são sistemas O desejado para esse momento de debate
aprendentes e desejantes”.15 epistemológico é que se inaugurem tempos e de-
O processo acadêmico é um espaço impor- sejos de aprender com a outra pessoa, de sonhar
tante, embora não o único, para desencadear no- novos sentidos para a existência, de afirmar a vida
vas percepções da vida e dar vazão aos desejos ca- na superação de relações de dominação-explora-
pazes de construir outros mundos possíveis. No ção de um gênero sobre outro, de uma etnia so-
cerne dessa discussão epistemológica, ganha for- bre outra, de uma classe sobre outra, de seres hu-

13 NUNES, 1995, p. 10. 16 CAPRA, 1996.


14 GEBARA, 1997. 17 Ibid., p. 24.
15 ASSMANN; SUNG, 2000, p. 7. 18 GEBARA, 1997, p. 60-61.

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manos sobre o ecossistema. Urge superar o po- – por nele acontecerem as lutas e transformações
der no sentido de dominação sobre os outros e sociais –, não se limitando, portanto, a encará-lo
pensá-lo com base em uma mudança do paradig- como mero lugar de repetição.
ma de hierarquia para o de redes de conexões e A opção metodológica de reconhecer a re-
interdependências. Nesse caso, a rede se compõe levância dos aspectos do cotidiano para formular
da diversidade de fios interdependentes, sem que as perguntas à realidade possibilita aproximar-se
as diferenças resultem em processos de desigual- dos desejos, anseios, sonhos, ausências e proces-
dades e inferiorização de uns em relação a outros, sos de resistência presentes na construção das ex-
como ocorre na concepção hierárquica de poder. periências de vida das pessoas e de suas comuni-
Esse é um convite a repensar e reinventar dades. Ademais, ajuda a clarear que as grandes
nossas relações e referências de percepção do questões políticas, econômicas, sociais ou religio-
mundo e do conhecimento. Um convite a des- sas não são as únicas importantes. Na experiência
construções e construções que desafiam à cotidiana, composta de inúmeros detalhes – cor-
interlocução, e não ao dogmatismo. Nesse senti- rendo, por isso, o risco de parecer supérflua à
do, Ivone Gebara propõe revisitar as epistemolo- análise –, acontece, de fato, a construção das re-
gias de corte patriarcal, androcêntrico e antropo- lações sociais de poder.
cêntrico, inclusive, para inaugurar a possibilidade A aproximação do cotidiano resulta da busca
de uma episteme por ela denominada de ecofemi- de superação da dicotomia entre o concreto das re-
nista. Tal epistemologia distinta abre-se a pensar lações humanas e os raciocínios abstratos das for-
na interdependência e realidade processual na mulações dos saberes com base nas articulações
estruturação do conhecimento, superando pre- gênero-cotidiano. Isso se explica pelo fato de as re-
tensas superioridades dos seres humanos.19 lações de poder entre os grupos sociais estarem
A urgente tarefa de enfrentar o debate presentes na dinâmica movimentação dos corpos,
epistemológico na academia, tomando por base quando esses afirmam tanto a sua própria existên-
uma perspectiva de gênero, foi aqui assumida por cia no mundo quanto as demais existências que
meio de uma abordagem que contempla a discus- lhes animam.
são teórica de gênero e sua articulação com o co- A percepção orientadora dessa reflexão é a
tidiano, incluindo o do diálogo entre os saberes. de que a assimetria de poderes entre homens e
Isso porque o cotidiano é político e se organiza mulheres reforça processos de inferiorização e
nos conhecimentos científicos tornados naturais,
exclusão e oprime todas as pessoas, mulheres e
vistos muitas vezes como óbvios e sobre os quais
homens. A superação da fixidez e da binariedade
não se reflete, apenas se vive. Nesse sentido, é
das matrizes de gênero pode promover uma forte
mister considerá-lo como elemento estruturador
revisão e desconstrução do caráter normativo das
do acontecer histórico e relacionado com a vida
construções histórico-sociais para os sexos, ques-
do ser humano inteiro em seus múltiplos senti-
tionando, desse modo, as construções androcên-
dos.20 Defronta-se com a necessidade de desna-
tricas de controle dos corpos que tendem a natu-
turalizar processos construídos historicamente.
ralizar o que é fruto de construção social e histó-
A análise, nesse caso, ocupa-se em descre- rica.
ver as relações cotidianas expressas nos movi-
Posturas epistemológicas novas são poten-
mentos de mulheres e homens no interior da ca-
cialmente possibilitadoras de abertura a sentidos
sa, nos locais de trabalho, nas festividades públi-
ainda não descobertos, muito provavelmente
cas, nas práticas religiosas... Admite-se o cotidia-
porque a respeito deles nada se indagou ainda.
no como espaço significativo das relações sociais
No horizonte dessa reflexão está a intenção de
19 Ibid.
romper com mecanismos de controle dos corpos
20 HELLER, 1989. em suas relações cotidianas, expressas muitas ve-

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zes nos textos e nos sentidos oriundos deles para cotidianas promove não apenas a reflexão sobre o
a vida. objeto, mas põe em questão a pessoa que inves-
tiga (o sujeito), com suas múltiplas implicações.
GÊNERO NO DEBATE ACADÊMICO E Na arte de compreender um texto emerge, simul-
IMPLICAÇÕES METODOLÓGICAS taneamente, a pluralidade de sentidos que lhe é
própria e a mediação para a auto-revelação de
O eixo privilegiado de sentido das relações
quem empreende a leitura.23 Tal compreensão
sociais de gênero orientador desse ensaio apóia-
não se restringe somente à projeção no texto, im-
se na convicção de que as diversas ciências são sa-
beres construídos e permeados de questões de plicando, também, expor-se a ele e reconhecer a
poder, portanto, passíveis de serem desconstruí- existência de textos que não acolhem essa auto-
dos, reconstruídos e construídos em novas bases exposição ou não permitem a revelação de quem
e critérios. os lê.
O propósito de mapear as relações sociais Por essa razão, a aproximação pretendida
de gênero, na multiplicidade dos movimentos co- das produções de saber traz luz não apenas às
tidianos presentes nos textos normativos das ciên- surpresas do próprio conhecimento, mas tam-
cias (igualmente nas produções teológicas), em bém aos impasses de quem o interroga. Revela,
consonância com essa perspectiva de abertura de- desse modo, a busca de conhecimento de quem
les para o mundo de quem se ocupa de sua aná- está no processo investigativo, bem como sua
lise, já é uma tomada de posição teórico-metodo- produção de saber, sua subjetividade, sua parcia-
lógica. Essa, por sua vez, incide em uma atitude lidade e seletividade, seus traços culturais e histó-
de ruptura com as pretensões de neutralidade na ricos e sua pertença social. É importante retomar
produção do conhecimento ou da hermenêutica. as palavras de Paul Ricouer: “Aquilo de que final-
mente me aproprio é uma proposição de mundo.
O marco teórico em que se inscreve a con-
Essa proposição não se encontra atrás do texto,
cepção de um sujeito identificado com a escolha
como uma espécie de intenção oculta, mas diante
do objeto e do método de trabalho reafirma a
dele, como aquilo que a obra desvenda, descobre,
neutralidade como um mito.21 Traz também à
revela. Por conseguinte, compreender é compreen-
tona o questionamento de uma objetividade pura
der-se diante do texto”.24
para se associar aos estudos que afirmam ser a ob-
jetividade situada a única concebível. Além de da- Ao analisar a construção do conhecimento,
tada, sexuada e racificada, ela implica tanto elimi- ainda que seja preciso admitir que todo saber car-
nar as dualidades sujeito-objeto, objetividade- rega limites inerentes ao processo de fixação pelo
subjetividade, racionalidade-emotividade, públi- ato da escrita, não se pode sucumbir a um pro-
co-privado, pessoal-político etc. quanto questio- cesso de fixidade interpretativa, particularmente
nar o caráter genérico, universal e atemporal das àquela calcada em estereótipos que descaracteri-
hermenêuticas e dos conhecimentos.22 zam determinados grupos sociais. É preciso en-
A leitura que ora se propõe para os textos frentar a fixidade normativa com outra caracte-
normativos dos saberes, entre eles, a teologia, não rística inerente a um texto teórico: sua riqueza se-
está desprovida de pressuposições e influências mântica e abertura polissêmica.25 Esse caráter
do contexto de quem procede à interpretação; acompanha a dinâmica e a pluralidade das expe-
tampouco o estão as outras leituras com as quais riências humanas, sempre que conferem sentido à
qualquer estudo estabelece diálogo e confrontos. sua existência.26 Desse modo, o caminho selecio-
O exercício pautado pelo paradigma das relações nado é o de estabelecer perguntas novas durante
sociais de gênero no contexto das experiências 23 RICOEUR, 1977.
24 Ibid., p. 57-58.
21 JAPIASSU, 1981. 25 RICOEUR, 1977; NUNES, 1995.
22 SAMPAIO, 1999. 26 HELLER, 1989.

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o processo analítico para recriar horizontes no- tempo, caos e as leis da natureza é, em si, um con-
vos de compreensão. vite interpelativo às ciências para rever sua pro-
Com base nesses pressupostos de contex- clamação de verdades universais irreversíveis.
tualização da objetividade da tarefa analítica, não Nas palavras de seu autor, “assistimos ao surgi-
é estranho admitir a subjetividade como parte in- mento de uma ciência que não mais se limita a si-
tegrante do método, resguardando-a da falácia de tuações simplificadas, idealizadas, mas nos põe
uma produção de conhecimento capaz de atingir diante da complexidade do mundo real, uma
concepções totalizantes e absolutas. Segundo ciência que permite que se viva a criatividade hu-
Ivone Gebara, mana como a expressão singular de um traço fun-
damental comum a todos os níveis da nature-
a questão de gênero nos leva a uma crítica za”.28 Interrogando os conceitos fundamentais
do universalismo das ciências humanas
da física, Prigogine afirma contundentemente as
(...) as afirmações que diferentes ciências
humanas fizeram sobre vários assuntos,
noções de instabilidade e caos e propõe uma nova
freqüentemente foram apresentadas formulação das leis da natureza “que não mais se
como sendo do “humano”, quando na rea- assenta em certezas, como as leis deterministas,
lidade elas se referem sobretudo à expe- mas avança sobre possibilidades”.29 Avançar sobre
riência masculina, aliás muitas vezes limi- possibilidades constitui um horizonte teórico que
tada ao mundo ocidental. A teoria univer- perpassa essa reflexão e seus processos analíticos.
sal é uma teoria masculina e centralizada Tempo de possibilidades é o tempo anun-
nos lugares de poder dominante e nas re- ciado também à teologia, para que revisite seus
lações sociais ligadas a poderes.27
dogmas. Os saberes humanos, construídos em
A dinâmica objetividade-subjetividade rei- códigos de linguagem disponíveis, comuns a vá-
tera a compreensão metodológica de que quem rias ciências, também estão sob suspeita; não há
produz o saber imprime aí seus condicionamen- como afirmar senão provisórias e incertas certe-
tos pessoais e compromissos diante da realidade; zas a despeito de toda a objetividade metodoló-
por conseguinte, a escolha do objeto, do método gica. Nesse sentido, busca-se o acercamento às
e das categorias trazem essa marca. Todavia, é produções do saber, procurando não apenas as
preciso considerar que admitir a subjetividade palavras no discurso, mas os movimentos dos
não significa assumir uma relativização total de corpos que se vêem, se tocam, se ouvem e se per-
métodos e resultados. Não se trata, tampouco, de cebem como construtores de mundos e saberes.
cada um dizer o que pensa a respeito, nem de le- Procura-se ler tais produções, indagando sobre as
gitimar qualquer tipo de interpretação. A subje- linguagens implícitas e os silêncios contidos na
tividade é compreendida como integrante do mé- articulação das palavras. Quem sabe intuir e des-
todo e integrada ao arcabouço científico que pos- tacar os gingados dos corpos em relações.
sibilita a análise e a produção de saber.
A mediação de gênero, nesse sentido, pre- GÊNERO E COMPLEXIDADE:
tende contribuir para problematizar posturas DIMENSÕES A SEREM ARTICULADAS
hermenêuticas que anunciam como verdades aca- O diálogo de saberes que desafiam proces-
badas aquilo que é transitório. Esse procedimen- sos de desinstalação provocou uma curiosa pos-
to obscurece a memória da provisoriedade, da sibilidade de articulação entre a dimensão de gê-
fragilidade e da pluralidade, comuns às experiên- nero e a de complexidade. Isso porque ambas
cias humanas em suas relações e produções de sa- anunciam possibilidades de inaugurar novas per-
ber. O instigante texto de Ilya Prigogine, desde o cepções do mundo, das relações e da diversidade
seu título, explicita esse fato. O fim das certezas –
28 PRIGOGINE, 1996, p. 14.
27 GEBARA, 2000, p. 115. 29 Ibid., p. 31.

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de manifestações da vida. Trata-se da abertura nos dessa prisão, tornando acessível nos-
para uma percepção de interdependência e cone- so círculo de compaixão de forma a abra-
xidade das expressões plurais de vida do ecossis- çar todas as criaturas vivas e toda a natu-
tema, nas quais se localiza a expressão de vida dos reza em sua beleza.31
seres humanos como uma parte, um fio, dessa A explicitação das contribuições advindas
grande teia da vida. Não necessariamente o ser das teorias da complexidade e de gênero é funda-
mais importante, nem mesmo o centro da vida, mental entre os caminhos epistêmicos de supera-
mas como outro distinto e fundamental. E entre ção dos impasses. A primeira pensa o ecossistema
esses mesmos seres humanos, a universalidade é em sua dimensão interdependente e complexa,
um mito. As distinções de gênero/classe/etnia no qual o ser humano inclui-se não como supe-
têm sido historicamente transformadas em pro- rior, mas como distinto, inaugurando uma nova
cessos de inferiorização e relações de poder de percepção que propõe relações de conexidade en-
subordinação, refletindo-se de modo semelhante tre seres vivos diferentes na perspectiva de redes.
na análise da relação dos seres humanos, em es- A segunda enfatiza as relações sociais assimé-
pecial no Ocidente, com o ecossistema. tricas entre homens e mulheres e a demarcação
Nas palavras do Chefe Seattle, líder indíge- da não homogeneidade desses grupos sociais,
na norte-americano citado na obra de Campbell, agregando-se a ela a constatação das assimetrias
aproximadamente no ano 1852, encontramos um étnicas e de classes sociais.32 Ambas as teorias
desafio à ressignificação das relações dos seres têm impulsionado revisões conceituais de muitas
humanos com a natureza: “a terra não pertence ordens, superando a fragmentaridade de nossas
ao homem, o homem pertence à terra. Isto sabe- abordagens epistêmicas.
mos: todas as coisas estão ligadas como o sangue A teoria de gênero, partindo do questiona-
que une uma família. Há uma ligação em tudo. O mento das desigualdades sociais baseadas nas di-
que acontecer à terra recairá sobre os filhos da ferenças de ordem biológica, chegou a interrogar
terra. O homem não tramou o tecido da vida; ele milenares afirmações de inferioridade das mulhe-
é simplesmente um de seus fios. Tudo o que fizer res em relação aos homens, de negros em relação
ao tecido, fará a si mesmo.”30 Destaque deve ser a brancos, do ecossistema em relação a seres hu-
dado a essas cosmovisões que aproximam hori- manos, pois tais concepções sustentavam-se na
zontes há tempos vivenciados por nações indíge- visão de que, por natureza, inscritas no corpo de
nas e anunciadas atualmente no desafio dos físi- cada um desses seres estava a sua condição de in-
cos como possibilidade de alcançar uma nova ferioridade. Em decorrência dessa mudança, ins-
percepção do mundo e de suas complexas redes talou-se a urgência de uma revisão antropológica
de sentido. Na expressão de Albert Einstein, que contemplasse as construções históricas e so-
ciais naturalizadas durante séculos, obscurecendo
os seres humanos são uma parte do todo
que nós chamamos de Universo, uma pe-
os jogos de poder embutidos nessas descrições de
quena região no tempo e no espaço. Eles papéis e relações. Soma-se a esse avanço a de-
consideram a si mesmos, suas idéias e sinstalação do eixo econômico como exclusivo
seus sentimentos como separados e à par- para pensar as relações e o poder. Desse modo, as
te de todo o resto. É como uma ilusão de pessoas puderam perceber-se como seres consti-
ótica em suas consciências. Essa ilusão é tuídos não apenas de necessidades, mas também
uma espécie de prisão. Ela nos restringe às de desejos e paixões, com todas as implicações
nossas aspirações pessoais e limita nossa para as relações humanas, sociais e ecossistêmicas
vida afetiva a umas poucas pessoas muito que isso possa significar.
próximas de nós. Nossa tarefa seria livrar-
31 Albert Einstein apud RUSSEL, 1991.
30 CAMPBELL, 1990, p. 33-36. 32 SCOTT, 1991; COSTA, 1992; SAMPAIO, 1999.

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O corpo assumido como lugar ímpar da ex- cista e instrumental do ecossistema para usufruto
periência de estar vivo, do sentir-pensar como lu- dos seres humanos (de alguns seres humanos),
gar das relações, das circulações de poder que po- em detrimento da integridade dele. Infere-se,
dem oprimir ou libertar – pensado como um fio nessa etapa da reflexão, a necessidade de sentir-
da grande teia da vida – foi decisivo nessa novi- pensar o ecossistema em sua dimensão interde-
dade epistêmica. Por conseguinte, tornou-se um pendente e complexa, superando a fragmentari-
dado relevante para o resgate do trato humano dade de nossas abordagens epistêmicas.
com o ecossistema. Cabe ressaltar que, em várias Em contraposição a essa hermenêutica da
discussões dos saberes, alguns avanços antropo- narrativa bíblica sobre a criação, mencionada ante-
lógicos foram alcançados, a exemplo da supera- riormente, pode ser interessante a perspectiva de
ção de concepções de mundo e relações de cará- Capra de que, do ponto de vista sistêmico, as úni-
ter androcêntrico para afirmar uma perspectiva cas soluções viáveis são as sustentáveis, equivalente
antropocêntrica. No entanto, é preciso constatar a dizer que é preciso buscar soluções que “satisfa-
que, se tal mudança resolve a descentralização da çam as necessidades sem destruir as perspectivas
matriz cultural masculina como parâmetro para de vida das gerações futuras”.34 Se isso vale não só
apontar o humano, ela não altera a percepção de para as ações que afetam o cotidiano em suas mi-
centralidade do humano no entendimento do crorrelações, vale também para as formulações de
ecossistema em suas relações. saber que estruturam pensamentos e valores. O
A crise de percepção, que apresenta a inter- debate epistemológico, desse modo, está instado a
dependência de tudo o que forma o ecossistema ser identificando em seus pressupostos fundantes.
e produz vida, restabelece a necessidade de pensar Portanto, a elucidação de que o conhecimento es-
os seres humanos como parte dessa grande teia trutura-se numa determinada percepção do mun-
da vida. Nesse caso, há que se construir media- do, assim como a reflexão epistemológica tem a
ções hermenêuticas que, certamente, terão de ab- função de ajudar a compreender a estrutura do co-
dicar da concepção de centralidade. Seja ela divi- nhecimento, é deveras importante.
na, humana, seja cósmica. Nem mais teocêntrica, Ao falar em epistemologia, não se está tra-
nem mais androcêntrica/antropocêntrica, nem tando de coisas teóricas demais ou abstratas e dis-
qualquercoisacêntrica! tantes dos problemas cotidianos. Isso porque
No marco da provisoriedade, estamos pro- pensar sobre alegrias e tristezas da vida faz parte
pondo uma concepção que explode o centro para do conhecimento humano e reporta-se a uma
dar lugar a uma noção de relações de mútuas in- percepção da realidade e de suas múltiplas rela-
terdependências, sem desqualificar o ser humano, ções. Tomando por base a experiência cotidiana é
mas ressignificando-o no perceber-se como parte que conhecemos as coisas e a nós mesmos. Co-
necessária e com necessidades de toda a comple- nhecer o próprio conhecimento permite influir
xa e múltipla diversidade do que existe no ecos- nos processos de construção e transmissão do
sistema. Historicamente, em nossa relação com a conhecimento, podendo alterar a estrutura hie-
natureza, estabelecemos processos de destruição rárquica de poder, como a exemplo da subordina-
da terra, das águas e dos demais seres vivos. Po- ção vivida pelas mulheres e pela natureza para in-
rém, a observação da dinâmica criativa da própria troduzir novas formas de sentir-pensar.
natureza, de sua forma autocriativa, poderia con-
tribuir como alternativa ao jeito de elaborar a re- GÊNERO E COMPLEXIDADE ARTICULADOS
flexão acadêmica que tem nos guiado. Refiro-me EM BREVE EXERCÍCIO TEOLÓGICO
ao jeito de ler teologicamente, por exemplo, o re- Os impasses com a sustentabilidade da vida
lato da criação,33 que reforça uma visão mecani- são muito mais amplos e implicam uma rede in-

33 Gênesis 1.27-31. 34 CAPRA, 1996, p. 25.

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trincada de conexões que precisam ser observa- [Eu estou morena, porém formosa] Sou
das. Nesse sentido, o debate epistemológico rea- negra e formosa (...)
lizado até aqui visa à articulação de paradigmas como as tendas de Quedar, como as cor-
tinas de Salomão.
que, ao interpelar as diversas áreas de saber, o fa-
Não olheis para o eu estar [morena] ne-
zem também com a teologia. Sobretudo a iden- gra, [porque] o sol me queimou.
tificação de alguns aspectos relativos à preocupa- Os filhos de minha mãe se indignaram
ção com a vida, em suas múltiplas manifestações contra mim me puseram por guarda de vi-
no ecossistema, torna-se o foco irradiador do di- nhas; a vinha, porém, que me pertence
álogo. Os desdobramentos para as áreas de saber não a guardei.
preocupadas com a dignidade de vida das pessoas, Dize-me, ó amado de minha alma: onde
apascentas o teu rebanho,
dos demais seres vivos e do ecossistema reforçam
onde o fazes repousar pelo meio-dia para
a perspectiva de que, nessa complexa organiza- que não ande eu vagando junto ao reba-
ção, a fragmentaridade dos saberes precisa ser nho de teus companheiros?36
pensada como elemento de aprofundamento do
estudo, e não como encastelamento das ciências. Cantares, em sua abertura, por meio da
auto-apresentação positiva da mulher, a que nos
O debate acerca dos referenciais teóricos e
convida? Entre outras coisas, a nos olhar no es-
das possíveis inspirações para construir uma per-
pelho! A dizer o Bem e o belo de nós mesmos.
cepção da vida na qual a interdependência dos se- Nos faz um convite estético! Com qual beleza
res coopere no redimensionamento de cada um nos apresentamos para as relações? Quais as mar-
nessa grande teia busca assumir a pergunta sobre cas que estão à flor da pele em nosso corpo?
as relações de poder assimétricas, de várias or- Quais cuidados de si têm sido postergados, tendo
dens, para reinventá-las. Por esse motivo, a força em vista as obrigações impostas pelo trabalho
e a beleza do texto de Cântico dos Cânticos ou que beneficia os outros? A despeito das lidas, do
Cantares35 pode abrir-se como mediação teológi- trabalho cotidiano, da relação com seus irmãos,
ca tanto para revisitar a própria teologia e os seus com os guardas da cidade, que estética de passa-
aprisionamentos desse texto quanto para o diálo- gem/êxodo/saída/alternativa soa da boca da mu-
go entre saberes distintos. lher – a amante e amada de Cantares? Lamentos
O texto de Cantares não será alvo de uma e desolações? Ou uma mirada no espelho para di-
reflexão exegético-hermenêutica, mas experi- zer o Bem, para bem-dizer seu corpo, sua vida, e
mentar-se-á um caminho de leitura da narrativa abrir-se, então, para dizer o Bem do outro?
bíblica em confronto com uma tradição teológica O meu amado é para mim um saquitel de
predominante. O movimento presente na poesia mirra, posto entre os meus seios. Como um
dos amantes expressa uma dinâmica de dizer o racimo de flores de hena nas vinhas de En-
Bem sobre a vida e se materializa na concretude Gedi é para mim o meu amado.
dos corpos. A mulher que lidera a maior parte do Como és formoso, amado meu, como és
amável (...).
discurso faz uma poesia assinalando a beleza de
Qual a macieira entre as árvores do bosque,
seu próprio corpo e, depois, começa a desenhar tal é meu amado entre os jovens; desejo
as belezas do corpo de seu amado com todas as muito a sua sombra e debaixo dela me as-
imagens e linguagens disponíveis na natureza. sento; e o seu fruto é doce ao meu paladar.

35 A narrativa bíblica brevemente analisada neste exercício teológico é 36 Cantares 1.5-7. Os textos entre colchetes correspondem à tradução
intitulada Cantares de Salomão, nas traduções adotadas pelas tradições referida anteriormente como a adotada nesta análise. Contudo, o des-
protestantes, e Cântico dos Cânticos, nas traduções adotadas pelas tra- taque à expressão negra e a supressão do adversativo porém correspon-
dições católica romana e ortodoxa. Optamos pela primeira nomencla- dem a opções possíveis, e, em nosso ponto de vista, necessárias, que
tura e os textos citados tomam por base, particularmente, a tradução encontram respaldo nos aparatos críticos da versão da Bíblia Hebraica
revista e atualizada de João Ferreira de Almeida. (1967, p. 1.336).

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O meu amado é semelhante ao gamo, ou ao natureza. Descrevendo o saltitar das gazelas,


filho da gazela.37 pode-se falar do amor e dizer as belezas do corpo.
Há proximidades de nossas questões sobre
A gratuidade e a fragilidade do cotidiano de
a interdependência entre seres humanos e ecos-
corpos que se amam sobressaem nesse poema de
sistema e o jeito harmonioso com que a poesia de
encontros e desencontros. Há outras sabedorias
Cantares comunica a plena integração de plantas,
a aprender. Trata-se da dimensão de gratuidade
árvores, relva, animais, estações, frutos... e o cor-
vivida nas relações amorosas como contraponto
po dos que amam. As imagens, as sensações, os
ao tempo em que as liberdades para o corpo es-
perfumes e outras formas comunicativas desse li-
tavam cerceadas. Cantares é um conjunto de po-
vro podem dizer da vida muito mais do que al-
emas significativos, com uma força de vida que
guns discursos são capazes de fazer.
não pode seguir como segredo, muito menos re-
duzir-se a alegorizações, como se fez ao longo da O Contexto Histórico
história da interpretação. Quebrar o silêncio do Entre orações e profecias, o pequeno livro
texto, diante das amarras teológicas, talvez cons- está abrigado na Bíblia. A força revolucionária do
titua movimento aprendente – do dizer o Bem so- corpo, que sente/crê/faz acontecer o amor, tem
bre a vida por intermédio de uma postura inte- contornos novos de enfrentamento de conflitos.
gradora do ecossistema. Um convite eco-ético Cantares é um texto, sem dúvida, subversivo!
parece depreender-se das palavras e imagens teci- Erótico! Está no meio do período de domínio
das nesse texto. dos sacerdotes como senhores das leis, da religião
O corpo, a terra, a vida estão sob controle. e da política. Sua redação final perpassa os proje-
Códigos de pureza e impureza38 decretam tos de reconstrução nacional do pós-exílio, em
aproximações ou distanciamentos de Deus. Di- paralelo à dominação de grandes impérios (persa,
zem do poder e do não poder dos corpos na re- grego). Um tempo de controle sobre o corpo.
lação de uns com os outros e com tudo o que os Suores, odores, aromas, líquidos, vontades... es-
cerca. Nesse jogo de poder, o texto diz o Bem so- tão sob controle dos rígidos códigos de pureza.
bre a vida, suspendendo tais concepções norma- Não foram poucas as tentativas de explicar
tivas e aprisionadoras dos corpos. A poesia/pala- a pertença de Cantares ao canon bíblico. Muitas
vra apresenta-se como mediadora do encontro da possibilidades e contendas envolveram tais expli-
amada e do amado. Com imagens de seu cotidi- cações. As variações cobriram uma gama enorme
ano de trabalho, de descanso e de conflitos, a vida de interpretações espiritualizantes, outras alegó-
é descrita com simplicidade. ricas e místicas e muito pouco houve de interpre-
O discurso em Cantares é sexuado. A afir- tações históricas.39 Silêncio, alegorizações e res-
mação do corpo da mulher e do homem é uma trições litúrgicas fizeram com que um conjunto
constante. Os corpos posicionam-se. Não por- significativo de elementos que proclamam o Bem
que querem ser provocativos, mas porque, nessa sobre a vida, e sua interdependência e mutualida-
época, o controle sobre a vida passava pelo corpo. de, ficassem qual segredo aos nossos olhos e ou-
Esse é o lugar do poder. Em Cantares também vidos. A cumplicidade de amantes em suas lidas
está explicito um outro olhar e sentir diante da cotidianas marcadas por intervalos de amor foi
obscurecida em sua centralidade.
37 Cantares 1.13, 14, 16; 2.3, 9.
38 Os códigos de pureza são encontrados em Levítico 11-15 e os códigos Cantares é um texto que, em sua poesia,
de santidade, em Levítico 17-26. Esses textos, em sua redação final, são toma as melhores imagens, sons, aromas, sabores
contemporâneos a Cantares. Outros, como Esdras e Neemias, são
também importantes para compreender a força crítica de Cantares.
Eles registram as formas reguladoras da vida e do cotidiano rumo à 39 Entre judeus do primeiro século, por exemplo, ele foi considerado
estruturação da nação no período pós-exílico, isto é, século IV a.C., texto sagrado e usado liturgicamente na ocasião da Páscoa. Entre
aproximadamente. Mais adiante, tais aspectos serão retomados e expli- cristãos, foi reconhecido em seu alcance metafórico-religioso. Cf.
citados. MESTERS, 1993; SIQUEIRA, 1993; ANDIÑACH, 1998.

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e saberes para afirmar a dignidade do corpo (o fluxo (...) toda a cama, em que se deitar o
próprio e o do outro). Um contraponto muito que tiver fluxo (...) e tudo sobre que se as-
forte num período em que o corpo da mulher era sentar será imundo (...) qualquer que lhe
mal-dito pela impureza, mal-dito pela procedên- tocar banhar-se-á em água e será impuro
cia étnica, mal-dito pelo Estado que o instrumen- até a tarde (...). Quando pois, o que tem
talizava na prostituição, mal-dito pelo empobre- fluxo estiver limpo, contar-se-á sete dias
para sua purificação; lavará as suas vestes,
cimento – corpos de homens e mulheres malditos
banhará o corpo em águas correntes e
pelo que entrava ou saía deles.
será limpo. Ao oitavo dia tomará duas ro-
Esse corpo, em Cantares, aparece em sua las ou dois pombinhos, e virá perante o
beleza auto-revelada – “sou negra e formosa” – e Senhor, à porta da tenda da congregação e
na beleza pronunciada pelo amado que busca, na os dará ao sacerdote: este oferecerá um
natureza e no corpo da amada, maneiras de ex- pela expiação do pecado e outro para ho-
pressar uma relação nova e muito distinta entre locausto: e assim o sacerdote fará por ele
homens e mulheres. expiação do seu fluxo perante o Senhor.41

(...) ó mais formosa entre as mulheres, sai Esse é um pequeno exemplo, pois Levítico
pelas pisadas dos rebanhos e apascenta os continua dizendo o mesmo ou carregando mais as
teus cabritos junto às tendas dos pastores. tintas, ao falar da emissão de sêmen pelo homem,
Formosas são as tuas faces entre os teus da relação sexual entre homem e mulher, da mu-
enfeites, o teu pescoço com os colares. lher em seu fluxo de sangue, da mulher após o
Eis que és formosa, ó querida minha, eis
parto (no qual é impura ainda por mais tempo se
que és formosa: os teus olhos são como
os das pombas. tiver dado à luz meninas), do corpo doente, do
Qual o lírio entre os espinhos, tal é minha corpo que toca e ingere animais considerados im-
querida entre as donzelas.40 puros, do corpo marcado por necessidades espe-
ciais. Enfim, o controle sobre os corpos é feito
Cantares anuncia, na poesia cotidiana do pela teologia, que vai crescendo e consolidando-
encontro e do desencontro dos corpos da amada se em um eixo sacerdotal e sacrificial transcen-
e do amado, o jeito distinto de enfrentar confli- dente ao espaço do religioso. Isso porque, ade-
tos. Nesse texto não há muitas orações de pedi- mais de controlar o sagrado, controla a econo-
do, nem discursos de denúncia; a dinâmica é ou- mia, a política e as relações sociais, criando uma
tra. São discursos fortes de denúncias e anúncios, estreita dependência da benção de Deus às con-
aparentemente segredados pela linguagem poéti- dições de pureza ou de impureza que passam pelo
ca. O conflito do momento é pano de fundo que corpo.
dá maior contundência às palavras. Em Cantares,
Naquele tempo em que se legislava sobre o
o corpo proclama sua beleza, liberdade e pureza
corpo, buscando controlá-lo, a mulher, ao pro-
contra todo um sistema dominado pelos sacerdo-
nunciar palavras cheias de cotidiano, parece fazer
tes, que estão exigindo ofertas e sacrifícios para
vista grossa às regras de seu tempo. Faz que não
devolver-lhe a condição de pureza e proximidade
de Deus. vê. Diz e sai em busca do que pronuncia. Cons-
trói as pontes entre as palavras e os corpos, pre-
Não se pode ler Cantares sem considerar
para o leito do encontro. Diante da ousadia desses
seus paralelos históricos, a exemplo dos códigos
poemas, que exaltam a beleza dos muitos corpos
de santidade de Levítico.
humanos e do ecossistema, não é de surpreender
Qualquer homem que tiver fluxo seminal que Cantares estivesse vestido de interpretações
do seu corpo será imundo por causa do poderosas para domar o amor e direcioná-lo ao

40 Cantares, 1.8, 10, 15; 2.2. 41 Levítico 15.2-15.

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matrimônio e, na seqüência, às analogias religio- controlavam o corpo em sua sexualidade, em sua


sas. classe social, em sua etnia, em seu gênero ou em
suas doenças, fica evidente, num período que
Como és formoso, amado meu, como és ruma para uma organização escravista do traba-
amável. O nosso leito é de viçosas folhas, lho, que o corpo é o lugar do poder (e conhece-
as traves da nossa casa são de cedro, e os
mos algo semelhante em nossas histórias de vida
seus caibros de cipreste.
(...) Qual macieira entre as árvores do
e de continente). Por isso, a lógica sacrificial deve
bosque, tal é meu amado entre os jovens; contê-lo, culpabilizando-o, o que em muito se
desejo muito a sua sombra, e debaixo dela aproxima do rito sacrificial propagado como ne-
me assento: e o seu fruto é doce ao meu cessário nas políticas econômicas de mercado,
paladar. que devoram cotidianamente muitos corpos em
Leva-me à sala do banquete, e o seu es- seu altar.46 Suores, odores, aromas, líquidos, von-
tandarte sobre mim é o amor. tades... estão sob o controle dos rígidos códigos
Sustentai-me com passas, confortai-me de pureza. Sobre eles, todo o controle e a mal-
com maçãs, pois desfaleço de amor. dição.
A sua mão esquerda esteja debaixo de mi- Uma teologia que dissesse o Bem-sobre-a-
nha cabeça, e a direita me abrace.
vida ficava na dependência dos ritos de passagem
Conjuro-vos, ó filhas de Jerusalém, pelas
da impureza para a pureza. Um deslocamento
gazelas e cervas do campo, que não acor-
deis, nem desperteis o amor, até que este não possível a qualquer corpo: os sacerdotes es-
o queira.42 tavam nesse caminho. O sistema não era mera-
mente religioso, mas econômico. Ofertas e sacri-
A organização do conjunto de poemas de fícios precisavam ser pagos para devolver ao cor-
Cantares, muitos deles bem antigos, acontece po a sua condição de pureza e proximidade de
possivelmente no período pós-exílico, em torno Deus (talvez, por isso, os poemas de Cantares se-
do IV século a.C. A conjuntura marcada pela pre- jam tão econômicos em sua menção a Deus).
sença da dominação imperial (dos persas e, de- É, portanto, contra esse controle do sagra-
pois, dos gregos) está arquitetada em um projeto do47 que a força gratuita do amor da amada e do
de reconstrução nacional, articula-se pela elite amado insurge-se, dizendo da beleza dos corpos
que vem do exílio43 e tem no grupo sacerdotal um do outro e de todos os líquidos que saem e
sua força de expressão maior. Senhores do tem- entram deles. Em Cantares, há curiosamente
plo, da lei e da pureza ritual desencadeiam uma muito pouca água, em contraposição às muitas
profunda segregação dos estrangeiros, das mu- águas de Levítico. Extremamente positivas são as
lheres e dos empobrecidos.44 falas sobre o corpo, poesia tecida das belezas mais
Os sacerdotes do segundo templo45 serão singelas e dinâmicas, que a natureza podia ofere-
responsáveis por desencadear um sistema políti- cer aos lábios da amada e do amado para dizer um
co e econômico em consonância com os interes- do outro, um para o outro das curvas e contornos
ses de uma elite nacional e dos impérios em exer- do corpo que ardia de amor.
cício, por meio de mecanismos religiosos legiti-
46 O sacrifício necessário, exigido pela atual economia de mercado,
madores de suas ações. Sob uma teologia marca- apresenta-se como oferenda a um sagrado antropofágico, que se ali-
da pelos códigos de pureza e impureza ritual, que menta da morte e dos decretos de morte às vítimas, por esse mesmo
sistema culpabilizadas (tendo o fracasso como responsabilidade pes-
soal, e não sistêmica) ou tornadas boi de piranha ou bodes expiatórios.
42 Cantares 1.16, 17; 2.3-7. Nesse rito de morte, vão para o altar do sacrifício as pessoas mais enfra-
43 Essa realidade está expressa nos textos bíblicos de Esdras e Nee- quecidas por esse discurso normativo sobre os corpos: a exemplo dos
mias. empobrecidos, dos negros, dos indígenas, das mulheres, das crianças,
44 Cf. Esdras, capítulos 7-10; Neemias, capítulos 5-13. dos velhos, dos doentes de aids, dos soropositivos, das pessoas porta-
45 Trata-se do Templo de Jerusalém, reconstruído nesse período do doras de necessidades especiais, enfim, dos integrantes dos grupos
retorno do exílio, conforme narrativas nos textos de Esdras, capítulos sociais na rota da descartabilidade e da exclusão social.
3-6. 47 Controle combatido por Jesus e que o levou à morte.

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Ritos sacrificiais, na lógica purificadora de de trabalho e nos de descanso, nas ações políticas
Levítico, implicam prisões aos corpos, anunciam de pequenos e grandes impactos, enfim, na revi-
dívidas ao cotidiano do trabalho, retiram das mu- são das desigualdades das micro e das macrorre-
lheres a maior parte dos dias de sua vida como lações experenciadas no cotidiano.
tempos e espaços de beleza.48 Tudo, ou quase tu- Assumir o corpo como referencial não ape-
do, na vida é impureza. É dívida. É escravidão. É nas metodológico, mas também epistemológico
religião e economia e política. A despeito desse resulta, na leitura de Cantares, na instauração de
jogo de poder, o texto de Cantares diz o Bem so-
questionamentos sobre as leituras que escondem
bre a vida, suspendendo concepções normativas e
o texto. Por outro lado, anuncia que o jeito de
aprisionadoras dos corpos.
criar versos para dizer o corpo de amantes em
O meu amado fala e me diz: levanta-te, plena sintonia com a natureza pode nos ajudar a
querida minha, formosa minha, e vem. perceber uma proximidade da agressão (científi-
Porque eis que passou o inverno, cessou a ca/política/econômica/religiosa) praticada contra
chuva e se foi; aparecem as flores na terra, o ecossistema, em analogia àquela imposta ao
chegou o tempo de cantarem as aves, e a
corpo empobrecido, particularmente o feminino.
voz da rola ouve-se em nossa terra.
A figueira começou a dar seus figos, e as A fala amorosa é aproximativa. É exercício
vides em flor exalam o seu aroma; levan- de muitos dizeres, compõe-se de palavras inexa-
ta-te, querida minha, formosa minha e tas, imprecisas. A fala amorosa faz uso de media-
vem. ções, transfigurando tudo o que está à sua volta.
Pomba minha, que andas pelas fendas dos Sons, cheiros, sabores, texturas, cores tornam-se
penhascos, no esconderijo das rochas es- mediações para falar do corpo do amado e da
carpadas, mostra-me o teu rosto, faze-me
amada, para anunciar a conexidade intrínseca en-
ouvir a tua voz, porque a tua voz é doce,
e o teu rosto amável.49 tre seres humanos e ecossistema, para se interpe-
netrarem, se dizerem com beleza e poesia o que
Nesse texto, os corpos de mulheres e ho- as palavras não conseguem captar dos sentidos.
mens estão, todo o tempo, descobrindo as bre- “O discurso amoroso é produção de conheci-
chas do controle para viver e dizer o Bem e o mento a partir dos sentidos do corpo.”50 Olho
Amor sobre o próprio corpo e o do outro. E fa- não tem garras, um umbigo não pode ser taça, lá-
zem poesia em profunda sintonia com a natureza bios não têm gosto de mel... No entanto, criam
e seu movimento; por meio da interdependência imagens da relação, transcendendo as palavras,
com o ecossistema, os corpos da amada e do transgredindo as regras.
amado se fortalecem para anunciar sua resistên-
cia. Arrebatas-te o coração, com um só de
teus olhares (...).
A Poesia de Cantares e suas Luzes para Desvia de mim os teus olhos porque eles
Pensar Paradigmas Novos me perturbam (...).
Poesia de amor não é apenas para quando O teu umbigo é taça redonda, a que não
não temos mais nada a fazer, nem mesmo quando falta bebida; o teu ventre é monte de tri-
todas as lutas já estão resolvidas, nem quando as go, cercado de lírios.
articulações políticas já ocorreram. Não! Gratui- Que belo é o teu amor (...) quanto me-
dade e amorosidade nas relações cotidianas impli- lhor é teu o amor do que o vinho (...) os
ca rever as assimetrias de poder estabelecidas nos teus lábios destilam mel! Mel e leite se
espaços públicos e privados da vida, nos lugares acham debaixo da tua língua.51

48 Cf. Levítico, capítulos 11-15 e 17-26. 50 PEREIRA, 1993, p. 55.


49 Cantares 2.10-14. 51 Cantares 4.9; 6.5; 7.2; 4.10, 11.

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Essa descrição do corpo amante e amado ber a verdade, sem uma infinidade de certezas
revela profunda harmonia/sintonia com o ritmo está em melhor sintonia com a poesia de Canta-
e com os demais corpos existentes no cosmo. O res. Por isso, ao invés de palavras-respostas a pri-
movimento da vida, das pessoas, dos animais e ori sobre o texto bíblico, sugere-se como cami-
das plantas conjugados pela dinâmica do ar, da nho metodológico perguntas-escuta-contempla-
água, da terra e do fogo alternava dias e noites, ção das imagens do texto de Cantares. Uma di-
marcando a cadência do trabalho, do descanso, nâmica desprovida das respostas e aberta aos
do prazer, do dizer, do sentir, do fruir, do sofrer, movimentos complexos, que marcam a existência
do dançar... Enfim, um movimento novo convi- cotidiana das pessoas e da pluralidade de vidas do
dativo para revisões das racionalidades estrutura- ecossistema, é caminho transgressor necessário
doras dos saberes, entre os quais, o teológico. para fruir a beleza desse texto.
A cadência própria do discurso, em Canta- O movimento das palavras e imagens, ora
res, provoca perguntas exigentes para a identifica- simbólicas ora reais, indica uma dinâmica que
ção do método de entrada no texto, de tal manei- tece para frente e para trás, no texto de Cantares,
ra que suas belezas se abram a quem lê. Entre elas um emaranhado de poemas parecidos com o
estão as seguintes interpelações: dá para não ins- amor: lugar de encontros e desencontros. Dos ei-
trumentalizar a leitura do texto bíblico, mas dei- xos perceptíveis nessa teia da vida, desejo subli-
xá-lo acontecer como simples fruição?; dá para nhar o de viver a gratuidade de relações como si-
imaginar a leitura do texto bíblico tal qual a poe- nal de reconstrução de nossa percepção do ecos-
sia – pura gratuidade que inunda a vida e descor- sistema, e não como proposta de abandonar es-
tina horizontes, reacende esperanças, inaugura peranças e lutas. Dessa forma, pode-se inaugurar,
energias e instaura redes de dignidade que tecem na leitura bíblica, uma revisão das posturas que a
cotidianos mais amplos, os quais a racionalidade reduzem a um manual e a um conjunto de dog-
humana é incapaz de tocar plenamente?; dá para mas atemporais e universais ou, ainda, das que
ensaiar indagações pequenas, provisórias respos- reforçam leituras que não permitem à vida e ao
tas e uma grande dose de desejo de fazer aconte- seu ritmo cotidiano ser vividos na gratuidade e
cer uma leitura nova, que nos surpreenda a todos fragilidade que lhes são peculiares. Essa postura
e a todas, com sua espiritualidade de vida? interrogaria a teologia que vai se consolidando,
Nesse sentido, motivado pelo próprio jeito muitas vezes, na contramão dos clamores de vida
de Cantares, cabe observar a necessidade de ques- digna.
tionar o método racional, sociológico, de con- Uma nova percepção da terra, em conexi-
fronto permanente com as estruturas, como eixo dade com seres humanos e demais seres vivos, à
único de leitura bíblica. Muito embora se possa semelhança das descrições dos corpos em busca
reconhecer a sua expressiva contribuição para do amor, como em Cantares, pode nos devolver
uma leitura histórica e contextual, tal método foi o fôlego e animar nossos passos, no momento de
gradativamente mostrando os seus limites. Ou- desafios cósmicos-globais que se nos apresentam
tras categorias de análise têm cooperado com a e exigem uma reorganização da vida e das rela-
ruptura da exclusividade da racionalidade econô- ções todas.
mico-social. Entre os caminhos epistêmicos de Os problemas globais que atualmente afe-
superação dos impasses, foi fundamental agregar, tam a biosfera e a vida humana – ambos talvez ir-
como perguntas metodológicas e horizontes reversíveis, na visão de Fritjof Capra – não po-
epistêmicos, as contribuições das teorias de gêne- dem ser entendidos isoladamente. São sistêmi-
ro e da complexidade, conforme explanadas em cos. Estão interligados e interdependentes. “O
item anterior neste ensaio. momento presente com a escassez de recursos, a
O movimento do corpo em silêncio, sem degradação do meio ambiente, o colapso das co-
pressa em dar respostas, sem aflição por não sa- munidades locais e a violência étnica nos colocam

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diante de uma grande crise: uma crise de perce- me assento: e o seu fruto é doce ao meu
pção.”52 Essa crise precisa ser enfrentada com paladar.54
base na mudança de percepção e do pensamento.
Em Cantares, a mulher não é vítima, não é
Assim, considerar a novidade da interdependên-
tema, nem é privilégio seu o protagonismo. Con-
cia de tudo o que forma o ecossistema e produz
forme a nossa proposição, na introdução deste
vida exige assumir, ainda que provisoriamente, a
ensaio, o referencial de gênero não pretende visi-
perspectiva de suspender o eixo da centralidade,
bilizar a mulher, mas as relações sociais de poder
seja qual ela for, como mecanismo de compreen-
nas quais ela está envolvida. Temos, nesse texto,
são das alternativas para reconstruir as relações de
mulher e homem em diversas relações, constru-
poder no cotidiano. A interdependência dos se-
indo caminhos alternativos, superando processos
res humanos e dos demais seres vivos do ecossis-
de instrumentalização do corpo feminino. Assu-
tema é perceptível no discurso amoroso da ama-
mindo, enfim, o conhecimento do outro, por
da e do amado, que, ao viver o cotidiano, inaugu-
meio da observação das belezas diferentes do
ravam linguagens novas, movimentos de ampla
corpo de cada um. A mulher, em Cantares, tem
conexidade e respeito com os muitos seres vivos voz e fala. Ela escolhe imagens, palavras, cheiros
e demais sinais do cosmo, em contraste com os e sabores para anunciar o desejo do encontro,
discursos normativos cerceadores do corpo. para descrever o corpo masculino. E convida-o
Em Cantares, a fala do cotidiano invade o ao encontro, vai buscá-lo entre os pastores, nas
sagrado, o público e o espaço dominado pelos horas do descanso do meio-dia. Também corre
homens. As estruturas de poder de caráter andro- riscos e o busca nas horas da noite, na cidade, e é
cêntrico e hierárquico “sabem do amor e lhe de- agredida pelos guardas. Nem todas as relações
signam espaços permitidos, controlados de ex- entre homens e mulheres, em Cantares, são de
pressão (...) sabem da capacidade subversiva das parceria. Algumas são de enfrentamento, de re-
paixões que acordam os sentidos e a consciência sistência, como essa com os guardas e outras com
e, mais que tudo, inspira imagens, falas e mun- seus irmãos. Contudo, pode-se afirmar que gran-
dos”.53 Essa distinta dança dos movimentos que de é a sua iniciativa. Ela participa plenamente do
se sucedem, afirmando a vida contra as formas de amor, está doente de amor.
morte e controle sobre o corpo, a propriedade e
o trabalho, no texto bíblico, desafia-nos a entrar Eu dormia, mas meu coração velava; eis a
nesses poemas com novos olhares e indagações. voz do meu amado, que está batendo.
Levantei-me para abrir ao meu amado (...)
Cantares pode nos ajudar a aprofundar uma nova
mas já ele se retirara e tinha ido embora; a
percepção na direção da integração de seres hu- minha alma se derreteu quando antes ele
manos e ecossistema e de seres humanos em re- me falou; busquei-o, e não o achei; cha-
lações sociais afirmando o poder como redes de mei-o, e não me respondeu.
construção da dignidade da teia da vida, como a Encontraram-me os guardas que ronda-
que se percebe na relva feita leito para o encontro vam a cidade; espancaram-me, feriram-
do amor. me; tiraram-me o manto os guardas dos
muros.
O nosso leito é de viçosas folhas, as traves Conjuro-vos, ó filhas de Jerusalém, se en-
da nossa casa são de cedro, e os seus cai- contrares o meu amado, que lhe direis?
bros de cipreste. Que desfaleço de amor.55
(...) Qual macieira entre as árvores do
bosque, tal é meu amado entre os jovens; Ousadia, corpo para o amor em tempos de
desejo muito a sua sombra, e debaixo dela corpo impuro nas relações. Contudo, reconhecer

52 CAPRA, 1996, p. 24. 54 Cantares 1.16, 17; 2.3.


53 PEREIRA, 1993, p. 48. 55 Cantares 5.2, 5-8.

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o protagonismo da mulher e a parceria de seu negociações, é encantadoramente rebelde. O que


amado não pode obscurecer a dominação-explo- tenho é meu, para meus amigos, para a paz. En-
ração que sobrecarrega muito mais a vida das mu- costada no amado e de costas para os irmãos en-
lheres do que a dos homens.56 A preservação do contra-se a mulher de Cantares.
texto de Cantares, com todas as controvérsias
por ele provocadas, é seguramente fruto de uma FESTA E TRANSGRESSÃO DA ORDEM
memória de grupos sociais de mulheres e homens COTIDIANA
que viveram a resistência ao poder de grupos do- Talvez seja o caso de afirmar que, diante de
minantes que impunham outra lógica ao cotidia- tão contundentes opressões, não se pode viver de
no. Os irmãos e os guardas da cidade aparecem Cantares todos os dias. Também é preciso não
como sinais da presença desses grupos sociais, confundir Cantares com sonho paradisíaco, em
que manejam o controle dos corpos. Os irmãos a que tudo dá certo. Encontros e desencontros,
querem controlar, seja pelo trabalho que lhe im- possibilidades e impossibilidades, paixão e con-
põem de cuidar da vinha deles, seja pelo dote que trole, acolhida e violência contra o corpo são re-
querem definir, identificando quanto vale o seu alidades constantes. Simultâneas. Ao usar a ex-
corpo. Já os guardas usam de violência quando ela pressão talvez não seja possível viver só de Canta-
busca por seu amado nas horas da noite, nas cer- res, imagino que há momentos em que a lingua-
canias da cidade. gem comunicativa pode e tem de ser outra.
Talvez por isso mesmo o livro esteja entre profe-
Os filhos de minha mãe se indignaram
contra mim, me puseram por guarda de cias e orações. Sabedoria! Há tempo oportuno
vinhas; a vinha, porém, que me pertence para todas as linguagens.
não a guardei. Não é preciso ler os textos bíblicos sempre
Temos uma irmãzinha, que ainda não tem com uma finalidade antecipadamente justificada.
seios; que faremos a esta nossa irmã, no Uma leitura para mera fruição pode nos abrir
dia em que for pedida? para belezas, como a de Cântico dos Cânticos. As-
Se ela for um muro, edificaremos sobre sim, esse jeito de encontrar a vida, nas palavras
ele uma torre de prata; se for uma porta, desse livro, pode nos ensinar a ler outros textos
cercá-la-emos com tábuas de cedro. bíblicos. Sem instrumentalizá-los para a luta ou
Eu sou um muro, e os meus seios, como
para qualquer outra coisa, é possível que consti-
as suas torres; sendo assim, fui tida por
tuam espaços de graça e tenham, por isso, graça.
digna da confiança do meu amado.
A vinha que me pertence está ao meu dis- Fruição. A novidade que talvez seja importante
por.57 insistir é manter sempre de Cantares o olhar para
o mundo, a percepção da realidade. Um perce-
A palavra aqui pronunciada indica os jogos pção desfrutada nas festas (dança da sulamita),
de poder, evidencia o controle sobre o corpo da nas delícias do amor (a relva que acolhe o tempo
mulher em vários âmbitos da sociedade. A poesia do descanso), no aconchego dos lugares que fa-
anuncia o quão desprezível é comprar o amor, zem história popular de resistência (debaixo das
descrever o preço do corpo da mulher por sua macieiras), na acolhida das casas ou dos lugares
força para o trabalho e sua sexualidade reprodu- da casa que não representam opressão (quarto da
tiva. Na casa dos irmãos, o controle é manifesto. mãe).58 A percepção que anuncia as redes de mu-
O valor é calculado: seus seios e sua força, sua tualidade e interdependências entre os seres pro-
muralha. A reação dela, que está no centro das move a integridade da vida.
O olhar, a sensibilidade, a percepção de vi-
56 Cf. as inúmeras situações descritas no texto de Levítico, capítulos ver a vida sem abdicar do amor, do descanso, do
12-15, que aprisionam muito mais dias da vida das mulheres do que da
dos homens.
57 Cantares 8.8-10, 12. 58 Cantares 1.16, 17; 6.13-7.1; 8.5-7; 3.4, 5.

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dizer das belezas, da festa, ainda que se tenha de para viver na contra-mão do que se esperava das
resistir a diversas formas de opressão, pode ser relações naquela época. No ato de trazer para
uma novidade que nos ajude nos dias de hoje. perto, o corpo alargou-se e os horizontes multi-
Muitas lutas nos endurecem e nos fazem plicaram-se. O corpo que veio foi de volta para os
perder a ternura, o brilho no olhar, não nos ale- seus, para o trabalho, inundado de amor e de pos-
grar com a festa, não dedicar tempo para preparar sibilidades, exalando a alternativa resistente con-
a boa comida para receber amigos e família, aban- tra o comportamento esperado.
donar o cuidado de brincar com as crianças seus A gratuidade e a fragilidade do cotidiano de
jogos infantis, suas fantasias e faz-de-conta, adiar corpos que se amam sobressaem nesse poema
o namoro com o marido e a mulher, esquecer de como contraponto ao tempo em que as liberda-
oferecer flores, de escrever o cartão, de convidar des para o corpo estavam cerceadas. Essa dinâmi-
para o passeio, enfim, nos fazem esquecer de pre- ca assemelha-se ao modo como muitas pessoas
parar o lugar do amor... Acredito que o cotidiano empobrecidas lidam com o seu cotidiano em
das relações de poder precisa ser regado por um nossa realidade. Ainda que vivam em um tempo
novo olhar e um novo sabor, que parecem estar que proclama o Mal para as suas vidas, elas se-
segredados nos poemas de Cantares. guem vivendo seu desejo e sua estética de afirma-
Essa percepção, nada alienada, nada sub- ção da dignidade para seus corpos, fazendo seus
missa/sucumbida à ordem vigente, é, em Canta- bailes, suas comidas, suas festas, criando traba-
res, o convite mais impressionante e instigante lhos informais de sobrevivência – ressignificando
que consigo perceber para nos animar. Para acen- os discursos controladores do corpo e da vida.
der os olhos outra vez. Para colorir o cotidiano de Por isso, há muito para aprender da gratui-
quem resiste, sem amargar com os conflitos, e dade das festas do povo, lugar em que a fartura
nutrir esperanças que se cultivam em porções anuncia-se como o desejo futuro tornado presen-
breves. te pela partilha e pela solidariedade, e não porque
O livro não é de luta. Traz canto, festa, dan- as questões estruturais da sociedade estão já so-
ça, sofrimento, perdas, laços de amor, tempos de lucionadas.
trabalho e de descanso. Lugares acolhedores dos
corpos, em contraste com as múltiplas prisões. Tomo a festa como um ângulo possível,
Não há discursos, o amor é vivido intensamente entre outros. O privilégio concedido à
e expresso em poemas. Não há propostas de in- festa se deve ao fato de que, como forma
versão das posições assimétricas. Mas a vivência lúdica de sociação e como um fenômeno
gerador de imagens multiformes da vida
do amor é, em si, um grande convite à liberdade
coletiva, portanto, como modo privilegia-
e à revisão das estruturas normativas que preten- do de expressão dos sentimentos coleti-
dem controlar o corpo. O tempo do amor cor- vos, ela possibilita uma outra aproxima-
responde ao tempo do cotidiano no qual tem tra- ção do ato mesmo de produção da vida,
balho, tem dificuldade, tem paixão, tem encon- da experiência humana em sociedade, ou
tros e desencontros. seja, do vínculo social.59
A sabedoria de Cantares, sabedoria da vida [A festa] é, no entanto, vivida, por aque-
do povo. Sabedoria de minhas avós, de muitas les que dela participam, como explosão de
avós. Sabedoria que não é muita instrução, mas vida, como revigoramento e, portanto,
muita percepção, sensibilidade e cuidado com o como uma espécie de renascimento, ple-
no de atualidade, de inovação, de ruptura.
corpo, o próprio e o do outro. Quero ler Canta-
Para quem participa dela, a festa não tem
res iluminada pela dança leve do corpo de mulhe-
idade, é sempre atual.60
res do povo que, em meio a tanta dureza, não dei-
xaram de amar. E amando, anunciaram o bem-be- 59 PEREZ, 2002, p. 36.
leza do corpo do outro e o trouxeram para perto, 60 Ibid., p. 53.

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Os olhos, os ouvidos, a boca, as mãos são aconchego dos lugares que fazem história popu-
locus de poesia apresentando percepções muito lar de resistência. A percepção que anuncia as re-
profundas das opressões conjunturais refletidas des de mutualidade e interdependências entre os
no corpo de cada pessoa. Por isso, nos desafiam seres para a integridade da vida. Portanto, uma
a visualizar revisões nas hermenêuticas bíblicas e nova forma de poder: redes nas quais interdepen-
suas derivações teológicas marcadas por uma ra- dem incontáveis fios de vida. Diante desse pano-
cionalidade ocidental-branca-masculina estrutu- rama, parece essencial seguir o diálogo entre sa-
radora de subordinações diversas, como a da na- beres, acompanhados por Cantares e, por que
tureza, das mulheres, dos negros e dos indígenas, não, pela beleza poética de Fernando Pessoa:
entre outras. Dizer o Bem sobre a vida como es-
De tudo, ficaram três coisas:
tética de resistência ao controle da existência é o
a certeza de que estamos sempre come-
eixo para propor esse diálogo interdisciplinar, çando...
partindo de uma proposta de revisão teológica a certeza de que é preciso continuar...
circunscrita ao debate epistemológico e à aproxi- a certeza de que seremos interrompidos
mação do texto poético, que, historicamente, este- antes de terminar...
ve sob controle, por sua força crítica, às teologias
Portanto devemos
aprisionadoras do corpo e da beleza cotidiana.
fazer da interrupção um caminho novo...
A novidade que talvez seja importante in- da queda um passo de dança...
sistir é manter sempre de Cantares o olhar para o do medo, uma escada...
mundo, a percepção da realidade. Uma percepção do sonho, uma ponte...
desfrutada nas festas, nas delícias do amor, no da procura... um encontro.

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Dados da autora
Doutora em ciências da religião pela UMESP.
Professora no Mestrado em Educação Física,
Faculdade de Ciências da Saúde/ UNIMEP.
Coordenadora regional para América Latina e
Caribe da Associação Ecumênica de Teólogos e
Teólogas do Terceiro Mundo (EATWOT/ASETT).

Recebimento artigo: 1.o/abr./03


Consultoria: 16/abr./03 a 26/jun./03
Aprovado: 27/jun./03

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A Teologia que sai do


Armário: um depoimento
teológico*
A THEOLOGY THAT COMES OUT OF THE
CLOSET: A THEOLOGICAL TESTIMONY
Resumo Este artigo é um resumo do livro Uma Brecha no Armário – propostas para
uma teologia gay,1 que lança a pergunta sobre a ausência da experiência gay na reflexão
teológica na América Latina, apresentando as principais construções teológicas com
base nas histórias de vida de três homens gays. Além disso, traz uma introdução sobre ANDRÉ SIDNEI
teoria queer e propõe, como contribuição epistemológica e metodológica para a edu- MUSSKOPF
cação teológica, o seu entrelaçamento com a hermenêutica e a corporeidade, aplican- Instituto Ecumênico de
Pós-Graduação em Teologia/
do-a à hermenêutica bíblica.
Escola Superior de Teologia
Palavras-chave HOMOSSEXUALIDADE – TEOLOGIA GAY – HERMENÊUTICA – (IEPG/EST, São Leopoldo/RS,
TEORIA QUEER – CORPOREIDADE. Brasil)
andremusskopf@yahoo.com

Abstract This article is a synthesis of the book Uma Brecha no Armário – propostas
para uma teologia gay [A Gap in the Closet – proposals for a gay theology], raising the
question of why gay experience has been absent from the Latin American theological
reflection, and presenting the main theological constructions drawn from the life his-
tories of three gay men. It also brings an introduction to the Queer Theory and pro-
poses, as an epistemological and methodological contribution to theological educa-
tion, its intertwinement with hermeneutics and embodiment applying it to the bibli-
cal hermeneutics.

Keywords HOMOSEXUALITY – GAY THEOLOGY – HERMENEUTICS – QUEER


THEORY – EMBODIMENT.

1* Apresentado originalmente por ocasião da 7.ª Jornada Teológica de CETELA (Comunidad de Educación
Teológica Ecuménica Latinoamericana y Caribeña), La Paz, bolívia, de 13 a 17 de julho de 2003.
1A expressão sair do armário, que compõe o próprio título deste artigo, é uma tradução de coming out
(of the closet), que se refere aos diferentes estágios de assumir-se como gay ou lésbica.

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INTRODUÇÃO

A
liado a uma tímida vontade de abrir os círculos acadêmi-
cos e eclesiásticos para a discussão da teologia gay, tenho
ouvido repetidamente pedidos de respeito e moderação
na abordagem. Para mim, é interessante e intrigante que
se peça isso a quem aborda um tema que tem sido tratado
com justamente o oposto de respeito e moderação. Des-
de acusações de tratar-se de uma tentativa de corromper
a teologia e a vida eclesiástica, com idéias e comporta-
mentos desvirtuados e anormais, até o menosprezo e a discriminação vio-
lenta são freqüentes para quem trabalha com esse tema. Sabemos na pele o
que é falta de respeito e moderação. Temos tais marcas em nossos corpos.
Qual é a intenção desse pedido? Não cabe aqui fazer uma ampla reflexão
sobre ele, mas suspeito que pronunciar palavras como gay, lésbica e ho-
mossexual, em nossos círculos acadêmicos e eclesiásticos, ainda seja con-
siderado falta de respeito e moderação. E como falar de teologia gay sem
usar esses termos e aprofundá-los? Impossível. Para falar de teologia gay, é
preciso ir até o fundo de questões que causam reações caracterizadas por
falta de respeito e moderação. Meu trabalho não pretende ser a última pa-
lavra nesse assunto. Quer ser a base de um diálogo fraterno, respeitoso
e moderado. Não quer ser recebido e aceito sem críticas. Mas quer ser
ouvido com respeito e moderação, pois é fruto de uma reflexão séria e
comprometida.
É meu objetivo aqui fazer alguns apontamentos sobre a construção
teológica que eu mesmo venho desenvolvendo nos últimos anos, apre-
sentando especialmente as teses centrais do meu livro Uma Brecha no
Armário: propostas para uma teologia gay e algo da minha pesquisa mais
recente, sobretudo entrelaçando teoria queer, hermenêutica e corporei-
dade. O armário, além de marcar a vida pessoal e particular de muitos ho-
mens e mulheres que não se identificam como heterossexuais, serve tam-
bém como paradigma para o nosso fazer teológico. Muito se tem pro-
duzido na América Latina nesse campo, formal e informalmente. No en-
tanto a invisibilização de tais trabalhos ainda é muito forte. Eles
continuam guardados nos armários das nossas universidades e seminá-
rios, nos armários das nossas bibliotecas particulares e nos armários das
editoras que ousam publicá-los, mas não divulgá-los, ou não têm os meios
para fazê-lo. Vários são os motivos e não cabe aqui discorrer sobre eles.
Basta dizer que essa teologia quer sair do armário, pois é uma teologia
que ousa dizer o nome.

RETOMANDO O LIVRO UMA BRECHA NO ARMÁRIO


Em 2001 escrevi Uma Brecha no Armário – propostas para uma teo-
logia gay como trabalho de conclusão do curso de bacharel em Teologia,
na Escola Superior de Teologia, São Leopoldo/RS. Naquela época, e ainda
hoje, as pessoas reagiam, perguntando se era possível haver algo como

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uma teologia gay, expressão que usei então.2 Nos- Daly publica dois livros paradigmáticos para a te-
sos seminários de teologia ainda não pararam ologia feminista – The Church and the Second Sex
para escutar o que as pessoas homossexuais têm (1968) e Beyond God the Father (1973) –, bus-
a dizer sobre o assunto, pois não acreditam que cando o protagonismo das mulheres na constru-
seja um trabalho sério e bem articulado. Com ção teológica, feita até então por homens, bran-
Uma Brecha no Armário, eu queria mostrar a cos, ricos e heterossexuais.5
existência de um grupo que exige o direito à ci- Em meio a essa efervescência de sujeitos teo-
dadania religiosa e pode articular uma teologia lógicos novos (eles sempre teologizaram, mas sua
própria, partindo da sua experiência, como se fa- reflexão nunca foi validada) e maneiras novas de
lava tanto na década de 70, nos círculos da teolo- fazer teologia, também se organizou o moderno
gia da libertação e da segunda onda do movimen- movimento homossexual.6 As relações homoe-
to feminista.3 Naquele período foram lançadas, róticas tinham sido pela primeira vez nomeadas,
por exemplo, as obras Pedagogia do Oprimido, de em 1869, para além da concepção de sodomia,
Paulo Freire (1970) e Teologia da Libertação, de proveniente de uma interpretação equivocada do
Gustavo Gutiérrez (1971), ambas conclamando a texto bíblico sobre Sodoma e Gomorra.7 O mé-
uma nova forma de fazer teologia e educar para a dico húngaro Karl Maria Kertbeny cunhara o ter-
transformação. Como dizia Gutiérrez, mo homossexualismo para falar de uma inversão
sexual, uma doença passível de cura, tornando
Nós não teremos nosso grande salto à
seu uso corrente já no século XX, especialmente
frente, para uma perspectiva teológica
completamente nova, até que os margina-
pela medicina higienista no Brasil.8
lizados e explorados tenham começado a No final da década de 1960, o movimento
tornar-se os artesãos de sua própria liber- homossexual, já bastante articulado em diferen-
tação – até que a sua voz se faça ouvir di- tes grupos no mundo inteiro, teve o seu evento
retamente, sem mediações, sem intérpre- unificador na Revolta de Stonewall, em 1969.9
tes – até que eles mesmos tomem conta, à Também no Brasil sentiram-se os reflexos de Sto-
luz dos seus próprios valores, de sua pró- newall e desse movimento mundial por libertação
pria experiência do Senhor nos seus de gays e lésbicas. Com o abrandamento da dita-
esforços de libertar a si mesmos.4
dura militar instaurada em 1964 e a volta dos/as
Depois da publicação, em 1949, do livro O exilados/as a partir da anistia em 1979, novas idéias
Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir, na França, 5 Para uma breve discussão do papel de Mary Daly na teologia femi-
marco teórico que delineou a reflexão feminista, nista de libertação, cf. BIEHL, 1985, p. 56, 67-70.
também a teologia feminista falava de um novo 6 Durante a década de 60, surgiram grupos de militância homossexual
no mundo inteiro, como Daughters of Bilitis e Mattachine Society
sujeito teológico, as mulheres, com base na refle- (Estados Unidos), Arcadie (França), Forbundet 48 (Dinamarca) e
xão em torno de suas experiências. Assim, Mary COC (Holanda). Cf. o capítulo “Nasce uma estrela ou o surgimento da
‘consciência homossexual’”, em FRY; MACRAE, 1983, p. 80-100.
7 Cf. discussão de HELMINIAK, 1994, p. 39-46.
2 Mais adiante, falarei sobre teoria e teologia queer, uma reflexão aca- 8 TREVISAN (2000, p. 177-179) comenta o surgimento do termo na
dêmica e científica desenvolvida com base no questionamento da hete- Europa e a sua aplicação pelos médicos brasileiros Leonídio Ribeiro,
ronormatividade compulsória, considerando a sexualidade algo fluído Viveiros de Castro e Pires de Almeida.
e rompendo com o dualismo homo/heterosexual. No âmbito da pes- 9 Stonewall Rebellion, iniciada em 28 de junho de 1969, quando, numa
quisa por mim desenvolvida, teologia gay refere-se à reflexão teológica das tradicionais batidas da polícia de Nova York a estabelecimentos
feita a partir da experiência de homens gays. freqüentados por homossexuais, esses não se renderam, mas revida-
3 Para informações sobre a segunda onda do movimento feminista, cf. ram, enfrentando os policiais. No dia seguinte, tomaram as ruas em
BIEHL, 1985, p. 51-57. Conforme FREIBERG (1997, p. 74), “no protesto, marcando o início das Paradas do Orgulho Gay, que hoje são
Brasil, a produção teórica acerca da condição da mulher trouxe, em seguramente uma das maiores manifestações políticas no mundo
1967, o livro A Mulher na Construção do Futuro, de Rose Marie inteiro. Conforme CLEAVER (1995, p. 24-25), “Stonewall foi um
Muraro; em 1969, A Mulher na Sociedade de Classes: mito e realidade, ponto decisivo na história de homens gays e lésbicas, não somente na
de Heleieth Saffioti; e, em 1971, a tradução do livro A Mística Femi- América do Norte, mas também na Europa. Ela tornou um movi-
nina, de Betty Friedan”. mento por aceitação e assimilação em um movimento militante por
4 GUTIÉRREZ, G. The Poor in the Church, p. 65, apud BROWN, ‘libertação gay’. (...) O significado vem do fato de que ela nos capaci-
1990, p. 70. tou a começar a pensar nós mesmos como sujeitos históricos”.

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foram trazidas na bagagem dele(a)s. Já em 1978, significar e fazem frente ao sistema que oprime e
foi fundado o jornal Lampião, que abordava sis- marginaliza, tornando-se sujeitos do seu presente
tematicamente a questão homossexual. No ano e do seu futuro. Com afirma Mark Thompson,
seguinte, foi criado o Grupo de Afirmação Ho-
mossexual (SOMOS) e, em 1980, a Ação Lésbico- No passado distante, pessoas gays foram
rotuladas como hereges, demônios e per-
Feminista, que serviram de espinha dorsal para o
versões da natureza, provendo assim
Movimento de Libertação Homossexual no Bra- justificação para as campanhas de genocí-
sil.10 dios empreendidas contra elas. Em tem-
A partir daí, a luta por direitos para gays e pos mais recentes, pessoas gays têm sido
lésbicas tomou corpo e assumiu a homossexuali- categorizadas pseudocientificamente, co-
dade como uma identidade. Apesar disso, sua locadas no falso e arbitrário gueto da ho-
participação na reflexão teológica não se efetivou, mossexualidade, forçadas a assumir um
de maneira especial na América Latina, assim papel que não tem finalidade social, seme-
lhante à forma como os povos nativos ao
como a teologia da libertação, com sua opção
redor do mundo têm sido contidos e ren-
preferencial pelos/as pobres, e a teologia feminis-
didos impotentes. Pessoas gays têm tido
ta, com a reapropriação e valorização do poten- que viver à margem da aldeia global ou
cial das mulheres. Isso especialmente porque a trabalhar dentro de sua corrente em nega-
questão da homossexualidade esteve ligada a uma ção ou disfarce. Como resultado, feridas
moral sexual rígida e à interpretação de determi- emocionais correm na profundidade e são
nados textos bíblicos, aistoricamente vinculados longamente lembradas. É aqui, neste lu-
ao tema. gar machucado, que nossas vidas encon-
tram um solo compartilhado, nossos es-
No entanto, as mesmas teologia da liberta-
píritos uma língua comum. Este mito so-
ção e teologia feminista forneceram o instrumen-
bre nossa sexualidade foi tramado por
tal teórico para a emergência desse sujeito. O res- aqueles que possivelmente não poderiam
gate da experiência cotidiana dessas pessoas que nos entender, ainda que soubessem o su-
vivem à margem do sistema heteronormativo ficiente para beneficiar-se de nossa opres-
constitui material fecundo para uma reflexão são.11
com base na teologia. Assim como nas comuni-
dades eclesiais de base e nos grupos de mulheres, Desde a margem surge uma cultura que in-
gays e lésbicas resgatam suas experiências, suas fluencia e questiona o padrão social. Essa subcul-
formas de experimentar, de ver e de encarar o tura, na verdade, fornece os limites para a cultura
mundo, para poder emergir como sujeitos de sua dominante, que usa categorias como bicha e sa-
própria realidade, no fazer da sua própria história patão para definir o que é muito baixo, muito ex-
e na construção de uma teologia que responda às travagante, muito suave ou perigoso, muito
suas vivências. O compartilhar das histórias invi- agressivo ou sexual. Essa subcultura gay, apoiada
sibilizadas é o meio para sair da escuridão e do si- na sua experiência antes negada ou ignorada, surge
lêncio. Embora muitas vezes não seja considerada como fonte e destino também da reflexão teológi-
uma forma autêntica de fazer teologia, dominada ca. Uma experiência específica e, ao mesmo tem-
ainda por padrões de objetividade e universalis- po, comum. Específica às pessoas homossexuais,
mo, é na subjetividade e na particularidade do que vivenciam situações e experiências diferentes
contar histórias de vida que gays e lésbicas recu- daquelas de heterossexuais, pois passam por pe-
peram o seu passado de opressão e dominação. ríodos tanto de dúvidas e incertezas com relação
Eles curam profundas feridas, permitem a vida a a si mesmas, uma vez que a sociedade e a cultura
dominante não oferecem modelos para a cons-
10Para uma discussão sobre a homossexualidade no Brasil, cf. TREVI-
SAN, 2000, particularmente p. 335-351, sobre o período em questão. 11 THOMPSON, 1987, p. XIV.

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trução de sua identidade, quanto de negação e do-se do diálogo “como meio de devolver a pala-
aceitação, numa sociedade em que a sua forma de vra àqueles de quem ela foi roubada, a quem foi
expressão sexual não participa da norma. Trata-se reduzido à condição de objeto”,14 devolve-lhes a
também de uma experiência comum, porque pes- palavra através do ouvir e do contar essas histó-
soas de diferentes contextos passam por ela, so- rias, desencadeando um processo que Edla
frem os mesmos preconceitos, as mesmas crises e Eggert chama de educa-teologiza-ção.15
dúvidas, e encontram apoio e conforto na mutua- Por isso, nesse silêncio encobridor, aconte-
lidade de suas vivências. ce uma confusão, uma mistura de sentimentos e
Partindo da história de três homens gays – sensações que homens gays vivem em seus cor-
Francisco, Rafael e Gabriel –, das situações e ex- pos. Eles aprendem um vocabulário não verbal
periências por eles vividas no processo de cons- que, por um lado, os ajuda a esconder-se, retra-
trução de sua identidade sexual e afirmação (mui- indo quaisquer traços de sensibilidade e delicade-
tas vezes não pública) como homens homosse- za, em geral associados a veados ou mulheres. Por
xuais, e do entrelaçamento de suas histórias de vi- outro lado, esse vocabulário os ajuda a encontrar-
da, temas teológicos tradicionais e posturas se uns aos outros. A sua corporeidade expressa
teológicas cristalizadas vão ganhando um olhar esse profundo conhecimento acerca de si, tam-
diferente, um olhar teológico gay.12 Assim, a se- bém aprendido na relação íntimo-afetiva com
xualidade não heterossexual se manifesta na vida companheiros e namorados, em que a descoberta
desses homens desde a infância, período de silên- do corpo do outro, e do seu próprio, apura a sen-
cio generalizado na vida das crianças com relação sibilidade e a consciência corporal. Essa intimida-
a sexo. Sendo a homossexualidade invisibilizada e de entre homens é algo negado aos homens hete-
cercada de estereótipos, não há modelos positi- rossexuais, especialmente pelo medo de ser con-
vos de pessoas que vivem sua sexualidade como fundidos com homossexuais.16 Ao romper com o
homossexuais. Quando há alguma referência, são padrão e descobrir sua corporeidade, homens
piadas preconceituosas e pejorativas ou conse- gays também propiciam um modelo alternativo
lhos censuradores para evitar esse mal, que pode de vivência para homens heterossexuais, buscan-
trazer como conseqüência repreensão social e até do uma reflexão pautada em sua presença corpo-
condenação divina. Do silêncio social brota o si- ral, em que o corpo é entendido integralmente.
lêncio acerca dos próprios desejos e a vivência de- Além disso, permite compreender de ma-
les, uma forma de proteção numa sociedade que neira nova o que significa a encarnação de Jesus
não só discrimina, mas também violenta e agri- Cristo, o próprio Deus se fazendo carne e corpo
de.13 O silêncio sobre a homossexualidade opri- e habitando entre nós. Apesar de Jesus Cristo ter
me as pessoas homossexuais de duas maneiras: chegado até nós como uma figura praticamente
primeiro, impedindo o acesso a quaisquer infor- assexuada, sua prática e sua morte na cruz reve-
mações que poderiam auxiliar no processo de lam sua corporeidade em seu mais concreto sen-
construção da identidade; segundo, mediante a tido. É por intermédio do nosso corpo que expe-
política Don’t ask, don’t tell, perpetuando a invi-
14 STRECK, 1994, p. 34. Esse autor comenta a proposta pedagógica
sibilidade da experiência homossexual e relegan- de Paulo Freire.
do-a ao território do não-dito. Em ambos os ca- 15 EGGERT, 1998. A autora expressa, segundo esse conceito, os pro-
cessos de educação teológica presentes na desterritorialização, simula-
sos, as pessoas homossexuais estão impedidas de ção e reterritorialização, que se fazem visíveis no processo de resgate e
pronunciar o seu mundo. A teologia gay, valen- elaboração das dinâmicas do dia-a-dia, as quais passam geralmente des-
percebidas.
16 Segundo NELSON (1988, p. 62), “buscar validação, amor e afeição
12 As histórias de vida de Francisco, Rafael e Gabriel na íntegra estão de outros homens, no entanto, é algo amedrontador, pois nós temos
em MUSSKOPF, 2002, p. 21-53. sido ensinados a nos relacionar com outros homens numa base dife-
13 VENCIGUERRA; MAIA (1988) descrevem inúmeros casos de rente – competição. O homem gay, que simboliza afeição, abertura e
crimes contra homossexuais no eixo Rio-São Paulo. Cf. também vulnerabilidade de homem para homem, simboliza o que parece ser
MOTT, 2002. negado aos homens heterossexuais”.

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rimentamos o mundo, as outras pessoas e Deus. A tradição da Igreja desenvolveu, além dis-
A fé cristã é uma fé encarnada, que parte da cor- so, uma relação conflituosa com a sexualidade,
poreidade desse Deus encarnado e da contínua especialmente com teólogos como Agostinho,
repetição dessa encarnação nos relacionamentos Jerônimo e Orígenes, vinculando-a a sexo e pe-
que entabulamos. Ao resgatar a corporeidade en- cado. Considerando que as pessoas homossexuais
carnacional de Jesus pela experiência de homens são definidas a priori por sua sexualidade, toda a
gays, a teologia gay propõe uma cristologia que resistência em relação ao sexo transfere-se para os
revela Jesus como aquele que se coloca ao lado homossexuais, que encarnam pessoas absoluta-
dos/as excluídos/as e oprimidos/as sexualmente mente luxuriosas, cuja única preocupação é satis-
em presença corporal, pois a sua atuação está em fazer seus desejos sexuais. Segundo John Boswe-
correlação direta com a luta de gays e lésbicas ll, a condenação da homossexualidade como pe-
por justiça e liberdade. A consciência da corpo- cado não é algo definitivo na tradição da Igreja,
reidade de homens gays revela o pecado presen- mas tornou-se um absoluto ético com a utiliza-
te na ideologia patriarcal, heterossexista e exclu- ção de determinados posicionamentos dos Pais
dente, uma vez que questiona esses sistemas e da Igreja sobre comportamentos homossexuais e
propõe novas formas de relacionamento baseadas heterossexuais, além de conceitos superados pela
na auto-entrega, na mutualidade e no cuidado cultura ocidental (como os de natureza humana
para com o/a outro/a, visando a uma vivência imutável e sexo restrito à procriação, por exem-
corporal saudável, fundada na liberdade, na inclu- plo).18 Todo esse aparato ideológico-religioso
são e na justiça, pretendidas por Jesus Cristo para acarreta uma imensurável carga de culpa por parte
todas as pessoas. de homossexuais que não se sentem aceitos por
Deus, lutam vorazmente contra sua identidade
Além das mensagens sociais e culturais ne-
sexual e, quando se aceitam, precisam curar as fe-
gativas com relação à homossexualidade, às quais
ridas deixadas por essa culpa.
os homossexuais estão expostos desde a infância
A teologia gay faz uma releitura dessas tra-
e a adolescência, o discurso religioso legitima essa
dições e procura a sua origem geralmente no en-
concepção fundada na interpretação de textos bí-
trelaçamento com questões de gênero da cultura
blicos específicos e da tradição da Igreja. A Bíblia
de que tais compreensões procedem. Desse mo-
tem sido em geral usada, com base nos textos de
do, ela rompe com a noção de pecado como exer-
terror, para provar a homossexualidade como algo
cício da sexualidade e identifica-o no sistema he-
pecaminoso e antinatural. No entanto, a teologia
terossexista e homofóbico que culpabiliza as se-
gay propõe uma hermenêutica bíblica para além
xualidades desviantes.
desses textos (ademais desconstruídos por diver-
Diante de tantas forças e circunstâncias que
sos autores e autoras) e perguntando como ho-
formam uma trama com vista a impedir a aceita-
mens gays lêem a Bíblia. De acordo com Ken
ção do ser homossexual e a construção de sua
Stone, “essa construção acontece, entre outros
identidade, é comum pessoas negarem seus dese-
lugares, no local da leitura sempre que os leitores
jos e construírem uma identidade heterossexual
gays são encorajados, através de sua leitura, a res-
falsa. Com isso, muitas vezes buscam cura (pro-
ponder às fontes autoritativas de ‘heterossexuali-
metida por vários segmentos religiosos e até psi-
dade compulsória’”.17 Não se trata de provar a le-
coterapêuticos) e, em geral, acabam por viver
gitimidade da homossexualidade, mas de curar as uma vida dupla. Para quem ousa assumir-se como
feridas deixadas por pregações com base em lei- homossexual, desencadeia-se o processo de saída
turas fundamentalistas, permitindo que a vida de do armário, que rompe com os modelos forneci-
homens gays ilumine os próprios textos.
18 Para discussão mais aprofundada a respeito desse assunto, cf.
17 STONE, 1997, p. 150. BOSWELL, 1980, p. 137-166.

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dos pela sociedade e inicia a construção de algo mas a fé sozinha lhe presenteia tudo isso em
novo. Como afirma Larry K. Graham, “ser gay é abundância”.23
uma opção no nível que de fato importa: se a pes- A negação do ser homossexual é a negação
soa reprime o desejo homossexual ou constrói do agir salvífico de Deus em Jesus Cristo, pois
sua identidade ao redor dela”.19 Esse processo nega a sua existência como ser humano criado à
acontece diferentemente para cada pessoa e em imagem de Deus. A doutrina da justificação por
níveis diversos (assumir-se a si mesmo, perante a graça e fé é central para a teologia gay, pois aceita
família, no emprego, publicamente...) e implica o ser – homossexual – por causa do amor incon-
assumir o risco de ser rechaçado, humilhado e dicional de Deus e o liberta de tudo que o oprime
menosprezado. para o serviço. Pela fé, homens gays são libertados
No entanto, segundo R. Cleaver, sair do ar- para se colocar a serviço do próximo. A vida deles
mário, mesmo que apenas para si mesmo, é o ato passa a orientar-se pela auto-entrega e pela auto-
de dar nome à opressão e classificar-se como al- doação, inclusive pela forma como vivem sua se-
guém fora do sistema que define os papéis sociais xualidade. É o rompimento com o pecado da ho-
com base no gênero biológico.20 Assumir-se, as- mofobia exterior e internalizada e a libertação
sim, exige reconstruir a auto-imagem, olhar para para uma nova vida.
si de maneira positiva e afirmativa. Quando isso Assim como a experiência de opressão pelo
acontece, uma nova relação consigo, com as ou- silêncio e pela tradição bíblica e dogmática das
tras pessoas e com Deus é possível, e homens igrejas gera novas leituras de temas teológicos
gays podem reconhecer-se outra vez como seres tradicionais, também o processo de libertação,
humanos integrais. “Ser um ser humano integral, apoiado na consciência do amor e na aceitação de
em termos teológicos, é orientar-se para concre- Deus, produz novas leituras e vivências. Uma vez
tizar a imagem de Deus”,21 esse ato é “revelado que espaços de socialização, como a família, a es-
como uma qualidade de relacionamento dispo- cola, o trabalho e a comunidade religiosa, geral-
nível para todos e não limitada a dons especiais mente não possibilitam essa construção, a comu-
disponíveis somente a uma seleta classe de pes- nidade gay, em seus locais de encontro e vivência,
soas”.22 fornece essa possibilidade. Como afirma Robert
Goss, “a comunidade gay e lésbica provê um lu-
Nesse sentido, a justificação por graça e fé,
gar onde pode descobrir a si mesma e encontrar
doutrina central da Reforma Luterana, apresenta-
auto-afirmação. É um lugar onde pode produzir
se como parâmetro fundamental para a teologia
sua identidade, testá-la e afirmá-la contra os efei-
gay. Isso porque, pautada nela, a justificação, a va-
tos destruidores da homofobia”.24
lidação como ser humano integral não resulta do
Nesses lugares, em geral ainda escondidos e
sistema que dita normas de comportamento, mas
camuflados, à margem dos grandes centros de
do amor de Deus, da obra de Cristo, da qual de-
circulação e, portanto, num clima de clandestini-
pendem todas as pessoas, homossexuais e hete-
dade e exposição dessas pessoas a inúmeros ris-
rossexuais, pois todos pecaram e carecem da gra-
cos, é que elas se encontram para compartilhar
ça de Deus (Rm 3.23). Como também afirma
suas histórias, construindo comunidade. Nesses
Lutero: “Disso cada um pode ver com clareza de
espaços, produz-se uma subcultura gay (que ado-
que modo o cristão é livre de todas as coisas e
ta valores distintos da cultura dominante), com
está acima de todas as coisas de modo que não linguagem, sistema de símbolos, códigos de ves-
precisa de nenhuma obra para ser justo e salvo, timenta e normas de comportamento e estilos de
19
vida próprios. Por isso, essa comunidade também
GRAHAM, 1997, p. 43.
20 Cf. CLEAVER, 1995, p. 41-61.
21 GRAHAM, 1997, p. 53 (grifos acrescidos). 23 LUTERO, 1989, p. 445.
22 Ibid., p. 166. 24 GOSS, 1994, p. 36.

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desafia os conceitos tradicionais de eclesiologia, midade, na autodoação. Como afirma Rosemary


pois, como afirma Dan Spencer, “nossa eclesio- R. Ruether, “as relações são morais quando são
logia está enraizada em nossos esforços liberta- mútuas, comprometidas, fiéis e apóiam o desen-
dores para resistir ao heterossexismo e à homofo- volvimento pessoal pleno da outra pessoa. As re-
bia e para celebrar nossa identidade e unicidade. lações são imorais quando abusam, são violentas,
Como conseqüência, situa a identidade da igreja exploradoras, mantêm as pessoas em estados de
no movimento das margens da comunidade para desenvolvimento truncados e conduzem à men-
as margens como comunidade”.25 Essa não quer tira, ao engano e à traição”.27
ser uma eclesiologia especificamente para igrejas Essa não é uma ética que prega a multipli-
gays, mas um exercício de respeito às diferenças e cidade de parceiros, mas que a avalia sob o crité-
de envolvimento na luta contra estruturas hete- rio da qualidade dos relacionamentos. Da mesma
rossexistas opressoras e na busca por justiça para forma, a amizade, proposta por Mary Hunt, pode
todas as pessoas. tornar-se um novo valor ético para todos os rela-
cionamentos humanos, valendo-se da experiência
É verdade que nesses espaços acontecem
de homossexuais.28 Assim como a postura, rela-
inúmeros encontros e desencontros. Muitos de-
tada por Mel White, de um amigo que freqüen-
les acabam em envolvimentos sexuais. Tal multi- tava saunas: “eu não venho mais aqui para sexo.
plicidade de parceiros tem sido muito discutida e (...) De fato esta nunca foi minha razão principal
criticada pelos defensores de uma moral sexual para visitar este lugar. Eu venho aqui para estar
restrita ao âmbito do casamento e da procriação com pessoas gays como eu, e para falar sobre coi-
e, assim, heterocentrada. No entanto, sas que ninguém mais entenderia”.29
Essas são algumas reflexões iniciais pauta-
Quando vistos no desabrochar mais amplo
da identidade e comunhão humana, e per-
das na experiência de homens gays, procurando a
mitidos ser nomeados do ponto de vista sua ligação com temas de importância teológica.
dos participantes cujas vidas são transfor- É um exercício de criação, de imaginação, algo
madas pela experiência, os múltiplos rela- tão caro aos movimentos libertadores instaura-
cionamentos sexuais ao longo do caminho dos na América Latina a partir da década de 70.
perdem seu status de “promíscuos”. Eles
são um tanto fluídos, mas valiosos compo- TEORIA QUEER, HERMENÊUTICA E
nentes de um processo complexo mais CORPOREIDADE: CONTRIBUIÇÕES
amplo de autodescoberta e auto-afirma-
EPISTEMOLÓGICAS E METODOLÓGICAS
ção. Seu status moral não é, em última aná-
lise, determinado pela natureza dos atos PARA O QUEFAZER TEOLÓGICO
por si mesmos ou pela sua “multiplicidade Abordar amplamente o significado e as im-
passageira”, mas pelo cuidado, prazer e plicações de uma teoria queer seria impossível
afirmação mútua que são compartilhados neste espaço. No entanto, para uma melhor apro-
por estes parceiros sexuais.26 ximação dos pressupostos epistemológicos, pro-
ponho-me a fazer um pequeno inventário sobre
A teologia gay também propõe uma nova o que representa tal teoria, suas ênfases, seus ob-
ética sexual, não derivada da compreensão hete- jetivos e desenvolvimentos. A palavra queer tra-
rossexual de matrimônio, cuja finalidade central é duz-se por esquisito, singular, estranho, excêntrico
a procriação, mas na valorização do ser humano e o seu correspondente imediato, queerness, por
na sua integralidade. É uma ética sexual centrada singularidade, esquisitice.30 Até certo ponto, o ter-
na autonomia de propósito relacional do sexo, no
27 RUERTHER, 1996, p. 589.
apoio mútuo à integralidade de cada um, na inti- 28 Cf. HUNT, 1994; e 1996, p. 273.
29 WHITE, 1994, p. 139.
25 SPENCER, 1996, p. 599. 30 VALLANDRO, L. Dicionário de Inglês. 14.a ed. São Paulo: Globo,
26 GRAHAM, 1997, p. 75. 1990, p. 387. Verbetes queer e queerness.

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mo é tomado em sua etimologia original. Uma por suas denotações aberta a contestação e revi-
vez categorizadas pelo senso comum como estra- são.”33
nhas, esquisitas, pessoas de diferentes orientações
sexuais (gays, lésbicas, bissexuais, travestis, trans- RAÍZES DA TEORIA QUEER
gêneros...) assumem essa singularidade e passam
Segundo William B. Turner, a primeira vez
a refletir sobre ela e a partir dela, num ato de ou-
que o termo queer entrou em voga em discussões
sadia e coragem. “Mais estritamente, é um jogo
político na palavra queer, por longo tempo iden- teóricas foi com a feminista Teresa de Lauretis,
tificada como ‘homossexualidade’, e a mais nova em 1991.34 Stephen D. Moore afirma que, já em
série de ‘afirmações reversas’ nas quais as catego- 1990, tal conceito fez o seu debut público numa
rias construídas através da medicalização são usa- conferência na Universidade da Califórnia
das contra elas mesmas.”31 (EUA).35 Arlene Stein e Ken Plummer também
falam na emergência da teoria queer no final dos
Assim, essa palavra recebeu um significado
anos 80 e “indiretamente relacionada à emergên-
diferenciado a partir do final da década de 80 e,
cia de uma crescente visível política queer, forma
especialmente, durante a década de 90, quando
de ativismo de base confrontacional corporifica-
estudiosos/as e teóricos/as começaram a refletir
do no ACT UP, Queer Nation e outros grupos de
sobre a(s) homossexualidade(s). Tal reflexão, fei-
ação direta”.36 A maioria dos/as autores/as men-
ta de um ponto de partida específico – o ser ho-
ciona Eve Kosofsky Sedgwick e Judith Butler
mossexual –, demonstrou aos poucos que não ca-
como as fundadoras dessa teoria. No entanto, é
bia dentro da terminologia homossexual, nem gay,
impossível pensá-la antes de Michael Foucault,
mas carecia de um termo mais abrangente para
citado em praticamente todos os estudos consi-
acabar com a polaridade hetero-homossexual.
derados queer.37 Verdade é que, desde 1991 (ou
Isso porque homossexual e gay estabelecem outra
1990), tais estudos multiplicaram-se e foram to-
hierarquia sexual, excluindo, por exemplo, tran-
mando forma. Essa área de pesquisa é, hoje em
sexuais, bissexuais, transgêneros... Por essa razão,
dia, substancialmente forte, pelo menos na Amé-
o termo queer tem por objetivo central ser mais rica do Norte e na Europa, dando sua contri-
amplo a ponto de abarcar diferentes perspectivas buição para a academia e a ciência, configurando
e experiências. Na mesma linha, queer também um movimento acadêmico. Abrange estudos das
reflete uma identidade. Gay, lésbica e outros ter- mais diversas áreas, como sociologia, história, po-
mos são tidos como categorias estáticas de iden- lítica, cultura, teologia e até economia.
tidade. Queer, por outro lado, pretende garantir
Na busca pelas raízes da teoria queer, são
maior mobilidade na construção da identidade,
inegáveis as contribuições das reflexões sociais e
uma vez que “identidades queer são caracteriza-
históricas, especialmente as realizados no âmbito
das por sua posição contra o normal”.32 Queer al-
da teoria feminista da segunda onda do feminis-
meja romper com essa paralisia e considerar iden-
mo. Assim como as já citadas Eve K. Sedgwick,
tidades mais fluidas e em construção, identifica- Judith Butler e Teresa de Lauretis, os trabalhos de
das como em oposição à heteronormatividade. muitas outras feministas serviram de inspiração
“‘Queer’” tem a virtude de oferecer, no contexto aos teóricos que agora se colocam na categoria
de investigação acadêmica sobre identidade de
gênero e identidade sexual, um termo relativa- 33 TURNER, 2000, p. 35.
mente novo que conota etimologicamente um 34 Ibid., p. 5.
35 MOORE, 2001, p. 12.
cruzamento de fronteiras, mas que se refere a 36 STEIN; PLUMMER, 1996, p. 133.

nada em particular, por isso deixando a pergunta 37 Segundo TURNER (2000, p. 10), “as condições de possibilidade
para a teoria queer provavelmente surgiram em algum lugar entre a
publicação de duas das principais obras de Foucault: The Order of
31 STEIN; PLUMMER, 1996, p. 134. Things: an archeology of the human sciences, em 1966, e Discipline and
32 BLOODSWORTH, 2000, p. 487. Punish: the birth of the prison, em 1975”.

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queer. Essa teoria também deita suas raízes no li- ria queer conseguiu transformar sexo e sexualida-
beralismo do século XX, que assume o mundo de em assuntos para trabalho acadêmico.
como paradoxal, subvertendo a idéia de que isso Ela também questiona “o ideal acadêmico
seria uma falha da lógica ou da reflexão racional. de reflexão desapaixonada, com a razão como
Assim, ela assume o rosto do pós-estruturalismo único guia, que acarreta uma recusa de reconhe-
(como também se definia Foucault), pois traz cer as múltiplas formas nas quais fatores culturais
apenas incertezas a respeito de categorizações e e psicológicos influenciam o que nós pensamos e
construções, ou, como sugere W. B. Turner, o escrevemos”.43 Mesmo assim, vai além da ques-
próprio “pós-estruturalismo é queer”,38 uma vez tão da sexualidade, pois “reconhece que a sexua-
que rompe com as estruturas binárias defendidas lidade é indissolúvel de outras categorias de iden-
pelo estruturalismo como tendo duração infinita. tidade, como raça, gênero, classe, e crenças espi-
Assim, uma análise pós-estruturalista prova que rituais”,44 mostrando-se, por isso mesmo, rele-
“muitas pessoas não se encaixam nas categorias vante para todos os campos de interação social.
disponíveis e que tal falha de encaixe reflete um Como afirma Poulsen, “Porque a sociedade está
problema não com as pessoas mas com as cate- organizada num modelo heterossexual, desafiar
gorias”.39 Rompe-se, então, com a herança do sé- as reivindicações presumíveis de heteronormati-
culo XVIII, quando se considerava uma identidade vidade força o questionamento da lógica de go-
humana universal fazendo com que “subdivisões verno, religião, medicina, lei e cada disciplina que
de raça, gênero e prática sexual servissem para ex- estrutura a vida das pessoas”.45
cluir muitos – talvez a maioria – dos indivíduos Por isso, a principal tarefa da teoria queer, e
da categoria universal ‘humano’”.40 a mais ambiciosa, tem sido mostrar que não há
Estudos considerados queer buscam ques- essência transhistórica em questões de sexualida-
tionar a heteronormatividade dos currículos de de, tanto da homo como da heterossexualidade,
centrando sua crítica na heteronormatividade e
faculdades e universidades, embora, na maioria
nos demais binarismos daí advindos.
delas, não haja espaço para disciplinas específicas.
Stephen D. Moore argumenta ainda que a
Partindo da idéia de sexualidade como uma reali-
teoria queer, mais do que uma metodologia, é
dade fluida, complexa e múltipla, a teoria queer
uma sensibilidade para com essa realidade, reve-
“interroga aspectos da vida social – a família, os
lando, por meio dessa sensibilidade metodológi-
relacionamentos íntimos –, mas também olha
ca, que a própria identidade é queer e não segue
para lugares não tipicamente pensados como se-
modelos ou padrões, abrindo possibilidade para
xualizados – a economia, por exemplo”.41 Se-
que essas identidades possam existir e ser valori-
guindo a linha de Foucault, estudos históricos
zadas. Por isso, é, antes de tudo, uma ação polí-
mostram que categorias são construídas e atribuí-
tica. Ela indica novas formas de reflexão ou, pelo
das de acordo com questões de poder e trazem à
menos, novas maneiras de olhar categorias e con-
tona questões de gênero e sexualidade até então
ceitos já existentes.
nunca pensadas, provando que “a vida pessoal é
Embora talvez não suficientemente discu-
sexualizada – e heterossexualizada”.42 A área da
tida neste artigo, ao menos esse passeio por al-
sexualidade, suas categorias e suas construções
guns/as autores/as que se ocuparam da temática
são a lente adotada por teóricos queer para de-
queer deverá servir de suporte para dar um passo
senvolver seus trabalhos, tanto quanto as femi- adiante e discutir em que medida ela inspira e in-
nistas utilizam a das categorias de gênero. A teo- fluencia a reflexão hermenêutica, e se é possível
38
falar numa hermenêutica queer.
Ibid., p. 22.
39 Ibid., p. 32.
40 Ibid., p. 15. 43 TURNER, 2000, p. 5.
41 STEIN; PLUMMER, 1996, p. 135. 44 POULSEN, 2000, p. 489.
42 Ibid., p. 135. Cf., por exemplo, GLUCKMAN; REED, 1997. 45 Ibid., p. 490.

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CORPOREIDADE QUEER movimento do silêncio e da invisibilidade para a


descoberta do próprio corpo e da relação com
Eu estou de pé nu em frente ao espelho e outras pessoas resulta numa forte consciência
estudo o meu corpo. O que eu vejo é isso:
corporal por parte de homens gays.
um homem de peso médio, de meia idade
(...). Os pés estão firmemente no chão e Micha Ramakers, no livro Dirty Pictures,
apóiam duas pernas, bem construídas e faz um inventário da produção do desenhista
robustas. Os quadris são largos demais Tom of Finland, conhecido pelas suas gravuras
para um homem, no entanto, eu detesto pornográficas retratando o mundo gay, durante
dizer. Eles são mais femininos, uma com- décadas. No trabalho de Tom, Micha percebe
paração que eu ouvi toda a minha vida. O como foi se dando a construção de um corpo gay
abdômen é suave, mas não frouxo demais, ao longo de sua história.47 A mudança na repre-
comprimido abaixo de um amplo peito e sentação e na construção dos corpos de homens
ombros arredondados. O rosto tem um gays deu-se por uma necessidade de esses ho-
queixo marcante e suave, emoldurado por
mens identificarem-se como homens, masculi-
uma barba curta e uma cabeça coberta de
nos, uma vez que se encontravam numa posição
cabelos ligeiramente grisalhos. Os olhos
são azuis, mas às vezes tendem ao esver- intermediária, não sendo considerados nem ho-
deado. mens nem mulheres. Por isso, “sua grande con-
A reunião de partes não é desagradável, quista foi então vista como tendo liberado ho-
mas não há como confundir a sua idios- mens gays das correntes da feminilidade e da
sincrasia. Meu corpo é único para mim, não-naturalidade”.48
uma curiosa mistura de curvas femininas Os desenhos de Tom ajudaram os homens
e saliências masculinas. E a verdade é que gays a entender seu corpo de forma diferente,
eu tenho tido dificuldades sempre que- pois podiam ser charmosos, fortes e masculinos.
rendo estar dentro dele. Ele tem sido a
Passaram a compreender-se como queer, não
fonte da minha vergonha e da consterna-
mais como bichinhas, nem mesmo como anor-
ção de outros, o campo de batalha sobre o
qual meu direito à personalidade tem sido mais. Isso levou a uma outra característica dos
lutado. Os cortes e sons da carne são nada corpos de homens gays, muito valorizada na atua-
mais do que um pertinento de sentimen- lidade: os corpos musculosos, fruto do fisicultu-
tos cicatrizados por baixo. Ainda assim, rismo. Exageradamente expressa nas figuras de
aceitar o meu corpo como ele é significou Tom, essa imagem representa o ideal de muitos
forjar uma paz mais ampla, senão dura- homens gays: corpo forte, perfeitamente cons-
doura. truído, coberto de músculos bem desenhados.
Meu corpo. Meu corpo gay.46 Inspirado nos personagens Homem-Aranha, Su-
O livro de Mark Thompson é uma autobi- per-Homem e Flash Gordon, da década de 40,
ografia. Mediante suas inúmeras experiências mas ainda muito famoso nos dias de hoje, o “fi-
como homem gay, ele vai descrevendo a constru- 47 Segundo RAMAKERS (2000, p. 57), “enquanto nos anos 50,
ção de seu corpo, em que a marca permanente quando o trabalho de Tom foi publicado pela primeira vez, uma forte
mais forte é a culpa. Sua história é bastante repre- ênfase ainda era colocada na juventude como fator determinante de
beleza, dos anos 70 em diante isso mudaria para masculinidade”.
sentativa da experiência de homens gays. Tem a 48 Ibid., p. 58. Do final do século XVIII até a metade do século XIX,

marca distintiva de uma sensibilidade corporal com a medicalização da homossexualidade, um corpo gay foi sendo
formado pela ciência. “Um corpo gay foi assim trazido à existência,
desenvolvida em face das armadilhas e exigências um corpo que não se qualificava propriamente nem como masculino
de um modelo social heteronormativo, que defi- nem como feminino; era aquele de um terceiro sexo (...). Este corpo
verdadeiramente queer foi o portador de um grande número de carac-
ne os corpos em vista dos papéis de gênero a eles terísticas distintivas, às vezes contraditórias: uma construção leve,
atribuídos. Como foi dito anteriormente, esse excessivos depósitos de gordura, quadris amplos, pele suave, pelos
pubianos que seguiam o padrão feminino, ombros estreitos, um rosto
juvenil e cabelos abundantes, uma incapacidade de assobiar e aparên-
46 THOMPSON, 1997, p. 18. cias ‘boas demais’” (ibid., p. 62).

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siculturismo ofereceu aos homens gays das gera- logran imágenes de cuerpo que muchas
ções mais tardias uma estratégia de afirmar sua mujeres envidian y que no pocas vezes
masculinidade”.49 Essa construção, apoiada num engañan a los desprevenidos.51
modelo que representa a masculinidade heteros-
Marcos Benedetti, em “Toda Feita”, mostra
sexual no imaginário coletivo, expressa-se forte-
a construção dos corpos de um outro grupo, os
mente nos streapers analisados por José Amaya, travestis, que se diferenciam dos transformistas
em Cuerpos Construídos para el Espetáculo. Uti- por assumir essa construção no cotidiano, e não
lizando o corpo como atrativo de boates e bares somente em shows e espetáculos. Esse processo
gays, os streapers fazem dele de modelagem do corpo masculino em feminino
Un cuerpo musculoso producto del gim- utiliza-se dos mais diversos mecanismos, desde
nasio que se luce mediante ropas deporti- preocupações com gestos e o uso de medicamen-
vas, uniformes militares, industriales o de tos à base de hormônios femininos, até implantes
trabajo pesado, bajos las que hay prendas de silicone e cirurgia plástica.
que resaltan los pectorales, los genitales y
las nalgas. Sus referentes están en los As travestis, ao investirem tempo, dinhei-
cuerpos que circulan por los medios de ro e emoção nestes processos de alteração
comunicación, la publicidad, el fisicocul- corporal não estão concebendo o corpo
turismo y algunos ideales estéticos de la como um mero suporte de significados.
cultura gay.50 O corpo das travestis é antes de tudo uma
linguagem: é no corpo e através dele que
Esses corpos são construídos em horas de os significados do feminino e do mascu-
exercícios físicos em academias, um certo modis- lino se concretizam e conferem à pessoa
suas qualidades sociais. É no corpo que as
mo dentro da comunidade gay. Eles visam a exa-
travestis se produzam [sic] enquanto su-
gerar as formas do corpo consideradas masculi-
jeitos.52
nas (especialmente o peito) e, com isso, transfor-
mar-se na imagem do masculino ideal. Outra for- José Amaya fala ainda da construção dos
ma de construção de corpo, que inverte a corpos de drag queens e como eles questionam os
categoria masculina, tornando-o o mais feminino padrões de masculinidade e feminilidade, utili-
possível, é a adotada pelos transformistas. Se- zando ambos exageradamente: “La drag ocupa
guindo imagens de mulheres consideradas divas un papel especial pues se burla de ambos al inte-
entre eles, constroem a mulher ideal como resul- grarlos en sí y llevarlos hasta sus extremos; sien-
tado de um longo processo. do ‘tan mujer’ en algún momento no deja de ma-
nifestar su masculinidad, haciendo evidente el ca-
Para ello se realiza una compleja acción ráter contradictorio de su representación”.53
sobre el cuerpo masculino que transforma
temporalmente su aparencia en femenino:
De qualquer modo, todas essas formas
las cejas se tapan, la manzana de adán se tipológicas de construção do corpo (streapers,
cubre, se moldea la cintura y la cadera transformistas, drag queens, travestis) apresentam
com fajas y corsets, las piernas com varios meios de subverter normas de gênero e identida-
pares de medias y se esconden los de, embora acabem, por vezes, confirmando de-
genitales; el maquillaje resalta pómulos, terminados padrões. Elas mostram como tais nor-
forma cejas, delinea ojos y labios, tapa la mas de identidade vão sendo construídas nos cor-
barba; postizos, pelucas, tacones y nuevas pos, que se tornam um lugar hermenêutico privi-
formas. Luego de varias horas y com la legiado para compreender mecanismos sociais de
ayuda de uno o dos expertos en ello se
51 Ibid., p. 3.
49 Ibid., p. 79. 52 BENEDETTI, 2000, p. 44.
50 AMAYA, s/d, p. 5. 53 AMAYA, s/d, p. 6.

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contenção deles, e de inclusão e exclusão de iden- “pelo corpo e mais precisamente por este órgão
tidades queer. mais perfeito, o olho, o pintor se transforma, já
que é emprestando o seu corpo ao mundo que o
TEOLOGIA DO CORPO E O PRIMADO DA pintor transforma o mundo em pintura”.55 No li-
PERCEPÇÃO vro O Primado da Percepção, o objetivo de Mer-
James Nelson parte da idéia de que, com a leau-Ponty é mostrar como a percepção é a fonte
privatização da Igreja, no período vitoriano, jun- do saber e não é a reflexão científica e intelectual
tamente com o processo de industrialização da que determina o que é verdadeiro. Ele utiliza a fe-
sociedade, o corpo foi privatizado, acarretando nomenologia de Husserl como teoria do conheci-
conseqüências para a compreensão dos papéis so- mento e ocupa-se especialmente da Gestalttheorie,
ciais enraizados numa reelaboração teológica. segundo a qual a percepção não é uma operação
Para abordar esses temas de maneira libertadora, intelectual, mas a forma presente no próprio co-
ele propõe uma nhecimento.56 Ou seja,

Teologia sexual, (...) mais do que uma teo- falando de um primado da percepção, não
logia sobre sexualidade. É uma forma de quisemos nunca dizer, bem entendido (o
tomar a experiência sexual/corporal seria- que seria voltar às teses do empirismo),
mente em conversa com e na remodela- que a ciência, a reflexão, a filosofia fossem
gem de nossas percepções e categorias te- sensações transformadas ou valores dos
ológicas (...) mover não somente da teo- prazeres diferidos e calculados. Exprimía-
logia para a sexualidade, mas, ao mesmo mos nestes termos que a experiência da
tempo, mover de nossa sexualidade para percepção nos põe em presença do mo-
teologia. Ela nos convida a escutar a fala mento em que se constituem para nós as
do próprio corpo, a pensar teologicamen- coisas, as verdades, os bens; que a perce-
te com e através de nossos corpos.54 pção nos dá um logos em estado nascen-
te, que ela nos ensina, fora de todo dog-
Essa formulação ajuda a colocar também os matismo, as verdadeiras condições da
critérios para uma hermenêutica do corpo ou da própria objetividade; que ela nos recorda
corporeidade. O corpo não é apenas um meio do das tarefas do conhecimento e da ação.
qual dispomos para produzir sentido. Em nossos Não se trata de reduzir o saber humano
corpos estão inscritas construções sociais, cultu- ao sentir mas de assistir o nascimento
rais, religiosas, ideológicas etc. É por meio dele desse saber, de torná-lo tão sensível quan-
que damos sentido ou validação a determinadas to o sensível, de reconquistar a consciên-
práticas, crenças e costumes. Por isso, o corpo é cia da racionalidade, que se perde acredi-
o lugar hermenêutico por excelência para ler e tando-se que ela vai por si, que se reen-
contra, ao contrário, fazendo-se aparecer
apropriar os diversos códigos a que estamos ex-
sobre um fundo de natureza inumana.57
postos e, quem sabe, libertar de construções
opressoras e castradoras que nos impedem de vi- O lugar onde se dá essa percepção é o cor-
ver nossos corpos autenticamente. po, lugar hermenêutico da realidade apreendida
Na reflexão filosófica de Merleau-Ponty, o por excelência. Percebemos o mundo, Deus e as
corpo aparece como categoria privilegiada na per- pessoas com as quais nos relacionamos com, por
cepção e construção da concepção de mundo. e através do corpo. Assim, ele se torna o lugar
Nesse sentido, em termos de linguagem, as pala- hermenêutico privilegiado para uma leitura sobre
vras não são simples vestimenta do pensamento,
mas fundamentalmente um prolongamento do 55 Cf. COELHO; CARMO, 1991, p. 94.
corpo. Na pintura, o pintor emprega o corpo e 56 Cf. MERLEAU-PONTY, 1990, p. 25. “Para a Gestalttheorie um
objeto não se põe em relevo pela sua significação (meaning) mas por-
que possui em nossa percepção uma estrutura especial”.
54 NELSON, 1995, p. 46. 57 Ibid., p. 63.

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as construções sociais e culturais às quais foi mol- estratégias utilizadas na leitura e interpretação de
dado, tanto no que diz respeito aos papéis que textos bíblicos pela comunidade gay e apresenta
desempenha como agente social e à sua vivência quatro momentos/estratégias, tomando em conta
espiritual e religiosa, quanto aos padrões de rela- a homossexualidade. Nos três primeiros módulos
cionamentos nos quais se envolve. Nesse sentido, de seu texto, ele avalia as já existentes e, no quarto,
a corporeidade queer, por sua própria construção lança a sua própria proposta.60 Quanto às três pri-
que exige conhecimento e sensibilidade acerca de meiras, ele assim as define (ironicamente):
si, tem muito a contribuir numa proposta herme-
nêutica centrada na idéia do corpo. • A competição do mijo61 – analisando o li-
vro de D. Helminiak, O que a Bíblia Re-
almente diz sobre Homossexualidade,
APLICANDO A TEORIA QUEER COMO afirma que essa forma de abordar o texto
HERMENÊUTICA DA CORPOREIDADE NA bíblico leva a uma competição sem fim,
HERMENÊUTICA BÍBLICA QUEER em que o vencedor é que vai dizer como
homens gays devem se comportar.
Não é novidade que a interpretação bíblica
tem sido uma das questões centrais nas posições • Jesus é o meu trunfo – valendo-se dos
excludentes da grande maioria das igrejas, e tam- textos de J. S. Spong, em Living in Sin e
bém no senso comum com relação à homosse- Rescuing the Bible from Fundamentalism,
xualidade. Idéias de condenação e pecaminosidade diz que, no final, tudo se resume em “Je-
intrínseca estariam expressas nos textos bíblicos sus é amor e ele ama todas as pessoas”,
geralmente abordados para discutir o tema. Tais mas isso apenas serve para evitar o con-
questões por muito tempo afastaram, e ainda flito. A questão é novamente que os vi-
afastam, a comunidade gay do contato e estudo toriosos na competição hermenêutica
da Bíblia e do convívio em suas comunidades re- (Spong, nesse caso) são quem define
ligiosas. A abordagem de muitos biblistas ainda como se deve viver, em geral sob os pa-
drões da heterossexualidade.
se concentra demasiadamente nos textos de ter-
ror,58 não tomando a hermenêutica queer como • O sapatinho de cristal serve em mim tam-
ferramenta de leitura e interpretação para as Es- bém62 – Koch analisa o livro de Nancy
crituras como um todo. Essas críticas também Wilson, no qual, segundo ele, a autora
são levantadas por muitos/as autores/as que bus- quer reivindicar a Bíblia como um livro
cam construir uma proposta hermenêutica pau- também de gays e lésbicas e, por isso, os
tada na homossexualidade. Embora haja certa compara com personagens bíblicos (por
concordância quanto a questões básicas nesta exemplo, os eunucos). Koch considera
área, é possível perceber que não há uniformidade esse exercício perigoso, pois pode rotu-
nas propostas, mas uma diversidade de metodo- lar a experiência homossexual, definin-
logias e estratégias de leitura. Dessa forma, a pro- do-a, mais uma vez, de fora.63
posta da teoria queer ao campo da hermenêutica: 60 KOCH, 2001. Numa tentativa paralela, WEST (1999) também per-
“Concentra-se em significados sexuais sem rela- cebe três estratégias de leitura bíblica na comunidade gay, propondo
ção a produção e recepção do texto bíblico, mas uma quarta.
61 The pissing contest, referência à brincadeira de meninos de ver quem
de uma maneira que torna problemáticas certas faz xixi mais longe.
pressuposições normativas sobre heterossexuali- 62 I can fit the glass slipper, too!, referência ao conto de fadas sobre Cin-

dade e homossexualidade”.59 derela e o sapatinho de cristal.


63 Cf. KOCH, 2001, p. 14-15. Mona West utiliza basicamente as mes-

Timothy Koch, em “A homoerotic approach mas obras para definir as três propostas, por ela chamadas de posição
defensiva, posição ofensiva e tirando a Bíblia do armário, e a dela pró-
to Scripture”, faz um balanço das metodologias ou pria, leitura desde um lugar social específico, em que afirma ser necessá-
rio considerar um ponto de referência (a Bíblia é nossa amiga) e as
preocupações e necessidades da comunidade que modelam a leitura
58 Numa menção a Phyllis Trible, que pela primeira vez usou tal (inclusividade, hospitalidade, sair do armário e família, silêncio como
expressão. sinônimo de morte). A avaliação de Mona West é mais positiva, enca-
59 STONE, 1999, p. 432. rando os três primeiros momentos como parte necessária do processo.

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O problema de Timothy com relação a es- tegoria extremamente importante para a comuni-
sas hermenêuticas é que elas dão à Bíblia o poder dade GLTTB (Gays, lésbicas, travestis, transgêne-
de autenticar ou autorizar seres humanos e dire- ros e bissexuais), pessoas definidas (em termos
cionar o comportamento de acordo com padrões de identidade) com base em sua corporeidade e
morais parecidos com normas heterossexuais re- sexualidade. Embora corporeidade e sexualidade
trabalhadas, ou simplesmente pedem àqueles que não sejam a mesma coisa, elas estão intimamente
queriam excluir que dêem um lugar à sua mesa. relacionadas, pois a segunda se expressa pela pri-
Para elaborar a sua proposta, Timothy usa como meira e a primeira tem sido definida pela segunda,
ponto de partida Audre Lorde: “Quando come- no caso de pessoas queer.
çamos a viver de dentro para fora, em contato
Não há apenas uma forma queer de olhar
com o poder do erótico dentro de nós mesmos/
para o texto bíblico, mas essa é uma condição de
as, e permitindo que esse poder informe e ilumi-
como se vê e se interpreta o mundo. Por isso, as
ne nossas ações no mundo e ao nosso redor, en-
categorias utilizadas na interpretação de textos
tão nós começamos a ser responsáveis por nós
bíblicos também fazem parte de uma proposta
mesmos/as no mais profundo sentido”.64
hermenêutica mais ampla, que tem a ver com
Centrado no poder do erótico, Koch propõe
transformação social, especialmente no que tange
cruising (pegação) como estratégia hermenêutica
a papéis de gênero socialmente construídos. A
a ser usada nos textos. Esse termo não é muito
expressão comentário queer, proposta por Ken
conhecido fora da comunidade gay e refere-se a
Stone, faz essa tentativa, pois “comentário queer
usar nossas próprias formas de conheci- toma várias formas, riscos, ambições, e ambiva-
mento, nosso próprio desejo por conec- lências em vários contextos”.67 Essa categoria não
tar-se, nossa própria compreensão e ins- se contenta com a reconstrução histórica dos
tinto, nossa própria resposta ao que nos contextos, porque toda interpretação é influencia-
atrai e nos compele (...). Pois, assim como
da pelo lugar social do/a intérprete.
em nossas vidas sociais, escolher cruise
aqui significa assumir nossa própria auto- Assim como a teoria queer, a hermenêutica
ridade e responsabilidade em seguir o que queer pretende romper com os pressupostos bi-
quer que entre no nosso caminho, pois é narismos criados em torno da homo/heterosse-
isto que fala aos nossos próprios dese- xualidade. É uma hermenêutica que propõe di-
jos.65 versos olhares, diversos métodos, que permitam
perceber que o próprio contexto bíblico é queer
Cruising se refere à sensibilidade de ho-
na sua formação, não apresentando um modelo
mens gays em encontrar uns aos outros em espa-
de identidade monolítico e excluindo outros. A
ços públicos, onde é preciso lidar com mensagens
não-faladas dos interlocutores e interpretá-las hermenêutica queer valoriza a diversidade como
adequadamente. A motivação para utilizar essa parte integrante da mensagem bíblica e resgata a
estratégia na interpretação bíblica não é a busca boa mensagem que a Bíblia pode trazer para a co-
por validação institucional ou externa, mas “por- munidade queer.
que nós queremos, porque nós podemos e por- Quero propor, não por último, a corporei-
que é algo que nós gostamos”.66 A proposta de dade como princípio epistemológico de uma her-
Timothy, embora precise ser melhor elaborada, menêutica queer, seguindo a proposta de T. Koch.
valoriza a corporeidade, que acredito ser uma ca- A corporeidade aparece como um paradigma im-
portante no contexto queer, possibilitando, no
64 LORDE, A. Uses of the Erotic: the erotic as power, apud KOCH,
meu entender, uma nova abordagem, mais signi-
2001, p. 15-16.
65 KOCH, 2001, p. 16. Utilizo aqui em grifo o termo cruise do inglês,
por não encontrar um adequado ao português. 67 STONE (2001, p. 116) empresta a expressão de Lauren Berlant e
66 Ibid., p. 16. Michael Warner.

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ficativa, especialmente desde o contexto de ho- querer libertar algumas pessoas enquanto conti-
mens gays. nua oprimindo outras.
Na América Latina, continente conhecido
CONCLUSÃO: TEOLOGIAS DA por seu acentuado machismo, e também por ser
LIBERTAÇÃO PARA QUEM? o berço de uma reflexão teológica baseada na ex-
periência de pessoas excluídas por sistemas ma-
Nas idas e vindas de encontros, conferên-
croestruturais de opressão, ainda há pouco espa-
cias e viagens, tenho encontrado muitas pessoas
ço para a reflexão teológica gay/queer. Apesar da
que trabalham com teologia. Quando sou apre- invisibilização, muito tem sido produzido, e mui-
sentado a elas e me perguntam com o que traba- to tem sido ignorado. Não se trata de trabalhos e
lho, respondo prontamente: teologia gay. Em vá- idéias vindas do Hemisfério Norte. Somos nós,
rias situações, tenho presenciado teólogos e teó- latino-americanos e latino-americanas, que esta-
logas de linhas bastante liberais (libertadoras?) mos fazendo nossa própria reflexão teológica
responder “Que legal!”, com cara de paisagem nessa perspectiva e buscando espaço aqui. Sim,
pelo menos constrangedora. Quando me graduei parte substancial da bibliografia foi produzida
em teologia, depois de agradecer a gays e lésbicas fora da América Latina e muitas vezes não temos
que tinham sido objeto/sujeito da minha pesqui- uma linguagem apropriada para determinados
sa para o trabalho de conclusão, fui acusado por conceitos. Mesmo assim, a busca por uma termi-
colegas – agora pastores e pastoras – que, em suas nologia própria e a quase inexistência de fontes
reflexões, utilizavam argumentações oriundas da próprias revelam exatamente a ausência e invisi-
teologia feminista, da teologia negra e da teologia bilização experimentada pela teologia gay. Os/as
da libertação, de não respeitar seus convidados teólogos/as que trabalham com esse referencial
presentes à cerimônia. Essas pessoas, que lutavam na América Latina ainda estão muito dispersos/as
pela inclusão e valorização de mulheres, pobres e e não têm um fórum de encontro e discussão de
negros na teologia e na Igreja, consideraram des- suas questões comuns. Além disso, partindo de
respeitosa a simples pronúncia das palavras gays e um marco teórico mais amplo, a teologia gay é
lésbicas no meu agradecimento. Enquanto não apenas uma face das sexualidades não normativas,
nos unirmos em torno de uma luta comum, con- não abarcando, por exemplo, as questões de lés-
tinuaremos disputando quem são as maiores ví- bicas, travestis, trangêneros, bissexuais...
timas da opressão, sem conquistar liberdade para
ninguém. Uma teologia libertadora não pode La Paz, 14/jul./03

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Dados do autor
Bacharel em teologia (Escola Superior de
Teologia, São Leopoldo/RS), atualmente
desenvolve estudos de mestrado no Instituto
Ecumênico de Pós-Graduação e Pesquisa/EST,
área de Teologia e História. Autor do livro Uma
Brecha no Armário – propostas para uma
teologia gay, é membro do Comitê Organizador do
II Encuentro de Grupos Religiosos GLTTB del
Cono Sur.

Recebimento artigo: 1.o/abr./03


Consultoria: 16/abr./03 a 26/jun./03
Aprovado: 27/jun./03

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Conexões Gerais
General Connections
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O Diálogo da Ciência
Platônica com o
Materialismo Antigo:
a ética do escritor-filósofo
DIALOGUE BETWEEN PLATONIC SCIENCE
AND OLD MATERIALISM: THE ETHICS OF
THE “WRITER-PHILOSOPHER”
Resumo Subjacente a esta exposição sobre o diálogo entre ciência platônica e materialis-
mo grego, uma questão de fundo está sendo debatida com os partidários das doutrinas
não-escritas desse filósofo, a das relações entre o Platão-escritor e o Platão-professor. A
crítica platônica aos materialistas – o divino tudo deve governar – evidencia justamente os
extraordinários dotes do escritor-filósofo. A dialética – cujos movimentos fundamentais
de ascensão e descensão englobam outros recursos, como metáforas e mitos – permite-
lhe falar do inefável com propriedade e clareza: faz nascer na alma do leitor (daquele ao
menos que “a partir de algumas indicações alcança verdades últimas”) a compreensão da
natureza do Absoluto. O querelante diálogo com os materialistas exigirá que o Platão-es-
critor refine o método para abordar seriamente o que é mais alto e de maior valor, apesar
das conhecidas restrições da Carta VII e do Fedro quanto ao alcance da escritura. Procura-
se mostrar então que, ao escrever os Diálogos, o filósofo não confiou tudo a seus escritos,
consciente das insuficiências do lógos (como afirma na Carta VII, e os pensadores da Es-
MARIA CAROLINA
cola de Tübingen ressaltam devidamente). Entretanto, movido por sua ética pedagógica,
não teria procurado transmitir o suficiente para que pudéssemos apreender o cerne de ALVES DOS SANTOS
seus ensinamentos sobre as impalpáveis realidades essenciais coroadas pelo Bem e, assim, Unicamp/SP, Brasil
aquilatar a maestria desse professor-escritor que as concebeu e definiu? mainasantos@terra.com.br

Palavras-chave MATERIALISMO GREGO – CIÊNCIA PLATÔNICA – DIVINO – DIALÉ-


TICA – ÉTICA – PLATÃO-ESCRITOR.

Abstract Underlying the suggested exposition on the dialogue between platonic science
and Greek materialism, there is a basic question to be discussed with the followers of the
“unwritten doctrines”, namely the relationship between Plato-writer and Plato-profes-
sor. The critique Plato addresses to the materialists – the divine must govern all things
– reveals the extraordinary gifts of the writer-philosopher. His dialectic, whose move-
ments include the use of metaphors and myths, allows him to speak about the ineffable
with property and clarity: it gives birth to the comprehension of the Absolute within
the soul of the reader (at least in the one who “based on some indications reaches ulti-
mate truths”). The argumentative dialogue with the materialists demands that Plato-
writer refines the chosen method to “seriously” approach that which is “highest and
most valuable” in spite of the well-known restrictions found in Letter VII and in Phae-
drus. Therefore, our aim is to demonstrate that if Plato “did not entrust everything” to
his writings due to the insufficiencies of the “logos” (as emphasized by the School of
Tübingen), he – due to his pedagogical ethics – disclosed enough for us to grasp the es-
sence of his teachings on spiritual realities and their magnificence and, thus, the mag-
nificence of philosophy which defined them.
Keywords PLATO-WRITER – GREEK MATERIALISM – DIVINE – DIALECTICS – ETHICS.

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INTRODUÇÃO: O SENTIDO ÚLTIMO DA CRIAÇÃO PLATÔNICA


O autêntico sentido de uma doutrina filosófica só pode ser apreendido com
a tomada de consciência dos problemas aos quais pretende trazer resposta
J. MOUREAU1

D
ecidido a mudar os rumos da investigação filosófica –
com as velas ao vento, os fisiólogos teriam aportado nas
ilusórias paragens do sensível apenas –, Platão empreende
uma segunda navegação (deuvtero" plou'"), melhor dire-
cionada:2 sua saga de viajante dos lovgoi ??o fará estabe-
lecer, em territórios ainda mal demarcados, contornos
mais nítidos.3
A circunstância feliz dessa nova expedição filosófica de-
veu-se não só às condições de navegabilidade do mar e dos ventos favorá-
veis, que lhe oferece a ciência dialética, como também à limpidez do céu
das Idéias, que lhe serviu de referência norteadora. Para descortinar inau-
ditos horizontes, para além das ondas azuis do Mediterrâneo, na superior
província do supra-sensível, onde se oculta o grande tesouro, essência de
todas as coisas, o filósofo embarcou, tal como o herói homérico, em “ve-
loz navio, de púrpuras e aplainadas proas, de lisos remos que são como
asas”:4 a extrema mobilidade do método adotado, a dialética, dá asas à
alma para que possa vencer as inevitáveis aporias do íngreme caminho.
Executando o par obrigatório de movimentos metódicos, ascensões e
descensões, acabará por vencer, palmo a palmo, a extensíssima rota que
conduz à grande Planície (leimwvn), onde a Verdade reside.
Somente com a vitalidade de raciocínios e postulados (uJpovqevsi")
inatacáveis, postura ética própria do dialético, ele estará preparado para a
valorosa descoberta, ao termo da aventura empreendida. Depois de remar
arduamente para vencer procelosas águas, as aporias (verdadeira tempes-
tade a ser enfrentada),5 divisará de seu posto de observação, um vasto oceano
de luz,6 fonte de inteligibilidade de tudo quanto é real e que sobre ele rei-

1 MOUREAU, 1967, p. VI.


2 PLATÃO, 1946-1956. Féd. 99b-d.
3 Sobre as metáforas presentes neste parágrafo, cf. PLATÃO, 1946-1956. Protág. 338a: “nem tu, Protá-
goras, do teu lado, soltes todas as velas ao vento favorável, até perderes a terra firme de vista no mar largo
da eloqüência (eij" to; pevlago" tovn lovgon)”. O mar, com as correntes e os perigosos turbilhões, espaço
difícil de atravessar, é metáfora excelente para descrever as aporias enfrentadas pelo discurso filosófico na
busca da verdade. Platão a utiliza em algumas passagens dos Diálogos: na República (453e), ao abordar a
questão da educação das mulheres, Sócrates convida o interlocutor a nadar (tal como quem cai em meio
ao mar [eij" tov mevgiston pevlago" mevson]) para salvar-se da perigosa discussão (swvzestqai evk tou'
lovgou); em Parmênides, o velho filósofo, no início da investigação, experimenta grande temor, por causa
da idade, de ser obrigado a atravessar a nado “tão rude e tão vasto oceano do discurso” (Pevlago" lovgou-
137a). Cf. KOFMAN, 1983, p. 23-28.
4 HOMÈRE, 1934, p. 156.
5 Cf. PLATÃO, 1946-1956. Filebo, 29b.
6 Ibid. Ba 210d.

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na soberanamente, o Belo,7 tal como o descreve concepção platônica de ciência. O filósofo usa
no Banquete. nas Leis uma antiga palavra para resumi-la: “Deus
Depois de muito navegar e de enfrentar está na origem, no meio e no fim de todas as em-
abismos infernais de temível poder,8 a inteligên- preitadas humanas”.16 Conseqüentemente, pode-
cia,9 piloto da alma, é conduzida à etapa última e mos dizer que, em qualquer etapa que o dialético
capital, que faculta o reconhecimento da ligação esteja, encontra-se sempre entre Deus e Deus,
necessária entre todas as coisas por um Ser único, sendo este ou o Objeto, para o qual ele tende, ou
causa de tudo quanto há de rigoroso e belo,10 o o Sujeito, causa primeira, do qual inevitavelmente
próprio Deus:11 é fundamento da ciência platô- irá partir.
nica e, portanto, o sentido último de sua criação O traço particular do discurso platônico é
filosófica.12 ser uma filosofia das Formas, cujo ponto de par-
tida é um pressuposto incondicionado, fonte de
toda possibilidade de intelecção. Apresenta-se,
CIÊNCIA É TEOLOGIA em seu mais alto nível, como teologia, no sentido
À luz dos esplendores que extasiam seus de uma aproximação racional de Deus por meio
olhos, emanados do puro espetáculo em que se do lovgo".17? Criação de um espírito que, sendo
constitui a visão desse princípio absoluto e divino, grego, atribui-lhe grande importância, cintilando
o dialético estará de posse de suprema medida em sua obra as luzes de uma nova modalidade de
para os múltiplos expedientes pedagógicos dos discurso sobre a realidade suprema: acerca-se do
quais irá se socorrer em suas investigações e afir- divino com argumentos da razão explicativa para
mações. Segundo Platão, nada que é imperfeito estabelecer com ele íntima convivência e, então,
poderia ser parâmetro do que quer que seja, razão circunscrevê-lo numa clara concepção. Pela vita
pela qual somente Deus – cujo caráter anhipoté- contemplativa, o dialético identifica o princípio
tico (ajnupovqeton)13 permite-lhe impor-se por si primeiro à perfeita ordenação estrutural que o
mesmo, legitimando toda postulação que faz dele mundo inteligível apresenta, ao qual infundiu seu
exigência essencial a uma démarche rigorosamente próprio modo de ser. A vivência exaustiva da ten-
filosófica – poderia ser tomado como referencial são peculiar aos dois caminhos fundadores da
metafísica – o da reunião do que está esparso em
máximo para o homem sob todos os aspectos.
muitos lugares (ta; pollakh'/ diesparmevna) em
A fórmula proposta na República, freqüen- um só termo, por uma visão de conjunto (su-
temente citada, de que “o Bem se encontra além norw'nta), e o das sucessivas divisões e subdivi-
de toda Essência”,14 jamais deve ser subtraída de sões do gênero único em suas infinitas articula-
seu contexto teórico. Pois, no domínio inteligí- ções, as espécies, conduzindo ao a[tomov" eijdo",18
vel, essa idéia que figura em último lugar, embora espécie ínfima – propicia-lhe íntima e inédita
seja a mais difícil de ver, constitui o que é propria- apreensão e expressão da ciência mesma de Deus.
mente cognoscível e, uma vez vista, é causa de
tudo quanto há de rigoroso e belo em todas as A ÉTICA DO FILÓSOFO-ESCRITOR
coisas:15 concentra em si, portanto, o cerne da Arquiteto das palavras, graças à sua aguda
ciência de dialético, Platão engendra com a pre-
7 Ibid. Rep. 518c.
8 Assim são chamadas as aporias levantadas pela doutrinas do Ser,
cisão de um geômetra – aquele que, com um só
mencionadas no Sofista (245e). PLATÃO, 1946-1956.
9 PLATÃO, 1946-1956. Fedro 247c. 16 PLATÃO, 1946-1956. Leis 715e-716a: oJ me;n dh; qeov", w{sper kai; oJ
10 Ibid. Rep. 517b, e também 509b, 510b.
palaio;" lovgo", ajrchvn tekaiv teleuth;n kai; mevsa tw'n o[ntwn aJpantwn
11 FESTUGIÈRE, 1950, p. 263; SCHUHL, 1969, p. 159.
e[cwn ...
12 LACHIÈZE-REY, 1951, p. 30-32. 17 E, desde então, afirma JAEGER (1977, p. 10), todo sistema filosó-
13 PLATÃO, 1946-1956 Rep. 509b. fico que surgirá na Grécia, com exceção dos céticos, culminará em uma
14 Ibid. Rep. 509b. teologia. Segundo DIÈS (1927, p. 532 e 538), se há uma teologia platô-
15 Ibid. Rep. 517bc. Sendo objeto de uma visão, diz JOLY (1974, p. nica, ela é dominada por essa idéia da primazia do intelecto e do espí-
1001), em razão de seu caráter anhipotético, serve de matéria ao silo- rito, e converge para o reino do invisível e do inteligível.
gismo dedutivo. 18 PLATÃO, 1946-1956. Fedro, 265c-266a.

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gesto, traça figuras perfeitas – monumental in- mora sem um modelo luminoso a pautar sua vida
ventário de lampejos sinóticos da Forma mais al- interior – para que também, em tudo, possam
ta. Apreciações de rara beleza não estão ainda por imitar aqueles periódicos e bem-ordenados mo-
vir, delegadas à instância do inaudito, situada vimentos.
além de toda fala e de todo escrito. Essencialmen-
te verbais, essas visões são tecidas com apaixona- REFINANDO O MÉTODO CONTRA OS
da austeridade com base nos recursos finitos da MATERIALISTAS
palavra escrita. Numa linguagem diurna, solar,
O brilhantismo da concepção expressa por
aglutinante – “os nomes tenazmente soldados
Platão sobre a mais alta das ciências, principal
aos verbos” – e com as reticências características
aquisição da instigadora especulação sobre o mé-
a seu hjqo" filosófico, esboça, nas culminâncias de
todo que, proficuamente, poderia conduzir aos
cada Diálogo, aspectos essenciais do divino ex-
cânones de uma verdade absoluta, dá a essa filo-
pressos ora na Idéia do Bem (República), ora na
sofia sua medida de permanência. Não é um ato
do Belo (Banquete e Fedro), ora na do ser total, o
deliberado, de engenhosa estratégia, contra a te-
pantelw'" o[n (Sofista).
oria de seus adversários materialistas, a resposta
E, no entardecer de suas reflexões, esse fi- tática às contrariedades internas da investigação
lósofo muito viajado, tendo lançado ao mar seu dos defensores de uma inteligência ordenadora,
grande galeão, a dialética, para rastrear com mé- porém, desprovida de qualquer potência divina,
todo, desta feita, as águas menos cristalinas que
incapaz de organizar ou fundamentar o que quer
circundam as terras do devir, constata ali a exis-
que seja? Um flamejante anseio por fazer valer
tência de uma ordem em tudo semelhante a que
a supremacia do princípio, permanentemente
há no supra-sensível.
eficiente e imutável, o leva a refinar, a seu máxi-
Na esteira de convicções menos restritivas mo limite de precisão, o instrumento escolhido, a
com relação ao domínio sensível, Platão usa de dialética.
seu excepcional poder de sugestão didática para
Platão colocará por terra a ambígua pro-
evocar, poeticamente, o aspecto demiúrgico do
posição de Anaxágoras – a existência de uma cau-
divino (Timeu). Seus brilhantes olhos antigos,
salidade definida como explicativa de tudo o que,
como os de Odisseu, o herói da Ilíada, apreen-
na realidade, não desempenha papel algum na or-
dem a bela harmonia existente entre o inteligível
dem do universo, delegando-o ao éter, água e ou-
e eterno, e o plano do que nasce e morre, resul-
tras coisas absurdas21 – por incapacidade de tirar
tante de sua ação providencial. Haveria incom-
partido das genuínas possibilidades do Intelecto
pletude, e o sensível seria ilusória e imperfeita pa-
(Nou'"): o filósofo empenha-se em ressaltar-lhe o
ragem, se não abrigasse, em seu âmago, a perene
poder arquitetônico de construir harmonias, de
presença de um princípio ordenador, cuja gene-
ordenar com exatidão os princípios e as causas,
rosidade pura fez dele o melhor dos mundos pos-
tendo sempre em vista a grandeza do Todo.
síveis:19 não sendo impassível, nem indiferente ao
mundo, o Artífice cria sua mais excelente obra Durante o acidentado percurso dos cami-
por analogia à plenitude que lhe é própria, um nhos do saber que vai do Fédon às Leis, passando
deus sensível, reflexo da eterna perfeição do deus pelo Sofista, discerne-se um mesmo sentido no
inteligível.20 E esse palpável espetáculo oferecido espírito subjacente às críticas veementes, endere-
pelo céu visível deverá ser interiorizado na alma çadas a seus predecessores materialistas: o viés
(yuchv) não só do dialético, mas de todos os que fundamental é contestar asserções que, impropria-
se dedicarem a contemplá-lo – ninguém se apri- mente, escamoteiam a excelência do finalismo so-
bre o mecanicismo, a preexistência ontológica e a
19 Ibid. Tim. 34a.
20 Ibid. Tim. 29e-30e. 21 Ibid. Féd. 97e-98e.

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anterioridade lógica do psíquico e do espiritual, Ajgaqou' ijdevan)


O BEM (A
em relação ao que é corpóreo e material.22 O Objeto supremo, identificado na Repú-
Se um projeto é sempre inseparável daquilo blica ao Bem, é luz imortal intensíssima, compa-
que constitui o seu máximo triunfo, ou seja, a sua
rável à do sol (e{lio"), que surge nos horizontes
execução integral, aquilo que Platão concebeu em
do mundo sensível para dissipar-lhe as sombras
seu laboratório mental apenas se realizou plena-
inconsistentes e cambiantes.25 Reinam (basi-
mente, ao fazer com que o Objeto supremo fosse
apreendido pelos rigorosos mecanismos do mé- leuei'n) ambas sobre o mundo em que cada uma
todo, apresentando-se em palavras ao olhar pen- é, respectivamente, soberana (kuvrio"),26 com
sante do leitor dialético, sob uma claridade abso- grandeza, eficiência e beleza. O grande astro, o
lutamente nova. O tipo de formação (paideiva) mais luminoso do universo das coisas corpóreas,
destinada a preparar, por esses textos, um espírito que ofusca a vista dos homens, denominado seu
genuinamente filosófico coincidiria, na perspec- rebento (evkgono"), tem com a essência última, ra-
tiva de Platão, com os ideais da kalokavgaqiva, cujo diosa e pura – a mais difícil de ser vista pela alma
traço capital é a formação do homem superior em (teleutai kaiv movgi" oJ ravsqai)27 – a maior das si-
todos os sentidos: sua excelência não reside ape- militudes (oJmoiovtato" ejkei'no").28 É o sol extasi-
nas na mera posse de um métier técnico, porém, ante, situado nos extremos do universo invisível,
numa postura ética de desprendimento de uma quem esculpe com fantástica irradiação de inteli-
certa ordem de coisas, o contingente e o sensível, gibilidade o perfil de todas as Formas incorruptí-
de modo a poder alcançar gradativamente o plano veis que constituem a trama da esfera do inteligí-
do que é em si e descobrir, com a maior precisão
vel. Princípio ativo, incondicionado (ajnupovqe-
possível, sua autêntica natureza.23
ton), auto-suficiente (iJkanovn)29 é, também, razão
Somente um homem primorosamente pre-
exemplar e final do que de mais excelente há no
parado teria as condições necessárias para viabili-
ser:30 engendra, no plano das coisas visíveis, a luz
zar o raro acordo, a conjunção exata, entre o olho
e o Objeto, e produzir a partir daí uma obra es- e o senhor dessa, como causa de sua perfeição e
crita tão perfeita como a de Platão. beleza; e no das Idéias, do qual é, especialmente,
Eivados de austera simetria e simplicidade doador de verdade e inteligência, é o unificador
cristalina, os registros verbais firmados nos Diá- de todas as espécies eternas e de seu imutável bri-
logos conseguem captar em sua abrangência lógi- lho.
ca, ética, epistemológica, metafísica, teológica, os Sendo essa plenitude ultraluminosa, sem
atributos canônicos do Ser primeiro: embora seja, sombras, o Bem, fonte e fim de toda existência,
inegavelmente, o que há de mais difícil de com- conhecimento e valor, impõe-se à reflexão do di-
preender e exprimir, há passagens célebres nas alético; e, no ponto máximo de seus estudos so-
criações desse que é o mais excelente dialético, bre aquela natureza (tou' ajgaqou' e{xin), último
em que o divino é caracterizado com incompará- passo metódico a coroar todos os esforços pelo
vel competência. Entre os muitos títulos a ele desenvolvimento da capacidade noética – não há
conferidos estão o de princípio imortal, eterno,
outra mais alta que essa (534e) –, alcançará a ini-
puro, idêntico a si mesmo, auto-suficiente, termo
ciação perfeita, a mais alta ciência (mevgiston ma-
último, incondicionado, divino, todos eles asso-
ciados freqüentemente à imagem visível da luz.24 24 PLATÃO, 1946-1956 Rep. 509a, 518c,611e, Féd. 80b, Fedro 246c,
250d-e, Ba 210d-e.
22 25 Ibid. Rep. 509a.
PAQUET, 1973, p. 44.
23 26 Ibid. Rep. 508a, 517c.
PLATÃO, 1946-1956. Rep. 484c-d. ROIG (1972, p. 112) afirma: “a
27 Ibid. Rep. 517e.
força em que Platão se apóia deriva de sua convicção da capacidade que
28 Ibid. Rep. 506e.
tem a yuchv de captar as essências, e da possibilidade de trabalhar com
elas mediante um método racional; quer dizer, não há dúvida alguma 29 Ibid. Rep. 510b-511b.

da positividade ou cientificidade da dialética na ordem da ‘ousiva’”. 30 Ibid. Rep. 532c.

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qv hma),31 cuja aquisição é indispensável para agir, último na diversidade hierárquica de suas
sabiamente, na vida privada e na vida pública.32 manifestações. Tem lugar uma seqüência de
contemplações, a partir do amor que a beleza de
to; kavllo")
O BELO (t um corpo lhe desperta, passando depois a con-
Em Fedro e Banquete, o virtuosismo verbal templar e amar todos os outros que possuem,
de Platão, num duplo e contraditório movimen- também, parentesco com essa essência divina, e
to, ora de interdição ora de desvelamento, ex- assim sucessivamente, com relação às almas,
pressa o objeto último, tal como na República. ações, leis e ciências. Até que, de súbito, já no
Um delírio de imagens brilhantes, variadas, car- topo do mundo ideal, ponto de perfeição, atinge
regadas de verdade e de força significativa, que a comunhão íntima com a intensa claridade ema-
obedecem à tendência fundamental de represen- nada pelo Belo que, como Idéia, é eterno.35
tá-lo pela luz, explicita a intenção primeira de sua A razão de ser da dialética, e de toda a filo-
vocação filosófica: estabelecer intimidade essen- sofia de Platão, seria, exatamente, exercitar a alma
cial com o Ser supremo. Cintilações, presenças nesse ato essencial, o amor, cuja função natural é
concisas de uma ausência, as imagens visíveis da unir elementos opostos, preencher os intervalos
luz revelariam, como significação principal, o in- entre esferas separadas. Ao introduzir um princí-
tenso desejo da ciência platônica de abordar o pio de ordem, de síntese e de harmonização, dis-
que, à primeira vista, se lhe apresentara como ina- ciplina seus movimentos, de modo a facilitar-lhe
bordável. O Belo ideal é assim descrito, um res- a transição do particular, relativo, humano, para o
plendor de intenso clarão, através do qual a rea- universal, absoluto, divino. A plenitude do esfor-
lidade mais elevada e soberana causa na alma um ço de elevação da alma (yuch)v, momento da visão
imperioso paqov", o amor: a luminosa essência da luminosidade sem mistura, é caracterizada
que o fez nascer a eleva ainda mais, conduzindo com uma metáfora inspirada na cerimônia dos
a alma ao resplandecente e longínquo princípio mistérios eleusianos ou órficos (tav dev tevlea kaiv
de todo conhecimento.33 O Belo em si subordi- ejpoptikav).36 Esse magnífico espetáculo, inteira-
na-se a esse princípio superior da unidade, cimo mente intelectual, somente é comparável ao que é
da luz, e expressa a relação universal e fundamen- fruído pelo neófito, ao chegar ao mais alto grau
tal existente entre todas as coisas, tanto na di- de iniciação e purificação conduzido pelo hiero-
mensão do inteligível quanto na do sensível, fante: a aparição da resplandecente estátua da di-
como o grande mediador que garante a total li- vindade, na epopteiva.37 E a extensa região por
gação entre o mais próximo e o mais longínquo, onde o radioso brilho do Belo se difunde é des-
num universo em que há comunidade entre to- crita por esse heleno que muito navegou e, fre-
dos os seres.34 qüentemente, contemplou o mar, do alto dos
A dialética do Banquete, atividade pura- promontórios de Cirene ou de Siracusa, como
mente intelectual identificada a uma iniciação um vasto oceano de luz: a visão dessa fantástica
erótica, estabelece como dogma essencial do pen- imensidão inexplorada gera na alma do autêntico
samento platônico uma espécie de veneração amante (ejrwtikov"), sem cessar, bem articulados
mística da beleza absoluta. O longo itinerário, discursos38 numa linguagem viva, dotada de ine-
metodicamente percorrido pela alma, em etapas, gável poder de representação, destinada a em-
é o estratagema perfeito para conhecer o termo prestar realidade verbal ao supremo Objeto dessa
31
exaustiva busca.
Ibid. Rep. 505a.
32 Ibid. Rep. 517c. ROBIN, 1964, p. 186-188.
33 Sobre o domínio que a idéia do Bem exerce sobre o universo, e sua 35 Ibid. Ba 209e-212a.
relação com a idéia do Belo, cf. SCHUHL, 1969, p. 159-160. 36 Ibid. Ba 210a.
34 PLATÃO, 1946-1956 Ba 202e. Esse é, segundo DIÈS (1927, p. 37 Ibid. Ba 210e.
556), o verdadeiro Deus de Platão. 38 Ibid. Ba 222a.

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Em Fedro, o termo último identifica-se pantelw'" o[n)?


O SER TOTAL (p
também à Beleza que brilha com uma luz inigua- A infinidade de aspectos essenciais do pan-
lavelmente pura, na Planície da Verdade (ajlhqei- telw'" o[n, por um pudor próprio à filosofia de
av " ijdei'n pedivon), ao lado de outros inteligíveis Platão, é mencionada por meio de matização alu-
supremos. É apontado como o único entre todos siva. Sobre ele não é desenvolvido qualquer arra-
que, no contexto da experiência da multiplicidade zoado exaustivo. Esse Ser que, em sua complexa
infinita das coisas em perpétuo fluxo, tem o pri- identidade, é o eixo de múltiplas ilações, não exis-
vilégio de ser imediatamente percebido pela mais te para permanecer inescrutável em uma
aguda das percepções do homem, a visão.39 Ao incognoscível transcendência. Esse “algo que
penetrarem pelos olhos, essas emanações chegam deve ser visto”45 está presente, pelo menos, na
até a alma, restituindo-lhe antigas e potentes lem- memória do autêntico dialético, o qual apóia seus
branças que a transportam, instantaneamente, à raciocínios e seu dizer, delicadamente precisos, na
aparição extraordinária do que é Belo em si.40 A idéia do pantelw'" o[n.46 E embora não haja, no
forte impressão produzida sobre o intelecto pela Sofista, nenhuma referência explícita ao Bem, de
visão da bela imagem terrestre de um corpo ou acordo com V. Brochard, há um prolongamento
rosto, ambos divinos, o amor, é o vertiginoso elã dessa investigação, no momento em que a refle-
que o faz ultrapassar a diversidade escoante do xão se volta para o Ser maior e principal (tou' mev-
devir em direção ao que é permanente e uno, na gistou te kaiv ajrchgou').47 O que se tem em mi-
esfera em que realmente se realizam conhecimen- ra, então, são as realidades que participam da for-
tos estáveis e duradouros.41 ma desse Ser perfeito, total-mente ser, sem restri-
Aturdida pelo poderoso impacto, a alma ção ou limitação, que contém em si como
percorre, num instante, o extenso percurso da fa- culminância a totalidade, a abrangência de toda a
tigante peregrinação vertical em busca da luz, du- realidade a um só tempo. E, assim, um ser incom-
rante a qual se despoja das paixões pelas coisas paravelmente completo, de vasta extensão, pleni-
sensíveis. A recordação daquela essência de invi- tude perfeita e unificante é, também, o mais divi-
olável brilho, postada em seu pedestal sagrado, no.48 Pois há um princípio que propõe a propor-
contemplada em seu jorro originário, na aurora cionalidade entre o grau de ser e o de divindade,
da vida pré-empírica – quando seguia, não sem de maneira que o Ser mais divino é, por conse-
grande esforço, o cortejo das almas divinas de qüência, mais pleno e universal.49
puro olhar em suas evoluções circulares fora dos Para abarcar, com um só ato de pensamen-
limites do nosso mundo42 –, constitui uma reno- to, algo tão perfeito e vasto, seria necessário ser
vação da experiência iniciática nos mistérios sa- quase um deus, instruído em rigorosos estratage-
grados:43 ao postar-se diante da radiante realidade mas. Valendo-se de sua natural afinidade com o
impalpável, sem cor ou forma, sob os prodígios Objeto supremo – a figura (tov sch'ma) humana
desse paqov", oriundo da veneração constante dos foi concebida assim para que o homem pudesse
que são dotados de uma beleza divina, “aquele ver a verdade50 – e, do virtuosismo de sua arte
que sabe servir-se bem das reminiscências recebe, metódica, o dialético está apto a adentrar a ordem
de modo contínuo, a iniciação completa nos mis- hierarquizada da essência (oujsiva), a apreender o
térios da perfeição absoluta” (tevlou" ajei tele- teor absoluto de seu código arquetípico e a trans-
tv a" tevloumeno"? – 249a), tornando-se assim, ele mutar a precariedade de sua condição de humano
também, imortal, perfeito e divinizado.44 44 Ibid. Fedro 249c.
45 Ibid. Rep. 533a.
39 Ibid. Fedro 250d-e. 46 Ibid. Sof. 248e.
40 Ibid. Fedro 251d, 253a-254b. 47 Ibid. Sof. 243d.; BROCHARD, 1974, p. 139.
41 Ibid. Fedro 249e-250a; 251a-c. 48 DIÈS, 1927, p. 556.
42 Ibid. Fedro 247d-248a. 49 PLATÃO, 1946-1956. Sof. 249d.
43 Ibid. Fedro 250a-251a. 50 Ibid. Fedro 249b.

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em via de inexaurível eternidade: ávido em pers- que lhe garante o acesso à essência dos objetos
crutar, consome sua existência, o mais elevado sobre os quais se propôs a discorrer. Executando
dos gêneros de vida, na infatigável aquisição dessa os circuitos perfeitos de duplo ritmo, a dialética
ciência do divino. de Platão engendra excitante jogo de questões e
De todos os atos de pensamento do dialé- respostas54 – ambiguamente lúdico –, no qual o
tico, em seu diálogo interior (ejntov") e silencioso espírito, com a agradável intranqüilidade que a in-
(a[neu fwnhv"), o mais importante é aquele que, a cessante inquirição da verdade suscita, imitando o
partir de velocíssimas novhsi", propicia a triagem, movimento divino55 na Planície da Verdade ( A j -
a dissociação e a instauração de uma ordem para lhvqeia),56 vai desenhando os contornos daquilo
si mesmo, na plêiade de espécies que integram, que é em sua unidade e multiplicidade, circuns-
essencialmente, o ser total (pantelw'" o[n). Premi- crevendo-o (diorivxw) com palavras.
do pela urgência de uma ciência suprema, desen-
cadeada pela impregnação do amor ao que é eter- DIALÉTICA, ÉTICA E VOCAÇÃO HUMANA
no – uma vez alcançada, a sabedoria (sofiva) con-
Platão espiritualiza a dialética, restituindo-
cederia a graça de um viver feliz para sempre51 –,
lhe o substrato religioso e o primordial caráter ri-
seus olhos, que têm um modo agudo de ver (joxuv"
tualístico, iniciático, em toda a sua riqueza, arcai-
blevponta), apreendem na natureza do que é Um
cas sobrevivências que os sofistas, sem muita re-
em si nexos fundamentais de complexa variedade
flexão, haviam negligenciado radicalmente. Uma
em perfeito equilíbrio. O vertiginoso movimento
vez transformada em mera técnica de persuasão a
dialético dos procedimentos sinótico e diairético,
serviço de teses contraditórias, acaba por preva-
ao reproduzir as reverberações todas das miríades
lecer no seu exercício o embate acicatado entre
de relações que o Um mantém com o Múltiplo,
asserções ambíguas habilmente realçadas por pa-
possibilita a compreensão de como um único
lavras de efeito, usadas mais para seduzir do que
pode desdobrar-se em muitos, ou os muitos po-
para fazer vislumbrar o venerável traçado da reali-
dem ser um só.52 A intenção fundamental dessa
dade: e, ao dizer “as coisas que são como elas não
ciência, cujo saber consiste na mistura precisa de
muitas coisas na unidade para, novamente, dissol- são”, rompe os vínculos com a transcendência.57
vê-la em muitas53 – o qual a inteligência divina, Foi preciso diligente combate em torno da pró-
em sua soberania, possui em grau supremo –, é pria identidade para que os liames do acerado mé-
tecer ligaduras que cubram as distâncias interme- todo com as matrizes divinas, fincadas no solo
diárias entre o Um e seus múltiplos, para que esse firme das paragens do inteligível, fossem restau-
não fique pairando como algo impensável, num rados plenamente. Pois a tenaz persistência nas
horizonte de pura transcendência: a chave do seu aventuras da dialética, sal da vida que faculta o
sentido não permanecerá reservada para si mes- conhecimento do Um e de suas inflexões, é,
mo apenas. para o filósofo, a totalização da grande meta
O dialético platônico não é, pois, aquele epistemológica, pedagógica e, também, a realiza-
que sabe como lidar com a vertigem do salto das ção jubilosa do destino de seu próprio espírito, a
altitudes da instância do não-dito para a cul- divinização.
minância de sua formulação num conceito matri- 54 Sobre o caráter lúdico da dialética, cf. PLATÃO, 1946-1956. Rep.
cial, que lhe preserva a aura luminosa, ao mani- 536c, Leis 701c, Polit. 261e. Cf. também FINK, 1966, p. 90.
festar sua verdade sob a forma de palavra? Sua éti- 55 Segundo o Crátilo, #alh qeiva significa o andar errante do divino
(421b). PLATÃO, 1946-1956.
ca de escritor resulta, em última instância, do ri- 56 Ibid. Fedro 248b.

gor com que escolhe seu método de pesquisa, 57 De acordo com BRUN (1985, p. 176), o lovgo" entre os pré-socráti-
cos é um verbo, um deus do qual são depositários e em nome do qual,
quando inspirados, falam aos homens: essa dimensão transcendente
51 Ibid. Eutid. 293a. teria sido cortada pelos sofistas, ao transformarem-no numa arte de
52 Ibid. Filebo 15d. tudo justificar e sustentar, embaralhan-do o sentido próprio a cada
53 Ibid. Tim. 68d. idéia.

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Ambos, a paixão intelectual autêntica e o mesmo, tudo vê radioso e divino: as Formas, o


inalienável desejo de imortalidade, submetidos Belo, o Bem, o Intelecto, a Alma, o Mundo, os
aos ritmos incoercíveis da dialética, fazem com Astros e a alma humana. Por isso, em seus dis-
que a série escalonada de objetos mais e mais di- cursos proferidos sob a embriaguez doada pelos
vinos – dos quais o termo final é o princípio úl- deuses – aquela que leva à gestação de obras
timo e, também, o primeiro de uma nova e infin- como Fedro, nascida à sombra de um plátano, à
dável série de articulações formais – torne-se beira das cristalinas águas do rio Ilissos, sob a luz
apreensível para ele no conjunto e no detalhe.58 E cintilante do meio-dia –, torna-se fiador de uma
não propriamente para serem interrogados, ajui- ciência do divino, de uma verdadeira religião64
zados no tribunal da racionalidade autárquica que empresta à sua filosofia a tonalidade mística
quanto a seu valor e significação, porém, para
que lhe é intrínseca.
consumar a vocação da alma de imergir na pleni-
tude do fundamento eterno e salvar-se.
SOB OS AUSPÍCIOS DO DIVINO
A virtude natural da dialética, em sua mar-
cha (poreiva)59 em direção ao horizonte de suas O caráter de iniciação atribuído à dialética
expectativas epistêmicas e escatológicas, é propi- unifica-se em um discurso monocêntrico, englo-
ciar a abertura do espírito para o divino. Tal pas- bando a ciência filosófica e a religião de Platão,
sagem, verdadeiramente maravilhosa,60 tem fun- deitando por terra inúmeras tentativas de distin-
ção de salvação para quem se dedica exaustiva- gui-los mais claramente.65 Esse método de inves-
mente a procurar o conhecimento dos seres divi- tigação, definível como ciência do ser ou ciência
nos em si e por si mesmos:61 da experiência religiosa,66 opera sucessivas conversões no senti-
transcendente de comunhão com eles obtêm-se do de emprestar extensão metafísica à hierofania
pensamentos imortais e divinos, aos quais Platão própria às cerimônias de entronização dos misté-
se refere em Timeu e República. Estando no pon- rios, de aglutinar à teologia de cunho arcaizante já
to exato, vigilante, a alma converge completa- existente uma eidética conceitual renovadora.67 O
mente, adquire o notável poder de adentrar a ór- arrebatamento ao infinito pela fulgurante visão
bita circular própria aos deuses, de acompanhá- mística, a ej popteiva, transforma-se em contempla-
los em suas incalculáveis evoluções, de contem- ção (qewriva) das essências abstratas, as Formas,
plar o puro espetáculo dos modelos e de, com atividade intelectual, conexão direta do puro pen-
eles, participar do governo do mundo.62 A aqui- samento com o campo do inteligível, no qual
sição da extrema agilidade proporcionada pelo busca a transparência do significado de cada uma
exercício na verdadeira dialética – mais difícil que dessas unidades em si. A conversação, extrema-
compreender no que ele consiste é praticá-lo cor- mente elaborada, é colocada não somente no iní-
retamente63 – possibilita ao dialético empreender
cio sob tutela divina, como também seu desenro-
altos vôos ao santuário do impenetrável à tempo-
ralidade. Assim, integrado à grande família da 64 Sobre a identidade entre dialética e religião platônicas, cf. GOLDS-
raça divina, com seu pensamento ordenador CHMIDT, 1970, p. 12. O platonismo é um esforço para reduzir, tanto
no plano histórico quanto no plano dogmático, a antítese entre religião
aglutinante, numa perspectiva de universalização e filosofia, segundo GOLDSCHMIDT, 1963, p. 14.
mediante a qual olha o Todo em relação a ele 65 Afirma Goldschmidt que o pensamento religioso de Platão mantém
relações difíceis de precisar com seu pensamento filosófico. Sobre essa
fórmula geral, os intérpretes se poriam de acordo, sem dificuldade.
58 PLATÃO, 1946-1956. Fedro 266b. Mas enquanto, para uns, a religião de Platão tem especialmente um
59 Ibid. Rep. 532b. caráter político e, sobretudo, cósmico (F. SOLMSEN apud. GOLDS-
60 Ibid. Fil. 14c. CHMIDT, 1963, p. 13) para outros, ela exprime-se, pelo menos em
61 Ibid. Rep. 533b. seu início, na teoria das Formas. Cf. JAEGER, W. apud GOLD-
62 De acordo com SCHAERER (1944, p. 114), a dialética reproduz SCHMIDT, 1963, p. 13.
em escala reduzida o curso alado dos deuses, com a diferença que estes 66 JAEGER, 1977, p. 10-12.
sabem e os homens apreendem. 67 Para JOLY (1974, p. 27), a essência é expressa tanto na divindade do
63 PLATÃO, 1946-1956. Fil. 16b. qeiovn como na neutralidade do o[n.

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lar é, freqüentemente, entrecortado por preces e do inovações essenciais a elementos arcaicos ar-
invocações solenes. raigados na cultura grega.
É assim que a maioria das pesquisas filosó- Exigente em seu compromisso com o real,
ficas, em obras de cunho variado, desenvolve-se em reação a um tipo de racionalismo estrito
sob os auspícios de uma divindade: Eros preside emergente, Platão procura erradicar das interpre-
a pesquisa do Belo, em Banquete e Fedro, Afro- tações sobre o caráter das divindades tradicionais
dite, a do prazer, em Filebo, Zeus é patrono da in- tudo o que há de fatuidade e contradição. Empre-
quirição sobre as constituições, legislações e ende obra reparadora, mas conserva, do que foi
jurisdições, nas Leis.68 E, ao mesmo tempo, essas herdado, o que vislumbra serem propriedades ge-
conversações regradas são articuladas numa lin- nuínas do divino: eternidade, transcendência, ve-
guagem específica cujas fórmulas, neutras, co- racidade. Cunhadas com concisão, em sua visão
muns a todas as coisas (o Mesmo, o Outro, o Se- das Formas, com perfeição semelhante à de um
melhante, o Dessemelhante, o Ser, o Não-Ser), cristal, reverberam como princípios fundamen-
instauram um novo tipo de discurso: no neutro, tais de uma ciência religiosa ou teológica.
opera-se a dissociação do visível e do inteligível,69 Embora tenha vivido nesse momento em
da opinião e do conhecimento70 e, também, em
que o pensamento grego se jacta de tudo subme-
suma, como categoria de língua e de pensamen-
ter aos cânones da razão e, ao mesmo tempo, um
to, por sua função de reunião, de reagrupamen-
certo racionalismo vigilante esteja sempre pre-
to de todo o trabalho interrogativo e definicio-
sente no rigor de suas formulações, Platão aceita
nal da dialética.71
a existência dos deuses do Olimpo, da cidade, lo-
cais, infernais e os daivmone" e, também, outros
CONCLUSÃO: CONTRA O denominados deuses visíveis – representantes na-
RACIONALISMO EMERGENTE turais do elemento transcendente na realidade ex-
Os movimentos da vasta trajetória, descri- terna73 –, também cultuados pelo povo, em sua
tos pelas reflexões platônicas, não estabelecem, maioria. Com sua visão ordenadora de dialético,
por princípio, uma diferenciação mais detalhada procura criar nexos, multiplicar os pontos de
entre o teológico, o filosófico, o cosmológico, contato entre as crenças das massas e as dos in-
nem, conseqüentemente, a independência da ra- telectuais. Convicto de que a crença nos deuses
zão crítica perante a religião, como o fazem al- constitui a melhor salvaguarda da sociedade, ins-
guns dos representativos filósofos do século das titui, nas Leis, como atividade central da cidade, o
Luzes. Na época da Aufklãrung grega, ocorre o culto conjunto a Apolo, representando o tradicio-
divórcio entre o racionalismo abraçado por re- nalismo das massas, e a Hélio, significando a nova
duzido número de intelectuais e as crenças da religião natural dos filósofos.74 Ao sol, à lua e às
tradição religiosa professada pelas massas:72 e é o estrelas, deuses perceptíveis na ordem do céu vi-
pensamento de Platão, cujas raízes estão vital- sível – contra os iluministas que os consideram
mente vinculadas à sociedade, um pioneiro, ao nada mais do que pedras, sem qualquer poder de
propor uma contra-reforma estrutural, associan- interferência nos assuntos humanos75 – na socie-
68 Cf. PLATÃO, 1946-1956. Ba 177d, 198e, 201e, Fedro 242b-243c,
dade ideal são oferecidas preces e sacrifícios, pela
Filebo, 12bc, Leis I, 624a-625d. semelhança desses astros com os seres imortais
69 Ibid. Rep. 509d.]
inteligíveis.76
70 Ibid. Rep. 510a.
71 JOLY, 1974, p. 23.
72 A Aufklärung não se identifica com o movimento sofístico: é mais 73 PLATÃO, 1946-1956. Tim. 28c.
74 Ibid. Leis, 885b.
antiga e tem origem na Jônia do século IV, com Hecateu e Xenófanes.
Posteriormente, possui como teóricos Anaxágoras e Demócrito, que 75 Entre os signatários da Aufklärung, Eurípides, inspirado em Anaxá-
criam explicações racionalistas para os mitos, pregam a relatividade das goras, refere-se ao sol como um torrão dourado. Cf. DODDS, 1965, p.
idéias religiosas, desqualificam o culto das imagens e ofendem aos deu- 175-178.
ses, duvidando de sua existência. 76 PLATÃO, 1946-1956. 821b-d, 886a.

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PRINCÍPIOS METAFÍSICOS DA NOVA lebram o Céu e o Oceano como geradores de to-


TEOLOGIA dos os deuses, em detrimento do que é primeiro
O deus que, segundo Platão, deve ser con- na organização e na conservação da excelência do
siderado supremo, luz superior a tudo em digni- Todo.79
dade e potência – aquilo que de mais brilhante há Entretanto, na perspectiva ética desse espí-
no ser inteligível –, não é facilmente aceito pelas rito sinótico, erótico, ávido por preencher inter-
massas.77 Educado pela teologia disseminada pe- valos, é imprescindível recuperar os liames com o
los maiores poetas cosmogônicos da Grécia – que há de mais precioso entre os ingredientes te-
Homero e Hesíodo –, que atribui condutas ignó- ológicos da primeira filosofia: as fórmulas que de-
beis aos deuses, incompatíveis com sua natureza, terminam a anterioridade do que é psíquico e ra-
o povo ateniense apresenta graves deformações cional em relação a tudo o que é matéria. Pro-
morais. Contra esses perniciosos germes, o filó- posições textuais que defendem a divinização do
sofo propõe aquela teologia que crê ser a mais sã, universo nas partes e no Todo acabaram por co-
fundamentada num deus bom e veraz que, sobe- locar ao abrigo dos séculos esses discursos escri-
ranamente, justifica a totalidade do real.78 Pois, na tos perfeitos, que, com palavras tão pertinentes a
ignorância da perfeição que constitui a essência seus inefáveis Objetos, conseguiram tornar pos-
divina, os grandes mestres da literatura grega ce- sível o diálogo entre o racional e o místico pre-
sentes na cultura da época,80 reuni-los em sua
77 Ibid. Tim. 28c.
78 Ibid. Rep. 379a-383c. Platão opera uma verdadeira purgação obra sob a roupagem de uma nova linguagem e,
(kavqarsi") das concepções do divino: por oposição à teologia dos assim, disseminá-los à posteridade.
poetas, representa Deus na verdade de sua natureza (Rep. 379a). É
definido, na República, como essencialmente bom (379b), absoluta-
mente simples (381b) e veraz (382e); e em Fédon, como único em sua 79 Ibid. Leis, 903c.
forma e verdadeiro (83c, 84a), colocações reiteradas nas Leis (X, 885d). 80 SCHUHL, 1949, p. 379-380.

Referências Bibliográficas
BROCHARD, V. “Théorie platonicienne de la participation”. In: BROCHARD, V. Études de Philosophie Ancienne
et Moderne. Paris: Vrin, 1974.
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DIÈS, A. Autour de Platon. Paris: Beauchesne, 1927.
DODDS, E.R. Les Grecs et l’Irrationnel. Paris: Aubier-Montaigne, 1965.
FESTUGIÈRE, A.J. Contemplation et Vie Contemplative Selon Platon. Paris: Vrin, 1950.
FINK, E. Le Jeu Comme Symbole du Monde. Paris: Minuit, 1966.
GOLDSCHMIDT, V. Platonisme et Pensée Contemporaine. Paris: Aubier, 1970.
______. A Religião de Platão. São Paulo: Difel, 1963.
HOMÈRE. L’Odyssée, chant XI. Paris: Garnier, 1934. (Trad. M. Dufour et J. Raison)
JAEGER, W. La Teologia de los Primeiros Filosofos Griegos. Madrid: Fondo de Cultura Economica, 1977.
KOFMAN, S. Comment s’en sortir? Paris: Galilée, 1983.JOLY, H. Le Renversement Platonicien. Paris: Vrin, 1974.
LACHIÈZE-REY, V. Les Idées Morales, Sociales et Politiques de Platon. Paris: Vrin, 1951.
MOUREAU, J. Le Sens du Platonisme. Paris: Les Belles Lettres, 1967.
PAQUET, L. La Médiation du Regard. Netherlands: E. J. Brill, 1973.
PLATÃO. Oeuvres Complètes. Paris: Les Belles Lettres, 1946-1956. t.I à XII. éd. CUF.
ROBIN, L. La Théorie Platonicienne de L’Amour. Paris: PUF, 1964.

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ROIG, A.A. Platon – la filosofía como libertad y expectativa. Mendonza: Instituto de Filosofía, 1972.
SCHAERER, R. Dieu, L’Homme et la Vie d’Après Platon. Neuchâtel: Ed. de la Baconnière, 1944.
SCHUHL, P.M. “Le joug du Bien”. In: SCHUHL, P.M. L’Imagination et le Merveilleux. Paris: Flammarion, 1969.
______. Essai sur la Formation de la Pensée Greque. Paris: PUF, 1949.

Dados da autora
Doutora em filosofia antiga (Unicamp),
professora de filosofia antiga do Departamento de
Filosofia na Unesp, campus de Marília, aposentada,
atualmente pós-doutoranda em filosofia antiga no
Departamento de Filosofia do IFCH/Unicamp.

Recebimento artigo: 15/ago./03


Consultoria: 28/ago./03 a 12/set./03
Aprovado: 15/out./03

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Resenhas & Impressões


Reviews & Impressions

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Obras de Wesley
de JUSTO L. GONZÁLEZ
Franklin: Providence House Publishers
1996 (v. I, II, III, IV, V e VI) e
*
1998 (v. VII, VIII, IX, X, XI, XII, XIII e XIV)
ISBN: 1-57736-000-1

A
publicação de livros sempre foi reconhecida, por John
Wesley, fundador do movimento metodista no século
XVIII, como de fundamental importância para esse mo-
vimento. Na Conferência de 1745, ele consultou seus
colegas pregadores sobre a possibilidade de viajar menos
para poder escrever mais. Apesar da resposta não ter sido
a desejava, continuou encontrando tempo para publicar
uma média de 12 títulos por ano. No sermão O Perigo das Riquezas, re-
digido por volta de 1780, ele diz: “Faz quarenta e dois anos, tendo o de-
sejo de prover a gente pobre com livros mais baratos, mais curtos e mais
simples que aqueles que eu havia visto, escrevi muitos tratados pequenos,
geralmente a um penny cada um, e vários grandes. Alguns deles tiveram
JOSÉ CARLOS
uma venda bem maior do que eu imaginava”.
BARBOSA
O interesse de Wesley pela publicação e divulgação de seus escritos Doutor em história da América
foi tão grande que dois pregadores foram deslocados para assessorá-lo. e coordenador do Centro de
Thomas Olivers, inicialmente revisor de textos, mais tarde transformou- Estudos e Pesquisas sobre
se em editor com dedicação exclusiva. John Atlay, indicado para escritu- Metodismo e Educação
rário, logo se tornou o responsável pelo empreendimento editorial e pela (CEPEME) da UNIMEP
comercialização de livros. jcbarbos@unimep.br
Considerando essa extrema relevância dada às publicações, e com-
preendendo que elas assumiram papel fundamental na organização do
metodismo inglês do século XVIII, fica difícil entender por que nós, lati-
no-americanos herdeiros espirituais de John Wesley, demoramos tanto
tempo para traduzir e divulgar as suas obras. Os escritos disponíveis, tan-
to em espanhol quanto em português, resumiam-se aos Sermões, na Ex-
plicação sobre Perfeição Cristã, comentários sobre a Epístola aos Romanos
e em alguns extratos do seu Journal. Muito pouco. Negligência quase im-
perdoável, que ajuda a explicar em parte o fato de nossas igrejas serem
propensas e susceptíveis a copiar modelos eclesiológicos tão esdrúxulos.
Os escritos de Wesley apontando para um evangelho integral, equilibran-

* Informações sobre como adquirir essa coleção podem ser obtidas na Faculdade de Teologia da Igreja
Metodista, pelo e-mail: <teologia@metodista.br> ou tel.: (11) 4366-5971.

Impulso, Piracicaba, 14(34): 163-165, 2003 163


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do obras de misericórdia e atos de piedade, sem- das Obras de Wesley estão incluídas respostas suas
pre fizeram muita falta. a tais acusações. Em Defensa del Metodismo, ele
Por isso, a publicação em espanhol da cole- responde de maneira sistemática a todas essas crí-
ção Obras de Wesley, editada por Justo Gonzáles, ticas, revelando-se um pensador sistemático, há-
representa uma grande vitória. É claro que não se bil polemista e excepcional aluno dos cursos de
trata de um êxito completo, já que o ideal seria lógica da Universidade de Oxford.
que nós, falantes da língua portuguesa, também Nos dois volumes seguintes, La Vida Cris-
tivéssemos uma versão em nosso próprio idioma. tiana e Tratados Teológicos, estão incluídos diver-
Entretanto, tal trabalho merece a nossa mais en- sos artigos sobre a ética cristã. Como legítimo
tusiástica celebração. herdeiro da tradição reformada, ele assinala a im-
Os 14 volumes – divididos em Sermones, portância da santificação para a vida cristã.
Las Primeras Sociedades Metodistas, Defensa del Santificação essa, não apenas numa perspectiva
Metodismo, La Vida Cristiana, Tratados Teológi- pessoal, imprescindível à sua teologia, nem so-
cos, Espiritualidad e Himnos, Diários e Cartas – mente numa dimensão mais política e social. En-
apresentam não apenas um completo quadro so- tendendo que a vida cristã só pode ser vivida no
bre a teologia wesleiana, o itinerário geográfico e seio de uma comunidade, a santificação só pode
a própria história do movimento metodista, mas ser encontrada com a conjugação equilibrada des-
também um retrato parcial da sociedade inglesa ses dois fatores. Distante da religião privada dos
do século XVIII. místicos, os textos de Wesley revelam grande pre-
Os primeiros quatro volumes são dedica- ocupação com a vida social, política e econômica
dos aos Sermões, apontados por Wesley como o da Inglaterra. Nesse sentido, um dos mais impor-
melhor mostruário de sua teologia e guia para tantes é Reflexiones sobre La Esclavitud, que ma-
seus seguidores. Trata-se de verdadeiros tratados nifesta clara e fulminante condenação ao regime
teológicos, nos quais a preocupação maior é ex- de escravidão.
por o que ele considera centro da fé cristã. Se- Diversos textos devocionais, orientações
guindo a herança pietista, particularmente os De- aos pastores, hinos e notas sobre o Novo Tes-
sejos Piedosos, de P. J. Spner, que focaliza o viver tamento formam o volume IX. Além da grande
cristão como mais importante do que qualquer preocupação com a vida devocional dos meto-
perspicácia intelectual, os Sermões destacam a distas ingleses, que podiam continuar partici-
busca de uma religião prática e representam os pando dos cultos anglicanos, Wesley demons-
primeiros contornos da negação da filosofia uti- trou especial atenção às comunidades metodis-
litarista, inaugurada pelo paisano Jeremy Ben- tas da América do Norte. Para elas escreveu vá-
tham. rios artigos, incluindo o El Servicio Dominical
O volume V, Las Primeras Sociedades Me- de Los Metodistas en Norteamérica, con Otos
todistas, inclui textos que procuram explicar as Servicios Ocasionales.
origens institucionais do metodismo e ainda al- Os dois volumes seguintes, denominados
gumas versões sobre os diversos desafios enfren- Diarios, constituem uma seleção dos textos pro-
tados por Wesley e pelo movimento metodista. A duzidos e publicados por Wesley, priorizando-se
oposição a eles era fortíssima. Vários documen- trabalhos de alguma forma mais significativos ao
tos inseridos nesse volume informam sobre vio- público de língua castelhana. Originado para
lências, perseguições e saques contra metodistas, cumprir uma função apologética, pois o próprio
suas casas e propriedades. John Wesley explica que a motivação maior para
Outra acirrada oposição enfrentada por a publicação de textos de natureza pessoal foi res-
Wesley diz respeito à sua teologia. Ele foi cons- ponder a determinadas acusações recebidas du-
tantemente acusado de pregar doutrinas contrá- rante o período em que passou na Geórgia, a maior
rias à Bíblia e à Igreja da Inglaterra. No tomo VI parte dos Diários vai bem além dessa proposta e

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visa a estimular o trabalho de evangelização. Des- que houvesse mais generosidade por parte do
sa forma, há nesses volumes a preocupação de editor, oferecendo maior quantidade de cartas ao
mostrar o itinerário traçado por Wesley, sua per- leitor.
formance diante de determinadas situações e seu Como dito inicialmente, a publicação das
intuito de resgatar os marginalizados pela exclu- Obras de Wesley é uma grande vitória. O idioma
dente sociedade inglesa. de Cervantes, próximo e amigo, representa mais
Dizem que o fundador do movimento me- convite que obstáculo. Tal qual Justo Gonzáles,
todista escreveu mais de 15 mil cartas. Na seleção também esperamos que
que compõe os dois últimos volumes, a idéia é fa- o exemplo e o ensino de J.W. como pastor
lar um pouco das diversas etapas da vida de Wes- que baseia seu pastorado na teologia,
ley, iniciando com as cartas do seu período de ju- como teólogo que faz teologia para o bem
ventude até aquelas escritas dias antes de sua do rebanho, como polemista que leva
morte. Nessas cartas, redigidas quase sempre muito a sério os temas que discute e
para apenas uma pessoa, e num tom mais pessoal como polemista que apesar da seriedade
do tema sabe seguir amando e respeitan-
e íntimo, é possível reconhecer como fio condu-
do a seus adversários, é de incalculável va-
tor da vida de Wesley a disposição de servir e obe- lor nos nossos dias, e bem pode contri-
decer a Deus. Entre todos os demais textos das buir para o despertar e renovação das dis-
Obras de Wesley, são as missivas as mais valiosas e ciplinas teológicas que tanto necessitam
interessantes, as mais reveladoras. O ideal seria nosso povo e nossas igrejas.

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Pelos muitos Caminhos de Deus:


desafios do pluralismo religioso à
teologia da libertação
de FRANZ DAMEN
Goiás: Rede, 2003, 160p., ISBN 85-88091-04-6
Trad. Haidi Jarschel, Luiza E. Tomita e
José Maria do Nascimento Júnior

As religiões já não se encontram umas com as outras somente nos livros religiosos que
atravessam as fronteiras, mas nas ruas, nos meios de comunicação, nas escadas dos edifí-
cios, nos laços matrimoniais, em todas as partes. Hoje em dia, na sociedade atual, plural e
inter-religiosa como nunca, “a religião autêntica implica necessariamente uma relação
com as outras religiões e para a pessoa concreta ser religiosa é ser inter-religiosa”.
JOSÉ MARIA VIGIL*

NILTON CÉSAR

M
ARTHUR
omento histórico de transformação é o que Professor graduado em
esboça Pelos Muitos Caminhos de Deus. Dian- filosofia pela UNIMEP,
assistente da Associação
te da pobreza e da opressão que infestam o
Ecumênica Teológica do
mundo, trazidas em sua versão atual pela cul- Terceiro Mundo
tura dominadora do neoliberalismo, convo- (EATWOT/ASETT)
ca-se o pluralístico. Teólogos(as) em cone- ncarthuri@unimep.br
xão, católicos e protestantes, engajados em
múltiplas realidades, absorvem o plural – nessa obra, as religiões – para
provocar uma reflexão diferenciada: em face da tendência do sistema glo-
balizante em extirpar a cultura e a identidade regionais, as religiões têm
a oportuna tarefa de avaliar as formas peculiares de elaboração discursiva
sobre o sagrado, zelando sobretudo pela urgência do convívio sociorre-
ligioso pluralístico, herança multicultural de identidades regionais.
O leitor terá uma abordagem atual sobre um tema muitas vezes de-
sinteressado a novidades. O pluralismo religioso, sempre visto como um
fato negativo, uma moléstia, uma cisão, está revestido nessa obra como

*VIGIL, J.M. “Espiritualidade do pluralismo religioso – uma experiência espiritual emergente”. In:
DAMEN, F. Pelos Muitos Caminhos de Deus: desafios do pluralismo religioso à teologia da libertação.
Goiás: Rede, 2003, p. 124.

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algo de direito, pois já existem suficientes moti- no e realiza a libertação das opressões do sistema.
vos, advindos dos dramas mundiais, para notifi- Parece interessante o entendimento dos critérios
car que a linguagem sobre o sagrado não se reduz soteriológicos, quando se sabe que a exuberância
a um particular limitado, a uma só religião. Já não de seu simbolismo é peculiar em cada religião ou
se aceita o exclusivismo, pois a inadequação do tradição. Como pontua Paul Knitter, teólogo ca-
presente histórico lhe desautoriza. tólico e expoente pesquisador da teologia das re-
Hoje, portanto, existe nos meios acadêmi- ligiões, no capítulo “Para uma teologia da liberta-
cos a propensão legítima em suspeitar das afirma- ção das religiões”, os critérios soteriológicos “são
ções clássicas a respeito de quaisquer absolutis- válidos como instrumento heurístico, mais do que
mos, pois sabemos como eles são facilmente con- como base definida” (p. 29). Começa-se, então, o
duzidos à ideologia. Razoavelmente, tal perce- diálogo inter-religioso não com absolutos prees-
pção significa uma transformação da imagem que tabelecidos, mas com aberturas aos estilos de ou-
temos de toda religião – é o que sinaliza o con- tros caminhos ou pessoas que buscam a prática
teúdo desse livro. A flexibilização, em várias fren- construtiva de uma realidade mais solidária: pri-
tes, quanto às posturas rígidas está possibilitando mazia da ortopraxis sobre a ortodoxia.
uma outra ambiência à postura religiosa. Assim, Todavia, desconfortos acompanham tal
teólogos(as) já tentam conceituar tal impulso crí- processo. A intolerância praticada historicamente
tico, manifestando-se sugestivamente como her- pelas igrejas institucionais ainda se nota em rela-
menêutica da suspeita ou hermenêutica da dúvida. ção à diversidade religiosa. A intolerância expres-
Pressente-se, sobre o esboço da postura in- sa, sem dúvida, a lógica ocidental das igrejas. O
ter-religiosa, se bem que ainda não totalmente modelo intelectualista de conversão não abarca a
delineada, uma forma de prevenção ao perigo do possibilidade de uma pessoa poder servir a duas
fundamentalismo ou objetivismo, e até mesmo religiões ao mesmo tempo. No capítulo “Intole-
do relativismo. De toda maneira, para florescer rância religiosa contra o pluralismo religioso na
um diálogo inter-religioso, os(as) teólogos(as) história latino-americana”, o teólogo e sociólogo
participantes dessa obra sugerem a instalação de caribenho Armando Lampe ressalta a necessida-
um terreno comum, mesmo movediço, que seja de de fazer logo uma distinção entre igreja insti-
todavia partilhado. Qualquer intuição não muito tucional e povo, pois, segundo ele, a atitude do
refinada logo dirá, perante o sistema globalizante, povo é amistosa, sua própria interpretação de di-
o comum reivindicado: a pobreza e a opressão. ferentes manifestações do sagrado é mais toleran-
Percebe-se o avanço, portanto, na reflexão inter- te. Uma pluralidade de fontes e tradições religio-
religiosa, quando o lugar do diálogo não é a busca sas traz à religião popular uma lógica não-ociden-
inapropriada de uma teoria ou fonte comum nas tal, ou seja, uma outra lógica. Essa desfaz a prega-
religiões, e sim o locus lamaçal a todos(as) afetan- ção oficial ao incluir roupagens novas e plurais de
do, de onde a conversa pode instalar o devido ali- Deus – muitas vezes destoantes da variante ofi-
cerce. cial do rosto monoteísta. Podemos dizer que o
povo vive dentro de si diferenças religiosas sem
ABRANGÊNCIA PLURALISTA incômodo; uma pessoa vive com variadas identi-
Uma fecunda união de teólogos(as) que dades religiosas, e está tudo bem. São as
respondem ao pluralismo religioso com os que instituições que se expressam intolerantes, no re-
enfrentam as injustiças sociais faz avançar a ceio da dessubstancialização dos conteúdos reli-
conceituação de um jargão teológico que pode giosos.
assumir o critério ético para o diálogo inter-reli- Isso posto, a teologia do pluralismo religi-
gioso: soteria. Esse conceito, envolvido pela idéia oso coloca-se na ordem do dia para ampliar os
da salvação, possibilita ser a medida ativa justa- horizontes, até os institucionais. Se acolhido
mente pelo quanto promove o bem-estar huma- como exercício, consoante às interpelações de

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Pelos Muitos Caminhos de Deus, pressupõe posi- Esta atitude audaciosa tem por detrás um senti-
tividade na codificação da riqueza multicultural mento indo-americano” (p. 89).
pressentida no espírito dialogal, universo da alte- Também pela audácia, a realidade afro-reli-
ridade. O artigo “Sistemas abertos de conheci- giosa do continente é privilegiada. Antônio Apa-
mento” parece fundamentar um suposto estatuto recido da Silva, presidente do grupo brasileiro
para uma teologia das religiões ou do pluralismo Atabaque – Cultura Negra e Teologia e téologo
religioso. Na dinâmica teológica, a relação singu- católico, pontua, no entanto, o fato do “pouco
lar, que pode reconhecer o valor da convicção da diálogo havido até o presente momento entre Te-
experiência de revelação do outro, já está instituin- ologia Cristã (católica e protestante) e o universo
do uma outra realidade pedagógica para a vivência religioso das Tradições Religiosas Africanas” (p.
religiosa: aprendizado pela diferença. O convite 98). Abrir o espaço teológico às religiões talvez
ao exercício da alteridade está enfocado no capí- seja a tarefa primeira; a segunda é reconhecer as
tulo “O desafio do pluralismo religioso para a teo- suas legitimidades. Uma questão salutar do capí-
logia latino-americana”, do teólogo brasileiro cató- tulo “Teologia cristã do pluralismo religioso face
lico Faustino Teixeira, estudioso na área de diálo- às tradições religiosas afroamericanas”, colocada
go inter-religioso. Segundo Teixeira, o exercício por Silva, é a seguinte: “quem será o sujeito da Te-
da alteridade é uma forma de sobrevalorizar o sig- ologia do Pluralismo Religioso?” (p. 99). Tal in-
nificado do mistério, “e não sobre os ‘mecanis- dagação parece requerer de cada uma das tra-
mos’ utilizados para explicar este mistério” (p. dições religiosas, segundo esse autor, a superação
78), pois o “mistério da diferença está presente de um certo espontaneísmo dispersivo de suas ex-
em toda dinâmica inter-pessoal” (p. 79). periências, para ativar uma melhor sistematização
com base em suas cosmovisões. Para a teologia
À BUSCA DE INTERLOCUTORES afro-americana, isso seria um salto para o diálogo
interteológico, pois traria consigo uma conce-
Afirmar a trajetória humana multifacetária, pção de mundo peculiar, que muitas vezes con-
cuja transcendência experimenta diversos sím- funde a lógica tradicional das teologias ociden-
bolos do sagrado, é a forma significante para a tais. Dessa instância, pode até ser possível estabe-
vida de muitos dos interlocutores desse diálogo. lecer uma nova via de conhecimento, pois, como
Um exemplo são os povos originários da Amé- bem pontua Silva, “a subjetividade que caracteri-
rica Latina, que geram sementes de frutífera es- za a sabedoria africana põe em cheque a raciona-
piritualidade de densidade mítica e utópica. Tal lidade que distingue o procedimento ocidental,
espiritualidade é entendida por Diego Irarrázaval, contudo se carecem reciprocamente” (p. 101).
teólogo chileno católico, engajado na pastoral in- Via relacional, por conseguinte, de conhecimento
dígena no Peru e colaborador do capítulo “Reim- para tentar dar conta da realidade plural que en-
plantação teológica na fé indígena”, como uma volve o ser humano.
espiritualidade relacional, assumindo-se como “a O referencial para o equilíbrio do diálogo
busca coletiva e constante de uma realidade no- inter-religioso é, segundo as entrelinhas desse li-
va” (p. 94). Relação, portanto, para esses povos vro, uma questão menos de conteúdo e mais de
indígenas, significa co-responsabilidade com o am- pedagogia: a forma de fazer teologia. A teologia
biente habitável. feminista, por exemplo, presente no capítulo “A
Esse compromisso, contudo, é também contribuição da teologia feminista da libertação
notado e visionado, segundo Irarrázaval, em nos- para o debate do pluralismo religioso”, reconhece
sa sociedade cosmopolita, quando redes sociais muito bem os conteúdos teológicos cristãos que
alicerçam eventos como o Fórum Social Mundi- não cooperam com as ações interpessoais iguali-
al, “no qual se celebra a esperança e audaciosa- tárias em relação ao direito de ser e de sentir. Um
mente gritamos: um outro mundo é possível! grande desafio pela frente, segundo algumas teó-

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logas protestantes e católicas, entre elas, Luiza Nota-se, pois, a necessidade de verificar as exclu-
Tomita, Maricel Mena, Sônia Querino, Sandra do sões reproduzidas por todo e qualquer credo re-
Santos Sena e Lori Altmann, é mexer no arca- ligioso.
bouço da teologia oficial, que será chamada a re- Palavras finais para a abordagem aqui des-
ver os seus conceitos e pressupostos. Essa revisão crita vêm do teólogo beneditino Marcelo Barros,
tende a modelar uma mensagem crística mais no capítulo “A reconciliação de quem nunca se
apropriada ao diálogo inter-religioso. Fruto, pois, separou dá termo ao livro Pelos Muitos Caminhos
de uma forma de fazer teologia que descentraliza de Deus”. Escreve ele: “na América Latina, a Teo-
as figuras paradigmáticas da fé, descobrindo re- logia do Pluralismo Religioso tem de ser, em pri-
cantos. Caminho salutar, do ponto de vista reli- meiro lugar, Teologia do Pluralismo Inter-cultu-
gioso, porque, além de favorecer o reconheci- ral” (p. 150). Com efeito, amplas porções da po-
mento do diferente em sua positividade, leva a pulação, dentro e fora da universidade, em diálo-
uma melhor formulação de cada fé particular par- go, favorecerão a discussão sobre o pluralismo no
ticipante. O importante também é atentar, se- locus movediço em comum a todos: o sistema
gundo a teóloga Ivone Gebara, aos absolutismos que produz exclusão e violência. Diálogos, por-
metafísicos não somente em relação às outras re- tanto, pertinentes, diante da impertinência do
ligiões, mas inclusive dentro de cada religião, empobrecimento geral e da opressão globalizan-
“afirmados no interior delas mesmas” (p. 115). te.

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Novas publicações sobre


religião na Alemanha:
da teologia intercultural
à “sociedade pós-secular”
em Habermas

E
sta resenha apresenta algumas publicações alemãs recen-
tes. São textos que tratam da religião sob novos pontos
de vistas teológicos e filosóficos, indicando a atualidade
e importância inter-disciplinar dessa temática. Tratare-
mos de dar o contexto geral das discussões na área e des-
tacar alguns títulos. Dentre a crescente produção sobre o
assunto, nos concentraremos em textos de uma série edi-
tada por Klaus Koschorke e de Jürgen Habermas.

OBRAS TEOLÓGICAS SOBRE O DIÁLOGO INTERCULTURAL


As publicações germânicas sobre religião na área da teologia não AMÓS NASCIMENTO
constituem fato isolado. São parte de uma rica tradição de reflexão nessa Formação em música em
Buenos Aires (EMEC), em
área, que inclui Lutero e culmina não somente no desenvolvimento da te-
ciências sociais e religião em
ologia evangélica liberal cristã do século XX – com pensadores como Karl
São Paulo (USP, UMESP)
Barth, Paul Tillich, Rudolf Bultmann e outros –, mas também na teologia e em filosofia em Campinas,
política católica – de Karl Rahner, Johann B. Metz, Hans Küng e outros. Olympia e Frankfurt
Atualmente, porém, a ênfase é na teologia intercultural, que se pergunta (Unicamp, TESC, Universität
pelo lugar do cristianismo europeu no diálogo inter-religioso, em meio Frankfurt)
aos processos de globalização e multiculturalismo. Se por um lado essa asnascim@unimep.br
pergunta leva à doutrina conservadora e eurocêntrica das semina verbi –
a afirmar que o cristianismo tem um caráter universal e imutável, implan-
tado desde sempre nas várias culturas, havendo somente a necessidade de
se facilitar o processo de “inculturação” ou “aculturação” –, por outro,
existem teorias a mostrar que, a cada encontro entre culturas, o conteúdo
da religião cristã se altera, gerando novos elementos, perspectivas e até
mesmo novas religiões, cuja análise deve ser interna e dependente de um
diálogo intercultural.
Um exemplo nessa segunda linha são as pesquisas realizadas na
Universidade de Munique por Karl Korschorke, Andreas Müller e Ro-
land Spliesgart sobre história do cristianismo não-europeu, publicadas na
última edição de Religion in Geschichte und Gegenwart, em vários artigos
e também na coleção Studien zur Aussereuropäischen Christentumsgeschichte,

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dirigida por Klaus Koschorke e Johannes Meier. Ásia por Daniel Jeyaraj, Gerald Pillay e Peter
Dessa coleção, destacamos dois livros. Primeiro, Phan, mostrando o trabalho de protestantes lu-
a coletânea Transkontinentale Beziehungen in der teranos na Índia, Sri Lanka e Ilhas Fiji no século
Geschichte des Außereuropäischen Christentums XIX (p. 131-144), o caso de cristãos indianos que
(Relações Trans-continentais na História do Cris- imigraram para a África do Sul a partir de 1860
tianismo não-Europeu), editada por Klaus Kos- (p. 145-162), e o impacto do Concílio Vaticano II
chorke em 2002, como resultado dessas pesqui- na Ásia (p. 243-258). A questão do impacto do
sas e de uma conferência sobre o tema, promo- cristianismo na América Latina é tratada por
vida em 2001. Segundo, o livro Orientalismus Hans-Jürgen Prien, Teotônio de Souza e José
und Mission. Die Repräsentation der tamilischen Oscar Beozzo, que analisam a influência do Con-
Gesellschaft und Religion durch Leipziger Missio- cíclio de Trento na América espanhola (p. 163-
nare 1840-1940 (Orientalismo e Missão (A Re- 188) e portuguesa (p. 189-201), e o impacto mais
presentação da Sociedade e da Religião Tamílica recente do Concílio Vaticano II (p. 219-242).
pelos Missionários de Leipzig – 1840-1940), publi- Além da introdução e de um capítulo de Klaus
cado por Andreas Nehring em 2003. Koschorke sobre aspectos metodológicos (p. 9-
Transkontinentale Beziehungen in der Ges- 32) e a conferência missionária mundial de Edin-
chichte des Außereuropäischen Christentums é di- burgh em 1910 (p. 203-217), o livro inclui tam-
vidido em três partes, que tratam dos seguintes bém uma série de artigos sobre novos movimen-
temas: diásporas étnicas como redes transconti- tos religiosos surgidos na África, Ásia e América
nentais, processos transcontinentais de recepção Latina, de forma paralela, como as igrejas africa-
do Cristianismo e desenvolvimentos paralelos do nas independentes (p. 259-271), o cristianismo
Cristianismo missionário na Ásia, África e na autóctone na Índia (p. 273-292), o movimento de
América Latina. O livro inicia com um relato so- independência na Etiópia (p. 293-313) e o culto à
bre o pastor africano Jacobus Elisa Joannes Ca- Virgem de Guadalupe no México (p. 315-327),
pitein (p. 9-10) e seu trabalho missionário em concluindo com um texto sobre os cristãos de
Gana, já em 1745, antecipando textos de John Madagascar no século XIX (p. 329-342).
Thornton, Andrew Walls, Sandy Martin e Afe Enquanto relato histórico e etnográfico, o
Adogame, que tratam do intenso movimento livro nos traz vários dados interessantes, como as
diaspórico de africanos entre os anos 1491 e anedotas referentes ao missionário africano Jaco-
1750, quando nativos africanos já haviam assumi- bus Elisa Joannes Capitein e a outros – muitas
do a tarefa missionária em seu continente de ori- vezes, porém, sem o cuidado com a linguagem
gem (p. 33-44), passando pelas relações afro- discriminatória e eurocêntrica. De qualquer for-
americanas e o início do protestantismo nos sé- ma, resgata documentos e indica como o cristia-
culos XVII e XIX (p. 45-72), e chegando ao século nismo ganhou novos contornos ao se deparar
XX, quando surgiram novos cultos, como o mo- com culturas distintas, como é o caso da tese de
vimento aladura (p. 73-86). O mesmo se dá com Prien, segundo a qual as tensões originais do
relação aos capítulos de Sook Jong Lee, David Concílio de Trento e da Anti-Reforma não ocor-
Yoo e Choi Young-Woong sobre cristianismo reram de forma radical na América Latina, fazen-
evangélico coreano, retratando a chegada dos pri- do surgir uma religiosidade não tão uniforme,
meiros missionários norte-americanos em 1884 à como ocorreu na Europa. Também é relevante a
Coréia e sua relação com o confucianismo da di- relação que aponta entre a implementação do
nastia Yi (p. 87-104), a conversão de imigrantes cristianismo e o surgimento de movimentos de
coreanos que chegaram aos Estados Unidos a libertação e independência, como se deu na Re-
partir de 1903 (p. 105-116), e as missões da Igreja pública do Níger, Libéria e Etiópia, além do
Presbiteriana da Coréia na China entre 1913 e México e na própria Teologia da Libertação. Por
1957 (p. 117-130). Atenção é dada também à fim, a publicação enfatiza o “paradigma diaspó-

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rico”, mostrando como os movimentos migrató- nindo nesse super-conceito essencialista várias
rios têm forjado um diálogo intercultural e esta- religiões populares, entendidas seitas pagãs de
belecido fortes conexões entre os vários conti- distintas castas, que em muitos casos permanece-
nentes – atualmente esquecidas pela pesquisa his- ram impermeáveis à influência do cristianismo
tórica –, as quais podem ser resgatadas a partir do europeu.
diálogo Sul-Sul. Uma das contribuições desse li- A publicação de Nehring é relevante por
vro é justamente apresentar o caráter policêntrico várias razões. Primeiro, por relacionar a Alema-
do cristianismo e suas várias interações, ao invés nha e a Índia, indicando a importância que teóri-
de vê-lo como algo imutável. cos germânicos deram ao Hinduismo e Sânscrito,
Orientalismus und Mission discute a como forma de resgatar as raízes étnicas e
inserção da religião cristã na Índia, sob o prisma lingüísticas da raça ariana (p. 137 e ss., 173 e ss.).
dos estudos recentes sobre pós-modernismo, Porém, alguns elementos ideológicos não são tão
pós-colonialismo e orientalismo por Michel Fou- explorados, pois Nehring não estabelece relações
cault, Arjun Appadurai, James Clifford, Rajanit mais diretas entre o pensamento de Herder e He-
Guha e Edward Said. O primeiro capítulo do li- gel, o nacionalismo germânico e a relevância des-
vro (p. 17-54) argumenta que, além da prática do tas questões no século XX. Segundo, a ênfase
colonialismo francês ou do imperialismo britâni- dada ao missionário e cientista Karl Graul, um
co na Índia, é mister analisar a influência germâ- dos pioneiros da etnografia e da “ciência de mis-
nica também (p. 41 e ss.). A participação alemã sões” [Missionswissenschaft] no século XIX, traz
foi mais ideológica, não somente por meio da in-
à tona vários detalhes, e explora bastante a dis-
dologia e da etnografia, mas também da teologia –
cussão sobre as castas na Índia, especialmente em
sobretudo do discurso missionário germânico –,
Tamil Nadu, comprovando a tese do autor, se-
brindando a base teórica para legitimar a domina-
gundo a qual o discurso religioso missionário foi
ção política e econômica do sudeste asiático. O
um poderoso instrumento do “Orientalismo”.
segundo capítulo relata a história das missões
Nesse ponto carece, porém, de um debate maior
protestantes naquela região, com ênfase na mis-
com o livro de Mohanavelu sobre as missões cris-
são de Leipzig, cuja particularidade foi sua ori-
tãs na Índia. Faltaria, porém, um diálogo com os
gem no Iluminismo e no pietismo de Halle.
Questões lingüísticas e relativas aos processos de estudos de Max Weber sobre o hinduismo, pois a
tradução – originadas na filosofia de Herder e co- tensão entre protestantismo e as religiões da Ín-
locadas em prática por meio de cartas, jornais, dia – especialmente em Tamil Nadu – constitui o
poesias e documentos – também são discutidas, eixo fundamental do livro (e em sua sociologia da
levando afinal ao problema da percepção inter- religião, Weber considera a sociedade de castas
cultural (p. 90-101) e ao terceiro capítulo, que como algo estanque, sem mobilidade e impedi-
trata das formas de representação da sociedade tiva do capitalismo, embora a religiões da Índia
indiana pelos luteranos – especialmente no que promovam um ascetismo ainda maior do que o
diz respeito à sua visão da sociedade de castas (p. protestantismo). Por fim, o livro é relevante
102-211). Somente após um breve excurso, no pela riqueza de detalhes sobre missionários de
quarto capítulo, sobre os problemas de tradução Leipzig e a visão crítica do eurocentrismo, ao
da cultura e literatura Tamil (p. 214-241) – cujos tomar os estudos sobre orientalismo, pós-colo-
detalhes e transliterações são colocadas em apên- nialismo e subalternidade como ponto de parti-
dices bastante técnicos – é que se chega ao quinto da para a análise do discurso missionário e pro-
capítulo (p. 242-342), conclusivo, no qual se dis- por uma teologia (intercultural) das religiões.
cute os discursos religiosos propriamente ditos. De qualquer modo, o mérito do livro é relacio-
Nesse ponto, mostra-se como se deu a “constru- nar, de fato, orientalismo. Cumpre, assim, o que
ção do hinduismo” como religião sincrética, reu- título promete.

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FILOSOFIA DA RELIGIÃO E A REFLEXÃO movimento recebeu um impulso ainda maior


SOBRE A SOCIEDADE PÓS-SECULAR com o lançamento recente de alguns escritos de
Também na área filosófica, na Alemanha há Jürgen Habermas, professor emérito na mesma
uma importante produção, que pode ser observa- Universidade. Entre os seus últimos trabalhos,
da desde o século XVIII. Isso é indicado não so- podemos fazer referência a Religion and Rationa-
mente pela tradição metafísica de Leibniz e Wolff, lity. Essays on Reason, God and Modernity (Reli-
mas também pela visão crítica da religião, inaugu- gião e Racionalidade. Ensaios sobre Razão, Deus e
rada por Kant em Religion innerhalb der Grenzen a Modernidade), uma coleção de ensaios; Glau-
der blossen Vernunft (A Religião dentro dos Limi- ben und Wissen (Fé e Conhecimento), o seu dis-
tes da mera Razão) e continuada de modo radical curso ao receber um importante prêmio na Ale-
na “crítica da religião” de Hegel, Marx e Nietzs- manha, logo após os atentados de 11 de setem-
che, antes de chegar às posições de Freud e da Es- bro; e alguns artigos recentes, nos quais ele retor-
cola de Frankfurt sobre o tema, no século XX. na de modo insistente a essa questão.
Um dos resultados de tal crítica da religião foi a Religion and Rationality é uma coletânea de
aceleração do processo de secularização, levando oito artigos escritos por Habermas nos últimos
à desconsideração da religiosidade durante boa trinta anos, reunidos e apresentados por Eduardo
parte do século passado. A novidade, agora, é o Mendieta, filósofo dos Estados Unidos, de ori-
retorno à reflexão filosófica sobre o tema, com gem colombiana, que tem sido responsável por
várias publicações e a criação de centros de pes- importantes conexões entre a América Latina,
quisa sobre o assunto. Europa e América do Norte, além de haver tra-
Em meio às iniciativas na área, podemos duzido ao inglês obras de Karl-Otto Apel, Enri-
destacar o que ocorre na Universidade de Frank- que Dussel, Jürgen Habermas e vários represen-
furt, que busca resgatar o interessante diálogo en- tantes da Teoria Crítica. Os ensaios reunidos por
tre a tradição judaica e a tradição cristã, que mar- Mendieta vão desde os textos de Habermas sobre
cou o início do século XX, envolvendo pensado- Bloch, Benjamin, Adorno e Horkheimer, até
res como Martin Buber, Paul Tillich, Theodor considerações mais recentes do filósofo frankfur-
Adorno e Max Horkheimer e outros. Como re- tiano sobre o “pensamento pós-metafísico”, a teo-
sultado desse resgate, desenvolve-se, no âmbito logia de Metz e teologia da libertação. Mendieta,
da Faculdade de Teologia, o programa “Teologia que há vários anos tem provocado o pensador ale-
Intercultural”, que tem levado à Universidade as mão a se posicionar sobre o assunto, considera
perspectivas críticas de pensadores em várias par- que existe uma linha direta e inequívoca entre a
tes do mundo, como Enrique Dussel, Robert posição da primeira geração da Escola de Frank-
Schreiter e T. Tui Hang. Além disso, foi recente- furt e as colocações de Habermas sobre o tema
mente criado o Instituto de Pesquisas em Filoso- (p. 2, 11, 17-18), embora este último vá mais
fia da Religião, cuja reflexão tem sido registrada além, ao incorporar as teses de Weber sobre racio-
na série “Religião na Modernidade”, editada por nalização e secularização e propor um “giro
Matthias Lutz-Bachmann, além do livro Er- lingüístico” na consideração sobre a religião. Em
fahrung und Religion (Experiência e Religião), pu- análise bem documentada sobre a evolução da
blicado por Matthias Jung em 1999, e em uma Teoria Crítica da Escola de Frankfurt nessa área,
nova série de títulos sobre o tema, apresentados Mendieta conclui que o pensamento de Haber-
em recente resenha por Hendrick Adriaanse. Já mas é certamente secularizante, mas não anti-re-
na Faculdade de Ciências Sociais, Ulrich Oever- ligioso.
mann desenvolve estudos sobre um modelo em- O primeiro dos artigos selecionados, mais
pírico para a análise estrutural da religiosidade e antigo, trata do idealismo alemão nos pensadores
da secularização, influenciando assim novas cor- judeus, indo desde Buber e Rosenzweig a Bloch
rentes na sociologia da religião alemã. Todo esse e Benjamin (p. 37 e ss.). Na seqüência, discute “A

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dificuldade de dizer não” (p. 60) e o pensamento (2/jan./02). Habermas inicia reconhecendo que,
pós-metafísico em “Transcedência desde dentro, a partir dos fatos de 11 de setembro de 2001, a te-
transcendência nesse mundo” (p. 67 e ss.), segui- mática da religião se impôs definitivamente na
do de um ensaio sobre a frase de Horkheimer agenda mundial, trazendo à tona a tensão entre fé
“Einen unbedingten Sinn zu retten ohne Gott, ist e secularismo, a qual não poderia mais ser des-
eitel” (é fútil tentar resgatar um significado in- considerada pela reflexão filosófica. E, de fato, o
condicional sem [referência a] Deus) (p. 85). No impacto da religião se vê não somente nas inicia-
ensaio “Liberdade Comunicativa e Teologia Ne- tivas beligerantes de grupos fundamentalistas
gativa” ele discute o pensamento de Michael cristãos, judeus ou muçulmanos, mas também na
Theunissen – que se inspira em Kierkegaard e reação pacífica de milhares de pessoas em vários
Adorno –, afirmando que a dimensão escatológi- lugares do mundo, que se voltaram para a religião
ca da religião só pode fazer sentido como uma hi- diante da ameaça do terrorismo. Habermas tam-
pótese explicitada nos termos de uma pragmática bém poderia haver mencionado o retorno à reli-
da linguagem, e não necessariamente como ga- gião como busca de sentido, citando um exemplo
rantia da erupção do divino na história (p. 113- na própria Alemanha: a reunião de mais de cem
123), enquanto no ensaio “Israel e Atenas” entra mil pessoas no ofício religioso em homenagem a
em diálogo com a teologia de Metz, considerando estudantes assassinados no ginásio de Erfurt.
positiva a idéia de um cristianismo policêntrico, Nesse caso, um grande contingente de pessoas
desde que ele seja compatível com os princípios participou de um evento religioso, sob chuva, em
do Esclarecimento europeu (p. 136) O livro uma cidade que – embora tenha sido um dos ber-
apresenta, ainda, um ensaio sobre Scholem (p. ços da Reforma – até 1989 era um dos redutos do
139 ess.) e conclui com uma entrevista com Men- ateísmo, pois fazia parte da antiga Alemanha Ori-
dieta “Sobre Deus e o Mundo”, na qual Haber- ental. Para o pensador alemão, tanto tais reações
mas se posiciona sobre o possível papel político quanto o secularismo são parte do mesmo fenô-
da religião, em vista dos problemas da globaliza- meno da modernidade, mas não se pode deixar de
ção econômica (149-151), além de discutir a im- reconhecer que, nesse processo, as funções da re-
portância do ecumenismo, e a relação entre reli- ligião se alteraram. Cabe, portanto, à reflexão
gião, solidariedade e justiça. Com essa entrevista, filosófica, retomar a velha questão da relação en-
Mendieta busca corroborar sua tese – contestada tre fé e razão para ver como se dá esse processo
por muitos, como por exemplo, Fred Dallmayr em uma “sociedade pós-secular”.
em sua resenha deste mesmo livro –, de que há O termo sociedade pós-secular ganha re-
uma continuidade na teoria crítica, quando se tra- levância e abre amplas perspectivas de análise da
ta da questão da religião. Embora a entrevista sociedade moderna, especialmente se conjugado
mostre que Habermas tem, de fato, conhecimen- a outro termo anteriormente proposto por Ha-
to e clareza quanto ao papel da religião na mo- bermas: o “pensamento pós-metafísico”. Desse
dernidade, o modo um tanto formal e reservado modo, Habermas evita o perigo de se afirmar
como ele responde às questões ainda deixa algu- simplesmente a tese neo-conservadora de um
mas dúvidas a respeito do lugar teórico e do sta- “retorno à religião” anterior à modernidade. Po-
tus lingüístico do discurso religioso para a Teoria rém, também aqui surge a tensão entre o univer-
Crítica na atualidade. salismo e o pluralismo, mesclado também ao de-
Em Glauben und Wissen Habermas confir- bate sobre liberdade individual e autonomia, que
ma a tese proposta por Mendieta. Esse texto cur- nada mais é do que a realização política do pos-
to, cujo título remete a Hegel, é seu discurso de tulado renascentista, segundo o qual o ser huma-
aceitação do Prêmio de Paz da Câmara Alemã do no é um secundus deus. A tensão entre esses va-
Livro e foi traduzido também em português e lores não deixa de trazer problemas, como se vê
publicado no Caderno Mais da Folha de S.Paulo claramente no caso da pretensão da biotecnologia

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em alterar e definir o código genético humano. religião civil, à la Rousseau e Kant. É nessa linha
Muitos viram nessa posição uma grande con- que ele vem discutindo o fundamentalismo reli-
cessão do filósofo alemão aos grupos religiosos. gioso. Com Jacques Derrida – que também tem
Mas, em sua conclusão, Habermas insiste que se voltado ao tema da religião em vários escritos
mesmo diante destes dilemas, o apelo à religião recentes –, realizou uma série de debates em Chi-
deve ser mediado pelas categorias da comunica- cago, tratando de “fundamentalismo e terror”.
ção cotidiana, com apresentação de argumentos e Mais recentemente, em uma carta em oposição à
tradução de valores religiosos na linguagem do Guerra no Iraque, firmada juntamente com Der-
direito e da cultura. De qualquer modo, cabe ain- rida, Habermas voltou novamente à questão, afir-
da perguntar sobre o status lingüístico da religião, mando – com referência a George W. Bush – que,
pois, ao propor a tese da “sociedade pós-secular”, “para os europeus, a imagem de um presidente
Habermas indica mudanças no processo social, que inicia as reuniões de seu gabinete com ora-
mas não chega a uma análise do discurso religioso ções pode parecer estranha”. Assim, insiste que o
e suas categorias internas. O que seria o âmbito cristianismo beligerante e fundamentalista carac-
institucional do discurso religioso, a sua aplicação terístico dos Estados Unidos não é a única visão
como discurso prático, a sua pretensão de valida- possível de uma religião civil, mas há alternativas
de? Ele não chega a explicar, portanto, de que na tradição européia – como cultura na qual o
modo as suas considerações se encaixariam no ar- cristianismo se desenvolveu –, as quais devem ser
cabouço de sua pragmática formal e da ética do afirmadas como antídoto aos interesses hegemô-
discurso. nicos norte-americanos.
Em vários artigos, desde 2001, Habermas O espaço que temos é curto para analisar
vem se dedicando a essa questão de modo inten- de modo detalhado todos os escritos acima apre-
sivo. Durante o ano seguinte, ofereceu um se- sentados e suas implicações. De qualquer modo,
minário sobre o tema “Filosofia e religião na Ale- a referência a eles já serve para anunciar a reno-
manha”, na Northwestern University, Estados vada importância da temática da religião, a aber-
Unidos. Em novembro daquele ano, apresentou tura multicultural ao tema e o crescente interesse
a conferência “O papel da religião em uma socie- de Habermas sobre religião, relacionando-a com
dade pós-secular”, em evento em homenagem a questões de política internacional, terrorismo e
Charles Taylor, no Canadá, discutindo esse mes- guerra, tolerância e direitos culturais, além de in-
mo tema também no Irã. Ainda em 2002, falou sistir que as ciências sociais e humanas não po-
sobre “O Conceito de tolerância religiosa nas so- dem mais deixar de lado tal temática.
ciedades ocidentais” e “A tolerância religiosa
como diretriz para os direitos culturais” em várias TEOLOGIA INTERCULTURAL OU
universidades européias e asiáticas. Em 2003, pu- SOCIEDADE PÓS-SECULAR?
blicou artigo sobre intolerância e discriminação. Discutimos duas novas linhas de reflexão
Em todos esses casos, ele retoma a tese liberal da sobre a religião na Alemanha. Se na primeira, de
separação entre religião e Estado para tratar da re- caráter teológico, a ênfase é no diálogo intercul-
ligião não somente como raiz de vários conflitos, tural, na segunda, de caráter social-filosófico, Ha-
os quais podem ser evitados ao se trabalhar com bermas define o conceito de “sociedade pós-se-
uma concepção de tolerância que seja guiada pelo cular”. Poder-se-ia dizer que em suas reflexões
princípio universal da justiça – sem necessaria- Habermas tem demonstrado profundo conheci-
mente relativizar as convicções religiosas –, mas mento teológico e histórico, sensibilidade social e
também como promotora de valores, indo, por- perspicácia política. Porém, também se percebe
tanto, um pouco além do que o liberalismo polí- uma ênfase em valores europeus, sem que ocorra
tico tradicional de inspiração em Hobbes pro- um diálogo intercultural com as perspectivas do
pugna, dando margem a uma nova concepção de hemisfério sul sobre o tema. A entrevista com

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Eduardo Mendieta é um dos poucos momentos bermas. Resta, então, aguardar a elaboração des-
em que se deixa antever sua perspectiva sobre ses escritos em uma publicação mais sistemática,
essa questão e entrever uma abertura com relação para podermos então avaliar melhor o que o pen-
à América Latina. Nesse sentido, a discussão teo- sador alemão entende por filosofia da religião e
lógica a qual passamos em revisão, voltada para a por sociedade pós-secular, e como essas questões
questão do “diálogo intercultural”, pode ser uma se encaixam no arcabouço teórico de sua teoria
importante complementação à posição de Ha- formal-pragmática do discurso.

Referências Bibliográficas
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NEHRING, A. Orientalismus und Mission. Die Repräsentation der tamilischen Gesellschaft und Religion durch Leipziger
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OEVERMANN, U. Ein Model der Struktur von Religiosität. Zugleich ein Strukturmodell von Lebenspraxis und von
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polytheistischer und monotheistischer Religionen und der gegensätzlichen Folgen des puritanischen
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OEVERMANN, U. & FRANZMANN, M. Strukturelle Religiosität auf dem Wege zur religiösen Indifferenz, 2003
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SCHREITER, R. Die neue Katholizität. Globalisierung und die Theologie [Theologie interkulturell, Bd. 9], Frankfurt: IKO
Verlag, 1997.

Trabalhos resenhados
HABERMAS, J. Intolerance and Discrimination. In International Journal of Constitutional Law, Vol. 1, Issue 1. Oxford:
Oxford University Press, 2003. ISSN 1471-2640. Preço: US$ 29,00.
______. Religion and Rationality. Cambridge (MA): MIT Press, 2002. ISBN 0-262-58216. Preço: US$ 19,95.
______. Glauben und Wissen. Frankfurt: Suhrkamp, 2001. ISBN 3-518-00651-X. Preço: EUR 5,00.

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KOSCHORKE, K. (Hrsg.). Transkontinentale Beziehungen in der Geschichte des Außereuropäischen Christentums.


Wiesbaden: Harrassowitz Verlag, 2002. ISBN 3-447-04661-9. Preço: EUR 38,00.
NEHRING, A. Orientalismus und Mission. Die Repräsentation der tamilischen Gesellschaft und Religion durch Leipziger
Missionare 1840-1940. Wiesbaden: Harrassowitz Verlag, 2003. ISBN 3-447-04790-9. Preço: EUR 48,00.

178 Impulso, Piracicaba, 14(34): 171-178, 2003


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REVISTA IMPULSO

NORMAS PARA PUBLICAÇÃO


PRINCÍPIOS GERAIS
1. A Revista IMPULSO publica artigos de pesquisa e reflexão acadêmicas, estudos analíticos e
resenhas nas áreas de ciências sociais e humanas, e cultura em geral, dedicando parte do
espaço de cada edição a um tema principal, a partir das seguintes seções: “Temática”, apre-
sentando os artigos temáticos; “Conexões Gerais”, para ensaios não temáticos; “Comunica-
ções & Debates”, para textos curtos e fora dos padrões acadêmicos mais tradicionais; e
“Resenhas & Impressões”, para críticas, resenhas e comentários em geral.
2. Os artigos podem ser desenvolvidos através dos seguintes tipos de trabalho:
• ENSAIO (12 a 30 laudas) – reflexão a partir de pesquisa bibliográfica ou de campo sobre deter-
minado tema;
• COMUNICAÇÃO (10 a 18 laudas) – relato de pesquisa de campo, concluída ou em andamento;
• REVISÃO DE LITERATURA (8 a 12 laudas) – levantamento crítico de um tema, a partir da biblio-
grafia disponível;
• COMENTÁRIO (4 a 6 laudas) – nota sobre determinado tópico;
• RESENHA (2 a 4 laudas) – comentário crítico de livros e/ou trabalhos acadêmicos.
Obs.: cada lauda compreende 1.400 toques, incluindo-se os espaços entre palavras.
3. Os artigos devem ser inéditos, vedado o seu encaminhamento simultâneo a outras revistas.
4. Na análise para a aceitação de um artigo serão observados os seguintes critérios, sendo o(s)
autor(es) informado(s) do andamento do processo de seleção:
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• qualidade científica, atestada pela Comissão Editorial e por processo anônimo de avaliação por
pares (peer review), com consultores não remunerados, especialmente convidados, cujos
nomes são divulgados anualmente, como forma de reconhecimento;
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devidamente padronizado conforme estas Normas, para submissão à Comissão Editorial da
Revista e aos seus consultores, constando de uma delas os dados completos do(s) autor(es) e, das
outras duas, apenas o título da obra (sem identificação); fornecer também brevíssimo currículo
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pareceres, eles são analisados em outro encontro da Comissão, chegando-se a uma avaliação final:
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são fundamentadas tais decisões e devolvidos os originais com anotações dos pareceristas; (e) se
indicado para publicação “com ressalvas”, o artigo deve ser novamente submetido à Editora: os tre-
chos alterados devem ser realçados por cor ou sublinhados; essa nova versão será entregue em
papel (uma cópia) e em arquivo eletrônico, acompanhada do texto original apreciado pelos parece-
ristas; (f) eventuais ilustrações devem ser encaminhadas separadamente, em seus respectivos arqui-
vos eletrônicos em suas extensões originais; (g) antes da impressão, o(s) autor(es) recebe(m)
versão final do texto para análise.
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autoria), acompanhadas de ofício com:
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• informações sobre o(s) autor(es): titulação acadêmica, unidade e instituição em que atua,
endereço para correspondência, telefone fax e e-mail.
7. Uma vez aceito o artigo, cabe à revista a exclusividade em sua publicação.
8. Os artigos podem sofrer alterações editoriais não substanciais (reparagrafações, correções grama-
ticais, adequações estilísticas e editoriais).
9. Não há remuneração pelos trabalhos. O(s) autor(es) recebe(m) 1 (um) exemplar da revista e 10
(dez) separatas do seu artigo. Ele(s) pode(m) ainda adquirir exemplares da revista com desconto
de 30% sobre o preço de capa, bem como a quantidade que desejar(em) de separatas, a preço de
custo equivalente ao número de páginas e de cópias delas.
ESTRUTURA
10. Elementos do artigo (em folhas separadas):
a)IDENTIFICAÇÃO
• TÍTULO (e subtítulo, se for o caso), em português e inglês: conciso e indicando claramente o
conteúdo do texto;
• nome do(s) AUTOR(ES), titulação, área acadêmica em que atua e e-mail;
• SUBVENÇÃO: menção de apoio e financiamento eventualmente recebidos;
• AGRADECIMENTO, se absolutamente indispensável.
b)RESUMO E PALAVRAS-CHAVE
• Resumo indicativo e informativo, em português (intitulado RESUMO) e inglês (denominado
ABSTRACT), com cerca de 150 palavras cada um;
• para fins de indexação, o(s) autor(es) deve(m) indicar os termos-chave (mínimo de três e
máximo de seis) do artigo, em português (palavras-chave) e inglês (keywords).
c)TEXTO
• deve ter INTRODUÇÃO, DESENVOLVIMENTO e CONCLUSÃO. Cabe ao(s) autor(es) criar os
entretítulos para o seu trabalho. Esses entretítulos, em letras maiúsculas, não são numerados;
• no caso de RESENHAS, o texto deve conter todas as informações para a identificação do livro
comentado (autor; título; tradutor, se houver; edição, se não for a primeira; local, editora; ano;
total de páginas; e, se houver, título original e ISBN). No caso de trabalhos acadêmicos a serem
resenhados, segue-se o mesmo princípio, no que for aplicável, acrescido de informações sobre
a instituição na qual foi produzida.
d)ANEXOS
• Ilustrações (tabelas, gráficos, desenhos, mapas e fotografias).
e)DOCUMENTAÇÃO
NOTAS EXPLICATIVAS: serão dispostas no rodapé, remetidas por números sobrescritos no cor-
po do texto.1
CITAÇÃO com até três linhas: deve vir no bojo do parágrafo, destacada por aspas (sem itálico),
após as quais um número sobrescrito remeterá à nota de rodapé com as indicações do SOBRENOME
do autor, ano da publicação e página em que se encontra a citação.2
CITAÇÃO igual ou maior a quatro linhas: destacada em parágrafo próprio com recuo de qua-
tro centímetros da margem esquerda do texto (sem aspas) e separado dos parágrafos anterior e pos-
terior por uma linha a mais. Ao fim da citação, um número sobrescrito remeterá à nota de rodapé, in-
dicando o SOBRENOME do autor, ano da publicação e a página em que se encontra esta citação.3
Os demais complementos (nome completo do autor, nome da obra, cidade, editora, ano de
publicação etc.) constarão das REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS, ao fim de cada artigo, seguindo o pa-
drão abaixo.

1 Essa numeração será disposta após a pontuação, quando esta ocorrer, sem que se deixe espaço entre ela e o número sobrescrito da nota. Como o
empregado nas Referências Bibliográficas, nas notas de rodapé o SOBRENOME dos autores que tenham sido citados deve ser grafado em maiús-
cula, seguido do ano da publicação da obra correspondente a esta citação. Ex.: CASTRO, 1989.
2 FARACO; GIL, 1997, p. 74-75.
3 FARIA, 1996, p. 102.

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A lista de fontes (livros, artigos etc.) que compõe as Referências Bibliográficas deve aparecer
no fim do artigo, em ordem alfabética pelo sobrenome do autor e sem numeração, aplicando-se o se-
guinte padrão:

LIVROS
SOBRENOME, N.A. (pré-nomes do autor abreviados, sem espaçamento entre eles; até três autores: separar por
“;”, mais de três: registrar o primeiro deles seguido da expressão “et al.”). Título: subtítulo. Número da edi-
ção. Cidade: Editora, ano completo, volume. Ex.:
ROMANO, G.“Imagens da juventude”. In: LEVI, K. (org.). História dos Jovens. São Paulo: Atlas, 1996.
EHRLICH, E. [1913]. Grundlegung der Soziologie des Rechts. 4. ed. Berlim: Duncker & Humblot, 1989.
GARCIA, E.E.C. et al. Embalagens Plásticas: propriedades de barreira. Campinas: CETES/ITAL, 1984.
RAMOS-DE-OLIVEIRA, N.; ZUIN, A.A.S.; PUCCI, B. (orgs.) Teoria Crítica, Estética e Educação. Piracicaba/Campinas:
Editora Unimep/Editora Autores Associados, 2001.
• SOBRENOMES CUJA FORMA COMPOSTA É A MAIS CONHECIDA e SOBRENOMES ESPA-
NHÓIS. Ex.: MACHADO DE ASSI, J.M.; EÇA DE QUEIROZ, J.M.; GARCÍA MÁRQUEZ, G.; RO-
DRÍGUEZ LARA, J.
• MAIS DE UMA CITAÇÃO DE UM mesmo autor: após a primeira citação completa, introduzir
a nova obra da seguinte forma:
• ______. Empregabilidade e Educação. São Paulo: Educ, 1997.
• OBRAS sem autor definido:
• Manual Geral de Redação. Folha de S.Paulo, 2.ª ed. São Paulo, 1987.

PERIÓDICOS
NOME DO PERIÓDICO. Cidade: Órgão publicador. Entidade de apoio (se houver). Data. Ex.:
REFLEXÃO. Campinas: Instituto de Filosofia e Teologia. PUC, 1975.
• ARTIGOS DE revista:
AUTOR DO ARTIGO.4 “Título do artigo”.Título da revista (abreviado ou não), local de publicação, número do volume,
número do fascículo, páginas inicial-final, mês5* e ano.
ESPOSITO, I. et al. Repercussões da fadiga psíquica no trabalho e na empresa. Revista Brasileira de Saúde, São Paulo, v.
8, n. 32, p. 37-45, out.-dez./1979.
• ARTIGOS DE jornal:
AUTOR DO ARTIGO.* “Título do artigo”.Título do jornal, local de publicação, dia, mês** e ano. Número ou título do
caderno, seção ou suplemento e página inicial e final do artigo.
OLIVEIRA, W.P. de. Judô: educação física e moral. O Estado de Minas, Belo Horizonte, 17/mar./1981. Caderno de
esporte, p. 7.
• DISSERTAÇÕES E Teses
AUTOR. Título: subtítulo. Ano de apresentação. Número de folhas ou volumes. Categoria (Grau e área de
concentração). Instituição, local.
RODRIGUES, M. V. “Qualidade de vida no trabalho”. 1989. 180f. Dissertação (Mestrado em Administração). Facul-
dade de Ciências Econômicas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.

FONTES ELETRÔNICAS
A documentação de arquivos virtuais deve conter as seguintes informações, quando disponíveis:

4 * Em caso de autoria desconhecida, a entrada é feita pelo título do artigo, colocando-se a primeira palavra toda em caixa maiúsculo.
5 * Os meses devem ser abreviados de acordo com o idioma da publicação. Quando não houver seção, caderno ou parte, a paginação do artigo precede a data.

Impulso, Piracicaba, 14(34): 179-183, 2003 181


001922_Impulso_34.book Page 182 Wednesday, February 18, 2004 3:38 PM

• sobrenome e nome do autor;


• título completo do documento (entre aspas);
• título do trabalho no qual está inserido (em itálico);
• data (dia, mês e/ou ano) da disponibilização ou da última atualização;
• endereço eletrônico (URL) completo (entre parênteses angulares: < >);
• data de acesso.
Exemplos:
Site genérico
LANCASHIRE, I. Home page. 13/set./1998. <http://www.chass.utoronto.ca:8080/~ian/index.html>. Acesso em:
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Artigo de origem impressa
COSTA, F. Há 30 anos, o mergulho nas trevas do AI-5. O Globo, 6.12.98. <http://www.oglobo.com.br>. Acesso em:
6/dez./1998.
Dados/textos retirados de CD-rom
ENCICLOPÉDIA ENCARTA 99. São Paulo: Microsoft, 1999.Verbete“Abolicionistas”.CD-rom.
Artigo de origem eletrônica
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OITICICA FILHO, F. “Fotojornalismo, ilustração e retórica”. <http://www.transmidia.al.org.br/retoric.htm>. Acesso
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11. Os artigos devem ser escritos em português ou espanhol, podendo, contudo, a critério da Comis-
são Editorial, serem aceitos trabalhos escritos em outros idiomas.
12. Os trabalhos devem ser digitados no EDITOR DE TEXTO WORD, em espaço 1,5, corpo 12, em papel
branco, não transparente e de um lado só da folha, com páginas numeradas.
13. As ILUSTRAÇÕES (tabelas, gráficos, desenhos, mapas e fotografias) necessárias à compreensão do
texto devem ser numeradas seqüencialmente com algarismos arábicos e apresentadas de modo a
garantir uma boa qualidade de impressão. Precisam ter título conciso, grafados em letras minúscu-
las. (a) TABELAS: editadas em Word ou Excel, com formatação necessariamente de acordo com as
dimensões da revista. Devem vir inseridas nos pontos exatos de suas apresentações ao longo do
texto; não podem ser muito grandes e nem ter fios verticais para separar colunas; (b) FOTOGRA-
FIAS: com bom contraste e foco nítido, sendo fornecidas em arquivos em extensão “tif” ou “gif”;
(c) GRÁFICOS e DESENHOS: incluídos nos locais exatos do texto. No caso de aprovação para publi-
cação, essas ilustrações precisarão ser enviadas em separado, necessariamente em arquivos de
seus programas originais (p. ex., em Excel, CorelDraw, PhotoShop, PaintBrush etc.); (d) figuras,
gráficos e mapas, caso sejam enviados para digitalização, devem ser preparados em tinta nanquim
preta. As convenções precisam aparecer em sua área interna.

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