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Carta

aos
Romanos
de Karl Bart
por Koller Anders
Carta
aos
Romanos
de Karl Bart
por Koller Anders

Segundo a
Quinta Edição Alemã
(impressão de 1967)

1ª Parte
CAPÍTULOS DE I À VII

São Paulo
2008
Copyright Fonte Editorial Comércio de Livros Religiosos Ltda

5a Edição - 2008 - formato 14x21 cm - 854 páginas

Traduzido da 5a Edição Alemã de 1967 de título Original


“Der Römerbrief”

Capa Eduardo de Proença


Tradução Lindolfo Anders
Diagramação Alpha Design

ISBN: 85-86671-03-7
Proibida a reprodução total ou parcial desta obra, de qualquer forma
ou meio eletrônico e mecânico, inclusive através de processos
xerográficos,
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EXPLICAÇÕES PRELIMINARES

Querida Eline:

Você sugeriu que eu escrevesse alguma coisa, por exemplo, algo sobre
teologia. Eu respondi-lhe que não valeria a pena e expliquei porque.
Porém, assim como as palavras são frutos de pensamento, elas são se-
mentes de futuras ações e, quiçá, de novas idéias. E as suas palavras de filha
amiga, levaram-me a enfrentar a tarefa de registrar ruminações minhas sobre o
estudo da Epístola aos Romanos, de Karl Barth.
Por que a carta aos Romanos, e logo de Karl Barth?
Novamente o fruto das palavras: Você me disse que achava difícil “de-
glutir” Paulo; e Barth disse que ficou radioso quando descobriu o grande após-
tolo dos gentios na Epístola.
Preciso contar-lhe primeiramente como conheci Barth: foi nos idos quan-
do Jorge Cesar Mota era meu pastor; ele gostava de citar Barth em seus ser-
mões, e era grande a celeuma! E este seu pai, ingênuo ancião da Igreja, nem
sabia quem era o tal Barth.
Não me foi difícil descobrir que os outros também não sabiam. Alguns
nem lhe soletravam certo o nome e os outros diziam que era um ecumenista. Já
os doutores citavam passagens mas, inquiridos mais de perto — não para inves-
tigação mas para minha instrução — deixaram patente que falavam de oitiva
ou, quando muito, haviam lido comentários de segunda mão ou até da enésima.
Fui a Livraria Ederle — que é especializada em obras teológicas católi-
cas sem fechar as prateleiras a obras dos “Irmãos Separados”, e encontrei refe-
rências a Barth:
Uma brochura (talvez umas cinqüenta páginas) intitulada, se não me en-
gano, “CARTA A UM PASTOR DA ALEMANHA ORIENTAL”. Que adorável
bilhete como diria, talvez, Otoniel Mota. Pareceu-me tão penetrante, divinamente
inspirada e inspiradora, tão bíblica que, no meu entender, poderia ser o (67 livro
da Bíblia, a ser inserido entre a carta aos Hebreus e a epístola de Tiago...

1
Explicações Preliminares

(A propósito, não encontro o livrinho em minha estante; acaso o terei


emprestado a alguém que dele cuida melhor que eu?)
Depois foi o Catecismo de Heidelberg.
Depois, mandei vir a grande dogmática. São 12 alentados volumes (quatro
livros - 7731 págs.). Quantas revelações! O evangelho passou a ser de fato boa
nova, e não “disangelho”. Tornou-se, para mim, clara e cristã a doutrina da
predestinação; ficou irrelevante a teoria da evolução; racionalizou-se a explica-
ção da origem do mal.
A Bíblia lida e relida de capa a capa deixou muitas interrogações em
minha mente; não dúvidas que abalassem a fé, porque esta, a graça de Deus
supriu. Mas como compreender com o intelecto, que é também uma dádiva do
céu? — Foi aí que Barth se agigantou como mensageiro do Evangelho de Deus.
Inspirado, culto, corajoso, leal, fiel!
Ora, a primeira obra de Barth foi o seu comentário à Epístola aos Roma-
nos — “DER ROEMER BRIEF” — que levantou um mundo de admiradores e
detratores. Alguns o combatem e outros o enaltecem. (Li algures que os mais
eminentes pensadores católicos consideram Barth o Tomás de Aquino, protes-
tante). A revista Times de New York, em seu necrológio a Barth, o classificou
como o mais significativo pensador religioso do século. Outros há que, apoian-
do-o, o aviltam, do que o próprio Barth se queixava.
Quis conhecer sua primeira obra; encontrei-a em alemão e inglês e eis
que esta veio como 6ª edição, em 7ª impressão feita em 1965 e aquela como a
10ª impressão da “nova revisão”, datada de 1967.
Parecem dois livros diferentes, apenas com as mesmas idéias gerais.
Essa diferença verifica-se até nas traduções dos prefácios do Autor às várias
edições (1ª à 5ª). No meu entender falta à tradução inglesa o vigor da análise, a
explosão do argumento, a semântica quase onomatopaica das expressões ale-
mãs; em inglês, o livro ficou mais polido, mais diplomático, mais suave; desa-
pareceu a angulosidade germânica mas as estruturas ficaram menos encaixa-
das; os planos de apoio e as arestas de engaste foram convertidos em suaves
pontos de tangência e a muralha quase monolítica da estrutura original parece,
traduzida, estar em equilíbrio precário, sujeita a ruir se alguma força externa,
não prevista, a solicitar...
O próprio Barth talvez tenha tido uma impressão algo duvidosa da obra
traduzida, quando no prefácio à edição inglesa diz “... partly owing to my
insufficient familiarity with the English language”... “I have, unfortunately not
been able to go through the whole of the translation in detail. Sir Edwyn (o
tradutor senhor) has, however, led before me a fairly long section of his work
and, after comparing it with the original German I am persuaded that he has

2
Explicações Preliminares

performed his task with great skill. He has combined fidelity to the text with a
considerable freedom of presentation and that is surely the mark of a good
translator. Though a translation, however skillfully made, must be in some degree
a transformation of the original, yet I feel certain that those who think and
speak in English will have before them what I wished to say”.
E assim fica explicado porque não mandei a você simplesmente, a tra-
dução inglesa.
Barth publicou a lª edição em 1918; a 2ª edição, totalmente revista, saiu
em 1920. A terceira foi, praticamente, cópia da segunda e saiu a lume em 1922.
O mesmo aconteceu com a 4ª edição (1924) mas no seu prefácio dessa edição
o Autor confessa que muita coisa deveria ser re-escrita e pontos obscuros deve-
riam ser esclarecidos; “mas não vejo, ainda, como resolver essas passagens
mais difíceis, por isso, mais uma vez, preciso mandar o livro sem modificá-lo”.
Finalmente, em 1926, saiu a 5ª edição, revista, que foi repetida pela 6ª e
última em 1928, todavia com reimpressões posteriores.
Para melhor caracterizar o Autor vou tentar traduzir os seus prefácios à 1ª
, 5ª e 6ª, edições, esta última da versão inglesa. Dos outros prefácios, para com-
preender melhor o Autor, valeria a pena ler o da 2ª edição, onde Barth explica aos
leitores porque refundiu totalmente a primeira edição e, em seguida, entra em
acres e irônicas críticas de caráter polêmico com os adversários e até com os que
lhe batem palmas. Revela-se um pugnador agressivo em plena exuberância; tinha
então 35 anos; diz que ele é um teólogo, escrevendo para teólogos...
Eu disse mais atrás que “tentaria” traduzir.
E por que somente TENTAR? Em primeiro lugar por que não sou teólo-
go; nunca fui nem pretendo vir a ser! Em segundo lugar porque o original é em
alemão; e em terceiro porque Barth é quase intraduzível. Faz jogos de palavras
e de idéias que não teriam sentido em português e cria expressões simples com
significados sutis que exigem circunlóquios extensos para serem explicados.
Como traduzir, por exemplo, “das Da-sem und Wie-sein”, ou então, como atri-
buir significação precisa, correta, ao título que o Autor dá à exegese de todo o
capitulo XIV e metade do capítulo XV, da Epístola: “Die Krisis des freien
Lebensversuchs”?
O prefácio da tradução inglesa aponta algumas das dificuldades típicas
encontradas por aquele “colegiado de tradutores” que, além de sua natural com-
petência, contava com a possibilidade de recorrer diretamente ao Autor, sem-
pre que tivesse dúvidas. Isto é, por si só, bastante para confirmar que sequer
poderia pretender apresentar uma tradução.
Todavia, o que você vai ler é a expressão mais fiel do que entendi; onde
me pareceu que a exposição talvez ficasse mais compreensível com observa-

3
Explicações Preliminares

ções adicionais, eu as acrescentei colocando-as entre colchetes, ou sob a forma


de comentários no começo e fim das diferentes seções.
Ainda algumas observações:
1. Barth cita, por vezes, trechos em latim e grego. Transcreverei as ex-
pressões e trechos em latim; omitirei o grego fazendo, porém, as referências
que forem cabíveis.
2. Para as passagens bíblicas Barth usa sua própria tradução, junto com
a “Bíblia de Lutero”. O Autor usa nas suas citações as palavras que lhe parecem
mais adequadas ao sentido original e, não raro, constrói a sua exposição sobre
elas. Por isso procurarei traduzi-las o mais fielmente que me for possível ainda
que os versículos se tornem um pouco estranhos aos ouvidos habituados com a
tradução de Almeida.
3. Nas referências a passagens sem citação expressa, por extenso, com-
pletarei o texto repetindo a passagem, neste caso usando a tradução de Almeida,
revista e atualizada pela Sociedade Bíblica do Brasil em 1959 (antes das ver-
sões modernas ecumênicas...).
Mãos à obra, pois! Vamos à tradução dos prefácios referidos.

Maio,1977

4
PREFÁCIO - KARL BARTH E SUA “CARTA”

Dentre os livros que compõem a Bíblia, a Carta de Paulo aos Romanos é


singular por ter sido, em toda a história das idéias cristãs, mas de forma ainda
mais enfática na história do protestantismo, um constante veículo de reavaliação
teológica. Como exemplo, basta lembrar a importância que teve o estudo da refe-
rida carta no processo de transformação do pensamento de Lutero. A ênfase dada
à chamada teologia paulina na teologia protestante foi tanta que alguns teólogos
humoristas chegaram a sugerir que, enquanto a teologia católica romana funda-
menta-se nos evangelhos, a teologia protestante fundamenta-se no corpus paulino.
De fato, os teólogos protestantes acabaram por produzir uma riquíssima seqüên-
cia de volumes de comentários à referida carta.1 Alguns poderiam até indagar a
razão desta obsessão, que na verdade não se limita à Carta aos Romanos, mas
acaba por caracterizar o output regular da teologia exegética como um todo. Como
sugere Eugene Peterson, há cristãos que amam e curtem a Bíblia como os
aficcionados por futebol. Assim como estes podem discutir acaloradamente por
horas um único lance de uma antiga partida, os amantes da Bíblia podem sentar
por horas a fio conversando, lendo e pensando a respeito de um único versículo.
Assim como os amantes do futebol não se cansam de analisar o lance sob todas as
perspectivas, e querem saber as opiniões de todos os especialistas, os aficcionados
pela Bíblia têm o desejo de analisar um texto bíblico sob todas as perspectivas, e
querem saber a opinião dos melhores especialistas.2
Entretanto, a Carta aos Romanos (Rdnzerbrief; 1919; 2ª ed. 1922) de
Karl Barth não é somente “mais um comentário”. Trata-se de um dos mais
influentes livros de teologia do século XX, o título que marca uma ruptura com

1
Veja, além dos comentários de Barth e Lutero, os de João Calvino, J. A. Bengel, Charles
Hodge, Robert Haldane, D. G. Barnhouse, C. H. Dodd, E. Kaseman, M.Lloyd-Jones,
C. E. B. Cranfield, Douglas Moo, entre outros que marcaram e/ou têm tido uma longa
influência de determinados círculos.
2
Cf. Eugene F. Peterson, Take and Read (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1996), 79.

5
Prefácio - Karl Barth e sua “Carta”

a teologia oitocentista antecedente e o princípio de uma nova fase na história da


teologia protestante. Curiosamente, foi a 2ª edição da obra que causou maior
impacto. Ao ser publicada, causou espanto e indignação devido ao tratamento
duro e crítico que dá às convicções liberais dominantes. O teólogo católico
Karl Adam afirmou que a publicação do livro “foi como uma bomba lançada
no playground dos teólogos”.3
Quando escreveu o Romerbrief pela primeira vez (ca. 1916-19), Barth
era meramente o pastor socialista da igreja de uma pequena cidade Suíça,
Safenwil. A primeira edição do Romerbrief dava claro testemunho do marxis-
mo entusiasmado do jovem Barth.4 Da quieta Safenwil Barth acompanhou a 1ª
grande guerra, e assistiu horrorizado seus antigos professores apoiarem a polí-
tica bélica do governo alemão.5 Barth percebeu a fragilidade e a inadequação
de suas otimistas convicções liberais ensinadas por estes mesmos professores,
bem como a esterilidade de seus próprios sermões baseados nesta escola de
pensamento. Barth já não conseguia mais aceitar aspectos essenciais da exegese,
da antropologia, da ética e da filosofia da história liberais. Junto com Eduard
Thurneysen, inseparável amigo, Barth passou a buscar uma nova teologia, ini-
ciando um movimento ad fontes, voltando-se primeiramente para o estudo dos
reformadores e da Escritura, e sendo simultaneamente influenciado por pensa-
dores de vanguarda do seu tempo como, por exemplo, Soren Kierkegaard (1813
- 1855), cuja obra estava sendo publicada em alemão nesta época,6 Albert

3
Cf. Clifford Green, “Karl Barth’s Life and Theology” em Karl Barth: Theologian of
Freedom, ed. Clifford Green (Minneapolis, MN: Fortress Press, 1991), 16.
4
Barth afirma, por exemplo, que um tempo virá em que “os dogmas marxistas agora em
decadência irão se reavivar como verdades, no tempo em que a igreja socialista se
levantará em um mundo tornado socialista”. A frase foi eliminada pelo próprio Barth
das edições subseqüentes. Veja o comentário de Eberhard Jüngel sobre essa frase em
Karl Barih:
A Theological Legacy (Philadelphia, PA: Westminster, 1986), 96ss. No tempo em
que trabalhou como pastor em Safenwil, Barth foi responsável pela organização de três
sindicatos de trabalhadores e dava palestras sobre direitos trabalhistas. Minha opinião
é, no entanto, que o Rõmerbrief demonstra que Barth já percebia, naqueles tempos da
revolução russa, os inevitáveis futuros descaminhos do marxismo.
5
O documento em questão ficou conhecido como o “manifesto dos intelectuais ale-
mães” e foi assinado por vários professores de Barth, como Adolf von Harnack, Wilhelm
Herrmann, Hermann Gunkel e até mesmo Adolf Schlatter.
6
É importante notar que o próprio Barth afirmou posteriormente ter-se distanciado cada
vez mais de Kïerkegaard. Cf. Karl Barth, “A Thank You and a Bow: Kierkegaard’s
Reveilie” in Canadian Journal of Theology XI (1965), 4ss.; e Karl Barth. “Kierkegaard
and the Theologians” in Canadian Journal of Theology, XIII (1967), 64-65.

6
Prefácio - Karl Barth e sua “Carta”

Schweitzer (XX)7 e sua ferrenha crítica à busca do Jesus Histórico(Von Reimarus


zur Vrede; 190?) empreendida pelos teólogos do século XIX8 e Rudolf Otto
(1869-1937), autor do célebre O Sagrado (Das Heilige; 1917). Destes autores
Barth assimilou idéias importantes, como a impossibilidade de dissociar a men-
sagem do Novo Testamento de seus aspectos escatológicos, transcendentes e
sobrenaturais, a infinita diferença qualitativa entre Deus e a criação, a absoluta
alteridade divina e a inevitável confrontação inerente ao encontro entre Deus e
o ser humano.
A 2ª edição do Romerbrief é o documento histórico que marca o início
desta nova teologia a que Barth chegou. Ela foi apelidada de “teologia da cri-
se”, em parte por causa da crise sócio-econômica e cultural, fruto da guerra,
que punha um fim no otimismo romântico do progressismo oitocentista, e em
parte porque Barth insistia em falar na Palavra de Deus como juízo (gr. Krinein)
divino contra toda tentativa humana de atingir algum sucesso espiritual por
suas próprias forças (como, por exemplo, a instauração do Reino de Deus por
meio de atos sócio-políticos). Genialmente, Barth percebeu e comunicou aos
leitores estupefatos que toda e qualquer religião ou religiosidade é trabalho
humano, o mais anti-divino de todas as obras humanas: o esforço para atingir a
auto-justificação. A teologia gerada pela pena de Barth foi também apelidada
de “teologia dialética” justamente por negar qualquer continuidade ou ponto-
de-contato (Anknüpfungspunkt) entre Deus e a criação, entre o evangelho e a
cultura humana. Qualquer possível contato teria de ser uma iniciativa exclusiva
de Deus. Desta forma, Barth rejeitava todos os diferentes pontos-de-contato
sugeridos pelas correntes teológicas pós-iluministas: o senso moral humano,
auto-consciência do espírito, o sentimento humano de dependência absoluta de
Deus, a racionalidade humana e a civilização, tanto quanto pontos-de-contato
católico-romanos e mais conservadores como piedade e espiritualidade ou con-
fiança e participação na igreja institucional.
Karl Barth (1886 - 1968) foi, por isso mesmo, o mais importante teólo-
go do século XX, a mais importante figura na teologia desde Friedrich
Schleiermacher (1768 -1834), teólogo que Barth procurou superar mas a quem,

7
Sobre Schweitzer veja, por exemplo, Charles R. Joy, “A Modern Man’s Quest for the
HoIy Graal” in Albert Schwitzer: An Anrhology, ed. Charles R. Joy (New York, NY:
Harper & Brothers, 1947), xix-xxviii; e Frederick Franck, Days with Albert Schweitzer
(New York, NY: Henry Holt & Co., 1959).
8
Sobre a busca do Jesus histórico, confira, por exemplo, Harvey K. McArthur, In Search
of the Historical Jesus (New York, NY: Clarles Scribner’s Sons. 1969); e Ben
Witherington III, The Jesus Quest (Downers Grove, IL: Intervarsity Press, 1995).

7
Prefácio - Karl Barth e sua “Carta”

no entanto, permaneceu conectado por diversas razões, e possivelmente a mais


importante figura na história da teologia desde João Calvino. Barth, bem como
seus colegas de movimento e seus discípulos, buscaram superar o imanentismo,
o experiencialismo, o moralismo, o humanismo e o religionismo que conside-
ravam características do pensamento teológico dominante do século XIX que
Barth acusou de ternos provido com uma teologia do homem em vez de uma
teologia de Deus. É preciso que o leitor mantenha em mente que a Carta aos
Romanos representa a primeira fase da vasta obra de Barth. Sendo assim, este
livro representa o pensamento ainda não completamente amadurecido do teó-
logo da Basiléia (agora professor em Gottingen e depois em Munster). Não é
justo, portanto, fazer uma avaliação da teologia de Barth somente a partir desta
obra. E preciso conhecer suas outras obras, notadamente a Dogmática Eclesi-
ástica (Kirchliche Dogmatik; 1932 - 68), obra de proporções colossais deixada
inconclusa após doze tornos.
É preciso compreender, enfim, que Karl Barth expressou-se diferente-
mente em diferentes épocas. Nota-se nesta segunda fase do pensamento de
Barth exemplificada pelo Romerbrief (considerando-se heuristicamente que a
primeira fase, a fase liberal-socialista, teve fim com o Romerbrief) que Barth
ainda está bastante dependente de outros autores que o antecederam e outros
seus contemporâneos. Nesta segunda fase nota-se um caminhar paulatino em
direção a uma teologia Heideggeriana, à semelhança do que aconteceu com seu
colega de movimento, Rudolf Bultmann (1884 - 1976), também influenciado
pela filosofia do grande Martin Heidegger (1889 - 1976). A teologia desta fase
culminou com a publicação da Dogmática Cristã (Christliche Dogmatik; 1927),
obra incompleta, abandonada por Barth quando este percebeu, em seguida, que
esta não era a direção que deveria seguir. A produção e publicação subseqüente
da obra Anselmo: Fides Quaerens Intellectum (1931) marca o início de uma
nova fase, a terceira, no pensamento de Barth. Agora Barth propõe-se a abando-
nar quaisquer influências filosóficas, condena o racionalismo e a dependência
filosófica da teologia que o antecedeu (bem como da sua segunda fase), e sugere
que a razão deve estar a serviço da fé e a fé acima da razão. Para Barth, a
teologia não tem que se justificar por meio de critérios não-teológicos, pois
possui sua própria lógica e coerência interna. Barth recusa-se a aceitar qual-
quer estrutura, fundamento ou aparato conceptual que se sobreponha à forma e
à linguagem do evangelho de Jesus Cristo. Desta forma, Barth foi-se distanciando
dos seus aliados, notadamente de Bultmann que aos poucos dava origem a uma
teologia existencialista. Barth descarta a chamada teologia natural e passa a
afirmar o conhecimento positivo de Deus a partir da auto-revelação de Deus em
Jesus Cristo, conforme nos atestam as Escrituras. Foi nesta época que Barth

8
Prefácio - Karl Barth e sua “Carta”

entra em firme divergência com Emil Brunner. Esta terceira fase do pensamento
barthiano foi marcada também pelo confronto com o nazismo que levaria Barth
a perder sua cátedra e a ser expulso da Alemanha em 1935, e a fixar-se para o
resto de seus dias em Basiléia, sua cidade natal. Barth opôs-se à neutralidade
suíça e deu seu apoio às forças aliadas. Acima de tudo, Barth opunha-se à associa-
ção do Fuhrer, do destino glorioso da Alemanha e da raça e da cultura teutônicas
com os propósitos e a revelação divinas. Em Basiléia, após o término da 2ª
grande guerra, teve início a quarta e mais importante fase da teologia de Barth.
E nesta época que Barth escreveu a maior parte da Dogmática Eclesiástica,
além de vários títulos menores de grande popularidade. À medida em que tra-
balhava nesta sua obra-prima, a Dogmática Eclesiástica, Barth acentuava de
modo implícito a descontinuidade de sua produção com seu trabalho da segunda
fase, da teologia da crise, da Carta aos Romanos. Muitos críticos têm sugerido
que o tipo de teologia que Barth desenvolveu na Eclesiástica não é consistente
com a Carta aos Romanos e sua insistência na absoluta alteridade divina, e não
teria sido legitimada pelo autor do Rõmerbrief. Barth, todavia, nunca aceitou
que tivesse havido uma total ruptura em seu pensamento, e via a Eclesiástica
em grande parte como o desenvolvimento natural da teologia apresentada no
Romerbrief em que o único ponto-de-contato entre o Criador e suas criaturas é
Jesus Cristo. Percebe-se que a intenção de Barth passou a ser um trabalho de
reconstrução da tradição protestante reformada conservadora, um empreendi-
mento que recebeu o epíteto de “neo-ortodoxia”, ainda que o termo tenha sido
sempre rechaçado pelo próprio Barth. É possível destacar ainda uma quinta e
última fase do pensamento barthiano, fase esta que marca o final da caminhada
progressiva de Barth em direção de uma posição cada vez mais evangelical e
que teve início após sua aposentadoria, tempo em que viajou a diversos países,
inclusive os Estados Unidos, aumentando consideravelmente sua influência nos
círculos teológicos mais conservadores, precisamente quando sua influência
nos círculos mais progressistas e neo-liberais gradualmente desaparecia.
Evidentemente, muitas idéias barthianas são ambíguas e questionáveis.
Como acontece com toda mente genial, Barth cometeu alguns excessos e deu-
se o direito de fomentar algumas “heresias”. Ainda que alguns se esforcem,
parece-me quase impossível duvidar, por exemplo, do universalismo de Barth.9

9
O universalismo de Barth não se restringe ao aspecto soteriológico, isto é, a rejeição do
chamado “terceiro ponto” do calvinismo do século XVII e a adoção da doutrina
arminiana correlata, mas abrange o aspecto escatológico, trazendo Barth para a com-
panhia de muitos liberais e de defensores da apocatástase sugerida por Orígenes (ca.
185-254) ainda no terceiro século da era cristã.

9
Prefácio - Karl Barth e sua “Carta”

Ao restringir todo possível conhecimento de Deus à sua auto-revelação em


Jesus Cristo, Barth parece ter rejeitado qualquer forma de revelação geral de
Deus, mesmo uma que se limitasse a servir de justificativa para a condenação
da humanidade por Deus. As palavras de Barth sobre Rm 1:1 8ss no Romerbrief
já davam alguma evidência disso. Alguns vêem na doutrina barthiana da elei-
ção, que centra na pessoa de Jesus Cristo tanto a rejeição quanto a eleição
divinas, mais uma indicação desse universalismo. Além disso, sugere-se com
freqüência que a rejeição da teologia natural em Barth aponta para uma forma
de fideísmo. Outras acusações ao pensamento de Barth têm sido feitas e torna-
ram-se populares, por exemplo, que o trinitarianismo de Barth é de caráter
modalista (o Revelador, a Revelação, e a Revelacionalidade), apesar de Barth
explicitamente condenar o modalismo e afirmar a distinção irredutível entre
Pai, Filho e Espírito Santo na Dogmática Eclesiástica. Diz-se também que sua
arquitetura triádica da Palavra de Deus (Jesus Cristo, o Logos Theou; a Escritu-
ra, a Palavra de Deus escrita; e o Evangelho proclamado pela igreja, a Palavra
de Deus pregada) implica em uma atitude de menosprezo para com a Bíblia,
que a aceitação do método histórico-crítico sugere a rejeição da doutrina da
inspiração e da infalibilidade da Bíblia (ainda que Barth, em toda a Dogmática
Eclesiástica, trate a Bíblia como verbalmente inspirada e doutrinariamente in-
falível, e tenha insistido que a utilização do método histórico-crítico não impli-
ca necessariamente na rejeição das doutrinas da inspiração e infalibilidade da
Bíblia). Muitas das posições polêmicas de Barth podem ser explicadas, sugere
G. C. Berkouwer (n. l903),10 por seu insistente cristocentrismo (que para al-
guns chega a ser um cristomonismo) e pela arquitetura trinitariana (para al-
guns, forçada) que Barth imprime nas suas exposições doutrinárias. Nem por
isso deixou Berkouwer de sugerir que o absoluto triunfo da graça na teologia
de Karl Barth torna vaga a seriedade da decisão humana na mesma medida em
que o kerygma corre o risco de tornar-se um mero aviso feito pela igreja ao
mundo, despido da admoestação vital de reconciliação com Deus e vida em
santidade que sempre o caracterizou.
A esta altura já está claro ao leitor que este prefácio não visa dar-lhe
uma síntese do pensamento de Barth,11 nem visa oferecer extenso tratamento

10
G C. Berkouwer é um dos mais influentes teólogos reformados do século XX. Profes-
sor da Free University de Amsterdam, Berkouwer produziu uma coleção de estudos
dogmáticos de 18 volumes. Além de ocupar-se com outros temas, era também um
especialista em Karl Barth, sobre quem escreveu três livros, dois deles tendo-se torna-
do clássicos dos estudos barthianos, a saber, Karl Barth (1936) e The Triumph of Grace
in the Theology of Karl Barth (1954).

10
Prefácio - Karl Barth e sua “Carta”

biográfico,12 nem avaliação crítica demorada, O objetivo deste texto é tão so-
mente estimular o leitor ao estudo da obra que tem agora em suas mãos, mos-
trando a sua importância na história da teologia, apontando para as controvér-
sias que o livro gerou e continua gerando, bem como para o caráter singular e a
importância de seu autor para o estudo teológico. Para o leitor ávido de mais
informações sobre Karl Barth, recomendamos que aguarde os futuros lança-
mentos desta editora, pois entre eles serão oferecidas obras críticas sobre o
sistemata do amor livre divino, bem como outros títulos do teólogo da Basiléia.

Ricardo Quadros Gouvêa

11
Para este fim, sugiro a leitura de David Mueller, Karl Barth (Peabody, MA: Hendrickson,
1972); ou Colin Brown, Karl Barth and the Cristian Message (Chicago, IL: Intervarsity
Press, 1969); ou ainda Hans Urs von Balthazar, The Theology of Karl Barth, trans.
John Drury (New York, NY: Holt, Rinehart and Winston, 1971)
12
A melhor biografia de Karl Barth é a de Eberhard Busch, Karl Barth: His Life from
Letters and Autobiographical Texts, trans. John Bowden (Grand Rapids, MI: Eerdmans,
1994).

11
PREFÁCIO DO AUTOR À 1ª EDIÇÃO

Paulo falou aos seus contemporâneos como filho de sua época. Porém,
a verdade muito mais importante é que como profeta e apóstolo do reino de
Deus, ele fala a todos os homens de todos os tempos.
As diferenças entre outrora e hoje, lá e aqui, devem ser observadas com
o único objetivo de constatar que essas diferenças não têm o mínimo significa-
do na essência das coisas. O método histórico-crítico aplicado ao estudo da
Bíblia, prepara a mente o que é sempre útil; porém, se eu fora constrangido a
optar entre esse método e a arcaica doutrina da inspiração eu, decididamente,
escolheria por esta, pois ela é, de direito, maior, mais profunda e mais impor-
tante; porque a inspiração visa ao próprio processo do entendimento sem o que
toda e qualquer estruturação do raciocínio se torna vã.
Sinto-me feliz por não precisar escolher entre essas duas formas. No
entanto apliquei toda a minha atenção para observar os fatos através da histó-
ria, no espírito da Bíblia, que é o Espírito Eterno.
O que outrora foi sério, ainda hoje o é. E o que modernamente é sério e
não mero acaso ou extravagância, está, também, diretamente integrado com o
que, em tempos remotos, foi importante.
Nossas perguntas, se é que nos entendemos bem, são as perguntas de
Paulo e, as suas respostas — se a sua luz nos brilhar, são as nossas respostas.

“Sim, a verdade, de há muito, se achou;


Espíritos nobres ela agasalhou.
A antiga verdade. Segure-a”.

A compreensão da história é um diálogo continuado entre a sabedoria


de ontem e a de amanhã e que é sempre a única e a mesma. Respeitoso e grato,
lembro-me aqui do meu pai — professor Fritz Barth, que foi sempre expressão
viva dessa maneira de ver. É certo que todos que sofriam fome e sede de justiça
nos tempos sequiosos de Paulo colocaram-se objetivamente a seu lado, e não

13
Prefácio do Autor à 1ª Edição

ficaram à distância, meros espectadores. Talvez estejamos entrando em tempos


igualmente estéreis. Se eu não estiver enganado, então é possível que já agora
possa este livro prestar o seu modesto serviço. Há de se sentir, ao lê-lo, que ele
foi escrito com o júbilo de descobridor. A poderosa voz de Paulo foi novidade
para mim e quer parecer-me que ela também o será para outros.
Porém, ao chegar ao fim da obra ficou claro para mim que muito resta
por dizer e por descobrir. Portanto, trata-se de trabalho iniciador que pede a
cooperação de outros. Oxalá muitos, melhor preparados, se apresentem para
também cavarem poços.
Mas, se acaso me engano na jucunda esperança do surgimento de movi-
mento intenso e geral de indagação e pesquisa da mensagem bíblica, então este
livro tem tempo para esperar.
A própria Epístola aos Romanos, espera!

Safenwil, agosto, 1918

14
PREFÁCIO DO AUTOR À 5ª EDIÇÃO

O continuado sucesso do livro, tanto do ponto de vista literário quanto


às idéias expostas, dá-me o que pensar, como autor, e pareceu-me que seria útil
ao leitor colocá-lo a par das minhas ponderações.
Vejo-me postado entre duas questões:

Teria eu, ao escrever o livro, dito tanto a ponto de fazer arder as ore-
lhas das gentes? Ou teria eu dito aquilo que depois da guerra e especial-
mente na Alemanha estava, por assim dizer, no ar, e que foi agradável a
certos senhores do mundo de nossos dias, para que eu fosse castigado, a
ponto de ser erigido em moda bastante em voga e, ainda mais, fosse puni-
do com o surgimento de um verdadeiro “Barthianismo” qual o
“Ritchlianismo” no tempo de Bismark? Parece até que tudo o que escrevi
contra a presunção humana — e por demais humana — sobretudo sobre a
vanglória religiosa, sua causa, sua roupagem, seu efeito, aplica-se agora a
mim mesmo, quando na realidade, ao escrever o livro, tencionei nadar
contra a correnteza; bater contra portas cerradas; não fazer favor a quem
quer que fosse, ou a muito poucos. Será que me enganei? Quem conhece
os seus contemporâneos e quem conhece bem a si mesmo? Não é para
ficar ressabiado ao ver quais os livros teológicos que têm, junto com o
nosso, repercussão semelhante? Acaso me equivoquei a respeito do mun-
do e de mim mesmo, tendo sido o servo do público como mau teólogo,
NOLENS VOLENS e engana-se porventura o leitor amigo que toma por
espiritual aquilo que para Paulo, Lutero e Calvino seria apenas um produ-
to dos tempos e para Nietzsche, Kirkegaard e Cohen, seria apenas
decocção? Se este for o caso, não me resta senão reconhecer o juízo que
de mim se faz pelo próprio sucesso da obra, que é de conhecimento públi-
co. E por que não seria esta a interpretação verdadeira?
Mas se não for assim, então nem eu nem o livro a merecemos.

15
Prefácio do Autor à 5ª Edição

No prefácio à primeira edição eu escrevi que este livro poderia espe-


rar e isto me foi atribuído por vanglória; então agora, talvez, tire-se vin-
gança dessa prosápia no fato de que o livro, cm contraste com muitos
outros melhores, não precisou esperar antes foi julgado com os aplausos
que lhe foram dados junto com outros, (o que também é vaidade).
No mundo toda a carne é como a erva; esta é uma verdade mais
evidente nos sucessos estrondosos que nos casos de relativo insucesso.

Aí ficou exposta a primeira questão do meu dilema e eu bem gostaria que


meus leitores mais generosos, juntamente comigo, tomassem consciência dela e
participassem de sua carga; quando mais não seja, para que eles, como também
eu, não se admirem se, algum dia, ficar evidente que a erva murchou e a flor caiu.
A segunda questão é ainda mais séria.

Poderia dar-se o caso de que todas as objeções levantadas na primei-


ra questão fossem procedentes e ainda assim, a despeito de todos os
erros e vaidades do mundo que lhe fossem inerentes, por força de
JUSTIFICATIO FORENSIS, o livro, pelo que nele foi visto e dito (por
mim e simultaneamente de forma diferente por outros, independente-
mente), tivesse trazido à luz algo que a teologia e a Igreja de nosso
tempo precisassem ouvir e por que devessem orientar-se, o que de fato
aconteceu amplamente. Em que posição fico, então? E comigo, outra
vez, como fica o leitor amigo? Ou que hei de dizer se acaso agora, sem
mim e até contra mim houver surgido algo de verdadeiro, justo, neces-
sário por cujo avanço, aprofundamento e efetivação sou tido como res-
ponsável segundo (para minha consternação, confesso) parece ser o caso?
Quando escrevi o livro, na longínqua paz da minha casa paroquial
no rincão do Aar, estava animado apenas das intenções de todo escritor
zeloso: apresentar um trabalho correto e de valor; não tinha idéia de que
a coisa fosse tão longe; que a voz do Apóstolo Paulo, como a ouvi, fosse
levantar tão grande eco; que, com este livro, eu fosse dar a tanta gente
séria o direito de me apertar no canto com suas perguntas pelas implica-
ções, conseqüências, aplicações e até pela simples reiteração do que
aqui foi exposto à luz.
Como se, para isto, fora eu o homem! O almirante Tirpitz escreve
em suas memórias que é fácil içar uma bandeirinha no topo de um mas-
tro mas difícil é mantê-la depois com honra. Eu juntaria: é ainda mais
difícil mantê-la honrada no alto da haste — mesmo que não se cogite de
trazê-la para baixo.

16
Prefácio do Autor à 5ª Edição

Este é o meu caso; muitas vezes, quando volto a me compenetrar


que tendo escrito o livro, preciso elaborá-lo mais, chego a pensar que
talvez fosse melhor que nunca o tivesse escrito, especialmente agora
quando, da noite para o dia, o livro me trouxe, mal armado que estou, a
responsabilidade da cátedra universitária onde é muito concreto o desa-
fio diário de levar o arado cuidadosamente para frente, mas onde, tam-
bém, de dia para dia, e de forma igualmente concreta, é nos lembrado
quão infinitamente pesado é arar sozinho para cultivar no campo do
ensino cristão a necessária amarga “inovação”.
Se for lícito ver o “sucesso” da minha “Carta aos Romanos” deste lado
mais favorável e se apesar de tudo quanto, com razão, se disser contra o
livro, o êxito significar que uma brecha, ainda que muito modesta, foi aberta
na muralha da aflição interna e externa do protestantismo moderno, quão
vergonhoso e opressivo é para mim e para meu leitor, especialmente o leitor
amigo, compreensivo, companheiro, que não sejamos, neste instante, gente
completamente diferente para dizer e agir conforme agora deveria ser dito e
feito, com golpe contra golpe, para fazer jus à necessidade e à esperança da
Igreja, a menos que tudo tenha sido uma Fata Morgana.

Acabo de ler os versos que um pároco de Hessen — a quem não conhe-


ço — dedicou a mim: (Igreja e Mundo, janeiro 1926)

“Deus precisa de homens, — não gente


com frases altissonantes
mas cães, bons farejantes,
que farejem no presente
o odor da eternidade,
que inda que muito escondida,
seja caçada, seguida,
sem cansaço, à saciedade!”

Sim, Deus precisa ...! E um tal DOMINI CANIS gostaria de ser; oxalá
pudesse eu conquistar para a “ordem” todos os meus leitores! Crítica mais perfeita
do que esta não posso imaginar para meus livros. Mas também nenhuma outra mais
crítica! Pois quem pode acrescentar um côvado à sua estatura? E assim, também
visto deste lado, o “sucesso” é de fato um julgamento ao qual estamos sujeitos.
É preciso ter em mente esses dois significados da problemática realida-
de. Eu desejo que justamente o meu leitor perceba comigo o rigor e a bondade
que nos levam, juntos, a considerar que temos um Senhor.

17
Prefácio do Autor à 5ª Edição

Para aqueles que não querem deixar de ser a Igreja Militante do século
20, não será possível contornar qualquer ameaça ou aflição semelhante à que
pesou sobre os cristãos protestantes e teólogos do século 16. Quanto a mim, é
bastante lembrar-me da dialética do conceito de “sucesso” para sentir uma for-
ma dessa aflição. MONITI DISCAMUS!
Era o que eu queria dizer antes de soltar o livro desta vez.

Munster, Westphalia
fevereiro, 1926

18
PREFÁCIO DO AUTOR À 6ª EDIÇÃO
(Traduzido da versão inglesa)

Os dois anos e meio que transcorreram desde a publicação da 5ª edição


deste livro, aumentaram a distância que me separa do que escrevi originalmen-
te. Não que ao expor as Epístolas Paulinas, ou qualquer outra parte da Escritura
Sagrada eu quisesse agora dizer algo diferente do que escrevi então. Eu ainda
reteria o que então causou um trauma tão severo. Enquanto ainda não for reco-
nhecido que a ofensa precisava ser feita e que era justificável, ou enquanto eu
não estiver convencido de que errei, não vejo razão para deixar de ofender e,
neste caso, porque não hei de fazê-lo na forma original?
Todavia não quero que o livro seja publicado mais uma vez sem dizer
que se eu tivesse que expor novamente a Epístola e estivesse eu resolvido a
fazer a mesma coisa, eu haveria de expressá-la de forma bem diferente. Eu
descobri no decorrer do tempo, que existe em Paulo, de um lado, muito maior
variedade e de outro muito maior monotonia do que lhe atribuí então. Por
isso muito teria que ser drasticamente reduzido e muito teria que ser expandi-
do. Muito teria que ser dito com mais cuidado e mais reserva; contudo, muito
deveria ser expresso com maior clareza e maior ênfase. Grande parte da
estruturação do livro se deveu à minha situação particular e também à situa-
ção geral da época. Isto teria que ser removido. Por outro lado, muitos mean-
dros da Epístola, que então eu não notara, deveriam ser trazidos à luz. Os que
lerem o livro devem lembrar-se também do fato simples que hoje estou sete
anos mais velho, e todos nossos cadernos de exercício precisam, obviamente,
ser corrigidos.
Ainda mais; depois que saiu a 5ª edição embarquei na publicação dos
meus “Prolegomena da Dogmática Cristã”. Isto significa que se aliviou a res-
ponsabilidade que pesava sobre o primeiro livro e também que uma crítica
séria do primeiro deve ter em conta o que está dito no segundo, um livro mais
completo, ao qual tentei dar um tratamento mais amplo e maior precisão.
Semelhantemente, aqueles que tendo lido o primeiro livro, ainda tenham
confiança em mim, se desejarem maior análise das questões aqui levantadas

19
Prefácio do Autor à 6ª Edição

queiram notar que a segunda obra, bem como os outros livros meus, são adita-
mento ao primeiro trabalho.
Outro dia apareceu a seguinte nota, em Neuendettelsau: “De Karl Barth,
pode-se dizer que ele está deslizando para a posição de um homem de ontem”.
(Die Freimund* de 8 de novembro de 1928). Sim, sem dúvida! Os mortos an-
dam depressa, mas os teólogos bem sucedidos, ainda mais depressa. (Ver pre-
fácio da 5ª edição). Como poderia eu ter escrito este livro se eu não fosse, tanto
em teoria como em prática, um homem “pré-parado” antes de ser um “homem
de hoje”?
Será que eu trato (conforme me acusam) o “tempo” e a “história” tão
levianamente a ponto de magoar-me quando me dizem que meu dia tem um
entardecer e que se tornará ontem, transato? Assim avisado tenho, contudo, a
alegria de ainda fazer algumas correções e ajuntar algumas explicações; contente
por poder rogar aos meus leitores amigos, ainda que achem (e talvez com razão)
que fora melhor que eu não fizesse correções, que não escrevam o meu obituá-
rio antes de que se prove que aquilo que escrevi está esgotado e que o ontem
existente SUB-SPECIE AETERNI também se manifestou no tempo devido.

Munster, Westfalia
1º Domingo do Advento, 1928

* “Boca-livre”

20
AB EXTRA, AD REM

Chegou às minhas mãos um opúsculo, excerto da revista “Hora Presen-


te”, divulgação de um artigo sobre a infiltração do comunismo na Igreja Cató-
lica Romana.
O autor é um sacerdote católico, natural da Polônia, e professor univer-
sitário no Chile.
Logo de início tenta mostrar a vasta extensão da efetiva (ou pretendida)
infiltração do Marxismo no clero Romano e diz que ela se deu através dos pasto-
res protestantes, estes, por sua vez, fortemente influenciados por Barth que, se-
gundo o articulista, teria sido membro do “partido” e cujo pensamento seria para-
lelo, ou muito semelhante ao de Marx, em detalhes, citando como notório, este:
Marx prevê a extinção da instituição do Governo na Sociedade marxista e Barth
prevê a extinção da Igreja mediante o advento do “Reino dos Céus”.
Ora, não tenho a mínima intenção de fazer a defesa de Barth como não
tenho qualquer inclinação para o comunismo; (você o sabe muito bem.). Toda-
via, a acusação que, assim, é assacada a Barth vem de homem culto; teólogo
como Barth o foi; fez altos estudos não só em Varsóvia como também em Roma;
é professor universitário e, fora de dúvida, revela erudição, cultura teológica e
muita familiarização com os pensadores modernos, notadamente os europeus.
Por isto, e com as devidas reservas, quero aqui registrar o fato para dizer o que
penso a respeito.
Não se pode julgar a crítica sem saber de onde ela procede, e isto vale
tanto para o louvor como para a detração, (foi, aliás o que Barth escreveu em
um de seus prefácios). Miguel Poradowski, o autor do artigo, é católico tradici-
onalista e polonês; são duas qualidades quase redundantes. Houve tempos em
que me parecia que, “embora todo católico não fosse polonês, todo polonês era
católico”; e católico extremado, intransigente, indo às raias do fanatismo. Esta
foi a minha impressão na juventude e hoje me parece que, embora essa maneira
de dizer seja caricata ela serve para acentuar verdade incontestável: O catolicis-
mo está profundamente arraigado nas tradições do povo polonês.

21
Ab Extra, Ad Rem

As tribos polonesas, reunidas durante a dinastia Piasta, emergiram dos


povos pagãos, seus vizinhos, por volta do ano 1000, no reinado de Miesko
I que, entre as influências orientais e da civilização ocidental optou por
esta, colocando seu novel Estado sob a proteção direta da Santa Sé.
A Polônia conservou-se por longos séculos uma fiel seguidora da
Igreja Romana e sob o reinado de Wladislaw II (Jaciello) no ano de
1400 obteve o feito glorioso da “conversão pacífica” da última grande
massa de pagãos remanescentes na Europa.
Por ocasião da reforma protestante, sob Segismundo I, o país expe-
rimentou forte influxo protestante que deu origem a exuberante
renascimento de idéias que, todavia, entravam em choque com a longa
tradição católica e contrariavam o espírito feudal da cavalaria nobre,
consagrada pela Igreja.
Este surto protestante foi extremamente vigoroso e sob sua influência
a Polônia gozou do seu primeiro apogeu poético (Apud Enciclopédia Bri-
tânica). Todavia, a aceitação do protestantismo teve cunho popular e raros
foram os membros da nobreza e da “alta” sociedade que a ele aderiram.
Quando Segismundo II subiu ao trono, homem culto e profundamente
nacionalista (foi o primeiro rei polonês que deixou de usar o latim como
língua oficial), tentou criar uma “Igreja da Polônia”, semelhantemente à
“Igreja da Inglaterra”; por conveniência política aliou-se ao clero, afas-
tando o protestantismo (Édito de 1550), sem, todavia, eliminá-lo.
Em 1565, com o advento dos Jesuítas, a Polônia foi reconduzida à
Santa Sé. O rei aceitou os postulados do Concílio de Trento; os “hereges”
mais extremados foram banidos; o protestantismo como poderoso fator
criativo intelectual e literário foi exterminado; e o declínio da Polônia
começou (ainda Apud Enciclopédia Britânica), muito lento, mas inexorável,
deixando por herança um glorioso passado, um povo indômito, absoluta-
mente intransigente em seu orgulho nacional e em seus princípios de fé.

Só o futuro dirá como essa nação heróica há de se livrar do jugo moscovita


e como guardará a fé. O que, porém, hoje se vê, é que os caracteres forjados antes
da hecatombe da segunda guerra mundial são irredutíveis inimigos do protestan-
tismo por convicção e tradição; do comunismo que lhes roubou a soberania naci-
onal; do ecumenismo, quiçá, por verem nele um convite ao afrouxamento dos
princípios de ortodoxia católica aos quais se afizeram durante 10 longos séculos.
É pois natural que Miguel Poradowski combata o comunismo e o relaci-
one com o protestantismo, o que no passado não por demais remoto, esteve
muito em voga entre o clero católico do Brasil, conforme bem o comprova uma

22
Ab Extra, Ad Rem

pastoral de setembro de 1955, do então Cardeal Arcebispo de São Paulo, D.


Carlos Carmelo de Vasconcelos, na qual afirma que “tanto o comunismo como
o protestantismo são agentes” de imperialismos estrangeiros, etc.
É também compreensível que o articulista atribua aos protestantes a
instrumentalidade do mal, apresentando os seus pastores como os batedores
que abrem o caminho do “desencaminhamento” do virtuoso clero católico.
Todavia, é aí que começa a surgir a falácia do argumento; pois, se o
marxismo é materialista e ateu, os protestantes, ainda que considerados mais
modernamente “irmãos separados”, são para os católicos, tradicionais hereges
e apóstatas. Seria, pois, de esperar que o pensamento do clero protestante tives-
se entre o clero católico, menor acolhida que a filosofia dos seguidores de Marx.
Seriam, acaso, os sacerdotes católicos tão simples que, amolecidos pelo “espí-
rito ecumênico” do Vaticano II, confundindo alhos com bugalhos, abrissem as
portas, justamente aos maus protestantes, aqueles que pregam a humanização
do cristianismo em vez de pregarem a cristianização da humanidade?
E por que atribuir a Barth a origem de todo esse mal?
Parece-me que há boas explicações para isso.
O sacerdote articulista, em manobra hábil, ataca simultaneamente todas
as frentes.
Denuncia, por insinuação, o ecumenismo como demolidor da firmeza
do caráter católico e, por associação, o Concílio Vaticano II como seu pai adoti-
vo e seu comparsa, introduzindo na Santa Madre Igreja costumes e liturgias
que não coincidem com a tradição bem firmada; denuncia os protestantes como
solapadores da boa ortodoxia eclesiástica e social e Barth, como fonte
inspiradora, mentor desse trabalho de sapa. Eis aí o sucesso da estratégia: Quatro
inimigos envolvidos e atingidos na mesma escaramuça. Obra igualmente digna
de um bom e tradicional clérigo católico e de um intransigente cidadão polonês.
É Barth o mais atacado: Também isto é explicável; o autor da exegese da
Carta de Paulo aos Romanos é o mais vigoroso acusador da Igreja Romana;
desmascara a idolatria dessa Igreja sem a paixão do iconoclasta e com a extra-
ordinária autoridade que lhe advém pela sinceridade com que ataca o mesmo
mal nos arraiais protestantes; é, pois, novamente uma questão de estratégia
desacreditá-lo; colocá-lo ao lado do materialismo ateu; esta política beneficia
Roma pois visa a desviar a atenção dos próprios correligionários do atacado,
das grandes verdades que proclama; em suma: tenta esvaziar o mais excelente
teólogo que o protestantismo já produziu.
Diz o articulista que Barth, é verdade, permanece em nível teológico e
que os outros marxistizantes descem ao nível político. E não estaria, justamen-
te aí, a pequena e grande diferença? Afinal, o próprio Cristo ensinou o amor

23
Ab Extra, Ad Rem

fraternal entre os homens e, com tal empenho, que os apóstolos e primeiros


discípulos passaram a ter seus bens em comum...
Convém, ainda, notar que os paladinos da marxistização gostam de
desfraldar boas bandeiras para, abrigados por elas, promoverem sua causa. Ora,
que melhor bandeira haveria do que a profligação do endeusamento das coisas
do mundo para camuflar um mistificador (consciente ou inconsciente) do mito
moscovita ou cubano? É a própria honestidade expositiva de Barth que anima a
tais oportunistas, pois podem nele escolher o que mais convier, ignorando in-
tencionalmente o contexto. Não teria sido justamente a esses tais que Barth se
referia quando escreveu que sua obra teria, talvez, agradado a “certos senhores
do mundo”, especialmente na Alemanha de após a primeira guerra?
Nenhuma marxistização encontrei até agora, nem na Dogmática nem na
“Carta aos Romanos” até o versículo 10 do 4º capítulo, ponto onde me encon-
tro, nesta data. Poder-se-ia entender como sendo tendência ao marxismo a “carta
a um Pastor da Alemanha Oriental” onde Barth recomenda a convivência, dan-
do a César o que é de César e a Deus o que é de Deus, mas instando sempre na
fidelidade do servo de Deus; conforme já mencionei, não tenho essa obra em
minha biblioteca e, confesso, só pretendo voltar a ela depois que completar a
interpretação da “Carta aos Romanos” a que me propus.
Tenho para mim que aquilo que Barth escreveu vale em si mesmo, qual-
quer que seja a posição que haja tomado ulteriormente, ou qualquer que tenha
sido a sua tendência política; todavia, essa posição, ainda que futura com relação
a obra, pode ter as suas raízes lançadas já, na obra que a antecedeu e a sua incli-
nação política há de ter influência na obra ou vice-versa, a obra pode ter levado a
ela. Portanto, tomando ciência da acusação que seriamente se faz a Barth (ainda
que a pureza de origem dessa acusação possa ser posta em dúvida) convém que a
leitura de sua obra e a sua interpretação sejam feitas com a sensibilidade aguçada
para esse aspecto, a fim de que não nos tornemos inocentes úteis, nem mesmo
inúteis, eventualmente promovendo ou favorecendo uma causa que não é nossa.
Todavia, ao nos precatarmos, sejamos, também prudentes. Ninguém pode
evitar que se tirem conclusões viciosas ou maldosas, calcadas em predisposi-
ções, inclinações ou interesses pessoais. Nisso convém que recordemos o que
Cristo ensinou como bendição e lamento: “bem-aventurados sois vós quando
vos injuriarem e, mentindo, disserem todo o mal contra vós por minha causa;
exultai e alegrai-vos, porque é grande o vosso galardão nos céus” (Mat. 5, 11-
12); e também em outro lugar: “ai de vós quando todos os homens, de vós,
disserem bem”. (Luc. 6,26).
Continuemos pois, a tarefa...
novembro, 1977.

24
APRESENTAÇÃO

Barth analisa o texto subdividindo cada capítulo em seções, comentan-


do os versículos isoladamente ou em grupos. A identificação das passagens
bíblicas é feita pela numeração dos capítulos e versículos na forma usual. Refe-
rências e passagens da própria carta aos Romanos, dão apenas capítulo e
versículo.

— Capítulo I —

O primeiro capítulo foi dividido em duas partes: “INTRODUÇÃO” e


“A NOITE”.

• Introdução - Vs. 1 a 17 - Abrange o “prefácio” de Paulo aos lei-


tores da Epístola (1 - 7); trata de assun-
tos de caráter pessoal (8 - 15); fala do
tema da carta - (16 - 17).
• A Noite - Vs. 18 a 32 - O A. subdivide esta parte em:
“Origem” (18 - 21) e
“Operação” (27 - 32).

25
Capítulo I

Introdução (1 - 17)
Paulo a seus Leitores (1, 1 - 7)

Vs. 1 - 7 Paulo, servo de Cristo Jesus, chamado para Apóstolo e escolhido


para o evangelho de Deus, o qual há muito fez anunciar através de seus
profetas, nas Escrituras Sagradas, tratando de seu Filho, nascido da estir-
pe de Davi segundo a carne, poderosamente estabelecido como Filho de
Deus, segundo o Santo Espírito, pela sua ressurreição de entre os mortos
— Jesus Cristo, nosso Senhor por intermédio de quem recebemos graça e
apostolado, para criar obediência à fidelidade de Deus, confirmada no
evangelho, entre todos os povos, entre os quais estais, como chamados de
Jesus Cristo, para honra e glória de seu nome — a todos amados de Deus,
chamados para a santidade, sobre vós, a graça e a paz de Deus, nosso pai,
e o Senhor Jesus Cristo.

“Paulo, servo de Cristo Jesus chamado para apóstolo”.


Quem fala aqui “não é um gênio entusiasmado consigo mesmo”
(Zuendel) porém um mensageiro cativo da missão que recebeu. Não é senhor
mas servo, ministro de seu rei. Seja Paulo quem ou o que for: não interessa. O
conteúdo de sua mensagem não está nele mas vem de lugares estranhos, lon-
gínquos, inconquistáveis, inatingíveis.
Paulo não pode considerar a sua vocação para o Apostolado como uma
ocorrência casual, momentânea, de sua vida; ela é fato paradoxal que o acom-
panha desde o primeiro momento de sua existência e permanecerá com ele até
o fim, à parte de sua identidade pessoal (Kierkegaard).
Todavia, Paulo é e continua o mesmo. Todos os homens lhe são, em
essência, próximos; porém, em contradição consigo mesmo, e diferentemente
de todos os homens, ele é também aquele que foi chamado, e enviado por Deus.
Portanto, fariseu? [Fariseu envolve, originalmente, a idéia de separação — os
fariseus consideravam-se separados dos demais membros da comunidade ju-
daica, por sua santidade].

27
1, 1-3 Paulo a seus Leitores

— Sim, fariseu, ainda que de ordem superior; especial, separado, indi-


vidualizado [particularizado], diferente. Em carne e osso, conforme todos; pe-
dra entre pedras. Mas em sua relação com Deus é caso SUI GENERIS. Visto
como apóstolo, ele não tem relação estruturada com a comunidade humana
nem com a realidade histórica, e portanto ele é apenas possível como exceção,
ou melhor, ele é uma exceção impossível.
O direito a esta posição e a credibilidade de suas palavras apoiam-se em
Deus e são, [o direito e a credibilidade] por isso, tão pouco compreensíveis
como o próprio Deus. Esta é a razão pela qual o apóstolo tem bastante ânimo
para exigir que lhe ouçam e a coragem de abordar os outros, sem receio de se
enaltecer ou de se aproximar demais deles. A sua autoridade vem do fato que
ele não quer e não pode apoiar-se senão na autoridade de Deus.
O recado que Paulo tem para entregar é o “Evangelho de Deus”; é
transmitir aos homens a inaudita, boa e alegre verdade de Deus! Justamente
de Deus! Não se trata de mensagem religiosa, ou de notícia ou instrução so-
bre a divindade ou a divinização do homem, mas da mensagem de um Deus
totalmente diferente do qual o homem, como tal, nunca virá a ter conheci-
mento, ou ter parte, mas de quem, por isso mesmo, vem a salvação; não é
algo a ser entendido diretamente, uma coisa a ser compreendida, de uma vez,
entre as demais coisas, mas é a Palavra sempre nova que precisa ser percebi-
da sempre de novo, com temor e tremor; é a Palavra sempre reiterada, da
origem de todas as coisas.
Não se trata de vivência, experiência ou descoberta; porém, ainda que
fosse algo disso, seria então simples conhecimento objetivo daquilo que ne-
nhum olho viu e ouvido algum jamais ouviu. Trata-se de comunicação que não
demanda, apenas, que dela se tome conhecimento, mas impõe que dela se par-
ticipe; ela não requer mero entendimento, mas compreensão; não somente com-
paixão mas cooperação; é comunicação que pressupõe a existência da fé da
qual é também geratriz. E a mensagem de Deus “de há muito anunciada” e não
uma idéia repentina de agora; essa mensagem é o sentido, o pomo amadureci-
do, da própria história; é o fruto dos tempos e qual semente da eternidade é o
cumprimento da profecia. É a palavra pronunciada pelos profetas de antiga-
mente que agora se torna perceptível e percebida.
Esta é a essência da mensagem confiada ao apóstolo; ela é a garantia
do seu discurso e a sua crítica. Falam, agora, as palavras dos profetas, que há
muito estavam fechadas sob chave: ouve-se hoje o que foi anunciado há sécu-
los por Jeremias, por Jó, pelo pregador Salomão; pode-se pois ver e entender
o que está escrito. Temos agora “um acesso a todo Antigo Testamento”.
(Lutero).

28
Paulo a seus Leitores 1, 3-4

É sobre o rastro da história, assim revelada e esclarecida, que está posta-


do aquele que fala na Epístola, e “logo de início ele se nega a honra da origina-
lidade.” (Schlatter).
“Jesus Cristo, nosso Senhor”: este é o evangelho e o sentido da história;
neste nome encontram-se e separam-se dois mundos; interceptam-se dois pla-
nos. Um conhecido e outro desconhecido.
O plano conhecido é o mundo da carne, dos homens, do tempo e da
matéria, o nosso mundo que foi, originalmente, criado por Deus, mas perdeu a
sua unidade com ele e, havendo decaído, necessita de redenção.
Este plano conhecido é cortado por outro, desconhecido dos homens, que
é o mundo do Pai, o mundo da criação original e da redenção final.
A relação entre nós e Deus, entre o nosso mundo e o mundo de Deus,
entre os dois planos que se interceptam, não é evidente por si só, porém se
revela no ponto de destaque da linha de interseção: Jesus! [É Jesus que torna
visível a relação entre nós e Deus; é apenas em Jesus que esse relacionamento
pode ser visto]. É o Jesus de Nazaré; o Jesus “histórico” que nasceu da linha-
gem de Davi, segundo a carne, e que, em sua função histórica, significa o ponto
de divisão [o ponto de tangência] entre um mundo nosso conhecido e outro,
nosso desconhecido.
O tempo, as coisas, os homens, de nosso mundo sobressaem acima dos
demais tempos, coisas e homens, não por si mesmos, mas na medida em que se
aproximam daquele ponto peculiar que traz à luz a linha oculta da interseção
entre a temporalidade e a eternidade, entre a matéria e a origem, entre a huma-
nidade e Deus.
Os anos 1 a 30 da nossa era, são de revelação e descobrimento. Estes são
os anos durante os quais, volvendo a vista para Davi, vemos uma nova era,
diferente; vemos a finalidade, a razão de ser, de todos os tempos conforme os
desígnios de Deus. Todavia o destaque, o privilégio desse tão pequeno período
da história temporal, sobre todos os tempos, épocas e eras da história, desapa-
rece porquanto ele mesmo proporciona aos demais períodos, épocas e eras a
possibilidade de se transformarem também em tempos de revelação e desco-
berta. [Pela universalidade e “extra-temporalidade” da graça revelada por
Emanuel. — Deus conosco].
O ponto central da linha de interseção dos dois planos, semelhantemente
ao plano desconhecido que ele anuncia [e ao qual, também ele pertence] não se
expande sobre o plano do nosso mundo; [antes é um ponto de absorção, que
absorve a nossa história como o vórtice de um sumidouro].
O efeito de irradiação, ou melhor, de sorvedouro, de vacuidade, que se
nota na história do nosso mundo quando ocorre o contato com o mundo desco-

29
1, 3-4 Paulo a seus Leitores

nhecido de Deus, não deve ser confundido com esse mundo desconhecido,
ainda que seja identificado ou identificável com a vida de Jesus.
À medida que o nosso mundo [temporal] for tocado pelo outro mundo
[de Deus] através de Jesus, deixa ele de ser histórico, temporal, material, dire-
tamente perceptível: Jesus é “poderosamente estabelecido como Filho de Deus,
pelo Espírito Santo, através da sua ressurreição de entre os mortos”.
Este estabelecimento de Jesus é o seu verdadeiro significado e como tal
não pode ser verificado historicamente.
Jesus, como o Cristo, o Messias, é o final dos tempos. Ele só pode ser
entendido [compreendido], como paradoxo— (Kierkegaard), como vencedor
— (Blunhardt), como pré-história. (Overbeck).
Jesus, como Cristo, é o plano desconhecido que corta o nosso, perpen-
dicularmente, vindo do alto.
Do ponto de vista histórico, Cristo só pode ser entendido como proble-
ma, um mito; ele traz o universo do Pai, do qual nada conhecemos, nem pode-
mos vir a conhecer, através da história.
A ressurreição de entre os mortos, porém, é o ponto de inflexão, de
mudança de rumo. É o ponto estabelecido de cima e visível de baixo. A ressur-
reição é a revelação, o descobrimento de Jesus, como Cristo, e nele o apareci-
mento e o conhecimento de Deus; a origem da necessidade de dar a honra a
Deus e de contar com o desconhecido e invisível em Jesus, dando-lhe as cre-
denciais de Consumador dos tempos, Paradoxal, Pré-histórico, Vencedor.
Na ressurreição o novo mundo do Espírito Santo toca o velho mundo
carnal qual tangente roçando o círculo, não o tocando mas tangenciando ape-
nas; chega ao ponto de tangência como o limite entre os dois mundos.
A ressurreição é o acontecimento fundamental que ocorreu ante as por-
tas de Jerusalém, no ano 30, conquanto aí teve lugar, foi descoberta e ficou
conhecida; neste sentido, é pois fato histórico. Todavia, como essa ocorrência,
o seu desconhecimento, o seu reconhecimento, a sua necessidade, não foram
os seus elementos determinantes, mas estes elementos estavam [e estão] na
ressurreição, em si mesma; ela já não pode mais ser considerada qual mera
ocorrência histórica, porém, à medida que Jesus se revela e é reconhecido como
o Messias, ele é “investido como Filho de Deus”, ainda antes da Páscoa, tão
certamente quanto depois dela.
Esta é a significação de Jesus: a investidura do Filho do Homem como
Filho de Deus.
O que Jesus é afora desta investidura tem apenas a importância ou
a irrelevância de todas as coisas temporais, materiais e humanas, em si
mesmas.

30
Paulo a seus Leitores 1, 4-6

“Embora tenhamos conhecido a Cristo segundo a carne, já agora não o


conhecemos assim”.
Naquilo que ele foi, ele é; mas naquilo que ele é, está subjacente o que
ele foi.
Não há, aqui, enlace entre Deus e o homem — [O Filho do Homem e o
Filho de Deus]. O homem não é guindado à divindade nem esta se derrama no
ser humano. Mas, o que nos tangencia sem tocar-nos [sem se confundir conosco]
em Jesus — o Cristo, é o Reino de Deus, — [Deus] o Criador e Redentor.
O Reino de Deus tornou-se atual; ele chegou próximo. (Cap. 3 vs. 21 e
22). Este Jesus Cristo é “Nosso Senhor”. Por sua presença neste mundo e em
nossa vida, somos anulados como homens e alicerçados em Deus. Com os
olhos postos nele, somos retidos e impelidos; os nossos passos são retardados e
apressados. E porque ele, como Senhor, está acima de Paulo e dos Romanos,
Deus, na Epístola, não é uma palavra vazia.
De Jesus Cristo Paulo recebeu a “Graça e o Apostolado”.
Graça é o fato real, embora incompreensível, que Deus se agrada do ser
humano e que este pode alegrar-se em Deus. Mas a graça somente é graça
quando ela for reconhecida como inexplicável [sem razão de ser], incompreen-
sível. E por isso que só há graça sob o reflexo da ressurreição, como dádiva de
Cristo, que eliminou a distância entre Deus e os homens, tirando-a violenta-
mente [quiçá, vencendo o afastamento que a morte implicitamente encerra,
com o rompimento violento do túmulo para o surgimento triunfante da vida].
Deus conhece o homem desde longe e o homem pode reconhecê-lo em
sua inescrutável altura; [porém] o homem se achega a seu semelhante, inevita-
velmente, na condição de mensageiro. (Esta é a condição que pesa sobre os
ombros de Paulo).
“Uma coação está sobre mim: Ai de mim se eu não pregar o Evange-
lho”. (1 Cor. 9,16).
A diferença entre a situação de Paulo e a dos demais cristãos é apenas
questão de intensidade: De menos ou mais. Onde houver a graça de Cristo o
homem toma parte na proclamação da ressurreição, que é o ponto de retorno
[quiçá de conversão] para onde convergem todas as coisas e todos os tempos,
ainda que sob a maior relutância ou sob o mais absoluto ceticismo.
O homem que houver encontrado a graça de Deus porá em dúvida a
legitimidade do modo de ser do mundo, e tanto lutará contra a conduta munda-
na quanto pugnará pela esperança ofertada em Deus. Não se trata da imposição
e propagação de sua convicção, porém do testemunho da fidelidade de Deus,
que ele encontrou em Cristo, e da qual ficou devedor desde o instante que a
conheceu.

31
1, 6-7 Paulo a seus Leitores

A fidelidade assim despertada no ser humano, a fé que aceita a graça, leva-


o à obediência, obediência que impõe a si e que se estende também aos outros.
O mesmo Deus que fez de Paulo o Apóstolo dos Gentios, pensou também
nos cristãos de Roma para trazê-los ao seu reino, próximo a vir. Assim, chamados
para a santidade, não pertencem mais a si mesmos nem ao velho mundo que
passa mas a quem os chamou. Também para os romanos foi o Filho do Homem
estabelecido, investido, como Filho de Deus, por força da ressurreição. Tam-
bém eles estão agora cativos da grande carência que têm e da grande esperança
que sentem. Também eles foram escolhidos e particularizados por Deus, de
alguma maneira. Também para eles existe uma nova condição “na graça e paz
de Deus, nosso Pai, e do Senhor Jesus Cristo” [desta forma irmanando os Cris-
tãos Romanos ao Senhor Jesus — este e eles, filhos do mesmo pai].
Oxalá essa condição se renovasse constantemente! Fosse a sua paz, a
[causa de] sua falta de paz — a sua paz!
Este é o começo e o fim da Epístola aos Romanos.

Comentários: 1, 1-7

Aí ficou o que eu entendi estar escrito no original sobre os versos 1


a 7 do Capítulo1.
As expressões entre colchetes são inserções minhas; usarei essa in-
dicação através do trabalho todo.
Parece-me que cabem aqui algumas poucas considerações:
1. Sobre a forma.
a) O autor faz uso abundante do jogo de contrastes:
...“Deus conhece o homem desde longe”, porém o homem se apro-
xima de seu semelhante, “inevitavelmente na condição de seu mensa-
geiro”.
...O “mundo conhecido” e o “mundo desconhecido”.
...ele (Paulo) é apenas “possível como exceção, ou melhor, ele é
uma exceção impossível.”
b) Gosta de matemática.
c) Usa de vocabulário farto, quase redundante, para melhor vestir
suas imagens.
2. Por falar em imagens o autor parece estar, logo no início, preocupado
com o combate à idolatria. Esta me parece ser a tecla mais sonora de
sua introdução.
Paulo não é santo, nem gênio; apenas servo, ministro de seu rei;
mensageiro.

32
Paulo a seus Leitores

Engana-se quem quiser ver em Paulo o herói, o vencedor, o gran-


de. o valoroso, o santo. — Santo, valoroso, grande, vencedor, herói,
só Cristo, portanto Deus.
Não há privilégio na escolha do homem por Deus; é dever a cum-
prir que cabe a todos, ainda que o mensageiro tenha o mérito de ser o
escolhido do Senhor.
Não há lugar para a idolatria da vanglória.
Ninguém pode dizer que conhece a Deus ou que Deus lhe conce-
deu favores especiais: uma só é a graça e essa está na ressurreição de
Cristo e não na vontade dos crentes.
Combate a idolatria da auto-suficiência e do privilégio religioso:
ninguém tem condições para achegar-se a Deus por ciência própria.
É sempre e de novo o alcance da paz pelo conhecimento da sua
existência, que a ressurreição proporciona, sem fórmulas e
agremiações, quiçá questionáveis.
Combate a idolatria do materialismo intelectual. Aceitar a graça
da redenção por análise histórica e percepção técnica não tem cabi-
mento; é necessário que se forme o vácuo humano para receber a
plenitude da graça do Espírito Santo.
Combate a idolatria do misticismo. De nada vale o louvor à vida
de Jesus se não houver genuína cooperação, testemunho, proclamação.
A fé, porém, vale pela capacidade que tiver em aceitar, e numa
espécie de poder regenerativo, vale pela fé que ela mesma criar, atra-
vés da cabal aceitação.
É nestas condições de servo humilde, porém cioso da grandeza de
sua missão; temente e trêmulo perante Deus e os homens, mas cora-
joso e forte perante os homens sob a égide de Deus; coato para servir
a Deus e ao próximo todavia livre para cumprir a ordem de Deus, que
Paulo se apresenta aos romanos, segundo Barth o ouve falar, voz que
procura fazer ressoar aos ouvidos dos seus leitores.
3. Da apresentação do texto:
a) A tradução dos versículos da Epístola aos Romanos, conforme
redigidos por Barth, foi impressa em caracteres de tipo itálico.
b) A ‘interpretação’ propriamente dita foi inserida no texto da tradu-
ção geral, na forma de considerações identificáveis no próprio texto, ge-
ralmente no começo ou fim de assuntos específicos, na apresentação dos
Capítulos, e em comentários gerais sobre os mesmos no respectivo final.
Semelhantemente, foram incluídos expletivos na forma de palavras, fra-
ses, ou mesmo parágrafos, que foram destacados entre colchetes.

33
1, 8-10 Questões de Fôro Pessoal (8 a 15)

Questões de Fôro Pessoal (1, 8-15)

V. 8 Antes de tudo dou graças a meu Deus, através de Jesus Cristo, pois em
todo o mundo fala-se da vossa fé.

A ressurreição provou o seu poder: também em Roma há cristãos! Eles


o são sem a obra de Paulo; não importa quem lhes tenha levado o apelo de
Cristo; (1,6) eles foram chamados, e isto é razão suficiente para dar graças. A
pedra foi rolada descerrando a porta do túmulo; a palavra corre livremente;
Jesus está vivo; ele está também na capital do mundo!
Os cristãos, por toda parte, escutaram, estiveram atentos à notícia. (16,
19). Ainda que seja apenas parábola, é pelo menos parábola.
Paulo não agradece a seu Deus pela devoção ou outra vantagem que se
pudesse notar nos cristãos da grande cidade, porém pela existência deles como
cristãos.
Características peculiares e obras especiais são menos importantes que o
fato auspicioso de ter sido levantada a bandeira [do evangelho], de ter sido men-
cionado e ser conhecido o nome do Senhor, de estar sendo anunciado e esperado
o Reino de Deus. [Neste fato auspicioso] subsiste a fé; a fidelidade dos homens
suscitada pela fidelidade de Deus; e sempre onde isto ocorrer estará em curso a
crise que a ressurreição de Jesus traz. E dentro desta crise que se proclama a
investidura de Jesus, como Filho de Deus (1, 4) e conseqüentemente o servo tem
razão sobeja para dar graças.
[Essa crise é o esvaziamento do Ego; e o desaparecimento da auto-sufi-
ciência, da ciência, do mérito pessoal; a crise e a invalidação das credenciais de
classe ou estirpe, das garantias que a filiação religiosa, ou mesmo o conheci-
mento das Escrituras, ainda que na mais severa ortodoxia e na mais perfeita
interpretação, possa parecer justificar. A crise precipita no caos todas as prer-
rogativas humanas, ainda que estribadas na própria cruz de Cristo; ela reduz o
homem a nada, esvaziando-o completamente, perante o Cristo ressurrecto que,
então, preenche o coração contrito e humilhado, criando a nova criatura. E
somente nesta condição de crise total que se abrem as portas do coração, da
Igreja e da Cidade — para entrar o Rei da Glória].
E porque as portas de Roma estão abertas ao Senhor, estão também
abertas a Paulo seu mensageiro. Há muito, existe entre os cristãos de Roma e
Paulo um relacionamento não meramente fortuito ou superficial.

Vs. 9 e 10 Pois o Deus a quem eu honro em meu espírito, visto que anuncio o
evangelho de seu filho, é minha testemunha como sem cessar intercedo

34
Questões de Fôro Pessoal 1, 9-10

por vós em minha adoração, não sem rogar que, enfim, me seja concedido,
pela vontade de Deus, ir ter convosco.

O mensageiro pertence a eles (e também a muitos!) (1,14), tão certo


quanto pertence a Deus.
O espírito do escolhido de Deus, da testemunha que se sente consumida
pelo zelo em honrar ao seu Senhor, (1, 5) não pode ficar alheado nem distante
dos espíritos daqueles que foram movidos pela mesma proclamação e pela
mesma descoberta. A adoração que o mensageiro oferece a Deus é, por isso,
feita tanto por eles quanto por si mesmo. Quando Paulo ora, fá-lo pois, também
por eles, os cristãos de Roma, enquanto estes, ao orarem, intercedem também
pelo Apóstolo (15, 30).
A obediência ao evangelho, também estabelece a solidariedade entre
aqueles cujos caminhos, neste mundo, nunca se cruzaram e que não tiveram o
privilégio de conhecer-se face a face [mas sentem-se irmanados no Senhor Je-
sus, ainda que sendo de raças, povos, tribos e nações estranhas e até mesmo
adversas]. Desta comunhão no objeto da fé é lícito surgir também o anseio por
um encontro pessoal. É compreensível que aqueles que se conhecem em Deus
queiram conhecer-se, também, face a face [neste mundo], se Deus assim for
servido.
Mas será um tal encontro possível? Será necessário? Realmente, não
será imprescindível. Tal desejo nada tem a ver, diretamente com o Reino de
Deus. A vontade de Deus tem a primazia; a realização do desejo humano tanto
pode ser como deixar de ser concedida.
O que deverá acontecer em conformidade com a vontade de Deus
virá quando essa vontade for cumprida. E enquanto ou se Deus não conce-
der segundo o desejo dos corações de seus servos, a estes compete cultivar
a confiança mútua e buscar a vontade de Deus com singeleza de coração;
quando a situação interna e a externa coincidirem genuinamente com a vi-
são cristã do que seja reto; então o cristão compreenderá qual seja a vonta-
de de Deus. (12. 2).
[Se a situação interna for auferida e aferida pela comunhão do Crente
com Deus, por intermédio de Jesus Cristo, e a situação externa for aquela que o
Reino dos Céus propicia à medida e na medida que seja estabelecido entre os
homens, então a visão do que seja reto será alcançada pela renovação da mente
para que cada cristão possa compreender qual seja a boa, agradável e perfeita
vontade de Deus].
O reconhecimento do instante da coincidência é o único caminho que se
pode imaginar para a realização do desejo humano.

35
1, 11-13 Questões de Fôro Pessoal

Vs. 11 e 12 Eu anseio por ver-vos, porquanto eu gostaria de repartir convosco


algo da misericórdia do Espírito para vosso fortalecimento, ou melhor:
para que no meio de vós, pela fé, gozemos o consolo conum que encontra-
remos em nós, mutuamente. (O consolo que eu encontrarei em vós e vós
em mim).

Esse anseio tem sua razão de ser. Peregrinos que se encontram na estra-
da que leva a Deus, têm sobre o que trocar idéias. Um pode significar algo para
o outro, não porque assim o queira; não, exatamente, por sua riqueza interior,
não pelo que seja, mas por aquilo que não é; por sua pobreza, por seu suspirar
e por sua esperança; por sua vagarosidade e por sua pressa; por tudo que, em
seu ser, aponta para outro ser que esta além do horizonte e acima de suas forças.
Um apóstolo não é um homem positivo, mas negativo. Em torno dele
vê-se a vacuidade. [A pobreza de espírito, a fome e sede de justiça, a ânsia pela
paz, o anseio pelo consolo, a fraqueza na fé, o reconhecimento de que só Cristo
pode redimir e salvar].
É na vacuidade de seu próprio ser que o Apóstolo significa algo aos
outros e reparte misericórdia. É assim que ele fortalece os demais na obediên-
cia, na perseverança e na adoração.
O Espírito distribui graça por ele, justamente porque ele nada tem de si,
de positivo, que possa ter algum valor. E neste processo o distribuidor se trans-
forma em receptáculo; quanto mais dá, mais recebe e quanto mais for receben-
do mais terá para dar.
Entre cristãos não é apropriado perguntar se “vem de ti ou vem de mim”,
pois não vem nem de ti nem de mim, porque nada temos.
É bastante que acima de nós, atrás de nós, além de nós, exista a fé, a
mensagem da fé, o conteúdo da fé, a fidelidade de Deus, que consola o superior
e o principiante nas suas tentações e fraquezas, tanto externas como internas.
O desejo que os cristãos acaso tenham de, em uníssono, baterem às por-
tas do Reino dos Céus a fim de iniciarem um movimento comum sob a direção
do Santo Espírito é legítimo, conquanto também seja certo que essa conformi-
dade seja vazia e irrelevante.

V. 1 3 Deveis porém saber irmãos, que já muitas vezes tencionei chegar até vós
para que também entre vós, como entre os demais gentios, eu produza
frutos, mas até aqui fui impedido de fazê-lo.

Muitas vezes teve Paulo o propósito de visitar Roma satisfazendo o seu


próprio desejo e, evidentemente, o dos cristãos que lá se achavam. Mas é dema-

36
Questões de Fôro Pessoal 1, 13-15

siado grande o número de localidades que não tiveram ainda o início da prega-
ção que Roma já recebeu. Conseqüentemente o trabalho a que o Apóstolo foi
destinado — o trabalho de sua vida — (de semear em terra virgem) (15, 20-22)
o levou sempre a outras paragens.
Permanecia, porém, o veemente desejo e a viva intenção de colher tam-
bém onde não semeara e de trabalhar onde outros já haviam trabalhado. Até
agora, pela vontade de Deus (1, 10) o desejo ainda não pôde ser satisfeito.

Vs. 14 e 15 Eu, eu mesmo, sou devedor a gregos e bárbaros, sábios e ignoran-


tes, por isso o meu grande desejo é anunciar o evangelho da salvação
também a vós, em Roma.

Paulo foi tomado em cativeiro (1, 1) o que significa um cerceamento a


seus desejos pessoais porém, também uma possibilidade de os satisfazer.
Certamente nem divisas territoriais nem barreiras culturais poderão retê-
lo e, quando tiver de ser, ele se desempenhará de sua missão tão desassombra-
damente quanto entre os néscios de Icônio e Listra.
Também é certo que o preceito de pregar apenas onde o evangelho ainda
não foi anunciado não é nenhuma lei dos Medas e Persas pois, em última aná-
lise, quem pode dizer que já ouviu o evangelho?
Também os romanos pertencem ao rebanho de povos pelos quais Paulo
sabe que é responsável como o escolhido por Deus para levar-lhes o evangelho.
Ele quer falar-lhes das coisas antigas e novas. O que é conhecido, neste caso, para
todos e sempre, é o não conhecido, do qual nunca se será lembrado em demasia.
(15, 15) [“Porque tudo quanto outrora foi escrito, o foi para nosso ensino, a fim
de que pela paciência e pela consolação das Escrituras, tenhamos esperança”].
Contudo, por enquanto, faça-se a tentativa de, por meio da palavra es-
crita, reunir os cristãos da comunidade romana para, em uníssono, baterem à
porta com o fim de produzirem o movimento.

Comentários: 1, 8-15

1. O que aqui foi apresentado como questões de fôro pessoal é designa-


do apenas como “pessoal”, pelo autor.
Paulo, depois de haver dado aos romanos a razão (ou as razões)
de ser de sua carta, conta-lhes de seus problemas íntimos; por que
ainda não foi visitá-los e como se sente feliz porque os romanos to-
maram conhecimento do nome de Jesus Cristo, e o aceitaram na sin-
ceridade de sua fé.

37
1, 15-16 O Tema da Epístola (16 e 17)

Escreveu-lhes do seu interesse por eles e invocou para isto o pró-


prio testemunho de Deus, Pai!
2. Barth insiste na afirmação de que a presunção humana, ainda que mui
piedosamente fundamentada, não alcança o beneplácito de Deus, an-
tes é uma forma de idolatria que impede a participação na graça e da
graça Divina.
3. Somente pode ser testemunha e mensageiro de Deus, quem recebe a
graça que vem do alto e, para recebê-la, é preciso que o homem se
esvazie, que renuncie a si mesmo.
No entanto, se é certo que Paulo foi separado para o Evangelho, é
igualmente certo que toda pessoa que houver sentido o apelo que
vem da cruz e a autoridade que vem da ressurreição, não pode deixar
de testificar e proclamar a mensagem da boa nova para a salvação de
todo aquele que crer. A diferença entre um e os outros será quantita-
tiva porém jamais qualitativa que a qualidade é constante e eterna; a
qualidade é Jesus, poderosamente estabelecido como Filho de Deus,
pela ressurreição de entre os mortos.

O Tema da Epístola (1, 16-17)

Vs. 16 e 17 Porque eu não me envergonho do evangelho, pois ele é o poder de


Deus para a salvação de todo aquele que crê, do Judeu primeiro e também
do grego. Porque a justiça de Deus se revela nele; da fidelidade à fé, como
está escrito: “O justo viverá de minha fidelidade”.

[A tradução de Lutero escreve: “O justo viverá de sua fé”; a versão sinodal


da Sociedade Bíblica Francesa registra: “Aquele que é justificado viverá pela sua
fé”. A Revised Standard Version (1953), americana, traz: “Aquele que é reto, pela
fé viverá”; a edição da Biblioteca de autores cristãos de Madri, (1950), versão cató-
lica, diz: “O justo viverá pela fé”, portanto APUD nossa versão de Almeida; a nossa
(hoje já quase esquecida) versão de Figueiredo diz: “O justo viverá da fé”.
Acha o Autor que a sua tradução se harmoniza melhor com o texto ori-
ginal e por ela orienta a sua análise, entendendo-se porém que em Hab. 2,4, é
Deus quem fala. O possessivo refere-se a Deus; parafraseando, poderíamos
dizer, segundo o Autor, “o justo viverá pela fidelidade de Deus”]
“Eu não me envergonho”, O evangelho não precisa ir em busca de polê-
mica com as religiões e filosofias do mundo, nem tão pouco precisa temê-las
ou fugir delas. O evangelho persiste e subsiste por si, como a mensagem que
vem da linha de interseção do plano deste mundo como plano do mundo do

38
O Tema da Epístola 1, 16

além, desconhecido para nós. O evangelho não entra em concorrência com


quaisquer teorias ou pesquisas ou outras elucubrações e deduções que a ciên-
cia, a sabedoria ou cultura possam haver encontrado ou ainda venham a encon-
trar mesmo que sejam transcendentais e oriundas do mais elevado círculo do
saber humano pois o evangelho não é uma verdade ao lado de outras verdades
mas é a verdade que questiona, [afere], todas as demais verdades. O evangelho
é dobradiça e não folha de porta.
Quem aceita o evangelho, embora possa sentir-se perplexo [ante as condi-
ções do mundo em seu século], está livre [e acima] de toda e qualquer conten-
da; não há apologética nem preocupação com a vitória do evangelho, pois ele é
a própria base de todas as coisas; o seu sustentáculo é também a sua consuma-
ção, o seu fim; e assim sendo, o evangelho é a vitória que vence o mundo.
O evangelho não precisa ser defendido nem suportado ou carregado: É
ele que defende e suporta aos que o proclamam.
É certo que Paulo poderá chegar e de fato chegará a Roma para aí con-
solar e ser consolado sem envergonhar-se do evangelho; mas é igualmente cer-
to que esta visita tão ansiosamente esperada por todos não é necessária para
que o evangelho subsista.
Deus não necessita de nós, e teria mesmo que se envergonhar de nós,
não fora ele Deus e precisasse de nossos préstimos. Antes, somos nós que dele
carecemos.
O evangelho da ressurreição é o “Poder de Deus”; é a sua virtude
(VULGATA); é a revelação e o conhecimento desse Poder; é a sua excelente
supremacia confirmada por obras perante todos os deuses; é o milagre dos mi-
lagres pelo qual Deus dá-se a conhecer como aquele “que é o que é” [Ex. 3, 14]
isto é, o Deus desconhecido que habita em auréola de luz, em páramos inaces-
síveis ao homem — o Santo, o Cristo, o Redentor. “Aquele que, sem o
conhecerdes, tendes honrado, este vos anuncio”. (Atos 17.23).
Todas as divindades que ficam aquém da ressurreição; que moram em
templos, que são feitura de mãos humanas e delas necessitam para serem servi-
das; divindades que carecem dos próprios homens [que as reconhecem por
deuses] (Atos 17,24-25); essas divindades não são Deus; essas, o homem co-
nhece!
Deus é o Deus desconhecido e como tal dá vida, alento e tudo, a todos.
E assim é o seu Poder, a sua força: não a força da natureza, nem da alma,
nem outra força qualquer, mais alta ou uma super-força que acaso conheçamos
ou alguma outra que pudéssemos vir a conhecer. O Poder, ou a força de Deus não
pode ser considerado, nem mesmo, como a força suprema do mundo, ou a
somatória de todas as forças ou ainda a origem delas, mas é a crise de todas e de

39
1, 16 O Tema da Epístola

qualquer delas, porquanto esta força é algo totalmente diverso, em comparação


com a qual as demais forças tanto podem ter alguma significação corno podem
ser absolutamente nulas; sim, algo e nada; [a crise gerada pelo eventual confronto
de força humana com o Poder divino] tanto pode representar o impulso inicial,
como o fator de estagnação final e definitiva dessa força terrena. O Poder de Deus
é a força que pode trazer o cancelamento, a supressão da própria origem de todas
as forças e também a sustentação, a preservação, do objetivo delas.
O Poder de Deus permanece, meridianamente claro, acima de tudo. Não
de lado [paralelamente como se ombreasse com as demais forças] e não supe-
rior [sobrenatural, como se fosse comparável, ainda que em grau superlativo,
com as outras forças] porém, além de todas elas, [e diferente delas].
As forças que o mundo possui, ou que imagina que tenha ou que possa
vir a ter, são necessariamente condicionadas [limitadas].
Ora, o Poder de Deus não pode ser intercambiado ou alinhado com tais
forças, nem podem estas ser comparadas com ele, senão com o mais absoluto
cuidado e a máxima prudência.
O Poder de Deus é a investidura de Jesus, como o Cristo (1,4) e isto, no
seu sentido mais restrito, é pressuposição destituída de qualquer significado
tangível. Acontece em Espírito e somente pode ser reconhecida espiritualmen-
te. Essa investidura é absolutamente auto-suficiente, e verdadeira em si mesma;
ela é o fator decisivo, se assim nos pudermos expressar; o ponto crítico que
ocorre na mente humana [no seu sentimento] e que leva o homem a Deus.
É justamente desta mensagem — de sua proclamação e sua percepção,
— que se trata entre Paulo e seus leitores e ouvintes de Roma.
Com esta mensagem da investidura de Jesus, como o Cristo, relaciona-
se todo o ensino, toda a moral e todo o culto da comunidade cristã, uma vez que
tudo isso tem apenas a função de [preparar o terreno destacando a inutilidade
do esforço humano para a salvação, a enormidade do afastamento de Deus que
o pecado acarreta, a nenhuma valia que o homem pode atribuir aos humana-
mente mais excelentes méritos que tivesse; esse conjunto de perspectivas tão
negativas contribui para] formar uma espécie de funil de escoamento, de sorve-
douro, de vazio, onde se dá [a inserção], a implantação da mensagem.
A comunidade [cristã] não conhece palavras, obras, ou coisas que sejam
santas em si mesmas; conhece apenas palavras, obras e coisas que, como nega-
ções, [isto é como sinais e evidência de tudo quanto o homem não é, ou melhor,
de tudo quanto ele é em oposição a Deus] apontam ao que é Santo.
Se a atitude cristã e o modo de ser dos cristãos não fossem referendados
ao evangelho, seriam qual acessório ou subproduto humano, perigoso restolho
religioso, lamentável mal entendido conquanto, ao invés da vacuidade [do

40
O Tema da Epístola 1, 16

homem que se nega a si mesmo, que se anula em sua soberba pretensão e sua
vontade egoísta e vaidosa, para dar lugar a Deus], teria conteúdo [ainda que
fátuo]; em vez de côncavo seria convexo [isto é, em vez de fazer convergir e
concentrar a mensagem recebida a dispersaria]; em vez de negativo, seria posi-
tivo; em vez de ser a expressão da sua própria insuficiência, toda voltada para a
esperança na promessa do evangelho, teria a pretensão da auto-suficiência, de
mostrar-se intrinsecamente rico em qualidades.
Nestas condições deixariam os cristãos de ser uma comunidade cristã
para serem uma cristandade compromissada com a oscilante realidade mundi-
al, de aquém ressurreição [portanto sem o Cristo vivo, ressurrecto]. Tal cristan-
dade, praticando com o mundo um pacífico e cômodo MODUS-VIVENDI,
não pode ter parte com o Poder de Deus.
Semelhante evangelho de maneira nenhuma estaria livre da concorrência
com o mundo e, competindo, não estaria em posição vantajosa, antes estaria
em grande embaraço e aperto pois as filosofias e religiões do mundo, forjadas,
urdidas ou criadas aquém ressurreição, foram desenvolvidas a gosto do homem
[de forma semelhante à confecção das imagens e o culto idólatra] deturpando o
evangelho com o objetivo de acomodá-lo ao gosto do presente século [criando
ilusões e desvirtuando a imagem do próprio Deus que deixa de ser espiritual
para ter a imagem e a semelhança do homem e o evangelho deixa de ser Poder,
para ser movimento; e os cristãos deixam de ser sal e luz, e portanto a minoria
do caminho estreito, para serem massa num pseudo evangelho chamado social,
ecumênico, tolerante e, sobretudo, tolerável e tolerado pelo mundo].
Haveria, então, razões suficientes para ter vergonha do evangelho!
Paulo, porém, refere-se ao “Poder” do Deus desconhecido: “O que olho
algum viu, nenhum ouvido ouviu, o que jamais chegou ao coração humano”. E
por isso que ele não se envergonha do evangelho.
O “poder de Deus” é poder “para a salvação”. O homem, neste mundo,
está em cativeiro. Nenhuma luz adicional encontraremos se nos aprofundarmos
na conscientização de nossas limitações humanas, antes, sentir-nos-emos cada
vez mais distantes de Deus; ficaremos mais compenetrados da enormidade de
nossa queda (1, 18; 5, 12) e as suas seqüelas serão cada vez maiores (1, 24; 5,
12) do que, sequer nos permitiremos sonhar.
É que o homem é agora [após a queda e aquém da ressurreição] o seu
próprio senhor. A sua unidade com Deus foi tão profundamente destruída, dila-
cerada, que o reatamento dessa união é absolutamente inimaginável para o ho-
mem. A sua condição de criatura é o seu grilhão; seu pecado, a sua culpa; sua
morte, o seu destino. Seu mundo é um caos disforme que flutua ao léu sob a
ação de forças naturais, anímicas e algumas outras. Sua vida é uma aparência.

41
1, 16 O Tema da Epístola

Esta é a nossa situação.


— “Existe um Deus”?
Uma pergunta muito boa.
Pretender entender este mundo em sua unidade com Deus será, ou con-
denável arrogância religiosa ou, a última [a mais profunda] visão [ou perspec-
tiva] da verdade que existe para além do berço e do túmulo: uma visão vinda do
lado de Deus.
A arrogância terá que desaparecer quando a perspectiva do lado de Deus
tiver lugar. [Todavia] enquanto existirem moedas falsas em circulação as ver-
dadeiras são postas em dúvida.
O evangelho proporciona a visão pela última perspectiva, partindo do
lado de Deus [isto é pela ressurreição que mostra o Poder de Deus, com a
investidura de Jesus como o Cristo]; todavia, para a sua eficácia, [para que pelo
Poder de Deus se restabeleça o vínculo da união do homem com o Criador] é
necessário que as outras perspectivas, as penúltimas [as arrogantes pretensões
que ganham curso e circulação na categoria de moedas falsas] sejam banidas.
O evangelho fala-nos de Deus, como ele é; refere-se a ele, e a ele só!
Fala do Criador que se torna nosso Redentor e do Redentor que é nosso Criador.
O evangelho tem o intuito de nos virar completa e absolutamente. Anun-
cia-nos a transformação de nossa condição de criaturas livres; oferece o perdão
de nossos pecados. A vitória da vida sobre a morte; a devolução de tudo quanto
perdemos.
O evangelho é o toque de alarme, é o sinal de fogo, de um mundo novo
que está chegando.
— O que quer dizer isso tudo?
Agora e aqui, atados ao “isso” e “aquilo”, não o sabemos, Apenas pode-
mos perceber o que acontece e captamos esta percepção pelos sentidos volta-
dos a Deus, depois que foram devidamente despertados pelo evangelho.
O mundo, porém, não deixa de ser mundo e o ser humano continua sendo
um ser humano; cabe-lhe suportar toda a carga do pecado e arcar com a total
maldição da morte, [a despeito de haver percebido os sinais da graça de Deus].
Que não haja qualquer auto-ilusão sobre o estado de fato da nossa exis-
tência e de nosso modo de ser.
A ressurreição, que é a nossa saída, é também o nosso cerceamento:
mas o cerceamento é também saída!
O não que veio a nosso encontro, o NÃO de Deus: o que nos falta é
também o que nos socorre; o que nos cerceia [o que barra a nossa saída] é a
nova terra [a porta que nos enclausura é também o umbral que nos leva ao reino
dos céus].

42
O Tema da Epístola 1, 16

O que destrói todas as verdades do mundo, é também o que as alicerça.


E, exatamente porque o NÃO de Deus é total, ele é também o divino SIM!
É assim que temos no Poder de Deus a perspectiva do portal da esperan-
ça e, com essa visão ante os olhos, a possibilidade de avançar o passo seguinte,
ainda que vacilante, na senda estreita deste mundo, prosseguindo em “consola-
do desespero” (Lutero).
O prisioneiro é transformado em atalaia que, confinado ao seu posto de
vigia, qual enclausurado em sua cela, anseia pelo raiar da aurora: “Aqui estou
eu, de atalaia, e subo ao alto da fortaleza para perscrutar atentamente o horizon-
te, para ver o que ele acaso tem para dizer-me e o que responderá à minha
queixa. Então respondeu-me o Senhor e disse: escreve a revelação; registra-a
sobre uma lousa para que seja claramente legível. A revelação espera ainda por
seu tempo próprio, mas se aproxima rapidamente do fim, e não enganara. Se
ela demorar, aguarda-a com perseverança porque ela se cumprirá com certeza”.
(Hab. 2, 1-3).
O evangelho requer fé. Somente para os crentes é ele o “Poder de Deus
para a Salvação”. Portanto, a sua verdade não pode ser comunicada diretamente,
[não é palpável]. Cristo foi estabelecido o Filho de Deus, “pelo Espírito”,
(1, 4). Ora, “o espírito é a negação do que é reconhecível diretamente, [que é a
matéria]. Se Cristo for verdadeiro Deus, então ele será necessariamente
irreconhecível. O conhecimento direto é uma característica inerente aos ídolos”.
(Kierkegaard).
O “Poder de Deus para a Salvação” é algo tão novo, tão inaudito, tão
inesperado, neste mundo, que só pode surgir, ser percebido e ser aceito como
contradição. É assim que o evangelho não porfia por esclarecer-se nem procura
tornar-se conveniente [cômodo e agradável aos interesses terrenos]; não solici-
ta e não transige; não ameaça e não promete. Ele se retrai por toda parte onde
não for ouvido pela própria força de sua proclamação.
“A fé orienta-se às coisas invisíveis; para dar oportunidade à fé, é neces-
sário que tudo o que se há de crer esteja oculto, e esse ocultamento é tanto mais
profundo quando o objeto da fé fica em franca oposição ao sentido da vista, da
sensação dos sentidos, do senso, e da experiência. Quando Deus, pois, vivifica
faz morrer; quando justifica ele o faz, inculpando-nos; quando nos conduz ao
céu, fá-lo conduzindo-nos ao inferno.” (Lutero).
O evangelho é, apenas, digno de fé. [O evangelho não pode ser assimi-
lado, apropriado, pela análise intelectual, por deduções lógicas ou por
elucubrações indutivas ou ainda, por convicção intuitiva; nem por sugestão,
por exposição, por ensino ou exemplo, mas unicamente pela fé. O evangelho é
totalmente estranho à natureza das coisas deste mundo nosso conhecido, por

43
1, 16 O Tema da Epístola

isso não pode ser apreendido senão pela fé e, portanto, para ser aceito é preciso
que se creia nele. A única alternativa à sua aceitação pela fé. é a sua rejeição].
O evangelho manifesta a seriedade de sua presença em nossa vida im-
pondo a opção entre o caminho da fé e a escandalização. [Ou a pessoa aceita o
evangelho, crendo nele, ou se escandaliza com a verdade que apresenta, consi-
derando-o absoluta loucura em sua pretensão de ser o único caminho para a
redenção, situando-o, quando muito, como uma possibilidade, uma interpreta-
ção e quiçá, até uma verdade entre muitas outras alternativas, filosofias, cren-
ças e religiões].
Aquele que não estiver à altura da contradição, que não se conformar com
ela, [que não estiver pronto a perseverar na esperança da boa nova qual o evange-
lho a apresenta, não quiser esvaziar-se a si mesmo para dar lugar à plenitude de
Deus] para esse, o evangelho será motivo de escândalo. Todavia, a todos os que
não fugirem da evidência da contradição [antes perseverarem na aceitação da
graça paradoxal e inaudita, e estiverem prontos para morrer para a vida material
(a fim de ganharem a vida espiritual), de se esvaziarem completamente (para se
encherem dos dons do espírito), que nada pretenderem, nem mesmo ousarem
desejar herdar a vida eterna ou se locupletar de dons celestiais, que não imagina-
rem uma transação de vacuidade calculada para dar lugar ao preenchimento que
viria qual recompensa, os que voltarem suas vistas, sinceramente, para a Cruz e a
Ressurreição] para esses tais abrir-se-á o caminho da fé.
A fé é o respeito ante o incógnito divino, e o amor a Deus, com plena
consciência da diferença qualitativa entre Deus e os homens; Deus, e o mundo.
Fé é a confirmação da ressurreição como ponto de retorno do mundo [ao con-
sentimento], ao SIM contido dentro do NÃO divino. A fé é a estacada arrasado-
ra perante Deus, em Cristo Jesus.
Todo aquele que reconhece que os limites do mundo estão demarcados
por uma verdade que o contradiz; todo aquele que vê a sua própria limitação
marcada pela vontade divina que contraria sua própria vontade; quem acaricia
o espinho que esse cerceamento representa em seu ser e seu modo de ser, ainda
que isto lhe seja extremamente difícil, por conhecer demasiadamente bem a
extensão dessa contradição e que, embora por essas razões todas tenha anseios
de escapar dela, obriga-se a viver com ela (Overbeck) e que, em resumo, se
confessa sujeito a essa contradição, vencendo a si mesmo ao ponto de nela [e
por dai apoiar e orientar a sua vida, — esse tal crê!
Quem confia em Deus — em Deus mesmo e somente em Deus isto é,
quem reconhecer a fidelidade de Deus na própria contradição que essa fidelidade
impõe e pela qual somos deslocados [somos feitos estrangeiros] da existência e
do modo de ser deste mundo, quem corresponder a essa fidelidade divina com

44
O Tema da Epístola 1, 16

a sua própria fidelidade, quem ficar com Deus, a despeito de todos os “ainda
que” e “apesar de” [que as contingências da vida possam trazer], este CRÊ!
E o crente encontra no Evangelho o “Poder de Deus” para a salvação, os
raios precursores da eterna bem-aventurança, e o ânimo de colocar-se em guar-
da, de sentinela!
Mas o encontro, a descoberta, do Poder de Deus, exige a escolha (a
opção) livre e contínua, de cada instante, entre o escândalo e a fé. Todavia, no
que concerne à fé, o calor da descoberta, a pujança da convicção, o grau de
entendimento e a cultura alcançada são mera roupagem [de ocorrências] deste
lado [de aquém ressurreição] e por isso marcos irrelevantes do fenômeno.
Sendo marcos do acontecimento da fé não são grandezas positivas,
porém, grandezas negativas com relação a outras positivas, quais etapas de
trabalho de desentulho pelo qual desocupamos a praça “deste lado” para receber
o “além”.
É por isso que a fé não é, jamais, idêntica à “religiosidade” ainda que
esta seja a mais fina, a mais pura, pois a religiosidade é um marco da fé, e como
tal anula outras realidades do mundo e junto com estas, notoriamente, a si mes-
ma. A fé, porém, vive por si própria, porque vive de Deus! Este e o CENTRUM
PAULINUM. (Bengel).
Todo indivíduo pode e deve crer. Com o direito de opção [a crer e a
escandalizar-se] estão “o judeu e o grego”.
O evangelho questiona a existência e o modo de ser do mundo e, conse-
qüentemente, de cada ser humano; tão certo quanto a profunda problemática de
nossa vida é uma condição geral, assim, também a contradição divina em Cris-
to faz-se sentir individualmente, em cada pessoa. O “judeu”, o homem religio-
so, o homem de igreja, é o primeiro a ser chamado a fazer a opção pois ele está
na linha divisória, lá onde deveria ser vislumbrada a linha de interseção (1. 4)
do plano deste mundo com o da nova dimensão [e nessa interseção, o seu ponto
de destaque — a ressurreição de Jesus], (2, 17-20; 3, 1-2; 9,4-5; 10, 14-15). O
fato de ser o judeu o primeiro a escolher [a decidir] não representa primazia ou
superioridade. [O judeu deveria ser o primeiro a reconhecer o Salvador, o Cris-
to, em Jesus, por lhe terem sido confiados os oráculos divinos a fim de que se
desempenhasse da incumbência de nação sacerdotal, isto é, de povo escolhido
para servir a Deus endireitando as veredas para o advento de Emanuel, que é
Deus conosco; foi às portas de Jerusalém que ocorreram os marcos materiais
da ressurreição que é a investidura espiritual de Jesus como Filho Unigênito de
Deus, O “judeu” (ou o crente que conhece a Bíblia, que assiste aos cultos, que
trabalha na Igreja) foi devidamente instruído na lei, teve conhecimento da sã
doutrina, sabe qual a vontade de Deus, a ponto de arvorar-se em mestre, guia de

45
1, 17 O Tema da Epístola

cegos e luz nas trevas; tem pois obrigação de achegar-se primeiro a seu Senhor
e Redentor.
Os judeus tiveram a voz de seus profetas e os crentes de hoje têm a graça
de Jesus revelada nas Escrituras Sagradas. Esta é a vantagem de uns e outros. Os
judeus tiveram o testemunho dos patriarcas e profetas e da própria linhagem de
Cristo, segundo a carne; os crentes de hoje, herdando as mesmas provas antigas,
receberam o dom maior de serem o novo Israel de Deus, nação eleita pela adoção
através de Jesus Cristo. Os ‘judeus” que não confessam a Cristo como seu Salva-
dor por não aceitarem a ressurreição, por nela não crerem, e os gentios que ou-
vindo o convite de Jesus não o aceitarem por não se conformarem com a renúncia
que impõe, pela contradição que representa, ao renegarem a opção da fé, optam
pelo escândalo, não com maior degradação, porém primeiramente!].
A pergunta “se é religioso, ou não”, já não tem mais razão de ser, e da
outra interrogação: “Se é eclesiástico ou mundano”, nem se fala. [Se é clérigo
ou leigo].
A possibilidade de ouvir o evangelho é igual para todos e assim também
a responsabilidade de anunciá-lo para que seja efetivamente ouvido e se cum-
pra a promessa feita aos que em o ouvindo, o aceitarem.
O que se revela no evangelho é o grande, o universal mistério da justiça
de Deus, que pesa sobre todo homem seja qual for sua categoria, posição ou
nível. A harmonia de Deus em si mesmo [do seu amor e da sua justiça tão
insistentemente procurada por judeus e gregos, por todo mundo, vem à luz e é
exaltada em Cristo Jesus.
O que o homem entende por Deus aquém da ressurreição, é caracteristi-
camente a negação de Deus. E um Deus que não redime a sua criatura; que
permite o livre curso da injustiça humana; que não se confessa ser nosso Deus.
[Ora] um Deus que seja a confirmação máxima do que o mundo é e de
como o mundo é, — é simplesmente insuportável; é “NÃO — DEUS”, a des-
peito dos mais altos atributos com que o adornemos.
O clamor revoltoso dos que se insurgem contra tal Deus está mais perto
da verdade do que as artificialidades levantadas pelos que o querem justificar.
É somente pela carência de coisa melhor e pela falta de coragem de ir
até o desespero, que o ateísmo não se generalizado lado de cada ressurreição.
Porém, em Cristo, Deus fala; fustiga o NÃO-DEUS das mentiras deste
mundo e confirma a si mesmo ao negar-nos quais somos e ao rejeitar o mundo,
qual é.
Ele dá-se a conhecer como Deus, Deus além da nossa queda, além do
tempo, da matéria e dos homens: como libertador dos cativos e assim, em seu
conjunto, como Criador.

46
O Tema da Epístola 1, 17

Ele se declara nosso Deus enquanto cria e resguarda a distância que vai
de nós a ele; ele se compadece de nós convidando [provocando] a nossa crise e
trazendo-nos a juízo. Ele garante a nossa salvação querendo ser Deus e ser
reconhecido como Deus, em Cristo. Ele nos justifica, justificando-se a si mes-
mo. [Submetendo-se, ele mesmo, à sua justiça].
“Pela fidelidade” revela-se a nós a justiça de Deus: pela sua fidelidade
para conosco. O verdadeiro Deus não se esqueceu do homem. O criador não
abandonou a criatura.
Tenha o mistério sido “silenciado” desde os tempos “remotos”, e que
ainda continue oculto (16, 26); que sempre, de novo, o homem considere o
NÃO-DEUS mais suportável que a contradição divina [em Cristo]; que nos
pareça impossível a revelação do irrevelável ante o qual só a irreflexão não
recua assustada [desalentada]; permanece, todavia, a fidelidade de Deus para
com o homem. Permanece a mais profunda coincidência [a congruência] entre
a vontade de Deus e o anseio que o homem, depois de liberto, aninha no mais
recôndito de seu ser: Esperamos um novo céu e uma nova terra onde habite a
Justiça! A este nosso anseio é dada a resposta divina quando a última interrogação
humana acorda em nós. [Quando ouvimos a boa nova, vinda do lado de Deus;
quando estiverem fora de circulação todas as moedas falsas, cunhadas pela
nossa pretensão, nosso egoísmo, nossa auto-suficiência, nossa arrogância].
E porque estamos empenhados nesta esperança, nisto reconhecemos a
fidelidade de Deus.
À fé revela-se o que Deus revela por sua fidelidade. Aqueles que pres-
cindiram da comunicação direta, recebem-na; àqueles que ousam arriscar-se
com Deus [que entregam a própria sorte em suas mãos, sem indagar sobre a
natureza de Deus] fala Deus como ele é; aos que tomam sobre si o fardo do
divino NÃO, ele suporta com o divino SIM, que é infinitamente maior. Os que
sofrem a contradição, sem dela fugir, são sobrecarregados, mas aliviados; aqueles
que perseveram na esperança, nela mesmo reconhecem que estão autorizados a
tê-la: que podem e devem esperar pela fidelidade de Deus.
Neles cumpre-se a profecia: “O justo viverá pela fidelidade”. (Hab. 2, 4).
O “justo” é o cativo que se transformou em sentinela. E o atalaia no
umbral da realidade divina. Não há outra justiça que a do homem atemorizado
e esperançoso que se submete à justiça de Deus. Ele viverá: ele traz em si a
candidatura à vida verdadeira, desde o momento quando reconheceu a futilida-
de desta vida, e passou a ter nela, sempre presente, o reflexo da outra, da verda-
deira; dentro do efêmero passou a ter a vista voltada para o eterno!
A grande impossibilidade anunciou-lhe o objetivo e o término dos pe-
quenos impossíveis. Ele viverá da fidelidade de Deus.

47
1, 17 O Tema da Epístola

Dizer-se da fidelidade de Deus ou pela fé humana é o mesmo. A forma


pela qual as palavras do profeta vieram a nós, aponta às duas direções.
É pela sua fidelidade que Deus, como o total outro, o Santo, com seu
inevitável NÃO, veio ao nosso encontro, em nosso encalço.
A fé, pela parte do homem, é a adoração que este NÃO divino aceita
[pois sem fé é impossível agradar a Deus]; a fé é a fonte que promove no ho-
mem a vontade de esvaziar-se; a fé é a comovida persistência na negação, [ex-
pressa pelo NÃO divino e, conseqüentemente na total negação a si mesmo,
como está escrito: “Quem quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a
sua cruz e siga-me.”] (Marc. 8, 34).
Onde a fidelidade de Deus encontra essa fé, aí se revela a sua Justiça. E
o justo viverá!
Este é o tema em torno do qual gira a Epístola aos Romanos.

Comentários: 1, 16-17

Da análise do que o Autor classifica como a introdução da Epístola,


destaco os seguintes pontos como fundamentais:
1. Paulo fala como servo e arauto. Submisso e sem diretriz própria, mas
altaneiro, firmemente decidido a cumprir o mandado (mas não man-
dato) que recebera.
Igual aos demais homens e até abaixo deles, pois vem servi-los, e
também, pela investidura que recebeu de seu Rei e Senhor, superior a
eles todos pois vem revestido de munus mais excelente que outro
qualquer, o de anunciar-lhes as boas novas de salvação, isto é, do
restabelecimento do vínculo entre Deus e os homens, trazendo-os de
volta à sua posição original e que lhes foi concedida desde antes dos
tempos por eleição divina: a de Filhos de Deus.
2. Paulo, como homem e conservo de seus semelhantes, tem anseios e
esperanças pessoais que submete ao escrutínio e à vontade de Deus.
Se Deus “quiser” e o consentir, irá visitar os romanos entre os quais
gostaria de produzir frutos também.
Mas é absolutamente fiel, até mesmo na gratidão. (Era de têmpera bem
diferente da de Jonas...).
“Incessantemente dou graças a Deus, por vós, pois em todo mun-
do fala-se de vossa fé”.
Era a alegria de ver o evangelho que ele pregava, já anunciado e
crido em Roma.

48
A Noite [As Trevas] (18-32) 1, 18

3. Barth destaca a excelência do evangelho que fica acima de tudo quan-


to pertence ao mundo ou diz respeito a ele; não é sequer compatível a
todos superlativos que se possam imaginar. Está tão distante dos ho-
mens quanto o próprio Deus. Assim como o encontro do homem com
Deus, vem do alto, é promovido por Deus SPONTE SUA, assim o
evangelho, que é o Poder de Deus para a salvação de todo o que crê,
vem de além da ressurreição, do lado de Deus, e ao homem é faculta-
da, apenas, a opção entre a fé e o escândalo. E por isso que Paulo não
se envergonha do evangelho!
4. O Autor destaca a justificação pela fé, como o tema central da Epísto-
la. Estabelece dois movimentos coincidentes, como Causa e Efeito.
A Causa: A fidelidade de Deus.
O Efeito: A fé, gerada pela própria fidelidade divina.
5. Persiste em todo comentário o intenso destaque do combate às for-
mas mui sutis da idolatria; desde a valorização das obras, do mérito
humano, até a elevação desmedida das atividades para-espirituais,
como a religiosidade e até mesmo a fé, pois ninguém dela se glorie;
Deus é o seu autor e consumador; ela vem de Deus e vive de Deus.
Todavia, ao homem criado à imagem e semelhança (espiritual) de
Deus, por força da própria semelhança, foi lhe dado, ainda no Éden,
o privilégio da opção que haveria de diferenciá-lo, por toda existên-
cia, das alimárias do campo; este privilégio Deus reiterou ao homem
proporcionando-lhe o direito de optar entre a aceitação e a rejeição
do evangelho; entre crer e escandalizar-se; entre o caminho da fé para
a reunião com Deus ou o da lógica do mundo, quiçá mais cômoda e
agradável, porém para o definitivo afastamento de Deus.

O Autor chama “NOITE” a escuridão em que se encontra o homem


quando a luz do alto fica toldada pela ira de Deus e analisa as causas dessa ira
e o seu MODUS OPERANDI, ou melhor, através de que processo a ausência
de luz se efetiva — opera entre os homens.

A NOITE

A Origem (1, 18 - 21)

V. 18 Pois a ira de Deus revela-se do céu sobre toda a impiedade e insubordi-


nação dos homens, que detêm a verdade presa nos grilhões de sua insu-
bordinação.

49
1, 18 Origem da Noite

Deus! Ao dizermos Deus, não sabemos o que dizemos e quem verdadei-


ramente crê, compreende essa afirmação pois, quem crê ama, como Jó, ao Deus
que em sua inacessível altura só pode ser temido [mas não pode ser observado,
apalpado ou visto se não pela fé]; quem crê ama, como Lutero, ao Deus
ABSCONDITUS; a quem assim crê, revela-se a justiça de Deus: este, somente
este, é salvo. “Só o preso é liberto, só o fraco é robustecido, só o humilde é
exaltado; só o que está vazio se farta; apenas o nada se torna algo”. (Lutero).
Porém, sobre a impiedade e a insubordinação revela-se a ira de Deus.
A ira de Deus é o julgamento sob o qual estamos enquanto não amamos
o juiz. [E a sentença que pesa sobre nós enquanto não aceitamos a graça de
Deus em Jesus Cristo, que nos leva a amá-lo; enquanto não afastamos a ira de
Deus submetendo-nos ao seu Poder]. A ira divina é o NÃO que permanece
diante de nós enquanto não o aceitamos [isto é, enquanto não nos colocarmos
também do lado do NÃO, vale dizer, do lado de Deus]. A ira de Deus é o
protesto contra a existência e o modo de ser do mundo, e está inscrita em toda
parte e acima de tudo e persiste contra nós enquanto esse protesto não for tam-
bém nosso próprio protesto. Essa ira é a problemática de nossa vida enquanto
não a entendermos [à luz da revelação divina manifesta na ressurreição de Cris-
to], e é a nossa limitação e transitoriedade [do berço ao túmulo] enquanto não
reconhecermos a necessidade [ou a graça] dessa condição.
O julgamento sob o qual estamos é inteiramente independente da ati-
tude que tomarmos ou tivermos com relação a ele, e constitui o fato mais
marcante da nossa vida; sua penetração em nossa existência trazendo-nos a luz
do mundo vindouro e da salvação, [ou trazendo condenação] é questão que
depende da resposta que dermos ao problema da fé. [Ou rejeitamos a fé, consi-
derando-a um escândalo, ou aceitamos o dom de Deus, abrindo o caminho para
a própria fé]. Todavia, o fato permanece o mesmo qualquer que tenha sido a
nossa opção. (1, 16).
Mesmo que a porta que nos encerra na prisão não se transforme em
portal de saída, o nosso tempo material continua sendo nada quando compara-
do (e medido) em termos da eternidade; as coisas materiais são meras seme-
lhanças quando postas em termos de sua origem e fim; continuamos sendo
pecadores destinados à morte. Tudo isso prevalece. A vida continua o seu curso
com todas suas incertezas mesmo que não percebamos o grande ponto de inter-
rogação que está posto diante de nós. O homem está perdido ainda que nada
saiba da salvação; e a porta que cena o vão continua fechada: não se transforma
em atalaia; a espera [ansiosa pelo alvorecer] deixa de ser jubilosa, radiosa, para
ser uma acre-doce capitulação ante o inevitável. A reação não é mais de espe-
rança porém de penosa obstinação. O frutífero paradoxo de nossa existência

50
Origem da Noite 1, 18

torna-se o seu caruncho secreto, e a negação [de si mesmo] passa a ser exata-
mente o que se entende por ela [segundo o mundo]. No lugar do Deus Santo
entroniza-se o Destino, a matéria, o universo, o acaso, “ANANKE” [a personi-
ficação do destino, ou fado]. É então, um sinal de bom senso quando evitamos
chamar de Deus ao NÃO-DEUS da incredulidade, (1, 17). Mas a última conse-
qüência da ira divina é aquilo que identificamos como sendo Deus sem crer na
ressurreição.
O Deus que, em contradição a seu nome, confirma a existência e o modo
de ser do mundo, também é Deus: Deus em sua ira; Deus que nos traz sofri-
mento; Deus que já não pode deixar de se afastar de nós; que só pode dizer
NÃO e, por isso é, por todos os retos, chamado Deus, sob reservas, pois a ira de
Deus não pode ser a sua última palavra, sua verdadeira revelação final.
O NÃO-DEUS não pode ser chamado, verdadeiramente Deus mas na
verdade, é sempre com Deus que nos deparamos. [É Deus que diz NÃO ao
pecador, e ao manifestar o seu NÃO, ele é verdadeiramente DEUS; este Deus
que diz NÃO, e ao dizer o seu NÃO confirma a existência da abominação do
mundo é, todavia, diferente do deus criado pelo homem, à sua própria imagem
e semelhança e que confirma a existência e o modo de ser do mundo com o seu
consentimento, a permissividade complacente, o livre curso dado a abominação,
(sem levantar-lhe o sinal do NÃO DIVINO). Todavia, o Deus que diz NÃO e
que manifesta a sua ira sobre os homens que procedem segundo os ditames de
seu próprio coração (e seu deus), é também o Deus de Amor que mandou o seu
filho unigênito ao mundo para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha
a vida eterna. Contudo, seja qual for a nossa posição pessoal, na problemática
de nossa existência, deparamo-nos sempre com Deus, ainda que nossos cami-
nhos não sejam os seus caminhos e nossos pensamentos sejam rasteiros].
Também a incredulidade depara-se com Deus, porém a incredulidade
não penetra na verdade de Deus que lhe é oculta [pois não crê, e a verdade, que
não é material, somente pode ser vista com os olhos da fé] e se despedaça em
Deus como Faraó. (9, 15-18).
Segundo Zuendel: “Todo o impedimento e dano à vida criada por Deus,
a história conjunta da queda e do cerceamento da vida das criaturas, inclusive a
punição com a morte, é uma reação de Deus”. Entretanto precisamos acrescen-
tar que somente pereceremos dessa reação se não tomarmos conhecimento dela
para dela nos apropriarmos. O mundo todo é vestígio de Deus; entretanto, se
em vez de optarmos pela fé preferirmos “o escândalo” acharemos unicamente
o rastro da ira de Deus.
A ira de Deus é a justiça de Deus revelada ao incréu. De Deus não se
zomba: a sua ira é a justiça fora de Cristo e sem Cristo.

51
1, 18 Origem da Noite

O que quer dizer “fora de Cristo” e “sem Cristo”? “A ira de Deus revela-
se contra toda a impiedade e insubordinação dos homens”. Estas são as marcas
características de nossa relação com Deus aquém da ressurreição.
É desrespeitoso! [O nosso procedimento]. Pretendemos saber o que dize-
mos quando enunciamos a palavra “Deus”! Atribuímos-lhe a posição mais alta
de nosso mundo e, em assim fazendo, colocamo-lo, fundamentalmente, na
mesma linha em que estamos, nós e as coisas materiais; achamos que ele “precisa
de alguém” e que podemos ordenar as nossas relações com ele como arranja-
mos qualquer outro relacionamento. Enfiamo-nos para junto dele sem maiores
reservas [o Autor usa expressão equivalente a “insolentemente” ou “atrevida-
mente”, e penso que “sem maiores reservas” fica em melhor harmonia com o
contexto] e, assim procedendo, o projetamos para nosso nível (o Autor diz “para
nossa proximidade”). Permitimo-nos uma espécie de familiarização com ele e
habituamo-nos a contar com ele [para todas as coisas] como se o relacionamen-
to com Deus fosse coisa vulgar [e não especialíssima, da criatura com o Cria-
dor, relacionamento que só Jesus Cristo tornou possível, como nosso media-
dor, intercessor e advogado, em nome de quem nós nos aproximamos de Deus].
Levamos o nosso atrevimento ao ponto de nos arvorarmos em seus familiares.
seus benfeitores, seus administradores [mordomos fiéis], seus corretores.
Confundimos a eternidade com a temporalidade.
Esta é a nossa falta de respeito no relacionamento com Deus.
Secretamente, nesse nosso modo de proceder, somos nós os Senhores.
Para nós não se trata de Deus porém das nossas necessidades [de nossos dese-
jos e conveniências] pelas quais queremos que Deus se oriente.
Além de tudo isso, a nossa petulância pede ainda que nos seja dado a
conhecer um “super-mundo” e que tenhamos acesso a ele. Pedimos uma moti-
vação profunda, um louvor ou uma recompensa, vinda do além.
Porfiamos por colocar Deus sobre o trono do mundo quando na realidade
estamos entronizando a nós mesmos. “Crendo” nele, estamos apenas preocupados
com a nossa justificação, honrando-nos a nós mesmos e tirando proveito próprio.
Nossa religiosidade consiste na solene confirmação que fazemos a nós mesmos e
ao mundo de que, piedosamente, nos poupamos da contradição. [Arvoramo-nos
em servos fiéis; procuramos promover o reino de Deus sobre a terra, não por amor
ao reino mas para ganharmos a recompensa de Deus. Ou então queremos Deus do
nosso lado para abençoar e fazer prosperar o nosso negócio ainda que seja a ruína
de nosso concorrente; gostamos de religião cômoda, tolerante para com o mundo e
tolerável para ele, e classificamos o nosso comodismo como piedade religiosa].
Sob todos os sinais de piedade e enternecimento, na realidade, rebelamo-nos contra
Deus, confundindo o nosso tempo finito com a eternidade de Deus. [Por querermos

52
Origem da Noite 1, 18

ser iguais a Deus embalamo-nos em nossas pretensões e ilusões, esquecendo que


nossa vida é qual a erva que foi num instante e já não é; todavia, para o verdadeiro
Deus, não há fim como não houve princípio].
Esta é a nossa rebeldia. E o nosso relacionamento com Deus, estabeleci-
do sem Cristo e fora de Cristo; aquém da ressurreição; antes de sermos chama-
dos à ordem; e o relacionamento no qual, verdadeiramente, não reconhecemos
a Deus como Deus, e o que chamamos Deus é, na realidade, o próprio homem.
Servimos a este NÃO-DEUS para vivermos segundo nossos desejos [abafando
a consciência com o deus-ídolo, criado à nossa própria imagem].
Os quais “detêm a verdade, presa nos grilhões de sua insubordinação”.
Esta é a segunda característica [daqueles sobre os quais paira a ira de Deus; a
primeira, (assim chamada porque o Autor tratou primeiramente dela) é a troca
entre a temporalidade e a eternidade, ou vice-versa]. Todavia essa segunda ca-
racterística é cronologicamente mais antiga pois surgiu com o pecador original
[quando o homem quis ser igual a Deus. O ser humano perde-se primeiro em si
mesmo, presa de sua própria conduta, [retendo a verdade] e depois pela criação
(e adoração) do NÃO DEUS.
Ouvimos, primeiro, a profecia: “Sereis como Deus!” Depois perdemos
o senso do eterno. Primeiramente sobre-elevamos o homem e, em seguida,
menosprezamos a distância que nos separa de Deus.
O ponto nevrálgico do nosso relacionamento com Deus, fora de Cristo e
sem Cristo. é a revolta do escravo. [Revoltamo-nos contra Deus e, nessa rebel-
dia] atribuímos a nós o que só pode ser atribuído a Deus e, conseqüentemente,
nada temos acima de nós para atribuirmos a ele, pois somos para nós mesmos o
que Deus deveria ser. Quando [em nosso íntimo], secretamente, nos fazemos
iguais a Deus, nós nos isolamos dele.
O pequeno Deus que criamos, dispensa, necessariamente, o grande Deus.
[Por isso] os homens aprisionam, encapsulam, a verdade, que é a santidade de
Deus que procuram vestir em si mesmos e assim despojam a seriedade e o
alcance dessa santidade, tornando-a vulgar, inócua, inútil; transformam-na em
inverdade. Este desfecho vem à luz [se revela] pela impiedade dos homens o
que [em círculo vicioso] gera novas e constantes rebeldias.
Quando o homem se torna o seu próprio Deus, precisa criar o ídolo
[para representar a sua criação] pois, elevando o ídolo em honra, honrar-se-á a
si mesmo como o criador da [tão honrada] imagem [e portanto digno de honra
ainda mais alta].
Esta é a resistência que nos torna impossível olhar a planície da nova
dimensão e nela ver a limitação de nosso mundo e a nossa salvação.
A situação é esta:

53
1, 19 Origem da Noite

Vs. 19-21 A idéia de Deus lhes é conhecida, Deus a deu ao conhecimento deles
pois as coisas invisíveis estão manifestas, desde a criação do mundo, nas
suas obras, se forem observadas sensatamente, (e este é Justamente o seu
Poder Eterno, a sua divindade!) que não haja desculpa, porém, a despeito
do conhecimento que tiveram de Deus eles não lhe tributaram honra nem
lhe renderam gratidão, antes, esvaziou-se o seu pensamento e obscureceu-
se-lhes o coração insensato.

“A idéia de Deus lhes é conhecida”. Esta é a tragédia na história da


paixão da verdade [a paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo]. A verdade da limi-
tação e anulação do homem pelo Deus desconhecido, a qual surge, e se torna
conhecida, com a ressurreição.
Ao deparar com a nossa limitação e com o fato de que quem nos cerceia
é também quem suprime esse cerceamento, o raciocínio humano, desde a sua
forma mais primitiva até a sua forma mais elaborada, cairá, repetidamente, em
“desesperadora humildade” e na “ironização da inteligência”. (H. Cohen).
Sabemos que Deus é o Deus que não conhecemos, e que esta ignorância
é, simultaneamente, o nosso problema e a origem de nosso conhecimento.
Sabemos que Deus é a personalidade que não somos e que justamente
este NÃO-SER anula e também estabelece nossa personalidade.
Esta idéia de Deus, a introspecção na absoluta heteronomia sob a qual
nos achamos, é autonomia: quando resistimos a ela, não reagimos contra algo
estranho mas contra o que nos pertence, que está ao nosso alcance, junto de
nós, e não contra coisa distante, remota.
Essa idéia acompanha-nos constantemente como problema e advertência;
é o abismo oculto mas também o lar secreto — origem e destino de todas nos-
sas caminhadas. Se formos infiéis a ela, se-lo-emos a nós mesmos.
“Porque a invisibilidade (de Deus) pode tornar-se visível”. Esquecemo-
nos disto e é preciso que no-lo seja dito novamente: a naturalidade de nossa
presunção, nossa irreflexão e o nosso destemor, que manifestamos em nosso
relacionamento com Deus, não é característica inerente ao processo. A sabedo-
ria de Platão, há muito, reconheceu o desconhecido como sendo a origem do
conhecido. Olhos perquiridores e incorruptos como os de Jó e do Pregador
Salomão, também há muito, encontraram o modelo ideal, o invisível, a inatin-
gível altura de Deus, no espelho das coisas visíveis.
A voz de Deus é sempre perceptível [até nas vulgares características da
atmosfera], no tempo, e leva-nos a reconhecer que falamos tolamente, e das
coisas que estão por demais elevadas acima de nós, sobre o que nada entende-
mos, quando falamos fazendo o panegírico de Deus ou quando nos apresenta-

54
Origem da Noite 1, 20

mos ante a sua face quer como acusadores, quer como queixosos, arrazoando
com ele conforme o fazemos com nossos semelhantes.
A problemática de nossa existência e de nosso ser, a vaidade e a incerte-
za de tudo o que é e o que somos, está sempre diante de nós como um livro
didático, aberto.
O que são as obras de Deus em suas formas as mais enigmáticas (um
jardim zoológico, por exemplo) se não perguntas que não têm respostas diretas
e das quais só Deus, Deus mesmo, é a resposta?
O NÃO divino que aponta à nossa limitação e, nela, para a nossa saída
dela, pode ser percebido e compreendido pela contemplação sensata, calma,
objetiva e sem religiosidade preconcebida, das obras de Deus, desde a criação
do mundo.
Nada e ninguém, senão nós mesmos, pode impedir que a idéia de Deus
nos faça entrar na mais salutar das crises que, na realidade, começa a manifes-
tar-se desde o momento quando nos dispomos a ver sensatamente.
A invisibilidade de Deus foi sempre fato inquestionável para todos obser-
vadores sábios e está em absoluta correspondência [congruência] com o evange-
lho da ressurreição, o eterno Poder e a Divindade de Deus. Exatamente isto: nada
podemos saber a respeito de Deus; não somos Deus; o Senhor deve ser temido.
Esta é a sua preeminência sobre todas as divindades e é isto que o aponta como
Deus, Redentor e Criador. (1, 16).
A linha divisória entre a temporalidade e a eternidade, entre o mundo
presente e o futuro, corta, efetivamente, toda a história; ela foi anunciada há
muito (1, 2); ela sempre poderia ter sido vista, [que sempre esteve patente aos
olhos que quiseram ver].
A ira de Deus não se revela irremediavelmente sobre os homens que
estão sob seu julgamento, pois eles podem reconhecer e amar seu Juiz, “Para
que não tenham desculpas” quando não vêem e não ouvem, pois acontece com
olhos que podem ver e ouvidos que podem ouvir. Indesculpável é sua impieda-
de porquanto as obras de Deus, “sensatamente contempladas”, falam do seu
Poder Eterno e protestam, de antemão, contra a submissão ao conhecido NÃO-
DEUS, ao qual o Deus verdadeiro é equiparado pelas forças espirituais, mate-
riais e outras deste mundo.
Também a sua rebeldia é indesculpável pois a realidade “sensatamente
observada” testemunha a “eterna divindade” de Deus e protesta, também de
antemão, contra a arrogância religiosa que, no torvelinho de sua aventura, fala
em Deus e pensa em si mesma.
Se tivermos encapsulado a verdade de Deus e, assim, atraído sobre nós
a sua ira, não foi porque não tivemos outra alternativa pois “Deus, em quem

55
1, 21 Origem da Noite

vivemos, nos movemos e existimos não está longe de cada um de nós” (Atos
17, 27-28). Portanto, no que concerne a Deus, a situação poderia ser diferente.
Porém, “a despeito de seu conhecimento de Deus”...
O conhecimento de Deus que nos é dado com um simples relance de
olhos sobre a inexplicabilidade, a imperfeição e a insignificância de nossa vida,
não foi levado a proveito.
A invisibilidade de Deus parece-nos menos suportável que a tão duvi-
dosa visibilidade daquilo que gostamos de designar por Deus.
Da pressuposição eterna e fundamental do Criador faz-se uma “coisa”
em si, acima e ao lado das demais coisas; da viva abstração de toda materialidade,
criamos uma coisa concreta, ainda que seja a coisa mais sublime entre todas.
Do Espírito, criamos um espírito; do Não Aproximável (e por isso tão próximo
de nós) fazemos o objeto eternamente incerto de nossas experiências.
Em vez de vermos a luz na sua luz que é a luz eterna que ninguém pode
apagar, fazemo-la apenas uma luz entre outras ainda que a reputemos a maior,
a mais fantástica, sobrenatural; achamos lógico acender a nossa luz nessa luz
sobrenatural e, com a mesma lógica procuramos a luz nas coisas concretas que
nos cercam.
Onde fica, pois, a tributação da honra que lhe devemos quando Deus já
não é mais o Desconhecido? Onde a gratidão que lhe pertence quando, para
nós, ele já não é mais do que aquilo que nós mesmos somos?
Prometeu tem o direito de insurgir-se contra Zeus, o “NÃO-DEUS” que
usurpa o lugar de Deus.
Conseqüentemente, a luz que há em nós são trevas e a ira de Deus sobre
nós é inevitável. “Esvaziou-se o seu pensamento e obscureceu-se o seu coração
insensato”, e a nossa limitação é verdadeiro emprisionamento e o NÃO divino
significa realmente NÃO, para nós.
Insensatamente senta-se o homem sobre si mesmo e enfrenta as absur-
das e ativas forças do mundo [absurdas porque não têm sentido, são nulas e
vãs] pois a nossa vida só tem sentido e é sensata quando voltada, orientada para
o Deus verdadeiro.
Esta orientação para Deus, este relacionamento, precisa ser estabeleci-
do para que a nossa mente e nosso coração, contemplando com sensatez, sejam
quebrantados com a lembrança da eternidade — [ou, em outras palavras, para
que a lembrança da eternidade de Deus, proclamada por suas obras, seja perce-
bida por nós, invada nossa mente e nosso coração, e nos oriente, nos aproxime
do Deus eterno, em Cristo Jesus.]
Outra relação com Deus que não aquela do caminho de Jó, não existe.
Se não houver o rompimento [da casca externa, criada pela nossa resistência

56
Origem da Noite 1, 18-21

pessoal] então o pensamento continua vazio, formal, analista e crítico, infrutí-


fero, inadequado para perceber a abundância das manifestações [do Poder de
Deus]; incapaz de compreender as coisas particulares no contexto do conjunto.
A mente não convenientemente aberta orienta-se, naturalmente, para as
coisas materiais e o coração não contrito, não sentindo nas obras manifestas a
visão final da natureza espiritual de Deus, entrega-se ao domínio do pensamen-
to materializado: tenebroso, cego, sem poder de crítica, erige o acaso em valor
real e cria um “ser especial” para si.
Fica a alma estrangeira no mundo e o mundo sem alma quando o mundo
e a alma não se encontrarem no reconhecimento do Deus desconhecido.
O homem foge do verdadeiro Deus, a cujo encontro deveria ir para re-
nunciar a si mesmo e também ao mundo e, assim, reencontrar a ambos. Esta
[relutância do homem em perder-se, em entregar-se a Deus] é a causa, a origem
da NOITE na qual peregrinamos: a origem da ira de Deus, sobre nós revelada.

Comentários: 1, 18-21

Sim, esta é, segundo o Autor, a origem da ira de Deus e das trevas


espirituais que sob a dispensação dessa ira nos envolvem.
1. Sob o pálio desta ira divina, há uma noite sem esperança, sem aurora,
sem novo dia, sem nova vida. É a própria morte, sem a ressurreição,
que “o salário do pecado é a morte”.
E como é provocada essa ira divina? Qual a sua origem?
Ela advém sobre aqueles que obstruem a verdade. Ela se origina
pela negação e sonegação da verdade por parte de homens ímpios e
rebeldes a Deus. Ímpios porque agem desrespeitosamente para com
Deus e rebeldes porque, cedendo à primitiva e milenar tentação que
ruge em torno da raça humana desde os dias edênicos, rejeitam o temor
e optam pela promessa da profecia satânica: “Sereis iguais a Deus”.
2. Para alcandorar-se na aparência dessa igualdade precisam os rebeldes
criar um mundo à sua feição, um mundo que negue o NÃO divino
transformando-o num conveniente “SIM” a todos os caminhos largos
e cômodos da vida; opções que não exijam luta, renúncia e negação
aos interesses imediatistas; que sob o manto da piedade religiosa to-
lerem o erro; que sob o disfarce do amor ao próximo, releguem o
amor a Deus que deve ser acima de todas as coisas, e possam os ho-
mens amar-se a si mesmos e receber a honra (e as vezes até os
proventos materiais) que os seus próximos julgam por justificável
conferir-lhes.

57
1, 18-21 Origem da Noite

3. Cria-se assim um círculo apertado de reações em cadeia: o homem


rebela-se contra Deus e cai na impiedade que o leva a novas rebeliões
e, nessa sucessão trágica, não percebe, na linha do horizonte, lá onde
os planos deste mundo e do mundo de além se cruzam, o ponto alto
de onde emana o Poder de Deus — a boa nova da ressurreição que,
esta sim, só ela, pode reconduzir o homem à situação nobre da ima-
gem e semelhança de Deus.
4. Então por que e como é a verdade detida?
— Porque a verdade desmascara a pretensa igualdade do homem
a Deus, ela liberta o mundo do círculo vicioso e aponta ao poder de
Deus. Para impedir que a sua glória transitória cesse de pronto, os
rebeldes entronizam o seu próprio deus, um ídolo. Não necessaria-
mente imagem de barro ou pedra, de refinado ouro ou prata, ou de
tosca madeira graciosamente lavrada, mas imagens criadas com sua
filosofia social, política, humanizante; com sua cultura e sua ciência;
filosofias e teologias que trazem Deus ao nível das coisas humanas,
materiais e finitas; tornam-no um ser, um ente, inda que sobrenatural,
fantástico, acima de todos e de tudo, porém comparável a nós mes-
mos (pois o homem quer ser igual a Deus) e em vez de apontarem ao
verdadeiro Poder de Deus, contemplável nas obras de suas mãos e na
ressurreição de Jesus Cristo, apontam a outros poderes, criados ora
pela mistificação humana, ora pelo seu gênio, pela sua sagacidade e
até pelo seu sério e bem intencionado desejo de servir, de defender,
de proclamar a esse deus do mundo que julgam, em seus corações
obscurecidos e suas mentes vazias, ser o Verdadeiro Deus. Apontam
ao “poder de cura”, ao “poder do que entendem ser o Espírito Santo
de Deus”; ao poder do louvor ainda que seja um louvor enlameado
pela sujidade e baixeza dos homens, como se Deus, o verdadeiro Deus,
fora subornável por semelhantes processos ou outros quaisquer que
se pudessem imaginar ou vir a imaginar.
5. Os ídolos ideados e manipulados pelo homem, obscurecem e toldam
a visão dos que os servem com tão densas trevas a ponto de fazerem
desaparecer de vista a exuberante luz que brilha, não ao lado, nem
acima, nem mais fulgurante, mas única, absoluta, incomparável — a
Santa Luz de Deus.
Todavia, agimos nesciamente. Fazemos de Deus a nossa luz, não
exclusivamente por amarmos essa luz, mas na ânsia de que essa luz, ou
luz igual, brilhe em nós, e brilhe não para que também por essa obra os
homens louvem a Deus, mas para que sejamos gloriados nela; fazemos

58
A Atuação da Noite (1, 22-32) 1, 22

de Deus o nosso protetor e guia não porque, genuinamente, queiramos


honrá-lo mas porque desejamos ser guiados e protegidos para nosso
benefício; ousamos dirigir a ele as nossas súplicas que, na melhor das
hipóteses, são bem intencionadas quando não são fúteis, vãs, irrelevantes,
egoístas; acercamo-nos do trono de graça, não para adorar mas para
suplicar: suplicar pela recompensa, pelo bem estar, pelo privilégio, por
“tudo isto e o céu também” — enquanto de passagem, como por
desobrigação, balbuciamos umas poucas palavras de gratidão.
6. Quem, porém, pode achegar-se a Deus? O grande Deus desconheci-
do, o Criador do Universo e dos milhares incontáveis mundos e de
tudo o que neles habita? Quem sabe o que pedir e como pedir? E por
isso que o Espírito, em brados inexprimíveis, intercede por nós (8,
26). Quem há perfeito? Quem Santo? Quem puro? Quem digno de
comparecer perante Deus? Mas, glória das glórias! Temos a graça de
Deus que nos é mais que suficiente e nos repõe na posição que teve
Adão antes de pecar: esta graça é o Poder de Deus, testificado, com-
provado, publicado e proclamado pela ressurreição de Cristo. Negue-
se pois o homem a si mesmo, tome a sua cruz e siga-o, e a salvação
raiará em seu coração enchendo-o de luz e sua mente haurirá a sabe-
doria divina e ele será qual árvore plantada na orla das águas e a seu
tempo produzirá os frutos de um espírito reto.

A Atuação da Noite (1, 22 - 32)

V. 22 Imaginaram que eram sábios e tornaram-se néscios.

É fora de dúvida que o panorama do mundo sem o paradoxo [que se


sintetiza no fato de ser preciso perder a vida para ganhá-la e) que se manifesta
pela vida que brota pela morte (para o mundo); pela justificação que vem após
a condenação; ou, conforme o dizer pitoresco de Lutero, pela condução ao céu
mediante o lançamento no inferno, (isto é, somente após o homem reconhecer
o seu absoluto afastamento de Deus, é que se lhe abre a porta estreita do cami-
nho apertado que conduza à salvação); sem o paradoxo de que é preciso sentir
o cativeiro para alcançar a liberdade, ser pobre para ficar rico, ser humilde para
merecer a exaltação, ser fraco para tornar-se forte, ser servo, para ser senhor!’
Sem o paradoxo de ser uma só a fonte de onde emanam o eterno NÃO e o
eterno SIM de Deus] sim, o panorama do mundo sem esse paradoxo, e sem as
implicações da Eternidade; sem o pano de fundo do “Não” conhecido que acom-
panha o conhecimento; com religião [ou religiões] sem referência ao Deus

59
1, 22 A Atuação da Noite

Desconhecido; com existência tranqüila sem a confrontação constante corri o


NÃO divino, tal mundo teria muito a seu favor.
A simplicidade, a retilineidade, a fluência desobstruída e, sobre tudo, a
relativa segurança, o equilíbrio espiritual e a notável coincidência das experi-
ências pessoais com as exigências da vida prática, a benfazeja falta de clareza e
a elasticidade dos conceitos e das escalas, o campo liberal das infindáveis pos-
sibilidades que se apresentam, tudo isto, [conseqüência do mundo “libertado”
da presença de Deus] torna a terra sobre a qual vivemos [aparentemente], cada
vez mais digna de confiança.
Depois de havermos desistido de “observar sensatamente” (1. 20) [e
perceber a existência de Deus na voz do universo] podemos bem ser sábios
nesta terra. A NOITE tem, também, a sua sabedoria, mas nem por isso deixa de
ser real o esvaziamento do entendimento e o obscurecimento do coração.
O brilho da sabedoria do mundo não fará parar a marcha das coisas,
nem impedirá a manifestação da ira de Deus, pois o não reconhecimento de
Deus. como Deus, não significa somente erro intrínseco, ou teórico, mas atitu-
de fundamentalmente errada com relação à vida.
De mente vazia e de coração obscurecido brota, certa e necessariamen-
te. um procedimento errado e, quanto mais seguro se sentir o homem insubmisso
em seu caminho, [pelas ilusões que sua rebeldia lhe traz], mais se transformará
ele em seu próprio palhaço, [pois engana-se a si mesmo].
Também são mentirosas a moral e a conduta que tiverem por fundamen-
to a supressão do abismo, o esquecimento do lar. (Isto é, não será sadia a moral
das pessoas que se esquecem de onde vieram, originariamente, e que não se
lembrarem (intencionalmente ou não) que existe uma separação profunda, um
abismo, entre Deus e o homem o qual este deve transpor (pela fé) para reconci-
liar-se com Deus. Quando ignoramos (ou pretendemos ignorar) a separação
que existe entre nós e Deus, é porque, ou não temos compreensão de nosso
estado por absoluta insensibilidade espiritual e moral, ou é porque fazemos de
Deus nosso igual, quer trazendo-o ao nosso nível ou fazendo-nos iguais a ele;
embora estas duas alternativas levem ao mesmo fim prático há certa diferença
teórica no processamento do fenômeno, pois o primeiro se origina de desres-
peito direto a Deus e no segundo, que visa em primeiro lugar à elevação do
homem, o desrespeito a Deus é conseqüência; porém ambos são desrespeito-
sos. [Ambos são formas da efetivação da mais velha tentação da raça humana:
a igualdade com Deus; e quando o homem entra neste estado deixa de ser reta
a sua conduta e os seus costumes já não são morigerados, pois para o homem
deixou de existir o padrão de aferição, o ponto de referência que fica acima
dele, imutável distante e, sendo o seu deus igual a ele, o padrão é a sua imagem

60
A Atuação da Noite 1, 22-24

vista no espelho, porém ainda menos perfeita — ou melhor, inferior a ele mes-
mo, pelas distorções que o espelho naturalmente produz, desencadeando uma
degenerescência progressiva entre a imagem e a inspiração].

Vs. 23 e 24 E eles trocaram a glória do Deus incorruptível [eterno] pela ima-


gem da aparência dos homens corruptíveis [efêmeros, passageiros] e de
aves: e de quadrúpedes e de vermes. Por isso Deus os entregou para serem
presa da impureza, segundo a cobiça de seus corações, para que seus cor-
pos fossem desonrados neles mesmos.

“Eles trocaram a glória do incorruptível” [eterno] pela imagem do cor-


ruptível [efêmero] isto é, perdeu-se o sentido do que há de específico em
Deus. Foi esquecida a fenda na geleira, a região polar, a zona árida, que o
homem deverá transpor, quando e se quiser, de fato, dar o grande passo que
vai da temporalidade para a eternidade. [Ante tal esquecimento] a distância
entre Deus e o homem não tem mais a significação marcante, fundamental,
aguda. dissolvente, a ser reparada, observada atentamente, uma vez por to-
das. Desapareceu a diferença entre a eternidade de Deus, a sua existência
desde antes de todas as coisas, a sua superioridade de um lado e, do outro, a
temporalidade, a relatividade, a condicionalidade da existência e modo de ser
da raça humana.
Os olhos que deveriam ver [a glória de Deus] estão embaciados.
Levanta-se a meio caminho entre “cá e lá” entre nós e o totalmente ou-
tro, a neblina a opacidade religiosa [quando essa religiosidade tem por centro a
imagem do próprio homem, assentada sobre o trono divino] na qual, com os
mais variados processos de identificação e mistura e com coloridos sexuais
menos ou mais carregados, ora se erigem acontecimentos humanos e animalescos
em experiência divina, ora a existência e a ação de Deus são experimentadas
como vivências humanas e de animais.
O centro, o miolo desta neblina é formado pela loucura (pela alucina-
ção) segundo a qual seria possível existir qualquer unidade [qualquer coisa em
comum] ou, ao menos, qualquer possibilidade de ligação entre Deus e os ho-
mens [aquém ressurreição], sem que se anulasse toda a realidade conhecida e
sem que desaparecesse a verdade que existe para antes do berço e além do
túmulo. [Esta ligação], todavia, faz-se pelo milagre que vem perpendicular-
mente do alto, [O milagre da entronização de Jesus, como o Cristo].
Toda experiência religiosa que se apresentar como sendo mais do que
um vazio, que pretender ter conteúdo e traduzir a posse ou o gozo de Deus,
qualquer que seja o nível em que se situe, é uma desavergonhada e, já de antemão,

61
1, 24 A Atuação da Noite

fracassada pretensão de antecipação do que sempre foi e só pode ser verdade


quando procede do Deus desconhecido.
Semelhante procedimento é histórica, material e concretamente — e sem-
pre — uma traição a Deus. E o nascedouro do “NÃO DEUS”, o surgimento dos
ídolos pois, no meio da neblina que tolda a sua visão, esquece-se o homem de que
tudo o que é passageiro, embora seja em semelhança, é apenas semelhança.
A glória eterna de Deus é trocada pela imagem de seres perecíveis (Sal.
106. 20).
Problemas diversos, tais como os temores e os anseios, os meios de
subsistência, alguma justificação adequada, determinado modo de pensar ou
agir, ou talvez algum aspecto impressionante da natureza ou da história tor-
nam-se, por vezes, tão extremamente sérios para uma pessoa [a ponto de
obliterarem a idéia de Deus ou de se constituírem em verdadeiras imagens, na
mente obcecada] todavia o fim de tais problemas [devidamente observados com
mente sensata], leva também ao Criador, ao Desconhecido, cuja glória não pode
ser confundida com a de uma imagem, por mais fina e pura que esta o seja, pois
ela não e sua igual.
Há um pretenso encontro direto do homem com Deus [e dizemos],
pretenso porque só seria verdadeiro, real, o encontro que não se condensasse
em “experiência” [em acontecimento]: o encontro que [desmentisse qualquer
pretensão a coisas palpáveis, concretas] e realçasse o vazio, o vácuo, o espaço
aberto; que fosse indicação de falta, carência ou motivação [para algo a ser
feito]. [São assim os encontros de que a Bíblia nos fala: Jacó temeu aterroriza-
do (Ge. 28, 17); Moisés, temeu, escondeu o seu rosto, pois nada tinha de si:
“Quem sou eu?” disse (Ex. 3, 6 e 11); Isaías, só viu a vacuidade, a parte nega-
tiva, extremamente negativa de sua situação: “Ai de mim, que vou perecendo,
porque sou homem de lábios impuros e habito no meio de povo de impuros
lábios”. (Is. 6, 5); Paulo caiu por terra, cego e, atônito e trêmulo, esvaziou-se
completamente, deixou de dirigir para ser dirigido, para perguntar, “quem és?”,
“que queres que eu faça?” (At. 9, 5 e 6). No encontro verdadeiro do homem
com Deus, desaparecem a pretensão e a arrogância, a auto-suficiência, a pieda-
de, a religiosidade, a ortodoxia, a fé jactanciosa, a alegada retidão, o valor pró-
prio; tudo que a alma aufere para seu eventual conforto, transforma-se em mera
indicação do muito que falta, em origem de nova compreensão, novos deveres
e novos ideais; a “experiência do encontro” é, em si mesma, um valor negativo
que aponta para o lado direito da escala, em cuja direção os valores são menos
negativos e hão de chegar gradativamente ao ZERO, para só então começarem
a ser positivos; é assim que a experiência do encontro verdadeiro é de esvazia-
mento, de vacuidade, que de certa forma se anula na própria dádiva, realçando

62
A Atuação da Noite 1, 24

o mais, o muito mais que existe. Mas não é assim o falso encontro com Deus,
ou o encontro com o NÃO-DEUS; deste encontro sai o homem cheio de con-
vencimento, pleno de gozo, repleto, satisfeito, jactancloso. Será preciso
exemplificar os encontros desse teor, que por aí polulam sob os mais variados
nomes, protestantes, católicos, espíritas e “espiritualistas”, macumbeiros e
quejandos, “curadores” e “curandeiros”, recebedores de “Espírito Santo” e de
espíritos, milagreiros, videntes, iogas...?].
Desse suposto encontro com Deus brotam por deduções mediatas e por
ilações, divindades imaginárias, poderes, principados, potestades (8, 38) que
mudam o colorido e obscurecem a luz do Deus verdadeiro. (Em nenhuma parte
do mundo existe maior número de “comunicações indiretas” que no romântico
reino da “comunicação direta” India!).
É sempre onde a distância qualitativa entre o homem e [o grande] fim [a
tradução inglesa diz “entre o homem e o ômega], é negligenciada — (essa
distância que fundamenta [que solidariza] o homem) — é aí que se instala o
fetichismo, com o endeusamento de “aves, quadrúpedes e vermes”, acabando e
começando com a “figura do homem corruptível” (“a pessoa”, “a criança”, “a
mulher”) e nas respectivas criações “materiais espirituais”. (Família, Povo,
Estado, Igreja, Pátria, etc.) Aí vive o deus [deste mundo] e o Deus que habita
além de tudo “isso” e “aquilo” é abandonado.
É assim que se criam os ídolos e o “NÃO-DEUS”.
“É por isso que Deus os abandonou”. Essa troca do Deus verdadeiro
pelo NÃO-DEUS cria o seu próprio castigo pois o esquecimento do Deus ver-
dadeiro dá lugar à sua ira contra os que o esqueceram (1, 18). A empreitada da
criação do NÃO-DEUS tira vingança de Si mesma, com o seu próprio êxito. As
forças naturais e anímicas [ou espirituais] que foram idolatradas são, agora,
deuses, e reinam em nosso ambiente como Júpiter e Marte, Isis e Osiris, Cibele
e Atis. A nossa atividade e nosso procedimento passam a ser regulados por
aquilo que queremos; portanto, forçosamente alcançaremos o alvo que nos pro-
pusemos, a saber: que todas as imagens e semelhanças, cujos significados ig-
noramos, se transformem em objetivo, conteúdo e fim. E o homem torna-se
escravo e joguete das coisas [da matéria], de toda natureza e cultura ciência]
pois ele ignorou que Deus é o Senhor de todas as coisas e tem o poder de
sustentá-las e suprimi-las. Já agora não tem o homem alguém superior que o
proteja das coisas e criaturas que ele mesmo elevou ao ponto mais alto acima
dele, e a impureza de seu relacionamento com Deus, lança a sua vida na imun-
dície. Se Deus foi destituído de sua glória pelo homem, [por força maior] perde
o homem a sua. Junto com o interior envergonha-se o exterior; com a alma,
também o corpo, pois o homem é uma unidade.

63
1, 24-25 A Atuação da Noite

A parte material de seu ser, como criatura, torna-se-lhe em desonra.


[Isto é, o corpo do homem, criado em unidade com o espírito, passa a ser avil-
tado e aviltante]. Líbido, a sexualidade em seu sentido mais restrito e também
mais lato, passa a ser a motivação de toda sua conduta e seu lidar, força perigo-
sa e suspeita no mais alto grau.
Eis, agora, o homem obrigado a suportar toda a ignomínia do mundo
como humilhação e desonra; há de lamentá-la e amaldiçoá-la e, no seu afasta-
mento de Deus, há de testemunhar, sempre de novo, que ele quis dar vida ao
Deus conhecido deste mundo. E pois, este Deus conhecido que ele vive [ou que
vive nele].

Vs. 25 e 27 Eles trocaram a verdade de Deus pela mentira e tomaram o mundo


criado, por santo e digno de honra, em lugar do Criador que é bendito
para todo o sempre, amém! Por isso Deus os abandonou a paixões
aviltantes; suas mulheres abandonaram o uso natural do sexo pelo uso
antinatural e, semelhantemente, seus homens deixaram as relações natu-
rais com as mulheres e abrasaram-se com seus desejos, entre si; homem
com homem, fazem vergonha e colhem em seu próprio corpo a esperada
recompensa de seu erro.

“Trocaram a verdade pela mentira”.


A queda, o afastamento de Deus, [ainda que de início, à primeira vista,
tenha a aparência de uma atitude simples, superficial,] toma logo proporções
graves. [Supor] a existência direta de Deus na criatura poderia ser ocasional-
mente e por assim dizer, uma simples leviandade, [ou uma pilhéria, trocando a
divindade de Deus pela materialidade], um erro de caráter superficial; uma
espécie de diluição da verdade divina na soma de todas as verdades. Todavia,
quando a possibilidade da substituição da verdade divina pelo mundo material
surge, a troca séria, real, profunda, da verdade pela mentira não se faz esperar.
A pequena neblina que se forma entre Deus e os homens, lá onde as
distâncias desaparecem, transforma-se célere em mar de nuvens, no qual os
pólos opostos — (a posição do homem com relação a Deus) — desaparecem e
o antagonismo ao Deus desconhecido, até então semi-consciente, revela-se
plenamente. A vista embaciada adoece. As potestades e os principados que
foram levados até o trono, entronizam-se definitivamente, lançando mão da
coroa radiante da divindade e poder eternos, (1. 20); e o Criador, a fonte eterna,
é relegado a posições cada vez mais abstratas, mais teóricas, menos queridas e
menos significativas.

64
A Atuação da Noite 1, 25-27

O NÃO-DEUS, o super-concreto, vence, embora possa restar um vestí-


gio, um vislumbre do Deus desconhecido, acaso perceptível dentro da impor-
tância e glória do mundo, para além daquilo que, com o coração corrompido [e
obscurecido] dizemos ser nosso Deus.
O Deus desconhecido que é a única realidade, passa a ser considerado
como aéreo, problemático, vago, irreal, enquanto o mundo, este sim, absoluta-
mente aéreo, problemático, vago e irreal, junto com o homem separado de Deus
e sem dele guardar memória, rebelde, julga estar envolvido em santa auréola de
segurança, necessidade e realidade. [Auréola, sim, porque não tendo percepção
do grande e permanente NÃO de Deus a todos que, em sua rebeldia, provocam
e atraem sobre si a sua ira e que, talvez, nem sequer tenham noção que estão em
rebeldia, sentem-se em segurança absoluta; suas necessidades são atendidas
porque são as exigências fúteis e triviais que eles mesmos criam no mundo
como sendo o supra-sumo das benesses, as quais o mundo está em condições
de dar, e se acaso se achegam ao deus por eles criado, para pedir-lhe alguma
coisa, fazem-no do alto para baixo; pedem a quem pode menos; por isso hão de
bastar-se a si mesmos; se crença e esperança houver, será superstição e não fé;
ainda que a chamem por fé. Tentarão conquistar o seu deus, subornando-o com
promessas ou comprando-o com dádivas, porém subconsciente e consciente-
mente convictos do mero acaso do atendimento eventual.
Sentir-se-ão realistas e vangloriar-se-ão de seu realismo, pois as coisas
transcendentais de suas vidas passaram a ser dominadas por eles mesmos. Cri-
aram para si uma ambiência um MODUS VIVENDI e um MODUS
OPERANDI, em função do conceito de Deus e do mundo que os envolve numa
auréola que no final, conduz ao desengano, à frustração, ao desespero, à deson-
ra e à morte].
O mundo passa a ser santo e venerável, e em casos de aflição e necessi-
dade, prescinde do Criador. Neste particular os cultores das ciências físicas e
naturais e da história universal, estão mais de acordo com as religiões do mun-
do do que se possa supor.
O mundo, porém, não fica apenas em posição de igualdade com Deus,
mas toma-lhe o lugar; e usurpando o lugar divino passa a exigir para si a mesma
piedade [o mesmo fervor e o mesmo louvor] que o devoto do estilo antigo
tributava a seu Deus. (D. Fr. Strauss).
Os contrastes dentro do mundo erigido em deus não são muito acentua-
dos. Natureza e Civilização (ou cultura), Materialismo e Socialismo,
Mundanismo e Igreja, Imperialismo e Democracia, são contrastes para os quais
não há paradoxo; para ales não existe o NÃO divino, nem há Eternidade.
“Por isso Deus os abandonou”.

65
1, 27-28 A Atuação da Noite

A natureza não quebrantada [não sujeita, não submissa a Deus] não é


pura. Nada lhe adianta ser transfigurada [sublimada] religiosamente [sem en-
tregar-se verdadeiramente a Deus, e sem aceitar o NÃO divino e o paradoxo da
fé]. Nela está sempre jacente, [oculto, espreitando a oportunidade para se im-
por] o antinatural que despontará na primeira ocasião que tiver a menos que
seja dominado pelo Poder de Deus].
A troca de Deus pelo mundo significa dar livre curso à natureza, e isso
acarreta a inevitável, a fatalmente necessária substituição de Deus pela sua ca-
ricatura demoníaca, [pois se Deus foi tirado do trono divino para nele se
entronizar outro deus, este só pode ser o príncipe das trevas que tentará imitar
Deus, em caricatura].
É a caricatura que visa a estar na mesma linha, à altura de Deus.
O que já é, de per si, duvidoso, corre ao encontro do absurdo. Líbido
passa a ser tudo; a vida erótica deixa de ter freios, pois a muralha entre o “nor-
mal” e o perverso rui por terra quando deixa de haver entre o homem e Deus,
uma barreira fechada, um cerceamento final, uma limitação.
[Quando uma caricatura demoníaca de Deus passa a ser o deus que rege
os destinos humanos a lamentável situação chega depressa às raias do absurdo.
O homem que perdeu o respeito a Deus logo perde o respeito a si mesmo e
aquelas partes de sua natureza corporal que parecem menos dignas, passam a
receber maior honra (I Cor. 12, 23); acompanhando de pronto a inversão absoluta
de valores, instituída com a substituição de Deus pela sua caricatura demoníaca,
tais partes passam a parecer quais as mais dignas e dão ao homem maior desonra.
A troca do Deus verdadeiro pela caricatura demoníaca leva o homem a proceder
licenciosamente e a considerar os reclamos naturais do vício, que nunca diz
basta, como próprios atributos normais da natureza, criados por Deus nessa sua
forma aberrante, e daí prontamente são transferidos ao deus criado pelo homem;
acaso não é vulgar, citando apenas a título de exemplificação, justificar-se o
amor sensual, libertino, mediante um paralelo com o amor divino? Não é corri-
queiro no mundo “Hippy” e em outros ambientes mais tradicionais, classica-
mente, tomar por incentivo à paixão, a afirmação bíblica de que “Deus é amor”?]

Vs. 28-31 Há ainda um detalhe importante, real e final dessa situação, que
precisa ser analisado: até mesmo no relacionamento errado com Deus, existe
um “resto” de “observação sensata” uma última sensação de advertência,
mostrando o mistério de Deus que se opõe à arrogância religiosa. [Atrás, e
para além do procedimento desarvorado do homem que modela sua con-
duta no deus que erigiu para si e ao qual atribui grosseira ou subrepticiamente
suas qualidades e seus vícios e os recopia diluindo uns e ampliando os

66
A Atuação da Noite 1, 28-32

outros, existe ainda para o homem uma certa percepção da glória do Deus
verdadeiro que lhe diz NÃO!].

Um reflexo desse mistério cai também sobre as endeusadas forças mun-


danas e sobre o universo idolatrado: este escasso vestígio do Deus desconheci-
do sobre o deus deste mundo, sobre o “NÃO-DEUS”, será sentido como um
pressentimento, um calafrio de repreensão.
Ora, isto também poderá cessar. O olho doente pode cegar; a falta de
conhecimento pode levar à ignorância total do homem com relação a Deus, à
agnosia (1 Cor. 15, 34).
”Como perderam o juízo necessário para o conhecimento de Deus, Deus
os abandonou a sua mente réproba para praticarem apenas coisas inconvenien-
tes, cheios de toda rebeldia, imprestabilidade, ganância, malícia, inveja,
sanguinolência, (criminalidade), rixa, velhacaria; cochichadores, caluniadores,
sem misericórdia, desavergonhados, ostentadores e jactanclosos, inventores de
vilezas, respondões aos pais, insensatos e sem caráter sem afeição natural e
impiedosos”.
“Como perderam o juízo necessário para o conhecimento de Deus”.
Eles não estão mais em condições de, serenamente, se admirarem ou se
atemorizarem e a considerar qualquer outra coisa além de descobertas, experi-
ências, ocorrências; na realidade, raciocinam, agora, apenas por sofismas mais
ou menos espiritualizados, sem luz do alto e sem fundamento.
Assim veio o esvaziamento total, a destruição total.
O caos se desfez em seus elementos e tudo se torna possível. [Este não
é o vácuo negativo com relação a Deus, que abre o caminho, que limpa o cora-
ção para entrar o sol da verdade mas é o vazio absoluto, final e fatal, do coração
e da mente, que persiste em desprezar o Deus e Criador, substituindo-O pelo
deus de sua criação].
Surge um mundo cheio de caprichos pessoais e injustiças sociais que
não é uma característica restrita à Roma dos Césares.
O que se levanta [nesse mundo do “NÃO-DEUS”] é a verdadeira natu-
reza de nossa existência insubmissa; e nosso desrespeito, a nossa rebeldia, es-
tão sob a ira de Deus.

V. 32 Não deveria ser difícil compreender o inter-relacionamento [do homem


com o deus por ele criado e a ira de Deus a que está sujeito].: “Mas eles,
conhecendo a ordenação de Deus de que aqueles que tais coisas praticam
são dignos de morte, não só as praticam eles mesmos, como facilitam o
caminho [aos outros].”

67
1, 32 A Atuação da Noite

Esta é a sabedoria da noite que a si mesma faz néscia. (1. 22). Louca é
ela porquanto se coloca firmemente num ponto de vista superficial das coisas
humanas, que os fatos continuada e reiteradamente desdizem e negam. Todavia
esta sabedoria vê aonde leva o caminho da insubmissão do homem, e seu alvo
não lhe está oculto. Ela conhece a origem de sua noite e a sua ação, todavia não
ousa gritar-lhe: PARE!
A surpreendente queixa da fraqueza da existência terrena e a quase in-
compreensível queixa da pecaminosidade da raça acompanham sempre o ca-
minho do homem que esqueceu o seu Criador.
[Mas os que assim se queixam e lamentam] continuam com os olhos
voltados para baixo, para o chão, e amam, desejam promovem, confirmam,
acham bom o que aí edificaram, e defendem essa obra, acirradamente, contra
todo o protesto justo que se lhe oponha.
Por que será tão difícil lembrar-se o homem do que esqueceu, quando o
resultado desse esquecimento e tão claro, quando é tão evidente que a nossa
perambulação pela “Noite” leva a morte?!

Comentários: 1, 22-32

1. Aquilo que me pareceu ser a nota mais sonora da introdução, o com-


bate à idolatria, foi a dominante de todo lº capítulo. Se esse 1º capítu-
lo evidencia que a fé vive por si própria porque vive de Deus (o
“CENTRUM PAULINUM” segundo Bengel) e, ainda, se o tema da
carta gira em torno da tese de que do encontro da fidelidade de Deus
com a fé (que é do homem) surge a justiça de Deus, para que o justo
viva, é também patente que, ao analisar este capítulo, Barth destaca e
fustiga com extraordinário vigor todos os modelos de ídolos princi-
palmente os de forma mental, intelectual e espiritual — isto é: — a
criação de um Deus, não apenas para mitigar temores e carências mas
também para justificar condutas, critérios e idéias. E diz Barth que
“pelo obscurecimento de seus corações e esvaziamento de suas men-
tes”, Deus os abandonou a tal ponto de já nem sequer poderem raci-
ocinar com clareza, apegando-se a sofismas.
2. Seria por mero acaso que Barth escolheu a Epístola aos “Romanos”,
os tradicionais forjadores de uma nova verdade estruturada sobre os
sofismas confirmados pela “tradição”, incapazes de perceber, por
exemplo, que a salvação é pela graça sem qualquer mérito das obras;
ou então, que o único intermediário entre Deus e os homens é Cristo,

68
A Atuação da Noite 1, 22-32

que só ele é Salvador, que não existe a mínima corroboração bíblica


para atribuir à Virgem Mãe o munus de Corredentora, etc. etc.?
Barth diz apenas que se impressionou profundamente com a voz de
Paulo e que, talvez houvesse nela mensagem para a igreja de nossos dias.
3. Estariam os cristãos romanos do tempo de Paulo exibindo os primei-
ros sintomas de idolatria que se constituiu em fundamento da, agora,
quase bi-milenar tradição?
Haveria na Igreja da Capital do Mundo alguma inclinação para
julgar-se depositária dos méritos excedentes conquistados pelos san-
tos mártires e pelo próprio Senhor Jesus, para poder transacioná-los
com os que a ela recorressem, em permuta com bens materiais em
operação bancária SUI GENERIS, em que se trocam riquezas espiri-
tuais eternas, porém remotas e distantes, por valores pecuniários que,
embora efêmeros e vis, são bem palpáveis?
Ou haveria, já então, naquela igreja, alguma tendência para elevar o
monasticismo e o celibato à categoria de santidade mediante a profligação
do sexo, com a criação da imagem de virgem mãe a quem se veio a negar
o privilégio de ter vivido vida regrada e santa com seu marido José, san-
tificando o lar e a família com a bênção de muitos filhos?
Nada nos autoriza a pensar que assim fosse mas a análise de Barth
aponta com muita firmeza para a privação do raciocínio que, adotan-
do sofismas, redunda na criação de imagens satanicamente caricatas
que conduzem a execrandas abominações.
4. Todavia, não há necessidade de que nos detenhamos com a idolatria
(aliás sobejamente conhecida) dos “irmãos” de que nos separamos há
mais de 4 séculos.
A idolatria criada pela imaginação não é privilégio de cidade, povo,
igreja ou época.
Olhemos para as comunidades que pretendem ser ou são tidas
como sendo do ramo protestante:
Aí há os que entendem, por exemplo, ser essencial a guarda do
sábado (o dia em que sucede à sexta-feira) para a salvação; há os que
julgam imprescindível que seja por imersão, o batismo; e há os que
pregam como condição SINE QUANON, que ocorram reiteradas des-
cidas do Espírito Santo, com o conseqüente balbuciar de sons
ininteligíveis, sem perceber que os que o receberam no Pentecostes,
falavam em “línguas estranhas” a fim de que cada um dos muitos
estrangeiros então presentes na cidade ouvisse a boa nova “em sua
própria língua”. (Atos 2, 6)

69
1, 22-32 A Atuação da Noite

E não estão laborando em sofisma idêntico os calvinistas que que-


rem ver na predestinação bíblica a eleição para a perdição, sem se
darem conta de que um tal evangelho seria concomitantemente, um
“disangelho”, que traria a boa mensagem para os felizardos que for-
çosamente haveriam de crer e a má notícia da irrecorrível danação
aos miseráveis destinados a não crer, os quais, ainda que porfiassem
por entrar pela porta estreita não acertariam com ela; inda que tives-
sem fome e sede de justiça, não seriam satisfeitos; ainda que estives-
sem com os olhos bem abertos para ver e entender as maravilhosas
obras de Deus e que estivessem com os ouvidos atentos para ouvir a
mensagem e abençoar os pés dos que pregam o evangelho, nada en-
tenderiam e nada ouviriam por estarem predestinados à perdição eter-
na; todavia seriam responsabilizados por nem sequer se esforçarem
em ganhar o caminho apertado, não terem interesse em ver a glória
de Deus proclamada pelos céus, não darem atenção à voz do evange-
lho, se escandalizarem com o sinal da cruz, pois o Deus de justiça e
amor os teria eleito para esse fim? Que eleição!
E homens piedosos, cultos, devotos, confiantes — absolutamente
seguros de sua salvação, que se achegam a Deus com grande intimi-
dade, que o proclamam e defendem com ardor, lêem e não entendem
que Deus amou o mundo de tal maneira que lhe enviou o seu filho
unigênito para que todo o que nele crer não pereça mas tenha a vida
eterna (João 3, 16) e manda que os seus discípulos saiam pelo mundo
e preguem o evangelho a toda criatura para que todo o que nele crer e
confessar sua fé em Deus, seja salvo (Marc. 16, 15).
É sempre a velha e reiterada prática de o homem trazer Deus para
junto de si, para fazer-se igual a Deus e pontificar; para decidir sobre
as coisas deste mundo e do mundo de além túmulo, arranjando-as
como ele mesmo entende que devem ser.
Para uns, fora de uma “Santa Igreja” não há salvação porque a
igreja foi erigida em seu deus. Para outros, só o punhado de eleitos
será aquinhoado com a vida eterna, por que tal deus confirma suãs
elucubrações. Que diferença há perante Deus’!
“Retêm a verdade presa aos grilhões de sua própria rebeldia” ou,
para usar a versão que nos é tão familiar: “Detêm a verdade pela injustiça”.
5. Cabe então a pergunta, segundo Barth: Teria Deus abandonado aos
que assim escondem a verdade?
E. ainda segundo o Autor, vem a resposta: não totalmente, pois
mesmo na rebeldia arbitrária da verdade presa aos grilhões do NÃO-

70
A Atuação da Noite 1, 22-32

DEUS, a despeito de apresentarem aos homens o simulacro de Deus,


a sua contrafacção, uma caricatura demoníaca do Deus Criador do
Céu e da Terra, a verdade ainda resplende e pode ser alcançada e
aceita; o NÃO divino pode ser assimilado pelo rebelde e arrogante
que então deixa de ser insubmisso para transformar-se em servo crente
e fiel.
Esta transformação, este milagre, dá-se apenas após a opção livre
que, desde a criação do homem no paraíso edênico, o distingue dos
demais animais e o eleva à posição de criatura criada à imagem e
semelhança de Deus, se a opção for pela fé! Se for pelo escândalo,
será para sua perdição.
A opção é inevitável e todo homem terá de fazê-la; esta é a condi-
ção de sua predestinação ao ser criado à imagem e semelhança de
Deus. Escolher, optar, decidir-se livremente a seguir para a direita ou
para a esquerda; a retroceder ou avançar; a subir ou descer, a entrar
pela porta estreita, ou preferir a larga; a decidir-se pela fé ou pela
rejeição do paradoxo.
Deverá o homem escolher entre perder a sua vida, morrer, para
ganhá-la e reviver, ou viver para gozá-la e morrer.
Este renascimento, esta justificação, dá-se, ainda no dizer do Au-
tor, quando a fé genuína, pura e simples, sem quaisquer pretensões,
se encontra com a fidelidade eterna de Deus. E o justo viverá!

71
Capítulo II

A RETIDÃO HUMANA

O Autor dá ao 2º capítulo o título de “Menschengerechtigkeit” — Justi-


ça Humana e, ao 3º, o título “Gottesgerechtigkeit” — Justiça de Deus. A tradu-
ção inglesa usa a palavra — Rightcousness para o título dos dois capítulos.
Parece-me que, de acordo com o texto, seria mais próprio intitular o
capítulo II com “RETIDÃO HUMANA” e o capítulo III com “JUSTIÇA
DIVINA”.
Este capítulo tem duas partes:

•O Juiz - Vs. 1 a 13
•O Julgamento - Vs. 14 a 29

Na primeira parte o A. analisa as diferentes condições do homem em


seu modo de proceder perante o único e eterno juiz, Jesus Cristo.
Na segunda, ele estuda a condição humana em termos de julgamento
divino e mostra quais os princípios que regem esse julgamento, para concluir
que ele se processa segundo o que houver no íntimo mais reservado, mais se-
creto, de cada um. Deus vê em secreto e habita em secreto; responde em secre-
to às nossas orações secretas; e em secreto, e segundo os nossos corações, afas-
ta de nós o seu rosto, deixando-nos na noite da ira, ou dá-nos a luz da sua graça.
— “CRIA, Ó DEUS, EM MIM, UM CORAÇÃO PURO”. (Sal. 51, l0).

O JUIZ (2, 1-13)

Quem está na situação de desencadear a ira de Deus?


Quem tem por seu Deus o NÃO-DEUS, conhecido deste mundo?
Quem é irreverente [ímpio] e rebelde [perverso] e foi, por isso, abando-
nado por Deus?

73
2, 1 O Juiz

Trata-se aqui dos homens, em geral, ou de cada um em particular? Aca-


so trazemos, todos, o estigma desse falso relacionamento com Deus, esquecen-
do-nos de nossa própria limitação, obnubilando e esvaziando nossa vida? Será
que insistimos, todos, nesse falso relacionamento, prolongando, confirmando,
reforçando e adensando as trevas da ira divina? Ou esta situação calamitosa diz
respeito, somente, a algumas determinadas pessoas, ainda que estas constituam
a maioria da humanidade?
Seria a “Ira Divina” apenas uma possibilidade histórica [entendendo-se
como “históricas” as realidades que se referem apenas a certa época, fase ou
período da humanidade, quando se concretizam, agindo sobre a conduta huma-
na, no seu procedimento e pensamento por algum tempo para, depois, deixa-
rem de exercer tal influência e desaparecerem da conjuntura filosófica, social e
econômica do mundo?]. Sim, seria a ira divina apenas uma possibilidade histó-
rica e psicológica [ou espiritual] ao lado de outras muitas?
Não existem, dentro da noite da ira de Deus, batalhadores do exército da
luz que, como tais, já não estão mais em trevas?
Não existirá, ao lado dos ímpios e insubmissos, também uma retidão huma-
na? [Isto é, uma eqüidade, uma expressão das qualidades que o mundo considere
como sublimes e elevadas, dignas de serem aceitas por Deus?]
Não se pode imaginar a existência de uma grande dose de humildade e
temor, (qualidades que fossem tão desenvolvidas) que algumas pessoas pudes-
sem atingir um degrau mais alto na escada da existência onde ficassem a salvo
da condenação (1, 32)? [Acaso não existirão, entre aqueles que sabem que são
passíveis de morte os que “tais coisas praticam” alguns, ainda que poucos, que
batalhem com denodo no exército da luz e que estejam, aos olhos do mundo,
acima dos demais homens pela vida de profundo temor e da mais submissa
humildade perante Deus, e que por isso possam escapar das trevas da ira?]
Acaso não estará a própria fé na categoria das coisas “históricas” e das
“psicológicas” [ao lado, e no mesmo nível das coisas sujeitas a essa ira divi-
na?].
[Ou então] não se achará o crente na situação de libertar-se, por força da
fé, daquilo que nos ata a todos, e assim alijar a carga originada no alheamento
a Deus e que [tão opressivamente] pesa sobre o mundo? E desvencilhando-se
desse fardo, não poderá um crente fiel galgar uma base no areal movediço que
o circunda donde possa, e lhe seja consentido, lançar um olhar sobre OS que
ficaram para traz, aqueles que ainda não perceberam como poderão também,
pela força da fé, [ganhar um ponto de apoio, seguro]? Seria, talvez, um olhar
comovido e pesaroso, mas já não seria o relance de um companheiro, um
coparticipante das trevas da ira!

74
O Juiz 2, 1

[Não seria ilícito esperar que] pelo poder do evangelho já há tanto tem-
po anunciado e pregado, se houvesse reunido um grupo, ainda que minúsculo,
que fosse qual ilha de bem-aventurados no meio de um mar de desdita?
Não existe a possibilidade plausível de alguém tributar honra ao Deus
desconhecido de Abraão, Isac e Jacó, sendo, conseqüentemente, admissível
que aquele [que assim proceder] seja forçosamente subtraído do jugo da ira de
Deus?
Não se abriria uma exceção possível, para urna pessoa que se inserisse
sinceramente na crise divina de nossa existência e de nosso modo de ser e que,
dessa maneira, tomasse posição ao lado de Deus na crítica ao mundo e que, por
isso, lhe fosse concedido o privilégio de sair das trevas para a luz?
Ou será que o círculo “causa-e-efeito” do afastamento [de Deus] e que-
da, distintivo característico do homem e do mundo, como tais, deverá permane-
cer fechado para sempre?

Vs. 1-2 Por isso não tens desculpa, ó homem, quem quer que sejas, quando
julgas. Porquanto, enquanto julgas aos outros, julgas a ti mesmo, pois
procedes de maneira idêntica aos que julgas naquilo que julgas. Sabemos,
porém, que o juízo de Deus é verdadeiro, contra os que assim procedem.

[Ou, para usar a tradução de Almeida: “Porquanto és indesculpável quan-


do julgas, ó homem, quem quer que sejas; pois no que julgas a outro a ti mesmo
te condenas; pois praticas as próprias coisas que condenas.
Bem sabemos que o juízo de Deus é segundo a verdade contra os que
praticam tais coisas”].
Não há desculpa; não há razão nem possibilidade de alguém isentar-se:
Nem para os que não conhecem o Deus desconhecido, nem para os que o co-
nhecem. (1, 18 e seguintes). Também os que o conhecem pertencem ao tempo
[ao presente século, ao mundo]; eles também são criaturas humanas e não há
retidão humana que afaste a ira de Deus.
Não há grandeza material nem preeminência local [ou qualquer outra]
que justifique o homem perante Deus.
Nenhuma Carta Magna [ou de alforria] ou [boa] disposição de espírito,
nem a compreensão e o entendimento — [nada disso tudo] em si, tornará o
homem aceitável a Deus — [nada consegue desviar ou abrandar a ira de Deus].
O ser humano é humano, e está no mundo dos homens. O que nasceu da
carne é carne e todas as coisas têm o seu tempo. Os fatos e feitos gerados pela
atividade humana [ainda que alcancem destacada notoriedade] em sua existên-

75
2, 1 O Juiz

cia, posição e expansão, são sempre oriundos do homem e. como tais, estão
eivados de irreverência [impiedade] e insubmissão [perversão].
O reino do mundo nunca é [ou será] o reino de Deus e ninguém se
excetua; ninguém é dispensado e ninguém é desculpado: não existem “felizes
aquinhoados”.
“Enquanto julgas aos outros julgas a ti mesmo”.
Quando tu te colocas em um ponto de vista, tu te pões, a ti mesmo, em
erro. Enquanto dizes “eu”, ou “nós” ou “é isto”, estás trocando a glória do
incorruptível pela imagem do corruptível (1, 23). [Quando o homem se encastela
em seu próprio “eu” e afirma em seu nome e no de seus semelhantes, ser “isto”
ou “aquilo” o certo ou o que Deus aprova, quando o homem se arvora, quer
jactanciosamente, quer em estudada (quiçá obediente) humildade, a ser juiz de
seus iguais para, distanciando-se deles, ser mais perfeito, mais puro, mais sábio
perante Deus, do que os outros, coloca-se em erro e sob as trevas da ira e indig-
nação de Deus, pois serve o NÃO-DEUS deste mundo erigindo a sua própria
pessoa em imagem de Deus; tal homem não vai a Deus, mas o traz para junto de
si, para seu nível, para sua perecibilidade, sua corruptibilidade, que trocou pela
incorruptibilidade de Deus].
Enquanto tu te dispões a tributar honra ao Deus desconhecido, como se
estivesses realizando algo possível, enclausuras novamente a verdade. Reivin-
dicas temor e humildade como propriedades tuas [para teu benefício] e te tor-
naste, por isso, — irreverente e insubmisso.
Tu te desembaraças do peso do mundo sob o anteparo [o biombo] de
teus pontos de vista e dos teus modos de ver e, por isso mesmo, o mundo
passa a pesar mais sobre ti que sobre os outros. [Quando o homem cria para si
uma capa religiosa alardeando a sua religiosidade, sua espiritualidade, sua fé,
longe de encontrar a paz de Deus, que é diferente daquela que o mundo ofe-
rece (João, 14, 27), detém-se semi-anestesiado com suas próprias esperan-
ças, enquanto, em torno dele e sobre ele, se avolumam os desenganos, as
incertezas, as atemorizações sem fim; e sobre tal homem o mundo pesa mais
que sobre os que pecam sem lei.]
Tu te separas dos teus irmãos como conhecedor dos mistérios de Deus;
talvez [até o faças] com a melhor das intenções de os ajudar depois de os haveres
ultrapassado [ou de assim pensares]; por isso mesmo nada sabes dos mistérios
de Deus [pois se soubesses não seguirias esse caminho] antes, és o menos indica-
do para auxiliar o teu próximo. Tu vês a alheia estultícia como estultícia alheia,
enquanto a tua própria clama aos céus [sem que o percebas. (Mat. 7, 35)].
Também o dizer-se “NÃO” [às coisas do mundo]. à penetração no para-
doxo da vida, à submissão ao juízo de Deus, tudo isto nada é enquanto for

76
O Juiz 2, 1

apenas conduta, ponto de vista, método, sistema ou objeto; enquanto o homem


por meio dessas atitudes pretender destacar-se entre os demais. Mesmo a fé,
enquanto de qualquer forma e em qualquer sentido, pretender ser mais que
espaço vazio, não é fé: é descrença, pois nessas condições ela volta ao paradigma
da rebelião do escravo que tenta abafar a aurora da verdade de Deus, o alvore-
cer por excelência. [O A. faz distinção entre o que habitualmente chamamos de
“servo” do Senhor, com o sentido de seguidor fiel, e “escravo”, o que cumpre
apenas. pela coação, o dever que lhe é imposto; que não tem outra alternativa se
não a de executar a sua tarefa, “capinar o seu eito”; não tem outra motivação se
não esquivar-se do látego que está ameaçadoramente suspenso no ar e, quiçá,
alcançar efêmera recompensa que valerá, quando muito, por algumas horas:
uma crosta de pão, um copo de água, um prato de lentilhas. É nas trevas da
noite que o escravo se sente livre e essa alforria ilusória o leva a revoltar-se
contra o sol que desponta no horizonte, pois vem tirá-lo da doce ilusão de segu-
rança e enquadrá-lo em mais um dia de frustrações.
É similar à situação do homem que abrigando-se nas trevas criadas pelo
obumbramento de seu coração e esvaziamento de sua mente, passa a raciocinar
por sofismas, bloqueia os raios de luz que vêm do alto com a obstrução que
criou em si e para si e, por isso, teme a luz e se revolta com a aurora da verdade.
É o desempenho do escravo do pecado, do servo do “NÃO-DEUS” que
busca o esconderijo da enganosa paz].
Aí manifesta-se, outra vez, a arrogância, a hibridez, que ignora a distân-
cia que existe entre Deus e o homem e que, inevitavelmente, entroniza o “NÃO-
DEUS”. Eis aí, novamente, a identificação do homem com Deus que acarreta
seu próprio isolamento de Deus.
É o sonho [da materialização de Deus em símbolo], das coisas diretas,
com o seu clamor: “Eis aqui o Templo do Senhor!” — (Jer. 7, 4). (É a imagina-
ção “romântica” (por ser aí), no dizer do Autor, que pretende ver, sentir, a ver-
dade espiritual consubstanciada materializada (e porque não a hóstia?) em sím-
bolos concretos, palpáveis, visíveis, semelhantemente aos israelitas do tempo
de Jeremias, esperando fazer jus à proteção de Jeová, pela exaltação e louvor
do templo: Templo do Senhor! Templo do Senhor!].
Justamente agora, ó homem, praticas a resistência humana que suscita a
ira de Deus; “enquanto julgas os outros, a ti mesmo julgas, pois praticas as
próprias coisas que condenas”.
Ora, o que se pode dizer dos homens em geral, pode-se dizer também
dos “homens de Deus” em particular.
Como homens, são iguais a todos (1, 1). Não há partículas, porções
especiais, da história divina na história geral. Todas as histórias eclesiásticas e

77
2, 1 O Juiz

das religiões transcorrem [isto é, têm seu começo e seu fim] neste mundo. A
chamada “história da redenção” é, apenas, a contínua crise de toda a história e
não uma história especial ao lado da História [ou paralela a ela].
Também não há santos entre os ímpios [não são santos, os homens de
Deus], pois é exatamente quando alguém quer ser santo que o deixa de ser.
São exatamente os protestos, a crítica, a acusação que os pretensos san-
tos lançam contra o mundo, em vez de se enquadrarem em suas próprias
verberações, que os colocam, inevitavelmente, na mesma fila dos ímpios.
As acusações [que os pretensos homens de Deus fazem contra o mun-
do], vêm do próprio mundo; do perigo, e não do socorro. Estas falam da vida,
mas não são a vida; elas são qual luz artificial nas trevas, mas não o amanhecer,
o raiar do sol!
Essas considerações aplicam-se [a qualquer homem de Deus], também
a Paulo, o profeta e apóstolo do reino de Deus; valem tanto para Jeremias,
como para Lutero, Kierkegaard e Blumhardt [e por que não mencionar também
Barth e seu “pretenso” interpretador?].
Vale para São Francisco [e por mais justa razão] que de longe ultrapas-
sou a Jesus em “amor”, “infantilidade” [inocência] e “austeridade” e que por-
tanto subsiste, essencialmente como acusador; e isto para nada dizer da
aniquilante santidade de Tolstoi. [O A. quer destacar o fato extremamente sério
que o homem que pretende elevar-se para ser santo, ainda que fosse um Paulo
ou um Jeremias (que foi o profeta consagrado às nações desde o ventre de sua
mãe (Jer. 1, 5), ou seja um vulto histórico como Lutero, ou contemporâneo do
autor como Kierkegaard ou Blumhardt, tal homem deixará de ser santo e sepa-
rado para Deus desde o momento quando em seu coração se aninhar a idéia de
ser perfeito, santo, pois no mais profundo do ser, tal idéia viceja com intenção
da preeminência entre os demais homens, seus próximos. E isto é tão mais
vigoroso num santo da categoria de São Francisco que a tradição orna com
qualidades sobremaneira excelentes, “superiores” às do próprio Senhor Jesus,
realçando o “amor” todo peculiar e lendário que nimba o Santo, (amor que se
estende até mesmo aos animais), a sua inocência que atinge as raias da ingenui-
dade pueril, e que é também descrito como senhor de uma austeridade que, no
romantismo imaginativo, excederia à do próprio Salvador. Com tantos atribu-
tos será tanto maior juiz e, conseqüentemente, maior escravo do pecado!
Todavia, assim como essa imaginada santidade beata, fanática, pouco
esclarecida, é seguida e adotada para quebrar, anular, ignorar a distância que
separa o homem do verdadeiro Deus, assim também (e talvez mais ainda, se-
gundo o Autor,) o é a santidade de elite a que se arrogam os intelectuais e
teóricos do status de Tolstoi].

78
O Juiz 2, 1-2

O que é humano é levado de roldão e, arrastado pela correnteza, resvala


[numa descida louca para o precipício] ora flutuando sobre a torrente das águas
ora dando até mesmo a impressão de querer opor-se [à imensa caudal].
Cristo de forma alguma habita entre os justos, pois justo só é Deus, e a
tragédia de todos os homens de Deus é terem de assentar-se na injustiça para
lutar pela justiça de Deus. [Têm que tomar posição de dianteira, de relevo, de
destaque, para pregar, ensinar e entregar a mensagem que Deus lhes confiou].
E tem de ser assim, pois os homens de Deus não podem ocupar o lugar
do próprio Deus, [posição que assumiriam se em justiça incorruptível minis-
trassem e se desincumbissem da missão para a qual foram vocacionados. Toda-
via, humanamente e no que concerne ao relacionamento do homem com Deus,
o distanciamento do “homem de Deus”, dos seus semelhantes, é inevitável aos
olhos do mundo, mesmo que não seja nos termos de um lendário São Francisco
ou de um intelectual como Tolstoi; um Lutero, um Paulo, um Jeremias terá que
fazê-lo inda que, ao olhar para si, veja somente e genuinamente sua pequenez.
“Ai Senhor,... não passo de uma criança”. (Jer. 1,6)].
Sabemo-lo: o juízo de Deus é segundo o paradigma da verdade e os
verdadeiros homens de Deus conhecem sua situação trágica e paradoxal. Sa-
bem o que fazem quando se colocam cm determinado ponto de vista; sabem
que não há desculpas e não se consideram desculpados por força de sua voca-
ção. Eles sabem que a fé somente vale por fé enquanto e quando não reivindica
qualquer realidade histórica, psicológica [ou mesmo espiritual] mas é [e pre-
tende ser] somente a “expressão inexprimível” da realidade divina.
Eles sabem que a “observação sensata” (1, 20) não é um método, um
achado [ou uma descoberta] mas a base eterna do conhecimento. Eles sabem que
a fé, em si mesma, não faz mais jus à legitimidade que qualquer outra [atividade
ou] propriedade humana. Eles não se esquivarão do paradoxo [o paradoxo que,
para os homens de Deus, toma a forma de uma contradição humanamente evi-
dente; põem-se sob o escuro manto da ira de Deus para anunciar o novo dia que
desponta!] e não tentarão transformá-lo em nova realidade qualquer, em alguma
coisa [que explique, suavize ou até transforme sua situação paradoxal].
Eles não enfraquecerão o NÃO divino trazendo-o para perto, [para jun-
to] do NÃO humano. Eles não amolecerão a têmpera do gume do julgamento
divino, encarando a flexão [a submissão] que ele produz [a crise e a problemá-
tica que ele origina] como sendo uma etapa (uma estação) no caminho da sal-
vação (ORDO SALUTIS) que foi ultrapassada, que ficou para trás.
De maneira nenhuma tais homens, se verdadeiramente forem de Deus,
farão da justiça de Deus que raia no evangelho, um esconderijo, um abrigo para
si, e uma fortaleza contra os outros. [Estes homens não usarão o Evangelho

79
2, 2-3 O Juiz

para se justificarem, para nele e com ele se protegerem perante Deus, e também
não se servirão dele para bombardear os outros com suas acusações].
Eles sabem que a Justiça de Deus é segundo a verdade e quem há que
possa resistir quando aferido com a escala da verdade divina? Quando, como e
onde seria possível que alguém. alguma [idéia] ou coisa permanecesse de pé,
sob tal julgamento?

Vs. 3-5 Acaso entendes, ó homem, que tu com o teu julgamento, praticando as
mesmas coisas, fosses, logo tu, livrar-te do julgamento de Deus? Ou não
entendes a riqueza de sua bondade, a sua contenção e a sua paciência?
Não percebes que a bondade de Deus quer levar-te ao arrependimento?
Porém, com tua dureza e teu coração impenitente amontoas para ti uni
tesouro de ira, para o dia da ira e da revelação do justo juízo de Deus.

“Julgas tu, justamente tu, que escaparás do julgamento de Deus?


Semelhante suposição é um erro humano; é algo parecido com uma
escrituração falsificada, inscrevendo no ativo próprio o que deve ser registrado
no “Haver” de Deus. É a transformação da dádiva divina em possibilidade e
realidade humana. [Quando o homem julga toma para si, e como sua, uma
atribuição que só a Deus pertence; transforma a graça da redenção em
dispensação humana, pois o julgamento implica em condenação e em perdão:
quem julga, ou condena ou justifica ou perdoa; e inda que o faça em nome de
Deus está, na realidade, assentando-se sobre o trono divino e amesquinhando a
dádiva que vem desde a cruz; ignora a pergunta que desde a cruz lhe é posta
diante dos olhos, sobre a opção que há de fazer entre o paradoxo da fé e o
escândalo; e ao ignorar a pergunta, ao não querer ouvi-la, senti-la, respondê-la,
opta, implicitamente, pelo escândalo e erige a si mesmo e, consigo, o mundo
em seu Deus. É um Deus visível, palpável, facilmente conhecido, que perdoa e
que excomunga; que impõe penitências e aceita intenções; que promete bên-
çãos celestiais em permuta de dádivas materiais; que aceita sinais externos,
efêmeros e perecíveis, como penhor e garantia das coisas eternas, incorruptíveis.
É um Deus bem presente que não traz o paradoxo da fé; antes assegura a paz,
sossego e ilusão; é um Deus lógico e, não raro, bastante vistoso — o NÃO-
DEUS, conhecido e “velho amigo” dos homens].
A suposição que o homem possa ter de que, ao julgar, escapará ele pró-
prio do julgamento de Deus, esquece que a história do mundo não é o seu
próprio tribunal. [Não é a história do mundo que julgará os seus próprios atos
pois o julgamento final é de Deus (Apoc. 20, 11 e seguintes)].

80
O Juiz 2, 3-4

E enquanto o homem [que assim julga] procura agarrar estultamente o


que é visível, efêmero, deixa passar o invisível, o eterno.
Quando a fé se sobrepõe e sobressai como atividade humana, desapare-
ce o seu conteúdo divino e fica sujeita à lei da imprestabilidade, da perecibilidade,
da corruptibilidade das coisas terrenas.
— Quanto mais tentares fugir do julgamento verdadeiro de Deus, me-
nos escaparás dele.
“Não notas que a bondade de Deus quer levar-te ao arrependimento?”
Como pode acontecer que nas hostes da luz existam, ainda, batalhadores
com visão e percepção, homens quais eram os judeus contemporâneos de Jesus
que perceberam alguma coisa do final dos tempos, homens que estão afeitos a
perseverarem Deus, e só nele? [Ante a inevitabilidade do julgamento divino,
ante a posição trágica do homem de Deus no seu relacionamento com Deus,
como se explica que pessoas com visão suficiente para compreender ou, ao
menos, pressentir a inexorabilidade escatológica do juízo divino formem os
inumeráveis exércitos da luz, deles participando?]
Tais homens por isso [por pertencerem às hostes da luz] não deixam de
ser homens, e o mundo no qual vivem continua sendo mundo. Mas a respeito
deles, sobre eles e por traz deles aconteceu a maravilha: receberam a graça! Ocor-
reu o inacreditável: Deus falou-lhes de um torvelinho, como a Jó! (Jó 40, 6).
Assustaram-se em sua impiedade e insubmissão; foram arrancados de
seu sonho [acordando] para Deus (aquele a quem [com propriedade] assim
designamos). O véu da nebulosidade religiosa e da ira divina rompeu-se e eles
viram o inescrutável e ouviram o seu NÃO! Sentiram a limitação, o julgamen-
to, o paradoxo da sua existência; pressentiram, entre ansiosos e esperançosos,
do que se trata na vida humana e, com temor e tremor, chegaram à compreen-
são, ao respeito, à “observação sensata”.
Tiveram que parar perante Deus.
[Parar no caminho pelo qual vinham para decidir ante a pergunta sole-
ne, e optar pela conversão; escolher a peregrinação pelo novo rumo que leva à
porta estreita da vereda apertada].
Mas o que é tudo isso?
Acaso é misticismo? Intuição, êxtase, milagre concedido a pessoas es-
peciais (ou privilegiadas) dirigidas ou orientadas especialmente [por agremiações
religiosas, interpretação da bíblia, retiros, cursilhos, ou por determinados
avivalistas e líderes?]
Trata-se, acaso, de alguma experiência de almas puras, ou da descoberta
feita por cérebros privilegiados, ou deve-se isto a conquistas da “força de von-
tade”, ou quem sabe, seria a resposta a orações secretas?

81
2, 4 O Juiz

NÃO! Pois outros há mais puros, mais inteligentes, mais enérgicos e


mais profundos em suas orações e Deus jamais lhes falou.
Há místicos e outras pessoas que entram em êxtase, e que jamais soube-
ram ver com sensatez.
É que a dádiva não está no que o homem faz e traz, pois isto é como
nada perante Deus.
O despertar e o temor perante Deus, como tais, não pertencem ao ho-
mem. Onde se ouve e se reconhece a voz de Deus, não há lugar para o “ser” ou
o “ter” ou o “provar” do homem. Quem foi eleito por Deus nunca poderá dizer
que ele escolheu a Deus. [Nenhuma coisa pode o homem fazer, pretender ou
alegar para a sua salvação].
A realidade é que a reverência [o temor] e a humildade perante Deus, a
possibilidade da fé, no âmbito humano, só podem ser consideradas como impossi-
bilidades; como sendo incompreensíveis “riquezas de sua bondade”:
“Como mereci ver, eu que era cego?”. E uma inexplicável contenção de
sua ira: “Por que sou, justamente eu, uma exceção entre milhares?” E uma
incompreensível paciência de Deus para comigo: “Pois o que pode Deus espe-
rar de mim ao dar-me tão inaudita oportunidade”?
NADA! Absolutamente nada justifica e esclarece este “eu” e “para mim”,
que está totalmente no ar [sem aparente fundamento]; é puro e absoluto mila-
gre, vindo de cima.
Toda palavra que a respeito desse milagre se pronunciar [ou escrever
para explicá-lo ou relatá-lo] como se se tratasse de experiência humana, mes-
mo que seja a sua simples confirmação, é imprópria [por supérflua, desneces-
sária, imprecisa, excessiva e ao mesmo tempo insuficiente].
Estamos novamente na linha de interseção [do reino do mundo e do
reino de Deus], que não pode ser esticada, distendida.
Mas isto se pode dizer da dialética do milagre: “A bondade de Deus
quer levar-te ao arrependimento”.
O que se torna verdade para o homem, vindo de Deus, jamais pode vir a
ser outra coisa se não um novo chamamento a Deus. Um apelo para o retorno;
para a reverência (o temor) e para a humildade; é a renovação do convite para
abandonar a segurança que o mundo dá; é um apelo para desprezar a honra e a
glória do mundo e tributar glória e honra ao Deus desconhecido como se, de
nossa parte, nunca houvesse existido a mínima contradição a esse louvor [pois
com o novo nascimento em Cristo, volta o homem à posição que usufruiu no
Éden, antes da queda; antes de, pela vez primeira, ter querido ser igual a Deus.
Tudo se faz novo e o homem espiritual recupera a imagem e semelhança de
Deus].

82
O Juiz 2, 4-5

Toda e qualquer pretensão a vantagens e honras, todo o direito que al-


guém queira ou possa querer derivar da revelação de Deus, é clara evidência da
incompreensão dessa eleição, da vocação; revela a nossa incompreensão de
Deus [e é, por isso, a anulação do próprio milagre da revelação].
Toda asserção a favor próprio que alguém, que tiver [pela graça] obser-
vado algo de Deus, fizer com fundamento nessa visão, torna-o, IPSO-FACTO,
novamente igual ao que nada recebeu.
“Não notas que a bondade de Deus quer levar-te ao arrependimento?”
Não sabes que esta é a única observação, realmente possível? Se não o perce-
bes, “então com tua obstinação e teu coração impenitente amontoas para ti um
tesouro de ira”.
A incompreensão [a não percepção do desideratum de Deus], quando
ocorre, depressa se avoluma, se condensa, se compacta; solidifica-se em um
aglomerado obtuso no qual esbarram todos os pensamentos, todas as palavras e
todos os atos da pessoa; dessa obstrução nasce o religioso SUI-GENERIS típi-
co, que se conduz e se caracteriza como pessoa melhor que as demais. É uma
religiosidade fátua [presumida, petulante, e sem nada de sólido em que se apoi-
ar], torna-se vulnerável à chacota dos que a menosprezam. [Tais religiosos cri-
am a legião dos legalistas espirituais, dos fundamentalistas, dos adoradores da
Bíblia, que retêm a verdade divina presa aos grilhões de sua intransigente defe-
sa do terreno conquistado].
Da retidão divina dos profetas nasce a retidão humana dos fariseus que
é a irreverência a Deus, a impiedade, a rebelião.
A incompreensão da bondade de Deus esconde uma ameaçadora acumula-
ção da ira de Deus, pela conduta muito objetiva, presente, que ela impõe ao Profeta
transmudado em Fariseu no seu relacionamento com Deus, [que deixa de ser o
verdadeiro Deus para ser] na realidade, o NÃO-DEUS sob cujo domínio já está.
A escrituração falsificada [deste Profeta-Fariseu, deste religioso típico]
esconde a sua situação real. Ele pode prosseguir na construção de sua Torre de
Babel, cada vez mais para o alto, enchendo-a com reclamos e clamores divinos,
segurança espiritual, usufruto de Deus; porém, por traz da fachada de seus dias,
já está à espreita o eterno dia da ira e do tribunal imparcial. [Aparentando estar]
em pé, sobre um píncaro, ele já está tombado, caído.
Ele, o “amigo de Deus” [o original está sem aspas] e o seu mais amargo
e odiado inimigo. [A tradução inglesa diz “o amigo de Deus e seu declarado e
mais amargo inimigo”. No meu entender, o A. quis dizer que o homem, não
percebendo que a bondade de Deus quer levá-lo ao arrependimento, é incapaz
de arrepender-se genuinamente; todavia, ansioso por criar para si um relaciona-
mento pretensamente válido com Deus, assume um status de religiosidade que,

83
2, 4-5 O Juiz

por isso mesmo, é fingido, hipócrita e “farisaico” isto é. estribado em leis, pre-
ceitos, doutrinas e dogmas; orientado pelo que há de comer e beber, pela guar-
da de dias, por encaixes eclesiásticos, por uma série de “pode” e “não pode”.
Esta classe de gente é para o A., sempre no meu entender, a classe que
mais retém a verdade com a injustiça e por isso, mais forte, maior, é a ira de
Deus contra ela; portanto, mais extremado, mais odiado é este inimigo].
Ele é o justo [segundo o seu próprio critério], já condenado, e ele não se
deve surpreender se subitamente for tornado público o que ele de fato é. [Luc.
12,2-31].
Vs. 6-11 Porque a medida com que os homens são medidos, não é deste
mundo. É a medida eterna como eterno é Deus: a medida é o próprio Deus!
Deus reiteradamente procura sinceridade [fidelidade] no homem. Fide-
lidade a si, somente. Para nos edificar, ele nos anula primeiro; dá-nos a vida,
nô-la tirando e nos redime, transformando-nos, ao som da última trombeta.
[Parece-me que são dois os sentidos que o A. quer dar: para que o crente seja
edificado em Deus, é necessário que lhe seja fiel e sinta pessoalmente a absolu-
ta nulidade humana; para ser firmado em Cristo, é necessário que se negue a si
mesmo; para ganhar a vida precisa perdê-la primeiro. É preciso que a pessoa se
esvazie de todos os atributos que tenha ou que pense ter, mesmo os mais subli-
mes e apurados, aqueles que a sociedade, a igreja, a família mais enaltecem e
admiram. E nesta aproximação a Deus, é preciso que o crente seja genuíno,
sincero. E a sinceridade que Deus busca! O segundo sentido é escatológico. A
redenção vem com o encontro paradoxal com Deus, mas a transformação vem
no final dos tempos. Será quando soar a última trombeta. O homem destruído
será restabelecido; o morto viverá; o remido transformar-se-á].
É disto que se trata.
Perante este Deus comparecerá também o justo; o crente. Comparece-
rão perante o Deus que retribuirá a cada um segundo as suas obras; com glória,
honra, incorruptibilidade e vida eterna aos que com perseverança buscam a
Deus conforme o testemunharem suas boas obras. Porém, com ira e indignação
aos que com mente servil e desobedientes à verdade, seguem a rebeldia. [Há
aqui urna consideração a fazer, e que está implícita em todo o contexto do que
até aqui foi apresentado: a salvação — o que chamamos a “vida eterna”, é pela
graça de Deus e somente pela graça. Nada pode o homem fazer para alcançá-la
ou ganhá-la, se não crer. (Atos 16, 31).
No entanto, o Senhor, justo juiz recompensará (II Tim. 4. 8) a cada um
segundo as suas obras com maior ou menor galardão. Está porém implícito
que, para receber o galardão, terá o crente fiel recebido, primeiramente, a graça
da vida eterna].

84
O Juiz 2, 6-7

A opressão e a perplexidade estarão sobre toda a alma que pratica o mal:


sobre o judeu primeiro, e também o grego; porém, a glória, a honra e a paz
estarão sobre todo aquele que pratica o bem: sobre o judeu primeiro e também o
grego pois, para Deus, não há acepção de pessoas.
“Ele retribuirá a cada um segundo as suas obras”.
Ele quem?
Ele, perante quem todos os homens são fúteis (nulos), mentirosos. Ele a
quem o homem, no meio de suas riquezas ilicitamente adquiridas, nunca deve-
ria ter esquecido. Ele que, uma vez por todas, disse ser seu o Poder e a Miseri-
córdia. (Sal. 62, 10-13). Ele, a quem o homem não conhece, porém, precisa
reconhecer este fato, para saber, em seguida, que ele é conhecido de Deus.
(Prov. 24, 12). [Reconhecer que de Deus é o poder e a misericórdia]. [Observar
também a afirmação curiosa do A. de que “o homem, no meio de suas riquezas
ilicitamente adquiridas, nunca deveria ter esquecido (a Deus). Que riquezas
são essas? As do mundo? E são estas (ou outras quaisquer) sempre ilícitas, isto
é, ilícitas A PRIORI por característica intrínseca? Tratar-se-ia, no caso, de um
enunciado Marxista ou de um pensamento Marxistizante de Barth? Ou estaria
Barth a referir-se a certos e determinados homens que pondo seus corações nas
riquezas, por isso mesmo as adquiriram de formas inconfessáveis e portanto
deveriam lembrar-se SIC TRANSIT GLORIA MUNDI?
Parece-me que, a esta altura, o assunto deve ficar em aberto para eventu-
al consideração posterior].
Ele é o Deus que “paga” aos homens as obras nas quais lhes permite
participar; é ele quem estabelece o respectivo valor ou a desvalia segundo o seu
próprio critério de avaliação. É nele que se decide o que é bom e o que não o é;
é nele que descobrimos a nossa sensatez ou a nossa loucura; nosso céu ou o
nosso inferno!
Nossas obras, procedimento e conduta, nossa atitude e nossa disposição
mental, em seu aspecto histórico e psicológico, têm apenas a significação da-
quilo que são: História e Psicologia; por mais alta que seja essa significação,
não podemos superestimá-las atribuindo-lhes qualidades eternas. O eterno
adquirente — [o comprador, o tomador] o único que, eventualmente, as pode
pagar em moeda eterna é Deus. Sempre e de novo Deus!
Pode, pois, ocorrer o milagre de ele pagar aos que buscam sua glória,
honra e incorruptibilidade com a “vida eterna”; e assim, o que na limitação hu-
mana tem a forma de temor e humildade perante Deus e que se realiza na procu-
ra, na busca de Deus, e Deus somente, corresponda a um encontro com Deus.
Pode acontecer que o recipiente da fé, por menos que o aparente, conte-
nha em seu bojo a vida eterna. Pode acontecer que a perseverança humana na

85
2, 6-7 O Juiz

paciência e na ansiedade seja característica das “boas obras” realizadas pela


pessoa ou através dela. Pode ainda acontecer que aquilo que alguém esteja
fazendo na total fraqueza da carne e em alto grau de incerteza seja o bom e
traga, já em si, a glória, a honra e a paz do mundo do além.
Tais possibilidades, porém, não podem ser concretizadas humanamente
nem seu acontecimento pode ser considerado como coisa pacífica, fato consu-
mado; coisa de ocorrência normal.
Quando algo semelhante se dá, vem da parte de Deus.
Na linha que vem ao encontro dessa possibilidade [aquém do lado do
evento] agitam-se judeus e gregos; homens da igreja e do mundo. Uns e outros
são participantes da promessa, porém, somente da promessa.
[Todavia, embora apenas uns poucos gozem do cumprimento da pro-
messa] nunca essa concretização poderá ser considerada como o resultado da
retidão humana em destaque entre outras retidões (ou falta de retidão) huma-
nas, [qual fora, por exemplo, a recompensa ou o resultado de vida reta, religião
verdadeira, de fé “vigorosa”, segundo o juízo dos homens].
Jamais o crente, o praticante das boas obras, as exibirá como sendo
mérito seu, em confronto com a falta de mérito ou o merecimento menor de
outrem. Ele nunca dirá: “Eu faço” ou “Deus retribuiu”, mas “Deus faz” e
“Deus retribuirá!” (2, 13; 3, 30 e 5, 17-19). Jamais o seu temor e sua humilda-
de perante Deus pretenderão ser outra coisa que espaço vazio, vácuo; carên-
cia e esperança, pois a Deus pertence a glória que o homem, neste mundo
busca e honra.
Todavia, também pode dar-se o oposto: que aconteça o milagre terrível;
que aos seguidores da rebeldia esteja reservada a ira e a indignação.
Pode acontecer que algumas formas de temor e humildade, embora es-
tejam acima de qualquer dúvida aos olhos humanos, não sejam consideradas
como tais pelo Deus verdadeiro, porém sejam manifestações de humildade e
temor perante o NÃO-DEUS (1, 23; 2, 1-2) e, portanto, são qual candidatura ao
desagrado de Deus (2, 5).
Pode acontecer que Deus “pague” a obra humana com ira e indignação.
Que aquilo que pretende ser revelação profética seja “conceituação servil”: a
atitude de um assalariado diarista que visse no soldo da etapa toda a recompen-
sa, e a única recompensa a receber, fazendo do salário o objetivo de seu traba-
lho (Zahn). [O A. citando Zahn compara certo tipo de religiosidade com a au-
sência de motivação mais elevada que caracterizaria um assalariado que traba-
lhasse sem outro objetivo que o soldo que houvesse de receber].
Abundante e retumbante obediência à verdade pode ser a mais alta
expressão de desobediência; humildade desmedida pode não ser mais que

86
O Juiz 2, 8-4

rebeldia. O que o homem faz com “boa intenção” pode ser um ato profunda-
mente reprovável perante Deus.
Esta segunda alternativa, (a do “milagre terrível”) [também] não é “di-
retamente” perceptível aos homens; ela vem de Deus, e só de Deus e ninguém
está livre de incorrer nesse erro.
Novamente estão na mesma linha, judeus e gregos; homens do mundo e
homens da igreja: estão todos sujeitos ao mesmo risco. Nunca, e de forma algu-
ma, está a justiça humana segura do valor de seus feitos e empreendimentos,
aos olhos elo “comprador” divino. [Deus vê os corações e julga segundo a
verdade; as obras humanas, feitas “para o bem” podem, eventualmente, ter
motivação maligna, egoísmo, ou qualquer outro objetivo pessoal; por isso está
a retidão humana sempre sob a ameaça de ser invalidada pela justiça divina;
ainda que ou, quiçá, especialmente quando o objetivo haja sido, justamente, a
obtenção dessa aceitação].
A rebeldia e o destemor a Deus serão sempre exatamente o que são,
mesmo que tomem formas altamente sofisticadas e refinadas ou se acobertem
naquilo que, material e psicologicamente, chamamos “fé”.
O juiz [supremo] não abrirá mão de julgar também o “justo”: ele julga;
ele próprio e só ele!
“Porque Deus não faz acepção de pessoas”.
As coisas que historicamente ou espiritualmente aparentam realçar ou
favorecer uma pessoa com relação ao restante da humanidade, são somente a
atitude, a máscara, o papel assumido por essa pessoa no teatro da vida.
É a máscara que faz alguém parecer importante entre seus semelhantes.
Não há dúvida de que isso tem certo valor, em si, mas não significa preeminên-
cia eterna; não é nada que transponha a crise das coisas perecíveis (corruptí-
veis) e que alcance a incorruptibilidade.
A medida (a escala) com que Deus mede não é deste mundo; ele não
atenta à máscara; para Ele o justo não está, [só por ser assim considerado], no rol
dos justos, pois Deus o vê qual ele realmente é. Quiçá como abençoado [servo
perdoado] em busca do imperecível ou, também pode acontecer, como amaldiço-
ado rebelde, examinado e exposto [à condenação].
Homem é homem; Deus é Deus!
O que resta, pois, da atraente segurança do farisaísmo?

Vs. 12 e 13 Os que pecaram sem lei, também perecerão sem lei. E aqueles que
pecaram à face da lei serão julgados segundo a lei. Porque perante Deus
não são justos os ouvintes da lei mas os que a praticam.

87
2, 12-13 O Juiz

Ainda uma vez a pergunta: (2, 4)


— Como se efetiva, pois, a retidão humana? [Isto é, o arrependimento a
que o homem é levado pela bondade de Deus.]
— Pela revelação, pela proclamação e comunicação da lei divina —
pela proximidade e eleição de Deus, que aqui, e acolá, dispõe pessoas à fé, à
obediência e ao temor de Deus. (2, 14).
O que vem de Deus e é maravilha [é milagre] perante nossos olhos, não
dá aos homens que perceberem este milagre [que se apropriarem da graça que
ele traz] qualquer preeminência, vantagem, ou segurança: pecador é pecador e
queda é queda.
Quem há que não peque? Quem não caiu?
Ainda que o desnível entre aqueles que pecam longe da lei que lhes é
desconhecida e os que pecam no ambiente da lei que conhecem, seja superfici-
almente visível; ainda que possamos distinguir os degraus em que estão os
incrédulos e aqueles dos crentes, e que possamos diferençar entre o que desig-
namos por “alma” [espírito] e história [os fatos concretos do mundo] todavia,
[ainda que tudo isso seja visível e que a diferença entre “uns” e “outros” seja
até gritante aos nossos olhos] a decisão do destino de cada pessoa, se para a
“salvação” e vida eterna ou se para a “danação”; se a pessoa permanecerá sob a
ira de Deus ou se alcançará a graça da salvação, não é tomada pela medida de
grandeza da eventual diferença entre as posições de cada um.
[Se deste e daquele lado há pessoas que se salvam], também daquele
lado e deste há pessoas que se perdem.
O que faz a diferença entre os que se perdem e os que se salvam é o
cumprimento da lei, isto é, a realização da possibilidade oferecida por Deus —
[o arrependimento a que Deus quer levar o homem, pela sua bondade]. A dife-
rença é o conteúdo, o significado, o sentido da conduta que o homem assume.
É o sentido desse conjunto que é aceito ou deixa de ser aceito favoravel-
mente por Deus.
A conclusão de que o homem vive dentro ou fora da lei depende do
critério divino e não do juízo humano; nem se obtém a resposta favorável por
“ouvir a lei”, por notá-la; entendê-la; em suma, ter experiência [pessoal] da
revelação, ainda que seja a mais alta revelação.
O que vem do homem [o que é humano], não pode salvá-lo; as coisas
humanas não são justas perante Deus!
Cumpridores da lei são os ouvintes que “realmente a ouvem”. — “os
judeus que o são em secreto” (2, 29): porém, a sua retidão consiste no fato de
que “serão declarados justos”; para ser bem entendido: eles não “são justos”;
nem mesmo” são declarados” justos. Para que não fique o menor vestígio da

88
O Juiz 2, 12-13

idéia de que o homem tenha algum direito [algum mérito para a salvação] para
que desapareça o último sinal [mesmo o mais remoto] de uma realidade humana,
ou de uma contribuição material, “eles SERAO DECLARADOS justos” (2, 6).
Eles acolheram, neste mundo de injustiça, a candidatura da justiça do
mundo vindouro; no tempo do entrechoque, do escândalo, optaram pela busca
da eternidade.
A sua justiça consiste no fato de que sempre, e reiteradamente, entre-
gam a sua retidão humana a Deus, a quem ela pertence: a retidão destes tais
consiste, portanto, na renuncia fundamental [e total] da retidão própria.
Onde a lei encontra tais praticantes, onde a revelação encontra seme-
lhante fé, aí está Cristo, “o fim da lei, para a justificação de todo aquele que crê”
(10,4-5).
Então vem ao nosso conhecimento aquele que nos conheceu primeiro.
O juiz, porém, permanece como juiz, até que venham o novo céu e a nova terra.

Comentários: 2, 1-13

1. O Autor revela na primeira parte deste capítulo um método expositivo


que o caracteriza marcadamente na sua “Dogmática”; parece-me, por
isso, que seria interessante comentá-lo mais demoradamente. Toda-
via, por se tratar de um traço de caráter geral e não unicamente do
assunto tratado nesta primeira parte, voltaremos a essa análise nos
comentários do fim do capítulo.
2. Barth não poupa argumentos para enfatizar a nulidade da retidão hu-
mana (ou sua justiça) que, quando ocorre, tem o condão de suscitar a
ira e a indignação de Deus, pela tendência de nivelar o homem com
Deus; por isso traz ela em seu bojo uma falsa religiosidade, uma afe-
tada santidade, e o caminho para o obscurecimento do coração e o
esvaziamento da mente.
3. E notável a extensão que o A. faz, do risco de auto-endeusamento, aos
que ensinam e pregam o evangelho, mencionando mesmo apóstolos
e profetas. Barth — ele próprio — deveria saber bem o que isto signi-
fica e, talvez, seja esta a explicação para seus comentários em um dos
prefácios quando manifesta sua contrariedade pela aceitação que teve
a sua primeira obra, a ponto de se fundarem “Escolas Barthianas” e o
Barthianismo.
4. Depois da exaustiva exegese que o A. faz dos primeiros 13 versículos
do capítulo segundo, o que resta a acrescentar senão que “justificados
pela fé temos paz com Deus?” (5, 1).

89
2, 14 O Julgamento

O JULGAMENTO (2, 14-29)


Vs. 14-16 Porém, se acontecer que gentios, que não têm a lei em seu estado
natural, fizerem o que manda a lei, por não terem a lei, para si mesmos são
lei. Estes tais apresentam as obras da lei inseridas em seus corações (do
que as suas consciências e seus pensamentos mútuos de acusação e de
desculpa, são testemunhas) no dia em que Deus há de julgar os segredos
dos homens, por Jesus Cristo, segundo o meu evangelho.

Esta é uma comunicação altamente chocante, obscura e estranha, e mostra


quais os pontos de vista que são válidos (ou serão válidos) quando Deus é (ou
for) o Juiz.
Gente que não recebeu a revelação comparece perante Deus, como se a
houvesse recebido. Os que dormem são vistos como se houvessem velado aten-
tamente; incréus são julgados como crentes e os injustos, como justos.
Este é um fato surpreendente; é como se apresentássemos “aço feito de
madeira”, e esta realidade precisa ser, agora, exposta aos olhos da justiça humana.
“Gentios [ou pagãos — ou homens de fora da Igreja] procedem segun-
do a lei.”
A lei é a revelação que foi dada por Deus e logo retirada e definitivamente
trancada. E a impressão remanescente da revelação divina deixada no tempo,
na história e na vida das gentes. E a “escória” sagrada do milagre havido; cra-
tera extinta da fala divina; a recordação séria da atitude timorata e humilde que
certas pessoas foram constrangidas a tomar. A lei é o canal vazio por onde, em
outros tempos, em outras circunstâncias e para outros povos, fluía a água viva
da fé e da observação sensata; canal todo feito de conceitos, pontos de vista e
mandamentos que, em seu sentido geral, fazem lembrar de certa gente diferen-
te que nos convida (nos intima) a guardar, a preservar esses conceitos.
Aqueles que têm a lei, moram na orla desse canal. Eles têm a impressão
do Deus verdadeiro, do Deus desconhecido, quer seja na forma de religião
herdada ou apropriada de outrem, ou segundo alguma experiência própria vivi-
da no passado. Eles têm, de uma forma ou outra, referência a Deus e à crise de
nossa existência, e têm noção do mundo do além, um mundo limítrofe ao nos-
so. [O reino dos céus é limítrofe ao reino deste mundo e não é, necessariamen-
te. o reino de além túmulo].
E porque tais pessoas têm essa referência [a Deus] e porque a lembrança
da revelação havida os impressiona, esforçam-se por conservá-la indelével.
Aos “gentios que não têm a lei”, falta, de alguma maneira, a referência [a
Deus] em sua vida pessoal e em sua experiência histórica; não têm a impressão da

90
O Julgamento 2, 14

revelação e, por isso, não guardam memória dela e, [logicamente], não fazem qual-
quer esforço por conservá-la. Pode-se até considerá-los adormecidos pois não mos-
tram qualquer inquietação ou intranqüilidade [com relação à sua situação] por for-
ça de algum cismar próprio, alguma recordação ou alguma observação de terceiros.
Poderíamos, [com propriedade], considerá-los como incrédulos porquan-
to não manifestam qualquer assombro, [qualquer interesse], qualquer respeito
ou confrangimento para com o que está acima deles. Poderíamos, até, considerá-
los injustos, pois aprovam e acompanham o procedimento normal do mundo.
De fato, de maneira alguma poderíamos dirigir-nos a eles como aos ha-
bitantes das margens do canal da revelação.
Porém, pode acontecer que gentios, que não têm a lei, “pratiquem o que
a lei ordena”.
Ora, sendo Deus o juiz, “praticar a lei” é algo diferente de “ter” ou “ou-
vir” alei(2, 13).
Praticar a lei, quer dizer “estar diante de Deus”.
[Na prática da lei] tem lugar a revelação; Deus fala; e a conseqüência da
revelação são o temor e a humildade, aliás, resultantes naturais da posição em
que o homem se encontra.
Então, dá-se a justiça (ou a retidão) que vem de Deus.
Todavia, a revelação vem de Deus.
Ela não fluirá, necessariamente, no leito do canal [que pode estar] vazio.
Ela pode correr por ele mas pode, também, buscar outro traçado, rasgar novo
caminho.
A revelação não está atada, não está condicionada às impressões antigas
que acaso tenham sido deixadas outrora; ela é livre; portanto é erro supor que
os gentios [que não tiveram acesso às bordas do canal ou que não o buscam]
estejam adormecidos, ou são incrédulos e injustos. Também eles podem ser
tementes a Deus e por ele escolhidos sem que os outros [os que habitam junto
ao canal] o percebam. [Aliás], a fé, como tal, está sempre envolta em mistério.
[Em discrição].
Os gentios sentem [ou podem sentir] desassossego, estremecimento, o
temor que os habitantes do canal não vêm nem entendem. Porém, Deus vê, e os
compreende. A justiça de Deus, há muito, abriu-lhes [o caminho] mas a retidão
humana ainda os observa de soslaio, desconfiada.
Eles praticam a lei em “seu estado natural”. Na sua natural jovialidade e
no seu risonho mundanismo, na singela e despretenciosa objetividade de seus
afazeres. Deus os conhece, e eles, [os gentios, os homens afastados da igreja],
por sua vez, também o reconhecem; e [conseqüentemente] não ficam sem a
visão da corruptibilidade de tudo quanto é humano; e também não deixam de

91
2, 14 O Julgamento

divisar o contorno argênteo [reflexo da luzi da redenção e do perdão que emol-


dura a nuvem negra de nossa existência; permanecem no respeito pelo NÃO
que separa a criatura do Criador, e pelo SIM que os faz criaturas do Criador.
Também para os gentios a vida é apenas parábola, porém, talvez, uma
parábola tão completa que, por isso, já tenha a justificação [de Deus].
[É a vida no contexto de um] mundo imperfeito, é claro; mundo tão
despedaçado, já tão desfeito, solapado, que parece [mais necessitado] mais pró-
ximo da misericórdia de Deus, [do que o mundo daqueles] onde o “Reino de
Deus” está em plena floração.
[Esse mundo dos gentios, assim destruído, minado, exibindo] o mais
extremado ceticismo, é totalmente incapaz de penetrar no que seja mais eleva-
do, mais puro, mais sublime. [Esse mundo está, de tal maneira] insensibilizado,
a ponto de não mais empolgar-se por coisa alguma; todavia pode [justamente
por estar em estado tão lastimável] ter um espírito realmente quebrantado [pron-
to] para receber a Deus.
Talvez seja um mundo cheio de murmurações amargas, sem paz,
[saturado] de protestos, de críticas e de insatisfações íntimas, mas por isso mes-
mo, e dentro disso [talvez] ele aponte ao próprio Deus da Paz, que está acima
de todo o entendimento.
O que oferece a lei?
E o que quer a lei trazer à lembrança daqueles que a têm?
Justamente isto, que nos parece tão notável nos filhos do mundo: [a
lembrança do Deus verdadeiro, a referência a ele].
Será que eles [os gentios] praticam a lei? Será que eles estão ao pé da
fonte [donde brota o rio da vida]?
E por que não estariam?
Quem porá limites à riqueza da bondade de Deus? (2, 4)
[Por acaso seria justamente] o homem que realmente conhece esta ri-
queza, que descobriu que a dádiva da revelação é inteiramente gratuita, que é
uma dádiva imerecida, totalmente inexplicável (do ponto de vista humano)?
[Seria, acaso, o morador ribeirinho do canal quem pensaria na limitação da
riqueza da graça de Deus?]
“Eles são lei para si mesmos”. Existem pessoas que praticam a lei sem a
possuírem e, ao praticá-la, efetivamente a recebem, e passam a ser lei para si
mesmos.
A água viva cavou para si um leito diferente e a vantagem aparente dos
moradores da beira do canal, desapareceu.
Surge um leito novo de um rio indômito; uma impressão diversa,
incomum, da revelação; uma forma estranha da fé.

92
O Julgamento 2, 14-15

Quem poderá contestar essa manifestação?


Quem poderia contestá-la, senão só Deus?
A religião e a experiência dos personagens de Dostoiewski podem ser
estendidas e aplicadas a muitas “religiões” e “experiências religiosas” [que
andam por aí Religiões de “elites” espirituais, religiões e experiências de pes-
soas superiores que olham aos de fora lá do alto de seus encastelamentos. Olham
aos outros, lá embaixo, sem eira nem beira, para, por misericórdia ou porque
“noblesse oblige”, apresentar-lhes o seu Deus].
[Dostoiewski imaginou um cristianismo “democrático” e estatal que
salvaria o seu país do caos: suas idéias podem, talvez, ser resumidas na
essência da pregação do Monge Zossima (Livro VI de “Os Irmãos
Karamazov”). É uma religiosidade untuosa e chocante onde a ação nasce,
permanece e acaba com o praticante que a desenvolve como se fora para
compensar perante os menos aquinhoados da sorte, as vantagens que o des-
tino lhe reservou ou lhe proporcionou por direito de nascimento, inteligên-
cia e pelos demais dons que acaso tenha. Nesta compensação até estende a
sua retribuição à natureza em geral, para assim remir o seu pecado contra
tudo e contra todos, diferindo, portanto, da religiosidade intelectual de Tolstoi
citado mais atrás, que foi desenvolvida em forma de racionalização do
ensinamento cristão. Tolstoi tomou como centro de sua doutrina a resistên-
cia passiva: “Não resistais ao mal” (Mat. 5,39) e eliminou dela todos os
conceitos metafísicos ou que não fossem estritamente éticos. Assim, negou
a divindade de Cristo, a ressurreição e a imortalidade da alma: ensinava que
a felicidade somente poderia ser atingida pela prática do bem. Para
Dostoiewski, porém, a felicidade consistia no reconhecimento da participa-
ção individual no pecado, no mal geral do mundo, e na humilhação pessoal
perante todas as pessoas, animais e coisas para a diminuição, a atenuação
do mal causado, involuntariamente ou não].
Que motivo poderiam ter as pessoas “que possuem a lei” para dispensar
aos que não a possuem, outra atenção que a de simples “objetos” de seus esfor-
ços missionários? [A religião formal, o preconceito de “povo eleito e salvo”, a
presunção de que conhecemos a Bíblia, podem levar-nos a posições paralelas
às dos personagens piedosos de Dostoiewski].
[Por que haveriam de, aqueles que receberam a lei, tratar aos que não a
receberam, se não como principiantes religiosos, neófitos que nada entendem
das coisas transcendentais do espírito?]
No entanto, é possível que, de há muito, tenha essa gente recebido e
percebido manifestações de Deus que nós [que conhecemos a leu talvez nunca
recebemos nem receberemos.

93
2, 15-16 O Julgamento

“Eles são lei para si mesmos”. Se essa lei se expressa ou não em termos
da religiosidade e experiências espirituais, não vem ao caso, pois Deus pode
conceder e de fato concede, também isto aos gentios.
”Estes tais apresentam as obras exigidas pela lei gravadas em seus cora-
ções”. Eles comparecem ao tribunal divino; entram em julgamento; e o que
justifica o homem perante Deus “encontra-se neles”.
De que forma?
Toda resposta positiva: “Assim,” [desta ou daquela maneira] seria ina-
dequada [para explicar] a obra que o gentio justificado apresenta a Deus e com
a qual encontra o beneplácito divino.
Tivera a justiça humana que pronunciar-se, e o gentio seria,
indubitavelmente, condenado.
Aquilo que a justiça humana acaso encontrasse a favor dele não seria
(nem foi) o que o justificou perante Deus.
É no fim, na extremidade [desesperada] da justiça humana que se encon-
tra, possivelmente, a justificação do homem perante Deus; é quando o homem
se sente completamente perdido; quando ruíram por terra todas as suas ilusões
morais e religiosas; quando ele abandona todas as esperanças depositadas nes-
ta terra e neste céu; [quando, para ele, sua retidão não tem qualquer mérito].
Além, para além de toda intuição, de toda objetividade; para além de
tudo aquilo que os possuidores da lei acaso ainda lhe concedam (um “bom
cerne” [bom nome, boa família] um “certo idealismo”, “bases religiosas”) além
de tudo que o europeu médio preza (posição, maturidade, raça, personalidade,
agudeza de espírito, caráter), (além de tudo isso) está o que o gentio tem para
apresentar a Deus e que Deus pagará com a vida eterna (2, 6).
Na realidade, talvez não [haja no gentio assim justificado] mais do que
resquício de religiosidade, (algo inconsciente, extra-eclesiástico). Quiçá exista
nele o homem desnudo (Dostoiewski) no seu último estádio; pode ser que ele
tenha apenas uma derradeira e grande carência, perplexidade, pobreza. Talvez
na hora extrema [quando a morte se apresentar] ele manifeste apenas espanto
ante o mistério, ou indignada revolta contra a condição de nossa existência, ou,
ainda, o amargo silêncio do ator que, contra seu querer, é forçado a abandonar
o palco.
Pode também acontecer que o gentio [em julgamento] tenha coisas mais
agradáveis, mais bonitas: não vem ao caso. [O que importa] é que no céu há
regozijo, há alegria por um pecador que se arrepende, — [que faz penitência,
segundo o original]. É um regozijo maior do que por noventa e nove justos que
não precisam de arrependimento.
O que é arrependimento? [“Penitência” escreve o Autor].

94
O Julgamento 2, 16

Não é o ato final, mais elevado, mais sublime, mais fino, da justiça (re-
tidão) humana, para Deus, porém é o primeiro ato da justiça divina, por parte
do homem: é o ato básico! É a obra inserida em seus corações [corações dos
gentios], por Deus. E por ser de Deus, e não dos homens, é vista com alegria
nos céus: é o homem lançando seus olhos para Deus e para Deus somente:
olhar que, também, somente Deus vê.
“Pelo que suas consciências e seus pensamentos mútuos de acusação e
de desculpa são testemunhas”.
Quem há [entre os gentios] que ouça a voz da consciência? Como fala-
ria ela aos que estão sem lei e sem Deus? Quem, [entre eles] poderia perceber o
significado da dialética que fala de Deus e da fatalidade, [da história da reden-
ção e da escatologia,] da fatalidade e da culpa, de culpa e expiação, de expiação
e Deus?
Mas Deus vê; ele ouve também a voz que foi silenciada [no instante
extremo]; ele entende [avalia e aceita] aquilo que foi apenas vislumbrado; “ele
considera o destino [o fado]. em seu conjunto” (Gellert). Para ele testemunham
todos os fatos que não podem testemunhar, humanamente, para os juízes deste
mundo. Ele sabe aquilo que não sabemos; daí a, [para nós], incrível e incom-
preensível possibilidade de aqueles que estão sem lei, comparecerem no tribu-
nal, sem lei, e serem justificados.
Porque, “no dia em que Deus julgar os segredos dos homens, por Jesus
Cristo” os gentios apresentarão suas obras e serão aceitos.
Donde vem a possibilidade de serem acolhidos por Deus aqueles que
estão sem ele?
Como desconsiderar o critério [aparentemente lógico e válido] de sepa-
rar os homens entre religiosos e irreligiosos; morais e imorais; como substituir
essa classificação dos homens, feita segundo um corte transversal da lei, pela
aplicação de um critério segundo uma seção longitudinal, descobrindo-se ao
longo dela — e nas maiores profundezas [onde estão submersos os homens
sem lei, afastados de Deus] possibilidades inúmeras [para o acesso ao rio da
vida]?
Isto se dá “de acordo com o meu evangelho”.
É a luz que raia no dia novo da raça humana, na hora da ressurreição; é
o dia de Jesus Cristo que traz essa luz.
É esse dia que traz a metamorfose do temporal [efêmero, passageiro]
em eterno [incorruptível, imperecível], e o dia em que se revela o que está
escondido e se anuncia que somos vistos por Deus. Isto significa crise: confir-
mação e negação; morte e vida; um começo e um fim; um término e um início;
consumação e renovação!

95
2, 16 O Julgamento

A confrontação entre essas oposições atinge a todos os homens, a todo o


mundo, pois o Redentor que é Cristo Jesus é também o Criador de todas as
coisas e nada há que ele deixe para traz.
Assim, os que estão em eminência e os pequeninos, os justos e os injus-
tos têm, em Cristo, o mesmo acesso ao Pai, pois uns e outros receberam a
mesma ordem de “parar” perante o Deus desconhecido.
Toda carne é como a erva e Deus quer que todos sejam socorridos. (1,
16; 3, 29; 10, 2), [O evangelho é “salvação” para todo aquele que crê pois Deus,
é Deus de judeus — de religiosos que conhecem a lei, e de gentios — de pagãos
que não conhecem a lei, pois entre uns e outros há zelo por Deus].
É por isto que Deus julga pelo que “os homens mantêm em segredo”. A
condenação sob a qual estamos, e também a misericórdia e a força do perdão
que nos retém e nos sustém, são regidos por aquilo que temos no âmbito mais
secreto de nossos corações; não são intuitivas; [não são decididas sem real fun-
damento]: tanto a condenação como a graça são função das coisas ocultas dos
homens. E isto diz respeito a nós todos.
Somente então (quando for revelado o que está em segredo) é que [a
condenação e a misericórdia] se tornam reais. Esta resolução ainda não é reali-
dade [não é fato público e notório] enquanto, aparentemente, uns se situam do
lado da luz e outros na face da sombra, mas essa oposição [ou esse
posicionamento] torna-se irrelevante quando soa a meia-noite, ou ao meio-dia
quando ambos lados estão, ou envoltos de trevas ou imersos na luz.
Cristo é “Meia-Noite” e “Meio-Dia”.
Deus abrange [domina] tudo o que separa os homens. Ele formula a
pergunta e ele mesmo a responde. Deus propõe a todos os homens, qualquer
que seja o degrau em que estejam ou o tempo em que vivam, a mesma adver-
tência e a mesma promessa.
Deus está acima de todas as posições humanas; Cristo revela as densas
trevas da ira e indignação de Deus àqueles que detêm a verdade com sua arro-
gância e justiça humana e é a luz do raiar de um novo dia àqueles que perseve-
ram na fé; envolve nas mesmas trevas “judeus e gregos” quando, no mais ínti-
mo de seus corações, não derem lugar a Deus, e banha na mesma luz abundan-
te, também “judeus e gregos” que no intimo de seus corações, — com lei ou
sem lei, acolherem e praticarem as obras da lei. A todos é posto o mesmo pro-
blema eterno: a opção entre o escândalo e a fé; entre a aceitação e a rejeição;
entre a fácil glorificação segundo os padrões do mundo e a difícil renúncia de si
mesmo. (Mar. 8, 34). Esta decisão entre os dois caminhos é a crise que toda
pessoa tem de enfrentar; ela representa a linha de interseção que foi posta por
Deus, e não pode ser fletida, deslocada, pelo homem; é uma reta que não pode

96
O Julgamento 2, 16

ser substituída por segmentos descontínuos, sinuosidades e curvas. Ninguém


se engane, pois. [(Gal. 6, 7-8)].
A linha traçada por Deus é inescrutável, inaproximável, eternamente
intransponível e não ultrapassável; e permanentemente inquietante: Ela nos
remete sempre de novo ao “secreto” onde Deus mesmo julga.
Mas justamente esta dureza do evangelho de Cristo é a sua bondade
cordial e liberadora.
O Deus, que é desconhecido de nós todos, pode e quer dar-se a conhe-
cer, a todos nós.
O Deus que ninguém entende, também a ninguém deixou sem testemunho.
O Deus desconhecido não está longe do secreto dos homens, e é no
secreto de Deus e dos homens que as diferenças desaparecem; e tanto mais
próximo estará Deus quanto mais compenetrado dessa verdade estiver o homem.
[É pela revelação da noite — (do pecado e do afastamento de Deus), que
se destaca, como por contraste, o inexaurível amor divino e a grandeza da boa
nova contida no objetivo da vinda do filho unigênito de Deus, ao mundo. (João
3, 16)
O homem cavou o fosso profundo do abismo em que se encontra e onde
se esforça para igualar-se a Deus. No entanto, Deus em Cristo faz novas todas
as coisas — e também ao homem, proporcionando-lhe a oportunidade de
reassumir perante Deus a posição que teve antes da primeira queda, como se
jamais caíra.
É na comunhão íntima, quando o homem expõe os escaninhos do seu
coração à luz da verdade, que Cristo passa a habitar nele e este novo relaciona-
mento é também um novo segredo do seu coração. Ninguém mais tem consci-
ência dele. O fato é simplesmente confessado com temor e tremor; se for anun-
ciado, propalado, alardeado, já não é um encontro real com Deus, mas um
simulacro; é a entronização do NÃO DEUS através do ego. Porém se for um
encontro real, se for resultante da crise, com opção pela fé, então este novo
segredo supera e apaga os demais segredos, e por ele, Deus julgará].
Este Deus, o próprio Deus, que não se deixa levar e influenciar pelas
impressões que dele tenhamos, é a esperança dos gentios no dia do juízo.
Toda retidão humana, porém, por ser Deus o juiz, deve ser, e está, sujeita
à máxima reserva. A sua zelosa crítica aos que não têm Deus, poderá ser total-
mente imprópria — [destituída de razão]; seu empenho para convertê-los pode
ser fora de propósito. [Segundo a tradução inglesa tal empenho pode ser trivial].
Todavia, a mão de Deus está além [do nosso conceito] do que é bom e
certo ou mau e errado por isso andaria bem, a retidão humana, se não ousasse ir
longe demais.

97
2, 17 O Julgamento

Vs. 17 a 25 Se porém acontecer que tu que te intitulas judeu, e te fias na posse da


lei, e te ufanas de Deus; conheces a sua vontade e tens compreensão do que se
trata, como pessoa instruída pela lei, que és, e te atreves, também tu, a ser guia
dos cegos, luz para os que estão tias trevas, educador de ignorantes, professor
de crianças, porque tens, perante ti, na lei, a exposição completa do conheci-
mento e da verdade, — tu, que ensinas aos outros, não ensinas a ti mesmo?
Proclamas que não se deve roubar; e furtas? Falas que não se deve quebrar os
laços do matrimônio e adulteras? Abominas os ídolos mas despojas o santuá-
rio? Glorias-te na lei mas desonras a Deus, transgredindo-a?
Pois, conto está escrito, o nome de Deus é blasfemado entre os gentios
por vossa causa.
A circuncisão tem mérito se cumpri mios a lei; porém, se fores
transgressor da lei, então tua circuncisão será como incircuncisão.

Esta é uma comunicação [uma exposição] chocante, inescrutável e es-


tranha, feita aos que estão do outro lado [do lado oposto ao dos gentios].
Agora trata-se [não de adormecidos] mas, [aparentemente] de pessoas
vigilantes, acordadas, porém que, segundo o juízo de Deus, estão adormecidas.
São homens que, [segundo o testemunho do mundo] têm fé; no entanto Deus
os considera incrédulos. São justos, tidos como injustos no conceito divino.
Aqui está o partido [o grupo] de homens que têm a revelação impressa
em suas mentes e que, assim mesmo, em nada diferem do restante do mundo.
A retidão humana precisa, pois, tomar conhecimento também desta pos-
sibilidade, no julgamento divino.
“Tu, que te intitulas judeu”! Não és o primeiro dos bons. Tens um passa-
do atrás de ti e um correspondente futuro adiante de ti. Tua vida faz parte de
uma conjuntura que te leva a pensar que és uma exceção no mundo carnal. Tens
o nome de que estás vivo, em contraposição aos muitos que, na realidade, não
podem receber esse nome.
“Fias-te na lei”. Estás rodeado de sinais deixados pelo Deus vivo; esfor-
ças-te por conservar tais sinais sempre bem claros para ti. Alegras-te pela auto-
ridade que sobre ti tem, aquilo que sabes de Deus; [alegras-te porque tens acei-
to piedosamente a autoridade das coisas divinas, segundo as aprendeste na lei]
e te comprazes pela autoridade que essa ciência [esse conhecimento] te confere
[sobre os outros, sobre os teus semelhantes]. Comparas [a segurança e a disci-
plina] que te proporcionam as coisas que sabes e conheces, com o caos que
reina entre as opiniões e os padrões, lá fora, no mundo.
“Ufanas-te [e te glorias] de Deus”. E como não te ufanarias tu. que tens,
de fato, uma impressão, uma recordação dele, pois tens os olhos voltados cons-

98
O Julgamento 2, 18

tantemente, em oração, lá para onde Deus, realmente, deveria estar, enquanto


os demais, os incrédulos, não só duvidam [que tenhas os olhos voltados para
Deus] como afirmam que olhas para um lugar vazio [que Deus nem existe]?
“Conheces a vontade de Deus”. Sabes também que a lembrança de Deus
requer obediência. Sabes que de lá, para onde olhas, deveria partir uma inter-
venção em tua vida e um ataque ao mundo e sabes ainda que direção essa
intervenção e esse ataque deveriam tomar.
Estás intranqüilo porque estás convencido de que algo deve ser feito e
por isto estás tomado de zelo para fazer tudo. [O A. põe a proposição em forma
negativa, dizendo que o homem devoto — e que se intitula “judeu” não deixa
de se sentir intranqüilo por algo a fazer nem deixa de ter zelo por (de fato) —
fazer de tudo], enquanto os outros [os gentios], os irresponsáveis, [indiferentes,
apáticos] deixam-se levar pela “força do destino”.
“Tens compreensão do que se trata”. — Herdaste e adquiriste [desen-
volveste] um sentido [para a compreensão] daquilo que realmente conta, para
as nuanças psicológicas e históricas que caracterizam o que é genuíno, verda-
deiro; [tens uma percepção pronta] para detectar o que é significativo, impor-
tante, essencial e, mui especialmente, [tens o dom de perceber o que deve ser
rejeitado], o que é suspeitoso e perigoso.
Tens sempre, quando opinas, uma observação pertinente, inteligente,
fundada em considerações espirituais.
Sabes delimitar [e fundamentar] tua posição entre os outros, com exce-
lente argumentação.
Em resumo: vês com profundidade porque és profundo, em contraposição
aos milhares de superficiais, meros diletantes da vida.
Tens muito! O que mais querias? O que mais poderia alguém querer que
tu já não tenhas?
Grande é a oportunidade que se te oferece. Grande é o sentido da bonda-
de de Deus, a teu respeito. Grande é a sua paciência. Grande é a contenção de
sua ira [no trato contigo] (2, 4; 3, 2: 4, 11:9., 4 - 5).
Declaradamente grande é o que se espera de ti.
“E agora te atreves a ser guia de cegos”. Sentes, e com razão, que tens uma
missão. Comparas-te, dada a impressão [e noção 1 que tens da revelação, com os
muitos que não a têm e, nessa confrontação, encontras a tua vocação. Adivinhas a
existência de um plano divino, de uma “teologia” na qual tens um papel decisivo a
desempenhar. Aceitas o papel (já o aceitaste, [aliás]) confiante e consciente de [es-
tares cumprindo] um dever sagrado.
Gostarias de transmitir a impressão da revelação que tão séria e entusi-
asticamente recebeste (a verdade e o conhecimento plenamente estampados na

99
2, 19-21 O Julgamento

lei), também aos outros: aos cegos que perambulam nas trevas, aos ignorantes
e aos pequeninos. Gostarias de promover a lei; propagá-la, espalhá-la estendê-
la para que muitos tivessem posse dela.
Por força do que és e tens, sentes-te pressionado para agir, instalado
como cooperador de Deus.
Mas “tu, que aos outros ensinas, não ensinas a ti mesmo?”
Para que alguém tenha uma missão a cumprir é necessário haver alguém
que lha tenha confiado. Quem quiser ensinar, precisa estar preparado para isso.
Para distribuir é preciso ter o que repartir.
O que significa ter a lei, se ela não for posta em prática, e quando Deus
não se revela a tais possuidores?
O que significa a impressão [a noção] da revelação, se ela não prosse-
gue, [se permanece apenas na forma remota de primeira impressão]?
O que significa ter o olhar voltado para onde Deus estaria, se ele já não
mais está ali?
Que vantagem terá alguém na hora do julgamento, por ter morado à
beira do leito do rio [onde fluiria a água da vida] se o canal está seco? (Não se
poderia ter dado o caso de as águas terem sido cortadas?)
[Pessoas piedosas, crentes, devotas, podem atribuir-se prerrogativas de
detentoras do conhecimento da lei divina, da graça de Deus, do entendimento
da revelação de Deus em Cristo Jesus, segundo seus próprios conceitos ou pre-
conceitos, sem na realidade se abeberarem da água da vida; o rio da vida, para
estes, já não flui no canal que eles elegeram; talvez um dia lá estivesse o rio de
águas fulgentes, mas o seu leito foi assoreado com os detritos das presunções
humanas; as águas estagnaram e o baixio do canal é leito árido ou várzea ape-
nas úmida, quiçá umedecida pelos resquícios, pela lembrança, pela memória
das águas que, um dia, ali fluíram.
O curso d’água foi bloqueado, não pelo Deus invisível, mas pelo ho-
mem que reteve a verdade divina com a sua presunção, pela qual ainda fala em
conhecimento e revelação.]
Quem és tu? O que tens? Donde vens? O que espalhas e derramas, pois,
em torno de ti e por todos os lados? O que é este “espírito novo” que queres
implantar em todos?
A tua impressão da revelação, a invasão que sentiste [em tua alma], teu
entusiasmo, tudo isto é carnal, é deste mundo.
Acaso, com teu religioso mundanismo, terias menos a temer da ira de
Deus do que os outros? Não é essa [tua] religiosidade o aprisionamento da
verdade, a permuta do imperecível com a figura do perecível, ocorrendo no teu
caso [na qualidade de judeu] de maneira idêntica à do outro [do gentio]?

100
O Julgamento 2, 22-33

O que és tu, se Deus não for por ti? O que és, se ele não encontrar em ti,
no recôndito do teu coração, a [boa] obra? (A oração do Coletor de Impostos, a
súplica do Filho Pródigo, o clamor da viúva perante o juiz iníquo?)
Então o teu “fazer” será o que ele é: tua legalidade, um furto (quem não
furta?); tua pureza, um adultério (quando teria a sexualidade sido pura?), tua
religiosidade, vã presunção (pois qual o religioso que não se aproxima [presun-
çosamente] de Deus?).
Adiantaria diferençar entre os degraus mais altos e mais baixos da vida,
no tribunal de Deus?
Se à tua vida faltar a justificação que só Deus mesmo pode dar, então
falta-te toda e qualquer justificação.
Se não tiveres mais que a tua impressão de revelação, para apresentar a
Deus, então nada tens para apresentar-lhe.
Se evocas para ti, apenas a tua fé, então nada tens a evocar. “Glorias-te
da lei, e desonras a Deus, transgredindo-a”.
Se Deus não for por ti, tudo será contra ti. Se Deus não for por ti, tam-
bém não podes ser por ele; o mundo tem vista penetrante e não deixará valer a
tua pretensa superioridade; ele logo te reconhecerá como carne de sua carne e
osso de seus ossos.
Se tu mesmo fores reprovável não podes agir, trabalhar, instruir em nome
de Deus. A tua posição se inverte e não podes achar que isto seja uma injustiça:
Querendo ser missionário, se não houveres sido enviado, fazes o contrário,
pois onde se fala de lei, o mundo espera que a lei seja cumprida; onde houver
menção de revelação o mundo a procura [e quer vê-la efetivada].
O mundo crê com longânima paciência em todas as exigências novas e
mais altas que os “filhos de Deus” [o original não tem as aspas] em seu meio,
levantarem e, de maneira nenhuma seria indiferente a realidades [que se lhe
apresentassem] mas, será insensível a coisas ilusórias e vãs.
Se o mundo sentir-se ludibriado, iludido pelos “vocacionados” e “ilumi-
nados”, se lhe parecer que, ainda uma vez, apenas lhe exibiram aldeias e povo-
ados de Potenquim, se nada houver [nessa pretensa revelação] que seja novo,
diferente, convincente [real], então, após uma curta admiração, ele se afasta do
estranho elenco teatral, pois não são [esses tais filhos de Deus] a verdadeira
igreja do verdadeiro Deus; e então o mundo sente-se refortalecido e justificado.
[A expressão “Aldeia de Potenquim” refere-se à farsa praticada pelo
príncipe russo Potenkin (1787) favorito de Catarina II; para impressionar uma
comitiva de embaixadores austríacos, franceses e ingleses, com o pretenso grande
progresso que o país estaria tendo naquele reinado, levou-os em excursão pelo
sul havendo, porém, previamente, mandado embelezar as aldeias do percurso,

101
2, 23-25 O Julgamento

enchendo-as com gente especialmente contratada para passear pelas ruas apa-
rentando bem estar e satisfação. Mandou, também, montar painéis e armações
pintadas, à distância, para fingir novas vilas e povoados que brotavam como
cogumelos, por toda região. (Apud nota semelhante na tradução inglesa)].
O mundo sente a verdade por instinto natural, e não se deixa levar por
engodos; é por isso que se recusa a seguir o Deus dos “religiosos”.
Deus é apenas uma ideologia quando os homens tomam emprestado os
pontos de vista divinos, porém sem Deus, quando Deus deixa de ser, ele, a
única fonte de todo bem e o homem passa a ser ou fazer algo com Deus [ser seu
representante e cooperador] ainda que [esta co-participação] seja motivada pe-
las mais finas e mais nobres intenções.
A objeção [do mundo] a Deus, o seu protesto contra ele, é plenamente
justificável quando todos canais estiverem vazios. — [Quando as fontes da
vida, a pregação, a proclamação, o testemunho, forem formais ou pessoais,
ainda que coerentes, eloqüentes, altissonantes, porém rasteiros em
espiritualidade, destituídos da unção divina].
Onde estão, porém, os cooperadores de Deus?
“Por causa de vós o nome de Deus é blasfemado entre os gentios”. (Isaías
52, 5)... “e o meu nome é blasfemado incessantemente”.
São, pois os eleitos, os “filhos de Deus”, [as aspas não estão no original]
que retêm o reino de Deus [fazendo-se eles mesmos cooperadores de Deus.
Não deveria de essa possibilidade [de nos transformarmos em filhos da
ira] deixar-nos profundamente preocupados, toda vez que formos tentados a
fazer da profecia [da redenção], destinada aos que esperam [no Senhor] e se
apressam [a ir ao seu encontro], a quintessência da retidão humana?
“Se fores um transgressor da lei, a tua circuncisão será como
incircuncisão”.
Então, inapelavelmente, entrará o relativismo e a noção de revelação que
têm os “filhos de Deus” [e transgressores da lei] transforma-se em valor humano,
mundano; um valor ao lado de outros valores. A pretensão a ter vantagem abso-
luta [pela sua condição de filhos de Deus] com relação às demais pessoas, desa-
parece. A religiosidade [a devoção], a sua moralidade e a sua posição com rela-
ção ao mundo são grandezas que vão e que vêm. [São valores espirituais e morais
que flutuam por falta de um seguro padrão de referência]. A sua história eclesiás-
tica torna-se profana e cabe no refrão: “O genuíno anel provavelmente
foi...perdido”. [Parece-me que o A. faz alusão à expressão folclórica ou lendária-
épica alemã, onde um anel de grande valor foi, inexplicavelmente, perdido].
Pois, onde Deus que julga e “paga” (2, 6) não encontra valor real, os
pretensos valores humanos não podem significar muita coisa.

102
O Julgamento 2, 25

A impureza e a falta de santidade que Deus achar no íntimo dos cora-


ções, desvalorizam a noção de revelação [de inspiração divina] que as pessoas
julgam ter ou que os outros pensam ver nelas.
Os combatentes de Deus [os seus soldados], sem Deus, são quais um
andarilho que estacionasse junto às setas da beira da estrada, indicadoras da
direção a seguir e aí permanecesse sem tomar o sentido indicado. [E o pretenso
servo de Deus que vê o que deve fazer mas não faz; é semelhante ao “moço
rico” que se achegou a Cristo, percebeu o que deveria fazer, mas não trilhou o
caminho indicado. (Marc. 10, 17-22)]
(Para esses tais [os soldados de Deus, sem Deus,] o sacramento da circunci-
são entre os judeus e todos os demais sacramentos [entre os outros — entre os
gentios] já não são mais comunhão com Deus, mas apenas se referem a essa comu-
nhão; são memória dela. (Zwinglio e o liberalismo têm razão, sob a ira de Deus).
[Parece-me obscura a maneira de dizer do A. com respeito a Zwinglio.
A versão inglesa diz: “O sacramento judeu da circuncisão — verdade que se
estende aos demais sacramentos, já não é mais comunhão com Deus mas con-
tinua indicando essa comunhão e, aqui, sob a ira de Deus, Zwinglio e os libe-
rais estão certos.”
Ora, um dos pontos de divergência entre Zwinglio e Lutero foi o da
significação do sacramento particularmente no que diz respeito à eucaristia.
Para Zwinglio (e os chamados liberais que o acompanhavam) a eucaris-
tia não é a repetição do sacrifício de Cristo mas a LEMBRANÇA fiel de que
esse sacrifício foi feito uma só vez, para sempre.
Para os protestantes o sacramento é um sinal visível de uma graça
invisível. A “Santa Ceia” é comunhão com Deus, porém não material, física,
mediante a ingestão do corpo e do sangue de Jesus Cristo transmudados nos
elementos eucarísticos (pão (ou hóstia) e vinho) mas é a verdadeira comu-
nhão espiritual; não é mera lembrança; é participação.
O sacrifício foi feito uma vez por todas, e não se repete. Cristo não está
morrendo constantemente mas morreu uma única vez; e os seus seguidores
comungam em memória dele. (“Fazei isto em memória de mim”). Ao comun-
garem, lembrando do sacrifício, participam da graça quando, examinando-se a
si mesmos, reconhecem a sua nulidade e, sem nada terem, se apresentam a
Jesus: (“Senhor, eu creio”; “Eu sei que tu és o Cristo, o filho do Deus vivo!”;
“Toma-me como estou!”)
Ficarão também sob a ira de Deus se, ao se lembrarem do sacrifício de
Cristo, participarem indignamente dessa comemoração. Se a considerarem um
fato histórico, ocorrido uma vez, às portas de Jerusalém; ou se examinando-se
a si mesmos, julgarem que têm condições para participar da mesa do Senhor

103
2, 25-26 O Julgamento

por terem vida limpa, conduta reta, serem piedosos, crentes professos,
freqüentadores regulares da igreja, cooperadores do seu sustento e manutenção.
A eucaristia — a Santa Ceia — é pois um sacramento. Fonte de graça
para quem, dela participando, discernir o alcance do sacrifício de Cristo; e fon-
te de condenação para quem transformar em efêmero o que é eterno, em huma-
no o que é divino.
Se Zwinglio e os seus companheiros liberais viram, ou viam, no sacra-
mento, apenas a lembrança material, embora fidelíssima, do sacrifício da cruz,
então parece evidente à luz da exposição do Autor (e do ensino bíblico (1
Cor. II, 23-29) ) que eles a esse respeito, retêm ou retiveram a verdade com a
sua justiça e estão ou estavam sob a ira de Deus].
A cratera em torno da qual estão assentados os santos [segundo seu
próprio juízo], está extinta. A forma sagrada, de sagrado, só guarda a formali-
dade e nenhum esforço de espiritualização poderá impedir o progressivo esva-
ziamento dessa santidade. A circuncisão fica, de fato, igual à incircuncisão; a fé
se iguala à descrença; bem-aventurança se iguala à impiedade.
Desta maneira, a retidão humana é atacada em sua própria casa, [pois
são os legalistas, os defensores da lei e promotores de sua própria justificação,
que são recusados, como transgressores da lei, no tribunal de Cristo, que julga
segundo o que está oculto nos corações]; esta justiça (retidão) está sujeita a
enganar-se [corre esse risco], não somente em relação aos gentios que estão de
fora (2, 14-16) mas também em relação a eles próprios [os que conhecem a lei,
os crentes, os de dentro da casa dos justos].
Semelhante retidão humana entra trôpega (cambaleante) no tribunal di-
vino, pois não há reivindicação ou direito humano por cuja força aquilo que
seja humano deixe de ser deste mundo. [E o que é humano não subsiste perante
Deus].

Vs. 26-29 Quando, porém, um incircunciso cumpre a lei, a sua incircuncisão


não passa a vale de fato, como circuncisão? Então, aquele que em seu
estado natural é considerado incircunciso, mas é obediente à lei, não jul-
gará a ti que, a despeito da letra e da circuncisão, a transgrides? Judeu
não é aquele que o é naturalmente, nem é circuncisão a que se pratica na
carne, porém, “judeu” é aquele que o é em seu íntimo e a sua circuncisão
é a que acontece no seu coração: em Espírito, e não segundo a letra, e cuja
recompensa não procede dos homens, mas de Deus!

Surge, portanto, uma derradeira possibilidade: embora o círculo “causa-


e-efeito”, inerente ao afastamento e queda, seja inescapavelmente fechado [fatal]

104
O Julgamento 2, 26-29

ele poderá ser rompido, o seu efeito inexorável poderá ser suspenso, anulado,
junto com a própria causa, pela incompreensível comiseração divina. E claro
que a justiça humana, em si mesma, é presunção e não produz qualquer justifi-
cação no mundo; porém, poderá haver uma justiça de Deus, para Deus.
Não há círculos [agremiações, grupos, associações, irmandades visíveis
de Santos, de privilegiados, de heróis, super-homens, favorecidos e justos, cri-
ados e estabelecidos em conseqüência da posse da lei ou de impressão ou no-
ção da revelação; nem como resultado de boas intenções, conduta moral e par-
ticipação de sacramento.
Todavia, (embora não existam privilegiados) dentro do ambiente mate-
rialista [do mundo poderá existir um “homem novo” criado por Deus e na con-
formidade da sua vontade. [Diremos então que a incircuncisão conta como
circuncisão? Concluiremos que a impiedade é [na realidade “paga” por Deus
com a vida eterna como sendo piedade? A irreverência e a rebeldia são escritu-
radas nos livros divinos como sendo reverência e humildade? O mundo perdi-
do é declarado livre e salvo no tribunal divino? Dar-se-á o caso de que a fé seja
reconhecida por Deus como a verdadeira fé, mas seja por ele enfeixada junto
com a incredulidade para que ele possa ter misericórdia de todos? (11, 32).
Trata-se de uma incompreensível irrupção do próprio Deus, do Deus
desconhecido, no conjunto das coisas do mundo nosso conhecido.
É a impossível possibilidade do mundo novo que vem, sem que qual-
quer mérito a justifique, sem qualquer base aparente, sem que, do lado huma-
no, possa ser feita a mínima coisa a favor ou contra o seu advento.
É a hipótese impossível para os homens, porém possível para Deus.
Deus ajusta as contas pela sua própria escala. Ele conduz os que, aqui,
são incrédulos, à meta da lei [à justifição]; fá-lo à luz da sua comunidade, e
deixa no mundo [sem justificação], os crentes desleixados.
Deus passa por sobre as coisas conhecidas, visíveis e materiais, para
julgar em secreto, de acordo com a sua justiça.
Deus é o espírito que habita ou deixa de habitar nos corações, indepen-
dentemente do que se haveria (ou se haverá) de esperar pelo que estiver ou não
estiver soletrado nas lousas humanas. [Nas tábuas das leis humanas.
Deus recompensa o que quer. Ele próprio, e só ele.
O que diremos a favor ou contra isso? Acaso Deus, não tem razão? Aca-
so conhecemos algum juízo melhor que pudéssemos contrapor ao dele?
Não é Deus a verdade eterna de nossa vida, trazendo-a à crise da decisão?
O que queremos, com as “nossas” verdades?
A honra de Deus luzirá [e iluminará os corações e a justiça de Deus
revelar-se-á; por isso é que a pragmática de sua ação é tão inescrutável e inau-

105
2, 26-29 O Julgamento

dita. [Porque Deus julga segundo os corações; a mente dos que verdadeiramen-
te honram a Deus será aclarada e Deus os julgará pelo que guardarem no mais
íntimo de seu ser].
Deus não subsiste, [não depende] da razão que lhe atribuímos; ele é
Deus em seu próprio direito. Deus não é uma base ao lado de outras, nem é a
resposta que nós mesmos seríamos capazes de dar; daí o seu irrompimento
inesperado e sem razão aparente, e o seu julgamento segundo seus próprios
juízos.
Há uma possibilidade [uma ocasião] para o homem salvar-se da ira de
Deus: é quando toda pretensão humana é anulada, abatida, por Deus; quando
Deus dá o seu NÃO, como resposta definitiva; quando a ira de Deus se torna
inevitável; [isto é:] quando Deus é reconhecido [e aceito] como Deus! E lá,
onde e quando começa a história entre Deus e o ser humano. É lá, onde e
quando o homem se atreve a erguer-se do pó, [unicamente] para amar esse
Deus imperscrutável. (Isto não é uma receita para a bem-aventurança, mas é a
eterna base para sua constatação).
E por isto — [por estar a possibilidade de escapar o homem da ira de
Deus, lá onde e quando o mortal se levanta para amar a Deus], que se trata de
Jesus Cristo, [que foi Emanuel, Deus conosco].

Comentários: 2, 14-29

1. Neste capítulo, ao tratar dos atributos de São Francisco, o A. ensaia


um método expositivo que é uma sua característica notável na
“Dogmática” e que me parece ser uma das causas (ou origem) das
acerbas críticas que lhe são feitas por homens cultos e estudiosos do
ambiente evangélico brasileiro. Trata-se de uma certa dose de humor,
mediante afirmações absurdas que o A. faz na expectativa evidente de
que o leitor perceba o sentido real das afirmações. (E claro que so-
mente imaginação doentia poderia criar para alguém qualidades mo-
rais e espirituais que parecessem superiores às de Cristo).
Na “Dogmática”, não raro, Barth registra conceitos, interpreta-
ções e pontos de vista de terceiros como se os aceitasse, AD INITIUM;
todavia os toma como válidos apenas para discuti-los, analisá-los,
disseca-los e, de dedução em dedução destrói e rejeita o que julgar
inadequado ou absurdo e, no processo, leva o leitor a antecipar-se à
sua conclusão; não são poucos os casos que, na “Dogmática”, são
analisados dessa forma, alguns deles ocupando parágrafos e páginas
seguidas.

106
O Julgamento 2, 14-29

Ora, sendo a “Dogmática” uma obra muito extensa, e sendo o A.


prolixo, por índole e estilo, muitos são os leitores que consultam a
obra; a manuseiam, mas não a lêem detidamente, e passam a atribuir
a Barth interpretações e afirmações que foram registradas em sua obra,
apenas para serem refutadas de forma cabal.
E quando o absurdo dos conceitos ou preconceitos é, no critério
de Barth, por demais evidente ou grotesco, ele apenas os menciona e
deixa o leitor tirar suas próprias conclusões. E se algum leitor apres-
sado viesse a concluir que Barth foi de opinião que São Francisco
superou a Cristo? Parece que o A. não considera ser importante res-
ponder ou esclarecer tal tipo de leitores. Afinal, ele não disse que é
um teólogo escrevendo para colegas?
2. Parece-me curiosa a interpretação que o A. dá a certo tipo de esforço
missionário, evangelístico ou de catequese: é o mensageiro, o prega-
dor, a testemunha de Cristo que vê no ateu, no pagão, no incrédulo,
no adepto de outra religião, não o irmão, o companheiro, o conservo,
mas o objeto de seu zelo, e procura cumprir para com ele, a sua parte
no plano de redenção; procura desincumbir-se de seu papel. Barth
afirma categoricamente que ninguém tem o direito de arvorar-se em
missionário se não houver sido incumbido por Deus para isso.
Na “Dogmática” Barth é, ainda mais veemente, afirmando que,
quem não houver sido vocacionado para pregar, que se abstenha to-
talmente de fazê-lo, pois não será pequeno o mal que causará se subir
ao púlpito sem haver sido escolhido para isso por Deus.
Parece-me difícil chegar à conclusão pronta e segura: quem deve
ir e pregar o evangelho a toda criatura? (Mat. 28, 19 e referências). A
ordem foi dada por Jesus aos onze apóstolos remanescentes. Seria só
para eles? Temos a inclinação de generalizar a ordem para até os nos-
sos dias pois Cristo prometeu que estaria com seus enviados até a
consumação dos séculos.
Será o caso que somente os especialmente chamados, alguns até
separados desde antes do berço, devem e podem anunciar o evange-
lho, ensinar e profetizar, como o próprio Paulo, Isaías, Jeremias,
Moisés, Abraão para citar alguns só?
A Bíblia ensina-nos à saciedade que Deus não confia a propa-
gação do evangelho e a apresentação da sua mensagem a homens
melhores que os outros, a homens perfeitos, pois nesta hipótese te-
ria que confiar a mensagem aos anjos ou suscitar mensageiros das
pedras.

107
2, 14-29 O Julgamento

Também é igualmente certo que o poder da mensagem independe


do mensageiro pois, de outra forma, como se explicaria o arrependi-
mento de toda a cidade de Nínive, ante um pregador tão destituído de
predicados nobres, qual foi Jonas? E como haveremos de saber se
somos, ou quem é, verdadeiramente vocacionado? Não foi Paulo que
escreveu que o importante é que o evangelho seja anunciado, mesmo
que seja por fingimento, inveja ou porfia? (Filip. 1, 15-18).
Será, então, que aqueles que se esforçam por ajuntar, pensando
que receberam uma mensagem a entregar, estejam, na realidade, es-
palhando e não ajuntando, com Cristo? (Mat. 12, 30). Este versículo
parece ser o ponto central do pensamento do A. sobre o assunto. To-
dos os argumentos desenvolvidos até aqui mostram o sentido mais
profundo do julgamento de Deus, segundo o que está oculto no re-
côndito da mente, ou, para usar a expressão usual, de acordo como
que está escondido em segredo no coração; segredo que o seu
guardador, muitas vezes, sequer ousa confessar a si mesmo. Nem to-
dos pregadores, sacerdotes, ministros, missionários, pastores, foram
separados desde antes de nascerem, ou de outra forma miraculosa,
como alguns dos grandes vultos bíblicos.
Nem todos, também, terão por objeto de sua missão levar as mi-
galhas que caem da mesa para alimentar os cachorrinhos. Nem sem-
pre podemos perceber claramente quais os motivos humanos — ou
se existe vocação divina, entre os obreiros da seara santa; e a nós não
compete o juízo. Mas examine-se cada um a si mesmo e veja o que
faz: está, acaso, aproveitando o pretexto para acomodar-se ao “dolce
fare niente”? Ou será o caso que se esforça e agita para ter maiores
recompensas, como diz aquele hino americano:

“I’m thinking, today...


Those bright stars might be mine
In my crown they may shine
If I work like a winner of souls”...

Ou então, será para pagar uma suposta dívida de gratidão, retribu-


indo a graça divina com a dedicação pessoal?
E não existirão outros motivos, menos sofisticados e menos nobres,
alguns até sórdidos? (Prestígio eclesiástico, carreirismo e até bolsas
de estudo!).

108
O Julgamento 2, 14-29

Sim. Há de haver um motivo em cada coração. Este motivo é jul-


gado pelo juiz que vê o que há de mais secreto em nós. Ele sabe se
fugimos e recalcitramos contra o aguilhão ou se, totalmente, nos auto-
sugestionamos para o cumprimento de pretensa missão ou ainda se
simulamos a vocação para realizarmos nossos intentos. Verá também
a sinceridade.
Os homens julgarão segundo os critérios perecíveis da justiça
humana. Deus julgará em definitivo segundo seus pesos, sua medida
e sua escala, dispensando sua graça ou sua ira segundo a retidão de
seus juízos. “Muito bem, servo bom e fiel; foste fiel no pouco.
Sobre o muito te colocarei; entra no gozo do teu Senhor”.
(Luc. 25,21 e 23)

109
Capítulo III
A JUSTIÇA DIVINA
(A RETIDÃO DE DEUS)
Conforme mencionado no Cap. II o A. dá àquele Capítulo e ao III os
títulos de Justiça dos homens e Justiça de Deus.
Havendo “traduzido” o título do 2º Capítulo como Retidão Humana,
por coerência, deveríamos intitular o 3º com “Retidão Divina”. Aparentemente
qualquer dessas formas poderia ser empregada todavia, parece ser mais ade-
quado o título Justiça Divina usando no texto, e em cada caso, a expressão que
se afigurar como a mais própria.
O A. subdivide o capítulo em três partes:
• A lei - Vs. 1 a 20
• Jesus - Vs. 21 a 26
• Somente pela fé - Vs. 27 a 30
A primeira parte consiste de uma exposição impressionante da situação
desesperadora do homem perante a lei. Essa lei divina é incomparavelmente mais
dura que a DURA LEX, SED LEX romana porquanto esta, embora pudesse, por
vezes, ter sido feita para servir aos desígnios de déspotas e tiranos, reis e senhores
de um estado totalitário, era, todavia, susceptível de ser cumprida pelos súditos
de todas as camadas sociais, ainda que fosse por servilismo, por submissão, por
pavor ou por fingimento, para salvar aparências, o que era, na realidade o objeti-
vo da lei, como sói acontecer com toda lei cívica: resguardar e fazer respeitar o
que a sociedade em cada época e em cada lugar, considera ser “o bom costume”.
Ora, não é assim com a lei divina, pois o homem é julgado não pela
aparente prática da lei mas pelo que está aninhado no recesso mais íntimo de
seu coração. E esta lei exige tudo; não se contenta com setores ou parcelas:
“Amarás o senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda tua alma e de todo o
teu entendimento (ou força) (Mat. 22, 37 e Deut. 6, 5). Ninguém tem desculpa,
e nada serve como pretexto; a relatividade humana está inserida no critério
absoluto da exigência total: todo o teu coração; toda a tua alma; todo o teu
entendimento, ou a tua força. Se o coração for grande ou pequeno, se a força

111
3, 1-30 A Justiça Divina

que houver for fraqueza, se o entendimento for minúsculo, se a alma for tímida,
tristonha, que importa? Não é a grandeza do amor em relação ao que outros, de
coração mais nobre, de alma corajosa, de entendimento superior e de forças
hercúleas, acaso tenham ou possam ter; mas é o máximo que cada um, dentro
de suas condições, pode dar. E, o supremo juiz firma a sua sentença, segundo a
lei, pelo que houver no íntimo de cada um de nós. Não há subterfúgio, porque
Deus vê em secreto. (Mat. 6, 6)
Quem há que possa satisfazer a exigência dessa lei? — Sempre nos
faltará alguma coisa e haveremos de nos retirar tristes pois a simples idéia de,
por nossas qualidades, a podermos cumprir, já é incriminativa pois envolve ou
implica o conceito do nosso valor, e endeusamento do “não-Deus”, como sen-
do digno do verdadeiro Deus, e ocupante do seu trono.
Não há esperanças, pois! Segundo a lei o homem está perdido.
Na segunda parte o A. apresenta o Jesus de Nazaré. O filho do homem,
O Homem Jesus; o nosso irmão mais velho. O Jesus que é o Cristo; o Messias
prometido; que é Emanuel, Deus conosco! O Homem que cumpriu a lei; que
sofreu o nosso castigo, expiando-o com seu sangue. O Cristo que, em si, nos
reconcilia com Deus.
O Cristo que nos liberta da ação da lei, mediante a opção pela fé.

* * *

Fé — somente pela fé, é a terceira parte da exegese que Barth faz do 3º


Capítulo.
A reconciliação em Cristo não é certeza visível, mensurável, palpá-
vel. E do mundo de além; do lado de lá; pertence ao reino dos céus, que está
bem próximo de nós (em Jesus); todavia, não é visível porque não é deste
mundo e só o podemos pressentir, apropriar, receber, gozar, pela fé, e so-
mente pela fé.
Esta é a terceira parte do Capítulo: Deus é fiel; porém só usufruiremos
dessa fidelidade em nosso benefício, para nossa redenção e ressurreição, se o
aceitarmos pela fé.

* * *

A LEI (3, 1-20)

A história do mundo é constituída pelo entrechoque das supostas vanta-


gens do espírito e da força (ou do poder) que uma parte [ou fração] da huma-

112
A Lei 3, 1-20

nidade goza ou pretende gozar [em detrimento ou superiormente] à posição da


outra parte.
É a luta pela existência, hipocritamente dissimulada nos ideais de justi-
ça e liberdade. É o subir e descer das ondas de antigas e novas formas de justiça
humana que se sobrepujam mutuamente em solenidades (ou pompa), e em
futilidades.
Esta História termina, encerra, o seu ciclo com o juízo de Deus.
Uma só gotícula de eternidade tem mais peso que todo um mar de coisas
temporais. Medidas pelo padrão de Deus, as vantagens humanas perdem sua
altura, sua seriedade [sua dignidade] e seu alcance; tornam-se relativas.
Até mesmo os mais acentuados antagonismos humanos [os extremos,
por exemplo], as polarizações mais justas, do mais profundo cunho espiritual,
aparecem quais realmente são, [quando submetidas ao juízo de Deus]: revelam
sua significação meramente natural, profana “materialista”, parte integrante deste
mundo.
Quando este juízo (de Deus) se der [ou se dá], os vales se erguem e as
colinas se abaixam. A “guerra” entre os bons e maus chega ao fim.
Os homens deixam de estar em campos opostos, para se colocarem to-
dos na mesma linha [ou na mesma trincheira].
Os seus segredos estão [agora, na hora do juízo] (2, 16) em julgamento
perante Deus, mas perante Deus somente.
O juízo divino é o fim da história [de forma cabal]; não é o princípio de
nova História. A História está consumada, liquidada, e jamais será continuada,
prolongada, estendida.
O que existe para além do julgamento divino não guarda, sequer, relati-
vidade com as coisas do lado de cá, [anteriores a ele], pois é absolutamente
diferente, e está totalmente separado destas.
Deus fala: Deus é reconhecido como juiz.
É necessário conservar em mente que quando Deus fala, e é reconheci-
do como o Juiz, a mudança é tão radical a ponto de entrelaçar inextricavelmente,
a temporalidade com a eternidade; retidão humana com a retidão (ou justiça)
divina; o reino que existe aquém da linha de interseção com o que existe além
dela.
O fim da História, o seu término, é também o seu alvo.
O Redentor, é também o Criador. Aquele que julga, é também o Restau-
rador de todas as coisas.
O descerramento do contra-senso [da loucura humana] é também a re-
velação do bom-senso [do juízo, da sensatez].
Aquilo que é novo, é também a mais profunda verdade da antiguidade.

113
3, 1-20 A Lei

Deus significa para os homens, para o mundo, para a temporalidade, a


mais radical liquidação da História, O “NÃO’ que sujeita toda carne e a crise
absoluta [o julgamento] que Deus destina ao mundo, são também o fio carme-
sim estendido através de toda a existência e por todo o mundo — [o fio que
guia o caminheiro sem rumo, ao destino certo].
É assim que as coisas passageiras, efêmeras, se transformam em ima-
gens das que são eternas. A última genuflexão [o último ato de submissão] sob
a ira de Deus e a crença na sua retidão (ou justiça), pois ele é então reconhecido
como o “Deus Desconhecido”. Como tal, ele não é “uma coisa” em si mesmo;
não é um ser metafísico ao lado de outros seres. Não é um segundo, um outro,
um estranho, ao lado dos [seres] que poderiam mesmo existir sem ele; porém é
o Deus eterno. E a fonte pura de tudo quanto de fato é; [de tudo o que realmente
existe].
Ele é a realidade de todas as coisas, mesmo ao anulá-las. Deus é fiel.
[Esta análise de Barth parece, à primeira vista, conflitar com a tese ge-
ral, esposada pelo A. e perfeitamente bíblica, do nenhum valor da retidão hu-
mana, em si, para a salvação do homem:
A tese, segundo a qual, nada que seja humano, temporal, prevalece pe-
rante Deus.
No entanto, diz agora o A. que, quando Deus fala, mesclam-se
inextricavelmente a temporalidade com a eternidade e a retidão humana com a
justiça divina; portanto o material corruptível com o incorruptível.
Como assim?
Quer parecer-me que a resposta está na tese fundamental que o A. apre-
senta na exegese do Cap. II e que, sem dúvida alguma, é perfeitamente bíblica:
DEUS JULGA PELO QUE ESTÁ EM SECRETO NO CORAÇÃO.
Deus não quer o homem indolente (Vide a parábola dos talentos) —
(Mat. 25, 14-30). Portanto o homem tem em seu acervo as obras que pratica, as
palavras que fala, os pensamentos que abriga; são seu acervo — bom ou mau
— os anseios de seu coração que aspira a pureza, e o desejo de sua alma de
praticar o bem que muito quer embora nem sempre consiga realizar o seu inten-
to (Sal. 51 e Rom. 7, 19). Porém Deus vê em secreto e apura, segundo os seus
retos juízos (e sua misericórdia) o que há de divinamente aproveitável na reti-
dão humana.
É assim, (mediante o julgamento segundo a medida, a escala, de Deus, e
que ele — só ele — aplica ao que existe no recesso de nosso coração, nas
profundezas de nosso pensamento), que se fundem, que se mesclam a justiça
divina e a retidão humana, porque a primeira, independentemente de nosso que-
rer, acrisola, purifica, transforma a segunda. E assim que o material, o efêmero, o

114
A Lei 3, 1

perecível e, portanto, parte integrante da retidão humana, sendo aceito por Deus,
se mistura inextricavelmente com a justiça divina, O que Deus aceita por válido,
deixa de ser humano para ser divino].
[E porque Deus é fiel] a impressão da revelação deixada na história não
é tirada, não é apagada, não é anulada pelo julgamento [divino] por menos que
dela se glorie a retidão humana, por menos que dela possa a retidão humana
tirar para si segurança e descanso; antes é ela (a impressão da revelação) confir-
mada e fortalecida pois, na supressão radical de todas as realidades históricas e
psíquicas, na relatividade geral dos seus degraus e suas antinomias, permanece
e sobressai a sua significação verdadeira, eterna.

Vs. 1 a 4 O que tem, pois, o judeu, ainda de especial, e qual o mérito da


circuncisão? Um valor muito grande, em todo sentido: primeiramente por-
que lhe foram confiados os oráculos de Deus. Então, como seria de outra
maneira? Porque alguns traíram a confiança, acaso a infidelidade destes
suspenderia a fidelidade de Deus? impossível! Porém, é preciso ficar evi-
dente que Deus é verdadeiro, e todo o homem mentiroso, como está escri-
to: “afim de que tenhas razão em tuas palavras e venças quando fores
julgado”.

”O que tem pois o judeu, ainda, de especial?” [quais são as suas vanta-
gens, se é que tem alguma?
Em seriedade, existiria algo de especial [alguém poderia ter vantagens]
se tudo [e todos] estão sob a ira de Deus, e se não existe salvação e paz prepa-
rada [e reservada] para este ou aquele, em particular? (E, mais ainda), se não há
qualquer exceção?
Existem acaso, na história, pontos altos que sejam mais que grandes
vagas, em mar transitório, de sombras apenas mais densas que outras?
Existe alguma relação entre o que é perceptível, histórica e psicologica-
mente, como sendo a impressão da revelação, e a revelação do próprio “Deus
Desconhecido”?
Acaso existe alguma relação entre os varões ilustres que passaram [ou
passam] pelo mundo com a perseverança dos vocacionados e iluminados, que
se sobressaem como heróis e profetas [que se agigantam] como homens de boa
vontade, sim, existe alguma relação entre toda essa gente e o Reino de Deus
que está por vir e no qual tudo se fará de novo?
Por trás dessas perguntas está a outra, de ordem geral, que indaga da
relação existente entre o que sabemos ser verdadeiro (por experiência própria
ou de terceiros) e o conteúdo eterno de todos os eventos.

115
3, 2 A Lei

Ou então, qual a relação que há entre a existência e o modo de ser de


todas as coisas e do seu sentido real, [seu ser] verdadeiro?
Que relação há entre o anseio e o conhecimento?
Voltando o olhar a Deus, o Juiz, não ficam, acaso, desmentidas todas as
referências, todas as comparações e todas as relações entre o aqui e o além?
Será que a separação, a distância em que nos achamos, de Deus, e que
percebemos quando analisamos mais detidamente a nossa situação, é o afasta-
mento total entre Deus e o mundo?
Que valor tem a circuncisão?
[Se não há qualquer relação entre os aparentes “valores” do mundo e os
valores eternos; se a separação entre o homem e Deus é definitiva, então, de
que vale o sacramento que confessa que a ele pertencemos?]
Respondemos: “Um grande valor em todo sentido!”
Desmesuradamente fortes são a relação e a conexão entre Deus e o
mundo, entre o “aqui” e o “lá”.
Justamente depois de haver sido esclarecido (compreendido e aceito)
que a materialização e a humanização do que é divino, em história religiosa ou
sagrada, não tem qualquer relação com Deus porque ele, dessa forma, é apreça-
do, pode-se afirmar que tudo o que acontece no mundo nosso conhecido tem
conteúdo e significado para Deus; que toda “impressão de revelação” aponta à
própria revelação; que toda a experiência da vida traz conhecimento para a
crise individual do ser humano; que todo o tempo transitório, na sua própria
transitoriedade, aponta à eternidade.
Julgamento não e destruição, porém restauração.
Purificação não e esvaziamento, mas preenchimento.
Deus não abandona a humanidade, mas é fiel (3, 3).
[É por isso que o Sacramento, que dá testemunho da graça de Deus, tem
um grande valor, em todo o sentido!]
“Foram-lhes confiados os oráculos de Deus”.
Quanto mais ambígua e duvidosa for a posição do homem justo que
busca e espera por Deus, tanto mais clara e necessária é ela como sintoma do
que Deus quer e faz. (2, 19-25) [Porque sendo ambígua e duvidosa, para o
homem. a posição em que se encontra, não se entregará, ou não será tão pron-
tamente induzido a arvorar-se na posição de superior, de líder, de guia, de mes-
tre; não se fiará, nem se gloriará na sua própria retidão, antes estará atento à voz
de Deus, e estará mais pronto a entregar-se à sua justiça].
O fato de tais pessoas [as que sentem a insegurança do seu valor humano]
serem o que são, no meio do mundo, é prova de sua confiança em Deus. Elas o
são porque o reino de Deus foi prometido. Enquanto elas, por experiência própria

116
A Lei 3, 2-3

ou alheia, são constrangidas a se calarem ante o que não conhecem, são teste-
munhas que este “não-conhecimento” pode, como tal, tornar-se objeto de seu
conhecimento. Enquanto se lembrarem do impossível, testificam que Deus é a
possibilidade impossível [aos homens]; que Deus é a possibilidade ao seu al-
cance, não como uma possibilidade entre outras, porém como [a grande, a única]
possibilidade do que é [humanamente] impossível.
Pela manifestação de Deus que [tais homens] têm e guardam, eles são as
testemunhas palpáveis do impalpável: eles atestam que para este mundo inca-
paz de receber a salvação, há salvação.
Não faz diferença se o que eles têm e guardam é Moisés ou João Batista;
Platão ou o socialismo; ou ainda, a mera prática diária de vida morigerada: é
vocação. Esse “possuir” e “guardar” é promessa, é parábola; é porta aberta e é
oferta para conhecimentos mais profundos. A posição especial que reivindi-
cam, sua demanda para serem ouvidos especialmente, não são necessariamente
uma arrogância enquanto lhes forem confiadas, de fato, manifestações de Deus.
[O A. refere-se, algumas vezes, à vida como parábola e à sua capaci-
dade de, por vezes assumir determinados aspectos de paralelismo e seme-
lhanças; nas Sagradas Escrituras as parábolas não são apenas analogias de
raciocínio mas também um provérbio, um dito notável e, ainda, emblema e
protótipo visível.
Parece-me que o A. quer dizer que há justos que esperam em Deus, quer
sejam judeus, que se orientam pela lei de Moisés, gentios filósofos, materialis-
tas modernos ou simples plebeus (ou “burgueses”) que apenas entendem ser de
seu dever guardar a devida decência na vida cotidiana.
Tais praticantes estão na direção certa para fazerem de suas vidas (e
talvez façam) semelhança viva, uma parábola do fato de que Deus não abando-
na a humanidade, porém é-lhe fiel. (Uma parábola da fidelidade de Deus).
É de notar que o A. põe no mesmo redil, judeus e gregos; socialistas e
simples homens do povo, implicando o que está dito mais atrás sobre os que,
não tendo a lei, a praticam segundo as suas próprias luzes].
“Ainda que alguns hajam traído essa confiança, acaso a sua infidelidade
suprimirá a fidelidade de Deus?”
Soterrado e escondido está, pois, o sentido verdadeiro de nossa vida. [O
reconhecimento da fidelidade de Deus e a nossa fidelidade a ele só]
Continua irreconhecido dos homens o Deus desconhecido; infrutífe-
ras as pegadas de sua fidelidade, — [os sinais que testemunham sua glória e
seu poder]; permanecem inaproveitadas a sua promessa e a sua oferta. [Ofer-
ta de reconciliação e promessa de redenção]. Mas a constatação desse fato
ainda não vem ao caso, [para Deus]. Para Ele, o desvirtuamento da confiança

117
3, 3-4 A Lei

depositada é uma verdade apenas casual, acidental; a ação de alguns (ainda


que os “alguns” fossem todos!) não é refutação nem estorvo para o que Deus
quer e faz.
A fidelidade de Deus pode ser esquecida, traída, ignorada, porém não
pode ser suprimida.
A oferta de Deus pode encontrar a ingratidão, mas não será retirada. A
bondade de Deus levará o recalcitrante ajuízo mas nem por isso deixará de ser
bondade.
As oposições a Deus que se manifestam no correr da história não alte-
ram as oportunidades por ele oferecidas, nem obliteram as indicações [cons-
tantes] à revelação divina, nem suprimem as singularidades divinas que a histó-
ria contém. Não se fecham as portas, nem cessa o apelo de Deus pelo qual ele
se faz conhecer, — [pelo qual ele conduz os homens ao “Deus desconhecido”].
Onde quer que existam pessoas que perseverem em Deus, existe tam-
bém a mensagem, em CHARACTER INDELEBELIS. E ainda que esta mensa-
gem fique completamente oculta aos que assim perseveram, ou mesmo aos
olhos de todos, ou que adviessem as mais terríveis catástrofes psíquicas e histó-
ricas, a mensagem subsistiria, [e subsistirá].
Deus nunca, e em nenhum lugar, se revelou em vão. Onde houver lei (2,
14) inda que sejam cinzas apagadas, aí existe também uma palavra [ao menos]
da fidelidade de Deus.
[Deus não se deixa levar pela ação humana; ele não age desta ou daque-
la maneira porque (ou se) alguns de nós procedemos de uma ou de outra forma.
As portas de acesso a Deus não se fecham e, ainda que existam tempos, épocas
e regiões onde os homens, mesmo esperando nele, não sintam a graça de Deus
em suas vidas materiais, a palavra do Eterno não voltará vazia (Isaías 55, li).
Deus fala e, de alguma forma, quiçá no recesso mais íntimo de seus corações,
os seus servos ouvem].
“É preciso ficar evidente que Deus é verdadeiro, e todo homem, men-
tiroso”.
O que consegue, pois, a infidelidade do homem perdoado?
— Consegue, apenas, comprovar a premissa de toda filosofia cristã
(Calvino): Deus é verdadeiro; Deus é a resposta, o socorro, o juiz, o Redentor.
Nenhum ser humano pode sê-lo; nem o oriental, nem o ocidental, nem o ho-
mem germânico, nem o homem bíblico; nem o piedoso, nem o herói, nem o
sábio, nem o que espera, nem o que trabalha, nem mesmo o super-homem.
— Só Deus, o próprio Deus!
Se esquecermos desse fato, então é preciso que sejamos lembrados da
insuficiência de todos os mensageiros de Deus e da distância que vai deles até

118
A Lei 3, 4

a mensagem que proclamam. Precisamos colocar-nos novamente na origem,


no começo.
O próprio mensageiro vive no reconhecimento de que é em sua insufi-
ciência que ele anuncia a Deus: Deus é Deus! “Eu cri, por isso falei, mas fui
profundamente humilhado” (Salmos 116, 10-14) e depois: “Falei em minha
aflição” (em meu êxtase, LXX): “Todo homem é mentiroso!” Todo homem!!
É da perspectiva deste antagonismo geral entre o homem e Deus, e so-
mente dela, que surge o conhecimento de Deus. É dela que o homem chega a
uma nova forma de culto e de comunhão com Deus.
“Como retribuirei a Deus todas as suas dádivas? Tomarei o cálice da
salvação e invocarei o nome do Senhor perante todo povo”. (Sal. 116, 13-14).
“Para que sejas justificado em tuas palavras e possas prevalecer quando entra-
res em juízo” (Sal. 51, 4-6).
[O Autor dá ênfase à absoluta pureza de Deus; à sua justiça reta e inaba-
lável, de tal forma que nenhum argumento resta ao homem para argüir a Deus
ou disputar com ele, conforme o reconheceu Davi no Salmo 51 quando, no
extremo de sua angústia, exclamou: “Contra ti, e só contra ti pequei; tu amas a
verdade no íntimo, e no oculto me fazes conhecer a sabedoria” (para que eu
saiba) que és justo e puro quando julgas].
Não é próprio que duvidemos da mensagem por serem fracos e falí-
veis os mensageiros que a trazem e, muito menos, que critiquemos a Deus
por isso.
Antes, a própria fraqueza dos arautos atesta a origem divina daquilo que
anunciam. [Pois sendo pequenos os pregoeiros, como poderiam anunciar coi-
sas grandiosas e santas que viessem deles mesmos ou de seus iguais?].
O valor da testificação de Deus independe das circunstâncias históricas
que cercam [envolvem e caracterizam] os anunciadores da mensagem e é justa-
mente no reconhecimento de seu desvalor, de seu despreparo, de sua fraqueza
[de sua desesperada falta de dignidade para tão grande missão] que o homem
dá azo à entrada vitoriosa de Deus.
Quando o homem se encontra na situação descrita no Salmo 51; quando
ele nada encontra em si mesmo senão a sua impureza ante a luz divina; quando
o homem já não pensa em outro sacrifício a oferecer senão o seu próprio es-
pírito atemorizado e o seu coração despedaçado, então vem Deus como ven-
cedor triunfal. [Então, “qual eco afastado nas quebradas a rolar, ao aflito e
contristado” (a voz de Deus) “vem consolar”].
A mensagem [a voz] de Deus permanece acima do subir e descer das
vagas da história a despeito da infidelidade humana, por entre a qual subsiste a
fidelidade de Deus qual farol.

119
3, 5-8 A Lei

Permanece, pois, a vantagem, o especial (3, 1) que o judeu [já] não tem
mas recebeu: [O sacramento do pacto com Deus — “Eu vos serei por Deus, e
vós me sereis por povo” (Lev. 26, 12 e II Cor. 6, 16) como sinal sacramental,
visível, dessa graça. (Gal. 6, 15].

Vs. 5 a 8 Mas o que diremos se a nossa rebeldia [nossa injustiça] traz a lume
a justiça de Deus? Não é, [não seria] então, Deus injusto ao aplicar a sua
ira? (Falo segundo a lógica humana).
Impossível! Como então, julga ele o mundo?
Se eu pudesse justificar-me porque, para a glória de Deus, a sua verda-
de teria sido engrandecida pela minha mentira, como se justificaria o fato
de eu ser julgado como pecador?
Verdadeiramente, não acontece segundo as palavras que alguns
aleivosamente nos atribuem: “pratiquemos o mal para que daí venha o bem!”
Os que assim falam, reforçam a sua condenação.

[O Autor, citando as palavras do original grego, em nota de rodapé da pági-


na 55 explica porque prefere o tempo presente (como, então, JULGA ele o mundo)
acompanhando Bengel e conforme está (segundo o Autor) em 1 Cor. 6, 2.
A tradução de Almeida usa o verbo no futuro JULGARÁ e para 1 Cor.
6, 2 diz... “os santos julgarão”, etc.
A Revised Standard Version diz, no primeiro caso, “como poderia Deus
julgar o mundo (admitindo, portanto, um tempo presente e, no segundo, “os
santos julgarão”. A versão sinodal (francesa) acompanha a tradução de Almeida
nos dois casos. A Bíblia “de Lutero” dá, em Romanos 3, 6, o tempo presente e
em 1 Cor. 6, 2, fala no julgamento que “Será feito”, pelos santos.
A versão católica de 1953, da Biblioteca de Autores Cristãos de Madri,
diz como a R.S.V., “como poderia Deus julgar”, para Rom. 3, 6, e conforme as
demais versões citadas, para 1 Cor. 6, 2].
“Se a nossa rebeldia traz a lume a justiça de Deus, não é então, Deus,
injusto, ao aplicar a sua ira?”
(Ou, para usar a tradução de Almeida, “Se a nossa injustiça traz a lume a
justiça de Deus, que ditemos? Porventura será Deus injusto ao aplicar a sua ira?”
Sim, segundo a lógica humana, parece que se nossa mentira enaltece a
glória de Deus, ele será injusto se fizer cair sobre nós os efeitos de sua própria
ira, suscitada pelo mesmo pecado que o enalteceu].
O que acabamos de ver dos versos 3, 1-4, parece lançar uma luz toda
peculiar sobre este Deus que se declara Deus justamente no ato de negar, recu-
sar [condenar] seus eleitos.

120
A Lei 3, 5-6

A rebeldia e o egotismo despótico e altivo dos homens (1, 18) são os


males que, também nos eleitos, retêm presa a verdade e são a causa de sua
condenação.
Ora, se a rebeldia humana atesta a justiça [a retidão] de Deus, que reti-
dão é esta? Não passa ela, também, a ser rebeldia? [a ser injustiça?].
Não passa Deus então, a ser, em seu soberano despotismo, uma terrível
expressão do mais exaltado EGO, em toda sua monstruosidade?
Nestas condições, a ira de Deus suscitada pela nossa rendição ao NÃO-
DEUS (1, 22-32) não testemunha contra ele mesmo, contra o próprio Deus?
Não resulta disso que a situação do mundo e dos homens, é apenas ex-
pressão fiel dos mais íntimos sentimentos do [próprio] Deus: uma tirania capri-
chosa e impenetrável?
Se o contra-senso [a loucura, o disparate] da história testificar sua pró-
pria coerência, então esta coerência não passa a ser, necessariamente, um con-
tra-senso? [uma loucura, um disparate?].
“Segundo a lógica humana”, quer dizer: um raciocínio muito bem
concatenado, porém, na verdade, destituído de senso crítico, por demais
simplista, bisonho; em se tratando das coisas divinas um raciocínio embrutecido,
[materializado].
Semelhante lógica raciocina [e tira suas conclusões] pela justaposição de
todos os dados porém não inclui o dado desconhecido que é a premissa, a origem,
de todos os outros, a despeito de todo o ensinamento que a humanidade tem
recebido sobre tal modo de raciocinar; raciocínio no qual se ignora, de maneira
tipicamente humana, com quem se tem de tratar, toda vez que o assunto for Deus.
O raciocínio segundo à lógica humana ignora que, com referência a
Deus, quando ele for a causa, a relação de Causa e Efeito não subsiste, pois ele
não é “uma coisa conhecida” entre as coisas.
“Como, então, julga ele o mundo”?
Se mediante essa objeção, [a objeção à retidão divina,J pudermos colo-
car Deus como a causa original encabeçando as demais causas que existem no
mundo e daí tirar conclusões, como fica, então, o fato de que todo o presente
mundo está, evidentemente, declaradamente, sujeito a uma crise, uma proble-
mática final?
Não há objeto [ou circunstância] sem que nele [ou nela] se pense. Não
há distintivo que fixemos algures sem que tenhamos, pelo menos, uma idéia do
que o distintivo representa.
Ora, fôra Deus uma parte deste mundo, não haveria expressão a seu
respeito (“prepotência”, “tirania”) que não tivesse sido originada por esse co-
nhecimento prévio.

121
3, 6-7 A Lei

Se, no sentido da objeção 3,5 Deus fosse um objeto [ou circunstância]


entre outros objetos [ou circunstâncias], então ele próprio estaria sujeito à crise
geral e já não seria mais Deus e o verdadeiro Deus teria de ser procurado na
origem dessa crise.
É, declaradamente, este o caso. A objeção 3, 5 não se refere a Deus, mas
ao NÃO-DEUS, que é o Deus conhecido deste mundo.
O verdadeiro Deus, é o supressor de toda materialidade e a origem da
crise desta materialidade; ele é o Juiz; ele é a negação do mundo (inclusive da
lógica humana) [que levantou a objeção à retidão divina].
É deste Deus verdadeiro, o juiz do mundo, que nele não tem partido
[nem dele faz parte], é deste Deus que falamos.
A conclusão que apressadamente tiramos a respeito da retidão divina,
não alcança seu alvo; ela é de fôlego muito curto, ou antes: é um curto circuito
[que anula em si mesmo toda potencialidade nele envolvida].
Ao contrário daquilo que a objeção à retidão de Deus insinua, é justa-
mente em Deus, mediante seu julgamento, que toda rebeldia, toda tirania, toda
prepotência encontra a sua antítese.
[É no tribunal divino que o personalismo, o egoísmo, a arbitrariedade, a
violência dos homens se confronta com a justiça, a equanimidade e a retidão de
Deus; é então que esta tirania se desmascara; é de Deus que o homem recebe a
inspiração, o ideal, a noção de liberdade e justiça].
Sem o verdadeiro Deus [sem dele termos recebido o conhecimento, a
visão da liberdade e, em contraposição, o horror ao despotismo], nem sequer
teríamos condições de formular a mal endereçada objeção.
[Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará. (João 8. 32)].
“Se eu puder justificar-me por haver a verdade de Deus sido engrandecida
com a minha mentira, o que significa, pois, que eu seja julgado como pecador?”
Essa objeção [é paralela à primeira, porém nela é mais] evidente o dese-
jo de fuga, a busca de pretexto [ou de justificativa] para diminuir a responsabi-
lidade do homem perante Deus ou, pelo menos, para protegê-lo ante essa res-
ponsabilidade. [É como se disséssemos]: tenhamos ânimo! Eis que a fidelidade
divina triunfa até mesmo na infidelidade dos eleitos, e todos podemos conso-
lar-nos com a idéia de que em nossa mentira, engrandece-se a verdade de Deus!”
[Todavia] trata-se de conclusão falsa. Deus não é o mundo e ante tão
forte razão, nem por sua obediência, nem por sua mentira pode o homem acres-
centar ou retirar o que quer que seja [o mínimo que fosse] da verdade e da
glória de Deus.
Deus mesmo confirma e atesta a sua verdade e se glorifica. [Ele não
precisa da colaboração do homem, nem positiva nem negativa].

122
A Lei 3, 7-8

É em Deus que se decide se o nosso procedimento é obediente ou men-


tiroso; é ele quem paga a cada um segundo as suas obras (2, 6). Ele triunfa, quer
seja aceitando, quer seja rejeitando; quando perdoa e quando condena; não
tenho justificação [ou desculpa] nem em um nem em outro caso; perdoado ou
condenado só me resta curvar-me ante a sua sentença e tributar-lhe honra. qual-
quer que seja a circunstância. Esta é a posição sincera [e retal do homem peran-
te Deus em contraste com o sofisma da indagação de “Por que Deus é Deus”!
Quem temer a soberania divina ou desejar que ela cancele, suprima,
dispense [ou atenuei a responsabilidade humana, deve lembrar-se que [todo
homem] é pecador e, como tal, julgado por Deus.
— Não é esta a verdade?
Na resposta sincera a esta pergunta e no temor do Senhor que da respos-
ta surgir, está a responsabilidade humana.
Quem se sentir sob o julgamento divino sabe que o que Deus fizer, seja pró
ou contra, é para a honra de Deus e não da criatura, tão certo quanto, quem reconhe-
cer a Deus, como juiz, sabe que a desonra do mundo não é atribuível a Deus.(3,5-7)
Supor que Deus aceitará o servilismo humano [que Deus seja por ele
“amolecido”, agradado] é pensamento sem fundamento e o anseio secreto que
acaso esteja ligado a tal desejo, é mau. Todavia, é no reconhecimento da glória
incondicional de Deus [seja na rejeição seja na aprovação] sim, é até mesmo na
condenação que o homem encontra o caminho para a sua sujeição livre e jucunda
perante Deus, e também a força necessária para rejeitar todos os artifícios duvi-
dosos da filosofia humana.
“Na verdade, não é segundo o dito: Façamos o mal que daí virá o bem!
Os que assim dizem, reforçam a sua condenação”.
As considerações e os argumentos em torno de Deus e dos homens, como
se estivéssemos tratando de duas grandezas iguais, como se Deus e os homens
estivessem em um mesmo nível [ou, pelo menos, em níveis comparáveis entre
si], como se se cogitasse de parceiros pares entre si, são a mais séria distorção da
verdade [especialmente porque as deduções parecem lógicas e convincentes.
Apresenta-se a afirmação justa, certa e coerente: “Deus faz o bem”. Daí é fácil
estender a verdade e dizer]: “Deus faz surgir o bem, mesmo quando praticamos o
mal” e daí, com lógica gramatical, a oração principal é seguida pela sua subordi-
nada: “Portanto pratiquemos o mal, pois o bem virá sempre”.
Parece ser de clareza meridiana porém, não passa de densa treva: “os
que assim dizem reforçam a sua condenação”.
Deus e os homens não são a mesma coisa: não podemos escriturar o mal
[que praticamos] na conta de Deus nem, tampouco, lançar o bem que do mal
possa vir, a nosso crédito.

123
3, 7-8 A Lei

O que fazemos jamais [foi] é [ou será] obra divina, e o bem que de
nossas obras houver, acaso, sido obtido, nunca veio de nós.
Se nos enganamos a respeito disto então é porque, por nossa aparente
penetração [invasão] na soberania divina, perdemos a noção da distância que
medeia entre nós e Deus. [entre o que é humano e o que é divino].
Não somos Deus, nem soberanos. O mal é o mal a despeito do bem que
Deus pode fazer surgir [mesmo que seja através desse mal ou apesar dele].
A loucura da história humana é loucura, a despeito da sabedoria que
Deus puser nela [para benefício dos homens, segundo a graça divina].
A infidelidade é infidelidade, a despeito da fidelidade de Deus, que não
se deixa influenciar pela conduta humana.
Também o mundo continua sendo mundo, a despeito da misericórdia
com que Deus o envolve e suporta.
Quando toleramos a nossa conduta, quando achamos valor nela, e a
apoiamos, [quando achamos que nosso procedimento está certo e que merece
a aprovação de Deus], estamos aprovando o mundo como ele é; não estamos
honrando a Deus, Todo-Poderoso, porém reforçamos a nossa condenação, já
por demais evidente, e confirmamos a Justiça da ira de Deus. A arrogância
com a qual, então, nos colocamos ao lado de Deus, pensando [ou pretenden-
do] até que fazemos [ou podemos fazer] alguma coisa por ele, rouba-nos a
única oportunidade de nos lançarmos nos braços de Deus, seja para a graça,
seja para o castigo: esta entrega é a única possibilidade de salvação que nos
resta.
Se pretendermos fugir do julgamento com a desculpa da fatalidade,
essa própria desculpa nos levará a juízo, pois a apelação a Deus [mediante
pretextos humanos] a favor do nosso passado, presente e futuro, é idolatria e
ateísmo; nada mais é que rebeldia e impiedade (1, 18) que tornam inevitável
a ira divina.

Vs. 9-18 O que se conclui? Temos alguma vantagem? De modo nenhum, antes
prevalece a acusação que fizemos; judeus e gregos estão sob pecado, con-
forme está escrito:
“Não há justo, nem sequer um; não há quem entenda; não há quem
busque a Deus! Todos se extraviaram e se tornaram inúteis. Não há quem
faça o bem, não há um sequer.
A garganta deles é um sepulcro aberto; com as línguas tecem engano,
peçonha de víboras há em seus lábios; a sua boca está cheia de maldição
e amargura.

124
A Lei 3, 9-10

Os seus pés são velozes para derramar sangue e nos seus caminhos há
destruição e miséria; e não conheceram o caminho da paz. Não há temor
de Deus diante de seus olhos

“Temos alguma vantagem?”


Considerando o fato de que Deus se conserva fiel até para aqueles que
caem, [que se afastam de Deus, que o negam], qual a nossa vantagem?
Já vimos a resposta (3, 5-8).
— Não! [Não há qualquer vantagem].
[Assim como a compreensão da soberania de Deus destrói a segurança
que o homem possa sentir ante sua suposta retidão — assim também ela não
gera novas formas, novos meios de consolação. As duas conseqüências são
correlatas e têm a mesma origem; a visão da soberania divina faz com que o
homem compreenda a sua distância do Deus eterno; a sua incapacidade de
produzir o que é bom; e assim como desaparece o falso sossego que sua retidão
justificava, assim falecem também quaisquer novas consolações que seriam
mero bálsamo superficial para, toldando a visão do Deus verdadeiro, conservar
o homem no cativeiro do NÃO-DEUS].
O homem não é suspenso no ar (levado à crise perante Deus) para, ato
contínuo ser reposto no solo, [reconduzido aos seus problemas rotineiros, aban-
donado à pseudo-segurança de seu materialismo e de suas pretensões].
Ninguém pode esconder-se por traz da vitoriosa vontade de Deus; antes
pelo contrário, quem se defronta com essa vontade (quem a percebe, quem a
sente) entra em julgamento. Estremece perante Deus e não sai mais desse estre-
mecimento [porque passa a viver em presença do Deus eterno].
“Prevalece a acusação de que todos estão sob pecado”. [Não há regalias
especiais].
Continua de pé a constatação (1, 18 e 2, 19) de que a humanidade —
judeus e gregos, filhos de Deus e do mundo, por natureza’ estão, sem exceção e
sem escapatória, entregues, como filhos da ira, ao domínio estranho [espúrio]
do pecado (5,12-14).
Deus é e continua sendo desconhecido para nós; continuamos sem
pátria e sem lar no mundo. Somos e não deixamos de ser pecadores. Quem
fala em humanidade, fala de humanidade perdida, [não salva]. Quem cita a
história, refere-se à limitação, à temporalidade. Quem diz “eu”, diz “jul-
gamento”.
No desfiladeiro em que se encontram os homens não há desvios ou al-
ternativas, nem para frente, nem para traz; sob a acusação do pecado nada po-
demos fazer senão persistir, sem subterfúgios e sem sofismas (3,5-8) da lógica

125
3, 9-10 A Lei

humana. Somente aos que assim perseverarem [aceitando o veredito divino]


poderá Deus louvar em sua fidelidade (3,1-4).
“Conforme está escrito”.
Acaso é [esta absoluta anulação das supostas vantagens que vida apa-
rentemente bem estruturada em sua atitude religiosa e social possa ter perante
Deus,] alguma novidade?
Trata-se de algo nunca dantes ouvido? É recente, é nova, a verdade de
que todos estamos sob pecado, [que não há um sequer que pratique o bem?].
Trata-se, acaso, de resignação em conseqüência de desilusões? Ou de algum
entusiasmo brotado do pessimismo? Ou seria alguma violência às riquezas da
vida humana? Quiçá algum rompimento com a história? Ou atrevido radicalis-
mo gnóstico? [Seria a idéia, a noção, de que todos pecaram, coisa engendrada
pela mente humana para justificar próprios fracassos, ou expressão do zelo
humano, desanimado perante a maldade do mundo, ou então a manifestação de
fanatismo religioso?]
Nada disso! Esta acusação, que não gostamos de ouvir, está escrita. Ela
foi publicada há muito (1, 2). Ela é proclamada e anunciada pela própria história.
Como pretende a humanidade ter critério histórico, e por ele orientar-se
se, sistematicamente, ela insiste em ignorar a pecaminosidade [a maldade, a
perversidade, o desvio do homem no caminho que leva a Deus] que a história
mesma, tão eloqüentemente comprova?
Existe, acaso, entre os vultos que dignificam a humanidade [e que se
sobressaíram dos seus pares nos diversos ramos da atividade e do saber humanos]
um sequer que ateste ser o homem bom? Profetas, salmistas, filósofos, anciãos
da Igreja, reformadores, poetas, artistas, acaso um único deles, se perguntado,
afirmaria ser o homem bom ou, ao menos, apto, capaz de fazer o bem?
Acaso a lição que nos deixou a “herança do pecado”, é um ensinamento
trivial, junto e a par de todos os demais ensinamentos de vida, ou trata-se de
verdade fundamental, de ensino básico que se refere a todos os demais fatos da
história [e em cujo contexto precisam ser analisados,] se a quisermos estudar
consciente e honestamente? (Ver o seu sentido fundamental conforme 5, 12).
Poderia alguém, neste assunto, ter opiniões diversas das exaradas na
Bíblia [ou mesmo] daquelas de Agostinho e dos reformadores?
O que é, pois, que mostra e ensina a história, (tanto ativa como passiva)?
[Acaso sugere ela que] existem, ao menos, umas poucas pessoas [em toda his-
tória da humanidade] que se pareçam [ou tenham parecido] com Deus?
Não! Antes mostra e ensina que: não há nenhum justo; nem um sequer.
[Parece-me que aqui o Autor faz pensar, não só na pretensa retidão hu-
mana, tão generalizada entre a chamada cristandade, mas também e de forma

126
A Lei 3, 10-11

muito objetiva, na infalibilidade papal; para Agostinho, a humanidade era mas-


sa perdida, falida; para os reformadores não havia infalibilidade. Para a Bíblia
não há, ninguém, perfeito, em nenhuma circunstância ou condição. E a história
o confirma de maneira categórica e absoluta].
Acaso ensina-nos a história que a humanidade tem compreensão pro-
funda das coisas [primordiais] da vida, que sabe, substancialmente, qual o seu
significado real? Também não. Antes revela que “não há quem entenda”.
Ou, quem sabe, apresenta-nos a história as magníficas irredutíveis e se-
renas testemunhas da verdade como protótipos da piedade, ou de incendido
zelo na busca de Deus, como, por exemplo, na prece?
Ainda uma vez, NÃO!
“Não há quem busque a Deus”.
[Para acompanhar o pensamento do Autor, talvez seja útil examinar,
ainda que de passagem, qual foi a conduta dos heróis (ou de alguns heróis) que
a Bíblia registra, (para nossa edificação).
Vejamos Abraão. Teve ele algum conhecimento de Deus?
Aparentemente não, pois, se o tivesse tido, já não seria o herói da fé, que
é o único fundamento das coisas que não conhecemos, que não entendemos. —
A simples existência da fé pressupõe a aceitação sem conhecimento, sem en-
tender senão a graça, pela própria fé.
Mas teria Abraão buscado a Deus?
Também parece que não! Deus o chamou primeiro e reiteradamente.
Pelo registro bíblico, só uma vez, Abraão invocou a Deus; foi em Betel (Gen.
13, 4). Na sublime intercessão pela gente de Sodoma e Gomorra Abraão não
buscou, realmente, moto-próprio, a Deus, porém havendo Deus se dirigido a
ele, usou da oportunidade para interceder eloqüentemente pela cidade. Foi no-
bre, sim. Mostrou confiança em Deus, mas não o buscou por iniciativa sua.
E José? E Moisés? Josué, Elias, Daniel, ou o próprio apóstolo dos gentios?
Lendo suas histórias vemos que o entendimento de todos foi obumbrado
pelas contingências do século em que viveram e, quando buscaram a Deus, não o
fizeram sempre de todo o seu entendimento, de toda sua alma, de todo o seu
coração, antes, não raras vezes, foram inibidos de fazê-lo, como Paulo tão
confortadoramente (para nós) o confessa: “Porque não faço o bem que prefiro,
mas o mal que não quero” (7, 19).
E quem teve conhecimento?
E quem buscou a Deus? A Bíblia registra “Enoque” que “andou com
Deus”, porém pela fé. (Heb. 11, 5).
Estaria, acaso, a busca de Deus na oração de Jonas? ou na de Davi? Não
são tais orações confissão de culpa e suplica e só ocasionalmente gratidão?

127
3, 11-12 A Lei

Onde está quem busca verdadeiramente a Deus? quem o invoca senão na hora
da angústia?
Parece que isto nos conta a história: “Não há quem busque a Deus e não
há quem entenda”!
Há, porém, que destacar a aceitação da graça, que é coisa diversa da
busca de Deus. Adão, desde que pecou, foge de Deus, mas pela graça, o ho-
mem renascido do espírito é, mediante a fé, reconduzido a Deus.
É a graça que salva, a despeito de nosso desconhecimento e de nosso
desinteresse, e mais que desinteresse, nossa absoluta incapacidade de, genui-
namente, buscar a Deus.
Qualquer que seja o angulo ou o ponto de vista em que nos colocarmos,
a questão se resolve pelo que, de secreto, houver em nosso coração...]
Pode-se, porventura, considerar alguém como tendo “entendimento de Deus”
como sendo pessoa que busque a Deus, pelas qualidades pessoais de seu caráter,
quando essas qualidades forem as mais dignas de consideração e as mais respeitá-
veis, como por exemplo, uma conduta naturalmente sadia, autêntica, original, agra-
dável, idealista, de vontade forte, amorável, espiritual, singela, inteligente, nobre?
[Será que alguém que tenha personalidade e obras as mais dignas que
pudermos imaginar, não tenha, também, entendimento de Deus e o busque?]
Não! “Todos se desviaram; à uma se fizeram inúteis. Não há quem faça
o bem.Não há um sequer.”
Quem sabe existiria alguém (ou alguns) com qualidades ainda mais no-
táveis, mais dignas, [que talvez nem nos ocorresse mencionar ou que ignorás-
semos], qualidades e aptidões espirituais ou carnais, íntimas ou exteriores, cons-
cientes ou inconscientes, atuantes ou passivas. teóricas ou práticas que garan-
tissem ao seu possível portador (ou seus portadores) o entendimento de Deus, e
a motivação para buscá-lo?
Ainda uma vez não: pois, “a garganta deles é sepulcro aberto; com a
língua urdem engano, veneno de víbora está em seus lábios; têm a boca cheia
de maldição e de amargura”.
— Isto é o que, afinal, se pode esperar dos pensamentos e das palavras
humanas.
“Os seus pés são velozes para derramar sangue. nos seus caminhos há
destruição e miséria; não conheceram o caminho da paz”.
—É o que se pode dizer dos feitos e das obras dos homens.
“Não há temor de Deus diante da história”:
—É o que a história nos mostra e ensina.
O verdadeiro temor do Senhor, como tal, neste mundo, jamais será visí-
vel, palpável, nunca será “materialmente”, objetivamente real.

128
A Lei 3, 12-18

Histórica e psicologicamente o temor de Deus não é perceptível.


O que é perceptível, decididamente, (diga-se de uma vez por todas) não
é o temor do Senhor. [E isto], conforme está escrito. (Ver Jó, 14, 4; Sal. 14, 1-
3; 5, 10; 140, 4 e 10, 7; Isaías, 59, 7-8 e ainda Sal. 36, 2).
Dar-se-ia o caso de que os homens que tudo isso escreveram e o número
incontável de pessoas que acompanharam o pensamento deles, aprovando-o,
não tivessem olhos para ver as grandezas positivas da humanidade?
Sem dúvida, que tinham. Eles não negam a existência dessas qualida-
des, [desses valores positivos]. Poderiam até louvá-las com gratidão se se tra-
tasse de julgar a religião, a moral e a cultura em seu valor natural e sua signifi-
cação no mundo. Porém o tema, o verdadeiro tema da história, não é a contes-
tação ou a confirmação do homem, em si, mas o reconhecimento da situação
problemática em que se acha o gênero humano segundo o que o homem deixa
de ser para com Deus, sua eterna origem.
É dessa posição que procede o radicalismo que as passagens citadas
expressam.
[Ao citar Jó, os Salmos e Isaías o Autor reitera aquilo que Paulo escre-
veu nos versículos 10 a 18 do Capítulo 3 de sua carta aos fiéis de Roma: a
pequenez e o desvalor do homem para argüir e argumentar perante Deus (Jó); a
característica perversa da humanidade: não há quem entenda; não há quem
busque a Deus; não há um sequer que faça o bem (Salmos); seus pés correm
velozes para derramar sangue, são venenosos quais serpentes, desconheceram
os caminhos da Paz (Isaías)....
Donde este radicalismo?]
Ele nada tem a ver com a crítica relativa, aplicável a todas religiões,
todas as formas de moral [ou ética] e a todas culturas e, por isso mesmo, esse
radicalismo não pode [suavizar-se, moderar-se] limitar-se e se satisfazer com a
aprovação relativa que é devida a todas as realizações humanas quando situa-
das em sua própria conjuntura.
O desassossego que esse ataque radical revela, origina-se de uma pro-
fundidade que vai muito além do desassossego rotineiro da humanidade e, tam-
bém por isso, busca uma paz que a vida normal não oferece. [A paz de Deus,
que o mundo não pode dar. (João 14, 27)].
O “NÃO” divino (que gera a posição radical) é universal porque ele
jorra de um “SIM”, também universal.
Por isso, a essência do pensamento dos extraordinários vultos que com
tanto radicalismo se expressaram, não é o pessimismo, a autoflagelação. não é
uma alegria, quiçá doentia, de negativismo, mas é feroz aversão às ilusões;
decidida recusa a curvar-se perante “tabernáculos vazios”.

129
3, 12-18 A Lei

É posição que resulta da firme repulsa à tentação de fazer apreciação


unilateral do relacionamento da humanidade com Deus, mediante a qual o ho-
mem renuncia, essencial e totalmente, a toda pesquisa, toda análise, para fugir.
para esquivar-se do conhecimento de sua verdadeira situação perante Deus. [E
a tentação de substituir o Deus verdadeiro, que é também o Deus do “NÃO”
total, da ira, por um Deus “amigo” complacente, tolerante, o “NÃO-DEUS”
conhecido deste mundo, criação humana, que é].
O ataque radical provém de homens que, declaradamente, não se con-
formam em se deixar enganar por penúltimas e antepenúltimas verdades a res-
peito da verdade com a qual cessam todas as considerações humanas sobre a
vida, e também com a qual se iniciam todas as novas cogitações.
Os críticos, assim radicais, dão ao mundo materialista, profano e cético,
a razão que nessa posição lhe assiste e, com essa concessão, abrem para si a
avenida que leva ao conhecimento do próprio Deus e, assim, ao sentido eterno
do mundo e da história.
Sem ser na negação da criatura, jamais se conhece a posição do Criador
e o sentido eterno do ser humano. É isto o que nos diz a história.
[Esta conclusão está muito clara no livro de Jó. Suportou as adversida-
des materiais e afetivas; quando sua própria carne se apodrecia, levantou o
lamento sobre sua desgraça. Seus amigos (?) “piedosamente”, e com sua reti-
dão muito humana, lhe apontam a Deus a quem tentam defender e justificar. E
Jó se defende; há réplica e tréplica e contra-tréplicas. Jó, corajosamente, inte-
gramente, mostra a impossibilidade de sua posição e a de todo o homem, pe-
rante Deus; mostra a distância que há entre Deus e o homem. Mostra que são
palavras ao vento as dos “amigos” retos que se arvoram em advogados do
Altíssimo; todavia, é o Altíssimo o seu advogado e o seu juiz, “para que ele
mantenha o direito do homem contra o próprio Deus”. (Deus é fiel...)
Jó admite e confirma que Deus não contenderia com ele pela própria
grandeza de seu poder (Cap. 23) e, embora Jó não pudesse vê-lo, confessa:
“Ele sabe o meu caminho”.
Jó reconhece que a sabedoria do homem consiste no temor do Senhor,
todavia dentro desse temor, declara a sua integridade, e faz a sua defesa (Cap.
31) e conclui:
“Oxalá eu tivesse quem me ouvisse. Eis aqui a minha defesa assinada!
Que o Todo-Poderoso responda! Que o meu adversário escreva a sua acusação!”
Jó se considera justo, perante Deus. Seu coração é o de homem amargu-
rado, sofredor e vencido, mas ainda não é submisso; quebrado, mas não que-
brantado; arrasado, mas não humilhado. Trata com Deus, com a intimidade —
e a ousadia — com que trataria com um juiz, originário de entre pares seus.

130
A Lei 3, 18-19

Eis que o mais jovem de seus visitantes, Eliu, toma-se de ira sagrada:
repreende a Jó; acusa-o de falta de entendimento. Defende e justifica a Deus
dizendo que ele faz sofrer para produzir o bem. Lembra o quão majestoso é Deus.
Eliu fala em linguagem humana, porém fala do Deus Desconhecido deste
mundo e acusa seus três amigos idosos cujas palavras considera rasteiras, hu-
manas e, portanto, não chegam aos céus. (Retêm a verdade com a sua própria
retidão, por isso suscitam a ira de Deus (42, 7)). Com seu discurso Eliu prepara
o caminho para que Jó entenda e, só então Deus intervém e interpela Jó: o que
sabia, ele Jó? “Acaso quem usa de censuras, contenderá com o Todo-Poderoso?”
(Cap. 38).
“Quem assim argüi a Deus, que responda”. (Cap. 40).
E Jó respondeu humilde: “Sou indigno; que te responderia eu? Ponho a
mão na minha boca. Uma vez falei, e não replicarei; aliás, duas vezes, porém
não prosseguirei”.
Mas Deus não aceitou o súdito servil; não aceitou o escravo: “Cinge
agora os teus lombos como HOMEM; eu te perguntarei e tu me responderás”
(40, 7)... E Jó respondeu: “Eu te conhecia, só de ouvir, mas agora os meus
olhos te vêem. Por isso me abomino e me arrependo no pó e na cinza”.
...E o Senhor aceitou a oração de Jó; oração de intercessão pelos seus
três “amigos retos”!
Não seria o livro de Jó uma parábola de retidão humana e da justiça
divina conforme a lei, segundo a exegese que até aqui acompanhamos (e inter-
pretamos?)]

Vs. 19 e 20 Porém sabemos que: o que a Lei diz, para os que seguem a Lei o
diz. Para que toda boca seja silenciada e todos sejam culpáveis perante
Deus; pois ninguém será justificado perante ele pelas obras da Lei, pelo
que é carnal, pois a Lei, em si, serve apenas para trazer o conhecimento
do pecado.

“O que a lei diz, ela o diz para os que têm a lei”.


Os que têm a lei são os idealistas, os preferidos, os que tiveram alguma
“experiência” de Deus ou os que guardam a memória de algo parecido com a
revelação (2,14 e 3,2).
Os que têm a lei, anunciam a Deus e dão testemunho dele e da impres-
são que têm da revelação. Falam da sua religião e da sua piedade; são orienta-
dos para Deus e por isso julgados por ele. [O Autor faz jogo de palavras e diz,
eles se “julgam” orientados para Deus e, por isso, são “julgados” por ele].

131
3, 19 A Lei

São eles, [os que têm a lei], que menos que qualquer outra pessoa po-
dem ignorar qual a situação entre Deus e os homens e são os que menos podem
incorrer no engano de supor segundo alguns (eles próprios, por exemplo) que,
à vista de suas vantagens “espirituais” [ou psicológicas] estejam garantidos e
sejam desculpáveis perante Deus (2, 1); são estes tais os que menos podem
negar, “pela lógica humana”, que Deus é Deus. (3, 5). São eles os que menos
podem fugir da tensão e da inquietude, da falta de paz, da constante incerteza e
infirmeza de suas bases, da dúvida [a que está sujeito o homem quando coloca-
do na presença de Deus, ou, no dizer literal do Autor] cm que Deus coloca o
homem.
Pois é justamente a fé, quando for genuína fé no verdadeiro Deus, que é
vacuidade; é a verdadeira fé que se curva perante o que nunca haveremos de
ser, ou haveremos de ter ou que poderemos fazer; que se curva [e se humilha]
perante quem jamais será mundo ou homem, [a quem jamais será parte do
mundo ou igual ao homem], a não ser que o fosse na supressão do mundo que
ora conhecemos, na redenção, na ressurreição de tudo quanto aqui e agora co-
nhecemos por humanidade e mundo.
Acabamos de ouvir a voz da lei, da religião e da piedade (3, 10-18).
O canal vazio fala da água que não o percorre; a seta direcional da estra-
da aponta para o local que não é aquele onde a seta está fincada. A gravação (a
“cunhagem”, 2, 20) fala de um sinete que não está onde a cunhagem foi feita,
mas aí deixou apenas a sua forma negativa em baixo relevo.
É a própria história — não a crônica escandalosa do mundo, porém o
registro dos pontos altos da história humana que se acusa.
[São os próprios pontos altos, as ações sublimes, que a história registra
que mostram como a seqüência dos pensamentos, palavras e obras do homem
estão abaixo do padrão divino não só abaixo mas fora dele e até contra ele; é
por isso que a própria história se acusa; os que falam da lei, já não têm a men-
sagem e por isso são qual o canal seco, qual o molde vazio, negativo do sinete
que deixou o decalque mas que aí não está; são qual o marco da estrada que se
refere a uma localização que não é a dele].
“Para que toda boca se cale, e todos sejam culpáveis perante Deus”.
O judeu (o homem de igreja) goza de uma posição especial (3, 1). Ele
pode “saber” que “nada sabemos” de Deus. Ele pode “fazer alto” [pode parar]
perante o que nenhum olho viu, nenhum ouvido ouviu; perante o que não en-
trou em qualquer coração humano. Ele pode temer a Deus.
[Esta é a vantagem da religião, do homem que pertence à igreja, que
conhece a Palavra de Deus, que sabe qual a posição, qual a situação do homem
perante Deus; ele sabe a distância que o separa de Deus; ele pode temer a Deus].

132
A Lei 3, 19-20

Religião traz em si a possibilidade de que sendo retirada do homem a


sua última, a sua derradeira certeza, [de caráter humano] lhe reste ainda a cer-
teza [a confiança absoluta], depositada em Deus.
[Todavia], piedade, devoção, trazem em si a possibilidade de que o últi-
mo apoio imaginável [sobre o qual nos equilibramos] nos seja retirado de sob
os pés, [porque piedade, devoção, são valores que se estribam, se alicerçam na
suposta retidão humana].
[Finalmente], o veredito da história dirige-se aos que a ela se atêm e
pode levá-los a se calarem perante Deus, em [uma espécie de] renúncia extre-
ma, [pois são justamente os que buscam a história que ouvirão e perceberão o
julgamento que ela faz do mundo e da própria história: se forem consciencio-
sos, se estiverem realmente atentos à voz das crônicas, ficarão perplexos e emu-
decerão perante Deus, renunciando ao direito ou ao desejo de dar o seu teste-
munho ou de levantar a sua voz, conforme silenciou Jó. (Jó 40, 4)]
Quando isto acontecer, quando os que se ativerem à lei ouvirem o que a
lei diz; quando reconhecerem que Deus e somente ele tem razão [que só Deus
é justo]; quando a sua religião suprimir esta mesma religião; quando a sua
piedade revelar a inexistência dessa mesma piedade; quando sua sobranceria
psicológica [ou espiritual] e intelectual descer ao nível a que são rebaixadas
todas as preeminências humanas [quando essa sobranceria estiver totalmente
anulada]; quando os homens que galgaram os mais altos píncaros [da glória e
reputação humanas] perceberem que todos, [eles também] são culpáveis [e
culpados] perante Deus, — então se manifestará o sentido eterno da história; só
então, se confirmará, comprovar-se-á e se reforçará a posição especial, [a van-
tagem particular do judeu ou do homem de igreja]. — Só então Deus confirma-
rá sua fidelidade ao homem que não se deixou iludir, [que não foi induzido ao
erro] pela infidelidade humana.
“Pois ninguém será justificado perante ele pelas obras da lei, pelo que é
carnal”.
“Não entres em juízo com teu servo pois perante ti não há nenhum vi-
vente justo”. (Sal. 143, 2).
[É o Salmista rogando a Deus que não entre em juízo com ele — Davi]
[ou então], “Na verdade sei que é assim [eu conheço a situação]: como pode o
mortal ser justo perante Deus? Se quiser entrar em juízo com ele, não pode sub-
sistir, pois em mil questões nem sequer uma poderá responder-lhe” (Jó 9, 2-3).
“Há muito anunciado” (1, 2) refere-se também ao que expressaram con-
tra a história as testemunhas históricas que acabamos de lembrar (3, 10-18);
são afirmações categóricas que têm a significação fundamental que lhe atri-
buímos.

133
3, 20 A Lei

O vivente do Salmista (Sal. 143) pode ser também o mortal de Jó (Jó, 9);
é o ser humano entre o nascimento e a morte, preso na luta pela existência,
comendo, bebendo e, acima de tudo, dormindo; ora libertando (aos outros) ora
libertando-se, é o homem temporal, o homem histórico, o homem carnal. Este
homem não é justo perante Deus.
A carne significa a mais radical insuficiência [do homem] da criatura
perante o criador.
Carnal, quer dizer impureza; significa progredir em círculo fechado;
significa apenas humanidade.
Carnal significa, por si mesmo, desqualificação e o que é carnal é
inqualificável mundanismo até mesmo quando medido por padrões humanos.
Nada que seja carne ou se chame carnal, encontra justificação perante
Deus, pois as obras da lei que Deus inscreve no coração dos homens (2, 15)
falam contra e não a favor do homem carnal. Tais obras não proporcionam nem
segurança, nem paz, nem desculpa. Elas são o desmantelamento, não a edificação
da justiça humana.
Observadas do nosso ponto de vista na esfera carnal, humana, tais obras
são negação e não [asseguram qualquer] posição.
[Se algum valor tiverem, este ser-lhes-á atribuído por Deus]. Somente
vistas por Deus (e só por ele julgadas) podem nossas obras conter algo de apre-
ciável, de útil, de notável.
Ao ser humano, segundo o conhecemos, não resta nenhum amparo, ne-
nhum abrigo, nenhum repouso, nem nas mais recônditas profundezas ou na
mais rasa superfície de seu ser, pois Deus certamente julga o secreto dos ho-
mens (2, 16) a saber, aquilo que só dele é e pode ser conhecido.
Nada há, em todas [e na totalidade das] obras humanas, que possa ser
propício a Deus que retribui a cada um “segundo as suas obras” (2, 6).
O que o homem considera “reto” (ou justo) “e “de valor”, se-lo-á [para
o mundo], segundo a carne, mas será “sem mérito” e “injustiça” perante Deus.
Porém o que Deus considera “justo” [e reto], e paga segundo a sua avaliação,
como tal, não é carnal; portanto já não é nossa propriedade [foi apreçado e
pago por Deus] e não pode ser considerado como grandeza e peso válidos [para
nós ou em nosso benefício] neste mundo.
Só Deus é a resposta. Ele é o auxilio na aflição que nos acomete [e que
nos está preparada] pela distância que nos separa de Deus.
Tem razão o lamento: “Meu espírito está atribulado em mim; meu cora-
ção está abalado. Rememoro os dias passados e medito sobre todas as tuas
palavras; estendi a ti as minhas mãos e meu coração anseia por ti qual terra
árida pela chuva” (Sal. 143, 4-6); e também perfeitamente compreensível é a

134
A Lei 3, 20

queixa: “Quando ele passa por mim, não o vejo; quando ele se metamorfoseia,
quem o trará de volta à sua forma primitiva? Ou quem lhe dirá: O que fizeste?
Perante ele são humilhados os poderosos sobre a terra. Quem pois sou eu para
que me escute e perceba as minhas palavras? Ainda que eu esteja certo, mesmo
assim ele não me ouvirá e só posso dirigir-lhe súplicas como a um juiz que me
julga. E ainda que o invoque e ele me ouça, não posso crer que ele tenha escu-
tado a minha voz. Não me aniquilará ele nas trevas’? Repetidas vezes feriu-me
com chagas; quem sabe a razão? Não me deixa tomar fôlego; enche-me de
amargura; é mais forte que minha força. Quem resistirá ao seu julgamento?
Pois quando, para mim, sou reto, então a minha boca me condenará
como um “sem Deus”. Quando eu me considero irrepreensível, revelo-me fal-
so; ainda que eu me julgue piedoso, minha alma o ignora e sabe apenas que a
minha vida será ceifada. (Jó, 9, 11-21 (apud) LXX).
É no mais profundo suspirar e gemer, e no lamento mais sentido, que
precisa tomar posição quem se ativer à lei e encarar a religião e a piedade com
seriedade, pois saberá que aquilo que o homem fez verdadeiramente em Deus,
a obra da lei, aquilo mesmo é o seu tribunal permanente.
“Pois a lei, em si, serve apenas para trazer o conhecimento do pecado”.
Perguntávamos: “Qual pois a vantagem do judeu?” (3, 1). Aí está a res-
posta: ele tem a lei; a impressão da revelação; vivência; religião; piedade; vi-
são, perspectiva; postura bíblica. [Entre esses dons] é a dádiva da lei que deve-
ria arrancar, os que a possuem, de todo e qualquer sentimentalismo, do roman-
tismo, para colocá-los ante a brecha aberta que existe entre a criatura e o Cria-
dor; entre o que é carnal e o que é espiritual. É a lei que os acusa e os declara
pecadores; é a lei [que os esvazia] que lhes tira tudo o que possuem e os entre-
ga, [quais são em si mesmos, sem máscaras, sem disfarces, sem desculpas e
sem justificações, sem roupagens que os enfeitem], a Deus, para receberem ou
a condenação, ou misericórdia.
Se isto acontece (se o praticante da lei, assim se entrega ao arbítrio divi-
no) e se o homem ouve a voz da lei, se também entende a si mesmo nas suas
peculiaridades [suas “vantagens”], nas suas experiências e em sua piedade, então,
tendo ouvido e entendido o pronunciamento (o veredito) da história, ele ouve
também a verdade final, a verdade que redime e reconcilia, a verdade de além
da morte.
É com vistas a tal “ouvir” e “entender” que podemos dizer: há pontos
altos na história que podem ser encontrados onde ela testemunha contra si mes-
ma com espanto e horror.
[Parece-me que o Autor quer dizer que a história só é realmente sublime
quando dá lugar a que venha o reino de Deus e isto só ocorre quando (e toda

135
3, 20 A Lei

vez que) abstraindo da sua jactância e pretensão, se expõe à luz que vem de
Deus, revelando a hediondez da crônica dos feitos humanos. Quando isto aconte-
ce, a história sobrepuja a si mesma].
A revelação só é verdade eterna quando é testemunha da revelação, e
não Impressão por ela causada.
[Ainda uma vez, parece-me, quer o Autor deixar bem patente que toda
valorização própria que o homem queira dar às coisas espirituais, toda conotação
de aptidão, valor pessoal, atributos e dons, mesmo as graças e bênçãos recebi-
das, desqualificam a “retidão” humana perante Deus.
Se alguém crê que recebeu a revelação, atribui a si vantagens que Deus
considera ilícitas. São retenções da verdade pela mentira. O homem que teme a
Deus não se gloria da revelação. Não diz “Estou Salvo”. Não proclama “DEUS
ME ACEITOU”. Antes, aceita o testemunho da graça, pela fé, e confia na re-
denção que Cristo pode dar; é ele (Cristo) que guarda a fé; e pela fé, podemos
confiar em Deus e então, sim, dizer: “Eu sei em quem tenho crido, que é pode-
roso para guardar o meu tesouro, até o dia final” (II Tim. 1, 12). Ele é Poderoso,
não eu!].
Os fiéis que perseveram em Deus, perseveram no Reino de Deus so-
mente se, e enquanto, perseverarem [em sua fé e sua esperança] sem preocupa-
ção da religiosidade, [isto é, sem pretenderem atribuir a sua perseverança à sua
religiosidade e piedade ou, vice-versa, achando que são crentes fiéis porque
perseveram].
Esta perseverança contém, de fato, o teor da eternidade, se ela for um
testemunho radical da incerteza do crente (em si mesmo).
[Sempre a insistência do Autor no combate à jactância pessoal fonte do
cancelamento de todo dom espiritual].
Toda a existência e modo de ser [dos homens e do mundo] participa
realmente da existência verdadeira quando reconhece [a sua posição negativa],
o seu “NÃO-SER”.
O único possível relacionamento positivo entre o “aqui” e o “além” se
dá olhando-se para Deus — o Juiz e se evidencia no reconhecimento da distân-
cia que medeia entre nós e Deus, o que traduz a única possibilidade da presença
de Deus no mundo pois é à luz desta crise geral e básica que se compreende a
Deus, em toda sua majestade. Aí estão a vantagem do judeu e o valor da circun-
cisão, [ou, parafraseando, a vantagem do crente e o valor do batismo ...].
Deus é, então, reconhecido como o Deus Desconhecido. Como aquele
que declara justificados os que estão sem Deus, (4, 5); como aquele que acorda
os que estão mortos e se dirige aos que não são como se fossem (4, 17); como
aquele em quem podemos crer esperando contra a esperança (4, 18).

136
Jesus 3, 21

Quando o “judeu” se compenetrar desta possibilidade especial, quando


ele reconhecer a linha divisória entre os dois mundos, sobre a qual está colo-
cado, então poderá regozijar-se por sua vantagem. Todavia, esta compenetra-
ção, este reconhecimento, já está além da capacidade humana. É a possibili-
dade impossível, [que ocorre somente pela graça de Deus, para que não nos
gloriemos...].

JESUS (3, 21-26)

Vs. 21-22 Agora porém, independentemente da Lei, revela-se a justiça de Deus,


da qual testemunharam os profetas e a Lei, a saber: a justiça de Deus,
através da sua fidelidade em Jesus Cristo, para todos os que crêem.

”Agora porém”. Estamos perante uma abrangente supressão do mundo,


da temporalidade, das coisas, [da matéria] e dos homens. Estamos perante uma
crise que tudo permeia, tudo atravessa, invade e vai ao extremo, envolvendo tudo
“o que é” pela supremacia “daquilo” “que não é”.
O mundo é mundo, e sabemos o que isso significa. (1, 18; 3, 20). [Um
mundo idólatra, depravado e pleno de sentimentos vis, (homens do mundo e
homens de igreja, todos igualmente reprováveis), retendo a verdade divina com
a sua pretensa retidão; um mundo onde não há sequer um justo, não há quem
entenda, não há quem busque a Deus; um mundo que não conhece o caminho
da paz].
Mas de onde procede, de onde vem a crise que envolve tudo e todos? De
onde nos vem a consciência dela, a viabilidade de a termos em mira? De onde
nos vem a possibilidade [a noção] de chamarmos o mundo como tal e de o
diferençarmos de um outro mundo, nosso desconhecido, contrapondo-o a ele?
De onde nos vem a sugestão [ou o conhecimento] para classificarmos a
temporalidade, a matéria, a espécie humana como tais e ainda de as qualificar-
mos com um inevitável [e depreciativo] “apenas”? [Apenas temporalidade;
apenas matéria, apenas espécie humana?]
Donde procede a possibilidade de julgarmos e avaliarmos tudo o que é e
tudo o que acontece, (a história do mundo), com a noção de materialidade, da
condicionalidade, e da relatividade das coisas?
De que alturas superiores nos vêm essas idéias criticas? E de que pro-
fundidades abismais tiramos o nosso conhecimento das coisas que acontecerão
[no final dos tempos] e pelas quais medimos tudo?
Donde nos vem o conhecimento (que tanto nos abala), de nosso juiz, a
quem não vemos e que nos julga?

137
3, 21 Jesus

Todas essas perguntas “de onde” apontam claramente a um só centro,


como os raios do círculo, centro esse do qual procedemos; apontam a uma
origem da qual saímos.
É desse ponto que viemos e é dele que o mundo e nós somos contempla-
dos [e observados], delimitados, suprimidos, desenvolvidos e julgados.
Esse ponto não é um qualquer entre outros, nem essa origem (ou essa
pressuposição), idêntica às origens de outras coisas.
Essa origem [quiçá a pressuposição de nossas análise e nossas críticas]
traz-nos a recordação do lar junto ao Senhor dos céus e da terra e, quando isso
acontece, rompem-se os céus e abrem-se os túmulos; o sol interrompe o seu
curso em Gibeon, e a lua para no vale de Aijalon [Jos. 10, 12].
[Essa origem] esse ponto, para onde nos levam as indagações sobre a
procedência do critério de nossa avaliação e de nosso julgamento do mundo e
sua história, que fundamenta, por si só, o “tempo extemporâneo”, o local sem
espaço, [o ponto sem lugar geométrico], é a impossível possibilidade.
É esse ponto que fundamenta a luminosidade da luz não gerada [não
produzida por processos científicos, materiais ou humanos, nem cósmicos, nem
criativos].
É essa origem que alicerça o “porém agora”; a mudança de rumo [da
história]; a proximidade do Reino de Deus; o “SIM” de Deus contido em o
“NÃO” divino; o livramento no julgamento.
É esse ponto que nos fala da vida, na morte.
“Eu vi um novo céu e uma nova terra, pois o primeiro céu e a primeira
terra passaram” [Apoc. 21, 1].
Deus fala:
“Independentemente da lei” — o fato de que Deus fala, que somos co-
nhecidos por ele, e que vemos a nós e ao mundo à sua luz, é algo especial,
diferente, novo, peculiar, ao lado de todas as religiões, e dentro delas; [e não só
nas religiões do mundo] mas também em nossa vivência e em todas as atitudes
dos homens para com Deus.
O fato de que “Deus fala” é um acontecimento que vai além [de toda
expectativa] de todo o “ter”, ou “ter em parte” ou mesmo “não ter”, que se
possa considerar no mundo. Isto é a verdade de toda a religião, mas, por isso
mesmo, não é, jamais, a sua realidade.
[O fato de que Deus fala coloca-nos sob sua própria luz, e nela passa-
mos a contemplar o mundo; essa luz atravessa todo nosso ser, o nosso senti-
mento de suficiência, ou de pouca suficiência, e até da nossa nenhuma suficiên-
cia; é ela que dá sentido a toda noção de religião mas, por ser a luz divina, ela
jamais é idêntica a essa ou àquela religião.

138
Jesus 3, 21

A religião é uma expressão humana, corruptível, efêmera, passageira.


Deus fala, e a sua palavra (que é a luz para o nosso caminho), é eterna, divina
imutável].
A palavra de Deus (porque Deus fala) é o sentido da história eclesiástica e
de todas as religiões; e, na verdade, de toda a história mas, por isso mesmo, este
fato não é uma parte, um setor [um ramo] da história, nem uma história dentro da
história. (Todavia se quisermos dar-lhe o sentido de uma história dentro da histó-
ria, não estará ela isenta das dúvidas [e indagações] que acompanham e a que
submetemos toda a história humana).
A palavra de Deus, [o fato de que Deus fala] é o fundamento de tudo
quanto for perceptível histórica e espiritual mente, como sendo revelação, ado-
ração e fé, (no mais amplo sentido).
Este fundamento, porém, não pode ser confundido com as coisas que
fundamenta; ele não se torna materialmente perceptível, visível.
Ele apenas é perceptível como o que não é. [Ele constitui o firme funda-
mento espiritual, invisível, que em realidade nos aponta os sinais perceptíveis,
materiais, histórica e psicologicamente visíveis, e que são marcos de nossa
vida espiritual, a saber: A revelação de Deus; a nossa comunhão com ele; é a fé
que nele depositamos].
Esse fundamento jamais se torna visível ao lado de outras realidades
materiais, mas é apenas perceptível como o invisível.
A voz de Deus que é o seu poder (1, 16) (o evangelho é, e permanece
sendo, a sua voz. Se assim não fosse e não permanecesse para além de todo
clamor humano, não seria a voz de Deus.
Deus fala onde “há lei”, porém fala também onde “não há lei”. Ele fala
“onde há lei” [ou “onde não há”] não porque aí exista a lei [ou não exista] mas
porque ele quer. Deus é livre.
“A retidão de Deus”. Deus diz que ele é o que é... [Ex. 3, 14].
Ele se justifica a si mesmo, dando-se a conhecer aos homens e ao mun-
do; e se justifica não deixando de receber os seus. [Porém, recebendo-os].
Também na ira de Deus manifesta-se a sua retidão (1, 18), revelando-se
ao incrédulo que precisa ouvir o NÃO divino com o NÃO definitivo. [O não da
rejeição].
Porém, enquanto Deus manifesta a sua ira contra a incredulidade; en-
quanto o homem, desnorteado, se lança de encontro às muralhas com que Deus
o cercou; enquanto a humanidade corre após o “NÃO-DEUS” deste mundo
abandonando o Deus Verdadeiro... (1, 22 e seguintes), Deus continua sendo
“Aquele que é”; o criador do mundo; o Senhor de todas as coisas; o SIM e
[jamais] NÃO. [Deus é o SIM da reconciliação da promessa e da redenção].

139
3, 21-22 Jesus

Este é o SIM que Deus anuncia. [É o SIM que sua palavra — “o verbo
que se fez carne”, traz aos homens]. É o “SIM” que Deus convalida na rei-
vindicação: [Não terás outros Deuses diante de mim; eu sou o Senhor teu Deus...].
Esta é a reivindicação duradoura; a que é válida para sempre, a derradei-
ra; a reivindicação decisiva apresentada ao mundo.
Para além das limitações da muralha que nos encerra e perante a qual
nos achamos, é sempre ele — [a sua palavra] o conteúdo de sua sentença.
Quanto mais conscientes estivermos da agudeza e da insuperabilidade
da Palavra de Deus, tanto mais clara e vigorosamente falará Deus conosco de
sua justiça e do seu reino.
Quanto mais as coisas humanas, tudo o que for nosso tanto nosso bem
quanto nosso mal, nossa fé e nossa incredulidade — se tornarem transparentes
como o cristal, tão mais certamente somos vistos e reconhecidos por Deus,
quais somos; então estamos mais ao alcance de seu domínio, e mais sob a ação
do seu poder.
[CRISTO é a verdadeira “Palavra de Deus” que jamais passará e que
permanecerá para além dos céus e da terra (Mat. 24, 35; 1 Ped. 1, 25 etc.).
CRISTO é o “Verbo” a palavra de Deus. Quanto melhor compreendermos
esta palavra, mais claramente entenderemos a Deus e mais fortemente nos
falará ele; é certo que também mais expostos estaremos à sua lei e à sua
justiça; todavia, não obstante essa exposição, esse desnudamento de nosso
ser, quiçá por isso mesmo mais fortemente ressoará em nossos corações o
SIM da aceitação divina, que anula os efeitos do NÃO inapelável dado ao
pecado.
Deus, através de Cristo Jesus, proclama o seu SIM, não obstante o NÃO
que nos falava, outrora, tão fortemente através da lei].
A justiça de Deus, [a sua retidão e fidelidade ao homem], é esse
“NÃO OBSTANTE”, pelo qual [a despeito de nossa injustiça e precária
retidão humana] Deus se declara nosso Deus e nos conta entre os seus.
É um “NÃO OBSTANTE” incompreensível, sem fundamento, que sub-
siste apenas por si mesmo porque é fundamentado por Deus (e somente por
Deus), expurgado de todos os “Por Quês” pois a vontade de Deus não conhece
o “Porque”. Deus quer porque quer.
Justiça de Deus é perdão. E este fato constitui alteração fundamental
no relacionamento entre Deus e o homem; significa que a irreverência e a
impiedade aos homens, e a conseqüente situação do mundo, não são leva-
das em conta por Deus, antes são tidas por ele como fatos irrelevantes que
não lhe impedem de chamar-nos propriedade dele para que, de fato, lhe
pertençamos.

140
Jesus 3, 21-22

A justiça de Deus é JUSTITIA FORENSIS, JUSTITIA ALIENA. [É a


justiça que Deus, como juiz, exerce por força de sua própria retidão e não em
função de leis ou códigos].
É o juiz que julga exclusivamente pela sua própria justiça.
As coisas são como ele diz que são e não como, acaso, poderiam ser.
Ele se dirige a nós, seus inimigos, como sendo [ou como se fôssemos]
seus amigos.
“É por isto que se trata de mui alta pregação e de sabedoria divina, para
que creiamos que a nossa justificação, nossa salvação e nosso consolo, estão
fora de nosso alcance; que vêm de fora; que [embora] justificados, aceitos,
santificados e tornados sábios perante Deus, em nós habita o pecado vil, a in-
justiça e a loucura”. (Lutero).
A justiça de Deus é a autolibertação da verdade que mantínhamos retida
(1, 18), sem tomar em consideração o que quer que seja que, de nossa parte,
pudesse ser útil, eficaz ou fosse possível ou, pelo menos, fosse imaginável. para
contribuir para essa libertação [ou para justificá-la].
Em outras palavras, e de forma mais exata: [A justiça de Deus] é o rico
e poderoso desdobramento do Poder de Deus, maravilha [milagre], ressurreição.
A justiça de Deus é a suspensão do homem em pleno ar onde, de nossa
parte, é absolutamente impossível alguém manter-se em pé.
A justiça de Deus leva-nos aonde somente podemos estar se sustentados
por Deus; e acharmo-nos lá onde ficamos em suas mãos, seja para dele receber-
mos a misericórdia, seja para ouvirmos a condenação.
Esta é a justiça de Deus: o relacionamento positivo de Deus, com os
homens e “neste artigo não se pode ceder, nem podemos dele nos desviar, ainda
que desabem os céus e se desmorone a terra ou... o que bem se quiser”. (Lutero).
Ante os 150.000 anos de incerteza humana que já transcorreram pode-
se, acaso, tomar em consideração alguma outra condição positiva, quiçá algum
relacionamento psicológico, histórico ou espiritual, que seja direto, visível, [pal-
pável]? Encontra-se, acaso, na história da Ásia, da África ou da América (para
já nem falar da Europa) alguma resposta [além de Deus ou] que não seja Deus
mesmo, somente Deus e a misericórdia divina?
[O Autor parece atribuir ao homem histórico a idade que situa a sua
origem na última quinta parte do pleistoceno, na era glacial, antes ainda do
homem de “Cro-Magnon”, talvez nas origens do homem de Neandertal, o que
poderia (ou poderá) ser justificável com referência à busca consciente de Deus
que o homem tem praticado desde as mais remotas eras, mesmo antes do cha-
mado “Homo-sapiens”, pois os remanescentes fósseis do homem de Neandertal
parecem indicar que ele cria numa existência além-túmulo].

141
3, 22 Jesus

Que Deus é reto [e justo] “está manifesto”. E esse fato é o nosso “de
onde” e “de lá” e “agora porém”.
Triunfa a misericórdia divina que nos foi dada.
Subsiste o paradoxo absoluto que é a relação positiva entre o homem e
Deus, e este é o teor, o conteúdo, do evangelho (1, 1 e 16) que aqui se anuncia
com temor e tremor sob o mais inescapável sentimento de absoluta necessida-
de. (Sob o sentimento do cumprimento de um dever do qual não podemos esca-
par). Sob o impulso da mais indisfarçável pressão, [anunciamos] o eterno, como
evento.
[É a fidelidade de Deus revelando-se aos homens que é a origem, o “de
onde” da nossa noção de altos valores morais e éticos — superiores aos do
mundo — e que nos leva, por renovação constante, a jamais nos conformarmos
com o que convencionamos identificar como o “presente século”. É “de lá”, da
revelação divina, que nos vem a “saudade” do lar eterno; o anseio por paz, por
equidade, por justiça, por segurança; é “de lá” que fios advém a perspectiva de
pureza, da verdade, da vida.
Também é “de lá” que chega ao nosso conhecimento o “NÃO” divino à
fatuidade humana e o anúncio da ira de Deus sobre os que retêm a verdade de
Deus com a injustiça de sua pretensa retidão; todavia, também é através dessa
mesma revelação da justiça de Deus, em Jesus Cristo, que sabemos que “ago-
ra” é a hora aceitável; vemos que nossos pecados podem ser e são, vermelhos
como escarlate, “porém”, purificados pelo sangue expiatório e propiciatório de
Jesus, o Cristo — poderão tornar-se e se tornam, mais alvos que a branca lã. (Is.
1, 18) — E o eterno “convite da graça”; é “de lá” que nos provém não só a vida
abundante mas também o entendimento dos fatos que hão de sobrevir na con-
sumação dos séculos].
Anunciamos o Deus desconhecido, o Senhor do céu e da terra, que não
habita em templos erguidos por mãos humanas, que de ninguém tem mister,
pois é ele quem a todos dá a vida, a respiração, e tudo o mais.
Anunciamos o que por ele é dado aos homens, e lhes é concedido para
que o busquem, pois não está longe de cada um de nós; é nele, em quem vive-
mos, nos movemos e existimos e [ainda mais do que isso,] é ele que está tam-
bém para além de nossa vida, nossa agitação, nossa existência de modo que ele
permanece fiel a despeito [de nossa decrepitude], de nossa degenerescência (de
nossa morte].
É justamente por isso, porque permanece imutável e fiel para sempre,
que proclamamos que ele não pode ser representado por qualquer semelhança
humana, nem comparado a figuras (representações) e descobertas da arte [e
ciência] dos homens; que “agora” Deus, já não mais considera os tempos de

142
Jesus 3, 22

nossa ignorância, “porém” manda pregar aos homens de toda e qualquer condi-
ção que se arrependam [e pratiquem obras dignas desse arrependimento].
Anunciamos a aurora do dia em que Deus julgará o mundo dos homens,
com justiça — com a sua justiça! (Atos 17, 23-3 1).
[Agora] se manifesta a justiça de Deus. Já não podemos raciocinar sem
ela. Aquilo que nos foi dado não pode ser analisado fora da luz dessa premissa.
Não podemos mais partir de qualquer outro lugar. (Essa premissa, [a manifes-
tação da justiça de Deus] é o ponto de partida).
Já não podemos ouvir o ressoar do “NÃO” divino, se não como contido
[subjugado e dominado] pelo divino “SIM”.
Agora ouvimos através da voz da impiedade e rebeldia humanas, o eco
mais profundo do perdão que vem do alto; e o clamor da teimosia humana
torna-se apenas audível, atenuado que está pela serena harmonia do “porém”,
do “não obstante”, de Deus.
Não mais? — Sim; não mais, se, pela fé, aceitarmos o que nos foi manifesto!
Se crermos, veremos o homem anulado por Deus. [Isto é, o homem
deste mundo suprimido em sua arrogância, sua pretensão, para dar lugar à nova
criatura, nascida em Jesus Cristo] e por isso restabelecida com Deus.
Vemos o homem [deste século] rodeado, limitado, cercado, mas esse
cerceamento, esta limitação é também, para o homem, o princípio e o fim, [o
“alfa” e o “ômega”; é nele que se inicia a história da queda e termina a realidade
da redenção].
Vemos o homem julgado, mas também justificado; vemos o contra-sen-
so e também o senso da história; vemos a verdade despedaçar os grilhões que a
retiam; além do “carnal” humano, vemos o violento advento da salvação. Me-
diante o colapso das mais altas expectativas e esperanças humanas — [e nesse
colapso] — vemos a persistente fidelidade de Deus.
É desta revelação, deste aparecimento, dessa manifestação [de Deus]
que viemos, da qual tomamos conhecimento, e da qual procedemos. E dela que
falamos e é para ela que queremos chamar a atenção, onde quer que existam
olhos e ouvidos para ver e ouvir.
Esta revelação da justiça de Deus é “testemunhada pela lei e pelos pro-
fetas”. Ela foi anunciada “há muito” (1, 2). Abraão viu o dia quando Deus
julgará o mundo; também Moisés e os profetas; também Jó e os Salmistas.
Temos ao redor de nós uma nuvem de testemunhas que estiveram todas
elas sob a luz desse dia, pois o sentido de todos os tempos leras e épocas] está
voltado diretamente a Deus, [e, portanto, ao grande dia do Senhor].
A justiça de Deus é o cumprimento de toda a profecia. E o sentido da
religião, das esperanças, anseios, lutas e da perseverança dos homens; e este

143
3, 22 Jesus

sentido será tanto mais certo quanto mais genuína for a expectativa, [mais con-
fiante a esperança, mais humilde a luta e mais firme a perseverança].
A justiça de Deus é o fundamento, o conteúdo de todo ser, de toda exis-
tência, e isto se torna mais claro, mais perceptível, quando o homem entra cm
julgamento perante Deus; [quando o ser humano percebe a sua atitude e posi-
ção] perante o “NÃO” divino.
A justiça de Deus (por ele revelada) dá sentido à história, especialmente
observável quando a história faz apreciação crítica dela mesma. [Quando a
história relata e registra a sua escravização trágica à corrupção humana, justa-
mente por serem atos da humanidade o seu assunto)].
A justiça divina é a redenção de toda criação e mui especialmente daquelas
criaturas que, cientes da sua própria limitação, lançam o olhar para além de si mes-
mas [sonhando com os páramos celestiais do reino de Deus].
Onde houver a noção da revelação de Deus — (e onde não existe essa
noção?) — aí haverá sempre testemunho, referência ao Deus desconhecido,
ainda que essa noção se oculte ou se revista com práticas [de todo abomináveis,
vindas de desvairada superstição] ditadas pelo mais perigoso respeito à igno-
rância (Atos 17, 22-23). Já não o disseram, também “alguns dos vossos poe-
tas”? (Atos 17, 28).
Onde há experiência, há também o testemunho de possível conheci-
mento, de entendimento.
Não anunciamos novidades mas a verdade essencial [que existe] desde
toda a antiguidade; o incorruptível do qual as coisas corruptíveis são [meras
semelhanças]; quais parábolas.
Agora, porém, trata-se daquilo que as parábolas falam; do que as teste-
munhas testificam; do que os olhos vêem, do que já está perante eles e os ouvi-
dos ouvem; do que já se fala; do que verdadeiramente, se crê. Trata-se daquilo
que, na Igreja de Deus, sempre foi crido por todos e em toda parte. A justiça de
Deus declara-se “por sua fidelidade em Jesus Cristo”.
Fidelidade de Deus é aquela perseverança divina por fora da qual surgem
sempre de novo,[em toda parte e em todos os tempos,] em inúmeros pontos da
história, as oportunidades do aparecimento de testemunhas da justiça divina.
Jesus de Nazaré é, entre todos esses muitos pontos, aquele no qual todos
os demais, no seu sentido conjunto, são reconhecidos como o “fio carmesim”
da história. [A “tão grande nuvem de testemunhas que nos rodeia” entre os
meandros intricados da história do mundo, falando-nos do sangue remissor].
Cristo é o conteúdo desse entendimento. [Ele é o caminho]. Ele é a
própria justiça de Deus.
Jesus Cristo e a fidelidade de Deus, dão testemunho, um do outro.

144
Jesus 3, 22

A fidelidade de Deus se comprova quando, em Jesus, nos confrontamos


com o Cristo.
É por isso que podemos perceber a possibilidade de chegar a Deus nas
múltiplas e esparsas manifestações da história, a despeito da nossa insuficiência.
[Por isso, quer dizer, pela fidelidade de Deus que reconhecemos quando encon-
tramos o Cristo, o Messias prometido, o Redentor, na pessoa de Jesus de Nazaré].
É por isso que podemos encontrar mais que mero acaso [mais que coin-
cidência apenas] nos vestígios terrenos [e universais] da revelação de Deus:
Encontramos a verdade para nosso consolo no tempo que é o nosso e no lugar
onde estamos, como a verdade que foi revelada em outro tempo e em outro
local — tempo e local de transparente luminosidade, e que veio a nosso encon-
tro como a sublime realidade, como a suprema resposta de Deus, a eterna ver-
dade [Cristo é a verdade]. Veio-nos a verdade de uma nova ordem.
O dia de Jesus, como o Cristo, é o dia por excelência; o DIA de todos os
dias. A luz revelada e vista em Jesus, como o Cristo, é a luz invisível de toda
parte.
O conhecimento de outrora da justiça de Deus, é agora a “esperança da
Justiça” (Gal. 5, 5), para sempre e acima de tudo.
Jesus, reconhecido como o Cristo, confirma, testifica e fortalece toda a
perseverança humana. Ele é a comunicação de que não é o homem quem perse-
vera, mas sim, Deus em sua fidelidade.
— Que de fato encontramos o Cristo na pessoa de Jesus de Nazaré,
confirma-se e se comprova por encontrarmos nele tudo aquilo a que se referem
as profecias: tudo quanto apontam e quanto testificam todas as revelações da
fidelidade de Deus:

O poder oculto da lei e dos profetas, é o Cristo que vem até nós, na
pessoa de Jesus.
O sentido de toda religião é a redenção, a mudança dos tempos, a
ressurreição, o Deus invisível que, em Jesus, nos constrange a parar em
silêncio.
O valor intrínseco de todos acontecimentos humanos está no per-
dão, sob cuja égide tais acontecimentos se encontram, conforme foi anun-
ciado e materializado por Jesus.

— Que o poder oculto da lei e dos profetas encerrado na pessoa de


Jesus; que o sentido de toda a religião, conforme Jesus o consubstancia; e que
o valor intrínseco dos acontecimentos humanos conforme resumido no perdão
que Jesus anuncia e materializa, possam ser encontrados algures, sem ser em

145
3, 22 Jesus

Jesus, sabemos que é impossível, e não é necessário que essa impossibilidade


nos seja demonstrada, pois ela é ardente.
E só cm Jesus [e por meio de Jesus] que se entende e se descobre que
Deus pode ser encontrado em toda parte e que Deus veio ao encontro dos ho-
mens tanto antes, como depois de Cristo.
É em Jesus que se encontra o padrão de referência pelo qual se determi-
na, reconhece e entende o que significa achar a Deus ou ser por ele encontrado.
É em Jesus que se compreende a possibilidade deste “achar” e “ser
achado” como verdades de ordem eterna. [Ele é a vida].
Muitos há que peregrinam à luz da redenção, do perdão e da ressurrei-
ção. Que nós os vejamos seguir nessa trilha, que tenhamos olhos para ver,
devemolo a um só! E em sua luz, que vemos a luz: [Ele é a luz do mundo].
Que é realmente o Cristo, que encontramos em Jesus, comprova-se nisto:

Jesus é a última, a mais aguda, (a mais definida) expressão da fideli-


dade de Deus [conforme foi] testemunhada pela lei e pelos profetas. Ele
é a PALAVRA que aclara todas as demais.
A penetração [de Jesus, sua presença] e sua morada na ambigüidade
humana e nas mais densas trevas são [expressão absoluta da] fidelidade
de Deus. (E apesar dessa penetração, a sua vida é de integral obediência
ao Deus fiel).
Ele se põe como pecador perante os pecadores; submete-se inteira-
mente ao juízo a que o mundo está sujeito. Ele se situa lá onde só Deus
pode estar presente: na indagação que se faça a respeito de sua existên-
cia. Toma a forma de servo. Na morte, vai até a cruz.
No apogeu, no píncaro de sua trajetória terrena é ele uma grandeza
puramente negativa; de forma nenhuma é genial; de maneira nenhuma é
portador de forças psíquicas, quer manifestas, quer ocultas.
Não é nem herói, nem líder, nem poeta, nem pensador, e nesta abso-
luta negação (meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?) ele apre-
senta o impossível “mais”.
Ele sacrifica a outro, invisível, todas as qualidades e possibilidades
humanas que sejam imagináveis: genialidade, forças psíquicas, heroís-
mo, estética, filosofia. [Tudo quanto o engenho, a arte e o poder humano
possam criar ou imaginar de notório, belo, grandioso].

É exatamente por isto, [por esta renúncia], que se cumprem nele as mais
altas possibilidades do desenvolvimento humano, conforme a seu respeito está
escrito na Lei e nos Profetas.

146
Jesus 3, 22

É por isto que Deus o exaltou; nisto reconhece-se nele o Cristo; ele se
torna a luz das coisas derradeiras, que brilha sobre todos e sobre tudo.
Nele — [em Jesus, o Cristo], vemos a fidelidade de Deus, até nas
profundezas do inferno. O Messias é o fim do homem, e é justamente aí que
Deus é fiel.
O novo dia da justiça de Deus, raiará com o dia da supressão do homem,
“para todos os que crêem”.
Este é o frutífero “porém”: a visão do “novo dia” é e permanece indire-
ta; a revelação em Jesus Cristo é um fato paradoxal, por mais geral que seja a
validade do seu conteúdo.
Que as promessas da fidelidade de Deus se realizam em Cristo; que
Jesus é o Cristo a quem se referem todas as profecias e que, justamente por
isso, Jesus é o Cristo, pois nele aparece [nele se revela] a fidelidade de Deus em
sua forma a mais recôndita, a mais secreta — tudo isso não é, e jamais será,
evidente. Não se trata de um fato psicológico, histórico, cósmico ou natural,
nem mesmo no seu mais absoluto superlativo. Trata-se de uma verdade, de uma
realidade, que não é perceptível diretamente, nem pelo desvendamento do des-
conhecido, nem imergindo em oração, nem pelo desenvolvimento de ocultas
forças espirituais; com semelhantes processos, esta realidade torna-se ainda
menos acessível. Ela não pode ser transferida [de uma pessoa a outra], aprendi-
da ou alcançada pelo trabalho. Não fora assim, ela já não teria validade univer-
sal; não seria a justiça de Deus para o mundo, nem a salvação para todos.
[Esta realidade é perceptível pela fé, e somente pela fé]. [Ter fé e crer];
fé é a própria fidelidade de Deus, ainda e sempre reiteradamente escondida por
traz e por sobre todas as afirmações, intenções e conquistas humanas perante
Deus. Por isso a fé jamais é integral, completa, pronta; nunca é dada, assegura-
da, garantida. Do ponto de vista psicológico a fé é um salto no incerto, no
escuro, no espaço vazio.
Não é a carne nem o sangue quem nô-la revela. (Mat. 16, 17). Nenhuma
pessoa pode dizê-lo a outra pessoa, nem a si mesma, O que ouvi ontem, preciso
ouvir de novo hoje, e terei que ouvi-lo novamente amanhã. O revelador é sem-
pre o Pai de Jesus que está no céu. Somente ele!
[A fé vem pela pregação (ou pelo ouvir) (Rom. 10, 17) e tem sua ori-
gem, inspiração e sustentáculo em Jesus Cristo que é o autor e consumador da
fé (Heb. 12, 2). Todavia, CRISTO nos é revelado única e exclusivamente por
Deus Pai, que nô-lo enviou (João 3, 16).
Cristo só é “apropriado” pelos homens, mediante fé, pois ele é a per-
sonificação da fidelidade de Deus e como tal, não é perceptível por deduções,
demonstrações, filosofia, dialética, ou qualquer outro recurso humano, nem

147
3, 22 Jesus

mesmo árvore genealógica. Não é a carne e o sangue, que nô-lo revelam,


antes, é ele conhecido e reconhecível, nos termos do evangelho de João: “No
princípio era o verbo... todas as coisas foram feitas por intermédio dele, e
sem ele nada do que foi feito se fez... e o verbo se fez carne e habitou entre
nós, cheio de graça e de verdade e vimos a sua glória, glória como a do
unigênito do Pai”!]
A revelação de Deus, em Jesus, por ser a revelação da justiça de Deus, é
também o obscurecimento e o desfiguramento mais completo de Deus.
Em Jesus, Deus torna-se verdadeiramente um mistério; ele se apresenta
como o desconhecido; fala como o que silencia eternamente.
Em Jesus, Deus afasta de si toda a intimidade importuna, toda religiosa
falta de compostura.
Conforme revelado em Jesus, Deus é um escândalo para os judeus e
uma loucura para os gregos.
Em Jesus, a revelação de Deus se inicia com uma repulsa; com o rasgar
de hiante abismo; com a consciente apresentação do maior dos escândalos.
“Retire-se a possibilidade de escândalo, conforme se o fez na cristanda-
de. e o cristianismo passa a ser uma mensagem direta e fica abolido, abrogado;
então o cristianismo fica transformado em algo superficial, leve, que nem fere
fundo demais, nem cura; a descoberta de mera e inverídica comiseração huma-
na que se esquece da infinita diferença qualitativa entre Deus e o homem”
(Kierkegaard).
A fé em Jesus é a expressão do mais radical “porém”, assim como o seu
conteúdo (a “justiça de Deus”) é um radical “apesar de”.
Ter fé em Jesus é chegar ao absurdo de encontrar amor e compreender
esse amor num Deus totalmente desapiedado; é fazer a vontade sempre contun-
dente e irascível de Deus; é chamar Deus, por Deus, em sua total obscuridade,
em seu absoluto retraimento.
Crer em Cristo é a ousadia das ousadias: é o maior de todos os riscos.
Este “apesar de”, este [absurdo] inaudito, este risco, é o caminho que
apontamos.
Exigimos fé: nada mais, nada menos.
Exigimos fé, não em nosso nome, mas em nome de Jesus em quem,
também nós, sentimos a inescapável exigência de crer.
Não exigimos fé em nossa fé pois sabemos que aquilo que existir de
nosso, em nossa fé, é indigno de fé.
Não buscamos nossa fé, não a firmamos, tirando-a ou a baseando em
outras pessoas, em terceiros, pois naquilo que outros crerem, fazem-no como
nós, com seu próprio risco e fiados na promessa.

148
Jesus 3, 22

Pugnamos pela fé em Jesus, que demandamos de todos, aqui e agora, na


posição (na situação) em que cada um se achar [neste momento], na vida.
Não há exigência humana, qualquer que seja, (pedagógica, intelectual,
econômica, psicológica, ou outra qualquer) que precise ser preenchida para
que o homem receba o dom da fé.
Não há um “corredor de acesso” ou um “caminho da salvação” ou uma
escada de degraus, que nos conduza à fé que encontraríamos depois de percor-
rido o acesso [ou seguido o caminho]. E a fé que vem na frente. Ela é a primei-
ra: é o fundamento.
A fé pode ser exercida, praticada, por todos, sejam judeus ou gregos,
crianças ou anciãos, cultos ou incultos, homens simples ou complexos; ela pode
ser praticada na tormenta e na calmaria, em qualquer situação que o homem
esteja ou imagine que possa estar.
A demanda da fé pervade e atravessa todas as diferenças [e nuanças] da
religião e da moral, da vida que experimentamos e das experiências que vive-
mos, da nossa posição social e da posição da sociedade.
A fé é igualmente leve e pesada para todos. A fé é sempre a mesma
objeção, a mesma novidade inaudita, a mesma ousadia.
A fé significa perturbação igual e promessa idêntica, a todos.
A fé é, para todos, o mesmo salto no vazio.
A fé é possível para todos, porque, para todos, é igualmente impossível.

Vs. 22-24 Porque não há distinção, pois todos pecaram e carentes estão da
glória de Deus, sendo justificados gratuitamente, por sua graça, mediante
a redenção que há em Cristo Jesus.

— “Observe: esta é a peça principal, e o ponto central, desta epístola e


de toda a escritura” (Lutero).
[Este é o ponto chave da diferença entre o cristianismo praticado pelas
igrejas “evangélicas” e pelas igrejas do ramo “católico” — Romana, ortodoxa,
brasileira livre, tradicionalista, etc.
Para os evangélicos, apud Paulo e Jesus, e com rodo o Novo Testamen-
to— e ainda na conformidade das promessas do Antigo Testamento, de graça
somos salvos mediante a fé; a fé sem obras é morta mas, existindo a fé (em
Cristo) há salvação. (Ver Hab. 2, 4; Gen. 15, 6; João 1, 12; 3, 16; 3, 36; 6, 47;
Apoc. 22, 17, etc.).
Para os “católicos”, são instrumentos de salvação, os votos, as interces-
sões, as obras piedosas, os óbulos, a missa os sacramentos, notadamente os da

149
3, 22 Jesus

confissão e da extrema unção, o batismo e a incorporação à própria igreja,


segundo o aforismo “Fora da Santa Igreja Católica não há salvação”...].
“Não há distinção”. A realidade da justiça é declarada, atestada, confir-
mada, pela sua universalidade.
Não é por mero acaso que justamente Paulo. tendo recebido de Jesus o
ânimo de confiar na graça, somente, também tenha visto em Jesus a eliminação
de toda e qualquer diferença entre os homens [perante Deus]. Paulo tem [em
Jesus], o ânimo [de confiar na graça] porque, [entre os homens], ele vê [a elimi-
nação das diferenças].
Ele é o profeta do Reino de Deus, porque é o Apóstolo dos gentios; e
nisto ele difere do que mais tarde, quando essa correlação [entre profecia e
apostolado] se torna confusa, passa a ser designado por missão.
[Parece-me que o Autor quer dar ênfase ao fato de que Paulo considera
os gentios seus iguais; não há nem judeu nem grego; todos estão destituídos da
glória de Deus, cuja posse Paulo lhes prega e anuncia no Evangelho “que é o
poder de Deus para a salvação de todo aquele que crer”.
Todavia, ainda segundo o Autor, essa qualidade de nivelamento entre
crentes e não crentes; cristãos e bárbaros; (judeus e gregos), foi transformada
(por missionários e pregadores), em privilégio de “agraciados” pela salvação,
que então, generosa e condescendentemente, levam a mensagem aos menos
afortunados através de movimentos missionários de catequese e de proselitismo,
movimentos esses que, não raro, e não para poucos, são apresentados de cima
para baixo, e não com temor e tremor e também com ousadia, em Cristo, na
qualidade de proclamação feita por um servo a seus conservos, um e outros,
carentes da mesma graça.
Para o verdadeiro “missionário” a mensagem não é dele pregador, mas
de Deus, de Cristo].
A missão de Paulo não cria diferenciação, antes, destrói as diferenças
que acaso existam.
Somente quando as pessoas nos mais variados níveis de vida se consi-
derarem igualadas no mesmo degrau; somente quando, mesmo os que “habita-
rem nos páramos mais elevados [segundo o critério do Mundo], não pretende-
rem senão “como expressão mais alta do vigor da força humana ajudar a levar
as cargas dos seus contemporâneos” (S. Preiswerk); somente quando estes [“pri-
vilegiados”] não cogitarem de suas “riquezas espirituais”, (nem mesmo como
riquezas a distribuir e repartir!) porém se tornarem (verdadeiramente, genuina-
mente) irmãos pobres dos pobres (sem reterem em suas mentes e em seus cora-
ções a lembrança de que se despojaram de seus dons, de seus privilégios, de
seus próprios bens materiais, sociais, intelectuais, morais, espirituais, ou de

150
Jesus 3, 22

outros quaisquer), somente então será Deus reconhecido na [“missão”]. (O ver-


dadeiro missionário não pode ser farisáico, inda que ore).
Somente na mais profunda e na real irmanação se torna verdadeira a
supressora e suportante graça de Deus. [Que suprime privilégios e suporta a
todos].
É na invulgar ligação (entre o homem e seus semelhantes) que se reco-
nhece a separação invulgar e salutar (existente entre Deus e os homens) e que
revela a justiça de Deus.
[Porque Deus não e igual aos homens, antes é infinita a distância que
medeia entre “os céus” e a “terra”; por isso desaparece a separação infinita-
mente pequenina, desprezível, que possa. aparentemente, existir entre os ho-
mens].
É necessário que o paradoxo absoluto [da revelação de Deus] seja senti-
do; que o abismo existente entre Deus e o homem seja totalmente aberto; que o
“escândalo” seja evidente; que o cristianismo seja exposto exatamente qual ele
o é: como “um problema fundamental, de natureza misteriosa, que põe em
dúvida [a legitimidade, a honestidade. o mérito real de] todos os latos da histó-
ria”. (Overbeck).
Todavia, não haverá (ou não haveria) alguma forma de contornar o pa-
radoxo?
Será que seres [pessoas]. de alguma forma privilegiados por Deus [povo
eleito, predestinados, missionários, mestres, pregadores.. membros e correligi-
onários desta ou daquela religião ou seita] não poderiam considerar como jus-
ta, como válida, como real, a idéia (ou aparente ilusão) de que os dons que
receberam, [ou as qualidades que possuem] poderão influir ou contribuir para a
sua salvação? Ou que a salvação possa resultar desses dons, quiçá por alguma
prática puramente religiosa, [ioga, jejum, penitência, oração] alguma experiên-
cia pessoal, na vida, [algum testemunho], algo imaterial, ou então, pela eleva-
ção moral, ou pelos dotes intelectuais, por exemplo?
É preciso que se diga e repita sempre:
“NÃO HÁ DIFERENÇA”!
Fé, e somente fé, é a exigência imposta a todos. A fé é o caminho que
todos podem seguir — (contudo não podem...)
É preciso que toda a carne se cale ante o Deus invisível, para que toda
carne possa ver a salvação de Deus.
“Todos pecaram, e estão destituídos da glória de Deus”
É sob esta verdade que desaparece toda e qualquer diferença: esta corre-
lação, este relacionamento entre as criaturas, “esta ligação invulgar” [entre os
homens que esquecem as diferenças que, no mundo, os separariam, e separam

151
3, 23 Jesus

de fato], é garantida, e induzida, e efetivada pela “separação também invulgar”


[que existe de fato entre os homens e Deus, pois todos pecaram.]
Não se trata de alguma ação positiva do ponto de vista humano, pela
qual nossa solidariedade se estabeleça de um para outro em reação mútua, pois
qualquer que seja a ação de iniciativa humana — ação positiva, nela existem
sempre os germens da separação social; [isto se verifica em qualquer atividade
ou posição, seja situação religiosa, consciência ética, humanitarismo, etc.]. O
que há, ou o que possa ser considerado de positivo, nestas coisas positivas, é a
diferenciação [de grandezas, qualidades ou valores] que de per si fundamenta
as diferenças humanas e está na origem delas.
[É por isso que] a comunhão real entre os homens se realiza no negati-
vo, naquilo que lhes falta (e não naquilo que alguns acaso tenham (ou pensem
ter) a mais para dar ou repartir, ou ensinar].
Reconhecemo-nos como irmãos ao reconhecermos que somos pecadores.
Nossa solidariedade [com nossos semelhantes] somente pisará terreno
firme quando com eles (ou sem eles, pois não devemos esperar pelos outros)
percebermos a nossa radical incerteza, a despeito de tudo quanto acaso tenha-
mos ou sejamos.
“Estão destituídos da glória de Deus”.
A glória de Deus é a evidência de Deus. (GLORIA DIVINITAS
CONSPICUA) (Bengel).
Esta evidência [esta conspicuidade] nos falta, e é isto que nos iguala. É
por isso que os que estão em evidência precisam descer [eclipsar-se]; são bem-
aventurados os que já estão muito embaixo pois onde não houver a evidência
de Deus, aí tem lugar a fé. (“Não ver, mas crer”.) [João 20, 29 — seg. parte].
Então tem sentido o perdão, a única salvação com que se pode contar.
O reconhecimento da destituição da glória de Deus nada tem a ver com
pessimismo, com contrição e lamentação; nem com a “pesada depressão” do
“pregador da morte” — (Nietzche), ou então com a autoflagelação oriental em
contraposição ao júbilo [à festa, à bacanal ou ao regozijo] grego.
A destituição da glória de Deus poderia ser comparada com o entusias-
mo Dionisiano, se este não fosse coisa tão completamente diversa. [A destitui-
ção da glória de Deus e o “NÃO” divino, e o seu “NÃO” é negação tanto para
a mais alta rejeição da vida como para a sua mais cabal aceitação.
É um “NÃO” que submete judeus e gregos a um mesmo julgamento.
Este “NÃO”, traz ao nosso conhecimento a nossa mais extrema rejeição; (a
nossa destituição do “NÃO” e do “SIM” divinos).
Todavia, é também nesta negação que se revela a verdadeira humanida-
de; aquela qualidade original do ser humano de além [queda]. É nesta carac-

152
Jesus 3, 24

terística pura do ser humano, que o homem é posto nas mãos misericordiosas
de Deus.
“Sendo justificados gratuitamente pela sua graça”.
Que estamos na presença de Deus nos é comprovado quando nada mais
podemos ouvir além da palavra do JUIZ com a qual ele confirma a si mesmo
(Heb. 1, 3) e com a qual ele sustenta todas as coisas; quando o nosso ouvir nada
mais pode ser que fé em Deus; fé que ele é, porque é.
Enquanto existirem outras razões, outros motivos [outras vozes e outras
palavras] que não a fé, então não estamos [verdadeiramente] perante Deus.
É justamente por isso que temos que voltar até às origens, para antes [do
tempo quando começaram a surgir as nossas] diferenças humanas.
Deus “declara”. Ele declara sua justiça como sendo a verdade [que de
fato é] por trás e por sobre toda a justiça e injustiça humanas.
Ele declara que nos aceita e que lhe pertencemos. Ele declara que nós,
seus inimigos, somos seus filhos amados.
[As diferenças entre os homens são irrelevantes para Deus:

— “Se nos separam


coisas humanas,
Tu nos irmanas em tua cruz”. (J. C. Mota)

e ficam para trás ou, no dizer do Autor conforme registrado pela tradução
inglesa, “é como se tais diferenças nunca houvessem existido”, pois Deus
declara que a sua justiça é a verdade, aquém e além da justiça e da injustiça
humanas].
Deus declara a sua deliberação de exigir a sua justiça mediante a com-
pleta renovação dos céus e da terra.
Esta declaração é forense: sem causa e sem sentido [aparentes]; é uma
declaração fundamentada exclusivamente em Deus mesmo; ela é CREATIO
EX NIHILO. [É uma afirmação que em nada se estriba e que não é nem
justificada nem compreensível, pois foi originada exclusivamente pela vontade
do Criador].
É criação do nada, todavia é criação. É a criação de uma justiça verda-
deiramente divina em nós, neste mundo, pois quando Deus fala, acontece!
Esta criação é uma criação nova: (“Um novo céu e uma nova terra”).
Não é apenas um rebento novo da velha evolução criativa na qual
estamos e permaneceremos até o fim de nossos dias, [e que existirá até o fim
do mundo].
Não se trata de novo derrame ou de desdobramento da antiga criação.

153
3, 24 Jesus

Entre esta criação nova e a antiga, está o término de nossos dias, o fim
desta humanidade e desta terra.
Este “algo” novo, [criado do nada por Deus], pertence a outra ordem;
uma ordem nova que não é a das coisas que conhecemos, pois não sai delas mas
é (e foi) criada por Deus.
Esta criação nova [um novo céu e uma nova terra] não se alinha [nem se
compara] com a criação [o céu e a terra] que conhecemos e se comparássemos
esta criação nova com a existente, a nova nada seria pois a carne e o sangue não
podem herdar o Reino de Deus; [para o advento do Reino de Deus] é preciso
que o mortal se revista da imortalidade e o corruptível da incorruptibilidade.
O revestimento de que tratamos acima é obra divina e não de homens;
por isso o mortal e o corruptível estão e permanecem no aguardo dessa mudan-
ça radical de suas propriedades que virá na transformação divinal que se pro-
cessará no dia da ressurreição dos mortos. (1 Cor. 15, 50-57).
“Esperamos por um novo céu e uma nova terra”.
É por isso que a justiça de Deus, em nós e no mundo, não é justiça
humana nem entra em concorrência com esta justiça, pois “a vossa vida está
oculta com Cristo, em Deus” (Col. 3, 3). Se não estiver oculta não é vida! O
Reino de Deus ainda não despontou na terra nem mesmo uma mínima parcela
dele. Anunciado, sim! Mas não “chegado” nem mesmo do modo o mais subli-
me; porém, “vindo próximo”.
O Reino de Deus precisa ser aceito pela fé, conforme revelado por Jesus.
Anunciado e próximo, [o Reino de Deus] é a nova terra e não a extensão
[o prolongamento] da velha.
A “nossa” justiça somente pode ser real e permanente na medida que for
a justiça de Deus. Nova terra é e permanece sendo somente a eterna, em cujo
reflexo agora e aqui estamos.
[Pelo contexto geral, concluo que o Autor quer dizer que a nossa justiça
só pode ser genuína, duradoura, válida, se abrirmos mão dela para nos entre-
garmos inteiramente a Deus; isto é, se de nossa parte não nos arvorarmos a
fazer justiça e a julgar mas, sem qualquer pretensão, preconceito ou pré-julga-
mento, nos apresentarmos quais somos perante Deus, o Deus desconhecido do
qual nos acercamos somente quando o fazemos em nome de Jesus, pois de
outra forma seria (ou será) sacrílega a nossa pretensão; será néscia e, se tentar-
mos fazê-la, teremos que reconhecer semelhantemente a Jó, que falávamos do
que não entendíamos, abominando-nos então a nós mesmos, e arrependendo-
nos da nossa estultícia no pó e na cinza. (Jó, 42, 3 e 6).
Esta justiça de Deus só e perceptível pela fé, pois ela pertence ao Reino
de Deus, que está próximo mas ainda não é!].

154
Jesus 3, 24

Verdadeira é a misericórdia de Deus para conosco, qual milagre (vindo


“verticalmente de cima”); todavia, o aspecto histórico, [e até mesmo a sua ma-
nifestação chamada] espiritual [sendo perceptível, visível,] é sempre falaz.
Estamos realmente, verdadeiramente, perante Deus quando aguardamos
a realização de suas palavras, mediante a fé; quando e enquanto percebemos a
verdade de que a nossa justificação perante ele [e por ele] é graciosa; que é uma
“dádiva de sua misericórdia”; [que somos justificados por Deus] somente pela
graça.
Graça é a boa e livre vontade de Deus em aceitar-nos, e a necessidade [a
razão] de assim agir procede somente dele, conforme promete aos que de cora-
ção limpo anseiam por sua glória: eles me verão face a face!
A verdade mantida em cativeiro rompe os seus grilhões e é por ela que
a fidelidade de Deus se mantém firme para conosco sem que de nossa parte
demos o mínimo motivo para tanto. Isto se dá, somente porque Deus é Deus.
A misericórdia divina não é uma força psíquica no homem, nem uma
força física na natureza, nem uma força cósmica no mundo: ela é e permanece
sendo o Poder de Deus (1, 16), a proclamação do Homem novo, da nova natu-
reza, da nova terra, do Reino de Deus.
Deste lado, [do nosso, daquele em que estamos] a misericórdia [divina]é
e permanece sendo uma grandeza negativa, invisível, oculta, e age como a
proclamação do desaparecimento deste mundo, como o fim de todas as coi-
sas; [tem uma ação] desalentadora, inquietante, solapadora de tudo o que
aqui existe.
Porém, naquele grande Dia entre todos os dias, pela palavra do Deus
Criador [a misericórdia de Deus] será retumbante SIM! Será consolo, [sereni-
dade], edificação, e salvação.
Pela destruição do homem exterior, o homem interior se renova, dia a
dia. Isto se deve crer pela palavra do Deus Criador, com os olhos voltados para
o dia do cumprimento, anunciado por Jesus.
[A palavra do Deus, Criador, é a palavra da redenção; a palavra que cria
o novo homem, a nova terra, a nova ordem de coisas. A palavra que “tudo faz
novo”. A palavra que é a negação das coisas presentes e atuais, que termina e
extermina o presente século — é a grande afirmação da restauração do homem
perante Deus].
Esta palavra do Deus — Criador, foi enunciada pela redenção que há em
Cristo Jesus.
O que há em Cristo Jesus? Há [o que escandaliza]; o que gera [espanto]
e horror. Há, para a história a supressão da própria história. Há um rompimento
na interrelação das coisas que conhecemos; há no tempo uma parada do tempo;

155
3, 24 Jesus

“Santificado seja o teu nome! Venha o teu reino! Tua vontade seja feita na terra.
como no céu!”
O Filho do Homem, anuncia a morte do homem; proclama a Deus como
o primeiro e o último.
E o eco responde como inambígua testemunha daquilo que é proclama-
do: “Ele fala com Poder” [“Nunca homem algum falou como este
Homem”]...“Está fora de si”; “Desencaminha o povo”; “É companheiro de
publicanos e pecadores”...
[Em Cristo Jesus há o horror da confrontação pessoal do homem com
Deus. Há o escândalo da anulação de todas as vantagens humanas tão engenho-
samente arquitetadas e tão duramente defendidas até que alcançássemos o es-
calão dos homens justos e retos; há o escândalo da nivelação rasa de todos os
homens (nem há, ao menos, inversão de valores para que alguns, ainda que
fossem os outros, pudessem galgar posições perante Deus e os homens); o que
há é tábua rasa: todos pecaram!
Há também redenção, restauração, salvação. Há dia novo e novo nome.
Há nova luz, não consumível, eterna e divina.
Em Jesus de Nazaré há o homem; o filho do homem, que traz espanto e
horror; que revoluciona os costumes, desencaminha o povo, faz amizade e con-
cede honra a gente desprezível: “Louco”! É assim que o vêem os homens “de
bem”, justos aos seus próprios olhos; os homens instruídos na lei, que a anun-
ciam e que nela se gloriam; os “sábios” e favorecidos que interpretam os orácu-
los divinos que um dia foram confiados a seus ancestrais, (e que não percebem
que o canal secou; que nele já não flui a água da vida). Para todos esses, o Jesus
de Nazaré é loucura, escárnio e escândalo. Mas nesse Jesus há também o Cris-
to! O unigênito de Deus; o cordeiro pascoal que tira o pecado do mundo. Há o
ungido do Pai Celeste. E para aqueles que o vêem com temor e tremor, que o
aceitam pela fé, com coração contrito e humilhado, a despeito do escândalo, a
despeito da imposição do “NÃO”, para esses, “Nunca homem algum falou
assim como este homem”; para esses ele “é o Cristo, o filho do Deus vivo!]
Jesus de Nazaré é uma possibilidade entre outras, mas é uma possibilidade
que traz em si todos os sintomas do impossível. Este é o Cristo, segundo a carne:
uma história dentro da história; um fato material dentro do mundo da matéria;
uma expressão transitória dentro da temporalidade; uma vida humana, dentro da
espécie humana. Mas é uma história cheia de significado [transcendental]; é
“matéria” que revela o princípio e o fim; é vida transitória plena de revelações da
eternidade; é vida humana em que Deus fala exuberantemente.
Na mundanalidade desse fragmento de mundo destaca-se [desprende-
se] (para olhos que vejam e ouvidos que ouçam!) algo deste mundo, que lhe dá

156
Jesus 3, 24

novo esplendor, que resplende nas trevas da noite: “Glória a Deus nas alturas e
paz na terra aos homens de boa vontade!”
É o próprio Deus que quer atrair o mundo a si; que quer criar um novo
céu e uma nova terra.
Agora vemos a figura monstruosa deste nosso mundo: estátua forjada
em ouro e prata, bronze, ferro e argila, mui luzente, alta e forte; de aspecto
terrificante.
Porém, na vida oculta de Jesus podemos divisar a pedra que se despren-
de e que rolará para despedaçar os pés de barro e pulverizar a estátua sem
interferência de mão humana e o vento espalhará a poeira como a moinha, na
eira. “Mas a pedra que feriu a estátua transformou-se em grande montanha que
encheu a terra”. (Dan. 2, 24-35).
Satanás caiu dos céus como relâmpago; seu reino terminou. O reino de
Deus vem, tão certo quanto seus prenúncios já aí estão: “Os cegos vêem; os
cochos andam; os leprosos são limpos; os surdos ouvem; os mortos ressusci-
tam; aos pobres anuncia-se-lhes o evangelho”! “Bem-aventurado aquele que
não se escandalizar em mim”.
[Bem-aventurado] aquele que através da mundanalidade deste fragmento
de mundo, através da “vida de Jesus”, vislumbra a redenção que vem, e ouve a
voz criadora de Deus, [bem-aventurado] quem, a partir de então, não espera
senão por esta redenção e por esta voz. (Mat. 11, 1-4 (e 5-6)].
Bem-aventurado aquele que crê nisto que só pela fé pode ser apropria-
do; pela fé que há em Cristo Jesus.

Vs. 25 e 26 A este destinou Deus por cobertura de reconciliação, pela sua


fidelidade em seu sangue, para prova de sua Justiça no perdão dos peca-
dos cometidos anteriormente, no tempo de sua contenção, e para prova de
sua justiça no presente momento: para que seja ele, o justo, e quem decla-
ra justo a quem se apoiar na fidelidade que se comprova em Jesus.

A tradução de Almeida escreve assim os Vs. 25 e 26:... “a quem Deus


propôs, no seu sangue, como propiciação, mediante a fé para manifestar a sua
justiça, por ter Deus, na sua tolerância, deixado impunes os pecados anterior-
mente cometidos; tendo em vista a manifestação de sua justiça no tempo pre-
sente, para ele mesmo ser justo e o justificador daquele que tem fé em Jesus”.
A maneira de traduzir do Autor parece deixar mais clara a idéia de que
Deus destinou a Jesus para, por meio da fidelidade deste, levada ao ponto de
derramamento de seu próprio sangue, provar que foi justo ao perdoar os peca-

157
3, 24-25 (e 26) Jesus

dos cometidos no passado, antes da dispensação da graça, como para provar


também a sua retidão (a sua justiça) agora, depois da propiciação feita por
Jesus, agindo Deus com igual justiça (perdoando os pecados dos que espera-
ram, pela fé, e também os dos que aceitam pela fé) neste um só e mesmo fato:
a reconciliação dos homens com Deus, em Jesus, o Cristo.
As várias traduções da Bíblia que têm sido citadas mais atrás parecem
oscilar entre as duas formas de dizer: (a do Autor e a de Almeida). Todavia
pendem mais para esta. Talvez a tradução que conserva uma exposição de apa-
rência mais coerente seja a versão sinodal francesa, que diz:
Vs. 24... “São justificados gratuitamente, por sua graça por intermédio
da redenção realizada em Jesus — Cristo”.
Vs. 25 e 26 “Ao qual Deus estabeleceu por vítima expiatória, pela fé em
seu sangue. Assim, Deus manifestou a sua justiça porque ele havia deixado
impunes os pecados cometidos antigamente, durante o tempo de sua paciência.
Ele manifestou, digo eu, a sua justiça no tempo presente, fazendo ver que ele é
justo, e que justifica aquele que crê em Jesus”.
Há ainda um outro ponto a que o Autor chama a atenção, logo a seguir,
referente à “propiciação”. Ele diz que Deus destinou a Jesus como “cobertura
de reconciliação”. Conforme vemos na transcrição da tradução de Almeida,
este diz simplesmente por propiciação”. O Autor justifica a forma dele baseado
na palavra “Kapporeth”.
Esta figura tem papel relevante no culto do Antigo Testamento. Nesse
ritual o “Kapporeth” designava o local da arca onde estavam depositadas as
tábuas da lei; era uma abertura ladeada por duas figuras de querubins que sim-
bolizavam a guarda do local e indicavam a sua posição com as faces voltadas
para o lugar; todavia, velavam e escondiam-no também, estendendo sobre ele
suas asas].
No culto do antigo testamento, a “reconciliação” e o “Kapporeth”, (na
versão LXX o “Hilasterion”) a placa de ouro que duas figuras de anjo
(querubins) sombreavam com suas asas e assim, concomitantemente, indica-
vam e escondiam a mensagem de Deus guardada na arca da Aliança. (Ex. 25.
17-21 [e 22]).
Este é (no culto do Antigo Testamento) o local sobre o qual o próprio
Deus habita (I Sam. 4, 4; II Sam. 6, 2; Sal. 80, 1 [e 2]); é o lugar de onde Deus
fala com Moisés (Ex, 25, 22; Num. 7, 89); porém, acima de tudo, este é o lugar
onde, no grande dia da reconciliação, se dá a reconciliação do povo com seu
Deus mediante a aspersão de sangue (Lev. 16, 14-15). Por se tratar de lugar
com conotação imaterial e não mais um local restrito físico-topográfico, é que
ele é sobremaneira comparável a Jesus.

158
Jesus 3, 25

Jesus, desde a eternidade, foi destinado pela deliberação de Deus, como


o lugar sobre o qual Deus habita; de onde ele fala; o lugar da expiação [e da
reconciliação]; e agora, no cumprimento dos tempos, [este local-Jesus] foi fi-
xado, instalado, na história e perante os homens.
[A título de curiosidade e, quiçá, para melhor acompanhar a analogia
que o Autor faz entre o “Propiciatório” da arca e Jesus Cristo, que é a revelação
da graça de Deus, é de notar que:
A REVISED STANDARD VERSION (RSV) diz “Mercy Seat”, e anota
ao pé da página a opção “cover”. A tradução de Lutero antecede a RSV dizendo
“Gnadenstuhl”. A Versão Sinodal Francesa (VSF) é semelhante à de Almeida
(que é a forma usada pelas traduções católicas, em geral), dizendo
“Propitiatoire”.
Ora, parece-me quer seja a lâmina de ouro que cobria o tabernáculo, o
“propiciatório”, ou a cobertura da reconciliação, é fora de dúvida, pelo ensino
bíblico, que Cristo, em si, reconcilia o homem com Deus e que com sua morte,
ele propicia essa graça, mediante a fé].
A vida de Jesus é o lugar qualificado por Deus para a reconciliação; é o
lugar da história que foi, por assim dizer, minado, municiado por Deus, para a
reconciliação. [Segundo os tradutores ingleses, é o lugar estuante em eternida-
de]. [E o lugar onde a reconciliação está fervilhante, pronta a brotar, a explodir].
“Deus estava agindo, em Cristo, para reconciliar consigo o mundo”
(II Cor. 5, 19).
Neste lugar, [a vida de Jesus], o Reino de Deus está tão próximo, tão
junto, que o seu advento, sua força redentora e sua significação, são notadas
justamente aqui; está tão próximo que seria impossível não reconhecer a presença
de Deus entre os homens, [Cristo é Emanuel, que quer dizer Deus conosco].
Seria impossível que não ouvíssemos a voz de Deus; [Cristo é o verbo, que se
fez carne]. Seria impossível que os homens não percebessem a vontade de Deus
chamando-os de volta para o lar, para a paz: [“Vinde a mim, e achareis descan-
so para as vossas almas” e “a minha paz vos deixo, a minha paz vos dou”.]
Sim, tão perto chegou o Reino de Deus dos homens que, nesse lugar, a
fé se impõe como imperiosa necessidade.
Todavia, assim como na “cobertura” do tabernáculo as testemunhas de
Deus eram indicadas pela orientação das faces dos anjos e simultaneamente
escondidas pelas suas asas, também a reconciliação com Deus, em Cristo, a
aurora do dia da redenção, está anunciada e oculta nele. (3, 24).
Está anunciada porque é fato evidente e não pode ser ignorada. A reali-
dade de que Jesus é o Cristo se impõe poderosamente. Todavia, aqui está o
mais agudo paradoxo: essa realidade somente pode ser absorvida, assimilada,

159
3, 25-26 Jesus

apropriada pelos homens, mediante a fé! [É nesta característica que se esconde


a realidade da reconciliação].
[Na antiga dispensação] a reconciliação do povo tem lugar mediante a
aspersão de sangue, em solene advertência de que Deus vivifica [ao pecador],
pela morte.
Também em Jesus, a reconciliação ocorre somente mediante a “fideli-
dade de Deus em seu sangue”.
“Em seu sangue” quer dizer: no inferno que representou [e representa] a
mais plena solidariedade com todo o pecado; [ele tomou sobre si o nosso pecado];
toda a fraqueza e todos os ais da carne; [levou sobre si as nossas enfermidades e as
nossas dores]; no sofrimento secreto de todas as privações; no obscurecimento e na
extinção de todas as luzes que mitigam a dureza da existência humana (herói, pro-
feta, poderoso em obras e feitos) — grandezas e bênçãos que iluminam a vida dos
homens e que também luziram para ele enquanto foi homem entre os homens; e no
fim, no absoluto escândalo da morte vergonhosa na cruz.
[É nesta forma] em seu sangue, que Jesus comprova ser o Cristo; com-
prova ser a primeira e a última expressão da fidelidade de Deus à espécie huma-
na; comprova ser a revelação da “impossível possibilidade” da nossa salvação;
ele comprova ser [a verdadeira luz do mundo] a luz não criada; ele comprova
ser o arauto do “Reino de Deus”.
“Sangue é a cor de fundo do quadro do Redentor” (Ph. Fr. Hiller), pois
foi no caminho para a cruz, na dádiva de sua vida, na sua morte, que veio a luz
pela vez primeira a radicalidade da redenção que ele traz ao nosso alcance, e a
novidade da nova terra que ele anuncia.
Traz a luz dizemos ou, talvez, devêssemos dizer que ele traz sombra, se
não estivermos à altura dessa radicalidade, dessa nova terra e novo céu, do
novo homem. “Porque este foi colocado tanto para a queda como para o levan-
tamento de muitos em Israel e para um sinal de contradição — e uma espada
atravessará tua alma para que se manifestem os pensamentos secretos de mui-
tos corações”. (Luc. 2, 34-35).
O segredo da reconciliação no sangue de Jesus, é e permanece sendo,
um segredo de Deus; é a sua revelação, a visão do invisível, é sempre obra de
Deus. Obra de sua fidelidade ou, (o que é o mesmo), obra da fé.
Porém, enquanto se realiza essa obra divina, enquanto a fidelidade de
Deus persiste, enquanto se põe nas conchas da balança a ousadia da fé, mostra-
se-nos o raiar do dia do novo mundo de Deus; a realidade da sua misericórdia e
da nossa salvação. Mostram-se-nos as novas vestes com que nos revestiremos,
e a habitação não feita por mãos, eterna, nos céus. (II Cor. 5, 1 e seguintes).
Vestes e habitação prometidas, garantidas, seguras.

160
Jesus 3, 25-26

Estamos pois, aqui, já sob o reflexo das coisas do porvir. Não sem per-
plexidade, mas também não desesperançados; feridos de Deus; contudo, du-
rante a crise, sob o seu poder restaurador.
“É por isso que temos que abrigar-nos sob as asas da galinha, não sain-
do a voar atrevidamente, confiados em nossa própria fé, pois certamente o ga-
vião depressa nos devoraria”. (Lutero).
“Para a prova de sua justiça.”
Perdão dos pecados houve sempre e por toda a parte; também por toda
parte e sempre foram usufruídas as riquezas da bondade divina, de sua paciên-
cia e da contenção da ira de Deus. (2, 4). Sempre e por toda parte os feridos por
Deus foram, também, por ele curados. Todavia, foi através de Jesus que nossos
olhos se abriram para que víssemos que assim é. Foi nele que a justiça de Deus
tornou-se patente aos nossos olhos.
É através de Jesus que ficamos em situação de ver a história (“os pecados de
antigamente”) sob o ponto de vista divino, isto é, à luz de sua misericórdia que tudo
suprime e dissolve. É através de Jesus que ficamos sabendo o que é essa misericórdia:
o fim [do homem velho] e o novo começo de todas as coisas. [Para o gênero humano
é a volta ao “status” de Adão, antes de pecar; é a volta ao Edén, a volta ao lar; porém,
também como para o primeiro Adão, é o novo homem chamado a optar constante-
mente, que é a característica distintiva de sua imagem e semelhança com Deus].
Esta misericórdia quer levar-nos ao arrependimento: sabemo-lo! (2, 4;
6, 2 e seguintes).
Somente através de Jesus pode-se compreender a justiça de Deus e é
através dele que se vê claramente que essa justiça exerce o seu domínio e im-
põe a sua ordem sobre os homens e a história.
Pela premissa que recebemos de Jesus já não vemos, por toda parte e
sempre, somente o homem carnal, o pecado (com a lei, 3, 20), porém, além e
acima, vemos o juiz que julga e absolve, porquanto ele encontra no secreto dos
homens (2, 16) a motivação da fé.
Ele é justo e é o justificador dos que ousam dar o salto [da fé], para o vazio.
Se crermos em Jesus, então cremos na realidade e na universalidade da
fidelidade de Deus.
Se crermos em Jesus, manifesta-se para nós a “impossível possibilida-
de” da justiça de Deus e da nossa justificação por ele.
É desta pressuposição que vemos a nós mesmos e nos aproximamos das
pessoas.
É por esta pressuposição que ousamos confiar (e crer) em nós e nos
outros, enquanto que, sem ela, (sem a crença em Jesus), em ninguém podemos
confiar ou crer; nem em nós mesmos.

161
3, 27-28 Somente pela Fé

É porque cremos em Jesus, que temos a coragem de demandar a fé junto


aos outros (3, 22); e demandamos justamente a fé nesse Jesus, em quem cremos.
Porque Deus é justo e é quem justifica, temos paz com Deus! (5, 1).

SOMENTE PELA FÉ (3, 27-30)


Vs. 27 e 28 — Onde pois a jactância? Foi excluída!
— Por qual lei? Pelas obras?
— Não, porém pela lei da fidelidade de Deus!
Consideramos, pois que o homem é justificado pela fidelidade de Deus,
independentemente das obras da Lei.
[A nossa tradução de Almeida, diz “pela fé”, onde, Barth traduz “pela
fidelidade de Deus”]
“Onde pois a jactância? Foi excluída”!
Em Jesus fala-nos a verdade de além da morte: Deus é justo e Deus justi-
fica. Somente Deus. De novo, e sempre, somente existe retidão humana se vier da
parte de Deus e isto é verdade na atitude crítica que tivermos com relação à lei, à
religião, à experiência humana, na apreciação da história, no juízo que formular-
mos do mundo; em resumo, em nossa posição com respeito a todas as realidades
[objetivas ou subjetivas] da vida.
Tudo o que acontece ou existe originado pelo homem, (ou oriundo dele),
é medido em Jesus, por Deus, que atribui mérito ou demérito a esses aconteci-
mentos ou eventos, na conformidade de seu agrado. Tudo o que é, tudo o que
existe, está sujeito a esse “desconforto”, [a essa condição de insegurança]; pre-
cisa ser colocado no prato da balança e precisa resistir à prova.
Esta atitude crítica com relação ao mundo, significa a compreensão da
situação profana e relativa do próprio mundo, o entendimento desta condição
aplicada à humanidade, e a apreciação da história sob esse mesmo prisma. Dentro
dessa atitude, porém, também há a compreensão do sentido da mundanalidade
como parábola, qual testemunha (3, 21) ou memento do mundo totalmente
diverso, do ser humano inteiramente diferente, de uma outra história em nada
comparável com esta. Este memento. esta lembrança, é uma semelhança, é
uma parábola, é testemunha e memória de Deus.
Todavia, há uma coisa que essa atitude [assim inspirada pela retidão divina]
veda, impossibilita; há uma coisa que é incompatível com essa posição: é a auto-
importância, auto-suficiência ou o valor próprio; é a presunção que alguém possa
ter, de se arvorar em grande e importante perante Deus, não se curvando à sua
justiça e, portanto, sem esperar pela sua justificação. E pretender alguém exibir,
de alguma forma, qualidades que sejam (ou pudessem ser) aceitáveis para Deus.

162
Somente pela Fé 3, 27

Isto essa posição crítica não admite e, partindo dela, não se pode entender, ou
aceitar, que coisas, acontecimentos e até seres humanos possam receber ou preten-
der ter atribuições e méritos divinos ou divinais; que se confundam coisas tempo-
rais com a eternidade; que se alcandorem eventos materiais, irrompendo, emer-
gindo neste mundo como partes do mundo celestial; (e o mundo no qual irrompem
essas pretensões é o mundo ao qual pertencemos segundo a nossa esfera e ao qual
pertencem todos os homens em todas as camadas da sociedade, desde as socieda-
des mais primitivas, atrasadas e incultas, até às do mais alto coturno).
Esta visão crítica, vinda da retidão de Deus, não aceita a pretensão de
quem quer que seja, de estar “além”, porquanto os que assim se situam nada
mais são, (se forem alguma coisa), que uma porção apenas ligeiramente me-
lhorada dos que estão “aquém”. O que essa visão crítica não considera válido
são as ilegítimas imanências de toda espécie que pretendem tomar a posição de
transcendentais e radicais. Essa visão crítica não compartilha do estabeleci-
mento do relativismo entre os homens e Deus: divindades que, de alguma for-
ma, surgem com características humanas no seu modo de ser e agir, e
humanitarismos que se apresentam com características divinas! Toda essa gama
de atitudes [que vai de um a outro extremo] precisa tirar a máscara e consentir
na revelação de sua verdadeira natureza, pois quem não se situar nem sob o
“NÃO” nem sob o “SIM” de Deus, quem não estiver no caminho que leva da
reconciliação (pelo sangue” 3, 25) para a redenção, da cruz para a ressurreição,
isto é, quem não tiver coração contrito e tomar o divino, o próprio, o eterno
como sendo material, imaginário, passageiro, esse tal, precisa morrer em Cristo.
Precisa morrer em Cristo o homem que escolhe para si o materialismo,
lendas e fábulas ou a transitoriedade do mundo; o homem que se esquece que
nada tem que não tivesse recebido e precisasse de receber novamente de Deus;
o homem que quer safar-se do paradoxo da fé; o homem que já não quer, ou
que ainda não quer, abrir mão de sua confiança na sabedoria, na ciência, nas
coisas certas e palpáveis do mundo, e do conforto que este oferece, para depen-
der exclusivamente da graça de Deus.
Precisa morrer em Cristo o homem que tenha qualquer outro pretexto
para se apoiar, que não seja “esperança” (4, 18; 5, 2; 15, 17).
Não existe qualquer possibilidade de se fazerem valer perante Deus,
grandezas humanas, como não podemos alegar a posse de grandezas divinas
perante os homens.
Não é possível projetar o eterno na temporalidade e vice-versa. Não é
possível transferir grandezas justificadoras do homem, segundo a conjuntura
humana, para a justiça divina, como não é possível transferir a justificação do
homem por Deus, em benefício do homem na conjuntura do mundo.

163
3, 27 Somente pela Fé

[Essa simbiose entre os homens e Deus, esse intercâmbio de valores e


qualidades, essa troca de atributos, não existe; a simples hipótese da existência
de tal possibilidade está definitivamente excluída].
Essa absoluta impossibilidade da justiça divina [ser satisfeita com a jus-
tiça humana]é que estabelece o impedimento peremptório dessa possibilidade
aparentemente tão fácil, de alcançarem os homens, perante Deus, sua justifica-
ção a priori ou a posteriori. [(A priori, pelas obras piedosas, a posteriori, pelas
orações e missas por intenção de pessoas falecidas e também “a priori” pela
predisposição favorável de Deus e “a posteriori” pela resposta de Deus e “mu-
dança” de seus desígnios)]. Essa impossibilidade não pode ser esquecida.
É totalmente impossível valer-se o homem de qualquer coisa material
[ou de seu engenho, sua arte, sua imaginação] que exista antes ou de que [seus
sobreviventes] se socorram após o instante— (que não é um instante no tem-
po), em que soar a última trombeta, quando o homem, em sua nudez espiritual,
estiver na presença de Deus e for revestido da justificação divina.
Em Jesus, nada do que o ser humano seja, possua, ou faça, tem algum
valor se não houver sido submetido, subordinado, ao “NÃO” divino, como
também não tem valor o que não estiver aguardando o “SIM” divino, ainda
pela esperança em Cristo. [Isto é, perde o valor tudo o que se apresentar (e
quem se apresentar) na pressuposição de já estar aprovado por Deus e não
precisar mais da purificação e da redenção que há em Cristo].
Nenhuma retidão humana que não tenha deixado de ser humana pela
condenação e absolvição de Deus, representa qualquer fator real, tanto perante
Deus quanto perante os homens.
“Por que lei? Pela lei das obras?
— Não; porém pela lei da fidelidade de Deus!”
Em que se baseia esta negação [à lei das obras]?
Por que se faz essa afirmação e por que é ela verdadeira?
Como se explica essa eliminação [de qualquer mérito] da retidão humana?
Como se explica o perecimento do homem, que ainda tem algo de que
valer-se, ou que ainda procura por essa coisa, que o salvasse?
Que “lei” é essa, ou que religião, piedade ou vivência conduzem a tal
situação? Quem diz “religião”, “piedade”, “vivência” diz experiência, conheci-
mento, sentimento, ação do mundo, “obra” do ser humano. Existe alguma outra
lei, além da “lei das obras”? O que conhecemos nós da ação e das obras de Deus?
Aqui ameaça-nos o maior dos mal-entendidos: Corremos o risco de to-
mar determinadas impressões, atitudes [ou até ensinos bíblicos] como o supra-
sumo da sabedoria humana ou a expressão máxima da nossa inteligência. Por
exemplo, o conhecimento das coisas que ocorrerão nos últimos tempos, a

164
Somente pela Fé 3, 27

escatologia; ou então, o emudecimento perante o próprio Deus, como se (V. G.)


as máximas de Angelus Silesius ∗ fossem tidas ou devessem ser lidas como
receitas psicológicas! Ou que se tomasse como sendo o mais ousado impulso
da piedade humana permanecer na contemplação, na visualização (ou imaginan-
do) como seria sua própria experiência no instante derradeiro da vida, (o que
aliás já não seria “um instante”, se o agente “permanecer” na contemplação...);
ou ainda, para alguns, poderia a “sabedoria da morte” (Overbeck) ser tomada
como a mais recente [e mais engrandecida expressão] da “sabedoria de viver”.
Tomar semelhante atitude, [fixando pontos ou interpretações como sen-
do a mais alta expressão da inteligência humana] seria o triunfo, a vitória do
farisaísmo; seria um neo-farisaísmo surgindo mais terrível do que o antigo,
pois não só estaria a justificar-se em sua retidão, como seria atrevido!
A retidão humana presta-se para tudo, até mesmo para a auto-supressão
e o aniquilamento próprio. (Budismo, misticismo, pietismo).
É preciso que nos precatemos desse “mal-entendido”, mais que de outro
qualquer: — não poucos ficaram, por causa dele, de fora, quando já estavam
frente às portas da justificação de Deus; foram “excluídos” no último momen-
to. Porquanto a submissão ao “NÃO” de Deus, e a firme esperança pelo “SIM”
divino, verdadeiramente, não são um golpe atrevido, titânico, fatal, do homem
que anseia pela imanência e transcendência de Deus.
[Penso que o Autor quer dizer que a submissão ao “NÃO” divino e a
esperança ao “SIM” que há em Jesus (e que poderiam externar-se numa ex-
pressão de excelência perante Deus), quando adotadas por astúcia, expediente,
ou com o fim de alcançar a justificação de Deus, não são o meio de alcançar
essa justificação].
Sob a égide da “lei das obras” não cessa a jactância humana, nem se
processa a justiça divina.
Quem quiser gloriar-se e quiser ter, como ser humano, razão perante os
homens e perante Deus, este gloriar-se-á até mesmo da mais profunda negação
de si mesmo e na mais sofrida auto-renúncia; (se possível, jactar-se-á de sua
insegurança e sua consternação); e será justificado e considerado reto, como
homem (e somente como homem).
É preciso que o alicerce da “lei das obras” se esfacele sob nossos pés.
Nenhuma “obra” pode ser tomada em consideração: nem a mais subli-
me ou a mais espiritual; também não a que for negativa.

*
Poeta alemão, nascido em lar Luterano e convertido ao Catolicismo nos seus últimos
anos de vida; escreveu muitos hinos e as máximas ou provérbios místicos a que o
Autor se refere.

165
3, 27 Somente pela Fé

Nossa experiência é a que não é; nossa religião subsiste na sua supres-


são; nossa lei consiste na anulação, [na desvalorização, na “despotencialização”]
de toda experiência, posse, ação e conhecimento humanos.
Nada que seja mais do que vacuidade, carência, indicação, mera possi-
bilidade, permanece [perante o “NÃO” divino]; [o que o ser humano tem ou é]
não passa de cinza ou pó perante Deus, como todas as coisas deste mundo.
A própria fé apenas subsiste como fé se ela for destituída de valor pró-
prio, (até isenta do valor da negação de si mesma); persiste se ela for indene à
pressuposição de “Poder”, (inclusive do poder de humildade).
A fé permanece enquanto ela não pretender ser uma grandeza nem pe-
rante Deus nem perante os homens.
Essa atitude humana é o alicerce, [é a rocha], a ordem, a luz, onde deixa
de existir a “jactância” e onde e se inicia a verdadeira justificação de Deus.
Todavia, não nos podemos estabelecer e firmar nessa rocha, nesse ali-
cerce: [já seria uma forma de “obra” humana]. Não podemos seguir essa ordem
[não nos podemos guiar nessa luz] nem podemos respirar esse ar.
O que se chama religião, convicção, lei, do ponto de vista humano, é
antes o caos, a anarquia, o abismo.
[Mas a atitude humana que abre mão de tudo o que o homem, segundo
o mundo, possui ou possa ter, sendo genuína, (sem intenções egoístas, mes-
mo as mais “santas”)] é o lugar onde só Deus nos pode manter; é o lugar onde
tudo mais, que não seja Deus, perde o valor; é o lugar que sobremaneira, não
é lugar. E a “Lei da fidelidade de Deus” ou, o que é a mesma coisa, é a “Lei da
fé”! Esta lei da fé é o momento [quiçá o binário] do movimento do homem
acionado e movido por Deus, o Deus fiel, que é o Criador e é tudo do ser
humano; é o seu Redentor.
É aí, (no firme fundamento dessa atitude de submissão integral a Deus e
firme esperança em Cristo] que o homem se entrega a Deus, juntamente com
tudo quanto diz respeito ao mundo em que vivemos.
Este “momento” da movimentação do ser humano, por Deus, está além
das possibilidades humanas e não pode, de forma alguma, ser erigido em ‘ca-
minho”. “método” ou “sistema”. Ele repousa, exclusivamente na vontade, no
beneplácito, no aprazimento de Deus, cuja razão deve ser buscada e só pode ser
encontrada no próprio Deus.
Esta é a “Lei do espírito da vida” (8, 2) e nela fundamentamos o critério
(que não é um ponto de vista!) pelo qual consideramos totalmente “excluída”
toda e qualquer jactância humana.
“Consideramos, pois, que o homem é justificado pela fé, independente-
mente das obras da lei”.

166
Somente pela Fé 3, 27-28

[Usei o verbo “considerar” para traduzir o verbo “rechnen” empregado


pelo Autor. A tradução de Almeida diz: “Concluímos” pois; Lutero escreveu
“temos” pois. (So halten wir...) A VSF diz “consideramos” (nous estimons); a
RSV escreveu “For we hold”].
A passagem [a mudança] do “ponto de vista” das religiões para o “crité-
rio” de Jesus significa o abandono de uma escrituração por outra inteiramente
nova, de que ainda não se ouviu falar, na contabilidade do relacionamento entre
Deus e os homens.
Toda religião conta com uma destas duas modalidades de interrelaciona-
mento com Deus: ou praticar-se-ão obras que sejam agradáveis a Deus, ou
Deus retribuirá aos homens, de alguma forma notória, no procedimento [quiçá
na conversão] de uma pessoa, [grupo de pessoas] e do mundo, como resposta
ou em resposta a essas obras. [Orações, promessas, etc.].
Na primeira modalidade, pretende-se que o “crente” tenha a atitude, o
procedimento que, de alguma maneira, possa justificar a reivindicação [ou a
pretensão de provocar,] de produzir o beneplácito divino e assim, merecer a
retribuição de Deus. [“Pois Deus retribuirá a cada um segundo o seu mereci-
mento”...].(2,6).
Na segunda alternativa, o “crente” espera que Deus “pagará”. [Deus
retribuirá e responderá] às obras, provocando uma modificação na conduta, no
procedimento, na atitude, das pessoas e da sociedade, resultados esses visíveis
e reconhecíveis pelo mundo.
[Conseqüentemente, podemos dizer que:]
A religião considera que Deus agiu “Antes” [e] ou agirá “Depois” do
instante em que o pecador se apresenta descoberto, desnudo, perante Deus,
para dele receber novas vestes, como que prescindindo desse momento supre-
mo, quando o pecador se encontra com o seu remidor, quando Deus movimen-
ta [e conduzi o homem. Para a religião, esse período anterior ou posterior é tão
importante ou quase tão importante quanto o instante crítico, assemelhando-se
a ele em dignidade e significação.
Desta forma, o encontro do homem com Deus perde as suas caracterís-
ticas de total incomensurabilidade e de absoluta incomparabilidade para dar
lugar à possibilidade de o homem gloriar-se divinamente daquilo que ele é, ou
possui, ou faz.
Essa possibilidade está [pois] latente em todas religiões e, por isso, em
todas elas existe a possibilidade de os fiéis fugirem do paradoxo da fé, de o
contornarem ou, quiçá, de novamente o evitarem.
Essa é a condição da “escrita” antiga, em qualquer das suas duas mo-
dalidades.

167
3, 28 Somente pela Fé

Em a nova contabilidade, escriturada segundo o critério de Jesus, a situ-


ação muda-se radicalmente: não existem obras humanas que possam gerar o
beneplácito divino ou que possam desencadear a ação de Deus para modificar
a conjuntura do mundo.
Tudo o que no mundo ocorre está sujeito ao “NÃO” divino expresso
[por Deus] em Jesus, e o mundo é convidado a esperar no “SIM” de Deus,
também em Jesus.
[Conseqüentemente, segundo o novo critério, o “ANTES” e o “APÓS”
ficam completamente ofuscados (pois a “preparação” anterior e o “ensino” (ou
a prece) posterior são, necessariamente, “obra humana” e, como tal, não têm
qualquer valor ou mérito perante Deus)].
Segundo o critério de Jesus, faz-se a omissão, justamente, de todo o
“ANTES” e “APÓS” no instante do encontro do homem com Deus.
O “ANTES” e o “APÓS” não podem ser medidos em termos do “mo-
mento central” nem podem ser comparados a ele.
Uma coisa é e será “o que Deus é e faz” e outra coisa [completamente
diversa à primeira e em nada comparável a ela] é e será “o que o homem é e
faz” (ou houve no íntimo de seu coração).
A linha divisória que existe entre o que aqui está e o além, é intranspo-
nível: é a linha da morte que, na verdade, é a linha da vida; é a linha do término
(desta vida e deste mundo] que, na realidade é a linha do início [da nova vida,
do reino dos céus]; é a linha do “NÃO” que verdadeiramente é o “SIM”.
Deus esclarece; Deus fala; Deus retribui; o beneplácito de Deus escolhe
e valoriza. Sim: este esclarecimento é uma palavra Criadora; por ela a realidade
se estabelece. Só existe valor onde Deus o encontra [onde Deus atribui valor].
Ora, a obra de Deus é a sua criatura e, portanto, esta é uma nova criatura.
Aquilo pelo que Deus pagou o preço, pertence a ele e não mais ao ho-
mem; para Deus, tem valor o que ele valoriza e, por isto essa valorização não se
firma neste mundo. A sua fidelidade é glorificada pela justificação dos homens:
o homem novo se ergue surge a nova terra; rompe o dia novo [e glorioso] sob o
poder da fidelidade de Deus; mas o homem do presente século, neste mundo,
não é glorificado na luz desse dia. Primeiramente a atual mortalidade precisa
ser revestida de imortalidade e a presente corruptibilidade, por incorruptibilidade.
Quando, pela palavra criadora de Deus, este revestimento acontece, então su-
prime-se a mortalidade do mortal: o corruptível da corruptibilidade; ficam eli-
minadas a temporalidade, a materialidade e a corruptibilidade do mundo. To-
davia, nem por isso fica enobrecida a mortalidade ou a corruptibilidade, ou o
mundo, o mínimo que seja; [a matéria, a mundanalidade] não ficam confirma-
das ou transfiguradas.

168
Somente pela Fé 3, 28

O “momento” [pelo qual Deus move o homem para sua apresentação ao


tribunal divino, quando o ser humano se apresenta qual é, perante o seu Criador]
é e permanece sendo peculiar [a Deus]; é algo diferente e estranho a tudo o que
possa acontecer “ANTES” e “DEPOIS”. O “momento” crucial não viceja no
“APÓS” nem tem suas raízes no “ANTES”: não está em qualquer conjuntura
temporal, original ou lógica; esse “momento” é sempre e simplesmente “novo”;
é sempre o “ser”, o “possuir”, o “fazer” de Deus, que só ele possui a imortalidade,
CREDO QUIA ABSURDUM! [Esse “momento” é o produto do Poder de Deus
pela graça da fé].
[Talvez convenha notar aqui, mais uma vez, o acirrado combate que o
Autor faz a toda forma de idolatria, aliás, bem fundamentado na carta de Paulo
aos romanos, e na Bíblia em geral. Todavia, a exegese que Barth faz, da epísto-
la, insiste nas formas mais requintadas de idolatria; entre estas, a idolatração da
própria lei — (da Bíblia entre o ambiente evangélico particularmente do brasi-
leiro) e das instituições; (da igreja entre os católicos). O Autor cita a “RELI-
GIÃO” que, segundo ele, ou veria na prédica (na catequese) um valor impor-
tante para a conversão, ou consideraria a conversão como uma conseqüência
dessa prédica, desse esforço missionário. No entanto qualquer das duas posi-
ções está pejada de pretensão e arrogância, visando a, explícita ou implicita-
mente, enaltecer a obra humana perante Deus. Essa é a deturpação do verdadei-
ro espírito missionário, (devedor a judeus e gregos) que transforma o mensa-
geiro de Deus, ou melhor, que apresenta o mensageiro de uma “sociedade bem-
aventurada”, superior, esclarecida, enviado aos primitivos, “nativos”, hereges,
pagãos e idólatras, como se fora mensageiro de Deus, anunciando o evangelho
e, em vez de o anunciar prega — ou menos do que isso, “apregoa”, a sua soci-
edade, sua seita, sua religião. Há de haver arautos do evangelho (10, 15) mas do
evangelho anunciado com temor e tremor e com ousadia e humildade; é um
conservo entre os demais servos que fala em nome de quem o enviou: “Ide e
pregai” — disse Jesus. Mas não é a pregação nem o mensageiro, que promove
a conversão, ou que para ela contribui; nem é o pregador que abre as torneiras
dos céus para que fluam as bênçãos celestiais da conversão. Esta é, esta se dá,
exclusivamente pela graça de Deus].
O homem só é absolvido se for julgado por Deus; a vida vem sempre da
morte, o princípio chega apenas no fim; o “SIM” vem pelo “NÃO”!
A justificação pelo sangue de Jesus (3, 25) é sempre justificação, inde-
pendentemente das “obras da lei”, e independentemente de tudo que da parte
do homem (perante Deus e os homens) pudesse ser considerado como justifi-
cação [ou justificativo] para que o homem nunca se possa gloriar se não “por
esperança, isto é, em Deus”.

169
3, 29 Somente pela Fé

Entre nós e Deus estará sempre o “Dia da Cruz”, é o dia que une mas
também estabelece a separação; é o dia cheio de promessas e pleno de adver-
tências.
O paradoxo da fé nunca pode ser contornado e jamais suprimido, SOLA
FIDE. somente pela fé. comparece o homem perante Deus e é por ele movi-
mentado: a fidelidade de Deus, justamente por ser essa fidelidade, somente
pode ser aceita pela fé; [somente pode ser crida]. Mais que isso, seria menos!
Esta é a nova contabilidade, segundo o critério de Jesus.

Vs. 29 e 30 Acaso Deus o é somente dos judeus?


Não, mas é também o Deus dos gentios! Verdadeiramente também dos
gentios! Tão certo quanto existe um só Deus, ele justificará o circunciso
pela fidelidade e o incircunciso mediante a fidelidade.

“É Deus, somente o Deus dos judeus? Não o é também dos gentios?


Verdadeiramente também dos gentios!”
Maior certeza, mais segurança, maior garantia para a verdade das pala-
vras divinas seria, de fato, menos convincente. A evidência humana obnubilaria
o que aqui se pode contemplar.
A certeza humana não conheceria o que aqui se pode conhecer. Deus só
pode ser compreendido através de Deus; a sua fidelidade, somente pela fé.
Toda a asserção ou afirmação de que (Deus) é, tem, ou age de alguma
forma humana, todo pretenso relacionamento direto com ele, “rouba-lhe” (as
aspas não são do Autor) sua divindade; arranca-a para situá-la no nível da
temporalidade, das coisas [materiais] e dos homens; marginaliza a sua posição
real. A realidade divina manifesta-se em forma universal [não é delimitada em
posses de qualquer natureza ou em quaisquer atos ou obras]; e porque Deus é
universal, toda a boca se calará perante ele e todo mundo é culpado perante
Deus, (3, 19). É pela universalidade divina que se verifica que todos carecem
da glória de Deus (3, 23).
Se no mundo existissem [pessoas, grupos, agremiações. igrejas] que
fossem ou tivessem alguma coisa a seu favor junto a Deus, ou com ele
transacionassem de alguma forma, em contraposição a outras que fossem ou
tivessem menos ou nada para alegar a seu favor, ou para transacionar com ele,
então Deus, evidentemente, seria uma grandeza psíquica ou histórica ao lado
de outras grandezas, sendo apenas relativamente diferente [ainda que fosse muito
maior]; seria uma luz ou uma força [comparável às demais, mesmo que fosse
muitíssimo mais intensa e mais poderosa].

170
Somente pela Fé 3, 29-30

Deus poderia, então, ser o “Deus dos judeus”, apenas; ou o Deus de


gente conduzida desta ou daquela maneira; Deus seria, qual a religião: uma
especialidade de determinados círculos sociais, épocas e disposições de espíri-
to ou de ambiente.
Se assim fora, [se Deus fizesse acepção de pessoas], Deus seria alcançá-
vel por preço relativamente baixo e também seria dispensável [descartável],
com relativa facilidade.
Talvez, então, a palavra “Deus” significasse muito para o mundo, po-
rém, jamais [sequer lembraria] justificação e ressurreição. Não seria a “última
palavra”; não seria tudo, não seria o eterno.
É por isto que no “menos” [que a Bíblia diz, quando afirma que Deus o
é de judeus e gentios] — [3, 30] ela diz, realmente, muito mais [e se mais
dissera seria redundante e explicaria menos, ...].
“DEUS” é a palavra eterna, final, quando com ela, exclusivamente pela
fé, indicamos a impossível possibilidade de sua fidelidade.
No paradoxo da fé basta-nos a fidelidade de Deus, pois com ela pisare-
mos terreno firme e trilharemos caminho seguro; nesse fato esbarra toda
(pretensa) união [identificação] com Deus neste mundo. [Ante a possibilidade,
ou melhor, na certeza de sua fidelidade, quando pela fé, e somente mediante a
fé, vemos essa fidelidade,] não é possível abrigar a idéia de que sejamos “um”
com ele, ou de que tenhamos parte com ele, como se a divindade fosse, ao
menos parcialmente, imanente em nós. [Já não poderemos supor que de algu-
ma forma transcendental, quem sabe se por aproximações sucessivas, ainda
que nela agregássemos feitos infinitamente pequenos numa espécie de integração
matemática, pudéssemos identificar-nos com ele, tornando-nos “Santos” e “sem
pecado”]. O reconhecimento deste fato. [o reconhecimento de que, por obras
deste mundo ninguém se achegará a Deus], torna meridianamente claro que
Deus é Deus de todos os homens — gentios e judeus [ateus e crentes].
Também se torna evidente que Deus não é alguma grandeza psíquica nem
histórica, porém, é a essência e a origem de todas as grandezas, absolutamente
diferente de tudo mais que, para nós, seja luz, poder e bem e, nessa evidência,
ficam absolutamente claros o poder eterno e a divindade de Deus. (1, 20).
Entendida assim, a palavra “Deus” não significa “alguma coisa”, porém
“tudo”; não se trata de alguma coisa “penúltima” mas do que é “final”, “defini-
tivo”.
É a palavra do julgamento, da exigência e da esperança que é dirigida a
todos, que para todos tem significação, e significação decisiva.
“Tão certo quanto ele é um só Deus, e que justificará os circuncisos pela
fidelidade e os incircuncisos mediante a fidelidade”.

171
3, 30 Somente pela Fé

[A tradução de Almeida, e todas as demais versões que aqui citamos,


usam a palavra “FE” onde o Autor usa “FIDELIDADE”].
A multiplicidade das coisas que pretendem ter valor em si mesmas [ou
às quais pretendamos atribuir tal valor] e toda divindade que neste mundo se
pretender derivar de Deus ou usurpar dele, ressaltam a manifestação da unida-
de de Jesus com Deus que, na justiça de Deus, somente é reconhecível median-
te a fé que se fundamenta na realidade do “Deus vivo” e na personalidade do
único Criador e Redentor, [Jesus Cristo].
Em Jesus estão as coordenadas da verdade eterna. Nele se ligam as for-
ças que ordinariamente se repelem: um ser humano com outro ser humano.
Nele se afasta e se separa o que habitualmente tendemos a misturar: o Ser hu-
mano e Deus!
É à luz dessa crise que o homem reconhece a Deus e passa a honrá-lo e
a amá-lo.
E aqui como acolá [na separação entre os homens e Deus, na distinção
entre o que é humano e o que é divino, e na irmanação da humanidade], se
repete em Jesus o que a religião quer dizer com o seu “atar” e “desatar”.
[Parece-me que o Autor se refere a expressão “o que ligardes na terra
será ligado nos céus e o que desligardes na terra será desligado nos céus”
(Mat. 16, 19). Se esta interpretação for lícita, então surge (ou surgirá) uma
visão inteiramente nova, (talvez mais racional) da afirmação que Jesus fez
após a confissão de Pedro: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”! Então já
não é um poder especial que Pedro recebeu (e que seria transferido (e transfe-
rível) aos papas (segundo a I. Católica), mas seria a ligação geral dos homens
entre si, e a distinção entre os caminhos dos homens dos caminhos de Deus,
separada na resposta de Pedro em confronto com as demais respostas: “Uns
dizem que és João Batista, outros Elias, outros Jeremias, ou algum dos profe-
tas” (Aliás, sobre a extensão da qualidade de “ligar” e “desligar” a todos os
verdadeiros cristãos e não só ao “Santo Padre” ou aos apóstolos, ou sacerdo-
tes) ver Mat. 18, 18].
A maior distinção entre o ser humano e Deus (a sua mais alta “separa-
ção”) é a sua verdadeira união, a sua unidade.
Enquanto a temporalidade e a eternidade, retidão humana e Justiça divi-
na, o “aquém” e o “além”, são definitiva e indubitavelmente separados entre si,
em Jesus, também nele são eles unidos e unificados, em Deus, de forma igual-
mente definitiva e indubitável.
Indicação, referência, semelhança ou parábola, possibilidade, esperan-
ça, tudo é “lei”; também são “lei” todo o ser, o possuir e o agir dos homens,
bem como toda a existência e o modo de ser do mundo; e, como lei, trazem em

172
Somente pela Fé 3, 30

seu bojo os sentimentos [e as sensações] de vacuidade, de carência, de insufici-


ência, de ansiedade e de anseio.
Todavia, se essas características “negativas” forem inteiramente genuí-
nas, se nelas não houver sido (ou não for) enxertado qualquer “mérito” huma-
no, então sobre elas [e por trás delas] raiará a luz da fidelidade de Deus que
absolve quando julga, e vivifica quando faz morrer.
Sim, Deus se torna o Deus reconhecível em Jesus.
Outrossim, a mais profunda irmanação entre os seres humanos nada
mais é que a verdade intrínseca, histórica e pessoal de cada indivíduo; a sua
verdadeira vantagem, (3,1).
As possíveis vantagens de cada pessoa não são anuladas, porém, reali-
zadas conforme o respectivo conteúdo; é o impossível [que acontece].
A personalidade individual não é esmagada, porém alicerçada pelo grande
e avassalador desassossego que representa (ou representou) o “ainda não” e o
“não mais”.
É justamente a demanda (a exigência) de fé, imposta a todos, que é a
palavra criadora que tira o indivíduo do caos do isolamento da individualização,
para que ele “seja”; [para que se realize, para que tenha vida abundante].
“Quem, por amor de mim, perder a sua alma, acha-la-á”.
Aquele que tira toda a vanglória tanto do “circunciso” como do
“incircunciso”, que chama o pecador das profundezas e que apeia o “justo” de
suas alturas, este é quem, também, a ambos declarará justificados (pois o seu
presente ainda não é o seu futuro, que nele descansa), porquanto eles estão
perante ele somente mediante a fé.
Onde estiver a fé, aí estará a fidelidade de Deus.
Onde cessa a “glória” [a fama, a celebridade, a vanglória], aí começa a
“vantagem” (3, 1): isto é, o perdão, a redenção, a criação da “nova criatura”.
Mas quando assim falamos, sabemos que nos referimos à possibilidade
desconhecida que, ela própria, só pode ser assimilada pela fé.

Comentários: 3, 1-30

1. Considero inteiramente fundamentadas na doutrina bíblica as análise


e as conclusões que o Autor apresenta sobre a inexorabilidade da lei
que a todos irmana na condenação, igualização essa que é superada
somente na cruz de Cristo, que põe à disposição de todos, sem nenhu-
ma exceção, a redenção pela graça de Deus, mediante a fé, conforme
foi exposto na parte final do capítulo.

173
3, 1-30 Somente pela Fé

São também, evidentes as conclusões de que Jesus é o Cristo, o


Messias prometido. Todavia, para prová-las, Barth faz (ou procura
fazer) uma demonstração racional servindo-se de argumentos que
pretende sejam convincentes.
Muitos Cristãos piedosos e cultos não só em passado distante mas
também mais recentemente, têm tentado demonstrar e provar que Je-
sus é efetivamente o Cristo, o ungido de Deus, o “Cordeiro Pascal”
que foi imolado para expiar o pecado do mundo, e do qual profetiza-
ram e testificaram os antigos, segundo as escrituras. Todavia, a Bíblia
não procura “provar” o fato, embora reiteradamente o afirme, anun-
ciando Jesus o homem de Nazaré, que nasceu numa manjedoura, foi
apresentado no templo, foi batizado, teve glórias e tristezas e estas
foram tantas, que se transformou no “varão de dores”; foi traído, con-
denado, morto e sepultado.
Apresenta também Jesus, o Filho de Deus Vivo, o Cristo, o
ressurrecto, o próprio Deus. (João 1, 1-5, e 5, 18-27; Filip. 2, 5-11;
Heb. 1, e Apoc. 5, 11-13 e mais Mat. 17,5 e 26, 63-68; João 10, 24-
39; Rom. 1, 1-7; 1 João 5, 13-20). (Citações conforme “Guia Bíblico
na edição da V.S. Francesa). A Bíblia diz o estritamente necessário,
tal e qual Barth observa e preceitua quando escreve que dizer mais
seria na realidade menos.
Mais do que isso, Barth enfatiza vigorosamente que o paradoxo
da fé, a revelação do Deus “desconhecido”, só podem ser percebidos,
assimilados, pela fé. Não são fatos palpáveis, racionalizáveis; são fa-
tos que precisam ser cridos.
Parece-me, pois, mais coerente aceitar que Jesus seja o Cristo,
pela fé: fé que toma alento na historicidade de Jesus; que se compraz
em ver que nele se cumpriram desde as mais antigas até as mais re-
centes profecias; fé que se sente esclarecida com o relato inspirado
que encontramos nas Sagradas Escrituras; porém, o germe, a raiz, a
origem primeira dessa fé, não resultou de experiências empíricas, nem
de aprendizado, nem de elucubrações intelectuais.
2. Ao mencionar os milênios já vividos pelo homem sobre a terra, numa
perene busca de Deus, Barth permite supor que admite ou admitiria a
criação do HOMO-SAPIENS dentro de um processo evolutivo da
espécie.
Este aspecto será, sem dúvida, chocante para uns e até inteira-
mente inaceitável para outros.
Sobre este assunto ocorre-me a seguinte ponderação:

174
Somente pela Fé 3, 1-30

O que exige maior fé; e o que revela melhor compreensão do infinito


poder divino: a idéia de que Deus modelou um boneco em barro, e a
seguir assoprou vida pelas suas narinas (etc.) —ou esta outra idéia de que
Deus, pela sua eterna e incomensurável sabedoria, dotou o mundo (e o
universo imenso) de leis, estabelecidas e firmadas por seu decreto —
(leis que os homens desde os milênios intermináveis do passado têm
procurado apreender, captar, e utilizar para o seu próprio bem estar, em-
bora algumas vezes tenham construído “Torres de Babel...“ e consoante
estas suas leis, do pó criou todos os seres vivos e a um deles, ao nosso
“Adão” no tempo que lhe aprouve, (tempo no calendário dos homens)
deu o dom supremo de “sua imagem” e “semelhança” — o homem espi-
ritual, porquanto Deus é Espírito (e não barro, costela ou pó...).
Qual destas duas interpretações está mais próxima de honrar e
reverenciar o “Deus desconhecido” de que Paulo fala aos Atenienses?
Qual das duas maneiras de ver transforma Deus, mais grosseira-
mente em imagem e semelhança do homem?
Qual delas enfeita a Deus com atributos humanos e qual atribui
mais glória ao Criador?
3. Barth fala da “memória do lar” como inspiradora de nossos anseios
mais altos; nossa sede de justiça; nosso anelo por paz; diz que essa
“memória” é a fonte donde provém nosso conceito do que seja justo,
puro, elevado, santo e agradável a Deus.
Este conceito de “memória” traz à lembrança a “reminiscência da
alma” canhestramente demonstrada (?) por Sócrates, segundo Platão, e
levada às suas conseqüências finais, meio milênio mais tarde, por Plotino
— já na era Cristã. Essa reminiscência Platônica leva ao absurdo de a
alma “ignorar” as ocorrências mais próximas, pelas quais é castigada
em reincarnações sucessivas (à moda espírita), enquanto guarda a me-
mória remotíssima das virtudes que aprendeu em tempos há muito per-
didos, junto à alma superior, perfeita, (Deus), nos páramos celestiais.
O contexto das obras de Barth parece não autorizar que se lhe
atribuam concepções platônicas sobre a origem da alma ou dos senti-
mentos nobres que a alma pudesse abrigar.
Todavia, quando o Autor se refere às manifestações religiosas ainda
que de natureza retorcida, reprovável, das sociedades primitivas, pa-
rece estar acolhendo que existe no ser humano o que, talvez, se possa
chamar, em psicologia, um “subconsciente universal” da idéia de Deus.
Prefiro pensar que o ideal divino que viceja nas almas se origina
da inspiração divina e da contemplação da infinita grandeza de Deus

175
3, 1-30 Somente pela Fé

revelada tanto nas tormentas como nas calmarias; à luz do sol, à luz
da lua, ao brilho das estrelas e na escuridão da noite. Na regularidade
das estações e na harmonia universal; na planta que brota e no relâm-
pago que estilhaça e fulmina.
A voz de Deus!
Para os “homens que sabem ver” Deus fala “claramente desde o
princípio do mundo”.
Esta verdade também foi vista por Sócrates, registrada por Platão,
e foi outrora, meio milênio antes, proclamada com mais graça, mais
sabedoria e mais unção pelo Salmista bíblico:

“Os céus proclamam a glória de Deus,


E o firmamento anuncia a obra de suas mãos.
“Um dia faz declaração a outro dia, e
Uma noite mostra sabedoria, a outra noite.
“Sem linguagem, sem fala ouvem-se as suas vozes
Em toda extensão da terra.
“E as suas palavras, até aos confins do mundo”.
(Sal. 19, 1-4)

176
Capítulo IV

A VOZ DA HISTÓRIA

Este capítulo foi subdividido pelo A. em quatro partes:

• Fé é Milagre, que inclui o último versículo do capítulo anterior e


vai até o versículo 8 do novo capítulo.
• Começo - Vs. 9 a 12
• Fé é Criação - Vs. 13 a 17
• Da Utilidade da História - Vs. 17 a 25
O A. analisa a situação dos chamados “Filhos de Abraão”, tanto segun-
do a carne, a raça, a descendência material, quanto ao que diz respeito à heran-
ça espiritual, para concluir que o caminho para a posse dessa herança começa
pela fé, que é milagre divino e contém o germe regenerador, quiçá criativo,
pelo qual tudo se faz novo; e termina a exegese do capítulo expondo que o valor
duradouro da história consiste em destacar, revelar, apontar as realidades espi-
rituais que a dominam, quer aprovando, quer rejeitando os fenômenos materi-
ais, passageiros, transitórios; assim é que Abraão — o herói da fé — entra para
a história, dando-lhe sentido duradouro e eterno, trazendo a nós — a todas
gerações que lhe seguiram — a promessa e o ulterior cumprimento: a formação
de uma geração de verdadeiros filhos de Abraão — pela graça, em Cristo Jesus.
FÉ É MILAGRE (3,31 A 4,8)
V. 31 Anulamos, pois, a lei pela fé?
Impossível! Antes confirmamos a lei.
Se pretendermos inserir a ressurreição no correr da história mundana; se
tentarmos situar a pressuposição que há em Jesus [que ele é Emanuel, Deus
conosco] na ambiência e conjuntura existente no mundo, se tentarmos entretecer
o paradoxo da fé no contexto da experiência espiritual da humanidade, con-
frontar-nos-emos com uma [situação equívoca, ilógica], espécie de espectro
devorador de todas coisas vivas.

177
3, 31 Fé é Milagre

O mundo desaparece perante Deus; a criatura perante a redenção; a ex-


periência ante o conhecimento, o conteúdo ante a forma.
A lei desaparece perante a única realidade: a fidelidade de Deus. Esta,
todavia, só é perceptível pela fé.
Como haveremos de defender-nos deste quadro e da censura de um
dualismo gnóstico que nele se baseia? Sem dúvida, não nos poderemos defen-
der, se a radicalidade da verdade aqui emergente não for absolutamente, total-
mente, radical.
Uma negativa que subsistisse a par do postulado que pretendesse negar
[sem, todavia, anulá-lo] não seria uma negativa genuína, legítima, de caráter
“crítico” [isto é, representando uma “crise” decisiva para a interpretação do
teor do postulado negado]. Antes, seria uma negativa que logo exigiria a sua
própria negação [ou supressão]; [assim também] a Ressurreição, [encarada]
como acontecimento excepcional [anormal] em paralelo com outras ocorrênci-
as históricas, não seria ressurreição, pois, o que haveria, então, de ressurgir?
[Entendo que o A. sugere que se a Ressurreição fosse um fenômeno especial,
para-histórico”, a ser inserido no contexto histórico, nenhum valor teria senão
o da aparência de ocorrência material ou, vice-versa, o de ocorrência material
com aparência de transcendentalidade. Verdadeiramente seria uma ilusão, e
nada ressurgiria. No entanto, o fato é absolutamente radical: ocorreu e se im-
põe, não como fato histórico de ocorrência possível, mas em realidade, de for-
ma absolutamente decisiva contrastando violentamente com a experiência his-
tórica da humanidade. Parece ser isto, o que o A. chama de “absoluta
radicalidade”.]
Uma pressuposição que não se convalidasse, e não se verificasse em
todas as coisas, não teria caráter final, decisivo, e o paradoxo que estivesse
relacionado aos acontecimentos espirituais (ou psíquicos) habituais como sen-
do coisa especial, diferente, (ainda que tivesse significado todo especial ou que
fosse, até mesmo, algo “demoníaco”), não seria paradoxo. O inteiramente “ou-
tro” do qual procedemos, de maneira alguma seria realmente “outro” se em seu
total modo de ser, desde a sua mais primitiva origem, durante o seu desenvolvi-
mento, e na confirmação final de sua significação, não fosse total e inteiramen-
te diferente da existência humana conhecida, tanto material como temporal-
mente e com cuja estrutura a fé — (que é, verdadeiramente, milagre) — con-
trasta [de forma absolutamente radical].
Se “anularmos a lei pela fé”, estaremos situando a fé ao lado da lei;
estaremos situando Cristo ao lado de Moisés e não Moisés em Cristo. Ao lado
da lei a fé seria apenas uma segunda grandeza, diferente, diversa da lei, e não
enquadraremos a lei na fé.

178
Fé é Milagre 3, 31

Se não reconhecermos, no julgamento de todos os caminhos do homem


por Deus, também a direção que Deus dá aos homens; se não reconhecermos
na supressão que Deus faz de toda a agitação humana, de suas obras e de seus
anseios, também a supressão concomitante dessas aflições e cuidados; ou, em
outras palavras, se a última, a derradeira questão levantada pela fé não trouxer
também, implícita, a resposta a todas as perguntas, então a fé não é FÉ.
Teríamos, então, fechado um curto-circuito. Teríamos consumado, ape-
nas, uma reação; teríamos dado expressão a um “ressentimento”; teríamos con-
seguido uma “ação contrária” que, por sua vez, teria de ser reduzida a uma
expressão unitária, mais simples, mediante novo tratamento dialético.
(O objetivo do A. é mostrar que a lei não pode ser ab-rogada pela fé.
Para tanto, mostra, a priori, que os fatos transcendentais observados em Jesus,
a saber: a sua ressurreição, a pressuposição fundamental que Jesus é o Cristo, o
próprio Deus; o paradoxo (o enigma) da salvação mediante a fé, somente; todas
essas realidades, expostas ao mundo quais aparentemente são em sua forma
final, transcendental, anulam completamente a pressuposição e, portanto le-
vam ao absurdo que o dualismo do gnosticismo pretende contornar.
Todavia, as verdades transcendentais que emergem da vida de Jesus,
não podem ser consideradas como verdades parciais ou relativas.
A ressurreição não daria vida nova se fora apenas uma ocorrência anor-
mal do mundo, (ou várias ocorrências que fossem), mas a possibilidade da
vitória sobre a morte é (em Cristo) uma possibilidade universal. (“Eu sou a
ressurreição e a vida; quem crer em mim, ainda que esteja morto, viverá”!).
É também peremptória a verdade de que Jesus é o Cristo, e que a fideli-
dade de Deus revela-se nele pela fé.
Ora, fosse a lei anulada, já não haveria conceituação do pecado e nem da
morte que é o seu produto natural. Seria então de esperar que pelo menos algumas
pessoas (não sujeitas ao pecado nem à morte), estivessem providas da glória de Deus.
Para que, então, a ressurreição?
Desapareceria a necessidade da revelação de Cristo e com ela desapare-
ceria o paradoxo da fé. Desapareceria, portanto a fé a qual, em princípio, admi-
tíramos que anularia a lei: fechar-se-ia o circuito.
O curto-circuito teria acontecido se a fé anulasse a lei... [Poderemos,
talvez, melhor apreciar a figura física que o A. oferece, lembrando que em um
curto-circuito anula-se o potencial e escoa-se a corrente em total defasagem
com esse potencial. não produzindo energia, quiçá simbolizando a anulação da
graça de Deus e o desperdício da fé)].
Acontece, porém, que não se afirma que a lei é anulada pela fé. “antes
confirmamos a lei”.

179
3, 31 Fé é Milagre

Suprimimos o acaso da história, das coisas existentes, e dos aconteci-


mentos “espirituais”.
Anunciamos a Deus como Senhor do céu e da terra quando o designa-
mos como o “Deus desconhecido”; ao pregarmos a redenção, testificamos a
obra do Criador na “Criação”. Ressaltamos o sentido de toda a experiência
humana quando a expomos à luz do conhecimento [que vem do alto]; confir-
mamos a verdade eterna da lei quando apresentamos o paradoxo da fé, median-
te o NÃO eterno aposto à própria lei. Anunciamos justamente o direito do indi-
víduo, o inextinguível valor do particular (Kierkegaard!), ao anunciarmos que
sua alma está perdida perante Deus e em Deus, mas, também, guardada e salva
nele.
É por isso que exigimos que todo ser humano, tudo o que possui e toda
sua obra, se curvem ante o tribunal divino; é por isso que demandamos que
sempre, e em tudo, se espere pela justificação divina, pois, (visto por Deus e
para Deus) nada está perdido.
É por isso que não consideramos existir (que suprimimos) qualquer se-
melhança entre o que há antes de soar a última trombeta e o que houver nesse
instante e também o que houver depois dele.
Proclamamos a simultaneidade de todos os tempos, de tudo quanto existe
“antes” ou existirá “após” o ressoar da trombeta, pois tanto o “passado” como
o “futuro” completamente transformados, [diferentes do que agora são ou nos
pareçam ser] estarão sob a luz desse instante supremo, e participarão de sua
dignidade e sua significação.
A justiça de Deus e a sua justificação garantem-nos, na real
transcendência divina, a mais genuína imanência de Deus. Quem está em Cris-
to, também nele esteve e estará.
A revelação em Jesus, da qual procedemos [e que é o nosso ponto de
partida], é a exposição do desassossego, da carência, da realidade, num corte
longitudinal através dos tempos.
A própria história testifica a ressurreição, e as coisas que são, testificam
as que não são. Os feitos humanos testificam o paradoxo da fé, apontando-o
como o seu inalienável fundamento.
A lei, sabiamente compreendida é, de fora a fora, a prova a justificação
e a revelação da fidelidade de Deus.
Não abrogamos a lei, antes deixamo-la falar, junto com a Bíblia, com a
religião em sua realidade, e com a história, testemunhando (3, 21) por seu próprio
sentido e sua percepção, que a fé é o sentido da lei; é um milagre radical (4, 1-8);
é o verdadeiro início (4, 9-12); a fé é a criação fundamental (4, 13-17a).
[Portanto], “antes confirmamos a lei”.

180
Fé é Milagre 4, 1-2

Vs. 1 e 2 Que diremos de Abraão, nosso antepassado, segundo a carne? Se


Abraão, pelas suas obras, foi declarado justo, então basta-lhe isto para
gloriar-se; porém, não perante Deus!

[O A., em nota de rodapé, diz ter omitido intencionalmente a expressão


constante no original grego, que se traduziria por “ter ganho” ou “ter alcança-
do”, conforme escrevem nossas Bíblias em geral: “Que diremos, pois, “TER
ALCANÇADO” Abraão, etc. por considerar essa expressão uma evidente
interpolação (um enxerto espúrio) no texto, “embora conste em muitos manus-
critos”.
A RSV também a omite, observando apenas que outras autoridades an-
tigas “houvessem lido” “TER GANHO”].
— “Que diremos, pois, de Abraão?”
Para paradigma da tese de que “a fé é o sentido da lei” escolhemos o
vulto que é, possivelmente, a personalidade, mais remota e mais clássica do
domínio da lei.
Ninguém poderá dizer que, com essa opção, facilitamos a nossa tarefa.
A situação histórica de Abraão é tão diversa daquela em que estamos
que, logo de saída, fica completamente excluída a possibilidade de traçar
uma linha reta dos acontecimentos psico-históricos, desde Abraão até nós.
Se a justiça de Deus, em Jesus Cristo, for a supressão da lei e não o seu
cumprimento; se essa justiça for somente um renovo [uma reforma], uma rea-
ção, alguma coisa apenas “diferente” na série de ocorrências bíblicas (e não
bíblicas) da história da religião; se não tiver o total sentido e conteúdo do “além”;
se a ocasião histórica [da manifestação da graça de Deus, em Jesus] não for
mais que uma ocasião ao lado de outras muitas [ou mesmo de uma só outra]; se
a própria historicidade de Jesus for um capítulo da história geral qual outro
segmento [ou instantâneo] dela; ou se for “uma religião” ao lado de outras
religiões, então a sua significação meramente relativa, casual, ocasional, ficará
claramente evidenciada pelo confronto com a história, a religião e os tempos
tão vastamente remotos, quais os de Abraão.
Nestas circunstâncias, se o “fio carmesim” — que. em Jesus, pensamos
ver atravessando toda a história, unindo a conjuntura material do mundo e esta-
belecendo a unidade entre o passado longínquo e o presente, entre o “LÁ” e o
“AQUI”, — sim — se este fio não for absolutamente puro, absolutamente sufi-
ciente e forte, ele se romperá em nossas mãos quando contrastarmos Abraão
com Jesus.
[Abraão foi homem sobremaneira valoroso; seu pai saíra de Ur em bus-
ca de Canaã e se deteve em Harã, onde passou a habitar; foi aí que Abraão

181
4, 1-2 Fé é Milagre

recebeu o chamado divino: “Sai de tua terra e da tua parentela, e da casa de teu
pai, para a terra que eu te mostrarei”.
E Abraão foi; levou consigo a mulher jovem e bela e o sobrinho ambicioso.
Homem decidido, corajoso e confiante em Deus, entrou para a história
do mundo como o pai dos povos semíticos e, para a história da redenção, como
o herói da fé.
Homem extraordinário no mundo, e perante Deus; nobre no trato com
os homens, generoso com os amigos, leal à humanidade, fiel a Deus, tornou-se
o protótipo do homem reto e justo segundo o mundo e, mais do que isto, justi-
ficado por Deus, mediante a fé, — a sua personalidade entrou para a história e
venceu os séculos sem que a traça e a ferrugem corroessem sua reputação.
É com este homem de invulgar estrutura que o A. confronta Jesus, o
carpinteiro de Nazaré.
Homem para homem; igual por igual, para ver o que subsiste de um ou
de outro lado. Qual dos dois será engrandecido e qual diminuído? Humana-
mente, historicamente, a posição de Abraão está definitivamente formada e ser-
virá de pedra de toque para a avaliação de Jesus.
E o que resulta?
Resulta a evidência do Cristo ressurrecto; do Cristo, Emanuel, Deus
conosco; do Cristo autor e consumador da fé. Resulta na evidência do Cristo, o
cumprimento da promessa feita a Abraão.
Sem o Cristo que o confronto evidencia, a ressurreição seria bruxaria; a
história da redenção seria fábula; a promessa feita a Abraão seria uma farsa;
Abraã? não seria o herói da fé, mas o otário da fé!
É este confronto que destaca com nitidez a divindade de Cristo, a sua
mensagem que vem desde a cruz, e o seu Poder que vem pela ressurreição].
Se neste confronto com Cristo prevalecesse o classicismo de Abraão, seu
indubitável peso, calibre e valor; subsistisse a positividade de “nosso pai” segun-
do a carne, que foi primus inter-pares no mundo carnal, então, a negação [que
Cristo impõe — ...“negue-se o homem a si mesmo” ...]; a depreciação e a supres-
são dos pretensos valores humanos [apresentados na existência, nas posses e nas
obras peculiares ao mundo], seriam apenas relativas, sem valor decisivo, crítico;
[A mensagem que vem da cruz e da ressurreição] não teria poder resolutivo.
Jesus não seria o Cristo se vultos como Abraão, Jeremias, Sócrates,
Gruenewald, Lutero, Kierkegaard, Dostoiewski, confrontados com Jesus, pre-
valecessem definitivamente como figuras da longínqua história, e não fossem,
antes, unificados nele mediante a supressão de suas posições individuais pela
proclamação da negação da cruz que, ao suprimí-las, também as alicerça e
fundamenta.

182
Fé é Milagre 4, 1-2

É disto que se trata: Jesus revela-se o Cristo por meio da luz que dele
irradia; por essa luz ser a mesma, no Antigo Testamento, na história da religião
e na revelação da verdade; ser a mesma luz que brilha no milagre do Natal. Ele
é a luz para a qual se volvem os olhares de toda a natureza e de toda a história;
a luz para a qual se dirigem todas as criaturas, visíveis e invisíveis, na esperan-
ça do cumprimento dos dias de sua espera.
“O Antigo Testamento — no sentido comum desse qualificativo, não
precedeu a Cristo porém, Cristo viveu nele, ou melhor, o Antigo Testamento foi
sua vida pré-histórica; foi, por assim dizer, a testemunha, a imagem direta que
acompanhou essa vida”. (Overbeck).
(...“Antes de Abraão ter sido, eu sou!”)
É isto o que dizemos de Abraão, e agora temos que o demonstrar; [te-
mos que prová-lo].
Se Abraão foi justificado pelas obras, então basta-lhe isso para que se
glorie.
As “obras” de Abraão são manifestas; as suas palavras e seus atos mos-
tram-nos a conduta, a orientação e a consciência de um homem justo. Esse seu
modo de proceder está muito além e muito acima da escuridão em que está
imerso o mundo pagão que o rodeia; ele exibe uma religiosidade mais consci-
ente, moral mais pura e o resultado valoroso de uma fé heróica.
Como haveremos de interpretar esses fatos que, assim, chegam a nosso
conhecimento?
Podemos ser levados a concluir da impressão de “retidão” que temos
de Abraão e de pessoas semelhantes a ele, que Deus também as julgará de
maneira análoga à nossa, uma conclusão que de maneira nenhuma parece ser
desarrazoada. Todavia, se isto acontecer, se as obras de Abraão, de que temos
notícia, forem declaradas como justificadas, então estaremos diante de obras
humanas, do “ter” e do “possuir” do mundo, devidamente justificadas e que,
portanto, já não precisam de justificação futura; ora, isto contraria as nossas
verificações anteriores (3, 29 e 27-31), sobre a incerteza e a dúvida a que
ficam sujeitas as obras e tudo quanto tiver conteúdo humano, ante a revelação
divina.
Todavia, a voz da história proclama a fama de Abraão como homem de
caráter, herói e personalidade brilhante. Portanto, [se por tais feitos e caracte-
rísticas foi justificado por Deus], nos pontos que o celebrizaram [e foram sufi-
cientes para granjear-lhe a justificação divina], a justiça de Deus é idêntica à
justiça humana. Logo, se existirem alguns casos em que as duas justiças se
equivalem, [se igualem], por que não haveria muitos outros que admitissem
essa congruência?

183
4, 2 Fé é Milagre

Se isto se der então a crise geral da humanidade já não é mais


incontornável; não é mais inexoravelmente necessário seguir o caminho que
passa pela morte para chegar à vida: já não é indispensável o paradoxo da fé,
que pensamos encontrar em Jesus.
Se existisse um único, um só, ponto [uma só coisa, ou atitude ou o que
quer que seja] que, pelas suas características “humano-divinas” ou “divino-
humanas” tivesse por si próprio, valor tal que um homem pudesse gloriar-se
dele, (e porque não haveria de alguém gloriar-se se tal ponto [ou situação]
existisse?) — então é claro que existiriam outros caminhos para o homem ache-
gar-se a Deus além daquele [apertado e estreito] que passa pela morte, e que foi
indicado por Jesus; e quem, então, não preferiria estes caminhos mais simples,
[mais largos e mais folgados]?
O que dizemos a isto?
Ora, dizemos: sim, a justiça de Abraão basta-lhe para sua glória, “porém
não perante Deus”.
O que significa, pois, quando a conduta, o procedimento, de uma pessoa
nos impressiona pela sua grandeza, quando mais se parece como sendo
desempenhadora de uma missão, de embaixada, de provimento e desempenho di-
vinos, dando-se à expressão “divino” o sentido sério (de algo que vem dos céus)?
Significa isto: que nessa pessoa o invisível tornou-se visível; que naqui-
lo que essa pessoa é, ela nos lembra o que ela não é, que por trás e acima de seu
procedimento existe um mistério [um segredo] que a sua conduta tanto escon-
de quanto ilustra e que, todavia, não é idêntico a ela.
Assim como não chamamos de “luz” a sombra nítida de algum objeto,
projetada por forte raio luminoso, também não é a justiça de Deus algo huma-
namente divino, ou divinamente luminoso, que vemos nas obras de um homem
nas quais se patenteia a justiça divina; porém tais obras são testemunhas dessa
Justiça, e tanto mais vigorosas quanto mais perceptíveis forem.
Assim como não são as algemas que conduzem o homem, de pés e mãos
atados, para onde ele não quer ir, assim também, a sua obra, achada agradável
por Deus, e por isso, por ele justificada, não é a mesma coisa que a obra execu-
tada em sua vida e registrada na história [ou nas crônicas da vida]. Tal obra,
porém, é recordação visível do invisível; e a impressão que tivermos da perso-
nalidade que tais obras apresentam é tanto mais estranhável quanto mais forte
ela for.
A proclamada “retidão” de Abraão, (sua religiosidade, genialidade e
importância), a sua conduta, a orientação que deu à sua vida e a sua consciência
podem justificar a sua glória (e fama) perante os homens, no fórum da história
universal (e uma “história” mal orientada pode ater-se à fama e à glória de tal

184
Fé é Milagre 4, 2-5

personalidade e de seus pares) “mas não perante Deus”, pois o que lhe serve
para “gloriar-se perante Deus” será: o arrependimento sincero de seu coração
penitente (2, 4); a sua obra conforme for aceita e “paga”, [retribuída], por Deus
(2, 6); o “judeu que o é em secreto” e a “circuncisão que está no coração” —
(2, 29). Isto está [escriturado] em livro diferente; isto é impossível ao homem
em si e por isso está oculto aos olhos humanos; para os homens, isto somente é
possível se vier de Deus e, por isso, somente pode ser visto por Deus. [O arre-
pendimento não vem por iniciativa ou obra humana; é graça divina, e só Deus
o pode ver e julgar].
E ainda mais: quanto mais claramente as coisas humanas, possíveis e
visíveis testificarem as coisas [divinas], impossíveis e invisíveis, maior é a evi-
dência de que são apenas coisas humanas.
O classicismo do homem clássico não resulta de sua natureza criativa,
nem é produto de seu humanismo, mas se baseia no julgamento sob qual está,
e na limitação dessa criatividade, visível em cada um. O classicismo está no
fato de que o homem tem consciência da precariedade de sua criatividade, sua
relatividade, e sua supressividade; por isso, não se gloria nele. A sua grandeza
real, positiva, e absoluta, deixa de ser ambígua, somente quando vista por Deus,
pois é somente nele que ela se fundamenta.
Porém, se aquilo que se proclamar de um homem como Abraão, não for
a justificação divina ou, se a justificação divina de tal homem não for manifes-
ta, então ele também está sob crise: a crise que todo homem enfrenta no cami-
nho que leva da morte [e pela morte], para a vida; e o valor desse homem (a
possibilidade de firmar este valor na presente vida) repousa no paradoxo, no
milagre, da fé.
Não se contornará o “caminho” — “a senda da morte” — [que leva à
vida] apontado por Jesus.
[Resumindo, talvez pudéssemos dizer que: o caráter e as obras de Abraão
(e de todos os verdadeiros servos de Deus) são tanto mais humanos quanto
mais poderosamente testificam a justificação divina; todavia, por serem huma-
nos, lançam Abraão e todos os verdadeiros servos, na crise que é de todo ser
humano: precisa morrer, para nascer de novo (João 3, 3-5)].

Vs. 3 a 5 O que diz, pois, a Escritura? Abraão creu em Deus, e isto lhe foi
atribuído por justiça. Ora, a Abraão, varão de obras, aquilo que seria
legítima retribuição não lhe pode ser atribuído como graça, porém como
pagamento devido; todavia, a Abraão, varão sem obras, que apenas crê
naquele que justifica o ímpio, a sua fé lhe é imputada por justiça.

185
4, 2-5 Fé é Milagre

“Abraão creu em Deus”.


As qualidades características de Abraão e que seriam dignos motivos de
glória para ele e para todos que lhe forem iguais; a vida e as atividades heróicas
que teve; sua personalidade e sua piedade, quer tenham ou não tenham sido
praticadas conscientemente, nada significam para justificação divina. Tudo o
que estiver baseado em qualquer outra coisa [que não a fé], diz respeito ao
mundo que está aquém da linha divisória que nos separa do além; nesta condi-
ção está o efeito de qualquer causa, e a conseqüência [ou as conseqüências] de
acontecimentos que se encadeiam em ações e reações sucessivas; está nessa
categoria de coisas materiais tudo quanto for perecível [palpável, sondável,
racionalmente dedutível e emocionalmente experimentável].
Tudo isso está aquém da linha da morte que destaca o temporal da eter-
nidade; está aquém da linha que separa o homem de Deus, ainda que represente
[isoladamente, em partes, ou em sua totalidade] o mais forte testemunho das
coisas que são do além.
Do outro lado da linha da morte está Deus: sustentáculo, sem ser susten-
tado; substancial, mas completamente isento de substância; conhecido como o
desconhecido; fala em silêncio; misericordioso [tolerante] em sua inacessível
santidade; impõe responsabilidade e tudo suporta; exige obediência e só ele é
eficaz; clemente em seu julgamento; não sendo homem e, todavia, o seu mais
puro protótipo.
Ele é o lar “imperdível”, a primeira e a derradeira verdade, o Criador, o
Senhor, o Redentor do ser humano.
Deus está sempre além do homem; sempre novo, distante, estranho, su-
perior. Nunca está ao alcance do homem; não é possessão sua. Quem diz “Deus”
diz “milagre”.
Deus impõe sempre a opção e o homem há de, necessariamente, exercer
essa opção: ou o aceitará ou o rejeitará; dir-lhe-á “SIM” ou “NÃO”; despertará
ou adormecerá; há de tomar conhecimento de Deus para entendê-lo ou há de
ignorá-lo para desconhecê-lo.
[Para nós, como seres humanos que somos] apenas é possível, veros-
símil, visível, compreensível, a rejeição; [para nós é natural] a negação, o
adormecimento, o desconhecimento de Deus; não é de nossa natureza ma-
terial procurar discernir o incompreensível, nem ver o invisível; falta-nos o
“sentido”, o “órgão” do milagre; a nossa compreensão natural fica dentro
dos cinco sentidos com que a natureza nos dotou e toda a experiência e
compreensão humana acaba onde começa “Deus”.
O impossível, o milagre, o paradoxo, acontece quando o homem chega
ao ponto de compreender a Deus e dizer-lhe “Sim”; quando a experiência espi-

186
Fé é Milagre 4, 3

ritual se orienta para Deus e, recebendo dele certeza e segurança, toma a forma
de fé.
A convicção que Abraão teve de que a palavra de Deus tem poder
operante, representa o impossível. [O absurdo do ponto de vista humano].
A certeza de que Deus se dirige às coisas que não são como se já fos-
sem, (4, 21) é o milagre.
A convicção de que a Deus cabe a honra (“Doxa”) (4, 20) contraria a
nossa opinião (“doxa”) e constitui o paradoxo. Esta convicção é a fé.
[O A. usa as palavras gregas “Doxa” louvor, e “doxa” opinião, fazendo
calembures com “paradoxo”, o que está além da nossa opinião, o que ultrapas-
sa o “bom senso”].
“Abraão creu”. Este é o fato pelo qual ele é o que é; este fato é a fonte
oculta de onde emanam as suas propaladas “obras” (4, 2). Todavia ele é o que é
como crente no poder daquilo que ele não é pois, naquilo que ele é — (o religi-
oso esclarecido, o herói ético, espiritual, etc.) — desponta vigorosamente a
revelação de sua fé e esta, sim, mostra o que ele não é: [mostra] o milagre; a
nova terra; Deus!
— Se afastares a linha da morte da fé que Abraão revelou (isto é, se
ignorares a supressão do ser humano mediante sua fundamentação em Deus),
certamente a esvaziarás de todo seu conteúdo e ela submergirá, como simples
atributo humano, na subjetividade, relatividade e dubiedade de todos os atos
(ações e atitudes) dos homens.
Se a vida de Abraão não estiver fundamentada em sua morte então ele
deixa de ser Abraão.
[Parece que o A. quer referir-se ao novo Abraão, pai de muitas nações,
conforme ele foi “crismado” por Deus (Gen.l7, 5)].
Abraão não creu apenas. Ele creu em Deus! (Gen. 15, 6). É isto o que
diz a Escritura.
“E isto lhe foi atribuído por justiça”.
Portanto, já na narrativa do Gênesis, encontra-se o conceito marcante de
uma atribuição, de uma escrituração divina a favor do homem (3, 28).
[Evidentemente, trata-se do lançamento no “Haver” da conta “do ho-
mem”, de uma parcela que este não ganhou (nem ganha com a “obra de suas
mãos”, com o “suor de seu rosto” ou com seus dotes intelectuais, morais e
espirituais, porém, é uma grandeza que lhe é creditada única e exclusivamente
pela graça de Deus, que se revela por sua fidelidade mediante a fé que, ainda
esta, é dom divino...].
Aquilo que, como empreendimento humano, seria impossível ou seria
uma adulteração (2,3), é possível e é justificado, como obra de Deus, a saber:

187
4, 3-4 Fé é Milagre

estorna-se (do livro da vida) um lançamento feito no “Haver” divino para o


escriturar no “Haver” do homem.
O evento do milagre da fé, manifesto em Abraão, é escriturado a seu favor
por Deus, como justificação divina. Trata-se de ação divina inteiramente livre,
totalmente desvinculada do homem, daquilo que o homem seja, faça ou possua;
é uma ação que se origina da vontade soberana, real e poderosa de Deus.
O ser humano participa do divino através daquilo que ele não é; em sua
morte, brilha para ele a luz eterna de Deus, poderosa, real; porém, sempre na-
quilo que o homem não é; sempre e somente no seu morrer.
No entanto, se essa fé for uma atitude humana; a expressão ou a decor-
rência de uma mentalidade, de um caráter, de uma determinada orientação na
vida, então ela será um produto do homem e como todas as obras humanas, não
alcançará a justificação de Deus.
Por outro lado, se a fé representar, no homem, uma delimitação, um
cerceamento, uma vacuidade, então ela [possivelmente] inclui, abrange o mila-
gre, o impossível, o paradoxo e, com tal conteúdo invisível, ela poderá estar
qualificada para a “justificação” divina.
O “caminho da morte” de Jesus é, manifestamente, o “caminho da vida”
para Abraão.
A Abraão, o varão de obras, não é atribuída a recompensa de suas obras”.
A retribuição estabelece a separação entre a justiça de Deus, que Abraão
merece pela fé, e sua (também notável) retidão humana.
Se a fé que Abraão teve não foi um milagre mas apenas a expressão de
surpreendente capacidade de crer, de heroísmo irracional, de força espiritual,
então, para essa forma de fé lhe ser atribuída como justiça, por Deus, precisaria
ter sido objeto de ato especial da misericórdia divina, o que o Gênesis não
registra. [Ou, em outras palavras, tal ato especial não existiu].
Todavia Abrão o varão de obras, embora não tendo as suas obras
contabilizadas a seu favor no “Livro da Vida” tem-nas registradas no “Livro da
História da Religião”; no “Livro” dos grandes homens e das almas nobres.
Portanto, é lícito e é útil que se proclame tudo o que se puder dizer de verdadei-
ro, de bom, de glorioso, a respeito de Abraão e de vultos iguais a ele, porquanto
a honra e a gratidão com que a humanidade homenageia Abraão e seus pares,
não é favor mas retribuição justa; é o pagamento de uma dívida que a humani-
dade contrai com um e com outros, em diferentes graus, no correr da história.
É certo que o valor histórico e espiritual de uma pessoa não lhe granjeia
credenciais para sua justificação perante Deus porém merece o reconhecimen-
to, a justificação do mundo, em pagamento da dívida que a humanidade houver
contraído com ela [pela legação que lhe faz de altos dotes de caráter].

188
Fé é Milagre 4, 4-5

Porém, se nesta retribuição [nesse pagamento, nesse reconhecimento de


valores], Deus for inserido, já não o será como o Deus Criador, Senhor e Re-
dentor, que pratica a misericórdia e atribui justiça; será um Deus “pagador”
que, qual contratante ou empreiteiro, paga a seu jornaleiro o que este faz jus.
Paga porque é a isso obrigado [por contrato, por consenso social ou, para aten-
der a ética], em retribuição ao serviço prestado; liquida, simplesmente, a dívida
contraída.
É pois evidente que nestas condições não se trata do verdadeiro Deus,
mas do espírito deificado do próprio homem.
Há porém outra forma de avaliar os homens: esta forma está indicada no
Gênesis e foi ensaiada por Dostoiewski.
Esta maneira [de apreciar os feitos humanos] não se limita a atribuir
honra a quem for digno dela; a sua maior preocupação não consiste na demons-
tração [ou comprovação] da retidão humana; não marginaliza, não esquece a
questão final [o julgamento por Deus], antes a põe em primeiro lugar, e parte
dela. Essa forma de julgar não pensa, apenas, na escrituração dos ganhos hu-
manos, mas lembra-se que existe também um “Livro da Vida” de cujo teor as
coisas para nós invisíveis podem tornar-se visíveis; esse método interessa-se
menos pelo que pode advir ao homem pela sua culpa, [em conseqüência de
seus pecados]; antes interessa-se pelo que lhe pode ser atribuído por misericór-
dia. A este método é mais difícil cair na tentação de arvorar-se em juiz do
mundo, pois ele procede justamente desse juiz e de seu tribunal. Esta forma
alternativa de avaliar o homem vê as suas obras contra o pano de fundo de sua
carência de obras; vê sua vida à luz de seu desfalecimento, (sua morte); vê sua
ocasional grandeza humana medida [aferida] pela majestade de Deus; vê a sua
condição de criatura, como testemunha do Criador; vê o que nele for visível,
como carência, esperança, anseio pelo invisível; vê a sua fé, à luz da fé; ela
pode alegrar-se com tranqüila brandura, por toda legítima grandeza humana,
pela fé confiante, pelo heroísmo, por toda beleza espiritual e pela projeção
histórica de uma pessoa. Essa alegria pode não estar isenta de certa dose de
melancolia, pois jamais julgará o homem por seus feitos [ou por sua boa fama].
O julgamento, em última instância, será sempre pela sua fé, visível nos seus
feitos, contra toda a aparência (ou paradoxo), atribuindo-lhe melhor justifica-
ção que lhe é concedida por aqueles que o consideram “por demais” justificado
segundo o louvor deles.
Também pode acontecer que, com a mesma tranqüila brandura, esta ava-
liação se entristeça ante a lamentável situação em que o homem se encontra —
morto em seus pecados —, sua gentilidade, sua dureza, seu ateísmo, sua queda
animalesca [brutal]. Essa tristeza pode ser acompanhada de um leve sorriso,

189
4, 5 Fé é Milagre

por quanto, jamais será o homem julgado pela hediondez de seu pecado [ou por
suas más qualidades]. O julgamento, em última instância, será mesmo, e sem-
pre, pela fé que, novamente contra toda aparência, é visível em tudo e por tudo,
ainda uma vez lhe atribuindo melhor justificação do que lhe é concedida por
aqueles que o consideram “por demais” justificado [ou condenado] segundo a
censura deles.
Em ambos os casos a avaliação tem sempre presente o fato de que a
justiça de Deus é imputada segundo o seu juízo e seu beneplácito (2, 6) e que
Deus não faz distinção de pessoas nem olha para as suas máscaras (2, 11),
porém, julga pelo que o homem abriga, em secreto, no seu coração (2, 16).
Este modo de julgar considera a fé porque vê com olhos crentes e sabe
o que a fé significa:

O impossível donde procede toda possibilidade;


O milagre, gerador de todos acontecimentos histórico-espirituais;
O paradoxo que cerca toda a existência, toda a posse, e toda a ação
visível humana;
A crítica que primeiramente questiona o modo de agir, pondo-o
sob dúvida para somente depois [de haver examinado o que, de secre-
to, houver por trás e por cima dele.] confirmá-lo e fundamentá-lo.

Esta avaliação está familiarizada com a fé, porque ela também crê, e
crendo sabe distinguir a fé que há nas pessoas e que as leva para além do que
efetivamente são; é nesta região [do invisível] que a avaliação procura ver o que
cada crente é por aquilo que ele não é; esta é a razão pela qual, quem tem fé —
[fé real, viva, genuína, pura] se surpreende ao tomar conhecimento [ou ciência]
de que a sua fé lhe foi imputada por justiça, e isto em sua forma a mais severa,
acompanhado sempre de um “apesar de” e, jamais de um “por isso”; sempre
como ato de perdão e nunca confirmação daquilo que ele é.
[Um julgamento feito por aquilo que a pessoa não é, à luz do raciocínio
humano, apenas é compreensível se aquilo que o réu não for, constituir sua
culpa, ou em se tratando de eufemismo, expressar o que ele realmente é, por
antítese. Mas Deus julga por aquilo que o homem efetivamente não é; pelo
invisível; para o mundo isto é um paradoxo, um escândalo, uma loucura. Só a
fidelidade de Deus e a sua misericórdia poderiam explicar tal procedimento se
necessário fosse explicar um ato divino.
Deus vê no pecador o filho adotivo, remido em Jesus Cristo, filiação a
que ele, pecador, está livre a candidatar — se segundo os decretos eternos do
próprio Deus].

190
Fé é Milagre 4, 5

“Ele crê naquele que justifica o ímpio”. Esta sentença é a inequívoca


perífrase desta outra: “Ele crê em Deus”. Esta é a justificação divina de Abraão.
Abraão, tem Deus? — Não, nunca! Mas Deus o possui. E o possui na
qualidade de varão sem obras (4, 5), e “independentemente de suas obras” (3,
28). E em Deus, e não em Abraão, que se fundamenta o fato de que Abraão é
posse de Deus; que Deus o “declara justificado”.
Todas as coisas que se basearem em Abraão constituem motivo para ira
de Deus.
Com sua retidão humana e sua falta de retidão perante Deus, Abraão é
apenas “ímpio” (1, 18); apenas pode enquadrar-se como toda a humanidade,
em o NAO divino. Porém, pela sua fé, ele toma conhecimento [toma consciên-
cia] de sua situação e desperta para a crise que, [ainda pela fé], ele sabe que
vem de Deus. Dentro desta crise [sempre levado pela fé] Abraão opta pelo
temor do Senhor e, dentro do “NÃO” passa a ver e a ouvir o [eterno] “SIM” de
Deus.
Esta, é a sua fé!
Esta fé é, em si mesma, um fato, uma realidade, invisível: é um milagre!
É no contexto desse milagre que Abraão toma consciência de sua situa-
ção, da crise com que se defronta, e da procedência dela; e por isso não pode
gloriar-se da opção que faz, pois também ele, [o venerando Abraão], o vulto
clássico da “História da Verdade”, pode gloriar-se, unicamente, na justificação
que ele alcança “pelo sangue de Jesus” (3, 25) e que, manifestamente, foi ver-
tido para o benefício de todos os homens.
Não se pode entender qualquer coisa de afirmativo, de positivo, no cará-
ter de Abraão sem ser sob a perspectiva do momento em que soar a trombeta
final, com o seu grande NÃO [às coisas do mundo].
A positividade que há em Abraão está na justificação que lhe é prometida
no Gênesis como figura representativa da vida de Cristo, e ele poderá gloriar-se
disto: da prova da seriedade, da pureza e da suficiência daquele instante, que
está acima de tudo o que houve [e haverá após]: o testemunho da ressurreição.
A fé [porém] é o mesmo milagre em todos os tempos.
[A tradução inglesa dá, a esse trecho, uma interpretação que não me
parece estar de acordo com o que o A. diz, e tampouco me parece ser fiel ao
texto bíblico, conforme comentarei mais adiante.
Interpretando os dois últimos parágrafos acima, segundo a 5ª Edição
alemã, parece-me que, em outras palavras, o Autor diz no texto original que
Abraão poderia gloriar-se, como homem, unicamente do privilégio de ser, na
História da Redenção, o primeiro marco que aponta a Jesus. E a primeira
confirmação clara, precisa, definida, do “pequeno Evangelho” a boa nova con-

191
4, 5-8 Fé é Milagre

tida na declaração que Deus fez à antiga serpente: “A semente da mulher ferirá
a tua cabeça” — (Gên. 3, 15).
A raça desenvolveu-se, e a corrupção foi geral; vieram as águas do dilú-
vio, houve a confusão de línguas e houve a vocação de Abraão, “Tu serás uma
benção” e “em ti serão benditas todas as famílias da terra. (Gên. 12, 2 e 3).

— Em que consiste essa benção, que as famílias todas da terra pode-


rão usufruir?
— É a purificação redentora pelo sangue do Cordeiro, que, segundo
a carne, foi o renovo nascido do tronco de Jessé, que foi pai de Davi que
veio da linhagem direta de Isaque filho de Abraão.

Que mérito haveria sem Cristo? Que benção para as famílias da terra,
sem ressurreição? É por isto que Abraão, se quisera gloriar-se, haveria de fazê-
lo no sangue de Jesus Cristo, de cujo advento é o primeiro marco que, todavia,
não ficou imóvel a beira da estrada, onde foi implantado mas, pela fé, transpor-
tou-se ao longo da mui longa “fita carmesim” que atravessa a história,
testificando a fidelidade de Deus, pela sua fé: esta fé “lhe foi imputada por
justiça” e a lição que sobressai é esta: quem tiver de gloriar-se, glorie-se no
Senhor” (Jer. 9, 23-24; I Cor. I,31; II Cor. 10-17).
Textualmente, o original diz o seguinte: “Seu SIM, sua positividade não
podem ser entendidos por si mesmos, se fizermos abstração do grande NÃO do
instante da última trombeta; antes pelo contrário: a justificação de que ele pode
gloriar-se, e que lhe foi atribuída no Gênesis, é “testemunha como um retrato”
(uma imagem) da vida de Cristo etc. (Das “abbildende Zeugnis” des Lebens
des Christus — as aspas estão no original — (pág. 99, IN FINE)).
A versão inglesa diz: “Esta grande afirmação positiva não pode ser en-
tendida isoladamente, mas somente no contexto da negação da última trombe-
ta. Quando se afirma no livro do Gênesis que Abraão tem uma justificação de
que pode gloriar-se, isto deve ser entendido como o modelo que aponta à vida
de Cristo”, etc.
Ora, o A. não diz que Abraão tem do que gloriar-se (antes diz o contrá-
rio) e o Gênesis também não diz isso que, segundo me parece, a versão inglesa
sustenta.

Vs. 6 a 8 Assim, também Davi declara bem-aventurado o homem a quem Deus


imputa justiça sem as obras, dizendo: Bem-aventurados aqueles cujas ini-
qüidades são perdoadas; cujos pecados são cobertos. Bem-aventurado é o
homem a quem o Senhor não imputa pecado.

192
Fé é Milagre 4, 6-8

“Assim, também ‘Davi’ declara bem-aventurado o homem a quem Deus


imputa justiça”.
As biografias apresentadas historicamente no Antigo Testamento são
comentadas nos Salmos.
O método bíblico, a maneira indireta de observar o ser humano, que se nota
ali [no Antigo Testamento], não pode ser ocultado aqui [na Carta aos Romanos].
— Quem é o bem-aventurado? Acaso é quem ganha o céu e o traz
consigo? Alguém que tenha merecido o céu, pelas suas obras e, nelas, o
exibe?
— Evidentemente não! A bem-aventurança que existe no ser huma-
no (ou na sua obra) ou como resultado de sua ação, não é a bem-
aventurança a que “Davi” se refere. Também “Davi” vê a bem-
aventurança, o valor, a grandeza, a espiritualidade, a salvação do ho-
mem, de forma indireta. Também ele vê para além das vantagens e das
carências do indivíduo psicológico, “abstraindo de suas obras” — a sua
invisível inclinação para Deus a sua firme certeza através de Deus [sua
segurança em Deus].
Também “Davi” vê, onde sob o aspecto psicológico só pode existir va-
cuidade, o preenchimento adequado, o poder e o significado da individualida-
de, a justiça divina que lhe é “imputada”.
Também “Davi” vê a linha da morte como sendo a linha da vida. E esta
vida que vem da morte, este [valor] invisível, isto que lhe é imputado, que vale
a sua bem-aventurança.
“Bem-aventurados aqueles cujas iniqüidades são perdoadas e cujos peca-
dos forem cobertos. Bem-aventurado o varão a quem o Senhor não imputa
pecado e em cuja boca não há engano. Enquanto calei enfraqueciam-se as minhas
pernas de velhice, pelo meu clamor durante o dia todo. Pois a tua mão pesava
sobre mim dia e noite, e entrei em tal miséria que a minha espinha se endureceu.
Então reconheci a minha iniqüidade e não [mais] ocultei os meus peca-
dos, e disse: a minha transgressão confessarei, por mim mesmo, ao Senhor.
Então tu perdoaste a impiedade do meu coração”. (Salmo 32, 1-5 — LXX),
[isto é. conforme a versão grega do Antigo Testamento — chamada Septuaginta,
referindo-se aos 70 sábios (que, aliás, foram 72), enviados de Jerusalém para
Alexandria, pelos meados do século III A.C., a pedido de Ptolomeu II,
“Philadelphus” e que fizeram essa tradução].
Observe-se o soberbo encadeamento da narrativa! O que é da vida e da
retidão do homem piedoso do Antigo Testamento? — Na realidade visível,
humana, ele não encontra nem vida nem justificação, antes, a presunção de que

193
4, 8 Fé é Milagre

ele possa gozar (das bênçãos) da vida e justificação, é o engano que deve desa-
parecer de seus lábios.
Ele quer e tenta abafar seus pecados, sua iniqüidade e sua transgressão,
que são justamente o contraste [o oposto, a antítese] de sua piedade e de tudo o
que esta piedade testifica. Ele quer fazer calar a impiedade [gritante] de seu
coração (que é a inevitável resultante de toda divinização do homem, [do culto
que o homem presta a si mesmo] ). [Com seu lamento constante] ele quer apa-
gar o pecado; quer perdoar-se a si mesmo [quer merecer o perdão e quer justi-
ficar-se]; na plenitude de sua experiência [e na sua vida amplamente piedosa]
ele mesmo quer perdoar o seu pecado. [Quer ser Deus e Senhor; quer tomar o
seu julgamento em suas próprias mãos; flagelando-se, quer justificar-se; em se
acusando, quer merecer perdão; quer fazer valer a sua conduta geral de “servo
bom e fiel” para com ela, agora, pagar e apagar o pecado que lhe pesa com o
peso da própria mão divina e lhe angustia o coração]. É nessa tentativa que [ele
sente que] precisa morrer.
[Somente morrendo, somente abdicando de si mesmo, somente reco-
nhecendo o seu nenhum valor, é que poderá renascer, viver, ter paz com Deus,
com o próximo e consigo mesmo!].
Comprimido entre a verdade divina e a fraude de seu coração clama, em
dores corporais, por todo o dia. (Clama ele mesmo, de seu sofrimento pessoal
sob o peso da mão de Deus que já não lhe permite viver mais; clama e geme a
sua alma, criada por Deus [para ser pura e livrei e que já não pode subsistir sob
o guante da sua mentira.
Ele [o Salmista] geme na angústia do emudecido Zacarias e do cegado
Saulo.
E esse aiar se prolonga e persiste até que ele se apresente ao cativeiro e,
como cativo de Deus, abra mão de toda pretensa glória. [Até que abdique de
todos os seus supostos méritos]. Sofre e geme até se convencer que a justiça
divina da qual queria apoderar-se, é impossível aos homens; que essa justiça é
um inexorável NÃO a toda retidão humana, [que o homem nada é e nada tem
perante Deus], que a justiça divina é o julgamento a que inevitavelmente estará
sujeito todo o erro, [todo o engano, todo o ludíbrio, todo o engodo] de caráter
religioso.
[O pecador que assim suspira e chora percebe, com tremor e temor, a
linha da extinção de sua vida, em Deus; ele reconhece e já não esconde o seu
pecado; e confessa: “... então tu me perdoaste”!].
— Então respondeu-lhe o Senhor desde um redemoinho. E qual é
esta resposta? Acaso aponta ela a um degrau mais elevado no caminho
da vida inteira?

194
Fé é Milagre 4, 8

— Não; mas é a quebra; a interrupção, o obstáculo intransponível, o


cessamento abrupto do caminho que vinha sendo seguido. É o começo
de uma senda inteiramente nova; é o caminho que se abre para o peca-
dor angustiado, ao lado de Deus.

Não se trata de um incidente psicológico, mas do instante da vida que


encerra, em sua nova qualificação [o passado e o futuro], o anterior e o posterior.
Não que os ais do justo tivessem passado mas, agora, revela-se que ele
sofre por amor a Deus a quem clama; todavia, o seu clamor, o seu gemer, o seu
aiar, são agora os brados de dor de um justo.
Não é mais o clamor da iniqüidade e do pecado, pois estes estão per-
doados, estão cobertos, não foram imputados mas suportados [sofridos, carre-
gados] por Deus, são (agora) esperança. [Esperança de perdão, esperança de
renovo, esperança de graça, de paz de filiação, de restauração plena perante
Deus].
Há, aqui, novamente o milagre que, na qualidade de fé, torna-se visível,
apenas, além da realidade visível do mundo; É a afirmação do SIM divino,
contido no seu NÃO.
Este relacionamento do homem com Deus não pode ser objeto [nem
corre o risco] de novo erro, novo engano, ou nova ilusão. Ele está definitiva-
mente protegido contra o risco de ser humanizado (materializado e atribuído ao
valor alcançável pelos esforços e méritos humanos) porque a vida que ele cria
é a que procede da morte; (da renúncia, da anulação, do desaparecimento do
homem material]; sempre [é unicamente] pela morte.
[E por ser fundamentado exclusivamente em Jesus e na sua ressurrei-
ção, — para onde leva a cabal renúncia humana — este novo relacionamento
entre o homem e Deus elimina qualquer possibilidade de nova jactância ou de
alegações de retidão humana].
Quem foi considerado “bem-aventurado” pelo “Salmista”, não é, na
verdade, o presente homem, sua vida e sua justiça. Não é o que nele se vê [ou se
poderia ver], mas trata-se do homem interior; do homem invisível, do homem
que foi chamado à existência [tirado da morte de seu pecado] pela palavra
criadora de Deus [pelo seu “verbo”, que é Jesus, o Cristo]. Trata-se do homem
que nada é e que, no seu constante morrer, se renova de dia a dia.
O milagre da imputação da justiça divina e da não imputação da trans-
gressão humana que somente se torna visível na visibilidade da morte, é o pa-
radoxo da fé pelo qual o pecador piedoso é considerado “bem-aventurado”.
Portanto, o que subsiste, o que vale, com respeito a Abraão vale também
para o vulto anônimo figurado no Salmo 32: ele vive da ressurreição; ele é sua

195
4, 1-8 Fé é Milagre

testemunha. [Entendemos, e me parece com boas razões, que o Salmista falava


de sua experiência pessoal, pelo crime de haver feito matar Urias para encobrir
o seu próprio erro; todavia o A. parece não atribuir o Salmo 32 a Davi, cujo
nome põe entre aspas quando se refere a ele como o personagem do drama.
Seja, pois, anônimo, o vulto: a lição permanece a mesma.].
O Salmista clama e proclama o seu perecimento sob a pesada mão de
Deus e, somente depois de sucumbir, de renunciar, e de confessar, anuncia,
redivivo, o perdão que sentiu e do qual goza depois de haver confessado a sua
culpa sem mais tentar justificar-se pelo “crédito” que humanamente lhe pode-
ria ser atribuído pela vida pregressa [notavelmente reta, em se tratando de Davi].
Esse vulto [semelhantemente ao de Abraão] com toda sua religiosidade,
sem Cristo, sequer poderia ser entendido.
Todavia, ele é o retrato da vida de Cristo [de sua vinda ao mundo e sua
obra de redenção] que rompe ao longo dos tempos.

Comentários: 4, 1-8

1. Na longa comparação que o A. faz entre Abraão e Cristo, ele demons-


tra que o verdadeiro valor de Abraão está em Cristo Jesus, que sus-
tenta a sua fé e confirma a sua glória mundana.
É pela realidade da ressurreição de Jesus que Abraão foi levanta-
do qual marco na história do mundo, balizando a pista que leva à
redenção.
2. Cristo não anula o vulto de Abraão, mas o fixa e situa em sua verda-
deira grandeza, contra o pano de fundo da história; semelhantemente,
nenhum outro vulto da história sacra e secular é eclipsado por Cristo
pois ele não é uma grandeza comparável às grandezas humanas, an-
tes são elas analisadas à luz da luz que vem da cruz, e nessa luz são
reduzidas a um denominador comum que a todos irmana, homogeniza,
e revela a medida real das respectivas grandezas perante Deus e pe-
rante o mundo.
3. Assim como só um milagre pode explicar a “parada do sol” em Gibeão,
a separação das águas no mar Vermelho, a saída de Lázaro do túmulo,
assim também só um milagre explica a fé. No entanto “a fé é o firme
fundamento das coisas que se esperam e a prova das que não se vêem”
e o seu poder criador é confirmado dia a dia pelas obras de nossas
mãos. Este é o milagre que acompanha o homem em todos os tempos
de sua história terrena.
O justo viverá pela fé!

196
Fé é Começo 4, 9

4. O A. destaca um traço da unidade da Bíblia, de capa a capa, nem


sempre lembrado pelos crentes: a uniformidade de critério bíblico no
julgamento do homem; este julgamento é sempre indireto; é feito e
baseado, naquilo que o homem não é, mas pelo que anseia ser; por
sua esperança, seu temor e seu tremor e... novamente, sua fé.
A fidelidade de Deus acolhe a fé que habita no homem por que
Deus se agrada dela, que é obra divina!
- A FÉ É MILAGRE -

FÉ É COMEÇO (4, 9-12)

V. 9 (primeira parte) Vem, pois, esta bem-aventurança, exclusivamente entre os


circuncisos, ou também sobre os incircuncisos?

É na origem divina da fé que encontramos a justificação que ela propor-


ciona e a explicação de sua peculiaridade: ser ela algo novo, diferente, que se
contrapõe a toda realidade religiosa.
Descobrimos, na fé, a verdade de toda religião (3, 21 e 27-30), todavia
nenhures é ela idêntica às realidades palpáveis, psicológicas e históricas das
experiências religiosas. A fé jamais se mescla, interfere, ou se confunde com o
“desenvolvimento contínuo do ser humano, de suas possibilidades e suas obras;
nem se transforma em caminho, ou meio, no correr da vida material, na vida
eclesiástica, na religião, ou mesmo na história da redenção. Deus permanece
livre, inteiramente livre [das injunções ou exigências] da lei.
Deus não reage em termos da impressão que os homens têm ou possam
ter da revelação; esses fatos [lei e impressão humana] são testemunhas de sua
fidelidade.
Poderemos, acaso, provar com o que agora conhecemos sobre a fé, que
não anulamos a lei, antes a estabelecemos? (3, 31) Poderemos provar que hon-
ramos o verdadeiro sentido de toda a proclamação histórica?
A pergunta deve ser apresentada na seguinte forma:
Acaso tem a religião, em sua realidade histórica, reivindicado para si o
privilégio de ser ela a condição essencial para a existência de um relaciona-
mento positivo entre Deus e os homens?
Acaso a religião se considera como fundamento de toda fundamentação
divina do ser humano?
Será que o único lugar onde se encontre a revelação divina é a área
religiosa e eclesiástica que consideramos, em um sentido mais amplo, como
sendo a expressão histórico-espiritual dessa revelação?

197
4, 9-10 Fé é Começo

Acaso a bem-aventurança dos piedosos proclamada através da lei (4, 6-


8) é destinada primeiramente ao circunciso Abraão, Abraão o judeu, Abraão o
conhecedor e cultor da mais elevada religião, a Abraão, o pai do histórico povo
irmanado [entre si pela promessa divinal?
Ou não estará, contrariamente, implícito na religião que ela precisa e só
pode ser compreendida em sua realidade histórica, como o relacionamento que
houve originalmente entre Deus e os homens? Não reconhece a própria reli-
gião que este relacionamento é livre, sem peias, desde a sua pura origem?
Não olha a religião para adiante, para a fundamentação do homem que,
por assim dizer, ocorre alem da própria realidade religiosa?
E acaso a religião não sabe que o lugar da possível revelação pode ser
qualquer (em imprevisível extensão) não sendo, portanto, restrito aos ambien-
tes que, aparentemente, “lhe pertencem”?
Acaso a bem-aventurança de que a lei fala, não está endereçada ao Abraão
incircunciso, a Abraão, o gentio, sem levar em conta a sua religião, a sua con-
vicção teocrática, e a sua posição na história da Igreja e na história da redenção?
Não foi Abraão considerado bem-aventurado, na simplicidade de sua
humanidade e na sua naturalidade de criatura? E não nos é forçoso concluir que
a linha da vida que demarca o relacionamento do homem com Deus, precisa ser
compreendida como sendo também a linha da morte da religião?
Não resulta, pois, evidente que a fé e a sua justiça constituem também o
início [a origem] de todo o conjunto religioso — eclesiástico, seu modo de
fazer, ter e agir?

Vs. 9 e 10 Lemos: a fé foi imputada como justiça a Abraão. Como entendemos


este “imputada”? Ao já circunciso, ou ao ainda incircunciso?
Manifestadamente, não ao já circunciso, porém ao ainda incircunciso.

[Comparar os Vs. 9 e 10, na versão de Almeida que se expressa de for-


ma ligeiramente diferente e idêntica à das demais versões mencionadas neste
trabalho. Todavia, a maneira de Barth traduzir parece-me bastante expressiva].
“Lemos: A fé foi imputada como justiça a Abraão”.
É a lei e a história da redenção que chamam nossa atenção à importância
extraordinária dessa “imputação” (4, 3) e, observando-se este seu significado,
podemos ver com clareza que a “imputação” não resultou de alguma peculiari-
dade visível em Abraão ou de algum ato seu ou de decisão sua, porém, a justi-
ficação deu-se por determinação de ordem inteiramente diversa que nada teve a
ver com a sua “circuncisão”.

198
Fé é Começo 4, 9-10

Ora a circuncisão não foi reconhecida por Deus como meritória de qual-
quer atribuição de justificação e ela não mereceu um parecer divino, especial.
[A versão inglesa diz nem é a circuncisão que faz (de Abraão) o que ele é”].
A sua circuncisão não é um milagre, porém um acessório visível, na
aparência do mundo religioso. Enquanto essa justificação estiver representada
e encerrada na circuncisão ela é justificação religiosa [porém somente religio-
sa] e nada tem a ver com a justificação que lhe foi atribuída, imputada, por
Deus e da qual lemos no Gênesis.
“Manifestamente não ao já circunciso, porém ao ainda incircunciso”,
que a fé foi imputada por justiça.
A justificação pela fé somente pode ser aceita como sendo imputada a
Abraão ainda incircunciso, o que aliás, está de acordo com a cronologia histó-
rica. [A graça da imputação de justiça pela fé está narrada em Gên. 15, 6, e o
concerto da circuncisão aparece no capítulo 17, verso 10] e, segundo a lei, a
justificação seria pela circuncisão.
Quando Abraão foi chamado [vocacionado] por Deus, ele não era, ain-
da, nem piedoso, nem patriarca, nem teocrata.
O vocacionamento dos homens por Deus, precede aos contrastes [das
situações humanas], entre a circuncisão e a incircuncisão, a religiosidade e a
irreligiosidade, entre o pertencer e o não pertencer a uma Igreja, e essa prece-
dência se verifica, não raro, até cronologicamente. [Deus chama o homem in-
dependentemente, e mesmo antes, de ele haver cumprido ou se submetido às
formalidades religiosas (batismo, profissão de fé, etc.)].
A fé que encontramos em Abraão [e que lhe foi imputada por justiça]
ainda não é religião nem o fenômeno histórico espiritual da crença [ou da conver-
são]. A fé é o fator inicial [e a condição preparatória, preliminar] das manifesta-
ções [exteriores que tornam públicos os frutos da fé]; ela é a origem comum de
todos eles, porém não é nem religiosa nem irreligiosa; nem santa, nem profana,
contudo, é sempre ambas essas coisas, tem as duas posições, simultaneamente.
A vocação de Abraão e a sua fé, são, no Gênesis, puro início, começo;
coisa preestabelecida.
Do ponto de vista histórico-religioso, Abraão ainda não é um judeu,
porém um gentio; para a história da redenção, ele é um ímpio, (4, 5), um morto
(5, 12): ainda não é o preclaro pai do histórico povo de Deus que mais tarde
veio a ser.
O mundo é mundo e nele está Abraão, também.
Parece-nos, pois, que agora podemos compreender o que significa a
referida “imputação”. Se a justificação religiosa que Abraão poderia ter pela
circuncisão está fora de cogitação, não só cronologicamente mas também pelas

199
4, 9-10 Fé é Começo

circunstâncias em que ele se encontra, então ele não tem com que velar sua
nudez perante o Criador, senão com o que estiver além do fenômeno religioso,
o que só Deus vê e tem valor perante ele porque vem dele: a fé.
É-lhe atribuído, imputado, (4, 5) somente aquilo que tem: a sua fé; é por
ela que Abraão ouve o que nenhum ouvido ouviu.
Mas se o texto do Gênesis evidencia que a justificação vem apenas pelo
que é invisível em Abraão, pela sua fé, então é também evidente que ela emana
de Deus, que é obra divina [que é de sua essência, de seu ser e de sua proprie-
dade], e que nada tem a ver com o ambiente estreito e fechado do mundo [e
com o que dele procede ou nele se faz]; portanto, também nada tem a ver com
“religião” pois também esta, em sua realidade histórica, nem é premissa nem é
condição essencial para um relacionamento positivo entre Deus e os homens.
Este relacionamento parte de Deus — que é a sua origem, [seu primeiro movi-
mento, motivado exclusivamente pela fidelidade divina que, encontrando a fé]
é a premissa da realidade histórica da religião (e também do seu oposto!); [Deus
é quem convida, vocaciona, chama: “Vinde a mim” É em resposta a esse convi-
te que o homem — independentemente das luzes que tiver em seu coração (ou
seu intelecto) sem condicionamentos de instrução, cultura, ignorância, riqueza,
pobreza, filosofia, religião — chega à religião, aceitando-a, ou a rejeita como
incrédulo, ateu].
Vale, pois, a bem-aventurança do homem piedoso (4, 4—8) e, na verda-
de, também a do impiedoso (4, 9) porque a bem-aventurança vem pela fé e não
pela crença [ou, segundo a tradução inglesa “a bem-aventurança vem pela fé, e
não pela ortodoxia”].
Nada, se não a fé [e somente a fé] é imputado por Deus como justiça, e
isto, tanto ao homem piedoso como ao ímpio.

Vs. 11 e 12 E ele recebeu o sinal da circuncisão como selo da justiça de sua fé,
quando ainda estava na incircuncisão, para que fosse pai de todos os que
crêem, estando ainda na incircuncisão, afim de que isto, também a eles,
seja imputado por justiça; e para que fosse também a eles, circuncisão
enquanto estes, não somente como descendentes do povo da circuncisão,
também andarem segundo as pisadas da fé que teve nosso pai Abraão, na
incircuncisão.

“Recebeu o sinal da circuncisão como um selo”.


Sinal, testemunho, imagem, lembrança, indicação, são a manifestação
histórica de toda impressão de revelação, de toda referência a ela, que está sem-
pre além de toda realidade [materialidade e materialização] da própria história.

200
Fé é Começo 4, 11

Abraão também participa deste mundo de aparências — a circuncisão, a


religião, a igreja — que retratam a revelação.
A circuncisão teve lugar e foi necessária, para lembrar fisicamente a
Israel, de sua eleição [de sua escolha para ser nação sacerdotal] segundo deci-
são divina; para lembrá-lo de que foi purificado, santificado [separado] como
povo de sua escolha para ser por ele enviado [às nações do mundo para entregar
a mensagem da fidelidade de Deus].
Religião é o inevitável reflexo espiritual (ou a experiência) do milagre
da fé, que se realiza na alma.
Igreja é o incontornável conteúdo histórico da obra de Deus para com os
homens, sua condução, sua canalização, obra essa que jamais, em si e por si só,
será parte da história. [Mas há de figurar na história através das obras dos ser-
vos do Senhor, e de vultos semelhantes a Abraão, pois também da História, é
Deus e Senhor].
A forma deste conteúdo histórico — espiritual [que a Igreja representa],
a característica divina que lhe dá sentido e completa, está sempre em corres-
pondência com algo diferente que vem do além [e para ele aponta].
[A religião e a Igreja são (ou devem ser) um sinal um testemunho, uma
indicação da graça divina, manifesta na redenção]. Se isto for esquecido; se a
Igreja e a religião não conservarem as suas vistas voltadas humildemente para
o paradigma do além, correm o risco de, [na ânsia de se sobrepujarem a si
mesmas, serem cada vez maiores, e estarem mais e mais próximas de Deus],
projetarem-se às alturas sem atingirem o seu objetivo [de santificação].
Serão qual imensa escadaria formada por soberbos lances sucessivos,
terminando nas alturas, em céu aberto, sem dar acesso a lugar algum [antes
abrindo—se para o abismo].
Essa atitude [o esquecimento de conservar os olhos voltados para o além]
pode acarretar uma tão imensa petrificação e mumificação da verdade divina,
como a dos piramidais túmulos do velho Egito.
[Todavia, a verdadeira religião e a Igreja fiel] são sinetes inconfundíveis
que trazem à lembrança a fundamentação que o homem encontra em Deus,
fundamento que foi prometido e promessa que foi reiterada no correr da historia.
Nessa fundamentação há revogação e redenção segundo a fidelidade de
Deus, que se renova diuturnamente.
Tanto a Igreja como a religião, ainda como sinetes e símbolos, e exata-
mente por serem tais, apontam para a efetivação do pacto entre Deus e os ho-
mens, que ainda vigora, que ainda não foi cumprido e pelo qual se espera, pois,
uma coisa é a firmação e a ratificação de um contrato e outra o seu objetivo, o
seu cumprimento, a sua execução.

201
4, 11 Fé é Começo

Deus determinou a existência destes símbolos [religião e igreja] de sua


resolução [de redimir o gênero humano] tomada desde a mais remota origem e
a finalidade deles também perdurará até o cumprimento do propósito divino.
Eles estão entre o Alfa e o Ômega; entre o princípio e o fim.
É somente em relação ao “princípio” e ao “fim” que [a igreja e a reli-
gião] são o que devem ser: Sinal e Testemunho. Foi também neste sentido que
Abraão recebeu o sinal da circuncisão; o sentido do passado e do futuro; e
passou a participar do mundo eclesiástico-religioso, visível.
“Como selo da justiça de sua fé, quando estava, ainda, na incircuncisão”.
Abraão não recebeu o sinal de circuncisão como o amigo de Deus, sepa-
rado dos gentios segundo a circuncisão, porém como o crente ainda incircunciso.
Ele não adquire personalidade especial e a condição de ser chamado por Deus
para representar a humanidade na aliança que Deus propõe, como pessoa da
Igreja, como um intermediário com prerrogativas eclesiásticas, porém, a justi-
ça lhe foi imputada quando ainda estava fora da Igreja; quando não participava
dela. A fé que lhe foi imputada por justiça é a da incircuncisão; todavia, essa fé
tem a circuncisão como seu selo, seu sinete, seu símbolo, tanto para o passado
como para o futuro.
[Abraão creu ainda antes de estar ligado à expressão religiosa de sua fé
através de experiência espiritual pessoal e por atos oficiais (públicos)
simbolizadores dessa fé. Semelhante crença foi-lhe imputada por justiça o que
se manifestou publicamente (primeiramente), agindo retroativamente confir-
mando no simbolismo do sacramento a fé que existiu primeiro e, (em seguida)
sobre o futuro, como sinal, testemunho e lembrete perene dessa fé].
“Para que fosse o pai de todos os que crêem, estando ainda na
incircuncisão”.
A significação da circuncisão de Abraão não está nas características ou
qualidades intrínsecas do ato mas no relacionamento que ele indica; a circunci-
são não tem valor em si, se não o de testemunho, cujo sentido eterno se destaca
na linha da morte, onde também se revela a transitoriedade do mundo religioso.
Circuncisão, religião e igreja são sinais visíveis e testemunhas, não por
seu conteúdo positivo porém pelo seu teor negativo, isto é, na medida que fo-
rem compreendidos e confirmados na renúncia, no perecer incessante, na anu-
lação do homem perante Deus, que efetivamente simbolizam.
Abraão não necessita da circuncisão para ser circunciso, nem da reli-
gião para ser piedoso ou da segregação para ser selecionado; não precisa da
igreja para portar a sua atitude teocrática. Sua preeminência histórico-espiritu-
al não se destina a ser modelo (padrão ou protótipo) de tradicionalismo. Porém,
tudo quanto é mero sinal, e só pode ser sinal, deve testemunhar daquilo que,

202
Fé é Começo 4, 11

desde a eternidade, antecede o símbolo [e a que ele agora se refere]; e de ma-


neira igual, deve testificar, também eternamente, tudo quanto vier após ele, e
que lhe disser respeito.
Esse sinal-símbolo [a igreja, a religião], em sua propriedade temporal,
finita, em sua diminuição, em sua retração, na sua morte, deve falar da eterni-
dade que existe antes e após todas as coisas temporais; e deve falar a todos os
filhos de Abraão [os crentes] como falou outrora a Abraão [o pai dos crentes].
A santificação de todos os santos, é o serviço que prestam ao que é
eternamente santo; é a mão de João Batista apontando para além da linha da
morte, conforme pintada por Gruenewald, [O A. refere-se ao quadro da crucifi-
cação pintado por Matias Gruenewald no século XVI e que se encontra hoje no
museu de Colmar, na Alsácia — (Apud trad. Inglesa)].
O significado da circuncisão, da religião e [da adesão à igreja], do
“eclesiasticismo” de Abraão, é indireto e não convida à circuncisão [não convi-
da à participação da religião propriamente dita] mas convida à fé.
Observe-se, não a religião de Abraão porém, a invisível justiça que lhe
foi imputada.
Ele não foi chamado para o judaísmo, porém para curvar-se ante o Deus
inescrutável: “Em teu nome serão benditas todas as nações da terra, porquanto
obedeceste à minha voz”. (Gen. 22, 18).
O que está velado, na circuncisão de Abraão, é também o que a torna
eficaz e lhe dá destinação: a fé do incircunciso. A fé não é a porta que traz a
gentilidade ao judaísmo ou que dê, aos filhos do mundo, o acesso à piedade;
porém é o sinal, é a indicação do portal pelo qual, tanto judeus como gentios,
vencidas e anuladas todas as diferenças [de raça], históricas e espirituais, de-
vem passar para entrar no reino de Deus.
[Ora, (segundo o A. e biblicamente) a circuncisão é o símbolo do ingresso
na religião, e na Igreja. É o sacramento do batismo, e o ato da profissão de fé. É
a “confirmação” das igrejas luteranas. Portanto, parafraseando o A. e, sem falseá-
lo, podemos licitamente escrever: “A religião, o ingresso na Igreja, é o caminho
que a humanidade deve seguir, indistintamente, esquecendo divergências e pre-
conceitos, para tomar posse do reino dos céus. “Venha a nós o teu Reino”!].
A circuncisão não é o início [no caminho da santificação] porém é teste-
munho desse início; é uma imposição, uma conseqüência da própria fé e sua
promessa: a fé que é imputada por justiça e que é justificação perante Deus e de
Deus.
Enquanto a circuncisão, a religião e a Igreja servirem a este fim [ao fim
de testemunhar o início da fé] e guardarem no seu relacionamento com Deus a
humildade que este fim impõe, enquanto humildemente reconhecerem sua

203
4, 11-12 Fé é Começo

mundanalidade [inerente], enquanto tiverem [bem viva] a consciência de que


pertencem a este mundo, enquanto nenhuma outra pretensão tiverem se não a
de serem expressões da “fé do incircunciso”, têm elas condições [a se
candidatarem] à justificação divina nessa sua instrumentalidade, e de participa-
rem da significação e da dignidade da eterna origem e fim de todas as coisas;
[do Alfa e do Ômega].
Todavia, se a religião e a Igreja pretenderem ser mais do que a simples
“fé do incircunciso”; se a arrogância religiosa [ou o orgulho eclesiástico] qui-
ser elevar-se à categoria de um valor real (que jamais lhe será atribuível) então
(deixarão de ser símbolos;) serão inqualificáveis grandezas humanas [conside-
radas como sendo vis] dentro do próprio mundo que desejarem superar.
Quando se diz que Abraão “é também o pai dos circuncisos” ele o é,
enquanto estes também trilharem a senda da fé sem circuncisão, que nosso pai
Abraão trilhou.
Se a circuncisão, a entrada para a igreja, a aceitação da religião fossem
erigidas em valores reais [e meritórios dignos da justificação divina] perante
Deus, então seria necessário que o judeu primeiramente se tornasse gentio [para
então, conscientemente ingressar no judaísmo]; o homem já religioso deveria
primeiramente abandonar sua religiosidade e o homem de igreja deveria
mundanalizar-se.
Todavia, não é isso [o que Deus pede]. A destituição da gentilidade [a
conversão ao judaísmo] não é [o Alfa], o início [da carreira espiritual], como
também não o é a vantagem concedida ao judeu. Neste terreno “menos” [ou um
pouco menos] vale tão pouco quanto “mais” [ou um pouco mais].
O que precisa ficar claro é que toda a fé é, fundamentalmente, a “fé da
incircuncisão”, e isto, tanto para o gentio, desprovido de qualquer conhecimen-
to religioso [o homem de fora da Igreja], como para o judeu [o homem de
igreja] que tem a religião.
Esta fé se instala, independentemente do conhecimento e da experiência
religiosa, como o puro início [o Alfa no caminho do relacionamento do homem
com Deus].
O mundo judeu, religioso e eclesiástico é também parte do vasto mundo
ao qual se manifesta [e se dirige] a revelação e a promessa de Deus e que está,
todo ele, envolto no manto protetor da misericórdia divina.
Também os circuncisos são filhos de Abraão, porém não por força de
sua ascendência, não por força da tradição milenar do povo da circuncisão, [ou
pela tradição da Igreja e da religião], porém pela força da fé, que se apóia na
“tradição” e na continuidade que vem desde o além; por força de haver um só
Deus; por força de ser ele o Deus tanto dos gentios como dos judeus (3, 29-30).

204
Fé é Começo 4, 12

[Judeus e gentios] são recebidos por Deus como companheiros de peregrina-


ção ao longo dos caminhos da fé, sem levar em conta a circuncisão, conforme
também não foi considerado o estado (a situação) de Abraão, quando foi cha-
mado. Deus vai ao encontro do homem e o confirma sem cogitar de seu maior
ou menor acervo religioso [ou de qualquer outra realidade do mundo], para que
o homem saiba que deve dirigir-se a Deus e a Deus somente [sem nada poder
esperar de sua religião ou de seus predicados pessoais].
A peregrinação [ao longo dos caminhos da fé] é uma constante auto-
negação; é plena de desilusões e caracterizada por incansáveis e inabordáveis
privações, abdicações, renúncias e mortificações.
É um contínuo recomeçar, partindo sempre de novo da nua neutralidade
e indiferença do mundo, na sua absoluta pobreza e dubiedade.
Deus é encontrado, não em ambiente superior ao mundo, numa esfera
elevada, apropriada, religiosa, mas diretamente nesse mundo [miserável, frio,
indiferente, pecaminoso e duvidoso, por onde o peregrino da fé terá que vagar,
partindo sempre da “estaca zero”].
A verdadeira culminância religiosa nega-se a si mesma e se solidariza
de maneira absoluta com o mundo [embora a religião saiba que ele é indigno],
inferior (3, 22-23).
[A versão inglesa escreve: “O verdadeiro pináculo da realização religi-
osa é atingido quando os homens são empurrados para baixo, para a companhia
dos que jazem nas profundezas].
Fé genuína é a de Abraão, “sem circuncisão”.
Genuínos filhos de Abraão são aqueles suscitados sempre de novo, das
pedras (Mat. 3, 9).
Onde isto for esquecido, os primeiros serão os últimos e aqueles que [no
mundo] sempre são os últimos, passarão a ser os primeiros.
Estamos novamente ante o fato de que a história da Redenção põe em
dúvida os próprios “heróis da lei”, dúvida essa sobre a qual a própria lei silen-
cia, pois a única resposta que se lhe pode dar é Cristo, em sua ressurreição.
A confirmação do herói da lei [se dá quando ele se converte em herói da
fé] e o SIM com que é galardoado é de ordem diferente do SIM dos homens, e
só pode ser entendido através da morte do Filho do Homem.

Comentários: 4,9-12

1. Ao analisar a natureza da fé, diz o A. que ela não é, nem religiosa,


nem santa nem profana; mas é ambas as coisas. Para a intelecção
certa do texto, “profano” deve ser entendido como “oposto a religião”.

205
4, 9-12 Fé é Começo

Assim, as duas comparações “religioso e irreligioso”; “santo e profa-


no” são quase sinônimas. O surgimento da fé não se dá, obrigatoriamen-
te, dentro ou fora do ambiente religioso nem implica, essa fé, em conse-
qüente devoção ou sua negação. A fé simplesmente crê, e crendo é o
começo que pode levar à aceitação de determinado caminho, à adoção de
uma religião, como pode também levar ao abandono de um caminho que
esteja sendo trilhado e à rejeição de uma religião até então professada. A
fé embora contendo em seu bojo ambas as alternativas, não é volúvel,
não é incerta mas absolutamente firme (de outra forma não seria fé), e
por isso seguirá o caminho que a fonte divina determinar. Fora disso a fé
deixa de ser fé para ser superstição, crendice, carolice ou mania.
2. Nesta seção do Capítulo 4, o A. refere-se abundantemente à igreja e,
possivelmente, venham daí (pelo menos em parte) as acusações que
lhe são feitas, de que ele ensina e prega a sua extinção.
Há os que pretendem (ver “AB EXTRA” após os prefácios) que
Barth ao “combater” a existência da Igreja, pavimenta a avenida que
os marxistas hão de percorrer (ou que percorrem, mais recentemen-
te), servindo-se das idéias do A. para atrair, envolver e ludibriar os
cristãos mediante o estratagema de, conservando primeiramente a fé,
combater o culto e — cessado o culto, exterminar a fé. Seria (ou é
segundo esses críticos) uma estratégia sorrateira e progressiva adota-
da pelos marxistizantes para combater o “ópio do povo” ataque esse a
que os protestantes estariam mais expostos, talvez por sua liturgia
não estar impregnada do misticismo, do mistério, do subjetivismo
que domina o culto católico (romano e ortodoxo).
À luz do que, até aqui, o A. disse, essa crítica não é procedente pois
ele defende com muito vigor a tese de que a religião verdadeira é o sím-
bolo, o sinete que testifica, entre o Alfa e o Ômega, o milagre do surgimento
da fé; diz que a igreja, se for fiel, e enquanto for fiel, participará da digni-
dade e da glória da origem e do fim eterno de todas as coisas.
Que igreja será essa? E novamente o A. que o diz: é aquela que não
se esquecer que a fé é graça divina; que a justificação é pela fé; é aquela
que não pretender ser nada mais que testemunha do milagre da fé; que
humildemente reconhecer sua contingência humana, sem nenhuma outra
intenção ou pretensão a ser se não simples novo marco, humano e tran-
sitório, do milagre da fé.
É a igreja que não pretende possuir a palavra mágica que abre as
portas do céu; que não pretende ser depositária da graça divina, que
não diz, nem sequer pensa, que fora dela não há salvação.

206
Fé é Criação 4, 13

É a Igreja edificada por Cristo sobre a pedra fundamental que os


construtores rejeitaram (Jesus, o ressurrecto) contra a qual não prevale-
cerão as portas do inferno. Mas ainda esta igreja, como parte do mun-
do, é transitória; naquilo que ela representa obra de mãos humanas ela
desaparecerá junto com os céus e a terra, como também desaparecerá,
ao soar da última trombeta, o Livro dos Livros; permanecerá, porém, a
Igreja Santa e a Palavra Eterna de Deus — o Verbo que se fez carne, e
habitou entre nós — para que tivéssemos acesso ao trono da graça de
Deus. Então, tudo estará cumprido; não mais existirão lágrimas, nem
pranto, nem gemidos, nem dor. O próprio Senhor, o Deus agora ainda
desconhecido, enxugará toda lágrima... (Apoc. Caps. 7 e 21).
Então a Igreja terá cumprido a sua missão.
E a “outra” igreja, aquela que se arvorar em Senhora, em Ídolo,
em Deus? Ainda segundo o A. “será inqualificável grandeza humana”.
Acaso, está este ensino do A. em desacordo com a Palavra de
Deus? Acaso pavimenta ele o caminho da materialização e do ateís-
mo? Ou, não é justamente o contrário, pois, combatendo a
materialização da Igreja impede que o materialismo a invada? (E não
será, acaso, por isso, por serem as igrejas católicas (romana e ortodo-
xa) as que de longe se destacam das “irmãs separadas” na prática de
substituir Deus pelos seus fiéis e até por elas mesmas — que os povos
por elas dominados foram e são seara promissora e fértil na mão dos
marxistas materializantes?)

FÉ É CRIAÇÃO (4, 13-15(A))


V. 13 Porque a promessa de que haveria de ser herdeiro do mundo não foi feita
a Abraão, ou à sua posteridade, por força da lei mas por força da Justiça
da fé.
“A promessa de herdar o mundo”, é a renovação do mandamento origi-
nal: encher e dominar a terra. Este é o tema e o conteúdo da vida de Abraão: a
permissão para dominar sobre tudo o que Deus fez muito bem. Ou, expressan-
do-o de forma inversa: a perspectiva da bênção de todas as futuras gerações da
terra com a bênção de que Abraão já goza, antecipadamente, com vistas ao
nascimento de Isaque, seu filho “ultra” temporão e, após ele, Jacó (Israel) até o
Messias, que foi o advento do verdadeiro varão dos céus, e por conseguinte, a
verdadeira humanidade.
Como destinatário desta promessa, Abraão é o vulto clássico [o protóti-
po] da lei (Gen. 18, 17-19).

207
4, 13 Fé é Criação

Que Abraão recebeu essa promessa é evidente; e é por isso que


Israel o honra e porfia por ser sua descendência; quer estar de seu lado, e
gostaria de estar em comunhão espiritual com ele, [participando do mes-
mo espírito].
A peculiaridade de Israel consiste na sua disposição e sua ânsia de par-
ticipar da promessa que Abraão recebeu; a sua história é a história das vicissi-
tudes pelas quais essa disposição passou e, a sua esperança é a de retornar
sempre a essa promessa, a despeito dos descaminhos da história.
Não lhe foi prometido que seria herdeiro de um mundo abençoado por
Deus e que seria o intermediário da bênção divina a esse mundo? E esta pro-
messa, acaso, não se estende a Israel, que não só a recebeu como a recebe e a
receberá sempre de novo?
Sim; pode bem ser, mas de que forma e até que ponto?
Por “força da lei” ou por força da “justiça pela fé”?
O povo de Israel tornou-se depositário dessa promessa, segundo a lei,
através de uma série histórica de revelações semelhantes à de Abraão e, tam-
bém, na sua qualidade de povo da aliança de Deus.
Cabe, porém, a pergunta se esses acontecimentos históricos, e essa situ-
ação, são mais do que acontecimentos e situações históricas, isto é, se eles
representam também a atualidade dessa promessa, seu poder, e a efetivação
desse depósito.
Será que a manifesta disposição e o notável anseio que, de geração em
geração Israel tem em renovar [e guardar] as características da conduta de Abraão
são, em si, fundamentação suficiente para justificar a sua posição especial entre
as nações do mundo?
Serão, a história dessa disposição e a conhecida tradição do povo de
Israel, como tais, o princípio pelo qual a história de Israel se transforma na
história da redenção?
Serão, a proclamada esperança de Israel e a persistência com a qual esse
povo se apropria, sempre de novo, dos direitos de descendentes de Abraão, por
si mesmos, suficientes para a formação e a fundamentação de um núcleo de
“filhos” de Abraão?
Será que Israel entende corretamente a sua lei quando, por força do que
de fato está explícito e implícito nessa lei, na história, e nas esperanças do
povo, ele pretende fazer jus às promessas que essa conjuntura contém?
Se negarmos esse privilégio a Israel, não estaremos, simplesmente, dei-
xando de estabelecer [de confirmar] a lei (3, 31) atribuindo-lhe um sentido de
testemunha, referência, indicação, e não o sentido de poder, de realidade, de
constante atualidade?

208
Fé é Criação 4, 13

Os acontecimento e as situações históricas, embora não sejam mais que


história, acaso não apontam, para além de sua historicidade, a um poder origi-
nal, totalmente diverso?
Não se dará o caso de que tudo o que pudermos dizer de Abraão e de
seus filhos, não venha diretamente deles mas seja o reflexo de uma luz que vem
de outra parte?
Não é a história de Israel a “História da Redenção” justamente porque
delimita, configura, os eventos que não são históricos e constitui a resposta
audível da inaudível voz do apelo divino? E não é justamente esta contingência,
esta realidade, que gera a esperança de Israel? Sim, e é desta forma [e segundo
esta interpretação], que se honra, que se confirma, que se estabelece a lei.
Este é o sentido da lei: que pela justiça de Deus, mediante a justificação
pela fé, independentemente da lei, os filhos de Abraão são chamados à existên-
cia e confirmados.
[Esta é a posição justa para apreciarmos a pretensão de Israel: temos
que ver na sua história, na sua tradição e na sua esperança o testemunho audí-
vel, o marco visível da graça divina, graça que justifica pela fé. Temos que ver
na conjuntura de Israel o sinete da fidelidade de Deus que dá vida ao justo, que
o for segundo a fé. Nada mais compete a nós judeus ou gentios.
Outro pode ser, e efetivamente é, o julgamento divino sobre o mesmo
assunto, porquanto Deus julga segundo o secreto de cada coração. Na realida-
de, nós — os homens — não julgamos, pois não nos compete julgar mas nos
situarmos em cada contingência segundo as luzes de nosso entendimento é a
inclinação de nosso coração; é sob este ponto de vista que vemos na longa
história dos filhos de Abraão, segundo a raça, a poderosa mão de Deus. Toda-
via, aos descendentes carnais de Abraão Deus julgará segundo o que houver no
coração de cada um e conforme lhe aprouver ante as contingências e vicissitu-
des históricas em que as gerações e os indivíduos estiverem (ou houverem esta-
do) através dos tempos, pois grande e amarga tem sido a taça de provação desse
povo. E se este povo falhar, das próprias pedras pode Deus suscitar filhos a
Abraão. Segundo a raça? Segundo a fé? A Deus tudo é possível: Ele o sabe.
Todavia, a promessa de ser herdeira do mundo foi feita à “sua poste-
ridade”, pela fé. (4, 13). Podemos, pois, ver claramente que, efetivamente, ao
depararmos na história de Israel com os marcos da fé que balizam a história da
redenção, constataremos que todos estiveram (e estão) fundamentados na fé
singela e firme que habitou em Abraão, ainda antes da instituição da circun-
cisão.
Portanto, a sua descendência segundo a raça só poderá ser a intermedi-
ária da dispensação da bênção divina prometida ao mundo, na medida que ela

209
4, 14 Fé é Criação

trilhar os mesmos caminhos que o Patriarca Abraão palmilhou quando ainda


era “Abrão” quando foi chamado e creu.
Novamente a pergunta:
Ficará o mundo sem a bênção prometida se a raça do Patriarca, falhar?
Deus proverá como soube e quis prover quando Abraão levantava a lâmina para
imolar Isaque. Das próprias pedras Deus pode suscitar filhos a Abraão: agora,
segundo à fé!].

V. 14 Porquanto, se aqueles que são da lei, herdam, então a fé é vã e a promes-


sa é anulada.

Diz-nos o Gênesis que Abraão aceitou a promessa pela fé e pelo poder


criador da fé tornou-se a primeira pessoa a esperar pelo reino do Messias
(Gên. 15, 6).
[Notar as conclusões e as inferências que o A. tira da frase: “E creu ele
no Senhor”. Como foi o diálogo? Em visão ele ouviu a palavra do Senhor
dizendo: “Não temas, eu sou o teu escudo e grandíssimo galardão”.
Abraão era, então, ainda Abrão; voltara vitorioso da sua campanha con-
tra quatro reis para libertar seu sobrinho, e não aceitara galardão; todavia, em
tributo de honra e louvor ao Deus Altíssimo, pagara ao sacerdote Melquisedeque,
o dízimo de tudo!
E a palavra de Deus lhe diz: “Eu sou teu grandíssimo galardão”!
E o futuro Abraão pensa em Deus, como um seu igual: “O que me hás
de dar? Não tenho filhos e quem administra (e portanto herdará) minha casa “é
um estrangeiro”...
Mas Deus, paciente, levou o velho beduíno para fora, para contemplar a
vastidão dos céus, salpicada de estrelas e lhe disse: “Conta-as, se podes: pois
igualmente incontável será a tua descendência”.
E Abrão creu.
Essa descendência multiplicou-se pela graça, e por ela e dela veio o
cumprimento da promessa da bênção que foi a bênção por excelência a
todas as nações da terra; o advento de Jesus, que se chama o Cristo; Emanuel,
Deus conosco; o Príncipe da paz, Deus forte, Pai da Eternidade; Redentor e
Salvador.
Crendo na promessa divina Abraão foi ao encontro da fidelidade de Deus,
para que o “justo” vivesse.
É por isto que se justificam as inferências e conclusões que o A. tira da
passagem simples do Gênesis].

210
Fé é Criação 4, 14

É certo que a fé tem sempre o seu lado “legal”. Ela pode ser um aconteci-
mento, uma situação. Todavia, no seu aspecto legal ou visível; na sua conjuntu-
ra histórico-espiritual, como um evento imaginável ou uma situação atingível;
ou ainda como uma “possibilidade possível”, a fé redunda vazia, despojada de
sua dinâmica, e destituída da certeza que, de outra forma, a caracteriza.
A fé fica “esvaziada” se Abraão e seus filhos forem o que são por força
da lei.
A fé é o firme fundamento se ela representar o passo eterno para o total-
mente invisível, sendo ela, também, invisível.
A fé será negada [esvaziada, aniquilada] em seu sentido espiritual,
por toda situação ou por todo evento visível que a acompanhar; por todo
meio temporal, por todo pragmatismo, e por todo e qualquer método que
sejam prescritos [para seu nascimento ou seu crescimento e empregados
para esse fim].
A fé somente vale por fé se for o passo à frente que vem de Deus e que
só Deus torna possível e compreende. A fé somente terá poder criador quando
ela for a luz da luz não gerada; a fé somente será viva, quando for a vida que
vem da morte; a fé somente será positiva se o ser humano, por ela, for funda-
mentado na insondabilidade de Deus. Somente então é a fé imputada por justi-
ça e o homem será o destinatário [o receptáculo] da promessa divina.
Fora dessa qualificação divina da revelação que a humanidade possa
encontrar na lei, mesmo a fé mais profunda, a mais ardente, a mais séria, não
passa de simples descrença; e quando a fé é negada, anulada, invalidada, tam-
bém cessa o cumprimento da promessa, pois esta somente pode ser recebida
pela fé e mediante a fé.
[Suprimida a fé resulta, IPSO-FACTO, suprimida a promessa, pois a
fidelidade de Deus se manifesta através da fé. É por isso, que em Hebreus 11, 6
se diz que sem fé e impossível agradar a Deus, pois é necessário que aquele que
se quiser aproximar dele, creia que ele existe].
A promessa que Abraão recebeu é indescritível, está além de toda per-
cepção, de todas as possibilidades humanas e de toda realidade. Nada conhece-
mos do mundo abençoado e tornado bom por Deus; a soberania do homem
sobre tal mundo não é, sequer, um objetivo historicamente imaginável; é o
Messias que tem essa soberania não é um homem segundo os que conhecemos.
[É por isso tudo, que a promessa feita a Abraão é inteiramente inverossímil,
totalmente inviável, do ponto de vista humano].
A graça da criação, como a graça da redenção, não é uma dádiva que
venha junto com outras dádivas; ela é a relação invisível na qual estão todas as
dádivas [divinas], e o seu reconhecimento é sempre, e sobretudo, dialético.

211
4, 14-15 Fé é Criação

[A promessa feita a Abraão não encontra apoio lógico nos fatos materi-
ais, visíveis e, por isso mesmo, só pode ser aceita, assimilada, apropriada, pela
fé; Abraão creu sem nada saber ou entender do mundo transformado pela graça
divina e de como iria herdar esse mundo que foge inteiramente do domínio dos
homens.
No entanto, diz o Autor que a fé é poder criador e esta graça, justamente
por estar fundamentada na fé é, semelhantemente a própria fé, imponderável,
imaterial, invisível aos olhos do mundo e só é reconhecível na dialética, isto é,
pela busca da verdade e sua aceitação mediante o confronto da própria fé com
a promessa, e vice-versa. O diálogo, a “racionalização”, faz-se entre a promes-
sa e a fé].
Na narrativa bíblica, a história de Abraão apresenta a fé e a promessa na
mais alta “negatividade positiva” de sua oposição mútua, pois a promessa é
inteiramente incongruente com a situação de Abrão e com os eventos e situa-
ções criadas [posteriormente] na história da esperança de Israel.
[É por isso que afirmamos que] se a promessa não for recebida pela fé,
jamais será recebida. Sem fé, a promessa não passará de uma proposição “mítico-
escatológica”, semelhante a todas as demais proposições religiosas que exis-
tem por aí.
Não há experiência, não há êxtase, não há exorcismo, nem olho, nem
ouvido, nem coração, que possa agarrar a promessa, [retê-la, beneficiar-se dela
ou entendê-la] se ela não for assimilada pela fé.
Se formos herdeiros pela lei estamos, realmente, deserdados; estamos
excluídos da candidatura à herança prometida, não somos Abraão, nem filhos
de Abraão!

V. 15 Pois a lei, sem a fé, não traz ao homem a promessa de Deus, porém, a sua
ira. Todavia, assim como a lei não é decisiva, também não o é a sua trans-
gressão.

[A tradução de Almeida (acompanhada das outras que temos citado), diz:


“Porque a lei opera a ira; porque onde não há lei também não há transgressão”].
“A lei opera a ira”.
Entendemos, então, que a lei propriamente dita, a lei sem fé, é um trans-
torno para o homem, um obstáculo à herança do reino de Deus?
— Sim; é exatamente isto.
É certo que, mesmo abstraindo da fé, a lei tem sua própria positividade
e pode, na realidade, ser apreciada sem se considerar o seu papel [a sua função]

212
Fé é Criação 4, 15

de testemunho e indicação. Sem dúvida, como acontecimento e situação histó-


rico-espiritual a lei tem, também, o seu peso específico e sua significação, pois
é certo que as experiências humanas, [os feitos e as realizações do mundo que
se processam sob a égide da lei], sempre brilham por sua própria luz. Porém
não nos devemos iludir dando a estas qualidades mundanas da fé uma impor-
tância decisiva.
Deixando de considerar a relação existente entre as coisas temporais e
suas origens eternas, colocamo-las sob a luz do mais destrutivo ceticismo; na
verdade, [abrimos o caminho a] um ceticismo incurável.
[Se os eventos histórico-espirituais nada tiverem do além, nada teste-
munharem dele e forem considerados apenas como valores emanados de nós
mesmos: nossa espiritualidade, nossa devoção, nossa fé, então cedo chegare-
mos à conclusão lógica de que nos bastamos a nós mesmos; que tudo vem de
nós. Então, se raciocinarmos e, se formos honestos em nosso raciocínio, chega-
remos à conclusão de que “Deus não existe”, e estará implantado o ceticismo
que, dentro de semelhante análise, não será curável].
Acaso a lei confirma a promessa? — Impossível, pois a promessa veio
primeiro e depois a lei que, testemunhando a promessa visa preparar os cami-
nhos, preparar as veredas, orientar o peregrino, para dar aso a seu cumprimento.
[A lei é secundária, com relação a promessa, e o que é secundário não
pode confirmar o essencial antes este, em se cumprindo, confirmará o secundá-
rio, o acessório, que lhe foi por testemunha, durante o tempo anterior a seu
cumprimento].
A afirmação de que a lei confirma a promessa sucumbe ante a incongru-
ência evidente entre a promessa e tudo o que tem cunho histórico, ainda que
histórico-espiritual, entre a promessa e tudo o que e visível.
O único elemento visível na promessa é o fato de ela não ser idêntica à
impressão Espiritual-Histórica da revelação de Deus ao mundo. [Esta revela-
ção, como parte do mundo, sendo portanto do mundo] é apreçada em termos
mundanos, e não pode produzir a promessa nem a filiação de Abraão; antes
produz a ira de Deus se não for considerada como testemunha e indicação do
além mas como realidade em si. É este suposto valor, esta suposta realidade,
essa pretensão de grandeza absoluta, na sua ajustada semelhança a Deus, que
se traduz em impiedade e injustiça (1, 18) e que suscita a ira de Deus.
Toda religião, enquanto estiver do lado de cá, enquanto for história con-
temporânea, realidade palpável, está sujeita a essa regra, e dela não escapa a
religião legítima, sincera, profunda; nem mesmo a religião de Abraão e dos
profetas, a “religião da carta aos Romanos” nem tão pouco — é isto e evidente
— a “religião” de todos os livros que se escreverem sobre essa epístola.

213
4, 15 Fé é Criação

Quem tentar descrever o que é eterno e vivê-lo na temporalidade, isto é,


contemplá-lo, analisá-lo, configurá-lo, esse tal trata da lei e quem cuida da lei,
fala de transgressão.
É justamente onde estiverem as mãos postas; onde houver a sensação viva
da presença de Deus; onde se falar das coisas divinas e onde estiver a pregação;
onde houver a construção de templos e onde as obras forem motivadas por ideais
e razões as mais dignas; onde houver missão e mensagem da ordem mais eleva-
da; é aí, [nesse ambiente da mais alta santificação] que domina o pecado (5, 20)
quando não estiver presente, também, a maravilha, o milagre do perdão, quando
o temor do Senhor não estabelece a distância que medeia entre a criatura e o
Criador (1,22 seguintes).
Nenhuma atitude humana é mais duvidosa, mais arriscada, mais sujeita à
crítica, do que a religiosa; [também é certo que] nenhum empreendimento volta-
se contra o seu empreendedor, para o julgar, com maior rigor.
Todo esse vasto mundo, tão rico em aparência de culto a Deus, exibindo
desde a mais grosseira superstição até o mais refinado espiritualismo, e que vai
do mais honesto aclaramento até a mais suculenta prática metafísica tem, pe-
rante Deus, o aspecto de arrogância [atrevimento, irreverência, abuso] e, peran-
te os homens, com mui justa razão, o aspecto de fantasmagoria: exala tanto
para cima como para baixo, um forte odor de dúvida.
Todavia, não nos enganemos: idêntico odor de suspeição envolve tudo
quanto se opõe ao mundo aparente da religião. Isto é: [estão sujeitos ao mesmo
julgamento] tanto a afirmação como a negação religiosa; tanto o construir como
o derribar templos; tanto o discursar impertinente [a pregação a tempo e fora de
tempo] como o inoportuno silêncio. De Amazias e Amós; de Martensen e
Kierkegaard. Portanto, também desde o protesto contra o mundo religioso, de
Nietzsche, até os mais vis devoradores de sacerdotes, passando pelo romantis-
mo totalmente antiteológico dos estetas, pelos socialistas e pelos movimentos
de juventude de todos os matizes.
Essa “suspeição” transforma-se em acusação certa e o “odor” espalhado
transmuda-se em densa nuvem da ira de Deus, quando a manifestação religio-
sa, ou anti-religiosa, não apontar declarada e conscientemente para além de si
mesma, porém buscar a sua própria justificação [sua implantação, sua promo-
ção] e isto para qualquer que seja a forma com que tais movimentos se apresen-
tem, seja como fé, como esperança e amor, ou [como ideal político, como re-
forma da igreja, como liberdade dos povos, ou libertação de oprimidos ou en-
tão que tenham os próprios] gestos dionísicos do Anticristo.
[Todo movimento, toda pessoa, toda agremiação] que não consentir em
sua própria supressão [perante Deus], porém tentar justificar-se [seja pela sua

214
Fé é Criação 4, 15

confirmação, com um SIM, ou mediante o NÃO, que acaso pregue, ensine ou


deseje], será julgada por essa sua atitude.
Os crentes na imanência, de cá e de alhures, deveriam meditar sobre
este assunto: “A lei gera a ira”.
[O Autor refere-se aos que crêem na materialização dos fatos
transcendentais e que, portanto, se atêm a lei. (Quiçá os teosofistas...). Essa
materialização, de aspecto auto-suficiente em si, gera a ira de Deus].
“Onde não há lei, não existe transgressão”.
Existe uma justificação para a atitude religiosa, tanto para [a que ao
mundo parecer] a mais legítima, como para [a que parecer ser] a menos
legítima. Há uma justificação para a religião de sentido profundo e para a
de sentido não tão profundo; para a religiosidade profética e para a farisáica.
Como contraste, portanto, há também uma justificação à oposição à reli-
gião. (No que, talvez, possam regozijar-se os inquisidores, mas não por
muito tempo...).
Esta justificação é a “Justificação pela fé”.
Todavia, a fé [que pode candidatar-se a essa justificação] é aquela que
não estiver fundamentada nos acontecimentos [nos eventos] e em personagens
(quiçá dignitários) do mundo; é a fé cuja manifestação não tem por origem
estes fatores humanos e materiais.
A fé [que pode trazer a justificação] há de ater-se humildemente à “rea-
lidade” de sua mera aparência histórico-espiritual e ter consciência que tanto a
positividade quanto a negatividade que o mundo lhe atribuir, são a mais absolu-
ta negatividade perante Deus.
A fé [para ser elegível como adjudicatória da justificação divina] preci-
sa corresponder à posição crítica que separou o religioso Lutero do religioso
Erasmo e o anti-religioso Overbeck do anti-religioso Nietzsche.
A fé [só pode ser considerada como tal] quando ela nada é se não um
relacionamento [confiante] de todo conteúdo humano com a sua origem eterna,
em nada sendo [parecendo ser ou se candidatando a ser] uma abertura para a
vida, que viesse da morte.
Na medida que este aspecto invisível da fé for decisivo, perderá força a
transgressão que seu aspecto visível sempre significa.
Se este for o ponto central [se o aspecto invisível da fé dominar na men-
te, no coração, no espírito] tanto do religioso como do irreligioso; se a atitude
de um e de outro com respeito à religião tiver o seu baricentro para além da
própria atitude individual, então a dubiedade de sua aparência perde seu peso
específico [ou este peso já não atua sobre os braços da balança] e a razão para
o ceticismo desaparece.

215
4, 15-16 Fé é Criação

Pode acontecer, pelo constrangimento de um “apesar de” divino; do reco-


nhecimento da sempre reiterada necessidade do perdão; ou em conseqüência
do tremor e da humildade, que já não mais seguindo caminhos humanos e sem
nada ter a ver com qualquer justificação nem perante Deus nem perante os
homens sim, pode acontecer, que o sacrifício, a prece e a pregação, a profecia,
o misticismo e o farisaísmo, a teologia, a piedade e a religiosidade, catolicismo
e protestantismo, [ou outras formas de adoração] (e até) “Carta aos Romanos”
e outros livros que, fundamentalmente, não pareçam ser tão radicais e não apre-
sentem tão grandes protestos, todos juntos espalhando seu conteúdo [e seu abuso]
pelos quadrantes da terra — sejam justificados à luz da seriedade e do beneplá-
cito divino.
[O original diz “... im Lichte goettlichen Ernstes und goettlichen
Humors”. A tradução inglesa diz: “Justification can be found only in the light
of God’s sincerity and of his irony”.
Entendo que o original (pelo menos segundo a 5º edição alemã), não
justifica a versão inglesa.
Também não considero próprio: nem bíblico nem em harmonia com o
contexto, o substantivo “humor”; não com o sentido direto dessa palavra em
alemão — (humorismo) e muito menos com a conotação de “boa disposição”
que representaria um estado de ânimo mutável, quiçá uma casualidade capri-
chosa, acidental. Se o A. houvesse tido esse pensamento em mente, provavel-
mente usaria a palavra alemã “Laune”, que expressa exatamente este estado
caprichoso do ânimo, para bem ou para mal, bom humor ou mau humor.
Também não vejo a possibilidade de jogo de contrastes entre a “seriedade”
e o “humorismo”, semelhante ao comentário que o A. faz sobre o julgamento do
homem pela fé, afirmando que a alegria divina pelas boas obras humanas não
estará isenta de certa melancolia — porque tais obras só valem pela fé, e que a
tristeza pelo descalabro do ser humano será também acompanhável de discreto
sorriso, porque para esse descalabro há uma esperança. São ambas figuras, metá-
foras, que reforçam a exposição. Se, no caso em tela, o pensamento do A. teve em
vista semelhante antítese, parece-me que a figura não foi feliz, segundo a conotação
que a tradução direta do vocábulo possa ter em nossa língua.
Portanto, não podemos escrever nem “humorismo”, nem “humor”, nem
“ironia”, pois não representariam atributos próprios de Deus.
Ficamos, portanto, com o “beneplácito”.].
Não nos esqueçamos, porém, que esta justificação divina será sempre
“na medida” que o aspecto invisível da fé, dominar; todavia, neste domínio,
nesta aparente condescendência divina em revestir o divino com trajes humanos,
de envolver o eterno na sua semelhança temporal, não está uma possibilidade

216
Fé é Criação 4, 16-17

humana, mas a “impossível possibilidade”; ela representa o instante decisivo,


que não tem nem precedente nem seqüente.
Essa possibilidade não é um estágio, uma plataforma, onde nos estabe-
leçamos, mas é uma passagem, um divisor de águas onde somos chamados a
optar, e esse instante, esse ponto, essa oportunidade de opção vem de Deus,
exclusivamente.
Jamais podemos alegar que chegamos a esse ponto crítico ou que alcan-
çamos essa possibilidade, ou que, de alguma forma, contribuímos para sua exis-
tência; compete-nos, apenas, constatar com temor e tremor que essa “impossí-
vel possibilidade” pode acontecer.
Sem essa fé que se manifesta em temor e tremor, a lei será sempre o
imenso obstáculo que nos impossibilitará a aspirar ao Reino dos Céus.

V. 16 a 17a É por isso que dizemos: os herdeiros são os que o são, mediante a
fé, o que de outro modo se diz: Pela graça; e a promessa é válida para toda
descendência de Abraão, não somente para quem o é pela lei, mas também
para quem o é pela fé, pois todos temos a Abraão por pai, como está escri-
to: constituir-te-ei pai de muitas nações.

“Por isso, pela fé”. Sabemos o que dizemos. Nem existe qualquer outra
possibilidade, se não dizê-lo.
A lei, a história, a religião de Israel é a forma dentro da qual esse povo
pode ser aspirante, candidato à herança divina, porém não é uma força criadora
que lhe garanta o gozo dessa herança.
Se a conjuntura da história, da lei, da religião, representar alguma força,
esta será terrena, do mundo; [será na realidade] uma reação [uma força em
sentido contrário] que, na verdade, impossibilita a co-participação na herança
de Abraão.
A certeza de ser contado entre os filhos de Abraão, a realidade do ato
criador que “das pedras pode suscitar filhos a Abraão”, não está nas “possíveis
possibilidades” da lei mas na “impossível possibilidade” da fé.
“O que, de outro modo, se diz: pela graça; e a promessa é valida para
toda descendência de Abraão”.
Mais uma vez, ante a ponderação sobre o que transforma Abrão em Abraão
(4, 1), [Abrão, “pai da altura”, para Abraão, “pai de uma multidão” — Ver Gen.
17, 5] somos levados para além das coisas visíveis e chegamos ao primeiro rela-
cionamento, original, que não só fundamenta a alma de Abraão e torna possível a
sua existência histórica, como vai para além de sua história e de sua alma.

217
4, 16-17 Fé é Criação

É pela graça que Abrão é Abraão. É pela graça que a lei tem significa-
ção; que a história tem sentido: e que a religião é uma verdade.
Pela graça, porém, quer dizer à luz da linha da morte, que é o limite
absoluto de toda visibilidade humana, (e justamente como tal, é a linha da vida,
vinda de Deus); é o último NÃO, que também é SIM; é o último julgamento
que, só ele, pode ser também a justificação.
Quando este relacionamento ocorre [(o primeiro relacionamento entre o
homem e Deus, e que vai além de toda a realidade humana)] então revela-se a
finalidade da moldura histórico—psicológica de “Abraão” e “Israel”: a lei é
estabelecida (3, 31). Falamos de Abraão, e temos que falar em Cristo. Falamos da
fé que Abraão teve, e temos que falar na crise universal do “aquém” e do “além”,
anunciada em Cristo. Falamos dos filhos de Abraão e temos de falar de todos
aqueles que, atingidos por essa crise, participam da ressurreição de Cristo Jesus.
São herdeiros os que o são, não pela lei, mas pela fé; não são herdeiros
por força dos acontecimentos histórico-espirituais, porém pela graça, pois está
claro que a co-participação dessa herança não está ligada à filiação de um “tronco
de Abraão” constituído segundo a lei, [como se fora a filiação a alguma
agremiação ou a um clube], nem está a co-participação dessa herança condicio-
nada à participação de um Israel histórico, ou de alguma cultura ou tradição,
com direitos adquiridos por transferências sucessivas [de títulos, de qualidades
ou mesmo de genes da raça].
Com semelhante limitação de “herdeiros”, a herança seria mais que du-
vidosa. (4, 14-15).
Como destinatário da promessa “mediante a fé”, o próprio Abraão fica
fora de todos os círculos de delimitação histórica e assim também a sua semen-
te, a saber: a geração dos que crêem. Mas entre esta geração podem estar tam-
bém aqueles que são seus filhos segundo a lei [e segundo a carne] e [todos
juntos] podem aspirar ao reino do Messias e à bênção de Deus.
O relacionamento que houve originalmente entre Abraão e Deus pode
ocorrer também entre Deus e os homens dos diferentes círculos de delimitação
histórica, pois Deus é, também, o Deus dos judeus (3, 20); mas não somente
dos judeus! Para testemunhar a revelação Deus pode, em sua fidelidade, con-
duzir os homens às [mais variadas] conjunturas psico-históricas [ou histórico-
espirituais].
Mas se a suscitação [e a validação] de filhos de Abraão for pela fé, se os
filhos de Abraão forem criados [e reconhecidos] pela fé somente, então desapa-
rece toda forma de sectarismo, desde o mais grosseiro, até o mais refinado.
A palavra que foi dirigida a Abraão “pela graça”, e que foi por ele ou-
vida “mediante a fé”, não tolera, por princípio, nenhuma restrição esotérica

218
Fé é Criação 4, 16-17

[não pode haver restrição de extensão da graça e do dom da fé a grupos espe-


ciais, favorecidos, eleitos e, ou, teologicamente iniciados]; essa palavra vale,
basicamente, a quem quer que seja que tenha semblante humano; ela é qual
gume que desce verticalmente dos céus, cortando todas as agremiações dos
homens, porém, também as alicerçando; essa Palavra é tanto a supressão como
a fundamentação das arregimentações humanas; a interdependência delas, é o
próprio Deus.
[Em outras palavras: a graça divina e o privilégio da justificação pela fé,
não se orientam, nem se restringem, a grupos humanos, quaisquer que sejam
suas origens; antes, a palavra de Deus dissolve esses grupos e uma nova condi-
ção, um novo “status” se estabelece aos que ouvem a palavra divina mediante a
fé. Para estes tais é o próprio Deus o elemento de aglutinação].
Qual é a nossa posição, quando dizemos: “Estabelecemos a lei; este é o
sentido da lei, a saber: que Abraão é o pai de todos nós, em Cristo”?
O que está escrito? “Eu te constitui por pai de muitas nações”. (Gen. 17, 5).
Sim; uma das nações das quais Abraão é pai, é Israel. Porém, vimos que
ele é o Pai dessa nação, em Cristo; logo, ele é também o Pai das muitas nações,
[que participam da ressurreição, em Cristo].
Não é evidente que a história se desnuda, quando revela seu segredo?
Não temos motivos para temer a luz da história que nada mais fará que
testemunhar a respeito do sacrifício de um por muitos e do perdão para os
pecadores. “E ouvindo estas coisas, calaram-se, e louvaram a Deus dizendo:
na verdade, também aos gentios deu Deus o arrependimento para a vida”.
(Atos, 11. 18).

Comentários: 4, 13-17a

1. Algumas referências a nomes menos conhecidos, que o A. cita nesta


seção do capítulo:
Amazias: É o profeta contemporizador que se levanta contra Amós.
(Ver Amós, cap. 7).
Martensen, Hans Lassen — Teólogo dinamarquês da segunda metade
do século XIX. Seguiu a filosofia de Hegel e foi fortemen-
te criticado por Kierkegaard.
Overbeck, Franz — Teólogo alemão, também dos fins do século XIX,
(= 1905). Foi terrivelmente cético pondo em dúvida toda a
organização das igrejas cristãs, inclusive as protestantes;
ele era ligado à Igreja Evangélica e lecionou “Teologia do

219
4, 13-17 Fé é Criação

Novo Testamento e História Eclesiástica”, em Basiléia.


Barth o cita freqüentemente, apontando-o sempre como
perquiridor da verdade divina conforme se acha (ou julga-
va achá-la) além dos conceitos e preconceitos humanos.
2. Fé é criação. Criação do que? E de que forma?
Fé é o poder que gera filhos a Abraão, segundo a fé. Foram os
presunçosos fariseus e saduceus que, astuciosamente, “para fugir da
ira vindoura”, procuravam João, o batizador, para serem por ele
batizados. Eles não desejavam “lavar-se” de seus pecados, entrar na
morte para emergirem em vida nova, que disso não sentiam necessi-
dade, pois eram filhos de Abraão. Peculiaridade e privilégio deles,
muito acima do demérito dos vis publicanos... Foi por isso que os
censurou João: “Raça de víboras... não presumais em vós mesmos,
dizendo: “Temos a Abraão por pai”... (pois)... “mesmo destas pedras
Deus pode suscitar filhos a Abraão”. (Mat. 3, 5-9).
Esta é a criação da fé: homens e mulheres que produzem frutos
dignos do arrependimento; que não buscam os seus próprios interes-
ses, nem para galardão nem para fuga à ira, mas crêem; crêem com
reverência, com tremor e temor. Semelhante fé não vem do querer
dos homens, do seu labutar, do seu estudar, mas vem de Deus.
E de que forma? Pela graça, numa espécie de cadeia contínua. De
fé em fé.
Abraão creu, e isto lhe foi imputado por justiça.
Abraão creu na primeira promessa: na terra que Deus ficou de lhe
mostrar.
“Sai da tua terra e da terra de tua parentela,... para uma terra que
eu te mostrarei, e far-te-ei uma grande nação... e tú serás uma bênção”!
(Gen. 12, 1-3).
Como seria ele uma bênção? Como seriam benditas nele, todas as
famílias da terra?
Abraão não perguntou: apenas creu, e partiu...
Foi-lhe mais fácil crer depois: “À tua semente darei esta terra”
(Gen, 12, 7) e, novamente, “farei a tua semente como o pó da terra”
(Gen. 13, 16). Era uma questão de sua prole: de filhos, dos filhos dos
filhos. Porém os anos correram e “os filhos” não vieram. Quando
Deus lhe garante um “grandíssimo” galardão (Gen. 15, 1 e seguintes)
Abraão não consegue calar-se ante a enorme incongruência existente
entre a promessa reiterada e a situação real, prática.
Velhos, ele e Sara, e o lar não teve a bênção de um filho sequer.

220
Da Utilidade da História 4, 17

Todavia, já fortalecido no exercício da fé, creu ainda, a despeito


da evidência meridiana de seu claro raciocínio. Creu tão firmemente
e tão robusta foi essa fé a ponto de um dia, não em ato repentino, mas
após longa preparação, levar seu filho, seu único filho, o filho da
promessa, às terras distantes de Moriá, para amarrá-lo firmemente
sobre o altar sabendo que das próprias pedras do altar do holocausto
Deus poderia suscitar-lhe outros filhos.
E deste modo que age e se conduz a fé criadora. Esta fé cria mais
do que “muitas nações”. Ela gera a imputação da justiça de Deus.
“Senhor, aumenta a nossa fé”!

DA UTILIDADE DA HISTÓRIA (4, 17A a 25)

V. 17 (segunda parte) Abraão é pai de todos nós, perante Deus, em quem creu:
O qual vivifïca os mortos e fala como sendo.

[Segundo Almeida. “Chama as coisas que não são, como se já fossem”]


“Perante Deus, em quem creu” Abraão é o pai de nós todos.
A história e a personalidade histórica dos seres humanos nunca fica in-
teiramente fora dessa luz superior que não está na história: “Perante Deus, em
quem ele creu”.
Nesta luz desaparece a individualização do indivíduo, o passado do que
é remoto, o afastamento do que é distante, a separação [a seleção] do que é
especial; desaparece a casualidade do que é pessoal.
Sob esta luz superior aparece a simultaneidade de todos os aconteci-
mentos e a uniformidade de sua importância e de seu valor.
Sob esta luz, a história fala como sensata mestra da vida (HISTÓRIA
VITAE MAGISTRA).
É por causa desta luz, e por ela somente, que espreitamos a voz da história.
“O que não é histórico” é semelhante a uma atmosfera envolvente na
qual a vida se gera espontaneamente e desaparece se essa atmosfera for
destruída... Onde estão os feitos que o homem gostaria de realizar, que já não
tenham estado, primeiramente nesta penumbra da história?... Pudesse alguém
penetrar nessa atmosfera onde se forjam todos os grandes acontecimentos (con-
forme se verifica abundantemente) esse tal, como ser racional, poderia elevar-
se acima da história e poderia, a partir de então, deixar de levá-la muito a sério.
“Ele teria aprendido, de uma hora qualquer, fosse do primeiro século ou
do século dezenove — da vida de qualquer um, grego ou turco — como, e para
que, se vive” (Nietzsche).

221
4, 17 Da Utilidade da História

A timidez do “pensamento retilíneo” [do pensamento horizontal, que


não se eleva para o alto] considera essa parte “não histórica” da história, essa
luz superior, como sendo mitologia ou misticismo; de nossa parte, porém, pre-
ferimos distinguir, justamente no traço crítico da “linha que separa a claridade
visível da parte não descoberta e escura” (Nietzsche), o que “não é histórico”,
isto é, o condicionamento primitivo, anterior à história, e que a determina; que-
remos distinguir nessa linha crítica a luz do “Logos”, não só de toda a história,
mas de toda a vida.
“Perante Deus, em quem creu”, Abraão é o pai de todos nós.
Fé, como milagre absoluto, como puro começo, como criação original,
que é o relacionamento desconhecido de acontecimentos e situações conheci-
das com o Deus desconhecido; este é o princípio para o acontecimento e é a
força testemunhadora da personalidade de Abraão. Semelhantemente, este re-
lacionamento é também a base para o conhecimento e a força testemunhadora
da história (como fato passado e como revelação e notícia do que aconteceu).
O fato de Abraão ser o pai [de alguns], segundo a carne (4, 1) não se
comprova nem se realiza outra vez, segundo a carne, naquilo que e visível,
porém no invisível, pois ele é nosso pai perante Deus.
Perante Deus, “o qual vivifica os mortos, e fala ao que não é, como sendo”.
É nisto que a fé se destaca do mundo indefinido do misticismo e da
mitologia, como sendo o princípio básico do conhecimento e da força
testemunhadora da história.
A fé não representa uma excelência, um aprofundamento ou um enri-
quecimento deste nosso mundo por outro “interior” e até “mais sublime”; não
se trata de duplicação cósmica, metafísica; nem mesmo a triplicação ou a
septuplicação de uma dada situação de nossa vida, mas a sua única maneira de
ser, a sua forma definitiva, final, porque é o contraste intransponível da vida
para a morte e da morte para a vida; e o contraste d’aquilo que não é, ante
aquilo que é, e vice-versa.
A vida e a existência do além representam, para a fé, tudo quanto, do
lado de cá, podemos identificar apenas como sendo morte e aniquilação;
semelhantemente, a fé representa, no além, a aniquilação e a morte da vida e da
existência do lado de cá da linha divisória. Observamos a figura ímpar de Abraão
à claridade desta luz superior, da linha crítica.
Uma passagem, um desenvolvimento, uma “subida”, ou mesmo uma
“edificação” feita daqui para o além, está inteiramente fora de cogitação. Se-
melhante iniciativa significaria apenas morte e aniquilação, para o “lado de lá”;
igualmente, o objetivo a ser atingido do lado de lá, para o lado de cá, só pode
ser visto como aniquilação e morte.

222
Da Utilidade da História 4, 17

No impasse criado pelas duas negativas, resta apenas a “impossível possi-


bilidade” de que, também nesta situação, “menos por menos seja igual a mais”:
que do relacionamento entre essas duas negações absolutas, e da supressão de
uma pela outra, resulte, sobrepujante, a sua força original.
[Vistos do lado de lá da linha do horizonte, de nada valem o nosso lutar,
nosso planejar, o nosso agir e construir. Se quisermos contemplar, com os olhos
de nossa imaginação e segundo a perspectiva do mundo material, — o que
poderíamos criar para o além, o que acharíamos senão a fria laje tumular, o pó
retornado ao pó ou, então, a loucura?
Perante a fé, são negativas as nossas obras, vistas por Deus; e, pela nos-
sa materialidade, para nós é negativo tudo quanto existe além túmulo.
E a negação divina que nos liberta da negação humana; é nessa relação
que Deus, na sua fidelidade, nos recebe segundo nossa fé.
Será sempre a despeito da fraqueza dessa fé; será sempre pela miseri-
cordiosa graça divina, O justo viverá pela fé, porém a fé acrisolada, santificada,
purificada pela fidelidade de Deus.
Na raiz da raiz, está a fidelidade de Deus.
É no encontro da negação do homem que a tudo renuncia porque sabe
que nada é e nada tem perante Deus, com o NÃO divino que recusa tudo o que
o homem tem, ou pretende ter, que resulta a fecunda graça divina da redenção.
“Menos por menos da mais” ...].
Os “vivos” precisam morrer, para que os “mortos” sejam vivificados.
“Aquilo que é” precisa ser reconhecido como “não sendo”, para que a palavra
seja dirigida ao “que não é”.
Esta é, [segundo os homens,] a ciência impossível; a impossível ressur-
reição; o impossível Deus Criador e Redentor, que unifica o “aquém” e o “além”.
Este “impossível” foi o sentido da fé que Abraão teve, e que emerge das
entrelinhas da história do Gênesis como o impossível e o invisível em sua plena
invisibilidade. [Todavia, esse impossível surge como o único elemento que con-
firma e torna possível a história, [a realidade]! E surge como crise e, por isso, é
interpretável como sendo mito ou misticismo). Esse mesmo impossível emerge
à roda da filosofia de Platão, da arte de Gruenewald e de Dostoiewski, e tam-
bém no contorno da religião de Lutero. [Gruenewald foi pintor alemão dos
primeiros anos do século XVI, considerado como expressão máxima da pintu-
ra gótica sendo reputada como sua maior obra a cena da crucificação (Ver nota
na pág. 203)].
Essa ciência, essa ressurreição, esse Deus, [não são coisas diferentes
mas uma só e esse “todo” impossível] não é mero acaso, nem se trata de uma
exceção nem é a conseqüência de uma contraposição ou de uma oposição entre

223
4, 17-18 Da Utilidade da História

o “aqui” e o “além”; Deus é a negação absoluta e por isso é “o lado de lá” tanto
do “aquém” como do “além”; ele é a negação da negação, o que significa o
“além” para o “aquém” e vice-versa. Ele significa a morte da nossa morte e a
aniquilação da nossa aniquilação. Ele “vivifica” ele “fala” e “nele vivem todos”.
A fé que teve Abraão é justamente este Deus e a transformação de todas
as coisas, nele. (“Eu vi um novo céu e uma nova terra”); ele é a luz (da luz não
gerada) de que a história do Gênesis nos fala; o Logos de toda história.

V. 18 Ele, sem esperança, creu na esperança de que seria o pai de muitas


nações segundo a palavra: “Tão grande será a tua descendência
(Gên. 15, 5).

Vemos Abraão “achar” onde, evidentemente, só tem a perder; “atar”


onde tudo está roto; “estar erecto” onde, declaradamente, não se pode perma-
necer em pé.
Ouvimo-lo dizer “SIM” onde, manifestamente e por todos os lados, só
resta o “NÃO”.
Esta é a sua fé: a fé “na esperança sem esperança”; é o passo à frente,
saindo da propriedade do homem para o alheamento divino; um passo que vai
da visibilidade do visível para a invisibilidade do invisível, e vai da possibilidade
subjetiva para a objetiva; um passo que o leva para onde só a palavra de Deus o
pode suster.
Este é o passo que vemos Abraão dar.
Vemos?
Não. Vemos apenas que todos seus outros passos, levam a este um, sin-
gular, e dele procedem.
Mas este um passo não o vemos dar.

Desta “arte” é Deus o doador;


Se Deus não der, não tem valor!
Por ela, tu, louva ao Senhor,
Pois deste dom, ele é doador.

V. 19 E sem fraquejar na fé, pensou em seu corpo enfraquecido (pois já beira-


va os cem anos) e na madre amortecida de Sara.

[Notar a redação diferente da versão de Almeida que, dizendo a mesma coisa


dá, segundo me parece, menos ênfase à qualidade consciente da fé].

224
Da Utilidade da História 4, 19-20

Abraão não se ilude sobre a realidade. Não é otimista, nem entusiasta. É


honesto até ao ponto de ser zombeteiramente cético: “E caiu Abraão sobre o
seu rosto e riu-se, e disse em seu coração: “Nascerá a mim, com cem anos, um
filho, e Sara conceberá, com noventa anos”? (Gên. 17, 17). Isto é o que pode-
mos ver em Abraão. É isto o que dele, e nele, podemos entender (e até entender
bem demais), por analogia, o que se pode deduzir pela seqüência de outros
acontecimentos.
Todavia, além de tudo que podemos ver na história de Abraão, está o
fato de que Deus se tornou “forte demais” para ele. [O que Deus lhe dizia
estava totalmente além de sua lógica e seu bom senso de homem habituado
com as lides do mundo].
Contudo, Abraão não fraquejou na fé, o que é totalmente incompreensível
para nós; não podemos compreender como ele resiste à tentação que a realida-
de lhe depara quando, de olhos e ouvidos abertos, ele vê e ouve o que está além
do verossímil: o que não é, e nem pode ser. [E crê!]

V. 20 Não criticou a promessa de Deus, com dúvida incrédula, mas permane-


ceu firme na fé e deu glória a Deus.

[Comparar, também este versículo, com a tradução de Almeida].


“Tudo o que nos rodeia, está em contradição com a promessa de Deus:
promete-nos a imortalidade e estamos rodeados pela morte e corruptibilidade;
testemunha-nos sua misericórdia e sua boa vontade enquanto, por toda parte,
nos ameaçam os sinais de sua ira. O que faremos? Convém-nos bastante passar,
perante nós mesmos e perante nossos semelhantes, de olhos fechados para que
nada nos estorve, ou sequer dificulte, a crer na verdade de Deus”. (Calvino).
“Semelhante feito é impossível à razão. Somente a fé pode realizá-lo; é
por isto que a fé é, por assim dizer, uma criadora da divindade; não que a fé crie
alguma coisa que se junte à divindade do Ser Eterno, mas cria-o em nós, pois,
onde não houver fé, Deus se ressentirá da carência de nosso louvor, porque,
onde falta a fé, Deus não é tido por fiel, justo, verdadeiro e misericordioso.
“Onde não há fé, Deus não é louvado, nem por sua divindade nem por
sua majestade. Tudo depende da fé.
“Deus não exige mais de nós senão que lhe tributemos a honra que lhe é
devida e que o tenhamos por nosso Deus, isto é, que não o tenhamos por ídolo
vão e fortuito, porém como o Deus justo e verdadeiro.
“Tributar semelhante louvor a Deus é, por certo, a sabedoria das sabe-
dorias, justiça acima de todas as justiças; é uma adoração que está acima de
todas as adorações e um sacrifício que é superior a todos os sacrifícios.

225
4, 20 Da Utilidade da História

“Quem pois, crer e confiar na palavra de Deus conforme Abraão o fez,


este é justificado por ele, porque a natureza de sua fé dá a Deus a honra que lhe
pertence, isto é, ele tributa a Deus a honra que lhe é devida, conforme é o dever
das criaturas... Diz, pois, a fé que aduz a justificação: ‘Meu Deus amado,
prazerosamente creio em todas tuas palavras!. Ora, o que diz Deus?
“Tivesse, a razão, que responder diria que Deus nos fala palavras vãs e
impossíveis, falsas, tolas, fracas e minúsculas e até horrorosas, heréticas e dia-
bólicas, pois o que poderia ser, para a razão, mais risível, mais louco e mais
impossível do que aquilo que Deus disse a Abraão?
“Assim são todos os artigos de nossa fé cristã, conforme Deus nô-la
revelou pela sua palavra: diretamente impossíveis, absurdos, falsos perante a
razão.
“Porém, a fé veio para torcer o pescoço da razão e estrangular o mons-
tro, o qual, de outra maneira, o mundo todo, com todas suas criaturas, não
poderia estrangular.
“Porém, como [Abraão] o faz?
“Ele se atém à palavra de Deus; aceita-a por certa e verdadeira, ainda
que ela lhe soe e pareça absolutamente tola e impossível. Portanto, Abraão
emprisionou a sua razão... e assim fazem as demais pessoas crentes que, com
Abraão, penetram na densa e recôndita escuridão da fé; sufocam a razão e
dizem: “Ouves bem, ó razão? És tola, louca e cega; nada entendes das coisas
divinas; por isso, não me venhas fazer gracejos com teu ladrar, mas fecha essa
boca; cala-te; não te arvores em juiz da palavra de Deus, antes, assenta-te e
escuta o que ele tem a dizer-te: e crê nele!.
“Assim, dominam os crentes, este monstro que o mundo todo não con-
segue subjugar, e prestam a nosso Deus o mais aceitável dos cultos. Que isto
aconteça mais e mais.
“Comparados com o sacrifício e o culto de adoração, nesta forma pres-
tados a Deus pelos crentes, todos os demais sacrifícios e adoração de todos os
pagãos do passado,juntamente com os atos [piedosos] de todos os monges e de
todos os varões santos em obras, nada mais são que vaidosa nulidade.” (Lutero).
Quem o puder suportar que o suporte. Este é o fim e o começo da história.

V. 21 Ele estava perfeitamente convicto disto: Deus tem poder para cumprir o
que promete.

“Convicto” por experiência religiosa, por intuição, ou pela consciência


de uma missão divina?

226
Da Utilidade da História 4, 21-22

Sim; talvez sim. Por que haveria de o preenchimento de um fato “não


histórico”, (não palpável, não visível) deixar de ser acompanhado de sinais
visíveis, materiais?
Todavia, pode também acontecer que não; e isto é mais provável, pois
parece mais natural que experiência desta ordem seja acompanhada de senti-
mento de carência, de insegurança, de quebrantamento.
Contudo, também este sentimento de falta nada é pois a certeza da des-
tituição, da fome e da sede, são simples acessórios materiais. [O A. usa; no
original, e entre aspas, o substantivo “plerofonia” (quiçá um anglicismo) para
expressar “persuasão plena!! (convencimento), sugerindo presunção vaidosa
de carência, fome e sede].
Tanto a riqueza da misericórdia (Ef. 1) como a pobreza de Espírito (Mat.
5) estão além das situações materiais de posse e de destituição.
A plenitude de Abraão é a do destinatário da promessa divina.
Como poderia, esse fato, ser histórico, ser visível? Como se poderia
compreendê-lo, sem ser como sendo a vida que surge da morte? (4, 13 e
seguintes).

V. 22 Pelo que, isto lhe foi imputado por justiça.

“Pelo que”!
Por isto: porque a sua fé, é fé perante Deus (4, 17 segunda parte).
Esta fé não é apenas um traço do caráter de Abraão, mas constitui o seu
todo; é ela que o configura e o delimita. Ela é o milagre absoluto que confirma
e anula a sua personalidade. Ela é o puro início; a criação original.
Foi-lhe imputada por justiça, porque sua fé não se origina de um acon-
tecimento histórico, e também não do que nela não acontece.
É por isso que Deus a qualifica para a justificação e é ainda por isto que
Abraão unicamente pela fé, tem parte com Deus na negação da negação e na
morte da morte; é por isto que a sua fé brilha com o fulgor da luz não gerada,
sem que esse brilho seja diminuído [ou prejudicado] pela experiência histórica,
material, que Abraão viveu.

V. 23 a 25 O que está escrito não concerne somente a ele mas diz também
respeito a nós, a quem também deverá ser atribuído: a nós, os que cremos
naquele que acordou o nosso Senhor Jesus, de entre os mortos, e que aí foi
entregue por causa de nossa queda e ressuscitado para a nossa justificação.

227
4, 23-24 Da Utilidade da História

“Isto não concerne somente a ele, mas também a nós”.


A história pode ter uma utilidade: o passado pode falar ao presente,
pois, o passado e o presente têm uma contemporaneidade que pode curar a
mudez do passado e sarar a surdez do presente.
O discurso desta simultaneidade anuncia a parte invisível incompreensível
e imaterial da história, justamente a parte que é o fim e o começo de toda ela e, ao
tornar perceptível essa parte velada, oculta, suprime [os intervalos, os interregnos,
os séculos e os milênios que estabelecem e confirmam] a temporalidade e, [ao
suprimi-los] completa a própria história [dando-lhe unidade e sentido].
A história do Gênesis alça a sua voz para nos falar do que não é históri-
co: e nos diz que a fé que habitou em Abraão, lhe foi imputada por justiça.
A nossa queda é também a queda de Abraão [e vice-versa] e por isso os
nossos ouvidos podem, eles também, acolher a voz que anuncia o evento, não
histórico, da fé imputada por justiça.
É nesta forma, e neste discurso da simultaneidade, que a história revela
a sua utilidade, mostrando ao tempo presente o sentido único de todos os even-
tos históricos.
Sem a proclamação do “não histórico”, sem tomar ciência do conteúdo
e do significado imaterial dos eventos humanos e mundanos, o passado não
fala e o presente não ouve. [Sem esta condição], as claras testemunhas e os
eloqüentes documentos nada revelam, e a mais arguta perquirição histórica nada
percebe se não entrar em curso o monólogo da contemporaneidade.
Abraão, sem a luz superior do que não é histórico, nada tem a dizer-nos;
não nos interessa e não o ouvimos.
Se, independentemente do estudo dos documentos antigos, não exis-
tir, bem viva, a percepção do significado único e constante dos eventos huma-
nos, a história se transforma em simples narração da seqüência de épocas e
enumeração das civilizações que se sucedem; passa a ser formada por com-
partimentos estanques, justapostos, representados por indivíduos, eras, épo-
cas, períodos, fases, situações e instituições. São forças individuais, isoladas,
que arremetem em todas direções, irracionalmente.
[A história, apreciada nesta forma, puramente material, pode parecer
real e interessante, e determinadas ocorrências podem parecer como fenômenos
ultrapassados. Todavia, é preciso lembrar que,] nem sempre, “realmente” sig-
nifica “verdadeiramente”; interessante” não quer dizer, necessariamente, “ple-
nitude de sentido, de bom senso e de lógica”; ainda mais: um acontecimento
histórico, a despeito de se parecer como fato consumado, pode estar pejado de
significação, conseqüências e potencial de novos eventos, não só para o pre-
sente imediato, como para o futuro — tanto o próximo como o mais distante.

228
Da Utilidade da História 4, 23-24

Se a história nos oferecer apenas fatos consumados, ela é inútil; é mera


compilação de material para crítica, por maior que seja a paixão pelas coisas da
antigüidade que essa compilação despertar e por mais acurada que seja a análi-
se dos povos do passado, de suas tendências e das situações que enfrentaram.
Por mais fascinantes e magistrais que sejam os fatos que a história apre-
senta, se ela se limitar a fatos pretéritos, somente, ela não é história: e fotografia
e análise do caos.
História é uma obra de arte sintética que se origina dos eventos e tem
um único tema.
Quando essa arte, o [senso do] evento e a noção da unidade histórica
não estão inatos no historiador, simplesmente não há história.
“Apenas podeis interpretar o passado, pela mais alta força do presente;
somente pela máxima aplicação de vossas mais nobres qualidades podereis
adivinhar o que, do passado, é realmente grande, vale a pena ser testemunhado,
e merece ser conhecido. É igual por igual. Se não procederdes assim, rebaixareis
o passado...
“Só o homem experimentado, só o homem prudente escreve história.
Quem não tiver tido alguma experiência mais alta, superior à dos demais, não
sabe ver nada de grande e de sublime na história que passou.
“O pronunciamento do passado é sempre oracular: somente o entendereis
se fordes, verdadeiramente, edificadores do futuro e conhecedores do presente”.
(Nietszche).
A história somente é útil quando o historiador procurar entender o pas-
sado nas multifacetas de sua unidade; quando fizer ressaltar os inúmeros aspec-
tos que apontam, no passado, ao sentido de nossa presente existência; quando
ele der voz inteligível ao discurso da simultaneidade e tornar visível e audível
aquela parte não material, não histórica que está na origem e no fim de todos
eventos históricos e que, por principio, se situa, primeiramente, na crise do
desfalecimento para a morte.
Esta “história” vê, à medida que compreende, e compreende na medida
que proclama.
Ela observa a história enquanto a escreve e a escreve enquanto a faz. Ela
busca os seus conhecimentos em fontes que só se tornam tais, depois que ela as
descerra pelo seu conhecimento.
A história do Gênesis é desta natureza. Ela é uma história que escuta e
que fala. Ela é plena de contemporaneidade.
Ela é capaz de falar e de ouvir porque ela própria está encerrada na crise
que descerra ouvidos e lábios.
Ela vê e difunde a luz de cima porque ela própria está nessa luz.

229
4, 23-24 Da Utilidade da História

A história do Gênesis apresenta o que “não é história”, justamente por-


que o âmago e o teor de tudo quanto ela tem de histórico foi subjugado àquilo
que nela não é história.
Ela mesma parte do que não é histórico para chegar ao que o é, e se serve do
que é histórico para testemunhar do seu fim e do seu início, como “não-história”.
É por isso que ela nos diz, de Abraão, “o que não concerne a ele somen-
te, mas a nós também”: “Nós, os que cremos naquele que acordou o nosso
Senhor Jesus, de entre os mortos, o qual aí foi entregue por causa de nossa
queda e ressuscitado para a nossa justificação”.
“Igual por igual” e “igual para igual”.
Não existem lábios que falem no tempo passado, sem ouvidos que os
escutem no presente.
A obra de sabedoria do Gênesis poderia ser anulada, e a luz superior que
a ilumina poderia ser desligada; poderíamos restabelecer a sucessão dos tem-
pos, a conjuntura das situações, a multiplicidade dos personagens da história, e
essa história poderia ser interessante, embora muda; poderíamos recambiar o
chefe beduíno chamado Abraão para as amplidões remotas, em tempo e no
espaço [por onde outrora ele peregrinou]: pouco nos falaria.
[Se tentarmos estudar a história do Gênesis de forma analítica, afastan-
do do seu conteúdo a componente “não histórica”], a primeira conseqüência
será o emudecimento da voz da simultaneidade histórica, pois o presente já não
teria um parceiro digno do passado, e vice-versa.
Mas por que não o faríamos?
A análise pura e simples — [que visa à dissecação da verdade em todos
os seus elementos sem procurar reuni-los para os apreciar em seu conjunto
conforme a síntese o faz], é também um método válido.
Todavia, [nessa separação de todos os elementos integrantes da história
de Abraão], a análise levará, fatalmente, à conclusão de que a personalidade de
Abraão é historicamente impossível; [que ela só pode ser entendida e explicada
sintetizando todos os fatos e elementos que a compõem].
É o retorno à síntese que o Gênesis apresenta, e melhor faremos se dela
não nos afastarmos.
No discurso da simultaneidade somos envolvidos ao mesmo tempo, pelo
passado e pelo presente.
O Gênesis conta-nos de Abraão aquilo que nos concerne, mesmo que só
muito vagamente tomemos ciência disso. Conta-nos o que temos de ouvir ain-
da que a nossa consideração por Abraão seja inteiramente diversa daquela que
o Gênesis sugere:
“Pois cremos naquele que acordou o Senhor Jesus de entre os mortos”.

230
Da Utilidade da História 4, 24-25

Estamos na mesma problemática de Abraão, que o Gênesis nos mostra:


na linha limítrofe entre a morte e a vida. Estamos entre o abismo em que o
homem cai quando rejeita a justiça de Deus e essa mesma justiça, que o homem
alcança quando nega a si mesmo.
Estamos juntos com o Abraão do Gênesis que é muito mais “não-histó-
rico” do que o historiador analista pode imaginar.
Para Abraão, como para nós, o conhecimento é impossível; a nós, como
a ele, parece impossível a ressurreição; para nós ambos é impossível a unidade
entre o “aquém” e o “além”, unidade essa que se fundamenta em Deus.
Cremos — e sabemos — que precisamos admitir que de nossa fé sabe-
mos apenas que ela é sempre incrédula; mas sabemos também que, como fé,
como aquilo que não conhecemos, semelhantemente à fé que teve Abraão, ela
é a transformação de todas as coisas; é a morte da nossa morte e a aniquilação
da nossa aniquilação. (4, 17).
Não crendo, resta-nos, entre outras possibilidades possíveis, a da crítica
analista que, conscientemente — propositadamente —, se atém ao Abraão que
não nos diz respeito, que não nos concerne, nem pode interessar-nos.
Não pretendemos [com o que acima ficou dito] denegrir a crítica analis-
ta, pois também ela, no final, não poderá afastar o desfalecimento para a morte,
em que nos encontramos, antes terá de acelerar o seu desfecho a seu modo, pois
a análise, IN FINE, somente poderá testificar que o Abraão histórico não nos
diz respeito.
E à medida que o fizer, ela abrirá os olhos para o Abraão “não histórico”
do Gênesis, para a necessidade da síntese, e para a impossível possibilidade de
podermos, todos, atrever-nos a contar com nossa fé.

Comentários: 4, 17-25

Nesta última parte do Capitulo IV, o Apóstolo Paulo apresenta


Abraão, o herói da fé, dentro da conjuntura e sob a perspectiva da
História Universal, primeiramente, no que diz respeito ao povo de
Israel e, aí, no que se reporta à História da Redenção; em seguida, na
história geral e dentro dela, no que diz respeito a Jesus Cristo.
É evidente que a história secular — a geral, e a de Israel, em par-
ticular— não toma conhecimento da “promessa invisível” que a his-
tória do Gênesis traz.
Israel, como uma das muitas nações que integram o nosso presente
mundo, prefere ver na promessa do Gênesis o que pode (e com justa

231
4, 17-25 Da Utilidade da História

razão) ser entendido como vantagens materiais prodigalizadas e ga-


rantidas aos filhos de Abraão segundo a raça, segundo a carne, muito
particularmente, nos tempos que correm, aquilo que, na promessa,
for concernente à posse da terra.
A história secular registra ocorrências; detecta tendências; per-
quire origens e busca inter-relacionar causas e efeitos no seu senso de
fatos consumados; coisas já verificadas, já acontecidas. Daí o seu
nome: História.
Porém a promessa que o Gênesis contém, é diferente; ela é inde-
pendente, altaneira e sublime; em nada é comparável com as realida-
des do mundo, que apenas testemunham a promessa invisível.
Todavia, se a história de Abraão for analisada com objetividade,
cedo ou tarde, o historiador honesto se deparará com o inverossímil.
Como explicar a paternidade de uma “multidão de nações”? E
uma descendência tão incontável como as estrelas do céu ou tão nu-
merosa como o pó da terra?
Se olhar ao redor dele verá um Israel escasso remanescente e,
quiçá uma sobra apenas folclórica dos samaritanos, e ainda que con-
tasse os Ismaelitas, poucas nações e pequenas populações
encontraria.
Não seria a promessa, um mito, para expressar os fatos com bene-
volência e não usar qualificação mais forte?
E o que dirá o historiador da promessa ainda mais estranha que
faz de Abraão e da sua descendência a via da bênção divina a todas as
famílias da terra? Misticismo?
E como se situa o historiador analista, judeu?
Só há duas alternativas: ou rejeitamos inteiramente a história do
Gênesis pela razão, ou a aceitamos, também inteiramente, pela fé.
Talvez seja constrangedor ao analista “gentílico”, descartar-se dos
eventos “não históricos” que giram em torno da ressurreição; talvez,
nessa perplexidade ele perceba o significado único que os eventos
mundanos sintetizam no encaminhamento do destino traçado por
Deus, desde antes da origem dos tempos.
Talvez seja ainda mais constrangedor ao analista judeu por de lado
o sentido transcendental de todos os eventos da história da redenção,
que ocorreram dentro de sua própria casa: da voz profética que apon-
ta ao Messias, apresentando o Cristo; da esperança e tradição que
falam vigorosamente do Poder de Deus. Como pode ele explicar a
própria existência de sua nação?

232
Da Utilidade da História 4, 17-25

Todavia, a todo homem, judeu ou bárbaro, assiste o direito de


opção. Esse direito é de origem divina; Deus nô-lo deu, ainda na sema-
na da criação: “Não comereis da árvore que está no meio do jardim”.
A opção está no centro “do jardim”. Ela é a centelha divina que
distingue o homem espiritual e o afasta, o eleva, acima do reino animal.
Cada homem terá que optar; é a essa opção, que o A. chama de
“crise”, na linha divisória entre a vida e a morte.
Para quem crê, soa a voz que o A. designa por” Discurso da Si-
multaneidade”.
Este discurso ecoou em presença de Abraão, e ao largo das portas
de Jerusalém, no lugar chamado Caveira; também na rocha cavada,
de José de Arimatéia. E ecoa hoje no Templo do Espírito Santo, ao ser
contrito e humilde que com temor e tremor, esperançoso e confiante,
se aproxima dos pés do Criador, em Cristo.
O discurso da simultaneidade é a voz que fala desde a sarça ar-
dente, e desde os céus; é a voz que anuncia o “Deus desconhecido”
no farfalhar da folha, no sussurrar da brisa, no rugido das vagas, no
estrondo do trovão. (2, 20). E a voz que diz: “Vinde a mim”. Deus!
Essa é a voz que une as eras, os séculos, os povos, os remos, as
nações; para ela não há ontem, nem amanhã, nem hoje; ela é.
A nós, porém, presos ao corpo desta morte, só resta uma maneira
de expressá-la:
“JESUS CRISTO, ONTEM, HOJE PARA SEMPRE”.

233
Capítulo V

O DIA QUE SE APROXIMA

O A. divide o Capítulo em duas partes:


• O NOVO HOMEM -Vs. 1 a 11 e
• O MUNDO NOVO -Vs. 12 a 21
Na exegese da primeira parte o A. abordou o “Novo Nascimento” que
tem lugar mediante a justificação pela fé.
O “novo” homem é idêntico ao “velho”. Sofre as mesmas limitações;
padece das mesmas enfermidades e atribulações; todavia, tem um privilégio:
goza da Paz de Deus.
Esta paz não lhe advém de qualquer comunicação do além, nem de pro-
teções naturais ou sobrenaturais, porém pela certeza do amor de Deus que é
derramado abundantemente em seu coração pelo Espírito Santo, que (sendo o
próprio Deus) é o sustentáculo do homem “novo” o qual, pela fé, vê em Cristo
o generoso e poderoso “SIM” de Deus, vencendo a morte, para restaurá-lo na
condição de filho.
É por ter esta certeza que o homem “novo”, embora ainda acorrentado
ao “corpo desta morte” se regozija e se gloria na esperança em Deus, antegozando
a paz que só Deus pode dar.

O NOVO HOMEM (5, 1-11)


V. 1 Portanto, justificados pela fé, temos paz com Deus, por nosso Senhor Jesus
Cristo.
(O A., em nota de rodapé, chama atenção à forma do verbo “temos”, no
indicativo presente, e na primeira pessoa do plural (que é também como Almeida
escreve).
Diz o A. que a outra maneira de escrever seria “tenhamos” (ou deixai-nos
ter) paz com Deus. Esclarece que esta segunda maneira, embora muito antiga,
todavia, não é própria; talvez houvesse sido introduzida para chamar atenção à

235
5, 1 O Novo Homem

passagem. Segundo Lietzmann, esse engano pode ter sido cometido pelo próprio
Tércio (16, 22) a quem Paulo ditou a carta. [Lietzmann foi teólogo evangélico,
alemão, falecido em 1942. Lecionou “História Eclesiástica” e notabilizou-se, entre
outras coisas, por suas pesquisas filológicas)].
“Portanto, justificados pela fé”, — “a noite já vai longe e o dia está
prestes a raiar” (13, 12). [A tradução de Almeida diz: “A noite é passada e o dia
é chegado”].
Se contarmos com a nossa fé [se ela realmente existir], então precisa-
mos incluir [com o “eu”, com o “velho” homem deste mundo], também o “novo”
homem, a quem o “nós” se refere pela fé: é o novo homem do “Dia do Senhor”,
que ainda não raiou, mas esta próximo.
Pela fé adquirimos o “status” dos que foram declarados justificados pe-
rante Deus. Já não somos somente aquilo que efetivamente somos [neste mun-
do], mas também, [ainda pela fé], aquilo que “não somos”.
A fé é o predicado cujo sujeito é o homem “novo”.
Este homem “novo” é caracterizado pelo “interminável sofrimento”
(Kierkegaard) que é apenas perceptível como a vacuidade que invade a vida
cotidiana e faz com que esse homem novo seja visto por todos, e em toda parte,
como negação. E justamente por isso ele, também sempre e em toda parte, dá
testemunho deste homem novo.
Visto da parte do mundo, ele poderia ser comparado ao ponto “zero” de
uma hipérbole, de onde os ramos se afastam até o infinito, e onde se encontram:
o começo e fim.
Não sou “eu” o sujeito desse predicado, pois ele é tudo quanto está
além, tudo quanto é radicalmente diferente e até em oposição a mim; no entan-
to, sou o sujeito dele pela identidade que a fé estabelece entre mim — o “sujei-
to” de cá, e o “sujeito” de lá.
O homem “novo” [e eu também], nasce sob o signo da morte e da res-
surreição de Cristo (4, 25), e no conhecimento de Deus que vivifica os mortos
e que fala ao que não é, como já sendo (4, 17); (é por isso que eu, “junto” com
o homem “novo”) nascemos de cima (João, 3, 3).
A rigor, não serei mais “o mesmo” que sou, mas essa inaudita identidade
com o homem “novo” é verdadeira pelo poder da Palavra de Deus.
[Deus fala ao homem “novo”, (a mim) que ainda não o sou, como já o
sendo].
Somente sou aquilo que (não!) sou, pela Fé!
Se o arrojo da fé, [a ousadia de crer nas coisas divinas que são absurdas
à luz dos critérios humanos] desaparecer ou falhar por um só instante, se a
atitude de confiança se transformarem dúvida, [se momentaneamente eu tomar

236
O Novo Homem 5, 1

uma posição como se eu nunca houvesse aceitado o paradoxo da fé] então essa
identidade que o relacionamento pela fé impõe entre o sujeito que sou e aquele
que não sou — mas venho [ou viria] a ser pela fé, deixa de existir, e as conside-
rações que se tecerem a respeito não passam de especulação religiosa, híbrida.
— [Quiçá. hibridismo resultante da arrogância humana de um lado, e da espe-
culação filosófica sobre a promessa divina, de outro].
Posto em termos dialéticos, a identidade entre o homem “velho” e o
homem “novo” só pode existir sob a ponderação de que o homem não é Deus.
Precisamos vigiar-nos atentamente desde o instante em que nos atreve-
mos a contar com nossa fé. [Para que não caiamos na tentação de atribuir al-
gum mérito a nós mesmos...].
A passagem pela “porta estreita” [que é a morte da presente vida e o
novo nascimento para a “nova” vida] deve ser encarada como possibilidade e
necessidade muito estranhas. É preciso que tenhamos sempre em mente que o
caminho angusto é quase inacessível; que a ordem [de entrar pela porta estrei-
ta] é altamente incompreensível; e que as forças que temos em nós hão de
parecer-nos inteiramente insuficientes para darmos um só passo para além da
exígua cancela; que há de parecer-nos extremamente perigoso avançar por essa
senda apertada.
A caracterização da escolha [entre as portas larga e estreita] como sim-
ples questão de usos e costumes, de comodidade e de bom senso, como se
tratássemos de coisa natural, é mentira pura; é a maldição original, o germe do
veneno quase impossível de erradicar, que existe em toda ou quase toda
dogmática, pregação e trabalho pastoral; que existe nos pronunciamentos reli-
giosos das mais variadas espécies.
A verdade de que somos novas criaturas, para nós, está exclusivamente
em seu ponto de partida. [Entendo que o A. quer dizer que estamos sempre e
somente no estado inicial, no nascedouro da nova criatura, sem podermos pre-
tender ter qualquer vivência, qualquer experiência, qualquer conhecimento
pessoal dessa nova condição].
Este ponto de partida significa, para nós, o fim de tudo o que é perceptí-
vel, e de todo o entendimento. Somente no fim do homem “velho” pode ser
percebido o começo do homem “novo”; o sentido e a realidade da ressurreição
de Cristo somente podem ser entendidos junto à cruz.
Sempre, e acima de tudo, apenas podemos crer, e crer reiteradamente;
podemos mesmo, acreditar que cremos sem crermos realmente.
Não existe maneira de se fazer uma delimitação, uma determinação de
natureza material, histórico-psicológica, entre os que crêem e os que não crê-
em. Aparentemente, visivelmente, ambos estão com as mãos vazias.

237
5, 1-2 O Novo Homem

“Somos quais relva na borda extrema de íngreme encosta, lá nas alturas,


onde nada mais viceja; em baixo, nos vales, frondosos carvalhos lançam suas
raízes nas profundezas do solo fértil. Nós, porém, somos vegetação fraca, pe-
quena, rasteira, quase invisível da planície; desabrigada dos ventos e tempesta-
des, quase sem raízes, quase emurchecida. É por isso que, apenas começa a
raiar a aurora, já estamos banhados em luz, enquanto lá nas profundezas do
vale as franças altaneiras das mais frondosas árvores estão ainda imersas em
plena escuridão. Vemos aquilo que ainda ninguém vê; somos os primeiros a
dizer-lhe: verdadeiramente, vem Senhor!” (Mereschkowski).
É, pois, somente pela fé, que somos os primeiros porque somos os últi-
mos; crescemos, porque mirramos; somos grandes, porque pequeninos; fracos:
em nossa fraqueza, somos justificados por Deus.
Deus se justifica perante nós e assim, também nos justifica perante ele.
Ele nos liberta, aprisionando-nos; ele nos rejeita, quais somos, e assim nos
confirma quais não somos.
Ele toma partido conosco e nos utiliza segundo o seu propósito, de for-
ma que a sua causa fica sendo a nossa, e a sua direita, a nossa direita; a sua boa
obra se inicia em nós. Ele toma conhecimento de nós, e permanece conosco;
recebemos a promessa de nossa salvação, em seu reino. Pertencemos-lhe, des-
de já, na esperança.
É na rejeição do homem “velho”, conhecido deste mundo, que tem lu-
gar a implantação do homem “novo”, cuja personalidade é modelada pela ação
invisível de Deus.
“Temos paz com Deus”. A luz na qual penetramos pela fé, e da qual
nunca ouvíramos falar, é a paz que o homem não justificado, o único que co-
nhecemos, passa a ter com Deus, nosso desconhecido.
Paz com Deus significa um acordo entre o homem e Deus, tornado pos-
sível por meio da modificação da condição humana, vinda da parte de Deus, e
efetivada por meio do estabelecimento de relações normais da criatura com o
Criador, pela fundamentação do amor a Deus no temor do Senhor, o único e
verdadeiro amor que a criatura pode dedicar a Deus. (5, 5).
Se não fomos justificados perante Deus, pela fé, estamos em estado de
guerra com ele; nesta condição, o amor que lhe professamos ignora a distância
que separa a criatura do Criador; é um amor que não se fundamenta no temor
do Senhor, como por exemplo, a “intimidade” do misticismo hindu, do roman-
tismo, e dos discípulos de Zinzendorf; é um endeusamento que, em sua essên-
cia, se refere ao “NÃO-DEUS” deste mundo (1, 22 e seguintes) e que coloca os
seus seguidores sob a ira de Deus e na trincheira de seus inimigos. (5, 10).
(Zinzendorf foi o restaurador (e praticamente o fundador), na segunda metade

238
O Novo Homem 5, 1

do século XVIII do grupo evangélico “Irmãos Morávios” originalmente for-


mado por antigos seguidores de João Huss (da Morávia, Checoslováquia); tam-
bém alemães, remanescentes dos valdenses, aderiram ao grupo.
Zinzendorf foi pietista e, como tal, provavelmente via com simpatia a
doutrina da justificação pelas obras inspiradas no amor a Deus, e que constitu-
íam a comprovação desse amor. Esta deve ser a razão da crítica do Autor.
Diga-se de passagem que os “Irmãos Morávios”, oficialmente, não acei-
tam essa doutrina; seus princípios fundamentais são:

1.A Bíblia Sagrada é a única regra de fé e prática;


2. Depravação total do homem;
3. Cristo é totalmente homem e totalmente Deus;
4. Só há justificação e redenção mediante o sacrifício de Cristo;
5. A obra do Espírito Santo;
6. As boas obras são fruto do Espírito;
7. Comunhão dos fiéis;
8. Segunda vinda de Cristo;
9. Ressurreição dos mortos para a vida ou julgamento.

“A paz com Deus está em absoluta oposição a toda forma de inebriante


segurança carnal” (Calvino).
Paz com Deus é a oportuna ordenação do relacionamento do homem
(como homem!) com Deus (como Deus!). Portanto, paz com Deus é mais do
que “um agradável sentimento de felicidade”. — (Kuehl). Tal sentimento [ou
outro semelhante] tanto pode acompanhar este “pacto de paz”, como deixar de
acompanhá-lo mas, em nenhuma hipótese, constitui esse acordo. Este pacto se
dá com a libertação da verdade retida (1, 18), mediante a revelação da justiça
de Deus, pela fé. (3, 21).
Porém, ter paz com Deus não significa “viver na realidade de Deus”
(Kutter).
Não há unificação entre Deus e o homem; não há a supressão da linha
da morte, nem há apropriação da plenitude de Deus, de sua salvação e sua
redenção. A inimizade entre o espírito e a carne perdura em toda sua rudeza e
violência. O homem continua sendo homem e Deus continua sendo Deus. A fé
continua sendo necessária e não se pode tirar a mínima coisa do paradoxo que
a fé acarreta.
Também o homem continua sendo aquele que aguarda e espera [que
vive na esperança] (8, 24) [sem em nada, em absolutamente nada se modificar
a sua situação material por haver alcançado sua paz com Deus]; a diferença,

239
5, 1-2 O Novo Homem

porém, é que pela fé, ele espera somente em Deus e esta é a razão, a base, de
sua paz com ele.
A meio caminho, entre o sentimento humano e a realidade divina, está o
sentido e o poder da “paz com Deus” que gozam os justificados pela fé.
Onde, pois?
Justamente aí onde a consciência do que Deus é, em Cristo, se torna em
linha crítica que determina a posição do homem, para a esquerda ou para a
direita: “Por nosso Senhor Jesus Cristo”.
É indiscutível que esta paz só pode ser fundamentada, e verdadeira, em
Deus. É obra de Deus, em nós realizada, completada, com a crucificação e
ressurreição de Cristo. Portanto, não é a conseqüência de uma experiência pas-
sada ou de um impulso humano. Se a fé [tiver em seu teor, ou] for também
experiência ou impulso humano, ela não será tida como justiça perante Deus, e
não poderá proporcionar o relacionamento objetivo entre nós e Deus.
Fé é o poder invisível que nos anula [para reconciliar-nos com Deus] —
para nos transformar em “Filhos de Deus”. Fé é o ponto de inflexão [de mudan-
ça de rumo] que nos leva da vida [deste mundo] para a morte, a fim de que
vivamos em Cristo.

V. 2 Por ele também temos entrada, pela fé, a esta graça, na qual estamos
firmes, e nos gloriamos na esperança da glória de Deus.

[O A., em nota de rodapé, tece comentário dizendo que há uma aparente


reiteração (entre os versículos 1 e 2) quando o primeiro diz: “justificados pela
fé” e no segundo diz “também.., pela fé”, opinando que no versículo 1 Paulo se
refere a “todos em geral” e, no versículo 2, contempla também, e em particular,
o seu próprio apostolado.].
“Por ele, [Jesus Cristo] mediante a fé, temos acesso a esta graça”.
A existência problemática e “plena de promessa”, do próprio Apóstolo,
ilustra bem a natureza da paz que a “nova criatura” tem com Deus.
O Apóstolo está “nesta graça”, isto é, na graça de ser o apóstolo de Jesus
Cristo (1, 5) e está na posição altamente invulgar de precisar de falar daquilo de
que não se pode falar, de ser testemunha humana de coisas que só Deus pode
testemunhar; de, como Paulo, ser também o servo do Messias, “separado para
o evangelho de Deus” (1, 1). [“Pela graça de Deus, sou o que sou”].
Paulo não pode considerar essa sua posição se não como graça, como
fato paradoxal. (I Cor. 15, 9-10).
Esta graça faz com que Paulo — (e, quem sabe, também o leitor) com-
preenda quão invisível é a paz de Deus, e o que ela significa.

240
O Novo Homem 5, 2

Paulo aprendeu a respeitar a justiça de Deus com tremor e temor; a sua


personalidade como Saulo foi [aniquilada], suprimida; quebrou-se-lhe a car-
reira que vinha seguindo; ficou cego. Então começou a amar a Deus; então o
reconheceu como seu Criador e Redentor, e como o Criador e Redentor de
todos os homens; então começou a arder nele o zelo e o fervor por Deus.
Quando Paulo sentiu a arrasadora santidade de Deus, a graça divina
tomou conta dele. Quando passou a esperar em Deus ele entrou na posse da paz
e, conseqüentemente, passou a correr ao lado de Deus; e eis agora a grande
atenção divina voltada para o pequenino, o fraco, sobre quem foi lançada a
carga de incomensurável missão.
Agora, por traz dele está o invisível poder de Deus. Mas Paulo é o que é:
o mensageiro daquele perante o qual todo homem é cinza e pó.
Isto significa que Paulo passa a ser “o que ele não é”, e a saber “o que ele
não sabe”; a fazer, “o que ele não pode fazer” (“Eu vivo, porém não eu,..”).
Esta é a graça em que Paulo está e, por entre todas as exaltações e humi-
lhações, quando tiver de falar da paz do “homem novo” com Deus, não deixará
de ter em mente o paradoxo de sua própria existência.
[Paulo fala das coisas que o mundo não pode ver nele; ele é fraco e
pequeno; (“... o mal que não quero, esse faço”.) (7, 19). Mas poderoso e grande
é Deus, cuja mensagem ele traz].
Todavia, [para o mundo] a mensagem não pode ser separada do mensa-
geiro. [Por isso] ele sabe o que está fazendo ao pregar (ao insistir) que SO-
MENTE pela fé se abre (e se fecha) a porta à paz que anuncia, pois o acesso que
ele próprio teve a essa paz, foi exclusivamente pela fé.
Ele sabe o que diz, quando proclama que essa entrada se encontra “por
ele”, a saber: por nosso Senhor Jesus Cristo, em quem creu sem primeiro galgar
quaisquer degraus preparatórios, sem atalhos; em quem creu, exclusivamente
por obra divina nele, Paulo; ele creu, exclusivamente pela contemplação da
crucificação e da ressurreição; e crendo, pela fé, ele é o que (não) é.
“E nos gloriamos na esperança da glória de Deus”.
Paulo sabe o que faz quando afirma que, proclamando o evangelho, ele
traz esperança aos homens; uma incomensurável esperança, plena de gozo; uma
esperança que está além de todas as esperanças: a esperança da glória de Deus.
Ela “resplandece para nós desde o evangelho que testifica que participaremos da
natureza divina, pois, quando virmos a Deus, face a face, seremos semelhantes a
ele”. (Calvino). Esta é a vida em sua realidade divina; a salvação e a redenção dos
chamados “herdeiros de Abraão” (4, 13); é o despontar do “Reino dos Céus”; a
unificação entre o “Aquém” e o “Além”, na ressurreição; é a unidade entre o
homem e Deus, em plena visibilidade (3, [22 e] 23). A unidade do “SIM” e do

241
5, 2 O Novo Homem

“NÃO” divinos, na segunda vinda de Cristo, na “Parúsia”. [A volta gloriosa de


Cristo, no final dos tempos].
Esta é a esperança da qual se gloriam os que estão justificados mediante
a fé e, “embora sejam, ainda, peregrinos sobre a terra, apressam-se, com plena
confiança, para além de todos os céus, trazendo, já agora, em paz, sua vindoura
herança em seus corações” (Calvino).
Como crente, também Paulo se gloria dessa esperança, e é nessa glória
que reside o paradoxo do seu apostolado pelo contraste que apresenta com sua
vida material. Mas ele tem “esperança” somente, e é “esperança” que ele prega:
Deus o mandou para “dar assistência” ao novo “nascimento” mas lhe é defeso
gerá-lo ou criá-lo. Isto é tão proibido a Paulo como o foi a Sócrates.
Não existe [qualquer] antecipação do que é “Além”, do que é futuro, do
que é eterno, se não pela fé!
Não existe um poder atual, presente, [um talismã] conhecido ou secreto
que desminta [ou faça desaparecer] o caráter esperançoso da tensão da fé, da
negação e da renúncia, pois o sentido e o poder de tudo “O QUE É” para nós
[os que cremos] tem que estar sempre “NAQUILO QUE NAO E”.
Não pode haver qualquer identificação entre o “homem velho” e a “nova
criatura” sem a consciência plena de que a ligação entre o “Aquém” e o “Além”
exige a incomensurável e cabal condição do “eu creio”; exige que o terrível
vale da morte seja transposto pela fé.
Sim, nós nos gloriamos porque estamos cientes de nosso sustentáculo,
de nosso apoio, de nosso consolo final; estamos também certos [da justifica-
ção] do orgulho que esta firme esperança traz.
Todavia, saberemos e sempre nos lembraremos que esse “final” se firma
em Deus; na justificação por ele pronunciada, e que nos engrandece, humilhan-
do-nos. Esse final consiste na justificação de Deus, a qual percebemos mas não
sabemos soletrar nem podemos contabilizar em nossa escrita, [a nosso favor].
Nunca podemos exibir esse final, nem fazê-lo valer como se fora nossa posse
(2, 17 e 22; 3, 27; 4, 2); jamais poderemos apregoar que esse “final” vem [ou
virá] de nossa experiência [de nossa vida], como sendo uma “possível” possi-
bilidade [histórica ou pessoal].

Vs. 3-5 Não somente isto — gloriamo-nos também nas aflições, porque sabemos
que: a aflição gera a perseverança, a perseverança traz a experiência e a
experiência produz a esperança; ora, a esperança não envergonha, pois o
amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que
nos foi outorgado.

242
O Novo Homem 5, 3

“Gloriamo-nos também nas aflições”.


A consciência do apoio, do consolo e do orgulho finais não se efetiva e
se confirma somente quando tudo for róseo, quando a situação do mundo exte-
rior e interior forem tais que despertem [no coração, um cântico de] esperança
colocando o louvor em nossos lábios. A posição da “esperança da glória de
Deus” é de ordem superior, tão certo quanto o é a sua correspondente negação:
a nossa “destituição da glória de Deus”. (3, 23 e 5, 2).
Estes “SIM” e “NÃO” divinos não se prendem ao “sim” e ao “não” do
conteúdo contingencial de nossa vida. Portanto, não é essencial [ou necessário]
que a paz do homem com Deus, a graça em que o Apóstolo está, seja refletida no
seu estado interior ou exterior, como “felicidade”, satisfação, “ataraxia” estóica
[a paz mental oriunda da abstração às emoções], ou como otimismo. Isto é tão
verdade, como, também, o conhecimento da existência da ira de Deus e de seu
julgamento, não cria em si, o pessimismo, a rejeição do mundo e sua maldição.
O “SIM” da fé se realiza dentro do “sim” e do “não” das contingências
fortuitas da vida, porque está fundamentado em Deus e tem nele o seu conteú-
do, da mesma forma que o “NÃO” da fé permanece sendo “não” mesmo quan-
do, por acaso, a vida diga “sim”, pois este “NÃO” também vem de Deus.
Portanto, “as aflições”, a precariedade do ser humano no mundo, a “dete-
rioração do homem exterior” (II Cor. 4, 16) que se estendem ao mais íntimo do
ser, a “energia da morte” que o Apóstolo experimenta nele mesmo, (II Cor. 4, 12)
a “luta externa e o temor interior” em que se acha, (II Cor. 7, 5) e o fato de ser
efetivamente afligido por todas essas coisas, não constitui qualquer obstáculo à
paz de Deus, da qual gozam aqueles que estão justificados mediante a fé; estas
coisas não são empecilhos à presença do amor de Deus, derramado nos seus
corações (5, 5); elas não são um PUDENDUM [um aviltamento] da fé, que exi-
gisse uma “teodicéia” ou mesmo uma interferência direta para reanimá-la.
A teodicéia [a justiça divina] concernente ao mal, e necessária para seu
saneamento, já foi dada pela Palavra com a qual Deus mesmo se justifica, de-
clara justificado o crente, e o constitui em herdeiro de seu reino.
Também aqui vale: somente pela fé; pela fé, sim, que certamente, se
esforça por ver e que, na realidade, leva a ver, mas não espera por isto, para que
seja fé mesmo nas trevas, isto é, fé durante as aflições e na hora do aperto e não
somente depois de haver a provação sido, felizmente, vencida interna ou exter-
namente, depois de o sofrimento estar atenuado ou de haver sido galhardamen-
te suportado.
Existem suspiros, gemidos, ais, murmurações e fraquezas, na paz de Deus.
“Isto significa que não devemos dar ouvidos aos tais parladores que
querem apenas cristãos fortes e não toleram os fracos; [na verdade] porém,

243
5, 3 O Novo Homem

existe um contínuo anseio, um constante cair em aflição, um [incessante] cla-


mor, “Aba, Pai”! Do ponto de vista da razão [do bom senso], este clamor é
minúsculo, mau, néscio. Mas Paulo diz: onde houver lamentação, aí há filhos
de Deus! Não é mister ser sempre forte: se Deus permitiu que Jesus descesse às
profundezas da agonia da cruz, não agirá de forma diferente com seus mem-
bros”. (Lutero).
Na paz de Deus existe um “sofrer”, um “submergir”, um “estar perdido”
e “ser estraçalhado”.
“Abraão flutua entre o céu e a terra; luta com Deus e o seu coração se
parte. De um lado lhe é dito: ‘Isaque será a tua semente’; de outro ‘ele deverá
morrer’. Aí prevalece a base da fé, que a ninguém deixará envergonhado [con-
fundido]; é ela que suporta o golpe”. (Lutero).
Na paz de Deus tem lugar, também o que o mundo chama “incredulida-
de”; o clamor “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” é o ataque da
morte e do inferno; “que ninguém se iluda; quem não quiser ser atacado, este
não é cristão, porém turco [mouro, incrédulo, pagão] e inimigo de Cristo”.
(Lutero).
Crer na salvação não é crer em qualquer salvamento, em qualquer certe-
za proléptica, tranqüilidade, benignidade (ou mesmo ingenuidade) e contenta-
mento; antes, é crer no meio do tumulto, no centro da mais íntima convulsão da
humanidade, do mundo não redimido; [esta crença] “se verifica na esperança;
está por acontecer. Agora é preciso resistir, lutar e golpear; não retroceder pe-
rante o inimigo. Os desertores serão estrangulados”. (Lutero).
Ter alegria em Deus quando nada justifica essa alegria, é a glória dos
que estão justificados pela fé.
“Porque sabemos que: a aflição gera a perseverança; a perseverança traz
a experiência e a experiência produz esperança”.
(Pela tradução de Almeida:
”...sabendo que a tribulação produz perseverança; e a perseverança, ex-
periência, e a experiência, esperança”].
Não nos gloriamos apenas nas aflições, mas também das aflições. [O
que, todavia, não significa que louvemos a Deus pelos males que nos afligem
segundo algumas pessoas pretendem].
Podemos dizer “sim” a negações de nossa vida como também, e muitas
vezes, podemos e devemos dizer “não” a afirmações que ela contém.
Como é isso possível?
“Porque sabemos”; porque de uma ou de outra forma temos um relance
de vista através das realidades, através daquilo que realmente conta no momento.
Sabemo-lo mesmo?

244
O Novo Homem 5, 4

Não; realmente não o sabemos; sabemos apenas que não o sabemos.


Mas Deus sabe. É assim que passamos a saber o que é impossível de ser conhe-
cido: o significado e a força da atribulação em que estamos; ela tem o poder e o
significado da morte; essa força vem ao nosso encontro como transtorno, des-
truição e negação em nossa vida; ela vem como o horrível mistério de nossa
existência; como permanente maldição da nossa condição de criaturas; ela vem
ao nosso encontro como mensageira da ira de Deus como a fatalidade do “NÃO-
DEUS”, do Deus deste mundo (1, 18).
Todavia, vemos o invisível. Na ira de Deus vemos a sua justiça; na cru-
cificação vemos a ressurreição; na morte, a vida; vemos o “SIM” contido em
“NÃO”. No cerceamento vemos a saída; no julgamento vemos o dia da salva-
ção que se aproxima.
A negação no sofrimento de Cristo (5, 6), e que é a nossa posição, muda
o sinal matemático inscrito na frente de nossa tribulação. O que parece ser
mero sofrimento humano, transforma-se em obra de Deus, o Criador e Reden-
tor; os empecilhos da vida transformam-se em degraus para a vitória; o derribar
dá lugar a nova edificação; a desilusão e o revés aguçam a esperança e o anseio
pela volta do Senhor. O prisioneiro passa a sentinela (1, 16). “As trevas são
como a luz”. (Sal. 139, 12).
Entendemos a problemática da vida, como tal; estamos conscientes de
nossa limitação e de nossa temporalidade, sabendo que são necessidade não ca-
sual, [acidental, em nossa vida]. Confirmamos o “NÃO” que de fato se opõe à
nossa condição de criatura; fazemos parecer sensato (1, 20) o protesto da criatura
que não se conforma com sua existência e seu modo de ser (8, 19 e seguintes);
reconhecemos que a criatura está sob julgamento. Porém, amamos o Juiz.
Amamos o Juiz porque, como juiz não julga com critério idêntico ao do
“NÃO-DEUS” deste mundo; porque ele, como juiz, revela-se como sendo to-
talmente diferente de nós e do teor de nossa vida.
Todavia, a nossa aflição não deixa de ser aflição, e sempre a sofreremos
como tal. Sofremos agora tanto quanto antes; mas já não mais a aflição, o de-
sespero passivo, venenoso, perigoso, destrutivo, que sobrevem à alma do ho-
mem que não ama a seu juiz (2, 9), porém a aflição e a perplexidade regenerativa,
frutífera, [fecunda] plena de vigor e de promessa, conforme só o pode sentir o
homem que sabe que foi suprimido [aniquilado] por Deus; que foi lançado ao
chão, aperreado, apertado contra as paredes, posto em cativeiro por Deus!
Essa tribulação nos enrijece e gera a “perseverança”; muda a defensiva
em ofensiva e transforma a nossa condição incerta e duvidosa na posição sere-
na de quem está fortalecido pela certeza de que todas as coisas operam para o
bem daqueles que amam a Deus. (8, 28).

245
5, 4 O Novo Homem

[Por vezes] duvidamos, porém continuamos em Deus; nos debatemos,


contudo, ainda em Deus: sentimo-nos frustrados, abandonados por Deus e até
blasfemamos, chegando aos extremos em que se perdeu um Jó, onde a blasfê-
mia é e continua sendo blasfêmia contra Deus.
O original diz:
“Wir zweifeln — aber in Gott
“Wir stossen an — aber an Gott
“Wir scheitern — aber an Gott”.

A tradução inglesa escreve:


“We may doubt,
but it is in God we doubt
“We may bick against the pricks,
but they are God’s pricks”.

Então é possível que a despeito de nossa eventual revolta contra Deus,


arremetendo contra ele, continuemos ligados a ele?
Parece-me que sim, dentro da conjuntura admitida por Barth, isto é,
“quando amamos a Deus”.
Talvez possamos traçar um paralelo, ainda que imperfeito, na situação
de um filho que, embora amando seu pai, não se conforme com determinada
decisão paterna, rebela-se contra ela, todavia, jamais lhe ocorre a idéia de afas-
tar-se do pai, a quem se considera indissoluvelmente ligado; ele argumenta e
discute com o pai porém não o despreza nem o menospreza.
Assim é a criatura que ama a Deus; em seu desespero luta e, talvez até
blasfeme, conforme Jó. Porém, pelo amor a Deus, permanece nele. Foi por isto
que Jó, a despeito da insensatez de seu arrazoado, falou o que era reto perante
Deus, pois, no íntimo de seu coração, estava límpida e bem viva a chama do
amor a Deus.
A pressão sob a qual ficamos [em nossas atribulações] revela, à medida
que a aceitarmos como divina, a contra-pressão de Deus que nos traz o seu
consolo tirando da morte o seu aguilhão e desviando contra o próprio inimigo
as armas com que nos ataca.
Se reconhecermos que é em Deus que sofremos e pecamos, que fomos
lançados sobre Deus, atados nele, que somos aniquilados por ele, para sermos
por ele levantados e sustentados, então se comprova a eficácia da nossa fé que
tudo espera de Deus e dele espera tudo; e a prova pelo exemplo; é o desafio, o
estímulo às novas e sempre renovadas esperanças junto ao portal onde toda
esperança parece perdida.

246
O Novo Homem 5, 5

Se o estímulo [ou desafio] também se manifesta numa “firme disposi-


ção de alma” (Lietzmann) é coisa mais do que duvidosa; todavia, não é neces-
sário que assim seja.
Gloriamo-nos das aflições porque conhecemos o caminho para as trans-
por (e que não é caminho), pensando naquele que foi crucificado e que ressur-
giu, em quem o mundo não pode pensar.
“Ora, a esperança não envergonha, pois o amor de Deus foi derramado
em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi outorgado”.
“O homem sempre se inquieta quando vê os sinais de luta” (Steinhofer).
Não há duvida: se considerarmos a nossa esperança, o desafio que a provação
nos traz e a esperança que daí resulta, como grandezas humanas, precisamos
reagir e renunciá-las imediatamente pois, nessa condição, o homem perseve-
rante, o homem em provação, o homem esperançoso, não tem do que gloriar-se
porque sua tribulação, para dizê-lo a bem da verdade, será sempre [e somente]
“aflição”.
Porém, a nossa esperança é a “esperança da fé”. Ela não subsiste, ou
falha, em função da firmeza ou do desfalecimento de nossa própria esperança.
Semelhantemente à fé, o seu nervo vital não está numa contingência humana,
porém no alvo que lhe é apresentado por Deus, e dele tira o seu conteúdo.
A esperança, como conteúdo e alvo, não traz vergonha (Sal. 22, 5-6 e 25.
20) ainda que falhe [e fracasse] tudo o mais que estiver baseado em esperanças,
pois esta esperança (superior e divina) permanece, mesmo que fraquejemos.
Gloriamo-nos, pois, na esperança, porque ela não está fundamentada
em ação de nosso espírito de criaturas, mas no Espírito Santo que nos foi outor-
gado, mediante o derramamento do amor de Deus em nossos corações.
O Espírito Santo é a obra de Deus, na fé; é o poder criador e redentor do
Reino de Deus que está próximo e que, pela fé, tange o mundo dos homens e o
faz ressoar como o cristal às vibrações do diapasão.
O Espírito Santo é o eterno “SIM” da fé que, vista do lado humano,
apenas pode ser descrita como negação e vácuo; ele é o milagre inicial e criati-
vo desta fé.
O Espírito Santo é igual a Deus e por ele Deus tributa justiça ao que crê.
Ele é invisível para nós pois está além de toda continuidade psicológica huma-
na; ele cria o “novo” EGO que se apresenta a Deus, e que [com o “eu” do
homem “velho”] constitui o “nós” que subsiste pela fé, sempre pensado e sem-
pre procurado nas “experiências” religiosas do mundo e a que se referem in-
compreensíveis expressões; “para que (nós) alcancemos paz com Deus”, ou,
“acesso a ESSA graça” ou ainda, “para que (nós) nos gloriemos na esperança
da glória de Deus”. (5, 1-2).

247
5, 5 O Novo Homem

É por isto que ele [o Espírito Santo] foi “outorgado” por Deus, como
antecipação a todas realidades humanas, porém para nós, [no mundo], apenas é
compreensível, perceptível, naquilo que não é material.
O Espírito Santo, fundamento eficaz da vida santificada, não nos foi
dado pela natureza; porém agora, por ele, temos o amor a Deus em nossos
corações”. (Hofmann).
Existe, pois, um “eu”, um “nós”, um coração humano, que Deus pode
amar. Dentro da contingência que Deus oferece ao homem, suprimindo-o para
o estabelecer, está a realidade dita da revelação de Deus por seus atributos invi-
síveis (1, 20) os quais o homem tanto gosta de obnubilar e que, efetivamente,
com tanta leviandade obscurece.
Dentro dessa contingência o homem pode encontrar, como Jó, no abso-
luto “Não” que vem ao encontro de sua existência, o “SIM” final de Deus.
Seguindo o gesto do quadro “O BATISTA”, de Gruenewald, que aponta para o
mais profundo terror da morte, pode o ser humano encontrar a promessa de
salvação plena, do gozo da mais alta espiritualidade, da vida eterna.
O amor a Deus é o impossível; é o amor da criatura ao seu Criador; [mas
é também] o amor do condenado a seu juiz; do vencido e mortificado, a seu
inimigo; da vítima a seu algoz.
Este amor se manifesta apenas porque no juiz, no inimigo, no algoz,
está Deus e, ainda mais impossível do que a existência desse amor a Deus, é
não o amar!
A âncora de nossa esperança se firma no fato absolutamente real de que
é impossível não amar a Deus, realidade que o homem não pode chamar a si, da
qual não pode apropriar-se, mas ela lhe é dada sempre de novo, derramada de
cima.
A âncora de nossa esperança está firmada nesse invisível, que é o nosso
amor a Deus (e que não existiria se ele não nos houvesse amado primeiro!) (5, 8).
Este amor a Deus é a constante duradoura em nossa perseverança; é o
que vale em nossa valia; é o elemento esperançoso de nossa esperança.
[A tradução inglesa, para a frase “o que vale em nossa valia” escreve “o
que é provado em nossa provação”... (“which is proved in our probation”).
Embora eu entenda que não foi isto que o A. disse, parece-me que a afirmação
é perfeitamente cabível].
É na força [deste amor a Deus], que a esperança não envergonha [não
confunde, não desampara ao que espera, nem o deixa descoberto]; é por ela que
nos gloriamos da esperança; e das tribulações.
“Como haveria de a esperança da glória de Deus ser acompanhada de
vergonha, depois [do amor de Deus] ser posto em nosso caminho?” (Hofmann).

248
O Novo Homem 5, 6

V. 6 Porque Cristo, quando ainda éramos fracos, morreu a seu tempo pelos
ímpios.

A paz da “nova criatura” com Deus (5, 1) está acima de qualquer enten-
dimento; e não só esta paz, mas também o seu amor ao que é inescrutável, a sua
esperança fundada nesse amor e a glória de que goza por ter essa esperança.
O homem “novo” vive pela fé, pois vive do Espírito Santo, que lhe foi
dado mediante a fé. Portanto, ele vive do Cristo que morre e cuja vida se revela
exclusivamente pela ressurreição — a fonte donde jorra a fé (5, 10); todavia,
essa vida foi de OBEDIÊNCIA PASSIVA, culminando com a morte na cruz.
A doutrina do MUNUS TRIPLEX [Cristo como Profeta, Sacerdote e Rei
— apud tradução inglesa] entolda e enfraquece a concepção centralizadora
neotestamentária. Não há qualquer outra coisa, segunda ou terceira, que possa
prevalecer ao lado deste único e exclusivo sentido da vida de Cristo, a saber: sua
morte na cruz. [Nenhum outro aspecto pode ser considerado independentemente,
ou posto em pé de igualdade ou em paralelismo com essa morte]: nem a persona-
lidade de Jesus ou a “Idéia de Cristo”; nem o “Sermão da Montanha” ou as curas
milagrosas; nem o amor fraternal, nem sua confiança em Deus, nem sua prega-
ção do arrependimento e sua mensagem do perdão; nem seu ataque ao formalismo
religioso de seu tempo, nem o apelo ao discipulado da pobreza [renúncia]; nem
os aspectos sociais ou pessoais, imediatos ou escatológicos, de seu evangelho.
Nenhum destes aspectos tem luz própria, pois todos brilham refletindo
a luz que vem de sua morte.
Não há uma só linha dos [evangelhos] sinópticos que pudesse ser enten-
dida sem a cruz.
O Reino de Deus é o reino que começa exatamente do outro lado da cruz.
Portanto, começa do outro lado de todas as possibilidades humanas, tais como “reli-
gião”, ou “vida”, conservantismo e radicalismo, física ou meta-fisica, alegria ou sofri-
mento do mundo, amor ou responsabilidade humana, atitude ativa ou passiva na vida.
[Além da cruz] é além de tudo “isso e aquilo”, de tudo [o que o homem
possa criar ou imaginar].
A carreira de Jesus foi uma revista, uma passagem ao longo de todas
essas possibilidades humanas, [como um comandante inspeciona as tropas per-
filadas]. Foi como uma saudação a todas coisas deste mundo, sujeitas a morte,
passando ao lado delas; foi um distanciamento de todas possíveis negações e
posições do mundo, de suas teses e antíteses, de toda agitação e de todo repou-
so humanos — exceto da morte!
A vida de Jesus brilha por força desse “não envolvimento”, desse afas-
tamento, e as coisas do mundo refletem esse brilho, revelando sua relatividade,

249
5, 6 O Novo Homem

— suas fraquezas e também as suas riquezas. É nessa luz refletida que os ho-
mens são reconhecíveis como criaturas de Deus e como os que aguardam sua
obra redentora.
São reconhecíveis como pequenos e grandes; como importantes e insig-
nificantes, perecíveis e imperecíveis. Reconhecíveis na unidade vindoura com
o seu respectivo contraste com o seu “Sim” e o seu “Não”, contraste este que
não é, se não, a unidade com o invisível tornado visível SUB SPECIE MORTIS
por Deus. (3, 30).
É deste “reconhecimento” [ou conhecimento] que vive o “novo” ho-
mem. Ele vive da vida que só nos pode ser perceptível como a morte de nossa
vida; mas vive na medida que esta vida invisível se torna visível para nós, na
morte de Cristo.
Cristo morreu “por nós”. “Por nós” quer dizer à medida que sua morte
for o “princípio de reconhecimento” de nossa morte; à medida que, na morte de
Cristo, o Deus invisível se torna visível para nós; à medida que a morte de
Cristo passa a ser o ponto de nossa filiação a Deus, [a nossa reconciliação]
(3, 25 e 5, 9).
“Por nós” se, como criaturas transviadas, [porém agora] amando o Cri-
ador, formos recambiados a ele pela morte da cruz; “por nós”, à medida que,
nessa morte, o paradoxo da justiça de Deus (a identidade entre sua ira santa e
sua graciosa misericórdia) se tornar verdadeiro para nós.
Permanece, pois, o fato que o “homem novo” é criado em oposição [e a
despeito] de todo e qualquer conteúdo humano, e da eventual superioridade ou
prioridade desse conteúdo.
Nunca foi, e jamais será, o teor da vida humana [que influirá na criação
do “homem novo”], pois, em sua essência, este é a negação crítica de tudo o
que é humano.
As mais sublimes experiências religiosas (ou outras que se lhes pare-
çam), que possamos ter em Jesus, mesmo em Jesus crucificado, pertencem ao
mundo das coisas pelas quais Jesus passou de largo no seu caminho para a
morte, e não podem ser confundidas com a realidade que fundamenta a criação
da nova criatura.
O que Cristo fez, fê-lo, de fora a fora, sem nós, como homens deste
mundo. Por isso os quadrantes da terra e as gerações afastadas (temporalmente
falando!) ausentes à cena da cruz, não se ressentem de qualquer restrição ou
discriminação à sua inclusão do coletivo “nós” pois essa participação não se
restringe a quaisquer determinados setores ou circunscrições históricas.
Aqueles que não conheceram a Cristo segundo a carne que não têm em
suas vidas qualquer experiência concreta, [semelhante à dos que estiveram ao

250
O Novo Homem 5, 6-8

pé da cruz, presentes à crucificação], gozam dos mesmos direitos e do mesmo


privilégio de se tornarem Filhos de Deus. [Todos são igualmente reconciliados
com Deus em Cristo Jesus, (5, 10)1... “vivificado pelo Espírito, no qual tam-
bém foi e pregou aos espíritos em prisão.” (1 Ped. 3, 19).
A reconciliação que se verificou em Cristo permanece, ainda que invisí-
vel, como SATISFACTIO VICARIA, a despeito de tudo o que somos, temos e
fazemos.
[Essa reconciliação alcançada pela “plenamente suficiente substituição
nossa” por Jesus] contrasta de forma absoluta com qualquer relacionamento
psíquico ou sensorial que possamos experimentar em Jesus, da mesma forma
na qual, entre si, contrastam o “SER” com o “NÃO SER”; o “impossível” com
o “possível”; a “morte” com a “vida”.
Ele morreu por nós (naquilo que somos, temos e fazemos), quando ain-
da éramos fracos e andávamos sem Deus; por que haveria de modificar-se,
basicamente, este relacionamento entre ele e nós, entre a sua morte redentora e
as duvidosas possibilidades de nossa vida, ainda não iluminada pela sua morte,
e na qual nos movemos (quais somos!)?
Como haveríamos nós, vivos temporariamente, (abstraída a fé pela qual
morremos com Cristo) de não estar sempre, e de novo, fracos, ante o Cristo que
morre na cruz?
É justamente esta morte em Cristo que nos transforma naquilo que ain-
da não somos e nela se funda a vida da nova criatura.

Vs. 7 e 8 Dificilmente alguém morrerá por um justo, todavia, poderá ser que
pelo bom alguém se anime a morrer. Mas Deus prova o seu amor para
conosco pelo fato de haver Cristo morrido por nós, sendo nós ainda
pecadores.

O homem novo não se aproveita [de algum envolvimento], de participa-


ção visível, direta, [nas vantagens do além].
[Segundo a versão inglesa, “O homem novo não vive de benefícios pes-
soais, diretos”].
Ele não vive de eventuais “valores da vida” que lhe sejam comunicados
e, portanto. não vive de sua capacidade, ou aptidão, de canalizar para si tais
alores ainda que lesse envolvimento], essa comunicação ocorresse pela morte
de outrem ou dele mesmo.
Esta aparente possibilidade de tirar proveito na morte ou pela morte
pode apresentar-se nos casos raros em que alguém sacrifique a sua vida por

251
5, 7 O Novo Homem

outra pessoa: a mãe ao dar à luz ao filho; um profissional, ao levar ao extremo


o cumprimento de seu dever — um médico ao lado do enfermo contagiante, o
missionário no perigo de sua missão, o soldado no campo de batalha...
É evidente que o sacrifício de Cristo, sob o ponto de vista histórico, se
enquadra nesse tipo de envolvimento sacrificial como evento altamente signifi-
cativo, e mesmo como experiência espiritual — um martírio.
Todavia a expectativa de encontrar no auto-sacrifício uma participação
própria ou uma comunicação ulterior, a terceiros, de valores [transcendentais]
defesos à presente vida, poderia ser, até mesmo, estímulo dissimulado ao suicídio.
Apesar do mais profundo respeito que devemos a tudo que a grandeza
humana nos possa oferecer no campo do despreendimento e do sacrifício pes-
soal, não nos podemos entregar ao sentimentalismo, atribuindo às obras huma-
nas, — (e a morte, quer seja voluntária quer seja imposta a alguém, está entre as
obras deste mundo), — significado que elas não têm. Nada disso pode ser mais
do que analogia, semelhança ou parábola da realidade que fundamenta a nova
criatura.
O significado de tais sacrifícios está no âmbito dos valores que realmen-
te os motivam e (no caso de suicídio), na extensão na qual tais valores possam
ser comunicados à sociedade (ou aos possíveis beneficiários] a quem a eventu-
al mensagem foi destinada.
É sempre questionável até que ponto o bem que se comunica com seme-
lhante morte é realmente um bem e até que ponto as pessoas que devam receber
o benefício do sacrifício estão realmente em condições de aprender ou aprovei-
tar dele.
Semelhante envolvimento com a morte, no mundo dos homens, mundo
da temporalidade e da matéria, tem as suas possibilidades de contrastes. Toda-
via, nenhum deles será semelhante ao da “filiação”; [da reconciliação com Deus].
Não existe a criação de outro (novo) âmbito, além daquele rotineiro, de
cada dia; nenhum novo nível de segurança, acima das vicissitudes do mundo;
nenhuma passagem do pequeno [do natural] para o grande [o sobrenatural]; do
que é viável para o inviável.
Não há [no sacrifício de vidas por obra humana] qualquer definição
precisa do que seja “PRÓ” ou “CONTRA” o teor da vida verdadeira [entendida
como a que existe] além da vida e da morte [neste mundo].
No entanto, é justamente isto o que a morte de Cristo nos proporciona.
[E ela o oferece com absoluta igualdade a toda humanidade que, indistintamen-
te, pela fé, pode apropriar-se da graça oferecida].
“Ela não nos dá, precipuamente, notícias de Deus — (e onde as tería-
mos?) — mas nos assegura de que Deus nos conhece”. (Overbeck).

252
O Novo Homem 5, 8-11

Com esta morte, “Deus comprova o seu amor para conosco”. Ela é a
mais radical supressão e, nesta supressão, é a síntese e o fundamento de todos
os valores da vida.
Na morte de Cristo o homem se confronta com o Deus “inteiramente
diferente” do ser humano. [Não exatamente o oposto, a antítese do homem, não
uma espécie de “antimatéria”, nem um “alter-ego” mas um ser diferente; não
comparável ao homem. “Anderheit” em alemão; “Othemess” em inglês].
Essa diferença não é relativa, mas absoluta; todavia, é também na morte
de Cristo que o ser humano encontra o elo que o une inseparavelmente a Deus,
e assegura a sua comunhão com ele. Essa morte é o desvendamento da possibi-
lidade final da ira divina e, por isso, a revelação da misericórdia de Deus. Ela
apresenta ao homem o problema “Deus” em seu sentido mais agudo e inevitá-
vel, e oferece também a solução. Eis aqui “Emanuel”, Deus conosco. E Deus
testemunhou “o seu amor para conosco, quando éramos ainda pecadores”.
Portanto, estávamos totalmente fora de nossa capacidade de receber;
ainda não tínhamos qualquer receptividade que nos permitisse participar do
amor de Deus, nem possibilidade de nos tornarmos amoráveis a ele: antes, é
lógico que não tivéssemos (como não tínhamos) condições de receber essa
participação; não tínhamos ouvidos para ouvir nem olhos para ver.
Deus porém, nos prova aquilo que não nos poderia ser provado. Ele se
dirige a nós dentro de uma condição, um contexto, uma característica, quiçá
numa ambiência, que não é nossa, da qual não fazemos parte: AMORE NON
PROVOCATUS SPONTE NOS PRIOR DILEXIT. (“Sem ser levado por nosso
amor, Deus nos amou primeiro” - Calvino).
Portanto, a glória de Deus (5, 2) pressuposta na morte de Cristo, não é
apenas um “objeto” novo, mas também um novo “sujeito”.
[Não é apenas mais um complemento, mas também um novo agente].
Este novo “sujeito” é o “homem novo” que pela fé (e somente pela fé),
se identifica comigo, o pecador!
Este “novo” homem sabe, com superabundante certeza, que é amado
por Deus, em Cristo.

Vs. 9 a 11 Logo, muito mais agora, sendo justificados pelo seu sangue, sere-
mos por ele salvos da ira. Porquanto, se como inimigos fomos reconcilia-
dos com Deus pela morte de seu Filho, muito mais, estando já reconcilia-
dos, seremos salvos pela sua vida; e não somente como tais, porém como
aqueles que se gloriam em Deus, por intermédio de nosso Senhor Jesus
Cristo, por quem, agora, alcançamos a reconciliação.

253
5, 9-11 O Novo Homem

É a superioridade da fonte de conhecimento, aberta na morte de Cristo;


a superioridade da origem da comunicação divina, testemunhada “por seu san-
gue”, que caracteriza o amor da “nova criatura” a Deus e também a sua espe-
rança e a sua glória fundamentadas nesse amor. É essa superioridade que carac-
teriza a “nova criatura” como “aquele” que espera.
Enquanto, e na medida que vivermos desta fonte, desta origem, e ousar-
mos ter fé, somos o que não somos: a nova criatura; o novo sujeito, com refe-
rência ao novo objeto; os amados de Deus e, por isso, aqueles que o amam; os
agraciados com a esperança e, por isso, os que esperam; os eleitos de Deus, e
por isso os que se gloriam nele.
Estamos, como “novas criaturas” aguardando e correndo à luz daquele
“agora pois... “ (3, 21), sob a parede, prestes a ruir, da crise do homem em
Deus. Estamos sob aquele “de onde?” que é a indagação de todas as indagações
e cuja resposta é também a única entre todas. Somos aqueles que foram decla-
rados justificados por Deus, e somos aqueles que Deus reivindicou para a sua
justiça e para o seu reino.
Somos aqueles que estão sob perdão e sob o abrigo de sua sentença livre
(forense); aqueles que Deus levantou e colocou lá, bem alto, onde só ele nos
pode suster, e efetivamente nos sustém.
Somos reconciliados com Deus; temos paz com ele. Nossa atitude para
com Deus modificou-se; agora temos o coração aberto e predisposto para rece-
ber e ouvir; estamos prontos a servir e a obedecer.
Amados por Deus, não podemos, se não amá-lo de nossa parte; na auro-
ra de sua glória não podemos, senão gloriar-nos nele.
“Deus toma a iniciativa e traz de volta, para si, o mundo e a humanidade
que, em inimizade e tomados de pavor, se afastaram dele”. (Weinel).
É “de lá” que voltamos. (3, 21). Somos? Temos? Podemos? Voltamos?
Sim. (Bem entendido e repetindo sempre): se nós não formos “nós mes-
mos”; se crermos; se, pela morte de Cristo, nossa vida for atravessada pela
linha da morte que nos leva a reconhecer em cada momento, com temor e tre-
mor: “Eu? — Não eu”; porém com adoração e gratidão, “Cristo em mim”!
Não há outra forma de sermos este “homem novo”, se não pelo nosso
“não ser”. Neste “não ser” está a suficiência e a superioridade da origem do
“homem novo”. Pela morte de Cristo ele é o milagre de Deus, o começo, a
criação divina. Este “nós somos” verdadeiramente nada tem a ver com a auto-
suficiência e sabedoria de alguma religião superior, de alguma posição adquiri-
da na escala da vida, ou com alguma entusiástica ilusão apocalíptica que imagi-
ne já antecipada a fusão, [a união entre o “aquém” e o “além”]. A fonte donde
jorra [este nós] veda e estanca (com seu vigor) todas as fontes ilusórias.

254
O Novo Homem 5, 9-11

Enquanto formos qualquer outra coisa que não “nós” [quer dizer, o ho-
mem velho e o homem novo], enquanto não crermos, enquanto a morte de
Cristo não lançar a sua luz sobre a nossa vida, estamos neste mundo e somos
participantes dele; não temos parte na paz com Deus, não fomos tocados pela
plena reconciliação e não participamos dela.
Tudo quanto nós mesmos vemos, sabemos e tocamos, pertence a este
mundo; não existe uma ponte “material-espiritual “ que interligue as velhas
possibilidades da vida com as novas. [Uma ponte pela qual possamos, por nos-
sos méritos, transpor a linha divisória entre o “aquém” e o “além”].
Enquanto formos “nós” apenas no conceito deste mundo [quando o “nós”
não se referir ao “eu” de “aquém” unificado, restabelecido, também no “eu” de
“além”], somos e permanecemos inimigos de Deus, inclinados pela nossa pró-
pria natureza a odiar a ele e ao nosso próximo e de maneira nenhuma somos
cidadãos e herdeiros do Reino dos Céus, porém pertencemos à casa dos que se
opõem a ele e o destróem.
Quando a criatura entra para a luz da morte de Jesus, surge a “nova
criatura” e, inevitavelmente, o “eu” do “homem velho” entra na penumbra.
É por isto que se justifica para a classificação do novo sujeito a
predicação: (Nós) somos novas criaturas! Porém, sempre dialeticamente,
indiretamente, fundados somente na fé: “Por seu sangue, somos justifica-
dos”; como “inimigos” somos “reconciliados com Deus pela morte de seu
Filho” e nem por um só instante pode essa pressuposição dialética emude-
cer-se, petrificar-se, em realidade material. Ela vale e subsiste pela fé, (e
somente pela fé, no temor do Senhor e à luz da ressurreição) somos, temos,
podemos e voltamos!
A redenção se aproxima “seremos salvos da ira” que agora e aqui ainda
pesa sobre nós, pois a vida que vem à luz pela morte de Cristo, é a salvação
daqueles que, por essa morte, são reconciliados com Deus.
Estar reconciliado significa poder esperar em Deus. Como não nos ha-
veríamos de gloriar desta esperança, por nosso Senhor Jesus Cristo?
“Ao louvarmos a Deus como o nosso Deus, abre-se-nos a fonte de todos
os bens imagináveis e desejáveis, pois Deus não é somente o maior dos bens,
porém o seu teor e a plenitude do ‘BEM’. Porém, ele só se torna nosso Deus,
por Cristo”. (Calvino).
“Quando o homem tem Deus novamente, ele tem a plenitude da vida e
da espiritualidade”.(Fr. Barth).
Ele tem?
Sim, ele tem, porque pela morte de Cristo, o presente do homem é o
futuro de Deus. SPES ERIT RES — “Esta esperança é possuir”. (Bengel).

255
5, 12-21 O Mundo Novo

Na segunda parte o A. situa a “nova criatura”, o homem justificado por


Deus, mediante a fé, no mundo para ele criado por Deus.
O A. adota um método expositivo, dialético, muito a seu gosto, procuran-
do estabelecer paralelos e confrontos entre valores ou situações, aparentemente
iguais ou, pelo menos, semelhantes.
O homem “novo” versus o homem “velho”;
Adão, como caminho da queda, e Cristo como propiciador da restauração;
O mundo “velho” em contraposição ao “novo”, e a pragmática que rege
os dois;
A origem permanente do pecado e a fonte permanente da graça.

Nessa série de comparações, o A. conceitua o pecado e a soberania da


morte e, também, a justificação e a superabundância da graça, na ressurreição.
Na conceituação da queda, o A. sublinha a responsabilidade individual
de cada um; na conceituação da redenção ele mostra a absoluta inutilidade da
vontade humana: a graça é da exclusiva “responsabilidade” divina, e o homem
nada pode fazer para merecê-la, nem mesmo em seu mais sublime fervor religi-
oso (nem mesmo crendo, porque a própria fé, é dom de Deus).
Semelhantemente, a queda é de exclusiva “responsabilidade” humana

O MUNDO NOVO (5, 12-21)

V. 12 Por isso; (a saber, tendo verificado que a fundamentação do “Homem Novo”


está na vida que emerge da morte de Cristo (5, 1-1 1), podemos agora avan-
çar mais a nossa análise, pois:) — Assim como por um só homem o pecado
entrou no mundo (como poder) e, pelo pecado, a morte que (como lei supre-
ma do mundo) alcançou todos homens como tais, pois todos pecaram, assim
também este homem “vindouro” — Cristo — o qual o primeiro prefigura —
(5, 14), inaugura uma conjuntura mundial, inteiramente oposta. (5, 18-19).

[Sem os expletivos que o A. introduz, o versículo 12, pela tradução de


Almeida, diz: “Portanto, assim como por um só homem entrou o pecado no
mundo, e pelo pecado a morte, assim também a morte passou a todos os ho-
mens, porque todos pecaram].
“Por isso:” Como homem “novo” estamos colocados no limiar de um
“novo” mundo. Como homem “velho” somos a humanidade, a raça, o mundo e
estamos firmemente assentados, — de um lado — desde a casualidade da que-
da do primeiro homem e — de outro — até a propagação extrema dessa queda

256
O Mundo Novo 5, 12

a toda humanidade. Este é o homem qual o conhecemos e qual somos: o ho-


mem que está sob a ira de Deus.
Mas também o homem “novo”, o que não é, e aquele que eu sou, o
homem justificado por Deus, está sob a ira divina.
Sob a luz do instante crítico descortina-se de ambos os lados, ainda que
em circunstâncias inteiramente diferentes, um panorama universal de legalida-
de como sendo a característica inseparável e absolutamente necessária da con-
juntura do mundo e da situação dos homens.
Está alguém “em Adão”, é “velha” criatura, decaída, cativa; está alguém
“em Cristo” é “nova” criatura, reconciliada com Deus e redimida (II Cor. 5,
17). Ali está alguém caminhando para a morte; aqui, alguém entrando para a
vida (II Cor.4, 12 (e I Cor. 15, 22]).
Porém, não é como se dois mundos estivessem lado a lado (como tam-
bém o homem “novo” e o “velho” não são duas pessoas) pois, sempre, a possi-
bilidade de um é a impossibilidade do outro e a impossibilidade daquele é a
possibilidade deste.
Vista sob a perspectiva da “primeira terra”, a “segunda” deixa de ser a
segunda e sob a perspectiva da “segunda” a “primeira” já não é a primeira.
É a supressão da “primeira” que faz surgir a “segunda” assim como a
“segunda” tem o seu sentido fundamental na anulação da “primeira”.
Se for “em Adão”, diz respeito ao homem “velho”. Foi e é e será sempre
velho e jamais foi, é, ou será novo.
Se for “em Cristo”, o que é “velho” passou. “Eis que se fizeram novas
todas as coisas”. (II Cor. 5, 17).
Esta dualidade é visível apenas à luz do “instante crítico” e, assim mes-
mo, na unidade que se concretiza plenamente durante a transição do ser huma-
no — (do mundo) “velho” para o “novo”; na transição de “aqui” para “lá”, das
épocas passadas para a era vindoura. É uma dualidade que se firma em sua
própria supressão que é, concomitantemente, o que a impõe.
Os dois caminhos se separam e se encontram no ponto onde o homem,
afastado de Deus pela queda, em Adão, os reencontra em Cristo. Na queda em
Adão começa o mundo visível, “velho”; em Cristo, o mundo invisível, o “novo”
mundo; ambos estão sob o mesmo julgamento: aquele para a condenação; este,
para a vida.
Não há reencontro com Deus, em Cristo, não há entrada para a nova
vida, que não esteja vinculada à queda em Adão e sem que o homem esteja sob
condenação divina. E podemos juntar: não há queda em Adão, nem há conde-
nação final, que não tenha a sua origem no ponto onde o ser humano recebe a
promessa da vida, mediante a reconciliação com Deus, em Cristo.

257
5, 12 O Mundo Novo

Poderíamos acompanhar Heráclito: “Imortais — mortais, mortais —


imortais. Eles vivem sua morte, alternadamente; eles morrem sua vida,
alternadamente”.
Mas esse acompanhamento teria que ser feito com reservas, pois essa
unidade entre o mundo de Adão e Cristo não significa o equilíbrio entre duas
grandezas; não é uma gangorra nem um carrossel, como se a queda e o julga-
mento, a morte e a vida, ocorressem em alternância ou num rodízio contínuo;
antes, esta passagem se manifesta como graça do segundo para o primeiro, e
volvimento, retorno, do primeiro para o segundo.
A unidade se plenifica mediante a vitória do segundo sobre o primeiro.
A aparente polaridade, ou o eterno paralelismo dos antagonismos desa-
parece quando a movimentação do primeiro para o segundo for genuína e esta
qualidade só subsiste quando a passagem do cotidiano ao “totalmente diferen-
te” for irreversível e definitiva.
É justamente este o sentido do instante crítico, O [nosso] “igual”,
[convencional, o presente mundo], Adão, tem como ideal e alvo o Cristo
totalmente diverso [com quem se defronta] ao caminhar em direção a este
alvo.
Esse caminho, revelando a dualidade da suposta unidade do ser huma-
no, conduz não somente à cisão das rotas [no ponto crítico], mas à decisão
entre os dois campos antagônicos.
Enquanto os dois caminhos se dividem, também se encontram.
Como tudo isto pode .acontecer, como é que Cristo é o segundo e último
Adão (I Cor. 15, 45), como o “novo” mundo é mais do que mera variante do
primeiro, como — depois da justificação — não há retorno possível ao estado
de afastamento de Deus, como a vida que emerge da morte é absolutamente
superior à vida que gera a morte e está cerceada por ela, e como existe uma
“morte” que é a “morte” da presente morte — tudo isto é o conteúdo [a boa
nova e o tema] do evangelho (1, 1 e 16), que é o Poder de Deus; é o poder da
ressurreição, o teor da nossa vida (todavia não é seu conteúdo!); é a “miraculosa
guerra” (Lutero), o paradoxo e a genialidade da fé.
Onde, pelo poder de Deus, houver fé, aí está o ser humano como aquele
que ele não é: como a “nova criatura” em pé no limiar do mundo “novo”, o
mundo da vida.
E, quando aí postados, ponderamos que este “novo” mundo não pode
ser outro se não o “velho” que foi suprimido, que teve sua rota invertida medi-
ante a vitória de Cristo, torna-se evidente que o pragmatismo invisível deste
mundo, e que começamos a divisar nessa supressão e reversão, vai ao encontro
da pragmática do mundo “novo”.

258
O Mundo Novo 5, 12

Enquanto olhamos através das grandezas visíveis do “primeiro” mun-


do, percebemos as suas pressuposições as suas premissas] que, uma vez supri-
midas e postas em reversão, são também as pressuposições do “segundo” mundo.
(Usei o substantivo “reversão” para expressar a idéia de “Umkehrung”
em alemão; é a inversão direcional; é a mudança de 1800 no rumo; é voltar
sobre si mesmo. Parece-me que o A. quer dar ênfase a idéia de que, em Adão, o
mundo se afasta, foge, corre para longe de Deus e, em Cristo, o homem volta,
se aproxima, vem para junto de Deus e se apresenta a ele.
Talvez, a ouvidos piedosos, soasse melhor a palavra “conversão” que,
todavia, falsearia o original pois o A. não escreveu “Bekehrung”, e talvez tives-
se razões para isso pois “conversão” pode ter uma conotação sectária a que ele
se mostra inteiramente avesso.
A tradução inglesa, de certa forma, contorna o problema escrevendo
“the old world dissolved and overthrown” para “aufgehobene und ungekehrte
alte welt” e cujo sentido procurei interpretar escrevendo o “velho” (mundo)
que foi suprimido, que teve sua rota invertida.
Todavia, logo adiante a tradução inglesa escreve... “reversed and set
moving in a contrary direction” para “umgekehrt und aufgehoben” e que escre-
vi como “suprimidas e postas em reversão”. [Traduttore, traditore...)].
Nesse relacionamento dialético entre “velho” e “novo” entre “primeiro”
e “segundo” mundo], volvemos nossa atenção primeiramente ao “velho” não
por deferência especial a ele (pois como “velho” ele não tem nada a seu favor
se não sua relação ao que é “novo”), porém, para extrair dele a LEI do “novo”.
A morte é a lei suprema deste nosso mundo. Nada sabemos dela se não
que é a negação e a corrupção. Ela é o destruidor e a destrutibilidade; é a caracte-
rística da criação e da natureza; o antagonismo insolúvel e a qualidade inseparável
de nossa vida; a aflição entre todas as aflições, o conteúdo e a somatória de todo
o mal, o espanto e o enigma de nossa existência, o aviso permanente de que sobre
as pessoas deste mundo e sobre o mundo dos homens pesa a ira de Deus.
A lei da morte de tal maneira domina sobre este mundo que até (e prin-
cipalmente) aquilo que visa a sobrepujá-lo e renová-lo, toma a forma de morti-
ficação: a moral se expressa em termos da renegação do corpo, pelo espírito; a
filosofia mostra o seu sentido no quadro da morte de Sócrates; a vida espiritual
se apresenta em oposição a vida natural, o progresso se realiza mediante a des-
truição implacável do que existe: a chama, (exceto a “chama do Senhor” — Ex.
3, 2!) só pode arder, consumindo-se.
[Ainda mais], de tal forma é a lei da morte soberana no mundo que o
próprio Cristo, segundo a carne, não tem outra alternativa se não morrer, para
ser estabelecido como Filho de Deus. (1, 3-4).

259
5, 12 O Mundo Novo

De tal maneira se impõe a lei da morte no mundo que, para podermos


tributar a Deus a honra que lhe é devida, precisamos reconhecer que o temor do
Senhor é o princípio da sabedoria, para nos aproximarmos de sua invisibilidade.
Gostaríamos de nos rebelar contra tal situação, se pudéssemos; gostaría-
mos de protestar contra a morte, em nome da vida, se o protesto da morte contra
a nossa vida não tivesse precedência, não fosse mais antigo e mais importante.
Gostaríamos de afastar de nós o ceticismo e a reserva que cercam cada
um de nossos “SIM” que acaso não seja negado. Gostaríamos de não ver que
entre os milhares de passos criativos, sadios, construtivos, positivos, plenos de
renúncia e negação [ao presente século], que no mundo damos, apenas uns
poucos, muito poucos, logram ser negação à negação final. E por isso, fraca,
pálida, bruxuleante a luz que deles irradia. Porém, só a um observador superfi-
cial passa desapercebido que essa timidez, que o palor dessa luz, não se origina
na interferência humana mas é própria à contingência dos homens neste mun-
do. (1, 10). Não há obra de criatura viva que não tenha brotado do sofrimento,
da revolução, da morte.
[Parece-me que ao citar o versículo 10 do primeiro capítulo, o A. dá
amplitude ao seu pensamento inferindo que o homem, em Cristo reconciliado
com Deus, estando em um mundo cuja lei suprema é a morte, não procede, não
age, não se dirige segundo a sua vontade pessoal; poucos são os seus desejos
que correspondem aos planos de Deus e, por isso, poucas são as suas afirma-
ções e suas ações positivas que são confirmadas, que merecem a graça da
“anuência” divina].
Estamos impotentes; estamos perdidos. Como lei de nossa vida, a morte
sempre vem primeiro. Resta-nos apenas concluir: se houver salvação, ela há de
estar em nossa libertação da morte; se houver um “SIM” precisa ser tal que
suprima este último “NÃO”; se houver uma saída ela precisa estar onde se
levanta esta terrível barreira que nos bloqueia; se Deus é Deus, ele precisa ser o
vitorioso antagonista deste “último inimigo” (I Cor. 15, 26), ele precisa ser “a
morte da morte”.
O que é a morte? de onde vem? como veio ela a ser a lei suprema do
mundo?
“O pecado”. Convém agora que voltemos nossa atenção ao homem des-
te mundo. Ele é o homem do pecado. Pecado é a característica inerente e o
fundamento do homem segundo o conhecemos. Nunca soubemos da existência
de homens que não fossem pecadores.
Pecado é poder, (e poder real), (5, 21); é o poder sob o qual está o ser
humano neste mundo. O pecado do indivíduo é uma demonstração mais ou
menos precisa dessa situação; ele serve para mostrar a que grau de pressão o

260
O Mundo Novo 5, 12

indivíduo em questão está sujeito, dentro da situação geral, mas não representa
qualquer alteração na característica fundamental desta situação.
Pecado é poder no mundo que conhecemos, no mundo dos homens, e
não depende da forma pela qual se manifeste no indivíduo. Porém o pecado
tem poder no mundo porque ele representa um determinado relacionamento do
homem com Deus.
É em Deus que o pecado consegue sua existência como poder, e poder
mundial.
Pecado é um assalto a Deus. Este assalto se perpetra sempre na ousada
transposição da “linha da morte” que foi traçada ante nós (1, 18 e seguintes); na
ébria obliteração da distância que medeia entre Deus e nós, no olvido de sua
invisibilidade, no endeusamento do ser humano. Este assalto a Deus se dá quando
erigimos o Deus deste mundo, o “NÃO-DEUS” para nosso Deus, na romântica
suposição de que poderemos ter acesso direto a Deus, sem passar — como
ímpios e rebeldes que somos — pela porta estreita da morte.
Portanto, em seu sentido histórico, visível, é pecado desfazer, diminuir
ou atenuar o nosso relacionamento com Deus conforme é caracterizado, no
presente século, pela “morte”.
Todavia, [o reconhecimento de que é pecado ignorar o relacionamento
do homem com Deus caracterizado pela morte,1 pode remeter esse sentido
perceptível do pecado a outra forma, esta subjetiva, invisível, não “histórica”.
Considerando que nossa vida é delimitada pela morte que nos separa de
Deus, conquanto Deus mesmo não seja a morte mas a vida do dia vindouro, [e
se, conforme analisado mais acima, o pecado consiste em nossa aproximação
indevida a Deus,], então pode parecer-nos lógico que podemos (ou devamos)
inverter a conjuntura, afastando-nos mais de Deus.
[Esta segunda atitude pode não ser patenteada, exibida pela nossa práti-
ca religiosa, pelo nosso culto ou pelo nosso procedimento, todavia] o assalto a
Deus também se dá quando quebramos nossa unidade com ele; quando cria-
mos para nós uma “conveniente” autonomia, quando rompemos os laços espi-
rituais que unem o homem e o mundo a Deus: que unem as criaturas ao Criador.
É um assalto a Deus ignorar a origem do homem e do mundo e situar o
homem ao lado de Deus ou fora dele. Este assalto é a “sabedoria” da antiga serpente:
“Acaso foi assim que Deus disse?” E um assalto que vem desde a origem [do homem].
É o assalto no qual o ser humano se afasta, se separa de Deus como
fonte de sua vida, de uma forma sorrateira, “não filial”, não singela [sincera e
pura]; uma forma imprópria, improcedente. [E o pecado original].
É pois evidente que “pecado” não é somente aquela primeira manifesta-
ção visível que desde a primeira queda, abundantemente (5, 20) avança por

261
5, 12 O Mundo Novo

toda a humanidade, sempre apontando junto com a primeira queda no tempo, a


uma queda anterior; também é pecado [e conseqüência direta dessa causa re-
mota] o pecado invisível que, na realidade e impiedade do homem, visa a dani-
ficar o relacionamento da vida entre o homem e Deus: o pecado inspirado pela
loucura de Satanás — “ERITIS SICUT DEUS!”
Havemos, pois, de precatar-nos para que não [demos asas a essa forma
subjetiva do pecado e] passemos ao largo da cruz (fazendo-nos iguais a Deus),
procurando [restaurar a nossa posição] o nosso retorno para junto dele, [por
obras de nossas próprias mãos, quiçá] pela adução ou adoção de refinados pos-
tulados, ou tumultuadas exigências técnicas.
Sabemos que para nós, que estamos sob a lei da morte, não existe um
instante [um ponto, uma maneira material ou outra qualquer que dependa da
nossa iniciativa, para voltarmos a Deus] e a própria lei da morte nos aponta,
precipuamente, a VIA CRUCIS para alcançarmos uma visão retrospectiva do
nosso pecado, fazendo severa advertência contra a tentação [de buscarmos al-
guma solução nossa], sob dois pontos distintos.
Primeiro: “O pecado entrou no mundo”.
O que é o mundo?
O mundo é a totalidade de nossa existência conforme está caracterizada
pelo pecado. Ele consiste de uma parte EXTERIOR, fora de nós destacada de nos-
so interior; um Cosmos que não é “criação” porque já não conhecemos o seu Cria-
dor e, de outra parte, a INTERIOR, que está em nós e que se espelha [e se projeta],
por sua vez, no Cosmos — que está ao redor de nós. (ERITIS SICUT DEUS!)
O mundo do ser humano é o mundo temporal e da matéria; é o mundo
da separação, da reunião e da contradição; é o mundo do contraste entre o
espírito e a natureza; entre o idealismo e o materialismo; entre a alma e o corpo.
E o mundo da auto-suficiência [que anseia pela sua independência (de Deus)] e
das realidades; é o mundo da objetividade e dos princípios; é o mundo dos
“Poderes”, dos “Tronos” dos “Principados” e das “Potestades”. Este mundo é
co-prisioneiro do homem.
Sendo dos homens, este mundo participa, involuntariamente, dos seus
erros, de sua conduta displicente, da destruição do relacionamento de vida com
Deus, que os homens promovem, e da relativa divindade que os homens criam
e que constitui o motivo da sua grandeza e sua ruína.
A enfermidade dos homens é, também, a do mundo (8, 19 e seguintes).
O homem precisa descobrir, para seu próprio pesar, que este Cosmos é o
seu Cosmos.
A “vida direta” [a vida em Deus] não é conhecida, é invisível, é impos-
sível neste mundo. Todas as coisas deste mundo dos homens, a materialidade,

262
O Mundo Novo 5, 12

as realidades e os objetivos, “isto” ou “aquilo”, “aqui” e “acolá”, “assim e as-


sim” são mundaneidades endeusadas ou divindade mundanizada.
A glória do Criador apenas brilha neste mundo naquilo e à medida que
delimita e define a auto-suficiência e a culpa das coisas; somente no alcance do
seu conceito crítico, portanto, na questionabilidade de tudo quanto o homem
faz, na possibilidade e na necessidade de sua supressão, na sua negação. A
glória do Criador brilha, ainda, na medida da faculdade que as coisas humanas
tiverem de, dentro do que são, testemunhar do que não são, e isto significa que
esta luz vem SUB SPECIE MORTIS.
Todos os argumentos possíveis a favor da justificação direta das coisas
foram, já de há muito, apresentados (e liquidados) nos discursos apologéticos
dos amigos de Jó.
Este mundo, por ser nosso, é aquele em que o pecado achou entrada.
Nele, sobre esta terra e debaixo deste céu, não há possibilidade de estabelecer-
se, por força dele, ligação direta do homem com Deus.
Salvamento só pode haver pela redenção, e redenção só virá com o dia
vindouro quando se farão novos, o céu e a terra.
Esta foi a primeira advertência;
Agora, a segunda: “Pelo pecado, a morte” entrou no mundo. Entrou
como crise e com duplo sentido: como lei suprema e, como referência a um
legislador acima dela.
A morte entrou como um julgamento e como mudança para melhor;
como barreira e como saída; como fim e como início; como NÃO e como
SIM; como sinal da verdade da ira divina e como sinal da verdade da salva-
ção. Todavia, e em qualquer hipótese, como o sinal PARE!, dado por Deus,
para que não contornemos a “Porta Estreita”, pois a passagem por ela é obri-
gatória, e aqui vale a pena que sejamos sábios pois, fora da “Porta Estreita”
não há sabedoria.
“Pelo pecado entrou a morte” que é a sua outra face.
Foi pelo pecado original, o pecado invisível [o desejo do homem, de ser
igual a Deus], que a morte veio ao mundo; foi a destruição do relacionamento
com Deus, que é a fonte da vida.
O pecado é a culpa; a morte, o destino.
Como ser vivente mas destituído da vida verdadeira, o ser humano pas-
sa a ser mortal; despregado de sua origem, [sua existência edênica em Deus,]
ele simplesmente deixa de existir e nesta sua selvagem independência, autono-
mia, auto-suficiência e absolutismo, ele passa a ser relativo.
É por isto que agora é inevitável que o relacionamento do homem com
Deus seja caracterizado pela morte; é inevitável que a existência do ser humano

263
5, 12 O Mundo Novo

seja fracionada e desdobrada em toda sua problemática; que o seu mundo se esfa-
cele na multiplicidade dos humanismos, da temporalidade e materialidade, mal e
apressadamente aglutinados, se tanto, sobre panos de fundo — pessimistas ou oti-
mistas. Tudo isto é agora inevitável para que, dependendo de como optar, possa o
homem antever um mundo não visível, um “segundo” mundo, a “nova” terra!
É inevitável que a vida humana seja cortada, perturbada e finalmente
aniquilada, pela dúvida, limitação, sofrimento e finalmente a morte, ao longo
da “linha crítica”.
Reina o pecado? Então vive a morte e não nós. (5, 21 e 7, 10)
Se é o pecado quem dá as ordens, é também ele quem paga: o salário do
pecado é a morte. (6, 23).
A existência que o pecado transformou em inanimada, dura, sem senti-
do, não tem um só ponto que não aponte claramente ao juízo [de Deus] — à
limitação do homem.
O final de todas as coisas ergue-se abruptamente, fechando o horizonte
da vida. Não há um ponto, sequer, da nossa existência que não aponte ao pínca-
ro “de onde Adão caiu”. (Lutero).
Não há nada “relativo” que em sua perdida (porém inextinguível) rela-
ção, não aponte ao “absoluto” que, na realidade, estabelece sua relatividade;
não há aparência de morte que, como tal, não testifique a nossa participação da
vida, em Deus, e que não dê testemunho de que o relacionamento de Deus
conosco não foi destruído pelo pecado.
É inevitável que da morte surja a pergunta sobre a vida e sobre Deus, e
é impossível que, pelo próprio amor à vida, não ponderemos sobre a morte.
Não pode passar desapercebido o dedo levantado que, desde a cruz de
Cristo, nos adverte de que o mundo do pecado só pode ser ultrapassado no
ponto onde ele foi alcançado.
Portanto, pelo pecado veio a morte; a morte como crise; como ruptura
de nossa vida; a morte como elemento de conhecimento da nossa miséria e da
nossa esperança.
A morte é ao mesmo tempo, o reverso do pecado invisível e da justiça
invisível.
[Esta foi a segunda advertência].
“Através de um só homem” — tudo isso?
Quem é este um? Adão?
Sim, Adão como agente daquele pecado invisível, e que, caindo, deu
entrada ao pecado no mundo.
Porém, trata-se deste Adão, não em seu carente, seu inexistente relacio-
namento histórico, porém em sua relação não histórica com Cristo.

264
O Mundo Novo 5, 12

Sem olhar para a invisível justiça, na obediente morte de Cristo, como


poderemos ver o pecado invisível na vida desobediente de Adão? Como pode-
remos saber o que significa a “queda” do homem? Como poderíamos, sequer
imaginar a queda de Adão, da vida para a morte, se não tivéssemos ante os
olhos o levantamento de Cristo, da morte para vida?
Donde poderíamos saber o que significa “viver, para morrer”?
Adão não é o Adão da queda, [quando considerado] na planura dos even-
tos históricos e psicológicos, porém ele o é como “primeiro Adão”, a prefiguração
do segundo (o vindouro) em cuja luz ele subsiste como sombra.
Adão subsiste como o instante que está atrás do movimento para frente,
vitorioso em Cristo; atrás desse movimento de retorno e volvimento dos ho-
mens e seu mundo, abandonando o caminho do afastamento de Deus, para
encetar a marcha no sentido da justificação; no sentido da morte para a vida, do
“velho” para o “novo”.
Por conseguinte, Adão não subsiste como uma segunda grandeza positi-
va, ou como um pólo em torno do qual se processasse o movimento de retorno
da humanidade; ele subsiste, apenas, na medida de sua supressão. Ele é confir-
mado pela sua negação em Cristo.
Nem Adão, nem Cristo, a quem Deus ressuscitou dos mortos e estabele-
ceu como fonte da vida, e de quem Adão é a projeção prefigurativa, — são
personagens de nossa história secular.
A posição de Adão na história é inteiramente irrelevante.
O pecado que Adão trouxe ao mundo está aquém da morte assim como
a justificação que Cristo trouxe, está além dela.
Todavia a humanidade, segundo a história que conhece, está
inexoravelmente enquadrada entre a morte de Adão e a morte de Cristo. A
humanidade está situada entre o que Adão foi antes de ser mortal, — e Cristo,
quando já não era mais mortal, está entre a morte que veio da vida, e a vida que
emergiu da morte, e esta posição não é mensurável historicamente.
Semelhantemente, a entrada do pecado, no mundo, por Adão, não é uma
ocorrência que se possa situar historicamente, em qualquer sentido.
A doutrina da “herança” do “pecado original” conforme o ensino da
Igreja do ocidente [católica romana), de maneira nenhuma haveria de parecer
uma “hipótese simpática” (Lietzmann) a Paulo, mas uma das muitas falsifica-
ções “histórico-psicológicas” de sua pregação.
Assim como a justificação que Cristo trouxe ao mundo não se prende a
uma data histórica mas é perene, ubíqua e transcendental, e os homens podem
se apropriar dela a todo tempo, mediante a fé, assim também a queda em Adão
não diz respeito a um acontecimento — um determinado evento histórico do

265
5, 12 O Mundo Novo

qual a humanidade, hoje, sofre as conseqüências por hereditariedade, mas é um


pecado transcendental que consiste na imemorial propensão do ser humano de
voltar as costas a Deus, ao que é “novo”, para correr empós o que é velho, para
buscar o “não Deus” deste mundo.
Essa tentação provou a sua eficácia com o “primeiro Adão” e seu mun-
do, e a vem confirmando pelos milênios afora, quando os homens, em sua
impiedade e perversão, retêm a verdade pela injustiça. (1, 18).
Esta inclinação da humanidade para se afastar de Deus [e que ocorre em
todos os quadrantes da terra, sem distinção entre povos, eras e gerações], e que
acarreta a ruptura da unidade do homem com Deus, explica-se (e também não
se explica) na predestinação, a qual acompanha, como sombra: a predestinação
para sua eleição eterna, em Cristo.
A queda de Adão, em si mesma, o seu passo em falso, não é a “causa”
do pecado, mas o seu “primeiro efeito”. É possível que, sob este aspecto a
antiga doutrina do “supralapsarianismo” dos tempos da reforma, segundo a
qual a predestinação retrocede até eras anteriores à “queda histórica”, possa ser
ouvida e até defendida...)
A sombra que encobre todos nós só pode ser identificada com Adão, e
trazer seu nome, na medida em que ele foi o primeiro a praticar o que todos
praticamos. Adão, o primeiro, significa o homem terreno, o homem histórico,
[cada um de nós], que precisa ser vencido (1 Cor. 15, 45 e seguintes).
[“Supralapsarianismo” é a doutrina segundo a qual a “queda” do ho-
mem foi decretada por Deus para tornar efetivo o decreto anterior de “eleição e
danação”. Calvino teria oscilado entre essa doutrina e a do “sublapsarianismo”
uma espécie de “opção volitiva”.
Todavia, a doutrina da predestinação aceita e defendida por Calvino é a
que se acha consubstanciada na Confissão de Fé, de Westminster, toda ela ba-
seada em interpretação de passagens bíblicas, (especialmente Paulinas) e cons-
titui a peça básica da confissão doutrinária presbiteriana.
Contudo, parece-me conveniente salientar aqui que Barth não acompa-
nha essa interpretação, antes a combate com muita veemência, também plena-
mente estribado na Bíblia.
Em resumo, ele diz que o Evangelho é sempre a boa nova da salvação;
não seria uma boa nova para os “destinados à perdição” se eles tivessem que
tomar conhecimento de que só os “eleitos para a salvação” mereceriam a re-
conciliação com Deus. Entende Barth que ensinar desta forma é “deter a verda-
de pela injustiça” (1, 18).
Barth diz que há, sim, predestinação: dentro desta predestinação há a
reconciliação e também a perdição. Cristo morreu para que todo o que nele

266
O Mundo Novo 5, 12

crer, sem nenhuma exceção — (e por predestinação) seja salvo; todavia, o que
não crer, (pela mesma predestinação) já está condenado.
De outra forma, como seria Deus justo? Como seria ele o Deus de amor?
Como explicar o mandamento: “Ide e pregai”? Não seria a idéia (ou doutrina) da
predestinação, nos moldes restritos da Confissão de FÉ de Westminster, uma
limitação à obra redentora de Cristo, na cruze, em última análise, até a sua anula-
ção, pois por que haveria de Jesus Cristo morrer na cruz, se uma parte do mundo
já estava separada por Deus, para a vida eterna, e outra para a perdição eterna?
Onde ficaria a verdadeira imagem e semelhança do homem com Deus, tão
soberana e soberbamente definida ainda no jardim do Éden, quando ao homem foi
dada a oportunidade (esta sim:), de ser igual a Deus (sua imagem e semelhança “em
espírito”, é claro) com o livre direito à escolha?
É com esta opção, que Barth denomina “CRISE”, que o homem se defron-
ta ante a “porta larga” e a “porta estreita” dos dois caminhos da predestinação:
a perdição e a redenção. Mas não acontece MANU MILITARIS; não é por
decreto; é por opção. O decreto existe desde a eternidade e é um só; não há dois
decretos; nem há um anterior e outro posterior, um a suplementar o outro, coisa
tão comum entre certos legisladores apressados: (não prevêm tudo “de come-
ço” e precisam emitir depois, atos, instruções, portarias, regulamentações, de-
cretos e novas leis para justificar e possibilitar a aplicação das primeiras
Segundo este “único” decreto não há dois livros “previamente” prepara-
dos, contendo as listas dos que hão de se salvar e dos que estão condenados.
Não há um “livro da vida” e um “livro da morte”.
Todavia alguns nomes (poucos ou talvez muitos) poderão ser apagados
do “livro da vida” (Apoc. 3, 5) e, por isso, os seus nomes não constarão dele,
“no fim”. (Apoc. 21, 27).
A tradução inglesa do trecho que vai da referência (1, 18) até a referên-
cia (I Cor. 15, 45 e seguintes) é um pouco mais suscinta e pode ser útil para
lançar luz sobre o tema.
Ela escreve:
“Esta disposição ativa é explicada, todavia não é explicada — pela divina
predestinação dos homens à destruição e que segue a divina eleição em Cristo,
como a sombra segue a luz. A queda não é causada pela transgressão de Adão,
mas a transgressão foi, presumivelmente, sua primeira operação manifesta.
Neste contexto, a venerável doutrina reformada do “Supralapsarianismo”
se torna inteligível. Segundo ela, a predestinação para a rejeição antecede a
queda “histórica”.
Designar e definir a sombra em que estamos pelo nome de Adão, somente
é legítimo na medida em que ele fez primeiro o que todos nós fazemos. Por

267
5, 12 O Mundo Novo

“primeiro Adão” designamos o homem natural, terreno, histórico; é a este ho-


mem que temos de vencer”.
Notar ainda, de passagem, que é a doutrina da “herança do pecado origi-
nal” pela raça, que levou a Igreja Católica Romana ao dogma da “Imaculada
Conceição” visando a santificação e beatificação da mãe de Jesus.].
”E a morte atingiu todos os homens, como tais, pois todos pecaram”.
Saímos do segundo plano — o “não histórico”, de nosso “velho” mundo
para seu iluminado primeiro plano e vemos, claramente confirmado, o que há a
concluir da pragmática invisível da VIA CRUCIS: vemos a humanidade toda
praticando o que Adão fez e, por isso, sofrendo o que ele sofreu.
A todos vemos pecar, e depois morrer.
Vemos todos a tirar de Deus o que só a ele pertence, e sendo, depois,
envergonhados.
Sabemos que, em vez de “depois”, deveríamos dizer “por isso”; sabemo-
lo, mas não o vemos; só vemos os fatos.
O emergente pecado visível de Adão, que não irrompeu sem a compro-
metedora participação do sexo feminino, o gesto atrevido que estende a mão
para arrancar o fruto da “árvore do conhecimento”, repete-se variado e renova-
do, ao longo de toda a história. “Não há nenhum justo, nem sequer um”.
(3, 10 e 23).
Também, reconhecido ou ignorado, corre por toda a história, e vai até a
linha da morte, onde está bem claro, à luz do dia e ao alcance da mão, o que
quer dizer, “Adão se tornou como um de nós, conhecedor do bem e do mal”.
(Gen. 3, 22).
Portanto, assim como a pragmática invisível subsiste, e é evidente nos
fatos visíveis, assim também...
— Contudo, antes que tiremos a conclusão que a analogia propõe, deve-
mos salientar um ponto. [Ver exegese de 5, 18].

Vs. 13 e 14 Porque antes da lei já havia pecado no mundo; mas o pecado não
é levado em conta, quando não há lei. Entretanto a morte reinou desde
Adão até Moisés, mesmo sobre aqueles que não pecaram segundo o mode-
lo de Adão o qual, contudo, prefigura aquele que haveria de vir

O que precisa ser sublinhado refere-se ao conceito de pecado.


O pecado precisa ser entendido na plenitude de seu sentido invisível
para que se esclareça, por ele, a natureza deste nosso mundo passageiro e, tam-
bém, a do vindouro.

268
O Mundo Novo 5, 12-14

Dizíamos que o pecado não entrou no mundo como um determinado


evento, ou pela somatória de uma série deles, ou ainda por uma dada situação;
nem aconteceu por algum acaso psicológico ou histórico, porém, ele se apre-
senta por toda a parte, e uniformemente, como realidade certa pré-existente a
todos os acontecimentos e a todas situações.
O pecado é o “peso específico” da natureza humana.
Pecado não é uma queda, ou uma sucessão de transgressões: é a queda
que ocorreu com a emergência da vida.
O pecado ocorre ainda antes que seja assimilado, consciente ou
subconscientemente, por este ou aquele ser humano. Pecado é poder mesmo
antes de dominar a mente e a vontade de alguém.
“O pecado existiu no mundo antes da lei”.
Contrariamente ao pecado, a lei é uma grandeza histórica, visível (2,
14-16). É a Lei que traz aos homens e preserva entre eles, a lembrança da sua
unidade com Deus.
A lei é a forma pela qual o homem pode tomar conhecimento de qual
seja a vontade e a norma de Deus, tanto consciente como subconscientemente.
A lei é a luz da presença e revelação divinas; a luz fracionada, dissociada
e tingida pela contínua sucessão e concomitância dos eventos e conjunturas
que caracterizam este mundo terreno.
Onde há lei, aí há também “retidão humana”; há eleição e vocação divi-
na e há incumbência de manter-se atitude orientada para Deus. (2, 3-5; 2, 12-13
e 3, 2). Bem-aventurado é aquele que sabe que não será desculpável, que não
poderá esconder-se. (2, 1-2).
Onde houver lei, religião, aí surge a injustiça humana; aí desponta o
homem em sua fraqueza, em sua insuficiência, em sua carnalidade, como um
estorvo a Deus; como objeto da ira divina; e isto, na medida em que ele sabe o
que a lei exige, na medida em que a leva a sério e é seu ouvinte. (3, 14-20 e 4,
15, primeira parte).
É então, (se não nos enganarem todas as aparências,) que ocorre o
gesto atrevido que estende a mão à árvore da ciência; é então que nos esque-
cemos que temos de morrer, e procuramos iludir-nos quanto à impossibili-
dade de nos justificarmos pela lei. E ai do homem de Deus que [justamente
dei se enganar, esquecendo-se que está numa zona especialmente perigosa.
(2, 17 e seguintes).
Onde existe lei, aí há transgressão (4, 15, segunda parte); aí há atribui-
ção de pecado e, porque aí há olhos que vêem, as trevas em que estamos transfor-
mam-se em tormento. Aí irrompe a torrente incandescente, porque o material é
inflamável.

269
5, 13 O Mundo Novo

[Os olhos que vêem são os nossos próprios, porque têm perante eles a
lei, e sabem ver; sabemos distinguir entre o bem e o mal porque adquirimos
conhecimento; este é o significado da declaração: “Eis que o homem se tornou
como um de nós”; adquiriu conhecimento para discernir entre o que é bom e
mau, entre o bem e o mal que pratica (ainda que não o queira). A tragédia deste
conhecimento tem o seu ápice na linha crítica da morte, quando o nosso “co-
nhecimento”, longe de nos mostrar a luz que nos poderia guiar, derrama sobre
nós um rio de fogo de desespero, aflição, tormento. No dizer trágico de Lutero,
“o homem está perdido”. — A não ser que receba a justificação, pela fé...].
Porque o homem conhece o que seja pecado, este pesa sobre os seus
ombros. [É o peso da] culpa, a sobrecarga da responsabilidade.
Então o pecado acha uma alavanca, um capital operacional (7, 8 e 11), e
começa a agir. Ele entra com o Poder; passa a ser altamente notável, grande
evento histórico. E é justamente o homem que tem a lei, (o homem que “foi
despertado”), o homem que está fascinado por Deus e que nele espera, que está
voltado para Deus, o homem religioso, sim, é justamente tal homem que é o
pecador para quem o pecado é o mais visível. — (7, 7 e seguintes; 7, 14 e
seguintes).
O “mal de José” [quiçá presunção], irrompe agora entre as pessoas inte-
ressadas na religião e não na massa dos indiferentes; entre sacerdotes e seus
amigos e não entre falcatrueiros e réprobos; na Igreja; e não no cinema; nas
Faculdades de Teologia, e não no ateísmo dos estudantes de medicina; entre os
“ativistas” religioso-sociais e não entre os capitalistas e militaristas; aparece
em livros como este é não em literatura profana.
O povo de Israel é arruinado em sua lei, em sua eleição e vocação, num
desfalecimento e sofrimento que os moabitas e filisteus jamais padeceram.
Foi isto o que aconteceu a Adão, por quem o pecado entrou no mundo;
foi possível porque ele tinha uma lei: a advertência de não tocar na árvore do
bem e do mal. Ele se tornou pecador, sacrificando a sua relação especial com
Deus.
[Aqui vem à tona uma pergunta que pode parecer ímpia — (e o que é
que procede do homem, que não seja ímpio?) — Todavia, pode ser uma obje-
ção natural: por que foi a árvore da ciência do bem e do mal posta à disposição
do homem, dando-lhe a oportunidade de desobedecer?
A resposta é: para que o homem tivesse o privilégio de optar. Esta é a
qualidade que distingue o ser humano (criado à imagem e semelhança de Deus),
dos demais seres viventes da terra e o põe numa categoria apenas um pouco
menor que a dos anjos. (Sal. 8, 5 — Heb. 2, 7). O homem foi criado livre por
Deus; para exercer sua liberdade precisava (e precisa) ter entre o que optar.

270
O Mundo Novo 5, 13

Este direito de opção acompanha o homem desde o berço até o túmulo e,


mesmo depois de haver optado pelo paradoxo da fé, ainda depois de haver confes-
sado “Tu és o Cristo, o filho de Deus vivo”, tem que optar. Há de optar entre as
respostas que pode dar a uma criada e a um centurião. Acima de direito e privilégio,
o exercício livre da opção é o coroamento do homem espiritual que, se de uma
feita o levou a fugir de Deus, pode, a todo o tempo, recolocá-lo na glória em que
Adão esteve, antes de pecar, mediante a reconciliação com Deus em Cristo Jesus].
Acaso existe na história do mundo ou na vida de alguma pessoa, algum
tempo, algum local, alguma condição ou situação, onde não houvesse “nenhu-
ma lei”?
Se, hipoteticamente, um tal lugar, ou tal época, ou uma tal situação exis-
tisse, e se, ainda por hipótese, a situássemos [com bastante propriedade], no
período histórico que vai de “Adão a Moisés”, isto é, no tempo que medeia
entre a “lei particular” de Adão, e a lei nacional dada ao povo de Israel por
Moisés, aí caberia dizer: “onde não há lei, não há imputação de pecado”.
Onde não há lei, a humanidade é cega, e portanto não percebe as trevas.
É lenha molhada que não arde. Não há “alavanca” nem “capital de giro”, por
isso não há ação, nem empresa. [Isto é, não há pecado].
Uma tal sociedade apenas vegetaria, como as plantas numa estufa, sob
um suposto austero e silencioso aprazimento divino. Nada poderíamos dizer a
respeito de tal conjuntura, pois nela não se poderia encontrar qualquer forma
de pecado individual, pessoal, nem consciente nem subconsciente, porque não
haveria imputação de pecado, dado que, “sem lei o pecado é morto” (7, 8).
Seria uma sociedade de pecadores “adormecidos” aos quais haveria uma
só sentença a dar: Perdão!
Todavia, é justamente por este perdão que esperam e anseiam os povos
que viveram no lapso de tempo que vai de Adão a Moisés, porque estes “dormi-
nhocos canadenses” não constituem exceção à regra e também sobre eles impe-
ra a lei da morte. Não existe a exceção que seria de tanto agrado aos sensíveis
seguidores de Rousseau.
[A referência a “dorminhocos canadenses” — apud tradução inglesa —
parece ser a um poema de R. Seume, sobre as aventuras de um canadense na
Europa].
A verdade de que não há ninguém livre da lei, está clara na observação:
“Contudo, a morte reinou, desde Adão até Moisés”.
Em nenhuma parte está dito que a lei mundial da morte não atinge aos
que estão sem lei (se é que tais existem).
As características que, neste mundo, marcam e distinguem a humanidade
sujeita à lei, aos que podem ser considerados como despertados por ela, são as

271
5, 13-14 O Mundo Novo

mesmas daquela outra parte que, adormecida, não a tem (ou não a teria). Uns e
outros têm as mesmas qualidades de criaturas; sofrem do mesmo cerceamento
e das mesmas limitações. Uns e outros se defrontam com os mesmos enigmas
do nascimento e da morte a qual impera sobre todos e, em sua severidade, faz
supor a existência de um pecado anterior, maior do que a nossa queda histórica,
visível.
Essa queda pré-existente, invisível, à qual a nossa conjuntura mortal
aponta, não pode ser identificada com os acontecimentos e as ocorrências que,
em nossa vida terrena, lamentamos e profligamos como pecado.
Também “os que dormem” vislumbram a existência desse pecado invi-
sível, primevo, para além da origem de seus sonhos: pecado que, inicialmente,
afastou a criatura do seu Criador — pressentimento este que bem se demonstra
na expressão hipocrática de suas faces.
[Face “hipocrática” é a face do ser humano perante a morte — Hipócrates,
Prognóstico II — Apud versão inglesa].
Todavia, também os que dormem são levados a sério por Deus; também
eles são responsabilizados e estão debaixo da ira de Deus, ainda que esta esteja
oculta. O fato de não estarem sujeitos à lei geral de Israel e, portanto, o fato de
não haverem pecado segundo o modelo histórico de Adão nem segundo a espé-
cie do erro de Israel, não lhes da paz, nem os isenta de culpa. Também eles se
defrontam com a crise da eleição e da rejeição, da justificação e da danação,
mesmo que, historicamente, sejam inculpáveis [como de fato o são].
[Justamente porque também aqueles que (aparentemente) sem lei, estão
sob o império da lei da morte, é que se confirma a pré-existência de um pecado
maior, gerador da desobediência dos nossos primeiros pais e de toda a raça que,
com lei ou sem lei, têem a inclinação terrena, natural, de voltar as costas a
Deus, para fazer-se igual a Deus].
A diferença entre “os que estão sem lei” e aqueles que “sob a lei devem
morrer”, é apenas relativa, pois “para Deus não há acepção de pessoas” e, por-
tanto, “todos os que pecaram sem lei, também sem lei perecerão; e todos os que
com lei pecaram, serão julgados mediante a lei”. (2, 11-12).
O pecado que entrou no mundo “por Adão” é PODER e é SUPER-
PODER que não pode, de forma alguma, ser identificado com o pecado histó-
rico de Adão, ou com os pecados mais ou menos semelhantes da multidão de
seus seguidores.
A soberania visível da morte aponta à soberania invisível do pecado,
mesmo onde o pecado não se tenha revelado em ocorrência visível.
Um rei não é eleito por seus súditos e eles não têem meios de decidir,
individualmente, se aceitam ou não a sua suserania; o rei sobe ao trono por

272
O Mundo Novo 5, 14

direito de herança e domina “pela graça de Deus” (ou com seu desfavor...) —
Somente a revolução, a derruba da “dinastia”, a reviravolta [o retomo, a inver-
são] da ordem dominante podem modificar a situação.
Ora, a entrada do pecado no mundo, em Adão, deve ser entendida como
obra de sua soberania. [Isto é, o pecado se valeu de seu Poder para entrar no
mundo].
Todavia, Adão “é a prefigura daquele que haveria de vir”; essa
prefiguração de Adão, é na qualidade de pecador, no pleno sentido do cometi-
mento deste pecado invisível, não histórico, [que antecedeu o pecado “históri-
co”, visível, conhecido, de estender a mão ao fruto da árvore da ciência do bem
e do mal, e provar dele].
A sombra em que Adão se acha é testemunha da luz que vem de Cristo
e nos mostra qual a significação e a natureza dessa luz.
A pragmática invisível deste mundo é igual à do mundo vindouro com o
“sinal” trocado. “O segredo de Adão é o segredo do Messias” (um dito rabínico).
É o segredo do homem inapelavelmente separado, afastado de Deus, que está
concomitantemente, ligado indissoluvelmente a Deus para que não se perca;
este segredo se oculta na dualidade de Adão e Cristo porém, se revela na sua
unidade. Ambos estão rigorosamente sobre a linha divisória entre o pecado e a
justificação, entre a vida e a morte. Adão aponta para traz e Cristo para frente.
Os dois estão inexorável e absolutamente separados pelo contraste do que neles
se confronta e inseparavelmente unidos na origem desse contraste: na
predestinação divina para a eleição ou para a rejeição.
O primeiro e o segundo “Adão” estão inseparavelmente unidos porque
o pecado e a morte do primeiro, e a justificação e a vida do segundo, abrangem
a totalidade da vida humana e da humanidade em todas dimensões;
inseparavelmente unidos, por que o “sim” de um, é o “não” do outro e o “não”
de um é o “sim” do outro. O primeiro é a “pré-figuração” (o tipo), é interroga-
ção e é profecia; o segundo é o modelo, a resposta e o cumprimento. Isto é tão
certo quanto é inevitável que sejam opostos os caminhos que partem de Cristo
e Adão; isto é tão certo quanto a justificação e a vida em Deus estão em oposi-
ção e são infinitamente superiores ao pecado e à morte (embora isto seja uma
maneira imprópria de dizê-lo [porquanto justificação e vida em Deus não são
comparáveis com o pecado e a morte] ); isto é tão certo, quanto é certo que a
aparente polaridade do contraste entre Adão e Cristo desaparece à luz do ins-
tante crítico (“quando uma morte devora a outra” — Lutero).
De Adão a Cristo é o caminho de Deus para os homens e entre os ho-
mens. Sobre este assunto há mais para dizer. [Antes que tiremos a conclusão da
analogia do final da exegese do versículo 12].

273
5, 15-17 O Mundo Novo

Vs. 15 a 17 Porém não há equilíbrio segundo o qual pudéssemos dizer: “Tal a


queda assim a graça” pois se pela queda de um morreram muitos, muito
mais a graça de Deus, com a dádiva divina na graça que teve este um só
homem, Jesus Cristo, — a muitos cumulou de riquezas.

E não há comparação (ou equilíbrio) como se pudéssemos dizer: “assim


como ‘isto’ veio ao mundo por meio ‘daquele’ pecador, assim a graça foi con-
cedida por ‘ESTE’ homem justo”.
(Todavia, nisto há paralelismo.) “o julgamento veio por um só homem
para condenação, porém a graça veio pela transgressão de muitos, para justificação.
“Então, (e isto suspende o paralelismo) se pela queda de um, e por este,
a morte reinou soberana, tanto mais os que receberam a abundância da graça
reinarão, na vida, através daquele um — Jesus Cristo”.
[A tradução de Almeida, sem as inserções expletivas do A., assim escre-
ve os versículos 15 a 17
“Todavia, não é assim o dom gratuito como a ofensa; por que, se pela
ofensa de um só morreram muitos, muito mais a graça de Deus, e o dom pela
graça de um só homem, Jesus Cristo, foi abundante sobre muitos.
“O dom, entretanto, não é como no caso em que somente um pecou;
porque o julgamento derivou de uma só ofensa, para a condenação; mas a graça
transcorre de muitas ofensas para a justificação.
“Se pela ofensa de um, e por meio de um só, reinou a morte, muito mais
os que recebem a abundância da graça e o dom da justiça, reinarão em vida por
meio de um só, a saber: Jesus Cristo”].
O pensamento central da passagem é inteiramente diacrítico, [dando-se
ao adjetivo o sentido mais restrito de distinção entre dois sintomas ou eventos].
Segundo Juelicher [a passagem] “é toda destituída de lógica”. “Tanto
mais certamente”, “por quanto mais”, “como ainda bem diversamente” (5, 15-
17; conferir com versículos 9 e 10)
[Notar que nem a redação dada pelo A. e nem a tradução de Almeida
usam exatamente as expressões que Juelicher destaca e o Autor menciona].
O dualismo entre Adão e Cristo, entre o mundo “novo” e o “velho”, não
é metafísico, porém dialético; ele subsiste apenas na medida que se anula. E de
fora a fora um dualismo unidirecional, de um só movimento, de uma só moção;
é um caminho que segue “de cá para lá”.
Toda a conjuntura seria compreendida erroneamente se admitíssemos
alternância, movimento de vai-vem, ou espécie de escoamento alternado entre
os cones opostos de uma ampulheta, ou ainda como se fossem duas forças
iguais agindo em sentidos contrários.

274
O Mundo Novo 5, 15

A realidade viva das duas proposições contrárias está na sua


obrigatoriedade inerente de se volverem a Deus como sua origem e seu alvo.
Esta obrigatoriedade divina compele ao movimento que leva da culpa e do
destino à reconciliação e à redenção.
A crise da passagem pela morte para a ressurreição, a crise da fé, é o
retorno, é a conversão do caminheiro que, seguindo para o “Não” divino [pára
e] volta ao divino “SIM”.
Jamais o viandante segue simultaneamente nos dois sentidos dessa es-
trada e a conversão, uma vez feita, é irreversível.
Precisamos esclarecer que a pragmática invisível do “novo” mundo é a
mesma do “velho”; em sua forma, porém, tem sentido inteiramente oposto e
lhe é absolutamente superior em significação e poder.
É o que tentaremos demonstrar com as (duas ponderações seguintes):

1ª Ponderação (5, 15).


Consideremos novamente as causas originais, as dominantes, que determi-
nam, aqui, o mundo “velho” como “antigo” — em vias de passar e, acolá, o mundo
“novo”, vindouro. Identificamo-las como “QUEDA” e “GRAÇA”. Trata-se, portan-
to, da “ESQUERDA” e da “DIREITA”, no relacionamento do homem com Deus.
Fundamentado invisivelmente em Deus, e nele somente, de um lado
está Adão, o “decaído” e, de outro, Cristo, o “agraciado”. Esta posição relativa
é o que neles há de comum, aparentando haver equilíbrio entre a queda e a
graça. Mas é Justamente naquilo que é comum, que desponta a diferença: como
se apresenta o relacionamento do homem com Deus, em Adão? — Isto já está
claro na própria palavra “QUEDA”. Por ela se vê Deus abandonado pelo ho-
mem; despojado, negado, sofredor.
Despojar a Deus é a essência do pecado, que rouba para si atributos
divinos, para exibir, [como seus], poderes semelhantes aos de Deus, no mundo
(5, 12) [e 6, 12].
Pecado é a conduta negativa perante Deus e em Deus e, em conseqüên-
cia de tal conduta, “pela queda de um, muitos morreram”, isto é, no mundo de
Adão, o homem precisa tomar ciência do seu relacionamento negativo com
Deus. Em Adão torna-se visível o fato, de outra forma, invisível, que Deus diz
“NÃO” a este mundo. E com este “NÃO” o mundo de Adão vê Deus como
agressor; como aquele que nos expulsou do para(so e nos rouba a vida: “SICUT
HOMO PECCANDO RAPIT, QUOD DEI EST, ITA DEUS PUNIENDO
AUFERT QUOD HOMINIS EST” (Anselmo).
O mundo pecaminoso, o mundo decaído é, como tal, o mundo da morte.
E o mundo rodeado de uma interrogação geral para a qual não encontra resposta;

275
5, 15-16 O Mundo Novo

é um mundo que não tem saída, senão na própria muralha que o cerca; que só
encontra conhecimento na ignorância, e esperança no desespero. É o mundo
que aguarda o Juízo Final com a supressão de todas as coisas e enquanto espera
sofre os horrores do seu presente estado.
A esta situação calamitosa se opõe o relacionamento do homem com
Deus, em Cristo.
Quer designemos este relacionamento como justificação [1, 14; 3,21 (e
3, 24 – 28) ] quer o identifiquemos como obediência (5, 19) ou misericórdia, é
sempre evidente que se trata da graça de Deus, manifestada por sua dádiva na
graça que houve [e que há] em Jesus Cristo, na ação invisível de Deus, promo-
vendo a positividade deste novo relacionamento; trata-se da obra divina, da
atividade de Deus para com o homem e para com o mundo. Deus não permane-
ce impassível ante a usurpação; Deus não abandona o homem; não o considera
perdido porque caiu; antes o reivindica para si; Deus é misericordioso e mara-
vilhoso: é ele o Deus que perdoa e que dá: é dele que vem “a graça que a muitos
cumulou de riquezas”. É Deus quem toma a iniciativa e estabelece o relaciona-
mento positivo entre Deus e cada homem, em Cristo, e traz para o “mundo de
Cristo”, o “SIM” divino.
Eis, agora, Deus como Criador e Redentor; como o doador da vida e de
toda dádiva perfeita.
Em Jesus Cristo torna-se visível a realidade invisível: que Deus não
deixa de dizer-nos “SIM”.
O mundo para o qual Deus se volta ativa e positivamente, é o mun-
do da vida. É o mundo onde a transitoriedade, as limitações, a pequenês,
perdem o seu sentido terreno, para mostrarem o relacionamento existente
entre a origem e o alvo; para mostrarem o sentido e a realidade da existên-
cia. É o mundo onde todas as interrogações já foram respondidas; é o
mundo onde o conteúdo eterno é perceptível nas coisas passageiras e o
homem vê o resplendor divino e, já agora, nas penúltimas obras, goza da
Paz de Deus.
É este o mundo que se desvenda, indescritível e pleno de esperanças,
ao “novo homem” postado sobre a soleira do umbral eterno; revela-se na
unidade da esperança final, na esperança da clareza e da paz que vêm de
Deus; e, sendo esperança, é, desde já, realidade espiritual. (5, 11).
É assim que se situa a balança dialética entre a queda e o perdão; e por
que força de lógica não haveria de estar acessível, e até muito próxima, a pos-
sibilidade de suprimir a aparente simetria deste contraste mediante um passo à
frente para, (“com mais certeza”), conhecer o seu verdadeiro sentido? E por
que não dar esse passo?

276
O Mundo Novo 5, 16-17

2ª Ponderação (5, 16-17)


Voltemos agora, nossa atenção ao modo de agir e às tendências do mun-
do, como “velho” e como “novo”, e vejamos o que adveio ao mundo por meio
deste “um pecador” e pela “dádiva divina”.
O homem está novamente situado [no seu relacionamento com Deus]
ou à esquerda ou à direita, pela queda e pelo perdão. As duas posições proce-
dem da mesma sentença do Deus Justo e misericordioso e o homem se situa
deste ou daquele lado obedecendo uma determinada ordem invisível, e isto
independente de ele estar deste lado, representado por este único Adão [da
queda], ou do outro, pela imensa quantidade daqueles que caíram da mesma
forma, e também independente de aqui se tratar de sentença condenatória e ali
de sentença absolutória, pois: “o julgamento derivou de uma só ofensa, para a
condenação; mas a graça decorre de muitas ofensas, para a justificação”.
Na origem invisível de onde procedem, o “mundo novo” e o “mundo
velho” são iguais. Eles tomam as características próprias de “novo” e “velho”
quando confrontados em Deus. Eles são, originariamente, tão idênticos entre si
como a chuva que cai sobre o divisor de águas: só aí é que se divide e flui em
direções opostas. São qual a torrente que chega à aresta do pilar da ponte: só aí
é que se fendem as águas, para percolarem as faces opostas.
Nesta separação está a eleição divina ou a rejeição. É na unidade que
Deus elege e condena. (5, 16). Contudo Deus elege e condena; por conseguin-
te, não são iguais as duas posições. Basta ver o que o julgamento de Deus
significa para o homem (5, 17): de uma parte significa tudo o que veio ao mun-
do, por Adão; significa a soberania da morte; o homem despojado, negado,
reduzido à condição de sofredor; perenemente atado, algemado, aos grilhões
que prendem a humanidade desde o primeiro até o derradeiro de seus seres;
significa o destino final, causal, claramente visível na morte que é a caracterís-
tica genérica do mundo. Significa o homem envolvido em infelicidades físicas,
psíquicas e fatais exigências mecânicas (Ananke), preso por elas ao círculo
incoerente da existência passageira; significa o homem cuja segurança é sem
fundamento, e cuja desilusão será total; o homem que vive duvidosa juventude,
e velhice tristemente célebre; o homem que fracassa, tanto em seus arroubos
otimistas quanto nos pessimistas.
Esse julgamento qualifica e identifica o homem que não pode viver por-
que não pode querer; não pode querer porque não é livre; não é livre porque
não tem objetivo livre; e não tem objetivo livre, porque é mortal. Apenas mortal.
Se esta sentença de morte ainda não foi executada em nós num dado
momento físico, ela está todavia, permanentemente suspensa sobre nós qual a
espada de Dâmocles.

277
5, 17-18 O Mundo Novo

De outra parte, porém, esta sentença de Deus que condena e elege, tem
outro significado.
Ela significa que aquilo que veio ao mundo pela dádiva de Deus, por meio
deste “um justo”, o segundo Adão, Cristo Jesus, não é nada menos do que a “PLE-
NITUDE DA GRAÇA”, a “dádiva da Justificação” que pode ser aceita, acolhida,
recebida por todos os homens, para que sejam eles próprios, reis, em vida.
Para que o homem passe a ser “nova” criatura é ele transportado para a
verdadeira vida, pela morte de Cristo. (6, 4-5). É a revolução contra a lei invisí-
vel do mundo que se evidencia pela morte.
Este lado do julgamento significa a reabilitação do homem; a sua liber-
tação fundamental da violência do pecado que o subjuga; significa a ordem da
justiça divina debaixo da qual Cristo nos coloca.
[Este segundo lado do julgamento divino] significa nada mais e nada
menos do que a herança do mundo prometida a Abraão e à sua descendência
segundo a fé (4, 13); significa que o homem já não precisa estar sujeito às
cadeias do cosmos porém, o próprio cosmos, liberto, estará a seus pés. Signifi-
ca que o homem, feito escravo de todas as coisas, pelo pecado, foi transforma-
do em senhor delas todas, pela morte de Cristo; significa que foi destruído o
aprisionamento causal, que fez da criatura mero elo de imensa cadeia; agora,
como indivíduo, pela graça em Cristo, (que veio para apagar1 a transgressão de
muitos) o homem está sob a lei da liberdade que, como sua nova e inalienável
característica, é idêntica à lei da vida que caracteriza o reino de Deus. (5, 18).
Significa ainda que, fundado em Deus, está o homem livre do pecado e, portan-
to, livre e acima da morte. Na sua imortalidade o homem encontra o livre obje-
tivo de sua vida; na liberdade deste objetivo, a liberdade de sua vontade, quer
seja vencedor ou vencido, pois tudo o que é passageiro, efêmero, perecível, é
apenas parábola do que é imperecível, eterno.
Como sua vontade liberta, o homem se reencontra e, dentro dele, encon-
tra a incomensurável e absoluta grandeza de sua realeza, o verdadeiro valor da
vida — a vida eterna.
O fato de que aqueles que recebem a superabundância da graça “reina-
rão” (2, 13; 3, 30 e 5, 20) lembra-nos imediatamente que a identificação do
homem “velho” com o “novo” ainda está por se efetivar, a qualquer instante,
neste mundo; que a sentença de libertação apenas nos foi anunciada, e portan-
to, não significa uma libertação histórica, atual. Isto é assim porque, também
sob este aspecto, o homem está apenas na soleira da entrada do Reino de Deus
que é o reino dos livres e dos libertos. Mas, ainda sob este aspecto, o homem aí
postado está pleno de esperança e, nesta esperança, ele não está, de todo, priva-
do do gozo antecipado daquilo que espera.

278
O Mundo Novo 5, 18-19

Pusemos nas conchas da balança dialética, o julgamento e a graça; que


a posição do fiel nos responda se, com razão (“e com mais justeza”) podemos,
da pragmática do “mundo velho”, inferir a outra — superior, vitoriosa, inteira-
mente diversa, infinitamente mais significativa e mais poderosa — a pragmáti-
ca do “mundo novo”. [O conjunto de regras que dirige o “mundo velho” na sua
relação com Deus procede da sentença eletiva divina e aponta para o domínio
do pecado e para o seu salário: a morte. Da mesma sentença depende a pragmá-
tica do “mundo novo” que, todavia, aponta para a maior excelência da graça e
para a sua dádiva: a vida eterna].

Vs. 18 e 19 É neste sentido que se diz: assim como pela queda deste um, veio a
morte para todos, assim também, pela justificação deste outro, veio, para
todos, a vida, porquanto, assim como pela desobediência de um muitos
pecaram, também pela obediência de um, muitos serão justificados.

(A tradução de Almeida escreve:


“Pois assim como por uma só ofensa veio o juízo sobre todos os ho-
mens, para condenação, assim também, por um só ato de justiça, veio a graça
sobre todos os homens, para justificação, que dá vida. Porque, como pela deso-
bediência de um só homem muitos se tornaram pecadores, assim também, pela
obediência de um só, muitos se tornarão justos].
Depois de havermos tornado claro (5, 13-14) que o “pecado”, como
fator dominante da conjuntura do “velho” mundo, tem o mesmo caráter origi-
nal, invisível e objetivo da “justificação” que se lhe opõe e, após nos havermos
certificado ainda de (5, 15-17) que o conflito mundial, que assim se desvenda,
somente pode surgir como um movimento que: vindo da queda é absorvido
pela reconciliação com Deus; vindo da morte, desaparece na vida; vindo do
cativeiro, é suprimido pela redenção, — estamos em condição de, sem risco de
sermos mal compreendidos, completar a analogia que propusemos mais atrás.
[Conforme exegese de 5, 12, IN FINE].
Adão, é o antigo sujeito; ele é o “EU” (o Ego) do homem neste mundo;
este “eu” caiu, usurpando para si o que é de Deus, para viver em sua própria
glória. Não foi uma ação individual, (única), histórica; antes, trata-se de ação
que sempre pré-existiu; que, em última análise, emerge inevitavelmente do
mistério da rejeição divina; do desagrado de Deus, que é donde procede a de-
terminação de toda a história da humanidade.
Juntamente, e diretamente ligada à queda, foi pronunciada a “sentença
de morte” a “todos os homens”: a sua condição de criaturas, a sua natureza, sua
insuficiência, sua opressão, — são a sua maldição e seu destino. (5, 18).

279
5, 19 O Mundo Novo

Pois, (5, 19) “pela desobediência de um, muitos pecaram”.


O procedimento de Adão não revela um “estado” ou uma condição pe-
culiar a ele, mas é a revelação da condição de todos os indivíduos da coletivida-
de — (“os muitos”). Todos são expostos como pecadores; não há quem quer
que seja que, como ser humano, não esteja “em Adão”. Não há, portanto, um
homem sequer que, como homem “velho” não seja o “sujeito” deste predicado
que se denomina “queda”; não há um, sequer, que não esteja sob a perspectiva
da negação, sob a ira de Deus.
Este é o mundo velho pelo qual somos gerados continuamente.
Cristo, porém, é o “novo” “sujeito”, o eu, [o ego] do [outro predicado
que se denomina] “mundo vindouro”.
Este “eu” é o portador da justificação e da eleição divinas; é ele quem as
recebe e as anuncia. [É em Cristo que se anula, que fica suprimido, o desagrado
que o mundo causa a Deus]. “Este é o meu filho dileto, em quem me agrado!”
Esta classificação do “homem”, a instalação daquele que nasceu da des-
cendência de Davi como “Filho de Deus” (por fora da ressurreição —(1, 3-4)),
não é visível, não é histórica, concreta. A carne e o sangue não a podem revelar.
Também aqui, o que é conhecido e o que se pode revelar, vem do mistério da
predestinação divina como determinação nova, superior, vitoriosa, para a his-
tória da humanidade.
Diretamente com a sentença da justificação de (Cristo, [e por força dela]
foi decretada “A JUSTIFICAÇÃO QUE É VIDA” para “TODOS OS HO-
MENS”. Portanto, [foi confirmada] a negação fundamental de todas negações;
foi decretada a morte da morte. À justificação de Cristo estão inseparavelmente
ligados o rompimento das cadeias que nos prendiam, a derrocada dos muros
que nos cercavam, o nosso agasalhamento nos tabernáculos que são dos céus.
(II Cor. 5, 2).
Como conseqüência direta da justificação de Cristo, “PARA TODOS”,
foi a morte tragada pela vitória (I Cor. 15, 54); o mortal foi absorvido pela vida
(II Cor. 5, 4). “Cristo ressuscitado, já não morre mais; a morte já não domina
sobre ele”. (6, 9).
Junto com esta justificação e diretamente por ela, foi criado o homem
“novo”, o eterno “sujeito” de todos os homens (5, 18) pois, “pela obediência de
um”, muitos serão justificados (5, 19).
Também aqui, [semelhantemente à situação dos homens, “em Adão”],
não se trata de um estado ou de uma condição particular de um indivíduo, de uma
pessoa, ou de um só homem; todos são iluminados pelo que é visível e valorizado
na vida obediente e na morte de Jesus; [o aclaramento não é para a coletividade,
para a raça, mas] é individual, pessoal: cada pessoa em si e por si mesma.

280
O Mundo Novo 5, 20-21

Neste “um justo”, os “muitos indivíduos” são iluminados e expostos aos


olhos de quem quiser ver: tu, e eu, somos expostos como justificados perante
Deus; como contemplados e reconhecidos por Deus; como fundados em Deus;
estamos entre os que Deus chamou a si.
Não há uma pessoa sequer que, exposta à luz da obediência, em Cristo,
não esteja nele; não há um só que não seja o “novo” sujeito trajado em justiça,
e por isso libertado e confirmado por Deus.
Vejamos bem como está escrito: [“Hão de ser justificados”; “não há
justo”; “reinarão em vida”] (2, 13; 3, 10; 5, 17). Não nos esqueçamos pois que
“tu” e “eu” ainda não somos, mas seremos. A nossa relação positiva com Deus
está sob a égide da esperança; estamos apenas na soleira, mas aí estamos: este
é o mundo “novo” a cujo encontro vamos reiteradamente.

Vs. 20 e 21 Sobreveio a lei para que avultasse a ofensa; mas onde abundou o
pecado, superabundou a graça, a fim de que, como o pecado reinou, sobe-
rano, pela morte, assim também a graça reinasse, soberanamente, pela
justiça, para a vida eterna, mediante Jesus Cri sto, nosso Senhor:

“A lei sobreveio, para que a ofensa avultasse”.


A vista de 5, 18-19, também aqui (como 5, 13-14 à vista de 5, 12) há que
sublinhar alguma coisa.
O destaque refere-se mais uma vez ao conceito de pecado, na “queda” e
na “desobediência”. Este aspecto já foi assaz examinado e detalhado, todavia,
precisamos voltar a ele para realçar a extraordinária significação da “justifica-
ção” e da “obediência que lhes são opostos.
Mais uma vez recorremos à noção da lei: concluímos mais atrás que o
pecado invisível se impõe como poder, (pela morte), mesmo onde não há lei;
agora queremos mostrar que, onde há lei, o pecado se torna visível.
A lei não é uma terceira grandeza, que se poderia situar entre as duas
determinantes do mundo: “Queda” e “Justificação”, ou “Desobediência” e
“Obediência”; a lei, como realidade histórica, apenas indica o ponto onde as
duas determinantes opostas se encontram. A lei é o meio pelo qual tomamos
conhecimento da existência dos “dois mundos”; é a lei que evidencia a necessi-
dade da inversão da rota; a necessidade de fazermos a conversão de sentido.
Vimos “o novo mundo”, em sua conjuntura geral e objetiva, na sua prag-
mática invisível fundada no querer e no agir de Deus, sobrepujar vitoriosamen-
te o mundo “velho”. Todavia, será que nessa análise não esquecemos de alguma
coisa? Não teríamos deixado passar desapercebido algum aspecto relevante,

281
5, 20 O Mundo Novo

quem sabe não teríamos até mesmo, calcado algumas evidências que acaso
surgissem?
[Vimos que o “novo” mundo se opõe vitoriosamente ao “velho”; que a
pragmática deste novo mundo está baseada na vontade soberana de Deus; vi-
mos que a lei, não é uma terceira grandeza mas é a pedra de toque pela qual
distinguimos a separação dos únicos dois caminhos que temos à nossa disposi-
ção, na vida; todavia, não é a lei que traz a religiosidade? Onde, pois, colocare-
mos o homem religioso no contexto do ingresso ao mundo “novo”?]
Não teria o nosso relacionamento com Deus, “em Adão” ou “em Cristo”,
o seu lado subjetivo, humano?
Ao lado das possibilidades invisíveis de sobrepujar o homem “velho”
pelo “novo”, conforme acabamos de ver, não existiria [quiçá também em Cris-
to, e justamente nele] uma outra possibilidade visível neste mundo, e que se
expressasse na forma de religião?
Entre Adão e Cristo, não existiria um “terceiro”, — [uma incursão no
terreno religioso] — Moisés, ou seu irmão Arão, (5, 13-14) — um profeta ou
um sacerdote, [ou ambos]?
Não há, para o crente, para o homem pleno de esperança e amor, para o
homem temente a Deus, um meio de, por sua fidelidade, postar-se também na
soleira do reino de Deus? Não poderia ser concedida semelhante graça ao ho-
mem alerta que aguarda, que corre, que ouve, que vê, que está ativo e pronto
para dar o passo ousado, para frente; que é fiel no pouco; que medita; que
trabalha “na causa”, que ora? Não poderia ser concedida à pessoa que é aben-
çoada por Deus neste mundo e que se entrega entusiasticamente a sua obra, o
privilégio de ficar na “soleira”, junto com os que estão às portas do reino de
Deus mediante a justificação pela fé? E, se não, para que serve a religião na
história do mundo? Na verdade, onde houver religião já não deveria estar trans-
posta a soleira da entrada ao “novo mundo”?
Já não deveria estar, [pela religião — a mais pura, a mais sublime, a
mais perfeita] claramente definida a posição das “conchas” da ofensa e da jus-
tificação, na balança dialética, sob o vigor de uma sadia humanização divina ou
divinização humana, que a religião proporcionasse?
Ao homem (tão santamente) religioso, não poderia ter sido dado, desde
já, pura e simplesmente, um pedacinho só, que fosse, do “novo” mundo?
Dizemos isto com muita seriedade!
É certo que o relacionamento com Deus tem também o seu lado humano,
subjetivo, histórico.
Jamais será por demais apreciado e reconhecido que existem homens
religiosos [piedosos]; que o caráter formado pela religião, o pensamento

282
O Mundo Novo 5, 20

inspirado nela, e as obras que ela motiva, se expressam em milhares de formas


(e tantas delas são altamente simpáticas, sérias, dignas do maior respeito!) obras
e frutos que entram para a história (e não raro são o próprio “sal” da terra].
Poderemos tentar criticar algumas manifestações religiosas; será, toda-
via, uma crítica relativa, e teremos que nos silenciar, embora também nossa
aprovação seja apenas relativa.
A religião estará sempre à altura de enfrentar e fazer silenciar as críticas
que se levantarem a uma eventual forma de religião ou a alguma atividade
religiosa pois, entre todas as atividades humanas é exatamente a religião que
tem o sentido mais profundo, o mais puro; entre todas as possibilidades hu-
manas, é a religião que tem o maior poder vital e a maior capacidade
transformadora.
Religião é a possibilidade que a humanidade tem de receber uma im-
pressão da revelação divina mantendo vivo o movimento de retorno do homem
velho para o homem novo. E a religião que retrata e reaviva esse retorno, des-
dobrando-o e o apresentando em forma compreensível, ou perceptível, ao ser
humano, quer isoladamente, como indivíduo, quer em seu conjunto, como co-
letividade.
A religião é uma das maneiras de que Deus se serve para preparar o
homem para fazer a conversão do seu caminho, e também para acompanhá-lo
depois dessa mudança de rumo; é pela religião que Deus leva o homem —
consciente ou inconscientemente, a tomar uma posição.
Foi nesta possibilidade que sobreveio a lei.
A religião [e ela é uma expressão da lei,] é uma grandeza de sentido
duplo que flutua entre o céu e a terra, tremeluzindo, furta-cor, entre a maior das
promessas, e o seu mais duvidoso cumprimento. Ela parece ter a possibilidade
de cumprir o seu intento: possuir a Deus e estar em sua presença; ela parece
conter, efetivamente, o teor que pretende e que afirma possuir; o teor que alme-
ja e pelo qual luta: a justificação e a vida. “Vós recebestes a lei pelo ministério
dos anjos”. (Atos 7, 53).
Ora, a lei é santa e o mandamento é santo, justo e bom. (7, 12).
Portanto também a lei tem a sua origem invisível em Deus, — e a nós
compete pesquisá-la. (3, 31).
É nesta pressuposição que o reconhecimento da religião, a sua confis-
são e a sua defesa, encontram o seu relativo direito. Todavia, trata-se de uma
“possibilidade” humana, um aspecto histórico e real do homem, manifesto em
seu conteúdo psíquico, intelectual, moral e social e que é totalmente
interrelacionada com o mundo e, portanto está também na penumbra do peca-
do e da morte.

283
5, 20 O Mundo Novo

A possibilidade divina da religião jamais será uma possibilidade huma-


na; talvez resida aí a relativa justificação da crítica que se possa fazer à religião.
Realmente é assim: o relacionamento do homem com Deus tem o seu lado
subjetivo que, todavia, está necessariamente sob a lei da morte.
Não há como fugir dessa luz crepuscular, nem para Arão e Moisés, nem
por qualquer experiência religiosa, desde a mais elementar até a mais sublime.
Nem o próprio Jesus histórico, o Jesus “nascido de mulher, sob a lei”
(Gal. 4, 4) está livre da interpretação de que a religião poderia representar uma
possibilidade alternativa para a humanidade. (Na realidade não se trata de uma
possibilidade). Esta interpretação errônea pode atingir o apostolado paradoxal
de Paulo e a nossa “paz com Deus”. (5, 1). É neste crepúsculo que se origina (e
tem lugar) toda a polêmica entre as religiões e, — não em último lugar — a
polêmica contra a religião (EO IPSO religiosa!).
Qual é a afirmação solene de que “conosco” ou que “ali” e “acolá” “não
se pensa assim”, que poderá afastar basicamente, e com autoridade, o lusco-
fusco dessa interpretação errônea? Quem pode apresentar uma forma [ou fór-
mula] religiosa, segura?
Esta problemática atinge a nossa própria religião e toda e qualquer outra
expressão de religiosidade; atinge o mais refinado ceticismo e as mais originais
crenças, crendices, e preconceitos, quer religiosos quer anti-religiosos.
A religião que encontramos em nós e em nossos semelhantes é, como
expressão da possibilidade humana de alcançar justificação perante Deus,
tão pouco viável como seria, por exemplo, imitar-se um pássaro em pleno
vôo.
A religião é, e somente pode ser, entendida e avaliada em seu sentido
visível, palpável, histórico: ela é uma ocorrência, um evento, no mundo dos
homens (que é o mundo do pecado e da morte).
O respeito e a admiração que a religião [ou uma religião] merecer neste
mundo não deve obliterar a visão real de que qualquer absolutismo,
transcendentalismo, e ligação direta com Deus, (atribuídos à religião) são ilu-
sórios, fúteis, irreais.
Todas as tentativas religiosas de sobrepujar a natureza, ir ao “além” por
processos ou métodos metafísicos, as mais ousadas intenções, as campanhas
para ganhar o céu por assalto tudo isso atola no lamaçal de alguma região inter-
mediária, entre o consciente e o inconsciente, algures, no território do
“NÃODEUS”, do “Deus” deste mundo, ainda que venha, algumas vezes, de-
signado como “vida”, “realidade”, “Reino de Deus, “além”, etc.
De positivo a favor da religião, só se pode dizer que é nela que a huma-
nidade tem a sua mais profunda, mais pura e mais duradoura possibilidade

284
O Mundo Novo 5, 20

neste mundo; é na religião que a humanidade alcança — tem de alcançar — o


seu clímax (CLÍMAX!).
“Sobreveio a lei para que avultasse o pecado”. E assim que a possibili-
dade invisível da religião, opera como possibilidade humana, visível. Ela preci-
sa operar nesta forma para que a queda do homem se torne visível e se eviden-
cie a necessidade do retorno [a Deus].
É somente no homem religioso que vem à tona que o ser humano é
carnal e pecaminoso; que ele é um obstáculo a Deus, que está sob a ira divina.
É na religião que se revela a total insuficiência do saber humano, a sua instabilida-
de, a sua absoluta superficialidade; é na religião que se patenteia a fraqueza da
vontade humana e o amargo “PARE!” que se antepõe a tudo que o homem faz.
A lei gera a ira e onde há lei, aí há transgressão (4,15) e há imputação de
culpa, (5, 13). “Cada um de nós é culpado em tudo, perante todos; e eu, ainda
mais que todos os outros” (Dostoiewski). “Antes eu era livre e andava pela
noite, sem lanterna; agora, depois que recebi a lei, adquiri consciência e ando à
noite carregando uma luz. Portanto, a lei de Deus nada fez senão despertar
minha má consciência”. (Lutero).
Este é, pois, o lado subjetivo do relacionamento com Deus, conforme
visto pelo homem.
Livre do sonho de Jacó, Esaú também ficou livre da mentira dele, [Isto
é, Esaú não sonhava, todavia, também não mentia!].
A situação de Israel, do ponto de vista humano, é a mais miserável e vil;
e plena de enfermidade.
O próprio Cristo, como possibilidade humana, significa a morte entre
malfeitores; significa morrer tendo nos lábios a frase que nunca preocupou
Pilatos e Caifás: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”
Ser profeta e sacerdote, teólogo e filósofo, crente, ser caridoso e ter
esperança, visto e apreciado como possibilidade humana, significa apenas frus-
tração ante a impossibilidade de alcançar por esse meio a justificação divina.
Como tal é um trabalho vão e uma aplicação inútil de nossas forças, ainda que
a obra seja do Senhor e para o seu reino. (Isa. 49, 4) — São bolhas e chagas em
que irrompe o mal de todos. Quem espera por outra coisa, não sabe o que é lei,
religião, eleição e vocação; então é melhor que cuide de algo diferente.
Onde houver prece e prédica, onde o homem se apresentar a Deus e
houver sacrifício, onde houver a percepção e a experiência da presença de Deus
—justamente aí, é abundante a ofensa. E aí que se torna visível o que ficou
invisível desde “Adão” até “Moisés” (5, 14) e que, de outra forma, talvez
permanecesse invisível. “Para que, perante ele, nenhuma carne seja justificada”
[3, 20]. É justamente aí [onde o homem sente a presença de Deus] que o seu

285
5, 20-21 O Mundo Novo

mal irrompe para o desenlace da morte. Porém, “onde abundou o pecado,


superabundou a graça”.
É, pois, preciso que até a última realidade seja destruída; que a catástro-
fe atinja também (e precisamente) a possibilidade mais esperançosa e promis-
sora do homem, a sua religião, para que o grande “NÃO” se transforme no
“SIM” de Deus; para que a graça seja realmente graça!
Este retorno, esta transformação, se efetiva apenas com a dissolução
final e total das possibilidades humanas; com a catástrofe; quando o homem
descobre a inutilidade e a ineficácia dos seus derradeiros esforços; quando fa-
lham os atalhos que tentou seguir para encurtar a caminhada que, de Adão, leva
de volta a Cristo; quando todos os métodos que tentou para fazer esse retorno,
essa volta, se mostraram vãos. Esta reversão, esta conversão no curso da vida,
somente ocorre quando o abandonado “servo de Deus” renuncia a si mesmo.
É nisto que consiste o direito à reivindição que a lei busca e que a reli-
gião proclama.
[Considerando que somente pela morte do homem “velho” pode nascer
o homem “novo”] o que pode acontecer de mais salutar que a evolução da
enfermidade, para a morte? E onde haveria de surgir a morte, senão onde a lei
interveio? Então o homem, sentindo toda sua insegurança, já não pode mais
deixar de pensar em Deus e a sua situação incerta se torna evidente.
“Quando ele der a sua vida em holocausto, pelo pecado, então terá pos-
teridade, e prolongará os seus dias, e a vontade do Senhor prosperará em suas
mãos. Pelo trabalho penoso de sua alma, ele terá prazer e satisfação; e com seu
conhecimento, o meu servo — o justo — justificará a muitos, porque as
iniquidades deles levará sobre si”. (Isa. 53, 10-11).
Esta é a aniquilação, [a supressão], a catástrofe, que de SAULO faz PAU-
LO, e que lhe dá o direito, — mais do que isso, lhe impõe o dever de, como Paulo,
ser um verdadeiro Saulo. Pois aquilo que ele é, como Paulo, ele o é como aquele
que ele não é, a saber: a superabundância da graça que não pode existir sem que
em todo instante desta vida o pecado seja abundantemente manifesto na religião.
Não se deve tentar separar a dualidade da realidade histórica da religião,
e nem é possível fazê-lo: a graça só é graça quando a possibilidade religiosa,
tomada totalmente a sério, em toda a sua pujança e em todos os seus desdobra-
mentos, for oferecida em holocausto. Somente então!
Todavia abstenhamo-nos de pensar, e muito mais de dizer, que este “so-
mente então” seja uma limitação do âmbito ou das possibilidades da graça. Feli-
zes aqueles humanistas ponderados que nada sabem da arrogância e da tragédia
da religião, e que parecem ter sido poupados da ilusão e da desilusão de Israel.
Haveremos de guardar-nos de lançar contra eles o raciocínio farisaico: “Fora

286
O Mundo Novo 5, 20-21

Cristo nascido em Atenas, não teríamos a garantia tão régia da soberania da gra-
ça” (Zahn), pois o pecado precisa abundar, para que a graça seja super-abundan-
te; para que, “como o pecado reinou, soberano, pela morte, assim também a gra-
ça reine, soberanamente, pela justiça, para a vida eterna”.
O “novo” mundo, sobre cuja soleira estamos como “novas” criaturas, é
o Reino de Deus; é o seu Domínio, e a esfera de seu poder. Aqui é somente
Deus quem elege, quer, cria e redime.
Foi para tornar bem evidente a legitimidade do movimento que, desde
Adão, vai para Cristo, que, associando e confrontando igual em igual, coloca-
mos a possibilidade religiosa como a derradeira e a maior delas, sobre este
denominador comum: “a soberania do pecado, pela morte”, para então con-
frontarmos o “todo igual” com o seu “totalmente diferente” e oposto na graça,
que “reina soberanamente, pela justiça, para a vida eterna, mediante Jesus Cristo,
nosso Senhor”.
Graça não é graça quando o agraciado não estiver justificado.
Justificação não é justificação, se ela não for imputada ao pecador.
Vida não é vida, se não for a vida que surge da morte.
Deus não seria Deus, se não significasse o fim do homem.
Vimos o velho mundo como um círculo fechado, contínuo, sem bre-
chas, por onde pudéssemos escapulir. E por isso que compreendemos à luz que
vem da ressurreição de Cristo entre os mortos, qual (a força) e o sentido do dia
que se aproxima: o dia da “nova” criatura e da “nova” terra.
[“Ora, vem, Senhor Jesus!.”]

Comentários: 5, 1-21
1. Pelo extenso tratamento que o A. dispensou ao tema, pareceu-me
mais conveniente deixar para o fim um comentário que me ocorreu
ao interpretar o pensamento de Barth sobre o “pecado original”.
Talvez pudéssemos sintetizar o seu pensamento sobre este assun-
to como segue:
A origem do pecado, a fonte de todo o mal, e que se paga com a
morte, não é, precisamente, a exteriorização da rebeldia do homem, mas
a sua primeira inclinação de voltar as costas a Deus.
Essa inclinação não é material e, por isso, não se transmite por
herança física, mas é espiritual e teve lugar “em Adão” em quem essa
inclinação está “a disposição” do ser humano, da mesma maneira que
a reconciliação com Deus está, permanentemente “a disposição” dos
homens.

287
5, 1-21 O Mundo Novo

É assim que Adão prefigura o Messias; não no sacrifício, nem na


ressurreição, nem na graça, nem como o homem perfeito, que nada
disto Adão fez ou foi; nem como pecador porque Cristo não pecou.
Porém, como o ponto onde o pecado se ancorou, para que os homens
pudessem servir-se dele, como Cristo foi o ponto onde a graça se
fixou para que os homens pudessem recorrer a ela.
Adão foi o ponto onde surgiu o pecado fundamental, o pecado
básico: a decisão do homem de usurpar para si as qualidades divinas;
mediante essa resolução, o homem ficou, não apenas “psicologica-
mente” condicionado para praticar o pecado, como também, e conse-
qüentemente, possuído do sentimento de culpa que o leva a fugir de
Deus e a esconder-se dele.
Então entra o homem em círculo vicioso: quanto mais peca, mais
foge e, quanto mais se afasta, mais transgride.
Adão é, pois, a prefiguração do Messias, não como o protótipo de
Cristo, mas qual o reverso da medalha; qual um “paralelo negativo”: em
Adão o homem peca tomando para si o que é de Deus! Em Cristo o
homem se salva dando a Deus o que é de Deus.
2. Entendo que a “pragmática” do “mundo velho” e do “mundo novo” a
que se refere o A., e que chamei também como o respectivo “conjun-
to de regras” seja o relacionamento do homem com Deus.
No presente mundo este relacionamento se faz através do conhe-
cimento adquirido da lei divina, pela religião, pela apreensão do Deus
desconhecido através de suas portentosas manifestações no Univer-
so, pela sua palavra escrita e pela sua revelação no Verbo que se fez
carne e habitou entre nós.
Todavia, pelo pecado, pela queda, o “homem velho” e o seu mun-
do tendem a fugir — a se afastar de Deus.
Ora, são esses mesmos fatores, esses mesmos “agentes” que, pela
graça, pela justificação divina, trazem o “homem novo” e o seu mun-
do, de volta à presença de Deus pela mediação de Jesus Cristo.
Uma só pragmática e uma só sentença divina; porém os efeitos
sobre a criatura em Adão e a criatura em Cristo divergem radicalmen-
te. Uma só pragmática na forma, porém sinais opostos no sentido.
3. A analogia esboçada no final da exegese do v. 12, e levada a conclu-
são na exegese do v. 18, parece dizer que: “Assim como a pragmática
invisível existe e é evidente nos fatos visíveis, assim também o peca-
do que é evidente nos fatos visíveis, existe invisivelmente em sua
origem.

288
Capítulo VI

A GRAÇA

O capítulo foi subdividido em duas partes:


• O PODER DA RESSUREIÇÃO - vs. 1 a 11 e
• O PODER DA OBEDIÊNCIA - vs. 12 a 23
Na primeira parte o A. aborda, como introdução, a absoluta separação
que existe entre o cometimento do pecado e a dispensação da graça; são gran-
dezas estranhas, uma a outra; incomparáveis até mesmo por oposição, por
antinomia. A graça existe, independentemente do pecado; a graça elimina, anu-
la, suprime o pecado mas ela não veio, nem se fez para este fim; a graça existe
porque Deus é gracioso; ele a quer dar.
Em seguida, abruptamente, sem transição, o A. passa a tratar do batismo
— o símbolo da morte do “homem velho” que é, todavia, o símbolo da graça
divina — o fim da “velha” criatura e o nascimento do “homem novo”. O batis-
mo, como sacramento — testemunho visível da invisível graça da morte do
pecado e da ressurreição em Cristo.
Ao falar na simbologia do batismo o A. faz também uma leve referência
ao mundo da magia e passa a tratar, quase imperceptivelmente, do “Homem
Novo”, que nasce das águas batismais, para a arremetida da fé.
Canta um hino à fé, o ingrediente básico da transformação do homem
velho em nova criatura pelo poder da ressurreição de Jesus Cristo, nosso “ir-
mão mais velho” e o próprio Deus.
O PODER DA RESSURREIÇÃO (6, 1-11)
V. 1 O que diremos mais? “Detenhamo-nos no pecado para que a graça seja
maior”? — Impossível!

“Que mais diremos?” Numa relação dialética rigorosa vemos juntos, Adão
e Cristo, mundo velho e mundo novo, a soberania da morte e a soberania da
graça; uma em oposição à outra, garantindo-se e se legitimando nessa polarização.

289
6, 1 O Poder da Ressurreição

Afirmamos com toda ênfase possível (especialmente em 5, 15-17) que


essa oposição é dialética, isto é, que ela subsiste no segundo elemento median-
te a supressão do primeiro e que, portanto, a “série” não é reversível.
Dar-se-á o caso que apenas fazemos a afirmação, e não a demonstramos?
Tudo depende de provarmos que esta “vitória” [do segundo elemento
sobre o primeiro,] que a irreversibilidade do argumento dialético, que [o giro
de cento e oitenta graus] o retorno no curso da vida, é absolutamente necessário
[e incontornável].
[Em primeiro lugar] caracterizamos o momento crítico em que Deus,
por sua divina deliberação, faz girar a chave e abre a porta que dá acesso à
soleira do “mundo novo” com uma frase ousada: “Onde abundou a transgres-
são, a graça é superabundante”. (5, 20). Com esta frase enfeixamos na mesma
conjuntura valores polarmente opostos: o cúmulo do pecado com o apogeu da
graça. Saulo e Paulo.
Esta posição se impõe forçosamente, pois “Cristo não pode ser silenci-
ado pelo fato de ser ‘pedra de tropeço e rocha de escândalo’ para muitos; por-
que as mesmas qualidades que significam a ruína para os que não crêem, repre-
sentam a ressurreição para os que crêem” (Calvino).
Poderia, também, ter acontecido que o alcance da afirmação [conforme a
segunda parte de 5, 20], não fosse apreciado, percebido, devidamente, e que ela
fosse considerada apenas como referência ao momento “crítico” sem qualquer
conotação com seu sentido “físico-metafísico”; ou então que se entendesse a
frase como sendo, também, uma descrição de acontecimento no campo históri-
co-psicológico deste mundo. Poder-se-ia, talvez, até supor uma complementação
da frase [quiçá um expletivo], dizendo que a queda e a graça estão em eterna
contraposição, sob tensão entre si, em polaridades opostas, em antinomia.
Nesta possível extrapolação da afirmação contida na frase poder-se-ia, quem
sabe, chegar à conclusão que o “SIM” e o “Não” são igualmente necessários; que
são equivalentes e igualmente divinos; que o homem vive igualmente, [indiferente-
mente], em ambas as condições; que o “NÃO” precisa metamorfosear-se em “SIM”
e este precisa voltar sempre ao “NÃO”, pois de outra forma morreriam; que todas
as coisas podem ser valorizadas tanto como positivas quanto como negativas, infe-
rindo-se da afirmação tudo mais que a generalização da proposição possa sugerir.
Seria isto o que queríamos dizer?
[Se assim fôra] então estaria certo o dito: “Permaneçamos no pecado
para que a graça seja maior!”
[Todavia, vimos que não é assim, antes] a continuada interdependência
entre o pecado e a graça, entre “Saulo” e “Paulo”, é o ACTUS PURUS de um
acontecimento invisível.

290
O Poder da Ressurreição 6, 1

A vontade de Deus, una, subdivide-se na dualidade para [em seguida]


sobrepujá-la, desta forma comprovando mais excelentemente a sua unidade.
Este acontecimento invisível, em Deus, [o “ACTUS PURUS” de que
fala o A.] pode ser confundido com a série de fatos histórico-psicológicos pelos
quais (o “ACTUS PURUS”) se torna perceptível aos homens. (Aristóteles).
Correremos, então, o risco de confundir os sinais com a obra divina ou,
em outras palavras, seria como se esses sinais, considerados metafisicamente,
fossem reprojetados na própria vontade de Deus. Se isto acontecer, então o
homem não estará “voltando” à sua primeira origem, ao “Deus desconhecido”,
mas estará indo após si mesmo — o homem conhecido deste mundo; estará
transformando as vicissitudes de sua vida, os seus pontos baixos e altos [a sua
própria experiência] em ocorrências transcendentais.
Quando o homem considera como imperecíveis os fenômenos e as ex-
periências desta vida, desaparece o desassossego que a invisível supressão da
dualidade, por Deus, impõe ao ser humano (como ameaça e promessa às con-
tingências do mundo). Em lugar do desassossego reina agora a paz sepulcral
das tensões imanentes aos altos e baixos da vida, à polaridade, à alogeneidade
ou à antinomia do mundo; essas oposições se apresentam como possibilidades
humanas visíveis, inter-acopladas causalmente.
Nessa analogia causal, humana, a graça sucede ao pecado e portanto,
reciprocamente, o pecado sucede a graça; resulta daí, que podemos permane-
cer no pecado.
Conseqüentemente o pecado que, para Deus, tem que ser combatido,
suprimido, cancelado imediatamente após o seu aparecimento, para o homem
passa a ser um fator positivo, um meio útil, um caminho, um trampolim [um
pretexto] para dar lugar à graça [a fim de que ela seja superabundante].
É exatamente isto que as possibilidades humanas proporcionam entre
si, [isto é, uma primeira possibilidade material, aceita como eterna, como o
imperecível, abre caminho a outros silogismos e de dedução em dedução, ou
conseqüentemente, depressa se chega ao absurdo].
Esta é a mesma lógica humana que já encontramos em outro lugar (3, 3-5):
“Pratiquemos o mal para que daí advenha o bem!”
Também aqui esta lógica erige o homem em Deus, mediante a
condicionalidade de seus contrastes (como se o homem pudesse, por suas
obras e dentro da relatividade de sua existência, realizar a conversão do
mal para o bem, do pecado para a graça!). Esta lógica submete a vontade
soberana e livre de Deus às contingências humanas, como se Deus, ca-
prichosamente, oscilasse de um lado para outro, entre o bem e o mal,
entre o pecado e a graça. Como se Deus não fôra o verdadeiro Deus, mas

291
6, 1-2 O Poder da Ressurreição

o Deus deste mundo que retrata, como em espelho, a imagem do homem


com ele identificado!
Aqui, como o fizemos mais atrás, precisamos objetar enfaticamente:
“IMPOSSÍVEL”!
É impossível aceitar esta lógica humana; é impossível transportar para a
experiência humana o instante crítico, nunca visto, inescrutável; o instante quan-
do o pecado e a graça se situam em contraposição equilibrada perante Deus,
como forças equivalentes e igualmente sancionadas por ele. Este instante não
pode ser transferido para seqüência ou para paralelismo de realidades históri-
co-espirituais que sejam fruto do conhecimento ou do querer dos homens.
É impossível confirmar [e muito menos possível é afirmar] que o peca-
do é a origem, a causa, [a geratriz] da graça; é impossível reconhecer e festejar
o pecado como se pecado e graça — ou graça e pecado — realmente se suce-
dessem [indiferentemente, como causa e efeito].
É impossível, em “piedoso atrevimento” atribuir ao homem a soberania
divina, ou atribuir a Deus, a fraqueza humana, [o que efetuaríamos, fazendo a
graça surgir do pecado ou, fazendo o pecado anteceder a graça].
É impossível que se manipule com a tensão eterna, com a polaridade e a
antinomia em que o homem, presumivelmente, se encontra, pretendendo que
esta posição, ou melhor, que esta oposição, seja da vontade de Deus. E o que
torna impossível tal manipulação, é o PODER DA RESSURREIÇÃO.
É deste poder que vamos tratar agora.

V. 2 ...nós, os que para o pecado morremos, como viveremos, ainda, nele?


[Notar que o impossível” que o A. inclui no v. 1, na tradução de Almeida
está no v. 2, registrado com a expressão “de modo nenhum”.]

Pecado, como acontecimento perceptível, visível, é justamente a troca


do homem por Deus, e vice-versa; é o endeusamento do homem, ou a
humanização de Deus [o que estaríamos, de fato, fazendo se pretendêssemos
condicionar a graça divina à grandeza maior ou menor de nosso pecado].
Enquanto concentrarmos o nosso conhecimento e o nosso querer —
todas as nossas possibilidades [as mais insignificantes e as mais elevadas] na
troca contínua e forçada do homem por Deus, continuaremos sendo e, forçosa-
mente, seremos pecadores, pois dentro de nossa condição humana, nossa casu-
alidade e nossa fragmentação, [no âmbito total de nossas possibilidades,] nada
mais podemos fazer que testificar a existência do pecado invisível, mediante
nosso constante cair. “Vivemos em pecado” isto é, vivemos condicionados por

292
O Poder da Ressurreição 6, 3

força invisível que nos compele a, consciente e voluntariosamente, intentarmos


divinizar as coisas do mundo e trazer Deus ao nível dos conceitos humanos.
A graça, porém, é o perdão (cuja continuidade depende exclusivamente
da vontade de Deus).
O homem decaído e que, o quanto se possa perceber, se esqueceu de
Deus, é reconhecido por Deus como seu filho, e é objeto da misericórdia, do
beneplácito e do amor de Deus.
Este é o ataque mortal ao homem que “vive em pecado”; é um ataque
tão profundamente radical que dá lugar à dúvida sobre se o homem está de fato
condicionado pelo pecado, quer na sua inclinação invisível, quer em sua ex-
pressão visível.
“A graça se opõe ao pecado e o devora” (Lutero). Isto é, a graça se opõe
ao pecado da queda, que se torna visível na religião, como o ponto mais alto, o
pináculo o “supra-sumo” do pecado do antropomorfismo. [É notável o empenho
do A. em chamar atenção ao risco que a humanidade corre de, em sua manifes-
tação religiosa, ou como expressão religiosa, tentar elevar-se ao nível da perfei-
ção, (endeusando-se) ou então, de fazer de Deus um “Pai” bondoso — “um
velhinho um pouco parecido com a figura de “Papai Noel”, um companheiro e
até um comparsa, dando a Deus atributos humanos — humanizando-o].
A graça ataca o pecado pelas raízes. Ela nos questiona (põe em duvida a
nossa pessoa, qual é) [neste mundo]; tira-nos o alento e nos fala como àqueles
que [ainda] não somos: como a novas criaturas.
Agora, Deus ignora o que realmente somos no mundo! Se entramos
para a graça, então Deus nos conhece como “não pecadores”. O pecado, como
condição obrigatória de nosso saber e querer é assunto passado, ultrapassado,
liquidado. “Morremos para o pecado”. Já não brotamos dessa antiga raiz; não
inalamos mais o seu ar, e não estamos mais sujeitos ao seu poder. “Como pode-
remos ainda, viver no pecado?”
Como continuaremos vivendo quais somos neste mundo, já que Deus
[“agora”] nada sabe de nós?
O que é feito do invisível condicionamento de nosso saber e querer? [Se
ele foi suprimido, se foi “devorado” pela graça], como nos prestaríamos a ser
agora, em nossa existência, o teatro do pecado visível? Sim, como?
O fato consumado da existência do pecado, a sua urgência, a sua pressu-
posição, torna-se, agora, problemático e a nossa existência [terrena] fica expos-
ta à luz superior que evidencia e realça a outra existência, a que ainda não é.
O nosso ser foi colocado sob a possibilidade de um FUTURUM
AETERNUM, um futuro que Deus não incluiu no leque das possibilidades
humanas e que, por obra divina invade, dominador, a totalidade da ciência, da

293
6, 2-5 O Poder da Ressurreição

vontade, do saber e do querer da humanidade, tanto no presente como no por-


vir. Isto é GRAÇA.
Ora, tanto a graça como o pecado são grandezas incomensuráveis que
não podem ser aproximadas uma da outra, como se fossem duas estações ferro-
viárias, ou dois elementos de uma série causal: não podem ser comparadas
como os dois focos de uma elípse, dois conceitos de um argumento, ou dois
predicados de um mesmo sujeito. Matematicamente falando, nem sequer são
quais pontos em planos diferentes, mas são quais pontos situados em espaços
estranhos entre si, nos quais um exclui a existência do outro.
A hipótese de que possa existir um relacionamento entre a graça e o
pecado, a possibilidade de chegar a um partindo do outro, está inteiramente
excluída.
Graça que tivesse o pecado a seu lado, não seria graça.
Quem goza da graça não conhece o pecado e não o quer; quem goza da
graça não é o pecador, pois entre os dois [entre o pecador e o não-pecador]
existe um desfalecimento [a morte] e um novo nascimento. [Não esquecendo,
porém, que a “nova criatura” só existe neste mundo na medida da esperança
fundamentada na fé!]
“Justificação é o ato divino que não deixa o homem conforme ele é,
porém, o transforma completamente” (Fr. Barth).

Vs. 3 a 5 Acaso não percebeis que se fomos batizados em Cristo Jesus, fomos
batizados em sua morte? Fomos, pois sepultados com ele pelo batismo da
morte para que, assim como Cristo foi ressuscitado entre os mortos, pela
glória do Pai, também nós andemos em novidade de vida. Porquanto, se
formos aparentados com ele na semelhança de sua morte, (a sabe, em
nossa morte), também o seremos na ressurreição.

(Notar que Almeida, no v. 5, escreve “unidos” e não “aparentados”. A


tradução de Lutero diz “plantados”, a V.S.F. diz “identificados” e “unidos”; a
S.R.V. diz “unidos”.);
“Nós”, que fomos batizados em Cristo Jesus”.
Começamos estas nossas considerações lembrando ao leitor que o “ba-
tismo” (4, 11) é, no mundo, o ponto visível da partida [no caminho] do nosso
conhecimento de Deus.
Portanto, o batismo é um fato do mundo aparente da religião.
E por que não o seria?
Também o pecado, de que aqui tratamos, é um fato visível de nossa
consciente e voluntariosa desonra a Deus.

294
O Poder da Ressurreição 6, 3

Também a redenção em Jesus Cristo (3, 24) é um fato que pertence à


realidade do mundo. Esta realidade histórica, (para todos os que crêem! (3, 22,
primeira parte)) é a testemunha da existência do seu conteúdo eterno: — [A
obra redentora de Deus!]
Assim também o batismo, como ato que não se repete, (e justamente por
isso) é um sinal.
Um sinal e simplesmente um sinal; bem o sabemos. Mas por que não teria
ele algo a nos dizer? “Os sinais somente são vazios e inoperantes quando a nossa
ingratidão e a nossa malignidade obstruem o fluxo da verdade divina” (Calvino)
isto é, quando nos privamos de sua verdade, identificando-os com alguma coisa
material, quiçá diluindo-os em atividades eclesiásticas vazias (piedade não tem
conteúdo!) ou então, quem sabe, dando à verdade do sinal a conotação de alguma
experiência religiosa — a ser associada com ele: por exemplo, “a experiência do
batismo”! Ou então, poderia alguém atribuir ao sinal, um poder mágico ou, mais
racionalmente ainda, emprestar-lhe valor ou sentido mais profundo de mito cris-
tão no caos da vida, a ser guardado para nosso bem, [para nossa proteção].
Todavia, o batismo testifica e testemunha a vida do além, dada por Deus,
e proclama a sua palavra, como mensageiro da verdade, como santificação e
sacramento.
O batismo não tem simplesmente uma determinada significação mas,
testemunhando para além de sua materialidade, ele é comunicação do novo
nascimento e da realidade eterna; não é a graça [em si] mas é, em tudo e por
tudo, meio de graça.
O batismo é a pergunta do homem a Deus e é a resposta que Deus dá.
Assim como a fidelidade de Deus envolve e cria, invisivelmente, a fé, assim
também a obra manifesta de Deus para com os homens, envolve a obra huma-
na, expressa no batismo.
[Parece-me que o A. quer dizer que ao aceitar o batismo ou ao confirmá-
lo pela profissão de fé para aqueles que foram batizados na primeira infância, a
pessoa entrega o seu caminho ao Senhor; confia nele; pergunta a ele: “o que
queres que eu faça?” Lança sobre o Senhor e perante o Senhor, a sua vida, o seu
querer e o seu fazer; o seu pensar e a sua esperança; a sua convicção e a sua
dúvida. E a pergunta eterna que vem antes das demais e acompanha a todas
outras perguntas: “Quem és tu, Senhor?” — E é também a resposta: Eu sou
Jesus. Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Eu sou a luz do mundo. Eu sou a
ressurreição! Eu sou o que sou!
O A., parece-me ainda, quer dizer que assim como a fidelidade de Deus
é a geratriz da fé, de tal forma que o justo, que vive pela fé, vive pela fidelidade
de Deus, assim também a obra de Deus na morte sacrificial de Jesus Cristo, é a

295
6, 3 O Poder da Ressurreição

geratriz da morte do homem para o pecado, expressa no mundo pelo batismo.


Cristo morreu por nós e ressurgiu para que nós, morrendo em Cristo, ressurja-
mos para Deus.
Fidelidade e fé; morte e ressurreição de Cristo; nossa morte para o mun-
do e vida para Deus].
Se o batismo for tudo isso para nós, por que não haveria de ser ele o
bastião de onde arranquemos para a nossa primeira sortida contra o mundo
temporal e material?
Há os que objetam que o batismo, como “rito de iniciação”, não é cria-
ção original do cristianismo, mas a cópia de “artigo” [um produto] do helenismo;
essa objeção apenas comprova o que temos dito sempre e repetiremos aqui: o
Evangelho de Cristo não surgiu com a proclamação e para a proclamação de
novos ritos, dogmas e instituições mas, desembaraçadamente, tomou empres-
tado o material religioso existente na época. A mensagem do Deus Desconhe-
cido pode arrostar a concorrência dos deuses conhecidos — sejam Mitras, Isis
ou Cibele, — sem estar concorrendo com eles.
A absoluta superioridade do Evangelho sobre o “mundo intermediário”
da magia, no qual o sentido original, legítimo, da linguagem religiosa dos sím-
bolos está deformada, deturpada, obscurecida, lhe permite compreender essas
religiões misteriosas melhor do que elas a si mesmas. É essa superioridade do
Evangelho, [que não é comparativa, gradual, nem condicional, mas total e in-
dependente], que lhe confere o direito de aceitar e acolher o testemunho da
revelação, tanto de judeus como de gentios, (3, 21).
Ora, sabemos que se trata efetivamente da graça divina quando vemos
sensatez na insensatez (4, 16); [é a graça de Deus que concede o teor sensato a
nossa insensatez]. Sabemos também que [a percepção], o acolhimento e a acei-
tação da sensatez na insensatez do mundo religioso visível somente é possível
pela fé, [pois Deus não se comunica com o homem “diretamente”, (mas apenas
pela fé)]. Sabemos ainda que esta dupla delimitação [a saber: a certeza de que
somente “pela graça” e “pela fé” podemos discernir o que é sensato na insensa-
tez] é também a crítica imanente e o cerceamento inevitável de nossa vocação
[de nossa decisão de atender] ao sinal e ao testemunho do batismo.
“Não percebeis que fomos batizados em sua morte?”
Para aqueles que podem perceber, o batismo fala de morte.
Ser batizado significa mergulhar, submergir num elemento estranho;
significa desaparecer [morrer] nesse elemento; significa ser encoberto pelo flu-
xo purificador.
Quem sai da água do batismo já não é aquele que nela entrou; não é o
mesmo.

296
O Poder da Ressurreição 6, 3

O que entrou, morreu; o que saiu, nasceu. O “batizado já não é idêntico


ao que está morto, pois o batismo testifica a morte de Cristo na qual triunfa a
inexorável vindicação de Deus sobre o homem.
Quem foi batizado em Cristo é “incorporado” nesse evento; quem foi
batizado em Cristo desaparece, é extinto nessa morte; é tragado e absorvido
pela reivindicação divina. Por isso o “batizado” fica desapegado, livre, cortado
fora da ilusão e da insolente tendência de fazer-se semelhante a Deus, pois o
que resta ao homem, em face da cruz? Ele perdeu a sua identidade como indi-
víduo que “quer e conhece” o pecado pois “aquele sobre quem o pecado tem
poder”, morreu, (6, 2 e 7). Por isso ele está livre desse poder e de sua fatalidade.
A morte de Cristo suspende [anula] — a queda; ela cria o vácuo onde não
medra a pretenciosa auto-suficiência humana.A morte de Cristo ataca a oculta
raiz do pecado invisível; ela transforma Adão — o homem do “Não-Deus” — em
um ser do passado; portanto, o homem interessado em persistir no pecado (6, 2),
desejoso de fazer-se igual a Deus, já não vive mais para além da morte batismal.
O ser humano é anulado pela sua reivindicação por Deus, no batismo.
Não há lugar para o “idealismo de ganhar o céu por assalto” (H. Holtzmann)
pois o resultado do batismo é justamente o fim de qualquer entusiasmo seme-
lhante. (No batismo o homem inicia “oficialmente” a sua carreira cristã; pode e
deve fazer dele a base de partida para o “bom combate”; todavia, o “combate”
será feito com humildade, com “temor e tremor”; não será, nunca, um combate,
ainda que idealista, para ganhar o céu, porém será combate esperançoso e ple-
no de fé para buscar o reino de Deus e a sua justiça. A participação do crente,
nesse combate, será acompanhada, ou melhor, será precedida por sua genuína
auto-renúncia, no esvaziamento de si mesmo.
É o sentimento de insuficiência, de vacuidade, de nulidade, de total
desvalia, que caracteriza o ser emergente do batismo; o outro, a antítese dessa
“criatura nova”, é o “homem velho” que imergiu e foi sepultado com Cristo].
Tampouco é o batismo uma “Doutrina pura e dura” (Wernle), pois o
apelo ao Deus que vivifica os mortos (4, 17 - segunda parte) não é doutrina, e
portanto nem “dura” nem “pura”, Não é doutrina porque, na plena nudez de um
singular paradoxo, o batismo renuncia até à reputação barata de toda e qual-
quer doutrina; não é doutrina porque, em seu bojo, o batismo traz à idéia da
presença do Poder Divino na fraqueza humana, e este conceito (contrariamente
a qualquer doutrina) não pode ser esboçado, estudado, pré-estruturado, mas
tem de se renovar constantemente, como se nunca antes houvera sido imagina-
do. É à “teologia do momento absoluto”, de Troeltsch? — Sim! Exatamente
isto, desde que o “absoluto” seja imaginado existencialmente, como reconheci-
mento da existencialidade positiva e exclusiva da graça divina.

297
6, 3-4 O Poder da Ressurreição

É disso que se trata no batismo. “O vosso batismo não é senão o estran-


gulamento que a graça faz ou, um misericordioso estrangulamento, que afoga o
pecado que em vós existe, para que permaneçais sob a graça, e não sejais des-
truídos pelo pecado sob a ira de Deus. Assim pois, quando te apresentas ao
batismo, te submetes ao clemente afogamento e à generosa morte que teu
amorável Deus te dá, e dizes: afoga-me e sufoca-me, amado Senhor, que eu
quero, prazerosamente, d’aqui por diante, estar com teu Filho, morto para o
pecado” (Lutero). Esta morte é a graça.
“Fomos sepultados com ele pelo batismo da morte para que, assim como
Cristo ressurgiu de entre os mortos pela glória do Pai, também nós andemos em
novidade de vida”.
Por que é esta morte, a graça?
“Porque ela é a “morte da morte”, o “pecado do pecado”, o “envenena-
mento dos venenos”, o “aprisionamento das prisões” — (Lutero).
[Esta morte é a graça] porque a ameaça que ela traz, o “solapamento”, a
“decomposição” que ela representa, vêm de Deus.
[Esta morte que vem de Deus ameaça, solapa, destrói a morte — moeda
do pecado; ela é dirigida contra todas as negações humanas, negando-as pela
redenção em Cristo].
O poder de negação que a morte de Cristo representa, vem desde a eter-
nidade. A morte de Cristo é a última palavra dirigida ao ser humano; é anjo
[mensageiro de boas novas], é porta e passagem [para o acesso ao reino dos
céus]; é conversão [no sentido do caminho trilhado no mundo, para a investidura
do “homem velho”] em “nova criatura”, pois aquele que foi [ou que for] batiza-
do, renasce e é idêntico ao “homem novo”; jamais continuará a ser [ou voltará
a ser] qual o “homem velho” — que morreu.
Esta morte, porém, não será Graça se ela tiver um significado apenas
relativo [e não radical, total, absoluto]; não será Graça enquanto representar
apenas crítica ao nosso mundo, ou mesmo oposição, revolta contra ele. Esta
morte não será Graça se ela for [apenas pretexto] para a ampliação das possibi-
lidades (negativas!) do mundo como, por exemplo, pelo ascetismo, o “retorno à
natureza”, a “adoração silenciosa”, a “morte mística”, o nirvana budista, o
bolchevismo, o “dadismo” [apelo ao subconsciente segundo Tristan Tzara, po-
eta de 1916] e coisas semelhantes. Esta morte não será a Graça enquanto ela
não alcançar, não atingir o homem, fundamentalmente, em todas suas ações e
atividades; enquanto ela não promover e efetivar a negação do homem terreno
e de todas suas possibilidades. (“Sepultados com ele!”).
Quando a morte [em Cristo, expressa no batismo] tiver este sentido ra-
dical, então ela se torna verdadeiramente eficaz; então a crise, o fim, o som da

298
O Poder da Ressurreição 6, 4

última trombeta, qual um risco em diagonal que tudo cancela e invalida, atra-
vessa o “SIM” e o “NÃO” de nossa existência; risca a vida e a morte; anula o
“tudo” e o “nada”; elimina herança e deserdamento, proclamação e silêncio,
preservação e destruição. A anulação, esse risco em diagonal, atinge todas as
obras e todas as expectativas humanas [de forma absolutamente radical].
Este radicalismo é uma possibilidade impossível aos homens que, toda-
via, se confirma e é testemunhada pelo poder da ressurreição daquele que foi
despertado de entre os mortos pela glória do Pai.
A energia e a seriedade desta negação [de todas as negações do mundo]
vêm do sepultamento que Cristo preparou para os homens [deste mundo], cri-
ando o homem novo, invisível, [expressão da] plenitude da reconciliação (5,
10-11), mediante a supressão de nossa existência em Adão e a instalação da
nossa nova existência em Cristo.
[A tradução inglesa diz: “A energia e a seriedade da verdadeira negação
— de sermos sepultados — são demonstradas e ratificadas na ressurreição. A
verdade da redenção que Cristo realizou é proclamada pela criação do homem
novo (5, 10-11); pela nossa existência nele, a nossa existência em Adão é, ma-
nifestamente, suprimida].
A ressurreição, caracterizada pela conceituação [que aqui ficou
estabelecida] do que seja a morte [da qual ressuscitamos com Cristo], é absolu-
tamente diferente de tudo quanto existe entre a humanidade aquém da linha da
morte e é inteiramente independente, autônoma, de tudo quanto o presente
mundo tem ou oferece.
É o poder da ressurreição que provê o conteúdo divino que existe na
vida do homem renascido e que preenche a vacuidade que a morte de Cristo
suscita. [Esta vacuidade a que o A. se refere não é a aflição emocional que o
drama da cruz pode suscitar (e efetivamente suscita) nas pessoas de tempera-
mento emotivo e em certos tipos de misticismo mas é o sentimento de nulidade,
de insuficiência absoluta, que a criatura sente, e da qual se compenetra, no
momento crítico de seu encontro com Deus.
Não é precisamente o apelo patético do poeta: “Morri, morri, na Cruz por
ti, que fazes tu por mim?” que desperta o sentimento de carência, mas é a opção
— novamente e sempre a opção — que o homem tem de fazer entre o paradoxo
que a fé representa e que tanto escandaliza o mundo e, como única alternativa, a
rejeição da fé como preço do apaziguamento da crítica mundana. Esta é a problemá-
tica da existência e a crise que esvazia o conteúdo material da vida que vivemos
“em Adão” a cujos valores e interesses, como homens terrenos, nos apegamos
com tanto carinho. Contudo, o despojamento, a privação que a opção da Cruz
impõe ao homem velho não se transfere ao homem novo, antes é exatamente esta

299
6, 4 O Poder da Ressurreição

condição de “casa esvaziada” que da aso à entrada de outra forma de vida; é


como luz que se acende na escuridão e que, posta no alto, inunda todos os recan-
tos. Esta luz vem desde a cruz; vem do alto do gólgota e de mais alto ainda, vem
dos céus, vem de Deus. O vácuo real, profundo, é preenchido pela vida que é
Cristo Jesus. Ele veio para que tivéssemos vida, e vida abundante!]
É o poder da ressurreição que restringe a nossa disposição para pecar; é
este poder que, por assim dizer, torna impossível, à nova criatura, continuar
vivendo em pecado. (6, 2).
[Novamente me parece conveniente citar aqui a tradução inglesa, que
assim condensa o pensamento do Autor: “Mediante esta concepção radical da
morte, a autonomia do poder da ressurreição é garantida como independente da
vida que está deste lado da linha da morte. O vazio criado pela morte de Cristo
é preenchido pela vida nova, que é o poder da ressurreição.
A preeminência da nova vida, não somente bloqueia, mas torna impos-
sível a perseverança no pecado”. (6, 2)].
O poder da ressurreição coloca o ser humano, o homem nosso conhecido,
o homem que conhece e ama o pecado, o único homem visível e possível [para
o mundo], contra a parede, ante esta proposição [evangélica]: “Sepultados pelo
castigo da morte PARA QUE ANDEMOS EM NOVIDADE DE VIDA!”
Cria-se, para o homem, um problema pois, como haveremos de conti-
nuar vivendo em pecado quando, tais quais agora somos, [nos foi dada essa
possibilidade inaudita de] andar em novidade de vida?
Novamente, (conforme em 2, 13; 3, 30; 5, 17; 5, 19 etc. e também 6, vs.
2, 5; 8 e 14), esta novidade de vida é o “FUTURUM RESSURECTIONIS”, o
nosso futuro [aqui manifesto] como em semelhança [como em parábola] da
nossa eternidade. Apenas como parábola! Pois está absolutamente claro que o
despertamento de Jesus de entre os mortos não é um acontecimento de exten-
são histórica ao lado [e a par] de outros acontecimentos de sua vida e morte
porém, é o relacionamento não histórico (4, 17 segunda parte e seguintes) de
toda sua vida histórica testificando a sua origem em Deus.
Por outro lado, também está absolutamente claro que a necessidade co-
ercitiva que sinto de “andarem novidade de vida” é uma realidade motivada
pelo poder da ressurreição, e que nada tem a ver com qualquer acontecimento
histórico, nem tem qualquer relação com acontecimentos passados, presentes
ou futuros de minha vida. Antes, essa força coerciva é a licença, a autorização,
a obrigação e a vontade do meu novo “eu”, criado em Cristo; é a confirmação
da minha “cidadania no céu” — (Filip. 3, 20); é a minha vida oculta em Deus
(Col. 3, 3), rediviva em Cristo Jesus. Este “andar em novidade de vida” é o meu
panorama invisível, o meu alvo, a crise que o meu ser finito percebe por aquilo

300
O Poder da Ressurreição 6, 4-5

que em mim é infinito; é ameaça e promessa; é o que não é mais temporal; é o


invisível, que esta além de todos os acontecimentos temporais e visíveis da
minha vida; — está além de tudo e todos os eventos que ocorrem enquanto o
mundo for mundo, o tempo for tempo, e o homem for homem. [E porque está
além de tudo o que é do “presente século”], o “andar em novidade de vida” é o
meu “futuro eterno” que, na qualidade do “poder sobre a morte” que vem da
ressurreição, invade violentamente, e com radical exclusividade, a minha [anti-
ga inclinação para a] permanência no pecado.
Este “andar em novidade de vida” passa a ser o sentido da minha vida
temporal, do meu pensamento e da minha vontade e, concomitantemente, é o
elemento de crítica a essa conduta.
À medida que o impossível se torna possível e sou sepultado com Cristo
então, como aquele que não sou, consigo me apropriar do sentido dessa nova
vida e da crítica, nela implícita, ao meu presente modo de sentir, querer e viver,
(e isto em contradição a tudo quanto [neste mundo] de fato sou;) então estou
verdadeiramente “morto para o pecado” (6, 2). Na invisível “novidade de vida”
na qual, para honra de Deus, agora peregrina a “nova criatura”, já não há mais
lugar, nem luz, nem ar para a permanência do pecado, assim como a morte já
não pode subsistir ante a glória do Pai, manifesta no despertamento de Cristo,
de entre os mortos.
Sempre há de arder de novo em nossos corações a pergunta se, de fato,
podemos ousar e se realmente ousamos (5, 1 e 6, 11) contar com esta impossí-
vel possibilidade da “nova criatura”. Porém, não resta a menor dúvida de que
esta impossível possibilidade exclui a possível possibilidade do pecado.
“Porquanto, se formos aparentados com ele na semelhança de sua mor-
te, também o seremos na ressurreição”.
Ser “aparentado” [ou “unido” segundo a tradução de Almeida] com Cristo
em sua morte significa que a nossa atribulação é uma analogia do sofrimento
de Cristo; todavia, isto só é verdade se não houvermos corroborado para a cri-
ação de nossa tribulação (8, 17; Gal. 6, 17; II Cor. 4, 10; Filip.3,10; Col. 1,24).
[Muitas são as formas pelas quais podemos contribuir para nossas pró-
prias aflições, desde o cometimento involuntário de pecado, até o zeloso com-
bate ao mal. Todavia parece-me que o A. quer referir-se ao tipo de aflição que
criamos ou para cuja criação contribuímos conscientemente; também estas tri-
bulações podem variar desde as formas de renúncias piedosas abstinências,
celibato, monastecismo — até formas absurdas de penitência — mortificação e
flagelação. Podem também ser manifestações mentais, morais e psíquicas, ori-
ginadas por interpretação errônea, possivelmente mística, sobre qual seja a santa
vontade de Deus].

301
6, 5 O Poder da Ressurreição

A morte de Cristo é o convite ao homem para que se situe em Deus. [O


A. diz textualmente: “Para o homem entender-se a si mesmo, em Deus]. Situ-
ando-se em Deus o ser humano se põe em condições de receber o poder que
vem do alto, pela sua própria fraqueza; [de receber o crescimento que vem de
cima, pela sua própria diminuição;] de alcançar o dom da vida, pela sua morte.
(II Cor. 4, 16 e seguintes).
A morte de Cristo dá-nos a oportunidade de nos conhecermos. a nós
mesmos, em Deus (o que, todavia, de modo algum significa qualquer coisa
parecida ou idêntica a “experiências” humanas); ela é a porta que dá acesso ao
Juiz; é o caminho que, tirando-nos da tribulação, nos conduz [ao Pai] que é
livre e nos liberta; que afasta de nós o infortúnio e nos apresenta a esperança
(5, 3 e seguintes).
É por tudo isto que o sinal do batismo é uma recordação de nossa comu-
nhão invisível com Deus (6, 3).
Qualquer outro relacionamento com Cristo [fora da morte com ele, sim-
bolizada no batismo], qualquer forma de união com ele, qualquer maneira de
seguir a Cristo, que não seja carregando a cruz, não existe no campo das reali-
dades histórico-espirituais. Não existe qualquer maneira positiva de alguém se
amoldar a Jesus, de andar em conformidade com ele, sem ser pela aceitação da
sua cruz.
Não há atividade humana — (“confiança em Deus”, “amor fraternal”,
“amor Filial”, “Liberdade”, “Humanitarismo” ou outra atitude qualquer), que
possa assegurar um relacionamento positivo com Deus, uma união visível
com ele.
A nossa união visível com Cristo (e que se manifesta e é visível ao
reflexo de sua morte na cruz) está na condição e na situação do ser humano no
mundo; é idêntica, acima de tudo, à incurável problemática da existência hu-
mana. Estamos (e quem não estaria conosco?) sob os umbrais da porta estreita
onde se descerra a verdade de que, quem nos julga, é um juiz bondoso, santo,
misericordioso. Olhamos, (e quem não olharia também?) desde a nossa união
com Cristo, em corruptibilidade, desonra e fraqueza, para a nossa união invisí-
vel, com Cristo, em incorruptibilidade, em glória, e em poder!
O que percebemos e vemos daqui, (outra vez como FUTURUM
AETERNUM!), é a conformidade positiva com Jesus, das pessoas que vivem
na temporalidade. Esta conformidade com Jesus nada tem a ver com a perspec-
tiva que nos podem dar as muitas experiências [de nossa vida espiritual] e a
nossa convicção religiosa. Esta conformidade positiva não pode ser trocada ou
intercambiada, nem mesmo adquirida, comprada, por e com qualquer outra
espécie (ou outras possíveis espécies) de conformidade, pois não se trata de

302
O Poder da Ressurreição 6, 5-7

obra ou característica humana e jamais terá ela qualquer projeção histórico-


psicológica.
Nenhuma pessoa pode ser interrogada ou interpelada sobre essa confor-
midade positiva com Jesus [em sua morte e, portanto, em sua ressurreição].
A conformidade positiva com Jesus é dada pela nossa vida abrigada em
Deus, com Cristo, a qual agora e aqui [neste mundo] só pode ser encarada
como o “futuro eterno”, e nada afora isto. Mas, isto basta; a saber: a graça de
Deus nos basta. (II Cor. 12, 9). O “homem novo” SERÁ e é criado por obra
divina, e [este homem], como “nova criatura” que é, está livre do pecado.
Na minha vida como “homem velho”, na minha negatividade, na minha
pouca [ou nenhuma] conformidade com Jesus estou, todavia, pleno de espe-
ranças pela secreta positividade da ressurreição.

Vs. 6 e 7 Sabemos isto: Nosso homem velho foi crucificado com Cristo para
que fosse suprimido o corpo do pecado, para que não precisássemos mais
servir o pecado. Porquanto, quem morreu foi declarado livre do pecado.

[Ou, segundo Almeida: “Sabendo isto, que foi crucificado com ele o
nosso velho homem, para que o corpo do pecado seja destruído e não sirvamos
o pecado como escravos; porquanto, quem morreu, justificado está do pecado”].
“Sabemos isto”. Se entendermos o sinal do batismo, entendemos a nós
mesmos e sabemos o que Deus sabe de nós. “Ele conhece a nossa estrutura, e
sabe que somos pó”. (Sal. 103, 14).
Vemos a nossa união com Cristo na semelhança da morte na cruz com a
nossa fraqueza, com nossa relatividade, e com a profundidade de nossa crise
(6, 3-5). Esta introspecção transforma-se em visão panorâmica.
Mediante o conhecimento de nossa união com Cristo temos o ponto de
partida para a “psicologia da graça”, que exclui toda análise direta (a análise
não dialética), e que representa o que não está contido no teor da psique huma-
na e comprova sua eficácia suprimindo a psicologia do pecado.
À medida que nos reconhecemos unidos com Cristo [que nos identifica-
mos com ele] vemos o que, [de outra formal, é invisível: vemos a misericórdia
de Deus; vemo-nos, a nós mesmos, como seus filhos; vemos a nossa fatalidade
ficando para traz, desaparecendo; vemos a anulação da “certeza de nossa anu-
lação” pelo pecado; vemos o poder superior do “homem novo”.
“O nosso ‘homem velho’ é o ‘Adão’ decaído, qual ele reaparece em todo
‘EGO’ humano, que vem ao mundo sob o domínio da potestade do ‘amor a si
mesmo’ que surgiu com o primeiro pecado” (Godet).

303
6, 6-7 O Poder da Ressurreição

Vemos esse “homem velho” e contamos com ele da mesma maneira na


qual contamos com o mundo temporal, o mundo das coisas e dos homens;
aceitamo-lo tão naturalmente quanto a existência de nossa vida terrena, com
toda a somatória dos elementos que a compõem. E que neste mundo não existe
senão o “homem velho”. Todo pronunciamento que se fizer, toda ponderação e
toda a consideração sobre a existência e o valor do homem, tratarão sempre e,
exclusivamente, do “homem velho”.
Todo sujeito “eu” (se o “eu” não for suprimido e cancelado com a res-
salva: “não eu, mas Cristo que vive em mim”... será sempre o “homem velho”,
por mais amplos que sejam os predicados que forem atribuídos a esse sujeito,
quer sejam eles entraves, nobilitações, rebaixamentos ou exaltações.
O reconhecimento de minha total identidade com este “homem velho”,
porém, aponta para uma posição fora desta identidade, na qual eu mesmo me
reconheço, ou melhor, na qual sou reconhecido; é posição na qual eu mesmo
me qualifico, ou antes, sou qualificado, como “homem velho”.
Que posição é esta? Que dinâmica é esta, que me situa tão irresistivel-
mente, tão imperiosamente, em círculo fechado? Que movimentação é esta que
me permite apreciar este “Ego”, separado, estranho, como um “X” posto em
evidência, como grandeza separada da “expressão” do “homem velho” para ser
transposta e isolada do outro lado da igualdade?
A resposta é: nosso “homem velho” está crucificado com Cristo.
Ao me cientificar da minha união com Cristo mediante a semelhança
com a sua morte, passo a perceber a existência dessa outra posição, inteiramen-
te diferente de mim mesmo, com a qual não posso identificar-me, e que dá
origem à dinâmica que evidencia o “X”.
Eu vejo o homem velho, o único que conhecemos, julgado em Cristo e,
por mais alto que seja o seu valor ou a sua possibilidade, vejo-o abandonado à
morte e inequivocamente destruído; posto, desde a sua origem, em nítido con-
traste com o “homem novo” justificado por Deus e por ele vivificado. E, pois,
neste julgamento, neste abandono, nesta supressão e contraposição em que me
vejo, que deparo (com o que é invisível!), com o outro lado, com este “X” que
também me identifica. Este “X” é o ponto de onde sou conhecido e rejeitado
como o “homem velho” e que, por isso, é para mim um ponto favorável; por-
tanto o “X” tem que ser [só pode ser], positivo.
Este “X” invisível e positivo, relacionado com a morte que Cristo sofreu
por mim, na cruz, na qual eu morro com ele, é, pois, o ponto no qual se dá a
excelsa passagem do “homem velho” para o “homem novo”.
Esta passagem só pode ser descrita como [fenômeno de ocorrências
sucessivas, como se fosse, por exemplo] uma série de fotografias instantâneas

304
O Poder da Ressurreição 6, 6

de [alguma coisa dinâmica] uma ave em pleno vôo: um movimento que não
aparece em determinada fotografia nem em qualquer delas [porém está em seu
conjunto]. [Assim, comparando-se as posições sucessivas, pode-se observar o
movimento que leva ao “X”].
Em primeiro lugar, fica fixado distintamente o homem do pecado sob a
inexorabilidade do “NÃO” que emerge do “SIM” divino. Em seguida, na se-
gunda pose, eu sou, inescapavelmente, obrigado a me identificar com esse ho-
mem do pecado; eu mesmo sou caracterizado, definido por aquele com quem
me defronto como ante um espelho, na morte de Cristo. Numa terceira posição
sou constrangido a subscrever, eu mesmo, a sentença da crucificação deste “ho-
mem velho”, “porque Cristo veio a nós e ressuscitou por nós, seres humanos,
tais quais somos e, por isso, porque ele ressuscitou, ficamos envelhecidos, an-
tiquados, obsoletos” (Schlatter). Então, em quarto lugar, cria-se “aquela” dis-
tância entre um “eu” novo e este “homem velho” e, com ela, surge a misteriosa
possibilidade de eu me colocar em oposição a mim, como se eu já não fosse
mais idêntico a mim mesmo, como se “eu” já não fosse mais o “antigo eu”.
Finalmente, em uma quinta posição, estabelece-se a minha identidade com um
homem invisível, novo, pré-estabelecido como sendo o objetivo, o alvo, o sen-
tido de todo esse acontecimento (e que, contudo, não é um “acontecimento”).
“Para que fosse suprimido o corpo do pecado”. Corpo quer dizer tam-
bém “vida”, “pecaminosidade”, “pessoa”, “indivíduo”, “escravo”.
O pecado tem corpo, isto é, ele tem existência concreta, esfera de influência,
base de ação, tem substrato. O pecado tem existencialidade, expansão,
autosuficiência, substância e atividade no mundo temporal das coisas e dos homens.
Como “corpo”, o pecado é constantemente visível, “histórico”, real. É
por isto que foi feita a pergunta se haveremos de continuar vivendo em pecado,
isto é, se podemos continuar a viver querendo essa materialização do pecado e
participando dela (6, 1).
Este “corpo do pecado” é o “meu corpo”, a minha existência temporal —
material e — humana com a qual estou inseparável, indissoluvelmente unificado.
Enquanto eu viver no corpo, portanto, enquanto eu for quem sou, sou
também pecador, e a minha permanência no pecado, (6, 1) a minha vida nele
(6, 2) é, basicamente, natural e necessária.
— [“Enquanto... enquanto”]: E justamente à eliminação desta condição
contemporizadora que se visa na crucificação do “homem velho”: visa-se à
supressão deste “corpo” com o seu inerente condicionamento temporal —
material e — humano. Contudo, é por isto, e nisto, que sou o “homem velho”
pois, enquanto vivo no corpo, estou indistinguível — e inextricavelmente unido
com ele.

305
6, 6 O Poder da Ressurreição

A morte do “homem velho”, a supressão da minha identidade com ele


significa, também, a supressão da minha unidade com este corpo pois, como
“nova criatura”, não sou mais eu quem vive neste “ser” caracterizado pelo que
é temporal, material, humano.
Ao sentir-me impelido a tomar uma posição ante a morte de Cristo,
entro em situação de crise pois todo meu modo de ser, minha existência [como
homem deste mundo] é posto em dúvida; [esta dúvida, esta perquirição, esta
análise que se impõe para uma auto-avaliação à luz da luz que vem da cruz]
suspende toda materialidade que fica definitivamente suprimida quando [o “ho-
mem velho”l é posto em confronto com as características do “homem novo”,
ao qual eu sou idêntico mediante a minha morte em Cristo.
A materialidade como vida, pessoa, indivíduo, como escrava da justiça
de Deus, aguarda o revestimento reservado ao corpo da “nova criatura”.
Tudo o que foi suspenso, suprimido, aguarda a ressurreição.
“Para que não precisemos mais servir o pecado”.
A supressão invisível deste corpo que se tornou perceptível para nós com
a crucificação do “homem velho” (também aqui com o sentido de FUTURUM
RESSURRECTIONIS) traz implícito o afastamento do poder do pecado.
Se já não sou mais idêntico ao “homem velho” que está indistinguível e
inextricavelmente ligado com este corpo, então já não preciso mais servir o
pecado.
Desaparece o elemento o qual dava vida ao pecado que, agora, fica fora
de seu ambiente como “peixe fora d’água”; o pecado passa a ser nota dissonante
na sinfonia nova.
(Como aquele que ainda não sou), fui posto em liberdade pois, sobre a
“nova criatura” o pecado não tem poder! E não tem poder porque o corpo desta
“nova criatura” é de outra ordem [de outra natureza].
Ora, estando eu na esperança da ressurreição e tendo em vista a minha
identidade com o “homem novo” que está além da morte de Cristo, não preci-
so, não posso, não devo e não quero ser pecador.
“Porquanto, quem morreu, foi declarado livre do pecado”.
Portanto, a graça não é uma possibilidade humana ao lado da qual pudes-
sem existir outras possibilidades como, por exemplo, o pecado. [Pois a graça
da libertação do pecado mediante a morte em Cristo “foi declarada” por Deus].
Graça é a possibilidade divina do homem e, por ser divina, suprime
qualquer outra possibilidade caracteristicamente humana.
Graça é o relacionamento do homem visível com sua personalidade invi-
sível, fundamentada em Deus; esta correlação entre o homem visível e sua perso-
nalidade invisível é semelhante à da morte com a vida. Dúvidas, insegurança,

306
O Poder da Ressurreição 6, 7

estremecimento, propagação das dificuldades, sobrepujam o “FUTURUM


AETERNUM” de nossa existência. O que somos em Deus, o que nele conhece-
mos e queremos, está assoberbado pela realidade terrena de nossa vida presente,
passada e futura, realidade que se levanta ao redor de nós qual íngreme escarpa,
qual imensa muralha que ladeasse a nossa trilha.
O homem que entra para a história no instante em que o “homem velho”
é transformado em “homem novo” [isto é], o homem [que surge na história]
unido com Cristo pela ressurreição (6, 5), não é aquele “qual eu sou”, que sabe
o que eu sei, e quer o que eu quero; este novo homem [que acaba de ingressar
no mundo material em substituição ao que morreu para o pecado, junto com
Cristo, na cruz], é incapaz de divinizar o homem ou de humanizar a Deus,
coisas de que fui, sou e serei, inevitavelmente, culpado, tanto no passado, como
no presente e no futuro.
O “homem novo” (que veio do “homem velho”), vive do perdão do
pecado; vive da persistente libertação forense pronunciada por Deus; ele vive
da própria possibilidade de vida dada por Deus (o que nos parece impossível).
Este homem vive da negação da negação; da negação da queda; da negação do
pecado invisível de Adão.
Deste homem novo que entra transformado para a história, (e também
de mim na medida que, pela graça de Deus, ele e eu somos um) sim, de “nós”,
o pecado não receberá alento. A nossa existência, o nosso comportamento, o
nosso intelecto, não dará lugar ao pecado; não o alimentará; antes, no que de-
pender de nós, ele morrerá à mingua, ficará desnutrido, solapado, será encara-
do com ceticismo.
Por ele e por mim, a página do livro pode ser virada para o início [de um
novo capítulo, quiçá], de uma nova história.
Ainda que para o futuro, em milhares de vezes, aconteça [e acontecerá]
inevitavelmente que eu qual sou, no meu ser material, visível, no meu entendi-
mento, no meu comportamento, seja culpado de pecado, todavia, na qualidade
daquele que recebeu a graça, na qualidade de quem foi contraposto àquele que
[já agora] eu não sou, isto é, na qualidade do “homem novo”, não posso sequer
contar com a possibilidade dessa “inevitabilidade”.
Em toda esta análise da “metamorfose” do “homem velho” em “homem
novo”, o A. põe constantemente em confronto a “dualidade da “unidade” do ser
humano: o “homem velho” e o “homem novo”; diferentes e idênticos; um sob
a ira de Deus e o outro justificado por Deus.
O pecado não é acontecimento remoto, que uma vez entrou no mundo;
a admissão do pecado ao mundo é o procedimento “normal” do homem visível,
do homem qual o mundo o conhece.

307
6, 7-11 O Poder da Ressurreição

A salvação em Cristo, porém, é uma só e eterna; não é fenômeno nor-


mal, mas é milagre; é o milagre de Deus e, como tal, ocorreu e ocorre uma só
vez para cada criatura; é por isto que o homem cai, e cairá milhares de vezes
porém, se confessou a Cristo e o aceitou como seu Salvador, se optou pelo
paradoxo da fé, isto lhe é imputado por justiça, e o milagre estará sempre pre-
sente. A redenção não se repete, porque ela “é”, tão certamente quanto Deus é
— (“Eu sou o que sou”!).
É pela graça da minha redenção, pelo fato de eu haver sido reinstalado,
pela adoção divina, no estado pré-pecaminoso da raça, graça pela qual sou um
“homem novo” que vive para Deus, não posso sequer admitir a possibilidade
de “novamente” pecar, conforme era meu comportamento quando eu vivia em
Adão.
Todavia, ainda não estou liberto do “corpo desta morte” e continuo pere-
grinando na forma de “homem velho” e pratico o pecado que não quero. Sou os
“dois em um”. A dualidade na unidade.
Estou na soleira do reino dos céus; talvez não esteja mais com um pé
para fora, mas também não estou com um pé para dentro. Antevejo o Reino dos
Céus e, na esperança, espiritualmente, gozo (ou antegozo) de sua cidadania;
mas estou carnalmente atado ao reino deste mundo e, portanto, estou material-
mente sujeito ao seu soberano: — O pecado!].
O passado, presente e futuro, [a temporalidade] na qual esta
“inevitabilidade” é fato inevitável, é para mim, na medida que sou identificável
com o “homem novo”, o dia de ontem que passou.

Vs. 8 a 11 Se morremos com Cristo cremos que também viveremos com Ele.
Sabemos que Cristo , havendo ressuscitado entre os mortos, não morre
mais; a morte já não tem poder sobre ele, pois sua morte foi a morte para
o pecado, que ocorreu uma vez por todas. Sua vida, porém, é vida para
Deus. Assim, considerai-vos, a vós, também mortos para o pecado e vivos
para Deus, em Cristo Jesus.

“Se morremos com Cristo cremos que também viveremos com ele”.
Está na própria consistência da coisa que a prova da afirmação de que
nos é impossível permanecer no pecado (6, 1) ressalta do profundo significado
que o “morrer em Cristo” tem para o homem do pecado [para o homem velho];
a prova de que é impossível permanecer no pecado está na vigorosa negação
que a morte de Cristo significa e além da qual estamos como bem-aventurados,
[como contemplados pela graça de Deus].

308
O Poder da Ressurreição 6, 8-11

Se como pecador estou crucificado, morto e sepultado em Cristo, sou


idêntico ao “X” que surge além do homem nosso conhecido, do “X” que foi
“isolado”, posto em evidência e transportado para o outro lado de nossa equa-
ção, com o sinal positivo!
Contudo, é preciso ficar muito claro que a negação que a crucificação a
morte e o sepultamento do pecador representam é uma conseqüência do divino
“SIM”, para que não compreendamos mal o que ficou dito sob 6, 4. A força
viva que domina essa negação — [e que se fundamenta no “SIM” de Deus, na
sua aceitação do homem para reconciliá-lo com ele, em Cristo] é um poder que
cancela todo o “SIM” e todo o “NÃO” do mundo; ela extingue a diferença
existente entre “aquém” e “além”; ela faz desaparecer a correlação “tanto...
quanto”; ela elimina a dualidade, a diferença de potencial [a tensão], a polari-
dade; ela cancela toda alogenia e toda antinomia.
Esta negação é, na realidade, uma “impossibilidade positiva” que, até
aqui, muitas vezes foi confundida com simples negação ao pecado.
“Se morremos com Cristo, então cremos”,.. “Crer”! Portanto, a fé é o
primeiro e último, o único, o decisivo ingrediente da psicologia da graça. É
pela crença — ou é pela fé — que o ser humano se vê restabelecido em Deus,
embora, por enquanto, ainda não o seja.
A fé é o passo inigualável que, uma vez dado, é irreversível; não pode
mais ser desfeito; é o passo com o qual o crente transpõe a linha da divisa
existente entre a velha e a nova criatura, entre o mundo velho e o mundo novo.
Fé é a plenitude do paradoxo humano: é vacuidade absoluta de conteúdo mate-
rial e a plena locupletação de conteúdo divino; ela emudece o homem, procla-
ma a sua ignorância e o reduz à expectativa, mas é também a voz de Deus, a
revelação de sua sabedoria e sua obra eficaz; [resposta à ansiedade humana]. A
fé é [o final das coisas materiais], — o ponto final do caminho [da criatura
neste mundo], mas é também [o início do que é divino] — o começo do cami-
nho, a inflexão, a reviravolta, o retorno [que leva a “nova-criatura” a Deus].
É a fé que desloca o aparente equilíbrio entre o “SIM” e o “NÃO!!,
entre a graça e o pecado, entre o bem e o mal.
Se morremos em Cristo, vemos a nossa problemática à luz que vem da
cruz; [vemos a incerteza e a insegurança de nossa vida] como sendo um meio
necessário para percebermos [o começo de nossa existência em Deus para
além do fim de nossa existência terrena]; no fim do homem, — o começo de
Deus; para reconhecermos a luz do amor de Deus no furor da tempestade da
ira divina.
Para quem crê, tem lugar a primitiva existência do homem em Deus.
Para quem crê acontece o passo inigualável, dá-se o retorno que já não pode

309
6, 8-9 O Poder da Ressurreição

mais ser desfeito e que, mais do que essa irreversibilidade, sequer permite que
o ser [assim reconciliado com Deus], volva os olhos para traz.
— Em que cremos, pois, se a nossa fé, à luz do momento crítico, à luz da
cruz de Cristo, não for apenas aparência, mas realidade; não for apenas vacui-
dade, porém fidelidade divina?
— Cremos que Cristo morreu em nosso lugar e, portanto, nós morre-
mos com ele. Cremos em nossa identidade com o “homem novo” que surge
além da morte na cruz; cremos em nossa existência eterna, baseados no
conhecimento que temos da morte, sabendo que nossa vida está fundamenta-
da em Deus, pela ressurreição. Cremos que “viveremos com Ele”! Cremos
também em nós mesmos, como sendo o “sujeito” invisível deste “FUTURUM
RESSURRECTIONIS”.
Esta fé, com todos os entraves que lhe são inerentes, com todas as reser-
vas e com todos os sinais de interrogação e exclamação que comporta, é a
“nossa”fé!
Esta nossa fé, inteiramente estranha à psicologia usual, é justamente o
que torna impossível admitir a existência do pecado junto com a graça. “Se
crês, tens”! se cremos estamos desvinculados do pecado.
“Sabemos que Cristo, havendo ressuscitado de entre os mortos, não morre
mais; “a morte já não tem poder sobre ele”.
Fé é a ousadia de sabermos o que [Deus sabe e, por isso, também a de
ignorarmos o que ele ignora. Deus sabe todas as coisas dos céus e da terra:
deste cosmos imenso do qual o nosso sistema solar é um átomo ou melhor nem
é sequer, um átomo do pó; Deus conhece as leis físicas e psicológicas; morais e
espirituais; tudo ele sabe e conhece, pois tudo e a todos Ele criou; é a obra
maravilhosa, perfeita, e do agrado do próprio Deus. Dela não conhecemos nem
um “dx de dx”; nem diferencial de diferencial; NADA conhecemos. O que quer
o A. dizer, pois? Entendo que, ele se refere ao conhecimento de nós mesmos:
atrevemo-nos, pela fé, a conhecer de nós o que Deus conhece; a nossa insufici-
ência perante Ele; a distância intransponível que nos separa de Deus; a nossa
situação não apenas lastimável mas totalmente perdida pela suserania do peca-
do em nossa vida e pela nossa sujeição irrecorrível à lei da morte. E isto o que
ousamos saber, juntamente com Deus e “ousamos” apenas pela fé; nunca dire-
tamente, pois de outra forma seria arrogância nossa, a manifestação da milenar
tendência da raça de se comparar com Deus, de se igualar a ele.
Todavia, mediante nossa reconciliação com Deus, em Jesus Cristo, Ele
nos perdoou cabalmente; transformou nossos pecados, vermelhos como o
escarlate, na alvura da mais branca lã; perdoou, transformou, esqueceu! (Heb.
10, 17). “De nenhum modo me lembrarei de seus pecados”. Ainda pela fé,

310
O Poder da Ressurreição 6, 9

reconciliado com Deus, o homem “ousa” ignorar os seus pecados, como Deus,
SPONTE SUA, resolveu ignorá-los e de fato os ignora].
A ousadia consiste no fato de que, humanamente, essa possibilidade
nem sequer entra em cogitação; essa possibilidade apenas é admissível porque
ela constitui o substrato de todas as possibilidades humanas; porque é a possi-
bilidade que resta ao homem junto a Deus e em Deus, depois de todas as outras
possibilidades se haverem esgotado.
Crer significa parar, calar, adorar, ignorar. [Pela fé], a diferença qualita-
tiva entre Deus e os homens torna-se inconfundível.
Pela fé, a resposta, a refutação de Deus ao mundo temporal, ao mundo
material e dos homens, passa a ser um juízo necessário e inevitável e a morte a
única (sim, a única!) parábola [semelhança] do Reino dos Céus.
Este é o sentido visível da “vida de Jesus”: Jesus, o Médico e Salvador;
Jesus, o Profeta; Jesus, o Messias; Jesus, o Filho do Eterno Pai.
Tudo isto [a resposta e a refutação de Deus ao mundo, a parábola da
morte de Cristo na cruz, o sentido visível da “Vida de Jesus”, sim, tudo isto] se
percebe com crescente nitidez no desempenho de “Jesus, o Crucificado”.
É evidente que tudo isto não foi imaginado, nem pode ser interpretado,
como resultante de obras, recursos ou possibilidades humanas.
O sentido visível da fé cristã é o conhecimento e reconhecimento de que
a lei e a condição imposta a todo ser humano é a linha da morte que atravessa a
vida de Jesus; é o reconhecimento de que morremos com Cristo e, portanto,
somos ignorantes para com Deus; o reconhecimento de que, perante ele, pode-
mos apenas parar, calar e adorar.
Este sentido peculiar, visível, da vida de Jesus, que só pode ser definido
e descrito pela supressão de todas as possibilidades humanas, estabelece
declaradamente um ponto central invisível do qual irradia esta crise — [a da
supressão de todas as possibilidades humanas]: é um “impossível” — [uma
“pedra de toque”], pelo qual todas as possibilidades humanas são medidas e
aferidas. É este ponto que dá a diretriz a todas as análises, e as concentra.
A Jesus sofredor, passivo, se contrapõe, manifestamente, um Jesus
batalhador, dinâmico, ativo: o proclamador da destruição do Templo e do mun-
do dos homens; aquele que, voltando sobre as nuvens do céu, traz o reino de
seu Pai; o Crucificado, Ressurrecto.
O sentido visível da vida de Jesus não pode ser apreendido sem a mani-
festação e a contemplação da glória de Deus, que se consumou em Jesus, no
despertamento de Cristo de entre os mortos.
O juízo que Cristo toma sobre si, é justificação; a morte que ele padece,
é vida; o “NAO” que ele anuncia, é “SIM”; a reação para com Deus, que Cristo
desencadeia, é a redenção.

311
6, 9 O Poder da Ressurreição

Trata-se da invisível totalidade do “novo homem Jesus” — [que sendo


Deus é e será eternamente homem, nosso “parente”, nosso irmão mais velho, a
quem “foi dado” todo o poder na terra e nos céus], isto é, o Jesus físico, corpo-
ral, pessoal, ressurrecto, no qual [agora] se manifesta a inversão do significado
das expressões [das manifestações] de sua vida invisível.
A manifestação desta inversão, a sua contemplação, é o máximo [é o
limite do] que a história humana pode registrar e, portanto, é também o limite
da história visível, humana, do Jesus de Nazaré.
Como tal, essa manifestação já não é um acontecimento “não histórico”
que envolve, delimita e para o qual apontam todos os demais eventos nela
havidos, quer tenham ocorrido antes, durante ou após a culminância pascal.
Todavia é certo que, em contraposição, se a manifestação da inversão do signi-
ficado da vida visível [vida terrena] de Jesus com respeito ao Jesus ressurrecto
fosse um acontecimento “histórico” (se tivesse um sentido psíquico, físico ou
hiper-físico), seria um acontecimento chão, rasteiro, semelhante aos eventos
criados ou imaginados pelas muitas “interpretações” e “teorias”, de variada
consistência e sofisticação, e que são mais ou menos aceitas como “crença”;
então haveria lugar para [as pretensas explicações da ressurreição de Cristo,
como tendo sido apenas] “morte aparente”, ou “um logro” [mistificação ou
burla feita por Jesus ou imaginada pelos discípulos], ou ainda que as várias
apresentações de Jesus teriam sido aparições ou visões objetivas e subjetivas;
se assim fôra, seriam válidas para discussão as muitas outras teorias espíritas e
antropossofísticas.
Se assim fôra, então, evidentemente, já não seria mais Deus somente,
que entra em cena e tem a palavra na inversão do caminho de Cristo para a cruz;
na instauração do Jesus invisível em contraposição ao crucificado. Nesta hipó-
tese, a ressurreição seria apenas mais uma da série de possibilidades humanas
que Cristo rejeitou na sua morte; então Cristo precisaria morrer novamente
para que se cumprisse o sentido de sua vida, para que se prestasse obediência e
se tributasse honra ao Deus desconhecido, que habita em luz, onde ninguém
pode penetrar, e perante quem todas realizações materiais, psíquicas, físicas,
são cinza e pó.
Aquilo que é, historicamente, possível, provável, necessário e real é
efêmero, corruptível, mortal e sujeito ao domínio da morte.
Se a ressurreição tivesse qualquer ligação ou relação direta com os fatos
históricos, materiais, que a acompanham [que dela dão testemunho], como, por
exemplo, o “túmulo vazio” dos evangelhos sinópticos, ou os “aparecimentos”
de Cristo (I Cor. 15), isto é, se a ressurreição fosse tomada, de alguma forma,
como um fato da história; então não haveria afirmação — nem mesmo a mais

312
O Poder da Ressurreição 6, 9

autorizada, e solene — nem haveria análises ou ponderações suficientemente


refinadas, que impedissem o seu enredamento nas discussões estéreis quais as
que debatem a alternância entre o sim e o não, entre a vida e a morte, entre Deus
e o homem, e que caracterizam a planura da história pois, sob este céu e sobre
esta terra não há existência nem evento — nem mesmo a mais excepcional
novidade, o mais inaudito acontecimento, ou o mais singular dos milagres, que
seja imune ao relativismo que situa lado a lado o grande e o pequeno, que os
compara e analisa a um em termos do outro. A ressurreição ficaria então, envol-
ta da mesma penumbra, do distanciamento, da inexatidão e da dúvida que ca-
racteriza todos os fatos da história. Contra a apagada impressão que [esta res-
surreição materializada] causaria em algumas poucas almas, levantar-se-iam as
conseqüências muito mais claras de suas obliterações e distorções; contra os
êxitos de suas realizações sociais erguer-se-iam, com muito mais eloqüência,
as fraquezas e as falsificações do [chamado] “cristianismo”; as suas mais puras
e mais altas fulgurações seriam, talvez, comparadas com a cintilação de lumi-
nares e poderes ainda maiores. (Compare-se com Overbeck!)
Lembremo-nos dos 150.000 anos de história, de que temos notícia; “das
possíveis alternâncias, passadas e futuras, de eras glaciais causadas,
presumivelmente, por pequenas modificações no eixo polar; ou então conside-
remos as grandes civilizações que surgiram e desapareceram” (Troeltsch). Tais
acontecimentos teriam que ser tratados ao lado da Ressurreição —, eles teriam
também “uma palavra” no trato das coisas que são de Deus [e que dizem res-
peito à reconciliação do homem],... se a ressurreição fosse um evento histórico!
Todavia, não é isto o que acontece, nem é hipótese que se possa imagi-
nar com seriedade.
Mas não há porque nos preocupemos com este aspecto que se poderia
dar à ressurreição, pois toda a ameaça que o mundo faz ao Cristianismo através
da história, ocorre, indubitavelmente, quando o Cristianismo passa a ser parte
da história; quando ele se transforma em temporal, mundano; quando graças a
traição dos teólogos, pelos mais extensos e ínvios rincões, ele perdeu a noção
de que a sua verdade não deve ser buscada apenas além do NÃO, além da
morte, além do homem, porém para além da possibilidade de, sequer, contras-
tar o “SIM” e o “NÃO”, vida e morte, Deus e o homem; para além de qualquer
possibilidade de colocar Deus e o homem lado a lado ou de jogar um contra o
outro, pois este é o significado da ressurreição de entre os mortos: “Por que
buscais entre os mortos, ao que vive’?” [Mat. 24, 5].
[Por que buscais] a verdade de Deus na planície, no ambiente onde gran-
dezas históricas como “o Cristianismo” sobem e descem, surgem e desapare-
cem, onde tais grandezas têm [apenas] sua oportunidade e seu enquadramento?

313
6, 9 O Poder da Ressurreição

O sentido da ressurreição deriva do sentido da morte, isto é, do sentido


do fim de todas as coisas, como tais.
O Cristo, fisicamente ressurrecto, está sempre em contraposição ao Cristo
fisicamente crucificado, e não pode ser considerado, nem está, em posição dife-
rente. Vivificado segundo o espírito ele é sempre apresentado e mostrado como
o “homem novo”, sob o novo céu e sobre a nova terra porquanto, foi “morto,
sim, na carne” (I Ped. 3, 18), isto é, ele renunciou a todas as possibilidades
históricas [materiais] visíveis, humanas [e ainda que fossem, [como de fato
poderiam ser], as possibilidades do mais surpreendente ser hiperfísico!; ele as
renunciou [a todas] por serem coisas visíveis, humanas, históricas, deixando-
as para traz, para morrer. Agora, porém, como o crucificado ressurrecto, como
o invisível “homem novo” em Deus, pelo fim, pela supressão do “homem velho”
neste mundo, ele deixou para trás a relatividade das coisas materiais, históri-
cas; ele deixou [para o passado] a ameaça permanente da temporalidade. Dei-
xou para trás a morte! “Ressuscitado de entre os mortos, ele já não morre mais”.
Precisamente porque a sua ressurreição não é um acontecimento histó-
rico, não é material “a morte não tem mais poder sobre ele.
[A vida nova, a vida para Deus] não é desatável; ela é irrevogável; é a
vida [vinda] de Deus, é a vida dos homens, reconhecida por Deus.
Pela fé ousamos apropriar-nos desta aceitação de nossa vida, por Deus.
Ousamos tomar conhecimento da existência dessa vida, a vida do Jesus
ressurrecto, como sendo a nossa vida: “Viveremos com ele”! (6, 8).
É claro que esse “nós” (do “viveremos”) e ao designarmos esta [nova] vida
como sendo “nossa”, não somos [ainda] nós pois o reconhecimento da nossa vida
[por Deus] e da qual nos podemos apropriar [mediante a fé], só vem pela morte [do
“homem velho”] e é por meio desta morte em Cristo que se torna real a fé que nos
permite a ousadia de nos apropriarmos desta vida reconhecida por Deus.
A fé que conhece esta [nova] vida, apenas se torna realidade mediante a
nossa piedosa, humilde e amorável morte em Cristo; porém, será ainda em igno-
rância dessa vida, que morreremos. [Essa morte em Cristo nunca será com o
conhecimento prévio da vida que vem de Deus da qual apenas tomamos conhe-
cimento pela fé que a morte em Cristo nos proporciona].
Somos “novas criaturas” — e estamos na situação positiva, qual a
de nos ser impossível voltar novamente à vida em que o pecado é possível
— se, e na medida que, o conhecimento objetivo que nos foi revelado nas
coisas invisíveis do caminho de Cristo para a cruz se identificar com o
conhecimento subjetivo igualmente “impossível” e invisível, da vida que
está além da linha que separa e une a “morte” e a “vida”; somos “novas
criaturas” à medida que o “FUTURUM RESSURRECTIONIS” — (“vive-

314
O Poder da Ressurreição 6, 9-10

remos”) — como sendo o “outro lado” além do ponto de retorno marcado


pela morte de Cristo, for a premissa (ou melhor, tiver por implícita) a
existência de um novo “nós”.
“Pois sua morte foi a morte para o pecado, e que ocorreu uma vez por
todas. Sua vida, porém, é vida para Deus”.
[Segundo a tradução de Almeida: “Pois, quanto a ter morrido, de uma
vez para sempre morreu para o pecado; mas, quanto a viver, vive para Deus”].
A supressão das possibilidades humanas, na morte de Cristo, é também
a supressão da possibilidade do pecado. É por isto que [a razão de ser], o senti-
do da vida de Jesus, está na sua morte pois, aquém dela, todas as possibilidades
do homem são a oportunidade do pecado. A vida no mundo temporal, no mun-
do das coisas e dos homens é a vida no afastamento de Deus em conseqüência
da queda invisível; por isso mesmo, é também a vida em que ocorre aproxima-
ção arrogante e irreverente a Deus, pelo antropomorfismo. Nessa vida não há
santidade, nem há justificação que seja válida perante Deus! O seu sentido, a
sua última palavra, sua própria existência é sempre pecado.
Porém, eis que Cristo morreu!.
O sentido, a última palavra, a própria morte, nessa morte de Cristo, é
Deus. Deus, como aquele que está além da morte e é justamente por isto que a
nova [humanamente] “impossível” possibilidade do homem só é visível na ana-
logia da morte.
Esta nova possibilidade consiste na legítima aproximação do homem, a
Deus; na santidade e na justificação do ser humano que só pode ser percebida
na parábola da morte que, por princípio, é a negação de todas as possibilidades
do homem terreno.
Ora, à medida que a nova possibilidade mediante a morte em Cristo se
torna evidente, se Cristo, em sua morte, está realmente em meu lugar e, se eu,
pela fé, participo verdadeiramente de sua morte (6, 8) para viver com ele, então
surgiu na minha frente, e de uma vez por todas, um ser totalmente novo, um
“outro ser”, ao qual estou ligado invisivelmente, ao qual fui unido e com o qual
fui unificado, passando a constituir, com ele, uma só pessoa.
Esta unificação é a minha unidade com o Cristo que perece na cruz.
Este ser novo, o ser ressurrecto, o ser que morreu para o pecado e que
foi vivificado em Deus, é o indivíduo, a alma, o corpo que está em meu lugar:
este ser, sou eu mesmo.
Com a morte de Cristo finaliza a vida que pode e que precisa morrer; a
morte de Cristo é a vitória que proclama a “ausência do pecado”: é o triunfo
sobre a “possibilidade de pecar”. É isto o que está contido na afirmação: “Os
teus pecados estão perdoados”. [Mat. 9, 2 e 5].

315
6, 11 O Poder da Ressurreição

Cristo não morre novamente, pois o sentido do fenômeno morte-ressur-


reição não é reversível [nem se produz em cadeia] e portanto, também a se-
qüência que do pecado vai para a graça, não é reflexiva.
Logo, se vivo para Deus, em Cristo, morri para o pecado; não posso ser,
simultaneamente, bem-aventurado [agraciado pela reconciliação em Cristo] e,
também, pecador, mas, estarei, necessariamente, na esfera da conversão — do
retorno [de quem vem] do pecado para a graça, que é a inversão, o retorno que
já não tem regresso.
“Portanto, considerai-vos, a vós mesmos, como estando mortos para o
pecado, porém vivificados para Deus, em Cristo Jesus”.
[Segundo a tradução de Almeida: “Assim também vós, considerai-vos
mortos para o pecado, mas vivos para Deus, em Cristo Jesus”].
A prova, por excelência, de nossa conversão está na resposta que hou-
vermos dado ao desafio da fé: se ousamos optar pela fé, ou não.
Ter fé, é crer: é ver o que Deus vê; saber o que Deus sabe; é avaliar e
contar como Deus o faz.
Deus conta com o homem (3, 28 e 4, 3) que morreu para o pecado e vive
para ele, Deus! (6, 10).
A ressurreição de Cristo de entre os mortos, é a revelação e a exposição
deste “homem novo”: do homem em quem Deus se compraz. Porém, o poder
da ressurreição é o reconhecimento deste homem novo pois, neste reconheci-
mento conhecemos a Deus, ou antes, somos conhecidos por ele. (Gal. 4, 9; I
Cor. 8, 2-3 e 13, 12).
O poder da ressurreição é a graça; aliás, o indicativo passa, aqui, auto-
maticamente para o imperativo; [o poder da ressurreição tem de ser a graça]
pois a frase não pode significar outra coisa se não a realidade da verdade — o
“ESSE” em “OSSE” —, a realidade de quem vem a ser conhecido, de quem
vem a conhecer e do próprio conhecimento.
A “impossibilidade” positiva de que um pecador pode gozar da graça
[divina] existe: deixemo-la pois existir!
O perdão dos pecados, vale: deixemo-lo pois valer!
“Com Cristo ressurgiste em vida para Deus: vive, pois, para Ele.
“Tu foste posto em liberdade: sê livre, pois”! (Schlatter).
“Sê tu o que já és, em Cristo”. (Godet).
O poder da ressurreição é a chave, é a porta que se abre, é o passo sobre
a soleira.
A graça é o “transtorno”, a supressão do equilíbrio; por ela temos a
“impossível”! possibilidade de constatar (ainda uma vez!) a falsidade e a men-
tira, de “nossa” [vida terrena] e de expandir, (também ainda uma vez), a nossa
vida verdadeira, em Deus!

316
O Poder da Ressurreição 6, 1-11

“Nós” (como os que ainda não somos, como o sujeito do “FUTURUM


RESSURRECTIONIS”) não podemos perguntar por aquilo que Deus não sabe
mais. [Em outras palavras, aquilo que Deus “já não sabe mais” também já não
interessa a nós].
Comentários: 6, 1-11
Na exegese dos primeiros 11 versículos o A. salienta a situação do
ser humano que foi originalmente criado por Deus segundo a sua ima-
gem e semelhança espiritual e que está agora cindido, perante Deus,
entre o “homem velho”, decaído, — o homem segundo o paradigma de
Adão — e o “homem novo”, redimido, — a nova criatura — segundo o
paradigma de Cristo e Cristo ressurrecto.
O homem se “identifica” com Cristo a fim de com ele morrer, para o
pecado; morto para o pecado, este já não tem poder sobre a criatura e ela
ressurge (nasce de novo—João 3, 1-15), agora identificada como Cristo
ressurrecto, a fim de viver para Deus.
O A. não economiza argumentos, comparações, deduções e reitera-
ções no afã de demonstrar a sua dupla tese:
1. Que o “homem velho”, havendo morrido para o pecado, já não pode
pecar, embora ainda peque milhares de vezes até ser liberado do cor-
po terreno.
2. Que o “homem velho” havendo dado o passo da fé, já não pode mais
voltar para traz, embora tenha que enfrentar constantemente (e, qui-
çá, mui especialmente agora) a crise da opção entre o paradoxo que a
fé propõe e o escândalo que ela representa na vida terrena.
A primeira tese tem, humanamente falando, caráter mais objetivo
e sua aparente falácia, facilita a análise. Basta que nos reportemos ao
versículo 20 do capítulo 7, da Epístola: “Se faço o que não quero, não
sou eu quem o faz, e sim, o pecado que habita em mim”.
Esta é a verdade singela; a nova criatura já não pode pecar por-
que, efetivamente, morreu para o pecado. Porém o ser humano “vive”
essa nova criatura pela esperança fundamentada na fé; o corpo é do
“homem velho”, tão certo quanto este corpo morrerá; porém o “ho-
mem novo” o espiritual, o homem recriado pela fé à imagem e seme-
lhança de Deus, o homem qual existiu nas eras pré-adâmicas, este
ressurgiu com Cristo depois de haver morrido com ele e, agora vive,
sempiterno para Deus.
Já não é ele quem peca, mas o pecado que mora, no seu corpo,
esse pratica o mal.

317
6, 1-11 O Poder da Ressurreição

Existe, então, a simultaneidade entre o bem e o mal?


A resposta me parece ser, sim e não.
Será sim, se quisermos ver materialmente, historicamente, terrena-
mente; será sim, se não soubermos distinguir entre o homem visível e
o homem invisível; será sim, se trocarmos o sentido do mandamento,
e quisermos dar a César o que é de Deus, e a Deus o que é de César.
Será não, se quisermos ver como Deus vê; se dermos asas à fé avan-
çando para além do “bom senso”, da “lógica” do mundo. Será não, se
compreendermos e nos compenetrarmos de que “sem fé é impossível
agradar a Deus”. Será não, se nos abandonarmos nas nuvens, no vácuo,
no vazio, SABENDO que o justo viverá pela FIDELIDADE DE DEUS.
A demonstração da segunda tese talvez decorra da primeira: por-
que a nova criatura continua presa às contingências terrenas, ela con-
tinua obrigada a optar.
Ela precisa enfrentar constantemente a crise que a cruz levanta e
impõe. Aquela criatura que foi reconciliada com Deus, e foi por ele
justificada, mediante a fé, é nova Criatura e não pode voltar a ser a
velha; ela agora sabe o que quer e como quer.
Ela sabe a seu respeito o que Deus sabe e conhece o que ele co-
nhece. Por isso, sabe o que é reto e justo. Sabe-o com humildade;
sabe-o com tremor e temor. Sabe que veio a ter esse impossível co-
nhecimento pela graça de Deus, e somente através de sua graça, como
uma decisão “forense”, espontânea, da iniciativa de Deus, sem que a
criatura, de qualquer forma, contribuísse para isso: nem por sua bon-
dade, nem por sua maldade; nem pelo seu conhecimento da lei, nem
pelo desconhecimento dela; nem pelo seu preparo, pela vontade, pela
súplica, por nada. É graça divina. Todavia “conhece” e, em Cristo,
ousa conhecer. (Ele veio para que conhecêssemos a verdade e tivés-
semos vida abundante).
Por tudo isto, a nova criatura, o ser humano ressuscitado com Cris-
to, não quer optar pelo mal; ela já nem sequer conhece o caminho do
pecado pois o olvidou como Deus o quis olvidar.
Portanto se o “homem novo” não quer, se ele não conhece a op-
ção negativa, ele não pode optar mal: não porque já não seja livre
conforme foi criado por Deus, mas porque, agora, o amor de Cristo o
constrange, o cativa, o segura pelos laços do amor divino.
Então acaso não é patente que não há um só que faça o bem, e
portanto, que todos optam mal? E, nesta hipótese, (aliás verdadeira)
não há salvos? Não há, neste mundo, homens reconciliados com Deus?

318
O Poder da Obediência 6, 12-23

Há sim! Mas é o pecado que detém (ainda) em seu poder o cetro


deste mundo, e reside no corpo do “homem velho” induzindo-o à
opção que o “homem novo” não quer.
Há, então, uma dicotomia, um dilaceramento, um puxar para os
dois lados?
Parece-me que outra vez a resposta será sim e não. Essa dupla
personalidade espiritual só desaparece à plena luz do meio-dia, ou à
plena escuridão da meia-noite.
Na completa negação, o homem não buscará a Deus e, assim go-
zará a paz que o mundo oferece: a falsa paz; a paz enganosa, a paz do
“NÃO-DEUS”.
De outra parte se houver a entrega completa a Deus, o homem não
buscará o mal. Não dizemos que o homem não pecará mais; o seu
corpo carnal ainda cairá por pensamentos, palavras e obras — ele
exclamará: “Desventurado homem que sou! Quem me livrará do cor-
po desta morte?” (7, 24). Mas concluirá, também: “Graças a Deus
por Jesus Cristo”. (7, 25).
O homem que põe a sua confiança em Deus não será dilacerado
pelo mal; ele não se afligirá, antes repousará seguro em Deus, por
Cristo Jesus.
Quem tiver fé gozará da paz que Deus tem para dar, pode e quer
dar: “A minha paz vos deixo, a minha paz vos dou”.
E no intervalo, entre a meia-noite e o meio-dia?
“Acaso ignoras que a bondade de Deus quer conduzir-te ao arre-
pendimento?”

O PODER DA OBEDIÊNCIA (6, 12-23)

Na segunda parte da exegese deste capítulo, o A. tem por tema principal


a demonstração de que o “Poder” que vem “da Ressurreição” dá ao pecador o
“Poder” de obedecer à ordem divina que lhe manda aborrecer o mal e amar o
bem.
Este “poder da obediência” é a graça divina; graça que anula o pecado e,
juntamente com ele, todas as possibilidades, recursos e meios que a criatura
humana imagina ter, ou cria e desenvolve, para se aproximar de Deus, e ganhar
a vida eterna.
Existem, por certo, experiências, arregimentações, feitos, comportamento
e convicções que dão testemunho do “poder da obediência” e da graça divina;
estas realidades, porém, são testemunhos da graça, e não a graça em si.

319
6, 12-13 O Poder da Obediência

A graça transcende a tudo quanto os homens possam criar e produzir


porque ela vem de Deus!
É por isto que o A. diz que mesmo a religião, como expressão da mais
sublime possibilidade humana, em si mesma, não subsiste perante a graça divi-
na que há em Cristo Jesus e. quando intentarmos fazer do evangelho de Cristo
uma religião, isto é, quando tentarmos enquadrar o evangelho em normas e
preceitos, condicionando a sua aceitação a critérios eclesiásticos estaremos, na
realidade, traindo a Cristo.
É pela graça que o homem reconhece a sua origem divina e aceita o
sacrifício expiatório de Cristo para lhe abrir a porta do lar paterno; é pelo poder
que é outorgado pela ressurreição de Cristo que a criatura humana tem forças
para obedecer à ordem de colocar-se integralmente, existencialmente, à dispo-
sição de Deus, e de Deus, somente.

Vs. 12-14 Assim, não reine o pecado que habita em vosso corpo, de maneira
que obedeçais às suas paixões; não ofereçais os vossos membros quais
instrumentos para a iniqüidade do pecado porém, ponde-vos à disposição
de Deus, como ressurrectos de entre os mortos, e oferecei os vossos mem-
bros a Deus quais instrumentos da justiça! Porque o pecado não terá do-
mínio sobre vós, pois não estais debaixo da lei, e sim, da graça.

“Assim, não reine o pecado que habita em vosso corpo mortal, de ma-
neira que obedeçais às suas paixões”.
A graça é o poder da obediência; ela é teoria e prática, percepção (en-
tendimento) e ação. A graça é um “indicativo” que, por assim dizer, traz consi-
go um categórico imperativo: ela é uma convocação, uma exigência, um man-
damento, que tem a força de uma determinação decisiva, que não pode deixar
de ser obedecida.
A graça contém a vontade de Deus, não como uma coisa secundária,
suplementar, adicional, mas a contém intrinsecamente.
A graça é o conhecimento do que Deus quer; ela é idêntica ao “querer”
da vontade de Deus, porque ela é o Poder da Ressurreição. A graça é o reconhe-
cimento da verdade de que o homem é conhecido por Deus; é mediante a graça
que o ser humano toma conhecimento de sua existência em Deus, essa existên-
cia que Deus evidencia, que Deus dirige, e que repousa nele; a existência que
está além de todos os predicados humanos e de todo o conteúdo que a presente
vida possa ter; é a existência criada por Deus e que se revela à medida que a
criatura nela ingressa. Trata-se do “homem novo”, do ser criado e redimido por

320
O Poder da Obediência 6, 12-14

Deus, do homem justificado perante ELE, no qual ELE se compraz, no qual


Deus mesmo se vê, como um pai em seu filho.
É altamente significativa esta demanda: “Querer o que Deus quer!” To-
davia, esta exigência é imposta a mim, como “nova criatura” que sou pelo po-
der da ressurreição, por cujo poder passo pela crise da morte, entrando no gozo
da vida, mediante a fé. Este novo ser existe; ele é da casa dos homens que Deus
quer, e que vivem de Deus.
Como “bem-aventurado” (como “receptáculo” como beneficiário da gra-
ça divina] posso ouvir e entender a exigência: ela é a recordação da minha ori-
gem, a confirmação da minha existência — [essa minha existência em Deus];
esta exigência [de querer o que Deus quer] que se me impõe, estabelece também,
para mim, o critério: “Eu sou: “(Porém, não eu, [“mas Cristo que vive em mim”!]).
Eu, como este bem-aventurado, [tendo recebido a graça] sou vivificado,
despertado, mas sou, também, posto em inquietação.
Agora, quem tem de atacar este mundo sou eu e, atacar este mundo
significa atacar a mim mesmo; sou o agente deste ataque; sou quem o conduz;
sou eu, essa arma!
Para mim, como criatura que recebeu a graça, o pecado é um problema
absoluto. Ele não é apenas relativo, nem mesmo uma possibilidade fatal em
contraposição a outras possibilidades da vida, porém, ele é a “possibilidade”.
[A possibilidade por excelência, a única possível]. E a possibilidade que está
soberanamente acima de todas as outras possibilidades humanas, melhores ou
piores, e esta possibilidade do pecado, aparentemente, me foi dada juntamente
com a realidade deste meu corpo mortal ao qual estou indissolúvel e indistinta-
mente ligado.
Todavia, ainda como a criatura que recebeu a graça [e justamente por
isto], não posso reconhecer esta soberania. Não posso tratar a pretensa realida-
de desse domínio, a sua presunção de ser um fato consumado, se não com o
mais absoluto ceticismo.
É bem verdade que vejo o pecado (e sei que ele é um elemento inerente
a todas possibilidades humanas) mas não posso considerá-lo se não como uma
impossibilidade. [Como algo que não subsiste perante Deus e que, portanto,
não existe para a nova criatura que está em Deus].
É certo que o pecado habitou neste homem mortal, aí continua habitan-
do e habitará, enquanto o tempo for tempo, o mundo for mundo, e o homem for
homem; enquanto a morte não for tragada pela vitória e o mortal não for subs-
tituído pela vida; enquanto eu, (aquém da morte de Cristo, não estando sob a
graça, não identificado ao homem novo, não havendo ainda sido quebrantado),
sou aquele que sou; enquanto eu estiver, ainda, com um pé na sepultura; enquanto

321
6, 12 O Poder da Obediência

eu ainda for o indivíduo comum, delimitado, cerceado por minha grotesca ca-
sualidade e peculiaridade; enquanto eu ainda estiver encerrado entre os aconte-
cimentos extremos do nascimento e da morte, enleado nas contingências mate-
riais deste cosmos enigmático, a ponto de me confundir com ele.
Este corpo, não pode ser um corpo “naturalmente puro”, isto é, sem
pecado; se assim fôra, então o que é mortal e corruptível ter-se-ia revestido da
vida e da incorruptibilidade. Porém, enquanto o corpo [deste século não for
sepultado para ressuscitar em corpo espiritual e] não estiver revestido da glória
celestial, ele se caracterizará como o corpo do pecado. Mas esta caracterização
não nos autoriza a permanecer no dualismo da graça e do pecado, numa
contraposição entre o “SIM” e o “NÃO” pois a caracterização do corpo como
mortal e pecaminoso ficou suspensa com a crucificação do “homem velho” (6,
6), ela foi posta em dúvida, foi atacada, foi “fechada”, “de modo que já não
somos mais obrigados a servir ao pecado”.
O “homem velho” constitui um EGO indissolúvel e indistinguível junto
ao corpo caracterizado como pecaminoso; porém o que vale para esse “homem
velho”, já não vale para mim, que recebi a graça; não vale para mim, que morri
com Cristo. Não posso pois, [como redimido], reconhecer o domínio do peca-
do que habita em meu corpo mortal, nem admitir a sua soberania no ambiente
onde este meu corpo exerce a sua atividade, portanto, também não posso acei-
tar que o pecado o caracterize.
O pecado também é ameaçado, posto em dúvida, basicamente destrona-
do, porque Cristo é a minha esperança, mediante a crucificação do homem
velho, pela qual o meu corpo passa a participar da imortalidade e da ausência
de pecado que caracteriza o “homem novo”.
Este meu corpo não constitui, para mim, um domínio indisputado do
pecado, nem mesmo a base de onde o pecado possa operar, porém e arena onde
o pecado precisa lutar.
O combatente que luta contra o pecado e contra sua soberania sobre mim
e sobre o meu corpo mortal, que luta contra o domínio do pecado na conjuntura
da vida e sobre a história; o batalhador que se bate contra o império do pecado
sobre todo o reino dos objetivos finitos, inclusive sobre os do meu mundo exteri-
or — (sim, justamente exterior, pois, existencialmente falando, o que há que seja
“exterior” que não seja, também, “interior”?) — este lutador, sou eu!
Sou eu, que não posso aceitar nem reconhecer o pecado e sua domina-
ção; sou eu que não o posso justificar, nem admitir: eu, como aquele que rece-
beu a graça; eu, a “nova criatura”.
Eu sou o revolucionário que põe este reinado em dúvida. Portanto,
não posso ser espectador; não posso ser neutro entre a graça e o pecado. Não

322
O Poder da Obediência 6, 12

posso ver o pecado como uma possibilidade ao lado da graça, se não como
sendo uma possibilidade que a “impossível” possibilidade da graça torna “im-
possível” para mim.
É explicável que o pecado, sendo uma possibilidade humana, exista até
onde nossa observação possa alcançar; não seria explicável, porém, que eu
contasse com essa possibilidade como sendo minha.
É explicável que o pecado habite em meu corpo mortal, mas não seria
explicável que eu fizesse “um arranjo” com ele; que eu, com ele, estabelecesse
uma sorte de compromisso, um MODUS VIVENDI.
É explicável que as “paixões” do meu corpo mortal sejam realidade,
que sejam a característica impetuosa, a irrupção da pecaminosidade e mortali-
dade do meu corpo — Todas elas: minha fome e minha necessidade de dormir;
minha sexualidade e minha ânsia de auto-afirmação; meu temperamento e mi-
nhas originalidades; a voracidade do meu desejo de saber, a exibição de minha
arte, a agitação cega de minha força de vontade e por fim, e acima de tudo, por
certo, a minha “necessidade religiosa”, mais todas as “paixões” da “camarada-
gem” que envolvem todo o macro-cosmos e que se revelam pelo seu
arraigamento na temporalidade, na casualidade, na materialidade da minha exis-
tência cósmica; elas vêm à tona por sua incansável implicação na corruptibilidade
do meu corpo; elas se manifestam como a força vital da minha pecaminosidade.
A realidade da vivência dessas paixões, é por demais evidente. Todavia, não
seria explicável se eu, — aquele que recebeu a graça — atribuísse essas carac-
terísticas a mim mesmo; se eu ignorasse a relatividade dessa realidade e lhe
atribuísse uma transcendentalidade; [se eu atribuísse à realidade material de
minhas paixões (ou de uma delas) o valor de manifestação divina]; inexplicável
seria se eu considerasse [alguma ou algumas dei minhas paixões, meta-
fisicamente, de ordem hipostática e, assim procedendo, eu as respeitasse, as
consagrasse, as declarasse santas, as transfigurasse religiosamente [as subli-
masse]. Seria inexplicável que eu contrapusesse à minha vida, como “nova
criatura”, o meu presente corpo mortal como se este valesse alguma coisa que
não o NADA — “aquilo que não existe”.
Seria inexplicável se eu esquecesse que tudo quanto é finito, é apenas
analogia (uma parábola); se eu esquecesse do salutar estremecimento provoca-
do pelo abismo que, até o final de meus dias, separa aquele que sou daquele que
[ainda] não sou. Seria inexplicável se eu procurasse uma linha contínua, inteiriça,
que não houvesse sido quebrada pela negação básica, e a descobrisse [algures],
entre a naturalidade de Deus e a minha própria.
[Entendo que o A. nesta última proposição quer referir-se à impossibili-
dade de uma pessoa remida por Deus procurar um meio de receber a graça

323
6, 12-13 O Poder da Obediência

divina diretamente, isto é, sem ser através da morte em Cristo, pois não há
outro modo de chegar a Deus; esta morte, portanto, quebra a linha natural da
ligação direta da criatura com o Criador e do Criador com a criatura, porque ela
anula toda a pretensão humana de ter, em si, qualidades suficientes para chegar
a Deus ou para recebê-lo. A criatura que houver recebido a graça divina sabe
que é assim e portanto lhe é impossível procurar essa ligação. Já não acontece
assim com o “homem velho”; a tendência natural da criatura não redimida é
procurar essa ligação com Deus através de suas qualidades ou possibilidades
— penitência, caridade, nirvana, transe, religião, racionalização — todavia,
será sempre em forma hipostática, atribuindo valor divino às coisas humanas,
ou em forma de humanização de Deus, conferindo-lhe qualidades finitas. Será
sempre uma das múltiplas expressões do pecado básico: “Sereis iguais a Deus.”].
Seria também inexplicável se eu, sem ter a graça, me esforçasse e me
preocupasse em ter conduta que se opusesse às paixões do meu corpo mortal.
Como beneficiários da graça, recebemos o “dom da justificação” (5,
17); [Na tradução de Almeida, o “dom da justiça].
Seria desabrida estultícia não utilizar essa força, no combate. [Não usar
esta arma de ataque, apud versão inglesa]. “Seremos reis, em vida” (5, 17);
seria uma loucura entregarmo-nos à escravidão da morte [quando podemos
reinar, em vida].
[Todavia], “note bem: os santos também têm más paixões na carne, pai-
xões que eles não obedecem”. (Lutero).
“Não ofereçais os vossos membros quais instrumentos para a iniqüida-
de do pecado, porém, ponde-vos à disposição de Deus, como ressurrectos de
entre os mortos”.
A oportunidade e a possibilidade da vida visível, neste mundo, é sempre
e reiteradamente [a submissão ao pecado], colocando os nossos membros à sua
disposição.
Os “membros” do ser humano são o seu organismo psico-físico e a sua
existência cósmica na totalidade de suas causas e seus efeitos e, como tais, são
utilizados como “armas da rebeldia”, — como instrumentos, naquele levante
pelo qual o homem retém, cativa, a verdade e se identifica com DEUS (1, 18).
Na suposta liberdade desta revolta de escravos [o rebelde, o ser humano] cai no
cativeiro do pecado ao qual é obrigado a entregar tudo o que é seu.
Esta possibilidade visível, porém, é anulada pelo poder invisível da obe-
diência da criatura que recebe a graça. [Portanto] existencialmente falando, tu
que recebeste a graça não estás sujeito à possibilidade de cair [ou recair] no
cativeiro do pecado; tu [já] não és cativo, não és prisioneiro. Teus membros não
foram destinados, nem têm aptidões para construir a torre de Babel! Não os

324
O Poder da Obediência 6, 13

ponhas pois, à disposição do pecado. Põe-te à disposição de Deus. (Põe-te a ti


mesmo, [qual és] — tu, que recebeste a graça, apresenta a Deus o teu corpo
ainda não revestido da imortalidade; tu, o “homem novo”, oferece a Deus o
corpo do “homem velho”, com todos os seus membros!). Põe-te à disposição
de Deus [porque], (existencialmente), tu és de Deus!
“Será então possível estar, muitas vezes, com todo o seu ser envolvido
até a morte em rebelião mais ou menos aberta contra Deus, bater na face de
Deus com a mão que ele mesmo deu e, ainda, pretender colocar a esperança em
Cristo?” (J. Chr. Blumhardt).
Esta possibilidade, realmente, se estende e se projeta até onde a percep-
ção humana possa alcançar; todavia [a sua prevalência, a conseqüência que
dela pode advir] é minada, solapada, instabilizada, derribada, pela invisível
graça [divina] outorgada ao ser humano.
A “rocha” [aparente] desta [trágica] possibilidade [referida por Blushardt]
está minada, está ocada e entra em ação possibilidade de outra ordem, levando
a primeira à ruína.
Todavia, há uma terceira possibilidade.
[A primeira possibilidade, é a de o “rebelde a Deus” cair na escravidão
do pecado; a segunda é a de estar a criatura em rebelião mais ou menos aberta
contra Deus — quiçá “nem quente, nem fria” e ainda assim, esperar em Deus.
Agora, a terceira possibilidade que o A. apresenta:]
“A de combater, alternadamente, como mercenário do pecado, contra
Deus, e como mercenário de Deus, contra o pecado, quiçá, servindo ao pecado
na esfera da vida corporal, e a Deus na esfera espiritual” (Zahn).
Esta é uma possibilidade que está excluída: “Viestes da morte para a vida!”
Entre a morte e a vida não há uma terceira alternativa; nesta guerra não
há traidores [que passem de uma trincheira para outra]; também não há inter-
mediários, nem neutros.
Onde há, realmente, rocha, aí não há buraco, nem vazio, e onde houver
“vazio”, aí não há rocha.
“...quais instrumentos da justiça” — “HIC RHODUS, HIC SALTA”! [A
citação é da versão latina da fábula de Ésopo — O Viajante Fanfarrão — É uma
frase citada freqüentemente em alemão para dizer que, aquilo que até aqui se
blasonou, precisa, agora, ser feito. (Apud trad. inglesa)].
Estar existencialmente à disposição de Deus significa que, positivamen-
te, também os membros de nosso corpo carnal estão sob o invisível poder trans-
formador da obediência, que faz a conversão de todas as nossas possibilidades,
anulando-as para que em nossos membros, (justamente onde o pecado exerce o
seu domínio mediante a morte,) passe a reinar a graça mediante a justificação

325
6, 13-14 O Poder da Obediência

divina e pela realidade criativa do perdão, esse perdão que Deus nos concede
“não obstante” [o que somos] e pelo qual ele se revela a nós, aceita-nos e nos
toma para si, a fim de que o nosso corpo mortal, em toda sua dubiedade, sua
desvalia, glorifique a Deus, seja um vaso de honra e arma da retidão divina.
Como seria isto possível, senão tornando possível o que é impossível?
Quem, que não tenha vindo da morte para vida, poderia sequer perceber
essa exigência?
Pois é justamente disto que se trata: porque [ninguém pode humana-
mente compreender como este corpo mortal e sem valor pode ser transformado
em vaso de honra e que] a graça irrompe através da carapaça do misticismo e da
moral e o seu indicativo [a realidade da sua presença] impõe-se ao ser humano
como imperativo, como sendo a condição SINE QUA NON para que o impos-
sível se torne possível. (6, 19).
“O pecado não terá domínio sobre vós, pois não estais debaixo da lei, e
sim da graça”.
A graça é o poder da obediência porque ela é o poder que vem da ressur-
reição; é por força da graça que nós nos reconhecemos como o “sujeito” do
FUTURUM RESSURRECTIONIS. A graça é a força pela qual ousamos reco-
nhecer o nosso “ser” como sendo o “ser” do “homem novo”.
É pelo poder da graça que conseguimos inverter o curso de nossa exis-
tência, tirando-a da vida para a morte e dela para a nova vida.
Quem recebeu a graça está à disposição de Deus e os seus membros
estão prontos a cumprir a vontade divina.
A pessoa não deve ser considerada como religiosa, mas como quem rece-
beu a graça de Deus. Portanto, não pode ser considerada em termos da lei, (sob a
qual provavelmente está), nem pela experiência divina que acaso tenha “experi-
mentado”, de alguma forma, em seu entendimento (ou em sua convicção religio-
sa nem pelo seu comportamento que pode mostrar sinais do “invisível”, (impres-
sões deixadas, preservadas, testemunhando um encontro com a graça).
Não se pode, nem mesmo, considerar ou cogitar, se essa pessoa (que rece-
beu a graça) habita ou não às margens do canal por onde a água viva pode fluir.
O poder da obediência que sobrepuja o pecado, não está [em qualquer
das mais variadas possibilidades humanas], nem resulta de decisão, ou de incli-
nação, de comoção (por mais sublime que fosse); não resulta de entusiasmo,
nem mesmo de transformação.
É bem provável que a pessoa que recebeu a graça tenha tido alguma (ou
algumas) ou, ainda, um pouco de todas essas experiências. Ela terá uma reli-
gião e pertencerá, até mesmo, ao rol de alguma igreja; ela crerá “nisto” e “na-
quilo”; terá também vida de oração e comportamento ético-religioso, corres-

326
O Poder da Obediência 6, 14

pondente; por sentimento e por esperança, com luta e sofrimento, ganhando e


perdendo ela terá, algures e de alguma forma, o seu lugar no imenso pandemônio
da religiosidade humana, e o seu tipo característico será, certamente, um dos
muitos que a história e a psicologia das religiões catalogam (6, 17!).
Todas essas experiências e características [visíveis da vida cristã] sendo
sinais e testemunhas [da graça de Deus] podem não ser, uma delas sequer,
produto do “poder da obediência” o qual, em esperança, (“o pecado não terá
domínio sobre vós”) pode levar a quem tiver recebido a graça, a dizer peremp-
tório “NÃO” ao pecado e “SIM” a Deus.
Este “poder da obediência” não é típico [ou esteriotipado] mas é origi-
nal [genuíno e livre em sua manifestação]: não é religioso, mas divino; não é
lei, mas é graça.
Se este poder da obediência fosse identificável como piedade, como
uma determinada conduta na vida, ou com quaisquer outras qualidades ou virtu-
des materiais, visíveis, [perceptíveis ao mundo] não teria, evidentemente, a força
de um imperativo: (“Não vos apresenteis ao pecado, mas apresentai-vos a
Deus”!). Como haveria o pecado de deixar de reinar em sua própria seara?
Como não imperaria o pecado no campo das possibilidades humanas, no qual
estão, logicamente, incluídas as altas — as mais altas experiências da alma, em
todas as suas dimensões, tanto demoníacas como religiosas? E como haveria
de um ser humano, [exposto a esta materialidade, envolvido por ela, agindo por
intermédio dela e sob a sua influência] colocar-se a disposição de Deus, e “querer
o que Deus quer”? Como poderia, aquilo que é finito (e também a religião,
mesmo em sua mais alta expressão [está incluída na finitude do mundo material])
conter em si e abranger o que é infinito? “FINITUM NON CAPAX INFINITI”!
O homem religioso, também, sente a luta entre os ditames de sua vida
espiritual e a fixação pecaminosa das demais virtudes e características [ou pai-
xões] de sua existência cotidiana; todavia, o que ocorre [quando se trata sim-
plesmente de religião] é que a luta se trava entre “possibilidades humanas”.
Não se pode, pois, neste caso e a bem da verdade, falar em “vitória da graça”
pois as forças que se combatem são, na melhor das hipóteses, iguais entre si;
[são ambas de origem material e, não raro, a “vontade religiosa” é a de menor
presença]. Nesta disputa [entre os ditames da “consciência religiosa” e os inte-
resses das “fixações pecaminosas”] não existe o objetivo profundo de mudar o
curso de uma existência. [Não se procura tirar o homem da senda do pecado, da
trilha que ele segue desde o dia da primeira queda, quando, voltando as costas
a Deus, ele deixou a vida eterna que recebeu, para caminhar em direção à mor-
te; não se objetiva, com seriedade, fazer o homem volver e caminhar no sentido
oposto que vai da morte (em Adão), para a nova vida, pela redenção em Cristo].

327
6, 14 O Poder da Obediência

Não se tem em mira fazer a conversão do sentido “vida-morte” para o sentido


“morte-vida”; [antes, o que normalmente se almeja é “ganhar uma alma” para
a sua grei; para a sua religião; para o seu modo de ver]. Se os motivos do
homem forem de ordem religiosa, ele não se põe a disposição de Deus [mas à
disposição de sua igreja] e a realidade divina já não é afirmada categoricamen-
te, decisivamente, de maneira crítica [isto é, eliminando toda e qualquer reali-
dade humana]. [Esta forma de proclamar o evangelho é lassa, frouxa, e] ao lado
da “paixão religiosa” — e em sua contraposição — alinham-se as múltiplas
paixões humanas, — intelectuais, [sociais, morais, cívicas, todas que possamos
imaginar, até mesmo as] sexuais. Nesta luta, a presença real da vontade de
Deus não é tão certa nem tão firme, quanto a disposição para o líbido! Antes
pelo contrário a presença da vontade divina é altamente duvidosa e, por isso, é
pouco provável que nela se registre a vitória da graça sobre o pecado.
Na disputa [entre conceitos de origem humana — religião e paixões]
não se transpõe, basicamente, o limite da vitalidade humana [do dinamismo da
vida material] e, por isso, também não se alcança, fundamentalmente, a área da
vida que vem de Deus; portanto, não se pode afirmar seriamente, que nesta
disputa esteja presente o “poder da obediência” que dá forças para dizer “NÃO”
ao pecado e “SIM” a Deus, antes, a abundância do pecado, (justamente no mais
lindo pináculo das atividades humanas — a Religião — (5, 20)) produz a ira de
Deus. (4, 15).
Vós, “porém, não estais debaixo da lei” mas além desta última e maior
possibilidade humana, onde somente o perdão entra em consideração (4, 15 e
5, 13): “Vós estais sob a graça”.
Seria segundo “a fórmula de um otimismo ético, ideal”? (Lietzmann). É
justamente isto que a graça não é! Graça é império, é o poder real de Deus.
Graça é estar existencialmente a disposição de Deus; é a verdadeira liberdade
de ação da vontade de Deus, na criatura humana. A graça está além, tanto do
otimismo como do pessimismo e é assim que ela se expressa como o “poder da
obediência” pois ela é a expressão da existência do ser humano na área, no
ambiente, no mundo, onde a obediência é inevitável, indiscutível e irresistível.
A graça é o “poder da obediência” porque ela é o poder da ressurreição;
ela é também o poder da morte e o poder que tira o ser humano da morte para a
vida. A graça é o poder da criatura que se reencontra em Deus, quando se achou
perdida nele. [O centro] é Deus, e Deus somente.
[Estar sob a graça “segundo a fórmula” (ou o preceito) “de um otimismo
ético”, parece insinuar a existência de um raciocínio “desiderativo” segundo o
qual a criatura se imaginasse além de certas contingências menos amenas; qui-
çá, fora do alcance das asperezas e limitações normais à nossa vida cotidiana.

328
O Poder da Obediência 6, 15

Diz o A. que não é assim. Estar sob a graça divina não significa haver ultrapas-
sado a luta terrena e estar livre de aflições e também não significa que não nos
seja lícito esperar por consolo na hora do sofrimento: portanto, nem é otimismo
nem pessimismo. Estar sob a graça divina é gozar desta graça aqui, no mundo
terreno, onde a criatura não tem outra alternativa a não ser a de obedecer a
alguém: ao mundo ou a Deus. É nesta alternativa crítica que a criatura renascida
para Deus, em Cristo Jesus, encontra na graça divina o poder para obedecer a
Deus].

Vs. 15 e 16 E o que acontece pois?


“Pequemos porque não estamos debaixo da lei, e sim da graça”?-Im-
possível! Não sabeis que se vos ofereceis como servos, para obedecer; sois
daquele a quem vos ofereceis e tendes que obedecer-lhe, seja (ele) o peca-
do, para a morte, ou Deus, para a justificação?

“Pequemos, porque não estamos debaixo da lei, e sim da graça!”?


[A tradução de Almeida escreve: “Haveremos de pecar, porque não
estamos debaixo da lei, mas da graça?”].
Seria a graça, de alguma forma, a liberdade para pecar?
Poderia acaso acontecer que o homem — convencendo-se da verdade de
que a vida da criatura, em Deus, não é materialmente possível, nem será visível
[neste mundo] e, consciente de que a religião [em si mesma], não pode alcançar
a vitória sobre o pecado — se resignasse e até, com um leve sorriso, consentisse
que sua vida, neste mundo, seguisse o curso determinado pelo pecado?
[Ou então], será que gozar da graça de Deus traz tranqüilidade com
respeito às paixões do corpo mortal e às violências que reinam no mundo não
redimido?
Haverá, acaso, a possibilidade de o ser humano procurar fazer a paz
com o mundo (e suas paixões), ou estabelecer um armistício com ele, talvez
mediante a consideração de que [a constituição deste corpo terreno, com seus
reclamos] (corpo que, de alguma forma, também foi criado por Deus), tenha
sido da vontade de Deus e permitida por ele, mesmo porque a redenção não
seria uma realidade imediata que ocorresse aqui e agora?
Dar-se-ia o caso de ser a pessoa que recebeu a graça, justamente aque-
la que, — em contraposição à desesperada “criatura da lei”, que exasperada,
aflita, se consome na luta contra o pecado — escolha para si, como a posição
mais sábia entre Deus e o mundo, entre o “além” e o “aquém”, entre a criatura
redimida e a condenada, a pacificadora tranqüilidade da burguesia mundana,

329
6, 15-16 O Poder da Obediência

o ponderado ceticismo que tanto agrada ao humanismo, ou a posição inter-


mediária que, consternada ou alegremente, o misticismo adota?
Dar-se-ia o caso de a nossa negação genérica ao pecado estar acompa-
nhada de uma afirmação igualmente geral, de sorte que esta esvazie aquela,
dando-lhe mero aspecto de “reverso da medalha”, de “outra face” da questão,
com ambos os lados coexistindo pacificamente?
As dúvidas e as interrogações levantadas seriam procedentes se a graça
divina fosse apenas uma outra expressão da lei; ainda que fosse a possibilidade
mais extremada, a mais íngreme, a possibilidade antinômica, mística, quietista;
a possibilidade da passividade e da “expectativa”, isto é, uma possibilidade
mais negativa em relação às demais, mais positivas.
Se a graça divina for uma possibilidade humana então, evidentemente,
será normal que certas outras possibilidades humanas compitam e concorram
livremente com ela, e a “graça”, nas mais variadas maneiras, passará a signifi-
car “liberdade para pecar”.
Quem, diferentemente de Paulo e dos reformadores (do século XVI),
quiser ver a graça divina exclusivamente do ponto de vista da lei, quiser ver
Deus unicamente sob o enfoque da religião e da moral humana, do que os
homens fazem ou não fazem, quem não puder encarar com serenidade o “im-
possível” que se torna possível por obra divina, quem não puder cultivar a idéia
da eternidade, esse sempre há de confundir a graça divina com a possibilidade
extrema dos homens, [a religião] cujo poder de negação é apenas relativo e, ao
fazer esta confusão, aceitando-a e nela caindo entusiasticamente, ou mesmo a
rejeitando e investindo contra ela numa polêmica barata, criará em torno de si
um mar de agitação.
Ora, se entendermos que gozando da graça divina nada devemos nem
podemos fazer porque Deus fará tudo, então evidentemente só nos resta esco-
lher uma de três alternativas.
Ou, com os mal-disfarçados aplausos do homem deste século, nada fa-
zemos (e assim acabamos de entronizar de vez a criatura do corpo do Pecado).
Ou então, rejeitando essa estagnação, adotamos a feroz seriedade do
moralista religioso e atacamos o pecado cada vez mais, “fazendo tudo o que for
de nosso alcance”, e terminamos por fazer “superabundar o pecado” (5, 20).
Ou ainda, (e esta terceira alternativa será provavelmente a mais comum),
ficamos entre a aceitação e a rejeição; entre o “quietismo” — [a inatividade,] e o
ativismo, [a operosidade] e desta maneira, com meio conhecimento e
semiconsciência oscilamos de um lado para outro, e o pecado festeja o seu triun-
fo duplamente, — tanto quando estivermos deste como daquele lado e, também,
em ambas as atitudes; tanto vence o pecado quando nos inflamamos no ardor

330
O Poder da Obediência 6, 16

religioso, como quando permanecemos indiferentes ou apáticos; nas duas atitu-


des ele domina!
Contudo, não é a isto que chamamos “graça divina”, O que se tira ou se
nega nessas alternativas [o que resulta se considerarmos a graça divina como
possibilidade ou dom que a criatura humana possa alcançar por seu próprio
empenho], não é, em hipótese alguma, o que proclamamos [isto é, o que Paulo
proclama] como sendo a graça divina. “De modo nenhum”!
“Não sabeis que se vos ofereceis como servos, para obedecer, sois ser-
vos daquele a quem vos ofereceis e tendes que obedecer-lhe?”
A “Graça Divina” não significa que o ser humano possa ou deva fazer
alguma coisa, nem tampouco que ele nada deva ou possa fazer.
Graça divina, significa que Deus faz alguma coisa, porém não tudo.
Deus faz algo especifico, não de maneira geral, nem erraticamente, ora aqui ora
acolá, mas faz algo para o indivíduo: Deus o perdoa! Graça é autoconscientização
da nova criatura. A graça divina é a resposta à interrogação de nossa existência.
Somente depois de estarmos devidamente compenetrados e convenci-
dos do que seja a graça; se estivermos imunes a qualquer forma de panteísmo,
pela recordação viva do significado crítico [decisivo] da cruz de Cristo; se,
efetivamente, não nos confundirmos com indagações a respeito do que pode-
mos ou devemos fazer, somente então poderemos falar objetivamente sobre a
graça e o pecado.
Graça divina é o reino, a soberania, o poder e o domínio de Deus sobre
o ser humano. Graça é a refutação fundamental da determinação do pecado, ao
qual estão sujeitas todas as nossas possibilidades humanas, da primeira à última.
Ora, sendo a graça a refutação de todas as possibilidades humanas, ela
está, também, além de todas elas e traz nova certeza à criatura, impondo à sua
vida novo sentido, o que desencadeia a crise [do confronto do homem — segun-
do sua postura em Adão, — e do homem redimido em Cristo]. Esta crise gera a
perplexidade [e ameaça a existência da criatura no contexto deste mundo] todavia,
ela tem a sua origem em Deus e, por isso, ela é, também, promessa e esperança.
Na sua qualidade de poder e soberania de Deus sobre o ser humano, a
graça jamais e nenhures pode ser idêntica com o que o homem faz ou deixa de
fazer; porém, ela é a (invisível) verdade da criatura e a (impossível) possibilida-
de real de seu “fazer” e “não fazer”; ela é o seu verdadeiro “ser” (que se define
pelo que ele não é).
Ter a graça divina, é ter em nós mesmos a refutação divina, não como algo
que tivéssemos em nós, porém, como o que o próprio Deus tem em nós, a saber:
a refutação ao homem do pecado; ora, como não conhecemos nenhuma outra
criatura de Deus, [senão nós mesmos], essa refutação se dirige contra nós.

331
6, 16 O Poder da Obediência

Ter a graça divina não significa, por assim dizer, “ser isto” ou “não ser
aquilo” (estar passivamente parado, ou agir ativamente), fazer isto ou deixar de
fazer aquilo. Ter a graça divina significa submeter à refutação de Deus, inteira-
mente, existencialmente, tudo o que somos ou não somos; tudo o que fazemos
ou deixamos de fazer. Ter a graça divina significa “prestar obediência” a essa
refutação, e nos “oferecermos” para seu “servo”.
Ter a graça divina dessa maneira, está além de todas nossas possibilidades
humanas e só acontece como a impossível possibilidade de Deus. É a liberdade
que Deus toma, em nós; ele toma essa liberdade, porém a toma em nós; somos
nós que recebemos a graça. O nosso “ego”, atacado pela graça, não pode esqui-
var-se deste ataque mas, também, não pode permanecer como espectador, quiçá
para ver como o ataque terminará; antes, ele precisa também atacar, à medida
que a criatura terrena morre, — (é crucificada — 6, 6) — para, ressurgindo,
descobrir a sua unidade com aquele que apresenta ao mundo a refutação divina.
[Quando recebemos a graça de Deus, abrem-se-nos os olhos, e passamos
a ver no pecado, o império, o reino, que não pode subsistir; passamos pois a
lutar contra esse reino (e contra nós mesmos) sabendo que, pela própria sobera-
nia do pecado neste mundo, teremos de morrer para pagar-lhe o tributo devido;
todavia, não morreremos em pecado, porém para o pecado, em Jesus Cristo, e
ressurgiremos dessa morte para contemplar o nosso Redentor, “face a face”,
“de graça salvos”, descobrindo a nossa união indissolúvel com Cristo Jesus].
O teor da refutação divina está no fato de que não somos nós [cidadãos
do mundo dos homens] que nos apresentamos como sendo a “nova criatura”,
mas é o indivíduo criado e redimido por Deus, que se apresenta como a realida-
de de nossa nova existência e nosso modo de ser e, mediante essa nova realida-
de, a presente existência [se desvanece, desaparece no passado], é mentirosa.
A nossa presente existência é atacada [pelo nosso “ALTER EGO”] em
Deus. É por isto que [o Apóstolo diz], “sois servos dele”, Sois seus servos,
existencialmente, e não podereis ser outra coisa; sois servos (escravos) e existis
para obedecer; sois servos de Deus, porquanto existis para obedecer ao “NÃO”
divino que se levanta contra o pecado e contra vós [naquilo que sois idênticos
ao homem da queda]. Já não tendes mais em vossa consciência, condições para
dizer “SIM” ao pecado [a menos que queirais servir ao pecado pois, de qual-
quer maneira], “sois servos”: ou sereis servos do pecado, para a morte ou, da
obediência, para a justificação.
Examinemos, agora, como tanto para o pecado quanto para a graça, se
trata de uma questão existencial em que todavia, uma exclui a outra e ambas
excluem a possibilidade de uma posição intermediária. [Tanto o pecado quanto
a graça são absolutamente dominadores e exclusivistas]. Verificaremos que o

332
O Poder da Obediência 6, 16

pecado” e a “graça” só estão lado a lado, no instante invisível [no momento


crítico da transição] quando, atacados pela nossa própria existência em Deus,
[nos rendemos] e passamos da mão de um senhor para a do outro.
Tanto o pecado quanto a graça fixam e determinam a totalidade das
características da existência humana, abrangendo as mais extremas, impondo
“servidão” no sentido mais rigoroso da palavra.
É por isto que eles se excluem mutuamente [“ninguém pode servir a
dois senhores” (Luc. 16, 13)]; é por isto que [segundo o conceito do mundo],
estão em oposição; é por isto que, quem houver recebido a graça, já não pode
mais sentir-se sossegado na companhia do pecado, não pode tolerá-lo nem pode
admiti-lo como possível. Nem tampouco, pode o pecador “jogar” com a graça
como se ela fosse possibilidade sua.
Ambos, [pecado e graça] são partidos [são facções radicais] legítimos,
genuínos e exclusivos de tal forma que o pecador não tem olhos para quem
recebeu a graça e este absolutamente, de forma alguma, os tem para o pecador
em quem só encontrará o que é impossível [o que é absurdo].
Todavia, a graça é a única possibilidade que o pecador tem [para alcan-
çar a verdadeira libertação. (João 8, 32-36)].
Também o pecado tem o seu “poder de obediência”. Todavia, esse poder
não é equivalente ao “poder da obediência” que há na graça; nem as duas forças
se equilibram. Se essas duas forças fossem idênticas, então quem estivesse sob
o poder do pecado [e quem não estaria?] repudiaria a graça e jamais a aceitaria,
assim como quem está sob o poder da graça nem sequer admite a possibilidade
do pecado.
Fosse o poder da obediência ao pecado maior ou igual ao poder da obe-
diência na graça, já estaríamos irremediavelmente destinados, comprometidos,
vendidos, [com nosso destino selado na condenação], todavia, o dom gratuito
da graça é muito maior que a ofensa. (5, 15-17).
Há absoluta impossibilidade de intercâmbio e de identidade entre a
vassalagem de lá e a de cá; há absoluta incompatibilidade entre o homem “se-
gundo Adão” e o homem “segundo Cristo”.
É de se notar que toda a sanhuda severidade com que a lei, a religião e a
moral lançam o homem contra o pecado, não é suficiente para mostrar-lhe a
incompatibilidade entre o pecado e a graça; não consegue romper os liames de
suas aparentes garantias mútuas — [a graça tolerando o pecado, e o pecado
dando aso à graça] — nem desperta [na consciência humana] o desassossego
que a presença do pecado gera nos corações que estão sob a graça divina. Pare-
ce mesmo que o impacto da lei, da religião e da moral, age como elemento
conciliador entre Deus e o homem, tranqüilizando o pecador, apagando a dife-

333
6, 16 O Poder da Obediência

rença entre o eterno e divino e o que é efêmero e humano, aproximando o


“além” do “aquém”. E isto o que parece estar por trás da pergunta que o “espec-
tador” formula em 6, 15. Todavia, esse apaziguamento, essa contemporização
[que as iniciativas humanas, mesmo as mais sublimes e nobres proporcionam à
humanidade], não consegue suavizar o problema da existência humana nem
aliviar o confronto crítico da criatura deste mundo ante a revelação divina que
está vivamente presente para quem “não está debaixo da lei mas sob a graça” e
que, de maneira alguma espera alcançar a vitória sobre o pecado por méritos e
recursos humanos, mas espera em Deus.
Não temos liberdade para pecar porque “não estamos debaixo da lei,
porém sob a graça” e por isso não temos senão dois caminhos a escolher, sem
atalhos e sem desvios.
[Parece-me bastante clara a posição do A. sobre o “poder do pecado”
que, de certa forma, é paralelo ao “poder da obediência” sem, todavia, ter a
mesma força e o mesmo alcance; antes quem está sob o poder da obediência a
Deus, está livre do “poder do pecado” e quem está preso pela sua obediência ao
pecado, pode romper os grilhões por força do poder que vem da graça.
Já não parece ser tão pacífica a posição com respeito aos ataques que a lei,
a religião e a moral lançam ao pecado. As reservas que o A. tem (ou faz) a toda
forma de legalização, moralização e espiritualização (ou santificação) do indiví-
duo tomam, por vezes, o aspecto de obsessão. Todavia, parece-me que a preocu-
pação de Barth com esta perspectiva reside no fato de justamente nas formas
mais sublimes da manifestação humana, na lei, na moral e, acima de todas na
religião — estar o grande risco da divinização do homem ou na humanização de
Deus. É na obediência à lei, na adoção severa de rijos princípios de moral, e no
sagrado fervor religioso, que a humanidade tem cometido os maiores desatinos,
notadamente sempre quando pretendeu falar em nome de Deus.
Essa “sanhuda severidade” a que o A. se refere tem um único aspecto
perante Deus e que provoca a sua ira: a retenção da verdade pela injustiça!
Perante o mundo, porém, ela pode ter como conseqüência duas posições opos-
tas: uma, é pacífica, benigna, tolerante; é a da conveniência social: seria espécie
de trégua entre a virtude e o pecado; é a cessação da luta em defesa de princí-
pios e convicções. É a irmanação de todos na graça e no pecado; na idolatria e
no evangelho de Cristo; no cristianismo, no judaísmo, no protestantismo, no
catolicismo, no maometanismo e no “romântico” panteísmo oriental, nas ex-
pressões de prática e filosofia hindu, ou ainda nas folclóricas expressões de
culto africanas e afro-brasileiras. Todas elas são consideradas como válidas,
como espirituais, espiritualistas e até espíritas. Seriam manifestações de Deus,
e são, na realidade, todas comparáveis entre si, porque são apenas elucubrações

334
O Poder da Obediência 6, 16

múltiplas originárias do próprio homem; finitas, efêmeras, e pecaminosas, por-


que não tributam honra e glória a Deus, antes endeusam as imagens, os animais
ou as coisas, os astros (na astrologia), os espíritos (no espiritismo, na macum-
ba, etc.) e a si próprios, como os detentores da verdade.
Esta última qualidade é que tende a levar-nos, humanamente, ao outro
extremo desta “sanhuda verdade” e, agora ela já não é apenas sanhudamente
severa, mas sanhudamente feroz. Ela sai do extremo da tolerância comum e
oscila para o lado da intolerância ou melhor: ao deixar a crista original da
materialização de Deus, ela tomou a vertente oposta à lassidão e buscou a dure-
za da intransigência, chamando a si o Juízo que a Deus pertence. E o tipo de
que a história do mundo está cheia. Guerras de religião, inquisição, persegui-
ção religiosa, “fundamentalismo” moderno, e coisas semelhantes, inclusive
religiões de Estado e supostas teocracias.
Parece-me que é procedente a posição do A. se fizermos da natural re-
serva às posições advindas das possibilidades humanas, outro pretexto para
falar em nome de Deus!]

Vs. 17-19 Mas graças a Deus porque, outrora escravos do pecado, viestes a
obedecer de coração à forma de doutrina a que fostes entre que e, unia vez
libertados do pecado, fostes feitos servos da justiça.
Falo como homem, com vistas à fraqueza da vossa carne! Pois, assim
como pusestes os vossos membros quais instrumentos à disposição da impu-
reza e da iniqüidade, para criar a iniqüidade, ponde agora os vossos mem-
bros quais instrumentos da justiça, à sua disposição para criar a santificação.

“Graças a Deus porque, outrora escravos do pecado, viestes a obedecer


de coração”.
O Apóstolo apresenta o seu apelo “de última instância” com a devida
consideração às possibilidades humanas. E por is só que dá “graças a Deus”
[pois os cristãos de Roma já não são mais escravos do pecado] mas dá também
“graças a Deus” porque esses cristãos estão livres das possibilidades humanas
[pois estão sob a graça de Deus], e gozam do “poder da obediência!”. É por isto
que, agora, pode e deve ser feita a ofensiva decisiva; agora pode-se ousar dar o
impulso para frente que é a arrancada e a invasão que transforma a comunica-
ção objetiva em pregação, em carisma, no dom e no talento de cada cristão para
desempenhar sua missão dentro da igreja; é a arrancada que se transforma em
proclamação.
No caso, é a empresa de se dirigir aos fieis de Roma, como àquela gente
que recebeu a graça, conclamando-os a vencer o pecado por essa graça debaixo

335
6, 17 O Poder da Obediência

da qual estão e com a qual receberam, também, o “poder da obediência”. Por


isso tudo, o Apóstolo pode exigir deles que, pelas suas obras, dêem testemunho
do conhecimento da graça divina.
Dando “Graças a Deus”! É preciso convencer os ouvintes da mensa-
gem, de que o caso deles já não é o da servidão no pecado, mas o de servos de
Deus; é necessário mostrar-lhes que em suas vidas o pecado já não tem lugar,
pois foi excluído, suspenso, liquidado; é preciso convencê-los de que para eles
a submissão visível (e por demais visível), ao pecado, é coisa do passado; que
o seu estado presente e futuro está na invisível obediência à graça. “Éreis ser-
vos do pecado, mas vos tomastes obedientes”, e isto, “de coração”!
Portanto, e sabidamente, nesta abordagem direta se trata de um empre-
endimento que não poderia ser tentado sem ser na forma de uma destemida
prolepse, refutando antecipadamente todas as objeções que se lhe quisessem
antepor, conhecendo os seus corações como Deus os conhece (2, 16); chaman-
do-os ao arrependimento e anunciando-lhes o perdão, pela Palavra de Deus.
Eles são instados para se considerarem vivendo sob a graça divina, como per-
tencentes a Deus, incluídos no poder da ressurreição e que, com os olhos fitos
no crucificado, creiam no poder da obediência, que receberam.
[O A. parece, na sua exposição original, particularmente empenhado em
demonstrar que, sem acolher a graça de Deus em seu coração, sem aceitá-la e
obedecê-la, o pecador não tem a força necessária — o “poder da obediência”
— para seguir a Cristo, portanto Barth escreve: “Anunciando o perdão como se
fosse a palavra de Deus acerca deles”. Barth expõe mais adiante o que, talvez,
pudéssemos chamar um problema de semântica. Entendo que o A. quer dizer
que não é o homem que busca a Deus, mas é Deus que chama para si a criatura
pródiga. A tradução direta desse condicional com o qual Barth pretende carac-
terizar o que ele chama de “prolepse” expositiva, poderia, em nossa língua, dar
a impressão da presença de um artifício um tanto semelhante a uma restrição
mental; daí, havermos escrito, “anunciando-lhes o perdão pela Palavra de Deus”,
seguindo o mesmo critério na interpretação de todo o trecho. Aliás, este critério
é idêntico ao da tradução inglesa.]
É preciso ousar empreender semelhante pregação pois, como se poderia
falar da graça do Reino de Deus sem que se dissesse, justamente a quem a
pregação se dirige, quem é o objeto dessa graça? Sem que se lhe anunciasse
que ele é súdito desse reino? Como se poderia testificar a graça de Deus para
com todos os homens, senão dizendo a cada um em particular que “APESAR
DE” todas as fraquezas que tem [corno pecador que é], Deus o recebe?
Como haveria alguém de crer que a graça divina é a vitória sobre o
pecado, por força da obediência invisível, se a graça, antecedendo a fé, não

336
O Poder da Obediência 6, 17

transpuser firmemente a escravidão do indivíduo, (de cada um em particular!),


para que cada um nela acredite de antemão e dentro de si mesmo?
[Todavia, essa antecipação da graça divina — e que está perenemente e
em toda parte à disposição de todas as criaturas, pela própria predestinação
segundo o eterno decreto de Deus, não obriga ninguém a aceitar, nem condiciona
a Criatura para isso; a opção é de plena liberdade da criatura que pode decidir,
e de fato decide segundo o seu livre arbítrio, pela aceitação ou pela rejeição da
salvação em Cristo Jesus. A pregação, o apelo, há de ser feito como “se fosse a
palavra de Deus” dirigida ao pecador, porque, de fato, essa palavra já foi dada
uma vez por todas e pode ser resumida assim... “para que todo o que nele crer
não pereça mas tenha a vida eterna” (João 3, 16)].
A graça age, dá testemunho de si, confirma-se como graça, torna-se
efetiva e eficaz, estabelecendo o seu recebimento “de coração”; (“perdoa-nos
nossas dívidas como também nós perdoamos nossos devedores.”). Segundo a
tradução inglesa, “a graça pressupõe que a criatura esteja sob a graça “de cora-
ção”]. “Pressupõe” não para patentear a existência da graça, mas para crer nela.
E nisto que o “APÓSTOLO” se distingue do homem religioso, pois crê que
possam existir pessoas que tenham recebido a graça sem procurar por sinais
que o comprovem.
...“A forma de doutrina que recebestes”.
[O A. diz, textualmente: “tendo por base a impressão do ensinamento
que recebestes”].
Por que haveria de ser somente essa gente [— o grupo cristão de Roma
— que se tornaria obediente “de coração” tendo por base a doutrina recebida]?
Os demais, não estão excluídos e, numa prolepse análoga à anterior, o Apóstolo
aborda agora a “judeus” e “gentios”.
Nem o missionário, nem o próprio missivista, pode fazer mais do que
“dar graças a Deus” (ao Deus desconhecido!) que veio ao encontro dos homens
e os achou, antes que eles o procurassem, e do qual eles, que já estão converti-
dos, precisam apenas ser lembrados.
E por que não haveria de a experiência visível da graça divina entre os
“cristãos” ser estímulo e razão para, dando por ela graças a Deus, falar justa-
mente a eles, como beneficiários dessa graça?
A “impressão do ensinamento que recebestes” é um “sinal “(semelhan-
te ao do batismo, conforme 6, 3) na imensa planície onde o “cristianismo” toma
uma posição humanamente visível ao lado de outras religiões, e não sem múl-
tiplas ligações com elas, em vivência e convivência, quer seja como instituição,
ou como dogma e culto, e como a expressão de pregações religiosas de diferen-
tes tipos.

337
6, 17-18 O Poder da Obediência

Entre esta diversidade de tipos estão o ensino Paulino e, possivelmente,


o “cristianismo” um pouco diferente do então praticado pelos crentes de Roma.
Essa eventual diferença [de formal é irrelevante e Paulo se serve dela
para indicação, sinal e testemunho daquilo que ele quer lembrar-lhes.
Ele não julga enganar-se quando se utiliza do que é típico, contingencial,
visível, para, com estas coisas, lembrar-lhes do que é primordial, invisível e
existencial; para recordar-lhes que Deus os achou; que eles têm o perdão; que
receberam a graça; para relembrar-lhes que são nova criatura em Cristo; para
trazer-lhes à lembrança o poder da ressurreição, que é o poder da obediência.
Subentende-se, é claro, que esta lembrança é apenas lembrança, por-
quanto a realidade da graça divina que aqui é lembrada, vem de Deus; portanto,
não é por mera coincidência que o texto começa dando graças a Deus (6, 17).
“Libertados do pecado, sois agora servos da justiça”.
Esta é a “graça” de que Paulo fala aos cristãos de Roma. Ela envolve um
rompimento, um desassossego, a impossibilidade de reajustamento. É o ataque
que o “homem novo”, a criatura redimida em Cristo, move ao “homem velho”,
ao homem segundo Adão.
Os cristãos de Roma haviam recebido a alforria da escravidão do peca-
do e passaram a ser escravos da justiça. O poder da ressurreição e o conheci-
mento de Deus os converteu, e fê-los inverter o sentido de sua trajetória. Foram
eles próprios que deram este passo; foi um ato personalíssimo; a conversão não
resultou de algum dispositivo mecânico mas aconteceu pelo poder da ressurrei-
ção; este passo decisivo que eles deram, esta conversão, é indubitável, irreversível
e irretratável.
[Nesta conversão se aninha a justificação, mediante a fé].
A retidão não é uma possibilidade de quem recebeu a graça, porém,
uma necessidade; ela não é uma decisão mutável, porém a decisão definitiva de
uma existência. Não se trata de estado de ânimo sujeito a diferentes gradações
de entusiasmo mas é decisão final e definitiva. A retidão não é qualidade recla-
mada pelo homem, antes é ela quem o reclama para si.
A liberdade do ser humano está sediada no beneplácito divino, e em
nenhum outro lugar, porém, ela é a liberdade [da ação] divina no [coração do]
homem e nenhuma outra.
Libertados em Deus, estais cativos nele! Este é o imperativo categórico
da graça divina. É isto o que significa pertencer existencialmente a Deus e é
nesta verdade que surge [momentaneamente] a duplicidade do “homem velho”
e do “homem novo”; porém, surge para ser suprimida imediatamente [pela so-
berania] da nova criatura. [Apoc. 1, 6].
Estais debaixo deste imperativo!

338
O Poder da Obediência 6, 18-19

“Falo como homem, considerando a fraqueza de vossa carne”. Digo


“estais” e “sois”; aqui, digo que estais livres; acolá que sois servos. Isto é falar
“como homem”! Sabemos que falando nesta forma dialética, inflexível, direta,
inevitavelmente dizemos algo que não podemos [não queremos e nem devemos]
dizer a respeito deste relacionamento existencial, porém invisível, do ser humano
[com Deus]. Sabemos que ao nos atrevermos a empregar tais expressões, damos
lugar a certa imprecisão que caracteriza a maneira de falar dos religiosos e ro-
mânticos, em cujos discursos o pecado e a graça, ou então a crença e a descrença,
aparecem como fatos materiais que o homem “tem” ou “não tem” e onde a pes-
soa tanto pode ser “isto” como “aquilo “ e, também, — “não ser nada”.
Sabemos que a volta da morte para a vida mediante o poder da ressurrei-
ção, não é negada a nenhuma criatura; sabemos que a nenhuma pessoa é recu-
sada a libertação do pecado, e a servidão na justiça. Sabemos que os nomes
daqueles a quem essa libertação e esta servidão tiverem que ser negadas, só
podem estar inscritos no livro da vida de onde serão, eventualmente riscados os
nomes dos que não “vencerem” [Apoc. 3, 5]).
Sabemos que onde e quando se trata da “graça divina” não subsistem as
questões de “ser” ou “não ser”, nem de “ter” ou “não ter”, desta ou daquela
pessoa, [não há faixas etárias, classes, categorias ou grupos que possam, em
razão dessas arregimentações, merecer ou desmerecer a bênção da graça] (como
por exemplo, as criancinhas, ou os socialistas, ou o povo alemão, ou a nação
russa ou Dostoievski! ou Kutter!).
Todavia, ousamos expressar-nos na maneira que o fazemos suportando
esta aparência de psicologismo romântico porque não existem outras palavras
[que não as humanas], para expressar a obra do perdão divino; é por isso que o
apresentamos por meio de analogia humana, pois o discurso objetivo sem a
devida atenção ao “ser” e ao “ter” da “fraqueza carnal” seria menos perceptí-
vel, menos claro ao entendimento humano, e obscureceria o sentido [da boa
nova] do perdão. Trata-se de afastar (de derrubar) a última muralha atrás da
qual o homem poderia abrigar-se para permanecer como espectador, opondo-
se ao revolucionamento de seu íntimo por Deus, [quiçá alegando que não conse-
gue compreender a mensagem]. Trata-se de destruir o último resquício da apa-
rência de que o ser humano pudesse entender Deus “objetivamente”, porque a
prova de que “vós” não conheceis nem podeis querer o pecado tem o seu ponto
chave no fato de que Deus vos perdoou.
Pensamos, portanto, que sabemos o que fazemos quando empregamos
um discurso assim direto (e que caracteriza inevitavelmente, e também perigosa-
mente, toda prédica!); sendo homens quebrantados, ousamos empregar lingua-
gem dura. Todavia, lembramos [aos nossos interlocutores e a nós mesmos]que,

339
6, 18-19 O Poder da Obediência

então, falamos “como homens”, por analogias; que aquilo que dizemos pela fé,
deve ser ouvido segundo a fé. Não pode deixar de estar presente, e bem vivo,
em nossa mente o fato de que a graça divina precisa ser proclamada e aceita
como graça, isto é, como o real fundamento invisível do homem, em Deus.
Esta advertência pode ser convenientemente apreciada pelo seguinte:
“Pois assim como oferecestes os vossos membros para instrumentos da impu-
reza e para o que é contrário à lei, fomentando o seu desrespeito, assim, agora,
oferecei os vossos membros para instrumentos da justiça, para criar a
santificação”.
Estais sob o império da graça!
Graça é a supressão do pecado que habita em vosso corpo; agora, os
membros do vosso corpo estão à disposição da graça e não do pecado. Agora é
a graça que determina o destino do homem mortal. É pela graça que Deus toma
partido a favor do homem, e não por causa do pecado.
Graça significa que Deus conta com a existência do ser humano em sua
totalidade, reivindicando-a para si.
Graça é o poder de Deus sobre o homem uno e indivisível; é a verdade
divina para o indivíduo em toda a extensão de seu ser e da sua existência, justa-
mente por ser, (e na medida que for), a sua crise radical.
A graça não pode aquietar-se, acalmar-se; não pode calar, nem transigir,
nem mesmo ante a parede cru que separa o invisível do visível, o infinito do
finito.
A graça não pode abandonar a presente vida visível, ao pecado, para
distanciar-se, para encastelar-se na vida do além, na vida da nova criatura,
justificada por Deus. Isto é exatamente o que a graça não faz, pois seria a ad-
missão do dualismo, da existência paralela e simultânea da graça e do pecado,
cuja supressão a graça não só assegura, mas efetiva.
A graça promove o desenvolvimento da vida material, o seu amadureci-
mento, e exige que ela se renda à retidão, a cujo serviço os seus membros
precisam permanecer, pois o conteúdo do “FUTURUM RESSURRECTIONIS”
da pessoa que recebeu a graça divina, consiste em que “aquilo que é mortal se
revista da imortalidade”.
A graça divina não seria graça se ela fosse simplesmente algo a ser con-
trastado com o conteúdo de nossa vida material, segundo a sua determinação
pelo pecado.
Não há promessa de um melhor porvir que possa conter o apelo ínti-
mo, o ataque, a crise a que está sujeita a nossa vida deste mundo, a vida de
“nossos membros”, a vida que vivemos temporalmente no reino da matéria e
dos homens, quando Deus nos manifesta a sua graça porque, então, a nossa

340
O Poder da Obediência 6, 19

vida terrena é posta em dúvida pela vida melhor do além; então esta nossa
vida material torna-se questionável quer seja pela evidente ausência de Deus,
quer seja pela insistência divina, pressionando, batendo à nossa porta, inva-
dindo o nosso coração.
[Todavia, se as alusões e referências a um mundo melhor não conse-
guem anestesiar o mais íntimo de nosso ser ante a manifestação da graça divi-
na], também não o consegue nenhum extremado fatalismo. Já não viveremos
nesta “terrível” existência, nem mais nos entregaremos a ela, pois estaremos
em posição radicalmente oposta. Esta oposição é de tal natureza que, na pró-
pria mundaneidade de nossa vida material, vemos a promessa divina e, no
deserdamento [que pela nossa oposição, o mundo nos impõe], encontramos [e
confirmamos] a nossa esperança [em Deus].
A manifestação da graça divina é o testemunho de que o “além” [a cri-
atura na sua nova vida, depois de redimida por Deus] se reporta ao “aquém” [à
nossa vida terrena], e que este “aquém” se relaciona com o “além”, não nos
sendo possível reconhecer ou discernir qualquer separação entre um e outro.
A graça, a invisível verdade, não pode senão estender suas mãos para,
na sua possibilidade que nos parece impossível, amparar esta criatura que em
seu comportamento, na expressão de sua vontade e em seus empreendimentos,
foi e será caracterizada pelo pecado até o final de seus dias [sobre a terra].
A graça [por seus efeitos em nossa vida] quer ser realmente vista, ouvi-
da, sentida; ela quer revelar-se e quer ser observada, pois a própria ressurreição
de Cristo de entre os mortos, é a revelação e a manifestação da invisível graça
divina (historicamente na periferia do imaterial, e imaterialmente na cercadura
do que é histórico) (6, 9). Portanto eu, [reconciliado com Deus], como nova
criatura, não sou SOMENTE aquele que não sou mas, TAMBÉM aquele que
não sou. (5,1 e 5,9 a 11).
[O A. usa aqui uma redação essencialmente dialética valendo-se dos
recursos que a composição tipográfica alemã permite, para influir na ênfase e
na entonação da frase o que, em parte talvez tenha sido alcançado mediante o
emprego de caracteres maiúsculos.
Entendo que o A. quer dizer que a criatura, reconciliada com Deus é,
concomitantemente, a “nova” e também a “velha” criatura. Ela apenas é “aque-
le que ela não é”, na esperança e pela fé, mas não está isolada do mundo; ela
não é EXCLUSIVAMENTE “aquele” porém é TAMBÉM “aquele” porquanto
continua presa ao “corpo desta morte” embora tenha morrido para o pecado,
em Cristo Jesus].
Graça divina quer dizer: “Seja feita a tua vontade, na terra como nos
céus”! [Esta posição da criatura, desejando que a vontade de Deus seja feita na

341
6, 19 O Poder da Obediência

terra conforme o é nos céus] é o relacionamento existencial do homem [novo]


com Deus e [a indicação da presença dessa graça] é o “modo indicativo” que
leva a criatura a confrontar-se com o imperativo divino: “Desejai pois, agora, o
que Deus quer, da mesma maneira como, até aqui, vos opusestes ao seu querer”.
Servi-o agora, na retidão, com a mesma ostentação, com o mesmo de-
nodo, com os mesmos “membros” com que até agora servistes à impureza e ao
desrespeito à lei!
Promovei, agora, a santificação com os mesmos meios e as mesmas
ferramentas com as quais, até aqui, promovestes a desobediência à lei! Louvai,
agora, a Deus, em vosso corpo, nas mesmas circunstâncias, funções e conjun-
turas nas quais até agora, o envergonhastes!
Um novo “ser”, “ter” e “fazer” é, agora, demandado de vós. De vós
mesmos, como se a santificação fosse uma possibilidade humana! Como se o
pecado não habitasse no corpo mortal ao qual estais inseparavelmente ligados e
com o qual estais indistintamente unificados; portanto, como se o temporal não
fosse temporal, nem o material fosse material! Como seja não estivésseis com
um pé, ainda, na sepultura; como se o corporal já houvesse sido superado pela
vida [espiritual] e a morte sido tragada pela vitória! Como se fôsseis seres aos
quais tais exigências absolutas pudessem ser impostas!
Todavia, a possibilidade do cumprimento dessas exigências não pode
ser contestada. Não podemos impedir [ou negar] que o Reino de Deus venha a
nós, neste mundo; que a nossa vida santificada seja manifesta e visível entre os
homens, e que o infinito toque o finito. Esta possibilidade ampla, não só não
pode ser contestada como, sob o ponto de vista da graça divina, ela precisa ser
asseverada, afirmada, pois ela é a última possibilidade [para o ser humano], e a
sua realização deve ser aguardada com grande anseio, incontida impaciência e
inexcedível zelo.
A graça divina não seria graça se pudéssemos suportar a vida [ou admi-
tir a nossa existência] sem satisfazer a plenitude das exigências que a graça
apresenta; se tivéssemos suficiente capacidade de moderação para nos conten-
tarmos com menos que a plenitude das possibilidades que a graça proporciona,
e pudéssemos viver numa espécie de compensação entre as possibilidades que
a graça divina oferece e outras quaisquer [morais, intelectuais e psíquicas], e
então pudéssemos libertar-nos da inquietude, do desassossego natural e ineren-
te à alma firmada em Cristo (em Deus.).
A graça divina não seria graça se [depois de a recebermos], não nos
esforçássemos diligentemente para santificar as nossas vidas, a fim de prepará-
las e abri-las para receber a justiça de Deus; se não porfiássemos por colocar
nossas vidas em paralelo com a vontade divina, tornando esse paralelismo visível

342
O Poder da Obediência 6, 19

aos olhos do mundo mediante o domínio sobre nossos membros e a disciplina


de nosso corpo mortal.
O “FUTURUM RESSURRECTIONIS” atinge a criatura que recebeu a
graça, na totalidade de seu ser. Ele atinge o “homem novo”, a parte celestial (“a
alma”) e também o “homem velho”, a parte material, (o corpo que foi crucifi-
cado). Este “futuro” não tem o sentido vulgar de tempo [que ainda virá], como
se devêssemos esperar por datas [quiçá pela ocasião de nossa morte ou na con-
sumação dos séculos], para a sua efetivação; esse “futuro” [é a vida que vem de
Deus;] pode referir-se e de fato envolve tanto o passado como o presente e o
futuro. Porém, esse “FUTURUM RESSURRECTIONIS” tem um predicado
que caracteriza a vida da criatura atingida por ele: “O pecado não terá mais
domínio sobre vós”. (6, 14).
Entendamo-nos bem: esta possibilidade que se apresenta assim, é a pos-
sibilidade do impossível.
Este evento — [esta ocorrência que acarreta a perda de poder do peca-
do] — é uma materialização daquilo que não é histórico, não é material. A
proclamação dessa verdade é a revelação do segredo eterno e a sua contempla-
ção é a contemplação do que é invisível; este novo [modo de] “ser”, “ter” e
“fazer” do ente humano, é o milagre; é a existência da “nova criatura” e portan-
to é de outra ordem (realmente diversa), diferente da existência do ser, do “EGO”
[segundo o conhecemos neste mundo]. Trata-se de um novo ente; de ordem tão
absolutamente diversa que não o podemos descrever nem comentar; é como se
um “ser” especial se levantasse ao lado de outro qualquer. É o revestimento [da
antiga criatura] “com o tabernáculo celestial” (II Cor. 5, 2) e, portanto, é acon-
tecimento que pertence à nova terra e ao novo céu.
[Essa supressão do domínio do pecado] é o cerceamento visível [da
conduta humana] que, na realidade, não é cerceamento porém a mais aguda
expressão do imperativo: [“Desejai aquilo que Deus quer” e “oferecei agora os
vossos membros, para servirem como instrumentos da retidão, e para criarem a
(vossa) santificação”!]. Este imperativo significa que o “PORÉM” é também
“PORTANTO”; — quem o puder entender que o entenda.
[A tradução inglesa escreveu: “A limitação inerente a tal linguagem,
contudo, serve somente para enfatizar o imperativo divino tão claramente quanto
possível!! — (refere-se à linguagem que fala do “cerceamento”). “Na realida-
de, não há limitações. O nosso ‘mas’ humano, não é, senão o “portanto” divino.
— Quem tiver ouvidos para ouvir, que o ouça”.
Entendo que essa maneira de traduzir está estribada na exposição que o
A. faz logo a seguir; contudo, quer me parecer que a observação um tanto enig-
mática, quem sabe se dialética, sobre o “PORÉM” e o “PORTANTO” se pren-

343
6, 19 O Poder da Obediência

de mais ao que o A. acaba de expor do que ao que se segue ao “ponto”, com que
ele separa os dois períodos no mesmo parágrafo.
Entendo que o A. quer referir-se à graça divina, ao “FUTURUM
RESSURRECTIONIS”, que não se mede em tempo assinalado materialmente
que é a vida abundante, plena, que Deus concede aos remidos, por Cristo Jesus,
tanto aqui neste mundo, como na vida de além. (“Eu vim para que tivésseis
vida, e a tivésseis abundantemente” (João 10, 10 — seg. parte) ). “PORÉM”
aqui gozamos dessa vida, pela graça, mediante a fé, como em espelho. “POR-
TANTO”, também pela graça mediante a fé, em nosso espírito, já não damos
mais lugar ao pecado em cujo reino o nosso corpo mortal ainda peregrina; e
porque o homem aqui peregrina, Deus, em sua fidelidade divina, lhe dá a graça
da justificação, sempre mediante a fé; (Abrão creu, e isso lhe foi imputado por
justiça”. (Tiago 2, 23).
A velha criatura — quando, pela fé, aceitou a Cristo como seu Salvador,
— foi crucificada e morreu com ele, e nele; “PORÉM” continua, ainda por
algum tempo “forasteira aqui, em terra estranha” ligada ao “corpo desta morte”
(7, 24), cativa das contingências do reino do pecado.
“PORTANTO” Deus, SPONTE SUA, concede à alma crente, contrita e
humilhada (Sal. 51, 17) a graça de ser reconduzida, ainda no presente século, à
gloriosa condição “pré-adâmica” de “Filho”, pela remissão em Jesus Cristo.
Daí, o “POREM” que pesa de maneira multiforme sobre toda criatura e
o “PORTANTO” que está à disposição de toda pessoa que “quiser vir” de volta
ao lar paterno, para receber o alívio divino. Este binário é conjugado e não
antípoda; todavia é invisível ao mundo, pois vem de Deus, e parece paradoxal
quando exposto em linguajar humano; por isso, ele só pode ser compreendido
e assimilado pela fé. Daí, segundo a minha interpretação, o desafio do Autor:
“Entenda quem puder”...]
Seria coisa maravilhosa se o linguajar humano tivesse, para este assun-
to, palavras que não fossem ambíguas, que não fossem [sujeitas às distorções]
humanas, que fossem claras!
Ora, este “imperativo” [“desejai”... e oferecei”...] (semelhantemente ao
“indicativo” de 6, 18) é, também, “segundo os homens” e não há dúvida de que
a limitação, o cerceamento, que o “POREM” subentende, não é definitivo, nem
absoluto, nem real; [é apenas maneira de expressar uma verdade divina em
linguagem humana — é uma analogia].
Este imperativo demanda do ser humano aquilo que [segundo a nossa
conceituação], não pode ser exigido dele. Ele exige que rejeitemos [e façamos]
tudo quando a nova “qualificação” da vida revoga e impõe. Esta conduta nova
precisa ser reconhecida imediatamente (em nossos membros!) no que a exigência

344
O Poder da Obediência 6, 19-23

difere daquilo que ocorreu com Cristo e na páscoa, pois os fatos não foram
claramente inteligíveis, havendo ficado aberta a possibilidade de opção entre o
escândalo e a fé.
É a isto que se chama “falar segundo os homens”: exigir dos homens,
por meio da parábola do discurso direto, aquilo que somente é compreensível
como inerente ao “ser”, ao “ter” e ao “agir” de Deus.
Quando isto não for considerado, quando a condição “como homem”
deste imperativo, que tanto impulsiona como detém, for ignorada; quando, es-
quecendo essa condicionalidade, olvidamos que a força para obedecer esse
imperativo [vem do poder da ressurreição e] é o Poder de Deus, então estamos
no meio das prolepses do moralismo religioso, envolvidos nas mais selvagens
ilusões do romantismo; no meio das doces substituições e misturas da justiça
divina com toda sorte de retidão humana; confundimos a redenção em Cristo
com todas as formas de salvação que os homens inventam; e achamos que, de
qualquer forma, haveremos de gozar da vida eterna.
A ambigüidade que oprime todo discurso sobre a graça provém de nos-
so esquecimento de que “precisamos morrer” [para alcançá-la], (e quando, onde
ou por quem é esta lembrança levada, seriamente em consideração?).
Se tivermos de falar a respeito da graça divina, se formos constrangidos
a fazê-lo por algum motivo razoavelmente justificável, então precisamos, evi-
dentemente (sabendo o que fazemos!), falar “segundo os homens” deixando a
última palavra, a palavra decisiva, a palavra envolvente, à própria graça.
É à graça que cabe dar a palavra que diz respeito à santificação de nosso
corpo mortal para transformá-lo em instrumento da justiça, pois há sempre o
risco de que tal palavra, em nossos lábios, seja mera banalidade ou fantasia. É
esta palavra final que torna impossível o pecado; ela é o juízo de Deus para a
justificação; ela é o Poder de Deus para o perdão: é a palavra criativa de Deus!

Vs. 20 a 23 Porque quando éreis servos do pecado, estáveis livres da justiça. O


que colhestes então?
Coisas de que agora vos enojais, pois o seu fim é a morte. Agora, po-
rém, libertados do pecado e transformados em servos de Deus, tendes o
vosso fruto naquilo que conduz à santificação e que tem por fim a vida
eterna, porque o salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus
é a vida eterna em Cristo Jesus, nosso Senhor

Graça é a crise da morte para a vida. É por isto que a graça divina com
relação ao pecado é, simultaneamente, a exigência absoluta e o absoluto poder

345
6, 20-21 O Poder da Obediência

da obediência; é também por isto que não pode existir tensão ou polarização
entre graça e pecado, nem pode haver equilíbrio, soluções intermediárias, com-
posições ou compensações entre este e aquela. É ainda por isto que, como
“beneficiários da graça”, não podemos considerar nem admitir que a graça e o
pecado possam coexistir, isto é, sejam possibilidades que possam situar-se lado
a lado, [ainda que por oposição]. É por esta razão que o Evangelho de Cristo é
o desassossego, o estremecimento [que o homem do pecado sente] ante o ata-
que [soberano] da graça que, por assim dizer, a tudo põe em dúvida.
Por isto, nada há mais destituído de sentido do que fazer-se do Evange-
lho de Cristo uma religião, pois isto o transforma numa possibilidade humana
ao lado de outras quaisquer; esta tentativa, ensaiada mais conscientemente pela
teologia protestante depois de Schleiermacher, é uma traição a Cristo.
A pessoa que recebeu a graça divina passa, necessariamente, a ter parti-
do. Ela se encontra envolvida na luta de vida e morte na qual não há paz, nem
trégua nem acordos.
[Fora desta posição definida] os homens parecem seguir o seu caminho
no crepúsculo de certa indiferença ou neutralidade, agindo e sofrendo, vivendo e
vividos, semeando e ceifando. Porém, que colheita é esta? Qual é o produto do
seu lidar? O que significam as experiências, os seus traços característicos, os
costumes, as palavras, os feitos e as obras nas quais eles reconhecem, apenas, a si
mesmos, como interlocutores? O que significam os movimentos, as conjunturas
e as leis de sua história, e para onde os levam o seu “progresso” e o seu “desen-
volvimento”? Qual é o seu alvo, o “fim” em vista, o ponto terminal, a meta, o seu
objetivo? O que se procura, realmente, no interminável preenchimento daquilo
que a humanidade aspira e, de certa forma, alcança? Sabe o homem o que isso
significa? [Os frutos do seu labutar] cresceram todos juntos; como tem o homem
condições de saber quais são bons e quais não o são? Eles são inerradicáveis;
vicejaram juntos, um ao lado do outro, e um por entre o outro, e se parecem como
o joio e o trigo. Estão juntos e se assemelham, tanto o que produz a impureza e a
maldade como o que produz a santificação (6, 19). Quem há de julgar, ou que
norma se aplicará para saber se isto ou aquilo que o homem produz e realiza
pelos “membros” do seu corpo mortal, pertence “para cá” ou “para lá”? Quem há
de decidir se é este ou se é aquele testemunho do espírito finito da criatura, que é
o certo? Quem diz qual a atitude, entre as muitas que a vida possibilita, que é boa
ou má? Se esta ou aquela constituição espiritual é iníqua, ou santa? Se um deter-
minado ato histórico pertence a este ou àquele lado?
Acaso não pode, também, acontecer que tudo que uma pessoa fizer,
disser, pensar ou produzir pertença, em sua totalidade, exclusivamente ao joio,
ou então, só ao trigo?

346
O Poder da Obediência 6, 20-21

Acaso existe alguma “iniqüidade” visível que não possa, nunca, [em
nenhuma hipótese] ser tida como sendo “santificação” ou, então, existe alguma
“santificação” perceptível que, de forma alguma, possa ser confundida com
iniqüidade?
É evidente que não possuímos o “Codex”, [não temos em nossas mãos a
“Pedra Roseta” — conforme registra a tradução inglesa] para decifrar inequi-
vocamente a escrita secreta do conteúdo da vida humana.
É claro que nada sabemos sobre a ceifa que Deus, o Senhor da seara,
recolherá aos seus celeiros, juntando aos seus frutos o produto da semeadura de
nossa vida.
Se não sabemos o que ceifamos, como haveremos de saber o que seme-
amos? E se não sabemos o que significa a nossa produção, como haveremos de
saber o que significa a nossa existência? Se não conhecemos a nossa meta, o
nosso fim, como haveremos de conhecer a nossa origem, o nosso começo?
É mais do que acaso, ou capricho, quando o ser humano encontra a sua
classificação no “SIM” ou em o “NÃO” [de Deus] e neles se reconhece como
ímpio ou como santificado, seguindo o seu caminho para achar o seu destino
final no céu ou no inferno? E será por acaso que os “bons ficam sempre melho-
res e os maus sempre piores”? (Harnack).
O que significa “bom” e “mau”?
Neste crepúsculo [de interrogações vagas e imprecisas] está, manifesta-
mente, o reino da tensão, da polaridade, da alogenia e dualidade; é aqui que o
“SIM” e o “NÃO” se opõem como sendo de igual necessidade e de igual valor;
[é nesta penumbra que o “Sim” e o Não”] se parecem igualmente divinos (toda-
via, não nos iludamos com a aparente “necessidade” dessa igualdade nem com
esta “identidade divina”!). É neste reino de interrogações [mescla de filosofia e
teologia], que a sabedoria [humana] atinge o seu ponto alto, oscilando suave-
mente, sem atrito, de um lado para outro, entre o “SIM” e o “NÃO”, descobrin-
do entre eles, o equilíbrio, a compreensão, o acomodamento.
Porém, a justiça de Deus, em Jesus Cristo, é a posse do conhecimento
que invade esse crepúsculo e aí mesmo incendeia a existência humana. É pela
revelação e pela contemplação (do Deus desconhecido) que o homem toma
ciência de que é conhecido por Deus e que foi criado por ele. Esta ciência vem
daquele SER que o homem não é; daquele SER com o qual o homem não tem
relação de continuidade, do qual o homem está separado [como por grande
abismo] sem caminho para o contornar ou ponte para o transpor. Esta ciência
vem daquele SER que só pode ser compreendido como a origem verdadeira,
genuína, da criatura humana e que se manifesta e se revela como NOSSO PAI.
Ele é quem torna possível aquilo que é impossível.

347
6, 20-21 O Poder da Obediência

A revelação de Deus, e a sua contemplação, é a graça! Pela graça, o


homem sabe quem ele mesmo é: “O servo do pecado”; o culpado, a vítima da
queda que o afastou de Deus, (para vagar no mundo] “livre” [das injunções] da
retidão, sem gozar da luz que vem da palavra de julgamento e de perdão. Esta é
a criatura que [o homem, na realidade, já não é, mas] foi. [Agora porém], “li-
bertado do pecado” e “servo de Deus”, ele é [outra criatura]; ele inverteu o
curso de sua existência; ao receber a graça, ele foi transformado, movido, des-
locado, daqui para acolá. Há um abismo separando o que ele agora “é” daquilo
que ele “foi”.
A “morte domina o que “foi” e a “vida” preside sobre o que “é”.
A manifestação e a contemplação de Deus contém, em si, o passo que
vem da morte para a vida, e a vida que vem da morte.
Tendo recebido a graça, sabemos o que semeamos; vemos o que signifi-
ca a nossa vida e conhecemos a nossa origem. Sabemos também qual é a nossa
ceifa, qual o significado de nossas obras e qual o alvo e a meta final do teor de
nossa existência.
O raio de luz que incandesce nossa existência não cintila em vão, pois o
nosso ser, nosso saber, pensar e falar, nosso querer e aquilo que realizamos,
nossa vida espiritual e histórica, nossos anseios e nossos objetivos, serão ilu-
minados por ele. Serão iluminados, quem sabe, para resistirem incólumes ou,
quem sabe, para serem fundidos ou acrisolados; quiçá serão carbonizados, ou
então, transmudados em outra substância e, pode também acontecer, sejam
totalmente consumidos e aniquilados (todavia não totalmente pois, “NON
OMNIS MORIAR”!).
Em qualquer hipótese, [este raio de luzi submete a nossa existência a
uma prova radical, relacionando o que ela “foi” com o que, agora, “é”; pelo
lugar que ela passa a ter, deste ou daquele lado do abismo que a graça revelou;
este raio de luz mostra qual será o salário: a vida ou a morte!
É assim que se separa a nossa “colheita”. Separam-se o trigo e o joio;
tornam-se claros os objetivos verdadeiros dos nossos propósitos. Os caracteres
rúnicos do indecifrável teor de nossa vida são, agora, esclarecidos: tudo está
determinado pelo que “fomos” ou pelo que “somos”; pela nossa escravidão ao
pecado, que agora está extinta, ou pela nossa sujeição a Deus que, também
agora, foi instituída.
As duas condições não são concomitantes, como também a morte e a
vida não podem ocorrer Juntas. Contudo, convém que sempre nos lembremos
de que o sentido do que seja esta “morte”, deve ser procurado naquilo que
designamos por “vida” e que o sentido do que seja esta “vida” deve ser procu-
rado naquilo que identificamos por “morte”.

348
O Poder da Obediência 6, 22-23

Desses extremos — Morte e Vida — cujo significado está contido na


revelação e na contemplação de Deus, fica inequivocamente determinado o que
sejam “iniqüidade” e “santificação”.
Existe, pois, uma iniqüidade absoluta, clara, inequívoca; existe um mal que
o ser humano não deve pensar [imaginar], nem querer, nem praticar. “Há coisas das
quais, agora, vos enojais”. Há coisas que, embora possíveis, quando iluminadas ao
raio de luz que tudo aclarou, resultaram, por assim dizer, como excluídas, proibi-
das. Proibidas, por que? Porque o seu destino é a “morte”; porque elas provêm da
vitalidade daquilo que é mortal; porque elas espalham apenasmente a morte; por-
que essas coisas só têm o beneplácito da morte; porque tais coisas não podem
resistir ao fogo consumidor do qual sobressai a vida que vem da morte. O critério é
claro para quem possui a [verdadeira] vida: “O salário do pecado, é a morte”.
Existe, também, uma “santificação” absolutamente inequívoca.
Há uma colheita, que é para a santificação. Existem, naquilo que o ser
humano é, ou tem, ou faz, possibilidades que, por assim dizer, são classificadas
como necessárias e convenientes, por Deus. Existe um “bem” em que o ser
humano deve pensar; que deve querer e deve praticar, e isto porque esse bem
tem o seu início e o seu fim na vida; porque este bem que o ser humano deve
querer determina uma existência, um comportamento, um conjunto de ideais,
propósitos, obras, ambiente, condições e movimentação que tem a sua origem
e o seu fim no rio da vida; não é só o começo e o término deste bem que estão
ligados ao rio da vida, mas também o seu ponto intermediário [passageiro,
efêmero,] no mundo temporal, onde reina a morte, pois as coisas do mundo não
podem obscurecer totalmente os frutos do “bem”, porquanto estes resistem ao
fogo consumidor da morte que traz a vida.
Talvez traga a vida transformada ou, quem sabe, carbonizada, fundida,
acrisolada ou, pode ser, conservada intacta; em qualquer hipótese, porém, sub-
sistindo. Também aqui há um critério para aqueles que dele puderem gozar: “O
dom de Deus é a vida eterna, em Jesus Cristo, nosso Senhor”.
Assim como a vida e a morte não podem existir juntas, coexistindo uma
ao lado da outra, ou interligadas como uma série, ou em cadeia, também a
graça e o pecado não podem ser relacionados entre si [nem pode haver inter-
câmbio entre eles]; não há ponte que transponha o precipício aberto entre os
dois; a claridade que a graça traz não tolera qualquer confusão.
[Todavia, há os que se libam] na luz apenas crepuscular que pode ser
divisada no interior do abismo profundo que existe entre o “bem” e o “mal”,
entre o “valor” e o “desvalor”, entre o que é “santo” e o que é “ímpio”.
Essa luz não ilumina suficientemente a criatura que não tenha recebido
a graça divina e por isso ela não chega a reconhecer a fissura, nem toma cons-

349
6, 23 O Poder da Obediência

ciência da separação existente [entre ela e Deus] e não percebe que o único e
inequívoco meio de sair do abismo [que a separa da vida] — é aceitar a “nova
ordem” [que a graça oferece].
Aqueles que assim vivem, iluminados por essa luz mortiça, buscam uma
moral, tentam fazer um rol dos que são pecadores e dos que são justos; farão
uma tábua do que é proibido e permitido, pois os objetivos da vida impõem
sempre a criação de uma ética, como sendo inexorável necessidade; e cada
tentativa [de produzir esse padrão moral] deveria ser a última, a final. No entan-
to, falham todas, uma após outra, pois é somente mediante o conhecimento de
Deus que se atinge a plenitude do valor ético. É então que se percebe nitida-
mente o que sejam “pecadores” e “justos”.
Porém, é pelo “Poder da Obediência” que percebemos a grande possibi-
lidade do impossível, e nos apropriamos dela.

Graça (6, 1-23)


Comentários: 6, 1-23
1. No comentário ao versículo 19 o A. diz que ao ser exigido do homem
que ponha a totalidade de seu ser à disposição de Deus, está lhe sendo
apresentado um imperativo que o próprio sacrifício de Cristo não
apresenta neste rigor, pois dá o direito de opção entre a fé e o escândalo;
no entanto, é preciso entendê-lo com justeza: Paulo fala “segundo os
homens”. Isto é, não podemos concluir que teremos, neste mundo,
forças para obedecer a ordem dentro de nossa natureza carnal; se
quisermos entender assim, isto é, se concluirmos que vamos viver
puros, que “graças a Deus, não pecamos mais”, então não entende-
mos a ressalva que Paulo faz, e damos azo ao endeusamento da cria-
tura humana que passa a considerar-se (uma vez mais), igual a Deus.
O homem não deve esquecer-se que somente morrendo pode alcan-
çar a plenitude da graça; que a pregação é feita “falando como homem”
para que a criatura, compreendendo, sinta o impulso para a santificação
e saiba que a graça plena, a pureza, a libertação do pecado (ao qual
não quer), a realização existencial e plena da nova criatura, que ela
vive aqui em espírito, pela fé, ela só gozará plenamente, quando rece-
ber a coroa da justiça das mãos do Senhor, o justo juiz. (II Tim. 4, 8).
2. O A. cita a teologia de Schleiermacher, que teve grande influência no
pensamento teológico protestante durante todo o século XIX e o primei-
ro quartel do XX, quando essa influência se apagou pelo impacto da
teologia dialética de Barth. (Ver Encic. “Delta-Larousse”, ed. de 1974).

350
O Poder da Obediência 6, 1-23

Schleiermacher procurou harmonizar a interpretação religiosa e o


pensamento filosófico da classe culta, alemã, de sua época; partindo da
tese de que a religião tem a sua origem nas possibilidades humanas,
concluiu que, por isso, ela não tem condições para transmitir a mensa-
gem divina, e não pode apresentar as verdades eternas. Na tentativa de
“divinizar” a religião, Schleiermacher admitiu uma certa imanência
divina, em todas as coisas do mundo: “Não há Deus, sem mundo, nem
mundo sem Deus”; Cristo teria sido um mediador, na medida que foi
um inovador, e a mediação, hoje, está nas mãos da Igreja de Cristo.
É justamente esta pretensão que a Igreja tem (ou pode ser tentada
a assumir) de ser ela a promotora da salvação, que Barth critica tão
incansavelmente! É esta pretensão que, de certa forma, iguala todas
as religiões como se fora um denominador comum, assaltando a di-
vindade pela materialização de Deus ou pela divinização do homem.
É a isto que o A. considera como “traição a Cristo”.
Fazendo da Igreja (ou da religião) um meio de chegar a Deus, (a
união direta que Schleiermacher pretendia, e a comunhão direta que
tanto anima os fiéis crentes evangélicos) oculta a verdadeira graça
que nos vem desde a cruz, ou melhor, desde a ressurreição de Cristo.
Trata-se, exclusivamente de aceitar ou rejeitar o Senhor Jesus.
— “Que devo fazer para salvar-me?”
— “Crê no Senhor Jesus, e serás salvo, tu e a tua casa!” (At. 16, 30-31).
A pessoa que recebeu a graça, também terá normas e preceitos a
obedecer; terá religião porque se sentiu constrangida a tomar posição
bem definida e definitiva no combate do pecado em si mesma, na
personalidade da criatura antiga, do “homem-velho”; ela já não pode
aceitar o domínio do pecado, nem conformar-se com ele, embora sai-
ba que não pode arrancar o joio, nem o saberá distinguir com segu-
rança. Todavia, ela sabe o que Deus quer, e isto ela quer também!
3. Finalmente, o A. menciona a “penumbra” que envolve aqueles que
não recebem a graça.
Por que não a recebem?
Porque não a querem; porque preferem achar soluções que lhes
parecem mais sonoras, mais sábias, mais cultas, mais liberais, mais
tolerantes, mais ecumênicas; menos antigas, menos “bitoladas”, me-
nos fanáticas. Dizem que, afinal. “todas as religiões são iguais”; Deus
sendo amor, não condenará os homens, com penas eternas... Ou en-
tão, porque as religiões são “invenções” humanas, não vale a pena
procurá-las ou ensiná-las.

351
6, 1-23 O Poder da Obediência

Nesse sem número de arrazoados e justificativas que o ser huma-


no encontra para não se render a Deus há, freqüentemente, uma par-
cela de verdade, algumas vezes imediata e outras por inferência re-
mota; é esta parcela que difunde alguma luz: luz crepuscular diferen-
te da luz da aurora, porque não antecede o sol radioso, não dissipa as
trevas, mas prenuncia a noite.
É nesta meia luz que os homens retêm a verdade com a sua justiça
e a humanidade se ilude com a mentira diabólica, — a “mentira per-
feita” que Satanás sempre usou: a mistura satanicamente dosada de
fragmentos da verdade com a falsidade total.
Envolta nessa luz mortiça, anestesia-se a sensibilidade, embota-
se a consciência, e a criatura goza da paz dos cemitérios e um dia,
surpresa, receberá o salário que desde a eternidade foi destinado aos
que rejeitam a graça: a morte! Todavia, acima do poder do pecado
está o Poder da Ressurreição.
A graça é maior do que o pecado; o Poder da Obediência, que
vem da ressurreição, é maior do que a força do pecado que vem da
rejeição de Deus.
Envolta na graça, a criatura redimida sente abrasar-se o seu cora-
ção, sente a angústia do pecado e a consciência despertada para amar
o bem; e o coração, contrito e humilhado, rendendo-se incondicio-
nalmente a Deus, recebe o Espírito da verdade; já não se turba nem se
atemoriza porquanto já goza da paz que o mundo não pode dar, mas
Cristo deixou para aqueles que o confessarem. “Deixo-vos a paz, a
minha paz vos dou”. (João 14, 27).

“— Queres ir andando,
alegre para o céu,
Ignorando todo
escuro e denso véu?
— Abre o coração
e deixa Cristo entrar,
E o sol, em ti, raiar!”

352
Capítulo VII

LIBERDADE

Neste capítulo o Autor analisa a absoluta liberdade que Deus tem para
julgar e perdoar a criatura humana; para aplicar a ira divina e para dispensar a
sua graça. Esta independência é um atributo da soberania do Criador, que não
depende do homem nem se deixa influenciar por atitudes humanas, porém age
na criatura conforme lhe aprouver na sua infinita sabedoria, sua incomensurá-
vel misericórdia, sua absoluta justiça. Essa é, segundo o A., a LIBERDADE de
Deus para agir em nós.
Dentro dessa liberdade divina, independentemente de nossa condição
carnal, Deus nos revela a sua santa lei, a fim de que saibamos querer o bem.
Esse aprendizado da lei divina emana da graça de Deus e se exercita no
relacionamento entre a criatura e o Criador: aquela busca, pelos processos ao
alcance de sua materialidade, um meio de se achegar diretamente a Deus, quer
seja erigindo “Torres de Babel” quer sejam filosofias, religiões, obras pias,
renúncias; todas falham e ficam aquém de seu desideratum; todas são, na me-
lhor das hipóteses, obras perecíveis e efêmeras, quando não claramente
claudicantes, acintosas a Deus, pecaminosas, dignas da ira divina. Deus, porém
“apesar” da nossa pecaminosidade, usa de sua liberdade em nós, proporcionan-
do a religação da criatura com o Criador através de Jesus Cristo, o único medi-
ador entre Deus e os homens. Essa mediação se faz pela fé; a fé é gerada pela
fidelidade de Deus; a fidelidade de Deus se faz patente pelo conhecimento da
lei. O conhecimento da lei é o arcabouço da religião; por isso a religião é a mais
excelente atividade do homem; nela, a criatura se depara com a super-abundan-
te graça divina, porque nela toma ciência da abundância do pecado.
É por isto que os subtemas do capítulo versam, diretamente, sobre a
RELIGIÃO.
Em sua exegese, o A. divide o capítulo em três subtópicos:
• O Limite da Religião - Vs. 1 a 6
• O Sentido da Religião - Vs. 7 a 13
• A Realidade da Religião - Vs. 14 a 25

353
7, 1-25 O Limite da Religião

Na primeira parte o A. mostra que a religião não pode transcender o


mundo e portanto, não leva o homem ao infinito, até Deus.
Na segunda parte, o A. mostra que a religião, ainda que finita, material,
perecível, é a mais sublime atividade humana, pois nela a criatura se põe ao
encalço da ligação direta com Deus, perdida na tragédia do Éden; todavia, tam-
bém neste anseio, e justamente por ele, corre o ser humano, e mui particular-
mente o homem religioso, o risco constante de, reiteradamente, estender a sua
mão para tocar o fruto proibido. (ERITIS SICUT DEUS...).
Finalmente, na terceira parte o A. demonstra que a religião pura e santa
traz à criatura humana a conscientização de sua própria condição; de sua situa-
ção humanamente insustentável: o “BEM” que pela religião aprendeu e agora
quer praticar, não faz; todavia, o “MAL” que também pela religião aprendeu a
não querer, esse pratica. “Miserável homem que sou”. “Quem me livrará”?
Então vem Deus em sua liberdade e dá à eterna pergunta a imorredoura respos-
ta: “Graças a Deus, por Jesus Cristo”!
O LIMITE DA RELIGIÃO (1, 1-6)
Graça é obediência. Para compreender isto é necessário entender o que
significa a ressurreição: é um modo de ser, de ter e de agir da nova criatura que
se relaciona com a maneira de ser, ter e agir da criatura velha, assim como a
vida se relaciona com a morte. Mediante a graça a nossa existência entra para a
luz de uma alternativa cortante, decisiva: (ou... ou!); entra no âmbito de sua
última ou melhor, de sua “impossível” possibilidade.
Graça é o relacionamento de Deus com o homem; de Deus, quando
surge como o batalhador vitorioso, que não admite posição neutra, eqüidistante,
intermediária ou de compromisso; é o Deus do qual não se pode zombar; que é
um fogo consumidor e não nos deve resposta: graça é o relacionamento com o
Deus que diz “SIM” e “AMÉM” enquanto nós podemos apenas balbuciar os
nossos Sim e Não, e o nosso “como se”.
O relacionamento de Deus com o homem, mediante a graça, significa que
à minha porta surgiu um ser humano justificado, redimido, um ser vivo e bom! E
o “homem novo”. E “novo” em Jesus Cristo e demanda entrada em minha exis-
tência; todavia, os seus atributos, suas características e qualidades são o que eu
nunca fui, não sou e jamais serei! Não se trata de algo material, mas também não
é um fantasma, um ser metafísico; nem é uma outra pessoa, uma segunda pessoa,
a meu lado: essa pessoa que assim se apresenta à minha porta e força a sua entra-
da, sou eu mesmo! Sou eu, qual sou em Deus, qual sou na minha existência
invisível; é por isto que insiste e tem pressa em entrar e não quer, e não pode
esperar um instante sequer até que eu, [o “homem velho”] lhe abra a porta.

354
O Limite da Religião 7, 1-6

Receber a graça é estar exposto a toda essa urgência, a esta solicitação,


a esta veemência, a esta abordagem [e também] a esta promessa [implícita],
pois significa que o Evangelho de Cristo foi ouvido.
O exemplo de Abraão (Cap. 4) bem esclarece, “historicamente” que esta
graça se realiza sempre segundo a invisível e inaudita liberdade de Deus; que
ela precisa ser compreendida e contemplada, sempre de novo, como milagre,
como início, como “criação” [divina]; que ela deve ser procurada e será encon-
trada, apenas, na liberdade de Deus — [nesta ação que tem sua origem somente
em Deus e na sua livre vontade].
Fizemos mais atrás amplas considerações sobre a religião, como sendo
a última possibilidade humana. (Ver 2, 1-13; 2, 14-19; 3, 1-20; 3, 27-30 e 31; 4,
9-12; 4, 13-17; 5, 13-20 e 6. 14-15).
Temos, agora, que demonstrar que, sendo humana, a religião é também
uma possibilidade restrita, limitada e que, mais ainda, em sua estreiteza e inefi-
cácia, a religião assegura e autentica a liberdade de Deus para conceder a graça.

V. 1 Ou ignorais, irmãos, — eu falo a pessoas que conhecem a lei, — como a lei


tem domínio sobre os homens, durante toda sua vida?

“Irmãos, eu falo a pessoas que conhecem a lei”.


Os cristãos de Roma conhecem e sabem quais são as possibilidades da
religião. Paulo também as conhece, e sabe; em diferentes graus e com dife-
rentes alcances, todos fazem uso dela. Um véu de religiosidade, mais tênue
ou mais denso, está sobre todos os homens, pois o Deus Desconhecido é o
Deus tanto de judeus como de gentios. A inevitável recordação que o ser
humano tem de sua perdida união com Deus cria sempre experiências morais
e históricas [que o impelem à religião]. O temor, o amor, o entusiasmo huma-
no por tudo que fica acima dos homens são quais impressões em negativo da
unidade invisível e imaterial da criatura com o Cristo. A graça não deixa de
acarretar experiências de sua manifestação e não está dissociada da religião,
da moral, do eclesiasticismo e da dogmática que se cristalizam em torno des-
sas experiências.
“Ouvimos” e “cremos”; obedecemos, confessamos, oramos, falamos e
escrevemos, aqui com maior positividade, ali de forma mais negativa, (nunca
sem paixão!).
Filiamo-nos a esta ou àquela denominação; passamos a ser isto ou aqui-
lo; colocamo-nos em lugar mais ou menos definido na feira das religiões; te-
mos uma ideologia e somos morigerados; mudando de quando em quando [de
uma para outra denominação], mostramos, a quem souber ver, que não somos

355
7, 1 O Limite da Religião

“estreitos”, e mostramos também que não ficamos agarrados sempre ao mesmo


ponto de vista.
Todavia, não podemos impedir que nossos pés estejam sempre em con-
tato com o chão. Como seres humanos que somos, vivendo neste mundo, não
podemos estar indenes à influência religiosa.
Se pretendermos aparentar absoluta indiferença à religião, estaremos
tentando uma empreitada pouco prudente e pouco promissora pois, embora
possamos passar de um compartimento para outro, não poderemos sair da casa.
[Ora, quando concluirmos que a despeito da mobilidade que temos e
que exibimos, passando de um ramo para outro, estamos sempre encerrados
em alguma forma de expressão religiosa] compreenderemos que esta última e
inescapável possibilidade humana, mesmo em suas alternativas mais ousadas,
mais agudas, mais fortes, mais “impossíveis” é sempre uma possibilidade terrena,
restrita e, por isto, grandemente perigosa, pois testifica uma possibilidade de
ordem superior, que a delimita; portanto esta possibilidade religiosa está tam-
bém envolta em promessa.
Vemos [na restrição das possibilidades religiosas] que a liberdade na
qual nos é dada a graça está justamente do outro lado da culminância da huma-
nidade, isto é, além da religião.
A liberdade [que Deus tem para distribuir a sua graça, sem levarem con-
ta conceitos e preconceitos humanos] não é uma possibilidade adicional [que
se oferece à humanidade] porém é uma impossibilidade [absoluta para os ho-
mens] que só se torna possível em Deus, sem ser tangida pela dubiedade da
religião, pois, “o salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a
vida eterna, em Cristo Jesus.” (6, 23).
“Compreendeis isto? Ou não percebeis que a lei tem domínio sobre vós,
durante toda a vida?”
O homem religioso precisa cambiar constantemente suas cores, qual
gotícula de óleo sobre a água, aos raios do sol: a cada instante ele oscila entre
os mais altos páramos e os mais profundos abismos; entre Moisés e Arão; entre
Paulo e Saulo; entre ser um entusiasta das coisas que são de Deus, e um pessi-
mista; entre profeta e fariseu; entre sacerdote e leguleio da religião. (O antônimo
que o A. usa, para sacerdote não encontra tradução fiel. Entendo que ele preten-
de indicar como opostos, o ministro fiel e dedicado, verdadeiramente interessa-
do em apresentar a mensagem e o obreiro servil, interesseiro, vulgar (que se
atém ao simples desempenho de obrigações profissionais) quiçá, legalista e
intransigente, quando não apenas relapso e descuidoso].
O homem religioso pode apresentar a mais positiva expressão do conteú-
do divino na realidade humana e pode, também, abrigar o mais amplo desdo-
bramento da negação humana à realidade de Deus.

356
O Limite da Religião 7, 1

O homem religioso é sempre positivo e negativo; é positivo, justamente


por ser negativo. [Ele é positivo porque testifica o conteúdo divino na realidade
humana e é negativo mediante o confronto de sua natureza humana, com a
realidade de Deus. (Apud trad. inglesa)].
[Paradoxalmente], é justamente na religião que não se toma em consi-
deração nem “obediência”, nem “ressurreição”, nem “Deus”, porquanto o que
aí assim se apresenta, ou se nomeia, é sempre algo que está relacionado com
outra coisa, ou em oposição a ela; é como se fosse um pólo com relação a outro,
ou uma grandeza coexistente com outra, um “sim”, relacionado com algum
“não”; todavia não é a alternativa que exclui e suprime todas as outras; não é a
alternativa decisiva [que nem seria alternativa por ser exclusiva, sem paralelos,
a única que realmente conta].
O que a religião apresenta, não é “a possibilidade” que já suprimiu a
alternativa; não é o “SIM” [divino] que está além do “Sim” e do “Não” do
mundo; não é a força, o poder, da conversão da morte para a vida.
É a possibilidade religiosa que, entre todas as possibilidades humanas,
mais se destaca e se caracteriza pelo dualismo entre o aquém e o além, entre a
intenção e a ação, entre aquilo que defendemos e aquilo que de fato é; entre a
verdade e a realidade que reina dentro da religião.É na religião que existe a
abundância do pecado (5, 20) pois esse Deus [que a religião freqüentemente
apresenta e] que é alguma coisa em oposição a outra, que é um de dois pólos,
que é um “sim” em oposição a um determinado “não”, que é um Deus que não
é totalmente livre e independente, um Deus que não é sobrepujante, vitorioso,
único, este é o “NÃO-DEUS”, o Deus deste mundo.
“Estar debaixo da lei é estar sob pecado” (Kuehl) e o homem está debai-
xo da lei “enquanto viver”; isto é, enquanto a sua existência, o seu ser, estiver
encerrado entre os limites do berço e do túmulo. É com esta vida [delimitada
entre os dias do nascimento e da morte], que concomitantemente se inicia e
termina o domínio da lei.
A limitação da religião e da inevitável problemática em que ela situa a
criatura coincide, precipuamente, com a limitação das possibilidades humanas.
Enquanto não me restar outra opção senão a de movimentar-me dentro
do limite das possibilidades humanas, também não tenho alternativa ou escolha
que não a de ser (ou, de alguma forma, aparentar ser) pessoa religiosa. Na
melhor das hipóteses, um “São Francisco” ou, na pior, o “Grande Inquisidor”;
ou então, (quem sabe?) tendo a intenção de ser um Blumhardt mas sendo, de
fato, um Brand. [Possivelmente o A. cita São Francisco para estereotipar a re-
núncia, e o “Grande Inquisidor” para se referir ao fanatismo violento.
Uma referência posterior evidencia que este “grande Inquisidor” é o perso-
nagem que Dostoievski apresenta no cap. 5 do livro V de “Irmãos Karamazov”

357
7, 1-4 O Limite da Religião

que, por sua vez, retrata com grande maestria, o próprio Torquemada, o feroz
“defensor da fé”.
Para melhor compreender o pensamento do A., ou para apreciar com
maior justeza o seu raciocínio, talvez seja interessante lembrar que Blumhardt
(Johannes Cristoph) tornou-se célebre na segunda metade do século XIX, pri-
meiramente por suas “expulsões de demônios” (ver nota de rodapé da trad.
inglesa, página 312); mais tarde celebrizou-se como teólogo (quiçá de tendên-
cia socialista) e a sua influência sobre Barth pode ser observada pela abundân-
cia de citações que, dele, o A. faz. (Parece-me que Barth o cita, aqui, como
protótipo do religioso objetivo). Finalmente diz o A. — aplicando o exemplo a
si mesmo — que procurando, em sua religiosidade, emular Blumhardt, ele cer-
tamente apenas conseguiria (ou conseguiu) ficar nas pegadas de Brand. Trata-
se do personagem de um poema de Ibsen, conforme bem o diz a tradução ingle-
sa. Esse poema trai um certo misticismo do mundo cristão, com vistas à im-
plantação de um cristianismo mais profundo, mediante a pregação da
genuinidade e inteireza de coração.
“Como haveria eu de me proteger (a mim!) contra a mui justificada
suspeita de que eu poderia ser muito mais “negativo” que “positivo”?
“Não percebeis” que justamente neste cerceamento das possibilidades
da religião, com o seu “sim” e o seu “não”, abre-se a porta para a preponderân-
cia ao “SIM” que não me diz respeito — que não se refere ao homem “enquan-
to ele viver” mas é dirigido ao “homem novo”, à “nova criatura” que veio, da
morte, para a vida?

Vs. 2-4 Ora, a mulher casada está ligada ao marido pela lei, enquanto ele
viver; mas, se ele morrer ficará desobrigada da lei conjugal. De sorte que
se ela se unir a outro homem enquanto o marido for vivo, será considerada
adúltera; porém morrendo o marido, estará livre dessa lei.
Assim também vós, meus irmãos, fostes arrancados, pela morte, da
vida em que domina a lei, a saber pela morte do corpo de Cristo, afim de
que fôsseis unidos a outro, isto é, àquele que ressurgiu dos mortos, para
que constituíssemos fruto para Deus.

[A tradução de Almeida, para o versículo 4, escreve: “Assim, meus ir-


mãos, também vós morrestes relativamente à lei, por meio do corpo de Cristo,
para pertencerdes a outro, a saber, àquele que ressuscitou dentre os mortos, e
deste modo frutifiquemos para Deus”.]
Esclareçamos o sentido diacrítico da expressão “enquanto viver” (7, 1)
mediante uma analogia: “Enquanto viver”, mas apenas enquanto viver!

358
O Limite da Religião 7, 2-4

A prescrição das coisas que são válidas nesta vida, depende da morte.
Assim, estando vivo, o marido caracteriza sua mulher como sua esposa
e a obriga para com ele; se na vigência dessa condição ela se unir a outro ho-
mem, será considerada infiel e adúltera. Porém, com a morte do marido fica a
esposa livre [da primitiva obrigação legal] e, se então ela se unir a outro ho-
mem, já não será tida por infiel ou adúltera. Portanto, na legítima ordenança da
lei moral do matrimônio [cada cônjuge] está preso à contingência da sobrevi-
vência da outra parte contraente. [Paulo baseia seus exemplos materiais na prá-
tica legal da época.
Dentro desta ordem estabelecida, as partes tem de sujeitar-se à condição
do trato conjugal sem outra opção; todavia, é a própria ordem existente que
libera a parte sobrevivente quando um dos cônjuges falecer, ficando o remanes-
cente livre para, inclusive, optar por outra ligação matrimonial.
A morte representa pois, no caso figurado, a criação de situação inteira-
mente nova, radicalmente diferente. Aliás, representa um retorno do sobrevi-
vente a seu estado anterior ao do contrato que o ligou ao cônjuge falecido.
Esta foi a analogia [a parábola].
Agora, vejamos a aplicação: “Assim, também vós fostes libertados da
lei, pela morte do corpo de Cristo”.
Sim, sois vós que recebestes a graça, que estais sujeitos ao jugo e à
libertação que a morte encerra. Sois vós a criatura que é sujeita a lei, enquanto
viver; porém, apenas “enquanto viver”.
Enquanto estiverdes enquadrados na ordem que “precisa” existir no re-
lacionamento entre Deus e os homens e tiverdes as possibilidades peculiares à
humanidade, inclusive a da religião, que é a mais importante de todas; enquan-
to estiverdes de baixo do pecado, e portanto sujeitos à lei, estareis cerceados,
acorrentados, aprisionados pela problemática da religião e estareis
inarredavelmente comprometidos com ela, (como a esposa está comprometida
com seu marido, enquanto ele não morrer).
Todavia, (assim como a mulher fica desobrigada de seus compromissos
e deveres com o marido, quando ele morrer), quando vós nessa ordem
estabelecida não fordes quais nela realmente sois, mas estiverdes debaixo da
graça e já não precisardes ficar sujeitos à lei, quando estiverdes fora dessa ordem
que “precisa” existir no relacionamento entre Deus e os homens, então estareis
livres das peias que vos cerceavam, libertos, abertos para receber e gozar da
unidade existencial eterna, para a essencialidade, a claridade e a plenitude da
possibilidade que vem de Deus, e que está além da problemática religiosa.
Acaso estais, a um só tempo, cercados e desimpedidos, atados e soltos, pri-
sioneiros e livres? Ou estais transformados, convertidos, postos em nova direção?

359
7, 4 O Limite da Religião

Sim. Tudo isto acontece pela graça de Cristo pois, assimilando a Cristo
sois assimilados pela sua morte — ceifados pela morte com o seu corpo material.
Todas as possibilidades humanas, inclusive religiosa, são rendidas e ofe-
recidas a Deus no alto do Gólgota.
Morre aquele que estava sujeito à lei (Gál. 4, 4), o Cristo que, com todo
o Israel reto e piedoso de seu tempo, se submeteu ao batismo do arrependimen-
to ministrado por João; ele, o Profeta, o Sábio, o Mestre, o Amigo da humani-
dade, o Messias Rei, morre, para que viva o Filho de Deus.
Com a morte do Cristo, segundo a lei, cumpriu-se a mais sublime, a
última possibilidade humana: a possibilidade de ser uma pessoa crente, piedo-
sa, espiritual, votada à oração. E o cumprimento desta possibilidade se dá me-
diante a sua total extinção porquanto, no Gólgota, também a pessoa religiosa
— a despeito de tudo que ela seja, quanto tenha, ou faça — ao próprio Deus, e
somente a Deus, tributa honra, louvor e glória.
Juntamente com o corpo humano de Cristo, também nós morremos para
a lei, e somos arrancados, pela morte, da vida onde a lei impera.
Vista desde a cruz, a religião, como realidade histórico-espiritual, na
forma desta ou daquela conduta humana, visível, é algo que deve ser removido.
(Col. 2, 14). [As ordenanças foram removidas, encravadas por Cristo, na cruz...].
A criatura humana não comparece perante Deus como criatura religio-
sa, nem em qualquer outra qualidade ou qualificação humana, porém mediante
aquela natureza divina com a qual também Cristo se apresentou ao Pai, quando
sua “percepção religiosa” o levou ao reconhecimento de que estava abandona-
do por Deus.
É na cruz, na morte de Cristo, que se patenteia a anulação da criatura —
(justamente da criatura religiosa) e, também da cruz, da morte de Cristo, rece-
bemos a certeza da reconciliação, do perdão, da justificação e da redenção.
Da morte, a vida! A morte quer dizer “esta” morte. Portanto, enquanto
vivermos, enquanto formos quais aqui somos (7, 1), sujeitos à lei, envolvidos
na problemática da religião e arrolados no seu jogo promissor e perigoso de
“sim” e “não”, na total ambigüidade da história e das experiências religiosas,
nada podemos fazer para sair dessa situação, como também não pode a mulher
casar-se com outro homem enquanto estiver vivo seu marido.
Porém, se estivermos mortos com Cristo, sepultados com ele, se, vistos
desde a cruz, já não pertencermos a este mundo mas “formos o que não so-
mos”, isto é, se houvermos, realmente, sido arrancados do jugo da lei, então já
não estamos presos às possibilidades [restritas] que a religião oferece, nem às
suas exigências; então já estamos livres de toda e qualquer imposição humana
e, assim como a esposa mediante a morte do marido se libertou dos laços que a

360
O Limite da Religião 7, 4-6

prendiam a ele, assim como a viúva ficou livre para se unir a outro marido,
também nós [pela morte com Cristo] obtivemos a liberdade para seguir o cami-
nho onde não há dualismo:
“Para pertencermos a outro, àquele que ressurgiu dos mortos, para que
frutifiquemos para Deus”.
Este “outro” é o que fica em contraste àquilo que representa o ponto
máximo das possibilidades humanas.
(O “outro” é o Cristo ressurrecto; é aquele que atingiu o máximo das
possibilidades humanas, aquele que cumpriu a lei], e que é representado no
“corpo vivo”, [humano], de Jesus, o qual preencheu e cumpriu os preceitos e
feitos humanos que a religião exige, colocando-nos, portanto, além deles, ti-
rando os grilhões que nos atavam, abrindo as cadeias que nos seguravam, des-
cerrando as algemas e nos libertando!
Por esta libertação, vemos, nele o “Poder da Obediência”, o “Poder da
Ressurreição”.
Nesta limpeza de fronteiras é necessário que primeiramente fique claro
para nós o que é a liberdade de Deus na qual se fundamenta a dádiva da graça,
considerando o fato de que a graça está para a religião assim como a vida está
para a morte.
Não será como pessoas religiosas que haveremos de conseguir [cumprir
ou] obedecer a estranha ordem de, na qualidade de “libertos do pecado”, e
como “servos de Deus” santificarmos os nossos frutos por meio dos nossos
pensamentos, nosso querer e nossas obras (6, 22); esses frutos, que Deus jun-
tará em seus celeiros, somente poderão ser produzidos por aqueles que rece-
beram a graça divina da paz que está acima de todo entendimento; são frutos
supernos que só aqueles que vieram da morte para a vida, podem produzir.
Eis que Paulo ousa dirigir-se aos que, como ele próprio, “conhecem a
lei” (7, 1) — (e a conhecem muito bem) tratando-os por “meus irmãos” e escre-
vendo-lhes como a pessoas que também conhecem a invisível fundamentação
em Deus que há na passagem de Cristo da crucificação para a ressurreição, e
que está além do limite das possibilidades conhecidas da religião.

Vs. 5 e 6 Porque enquanto estávamos na carne operava em nossos membros


juntamente com a lei, a energia dada pela paixão do pecado frutificando
para a morte.
Agora, porém, mortos para aquilo que nos mantinha presos, escapa-
mos do alcance da lei, de modo que somos servos segundo o novo sentido
do espírito e não do antigo sentido da letra.

361
7, 5 O Limite da Religião

[A tradução de Almeida escreve assim:


“Porque quando vivíamos segundo a carne, as paixões pecaminosas,
postas em realce pela lei, operavam em nossos membros a fim de frutificarem
para a morte.
Agora porém, libertados da lei, estamos mortos para aquilo a que está-
vamos sujeitos, de modo que servimos em novidade de espírito e não na cadu-
cidade da letra”].
A frutificação para Deus (6, 22 e 7, 4), (o “pensar”, ou “querer” ou
“fazer” digno de (“santificação não é possível sem a graça fundamentada na
liberdade de Deus).
O ser humano como tal e portanto também a pessoa religiosa, é carnal,
isto é, seu pensamento, sua vontade e suas obras pertencem ao mundo e não
alcançam qualificação [perante Deus] ou, mais apropriadamente, são da mais
alta impiedade e pecaminosidade; são características que afastam a criatura de
Deus e a conduzem para a morte, tanto mais assim quanto maior for o seu
sonho de se assemelhar a Deus.
O homem senhor de si mesmo; o homem que se considera reto, que não tem
o espírito quebrantado, que considera estar firme sobre seus pés, que ainda não saiu
coxo, trôpego, nem caolho das escaramuças e lutas com o escândalo, este sim, é um
homem, existencialmente, sem Deus. O seu vigor e a energia das paixões pecami-
nosas e seus apetites são os do corpo mortal (6, 12) no qual as paixões mais eleva-
das [as superiores], como por exemplo a animação religiosa, se distinguem das
inferiores (digamos da indolência), apenas por questão de graduação.
Sem o perdão final tanto é desagradável e suspeita a emoção erótica como
a política; tanto a emoção ética [a moral] como a estética [ou o culto ao belo].
O que se haveria de coibir é o excesso nas paixões; é a falta de modera-
ção. Ora, como as paixões do pecado se originam do vigor da carne mortal, o
seu impulso, a sua energia intrínseca, o seu vapor, não podem produzir senão
frutos para a morte, se [esta corrida] não for salva pela ressurreição.
As paixões humanas [vis ou nobres] objetivam fins, ideais e realizações
que têm apenas expressão e sentido temporal e não se projetam para a eternida-
de; são paixões que não podem sobreviver à crise de vida e morte a que são
submetidas todas as coisas.
Ora, “a lei” em todos os acontecimentos do mundo carnal opera como
elemento propulsor e não como freio; ela é o apogeu da humanidade, em seu
terrível sentido duplo. [É o zênite e o nadir; pode ser o maior bem e o pior mal].
Depois de havermos verificado qual o sentido e a direção que tomam os
acontecimentos do mundo sob os auspícios da lei, vejamos qual o papel da
religião.

362
O Limite da Religião 7, 5-6

A religião é uma atividade (ou possibilidade) humana que, sem dúvida,


se opõe às paixões, mas também ela está contida no mundo do pecado.
A rigor, Feuerbach tem razão: na última, na maior, na mais íntima possibi-
lidade que se abre ao ser humano, — na religião e justamente nela, avultam as
paixões do pecado; é precisamente aí que elas são despertadas e postas em ação.
Todas as paixões humanas, desta ou daquela forma, são a sobrevivência
daquela paixão original: “ERITIS SICUT DEUS”!
Esta paixão encontra solo fértil na religião e medra facilmente nas expe-
riências e nos eventos que a vida religiosa oferece. Pela lei, o homem se torna
pecador! (7, 7-13).
Haverá, acaso, um exemplo mais forte dessa paixão [da criatura em igua-
lar-se ao Criador] do que a lenda de Prometeu, roubando o fogo de Zeus?
É evidente que esse fogo, que foi furtado, em nada se aproxima do fogo
consumidor de Deus; é apenas um lume do qual se ergue determinada fumaça,
que vai juntar-se a outras muitas névoas, vapores, nuvens, algumas mais espes-
sas e coloridas, outras mais tênues e pálidas, todas estendendo o seu manto
sobre a planura humana; diversas, porém não totalmente diferentes entre si;
todavia nenhuma sequer parecida com o calor abrasador [com a coluna de fogo]
que impulsiona o passo que vai da vida para a morte e consome todas as pai-
xões do mundo; antes, esses sinais de fogo são expressões da pretensão de
todos: o desejo de coroar as emoções e paixões terrenas com a auréola da eter-
nidade; ou são, talvez, a manifestação da própria paixão pela eternidade, da
qual recebem o seu verdadeiro sustentáculo e a mais alta consagração.
Da conscientização religiosa não resulta, necessariamente, o desejo do
pensar, querer ou agir como Deus, [o desejo de ser igual a Deus], mas ela induz
um certo raciocínio objetivo, ainda que estranho.
Esse raciocínio leva a uma conclusão impressionante, muito lógica e
por isso, por assim dizer, inevitável: em primeiro lugar a pessoa conclui que
tanto pode ter como deixar de ter vida religiosa; e então deduz que, se tiver, fará
uma coisa boa para si e, portanto, será justificada [por Deus], fortalecida, con-
firmada em si mesma; será amparada para seu próprio benefício, [aperfeiçoa-
da] em suas aptidões, [exaltada e melhor aproveitada] em suas atribuições e
[melhor sucedida] em seus esforços.
Verifica-se assim, mais uma vez, que a possibilidade religiosa, muito
longe de revogar a existência do homem, de desataviá-lo das vestes mundanas
e de o colocar contra a parede [para um encontro direto com Deus] transfor-
mando-o [em nova criatura], age sobre o indivíduo como droga prudentemente
administrada para a preservação das ilusões que são mui caras ao homem sem
Deus.

363
7, 5-6 O Limite da Religião

É daí que procede e se explica a surpreendente fartura da “messe para a


morte”, que a religião produz.
Qual a outra atividade humana que, em seu desdobramento externo, te-
nha maior semelhança com a morte, do que a religião? Qual tem vida mais
breve? [Qual é mais efêmera?]
Em qual campo de atividades humanas existem mais sepulturas que na
história da apologética cristã, de sua dogmática, de sua ética, ou de seu ensino
social?
Esta evidência não pode ser esmagada: “A lei suscita a ira”! (4, 15). É
mediante esta evidência que pode, e precisa ficar esclarecido qual é o limite da
religião.
“Agora, porém, escapamos do alcance da lei”!
Do que se trata aqui? Seria “uma descrição da experiência do batismo”?
(Kuehl).
Absolutamente não! Porém ousamos, novamente (conforme já o fize-
mos sob 6, 19) dizer de nós mesmos o que ninguém pode dizer a seu próprio
respeito: dizer que estamos além desta última possibilidade humana; afirmar
que estamos além da possibilidade religiosa dos homens.
Dizemos isto com plena consciência da nossa ousadia pois estamos rom-
pendo as barreiras que nós mesmos havíamos reconhecido (7, 1); no entanto,
somos constrangidos a isso.
O fato de estarmos debaixo da graça de Deus (6, 14) não significa que
haveremos de ter um determinado padrão de comportamento, ou uma certa
conduta espiritual, ou ainda tal ou qual atividade no mundo [que nos fosse
imposta pela graça ou que dela nos adviesse como sua conseqüência lógica];
nem tampouco significa que haveremos de gozar de certas experiências especiais.
Todavia, por estarmos debaixo da graça divina “somos” quais “ainda não
somos”, e isto não porque sejamos livres para tanto, mas pela liberdade de Deus.
É pela liberdade de Deus que já não nos preocupamos com a relatividade
do sentido de nossas experiências e com a relatividade de nossa história religiosa.
É pela liberdade de Deus, que a criatura alcança o instante [supremo e]
eterno quando ela reconhece a Deus [como seu Criador] e vê na ressurreição [o
seu Salvador]; é nesse instante que o céu se abre para revelar, não o que o ser
humano deve querer, pensar ou fazer [nem tampouco para libertar o homem de
suas paixões] mas [para instalar] a liberdade de Deus para querer, pensar e
operar na criatura, conforme lhe aprouver. [“Fala, Senhor, porque o teu servo
ouve”! (I Sam.3, 9)].
É em virtude desta liberdade que já não nos preocupamos, nem nos
embaraçamos com as contradições da religião e não nos entristecemos nem nos

364
O Limite da Religião 7, 6

perturbamos com a duvidosa afinidade que a religião tem com as paixões do


pecado.
É verdade que, [depois desse Instante], continuamos ainda sob a sombra
da lei; “agora porém” (3, 21) volvemos os olhos para traz e ao clarão dessa luz
[a luz da liberdade de Deus, em nós], contemplamos a lei [a religião] e a sua
dialética, como algo que já não é.
Continuamos ainda sacudidos, impelidos e arremessados de um lado
para outro pelas peripécias da vida religiosa — (que todos conhecemos em
maior ou menor grau); todavia, do meio dessa agitação toda, podemos estender
nossas mãos para o local tranqüilo, imóvel, onde o pêndulo repousa.
Embora ainda continuemos envolvidos (e confusos) na trama dos acon-
tecimentos religiosos onde tudo (tudo!) é humano, já estamos — [não nós, mas
na qualidade daqueles que ainda não somos] situados lá, onde não há ambigüi-
dade nem polarização; estamos, (pela graça da reconciliação que nos restaura
na condição de filhos e que foi peculiar ao homem edênico), na origem da
história; todavia estamos também no final da história [no FUTURUM
AETERNUM, pela redenção em Cristo Jesus].
Nessa posição Peculiar [a quem se apropria — ou apropriou — da graça
de Deus] desaparece toda condicionalidade e toda comparação restritiva; ali
não há mais “assim como”; desaparece o reflexo falso e o brilho incerto e in-
constante, por que Deus é tudo em todos. Por isso a temporalidade, da qual não
podemos escapar, se depara ante nós como um todo isolado e cercado pelo dia
de Jesus Cristo e nós, finalmente, nos sentimos libertados da rede humana (por
demais humana) que, justamente por sermos religiosos, mais fortemente nos
estrangula e sufoca.
Libertados?! Sem dúvida, falando como homem (6. 19). já dissemos
demais! O que quer dizer libertados? e “ finalmente libertados”? Se com tais
expressões quisermos indicar qualquer qualidade ou característica visível em
nós ou em nossos semelhantes, então estamos de novo no âmbito da religião e
é “religião” o que tais expressões passam a significar: é a lei, sempre a lei, em
formas e possibilidades sempre novas.
Quem há, nascido de mulher, que não seja sujeito à lei enquanto viver,
como Cristo o foi? Quem seria tal “super-homem”?
Não sabemos o que dizemos e dizemos o que não sabemos quando afirmamos
que o lugar onde estamos, em que nos achamos, não é território sujeito à lei, ou então,
se dissermos que a religião é uma possibilidade superada, ultrapassada, liquidada.
Contudo, o afirmamos!
O afirmamos como o acontecimento do “impossível” como também te-
mos afirmado a realização do inaudito imperativo da santificação (6, 12-31).

365
7, 6 O Limite da Religião

Todavia, falar deste modo é falar muito além do [modo e tom] que convém aos
lábios e ouvidos humanos; falamos movidos pela verdade que nos atinge, qual
flecha desferida da outra margem do rio que nós [como criaturas deste mundo]
não haveremos de pisar. É a verdade que vem do outro lado da divisa que não
podemos transpor; todavia, de lá ela nos fala e ai de nós se nos calarmos e não
proclamarmos o que precisa ser dito, se não falarmos daquilo cuja invisibilidade,
apenas, pressentimos!
Contudo, o dizemos! Dizê-mo-lo como prisioneiros, todavia livres; como
cegos, porém vendo; como os que morrem, e eis que vivemos. Ora, não somos
nós que o dizemos: CRISTO é o cumprimento e o fim da lei; é o limite extremo
da religião.
“Mortos para aquilo que nos mantinha presos”.
O limite da religião, a sua fronteira extrema., é a linha da morte; ela
separa o campo das possibilidades humanas daquilo que [só] é possível a Deus;
é nessa linha que se faz a distinção entre a carne e o espírito; entre temporalidade
e a eternidade.
Somente saímos do âmbito da lei na medida em que somos golpeados
pela espada aguda e pesada da morte, isto é, na medida em que o poder e o
significado da cruz, como sinal da justiça e da graça de Deus, projetarem sua
sombra sobre nós.
O que nos mantinha presos ao jugo da lei era o desejo de esquecer que
temos de morrer, era o anseio de nos esquivarmos do “MEMENTO MORI”! (E
isto tentávamos na mais profunda e mais ativa religiosidade) considerando que
nosso desejo fosse límpido, íntegro, retilíneo, quando na realidade, e por isso
mesmo, era turvo, roto, tortuoso.
É no âmbito desse anseio que viceja a religião, na qualidade de última
possibilidade humana. Quem está livre dela?
Acaso não é evidente que a característica mais própria da realidade his-
tórico-espiritual [do mundo], a mais profunda, a última, é sempre este desejo
atrevido, indestrutível e vulgar, de não morrer, que encontramos por toda parte,
também no homem religioso, e principalmente nele?
Ainda bem que a religião tem de morrer. É em Deus que nos libertamos
dela.
[A tradução inglesa diz: “Os homens agarram-se à religião com tenaci-
dade burguesa, supondo ser ela a última palavra da alma e do sentimento,
indestrutível e imortal”.]
Ainda bem que por toda parte, e acima de tudo, vemos a religião cerceada
— radicalmente cerceada — e posta em dúvida. Vemos a sombra da morte
pairando sempre sobre este anseio indestrutível [de fugir dela] quer o admitamos

366
O Limite da Religião 7, 6

ou não, e esta situação no mundo temporal, da matéria e dos homens, jamais


esteve oculta aos observadores sensatos, desde Jó até Dostoiewski.
Se nesta sombra da morte que nos envolve reconhecermos nossa afinidade
com Cristo (6, 5), então sabemos (na qualidade de quem não sabe!) o que faze-
mos e o que dizemos quando afirmamos que estamos fora do alcance da lei.
Podemos estar, ainda, debaixo da lei, como convém, porém estamos,
muito mais, debaixo da graça.
Então seremos religiosos como se não o fôssemos. Viveremos ao lado de
nossas experiências religiosas, ou passaremos por elas [sem delas fazermos cen-
tros de impacto para nós mesmos e, muito menos, para aqueles que nos cercam].
Então teremos condições para olhar um pouco por cima de nós mesmos,
por cima daquilo que existe em nós, que venha de nós e por nosso intermédio,
vendo um pouco mais longe, talvez com um leve sorriso e também um pouco
de pesar. [Quiçá um leve sorriso pelo gozo da inefável paz de Deus e o leve
pesar por ainda estarmos presos ao corpo sujeito à lei].
Pode ser que então compreendamos, pela própria religião, a sua funda-
mental insignificância, sua irrelevância, sua falta de solenidade apropriada, sua
consciente limitação. Também pode ser que não. Todavia, quer sim, quer não,
ela já não será trágica [fatalista, aterradora] nem triunfante [arrogante e
pretenciosa]; nem sequer pretenderá ter razão, mas apontará para além de si
mesma dando testemunho de sua transcendentalidade onde quer que se encon-
tre o homem sujeito à lei.
O caminho da religião passa pela profecia, pelo dom de línguas, pela
interpretação de mistérios, pela crença, pelo sacrifício do corpo, pela caridade,
e assim por diante. A religião, quase que só pode ser caracterizada por ne-
gações, no entanto é designada como um “caminho sobremodo excelente”
(1 Cor. 12, 31 seg. parte): o caminho do amor!
Um caminho?
Não! de modo nenhum, pois não é visível; não pode ser tomado; não
pode ser palmilhado, nem percorrido.
Contudo, é um caminho! É a sombra que, desde a cruz, se projeta sobre
toda a humanidade “sadia”, e cria, invisivelmente,justamente no ambiente [onde
a sadia resistência é] mais tenaz, condições para seu abalo, seu desencrustamento,
revelando a possibilidade de Deus, o Espírito Divino, a Eternidade.
“Mortos para aquilo que nos mantinha cativos”: isto é, mortos para a
carne. Seja-nos invisivelmente perceptível que aqui se trata da indubitável, da
segura, da vitoriosa liberdade de Deus, que nos contém, nos move e nos dirige,
e que diz “basta” às imensas vagas do pecado — que encobrem as mais altas
montanhas da sentimentalidade humana.

367
7, 6 O Limite da Religião

“De modo que somos, agora, servos segundo o novo sentido do Espírito
e não no antigo sentido da letra”.
Santificai-vos! Sede servos de Deus! É assim que ordena o imperativo
da graça (6, 22).
No “antigo sentido da letra”, esta ordem significaria uma nova modali-
dade religiosa, talvez mais perfeita, mais apurada; porém, segundo “o novo
sentido do espírito”, ela significa o que estávamos tentando demonstrar: a pos-
sibilidade que começa exatamente do outro lado da linha limite de todas as
possibilidades religiosas do mundo, novas e velhas — lá onde terminam as
possibilidades humanas e começa a possibilidade de Deus.
Procuramos entender a limitação da religião; é ela uma grandeza nega-
tiva? Sim! — todavia ela tem também o seu lado positivo: o próprio Espírito
intercede por nós sobremaneira, com gemidos inexprimíveis. (8, 26).

Comentários: 7, 1-6

1. A afirmação do A. de que “é justamente na religião que não se toma


em consideração, nem a obediência, nem a ressurreição, nem Deus”,
certamente parece estranha embora seja facilmente compreensível
quando aplicada a “cultos” e “seitas” dominados por fanatismos e
crendices. Contudo, nas religiões mais evoluídas, especialmente nas
que têm sua origem no conceito teológico que o judaísmo trouxe e
legou ao mundo, a idéia fundamental é a vida eterna e, racionalmen-
te, poder-se-ia talvez dizer que elas todas se apóiam no plano defini-
do pelos três pontos citados: obediência (aos preceitos religiosos);
ressurreição (do fiel, para uma outra vida); e, Deus, um Senhor su-
premo. Essa omissão, portanto, não existe teoricamente; não é pro-
clamada pela Igreja, antes é firmemente negada por ela; contudo sub-
siste e é prontamente detectável quando forem seguidas interpreta-
ções e práticas que obliteram e deformam os verdadeiros conceitos
de Obediência, Ressurreição e Deus, substituindo-os pelos valores
duvidosos que religiões molificadas ou modificadas segundo critéri-
os humanos, apresentarem.
A obediência a que o A. se refere é o exercício, em nossos mem-
bros, do poder que vem da graça, que é dom gratuito de Deus; (ver
exegese 6, 12 23). Semelhantemente, a Ressurreição, é o poder que
dá novidade de vida, é a situação do “homem novo”, em Deus; (ver
exegese de 6, 1-12). Finalmente, Deus não é este ser “familiar” à
criatura humana que o criou a sua própria imagem e semelhança,

368
O Limite da Religião 7, 1-6

porém é o Deus que criou o céu e a terra, o Deus em quem nos move-
mos, existimos e vivemos: (Atos 17. 23-28).
Quais são os nossos próprios critérios a respeito desses pontos? Aca-
so apressamo-nos e nos esforçamos em cumprir os “preceitos” da nossa
fé, no espírito da letra “do ensinamento bíblico”, para cumprir o nosso
dever, sem considerar que a força da obediência procede da graça divi-
na? Acaso falamos da ressurreição e nos apegamos a ela, como a algo
distante (que ocorreu há 2.000 anos) sem considerar seriamente que pre-
cisamos de morrer com Cristo para ressuscitarmos com ele? (Necessário
nos é nascer de novo...) Acaso estamos insistindo em nos apresentar dire-
tamente a Deus, esquecendo que só por intermédio de Cristo é que pode-
mos achegar-nos a ele? Finalmente, não são, acaso, estas as modalidades
dominantes da religião que o mundo pratica? E nós?
O interesse imediato, o egoísmo e o egocentrismo religioso levam
o crente a “forçar a mão”; a se aproximar do trono da graça e a arrebatá-
lo para si; a se apropriar com violência do reino dos céus; todavia,
não com violência sobre seus apetites sobre a cobiça de toda espécie,
sempre presente, mas com violência perante Deus. (“Dá-me a parte
que me pertence”.). É assim que a criatura religiosa estende as suas
mãos para tomar o que não lhe pertence e tocar no que não lhe com-
pete; quer chegar a Deus e se esquece do Mediador; em sua conduta
ignora o sacrifício de Cristo, embora o louve com os lábios. Ainda
que tal religião se diga cristã, nela se ignora a Cristo e se olvida a
ressurreição; nessa religião não há obediência, porque a obediência
vem do Poder da Ressurreição e nela não há Deus porque o Deus que
o homem adora para alcançar a graça, para conquistar o Reino dos
Céus, para fazer jus à atenção divina (nem falaremos sequer do Deus
que buscamos para nossas vitórias no mundo), esse Deus, não é o
“Deus Desconhecido” de que Paulo falou aos atenienses...
2. Seria perigosa a atividade religiosa? Sim, humanamente falando; por-
que sendo a religião a mais alta possibilidade do homem, neste mun-
do, é também nela e por ela, que o ser humano corre o risco de se
exceder até o máximo do pecado. Todavia, onde pecado pode ser ex-
tremamente abundante, a graça é, efetivamente superabundante.
A religião é também perigosa, porque é nela que aprendemos que
o salário do pecado é a morte; é perigosa, segundo o mundo, porque
ela desestabiliza a criatura; leva-a à porta dos mais altos céus, en-
quanto lhe mostra que os pés continuam presos nos atoleiros do mun-
do; é perigosa porque evidencia que o homem nada pode fazer em

369
7, 7 A Significação (o sentido) da Religião

seu próprio benefício; que nada valem suas lutas, seus ais, seus sacri-
fícios, suas obras, suas renúncias, se não renunciar a si mesmo; a
religião é, humanamente, perigosa, porque questiona o ser e o ter da
criatura humana e põe a nu a infelicidade de quem pratica o mal que
não quer, e não consegue fazer o bem que deseja: é por tudo isto que
tantos são os pensadores ilustres e ignaros plebeus que dela fogem e
a combatem. Todavia, é também na religião que a criatura aprende
que há um Remidor, um Salvador, um Mediador. Esta é a sublime
realidade da religião que se supera a si mesma quando o ser humano,
por ela, vê a fidelidade de Deus e aceita a Cristo pela fé.

A SIGNIFICAÇÃO (O SENTIDO) DA RELIGIÃO (7, 7-13)

V. 7 (primeira parte) O que queremos, pois, dizer? Que a própria lei seja o
pecado? — Impossível!

[A versão de Almeida, escreve “que diremos, pois? É a lei pecado? De


modo nenhum”.]
A pergunta leva-nos a considerar qual seja a essência, o significado, a
“economia” dessa última e mais nobre possibilidade humana que, na forma de
lei, como religião, nos coloca na soleira da porta entre dois mundos e que,
todavia, está do lado de cá do abismo que separa os pecadores daqueles que
receberam a graça.
De um lado está a graça invisível pela qual Deus, na sua liberdade, rei-
vindica o ser humano para si o qual, assim tomado por Deus, e em vista da
realidade histórico-espiritual da humanidade, só pode ter o sentimento de nuli-
dade, de vazio, de vacuidade, peculiar à criatura que transpôs o abismo. Do
lado de cá está a lei, a religião que, aparentemente, oferece à criatura o mesmo
relacionamento que a graça proporciona, todavia, ela determina tal conduta, tal
atitude, que não só torna evidente que a religião é apenas uma possibilidade a
mais no mundo, além de todas as outras que aqui existem, como também evi-
dencia que a criatura a ela sujeita está [ainda] do lado de cá do abismo.
[Este é o dualismo com que se confronta a pessoa religiosa].
[Frente a frente], sob os umbrais dessa porta, manifestam-se, a primeira
coisa invisível (neste mundo): a graça divina, e a última coisa visível: a lei, a
religião. É pela graça que Deus toma a criatura e a guarda do outro lado do
abismo; e a criatura, contrastando essa sua nova posição com as realidades
histórico-espirituais de sua vida [neste mundo], sente a nulidade, o total esva-
ziamento de seu ser. A religião representa o extremo esforço humano para a

370
A Significação (o sentido) da Religião 7, 7

conquista dessa graça; é um esforço sublime, porém apenas válido como rotei-
ro, caminho, marco, seta indicadora do rumo que a criatura precisa seguir para
se entregar incondicionalmente a Jesus Cristo; a religião só terá valor humano
(talvez reconhecido por Deus, ou talvez não), na medida que contiver os atribu-
tos de testemunho acima referidos, sem nada mais pretender [perante os ho-
mens e perante Deus].
Para a transposição do “abismo” que existe entre o “aquém” e o “além”
não há um caminho gradativo, uma escada que pudesse ser galgada de degrau
em degrau, ou ainda, uma rampa que pudéssemos seguir com passo seguro,
avançando paulatinamente.
O abismo se abre abruptamente e para nós é o intransponível início de
um além totalmente diferente, pois mesmo se as mais famosas experiências da
graça coroassem sucessivas e constantes atividades religiosas, seriam [ou são]
parte deste mundo, estão do lado de cá do abismo, [e em nada se assemelham
com o que está além]. [Quando vier o que é perfeito, o que é em parte, desapa-
recerá].
A graça, na qualidade de primeira possibilidade divina — isto é (“a
servidão segundo o novo sentido do espírito”) — veio ao encontro da lei, que é
a última possibilidade humana — (“a servidão segundo o antigo sentido da
letra”)— (7, 6) com um categórico “NÃO”! — em toda sua extensão. [A graça
é o encerramento da lei].
O que significa para nós a enorme distância que separa a graça da Reli-
gião? O que significa o fato de corrermos, neste mundo, em paralelo [junto] com
a religião embora nela seja absolutamente intransponível o hiato que nos separa
da graça? Por que, [em nossa vida terrena], estamos tão próximos da religião e
tão longe da graça? Por que temos tanta afinidade com a religião e estamos em
estado de inimizade permanente com Deus [a própria fonte da graça]?
Como haveremos de interpretar e compreender o relacionamento do
homem com Deus pela religião que acompanha o ser humano durante toda sua
vida (7, 1) quando ela está separada, dissociada do relacionamento da criatura
com seu Criador por meio desta negativa radical [com que a graça vem ao
encontro da lei]?
“É a lei pecado”? A confirmação (a resposta afirmativa) desta pergunta
parece querer impor-se à força e nós mesmos [neste trabalho], por diversas
vezes quase a adotamos, quando reiteradamente procuramos deslindar o senti-
do das duas possibilidades extremas e opostas que a lei representa para o ser
humano.
Por que não dizer [desde logo] o que está evidente, embora seja um
tanto surpreendente [e até chocante]? Dizer que exatamente a religião — a

371
7, 7 A Significação (o sentido) da Religião

destemida presunção do ser humano que se estende para Deus — é o extremo


assalto a Deus e, por isso, é também a queda que separou a criatura do Criador,
e constitui o pavoroso pano de fundo de nossa existência [terrena].
Por que não encetaremos, então, uma polêmica anti-religiosa, visando a
encontrar algures, [ou de alguma forma], uma possibilidade humana que so-
brepujasse a religião em sublimidade (grandeza, perfeição, pureza, etc.)? Por
que não acompanhar Marcion, proclamando um novo Deus, em substituição ao
antigo, revelado pela lei? Ou então, por que não faremos conforme Lhotzky,
jogando o “Reino de Deus”, que está bem à mão, contra a religião? Ou ainda,
quem sabe, poderíamos seguir Johannes Mueller pelo caminho que nos trou-
xesse de volta, lá da região da observação indireta [de Deus], para a área perdi-
da, todavia ainda encontrável, da observação direta? Outra alternativa será aceitar
o convite de Ragaz, e emigrar do seio da igreja e da teologia, “já sem esperan-
ças”, para o mundo melhor do laicato. Poderíamos, também, dar prossegui-
mento a Beck e ao antigo naturalismo de Wuerttemberg, segundo não poucas
páginas da lª edição deste livro, com referência à existência de algo de divino
no crescimento orgânico da sociedade humana, em contraposição a um idealis-
mo vazio. Ou, por que não haveríamos de recorrer ao misticismo, sempre tão
“salutar” e engendrar uma religião secreta, uma verdadeira super-religião [uma
religião esotérica que estivesse acima de todas as demais, as incorporasse ou
lhes desse um denominador comum], um sistema religioso que se desenvolves-
se em paralelo às religiões [quiçá mais pragmáticas]?
A resposta [só pode ser]: “Impossível!”
A radicalidade de todos esses ensaios [de todas essas alternativas] é ape-
nas aparente: “NONDUM CONSIDERASTI, QUANTI PONDERIS SIT
PECCATUM!” (Anselmo).
[Convém abrir aqui um parêntese para analisar o que o A. diz, ou o que
se poderia entender das muitas alternativas que ele sugere (com certa ironia) à
religião, particularmente no que se refere ao “antigo naturalismo” do grupo de
Wuerttemberg “acompanhando não poucas páginas” da lª Edição de sua pró-
pria obra.
Parece-me que o pensamento do A. continuará obscuro.
Quando esta sua observação foi escrita, já a primeira edição estava, defini-
tivamente, morta e sepultada; os tradutores ingleses não atinaram com o sentido
e, ao que tudo indica, nem mesmo recorrendo diretamente a Barth que, segundo
eles mesmos afirmam em seu prefácio, era sempre solícito em responder-lhes
prontamente e com toda precisão. (“Many questions have been asked and these
have been answered always by return of the post,... and always strictly to the
point”). No entanto, nesse mesmo prefácio faz-se menção especificamente a

372
A Significação (o sentido) da Religião 7, 7

este trecho, desde a referência a Marcion, até ao “idealismo vazio”, como sen-
do um trecho intraduzível que, no entanto, colocam aproximadamente assim:

“Por que não nos alistarmos entre os discípulos de Marcion, procla-


mando um novo Deus, totalmente diverso daquele da lei?
“Por que não haveríamos de seguir Lhotzky, jogando o “Reino de
Deus” contra a “Religião”, ou então Johannes Mueller, transportando os
homens do reino da observação indireta para os abandonar no reino
perdido da observação direta que, contudo, ainda pode ser encontrado?
“Ou então, desfraldando com Ragaz a bandeira da revolução contra
a teologia e a igreja, sair de sua esterilidade e invadir o novo mundo do
laicismo cabal, em religião?
“Por que não voltaremos ao tema principal da lª Edição deste comen-
tário e, dando as mãos a Beck e ao naturalismo dos mentores da velha
escola de Wuerttemberg, apresentar, contra um vazio idealismo, a figura
da humanidade como sendo um organismo divino, em crescimento?”

Seria ousadia descabida contradizer os doutos doutores que prepararam


a versão inglesa e que atribuem, em certa extensão, o fraseado de Barth ao
“explosivo gênio germânico” e à peculiar habilidade do A. em atacar o vigor da
idolatria, em termos modernos.
Ora, parece-me que se o A. tivesse pretendido dizer que na primeira
edição de sua obra, ele tentara convencer seus leitores de que a humanidade era
“um organismo divino em crescimento” (conforme o registro da passagem, na
versão inglesa, parece sugerir,) ele estaria incidindo no erro que ele mesmo
tanto combate: a divinização do homem ou, a sua manifestação inversa: a
humanização de Deus.
Parece-me, portanto, mais condizente com o teor geral e também espe-
cífico da obra concluir que o A. quer dizer que uma das formas de não conside-
rar quão pesado é o pecado é seguir Beck ou o naturalismo dos mentores da
antiga escola de Wuerttemberg, tema ao qual Barth dedicou não poucas pági-
nas de sua primeira edição. [Notar que o A. não diz que este foi o tema principal
mas “mit manchen Seiten der 1. Auflage”.].
O pecado e a árvore podre; [o tronco apodrecido]. O pecado não é um
acontecimento entre outros muitos; ele não é idêntico à possibilidade religiosa
[ou semelhante e comparável a ela] e por isso ele não pode ser contornado por
alguma forma de religião; isto é, o pecado não pode ser vencido, aniquilado,
sobrepujado por práticas religiosas ou por qualquer religião. Porém o pecado é
uma possibilidade que existe em toda e qualquer possibilidade humana.

373
7, 7 A Significação (o sentido) da Religião

Ora, nesta metáfora, e por paralelismo de conceitos, a “graça” é a árvore


boa; [o tronco sadio].
A graça não está acima, ao lado [ou em paralelo]. Porém, a graça é a
possibilidade divina da criatura, que existe além de todas possibilidades
humanas.
Quem quer que seja que havendo compreendido, com acerto, que a lei
[ou a religião] é a expressão da máxima possibilidade da humanidade sob peca-
do é confundir as coisas considerando religião e pecado vinhos da mesma pipa
e daí passar a combater a lei frontalmente ou de alguma forma mais sofisticada;
quem advogar a existência no mundo sem os ditames da lei — [e portanto,
supostamente, sem pecado!]; quem, ainda que por ressentimento fundamenta-
do [justo], contra a “religiosidade humana”, pretender rejeitar o Antigo Testa-
mento conforme o fez Marcion (esquecendo-se que, conseqüentemente, deve-
ria rejeitar também o Novo Testamento, em sua totalidade), mostra apenas que
não se confrontou ainda com a lei, de forma decisiva. [Ainda não entendeu o
verdadeiro sentido da religião].
A crise da religião consiste no fato de que não só é impossível sacudi-la
do homem “enquanto ele viver”, como também para o ser humano como tal,
(para a criatura deste mundo!) ela é uma característica intrínseca; porque na
religião as possibilidades humanas estão delimitadas pelas divinas pois, cons-
cientes de que Deus não está na religião mas também conscientes de que não
podemos avançar além dela, temos que nos deter e perseverar nesta possibili-
dade para que, de além da delimitação que ela nos demarca, Deus venha a
nosso encontro. Se é certo que na final supressão desta nossa última possibili-
dade tem lugar a transformação do “NÃO” divino, em “SIM”, então não nos é
lícito fugir dela; não podemos colocá-la de lado ou tentar substituí-la por outra
possibilidade qualquer.
A lei não é idêntica ao pecado e a abrogação parcial ou total da lei não
significa que, (por isso ou dessa forma) haveremos de emigrar do reino do
pecado para ingressar no reino da graça.

V. 7 (Segunda parte) Eu não teria experiência do pecado se não fora pela lei;
pois eu nada saberia da cobiça se a lei não dissesse. Não cobiçarás!

“Eu não teria conhecimento do pecado se não fora pela lei”.


— O que é pois a religião se ela, embora sendo a mais alta possibilidade
humana, no reino do pecado, não é, contudo, idêntica ao pecado?

374
A Significação (o sentido) da Religião 7, 7

[Não seria de supor que se a religião é a maior possibilidade humana, e


o homem é essencialmente pecador, então também a religião seria (ou será) a
expressão máxima do pecado?].
A religião é a atividade humana pela qual todas as suas demais possibi-
lidades ficam, notoriamente, expostas à luz de uma crise profunda, radical, que
evidencia o pecado e o torna real.
O ser humano é pecador por força de sua própria vocação, de sua elei-
ção; (conscientemente ou não), o homem é pecador por força da situação em
que se encontra perante Deus, e pelo desenvolvimento [histórico] dessa situa-
ção; ele é pecador por força da lembrança de sua perdida ligação direta com
Deus, e por nada mais.
Se não considerarmos a religião, então o ser humano, como uma criatu-
ra entre as demais, apenas é pecador no secreto de Deus de maneira invisível,
não histórica.
[Esta maneira de dizer do A., afirmando que o “ser humano é pecador
por força de sua eleição” se me afigura como a proposição de silogismo, enten-
dendo-se por “eleição”, ou vocação, a criação do homem à imagem e seme-
lhança de Deus, com capacidade de optar entre a obediência e a desobediência
e portanto eleito” (ou destinado) à salvação ou à danação. Poderíamos pois,
dizer que o homem foi eleito para ser perfeito perante Deus; todavia, exercendo
a liberdade que recebeu pela eleição divina, desobedeceu, cometendo pecado;
logo, o homem é pecador por força da própria eleição...
Em outras palavras: o pecado é o contraste entre as atitudes da criatura
para com o Criador, antes e após a queda.
É a lei que revela este contraste; não houvera a lei, e o homem não saberia
de sua situação. (Por isso é que a lei é santa e boa, pois chama o homem à realida-
de). Quando desconsideramos a religião (como se a lei não existisse), então o peca-
do já não tem destaque; a sua silhueta se perde por falta de pano de fundo, e sua
memória desaparece por falta de historicidade.
Deus conhece o bem e o mal [e sabe o que é um e o outro]. Todavia o
homem não pode ser abordado sobre o mal [se a lei não lho revelar]; semelhan-
te mal não pesa sobre a criatura humana, nem como culpa, nem como destino.
O homem não vê a espada da lei levantada sobre ele e é impossível impressioná-
lo com essa fatalidade ou convencê-lo dessa sentença.
Ora, com o “homem novo”, com a criatura redimida, ocorre um fenô-
meno similar: a criatura é posta pela segunda vez perante Deus, agora, porém,
do lado oposto; o homem é justificado por Deus [por força da graça divina]; ele
é justificado de forma invisível, de forma não registrável na história; portanto,
sem a lei, o homem é justificado de forma abstrata [tão abstrata quanto, sem a

375
7, 7 A Significação (o sentido) da Religião

lei, é ele pecador perante Deus somente]. O homem é justificado no secreto de


Deus. A criatura não pode ser abordada [ou louvada] por essa justificação, nem
está ela em condições de se gloriar por isso. [Só Deus sabe o que é bom...]
Porém, entre a invisibilidade do pecado e a invisibilidade da graça, está
a lei, a religião, e sob o conteúdo dos demais fatos (conscientemente ou no
subconsciente) está o impacto, a impressão [indelével] da revelação, o conheci-
mento do bem e do mal, a ciência (obtida de alguma forma) de que a criatura
pertence ao Criador; a lembrança de sua eterna origem, na qual ela foi predes-
tinada para redenção ou para a danação.
Uma exceção a esta conscientização foi admitida teoricamente [para
fins de argumentação] na exegese de 5, 13-14. Pouco se nos dá [para as consi-
derações que fazemos] aqui, se tal exceção existiria [ou existe]. [A exceção a
que o A. se refere é a hipótese da possível existência de algum mundo, tempo
ou local, onde não houvesse lei].
Investigando o sentido e o teor da conscientização que nos sobrevem pela
lei ou pela religião, percebemos logo que ela contrasta nitidamente, ainda quando
de forma apenas relativa, com tudo mais que possamos perceber no mundo.
A idéia de um nume — [da existência de qualquer tipo de divindade
superior] — é [de certa forma] chocante, inquietante, e perturba todos os outros
pensamentos. Se, para a criatura humana, houver um Deus, o homem resulta
posto mais ou menos clara e energicamente em dúvida. Abre-se uma brecha,
mais ou menos difícil de transpor, entre o seu “SER” e um ameaçador “NÃO
SER” que lhe é oposto; entre a realidade e a verdade. Levanta-se uma dúvida
mais ou menos forte sobre se “o possível” não poderia ser o impossível ou, se
“aquilo que é” não poderia ser “o que não deve ser”.
Um pouco desta crise está contido em toda religião e quanto mais forte-
mente esta crise se fizer sentir, tanto mais claro fica que, no fenômeno em que
a observamos, estamos de fato nos confrontando com um problema religioso.
Este fenômeno religioso, quando considerado à luz da evolução histórica, pare-
ce haver atingido o seu grau mais alto e mais puro na agudeza do ataque profé-
tico aos homens, dentro da “lei” israelita.
Todavia, o que significa esta crise?
Na realidade, cabe agora dizer que a “revolta dos escravos” levantada
contra Deus, pelos homens, tem expressão e se torna visível justamente no
fenômeno religioso.
O homem aprisiona a verdade com a sua pecaminosidade. [“Pecamino-
sidade” é o substantivo que empregamos para traduzir a palavra alemã
“unbotmaessigkeit”; a versão inglesa escreve “Unrighteousness” e a S.R.V. diz
“men who by their wickedness suppress the truth”. Entendo que “pecamino-

376
A Significação (o sentido) da Religião 7, 7

sidade” expressa bem o pensamento que o A. parece querer ligar ao texto: a


idéia de maldade, de vileza, de caráter ruim, de ausência de virtude e santidade;
de disposição depravada e corrupta; impiedade.
A tradução de Almeida refere-se aos que “detêm a verdade com a injus-
tiça (1, 18)].
O homem perdeu-se em si mesmo e quis dar ouvidos ao “ERITIS SICUT
DEUS”!
O ser humano passou a ser para si mesmo o que Deus deveria ser para
ele! Passou a confundir [a trocar] o que é temporâneo pelo que é eterno e,
portanto, também o que é eterno com o que é efêmero. O homem passou a
ousar o que jamais poderia ousar: estendeu a sua mão para além da linha da
morte que lhe é imposta [por Deus como limite] para dirigir-se ao Deus imortal
e “desconhecido”, [as aspas não são do A.] e assim [tentar] roubar para si o que
só a Deus pertence, colocando-se no nível de Deus ou, trazendo Deus para
junto de si [isto é, para o nível das coisas materiais e humanas].
A criatura se conduz com relação a Deus ignorando, da forma a mais
crassa, a distância que existe entre Deus e o homem, e se situa onde o homem
jamais pode estar como homem, pois Deus é Deus, e já não seria mais Deus, se
semelhante avanço fosse possível.
Assim procedendo a criatura humana faz de Deus mais uma coisa entre
as demais coisas deste mundo, e tal procedimento é claramente perceptível na
atividade religiosa; a conseqüência de semelhante conduta são as crises [ine-
rentes à vida religiosa], que acompanham o indivíduo nesta sua mais alta, últi-
ma e arriscada possibilidade.
Isto é, pois, o ser humano: a criatura que, ao afligir-se com a problemá-
tica do seu mundo, analisando-se no mais profundo de seu ser, corre o risco de
— (na possibilidade religiosa, ousando o impossível e fazendo com arrogância
nunca imaginada o que ela, em nenhuma circunstância poderia fazer) — colo-
car-se junto a Deus como perante a um seu semelhante.
[Esta análise do A. é extremamente contundente: acaso não é “conver-
sando” com Deus, que oramos? Acaso não expomos a Deus os nossos anseios
e as nossas aflições como a um amigo, a um pai? Acaso estaremos nós “os
crentes”, errados quando nos dirigimos a Deus com o tratamento mais familiar
“Tu”, enquanto a tradição católico-romana persiste na forma mais respeitosa
da segunda pessoa do plural?
É certo que “do lado de lá” (entre a Igreja Romana), Deus ficou de tal
maneira inacessível que houve necessidade de recorrer à mediação dos “San-
tos”, da Virgem Mãe...
Não estaremos incorrendo no erro oposto, fazendo de Deus o nosso
íntimo e, nessa atitude, igualando-o a nós ou, nos igualando a ele?

377
7, 7 A Significação (o sentido) da Religião

Não se dará o caso de, em assim procedendo, estarmos detendo a glória


divina e a “verdade” de Deus com a pretensiosa piedade que, talvez, não seja
mais que a nossa própria impiedade e nossa injustiça?
Não teria sido justamente por isto tudo que Cristo mandou que pedísse-
mos em seu nome? (João 14, 13).
É verdade que não sabemos orar e muito menos pedir o que convém. Se,
conscientes disto, nos aproximarmos reverentemente de Deus, de todo nosso
coração, de todo nosso entendimento, lembrando que poucas (e quão poucas,
quiçá nenhuma) serão as nossas razões, pois Deus está nos céus e nós na terra;
e se nos lembrarmos que somente podemos aproximar-nos do trono da graça
valendo-nos da intercessão de quem levou sobre si as nossas culpas, é inegavel-
mente certo que, independentemente da forma pronominal, da nossa sintaxe e
do nosso palavreado, o próprio Espírito nos assistirá, pois “intercede por nós
sobremaneira, em gemidos inexprimíveis” (8, 26)].
[Se tão duramente se situa a atividade religiosa], como ficam as outras
possibilidades humanas? Se a religião que é a possibilidade máxima, a supre-
ma, é sacrílega, em que situação ficam as demais?
É nesta conjuntura que a “lei” [a religião] se impõe a todas atividades
humanas [como pedra de toque, para julgá-las].
A luz do que significa, para o homem, a sua mais alta atividade, revela-
se também o significado das demais possibilidades menos sublimes do que a
religião.
Se o último elo da corrente é tal [que mostra a pecaminosidade do ser
humano em seu relacionamento com Deus], como não serão as demais ativida-
des, que lhe ficam para trás, umas após outras?
Com a exposição da ilusão a que está sujeita a mais sublime atividade
humana, fica realçada a condição ilusória de todas as demais atividades que o
ser humano, como tal, possa ter.
Como religioso, o ser humano se situa em confronto a Deus e, portanto
— precisa ficar nessa confrontação. Na recordação de sua ligação direta com
Deus, a perda dessa ligação passa a ser um caso notável. Irrompe a moléstia
que leva à morte. A religião se transforma em ponto de interrogação que põe
em dúvida todo o sistema cultural humano.
De que forma obteve, o homem, a sua experiência como religioso?
— Evidentemente, foi do “condicionamento” invisível que o pecado
impôs.
A queda que afastou a criatura do Criador, a ruptura da unidade que
outrora existiu entre o homem e a sua origem, a dualidade da predestinação —
estabelecida desde a eternidade para a salvação ou para a perdição, tornam-se

378
A Significação (o sentido) da Religião 7, 7

realidades histórico-espirituais “mediante a lei” [vale dizer, mediante a reli-


gião]. “O pecado avulta!” (5, 20).
“Eu nada saberia da cobiça se a lei não dissera: “Não cobiçarás!”
Nada explica o fato de minha vitalidade [a minha tendência natural] ser
pecaminosa e que eu, por isso, deva mudar a minha conduta; esta caracteriza-
ção e este reclamo não têm qualquer significado fora da religião.
Os sentidos humanos se opõem a esta desqualificação da criatura; rea-
gem contra a desconfiança, contra a acusação de pecado, contra o descrédito
lançado sobre a “simples” natureza.
[É preciso reconhecer que] fazendo-se abstração do significado original
da religião [essa reação de nossos sentidos] tem sua razão de ser).
Por que haveria de ser mau o que é natural? “Eu nada saberia da cobi-
ça”. (“Sem lei está morto o pecado” (7, 8)).
Se eu não me expusesse, imprudentemente, à luz altamente discriminativa
da minha possibilidade divina [a religião]; se eu, como homem religioso, não
cometesse a fatalidade de sair da comodidade sombria de uma mundaneidade
neutra, eu teria — em toda seriedade e de boa mente — como natural, a minha
justificação pelo Deus que me era desconhecido.
Todavia, a minha cobiça [as minhas inclinações] e a minha vitalidade
tais quais aqui as conheço, não podem deixar de se expor a essa luz.
A problemática da existência neste mundo, ainda que oculta, faz com
que, de uma ou de outra forma, a religião me sobrevenha como o ataque de um
homem armado; ou, por outras palavras, o problema da existência de Deus,
ainda que oculto [ou subconsciente], impõe que eu faça o que não posso, não
devo, fazer: preciso buscar a eternidade de Deus (por assim dizer), na forma
inadequada e indigna de um “relacionamento religioso” relacionando a eterni-
dade divina com a minha temporalidade e a minha temporalidade com a eterni-
dade de Deus.
Assim, mediante a prática — digamos, necessária — da religião, entrou
em minha vida a lei e, com ela, uma negação tremenda, ainda que não absoluta.
[Essa negação vem da] iluminação intensa [de minha conduta], ainda que indi-
reta, (através da Igreja) que interpela a minha cobiça [os meus desejos e meus
anseios], as minhas tendências naturais, com extrema energia, ainda que não de
forma definitiva.
Há um rompimento relativo, porém muito radical entre o teor da vida
religiosa e todas as demais atividades do ser humano.
Na religião apresentada pelos profetas esta ruptura é assustadora e é
justamente isto o que há de especial no judeu: ele avançou muito na direção
daquela linha [que separa o humano do divino, o perecível do imperecível; ele

379
7, 7 A Significação (o sentido) da Religião

chegou muito mais longe na sua atividade religiosa do que o mundo gentílico,
do que o mundo indiferente à religião]; [havendo avançado tanto], a sua im-
pressionante queda vertical, em toda sua nitidez, pode servir-nos como adver-
tência contra a aproximação indevida a um alcantil ainda mais íngreme e mais
agudo, que separa de Deus tudo o que é humano, todo conteúdo e todas as
realidades do mundo. (3, 1-20).
Se acaso me é lícito exercer a cobiça na singeleza da minha naturali-
dade como criatura enquanto eu nada conhecer senão esta minha cobiçosa
natureza, já não posso mais valer-me desta ignorância para minha própria
justificação quando me desdobro para conhecer algo mais do que aquilo que
me toca naturalmente. Quando eu houver avançado decididamente até o limi-
te extremo, onde minha existência terrena é argüida e posta em dúvida pela
possibilidade divina, então já estou quebrantado; já não mais me sinto justifi-
cado, não sou inocente! Agora a religião, esta “cobiça” que, de certa forma,
sobrepuja todos os desejos, descerra os lábios para proclamar: Não deveis
cobiçar coisa alguma!
A eternidade de Deus, quando atribuída às coisas passageiras do mun-
do, as torna pecaminosas da mesma forma que se torna em pecado a
temporalidade humana comparada à eternidade divina, porquanto este relacio-
namento do homem com Deus e vice-versa, é obra do ser humano em sua
queda e não é obra de Deus, de Deus, somente.
De que maneira se dá, como ocorre, como se desenrola, com que nitidez
se pode observar esta crise da “vitalidade” humana este contraste entre a possi-
bilidade extrema da criatura e as possibilidades divinas, são questões de desen-
volvimento histórico que agora não nos interessam. Investigamos apenas o sig-
nificado básico do fenômeno religioso ao lado das demais experiências da vida;
indagamos a respeito do sentido da religião.
[Como resposta], encontramos que através da religião o pecado se torna
uma realidade visível em nossa existência, e que é na religião que a criatura
manifesta a sua revolta de escravo, contra Deus.
Agora compete-nos indagar sobre o sentido da liberdade de Deus e da
nossa liberdade; como esta se manifesta além da realidade e da visibilidade do
pecado [que a religião nos revela].

Vs. 8-11 Mas o pecado, fazendo da lei um meio, despertou em mim toda sorte
de concupicências. Porquanto, se tirarmos a lei, está morto o pecado, ou-
trora eu vivia sem lei, porém, chegando o mandamento, entrou o pecado
na minha vida; eu, todavia morri.

380
A Significação (o sentido) da Religião 7, 8-11

Então aconteceu que justamente o mandamento, que visava à vida, me


proporcionou a morte. Pois o pecado obteve um meio pelo mandamento,
enganou-me, e me matou com ele.

A tradução de Almeida registra assim: “Mas o pecado, tomando ocasião


pelo mandamento, despertou em mim toda sorte de concupicências; porque,
sem lei, está morto o pecado.
Outrora, sem lei, eu vivia; mas sobrevindo o preceito, reviveu o pecado
e eu morri.
E o mandamento que me fora para vida, verifiquei que este mesmo se
tornou para morte.
Porque o pecado, prevalecendo-se do mandamento, pelo mesmo man-
damento enganou-me e me matou.”].
“Mas o pecado, fazendo da lei um meio, despertou em mim toda sorte
de concupicências”.
Não se pode deixar de usar um pouco da linguagem mitológica quando
se quer tratar do processo no qual o “logos” é transformado em mito.
O pecado, na sua origem, no secreto de Deus (que jamais e em lugar
algum dá origem ao pecado, mas estabelece a sua verdade final) é a possibilida-
de do rompimento da unidade entre a criatura e o Criador; é a possibilidade da
alternativa de sua predestinação — para a salvação ou para a perdição.
Em Deus o homem tem a oportunidade de ser um escravo agitador, re-
belando-se e rompendo a unidade com ele a fim de reter para si a sombra que
deveria acompanhar a luz divina como negação e, ao retê-la, procura dar-lhe
fôros de valor eterno para ter a oportunidade de ser Deus, a sua maneira.
[À criatura humana compete honrar e glorificar a Deus; é nesta condi-
ção que o crente fiel brilha em seu viver, não porque irradie algo de seu, mas
refletindo a luz que lhe chega desde a cruz; nesse reflexo destacam-se as som-
bras da materialidade, da mundaneidade, da temporalidade e da história e esse
destaque, na forma de contraste qual o rebaixo de um sinete, em sua negatividade,
é testemunha e testifica a glória de Deus. Todavia, é um testemunho humano e,
portanto, efêmero e corruptível.
Ora, o homem tem, em Deus (pois foi criado à sua imagem e seme-
lhança), a liberdade de escolher o seu próprio caminho: tanto pode optar pelo
escândalo da fé como seguir outras alternativas, quiçá mais racionais do ponto
de vista humano procurando, entre outras possibilidades, roubar para si o bri-
lho que vem da “luz não gerada”, atribuindo valores transcendentais e eternos
ao destaque negativo de suas próprias qualidades; então cria para si um Deus
segundo o desejo de seu coração, segundo a sua cobiça. Cria o Deus deste

381
7, 8-9 A Significação (o sentido) da Religião

mundo, satisfazendo o anseio fútil (e antigo) de se tornar igual a Deus: igual ao


Deus conhecido deste mundo!].
O conhecimento dessa possibilidade e a sua utilização, constituem o
pecado.
Assim como a água retida numa eclusa se precipita, pela comporta aber-
ta, para o nível inferior e aí permanece como convém a sua própria natureza,
assim também o pecado avança no mundo das coisas, no mundo visível da
temporalidade e aí se alastra em contraposição ao que não é material, ao que é
invisível e eterno. Isto se dá segundo a sua natureza que, tratando-se de água do
canal, a impele “para baixo”, e não “para o alto”; é da natureza do pecado,
correr para o que é relativo, para o que está separado [de Deus], para aquilo que
pode ser observado e visto diretamente, [materialmente], para o que está em
oposição [a Deus].
Pecado é a manifestação do cosmos contra o ato de criação; é a oposição
da existência e do modo de ser [do homem], contra o [verdadeiro] ser; é a
oposição da criatura, contra o Criador. Não é evidente por si mesmo que a
eclusa, necessária para a manifestação dessa oposição, seja aberta. Original-
mente não foi assim.
[Na analogia do A., assim como a água na parte alta da eclusa tem ener-
gia potencial para, através da comporta aberta, alagar os baixios do canal, as-
sim o pecado, originalmente, existia em potencial e, aparentemente, nada justi-
fica que a “eclusa” houvesse sido aberta e o pecado fluísse].
A criatura humana estava no paraíso onde não havia “em cima” e “em
baixo”; onde não havia absoluto e “também” relativo, nem aquém e “também”
além. Nesta inclusão adverbial, neste “também” está [implícita, e presente em
potencial], à espreita, a queda do homem. [A abertura da comporta teve lugar
com o acidente da queda do homem].
Enquanto o homem habitou no Éden, o cosmos era um todo com a cri-
ação; havia o estado de unicidade entre o homem e Deus; o que era natural era
também santo porquanto o que é santo era então natural; não havia cobiça por-
que todos os frutos do jardim estavam à livre disposição do homem, e até mais
do que isso, era-lhe ordenado que comesse deles todos — exceção dos frutos
da árvore do centro do jardim, a árvore do “conhecimento do bem e do mal”,
porquanto a “oposição” (o “reverso”), escondida em Deus desde toda a eterni-
dade, não estava reservada à criatura humana, não deveria ser parte de sua vida.
O homem não deveria ser, para si mesmo, o que ele [efetivamente] é, perante
Deus: a criatura como um “segundo” [um subalterno] ao lado do Criador.
O homem não deveria ter conhecimento daquilo que Deus sabe dele e,
misericordiosamente, dele oculta, que a criatura é apenas um ser humano.

382
A Significação (o sentido) da Religião 7, 8-9

[A Bíblia não nos diz que Deus criou o homem para ser seu igual, po-
rém, fê-lo à sua imagem e semelhança. (Anotemos desde logo que Deus é Es-
pírito e, portanto, essa semelhança — semelhança e não igualdade — terá sido
espiritual). Apenas para melhor conceituação da significação de semelhança,
lembremos que dois triângulos podem ser semelhantes e, contudo, bastante
diferentes entre si: um pode ser infinitamente pequeno e outro infinitamente
grande... Semelhança não é congruência; ser semelhante não é ser idêntico, não
é ser cópia ou réplica fiel.
Para o entendimento dos comentários do A. sobre os versículos 8 e 9
será conveniente ter em mente a advertência que ele faz quando afirma que ao
tratar da mitologia, para desmascará-la, é mister empregar palavreado mitoló-
gico; é o seu ponto de vista. Portanto, é de esperar que, quando Barth analisa
aquele aspecto do pecado que transforma Deus em ente mitológico, o seu
linguajar tenha esta forma mediante a qual visa a mostrar a hedionda impropri-
edade da humanização de Deus; é um método expositivo, característica notória
de seu estilo, que choca pelo absurdo.
Ora, como argumenta o Autor?
— Afirma que Deus estaria usando (ou teria usado) de piedosa ocultação
da verdade “nua e crua” de que o homem é simplesmente homem e nada mais,
não lhe contando a verdade por pena, piedosamente, qual médico que esconde
ao paciente sem esperanças, a verdadeira situação de seu estado físico.
Seria este um Deus algo comparável aos deuses da mitologia grega,
onde um cria o risco e o outro, generosamente, desvenda aos olhos dos interes-
sados, o perigo iminente. É Circe advertindo Odisseu para que não se deixe
enganar pelo canto mavioso das sereias. Deus seria, assim: teria, quiçá, poupa-
do piedosamente o “seu segundo” do conhecimento “da posição” que desde a
eternidade estaria escondida no próprio Deus, “bondosamente” nada contando
dessa situação que, para desgraça do gênero humano, “a serpente” veio revelar.
Acaso teria Deus, deliberada ou casualmente, feito caso omisso do de-
creto eterno da predestinação de duplo efeito?
Parece que o A. considera tão clara a evidência dos fatos (pois escreve
para teólogos) que não se dá, sequer, o cuidado de reiterar que fala “por parábola”.
Acaso não é absolutamente certo que jamais o homem se considerou
igual a Deus? Não foi justamente esta diferença, esta desigualdade (esta distân-
cia, ainda que não houvesse distanciamento), que serviu de ponto de apoio para
a bem sucedida empresa da “serpente”, para induzir Eva e Adão à queda? “Sereis
(então) iguais a Deus”!
Também é certo que o Deus que a Bíblia nos apresenta é justo e reto em
todos os seus caminhos e não se deixa levar de respeitos humanos. Todavia,

383
7, 8 A Significação (o sentido) da Religião

quando o patriarca Abraão peregrinava ao largo de Sodoma e Gomorra, Deus


houve por bem contar-lhe qual o destino reservado às duas cidades (Gen. 18);
em tempo certo, esse mesmo Deus conclamou Nínive ao arrependimento; no
tempo oportuno preparou um povo (nação) para que aparelhasse os caminhos
da redenção, mandando-lhe os profetas a tempo e fora de tempo e finalmente,
entregou o seu Filho Unigênito, para que todo aquele que nele crer tenha vida
eterna.
Tal é o Deus de que a Bíblia nos fala. Ela nos revela um Deus que é
divina e superiormente ético, cujos mandamentos estão voltados para o bem da
própria criatura, quer digam respeito ao relacionamento do homem com Deus,
quer se refiram ao comportamento do ser humano em relação a seu próximo.
Então, qual seria a razão da existência de uma árvore de frutos proibidos
no “centro do jardim”?
Parece-me que havia, para isto, uma grande razão.
O homem foi feito do pó, carne e sangue à semelhança material dos
animais da terra — mais próximo de uns e mais distante de outros. A rigor, em
que se caracterizou a diferença entre o “HOMO ERECTUS” e outros seres?
Outros havia que também andavam erectos; outros havia que também emitiam
sons, quiçá inteligíveis entre eles; outros havia que recorriam a variados graus
de recursos intelectuais. Todavia à criatura humana, ao chamado “HOMO
SAPIENS” foi dado o dom sobremaneira excelente entre os demais dons: o
dom de optar! Só o homem decide.
É o instinto ou é o condicionamento que governa o animal; é o aguilhão
que conduz o boi, o freio que domina o cavalo; é o condicionamento que educa
o cão e determina o comportamento do animal de laboratório, mas o homem,
somente o homem, toma decisões: vai à guerra, vai ao sacrifício, busca ou rejei-
ta a fonte de prazer, porque escolhe, não pelo instinto mas pela razão.
Esta é a semelhança espiritual do homem, dádiva que ele recebeu de
Deus, no ato da criação. Deus que é Espírito fez o homem à sua imagem e
semelhança; homem e mulher, os criou.
Houvesse o ser humano sido posto no Éden sem ter como exercer o dom de
optar, já não estaria aí como o ser criado à imagem e semelhança de Deus. Já não
seria “Filho de Deus” mas apenasmente uma criatura material.
Deus criou o homem à sua imagem e semelhança dando-lhe em Deus —
a liberdade de escolher o caminho que haveria de seguir; deu-lhe a faculdade
de optar e estabeleceu o pólo de referência: a árvore no centro do jardim; e o
advertiu solene e divinamente: “Não comerás da árvore do conhecimento do
bem e do mal porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás”.
Estava implantado o pomo da opção.

384
A Significação (o sentido) da Religião 7, 8

Se é verdade que a desobediência não deveria entrar no conteúdo da


vida humana, é absolutamente certo que o direito de escolha, o privilégio da
opção, constitui o dom intrínseco dessa existência; o exercício do livre arbítrio
é uma qualidade inalienável da criatura humana, que lhe foi dada por Deus; que
é o privilégio supremo e também a condição precípua do homem criado à ima-
gem e semelhança do Criador. (Deus contou da existência da árvore...)
O homem foi avisado para que não escolhesse mal; para que conservas-
se santa e pura a sua semelhança com Deus, a fim de permanecer nele e ligado
a ele; não que Deus quisesse poupar-lhe o conhecimento de sua possível
inferiorização como homem, porém porque o destinou, por seu decreto eterno,
à gloriosa condição de poder optar pela unicidade com Deus, em Deus. A “ár-
vore do fruto proibido” era, por assim dizer, a lei que qualificava e valorizava a
opção santa e pura de obedecer a Deus!
Havendo o homem optado mal, ainda pelo decreto eterno de Deus-Pai,
deu-lhe este a oportunidade de nova opção: agora, já não mais a ordem de não
comer do fruto da árvore proibida, mas o direito de optar pela fé. Não é mérito
para o homem: é privilégio! Não é obra humana: é graça divina.
Adão, antes de pecar, viveria pela obediência (optando!); depois da que-
da o justo vive pela fé, — (ainda optando!).
Esta é, parece-me, a posição do homem perante Deus; pôde e pode optar
entre ser semelhante a Deus, conservando-se unido a ele: antigamente — na
origem da raça, como ser espiritual através da obediência: hoje e na consuma-
ção dos séculos, pela fé. Como alternativa, pôde e pode optar também, na ori-
gem da raça e hoje, até a consumação dos séculos, pela autopromoção de sua
igualdade com Deus, quer seja ouvindo a pregação da “serpente”, ou constru-
indo suas “Torres de Babel”, ou fazendo para si bezerros de ouro...].
Ante o homem “não conhecedor” passeia o Senhor pelo jardim, na tarde
amena, como entre seus iguais [por concessão divina e jamais por presunção
dos moradores do Éden!].
Voltemos, por um instante, o nosso olhar ao quadro de Miguel Angelo (no
teto da Capela Sixtina) representando a criação de Eva e prestemos atenção ao
gesto fatal de adoração com o qual a mulher entra no palco, em pleno esplendor
de sua sensualidade; observemos a mão de Deus levantada em advertência, e a
expressão altamente preocupada de sua face, com que ele responde a este gesto
adorativo da mulher. [Novamente a linguagem “mitológica”. As considerações
do A. dizem qual a sua interpretação da representação do grande artista; poderi-
am ser, no máximo, a expressão do pensamento de Miguel Ângelo, sobre a cria-
ção da mulher e quiçá, como tal, a mitificação da criação, segundo a tendência
humana, pois é absolutamente certo — e é o próprio A. quem o afirma — a
santidade era o estado natural do mundo, antes da queda].

385
7, 8 A Significação (o sentido) da Religião

Eva entra no mundo adorando a Deus e, enquanto o adora, afasta-se do


Criador. [O A. quer salientar, parece-me, que num gesto de adoração, conforme
expressado e interpretável, no quadro de Miguel Ângelo, a criatura estabelece
uma determinada desvinculação entre ela e o Criador; já não há mais unicidade
entre Deus e o homem. É verdade o que diz o mandamento: “Ao Senhor, teu
Deus, adorarás” conforme Cristo repetiu (Mat. 4, 10); porém adorar a Deus, é
tributar-lhe louvor e culto “em espírito e em verdade” (João 4, 24) e não na
forma subserviente que, segundo Barth, a pintura de Miguel Ângelo sugere no
gesto de Eva, curvada e de mãos postas, ao surgir perante o Criador!].
Ao adorá-lo [dessa forma], ela se afasta dele de maneira jamais ouvida
ou imaginada; ela se afasta imprudentemente, atrevidamente. [Eva se faz —
sempre segundo a interpretação do quadro — diferente, distante, separada de
Deus]. [Todavia], honra seja feita [a essa Eva do quadro]: foi a primeira pessoa
religiosa do mundo!
Então, logo entra em cena a “celebre serpente”! É dela [que ouvimos] a
primeira fala sobre Deus! (O protótipo de todas as pregações!). O mandamento
divino torna-se assunto de aconselhamento humano. (Assistência religiosa!...)
A gigantesca possibilidade de Adão (a possibilidade de adquirir conhe-
cimento) emerge perante Eva e se transforma em trágica realidade. Sim, em
trágica realidade pois, quando o homem se torna “semelhante a Deus” e sabe o
que é “bem” e “mal”, quando a sua ligação direta com Deus passa a ser o
próprio conteúdo de sua vida, de sorte que “um” passa a estar ao lado do “ou-
tro” [o homem com Deus ou vice-versa, segundo a pretensão humana] então se
dá a destruição da verdadeira união com Deus.
Quando a árvore de centro do jardim for tocada, quando o ser humano
tocar naquilo que o une a Deus, e que o separará dele no instante em que for
tocado, (quando o homem roçar no que ele jamais deveria!), então ele encostou
no arame farpado e eletrizado da linha da morte; então o homem, ao estender
sua mão em busca daquele que ele não é, encontrou a sua própria limitação, e
achou-se qual realmente é; então abrem-se-lhe os olhos para ver o que o separa
de Deus: ver que está nu! Ver que está inteiramente sujeito a seus instintos,
dominado pelo sentimento de cobiça e pelas suas paixões; que está inteiramente
inclinado ao que é efêmero e passageiro e que, portanto, também ele é perecível.
Tocará, o homem, na linha do destino? Conseguirá deixar de a tocar?
Por que será que [embora] esta questão — representada pela conjuntura
de Deus, como Criador, de uma parte, e do homem, como criatura, de outra, —
sendo, quando vista de nossa perspectiva, tão imperativa, tão categórica, tão
premente, sequer possa ser abordada? (Por que não podemos formular esta
questão?)

386
A Significação (o sentido) da Religião 7, 8

Nunca tivemos notícia de um só ser humano que deixasse de praticar o


que Adão perpetrou. Nem podemos admirar-nos de que Adão tenha feito o que
não deveria: tocamos [constantemente] a árvore e levantamos a questão; a con-
tradição que ela contém, cujo conhecimento e cuja carga Deus, para nossa sal-
vação, reservara a si mesmo, tornou-se o conteúdo de nossa vida; agora a nossa
vida é dominada pela exigência que o conhecimento do bem e do mal impõe, e
o paraíso passou a ser — o “Paraíso Perdido”!
[Isto se dá porque] a determinação daquilo que será “o bem”, daquilo
que “deve ser” [ou que se deve buscar], desacredita aquilo “que já é”; pelo
menos, “o que é” passa a ficar sob suspeição, e talvez já tenha sido denunciado,
ou até mesmo julgado, como sendo o mal.
É que, em virtude da cobiça com que o homem estende as mãos ao
encalço do fruto daquela árvore [no centro do jardim] torna-se um tanto ilícito
(proibido) o desejo de provar do fruto de qualquer outra árvore, pois a cobiça
básica [de conhecer o “bem” e o “mal” é, em última análise, de ser igual a
Deus], e revela [e torna patente] o santo, o inexorável, o eterno mandamento
divino que se opõe a tudo que o homem, como tal, pensa, quer e faz.
— O que teria acontecido?
— O pecado triunfou. Ele irrompeu impetuosamente [qual a água na
parte superior da eclusa que se abre] e encontrou o seu nível natural na multiforme
atividade humana que está agora estigmatizada como “cobiça”.
Em conseqüência de a afirmação de Deus haver sido posta em dúvida
(... “certamente não morrereis”!) tudo quanto é visível, no mundo, passou a ser
contradição a Deus, e se apresenta em oposição ao que é invisível; o relativo foi
instalado em contraposição ao que é absoluto; as multiformes e sempre novas
possibilidades de ligação com Deus, ficaram em contraposição à forma primi-
tiva, original, [aquela que vigorou quando Deus passeava pelo Jardim do Éden,
à viração da tarde...].
Esta oposição surgiu do próprio mandamento de Deus [mediante a de-
sobediência ou, mais propriamente, mediante a natureza negativa da opção que
o homem fez e faz]; esta oposição a Deus está na religião, que entrou no leque
das possibilidades humanas; esta oposição veio da prédica sedutora (da serpen-
te!) falando da ligação direta do homem com Deus [acenando à criatura, com a
igualdade a Deus!], discurso esse que encontrou ouvidos por demais atentos,
especialmente da parte feminina da raça, mais fortemente impressionável pelo
mistério da ligação com Deus.
Justamente a religião serve de alavanca, [de meio] ao pecado; serve como
seu capital operacional, como ponto de apoio, na empresa que visa a afastar o
ser humano de sua união direta, original e verdadeira, com Deus, e conduzi-lo

387
7, 9 A Significação (o sentido) da Religião

— juntamente com o mundo — à condição de criatura [mas não de filho]; visa


a colocar o homem em oposição a Deus e em conflito com ele.
“Porquanto, sem lei está morto o pecado. Outrora eu vivia sem lei”.
“Eu vivia”, colocado na forma passada, semelhantemente ao “vivere-
mos” (de 6. 2) colocado no futuro, não pode ser tomado ao pé da letra.
Este passado, referido às origens do ser humano, assim como o futuro
que se refere a fatos escatológicos, não trata de um “viver” histórico, como se
apontasse a uma data ou era assinalada relacionada a algum, ou alguns ou mesmo
a todos seres humanos; não se trata de determinada qualificação da cronologia
humana, antes são “um passado” e “um futuro” independentes dessa cronologia.
Na melhor das hipóteses poderemos falar [desses tempos passado e futu-
ro] apenas em forma de parábola (e, ainda assim, com muita reserva!), referindo-
nos aos tempos de inocência infantil, e da culpa dos que já não são mais crianças;
da culpa de povos, culturas, etc., que “amadureceram” e “envelheceram”.
O “viver” a que se refere o tempo gramatical passado ou futuro, não tem
expansão histórica, porém é a vida que existe além e em contraposição à vida
do presente século: é a vida eterna!
“Eu vivia” e o pecado estava morto, porquanto eu vivia “sem contar
com a lei”. Sem a lei, o pecado está morto e o homem vive.
Se a criatura for pesada e analisada sem considerar a sua contraposição
ao Criador, ela não será achada pecadora, pois não estará em contradição a
Deus; então ela já não está senão na contingência de simples criatura e não há
qualquer suspeição [ou insinuação] de sua relatividade em face do Criador.
O contraste [entre a criatura e o Criador] (e, com ele, a evidência do
pecado), somente se torna agudo na imensa possibilidade humana que a reli-
gião representa.
Na vida original, invisível, não histórica, a linha da morte que separa o
homem de Deus, não foi tocada; a mão que tangeria a árvore fatal do centro do
jardim, não foi estendida; nessa vida a simultaneidade da união e da separação
entre Deus e o homem ainda não tem a conotação trágica que lhe advém imedi-
atamente através da religião.
O olhar límpido com que se fitam a criatura e o Criador na cena da
“criação de Adão”, de Miguel Ângelo, a alegre liberdade com que as duas mãos
se buscam, a expressão triunfante da mais profunda e, também, mais comovida
paz, reinante no instante da criação, parece coroar o homem [protegendo-o
contra aquilo que lhe roubaria o direito de conviver com o Criador], protegen-
do-o da queda após a qual ele passaria a ser o “homem velho”, a criatura que
ansiaria pelo “homem novo” desejando ardentemente a restauração da perdida
comunicabilidade. Sim, de tudo isso parece falar a soberba pintura, porquanto

388
A Significação (o sentido) da Religião 7, 9

ela nos fala da comunicação direta ainda não perdida, da comunicação que não
tem nenhuma conotação religiosa.
Neste estado de comunhão direta vive o ser humano: não este ou aquele,
mas o ser que Deus criou a sua própria imagem e semelhança, na qual também
o restaurará: esta união jamais e nenhures “foi” e nunca e em parte alguma
“será”. Dela viemos e para ela iremos! [O ser criado à imagem e semelhança de
Deus não “foi” nem “será”: “é”!].
Esta união é feitura e obra exclusiva de Deus; ela é o relacionamento
que Deus tem conosco, que o pecado não destruiu. O que Marcion descreveu
“como, por assim dizer”, sendo “terra estranha”, é a nossa pátria; pátria que
não podemos esquecer; pátria cuja realidade, proximidade e glória o Evange-
lho nos revela com as candentes palavras Perdão e Ressurreição, Amor, Deus!
— e onde a perplexidade e a promessa se fundem e desaparecem porque para
além, para onde essas palavras apontam, não há lei nem religião (4, 15).
Aquilo que no mundo, em nossa vida e na história, possa parecer-nos
como natural e relativamente inocente e puro, conforme a passagem 5, 13
claramente o admite, pode ser, para nós, tomado com a devida simplicidade e
necessária prudência, um significativo e esperançoso relance da vida de onde
viemos e para onde vamos. [Da vida e para a vida sem pecado, pois o pecado
não é levado em conta onde não há lei].
“Porém, sobrevindo o mandamento, entrou o pecado na vida; eu, po-
rém, morri”.
“O mandamento veio”; veio porque tinha de vir para o ser humano que,
com seu conhecimento do bem e do mal, da eleição e da rejeição, do sim e do
não, tornou-se “qual Deus” e se fez participante do segredo divino, ficando
obrigado a suportar essa condição. [“Iguais a Deus” apenas no conhecimento
do Bem e do Mal].
O eterno “agora” da criatura, foi pulverizado e espalhado por todos os
ventos; já não temos conhecimento de era alguma, — (mesmo dos evos mais
remotos) — para a qual não houvesse sobrevindo a lei.
O relacionamento do homem com Deus vem de uma predisposição di-
vina para com a disposição humana; sendo esta disposição originada por uma
predisposição divina, ela destrói todas as demais disposições humanas. [Em
decorrência do conhecimento que o homem adquiriu sobre o que é o “bem” e o
“mal”], concientizou-se da terrível realidade de seu desconhecimento de Deus
e tomou ciência do fato de que é apenas criatura e um ser inteiramente diferente
do Criador. Então surgiu-lhe a monstruosa possibilidade do gesto de adoração
ao Deus desconhecido, gesto que lança sobre todas as demais possibilidades
humanas a luz fatal da impossibilidade.

389
7, 9-10 A Significação (o sentido) da Religião

[Por outras palavras, quando a criatura, feita à imagem e semelhança de


Deus, se conscientizou de que o Criador, que com ela privara nas tardes amenas
do Éden, era um ser inteiramente diverso desta criatura que é o ser humano, —
então esboçou o gesto de adoração, vale dizer a religião, como forma possível
de voltar a gozar da comunhão direta com Deus. Ora, é este próprio gesto que
evidencia e denuncia a materialidade e a perecibilidade de tudo quanto o ho-
mem, como tal, faz; quer e pensa].
Se, pois, o ser humano pode e tem que se conduzir [através da religião]
e se no fim da trilha [apertada e estreita segue] se depara com a dupla
predestinação — (realidade que só uma religião “tísica” não percebe) — que
triste coisa é este ser humano! O que é ele, na realidade?
“Então o pecado entrou na vida”.
Agora está irrecuperavelmente perdido o instante eterno da criação; já
não se pode salvar a pureza, a alegria, a paz, daquela existência em que o Cria-
dor, como Deus, e a criatura, como homem, eram um e não dois; já agora se
tornou inevitável a introdução da dualidade na existência humana e de um lado,
está Deus, como o prepotente adversário do homem e este, do outro lado, como
o impotente adversário de Deus. Nessa dualidade Deus cerceia o homem, e o
homem “restringe” a ação divina. [Do ponto de vista humano], um põe o outro
em dúvida, e ambos se opõem comprometedoramente.
“Porém eu morri”. E o passado primevo (não temporal), está claro. Esta
morte assinala a passagem da eternidade para a temporalidade.
Agora, tudo se tornou indireto. Nossa vida ficou em insolúvel oposição
à vida divina e por isso está sob o inevitável estigma da morte, em toda sua
extensão.
Situados em nossa finitude, somente podemos vislumbrar o eterno pela
porta estreita da negação decisiva, porta essa que constantemente se fecha e
que precisa ser sempre arrombada novamente.
Cabe-nos, apenas, lembrarmo-nos de que temos de morrer; convém pois
que nos tornemos sábios, para não sermos tolos (no sentido mais infeliz da
palavra!). É na morte que nos confrontamos com a interrogação da vida, a
interrogação divina. A interrogação sobre o “SIM” se impõe inexoravelmente
dentro do “NÃO”; ela está no contraste entre o visível e o invisível — está na
figura do tempo que só pode ser passado ou futuro, porém, jamais presente;
está no conteúdo da história que só é história e nunca atualidade; está na repre-
sentação da natureza, que só pode ser o Cosmos, porém jamais será criação.
Conhecemos apenas o mundo da temporalidade, dos homens e das coisas
e a experiência máxima que nesse mundo podemos ter, que é também a experi-
ência básica de todas as demais, resume-se nesta frase: “Eu, porém, morri”!

390
A Significação (o sentido) da Religião 7, 10

Isto se dá, exatamente, com o homem religioso; aliás, é uma peculiaridade dele:
“E então exclamei: Ai de mim que pereço! Eis que vi o Rei, o Senhor Jeová,
com os meus próprios olhos. (Isa. 6, 5). [A tradução de Almeida, escreve: “Es-
tou perdido!... os meus olhos viram o Rei, o Senhor dos Exércitos”!]
Desta visão e deste desfalecimento ninguém pode fugir.
“Então aconteceu que justamente o mandamento, que visava a vida, me
proporcionou a morte”. “Pois o pecado obteve um meio pelo mandamento,
enganou-me e me matou”.
O paradoxal em nossa queda é que a possibilidade mediante a qual o
pecado destruiu a nossa união com Deus, — [a comunicação direta do Éden] —
é agora, na vida do relacionamento indireto com Deus e dominada pelo pecado,
a nossa maior, a mais premente necessidade: é a ânsia de tocar a linha da morte;
é a busca do conhecimento do mal e do bem; é a emergência, o aparecimento, do
contraste entre Deus, como Deus, e o ser humano, como homem.
[Em outras palavras, talvez pudéssemos dizer que o maior absurdo de
nossa queda, é que justamente a aspiração que a motivou, — o desejo de ser-
mos iguais a Deus, é agora o que temos absoluta necessidade de recuperar].
Se procurarmos identificar a força que, entre as contingências humanas,
materiais e passageiras do mundo, nos impele em busca da vida em união [ou
comunhão direta] com Deus, essa vida que foi perdida e que ansiamos por
recuperar, veremos que [essa força] é o mandamento; é a lei. É a nossa capaci-
dade religiosa; é o cumprimento, a plena realização de nossa negação decisiva,
final, crítica: é a lembrança e a consideração de que “temos de morrer”.
Acaso existe algum outro meio pelo qual possamos perceber o invisível
(1, 20) para, como homens sensatos, sabermos o que se pode conhecer de Deus,
sem que seja pelo caminho estreito e apertado da morte?
Onde poderíamos e quereríamos ficar (agora e neste mundo onde, de
qualquer maneira, teremos que estar) se não na beira desta linha “de onde Adão
caiu” (Lutero), já que não podemos estar além dela?
Onde haveremos de procurar estar, se não naquela posição arrojada e
privilegiada onde encontramos o “Jesus histórico”, Abraão, Jó, todos os profetas
e apóstolos, lá no limite extremo das possibilidades humanas onde o homem, o
ser humano por excelência, está verdadeiramente à máxima distância de sua
união ou comunhão direta] com Deus? — (Deus, Deus meu, por que me aban-
donaste?). Onde haveremos de estar se não lá onde a problemática da existência
se torna sobremaneira pesada, [onde a sua sobrecarga é sentida ao máximo]?
O que mais poderemos ser honestamente, se não criaturas religiosas,
penitenciando-nos no pó e na cinza para, porfiando com temor e tremor, na
esperança da graça, em verdade, esboçar [sempre] o gesto de adoração?!

391
7, 10 A Significação (o sentido) da Religião

O mandamento que a isto nos constrange visa à vida, e sabêmo-lo muito


bem; nem poderíamos, aqui, saber outra coisa.
Se, ao medirmos as conseqüências [da atitude religiosa], acaso nos ate-
morizarmos e não ousarmos ir ao extremo que a possibilidade religiosa nos
oferece, se acharmos forte demais a inexorabilidade de Calvino, por demais
grandiosos o ânimo dialético de Kierkegaard ou a devoção de Overbeck, ou
ainda a fome de Dostoiewski pela eternidade, e a esperança de Blumhardt,
então contentemo-nos com uma religiosidade inferior, mais fraca, alguma es-
pécie de pietismo ou, [quem sabe], alguma forma de racionalismo.
Todavia, também estas [expressões “mais palatáveis” da religião] apon-
tam às conseqüências inexoráveis do limite extremo da possibilidade humana e
ninguém pode impedir que, um dia, a crise que essa possibilidade — [a reli-
gião] — nos apresenta venha à luz.
E se acaso Adão, mais facilmente contentável, se conformar com as
possibilidades inferiores, se ele se esquecer de qual é a verdadeira situação
humana e do que lhe resta, então Eva, mais sensível à perda da comunhão
direta com Deus, lhe traz presente, de novo e sempre, a lembrança desta supre-
ma possibilidade humana de união indireta com Deus: a religião.
Porém, — e este é o trágico paradoxo — o ato de aproximação a Deus
[pela religião], que na conjuntura histórico espiritual em que nos encontramos
como criaturas neste mundo, representa o nosso movimento de retorno à terra
estranha que, no entanto, é nosso verdadeiro lar, (ato esse do qual menos pode-
mos nos esquivar) é, justamente ele, o ato que configura a maior traição [da
criatura] à predisposição divina; e o ato que, representando a expressão mais
alta de nossa ligação indireta [com Deus], expressa também o nosso absoluto
distanciamento, o nosso fundamental alheamento da comunhão direta.
É justamente pela religião, a maior das possibilidades humanas, que
irrompe a catastrófica impossibilidade do homem perante Deus e que, do ponto
de vista divino, não deveria ter acontecido.
Porquanto “o mandamento, logo ele, me proporcionou a morte”.
A necessidade incoercível de exercer a atividade religiosa [em alguma
de suas formas] e que se expressa no gesto de estender a mão à árvore do
meio do jardim, no desejo de conhecer o Bem” e o “Mal”, de conhecer a vida
e a morte, e [de saber o que é] Deus e o homem, é uma realidade que brota da
criatura, neste mundo, e por isso ela é incontornável; é por ela que a criatura
é classificada como sendo má, mortal, como homem; é por ela que a criatura
é lançada e acorrentada ao absoluto, em contraste com o relativo; é por ela
que, na melhor das hipóteses, o ser humano é posto diante daquele “NÃO”
que abriga, só ele, o “SIM” divino.

392
A Significação (o sentido) da Religião 7, 10-11

Religião significa a morte. Para provar esta analogia, é bastante lembrar


que toda relativa inocência, ingenuidade e paz interior desaparecem quando a
religião [ou para quem a religião] se torna aguda.
A religião jamais proporcionará harmonia [a paz] da criatura consigo
mesmo, e muito menos com o que é eterno. Nela não há lugar para sentimentos
generosos e nobreza, conforme talvez o possam supor centro-europeus e oci-
dentais ingênuos. A religião é abismal, e pavorosa; nela aparecem demônios.
(Ivan Karamazov e Lutero).
Na religião o milenar inimigo está inconfortavelmente próximo, e tudo
isto acontece pelo engano (pelo logro) do pecado. “A serpente me enganou”.
(Gen. 3, 13). É por isto que o mandamento é a morte da criatura.
O pecado torna possível aquilo que agora, neste mundo, é a nossa carên-
cia, a nossa necessidade: a mais alta mediação do conhecimento do “Bem” e do
“Mal”.
O logro está na ilusão de que essa mediação significa a vida quando, na
realidade, ela significa morte.
Esse logro se perfaz cegando o ser humano para que ele não veja que a
sua própria carência e sua necessidade, puramente humanas, são coisas que
não devem, como tais, existir perante Deus.
O logro é bem sucedido porque o ser humano, que toma essas caracte-
rísticas [de conhecimento] perante Deus, revela-se como simples criatura.
[A tradução inglesa diz: “Ele (o logro) tem bom resultado porque a de-
terminação humana de reter a possibilidade de independência diante de Deus,
revela que os homens são apenas homens”.]
O mandamento é o meio, a alavanca, na mão do pecado; a mediação
veste as roupagens da imediação; piedade passa a ser ação e obra do homem; é
uma religião que não sabe quão questionável é, já não o mundo, mas ela pró-
pria; é uma adoração que não sabe calar perante Deus; que deixa tombar os
braços que se levantaram em prece para novamente incitá-los a que se ergam,
deixando-os, porém, cair sempre de novo. Esta é a situação humana!
[A tradução inglesa escreve assim: “O mandamento é, por tanto, a
alavanca, a ocasião para o pecado; vestindo o que é temporal com as roupa-
gens da eternidade, ele apresenta a piedade como obra humana; evoca adora-
ção que não sabe silenciar perante Deus, designa tal adoração por “religião”;
oculta do adorador [do crente], não somente a situação duvidosa do mundo,
mas também quão terrivelmente duvidosa é a religião; ele [o mandamento] o
anima a erguer as mãos em prece e deixa-as cair em aflição, e nesta aflição o
induz novamente à prece. Esta é, afinal, a situação em que os homens se
encontram, sob a lei”].

393
7, 10-13 A Significação (o sentido) da Religião

[E assim] encontramos a segunda resposta à nossa indagação sobre o


significado da religião, a saber:
A religião, pela necessidade que dela tem o ser humano, é a demonstra-
ção do poder que o pecado tem sobre a humanidade, neste mundo.
[Esta conclusão] nos compele a considerar novamente o sentido da li-
berdade de Deus ante o círculo que circunscreve e fecha a humanidade na reli-
gião.
[A primeira resposta a essa indagação está no final da exegese do
versículo 7, a saber: a religião torna visível a realidade do pecado].

Vs. 12 e 13 Por conseguinte a lei é santa; e o mandamento, santo e justo e bom.


Acaso o bom se me tornou em morte? De modo nenhum! Porém o pecado
me preparou [me condicionou] para poder revelar-se como pecado; por
meio de uma coisa boa [causou-me] a morte, a fim de que o pecado se
manifestasse como incompreensivelmente pecaminoso, através do man-
damento.

“A lei é santa; e o mandamento santo e justo e bom”.


[Nestas condições], o que faremos?! Exclamará a criatura que, — sob a
terrível pressão de sua situação no mundo, havendo tomado consciência de si
mesma, do mandamento que lhe é dirigido e do seu afastamento de Deus, —
houver abraçado a religião.
A resposta a esta pergunta apenas há de realçar a sua grandeza.
Pergunte-se sempre!
Que Deus conserve o nosso ânimo de perguntar!
Que essa pergunta nos chegue de toda parte, de todos os lados, e nos
cerque inteiramente!
Que Deus nos negue qualquer resposta que não seja outra pergunta; que
ele nos impeça de contornar o problema, de buscar contemporizações; que essa
pergunta seja o aro da roda de cujo cubo já falou Láo-Tse, com muita precisão.
[Atribui-se a Láo-Tse, o livro Tao-Te-King (O Livro do Caminho da
Vida), possivelmente escrito no século III A.C., em que são expostas as doutri-
nas do Taoismo. Aí se afirma alegoricamente, que “os 30 raios e o arco da roda
da carreta seriam inúteis se não existisse o cubo central, assentado no eixo”.]
A resposta à pergunta é o conteúdo do plano delimitado pelo círculo que
circunscreve o sentido da pergunta que, por isso mesmo, não pode deixar de
existir por um instante sequer.
(Em outras palavras, na alegoria da roda, a própria pergunta aflita do ser
humano aponta para o centro que é Deus. Se o homem já não perguntar será, ou

394
A Significação (o sentido) da Religião 7, 12

porque se desinteressa pelo problema, ou porque encontrou (e aceitou) a res-


posta que ele mesmo tem para dar, ou porque está afastado de Deus por se
haver alheado, ou porque substituiu Deus por si mesmo!
Por isso, “livre-nos Deus” da tal coisa.
A pergunta não pode deixar de existir pois em seu âmbito (como dentro
da área que o lugar geométrico da circunferência delimita) está o próprio rela-
cionamento lícito do homem para com Deus).
“A lei é santa”.
A “religião” é tão pouco o pecado quanto qualquer outra possibilidade
[ou capacidade] humana o seja, pois pecado é muito mais que uma possibilida-
de. Antes, pelo contrário: A “Religião” marca o ponto onde todas as possibili-
dades humanas entram e ficam expostas à luz divina. [Ou para usar a maneira
de dizer da tradução inglesa: “A religião é o lugar onde toda capacidade huma-
na é iluminada pela luz divina”].
[Colocada no ambiente do mundo], fora do que é propriamente divino,
a Religião representa o que é divino, por delegação, [como se fôra dele] uma
cópia; [quem sabe], um negativo; contudo ela não é divina.
É por isso que, neste mundo, a Religião é, indubitavelmente, sagrada.
É a religião que, ao longo dos caminhos do mundo testifica o que é divino;
fala da retidão; é a religião que repele as coisas humanas e aponta a Deus. A
religião é correlata, paralela à vontade divina, e a própria semelhança dessa
vontade. A religião é o bem que mostra o desenvolvimento e a situação [do
homem], testemunhando da perdida ligação direta com Deus por meio da
ligação indireta [que ela representa].
Se consciente ou inconscientemente quisermos fugir da ambigüidade
que sentimos na religião, ou haveremos de voltar a manifestações humanas
menos sublimes, talvez lógicas, éticas e estéticas e até a formas menos nobres
ou nos encaminharemos a modalidades religiosas [exóticas], quer sejam anti-
gas, quer modernas; ora, não estando a pessoa devidamente informada a res-
peito do fenômeno religioso, certamente escolherá mal.
Não existe para a humanidade um “AVANTE”! que vá além da possibi-
lidade religiosa. A religião é o último “avanço” do homem [no mundo] por-
quanto (e na medida que) dentro da conjuntura humana e fora do que é divino,
ela testifica aquilo que está além da conjuntura humana e dentro da esfera do
divino. Por tanto, dentro da possibilidade religiosa, podemos apenas anelar pelos
melhores dons, afora a soberania do amor que não tem ciúmes. (I Cor. 12, 31;
14,1 e 13,4).
Oxalá fôssemos pessoas religiosas, verdadeiros adoradores, esperando
[em Deus] e o buscando de toda nossa alma, de todo nosso coração e com todas

395
7, 12-13 A Significação (o sentido) da Religião

as nossas forças! — Que despertássemos para a religião, que a conservássemos


viva e a cultivássemos e que, acima de tudo, a reformássemos — não: que
sempre a revolucionássemos! Esta é, sem dúvida, a tarefa que, entre todas as
atividades humanas, vale o suor e o esforço dos caracteres nobres.
Todavia, quanto mais conseqüente for a nossa religiosidade, quanto mais
nos aprofundarmos nela, mais densa e mais profunda será, sobre nós, a sombra
da morte.
É bem compreensível a relutância da maior parte da humanidade em
colocar-se na posição extrema dessa possibilidade [de entregar-se irrestritamente
à religião], onde, do ponto de vista humano, apenas subsiste a pergunta, como
tal; onde tudo, absolutamente tudo, que está mais além, se situa à luz dessa
pergunta: [O que faremos, pois?]
São bem compreensíveis as incontáveis tentativas [humanas] de encon-
trar um meio termo, um compromisso, entre a humanidade espiritualmente
adormecida e a religião conseqüente da lei santa, justa e boa.
É bem compreensível a pergunta: “Acaso o bom se me tornou em morte?”
Esta pergunta coincide com a outra, (da qual partimos para nossa análi-
se) e que indagava se a lei era pecado (7, 7); o conteúdo dessas duas perguntas
poderia levar a quem quer que busque a lei, a evitá-la, a fugir dessa luz mortiça,
do lusco-fusco, do perigo da Religião.
Bem sentimos a tensão, o desassossego, a inviabilidade da situação em
que estamos (e à qual fomos levados) sendo religiosos. Não é verdade [falando
do ponto de vista humano], que isto que nos leva pelo deserto a dentro para tão
longe das panelas de carne do Egito [Exo. 16, 3]; isto que assim nos levanta
para, em seguida, lançar-nos ao solo; isto que é tão excêntrico e tão invulgar;
isto que nos transforma em emigrantes [peregrinos] e estrangeiros; não é ver-
dade que isto [que assim age e assim se manifesta], que tanto se assemelha com
a morte, não pode ser o bem, [nem o bom]?
Haverá, Deus, de ser tão duro conosco?
Quão próximos de nós estão todas estas soluções antinômicas ou
semiantinômicas! Que convidativas e simples são elas!
E todas se propõem a libertar a criatura humana da amarga e terrível
seriedade da religião: que o homem não se atormente: todas oferecem, em
contraposição a sombra da morte que a lei de Deus projeta, uma salvação ale-
gre, [quiçá mais] modesta [menos espetacular], aquém da zona do perigo, em-
bora [esqueçam que] os grandes pregadores da salvação pela graça tenham,
todos, passado os seus dias sobre a terra, debaixo dessa sombra.
Não seria demasiadamente grande a tentação de tirarmos da religião a
sua carga explosiva, de a tomarmos um pouco menos a sério, como a rigor se

396
A Significação (o sentido) da Religião 7, 13

poderia fazer e, desta maneira nos livrarmos, pelo menos em parte, da maldição
e da miséria da mediação [em nossa ligação com Deus, que a religião nos impõe]?
Não seria forte a tentação de nos libertarmos dessa possibilidade [ou
atividade]?
Não seria razoável procurar diminuir ou evitar até certo ponto, os efei-
tos desta possibilidade que é apenas humana, que é tanto relativa quanto alter-
nativa, própria à existência neste mundo, e que a ninguém sobrecarrega mais
do que à criatura religiosa?
— “Impossível”!, respondemos.
Custe o que custar, temos de suportar este fardo. Temos de sorver o
cálice até a última gota. O bom não deixa de ser bom [nem o bem deixa de ser
o bem] pelo fato de não ser a coisa simples ou fácil, por não ser o que está
diretamente à mão, por não ser o logicamente aceitável, nem deixa de ser bom
(ou o bem) porque, indubitavelmente, nos conduz à porta da morte. Temos de
tomar sobre nós o paradoxo cabal da situação da criatura neste mundo, e que
consiste nisto: quando tomamos consciência do que somos e qual é a nossa
situação neste mundo, quando nos confrontamos com a problemática desta vida,
o mandamento de Deus vem a nosso encontro e nos conduz, passo a passo, à
nossa última e maior possibilidade [leva-nos à religião]; então, suspirando, des-
falecendo, implorando, clamando, estendemos as mãos súplices ao grande des-
conhecido, ao SIM invisível, oculto dentro do “NÃO” que nos aprisionou; so-
mos obrigados a reconhecer que todo esse suspirar, esse desfalecer, esse implo-
rar, esse clamar, não nos justifica, não nos redime, não nos salva, antes, com o
nosso aiar, nossa súplica, nosso desfalecimento, nosso clamor, apenas confir-
mamos e comprovamos que somos criaturas humanas — [apenas criaturas e
nada mais]!
Preciso obedecer à cobiça [ao desejo] que está acima de todas as cobi-
ças, ao desejo de voltar à vida de ligação [comunhão] direta com Deus, que foi
perdida e, enquanto eu o escuto [e o acalento], este desejo qualifica todos os
desejos [do meu coração] — também a si mesmo, e não em último lugar —
como pecaminosos. “Desde que, mediante a lei, eu sei em que termos me en-
contro perante Deus, estou em temor e sobressalto, em interrogação e medo,
qualquer que seja o meu caminho: assusta-me o farfalhar da folha e me apavora
o trovão; estou sempre preocupado [solícito pela minha vida, pelo que hei de
fazer, comer ou vestir ...]. Estou constantemente em angústia, pensando que
Deus pode vir por traz e ferir-me com uma dava”. (Lutero).
[Eis a situação cruciante da criatura humana, na religião].
Para alcançar a “semelhança com Deus”, para usufruir do “instante eter-
no” que é o ponto central visado por todas minhas atividades preciso, a despeito

397
7, 13 A Significação (o sentido) da Religião

de minha covardia e minha fraqueza, enfrentar o perigo e ousar tudo. Preciso


ceder [no terreno de meus interesses e minhas conveniências na sociedade e no
mundo em que vivemos] e preciso sacrificar [anseios, desejos e cobiças de
minha natureza material, tanto carnal como intelectual]. No entanto, depois de
eu me haver arriscado a tudo, de haver cedido em tudo, eis-me de mãos vazias,
pó e cinza, estrangeiro, ainda mais afastado de Deus do que antes.
Sabemos, finalmente agora, o que é o pecado e quão pouco nos é possí-
vel escapar dele?
[O pecado], essa possibilidade que existe em todas as atividades huma-
nas, é tão fundamental que, justamente na tentativa de escaparmos dele, [o que
tentamos por meio da religião], nele nos embaraçamos e nos lançamos ao en-
contro de nosso destino mortal.
“Porquanto o pecado me preparou para poder revelar-se como pecado”.
[Fê-lo] pelo que é bom! Pelo que é necessário! Pelo inevitável! [Fê-lo]
por meio daquilo a que, para sermos honestos, afinal, nos agarramos qual náu-
frago ao graveto que passa. [O pecado nos prepara e nos condiciona para reve-
lar-se] pela possibilidade [sublimei que, ao ser descoberta, surge para nós como
luz na escuridão. Prepara-nos pela mais pura, mais esperançosa, pela mais de-
sejável das possibilidades humanas.
O que é o erótico, o alcoólatra, o intelectualista, o adorador de
“Mamon”, o déspota, o que é a multidão de diuturnos filisteus, a par do crente,
a par do pecador em oração? Todavia é este, — e não aqueles — quem ouve
e percebe o aniquilante “PARE!” que Deus ordena aos homens. É este, e não
aqueles, quem perece pela morte, que é a ultima sentença exarada contra o
homem neste mundo.
“Na verdade ele tomou sobre si as nossas enfermidades e as dores nos-
sas carregou sobre si” (Isa. 53, 4). Ele é o pecador; enquanto ele,
concomitantemente, é o inocente, o bendito que anuncia a salvação e a vida,
quando nosso castigo é posto sobre ele para que tenhamos a paz, (Isa. 53, 5);
não se trata de possibilidade [ou obra] humana, mas de ação divina.
Compreendemos, afinal, o que é o pecado e qual o sentido da religião?
“A fim de que o pecado, pelo mandamento, se revele incompreensivelmente
pecaminoso”.
A finalidade da religião, como suprema finalidade do homem, consiste
em revelar na inexorabilidade dos fatos (7, 7 IN FINE) e, inevitavelmente, (7,
8-11) o soberano poder que o pecado tem no círculo humano que ele fecha, e o
cerceamento desse poder pela liberdade de Deus. Somente por essa liberdade!
Este é o sentido, o significado da lei; ela aguça a nossa vista [abre a nossa
inteligência, o nosso entendimento] para compreendermos que esta libertação da

398
A Significação (o sentido) da Religião 7, 13

lei, essa servidão segundo a nova lei do Espírito, pela qual já olhávamos para
além dos limites da religião (7, 6), é de todo impossível à criatura humana, neste
mundo.

Comentários: 7, 7-13

1. Ao analisar as considerações do A. sobre a religião é preciso ter sem-


pre presente a sua clara afirmação de que a religião é a expressão da
maior possibilidade humana, sob o pecado, sem daí concluir que reli-
gião seja sinônimo de pecado; antes, diz ele, quem assim pensar não
sabe o que e religião. (Ver exegese de 77). Todavia, o A. confessa
candidamente que, por repetidas vezes, os seus comentários “quase”
levaram à conclusão de que a religião é o próprio pecado. Ora, se não
fora o limite que o “quase “ estabelece, a conclusão estaria em franca
oposição à Palavra de Deus, que declara ser a lei “boa”, santa e justa”
e mais ainda, a lei vem de Deus. A confissão dessa extremidade —
desse “quase”, é procedente pois acompanhando a exposição de Barth
chegamos ao limiar da anatematização da religião.
Essa posição extremada, essa incursão e pesquisa ao longo dos
aspectos mais difíceis (e até mais escabrosos) do tema é uma caracte-
rística do Autor; tem-se a impressão que a indagação surge espontâ-
nea e, intimorato, ele a persegue e disseca sob todos os ângulos e
aspectos sem endereço certo; sem encaminhar o raciocínio para uma
tese preconcebida; indaga e analisa sem destino prévio e forçoso é
reconhecer que ao nos aproximarmos do final da exposição, conclu-
ímos por antecipação pela tese que logo a seguir resulta demonstrada.
2. “Pergunte-se sempre”! Esta é a satisfação que o A. oferece à pergunta
“O que faremos?”
Parece que esta resposta não condiz com a que recebeu o car-
cereiro de Filipos quando perguntou a Paulo o que deveria fazer
para salvar-se, nem com aquela que o próprio Paulo, (ainda como
Saulo), recebeu quando viajava ao longo da estrada para Damasco.
(Atos 16, 27-31 e 22, 10).
Todavia, a pergunta de que o A. trata (na exegese de 7, 12) refere-
se não ao que fazer para salvar-se mas, ao que fazer com a religião
que, de uma parte se impõe como inexorável necessidade humana —
santa, justa e boa e, de outra, define o pecado e impõe a inexorabilidade
de seu salário — a morte!

399
7, 14-25 A Realidade da Religião

Ora, somente indaga, se aflige e pergunta quem sente a grandeza


divina da lei; a fatalidade do pecado que ela revela e condena.
É por causa desta sensibilidade e em virtude do anseio pela graça
divina que ela evidencia, que o A. faz votos de que Deus conserve e
preserve o nosso ânimo de perguntar.
Quem, pela graça de Deus, vir o pecado, pela mesma graça verá a
fidelidade de Deus. Não se cansará, nem se fatigará de perguntar,
antes, renovar-se-ão suas forças de dia a dia e sobreviverá pela fé.
A REALIDADE DA RELIGIÃO (7, 14-25)
A finalidade da religião é testificar o poder e domínio que o pecado
exerce sobre a criatura humana neste mundo: também a pessoa religiosa é pe-
cadora e o é justamente como religiosa! Isto para que, abundando o pecado,
fique claro o que significa a superabundância da graça (5, 20), e se evidencie a
necessidade da misericórdia de Deus “a despeito” [do pecado].
[A tradução inglesa escreve assim: “A percepção do significado da reli-
gião depende da clareza em que se revela o domínio do pecado sobre a criatura
deste mundo. Quando reconhecemos a pecaminosidade peculiar ao homem
religioso e vemos que o pecado é abundante nele, então compreendemos o que
significa a “super-abundância da graça” (5, 20) e a necessidade de que a mise-
ricórdia divina se manifeste a despeito do pecado”].
Porém, antes que voltemos novamente nossa atenção ao ponto de vista
geral dessas nossas cogitações, [sobre a liberdade de Deus, no homem], con-
vém que nos precatemos contra a conclusão (que possam tirar os teoristas) da
nossa dedução teórica de que a religião é a última pergunta do homem, e que
venham dizer-nos que a resposta a essa pergunta está, exatamente, na chamada
“realidade religiosa”; que esta realidade já não é questionável e que ela está
além do que seja culpa e destino.
Para tanto, precisamos dar a palavra a essa “realidade religiosa”, isto é,
Homem Religioso naquilo que ele tem de peculiar: [dar a palavra à] — “Psico-
logia da Religião”!
Acaso sabe o homem religioso algo mais além do fato de que o pecado
celebra o seu triunfo marcando-o [a ele, o religioso] com a marca de escravo
seu [ferrando-o a fogo], (e que, para fazê-lo), serve-se do que é bom, serve-se
[justamente] da mais esperançosa, da mais alta e mais inevitável possibilidade
humana para, através dela mesma, proporcionar-lhe a morte? (7, 13).
[Na realidade], nada mais que isso conhece ou sabe o homem religioso.
Por mais que a psicologia romântica procure esconder este fato, exal-
tando a religião como o meio de dignificar todos “os conhecimentos do mun-

400
A Realidade da Religião 7, 14-25

do” apresentando-os como “obras de Deus que acompanham todos os atos hu-
manos qual música divina” (Schleiermacher), a religião propriamente dita, a
religião ativa, combativa, devidamente lastrada, não estética (isto é, sem preo-
cupação com o artístico, o belo, o agradável aos sentidos], a religião não retó-
rica, não devota, a religião qual a retrata o Salmo 39 ( “tu és a minha esperança
livra-me desvia de mim o teu olhar para que eu tome alento”!], ou [então a
religião] de Jó, de Lutero, de Kierkegaard, a religião de Paulo — tal religião
reagirá tenazmente, sempre e de novo contra a religiosidade inócua e insossa
[do romantismo].
Esta religião vigorosa não pretende ser o coroamento do ser humano ou
a expressão de sua plena realização antes, se sente como sendo algo perturbador,
como sendo uma atividade perigosa; ela traz a sensação de estar fechando com-
pletamente o círculo da humanidade e de, concomitantemente, o estar abrindo
subrepticiamente.
[Entendo que o A. quer dizer que a religião vigorosa, a religião que tem
consciência da posição da criatura perante Deus, na realidade envolve e enfecha
todas as possibilidades humanas, todavia também as anula, as esvazia do valor
que possam pretender ter perante Deus e dessa forma prepara o caminho para a
graça de Deus, que testifica].
A religião vigorosa, [não totalmente dominada pelos interesses pesso-
ais, não beata nem carola, nem mística, mas submissa ao Senhor Jesus e nele
confiante] põe em dúvida e questiona toda a atividade humana e a totalidade
dos acontecimentos na história do mundo, eventos esses a que se contrapõe e
que considera como incompreensíveis, insuportáveis, inaceitáveis. A religião
está longe de ser o lugar saudável onde se encontra o bem estar do homem mas
é o ponto onde se revela e se reconhece a nossa enfermidade; nela não está a
harmonia mas aí se entrechocam as desarmonias de todas as coisas; nela a
cultura não encontra fundamento antes é posta na mais profunda dúvida junto
com a sua companheira, a incultura. A religião viva e vigorosa sabe que todas
criaturas no mundo, nos instantes de apreciação honesta, fazem dela exatamen-
te este juízo.

“Cessa a música, levanta-se a cortina;


Também, ao longe, desapareceu o Templo
Eis que surge, enorme, imensa, a velha esfinge”!
(Fr. Schlegel sobre os Discursos de Schleiermacher).

E a religião há de, certamente, esquivar-se de ensinar algo de melhor a


semelhantes inconversos. [Referindo-se ao comentário de Fr. Schlegel].

401
7, 14-17 A Realidade da Religião

A realidade da religião é luta e escândalo; pecado e morte; satanás e


inferno. Ela não conduz o homem através da problemática da culpa, ou para
fora dela, antes o leva ao encontro dessa problemática.
A religião não traz a solução nem a resposta à pergunta vital da criatura
neste mundo, antes apresenta-lhe, por assim dizer, um enigma insolúvel.
A religião não se propõe a ser usufruída nem exaltada; ela quer, apenas,
ser suportada como jugo obrigatório.
Não se pode desejar, apregoar ou recomendar a religião a ninguém.
A religião [do ponto de vista humano] é infelicidade que irrompe em
certas pessoas como necessidade fatal e por elas atinge a outros.
Religião é a infelicidade sob cuja pressão João, — o batista — sai para
o deserto, a pregar o arrependimento e a lei. É sob o pressionamento da religião
que vem a lume um tão estremecido e profundo gemido qual o da segunda carta
aos Coríntios. É esta mesma pressão que transmudou a face de Calvino, mar-
cando-a com a expressão que ele apresentou nos seus últimos dias.
Religião é a infelicidade sob a qual, provavelmente, terá de gemer [ain-
da que] secretamente, toda criatura que se chama humana.
[Para comprovar esta afirmação, vejamos o que se pode constatar, pri-
meiramente, dos versículos 14-17 e, em seguida, dos versículos 18-20].

Vs. 14-17 (Primeira constatação): Pois eu sei muito bem que a lei vem do
Espírito; eu, porém, sou carnal, vendido ao pecado. Portanto o que
faço, isto não reconheço; pois não faço o que quero mas o que odeio,
isso faço. Enquanto, porém, faço o que não quero, confirmo a lei como
sendo justa; porém não sou eu que faço tal coisa, mas o pecado que
está em mim.

[A tradução de Almeida escreve assim: “Porque bem sabemos que a


lei é espiritual; eu, todavia, sou carnal, vendido à escravidão do pecado. Por-
que nem mesmo compreendo o meu próprio modo de agir, pois não faço o
que prefiro e sim o que detesto. Ora, se faço o que não quero consinto com a
lei, que é boa. Neste caso, quem faz isto já não sou eu, mas o pecado que
habita em mim.
Parece que ambas as redações deixam bem claro que ao fazermos o que
não queremos, por não querê-lo, estamos confirmando a boa qualidade da lei.
Todavia o A. chama atenção à primeira parte do versículo, onde ele escreve “eu
sei muito bem que a lei vem do Espírito” — (ou, é espiritual) enquanto Almeida,
e as demais traduções escrevem, “bem sabemos que a lei é espiritual”.

402
A Realidade da Religião 7, 14

Em nota de rodapé, analisando o texto grego, o A. diz que embora a


tradução “nós sabemos” seja defensável, ele prefere a forma “eu sei” porquan-
to, pelo contexto, não considera que os romanos — (os destinatários da carta)
estivessem em consenso com Paulo, sobre o assunto; portanto Barth prefere,
neste particular, acompanhar Hoffmann e Zahn. (Para o comentário completo
do A., ver o original ou a trad. inglesa da 6ª edição, ao pé da página 259)].
“Eu sei que a lei é espiritual”.
Saber isto, é o primeiro requisito de uma criatura religiosa. Ela está sob a
impressão compulsiva do Espírito, que é compulsivo por ser o “de onde” que se
opõe diretamente à pergunta “para onde” que a morte apresenta. A criatura fica
situada entre a aflição e a esperança de uma batalha da qual não pode esquivar-se
por se tratar da luta pela própria existência. Ela está perante uma solicitação que
precisa satisfazer a todo preço, pois todas as insuficiências de sua vida e de seu
modo de ser testificam a necessidade e a justiça dessa exigência. Pergunta-se-lhe,
e ela precisa responder; ela é chamada, e deve obedecer. A existência de Deus
sobressai e se eleva qual um muro, qual uma fortaleza que bloqueia o horizonte e
invade a vida do ser humano qual punho cerrado e ameaçador.
Nesta situação o ser humano precisa tomar posição, precisa definir-se,
precisa submeter-se. Paulo sabe o que diz quando, escrevendo algures, se con-
sidera “prisioneiro e encarcerado.” (Efésios 3, 1 e 4, 1; II Timóteo 1, 8 e Filemon
1, 9). “Senhor, tu me persuadiste e eu me deixei persuadir; tu foste mais forte
que eu, e prevaleceste”! (Jer. 20, 7).
Eu porém, sou carnal, vendido ao pecado”.
[Mediante semelhante condição], se Deus for Deus, quem sou eu? [Como
ser carnal e pecaminoso) estou preso e acorrentado por ele?
Ante semelhante interrogação, pela própria experiência da vida, se tor-
na evidente que [como homem carnal] não tenho uso para essa urgência, essa
inevitabilidade, essa imposição que a lei do Espírito traz. [Essa solicitação não
é dirigida a mim].
Que espécie de existência seria essa que, recebendo o impacto da lei que
vem do Espírito, tivesse de orientar-se pela aflição e pela esperança que ela
provoca e tivesse de submeter-se a sua solicitação?
Em qualquer hipótese, não seria a minha, nem qualquer existência hu-
mana que eu conheça.
Como haverei de responder [carnal que sou], se for interrogado? Como
haverei de escutar, se for chamado? “Eu sou carnal”. A carne jamais será Espírito!
Seria, então, na ressurreição da carne?
“Estou vendido ao pecado”. Esta transação, [esta venda] não é reversí-
vel [ou anulável], senão pelo perdão dos pecados. Ora, eu sou um ser humano

403
7, 14-15 A Realidade da Religião

e nenhum entusiasmo religioso pode iludir-me ou me enganar sobre o que isto


significa: somente uma criatura nova [poderia fazer jus a essa condição que a
lei do Espírito impõe], somente a vida eterna poderá libertar-me da perplexida-
de, [segundo a tradução inglesa “do enigma”] de “minha condição de criatura
humana”.
[Como homem do presente século], para que me serve o Espírito? Para
que me serve a lei que dele procede? Para que me serve minha “religiosidade”?
Para que me serve a persuasão e o subjugamento divinos? Não é, então, público
e notório que não há (em mim) forças para suportar a situação?
“Senhor, retira-te de mim porque sou pecador”! (Luc. 5,8).
“Deus”, não condiz, não vai bem com o homem que sou. [A trad. ingle-
sa escreve: “Não há elo de ligação entre mim, qual sou, e Deus”].
“Porquanto o que faço, isto não reconheço, pois não faço o que quero,
mas o que odeio, isso faço”.
É evidente: se. acaso, a lei ou a minha personalidade religiosa fosse o
próprio Espírito; se, acaso, “a contemplação e a percepção do universo” e “a
sensação e o gosto do infinito” (Schleiermacher) pudessem ser tomados seria-
mente como possibilidades possíveis; se, acaso, Deus e o homem que eu sou
pudessem ser, de alguma forma, tomados juntos, então olhando deste ponto de
vista, eu deveria estar em condições de considerar-me como a resposta à per-
gunta crítica desta vida; eu deveria considerar-me como um ser obediente ao
mandamento divino: uma nova realidade abençoada por Deus.
Então eu reconheceria e aceitaria minhas realizações, minhas palavras,
meus atos e obras, toda a minha vida real, como totalmente alinhada com as
exigências do Espírito ou [quiçá sendo mais modesto], pelo menos parcialmen-
te em conformidade com elas, ou ainda, que fosse [apenas] como um princípio
auspicioso, esperançoso, do cumprimento das exigências da lei.
É claro que eu posso ser naturalmente ingênuo e também suficiente-
mente presunçoso para pretender, ou afirmar ocasionalmente, que estou nestas
condições, contudo, as circunstâncias se encarregarão de demonstrar que não
posso afirmar isso com muita segurança e por muito tempo pois, por mais
esclarecedora e mais clara que seja para mim a determinação divina de que a
vontade de Deus se cumpra em minha vida e de que seus preceitos são leves, é
igualmente evidente e claro que isto não acontece — não aconteceu e nem
acontecerá mesmo nas coisas mais simples de minha vida, em nenhum instante
sequer, nem mesmo no mais alto, no instante mais puro, mais límpido, no mo-
mento mais reto de minha existência.
Estou, acaso, em condições de ter um só pensamento que seja a expres-
são do Espírito que me compele? Acaso uma palavra minha, uma única que

404
A Realidade da Religião 7, 15

fosse, seria a expressão que procuro para exprimir com propriedade a minha
grande ansiedade e imensa esperança? Acaso posso falar de outra forma se não
de maneira que uma palavra suprima e cancele a outra?
Será que me situo melhor pelos meus atos e obras?
Acaso a minha infidelidade nas coisas grandes constitui um sucedâneo
válido à minha infidelidade nas coisas pequeninas, ou vice-versa? (Seria assim
— de infidelidade em infidelidade — que eu supriria aquilo que me falta e pelo
que anseio?)
Acaso algum pensador, poeta, estadista ou artista, que mereça ser leva-
do a sério, realizou alguma obra que lhe satisfizesse plenamente, na qual ele se
considerasse plenamente realizado?
Não é verdade que precisamos sempre [e por vezes] dolorosa e saudosa-
mente, mas inescapavelmente, de nos despedir em definitivo de tudo quanto
tivermos realizado, ou feito? (E ai de nós se nos demorarmos demais nessa
despedida...) [Ai de nós se apreçarmos ou prezarmos excessivamente as nossas
obras e nos dermos por satisfeitos com o que houvermos realizado!]
E quando meus pensamentos, minhas palavras e obras se perdem nessas
divagações, acaso encontrarei no mar undoso dos meus sentimentos ou no “cal-
deirão de bruxas” de minha capacidade subconsciente, algum sucedâneo que
substitua aquilo que conscientemente me falta?
Não! — Somente os irrecuperáveis acreditam no valor perene de seus
sentimentos!
Em nada que eu realize ou fale, nem em sua generalidade, nem em qual-
quer detalhe especial, reconheço como sendo minha produção aquilo que eu
produzir, antes, vejo em tudo produtos que me são estranhos e hostis e que,
para meu desgosto, prontamente se levantam contra mim e testificam a minha
insuficiência.
Eu não entendo tais obras e feitos, nem os aprecio e quero; antes quisera
renegá-los quando me fixam quais monstrengos repelentes.
Eis que conhecemos em parte e sabemos em parte (I Cor. 13, 9). Por isso
não reconheço [não sei] o que faço. Aquilo que quero não faço, porém o que
odeio, isso faço.
Quem sou eu, porém, — aquele que fica despedaçado entre este “não
fazer o que quer” e o “fazer o que não quer”?
“Enquanto, porém, faço o que não quero, confirmo a lei como sendo justa”.
Dizíamos: “Aquilo que odeio, isso faço”.
Parece, pois, haver um ponto comum entre mim e aquilo, incompreensí-
vel, inaproximável e intransferível, que vem do Espírito: é a minha aversão, o
meu protesto contra minha vida qual ela o é; o desassossego com que acompa-

405
7, 15-17 A Realidade da Religião

nho minha própria passagem pelo mundo; o fato de eu não querer aquilo que
pratico.
Não estarei [quando mais não seja] ao menos por força dessa minha
negação, em harmonia comigo mesmo? Acaso não sou praticante da lei, pelo
menos na medida em que tenho profunda consciência da minha pecaminosidade
e me oponho a ela, decididamente?
Não posso, ao menos me acalmar [me consolar, justamente] pelo fato de
estar tão inquieto?
“Quando sentires, em ti, a luta entre a carne e o espírito e freqüentemente
fizeres o que não queres, é sinal de que tens um coração crente. — Enquanto
esta luta persistir no íntimo de uma pessoa, o pecado, ali, não reina; e porque a
criatura luta contra o pecado e não o quer, o pecado não lhe é atribuído”. (Joh.
Arnd).
Frases perigosas essas. Quem não conhece esse subterfúgio da dialética
pietista ou a rósea suavidade crepuscular do compromisso, do apaziguamento e
da resignação que mansa, mui mansamente, tinge o horizonte após toda sorte
de tempestades de consciência, sempre quando nos deparamos com semelhan-
tes lutas?
“Porém não sou eu que faço tal coisa, mas o pecado que existe em mim”.
O que significa, pois, que eu odeie aquilo que faço e que proteste contra
mim mesmo? Evidentemente apenas isto: que estou abrindo o valo que me
separa de mim mesmo.
Seria isto, um começo promissor?
Será assim que encontrarei a resposta à pergunta: “Quem sou, se Deus
existe”?
Eu, — aquele que “faz estas coisas” e cujos feitos e obras [também] eu
(o outro “eu”) observo com acerbo desgosto — [esse primeiro “eu”] evidente-
mente não é o que há de subsistir ante aquela pergunta.
Todavia, poderia o outro “eu”, [o segundo], aquele que se aflige, o
protestador, estar à altura da pergunta?
Quem é este outro eu? Acaso não é ele esse nobre observador impoten-
te, esse coitado expatriado que nada mais pode fazer do que menear a cabeça
para dizer “Não” ao que o outro faz, enquanto este outro continua agindo e
fazendo o que bem quer, até mesmo em nome daquele que o desaprova?
Servir-me-ia, acaso, de justificação o fato de que na realidade “não faço”
aquilo que faço; que “não mando” em minha casa; que é um outro que aí “faz e
acontece”, sob meu protesto; que é um outro que (na minha casa) “pensa, fala,
sente e negocia, enquanto “eu” somente cedo “a praça” e o nome [a razão soci-
al] para realizar aquilo com que nada tenho a ver?

406
A Realidade da Religião 7, 17-20

Contudo, o que mais significa esta justificação [que alego], esta minha
concordância com a lei, se não o juízo que faço de mim mesmo, admitindo que
o pecado existe em mim? E semelhante julgamento acaso garantirá um seguro
ponto de apoio para os meus pés?
Quem me garante que “aquele eu” que faz aquilo que lhe apraz, e “este
outro” que não quer aquilo que aquele faz, não sejam, basicamente, idênticos?
Quem sabe se a minha sanhuda oposição contra mim mesmo, não é mais do
que bravata do estilo do “Barão de Muenchhausen” [celebre personagem, “con-
tador de lorotas” da literatura alemã] que se desenvolve [em torno do meu ego]
dentro das quatro paredes da “casa do pecado”?
Na realidade, a religião não fala nunca, em lugar algum, daquele “eu”
que de fato existe além do pecado que habita em mim. A religião fala apenas da
dupla personalidade segundo a qual, constantemente, mediante uma faço o que
não quero e, mediante outra não quero o que faço.
A religião fala-nos apenas da discordância que há entre aquilo que o ser
humano sabe [que deve fazer] e aquilo que ele pratica; ela nos fala unicamente
de uma só realidade: a realidade do pecado.

Vs. 18-20 (Segunda constatação): Porquanto eu sei que o bem não habita
em mim, isto é, na minha carne; eu consigo querer o bem mas não está
em mim realizar o que é reto, pois não faço o bem que quero, mas o
mal, que não quero, não sou eu quem o faz, porém o pecado que habita
em mim.

“Eu sei que o bem não habita em mim, isto é, na minha carne”.
Esta é a segunda constatação que o homem religioso faz, e ela resulta
diretamente da primeira. [Que a lei vem do Espírito, mas o homem é carnal...]
Aqui, ainda uma vez, nos deparamos com a situação especial em que se
encontram aqueles que anunciam o evangelho (3, 1-20): eles podem e precisam
saber [e reconhecer que em nós, — e neles — não existe bem nenhum]; logo
eles! Nem tampouco a revelação de Deus em Jesus Cristo se faz sem a iniciação
da criatura neste terrível segredo e isto porque a revelação de Jesus Cristo é a
revelação de todas as revelações!
“O mui caro Paulo bem que gostaria de não estar em pecado; eu e outros
muitos estimaríamos, também, do pecado estar isentos; mas não pode ser as-
sim; caímos em pecado e o exsudamos por todos os poros; levantamo-nos de
novo, martirizamo-nos e nos debatemos com ele dia e noite sem descanso.
Porém, enquanto estivermos ligados a esta carne, enquanto carregarmos este

407
7, 18-20 A Realidade da Religião

mal cheiroso invólucro atado ao nosso pescoço, a luta não há de cessar, nem
poderemos ensurdecê-la, por mais que nos esforcemos para conseguí-lo. O antigo
Adão também quer ter a sua vida até que chegue à sepultura. Em resumo: o
Reino de Deus é um reino peculiar: nenhum santo pode aqui dizer outra coisa
se não: — Oh Deus, Todo-Poderoso, eu me confesso um pobre pecador; não
me imputes a antiga culpa!...
“Não é cristão quem não tem pecado nem sente culpa, e se encontrares
um tal, esse é um Anticristo e não um verdadeiro cristão. Portanto, o Reino de
Cristo está onde há pecado, por entre o qual existe. Cristo destacou o pecado na
Casa de Davi”. (Lutero)
Este “porém” [eu, “todavia”] (7, 14) não representa uma ressalva, uma
atenuante, uma concessão a favor do homem religioso com respeito ao que ele
sabe de si mesmo, pois a expressão “em minha carne” não é condescendência
que se lhe faz, antes é reforço à acusação [à desqualificação] que ele, justamen-
te o homem religioso, precisa levantar contra si mesmo.
“Sou carnal”! é o que isto quer dizer.
Lembremo-nos o que “a carne” significa (3, 20): mundanalidade
desqualificada; (vista justamente pela criatura religiosa), “carne” é a definitiva
e inqualificável mundanalidade, “carne” quer dizer relatividade, nulidade, con-
tra-senso, falta de sentido. Isto tudo, é o que sou! É claro que esta afirmação
[esta autoconceituação, ou autocrítica] não pode vir do argentário, do gozador,
do déspota. (Como poderiam tais pessoas sentir isso? O que tais caracteres
sabem de si mesmo talvez seja um raio de luz da misericórdia divina, que é
maior do que sua ira!) Semelhante afirmação, tal juízo a respeito de si mesmo,
[tal autocrítica], porém, há de vir de quem é devotado a Deus; do homem reto,
com genuína experiência religiosa: do profeta, do apóstolo, do reformador, para
quem a unidade da santidade e misericórdia divinas se tomou uma questão
existencial, pessoal.
“Por que me chamas bom? Não há ninguém bom, senão só Deus”! (Marc.
10, 18); e isto, é Jesus quem o diz!
Portanto, a afirmação de que “Deus e ‘o homem que sou’ não vão jun-
tos” [não se coadunam] e que se tornou clara para nós imediatamente quando
tomamos conhecimento do que é espiritual (7, 14), não foi deduzida sob um
impulso pessimista, antes o que então concluímos por experiência se confirma
pela própria lógica. Este conhecimento do ser humano se baseia, exclusiva-
mente, no conhecimento de Deus. [O homem sabe que não é bom, em virtude
de seu conhecimento de Deus].
“Porquanto eu consigo querer o bem, mas não consigo realizar o que é
reto, pois não faço o bem que prefiro mas o mal, que não quero, esse pratico”.

408
A Realidade da Religião 7, 18-20

A minha vontade lembra-me do bem que não está em mim, porém é


apenas minha vontade que se identifica com o meu conhecimento do caráter
divino da lei (7, 14), pois sem querer o que é divino, não poderei sequer tomar
conhecimento do que esse divino seja.
[Talvez pudéssemos parafrasear o A. dizendo: o meu “ALTER-EGO”,
aquele que ainda não sou, recebeu a revelação e “conhece” o que é bom; por
isso, eu quero o bem que, todavia, o meu “EGO” terreno, carnal, não quer, pois
está sob o domínio do seu senhor, o pecado, em cujo reino vive, mantendo o
“ALTER-EGO” inseparavelmente ligado a si, até a morte.
Vejamos, porém, a exposição do Autor].
“Consigo querer”: o que significa “querer”? E claro que significa alme-
jar, desejar, ambicionar, pedir, procurar, perguntar, buscar, rogar, suplicar, bater
à porta.
Essas palavras, decisivas e plenas de promessas, são os pontos-chave
de toda cogitação espiritual e de toda prédica. São palavras repetidas cons-
tantemente em todas suas variações, gradações e ênfases por todas testemu-
nhas e todos mensageiros da verdade, em todos os tempos; talvez sejam elas
repetidas tão sofregamente justamente por ser tão simples o seu significado e
tão assustadoramente claro o seu sentido decisivo; se tais palavras não surti-
rem resultado, quais o terão? Elas indiscutivelmente têm êxito: “Buscai a
Deus”! Sempre encontraremos ouvidos atentos [a este convite e esta ordem, a
esta exortação] por ser ela a última (e a suprema) coisa que ouvidos humanos
podem ouvir; e é fora de dúvida que o número de pessoas que efetivamente
querem e buscam a Deus é infinitamente maior do que possa parecer numa
observação superficial.
Quem poderá privar alguém de “querer verdadeiramente”?
Talvez eu, também, seja um dos que procuram a Deus.
“O querer eu consigo”! Pode ser.
Mas o amparo religioso que provavelmente terei de procurar para “con-
seguir” esse querer, pode ser tão precário quanto o lado [aparentemente opos-
to] onde [declaradamente] não faço o bem que quero. (7. 16).
Tanto cm um como noutro caso, tudo depende de eu conseguir realizar
o que é reto, segundo o “bem querer” que há em mim.
Fica, pois, claro e fora de dúvida que o mais honesto, o mais profundo,
o mais fundamental desejo de fazer o bem, nem sempre é coroado com a reali-
zação do que é reto.
Contemplemos ainda uma vez o vasto cemitério que abriga a história de
tantas igrejas cristãs. Examinando o teor de espiritualidade dessas igrejas todas
veremos que, certamente, não lhes faltou um mui sincero “querer”.

409
7, 19-20 A Realidade da Religião

Em que se diferençava a ação de Jeremias daquela dos falsos profetas


que se lhe opunham? Qual a diferença entre o sucesso da cristandade antiga
que teve o seu apogeu com Constantino (historiadores não interessados em
teologia, por favor, entendam) e o sucesso de seus contemporâneos, adoradores
de Mitras e Cybele?
O que distingue o êxito dos reformadores em Wittemberg Zurich e
Gênovea, do êxito dos Papas, em Roma, ou dos arquitetos das mais altas torres
do Babel?
Donde procede o contraste da piedade interior que emana dos olhos da
virgem, pintada na Capela Sistina, admirada por tantos, quando comparada
com a enorme hipocrisia que fala dos olhos das “virgens” de El Greco?
Acaso não são as realizações [e os feitos] dos homens apenas degraus
de uma mesma escada e todas juntas, na melhor das hipóteses, apenas analogia
[ou parábola] de obra totalmente diversa?
Não é evidente que a sinceridade que o Senhor faz prosperar não é exa-
tamente a mesma coisa que o querer honesto que podemos desejar e do qual,
ocasionalmente, podemos tirar consolo ou conforto? [Não é certo que] nada
sabemos do caminho que desse honesto desejar leva à sinceridade que o Se-
nhor acolhe? Não é verdade que apenas sabemos que esse caminho é linha que
se rompe sempre e sempre e que jamais nos leva ao nosso alvo?
“Pois não faço o bem que prefiro, mas o mal que não quero, esse faço”.
Como homem religioso, à minha própria indagação sobre o que pode-
rei fazer de bom por força do meu amor ao bem, terei que responder “NADA”.
Terei que admitir que não posso permutar a minha vontade de praticar o bem
pelo próprio bem. O bem tem a peculiaridade de insistir na realidade, [na sua
efetivação]; o bem não quer ser somente desejado mas precisa ser realizado e
praticado. Porém eu não o pratico; por isso, ainda uma vez, preciso indagar:
quem sou eu que de forma intolerável preciso ser “os dois”, conco-
mitantemente: aquele que quer e aquele que não pratica o que quer e que,
pelo desejo sincero de seu coração, é apenas conscientizado de que o bem...
não habita nele?
“Contudo, quando pratico aquilo que não quero, não sou eu quem o faz,
mas o pecado que habita em mim”.
Portanto, no que concerne ao meu querer, não há meios de fazer o que é
“reto”. (Final do vers. 18 e todo vers. 19 deste capítulo).
Voltamos, pois, à questão decisiva: — o que se faz? E a resposta é: —
“Faço aquilo que não quero”!
Não se afirma (ou se diz) em lugar nenhum que o fato de eu honesta
e sinceramente — querer o bem, ou que a realidade de eu aborrecer o mal

410
A Realidade da Religião 7, 20-23

(7, 16 -17) possa justificar-me, antes, pela segunda vez se confirma a minha
própria conclusão a meu respeito: não sou eu que faço.
Excluído e premido contra a parede, preciso assistir ao que acontece, de
fato, em minha própria casa.
De que adianta o apelo, o meu apego, ao bem, se não para confessar que
o pecado habita em mim? Sim, ele habita, e é ele quem faz e realiza. Porém, o
fato de ser o pecado quem pratica o mal, não me serve de desculpa; antes, é
minha autocondenação pois, que bases tenho para dizer que o “eu” que não
quer, e o outro “eu” que faz, não sejam os dois o mesmo “eu”?
A realidade — e também a realidade religiosa, — conhece apenas um
ser, e este sou eu. Este “eu”, todos o sabemos, vive querendo o bem sem o
realizar, ou praticando o mal sem o querer, dentro das quatro paredes do solar
do pecado. O pecado (deste “ser”) é, em resumo, a realidade de que nos dá
notícia a experiência religiosa.

Vs. 21-23 (Conclusão): Descubro, pois a realidade da lei evidenciada para


mim no fato de que, ao querer fazer o que é reto, pratico o mal pois, segun-
do o homem interior me regozijo na lei de Deus; porém, vejo em meus
membros uma outra lei, guerreando contra aquela que está na minha ra-
zão [no meu senso, na minha “mente”], e me levando ao cativeiro sob a lei
do pecado, [que está] em meus membros

[Almeida escreve assim: “Então, ao querer fazer o bem, encontro a lei


de que o mal reside em mim. Porque no tocante ao homem interior, tenho pra-
zer na lei de Deus; mas vejo nos meus membros outra lei que, guerreando
contra a lei da minha mente, me faz prisioneiro da lei do pecado que está em
meus membros”].
“Descubro, pois, a realidade da lei evidenciada para mim no fato de que,
ao querer fazer o que é reto, pratico o mal”.
Ser religioso significa ser criatura despedaçada, em desarmonia consigo
mesma, sem paz.
Somente poderá estar em harmonia consigo mesma a criatura que ainda
não acordou para a grande interrogação sobre sua unidade com Deus.
Todos traímos com suficiente clareza, por nossos atos e pelo nosso com-
portamento, que de maneira alguma estamos de acordo com nós mesmos e
mostramos, assim, o quanto Deus nos inquieta.
(Felizes [do ponto de vista do mundo], aqueles que podem iludir o cora-
ção que esmorece; possam eles [prolongar por longo tempo essa insensibilida-
de] adiar de muito o seu despertamento.)

411
7, 21 A Realidade da Religião

A realidade da religião consiste no fato de que em contra posição àquilo


que eu quero e não pratico, — ou àquilo que pratico sem querer, — está o meu
“eu”, o sujeito desse predicado [o “agente”j, que se transforma numa grandeza
totalmente duvidosa; esse “eu” passa a ser uma incógnita, um “X”, que nem
pode viver nem morrer.
Por força da lei através da qual conheço a Deus, quero “praticar o que é
reto”; todavia, também por força da lei mediante a qual sou conhecido por
Deus, [isto é, pela qual Deus me analisa ou através da qual me vê], “pratico o
mal”.
[Ora a lei é a religião e] esta mais alta possibilidade, [o conhecimento
que tenho de Deus pela religião], transforma-se para mim na mais alta perplexi-
dade [pois a religião me expõe perante Deus, qual sou]. A maior dádiva e tam-
bém a maior ameaça; a mais alta promessa se transmuda na mais alta aflição.
É acaso compreensível que Schleiermacher, no mesmo dia em que ter-
minou a sua obra “Discursos sobre a Religião”, “em acesso de alegria de pai e
temor da morte”, tenha afirmado que “seria pena se tivesse de morrer naquela
noite”, como se a morte não fosse coisa muito próxima [algo, quiçá, até mais
desejável do que a vida], depois de se haver discursado tão linda e energica-
mente sobre a religião?
Pode-se recomendar a religião ao homem simples que em seu coração
busca apenas paz? Será que se pode oferecer a religião como algo, não apenas
suportável mas, como sendo coisa bem vinda, interessante, enriquecedora!? Po-
demos apresentar a religião como sendo suplementação valiosa da cultura, (ou
então como sucedânea dessa cultura, dada a problemática interna própria, tanto a
toda forma de cultura como à falta de cultura), impingindo-a diligentemente!?
Acaso podemos colocar a religião em posição triunfante, comparando-
a com a ciência, a arte, a ética, o socialismo; confrontando-a com movimentos
de “juventude”, movimentos nacionais (ou raciais), e à Nação (ou ao Estado),
como se já não tivéssemos visto e aprendido por milhões de experiências que
toda vez quando, seriamente, colocamos a religião em correlação com alguma
coisa, — (Religião e Estado, Religião e...), até a erva murcha e seca!?
É difícil de acreditar que esses estranhos líderes que anunciam e pregam
semelhantes associações, encontrem sua justificação no fato de milhões e mi-
lhões de pessoas quererem ser levadas exatamente assim; assim, e de nenhuma
outra forma.
São milhões e milhões que se apegam às alternativas religiosas, para se
fundamentarem, para alcançar maior aperfeiçoamento, ou mesmo para a
consoladora consagração de suas demais atividades, quiçá para justificar o seu
próprio “patos”, [seu anseio por compreensão e comiseração] com o “patos do

412
A Realidade da Religião 7, 21-23

infinito” na esperança de assim proporcionarem, a si mesmos, algum bem e


para que, acima de tudo, sejam tidos por piedosos!
Mas esta surpreendente realidade — de que a justificação de semelhan-
te pregação e conduta está apenas no fato de que muitos andam em pós ela] não
impede que uns e outros — guias e guiados — estejam juntos a serrar a base do
galho em que se abrigam; estejam a incendiar a casa em que pretendem repou-
sar, estejam a broquear o casco do barco no qual navegam sobre o abismo.
Quem sinceramente preferir ater-se à sua paz íntima, à agradável har-
monia da humanidade e à solidez de sua cultura (ou ignorância), esse tal, en-
quanto lhe for possível, estará junto com Lessing, Lichtenberg, Kant, Goethe,
opondo-se tenazmente à penetração da religião em sua vida. Esse tal levantará
sua voz em advertência aos incautos que por motivos estéticos, históricos, sen-
timentais ou políticos estejam minando a barragem para dar vazão à torrente
que atingirá cabanas e palácios e da qual serão eles as primeiras vítimas. Esse
tal mostrará mais visão e realismo que aqueles possíveis “virtuosos” da pieda-
de (na verdade os seus mais sangrentos diletantes) que, não sabendo o que
fazem, em sua alegria romântica apelam aos gênios da religião que, depois, não
poderão suportar.
Todavia, todo esforço [e clamor] que alguém faça contra o sentimento
religioso não surtirá qualquer êxito pois a criatura humana tem este sentimento
tão profundamente arraigado em seu coração que não pode afastar-se dele; nem
mesmo a cultura do hodierno mundo ocidental tem capacidade para proteger o
homem contra a incursão da religião. [O A. escreveu isto entre os anos de 1918
e 1928]. Precate-se, pois, o guardião do bastião da humanidade para que ele
próprio, na hora undécima, não se veja forçado a pleitear uma pequena trégua
com esse adversário tão justamente temido.
A religião, sob a capa de mais fiel amiga do ser humano, é adversária de
gregos e bárbaros; ela tanto é a crise da cultura como da falta de cultura. Ela é
o mais perigoso adversário que a criatura humana tem deste lado do mundo
(depois de Deus), pois é ela que leva o homem a cogitar sobre a certeza de sua
morte e a considerar a possibilidade que Deus oferece.
A religião é a sede onde, no mundo da temporalidade, das coisas e dos
homens, se firma a pergunta: Quem és, afinal?
É na religião que esta interrogação se expressa de forma insuportável:
“A lei de Deus é a danação dos homens pois, enquanto estiverem sob a lei, são
escravos do pecado e devedores da morte”. (Calvino)
“Pois segundo o homem interior, me regozijo na lei de Deus, porém
vejo em meus membros outra lei, guerreando contra aquela que está em minha
mente, me levando ao cativeiro da lei do pecado” [que está] em meus membros”.

413
7, 21-23 A Realidade da Religião

A religião é o irrompimento do dualismo. Quem esconder esta realidade


com as flores retóricas do sonoro monismo é “um notável traidor” (Overbeck)
e presta ao mundo, que ele quer agradar, o maior desserviço que se pode imagi-
nar, pois o segredo que tenta encobrir não pode ser oculto e a dinamite que ele
enterra entre flores, explodirá um dia.
Religião significa a divisão do homem em duas partes: de um lado o
espírito, o homem interior, que se compraz na Lei de Deus; (acaso sou idêntico
a este “espírito”? Acaso sou unicamente o “homem interior”? Quem se atreverá
a responder afirmativamente?). De outra parte está a “naturalidade” de meus
membros nos quais reina lei totalmente diferente; neles há uma possibilidade
inteiramente outra; neles se manifesta uma parcela de atividade, absolutamente
diversa. Esta outra lei está em guerra com a que existe em minha mente; quan-
do esta diz “sim”, aquela diz não. Nesta oposição que aqui emerge, neste se-
gundo [eu], neste principio da heterogeneidade, se incorpora, declaradamente,
neste meu corpo — separado da alma — a lei de todas as leis, a possibilidade
que é a primeira entre todas as outras [neste mundo]: o pecado que me aprisio-
na. (Acaso sou idêntico a esta “natureza” dominada pelo pecado? E agora al-
guém se atreverá a responder afirmativamente?).
(Temos a dualidade em oposição:) Homem interior e homem exterior;
além e aquém; ideal e matéria, (qualquer que seja o par de antônimos que esco-
lhamos). Mas onde pertences, tú? Ao “espírito” ou à “natureza”? Não podes
renegar o espírito e querer ser somente “natureza”, pois como homem religioso
bem sabes que a “natureza” quer ser “espírito” a qualquer preço; — (tu o sabes
de Deus!).
Também não podes renegar a “natureza” e pretender ser exclusivamente
“espírito” pois, ainda como homem religioso, tu também sabes muito bem que
o espírito quer ser natural, a todo custo. (Isto também o sabes de Deus).
Portanto haverás de responder: sou ambas as coisas! Talvez “Espírito-
Natureza” ou, quem sabe? “Natureza-Espírito”!
Tenta prosseguir com tão atrevidas antecipações [ou conclusões preci-
pitadas] e logo verás que essa pessoa que pretende ser una, por isso mesmo não
suporta, por isso mesmo não admite [nem tolera] ser colocada ao lado de outro
“eu”, consorciada e amalgamada com ele, em um mesmo ser; pior do que isto,
quanto mais furiosamente tentares vencer essa relutância à [justaposição dos
dois “egos”, à] fusão das duas características, mais aguda e mais firme será a
sua separação e tu, sempre instigado para um ou para outro lado és ou um ou
outro, porém jamais totalmente um ou totalmente outro. Serás ora um, excluído
pelo outro, ora o outro, excluído pelo primeiro — mas nunca excluído definiti-
vamente, mortalmente, porém de maneira que a mais radical expulsão [de um

414
A Realidade da Religião 7, 24-25

pelo outro] deixe aberta a possibilidade, ainda que tênue, porém visível, do
mais radical retorno [daquele que foi expulso].

Vs. 24-25 (primeira parte) Desventurado homem que sou! Quem me arran-
cará do corpo desta morte? — Graças a Deus por Jesus Cristo, nosso
Senhor!

Estamos novamente no ponto onde principiamos o capítulo: o homem


religioso “é um ser humano enquanto viver”, (7, 1) —(Ele é e será) esta criatu-
ra, neste mundo; a criatura dotada com as capacidades humanas, a única que
conhecemos. A criatura que nunca deve ser o que ela é, nem é o que deve ser. O
homem religioso é a criatura que, com o seu corpo mortal, carrega a lembrança
constante de que ele pertence à morte. A que mais nos poderiam levar todas as
afirmações sobre a realidade da religião se não à mais fundamental dúvida
sobre a possibilidade de tal criatura [a criatura religiosa]? Na realidade, ela
nem pode morrer nem viver! Com a sua religiosidade ela fica suspensa entre o
céu e a terra! Mas de que serve esta dúvida fundamental sobre as possibilidades
dessa criatura, se eu mesmo a sou? [De que valem todas essas elucubrações] se,
com todas as torções e distorções psíquicas e todas as inversões dialéticas não
consigo escapar à brutal realidade deste “eu sou”? [De que valem todas as
cogitações] se eu, justamente por obra da minha religiosidade, tomei consciên-
cia de que não há outra possibilidade para mim se não a de personalizar este ser
humano?
“Infeliz homem que sou”!
Acaso [nos compenetramos e] sabemos agora, finalmente, o que é o
“ser humano”?
Sabemos, também, o que é a realidade da religião?
Acaso sabemos agora o quanto se afasta da realidade religiosa o que os
primeiros pregoeiros dessa tendência [de apresentar o cristão verdadeiro como
herói, vencedor em todas as batalhas], no século XIX, se compraziam em pro-
clamar em termos triunfais como sendo religião?
A realidade da religião é o espanto de si mesmo que ela desperta no
homem.
Mas Jesus Cristo é o “Homem Novo” que está além do homem das
possibilidades humanas; está além do homem religioso que ele cancela e supri-
me totalmente.
Jesus Cristo é a criatura que veio da morte para a vida; ele, não eu,
constitui o meu “ego” existencial, o “eu” que sou na liberdade de Deus.

415
7, 25 A Realidade da Religião

“Graças a Deus”; por Jesus Cristo, nosso Senhor, eu “não sou” o ho-
mem infeliz que sou. [Ele me livra do “corpo desta morte”!]

Vs. 25 (segunda parte) Portanto, esta é a situação: eu, como uma única e uma
só pessoa, sirvo a lei de Deus com a mente, porém a lei do pecado com a
carne.

[Ou, segundo a tradução de Almeida: “De maneira que eu, de mim mes-
mo, com a mente, sou escravo da lei de Deus, mas, segundo a carne, da lei do
pecado”].
“Infeliz homem que sou.” Temos que suportar todo o peso deste “eu sou”.
Não se pode alijar esta carga. Em verdade Paulo não estava se referindo à sua
condição de “antes da conversão”. O que significaria “antes” em se tratando da
conversão e da supressão da criatura em sua totalidade?
Porém Paulo se referiu — e isto também segundo o consenso dos
Reformadores, mas incompreensível aos que lerem com os óculos dos pietistas
da nova teologia — a seu passado, seu presente e seu futuro. Esta realidade
refere-se à realidade de seu ser de “antes” e de “após” [à sua experiência no
caminho de] Damasco. É a mesma e una pessoa, bipartida por força da lei de
Deus e que, por força dessa mesma lei, não pode ser dois; a criatura é apanhada
em um dualismo que é a sua própria refutação; e despedaçada em Deus sem,
todavia, poder esquecê-lo.
Sabemos agora, afinal, o que é a liberdade de Deus, o que é a sua graça?

Comentários: 7, 14-25

1. “O reino de Cristo está onde há pecado”.


Essa expressão vigorosa de Lutero (e que parece coadunar-se muito
bem com o estilo do A.), serve para destacar a realidade de que Jesus
Cristo veio ao mundo para buscar e salvar a criatura humana, perdida
em conseqüência do pecado. Se alguém diz que não tem pecado esse
tal é mentiroso e torna vão o sacrifício de Cristo; não tem parte com
Cristo que morreu pelos pecadores. Ora, se alguém ensinar que ao
fazermos o que não queremos, quando sentirmos em nós, bem acesa,
a luta entre a carne e o espírito, o pecado não reina em nós, esse tal
nos acalma (ou tenta acalmar-nos) com parte da verdade e, portanto.
perigosamente pois o pecado é o próprio mal que praticamos sem o

416
A Realidade da Religião 7, 14-25

querer. A luta que em nós existir é o nosso não conformismo com o


mal e Deus, que julga segundo o secreto de nossos corações poderá,
quiçá, não nos imputar o mal que praticarmos. Todavia, se de ante-
mão concluirmos que o pecado não nos será imputado em vista de
nossa relutância em praticá-lo, estamos SUB JUDICE da nossa justi-
ça e não sob a graça misericordiosa de Deus.
2. É de Deus que nos veio a ciência do bem e do mal. De Deus e não de
Satanás. Satanás induziu o homem a buscar ciência que só a Deus
pertencia. (ERIT SICUT DEUS). É por isso que ao tomarmos conhe-
cimento da realidade da religião e da verdadeira posição do homem
em seu relacionamento com Deus, percebemos que, sem a remissão
mediante Cristo Jesus, nada pode haver entre o homem e Deus.
3. Poderemos ensinar a religião ao homem que almeja simplesmente a
paz?
Se tal homem procura a paz que o mundo oferece e pode dar, a
resposta será não. Todavia se a criatura almeja a paz e a segurança
que engalana a existência do “homem novo”, haveremos de pregar-
lhe o evangelho e, pela religião, trazer ao seu encontro o conheci-
mento da fidelidade de Deus; e a criatura ouvirá a voz do Bom Pastor:
“A minha paz vos deixo, a minha paz vos dou;... não se turbe o vosso
coração”. Essa religião assim anunciada não será compêndio de con-
fissão de fé, nem livro de doutrina, nem manual de preceitos e ritos
litúrgicos. Será a permanência no amor de Cristo pela guarda amorável
de seus mandamentos. Será a Igreja contra a qual não hão de prevale-
cer o mundo e o inferno; será aquela Igreja de cuja unidade nos falam
os capítulos 14 e 15 do Evangelho segundo S. João.

“Da Igreja o alicerce


É Cristo, o Salvador;
“Em seu poder descansa;
É forte em seu amor.
“Enquanto Ele permanece,
Ela continuará,
“E n’Ele fortalecida,
Jamais perecerá.”

417
Carta
aos
Romanos
de Karl Bart
por Koller Anders

Segundo a
Quinta Edição Alemã
(impressão de 1967)

2ª Parte
CAPÍTULOS DE VIII À XVI
QUALIS AB INCEPTO

Chegamos ao início da segunda metade do original.


A esta altura você já terá lido e relido a tradução inglesa e terá
tomado o pulso das diferenças no traduzir e da propriedade ou impropri-
edade das interpretações. É certo que as considerações que foram apos-
tas referentes a um ou outro tópico e mesmo as de ordem geral, necessa-
riamente restringem, em parte, a penetração mais profunda do leitor no
pensamento do Autor. Nem tudo está perdido, porém. Bastará ao leitor
que desejar acompanhar o pensamento do A. sem se sujeitar ao risco de
influências espúrias, prosseguir na leitura ignorando as considerações
gerais e as mais restritas enfeixadas em colchetes.
Barth diz algures que aqueles que não puderem enfrentar a
inexorabilidade de Calvino, a grandiosidade de Kierkegaard ou ainda a
devoção de Overbeck, que se contentem com religiosidade inferior. Apro-
veitando a sugestão direi aqui que, talvez, as ponderações apresentadas,
os comentários introduzidos e as interpretações dadas permitam àqueles
para quem a dureza de Barth é por demais contundente, — ou a rude
franqueza de sua dialética por demais traumatizante, — uma aproxima-
ção mais suave e possam, ainda assim, travar conhecimento com o vigo-
roso Autor.
Convém que se diga agora aquilo que deveria ser patente ao leitor
desde as primeiras linhas do livro: para entender Barth é preciso ter a
coragem de o ler até o fim!
Enquanto lutava com a interpretação do Capítulo VII tive oportu-
nidade de falar sobre a obra de Barth com ilustre Pastor patrício, a quem
bastante prezo, e ele me disse textualmente: “Li Barth até onde ele escre-
veu que Maria é a mãe de Deus. Foi demais para mim: fechei o livro e
mais tarde vendi a obra”. E foi pena porquanto leu apenas até o começo
do 2º volume do Livro I da Grande Dogmática. O culpado por essa perda
foi, sem dúvida, o incorrigível método de Barth de enunciar as suas

421
Qualis Ab Incepto

premissas ousada e provocativamente para a seguir expor, nem sempre


colocando as coisas muito bem explicadas. É que Barth escreve para
TEÓLOGOS...
Procede, a observação do Pastor meu amigo; de que valeria insis-
tir na leitura? O que mais se poderia esperar perante tal afirmação do
Autor? No entanto, se meu dileto amigo houvesse lido mais uns poucos
parágrafos adiante da página 138 do Livro 2 do Vol. I da “Dogmática da
Igreja”, publicação da Casa T. & T. Clark, de Edimburgo, edição de 1963,
teria saboreado a extraordinária refutação à Mariologia Católico-Romana
que Barth faz — (Grandiosa até mesmo na Prosaica língua de Shakespeare).
Nesse ataque à idolatria o A. diz que “de certa forma constitui para
nós um ‘teste’ da compreensão da encarnação do verbo o fato de, como
teólogos cristãos, não rejeitarmos a descrição de Maria como ‘mãe de
Deus’; porém, a despeito de esta expressão estar supercarregada da cha-
mada ‘Mariologia’ da Igreja Católica Romana, a aceitamos e confirmamos
como sendo a expressão legítima de uma verdade Cristológica. NÃO
PODEMOS DEIXAR DE DEFENDER ESSA EXPRESSÃO CONTRA O USO
IMPRÓPRIO QUE DELA SE FAZ, todavia, nem por isso devemos suprimir
o conhecimento que ela envolve: (‘Filho de Deus, nascido de mulher’ e
‘mãe de meu Senhor’. Gal. 4,4 e Luc. 1, 43). A frase tem fundamento
bíblico e é muito significativa no contexto Cristológico. Porém, a sua
utilização como base para a MARIOLOGIA independente (como é cha-
mada) FOI E É UM DESSES TÍPICOS EMPREENDIMENTOS CATÓLICO-
ROMANOS CONTRA OS QUAIS É FORÇOSO EXISTIR UM PROTESTO
EVANGÉLICO, NÃO SOMENTE PELA ARBITRARIEDADE DA FORMA,
PORÉM TAMBÉM PELA PRECARIEDADE DO CONTEÚDO. O conteúdo
dessa testificação bíblica não nos dá motivo algum para reconhecer que
a pessoa de Maria possua, sequer relativamente, posição tão enfática e
independente no evangelho da revelação que dê origem ou que justifi-
que a que se faça dela doutrina que vá além desta única afirmação e,
muito menos, que se faça dela o dogma Mariológico. Nem podemos
concluir de outra forma, partindo das mais sérias interpretações do dogma
que apareceram, se não que, neste caso, ESTAMOS TRATANDO, ESSEN-
CIALMENTE, NÃO COM O ACLARAMENTO MAS COM O OBSCU-
RECIMENTO DA VERDADE ou, por outras palavras, TRATA-SE DE FALSA
DOUTRINA. MARIOLOGIA É UMA EXCRESCÊNCIA; uma construção
doentia sobre um pensamento teológico. [É como se fosse um câncer
intelectual...] EXCRESCÊNCIAS PRECISAM SER EXTIRPADAS”. [Os grifos
em letras maiúsculas não estão no original].

422
Qualis Ab Incepto

Na obra de Barth não são poucas as assertivas traumatizantes; é


preciso ter suficiente confiança em si mesmo e na fundamentação de sua
fé, para ler até o fim o que por vezes soa tão chocantemente herético. Em
geral a persistência é compensadora; no caso em tela encontramos a
seguir os ensinamentos de Lutero e Zwinglio; vemos como Calvino enca-
rou o problema e como o entendeu a ortodoxia reformada em geral e
luterana em especial; vemos como, de fato, o menino que nasceu pela
instrumentalidade da Virgem Maria, foi (e é) o verdadeiro Deus “que se
liga com o nosso sangue”, (a nossa raça); verdadeiro homem de uma
parte e verdadeiro Deus, de outra.
Para entender Barth é preciso ter persistência e mente aberta para
analisar, não nos agarrando cegamente a nossos conceitos e preconcei-
tos, antes examinando tudo para, se for o caso, reter o que for bom. Isto
é verdade com respeito à conceituação do que seja pecado, na
estigmatização da idolatria, no emprego da “linguagem mitológica” e na
análise da própria religião.
Quem sabe, será também preciso vencer o enfado e a impaciên-
cia... Não escreveu um crítico Dominicano que as frases de Barth eram
apenas altissonantes? Não era de oitiva que os doutores, que mencionei
em algum lugar no prefácio, verberavam a obra de Barth? E não foi com
meias verdades, (ou com frases incompletas, quiçá apenas iniciadas) que
pensador e teólogo católico-romano responsabilizou Barth pelo que esse
crítico considera ser a degenerescência do clero romano?

maio, 1979

423
Capítulo VIII

O ESPÍRITO

O Autor dá ao capítulo o título geral “O ESPÍRITO” e o subdivide em


três partes:
• A Decisão - Versos 1 a 10
• A Verdade - Versos 11 a 27
• O Amor - Versos 28 a 39
Aque DECISÃO se refere o título que o A. dá a esta primeira parte? A
resposta vem na exegese dos versículos 5 a 9 que Barth inicia afirmando que “o
Espírito é a decisão eterna”. E, pois, do Espírito que ele trata procurando mostrar o
“relacionamento” entre o Espírito e as outras duas pessoas da Santíssima Trindade.
Mostra como o Espírito leva a Cristo de tal forma que aquele que não tiver o Espí-
rito também não tem Cristo e quem tiver o Espírito, está em Cristo. Voltam-se para
Deus os que tiverem o Espírito. Mostra também como o Espírito traz aos homens o
conhecimento de Deus Pai, e termina dizendo que a condição SINE QUA NON
para alcançar a redenção é estar em Cristo Jesus: portanto, é ter o Espírito.
Mais uma vez Barth deixa bem claro que “receber o Espírito” não vem
do nosso clamor ou do nosso gemer, nem pela nossa religião, antes pode vir
apesar disso tudo. Diz mesmo, o A., que nem sequer nos é lícito anunciar que
temos o Espírito porquanto ele, por si mesmo, se anunciará e, por ventura, nos
inspirará quando e como deveremos falar sobre ele.
A DECISÃO (8, 1-10)
Vs. 1 e 2 Agora, porém, não há sentença de morte contra aqueles que estão em
Cristo Jesus! Pois a lei do Espírito da vida que foi revelada em Cristo
Jesus, te libertou da lei do pecado e da morte.

(A tradução de Almeida escreve assim: “Agora, pois, já nenhuma


condenação há para aqueles que estão em Cristo Jesus. Porque a lei do
Espírito da vida em Cristo Jesus te livrou da lei do pecado e da morte”.)

425
8, 1 A Decisão

“Não há sentença de morte contra aqueles que estão em Cristo Jesus”.


Do que falávamos? Acaso era da Religião, como possibilidade humana,
ou foi da liberdade que temos em Deus, além de todas possibilidades humanas?
Falávamos do pecado, ou da justiça? Da morte, ou da vida?
Quem é este ser humano que [realmente] consegue perceber aquilo que
acabamos de entender a respeito da limitação, do significado e da realidade da
Religião? Donde vem este ser [que assim percebe]? Como pode ele ver [e
discernir]? De onde lhe vem este conhecimento? Quem lhe conta tudo isso?
Quem lhe diz que ele é um ser humano?
Ao fazermos tais perguntas já estamos tocando o “peixe elétrico” e re-
cebendo sua descarga quais os ouvintes de Sócrates.
[Em virtude do domínio que Sócrates exercia sobre seus interlocutores
ele foi comparado ao “peixe elétrico” que imobiliza e anula com sua descarga
aqueles que o tocam].
Ao ser humano é difícil, [e até penoso] admitir que ele seja a criatura nula
e incapaz [que é perante Deus]; esta situação o humilha [e ele, de per si, não quer
reconhecê-la]. É preciso que alguém lho diga; é preciso que a pergunta lhe seja
respondida [que a realidade lhe seja inculcada] inda antes que ele a formule.
É claro que o homem não deseja o cerceamento (que Deus, no mundo,
lhe impõe), e não o procura; nunca o imaginou, não o desejou nem preparou
pois, [alçar vôo, sair da delimitação, romper o cerco, ir além do perímetro que
o aperta] é o princípio básico, [consciente ou inconsciente] de toda atividade
humana, de todas pesquisas, análises, investigações científicas, de todos os so-
nhos, de todos anseios, de todo afã das criaturas humanas neste mundo.
Ora, o ponto de onde, com um só relance de olhar, se pode observar
todo perímetro que delimita a área, ou a circunferência que define o círculo,
certamente não está dentro dessa área; [assim também, o homem deste mundo
não pode, como tal, observar as suas próprias limitações [ou as do mundo em
que vive)].
Esta possibilidade de ver e reconhecer o seu próprio cerceamento é to-
talmente estranha, é nova, nunca “dantes” ouvida e que, todavia, existiria ainda
que nos submetêssemos e aceitássemos a proibição de espiar além da linha que
nos confina, conforme Kant sugere (e, talvez, justamente por isso)!
[Esse reconhecimento e essa percepção vêm de fora do âmbito humano,
vêm de cima.]
A criatura que não faz apenas sua autocrítica; que não fica exclusiva-
mente a se lamentar e a se menosprezar mas se questiona na totalidade de seu
ser (7, 24), que vê a sua própria miséria, essa criatura não sou eu — [o “eu”
deste mundo].

426
A Decisão 8, 1

Se porém continuarmos a indagar: quem, pois? Então seremos forçados


a reconhecer que esta nova pergunta, ainda que formulada impensadamente,
por chalaça, traz para nosso horizonte algo de novo, algo de radical, de
irremovível e irreversível.
Quem ou o que seja [esta criatura], pertence ao outro lado do âmbito
terreno; está além do limite de nossa vida humana. Trata-se de inversão [ou
melhor, de transformação] do sentido de nossa vida. É uma realidade nova
totalmente diferente [da realidade terrena, material]. TOTALITER ALITER.
Notamos [neste alguém que responde à pergunta “quem pois?”] um olhar
estranho que, todavia, parece ser nosso conhecido, assim como contemplamos
um conhecido que nos parece estranho. Percebemos um olhar que nos observa
deste lado [onde estamos], no sentido reverso; observa a realidade de nossa
vida ainda não transmudada; observa-nos, por assim dizer, em nossa
pecaminosidade e mortalidade.
Com a pergunta “de onde” vem o nosso conhecimento que caracteriza a
nossa existência pela perspectiva do pecado e da morte, confrontamo-nos dire-
tamente com a existência do “homem novo” que se opõe ao “homem velho”
que somos [neste mundo].
Ele é. Este encontro decisivo não se dá no tempo mas na eternidade; a
limitação do tempo desapareceu.
Ainda que por milhares de vezes e reiteradamente, de alguma forma,
toquemos a eternidade, é somente mediante a pergunta [sobre quem somos e de
onde viemos] que recebemos o choque que nos revela a [existência da] nova
criatura.
A pergunta, em si mesma, já envolve a resposta e quem nô-la dá é o
Espírito. Ele é o SIM que (mediante o seu NÃO) traz ao ser humano o conheci-
mento que ele tem de si mesmo.
O NÃO revela e fixa o limite, o sentido e a realidade da vida humana e
o SIM mostra o outro lado de nossa existência, o reverso da medalha, a inver-
são do sentido de nossa vida; o SIM mostra a nova realidade da criatura. É
desta forma que o ser humano toma conhecimento de si mesmo e de sua origem
sob a luz dessa própria origem. Conseqüentemente passam a ser subalternas
todas as possibilidades humanas, expostas na sua relatividade em confronto
com o absoluto. É assim, de fora e de cima, que é visto o “miserável homem
que sou”, (7, 24) — [miséria que se patenteia no confronto da condição huma-
na com o absoluto, na relativização imposta pelo conhecimento que o Espírito
dá à criatura deste mundo].
No entanto sou eu mesmo que, assim “de fora e de cima” me contemplo,
na minha excelência humana (que, todavia, se avilta e desaparece ante a super-

427
8, 1-2 A Decisão

excelência deste [meu “ALTER” EGO], totalmente outro, o qual não sou (po-
rém, paradoxalmente, é conhecido por mim).
Assim relativizados, absorvidos, vistos e reconhecidos, não nos atinge a
sentença de morte que pesa sobre toda carne e, mui especialmente, sobre o
homem religioso pois é assim relativizados, vistos, absorvidos e reconhecidos
que percebemos o “som que vem dos céus e, qual impetuoso vento, invade toda
casa” (Atos 2, 2). É o som que vem da Cidade Santa, — a Nova Jerusalém,
descendo do céu, da parte de Deus (Apoc. 21, 2). Estamos “em Cristo Jesus”!
Estar em Cristo Jesus significa ser co-participante da supressão do “ho-
mem velho”, operada por Jesus como o Cristo, pela qual esta velha criatura foi
estabelecida como “homem novo”.
Este “homem novo” veio da morte para a vida. Ora, se formos co-parti-
cipantes da fundamentação, do estabelecimento do “homem novo”, então a
sentença de morte que pesa sobre o homem velho já não nos alcança mais, pois
ela já foi cumprida.
“Pois a lei do Espírito da vida em Cristo Jesus te libertou da lei do peca-
do e da morte”.
Existe uma possibilidade que está acima de todas as outras e que, por isto,
não é uma possibilidade ao lado das demais porém está ligada a todas elas qual
denominador comum, de certa forma (e mal comparando), de maneira análoga à
presença do pecado do qual, todavia, é a negação e cujo lugar proeminente passa
a ocupar. Existe também a dádiva que foi feita uma única vez e que, por sua
singularidade, parece jamais ter sido dada aos homens. Existe, ainda, a lei supre-
ma mediante cuja constituição subsistem e são anuladas todas demais leis.
Essa possibilidade superior, essa dádiva singular, essa lei suprema é o
ESPÍRITO.
Referimo-nos ao Espírito porém, podemos falar a respeito dele? Verda-
deiramente, não; não podemos porque, embora possuamos vocabulário abun-
dante para descrever as muitas possibilidades humanas, não temos uma palavra
sequer para esta “impossível possibilidade” de nossa vida.
Então por que não nos calamos, por que não silenciamos a respeito dele?
Isto é o que [aparentemente] deveríamos fazer; todavia, é necessário que nos
lembremos que tanto o comprometemos com o nosso falar pouco, silenciando,
quanto falando sobre ele, pois o Espírito é a PALAVRA, e portanto será anun-
ciado de uma ou de outra forma.
Quer não podendo falar sem poder calar ou, tendo de falar quando pen-
samos dever silenciar — qualquer que seja nossa atitude, estamos sempre em
extremo aperto perante o Espírito e desse aperto não há saída. Cuidemos pois,
para que o nosso falar e o nosso calar sejam em tempo certo e não olvidemos

428
A Decisão 8, 2

que, se acaso nos conduzimos acertadamente, não fomos nós que soubemos
quando devêramos falar ou calar (nem mesmo nós, como pessoas religiosas)
mas foi o Espírito que falou ou calou conforme foi oportuno.
Temos o Espírito. Quem se houver encontrado com a existencialidade
do Espírito encontrou a sua própria existencialidade em Deus. Não podemos,
nem queremos negar ou esconder e obscurecer que ouvimos o som dos céus
“qual vento impetuoso” [de que fala Atos, 2,2] ou negar que vimos a Nova
Jerusalém, que tomamos a eterna decisão e que estamos “em Cristo Jesus”.
Porém o que significa “ouvir”, “ver”, “estar”?
Se começarmos a acentuar as nossas vantagens e os nossos méritos raci-
ocinando e discorrendo em termos de “nós” mesmos, ou daquilo que “temos”
ou “possuímos” [dizendo que ouvimos a manifestação do Espírito e que o “te-
mos” em nossa vida”], então ingressamos e nos assentamos nos arraiais [do
ensino e da prática] da religião. Nem podemos pretender estar falando do Espí-
rito [ou dele tratando] quando o colocamos em conotação. ou o relacionamos
com as nossas próprias pessoas — [nós o ouvimos, e o recebemos...] — ou
quando [quisermos mostrar a nossa riqueza espiritual dizendo que] o temos em
nossa vida. Contudo, precisamos contar que o temos e é certo que se não anun-
ciamos que o recebemos, todavia pensamos e, se não pensamos, pelo menos
sentimos pois, de fato, RECEBEMOS O ESPÍRITO!
Ainda que nos seja defeso proclamar que recebemos o Espírito, na ver-
dade o anunciamos de uma ou de outra forma. Todavia, precisamos saber que
isto não nos é licito [pois esta posse não depende de nós, não é conquista nossa,
não o recebemos como prêmio ou recompensa]. Por isso, ao pensarmos “nós”
[ou “eu”] precisamos lembrar sempre que não somos nós [que o recebemos
segundo o que somos no mundo; semelhantemente], precisamos manter per-
manentemente presente em nossa mente que se temos o Espírito (não o recebe-
mos como posse que enriqueça o nosso cabedal de conhecimentos ou o nosso
rol de virtudes, antes) é como não o tendo recebido [pois a sua própria existên-
cia em nós evidencia que nada temos. De certa forma, mitologicamente falan-
do, esta nossa anulação absoluta é semelhante ao “buraco negro estelar” que
tudo absorve a anula, e que o físico Jean Emile Charon considera como a pos-
sível sede do Espírito...].
Quem sabe, se, ao falarmos assim de “nós” como não sendo “nós mes-
mos” e ao discorrermos sobre o que “temos”, como “não tendo”, a verdade se
imponha pelo que é defeso e então esse “nós” e esse “ter” sejam devidamente
qualificados [por Deus] e, virtualmente, encerrem em si todo o “nós” — [toda
a individualidade] — e todo o “ter” — (toda a posse) humana, sem todavia
deixarmos de submeter ambas essas formas à crítica e de as pormos em dúvida.

429
8, 2 A Decisão

Pode então acontecer que nós (não como nós mesmos), já não sejamos
mais uns quaisquer, porém os representantes e as primícias da comunidade dos
espíritos na unidade do Espírito; [pode acontecer] que o nosso “ter” [então] não
seja apenas certeza psico-histórica porém (na forma de nosso “não ter”!) seja a
eterna destinação do ser humano, seja o nosso ser em Jesus Cristo e não apenas
a existência de uma comunidade.
Talvez então aconteça que os outros, os muitos, ao redor de nós, (em
função daquilo que “não somos” e “não temos”), cessem de ser “os outros”, os
que nada têm, e nos ouçam falar em suas próprias línguas dos grandes feitos de
Deus. (Atos 2, 11).
Contudo [nesta graça de assim testemunhar do Espírito], o nosso receio
de o renegar é incomparavelmente maior do que o temor de nos envolvermos
na dubiedade de uma posição religiosa.
[Talvez possamos concluir desta observação do A. que o testemunho
vivo que acaso damos ao dom do Espírito Santo, proclamando as grandezas de
Deus tão eloqüentemente que todos os povos, nações e tribos as possam enten-
der como se as anunciássemos em suas próprias línguas, é também uma apa-
rente atividade religiosa todavia, vinda do Espírito, vinda de além da linha ex-
trema das possibilidades humanas; porém se cairmos na tentação de, nesse tes-
temunho, introduzir a “nossa” própria eficiência e a grandiosidade dos dons
que “temos”, estaremos dando largas ao fluxo do pecado, efetivamente rene-
gando o Espírito; já não estaremos “apenas” (se assim pudéssemos dizer) retendo
a verdade com a nossa injustiça, mas blasfemando contra o Espírito Santo.
(Mar. 3, 29)].
Contaremos com o Espírito. Sim, contamos com ele como se fora um
fator, um motivo, um agente eficaz, uma causa [uma influência material em
nossa vida]. No entanto sabemos que não é assim pois [temos ciência de que o
Espírito] é “ACTUS PURUS”; que é genuína realidade [mas não é
materialidade]; é evento incontestável que não tem começo nem fim; não tem
limitações nem condicionalidade; não está sujeito à temporalidade nem ocupa
lugar no espaço; sabemos que o Espírito não é comparável a qualquer outra
coisa; não é efeito nem causa.
Todavia, dá-se o paradoxo: o Espírito passa a ser [segundo nossa com-
preensão] alguma coisa a par de outras coisas; o intangível torna-se tangível; o
impossível passa a ser possível; o invisível fica visível e o desconhecido vem a
ser conhecido.
O que há de paradoxal no [procedimento nosso com relação ao] Espírito
é que, embora ele somente possa ser descrito em termos negativos [“não tem
início nem fim”, “não é visível”, “não ocupa lugar no espaço”...] somos

430
A Decisão 8, 2

declaradamente obrigados a considerá-lo como se fosse alguma coisa; como se


fosse origem ou causa; pedimos que ele nos seja concedido e consideramos
que determinadas obras são peculiar e caracteristicamente suas; calamo-nos
ante seus feitos e nos esforçamos por não entristecê-lo [Efe. 4, 30]; e o adora-
mos como a terceira pessoa da Trindade.
Ainda que essa nossa atitude [que assumimos em nossa religiosidade]
nos anule constantemente querendo ser efetivamente espiritual [quando, na prá-
tica, é material apenas], não podemos e nem devemos deixar de nos apropriar,
a cada momento e de alguma forma, de uma das mais sublimes realidades exis-
tenciais do Espírito, [qual seja a religião].
Sabemos que nenhuma atitude humana pode, de fato, corresponder ao
Espírito; todavia, quem sabe, (e até por isto mesmo) o Espírito venha a condes-
cender conosco e interceda por nós, justificando-nos, embora sejamos
injustificáveis [em nossa forma de culto e nosso posicionamento ante o dom do
Espírito].
Portanto, repetindo ainda uma vez, entre o pecado contra o Espírito Santo
e a prática de uma religiosidade (em si mesma) indigna da justificação divina,
optamos por esta.
O Espírito fala, opera e age. Não sabes o que isto significa? [Não enten-
des?]. Eu também não sei [e não entendo] o que afirmo. Todavia, ele é o “Total-
mente Outro”, que tem falado, operado e agido e isto é tão absolutamente certo
quanto a radicalidade com que ele contradiz tudo o que digo e tu ouves — (e
oxalá contradiga sempre a interrogação que tu e eu fazemos!).
Estás comigo perante os fatos consumados. A nossa perquirição pode
indagar do significado desses fatos mas não de sua realidade.
O Espírito “te libertou da lei do pecado, e da morte”. Isto aconteceu,
existencialmente, a ti! A conversão, a volta, o retorno que aconteceu em Jesus
Cristo, é teu. A possibilidade que nele foi dada, é tua. A vida que surgiu nele, te
pertence. O âmbito do teu falar, das tuas obras e de tua ação está rodeado deste
“OUTRO” incontrolável e incomparável. O próprio mandamento de Deus, que
vês como lei que define teu pecado e [te condena à] morte, passa a ter significa-
ção apenas relativa quando comparado com a lei das leis. (Marc. 12, 28 – 31).
Tu pecas, — com relação à retidão deste OUTRO; tu morres — em
relação à sua vida; o teu “NÃO”, apenas é “não” mediante o seu “SIM”.
Onde, pois, fica o teu pecado, a tua morte, o teu não, se em Cristo Jesus tu
descobres a relatividade [das coisas terrenas] quando confrontadas com este
“OUTRO”, que é o Deus “totalmente diferente”? Já não resta nada relativo que
não tenha a sua correlação; nada de concreto que não aponte para [algo
transcendental], além de si mesmo; nenhuma realidade que não seja uma parábola.

431
8, 2-3 A Decisão

Ao reconheceres a tua escravidão, te libertas; ao reconheceres o teu pe-


cado, recebes a justificação; ao reconheceres a tua morte, revives. É o Espírito
que te liberta, te justifica e te vivifica, pois o Espírito é o “conhecimento”.
O Espírito é o achado eterno sem o qual nós, que estamos postos sob a
lei do pecado e da morte, sequer faríamos a perquirição. Ele escreve a lei de
Deus em nosso coração com fogo vivo” e, por isso, “não é ensino mas vida; não
é palavra mas existência; não é sinal mas o próprio cumprimento”. (Lutero).

Vs. 3 e 4 Porquanto aconteceu aquilo que foi impossível à lei; aquilo para o
que ela se mostrou fraca demais por causa da resistência da carne: Deus
mandou seu próprio Filho, na semelhança da carne dominada pelo peca-
do, para destruição do pecado e, assim, pronunciou a sentença de morte
do pecado no meio da carne, afim de que a justiça da lei fosse cumprida
em nós que não andamos segundo a carne, porém segundo o Espírito.

[Almeida escreve assim: “Porquanto aconteceu o que fora impossí-


vel à lei, no que estava enferma pela carne; isso fez Deus enviando o seu
próprio Filho em semelhança de carne pecaminosa e no tocante ao pecado;
e, com efeito, condenou Deus na carne o pecado. A fim de que o preceito da
lei se cumprisse em nós que não andamos segundo a carne mas segundo o
Espírito.”
A V.S.F. talvez esclareça melhor o pensamento Paulino, dizendo: “Por-
que o que foi impossível à lei, visto que a carne a enfraqueceu, Deus o fez! Ao
mandar o seu próprio Filho em carne semelhante à nossa carne pecaminosa, ele
condenou o pecado na carne a fim de que a justiça imposta pela lei fosse cum-
prida em nós que marchamos, não segundo a carne mas, segundo o Espírito].
“Aconteceu o que foi impossível à lei: [aquilo] para o que ela se tornou
fraca, por causa da carne”. [Isto é, Deus fez o que a lei não conseguiu realizar
porquanto a carne se revelou forte demais para a lei].
O que é impossível à lei? A resposta vem logo depois: lavrar a sentença
de morte do pecado. Ou então, conforme acabamos de ouvir [a lei não teve
poder suficiente] para libertar o ser humano; para colocá-lo sobre um funda-
mento [imperecível] eterno, a fim de suspender a sentença de morte a que foi
condenado.
A religião em nada pode modificar o fato de que tudo o que o homem faz
neste mundo, ele o faz sem Deus; ela pode apenas [e quando muito] desnudar e
expor a absoluta ausência de Deus porquanto a religião é determinado modo de
ser, ter e agir do homem segundo a carne. A religião participa da confusão e da

432
A Decisão 8, 3

mundanalidade inerente a tudo o que é humano. A religião é a expressão da mais


alta possibilidade do ser humano e, mais do que isso, ela constitui a auto-realiza-
ção da criatura em toda sua plenitude todavia, a religião não faz com que a pessoa
vença a si mesma, nem a transforma em nova criatura. [Aliás], nenhuma religião
faz isso, nem mesmo a dos primeiros cristãos, ou a de Isaías ou a dos reformadores.
Jamais será o ser humano convencido e renovado pelo “odor da morte”, [a morte
da qual a religião nos fala e com a qual nos ameaça] e que parece emanar dos
páramos mais altos [da pregação e ensino] religiosos. Recendem a esse aroma o
insípido e vulgar burguesismo [quiçá populismo] de Zwinglio, o venenoso pietismo
de Kierkegaard, o histerismo estraçalhante de Dostoiewski e a excessiva condes-
cendência que os Blumhardt (pai e filho) espalharam ao redor de si, conforme é
notório.
É realmente lamentável quando dos alcandores da religião se irradia
apenas religiosidade! Ela não liberta, mas aprisiona — e prende mais terrivel-
mente que qualquer outra coisa.
Carne é carne, O que resulta da carne, o que parte do homem para seguir
em direção a Deus é, necessariamente “fraco”.
A história da Religião e a História da Igreja são “fracas” em seu sentido
absoluto e o são por força da infinita diferença qualitativa entre Deus e o ho-
mem; são fracas por serem histórias absolutamente humanas e carnais e são
carnais mesmo quando se revestem com trajes de História Sagrada. Como car-
nais são qual a erva que murcha e cuja flor cai. A Palavra de nosso Deus porém,
permanece para sempre!
“Deus enviou o seu próprio Filho”: esta é a Palavra de Deus. O “próprio
Filho de Deus” é Jesus Cristo. Trata-se da existencialidade de Deus, elucidada
na sua unicidade com Cristo.
A proclamação dessa unicidade é a Palavra de libertação [da criatura
humana], que a religião não encontra [nem tem para oferecer]: quem a anuncia
[e oferece] é o “próprio Filho de Deus”. Jesus é a existencialidade de Deus
esclarecida em sua singularidade; por isso, em todas as formas de racionalismo,
a revelação histórica de Cristo é considerada um escândalo. [Isto é assim por-
que] Deus não é; necessariamente, a “verdade racional”; sua eternidade não
constitui, IPSO FACTO, a confirmação direta de toda sorte de idéias (por exem-
plo, a idéia de Deus, de Cristo, da mediação); sua onipotência não é a conse-
qüente necessária (e lógica) de uma função matemática. Deus é uma personali-
dade distinta: ele é singular [sem igual, ímpar]; ele é único — [exclusivo]; ele é
incomparável [porque nenhum outro ser tem quaisquer dos atributos de Deus].
É por isto que Deus é eterno e Todo-Poderoso. Dele dá testemunho o Jesus-
homem, o Jesus histórico. Porém, Jesus é também o Cristo e, [como Unigênito

433
8, 3 A Decisão

de Deus, Emanuel — Deus conosco, revela e] esclarece a singularidade de


Deus em sua própria existencialidade.
É por isso que a despeito de todo o “historismo” e “psicologismo”, tanto
crente como incrédulo, encontramos em Cristo o escândalo de uma revelação
eterna, a revelação daquilo que, na verdade, Abraão e Platão já haviam visto:
Deus não é “uma verdade histórica casual”.
A ação divina foge a toda pragmatização e mitologização, antepondo-
lhes asperamente, um “JAMAIS” ou um “SEMPRE”!
É justamente em Jesus que o amor divino transpõe todas as mediações,
toda ligação a “isto e aquilo”, a “aqui e acolá”. Como Eterno e Onipotente, ele
é o único, — o que [foi e] é “uma vez por todas”, — [o decisivo]; é disto que
Cristo, — o Cristo Eterno — dá testemunho.
Lá na encruzilhada dos caminhos (e em nenhum outro lugar) está o pró-
prio Filho de Deus. Foi Deus quem o enviou lá do Reino Eterno; lá do mundo
que não decaiu e que não conhecemos; do mundo que é do princípio e do fim e
portanto, — (e que nenhum “ortodoxo” se regozije, concordando.) — “gerado,
não feito”; (e isto contrariando tudo quanto conhecemos como criaturas). “Nas-
cido de Maria, uma virgem”, (como [se fôra] um protesto contra a nossa pre-
tensão de atribuir validez perene aos métodos e sistemas da humanidade, da
natureza e da história, conforme os conhecemos); [e assim nascido], verdadei-
ro homem e verdadeiro Deus, qual documento da antiga e original união entre
Deus e o ser humano, unidade que foi perdida mas não definitivamente, con-
quanto não perdível. Deus o mandou a este mundo temporal, perecível, decaí-
do, a este mundo por demais nosso conhecido e que, afinal, apenas podemos
explicar em categorias biológicas que designamos como natureza; que só en-
tendemos como sistema material-econômico que designamos história; mundo
que, portanto, conhecemos e entendemos conforme nosso conceito humano e
carnal.
Sim; o Verbo se fez carne, até mesmo carnalidade “dominada pelo peca-
do”, conforme mais adiante veremos; Deus o enviou, não para aqui mudar al-
guma coisa, não para melhorar a carnalidade, moralizando-a, ou para raciona-
lizar o mundo pela sabedoria, para o aclarar pela arte, ou ainda para elevá-lo
pela “Fata Morgana” da religião; [para nada disso: o Verbo veio] porém, para
proclamar a ressurreição, para [apresentar] a nova criatura na qual Deus se
reconhece como em sua própria imagem e essa criatura reconhece em Deus a
sua figura original [aquele em cuja imagem e semelhança foi criada].
[A tradução inglesa escreve assim: (Deus enviou o seu Filho ao mundo
para proclamar o homem novo que se reconhece em Deus, porque foi feito à
sua imagem e no qual Deus se reconhece a si mesmo Pois Ele é o seu modelo”.].

434
A Decisão 8, 3

[Deus enviou o seu Verbo] para anunciar o “mundo novo”, aquele no


qual não se faz necessária a vitória divina porque Deus já é VENCEDOR; trata-
se do mundo onde Deus não é um ser [quiçá superior] ao lado de outros ou algo
comparável [ou a que se possam comparar) outras coisas, porém [Deus) é tudo
em todos. [O Verbo de Deus] veio a este mundo para anunciar aquele outro,
novo, no qual a criatura e o Criador não são dois, mas um. [Sal. 82, 6].
É nisto que podemos verificar se falamos acertadamente sobre o envio
do Filho de Deus ao mundo: se o nosso discurso, de fora a fora, em seu conjun-
to e em cada um de seus detalhes [por insignificantes que pareçam] não der
origem ao mais profundo e justificado escândalo, então estamos falando de
outra coisa!
Deus mandou seu Filho “por causa do pecado”. Por isso a Palavra de
Deus, se anunciada corretamente, precisa sempre estar pelo menos “um corpo”
à frente das demais. O envio do Filho de Deus somente pode ser descrito em
termos da mais forte negação; só pode ser proclamado como paradoxo, como
absurdo que, portanto, só pode ser crido [nunca entendido, nem racionalizado]
pois [a vinda de Cristo ao mundo] é a reação divina contra o pecado.
O escândalo que a Palavra Divina provoca em nós é o reflexo do escân-
dalo que somos para Deus.
A Palavra de Deus é a inversão daquilo que conhecemos como seres
humanos — natureza e história — e por isso ela é a negação de tudo quanto
possamos imaginar nesse nosso sistema desde o seu ponto de partida.
A Palavra de Deus é a resposta divina à derradeira e insolúvel pergunta
da criatura humana, neste mundo, sob o domínio do pecado; por isto a resposta
não está contida nas respostas que o homem encontra, nem é dada às perguntas
[que são secundárias ou] penúltimas, nem tampouco às que sejam respondíveis,
porém (só e exclusivamente) à pergunta extrema (e que neste mundo não têm
resposta).
Esta palavra é a [nossa] justificação dada pelo próprio Deus e por Deus
somente que, por isto mesmo, se sobrepõe plena e vitoriosamente à última [à
maior e única] característica [insofismável] da criatura [segundo o mundo]: sua
pecaminosidade intrínseca. E por isto que a resposta que ela contém não pode
ser uma “certeza” humana, nem é uma grandeza qualquer, ou um dado, que
seja aplicável a elucubrações que os homens façam, nem é um fator que se
aplique a seus cálculos. Antes, para nós, sempre há de ser algo que está além
daquilo com que podíamos contar, como algo ambíguo, problemático, algo
[que na qualidade de criaturas humanas não sabemos explicar logicamente e
que nos parece estar] à margem, na periferia de tudo quanto seja racional e
pragmático: é algo que não se pode estabelecer nem verificar [materialmente].

435
8, 3 A Decisão

Ora, Deus mandou o seu Filho “na semelhança da carne dominada pelo
pecado”. Portanto, não o enviou para comunicar a inocência da vida paradisíaca;
nem poderia a missão [de Jesus Cristo] ter semelhante aspecto edênico, pois ele
veio justamente por causa do pecado”. Se Deus o houvesse mandado como
confirmação [ou demonstração] franca e aberta de sua divindade, então Cristo
não seria para o mundo o que ele efetivamente é: não seria o ponto de conver-
são [a transformação divina, o evento que originou a mudança de sentido que
se opera na vida da criatura]; não seria a resposta e a justiça de Deus [à eterna
pergunta humana e à sua inerente pecaminosidade]. [Fôra diferente a missão de
Cristo], ele não seria o “totalmente outro” Deus que se opõe à totalidade do
reino humano e o suprime, mas seria, neste reino, uma segunda grandeza [ou,
apenas, mais uma grandeza ao lado de outras]; seria uma das [inúmeras] reali-
dades rudes e prosaicas que coroam de espumas as altas ideologias e ilusões
deste mundo.
Na verdade, o fato [de Deus ter enviado o seu Filho Unigênito ao mun-
do] é tão extremamente diferente daquilo que existe [e que é normal entre a
humanidade], que a nada pode ser comparado; é um fenômeno que apenas
pode ser considerado como sendo sem paralelo, sem nada que lhe fique a par
ou semelhante; não pode ser imaginado ou tido como um segundo evento [si-
milar a algo que já tenha ocorrido], nem mesmo como um acontecimento mai-
or, ou mais sublime, em comparação com quaisquer outros fatos que possam
ocorrer na história. Este acontecimento é, por assim dizer, a superlativa verda-
de da realidade em todas as suas mais altas manifestações e, por isso mesmo,
não é nenhuma das realidades especiais [ou não] que sejam abordáveis direta-
mente. “Este é o artifício divino” (Kierkegaard).
[Escrevi “artifício” acompanhando a versão inglesa para conservar cer-
ta fidelidade à expressão que Barth transcreve com a palavra “Hinterlist” que
significa “astúcia”, “manha” e até “perfídia”. Pessoalmente, preferiria escrever
“processo” divino; todavia, assim escrevendo talvez eu não expressasse o pen-
samento de Kierkegaard conforme o A. o registrou embora me pareça que nem
mesmo a expressão abrandada segundo os tradutores ingleses é adequada para
identificar atributo divino a menos que, retoricamente, usássemos palavra de
significação rasteira, chá, quiçá “mitológica” para realçar, por contraste, a li-
berdade da ação divina].
Esta realidade divina só pode ser entendida pela revelação de Deus e ja-
mais como sendo realidade especial, diretamente abordável [Cristo é a Verdade!].
Precatemo-nos pois do cúmulo do disparatado clangor clerical segundo
o qual “a certeza de que Cristo é Jesus pode ser vista nele, direta e imedia-
tamente”.

436
A Decisão 8, 3

Evitemos a blasfêmia de nos apresentarmos perante Deus “sem temor e


tremor”; sem enfrentarmos a luta da morte que é o nascimento da fé; sem o
estremecimento que é o princípio [a primeira coisa] da adoração; sem o espan-
to ante a possibilidade do escândalo [quando nos confrontamos com Deus em
Cristo]. Evitemos a blasfêmia de tentar conhecer diretamente o que só pode ser
conhecido indiretamente [através da revelação de Cristo]. Antes digamos: “Ele
foi verdadeiro Deus porque foi irreconhecível”. (Kierkegaard).
O Filho de Deus não foi enviado [ao mundo] senão “na semelhança da
carne dominada pelo pecado”; [foi enviado] em incógnito na categoria de ser-
vo, irreconhecível [como enviado de Deus].
— (Jesus Cristo não foi) “homem tão notoriamente sério [mas] quase
tão respeitável quanto um pároco”. (Kierkegaard).
— Isto é que não! É na semelhança dominada pelo pecado que se revela
sua verdadeira divindade e também sua verdadeira qualidade humana de modo
que, ao observador é sempre facultada a escolha livre para o enfoque que lhe
aprouver:
Poderá, por exemplo, considerá-lo como Homem e como Deus, pela
força especial da consciência de Deus que ele desperta;
Poderá ver nele o herói religioso-moralista; (esta é, evidentemente, a
atitude a que [Kierkegaard] se refere quando fala do clangor sacerdotal).
Poderá mesmo classificar Jesus como [tópico da] mitologia de antigas
religiões populares [quiçá como folclore] ou até como paranóia aguda.
Fenômeno idêntico acontece com o fato de não se encontrar pecado na
vida de Jesus; as posições podem ser diametralmente opostas; [qualquer opinião
é viável]: e igualmente fácil negá-lo tanto pelo que Jesus fez como pelo que
deixou de fazer. Na verdade, os argumentos que possam negar a ausência de
pecado estão prontamente a mão (e são mais fáceis de encontrar do que as acusa-
ções de pecado que acaso tentássemos levantar contra aquelas pessoas que, entre
nós, são justificadamente tidas como melhores, mais dignas e mais piedosas!).
Em oposição à secreta afirmação de que [Jesus Cristo] não pecou [con-
forme Deus nô-lo revela] e de que através de suas ações e suas omissões fala o
próprio Deus, levantaram-se os seus contemporâneos imparciais (que ainda
não conheciam o que nós entendemos conhecer), rejeitando-a com absoluta
convicção.
Dá-se fenômeno idêntico com o seu poder de operar milagres: ele é
rejeitado com toda sorte de arrazoamentos. Encontram-se explicações psicoló-
gicas. médicas, ocultistas, históricas e outras muitas.
Essa maneira [“livre”] de reagir ocorre também em relação ao seu apelo
ao arrependimento: não há nada que nos impeça de considerar o “Sermão do

437
8, 3 A Decisão

Monte” como pregação moral, idealista, romântico-religiosa, social-religiosa


(ou ainda como “ciência” prática para a vida, para vencer enfermidades, ter
bom êxito financeiro-social, sucesso nas lides do mundo e até a vitória física e
imediata sobre a morte]; nada impede que esse Sermão seja ouvido e apreciado
como qualquer outro pronunciamento que hoje se faça em campos, bosques,
prados e jardins em lugares ermos e praças públicas...
Ainda mais: acaso se poderia ver na escatologia judaica a chave da
“conscientização messiânica de Jesus”, de seu relacionamento espiritual com
Deus, ou ainda de sua pregação do “Evangelho do Reino”? Ou, quem sabe,
seria um problema de psico-análise ou de interpretação da história segundo
uma filosofia materialista?
Ante a forma de sua morte na cruz poderemos dizer dele o que disseram
os judeus no Gólgota [Luc. 23, 35; Mat. 27, 39 —43]. Pode-se dizer que aí morreu
em desespero um Sonhador; é possível [até mesmo] remover o aguilhão da morte
de Cristo estabelecendo paralelos com ocorrências da história das religiões.
O mesmo procedimento se pode ter com respeito à ressurreição: o que
haveria de impedir que teólogos, tanto crentes como incrédulos, em nobre com-
petição, discutam se ela deve ser considerada sob esta ou aquela analogia, con-
forme melhor convenha ou seja mais plausível às suas próprias pressuposi-
ções? O que pode impedir “aos que conhecem” [ou pretendem conhecer] mun-
dos [e regiões] superiores, usem o mistério da ressurreição como a água muito
necessitada para a movimentação de seus próprios engenhos? O que haveria de
impedir que o Dr. Fr. Strauss considere a ressurreição como a “asneira da histó-
ria do mundo”?
Qual é o evento histórico que está tão indefeso ante qualquer ataque
[“sábio”] sabido ou tolo, e sujeito a toda sorte de interpretações (ou mal-inter-
pretações) e a todo uso e abuso, como o aparecimento histórico do próprio
Filho de Deus? Que outro fato seria menos ostensivo, mais equívoco, menos
duvidoso?
Não há um só ponto da vida de Jesus, segundo a conhecemos, que não
esteja [ou não possa ser inserido] nessa situação ambígua. Não há um só ponto
que não provoque escândalo, antes há centenas deles onde não é possível afastá-
lo; há centenas de pontos que, abordados pela ingenuidade de teólogos moder-
nos recebem deles a confissão melancólica e logicamente amarga de que “aqui
sentimos diferentemente de Jesus”.
“Carne dominada pelo pecado”! Humanidade, mundanalidade.
historicidade, naturalidade, na sua incerteza furta-cor!
Mais do que qualquer outra vida, a de Jesus é um mosaico que permite
a formulação de toda sorte de considerações [toda sorte de quadros, arranjos e

438
A Decisão 8, 3

figuras] desde as mais elevadas até as mais absurdas, por cujas peças no final,
cada um cai à sua própria maneira.
[O original diz “praça de jogos” e não “mosaico” e a tradução inglesa
escreve que a vida de Jesus é qual “praça de jogos onde os homens podem
exercitar o seu engenho propondo toda sorte de idéias ou noções, nobres e
absurdas, todavia é praça coberta de pedras nas quais cada um tropeçará à sua
própria moda”]
Tem que ser assim. O tropeço que todos encontramos na vida de Jesus,
uns aqui outros acolá, não é a blasfêmia mas a pretensão de nos podermos
haver com ele, falar dele e ouvir dele sem nos escandalizarmos. [Para “trope-
ço” o A. usa no original o mesmo substantivo que para “escândalo” (Aergerniss),
isto é, aquilo que irrita, atrapalha,incomoda].
Porquanto Deus enviou o seu Filho na “semelhança” da carne domi-
nada pelo pecado e “assim pronunciou a sentença de morte ao pecado, entre
a carne”.
É assim que se comprova a filiação divina de Jesus Cristo, a saber: a
carnalidade dominada pelo pecado passou a ser mera semelhança, uma parábo-
la. A humanidade, a mundanalidade, a história, aquilo que é natural, se revelam
quais realmente são: apenas transparências, figuras, testemunhas de Deus, coi-
sas relativas perante o Criador; isto, porém, não significa que sejam pouca coi-
sa ou nada pois, [como semelhanças e parábolas, os homens e o mundo] pode-
rão ter mais e maiores características do eterno e incomparável, do que possa
ter a carnalidade real, absoluta e opaca tomada na ilusória legitimidade do mundo
não referido a Deus e, portanto, sem ser suprimido por Ele.
Porquanto a carnalidade foi suprimida em Cristo; o que é material ficou
destituído de sua qualidade intrínseca para que o ser humano seja reconduzido
a Deus, seu Criador; a profunda confusão e a transitoriedade sob as quais a
criatura geme tornaram-se evidentes e, nessa evidência, revelaram-se também
a esperança e a redenção pelas quais espera. A grandeza, a importância e o
brilho do ser humano são julgados em Cristo e, por isto, salva-se a sua destinação
como criatura de Deus.
Foi por essa razão que Deus enviou o seu Filho para o meio da carnalidade
dominada pelo pecado para que, justamente aí, (e onde mais haveria de ser?) o
pecado e a rebelião dos homens contra Deus fossem julgados e abatidos; que
fosse exterminada à pretensão humana de ser mais do que semelhança apenas;
que o falso “absoluto”, a efetiva dissolução e a maldição da morte [que reinam
na carne dominada] pelo pecado, fossem postos de lado, [suprimidos].
Esta condenação do pecado que habita na carne se cumpre mostrando o
que a carnalidade realmente é: uma semelhança [uma parábola] do Espírito

439
8, 3 A Decisão

conforme pode ser notada na crescente tendência de esvaziamento de Jesus (já


mencionada mais atrás (5, 6-8 e 6, 8)) e conforme se nota primeiramente na
história da tentação, depois no Getsêmane e, finalmente, no Gólgota onde tem
o seu nadir e atinge seu alvo.
Foi justamente para a realização integral da sentença [divina], que [Cristo]
tomou a condição de servo; que não foi apresentado [ao mundo com poder e
glória]; que assumiu o seu próprio esvaziamento [Filip. 2, 6-7]; que ficou in-
cógnito [Mat. 4, 6-7]. Essas são qualidades essenciais e não atributos fortuitos,
casuais, do Filho de Deus.
É imperativo que esse incógnito [essa falta de identificação com Deus]
se acentue, aumente, se avolume e que aumentando gradativamente passe a
dominar até chegar ao desprezo e à auto-renúncia. É essencial que, do ponto de
vista humano, fiquemos escandalizados. É imperativo que nos compenetremos
de que a carne e o sangue não podem revelar que em nós haja mais do que
carnalidade, pois esta revelação só pode fazer o Pai, que está nos céus.
Fôra tudo isto diferente, fôra Cristo uma dessas pessoas que são imedi-
atamente reconhecíveis como “filhos de Deus”; fôra sua divindade descritível
por meio de predicados humanos; fôra ele, como os sacerdotes [os pregadores]
pretendem, a última e poderosa expansão da bolha [de sabão, ou de balão] que
se chama “religiosidade”, então existiria nele a indicação de um caminho para-
lelo à estrada da fé, pelo qual se poderia contornar o escândalo da cruz. Então
não seria evidenciada a qualidade alegórica da carnalidade, nem sua relativida-
de e sua supressão; o pecado não teria sido atingido em sua raiz, nem teria sido
definitivamente condenado e a existencialidade do ser humano não seria salva,
[não seria restaurada como nova criatura].
Todavia, não é assim; Cristo, em sua qualidade de desconhecido, [em
seu incógnito] é o oposto dos brilhantes filhos de Deus [deste mundo]; ele não
pode ser exaltado com predicados humanos; foi ele quem furou definitivamen-
te a bolha, [esvaziou o balão da religiosidade].
“Ele amaldiçoou o pecado com o pecado; ele expulsou a morte com a
morte; venceu a lei com a lei. Como assim? Ele foi um pecador na cruz; teve o
seu título [sua qualificação] entre os patifes; como um arqui-malfeitor sofreu o
julgamento e o castigo que um pecador merece”. (Lutero).
[Poderíamos, talvez, parafrasear a explicação de Lutero, escrevendo:
ele amaldiçoou o pecado assumindo o pecado, em si; expulsou a morte, mor-
rendo; venceu a lei, cumprindo-a em sua condenação].
Esta forma característica na qual o Filho de Deus foi enviado ao mundo
tem por objetivo (que, aliás, ele de fato alcançou) que “a justiça da lei se cum-
pra em nós que não andamos segundo a carne porém conforme o Espírito”.

440
A Decisão 8, 3-4

Se nós reconhecermos no Filho de Deus e nele vermos a supressão de


nossa carnalidade e o julgamento de nosso pecado vemos, também, o aconteci-
mento — o achado — eterno: a existencialidade do homem novo que vive em
Deus. Então estaremos na situação, nunca dantes ouvida, de nos pormos (a nós
mesmos) em dúvida e neste autoquestionamento (que, evidentemente, é o
questionamento que outrem nos faz!) nos situamos no campo das coisas eter-
nas. Então somos obrigados por Cristo; tomados e reconhecidos por Deus, usu-
fruiremos da possibilidade que está acima de todas possibilidades: a “impossí-
vel possibilidade” de andar segundo o Espírito.
— Não mais “segundo a carne”?
— Certamente temos e conservamos também esta possibilidade porém,
o que significa ela se, embora estando à mão, foi relegada a uma posição ape-
nas relativa, reduzida (melhor diríamos “elevada”) à condição de semelhança
[de parábola]? Nossa “peregrinação” a nossa destinação central e final, a nossa
existência e o nosso modo de ser, realmente qualificados, acontecem por força
do conhecimento do Filho de Deus, segundo o Espírito.
O Filho de Deus, o Senhor, no qual nós mesmos nos reconhecemos
como seu parente [seu afim] na semelhança de sua morte, isto é, em nossa
morte, (6, 5) é a inflexão, o retorno, a decisão, a vitória divina; é o Deus abso-
lutamente diferente: é o Espírito. (II Cor. 3, 17).
Como não haveremos de ter o Espírito e como não haveremos de ser
transportados para o reino deste amado Filho de Deus (Col. 1, 13), para além
dos limites de nossa vida humana, mediante a conversão de seu sentido, na sua
transformada nova realidade, se estivermos envolvidos na pergunta insolúvel,
no questionamento [que nos propõe o fato de Deus haver mandado o seu Filho
ao mundo] e nele encontrarmos a [divina] resposta?
Como poderia deixar de ser superior (por assim dizer) à vida carnal, esta
nova peregrinação “segundo o Espírito” que de uma forma [tão drástica], tão
incontrolável, tão impossível de afastar ou de fazer cessar, tão irrevogável, se
apoderou de nós?
Como haveria de a carnalidade, na sua realidade transitória, continuar a
seguir o seu antigo caminho por força de seu próprio poder, depois de ter sido
exposta, em Cristo, como parábola da esperança imperecível? Acaso não haveria
ela de, preferentemente, partilhar do caminho da criatura liberta em Espírito?
“Que este mundo cesse e venha o teu Reino”! Esta é a verdade sob a
qual estamos — ou melhor — sob a qual estão a humanidade, a natureza e a
história, por força do envio do Filho de Deus [ao mundo].
Este é o “cumprimento da justiça da lei, em nós”; e a solução do proble-
ma da liberdade; e a supressão da sentença de morte que pesava sobre a huma-

441
8, 5-9 A Decisão

nidade: problema levantado pela religião e que ela, mesmo em sua expressão
mais elevada, só pode exacerbar, porém jamais resolver; sentença sobre o peca-
do, cumprida em Cristo (isto é, aplicada a Cristo.). É a revelação da justiça
divina (5, 16 e 18), sempre procurada e nunca alcançada pela religião.

Vs. 5 a 9 Porquanto os que estão na carne têm o sentido da carne, porém os


que estão no Espírito têm o sentido do Espírito. Ora, o sentido da carne é
a morte, porém o do Espírito é a vida e paz, porque o sentido da carne é
hostil a Deus e não se submete à lei divina, pois não o consegue. Por isso,
os que estão na carne não conseguem agradar a Deus. Porém vós não
estais na carne mas no Espírito, se é que o Espírito de Deus habita em vós.
Todavia, se alguém não tiver o Espírito de Cristo, esse tal não é dele.

[Comparar a passagem transcrita, com a tradução de Almeida. Notar


que onde Barth registra “sentido” Almeida escreve “pendor” ou inclinação, que
talvez se ajuste melhor a alguns pontos da exposição do A., quando será em-
pregada].
O Espírito é a decisão eterna: Deus se agrada da criatura humana e esta
se agrada em Deus, porquanto [ter ou estar no] Espírito significa pertencer a
Cristo, (o que, por sua vez, significa participar do agrado que Deus manifestou
por Cristo. [“Eis o meu Filho dileto”... (Marc. 1, 11)]. Estar em Cristo significa
estar em sua interrogação e, por isso, também em sua resposta; estar em seu
NÃO e, portanto em seu SIM; em seu pecado e, por isso, em sua justificação;
em sua morte e, por isso, em sua vida.
O Espírito dá sentido à existência; cria e fixa esse sentido. [Pelo Espírito]
entra sentido na existência e a existência passa a ter sentido. O Espírito nada
tem a seu lado nem contra si. O Espírito é, a um só tempo, luta, prepotência,
vitória e ditadura; nunca, jamais, será concomitantemente, tranqüilidade, equilí-
brio, compensação, tolerância. O Espírito significa alternativa; a antítese já foi
de antemão suprimida mediante a anulação de uma das posições ante a determi-
nação da outra. Espírito significa “Eleição” e por isso mesmo ele de forma
alguma pode significar condenação. A outra possibilidade que o Espírito conhece
é a que foi (por ele) subjugada, é a que foi excluída, a que não existe mais.
[A tradução inglesa escreve assim: “Espírito significa a decisão eterna
pela qual Deus [se] decide pelos homens e estes [se] decidem por Deus. Espíri-
to é a satisfação que Deus toma na humanidade e a boa vontade que os homens
têm para com Deus. Espírito significa pertencer a Cristo, participar de sua in-
terrogação e, conseqüentemente de sua resposta; em seu pecado e, portanto, em

442
A Decisão 8, 5-9

sua justifïcação; em seu NÃO e por isso em seu SIM; em sua morte e, portanto,
em sua vida. O Espírito é o significado e o sentido existencial; ele faz e cria o
sentido. (“He makes and creates sense”.) Com o Espírito a existência passa a
ter sentido. (“With Him sense enters into existence and existence into sense”.)
“O Espírito não tem parceiro nem oponente pois ele é, ao mesmo tem-
po, conflito e conquista; ele é ditador vitorioso que não admite paz se esta
representar equilíbrio, síntese, tolerância. Espírito significa “ou um” “ou ou-
tro”, em que toda a antítese já está destruída pela vitória do “um” sobre o “ou-
tro”. Espírito significa aquela eleição onde não existe a possibilidade de rejei-
ção. O Espírito não admite qualquer outra possibilidade que já não tenha sido
excluída, vencida, elidida”.
É possível que algumas das expressões de Barth (e também dos tradutores
ingleses) nos pareçam impróprias ou, pelo menos um tanto obscuras, confusas.
Talvez seja da natureza do assunto: como falaremos com palavras perecíveis
das coisas que são eternas? Como discursaremos sobre o Espírito que jamais
homem algum viu? Que predicados lhe atribuiremos? Como o definiremos?
Também pode acontecer que, para nós, um pouco dessa dureza e pe-
numbra esteja na dialética anglo-saxônica quando não, e quiçá muito provavel-
mente, na insuficiência da “interpretação”.
Sem nos esquecermos da substância contida na exposição original do A.
(e sem dispensar as luzes que a tradução inglesa aduz), talvez pudéssemos “re-
interpretar” mais livremente esta primeira parte da exegese que Barth faz dos
Vs. 5 a 9, (sem falsear o seu pensamento), servindo-nos da semântica mais em
conformidade com a nossa lexicologia, como segue:
Na conformidade da decisão tomada por Deus, desde a eternidade, perten-
ce ao Espírito Santo — à terceira pessoa da Trindade divina e UNA — o munus
de trazer ao conhecimento dos homens o fato de que Deus se interessa pela
criatura humana e se compraz nela; é o Espírito Santo que assim nos inspira e,
concomitantemente, nos conduz a Cristo. Conduz? Assim dizemos com impro-
priedade porque não somos levados forçadamente aos pés da cruz. A nossa
rendição a Cristo não é compulsória; se nos entregamos a ele para estarmos
firmemente nele, fazemo-lo no Espírito e pelo Espírito, porém de maneira nenhu-
ma porque o Espírito nos houvesse escolhido de antemão, e nos empurrasse ao
encontro do Salvador. Entregamo-nos pela nossa livre opção. Entregamo-nos?
Escolhemos? Novamente não, pois também não está em nós saber como escolher
e optar perante Deus. Todavia, podemos optar pela fé e rejeitá-la, não em virtu-
de ou em conseqüência de aptidões nossas mas unicamente pela graça de Deus.
Esta graça foi dada por Deus, uma vez e por todo sempre, a todos homens; é a
fonte da vida, perene, que jorra para sempre; quem quiser pode dela beber.

443
8, 5-9 A Decisão

Nesta livre escolha está o mistério divino de nossa criação como espiri-
tuais, feitos à imagem e semelhança de Deus, e também o mistério da eleição.
Deus criou o homem livre e dentro de sua absoluta fidelidade ELE res-
peita essa liberdade. Diríamos em linguagem mais atualizada que Deus respei-
ta os “direitos humanos”. Respeita, mas não aprova indistintamente; por isso,
na predestinação da criatura humana existem as duas saídas finais,
diametralmente opostas: há a porta larga e a estreita. A predestinação é esta:
quem aceita já está salvo; quem não aceita já está condenado. É nisto que con-
siste a anulação de uma alternativa mediante a opção por outra já determinada
e isto, tanto para a justificação como para a condenação.
É pela inspiração do Divino Espírito que “sentimos saudades da vida Edênica”
e (por assim dizer) vislumbramos a graça divina; é assim que a nossa existencialidade
toma o seu verdadeiro sentido — aquele para o qual Deus nos criou.
Todavia, o Espírito Santo é o próprio Deus, como o é Jesus Cristo —
que é Deus conosco — e o é Deus Pai, o criador dos céus e da terra. Deus está
nos céus; não se deixa levar por conveniências humanas; é reto e justo. Nada há
que se lhe compare, nem no cimo da torre de Babel, nem no mais humilde pó
da terra, pois o relativo não subsiste ante o absoluto nem pode ser comparado a
ele: o Espírito é! (“Eu sou o que sou.”).
Porque o Espírito é absoluto nele e perante ele as antinomias, as
contraposições, as alternâncias e as alternativas desaparecem e a criatura hu-
mana que pela fé e mediante a graça de Deus tiver o Espírito de Cristo e nele
estiver, já não sofre condenação (8, 1) pois é o Espírito em quem está (aquele
que o tiver) que revela — ele mesmo — a redenção e nele não há contradição
mesmo porque a única outra possibilidade foi peremptoriamente cancelada,
derrotada, suprimida por ele].
Esta outra possibilidade já não existente é o ser humano segundo a carne.
Carnalidade é a decisão atual [do presente século] na qual [e segundo a
qual] Deus está contra o homem e o homem contra Deus. Por isso, e em
contraposição ao Espírito, a carnalidade só é por nós conhecida como sendo a
“carne dominada pelo pecado” (8, 3). Carnalidade quer dizer estar longe de
Cristo; é não ter perguntas e, portanto, não obter respostas. Tudo quanto foi
dito mais atrás sobre o Espírito aplica-se com o sinal trocado à carnalidade.
Carnalidade é ausência de sentido [a tradução inglesa escreve:
“Carnalidade é falta de senso” (“non-sense”), introduzindo uma certa duplicidade
no sentido, perfeitamente permissível tanto em inglês quanto no original para
“sense” e “Sinn”, respectivamente; no entanto parece-me que só em alguns
casos poderemos, com propriedade, escrever “senso” conforme, aliás, escreve-
mos logo adiante].

444
A Decisão 8, 5-9

O “contra-senso” invadiu o ser humano [porque] ele perdeu o seu senti-


do [original] e anda agora em inimizade e hostil a Deus pois por sua [agora]
natural inclinação não se submete, nem pode submeter-se, à lei divina. Este
“contra-senso” se patenteia na religião.
Assim como o sentido do Espírito é o “ser” da vida e da paz, também o
sentido da carnalidade é o “ser” da morte. Também a carnalidade significa uma
alternativa já resolvida ante a qual todas as demais reiteradas intenções, apa-
rentes justificativas, agitações e comoções, são triviais.
O mundo, (o mundo moral e cristão!), “se admira e se queixa de serem
as pessoas tão más, todavia não sabe como isso acontece; vê o regato fluindo e
as folhas e os frutos brotando da árvore má, porém não sabe donde a fonte vem
nem onde estão as raízes da árvore. Por isso, acode com conselhos; quer con-
trolar a malignidade e tornar a humanidade piedosa, promulgando leis e im-
pondo castigos e, por mais que faça e por mais que persevere, nada consegue.
Talvez lhe seja possível barrar o regato mas a fonte continua a lançar a sua
água; talvez lhe seja possível cortar os rebentos novos da árvore mas a raiz fica.
Tudo é feito em pura perda porquanto de nada adianta melhorar e curar por fora
se por dentro ficar o tronco, a raiz e a fonte do mal. É necessário que, antes de
tudo, a fonte seja estancada, secada e as raízes da árvore sejam extirpadas pois
de outra forma, para cada barragem ou poda surgirão dez outros pontos. É
preciso que o mal seja curado em sua origem pois, se assim não for, por mais
emplastro e pintura que se aplique, a ferida supurará e escorrerá de novo e
sempre trazendo, apenas, irritação”. (Lutero)
Não temos possibilidades de, por nós mesmos, decidir entre a carnalidade
e o Espírito, rejeitando aquela e optando por este. Os que andam “segundo o
Espírito” não são uns poucos nem são estes ou aqueles; o mesmo se dá com os
que andam “segundo a carne”.
Quem haveria de reconhecer a sua existência “na carne” que não estivesse
“no Espírito” e a quem seria permitido reconhecê-la “no Espírito, sem assim
confessar que está na carne”? Ora, está determinado que na temporalidade
estaremos todos na carne e na eternidade estaremos todos em Espírito. [En-
quanto] na carne, somos rejeitados e (quando) no Espírito somos eleitos,
[redimidos]. No mundo da temporalidade, das coisas e dos homens, somos
condenados; no reino de Deus somos justificados; aqui pertencemos à morte,
ali gozamos da vida. Essas duas condições — condenação e justificação, rejei-
ção e redenção, morte e vida são quais os focos de uma elipse que ovalizam o
perímetro que, todavia, vai se arredondando à medida que os focos se aproxi-
mam e se transforma, afinal, em círculo perfeito quando os focos coincidem no
centro do diâmetro. Contudo, a unidade [a coincidência] dessas duas opções

445
8, 5-10 A Decisão

opostas (e isto não é demonstrável [nem comparável] matematicamente) não é


semelhante a [um todo ou] uma unidade em equilíbrio porém é um sobre-peso,
uma preponderância infinita, conforme se exemplifica bem no tempo passagei-
ro, efêmero, absorvido pela eternidade; na unidade da eterna vitória do Espírito
sobre a carnalidade; na unidade do caminho que foi restabelecido e que leva
daqui para o além. O instante absoluto [o ponto de coincidência dos focos], do
lampejo do conhecimento, é o momento [do relâmpago] da ressurreição, do
raio divino que relampejando desde o hemisfério superior dos céus ilumina o
inferior (Luc. 17, 24).
[O A. cita mais proximamente a tradução de Lutero: “assim como o
relâmpago lampeja de cima no céu, e ilumina tudo o que está debaixo do céu,
assim será o Filho do Homem, no seu dia].
Esta unidade [esta coincidência] mostra que se trata de Jesus Cristo —
“o Filho do Homem, em seu dia”!
[Notar na simbologia do A. a unidade que ele dá (ou atribui) aos eventos
do mundo com a eternidade, unidade essa que se consumará mediante a supres-
são e absorção do que é finito pelo que é infinito; do que é efêmero pelo que é
eterno; do que é matéria pelo que é Espírito; da condenação pela redenção:
unidade que se consumará no “Grande Dia do Senhor” quando, ainda segundo
a simbologia do A., havendo Deus vindo ao encontro dos homens, na pessoa de
seu Filho Unigênito, estes se voltarem a Deus na pessoa do Filho do Homem.
Então cessarão os antagonismos e a distorção da criação perante o Criador e
voltará a reinar a regularidade do círculo perfeito].

V. 10 Se, porém, Cristo estiver em vós o corpo está morto por causa do pecado
condenado, porém o Espírito vive por causa da justiça que foi imputada.

“Cristo em vós”: esta é a condição da liberdade de que gozamos para


além da lei, e esta é a solução do enigma da vida posto com insuportável dureza
na religião.
Esta condição de “Cristo em vós” não é para ser entendida como algo a
ser ainda preenchido, a ser realizado; esta condição não é subjetiva mas sempre
objetiva; é algo já realizado, já cumprido.
O ser humano recebe motivação e toma a iniciativa de abrir os olhos
para, por si mesmo, ver sua liberdade existencial, constrangida por esta condição:
Cristo.
Não é o homem quem cria essa contingência por meio de alguma função
lógica, por algum parecer estético, ou mediante desejo ético, ou ainda por expe-

446
A Decisão 8, 10

riência religiosa. Essa condição [“de Cristo em vós”], basicamente antecede to-
dos esses atos [ou ações] e é também, basicamente, a permanente negação deles.
A condição [“Cristo em vós”] foi criada pela fidelidade de Deus (3, 21)
com o envio de seu Filho (8, 3); ser obediente à fidelidade de Deus (1,5) signi-
fica curvar-se [sujeitar-se, submeter-se] à condição que, independentemente de
nossa submissão e de nossa obediência, foi estabelecida e dada para nossa li-
berdade.
Assim como “o pecado que habita em mim” (7, 17 e 20) é a pressuposi-
ção [a condição inicial] da minha rebelião contra Deus independentemente da
ação ou inação humana que possa ocorrer posteriormente, assim também “Cristo
em nós” é a [condição inicial a] pressuposição divina [de nossa eleição] qual-
quer que seja a ação ou a inação humana que venha depois.
“Cristo em nós” é a Palavra de Deus que nos foi dirigida; é a pergunta e a
resposta divina: é a interrogação, porque leva a nossa existência e o nosso modo
de ser à morte; e é a resposta porque nos conduz dessa morte para a [nova] vida.
[A Palavra de Deus que assim nos guia] é o caminho em toda parte acessível [e
visível] para aqueles que sabem ver (1, 20), isto é: Cristo revela o caminho inscre-
vendo-se em expressiva exclusividade e existencialidade entre os eventos históri-
cos do mundo, neles se destacando como o ponto ao qual todos eles se referem e
do qual são vistos. É deste ponto de referência que o pecado é condenado e que a
justiça é imputada; é dessa condição de “Cristo em nós” que o ser humano recebe
a motivação para sua liberdade e dela toma a iniciativa.
“Cristo em nós” não é a conseqüência de suposição nossa ou da apreen-
são da Palavra de Deus que nos foi dirigida. “Cristo em nós” é uma condição
que nos é imposta e que se origina do processo de julgamento e justificação,
como condição essencial e determinante.
[A tradução inglesa escreve: “Cristo em nós” não é jamais, o processo
pelo qual apreendemos a palavra divina dirigida a nós e, portanto, nunca deve
ser identificado como “nossa” percepção].
“O corpo está morto por causa do pecado porém o Espírito é vida por
causa da justificação”.
Cristo é a nossa liberdade; ele é o passo que transpõe o limite da vida
humana, e dá origem à inversão do seu sentido; ele representa a emergência —
[o surgimento] da nova e verdadeira realidade.
A eternidade foi resolvida [decidida, estabelecida] em Cristo; a carne é
somente carne, o mundo apenas mundo, e o ser humano não é mais do que ser
humano enquanto o pecado for pecado.
A existência da criatura humana neste mundo, tanto em seus estágios
mais altos como nos mais baixos, precisa desaparecer e morrer em Deus. Não

447
8, 10 A Decisão

há e não pode haver qualquer saída para o suspirar do homem [mesmo] que
este alcance o ponto mais alto da religião profética, apostólica e reformada (7,
24). O “corpo” da criatura, a totalidade de seu “Eu sou”, — tanto no passado,
como no presente e no futuro — [tudo somado] “está morto por causa do peca-
do”. A terra volta à terra e o pó ao pó; as ilusões vão às ilusões.
A decisão eterna, porém, o juízo eterno, pertence à terra já alcançada, da
liberdade, da justificação, da vida, da eternidade.
Somente estando redimida pode a criatura humana entender a sua
irredimibilidade; somente justificada pode compreender sua pecaminosidade; so-
mente estando viva percebe sua morte. Só em Deus pode o homem esfacelar-se.
Não fôra o homem mais livre do que todas as possibilidades humanas,
como haveria de compreender o limite, o sentido e a realidade da mais alta
possibilidade humana como sendo uma prisão?
Não estivesse já salva a criatura que suspira pela redenção, não estivesse
já redimida, como haveria de suspirar?
A vida do Espírito se inflama à mesma chama da luz que revela a morte
do corpo pois esta morte provém do pecado condenado em Cristo e a vida
provém da justificação alcançada [também] em Cristo. Ambas as contingênci-
as ocorrem conjuntamente, uma reconhecível e mensurável pela outra, porém a
segunda predomina qualitativamente e em eternidade, superando e suprimindo
a primeira; esta é a liberdade do ser humano em Cristo.
A verdade existe e não é sem razões que ela é tão amarga.
O Espírito existe e não é sem razão que suspiramos pela redenção do
corpo desta morte.
Cristo ressurgiu, e portanto há razão para que tudo o que não seja [eter-
namente] existencial seja dado à morte, em sua morte.
[“Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”.]

Comentários: 8, 1-10

Aqui e de modo geral em toda sua obra, Barth refere-se reiteradamen-


te à permanente pergunta da criatura humana, pergunta esta que, diz o
A., está implícita na vida de Jesus; diz que, semelhantemente, a própria
vida de Jesus é a resposta eterna (e por isto divina) a esta pergunta.
Barth diz ainda que na vida de Jesus se patenteia, gradativamente, a
condenação do pecado, condenação que chega à culminância no Gólgota.
Parece, portanto que a esta altura será conveniente reexaminar as
duas primeiras afirmativas e reconsiderar também a terceira questão que
muito se relaciona com as outras duas.

448
A Decisão 8, 1-10

Qual é a nossa pergunta? Ela nasce de nossa incerteza, nosso sofri-


mento, nossa aflição. Afinal, quem somos? Por que sofremos? Donde
viemos e para onde vamos? Quem é Deus? Onde está? Existe?
Essa indagação é o despertamento que o Espírito promove em nós e nos
leva a cogitar a respeito de nossa origem e de nosso futuro. É mediante esse
interesse que começamos a compreender que somos frágeis, mais do que
inaptos somos ineptos, somos pó. Descobrimos que não podemos enfren-
tar, com êxito, o mundo da matéria que nos levará de roldão, mais dia me-
nos dia, ao pó da terra, onde todos desapareceremos e, se alguns passam
para a história, breve serão lenda e fábula e transitória é a sua lembrança.
Ora, as origens dessa indagação estão implícitas na vida de Jesus,
como Filho do Homem.
Se descobrirmos que somos fracos, desprotegidos, nulos, massacra-
dos pelos eventos do mundo, mais fraco, mais desprotegido, mais esma-
gado foi Jesus, em sua vida. E tanto mais porque, sendo infinitamente
mais forte, podendo contar com a proteção das hostes celestiais, infini-
tamente grande em sua personalidade (“jamais homem algum falou com
ele”), apto vencedor em todas batalhas, foi despojado de tudo e levado à
mais ínfima condição humana, insultado, vilipendiado, crucificado, des-
prezado de Deus! (“Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?”).
É por isto que Jesus, em sua vida, consubstancia o paroxismo de
nosso sofrimento, de nossa insegurança e, portanto, também de nossa
indagação. Todavia, a Cristo Deus deu a resposta antecipada: “Este é
meu Filho Amado. Esta é a resposta eterna de Deus a Cristo e também a
nós se em Cristo estivermos. Passamos para o rol dos “filhos amados”
de Deus. Também a nós a resposta é dada por antecipação: recebemo-la
aqui, no presente século, antes de sermos transformados a isto, pela nos-
sa justificação mediante a fé.
Então, a terceira questão: como foi condenado e vencido o pecado,
na vida de Jesus?
Ora, a vitória do pecado é a morte. Havendo Cristo, em sua vida, assu-
mido e tomado sobre si todo o pecado da humanidade, mais forte, podero-
sa e prepotente deveria ser, sobre ele, a morte. Efetivamente, ela foi extre-
mamente arbitrária, violenta, arrasadora. Todavia, Cristo ressurgiu. A morte,
o instrumento e a lei de seu próprio senhor, o pecado, foi com ele derrota-
da. O pecado ficou desmoralizado — perdeu o seu poder. “Onde está, ó
morte, a tua vitória?” — Cristo venceu. Cristo triunfou. O pecado não foi
“apenas” condenado; ele foi vencido, anulado, definitivamente sobrepu-
jado. Sua coroa lhe foi tirada. Agora é Cristo quem reina!

449
8, 1-10 e 11 A Verdade

A resposta eterna de Deus, dada por antecipação a Cristo, foi por


Deus confirmada chamando-o, de entre os mortos, para a vida e é con-
firmada para nós, na ressurreição de Cristo.
— Ele veio para que tenhamos vida — e a tenhamos abundantemente.

A VERDADE (8, 11-27)

Barth analisa a obra de Deus junto ao ser humano, operada pela


multiforme manifestação do Espírito Santo que, ora leva a criatura à indagação
sobre si mesma — sobre Deus e sobre seu relacionamento com o Criador, ora
desperta no coração humano o amor a Deus, ora conduz os homens ao Salvador
Jesus Cristo, sempre interpretando e aperfeiçoando perante Deus Pai os gemi-
dos e as súplicas da criatura!
Não recebemos o Espírito porque clamamos mas o Espírito se antecede
incitando-nos a clamar Aba, Pai! Não vamos a Cristo por iniciativa nossa, mas
é o Espírito que nos move! Não amamos a Deus porque fomos a isto predesti-
nados, mas o Espírito põe esse amor em nossos corações!
O Espírito Santo é a Verdade.
Pelo Espírito nos unimos a Cristo, levando seu transitório vitupério (Heb.
13, 13), para juntamente com ele herdarmos a eterna glória.
Se vemos nosso sofrimento no sofrimento de Cristo e, então, com ele
nos irmanamos, passamos à categoria de filhos do mesmo Pai. Somos feitos
filhos de Deus! Eis aí a filosofia cristológica do sofrimento.
Vejamos, pois, o que o A. tem a nos dizer!

V. 11 Se, porém, o Espírito daquele que acordou Jesus de entre os mortos


habitar em vós então ele, que acordou Cristo Jesus dentro os mortos, tam-
bém verificará vossos corpos mortais por causa de seu Espírito que habita
em vós.

[A tradução de Almeida escreve: “Se habita em vós o Espírito daquele


que ressuscitou Jesus dentre os mortos, esse mesmo que ressuscitou Cristo Je-
sus dentre os mortos vivificará também os vossos corpos mortais, por meio de
seu Espírito que em vós habita”.
As duas maneiras de escrever se equivalem exceto nos advérbios “por
meio” e “por causa”. Entre as versões tomadas para confrontação do texto só a
de Lutero registra da mesma maneira que o Autor.

450
A Verdade 8, 11

Todavia Barth tece um comentário de pé de página sobre a parte final do


versículo: “Habita em vós”, dizendo que esta forma (no acusativo) é a sugerida por
Zahn enquanto Lietzmann se opõe a ela e sugere o genitivo. Diz o A. que sem entrar
na discussão do complexo processo de transmissão dos documentos antigos até nós
considera que, no caso, deve acompanhar a redação de Zahn pois lhe parece pelo
contexto e, notadamente pelo que está no versículo imediatamente anterior (10),
ser esta a forma correta. Aliás, diz Barth que a aplicação do genitivo poderia justi-
ficar a idéia de mecânica psico-física do Espírito que parece harmonizar-se mais
prontamente com os pontos de vista de algum teólogo posterior a Paulo].
“O Espírito habita em vós”, O Espírito é a verdade. Se o Espírito habitar
em nós então também habitarão em nós o amargor e a doçura, a perplexidade e
a promessa que a verdade traz à criatura humana.
Não podemos observar a verdade objetivamente porquanto é ela que
assim nos contempla antes mesmo de havermos analisado o que quer que fosse.
A verdade é a própria objetividade original, primária, que fundamenta a nossa
capacidade de observar e analisar.
Semelhantemente, não é possível subjetivar a verdade porquanto ela
mesma, com sua crítica “imanente e subjetiva”, acompanha objetivamente e
suprime de forma temível e [também] redentora, todo o “eu”, “tu” e “ele”, a
que se contrapõe.
A verdade não pode ser tomada levianamente; (nem como algo trágico);
a verdade põe um ponto final a toda tragédia. [De outra parte], a verdade é
também por demais jovial, alegre e por demais gloriosa, para que com ela jus-
tifiquemos a nossa existência — [a nossa razão de ser], para que digamos ao
instante que passa: “Demora-te um pouco; és tão lindo”. [Uma referência ao
poema FAUSTO, de Goethe, apud tradução inglesa]. Todavia, a verdade é ex-
tremamente séria e terrível, de maneira que não nos é permitido, acaso duvi-
dando, atentar contra nossa própria existência. O cidadão que havendo lido
“Fedo”, de Platão, se lançou em seguida ao mar, entendeu tão pouco do sentido
da eternidade quanto os muitos que, tendo lido a peça, não sentiram a mínima
necessidade de se afogarem.
Não podemos perguntar a verdade por que é ela verdade, porquanto ela
já se dirigiu a nós indagando: “Quem és, pois?” Com esta pergunta ela já nos
deu a resposta tão plena de conteúdo eterno: tu és o ser humano; a criatura deste
mundo, e pertences a Deus o Deus teu Criador e Redentor.
É baseado nessa pergunta que a verdade dirige a nós e na resposta que
ela contém implícita, que se desenvolve a nossa indagação.
Nada podemos, por assim dizer, iniciar com a verdade por que ela é a
nossa origem. Por isso temos de nos conformar em deixar a verdade ser o que

451
8, 11 A Verdade

é e conviver com ela, sujeitando-nos ao seu ataque roaz e usufruindo sua inces-
sante bênção (Sal. 139, 1-12) porquanto “Cristo em nós”, como julgamento e
justificação (8, 10), é a VERDADE, é o Espírito que habita em nós e, de Cristo,
não há fuga nem esconderijo.
“O Espírito daquele que acordou Jesus de entre os mortos” é o Espírito
que habita em vós.
Quem passa a se relacionar com Cristo, relaciona-se com Deus, o Deus
desconhecido, o Deus que está em secreto, que é Santo, que habita na luz, onde
ninguém tem acesso. A vida que dele procede está acima do bem e do mal; seu
SIM está acima de todo “sim” e todo “não”; o seu além está acima do além e do
aquém. (4, 17).
É por isto que a verdade não se mantém e não cai conosco; nem conosco
vive ou morre. Não fica com razão quando acertamos [ou por acertarmos] nem
a perde quando erramos. Não triunfa em nossas vitórias, nem fica subjugada
mediante nossas derrotas. Esta é a razão pela qual a verdade vive a sua vida tão
poderosamente; é por isto que a verdade tanto é a morte que paira sobre o berço
como é o alento de vida que respira sobre o túmulo. É por isto que a verdade
tanto pode ser a condenação de um São Francisco de Assis como o perdão de
um Cesar Bórgia. É por isto que ela expulsa do trono os poderosos e eleva os
humildes; é por isto que a verdade pode mudar todo “sim” humano em NÃO e
todo “não” em SIM. É por isso que a verdade está ante nós, quer subamos aos
céus quer façamos nosso leito nas profundezas do inferno.
É nesta infinita superioridade sobre tudo o que é humano que a verdade
é nossa esperança, nosso inquebrantável relacionamento com Deus, nossa por-
ção imortal.
Não existe esperança apaziguadora, não há relacionamento estático com
Deus, nem tem o ser humano [como homem], algo que seja imortal; porém,
aquele que acordou Cristo Jesus de entre os mortos, também vivificará os vos-
sos corpos mortais por causa do seu Espírito que habita em vós.
“O corpo morto por causa do pecado e o Espírito vivificado por causa
da ressurreição” (8, 10), eis o contraste que surge da ressurreição e do conheci-
mento de Deus; todavia, surge para ser suprimido, vencido logo a seguir sob a
ação dessa mesma luz; enquanto o cone de luz que vem do projetor desenha e
define o contorno do objeto, também o bombardeia certeiramente e aquela “ou-
tra coisa”, secundária [a criatura material que se antepõe à luz], deixa de existir.
O mesmo Deus que acorda Cristo Jesus de entre os mortos e assim revela a
preponderância do infinito sobre o finito, também vivificará vossos corpos mortais.
Essa confrontação do finito, na forma de “outra coisa” meramente se-
cundária, com o infinito, só pode ter lugar a título de analogia, como parábola.

452
A Verdade 8, 11

Somente como parábola podemos ver na morte de nosso corpo, a vida do Espí-
rito em nós.
Em invisível realidade, aquilo que é finito não se opõe ao infinito
mas é, por assim dizer, suprimido por ele e, por isso mesmo, confirmado
nele de tal forma que a própria supressão (ou revogação) do que é finito [da
criatura segundo este mundo], constitui a sua fundamentação, [a sua razão
de existir].
Conseqüentemente, em sua realidade invisível, o nosso corpo não é uma
segunda coisa, uma “outra coisa” ao lado do Espírito de Deus que habita em
nós, porém ele é, ainda “por assim dizer”, o espírito da persistente mortalidade
de nosso corpo e portanto, (e no mesmo modo de dizer), a nossa vida incessan-
te. Em sua invisível realidade, — (e isto distingue o Evangelho da Ressurrei-
ção, radicalmente, de toda e qualquer forma de panteísmo, espiritualismo e
materialismo [e também das manifestações ruidosas do mais remoto até o mais
moderno “avivamentalismo”] ), o anunciado despertamento de nosso corpo no
passado. presente e futuro, só pode ocorrer dentro da negação total [do indiví-
duo] e do envolvimento completo do “FUTURUM RESSURRECTIONIS”:
“Ele fará viver”. [Ele vivificará!]
Portanto devemos nos afastar o mais possível de todo entusiasmo que a
aparência [de termos o Espírito de Deus] possa despertar em nós, como se fora
a afirmação de que se poderia alcançar visão (ou intuição) superior do
despertamento, [que o Espírito Santo opera] por meio de condicionamento psí-
quico. [Novamente, atenção, senhores avivalistas. A versão inglesa escreve as-
sim: “Devemos, portanto, dissociar-nos de toda espécie de crença entusiasta de
que aqui estamos na presença de reivindicação de alguma ordem superior —
(intuição), alcançável por algum estado peculiar da alma.]
O quanto mais friamente falarmos da vivificação pelo Espírito, melhor
será. A pressão psíquica que a menção dessa vivificação produz já é, por si só,
bastante obscurecedora; por isso devemos afastar como enganosas as especula-
ções de caráter “filosófico — natural”, que procuram demonstrar a existência
de espiritualidade corporal, visível, real, principalmente aquelas que vão de
Oetinger até Beck, e de Rothe até Steiner (e que timidamente aparecem tam-
bém na primeira edição do “Der Roemer Brief”.) — ousados ensaios que con-
duzem ao erro; [tais especulações] falsificam, esvaziam e desvalorizam o depo-
imento [da vivificação]. [A versão inglesa escreve “falsificam o Evangelho”.
Em outras palavras, o recebimento do Espírito Santo é a aceitação do Cristo
ressurrecto em nosso coração, sem ostentações, sem manifestações especiais
exotéricas ou esotéricas, sem outra exteriorização se não aquela da oferta de
nossos dons carnais a Deus como instrumentos de justiça (6. 13 e 19) e isto,

453
8, 11 A Verdade

com temor e tremor ante a graça divina, tendo por fruto a santificação e, no
final, a vida eterna (6, 22)].
A proclamação da vivificação pelo Espírito, [ou a própria vivificação] é
por si mesma [suficientemente] digna de crédito e todo e qualquer esforço que
seja feito para comprová-la a torna suspeita, duvidosa, a desacredita porque
esse esforço se origina de nossa própria incredulidade.
“Corpo” significa a totalidade de nosso ser carnal, conforme existente
neste mundo temporal das coisas e da humanidade. “Corpo” quer dizer “eu
mesmo”, rodeado de todas possibilidades imagináveis que de alguma forma
me são apresentadas. Esta qualificação do meu corpo eu faço mediante o meu
conhecimento de Deus, confrontando minha condição atual com a original.
Este confronto anula, suprime, revoga todos meus predicados [naturais], inclu-
sive minha própria identidade. Nenhuma substância pode resistir a esta anula-
ção, nenhuma; nem a derradeira, a mais elevada ou a mais profunda das reali-
dades pode opor-se à peremptoriedade dessa negação, [pois ela resulta do meu
conhecimento de Deus].
Também a morte natural é, dentro desta anulação total, apenas e so-
mente uma parábola; juntamente com a morte estão todos os atos de nossa
vida que, de certa forma, são pequenas (ou maiores) antecipações da morte e
acompanham o seu caminho, quer sejam exteriorizados ou não, na forma de
mortificações, auto humilhações, renúncias, autoflagelações e espiri-
tualizações. Tais atos [e atitudes], sem dúvida, vislumbram o mistério porém,
depressa se afastam [daquilo que o mistério poderia revelar], transformando-
se em exercícios de cultura espiritual e corporal, processo que a humanidade
tem adotado em todos tempos para salvar a vida deste corpo que não pode ser
salvo da morte.
Não nos é possível deixar de incluir nas “antecipações” da morte natural
as várias derivações para o asceticismo [cláustro, vida monástica, etc.], algu-
mas mais severas outras mais brandas; são métodos que o mundo adota, formas
variadas e por demais comuns, que são postos sob dúvida radical mediante o
conhecimento [do que seja a vontade] de Deus. Portanto, mesmo a semelhança
intencional da morte natural — [a antecipação do sofrimento da morte — a
repressão a vida — nas várias formas referidas pelo A.] é apenas parábola; é a
invasão explosiva do infinito na ordem das coisas que têm somente o conceito
do finito. Esta invasão se dá porque somos capazes de [por assim dizer] criar o
infinito pela conceituação que lhe atribuímos, isto é, imaginando a eternidade
com as qualidades das coisas que são visíveis para, a seguir, aplicar a essa
visualização o [rótulo ou o] timbre do invisível, de sorte que criamos para nós
uma finitude “quase” infinita. Este “infinito” [assim criado por nós] de maneira

454
A Verdade 8, 11

alguma é o eterno e, confrontado com a origem, revela-se como um produto


nosso, [perecível] suprimido, revogado, [pela negação fundamental a tudo quanto
é mundano].
Declaradamente, não sou eu esse ser que permanece para sempre, que é
imortal: não sou eu o sujeito incorruptível, o ser que, tudo conhecendo, é tam-
bém conhecido; o ser que não é matéria. Este ser não sou eu mas o Espírito de
Deus que habita em mim, que está além da catástrofe que me envolve totalmen-
te e na qual o meu ser [deste mundo] está irremediavelmente perdido.
Estar além da catástrofe significa a anulação do “aquém” e, por isso
mesmo, significa também a supressão do próprio “além” para este “aquém”
[porquanto, cessando o “aquém” desaparece o ponto de referência para situar o
“além”, e a unidade se estabelece qual o círculo perfeito, quando os focos da
elipse coincidem sobre o eixo [segundo a figuração feita mais atrás pelo A.].
Justamente porque o corpo (visível como passado, presente e futuro) é
perecível, mortal, é preciso que invisivelmente (como FUTURUM
AETERNUM) ele seja imperecível e imortal.
Todavia a presente corruptibilidade, [este corpo mortal, portanto a “car-
ne e o sangue” qualificados como mortais juntamente com tudo mais que lhes
diz respeito] não pode herdar o Reino de Deus se ela não estiver relacionada
com a sua origem [em Deus] embora possa, talvez, gozar de uma falsa [uma
aparente] ressurreição; quem sabe, um “além” relativo, ou melhor, ela pode,
talvez, ter um “aquém” [um tempo presente, aparentemente] mais prolongado,
[temporariamente falando].
[Entendo que o A. quer dizer que sem reconhecermos em Deus o doador
e consumador da vida, sem nos compenetrarmos (e aceitarmos) que em nossa
origem remota fomos criados sem pecado e, portanto, se agora não reconhecer-
mos a tragédia de nossa existência perante Deus, como criaturas humanas po-
demos gozar de aparente paz, de uma suposta vida eterna, ou melhor, podemos
prolongar o tempo e por algum tempo, (e talvez até durante a vida toda), o
estado de inconsciência de nossa verdadeira situação; dentro desse estado psi-
cológico e mental porém, não temos condições de receber o Reino de Deus
cuja existência, aliás, então ignoraremos, na ignorância de nosso próprio esta-
do. Daí a necessidade da pregação. (Como ouvirão se não houver quem pre-
gue? - 10, 15). Todavia, não confundamos esse conhecimento que a pessoa
precisa adquirir para aceitar o seu Salvador, como sendo obra ou mérito huma-
no; com o entendimento tomamos conhecimento; com a boca fazemos confis-
são, porém é com o coração que cremos e somente pela fé somos salvos e
justificados. Ora, havendo adquirido o conhecimento, somos livres para optar
pela confissão e pela fé, ou pela negação e pela incredulidade].

455
8, 11-13 A Verdade

Isto que é corruptível, que é mortal, a saber, a carne e o sangue postos


em referência a Deus, precisa ser revestido de incorruptibilidade e da imortali-
dade. Passando a ignorar a sua realidade visível, essa carnalidade [assim supri-
mida] “nasce de cima”; ainda na temporalidade, aguarda a eternidade e, pelo
poder positivo dessa mesma referência a Deus que suprime o ser deste mundo,
passa a participar, invisivelmente, dos novos predicados, dos quais se apropria.
Estes novos atributos, dos quais nada sabemos porque eles não nos
concernem, dizem respeito à ressurreição do corpo. Esta ressurreição se funda-
menta, necessariamente, na habitação do Espírito, em nós; isto é, na
automovimentação da verdade que se completa [se realiza] em nós e mediante
a qual tem lugar esse relacionamento do ser humano com Deus, no qual a cria-
tura encontra sua morte e, por isso, a vida. Nenhum outro fundamento tem a
ressurreição do corpo, mas este único lhe basta.
Somente se o Espírito não fosse o Espírito, se a verdade não fosse a
verdade, e Deus não fosse Deus, (mas fosse uma realidade [material, visível,
deste mundo], fosse alternativa, um “além” não genuíno), — somente então
não poderíamos anunciar e proclamar o “FUTURUM AETERNUM” da res-
surreição do corpo, que é a mais imprescindível interpretação do que o Espírito
significa para a nossa vida.
[A tradução inglesa escreve: “Somente se o Espírito não fosse Espírito,
se a Verdade não fosse Verdade, e Deus não fosse Deus; somente se eles fossem
coisas observáveis, secundárias pseudo-aléns, ser-nos-ia impossível; anunciar
e formular em palavras o FUTURUM AETERNUM da Ressurreição do Corpo,
que e a mais atrevida, mas também a mais indispensável interpretação do que o
Espírito significa para nossa vida”].

Vs. 12 e 13 Portanto, irmãos, com referência à carne não somos obrigados a


viver segundo a carne! Porquanto, se viverdes segundo a carne caminhais
para a morte e se, pelo Espírito, deixardes morrer a empresa da carne,
caminhareis para a vida.

[Almeida escreve: “Assim, pois, irmãos, somos devedores não à carne,


como se constrangidos a viver segundo a carne. Por que se viverdes segundo a
carne, caminhareis para a morte, mas se pelo Espírito mortificardes os feitos do
corpo, certamente vivereis].
“Não somos obrigados, na carne, a viver segundo a carne”. O Espírito
ou, (o que quer dizer a mesma coisa), a verdade que se tornou avassaladora em
nós, a verdade tomada a sério e aceita na mais absoluta agudeza como sendo a

456
A Verdade 8, 11-13

proclamação do “além” de toda corporalidade e [que constitui] por isso a ex-


pectativa da ressurreição desta corporalidade em sua totalidade, significa para
nós, em primeiro lugar, um posicionamento crítico bem definido com relação a
essa mesma corporalidade. Viemos de uma abrangente supressão de todos atri-
butos do ser humano nosso conhecido e, vamos ao encontro de predicados
também totalmente envolventes, porém TOTALITER ALITER da existência,
que desconhecemos, em Deus; trata-se da existência da Nova Criatura que eu
não sou e, contudo, vive em mim e não posso negar que seja parte do meu
“ego” existencial.
Procedemos da possibilidade visível de nossa existência na carne e pros-
seguimos em direção da possibilidade invisível de nossa existência no Espírito.
(8, 5-9). Procedemos da morte e vamos ao encontro da vida; para isto somos
orientados de maneira bem definida: nossas costas estão voltadas para o Poente
e nossa face para o Levante; o contrário, é impossível. [O A. fala Oeste e Leste;
preferi usar os respectivos sinônimos para evitar possível conotação política
atual, que o original não sugere].
Vida segundo a carne, isto é, a vida prevalente no mundo da
temporalidade, das coisas e dos homens; vida não quebrantada em sua dialética;
vida tomada a sério, em sua realidade; ou vida ingênua que se preocupe apenas
com as possibilidades da criatura neste mundo; vida que se afoga nas possibili-
dades mais rasas e que desabrocha, satisfeita e feliz, nas possibilidades mais
elevadas que encontrar, ou então, vida conservadora e sem humor ou, ainda,
desenfreada vida revolucionária, — nenhuma delas entra, sequer, em cogitação
[entre a origem de onde viemos e o alvo para o qual marchamos] entre o “iní-
cio” e o “fim”, entre a morte da qual saímos e a vida para onde avançamos.
O Espírito libertou-nos definitivamente da obrigação (da inevitabilidade)
de nos apaixonarmos pelas possibilidades [pelas coisas e oportunidades] mate-
riais [conforme acontece quando vivemos] sem considerar que temos de mor-
rer. Agora estamos livres e já não precisamos andar solenemente sem dar uma
olhadela sequer à nossa pequenez; já não precisamos andar atarefados sem
sentir a moderação que a eternidade sugere; não precisamos andar diligentes,
zelosos, pois percebemos a transitoriedade de nossos feitos e obras; todavia
estamos, também, livres da indolência pois estamos conscientes da
inexorabilidade do tempo que foge sem mais voltar. Estamos livres [do risco]
de viver sem Deus (como se isto fora possível); já não precisamos viver deses-
perados pois podemos elevar nosso pensamento à suprema glória de Deus. Li-
bertados pelo Espírito já não precisamos viver separados, dispersos, esqueci-
dos da única coisa que nos é necessária e na qual todo nosso esfacelamento e
nosso desmembramento já foram sarados.

457
8, 12 A Verdade

Já não existe mais a obrigação, a necessidade de viver semelhante vida,


de viver... “segundo a carne”.
É apenas à sombra de uma possibilidade totalmente diversa que a
carnalidade — na qual estamos — conserva o seu caminho, sua própria serie-
dade, suas luzes e seu poder. Essa possibilidade vem, por assim dizer, de um
ponto de vista superior, do qual a carnalidade nem é diretamente confirmada
nem negada, de onde, porém, o seu poder de nos obrigar é posto basicamente
em dúvida. É justamente nesta dúvida, neste questionamento de todo o com-
plexo de nossa existência, que se revela o machado posto à raiz das árvores. É
o questionamento, e a dúvida que cerca todos os caminhos e rodeios nossos
conhecidos; nossas atitudes responsáveis e nossas leviandades; é a dúvida sob
a qual são postos nossa retidão e nosso pecado; as crenças, o ateísmo, e os
ceticismos — especialmente estes. Estes? — Talvez; ou talvez não!
O machado está posto à raiz das árvores: gozemos da liberdade que, em
Deus, temos para além da lei, a verdade da qual não nos podemos esquivar
porque é a verdade; ela é a liberdade do próprio Deus.
Existe algo [ou alguém] que está sempre presente, acima de toda
profundeza, de toda força e de toda fraqueza, de toda razão ou falta de razão do
ser humano; no mundo [existe algo ou alguém] que constantemente livra o ser
humano, que o afasta apressadamente [desta ou daquela emergência], que por
ele chora à infinita distância e que, sorridente, está infinitamente próximo, con-
fortando e aconselhando; [existe alguém ou algo] que sempre e reiteradamente
acusa a criatura mas, também, sempre a perdoa novamente; [existe alguém ou
algo] que faz morrer mas também vivifica. [Este algo ou alguém] é invisível
mas fala e dá testemunho de si.
Este algo [ou alguém] pode ser percebido em forma caricata no pensa-
mento que Dostoiewski atribui ao mais questionável dos seus personagens o
qual, no fundo do lodaçal, se refere a seu patrão dizendo que este, algum dia,
ainda se dirigirá aos alcoólatras inveterados, aos pusilânimes, aos desavergo-
nhados condescendendo: “Sois porcos e semelhantes a animais, mas vinde a
mim, também vós”!
Ou então [podemos perceber o mesmo pensamento] na frase nada
edificante [quando analisada segundo a filosofia do mundo] que o grande ho-
mem de Deus que foi Lutero, pronunciou ao morrer afirmando que, na verda-
de, somos mendigos.
Tudo isto é verdadeiro e podemos dizer, em suma, que não há circuns-
tância ou situação vantajosa, nem algum pedestal mais elevado onde esta ou
aquela pessoa pudesse situar-se; não existe alguma “salvação oportuna” [à nossa
espera] nos desvãos de nossa vida não redimida. Não existe um suave arrebol

458
A Verdade 8, 12-13

de tarde amena que em alguma ocasião de nossa vida houvesse de surgir após a
tempestade; há somente a orientação que o próprio Deus, e exclusivamente ele,
dá ao ser humano: a perplexidade, a ameaça, a promessa, a insegurança e a
ulterior segurança final que, como reflexo da luz não criada envolve, por todos
os lados, as coisas criadas, anunciando o fim e também o começo da criatura,
transformando o interminável dessossego em interminável paz. Esta orientação
divina [qual roteiro de santificação], faz-nos sair de amenos abrigos ou incô-
modos esconderijos e nos compele à fé, para crermos em nossa redenção ou
nossa condenação, pois o tema da redenção somente pode ser abordado pela fé
por queda e “a paz de Deus que excede a todo entendimento”.
“Porquanto, se viverdes segundo a carne caminhais para a morte e, se
pelo Espírito deixardes morrer a empresa da carne, caminhareis para a vida”.
Todos desdobramentos da vitalidade humana, desde as suas formas in-
feriores até às mais altas, toda plenificação das nossas possibilidades, tanto as
negativas quanto as positivas, tudo quanto quer dizer “vida” com sentido bioló-
gico, é “segundo a carne” e está na sombra da morte. [Tudo isso] já começa a
morrer no instante de seu nascimento; é suprimido, [revogado] no mesmo mo-
mento em que é estabelecido; é condenado em sua retidão. [Todas manifesta-
ções de nossa vida terrena] estão na temporalidade e portanto têm o seu futuro
pelo que, já agora, estão no passado.
Morta está a palavra no instante em que anunciada ou escrita; morta está
a natureza quando entra em existência, vinda da não-existência”. Morta está a
história quando acontece aquilo que, evidentemente, não poderia acontecer.
Morto e anulado é todo movimento que chega a merecer essa designação.
Morta e liquidada está a personalidade no instante em que se reconhece,
ou é reconhecida pelos outros, como tal.
Se [acaso] pudermos, se precisarmos, se conseguirmos “viver” hoje ou
sempre “segundo a carne”, então convém que não nos esqueçamos que estamos
cavalgando um corcel que galopa sobre as espumas do mar: que estamos cor-
rendo ao encalço da morte!
Não podemos deixar de ver a mão de Deus levantada contra o que faze-
mos, ainda que nos seja permitida e até ordenada a fruição da realização plena,
sadia, retilínea, vigorosa, aperfeiçoada, da inclinação de nossa vitalidade, de
nosso “Eros”, tanto em seu sentido negativo quanto positivo, em todas suas
componentes, desde as mais rasas até as mais altas.
Embora a justificação que está imanente em nossa conduta (e que, eviden-
temente, poderia ser também condenação), seja o vapor, a eletricidade [a força
motriz] que nos impulsiona e que nos leva a realizar tudo quanto fazemos
— nosso respirar e até nossa prece, — não podemos deixar de perceber a última

459
8, 13 A Verdade

e abrangente restrição que está aposta não apenas ao que nos é proibido mas
acompanha, principalmente, o que nos é facultado e até ordenado.
Não podemos ignorar que será milagre se entre o que fizermos acaso
existir algum fruto do Espírito (Gal. 5, 22), algum fruto da luz (Efe. 5, 9) ou
alguma obra justificada por Deus.
[Esta conclusão de que será apenas por genuíno milagre que faremos
algo que seja aprovável por Deus vem do fato de que] a ética [aquilo que é
moral], se baseia exclusivamente na límpida vontade de Deus e jamais [pode
ser tida] como direito imanente à vontade humana [ou à nossa própria força de
vontade], por maior que ela seja. É por isto que, uma vez conhecida a vontade
de Deus, ela se manifesta na forma de crítica radical a tudo quanto fazemos,
fizemos ou faremos, tanto individualmente quanto coletivamente na sociedade.
Essa crítica jamais tem o aspecto de justificação e confirmação como também
nunca será contestação ou refutação ao que somos, pois “a inescrutável idéia de
liberdade afasta todas as configurações positivas” (Kant).
[A tradução inglesa transcreve assim o pensamento de Kant: “A idéia de
liberdade está além de nossa investigação porque ela barra o caminho a toda
representação positiva”].
Todavia não poderemos deixar de observar a mão que se levanta de fato
contra a totalidade das obras humanas; nem podemos olvidar de que é pelo
Espírito que devem cessar toda lide, todos negócios, práticas e ocupações do
“corpo”. Não se trata porém, de substituir a ética normal, positiva, por outra
negativa, de fuga ao mundo, de indiferença, de asceticismo, de revolução, ou
de espera [de contemporização?]; nem é o caso de adotar a ética de suposta
recuperação da perdida inocência paradisíaca, embora semelhante prática pos-
sa ser permitida e, aqui ou acolá, até ordenada como sendo uma parábola ex-
pressa no exercício e na montagem dessa semelhança.
Não podemos deixar de prestar atenção à solapação do edifício de nossa
existência, com todas as construções que lhe apusermos e superpusemos, ou
não constatar que treme violentamente o solo sobre o qual se erguem as santas
colunas dos pioneiros, dos primitivos cristãos e também dos homens da nature-
za e dos nobres anarquistas que, ao lado de Stinnes, Ludendorff e Hoelz, pro-
movem, felizes, os seus interesses.
[Parece que ao mencionar “homens da natureza” o A. se refere ao “natu-
ralismo” o que se confirmaria se o Hoelz citado logo após por Amo Holz, o
naturalista alemão dos fins do século XIX e começo do XX; os “nobres anar-
quistas” seriam aqueles que, semelhantemente ao General Ludendorff em 1920,
pretendem e pregam a destruição das instituições vigentes visando à implanta-
ção de ordem melhor.

460
A Verdade 8, 13-17

Para penetrar mais profundamente no pensamento do A. convém lembrar


que Stinnes foi um industrial progressista dos fins do século XIX e primeiras
décadas do seguinte, que soube promover seus próprios interesses (financeiros)
servindo à coletividade e seu país a seu modo. Quis transformar a Alemanha
em grande cartel, sua especialidade como organizador e planejador comercial].
É preciso ver e admitir a fundamental questionabilidade de tudo quanto
fazemos ou deixamos de fazer; a questionabilidade de nossa fragilidade e mor-
te [e esta], inclusive, como sendo o fim de nossa sabedoria terrena.
É sempre o mesmo quadro: agindo ou não agindo, procedendo desta ou
daquela maneira, é claro e evidente que nenhum ser humano, ninguém — nem
mesmo a pessoa mais humilde, a que tiver o espírito mais quebrantado, ou a
que for a mais direita, — tem o direito de cercear, limitar, ou “fazer morrer”
[quiçá mortificar], as “lides corporais” enquanto ainda em plena atividade.
Ninguém pode orientar sua atividade a uma direção diferente daquela
que conduz “naturalmente” à morte. [Ninguém pode tentar apressar esse cami-
nho — mudar o seu sentido, percorrendo atalhos ou desvios, seja por
autoflagelação, privações auto-impostas e martirizações semelhantes, seja pela
própria provocação da morte ou o suicídio].
É somente caminhando ao encontro da morte [em Cristo] que se vai ao
encontro da vida; [ganhamos a vida ao perdê-la, isto é, dando cotidianamente
lugar ao Espírito e não pela renúncia à faina de cada dia; não em contemplativo
nirvana “qual anacoreta em seu retiro”, qual monge em seu mosteiro, qual frei-
ra em sua cela, qual místico em seu misticismo, qual fanático em sua religião e
morte sacrificial!]
É da grande questionabilidade [de nossa vida] que brotam palavras, ações
e gestos que, a despeito de sua total perecibilidade e mortalidade, dão testemu-
nho da vida verdadeira. É somente dessa grande questionabilidade que emerge
a aptidão para ver tais testemunhas da vida: quem sabe, com olhos de descobri-
dor, as vislumbrando onde ninguém as percebe; ou também pode ser de manei-
ra vulgar, enxergando-as onde todos as vêem.
Haveremos de sublinhar, porém, que esta tão grande e frutífera
questionabilidade não é [necessariamente] uma atitude aceitável, recomendá-
vel ou justificadora, como também não o é a grande inquestionabilidade.
É pelo Espírito e somente pelo Espírito, que a carnalidade precisa mor-
rer para, nesta morte ser posta à luz da esperança e da vida.
“Esta representação meramente negativa e puramente exaltadora da
moral” (Kant) é a posição fundamental, (embora ela não seja um posicio-
namento!) a que somos levados pela sobre-excelente verdade, a verdade levada
e tomada a sério.

461
8, 14 A Verdade

Vs. 14 a 17 Porquanto aqueles que são movidos pelo Espírito de Deus, esses
são filhos de Deus. Porquanto não recebestes espírito de servidão, sob o
qual novamente serviríeis, em temor porém o espírito de filiação, no qual
exclamamos Aba Pai! O próprio Espírito é testemunha junto a nosso espí-
rito de que somos filhos de Deus. Se somos filhos, somos também herdei-
ros. Somos herdeiros de Deus e co-herdeiros com Cristo, tão certo quanto
sofrendo com ele, com ele seremos glorificados.

[Confrontar o texto acima com a tradução de Almeida, ligeiramente di-


ferente].
“Este é um texto consolador e excelente e não será suficientemente va-
lorizado mesmo se for escrito em letras de ouro”. (Lutero).
“Os que são movidos pelo Espírito de Deus, esses são filhos de Deus”.
A posição fundamental e crítica [a que somos levados pela sobre-exce-
lente verdade] que em sua negação questiona e põe em dúvida os nossos méritos
corporais e em sua afirmação, dá a esta mesma natureza a mais sublime das
esperanças, não é senão a realidade de que a criatura está nas mãos do Poder
que a impulsiona e este PODER é o Espírito de Deus. Esta é a verdade que
toma a criatura pelas raízes e não a deixa fugir nem para a direita nem para a
esquerda; não a deixa apegar-se nem ao SIM nem ao NÃO. A verdade que
assim agarra é o germe da morte que está em tudo quanto a criatura faz ou deixa
de fazer mas é também ela que deseja dar destinação sempre nova a tudo isso
que a criatura deixa de fazer ou faz. É a verdade que, com negação inabalável,
responde a toda pessoa que se apresente a questionar, quer o faça por atrevimento
ou por comodismo, lembrando-lhe do seu posicionamento positivo, o único a
respeito do qual se poderia perguntar e que por isso mesmo, não é questionável
nem pode ser posto em dúvida, pois se trata do Reino de Deus e da sua glória.
As oposições entre subjetivo e objetivo, entre autonomia e heteronomia, entre
racional e irracional, entre o aquém e o além, nada significam — nem podem
ser investigadas, quando estamos no ponto de sua origem e de seu alvo.
A verdade é a presença daquele que nos conduziu da morte para a vida:
ele quer e nós somos obrigados; esta é a situação real. É Justamente o nosso
desvinculamento, a nossa desobrigação para com o inundo temporal das coisas
e dos homens (8, 12) que constitui a nossa liberdade em Deus. Todavia, a nossa
liberdade em Deus é também o nosso cativeiro nele; nele, Deus! Portanto, tam-
bém aqui não se trata de questão de entusiasmo, de experiência mística ou de
sentimento de dependência.
“Ser movido pelo Espírito” é ser orientado, colocado na posição de quem
se move do poente para o nascente, da morte para a vida, [e isto se dá] mediante

462
A Verdade 8, 14-15

a ressurreição de Jesus Cristo de entre os mortos. “Ser movido pelo Espírito” é


dar ocasião a que o Santo Espírito exerça o seu mister de Juiz e Consolador; é
ter a verdade como A VERDADE e isto, em qualquer circunstância.
Reconhecemos que somos filhos de Deus, justamente porque somos
“movidos pelo Espírito”; porque estamos sob o ataque e sob a bênção da verda-
de; porque estamos nas mãos do Poder.
Identificar-me como filho de Deus é, em qualquer hipótese, o mesmo
que eu afirmar que Cristo é o Filho de Deus (8, 3) pois ao apresentar-me dessa
maneira não me refiro a mim mesmo; jamais [tenho em mente] esta criatura
que sou neste mundo porém, sempre a outra, a nova, a invisível; refiro-me ao
ser humano que está perante Deus e vive em Deus; quero dizer, pois, Cristo em
mim! (O inaudito paradoxo dessa afirmação deveria, por si só, ser suficiente
para protegê-la contra a afoiteza com que determinada teologia prática se
compraz em transformar afirmações cristológicas em assertivas antropológicas).
[A tradução inglesa escreve assim: “O paradoxo sem paralelos desta
asserção deveria protegê-la contra o processo de humanização pelo qual teólo-
gos práticos, — por demais práticos — costumam glosar as afirmações
cristológicas”].
O que eu quero dizer é que não encontro outro nome para a fonte do
Poder em cujas mãos vejo a reversão da minha existência da morte para a vida,
senão Deus. Ele é o desconhecido, o Inescrutável, o Oculto, o Estranho; Ele é o
Senhor, sobre a vida e a morte. Ele mesmo é a Verdade, que É e QUER; a
Verdade pela qual eu sou constrangido, obrigado; e eu, que simplesmente te-
nho de sujeitar-me a este Senhor, nada mais quero nem sei (na verdade, não eu
mas Cristo em mim!); sei apenas que não sou seu servo, nem seu estranho mas
— SEU FILHO.
Como poderia eu ser movido pelo Espírito, como poderia experimentar
a infinitamente doce e também amarga aflição que a verdade me prepara, se o
abismo entre o aquém e o além não houvesse estado fechado na sua origem, se
eu não houvesse sido originalmente, participante da verdade, não fosse filho de
Deus? Sou do mesmo gênero do Criador do ser humano!
Isto é o que acontece quando somos “conduzidos pelo Espírito”. Porém, o
Espírito é o daquele “que acordou Jesus de entre os mortos” (8, 11). Aqui não há
lugar para experiências de românticos, nem para entusiasmos por rapsódias; não
há elementos para análises psicológicas nem temas para narradores de contos.
Nada, absolutamente nada podemos tirar dessa “célula germinal”, dessa emana-
ção de Deus, que possa prestar-se para explicar ou para permitir supor a existên-
cia de uma continuidade, um prolongamento, entre o ser Divino e nosso ser. Não
existe uma vida que jorra borbulhante de Deus e tem continuidade em nós.

463
8, 14-15 A Verdade

A movimentação da criatura humana, pelo Espírito, na qual se verifica a


filiação a Deus, implica em “Fim” e “Começo”; Morte” e “Vida”, “Juízo” e
“Justificação”. Estes acontecimentos ocorrem aqui e são a resposta à pergunta
existencial que a religião, em sua culminância, apresenta como insolúvel.
Continuamos pois a existir neste mundo fora do Reino? Continuamos
cativos, a despeito de nossa liberdade em Deus? — Sim! Enquanto pertencer-
mos a este mundo onde, na melhor das hipóteses, somos [apenas] pessoas reli-
giosas! [Todavia, a resposta poderá ser] — NÃO! Se nós, (maravilha das mara-
vilhas), formos idênticos ao Homem Novo, em Cristo: Verdadeiro homem e
verdadeiro Deus”.
“Porquanto não recebestes um espírito de servidão sob o qual novamente
serviríeis em temor, porém o espírito de filiação no qual exclamamos Aba, Pai!”
A “servidão no sentido do Espírito” (7, 6), no qual estamos quando somos
invisivelmente movidos por ele, não é escravidão; nela não existe a diversidade
[de condição que caracteriza a escravidão do mundo], não há oposição entre
Deus e nós, entre o Criador e a criatura. Por conseguinte, nessa nova servidão não
existe medo, mesmo porque ele foi suprimido, expulso e substituído pela plenitu-
de do amor. Esta nova servidão traz tranqüilidade, clareza e paz que nos permi-
tem avaliar a sua natureza e perante as quais a tranqüilidade, clareza e paz que a
criatura procura e encontra [neste mundo] são pêlago undoso e revolto.
[Na servidão segundo o Espírito] foi suprimida a cruenta pressão [que
pesa sobre a servidão do pecado] porque o infinito suprimiu tudo o que é finito;
também foi suprimido o comprometimento que tudo o que é finito representa
ante o que é infinito. Cessou, desapareceu a suspeita e enfadonha aprovação da
burguesia juntamente com sua desagradável, sinuosa e venenosa desaprova-
ção; ficou suprimida a necessidade do insensato cumprimento das possibilida-
des [humanas] e desapareceu o significado [aliás] vazio do impossível; cessou
a debilidade da vida e o poderio da morte. O ser humano deixou de ser apenas
humano e Deus deixou de ser unicamente divino; foi, portanto, suprimido de
nossa vida o duplo aspecto que se apresenta, inevitavelmente e a todo instante
temporal, sob a porta estreita da negação crítica. E o que mais, se não essa
inevitável duplicidade, poderia levar-nos ao medo — medo ante a problemática
e o enigma de nossa existência e, em última análise, medo perante Deus?
O Espírito que recebemos ao sair da morte para a vida é a supressão [o
cancelamento e a anulação] desta duplicidade. A nova criatura, Cristo em nós,
prevalece em sua singularidade [na unidade da criatura com Cristo], na vitória
da vida sobre a morte, na unidade do ser humano com aquele que corta todos os
nós górdios, — o próprio Deus! Somente Deus! Já agora a criatura não está
mais como estranha, excluída e trêmula [perante Deus], dominada e escravizada

464
A Verdade 8, 14-15

por cegos ([ética] “heteronômica”); nem, tampouco, precisa ela, ao rebelar-se


contra superstições e fanatismos, profundamente ferida em seu amor próprio,
preocupar-se nervosamente com o paládio da cultura moderna, ([ética]
“autonômica”). Agora [tendo recebido o Espírito], a criatura se apresenta [a
Deus] como o filho que ouve a voz do pai, esquecendo que Deus é totalmente
diferente dela, na realidade já esqueceu antes, que ela mesma é totalmente dife-
rente, já agora a criatura nada sabe e nada mais quer, além dessa bem-aventura-
da luz: o próprio Deus! Somente Deus!
Este “espírito de filiação” esta nova criatura que não sou eu, é o meu EGO
existencial invisível. É daí que sou conhecido e movido, vivificado e amado.
À luz deste meu ego invisível vivo qual sou no presente mundo, na mi-
nha corporalidade; vivo no reino da duplicidade, sob a porta estreita da nega-
ção crítica [total], no ambiente onde o temor do Senhor não é apenas o princí-
pio mas, tem de ser também o fim da minha sabedoria. Vivo no escuro, mas não
sem o reflexo dessa luz não gerada; como prisioneiro de Deus, todavia, tam-
bém liberto por Ele; servo, porém como filho; suspirando, contudo bem-aven-
turado. Vivo clamando àquele que vejo como o Desconhecido, o Inescrutável,
meu inimigo o meu dominador; clamando àquele que vejo como o meu Juiz e
minha morte; clamando em profunda aflição e grande temor, porém, excla-
mando “Aba! Pai”!
“Eis aqui descrito o poder do Reino de Cristo”, a obra apropriada e o
serviço elevado e certo que se deve prestar a Deus para que o Santo Espírito
opere nos crentes” (Lutero).
Porventura o meu clamor que, como expressão derradeira e extrema das
minhas possibilidades humanas chega perante Deus na forma de Religião, será
agradável a ele e então, por ele justificado, não seja considerado como realida-
de suprimível, anulável, isto é, [pode acontecer] que minha religião seja, tam-
bém, fé?
Quem se atreve a confirmar tal possibilidade, ousadamente, quando to-
das as conseqüências da religião, no mundo, sugerem o contrário? E quem há
que se atreva a negá-la pelas conseqüências que observa?
“Deus tomou a forma carnal: quem há que entenda semelhante misté-
rio? Eis agora aberta a porta da vida, através da qual podemos vê-la” [Tersteegen].
Na realidade, esta é a porta do descerramento. Se Tersteegen e seus se-
guidores não quiseram dizer mais do que a frase realmente encerra, então eles
têm razão e a polêmica e crítica de que são alvos podem cessar, pois é certo que
no último clamor humano, [na religião], quando nossa atividade se torna tênue,
extremamente tênue, poderá, quem sabe, transparecer a glória de Deus, como
também, poderá acontecer que ela seja destruída [para nós].

465
8, 14-17 A Verdade

Que a verdade é a verdade e que somos co-participantes originais dela,


a própria verdade nô-lo diz.
“O próprio Espírito testemunha junto a nosso espírito, de que somos
filhos de Deus”.
Não se trata de um espírito [qualquer], de entusiasmo, de impulso, ou de
algo demoníaco, nem de uma “hora de Damasco” porém, como “filhos de Deus”,
somos levados, pelo Espírito, ao conhecimento do “além” do mundo visível.
O Espírito [que assim nos dirige], não é racional nem irracional, mas é o
LOGOS, a origem e o fim, tanto da racionalidade como da irracionalidade.
Somos guiados pelo próprio Espírito — Jesus Cristo —, em sua plena
unicidade e existencialidade, conduzindo-nos da vida para a morte e da morte
para a vida; por Jesus Cristo que, abrangendo o céu e a terra, atesta de Deus
perante nós e de nós perante Deus; Jesus Cristo, que é a soberania divina que
existe desde sempre, desde antes que dela tivéssemos qualquer [noção ou] ex-
periência e que subsistirá, mesmo que nunca venhamos a provar dela.
“O Espírito dá testemunho”. Não há necessidade de êxtases e
iluminamentos; nem de inspirações e intuições. Felizes os que são dignos de
tais coisas porém, ai de nós se por elas esperamos; ai de nós se não perceber-
mos que tais experiências são acessórias e apenas partes do todo.
Tudo o que acontece conosco e em nós é apenas resposta ao que o Espí-
rito diz. Somente como resposta pode ter força, ser verdade e vida, o que o
nosso espírito fala. Além, sempre além dessa força dessa verdade e dessa vida,
fala o próprio Espírito, fala Deus. Fala daquilo que é incomensuravelmente
maior do que o máximo que nosso espírito pode falar. Fala do que não somos:
fala de nosso ser, como filhos de Deus!
“Se somos filhos... “ Nós, filhos de Deus! Retenhamos essa frase em
nossa mente e meditemos sobre a total impossibilidade, sobre [o irreal], sobre o
paradoxo, sobre a total invisibilidade daquilo que esta proposição afirma.
Lembremo-nos de que, ao ousarmos aceitar esse atributo [de filhos de Deus]
estamos dando o passo inicial, maravilhoso, criativo, que Abraão deu: o passo
da fé; este passo transpõe o abismo que separa o homem velho da nova criatura
e só o podemos dar incentivados por Deus.
Nós, filhos de Deus! Isto não se pode dizer assim, tão simplesmente!
Afirmar tal coisa, ou é a exaltação dos redimidos ou é blasfema prosápia;
todavia, seja este ou aquele o caso, nossos lábios já o disseram quando excla-
mamos Aba! Pai!, de cujo teor nunca tivemos, não temos nem teremos conhe-
cimento. Ao assim exclamarmos perpetramos o que ao mortal é defeso, situ-
ando-nos “como se” tivéssemos visto o que nenhum olho viu e houvéssemos
ouvido o que nenhum ouvido ouviu. “Como se” o nosso coração houvesse

466
A Verdade 8, 17

recebido o que nenhum coração humano recebeu — o que, contudo, não po-
demos negar, porquanto, estando no abismo, os altos vieram ao nosso encon-
tro; no pecado, fomos justificados; na morte encontramos a vida, e em nós
vive o próprio Cristo.
É isto o que Cristo preparou para aqueles que o amam?! Quem pode
enfileirar-se entre os que amam a Deus e para os quais ele preparou [tudo] isto?
[Todavia] já estamos nessa fileira e já ousamos exclamar [Aba! Pai!]!
[Portanto,] existe um “ver” e um “ouvir” que elimina todas perguntas (e
não nos estamos referindo a uma experiência, [a evento material em nossa vida]
); [este “ver” e “ouvir”] é apenas memento da decisão já tomada.
Sofrimento, culpa, destino, em sua interminável e tétrica realidade huma-
na, que se revela nas mui duvidosas expressões faciais e nas biografias dos
indivíduos, na loucura de nossas aldeias, na tirania banal de nossas mais primiti-
vas necessidades e na ingenuidade ideológica de nossa ciência e nossa consciên-
cia, no espanto do nascimento e da morte, no enigma da natureza que nos fala
desde qualquer casca de árvore ou de um fragmento de rocha, na futilidade dos
ciclos da história universal, na quadratura do círculo e no par de paralelas que
nunca se cortam; em tudo isto existe uma luz, uma voz. Quem houver, ainda
que por uma só vez, visto essa luz ou ouvido essa voz, — não psicológica,
sociológica, histórica ou cientificamente, nem por nobreza ou por
academicidade, de forma ponderada e meditada, sem envolvimento [emocional]
pessoal, mas também não piedosamente, ou por algum iluminamento religioso,
— porém existencialmente, esse tal não pergunta mais, porém ouve e vê!
Essa existencialidade há de ser genuína; jamais poderia ser existência
sorrateira ou astutamente condicionada para apresentação de um todo harmo-
nioso e providencial.
Existencial significa plena seriedade; significa ter sido arremessado da
sela ao chão; existencialmente quer dizer ter ouvido e visto sem qualquer pro-
blemática, de maneira desinteressante e inevitável, incontornável, sem qual-
quer possibilidade de salvação. [Existencialmente quer dizer] ouvir e ver com
os ouvidos e olhos de Ivan Karamazov.
— O que?
—A si mesmo!
— Como aquele que crê, ama e espera?
— Não! Mil vezes não! Porém [ouve e vê] a si mesmo em face ao total-
mente impossível, ante a absoluta contradição; decididamente não se considera
digno de ser justificado por Deus e jamais pensará que poderia ser entronizado
em algum conceito divino. Vê-se em confronto com a total realidade de sua
existência [no mundo] sofredor, subjugado, perguntando sem alcançar resposta;

467
8, 17 A Verdade

sem poderio, quer seja no protesto, quer na rebelião; totalmente incapaz de


fazer qualquer outra coisa que não clamar ou calar, contudo — [e esta é a dife-
rença], vê-se também como OUTRO, afinal e enfim — ou melhor — de início
e em primeiro lugar, separado desse conjunto (do qual não pode, todavia, iso-
lar-se!); vê-se colocado na liberdade e na superioridade de que gozou original-
mente, em contraposição a esse conjunto (no qual está totalmente emaranha-
do!). Ele se vê na inconcebível situação de dizer NÃO ao mundo, (“NÃO” que
apenas pode confirmar com seu protesto e sua rebelião!); ele se vê como filho
de Deus!
O que aconteceu?
No meio desse “ver” e “ouvir” percebe-se claramente a exclamação,
ABA! PAI!, mesmo que a criatura jamais tivesse ouvido falar de Deus ou [até
mesmo] se houvesse blasfemado dele.
Sob o espanto e horror que a criatura sente ante si mesma nasce o ho-
mem novo, a criatura de um mundo novo; dá-se a plenitude da teodicéia ante a
qual tudo mais é apenas escárnio e zombaria. Deus mesmo justificou-se peran-
te nós e, assim, justificou-nos para ele.
Falando nessa voz e luzindo nessa luz, Deus realizou o ato existencial
uma vez por todas, aceitando o ser humano como seu filho.
Havendo Deus realizado [efetivado] esta existencialidade definitivamen-
te, “somos também herdeiros; herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo”;
herdeiros da promessa semelhantemente a Abraão (4,15) e, portanto, herdeiros
do mundo tornado bom e abençoado por Deus; herdeiros da vida eterna que se
tornou invisível, indescritível, irreal e impossível pela ação do pecado; herdei-
ros do “ser”, do “ter” e das obras do próprio Deus. Vivemos carnalmente, [to-
davia] aspiramos e esperamos a ressurreição e o novo corpo, que foi predito; a
vida que agora e aqui vivemos desaparece no reflexo dessa esperança da qual é
cópia e testemunha, referindo-se a ela e a tendo por alvo. A vida que aqui vi-
vemos é qualificada pela sua destinação imaterial, invisível e isto sem a mínima
influência de qualquer imaginável alteração ou modificação da presente rea-
lidade.
Se com Cristo formos filhos de Deus somos também herdeiros com ele:
somos herdeiros de Deus que está além do SIM e do NÃO, do Bem e do Mal,
da Vida e da Morte; somos vencedores porque Deus o é; a seu lado em sua
vitória, estamos nós como seus filhos, como aqueles quais [ainda] não somos.
Todavia [embora] sendo quais [neste mundo] somos, contemplamos a nossa
glória eterna.
Acaso já dissemos demais?
Sim!, e também de menos.

468
A Verdade 8, 17-25

Como não haveremos de dizer demais se falamos de nossa esperança e


de menos quando falamos de sua realização? A verdade está naquilo que Deus
fez, faz e fará e não no que dissermos a esse respeito. Lembremo-nos, pois, que
somos “herdeiros de Deus” tão certamente como “se sofrermos com ele, tam-
bém com ele seremos glorificados”. A obra divina é isto: a cruz e o sofrimento.
Não porque o nosso sofrimento seja maior ou menor, ou porque tenhamos mais
ou menos paciência para suportá-lo ou, por causa do grau de nossa coragem
para enfrentá-lo, como se o sofrimento ou a maneira de nele nos conduzirmos
nos tornasse, só por isso, participantes da glória eterna! “Sofrer com ele” signi-
fica sofrer com Cristo, estar com Cristo perante Deus, conforme também esti-
veram Jeremias e Jó: viram a Deus nos fenômenos da natureza; reconheceram
a Deus como sendo a luz nas trevas; amaram a Deus, embora sentissem apenas
a dureza de sua mão.
Aquilo que, acaso, suportamos pessoalmente é apenas “lembrete” do
“sofrimento do tempo presente” (8, 18) que envolve os céus e a terra, ainda que
nossa aflição, nosso sofrimento, fosse originado pelo interesse em alguma cau-
sa nobre, por amor à cristandade, por exemplo, pois nenhuma “causa boa” é
causa de Deus. [Entendo que o A. quer dizer que uma “boa causa” é sempre
humana e material, portanto, perecível e não divina.]
A vida do ser humano no “presente século” (que não é a vida eterna mas
a traz em seu bojo), está sob a sombra do sofrimento, que a envolve qual manto
escuro, que a ameaça como espada sacada da bainha, qual paredão em vias de
ruir. Nestas condições nossa vida é duvidosa e a incerteza que a acompanha é
inarredável, pois ela é o elemento constitutivo do caráter temporário da vida
humana.
Os sofrimentos que a limitação temporal de nossa existência nos impõe,
a estreiteza e a apatia de nossa condições naturais, as dores pequenas e grandes
que temos de suportar penosamente “por serem coisas desse mundo”, são som-
bra de nossa finitude substancial.
O trauma que sofremos por causa das nossa limitações, e que constata-
mos ora aqui ora acolá, é o sofrimento [maior] dentro de nosso multiforme sofrer.
Haverá de nos ser oculto que a própria pergunta que DEUS faz ao ser
humano, prepara a resposta que Deus tem para nós?
— No Espírito, isto não nos pode ser ocultado. No Espírito podemos
conhecer o sentido de nossa vida, anunciado pelo sofrimento. No Espírito, é
possível que o sofrimento suportado conscientemente se transforme no passo
[dado em direção] à glória de Deus.
Este “não-ocultamento”, este conhecimento de Deus [que nos advém]
no sofrimento, é a obra de Deus em nós e, ao entendermos assim, damos lugar

469
8, 18-25 A Verdade

a que a verdade seja efetivamente a Verdade. [Este entendimento] é o testemu-


nho do Espírito e do Poder que faz de nós “filhos de Deus” e, portanto, herdei-
ros de sua glória.

Vs. 18 a 25 Porquanto eu considero que os sofrimentos do tempo presente de


nada valem em comparação com a glória que será manifesta em nós. A
atenção da criatura [da criação, segundo Almeida] aguarda a revelação
dos filhos de Deus. Pois a criatura foi sujeita à fatuidade [o original per-
mite, também, que se escreva “à vacuidade” e a tradução de Almeida es-
creve que “a criação está sujeita à vaidade”) — não por sua própria von-
tade, porém por quem a sujeitou, em esperança, porque também a criatura
será libertada da servidão da corrupção [Almeida escreve, “a criação
será redimida do cativeiro da corrupção] para a liberdade na glória dos
filhos de Deus.
Porque sabemos que a criação toda geme em uníssono e está conjunta-
mente em angústia até o tempo presente. E não somente a criação mas
também nós que temos as primícias do Espírito, gememos em nosso ínti-
mo, aguardando nossa filiação, [nossa adoção de filhos — Almeida] a
redenção de nosso corpo. Porque somos salvos pela esperança. Ora, espe-
rança visível não é esperança (pois o que alguém vê, por que precisa esperá-
lo?). Porém, se esperamos por aquilo que não vemos) o esperamos com
perseverança.

[Os vs. 24 e 25 são registrados por Almeida, de forma bastante seme-


lhante. A tradução inglesa escreve “paciência”, conforme Almeida, e não “per-
severança”. Embora me pareça que a palavra usada por Barth — “erharren”
deva ser entendida como “perseverança”, também se poderia escrever “paciên-
cia”. No entanto Barth tece breve comentário de pé de página sobre o final do
versículo 24 em que justifica a maneira de dizer que ele considera melhor sin-
tonizada com o final do versículo 25].
“Eu considero que os sofrimentos do tempo presente de nada valem em
comparação com a glória que será manifesta em nós”.
“Eis que agora ele começa a consolar os cristãos em sua tão grande
aflição e fala como quem tem experiência e está seguro do que diz e o faz como
se contemplasse este nosso mundo com olhos baços ou através de um vidro
pintado porém, vendo o mundo de além com os olhos bem abertos. Vede como
ele volta as costas para este mundo e volve a face à revelação futura, como se
em parte alguma da terra houvesse infelicidade ou lamento porém somente a
mais genuína alegria. Faz da totalidade do sofrimento do mundo, uma gotícula,

470
A Verdade 8, 18

uma fagulhasinha; porém da glória do além, que devemos esperar, faz um mar
infinito, uma enorme fogueira”. (Lutero)
O sentido desta maneira chocante de olhar as coisas humanas requer
explicação. É evidente que aqui não se trata de aprofundamento ou de exaltação
exagerada do modo usual de ver as coisas, nem de intencionalmente ignorar,
atenuar ou dar sentido consolador ao sofrimento neste mundo — (algo como a
apresentação de compensações [ou a sugestão da existência de recompensas]
na harmonia do além). Semelhante interpretação não suportaria, sequer, uma
simples dor de dente, para não mencionar considerações mais sérias sobre o
nascimento, a doença e a morte, a fome e a guerra, os destinos de pessoas e
povos [coisas que ocorrem] a todo instante e durante toda nossa existência
humana, com brutal e fria realidade. Por trás do menor ai e, principalmente, por
trás das grandes tormentas de nossa vida está chamejante a problemática [a
ambigüidade] de sua finitude. Como iremos ao encontro dela? “Curto-
circuitante” e mentiroso é todo consolo e toda resposta que procurarmos dar
pois dela procedemos e dela não nos livraremos, nem mesmo pensando na
existência de infindável harmonia divina, além de nosso mundo, porquanto o
infindável que pudermos imaginar, se mede segundo a nossa finitude e, portan-
to, é ele mesmo, infindável finitude. A harmonia que postulamos é relativa à
nossa desarmonia; é a “Fata Morgana” [a miragem] de nossa peregrinação pelo
deserto. Aquele Deus de quem esperamos a paga e a compensação, em um
“além” melhor é o NÃO-DEUS; é o Deus deste mundo, criado à imagem e
semelhança do homem e, portanto, sujeito à nossa crítica e até mesmo a ser
negado quando for enfrentado por algum Ivan Karamazov.
Todavia, a problemática de nossa finitude caminha para solução absolu-
ta e não relativa e está acima de nosso pensamento: ela se dirige ao Deus Verda-
deiro, ao Deus Desconhecido; ela busca o seu consolo perante aquele para quem
os sofrimentos do tempo presente “não pesam na balança” porque o seu conso-
lo é o além que excede a tudo quanto é incomensurável neste mundo.
Para sermos consolados precisamos, em primeiro lugar, admitir que não
temos consolação; se quisermos oferecer consolo, precisamos reconhecer que
estamos todos fartos de consoladores. [A tradução inglesa escreve que “preci-
samos reconhecer que nosso consolo é vão”.].
“Por isto precisa o Espírito Santo ser Mestre-Escola e mandar o confor-
to para dentro de nosso coração”. (Lutero).
O consolo vem mediante a adoção de nova forma de contabilidade para
nossa vida. (Já fizemos uso dessa expressão tão fria em outra parte desta obra
(3, 28 e 4, 3) chamando atenção ao fato de que nessa nova escrita não se trata de
maneira alguma, de introduzir conceitos que, de certa forma, pudessem ser

471
8, 18 A Verdade

anexados aos diferentes modos de ver da humanidade.) Esta contabilidade tem


característica de súmula geral de todos os modos de ver do mundo, lançando
esse resumo numa conta que só Deus estabelece. E a consideração “SUB SPECIE
AETERNI”, a apreciação vinda de Deus, que jamais pode ser descrita como
obra humana pois é obra da fé e portanto, apenas pode ser definida como obra
de Deus.
Se pretendemos cooperar com Deus ou se quisermos ver como ele vê,
jamais chegaremos ao resultado (à conclusão) de Paulo mas, inevitavelmente à
posição de Jó antes de Deus lhe haver falado “desde um remoinho”.
Se eu disser “conto com Deus”, eu escondo, nessa fórmula muito batida,
o salto absoluto [da fé]; a verdade, que não pode ser formulada deve ser procu-
rada no fato de que Deus conta comigo; esta realidade se dá, se permitirmos
(não nós, porém...) que a verdade seja realmente a verdade; se dermos ainda
uma vez, não nós...) testemunho do Espírito e do [seu] Poder; se apreendermos
a obra de Deus na interrogação e na resposta da cruz (8, 17, segunda parte).
Se assim procedermos veremos o tempo em que vivemos e que caracte-
rizamos como o “presente século”, qual mar das realidades do mundo invadin-
do e cobrindo a ilha da verdade que todavia, permanece absolutamente intacta,
inalterada sob a superfície mal coberta.
A verdade é o “agora” (3, 21), [o instante presente, o momento crítico,
decisivo] quando a criatura se apresenta em sua nudez, perante Deus. Este ins-
tante não é um ponto ao lado de outros mas é o ponto de onde viemos e que não
tem expansão [nem extensão]. Esse ponto é Jesus Cristo, crucificado e
ressurrecto. Tudo quanto existiu antes, existe agora ou existirá depois desse
instante crítico; tudo quanto circunda esse ponto, constitui o tempo.
Neste ponto antes do qual tudo é passado e após o qual tudo é futuro,
surge o “tempo” como negação da eternidade; a este tempo designamos por
[“presente século” ou] “tempo presente”, pelo que ele oculta e pelo que indica;
por aquilo pelo que ele é medido e sem o que ele não existiria.
[Em outras palavras: é em Cristo e por Cristo que definimos o que cha-
mamos “presente século”: este tempo material que oculta de nós a glória de
Deus — a eternidade — cuja existência, porém, indica ao atestar que somos
mortais, carentes dessa glória.
Cristo, crucificado e ressurrecto é o padrão de referência pelo qual afe-
rimos a má qualidade dos dias em que vivemos; sem ele, sequer teríamos noção
da presente temporalidade (por falta de contraste com a eternidade.)].
Que efetivamente é assim, que o tempo em que vivemos esconde em si
a eternidade e também a testifica, que fala dela silenciando a seu respeito, isto
sabemos e reconhecemos se, por força da obra de Deus em nós, por força da

472
A Verdade 8, 18

pergunta e da resposta que nos vêm da cruz, temos nossa origem no AGORA
absoluto e presente; se Deus, aqui, manifestamente conta conosco e, assim, nos
põe em condições de [podermos] contar com ele.
[Parece-me que poderíamos interpretar o pensamento do A. dizendo que,
para a criatura humana entender que o tempo presente testifica a eternidade é
preciso que ela haja passado da morte para a vida; que ela se tenha confrontado
com Deus no instante crítico de sua aceitação de Cristo; que tenha visto e reco-
nhecido a obra de Deus na morte e ressurreição de Jesus e assim se haja con-
vencido da questionabilidade de sua existência, de seu sofrimento e sua conde-
nação final e haja, também, visto na morte e na ressurreição de Jesus a resposta
divina que consiste na justificação e vida eterna que Deus assegura a todo aque-
le que crê].
Vemos o transcorrer da nossa vida à sombra do Dia de Jesus Cristo, que
ainda não raiou mas está infinitamente próximo. Vemos o desenrolar do tempo
à sombra do “momento presente”; vemos as coisas humanas tomarem o seu
curso à sombra de Deus. Se formos guiados pelo Espírito (8, 14) precisamos
exclamar Aba! Pai! (8, 15); precisamos legitimar-nos como filhos, ou melhor.
Somos legitimados como filhos de Deus (8, 16) e, portanto, herdeiros de sua
glória. (8, 17).
E agora, novamente a questão: nesta conjuntura de nossa vida temporal,
como fica o imenso e incontornável problema do sofrimento? Evidentemente
ele não impede nem mesmo perturba o nosso acesso à glória de Deus, que se
abre no instante crítico, nem poderia, para tanto, “pesar na balança”; e não
pode mesmo influir porque é justamente o sofrimento — o sofrimento consci-
ente — que, no Espírito e por Cristo Jesus, constitui o portal do conhecimento
e da redenção. (E se não assim, onde é que Deus conta conosco? Onde se justi-
fica ele, perante nós? Onde nos ensina, o seu Espírito, a clamar Aba! Pai!?
Onde se evidência que a temporalidade é a negação da eternidade? Onde se
choca o ser humano com a limitação que lhe é imposta? Onde é que se demons-
tra o testemunho e o poder do Espírito, se não na obra de Deus pela qual nos faz
co-participantes do sofrimento — quer dizer — estabelece a nossa afinidade, o
nosso parentesco com Cristo (6, 5) e assim nos acolhe [e recolhe] na invisível
liberdade e glória da nova criatura?)
Os sofrimentos “do presente século” não pesam na balança porque eles
já foram pesados em Jesus Cristo; porque eles nem são significativos para nos-
sa presente vida, a não ser como sinal de suas limitações, ou melhor [eles mos-
tram o limite, a barreira extrema, onde se dá] a supressão do sofrimento pela
vida eterna, pois o tempo no qual vivemos e sofremos, o tempo presente, é o
tempo em que se nos revela a glória de Deus, justamente no sofrimento.

473
8, 18 A Verdade

A revelação da glória de Deus é tão forte no mistério do sofrimento e


justamente na dor, que longe de nos esquivarmos de olhá-la por amor a ele,
precisamos considerá-la como um passo no movimento que conduz da morte
para a vida; temos de olhar à dor como ao ponto onde Cristo pode ser visto.
Passar ao largo da dor é passar ao largo de Cristo. Perguntar por que
sofremos é o mesmo que ignorar a questão que nos é imposta: [A pergunta que
nos é feita desde a cruz; não exatamente “o que fazes tu por mim”, mas “o que
hei de fazer de Cristo?”].
Responder que não entendemos o sofrimento, que não o suportamos,
que não o dominamos, que não o podemos tornar frutífero [útil], seria ignorar
a resposta divina. [Vinde a mim... eu vos aliviarei. Eu sou a ressurreição e a
vida.]. Esta resposta nos é dada na realidade da negação [que o sofrimento
representa]. [A tradução inglesa escreve que a resposta de Deus seria ignorada
“porque ela é dada, precisamente, em nossa incapacidade”].
Aqui está o segredo e a revelação da razão do sofrimento: Deus quer ser
e é Deus e neste seu querer e ser, precisa ser conhecido e amado por mim.
[Deus quer ser e é nosso Pai].
O filho de Deus não desvia o seu olhar do sofrimento e nem pergunta ou
responde isto ou aquilo, porque Deus já enquadrou a pergunta e a resposta e ele
ouve a voz do Pai; no sofrimento ele ouve a voz da verdade que está na raiz de
todas perguntas e respostas humanas.
A criatura “quer ver todas as coisas até desesperar-se” (Nietzsche) por-
que é no desespero que está a esperança: AVE CRUX UNICA SPES MEA!
“Assim, pois, queres ser co-herdeiro do Senhor Jesus Cristo, ser seu
irmão e ser igual a ele, mas não queres sofrer com ele, então ele, certamente, no
dia novíssimo, não te reconhecerá nem como cooperador nem como irmão mas
te perguntará onde tens tua coroa de espinhos, tua cruz, teus cravos e teu opró-
brio; se foste motivo de horror para todo mundo conforme ele próprio e todos
os seus membros [ou seguidores] o são, desde o princípio do mundo. Se não
puderes exibir estas coisas, também ele não poderá tomar-te por seu irmão!”
(Lutero).
“Os filósofos antigos buscavam a verdade e a felicidade com todas suas
forças, todavia, um axioma malévolo da natureza diz que jamais alguém en-
contrará aquilo que precisa procurar. Contudo, é possível que alguém que veja
a inverdade em toda parte e que espontaneamente se irmane à infelicidade, em
vez de desilusão, encontre algo diferente, um milagre: algo inexprimível, algo
de que a verdade e a felicidade são apenas quais imagens idolatras; a terra
perde a sua ponderabilidade, os eventos e poderes do mundo tornam-se irreais
quais sonhos e, como em claro entardecer, a luz se espalha em todo seu redor.

474
A Verdade 8, 18-19

Esse tal se sentirá como se estivesse acordando de sonho cujas nuvens flutuan-
tes ainda o envolvessem. Essas nuvens também se dissiparão: então será dia
claro” (Nietzsche).
Cegos e mudos, por isso mesmo vendo e falando; sem perguntas e sem
respostas e justamente por isso, perguntando e respondendo; sofrendo e, assim,
triunfando: é assim que os filhos de Deus reconhecem e amam seu Pai, pois “a
sua glória será revelada neles”. SERÁ; esta é a grande carência. [A tradução
inglesa escreve que “esta é a nossa grande miséria”], mas é, também, a esperança
infinitamente maior. Mais uma vez, o FUTURUM RESSURRECTIONIS nos
lembra que em tudo [dito aqui] falamos de possibilidade divina e não humana.
“Pois a atenção da criação aguarda a revelação dos filhos de Deus”.
Tudo o que é temporal, toda criação e todas coisas testificam que, verdadei-
ramente, o tempo em que vivemos é a ocasião do “agora” divino; que este tempo
traz em seu bojo um futuro eterno, vivo, que ainda não veio à luz. Esta é a verdade
da qual tudo o que é temporal, toda criação e todas coisas dão testemunho.
Para onde há de a criatura humana, na sua inextinguível preocupação a
respeito de si mesma ou em sua insaciável aspiração por aquilo que ela não é,
volver os olhos sem encontrar outros, igualmente ansiosos, quando não ainda
mais ansiosos, a lhe interrogarem?
Nem por um instante, sequer, pode a criatura duvidar que está num mundo
onde todos sofrem.
Se a criatura sofrer por ter consciência de um mundo interior, invisível,
que ela pressente ao menos como problema em dura oposição ao mundo exte-
rior, totalmente outro, estranho, diferente, — vendo [esses dois mundos] sepa-
rados porém lado a lado e um contra o outro, — sentindo que o mundo exterior,
por demais conspícuo, vem complicadamente, prepotente, ameaçador, hostil
ao seu encontro, ela não pode ignorar por muito tempo que, também lá fora,
não existe imediação; [não existe a ligação direta com Deus]. [A tradução in-
glesa escreve que “não imaginaremos, por muito, que a Paz de nossa união
direta com Deus esteja na harmonia do mundo exterior”.]
O mundo exterior é um cosmos de fatos reais, mediações, limitações e
[sobretudo, essencialmente] questionável.
Acaso não é evidente que o quanto mais problemático o homem se tor-
nar perante si mesmo, mais duramente ele se chocará com o sofrimento, — a
realidade fundamental de sua vida — e tanto mais difícil lhe será, sob a persis-
tente influência cristã, aliviar o “espinho da carne” e, quem sabe, assim esque-
cer que ele é o ser humano que está sob sombra [da morte]?
Não é, também, evidente que [quanto mais preocupada a pessoa estiver
com a sua própria incerteza], maior atenção prestará ao mundo que a rodeia,

475
8, 19 A Verdade

mais solidária se sentirá com ele e mais avidamente procurará conhecer os


mistérios que lhe dizem respeito?
Donde procede este curioso empenho do homem moderno em conhecer
[as profundezas dos mistérios da natureza e da ciência], pesquisar as geleiras
(ante as quais o próprio Goethe se deteve!), desvendar os segredos do deserto,
[atingir] o pólo norte, examinar as profundezas dos oceanos e a vastidão do
espaço, compreender o infinitamente grande e o infinitamente pequeno,
pesquisar o obscuro passado de muitos milhões de anos, não só da natureza
mas também da vaidade e do sofrimento de sua própria história e descobrir pela
análise, (segundo o testemunho insuspeito de competentes especialistas), os
absurdos que governam nossa vida inconsciente? Donde procede esta busca de
experiências e saber de milhares de coisas que, verdadeiramente, nem se deveria
desejar conhecer e experimentar? Donde procede esta reação que o conheci-
mento cada vez mais profundo do cosmos provoca em nós que, longe de miti-
gar a problemática de nossa existência, a acentua e incrementa desparadamente?
Todavia, não podemos ignorar o desvelo de um olhar gigantesco que, do
outro lado do nosso, notoriamente aparentado com ele porém mil vezes mais
penetrante, vem de encontro aos nossos olhos; não podemos deixar de reco-
nhecer uma interdependência entre o exterior e o interior, um condicionamento
entre ambos os lados do hiante abismo, uma interrogação comum a todas
contraposições entre o sujeito e o objeto: “São Paulo, com seus agudos olhos
apostólicos, via a amada santa cruz em todas criaturas”. (Lutero).
A interrogação [comum a todas antinomias] dirigida diretamente aos
homens é, na realidade, o sentido [básico] desse desvelo. O homem vê, indaga
[e pesquisa]; descobre, experimenta e sabe; este é o seu cosmos cuja paz ele
procura na história e natureza porém, o que a criatura recebe, o que lhe vem ao
encontro de toda parte, com fatal inexorabilidade, é a inquietação inerente a
este mundo.
Quando provocadas, as vozes dos elementos, dos mundos próximos e
remotos, dos tempos e das eras, soam caracteristicamente humanas. A sua lin-
guagem fala de belezas e horror; de guerra e de paz; da vida e da morte; do
finito e do infinito. Elas falam do bem e do mal como se o homem, com seus
contrastes, fosse a sua causa primeira, a sua origem; como se o sofrimento
humano fôra o seu sofrimento e a sua enfermidade a enfermidade da criação.
“Quando a natureza acorre ao ser humano, ela evidência que ele é ne-
cessário para a remir da maldição da vida animal e que nele, finalmente, a
existência apresenta um espelho em cujo fundo a vida deixa de ser destituída de
sentido para emergir em seu significado metafísico. Contudo, ponderemos: onde
termina o animal e começa o ser humano, este ser único sobre o qual repousa a

476
A Verdade 8, 19-20

natureza?!... Normalmente não saímos da animalidade porém somos, nós mes-


mos, animais que, aparentemente, sofremos sem qualquer sentido, porém te-
mos instantes de clarividência; então rompem-se as nuvens e vemos como nós
mesmos, juntamente com toda natureza, nos voltamos ao ser humano como
algo que está acima de nós, muito alto... Todavia, sentimos imediatamente que
somos demasiadamente fracos para suportar esse instante de profunda
introspecção por muito tempo e compreendemos que não somos “nós” a quem
se volta a natureza; já é bastante que, ao menos uma vez, saiamos com as nos-
sas cabecinhas ligeiramente à tona e contemplemos em que profundas corren-
tezas nos afundamos. Porém, isto também não acontece por nossas próprias
forças”. (Nietzsche).
A verdade é esta: a expectativa da criação aguarda a revelação dos filhos
de Deus; ela espera conosco, ou melhor: ela espera por nós!
“Pois a criação foi sujeita à vacuidade, não por sua própria vontade,
porém por quem a sujeitou, em esperança porque também a criação será liberta
da servidão da corrupção para a liberdade da glória dos filhos de Deus”.
“Não há um só elemento, uma partícula sequer, do mundo que,
conscientizada pelo lamento presente, não alimente a esperança da ressurreição”
(Calvino).
A inquietação — a ansiedade, a “vacuidade” — que nos espreita [de
todos lados] em toda criação, não vem desta ou daquela dor, deste ou daquele
horror, anseio [ou nostalgia], ou por alguma falta de beleza; nem provém da
totalidade das coisas imagináveis [ou de tudo quanto possamos imaginar e] que
lhe possam dizer respeito diretamente, porém, vem da própria condição de cri-
atura. Essa inquietação tem a sua origem no declarado deserdamento da vida
direta e na insopitável esperança que a criatura tem.
Como haveria de a eterna interação entre energia e matéria, entre “vir a
ser” e desaparecer, entre formação e decomposição, entre sede de viver e ne-
cessidade de morrer, ser parte da vida eterna?
Como poderia a corruptibilidade a que tudo está sujeito, desde o micró-
bio até o maior dos sáurios e até o mais digno deão de uma faculdade de teolo-
gia, ser a vida plena, real, direta, a vida eterna?
Donde procede pois, o triste ânimo que o homem (principalmente o
ocidental) sempre reencontra para, num otimismo cruel, não ver a vacuidade, a
ausência de vida [perene] na criação que, no entanto, verdadeiramente lhe fala
(ou poderia falar-nos se não fôssemos tão surdos) a partir de sua beleza (como
por exemplo a do corpo humano) ou da fealdade; através da sua grandiosidade
(uma cadeia de montanhas) ou da miséria; através da luz (por exemplo a do luar
ou a que vem de algum novo livro) e através das trevas?

477
8, 20-21 A Verdade

Para que entendamos [o que as realidades do mundo poderiam (e po-


dem) ensinar-nos] é preciso que percamos a veneração pela “pseudo-vida” pois
ela impossibilita a compreensão dos mistérios divinos que o Cosmos revela.
Precisamos reencontrar “aquela sabedoria”, para ver no Universo a revelação
do Deus invisível (1, 20); para sentir o salutar espanto que a criação impõe, não
pelo terror mas, (por ele despertados de nossos sonhos otimistas,) à vista das
espantosas coisas que foram criadas e pelo amor que merecem; pela criação
[em seu conjunto], que é um espelho de nossa própria criação.
Além da perene interação que é a marca característica da criação, está a
criatura (como interrogação!) dentro da criação, e Deus no Cosmos. Se Deus
não for encontrado nesse universo, ele não será encontrado de forma alguma e
amanhã, quando por qualquer motivo, — provavelmente muito válido — o
arrebatamento [o encanto] que sentimos pela vida, houver esmorecido e o
negativismo o substituir, passaremos a considerar o mundo perverso e mau,
assim criado pela própria vontade [de Deus] ou então, criado vazio [sem qual-
quer sentido] pelo capricho de algum demiurgo. Reinará então [profundo] pessi-
mismo em substituição ao incorrigível e cruel otimismo [mencionado mais atrás],
que leva o ser humano a sistematicamente ignorar a voz que fala através das
realidades do Universo para aqueles que “sabem ver”.
A vacuidade da criatura não vem por sua vontade; ela não é uma realida-
de primária; ela resulta da falta de percepção dos otimistas ou da conclusão
apressada dos pessimistas e é, imediatamente, mal interpretada, todavia, essa
vacuidade não é a característica final, definitiva, do ser humano, porém a cria-
ção está sujeita a ela, por quem a sujeitou e, por isso, há esperança, pois a
sujeição vem de Deus.
Em Deus estão ocultas as antinomias tão claramente visíveis no ho-
mem: a vida e a morte; a luz e as trevas; o bem e o mal; a ascensão e o declínio;
o idealismo e o materialismo; o interior e o exterior.
As oposições que caracterizam e constituem a essência da vacuidade
[do mundo] são obra de Deus e a sua interrogação assim como o sofrimento a
que agora está sujeita toda criação, juntamente com o ser humano, são a respos-
ta divina; é por isto que a criatura foi sujeita “em esperança”.
Para além do otimismo ou do pessimismo [de nossa apreciação da reve-
lação divina] lá onde se identifica a origem da vacuidade humana com a queda
invisível da criatura ante o Criador, ali há, também, esperança: esperança da
restauração da invisível unidade entre criatura e Criador por intermédio da cruz
e da ressurreição de Cristo.
O reconhecimento da inexorável escravidão é também o conhecimento
da liberdade; o horror ante a corruptibilidade é também a esperança da incor-

478
A Verdade 8, 20-22

ruptibilidade; o último PARE! é também o primeiro AVANTE! e isto, em Cris-


to; quer dizer, em Espírito, porque Deus é Deus; porque a verdade é um passo
dado da morte para a vida; é movimento, é mudança de rumo.
A liberdade na glória que a nova criatura — o filho de Deus, aquele que
[ainda] não sou, — espera suspirando, mas feliz, é a promessa da qual o corpo,
— o ser humano, aquele que [ainda] sou, — é co-participante juntamente com
seu mundo: o mundo abençoado da criação e da vida, cuja herança foi prome-
tida a mim, filho de Deus.
Se o ser humano for livre, também o mundo o será. Se o ser humano for
“um” em si mesmo por ser “um” com Deus, então também no cosmos deixará
de existir “isto” e “aquilo”; não haverá mais “dentro” e “fora”, não haverá “ser”
e “desaparecer”.
Quando surgirem os filhos de Deus, “pelo seu aparecimento dará a na-
tureza, que nunca salta, o seu único salto; um salto de júbilo porquanto pela
primeira vez ela sentirá haver alcançado seu alvo”. (Nietzsche).
Também o mundo é eterno, a saber: em Deus; é eterno, na qualidade de
Novo céu e Nova Terra; é o mundo que o Pai sujeitou a si por intermédio do
Filho (I Cor. 15, 25-28).
Quem quiser saber estas coisas pode conhecê-las desde já, ciente porém
de que nada sabe: “Na verdade, a terra será ainda lugar de convalescença, mas
nela já se sente novo odor — aroma salutar e de novas esperanças”. (Nietzsche).
— O que sabemos?
— Sabemos que temos motivos para silenciar perante Deus.
Sabemos que quando falamos da glória de Deus, nos referimos a um
futuro que nunca e jamais será tempo [presente ou temporalidade].
“Sabemos que toda criação geme em uníssono e está conjuntamente em
angústia até o tempo presente”.
Toda criação: também o que estiver encoberto, oculto e que, por isso, é
mais difícil de ser entendido com a nossa inteligência! Não se trata de sua
extensão e amplitude mas do saber de nosso entendimento. O que conhecemos,
o que sabemos e o que entenderemos é que [aqui] se trata de [contínuo] “suspi-
rar” e “gemer”; de estar permanentemente em dores, como coisa desprendida
de sua origem, de algo [agora] apenas relativo, separado do absoluto por abis-
mo intransponível. Então, se algo conhecermos, conhecemo-lo como “coisa”,
como o que é relativo; mesmo isto é criação do ser humano e, portanto, a ori-
gem de seus “suspiros” e de sua existência “em sofrimento”.
Sabemos que tudo que foi [ou é] criado pelo ser humano, tudo o que está na
temporalidade — (pois nada sabemos nem conhecemos daquilo que não é criado,
e que não está no tempo) — traz em si o embrião da eternidade, do seu futuro eterno
que anscia trazer à luz o que, todavia, não pode fazer no tempo presente.

479
8, 22-23 A Verdade

Conhecemos a universalidade, a uniformidade e a generalização desta espe-


rançosa carência e desta carente necessidade. Uma especulação mental, pura, funda-
mentará este conhecimento, o formulará adequadamente e o aprofundará porém,
jamais conduzirá a conhecimento maior ou mais elevado pois ele sempre conside-
rará que o conhecimento verdadeiramente superior, o conhecimento a respeito da-
queles que não gemem, que não jazem no sofrimento, diz respeito a criaturas que
não pertencem a este mundo e, portanto, é conhecimento que pertence a Deus.
Deus, porém, está nos céus e tu estás na terra! Justamente este NÃO-
CONHECIMENTO daquilo que Deus sabe é o conhecimento que [no mundo]
temos a respeito de Deus; é o consolo, a luz, o poder, é a consciência da eterni-
dade que temos em nossa vida temporal.
“A criatura geme até agora”, refere-se à verdade revelada em Cristo e
testifica, para os que têm os ouvidos convenientemente abertos, que o “tempo
presente” é também o tempo eternal.
Acaso já ouvimos esse gemer da criatura, que nos diz tudo quanto pre-
cisamos ouvir se tivermos ouvidos para tanto? [Acaso ouvimos esse gemer]
que Cristo nos revela se ele estiver em nós?! Não é isto um mistério mais mis-
terioso que todos os mistérios?
“E não somente a criação mas também nós que temos as primícias do
Espírito, gememos em nosso íntimo, aguardando a nossa filiação, a redenção
de nosso corpo”.
Da vasta amplidão de nosso mundo, que é o mundo da criação, da
temporalidade e da corporalidade, voltamos ao ambiente restrito da criatura
humana. Transformamos o objeto de nossa apreciação em seu sujeito [isto é,
enquanto antes observávamos a criatura no mundo, passamos agora a nos ob-
servar a nós mesmos], na medida em que também formos objetos observáveis.
Passemos, pois, a considerar o ser humano que somos; como esse ser labuta e
vive neste mundo, pois os olhos que assim perscrutadores nos olham do espe-
lho são os nossos, que tudo examinam e, no final, até a si mesmos.
— Quem é esta criatura (que assim me observa)? Quem sou eu?
— És o dono; és o proprietário; és o que possui as “primícias do Espírito”.
Sim, sou eu, o ser [humano] que sabe que a lei procede do Espírito (7,
14); [sou eu], que invisivelmente estou redimido por força da redenção que
teve lugar em Jesus Cristo (3, 24); (sou eu,) a criatura que foi tomada, conduzida,
favorecida e liberta invisivelmente pela verdade; sou filho de Deus!
De outra forma, como poderia eu, realmente, sofrer sob a pressão de
minha existência e de meu modo de ser [segundo o mundo]? Não fôra assim,
como poderia eu chamar Aba! Pai! E como poderia eu ouvir o gemido das
criaturas que sofrem?

480
A Verdade 8, 23

Como homem novo, sou cidadão do mundo vindouro e, à luz do “tempo


presente”, revelado em Jesus Cristo, eu sei tudo quanto preciso saber sobre a
temporalidade e seu conteúdo. Estou salvo! (8, 24); é daí que eu venho; mas,
para onde vou? Qual é meu caminho visível, seu começo e seu fim?
Convém que tenhamos, de novo, presente a nossa advertência para [não
cairmos em] alguma forma de romantismo, lembrando-nos de que aquém da
ressurreição existe interminável complexo de possibilidades, desde as excelen-
temente superiores até as mais ínfimas; desde as mais nobres até às mais vis;
existem as mais dignas e as mais inominavelmente baixas.
Arte, saber, moral, distinguem o ser humano e indicam o seu anseio em
comungar com o infinito, porém — Deus o sabe — também o distinguem a
fome, a sede, o instinto sexual, a sonolência, a digestão e... onde está o limite?
Quem nos livra da implacável impressão do quanto tudo isto está ema-
ranhado entre si — (que nossas atividades, desde as mais sublimes às mais
abjetas, se entrelaçam e, quiçá, se confundem em suas origens?].
Quem pode demover-nos da convicção quase certa de que a história da
humanidade — e a minha própria — seria contada mais justa e fielmente se
fosse descrita do ponto de vista do estômago e não da cabeça?
O que vale o maior dos gênios se ele, com toda sua genialidade vem a
este mundo, nele vive e dele se despede, como qualquer um de nós?
O que é [de fato] a história se, [na realidade] melhor descrevemos acon-
tecimentos semelhantes ao da cristandade nos seus primeiros séculos, ou as
cruzadas, ou a reforma, como ocorrências “histórico-materiais” ou se, pelo
menos, dessa maneira, os tornamos mais verossímeis, mais plausíveis, mais
livres de dúvidas, mais claros?
O que resta de Blumhardt em Moettligen se tratarmos psiquiatricamente
o início do fenômeno e psicologicamente o restante?
(A tradução inglesa explica em nota de rodapé que Johannes Cristoph
Blumhardt (o Velho), com orações curou uma mulher que sofria de caso grave
de histeria. Isto foi em 1842, na localidade referida, perto de Calw em
Wuerttemberg; Blumhardt e a própria mulher consideraram o caso como de
possessão e expulsão de demônio, semelhante aos narrados em o Novo Testa-
mento. Este foi o ponto de partida de amplo movimento de conversão e cura
que Blumhardt considerava ser acompanhado de perdão dos pecados. O movi-
mento tomou por lema a frase “Cristo é Vencedor”, frase que o demônio, su-
postamente, teria balbuciado pelos lábios da mulher, quando a deixou.
Esse acontecimento recebeu, não só em 1842 mas também posterior-
mente, explicações puramente fisiológicas. [Ver tradução inglesa, página 312,
7ª impressão, (1965) —da lª Edição (1933)].

481
8, 23 A Verdade

E quem poderia [ou poderá] opor-se a semelhante tratamento e interpre-


tação [do fenômeno]? Este é o ser humano; o ser criado, temporal, corporal; o
único que conhecemos.
— Espírito? O que é espírito?
Aquilo que designamos como “espírito” não é mais do que algo compa-
rável à neblina sobre terreno alagadiço. Donde vem a névoa? E o que sobra
quando o vento a espalha? O que permanece visível, consistente, material?
— Não é necessário que se responda.
Semelhantemente, o homem vindo da invisibilidade do Espírito de Deus
entra visivelmente na ambigüidade, de forma total e absoluta; de maneira alguma
escapamos dela; a sua realidade é inequivocamente clara e se manifesta amplamente.
O que [ou quem] somos nós, já que admitimos tudo isto, tão honesta-
mente? Também nós, detentores das primícias do Espírito, gememos tão aber-
tamente quanto a criatura que está a nosso lado, ante a mesma vacuidade, isto é,
ante os mesmos contrastes entre a vida e a morte, entre a luz e as trevas, entre a
beleza e vileza, jazemos em dor tanto quanto os outros, trazendo em nós o
futuro eterno do qual temos ciência [todavia], sabendo que nunca foi e jamais
será parte de nossa temporalidade. Somos prisioneiros de Deus como as de-
mais criaturas e por isso, semelhantemente a elas, vivemos em esperança!
“Também nós gememos em nosso íntimo, aguardando a nossa adoção
de filhos”.
“Em esperança”! O Espírito testifica que somos filhos de Deus. Nasceu
a nova criatura que, de seu Pai, herdará o mundo. Todavia, essa nova criatura
não sou eu; ela não é este ser que é segundo meu corpo no presente século. A
última possibilidade desta criatura [o que resta à existência temporal] é gemer
e esperar pela adoção.
A adoção como filho, porém, está na “redenção do corpo”; ela consiste
na realização plena de minha identificação com Cristo na qual, aqui, apenas
podemos crer; ela está na ressurreição dos mortos, na “revelação” dos filhos de
Deus pela qual toda criação espera e da qual nem sequer um fio de cabelo da
nossa cabeça ficará de fora.
Escorrido e escoado o grande mar da realidade que aqui e agora nos
rodeia e alaga, só restará a verdade: a verdade da realidade! Então a Eternidade
será a totalidade dos tempos, [a sua integração entre os limites que vão] da mais
remota antigüidade até o mais distante futuro! Então já não existirá mais [mun-
do] interior que não seja também exterior; não haverá outro eu que não seja eu
mesmo; não se tratará de uma parte apenas mas estarei redimido na totalidade
de meu ser, transformado, purificado, novo perante Deus, por Deus, em Deus;
serei participante da vida e do ser divino: — a isto se chama Filiação.

482
A Verdade 8, 23-25

Aquém da ressurreição, porém, a última palavra é a religião e nos recor-


damos [bem] do que isto significa; daí a inquietação e o anseio que, na verdade,
nos fita mais fortemente pelos nossos próprios olhos. Também nós estamos
debaixo da cruz; também nós não podemos senão testemunhar que o nosso
tempo é o tempo do presente século e que a eternidade é o Dia de Jesus Cristo,
que não é “um” dia mas O DIA de todos os dias e que existe desde antes, após
e acima dos dias de nossa vida.
“Não é de admirar, pois, que sejamos movidos por profunda tribulação;
não se trata de desejo mas de clamor ansioso pois, quando se descobre a reali-
dade da miséria, é preciso clamar”. (Calvino).
Assim, tornamo-nos testemunhas de nós mesmos e esta é a justificação
divina da religião. Ficamos sabendo que, em última análise, também nós geme-
mos — e nada mais fazemos; o que isto significa pode ser mostrado e compro-
vado: significa que Deus é nosso Pai!
Acaso ser-nos-á insuficiente saber o que significa o sofrimento, o gemi-
do da criação e o nosso próprio? Acaso haveremos de pretender porção melhor,
alguma coisa mais elevada, passando ao largo da cruz e do sofrimento tempo-
ral? Se assim pretendermos, então passaremos ao largo da ressurreição, ao lar-
go do “momento presente” que é o mistério do presente século, passaremos ao
largo de Deus!
“Porque somos salvos pela esperança. Porém esperança visível não é
esperança (pois o que alguém vê, por que precisa esperá-lo?). Porém, se espe-
ramos por aquilo que não vemos, o aguardamos com perseverança”.
Sim! A verdade é tão pura, tão santa, tão imensa e poderosa, ela é tão acen-
tuadamente a nossa redenção, ela é tão peculiarmente o próprio Deus — Deus por
nós, que só nos podemos apropriar dela como sendo vitória, cumprimento e reali-
zação, como presença, mediante a esperança e de nenhuma outra maneira.
Como poderia a verdade ser “a Verdade” se nós, quais somos, pudésse-
mos examiná-la e ajuizar a respeito dela?
Como poderia a Verdade ser Deus se ela, para nós, fosse uma possibili-
dade, entre outras? Como poderia ser ela a nossa salvação se ela não fosse,
[permanentemente e] a todo instante a força [a mola propulsora], que nos coa-
ge a ousar o pulo para a eternidade e nos induz a pensar os próprios pensamen-
tos de Deus, a pensar livremente, renovadamente, integralmente?
“Pela esperança”, somos salvos: pela esperança naquilo totalmente di-
ferente, no desconhecido, no inacessível, no “eterno poder e na própria divin-
dade” (1, 20) de Deus, que veio a este mundo em Jesus Cristo.
Que mais poderíamos desejar senão que esta esperança redentora seja.
sempre de novo, circunscrita à cruz, e subsista contra tudo mais que há no mundo?

483
8, 24-25 A Verdade

Se conhecêssemos a Deus sem ser pelo sofrimento da criação e nosso


próprio; se conhecêssemos a Cristo sem ser o crucificado ou se conhecêssemos
o Espírito Santo sem ser como o Espírito daquele que acordou Jesus de entre os
mortos, então estaria quebrado o incógnito [o sigilo] no qual a salvação veio,
vem e virá a nós e já não seria salvação! “Esperança visível não é esperança”.
[Então já não haveria lugar para fé que é, em Jesus Cristo, a instrumentalidade
de nossa salvação].
“Comunicação direta de Deus”, não é comunicação divina.
Cristianismo que não seja totalmente escatologia, nada, absolutamente
nada tem a ver com Cristo.
[Entendo que o A. está afirmando que o cristianismo verdadeiro se com-
pleta, se realiza, se confirma, através da morte e da ressurreição; por isso, ele
continua afirmando que] o espírito que a todo e qualquer instante do tempo
presente não proceder [não se originar, invisivelmente] da morte e apontar para
a nova vida, esse não é o Espírito Santo pois “as coisas que se vêm são tempo-
rais” (II Cor. 4, 18).
O que não for esperança, é tronco, jugo, algema; é tão pesado quanto a
própria palavra REALIDADE. Não liberta, antes aprisiona; não é misericórdia,
porém juízo e destruição; não é direção divina, mas fado; não é Deus, porém o
espelhamento da própria criatura não redimida, ainda que [essa expressão ma-
terial, essa imagem com a qual procuramos iludir a esperança], seja a imponen-
te estrutura do progresso social ou a pomposa exibição da redenção cristã!
Redenção é o invisível, o inacessível, o impossível, que vem a nosso
encontro na forma de esperança.
Acaso poderemos pretender ser melhores do que os que aguardam em
esperança, ou ser alguma coisa mais?
A perseverança [na esperança] é o sentido mais profundo de nossa tarefa
na vida (e isto é bem conhecido não só por qualquer lavrador ou qualquer
vovozinha, mas também por toda pessoa verdadeiramente sofredora, sem qual-
quer conotação com o “cristianismo” ou referência a ele). Haveremos de perse-
verar “como se” existisse um além do outro lado do bem e do mal; do outro
lado da alegria e do sofrimento, da vida e da morte. Por tanto, haveremos de
perseverar “como se” em nossa existência e em nosso modo de ser esperássemos
por alguma coisa; perseverar “como se” existisse um Deus a quem nós tivéssemos
que volver e a quem devêssemos servirem amor, quer fôssemos vencedores ou
vencidos, quer subíssemos ou descêssemos, quer vivendo quer morrendo.
Dissemos “COMO SE”. Por que?
Porque esta é a notável condição: Somente alcançaremos o ponto alto
em nosso caminho [ou em nossa peregrinação] através da temporalidade se

484
A Verdade 8, 24-27

perseverarmos “como se” víssemos o que, de fato, não vemos, “como se”, con-
templássemos o invisível.
É a esperança que acaba com este enigma; é ela que suprime o “como se”.
[Pela esperança] vemos “de verdade”; vemos existencialmente aquilo
que, contudo, não vemos. É por isso que perseveramos. Se apenas vermos o
que enxergamos materialmente não haveremos de perseverar [na esperança]
pois, bem ou mal humorados nos contentaríamos com o que existe. [Com aqui-
lo que é].
Somente a invisível esperança que temos em Deus, em Cristo, no Espí-
rito, explica o fato de não nos conformarmos com a realidade, o fato de não
haver harmonia [ou sintonia] possível entre o nosso ser e aquilo que existe [ao
redor de nós]. Somente esta esperança invisível explica porque fica subjacente
em nós uma “espera oculta” por aquilo que “não é” e que nos confronta
existencialmente.
Nada mais podemos desejar ser (se é que nos entendemos corretamente)
do que pessoas que se contentam em saber, pelos gemidos da criação e seus
próprios, que nada podemos pedir que seja maior ou melhor do que a cruz, na
qual nos é revelado que Deus é Deus e que precisamos ser servos que esperam
por seu Senhor.

Vs. 26-27 Semelhantemente, também o Espírito antecede a nossa fraqueza.


Pois não sabemos como haveremos de orar devidamente. Mas o próprio
Espírito intercede poderosamente por nós com inexprimíveis gemidos por-
quanto aquele que sonda os corações conhece a mente do Espírito que
intercede pelos santos na capacidade divina. [A tradução inglesa escre-
ve:... intercede pelos santos segundo a vontade de Deus.]

Semelhantemente, também o Espírito antecede a nossa fraqueza”.


(Almeida escreve “nos assiste em nossa fraqueza”).
Do que falávamos? Da nossa procura da verdade, ou dela própria?
Acaso tratávamos de determinada quantidade, qualidade ou intensidade
da experiência humana ou de algum acontecimento divino em nossa vida?
Acaso discorríamos sobre espiritualização, ou sobre espiritualismo, quem
sabe se de espirituosidade; ou do Espírito?
Na verdade, não falávamos diretamente do Espírito, pois somente pode-
mos abordar o tema [de modo relativo], mostrando a negatividade de todos os
demais aspectos. Todavia, era o Espírito [Santo de Deus] que tínhamos em
mente. “O próprio Espírito testifica junto de nosso espírito que somos filhos de
Deus”. (8, 16).

485
8, 24-27 A Verdade

O gemido da criação e o nosso são apenas o timbre, o selo do Espírito;


o nosso clamor Aba! Pai! é apenas o eco da palavra divina.
O Espírito opera em causa própria e segue seu próprio caminho; não
somos nós que o possuímos, porém é ele quem nos tem. Ele chega primeiro e se
“antecede à nossa fraqueza”. Ele é o CREATOR SPIRITUS, pois o nosso ge-
mer é fraqueza, é carnalidade, e não Espírito; é humano e não divino; é pecami-
noso e não justo: se o nosso aiar for aceito e ouvido perante Deus, então ele é
ouvido (e aceito como justo) perante Deus e Deus somente.
Também a nossa expectativa é fraqueza, por mais paciente e crente que
seja. Pode bem acontecer que nossa expectação se já infernal, descaracterizada,
sem futuro, ineficaz e sem propósito, inútil, uma expectativa que por nada es-
pera e que, por isso, nada alcança, nada recebe e ninguém, se não Deus, pode
nos garantir que nossa expectação não seja dessa espécie.
A força que existe em nossa fraqueza está na antecedência do Espírito e
na Verdade que subsiste por si só. Todavia, precisamos de nos convencer de que
nem mesmo pela maior renúncia conseguiremos apropriar-nos dessa força. O
próprio “caminho negativo” do misticismo é um engodo, pois o único [e verda-
deiro] caminho é Cristo!
“Pois não sabemos como haveremos de orar, devidamente”.
Acaso entendemos agora, no final desta parte da Carta aos Romanos, o
que isto quer dizer?
Acaso não teria Paulo orado, enquanto escrevia estas palavras? Ou não
teria orado acertadamente, [“devidamente”]?
Não são estas palavras uma só oração e, onde já se orou com mais ousadia,
mais altruísmo e mais profundidade que aqui? Contudo, enquanto Paulo escre-
ve estas palavras ele sabe que NÃO SABE como deve orar adequadamente.
Por que não sabe? Evidentemente, porque a oração não é nenhuma “mara-
vilha das maravilhas que se realiza na alma dos fiéis”; porque “o motivo de
toda prece é denodado esforço em busca de confirmação, de fortalecimento e
da ascensão gradual de nossa vida” e a sua essência é a idéia da “intercomuni-
cação entre os fiéis e Deus, que é imaginado como pessoa e considerado como
estando presente” (Fr. Heiler).
A mais heróica [a mais eloqüente], a mais grandiosa súplica e, na verdade,
até mesmo as preces dos profetas, dos reformadores e do Apóstolo, para não
mencionar as orações dos “Ama-Xosa” e “Kekchi” — mostram quão pouco o
próprio homem de oração consegue sair do ambiente restrito de seus interesses,
sua experiência e seus pensamentos, quão difícil lhe é transcender a si mesmo.
[A tradução inglesa traz nota de rodapé explicando que a referência às orações
das tribos “Ama-Xosa” e “Kekchi” São tiradas do livro “A Oração” de Fr. Heiler].

486
A Verdade 8, 26

É na oração que justamente o homem que ora, mostra que é totalmente


humano.
É das pessoas tidas como piedosas [religiosas, crentes, espirituais] que bro-
tam e rapidamente se sucedem os mais atrevidos saltos e as mais arrojadas pontes,
[visando à comunicação direta com Deus]. Tais aproximações, porém, nada têm a
ver com Deus, o Deus desconhecido, que [tais homens] não ouvem nem compreen-
dem e que, todavia, está vivo [e pode ser conhecido (1, 19)]. Elas nada têm a ver
com Deus porque a oração, considerada e glorificada como coisa objetiva, [como
experiência humana] apenas justifica e confirma o libelo (certo se for analisado do
ponto de vista humano) que Feuerbach levanta contra toda religião.
“Não sabemos”. Além deste “não sabemos” e contida nessa confissão
está a realidade do relacionamento do homem com Deus.
[Esta negação nada tem a ver com a técnica de submersão (de “absor-
ção”), segundo a tradução inglesa] praticada pelos virtuoses da oração, tanto oci-
dentais como orientais, pois a confissão dessa ignorância é, em si, o mais agudo
libelo contra o mar de absurdos [que tais “especialistas” propagam e praticam]).
“Mas o próprio Espírito intercede por nós com inexprimíveis gemidos”.
Esperamos! Todavia, porque esperamos em Deus, a nossa expectativa
não é vã. Olhamos, porém, somos diferentes daqueles que olham para o vazio,
porque já fomos observados antes [por Deus]. Falamos mas, porque naquilo
que dizemos tratamos do que não podemos fundamentar, a nossa conversa não
é mera tagarelice. Assim também oramos, porém o Espírito intercede por nós
com gemidos que nossos lábios não sabem articular pois, traduzidos em linguajar
humano, seriam cânticos de júbilo a cuja altura não estamos; é isto que diferen-
cia a nossa oração e os nossos gemidos daquilo que é fraqueza e nada mais.
Não é importante que alcancemos um estágio alto, mais alto ou muito
alto em nossa oração, pois esta escala, junto com todas as demais que medem o
acesso ao céu [ou a nossa “santidade”,] está no distrito do NÃO-DEUS, [no
reino] do Deus deste mundo.
A realidade de nossa comunhão com Deus, a justificação de nossa ora-
ção, consiste no fato de que perante Deus, em nosso lugar, está o Outro, o
Todo-Poderoso, o Eterno, o Segundo Homem, o que é do céu! (I Cor. 15, 47).
“Pois aquele que sonda os corações conhece a mente do Espírito que
intercede pelos santos, na capacidade divina” [ou, “segundo a vontade de Deus”
— Almeida].
Deixemos de lado nossa investigação sobre Deus; porém Deus nos es-
quadrinha. Nossa mente nunca é reta, mas Deus sabe que a mente do Espírito
[que está] em nós, é reta; Deus a conhece e [vê que] ela é segundo o Espírito.
Humanamente, nada e ninguém pode interceder por nós; estamos total-
mente sós e inteiramente perdidos; mas o Espírito, segundo a vontade de Deus,

487
8, 11-27 A Verdade

por nós intercede; somos salvos. Pecadores somos e continuaremos sendo se


esta intercessão do Espírito não se der; porém Deus nos chama santos. Foi para
sermos santos que ele nos criou do NADA que éramos, somos e seremos [se
santos não formos]. Ele nos faz seus santos [isto é, criaturas separadas para
ele], seus escolhidos, seus instrumentos, por força dessa intercessão.
Quem por nós intercede é o ESPÍRITO, a Verdade, a Esperança, JESUS
CRISTO.
[Mais uma vez parece oportuno observar o contra-senso que pratica quem
segue ou ensina que outros seres, ainda que redimidos, possam interceder por
nós perante Deus ou Cristo, que é o próprio Deus. Há um só mediador; temos
um só mediador; temos u único advogado e somente um intercessor: JESUS
CRISTO, o ESPÍRITO SANTO].

Comentários: 8, 11-27

Na exegese do v. 11 encontramos a afirmação de que assim como não


podemos objetivar a verdade (porquanto é ela que nos objetiva primeiro),
também não podemos subjetivá-la; outrossim, não a podemos tomar levi-
anamente, nem a poderemos considerar trágica ou por meio dela justificar
a nossa existência pois ela é por demais alegre, gloriosa e bela.
O que pretende o A. dizer?
Talvez esteja dizendo que não podemos objetivar a verdade porque ela
não pode ser consubstanciada em algo real, visível, palpável, concreto,
pois é justamente a verdade que assim nos delimita, nos pesa e nos define,
como seres humanos que somos. Da mesma maneira, não podemos
considerá-la como algo abstrato, algo que pertença ao pensamento, à mente
e que esteja ao nosso alcance para que dela nos apropriemos subjetiva-
mente, nem mesmo como ideal; ela não pertence a esta ou àquela deter-
minada pessoa. A verdade não é destino e também não justifica ou explica
nossa existência. A verdade é a “Boa Nova”, por isso é alegre, é perfeição;
por isso é bela. A verdade é o Espírito; por isso não pode ser encarada
levianamente. A verdade, segundo critério filosófico, humano, é a confor-
midade das palavras (e até das atitudes) com a realidade de pensamento,
pode ser moral ou física, ou ambas as coisas; pode até ser intuitiva e de-
penderá da formação da consciência do indivíduo, ou cognitiva e depen-
derá do conhecimento científico e da cultura das pessoas.
A verdade segundo conceitos humanos é apenas analogia; é parábo-
la e até alegoria da verdade divina e serve para julgar segundo a retidão
dos homens. Não é por acaso que o mandamento não diz:” Serás verda-
deiro” mas ordena: “Não darás falso testemunho”.

488
A Verdade 8, 11-27

A verdade vem de Deus. Os filósofos se vêem compelidos a pôr a


verdade em dúvida, conforme Pilatos o fez; os que se encontraram com
Cristo, porém, filósofos ou não, só podem expressá-la em termos divi-
nos. A verdade é como Deus; não tem definição; ela É.
A alegoria, a parábola da verdade, tem o poder de esclarecer dúvidas
humanas, todavia, sendo humana é perecível e mutável; tem mais de
uma face e diferentes graduações; o que parece ser verdade hoje pode
ser considerado falso amanhã quando outros forem os conhecimentos
ou outras as informações; essa verdade pode ser radiosa para uns e pode
ser tétrica para outros. Para Deus e em Deus, porém, não há sombra de
variação e não há senão uma VERDADE, que não é matemática nem
lógica, nem indutiva nem dedutiva, nem subjetiva, mas é eterna imutá-
vel; esta verdade divina é a jubilosa realidade que se revela no verbo de
Deus perceptível à humanidade em Jesus Cristo: Deus é amor!
É em Jesus Cristo que os homens podem conhecer e saber o que é a
verdade; a verdade que é imutável, que subsiste por si só, que é eterna;
a verdade que liberta.
Pilatos, afeito às lides de governo, habituado a julgar e decidir, possi-
velmente conhecedor da filosofia de sua época, tinha razão ao perguntar
“o que é a verdade?”. Endurecido pela experiência humana não teve men-
te aberta para reconhecer a verdade na pessoa de seu interlocutor, o réu
que ele sabia ser inocente e que procurou salvar com meias medidas. Esta
inocência era a verdade humana que Pilatos bem conhecia; mas não se
ateve a ela, antes preferiu a “outra verdade” que lhe pareceu mais prática,
mais objetiva e que lhe falava mais subjetivamente, pois era mais
consentânea com seus interesses pessoais e os de seu governo. Não tenha-
mos porém, pressa em criticá-lo. “Maior pecado” teve a organização ecle-
siástica que entregou o justo ao juízo do injusto. Sabemos melhor do que
Pilatos que antes da revelação de Deus, em Cristo, não podia o mundo
saber o que é a verdade para por ela aferir e pautar o seu procedimento.
Sabemos que Jesus Cristo é a VERDADE. Sabemos! Quem há que por
ela invariavelmente, paute suas palavras e suas atitudes?
“Eu sou o caminho, a VERDADE e a vida”, disse Jesus.

O AMOR (8, 28-39)

O Amor de Deus à criatura humana é o supremo bem de que ela goza e


para o qual concorrem todas as coisas deste mundo; esta concorrência, operada
pelo Espírito Santo e em Cristo Jesus, põe o amor de Deus no coração da cria-

489
8, 28-30 O Amor

tura, não como imposição, nem como predestinação seletiva, mas na forma de
predestinação de possibilidade.
Em seu relacionamento com a criatura humana Deus se revela inteira-
mente a favor dela e por força e graça dessa favorabilidade nenhuma outra
força ou poder, qualquer que seja sua forma, sua natureza, sua origem e seu
sentido, poderá separar-nos do Amor de Cristo.
É disto que o A. trata nas páginas seguintes.

Vs. 28-30 Pois sabemos que Deus permite que todas as coisas conjuntamente
operem para o bem daqueles que o amam, aqueles que por sua delibera-
ção foram chamados para isso. Por quanto, aqueles que ele conheceu, a
estes também destinou a serem conformes à imagem de seu Filho (a fim de
que este seja o primogênito entre muitos irmãos!). Porém, a estes que para
isto destinou, a estes também chamou; e aos que chamou, a estes também
declarou justificados. Mas aos que justificou fez também participantes de
sua glória.

[Parece-me que convém transcrever aqui a tradução de Almeida da qual


se aproxima bastante a redação da tradução inglesa: “Sabemos que todas as
coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são
chamados segundo o seu propósito. Porquanto aos que de antemão conheceu,
também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de
que ele seja o primogênito entre muitos irmãos. E os que predestinou, a esses
também chamou; e os que chamou, a esses também justificou; e aos que justi-
ficou, a esses também glorificou”].
Sabemos! Não se trata de uma realidade material que tenhamos recebi-
do de Deus, de algo contemplável, objetivo, concreto. Fôra assim, Deus não
seria Deus! “Aquele reino” não está ao alcance do ser humano e nem o reino
(dos céus) se projeta neste mundo. Somos as criaturas para as quais, definitiva-
mente e em toda extensão de nosso conhecimento, Deus é o “Totalmente Dife-
rente” — o Desconhecido. Semelhantemente, o nosso mundo é aquele do qual
Deus está total e definitivamente excluído.
”Precisamos todos completar o ciclo de nossa existência, segundo leis
eternas, férreas e poderosas”.
O ser humano, neste mundo, conhece apenas os gemidos da criação e
seus próprios (8, 22-23), mas pode, pelo menos, tomar conhecimento [da exis-
tência] de Deus (1, 19-20) se não lhe escapar de todo a vacuidade de sua exis-
tência (8, 20), [a vaidade] da dialética das antinomias e a relatividade do anseio
pelas coisas materiais que são apenas visíveis e circunstantes.

490
O Amor 8, 28

Pela salutar abertura de nossos olhos zela o sofrimento e, diretamente


dele, partindo de seus extremos, encontramos a filosofia [“da dor”] que, con-
forme o seu nome sugere, procura explicar o sofrimento humano.
Ignorantes de Deus e do seu Reino, todavia conhecedores do sofrimento
da criação, acompanhamos todas ponderações honestas, inda que profanas, rejei-
tando as imperfeições das interpretações teológicas dadas aos fenômenos natu-
rais e à História. É que justamente em nosso desconhecimento de Deus e na
observação do padecimento da criação estão os elementos básicos — o aço e a
dura rocha — que, ao se chocarem em Espírito e Verdade, produzem o terceiro
elemento: a centelha que leva [a criatura] ao conhecimento do Deus [até então]
desconhecido. Esta chama que assim surge é a inconsciente tomada de consciên-
cia da existência de Deus e também do desconhecimento consciente da vaidade
de nossa existência. Esta chama é o amor a Deus, porque Deus é Deus (5, 5).
Não é assim o pseudo conhecimento teológico de Deus nem o pretenso
desconhecimento da vaidade do mundo que esse pseudo conhecimento aparenta,
pois este “conhecer” e este “ignorar” não estão nem no Espírito nem na Verdade
e, por isso, não geram nenhuma chama, muito menos a chama do amor a Deus.
“Aos que amam a Deus”. — O amor a Deus não é conseqüência da
atitude humana [nem é possibilidade que tenha origem em nosso modo de ser
ou pensar]. Podemos, [talvez] senti-lo ressoando em nossos ouvidos ao perce-
bermos o lamento da criação ou experimentá-lo nos ais que afloram aos nossos
próprios lábios; ele tanto pode estar em nossas preces como em nossa incapaci-
dade de orar; pode estar em nossa religião e nossa indiferença, nossa negação e
até em nossa luta contra a religião; [... “dura coisa te é recalcitrar contra o
aguilhão!”]. Esse amor pode estar no terreno de nossas maiores paixões e tam-
bém de nossa maior tranqüilidade.
Todavia, jamais será [uma coisa qualquer indefinida], “isto” ou “aqui-
lo”, mas é o Poder e o Sentido que vem de cima, que é dado por Deus indepen-
dentemente de qual seja a atitude humana.
O amor de Deus é a mais profunda realidade na problemática de nossa
existência.
Se a criatura humana, qualquer que seja sua atitude, se houver, realmen-
te, confrontado uma única vez, de maneira clara, incontornável, inescapável,
existencialmente, com a pergunta: “Quem sou?” então ela ama a Deus.
Então esse “tu” [que vem na resposta], é que constrange a criatura a se
diferençar de si mesma, [a distinguir entre o material e o espiritual que há em
seu ser]; neste impulso insopitável (que leva a criatura) a confrontar [as suas
próprias inclinações], manifesta-se o seu amor a Deus. [Em outras palavras, o
ser humano confronta sua natureza carnal com a espiritual, porque ama a Deus].

491
8, 28 O Amor

A pessoa pode, efetivamente, estar consciente das flechas que estão cra-
vadas em seu corpo; do veneno que sua alma tem de sorver; dos horrores que
lhe são enviados. (Jó 6, 4). A criatura pode, realmente, saber que ela tem de
viver em luta constante e que os seus dias são quais os de um jornaleiro (Jó 7,
1); ela pode mesmo exclamar: “Acaso sou mar, ou algum monstro marinho,
para que assim me vigies?” (Jó 7, 12). O homem pode, de fato, encontrar em
seu caminho um opositor para o qual não encontre árbitro ou juiz... “que levan-
te sua mão sobre ambos” [e faça prevalecer a justiça], (Jó 9, 33); pode ser que
o seu caminho lhe seja [subitamente] ocultado e [suas saídas] estejam cercadas
por todos os lados (Jó 3, 23).
Sim, tudo isto pode ser tão forte, tão eficaz, tão real e, por isso, tão
[claramente vindo] da mão de Deus que a criatura nada mais possa ver, nem
saber ou querer, ou tomar a sério e ter por válido, [que nada mais lhe reste]
senão submeter-se a Deus. Todavia, não se trata de rendição resignada, fatalis-
ta, ou que [ao menos] contasse com o consolo da religião, porém será uma
submissão existencial, acompanhada do inexprimível gemido do Espírito (8,
26): “Eu sei que meu Redentor vive!” (Jó 19, 29).
É assim que a criatura ama a Deus. Não antes nem depois do instante
[crítico] que “não é”, [o instante que não está cronologicamente situado na
escala de nosso tempo], e que, todavia, é o sentido e significado de todos mo-
mentos de nosso tempo. “MAGNA ET INCOMPREHENSIBILIS RES EST,
AMARE DEUM NEMPE HILARI PECTORE ET GRATO COMPLECTI PER
OMNIA VOLUNTATEM DIVINAM, ETIAM TUM CUM DAMNAT ET
MORTIFICAT”. (Melanchton).
[Sim, grande e incompreensível coisa é, amar a Deus, sem dúvidas, com
o peito tomado de alegria e gratidão pela totalidade da vontade divina, inclusi-
ve pela condenação e mortificação ou,] melhor entendendo: quando tiver lugar
o amor a Deus, a possibilidade religiosa (conscientemente ou não) passa a ser
acontecimento temporal. [Todavia], para caracterizar a temporalidade [a natu-
reza efêmera] da religião, não é necessário que ela seja acompanhada dos fenô-
menos (tipicamente transitórios) — a profecia, o dom de línguas, sabedoria —
que nela, por vezes se manifestam, tão certo quanto, no Livro de Jó, não são
importantes os excelentes discursos proferidos pelos seus amigos.
O que importa é a resposta de Deus que ali está; é a presença de Cristo;
é o derramamento do Santo Espírito. É o caminho “inexplicável” (I Cor. 12,
31) de Deus para os homens e dos homens para Deus.
[A tradução de Almeida escreve: “Procurai, com zelo os melhores dons
e eu passo a mostrar-vos ainda um caminho, sobremodo excelente”; e o Após-
tolo apresenta um hino de louvor à caridade, ao amor].

492
O Amor 8, 28

É o caminho que foi aberto, que pode ser palmilhado e pelo qual a cria-
tura entra em contato com a sua carência, [com o que lhe falta] e com a sua
liberdade; ao longo dele se dá a fundamentação existencial da personalidade e
a revelação do sentido eterno de todas as possibilidades do ser humano. [Esta
revelação, todavia, se completa] no “além” daquilo que fica suprimido; quando
o menino for homem; quando contemplarmos de face a face e não mais através
da imagem obscura do espelho; quando já não conhecermos somente “em par-
te” mas totalmente, conforme somos conhecidos... (I Cor. 13, 8-12).
O amor a Deus — ÁGAPE [o festim de caridade e amor dos antigos
cristãos] diferencia-se de tudo e todo EROS religioso pela relampejante espada
da morte e da eternidade; o amor a Deus proclama que a Nova Criatura está
perante Deus, esse Deus que não pode ser atraído por baladas e canções de
amor como Baal e seus iguais.
Este é o amor que jamais acaba (I Cor. 13, 8) e que permanece junta-
mente com a fé e a esperança: “Estes três, porém o maior destes é o amor”,
porque ele é o acontecimento existencial presente tanto na fé quanto na espe-
rança, (como a “consubstanciação energética” da fé (Cal. 5, 6) — (Almeida
registra... “mas a fé atua pelo amor” e a tradução inglesa escreve “a fé opera
pelo amor”]. O caminho inexplicável (sobretudo excelente (I Cor. 12,31 2ª par-
te)], o caminho do Amor (I Cor. 13, 13), é única, total e exclusivamente, obra de
Deus. CARNI CONTRARIA VOLUPTATE SPONSUS SPONSAM SUAM
AFFICIT CHRISTUS, NEMPE POST AMPLEXUS, AMPLEXUS VERO IPSI
MORS ET INFERNUS SUNT. (Lutero).
[A estes ele] permite que todas as coisas operem conjuntamente para o bem”.
O amor a Deus é humildade tão consciente de si mesma, humildade que
sabe tão bem o que quer, que já não formula determinadas perguntas, nem
levanta determinadas reivindicações. Este amor, por ser anseio tão veemente, já
provou o sabor do cumprimento e, por isto, não pode mais ser mitigado, [muito
menos] extinto.
Este amor é paz suficientemente profunda para, simultaneamente, abri-
gar a maior calma e a mais alta inquietação. Este amor é tão grande expectativa
pela Redenção, que não necessita de esperar por acontecimentos, cumprimen-
tos [de profecias e promessas divinas], e livramentos.
Este amor, inconscientemente, tem conhecimento de Deus e, conscien-
temente, ignora a vaidade de nossa existência.
No amor a Deus está o ponto invisível e eterno onde já se realizou ple-
namente a conversão de todas as coisas.
Jó, em seu desarrazoado clamor à vista do obumbramento de Deus, “fa-
lou retamente perante mim”, e por isso o Senhor o recebe e lhe concede “em

493
8, 28 O Amor

dobro, tudo quanto antes possuíra”, (Jó 42, 7-10), pois ao contrário de seus
amigos por demais religiosos ele venceu o “ponto morto” e chegou ao “ponto
vivo” onde o ser humano e seu mundo, não só ultrapassaram a noite, como
estão sob o reflexo do glorioso dia vindouro, quando Deus deixa de ser o Gran-
de-Desconhecido para se tornar o Grande-Conhecido, quando o misterioso
Universo se revelará como criação de Deus. “Pois todas as coisas operam con-
juntamente para o bem daqueles que amam a Deus”.
Esse bem é a contemplação do Redentor e da Redenção; é alcance da
vida que está além da morte; é o princípio da expectativa que já não é mais
expectativa; é o “não-conhecimento” de Deus que é o mais alto conhecimento;
é saber o que é o pecado, a morte, satanás e o inferno, que é o supremo desco-
nhecimento.
O bem é o amor de Deus à criatura humana que, miserável e nua, apenas
está ainda vestida na presença de Deus mas, por isso mesmo, está ricamente
trajada.
Tudo precisa operar conjuntamente para que aqueles a quem Deus ama
sejam participantes desse bem; tudo precisa cooperar na construção desse bem.
Tudo, quer dizer a totalmente inconstrutível visibilidade do mundo, [sua
materialidade] e também a igualmente inedificável invisibilidade de Deus; o
lamento da criação e as trevas da ira divina; a incurável dubiedade dos tempos
e a incerteza da eternidade que se lhe opõe.
Aquele que ama a Deus está onde as duas negações [a realidade do
mundo e a invisibilidade de Deus] se manifestam mais agudamente e se contra-
põem, uma apontando à outra e se cancelando mutuamente. Quem ama a Deus
está na posição onde, por trás dele, acima dele e nele mesmo, se vê superimposta
a nova condição: Jesus Cristo, a ressurreição e a vida.
Bem-aventurada é a descoberta de que Deus habita na luz inacessível e,
igualmente bem-aventurada é a outra, de que toda a carne é como a erva e toda
a glória humana como a flor do campo! Se uma dessas descobertas se der em
Espírito e Verdade, a outra ocorrerá semelhantemente, e ambas operarão con-
juntamente, conduzidas pelo único Deus, cuja majestade é, aqui e no além, [e
em toda parte] o [divino] SIM que está contido no próprio não de Deus.
O amor a Deus leva a criatura a observar tanto o lado de lá quanto o lado
de cá do grande mistério como um conjunto único e, além de todas dubiedades
e tensões, em tudo, vê esta verdade única: que Deus, o Livre, o Justo, o Santo,
o que Vive, reconhece a nós, os cativos, OS pecadores, os condenados, os mor-
tos, como sendo seus!
No inconsciente conhecimento e consciente desconhecimento a que o
amor a Deus dá lugar, manifesta-se a primitiva unidade entre o visível e o

494
O Amor 8, 28

invisível; entre o céu e a terra; entre o ser humano e Deus. Também a dualidade
conforme aqui a conhecemos e que teremos de [suportar e] reconhecer até o
final de nossos dias, proclama a sua unidade, que é a nossa esperança: a glória
dos filhos de Deus.
É assim que Deus recompensa aos que o amam.
— Quem são estes, porém?
— “Aqueles que são chamados segundo sua deliberação”.
Portanto, nem estes, nem aqueles, nem tampouco, todos.
A pergunta: “Quais são os que amam a Deus?” não pode ser posta
quantitativamente.
O amor a Deus não é [dom que possa ser] concedido; isto [não aconte-
ceu, não acontece e] jamais acontecerá em parte alguma; ele não está à mão e
não se o pode apanhar, nem para o indivíduo nem coletivamente; ele não pode
ser conquistado nem herdado, nem existe nas pessoas como se fora proprieda-
de de alguém.
[Paralelamente é preciso entender que] na realidade, e na forma mais
séria de seu significado, não há “cristão”; o que existe é a eterna possibilidade,
sempre presente e igualmente acessível a todos, de se tornarem cristãos. Sem-
pre, e por toda parte, Deus, o próprio Deus, se antepõe ao ser humano, neste
mundo.
Foi Deus quem primeiramente amou a criatura humana; foi Deus quem
rasgou, quem abriu o abismo à direita e à esquerda de cada pessoa, tirando-lhe
todas as demais alternativas de forma a restar-lhe esta uma só: amar novamente
aquele que acentua as antonomias da duplicidade e as faz operar “conjunta-
mente” para que ao ser humano não passem de todo desapercebidas a
inambigüidade e a oculta unidade dessa duplicidade. Assim Deus edifica o que
[de outra formal não seria edificável nem aqui nem no além.
“De acordo com a sua decisão”, aqueles que o amam são chamados a
executar a obra para a qual ninguém pode chamar outra pessoa, nem mesmo
oferecer-se.
E quando foi que alguém que amasse a Deus entendeu de outra forma?
Quem há que, (amando a Deus), acaso se glorie de dar a volta à chave e abrir a
porta realizando a plenitude da negação da negação; que se glorie de haver
vencido o caminho estreito entre os abismos que o ladeiam; que haja trocado o
sinal daquilo que não é edificável tanto no aquém como no além e tenha, assim,
conseguido e efetivado a conversão de todas as coisas? Que a “certeza cristã”
que, felizmente, subsiste apenas na presunção dos teólogos, tenha a desfaçatez
de citar, de mencionar os paradoxos absolutos do governo divino do mundo e a
confiança dos homens em Deus, como fatos religiosos, contando com eles ou,

495
8, 28 O Amor

pelo menos, fazendo-os soar como se fossem moedas verdadeiras. (E não im-
porta que essa atitude seja o resultado de um genuíno embaraço ou que ela seja
tomada como recurso de retórica ou ainda por astúcia apologética, para
contraexibir [pretensos] valores. [A verdade é que] quem realmente ama a Deus
sabe que este amor não é “uma coisa”, uma façanha heróica desta ou daquela
pessoa; não é um porto no qual, finalmente, possamos ancorar depois de longa
viagem. [Quem sente o amor a Deus] sabe que ele não é um “Bem” cuja posse
o cristão de alguma maneira possa ostentar de direito ante quem quer que seja;
sabe também que este sentimento é, unicamente e sempre, dom e obra de Deus,
e a conseqüência da vocação [do chamamento] que tem por base a decisão
divina tomada desde antes de todos os tempos e também antes de todo instante
de nosso tempo. “Dando-lhes tu, eles o recolhem; abres a tua mão, e enchem-se
de bens. Escondes teu rosto e ficam perturbados; se lhes tiras a respiração,
morrem e voltam para o seu pó”. (Sal. 104, 28-29).
Somente em Deus, passa a dualidade a ser unidade.
Quando se manifesta o amor a Deus, então também Deus se manifesta
[ou melhor, então o ser humano adquire [ou assume) condições de sentir a
manifestação de Deus] e esta sua manifestação jamais se estende pelo tempo,
de forma que ela não pode tornar-se um “bem”, uma posse, (para quem quer
que seja]. Esta manifestação é (repetimos) de novo e sempre, trabalho próprio
de Deus e dádiva exclusivamente sua, porquanto só em Deus pode a “vida” ser
morte e a “morte” vida; somente ele revela a criação no Cosmos e só ele revela
que ele mesmo é o Redentor.
Somente Deus cria a existencialidade da conversão do conhecimento
não redimido, tirando-o da vaidade do mundo para o livre conhecimento. [Em
outras palavras, só Deus dá vida à conversão que tira a criatura, não redimida,
da vaidade do mundo e a restaura no livre conhecimento da verdade].
Somente Deus produz a conversão de nosso conhecimento irredimido
[e portanto cativo do pecado], em conhecimento livre.
Estes, pois, são os que amam a Deus; que para isso foram chamados
pelo próprio Deus e por ele só. Como poderiam amar a Deus se houvessem
encontrado a seu próprio ver, respostas mais satisfatórias, mais aquietantes?
“Porquanto aos que conheceu a estes também destinou a serem confor-
mes a imagem de seu Filho (a fim de que este seja o primogênito) entre muitos
irmãos. Porém a estes que para isto destinou, a estes também chamou”.
São identificados como “chamados” [vocacionalmente], aqueles que
amam a Deus; “chamados” evidentemente em contraposição aos “não-chama-
dos”, aqueles que pretendem [pensam] ou aparentam amar a Deus, porém não
o amam.

496
O Amor 8, 29-30

A vocação (a chamada) é a única coisa que distingue o profeta do


falso profeta; que estabelece a diferença entre Paulo e os sete filhos de Ceva
(Atos, 19).
Os que amam a Deus jamais poderão impedir que sejam comparados
aos fúteis portadores de tirso [insígnia de Baco, que consistia no desenho de
um bastão encimado de uma pinha ou, alternativamente, de ramos]; nem fica-
rão surpresos se forem [até mesmo] confundidos com eles e, se isto não acon-
tecer, o atribuirão à providência divina; em qualquer hipótese, porém, não ape-
larão à sua vocação pois sempre considerarão que ela só é válida em si mesma
e nunca admitirão que ela lhes dê alguma vantagem.
Nem tampouco esses tais [que amam a Deus] se oporão a que se lhes
tire toda a paz, lembrando-se que eles não são senão apenas chamados.
Jamais lhes parecerá lógico [ou compreensível] que o amor a Deus te-
nha sido derramado em seus corações pelo Espírito Santo. Nunca poderão su-
por que isto seja um fato real, consumado. “Eu serei aquele que eu for”! (ou, na
versão de Almeida, “Eu sou o que sou”!] (Ex. 3, 13-15): O Desconhecido, o
Invisível, o Eterno; [eu sou] aquele que chama.
É como tal que Deus é amado “por aqueles que o amam”.
Se, por um instante, [os que assim são chamados] o amassem de forma
diferente, [tivessem com Deus] um relacionamento direto, assegurando para si
uma posse, ou se gozassem de algum privilégio [ou vantagem ou experiência
especial], então Deus já não seria mais Deus e a vocação deixaria de existir,
pois são chamados aqueles que foram destinados por Deus “para serem confor-
me a imagem de seu Filho”. A imagem a que se devem assemelhar é a morte de
Jesus. (Filip. 3, 10).
Foi sob esta figura [nesta imagem], sob esta forma incógnita e sob a
transparência do fato que constitui a característica dominante da vida de Jesus
— [a sua renúncia a tudo quanto poderia ser (inclusive ao que o mundo lhe
poderia dar como “filho do homem”), culminando com sua morte], —que o
Filho de Deus veio ao mundo. (5, 6; 6, 5; 8, 3). A isto, [a esta semelhança] são
destinados aqueles que amam a Deus: destinados a testemunhar o caminho da
morte, [a “VIA CRUCIS”] de Jesus, e também a sua ressurreição.
A última e mais pesada aflição [daqueles que amam a Deus] é o cami-
nho que têm de percorrer na vida, qualquer que seja a forma efetiva[e particular
de cada um]. É a aflição de quem está apertado entre o Deus Desconhecido e o
mundo, por demais conhecido; é uma situação na qual a criatura não sabe como
se há de ter nem como dela há de sair.
Amar a Deus, é amá-lo nesse aperto; é amá-lo na aflição em que o Gólgota
e o Getsêmani nos mostram e anunciam Jesus.

497
8, 29-30 O Amor

Amar a Deus é seguir na vida o “inexplicável caminho” que principia no


batismo do Jordão e na tentação [do deserto], e termina na Cruz; e ser o arauto
de Cristo, anunciar a palavra da Redenção [da Reconciliação] é sentir indefeso
que, na sua realidade final, essa mesma palavra se levanta como condenação,
até para aqueles que a proclamam. (II Cor. 5, 19-20).
Isto é amar a Deus!
Todavia é claro que quando esta destinação se completa em uma pessoa,
quando se torna num evento, quando pessoas como Jó ou Paulo anunciam a
morte de Jesus, quando se tornar possível que a criatura se glorie em sua tribu-
lação como sendo sua honra e sua salvação (5, 3), quando acontecer alguém
tornar-se em luz que brilha dentro de sua miséria, [angústia, aflição e tribula-
ção], a despeito dessa miséria ou por causa dela, (II Cor. 1, 3-11), então se trata
de obra de Deus que opera nessa pessoa e por meio dela, pois nenhuma nega-
ção finita gera o infinito. Não há asceticismo, nem martirização, nem “sabedo-
ria da morte”, nem morte voluntária, nem qualquer suplício que a pessoa esco-
lha, que possa criar a luz que vem da cruz de Cristo.
Nenhuma experiência mortal serve como sucedânea da morte que fala
aos “chamados” e que, através deles, fala do Deus vivo; não há discipulado
[ou imitação] de Cristo que, como empreendimento humano, tenha o poder
de transformar alguém em um dos [muitos] irmãos do primogênito Filho de
Deus. Esta filiação é criada pela invisível, eterna e divina destinação, “guiada
pelo Espírito” (8, 14); é ela que gera essa importância [esse novo significado]
da existência material; é ela que dá orientação no modo de pensar, falar e agir
da criatura. A luz que assim se acende, pertence a Deus e, portanto, é dele o
seu brilho.
Quando a aflição já não for somente aflição, nem a morte apenas morte;
quando o “NÃO” deixar de ser puramente não, e o “não-conhecimento” já não
for exatamente, desconhecimento, [quando as coisas se transformarem e mu-
darem de sentido] semelhantemente ao que acontece na “imagem de seu Filho”
em quem se dá a conversão de tudo, então Deus despontará como Criador e
Redentor, pontualmente presente com sua palavra, o olhar que tudo vê e que é
visto como o sol.
Quando isto se der, foi porque Deus assim resolveu e não o ser humano.
E nesta determinação [nesta resolução anterior] que a todo instante [e
em cada momento] precede a nossa atualidade em nosso relacionamento com
Deus (que uma vez foi rompido pela nossa queda e ora se faz indiretamente),
que está a legitimidade e a autoridade da vocação daqueles que amam a Deus.
Eles são destinados por Deus porque são conhecidos por ele. “Se alguém ama
a Deus, esse é conhecido por ele”. (I Cor. 8, 3).

498
O Amor 8, 29-30

Aqui estamos ante o segredo da predestinação da criatura à bem-


aventurança. Agostinho e os Reformadores a apresentaram em forma mitológi-
ca, como se ela fosse baseada num esquema de causa e efeito e, com isso,
privaram-na de seu verdadeiro alcance.
O fato de que Deus conhece a criatura humana e de que neste conheci-
mento que é de Deus e somente de Deus, a destinação desta criatura para filho
de Deus esteja no amor que ela tem a Deus e [ainda] que dentro desta destinação
a criatura seja chamada para testemunhar do evento da ressurreição, não signi-
fica que este amor seja motivado por decisão divina tomada na origem dos
tempos (no próprio começo dos tempos!) pela qual se crie agora, no decorrer
dos tempos e na presente criatura, uma determinada maneira de ser, de ter e de
agir; antes significa que esse amor a Deus não pode, em momento algum, bro-
tar como modo de ser, ter ou agir, atribuível aos homens pois ele tem, por todo
sempre e a cada momento, sua origem em Deus, que é onde sua fonte precisa
ser procurada e só onde pode ser achada.
[A tradução inglesa escreve assim: “É aqui que encontramos o segredo
da predestinação à bem-aventurança, que Agostinho e os Reformadores repre-
sentaram em forma mitológica, como se fora um esquema de causa e efeito e,
assim, roubaram-lhe o significado. Sem dúvida o amor humano a Deus, a orde-
nação dos homens à filiação e sua chamada para testemunhas da ressurreição
são ocorrências genuínas conseqüentes do conhecimento que Deus tem dos
homens e que tem lugar no conhecimento do único e verdadeiro Deus. Mas isto
não deve ser tomado como significando que o Amor a Deus deu existência a
um modo peculiar, humano, de ser, estar ou agir, resultante da causa divina
ocorrida concretamente como a primeira de uma série de ocorrências].
Quem ama a Deus, jamais pode perguntar: “Sou eu?” Nem tampouco
lhe podem interrogar: “És tu?”
Esta pergunta, “acaso sou eu?” é rica em sentido na conotação que teve
nos lábios dos Apóstolos quando a formularam na última ceia.
O Senhor conhece os seus; ele os conhece, os prisioneiros libertos, os
pecadores justificados; os mortos vivificados.
Semelhantemente, é ele o Juiz; também é só contra ele que o homem
pecou e pode pecar.
A verdade do amor da criatura a Deus está em Deus e não no homem.
Este amor se fundamenta em Deus e é efetivado [materializado] nele; Deus o
vê e o recompensa; Deus o conhece e é em Deus — e somente em Deus — que
ele tem existência.
Este conhecimento que Deus tem existe eternamente, invisível, antes.
após e acima de todos os tempos e, portanto. jamais é igual [ou semelhante] ao
conhecimento do ser humano na temporalidade.

499
8, 29-32 O Amor

O conhecimento [que Deus tem do homem] é a crise de todo conheci-


mento humano, a [própria] condição para a existência deste conhecimento e [é,
também] a sua supressão.
“Se alguém julga saber alguma coisa, com efeito não aprendeu ainda
como convém saber” (1 Cor. 8, 2), “porquanto o que alguém sabe, e que por-
tanto lhe é perceptível, isso é temporal, porém o que é eterno, é invisível”.
(II Cor.4, 18).
Isto é Espírito e é Verdade!
A paz e a certeza [a segurança] daqueles que amam a Deus está na rea-
lidade de que a decisão sobre o seu destino e a sua chamada se fazem na eterni-
dade, no Espírito e na Verdade. A sua inquietação perante Deus, é a sua paz; a
sua insegurança, a sua certeza; o seu temor e tremor é a alavanca que eleva o
seu próprio modo de ser, seu ter e seu agir.
Julgados, eles são justificados; cegos, eles vêem; mortos são vivifica-
dos, porém, nunca jamais em relação direta de causa e efeito mas sempre e
reiteradamente dependendo de Deus.
Eles são, a todo tempo da temporalidade, aquilo que são! [Isto é, no
mundo, são — apesar de toda graça divina — apenas seres humanos!].
Agora, pois, pretendemos saber o que dizemos [do que estamos falando
e o que estamos afirmando], quando dizemos: “Aos que chamou, a esses tam-
bém justificou e aos que justificou, a esses fez co-participantes da sua glória”.
Se a vocação [o chamado] da criatura para o amor a Deus está segura —
assegurada no Espírito, na Verdade, no próprio Deus, — então também é certa
a invisível e límpida justificação — a sua aptidão — para a cidadania do Reino
dos Céus. Então é certo que Deus conta com ele, o pecador, como sendo seu,
[isto é, — como pertencente a Deus].
Porquanto na criatura por ele chamada, por ele destinada e dele conhe-
cida, no oculto de seu ser, ter e agir (2, 16), Deus encontra o que lhe apraz,
[porque o que aí existe] é a nova criatura, [o ser] que o próprio Deus criou para
a redenção dos homens.
A criatura chamada para amar a Deus é a invisível criatura nova. Este é
o fundamento, a razão pela qual Deus permite que “todas as coisas conjuntamente
operem para o bem” (daqueles que o amam); eis aí porque a verdade eterna
pode vir ao encontro desses tais na qualidade de esperança eterna, a sua espe-
rança existencial. [É por isto que, para aqueles que amam a Deus], para o ser
humano, o futuro eterno é tanto o passado como o presente e o futuro. O ágape
“tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta” (1 Cor. 13, 7). Ágape tem
significado existencial para Deus. [A tradução inglesa escreve “amor é o reco-
nhecimento existencial de Deus”]; é existencial porque tem o próprio sentido

500
O Amor 8, 31-32

de Deus, porque o amor é o Espírito que perscruta até mesmo as profundezas


de Deus.(I Cor.2,10).
Todavia “ágape” continua sendo o “caminho mais excelente” que não
pode ser entendido nem pela experiência, nem pelo raciocínio, nem pelo nosso
intensivo testemunho de que pertencemos a Deus; ele se torna compreensível,
apenas, em Deus.

Vs. 31 e 32 Que diremos, pois, à vista dessas coisas? Se Deus é por nós, quem
será contra nós?Aquele que não poupou o seu próprio Filho, antes, por
todos nós o entregou, como não nos dará também, com ele, graciosamen-
te, todas as coisas?

“Que diremos, pois, à vista dessas coisas?” — [o que diremos pois] para
esclarecer, interpretar e completar aquilo que o próprio Deus diz aos que o
amam, aquilo que só Deus pode afirmar lá onde ele quer que o procuremos e
onde ele se dá a conhecer?
Acaso [poderíamos juntar algo ao que Deus diz, sem obscurecer-lhe o
sentido?] Poderíamos acrescentar alguma coisa que não fosse senão um peque-
no comentário, [não importa se] reiterando ou negando o que Deus disse?
Ora, calar sobre o que o amor [a Deus] conhece [e traz ao nosso conhe-
cimento] tem o mesmo efeito obscurecedor que falar a seu respeito; erramos
igualmente, quer falemos quer silenciemos mas estaremos certos em ambos os
casos se Deus nos justificar— (literalmente, “se Deus nos der razão”).
“Se Deus é por nós, quem será contra nós?”
“SI DEUS PRO NOBIS, QUIS CONTRA NOS?” Se soubéssemos de-
clinar e entender devidamente o pronome [em sua forma] NOS e NOBIS, então
também saberíamos conjugar corretamente o nome DEUS fazendo desse subs-
tantivo um verbo que significaria DEUS DIXIT ET DICTUM EST; então a
preposição CONTRA, envergonhada, diminuiria [progressivamente] para se
tornar, finalmente “INFRA NOS conforme, alias, acontecerá — aliás, tem de
acontecer. Amém”! (Lutero) . “Deus por nós” é o que se diz aos que amam a
Deus. “Deus por nós”, é coisa nunca dantes ouvida; significa que o reino dos
contrastes [das antinomias] já passou. Significa que foram vencidas as trevas
do mundo visto por Deus e, também, as trevas em que o mundo via a Deus.
[As duplas trevas foram desfeitas pelo nascimento do Homem Novo (em
Cristo) que já não apresenta as trevas da retenção da verdade com sua própria
justiça e não está à sombra do NÃO divino à injustiça humana. Todavia, o Ho-
mem Velho, (em Adão)] é precipitado na dualidade dessas trevas e, eventualmen-

501
8, 31-32 O Amor

te, transformado em criatura religiosa; “retém a verdade na injustiça” (1, 18) e


tem, contra ela, Deus e o mundo, a morte, o pecado. Por isso somente lhe resta
pensar em termos de contrastes, por antinomias e sob tensão. Esta é a situação da
pessoa não redimida que não conhece a unidade [que há no amor a Deus].
Contudo, a criatura com quem Deus está e que, portanto, por força da
iniciativa divina está ao lado de Deus, ignora a dualidade e não pensa por
antinomias; a ninguém e nada tem contra si, pois este ser corruptível [desagra-
dável], revestiu-se da incorruptibilidade e o mortal, da imortalidade. Aqui se
cumpriu o que foi dito: “Tragada foi a morte pela vitória”! (1 Cor. 15, 54).
Mediante este “Deus por nós”! está dito o que era preciso, sobre “Cumprimen-
to”, “Redenção”, “Perfeição” e “Glória”; foi dito tudo o que podemos afirmar e
o que precisa ser dito sobre o invisível centro.
O princípio e o fim é Deus, que é “tudo em todos” (1 Cor. 15, 28). Não
temos palavras para expressar, nem o nosso entendimento pode compreender
[como pode Deus ser — ou como é ele “tudo em todos”], mesmo porque se
entendêssemos, se pudéssemos explicar, ele já não seria esse “tudo em todos”.
Contentemo-nos, pois, em observar que todas as setas do caminho apontam
nessa direção e, aí, cessam.
Porém paramos com conhecimento de causa, não sonhadoramente, mas
cientes que vimos a verdade final inesquecivelmente. “Aquele que não poupou
o seu próprio Filho, antes o entregou por todos nós, como não nos dará tam-
bém, com ele, misericordiosamente, todas as coisas?”
Se olharmos para onde a existência e o modo de ser da criatura humana
atingem o seu ponto mais baixo, onde a sua vaidade é mais inconfundível, se
olharmos para o ponto donde procede o lamentoso gemido que ressoa em nos-
sos ouvidos, lá onde é mais impenetrável o incógnito divino, ali, justamente ali,
vem Jesus Cristo ao nosso encontro. Ele está ali, “entregue” e “não poupado”,
na linha divisória da materialidade, também ele, indubitavelmente, submerso
no imenso caudal; “por nós todos” foi ele entregue e, em nosso lugar, é que ele
está lá.
Juntamente com ele, também nós (especialmente nós!) estamos submersos
nas águas, arrastados para as profundezas e colocados perante o não que Deus
pronunciou a nosso respeito — a respeito desta criatura a quem foi tirada toda
possibilidade de fugir desta confrontação [com o não divino] e que é conduzida
ao tribunal a que todos são submetidos no insanável conflito entre a justificação
e o pecado, entre a vida e a morte, entre a temporalidade e a eternidade.
Lá [onde Jesus Cristo está e para onde a criatura humana foi conduzida]
resta [e permanece] apenas Deus, em sua existencialidade [eterna]. Todavia, na
culminância desse enigmático acontecimento dá-se, também, a conversão de

502
O Amor 8, 33-39

todas as coisas. Quando somente Deus permanece, ele se torna o nosso verda-
deiro Deus vivo; então surge, para nós, a esperança de sua glória. Ali está Deus
— o Deus a quem nunca conhecemos se não como nosso opositor, como quem
está contra nós — [e que, agora e aqui] é o “Deus por nós”.
O Cristo entregue, o Cristo que tudo nos tira [que nos leva à renúncia de
todas as possibilidades do mundo], deixando-nos apenas a existencialidade de
Deus é, [realmente] o “Deus por nós” (8, 31) e “nós”, ao lado de Deus; temos
de ousar o assalto a esta posição incapturável que, todavia, já caiu! O Cristo
que foi entregue é o Espírito, a Verdade, o incansável braço de Deus. Se sofrer-
mos com ele, como não haveremos de ser, também, glorificados com ele? (8,
17). Se morrermos com ele, como não haveremos, também, de viver com ele?
(6, 8). Se Deus nos entregou, juntamente com ele, ao tribunal que está sobre
todos [que a todos julga], como não nos concederá também, em toda graça, que
todas as coisas concorram conjuntamente para o nosso bem?! (8, 28).
“Em toda graça!” — Não podemos falar, mas também não podemos
deixar de falar da aurora que vimos!

Vs. 33 a 39 Quem intentará acusação contra os escolhidos de Deus?


Acaso Deus, que nos declara justificados? Quem condenará?— Acaso
Cristo Jesus, o que morreu, ou melhor o ressurrecto que está à direita de
Deus e que até intercede por nós?
Quem nos separará do amor de Cristo? Será tribulação, ou angústia,
ou perseguição, ou fome, ou nudez, ou perigo, ou espada? (Acontece con-
forme está escrito:) Por amor de ti somos entregues à morte, o dia todo;
somos considerados como ovelhas para o matadouro (Sal. 44, 22), porém
em tudo isto somos vitoriosos por meio daquele que nos amou! “Pois eu
sei que nem a morte nem a vida, nem anjo nem potestade, nem o presente
nem o porvir nem poderes das alturas nem os das profundezas, nem qual-
quer outra criatura pode separar-nos do amor de Deus [que está] em Cristo
Jesus, nosso Senhor”.

— Este assalto que aqui é feito à fortaleza “Deus por nós” acaso pode
ser confirmado?
(A tradução inglesa escreve: Podemos agora, afinal, anunciar que assal-
tamos e ocupamos a fortaleza “Deus por nós”?
Embora esta maneira de traduzir possa estar implícita no contexto geral
parece-me que, pela posição em que a frase está e pela maneira de escrever do
Autor, ele quer referir-se à idéia geral contida nos versículos 33 a 39 nos quais

503
8, 33-39 O Amor

se afirma vigorosamente que “Deus é por nós”. [A tradução literal da frase, que
segue imediatamente à transcrição dos versículos é: [Pode a posição “Deus por
nós” aqui assaltada, ser confirmada?)].
[O A. prossegue, respondendo sua pergunta:]
— Não; ela precisa ser renunciada imediatamente pois sabemos que
este território é propriedade de Deus; é território no qual nada temos a procurar,
nem agora, nem no passado, nem no futuro. [Entenda-se: O “assalto” precisa
ser renunciado].
Acusação se levantará sempre, — a todo tempo, em todo sentido e con-
tra todas pessoas.
O que mais pode a criatura humana ser perante Deus senão acusada?
Somos condenados ao sermos medidos em Jesus Cristo e “entregues”
juntamente com ele.
Estamos separados [infinitamente distanciados] do amor de Cristo por-
quanto a minúscula fagulha do nosso amor é incomensuravelmente pequena
ante o brilho do amor a Deus que Cristo revela em sua morte. Aberta esta porta
e expostos a esta luz, quem poderia ser justificado? [É insignificantemente peque-
no o nosso amor] quando contrastamos a divindade, a glória e o eterno porvir
que vemos, cremos e experimentamos em Cristo, com a miséria da vida que
temos de viver em sua brutal realidade.
“Em tudo isto somos vitoriosos!
“Somos”? Acaso “nós”? Nós que de uma ou outra forma nos converte-
mos, ou que procedemos desta ou daquela maneira ou que, de alguma forma
fomos convencidos, entusiasmados ou adequadamente orientados?
Ora, sejamos honestos, comedidos e objetivos. Não falemos apressada-
mente, nem em voz tão alta e com tanta certeza; também não seja, aquilo que
dizemos, mera repetição, mas falemos baseados em nossa própria observação.
Olhemos a enorme diferença entre [o que Cristo revela em sua morte e]
a nossa experiência, ou a de outros. É mesmo possível que — HORRIBILE
DICTU —, a experiência dos outros esteja, até, menos distante que a nossa...
Todavia, para uns e outros, e sem fim a diferença entre o instante eterno
no qual abordamos [assaltamos] a posição “Deus por nós”, e todos demais
momentos tanto anteriores como posteriores, nos quais “ainda” ou “de novo”
(e há muito tempo) estamos do lado de fora, vangloriando-nos de uma vitória
que, o quanto possamos perceber, é uma derrota.
Todavia, não podemos desistir desse assalto porquanto o “amor a Deus”
por parte daqueles que para isto foram chamados pelo próprio Deus e que são
destinados e conhecidos por ele (8, 29-30), caiu nos braços [ou no coração] do
encolerizado juiz da criatura deste mundo. Cristo — o HOMEM NOVO que eu

504
O Espírito 8, 33-39

não sou — implantou seus pés onde não posso estar. A ele se diz o que eu não
posso dizer. Ele não é apenas aquele que morreu, mas nele se completa a con-
versão [a mudança, a transformação] de todas as coisas; ele é aquele que res-
surgiu e, nesta qualidade, está em meu lugar à direita de Deus e intercede por
mim. Ele percebe que eu, o pecador, estou justificado; que minha prisão é mi-
nha liberdade e que minha máxima aflição na morte é a vitória da vida.
Eu sei que ninguém e nada me poderá separar do amor de Cristo —
(amor, esse, do qual nada sei).
Consideramos monstruosas as intermináveis finitudes, sua realidade e
a inevitabilidade dos contrastes que elas criam entre o “saber” e o “não-sa-
ber”, entre a morte e a vida, entre o ser humano e o ser divino, entre o passa-
do, o presente, o futuro, e o FUTURUM AETERNUM (do outro lado); entre
o que é visível e o invisível no além, entre o relativo e o absoluto, entre a terra
e o céu.
Todavia [essas terríveis e infindáveis antinomias] são, perante Deus e
em Deus, a negação da negatividade, cuja imposição é suprimida e a criatura se
encontra em paz, adotada como “filho”, redimida e liberta de todas antinomias,
una em Deus. Porquanto o amor de Deus, em Jesus Cristo, é a unidade [ou a
unificação] do amor de Deus ao ser humano e o amor do ser humano a Deus.
Nessa união está a vitória de nosso amor; nela se realiza a “irrealizável” identi-
ficação.
Todavia, precisamos voltar imediatamente ao fato de que, de forma al-
guma somos nós que realizamos esta identificação; nem, sequer, a podemos
considerar como realizável. Baste-nos saber que é desta união que viemos e
para ela vamos.
[Jesus Cristo, ontem, hoje e para sempre.]

Comentários: 8, 1-39 (O Espírito)

1. Ao tratar da obra de Deus junto aos homens, Barth diz repetidas vezes
que Deus se justifica perante os homens e conta com eles; todavia o
A. não entra em minúcias sobre estes aspectos específicos do relaci-
onamento de Deus com o ser humano. (Deve ser porque escreve para
teólogos!)
Por que precisa Deus justificar-se? Acaso não disse ele a Moisés,
“Eu sou o que SOU”!? É certo que a seguir Deus abrandou a sua
maneira de se identificar: “Dirás que quem te enviou é ‘o Deus de
nossos pais, o Deus de Abraão’... “(Exo. 3, 14-15).

505
8, 1-39 O Espírito

Talvez possamos estudar estes aspectos focalizando-os sob o con-


ceito geral da “ética divina” em confronto com a ética humana, a que
se contrapõe.
Ética, segundo os padrões humanos, é a ciência do bem envolven-
do os deveres e a finalidade última do homem e, conseqüentemente,
implica no ajustamento das ações humanas para o conseguimento do
bem perfeito. Na prática desse ajustamento dá-se o fracionamento da
ética que, então, passa a se referir a classes e grupos de atividade e
profissões, dentro das quais busca o bem comum por meio de princí-
pios e normas de conduta que estabelecem “códigos” incorporando
princípios aceitos pelo consenso geral dos respectivos grupos, inde-
pendentemente da veracidade ou falsidade desses princípios. Tais
códigos, todavia, são apenas referência para estabelecer critério mas
não são de aplicação compulsória; são “lei moral”. Portanto, talvez
possamos dizer que a ética humana consiste, em suma, no procedi-
mento decente entre pares, referido a determinado código.
Também a “ética divina” é, em princípio, “apenas” lei moral —
(se for permitido que assim nos expressemos) mas a sua semelhança
com a ética humana não vai além desta peculiaridade e, assim mes-
mo, porque a característica veio de cima. É Deus que, havendo por
seu próprio decreto criado o ser humano à sua imagem e semelhança,
lhe dá liberdade plena para “fazer” e “deixar de fazer”.
Deus visa ao bem perfeito e à finalidade última da criatura, não
pela adaptação de meios mas, mediante uma única condição: “Ao
Senhor teu Deus adorarás, e só a ele servirás”. (Deut. 6, 13 e Mat. 4,
10). Ou então, segundo o grande mandamento: “Amarás o Senhor teu
Deus de todo teu coração, de toda tua alma, de todo teu entendimen-
to”. (Deut. 6, 5 e Mat. 22, 37). A diferença fundamental está nisto: a
ética humana estabelece leis para moldar os corações; a ética divina
sugere a reforma do coração para dele surgirem pensamentos retos.
Para os homens valem os princípios do consenso; para Deus o prin-
cípio é absoluto. Amando a Deus, amará o homem a seu próximo e
seu procedimento será necessária e excelentemente ético.
Do que haveria Deus de se justificar? De ser Deus? De haver cri-
ado o homem? De exigir exclusivamente para si o atributo que é devi-
do pela criatura ao Criador? — Sim, talvez possamos dizer “Sim”, se
Deus assim o entender.
Todavia parece-me que, mesmo mediante a excusa ou a justificativa
de sermos obrigados a usar palavras de sentido mitológico, ou por

506
O Espírito 8, 1-39

isto mesmo, seria mais próprio dizer que no sofrimento, na aflição e


na dor, quando convenientemente entendidos, vemos a razão de Deus
quando nos reivindicou (ou reivindica) para si. Esta é a justificação
(que encontramos) de Deus.
Ora, é justamente quando assim entendemos que nos entregamos
a Deus, sem reservas. Isto se dará quando houvermos ouvido e enten-
dido a pergunta e a resposta que nos vem desde a cruz; quando nos
houvermos esvaziado completamente, quando virmos a luz não gera-
da que brilha através e além do sofrimento; então estaremos em con-
dições de receber em nós a obra de Deus e daremos ocasião (todavia
não nós, mas Cristo em nós!...) a que o Espírito Santo entre e faça
morada em nós. Esta é a maneira pela qual Deus conta conosco, no
sofrimento. Não para lhe servirmos por testemunhas, embora esse
testemunho seja marco indicativo de nossa redenção. Deus conta e
“precisa contar conosco” para justificar-nos, pois ele não nos
predestinou para crermos, inescapavelmente, (ou para que alguns, —
poucos ou muitos — creiam) mas nos predestinou à bem-aventurança
eterna, mediante nossa fé, segundo aquilo que houver no íntimo de
nosso coração. (Novamente, não “nós” mas “Cristo em nós” porquanto
a fé nasce da fidelidade que vemos em Deus, e o “ver com sabedoria”
nos é dado pelo Espírito que não podemos criar em nós, nem convi-
dar para habitar em nosso coração, ou aí o reter pelos nossos méritos,
embora possamos rejeitá-lo a qualquer tempo).
Ainda correlacionado com os dois aspectos acima referidos, diz o
A. que o segredo — a revelação — da razão do sofrimento está no
fato que Deus QUER SER e É DEUS, e neste seu “ser” e “querer” ele
“precisa ser amado por mim”.
Novamente quer me parecer que aqui há forte dose de “linguagem
mitológica” vasada na chocante terminologia alemã. Fraseado análogo
ouvimos de certo pastor que dizia ser a criatura perante Deus qual cão
frente a seu dono: lambe a mão que o acaricia e também quando o fustiga.
Entendo que tais modos de dizer são expressões caricatas de de-
terminadas facetas do relacionamento do homem com Deus.
Deus não trata o homem qual cão (inda que seja o cão “melhor
amigo”), porquanto o ser humano foi criado à imagem de Deus e não
consta, em lugar algum, que o cão goze desse privilégio perante o
homem...
Semelhantemente, Deus não quer “PORQUE QUER”; Deus é!
Foi ele quem nos criou!
— Por que sofremos?

507
8, 1-39 O Espírito

— Porque nos afastamos de Deus, quando quisemos ser iguais a


ele, conhecedores do bem e do mal. Eis que agora ansiamos pelo bem
que não realizamos e sofremos pelo mal e do mal que não queremos
mas praticamos; sofremos diretamente desse mal e de todas conseqü-
ências diretas e indiretas que o acompanham e seguem quais corolários
e axiomas que se fundamentam nos respectivos teoremas.
— Qual o mistério do sofrimento?
— Está na porta que ele abre para vislumbrarmos a luz que vem
desde a cruz. (É por isso que todas as coisas concorrem para o bem
daqueles que amam a Deus.
— Todas as coisas — (isto é, também o sofrimento).
— O que revela o sofrimento?
— Revela nossa condição humana. Revela o contraste que existe
entre a nossa vida atual e a edênica, quando ainda éramos filhos de
Deus pelo direito de criação; quando ainda não havíamos abandona-
do o lar e perdido a filiação. Revela, portanto, também o contraste
que existe entre a criatura deste mundo e a nova criatura, restaurada
na condição de filho de Deus, agora por adoção.
Nestes termos é que sofremos porque Deus É e QUER ser Deus.
Ele é o Senhor que nos criou e não nos rejeita, antes nos aceita e nos
justifica perante si mesmo. Todavia, para poder socorrer-nos, é preci-
so que o queiramos, que o amemos. (Nós?)
Chegaremos à “perfeição ética” se amarmos a Deus.
Esta é, portanto a ÉTICA DIVINA: “Amarás o Senhor teu Deus!”
2. Toda criação? Também a totalidade do reino animal? O reino vegetal?
O reino mineral? O Cosmos?
— Sim, tudo isto!
— De que maneira? Por quê?
— Ora, Deus criou o mundo e o sujeitou inteiro ao homem (Gen.
1, 26) e por causa da queda também o amaldiçoou (Gen. 3, 17).
Acaso Isaías 11, 6-9 não nos sugere um mundo inteiramente di-
verso daquele que conhecemos?
O homem que recebeu o domínio sobre a terra e tudo o que nela
há, para seu sustento, seu prazer e seu gozo, não se limitou a usá-la
mas a explorou e explora.
Dizimou o reino animal e as espécies rareiam e se extinguem;
devastou o reino vegetal e os desertos crescem.
Devassou as entranhas da terra e a constituição íntima da própria
matéria; e as ameaças de destruição parcial e total são abundantes.

508
O Espírito 8, 1-39

A poluição ambiental é intensa e chega a tal ponto de levar a pen-


sar no risco de ficar o globo terráqueo exposto a ação desintegradora
dos raios cósmicos.
Na aurora do século ecológico parece ser mais evidente o que o
Apóstolo quis dizer quando, há 2.000 anos, escrevia os versículos 19
a 22 do Capítulo 8 de sua carta aos Romanos.

“E morará o lobo com o cordeiro


e o leopardo com o cabrito se deitará;
O bezerro, o filho do leão e a nédia ovelha
juntos viverão,
E um menino pequeno os guiará.
—————————————————
“Não se fará mal algum em todo
monte da minha santidade
Porque a terra se encherá do
conhecimento do Senhor!”

509
Capítulo IX

A TRIBULAÇÃO DA IGREJA

Barth dá a este capítulo o título geral de “A TRIBULAÇÃO DA IGRE-


JA”, que é como a tradução inglesa escreve. O original traz o substantivo “NOT”
que seria, talvez, traduzível mais diretamente como “NECESSIDADE”; toda-
via esse substantivo contém, implícitos, os sentidos de carência, penúria, misé-
ria, perigo, aflição, apertura. Por isso, me parece que TRIBULAÇAO se ajusta
melhor ao pensamento do A.
O capítulo foi dividido em três partes:
• Solidariedade - Vs. 1 a 5
• O Deus de Jacó - Vs. 6 a 13
• O Deus de Esaú - Vs. 14 a 29
Os versículos 30-33 foram deixados para o capítulo X.
Sob os três tópicos referidos acima Barth aborda, primeiramente, a soli-
dariedade da raça humana, no pecado. Ninguém dele está isento e ninguém é
melhor do que seus semelhantes (e conseqüentemente ninguém é pior). Esta
solidariedade humana nos irmana na perdição, todavia não vai além; ainda que
de boa vontade quiséssemos substituir algum de nossos entes queridos para
tomar sobre nós a sua responsabilidade não o poderíamos fazer pois se trataria
de substituir igual por igual.
Esta igualdade humana no pecado apenas pode ser vencida, suprimida,
sublimada por outra igualdade de ordem superior, a irmanação em Cristo medi-
ante a adoção da criatura como filho, pelo Deus invisível de Jacó, o Deus que
pela sua graça e seu amor elege para a vida eterna.
A aflição da Igreja é inerente à sua missão e será tanto maior quanto mais
fiel a Igreja for. Esta missão é a de anunciar o Deus invisível — o Deus de Jacó —
o Deus de amor; todavia esta proclamação se faz mediante o despertamento das
consciências para o reverso da medalha; para o Deus da justiça, o Deus da ira, o
Deus que abomina o mal, o Deus que odeia Esaú e, porque odeia Esaú, elege
Jacó; porque abomina o mal é ele a fonte de todo bem; porque é o Deus da ira, ele
exerce a misericórdia; porque faz justiça, justifica o pecador.

511
9, 1-5 Solidariedade

A aflição da Igreja não é para penalização mas para libertação; é pela


pregação da Igreja fiel que o homem do presente século se defronta com o Deus
de Esaú; se aflige e com ele luta durante a longa noite de sua temporalidade até
que raie a aurora do grande Dia do Senhor e ele receba a graça, a bênção do
Deus de Jacó.
É por força desta graça que a Igreja do presente século, a Igreja de Esaú,
perene em sua temporalidade, desaparece para dar lugar a sua irmã gêmea,
mais excelente, de quem Deus se agrada, a Igreja de Jacó, perene em sua eter-
nidade, e da qual o fundamento é Cristo.
É na forma da semelhança dos gêmeos Esaú e Jacó e sob esta alegoria,
esta parábola, que o A. analisa o processo da revelação divina, mediante a du-
pla predestinação.
Neste capítulo e nos dois seguintes o A. analisa a Igreja sob três aspec-
tos: sua Tribulação, sua Culpa e sua Esperança.

SOLIDARIEDADE (9, 1-5)

Vs. 1 a 5 Falo a verdade em Cristo, não tergiverso, do que minha consciência


me dá testemunho do Espírito Santo, que tenho grande mágoa e incessante
dor em meu coração, porquanto desejaria ser eu mesmo, amaldiçoado e
separado de Cristo em lugar de meus irmãos, meus parentes segundo a
carne, os quais são israelitas; pertencem-lhes a adoção, a glória, as alian-
ças, a outorga da lei, o culto divino e as promessas; seus são os patriarcas
de cujo meio veio o Cristo segundo a carne; os quais têm a Deus que
governa todas as coisas — louvado seja eternamente, amém.

[A tradução de Almeida escreve: “Digo a verdade, em Cristo não minto,


testemunhando comigo, no Espírito Santo, a minha própria consciência, que tenho
grande tristeza e incessante dor no meu coração porque eu mesmo desejaria ser
anátema, separado de Cristo, por amor de meus irmãos, meus compatriotas segun-
do a carne. São israelitas; pertence-lhes a adoção e também a glória, as alianças, a
legislação, o culto e as promessas; deles são os patriarcas e também o Cristo, segun-
do a carne, o qual é sobre todos, Deus bendito para todo o sempre. Amém”.
As duas traduções diferem acentuadamente na parte final do verso 5,
onde Almeida registra... “o qual é sobre todos Deus bendito para todo o sem-
pre. Amém”.
Em extensa nota de rodapé — (ver original, paginas 314 e 315 ou a
tradução inglesa — 6ª Edição impressa em 1965, páginas 330 e 331) — Barth
justifica sua maneira de traduzir, que tentarei sintetizar como segue:

512
Solidariedade 9, 5

Além da versão adotada por Barth, existem três outras:

a) Versão semelhante à de Almeida, atrás transcrita;


b) Versão que usa as mesmas palavras da versão anterior porém, valen-
do-se do artifício de introdução de vírgulas e supressão de um artigo
escreve, finalmente, que “a dignidade de Deus pode ser, verdadeira-
mente, atribuída a Cristo”. (Esses artifícios são de Hoffmann, Zahn,
Beck e Kuehl).
c) A terceira versão considera a parte final do v. 5 como sendo doxologia
a Deus, independente do teor básico dos vs. 4 e 5. (Isto porém, segun-
do Barth, escrevendo o texto original sem conjunções).

A primeira alternativa (conforme o texto veio até nós) encontra forte


apoio na construção gramatical análoga à das passagens em 1, 25 e II Cor. 11,
31. Todavia, Barth diz que não pode aceitar essa tão ímpar atribuição ao Deus
Altíssimo (a classificação “acima” de todos, de Zahn), pelas seguintes razões:

• Ela não consta em II Tess. 1, 12 ou Tito 2, 13;


• Parece que semelhante atribuição não foi considerada necessária em
10,11-14;
• A atribuição, (parece a Barth), revelaria falta de sensibilidade (estaria
comparando o absoluto com o relativo), coisa em que um pensador e
escritor de discernimento tão claro, qual Paulo, dificilmente incorreria;
• A passagem não provocou a celeuma (nem a polêmica) violenta por
ocasião dos primeiros estudos cristológicos — conforme se pode con-
cluir pelos comentários de Wettstein, B. Weiss e Zahn — que sem dú-
vida ocorreria se o texto, então, fosse considerado conforme sua reda-
ção atual;
• A doxologia, conforme expressa no final do v. 5, [porém sem a compa-
ração “acima de todos”] encontra-se repetidamente no livro dos Sal-
mos onde, evidentemente, se refere ao Deus de Israel.

Barth considera que a segunda versão, “arranjada” de forma a se poder


chegar à conclusão de que nessa passagem se estendem também a Cristo os
atributos inerentes ao “Deus de Israel” não é apenas por demais artificiosa mas,
está também sujeita às mais graves restrições quanto à substância. Diz o Autor
que ante interpretação tão profundamente ambígua (e na falta de outra melhor)
ele certamente optaria pela primeira.

513
9, 5 Solidariedade

É certo, diz o A., que o texto como doxologia independente poderia ser
admitido porém ele não concorda com Juelicher que diz ser esta a única inter-
pretação cabível, e faz notar que Lietzmann, embora também aceite a hipótese
de que se trate de doxologia independente do texto, é mais prudente com res-
peito à possibilidade de existirem outras interpretações plausíveis.
Para que a passagem possa ser tida como doxologia independente, diz o
A., é necessário aceitar a sua redação como assindetonia inteiramente estranha
ao estilo de Paulo e também totalmente descabida no texto.
Em vista desta série de dificuldades e anomalias que as três versões
admitidas apresentam, Barth conclui que, provavelmente, a forma do texto que
chegou até nós resultou de erro de transcrição, que pode ter ocorrido por confu-
são com o texto em II Cor. 11, 31 ou sob a influência dele; portanto ele prefere
acompanhar a conjetura levantada por Wettstein há mais de 200 anos, redigin-
do conforme está transcrito no início do capítulo.
O A. junta mais algumas razões para justificar a sua posição:

Na enumeração que o texto usual faz, das vantagens de Israel em seu


relacionamento com Deus, falta a prerrogativa essencial, a maior delas e
que é justamente a geratriz de todas as outras, isto é, o texto não menci-
ona que Israel tem o verdadeiro Deus.
A redação adotada pelo A. corrige e elimina esta omissão.
Sempre quando Paulo trata da realidade religioso-eclesiástica, como
é claramente o caso nos vs. 4 e 5, ele considera, como Deus, o Deus de
Israel.
Isto se confirma na passagem em 2, 17 onde ele sanciona,
irrefutavelmente, o direito que têm os que não são judeus de gloriar-se
em Deus, não admitindo que as vantagens de precedência que os judeus
têm no seu relacionamento com Deus (3, 1-2) tenham sido suprimidas
pela problemática que os cerca.
A mesma posição nota-se em Efe. 2, 12 onde a visão da unidade de
Deus não impede que, ao menos nas “vizinhanças” do Apóstolo, os gentios,
“outrora separados da comunhão de Israel”, sejam considerados “estranhos”.
Portanto, a ilação de que a parte final do v. 5 possa referir-se a Cristo
se afigura como incoerente.
Juelicher (e Lietzmann), estribando-se em 3, 29, se opõem (à afir-
mação de que a enumeração esteja incompleta dizendo que não haveria
necessidade de reiterar aqui, (no v.5), que os judeus têm o Deus verda-
deiro porquanto isto já foi dito quando Paulo escreveu que Deus é Deus
de judeus e gentios — (3, 29)).

514
Solidariedade 9, 1

Barth contra-argumenta dizendo que, se a objeção fosse procedente,


então Paulo, para ser coerente, não deveria apresentar aquela relação de
atributos peculiares a Israel, por força do que está escrito em 8, 14, em
2, 14-15, em 3, 30 e em 4, 16.
O A. diz ainda que Juelicher parece não perceber que a redação em
3, 29 é parte de tratamento dialético, característica notória do estilo de
Paulo. Assim também o são as demais passagens que, se não forem apre-
ciadas como tais, absolutamente não serão entendidas.]

Deus! Aquele que tanto é a nítida linha de chegada como de partida de


tudo quanto somos, temos e fazemos; que qualitativamente difere infinitamen-
te do homem e de tudo que é humano, que nunca foi e jamais será idêntico aos
homens, aquele que designamos por Deus, assim o sentimos, o pressentimos e
adoramos; aquele que é o terminante “ALTO” a toda impetuosidade (ou
dessossego) humano e o peremptório “MARCHE!” a toda estagnação (ou sos-
sego); aquele que é o SIM em nosso não e o não em nosso sim; aquele que é o
primeiro e o último e, como tal, o desconhecido; aquele que jamais é uma
grandeza entre outras no âmbito de nosso conhecimento: Deus, o Senhor, o
Criador e o Redentor, este é o Deus Vivo!
O evangelho é a boa nova da salvação que há em Cristo Jesus, que nos
revela esse Deus [de outra formal oculto, o Deus Vivo. O evangelho é o relam-
pejo do impossível sobre o aparentemente interminável reino das coisas possí-
veis; do invisível sobre o visível; do além sobre o mundo presente. [Este lampejo
do além] não [vem] de algum mundo separado — destacado do nosso mundo
porém como a verdade deste mundo, verdade que agora e aqui [ainda] está
encoberta; vem como a origem à qual todas as coisas estão vinculadas; como a
supressão de toda relatividade e, por isso, como a realidade de todas coisas
relativas; vem como o Reino de Deus cuja inevitabilidade, existencialidade,
vitória e glória não podem ficar ocultas, a despeito do ser humano, ou melhor
— [não a despeito mas] por causa da temporalidade, da finitude, da efemeridade
de nossa vida.
[Para remir a criatura da precariedade de sua contingência material o
evangelho] oferece ao ser humano a possibilidade de ser efetivamente o que ele
é em Deus: ser filho de Deus e portanto LIVRE, embora ele esteja, como pes-
soa deste mundo, sujeito a julgamento, aguarde [o pronunciamento da] justiça
e [ainda] espere pela redenção.
Eis agora Israel, a Igreja, o mundo religioso frente ao evangelho da sal-
vação, de Jesus Cristo. É o mundo da religião conforme se encontra na história
e, juntemos logo, segundo aparece na história em sua forma mais pura, mais

515
9, 1 Solidariedade

vigorosa e mais adequada a seu ser, pois não falamos das degenerescências
religiosas, porém da plenitude da Igreja ideal.
— Dissemos “frente ao evangelho” como se houvesse contraposição de
“ponto por ponto”? Pode, aqui dar-se o caso de uma parte pretender ter razão
perante a outra, que não a tenha?
— Sim, sem dúvida!
A Igreja enfrenta o Evangelho na qualidade de corporificadora
[materializadora] das derradeiras possibilidades humanas deste lado (aquém)
da “impossível possibilidade” de Deus.
É na Igreja que se escancara o abismo [que separa a criatura do Cria-
dor], como em nenhuma outra parte; aqui irrompe a enfermidade da criatura
em Deus, porquanto a Igreja é o lugar onde, deste lado do abismo, a eternidade
revelada é prontamente transformada em temporalidade, em realidade materi-
al, em coisa corriqueira ou usual; o relâmpago celeste é logo transformado em
fogareiro de combustão lenta; o deserdamento é o desnudamento [da criatura,
em Deus e por Deus] são encarados pela Igreja como ganho e proveito. O des-
canso [que a criatura deveria gozar] em Deus, é considerado como desconforto
e a inquietação [que o ser humano deveria sentir com respeito às coisas divinas]
desaparece no sossego [que a Igreja sugere].
Na Igreja, o “mundo do além” é transformado em mundo metafísico
que “existe” além daquele que conhecemos e que, por isso, passa a ser tido
como simples prolongamento do nosso.
A Igreja é o lugar onde se sabe e se “tem” toda sorte de coisas de Deus
e, conseqüentemente, é aí que dele nada se sabe ou tem. Na Igreja Deus é, de
alguma forma, desvinculado do PRINCÍPIO e do FIM que desconhecemos, e
empurrado para o centro, nosso conhecido, a fim de que não precisemos de nos
lembrar, a cada instante, de que é necessário morrer para alcançar sabedoria;
antes pelo contrário: a Igreja apresenta a fé, o amor e a esperança, a nossa
filiação a Deus e o Reino de Deus como se fossem “coisas” que se poderiam
ter, ser, esperar ou obter pelo nosso esforço.
A Igreja é a tentativa mais ou menos geral e enérgica de humanizar
aquilo que é divino; é o esforço para temporalizar, materializar, mundanalizar;
[a Igreja procura] transformar [o que é divino] em alguma coisa prática e o faz
para o bem da humanidade que não pode viver sem Deus mas, também, não
pode conviver com o Deus Vivo. (Ver “O Grande Inquisidor”!)
Em resumo: [a Igreja] tenta transformar o caminho incompreensível e
inevitável, [a senda apertada e difícil, a via do paradoxo da fé,] em vereda que
possa ser entendida. Neste particular a Igreja Católica [a Romana e também a
Ortodoxa] teve bem melhor sucesso que o Protestantismo o qual padece com-

516
Solidariedade 9, 1

parativamente mais ante o fato de que o ser humano não alcança aquilo que,
como membro da Igreja, ele tanto aspira.
(Humanamente falando), o que a Pessoa procura na Igreja é a sua “en-
trada” no céu, e esta entrada a Igreja não pode dar.
A missão da Igreja é mostrar o definitivo NÃO de Deus a tudo quanto é
do mundo, nele está, ou dele tem origem; é testificar a salvação que há em
Cristo Jesus. Porém a salvação propriamente dita, a dádiva da reconciliação
com Deus, a “entrada” no Paraíso, é graça divina operada EXCLUSIVAMEN-
TE pelo Espírito Santo.
Quanto mais fiel a Igreja for à verdade evangélica mais alto ela falará do
NÃO divino e mais claramente apontará à cruz da renúncia, do sofrimento, da
vergonha, da dor e da aflição; mais fortemente proclamará a absoluta necessi-
dade de o homem perder a sua vida para ganhá-la. Tal Igreja não opiará o povo,
antes o despertará, o sacudirá, até que cada um clame “Deus meu!, Deus meu!”.
[Dentro da dialética irônica do A. é certo que, no acalento dos que dor-
mem, as Igrejas “menos” evangélicas têm maior êxito do que as que diligenciam
obedecer aos preceitos bíblicos.]
Ainda falando humanamente, não podemos deixar de dizer que a Igreja
visível é o Corpo de Cristo; que entre aqueles que nela ingressam, que a ela se
ligam, há os que buscam a Deus para adorá-lo em Espírito e Verdade; há os que
esperam e desejam o antigo estado de filhos de Deus, a sua volta ao lar; todavia,
não visam necessariamente a sua “entrada” no céu, mas amam a Deus. Já não
confiam em seus dotes, seus bens materiais, seu saber, seu estofo moral, sua
espiritualidade, sua fé; não buscam nem pedem recompensa, porque sabem que
nada merecem. Contudo, vivem em esperança, pela fé. Crêem que Deus é po-
deroso para os salvar. Confiam no sacrifício expiatório de Cristo; esperam em
Deus!
[A seguir o A. afirma que há oposição constante e perene entre a Igreja
e o Evangelho: Diz que a Igreja nega o Evangelho e que o Evangelho suprime
a Igreja.
É evidente que Barth não quer dizer que a Igreja desaparecerá ou deve
desaparecer; tal interpretação é inteiramente inadmissível ante as afirmações
feitas em capítulos anteriores onde Barth declara, inclusive, que a existência da
Igreja é essencial à religião que é, por sua vez, a mais sublime de todas as
atividades humanas.
Também é certo que neste contexto, quando Barth fala da Igreja, ele não
se refere às agremiações de caráter eclesiástico pretensamente paralelas ao Cris-
tianismo — (Judaísmo, Maometanismo, etc.) — nem a conventículos seme-
lhantes ao Mormonismo, por exemplo, nem ao Espiritismo ou alguma forma de

517
9, 1 Solidariedade

Espiritualismo, nem a qualquer das múltiplas expressões religiosas suposta-


mente derivadas do Cristianismo ou aglutinadas pelo sincretismo religioso.
Nenhuma dessas religiões místicas, fanáticas, folclóricas ou filosóficas interes-
sa ao caso.
Aqui se fala da Igreja segundo a mais pura concepção do Evangelho de
Cristo; da Igreja que prega a mensagem da cruz segundo a Bíblia nô-la revela.
Esta é a Igreja visível, o Israel de Deus, a que o A. se refere. Por se tratar
da Igreja militante no “presente século” ela tem a sua componente material,
humana e, portanto, perecível. É a Igreja que se esquece de sua primeira caridade,
que abriga “nicolaitas” e “jezabéis”; que pensa estar viva mas está morta; que
não é nem quente nem fria; que tem em seu meio a própria sinagoga de Satanás].
Por todas essas propriedades tal Igreja tem de ser — só pode ser —
destruída pelo Evangelho.
Todavia essa mesma Igreja abriga os que permanecem fiéis, aqueles que
lavaram suas vestes no sangue do Cordeiro e não as contaminaram; a Igreja que
com paciência e perseverança guarda a fé; a Igreja que tem ante si uma porta
aberta, contra a qual não prevalecerão as forças do mal.
Estando no mundo e sendo parte dele, é natural que a Igreja, por seus
membros, seu clero, seus dirigentes, seus pregadores e seus missionários, por
sua própria organização eclesiástica, descambe sempre e reiteradamente para o
pecado fundamental, origem específica da queda do homem: o desejo de tor-
nar-se igual a Deus. E tanto maior é esta tentação quanto mais perto de Deus o
homem se sentir; ela é ubíqua na Igreja porque nela os Balaãos de todos os
tempos têm campo fértil para a sementeira de tropeços; porque quanto mais a
criatura tratar de seu relacionamento com o Criador maior será o seu anseio de
aproximar-se dele diretamente, contornando a cruz. E o faz por eufemismos
engendrando doutrinas, elaborando confissões de fé, promulgando dogmas,
pregando e promovendo — SUA FÉ — sua IGREJA.
Assim procedendo, a Igreja se apresenta como a congregação dos jus-
tos, a Igreja dos salvos, e os seus membros, seus oficiais, seus mais eloqüentes
pastores, consideram-se iluminados, inspirados; “ouvem” a voz de Deus e que-
rem transmitir e impor a vontade divina que sentem e estão certos que muito
bem ouviram, aos seus conservos e, se possível for, a todo mundo. Assim justi-
ficados perante Deus a seus próprios olhos e por força de sua inspiração, cons-
tituem-se, na Igreja, a própria Sinagoga de Satanás: retêm a verdade com a sua
Justiça, e ficam sob a ira de Deus!
Tal é a Igreja que constante e permanentemente nega o Evangelho e é
por ele desmascarada, suprimida, permanecendo porém, o remanescente que
vigia e ora; que porfia para ser fiel até a morte; que constantemente se lembra

518
Solidariedade 9, 1

de onde caiu; que com temor e tremor espera pela coroa da vida; que humilde e
crente confia na fidelidade de Deus. (Apoc. caps. 2 e 3).
É pois evidente que a oposição entre Igreja e Evangelho é de fora a fora
e que, basicamente, ela é interminável. Sim, senhores, neste assunto um lado
tem razão e outro está errado.
O Evangelho é a revogação da Igreja e a Igreja é a revogação do
Evangelho.
— Porém, quem se contrapõe a quem?
— Os antagonistas são a criatura humana e Deus!
Não se trata de homem contra homem; não é Saulo ou Paulo contra os
demais fariseus! Não é o pregador do Evangelho contra o membro da Igreja.
Estas contraposições não são infinitas mas altamente finitas. Nos lábios huma-
nos não há pregação pura do Evangelho que não seja “eclesiástica”.
O evangelista como tal, é também membro da Igreja, sofre de sua afli-
ção e participa de sua culpa.
O incógnito divino continua por mais clara que seja a nossa pregação do
Evangelho, porquanto ninguém pode de direito [e com propriedade] falar sobre
Deus, ainda que o fizesse com línguas de fogo. Nem podemos ser diferentes:
todo aparato [de que nos servimos] para erigir manter e ordenar o relacionamento
[humano] com Deus é eclesiástico e [é claro que em nossa pregação] tudo faze-
mos para tornar compreensível o “incompreensível” caminho [da salvação].
(Acaso haverá algum homem de Igreja que não proceda dessa maneira?).
Se não mostrarmos a eternidade na semelhança das coisas efêmeras, (se
não acharmos analogias para ilustrar nosso discurso), então estamos servindo à
Igreja e não estamos pregando o Evangelho (e quem, senão só Deus, pode
livrar-nos dessa possibilidade tão altamente provável?).
[Entendo que o A. quer dizer que se intentarmos falar de Deus e sobre
Deus em termos metafísicos, transcendentais ou filosóficos, sem recorrer a com-
parações e ao estabelecimento de paralelos com fenômenos do mundo tempo-
ral estaremos, talvez, exaltando a cultura, a sublimidade da Igreja ou promo-
vendo sua mística mas, não estaremos entregando a mensagem de Deus a nos-
sos ouvintes.
Barth afirma que a própria pregação, em suas variadas facetas, é qual
parábola dos diferentes aspectos da verdade divina, pois:]
A sistemática inevitavelmente eloqüente que empregamos quando pre-
tendemos fundamentar e disciplinar nosso discurso é qual parábola da inque-
brantável unidade da verdade;
O fato de ninguém conseguir falar seriamente a respeito de Deus sem
com isso envolver sua própria pessoa e comprometer-se a si mesmo (fato que

519
9, 1 Solidariedade

tanto nos escandaliza) é parábola da personalidade de Deus, que sustenta e


mantém todas as coisas, eternamente;
O paradoxo da desesperadora inadequação da fala humana para expres-
sar a Verdade [divina] é parábola do milagre do Espírito:
A dolorosa e quase insuportável unilateralidade e exclusividade que sen-
timos ao falar da verdade — [unilateralidade e exclusividade que somente con-
seguimos contornar (se mudarmos de assunto)], se falarmos de outra coisa — é
parábola do impacto avassalador que a idéia da eternidade tem sobre nós.
Qual o evangelista que poderia impedir que “aos de fora tudo seja dito
por parábolas” e que esses tais, em tudo que ele diz, vejam apenas a forma
estranha de um direito novo e fabuloso pelo qual não se deixam derrubar antes,
servindo-se dele, com menos ou mais garra, paixão e habilidade queiram defen-
der os direitos que conhecem, [segundo os quais se julgam] justificados e salvos?
[Quem pode impedir que aqueles que estão de fora] julguem a seriedade
(a importância) de toda pregação como sendo [apenas] de âmbito eclesiástico
onde, reconhecida e realmente, nada é aplicável à vida prática pois nada na
Igreja é, de fato, existencialmente sério? Quem há que possa impedir o escân-
dalo desse malogro do evangelho?
— NINGUÉM!
Poderíamos executar as mais espetaculares acrobacias, e até andar so-
bre nossas mãos em honra a Deus (1 Cor. 13, 1 ss) e [nosso procedimento] seria
interpretado como coisa de igreja e jamais, existencialmente.
[Esse escândalo] só pode ser impedido por Deus, e mais ninguém. Po-
rém, quando Deus o faz [quando Deus remove o escândalo], ele se mantém
incógnito. Não há qualquer possibilidade de termos nós a razão enquanto os
outros não a tenham. O ponto de vista de Deus permanece inteiramente res-
guardado, [protegido da influência] de todos nossos pontos de vista, [de todas
nossas opiniões]. (Ele tem razão e todos estamos em erro, [ele é justo e todos
nós somos injustos] ).
— O que resulta disso? Acaso esquecer-nos-emos de Deus, encostare-
mos nossas ferramentas e passaremos a servir à Igreja, isto é, aos homens,
como se não existisse Evangelho?
— Não! Porém com a mente voltada para Deus e utilizando nossas ferramen-
tas [com a eficiência de que formos capazes], propagaremos o Evangelho e, porque
a Igreja é erigida pelo Reino do Céu, a ela nos submeteremos não obstante nosso
pleno conhecimento de sua permanente oposição ao Evangelho; com ela nos solidari-
zaremos, não nos desinteressaremos dela, antes a reconheceremos, nela ingressare-
mos e nos colocaremos à sua disposição, tornando-nos co-responsáveis e partici-
pantes por aquilo e daquilo que lhe falta — que necessariamente tem de lhe faltar.

520
Solidariedade 9, 1-2

“Falo a verdade em Cristo, não tergiverso [não finjo], do que minha


consciência me dá testemunho no Espírito Santo, que tenho grande mágoa e
incessante dor em meu coração”.
Esta é a posição que o Evangelho impõe [ao pregador] em relação à
Igreja. Quem ouve e proclama o Evangelho não fica fora da Igreja, rejeitando-
a por não compreende-la nem simplesmente simpatiza com ela por entende-la
porém, dela participa pessoalmente. É evidente que participará com conheci-
mento de causa e por isso como sofredor; jamais como vitorioso. Ele sabe do
que se trata na Igreja; ele a toma a sério, extremamente a sério, [ainda que
amarguradamente]. Ele não aceita o consolo barato de que a Igreja seja mera
configuração humana que poderia até mesmo não existir e que o ministério seja
uma profissão como outra qualquer. Ele sabe que é preciso crer, pregar, escla-
recer, chamar, orar; ele sabe que não pode ser de outra maneira e que é justa-
mente na Igreja que a enfermidade humana em Deus irrompe em formas sem-
pre novas; ele sabe que a atividade Eclesiástico-Religiosa não pode ser evitada
e que no presente século o relacionamento não-eclesiástico entre a criatura e
Deus é tão impossível quanto a inocência paradisíaca.
O Pastor porta sua toga sem sequer se dignar a lançar um olhar aos que
defendem o “laicismo” e que são amplamente tidos como melhores e mais
felizes; contudo ele vê a impossibilidade [quiçá a limitação] do empreendi-
mento Eclesiástico-Religioso; ele sabe que esse empreendimento tem de
sossobrar porque é inviável por sua própria natureza; ele vê como sua
questionabilidade cresce, não pela sua fraqueza, não com sua falta de influên-
cia, não mediante o alheamento da Igreja no mundo, mas pelo contrário: a
questionabilidade da Igreja cresce com a habilidade e a força das ilusões que
oferece, que são sobremaneira práticas e geram tanta felicidade; [as restrições
que se podem fazer ou as dúvidas que surgem a respeito da Igreja, aumentam]
com a grandiosidade dos resultados que colhe sempre de novo; mediante a
destreza com que ela sabe ajustar a sua peregrinação às condições do mundo.
O pregador percebe que justamente quando a Igreja atinge seu objetivo
no ministério dos homens para os homens, desaparece o objetivo divino e o
julgamento está às portas.
Entristecido, preocupado, cheio de perguntas está [o ministro] na Igreja
e tanto mais assim quanto mais [caracterizada a] Igreja for. Todavia, ele não
está como observador pois a Igreja é, em toda extensão, a sua própria possibi-
lidade; a perplexidade da Igreja é também a do Pregador e a aflição dela é
também a dele. Ele é solidário com a Igreja justamente naquilo que,
precipuamente, fundamenta a solidariedade e a comunidade entre os homens: o
seu deserdamento da glória de Deus (3, 23).

521
9, 2-3 Solidariedade

Objetivamente, esta solidariedade, este sentimento comunitário, não tem


limites: “Desejaria ser, eu mesmo, amaldiçoado e separado de Cristo, em lugar
de meus irmãos, meus parentes segundo a carne”.
É preferível não gozar da graça, não ter a liberdade, não receber o Espí-
rito, não esperar o Dia Vindouro, do que ter tudo isso na qualidade de quem não
é co-participante, não sofre, não está perplexo, não se lamenta, mas é fugitivo e
está “separado”: isto nunca!
A posição paradoxal em que Paulo se encontra fica evidente quando
com sinceridade e sem qualquer condescendência, sem nenhuma reserva
esotérica, trata os fariseus por “seus irmãos” quando ele toma absolutamente a
sério o fato de ser “parente deles segundo a carne”; quando ele, consciente do
desconhecimento deles mas também por seu próprio desconhecimento, com
eles se curva sob o avassalador incógnito divino que caracteriza a Igreja. Paulo
precisa tomar essa posição, inda que, a todo instante, pareça ser infiel e então
os outros lhe lancem em rosto acusações de falsidade e de oportunismo.
— Trata-se de posição perdida?
— Sim, sem dúvida, uma posição perdida que, mesmo assim, precisa
ser guardada. Quaisquer que sejam as posições que, como criaturas humanas,
sustentamos [e defendemos] são posições perdidas. Isto precisa ficar claro e de
fato se esclarece quando na Igreja se anuncia o Evangelho; quando na solidari-
edade do profeta com o sacerdote, o impossível se torna possível e aquilo que é
possível se torna impossível.
O profeta declara-se solidário com o sacerdote porque sabe que tem de
enfrentar uma pergunta para a qual somente Deus tem a resposta; todavia não [se
faz solidário] para apresentar a pergunta em nova terminologia, nem tampouco
para engendrar nova tarefa para a veneranda Igreja; nem estará pensando na fun-
dação de alguma Igreja nova para tratar de incumbência antiga. Ele sabe que [até]
uma colônia, ou uma escola técnica pode ser uma igreja. Ele sabe que para esta
enfermidade de nada adianta a troca de hospital ou de enfermaria, por mais radi-
cal que [essa mudança] seja, pois somente em Deus pode ser alcançada a cura.
O profeta sabe que as oposições [as disputas, as polêmicas, as discus-
sões] e as discórdias entre os indivíduos (e que não podem ser totalmente evita-
das) revelam, em ultima análise, a oposição que existe entre o Evangelho e a
Igreja; todavia, nem por isto o profeta desiste.
[Para melhor inteligência do pensamento do A., convém lembrar que o
profeta é aquele que ensina, proclama, prega a Palavra de Deus, o Evangelho.
O sacerdote ministra o culto, o louvor, a adoração.]
Ora, o pregador (o profeta) tem de solidarizar-se com a ministração do
culto, isto é, tem de ingressar na Igreja pois de outra forma ele não poderia

522
Solidariedade 9, 3

trazer aos seus ouvintes a resposta que Deus tem para dar e dá através da
instrumentalidade da Igreja. [Isto é, aquela Igreja que se assenta sobre a pedra
fundamental que é Cristo, o Filho do Deus Vivo, contra a qual não prevalecerão
as portas do inferno].
Todavia o Pregador sabe que a Igreja, sendo constituída por membros ainda
sujeitos ao “corpo desta morte”, está em natural oposição ao próprio Evangelho
conforme bem o comprovam as discórdias entre os irmãos; o Pregador sabe que
não é a “mudança de denominação” nem mesmo a troca de confissão religiosa que
modifica a criatura, que a cura espiritualmente, que a salva e a conduz para a vida
eterna. Esta graça é dada por Deus, e Deus somente! [Isto evidentemente, não sig-
nifica que aqueles que se convertem a Cristo devam ficar onde estão, que não pre-
cisem “mudar” de Igreja; isto dependerá da conjuntura de cada caso e a divina
inspiração do Espírito Santo mostrará o caminho a seguir. Saulo não foi desobedi-
ente à visão celestial; deixou o farisaísmo e entregou-se ao Cristianismo e, para
isso, teve de afastar-se da sinagoga dos judeus, fundando as inúmeras Igrejas Cris-
tãs que o registro dos atos apostólicos e as cartas de Paulo bem revelam.
Quem realmente se converte, muda de rumo em sua vida; não mais se
afasta de Deus mas vai ao seu encontro no caminho para a cruz; esta conversão,
esta mudança de rumo exige novos caminhos e o converso abandonará a aveni-
da larga, plana, alegre, do comodismo, para seguir a vereda estreita e difícil da
renúncia. Mudará de Igreja? Talvez sim e talvez não. Quem houver passado da
morte para a vida buscará aquele redil onde melhor possa praticar o bem que
deseja e quer; onde, no seu entender, melhor possa louvar e adorar a Deus em
Espírito e em Verdade; ele terá que decidir por si mesmo, perante Deus e optar!
Esta é a sua responsabilidade (e também o seu privilégio) como criatura feita à
imagem e semelhança de Deus!].
[O Profeta não apenas se solidariza com a Igreja mas] se dirigirá oportu-
namente e com absoluta seriedade a todos quantos lhe pareçam haver descuida-
do demais das coisas eternas para chamá-los aos fatos, [para convidá-los a par-
ticipar da Igreja], embora o faça com certa dose de humor pois sabe que sua
advertência não é mais do que parábola; todavia, ele está também totalmente
isento da loucura de pretender ensinar novos caminhos [fora da Igreja]; ele não
tem a mínima inclinação de se colocar na posição de detrator ou inimigo da
Igreja, ainda que o estímulo e o convite a ir até tais conseqüências o pressionem
clara e veementemente; isto porque o ato de deixar a Igreja ou o Sacerdócio [o
Ministério] tem ainda menos sentido lógico do que o suicídio.
O Profeta não entrará num bote salva-vidas para fugir da inevitável ca-
tástrofe que ameaça a Igreja mas permanecerá, agradecido ou não, no seu pos-
to, seja este na Casa de Máquinas ou na Ponte de Comando.

523
9, 3 Solidariedade

O Profeta não assumirá nenhum ponto de vista sem a intenção íntima de


o abandonar tão logo o objetivo tático seja alcançado, (pois é disto que se tra-
ta!). Ele jamais fará qualquer construção sem, ao mesmo tempo, ter disponíveis
os meios para o desmonte; ele estará sempre pronto a fazer tudo a despeito da
periclitante estabilidade de suas próprias palavras, para a [absoluta] liberdade
da Palavra de Deus.
O que mais horroriza o Profeta é o fato de a interminável luta entre o
Evangelho e a Igreja estar sempre ameaçando transformar-se em luta [de parti-
dos], na qual “nós” estamos de um lado e “eles” do outro, mesmo que “nós”
fôssemos os mais excelentes [campeões da verdade] ou que “eles” tivessem de
seu lado toda razão. Tais confrontos [o Profeta fiel] procurará [impedir e] debe-
lar por todos meios a seu alcance.
Após cada vigoroso ataque polêmico contra a Igreja ele [o Profeta] vol-
tará prontamente à posição onde neste mundo — e justamente como pessoa
eclesiástico-religiosa — a criatura humana é “amaldiçoada” [é anátema], “se-
parada de Cristo”, para sentir a bem-aventurança unicamente na esperança da
graça de Deus, porquanto toda e qualquer polêmica anti-religiosa, [toda dispu-
ta contra a religião] só tem sentido se o seu objetivo for a afirmação [categóri-
ca] de que só a Deus pertence a honra e jamais o polemista, [acaso] sabendo e
conhecendo melhor, poderia justificar-se e se salvar. Por isso, ao alçar a sua voz
para lembrar a si mesmo e à Igreja da eternidade, o Profeta prefere estar em
todo instante do tempo presente com a Igreja (e também com a teologia, por
exemplo), no inferno, a estar com os pietistas de alto ou baixo coturno, de
observância mais moderna ou mais antiga, em um céu que não existe. Aceite-o
quem puder: Cristo está lá onde se reconhece inconsolavelmente que fomos
banidos de sua presença, não porém, (jamais), onde nos sintamos abrigados e
protegidos da aflição que a ciência deste banimento nos traz.
Acaso levamos a Igreja por demais a sério, damos-lhe excessiva impor-
tância ou a honramos demasiadamente, quando vemos nela a exemplificação
do interminável contraste entre Deus e os homens ou quando, na finitude hu-
mana, negamos peremptoriamente a existência de qualquer diferença entre nós
e a Igreja ou ainda, porque enquanto chamamos atenção ao destino da Igreja,
nos solidarizamos com ela?
— Por que não encerraríamos o assunto “Igreja” com o Capítulo VIII,
como se a Igreja nada representasse de sério, de real, mas fosse apenas história,
ou questão acidental?
— Porque o assunto “Igreja” nos inquieta excessivamente; porque, excluí-
da a realidade de Israel, é a própria realidade da Igreja (que representa a pergunta
para qual foi vazada a resposta de 3, 8, [isto é, ajusta condenação daqueles que,

524
Solidariedade 9, 4-5

tergiversando, buscam e apresentam razões para explicar sua conduta. — Ver


também 5, 20 e 6, 15], é justamente na realidade da Igreja que se contempla o
invisível e é nesta conjuntura humana que os olhos se abrem para ver a Deus.
Admitir que existam caminhos diretos — natureza, história, arte, moral,
ciência ou até mesmo a religião — para chegar à impossível possibilidade que
é Deus, é [mera] auto-sugestão sentimental e liberal. A superabundante varie-
dade dos caminhos diretos que levam à Igreja, a igrejas e igrejinhas de toda
sorte é bem exemplificada nas experiências do chamado “Socialismo Religio-
so” [quiçá o Evangelho Social, tão em voga entre os ledos marxistizantes].
Todavia é sempre somente depois de, felizmente, se chegar ao extremo do beco
sem saída do humanismo eclesiástico, que se pode considerar o tema “Deus”
de forma séria e radical. Tudo quanto experimentarmos no caminho de aproxi-
mação a Deus, antes [de nos convencermos do impasse decisivo que o
humanismo e o Evangelho Social representam], é ilusão inócua. O verdadeiro
tiroteio só tem lugar quando percebemos, de uma ou de outra forma, que não
podemos contornar a Igreja e que fora dela não podemos prosseguir; esta per-
cepção, porém, apenas se dá quando o Pregador do Evangelho (e quem não
quererá sê-lo?!) reconhecer nos membros da Igreja (e quem não o seria?!) o seu
irmão a quem nada tem “de novo” para oferecer.
“Os quais são israelitas; pertencem-lhes a adoção, a glória, as alianças,
a outorga da lei, o culto divino e as promessas; deles são os patriarcas e também
o Cristo, segundo a carne”.
Isto não é dito [por Paulo porque ele estivesse] “tomado de grato e pro-
fundo respeito” (Juelicher) porém trata-se da afirmação sóbria de que os de-
mais fariseus podem, também, saber, dizer, representar e ter, do Evangelho,
tudo o que Paulo tem.
Conhecida, dita, apreendida e defendida [ou representada] pelos homens,
a NOVIDADE do Evangelho nada tem de novo, pois é idêntica ao [que, sobre
o assunto, já possuía o] Israel da mais remota antigüidade.
Histórica e humanamente, negando-se a revelação divina, o NOVO Tes-
tamento dificilmente pode ser considerado mais do que o resumo vigoroso da
essência cuidadosamente extraída do ANTIGO. Qual a proposição do Cristia-
nismo primitivo que não tenha seu paralelo inconfundível no judaísmo de en-
tão? O que sabe Paulo que já não houvesse sido do conhecimento de João
Batista e o que conhece João Batista que Isaías já não houvesse sabido?
Reiteradamente e sempre a pregação do Evangelho há de esbarrar na estranha
realidade de que nada há de novo sob o sol; segundo a observação humana,
tudo o que é essencial já foi dito e ouvido antes; acima da culminância da
humanidade já existe alguma igreja como testemunha viva e histórica do esva-

525
9, 4-5 Solidariedade

ziamento de todas demais possibilidades humanas. Cada uma e todas afirma-


ções grandiosas da Igreja foram, já, traduzidas em Instituição, Ensino, Cami-
nho e Símbolo, postas em circulação de forma mais ou menos abrangente e,
assim, transformadas em bem comum.
Desde o singelo e simples moralismo até a mais profunda mística; desde
a piedade da conversão pessoal até a escatologia cósmica, desde a crente e
piedosa defesa da personalidade humana de Jesus até a mais concentrada e
dinâmica enunciação da palavra DEUS, desde a teologia de chagas e sangue
até o mais envolvente ensino do “que se deve, então, fazer”, desde a mais bem
intencionada — a mais oportuna e mais apurada — reforma do culto, até à rude
pregação do escândalo no estilo de Kierkegaard. TUDO ISTO, até mesmo o
incansável ensinamento dos historiadores de que “nada há de novo sob o sol”,
já existiu antes...
Tudo isto a Igreja pode e faz (Exo. 7, 2) e [nisto] o Evangelho não pode
sobrepujá-la.
Para tanto, é preciso ser israelita? [É preciso ser israelita] para ter a
filiação, a glória, os pactos [as alianças], à dádiva da lei, o culto a Deus, as
promessas, os patriarcas, o Cristo segundo a carne?
Acaso a Igreja não tem todas essas coisas, também? Como, pois, se pode-
ria ter mais do que o cumprimento do Antigo Testamento? [Como poderia a Igre-
ja desejar mais do que o cumprimento das promessas do Antigo Testamento?].
Bem sabemos que as paredes do canal são firmes e bem construídas e
contra o temor de que ele pudesse estar seco os moradores ribeirinhos estão
devidamente protegidos porquanto também nós outros [aqueles que estão de
fora da Igreja] nada podemos fazer senão abrir canais pois a água viva da reve-
lação [tanto ou] tão pouco está à disposição de uns quanto de outros.
Sabemos que tudo quanto fizermos será apenas em forma de variantes
daquilo que a Igreja sempre foi.
Seja qual for a “nova” aspiração, no pináculo das possibilidades huma-
nas, o ponto mais alto será sempre a torre da Igreja.
“Os quais têm a Deus que governa todas as coisas. Louvado seja eterna-
mente!”
— Então Israel e a Igreja têm também, Deus?
— Não podemos negar isto; e como poderíamos? Portanto, dizemos
Sim! Mas neste “Sim” está subentendida a objeção que endereçamos [não só] à
Igreja (mas) também a nós. Dizemos Sim se o Deus de que falamos for aquele
que, como toda gente, também nós conhecemos, assim o designamos e adora-
mos. Porém, se [esse] Deus for aquele que “reina sobre tudo” então está latente
em nossa pergunta, (se Israel e a Igreja têm Deus), a queixa e a acusação de que

526
O Deus de Jacó 9, 5-6

a Igreja não o tem. Como objeção do próprio Deus à Igreja, não deveria ser
ignorada levianamente a objeção que os inimigos da Igreja levantam quando
dizem que o “canal” está vazio, e que a posse da Filiação, das Alianças, da Lei,
do Culto Divino, das Promessas, dos Patriarcas, do Cristo segundo a carne e do
próprio Deus, não pode ser considerada como existencial [como real e objeti-
va] embora de todas essas coisas a Igreja se glorie e não sem razão. Quando
esse leão rugir, quem há que não tema? Deus, como Deus, cessa a solidariedade
entre Paulo e os Fariseus e se inicia o protesto, o contraste.
Vista por Deus, como Deus, a Igreja está extinta desde agora, “Ouvis o sinal?”

Comentários: 9, 1-5

Nada há de novo sob o sol; todavia, para a criatura Deus é sempre a


absoluta novidade porquanto ele não está “sob o sol”. Quando para o
homem (e para a congregação dos homens na Igreja visível) raiar a manhã
do Dia do Senhor, quando o ser humano transpuser os umbrais da eter-
nidade, ele terá perante si a grande NOVIDADE; ele verá de face a face
o Deus Desconhecido deste mundo! Então será a Nova Jerusalém; então
aquilo que “E” para este mundo já não será mais; estará definitivamente
extinta a Igreja de Esaú; egressa da Igreja visível, da Igreja das lutas, das
dissenções, dos fracassos espirituais e, quiçá, das glórias terrenas, a Nova
Criatura ingressará na Igreja invisível, cujo rol de membros é o Livro da
Vida de cujas páginas, pela graça de Deus, seu nome não foi riscado.
Para Deus não há tempo passado nem futuro; aquilo que SERÁ para
a criatura deste século, “É” desde agora para DEUS. Em Cristo é HOJE
o dia da Salvação, e AGORA o instante crítico da decisão. Compreendeis
a que sinal se refere o Autor?

O DEUS DE JACÓ (9, 6-13)

V. 6 (primeira parte) Não me entristeço como se a Palavra de Deus houvesse


falhado.

[Almeida escreve: “E não pensemos que a palavra de Deus haja falhado”].


A Igreja sofre de toda sorte de falhas humanas; é necessário e compre-
ensível que pelos séculos afora, em diferentes intervalos e com algumas dife-
renças entre umas e outras, essas falhas sejam trazidas a baila, não só pelas
polemicas internas da Igreja como também pela controvérsia antieclesiástica.

527
9, 6 O Deus de Jacó

Se a tribulação da Igreja fosse apenas o problema das falhas humanas e


a degenerescência daí resultante, não se justificaria o apaixonado ardor com
que profetas, apóstolos e reformadores atacaram as diferenças entre a Igreja e o
Evangelho, não se entenderia por que [os reformadores] não se voltaram ao
paciente trabalho de recuperação [da Igreja de seu tempo] ou então, caso con-
siderassem tal recuperação inviável, por que não se teriam dedicado
vigorosamente à organização de nova Igreja. Por que será que Paulo, e também
Lutero, tudo fizeram e lutaram até o extremo de suas possibilidades para não
trilhar novos caminhos e só seguiram esta alternativa quando foram, finalmente,
obrigados a isso?
Por que será que são sempre e somente os espíritos pequenos e nervosos,
os “religiosos-histéricos” que ao se revoltarem, [aliás] com razão, contra o ensino
de sacerdotes e escribas ou ante a mundanalidade da Igreja, seu atraso político
e cultural, sua corrupção, sua fraqueza e sua hipocrisia, apelam apressadamente
— e não sem satisfação com seu próprio gesto trágico — a esta ULTIMARATIO
de todos verdadeiros profetas, [que é a fundação de nova Igreja]?
Por que será que o impacto da oposição direta à Igreja até mesmo [o
impacto da luta] contra a sua degenerescência é tão desmesuradamente desa-
gradável, vazio, inconsistente e tão pouco convincente?
Por que será que o trabalho paciente de reforma do procedimento da Igre-
ja nunca produziu resultados que pudessem ser levados a sério, e isto desde os
tempos de Josias (ano 621 AC — Ver II Reis, Caps. 22 e 23] até os dias de hoje?
Por que manifestou Paulo sua melancólica solidariedade com Israel, na
aparente tentativa de ficar na linha média entre essas duas possibilidades — (a
preservação da Igreja e a tentativa de sua reformulação] ambas tão pouco pro-
missoras?
Assim acontece porque Paulo — e com ele toda pregação verdadeira-
mente radical do Evangelho — nunca pode perder de vista que é na Igreja, na
qualidade de religião organizada, que se cogita do relacionamento da criatura
com o Criador, e isto independentemente do grau de perfeição ou plenitude da
Igreja; que a aflição característica deste empreendimento humano [que a Igreja
é] consiste no fato que a Palavra de Deus na qual esse relacionamento deveria
ter lugar não é palavra humana, casual, fortuita, mas é a própria palavra eterna
e absoluta de Deus.
Se fosse diferente, se Paulo pudesse proceder de outra maneira e tratar
deste tema peculiar da Igreja como coisa relativa, uma coisa entre outras, como
grandeza histórico-psicológica ao lado de outras semelhantes, como um
“QUANTUM” que pudesse ser aumentado ou diminuído, como realidade so-
bre qual outros seres criados ou pessoas pudessem exercer influência, então

528
O Deus de Jacó 9, 6

também o Apóstolo estaria junto com os muitos que se queixam dizendo “que
a palavra de Deus falhou”, e por isso se põem a [imaginar e] meditar sobre
como poderão ser salvos. [Estivera] em tal situação, o Apóstolo responsabiliza-
ria a degenerescência humana pelos inconfundíveis sintomas da evidente en-
fermidade crônica da Igreja e tomaria as medidas apropriadas e mais ou menos
decisivas para debelar o mal.
Todavia isto lhe é defeso pelo inextrincável paradoxo da verdade, O
tema da Igreja é, realmente, a Palavra de Deus, a palavra do fim e do começo,
[do alfa e do ômega]. É a palavra do Criador, do Redentor, do juízo e da justifi-
cação; esta Palavra de Deus é ouvida por ouvidos humanos e enunciada por
lábios também humanos, porquanto a Igreja é sempre e reiteradamente a comu-
nidade formada por pessoas que ouvem e anunciam a Palavra de Deus. Dessa
conjuntura resulta que os ouvidos e lábios humanos hão de sempre e necessari-
amente falhar quando se tratar [do discernimento e da proclamação] da palavra
infalível de Deus; o ser humano precisa ouvir e anunciar sempre a verdade de
Deus que, todavia, assim ouvida e anunciada já não é a verdade divina. Daí
resulta que o tema da Igreja é tão [absolutamente] verdadeiro que jamais será
VERDADEIRO a menos que [...] aconteça o milagre! Esta é a sua tribulação.
[Parece-me que fazendo jogo de palavras conforme é de seu estilo, o A.
quer dizer que a Igreja não pode, pelas contingências da temporalidade que a
reveste, anunciar a Palavra de Deus com “palavras dos céus”, porém o faz com
terminologia humana e entendimento humano procurando (por assim dizer)
TRANSMITIR a inspiração que recebe, embora essa “retransmissão” seja im-
perfeita.
A Igreja que tiver Cristo por alicerce não é detentora da verdade porque
ela não detém Cristo em si mesma, porém ela é a fonte onde brota, ou melhor,
onde pode e deve brotar a água viva, porque a água da vida somente jorrará
enquanto e na medida em que Cristo for, de fato, alicerce; contudo, mesmo estan-
do fundamentada em Cristo, a água que através dela jorra traz consigo algumas
das características materiais — humanas — que deturpam a verdade eterna de
modo que a mensagem da Igreja, sendo da Igreja, já não é a verdade de Deus; no
entanto o mister, o assunto, o tema de tal Igreja é a própria Verdade, (é Deus!); é
de Deus que a Igreja fala, por isso não fala “exatamente” a Verdade mas fala da
Verdade; se a Igreja revelasse (ou se revelar) a mensagem que tem para entregar
com absoluta fidelidade ao “original”, ela já não estaria (ou não estará) falando
do Deus de Abraão, Isac e Jacó, do Deus dos Profetas e dos Apóstolos, do Deus
Desconhecido, mas de UM Deus, quiçá do Não — Deus deste mundo.
Esta é a deficiência que atinge a Igreja e, paradoxalmente, será sentida
tanto mais agudamente quanto mais firmemente ela se assentar na rocha que os

529
9, 6 O Deus de Jacó

“edificadores rejeitaram” por que não quiseram ou não tiveram coragem para
assimilar o escândalo da fé.
Esta é a TRIBULAÇÃO DA IGREJA!
No entanto dá-se o milagre da graça; o Espírito intercede por nós e vem
ao nosso encontro e pela instrumentalidade da Igreja (todavia não somente pela
Igreja) nos leva aos pés da cruz.
Esta é a COROA DA IGREJA! ...]
A Igreja se esfacela na rocha que a fundamenta; ela morre naquele de
quem ela vive. O “bem-aventurado” e, também, “terrível” tema da Igreja é a
Palavra de Deus na qual se efetiva o relacionamento entre o homem e Deus [...
e o verbo se fez carne ...] para que Deus seja verdadeiro e todo homem menti-
roso (3, 4).
[E como poderia alguém falar a própria verdade de Deus?]
Neste tema divide-se a Igreja sempre de novo em Igreja de Esaú e Igreja
de Jacó. Naquela o milagre não acontece e por isso todo falar e ouvir de Deus
apenas revela que o homem é mentiroso, enquanto nesta acontece o milagre e a
Verdade de Deus é visível [acima e] por sobre a mentira humana.
É evidente que estas duas Igrejas jamais e em parte alguma aparecem
[como duas organizações] em oposição entre si. A Igreja de Esaú é a única que
[na realidade desde mundo] é, basicamente possível, visível e conhecida, [seja
ela] Jerusalém, Roma, Wittemberg, Genebra ou de qualquer um de todos luga-
res santos do passado, do futuro [ou atuais]; em todas essas Igrejas, sem exce-
ção, se encontrarão erros, as degenerescências tomam vulto e nelas ocorrem
reformas e cismas.
[De outra parte] a Igreja de Jacó, também basicamente, é a Igreja im-
possível, invisível, desconhecida; é a Igreja sem dimensões e sem cerceamento,
sem sede e sem nome, sem história, sem congregação e sem excomunhões; ao
redor dela está a livre graça de Deus, vocação e eleição, a unidade e o todo,
princípio e fim.
Tratamos da Igreja de Esaú porque somente dela podemos falar; mas
não nos podemos ocupar dela sem imediatamente nos lembrarmos que o seu
[verdadeiro] tema é o da Igreja de Jacó.
Em toda sua dubiedade, Esaú vive de Jacó e subsiste somente porque
não é e enquanto ele próprio não for Jacó.
Como não podemos contornar esta realidade, a [contínua] queda, a pe-
rene degenerescência e a eventual recuperação da Igreja de Esaú passam a ter,
para nós, interesse apenas secundário e não nos podemos animar a perder com
ela uma palavra sequer, a não ser em conexão com sua própria aflição — a
aflição que fustiga suas virtudes e não a que procede de seus vícios.

530
O Deus de Jacó 9, 6-7

A “grande mágoa e incessante dor” (9, 2) impõe-nos o peso ingente de


investigar se, para nós, o tema da Igreja apenas revela a mentira humana ou se,
talvez, também signifique a revelação da verdade de Deus; se a Igreja de Jacó
está perdida para nós ou se também nós estamos, de alguma maneira, nesta
Igreja impossível, invisível e desconhecida.
O que nos resta senão permitir que essa pergunta execute a sua obra em
nós, e “esperar que o milagre se realize” conforme dizem aqueles que não têm
esperança? O que nos resta senão estar atentos ao Evangelho e tartamudear a
respeito daquele que, para sempre, fundamenta a Igreja de Jacó? O que mais
nos resta além da aflição da Igreja, esta Igreja de Esaú, a única que conhece-
mos? O que nos resta senão tomarmos esta Igreja “a sério” para então bater à
porta de Deus: “Não te deixarei ir se não me abençoares”? (Gen. 32, 36).

Vs. 6 (segunda parte) a 9 Porquanto não por eles descenderem todos de Israel,
são eles Israel; nem por serem descendentes de Abraão são todos filhos de
Deus. Antes: em Isaque a tua descendência terá o seu nome! isto é: os
filhos segundo a carne, como tais, não são filhos de Deus, mas são os
filhos da promessa que são considerados como descendência de Abraão e
de Deus. Porque a palavra da promessa é esta: “Ao tempo eu virei e Sara
terá um filho”.

[A versão do A. tem nuanças um pouco diferentes da tradução de


Almeida, que escreve assim:... “porque nem todos os de Israel são de fato
israelitas; nem por serem descendentes de Abraão são todos seus filhos; mas:
Em Isaque será chamada a tua descendência. Isto é, estes filhos de Deus não
são propriamente os da carne, mas devem ser considerados, como descendên-
cia, os filhos da Promessa. Porque a palavra da promessa é esta: “Por esse
tempo virei e Sara terá um filho”]
“Não por eles todos descenderem de Israel, são Israel, nem por serem
descendentes de Abraão são todos Filhos”.
Quando dizemos “Igreja” referimo-nos à multirramificada e
multiclassificada totalidade daqueles que são movidos pelo bafejo da Revela-
ção, que clamam a Deus seriamente, nele perseveram e guardam os seus man-
damentos.
É evidente que esses todos “descendem de Israel”.
Se eles acaso ouvem a palavra de Deus e dela falam de forma que aquilo
que aí se ouve e de que se fala seja realmente a Palavra de Deus — o milagre
acontece; se o seu instante histórico contiver também, o culto, o instante eterno
da Revelação, então eles são existencialmente aquilo pelo que se nomeiam e mais

531
9, 6-8 O Deus de Jacó

uma vez precisamos dizer: o milagre acontece! Então estes são, invisivelmente, a
Igreja de Jacó; possuem a promessa de Abraão (4, 16), são filhos de Deus (8, 16)!
São mesmo? São aquilo que seu nome diz? E por que não seriam? Por que
não o seriam todos eles desde os mais categorizados até os mais de baixo? Quais,
deles todos, não seriam testemunhas e sinais da lei e dos profetas (3, 21)?
“Em Cristo”, todos eles, sem exceção, são Filhos de Deus.
Porém, “em Cristo” quer dizer na medida em que se der o milagre; na
medida em que a livre graça, vocação e eleição de Deus assim o quer; na medi-
da em que houver compreensão (entendimento) de Deus.
(Parece-me que a versão inglesa inverteu o sentido desta última frase,
escrevendo “na medida em que forem conhecidos por Deus”. O original escre-
ve: “SOFERN ERKENTNISS GOTTES STATT FINDET”. Ao pé da letra pa-
rece-me que seria “CONQUANTO O CONHECIMENTO (A NOÇÃO, A
COMPREENSÃO) DE DEUS (SE REALIZE (OU) TENHA LUGAR.
Daí a interpretação adotada que me parece ser mais coerente com as
idéias gerais do Autor e também mais bíblica].
(Se não houver compreensão de Deus] se não for pelo milagre, pela
eleição divina, então não é “em Cristo”! Portanto nunca e jamais enquanto
forem “descendência de Israel” ou “tronco de Abraão”; nunca e jamais por
força da eventual máxima plenitude da Igreja de Esaú ainda que ela atingisse o
ápice, à culminância do desenvolvimento religioso da humanidade.
De Deus e somente de Deus procede a possibilidade de que a palavra
infalível que eles [os que estão na Igreja] ousam ouvir e da qual se atrevem
falar, seja uma palavra abençoada.
Acaso não é motivo de aflição se esta for a situação da Igreja com rela-
ção ao seu próprio tema? E esta aflição que, de uma ou outra forma, constitui a
base de todas atribulações da Igreja, inclusive daquelas vindas de fora; é por
isso que ela não é reconhecida [pelo mundo]; [é por causa desta aflição básica]
que são infrutíferas, tanto a nossa eventual teima em sustentar a situação [a
Igreja] existente, quanto a tentativa de reformá-la ou de criar novas condições
[ou novas organizações eclesiásticas].
“Em Isaque será chamada a tua descendência” (ou segundo a redação
do A., “em Isaque a tua descendência terá o seu nome]. (Gen. 21, 12).
Isto é, os filhos segundo a carne, como tais, não são Filhos de Deus, mas
são os filhos da promessa que são assim considerados.
Portanto todos os que “descendem de Israel” e que representam aqueles
que a Deus levantam mãos postas em oração, estão dentro da crise da duplicidade
da Igreja ou, por outras palavras: [estão sob] a dupla predestinação; para eles
subsiste a dupla possibilidade que se fixa e se desloca em Deus, somente. Como

532
O Deus de Jacó 9, 6-8

descendentes de Israel, tanto podem ser eleitos, [salvos] como condenados;


como filhos segundo a carne tanto podem ser do lar, como estranhos; tendo a
Palavra de Deus nos ouvidos e sobre os lábios, tanto podem pertencer à Igreja
de Jacó como à de Esaú.
É em Cristo que se revela que esta possibilidade em Deus toma o senti-
do de eleição da criatura humana; [é em Cristo] que se dá a sua inclusão entre
os “filhos do lar” e sua participação da Igreja de Jacó. É portanto em Cristo que
a crise [da duplicidade] vem a furo.
Quando o instante eterno da revelação, em relampejante claridade, mos-
tra à criatura o seu substancial arraigamento naquele que ela não é, — [o seu
enraizamento] em Deus, então se dá o seu mais profundo alicerçamento [em
Cristo]. Todavia neste mesmo instante eterno da revelação, na medida em que a
criatura se apercebe de que somente em Deus, somente naquele que ela não é,
estava, está e estará a rocha firme em que se poderá apoiar, ela sente o mais
profundo abalo, [a falta de fundamento sólido].
[Em seu fraseado característico, recorrendo aos contrastes, o A. — pa-
rece-me — quer dizer-nos que no instante em que, ouvindo a voz de Deus, a ele
nos entregamos irretratavelmente, embora nos sintamos seguros pela graça de
Deus, não podemos deixar de estremecer ante a realidade de Deus.]
Aqueles que não trazem apenas o nome de “descendência de Abraão”
mas também são o que esse nome significa, são [por assim dizer] peculiares,
[especiais]: não podem ser definidos ou explicados; não encontram confirma-
ção histórica ou psíquica; não podem ser definidos no mundo porque foram
definidos por Deus como Isaque, como “filhos da promessa”, à luz do
FUTURUM AETERNUM; por força da nova contabilidade de Deus com a
criatura humana (3, 28; 4, 3; 6, 11 e 8, 18), eles são o que são; portanto, não é
de outra maneira: não é por força de suas características próprias (ainda
encontráveis neles), não por sua capacidade como “filhos segundo a carne”,
não por força de alguma coisa, inda que fosse a mais sublime e mais santa que
existiu, existe ou poderá existir neste mundo; antes é por que todas essas carac-
terísticas, [qualidades], (propriedades e possibilidades) foram postas em dúvi-
da, anuladas, canceladas.
Acaso não é tribulação [para a Igreja] quando ela é sempre e
reiteradamente advertida, admoestada por seu próprio tema, que lhe chama a
atenção sobre o seu “Não-ser” e de que ela, em sua existência apenas pode,
sempre de novo, atacar a si mesma, renunciar a si mesma e sacrificar-se? Quem
há que suporte essa aflição? Quem a remove ou quem está à altura dela?
A Igreja vive tentando fugir da conscientização dessa aflição, ora median-
te a defesa tenaz de antigos e venerandos costumes dos pais da Igreja e da tradição,

533
9, 8-9 O Deus de Jacó

ora no zelo de galvanizar-se [de se reanimar, de ganhar vida, de dinamizar-sei ou


ainda, procurando erigir novos modelos de religião [ou de religiosidade].
Esta sua vontade de não morrer é a verdadeira tragédia da Igreja.
“Porque esta é uma palavra de promessa. Ao tempo eu virei, e Sara terá
um filho” (Gen. 18, 10).
O cumprimento das promessas feitas aos homens é o despontar triun-
fante da própria verdade de Deus (e de Deus somente), entre as realidades deste
mundo. A promessa é indicação [de que a verdade de Deus está surgindo entre
os homens] isto é, ela se refere ao milagre, ao Espírito, ao impossível, à redenção.
É na forma de promessa, exclusivamente nesta forma e em nenhuma
outra, que a criatura se depara com a Eleição Divina.
[Entendo que o A. quer dizer que a criatura se depara APENAS com a
promessa da Eleição e não com a sua efetivação objetiva].
A criatura precisa crer ousadamente; não se lhe oferece qualquer garan-
tia [para avalizar a sua fé] pois tal garantia só poderia ser o próprio Espírito, a
própria fé, e se constituiria na ousadia que deve acompanhar a fé. [Em outras
palavras, a “garantia” anularia a fé mediante a supressão da possibilidade de
existência das características que lhe são inerentes].
“Isaque” quer dizer “sorriso”, Por que e como sorrimos? [Acaso sorri-
mos] ceticamente em vista da impossível possibilidade ou entusiasticamente
porque vemos a impossível possibilidade? O passo que vai de uma a outra
destas reações não é tão grande como pretendem aqueles que não conhecem o
verdadeiro ceticismo e o verdadeiro entusiasmo.
A Igreja não pode ocultar que seu tema a empurra a uma aresta de rocha
extremamente aguda; no entanto, em nenhum instante ela pode desejar que seja
diferente porquanto o cumprimento fácil da promessa seria a perda daquilo que
foi firmemente prometido aos homens.
(O que quer isto dizer?
— Qual é a posição difícil, a agudíssima aresta de rocha na qual a Igreja
se situa por força de seu próprio tema?
Ora, o tema da Igreja é a verdade de Deus. Esta verdade somente pode
ser assimilada pela fé e tanto pode ser recebida com entusiasmo pela possibili-
dade da (aparentemente impossível) graça de Deus, como pode ser vista com
ceticismo, justamente pela aparente impossibilidade dessa graça. Portanto, a
área de opção é infinitamente pequena, reduzida é a distância que medeia entre
as duas escolhas, pois ambas as posições se definem nesta mesma aresta aguda:
a aparente impossibilidade da graça de Deus!
[O A. diz ainda que a Igreja não poderia desejar que fosse de outra for-
ma porquanto o cumprimento aleatório da promessa invalidaria a própria firme

534
O Deus de Jacó 9, 9

promessa divina, Parece-me que isto é assim porque não se trata de decisão
simples; não se cogita nem mesmo de alguma decisão extremamente importan-
te ao nível das coisas mais sérias do mundo, mas da única decisão que a criatura
humana precisa tomar ante o seu Criador. Não é questão aleatória “mui simples
de entender” e “fácil de explicar” como pretende certa “teologia para crian-
ças”. Trata-se de assunto crítico e decisivo a ser resolvido, quiçá em oportuni-
dade única, e que é um só: Jesus Cristo! Se esta questão for considerada casual,
simples, talvez vulgar e até repetitiva ou mesmo rotineira, ou se ela apresentar
alternativas e variantes segundo critérios humanos, se a verdade for retida pela
injustiça dos homens, então a plataforma de opção se amplia mas ela perde o
seu significado real; será a decisão por alguma verdade secundária, de caráter
transitório, que poderá proporcionar ao suposto crente a paz enganosa, passa-
geira, tão do gosto do mundo e, talvez, também do agrado de não poucos mem-
bros das variadas confissões religiosas, inclusive “cristãs”, que vão desde os
praticantes do mais “moderno” protestantismo até o mais “ultramontano” cato-
licismo, para não mencionar seitas pretensamente evangélicas ou cristãs, cujo
leque se estende desde as mais ingênuas até as mais satânicas e desde as mais
exóticas até as mais solenes.
A decisão fácil, casual, fortuita, invalida e anula a promessa de Deus aos
homens ou melhor, não diz respeito a essa promessa pois não se relaciona com
o DEUS DESCONHECIDO de Abraão, Isaque e Jacó cuja verdade a Igreja
proclama (ou deve proclamar), antes serve ao NÃO-DEUS cuja “verdade” o
mundo gosta de ouvir.
É por isto que a Igreja não pode, em instante algum, desejar que esta
aresta aguda da linha de decisão se alargue, que se transforme em plataforma
ampla e firme, tão caracteristicamente — mas também de forma tão caricata —
definida no antigo e tolerante aforismo: “Todas as religiões, sendo sinceras, são
iguais perante Deus”! Esta é a falácia da tolerância religiosa].
Esperança [posta em algo] visível, não seria esperança (8, 24); a suposta
presença direta da verdade divina, não é a Verdade Divina. A Igreja que ousa
ouvir a Palavra de Deus com ouvidos humanos e dela falar com humanos lábi-
os VIVE da promessa porém, tanto a criatura como tudo quanto é humano
precisam MORRER nessa mesma promessa a fim de que vivam para Deus.
A Igreja — e principalmente ela — não pode esquivar-se dessa morte
pois justamente a Igreja que perece [que morre em Cristo], é a que verdadeira-
mente vive da promessa, isto é, vive à luz do eterno cumprimento que vem de
além da vida e da morte.
Toda Igreja que triunfa desta ou daquela forma, [aleatoriamente] e que
por isso é tida por viva. “tem o nome de que está viva, mas eis que está morta”.

535
9, 9-13 O Deus de Jacó

[A tribulação da Igreja está no conflito entre a sua vocação mundana e a


vocação divina; humanamente] a Igreja quer alcançar o cumprimento da pro-
messa deste lado da existência e, como tudo o que é humano, quer viver para
sempre e triunfar. Todavia, [pela vocação divina] a Igreja precisa viver da pro-
messa e diminuir sempre para que ELE cresça. Esta é a tribulação da Igreja e a
seriedade desta situação não pode [sequer] ser suficientemente enfatizada pois
a fonte desta sua aflição é também a fonte de sua esperança.
Se a Igreja não perceber esta sua real tribulação ela também não terá
verdadeira esperança: se ela não quiser crer sem ver, apenas verá aquilo que se
pode perceber sem crer.

Vs. 10 a 13 [Continuando o versículo 9, que diz,... “esta é uma palavra de


Promessa: ao tempo próprio eu virei e Sara terá um filho”].
Todavia não só então mas também quando Rebeca engravidou de um
homem, nosso pai Isaque, por conseguinte, antes que nascessem (os gême-
os) e portanto antes que houvessem praticado o bem ou o mal, (para que
prevalecesse a determinação de Deus que é segundo a eleição e sua deci-
são que se dá não pelas obras mas por vocação), foi lhe dito que “o maior
servirá o menor! Conforme a respeito desta decisão está escrito: “Amei a
Jacó, porém odiei Esaú”!

[A tradução de Almeida escreve, a partir da parte final do versículo 11:...


(“para que o propósito de Deus, quanto à eleição, prevalecesse, não por obras
mas por aquele que chama), já fora dito a ela: o mais velho será servo do mais
moço. Como está escrito: amei a Jacó porém me aborreci de Esaú.
Dentro da descendência de Abraão os filhos gêmeos, ainda não nasci-
dos, de um casal: e deles se diz: “O maior servirá o menor”, (Gen. 25, 23).
Assim se proclama ainda mais claramente como a Igreja se divide ante seu
próprio tema e que tema é este.
Quem se não Deus, e somente Deus, pode falar a favor de um ou contra
o outro, quando toda diferença humana ainda está oculta no secreto das entra-
nhas maternas que recordam a invisibilidade divina? Por que Jacó e não Esaú?
Nenhum deles levara (ou possuíra) sobre o outro qualquer vantagem para ser
vocacionado: ambos eram filhos legítimos de Isaque, netos de Abraão, e ne-
nhum deles havia praticado “nem bem nem mal”. No entanto a linha inexorável
e crítica corta através da descendência até aqui gerada e concebida em comum
marcando, deste lado, a eleição e daquele, a condenação; aqui a Igreja de Deus,
ali a Igreja dos homens; de um lado a Verdade como justificação e do outro, a
verdade como julgamento. Por que? poderíamos perguntar sempre.

536
O Deus de Jacó 9, 10-13

A resposta:
“Para que prevalecesse a determinação por Deus que é segundo a elei-
ção e a decisão se dá não por obras, mas pela vocação”.
Portanto é porque, havendo a descendência de Abraão travado relações
com Deus e porque Deus é Deus, ele sempre e reiteradamente se confirma
como Deus; [reiterou] que ele, ele mesmo e somente ele, é quem elege e conde-
na, eleva e faz cair, dá a vida e a tira.
De que outra maneira haveremos de reconhecer esse Deus, senão nesta
sua sabedoria? [Como poderíamos sequer vislumbrar] esse Deus totalmente
diferente que não está ligado a qualquer característica humana, nem de modo
independente nem relativamente e que não pode ser contrastado com coisa al-
guma? Como haveria de se tornar visível para nós o Deus Invisível e como
haveríamos de conhecer o Deus Desconhecido senão nesta segunda condição
de sua liberdade? E de que outra forma poderia efetivar-se o tema da Igreja
senão mediante a contínua reiteração de sua crise?
A própria descendência de Abraão, oprimida por Deus, nada mais pode
aspirar nem querer senão que “a determinação de Deus, segundo a eleição,
prevaleça”, que Deus tenha razão e a detenha em sua irrestrita liberdade.
Deus é glorificado com o júbilo dos eleitos [ou salvos] e também com o
ranger de dentes dos condenados porque na incontornável doutrina da eterna
dupla predestinação “não se trata da limitação quantitativa mas de descrição
[especificação] qualitativa da ação divina” (Kuehl), [A tradução inglesa escre-
ve “definição” divina]. Não há modo de ser, posse ou ação humana, nem obra
alguma que, nessa qualidade, seja preterida ou preferida; ninguém, na
temporalidade, pode consolar-se com a eleição e ninguém tem de estar consci-
ente da condenação eterna. Antes, o que esta doutrina ensina é a fundamenta-
ção eterna da criatura humana e que nesta fundamentação “a decisão é dada por
aquele que chama”; ensina que Deus é verdadeiramente o Deus dessa criatura,
O que o ensinamento da dupla predestinação assinala é o paradoxo; no contras-
te da eleição e da rejeição o seu entendimento é equívoco.
É a descendência de Abraão — (e também a Igreja) — que procura
entender [esse paradoxo]. “Deus não te ajuda por tua causa, mas por ele mes-
mo” (Schlatter). Se for diferente então, absolutamente, não é ele quem te ajuda;
tal auxílio não vem de Deus.
Deus conduz a sua causa na Igreja e por ser sua a causa, ela [a Igreja]
não sossobrará. [O A. diz, literalmente, “ela não pode sossobrar”]. É justamen-
te por isto que haveremos de tomar muito cuidado ao desfazer da “causa em
que estamos”, [ao detratar a Igreja] porquanto ao conduzir a sua causa Deus,
em todo caso, arrebatará a nossa (como “nossa”!), de nossas mãos; permitirá

537
9, 13 O Deus de Esaú

ou não que se dê o milagre. [É Deus somente que] confirma seu Israel (como
seu!) e rejeita aos que o são apenas de nome; conduz à luz um povo que o serve
e envolve em trevas a outro que apenas pretende servi-lo; dá a herança a seus
filhos e a tira dos estranhos; aos que chamou abençoa com sua presença e com
sua ausência castiga os que não chamou; faz derradeiros dos que no mundo são
primeiros e dos que aqui são os últimos ele faz primeiros: tudo isto sendo ele
Deus, o Desconhecido e sendo seus o Reino, o Poder e a Glória.
“Porquanto amei a Jacó mas odiei a Esaú”. Recordamos que esta é uma
descrição da conduta de Deus. (Mal. 1, 2-3); é uma descrição da qualidade do
procedimento divino: procedimento livre, régio, soberano, incondicional; [humana-
mente] sem razão de ser. Só nesta forma podemos entender e honrar a Deus pois ele
somente é compreendido pela criatura deste mundo e por ela considerado digno de
honra, como o Deus que elege e rejeita, que ama e odeia, que faz viver e faz morrer.
O paradoxo de que a eternidade se torna temporal sem, todavia, ser tem-
poral, constitui a tribulação da Igreja e é, também, a revelação de Deus. [Este
paradoxo] está no enigma e na parábola do amado Jacó e do odiado Esaú; [está]
no segredo da eterna dupla predestinação. E por isso que a predestinação é o
segredo do ser humano e não desta ou daquela pessoa. Ela não separa uns dos
outros [ela não discrimina entre as pessoas] mas é o mais profundo elemento da
generalização da espécie humana. [A tradução inglesa escreve que os homens
“não são separados, mas unidos pela predestinação”.]
Ante a predestinação estão todos na mesma linha; tanto. Jacó quanto
Esaú se defrontam com ela durante toda sua temporalidade. Com ela defronta-
se Esaú no eterno instante da revelação e também Jacó. Jacó é o Esaú invisível
e Esaú o visível Jacó.
A formulação reformada da doutrina da predestinação fixando a eleição
e a condenação na unidade psicológica do indivíduo, e quantitativamente em
[número de] eleitos e condenados é mitologificante. Paulo não quis dizer isso
nem poderia pensar assim pois nele, de fora a fora está focalizado o interesse de
Deus pelo indivíduo e jamais o interesse do indivíduo por Deus [como seria o
caso se a aproximação da criatura humana a Deus fosse, de alguma forma,
originada pela predestinação].
[A tradução inglesa escreve assim: “Quando os Reformadores aplica-
ram a doutrina da eleição e rejeição (predestinação) à unidade psicológica des-
te ou daquele indivíduo e quando se referiram quantitativamente aos “eleitos” e
“condenados” eles estavam, conforme agora se pode ver, falando mitologica-
mente. Paulo não pensava nem quantitativamente nem psicologicamente por-
quanto a sua ênfase está posta, totalmente, no interesse de Deus pelo indivíduo
e não no interesse do indivíduo em Deus].

538
O Deus de Esaú 9, 13

Como poderia o indivíduo temporal, visível, psicológico, estar habilita-


do à eleição ou à rejeição? [Como seria isto possível?]
A invisível liberdade humana é apenas o palco onde tem lugar a eleição
ou a rejeição do indivíduo que se move e repousa em Deus — e para tal palco
esta carga é suficiente. Sabemos o que esta duplicidade significa em Deus.
Verdadeiramente não há equilíbrio [de forças] mas a permanente vitória da
primeira sobre a segunda. [Da eleição sobre a rejeição]. A justiça é sobrepujada
pela graça, o ódio pelo amor, a morte pela vida. Todavia essa vitória nos é
oculta a todo instante da temporalidade e não nos podemos esquivar da
duplicidade. Para nós, o Jacó visível chama-se Esaú e somente o Esaú invisível
pode ser Jacó. Portanto a Igreja se confronta total e absolutamente a todo ins-
tante da temporalidade — com a possibilidade da rejeição (que, todavia, foi
sobrepujada eternamente por Deus!). A sua eleição, porém, subsiste apenas
pela fé; a verdade da Palavra de Deus que ela percebe e proclama é apenas em
Espírito; e sua fé, seu espírito e sua esperança, por sua vez, estão somente em
Deus. Isto é assim para que ela [a Igreja] também, na medida em que queira ser
a Igreja de Jacó, esteja em infindável temor perante Esaú e, depois de tudo
haver feito para reconciliar-se com o irmão inamistoso, no final, pode apenas
pelejar com Deus e com ele tem de lutar “até o raiar do dia”. (Gen, 32, 25).
Esta é a grandeza da Igreja e também sua aflição que nunca pode ser
suficientemente avaliada: a aflição a par da qual todas as demais tribulações
que tiver são apenas quais folganças infantis.

O DEUS DE ESAÚ (9, 14-29)

Vs. 14 a 18 O que diremos pois? Não é isto uma iniqüidade da parte de Deus?
[Almeida escreve “injustiça divina”].
Impossível! Porquanto ele disse a Moisés: Compadecer-me-ei de quem
me compadecer e terei misericórdia de quem eu tiver misericórdia.
Portanto é assim: não vem do querer e do correr da criatura humana
mas do Deus que se apiada. Porquanto a Escritura diz a Faraó: Foi por
isto que te levantei, para em ti evidenciar o meu Poder e para que o meu
nome seja proclamado em toda terra.
É pois, assim: ele tem misericórdia de quem quer e obstina a quem lhe apraz.

“Não é isto uma iniqüidade da parte de Deus?”


— “A Jacó amei, mas odiei a Esaú!
[Esta] é uma verdade terrível e mais terrível ainda porque ela nos é apre-
sentada claramente sem qualquer conotação psicológica!

539
9, 14-18 O Deus de Esaú

Quem é o Deus que assim nos fala, em cujas mãos é tão terrível cair, que
lida com os seus dessa maneira e lhes prepara semelhante aflição?
Quem é o Deus tão superno, que faz maravilhas, que não pode ser co-
nhecido e em quem não pode ser crido senão pelo milagre da revelação e na
transformação (pela mudança) da rejeição em eleição?
Quem é o Deus que sempre se faz encontrável e que, por isso mesmo,
quer ser sempre procurado? [quem é esse Deus] que por toda eternidade é o
Deus de Jacó e, por isso mesmo é, a todo tempo, o Deus de Esaú?
[Quem é] o Deus que de maneira tão absolutamente superlativa é, ele
mesmo, a verdade a ponto de a criatura deste mundo não poder ter “certeza”
dele?
Quem há que não estremeça [ante essas considerações]?
EST ENIM PRAEDESTINATIO DEI VERE LABYRINTHUS, UNDE
HOMINIS INGENIUM NULLO MODO SE EXPLICARE QUEAT - (Calvino).
Acaso não é evidente que este pensamento (de Calvino), sobre o qual
nenhuma Igreja digna desse nome pode deixar de ponderar, é um ataque ao
princípio fundamental de toda Igreja? Não é claro que ante a realidade desse
Deus [que assim elege e rejeita] todas nossas abstrações ético-religiosas ruem
por terra como se fossem esferas equilibradas sobre hastes pontiagudas, como
casas e árvores representadas em pinturas futuristas?
Acaso não são por demais compreensíveis as objeções que em todos os
tempos o açodamento e o curto-fôlego eclesiástico-religioso levantam à doutri-
na da predestinação em nome da altamente ameaçada criatura humana? [Aca-
so] não é inevitável que do mais alto e mais destemido pináculo da fé humana
sempre e sempre ressoe de novo a estulta pergunta (3, 5), se Deus não seria, ele
próprio, “iníquo? Se ele não seria um demônio malévolo e caprichoso que nos
faz parvos, a todos, um perturbador das normas da justiça [do direito] a que ele
próprio deveria estar sujeito?
Há algo mais revoltante aos homens do que esta potestade, majestosa-
mente misteriosa, inescrutável, inacessível, intocável, que só ela é livre, só ela
poderosa? Não estaríamos todos inclinados a clamar espontaneamente que se-
melhante ENTE não pode, não deve ser Deus?
É certo que a Igreja não compreenderá [a natureza da] sua tribulação e
não poderá transformar-se enquanto a ameaça dessa interrogação [sobre a ini-
qüidade de Deus], [ou a formulação] dessa queixa e dessa acusação não for
entendida em sua inteireza.
Sem chegar a esta pergunta, sem nos conscientizarmos da falência ca-
tastrófica de tudo quanto a criatura possa pensar sobre Deus e “fazer” por ele,
não há conhecimento de Deus, nem consolo, nem socorro.

540
O Deus de Esaú 9, 14-15

[A tradução inglesa escreve: “Em qualquer caso temos que admitir que
enquanto a Igreja não reconhecer quão ameaçadora é a possibilidade dessas
perguntas, dessas queixas e acusações, ela nem entenderá sua própria atribulação
nem alcançará a transformação de sua miséria. É precisamente na possibilida-
de de semelhante interrogação que se revela a extrema impropriedade de toda
noção que os homens têm de Deus e de tudo quanto podem fazer por ele. Não
há conhecimento de Deus, nem consolo nem esperança, fora da catástrofe à
qual essa possibilidade dirige nossa atenção].
Um Deus contra o qual não se levantasse esse clamor, não seria Deus.
A este respeito cumpre notar que a característica da proclamação do Evange-
lho de Cristo, tanto no Antigo como Novo Testamento consiste no destaque
dessa objeção e nisto o Evangelho difere de outras mensagens, mais baratas e
agradáveis.
Quando o assunto é tratado com seriedade, sobressai o escândalo da
predestinação e o Deus de Esaú tem a palavra.
Estas são coisas que Nietzche, em sua selvagem oposição a Deus, pare-
ce ter entendido melhor do que os irrefletidos crentes “diretos”, [quiçá os que
se consideram em ligação direta e íntima comunhão com Deus-Pai] que ousam
incriminá-lo por isso. Porquanto [está escrito]: “A Jacó amei, mas odiei a Esaú”.
“Isto está em conformidade com outros episódios semelhantes, como [por exem-
plo], a coluna de nuvem que se pois entre exércitos de Faraó e Israel, e era
escuridade para aqueles e luz para estes. Estas passagens têm dois lados: para
aqueles que crêem, que confiam no amor de Deus, elas têm um sentido amorável,
suave; porém aos que prefeririam poder contar com suas próprias obras elas
são, francamente, qual nuvem tenebrosa.
“Quanto mais duras essas proposições forem consideradas por alguém,
tanto mais está essa pessoa absorvida por sua própria justiça; porém quanto
melhor aceitarmos esse ensino, mais plenamente repousa nosso coração na graça
divina”. (Steinhofer).
A objeção [de que Deus é iníquo] é impossível por mais pertinente [mais
verossímil] que pareça; por mais profunda que seja sua penetração na realidade
[segundo o critério humano]. Esta objeção apenas pode ser levantada para ime-
diatamente ruir sobre si mesma e assim, nesta emergência e pronta submersão,
evidenciar que Deus é “aquele que é”: o Deus de Esaú, por ser o Deus de Jacó;
ele é o Deus que gera a aflição porque traz o socorro; é o Deus que rejeita
porque elege.
Justamente por isso a crise não pode ser contornada nem se pode querer
afastar o escândalo da coluna de nuvem de dois efeitos.
Tratemos agora de como suportar esta crise.

541
9, 15-16 O Deus de Esaú

“Compadecer-me-ei de quem me compadecer e terei misericórdia de


quem tiver misericórdia! Portanto, não vem do correr ou do querer da criatura
humana, mas do Deus que se apiada”.
Deus, “iníquo”? Não, porém é sua própria norma! A justiça divina é
justiça eterna! O amor de Deus é infinito, não finito!
É disto que se trata.
É exatamente este Deus que para a compreensão humana só poderia ser
qualificado como “déspota” e contra cuja dominação o homem [sempre segun-
do o mundo] somente pode revoltar-se e a quem a criatura a preço algum cha-
maria [naturalmente seu] Deus, este é DEUS!
O fato de os homens terem a Deus por [Senhor e dominador ou,] “dés-
pota” [no dizer do Autor] (Luc. 2, 29 e Atos 4, 24 e seguintes) e assim o consi-
derarem como pai amoroso, de o tratarem como o Deus de Esaú porque o con-
sideram Deus de Jacó e assim o amam, isto se dá pelo conhecimento [que te-
mos] de Deus, em Cristo, e não há caminho para nosso conhecimento de Deus
que não esbarre no escolho dessa objeção.
O Deus que pudéssemos conhecer em termos de grandezas condizentes
com o entendimento humano ou como causa em uma série de acontecimentos,
ou na forma de partido [ou parte] entre partidos, não seria o Princípio [o “Alfa”],
o Absoluto, o Eterno, nem seria o Deus pessoal [personalíssimo de cada indiví-
duo], mas seria o Não-Deus [generalizado e comum ao mundo]; [este próprio
Não-Deus] qual imagem e semelhança do Deus verdadeiro que nos leva (inevi-
tavelmente) ao ponto onde a objeção tem de aflorar, aponta para além de si
mesmo e se anula para a honra de Deus e de Deus somente.
A vontade de Deus não consiste na aplicação e no acionamento de um
bem superior que existisse (por assim dizer] acima de Deus [a tradução inglesa
escreve “que existisse independente de Deus e ao qual fosse sujeito”l — porém
o próprio Deus é a fonte e a sede de todo bem e de tudo que é bom. Somente se
pode entender o bem [ou o que é bom] se [o evento] for entendido como [sen-
do] a vontade [ou da vontade] de Deus. [Os tradutores ingleses escrevem: “Sua
vontade é (...)] a fonte e a sanção de todo bem, e é bom somente porque é o que
ele quer] “ DEO SATIS SUPER QUE EST SUA UNIUS AUTORITAS; UT
NULLIUS PATROCINIO INDIGEAT, por isso, FACIAM QUOD FACTURUS
SUM; e (ainda]: HAEC DEO LIBERTAS ERIPITUR, UBI EXTERNIS CAUSIS
ALLIGATUR EJUS ELECTIO. (Calvino).
[As duas últimas citações de Calvino que o A. faz mostram o que o
grande Reformador pensava a respeito das dificuldades que o ensinamento bí-
blico sobre a predestinação representa para o nosso entendimento: a rigor, é
inútil tentarmos desvendar o seu segredo para expô-lo em palavras humanas;

542
O Deus de Esaú 9, 15-16

Deus é sobremaneira excelso em sua exclusividade e não carece de nossa defe-


sa para a justificação de seus atos; em sua liberdade ELE escolhe onde nenhu-
ma razão existe para explicar a escolha a não ser sua própria vontade.
Todavia, isto não significa que a eleição divina seja quantitativa nem
que tenha sido imposta aos homens na origem dos tempos ou antes da origem
da espécie mediante a destinação de uns para a vida e de outros para a morte ou
de uns para a redenção e de outros para a danação, enquadrando-nos em desti-
nos inamovíveis. É claro que poderia ser assim pois o barro não interpela o
oleiro sobre a destinação que lhe deu; todavia “amei a Jacó e aborreci a Esaú”
não significa que aquele será salvo e este condenado, mas diz muito claramente
que a salvação é pela expontânea graça divina embora a manifestação da predi-
leção de Deus por Jacó, ainda antes que os gêmeos houvessem praticado o bem
ou o mal — pois nem haviam ainda nascido — possa, não sem razão, ser con-
siderada como evidência da destinação “anterior” ao nascimento da criatura,
quiçá, a “predestinação” eterna. Somente em Cristo se pode considerar o caso
Esaú-Jacó como parábola típica do ensinamento sobre a salvação exclusiva-
mente pela graça pois somente pela revelação de Deus em Cristo, pelo evange-
lho de Jesus é que aprendemos que o dom gratuito de Deus é a salvação de
TODO AQUELE QUE CRER. Todavia, imediatamente surge a “parábola” de
Esaú e Jacó como advertência para que ninguém pense que “por ter crido” e
“porque consentiu em ser batizado” alcançou a redenção. Deus ESCOLHE a
quem quer e a nós resta apenas observar que a Bíblia nos ensina que esta esco-
lha é feita pelo que houver em secreto, em nosso coração; só ELE avalia, julga
e aceita sem sequer sabermos que era bom o nosso tesouro. (“Senhor, QUANDO
te vimos com fome”, com sede, estrangeiro ou nu e enfermo? — Mat. 25, 37 e
seguintes).
Por que haveremos de arrazoar? Acaso não aceitamos o paradoxo e não
vemos nele a invisível Graça de Deus? Ora, O JUSTO VIVERÁ PELA Fé!].
O que faz de Moisés, o MOISES mensageiro e proclamador da aliança
divina, da graça e do evangelho da redenção?
— “Como será reconhecido que verdadeiramente achei graça perante ti,
— eu e o teu povo — senão que andes conosco?
E a resposta:
— “Farei passar perante ti a minha glória com o meu nome, O SE-
NHOR! Far-me-ei ouvir perante ti e me compadecerei de quem me compade-
cer e me apiedarei de quem me apiedar”.
Lembramo-nos da continuação da passagem:
“Não podes ver a minha face pois homem algum verá o meu rosto e
viverá”. (Exo. 33, 16-20 Apud LXX).

543
9, 16-18 O Deus de Esaú

É assim que Moisés se transforma em MOISÉS. A justiça de Deus É


JUSTIÇA DE DEUS e de forma alguma é a retidão do homem que quer e corre.
Nada se acrescenta à criatura que já não lhe pertença por direito humano
mas Deus lhe dá (aquilo que dá) por compaixão e misericórdia; porque esta com-
paixão e misericórdia são genuínas e poderosas, ele é digno de nossa adoração
como o fundamento de nossa esperança pois, [nessa atitude compassiva] ele é
totalmente Deus; ou, em outras palavras, essa compaixão é livre, incondicional,
[se origina e] repousa exclusivamente em Deus e somente por ele é dinamizada.
De outro Deus que não seja este que direta e linearmente é entendido
como sendo o Deus de Esaú e que, todavia, cm autêntico milagre é também o
Deus de Jacó, a Igreja que vê sua esperança em sua própria aflição, nem sequer
deve querer cogitar.
“Foi por isto que te levantei, para em ti evidenciar o meu poder e para
que meu nome seja proclamado em toda terra; portanto, tem misericórdia de
quem quer e obstina a quem lhe apraz”.
Perguntamos ainda uma vez: E Deus “iníquo”?
Novamente respondemos: não! Como o seria ele, [como poderíamos
julgá-lo assim] se não medimos sua ação segundo nossa conduta e nossa ex-
pectativa (antes pelo contrário!) temos de reconhecer que ele segue sua própria
norma, que é invisível para nós?!
Como chegamos a reconhecer isto?
Reconhecemos isto quando percebemos que nem sequer poderíamos ter
feito esta pergunta louca, que cai tão longe de seu alvo; que não nos seria, sequer,
possível protestar contra a realidade visível do Deus de Esaú, nem pedir socorro ao
Deus de Jacó e clamar pela sua revelação se, além da única visão que agora e aqui
temos de Deus, não brilhasse vitoriosamente a luz original do Criador e Redentor.
Se, porém, a realidade de nosso protesto contra a inegável condenação
direta nos recordar [que ele é feito] segundo nossa própria justiça, que [toda-
via] se trata de procedimento divino, então pode acontecer que sintamos o im-
perativo de adorar e honrar a Deus na sua visibilidade, como o Deus de Esaú;
como o Deus que gera as aflições e que condena; talvez então agarremos e
seguremos a mão que fustiga e assim encontremos muito mais: encontremos o
Deus de Jacó, o Deus que traz o socorro, o Deus que elege.
De que outra maneira queremos entender o Deus de Jacó, se não cur-
vando-nos ante o Deus de Esaú? Como compreender a nossa eleição a não ser
mediante a transformação de nossa rejeição?
Moisés, colocado na fenda da penha somente pôde ver Deus pelas cos-
tas, depois dele haver passado, (Exo. 33, 21 -23). Vê-lo de outra maneira signi-
ficaria a morte.

544
O Deus de Esaú 9, 17-18

O que a Igreja Triunfante designou por “Deus” jamais foi, verdadeira-


mente, Deus.
A Igreja que sente sua tribulação, que sabe que em toda extensão de sua
realidade histórica ela é rejeitada por Deus e que [todavia] se prende, se agarra
a este Deus terrível porque, apesar disso, ele é Deus, tal Igreja tem por Deus, o
Deus vivo: o Deus que muito acima de tudo mais e de forma totalmente dife-
rente, pode eleger e elegerá!
Não somente Moisés foi “levantado” por Deus na invisibilidade do seu
munus de Homem de Deus, mas também o foi Faraó em sua função de opositor
de Moisés. Nesta predestinação para a obstinação Deus não tira de Faraó a
mínima partícula daquilo que lhe cabe segundo a Justiça humana. Do ponto de
vista humano Moisés não tem qualquer vantagem decisiva sobre Faraó. Ambos
estão evidentemente sob a mesma mão dura, a mesma mão sob a qual já antes
estiveram Esaú e Jacó. Moisés poderia estar no lugar de Faraó e Faraó poderia
ser Moisés. Humanamente, a figura Esaú-Faraó é mais fácil de compreender
que a de Jacó-Moisés porque, quando mencionamos Moisés, o eleito, não nos
referimos ao Moisés visível [humano] a quem o Faraó visível se opõe com a
vantagem de certa grandiosidade trágica em sua obstinação quando confronta-
da com suas fraquezas humanas, seu insucesso e seu amargo fim.
Invisivelmente [isto é, sem considerações de ordem material] é parado-
xal o confronto [de Moisés] com o Faraó rejeitado e também é paradoxal o
confronto entre as duas “personalidades”. A rigor vale o INEFFABILE EST
INDIVIDUUM.
Neste episódio não há qualquer classificação ou diferenciação e nele cai
por terra a conhecida (e por demais conhecida) teoria de que a pessoa tem duas
almas [que se opõem] (e por que não tem três ou mais?) — Aqui se trata de
qualidade que, de forma alguma, pode ser qualificada psicologicamente e que,
portanto, não pode ser atribuída a um ou outro.
Os predicados de “Eleito” — aplicado a Moisés — e de “Rejeitado” —
atribuído a Faraó — são absolutamente escandalosos, são contra-senso e não
encontram apoio. Esta qualificação acontece [e só pode acontecer] na liberda-
de de Deus e no milagre de sua revelação; é nesta revelação que, este como
Eleito e aquele como Rejeitado, devem [ambos] servir “para que em ti eu
testifique meu Poder e que meu nome seja proclamado sobre toda terra” (Exo.
9, 16); [meu Poder, isto é] minha “VIRTUS” e efetiva excelência ante todos os
deuses (1, 16).
O propósito da rejeição de Faraó poderá ser, e de fato é, o mesmo da
eleição de Moisés. Eles não são SENHORES mas SERVOS; são servos da
vontade de Deus que, aqui em seu “sim” e acolá em seu “não”, aqui em sua

545
9, 18-21 O Deus de Esaú

“misericórdia” e acolá no “endurecimento”, resguarda e comprova sua glória


invisível e se serve de um e de outro, do bom e do mau.
A pessoa “endurecida” é o homem visível [o homem deste mundo] que
como tal, em seu fundamental afastamento de Deus, não conhece o arrependi-
mento nem pode praticar atos dignos dele. E quem de nós sabe o que é arrepen-
dimento, para nem sequer falarmos de atos dignos dele? Este é o nosso endure-
cimento, [a nossa obstinação].
A criatura de quem Deus tem misericórdia, [ou talvez devêssemos es-
crever “a criatura que usufrui da misericórdia divina] é o homem invisível [es-
piritual], no milagre da plenitude de sua unidade com Deus; é a nova criatura,
que é a obra divina realizada no arrependimento.
Quem haveria de ser excluído dessa obra divina? Esta é a misericórdia
sob a qual estamos.
Como poderia Deus, agora e aqui, falar conosco senão pelo rude
desnudamento deste contraste? E como poderia este tão grande contraste ser
fundamentado senão neste único Deus em quem também se oculta a sua su-
pressão? Deus quer; Deus tem misericórdia e endurece: Ele! Este “ELE” é a
tribulação da Igreja, cuja obra humana jamais pode ser a obra dele; todavia,
“ELE” é também a esperança da Igreja para além da tribulação e isto com tanta
certeza quanto a genuflexão perante ELE é o ponto final da obra humana.
Se a Igreja, embora querendo ser totalmente MOISÉS (e qual a Igreja,
mesmo a mais minúscula, que não o deseja?), reconhecer e considerar que ela
é [na realidade], FARAÓ, que é a Igreja de Esaú, então pode acontecer que se
tenha formado o ambiente para se dar o milagre absoluto e que, justamente por
este seu reconhecimento e por seu anseio de ser [efetivamente] MOISÉS, ela
possa ser a Igreja de Jacó.

Vs. 19 a 21 (Um episódio [uma digressão]). Sendo assim, o que tem ele a
censurar pois quem haveria de resistir à sua vontade?
Ó homem! Quem és tu que queres replicar a Deus? Acaso pode a obra
feita perguntar ao mestre: por que me fizeste assim? Acaso não tem o olei-
ro poder sobre a argila para, da mesma massa, fazer um vaso para adorno
e outro para a imundícia?

[Parece-me que na maneira de redigir do A fica mais evidente do que na


tradução de Almeida, que a objeção ao direito da censura a Deus está vinculada
à sua absoluta liberdade de eleger e rejeitar, de ter misericórdia de quem quer e
de endurecer a quem lhe apraz].

546
O Deus de Esaú 9, 19-21

“Neste caso, o que tem ele a censurar, pois quem haveria de resistir à sua
vontade?”
(Almeida escreve: “Do que se queixa ele?”]
Já conhecemos esta aproximação, [este tipo de conversa] (3, 8; 6, 1
e 6, 15)
[Ora], nenhuma ação humana contribui para o triunfo, para a vitória de
Deus; [qualquer que seja nossa reação ou nossa atitude, ela não constituirá nem
empecilho, nem contribuirá para a promoção dos desígnios de Deus].
Concluir-se-ia, pois, que ante a absoluta liberdade de Deus e conside-
rando que só ele é Todo-Poderoso e, mais ainda, que o ser humano não tem
qualquer responsabilidade e, [finalmente], como o pecado é sobrepujado pela
universalidade da graça divina, então a criatura humana pode praticar, livre-
mente, tanto o bem quanto o mal?
Esta conclusão surge infalivelmente sempre que se meditar seriamente
sobre a eternidade ou sobre o pensamento de Deus, todavia, quando esta inda-
gação surgir precisamos conduzir-nos com tremor e temor porque estaremos
fitando a sarça ardente, estaremos próximos de Deus; contudo a Igreja não
pode deixar de levar essa indagação a sério por considerações de ordem huma-
na pois, de outra forma, [as pessoas que tomarem essa objeção por válida]
poderão ser conduzidas à loucura, à imoralidade, ao crime e ao suicídio. [Se a
Igreja objetar a essa indagação,] colocará em jogo a sua própria existência como
fator [de moderação e de sal da terra] na sociedade e no mundo.
As coisas mais absurdas que podem acontecer e têm ocorrido no con-
texto da proclamação evangélica, justamente nos seus pontos mais altos, não
testificam contra a verdade [anunciada] mas contra a criatura humana que não
consegue suportá-la. Naturalmente (quando dizemos “criatura humana”)
referimo-nos a todos os homens e não a uma ou outra pessoa que em virtude de
sua força ou sua fraqueza tenha sentido no próprio corpo, de maneira clara e
especial, quão insuportável é a verdade; (portanto, não é apenas contra
Nietzsche), porém e contra a sociedade e contra o mundo cujas organizações
parecem esfacelar-se [ou desconjuntar-se] quando a ordem divina acaso se apro-
xima delas. O desfecho do “Idiota” de Dostoiewski ou o fim de um Hoelderlin
ou Nietzsche, a inevitável catástrofe de todos “BATIZADORES” (Muck-
Lamberty!), apenas tornam consternadamente claro que a criatura, em sua pre-
sumida opulência, sua sanidade [e saúde], sua retidão, precisa morrer, [precisa
desaparecer] perante a verdade.
As pessoas [que sentem o problema da eternidade de forma crucialmente
pessoal] são quais parábolas [para observação e ensino] indicando aos demais
que talvez tenham sido poupados de tão grande tentação e conseqüente queda,

547
9, 19-21 O Deus de Esaú

o quanto a criatura está enferma [e fraca] perante Deus, embora esse resguardo,
provavelmente, não contribua para a celebridade deles.
[A tradução inglesa escreve: Os sofrimentos de tais pessoas, em todo caso,
mostram quão grande é a enfermidade de que os homens sofrem nas mãos de Deus].
[Em nota de rodapé a Edição Inglesa explica que... “Muck-Lamberty”
foi um escândalo religioso que surgiu entre “Movimento de Juventude” na Ale-
manha de após a primeira guerra mundial.
Hoelderlin foi poeta alemão que faleceu sofrendo das faculdades men-
tais, em estado de infantilismo, (apud Delta-Larousse).
Nietzsche terminou seus dias, também, transtornado mentalmente e sen-
tindo extrema solidão].
O que acontece com tais pessoas é prova inconfundível de quanto a
criatura humana está enferma em Deus. Todavia não é o caso de fugir da doen-
ça (de que todos sofremos) por medo dos sintomas; [afinal], as mais pavorosas
aberrações e os destinos trágicos de uns poucos ou de muitos, nada mais são do
que sintomas. Não é o caso de contornar a aludida objeção ou de não meditar
seriamente sobre o pensamento de Deus.
Apenas podemos praticar efetivamente o amor ao próximo mediante o
amor a Deus, mas este amor a Deus não nos permite calar a respeito do temor
que a ele devemos, nem por medo dos homens nem para lhes sermos agradáveis.
Parece-nos que agora entendemos o perigo que representa a restrição
[... “neste caso, o que tem ele a censurar?”].
Vemos esse perigo porque fracassamos e sempre fracassaremos de novo
se quisermos falar da liberdade, do poder e da graça de Deus de tal maneira que
de nosso discurso resulte um maior e melhor conhecimento de Deus e não uma
erupção [violenta] de nossa própria prepotência.
E porque é notório que fracassamos sempre [quando queremos arrazoar
a respeito da liberdade, do poder e da graça de Deus nos têrmos da objeção
formulada], não nos podemos conformar com o sacrifício que a via indireta da
verdade sempre exige: a renúncia a toda argumentação lógica e insubmissa.
Esta renúncia se impõe mais fortemente justamente quando meditamos sobre
os pensamentos de Deus com seriedade absoluta.
Fica, portanto, fundamentalmente assentado que a objeção levantada
não corresponde à verdade e, por isso, deve ser rejeitada.
Vamos, porém, elaborar essa rejeição, mais uma vez. ([Para as anteriores
ver] 3, 5s; 6, Is; e 6, l5s). “Ó homem! Quem és tu que queres replicar a Deus?”
O homem! Com isto já está dito o que se poderia dizer contra essa objeção
que ignora a infinita diferença qualitativa que existe entre Deus e os homens.
Essa crítica ajuíza entre o Criador e a criatura como se fosse entre coisas iguais;

548
O Deus de Esaú 9, 19

ela fala de um Deus ao qual o homem se opõe com as objeções de um parceiro,


ainda que da parte mais fraca, imediatamente vencido, todavia, com o direito
imediato de exercer essa oposição.
Essa objeção admite, senão total, quase totalmente que a ação humana é
conseqüente da vontade de Deus, isto é, ela subentende que aquilo que o ho-
mem fizer está em relação a Deus em termos de causa e efeito. Ora, isto é
improcedente. O que o homem faz não pode ser relacionado com a vontade
divina nem como causa nem como efeito. Não existe nenhuma relação direta,
visível, entre a responsabilidade humana e a liberdade de Deus mas apenas o
relacionamento indireto, inderivável, irrealizável, entre o temporal e o eterno,
entre Criador e criatura.
A liberdade de Deus com relação à criatura humana não é mecanismo
que, de fora, impulsione os homens nem é a força geratriz (ou criativa) da vida
(ver 1ª Edição deste livro!) porém é a genuína origem da criatura; a liberdade
de Deus é a luz na qual os olhos da criatura brilham e sem a qual se obscure-
cem; ela é o infinito a cuja dupla dimensão o ser humano é grande ou pequeno;
ela é a sentença do juiz pela qual o homem permanece em pé ou cai.
Pelas suas próprias ações o homem não pode, nem diminuir nem aumen-
tar, nem promover nem reter a liberdade divina. Esta possibilidade está tão fora
de cogitação pois é justamente no relacionamento indireto da própria liberdade
do ser humano com a liberdade de Deus que se fundamenta e está garantida a
relativa necessidade, a relativa seriedade e a relativa ordenação dos homens.
É o conhecimento da Liberdade de Deus, de seu Poder e de sua Graça,
que mantém a criatura “nos trilhos” porque este conhecimento está
inextricavelmente interligado com o reconhecimento de que o ser humano é
homem e não Deus!
É Justamente a pessoa que respeita a Deus como Deus, que não terá
motivos para essa objeção; tal pessoa nem temerá nem desejará a supressão de
sua responsabilidade; ela não enlouquecerá nem se tornará imoral, criminosa
ou suicida. E se [acaso] ela vier a ser uma destas coisas ela não as erigirá em
“sacramento” (Blueher) mas, mui possivelmente [as tomará] como sinal de
advertência — (qual Raskolnikoff, de Dostoiewski!) [em Crime e Castigo] —
da possibilidade de entendermos mal o mandamento que nos diz que a verdade
final consiste em temer e amar a Deus sobre todas as coisas; será [talvez] um
memento de quanto, para nós, o respeito a Deus é uma novidade que tudo
[revoluciona e] põe por terra; do quanto somos incapazes de vigiar com Cristo
por uma hora, ao menos; de como nos é difícil suportar o paradoxo de nossa
existência sem recorrer a toda sorte de titanismo [de heroísmo e de grandiosidade
humana], para a satisfação de nossa sede de equilíbrio.

549
9, 20-21 O Deus de Esaú

[Blueher, (Hans) foi um dos líderes intelectuais do “Movimento da Ju-


ventude alemã”, após 1928; em 1921 publicou um tratado sobre o comporta-
mento da sociedade masculina, defendendo o suicídio como “sacramento”.
Aderiu ao nazismo no tempo de Hitler].
A pessoa que percebe que Deus é a aflição daqueles que a ele perten-
cem, sabe que, em qualquer caso, tanto em sua moral quanto em sua [eventual]
amoralidade ela é digna de censura e se opõe à vontade de Deus (9, 19); ela
sabe que para ela não há qualquer compensação e que ela não encontra pretex-
to, nem em sua moral nem na amoralidade para replicar a Deus, para pretender
ter razão perante ele e assim se eximir dessa aflição.
Tal pessoa levará essa atribulação muito mais a sério e dessa maneira
fundamentará a conscientização de sua responsabilidade. “Estas coisas não são
ditas para que, pela dureza de nossa cerviz e nossa indolência ponhamos em
cheque o Espírito Santo — que nos deu um pequeno lampejo de sua luz — mas
para que entendamos que aquilo que temos, dele recebemos e para que apren-
damos a procurar tudo nele, a esperar nele, a nos reconsagrarmos a ele e a
prosseguirmos ao encalço de nossa salvação com temor e tremor”. (Calvino).
“Acaso perguntará a obra ao mestre: por que me fizeste assim? Acaso
não tem o oleiro poder sobre a argila para da mesma massa fazer um vaso para
o adorno e outro para a imundícia?”
Esta é a situação do homem perante Deus.
Prossigamos agora analisando o problema tomando por base a conheci-
da parábola profética (Isa. 29, 16; 48, 9; 64, 7; [e também nos apócrifos, o livro
de] Sabedoria 15, 7).
Como [interrogará] a obra ao artista e o barro ao oleiro? Quem ousa
falar ainda em dois parceiros, de dois elementos de uma série (como causa e
efeito)? Aqui, o artífice com sua intenção; acolá o material de que se serve e ali
o produto acabado. Daqui para ali, do oleiro ao barro, do artista à obra, não há
ponte de ligação, não há continuidade, O “aqui” e o “acolá” representam dife-
rença qualitativa que é incomensurável, infinita; [diferença que], embora ex-
pressa com certa impropriedade, implica em relacionamento indireto, invisí-
vel, entre o “aqui” e o “ali” (ou que [por outras palavras] é uma parábola de tal
relacionamento!).
A despeito de tudo quanto se puder dizer sobre a natureza do material,
sobre a utilidade [do produto], sobre a disposição, o conhecimento e o êxito do
artífice ou ainda sobre a seqüência que deve ser seguida no processo, [sobre
como proceder] de passo a passo e de etapa a etapa (conforme a 1ª Edição deste
livro!) — [Sim, a despeito de tudo quanto se puder dizer] a fim de esclarecer
que o mesmo material trabalhado pelas mesmas mãos tanto pode vir a ser um

550
O Deus de Esaú 9, 21-23

vaso de flores quanto um urino] — (que a liberdade do artista para decidir entre
este e aquele produto não se prende a concatenações de causa e efeito,) — do
ponto de vista da “matéria prima” e do “produto” continua faltando a explica-
ção do “por que” de cada decisão.
Assim, o homem e Deus. Deus está perante o homem como ORIGEM e
não CAUSA. Se o homem for justo, ele o é para Deus; se pecar, peca contra
Deus. Se o homem viver, vive na participação da vida divina e se morrer é
porque a criatura precisa morrer em Deus!
Na sua existência e no seu modo de ser a criatura não é apenas condici-
onada mas, juntamente com tudo [ou todas as coisas] que a condicionam (e que
esse conjunto fosse um “Deus”), a criatura é (ou seria) um ser criado.
A parábola [a analogia] do “Artífice e da Obra” ou do “Oleiro e do
Barro”, naturalmente não se estende a este “CRIAR”; todavia, aponta para ele.
A criatura humana está perante Deus como a realidade ante o irreal; como o
“SER” ante o “NÃO SER”.
Qualquer argumentação sobre a justiça e sobre a liberdade da criatura
pode, quando muito, adiar o enfoque do problema da origem, da justiça e da
liberdade de Deus; o problema do começo e do fim, da criação e da redenção. A
ponderação sobre a predestinação significa a renúncia fundamental dessa
procrastinação e ela se impõe forçosamente quando Deus é reconhecido como
DEUS perante todo o SER, o TER e o AGIR da criatura humana.
Deus precisa ser compreendido como o Deus de Jacó E o Deus de Esaú;
de outra forma não ficaria claro como, em toda temporalidade, ele é o Deus de
Esaú e, na eternidade, é o Deus de Jacó.
Como porém, se imporia mais vigorosamente a idéia da responsabi-
lidade individual do ser humano (que a objeção (9, 19) teme ou deseja), do que
pela “assim chamada” relatividade (correlação!) do ser humano perante Deus?

Vs. 22 e 23 (Voltemos ao ponto central:) Se pois, Deus com grande paciência


suporta os vasos da ira, consagrados à perdição, com o intento de eviden-
ciar a sua ira e revelar o seu poder mostra também a riqueza de sua glória
nos vasos da misericórdia, que preparou para a glória?

[A tradução de Almeida escreve: “Que diremos pois, se Deus querendo


mostrar a sua ira e dar a conhecer o seu poder, suportou com muita longanimidade
os vasos da ira, preparados para a perdição, a fim de que também desse a co-
nhecer as riquezas de sua glória em vasos de misericórdia que para a glória
preparou de antemão?”]

551
9, 22-23 O Deus de Esaú

Por que é Deus, o Deus de Esaú e de Jacó, o Deus iroso e misericordio-


so? Sabemos que assim perguntando estamos agindo infantil e mitologicamen-
te, pois em Deus não existe a conjunção “E”, não há duplicidade, mas ampla
supressão do “primeiro” pelo “segundo”.
Deus é o UNO Deus de Jacó, para todo sempre, que se revela como o
Deus do gênero humano. Todavia, podemos compreender que não podemos
entender a Deus, senão na dualidade dialética pela qual “um” tem de se trans-
formar em “dois” para que “dois” seja verdadeiramente “um”.
Quando Deus se revela à criatura — a esta criatura deste mundo — ele
precisa antepor-se a ela como o Deus que a aborrece, como aquele que revela
sua força irresistivelmente, isto é, Deus revela inevitável e inexoravelmente à
criatura que ele não é semelhante a nenhum dos deuses que o homem adora,
ainda que o adorado seja o “Deus Altíssimo”.
Quando a criatura humana recebe a revelação de Deus ela não pode
mais ser outra coisa senão um “vaso de ira” incapaz de obedecê-lo e compromete
a Deus em tudo quanto fizer e nada mais sabe, senão que tem de morrer em
Deus.
Não seria o caso de que os verdadeiros homens de Deus foram tais pre-
cisamente porque reconheceram que eram vasos preparados para a destruição?
Precisamente porque perceberam que nenhum homem, como tal, é Justo, que
suas vidas são desprezíveis, (Exo. 4, 24-26) e que este mundo é passageiro?
Acaso temos outra esperança fora do conhecimento de nossa atribulação,
[fora da consciência de que] como criaturas humanas apenas podemos ser e
receber o lado negativo da revelação divina e que, neste mundo, apenas podere-
mos conhecer o Deus de Esaú?
Todavia, [dentro dessa revelação em que nos defrontamos com o NÃO divi-
no] Deus dá-nos também, na totalidade de nossa natureza de criaturas humanas, o
amparo do “NÃO-OBSTANTE” do Criador, com o qual [ele anuncia] o perdão
que encobre toda nossa pecaminosidade (lembrar o “Kapporeth”— 3, 25).
Mediante este NÃO-OBSTANTE ele se apresenta à suas criaturas mos-
trando as riquezas de sua glória e a sua Verdade infinitamente superior e vitori-
osa. Nesta concessão ele se revela o Deus compassivo e misericordioso, o Re-
dentor dos homens e, quando o ser humano recebe esta revelação de Deus,
passa a ser o “Vaso da Graça”; dá-se então o milagre absoluto e seus olhos se
abrem, ele se põe em arrependimento e já é a “Nova Criatura”; na dureza divina
ele reconhece o amor de Deus e passa a amá-lo; vê no evangelho a alegre nova
a despeito, ou melhor, por causa do ilimitado escândalo que lhe traz o fato de
ele haver lutado com Deus, com o Deus de Esaú, e de haver prevalecido como
Jacó, como Israel.

552
O Deus de Esaú 9, 22-29

Ante a aflição que Deus preparou para Jacó, Moisés, Elias, não se pode,
em verdade, deixar de considerar que do ponto de vista humano, os seus
opositores Esaú, Faraó, Acab, escolheram a melhor parte. [Todavia], este Deus
é o escudo, o grandiosíssimo galardão, eternamente. [Gen. 15, 1].
Mas, se o processo da revelação deste Deus único partir sempre daquilo
que é temporal para o eterno, da rejeição para a eleição, de Esaú para Jacó, de
Faraó para Moisés? Se a existência dos “Vasos da ira” (que todos somos na
temporalidade) for a expressão da contenção e tolerância divinas, (3, 25-26), se
for o véu da grande longanimidade (2, 4) e paciência de Deus, atrás do qual a
existência dos “vasos de misericórdia” (que todos somos na eternidade!) está
apenas encoberta mas não perdida? E se a pessoa de Esaú, votado à perdição (à
qual também Jacó pertence!), tiver de suportar sempre a ira de Deus apenas
como substituto para que a pessoa de Jacó, que foi preparada para a glória (à
qual também Esaú pertence!), tenha acesso à justificação de Deus, que existe
oculta na ira e dela emerge? Incompreensível e temível é este processo da reve-
lação que tudo abrange e tudo suprime! Incompreensível e temível é este
ocultamento do verdadeiro SER, atrás da [própria] existência! Incompreensí-
vel e acima de qualquer imaginação é este irrompimento da justificação divina
através de toda injustiça e retidão humana!
Mas... se for assim? Se este processo for conforme a vontade de Deus
para conosco? Então, onde fica a nossa pergunta infantil, mitológica, sobre a
razão de Deus querer esta dualidade?

Vs. 24 a 29 Como tais, ele também nos chamou, não só de entre os


judeus mas também de entre os gentios. Conforme ele diz em Oséas:
eu chamarei para meu povo o que não era meu povo e os que não
foram amados para serem amados. E acontecerá que no local onde
lhes foi dito: Não sois meu povo! serão chamados filhos do Deus
vivo. Isaías, porém, lamenta Israel: ainda que o número dos filhos
de Israel fosse como a areia do mar, apenas um remanescente será
salvo! Porquanto o Senhor permitirá que na terra haja um corte e
uma redução nas palavras da profecia! E conforme Isaías já havia
dito anteriormente: se o Senhor Jeová não nos deixasse sobrar uma
semente, ter-nos-íamos tor nado como Sodoma e seríamos semelhan-
tes a Gomorra.

Mais atrás perguntávamos “mas... se”! Todavia não queremos perguntar


“SE”! [Não temos dúvidas], antes dizemos que É ASSIM, pois este processo da
revelação se decide com precisão em Cristo; e nós, os “vasos da ira” na

553
9, 24-29 O Deus de Esaú

temporalidade, somos na eternidade — e por isso mesmo muito mais e de for-


ma totalmente diferente — os “vasos da misericórdia”.
[A tradução inglesa escreve: “Dissemos ‘se’; mas não queremos dizer
isso porque não há dúvidas a esse respeito. O processo da revelação, em Cristo,
é decisivo. Na temporalidade somos ‘vasos da ira’; na eternidade não somos
apenas algo mais, mas coisa absolutamente diferente: somos “vasos da mise-
ricórdia!”].
Na qualidade de chamados [eleitos] de Deus, maravilhosamente salvos,
estamos além de toda materialidade de nosso SER visível. O milagre absoluto
aconteceu: somos a igreja de Jacó; somos a comunidade dos Eleitos.
Quem... “Nós”?
Não são “estes e aqueles”. Não se trata de congregação numericamente
instável; não é algum NUMERUS CLAUSUS, sobretudo, não é NUMERUS;
não é o Israel visível, como tal.
O fato de ser Deus que ama, que elege, que se compadece, significa a
supressão de todas divisões [e separações] que podem e precisam existir entre
os homens.
É apenas a Igreja de Esaú que precisa refazer sempre os muros que
segregam Israel de Edom, os judeus dos gentios, os crentes dos incrédulos. No
instante eterno quando, em Cristo, irrompe a Igreja de Jacó, as paredes divisó-
rias são lançadas por terra, o “gentio” Esaú entra no serviço do Senhor e, junta-
mente com as hostes que estão de fora, passa a participar da promessa divina.
Quando é Deus que ama e que se compadece (Oséas 2, 23 e 2, 1) o
exterior passa a ser interior, o remoto fica próximo, o que não é amado passa a
ser amado, o local da rejeição passa a ser da aceitação.
Contra a Igreja segura de si mesma, feliz com o que possui e consciente
do que tem, levanta-se a voz de Isaías a respeito do mistério da dupla predestinação,
clamando que o judeu Jacó, como tal, não é necessariamente um servo de Deus
— e proclama isto com todo desamor que se impõe quando tratamos do amor de
Deus como palavra de julgamento ou como palavra profética; e quem há que
possa separar entre uma e outra na passagem de Isaías 10, 22-32?
Quando é Deus que ama, que elege e que se compadece, quem há que,
estando do lado de dentro, tenha a certeza de, na realidade, não estar de fora?
Qual a promessa que não corre o risco de ser automaticamente podada e redu-
zida, segundo a verdade de quem a fez? Qual a grandeza de retidão humana que
não possa ser condensada no invisível e impalpável “resto” e na “semente” a
que pertencem os justificados perante Deus? [Ou então,] qual a Jerusalém que
está a salvo do risco de já amanhã, ou ainda hoje, ser transformada em Gomorra,
se não estiver garantida pela graça do Deus que julga? (Isa. 1, 9).

554
A Tribulação da Igreja 9, 1-29

A Igreja de Esaú, a nossa, a Igreja que conhecemos, está sobre o fio de


navalha, à borda do precipício, porque o seu alvo, a sua meta, o seu Sião e a sua
promessa é justamente a Igreja de Jacó; porque ela tem que se haver com o
Deus Vivo; porque ela é povo deste Deus.
Não há outra certeza além daquela que Deus tem [ou oferece] em si
mesmo, pois é incerto todo saber afora o conhecimento de Deus e nosso desco-
nhecimento.
O próprio Deus é desconhecido fora da revelação que ele mesmo nos dá
em Cristo, como sendo o Deus Desconhecido.
Esta é a aflição da Igreja.

Comentários: 9, 1-29

O problema da predestinação tem sido abordado reiteradamente no


correr desta obra e o será, por diversas vezes ainda, até o seu final; nem
pode deixar de ser assim pois a predestinação é o processo segundo o
qual Deus se revela aos homens como o Deus da Justiça e Amor. (O A.
diz, literalmente, que a predestinação é a “caminhada” — ou o “cami-
nho” — de Deus para sua revelação).
O conceito geral sobre a predestinação conforme esboçado nas di-
versas notas até aqui introduzidas, parece-me corresponder ao pensa-
mento de Barth conforme o encontrei e entendi, não somente na “Carta
aos Romanos” mas também na “Dogmática”. É certo que nossa com-
preensão é influenciada pelo nosso modo de sentir e pensar, tanto mais
quando a exposição interpretada vem (ou nos parece vir) ao encontro de
opiniões ou conclusões anteriores, confirmando-as.
Portanto é justo que além das reservas que o leitor já tenha feito aos
conceitos emitidos, ele aponha reservas ainda maiores, para escrutar
cuidadosamente as observações que lhe pareçam apressadas ou até
“desiderativas”; pode também acontecer que os pesquisadores mais pro-
fundos as considerem por demais singelas, super — simplificadas. Será,
sem dúvida, assim. Como poderemos falar com propriedade daquilo
que é de Deus?
Neste capítulo 9 o A. volta redundantemente ao tema; todavia, não
com o objetivo imediato de estudar a doutrina da predestinação, propria-
mente dita, mas para analisar o processo pelo qual Deus se revela aos
homens. Se retiver-mos em mente este objetivo fundamental do A., ser-
no-á fácil entender que o exemplo do Oleiro, do Barro e do Vaso não se

555
9, 1-29 A Tribulação da Igreja

refere à destinação do vaso mas à liberdade de Deus. Deus é, efetivamente


livre e pode agir conforme a sua vontade. (Nem precisaríamos dizê-lo...).
Deus afirma e reafirma constantemente esta sua liberdade soberana.
Ela esta profusamente repetida na Bíblia desde “NO PRINCIPIO CRIOU
DEUS”, até o “CERTAMENTE VENHO SEM DEMORA”. Pode, por-
tanto, eleger, justificar, rejeitar e condenar conforme lhe aprouver. To-
davia não é disto que se trata quando a passagem bíblica fala do endure-
cimento de Faraó perante Moisés e do amor de Deus a Jacó em
contraposição ao ódio a Esaú.
O que Moisés e Faraó, Esaú e Jacó, assim como Davi e Golias, Samuel
e Saul, Elias e Acab, João Batista e Herodes, Paulo e Saulo — e quantas
antinomias quisermos achar — evidenciam e não só as antinomias mas
os caracteres típicos quais um Pedro ou um Judas, é que Deus julga
segundo aquilo que houver no íntimo do coração quer seja tesouro aí
escondido, mediante a inspiração do Santo Espírito, quer seja a cultura
da semente lançada pelo Espírito das Trevas.
A decisão, porém, se dá em Cristo!
Teria Elias sido “cristãmente” superior aos sacerdotes de Baal? Elias
deu o seu testemunho; mostrou o poder do Deus Altíssimo.
Depois deu largas ao deus de sua imaginação, “aproveitou” o impac-
to e trucidou os seus opositores. E o que aconteceu? Sentiu-se inseguro
e foi esconder-se; e o que fez Deus então? Convocou o profeta à sua
presença mas não se manifestou nem na tempestade, nem no terremoto,
nem no fogo mas no cicio tranqüilo e suave, (I Reis, 19,9.14). Teria
Elias aprendido a lição? Todavia Deus o utilizou para outra tarefa. Deus
é soberano e lê os corações
Deus, em sua liberdade, se revelou a Elias quando este viveu a sua
própria incapacidade.
Moisés teve de sentir que nada valia por si só, quando sua mulher o
chamou de sanguinário.
Jacó teve de lutar com o Deus da ira para sentir sua própria carência.
Pedro teve de ouvir o cantar do galo para esvaziar-se de si mesmo e
voltar ao redil.
E quem não voltar?
De Acab os cães lamberam o sangue; Faraó foi vencido pelas ondas
do mar; Judas enforcou-se.
Seria Deus o responsável pelo destino destas vidas?
Repetindo Barth, a pergunta é infantil e muito lógica. Talvez deva-
mos dizer que ela é sacrílega!

556
A Tribulação da Igreja 9, 1-29

“Deus é a fonte de todo bem e dele não procede mal algum”.


Deus se revela aos homens mostrando o seu poder na dupla
predestinação feita na eternidade, antes — muito antes de existir o mun-
do e de haver sido criado o homem à imagem e semelhança de Deus. E
dizemos “antes — muito antes “ porque o mundo e o universo são
mensuráveis, ainda que a medida seja em bilhões e bilhões de anos-luz;
porém Deus é eterno e a eternidade não é comparável com o que é ma-
terial por maior que a materialidade seja.
Esta dupla predestinação se decide em Cristo — “Quem crer já está
salvo; quem não crer já está condenado. (João 3, 18).
É na dupla predestinação que a criatura humana se defronta com a
Justiça e o amor de Deus. E por ela que Deus “se justifica” ao condenar
e ao salvar; ao rejeitar e ao perfilhar. A dupla predestinação é a lei divina
que a mente humana pode compreender.
Deus rejeita o ímpio que é impuro em seu coração e aceita o justo
que é puro em seu coração.
Impuro? Puro? Quem há que não seja impuro, e quem há que seja
puro? É novamente pela graça de Jesus Cristo, que levou sobre si a nos-
sa impureza. E só em Cristo, (pela fé na graça de Deus) que o salmista
podia orar a Deus suplicando a purificação de seu coração.
É somente pela graça de Cristo que nos podemos aproximar de Deus
clamando ABA, PAI.
Que mais podemos dizer? Dizer muito é demais e dizer pouco é de
menos. É bastante, pois, que conheçamos de Deus o que ele de si revela
na sua rejeição e na sua justificação, que é segundo nossa fé que, por sua
vez, se fundamenta na fidelidade de Deus, comprovada em Jesus Cristo,
o Filho Unigênito de Deus que tira o pecado do mundo.

557
Capítulo X

A CULPA DA IGREJA

Este capítulo foi subdividido pelo A. em duas partes:


• A Crise do Conhecimento - 9, 30 a 10, 3
• A Luz nas Trevas - 10, 4 a 10, 22.
A análise que Barth faz da primeira parte do capítulo mostra a Igreja em
círculo vicioso: sua missão é promover o entendimento (o conhecimento) de
Deus; ao desempenhar-se de sua incumbência ela cria a comunidade religiosa e
esta — a igreja visível — substitui o Deus que a Igreja anunciou e anuncia, pelo
Deus “conhecido”, o Deus imagem, o Deus criado segundo critério humano.
Então se manifesta a falha, da Igreja: a ausência de Deus:
Ora, a Igreja sabe que não tem o Deus que anuncia. Sabe que não faz a
adoração que quer e que deve, antes pratica a que não quer; não dá legitimamente a
Deus o que é de Deus: deixa levar-se por influências e respeitos humanos; não
consegue esquivar-se totalmente (e muitas vezes nem um pouco sequer) das glórias
transitórias que o mundo lhe proporciona e nem sempre resiste a tentação de ser ela
própria o lenitivo que o mundo espera, o descanso para as almas! Em seu diligente
cuidado de servir a Deus e salvar as almas, a Igreja ensina, dogmatiza disciplina,
exclui, anatematiza e ora se separa do mundo, daqueles que não têm a lei, ora se
identifica com ele “para tornar a graça redentora mais acessível” aos homens.
No anseio louvável de cumprir o seu dever, em seu diligente cuidado de
servir a Deus e salvar as almas, em seu zelo por Deus e pelas coisas sagradas,
corre a Igreja empós a justificação divina e não a alcança porque a justificação
não é alcançável mas nos é dada de graça mediante a fé.
Tudo isto a Igreja sabe; sabem-no os seus membros, esclarecidos pelo
ensinamento ministrado pela Igreja, sabem-no seu oficiais, seus pastores, seus
teólogos e os professores de seus seminários — e porque o sabem, sofrem por
não o cumprir: é a crise do conhecimento.
Nesta crise evidencia-se a culpa da Igreja; todavia, ai da comunidade
que não sentir essa culpa e não sofrer dos constantes ataques desta crise: tal
9, 30-32 A Crise do Conhecimento

congregação não estará em condições de aspirar a qualificação de Igreja, nem


mesmo à classificação de Igreja visível mas será, mais propriamente, a “Sina-
goga de Satanás” de que nos fala o Apocalipse. (Apo. 2, 9).
Vejamos o que Barth tem a dizer.

A CRISE DO CONHECIMENTO (9,30 a 10,3)


Vs. 30 a 32 (primeira parte) O que diremos pois?
Gentios que não corriam ao encalço da justificação a alcançaram, a
saber, a justificação que procede da fidelidade de Deus. Israel, porém, que
buscava uma lei de justificação, não a obteve. Por que? Porque esta busca
não procede da fé, mas das obras.
[Almeida escreve: “Que diremos pois? Que os gentios, que não busca-
vam a justificação, vieram a alcançá-la, todavia, a que decorre da fé; e Israel
que buscava a lei da justiça não chegou a atingir essa lei. Por que? Porque não
decorreu da fé e sim, como que das obras”. A tradução inglesa fica mais próxi-
ma da tradução de Almeida.]
“O que diremos pois”?
Com o objetivo de nos contrapormos às acusações diretas e usualmente
precipitadas que se fazem à Igreja tivemos que, até aqui, falar apenas de sua
aflição; da aflição que lhe advém de seu próprio tema, de sua missão e de sua
tarefa, que é a promoção do conhecimento de Deus.
Falamos da tribulação a que estamos todos sujeitos, qualquer que seja
nossa posição em relação à Igreja; tratamos da tribulação da qual, aos olhos de
Deus, ninguém se pode excluir e pela qual ninguém pode lamentar nem culpar
os outros, porque é a aflição que a criatura humana, especialmente o homem
religioso como tal, tem de suportar em seu relacionamento com Deus.
A Igreja padece por Deus ser Deus, quando toma consciência de que ela
mesma desenvolve — e que portanto nela surge — a humanidade religiosa.
[A tradução inglesa diz: “Na Igreja a humanidade toma consciência de
si mesma e se manifesta como religiosa. Então sofre porque Deus é Deus”].
Este padecimento não é provocado por Deus ser contra [ou se opor alis-
to ou aquilo; [por não estar] aqui ou acolá, ou [por exigir] menos ou mais; mas
porque Deus se contrapõe a todo ser [e a todas coisas] de natureza material ou
temporal e que são determinadas (ou criadas pelos homens desta ou daquela
maneira); Deus se contrapõe às coisas materiais como aquele que é imaterial,
que é a origem e o Criador de todas as coisas, visíveis e invisíveis, (porém
jamais como um segundo ser em oposição ao que quer que seja!)
Como haveria semelhante modo de ser, de Deus, gerar a aflição das
criaturas, senão através [e por causal da culpabilidade humana?

560
A Crise do Conhecimento 9, 30

Lembremo-nos de que a nossa condição de criaturas é nossa maldição


apenas por força do pecado (7, 7-13) e de nenhuma outra forma.
(Lembremo-nos também que a Igreja visível, a Igreja que gera e acolhe
a “humanidade religiosa” e que portanto luta com Deus (e contra ele prevalece)
até o raiar da aurora, é a Igreja de Esaú, na sua porfia para alcançar a bênção de
Deus e ser, finalmente — quando raiar o Dia do Senhor, — a Igreja de Jacó; é
por isto que a Igreja é claudicante, ferida por Deus, e sofre por Deus ser Deus!]
Se, finalmente, compreendemos em todo seu alcance que a Igreja sem-
pre teve, tem e terá falta de Deus, [que Deus não está (necessariamente) na
Igreja], então não só nos é permitido falar desta ausência de Deus na Igreja
como devemos falar dela, apontando-a como a falha da Igreja.
Se pudéssemos deixar de aqui levantar esta acusação, se não nos sentís-
semos constrangidos a constatar e mencionar a culpa, o pecado e o erro como
tais então, na verdade, ainda não teríamos reconhecido esta carência [de Deus
na Igreja] como sendo a sua verdadeira aflição.
Aflição [que fosse apenas contingência natural da condição humana],
que fosse apenas destino e que, portanto, não admitisse inculpação, não seria
sentida agonia ou angústia ardente.
Se [neste assunto da aflição humana] pudermos levantar queixas contra
Deus, será sinal de que ainda não nos apercebemos da situação e que ainda não
compreendemos o que significa o fato de a base real dessa carência [de Deus]
coincidir com o conhecimento que temos dele.
[Entendo que o A. quer dizer que se nos animarmos a responsabilizar a
Deus “porque tudo se faz segundo a sua soberana vontade” (9, 19) e que, por-
tanto, a ausência de Deus de que a Igreja se ressente teria como origem remota
o “MODUS OPERANI)” de Deus, isto será sinal de que não compreendemos
ainda que esta carência resulta do próprio conhecimento de Deus a que a Igreja
nos leva. Por outras palavras: a Igreja sente a falta de Deus porque sabe o que é
Deus!]
[Se intentarmos queixa contra Deus,] isto significa que, neste fenôme-
no, quem precisa ser incriminada é a criatura humana. [Somos nós!]
(A partir da citação de 9, 30-32, a tradução inglesa registra assim: “Nes-
te sentido precisamos lembrar-nos de que a nossa condição de criaturas é uma
maldição apenasmente em virtude de nosso pecado. De outra forma ela não é
maldição. Quando chegamos a compreender a imensidade do erro [do fracas-
so] da Igreja, — no passado, presente e futuro — não somente devemos e pode-
mos, porém precisamos falar do mal que a Igreja fez [ou faz]. Não teríamos
penetrado no âmago da tribulação da Igreja se deixássemos de fazer a denúncia
e de dar a definição e o nome de sua culpa, seu pecado e seu erro. Porquanto

561
9, 30 A Crise do Conhecimento

aflição imposta meramente pelo destino e que portanto não admitisse


incriminação, não seria uma tribulação reconhecível e ardente e se, em
contraposição, transferíssemos nossa acusação e a endereçássemos contra Deus
— não faríamos mais do que, ainda uma vez, expor [a incapacidade,] a falha de
nossa análise da situação. Teríamos deixado de perceber que a sede profunda
de nossa tribulação é, na realidade, o nosso reconhecimento de que nós somos
os acusados”).
Se a criatura não conhecesse a Deus ela sequer estaria em condições de
reconhecer a sua aflição, pois a miséria do ser humano está na sua aferição por
Deus e na consciência que tem de que é Deus que a mede. Por outro lado, esta
miséria consiste unicamente na angústia, na carência, na crise que a criatura
sente mediante seu conhecimento de Deus e da culpa de que se compenetra
nesta crise; ela não pode fugir pois esta crise, que se alicerça na liberdade de
Deus, toma corpo e se processa ininterruptamente na liberdade e sob a respon-
sabilidade da própria criatura.
É fácil de ver que mediante seu conhecimento de Deus o ser humano
não é apenas um paciente, um enfermo, porém é também um pecador que erra.
“Gentios que não corriam ao encalço da justificação a alcançaram, a
saber, a justificação que procede da fidelidade de Deus”.
Esta é a primeira manifestação da crise: aqueles que têm conhecimento
estão ao lado dos que não têm; os filhos de Deus têm a seu lado gente do
mundo; os santos estão emparelhados com os ímpios. A Igreja — qualquer que
seja o seu nome [ou denominação], — tem a seu lado os gentios, os estranhos,
os que não entendem, os não participantes, aqueles que não buscavam a justifi-
cação. Esta aproximação [que assim iguala uns aos outros] talvez, em sua si-
lenciosa eloqüência, seja realidade insuportável para as pessoas de sensibilida-
de mais apurada: como pode acontecer que alcançaram a justificação os genti-
os [os que não são crentes], que sempre foram e continuam estranhos à Igreja e
que, imperturbáveis, persistem em mostrar a sua apatia ante o que a Igreja
preserva e guarda como sendo o mais sagrado?
Em que situação ficam as coisas sagradas se com o passar do tempo elas
perderam o respeito universal e apenas umas poucas pessoas ainda as reve-
renciam?
Como fica a Palavra de Deus em nossos lábios se, [para anunciá-la],
precisamos convencer-nos [primeiramente] que entre “os outros”, [os que es-
tão fora de nossa grei], ninguém tem muito a dizer contra aquilo que pregamos
sabendo, porém, que não há muitos que estejam [decididamente] a favor?
Considere-se a situação em que se encontra a Igreja na tolerância dos
tempos modernos, vivendo sua vida peculiar, tranqüila, sem ameaças hostis

562
A Crise do Conhecimento 9, 30

mas também sem horizontes mais amplos, [situação essa] que a leva a ansiar
por alguma luta, alguma oposição, chegando quase a suspirar, saudosa, por
uma pequena perseguição [para sacudir os fiéis, afastar os adesistas e oportu-
nistas] e se livrar da proximidade incômoda [daqueles que estão a seu lado,
assim postos por Deus, sem serem da Igreja].
Acaso não está a Igreja (mais ou menos) nessa situação desde os tempos
dos apologistas?
[A apologética como defesa do cristianismo contra os ataques de seus
inimigos “hereges”, ateus ou seculares, surgiu e celebrizou-se nos tempos de
Tertuliano, por volta do ano 200].
Todavia, olhos mais penetrantes postados à janela da Igreja vêem mais
do que isto — [do que a preocupação da Igreja em sondar a reação de seus
ouvintes e, quiçá, defender a posição de seus fiéis] — pois percebem, (se tiverem
a acuidade necessária para compreender o que se pode vislumbrar apenas indi-
retamente), que a Igreja não poderá salvar sua situação e sua existência peculi-
ar, colocando o mundo no banco dos réus por causa de seu empedernimento no
pecado e então avançar contra ele com bordunas e alfinetadas.
Tais observadores terão percebido com horror o que está claramente
descrito em 2, 14-29: “Gentios que não têm a lei praticam, em sua condição
natural, o que a lei exige”. Eles não correm empós a justificação porque já a
alcançaram; não aceitam ensino [não entram para a Igreja] porque já receberam
ensinamento; não têm interesse nas coisas religiosas porque, de há muito, Deus
se interessou por eles. Não se interessam pela “nossa” Palavra de Deus porque
já de há muito eles a ouviram sem nossa intervenção, pois ela mesma se anunciou.
Os filhos deste mundo, os ímpios, [o A. escreve os “não-santos”], os
incrédulos, na total nudez de sua miséria e, talvez, também na total inteireza de
sua alegria não admitem que os transformemos em objetos de nossa pregação e
de nosso zelo pelas almas, de nossa evangelização, de nosso trabalho missioná-
rio, de nossa apologética, de nossa atividade salvacionista; tampouco se sujei-
tam a ser objeto de nosso amor, porquanto foram procurados e encontrados
pela misericórdia divina muito antes de em nós haver despertado a comiseração
por eles; já estão à luz da ressurreição divina e já participam do “poder” da
ressurreição e da obediência; já sentiram o temor perante a eternidade e, confi-
antes nela em esperança, já entregaram a sua existência nas mãos de Deus! É
claro que julgando segundo a retidão humana, tal possibilidade pode ser refuta-
da com argumentos bem evidentes: quem ignora que os gentios [os não cren-
tes] são, visível e realmente, apenas pobres pagãos?
Todavia, trata-se aqui daquilo que só se pode perceber com os olhos do
Salvador; trata-se da impossível, invisível e inaudita possibilidade que Deus

563
9, 30 A Crise do Conhecimento

apresenta e que não é condicionada por eventual contrapartida de fidelidade


humana, mas procede exclusivamente da própria fidelidade de Deus; trata-se
de nova criação divina e não de um concatenamento de “causa-e-efeito”; em
breves palavras: trata-se da verdade de Deus em Jesus Cristo.
Como, porém, poderia a Igreja, como tal, negar a existência dessa pos-
sibilidade divina [que Deus oferece aos gentios] ou condicionar sua aceitação a
esta ou àquela possibilidade de retidão visível, humana, por mais abundantes e
decisivos que fossem seus argumentos contra a salvação existencial dos gentios?
Como poderia a Igreja, que diz ser Deus o seu Deus, ignorar que Deus é
Deus? Como poderia ela, de qualquer forma, negar que Deus é o Deus de “ju-
deus e gentios” (3, 30)? Acaso não é o próprio genitor da raiz de Israel, louvado
como o “incircunciso” (4, 9)?
[Contudo], se a Igreja reconhecer, ou pelo menos contar com a possibili-
dade de que também pode existir SALUS EXTRA ECCLESIAM* que Esaú
pode também ser o eleito Jacó, onde ficará (então) a sua espinha dorsal, a confian-
ça absoluta em sua missão? Não é evidente que a Igreja Romana, na sua conhe-
cida pretensão [fora da Santa Madre Igreja não há salvação] está apenas defen-
dendo “justificáveis” interesses de todas igrejas? [* o destaque não é do Autor].
De que vale a busca da justificação que Israel promove, de que vale seu
zelo por Deus, se ele (ou a Igreja) tiver de admitir que justamente os “outros”,
os que não procuram a justificação, que não lutam [junto com a Igreja], já
tenham alcançado o alvo? Pode, acaso, a Igreja ignorar a censura que está im-
plícita na realidade do que Deus sempre fez sem ela, ao lado e antes dela, aqui-
lo que é [a missão precípua da Igreja] seu dom e sua tarefa e que [assim fazen-
do] Deus destrói a própria razão de ser da existência da Igreja? Onde fica a
Igreja ante esse reproche? E se o olhar perscrutador [postado à janela da Igreja]
penetrar ainda mais profundamente e constatar que “Israel, porém, que busca-
va uma lei de justificação, não a obteve”?
Se o eleito Jacó também puder ser Esaú e se o valoroso soldado de Deus
for simplesmente um dos muitos combatentes que no mundo correm, lutam,
falam sem obter qualquer resultado, pois não podem mesmo ter êxito pelo sim-
ples fato de serem humanos? Esta é, evidentemente, uma possibilidade pela
qual podemos levantar todas objeções humanamente viáveis contra a seriedade
da Igreja, o seu sentido mais profundo e o resultado de sua obra. Todavia e
especialmente a Igreja que não pode deixar de meditar sobre esta possibilidade
pois ela vive da lembrança da interminável diferença qualitativa entre Deus e o
ser humano, conserva esta lembrança em suas leis e isto porque a Igreja deve
saber que a criatura não pode correr ao encalço da justificação divina nem empós
qualquer meio para determinar e compelir a presença de Deus ou para a garantir,

564
A Crise do Conhecimento 9, 30-31

convalidar e mostrar. A Igreja deve saber que o “PORQUE” divino do perdão


apenas tem resposta pelo “PORQUE” que vem de Deus e jamais por qualquer
razão ou causa humana. Basicamente a Igreja sabe isto; porém ela precisa saber
mais: precisa saber também que não pode andar empós a fé, empós o invisível;
que ela não pode procurar o relacionamento direto do homem (que é o presente
homem!) com Deus (que não conhecemos!) relacionamento este que subsiste
unicamente na fidelidade de Deus, [pela sua revelação em Cristo Jesus].
A Igreja precisa saber que de nada lhe adianta fugir do objetivo para o
subjetivo, do “serviço” a Deus (do culto a Deus) ao “cultivo” da devoção; da
justificação para uma “lei de justificação”; e de nada adianta porque aquilo que
na realidade a criatura procura ela não encontra.
É claro que a Igreja pode correr ao encalço da lei humana e da religião;
pode cultivar a vivência [ou a experiência religiosa] mediante o estabelecimen-
to de normas lógicas, éticas e estéticas, mas não pode fazer mais do que isso. A
“experiência” que a criatura tem de Deus não é a fé, não é a justificação, nem é
a presença real de Deus; não é o divino “PORQUE” mas é o nosso relaciona-
mento humano (e por isso também muito duvidoso, com Deus).
A lei [que normaliza e orienta este relacionamento humano com Deus]
não é a própria revelação porém é sua impressão em negativo, muito condicio-
nada segundo o mundo.
A Igreja bem pode (e deve) vigiar o fluir das águas nas quais pode jorrar
a torrente divina quando chegar a hora de Deus; todavia ela não pode forçar o
fluxo dessa torrente, e isto a Igreja não pode esquecer! Talvez seja a lembrança
constante desta sua impossibilidade, desta sua ferida aberta, a sua melhor posição.
Religião não é o Reino de Deus, nem mesmo a “Religião do Reino de
Deus” pregada pelos decadentes seguidores de Blumhardt. Religião é obra
humana!
Talvez a Igreja não saiba que não existe “LEI DE JUSTIFICAÇAO” e
que ao seguir ao seu encalço ela persegue uma ilusão. [Ainda que o saiba], ela
o esquece a todo instante; seja como for, sem exceção, jamais fazemos o menor
esforço para nos convencermos, inda que por um só momento, de que seme-
lhante lei não existe.
A parte real desta ilusão, — o alvo colimado por todas Igrejas e igrejolas
— [sob o rótulo] de “LEI DA JUSTIFICAÇAO” é, evidentemente, a “LEI DA
FE”; desta “LEI”, porém, está excluída toda jactância. (3, 27).
Se a Igreja falar sobre a fé, então ela claramente fala de algo que esvazia
a temporalidade; ela fala de alguma coisa que a criatura deste mundo pode ter,
pode aspirar e pode alcançar de uma ou outra maneira; algo que pode ser
mostrado, exibido, aqui e acolá. [Todavia], como haveria esta obra humana

565
9, 31 A Crise do Conhecimento

[que é a Igreja] ser a [expressão da] fé que justifica [a criatura] perante Deus?
Não é muito mais provável que [justamente] a mais alta religiosidade seja con-
fundida como predicado da fé e que [na pretensão de ser a própria fé] constitua
a ilusão [a que nos referimos]?
Se existir uma religião superior a todas, ou se quisermos definir o mode-
lo do mais perfeito relacionamento do ser humano com Deus, onde encontrarí-
amos tal excelência senão na religiosidade dos profetas de Israel ou nos canto-
res dos Salmos pois, uns e outros jamais foram superados em sua expressão
religiosa, nem mesmo pela “religião de Jesus” — se é que podemos falar em
“religião” do Mestre. (E isto para nem sequer mencionarmos [o quanto a reli-
gião dos grandes vultos da história bíblica excede e supera em valor o tipo de
religiosidade encontrado na] história das religiões cristãs).
(Contudo, a religião dos profetas e cantores bíblicos também não alcan-
çou a justificação...)
Seja como for: ainda que existisse [ou exista] religião que estivesse [ou
esteja] em harmonia com a justificação divina, a criatura humana não alcança a
“lei da justificação” pois esta lei só pode ser atingida no instante do Milagre
Absoluto, e este milagre vem pela fé; [não chegamos a esse instante porque por
ele houvéssemos diligenciado mediante nosso correr, vigiar e agir] pois FE ou
é milagre ou então não é FÉ.
A Palavra de Deus ouvida por ouvidos humanos e proclamada por lábi-
os de homens somente é [realmente] a Palavra de Deus, quando o milagre acon-
tece. Se não for assim é obra [ou palavra] humana como outra qualquer.
A Igreja é a de Jacó unicamente se o milagre se der; de outra forma ela
é a Igreja de Esaú e apenas isto.
Este milagre não pode ser “almejado”, nem alcançado, nem apresenta-
do mas é, a todo instante, o novo e imprevisível acontecimento divino entre os
homens.
Poderíamos, contudo, perguntar: por que não? Por que não podemos
correr ao encalço do milagre da fé, que a Igreja prega? Por que resulta sempre
sendo [mera] ilusão aquilo que a Igreja tanto busca?
[“Por que não?”] (A resposta:) “Porque esta procura não vem da fé,
porém das obras”.
Somente chegamos à fé “partindo da fé” e pela fé.
Ter fé significa temer e amar a Deus sobre todas as coisas; [significa
aceitá-lo] qual é e não conforme pensamos que seja. Ter fé significa a nossa
sujeição ao indefectível julgamento que a situação geral entre a criatura humana
e Deus exige. Todavia esse julgamento subsiste porque não nos podemos apro-
priar de Deus, não podemos perseguí-lo (caçá-lo) porque Deus é e permanece

566
A Crise do Conhecimento 9, 31-32

sendo para nós por assim dizer — o [“totalmente”] outro, o estranho, o desco-
nhecido, o inabordável. Esta “perseguição”, portanto, não pode ser originada
pela fé, e por isto ela não atinge o seu objetivo, que é a própria fé. A “persegui-
ção” que a Igreja pratica vem “das obras”. As “obras” são o relacionamento da
criatura humana com um Deus conforme ela o supõe e que não é, necessaria-
mente, o Deus que opera maravilhas [ou milagres].
As obras são a “carta magna” do ser humano pela qual ele não reconhe-
ce o julgamento da situação geral entre os homens e Deus; “cartas” em que esse
julgamento não é reconhecido em sua inteireza, — (o que dá na mesma coisa).
Os homens correm em busca da justiça de Deus, da fé e da realização do
milagre através das lacunas da lei e assim esperam poder sentir, alcançar e
mostrar essa justiça. Isto é o que não dá resultado. A Igreja somente poderia
chegar à fé se ela começasse com a [própria] fé: com a fé no Deus desconheci-
do; no Deus vivo.
A Igreja poderia alcançar a justificação no julgamento se ela se subme-
tesse inteiramente ao julgamento; ela não precisaria de morrer se ela não [se
apegasse e] lutasse tão tenazmente por seu feudo. Ela ouviria e proclamaria a
Palavra de Deus se não tivesse pretensão de se engrandecer com a Palavra e não
se preocupasse com os possíveis resultados mas cuidasse [de ser fiel] à verdade
da mensagem.
A Igreja poderia ser a sede do conhecimento se ela quisesse ser a sede
da adoração do Deus incompreensível ante o qual nenhuma carne é justa. Se
ela fosse suficientemente humilde para novamente compreender [reconhecer e
aceitar] a comunidade dos santos como a solidariedade entre os pecadores cons-
cientes do perdão, abandonando, — por isso — toda convulsiva criação de
novas comunidades [religiosas], [novas seitas, novas denominações]; se ela fosse
suficientemente humilde para não se deixar superar por um Kant na prudente
defesa da limitação humana e para suportar com moderação a humilhação [que
lhe impõe] o racionalismo; se a Igreja, [nesta atitude geral] amasse e obedeces-
se a Deus, tal Igreja seria suficientemente corajosa para, ao avaliar e considerar
o seu tema, [a sua missão,] ter ousadia e força para renunciar os [seus próprios]
anseios [de sucesso], abrir mão de seus êxitos e da exibição de seus alvos.
[Para que a Igreja possa candidatar-se a ser a sede do conhecimento de
Deus], é preciso que ela cultive a comunhão com Deus mediante rigorosa críti-
ca a todas experiências religiosas vazias; é preciso que ela não se arreceie de
confrontar a religião com o relativismo de todas religiões; que ela observe o
homem religioso [o beato] — (esta teimosa espécie do gênero humano!) — em
incansável confronto com os gentios, os publicanos, os espartanos, os imperia-
listas, os capitalistas e outros tipos pouco simpáticos (por exemplo, os socialistas

567
9, 32 A Crise do Conhecimento

não religiosos [ateus]) e que são, todavia, justificados por Deus. É preciso que
a Igreja volte sua total objetividade [à pregação da mensagem] do Deus desco-
nhecido, do Deus vivo, do Deus livre; que a Igreja se concentre totalmente na
pregação da cruz. Tal Igreja poderia, de maneira invisível e inaudita, ser a Igre-
ja de Jacó, a Igreja da fé, a Igreja da justificação divina; de fato a Igreja assim
[também] é e foi através de todos os tempos.
Contudo, para ser assim a Igreja precisa ter a ousadia de começar pela
“escuridão” da fé (Lutero) o que, também por todos os séculos que passaram, a
Igreja não tem tido a coragem de fazer.
[A Igreja tem preferido] orientar sua atividade pelas obras, (para aqui-
lo e naquilo) que podemos ver; o que a Igreja diz ser sua fé em nenhuma
hipótese se assemelha com [o paradigma da fé apresentado em] Hebreus, li.
A Igreja não ama a solidão do deserto; mesmo quando ela prega sobre isto,
não é disto que ela realmente trata; mesmo quando ela, aparentemente, se
detém em solidão e no ermo, ela desveste sua solitude de todo espanto verda-
deiro, de todo perigo real. A Igreja não pratica o jejum daqueles que foram
privados da presença do noivo, antes procura e sabe como consolar-se da
terrível vacuidade de toda história da Igreja, recorrendo a toda sorte de ro-
mântico sentimentalismo.
A Igreja não quer ser estrangeira no mundo: ela não pode esperar pela
cidade que tem fundamento — [cujo fundamento é Deus]. A Igreja não se con-
forma em se deter naquele ponto inicial do cristianismo — na paixão do Cristo
abandonado — quando os ponteiros [do relógio do tempo] ainda não marca-
vam a ressurreição, pois ela tem muita pressa, está sedenta e faminta por coisas
positivas, [ela anseia] pelo júbilo do festim nupcial.
A despeito de todas suas derrotas e seus reveses a Igreja não quer recuar
das perdidas obras exteriores para o centro do fortim, mas quer avançar sem-
pre. [Porém, avançar] para onde? Sem dúvida avançar na direção do ser huma-
no que assim, quem sabe, poderia livrar-se do julgamento [divino]. E o avanço
para o que é diretamente constatável, para o que e visível, compreensível, ime-
diato, manejável.
A FÉ segundo o capítulo 11 da Epístola aos Hebreus parece-lhe por
demais desumana, descaridosa, [não amorável], perigosa, não psicológica, não
prática. A mensagem alegre deve ser inteiramente direta; se possível, deve ser
divertida; deve ser algo de positivo e que possa ser assim considerada mesmo
sem fé e sem Deus.
Todavia se a Igreja, em contraposição à “impossível” possibilidade de
permanecer fiel ao seu verdadeiro tema (o que poderia envolver o risco de sua
ruína) [perante o mundo], optar pela “possível” possibilidade de concentrar o

568
A Crise do Conhecimento 9, 32-33

seu tema no indivíduo — (naturalmente no homem religioso!), — então sim,


ela se porá realmente em perigo e se destruirá.
Isto é assim porque o ser humano não pode contornar a maldição de sua
condição natural de simples criatura — nem mesmo sendo religioso — ainda
que fosse o seguidor [ou adepto] da mais sublime das religiões.
Como não haveria Israel [(ou a Igreja)] de ser aniquilado, [(destruído)]
em Deus, enquanto o seu objetivo se concentrar na religiosidade do ser humano?
Se tudo for apenas questão existencial, como não haveria de Israel [(ou
a Igreja)] ser alcançado e ultrapassado pelos “primeiros” entre os gentios que,
declaradamente, não estão de mãos vazias?
Como haveria de a Igreja merecer a gratidão [e o reconhecimento] do
mundo a quem ela faz tantas concessões quando, na realidade, ele espera dela
algo tão diferente?
A Igreja não alcança a ilusão que tanto persegue e, nesta sua corrida,
passa-lhe desapercebida a realidade que poderia agarrar; assim a Igreja não
sofre apenasmente por ser Esaú e não Jacó, mas sofre por sua própria culpa.
Quem há que tendo procurado participar seriamente da experiência da
Igreja, sabendo que é absolutamente necessário ter essa experiência e que ela
não pode ser encontrada em nenhum outro lugar, [sim, quem há que nessas
condições] não sinta sobre os seus ombros o peso dessa culpa, ou possa li-
vrar-se dela? E, sentindo a culpa, quem há que não tenha plena consciência
dela?
Ora, a culpa surge quando o ser humano descobre que aquilo que é
possível a Deus é impossível ao homem; então a criatura se atreve a ouvir o
Criador e a falar de Deus, todavia não lhe tributa honra: esta é a única culpa do
ser humano!

Vs. 32 (segunda parte e 33) Correram de encontro a uma pedra de tropeço, da


qual está escrito: Eis que porei em Sião uma pedra de tropeço, uma rocha
de escândalo, e só quem nela crer não será despedaçado.

[A tradução de Almeida escreve: “Tropeçaram na pedra de tropeço, como


está escrito: Eis que ponho em Sião uma pedra de tropeço e rocha de escândalo,
e aquele que nela crê não será confundido].
A pedra de tropeço e a rocha de escândalo é a mesma preciosa pedra
angular posta em Sião (pois esta admirável citação bíblica resultou da combi-
nação de Isa. 8, 14 com Isa. 28, 16); [ela se refere a] Jesus Cristo em quem
Deus se revela desabridamente como Deus recôndito cuja realidade somente

569
9, 32-33 A Crise do Conhecimento

pode ser conhecida indiretamente. [Em Jesus Cristo] Deus se oculta definitiva-
mente para ser revelado apenas mediante a fé.
[Em Jesus Cristo] Deus revela o seu interminável amor, enquanto dá a
conhecer a sua liberdade, o milagre, o seu reino, de forma absolutamente ine-
quívoca. [O original diz “na mais cortante inambiguidade”].
Quem for da verdade, aqui, [em Jesus Cristo,] ouvirá sua voz. Porém,
quem é da verdade? Quem vê Deus qual ele é? Quem há que não tenha milha-
res de pretextos para desviar-se dele?
Não toleramos a verdade e seria milagre se a suportássemos; [todavia, se
este milagre se desse] ele nos salvaria do sofrimento que a situação de criaturas
nos impõe. [Porém] se o milagre não puder acontecer por não estarmos abertos à
verdade, por não estarmos prontos para ela, então a verdade, pela lógica que lhe
é imanente, se transforma para nós em julgamento. Então a criatura, no paroxis-
mo de sua carreira ao encalço do alvo final, que ela designa como Fé, Justifica-
ção, Amor, Deus, ela se despedaça [fica confundida] porque neste Sião, neste céu
terreno, [Deus] estabeleceu a realidade de que ELE é o Eterno que, pela graça,
permite que se o encontre onde ele for procurado como o ETERNO.
Somente aquele que crê não se despedaçará neste tropeço e neste escân-
dalo. Quem porém não crer mas “correr ao encalço”, (9, 31), esse necessaria-
mente colherá apenas nozes chochas; esse tal será qual o homem que dispara
para dentro de beco sem saída.
Irrompe, então, a crise do conhecimento, a catástrofe da religião; o
desnudamente e a vergonha a que fatalmente estão sujeitos todos os empreen-
dimentos irrealizáveis, aparecem inevitavelmente!
A Igreja de Esaú é e permanece sendo a que precisa sacrificar o Cristo o
qual, contudo, é a sua única esperança. Nem pode ser de outra maneira quando
a criatura não reconhece alegremente — e [ainda] quer inverter — a norma
divina, segundo a qual é Deus que nos elege [nos escolhe] e não somos nós que
o escolhemos.
[Deus nos escolheu e nos escolhe pela sua fidelidade à qual apenas pode-
mos corresponder com nossa fé; se diligenciarmos, se nos empenharmos por atin-
gir a graça de Deus, se corrermos ao encalço da vida eterna, se procurarmos a fé,
então não estaremos porfiando por entrar pela porta estreita da renúncia e de nosso
auto-esvaziamento mas estaremos correndo empós uma lei de justificação por for-
ça de nossas obras e não alcançaremos a justificação mas seremos confundidos!
Se dissermos, “façamos o mal, pois então será mais abundante a graça
de Deus”, ou se não nos preocuparmos com nossa vida espiritual “porque Deus
salva a quem quer” então no primeiro caso, estaremos confiando em nossas
obras que, nesta hipótese, são declaradamente negativas; na segunda atitude

570
A Crise do Conhecimento 9, 32-33 e 10, 1-3

pecaremos contra o Espírito Santo, tornando vão o sacrifício de Cristo e não


poderemos esperar pelo perdão.
A porta é uma só; não existem dois caminhos: “Crê no Senhor Jesus”.
“toma a tua cruz” e “segue-o”].
Os mais evidentes erros humanos que a Igreja cometer, suas transgres-
sões, sua superficialidade e sua indolência, seu bem-estar mundano e sua inge-
nuidade, sua inútil humildade e seu igualmente inútil orgulho, seu importuno
zelo teórico nas coisas minúsculas pelas quais não vale a pena mover um dedo
sequer e também sua igualmente importuna indiferença e irresoluta tranqüili-
dade em questões fundamentais, nada disto nem tudo mais que se puder dizer
contra a Igreja a condenaria se ela mesma não se condenasse ao rejeitar o julga-
mento [a sentença] que pesa sobre todos os homens, como tais, desde antes de
haverem pecado ou transgredido [este ou aquele mandamento].
Se a Igreja se conduzisse sempre submissa a esse julgamento, encontran-
do sua justificação no fato de não buscá-la (nem cogitar de encontrá-la) senão
nesse mesmo julgamento; se a Igreja cresse na pedra de tropeço e escândalo e
não a tivesse por escândalo e tropeço então, em todos seus erros e transgressões
(e certamente, um dia sem eles!) ela seria a Igreja de Deus. Todavia, a Igreja
“triunfante”, a Igreja atualizada, moderna, popular, que satisfaz todas as exigên-
cias dos homens (exceto a única, [a fundamental]! ), a Igreja que a despeito de
todo ridículo [de que ocasionalmente se cobre], é sempre altiva; a Igreja que sabe
passar maciamente (por entre os óbices do mundo) como o mercúrio que se es-
coa; que sempre procura e encontra saídas [“airosas”], tal Igreja — Igreja de
“vida eclesiástica” — não pode ter nem terá bom êxito, ainda que tudo faça (ou
tudo fizesse) com o mais sincero zelo para se livrar do erro e da transgressão.
Com ou sem erros [tal] Igreja nunca jamais será a Igreja de Deus porque
ela não conhece [não sabe] o que seja ARREPENDIMENTO.

Vs. 1 a 3 Irmãos, o anseio e a súplica do meu coração estão postos na salvação


deles, pois eu lhes dou testemunho de que têm zelo por Deus, porém sem
conhecimento. Porquanto eles menosprezaram a justiça de Deus e ambicio-
naram estabelecer a sua própria e, assim, não se submeteram a justiça divina.

“O anseio e a súplica do meu coração estão postos na salvação deles”.


[Almeida escreve: “A boa vontade do meu coração e a minha súplica a
Deus a favor deles é para que sejam salvos”].
Estamos absolutamente tranqüilos para responder à censura de que nos
opomos a Igreja ou [à incriminação] de que somos anti-eclesiásticos em virtude
de afirmações como as que acabamos de fazer; todavia, não tornaremos as coisas

571
10, 2 A Crise do Conhecimento

tão fáceis, nem para nós nem para os outros, aceitando o convite implícito nes-
sa censura ou incriminação, abandonando a Igreja assim qualificada e supor-
tando as eventuais conseqüências; sequer pensamos nisso!
Quando falamos da Igreja, falamos de nós mesmos e o fazemos antes de
nos dirigirmos aos outros e ainda uma vez [será essa crítica endereçada] a nós.
Talvez sejamos mais eclesiásticos que os igrejeiros; francamente, “VERE
VERBUM DEI, SI VENIT, VENIT CONTRA SENSUM ET VOTUM
NOSTRUM. NON SINIT STARE SENSUM NOSTRUM ETIAM IN IIS,
QUAE SUNT SANCTISSIMA, SED DESTRUIT AC ERADICAT AC
DISSIPAT OMNIA”. (Lutero).
Todavia [o pregoeiro] não tem culpa de ser assim, de ser a Igreja a maior
atingida. O mensageiro — [o pregador, o pastor, o homem de Igreja] — tem de
fazer valer a Palavra de Deus tanto na Igreja quanto contra ela e não é respon-
sável pelo fato de a Igreja também ser atingida. [Ele seria, sim, culpado perante
Deus e os homens se tergiversasse, se concedesse contemporizações, se procu-
rasse apresentar mensagem atenuada, suavizada, alentadora, ao gosto do mun-
do ...]. Quando prega é o próprio pregador [o primeiro e] o maior atingido!
Nas lides de Deus é completamente impossível haver partido contra parti-
do, pessoa contra pessoa, um lado [ou uma parte] criticando e tendo razão e o
outro sendo criticado e estando errado. No relacionamento com Deus o acusador
e o acusado podem sempre e indiferentemente, substituir-se mutuamente.
Todos aqueles que levam o incontornável problema da Igreja a sério
tanto são acusados como acusadores.
“Pois eu lhes dou testemunho de que têm zelo por Deus”.
Em segundo lugar, poderíamos tranqüilamente [ignorar ou] negar a acu-
sação de que não fazemos justiça ao sentimento religioso e à obra da Igreja
porquanto não só estamos em perfeitas condições de fazer justiça à posição
histórica e psicológica da Igreja, como nos comprometemos a defendê-la pe-
rante o fórum do mundo, pelo menos tão bem quanto o fazem seus mais con-
vincentes advogados. Reconhecemos — uma vez por todas — o seu “zelo por
Deus”. Porém em se tratando de assunto divino, a troca de gentilezas não tem
cabimento. Portanto, para nós não se trata de galopar, de disparar em busca da
lei de justificação (9, 31), [quiçá] montando “animais” mais velozes [como por
exemplo] tendo maior piedade [ou mais devoção], vivendo experiências [espi-
rituais] mais profundas, tendo mais confiança em Deus, ou [mostrando] mais
amor fraternal. Não se trata da ridícula discussão sobre quem “tem mais” isto
ou aquilo, [sobre quem é mais crente, melhor membro da Igreja], se este ou
aquele consegue sobrepujar algum outro em intensidade espiritual, vida interi-
or, paz, entusiasmo, amor, esperança.

572
A Crise do Conhecimento 10, 2

Pelo contrário: aqui se trata de acabar com essa competição inútil [e


frívola]; sabendo-se que a religiosidade humana, — (mesmo a que qualitativa-
mente se situar entre a mais requintada cultura e quantitativamente superar a
multidão da Torre de Babel) — não tem significação decisória perante Deus;
sabendo-se que na arena onde os homens e Deus se confrontam para se separa-
rem e [efetivamente] se separam, e se confrontam também para se encontrarem
[e realmente se encontram ...], não é uma praça onde os homens se mimoseiam
distribuindo ramos de louro entre si ou onde alguns possam negar os louros a
outros; sabendo-se que a todos nos resta apenas: temer, amar e adorar à Deus!
[E o que podemos fazer ...]
“Porém sem conhecimento” têm eles zelo por Deus.
[Almeida escreve... “porém não com entendimento”].
É justamente esta falta de conhecimento [ou de entendimento] que cons-
titui a culpa da Igreja. É a mesma coisa que vem sempre de novo e acima de
tudo, pois quem há que tenha conhecimento, [ou entendimento]? Para quem
não falta ele, sempre de novo nessa fatal corrida rasa? O que significa toda essa
série de explosões religiosas, uma mais forte que a outra, que com horror assis-
timos desde 1918? O que significa este livro na medida em que ele, NOLENS
VOLENS, concorre para este caos? O que significa toda a história da teologia,
até o dia de hoje, este eloqüente setor da luta generalizada pela existência, na
qual as feras mais Jovens armadas com aspas e dentes mais agudos vão elimi-
nando as mais velhas e mais fracas até que [no ciclo natural] elas sejam, tam-
bém, eliminadas? Que sentido tem essa sucessão de cenas? E quem é que [aca-
so] nota que nisso tudo não há sentido algum?
Esquecemos disto sempre de novo e este esquecimento é a culpa da Igreja.
Todavia, precisamos admitir humildemente que a despeito de todo nos-
so protesto, encontramo-nos sempre lá, na sede desse esquecimento: fazemos
parte desta Igreja culposa.
“Eles menosprezaram a justiça de Deus e ambicionaram estabelecer a
sua própria e assim, não se submeteram à justiça divina”.
Zelo por Deus, com entendimento, seria a submissão à justiça divina, ao
próprio Deus e a Deus somente; seria a submissão à divina predestinação e
seria o amor ao Deus que neste mistério reina absoluto por ser ele só o verda-
deiro Deus, pois a justificação de Deus e a sua liberdade para ser lei é norma pa
ra si mesmo; é em sua liberdade que ele — e somente ele — chama e vocaciona
(9, 12; é nesta liberdade que é próprio amar Jacó e odiar Esaú (9, 13; é nesta
liberdade que ele se compadece de quem quer e endurece a quem lhe apraz (9,
18); esta é a liberdade de Deus: de ser somente ele o próprio Deus, ontem, hoje
e amanhã, com a mesma irrestrita soberania.

573
10, 3 A Crise do Conhecimento

Portanto, o conhecimento [ou o entendimento] de Deus seria o reconheci-


mento dessa soberania divina — reconhecimento esse que jamais poderíamos
olvidar, — que jamais poderia ser considerado como fato consumado ou ultra-
passado. Conhecimento de Deus seria a prática constante da diferenciação crítica
entre o que seja retidão [ou justiça] de Deus e toda (TODA) [e qualquer] retidão
[ou justiça] humana. Conhecimento de Deus seria a inexorável superposição da
importância divina a tudo quanto seja importante [e até importantíssimo] segun-
do nosso parecer. (Esta superposição das coisas humanas pelo que é divino está
sempre em vias de acontecer, e sempre iminente, ainda que entre os assuntos por
nós considerados como importantes o de suma importância seja a própria medi-
tação sobre Deus).
O conhecimento de Deus leva os homens a aceitarem de boa vontade e
conscientemente o ataque que contra eles procede da justiça divina e de semelhante
conhecimento poderá, eventualmente, resultar zelo por Deus que não implique na
participação dessa “corrida rasa” e que portanto estará [somente] sujeito ao julga-
mento de Deus; [ou por outras palavras, o “entendimento” de Deus pode gerar zelo
que não se manifesta nem se expressa por obras e feitos humanos e que, por isto
mesmo, está exclusivamente na dependência do juízo e do julgamento divinos]:
Quem tem tal entendimento e quem vive segundo ele? A quem não é
esse conhecimento sobremaneira elevado e por demais maravilhoso? Quem
subsiste sob semelhante luz e em tal atmosfera? Quem não teme que [nesse
conhecimento] “tudo poderia acabar”? Quem há que não substitua [ou não ten-
te substituir] esta inabordável [inflexível e absoluta] justiça divina com sua
própria justiça, [seu critério particular de retidão]? (Talvez, e muito provavel-
mente) será retidão de elevado quilate, muito valiosa e mui excelente, [será
retidão que “contara”] “com a graça de Deus”; confiando em Deus” e assim por
diante, quiçá será consoante algum plano, algum programa ou método; alguma
nova linguagem [a tradução inglesa escreve “alguma nova interpretação”], al-
guma coisa qualquer, [ou um objetivo] um movimento que exija de nós menos
esforço criativo, menos que pensar e menos que padecer do que essa RETI-
DÃO DIVINA e [em compensação] nos dê mais trabalho [para melhor usar-
mos nosso dinamismo]; nos dê mais do que falar e mais para empreender.
[Quem há que não busque] alguma coisa [método, programa, atividade]
pela qual a criatura humana, (especialmente a pessoa religiosa), em seus feitos,
sua oratória, seu ânimo empreendedor, seu insaciável desejo de reforma e de
revolução chegue a “melhores resultados” [segundo suas próprias deduções]?
[Na realidade a pessoa chega à conclusão de que sob seu próprio prisma
e perante o mundo seus “resultados” são melhores] porque sob o julgamento
[que imagina segundo seus critérios pessoais] e ao qual se submete, já não

574
A Crise do Conhecimento 10, 3

sente a premente necessidade de lembrar-se de que aquele que temer e amar a


Deus sobre todas as coisas nada mais tem [no mundo] senão Deus! [nada mais
terá para exibir; nada terá para se gloriar e nada para se justificar...].
Quando acaso esteve a Igreja a salvo da tentação de substituir a justiça
de Deus por sua própria? E quando resistiu ela a essa tentação? Quando foi a
Igreja diferente daquilo que a Igreja Católica é apenas mais completamente que
todas as outras: a organização que visa a garantir os justificados interesses dos
homens perante Deus na tentativa mais ou menos hábil de fazer mistério da
verdade da predestinação divina ou de ocultá-la?
Quando teria a Igreja tido o ânimo de cortar os liames que a prendem às
necessidades, desejos e ambições da criatura deste mundo para apoiar-se intei-
ramente em Deus? Será que a Igreja consegue fazer isso? Pode ela, ao menos,
supor que isto está a seu alcance? Se a Igreja não o puder. — se não conseguir
realizar o que ela segundo o seu mais lídimo programa, evidentemente, deveria
fazer — se o seu conhecimento [seu entendimento] de Deus se esboroar de
novo e sempre na crise peculiar à criatura que se nega a reconhecer Deus por
seu Deus porque dele tem medo, — então por que haverá ela de admirar-se da
acusação que lhe é feita — acusação que, na verdade não procede dos homens,
[nem do mundo]?
Como poderá a Igreja esquivar-se de levantar, ela mesma, essa acusação
contra si?

Comentários: 9, 30 - 10, 3

1. Diz Barth que a Igreja poderia ser a sede da verdadeira adoração a


Deus se, entre outras coisas claras e bem compreensíveis, ela também
fosse suficientemente humilde para não se deixar superar por “um
Kant” e suportasse com moderação (com paciência), “a humilhação
que lhe impõe o racionalismo” mas, amasse e obedecesse a Deus.
Parece-me que o A. quer dizer que se o próprio Kant, o apóstolo
do uso da razão em substituição à revelação, encontrou limites para
as possibilidades humanas, reconhecendo que Deus, a imortalidade e
o universo não podem ser explicados racionalmente, maiores e mais
ponderáveis motivos deverá ter a Igreja para dar a Deus o que é de
Deus. Portanto deve a Igreja suportar com paciência a humilhação
(segundo o mundo) que o racionalismo lhe impõe porquanto, sem fé,
é impossível agradar a Deus; nunca chegaremos à fé por elucubrações
mentais ou deduções matemáticas pois a FÉ nasce da FIDELIDADE
DE DEUS e por ela, — não pela razão, — “O justo viverá”!

575
9, 30 - 3; 4 A Luz nas Trevas

2. “A Igreja não quer parar no Cristo abandonado”. Entendo que o A.


quer dizer que a Igreja não deseja ficar na renúncia; não que tomar a
sua cruz; quer gozar da ressurreição sem passar pela morte.
3. “A Igreja deve buscar a sua justificação na sentença que a condena”.
Entendo que a sentença que desde a eternidade pesa sobre todos
homens e, portanto, também sobre a Igreja, é a sentença da
predestinação. Deus elege e, elegendo, condena. Quem crer será sal-
vo e quem não crer já está condenado. E nesta sentença que a Igreja
deve buscar sua salvação: Mediante a fé!

A LUZ NAS TREVAS (10, 4-21)

(Barth inicia a exegese da segunda parte do capítulo sintetizando a tese


demonstrada na primeira: “A culpa da Igreja constitui a sua aflição”. Então
estabelece novamente o silogismo do círculo vicioso: a aflição é sua culpa e a
culpa é sua aflição. Todavia, nesta proposição não parece estar em pauta a afli-
ção que a Igreja sente pelo fracasso conseqüente do cumprimento de sua mis-
são mas o desapontamento da Igreja porque muitos daqueles que não correm
empós uma lei de justificação são justificados por Deus e outros que buscam
esta justificação não a alcançam; porém não alcançam o que procuram porque
confiam em suas próprias forças, seus feitos, seus méritos, sua fé. Esta é a culpa
da Igreja e, por isto mesmo, a causa de sua aflição porquanto, se a Igreja renun-
ciar a si mesma e se entregar inteiramente à fé, será semelhante aos que “sem
lei” fazem a vontade de Deus ou, se possível fôra, inda mais excelente que estes
e já não sofrerá da enfermidade característica da Igreja no mundo mas gozará
paz com Deus. Esta paz é a luz que raia quando se definem as trevas da aflição
e do reconhecimento da culpa e será tanto mais visível quanto mais densas as
trevas forem; esta luz vem da fidelidade de Deus: é a luz não gerada que vem do
cumprimento da lei por Jesus Cristo, na cruz, que tira a nossa culpa e nos resta-
belece na categoria de filhos de Deus.]
Se a aflição da Igreja está na sua culpa e se esta culpa, conforme vimos
na exegese precedente, consiste exatamente no fato de a Igreja não reconhecer
esta sua aflição que lhe advém em conseqüência da natureza de seu dom, de sua
tarefa e de seu tema, antes prefere fugir de sua missão, — o que equivale a dizer
que [a Igreja] prefere fugir de Deus, — então é lógico que as coisas poderiam
acontecer de forma diferente; [é evidente que a situação aflitiva da Igreja] re-
sulta da opção que ela faz. Portanto, o fato de a Igreja não reconhecer a Deus e
de tentar evitá-lo ou escapar dele, não significa que ela está [constrangida e
obrigada nesta situação] como em beco sem saída; por conseguinte ela não

576
A Luz nas Trevas 9, 30 - 10, 3; 4 e 5

pode alegar que se acha em contingência fatal, mas precisa assumir, ela mesma,
a responsabilidade de seu procedimento.
A luz brilha nas trevas!
Precisamos compreender isto perfeitamente para que tomemos consci-
ência inequívoca e ardente de que a aflição da IgreJa é a sua culpa e, mais
ainda, para que nesta realidade percebamos com clareza o correlacionamento
que existe entre a tribulação e a esperança da Igreja.
A impossível possibilidade divina está ao alcance da Igreja e a luz eter-
na, que emana da luz não gerada, a ilumina. A questão resume-se em saber se a
Igreja tem olhos para ver isto.

Vs. 4 e 5 Porquanto o objetivo da lei é Cristo, para a justiça de todo aquele que
crê. Pois Moisés descreve a justiça que vem da lei com as palavras: o
homem que fizer estas coisas, por elas viverá.

[Barth faz ligeiro comentário dizendo que sua tradução do versículo 5,


acompanha as ponderações de Zahn e Kuehl; Almeida registra: “Ora, Moisés
escreveu que o homem que praticar a justiça decorrente da lei, viverá por ela”.]
“O objetivo da lei — [segundo a tradução de Almeida, o fim da lei] — é
Cristo, para justiça de todo aquele que crê”.
Há somente uma verdade, uma só [forma de] liberdade divina, [há um
só critério, tanto] para “eleger” como para condenar; há uma só justiça divina
[e um só juízo].
Quer esta verdade venha ao nosso conhecimento como a “justiça que
procede da fidelidade de Deus”, a ser compreendida, confirmada e apropriada
pela fé (1, 17), quer a encontremos na forma da justiça que procede da lei, —
isto é como norma estabelecida à ação humana para orientação de seus objeti-
vos e alvos, — ela é uma só verdade, uma mesma justiça. Invisivelmente ela é
a justiça que procede da fidelidade de Deus e visivelmente ela é sempre a justi-
ça que vem da lei; nem poderia a lei dar origem a outra justiça — por exemplo,
justiça divina — mas tendo origem na lei ela [também] procede da fidelidade
de Deus, pois o sentido, o significado, o “objetivo da lei” é a justiça de Deus.
Não é sem motivo que a Igreja que cuida (e precisa cuidar) da lei anda
empós uma “Lei da Justiça” e de uma religião do Reino de Deus (9, 31).
O alvo, [a meta, o objetivo] do qual toda religião deve dar testemunho
(3, 21) é Cristo. Cristo é o fim [o consumador] das necessidades [das carências],
das ambições e dos anseios da humanidade, aos quais a Igreja procura satisfa-
zer, dos quais cuida e aos quais dedica toda sua carinhosa atenção. Oxalá fosse
[realmente e sempre] assim: que a Igreja fizesse isto ou, pelo menos, entendesse

577
10, 4 A Luz nas Trevas

o que significa estar ativa na lei da justiça; se ao menos soubesse o que significa
despertar e viver religião que seja sinal e testemunho; se ela correspondesse ao
último anseio do ser humano resolvendo todos os legítimos penúltimos anseios
peculiares à criatura.
No decurso [e no desenvolvimento] de seu próprio programa, — [no
processo de comunicação da mensagem da redenção] — a Igreja deveria depa-
rar-se com a verdade, a liberdade e a justiça de Deus.
A impossível possibilidade do surgimento do HOMEM DA FÉ dá-se
somente, — este é o caso de Israel, e da Igreja, quando a possível possibilidade
da pessoa religiosa, da adoração “de Deus” e do relacionamento que existe
entre o temporal e o eterno, forem devidamente entendidos como o limite, [o
extremo] da possibilidade humana; quando forem percebidos como aquilo que
está além do [nosso] mundo, como pressuposição, como o centro visual [sobre
o qual estão postos os olhos da fé].
Devoção verdadeiramente séria, ou justiça [ou retidão] humana também
verdadeiramente séria, ou Igreja verdadeiramente séria, de maneira alguma pode
subsistir por si só, (conforme se pode verificar em cada página do Livro dos
Salmos!); qualquer dessas coisas necessariamente apontará para além de si
mesma, pois em todas elas está implícito que nada mais são do que impressão
humana, pontos intermediários, marcos de estrada, aviso e negação. Qualquer
delas, forçosamente, — (ainda uma vez, se forem realmente sérias e se soube-
rem o que significam!) acende o rastilho de pólvora que fará explodir os pago-
des, todos pagodes que acaso estavam (ou estejam ainda) a seu derredor.
[A tradução inglesa escreve: “Se a Igreja for consciente de si mesma e
séria, acenderá o estopim que fará explodir toda edificação sagrada que os ho-
mens já levantaram ou ainda poderão levantar em seu redor].
Se a lei for tomada a sério cessa toda paz, toda segurança, todo descanço
que não sejam a segurança, o descanço e a paz inerentes ao instante eterno da
revelação de Deus.
Cessa então toda “corrida ao encalço” da justiça; cessa toda procura que
seja qualquer outra coisa que não busca de entendimento (10, 2). Cessa todo
desejo de estabelecer “a própria justiça” (10, 3). CESSA! e sabemos o que
dizemos com isto: acontece o milagre; [dá-se] o relacionamento existencial do
homem com Deus e que jamais se realiza na temporalidade: acontece. A fé crê;
Deus fala. Isto é devoção séria; Igreja séria!
Todavia, isto está ao alcance da possibilidade humana (na qualidade de
impossível possibilidade) onde a Igreja estiver; onde se tratar da penúltima
possibilidade humana, isto é, onde existir a possibilidade religiosa.
Também a Igreja de Esaú, a única que conhecemos, vive da possibilida-
de da Igreja de Jacó!

578
A Luz nas Trevas 10, 5

“O homem que fizer estas coisas, por elas viverá”!


Com estas palavras Moisés descreve a “justiça que procede da lei”
(Lev. 18, 5).
Moisés sabe o que diz. De maneira alguma é ele apenas um representan-
te da lei a referir-se unicamente as obras humanas e nada mais; de maneira
alguma é ele apenas o tipo do clérigo bem informado e em hipótese alguma é
ele somente o consciente representante da mais alta religião.
Admitamos, todavia, que ele seja tudo isso; qual dos profetas, qual o
apóstolo ou qual o reformador que não o foi? Acontece porém que como profe-
ta, como apóstolo, como reformador, como “Moisés” — ele significa [algo]
mais: ele acentua que é necessário cumprir a lei para viver pela justiça que dela
procede. “Não são os ouvintes da lei que são justificados perante Deus mas os
que a praticam” (2, 13).
Isto é o que Moisés pensa da justiça que emana da lei.
Porém, o que quer dizer ser “PRATICANTE DA LEI”? Lembremo-nos
que isto significa submetermo-nos a quem outorga a lei, àquele de quem a
recebemos; significa compreender que o homem só pode ser justificado pela
proximidade de Deus e pela eleição divina; [portanto] ser praticante da lei sig-
nifica dar, sempre de novo, nosso testemunho da majestade divina, da proximi-
dade de Deus e da eleição eterna. Significa, pois, render toda retidão humana
(TODA) a quem ela pertence e a ele (A ELE SÓ) dar a honra.
Portanto, diz Moisés que o homem viverá pela lei somente [quando e]
onde a lei for praticada — (REALMENTE PRATICADA!), — onde a impossível
possibilidade do milagre da fé e da existencialidade de Deus não estiver apenas
na superfície das coisas históricas e espirituais, não estiver somente ocupando
espaço no tempo, não der oportunidade à jactância humana (3, 27 e seguintes!).
Nem deixa Moisés de, ao referir-se ao FUTURUM AETERNUM [vive-
rá] — chamar expressamente atenção ao fato de que ele não estabelece qual-
quer relacionamento da promessa e da condição do cumprimento da lei com
possibilidades visíveis [imediatas ou] diretas mas se refere à possibilidade
messiânica, escatológica.
Igreja [realmente] séria [ou que ao menos tivesse a pretensão de o ser]
deveria perceber que seu dom é apresentar a “retidão que vem da lei”; esta é a
sua missão [e ela deveria desincumbir-se dessa tarefa] com [argumentação ou]
dialética de tal maneira ampla [convincente] e vigorosa que logo ficasse claro
que o alvo [o fim] da lei é Cristo; que ficasse evidente que nenhuma justifica-
ção procede da lei mas do cumprimento daquilo que a lei determina; portanto
[a justificação] vem de Cristo no qual a criatura que “corre” [em busca de uma
lei de justificação] é suprimida por Deus e isto mediante a fidelidade de Deus.

579
10, 5-8 A Luz nas Trevas

[A tradução Inglesa escreve assim: “Servindo-se do FUTURUM


AETERNUM (Moisés) não pode deixar de nos fazer entender que nem a pro-
messa nem a condição ligada a ela é direta e observável. Ambas são usadas
para indicar a possibilidade messiânica, escatológica; semelhantemente a Igre-
ja deve apreender a retidão que vem da lei como se esta lhe estivesse entregan-
do, (propondo) uma tarefa a cumprir e uma dádiva a distribuir: a Igreja precisa
apoderar-se firmemente da verdadeira dialética — que Cristo é o fim da lei;
dialética porque nenhuma retidão emerge da lei, porém da exigência da lei, isto
é, de Cristo. Em Cristo, os homens que fainosamente ‘buscam’ são suprimidos
e (em seguida) são exaltados para estarem com Deus. Tudo isso se dá pela
fidelidade de Deus”.
Parece-me que o A. não diz nem mesmo sugere que a lei entrega uma
tarefa à Igreja, porém afirma que a missão da Igreja é pregar o cumprimento da
lei de Deus, conforme também Moisés ensinou; isto é o que a Igreja tem para
oferecer, O Cumprimento messiânico, escatológico da promessa de vida se re-
aliza em Cristo que deu integral cumprimento à lei e que, por isto, é a meta, é o
fim da lei — e a muitos justificará.
Ora, o cumprimento da promessa divina em Cristo, que é o Unigênito
Filho de Deus que veio ao mundo para, na qualidade de Emanuel, nos revelar o
Deus desconhecido, confirma a absoluta fidelidade de Deus que não abandona
sua criatura. Todavia, para que esse cumprimento em Cristo seja compreendido
é necessário, ainda segundo o raciocínio do A., que a Igreja se apegue firme-
mente à dialética contrapondo às obras que a lei exige, o cumprimento total que
lhes deu Jesus Cristo — que em tudo foi tentado como homem e não foi achado
em pecado; que tomou sobre si as nossas faltas e deu a sua alma como oferta
pelos nossos pecados. (Isaías 52, 13 até o fim do Cap. 53)].
É fora de dúvida que compreendendo a sua missão desta maneira, a
Igreja teria (ou terá) de encarar com horror a sua mais profunda aflição pois
terrível coisa é cair na mão do Senhor; todavia, [só] então a sua culpa poderá
ser removida e, acima de sua aflição, raiará a sua esperança!
Quando a Igreja assim estabelecer o seu programa, [então] NAS TRE-
VAS RAIARÁ A LUZ.

Vs. 6 a 8 Porém a justiça que procede da fidelidade de Deus, diz: — Não


argúas em teu coração” quem subirá aos céus?” (Isto é, para trazer Cris-
to para baixo!) Ou então, “quem descerá ao abismo?” (Quer dizer, para
levantar a Cristo de entre os mortos!) Porém, o que diz ela? “A palavra
está muito perto de ti, em tua boca e em teu coração”, (Deut. 30, 12-14);
(isto é a palavra da fidelidade de Deus que pregamos!)

580
A Luz nas Trevas 10, 6-7

“A justiça que procede da fidelidade de Deus” é anunciada (conforme


vimos) desde Moisés como sendo “o fim [a meta] da lei”.
[Esta conclusão do A. estriba-se em sua exegese do tempo futuro em-
pregado por Moisés: “O homem que praticar a lei VIVERA (Lev. 18, 5) e seu
fundamento bíblico está em 10, 4 e Mat. 5, 17 ss].
Se a Igreja arrecear-se ou se recusar a dar a honra a Deus, então ela não
deve nem pode alegar [em sua defesa] que o homem é APENAS humano e só
tem possibilidades humanas. A mensagem de Deus, — o Desconhecido, o Todo-
Poderoso, o Criador, não é estranha nem à Igreja nem ao homem; o que é de
estranhar é que [essa mensagem divina,] como limite das possibilidades huma-
nas, não seja estranha à humanidade.
[A tradução inglesa escreve: “O evangelho, sem dúvida, é estranho como
limite da humanidade. Mas o que é realmente estranho é que isto nos é familiar”]
Se a criatura seguir o seu próprio caminho, com seriedade até o fim [até
sua extremidade], então ela se encontrará perante Deus; porém, junto com a
criatura estará também a Igreja em sua possibilidade alternativa: a atitude em
que, na presença de Deus, ela pode tornar-se absolutamente séria, [compene-
trada de sua missão divina], abandonando de vez a corrida desenfreada em
busca da “lei de justificação” (9, 31), suprimindo definitivamente o “zelo sem
entendimento” por Deus (10, 2) e o estabelecimento de “sua própria justiça”
(10, 3).
A Igreja que assim proceder será (e terá) aquilo que o mundo nela pro-
cura e dela espera: será sede [e a fonte] do arrependimento frutífero e pleno de
promessa; e nada mais!
Quando a Igreja chegar [ou quando chega] a esse ponto tornar-se-lhe-á
[ou torna-se-lhe] desgostosa sua convulsiva lida ora tentando subir aos céus,
ora descendo ao abismo; [quando a Igreja tornar-se absolutamente seria na
presença de Deus, isto é, quando puser de lado as veleidades humanas, ela
sentirá desprazer na sua tentativa] de ora personificar o máximo requinte em
matéria de exigências eclesiásticas e em seguida pender para o extremo oposto,
com o máximo de condescendência e o mínimo de imposição.
[Quando a Igreja se torna absolutamente séria na presença de Deus] ela já
não pretende mais ser, ter, dizer, representar, mostrar e repartir a obra de Deus; [a
Igreja deixa de] querer realizar, ela mesma, a obra divina, — a encarnação de
Deus e a ressurreição do mundo — por meio da dinâmica e do diabolismo de sua
palavra ou pelo refinamento estético de sua liturgia; ou então mediante a
popularização de sua terminologia [eventual distorção do texto bíblico, irreverência
no culto, na pregação .] ou ainda pela duplicação, triplicação e contínua am-
pliação de suas bases; pela crescente atividade oficial. [O crucifixo nas Repartições

581
10, 6-7 A Luz nas Trevas

Públicas, nas salas de juri; presença da Igreja nas escolas, nos quartéis, nas ceri-
mônias e festas do governo, tudo isso que a Igreja faz com o evidente intuito de
engrandecer-se, de ganhar e assegurar prestígio ou de comprovar seu status, e
que governados e governantes aceitam por conveniência política ou fato consu-
mado, quando não por sorrateiro interesse eleiçoeiro — uns iludem (ou pensam
iludir) os outros — e todos tomam o nome de Deus em vão ...].
[A Igreja realmente séria, na presença de Deus,] deixa de concordar
pressurosa e solicita com toda sorte de duvidosas aspirações de seus leigos;
deixa de recorrer a demagógicos artifícios teológicos e deixa de exercitar (e de
por em prática) a habilidade de colocar-se sempre em cena, de acomodar-se ao
“espírito da época” e de acompanhar o fluxo e o refluxo das “mentalidades”
[em evidência]: o romantismo, o liberalismo, o nacionalismo, o socialismo, [ou
o que quer que seja,] pois é disto que cuida [a Igreja de Esaú].
[Ao apresentar-se a Deus, em seriedade,] a Igreja saberá [ou sabe] que
não se pode “encenar” a Cristo, nem “trazê-lo do céu” ou “tirá-lo de entre os
mortos”. Ela saberá [ou sabe] que de forma alguma Cristo é o exaltado, o trans-
figurado, o ideal, mas é o Homem Novo; por isso o Natal não é a nossa muito
conhecida e querida festa da bem-conhecida “mãe” e tão conhecida “criancinha”.
Semelhantemente a Sexta-Feira Santa não é motivo para nos preocuparmos
ainda mais com nosso sofrimento o que aliás, não deixamos de fazer; a Páscoa
não é alegoria de nossa vida vitoriosa [de nossa vitória sobre a morte] e da
realização triunfante de nossas aspirações [por mais nobres, mais elevadas e até
sublimes que sejam] — (por exemplo, o socialismo ou a restauração da Alema-
nha!) — [Lembrar que o A. escreveu sob a influência da hecatombe de 1918].
A ascenção não é um símbolo de nosso idealismo que vai até os céus, e o fogo
do Pentecostes nada tem a ver com nossos artifícios de “pular fogueiras”, por
mais entusiásticos e genuínos que fossem.
A Igreja, (inclusive toda possível igrejola que por amor à sua sobrevi-
vência nem quizesse ser Igreja,) assim posta com seriedade na presença de
Deus seria (ou será) o lugar onde, em contraste com toda sorte de outros locais
[ou instituições], a distância própria (porém nunca medida!) que vai “dos mais
altos céus” ao “mais profundo dos abismos” é percebida, estabelecida, e res-
guardada para, finalmente, ser expressa em palavras; tal Igreja seria (ou será) o
local onde, com ou sem incenso, já não é preciso silenciar, porquanto a ocasião
própria de calar ou de falar — (até mesmo de clamar!) — perante Deus se
impõe automaticamente quando e onde a criatura percebe a alegre nova, a pala-
vra positiva de Deus; é assim por que, quando e onde isto acontecer, (ao contrá-
rio do que se dá com todo bem-intencionado sentimentalismo e moralismo), a
criatura percebe a palavra altamente negativa da cruz — e somente esta!

582
A Luz nas Trevas 10, 6-7

É preciso que aqui se diga expressamente que na afirmação de que não


devemos “tentar descer ao abismo” está incluída também a tentação (muito
próxima de nós) de revestir a palavra negativa (de renúncia] que vem da cruz —
a única que resta à Igreja — com a positividade humana.
(Revestimos a mensagem que vem da cruz com a “positividade” das
renúncias humanas [e descemos ao abismo para buscar a Cristo entre os mor-
tos]) quando em convicção, consciência e arte substituimos o idealismo cristão
usual pelo evangelho do PARE!, (do “não-faça” do “não-pode”) e da demoli-
ção; quando fazemos da radical negação de tudo quanto é do mundo, — deste
sorvedouro que se abre para tragar tudo que é humano, — o apoio para alguma
nova interpretação teológica [quiçá alguma doutrina nova que consideremos]
plena de riqueza espiritual e altamente fecunda; cometemos o mesmo impropé-
rio quando pregamos a palavra que vem da cruz como forma e método para
ganhar almas, transformando-a novamente em atitude humana e em questão
moral!
[Nestas diferentes atitudes de caráter passivo ou contemplativo, talvez
submissos, resignados e até felizes com nossa auto-renúncia e nosso zelo, dei-
xamos de correr em busca de uma lei de justificação, isto é, deixamos de tentar
subir aos céus para de lá trazermos Cristo de volta e vamos procurá-lo entre os
mortos, no nosso próprio meio, — descemos as profundezas do mundo para de
lá o ressuscitarmos].
Pode acontecer que em contraste com seu costumeiro dinamismo, a Igreja
passe a exibir passividade artificial; em substituição à sua extensa propaganda
habitual ela agora busque a salvação numa atitude de pretensa expectativa, ple-
na de profunda significação — nada movendo e nada tocando — atitude que,
todavia, nada vale e nada representa por ser estudada, intencional e, portanto,
altamente suspeita.
[Em qualquer destas formas de estudada renúncia, de pretensa expecta-
tiva (como por exemplo na ansiosa espera da “eminente” volta de Cristo) ou em
mística contemplação, estamos revestindo a mensagem que vem da cruz com
as possibilidades que são humanas e também a Igreja o faz se nisto consentir
conosco; estamos, na realidade, colocando Jesus Cristo em nosso meio, entre
os mortos, e lá o estamos procurando sara ressuscitá-lo].
“A palavra está mui perto de ti, em tua boca e em teu coração, isto é, a
palavra da fidelidade de Deus, que pregamos”.
Isto quer dizer que [para se conhecer “a palavra”] não há necessidade de
ações especiais, ou de violência; não são necessárias nem ações positivas nem
negativas, nem é preciso recorrer a subversões ou artifícios; é suficiente que
cada pessoa olhe em torno de si e preste atenção na aflição e na promessa da

583
10, 6-8 A Luz nas Trevas

vida conforme se expressam em cada uma de nossas palavras e cada impulso


de nosso coração.
Pelo simples fato de sermos criaturas humanas achamo-nos na faixa
extrema, na problemática, em que a única resposta possível é dada pela “fideli-
dade da palavra de Deus, que pregamos”
A única exigência que precisamos satisfazer para que também nós nos
apropinqüemos da “palavra” é fazermos a crítica — a mais singela, a mais
sóbria, a mais realista — da vida e do modo de ser do mundo.
A Igreja que estivesse disposta a abandonar suas sacrossantas alturas e
profundezas e retrair-se de todos setores de suas extensas e intensas possibili-
dades eclesiásticas para se voltar à vida, ao ser humano, ao seu próprio lugar;
que deixasse de cuidar daquilo que está longe para dedicar-se à vizinhança;
(que deixasse de cuidar do que é grandioso (perante o mundo) para zelar pelo
que é cotidiano humilde e modesto], que se defrontasse face a face com a pro-
blemática da existência, [tal Igreja] se defrontaria, também face a face, com sua
carência (sua aflição) e sua responsabilidade. Todavia, juntamente com esta
sua aflição e sua responsabilidade, ela se depararia com aquele que para ela as
preparou, a fim de poder assistí-la de perto.
[A tradução inglesa diz: “Uma Igreja capaz de se retirar de todas suas
sacrossantas alturas e profundezas, de todas suas extensas e intensas possibili-
dades eclesiásticas, uma Igreja [que esteja] decidida a retroceder ao longo dos
passos que a levaram a países distantes para ficar na “proximidade” da vida e
existência ambígua de cada pessoa, assumiria assim sua verdadeira tarefa e, em
sua própria miséria e responsabilidade encontraria aquele que dispôs as coisas
humanas de sorte que nelas “ELE” estivesse próximo, à disposição”.]
Reiteramos que ao nos referirmos a esta Igreja tão fortemente objetiva,
que assim renuncia e assim se concentra pensamos — mais do que na “Igreja
Reformada” — na Igreja de Jacó; pensamos na Igreja do milagre e da Fé; te-
mos em mente a “impossível possibilidade”, a Igreja do Deserto, que nunca se
parece como tal nem mesmo aos outros [aos de fora] e que portanto jamais
pode ser objeto de algum “Movimento Novo”, de alguma “Escola” [teológica]
ou Instituição, pois esta “impossível possibilidade” pode acontecer nesta, na-
quela e em qualquer Igreja que queira encarar seriamente a sua tarefa. [O origi-
nal diz, textualmente, “que queira levar-se a sério”].
A retirada para as linhas internas [que acima preconizamos] e que deve-
ria ser levada a efeito, não é manobra tática que deva ser planejada, iniciada
[em determinado momento] e concluída [dentro de certo prazo] mas é o sentido
estratégico próprio à Igreja e que ela precisa ter e preservar. Tal sentido poderia
fazer-se presente ainda hoje, sem qualquer preparação, fundamentação, sem

584
A Luz nas Trevas 10, 8

programação esclarecedora e sem consideração de ordem prática e, amanhã


poderia acontecer novamente, como o passo que vai da esperança para a aflição
e da aflição para a esperança, porquanto este é o passo eterno que dá nova
qualificação e nova orientação a todos passos humanos; o passo que pode ser e
deixar de ser acompanhado de todos possíveis passos da criatura; o passo que
pode incitar ou impedir todo passo humano. Este recuo para a cidadela, [este
retorno] entre todas as possibilidades humanas, é sempre a possibilidade total-
mente diferente e por isto mesmo a possibilidade que sempre e em toda parte
está aberta; é a possibilidade aberta para Deus qual ele é, — o Deus Vivo, o
Deus Desconhecido.
Onde se encaminhar esse retorno aí estará a Igreja de Jacó acima, por
traz e dentro da Igreja de Esaú, (ainda que fosse a mais corrompida igreja cle-
rical) pois mais uma vez repetimos: “Perto de ti está a Palavra!”, diz a justiça de
Deus. (Deut, 30, 14).
A palavra está à nossa disposição, para ser tomada a sério, para se fazer
valer, pronta para nos afligir o mais pesadamente possível e para nos dar a
liberdade no mais alto grau; ela está à nossa disposição para ser ouvida e falada
todavia ela nunca será ouvida nem enunciada porque é a palavra de Cristo. Nós
mesmos esperamos por ela. A problemática de nossa existência é por demais
pesada para que não esperássemos pelo som da trombeta com a última pergun-
ta e resposta, vinda do além; contudo, e justamente por ser do além, vem por
entre o ruído tumultuoso das penúltimas perguntas e respostas.
Semelhantemente, a “Palavra de Deus” pela qual a Igreja é [ou foi] cons-
tituída é por demais importante, significativa e transcendental (ainda que ouvi-
da por ouvidos humanos e proclamada por humanos lábios!), para ser adminis-
trada a qualquer outro título que não seja na qualidade de trombeta da última
pergunta e sua resposta.
[A tradução inglesa escreve: “Não podemos suportar” (a palavra de Deus
— “ainda que seja ouvida por ouvidos humanos e proclamada por humanos
lábios! — salvo se for anunciada como a pergunta e resposta finais”.
Talvez pudéssemos interpretar o pensamento do A. resumindo assim: a
Igreja foi constituída por Cristo, o “Verbo” (a palavra) de Deus que se fez car-
ne; embora essa palavra nos tenha sido revelada em termos humanos, só a po-
demos entender, aceitar e suportar se ela, de fato, representar para nós a expres-
são de nossa derradeira pergunta a Deus e de sua resposta].
Perto está a palavra; para onde quer que olhemos está preparada a dina-
mite. Todavia se apesar de tudo, nada acontecer ou, se sempre acontecer algo
diferente; se não ousarmos correr qualquer risco (o que, aliás, seria o maior dos
riscos); se insistirmos em preferir mil dias fora, a um só dia dentro dos átrios do

585
10, 9-11 A Luz nas Trevas

Senhor; se jamais quisermos estar com as mãos vazias para agarrar aquilo que,
na realidade, somente mãos vazias podem segurar; se já temos as velas pandas
ao vento e as mãos postas no leme antes de sabermos para onde navegaremos;
se já iniciamos a construção da torre ou se já declaramos a guerra sem que
tenhamos orçado o custo das obras ou contado nossas tropas. — então não
podemos alegar que aquilo que deixamos de fazer foi impossível; [não pode-
mos dizer que nossa falha foi por motivo de força maior; que não estava em
nós, como criaturas humanas que somos, atender e prover o que se impôs,
finalmente, como elemento fundamental].
[Não podemos alegar que aquilo que deixamos de fazer foi o impos-
sível] pois mesmo o impossível, como tal, esta próximo de nós, à nossa dispo-
sição; impõe-se a nós, quer irromper por nossas portas a dentro: é mais possível
do que tudo quanto consideramos possível e viável: a luz brilha nas trevas!

Vs. 9 a 11 Porquanto se com tua boca confessares a Jesus como teu senhor e
creres em teu coração que Deus o acordou dos mortos, serás salvo. Pois a
fé que está no coração conduz à justiça e a confissão da boca conduz à
salvação. Ora, a Escritura diz: Todo aquele que nele crer não será enver-
gonhado! (Isa. 28, 16).

“O homem que estas coisas praticar, por elas viverá” (10, 5), é o que diz
Moisés a respeito da justiça [que vem segundo a lei].
Agora vejamos o que significa “praticar” [ou fazer] “estas coisas”.
Outra vez, [e sempre de novo] surge o FUTURUM AETERNUM como
promessa: SERAS salvo (!); não SERÁ confundido”; poderíamos juntar tam-
bém: “SERÁ a Igreja de Jacó.”
Qual é a condição que a Igreja tem para “praticar” a lei de maneira a
fazer jus à promessa?
A resposta; “Se confessares a Jesus como senhor e creres que Deus o
acordou de entre os mortos” serás salvo e, ainda: “Todo aquele que nele crer”,
não será confundido.
Portanto, a condição está nestas três proposições: Jesus o Senhor, a Res-
surreição e a Fé. É a mesma condição que Moisés já havia estabelecido; nada
mais do que a exigência de nos sujeitarmos à justiça de Deus, conforme sempre
o Soubemos e de cujo cumprimento sempre nos esquivamos (10, 3).
Não há outra palavra senão esta que Israel encontra em seu coração e
nos seus lábios, eternamente pronta, eternamente próxima, se Israel souber o
que significa ser “Israel” e quando a Igreja souber tomar a si mesma a sério
(10, 6-8).

586
A Luz nas Trevas 10, 9-11

Invisivelmente, no lado oposto à posição que a Igreja ocupa segundo a


sua possibilidade própria, [nos defrontamos comi o Senhor, a Ressurreição e a
fé, como sendo [a outra possibilidade,] a possibilidade de todas possibilidades
impossíveis, o abismo dentro do qual ninguém pode saltar e no qual, todavia,
todos temos de penetrar.
O SENHOR é a impreterível e imperiosa reivindicação; a RESSURREI-
ÇÃO é o que poderíamos designar como a componente singular, estranha e a FÉ
é a livre iniciativa do momento absoluto [da força dinâmica] da justiça de Deus.
E a existência real desse momento — em contraposição a todo mero idealismo—
que testifica ser Jesus, em sua singularidade histórica e sua temporalidade (8, 4)
esse SENHOR, o RESSURRECTO, aquele em quem se há de crer e a quem se há
de confessar. Por isto, “A FÉ QUE ESTÁ NO CORAÇÃO CONDUZ À JUSTI-
ÇA” e “A CONFISSÃO DA BOCA CONDUZ À SALVAÇÃO”.
A seqüência “coração” e “boca” nada significa e nem mesmo “coração”
e “boca”, (em si,] têm qualquer importância; (poderiam ter sido citados outros
órgãos, por exemplo os pés e as mãos, os olhos e os ouvidos) porém o que
importa é a ênfase que [a citação desses órgãos] dá à contingência, à incerteza
da existência humana e do modo de ser da criatura na totalidade de sua proble-
mática, [sua ambigüidade], contingência essa que contrasta com a
existencialidade, com a realidade, da conversão que, [esta sim] responde [à
incerteza da criatura neste mundo] porque se completa, se firma, em Jesus.
[A tradução inglesa escreve: “A menção de órgãos do corpo humano
neste contexto assegura a ênfase correta. Enfatiza a ambigüidade da contin-
gência da vida humana, para deixar claro que essa incerteza é respondida pela
correspondente existencialidade do ponto de conversão e decisão”.].
[E por ser em Jesus Cristo] esta realidade está ao alcance das possibili-
dades humanas, ainda que seja no seu limite extremo.
O homem que isto fizer, que confessar e crer — (e não nos esqueçamos
que este procedimento, esta ação, é invisível e inaudível!) — este viverá pela
justiça.
— Pela “justiça que vem da lei”?
— Sim, porque mediante a ênfase dada à existencialidade de Jesus, pela
boca que a confessa e pelo coração que nele crê, estamos também dizendo,
irrefutavelmente, Lei, Religião, Historia e Alma.
Todavia, ao enfatizarmos a existencialidade de Jesus como sendo a [exis-
tência real] do Senhor, do Ressurrecto, do “Credor” da nossa Fé, dissemos que
a justiça que usufruiremos quando o impossível tornar-se possível não virá da
lei mas da fidelidade de Deus. Portanto a exigência (ou a condição que diz
respeito à promessa, na realidade, diz respeito ao seu FUTURUM AETERNUM).

587
10, 12-15 A Luz nas Trevas

Agora, [de nossa parte] afirmamos e pensamos poder demonstrar que a


exigência imposta à Igreja com referência a esta promessa invisível não é des-
conhecida nem irrealizável.

Vs. 12 a 15 Pois não há diferença entre judeu e grego: o mesmo Senhor está
acima de todos, rico para os que o invocam, porque todo aquele que invo-
car o nome do Senhor será salvo. Porém, como poderiam invocá-lo se não
cressem nele? E como poderão crer nele se dele não tiverem ouvido? Mas
como poderiam ouvir sem pregador? E de que maneira se poderia anunciá-
lo sem ser enviado? Conforme está escrito: Quão oportuna é a aproxima-
ção dos pés daqueles que trazem boas novas! [Comparar com a tradução
de Almeida, notadamente quanto às formas verbais].

Visível como o Invisível, conhecido [quiçá reconhecido] como o Des-


conhecido, formulando e respondendo a derradeira pergunta, — assim se apre-
senta [e assim é] o Senhor Ressurrecto perante todos os que o invocam. Ele não
é um fundador de Igrejas e de novas religiões ao lado de outras ou em
contraposição [e oposição] a outras porém, ele é a justiça de Deus; por isso é a
chave que abre todas portas, é a onda que passa por sobre as edificações mais
altas, é o centro focal de todas as perspectivas; na total amplidão, altura e
profundeza de sua vida, ele nos fala de outra possibilidade absolutamente di-
versa, cuja existência testifica tratando da salvação e do cumprimento [da pro-
messa divina] que se anuncia em sua ressurreição. É por isto que Jesus é o fim
[o alvo, o cumprimento] da lei e da religião. Onde quer que se faça referência a
este fato [tão extremamente] contraditório [no contexto] de nossa existência;
onde sua realidade for pressentida e seu significado pelo menos investigado, aí
estão presentes a lei e a religião.
Existe, acaso, algum lugar onde isto não aconteça? Onde ocorreria se-
melhante pressentimento e desejo de entendimento sem que existisse também,
potencialmente, a invocação a Deus e, portanto, a invocação do nome do Se-
nhor que nos revela Deus como Deus?
Teríamos, acaso, consciência da fatalidade da morte que oprime os ho-
mens se não tivéssemos (a incompreensível!) consciência da (impossível!) pos-
sibilidade da ressurreição?
Acaso existiria a universal aflição humana, ou seria [essa aflição] reco-
nhecida e identificada se não existisse (também) a salvação universal da qual a
aflição é sombra?
Semelhantemente, também não existiriam nem “Leis” nem Religiões,
nem existiriam as perguntas a respeito do mais alto sentido oculto da vida que

588
A Luz nas Trevas 10, 12-15

se manifestam [dentro da lei e da religião] se não fosse invocado o Senhor que


no mais profundo reconditório é a resposta destas perguntas.
Deus respondeu ainda antes que os homens o invocassem e por isto,
somente por isto, [por Deus já haver respondido antecipadamente], o invoca-
ram os homens.
[Dizemos que] os homens estão enfermos em Deus porque é nele que
precisam convalescer. Este é o sentido da situação entre Deus e o ser humano,
conforme revelada em Jesus Cristo, que é o “Senhor” desta situação por força
de sua ressurreição e que, — na aflição de nossa existência, em nosso suspirar,
em nossas perguntas, em nossa procura e em nosso clamor, — revela que [jus-
tamente] a riqueza da salvação divina e de nossa convalescença [em Deus] é a
raiz oculta desta aflição e desse gemer. [Ao nos aproximarmos de Deus em
Cristo Jesus e à medida que formos sendo curados de nossas enfermidades,
sentimos o efeito de nossa queda; então torna-se, para nós, bem patente o efeito
devastador do pecado: a perda da comunhão direta; o aviltamento e a destrui-
ção da antiga imagem e semelhança a Deus. Este sentimento de perda, de culpa
e o anseio pelo bem que já agora amamos todavia ainda não praticamos, é o que
nos aflige e nos faz sofrer].
A situação é esta: “Não há diferença entre judeu e grego; o mesmo Se-
nhor está acima de todos, rico para os que o invocam, porque todo aquele que
invocar o nome do Senhor será salvo”; (Joel 2, 32) [e, também] “todo aquele
que nele crer não será confundido” (10, 11).
O que significa isto tudo com vistas à Igreja, a cada Igreja, senão que
toda Igreja que a si mesma tomar a sério será a Igreja de Jacó?
[Todavia,] quando se diz a Israel [que] “TODO AQUELE” [que nele
crer será salvo] e quando se afirma que não há diferença entre judeu e grego,
trata-se de promessa ou de julgamento?
Seja como for, estas duas afirmações constituem o mais expressivo co-
mentário de Paulo aos conceitos de FÉ e JUSTIÇA pois elas atestam, — quer a
Igreja goste, quer não — a ilimitada liberdade de Deus, segundo o sentido
decisivo que lhes dá a morte de Cristo sobre a cruz.
Vale a pena invocar a este Senhor, o “Senhor que está acima de todos,
rico para todos os que o invocam”, sem distinção entre judeu e grego porquan-
to, ao justificar o judeu, justifica a si mesmo porém, ao assim justificar-se não
se compromete com o judeu pois também se justifica ao justificar o grego,
porque ele é Deus perante todos os homens.
É assim que Deus se revela em Jesus, como o Senhor.
Se a Igreja for sábia ela se agradará disto pois, sendo assim, ela não é
excluída por este Senhor quando o invocar por quanto ele está acima de todos e

589
10, 12-15 A Luz nas Trevas

de todos é o Senhor; se ela for sábia, ela o invocará independentemente do que


possa acontecer.
Mas se a Igreja for louca, então ela se desagradará dessa revelação de
Deus em Jesus Cristo; — [desagradar-se-á por Deus não fazer distinção entre
judeu e grego, entre o homem da Igreja — desta ou daquela igreja — e o ho-
mem do século ou de outra igreja], — pois nesta condição, [ante a inexistência
de privilegiados] ela já não está automaticamente incluída [na aceitação divi-
na], nem mesmo por força de sua invocação; se a Igreja for louca, por temor,
ela deixará de invocar a este “duro” Senhor.
Contudo, Deus é invocado tal qual ele é! Invocado quer dizer conheci-
do, crido, temido e amado existencialmente; [ de todo coração, de toda alma, de
todo entendimento]. [Invocam-no] as pessoas que esperam, submissas, pela
justiça de Deus, pela vida eterna (10,5) e pela salvação eterna (10,9 e 13), para
não serem confundidas eternamente (10, 11).
Estão (tais pessoas) na Igreja ou fora dela? Ou, acaso, são parte de algu-
ma Igreja nova, só deles? Ora, esta pergunta é inconseqüente e é justamente
isto o que preocupa a Igreja.
(Ao mencionarmos aqueles que SEM LEI esperam em Deus], não nos
estamos referindo aos poucos “pagãos” conversos em Roma, Corinto e Éfeso;
estes poucos são apenas sinal de conversão totalmente diferente; também não
nos referimos a pagãos “nobres” quais Sêneca [por exemplo] e seus pares; não
nos referimos a piedosos filhos do mundo, nem a desconhecidos ateus cristãos
e semelhantes, pois estes todos são apenas sinal [ou testemunhas] da luz na
qual estamos em Cristo, independentemente de toda e qualquer retidão humana.
Não falamos de grandeza com a qual a Igreja pudesse concorrer ou pela qual
ela pudesse aferir-se, quiçá grandeza que a Igreja pudesse medir e contar por si.
Falamos do REINO DE DEUS!
Os gentios crentes que, dizemos, invocam a Deus, são quantidade
escatológica; não são a reunião, a somatória de indivíduos psicologicamente
falando mas a totalidade da grandeza potencial que abrange todos indivíduos,
sem qualquer consideração quanto à vinculação que tenham com a Igreja.
O Senhor conhece os seus; para estes não é coisa impossível submeter-
se [a Deus e à sua lei]; eles têm compreensão da realidade de que Deus os
conhece e sabem o que isto significa.
Esta é a gente que colocamos ante a Igreja. (Quem é parte dela? Quem
não o é?)
Também a Igreja pode submeter-se à ordem divina e preencher estes
requisitos sem nada deles tirar nem lhes acrescentar; sem suplementar — nem
anular — o mistério da predestinação por meio de alguma “ordenação de salva-

590
A Luz nas Trevas 10, 14-15

ção” — [a precedência de uns sobre outros]; também a Igreja pode colocar-se


sincera e reiteradamente na fila dos sucessores do incircunciso Abraão (4, 9-
12) e ter forças suficientes para tomar consciência de sua fraqueza [e confessá-
la] perante Deus.
Portanto: “Como poderiam invocá-lo se não cressem nele? E como po-
derão crer nele se dele não tiverem ouvido? Mas como poderiam ouvir se não
houver pregador? E de que maneira se poderia anunciá-lo sem ser enviado?”
A invocação [ao nome] de Jesus, o Senhor, emerge do próprio lamento
da criatura desde a profundeza de sua aflição, o que se manifesta pela
multiplicidade das leis [religiosas] e religiões existentes [no mundo]. Seme-
lhante lamento não existiria se a noção daquilo que é invisível e que está além
de tudo quanto podemos constatar não resultasse do conhecimento que a cria-
tura tem a respeito de Deus e que é a condição prévia que se origina totalmente
[na própria liberdade] de Deus. Porém semelhante conhecimento a respeito de
Deus é FÉ, em sua forma absolutamente recôndita.
Esta fé, [por ser secreta, íntima, não exterior,] produz [frutos igualmente
“discretos” de índole modesta, ocultos e moderados, quais sejam] o OUVIR, o
PROCLAMAR e o COMISSIONAMENTO de mensageiros. Em outras pala-
vras, esta FÉ cria a possibilidade, ou melhor, cria a realidade da Igreja de Jacó,
cujos ouvidos ouvem a Palavra de Deus e cujos lábios falam a Palavra do Senhor.
Sabemos de que possibilidade estamos falando: falamos do “tempo acei-
tável”, do tempo final, do tempo da graça e do julgamento. Falamos do tempo
e da hora de Deus, quando se aproximam “os pés daqueles que trazem as boas
novas”; as boas novas do Reino de Deus, do Poder e da Glória, do lançamento
[da implantação] do novo sistema de coordenadas da verdade, que faz nítida
separação entre o homem e Deus a fim de colocar os homens, lado a lado,
perante Deus; a boa nova do NOVO ISRAEL [de Deus] ao qual ninguém per-
tence de direito mas, todos, mediante a misericórdia [divina].
Se Deus for o verdadeiro Deus, como não se trataria da “hora aceitá-
vel”? E se esta for a hora aceitável, como haveria Deus de deixar de enviar os
seus arautos? E como não haveria de ser anunciado, ouvido, crido e invocado o
nome do Senhor?
Jamais — em tempo algum — houve [ou há] a mínima dúvida sobre a
oportunidade do tempo aceitável para contar com a justiça de Deus e portanto,
com sua ira que a todos humilha [ou] com sua misericórdia que a todos visita.
(... “eis que estou à porta e bato”, (Apoc. 3, 20)... “eis agora o dia da salvação”.
(II Cor. 6, 8).
A dúvida que existe é [exclusivamente a respeito de nós mesmos]: Se
somos as pessoas certas [para sermos os arautos de Deus].

591
10, 16-17 A Luz nas Trevas

Não há dúvidas quanto ao brilho da luz nas trevas mas, sim, se justa-
mente a Igreja — a descendência de Abraão — vê essa luz.

Vs. 16 e 17 Todavia, nem todos obedeceram ao evangelho, pois Isaías diz:


Senhor quem creu em nossa pregação? (Era preciso que a fé viesse pela
pregação, porém a pregação pela palavra de Cristo!)

“Todavia, nem todos obedeceram ao evangelho”:


A palavra (o “verbo” que se fez carne] que é o objetivo da lei, exige
obediência. “Aqueles que praticam a lei serão justificados”.
Aqui se separam os espíritos. É aqui que a aflição da Igreja se manifesta
como sua culpa e sua culpa passa a ser a causa de sua aflição. Então a condição
universal descoberta mais acima (10, 12 ss) — [a condição da igualdade dos
homens perante Deus, que não faz acepção de pessoas] —já não pode ser con-
fundida com o universalismo racional [que pretende estabelecer] a condição da
racionalização do “A PRIORI religioso”, algo que constituísse a base — ou a
precedência — de todas religiões chamadas positivas ou religiões do bom sen-
so (o que, na realidade, é conflitante com o espírito do racionalismo genuíno!)
Dizemos [ou está escrito]: “Todo aquele que invocar o nome do Senhor
será salvo”! (10, 13); portanto a universalidade da graça restringe-se a TODO
AQUELE que invocar [ou melhor, somente ao que invocar] o nome do Senhor.
Esta é a dispensação da graça e a revelação de Deus.
A condição deste universalismo [que atinge “somente” aos que crêem]
significa a DESTRUIÇÃO (e não a CONSTITUIÇÃO!) de todas religiões hu-
manas; a proclamação da absoluta exclusão de qualquer precondicionamento
em questões decisivas, a oposição a toda prioridade religiosa: Deus é livre!
É por isto que o Evangelho é a boa nova da Salvação pois ele contrapõe
a absoluta soberania de Deus a todas ligações, mediações e pressuposições
humanas, (ainda que se tratasse dos pensamentos mais transcendentais!)
Em última análise, foi com boa razão que Kant não escreveu uma “Crí-
tica da Razão Religiosa” e não firmou conceitos sobre a religião racional,
semelhantemente ao que fez em outras obras suas [entre elas a “Crítica da Ra-
zão Pura”, a “Crítica da Razão Política” e a “Crítica do Discernimento”; toda-
via ele escreveu “A Religião Dentro dos Limites da Razão Pura” que é prova-
velmente a obra a que Barth se refere quando diz que, “em última análise Kant
teve boas razões para não estabelecer normas ou conceitos de racionalização da
religião segundo critérios do bom senso filosófico].
Do ponto de vista humano, [esta prudência, ou abstenção, de Kant] só
pode ser atribuída ao reconhecimento da liberdade de Deus, por parte do filósofo

592
A Luz nas Trevas 10, 16-17

— (reconhecimento esse que é mais pronunciado [mais vigoroso] em Kant do


que em seus detratores religiosos!)
Liberdade de Deus exige obediência e obediência requer arrependimen-
to. [Para que a liberdade de Deus tenha livre curso no coração humano, a cria-
tura precisa obedecer à inspiração divina].
Arrepender-se significa aderir à divina, oportuna e extrema possibilida-
de, [aceitá-la] humilhando-nos ante a ira e a misericórdia de Deus; significa
estar aberto à abordagem da mais fervorosa e mais singular das reivindicações
que “O Senhor” faz ao ser humano, muitas vezes na forma, quiçá, estranha da
“ressurreição”; outras vezes, talvez, na inexplicável livre iniciativa da “fé”.
A obediência [da criatura ao Criador existe e] subsiste quando o homem
deste mundo, qual o conhecemos, encontra um ponto de penetração, um vazio,
no qual a nova criatura pode respirar e viver.
A obediência se traduz na compreensão do que seja próprio; na apreen-
são do sentido do que seja especificamente divino, do que seja o Deus total-
mente diferente, o Deus — Rei, Monarca, Senhor Absoluto. [No original está
“Deus Déspota”].
Obediência, portanto, significa “adesão partidária” [fidelidade e disci-
plina partidárias] — em qualquer circunstância: disposição para sacrificar a
própria liberdade de movimento à movimentação divina; entrega de todas as
coisas importantes deste mundo, de todas nossas exigências, nossas pretensões
e reivindicações, à morte.
[Obediência significa] estar pronto a abrir mão de tudo “isto e aquilo”,
do “aqui e acolá” em que estamos envolvidos; [obedecer significa] estar disposto
a abandonar empreendimentos, mudar de hábitos de trabalho, romper compro-
missos, afastar-se de ligações [alianças ou associações e, por que não? em ca-
sos extremos, romper até mesmo os laços de família...]; significa rejeitar [ou
aceitar] riscos; deixar que o pêndulo que oscila repouse em seu ponto morto e
também permitir que oscile de um ponto ao outro, percorrendo sempre de novo
o mesmo caminho, para frente e para trás, sem jamais repousar; (obedecer,
significa enfrentar a vida com constante e igual seriedade (e responsabilidade),
qualquer que seja o ponto de nosso percurso, a situação em que nos encontre-
mos; significa suportar os golpes que Deus nos enviar em toda sua amplitude,
(sabendo em quem temos crido!), jamais esquecendo, nem perdendo a noção
de que, em Deus, todas as coisas estão sujeitas ao PARE! divino [e que todas as
coisas concorrem, conjuntamente, para o bem daqueles que amam a Deus!].
Tal obediência absoluta estaria de acordo com o Evangelho; porém, quem
há que obedeça assim? Com absoluta certeza, nem estes nem aqueles; certa-
mente não há cifras, (não são “tantos e tantos”).

593
10, 16-17 A Luz nas Trevas

— [Acaso os que assim obedecessem seriam] a Igreja de Jacó, [ou] os


gentios crentes que “sem circuncisão” seguem as pegadas da fé que nos legou
Abraão (4, 12)? Quem são eles? Onde estão? Acaso seriam a Igreja que conhe-
cemos, a Igreja de Esaú?
— Deveria ser assim.
A “Palavra de Cristo” está próxima; dele vem a mensagem que os “arau-
tos” anunciam; pela mensagem percebe-se a fidelidade de Deus e dela deveria
nascer a fé dos que são obedientes; porém, nasce ela?
[Os arautos] proclamam [a mensagem] sempre estranhamente abandona-
dos, solitários, perplexos, inúteis, intimamente perturbados, não somente perante
seus ouvintes mas, verdadeiramente (e não em último lugar,) perante eles mes-
mos: “SENHOR, QUEM CREU EM NOSSA PREGAÇÃO?” (Isaías 53, 1).
Onde (ou quando), pela ação da Igreja, é a criatura levada, em temor e
tremor, ao arrependimento, ao respeito a Deus, ao estabelecimento e à preser-
vação da distância que medeia entre Deus e os homens?
Onde ou quando, [mediante a Igreja] é a pessoa levada a desmascarar o
“indivíduo religioso” [como tal]?
Acaso podemos dizer que a Igreja alivia [produz a relaxação] da tensão
(que o “sistema” impõe [aos fiéis] ou então, por outro lado, que ela desperta
aquele movimento [vivo e eficaz] que não permite [ao crente] parar, mesmo
quando ele tem a “felicidade” de encontrar algum esconderijo [ou pretexto]
para se acomodar?
Será que a Igreja nos conduz, entre [surpresos ou] assustados e felizes,
a essa permanente “escuta atenciosa” — permanente, por ser fundamental e
básica? Ou então, [acaso ela nos dá forças] para suportar e resistir
irreprochavelmente às perplexidades que Deus prepara para nós?
Para caracterizarmos melhor a enfermidade da Igreja, convém que men-
cionemos alguns de seus sintomas:

Acaso não está a Igreja, preferentemente, interessada em fugir ao


rompimento [dos liames do mundo], interessada em evitar o salto [no
vazio da fé], em [procrastinar a] renúncia e o sacrifício de nossas conve-
niências materiais?
[Acaso não nos sugere a Igreja que procuremos agradar a todos],
que acenemos à fidalguia e à plebe, às classes cultas e ao proletariado, à
juventude e à burguesia, aos contemporâneos e aos circunstantes, (son-
dando e adivinhando o que uns e outros têm a dizer, [quando não o que
querem ouvir,] o que querem fazer, se [acaso] entendem o que a Igreja
prega ou se acaso não o conseguem entender?

594
A Luz nas Trevas 10, 16-17

Neste seu afã a Igreja revela surpreendente habilidade para aplicar


[e adaptar] conotações históricas e psicológicas à realidade divina; habili-
dade para apresentar paralelismos interessantes — verdadeiras árvores
genealógicas espirituais — [relações, correlações,] dependências e dife-
renciações notáveis [formando e] formulando os chamados “tipos” [ou
modelos] para descobertas, [deduções] e achados, fazendo “abaixar”
cuidadosamente os gatilhos que [acaso] estejam perigosamente armados.
A Igreja tem a elasticidade de uma bola de borracha para absorver os
mais duros impactos, [os mais severos castigos] que lhe sejam impostos
[e os maiores fracassos] mediante admiráveis considerações sobre a alta
significação religiosa [e o alcance espiritual] de tais revezes e golpes.
A Igreja consegue fazer-se tão desencorajadoramente “amiga”, “leal”
e “correta” que até mesmo Elias ou Amós seriam transformados em
figuras “inofensivas”, [inócuas, sem repercussão, anuladas,] se houves-
sem de pregar as suas mensagens nos tempos que correm.
A Igreja tem fabulosa flexibilidade [e habilidade] para prontamente
transformar toda — absolutamente TODA, [mesmo a mais minúscula]
— fagulha da impossível possibilidade que aparecer, na possível possi-
bilidade de “um movimento” ou de Escola [teológica ou doutrinária],
em “linha” [de pensamento] ou em “círculo” [de seguidores]; [a Igreja
tem “facilidade” para] transformar [a mais ínfima] fagulha, na “mais
recente” ação e proclamação [da verdade divina], animada por Deus
mesmo, visando à conversão [do mundo] — [ação e proclamação] —
que sempre quando possível, contarão com a publicação de algum livro
especial cujo título ou nome dará indicação segura da sua presunção e
de seu fracasso final.
A Igreja tem o “dom especial” de promover as pessoas, transfor-
mando prontamente em líder todo indivíduo que pareça perceber um
pouco mais do que alguns outros, anulando-o dessa forma.
Finalmente, [mas não com menos significação] a Igreja tem a habi-
lidade de descobrir, sempre e sempre, um refúgio no qual a criatura já
não precisa recear sua supressão, onde a pessoa possa ser “neutra”, onde
nada mais precisa entregar [ou renunciar]; um refúgio onde, em sã cons-
ciência [o crente] possa estar satisfeito com sua própria retidão.

Em tudo isto domina a idéia generalizada que a Igreja “naturalmente”


não é a “última palavra”; [o crente “acha” que para ele a Igreja não constitui]
um fim em si mesma e, assim pensando,] não percebe que este seu raciocínio é
mera ilusão que a realidade desfaz.

595
10, 16-17 A Luz nas Trevas

[Esta longa enumeração dos sintomas da enfermidade da Igreja é posta


nestes termos pela Edição Inglesa:

“Como é que a Igreja continuadamente evita a ruptura, o salto, o


sacrifício que Deus demanda?
“Por que fica a Igreja perpetuamente com o olho em seus contempo-
râneos, na nobreza, no povo, nas classes cultas, no proletariado, na ju-
ventude, na burguesia, perguntando-lhes o que têm a dizer, o que farão
da Igreja, se hão de entendê-la ou deixar de a atender?
“Por que é a Igreja tão incrivelmente hábil para descobrir naquilo
que é divino algo que possa ser descrito historicamente ou analisado
psicologicamente?
“Como é fácil à Igreja achar e estabelecer paralelos interessantes!
Criar linhagens de experiência espiritual, notar as diferenças e ilustrar
as dependências entre uma e outra religião; revelar ou inventar “tipos” e
depois esparramá-los, como se fossem os chumbinhos de um tiro de
escopeta.
“Que estranha elasticidade tem a Igreja quando, atingida em plena
face por essa sua característica, fala complacentemente do valor religio-
so da reprimenda!
“Quão desoladoramente correta e amiga sabe a Igreja fazer —se!
Mesmo um Amós ou um Elias que surgisse como pregador moderno
seria tornado totalmente inofensivo.
“Com que surpreendente facilidade [a Igreja] transforma o mais leve
traço da impossível possibilidade de movimento, em escola de pensa-
mento, em ponto de vista ou em associação, — em cada um deles pre-
tendendo que este ou aquele refrão represente o mais típico entusiasmo
moderno por Deus; cada um tem a sua imprensa que faz seu comércio
sob algum título indicativo de alguma acomodação do Evangelho e que
também mostra o [seu] fracasso certo!
“Por que tem a Igreja tanta pressa em amordaçar qualquer pessoa
que mostre mais inteligência transformando-a imediatamente em líder?
“Finalmente, de onde vem a habilidade que a Igreja tem de descobrir
refúgios onde os homens não mais precisem temer sua dissolução, onde-
libertos da necessidade de se defenderem — possam usufruir a seguran-
ça de sua própria retidão?
“Tudo isto é compatível com a mui devastadora ilusão de quase
todos, de que a Igreja não é a coisa suprema, nem é um fim em si
mesma”.]

596
A Luz nas Trevas 10, 16-18

[Ao apresentarmos esse quadro de sintomas] falamos da única Igreja


que conhecemos — no passado, no presente — e [sempre] conheceremos neste
mundo; daquela Igreja que nunca foi nem será substancialmente diferente; da
Igreja que, em todos esses sintomas, apenas deixa transparecer que ela verda-
deira e inflexivelmente é a Igreja de Esaú, a Igreja da incredulidade; a Igreja
que é e será daqueles que “não ouvem”: falamos da Igreja (e insistimos nisto),
com a qual nos declaramos solidários, (9, 1-5 e 10, 1). Todavia nem por isso
podemos deixar de dizer, ou melhor, por isso mesmo precisamos dizer que a
aflição da Igreja é a sua culpa e que esta sua culpa está na persistência da Igreja
em passar ao largo do sofrimento a que está sujeita pelo mistério de Deus.
É preciso lembrar que o sintoma de todos sintomas, [o sintoma centra]
da enfermidade da Igreja,] está contido no fato inconteste de que não foi o
mundo, mas a Igreja, quem crucificou Cristo.

V. 18 Porém, digo eu, não haveriam de ouvir? Sim, francamente: por todo
mundo se propagou o seu eco e as suas palavras até os confins da terra!
(Sal. 19, 4).

Deveria a Igreja ser desculpada, [sua culpa ignorada ou, pelo menos,
explicada e portanto justificada] mediante a alegação de que ela “ainda não
ouviu”, como se nem sequer fora possível ela já ter ouvido?! Como se a “Pala-
vra de Cristo” a [revelação de Deus] fosse alguma novidade da qual se poderia
ter ou deixar de ter notícia; fosse carisma, [dádiva divina, privilégio] de gente
[de outra parte] que mora algures, em algum recanto do mundo, ou mesmo em
outra rua? Como se alguém pudesse afirmar que se trata de tema absolutamente
novo? Como se existisse no mundo coisa mais divulgada, [mais anunciada,
propagada, de conhecimento mais generalizado] do que [a existência do Deus
criador do universo, que é] o “Deus Desconhecido”?!
[Que a Igreja pudesse ser desculpada] como se conhecesse outras solu-
ções [ou alternativas que melhor resolvessem o problema de nossa vida e por
isso nos levasse a ignorar a “Palavra de Cristo”] quando, na realidade apenas
sabemos “que assim não pode continuar”?!
[Poderia a Igreja ser desculpada] como se teríamos informação mais
segura se acaso hoje descesse um anjo do céu e, batendo na mesa, em voz
tonitroante nos dissesse isso mesmo que reiteradamente temos ouvido?!
Não! [já] ouvimos [a Palavra de Cristo] e estamos perfeitamente enqua-
drados; é-nos impossível pretender que não a tenhamos ouvido.
[A tradução inglesa escreve assim a exegese do versículo 18: E possível
retirar a culpa da Igreja dizendo que ela não ouviu, não ouviu ainda? A PALAVRA

597
10, 19-20 A Luz nas Trevas

DE CRISTO seria então uma novidade que alguns teriam ouvido e outros não.
Seria uma dádiva dispensada aos que moram em algum canto especial do mundo,
em alguma outra rua. Então existiria mais algum conhecimento que não temos
ainda. Haveria mais alguma coisa que pudéssemos conhecer se um anjo descesse
do céu hoje, golpeasse a mesa e anunciasse a novidade em voz de trovão. Mas
não é assim. Quem quer que sejamos, ouvimos a PALAVRA DE CRISTO e
estamos em foco. Descobrir que não a ouvimos é, para nós, objetivamente
impossível”].

Vs. 19 e 20 Mas, digo, não teria Israel entendido? Já o disse Moisés: Farei
com que tenhais ciúmes de um povo que não é povo e provocarei vossa ira
contra um povo sem entendimento.
E Isaías atreveu-se a ir mais longe e disse: Permiti que me encontras-
sem aqueles que não me procuravam e revelei-me aos que não pergunta-
vam por mim. (Deut. 32, 21 e Isa. 65, 1).

Dar-se-ia o caso que a culpa deveria ser desculpada porque, embora


tivéssemos ouvido bem, não pudemos entender?
O que é entender? Acaso é estar em algum estado mental apropriado?
Acaso “entender” é dispor de tempo? Ou estar adequadamente amadurecido?
Ou ter força moral, dotes dialéticos ou fé vigorosa? Onde estão os que assim
entendem, na invisível Igreja Gentílica de Jacó? [A tradução inglesa muda li-
geiramente a pergunta escrevendo: “Onde se encontra tal entendimento? Have-
remos de descobrí-lo em alguma desconhecida Igreja Gentílica, de Jacó?]
Existe, acaso, pelo menos um único “entendedor”?
Quem há que tenha condições suficientes e disponha de tempo, maturi-
dade, forças, dotação superior e fé, quando se trata de Deus — (quando somos
aferidos e conferidos por Deus)?
Acaso não conseguimos compreender que se trata, justamente, de en-
tender que não entendemos? [Acaso não conseguimos compreender] que pre-
cisamente o povo que não é povo, o povo sem entendimento, é a nação daque-
les que entendem? (Acaso não conseguimos entender) que Deus em sua inson-
dável liberdade e em sua misericórdia incondicional permite que o encontrem
aqueles que não perguntavam por ele e a esses se revela?
[Acaso] é necessário ousar repetir aquilo que Isaías teve a coragem de
dizer?
O entendimento de que aqui se trata não é algum alcandorado cume de
introspecção religiosa ainda por galgar, nem é o último impulso da fé [ou da

598
A Luz nas Trevas 10, 21 e 10, 4-21

crença] mas é a compreensão de que, em nossa insensatez, somos compreendi-


dos por Deus.
Não haveremos de entender isto?

V. 21 De Israel, porém, ele disse: Durante o dia todo estendo a minha mão a
um povo desobediente e contradizente. (Isaías 65, 2).

Fazemos ponto. Culpa não é inocência. Culpa quer dizer: “Podemos,


mas não queremos”! Não queremos renunciar a nós mesmos. Não queremos
descer do cume que escalamos; não queremos que novo sistema de coordena-
das entre em vigor; queremos permanecer nas cabanas e tendas de nosso arraial
e não queremos ser conduzidos ao encontro com Deus. (Exo. 19, 17).
A inclinação natural da criatura humana e da Igreja parece ser a de per-
tinaz e desesperançada contradição a Deus.
A luz brilha; porém ela brilha verdadeiramente na escuridão.

Comentários: 10,4-21

1. Onde escrevemos: “A mais corrompida Igreja clerical” o A. usa ex-


pressão pejorativa e mais dura que, aliás, já empregou em outra parte.
Escreve o que talvez, se pudesse traduzir como a mais corrompida
igreja de padrecos.
Penso que Barth quer referir-se a igrejas minadas e dominadas
por dirigentes essencialmente legalistas e casuístas; não se refere a
pastores, pois também ele o é; não quer atingir aos clérigos desta ou
daquela Igreja pois aqui, acolá e em toda parte são muitos os que
correm em busca de “uma lei de justificação”. Parece-me que o A.
refere-se exclusivamente à Igreja de Esaú, — a Igreja visível que,
liderada por seus sacerdotes levou Cristo à cruz! Todavia, em tal Igre-
ja, a despeito de sua má liderança e do ensino impróprio, se e quando
nela ocorrer a renúncia às glórias e aos privilégios do mundo para
cuidar apenas da mensagem da cruz, aí e então, atrás e acima dela far-
se-á sentir a presença da Igreja invisível.
2. Barth escreve que a Igreja prontamente anula aqueles que sobressaem
de alguma forma, transformando-os em líderes.
É certo que nossas Igrejas Evangélicas têm grande “vocação” para
erigir os que nelas se destacam, em líderes: oficiais da Igreja, profes-

599
10, 4-21 A Luz nas Trevas

sores da Escola Dominical, pregadores. É possível que tendência se-


melhante se manifeste agora — (com cursilhos, laicato, etc.) também
nas igrejas católicas onde, aliás, sempre existiu na categoria de “pen-
sadores” e “escritores”.
Ora, a entrega da liderança aos mais aptos não me parece ser con-
denável e tal promoção não silenciará as pessoas nem as anulará an-
tes lhes dará tribuna maior e auditório mais amplo. Estará errada,
porém, se a escolha for feita pelo critério das obras, pela cultura, pela
eloqüência, pela representatividade no mundo. Estas qualidades po-
dem ser importantes e até desejáveis, como acessórias, todavia care-
cem de valor na seara divina e quando os crentes forem guindados à
liderança, em função dessas características visíveis, o seu trabalho
fica anulado; sua voz perde sonância e não ressoa. Com tais líderes, a
Igreja passa a correr ao encalço de “uma lei de justificação”.

“Une o meu coração ao


temor do Teu nome”.
(Sal. 86, 11)

600
Capítulo XI

A ESPERANÇA DA IGREJA

O Capítulo foi subdividido pelo Autor em três partes:

• A Unidade de Deus - Vs. 1 a 10


• Uma Palavra aos de Fora - Vs. 11 a 24
• O Alvo - Vs. 25 a 36

Neste Capítulo Barth conclui o seu estudo sobre a Igreja conforme o


Apóstolo a apresenta nos capítulos IX a XI de sua Epístola aos Romanos.
Talvez possamos dizer que em sua exegese o A. escreve a trilogia da
Igreja: sua aflição, sua culpa e sua esperança.
A aflição se gera do permanente potencial de conflito entre a Igreja de
Jacó e a Igreja de Esaú, aquela elevando o espírito aos páramos celestes e esta,
firmemente apegada ao mundo, prega a implantação da Igreja invisível mas, a
cada passo, a cada ensaio menos ou mais vigoroso para desincumbir — se de
sua missão, recai ao solo para seu correspondente escândalo e seu escarmento.
Prenuncia a Igreja de Jacó porém vive a Igreja de Esaú. Esta é sua aflição.
Na aflição, toma vulto a sua culpa. Quer justificar-se perante o mundo e
perante Deus; põe-se a ensinar; quer ser exemplo quer ser fonte de benção e,
por isso tudo, busca a si uma lei do justificação. Ensina que de graça somos
salvos mas sugere (e por vezes até afirma categoricamente) que somente dentro
de suas quatro paredes se encontra a salvação. Ensina que a salvação é pela fé,
que sem fé é impossível agradar a Deus mas, como é morta a fé sem obras,
insiste nestas. E são obras de toda sorte: sociais, políticas, beneficentes, de
catequese, de proselitismo, missionárias, eclesiásticas, paraeclesiásticas,
ecumênicas e tantas outras.
A sua culpa é que ela se esquece que uma só coisa e necessária...
Todavia, a aflição vem de Deus e a culpa existe unicamente perante
Deus; é por isto que a única e toda esperança da Igreja, está em Deus. É este o
tema deste capítulo.

601
11, 1-2 A Unidade de Deus

Deus é um só, no tempo e no espaço. Para Filo (Philo) Deus não pode
ter “qualidades” pois qualquer atributo que se lhe desse o restringiria, o limitaria
e o materializaria. Para Barth é preciso usar de analogias humanas para explicar
Deus; e Deus, que é absolutamente ABSCONDITUS, revela-se aos homens
que sabem ver, ouvir e entender, mostrando sua glória, sua majestade, sua retidão,
sua liberdade, sua perfeição, sua severidade, sua justiça, sua bondade, sua
compassividade, de multiformes maneiras ao alcance do entendimento humano.
Revela-se na grandeza das leis que regem o Universo desde o átomo ao
macro-cosmos; revela-se em sua santa Palavra; na vocação de homens e mu-
lheres fiéis a seu nome; na dádiva de seu Filho Unigênito; revela-se na dupla
predestinação do homem: sua rejeição e sua Eleição.
Rejeitando e elegendo a todos encerra na culpa para que vejam a malda-
de de seus caminhos, se convertam e voltem ao Senhor, cujo perdão é maior,
mais forte, mais poderoso do que todo um universo de pecado.
O mesmo e único Deus que provoca a aflição, que expõe a culpa e que
castiga rejeitando, é o Deus que elege para a vida eterna. Esta é a primeira parte
da Esperança da Igreja.

A UNIDADE DE DEUS (11, 11-24)


Vs. 1 e 2 (primeira parte) Agora digo: teria Deus banido seu povo? Impossível!
Pois eu também sou israelita, do tronco de Abraão da tribo de Benjamin. A
seu povo, que Deus reconheceu, ele não baniu.
[A tradução de Almeida escreve: “Pergunto pois: terá Deus, por ventu-
ra, rejeitado o seu povo? De modo nenhum: porque eu também sou israelita, da
descendência de Abraão, da tribo de Benjamin. Deus não rejeitou o seu povo a
quem de antemão conheceu”].
“Teria Deus banido [rejeitado] seu povo?”
“A luz resplandece nas trevas”, O que quer dizer a segunda parte das
palavras de João” “as trevas não a apreenderam”. [João 1, 5]; ou então, segun-
do interpretação moderna e melhor: “As trevas não a sobrepujaram”. [Almeida
registra:... “e as trevas não prevaleceram contra ela”.]
No entanto aquela primeira maneira de escrever parece mais próxima da
realidade; acaso não é certo que precisamos ater-nos a esse duro NÃO! que, de
fato, e na medida que o podemos perceber, constitui a palavra final da criatura
humana? [Acaso não é certo que] a Igreja volta persistentemente ao ateísmo,
que se revela como a própria essência de seu ser, toda vez que ela se vê obriga-
da a decidir pró ou contra seu verdadeiro tema? [Não é certo que a Igreja está
sempre inclinada] a fixar-se naquele “satanismo” do Grande Inquisidor que,

602
A Unidade de Deus 11, 1-2

embora conhecendo a Deus — por amor aos homens — não o quer reconhecer
e, assim, prefere mandar matar o Cristo para não dar livre curso à Palavra de
Deus, [para não permitir que Deus fale aos que “não são” como se fossem]?
Teria Deus aberto inutilmente os seus braços a seu povo? 510, 21). Aca-
so acontece o que é inacreditável e Deus seja traído sempre de novo na própria
Igreja — [e qual a Igreja que não o trai] — deixando de ser servido justamente
por aqueles que pretendem servi-lo? [Traído por aqueles que] em sua [pretensa]
adoração negam e desmentem com toda a arte e força a seu alcance que Deus é
Deus. Onde haverá pois, ainda, esperança? Como se poderá progredir em qual-
quer direção, partindo de semelhante ponto morto? Haverá alguma esperança
para criaturas que trucidaram e sepultaram a esperança com suas próprias mãos?
Há alguma esperança para Judas Escariotes? Na verdade, esta pergunta precisa
ser feita, por mais amarga e por mais opressiva que seja; jamais pode ser esque-
cida; se houver alguma esperança ela precisa permanecer presente como fogo
consumidor de todas esperanças ilusórias.
“Teria Deus abandonado seu povo?” Sem o pano de fundo desta per-
gunta, a esperança não seria esperança.
Como porém, haveria aqui alguma esperança? [Contudo] de onde toma-
ríamos ânimo para responder com um “IMPOSSÍVEL”! a essa pergunta tão
aniquilantemente próxima? Com certeza não seria de algum argumento que
mais uma vez falasse a favor da criatura humana; certamente não seria de algu-
ma outra possibilidade disponível ou ambicionada semelhante às que a Igreja
oferece. Portanto [o ânimo para afirmar esse “IMPOSSÍVEL”!] não virá nem
de uma Igreja melhorada [quiçá reformada ou em constante reformação] nem
de alguma nova Igreja.
A possibilidade alternativa que os homens e a Igreja de fato têm — e
cuja negligência é sua culpa — é a invisível possibilidade divina; toda esperan-
ça que fundamentarmos em coisas humanas, visíveis, [ainda que sejam as] mais
aperfeiçoadas, aumentará essa culpa automaticamente e jamais a suprimirá.
Este “IMPOSSÍVEL!” só pode ser baseado no próprio impossível, isto é, só
pode ser firmado em Deus.
Fundamentamos (este “IMPOSSÍVEL!”) quando encabeçamos a nossa
argumentação com este esclarecimento: “Pois também eu sou israelita, do tron-
co de Abraão, da tribo de Benjamin”. (Ver também 9, 1-5 e 10, 1).
Também eu sou o Grande Inquisidor, o traidor, o recalcitrante e desobe-
diente; sou aquele que, sob o pretexto de servir a Deus e aos homens e de salvar
os homens para Deus a todo custo, [como] o multidotado, ouviu e entendeu
integralmente [isto é, ficou absolutamente inteirado] do que se trata e que, no
entanto, utilizou e se serviu de tudo quanto entendeu e ouviu para esconder de

603
11, 1 A Unidade de Deus

si mesmo e dos outros que aqui se trata [exclusivamente] de dar honra a Deus [e
a Deus somente].
Quem quer que sejamos [ou pretendamos ser,] deponhamos as armas
pois [na realidade,] somos a “Igreja” e tudo quanto lhe diz respeito. Promove-
mos a mais duvidosa atividade e exibimos a mais suspeita marca deste ou da-
quele empreendimento religioso (ainda que seja [ou que fosse] a mais privativa
e pessoal das religiões!). Somos pois,judeus, católicos, luteranos, ou reforma-
dos [presbiterianos] (e fazem-se insistentes advertências para que não passe-
mos de uma confissão [da nossa] para outra). Estamos ou nos arrolamos sob
toda sorte de chancelas ou de cátedras. (É igualmente bastante [é sempre mui-
to,] tanto o que se pode dizer contra leigos e teólogos ou contra sacerdotes e
professores!) Rolamos sobre os trilhos de alguma antiga e grande comunidade
cristã ou, quando isto não pode ser, sobre os de alguma seita nova e pequena e
então pretendemos conhecer a tragédia ou o humor de toda essa existência,
suas lutas, seus frutos, sua sobrevivência, sua expectativa e sua movimentação.
Compreendemos o que Kierkegaard tem a dizer contra semelhante ati-
tude e lhe damos razão. Suspiramos [e gememos] todo dia sobre este “eu tam-
bém” mas o fazemos mais pela honra e poder que ele representa do que pela
Ignomínia e fraqueza que estejam [ou possam estar] subentendidas; esperamos
não esquecer a problemática que ele sintetiza e pretendemos dela dar testemu-
nho em cada palavra que proferirmos e em cada passo que dermos.
Sabemos que o “eu também” não é inevitável apenas humanamente mas
também, e principalmente, é inevitável por parte de Deus.
A possibilidade divina só pode ser entendida (e apreendida) na catástro-
fe da maior possibilidade humana (e isto qualquer que seja a atitude, [a aparên-
cia, a posição — o “Gestalt”] da Igreja); não há outra forma [de entender a
possibilidade divina] senão através do mais radical “APESAR DE”! (E onde se
revela com maior clareza do que na Igreja que entre Deus e a criatura humana
existe unicamente este “apesar de” [que segundo a percepção humana expressa
a “tolerância” divina?]
O homem, [por si] não pode ser justificado por Deus.
Não nos libertamos do judaísmo senão como judeus, nem do farisaísmo
senão como fariseus e nem da teologia senão como teólogos. [Em outras pala-
vras não nos libertamos da Igreja se não permanecendo na Igreja].
É justamente por causa de sua particular aflição, por sua culpa e porque
a Igreja, humanamente falando, não tem esperança é que ela tem a ESPERAN-
ÇA, em Deus!
“Deus não baniu o seu povo que ele reconheceu” [ou, segundo Almeida,
“Deus não rejeitou o seu povo, a quem de antemão ele conheceu”].

604
A Unidade de Deus 11, 1-2

Isto não é anunciado por quem está seguro na praia, nem é do barco que,
feliz, se afasta dos destroços do naufrágio, [nem tampouco] do bote salva-vidas
que se aproxima transbordante de socorros! Isto é proclamado do alto da pró-
pria nau que sossobra.
Isto significa que pecar contra Deus, negá-lo e traí-lo, são atos de quem
sabe que é parte integrante da Igreja [e que portanto] também ele é Igreja e tudo
quanto ela representa. Se alguém não souber isto, se alguém acaso tiver para si
solução melhor do que a Igreja [sofredora] e seus lamentos, ou se assim o
perceber e seguir, ou se escolher para si alguma pequena trilha particular para
contornar a perplexidade da Igreja esquivando-se [dessa confissão] de que “tam-
bém eu sou”, então tal pessoa de maneira nenhuma conhece a aflição que Deus,
como Deus, preparou para a criatura humana, nem tampouco a culpa pela qual
o homem está aprisionado na presença de Deus. Portanto, tal indivíduo tam-
bém está excluído] da esperança que consiste naquilo que se anuncia e se evi-
dencia dolorosamente na Igreja, a saber: que a nossa aflição vem de Deus e que
somos culpados perante ele. [Portanto, ele só, pode salvar-nos!]
Como é, pois?
Se é Deus que estende os seus braços todo o dia, a um povo desobediente
e contradizente (10, 21)— e levamos isto tão extremamente a sério, a ponto de
nem sequer procurarmos [(diligenciarmos por)] pertencer a esse povo, pois sabe-
mos que a ele pertencemos [e dele fazemos parte] existencialmente e em qual
quer hipótese, — então, [por ser a Deus que desobedecemos] por ser ele o Deus
inconquistável em quem [e contra quem] nos despedaçamos, —justamente por
ser este o Deus, há para esse povo desobediente, [para a Igreja] e existe para nós
a insuperável, a vitoriosa esperança. Se é Deus que estende suas mãos para nós, o
que pode significar a nossa desobediência, por mais satânica que fosse [ou que
seja]? O que pode significar nossa contradição e que [força anuladora] representa
o ponto morto a que chegamos? Qual é [ante os braços de Deus que se estendem
para nós] o alcance [sobre nosso destino final] do trucidamento e do sepultamen-
to da esperança, que perpetramos? O que representa a traição a Cristo, que prati-
camos? “O Grande Inquisidor” recebe sobre os lábios exangues e nonagenários o
beijo do Cristo [que ele resolvera matar]. “Esta foi a sua única resposta”.
É esta resposta única e total que constitui a esperança da Igreja. Esta
compaixão eterna fundamenta-se exclusivamente em Deus; ela não pode, por
assim dizer, ser deduzida racionalmente [pois não é demonstrável logicamente],
porquanto ela excede a todo pensamento [e a todo entendimento humano].
O conhecimento que o ser humano tem de Deus, não o salva mas o traz
a julgamento; todavia, o conhecimento que Deus tem da criatura a salva e a
eleva. [O A. faz jogo de palavras dizendo, aproximadamente, que o conheci-

605
11, 2 A Unidade de Deus

mento que o homem tem de Deus traz o seu “justiçamento” e o conhecimento


que Deus tem da criatura traz a sua “justificação”].
Deus é o princípio, [o Alfa] e, por isso também o último, [o Ômega].
Deus rejeita, por isso também elege; Deus condena e por isso, também agracia.
Deus leva até ao inferno e por isso também conduz para fora dele. Deus ques-
tiona a Igreja, formula a dúvida que nela irrompe e que aí se torna pública
como pesada ferida na comunidade [e nas congregações] dos homens mas, por
ele a haver formulado, dá-lhe também a resposta.
[É fácil compreender e, portanto, aceitar que Deus seja “o Alfa e o
Ômega”; é compreensível que Deus conceda a graça e seja também ele quem
condene: ELE é o juiz. Talvez devamos partir dessas premissas para entender
que Deus é a resposta à pergunta que ele mesmo suscita para então, juntando
este novo postulado aos primeiros axiomas, aceitarmos a afirmação extrapolada
de Lutero, aqui repetida por Barth, que Deus nos leva até ao inferno para então
nos conduzir para fora dele. Não nos esqueçamos de que esta maneira de dizer
é apenas analogia, parábola, Deus não conduz ao erro, porém o revela e destaca
por contraste. Deus é luz e a luz não produz sombras, embora as projete]
Deus é um só, na identidade do Deus da ira com o Deus da misericórdia;
[na identidade] do DEUS ABSCONDITUS com aquele que acordou Jesus Cristo
de entre os mortos; do Deus de Esaú com o Deus de Jacó. Em poucas palavras:
a unidade de Deus que se revelou em sua total invisibilidade, é a nossa esperan-
ça. É por isso que, quando não houver outra esperança, quando não houver
amparo, nem mediação nem transição, nem a coadjuvação de outras perspecti-
vas, então “a luz resplandeceu nas trevas e as trevas não a dominaram”.
“O Senhor não rejeitará o seu povo, por causa do seu grande nome, por-
quanto livremente ele vos aceitou como seu povo”. [1 Sam. 12, 22— (apud] LXX).

Vs. 2 (segunda parte) a 6 Ou não sabeis o que a Escritura diz na história de


Elias quando ele se queixava de Israel a Deus?
— Senhor, teus profetas eles mataram, teus altares destroçaram e so-
mente eu sobrei e atentam contra minha vida.

E o que lhe diz a palavra de Deus? — “Guardei para mim sete mil ho-
mens que não dobraram seus joelhos diante da ignomínia de Baal”. Assim tam-
bém ao tempo de agora existe um remanescente pela eleição da graça. Porém,
por ser pela graça, não é por obras pois do contrário a graça já não seria graça.
“Senhor, teus profetas eles mataram, teus altares destroçaram, e somen-
te eu sobrei e atentam contra minha vida”.

606
A Unidade de Deus 11, 3-4

A unidade de Deus, como esperança da Igreja, precisa ser crida [aceita


pela fé] no seu total paradoxo e sua insuficiência. É melhor que [essa unidade]
permaneça inteiramente oculta, é melhor que a Igreja não tenha esperança al-
guma do que, supondo que a tenha vislumbrado, procure obter [existencial-
mente] aquilo que só pode ser percebido pela fé. Esta esperança, — que é a
derradeira, a final, a única, — precisa permanecer totalmente pura, genuína e
real. É preciso que fique absolutamente claro que é Deus que questiona, [põe a
Igreja em dúvida] e é ele mesmo que responde [com a sua unidade, na eleição].
É por isto que a situação da Igreja precisa ser analisada com o mais absoluto
rigor. Dizemos levianamente que [o lamento do profeta] se referia à Igreja de
Acab e Jesabel; que Elias se queixava dos filhos de Israel. (IReis 19, 10 e 14).
Todavia, esta é a queixa que, do ponto de vista do Evangelho, se pode levantar
contra [o Israel de Deus, contra] a Igreja; se não hoje, então certamente ama-
nhã; se não neste sentido ou naquele, então com certeza em algum outro. A
queixa, porém se justifica para qualquer que seja o tempo]. [A tradução inglesa
escreve que “uma só falha é suficiente para justificar a queixa”.]
É sabido que não pode haver qualquer conduta de compromisso entre
Jeová e Baal; não se pode “claudicar entre ambos os lados.” pois quando Baal
desponta, indubitavelmente, em qualquer lugar, — (por exemplo na teologia,
na pregação, no posicionamento político da Igreja), — é evidente que ele
passa a ser o Senhor da Casa, pois Jeová não cogita de repartir alguma coisa
com ele.
As acusações radicalizantes de um Kierkegaard ou de um Kutter, como
tais, são justas e neste sentido não podem ser se não fortemente sublinhadas e,
por mais freqüente que seja essa acusação, ela jamais será excessiva.
Quando se trata de Deus — (e é de Deus que — sem dúvida se trata na
Igreja), — então em cada particular [em cada detalhe] se envolve a totalidade.
A maior ênfase que se der a um pormenor não é demais para chamar a
atenção à problemática do todo e, nenhum merencório protesto alegando que
(apesar de tudo) “a Igreja tem muito de Jeová”, pode resistir à força viva da
prova de indícios que [os críticos da Igreja] conduzem [contra ela]. Portanto,
nenhum [protesto semelhante] pode ser arma de defesa [ou servir de justificati-
va] contra a necessidade de arrependimento; aqui não se trata de ter paciência
mas de assumir a impaciência dos profetas; não se trata de exibir o humor de
observador mas de se empenhar em desenfreada ofensiva; não se trata de justi-
ça [e equidade] histórica mas de entranhado amor à verdade, que jamais receie
de levantar a pecha de injusto contra este ou aquele ilustre cavalheiro (afinal,
nem todos sacerdotes de Baal, em Israel, e nem todos párocos dinamarqueses
ou suíços eram tão maus assim!...).

607
11, 4 A Unidade de Deus

“Reservei para mim sete mil pessoas que não dobraram seus joelhos
diante a ignomínia de Baal” (I Reis 19, 18).
Esta é a outra face que Elias não vê. Como haveria ele de ver isto, por
mais agudeza que tivesse para as sutilezas da Igreja?
Na realidade [esta reserva] não é algo como um rio subterrâneo, escon-
dido, mas é o outro lado, — o lado ou a página — completamente diferente; [é
um “aspecto diferente” da Igreja].
Os sete mil não são 7.000 numéricos, por mais paradoxal e chocante
que esta afirmação pareça em face ao texto. (“Não é parte ínfima da população
do país” (Juelicher) ); não é comunidade de “minoria silenciosa” que Elias
pudesse ter encontrado aqui e ali, os conhecesse e pudesse até nomeá-los. Ele
tem razão quando diz, “eu fiquei só”!
O profeta, como tal, está — por assim dizer — sempre só e [é sempre
visto ou tido como] “original”. O QUANTUM de sua alma solitária não pode
ser multiplicado nem diminuído.
Não se trata de 7.000 indivíduos mas de uma totalidade de SETE MI-
LHARES constituindo avassaladora multidão que, invisivelmente, defende o
solitário profeta; são apenas sete mil na minoria que desaparece mas represen-
tam, invisivelmente, a totalidade do povo de Israel, na sua qualidade [individu-
al] de objetos da eleição em meio da rejeição, semelhante à Igreja de Jacó por
entre a Igreja de Esaú. Assim estão os sete mil em pé perante Deus, mas unica-
mente perante Deus: seu povo, que ele não rejeitou!
Por isso diz a Palavra de Deus que ele não deixa de conhecer [e reconhecer]
os seus. [Todavia], (não que existam alguns que acaso o conheçam!), pois a graça
de Deus é infinita. (Não que os sete mil sejam agraciados!), pois a unidade de
Deus triunfa na imprevisível [e incompreensível] problemática da história da Igreja;
(não que existam tantos ou tantos que gozem de alguma paz consigo mesmos!).
[Esta Palavra de Deus] fala [de maravilha], de milagre; fala de eleição e
de Deus! Portanto, não fala de Assis (São Francisco) ou de Boll; não fala de
algum Oásis no deserto (o que aliás, Francisco de Assis e Boll (de Blumhardt)
nunca foram, sequer ao mínimo, nem mesmo nos seus momentos mais produ-
tivos! [Blumhardt — ver nota na exegese de 8, 23]).
Este deserto não tem oásis! É certo que a qualidade invisível da eleição
se torna visível ali e acolá, nesta e naquela pessoa, contudo, mesmo quando
invisível ela é maravilha, [milagre] e revelação.
A ilha da verdade é submarina, conforme constatamos mais atrás (8, 18).
Eu, eu retive para mim sete mil pessoas! Deus quer reservar, unicamente
para si a razão e a salvação. Ele tem a razão e ele salva! [Deus reserva para si
mesmo, o direito e a razão para salvar a criatura humana].

608
A Unidade de Deus 11, 5-6

Elias não está só e a totalidade de Israel não foi rejeitada, pois aqui Deus
entra em cena; justamente aqui, onde termina toda esperança humana, porque
Deus, em sua ira, esperou apenas pelo clamor do solitário Elias para provar a
esse solitário e a todo Israel que ELE é misericordioso.
“Assim, também, no tempo de agora existe um remanescente pela elei-
ção da graça. Porém, por ser pela graça, não é pelas obras pois, do contrário, a
graça já não seria graça”.
A relação da Igreja com o seu tema é a da temporalidade com a eternida-
de; do homem com Deus. Isto liquida a Igreja; [a tradução inglesa escreve “isto
destroniza a Igreja”]; todavia, talvez também a justifique. Dizemos “talvez”
[porque a justificação pode ocorrer] se no juízo e na supressão definitiva que
esse relacionamento significa [a Igreja] sentir a própria palavra divina; se a
criatura, sentindo sua profunda humilhação, sua fraqueza e seu despedaçamento,
tomar consciência do Poder de Deus, [isto é], quando, no instante eterno da
revelação, se rompe o véu da temporalidade e Cristo, o Senhor, se inclina para
o homem. Que isto acontece, aconteceu e acontecerá, — que este acontecimen-
to é a verdade — isto é o que anunciamos como a boa nova da salvação, [como
o Evangelho]. Na medida que isto acontece, Elias não está só; e a Igreja, (a
totalidade da Igreja e toda Igreja), não está rejeitada.
“No tempo de agora” a Igreja de Jacó já está entre a Igreja de Esaú; está,
para os olhos que vêem, para os ouvidos que ouvem, para os corações atentos,
onde o amor a Deus foi derramado pelo Espírito Santo; está em palavras que
são mais do que palavras; está na disposição de muitos a fazer a vontade de
Deus.
Quem são estes muitos? Aqui também não se trata de 7.000 que sejam
contáveis mas de um remanescente que, se considerado quantitativamente, está
em vias de desaparecer e nem sequer pode ser considerado; podemos afogar-
nos novamente na ilha da verdade que emerge do mar pois toda vez que pé
desajeitado tentar pisá-la ela de novo se cobre com a avassaladora caudal.
Trata-se novamente da “Eleição da Graça” que diz respeito a todos po-
rém a qual ninguém tem direito; ela se manifesta, mas não como a salvação
desta ou daquela pessoa, de sicrano ou beltrano. Tais pessoas, nas quais acaso
se podem perceber os pensamentos de Deus (acima de todos!), subsistem ape-
nas pela graça; [é pela graça] que são o que são e unicamente pela graça podem
ser percebidos (vistos) em sua qualidade divina. Graça (misericórdia para to-
dos,) é também o que, pela graça, neles se pode perceber.
Portanto, este remanescente não pode ser procurado onde se destacam e
realçam coisas humanas, em fatos [e ocasiões] notáveis, como tempos [anos,
dias, semanas] de perdão, movimentos, [com alvos específicos, campanhas],

609
11, 5-6 A Unidade de Deus

avivamentos, reformas e coisas semelhantes; — tudo isto são obras! [Se isto
valesse,] então graça não seria GRAÇA. Se, porém, o remanescente for
encontrável nessas obras, somente o será na medida em que Deus também se
revelar nelas, isto é, na medida em que nas ondas desses movimentos e desen-
volvimentos humanos existir a [verdadeira] obediência (10, 16). Todavia, e
com certeza, não será somente aí — por mais que se escandalize toda observa-
ção direta — que se encontrará o remanescente fiel; ([aliás,] com certeza não
será encontrado em tais movimentos, se aí for procurado!); antes poderá achar-
se nas partes baixas da curva sim, talvez justamente aí, [na anti-crista, no fundo
do vale] onde nem se pensa em obras segundo o critério e o gosto dos historia-
dores eclesiásticos; lá onde é notório que todo tempo é apenas intervalo, [onde
o tempo que passa tem apenas o significado de lapsos secundários da nossa
vida e da história do mundo] e onde somente Deus abre os olhos [dos homens]
para que eles o vejam; onde somente Deus pode revelar-se e dar-se a conhecer
entre a miséria e a perdição humanas. [O A. diz textualmente “onde somente
Deus pode re-encontrar-se e se reconhecer entre a miséria e perdição huma-
nas”. Entendo que Barth quer dizer que somente pela infinita misericórdia de
Deus pode ele reconhecer na criatura perdida aquela que ele criou à sua ima-
gem e semelhança e aceitá-la conforme está; somente por ser ele o Deus de
infinita misericórdia e incomensurável amor, pode ele ver na criatura decaída
aquela que ele visitava à tarde, no Jardim do Éden!].
É o conhecimento que Deus toma, [ou tem] dos homens que decide e
isto, quer a curva da história da Igreja se incline para cima, quer se oriente para
baixo; ou então, quer sejam bárbaros teutões ou piedosos religiosos do século
19 o objeto de sua consideração.
Deus não rejeitou o seu povo, porque ele o reconheceu. [Segundo a
tradução de Almeida, “a quem de antemão conheceu”]. (11, 2).
A criatura humana é eleita pela graça; esta é a mensagem humilhante
[para quem confia em seus próprios méritos, quiçá para a Igreja] e por isto é a
boa nova da justificação e salvação do “remanescente existente” cuja luz brilha
“agora” por entre a miséria e a culpa da Igreja, cuja esperança está unicamente
no fato de que Deus se justifica “agora” e agora vindica a sua propriedade.
Esta esperança da Igreja é tão certa quanto Deus “agora “ se revela em
Cristo como aquele que é nossa aflição e de quem ficamos devedores.
[A versão inglesa escreve: “A única esperança da Igreja é que Deus
deveria [ou haveria de] agora justificar-se e dar testemunho de sua própria uni-
dade. Esta é, na realidade, a esperança da Igreja porque em Cristo Deus se
revela agora como a causa de nossa tribulação e de nossa culpa”.
Entendo que Barth quer dizer que:

610
A Unidade de Deus 11, 6 e 7-10

lº A graça exige humildade. É o coração contrito e humilhado que se


torna aceitável a Deus; a mensagem (da graça) é humilhante, não por-
que rebaixe a criatura mas porque exclui totalmente a vaidade e a vali-
dade da criatura humana. (Porque a torna humilde).
2º A esperança da Igreja é Cristo, porquanto ELE veio para buscar e
salvar as ovelhas perdidas da Casa de Israel, da Congregação que correu
e corre empós a lei de justificação.
3º A esperança da Igreja, de cada um de seus membros, dos crentes,
está no fato de Deus justificar sua própria exigência, dando-se a si mes-
mo na pessoa de seu Filho Unigênito, para que todo aquele que quiser
possa beber da Água da Vida para viver eternamente com Deus, na res-
tauração do céu e da terra, na reinstalação da criatura no convívio ame-
no com o Criador nas delícias do Éden Celestial, onde o homem redimido
trabalhará sem aflição, sem suor, sem incertezas sobre a qualidade de
seu trabalho porque Deus será nosso Deus e nós lhe seremos por filhos.
Deus será tudo em todos.
4º É em Cristo que vemos a origem de nossa aflição: nosso afas-
tamento de Deus. É em Cristo que vemos a nossa culpa: a estulta am-
bição de nos tornarmos iguais a Deus. Quando em Deus vemos a razão
de nossa aflição e a origem de nossa culpa, achamos também a nossa
fortaleza em Deus; então o sol se deterá em Gibeon e a lua no vale de
Ajalom; o mar se abrirá para garantir uma via enxuta e segura; as águas
do Jordão estagnarão; a criatura velha, egocêntrica, se transformará
em Cristocêntrica e o Homem NOVO buscará e invocará a Deus: Aba,
Pai! Já não será riscado do Livro da Vida o nome ali inscrito desde a
eternidade!]

Vs. 7 a 10 Como fica pois? O que Israel procurou não alcançou, porém o
obtêm os eleitos. Os demais são endurecidos, conforme está escrito: Deus
deu-lhes espírito de profundo sono, olhos que não vêem e ouvidos que não
ouvem, até o dia de hoje. E Davi diz: Sua mesa lhes seja por armadilha,
por tropeço, aborrecimento e punição. Trevosos sejam seus olhos para que
não vejam e que encurves suas costas para sempre!
[A tradução de Almeida, registra: “O que diremos, pois? O que Israel
busca, isso não conseguiu; mas a eleição o alcançou; e os mais foram endureci-
dos, como está escrito: Deus lhes deu espírito de entorpecimento, olhos para
não ver e ouvidos para não ouvir, até ao dia de hoje. E diz Davi: Torne-se-lhes
a mesa em laço e armadilha, em tropeço e punição; escureçam-se-lhes os olhos
para que não vejam e fiquem para sempre encurvadas suas costas”.]

611
11, 6-10 A Unidade de Deus

Para deixar absolutamente fora de dúvida que nos referimos a Deus


quando falamos da esperança da Igreja, paramos para tratar mais uma vez do
não que Deus antepõe à Igreja. [Literalmente do NÃO de Deus a respeito da
Igreja].
Somente na luta contra este “não” pode surgir a Igreja de Jacó e a espe-
rança ser genuína, pura, real. Este “não” subsiste no fato que precisa ser afirma-
do mais uma vez (9, 31): “Israel não alcançou o que procura”. Não alcança e
não alcançará. Sabemos o que Israel busca: aquela justiça própria sob consci-
ente escamoteação da justiça divina (10, 3); aquela justificação e salvação do
ser humano mediante a entronização do homem religioso. Onde se acharia uma
Igreja que, após curta hesitação, não voltasse sempre a fazer isso? Quem sou-
ber como as Igrejas se realizam [como se estabelecem e subsistem em sua ra-
zão de ser] acaso poderia isentar-se da culpa de semelhante busca? — Contudo,
a esperança de encontrar essa justificação não pode ser satisfeita. Todas espe-
ranças desse gênero serão sempre frustradas pela sua própria impossibilidade e
na impossibilidade divina.
Todavia não estará acaso a Igreja, nesta sua procura, ao encalço de algo
completamente diferente, algo que ela não se atreve (buscar abertamente) por-
quanto esta procura não é lícita à criatura humana e se ousasse fazê-lo teria de
admitir sua própria total dubiedade?
Aqui não se diz que a procura, em si, não seja lícita [ou que seja
culposa]. (Pelo contrário: buscai-o para que vivais!), mas a culpa está no es-
quecimento de que o homem não pode buscar a JUSTIFICAÇÃO; a culpa
está na presunção da criatura humana que admite ser capaz de obter a justifi-
cação sem se dar conta da imprudência [e leviandade] com que abre mão e
renuncia ao que já achou [aquilo que lhe foi dado pela graça] para se entregar
à procura certamente inútil [e possivelmente ruinosa — sem dúvida sujeita à
ira de Deus!]
No limite da possibilidade humana, que coincide com o limite da possi-
bilidade da Igreja, está o homem que não se esquece, que não é presunçoso,
que não é imprudente, que se curva à justiça divina e que, assim, alcança justi-
ficação: justificação de Deus.
Os eleitos alcançaram [ou a eleição alcançou] aquilo que a Igreja pre-
tende em sua procura.
Deixamos bem nítido que “eleitos” não significa estes ou aqueles nem
os que estão aqui ou acolá, nem os que são denominados desta ou daquela
maneira. E pela graça que o são. Eles não podem ser apontados; não podem ser
incluídos em nossa programação; nada se pode começar com eles nem com
eles se pode contar. Jamais serão luminares da Igreja — não farão Escola. Não

612
A Unidade de Deus 11, 7-10

serão fonte de inspiração a menos que o sejam na forma de impulso para a vida
eterna e, assim mesmo, como escândalo. Eles estão ali e acolá mas, com certe-
za, não onde se clama “EIS AQUI”! Eles têm este ou aquele nome que não é
aquele pelo qual são chamados. Eles são conhecidos como os desconhecidos.
Eles emergem para desaparecerem novamente. Sua Eleição e sua “realização”
não alcançam amplitude [repercussão] histórica, nem nas edificantes estórias
da vida nem em abençoada influência na história da Igreja.
[A tradução inglesa escreve assim: “Eles emergem apenas a fim de que
possam ser submersos. A sua eleição e o êxito com que “ALCANÇAM” não
são coisas que possam ser descritas em livros devotos nem a sua “influência”
pode ser estabelecida nas páginas da história da Igreja”].
O que neles acaso pode merecer alguma menção (e dimensão) histórica
certamente não é a sua eleição nem aquilo que OBTÊM; portanto a Igreja não
pode reconhecer nestes portadores de sua própria esperança mais do que a ili-
mitada liberdade de Deus, sua invisibilidade e secretividade e, nelas, a sua gra-
ça; e somente nesta graça, a Esperança da própria Igreja.
Nos eleitos a Igreja pode, também, aprender que “Israel não alcança o
que busca”.
“Os demais, porém, foram endurecidos”.
A luz brilha nas trevas, sem ser sobrepujada! Porém, é nas trevas! De-
sesperança é desesperança e “ponto morto” é ponto morto; não há continuidade
entre a alma de um e de outro, entre os portadores da esperança e aqueles a
quem ela é trazida: rio há transferência não há “contágio”; não há influência
daqueles sobre estes. A interligação [entre uns e outros] faz-se somente em
Deus. Também os eleitos somente ALCANÇARÃO “em Deus” aquilo que pro-
curarão em vão se não o obtiverem de Deus. Eles dão testemunho de Deus mas
não são nem sementeira divina nem grão ou coisa parecida para os demais. (O
Jesus dos “sinópticos” enviou os seus discípulos para anunciar o Reino de Deus,
mas não para o estabelecer! (Mat. 10, 7)). [Todavia aqueles que dão testemu-
nho de Deus], os Eleitos, estão sempre [reiterada e continuadamente] expostos
ao único e grande risco, ao perigo mortal, de se olvidarem de Deus, [de o omi-
tirem], deixando, assim, de ser suas testemunhas e passando a identificar-se
total e absolutamente com os “outros” e, empedernidos como estes, ficarem
completamente obturados à possibilidade [da graça] divina. [Ver o que está
dito expressamente em Mat. 10, 28].
Disto tudo resta que não há esperança se Deus não operar o milagre —
(e é milagre de Deus que se proclama [no Evangelho]).
É desta maneira que a Igreja precisa compreender qual é e o que é a sua
esperança.

613
11, 7-10 A Unidade de Deus

Como única verdade visível, resta esta que deve ser inscrita nos umbrais
de cada porta de Igreja, no frontispício de cada livro de sermões, na primeira
página de cada livro religioso: “Os demais foram empedernidos”.
Assim como os Eleitos, também os DEMAIS não são quantidade numé-
rica. Se Deus não for reconhecido como Deus, os “demais” são todos, porquan-
to Deus quer ser conhecido através de si mesmo; é por isto que aparecem os
eleitos e também a exclusão dos “demais” que incluem os eleitos quando estes,
na sua existencialidade [sua vida, sua atitude e sua conduta perante os homens
e Deus] deixarem de testificar [a eleição].
[Esta última parte é expressa com conotação ligeiramente diferente na
versão inglesa que, todavia, parece ter certa riqueza de sentido. Ela diz: “En-
quanto Deus não for reconhecido (ou reconhecível todos são “os demais”, e o
são através d’Ele. Deus precisa ser conhecido por si mesmo. Daí procede a
inclusão dos “eleitos” e a exclusão dos “demais”, aos quais os eleitos perten-
cem na medida em que sua existência não for a sua eleição].
Toda a aflição da Igreja de Esaú consiste em que Deus a feriu com “um
espírito de sonolência”; com “olhos que não vêem” e “ouvidos que não ou-
vem”; que da parte de Deus a “sua mesa” e todo seu procedimento têm de lhe
ser por laço”, por armadilha, por castigo e por escândalo e que Deus “lhe encurva
o dorso” sob a lei que não serve para justificação e salvação e contudo não pode
ser evitada.
Todavia este [mesmo] Deus, que tão desapiedadamente diz NÃO en-
quanto proclama sua misericórdia; que tão inexoravelmente exclui [rejeita]
enquanto a todos atrai a si; que fica assim tão oculto e que se anuncia justamen-
te como o Deus recôndito quando menciona o seu nome, — ELE é a esperança
da Igreja. ELE é esta esperança pela sua Unidade, sua Identidade, sua Graça e
sua Verdade. É assim e de nenhuma outra forma, que ELE é o nosso pai em
Jesus Cristo, o que foi crucificado e que ressurgiu.
Donde advirá tanta esperança à Igreja para assentar a sua esperança nes-
te Deus?
[De que outro lugar viria senão da cruz?]

Comentários: 11, 1-10

À primeira vista pode parecer que Barth defende a tese de que no


“grande final” TODOS se salvarão. Todavia, a análise detida da exegese
desta primeira parte mostrará que não é assim, conforme aliás o confir-
ma o contexto de tudo quanto foi dito no livro até aqui, principalmente
e de modo especial nos dois capítulos precedentes. A raciocinar superfi-

614
Uma Palavra aos de Fora 11, 11-10

cialmente poderíamos até mesmo perguntar: se todos estiverem fadados


a salvação escatológica, então por que a dupla predestinação?
Todavia, não é isto que o A. diz. O Livro da Vida sempre existiu, conti-
nua existindo e existirá. Os nomes nele inscritos podem ser riscados a
qualquer tempo: as varas enxertadas também podem ser cortadas; outras,
cortadas, podem ser re-enxertadas e, por extensão, analogia e lógica huma-
nas, também estas podem ser cortadas novamente. O próprio A. o afirma
quando diz que ninguém esteja extremamente seguro de sua situação pe-
rante Deus; que aqueles que receberam a eleição, cuidem para permane-
cer nela. Se não é garantia de salvação permanecer alguém na Igreja, muito
menos o é estar alguém fora dela porquanto as coisas vis não podem ser
incensadas, sublimadas, pois nem as mais nobres servem para tanto!
Quando Barth diz que o Deus que rejeita é o mesmo Deus que elege
e que nesta unidade não rejeitará para sempre, que o NÃO divino não é
a última palavra, refere-se à parte empedernida da Igreja, à parte endu-
recida de Israel. Refere-se àquela parte que, buscando para si uma lei de
justificação cai nas profundezas da “sombra de José” — julga-se me-
lhor aquinhoada que os demais. Na ira que pesa sobre esta “Igreja” que
assim se promove, os “de fora” vêem (ou melhor, podem ver) a justiça
divina e assim a Igreja cumpre a sua missão, ainda que na negatividade,
(e quem não é negativo?) até que seja despertado nela o zelo de Deus.
É nesta coerência de ação, nesta unidade divina que o “remanescen-
te” será libertado de seus pecados; verá na pedra de tropeço, pela qual
caiu, a mão estendida do libertador que vem de Sião e será salvo, junto
com os de fora que já se apoiaram no braço estendido de quem a todos
convida: “VINDE A MIM!”

UMA PALAVRA AOS DE FORA (11, 11-24)

Uma palavra aos de Fora é uma palavra de advertência aos que não são
Israel; que não são Igreja. É uma palavra aos pobres de espírito que não têm de
que e de quem gloriar-se. Talvez percebam a glória de Deus manifesta no Univer-
so mas não acolhem a mensagem que a Igreja quer entregar-lhes; talvez até zom-
bem dela e, com certeza, conservam-se na atitude de quem observa à distância.
É uma palavra aos que não conhecem a lei, embora em suas consciênci-
as sejam lei para si mesmos e se admoestem entre si.
Percebem a aflição e o fracasso da Igreja que baldadamente busca uma
justificação que nem sequer o mundo reconhece e que eles, de fora, não enten-
dem; no entanto a alcançam de Deus.

615
11, 11 Uma Palavra aos de Fora

A eles, pois, a advertência: que permaneçam na bondade de Deus; que


não dêem lugar à jactância; que não se ensoberbeçam; que não desprezem seus
próximos que estão na Igreja porque dela e por ela lhes é anunciada a Palavra
de Deus. É na aflição da Igreja que os “de fora” encontram a paz.
É uma palavra de advertência aos gentios para que, na graça que recebe-
ram, dêem testemunho dela perante Israel, a fim de que também para este soe a
hora da eleição.
É uma palavra de advertência aos de fora lembrando-lhes que a esperan-
ça deles é a esperança da Igreja, porque toda esperança do mundo está posta na
Igreja edificada sobre a rocha que é de tropeço para os que caem mas é também
arrimo, apoio e sustentáculo para que nela e por ela se levantem aqueles que
caíram. A esperança da Igreja é Jesus Cristo.
Acompanhemos a exposição de Barth.

Vs. 11 Digo pois: acaso tropeçaram para que caíssem? Impossível! Porém por
sua queda tem lugar a salvação dos gentios — para torná-los ciumentos.

[A tradução de Almeida escreve: “Pergunto pois: porventura tropeça-


ram para que caíssem? De modo nenhum; mas pela sua transgressão veio a
salvação aos gentios, para pô-los em ciúmes”].
“Acaso tropeçaram para que caíssem? Impossível!”
[A Bíblia de Lutero, escreve: “Assim, pergunto pois: “Eles tropeçaram,
a fim de que caíssem? Longe disto! Antes, de sua queda a salvação veio ao
encontro dos gentios para que, com isto, ficassem com ciúmes”.
A RSV diz: “Assim pergunto: tropeçaram eles para cair? De forma al-
guma! Mas pela sua transgressão a salvação veio aos gentios, para deixar Israel
com ciúmes”.
A V.S.F. registra: “Observo ainda: se os filhos de Israel tropeçaram, não
deveria daí resultar a sua queda? Não, certamente, pois foi em conseqüência de
sua falha que a salvação foi levada aos pagãos, a fim de excitar a sua própria
emulação”.
A “versão interlinear” do grego, por Marshall, registra aproximadamen-
te assim; “Digo portanto: não tropeçaram eles para que caíssem? Que não o
seja; mas pela transgressão deles veio a salvação às nações, para provocar ciú-
mes neles”.
Talvez possa parecer à primeira vista que se trata de indagar se Israel não
foi induzido ao tropeço para cair e propiciar a salvação dos gentios, em raciocí-
nio, na melhor das hipóteses, irreverente, conforme 3, 5-6 e 6, 1-2. Ou então,

616
Uma Palavra aos de Fora 11, 11

talvez com menos dolo, se pudesse deduzir dessa passagem que a salvação dos
gentios veio em conseqüência da queda de Israel; ou então em outras palavras,
que a salvação das pessoas de fora da Igreja resulta do fracasso da Igreja.
Ora, tais interpretações estariam em desacordo com o ensino bíblico
geral e os evangelhos em particular. (Apenas a título de referência, ver João 3,
16 ss e João 5, 24). Ver também a exegese de 10, 16-21.
Como haveremos de entender a passagem?
Talvez seja isto: Israel não foi induzido ao tropeço, nem levado à queda.
A missão dada à Nação Eleita foi testificar a graça divina; preparar o caminho
para a vinda do Senhor em quem seriam (foram e são) benditas todas as nações
da terra. Os planos de Deus não são frustrados pela conduta humana (2, 11;
Deut. 10, 17; Atos 10, 34 e seguintes; Gal. 2, 2); a missão de “nação sacerdotal”
teria de cumprir-se e foi cumprida quer fosse com o coração dócil e leal de um
Jó, um Moisés ou um João (o Evangelista) e tantos outros, ou fosse com a dura
cerviz de um Jonas, um Faraó, ou de um recalcitrante Saulo.
Israel foi de dura cerviz: Jacó lutou com o anjo do Senhor; o povo do
deserto quis voltar às panelas de carne do Egito e se serviu do primeiro pretexto
que lhes pareceu razoável para fundir o seu bezerro de ouro; a nação constitu-
ída preferiu um rei vistoso à liderança do Deus “invisível” de Samuel; adora-
ram nos “Altos”, aos astros visíveis e abandonaram o Altíssimo que talvez lhes
parecesse por demais remoto e, pior do que isto, imaterial. Perseguiram os pro-
fetas e se encastelaram em sua própria retidão e justiça; decoraram a lei, vive-
ram sua forma, sua letra, porém não praticaram seu espírito; alardeavam o cum-
primento do primeiro grande mandamento e prevaricavam no segundo, seme-
lhante ao primeiro. Negaram ao Cristo a ponto de chamarem o seu sangue so-
bre eles e sobre seus filhos.
Mas teria sido Israel que assim procedeu? Ou foram eles como porção
representativa da humanidade — nação, Igreja, autoridade eclesiástica, poder
civil — o mundo dos homens naquilo que tinha e tem de mais tipicamente
representativo?
Na história da rebeldia contra Deus, assim como em sua culminância na
crucificação, mesclaram-se sempre os reis, os governados e a soldadesca; o
povo, da plebe ao Sumo Sacerdote.
Acaso essa infame culminância de endurecimento, a rebeldia, seria res-
trita à responsabilidade daqueles que no tempo histórico da crucificação se
achavam em Jerusalém?
Se assim fora, então a ressurreição seria, também, só para as mulheres
que encontraram o sepulcro vazio ou, quando muito, do pugilo de pessoas que
viveram os poucos dias que mediaram entre a ressurreição e a ascenção.

617
11, 11 Uma Palavra aos de Fora

Mas não é assim; a graça não tem data histórica, nem lugar geográfico,
nem raça, tribo ou nação e também não os tem a transgressão.
O mundo todo transgrediu — transgride e transgridirá — ontem, hoje e
sempre e nele estão incluídos cada indivíduo, todos os governos e a Igreja (to-
das as Igrejas) e os seus membros.
Todavia, governos e povo não têm a missão específica de testemunhar e
anunciar a graça de Deus conforme compete à Igreja e a seus fiéis. É por isso
que a transgressão da Igreja, a transgressão de Israel, dá oportunidade à salva-
ção dos gentios, dos que estão de fora, daqueles que não conhecem a lei.
Como? Por que?
Porque os que estão sem lei, (quando têm olhos para ver e entendimento
para compreender), percebem que Deus não opera segundo critérios humanos
e por acepção de pessoas; que Deus não se deixa levar por engodos, nem pro-
messas, nem sacrifícios, nem ritos, nem iniciação esotérica ou outra qualquer;
Deus não julga pelo louvor, ou pela devoção, ou pela liturgia; nem por flagelação,
ou renúncias ou obediência a alguma lei, ou seita, ou denominação. Deus julga
e justifica na conformidade de sua eleição eterna pelo que encontra no íntimo
de cada pessoa. É pela rejeição divina à pretensa retidão humana que os “gen-
tios quiçá mais vazios em si mesmos, vislumbram mais prontamente a Graça
Divina. Talvez possamos parafrasear o v. 11(s), escrevendo que o testemunho
da fidelidade (longanimidade) de Deus com a Igreja deu lugar à conversão das
“pessoas de fora” e a conversão destas levou (ou leva) a Igreja à plena renúncia
de sua própria retidão.
Vejamos, porém, o que o A. tem a dizer.]
“Tropeçaram para que caíssem? — Impossível”!
Do outro lado, frente à Igreja, — de cada Igreja — vemos os pagãos, (os
gentios), os “outros”, enquanto a Igreja continua razoavelmente segura de si
mesma; consideramos esses “outros” em sua relativa irreligiosidade e, em rela-
ção à Igreja que nos está próxima, como aqueles que “não ouvem” e “não
falam” conforme ouvimos e falamos; eles são observadores não comprometi-
dos e testemunhas das tentações e fracassos da Igreja. Não há dúvida de que
eles vêem o insucesso da Igreja: o mundo o vê e também a Igreja já o viu — há
muito — embora, talvez, tenha silenciado a respeito da existência de um fracassar
contínuo, um tropeçar, um correr de encontro a algum obstáculo invisível.
Acaso não é certo que se nós mesmos formos apenas sofrivelmente sa-
dios, se ainda não houvermos sido contagiados pelo romantismo, não podere-
mos assistir uma missa católica sem a sensação profunda que “assim não vai” e
isto, se nosso sentimento não se expressar muito mais vigorosamente, nos ter-
mos do catecismo de Heidelberg?

618
Uma Palavra aos de Fora 11, 11

Se nós mesmos estivermos de alguma forma “dentro” [envolvidos como


participantes] de alguma Igreja, de alguma agremiação filosófica, filiados ou
adeptos desta ou daquela linha de pensamento, (o que [de certa maneira], todos
estamos!), então precisamos deixar bem claro que aqueles que estão “de fora”
não estão melhores que nós [pois eles na realidade estão dentro de outro grupo
e pensam de nós, MUTATIS MUTANDIS, aquilo que deles pensamos].
Os eventuais “gentios” estão sempre na posição privilegiada de quem
pode afirmar que não se empolga com a Igreja; que ela não lhes causa a impres-
são de ser coisa essencial; talvez seja honorável mas de maneira alguma digna
de crédito. Eles ouvem que nela se trata da Palavra de Deus; isto eles ouvem
afirmar mas não vêem a sua comprovação. Como gente de fora eles têm per-
cepção aguda da aflição e culpa da Igreja; do NÃO divino a que está sujeita;
eles vêem o espinho contra o qual os que estão “dentro” não podem rebelar-se.
O que Deus tem a dizer contra a Igreja é, na verdade, dito contra ela também
pelo “mundo”, não importa se este o diz com ou sem entendimento todavia, é
por isto mesmo que aquilo que o mundo diz contra a Igreja, somente pode ser
tomado no sentido daquilo que se pode dizer contra ela da parte de Deus e de
nenhuma outra forma. Portanto, não é como se a fraqueza, a perplexidade, a
profunda incredibilidade que sempre revelam a culpa e aflição da Igreja ao
mundo fossem a realidade final, metafísica. A Igreja não está liquidada nem foi
derrotada, ainda que os “gentios” vejam contra ela dez vezes mais [erros] do
que estão vendo.
Assim como Deus não abandonará o próprio mundo em sua [evidente e
mais do que confirmada] aflição e culpa, assim também [ou melhor, com mais
justa razão] não abandonará a Igreja que, a despeito de toda sua dubiedade, é
do mundo o ponto mais alto, o seu apogeu.
Mundo e Igreja são o que são, apenas em sua relatividade mútua. Como
se pode sequer cogitar da exclusão total, absoluta, de uma das partes pela ou-
tra? O que é total, absoluto, é a oposição de ambas as partes juntas [Igreja e
mundo] a Deus.
Do ponto de vista divino porém, tanto a Igreja como o mundo estão
extintos. [Vistos do ponto de vista divino] estão liquidados tanto Israel como os
gentios. Portanto é impossível que [Israel] tenha esbarrado na pedra de tropeço
(pedra de tropeço e rocha de escândalo, 9, 33) para que caísse.
“Porém pela sua queda tem lugar a salvação dos gentios”.
Aflição e culpa da Igreja constituem o “momento” (o binário) deste in-
visível movimento de Deus que vai da condenação para a eleição, do NÃO para
o SIM, de Esaú a Jacó, de Faraó a Moisés, “momento” esse no qual Deus põe
em ação a sua soberana liberdade, no qual ele mesmo se anuncia, no qual ele

619
11, 11 Uma Palavra aos de Fora

efetiva a filiação do mundo (9, 22-23); por isto (a aflição da Igreja) não é a
“última realidade”, [a sua situação final e definitiva]; não se trata de fato
metafísico ao lado da retidão ou da glória divina, mas é a manifestação tempo-
ral desta glória e da nuvem da ira divina que encobre a esperança da Igreja; é a
manifestação do desejo divino de ajudar a todos.
“A sua ira dura um instante e a sua misericórdia a vida inteira”. (Sal,
30, 5). A condenação somente existe como sombra projetada pela luz da elei-
ção. Para a criatura deste mundo o NÃO divino é simplesmente o inevitável
retorno do reverso para o anverso, para o SIM de Deus. Esaú somente é Esaú
na medida em que ele não for Jacó. O empedernimento invisível de Faraó
testifica o mesmo poder divino do qual dá testemunho a invisível vocação de
Moisés.
Aquele que recebe a revelação divina precisa, por si mesmo, tomar a
posição de quem recebeu essa revelação e nela põe a sua esperança, a despeito
de toda [conscientização] de culpa e [conseqüente] aflição que [tal revelação]
traz consigo.
[A tradução inglesa escreve: “Aquele que recebe a revelação de Deus
precisa submeter-se à tribulação e à culpa que a sua posição implica, para que
ele mesmo seja o guardião da revelação e da esperança que tem”].
Primeiro vem Israel: a Igreja. Em sua falha, em sua catástrofre, nasce o
segundo. “Por sua queda tem lugar a salvação dos gentios: onde afluiu o peca-
do, transbordou a graça”. (5, 20).
Eleição é a inaudita forma real e possível de salvar a criatura do inevitá-
vel fado da condenação.
Unicamente mediante a reversão do NÃO de Deus pode subsistir o seu
SIM. Jacó é Jacó porque ele não é Esaú. Não há vocação de Moisés que não
tenha sido [ou não seja] também a vocação de um incuravelmente empedernido
Faraó. É assim que pela transgressão da Igreja acontece a salvação dos gentios.
Porém, como acontece? — Pela garantia da graça divina acima de toda
injustiça humana.
A “injustiça humana” dos gentios, que clama aos céus, se opõe menos à
justiça divina, que a retidão humana” da Igreja.
Esta posição relativa (e negativa) dos gentios em oposição à Igreja é o
momento (o “impulso”) frutífero da gentilidade. É por isto e em nenhuma outra
forma que os gentios são justificados com relação à Igreja. Enquanto Deus quer
sempre mostrar (e mostra) à Igreja que unicamente ele é Todo-Poderoso [so-
mente ele é Onipotente] e, enquanto a obra humana da Igreja se esfacela sem-
pre de novo em Deus, volve-se a página em favor daqueles que estão de fora;
enquanto a Igreja crucifica a Cristo vem a salvação dos gentios.

620
Uma Palavra aos de Fora 11, 11-15

“Para os tornar ciumentos”, (9, 19).


A conjuntura descrita não permite que se forme a idéia de oposição
entre os indivíduos psicológicos “de dentro” e “de fora”, senão por um instan-
te, quando ela surge para desaparecer imediatamente. Ambos são portadores,
objeto e instrumento da mesma obra divina. Como possibilidade divina a elei-
ção é sempre também a possibilidade de condenação. O SIM divino brilha até
nas últimas profundezas do NÃO, justamente por este NÃO ser tão profunda-
mente radical, por ser o NÃO de Deus.
A provocadora preferência dada a Jacó faz com que também Esaú se
lembre do Deus de Jacó e na divina origem da vocação de Moisés também
Faraó, em seu endurecimento, tem participação — ainda que fosse “por ciú-
mes”; [ainda que fosse] pelo profundo dessossego que provoca a existência dos
eleitos o que, para os condenados, necessariamente significa a demonstração
da liberdade divina e a eleição pela graça.
Esse ciúme e esse dessossego, — falando como homem, — são a espe-
rança da Igreja; a última palavra com que se pode descrever em categorias
subjetivas o que acontecerá com as criaturas não eleitas.
É por isto que a Igreja tropeça: para que se patenteiem seus fracassos,
sua incredibilidade e o humor involuntário que a envolve; para que se revele a
profundamente escondida sombra de José; para que [na Igreja] se conheça de
novo na liberdade de Deus que tudo expõe à luz. É desta forma que a aflição e
a culpa da Igreja têm seu fim (seu objetivo) e o final [o término], o seu cumpri-
mento em Deus.

Vs. 12 a 15 Ora, se sua queda for riqueza para o mundo e seu esvaziamento
riqueza para os gentios, quanto mais o será a sua plenitude Digo-o a vós
gentios! Justamente na medida em que eu sou o apóstolo dos gentios tenho
por honra em meu ministério despertar os ciúmes nos que são da minha
carne e assim salvar alguns deles. Porquanto, se a sua condenação dá
lugar à adoção do mundo, a sua aceitação não será, se não, a vida dentre
os mortos.

“Ora, se a sua queda [sua transgressão] for riqueza para o mundo e seu
esvaziamento [seu desapossamento, seu abatimento] for riqueza para os genti-
os, quanto mais será a sua plenitude” [sua aceitação, seu restabelecimento, sua
completa e cabal realização].
Há plenitude de esperança em investir contra a realidade divina [esbar-
rar, tropeçar nela], ser aniquilado em Deus, ter de morrer nele.

621
11, 12 Uma Palavra aos de Fora

[A tradução inglesa escreve como se fora a conclusão do que está ex-


posto no V. 12: “Tropeçar na realidade divina, ser envergonhado por Deus, ter
de morrer em suas mãos é então, uma ocorrência prenhe de esperanças”].
Quem tiver esta experiência pode bem ter caído, mas apenas caído, para
erguer-se novamente, apoiado no próprio obstáculo em que tropeçou. Não terá
caído definitivamente; não terá tombado em sentido fatal, metafísico, inflexí-
vel, absoluto; não será algo para além do limite do tempo [para além da
temporalidade].
Cair em Deus, (e porque Deus é Deus) significa a possibilidade de le-
vantar-se novamente pela própria liberdade de Deus. Com isto precisam contar
os que estão “de fora” que negam esta possibilidade e que constatam o
“desapossamento” da Igreja.
Este fim não é final; [não é a última palavra, não é definitivo]. Este fim
[este aniquilamento] de Israel, a aflição ou a culpa da Igreja, esse “esvaziamen-
to” conforme se manifesta na crucificação e que somente pode ser revelado ao
mundo à luz da cruz de Cristo, é a “riqueza do mundo” e “riqueza para os
gentios”. [Ou, em outras palavras, aquilo que constitui a salvação do mundo e
para os gentios, somente pode ser revelado mediante a crucificação de Cristo
que, por sua vez, constitui o esvaziamento de Israel. Israel, (vale dizer a Igreja,)
para alcançar a justificação precisa esvaziar-se de sua própria justificação acei-
tando a plenitude da cruz (o total cumprimento da lei, em Cristo), que é tam-
bém a grande oportunidade de justificação dos gentios (e aqui vale dizer dos
que não estão na Igreja), que nada têm para gloriar-se].
Na catástrofe [da crucificação — e portanto no esvaziamento de Israel] e
na sua contemplação, Deus nos revela que não abriu mão de sua liberdade, de sua
invisibilidade, de seu “eterno poder e sua divindade” (1, 20); revela-nos que ele,
ele só, quer ser Deus sobre todas as obras humanas. Onde isto for visível, onde se
vir isto, seja “dentro” ou “fora” aí, nessa revelação e nessa percepção, está a
eleição; aí está a mensagem do Senhor ressurrecto que “é rico para todos os que
o invocam” (10, 12); é aí que, aos humildes, ele dá a graça que está além da cruz.
Além da cruz está a ressurreição, (mostrada por Deus e visível aos olhos
por ele abertos.). Foi aí [na cruz] que Deus se manifestou e deu testemunho de
si; foi aí que Deus se fez lembrado como a origem de todas as coisas, como
Criador e Redentor. Foi aí que Deus mostrou sua plenitude, patenteando na
plenitude da possessão humana a queda do homem, sua negatividade, sua
negação, a notória vacuidade humana; [todavia, nesta sua plenitude,] Deus
revelou também a sua invisibilidade.
A plenitude de Deus! Sua justificação, portanto sua positividade, sua
riqueza, sua misericórdia, sua visibilidade. A vacuidade que domina a possessão

622
Uma Palavra aos de Fora 11, 12-14

humana tem fim e o cabedal humano acaba. Não acontece assim com a plenitu-
de de Deus; a positividade que substitui a negatividade, não tem fim.
[Ora,] o fim da Igreja é o começo da plenitude de Deus que não só é
infinita mas é eterna e, portanto, não é apenas a delimitação das coisas finitas
que se lhe opõem à Igreja, mas também a sua supressão, mediante o que não há
mais “eleitos e condenados”, “gentios e judeus”, “gente DE FORA e DE
DENTRO”, porque agora todos são UM em Cristo.
Se o sentido negativo que a supressão final da Igreja representa (que é
o que a cruz de Cristo significa!), for a expressão do ato divino mediante o
qual Deus se liberta de toda e qualquer restrição humana, [isto é], se isto
significa a possibilidade e a realidade da eleição pela graça e da adoção da
criatura humana como filho, [por Deus], se significar o lampejo do instante
eterno dentro da temporalidade, então o seu sentido positivo (que é o que a
ressurreição de Cristo significa!), será a própria Luz Eterna; será a eternidade
com sua absoluta ausência de tempo, a vida [da criatura] ressurrecta, a reden-
ção que aconteceu e que acontece; será a exclusão da possibilidade de rejei-
ção por força da eleição.
Os que [“de fora”] observam a Igreja e seu insucesso, tomem nota de
que as últimas coisas terão lugar quando a Igreja chegar ao seu fim, (11, 15 e 1
Cor. 15, 26— a supressão da morte!; que tomem nota de que esse esvaziamen-
to(!), prepara o advento de [total] preenchimento, (e este ainda mais salutar!).
Somente se poderia afirmar que a Igreja “está liquidada “ com extremo
temor e tremor ou antes, isto não se pode afirmar de maneira alguma, pois
quem suportará saber o que será então?
“Digo isto a vós, gentios: exatamente na medida em que sou apóstolo
dos gentios vejo a dignificação do meu ministério nos ciúmes que eu despertar
naqueles que são do meu sangue, para salvar alguns deles”.
[A tradução de Almeida escreve: “Dirijo-me a vós outros que sois gen-
tios! Visto pois que eu sou apóstolo dos gentios, glorifico o meu ministério para
ver se de algum modo posso despertar à emulação os de meu povo e salvar
alguns deles”].
Justamente aqueles que “estão de fora” precisam ouvir tudo isto e pon-
derar a respeito. Eles são justificados através da aflição e da culpa da Igreja. O
instante da rejeição dos que “estão dentro” é o momento da salvação dos que
“estão fora”.
[A realidade de] que a glória pertence exclusivamente a Deus, é a sentença
que condena Israel e salva os gentios; a estes em sua total nudez que quase
nunca é justificável e quase nunca pode ser atenuada; a estes, em sua quase
inqualificável mundanalidade; a estes que não tem a seu favor qualquer motivo

623
11, 13-15 Uma Palavra aos de Fora

sério para merecerem a justificação pois é de esperar que para esse fim não
fossem incensar as extremas fraquezas humanas.
Paulo é o apóstolo dos gentios porque ele vê o Evangelho dirigido exa-
tamente a eles cuja nudez e fraqueza são para ele analogia do desnudamento e
da pobreza de toda criatura que, pondo-se perante Deus, é por ele justificada
em contraposição a essa outra criatura que [sentindo-se] na sadia plenitude de
sua própria retidão, todavia, não está na presença de Deus e não pode ser
justificada por ele.
É justamente isto que prende Paulo a Israel e o traz sempre de volta a
seu povo; é por isto que ele se sente constrangido a iniciar a sua pregação [para
onde quer que vá] primeiramente com Israel, conforme Lucas bem o descreve
com segurança e propriedade [no Livro de Atos].
A nudez em que está o gentio e que significa a sua predisposição para
Deus em contraste com a plenitude de Israel, não pode, por isso mesmo, ser
outra coisa que não essencialmente a condição em que a criatura, (e também
Israel), se encontra em relação a Deus; este é o ponto onde, deixando para trás
sua própria justiça que é seu tribunal, entra em consideração, também para
Israel, o divino PORÉM do perdão.
Por outro lado onde se poderia vir a saber que o perdão é o “sentido”
que está além da nudez humana, [além da pobreza] dos filhos do mundo — se
não lá onde, na criação, está a mais alta e última possibilidade humana?
Onde toma a criatura ciência de sua posição em Deus [e perante Deus],
se não na religião?
Onde, jamais, ouviu o mundo de fato, a pregação do perdão se não na
Igreja, essa Igreja capitulante, [a Igreja dos fracassos, segundo a vêem os que
estão “de fora”?]
[A versão inglesa escreve: “Como se pode compreender o perdão como
sendo o que está além da nudez humana dos filhos do mundo se o sentido total da
vida terrena não for percebido na sua última e suprema possibilidade, — a religi-
osa? O perdão não pode ser pregado ao mundo se não pela capitulação da Igreja”.]
De uma parte o mundo é o espelho no qual a Igreja precisa mirar-se para
contemplar sua humilhação e, também, a plenitude de sua promessa; de outra
parte, unicamente na Igreja pode o mundo ver a sua relação com Deus.
Lembremo-nos porém que neste espelhamento recíproco, Igreja e Mundo não
devem ser tomados como grandezas históricas mas, sim, dialéticas.
Igreja e mundo são mantidos unidos, [juntos] pela infinita diferença
qualitativa entre Deus e o homem, que estabelece um vínculo qual grampo de
aço e que, ali significa a rejeição e aqui a eleição. Este vínculo torna, por assim
dizer, impossível dissociar a humanidade para formar os dois respectivos grupos.

624
Uma Palavra aos de Fora 11, 13-15

Uns precisam sujeitar-se a serem desassossegados e postos em ciúmes


pelos outros enquanto estes somente podem ver a sua diferenciação naquilo
que também justifica os primeiros e que não se faz esperar para salvar alguns
deles arrancando-os de seu endurecimento, como sinal [e prova] que também o
futuro eterno deles é a eleição e não a rejeição.
O “Apóstolo dos Gentios” não seria o mensageiro de Jesus Cristo se ele
não se dirigisse com o mesmo empenho ao “gentio” [existente] no judeu e ao
“gentio” [existente no próprio] gentio. Nem seria o “gentio” o eleito de Deus se
acaso, por isso, [o gentio] insistisse que o judeu, como tal, fosse condenado, —
isto é, — que a Igreja fosse liquidada.
“Porquanto, se a sua condenação dá lugar a adoção do mundo, a sua
aceitação não será senão a vida dentre os mortos” [ou, por outras palavras, a
salvação de Israel, isto é, da Igreja, não será menos do que a vida eterna para o
mundo, logicamente mediante a fé em Cristo].
A “rejeição” da Igreja se baseia na realidade de que a derradeira e máxi-
ma tentativa empreendida pela criatura humana na Igreja — a tentativa de ouvir
e falar a Palavra de Deus, — é “titanismo”, [anseio de grandeza] e sua realiza-
ção é impossível; [aliás,] é justamente esta tentativa que, mais do que qualquer
outra, esmaga o ser humano. A prova: Cristo foi crucificado pela Igreja.
A Igreja procura a Deus e o rejeita quando ele vem a seu encontro por-
que não quer aceita-lo e, pelo conhecimento de semelhante catástrofe, tem lu-
gar “a filiação do mundo”.
Quando o “homem velho”, alcandorado no pináculo de suas possibilida-
des na Igreja, perceber que é pecador e que precisa morrer em Deus, então nasce
o “homem novo” que tem “paz com Deus” (5, 1). “Fomos feitos filhos de Deus
pelo sangue de seu Filho, quando éramos ainda [seus] inimigos”. [5, 8-10].
De que outra forma ou onde veremos este “ainda inimigos” e esta
“filiação”, senão no colapso da Igreja?
Onde [ou quando] pisou o próprio Paulo a soleira do Mundo Novo se-
não quando abandonou o farisaísmo no tempo assinalado segundo uma seção
longitudinal de sua vida física?
É nesta característica da Igreja em colapso e do farisaísmo que a si mes-
mo suprime que eles têm a derradeira justificação de sua existência: é por este
judeu que se interessa o gentio e é por esta Igreja que se interessa o mundo. E
esse interesse é cabal!
Por eles (judeu e Igreja), a humanidade tem a prova de que sempre há
um lugar onde se vai às últimas conseqüências das possibilidades que ela re-
cebeu, lugar esse onde, na evidente impossibilidade do mundo, se mostra a
possibilidade de Deus.

625
11, 15-18 Uma Palavra aos de Fora

Porquanto agora sabemos que a REJEIÇÃO não é a palavra final, a


derradeira, a última, nem para as experiências da vida humana (todas elas!),
nem para os empreendimentos eclesiásticos — (as atividades da Igreja).
Semelhantemente, FILIAÇÃO E PAZ COM DEUS, em sua significação total-
mente inaudita, também não são palavras finais.
Além da REJEIÇÃO aguarda-nos a ACEITAÇÃO, a absorção das im-
possibilidades humanas pela possibilidade divina; aguarda-nos a unidade da
origem com a presente existencialidade; o revestimento do que é corruptível
com a incorruptibilidade; aguarda-nos a eternização do tempo, o Novo Céu e a
Nova Terra.
Tudo isto espera pela... IMPOSSIBILIDADE DA IGREJA.
Se é certo que em nenhum lugar fica mais patente o que seja REJEIÇÃO
do que na Igreja, também é certo que em nenhum lugar fica tão claro o que seja
a ACEITAÇÃO desta criatura, neste mundo, do que [nesta mesma] Igreja.
Quando o homem ouvir falar a Palavra de Deus em verdade e realmen-
te, quando o Evangelho (mas verdadeiramente o Evangelho e não “algum cris-
tianismo” qualquer!) for pregado em todo mundo, quando o programa da Igre-
ja for executado como o programa de Deus, então... — O que diremos “então”?
— “Então” não é tempo e é qualquer tempo! Portanto, diremos “aí” para evitar
que se pense em possibilidade escatológica temporal e não da possibilidade
escatológica final, da qual aqui se trata; [portanto dizemos] aí, quando a possi-
bilidade humana consubstanciada na Igreja coincidir com aquilo que essa pos-
sibilidade de fato significa e pretende ser, isto é, [quando a possibilidade huma-
na representada na Igreja] coincidir com a possibilidade do próprio Deus e de
Deus somente, aí acontece mais do que FILIAÇAO, mais do que PAZ COM
DEUS; aí acontece a “VIDA que vem da morte”. Em outras palavras: a “NÃO
REJEIÇÃO” da Igreja mas a sua aceitação, — a realização da Igreja de Jacó; é
a mesma coisa que a manifestação da glória de Deus, da qual nos gloriamos
AGORA em esperança — mas apenas em esperança — (5, 2); é a mesma coisa
que a redenção do mundo por Deus.
Onde há esperança, aí há também esperança para a Igreja e isto precisa
ser dito a “vós, gentios”, vós que observais lá de fora, (tanto mais que, precisa-
mente como tais, sois justificados!)
Esperança da Igreja! Neste sentido, toda esperança é da Igreja, pois na
esperança que há para a Igreja está encerrada [enfeixada] toda esperança.
Se há lugar onde se toma o caminho para cura da enfermidade do mun-
do, este lugar será obrigatoriamente, [lógica e necessariamente,] no ponto onde
[essa enfermidade] se manifesta [na Igreja!].
— Pelo que esperamos?

626
Uma Palavra aos de Fora 11, 16-18

— Esperamos ouvir e falar existencialmente a Palavra de Deus.


Se existe no mundo algum acontecimento que merece a atenção geral da
humanidade é aquele que, inutilmente, se empreende sempre de novo e
reiteradamente dentro de quatro paredes, ouvindo e proclamando a Palavra de
Deus (a despeito de, na realidade, [este exercício] sempre se fechar em si mes-
mo e voltar a si mesmo!).
(A tradução inglesa escreve: “Se a humanidade como um todo houver
de ter sua atenção voltada a esse evento existencial — [refere-se ao evento de
ouvir e enunciar (proferir) a Palavra de Deus) — isto pode ocorrer apenas entre
as paredes onde a tentativa de ouvir e falar a Palavra de Deus é feita
continuadamente e onde continuadamente falha”.]

Vs. 16 a 18 Se as primícias forem santas, também o será a massa. Sendo santa


a raiz, também o serão os ramos porém, se alguns dos ramos foram que-
brados e tu, como oliveira brava, foste enxertado no lugar deles e feito
participante das pingues raízes da oliveira verdadeira, não te ergas acima
dos ramos! Mas ainda que te levantes acima deles, não és tu que suportas
a raiz mas a raiz a ti.

[Ver a tradução de Almeida, ligeira — mas não substancialmente diferente].


“Se as primícias forem santas, também o será a massa. Sendo santa a
raiz, santos também serão os ramos”.
As santas “primícias”, “a raiz” santa, é a derradeira possibilidade; a pos-
sibilidade escatológica, que é o tema e, portanto, o julgamento e a promessa da
Igreja; é dela que a Igreja se forma [se estabelece] e por ela a Igreja precisa
reformular-se sempre; é nesta possibilidade que a Igreja se despedaça e precisa
despedaçar-se. É nela [também] que a Igreja espera não se despedaçar, quando
e onde nada há a esperar. (4, 18; 5, 5; 9, 33; 10, 11).
Não permitamos que a analogia das “primícias e da massa” ou da “raiz e
dos ramos”, nos desvie [e nos leve] à conclusão de que aqui se trata de alguma
continuidade “orgânica”, alguma relação imanente entre a Igreja com sua origem
e com seu fim. Talvez, usando as palavras “primícias” e “raiz”, Paulo estivesse
pensando nos Patriarcas ou então, nos escolhidos de Israel. (II, 9). Todavia, mes-
mo no caso dessas figuras históricas, sê-lo-á apenas como portadoras daquela
possibilidade escatológica mas em nenhuma hipótese como alguma coisa tradici-
onal “extra” ou “intraterrena”, ou como alguma conjuntura deste mundo.
[O que à primeira vista parece ser claro no texto é a singela afirmação de
que aquilo que é santo, que é separado por Deus pela sua livre e soberana
vontade, só pode produzir o que é santificado.

627
11, 16-18 Uma Palavra aos de Fora

Assim, como as “primícias da farinha” (Deut. 18, 4) separadas (santas)


por Deus e para o serviço de Deus, somente poderiam produzir a massa (o pão)
santificado para o Serviço do Senhor, ou assim como a seiva gerada pelas raízes
só pode produzir o fruto que a seiva contém, assim também é santo (separado
por Deus) quem (ou o que) Deus santificou — seja pessoa, obra ou organização.
Este “assim como” não significa paralelismo nem a continuidade ou a
igualdade de alguma proposição; é apenas analogia humana do paradoxo e da
realidade divina: realidade porque Deus faz o que lhe apraz; paradoxo porque,
nessa liberdade, enxerta o que é menos nobre no que é mais nobre, para que
nenhum dos dois se orgulhe; para que ambos tenham a Deus por Deus, que a
um dá segundo o que não merece: enxerto vil em tronco nobre; ao outro não dá
o que pensa merecer: a primazia; para que ambos saibam que Deus não se
deixa levar segundo os respeitos humanos, pois perante ele TODOS PECA-
RAM e destituídos estão da glória de Deus].
A santidade da origem e do fim [do Alfa e do Ômega] não pode ser
considerada em nenhuma analogia e a participação do “meio” [do “presente
século”] nesta santidade — isto é — a ligação [ou alguma interdependência]
entre a Igreja de Esaú, nossa conhecida, e a Igreja de Jacó, que não conhece-
mos, é totalmente impossível.
A esperança da Igreja é a santidade de Deus em sua mais absoluta
transcendentalidade e maravilha; é a santidade do Deus que habita em luz, onde
ninguém pode chegar. Todavia, esta é a esperança da Igreja porque, — confor-
me acabamos de ouvir, (11, 13-15), — é justamente na Igreja [na posição que a
Igreja ocupa no mundo] que a aflição e a culpa [do mundo] tomam corpo em
toda sua grandeza [e extensão] todavia, se fazem presentes na qualidade de
pergunta que já foi respondida por Deus: esta é a esperança que, na total falta
de santificação da Igreja, [verdadeiramente] a santifica e santificará sempre de
novo.
“Todavia, se alguns dos ramos foram quebrados e tu, como oliveira bra-
va, foste enxertado no lugar deles, não te ergas acima dos ramos” [legítimos]
“Paulo é na verdade, um homem da cidade; Jesus, porém, do campo”
(Lietzmann).
Não; verdadeiramente não é por acaso que Paulo faz esta analogia tão
absurda do ponto de vista agronômico; antes ele recorre a esta semelhança para
chamar atenção a inviabilidade (ou ao absurdo) de que se trata aqui e que não
permite estabelecer qualquer analogia humanamente lógica.
O corte dos ramos da oliveira legítima: a condenação da Igreja; o enxer-
to dos ramos da oliveira brava no lugar dos ramos legítimos: a eleição dos que
“estão fora”.

628
Uma Palavra aos de Fora 11, 17-18

Uma coisa é tão espantosa quanto a outra, mas é exatamente disto que se
trata: Deus não se deixa achar por aqueles que o buscam mas torna-se achável
por aqueles que não o procuram (10, 20). [Não há nada que possa justificar a
idéia “torna-te achável e Deus te achará” — antes os que isto praticam ou ensi-
nam, buscam a justificação de forma (por assim dizer) ainda pior que Israel (ou
a Igreja), pois tentam buscá-la e alcançá-la como que por subterfúgio, por astú-
cia, talvez “manhosamente”; contra tais levanta-se a ira de Deus! ...]
[Isto se dá assim] porque Deus é Deus e quer manifestar-se e de fato se
manifesta — como Deus a ambos [os que o procuram e os que não o buscam].
Ele é a raiz santa da árvore e, cortado dele, nem o broto legítimo pode crescer;
enxertado nele, mesmo o rebento selvagem pode medrar. Não como se a vara
bravia, o gentio, o “de fora”, tivesse qualquer vantagem sobre a vara legítima,
sobre o judeu, sobre o “de dentro” [mas porque tira o sustento da “raiz santa”].
A arrogância (ou altivez) dos “de fora” que, em seu suposto progresso
livre e selvagem olham a Igreja vendo-a de cima [tratando-a com superiorida-
de] é sempre mais absurda do que seria a atitude inversa.
Se, perante Deus, a nudez dos que estão de fora não for pior do que a
dos outros, ela de maneira nenhuma será melhor do que a respeitável retidão
humana daqueles que “estão dentro”. Entendamos bem: na nudez em que a
criatura se torna aceitável a Deus, na inocência infantil ou na lamúria que lhe
dá condição para receber a justificação divina, a ser salva por Deus, a criatura
está unicamente perante Deus e não recebe [a justificação e a redenção, não
goza da aceitação de Deus] por sua “gentilidade” por sua rejeição a Igreja, ou
por suas características de filho do “presente século” mas, única e exclusiva-
mente, pela misericórdia de Deus. A sua nudez é apenas analogia da nudez
aceita por Deus!
Nenhuma “naturalidade original” (inata) da criatura humana, nem a sim-
plicidade ou retilineidade proletária, nem tampouco o muito louvado e muito
defendido discurso “antiteológico do religioso “leigo”, nem qualquer outra
consciência de fraqueza, subconsciência ou inconsciência, como também não a
consciência eclesiástica, podem justificar a criatura humana perante Deus
O que se passa na criatura humana desde os exercícios [piedosos] num
mosteiro Beneditino até [as práticas quiçá demagógicas] no círculo ideológico
da vulgar casa Social-Democrata são degraus de uma escada.
Ninguém, jamais, pôde gloriar-se de ter a pobreza de Espírito daqueles
que são absolutamente estranhos à Igreja, os tais que Jesus louvou como “bem
aventurados” e [cuja “pobreza”] justifica os gentios perante Deus, porque eles
nunca existiram. O fato de a possibilidade do perdão divino existir para os que
estão fora enquanto declaradamente não está ao alcance dos que estão dentro,

629
11, 18-22 Uma Palavra aos de Fora

somente pode ser considerado e respeitado por aqueles, como maravilha, [mi-
lagre] nunca porém, como seu direito ou seu privilégio, nem podem eles tomar
esta realidade como vantagem sua.
“Mas ainda que te levantes acima deles, não és tu que suportas a raiz,
mas a raiz a ti”.
Isto quer dizer que se tu acaso preferes ser ateu, observador [de fora],
esteta, liberal, socialista, naturalista, ou que quer que seja de que te glories em
ser, qualquer que seja o nome que dês à tua atitude de consciente autoctonia ou
“autonomia” com relação a Deus, [dando lugar à razão ou ao livre arbítrio] em
nada se altera a tua situação e não podes deixar de elevar-te acima da Igreja,
mesmo porque, tu mesmo, já há muito pertences a alguma igrejinha! Isto não
faz a mínima diferença no fato de que tu, — na melhor das hipóteses — (ape-
nas) tenhas razão naquilo que ela — a Igreja — não a tem e que vivas da possi-
bilidade que a Igreja torna impossível [dentro dela]. Sim, (na melhor das hipó-
teses!) estás dentro do SIM que tem de ser o não para a Igreja. Portanto vives
daquilo que está além da tua possibilidade e da sua impossibilidade; vives da-
quilo que está além do teu direito e além do seu erro, daquilo que está além do
teu “SIM” e do “NÃO” da Igreja.
É a raiz que te suporta”. Seria mania de grandeza pensar que pudesse ser
o contrário: que tu em tua autenticidade, tua pureza, tua honestidade, tua apti-
dão laical, pudesses ser a própria raiz, a fonte da divindade! Então,
[aparentemente]poderias livrar-te da Igreja e de sua aflição; todavia, daquilo
que ameaça e julga a Igreja, tu não te livras. Aquilo que tu és, somente o és na
medida em que esta mesma coisa [esta aflição e culpa] agora te livra de tua
[própria] exaltação!
Quem se colocar acima desta libertação coloca-se com a Igreja, na mesma
aflição e culpa; esse tal já não está mais “fora” mas já há muito tão “dentro” ou
muito mais dentro, [do que os que estão na Igreja,] um ramo cortado — (também
os ramos de oliveira brava podem ser quebrados!) — de maneira idêntica ao que
acontece [ou pode acontecer] aos ramos aos quais ele quer sobrepor-se.

Vs. 19 a 22 Disto há mais a dizer Tu dirás pois: os ramos naturais foram


quebrados para que eu fosse enxertado! Muito certo! Por sua incredulida-
de foram eles quebrados, tu porém estás onde te achas pela fé. Não te
ensoberbeças em teu pensamento, mas teme! Pois se Deus não poupou os
ramos naturais, também não poupará a ti. Vê a bondade e a severidade de
Deus: a severidade para com os que caíram; para contigo, porém, a bon-
dade divina, isto é, se tu te conservares nessa bondade; se não, [então]
também tu serás cortado.

630
Uma Palavra aos de Fora 11, 20-22

“Os ramos naturais foram quebrados para que eu fosse enxertado”!


Esta é, evidentemente, a afirmação triunfante com a qual os “eleitos”, lá
fora, sempre procuraram diminuir a posição da Igreja. Perguntamos pois: tem
de ser assim? Não poderia ser de outra maneira?
[Aparentemente] não pode ser de outra forma [à vista do discurso que
tão freqüentemente ouvimos]: é preciso proclamar que nós, (sim, nós e hoje
mesmo!) vimos a Deus; fomos arrebatados por ele, o compreendemos, o expe-
rimentamos em nossa vida; comprovamos, testemunhamos e ampliamos o seu
Reino; enriquecemos nossa existência e [tomamos] a decisão. Abandonamos
os caminhos antigos, quebramos as velhas lousas, vencemos o “homem de on-
tem”, derrubamos os ídolos que servíamos antes do “grande acontecimento”!
Eis que agora se aproxima o nosso dia”! (E assim por diante).
A isto só podemos responder: “Muito bem”! (Quem haveria de querer
combater ou refutar semelhante discurso? Ele é a senha [ou a ladainha] que
sempre se ouviu [e se ouve] quando a tiragem do sopro divino abre uma porta
aqui e fecha outra acolá; quando a liberdade divina aqui liberta as criaturas e ali
as oprime; quando aqui cria um vaso para adorno e mais adiante outro para a
imundícia; quando cá se espalha a luz e acolá a sombra.
Por isto, aquela maneira de dizer, [aquele discurso] pode, talvez, ser
qual analogia da verdade substancial se, ao menos, tiver algum sentido e não
for apenas, desde o seu começo, ledo engano.
Por que não haveriam os “de fora” de entoar o seu “hino da
temporalidade”, [o hino] “da alegria de viver”, como hino de louvor a Deus?
Porém, “eles foram quebrados pela sua incredulidade; tu porém estás
onde te achas, pela fé”.
Este é o critério dos Eleitos que, em todo caso, recomenda cuidado. É
perigoso alguém estimar sua própria posição no Reino de Deus. É perigoso o
indivíduo imaginar-se como personagem da história da salvação e comparar-se
com outros! É perigoso a gente saber bem demais o que e quem se é. É melhor
que deixemos a tarefa de nos conhecer, inteiramente a Deus, pois é no seu
conhecimento que está a decisão sobre se aquilo [que eventualmente existe em
nós, ou que supomos ser] é verdadeiro ou se é mentira e mera presunção.
O fundamento para a eleição é a fé e a base para a condenação é a incre-
dulidade. Quem, porém, é crente? [Quem tem fé?] E quem é incrédulo? Tanto
a fé como a incredulidade são fundamentadas em Deus, de modo invisível,
imperceptível e incerto para nós. É a raiz; a raiz que o faz. E que vantagem terá
[ou teria], acaso, o ramo bravo (com respeito à raiz!) sobre o ramo legítimo que
foi cortado?
Portanto, “não te ensoberbeças em tua mente, porém teme”!

631
11, 21-22 Uma Palavra aos de Fora

“O tom de absoluta consciência da salvação, [encontrado] em 8, 28 e


29, não soa aqui” (Juelicher) contudo, soa perfeitamente! Aquilo que lá se diz,
refere-se “aos que amam a Deus” e o amor a Deus brota, sempre de novo, do
temor a Deus do qual aqui agora ouvimos novamente como o princípio do
conhecimento [ou da sabedoria].
Fé não é alguma coisa (como por exemplo “devoção” ou piedade) de
que a gente possa gloriar-se ou que alguém possa exibir e contrapor a Deus e
aos homens ou então pelo que alguém possa ensoberbecer-se. A fé brota sob
temor e tremor por Deus ser Deus; o que não surgir desta forma não é fé mas
incredulidade e fundamenta a condenação.
Certeza de salvação (se esta duvidosa expressão puder ser empregada!)
não é propriedade de alguém que a pudesse trazer a campo contra (ou também
a favor!) de alguma Igreja. — Não pode haver incompreensão mais terrível dos
Reformadores. É Deus que decide e sua magnanimidade é semelhante à sua
severidade; (tanto a magnanimidade como a severidade!) se renovam dia a dia:
contemplai-as pois! A eleição pela graça vale! “Certeza de salvação” sem a
mais restrita dupla predestinação, certeza de salvação segundo a interpretação
que lhe dá o protestantismo mais recente, é pior do que gentilidade!
[A versão inglesa escreve assim: “Certeza de salvação,” a frase é de
duvidosa legitimidade, — não é possessão que se alegue pró ou contra a Igreja.
Somente a completa incompreensão dos Reformadores poderia levar a seme-
lhante opinião. A decisão é de Deus. A sua bondade e sua severidade, por serem
suas, se renovam cada dia. Não nos podemos esquecer de que a eleição subsiste
pela graça. Uma ‘certeza de salvação’ separada da mais exclusiva ‘dupla
predestinação’, isto é, como a certeza conforme tem sido entendida no protes-
tantismo recente, é pior do que o paganismo”.]
“O espírito servil de Hagar se exalta quando recebe alguma coisa, mas
este é o caminho da expulsão” (Steinhofer). Agora, pois, é necessário lembrar
que o discurso já tantas vezes proferido contra a Igreja pelos que “estão de
fora”, na verdade, foi sempre o sino que anunciou uma nova Igreja que, [toda-
via,] nunca precisou esperar muito para sentir a aflição e a culpa da antiga e que
logo se reuniu com esta, entre os ramos quebrados.
“Porque se Deus não poupou os ramos naturais, também não poupará a
ti. Vê a bondade e a severidade de Deus; a severidade para com os que caíram;
para contigo, porém, a bondade divina, isto é, se tu te conservares nessa bonda-
de; se não também tu serás cortado.
Precatemo-nos mais dos “leigos” que exibem sua laicidade e dos filhos
deste mundo que se mostram conscientes e felizes de sua mundanalidade, do
que de todos sacerdotes.

632
Uma Palavra aos de Fora 11, 23-24

Aqueles “de fora” que são realmente eleitos, não darão semelhante senha.
(A tradução inglesa diz: “Leigos que exibem o fato de o serem e homens
do mundo que se mostram satisfeitos com sua mundanalidade constituem — se
isto fora possível — ameaça maior do que a pretensão de um clero arrogante.
O genuíno eleito que está fora da Igreja evita a linguagem de vitória”.)

Vs. 23 e 24 E também aqueles, se não insistirem na incredulidade, serão enxer-


tados. Pois Deus é poderoso para reenxertá-los. Pois se tu foste tirado da
oliveira brava que é segundo a tua natureza e contra tua natureza foste
enxertado na oliveira nobre, quanto mais estes, com naturezas semelhan-
tes, serão enxertados em suas próprias oliveiras!

[A tradução de Almeida escreve o v. 24, mais simplesmente e mais cla-


ramente: “Pois se foste cortado da que, por natureza, era oliveira brava e contra
a natureza enxertado em boa oliveira, quanto mais não serão enxertados na
própria oliveira aqueles que são ramos naturais.”
A esperança da Igreja continua inabalável e inatacável. “Aquele que
dispersou Israel novamente o reunirá” (ler. 31, 10). É de Deus que procedem
ambas as coisas: a condenação e a Eleição. Ambas são, sempre de novo, mara-
vilhosas, incompreensíveis e obscuras. Porém, mais maravilhosa, mais incom-
preensível e mais obscura que a eleição dos que sempre buscaram a Deus, é a
eleição daqueles que não o buscaram; estes têm motivos para esperar exclusi-
vamente pela graça e por isso têm razão para ter esperança com a Igreja e pela
Igreja.

Comentários: 11, 11-24

Acaso não se salvarão os gentios, sem o endurecimento de Israel?


(Ver exegese de 11, 11).
— Quem és tu, ó homem, que assim interrogas a Deus? Acaso já não
aprendeste que os seus caminhos não são os nossos caminhos e os seus
pensamentos não são os nossos pensamentos?
Todavia, se perguntas como homem, eis a resposta do ponto de vista
humano. Deus elege e rejeita ou melhor, rejeita e elege, porque maior é
a eleição. Nisto está a liberdade divina A liberdade de Deus poderia ser
comparada à iniciativa do oleiro que da mesma argila faz um vaso para
o adorno e outro para a imundícia; Deus mostra sua liberdade preferin-
do Jacó e preterindo Esaú; conduzindo Moisés e endurecendo Faraó.

633
11, 11-24 e 25-36 O Alvo

Por que? Para que?


Porque ele é Deus e para que os homens vejam! Vejam, e voltem ao
Senhor.
Ora, é para isto, para que o gentio veja e receba a mensagem da
eleição divina, que Deus endureceu a Israel fazendo dele o instrumento,
dócil ou não, nas suas mãos.
Lembremo-nos desta outra parábola; Jonas não quis ir a Nínive; to-
davia Deus não se sujeitou aos caprichos do profeta antes sujeitou-o e a
cidade foi salva.
Deus não precisa que o homem “queira” obedecer ou esteja pronto a
servi-lo. Deus determina. Israel foi nomeada “nação sacerdotal”: “Tu
serás uma benção ‘e’ em ti serão benditas todas as famílias da terra”.
Mesmo tropeçando, a missão tem de ser cumprida.
Mais feliz teria sido Jonas se houvesse partido de coração alegre,
para a sua missão; mais feliz seria Israel se não houvesse tropeçado em
Cristo Jesus. Mais depressa ter-se-ia arrependido Nínive e mais cedo
alcançariam os gentios a sua eleição; Jonas não teria sido lançado ao
mar e Israel não teria sido, parcialmente, endurecido. Mas Jonas, do
abismo, clamou ao Senhor e, de Sião virá o libertador de Israel. Então
raiará a aurora do dia glorioso de Jesus Cristo e se reunirão ao Rei da
glória os eleitos de Deus. Israel e os gentios; os de fora e os de dentro da
Igreja. Aleluia.

O ALVO (11, 25-36)

Assim como a Igreja somente se compenetra de sua culpa e sente a sua


aflição quando se defronta com a santidade de Deus; assim como a Igreja não
tem em quem depositar sua esperança se não em Deus e em Deus somente,
assim também o seu objetivo — o seu alvo — é “apressar o dia glorioso em que
os remidos todos se reunirão”; é apressar a plenitude dos tempos — a segunda
vinda de Cristo — o que ela só consegue em Deus e por Deus. Nele, por ele e
para ele são todas as coisas.
O alvo da Igreja é o seu objetivo para o além, é a eternidade, é a habitação
nos tabernáculos eternos da Cidade Santa onde, todavia, já não haverá Igreja —
onde ela terá deixado de ser — porque o seu Santuário será o próprio Senhor
dos céus e da terra: será Deus. A Igreja visível a “Igreja de Esaú”, só pode
alcançar o seu objetivo pela esperança que é sustentada pelo firme fundamento
das coisas que se não vêem: pela fé! Por isto, o alvo está posto na compaixão de
Deus. O alvo está posto na compaixão de Deus porque, na realidade, a ansiedade

634
O Alvo 11, 25-27

do coração humano se resume no desejo, no anseio profundo de regressar ao


convívio do Pai, na paz e amenidade do paraíso perdido, O alvo da Igreja é o
objetivo de seus membros: a possibilidade da plenitude divina para todos os
que crêem, quando enfim, na qualidade de novas criaturas, revestidos como
eleitos de Deus, vinculados pela sua graça, serão todos “UM EM CRISTO” e
Cristo será, eternamente, tudo em todos.

Vs. 25 a 27 Porquanto eu gostaria, irmãos, que este mistério não vos passasse
desapercebido — e vos emocionásseis em vossos eventuais pensamentos:
o endurecimento veio parcialmente sobre Israel, até o advento da plenitu-
de para os gentios. E nestas circunstâncias todo Israel será salvo, confor-
me está escrito: O Libertador virá de Sião e suprimirá as impiedades de
Jacó e esta será a aliança com ele, estabelecida por mim: eu retirarei os
seus pecados.

[Talvez valha a pena confrontar a redação de Barth com a de Almeida,


que se assemelha às demais versões aqui citadas e diz: “Porque não quero,
irmãos, que ignoreis este mistério para que não sejais presunçosos em vós mes-
mos, que veio endurecimento em parte a Israel, até que haja entrado a plenitude
dos gentios. E assim todo Israel será salvo, conforme está escrito: virá de Sião
o libertador, ele afastará de Jacó as impiedades. Esta é minha aliança com eles,
quando eu retirar o seu pecado”. A S.R.V. deixa mais claro que o “endureci-
mento” veio sobre PARTE de Israel até que o número pleno [completo] dos
gentios “entre”. A Versão Sinodal Francesa escreve, “receando que vos tomeis
presunçosos por vossa sabedoria, não quero, irmãos, que ignoreis este mis-
tério: o endurecimento de uma parte de Israel durará até que a totalidade dos
gentios seja aceita à salvação”. Todavia, Barth faz um comentário de pé de
página sobre a expressão DE SIÃO — isto é, “saindo de Sião”, afirmando que
Paulo cita a passagem de Isaías 59, 20 segundo a septuaginta porém com a
notável modificação que antecede a palavra Sião; a citação usual em Isa. 59, 20
e “a” Sião ou “para” Sião; segundo Beza — é o A. quem o diz — teria havido
descuido de algum escriba ou Paulo teria usado apenas a abreviatura da
preposição original. Barth porém conclui que a despeito da firmeza e da clareza
da exposição de Beza e também apesar de todos (ou aparentemente todos)
comentaristas concordarem tacitamente com essa explicação, ele (Barth) não
se sente à vontade para acompanhá-la simplesmente e acha que deve colocar
essa interpretação, pelo menos, em dúvida; diz ainda que Calvino tinha razão
ao observar que APTIUS AD PROPOSITUM QUADRABAT LOQUUTIO,
QUA UTITUR PROPHETA. Se a preposição conforme transcrita for Paulina

635
11, 25 O Alvo

— e o A. não ousa adotar imediatamente a conjetura levantada por Beza, —


“então lhe precisa ser feita justiça na exegese”. É o que o A. tenta fazer na
exposição que segue].
“Gostaria que este mistério não vos passasse desapercebido — e vos
emocionásseis em vossos eventuais pensamentos”.
Chama-se ESPERANÇA ter os olhos firmemente postos para a realida-
de sem esperança; conhecer a sua relatividade, tendo ciência de que o alvo que
a esperança busca é o objetivo invisível do além. Esta desesperançosa realidade
em seu oculto duplo sentido, no retraimento e na incompreensibilidade que
somente podem ser rompidos mediante o “conhecimento” [a percepção] indi-
reto que a esperança proporciona, é o MISTÉRIO. Mistério na linguagem do
Apóstolo é aquilo que designamos por PARADOXO.
Mistério, é a existência do homem do pecado que impede o raiar do dia
de Jesus Cristo (II Tess. 2, 7). Mistério é a perturbadora falta de simultaneidade
dos vivos e dos que já adormeceram com relação à ressurreição (1 Cor. 15, 51).
Mistério é a unificação — A PRIORI tão duvidosa — de marido e mulher no
matrimônio (Ef. 5, 32). Mistério é, acima de tudo, o próprio evangelho, no qual
palavras enunciadas por lábios humanos podem conter a Palavra de Deus!
“QUOTIES DESPERATIONEM NOBIS INIICIT LONGIOR MORA,
OCURRIT MIYSTERII NOMEN” (Calvino).
Também a situação entre o homem e Deus, conforme ela se situa sob o
ponto de vista da Igreja, é “MISTÉRIO”.
Insuportável enigma é o fato de que [no mundo] conhecemos e conhece-
remos diretamente apenas a aflição e a culpa de Israel; somente conhecemos e
conheceremos a Igreja de Esaú. [Considerando que a missão da Igreja é anunciar
o Reino de Deus] é realmente um mistério que ela não seja a sede da revelação,
conforme ela tanto gostaria e mediante o que ela se sentiria realizada; [mais enig-
mático ainda é que, paradoxalmente,] até acontece o contrário e, por toda parte e
sempre, é na Igreja que se nota o total obscurecimento da revelação de Deus
enquanto em outros lugares há revelação e eleição que, simplesmente, passam ao
largo deixando a Igreja, toda e qualquer Igreja, de lado e para trás. Este mistério,
em primeiro lugar, precisa ser entendido como tal. Não nos deve passar desaper-
cebido, não devemos ignorar, que aqui nos deparamos com um enigma que nos
foi proposto (e posto) por Deus e por isso é preciso que [neste assunto o desígnio
de] Deus seja tomado em consideração. Ante esta realidade, expressões como
“consolado desespero” e “conclamamo-vos a que tenhais esperanças” são mani-
festações do ser humano em sua extremidade e em contraposição a elas já não
têm lugar os “eventuais pensamentos” e as “presunções” com que enfrentamos
tão casualmente os enigmas temporais que nos são propostos.

636
O Alvo 11, 25

“Pensamentos eventuais” ante a aflição e culpa da Igreja são todas im-


pacientes agitações auto justificativas que só podem ser explicadas subjetiva-
mente: as irritabilidades, desilusões, tristezas, pretensões, vocação a mártir,
[masoquismo], que surgem no mundo por falta de entendimento da problemá-
tica final.
[A tradução inglesa escreve: “É de primordial importância que não seja-
mos ignorantes deste mistério [ou que não o ignoremos] pois é o enigma dado
por Deus, no qual verdadeiramente o encontramos. O divino mistério da con-
solação no desespero, de exortação à esperança, está em oposição a todas essas
palavras humanas finais, a toda essa sabedoria de nossos PROPRIOS CON-
CEITOS, a todos esses enigmas que propomos. Confrontadas com a seqüência
real dos eventos observáveis da vida humana, nossas palavras são totalmente
irrelevantes. Confrontadas com a aflição e culpa da Igreja nossas incansáveis e
subjetivas explicações, nosso excitado e irritado dogmatismo, nosso desapon-
tamento e desespero, nosso heroísmo e nossa confiança, apenas expõem os
nossos CONCEITOS PRÓPRIOS, porque se originam de nossa falta de enten-
dimento da situação real”].
Vale considerar que o contraste [o antagonismo, a incompatibilidade] en-
tre a IGREJA e o REINO DE DEUS é infindável (9, 6). Neste contraste ninguém
pode estar do lado que tem razão e ninguém pode pensar senão com temor e
tremor naquele que aqui tem razão. Ninguém tem competência para desesperar
do lado humano sem desesperar de si mesmo. Ninguém tem licença para não crer
mais na Igreja pois isto seria como se ele estivesse, ao mesmo tempo, deixando
de justificar-se. Ninguém está, aqui, em situação de não ter esperança.
Estamos perante o mistério de Deus quando nos deparamos com o mis-
tério da Igreja. É só por isto e por nada mais, que há lugar para a esperança.
“O endurecimento veio parcialmente sobre Israel até o advento da ple-
nitude para os gentios.”
[Ou, em outras palavras, “o endurecimento veio para parte de Israel, até
que a totalidade dos gentios entrasse”].
A catástrofe da Igreja mostra-nos uma conjuntura da qual não podemos
afastar Deus em sequer um só ponto; “dele, por ele e para ele são todas as coisas”
(II, 36). É Deus que torna inevitável a tarefa que a Igreja impõe a si mesma.
[A tradução inglesa escreve: “É através d’Ele que a tarefa da Igreja se
torna inevitável. Mas Ele é a impossibilidade que priva a Igreja de cumprir sua
tarefa”].
Ele [Deus] é a grande impossibilidade que inviabiliza essa tarefa. É a ele
(Deus) que [justamente nessa tarefa] a criatura humana fica devedora. É Deus
que aperta o ser humano de todos os lados como se fora um grampo de aço e

637
11, 25 O Alvo

que assim se revela ao homem (se dá a conhecer) como o único Deus, como o
que está além [do outro lado] da culpa e da aflição; [dá-se a conhecer como] o
alvo [da criatura neste mundo e, quiçá no além].
O mesmo Deus que elege Saul, condena esse Saul para eleger Davi. Por
que? Porque ele é Deus! “Minha alma está calada perante Deus, que é meu
auxílio” [Sal. 62, 1]. É justamente esta obra inaudita que é divina. Obra ordena-
da [mandada] e mansa [silenciosa, calma, pacífica] em vista da qual se pode e
se precisa ter esperança [porque ela se impõe drasticamente].
Fora essa obra menos inaudita não seria divina e à criatura humana res-
taria algo mais do que permanecer silenciosa e ter esperança.
Velado e oculto fez-se Deus aos olhos de Israel; fez-se desconhecido e
impossível para eles.
A criatura (na sua qualidade de ser humano) não pode conhecer a Deus;
os homens não [o] verão com os olhos que vêem nem [o] ouvirão com ouvidos
que ouvem; “é inútil todo o humano querer e buscar; inúteis são as ponderações
e os anseios dos homens. O ponto decisivo se perde [sempre] e precisa ser
perdido. A criatura não chega ao arrependimento, nem deve chegar a ele, por
causa do arrependimento verdadeiro e, “mesmo que tentem abocanhá-lo, como
o cão à mosca, ele foge sempre”. (Lutero).
Isto é o endurecimento e esta é a situação da Igreja de Esaú.
Justamente porque a opressão de Israel é tão grande, porque ela é inter-
minável, ela tem um verdadeiro ALÉM, um fim real em Deus — o próprio
Deus — que é o ALÉM de todo ALÉM; o fim de tudo quanto é “infindável”.
O “endurecimento” é, em primeiro lugar, apenas parcial, apenas relativo,
porque procede de Deus. Existem sempre sete mil eleitos (11, 14), invisíveis, que
já foram consolados na opressão e dela salvos, os quais se opõem à totalidade dos
corrompidos. A alta muralha que sempre e por toda parte separa o ser humano de
Deus, torna-se transparente (quando o milagre acontece e, portanto, nunca e em
lugar algum [separa os homens de Deus]: o Senhor conhece os seus!
Em segundo lugar, o “endurecimento” não é mais do que uma condição
temporária da criatura.
A eternidade sendo manifestamente o limite da temporalidade, é tam-
bém o fim deste “endurecimento”. A eternidade é a origem de onde a
temporalidade procede e é também o alvo para onde ela segue. O fim é o alvo
do “endurecimento” e a possibilidade escatológica da “entrada da plenitude
para os gentios”. (II, 12 e 13).
Esta possibilidade [escatológica] divina precisa, manifestamente, ser
precedida pela exaustão [total] das possibilidades humanas (isto é, quando já
não houver mais “endurecimento”; a morte do “homem velho” precisa preceder

638
O Alvo 11, 25-26

ao nascimento do “homem novo” e o raiar do dia da salvação precisa ser prece-


dido pela catástrofe da Igreja.
Naquela Jerusalém onde não haverá templo, [não haverá santuário por-
que o seu santuário é Deus e o Cordeiro], os gentios salvos [as nações da
terra] andarão à luz da glória de Deus e do Cordeiro [que é sua lâmpada].
(Apoc. 21, 22-24).
Conhecendo este alvo e este fim, vale a pena conservar as vistas volta-
das [em firme esperança] na desesperançada realidade do endurecimento de
Israel; vale a pena permanecer em silêncio e ter esperança.
“Nestas circunstâncias, todo Israel será salvo”.
A salvação dos perdidos, a justificação dos que não têm justificação, a
ressurreição dos mortos, precisa proceder exatamente de onde veio sua catástrofe.
A Igreja é a corporificação do ser humano que recebe a revelação de
Deus; porém este ser humano, como tal, está perdido, sem razão e morto. (Este
é o mal de José que irrompe na Igreja). A salvação, a justificação e a ressurrei-
ção só podem ser esperadas pela criação da nova criatura mediante a revelação
de Deus; [esta nova criatura] então, invisivelmente, entra no lugar da “velha”
da qual é o alvo, o sentido e a plenitude, da mesma forma que esta “velha”, em
seu “endurecimento”, toma o lugar da “nova” no mundo ou, pelo menos, o
marca e guarda; na verdade, a “criatura velha” constantemente compromete a
“nova”, por ela sofre e por ela espera. A criatura velha é a prefiguração “daque-
le que há de vir”. (5, 14).
Esta “nova criatura” vindoura, salva pela revelação de Deus, justificada e
vivificada, constitui junto com os eleitos de Israel, a gentilidade eleita em Cristo.
Também aqui, achamos que não se trata de grandeza histórica, de certa
soma de indivíduos anímicos, nem de conscientes ou inconscientes “cristãos
gentílicos”.
A existência casual de alguns “cristãos gentílicos” tem apenas sentido
demonstrativo pois significa que a nudez, a cegueira, a desesperança do gentio,
em contraste com a plenitude, a saúde, a satisfação e a certeza de Israel, aponta
ao homem eleito pela graça, em Cristo.
O Homem Novo — “Jacó” — não pode ser caracterizado mais clara-
mente como a pessoa criada por Deus do que mediante o contraste com seu
irmão mais velho — “Esaú” — este na qualidade da pessoa que “ouve” e “fala”
a Palavra de Deus.
Não se pode expressar mais claramente que a pessoa que ESCOLHE a
Deus, precisa dar lugar à pessoa ESCOLHIDA por Deus. Isto é o que precisa
ser dito e ouvido. Este é o sentido da dupla predestinação; este é o mistério de
Deus e o alvo de sua sempre reiterada e preservada liberdade.

639
11, 26 O Alvo

Quando isto for proclamado e ouvido completa-se a revelação de Deus


aos homens e então acontece a impossível possibilidade escatológica; nesta
possibilidade, aquele que a recebe [que recebe a revelação] só pode retroceder,
só pode diminuir, só pode desaparecer e, assim retrocedendo, diminuindo, de-
saparecendo, é salvo, justificado e despertado; salvo, como aquele que se per-
deu, justificado sendo indigno de justificação, despertado de entre os mortos.
Este é o acontecimento impossível que se torna possível em Cristo; é Deus
testificando e resguardando a sua divindade não apenas em sua ira porém, tam-
bém e de forma totalmente diferente, em sua misericórdia.
Em nenhuma outra circunstância (e de nenhuma outra forma) pode a
criatura encontrar socorro, mesmo quando estiver no ponto mais alto de suas
possibilidades, ouvindo e falando a Palavra de Deus. Não há qualquer meio de
salvação, justificação e ressurreição em eventos históricos e psicológicos. Sal-
vação existe somente no FUTURUM RESSURRECTIONIS, na contemplação
da invisível existência de Deus.
Isto vale para todo Israel, para a totalidade da Igreja, para cada Igreja;
isto é a prefiguração daquilo que é vindouro, é o cumprimento da profecia, é o
canal ao longo do qual jorra a água viva da revelação.
“Só onde existem túmulos, há ressurreições”, (Nietzsche) mas há ressur-
reição onde sempre existem túmulos. Onde a Igreja estiver extinta (não por força
do desejo — ou voto — humano, mas pelo julgamento divino!), aí ela tem o seu
início; quando ela for destituída completamente da razão (da justificação), aí co-
meça a sua razão. Onde e quando todas Igrejas estiverem liquidadas (por Deus!),
aí e então todas elas subsistem; aí e então todas são indicação, soleira de entrada,
flecha indicativa da outra margem do rio; testemunhas da esperança, mensagei-
ras da filiação em Cristo, tabernáculos de Deus entre os homens.
Onde [e quando] os gentios forem os missionários da mensagem da
liberdade e da misericórdia de Deus junto à Igreja, com toda promessa e humi-
lhação que essa mensagem contém, então pode ser que, de fato, tenha chegado
a hora de a Igreja enviar a missão aos gentios; tal oportunidade deve, então, ser
aceita e aproveitada o mais depressa possível, com a máxima alegria e com
toda diligência, conforme se o pode notar no próprio Apóstolo.
A Igreja assim dobrada (assim humilhada), pode e deve assumir o seu
tema de fronte erguida e a Igreja perdida se tornará a portadora da mensagem
da salvação.
A Igreja espantada [surpreendida] pode e precisa falar do Deus com o
qual se transpõem as muralhas. A Igreja, irremediavelmente consciente de suas
limitações pode, então, impávida e incansável, ousar desincumbir-se de sua
desalentadora tarefa, que não tem fronteiras.

640
O Alvo 11, 26-27

A profecia do “segundo” Isaías sobre o servo de Deus que as nações


devem ouvir surgirá então e terá cumprimento. Onde a palavra da Cruz for
reconhecida e aceita como sendo a impossibilidade divina que se opõe a toda
carne, aí também se reconhece que Cristo ressurgiu, e sua ressurreição vale! Aí
se toma [esta realidade] como a possibilidade de Deus em espírito e em verdade.
[O “segundo” Isaías refere-se ao “Profeta do Exílio” cuja mensagem
começa com o Cap. 40; nesta parte do seu livro Isaías fala da promessa de Deus
de libertar o seu povo enviando-lhe o Messias e a promessa da “implantação”
da “Nova Jerusalém”].
“O Libertador virá de Sião e removerá as impiedades de Jacó, e esta será
a aliança com ele, por mim estabelecida: eu retirarei os seus pecados.” (Isaías
59, 20 e 27, 9).
[Talvez seja oportuno lembrar aqui que Barth quer dar ênfase ao de
Sião, como origem, como procedência. O Libertador será alguém “natural” de
Sião, originário de Sião, conforme também escrevem as demais versões que
temos usado como referência diferindo, portanto, do texto análogo, de Isaías,
porém coincidindo com a redação do Salmo 14, v. 7. É interessante notar que
Sião simboliza a família real” de Davi e, também, a Igreja de Deus.]
Por meio destas reminiscências da escatologia do Antigo Testamento
queremos sublinhar que consideramos a possibilidade divina como a chave do
“mistério”, como o objetivo, (o alvo) do obscuro desenvolvimento da história
da Igreja, conforme o conhecemos; referimo-nos às coisas derradeiras, ao evento
da própria “parúsia” [galicismo para a volta gloriosa de Jesus Cristo, no final
dos tempos]. Cristo é a “plenitude para os gentios”, a maravilha do divino SIM
dito à humanidade não redimida. Ele é o Redentor. Ele é a existencialidade da
criatura que reunindo duas [a “velha” e a “nova”] perante Deus é UNA e, nesta
[uma criatura] a rejeição foi sobrepujada e tragada pela ELEIÇÃO. Ele vem de
Sião; de cima; do alicerce invisível da Igreja do qual procede, também, a sua
rejeição; vem da glória do Trono de Deus; com ele [Cristo] estão a divindade e
o poder da realeza; a criação é a sua manifestação e esta jamais acontece [em
outra forma] porque — em todos os tempos — ela é mistério, supressão, funda-
mento e eternidade. É também por isso que a sua obra é inaudita: o afastamento
das pecaminosidades de Jacó; a remoção do invólucro de tudo o que é impossí-
vel, limitado, desviado, feito segundo os parâmetros de Esaú; o afastamento de
tudo quanto encobre, agora e aqui, a Igreja de Jacó; é a celebração da nova
aliança que parte do próprio Deus, e deste só, e que subsiste na “remoção” que
arranca, apaga, destrói os pecados e o pecado, restaurando a criatura humana
em sua unidade com Deus a qual, aqui e agora, ela perdeu completamente.
Estamos novamente no limite das palavras humanas e, por isso, paramos; mas

641
11, 28-32 O Alvo

este limite é o fim (o final) do” endurecimento” e é o alvo dos incompreensíveis


caminhos de Deus.

Vs. 28 a 32 Quanto ao Evangelho eles são, francamente, inimigos por vossa


causa; porém, do ponto de vista da eleição são amados de Deus, por cau-
sa dos Patriarcas. Pois a dispensação da misericórdia e a vocação de Deus
são irrevogáveis; porquanto assim como vós, então, fostes desobedientes a
Deus todavia agora achastes misericórdia mediante a desobediência de-
les, assim também eles tornaram-se agora desobedientes mediante a mise-
ricórdia que vos foi concedida para que também eles, agora * encontras-
sem a misericórdia. Porque Deus a todos encerrou na desobediência, para
que de todos tenha compaixão.

“Quanto ao Evangelho isto é, com referência ao Evangelho, dele são]


inimigos, por causa de vós; [porém, se considerarmos a sua situação] quanto à
eleição, [são] amados de Deus, por causa dos Patriarcas.”
Precisamos agora tentar expor o tema dos três últimos capítulos [IX, X
e XI] nos termos os mais precisos, na forma a mais exata, que nos for possível.
Vimos que a “Igreja” é uma realidade ambígua. Nela vêm à tona toda a
dubiedade e toda a incerteza da natureza e da cultura dos homens. Na medida
em que, sob o ponto de pragmática humana, o Evangelho de Cristo, de um
lado, for contraposto à obra da Igreja, do outro, a Igreja se destaca,
indubitavelmente, como o lugar onde a inimizade do homem contra Deus vem
a público; e o lugar onde a indiferença, a incompreensão e a resistência humana
encontram a sua forma mais sublime e também a mais ingênua. A Igreja é, [por
assim dizer], o “ponto morto” onde nem mesmo a arrancada mais violenta pro-
duz o mínimo movimento [útil] ainda que esta arrancada se julgue movida pela
maior força divina que se possa imaginar.
A criatura piedosa que a Igreja cria, desenvolve e produz e que, com
todo seu conhecimento (de Deus e de sua lei e mais ainda, com todas) suas
obras e suas orações [se considera] justificada, parece ser, de alguma forma, o
último obstáculo forte e inconquistável deste lado da barricada.

*
[Em nota de rodapé o A. diz que “já não pode” concordar com a supressão desse
AGORA; diz ele que esse advérbio pertence a este lugar por força de tensão escatológica
quase insuportável pois para o ENTÃO do v. 30 este segundo AGORA do v. 31 é
surpreendente. A R.S.V. suprime o segundo AGORA mas anota que escritos antigos o
incluem. A Versão Sinodal Francesa escreve, “por sua vez”].

642
O Alvo 11, 27-32

Aliás, tudo o que o ser humano empreende para se proteger [para se


defender], surge acumulado, — maciçamente concentrado — nesta criatura
[religiosa] armada até os dentes. Daí a purificação do Templo!
É com vistas a semelhante tipo de pessoas que a idéia de achar um cami-
nho direto entre os homens e Deus precisa ser [combatida e] abandonada defi-
nitivamente, pois é [totalmente] inviável.
Todavia, é também por causa da existência de tal tipo de pessoas, que
tem lugar a possibilidade indireta do perdão e da compaixão divina. [Abre-se o
caminho indireto da graça e do perdão]. O mensageiro desta via indireta, a
testemunha do perdão, o vaso desta compaixão é a criatura que está em oposi-
ção [à Igreja]; é a criatura que está de fora, que é do mundo; é o gentio na total
evidência de sua carência, na sua nulidade, no seu desvalimento.
É nessa criatura de fora que se observa o afastamento do obstáculo [à
aceitação da graça divina]. É nesta pessoa [“alheia à Igreja”] que se torna claro
como Deus e o homem estão, um para o outro. Nela se glorifica a justificação
forense de Deus e porque aprouve aos desígnios divinos esclarecer o seu lou-
vor e a sua misericórdia nesta outra criatura [de fora]; (“por causa de vós”),
precisa esta uma criatura, [que é “de dentro”,] que é o resultado e o alvo da
Igreja, ficar como a “inimiga do Evangelho”, deste lado da linha divisória. O
pecado precisa abundar para que a graça superabunde. (5, 20).
[A argumentação do A. parece ser menos dedutiva que seus arrazoados
habituais. A tradução inglesa põe assim a questão da ambigüidade da Igreja:
“Considerados do ponto de vista humano, o Evangelho de Cristo e o trabalho
da Igreja operam de formas diametralmente opostas. Na Igreja vem à tona a
hostilidade do homem contra Deus porque nela a indiferença, a incompreensão
e a oposição atingem suas formas mais sublimes e, também, as mais ingênuas.
Na Igreja se torna visível a terra de ninguém, a zona morta entre duas forças
que se opõem, pois aí o progresso das realizações humanas, ainda que se con-
siderem investidas de poder divino é, finalmente, bloqueado.
“Toda a piedade que a Igreja encoraja e atinge, toda sabedoria, trabalho
e oração com que ela pretende estar justificada, são amontoados de maneira a
formarem poderoso obstáculo deste lado da barreira que separa Deus e o ho-
mem. O homem de Igreja, armado até os dentes, reúne e focaliza em si tudo
quanto os homens construíram para sua defesa contra Deus. Daí, a purificação
do Templo! Também daí procede o abandono, por inútil, de toda conceituação
de algum caminho direto entre Deus e o homem. Por isso, precisamente ao
homem de Igreja, se abre a possibilidade de um caminho indireto: o caminho
do perdão e da graça de Deus. É neste ponto que, no horizonte, surge o ‘outro’
homem, o homem do mundo, o de fora, o gentio que, diferentemente do homem

643
11, 28 O Alvo

da Igreja, anuncia o caminho indireto; ele aparece ante nós em visível pobreza,
evidentemente abandonado e sem proteção. Ele não é obstáculo. Nele se faz
conhecida a situação entre Deus e o homem conforme ela é, pois nele a justiça
forense de Deus está revelada em toda sua glória. Tendo Deus resolvido revelar
sua glória e sua misericórdia neste ‘outro homem’ segue-se que aqueles que
personificam o propósito e a realização da Igreja, deste lado da barreira, preci-
sam estar como os INIMIGOS DO EVANGELHO — POR AMOR (por causa)
DE VOS. O pecado precisa abundar para que a graça superabunde”.
Embora a versão inglesa apresente o tema de forma ligeiramente dife-
rente da que me parece estar no original, a idéia geral é a mesma. Todavia, pelo
contexto e considerações feitas nos últimos três capítulos, parece-me que, em
síntese, podemos dizer: Deus se serve do próprio empedernimento dos homens
para falar-lhes; porém Deus não necessita desse endurecimento nem os endure-
ce por isso, mas consente nele; todavia se Deus “endurecer” alguém, conforme
o fez com Faraó, fá-lo em seu Poder, sua Sabedoria, sua Graça e sua Justiça; fá-
lo porque Deus é Deus. Não compete a nós, — seres humanos — perguntar por
que, como e quando.
O que parece certo é que Deus se agrada da fé singela, simples, sem pre-
tensões a méritos e a recompensas; sem vantagens de qualquer espécie. Deus
retribuirá a cada um segundo suas obras, mas para nossa salvação — para “agra-
dar a Deus” — de nada valem elas, nem NOSSA ascendência, NOSSA grei,
NOSSO saber, nem mesmo a fé tem algum valor quando por ela nos candidatarmos
à justificação divina, pois então já não será singela e simples. Este é, todavia, o
risco do Homem de Igreja, clérigo ou leigo: a Presunção. E o “gentio” que, —
sendo prudente, “sabendo ver” — não se apegando às coisas do mundo e não
tendo do que gloriar-se, sabendo que não tem do que se valer, que está desarmado
e desprotegido, que é ignorante perante o Altíssimo, é este homem que, apesar de
estar fora da Igreja, se entrega, se abandona totalmente às mãos de Deus — por
não ter outro recurso, — pela graça encontra a salvação. Nesta divina justificação
forense do ímpio, o homem da Igreja vê — (e quem está em melhor condição de
ver que ele?) — quão grandes coisas Deus faz aos que têm o coração contrito, aos
pobres de Espírito, aos mansos e humildes de coração e vendo, quiçá, se esvazi-
ará a si mesmo e dará azo à entrada do Rei da Glória, em seu coração.]
Será então necessário ser GENTIO para alcançar o Reino dos céus ou
será somente pelo exemplo dele que o CRENTE aceitará VERDADEIRAMEN-
TE a Cristo?
Não, pois Deus não se deixa levar de respeitos humanos; se assim fôra
Deus não seria o Deus dos judeus e TAMBÉM dos gentios mas somente o Deus
dos gentios. Porém Deus é Deus para ambos. Todavia, a sua revelação é pri-

644
O Alvo 11, 28

meiramente para o judeu, para Israel, para o homem de Igreja, se este não se
materializar como Esaú, quiçá procurando valer-se do seu direito nato de
primogenitura; não se ensoberbecer como Faraó, confiando em seus bens ma-
teriais e seu poderio real; não buscar para si uma lei de justificação conforme o
“moço de qualidade” da parábola de Jesus, mas amar a Deus sobre todas as
coisas — de todo seu coração, com todo seu entendimento, com todas as suas
forças — e ao próximo como a si mesmo. É por isto que Deus tem falado e fala
aos homens, de muitas maneiras, também pelo endurecimento de parte dos
homens da Igreja (e de alguns “de fora”), pelo tempo que lhe aprouver, para
que também aqueles que não pertencem à Igreja percebam que se Deus não
poupa aos que protestam e pretextam adorá-lo na exteriorização do culto, mui-
to menos poupará a eles que nem isto fazem; e os que são da Igreja verão
(também, se forem prudentes) — que se Deus usa de misericórdia para com
aqueles que não confessam ostensivamente o seu Santo Nome, tanto mais se
compadecerá deles, que o confessam e porfiam por servi-lo.
[Resumindo: De graça somos salvos, mediante a fé; isto, porém, é dádi-
va de Deus].
Todavia, onde estaria a gentilidade que não fosse solidária e una com
Israel, nessa abundância do pecado, nesta “inimizade” [com Deus]?
[As considerações que mais acima foram feitas a respeito de Israel e da
gentilidade, sobre a oposição existente entre os que estão “dentro” e os que
estão “fora” da Igreja, foram segundo o ponto de vista humano]. Do ponto de
vista da invisível pragmática divina, porém, o Evangelho de Cristo e a Igreja,
— (a indigna mensageira da Palavra de Deus) — de forma alguma podem estar
em oposição, pois o Evangelho não é senão a revelação da eleição que é exclu-
sivamente pela graça e isto diz respeito de modo muito especial aos inimigos de
Deus. (5, 10).
Ora, desde que aqueles que não são justificáveis, que não são salváveis,
[isto é, aqueles assim considerados por serem gentios] têm, [todavia] a promes-
sa divina [e apesar da] totalidade de sua desobediência nela estão inteiramente
sob a misericórdia de Deus, precisam [agora] honrá-lo (“por causa dos Patriar-
cas”,) [isto é,] pela fé que teve Abraão, o gentio — [a saber, o Abraão de antes
da circuncisão], é [portanto] evidente que estes tais estão agora “dentro” da
Igreja — sim, justamente eles são os “amados de Deus”; o [antigo depositário
da Promessa] que como homem religioso [busca para si uma lei de justificação
e] se opõe a Deus, fica agora “sacrificado” e abandonado dentro da Igreja, [mas
na realidade fora dela], dando lugar à justificação forense dos gentios.
A Igreja é, portanto, a comunidade dos que buscam o perdão e que, por
isso, são santos; dos perdidos que, por serem tais, são salvos; dos que estão

645
11, 28 O Alvo

morrendo e, por isso, são vivificados. É assim que na aflição e na culpa deste
homem da Igreja, — neste homem que conhece, que trabalha, que ora, — reú-
ne-se e se concentra a mais excelente esperança do mundo, a esperança da
inaudita justificação e da salvação de tudo quanto a criatura humana empreen-
de e realiza sem saber o que faz.
Ele mesmo, o homem religioso, é então o gentio.
Na extremidade de todo caminho que [pretende] levar diretamente a Deus
chega a mensagem do caminho indireto que dá testemunho da catástrofe da reti-
dão humana e testifica a ressurreição; como vaso da ira, mostra o vaso da graça.
[Perguntávamos mais atrás onde estaria a gentilidade que não estivesse
(espiritualmente) unida a Israel. Agora dizemos:]. Onde estaria Israel se, nesta
situação espiritual não estivesse, de fato, ligado à gentilidade?
Se Israel ousasse colocar-se [decisiva e realmente] no campo da eleição
de seus patriarcas; se a Igreja ousasse ser sustentada e impelida somente pela fé
que Abraão teve e assim se sacrificasse, assim abrisse mão de si mesma, des-
cesse, [do pedestal] para, humilde e verdadeiramente tratar [de seu tema] com
seriedade, quão grande se tornaria ela no mesmo instante. Grande porque já
não seria grande [segundo o mundo]; grande, unicamente pela misericórdia
divina.
“A dispensação da misericórdia e a vocação de Deus são irrevogáveis”.
“Acaso a vossa infidelidade suspenderá a fidelidade de Deus?”
(3, 3). “A palavra de Deus não falha” (9, 6). “Deus não rejeitou o seu povo” (11, 2).
Mais verdadeiro do que a razão que têm os “de fora” sobre os de dentro,
mais verdadeiro do que a falta de razão em que estão os “de dentro” com rela-
ção aos de fora, mais verdadeiro do que toda pragmática invisível que pareceu
resultar dessa oposição entre a Igreja e o mundo, é sempre o tema [o assunto]
da Igreja. [Este tema] é a invisível pragmática de que SOMENTE DEUS ATRI-
BUI E RETIRA A RAZÃO E A CULPA; é o tema da LIBERDADE DE DEUS,
que é o julgamento e também o alento da Igreja e que significa a sua terrível
purificação mas também a sua plena realização. É a verdade na qual a verdade
é DEUS, e nada mais.
A dispensação da graça e a vocação divina são confirmadas pela rejei-
ção dos eleitos da mesma maneira que, em contraposição, [esses dons] não
podem ser comprovados senão pela eleição dos rejeitados pois, invisivelmente,
uns e outros são a mesma coisa em Deus.
[A tradução inglesa escreve: “A rejeição dos eleitos não destrói seus
dons e sua vocação que são tão confirmados por essa rejeição quanto pela elei-
ção dos réprobos. Ambas essas operações são, invisivelmente, uma e a mesma
coisa em Deus”.]

646
O Alvo 11, 28-31

A humanidade procura manifestar e expressar os seus anseios na Igreja,


— qualquer que seja a Igreja — e fica frustrada quando a Igreja não corresponde
a essa ansiedade. A missão que tem lugar, [que se impõe] em toda parte onde as
pessoas têm consciência desse desejo do mundo, é irrevogável e quem se en-
volve no problema é arrastado para dentro da catástrofe de toda humanidade [e
passa a participar intensamente de sua ansiedade e aflição]. A possibilidade
que se descerra onde e quando o ser humano reconhece que sua aflição lhe vem
da parte de Deus, permanece aberta e, sem ela, não haveria esperança. Outra
coisa não sabemos!
“Assim como vós então fostes desobedientes a Deus, todavia agora
achastes misericórdia mediante a desobediência deles, assim também eles ago-
ra tornaram-se desobedientes mediante a misericórdia que vos foi concedida,
para que também eles, agora, encontrassem misericórdia”.
“Ele fala agora do estranho regulamento de Deus em sua Igreja, segun-
do o qual aqueles que têm o nome e a reputação de Povo de Deus e de Igreja
[conforme o povo de Israel) são rejeitados por sua falta de fé, enquanto os
outros, que outrora não eram Povo de Deus e estavam entre os desobedientes, e
agora aceitam o Evangelho, e crêem em Cristo, passam a ser a verdadeira Igreja
de Deus e são bem-aventurados”. (Lutero).
Sim, é estranho; é coisa de que nunca antes se ouviu falar; é paradoxal a
maneira pela qual na Igreja funciona o regulamento divino.
As trevas, a condenação, a atitude de Esaú, a desobediência constituem
o denominador comum sobre o qual, em primeiro lugar, está tudo quanto é
humano. A este “outrora” se opõe, em toda sua invisibilidade, o “agora” da
revelação no seu movimento que vai daqui para o além.
“Agora porém” na luz do instante eterno, na luz do dia de Jesus Cristo,
“achastes misericórdia”, vós, os gentios; vós que estais de fora; vós que não,
tendes cura, vós que não tendes esperança! Agora os rejeitados são eleitos e
neles surge a Igreja de Jacó. Agora, no carrilhão divino, soou a sua hora. Po-
rém, como? O poder, isto é, a divindade da misericórdia que foi ao encontro
deles se comprova no seu cortante contraste com a desobediência humana; no
arrancamento dos eleitos da fila dos rejeitados; na oposição da luz às trevas.
Esta ação é divina porque ela se dirige aos desobedientes (e quem não o
é?) expondo-os e os castigando ao mesmo tempo. [Simultaneamente expõe,
castiga e se compadece e, diz o A., “é nisto e por isto que esta compaixão é
divina”].
A misericórdia divina sem a manifestação da santidade de Deus, não
seria divina. Falamos, portanto, da misericórdia [da compaixão] revelada na
morte e na ressurreição de Cristo. Para os Eleitos acontece a dádiva divina — a

647
11, 28-32 O Alvo

ressurreição de Cristo; para os Rejeitados acontece a exposição e o castigo a


morte de Cristo.
Em Cristo também se dá a misericórdia de Deus. Por aquilo que lhe
acontece Cristo pode garantir apenas os eleitos por que a causa deles é a sua
própria. É por isto e nisto que a compaixão (ou misericórdia) é real e poderosa
[isto é, vem de Deus], pois ela apenas expõe no desobediente (e, mais uma vez,
quem não o é?) a sua desobediência, para atraí-lo a si.
Sobre o rejeitado estendem-se as trevas que todavia, apenas são reco-
nhecíveis e qualificáveis como tais à luz da misericórdia divina. (“Pela miseri-
córdia que recebestes, tornaram-se eles agora desobedientes”). [Antes da ma-
nifestação dessa misericórdia não havia como constatar essa desobediência].
Como haveria de ser de outra maneira senão que agora no mesmo e
eterno AGORA que aqui eleva e ali derruba e que num e noutro caso anuncia a
liberdade e a majestade de Deus) — [sim, agora,] os eleitos, [os gentios que
receberam a graça] são de sua parte a garantia para os rejeitados, [a parte endu-
recida de Israel] que, tendo de carregar o fardo dos eleitos passa a ter também o
direito ao gozo da misericórdia que lhes é estendida. Este é o novo denomina-
dor comum para toda humanidade e que se torna invisivelmente perceptível no
AGORA da Revelação.
“Porque Deus a todos encerrou na desobediência, para que tenha com-
paixão de todos”.
“Com esta conclusão consoladora e alegre termina a investigação inici-
ada no Capítulo IX” (Lietzmann). [A tradução inglesa menciona Juelicher].
Temos de menear a cabeça, pasmados ante semelhante observação], pois aqui
nos defrontamos com o terrível e inquietante axioma no qual se poderá achar a
chave de toda “Epístola aos Romanos” (e não só da Carta aos Romanos!).
[Para entender] o que Paulo quer dizer — (e não somente Paulo!) — quando
fala de Deus, da justificação do ser humano, de pecado, graça, ressurreição, lei,
juízo, salvação, eleição, condenação, fé, amor, esperança, quando fala do Dia de
Jesus Cristo; para saber com que sentido e em que classificação estas grandes
palavras devem ser soletradas e empregadas, é preciso que se tenha entendido
esta passagem; a sua compreensão decide sobre o sentido que lhes daremos. Esta
passagem é a medida de tudo quanto medirmos; é a balança na qual tudo será
pesado; ela é, à sua maneira para cada leitor ou ouvinte, o próprio critério da
dupla predestinação cujo sentido final ela claramente objetiva indicar.
As palavras “ENCERROU”, “COMPAIXAO” e o primeiro “TODOS”
devem ser tomadas em seu sentido literal, preciso, ainda que as pessoas inclu-
ídas no segundo “TODOS” corram o risco de serem agrupadas por Calvino
entre os que NIMIS CRASSE DELIRANT.

648
O Alvo 11, 32-36

[Convém notar que a versão inglesa escreve que as referidas palavras


são “prenhes de significado” o que não é precisamente o que o A. diz. Talvez a
analogia gráfica entre as palavras “praegnant”, alemã e “pregnant” inglesa hou-
vesse falseado a tradução de “preciso”, exato — que é o que a palavra alemã
significa, para “prenhe”, pleno, do vocábulo inglês.]
Nesta passagem está o Deus velado, desconhecido, incompreensível; o
Deus a quem nada é impossível; Deus, o Senhor — e que como tal é nosso Pai
em Jesus Cristo.
Nesta passagem está a possibilidade divina em sua premente proximi-
dade, em toda sua riqueza mas, também, em toda sua inescrutabilidade. Aqui
está o começo e o fim; o caminho e o objetivo dos pensamentos de Deus.
Nesta passagem está o objeto da fé (que, todavia, jamais pode ser “obje-
to”). Aqui está a substância, (a essência) do Cristianismo (que está acima de
todas substâncias). A Igreja tem uma [só] esperança: é esta [que está expressa
nesta passagem]; não tem outra. Oxalá a Igreja se apossasse dela.
“Observai esta frase capital que condena todo mundo e a toda justiça
humana, exaltando unicamente a justiça de Deus, a ser alcançada pela fé”.
(Lutero).

Vs. 33 a 36 Ó profundidade da riqueza, da sabedoria e do conhecimento de


Deus! Quão insondáveis são os seus juízos e quão incompreensíveis os
seus caminhos. Pois quem conheceu a mente do Senhor ou quem foi seu
conselheiro, ou quem lhe deu alguma coisa que então ele tivesse de retri-
buir? Pois dele, por meio dele e para ele são todas as coisas. Sua é a
glória, eternamente. Amém.

A “profundeza da riqueza, da sabedoria e do conhecimento de Deus” é,


eternamente, sua insondabilidade [sua inescrutabilidade] (e isto é preciso que
se diga contrariando a primeira edição do livro).
O teor da Epístola aos Romanos é que o DEUS ABSCONDITUS, como
tal, [o Deus velado e desconhecido,] é o DEUS REVELATUS em Cristo Jesus.
(1, 16-17). Entendamos bem: apenas por ser o DEUS ABSCONDITUS o sujei-
to que tem o DEUS REVELATUS por predicado, é que os lábios humanos
podem falar do conteúdo da Carta aos Romanos, falar de teologia e falar da
Palavra de Deus; não apenas “podem” mas PRECISAM.
Cuidar dessas coisas, [delas falar] com a sábia reserva de quem tem
consciência de que nada se faz com tal prática, é tarefa plena de promessas.
Ainda mais, o fato de este sujeito (o DEUS ABSCONDITUS) ter este predicado

649
11, 33-36 O Alvo

(o DEUS REVELATUS), significa o próprio Espírito a plenitude divina, a exis-


tência do divino SIM. Isto não está escrito na Carta aos Romanos; em verdade,
isto não se escreve nem se diz; também não se faz porque isto de forma alguma
pode ser objeto do esforço, do trabalho, [da diligência ou do zelo] da criatura
humana: se acontece, então foi Deus que falou e operou o milagre.
A respeitosa referência a Deus e a seu milagre, conforme a atitude de
João, o Batista, é o limite extremo da diligência e do êxito humano.
“Quem tiver esta Epístola bem dentro do coração tem consigo a luz e o
poder do Antigo Testamento”, disse Lutero, presumivelmente após cuidadosa
reflexão, porquanto — [em contraposição] — a luz e o poder do Novo Testamento
ninguém tem consigo; esta luz e este poder, como tais, não aparecem pois não se
trata de “um caso” ao lado de “outros casos”. Portanto, ninguém tem o direito de,
honestamente, achar que em Paulo, ou na teologia, falta a revelação, falta mais
positividade, falta algo mais do que a Palavra. Aquele que assim achar pergunte,
ele mesmo, a Deus por que isto não está escrito em nenhum livro, (nem mesmo
nos Evangelhos sinópticos!) e por que em lugar nenhum isto é apresentado como
obra humana; e seja grato se, possivelmente, a teologia conseguiu estimá-lo a,
realmente, dirigir-se com esta pergunta ao próprio Deus, porquanto a invisibilidade
de Deus pode ser vista quando “observada sensatamente” (1, 20) e sua
inescrutabilidade pode ser “perscrutada” nas profundezas divinas. (I Cor. 2, 10).
Conhecer a Deus significa estar silencioso, em adoração, perante ele —
ele mesmo — que habita em luz, onde ninguém pode chegar; é estar [silente e
em adoração] sempre e de novo exatamente ante a oculta profundidade de sua
riqueza, sua possibilidade, sua vida, sua glória! É estar sempre e de novo ante a
oculta profundidade de sua sabedoria, seus pensamentos, seus juízos e seus
caminhos, da trajetória que vai daqui para o além! É estar sempre de novo ante
a profundidade oculta do conhecimento pelo qual ele nos conhece antes de nós
o conhecermos; o conhecimento pelo qual ele não nos abandona — a nós, que
sempre estamos sem ele!
“Quão insondáveis são os seus juízos e quão incompreensíveis os seus
caminhos.”
Por que há eleição? Por que rejeição? É o que precisaríamos e precisa-
mos perguntar sempre, como também precisamos e precisaríamos ouvir sem-
pre a mesma resposta: porque Deus não seria Deus se não rejeitasse de forma
imperscrutável e se não elegesse de maneira incompreensível; se ele, na grande
obscuridade de sua escrita, [quiçá nas suas obras manifestas aos homens e na
sua Santa Palavra, a nós legada, — a tradução inglesa diz “da escrita de sua
mão”], não se revelasse de vitória em vitória como Deus; como aquele que quer
ter e terá misericórdia de todos!

650
O Alvo 11, 33-36

“Quem conheceu a mente do Senhor ou quem foi seu conselheiro? (Isaías


40, 13). “Ou quem lhe deu alguma coisa que, então, ele tivesse de retribuir?”
(Jó 41, 11). [O A., entre parênteses, diz que esta passagem de Jó provavelmente
se refere ao “Leviatan-crocodilo” do v.2 do mesmo capítulo desse livro].
Conhecimento direto deste Deus? — Não!
Participação nas suas decisões? — Não!
Possibilidade de o agarrar, o amarrar, o constranger ou obrigar, de entrar
em relacionamento de reciprocidade com ele? — Também não! Não há “Teolo-
gia Federal”! [Teologia por acordo entre as partes mediante “ligas” e “convêni-
os”; possivelmente, quando Barth escreveu, a “teologia” do Estado e,
modernamente, acordos análogos].
Ele é Deus; ele mesmo, e unicamente ele. Isto é o SIM da Epístola aos
Romanos.
“Porque dele, por meio dele e para ele são todas as coisas. Sua é a glória,
eternamente. Amém”. Marco Aurélio, em suas meditações diz, quase textual-
mente, o mesmo. A mesma fórmula foi transcrita num hino a Silene e até inscri-
ta num anel de feiticeiro. Entre outros, Filo a conhecia; no entanto, por que o
misticismo helênico que sabidamente, — conforme também o menos remoto
judaísmo, — conhecia mais ou menos tudo, não deu ênfase maior a essa verda-
de? Por que não a souberam enunciar mais claramente, de forma que causasse
maior impacto, que tivesse maior expressão profética?
[Filo — ou Phylo — nasceu cerca de 10 a 30 anos antes de Cristo. Foi
pensador extremamente fecundo e sério; procurou, aparentemente, introduzir o
judaísmo na cultura helênica; já deveria ter falecido ou seria bastante idoso
para a época] quando Paulo escreveu a Carta aos Romanos — (cerca do ano 60
de nossa era). É muito provável que Paulo conhecesse a filosofia e o pensamen-
to de Filo. Marco Aurélio nasceu no ano 121 da nossa era e deve ter escrito suas
meditações por volta da década 160-170; provavelmente conhecia as obras de
Filo e não há razão para duvidar de que tivesse ouvido falar do pensamento de
Paulo. Em suas meditações, no Livro IV, v. 20, ele escreve: “O Natureza, de ti
e em ti são todas as coisas e para ti voltam” e completa o verso, depois do
ponto, escrevendo: “O poeta diz cara cidade de Cécrope; não queres tu dizer,
cara cidade de Zeus?” Ora, a primeira parte, mais do que ao enunciado Paulino,
assemelha-se ao antigo e conhecido “MEMENTO, HOMO, QUIA PULVIS
ES,” etc. e a referência a Zeus soa tímida, como se M. A. estivesse a se descul-
par de tanta ousadia... seja como for, é aplicável aqui o que Barth disse em
outra parte escrevendo sobre a simbologia do batismo cristão: O Evangelho é
de tal maneira poderoso e seguro de si que não teme, nem precisa temer, “tomar
emprestado” o que quer que seja do paganismo; e poder-se-ia acrescentar: o

651
11, 33-36 O Alvo

Evangelho é a Palavra de Deus posta na língua dos homens e pelo seu Poder,
sua Pureza, sua Origem Divina, redime e santifica aquilo que usar. É a graça e
o milagre da inspiração divina].
Por que será que o “empréstimo” que Paulo faz se parece tão mais como
sendo original, até mesmo na planície das coisas históricas? [Todavia, aqui
cabe esta observação:] De que outra maneira mais significativa poderia Paulo
terminar este Capítulo, do que nesta forma tão altissonante, [até mesmo] atroa-
dora e que suscita tanta esperança, dizendo [com o vigor da inspiração divina e
com a certeza da fé] aquilo que outros também sabem?

Comentários: 11, 25-36

1. Para entender o pensamento de Barth com propriedade é preciso lem-


brar sempre que ele freqüentemente procura dar ênfase às suas pon-
derações, pela violência dos contrastes (e das analogias) que estabe-
lece em sua dialética. Assim (exegese dos vs. 25 e 26) a realidade
triunfal da “Igreja de Jacó” é precedida pela “catástrofe” da Igreja
visível; a Igreja RECEBE a revelação, mas não é a sede dela; nin-
guém pode estar “do lado de quem tem razão”, quando se trata de
Deus e da Igreja, — vale dizer — ninguém pode estar do lado de
Deus; quando “os de fora” forem os missionários (trazendo o “reca-
do” da graça divina) para a Igreja, então esta pode e deve pensar em
enviar missões aos “gentios”.
A lógica dessas afirmações parece ser: a Igreja só pode cumprir
verdadeiramente sua missão, quando ela se esvaziar de todas prerro-
gativas que a condição de pregadora do Evangelho lhe possa conferir
segundo seus próprios critérios; quando ela perceber que nada tem de
si, nada é e nada vale, se Deus não lho conceder. A Igreja precisa
compreender e, quando houver compreendido, precisa lembrar sempre
que é a pretensão do “homem religioso” que dá origem ao “endureci-
mento”. Este envaidecimento, que o A. denomina “mal de José” ou
“sombra de José”, está sempre à espreita para invadir o coração cren-
te e arrancá-lo do aconchego da graça; esta pretensão à superioridade,
à retidão, à santidade, à certeza da salvação, ao privilégio da eleição
pessoal, da predestinação seletiva e exclusiva, é o leão que ruge em
volta da Igreja; aos “de fora” ele não ameaça (enquanto não tiverem
consciência de que “também eles” são eleitos); mas tomando ciência
dessa verdade eis também eles, quais os homens da Igreja, sujeitos à
tentação da importância, da convicção íntima da superioridade de seu

652
O Alvo 11, 25-36

modo de ser com relação à religiosidade dos “fiéis” e então são, tam-
bém eles, candidatos à poda do tronco ao qual foram enxertados; esta
é a catástrofe que paira sobre a Igreja e da qual ela se liberta morren-
do como “velha criatura” e ressurgindo em Cristo.
É por isto que a Igreja fala de Deus e anuncia a “Boa Nova”, pois
ela efetivamente encontrou, — vale dizer, recebeu — a revelação de
Deus, Todavia, a “nova criatura” somente pode existir ressurgindo
em Cristo; ele é a sede da Revelação.
A Parte “endurecida” da Igreja pode ver nos “de fora” a ação da
graça divina; é uma das maneiras pelas quais Deus fala e, vendo e
compreendendo os caminhos de Deus ela pode esvaziar-se a si mes-
ma, humilhar-se e dar glória a Deus; então poderá acontecer o mila-
gre, cessar o endurecimento e a Igreja toda voltar à singeleza e pureza
de sua tarefa; ela estará então em condições legítimas de levar aos de
fora a mensagem da salvação, de que é portadora mas não sede; então
a Igreja pode, deve e efetivamente será a missionária para os gentios.
Todavia a Igreja não pode — e ninguém pode — dizer que está do
lado da razão, pois só Deus a tem; pretender estar “a seu lado” é
jactância, é arrogância humana; é querer ser igual a Deus. O que po-
demos fazer é confiar na graça e esperar que Deus nos tome quais
somos, não porque o mereçamos mas pela mediação de Jesus Cristo.
Alguns de nós talvez possam parafrasear o grande Apóstolo dizendo:
“Combati o bom combate” porém, “sou o que sou pela graça de Deus”.
É por tudo isto que ninguém pode pretender “descrer” da Igreja;
seria requintada vaidade e absurda exibição de superioridade; equi-
valeria a afirmar que encontrou por seu tirocínio, sua acuidade, seu
entendimento, um caminho mais excelente fora dos caminhos mais
apertados estabelecidos por Deus; seria a expressão existencial do
endurecimento que “vem de Deus” e vem dele por ser ele a pedra de
toque que afere a nossa atitude.
2. “Deus a todos encerrou na desobediência para que de todos tenha com-
paixão”. Não entendamos daí que, para se mostrar misericordioso, Deus
nos fez, a todos, maus. Antes parece ser assim: não há quem faça o
bem, nem sequer um, justo. (3, 9-18). Em sua pecaminosidade os ho-
mens se excedem uns aos outros contudo, para usar de misericórdia
com todos, a todos Deus encerrou (incluiu) na mesma desobediência.
3. Na exegese do v. 28 Barth afirma que tudo quanto o ser humano
empreende (ou inventa) para se proteger de Deus, encontra-se acu-
mulado na Igreja.

653
11, 25-36 O Alvo

— Então precisa a criatura defender-se do Criador?


— Dentro da queda do homem Edênico, sim. O homem quis e
não pôde fazer-se igual a Deus; por isso teve medo e se escondeu
dele; voltou-lhe as costas; afastou-se dele e, nesse desvario tenta achar
para si fórmulas que o justifiquem e sejam agradáveis à sua preten-
são: ídolos, filosofias, teologias, liturgias, cultos, doutrinas, contem-
plações místicas, louvores espúrios, “intimidade” (comunhão) com
Deus, — seus soldados, seus arautos, seus defensores, seus heróis.
Tudo para termos ligação direta com Deus, talvez até mesmo confes-
sando-nos seus servos leais.
Estas coisas se avantajam notoriamente na Igreja!

654
Capítulos XII a XV (1ªparte)

A GRANDE PERTURBAÇÃO

Sob o título acima Barth faz a exegese do Capítulo XII ao versículo 13


do Capítulo XV, com a seguinte subdivisão:

• 12, 1- 2 - O Problema da Ética,


• 12, 3- 8 - A Base Fundamental,
• 12, 9- 15 - Possibilidades Positivas,
• 12, 16- 20 - Possibilidades Negativas,
• 12, 21- 13, 7 - A Grande Possibilidade Negativa,
• 13, 8- 14, 0 - A Grande Possibilidade Positiva,
• 14, 1- 15, 13 - A Crise da Livre Mordomia da Vida.

A PERTURBAÇÃO a que Barth se refere é o dessossego que a pessoa


sente quando confronta sua conduta com a diretriz que a graça de Deus sugere; é
a inquietação da criatura que percebe o dom da graça. Esta perturbação tem certo
paralelismo com a aflição da Igreja que, de algum modo, é a somatória da “gran-
de perturbação” de cada um de seus membros; assim como a aflição da Igreja se
origina de sua incapacidade de se desincumbir com fidelidade da tarefa que lhe
foi dada por Deus, assim o indivíduo sente a grande tribulação por não fazer o
bem que quer; mas a semelhança não parece ir além dessa constatação porquan-
to, para as pessoas, individualmente, o conflito tem a sua causal na questão da
ética que Deus apresenta aos homens; não se trata da ética divina porém, da
humana; mas é a ética humana segundo os ditames divinos pois a ética verdadei-
ra, a ética por excelência, provém de Deus, que é a fonte de todo BEM.
Se houvéssemos de indicar uma “palavra-chave” para este extenso “ca-
pítulo”, talvez sugeríssemos MORDOMIA, tirada da última subdivisão desta
exegese da “Grande Perturbação” e que o A. intitula a “LIVRE ATIVIDADE
DA VIDA” e a tradução inglesa registra como “LIBERDADE HUMANA E
DESTAQUE” (quiçá usando a palavra “destaque” para se referir ao “afasta-
mento” voluntário do Procedimento ambiente).

655
12, 1 a 15, 13 A Grande Perturbação

O assunto de Paulo — e portanto também de Barth — nesta parte da


Epístola, é a consagração pessoal a Deus; é o convívio com “os de fora”, a
submissão às autoridades, a conduta íntima do crente, a tolerância para com os
irmãos na fé e, para tudo e em tudo isto, cita o exemplo de Cristo; é a este modo
de viver que Paulo exorta os Cristãos de Roma e, com eles, os de todos os
lugares e de todos os tempos, fundamentando sua exortação nas misericórdias
de Deus. É mediante a voz eloqüente e forte das misericórdias que a criatura
percebe sua própria imperfeição, seu enorme afastamento de Deus, sua natural
pecaminosidade e entra em grande crise, na grande perturbação; essa perturba-
ção o ser humano sentirá na sua “Grande Possibilidade Positiva” amando a
Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo e, também, em todas
possibilidades negativas — em sua não conformação com o “presente século”
— até o “Grande Dia do Senhor” quando será exaltado e viverá; porém, será
exaltado e viverá em Deus e para Deus!
Este não é um tema abordado apenas nesta parte quase final da exegese
da Epístola aos Romanos mas, conquanto Jesus Cristo seja o único assunto de
toda pregação Paulina, em nenhuma de suas cartas — soberana e divinamente
inspiradas — deixou o Apóstolo de referir-se ao problema da vivência cristã e
dos cristãos; e o faz de forma precisa, profunda, ampla, penetrando em todo
leque das experiências individuais, cotidianas e em todos setores fundamentais
da vida — lar, igreja, sociedade e em todas situações — filhos, pais, servos,
senhores, leigos, pastores, governados e governantes. Em toda parte Paulo ins-
ta, ensina, recomenda e exorta, mas a opção permanece adstrita à liberdade
individual de cada pessoa.
É esta livre orientação da vida — que Paulo apresenta e Barth analisa —
que designei por “MORDOMIA” porquanto ela diz respeito à administração
da Casa que não é nossa mas pertence ao Espírito Santo. (1 Cor. 6, 19).
Paulo foi obediente à visão celestial e dócil à inspiração divina. Barth
ouviu-lhe a voz e a fez ressoar à essência do protestantismo segundo o viu em
seus dias e conforme me parece ser ainda hoje o traço característico dos ho-
mens verdadeiramente evangélicos deste país, aqueles que não se deixaram
fascinar pelas sereias do “Evangelho Social”, da tolerância abdicante e da co-
modidade do sincretismo religioso. São homens e mulheres tementes a Deus;
acatadores das autoridades; pacientes com os que erram e tolerantes com os
fracos; respeitadores de pais e filhos; fieis no lar e na Igreja; bons patriotas e
bons cidadãos do mundo; bons servos e bons patrões; prudentes no falar, mori-
gerados nos costumes, sal da terra que procuram remir porque os tempos são
maus. Eles? Sim, eles, porém não por alcance deles e por seus méritos, mas
pela graça de Deus: livres das peias do mundo mas servos de Cristo para servir!

656
A Grande Perturbação 12, 1 a 15, 13

É possível que tais pessoas, com semelhante conduta se atrevam a se


considerar “fortes”; acaso não o são? Talvez até se julguem “livres”, sensatos e
sábios; acaso não são eles verdadeiramente livres? Não são sensatos? Não são
sábios perante Deus e os homens?
— Sim, são tudo isto. (Não por eles — mais uma vez o dizemos — mas
pela graça de Deus é que são o que são!) Por isso trazem também, sob seus pés
como lastro e sobre seus ombros como carga, a GRANDE TRIBULAÇAO: o
privilégio e a responsabilidade de serem trabalhadores na grande empresa divi-
na, a obra da FÉ despertada pela FIDELIDADE de Deus. É a mordomia cristã
a que Paulo nos exorta fundamentado nas “misericórdias divinas” de cujo Evan-
gelho é o mensageiro divinamente credenciado. (Atos 9, 15).
Sob o título acima Barth faz a exegese dos primeiros dois versículos do
Capítulo XII demonstrando que em seu relacionamento com Deus o homem é
motivado inteiramente pela revelação da graça. É a graça que constrange; ela
perturba inexplicavelmente, se assim podemos dizer, a criatura humana quan-
do e enquanto está entregue às suas inclinações naturais, que são conforme o
padrão do mundo. É pela graça de Deus e com fundamento nessa graça que
Paulo se sente autorizado a exortar os romanos destinatários de sua carta, a que
ofereçam seus corpos a Deus em sacrifício vivo, santo e agradável. Assim se
estabelece a conduta cristã, a nova ética estruturada nessa renúncia.
O sacrifício “do corpo” não se restringe aos aspectos materiais, imedia-
tos, — quiçá mais grosseiros, — mas se estende a todos os campos das ativida-
des humanas, mentais ou intelectuais, emocionais ou psíquicas, porém, não
sem chamar a atenção à influência de Eros sobre todas elas.
O A. analisa a ética partindo do pensamento como sendo o elemento
preexistente gerador do ato, para concluir que a adoção da ética cristã, confor-
me preconizada por Paulo, somente é possível mediante a modificação cabal
do pensamento de cada pessoa, o que constitui o ARREPENDIMENTO no
qual a genuflexa adoração alcança a visão de que Deus quer ser adorado em
cada uma das opções que o ser humano é chamado a fazer, constantemente,
neste mundo ainda não transformado.

Para facilitar o acompanhamento da exposição do Autor, em torno do


que chama Ética Primária e Ética Secundária, talvez possamos sintetizar assim:

Ética Primária: “Ao Senhor teu Deus adorarás e só a Ele servirás”.

Ética Secundária: Amarás ao teu próximo (ou a “UNIDADE” com o


próximo, em Deus).

657
12, 1-2 O Problema da Ética

O PROBLEMA DA ÉTICA (12, 1-2)


Vs. 1 e 2 Pelas misericórdias de Deus exorto-vos a apresentar os vossos corpos
como sacrifício vivo, santo e agradável a Deus: vosso culto objetivo a ele;
e a não vos conformardes com a condição do mundo presente porém, sim,
com sua vindoura transformação, mediante a renovação de vosso pensa-
mento, para obterdes a visão do que seja a boa, santa e perfeita vontade de
Deus.

[A tradução de Almeida escreve: “Rogo-vos pois irmãos pelas miseri-


córdias de Deus, que apresenteis os vossos corpos por sacrifício vivo, santo e
agradável a Deus, que é o vosso culto racional. E não vos conformeis com este
século mas transformai-vos pela renovação de vossa mente para que
experimenteis qual seja a boa, agradável e perfeita vontade de Deus”.
Em sua tradução desses dois versículos Barth escreve os verbos “apre-
sentar” e “conformar” no infinitivo, procurando assim evitar a idéia de que no
enunciado do Apóstolo haja a sugestão de ordem ou mando. Diz Barth que à
luz do significado exato do texto e ante a notória sensibilidade de Paulo às
nuanças de sentido que a sintaxe pode envolver, não parece provável que ele
haja escrito no imperativo; antes é de esperar que, sendo mais prático compor a
frase no subjuntivo e conseqüente imperativo, é mais provável que esta sintaxe
haja surgido com transcrições erradas, desvio em que algum amanuense tenha
incorrido a despeito de a exortação (ou o apelo) conforme apresentado no v. 1,
não permitir a imposição imperativa do v. 2. A versão inglesa escreve que “a
peculiaridade da nuança Paulina da palavra EXORTAÇÃO seria destruída pelo
imperativo”].
“Exorto-vos pois, irmãos”. O que mais pode significar esta nova repetição
do Problema da Ética senão a grande perturbação que a própria idéia de Deus
representa para toda atividade humana [já que essa idéia] acaba, necessariamen-
te, ficando em desacordo com todo discurso que se proferir a respeito de Deus, de
vez que esse discurso será sempre de pessoas insensatas e que perdem a perspec-
tiva da questão? (E quem haveria que estivesse livre dessas deficiências?)
As considerações que se fizerem sobre a ética [que Deus apresenta] de-
frontam-se com o percalço da falta de objetividade do tema. [O original diz tex-
tualmente: “O problema que a ética representa está na recordação e no encareci-
mento de que o assunto de tal dissertação não tem objetividade”]. Não tem acima
dele ou por trás dele, um mundo; não se apóia em algo metafísico, nem em algum
tesouro de experiências espirituais; tampouco se refere a alguma vastidão
transcendental. O que há, o que existe, é a nossa vida dentro da nossa conhecida

658
O Problema da Ética 12, 1-2

natureza e cultura, vida que também aqueles que proferem semelhante discurso
precisam alimentar [intelectualmente] a cada instante, vivendo — por assim di-
zer — da mão para a boca, [precariedade] em que, na realidade, sobrevivem de
uma ou outra forma.
O surgimento [o aparecimento e a conscientização] da questão ética con-
firma e assegura a existência [a validade] dos conceitos dispendidos e encareci-
dos neste discurso [isto é, em tudo o que foi escrito neste livro,] comprovando
que o refrão cansativamente repetido — “DEUS MESMO, SOMENTE DEUS!”
— não é “coisa” divina, não designa algum idealismo com o qual nos deparásse-
mos, mas é a expressão da inescrutável relação em que, como criaturas humanas,
nos achamos com [ou perante] Deus. Estes conceitos e estas fórmulas [ou “frases
feitas”], em sua abstração, na sua exteriorização em maneira não caracteristica-
mente humana e portanto estranha ao mundo, [parecendo até ingênuas, quando
não irritantes, a alguns,] são tiradas do modo de SER, TER e AGIR da criatura em
sua movimentação no mundo e sob a tensão em que nele ela se encontra.
Não pode haver erro maior do que supor que esses conceitos pudessem ser
formulados (e deduzidos) independentemente do ambiente em que vivemos e que
não fossem relacionados com as coisas concretas de nossa vida cotidiana. Por isto,
a quem quiser bem compreender a “Epístola aos Romanos”, recomendamos insis-
tentemente que leia toda sorte de literatura mundana, notadamente os jornais.
Cogitar, pensar seriamente, é meditar sobre-a vida e, por isso e nisso, é
meditar sobre Deus. Cogitando sobre a vida o pensamento precisa percorrer
intricados caminhos e vagar pelas mais remotas paragens, pois a vida transcor-
re em mobilidade e tensão caleidoscópicas, A vida não é simples, nem direta
nem definida; inequívocas, objetivas, singelas, são apenas algumas suas apa-
rências superficiais mas nunca e em nenhum lugar, a sua profundeza e a sua
conjuntura. Nunca é simples a realidade de cuja existência a aparência fala.
Todavia, é justamente no pensamento dialético que a meditação atinge sua meta,
inquirindo sobre a profundeza, sobre a conjuntura e sobre a realidade da vida,
para então entender o seu objetivo [o seu fim], para entender o que a vida signi-
fica e ter condições de lhe dar sentido.
Se [os caminhos que o pensamento precisa percorrer] fossem diretos,
menos truncados [ou menos tortuosos], se fossem mais facilmente perceptíveis
em seu conjunto, isto seria a prova mais segura, [então seria evidente] que tais
caminhos estariam passando ao largo da vida, [isto é, estariam ignorando a
crise em que a vida está].
Não é o raciocínio “complicado” que é ortodoxo mas o mui célebre
pensamento “simples” que sempre anseia por conhecer aquilo que [ainda] não
conhece. É por isso que a cogitação genuína não pode ter a retilineidade

659
12, 1 O Problema da Ética

freqüentemente desejada e é desagradável do ponto de vista humano, [o origi-


nal diz, textualmente, que a cogitação genuína é “desumana”], pois é estranha
ao mundo, porquanto: o pensamento puro não é função biológica [ou biofísica],
mas a indagação que [por ele] se faz envolve todos aspectos da vida material e
portanto encontra resposta em todas funções biológicas. Como indagação [ou
perquirição], sobre a ação [ou a respeito dos atos que o indivíduo pratica no uso
normal de suas aptidões biofísicas,] a cogitação é apenas suposição e jamais
ação ou ato. Ora, como esta suposição não é ação, ela não subsiste por si e não
pode, portanto, estabelecer a continuidade [que têm as coisas que existem].
Estas interrupções e hiatos caracterizam todo pensamento sério que, por isso
mesmo, não pode escapar à crítica de ser intelectual, [teórico e sem maior
objetividade].
[Isto não significa que estejamos menosprezando essa crítica,] antes, é
necessário fazer-lhe justiça.
A apologia do pensamento que fizemos, refere-se ao pensamento puro,
à meditação sobre Deus.
[Não CONHECEMOS realmente o pensamento puro, como tal]. O que
conhecemos são [expressões do pensamento que, nesta qualidade, são] “atos”
e portanto, logicamente são também funções biológicas (ainda que nobremente
originadas de nossa cerebração...). Por isso é natural que nossas deduções e
elucubrações mentais sejam vistas com desconfiança e que a sua complexidade
seja atribuível ou ao acaso, [ou à pretensão nossa de atrair a atenção de outrem]
ou ainda que sejam consideradas mera extravagância ou capricho e desta sus-
peita somente estaremos livres na medida em que nossa meditação seja real-
mente pura [isto é, na medida em que nos ocuparmos exclusivamente do pro-
blema Deus]. Somente assim estará a nossa cogitação protegida contra a prefe-
rência que se possa dar a arquitetações intelectuais “mais simples”.
Enquanto [e na medida em que] considerarmos a Epístola aos Romanos
como sendo, precipuamente, [mero] “ato de pensamento” do grande Apóstolo,
não é automaticamente certo que sua dialética seja justificável como reflexo do
pensamento divino, como também não podemos, de consciência tranqüila, acei-
tar estas ponderações como sendo meditações “sérias” sobre a vida.
Se não pudermos negar que é absolutamente necessário criar uma ética
especial condizente com a dogmática Paulina (o que temos tentado demons-
trar), [se não pudermos rejeitar a necessidade de se criar essa ética diferente]
sob a alegação de que isto seria supérfluo e nem faria sentido então, eviden-
temente, temos de nos conformar e aceitar a grande perturbação que o proble-
ma da ética representa. A existência desse problema lembra-nos que não é o ato
de pensar que satisfaz a plenitude das exigências concretas porém, sim, a sua

660
O Problema da Ética 12, 1

origem invisível, a sua pura proposição inicial que, justamente em seu isola-
mento [do mundo], dá plenitude e sentido a tudo quanto é material. [O proble-
ma da Ética] recorda-nos da verdade de Deus que, mesmo no mais elevado “ato
de pensamento” jamais é elemento conhecido e lógico.
Paradoxalmente, são justamente as reivindicações e os acontecimentos
cotidianos que ocorrem e se desenvolvem ao redor e junto ao “ato de pensa-
mento” que nos ensinam que o “discurso sobre Deus” não se faz por causa do
discurso mas pela vontade de Deus. Assim como a meditação sobre Deus per-
turba todo SER, TER e AGIR dos homens, o problema da ética tem de pertur-
bar a dissertação que sobre ela se faz, ressaltando o tema para o suprimir, a fim
de lhe dar sentido e objetividade; matando-o, para que viva. É por isto que
“EXORTO-VOS, IRMÃOS!”
Consenti em serdes interrompidos [quebrados e descontinuados em vos-
sos pensamentos,] vós que pensais comigo, que sois meus companheiros de
peregrinação, que adorais comigo, para que vossos pensamentos sejam [agora
de] meditação sobre Deus; permiti que sejais interrompidos em vossa dialética
para que ela continue sendo dialética; que o vosso conhecimento sobre Deus
seja interrompido para ser o que [na verdade] deve significar: a grande e salutar
perturbação e interrupção que Deus prepara, em Cristo Jesus, para a criatura
humana, a fim de chamá-la de volta para o lar, na paz de seu Reino!
“Pelas misericórdias de Deus” eu vos exorto. Portanto, aqui não se abre
novo livro; nem mesmo se vira a página. Aqui não se recomenda alguma “prá-
tica” ao lado da teoria, antes se afirma que exatamente a “teoria” da qual proce-
demos é a TEORIA DA PRÁTICA. Falamos das misericórdias de Deus. Da
graça, da ressurreição, do perdão, do Espírito, da eleição, da fé; [são] multiformes
e variegadas refrações, sempre da mesma luz, a luz não gerada.
Em qualquer dessas manifestações apresenta-se sempre a questão funda-
mental da ética vazada na pergunta: “Como viveremos?” Ou então, “o que fare-
mos?” Não é por mera curiosidade que nos pomos a investigar sobre problemas
remotos nem é nossa meditação que nos leva inevitavelmente a isso. Há algo
mais que nos induz a voltar sempre nosso olhar a esse ponto invisível, a essa luz
à qual ninguém pode chegar. Contudo, o nosso ponto de partida é sempre o
local onde estamos: Roma no primeiro século (1, 18) e todos os demais lugares
em todos os tempos; [é desse ponto de partida] que seguimos os emaranhados
caminhos de nossa meditação a que o próprio mundo nos Incentiva pois é nele
que temos de agir e fazer valer nossa vontade, [aceitando ou rejeitando e tole-
rando ou combatendo seus processos, sua filosofia e sua pragmática]; portanto
é o próprio mundo a causa imediata de nossa cogitação sobre aquilo que ele é,
[o que significa] e sobre o que faremos ou como viveremos nele.

661
12, 1 O Problema da Ética

Eis que nessa cogitação, analisando a essência do mundo, nos deparamos


com essa tremenda interrogação ética dependendo de resposta que, todavia,
nos é proposta em CRISTO, consubstanciando em si “as misericórdias de Deus”.
Exatamente porque nos deparamos com as “misericórdias de Deus” como
sendo a resposta a essa pergunta [grande e pendente!] precisamos de as receber
como EXORTAÇÃO, isto é, (sendo elas ESTA resposta a ESTA pergunta!)
precisam, antes de tudo, ser uma representação aguda e básica da interrogação
que deu origem à nossa cogitação. Sem perderem suas qualidades
transcendentais, [literalmente, suas características do além,] as “misericórdias
de Deus” tornam-se o destino final de suas correspondentes qualidades materi-
ais, [literalmente, as “características do aquém que se lhes opõem”].
[Se é certo que a pesquisa intelectual percorre caminhos complicados,
também é certo que a exposição do A., particularmente na primeira parte deste
Capítulo, é sobremaneira complexa. Talvez tenha sido com o intuito de aliviar
a exposição original e facilitar a compreensão do texto que os tradutores ingle-
ses introduziram algumas pequenas modificações que, todavia, deram origem
(ou obrigaram) a outras adaptações e terminaram por apresentar conceito dife-
rente do original; este conceito “novo” talvez seja válido também e, uma vez
enunciado, poderá ser até subentendido em Barth. Para melhor apreciação, ve-
jamos como a tradução inglesa escreve o ultimo trecho: “Exorto-vos PELAS
MISERICÓRDIAS DE DEUS”. “Não começamos agora novo livro, nem mes-
mo capítulo novo. Paulo não está, aqui, dedicando sua atenção à religião práti-
ca como se fosse uma segunda coisa a par da teoria da religião. Pelo contrário,
a teoria com a qual até aqui estivemos preocupados, é a teoria da prática da
religião. Falamos das graças de Deus, da graça de ressurreição, do perdão, e do
Espírito; de eleição e fé; de variadas refrações da luz não criada; todavia o
problema ético nunca foi deixado de fora. As interrogações ‘o que faremos? ‘e’
como viveremos?’ jamais foram excluídas. Não andamos procurando coisas
escondidas pelo simples gosto de o fazer. Não foi a meditação abstrata que nos
levou, sempre de novo, ao ponto que está além de nossa observação, à luz a que
nenhum ser humano pode chegar. Roma no primeiro século, todas as localida-
des em todos os tempos, — de fato, toda realidade existente tem sido sempre o
nosso ponto de partida (1, 18-19). Foi correndo os caminhos do pensamento
que entramos em recesso.
“A necessidade de tomar decisões, a necessidade de ação, o mundo qual
é, [tudo isto] é o que nos compele a cogitar sobre o que é o mundo, como
haveremos de viver nele e o que faremos nele. Descobrimos que o mundo é um
grande enigma insolúvel; um enigma ao qual Cristo, a misericórdia de Deus, dá
a resposta e, porque as misericórdias de Deus são a resposta do grande enigma,

662
O Problema da Ética 12, 1

somos forçados a voltar ao ponto de onde começamos e formular mais objeti-


vamente, até mais substancialmente, sua essencial impossibilidade de solução
porquanto, finalmente, elas definem o mundo qual é, sem serem, de forma al-
guma, deprimidas em coisas deste mundo”.
Notar que o original não fala em “teoria” e “prática” da religião; parece-
me que o A. quer dizer que nada se inventa. A exortação não é para seguir teoria
nova, antes é feita em nome das há muito prometidas e conhecidas misericórdias
de Deus, as quais o A. passa a enumerar; semelhantemente (e agora na conclusão
do pensamento), não se trata de formular mais precisamente a nossa questão,
porém de perceber como as “misericórdias de Deus” despertam em nossos cora-
ções a consciência de que CRISTO é a resposta que Deus tem para os homens.
Entendo ser isto o que Barth está dizendo — [ou melhor, o que Paulo diz.!)].
Estamos novamente ante o problema das “características do aquém” [da
temporalidade] de nossa existência e de nosso modo de ser e, agora (somos
inevitavelmente lembrados desse problema) mediante as questões da vida, do
querer e do agir. O sentido do além [que é] o sentido da liberdade de Deus,
conforme vimos sempre e reiteradamente, é a relação de Deus para com as
criaturas; é a supressão do aquém, do ser humano; é o mais radical ataque a
tudo quanto se lhe contrapõe, a tudo quanto é secundário e diferente. Todavia,
na totalidade de suas características transcendentais [as misericórdias de Deus]
são “exortação” para o aquém, [para a criatura neste mundo].
A sede dessa exortação não pode ser qualquer dessas elevações huma-
nas donde bem intencionados mestres-escola ditam preceitos de moral ou, don-
de profetas — vocacionados ou não — lançam raios dardejantes e donde
pretensos ou verdadeiros mártires cuidam de derramar seus ais sobre a humani-
dade. Se essa sede for uma Igreja, certamente será uma Igreja consciente de sua
extrema e indestrutível solidariedade com este vale de ossos secos; [será uma
Igreja] que não terá outra esperança se não Deus.
Quando se trata de ética, nada mais é possível senão a crítica do caráter
todo, isto é, será necessário fazer um movimento profundo, básico, possivel-
mente rotação angular de 3600 [para varrer todo campo em derredor], e exami-
nar cada um dos pontos da problemática de nossa vida.
Ao se proceder a critica da totalidade do caráter, apreciando tanto os
seus traços negativos como os positivos, é necessário manter a máxima discri-
ção, não para evitar juízos por de mais severos (conforme se poderia supor)
mas, justamente ao contrário, para não ser excessivamente complacente dei-
xando de usar da indispensável radicalidade.
O clangor que nos vem dos pontos altos do mundo, o sonido que reboa
desde as torres da Igreja triunfante nunca é e jamais será a “grande tribulação”

663
12, 1 O Problema da Ética

que aflige os homens. Este alarido é a transcendentalidade deste mundo [e não


sai da territoriedade humana] pois é dos homens e por demais humano, mesmo
que se comporte como se fora totalmente do além.
[É preciso ter sempre presente em nossa mente que todo clamor, toda
crítica, toda lamentação que se fizer ao analisar os caracteres do mundo, quer
sejam típicos quer sejam excepcionais — tanto negativos como positivos — diz
também respeito a nós mesmos, talvez até com desvantagem para nós; por isso,]
toda pessoa que, ao pretender alçar sua voz para criticar a outrem, não se sentir
concomitantemente [atingível e atingida pela sua própria critica,] anulada, li-
quidada, que se cale na comunidade — [vale dizer, na Igreja, pois ou não tem a
necessária radicalidade ou o seu pronunciamento é irrelevante].
Dentro da problemática ética, muitas palavras de menos são melhores
do que uma só, demais. Neste assunto, a palavra decisiva pode, apenas, ser a
apresentação da existência efetiva desta problemática [que existe e subsiste]
(em tudo e para todos). Somente é decisiva a palavra [absolutamente) radical,
Semelhante palavra é totalmente objetiva, prática, (embora pareça “teórica’) e,
passando por cima de todos (nossos supostos) correligionários, indica direta-
mente a misericórdia de Deus como sendo a única causa e razão de ser da
problemática de nossa existência.
Em sua radicalidade, essa palavra nos fala da misericórdia e da compre-
ensão; diz-nos que ela é única, próxima, concreta, em sua existencialidade e
seu modo de ser; por isso ela é universal, existencial, [porém,] nunca, jamais,
material. É a palavra que compreende.
Exortação jamais é “apenas” exigência. “Exortação” é fazer a graça va-
ler como exigência; é fazer O QUE É, valer qual é e, por isto, é fazer “isso que
é”, valer como aquilo que não é.
Misericórdia quer dizer não JULGAR porque [aquilo que é ou poderia
ser objeto de julgamento] já foi julgado.
Misericórdia significa a existência lógica de “má consciência” dentro
do desempenho do mundo mau; todavia, exatamente dentro da logicidade da
existência dessa má consciência, [significa] a inaudita possibilidade da existên-
cia de consciências consoladas (embora nunca e jamais a existência de “boa”
consciência!).
Portanto, “exortar” significa fazer valer a graça, vê-la na pressuposição
de sua existência, descobri-la e nos dirigir a ela, nas coisas que existem. (Nisto
acompanhamos Lutero e Dostoiewski. contra os Franciscanos e Tolstoi).
[Exortar, portanto] de maneira alguma significa [considerar a graça como]
algo especialmente separado, segregado, que tenha existência especial [no
mundo], ou que esteja afastado ou acima daquilo que existe. “IN MEDIO

664
O Problema da Ética 12, 1

INIMICORUM REGNUM CHRISTI EST, UT PSALMUS DICIT”. (Lutero).


Portanto apenas se pode exortar de lá onde o fariseu e o publicano estão rigoro-
samente na mesma linha e, ao lado dos quais, quem se atreveu a exortar, não
achou separação alguma entre as ovelhas e cabras nem tem [a mínima idéia
dessa] separação em mente.
A exortação só pode partir de quem de maneira alguma pensa, cogita ou
supõe que exista [ou que possa existir] qualquer diferenciação, qualquer linha
divisória, entre as pessoas, entre fariseu e publicano, [entre fiéis e infiéis, entre
bons e maus, entre eleitos e rejeitados]. A exortação só pode partir de quem não
tem [ou de onde não existe] qualquer presunção de que tenha havido algum
“impulso de Cristo”; na fonte dessa exortação não podem existir, sequer, reser-
vas ou ressentimentos morais, digamos, contra algum Tirpitz, ou algum
Bethmann-Hollweg ou algum Lenine.
[Bethmann-Hollweg foi político alemão da época da primeira guerra
mundial, de tendências radicais e despóticas; exerceu grande influência sobre o
Kaiser e notabilizou-se pela tentativa de justificar perante o mundo a invasão da
Bélgica neutra pelos exércitos imperiais].
Na origem da exortação deve existir a compreensão de que a chocante
problemática de semelhantes vultos [e a de todas personagens mais ou menos
importantes das quais discordamos com ou sem razão de nossa parte], tem o
seu perfeito paralelo na problemática existencial de cada um de nós, a qual,
todavia, damos menor realce ou menos projeção [ou porque não temos desta-
que na coletividade ou porque estamos familiarizados com nossa maneira de
ser e somos insensíveis a seus aspectos possivelmente menos atraentes. Contu-
do,] a problemática individual, [seja de quem for,] é apenas a réplica, qual
silhueta, de problemática inteiramente diferente ante cuja enormidade a criatu-
ra humana não pode, senão emudecer!
Não pode haver exortação onde, quem exorta, já traz na algibeira o es-
boço de algum programa ou de algum instrumento de acusação.
Traem-se inconfundivelmente todos supostos moralistas que do cume
das altitudes humanas pregam ao povo com palavras totalmente carentes [de
sentido] e que, a despeito do afetado calor de suas frases e do tom [de valor]
absoluto que dão ao discurso, tem a voz crocitante, na realidade tem a voz
morna e pouco convincente dos que se abrigam ao titanismo de bons e maus e,
portanto, estão sob o juízo a que toda prosápia está sujeita e do qual, eles mes-
mos, dão testemunho, sempre de novo.
A exortação somente pode existir [e surgir] onde o direito do ser huma-
no consiste e está baseado na realidade de que “esta” criatura — [qualquer que
seja, tanto aquela que exorta como a exortada,] — não tem razão e, portanto. [a

665
12, 1 O Problema da Ética

exortação] somente [pode ser feita, recebida e entendida] “mediante as miseri-


córdias de Deus”.
“Que ofereçais os vossos corpos”, é a que vos exorto. Lembremo-nos
das passagens peremptórias (6, 13 e 19) pelas quais vimos que ante o Poder da
Ressurreição que a graça impõe, nada mais nos resta senão colocar nossos
membros obedientemente à disposição da reação divina contra nós levantada;
essa imposição é feita à totalidade do corpo em [todos] seus membros, por-
quanto a criatura propriamente dita, o ser visível, o homem histórico, o único
que conhecemos é exatamente o corpo.
Eis que agora, ao encontro [deste homem, nosso conhecido] vem o “ho-
mem novo”, para o requisitar, [para o convocar] fundamentado “nas misericór-
dias de Deus”; é justamente esta fundamentação, a origem e o sentido deste
encargo ético [para o qual o “homem velho” é requisitado,] que confere serie-
dade à convocação e, não apenas seriedade mas, também Poder. Ante seme-
lhante fundamentação o homem não pode recuar. Obediência apenas interior,
[subjetiva, dita] espiritual (ou psicológica, anímica) e mental, está absoluta-
mente excluída porquanto nesta questão, (“vistos de baixo” — [isto é, do ponto
de vista do mundo] ), “interioridade”, “alma” e “pensamento”, são apenas fun-
ções do “corpo” e é impossível estabelecer uma linha divisória aceitável e váli-
da entre as funções biológicas “inferiores” [ou “superiores” que fossem,] e as
partes restantes do corpo que permanecerem [ou que permanecessem] desobe-
dientes. Vistos do outro lado, (vistos de cima) a “interioridade”, a “alma” e o
“pensamento” são nada mais e nada menos que a Nova Criatura em Cristo, em
quem [e de quem] se origina a grande perturbação da qual a velha criatura deste
corpo não pode esquivar-se. É nesta perturbação que se desencadeia a vista da
graça e das “misericórdias divinas” — misericórdias que pessoa alguma mere-
ceu e jamais alguém merecerá, — que se delineia e se fixa o relacionamento do
homem com Deus, relacionamento que demanda obediência absoluta e cons-
trange a obedecer. Esta perturbação é a crise a que está sujeita toda criatura e
constitui sua única esperança, levando-a da morte para a vida; nela está a ÉTI-
CA da tensão escatológica sem a qual não há ética.
Graça se traduz na impaciência e carência [que a criatura sente] perante
Deus. Graça significa que menos de que TUDO não é suficiente, (Mar. 12, 30 e
33). A graça é inimiga de todos arranjos intermediários, mesmo os mais im-
prescindíveis. Graça é o machado posto à raiz da “boa consciência” da qual
com tanta satisfação se orgulha o cidadão, em sua profissão, na repartição e na
política e que a humanamente amistosa frouxidão do luteranismo moderno sabe
criar sempre de novo. [Isto quando Barth escreveu; e o evangelismo, de modo
geral, hoje?].

666
O Problema da Ética 12, 1

Não há engano mais absurdo do que esperar (ou temer) que a graça
pudesse transformar-se em leito de repouso para “teóricos” e místicos (6, 15-
16). Semelhantemente, na defesa do homem com justa razão preocupado com
sua vida (moral!), não há tentativa mais traiçoeira do que, sob o pretexto de
evitar esse engano do luteranismo, preferir fundamentar a ética em conceitos
orientados para objetivos deste mundo, em bens e em ideais, em vez de tomar
como referência o conceito da negação decisiva de todas finalidades de origem
humana pensando, antes, no perdão do pecado [que é a graça de Deus].
Não há degradação mais tola do que a atitude de alguns recém-conversos
que, na ânsia de se lançarem ao encalço da graça, a tornam suspeita fazendo do
“agraciamento” [divino] e da atividade humana coisas distintas entre si; pas-
sam por cima da graça, para irem, além dela, até ao que se pode designar por
“tentar a vida”. Semelhante procedimento é a forma mais segura de devolver
“ao corpo” os “direitos” que [segundo a natureza humana] lhe são próprios.
Fora da graça não há qualquer forma ou maneira de despertar verdadei-
ro dessossego ético na criatura e o ataque absoluto que contra essa criatura é
desferido — e que constitui o sentido de toda ética, — somente pode ser desfe-
chado se o ponto de vista da graça for mantido firmemente em todas instâncias,
“como sacrifício vivo, santo e agradável a Deus: vosso culto objetivo a ele”.
À vista da situação geral [do relacionamento] existente entre Deus e os
homens, que sentido pode ter esta definição de ação ética primária, [básica,
inicial] de um “culto objetivo” [racional] a Deus? Isto já foi identificado mais
atrás (6, 19 e 22) como “santificação”. Agora [porém,] é preciso definir este
conceito com maior exatidão.
Santificar alguma coisa é separá-la para Deus, coloca-la à sua disposi-
ção, apresentá-la e oferecê-la a ele, pô-la à sua disposição conforme se define
com mais rigor no “conceito” de “sacrifício” — [holocausto].
Esta exortação, (feita em forma de rogativa) com fundamento nas mise-
ricórdias de Deus, diz que o CORPO, isto é, o sentido da existência [terrena],
sua aparência e sua historicidade devem ser apresentados [a Deus] e postos à
[sua] disposição como SACRIFICIO. Sacrifício quer dizer renuncia, abdica-
ção; oferta feita incondicionalmente a favor de Deus.
Se a própria pessoa for o objeto dessa renuncia, dessa abdicação, dessa
oferta, então o seu sacrifício não pode ser senão o absoluto reconhecimento da
questionabilidade e do confisco que Deus manda a seu encontro de todos os
lados; é o sacrifício que a pessoa tem de fazer (permanentemente) no seu sem-
pre renovado e nunca cabalmente realizado retorno à misericórdia e à liberdade
de Deus; é o SACRIFÍCIO cuja dureza e grandeza melhor esclarecemos e apre-
endemos meditando sobre a dupla predestinação, conforme capítulos IX a XI.

667
12, 1 O Problema da Ética

Em primeiro lugar, a exortação reconduz-nos àquele em cujo nome — e


em nenhum outro — é possível exortar. O problema da ética é idêntico ao da
dogmática: SOLI DEO GLORIA! Todo tratamento ético secundário sobre o
qual, mais adiante, teremos algo a dizer, precisa estar ligado a esta ética primei-
ra, precisa proceder dela e estar em correlação com seu caráter” vivo, santo e
agradável”, como sendo o “bom” que está à nossa disposição para o extremo
— (para o fim) — nesta vida (6, 23).
Nisto tudo é preciso observar bem que SACRIFÍCIO não é alguma tran-
sação humana mediante a qual a vontade de Deus se muda e se faça em função
da instrumentalidade de quem se sacrifica. Sacrifício é antes de mais nada, uma
demonstração em honra a Deus, por ele exigida (pois demanda a honra) mas,
em si mesma é ação humana, tão boa ou tão má quanto qualquer outra. (É Deus
quem faz a qualificação, segundo sua onisciência, sua sabedoria, sua retidão e
sua misericórdia, na conformidade do que houver no íntimo do coração de
quem faz o sacrifício). Deus permanece sendo somente ele, Deus, mesmo ante
o maior sacrifício e a vontade divina se cumpre segundo os seus imutáveis
desígnios. (Isto precisa ficar bem claro a toda sorte de místicos e sonhadores, a
todo pretenso condicionamento da vontade divina por promessas, louvor e até
mesmo orações; todavia, o que dizemos, como homem o dizemos; vemos na
promessa, a superstição; na gratidão pela tragédia o desvirtuamento da graça
divina (“Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?”), na reza a
formalização do relacionamento do homem com Deus; e na oração não raro —
a sonora peça oratória do ilustre fariseu. (“Graças te dou, ó Deus, porque não
sou assim”...). Todavia o ESPÍRITO corrige e, transformando, torna perfeita a
nossa suplica: “Pedi, e dar-se-vos-á.”
Somente a oração?
[— Assim como ficou sem justificação o fariseu da parábola e foi ouvi-
da a oração egocêntrica do ladrão na cruz, talvez Deus aceite ou não aceite este
ou aquele louvor; a nós é bastante lembrar que “os que não têm lei para si
mesmos são lei”... Deus vê os corações!]
Somente uma criança poderia julgar uma passeata de 19 de maio como
sendo o movimento trabalhista do qual a passeata é mera demonstração, o que
não impedirá que alguns operários conscientes da movimentação da classe,
dela participem e até a considerem eminentemente necessária. Ora, o sacrifício
[semelhante à passeata referida] pode ser uma demonstração necessária e até
requerida; todavia, também assim o é toda ética, mesmo a primeira, a básica, a
ética da linha interrompida e a genuflexa adoração ao Deus misericordioso.
Não há nenhuma orientação da vida [mordomia] por mais alta que seja a quali-
dade de sua ética, mediante a qual as vontades divina e humana coincidam: na

668
O Problema da Ética 12, 1

qual a vontade humana se adapte à divina ou então, inversamente, mediante a


qual a vontade divina seja estabelecida pelo querer humano.
A toda e qualquer atividade ou inatividade humana cabe, apenas, dar
testemunho da única atividade realmente digna desse nome: a divina.
Não há coincidência possível do ato com a respectiva previa concepção
mental e esta é uma regra férrea, também, para a ética.
Onde se vir o “Reino de Deus” em “crescimento orgânico”, ou, dito mais
honestamente e, também, mais arrogantemente, onde se vir o “Reino de Deus”
em construção, aí não se trata do Reino de Deus mas da TORRE DE BABEL.
O que existe no mundo é a grande tentativa geral de cada um a seu modo
orientar a própria vida, labuta em que todos laboramos com temor e tremor;
todavia nesse afã jamais coincidem ou sequer se tocam a vontade de Deus e a
dos homens, nem mesmo na proporção da espessura de um fio de cabelo.
A própria pureza da ética exige que não haja qualquer mistura entre o
céu e a terra (e nisto, também, concordamos com Kant), porquanto a pureza da
ética está na sua origem, que precisa ser preservada, a despeito de toda pressão
romântica, referindo-nos a Deus como Deus e ao homem como homem.
O desengano, o descoroçoamento e a moderação que resultam [da sepa-
ração entre o que é divino e o que é humano] só podem ser para o bem. Que
nesse “desalento” o homem perceba (se já não o houver percebido antes) do
que se trata quando o problema ético surgir.
Na grande mordomia da vida só podem ser feitas demonstrações; outra
possibilidade não existe: são atividades plenas de significado que dão teste-
munho da gloria de Deus e a testificam. Se estas demonstrações efetivamente
servem à honra [à glória e ao louvor] de Deus — porquanto devem honrá-lo —
é questão que temos de entregar totalmente a Deus. Ele aceita e rejeita. Ele
retribuirá [o original diz “pagará”] a cada um “segundo suas obras” (2, 6) [isto
é] segundo o que Deus escolher [OU acolher nessas obras] e a avaliação que
lhes der.
A estas demonstrações em honra a Deus pertencem, além das atividades
que dizem respeito à ética fundamental, todas demais atividades secundárias.
É na “aceitação” ou “rejeição” divina que está a legitimidade da ligação
da ética “secundária” à “primeira”; a sua qualificação como “boa” está na re-
núncia do ser humano a seu “direito” e a seu “poder”; nesta renúncia ele pro-
clama a misericórdia e a liberdade de Deus. Todavia, todas essas atividades
[tanto aquelas colocadas na ética básica quanto as daí decorrentes ]. somente
têm eventual valor se, em si mesmas, não forem mais do que meros apelos [ou
oferendas] à aceitação ou à rejeição divina e, como tais, nunca pretenderem ser
mais do que analogias (parábolas) e testemunhos, ficando até mesmo esta

669
12, 1 O Problema da Ética

proposição sujeita ao beneplácito e ao critério de Deus pois, do nosso ponto de


vista fazemos uma série interminável de sacrifícios sucessivos porém, vistos de
cima eles constituem um sacrifício único e definitivo, o “sacrifício vivo, santo
e agradável a Deus”.
Somente é realmente VIVO, SANTO E AGRADÁVEL A DEUS, o pro-
cedimento que jamais pretendeu ser sacrificial; quando a pessoa nem sequer
imagina que em sua atitude poderia haver vestígio de sacrifício; [quando a pes-
soa disciplina seu pensamento, modera suas palavras e policia seus atos exclu-
sivamente pela fé, constrangida pelas “misericórdias divinas e sem visar reco-
nhecimento].
Tudo quanto se puder designar como dever, virtude e bem, está sobre o
fio desse agudo gume; está suspenso por esse tênue fio que decide se a criatura
que as pratica está realmente pronta ao sacrifício — isto é, se ela quer realmen-
te [sobrepujar suas próprias inclinações, seus interesses e suas regalias e, tudo]
sacrificando, demonstrar que dá a honra a Deus. O que for além disso [a atitude
que tiver vestígios de conceitos egoístas, vaidade e interesses pessoais — até
mesmo a pressuposição de estar “agradando a Deus”] procede do maligno, —
[por mais grandioso ou emocionante que seja,] ainda que fosse a santidade e a
pureza de alguma virgem martirizada.
Para quem este Deus parecer excessivamente duro, quem não quiser [ou
não puder] oferecer essa “adoração objetiva”, este que se volte para trás, pois
tem bens em demasia [Mat. 19, 16 e seguintes].
Daí vê-se porque e de que maneira a ética exigida por Deus com funda-
mentação nas suas misericórdias tem de, necessariamente resultar na grande
perturbação de TODO e CADA indivíduo.
Exorto-vos “a não vos conformardes com a condição do mundo presen-
te, porém, sim, com a sua vindoura transformação”.
[A não conformação com o presente mundo] refere-se evidentemente às
atividades [que classificamos como] secundárias. [Porém, se a ética consiste
numa demonstração referente a alguma coisa — ou idéia] então, a que se refe-
rem e a que apontam essas atividades (ou demonstrações)?
Para responder dizemos tudo, afirmando que se referem às atividades
básicas das pessoas que se sacrificam, das criaturas que não são vitoriosas, nem
triunfantes, nem têm razão (o que, todavia, não impede que tenham realmente
a aparência de vitória, triunfo e razão!).
O mundo a que a passagem se refere é o mundo do presente século, o
mundo da temporalidade, das coisas e dos homens; é o único mundo que co-
nhecemos e em que nos é concedido viver; é o mundo com o qual nos [identi-
ficamos e ao qual nos] unimos inseparavelmente por meio de nosso corpo sem

670
O Problema da Ética 12, 2

podermos traçar a [eventual] linha divisória que nos separasse dele; a este mun-
do também pertenceria um [hipotético] corpo astral, por simples questão de
lógica. [Possível referência aos gênios de fogo os quais povoariam o universo
segundo algumas religiões ocultistas].
O mundo [que a passagem menciona] é aquele no qual o ser humano,
(com todas suas possíveis e imagináveis projeções mundanas e “intermundiais”)
continua sendo criatura humana.
Este mundo tem determinada “postura”, determinado esquema e tem
uma lei básica que se expressa na tendência de seguir a luz (criada!), de buscar
a vida e a plenitude; busca o testemunho e portanto o que é testificado; em
resumo: este mundo segue a própria criatura, [e esta criatura, para o mundo e
segundo o mundo — e pela própria lei natural do mundo — completa-se e se
realiza plenamente e idealmente em sua materialidade absoluta, nas suas
multiformes manifestações].
Esse esforço para assegurar prazer, posse, sucesso, saber, poderio, ra-
zão, para chegar a ambicionada e [supostamente] atingível plenitude imagina-
da, deve ser a obra do misterioso centro deste cosmos na medida em que o
homem for genial. (Convém aqui lembrar que a origem etimológica de “geni-
al” sugere a idéia de casamento, [núpcias,] e gênio — ou “genius” — é o “que-
rido EGO”). [Mais adiante Barth faz analogias entre “genial” e o que, em por-
tuguês, poderíamos escrever “genital”, do latim “genialis”].
Talvez não erremos muito se identificarmos “a condição do mundo pre-
sente”, intrinsecamente, com o esquema de EROS. Esta característica carrega-
mos todos em todas nossas atividades diárias e elas nos acompanharão até o
fim do mundo [ou individualmente, até o final de nossos dias terrenos]. Não
tenhamos a ilusão de que existam [ou possam existir] atividades éticas que não
estejam entremeadas dessa condição, que estejam livres dessas roupagens, isto
é, não existem [sentimentos nobres quais] amor, probidade, pureza, coragem,
etc., que não contenham a forma deste mundo e não sejam eróticas.
Assim como não existe um pensamento puro em forma de ação, tam-
bém não existe intenção [querer ou desejo] pura. [A tradução inglesa escreve
“também não existe um puro ato de vontade”]
Assim como todo ato de pensamento — como tal é suposição [opinião,
ou julgamento], todo ato da vontade — também como tal — é libido e cobiça.
Todavia, não subestimemos nossa situação, [ou melhor, não sejamos
pessimistas]. Se não há sequer uma única pessoa que não traia [ou que em seus
sentimentos e conduta, negue] a característica deste mundo, também não há um
sequer que a carregue sem já estar, justamente por isso, às voltas com o princí-
pio fundamental da ética [com a grande perturbação que fala] do sacrifício

671
12, 2 O Problema da Ética

[santo e agradável a Deus, mediante o domínio sobre o corpo]. “A condição, [a


característica e a aparência] deste mundo desaparece” (1 Cor. 7, 3 1) e o obje-
tivo de buscar a vida [neste mundo] tem o seu fim. Em imediata oposição à
procriação está a morte. O que se cria, seja um ser vivente ou seja uma obra, é
criado para a temporalidade.
Quando a obra ou a criatura nos fala em sua mais sublime beleza
(Mozart!), fala-nos em tons da mais profunda melancolia. Quem já não o sa-
bia? Quem já não sabia que nosso “corpo” é o “corpo da morte” (7, 24) e que na
realidade nenhuma outra atividade nos resta senão a de [tentar melhorar um
pouco a nossa situação e] “remediar” esta empresa (8, 13) (procurando fugir de
sua fatalidade material)?
[A tradução inglesa escreve, (acaso) “não sabemos que a nossa atividade
não pode, senão cessar?”. Embora o verbo empregado no original possa signi-
ficar também “parar”, “cessar”, “desligar a empresa”, ele significa “arrumar”,
dispor provisoriamente que, aliás, é a primeira definição que os dicionários
dão, e que traduzi como “remediar”; parece-me que o significado assim enten-
dido no original é mais profundo e vai bem com a citação de 8, 13 pois implica
na idéia de que existe, enquanto aqui estamos, a possibilidade de “provisoria-
mente” abrandarmos as condições de nossa empresa (que caminha para o co-
lapso — para a morte), mediante o controle dos ímpetos de nosso corpo e en-
tão, pela graça de Deus, quem sabe, a salvaremos da derrocada definitiva! ...].
Quem ignoraria que essa conduta ética nos é imposta por ordenança
[divina]? E quem, ao se lembrar disso, já não estaria envolvido nesse procedimen-
to? Quem já não estaria, existencialmente, sacrificado (mediante renuncias e
contenções sucessivas que, para Deus, constituem um só e definitivo sacrifício)?
Para confirmar a real existência desse sacrifício é suficiente confessar a
existência da profunda problemática [da grande perturbação] que constante-
mente acompanha nossa vida e que nos cerca de todos os lados; é suficiente
confirmar a realidade da opressão que sentimos.
(E quem ha que conheçamos que, acaso, não confirme essa situação?
[Todavia], o Senhor conhece os seus!)
Assim é que obedecemos a “exortação” e surge a atividade ética secundá-
ria, em ligação direta com a “primária” e, por sua decorrência, sucede que “não
nos conformamos com a condição deste mundo mas, sim, na sua transformação”.
[Esta transformação se dá] quanto as particularidades e características
individuais, tais como vontades [caprichos], decisão [arbítrio], direitos pesso-
ais do indivíduo, [prerrogativas], entram em colapso— [desaparecem, cessam
de existir]. quando o indivíduo é apenas o “sacrificado” — [isto é, aquele que
renunciou a sua própria vida, segundo os padrões do mundo]. — e nada mais

672
O Problema da Ética 12, 2

— (e isto também pode, em dado momento ser a mais alta confirmação da vida,
o seu (mais significativo] desdobramento!); então será o fim do mundo, a res-
surreição dos mortos; e a criatura agirá eticamente. A ética de uma atitude está
naquilo que a ilumina [e não da luz que dela acaso se esparge], porquanto neste
assunto temos razões para não nos expressarmos senão em forma negativa.
[Falamos em termos de negação, de abstenção, de renúncia, do] sobrepujamento
do indivíduo porquanto a conformação [que a ética divina impõe] não se dá
segundo o presente século mas é segundo o mundo transformado.
Não ha nenhuma conduta que, em si mesma, não esteja na conformida-
de deste mundo embora existam ações que QUASE contenham em si o caráter
do protesto divino contra o grande erro. Também não existe procedimento que
em seu modo de ser acaso seja conforme a transformação deste mundo, embora
existam atitudes que são tão extraordinariamente transparentes [cristalinas,
puras] que QUASE deixam transparecer a luz do dia vindouro.
Portanto, resta que toda conduta humana é somente (por que dizemos
“somente”?) analogia, [semelhança, parábola] e testifica a conduta divina que,
por ser divina somente (e por que dizemos outra vez “somente”?) pode ser
apropriada na eternidade e jamais na presente temporalidade. É poeira levantada
pela caravana em marcha — apenas poeira — que [todavia] testifica a existên-
cia da caravana; é a cratera deixada pela granada que explodiu e que nos fala de
explosão que houve; é depressão na encosta da montanha que apenas nos fala
do lugar onde a elevação deixou de existir. Assim também as mais peregrinas
de nossas atitudes, as atividades mais amplas e de maior alcance, são sempre e
insistentemente recomendadas como prova [da obra] do Espírito Santo e de seu
poder [para nos levar] a produzir “obras e realidades” que sejam recomendadas
e desejáveis. Se daí, por força das circunstâncias, surgirem novas ações positi-
vas, novos pontos de vista — novos direitos, novas forças motrizes (aplicadas à
antiga carroçaria do mundo) — e estas coisas aparecem imediatamente! —
então essas [decantadas] atitudes e atividades não são conformes ao mundo em
sua transformação mas, na realidade, gravitam em torno das coisas materiais e
estão inteiramente em conformidade com o comportamento deste mundo.
A criatura que se engaja nos mais sublimes feitos e realidades tanto
pode ser aquela sempre vitoriosa como esta outra, do sofrimento; pode ser a
pessoa no pleno gozo de seus êxitos ou a outra no duro curtimento da tragédia;
tanto pode ser a que progride de ânimo alegre como a que regride melancolica-
mente; tanto pode ser quem de tudo tira vantagem e proveito, como quem cons-
tantemente abre mão, abdica, renuncia.
[Neste engajamento, qualquer que seja a personalidade do indivíduo
embalado em suas próprias cogitações de alto coturno,] ele permanece totalmente

673
12, 2 O Problema da Ética

seguro de si mesmo, inafetado e inabalado em sua “genialidade” em cujo clí-


max temporal [se delicia em festim nupcial] com seu muito “amado Ego”.
[É neste alcandorado enlevo que brotam e se divulgam idéias esdrúxulas
semelhantes às de Nietzsche e] é suficiente aqui fazer menção das graves ponde-
rações que contra a propagada “liberdade para o suicídio” podem ser levantadas.
[Todos esses arroubos do auto-endeusamento intelectual] são de curta
duração, semelhantes ao clímax de Prometeu e, na verdade, quanto mais altos
forem, mais perfeita será a analogia com Prometeu.
Como poderiam a seriedade e o poder da ética estar contidos em tais
“feitos e realidades”?
Todavia existem [também] atitudes [atividades e primores intelectuais]
das quais irradia a luz do sacrifício porém, estes casos procedem de criaturas
“já sacrificadas” [criaturas que renunciaram a si mesmas] e não são de homens
e mulheres ostentando alguma nova forma de humanidade, quer positiva quer
negativa. [Esta ética que tem em si mesma a luz da renúncia] é peculiar a pesso-
as que já não pertencem a si mesmas e a luz que a sua ética permite distinguir é
particularidade divina e pertence a Deus; é do arbítrio divino e da justiça de
Deus. Ele é o Senhor!
Esta é a luz que perturba a criatura [típica] — a “pessoa-ideal” segundo o
esquema Ludendorff-Lenin ou segundo o esquema Foerster-Ragaz, porque esta
luz é o ataque ao ser humano por excelência; é o ataque à criatura [conforme
existente] neste mundo. É o ataque à genialidade — (e quem não é genial?). É o
ataque que todos tanto tememos porque é o ataque que todos ansiosamente espe-
ramos pois bem sabemos (embora, em alguns casos, subconscientemente) que
nada melhor nos pode acontecer do que ficarmos livres de nossa GENIALIDADE.
[Lembrar que o A. joga com a origem etimologica de “genialis”].
[Foerster foi filósofo e pensador alemão que escreveu sobre “Ética e
Pedagogia Sexual” e Ragaz escreveu sobre “Socialismo e Ética”. O primeiro
era católico e o segundo protestante; ambos combateram o militarismo; Foerster
foi livre-pensador e Ragaz, socialista].
[A libertação da “genialidade”] é o prenúncio da crise [da decisão] que
leva da morte para a vida.
Perguntamos novamente: quem está livre desta crise? Onde não existe
ela? Quem há que se negue a ouvir com boa vontade, esta exortação? Quem a
rejeitaria?
Aqui todos atacam porque todos são atacados; todos têm razão porque
ninguém a tem. Não se pode imaginar um ataque mais severo às obras de Sata-
nás do que este, [contido na “exortação”]. Todavia, este ataque também desmo-
rona algumas obras que são consideradas plenamente divinas.

674
O Problema da Ética 12, 2

[Estas pseudo-obras-divinas] não ruiriam segundo a conformidade do


“presente século” todavia não podem subsistir quando confrontadas com o
mundo em sua transformação.
O que poderíamos, de nossa parte, fazer para que em nossas atividades
— [em nosso sacrifício, em nossa renúncia] transparecesse a vitória e delas
irradiasse a glória da luz divina? O que faremos para que o teor de nossa condu-
ta não seja o de cascas chochas mas de grão bom e sazonado?
O que se pode aconselhar ou a que se pode convidar ou incitar alguém,
para que produza tais frutos?
—Já o dissemos: é responder “sim” à problemática da existência; [é
confessar que ela existe], já que ela existe de fato.
Pode-se recomendar a alguém a sujeição à primeira ética (aliás, não a
alguém mas a nós mesmos); pode-se exortar ao arrependimento. Todavia, essa
primeira atitude (a ética primeira) à qual tudo o que é secundário precisa ligar-
se e da qual esta ética secundária recebe o seu poder luminoso, é a “renovação
de vosso pensamento para obterdes a visão do que seja a boa, santa e perfeita
vontade de Deus”.
— Então, outra vez o pensamento?
— Sim, o pensamento.
O primeiro procedimento ético é um pensamento totalmente definido,
[já delineado e especificado].
Arrependimento, significa inverter o pensamento.
A colocação da chave do problema ético, o tambor onde se dá a volta e
que faz a fechadura girar no sentido que abre a porta ao novo modo de proce-
der, está justamente nesta inversão do pensamento. Esclarecemos: também o
pensamento vaga na esfera das coisas relativas e, em si mesmo, ele jamais é [ou
seria] justificação válida perante Deus; a idéia de que Deus poderia pensar “em
nós” [ou expressar os seus pensamentos por nosso intermédio] é mui grande
ilusão de filósofos românticos — ou melhor, [o pensamento] apenas pode re-
presentar a vanguarda, a demonstração da honra a Deus [assim como a “para-
da” cívica pode ser a demonstração de algum movimento de classe]; não há
qualquer poder criativo intrínseco [no pensamento] e somente a Palavra e a
Obra de Deus podem constituir o ESSE em NOSSE; portanto não se pode exor-
tar alguém a participar do “pensamento puro”. Existe porém um ato de pensa-
mento que contém uma promessa; é um ato de pensamento que, na realidade,
não como tal mas como a supressão de si mesmo — e de todos atos — é idên-
tico ao “culto objetivo” mediante o qual, uma vez por todas, a genuflexa adora-
ção a Deus — e na medida em que esta adoração se realiza e se suprime como
ato — alcança “a visão do que seja a vontade de Deus”: a sabedoria da opção
que por si mesma escolhe o caminho certo a cada instante.

675
12, 2 O Problema da Ética

Existe a meditação sobre a idéia da graça, da ressurreição, do perdão e


da eternidade. Esta meditação coincide [e é coerente] com a confirmação da
existência da mais profunda problemática de nossa vida temporal. Quando
mediante a interrogação sobre o sentido derradeiro dessa meditação, finalmen-
te, reconhecemos o sentido definitivo, o fim [o objetivo] de nossa existência
temporal então, no mais profundo estremecimento, passamos a meditar sobre a
eternidade. É por isto que a mais profunda problemática de nossa existência é
também a sua mais profunda verdade.
A meditação sobre esta idéia é o pensamento renovado; é a inversão do
pensamento; é o arrependimento.
Sabemos que justamente na medida em que [este pensamento] é pleno
em promessa, na medida em que ele suprime a si mesmo como ato de pensa-
mento, na medida em que ele participa do próprio puro pensamento divino, isto
é, na medida em que for sacrifício “vivo, santo e agradável a Deus”, na medida
em que for [um sacrifício] aceito, ele apenas preenche o tempo, porém jamais
acontece; contudo sabemos (também) que “acontece” porquanto ele [realmen-
te] põe em crise todos demais pensamentos; assim, à vista da criação e da obra
de Deus, das quais “são testemunhas os seus pensamentos, mutuamente se acu-
sando ou se defendendo” (2, 15) podemos exortar as pessoas [a que façam esse
sacrifício].
Não só podemos mas devemos convidar a todos e instar para que se
arrependam; podemos rogar que não se esquivem da por demais conhecida
crise de todos pensamentos mas meditem sobre ela, ouvindo a Palavra divina e
dando lugar a Deus. E isto basta.
A graça basta também para a ética! Basta, porquanto a volta dada na
posição da chave indica que existe [agora] nova maneira de proceder e abre a
porta a essa possível atividade [a essa possível conduta ética] que, em primeiro
lugar, já traz em si o caráter do protesto divino contra o grande erro e possui em
alto grau a transparência que dá passagem à luz do dia vindouro.
[Esta graça divina] é suficiente para abalar o indivíduo em sua maldita
segurança [mesmo que se trate do mais presunçoso intelectualista] e então gui-
ar o seu destino espiritual como nova criatura em Cristo.
[A graça] é suficiente para acordar o ser humano do “sono dos justos” e
transformá-lo em ente sacrificado. Basta-lhe o “bom, agradável e aceitável”; isto
é [basta-lhe] não deixar escapulir completamente [a oportunidade de exercitar] a
conduta que vai ao encontro daquilo que Deus valoriza e em que transparece a
luz da vitória sobre a criatura deste mundo, a luz da glória de Deus.
A depreciação e as justificadas objeções do anti-intelectualismo não atin-
gem este [novo] pensamento porquanto a meditação sobre a idéia da “eternidade”

676
O Problema da Ética 12, 2

suprime também a possibilidade [ou risco] de pretender-se encontrar justifica-


ção em qual quer meditação.
[Também] não faz sentido aborrecer-se alguém com as grosserias do
intelectualismo porque nisso pecamos todos.
Tanto a ética como a lógica precisam, uma mediante a outra, ser remeti-
das à sua origem, ao problema da existência; daí procede a necessidade de se
tratar da Palavra de Deus, — de ouvi-la, de comentá-la, justamente quando se
tem em vista a vida verdadeira. Porque a ética precisa voltar à problemática da
vida através da lógica e porque a lógica precisa fazê-lo através da ética, é que
precisamos voltar ao discurso, aparentemente ocioso, sobre Deus, ao meditar-
mos sobre a interrogação do que faremos. Isto se impõe porque o mundo está
cheio de encargos prementes; impõe-se por causa do acidente [e quiçá também
incidente] de rua; por causa do jornal diário, da Carta aos Romanos, do
“Paulinismo”.
Se fosse possível “fazer” alguma coisa com “atos e fatos”, conforme
pessoas apressadas levianamente supõem, tudo isso poderia ser abandonado na
prática. Porém, como vimos, com atos e fatos nada se faz; por isso somos exor-
tados a renovar o pensamento, a invertê-lo e a que nos arrependamos; é uma
advertência que devemos ouvir e, ao ouvi-la, fazer alguma coisa.
Ante isso vamos mais uma vez firmar delimitando, ou melhor, vamos
firmar sublinhando que a palavra final do ensinamento aqui necessário, tem de
ser dada por Deus e por Deus somente.
Deus é a grande perturbação tanto de quem cuida da ética como de quem
cuida da dogmática.

Comentários: 12, 1-2

A certa altura de seu arrazoado sobre o “processo do pensamento”


Barth afirma que se considerarmos a Epístola aos Romanos, como sendo
“ato de pensamento” do Grande Apóstolo dos Gentios, então não é auto-
maticamente certo que sua exposição esteja na conformidade com o
pensamento divino. Talvez, ainda a esta altura do livro, seja conveniente
lembrar o humor irônico do A. Parece-me que Barth quer dizer que se
quisermos negar a Paulo a graça da inspiração divina então não é “automa-
ticamente certo” que a Epístola seja realmente — Palavra de Deus e que
a ética que Paulo propõe seja, de fato, divina como, aliás, não se pode, a
priori, afirmar que este livro seja verdadeiramente meditação séria sobre
Deus. (É preciso primeiramente examinar... para reter o que for bom!).
Todavia, ainda no seu humor peculiar, o A. diz que se estivermos con-

677
12, 3-8 A Base Fundamental

vencidos de que é absolutamente necessário recorrer à ética nova, intei-


ramente, totalmente diversa dos conceitos do mundo, se não pudermos,
em sã consciência, alegar que a criação de tal ética seria mero
diletantismo, coisa inócua, desnecessária e até extravagante, então nada
nos resta senão aceitar e enfrentar o transtorno, a perturbação, a “atrapa-
lhação” que esta nova ética traz e impõe à vida que “poderíamos” levar
segundo nossas inclinações materiais, porquanto esta ética que o “novo
Apóstolo” preconiza, exige que entreguemos aquilo que temos como
sendo nosso — (ou melhor, aquilo que “outrora” tivemos como sendo
nosso) em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, buscando com em-
penho os dons mais excelentes, para que sejamos “um” em CRISTO.

A BASE FUNDAMENTAL (12, 3-8)

“A Pré-suposição” é o título que a versão inglesa dá à exegese dos


versículos 3 a 8. Embora o original admita essa tradução e ela seja bastante
própria segundo a semântica do vocábulo em língua inglesa, parece-me que em
português “presuposição” não expressa, com suficiente precisão, a idéia do
Autor. O que Barth analisa nesta seção são as primícias e a premissa — é aquilo
que existe, inicialmente, para provocar o arrependimento da criatura e aquilo
em que se apóia a conseqüente motivação do relacionamento do homem com
Deus. Essa motivação básica se dá pela realidade de que DEUS É AMOR.
Porque Deus ama potencialmente, ele também requer para si o amor filial da
criatura.
Esta é a inicial da “grande perturbação” que acompanha o ser humano,
constrangendo-o a, perpetuamente sobre a terra, confrontar e conformar a sua
conduta, o seu comportamento, com o padrão de excelência que as “misericór-
dias de Deus” exigem. É disto que se trata nesta seção do capítulo cujo título
“Die Voraussetzung” no original, foi escrito como “A Base Fundamental”.

Vs. 3 (primeira parte) Assim, com fundamento na graça que me foi concedida
digo a cada um de vós que não queira elevar-se em sua mente, o que não
tem sentido, mas cuide ser moderado.

[A tradução de Almeida escreve: “Porque pela graça que me foi dada


digo a cada um dentre vós que não pense de si mesmo além do que convém,
antes, pense com moderação”].
Esta é a grande perturbação. Ela se dá, em primeiro lugar, porque Deus
é o amor que ama a criatura humana e, então, se verifica que Deus quer ser

678
A Base Fundamental 12, 3

amado. “Francamente, Deus não é egoísta mas ele é o EGO infinito que não
pode ser modificado para te agradar, porém tu precisas modificar-te para agra-
dar a ele... Assim como a flecha desferida pelo flecheiro exímio não pode parar
antes de atingir seu alvo, assim a criatura humana não encontra descanso, se-
não em Deus...; tão logo eu tente, em minha vida, dar expressão ao que afirmo,
isto é, quando procuro pôr o Cristianismo em termos práticos, então faço ex-
plodir a vida e o escândalo assoma.” (Kierkegaard).
Somente quem já esteve exposto à grande perturbação, está em condi-
ções de receber a exortação e, também, de exortar (12, 1). É nesta condição que
Paulo fala (1, 1); a graça que lhe foi dada, (tanto nesta passagem como em 5, 2),
é o fato paradoxal de seu apostolado, [que se evidência em] sua situação pecu-
liar como “mensageiro especialmente ordenado [ou comissionado] para o cum-
primento da mais alta missão” (Kierkegaard).
Paulo dirige-se aos romanos como gente igual a ele, isto é, como gente
que também experimentou a grande perturbação que Paulo traz constantemen-
te à lembrança deles, em sua carta. É por isto que toda a Epístola aos Romanos,
é uma exortação.
Que Deus é Deus, constitui a base [ou o pressuposto] da ética e as pro-
posições éticas somente são éticas, como enunciação deste fundamento que
[todavia] nunca é de antemão conhecido e nunca pode ser considerado como
[licença ou] permissão [ou base] para progressos rotineiros, quiçá diários, nem
para que se assumam presunçosamente posições mais avançadas [ou mais ou-
sadas]. O fato de que Deus é Deus faz-se conhecer [e impõe o seu reconheci-
mento] por si mesmo; é ele mesmo que urge a que se tomem novas posições e
dão compasso para o desenvolvimento normal.
[Entendo que o Autor quer dizer que não se pode partir do conceito de
que Deus é Deus, para estabelecer uma norma de “prática diária da ética”,
nem para o aperfeiçoamento progressivo de nossa conduta e, muito menos
(se assim podemos dizer), tomar esse conceito como motivação e justificação
para inovar métodos de trabalho, técnicas de evangelização, exercícios de
aprimoramento espiritual, etc. O conhecimento de Deus é o reconhecimento
de que só Deus é Deus, é revelação que está à disposição dos que têm olhos
para ver e ouvidos para ouvir, desde o princípio do mundo (1, 20); é revelação
que está em Cristo Jesus (Heb. 1); todos são convidados, porém o convite, a
revelação, vem de Deus (Mat. 11, 25 ss). Quem ouvir o apelo do Espírito
Santo em seu coração e não for desobediente à visão celestial, esse achará
descanso para sua alma; terá a Deus por seu Deus; a Jesus Cristo por seu
Salvador; ao Espírito Santo por seu Consolador. Esse tal viverá pela fé e ofere-
cerá os seus dotes, dons e pendores naturais a Deus em sacrifício espontâneo,

679
12, 3 A Base Fundamental

natural, lógico — seu culto racional. Haverá progresso diário? Haverá neces-
sidade ou oportunidade de tomar novas posições? — Vivamos pela nossa fé e
o restante a fidelidade de Deus proverá!].
Quem há [suficientemente] competente para discorrer sobre ética e ou-
vir essa discussão? Quem pode, em primeira e última instância dizer a alguém
ou aceitar que alguém lhe diga “que não DEVE ELEVAR-SE EM SUA MEN-
TE” (porque) “ISTO NÃO TEM SENTIDO”?
Sabemos qual [e o que] é esta elevação [esta presunção e auto-
promoção]; sabêmo-lo bem, mas nunca “bem demais”. (12, 1). Mal acaba-
mos de apear [quer seja de quixotesco rocinante ou de fogoso corcel] ei-nos
já com o pé no estribo de outra montaria; mal acabamos de ser tirados de uma
situação-difícil e eis que já estamos às voltas com nova causa; ainda não
acabamos de ser instruídos e já estamos a ensinar. Acabamos de nos desiludir
com a história ou com a psicologia e já estamos criando novo ídolo, [talvez
agora] bíblico, quiçá na forma de “deus vivo” ou, quem sabe, na “sabedoria
da morte”.
Quem há que observe quão freqüentemente erra? Parece mesmo que,
para nossa vergonha, precisamos estar sempre em alguma dessas alturas, [des-
sas excelências humanas]; precisamos estar, conforme vimos, em alguma Igre-
ja, pois ela surge onde se fala e se ouve falar a respeito de Deus, onde se trata
daquilo que, da parte de Deus, há para dizer sobre a nossa vida (9, 6). Que
Igreja é essa? É infinita a possibilidade de que se trate da Igreja em que a cria-
tura humana “quer estar no alto”. Portanto, aquilo que nos deveria ser dito e
que deveríamos ouvir sobre a nossa vida, da parte de Deus, será dito e ouvido,
sempre, impropriamente e, pior do que isto, soará (para nós) cada vez mais
apropriado e “mais essencial”.
O fim desta Igreja — o fim de todos os “ALTOS”, com seus Baalim e
Astartes — é a Igreja invisível, a Igreja de Jacó.
Precisamos, portanto, entender imediatamente e com muita clareza que
também a exortação para que cada um “cuide de ser ponderado” não visa à
possível justificação humana de alguma conduta espiritual, mas ao instante eterno
quando estivermos abatidos e sem justificação perante Deus, para [então] ser-
mos enaltecidos e justificados por ele. Por isso, não é supérflua essa exortação,
(ou, em outras palavras: não se trata apenas de ser moderado, modesto, humil-
de em nossas atitudes cotidianas ou ocasionais mas também no momento críti-
co e decisivo quando nos defrontarmos com Deus: que sejam “poucas as nos-
sas razões”, quiçá nenhuma; que, se nos for possível, não falemos sequer uma
vez; melhor fora que nunca houvéssemos tentado — que, pelo menos — não
mais tentássemos cavalgar em grandes paradas...]

680
A Base Fundamental 12, 3

A apropriação do conhecimento, [da sugestão ou da sabedoria contida


nessa exortação], pode ter a mais alta significação para a nossa conduta ética
secundária: não tem sentido nós nos colocarmos no ALTO!
Enquanto nosso PENSAR, QUERER e FAZER forem titânicos [enquanto
neles pretendermos ser grandiosos] e quando que os esforços humanos não
tenderam para o “titanismo”? — e enquanto (e na medida que) o nosso afã
estiver sob o inconfundível sinal de Caim, [isto é, sob a égide] da luta pela
existência então, as bandeiras desfraldadas, as firmas estabelecidas, as torres
erigidas, tudo (inevitavelmente tudo — é claro!) precisa esfacelar-se na pertur-
bação que ameaça toda “condição deste mundo” (12, 2); tudo precisa ser anu-
lado, [quebrado, desfeito] pela lei da morte à qual nada que pretende ser algo,
consegue resistir.
Pode, todavia, acontecer que não seja em vão que, ao menos, saibamos
que é assim; saibamos que nada que consideremos ser importante ou sério nes-
te mundo e pertencente ao mundo, pode resistir [à inexorável lei do salário do
pecado] e que, se não deixarmos [de nos colocar sempre de novo nas ALTU-
RAS] nos seja mostrado, também sempre de novo, e nos seja incutido como
por marteladas, que não há senso em semelhante conduta, a fim de que “cuide-
mos de ser moderados”.
Evidentemente, também é “titanismo” a virtude pagã [ou gentílica],
da “moderação”, mesmo que ela se apresente envolvida de roupagens cris-
tãs. Portanto, não é a esta moderação que se refere o cuidado a que somos
exortados.
Pode, porém, ocorrer o milagre de, mediante e através da atividade hu-
mana secundária (isto é, naquela atividade não direta e especificamente ligada
a Deus ou, pelo menos, não pensada como tal), acender-se — pela lembrança
da justiça de Deus — a luz da “conduta moderada”, luz que não procede da
criatura em si, nem é deste mundo.
Se obedecermos à exortação pode acontecer que a névoa da pre-
sunção, da autojustificação e da vontade de que os homens se cercam e
com que a humanidade os cerca, seja desfeita; que o circo onde competi-
mos com os outros para galgar o trapézio mais alto, subitamente se feche;
que a parábola do pensamento, da vontade e da ação dos homens [final-
mente] fale e que nesta criatura, na total humanidade de seu ser, Deus seja
glorificado.
É o milagre que, assim, acontece e acontecerá. Não podemos realizar
este milagre mas podemos visá-lo; podemos, incansavelmente, considerar quão
destituída de sentido é nossa existência no mais alto píncaro, se este milagre
não se der.

681
12, 3-6 A Base Fundamental

Este cuidado em “ser moderado” é pleno de promessa porque [nesse


empenho] consideramos [e meditamos sobre] a justiça de Deus e voltamos à
origem da ética de onde provém tudo.

Vs. 3 (segunda parte) a 6 (primeira parte) Notadamente a rejeição ao titanismo


e o retorno à origem da ética [ou à sua base fundamental] são assegura-
dos [garantidos] pela eliminação da dubiedade do indivíduo.
Exorto-vos a que cuideis, tendo em vista o objetivo da fé que Deus
consignou a cada um. Porquanto, assim como em um mesmo corpo exis-
tem muitos membros, ainda que não tenham todos a mesma função, assim
também nós, em nossa multiplicidade, somos um corpo em Cristo, ainda
que entre nós nos conduzamos individualmente, tendo diferentes dons se-
gundo nos foi dado pela própria graça.

A analogia do corpo e dos membros, aqui empregada, não tem o sentido


“romântico-conservador” que o catolicismo pretende dar-lhe, para justificar o
seu conceito de Igreja [única e infalível] e das demais atividades daí derivadas,
[Em lugar de “sentido” a tradução inglesa escreve “doutrina” o que, talvez, seja
mais próprio]. Esse conceito [ou doutrina] tem por base [que a Igreja é formada
por] aglomerado vivo constituído pela agregação de personalidades parciais
que se reúnem ao todo como corpo celular onde, cada um unido aos muitos, e
parcela do conjunto [para cujo caráter total contribui com a parcela minúscula
de sua qualidade particular e, embora não seja decisivo para impor suas própri-
as características ao conjunto, para ele concorre em proporção à parte que lhe
toca].
Esta interpretação, todavia, não subsiste à análise acurada do texto.
Se [a interpretação católico-romana] fosse válida, então a analogia se re-
feriria a algum fenômeno de ciências físicas e naturais ou seria psicológica,
(possivelmente ainda não perceptível em toda sua clareza); e não diria
respeito ao Reino de Deus, conforme é de se esperar naturalmente e até
com a mais absoluta certeza, em se tratando de uma epístola de Paulo. Fôra
válida a interpretação católica, então a exortação para “ser moderado” não
seria coercitiva nem ética. [Para que e por que haveria de o indivíduo “cui-
dar de ser moderado” se isto só atenuaria o maior valor de expressão que o
“conjunto” poderia ter — vale dizer, que a Igreja teria — se cada um de
seus integrantes, fôra mais brilhante e mais se destacasse? Se assim fosse,
todos deveriam esforçar-se na “sublime” competição de cada um ser “mais
excelente”...].

682
A Base Fundamental 12, 3-6

Onde haveriam de, justamente este “conceito de organismo” e a deter-


minação orgânica de suas partes, — que [Paulo] tão claramente (pelo menos à
primeira vista), descreve como sendo a vida — buscar a importância [a autori-
dade] para indicar ao homem as suas limitações e lembrar-lhe de Deus? De
onde se tira este conceito de que a Corporação Cristã [a comunidade, a Igreja]
pode arvorar-se em autoridade para representar a Justiça de Deus? De onde [ou
do que] se pode concluir que a “comunidade”, a pluralidade dos fiéis, a sua
massa, possa ser a instância [a sede, o foro, onde se decidem os problemas]
entre Deus e os homens?
Devemos desconfiar dessa interpretação, quando por mais não seja, pelo
simples fato dela parecer tão lógica [e precisamos dizê-lo em refutação ao que
foi escrito na primeira edição deste livro]; precisamos dizê-lo porque a doutri-
na do relacionamento do homem com Deus e que lhe serve por base, parece
estar muito próxima [dessa doutrina católica-romana da Igreja], (tão próxima
que o protestantismo dificilmente dela escapa!).
[Contudo] semelhante interpretação está absolutamente fora da diretriz
Paulina. Deus não delega seus direitos a pessoa alguma e a nenhuma figura
intermediária [ou intercessora], por mais espiritual que ela seja imaginada.
O ser humano tem de enfrentar, ele próprio, a questão divina em toda
sua aflição; [agasalhar, ele mesmo], toda a esperança que a questão encerra, e
não pode contornar o problema passando-o para a coletividade, [ou diluindo
sua responsabilidade mediante a co-participação “de todos”] porquanto o indi-
víduo [perante Deus] não é PARTE e, sim, a integral TOTALIDADE.
É absolutamente certo que a imoderação do indivíduo e sua “hibridez”
[quiçá sua falta de genuinidade e conseqüente “arrogância”, conforme escreve
a tradução inglesa], precisam ser cerceadas mas esta limitação, este controle
não pode ser mediante a potenciação [ou a multiplicação progressiva] da
condicionalidade de sua enteléquia natural — [de sua natural possibilidade de
perfeição final]. Este controle somente pode ser feito contrapondo à semelhan-
ça do homem natural, a dissemelhança eterna de Deus.
[Portanto] a analogia do “Corpo e dos Membros” não pode ter esse
pretenso sentido “natural filosófico”.
É claro que esta analogia deve lembrar a “comunidade” ao indivíduo,
isto é, deve fazer “cada um de per si” pensar [também] em “cada um dos ou-
tros”, pois o problema da ética gira justamente em torno dessa questão “dos
outros” (e se sintetiza, de certa forma), na pergunta “o que devemos fazer?”.
Porém, aqui não se trata “dos outros”, considerados empiricamente — como
cada um dos indivíduos “sujeito” e “objeto” da exortação; os “outros” são aqueles
que na imperscrutável e impenetrável nova [ou outra] personalidade [criada e

683
12, 3-6 A Base Fundamental

desenvolvida] segundo a fé, sentem-se oprimidos [e pressionados] pela aflição


e pela esperança que a questão divina encerra; estes “outros” são estabelecidos
como pessoas singulares [como indivíduos], em Cristo. Este “outro” significa
o genuíno “EU” transcendental que, invisivelmente, é o sujeito de todo “mate-
rial e visível” TU.
O conceito de tempo no qual, segundo nosso conhecimento, existe este
TU — o indivíduo empírico, real, o indivíduo concreto em sua unicidade [físi-
ca], mostra claramente que este indivíduo é apenas uma analogia; ele pode ser
apenas o “pretexto” para [representar] o indivíduo eterno, este que realmente
existe. Isto não quer dizer que esta analogia, este Pretexto, não sejam reais e
também não quer dizer que esse EU transcendental por ser eterno (e justamente
por isto), não esteja desde já presente em todo instante da temporalidade, [coin-
cidindo, todavia sem identificar-se, com seu “representante”].
O “bom” samaritano estava absolutamente certo: o que conta é o PRÓ-
XIMO (13, 9-10; Marc. 12, 28-31. Luc. 10, 25-37). Todavia o próximo é “cada
pessoa”, porquanto ele não é o “teu próximo” naquilo que o diferencia dos
outros e também não o é naquilo em que, se diferenciando dos outros, se asse-
melhe a ti; ele é o teu próximo por ser o teu igual perante Deus. “Esta igualdade
não estabelece condições porquanto a criatura a tem incondicionalmente”.
(Kierkegaard).
Agora, com vistas ao indivíduo [nosso próximo] com o qual nos con-
frontamos, torna-se claro o que significa [a norma], o encargo ético de “cuidar”
para ser moderado no relacionamento para com os outros.
Jamais e em parte alguma aquilo que é observável ou perceptível nos
outros pode ter influência ética sobre o indivíduo em particular. A complexida-
de, a diversidade e a imponente abundância de “outras personalidades” [ou de
qualidades pessoais e dons diferentes] na qual e pela qual o “outro” entra em
cena, jamais pode determinar a diretriz ética do indivíduo.
Jamais pode a comunidade, [a Igreja, a Congregação ou a “sociedade”],
apoiando-se em sua grandeza numérica, ou em função de suas próprias exigên-
cias — [quiçá suas necessidades], pretender ter autoridade “externa” para a
determinação [ou para a imposição] de [sua própria] ética; também não pode
fazê-lo pelo que se possa designar como sua “autoridade interna”, mediante
sua confissão de fé, [ou seu Credo], formalizado ou não; também jamais por
sua ideologia ou concepção de MODUS VIVENDI, ou então por sua tradição e
seu passado! (É por isso que repelimos terminantemente o conceito [ou a dou-
trina] da Igreja, segundo o catolicismo!).
Jamais “um outro” ou “os outros” podem determinar o procedimento éti-
co de quem quer que seja, nem exortar alguém a seguir ou a adotar certa ética.

684
A Base Fundamental 12, 3-6

A pessoa se encontra com os demais — (com a coletividade) — em sua


própria Congregação, isto é, nesta coletividade o indivíduo encontra “o outro”;
talvez até se possa dizer que “esse Outro” seja “o próximo”, porém jamais a
coletividade adquire, ou tem, o “poder de massa” (como, por analogia, a pro-
priedade da matéria de atrair a matéria em função direta da massa acumulada
ou algo semelhante ao calor desprendido pelos grandes aglomerados de partí-
culas aquecidas, ainda que o sejam em grau ínfimo!].
Comunidade, na realidade, não é “agregado” [ou aglomerado] nem or-
ganismo; Congregação não é nenhuma forma de realidade mas, originariamen-
te, é a síntese, a relação e o conceito de todas realidades e de todos multiformes
aspectos das coisas em sua unicidade invisível e final; é COMMUNIO e, por-
tanto, de forma alguma supressão, cerceamento, obliteração ou “apagamento”
das diferenças individuais. Congregação [ou comunidade] é [mais propriamen-
te], a incentivação das peculiaridades individuais que dá, a toda diferenciação,
o sentido de sua unicidade. A congregação [ou a Igreja] é a unicidade que está
além de toda heterogeneidade.
Assim, a pessoa em sua singularidade — o indivíduo — nem é UM ao
lado de OUTRO, nem é simples parte celular em um outro; o indivíduo é
SANCTUS, [isto é, individualmente separado]; o indivíduo contém a síntese
ou o teor da total diferenciação daquele UM que contrasta com todas diferenci-
ações; ele é o elemento asséptico da comunidade; o elemento no qual ela se
fundamenta e que impede a formação de hierarquias; portanto impede a
deteriorização da Congregação da mesma maneira que esta fundamenta o indi-
víduo e o liberta de toda forma de prepotência. É a COMMUNIO-
SANCTORUM! Não existe outra COMMUNIO e não existem outros SANCTI,
pois o CORPO não é a somatória de seus membros nem a sua recíproca con-
tingência mas, é aquilo que se lhes antepõem, integralizando-os e os determi-
nando como aquilo que, talvez, possamos identificar como sendo a grandeza
transcendental de cada um dos membros e de todos juntos, em sua
condicionalidade orgânica.
Aquilo que os membros, em sua visível disparidade particular são e fazem
também existe e é realizado, na transcendente e invisível UNIDADE do CORPO.
(No conceito — CORPO-INDIVÍDUO encontram-se o objeto e a sua figura!) —
[Isto é, um vem ao encontro do outro]. O sentido desta analogia é Justamente a
unidade transcendente e invisível do indivíduo em oposição a cada um e a todos.
Assim os “crentes” (as pessoas em seu relacionamento com Deus), são UM SÓ
CORPO, como pessoas individuais, (não na extinção dessa individualidade mas,
exatamente, em seu despertamento.). São indivíduos em Cristo. Não são aglomera-
do de indivíduos, nem são Corpo Coletivo, nem massas individuais, (— não são

685
12, 3-6 A Base Fundamental

“O TODO”. —), porém são indivíduos; cada um é [de per si] a NOVA CRIATU-
RA. (1 Cor. 12, 12-13). Este UM “O CORPO DE CRISTO”, é que vem ao nosso
encontro na comunidade dos crentes, dentro do problema dos outros.
[Talvez pudéssemos dizer, na tentativa de interpretar o pensamento do
Autor, que no problema do tratamento ético-cristão, que devemos dispensar
“aos outros”, na comunidade cristã, nos deparamos com a unidade do Corpo de
Cristo]. Lembramo-nos de que o “Corpo de Cristo” é o Cristo crucificado (7, 4)
e imediatamente ressalta a agudeza crítica (decisiva) do conceito do indivíduo
como preposição inicial da ética.
Se o Cristo crucificado for o “objetivo da fé que Deus consignou a cada
um” (e a cada um na sua singularidade) então, com fundamento na graça (que
faz morrer para vivificar), recebemos diferentes dons; trata-se pois, para cada
indivíduo, (e precisamente em sua individualidade) de se “revestir do Senhor
Jesus Cristo” (13, 14); trata-se da “Nova Criatura” que está sempre ao lado
desse indivíduo, com o dedo erguido [em exortação] que, em sua personalidade
diferente, faz lembrar daquele totalmente diferente — [do mestre, Redentor e
Senhor].
A Congregação é comunidade e comunidade é unidade; é a unidade dos
homens [entre si] e deles, no insondável Deus, que é Senhor sobre a vida e a
morte. Quando isto acontecer — quando os homens forem “um” como Cristo
em Deus Pai, e Deus em Cristo, .— [João 17, 11-21], então para cada pessoa,
em sua individualidade, já não haverá mais lugar para o titanismo — [para a
vaidade, para a jactância e para a pretensão de ser semelhante a Deus]. Estará
excluída a idéia de ganhar as alturas; haverá o “sentido da moderação”, isto é,
cada um considerará que no “Alto Monte” só Deus pode estar e isto, por assim
dizer, constitui a palavra de ordem para o procedimento ético.
É nessa lembrança [daquele que é totalmente diferente], que se impõe a
mudança, no sentido do procedimento do ser humano e de sua absoluta
materialidade; é como se fora mediante uma ordem necessária, [imperiosa] e
impossível de desobedecer.
Esta mudança não pode ser [ordenada ou] incentivada por qualquer
maioria, nem por “imposição” ou necessidade [de qualquer outra natureza que
não pelo poder da ressurreição], nem por autoridade histórica [ou por força da
tradição], nem por organismo eclesial ou eclesiástico místico ou inter-mundial,
porquanto é a lembrança de Cristo crucificado que muda o procedimento ético
secundário, fazendo-o cuidadosamente moderado e o ligando à ética funda-
mental [do oferecimento do corpo em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus],
participando, assim, juntamente com [a dignificação da] ética primária, do po-
der e da dignidade da origem básica, [que é Jesus Cristo].

686
A Base Fundamental 12, 6-8

È na demonstração da mudança da ética secundária, no sentido da mo-


deração pessoal que se realiza o fim [o objetivo] transcendental desse procedi-
mento e o indivíduo se encontra perante Deus. Encontra-se perante Deus, em-
bora perturbado em sua individualidade particular, de forma nunca vista; per-
turbado conforme somente Deus pode perturbar a criatura porém, por isso
mesmo e dentro dessa situação, passa o ser humano a existir sob o signo da
vitória e da esperança.

Vs. 6 (segunda parte) a 8 Temos diversidade de dons: talvez alguém tenha a


Palavra Profética; (que fale na conformidade da fé!). Talvez alguém tenha
o sentido de servir; (que ele o tenha para a prestação de serviço). Talvez,
alguns como professores, (que seja para ensinar!). Talvez alguém como
pregador (Que venha pregar!). Quem tiver de distribui,; (que o faça) com
simplicidade e singeleza! Quem tiver autoridade, [que a exerça] com es-
mero! Quem for misericordioso [que o seja] com alegria.

[A maneira de traduzir, do Autor, exige a introdução de expletivos que


podem deturpar o texto original; convém, pois, prestar atenção à tradução de
Almeida, que escreve assim:... “tendo diferentes dons segundo a graça que nos
foi dada; se profecia, seja segundo a proporção da fé; se ministério, dediquemo-
nos ao ministério; ou o que ensina, esmere-se no fazê-lo, ou o que exorta, faça-
o com dedicação; o que contribui, com liberalidade; o que preside, com dili-
gência; quem exerce misericórdia, com alegria”.
Notar que, na versão de Barth, estão incluídos o pregador e o que distri-
bui e, segundo Almeida, há aquele que exorta e aquele que contribui. Embora
possa haver alguma correlação entre as respectivas atividades, elas não são
exatamente iguais, conforme bem o evidenciam as conclusões. Segundo Barth,
o pregador que venha pregar e quem distribui que o faça com simplicidade;
segundo Almeida, quem exorta, que o faça com dedicação e quem contribui,
que seja liberal.
As outras versões também diferem ligeiramente; A R.S.V. escreve: “Ten-
do diferentes dons conforme a graça que nos foi dada: se profecia, em propor-
ção à nossa fé; se serviço, em nosso servir; quem ensina, em seu ensino; aquele
que exorta, na sua exortação; quem contribui, com liberalidade; quem ajuda,
com selo; quem exerce a misericórdia, com alegria.
A versão Sinodal Francesa registra: “Quem profetiza, se conforme (se
sujeite) a fé (ou literalmente, conforme nota de rodapé — segundo a analogia
da fé); quem serve, se atenha ao servir; quem ensina, a ensinar; quem exorta, a

687
12, 6-8 A Base Fundamental

exortar; quem distribui esmolas, que o faça com liberalidade; quem preside,
que ponha nisso todo seu zelo; quem exerce a misericórdia, o faça com alegria.”].
Como comunidade, a Congregação é constituída por Cristo, o individu-
al, a unidade; isto significa que a unidade dos diferentes dons se fundamenta na
sujeição da criatura, em sua total materialidade, a Deus e não o contrário. A
suposta “virtude da tolerância”, de cuja prática, — na verdade — nem todos
estamos livres, precisa, na melhor das hipóteses, ser considerada como [sim-
ples] meio de defesa do homem contra a perturbação divina. Aquele UM no
qual somos unidade, é a própria intolerância. Ele quer dominar; ele quer ven-
cer; ele quer tudo!
Ele é a perturbação do “dia da família” [quiçá do dia da reunião da
família conforme se faz, por exemplo, no “dia das mães”, ou no “dia de Na-
tal”]; ele é a perturbação de toda “Paz na Igreja”, de tudo quanto seja coletivo [e
também da paz individual, segundo o mundo nô-la dá], e isto é assim porque
ELE é a paz que está por cima de todo alheamento, — todo acidentalismo e
todas facções.
[Talvez, dizendo “acidentalismo”, o Autor queira referir-se a desuniões,
rompimentos, separações, “altos e baixos” da vida].
A exortação ética — [o encargo ético] não pode ser para que “cada um
cuide do que é seu”, porém, que “cada um cuide da unidade”!
[A maneira de Barth expor a unidade da Congregação, em Cristo, e o
conceito de que cada membro deve visar não propriamente à excelência de seu
dom, mas a unidade do todo, é posta assim, na tradução inglesa: “Como Con-
gregação (‘Fellowship’) a comunidade é constituída por Cristo, o UNO, o
INDIVIDUO. Isto quer dizer que a unidade somente pode ser estabelecida na
diversidade mediante a submissão a Deus e pela completa correspondência
daquilo que é particular com o seu propósito final.
“Não há dúvidas de que a tolerância é uma virtude sem a qual nenhum
de nós pode viver, mas, apesar disso, precisamos ao menos entender que, a
rigor, ela destrói a Congregação porquanto ela é a atitude mediante a qual se
rejeita a perturbação divina. Aquele em quem, verdadeiramente, estamos uni-
dos é, ele mesmo, a grande intolerância. Ele quer governar, quer ser vitorioso,
ele quer ser — tudo. É ele quem perturba toda reunião familiar, todo esquema
de união da cristandade, toda cooperação humana. Ele assim perturba porque
ele é a PAZ que está acima de todo alheamento, de toda brecha e facção. A
máxima ‘a cada um o seu’ jamais pode conduzir a procedimento ético; a máxi-
ma verdadeira é ‘a cada um a unidade’”.
Entendo que o Autor quer dizer que Cristo, UNO e INDIVIDUALMEN-
TE (isto é, ELE, em sua unicidade, e para cada um, individualmente) é o centro

688
A Base Fundamental 12, 6-8

da Congregação e, somente nesta condição pode a criatura humana, reconhe-


cendo sua absoluta materialidade — (e em toda e qualquer forma de sua
exteriorização) — porém sujeitando-se inteiramente a Deus, integrar a Congre-
gação e participar da comunidade na qual os diferentes ‘dons se fundamentam
e giram em torno de Cristo, seu centro, e não o contrário, isto é, Deus aceita e
TOLERA os homens, a despeito de suas qualidades (ou dons) individuais).
Nesta comunidade não pode haver o que designamos como sendo a (no-
bre e mui digna) virtude da tolerância, — (talvez o tão decantado ecumenismo
moderno, o sincretismo religioso, etc. Não confundir “tolerância” com “paci-
ência” para com os “fracos na fé”). Não pode haver tolerância porque o próprio
Cristo com quem e em quem somos UM, é a intolerância. Antes devemos ver
na tolerância, “da qual nem todos escapamos”, um meio de defesa que adota-
mos para nos protegermos da perturbação que sentimos quando nos confronta-
mos com o problema “Deus”!
Deus não tolera outros deuses. Ele é o dominador, o vitorioso, é tudo; é
e quer sê-lo. Ele é a perturbação de todas nossas experiências e realizações de
aparente paz, quer seja na sociedade, na família ou na Igreja. (“Não cuideis que
vim trazer paz sobre a terra” — Mat. 10, 34 ss). Ele é inimigo da causa coletiva,
(porquanto busca a criatura, individualmente, para a salvar). Ele perturba e
destrói a paz na terra, porque só ele é a verdadeira paz, a paz que está acima de
todos acidentes da vida, de toda fuga de Deus, de todo subterfúgio e de toda
facção.
Não pode haver fuga, nem subterfúgio, nem acidente, nem facção, por-
quanto a recomendação ética, não é “que cada um cuide do que é seu”, mas,
“cada um cuide da ‘UNIDADE’ “.
E Barth continua:]
O que é que impedirá a ruína, a deterioração da Congregação e o que é
que garantirá o “problema do outro” contra a incompreensão da luta pela exis-
tência se, enquanto formos criaturas deste mundo, a graça sempre nos vier
como “dom diversificado”, se o “totalmente diferente” apenas se manifestar na
outra personalidade “do indivíduo no além” se, em resumo, cada pessoa, de
fato, se confrontar [exclusivamente] com o que é seu?
— Qual a prova de que essa análise é procedente?
— Trata-se de excelente constatação psicológica: tanto mais confirmativa
será quanto mais nos aprofundarmos na questão pois chegamos invariavelmen-
te à conclusão de que os seres humanos estão sempre em conflito entre si e que
entre os indivíduos não existe (jamais) conciliação.
Todavia psicologia não é ética e, tanto menos o será quanto mais honesta
[mais séria] for. Neste assunto resta-nos apenas considerar e lembrar que toda

689
12, 6-8 A Base Fundamental

pessoa, como indivíduo, na mais inaudita individualidade de seu ser, é seme-


lhança — é analogia — da unidade da criatura humana em Deus e portanto,
como unidade, somente pode ser, querer e fazer o que diz respeito “à unicidade,
não apesar da diversificação de seu dom mas por causa dela. Esta unicidade,
para cada pessoa, está no reconhecimento da crise em que ela se acha — em
Cristo — (que é UNO!) e mediante a qual é conduzida da morte para a vida.
Isto não se dá na fortidão mas na fraqueza; não no apossamento mas no
deserdamento; não é para quem tem razão mas para quem não a tem. A experi-
ência desta crise consiste em desgalgar os cabeços onde a criatura acaso esteja
instalada junto com os seus — [com os que são de sua grei e qualquer que seja
a altitude de sua elevação] — encolhendo-se e diminuindo-se para somente
Deus ficar em destaque, pois só ele é Grandioso. Portanto (trata-se novamente
do preceito ético-cristão da moderação e, a passagem da morte para a vida que
a criatura usufrui em Cristo), também está na sujeição do procedimento ético
secundário à ética primária [do culto devido exclusivamente a Deus].
Se isto for compreendido fundamentalmente — (e quando o será?) então
tudo quanto o indivíduo tiver [ou possuir] como sendo “seu próprio” [sua capaci-
dade intelectual, sua sabedoria, sua prudência, sua educação, seus bens, sua saú-
de, suas aptidões — tudo] estará sujeito à UNIDADE e cada um reconhecerá o
seu dom como dádiva divina, colocando a sua fortidão, sua posse, seu direito, à
disposição de Deus — (e onde acontecerá isto?); somente então cada pessoa,
“com fundamento na “GRAÇA” poderá considerar como seu o dom que “pela
graça” lhe foi concedido e, poderá acontecer—ou melhor, sejamos muito caute-
losos! — TALVEZ possa acontecer que aquilo que cada um recebeu individual-
mente seja para a honra. Sim. Então será para a honra. Esta honra já não é exclu-
sivamente deste um indivíduo mas, com as vistas naquele UM [que é Cristo] a
honra se reparte [sem diminuir sua grandeza nas partes] sobre a pluralidade dos
membros e sobre cada um deles — sobre toda a Congregação — [porém jamais
como banco de méritos em depósito para socorro eventual de outros menos agra-
ciados ou mais desgraçados, mas, serão quais “chuvas de bênçãos” celestiais].
Que formidável Congregação. É com profundo temor que, aqui, nos
atrevemos a acompanhar o texto pois a esta altura às perspectiva da ressurrei-
ção fica terrivelmente próxima. A esta altura, “condutas éticas secundárias”
formam peso e sentido plenos; a esta altura a demonstração altamente objetiva
sobre o “cuidado a tomar” [12, 3] passa a falar de testemunhas cujo discurso é,
verdadeiramente, testemunho. Nessa Congregação [a que Paulo passa a se re-
ferir nos versículos que seguem 12, 3], aparentemente só entram em considera-
ção. (somente há lugar para) testemunhas diligentes, ativas, combativas, “bons
atiradores”. [Nesta Congregação] aparentemente, os sacerdotes são fantásticos

690
A Base Fundamental 12, 6

— e que sacerdotes. [Na tipificação dessa Congregação] nem sequer se fala nas
necessidades humanas mas exclusiva e unicamente da exigência de Deus, à
qual todos precisam submeter-se. Nessa Congregação cada um segue sua traje-
tória [segue “o dever” que lhe foi traçado] como o projétil que sai do cano da
arma. Cada um tem permissão para seguir esse curso; precisa e pode fazê-lo
porque cada um tem um objetivo — O OBJETIVO.Nessa Congregação nin-
guém faz obra parcial; nela não há disciplinas — [matérias separadas], nem
tarefas pois cada um, ao fazer sua parte, faz aquela única parte que é o todo.
Talvez seja como “arauto da Palavra Profética”. Precavemo-nos com
razão de tudo quanto vem a nosso encontro com ares de profecia e, também, de
quem tem pretensões a ser representante do “totalmente outro”. Estamos dolo-
rosamente habituados a ver toda pretensão ruir por si mesma, o “totalmente
outro” ser comprometido por algo totalmente diferente e o objetivo da
santificação ser por demais material. Todavia, [e a despeito das “desilusões”
que os pretensos profetas nos têm causado] permanece [em nós] o anseio de
que venha alguém que nos mostre, realmente, o “totalmente outro”, em cuja
identidade não podemos penetrar.
Se “acaso” existir uma única pessoa que tenha submetido aquilo que é
propriamente seu, — o dom que recebeu — à “eventual” possibilidade” da
graça, que fale segundo a medida da fé, que dê, realmente, a Deus o que é de
Deus de tal maneira que, através dela, Deus possa falar como se ela não existis-
se; se tal pessoa for a UNIDADE, então a sua profecia é a única alternativa ética
e a par dela não há outra; esta profecia não necessitará de suplementação nem
“contrapeso” porque em vista de sua unicidade significar, de fato, unidade,
significa também que ela é suficiente por si e que o hibridismo da singularidade
está excluído, [isto é, não existe em tal pessoa]. [Onde o original escreve o
“hibridismo da unidade” e que interpretamos da forma acima, a tradução ingle-
sa escreve “a arrogância da particularidade”].
“Talvez” alguém “tenha o dom para prestar serviço”, [tenha vocação]
para ajudar [nas coisas] práticas.
Paradoxalmente, é possível que a ajuda [o auxílio, a atividade de servir,
a ministração de serviços] seja a única possibilidade ética [efetiva na criatura
humana] e talvez só a tenha, sem qualquer jaça, aquele que é único [a saber, —
Jesus Cristo].
Temos motivos para reservas ante a idéia de SERVIR!, AJUDAR!, ser
PRATICO. Ela sempre nos faz pensar em Marta, que não se interessava em
ouvir porém, sim, em “SERVIR”. Mas a idéia sempre implícita [na ética cristã]
de que é preciso ajudar as pessoas, subsiste [e prevalece] como certa, [apesar
dessa reação justificável].

691
12, 7 A Base Fundamental

Servir significa pensar feridas temporais e manter vivo o ferimento eter-


no, que não se deve fechar. Servir significa cuidar do corpo para não perder a
alma; significa não passar ao largo daquele que caiu nas mãos de salteadores
como fizeram o sacerdote e o levita da parábola pois, justamente ao homem da
Igreja, para quem o conhecimento de Deus é tudo, a pergunta “quem é o meu
próximo”, já não tem justificação, [já não é mais explicável nem aceitável] já
não tem mais razão de ser.
Ajudar, é ver aquilo que o sacerdote e o levita não queriam ver.
Prática é o procedimento que — sem vacilações — leva a pessoa a per-
ceber a teoria e ter a visão de sua grande miséria e de sua grandiosa esperança.
[Esta prática, é ajudar].
Talvez seja servo de Deus o indivíduo que nada faz senão servir aos
outros, porém os serve, verdadeiramente, em suas aflições, em sua miséria e na
crise de sua existência; este que assim serve, talvez tenha ouvido que também
como “pessoa prática” não se pode ter razão [perante Deus]; todavia, é possível
que esse tal seja “o bom samaritano”. Então, [se for assim], esse um haverá
optado “pela melhor parte”, conforme o fez Maria e sua obra [quiçá] será sufi-
ciente e segura.
— “Talvez” algum “como professor”.
— O Evangelho de Cristo, “a Palavra de Deus, como “ENSINO”?, Teologia
como ciência? Pensamos que conhecemos essas interrogações e as fazemos
também. Ouvimos de Kierkegaard: “Professor naquilo em que Cristo foi crucifi-
cado”, ou então de Overbeck: Teólogos, “os retardados da sociedade humana”.
Realmente parece ser impossível [defender a teologia]. Mas, será mesmo?
O apego à teologia [e o seu cultivo existe e] subsiste justamente por
causa da grande interrogação [sobre Deus] por quanto este ponto de interroga-
ção é também o grande ponto de exclamação, da ressurreição. [Meditando so-
bre este assunto] vem-nos à mente a quase inarredável conclusão de que com a
supressão da teologia a cristandade seria traída — tanto pelo nosso pronuncia-
mento quanto pelo eventual silêncio — e isto é o que se pode “opor” a Overbeck.
[Sempre a verve irônica de Barth, agora dizendo que se os teólogos são mente-
captos, se traem a cristandade tratando e cuidando do estudo das coisas que são
de Deus, não será menor o dano se o assunto for encerrado e todos se calarem].
Todavia o apego à teologia persiste: em primeiro lugar pelo interesse no
ensinamento bíblico sobre o sentido da Palavra de Deus no instante em que ela
sai de sua fonte e passa a ser palavra humana; em segundo lugar para revelar a
irreconciliável oposição da cristandade (vale dizer, dos representantes da refe-
rida “palavra humana”) — a toda forma de cultura e falta de cultura. mediante
a honesta exposição histórica dos seus 1900 anos de inferioridade; em terceiro

692
A Base Fundamental 12, 7-8

lugar para, se possível for, sem tumultuação e, por isso, de maneira sistemática,
determinar as limitações que foram postas aos homens e, incansavelmente, es-
tabelecer o que significa essa “palavra humana” para cada pessoa, palavra que
está sempre presente [evidente ou], subjacente, a eles se apondo; [neste afã]
quer também verificar o que a questão divina significa para as criaturas huma-
nas, questão essa que elas mesmas levantam em sua limitação; finalmente, em
quarto lugar, [o apego à teologia subsiste] para admoestar insistentemente a
todo aquele que quiser seguir a carreira ministerial [o sacerdócio santo], que se
precavenha contra as desilusões [ou que se prepare para elas], que não espere
por “segurança” nem confie no “ministério humano”; que ouça a premente
advertência e abandone a “objetividade” como “teologia prática”.
Também a teologia, notoriarnente, poderia ser não apenas uma mas a
única alternativa ética e o indivíduo que agisse “como professor”, para ensinar,
poderia ser verdadeiramente a UNIDADE. — “Talvez” algum “como prega-
dor”, como quem exorta, consola e convida. Aqui pensa-se especialmente no
Pastor. — O “Pastor”, como única possibilidade ética? Quem não se admira
disso? Mas o que há nisso para se pasmar? Seria de admirar [e pasmar] se o
ternário [o assunto] imposto [ao pastorado] fosse, por exemplo, psicologia,
moral, história sagrada, finalidades comunitárias, tradição da Igreja, ou deter-
minadas experiências na vida.
Na realidade não é assim; [o tema real do Pastor] é a perplexidade que
Deus prepara aos homens e a promessa que ele faz.
“Talvez” exista particularmente um que, sob temor e tremor, se tenha
confrontado com o tema [peculiar ao pastorado], a quem o assunto se torna tão
extraordinariamente importante que já não pode optar por outra coisa; e se tal
pessoa estiver convencida de que o tópico da pregação tem de estar em torno da
cruz, da ressurreição e do arrependimento, então a [sua] pregação será a única
ética possível; então se tratará de fato da pregação para exortação, consolo e
convite. Este tal, na diversidade que lhe coube em sua singularidade, é UM [em
Cristo], vocacionado como Pastor, justificado, eleito e agradável a Deus.
“Quem distribuir, o faça com simplicidade; quem estiver investido de autori-
dade, que a desempenhe com esmero; quem exercer misericórdia, seja com alegria”.
A demonstração, portanto. vai além “do falar” das diversas testemu-
nhas. para atingir também aquilo que a pessoa faz.
Por que [se menciona] justamente REPARTIR, AUTORIDADE. MISE-
RICÓRDIA?
Graça significa, evidentemente, que coisa mais bem-aventurada é dar
do que receber. Significa ainda que uma “autoridade” algo imponente, respei-
tável, também entra em cena.

693
12, 8 A Base Fundamental

É claro que GRAÇA significa ter coração aberto e não mesquinho, fechado.
Na Congregação a comunidade é constituída pelos indivíduos que estão
informados [da existência de diferentes dons, todos operando e cooperando para
a UNIDADE e, portanto], operando [e desenvolvendo] declaradamente estes dons.
As “funções particulares” sugerem uma perturbação que vem da parte
de Deus; sem esta perturbação, muito provavelmente a criatura humana não se
desempenharia das funções citadas [segundo a ética cristã]; não cuidaria de
repartir, não se esmeraria no exercício da autoridade e nem sequer cogitaria de
ser misericordiosa. Não está no ser humano suportar [ou arcar com] o brilho de
semelhante conduta ainda que pudesse satisfazer as exigências impostas, —
porquanto tal procedimento, além de ser inteiramente questionável do ponto de
vista do mundo, exige o sobrepujamento do próprio “eu”.
Onde houver quem se sacrifique (12, 1) aí haverá o testemunho oral da
ética cristã o qual induzirá o correspondente comportamento e este, por sua
vez, levará à aceitação das “tarefas” impostas pela dispensação da graça divina.
Contudo, é preciso lembrar — não que essas diferentes funções, [os diversos
“ofícios” e dons em sua multiforme aparência e manifestação] existem pois a
sua realidade é evidente! — porém, [sim, é preciso lembrar] que todas elas são
UMA só; que as peculiaridades e particularidades diversas conduzem à mesma
realidade; que tudo quanto a pessoa fizer [no desempenho e na aplicação do
dom que recebeu] ela o faz unicamente para a glória de Deus e que, portanto,
não está dando largas à “boa natureza” de seu coração; é preciso lembrar que
todas funções [e todos dons] estão debaixo da cruz!
É nestas circunstâncias que REPARTIR se faz com “simplicidade”, com
aquela liberdade interior que não transforma o ato de dar em cerimônia solene,
que amargura o ato de receber; antes, tanto o dar como o receber,
concomitantemente, testificam a insondável simplicidade de Deus.
Também é nestas circunstâncias que a “autoridade”, — que na sua de-
terminação decisiva existe naturalmente e não precisa de se firmar como tal, —
é exercida com esmero.
Então a misericórdia será exercida com alegria porquanto a pessoa só
pode considerar — e nesta consideração lembrará, quiçá, com alguma melan-
colia [que, todavia, leva ao júbilo da gratidão] — que também ela, em seu
próprio abandono, precisa da misericórdia de Deus. É desta maneira e de ne-
nhuma outra, que todas as possíveis atividades humanas adquirem a qualidade
ética, isto é, tornam-se éticas à sombra da possibilidade escatológica; mas en-
tão, tornam-se imediatamente impositivas e sempre particularizantes.
— Quer isto dizer que a ética se baseia na organização da Congregação,
como comunidade?

694
A Base Fundamental 12, 3-8

— Sim este é — na realidade — o sentido destes versículos.


A Congregação se constitui pelo relacionamento dos indivíduos com
Deus. Este relacionamento, porém, se realiza na unicidade da particularidade,
no indivíduo. A unicidade de cada um em particular e, portanto, também a
comunidade dos indivíduos, é Cristo.
Não há outro posicionamento possível da ética, para protegê-la contra o
titanismo que está sempre à espreita e não há outra relação possível da ética,
para com Deus. Esta relação, porém é eminente, altamente qualificada, é eclesial
— quer dizer tratando-se da Igreja vindoura, [invisível] da “Igreja de Jacó”.
Não nos admiremos de nunca e em parte alguma a vermos; baste-nos que a
Igreja [nossa conhecida], visível, a “Igreja de Esaú”, em toda sua dubiedade,
esteja sob o reflexo dessa luz vindoura.
Não precisa ser totalmente ocultado — nem está — que sempre onde
houver uma Congregação “talvez” constituída em sua unicidade, olhando para
o UM, aí se luta, aí se tem esperança, aí se sofre; e tudo isto não é em vão!

Comentários: 12, 3-8

1. “Quando procuro colocar o cristianismo em termos práticos, então a


vida explode e o escândalo assoma” e ainda, “só quem já esteve expos-
to a grande tribulação está em condições de exortar ou ser exortado”
conforme o Autor afirma na sua exegese da primeira parte de 12, 3,
citando Kierkegaard.
Parece evidente que a vida segundo o mundo a conceitua tem de
se esfacelar quando o indivíduo passa a se conduzir na sociedade de
forma estranha: quando não se ira (para dar lugar a ira de Deus);
quando aos outros prefere em honra; quando também entrega a túni-
ca a quem lhe exige a capa; quando faz a segunda milha depois de ter
sido obrigado a andar a primeira. Para o mundo isto é rematada lou-
cura e constitui motivo de escândalo.
Todavia, só tem “sabedoria” para discursar sobre esta ética e “en-
tendimento” para seguí-la quem houver percebido em seu coração o
real sentido das misericórdias divinas.
2. Por que não pode a base fundamental da ética — a realidade de que
Deus é Deus e que nos ama — ser também a base de nosso progresso
diário, rotineiro, visível a todos? Creio que é porque não se pode mistu-
rar o que é divino, espiritual, com aquilo que é humano e material. O
comportamento ético tem de nascer (e somente nasce) do temor a Deus,
sob o constrangimento de suas misericórdias e se expressa na forma de

695
12, 3-8 A Base Fundamental

dedicação, renúncia, entrega, abdicação, esvaziamento, enquanto o


“progresso rotineiro” ainda que fosse (ou seja) o mais sublime progres-
so “espiritual”, pelo simples fato de ser neste e deste mundo, seria (ou
é) material e materializado; será (ou é) arrogante e pretencioso ou, pelo
menos, convencido e autoconsciente. Por isso terá sua paga direta no
mundo e não é SACRIFÍCIO, muito menos é SANTO E AGRADAVEL
a Deus. Nem se tem no mundo ciência e consciência desse comporta-
mento ético senão pela revelação da Santa Palavra de Deus!
3. Parece estranha a afirmação de que “jamais pode aquilo que é
observável ou perceptível nos outros ter influência ética sobre o indi-
víduo em particular”, porquanto a conformação ao “costume coleti-
vo” parece ser o fundamento de toda ciência moral prática, segundo a
humanidade a desenvolve e aplica. Ser ético é proceder moralmente
de forma tal que se atinja, no todo, aquilo que a sociedade, a classe ou
o grupo considera ser o bem perfeito e, o comportamento moral reco-
mendado e estabelecido em função da prática usual, mediante a rejei-
ção de algumas de suas características e a elevação (até mesmo a
sublimação) de outras. Todavia, não é assim a ética cristã; aliás, mes-
mo segundo a filosofia humana, a “ética teórica” (que poderíamos
designar aqui, por analogia, como “ética primária-humana”) trata do
dever e do fim último do homem e portanto, pelo seu tema, não pode
ter por origem “aquilo que os outros fazem”, nem pode estar (ou nem
deveria estar) sob tal influência; aqui é mister entrar no campo da
“meditação pura” que, em última instância, volta-se à origem: Deus!
Portanto, é justificável a afirmação do Autor.
4. Barth é incansável demolidor de mitos; encontramo-lo subitamente,
nesta exegese, a derribar a muito louvada tolerância.
Ora, a tolerância é a estrada amena que familiariza o indivíduo
com o ambiente agreste. Dificilmente alguém, que tenha por norma
colocar “Deus em primeiro lugar” cairá repentinamente no precipício
do materialismo; poderá, contudo, descer ao fundo do fosso seguindo
pela declividade coleante, suave, comoda, fácil — e sem dúvida mui-
to respeitada pelos seus concidadãos — o caminho largo e tranqüilo
da tolerância. (A tolerância é tão valorizada na sociedade humana
que o próprio tradutor inglês, mesmo advertido em termos duros pelo
Autor, trai o original e se revela tolerante escrevendo “que não há
dúvidas que nenhum de nós pode viver sem ela”.
5. Ao tentar explicar a sobrevivência da “teologia” Barth cita, em segundo
lugar, o eventual interesse daqueles que se preocupam com o problema

696
Possibilidades Positivas 12, 3-8 e 9-15

“DEUS”, examinando as possíveis posições humanas que em toda


história do Cristianismo sempre deixaram a Igreja em situação de
inferioridade nos embates com a ciência, a pseudo-ciência e a cultu-
ra. Se a teologia, em si, tiver ou proporcionar condições e luz para
esclarecer esse assunto, sê-lo-á provavelmente na forma de autocrítica
e confissão de culpa porquanto é da teologia que brotam as doutrinas
— os dogmas e as confissões de fé — e é manifestamente por elas
que os homens” detém a verdade pela injustiça”.
É bastante provável que mais prontamente e mais abundantemente
erre o homem pelo muito falar todavia, erra também pelo calar. Portan-
to, sejam poucas as nossas razões, nossos argumentos e nossas dedu-
ções; contudo, poucas ou mais abundantes, no calar e no falar, tenha-
mos o cuidado de por tudo à sombra da cruz — nas mãos de Deus!
6.Diz o Autor que a “ética se baseia na organização da Congregação
como comunidade”. Entendo que Barth não se refere aqui à origem
da ética — que esta origem, sua Base Fundamental, é o AMOR DE
DEUS — mas designa a razão de ser, a destinação da ética que o
Autor designa como SECUNDARIA. Esta ética trata do relaciona-
mento entre os irmãos e foi estabelecida por Deus para a vivência na
comunidade e convivência na Congregação. Vivendo só, o homem
não encontra seu próximo e, talvez, não vislumbre Deus. É na comu-
nidade que o homem encontra seu próximo, em Deus, como indiví-
duo de uma e outra parte. “E PLURIBUS UNUM”.

POSSIBILIDADES POSITIVAS (12, 9-15)

Barth chama de positiva a ética que o “presente século”, a cuja rejeição


somos exortados, considera negativa; e a adoção das atitudes práticas, — (embora
nunca totalmente praticadas por nós), — recomendadas nos versículos 9 a 13 do
capítulo 12. É a conduta que decorre logicamente da dedicação e do domínio de
“nosso corpo” em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, como culto racional. É
o procedimento que Jesus Cristo preconiza como o “segundo grande mandamento”.
Nesta exegese Barth apresenta a visão pouco usual do próximo como
mensageiro de Deus, não só na pessoa do infeliz enjeitado, inferior, despreza-
do, (não como tal e por isso), mas também naqueles investidos de autoridade,
de poder e até mesmo como eventuais perseguidores e quando, com nosso perdão
e nossa benção lhes amontoarmos “brasas vivas” sobre as cabeças, realmente
não os “amolecemos” ou “temperamos” ou nos vingamos de alguma forma
porém evidenciamos com mais vigor o contraste da conduta do mundo em

697
12, 9-15 Possibilidades Positivas

confronto com o amor de Deus; assim exacerbamos a aflição que este contraste
gera o que dá origem a perseguição, possivelmente acirrando os ânimos e re-
crudescendo o ódio contra nós. Todavia, “venha daí o galardão ou a galé, van-
tagem ou dano, não há retroceder”; é o amor de Cristo que nos constrange!

Vs. 9 a 15 O amor seja sincero! Abominai o mal, apegai-vos ao bem! Sede


mutuamente afetuosos na fraternidade! Antecedei-vos em pres ta honra!
Não sejais tardios em levar as coisas a sério! Ardei em espírito! Servi à
tempo realidade! Regozijai-vos na esperança! Sede persistentes durante a
aflição! Permanecei em oração! Participai naquilo que se fizer pelos san-
tos! Cultivai a hospitalidade! Abençoai aos que vos perseguem; abençoai
e não amaldiçoeis! Alegrai-vos com os que se alegram e chorai com os que
choram!

[Convém confrontar com a tradução de Almeida que apresenta nuanças


diferentes sendo de notar, especialmente, o final do v. li onde Almeida registra
“servindo ao Senhor” e Barth escreve “servindo à temporalidade” — (literal-
mente, “ao tempo”); também existe ênfase diferente no v. 13.
Em notas de rodapé o Autor explica o que chama sua maneira de ler os
vs. li e 13 no original dizendo que:
a) Com relação à tradução dada ao v, 11, e a despeito do protesto de
Juelicher, precisa insistir nessa maneira de ler pois considera insípida a tradu-
ção “servindo ao Senhor”, porquanto a sugestão ou o convite (quiçá a insinua-
ção) de servir ao Senhor lhe parece ser insustentável no contexto. Em Col. 3, 24
esta exortação tem sentido bem definido o que não acontece aqui e lhe parece
que a passagem de 1, 1 tem ainda menos correlação com o tópico do v. 11; diz
Barth que Juelicher quer defender e reforçar seu modo (convencional) de ler
dizendo... “ao Senhor, somente”. Todavia, em toda essa série de exortações ou
recomendações, a ênfase está sempre nos verbos e os substantivos indicam
apenas o problema funcional. Seria o final do v. 11 uma exceção no contexto,
como teria de ser, se tivéssemos de acrescentar o “somente” de Juelicher?
Diz o Autor que a maneira de ler o original, por ele sugerida, oferece um
paradoxo apropriado cuja legitimidade poderia ser comprovada exatamente pelo
seu “mau gosto”, acusado por Lietzmann.
É compreensível (diz o Autor) que um “copista” sem senso de humor
houvesse acompanhado Atanásio; o que porém, não é compreensível é que
mais tarde [outro copista] fizesse a respectiva correção em sentido contrário.
O Autor acha ainda que, tendo em vista a exposição de Lietzmann sobre
o assunto, não parece provável que se trate de erro mecânico.

698
Possibilidades Positivas 12, 9-15

b) Com relação ao v. 13 Barth escreve que também este versículo foi


vítima do copista que “corrigiu” o v. 11, havendo escrito o que lhe pareceu ser
mais compreensível. Todavia, a passagem nada tem a ver com a veneração ou
homenagem a santos porém deve ser entendida conforme a passagem 1, 9 (onde
Paulo escreve que “faz menção” dos crentes em Roma em suas orações); trata-
se de “assistir” ou “garantir” alguém, isto é, (conforme diz Zahn), trata-se da
“expressão da lembrança de prestação de auxílio amigável e eficaz”.
Ética positiva (consiste no comportamento de quem quer e faz aquilo
que não está na conformidade “deste século” ou, mais abstratamente (e no dizer
textual do Autor), consiste em querer e fazer aquilo que tem conotação negativa
para a condição do presente mundo, que não consta de seu programa, não se
adapta ao esquema de EROS e lança o seu protesto contra o grande erro].
[Esta “ética positiva”, na realidade], somente pode ser encontrada naquilo
que Deus quer e faz. [Como seres humanos] não conhecemos procedimento
ético que seja verdadeiramente positivo, que esteja fora do quadro de Eros e
que — como querer e fazer — seja genuíno protesto [contra a conduta mundana].
O que conhecemos é determinada “ética positiva RELATIVA” que,
embora seja apenas uma possibilidade humana e portanto contenha as caracte-
rísticas da temporalidade na forma de sua “presente condição” — (como todas
as coisas que são do mundo) — todavia, pela sua origem, por força das carac-
terísticas inerentes à própria criação do universo e que jamais podem ser total-
mente extintas, tem a possibilidade de ser analogia ou parábola, com “inclina-
ção” ou tendência a se afastar de Eros e a protestar contra ele. Porém é necessá-
rio que nos conduzamos com a máxima cautela. É mais fácil que, [como
paradigma dessa analogia] escolhamos qualidades [ou virtudes] que nos pare-
çam mais plenas de significação — [mais profundas] naquilo que representam,
— cheias de luz interior, — em lugar de certas outras [que tenhamos por menos
agradáveis, ou menos nobres]. — Por exemplo, antes escolheremos o amor do
que o ódio. No entanto é possível que a grande perturbação divina esteja mais
próxima das manifestações que rechaçamos. É mais provável que justamente
aquelas qualidades [ou virtudes que não preferimos] estejam mais próximas do
procedimento que leva àquele “sacrifício vivo” a que somos conclamados “pe-
las misericórdias” de Deus e no qual demonstramos a honra que lhe tributa-
mos; antes estará [o culto racional devido a Deus] no cumprimento da segunda
tábua da lei, do que no da primeira.
Dizemos “mais fácil”, “antes”, “mais provável” — e é necessário que
nos expressemos assim [vagamente] — porquanto a viabilidade [ou, talvez mais
propriamente o requisito essencial] para a existência dessa ética “positivo-
relativa”, está na sua origem, na sua maneira de ser, na inteireza do que se

699
12, 9 Possibilidades Positivas

estiver considerando e não em seu teor propriamente dito — (que traz sempre a
forma deste mundo). Há ainda (outra razão para essa aparente falta de precisão):
a possibilidade de que existam obras impostas pelos mandamentos da primeira
Tábua da Lei, que entrem em conflito com as imposições normais da segunda.
[Entendo que o Autor quer dizer que Deus poderia exigir para sua adoração e
seu serviço (que é do que trata a primeira parte dos dez mandamentos) ações e
atitudes que estejam em desacordo com os preceitos éticos secundários, como
poderia, eventualmente, ser considerado o caso do extermínio dos sacerdotes
de Baal. A versão inglesa traduz assim: “A possibilidade de que Deus possa, de
quando em vez, ser honrado com comportamento humano que contradiga os
mandamentos da segunda Tábua da Lei precisa ser mantida em aberto”].
“O amor seja sincero.” [“seja sem hipocrisia”, registra Almeida]. Ao
lado de Eros está a maior possibilidade ética positiva, como essência da “se-
gunda” Tábua da Lei, a quintessência do comportamento “relativamente” es-
tranho segundo o “mundo em sua presente condição”. [Esta possibilidade posi-
tiva] é AGAPE, o amor como amor do ser humano ao ser humano; AGAPE
como amor do ser humano a Deus é a grande obra invisível da primeira Tábua;
é a obra viva de quem está sob a graça divina, seguindo aquilo que “adoração”
significa no comportamento ético primário (5, 5 e 8, 28 s), [Este amor sincero
do homem a Deus, essência dos primeiros quatro mandamentos do decálogo e
que foi sintetizado por Jesus Cristo como o “primeiro grande mandamento”
(Mat. 22, 37), não é carnal e portanto não está sob a égide de Eros, mas é
derramado pelo Espírito Santo em nossos corações; este “ágape” é o amor
mediante o qual e pelo qual todas as coisas concorrem para o nosso bem].
Tocando a esfera das coisas perceptíveis, [materiais], é necessário [é pre-
ciso], que a conduta ética primária tenha prosseguimento; que a demonstração
em louvor a Deus, começada e sempre a recomeçar, mediante a adoração, seja
traduzida em conduta ética secundária; [seja manifesta] no amor ao próximo. Isto
é tão certo quanto o é que a graça é a graça do Deus recôndito e que, por isso —
para dizê-lo com simplicidade — ela é a perturbação da vitalidade humana se-
gundo a conhecemos; é tão certo quanto a realidade de que esta perturbação tem
lugar no encontro do “pretenso” indivíduo deste mundo, com o OUTRO com
aquele que é UNO, o real, em toda sua majestosa inescrutabilidade; finalmente, é
tão certo quanto o fato de que a pessoa se depara com este “UM” e “OUTRO”
quando se confronta com a enigmática realidade do “próximo”.
Adoração significa amor a Deus; — (significa a orientação existencial da
atividade humana segundo a imperscrutável majestade de Deus!) [Isto se dá] na
medida em que nos preocuparmos efetivamente em dispensar a quem [de outra
forma] nos seria absolutamente indiferente, trato que corresponda a esse amor;

700
Possibilidades Positivas 12, 9

trato que se fundamenta na consideração de que essa outra pessoa [ — estranha


ou não, pela qual tenhamos ou não tenhamos interesse pessoal —.] é para nós
qual analogia do TOTALMENTE OUTRO; trato pelo qual evidenciemos que
temos razões para ver nesse nosso semelhante o infinitamente importante próxi-
mo, reconhecendo-o como mensageiro do Deus desconhecido.
[A tradução inglesa apresenta versão um tanto diferente dizendo que o
amor ao próximo é analogia do amor divino. Embora Barth diga isso mesmo
um pouco mais adiante e que essa interpretação seja relativamente usual, mais
fácil de entender e, até mesmo, mais racional, parece-me que aqui Barth está
mesmo dizendo aquilo que interpretamos; mesmo porque, a valer a tradução
inglesa, não se justificaria a conclusão do reconhecimento do próximo “como
mensageiro do Deus desconhecido”, frase que, aliás, (coerente consigo mes-
ma), a tradução inglesa omite].
O PRÓXIMO é a interrogação e a resposta de Deus em termos compre-
ensíveis à criatura humana.
É infinitamente provável que AGAPE como amor à criatura humana,
seja a resposta de quem sentiu a graça divina; de quem em amor, se volta (ao
Deus) inacessível, vendo [nesse amor ao próximo, conforme antecipou a tradu-
ção inglesa] a analogia de sua própria eleição.
Aquele que caiu nas mãos dos salteadores é o motivo (ou o pretexto)
para que eu reconheça o meu próximo e somente como tal — não materialmente
— é ele o meu próximo. É só o que se pode ou deve dizer.
Um “próximo” generalizado, um “irmão”, ou então o amor a povos re-
motos, [estranhos ou exóticos, quiçá o amor a povos de raça diferente] por
exemplo, aos negros, [ou deles aos brancos, aos asiáticos, etc.], não entra em
consideração [na conceituação do próximo].
À vista da dupla predestinação e, lembrando que Deus, como Deus,
permanece absolutamente livre, [mesmo ante o amor mais grandioso que lhe
seja votado], prevalece a validade da consideração, feita com temor e tremor,
de que a adoração poderá ser feita em sua plenitude [não apenas no amor ao
próximo mas] também em formas visíveis, [materiais ou observáveis pelo mun-
do]. Neste particular convém confrontar o que dizemos com as considerações
extremamente sensatas que Lutero teceu em torno do amaldiçoamento, como
obra do Espírito Santo (referindo-se a 12, 14); também nós [acompanhando
Lutero], não corremos o risco de contradizer a primeira epístola de João, se for
entendida corretamente.
“Que a Palavra de Deus seja o padrão de referência do amor ao próxi-
mo, assim como o primeiro mandamento é o paradigma para todos os demais”
(Lutero). Não se trata pois de imposição obrigatória assim como, mais atrás

701
12, 9 Possibilidades Positivas

(12, 3-8), não foi estatuído que se organizasse a Congregação ou que se seguis-
se a teologia, a profecia, etc. Estas possibilidades relativas existem e assim
também o amor [ao próximo] na qualidade de maior possibilidade relativa [ao
alcance do ser humano], possibilidade essa na qual se manifesta expressiva-
mente a perturbação que Deus traz aos homens. Todavia, é preciso lembrar do
significado especial, característico e crítico do amor como a mais alta possibi-
lidade positiva na esfera da graça: ele deve conduzir-se na plenitude de sua
significação; ser realmente digno do nome (emprestado!) que traz: ÁGAPE;
ser realmente ética positiva; ser verdadeiramente um protesto na correnteza em
que, como seres humanos, se encontram as pessoas.
Isto jamais e em parte alguma será entendido por si mesmo pois, onde é
que existe amor humano diferente daquele ao qual os homens, por sua origem
não se deveriam submeter, isto é, [onde existe no mundo amor que não seja] na
forma de Eros? Onde se encontraria adoração a Deus que não contenha, tam-
bém, um pouco de adoração desse Deus conhecido dos homens? Quando [ou
onde] seria o nosso amor humano [ao próximo e a Deus] totalmente puro, neu-
tro, [desinteressado], totalmente livre das distorções deste mundo e das cobiças
que o dominam, inteiramente livre do desejo de ver, de criar, de estabelecer e
estruturar, de possuir?
Eros não é sincero; Eros é hipocrisia; como função biológica ele oscila
com excessiva rapidez entre o ardor e a frialdade. ÁGAPE, porém, é sincero; é
por isso que jamais se acaba mas participa da eternidade. [I Cor. 13, 8].
O amor como graça, lembra-nos que é a questão divina do Deus recôn-
dito que é posta em nosso caminho na realidade de nosso próximo e que a
nossa conduta para com ele, em todas as circunstâncias, deve ser em honra e
glória a Deus, que a pureza de nossa conduta para com nosso próximo não
pode estar em nosso relacionamento mútuo mas na sua reformulação constan-
te, na incessante renovação de suas bases; não se trata de alcançar determinado
resultado (porquanto a objetivação de resultados, por mais louváveis que se-
jam, é sempre a meta de Eros!); [lembra-nos que nessa reformulação de nossa
conduta] o sentido é sempre o do sacrifício que deve ser apresentado na pureza
de quem obedece e no respeito ante aquele que o pode aceitar ou rejeitar.
O amor somente será sincero se, — e na medida em que, — a ética se
voltar da segunda Tábua da Lei, para a primeira, do comportamento secundário
ao primário. [Este retorno fundamenta a ética secundária mediante ] a sua rela-
ção com a origem!
Quando a ética secundária se volta verdadeiramente à origem atesta que
no amor ao próximo não busca especificamente o outro, a quem dispensa esse
amor, mas busca o único, a este serve e nele pensa, praticando o amor conforme

702
Possibilidades Positivas 12, 9

está inequivocamente descrito no conhecido e freqüentemente mal compreen-


dido “canto apologético do amor”, de I Cor. Cap. 13.
“Cada um com a face inteira e firmemente voltada para Jerusalém”
(Tersteegen), como o risco certo de nós mesmos e os outros “chegarmos perto
demais”. [Talvez porque, olhando obcecadamente para a cruz e para a ressur-
reição percamos de vista o mundo em que ainda estamos e no qual encontrare-
mos o PROXIMO, elemento de partida no retorno ao Pai].
“Abominai o mal, apegai-vos ao bem”!, isto é, ao vosso próximo.
Esta distinção [entre “mal” e “bem”] absolutamente não existe no pro-
grama de Eros. Eros não é unicamente insincero mas, também, não tem senso
de crítica. Eros vê no OUTRO somente aquele que ele é; nada sabe do UNICO,
no OUTRO. [Eros apenas quer o outro para si — seja o cônjuge, seja a mãe,
sejam os filhos, seja o amigo]. Eros ama o seu semelhante na existência não
verdadeira (não eterna] dele, sem perceber que essa existência — [temporal] é
justamente o “mal”.
[Todavia, não é assim] o amor [— segundo a graça divina — que] faz,
persistentemente, a eleição e a rejeição do outro, isto é, elege [escolhe] aquilo
que o outro não é e rejeita aquilo que ele efetivamente é. (Esta personalidade
que o outro não é, constitui o seu “bem” e a outra, a rejeitada, aquilo que o
outro efetivamente é [neste mundo], constitui a totalidade de seu “mal”)!
Note-se a sugestão contida na definição dada por Blueher para o significado
do vacábulo “mal” do texto original, descrevendo-o como “sobrecarga”, como
aquilo que se refere à dubiedade inerente a tudo que é psicológico pelo seu entrela-
çamento na realidade material; como aquilo que não é puro, que é restolho terre-
no e [contudo] precisa ser suportado (ainda que) dolorosamente. Isto é o MAL.
Amor é a premente pergunta dirigida ao outro: O que é o bem? O que é
o mal?
Amor é a crise em que também o outro está inserido. É por isso que o
AMOR, por força de sua inevitável recorrência ao amor a Deus, jamais é o
fenômeno aparentemente inequívoco, direto, claramente compreensível, pelo
qual anseiam os sentimentalistas. O amor tanto pode desencadear o que é agra-
dável quanto o que é desagradável; tanto pode procrastinar como pode ser ine-
xorável; pode guardar a paz e guerrear. [Todavia], “a vontade de Deus deve
governar [textualmente. “deve ter precedência sobre”] todas boas obras que eu
possa fazer ao próximo e todo amor que eu lhe possa dedicar; ainda que eu
pudesse tornar o mundo todo feliz, por um dia, mas isto não fosse da vontade
de Deus, eu não o deveria fazer”. (Lutero).
Somente o amor que tem em si forças suficientes para abominar o mal,
tem também a força necessária para se apegar ao bem; para esquecer, sabendo;

703
12, 9-10 Possibilidades Positivas

para perdoar, castigando; para aceitar totalmente, rejeitando — também — to-


talmente; [somente o amor que tenha verdadeiramente a força necessária para
se apegar ao bem pode] entender o “outro” pelo seu “sim” (isto é pelo sim
corretamente compreendido e, portanto, — na realidade pelo seu Não!), para
então o tocar onde Deus já o atingiu.! [Segundo a versão inglesa, “para então o
apreender onde Deus já o apreendeu!”].
Em última análise, é pelo amor [segundo a graça] que o ser humano
anseia, no mais profundo do seu ser; esse é o amor que a criatura reivindica
(apesar de o negar plangentemente), porquanto Eros [jamais satisfaz e] jamais
pode trazer [ou proporcionar] justificação e redenção.
“Sede mutuamente afetuosos na fraternidade.” Quando todos estamos
perante Deus que sentimento estará mais próximo de nós do que a idéia de que
todos somos irmãos? Todavia, assim como esta posição “perante Deus” não
está na conformidade da “condição deste mundo” — (o único que conhece-
mos.) — assim também a irmandade, perante Deus, é um evento que jamais e
em parte alguma, ocorre ou está à mão.
“Irmandades” sem temor e tremor, sem consciência de que somente
poderão ser irmãos em Deus, irmandades diretas, especiais, que não sejam es-
tritamente para servir, estão na categoria de grosseiro abuso (1, 27.) e são um
horror para Deus.
“Afetuoso”, na carta aos Romanos, — entendido existencialmente, —
significa “serviçal”, [prestativo], — objetivo, decisivo. Somente nesta precisão
[e nesta forma resolutiva] pode a fraternidade ser demonstração [ou ser protes-
to] contra a condição deste mundo; somente [neste tipo de irmandade] se ven-
cem os reveses, a negação e as desilusões que, inevitavelmente, caracterizam
tudo quanto conhecemos como irmandade ou fraternidade.
“Antecedei-vos em prestar honra”! Quando na “Congregação” o misté-
rio de Deus vier ao nosso encontro, visível na pessoa do outro — (isto é, na
pessoa de nosso semelhante, de nosso próximo), então também estará perto de
nós a exigência de respeito à pessoa. Esta exigência choca-se com a realidade
deste mundo porquanto ela usualmente é feita por aqueles que não se conside-
ram suficientemente respeitados e isto constitui a crise em que se inscreve tam-
bém este procedimento ético.
Dentro da “condição deste mundo” apenas conhecemos a prestação de
honra como recíprocas barretadas e mútuos cumprimentos em que cada um,
disfarçadamente, considera a honra ser inteiramente sua.
Somente há ética no respeito e na honra que dispensarmos aos outros
quando nosso gesto [ou nossa atitude] não envolver reciprocidade [quando não
tiver, absolutamente, o mínimo vestígio de expectativa de retribuição] porém,

704
Possibilidades Positivas 12, 10-11

acontecer primeiro [quer seja espontaneamente ou por dever], pois só então o


nosso respeito ao próximo significa também o respeito que devemos a Deus.
Aprender a meditar sobre o que significa o respeito é o único caminho
para o respeito da santidade [e não apenas dignidade] da pessoa humana e, sem
esse respeito, a sociedade transforma-se em casa de loucos.
“Não sejais tardios em levar as coisas a sério”. [A expressão usada no
original alemão poderia também ser entendida como “não sejais tardios em
passar das palavras aos fatos” Almeida, e também a Versão Sinodal Francesa e
a Revised Standard Version escrevem, “no zelo, não sejais remissos”].
(Juelicher escreve que para Paulo não teria havido um só momento que
não estivesse “carregado de seriedade”. Tal idéia deve, simplesmente, ser igno-
rada).
Levar a sério, [ou ser zeloso, cuidar], (conferir com 12, 8) significa aquela
imposição objetiva, aquela determinação e aquela decisão que caracterizam a
pessoa que tem autoridade de fato, autoridade que lhe advém por força das
credenciais que lhe são conferidas por aquele que é UM, para o representar
perante o OUTRO.
É claro que essa exigência [de zelar, de levar as coisas a sério] está
estreitatamente ligada ao amor entre os seres humanos (mediante o qual — sob
o impacto da grande perturbação [que o amor divino induz] — deveríamos
erguer nosso protesto contra a desavergonhada [e irresponsável] segurança dos
homens. [Para que esse protesto seja eficaz, para que tenha sentido] é preciso
que ele seja feito com absoluta seriedade, [com todo zelo] a fim de que toda e
qualquer refutação seja silenciada, por não ter razão de ser; é preciso que o
respeito aos outros se imponha naturalmente e que [no relacionamento com
mais de um indivíduo] domine, animadoramente, a neutralidade.
Todavia, o que a todo instante vemos como autoridade, como “sendo”
levar a sério, [como zelo], na verdade não é isso. Aquilo que vemos se adapta
“bem demais” à condição deste mundo, com as suas ditaduras. Onde há [onde
já vimos] alguma autoridade da qual se possa dizer outra coisa? [Contudo],
toda nossa imposição [autoritária] está nas conchas da balança. “Não sejais
remissos!” Ponde a valer aquilo que não sois, não conheceis nem sabeis. Não
fiqueis assentados sobre vossa autoridade! Não respondais [quiçá inflando-vos
em sabedoria] mas perguntai. Imponde-vos, abrindo mão de toda imposição!
Não há solenidade se não a da questão (que não é vossa) [e que sois chamados
a julgar!]; o instante em que a questão pronunciar o seu solene discurso e por
meio dele vos colocar no gozo do respeito ético, — não será um instante. [En-
tendo que o Autor quer dizer que no momento em que a questão, — que é.
eventualmente o objetivo da autoridade — for exposta e a autoridade a ouvir

705
12, 11-12 Possibilidades Positivas

gozando, quiçá, o sabor do respeito ético, este não será para ela um instante,
um momento; será a sensação ou, quem sabe, a realidade da eternidade].
“Ardei em espírito” — Então também o espírito oferece possibilidades
de procedimento ético?
— Sim, no mesmo sentido que o amor. E nesta mesma direção que apon-
tam todos conceitos éticos aqui referidos; voltam-se a uma perturbação plena
de promessa, a uma grandeza invisível que está por trás e que invade a vida dos
homens.
“Espírito”, aqui, evidentemente significa a motivação ou orientação sub-
jetiva, interior, da conduta humana, em contraste com a atitude ulterior, objeti-
va, externa.
Para expressar a fundamentação psicológica da atitude humana no rela-
cionamento com Deus, [a que o texto se refere], talvez, em lugar de “espírito”
pudéssemos dizer “consciência” ou “convicção”. Todavia, [qualquer que seja o
nome que lhe dermos], é evidente que Paulo não quer dizer que o Espírito a
todo instante nos impele, (conforme pretende Juelicher), porquanto, o que é
“espírito”? Acaso é “aquilo” que a todo momento nos conduz? Acaso é a tepi-
dez, ou o calor, ou a efervescência, ou a incandescência que conhecemos como
“consciência” e “convicção”? Nada disso fica fora do esquema de Eros e isto os
outros também sabem.
“Ardei em espírito”
Quando, acaso (a todo instante?!) por intuição e por necessidade interi-
or, a motivação decisiva, direta, indiscutível, [verdadeiramente arder] então, na
medida do valor da causa em questão, o golpe será tão extremamente forte que
vós mesmos vos anulareis; então essa energia egocêntrica e consumidora que
gastais para saber se é de um espírito que se trata, ou se do vosso espírito, ou se
é do Espírito,já não tem razão de ser. Então, “seja a honraria ou seja o suplício,
não vacile”. (Zwinglio).
É certo; também este instante não será [apenas] um instante.
“Servi à temporalidade”! É a contraposição à exortação anterior. Acaso
não é a temporalidade, com suas tarefas diretamente a mão [devidamente] qua-
lificada no instante da grande “perturbação” que vem de Deus? Acaso é a
temporalidade (a história!) outra coisa que o Espírito falando objetivamente de
fora? Acaso não é igualmente possível, — e até necessário — deixar que a ética
seja motivada total e completamente pela “temporalidade”?
Sim, porém todos servem à temporalidade! Se a nossa temporalidade —
a temporalidade qualificada, o tempo presente, (8, 18 a 13, 11) — tem signifi-
cado especial pelo qual podemos e devemos orientar-nos, é questão sempre
aberta. Por isso, servi À TEMPORALIDADE!

706
Possibilidades Positivas 12, 12

No interior da crise de nossa situação está o instante presente. É ante a


penetração [nessa crise] que se chega à decisão. Por que não seria a
temporalidade plena de significação na total dubiedade de sua casual determi-
nação [ou condição]? Então servi-a; sede absolutamente obedientes; lutai para
vencer todas suas casualidades e passai por elas até o seu teor crítico mais
profundo. Se assim fizerdes, então também esta possível motivação é ética e
vós, justamente na medida em que assim servirdes à temporalidade, não sereis
nela [e por ela] conformados.
“Alegrai-vos na esperança!”
Esperança, acaso, é ética?
— Sim, senhores. A grande esperança que Deus oferece aos homens
obriga-os, por essa mesma esperança, a protestar contra os caminhos do mun-
do. Mas, quem há que não tenha esperança? O que é que transforma particular-
mente a nossa esperança em procedimento ético? [Respondemos:] A alegria!
Ter esperança significa “não ver”; ter as “mãos vazias”; sofrer privação,
estar perante o NÃO (8, 24-25). Em oposição a tudo isso está a ALEGRIA.
Alegria é o momento presente, é posse; a alegria não espera, porque já tem!
Ter alegria na esperança significa conhecer [e reconhecer] a Deus sem o
ver, e satisfazer-se com isso; é esta atitude que faz da esperança uma realidade
ética.
Alegria na esperança é a esperança em Deus e esta esperança não enver-
gonha [5, 5].
“Sede persistentes durante a aflição”! [Ou segundo Almeida, “sede pa-
cientes na tribulação”].
— Também a aflição, como ética? [Esta pergunta talvez seja respondida
por outra:] Onde e como poderíamos honrar e glorificar a Deus, fora da aflição?
“Gloriamo-nos nas tribulações” (5, 3). Estar em tribulação [é uma forma de]
ação positiva da criatura humana. Esta aflição vem de Deus, mas não simples-
mente, diretamente. A aflição sobrevém a toda alma que pratica o mal (2, 9).
Tribulação é a correlação negativa natural da luta pela vida e precisa ser trans-
formada em protesto contra a tendência do mundo, mediante a perseverança.
Perseverança significa amar aquele que nos manda a aflição; significa reconhe-
cer Deus na tribulação, sem o ver e, se satisfazer com isso. É desta maneira que
a perseverança transforma a aflição em ação ética e lhe empresta o sentido de
um passo dado daqui para o além. Perseverar significa: aqui se crê em Deus!
“Permanecei em oração”!
— Então [também] oração é [uma possibilidade] ética? Mais uma vez,
sim. Oração é verdadeiramente, uma obra. [E claro que dizemos isto da oração
como ação secundária, isto é, ação complementar, que vem depois], como fato,

707
12, 12-13 Possibilidades Positivas

e não nos estamos referindo à oração como adoração [que é básica, que é pri-
mária] que conhecemos como a ética primeira que fundamenta e precede todo
procedimento ético [entre os homens].
O que nos resta sob a incomensurável pressão de nossa posição como
seres humanos perante Deus, senão apelar a ele, clamar como os Salmistas e
como clamaram a Deus todos os demais que viram as coisas quais elas real-
mente são? [O que mais nos resta senão] nos submetermos a ele, agradecendo-
lhe porque ele é Deus (porém jamais sem espanto [sem temor]! ), a ele implo-
rando que seja e continue sendo nosso Deus?!
[O ato da oração] se destaca de forma estranha e nunca vista pelo mun-
do a dentro, passando quase a constituir uma invasão da analogia, na ação ab-
soluta. Porém, qual outro ato humano penetraria mais profundamente na pro-
blemática de todos os demais atos?
Pelo livro de Heiler [“A Oração”, de F. Heiler] vê-se consternadamente,
quão profano é o “mundo da oração” e, nela, quão próximos ficamos do absur-
do total.
“Orar como convém, não sabemos” (8, 26). E pela permanência na ora-
ção, que ela se torna ética. “Permanecei”! Não se trata na acumulação da quan-
tidade de nossas preces, nem no refinamento de sua qualidade, mas da perma-
nência, da orientação e da continuidade da prece, como oração.
O objetivo é Deus; [é em Deus que pensamos]; é ele quem procuramos,
e ele quer que oremos. E neste sentido e nesta orientação que precisamos bus-
car o significado da intercessão que, em suspiros [e gemidos] inexprimíveis,
por nós faz o Espírito — que não é o nosso (8, 27).
“Participai naquilo que se fizer pelos santos. Praticai a hospitalidade”!
A forma profundamente direta e concreta [objetiva] de todas essas “recomen-
dações” éticas é bem patente nestas duas exortações, à luz da situação histórica
de então. Na primeira delas trata-se da participação na coleta mencionada com
enigmática ênfase nos capítulos 8 e 9 de II Cor., para a Igreja em Jerusalém. Na
segunda, a referência é aos irmãos na fé que viajam para Roma ou passam pela
cidade. O que há de comum às duas exortações é que elas encerram um aspecto
estranho — (ao mundo de Roma e, por que não também ao nosso?) — um
aspecto não natural, que apenas se torna “próximo” [compreensível], pela uni-
dade da comunidade distante [incompreensível] do ponto de vista humano; por
isso, precisa ser analisado mais detalhadamente.
É evidente que tanto aqui como na segunda carta aos Coríntios, Paulo
mostra pouco interesse pela grandeza material, pelo valor das ofertas, o que é
justamente a única [ou, pelo menos aparentemente a maior] motivação nas
manifestações de caridade, mais modernas. A ênfase de Paulo está na forma

708
Possibilidades Positivas 12, 14-15

dessa manifestação de amor, no seu caráter demonstrativo, na qualidade da


ação que vence a tensão [que leva a distensões], mediante o reconhecimento
daquele que é UNO, na pessoa do outro. (Aqui, o outro é o estranho, [o estran-
geiro, os santos em Jerusalém, é o viajor que chega à grande cidade], no sentido
exato da palavra!). É nesta ênfase que estão os aspectos éticos da caridade e da
hospitalidade.
“Abençoai aos que vos perseguem; abençoai e não os amaldiçoeis”! A
perturbação que vem de Deus, necessariamente atrai perseguição, pois ela tam-
bém perturba os outros, que se sentem diretamente atingidos. Quanto mais in-
visível e indireto for o ataque da Cristandade à sociedade, tanto mais dificil-
mente ficará livre de represálias.
Também a perseguição é parte lógica [natural] da situação que a graça
cria; o que não lhe é concedido, é a correspondente ética pois, segundo a “pre-
sente condição” do mundo à perseguição deveria corresponder a “maldição”.
Amaldiçoar é uma possibilidade prevista na Bíblia toda, mas é na forma
de protesto externo, final, solene; “é Deus amaldiçoando a maldição de Sata-
nás”. (É por isto que somos exortados a “não amaldiçoar”). “Onde Satanás, por
meio dos seus, impedir a Palavra de Deus, onde a destruir ou perturbar... aí é
ocasião para a fé se adiantar e, amaldiçoando, desejar que as perturbações de-
sapareçam e que se faça lugar para a graça de Deus”, — (Lutero) — mas não no
contexto [da perseguição de que se trata aqui] pois, na medida em que o perse-
guidor ameaça pessoalmente a pessoa que recebeu a graça, ele não é “inimigo”
mas mensageiro de Deus que, como tal, vai ao encontro da vontade divina; ele
é o “outro”, [o próximo], em seu mais tenebroso enigma e, portanto, apresenta
também a oportunidade de fazer o que é absolutamente inequívoco: renunciar
ao recurso às armas e abençoar em vez de amaldiçoar e, nessa atitude inespera-
da, (dessa forma inexoravelmente objetiva) aumentar sobremaneira a perturba-
ção [que o perseguidor sente, teme e que motivou sua atitude]. A benção assim
exarada em plena luta pela vida significa — e de maneira muito vigorosa para
a honra e glória de Deus — que no “outro” reconhecemos o “UM”.
“Alegrai-vos com os que se alegram; chorai com os que choram”! Há
uma última perspectiva na linha que até aqui vínhamos seguindo: se o “perse-
guidor’ é mensageiro de Deus, por que não o será também, quem se rejubila, ou
quem chora? Acaso a alegria e a tristeza são apenas os pontos culminantes da
emoção biológica (ou erótica)?
Seria próprio, — acaso seria uma resposta objetiva à questão que aqui nos
é proposta através “do outro”, — contrapor a alegria à moderação do estoicismo
ou, a sua serenidade à dor? Não; antes, onde houver riso ou choro, há também
motivo para considerar que, justamente quando as emoções humanas atingem

709
12, 15 Possibilidades Positivas

seus pontos extremos, tornam-se de tal maneira duvidosas que passam a apontar,
para além delas mesmas, ao seu sentido parabólico: há um rir que é vida e um
chorar que é morte; portanto, é perigoso adotar posições estóicas e morais; é
perigoso querer ensinar, convencer, [doutrinar]; são perigosas todas abordagens
feitas por contrastes materiais. Poderia então acontecer que fôssemos encontra-
dos lutando contra Deus, conforme aconteceu com Micail quando viu Davi dan-
çando frente à Arca da Aliança, [II Sam. 6, 16 ss] ou conforme os amigos de Jó
[quando procuravam admoestá-lo] em sua lamentação.
O protesto que aqui deve ser levantado [contra o mundo] está, surpreen-
dentemente, na confirmação da pessoa no maior êxtase de sua alegria ou no
extremo de sua dor. A ética precisa, neste caso, assimilar aquela paradoxal
irreconhecibilidade do Filho de Deus, na “semelhança da carne dominada pelo
pecado”. (8. 3).
Quem é livre, precisa submeter-se livremente; o sábio precisa sabia-
mente ignorar, porquanto o protesto contra a “condição do presente mundo”
consiste, necessariamente, em permitir que o “outro” esqueça de que ele é “o
outro” para nós e que veja [perceba ou sinta] — (por si mesmo!) — que em sua
mais profunda comoção ele é, para nós, testemunha daquele UM.
Há um “acompanhamento” à alegria e à tristeza da criatura dilacerada e
impelida de um lado a outro por Eros — o mentiroso — que anuncia a verdade
e a misericórdia de Deus. Por isso “alegrai-vos com os que se alegram e chorai
com os que choram!”
O quanto todas possibilidades éticas são sujeitas a uma crise derradeira
se evidencia nesta exortação, em que não se dá a expressa decisão crítica e cujo
enunciado tanto pode referir-se a maior das frivolidades, como a Jesus Cristo
entre os pecadores; pela insegurança em que esta observação nos coloca, ela
nos remete, com renovado senso de exigência, de todo procedimento ético se-
cundário à ética primária e, por ela, para além dela, à sua primeira origem—
[Deus.].

Comentários: 12, 9-15

1. O Autor sugere que só é possível respeitar a dignidade humana median-


te o respeito à santidade da pessoa, isto é, mediante sua separação
para a honra e glória de Deus; diz Barth que sem esse respeito a so-
ciedade entra em caos. É o que vemos no “tempo presente” em toda
forma de materialismo nos “mundos” (primeiro, segundo e terceiro)
quais os conhecemos neste fim do último quartel do século vinte. A
situação não mostra perspectivas de melhoria — antes pelo contrário

710
Possibilidades Positivas 12, 9-15

— as coisas no terreno moral (e quem se atreve a afirmar outra coisa


da condição material e política?), parecem seguir de mal a pior, quais-
quer que sejam os sistemas políticos, as filosofias, os conceitos e os
idealismos que os inspirem.
Qual a nação que verdadeiramente respeita a pessoa humana? Qual
respeita, não só os direitos do homem, conforme lindamente postos no
papel há três séculos pelos ingleses, há dois pelos americanos e um
pouco mais recentemente pela revolução francesa mas, efetivamente,
respeita a pessoa humana como criatura pela qual Cristo morreu, sem
olhar sua raça, suas aptidões, ou suas inclinações naturais, sem se ser-
vir dela para a explorar ou a encaminhar aos seus fins político-sociais?
No entanto, os dois grandes mandamentos que Cristo referendou
existem desde a remota revelação no Monte Sinai, eles só, capazes de
garantir ao homem os direitos que nações, homens sérios e demago-
gos de todos matizes, proclamam e reclamam. Procuram os homens
alimento que não é pão e nesse sustento se comprazem até que o caos
sobrevenha e então, na carência, talvez busquem e invoquem ao Se-
nhor até novamente atingirem as alturas da glória do mundo e nova-
mente morram. Cristo, porém veio até nós para que tivéssemos vida e
vida abundante.
2. “Servi à temporalidade”! Aceitando a leitura do texto grego conforme o
Autor entende ser a certa, talvez pudéssemos dizer que a maneira de “ser-
vir à temporalidade” é “remindo os tempos”, que são maus. (Ef. 5, 16).
3. Onde estaria o paralelismo entre a vinda de Cristo ao mundo na “se-
melhança da carne” com a confirmação do indivíduo nos extremos de
sua emoção, conforme a exegese de 12, 15? Talvez seja na identifica-
ção. Tanto alegrando-nos com quem se alegra como chorando com
quem chora, unimo-nos ao nosso próximo como Cristo se une a nós,
protestando — Cristo por excelência e nós mediante a graça de Deus
— contra a condição prevalecente no mundo.
Todavia Barth diz que a recomendação a que nos identifiquemos
com nosso próximo nas suas emoções não tem expressão crítica, não
é decisiva e gera uma incerteza que nos remete aos primeiros manda-
mentos do decálogo — ou seja ao primeiro grande mandamento.
O chorar e o rejubilar-se, em si mesmos, representam um estado
indefinido, quase mórbido, que tanto poderia ser frívolo como oscilar
para outro extremo, tomando sentido verdadeiro da exortação, isto é,
tendo seu modelo e sua razão de ser na própria encarnação de Deus. É
esta insegurança de interpretação em nossa aproximação à ética divina

711
12, 16-20 Possibilidades Negativas

que nos faz buscar, incontinente, a adoração pura, simples, espiritual,


nela fundamentando e enrijecendo a têmpera de nosso “culto racional”
e do procedimento ético, segundo a vontade de Deus. A adoração bási-
ca evidência a misericórdia divina, isto é, a fidelidade de Deus que é a
fonte de nossa fé, a qual constitui a pedra de toque para a avaliação da
aceitabilidade de nossas obras, por Deus e para Deus.

POSSIBILIDADES NEGATIVAS (12, 16-20)

À série de procedimentos éticos relacionados nos vs. 16 a 20 deste Ca-


pitulo, Barth designa como sendo as possibilidades negativas, contrapondo-as
(a julgar pelos títulos), às possibilidades de comportamento citadas pelo Após-
tolo nos vs. 9 a 15.
A diferença nas características dos dois grupos é, talvez, subtil.
Tanto as possibilidades de protestar contra o “grande erro” deste mundo
— amando-nos cordialmente uns aos outros, não sendo remissos no zelo, rego-
zijando-nos na esperança, perseverando na oração, exercendo a hospitalidade,
auxiliando na manutenção da boa causa, abençoando aos que nos perseguem,
alegrando-nos com os que se alegram e chorando com os que choram, como as
possibilidades de termos todos o mesmo sentimento, de aquiescer ao que é
humilde, de não tornar mal por mal, de meditar naquilo que parece ser bom à
vista de todos, manter a paz e não exercer vingança, são qualidades inerentes à
nova criatura, quiçá ideais que, como seres humanos, jamais atingiremos, não
obstante são alvo, são referência ao fim proposto.
Todas essas atitudes, tanto as do primeiro como as do segundo grupo
são protestos contra o procedimento do “presente século”, testificam a graça
divina e apontam à transformação do mundo.
A designação de positivas para as primeiras e negativas para as segun-
das é, antes, subjetiva, porquanto se as considerarmos com referência ao mes-
mo padrão ético — ao padrão divino todas essas maneiras de proceder têm a
mesma qualidade: são positivas.
São positivas as possibilidades de agir segundo o primeiro grupo de
recomendações porquanto negam, intrinsecamente, a conduta do “presente sé-
culo”; são portanto positivas com relação a ética divina. Todavia as possibilida-
des de agir conforme os preceitos do segundo grupo foram rotuladas como
negativas porque o procedimento que preceituam opõe-se à prática corrente no
mundo e é congruente com a conduta normal do mundo vindouro: logo, tais
possibilidades são, elas também, positivas com relação à ética divina.
Qual, então a diferença?

712
Possibilidades Negativas 12, 16-20

Talvez seja na maneira de absorver, assimilar e expor o protesto e dar o


testemunho.
No primeiro caso, no procedimento que Barth designa “positivo”, a cri-
atura parte para o ataque: ama, se regozija, persevera, hospeda, auxilia, se rejubila
e se compadece. No segundo, na possibilidade do procedimento negativo, há
também ação porém, ação de certa forma passiva, estática; ação de absorção e
não de extroversão: aquiesce ao que é humilde; conforma seu próprio senti-
mento ao dos outros; sujeita-se a considerar o que a todos parece ser bom; dá
lugar à ira e retribuição divinas.
É isto o que Barth analisa na exegese dos vs. 16 a 20 deste capítulo.

Vs. 16 a 20 Refleti entre vós sobre a mesma coisa, não cogitando do que está
no alto mas consentindo em serdes conduzidos às coisas que são de baixo.
Não segui as vossas eventuais presunções! A ninguém tomeis mal com
mal! Meditai sobre aquilo que seja bom à vista de todos.
Naquilo que depender de vós, tende paz com todos!
Não fazei justiça a vós mesmos, amados, antes daí lugar à ira de
Deus! Pois está escrito: “É a mim que compete estabelecer justiça, eu
recompensarei! diz o Senhor Porém, se teu inimigo tiver forme, dá-lhe de
comer! Se tiver sede, dá-lhe de beber! Pois fazendo isto amontoarás
carvões incandescentes sobre a sua cabeça”. [Conferir com a tradução
de Almeida].

Designamos como procedimento “ético-negativo” o “querer” e o “fa-


zer” que são positivos com relação ao mundo vindouro e que se ajustam à
transformação deste mundo (12, 2).
Semelhantemente à “ética-positiva”, também a negativa, a rigor, somente
existe naquilo que Deus mesmo quer e faz; não conhecemos qualquer possibi-
lidade humana, por mais “negativa” que seja, nenhuma abstenção, nenhum
“NÃO FAZER” ou “NÃO QUERER” que, em si mesmo, seja ou tenha possibi-
lidade de se tornar procedimento em conformidade com o “Reino dos Céus”.
Todavia podem existir formas de “NÃO QUERER”, “NÃO FAZER” (assim
como pode haver “QUERER” e “FAZER”) que na sua total relatividade sejam
plenas de significação parabólica, plenas de poder de testemunho e de “inclina-
ção” para o além. [Podem existir] retraimentos [abstenções] que apontem in-
sistentemente aquilo que invisivelmente se lhe opõe, que apontem à ação [ou
obra] divina, por assim dizer descolocando, tirando da praça (a obra ou) a ação
dos homens (12, 8), quais raras enseadas nas praias retilíneas do procedimento

713
12, 16 Possibilidades Negativas

humano, “deformações” ou reentrâncias que indicam e podem proclamar a exis-


tência de pressões de origem invisível. E muito provável que tais “deforma-
ções” [na uniformidade da ética humana] ocorram sob o domínio da graça.
Não dizemos mais do que isso!
Também aqui rejeitamos expressamente ao que se possa designar como
sendo ética precisa, absoluta, em nosso procedimento secundário; rejeitamos
terminantemente a validade de róis de coisas proibidas, pois aquilo que puder-
mos designar como possíveis procedimentos positivos ou negativos está sem-
pre dentro das possibilidades humanas, que são dúbias e estão sujeitas à restri-
ção de Deus, sujeitas à crise da morte para a vida e à instância julgadora da
primeira Tábua da Lei.
As diversas possibilidades são éticas justamente pela sua relação com a
origem; se procurarmos a qualidade ética do próprio teor dessas possibilidades
a sua característica ética fica prejudicada.
“Refleti entre vós sobre a mesma coisa, não cogitando do que está no
alto mas consentindo em serdes conduzidos às coisas que são de baixo”.
[Almeida escreve: “Tende o mesmo sentimento uns para com os outros;
em lugar de serdes presunçosos, condescendei com o que é humilde; não sejais
sábios aos vossos próprios olhos”].
Parece que aqui não se trata daquelas muitas coisas que devemos fazer
ou deixar de fazer cuidando de não pensar de nós mesmos mais do que convém,
“porque isto não faz sentido”, “antes cuidemos de ser moderados” (12, 3); po-
rém, trata-se de modo muito concreto e visível do posicionamento da criatura
humana frente às conhecidas elevações e depressões das eventualidades da vida
e às correspondentes afirmações e negações. É preciso que agora confessemos
que a desconfiança com que vemos tudo quanto “está na crista” neste mundo e
a nossa inclinação favorável a tudo quanto está por baixo, são conseqüências
da perturbação que nos vem de Deus.
É fora de dúvida que a Ressurreição — conforme já vimos por diversas
vezes — é a negação de todas afirmações e negações deste mundo; todavia, isto
em nada altera a validade de que a ressurreição está — [também ela] — à beira
de uma destas muitas negações [que ela anula] e que a sua analogia, conforme
a podemos ver, jamais é algo que se pareça com plenitude, que se apresente
como desdobramento da vida mas é [primeiramente] a morte do Cristo segun-
do a carne.
As depressões casuais de nossa vida [os seus pontos baixos] tem relati-
vamente mais valor — como testemunhas [da graça] — do que as eventuais
culminâncias; somos mais profundos na negação do que na afirmação e gosta-
ríamos de deixar perfeitamente claro que a compreensão desta perturbação do

714
Possibilidades Negativas 12, 16

equilíbrio de nossa vida é “CONDITIO SINE QUA NON” para entendermos a


Carta aos Romanos.
À luz da ressurreição, tudo quanto [neste mundo vemos, consideramos
e] conhecemos como vida, abundância, grandeza, elevação e altura é, primeira-
mente, parábola, [ou analogia] da morte; porém vistos a esta mesma luz, morte
é tudo quanto significa diminuição, pequenez, fraqueza, deserdamento, [priva-
ção e renúncia] e tudo quanto em sua depressão seja relacionável a morte, é
parábola da vida. “É preciso que ele cresça e que eu diminua” [João 3, 30]. Esta
é a grande perturbação que cobre todas “alturas” com sombras de dúvida, de
suspeição, de insignificância, e que já não pode mais ser ignorada; [esta pertur-
bação] afeta todos aspectos da vida cotidiana e portanto não pode ser conside-
rada apenas como [coisa geral], IN GLOBO, nem pode ser contornada [ou
simplesmente descartada] atribuindo-a levianamente a circunstâncias do mo-
mento, mas tem de ser reconsiderada sempre de novo na qualidade de questão
nunca respondida ainda que essa atribuição da perturbação que sentimos a even-
tuais circunstâncias da vida, possa parecer — e até — seja — justificável [em
determinadas ocasiões].
[A tradução inglesa escreve assim: “Esta é a grande perturbação dos
homens. Esta é a inegável sombra da insignificância, da dúvida e da suspeição
que cai sobre toda eminência humana. Em vista de todas ocorrências diárias de
nossa vida estarem sobrecarregadas com esta sombra não nos podemos desfa-
zer dela mediante vaga generalização; em vista de ser permanente o problema
que essa perturbação nos traz, não podemos, legitimamente, tratá-la como situ-
ação ou problema interino].
O Cristianismo “não cogita do que está no alto”. O Cristianismo não
aprecia ouvir falar alto demais ou com excesso de confiança do desenvolvi-
mento criativo do mundo, do seu planejamento e seu aperfeiçoamento, da im-
plantação da ciência e da técnica, da arte, da moral ou da religião, nem da saúde
corporal ou mental; nem de riqueza e de bem-estar; nem de sublimidades —
seja o matrimônio, a família, a Igreja, o Estado, a sociedade.
O Cristianismo não reforça eventuais “ideais”, sejam pessoais ou coleti-
vos, regionais ou internacionais, germânicos ou ocidentais, concretos ou abs-
tratos, sonhos de jovens ou elucubrações de gente madura.
O Cristianismo permanece inalterado, tanto ante a natureza como ante a
cultura; tanto ante o romantismo como ante o progresso constante.
O Cristianismo não se sente bem onde quer que se levantem torres e a
tais construções ele tem sempre reservas a opor.
[Em todas essas obras, esses ideais e esses empreendimentos, o Cris-
tianismo] pressente — em atitude pouco simpática ao mundo, porém com

715
12, 16 Possibilidades Negativas

desconfiança altamente justificável — a ameaça da idolatria. Nessas torres o


Cristianismo vê, pelo menos, a semelhança da morte. Vê o homem rico, como
tal, não ainda, na morte, mas sem dúvida no hades e em tormento.
Contra tais obras e empreendimentos o Cristianismo recomenda a cria-
tura que se deixe “conduzir à depressão”; vê a verdade mais patente em o NÃO
do que no SIM; vê a situação do homem, entre o céu e a terra, por demais
ameaçada para se poder crer que ele se manteria em pé sobre qualquer das
colunas que o mundo edifica e para que ele possa valer-se do valor dos valores
que o mundo valoriza; [o Cristianismo vê a posição dos homens por demais
duvidosa] para acreditar seriamente na importância de tudo quanto de impor-
tante o mundo criar.
O Cristianismo quer ver o ser humano conduzido, porém, para baixo,
[para o que é humilde, — e se esforça para isso], vê grande mão sacudindo tudo
quanto E ou quer SER; vê o sinal de interrogação aposto a todas eminências do
mundo; ouve o secreto estalido das vigas que se rompem; e não pode deixar de
ver e ouvir o que ouve e vê!
É por isto que o Cristianismo aprecia os pobres, os que sofrem, os que
têm fome e sede; os que são tratados injustamente. É por isto que o Cristianis-
mo pode, em seriedade, recomendar o celibato sem receio de, mediante a su-
pressão da propagação da espécie, suprimir também a premissa básica de todo
raciocínio positivo e que consiste na premissa “de que de uma ou de outra
maneira a vida seja algo de valor” (Harnack).
O Cristianismo sente-se, ao menos, mais próximo das estranhas
diligências dos ascetas e pietistas do que da “sadia piedade popular, evangélica”;
mais próximo do “homem russo” do que de seus irmãos europeus. O Cristianis-
mo não passa ao largo de qualquer interrogação da vida, por pequena ou grande
que seja, mas apenas se interessa profundamente pela interrogação que existe
em cada questão. O Cristianismo está sempre lá onde ainda não foram encontra-
das soluções e não onde a criatura se refez e se colocou novamente em ordem
consigo mesma. O Cristianismo tem certa preferência partidária pelos oprimi-
dos, pelos que ficam aquém da meta, pelos que ainda não estão prontos. pelos
que estão cheios de melancolia e tomados de revolta; por isso é que os sociais-
democratas recebem os aplausos do Cristianismo em muitas de suas atividades.
O Cristianismo vê Lázaro como pobre — não diretamente já com Deus
mas, em todo caso, no seio de Abraão; o Cristianismo vê por toda parte, nas
“depressões” [da criatura], pelo menos a analogia da vida porque não pode
esquecer o que significa RESSURREIÇÃO.
O Cristianismo nos diz que provavelmente é mais bem aventurado quem
estiver na profundeza do vale do que aquele que estiver nas alturas!

716
Possibilidades Negativas 12, 16

Não devemos expressar-nos de forma mais incisiva sobre este assunto


porque aquela desconfiança [aparentemente dispensada às coisas que estão no
alto] e esta boa vontade [com que são vistas as coisas que estão embaixo],
aquela advertência e esta promessa a que talvez façam jus as culminâncias e as
depressões concretas de nossa existência, têm sempre apenas o sentido de ana-
logias e disto não nos podemos esquecer por um só instante.
É justamente IN CONCRETO que é possível e é preciso que a cada instante
perguntemos quais são as “alturas” das quais o Cristianismo se afasta e quais as
“depressões” de que se aproxima. [Referimo-nos sempre, é claro], às “alturas”
que os homens geram e às “depressões” que vêm de Deus. Na prática [pode
acontecer] — e queremos mais uma vez lembrar o que foi dito quando aborda-
mos o tema da predestinação — que os primeiros sejam os últimos e os últimos
os primeiros. É, por isto, o caso de se perguntar se os supostos “deprimidos” (e
oprimidos) já não passaram, há muito, para o rol dos que estão nas alturas [quiçá
dos opressores] e se a humildade dos que estavam lá embaixo, já não tresandou
há muito em nauseante orgulho; que a problemática seja agora um ídolo e que o
quebrantamento [dos que sofrem] tenha sido transformado em tema central da
mais nova das modernas concepções teológicas; que o “proletariado” tenha sido
invadido pelos mais grosseiros conceitos materiais e a aversão à cultura mundana
não seja mais do que capricho vazio. É o caso de se perguntar se o papel de
“construtor de torres” já não tenha, há muito, passado daqueles que afirmam para
os que negam; se o NAO dos que negam já não se transformou, há muito tempo,
em SIM — [isto é, se tenha transformado na afirmação] da criatura que ficou
segura em sua negação e de quem o Cristianismo, com tristeza, precisa afastar-se.
É possível e é preciso que se pergunte se o inabalável camponês bávaro
não estaria mais próximo do céu que o “homem russo” ou se um engenheiro
calculista ou um comerciante não estaria mais próximo da verdade do que al-
gum sacerdote devotado às mais profundas elucubrações sobre os mistérios de
Deus; se acaso não valeria a pena ser conduzido “para fora” da depressão [em
que talvez nos sentíamos tão “bem-aventurados”] para algum ponto um pouco
mais alto, [onde não sejamos “vítimas” tão notórias]; algum lugar um pouco
mais acima onde penetrássemos na “casa deste mundo” como se nada fora
[participar da vida normal], por exemplo, casar e ter filhos, ser querido; promo-
ver a ciência, pertencer a algum partido político (inclusive não sendo socialis-
ta...) — ter a arte em grande estima, aplaudir a cultura e talvez até — para
cúmulo da tragédia e do humor — ser clérigo!
O mesmo Cristianismo que ali esboça a tese. contrapõe aqui a antítese.
Existe todavia certo desequilíbrio [entre uma e outra] porquanto a parábola (ou
analogia) da morte fala alto de mais, ainda que seja apenas parábola.

717
12, 16 Possibilidades Negativas

[A tradução inglesa escreve de forma algo diferente dizendo, “as teses


do cristianismo tornam-se aqui a sua antítese por quanto é possível que a pará-
bola da morte ultrapasse a si mesma, embora seja apenas parábola”. E o texto
original continua:] Também é certo que o Cristianismo pode distribuir o seu
SIM e seu NÃO de uma e de outra maneira; erige e derriba; [constrói e destrói];
envia [o seu mensageiro] e o chama de volta; dá e tira; todavia tem sempre o
mesmo objetivo, a mesma lógica e segue uma única regra: é contra as “eleva-
ções” e a favor das “depressões”. Está sempre conferindo CERTITUDO ao ser
humano porém — para a glória de Deus e nosso consolo —já mais SECURITAS;
nunca agindo cegamente de uma única maneira, nunca dando razão a alguém
ou a alguns dentre nós; jamais nos concedendo descanso porque sempre mede
nosso tempo pela eternidade de Deus.
Acaso notamos — quiçá algo assustados — quanto, em nossas ativida-
des, nos movemos no âmbito da relatividade? — É justamente isto que deve-
mos observar. Ainda uma vez dizemos: relatividade quer dizer correlação. Como
realidade, como atitude humana, qualquer que seja sua causa determinante,
todo procedimento ético é correlato à origem; [o que diferencia] a ética cristã,
o que a caracteriza como não sendo relativa mas absoluta, é o fato de na totali-
dade de sua essência e de seu desdobramento, ela se apresentar apenas como
interrogação e subsistir em indagações e perguntas que somente Deus pode
responder; na realidade é nesta caracterização da ética divina que se torna terri-
velmente evidente que toda ética humana é apenas “demonstração” [ou protes-
to]; que a ética humana pode apenas quando muito — ter pretensões a algum
significado e que neste “apenas”, [nesta limitação de possibilidades], nem se-
quer pode ter “apenas” um pouco de descanso — (de sossego ou de paz) —
porque também este APENAS dá lugar a que nos lembremos de Deus, de onde
se origina a pergunta formulada com inescapável seriedade: “O que faremos
pois?”.
A perturbação que o NÃO do Cristianismo desperta em nossas consci-
ências é fundamental para nosso encontro com aquele que é UNO, através da
pessoa do “outro”, (de nosso semelhante, nosso próximo) e o grau de
envolvimento que ele representa, a premência do seu apoio às depressões da
existência humana e a densidade da sombra em que nos coloca são a medida da
grandiosidade desse encontro.
“Refleti entre vós sobre a mesma coisa!”, não cogitando do que está no
alto [no que está por cima] mas, consentindo em serdes conduzidos às coisas
que estão embaixo, sêde do mesmo sentimento entre vós, pois justamente as
grandes contradições que resultam da dialética desta norma — (do conceito
SOLI DEO GLORIA) — as contradições entre a refutação e a confirmação da

718
Possibilidades Negativas 12, 16

cultura, entre o entusiasmo e o realismo, entre a sabedoria do morrer e do viver,


podem e devem unificar-se sempre de novo em consideração UNA e coesa da
vida SUB SPECIE AETERNI e, justamente porque esta consideração jamais
tem lugar, porque ninguém a tem [ou faz], ela se torna uma das maneiras de
homogeneizar as pessoas e de permitir que se estabeleçam diferenças entre
elas.
[A tradução inglesa põe assim: “SUB SPECIE AETERNI” as grandes
contradições do mundo se unificam em uma só perspectiva da vida; todavia
essa unificação jamais existiu realmente, ninguém —jamais — a possui, por-
que não é o que os homens discernem mas é o que os distingue].
Não estamos todos enfermos no mesmo hospital? Não estamos todos
sob a mesma acusação? Não fomos todos condenados pela mesma sentença? O
que podemos pois fazer, senão termos todos o mesmo sentimento?
Não segui as vossas eventuais presunções!” [“Não sejais sábios aos vos-
sos próprios olhos!”]. (Prov. 3, 7).
Esta é a norma negativa que resulta logicamente da atitude de deixar-se
[alguém] conduzir às coisas que estão embaixo. Lá no alto, — ainda que tais
“alturas” sejam duvidosas, temos eventuais presunções, [somos presumidos
em nós mesmos] (11,25); orientamo-nos de uma ou outra maneira, dependen-
do da necessidade de nos auto-suportarmos; de nosso autodesenvolvimento, de
nossa auto-afirmação e de nossa autodefesa; mas esse “auto [este reflexivo] é
casual; o que [usualmente buscamos embora, talvez não o confessemos, o que]
queremos, é algum gabarito [ou padrão] para a luta pela existência, que não
seja crítico, [decisivo]. Confiamos ingenuamente nos conceitos [pessoais], —
“eu”, “tu”, “nós” e “os outros”; temos “uma” situação ou “um ponto de vista”;
(que ironia!); falamos tragicamente de “um opositor”, falamos de superiorida-
de, de hegemonia e de vitória, todavia submetemo-nos a outros padrões, a ou-
tros parâmetros; abrimos caminho (ou não); chegamos “em cima e descemos
de novo; lutamos felizes, (ou não); temos sucessos mas também insucessos,
sofremos desilusões, somos golpeados, feridos, postergados [preteridos e hu-
milhados]. É nisso tudo que desenvolvemos [e alimentamos] nossas “eventuais
presunções”. Avaliamos [e julgamos a nosso favor] sob a pressão imprópria do
momento presente, cada um conforme então “lhe ferver o sangue nas veias”,
defendendo-se do opositor e mais ainda — até primeiramente — defendendo a
si mesmo.
Não nos iludamos; esta é, a rigor, a regra constante de nossa conduta:
seguimos presunções eventuais! Contudo, ainda que essa linha de procedimen-
to não seja rompida [e interrompida] definitivamente, pode [ao menos] ser
truncada e fletida.

719
12, 16-17 Possibilidades Negativas

O ataque fundamental da graça deixa suas marcas na criatura humana


não pela agudeza (ou precisão) de eventuais respostas divinas (que, aliás, nun-
ca são dadas pois a graça é sempre — e unicamente — demonstração e teste-
munha de que há resposta) porém justamente pelo fato de ela própria estabele-
cer a interrogação; é nisto que consiste a seriedade e a força da ética cristã; (ela
interroga e, inquirindo remete a questão à sua origem, à fonte da própria ética]
e, nesta sua relatividade a ética da graça — [a ética cristã] é o machado posto à
raiz das “presunções eventuais”. Ora, a raiz de todas presunções eventuais e o
segredo de toda “altura” humana são as respostas éticas absolutas com que tão
bem [ou melhor] se coroam as certezas humanas; por isso a ética cristã, como a
supressão de todas respostas éticas absolutas, suprime também os triunfos e os
sofrimentos que nos proporcionam as passagens por esta ou aquela altitude.
Para a ética cristã as altitudes humanas são apenas analogias; simples
parábola é toda luta [toda oposição entre a criatura e o mundo,] ainda que essa
oposição fosse (ou seja] a mais santa e a mais necessária.
A verdade tira-nos a energia [ou o alento e a ousadia] para nos aferrar-
mos a “uma verdade”; a injustiça tira-nos o ânimo de aceitar a injustiça como
se fosse um acontecimento especial; a vitória tira-nos a tensão com a qual po-
deríamos esperar por esta ou por aquela vitória.
Acaso é isto “desanimador”? Acaso moem-se, com isso, todos nossos
ossos?
— Sim, é justamente isto que acontece; tudo quanto estiver aquém do
arrefecimento de nosso ânimo precisa morrer. A ética que não houver passado
por esse purgatório não é ética porém, vida biológica, emoção, Eros; não é
necessidade mas acaso e capricho; não é liberdade mas privação dela; não é de
Deus mas apenas explicável psicologicamente ou, pior ainda, apenas explicá-
vel psiquiatricamente.
A ética cristã, [porém é diferente]; conquanto ela nunca e em parte algu-
ma se corporifique, ela é dotada de ousadia a par da qual toda coragem que
tivermos não passa de covardia e, rompendo todo o individualismo ela é a pró-
pria fundamentação do indivíduo.
A ética cristã é a purificação transcendental de todo procedimento, ex-
purgando-o de suas componentes biológicas. emocionais e eróticas — embora
nunca e em parte alguma apareça em sua pureza; ela é o protesto direto contra
toda posição de superioridade assumida pelos homens e por isso mesmo, nessa
atitude ela é absoluta e anuncia o mundo vindouro.
“A ninguém tomeis mal por mal !“ No sentido cristão o mal é a condição
inevitável da parte perceptível, [real, material] de toda conduta humana; o MAL
é a massa inerte de nosso comportamento. [Nesse mesmo sentido] o bem não é a

720
Possibilidades Negativas 12, 16-17

alternativa para o mal mas é o seu julgamento e sua supressão; o BEM é a justifi-
cação do homem por Deus, é a impossível possibilidade da salvação do mal:
“Porque perguntas acercado que é bom’? Bom só existe um”. (Mat. 19, 17).
A regra [natural] de nosso relacionamento com os outros, ainda que o
designemos como sendo amorável, é a da retribuição do mal com o mal, isto é,
não vemos no outro o um, (o Bom!); não só deixamos de ver o “Bom”, em
nosso semelhante (2, 9) mas vamos além, deixando bem claro para ele que ele
é aquele que de fato é [para o mundo: a velha criatura!].
Insistindo em ver nosso próximo no seu aspecto visível qual ele mesmo
se apresenta consideramo-lo, em princípio, perdido para o bem, ainda que nele
vejamos toda sorte de coisas boas. Esta nossa insistência é a “retribuição com o
mal!”
Muito antes de entrarmos em choque com nosso semelhante pelos en-
trechoques “naturais” da vida — nos quais recorremos a todos os meios que
estiverem a nosso alcance, e que são todos maus, — pela nossa persistência em
não ver nele aquilo que [neste mundo e como velha criatura] ele de fato não é,
já lhe estamos tornando mal por mal. [Por outras palavras, vemos em nosso
próximo apenas o mal e lhe devolvemos o que nele achamos, não vendo nele o
bem.], porquanto não conseguimos ver nele aquilo que ele não é; esta nossa
incapacidade de ver é a obra do mal praticada por nós; é a ação da massa inerte
que nos domina [e nos faz andar sempre na mesma direção para longe de Deus!].
Esta é a “linha reta” que, [sem desvios e] sem exceções, seguimos.
Todavia, ainda que não possamos quebrar e interromper definitivamen-
te essa linha, podemos trincá-la, — fendê-la; podemos, quiçá, abrir brechas
nesse nosso procedimento, lembrando que, embora nossa maneira de proceder
com relação ao mal que insistimos ver em nosso semelhante, não seja de todo
injusta, nela estamos confirmando e ratificando a existência do mesmo mal em
nós, da mesma forma que vendo o bem que no outro existe e reconhecendo o
UM que há nele — [que ele representa] — estamos testificando a nossa própria
justificação. Em seriedade, isto é, em seriedade ética, não podemos sustentar a
“retribuição do mal com o mal”.
Perante ninguém e nunca mais enfaticamente do que perante a máxima
malignidade do “outro”, se torna mais significativa a nossa justificação [por
Deus!].
Na medida em que esta conscientização crítica, [decisiva], se tornar per-
ceptível mediante a “não-retribuição”, a “não insistência” [em ver o outro qual
ele realmente é neste mundo], quando tentarmos fazer aquilo que, aparente-
mente, só pode significar [covardia e] fraqueza, quando realmente ignorarmos
o “mal” do outro, quando nossa conduta representar estranho desvio da “linha

721
12, 17 Possibilidades Negativas

reta” do procedimento humano então, talvez, (nosso procedimento ético) con-


tenha a indicação do que é invisível, isto é, seja um sinal de que percebemos a
existência do UM no outro, [em nosso próximo,] o UM que também está em
mim; [talvez então o nosso comportamento ético seja a indicação de que divi-
samos a parábola] da divina “não-imputação e do pecado, naquele nosso próxi-
mo, — qual o vemos.
Contudo, lembremo-nos sempre que não há nem pode haver quebra
absoluta — interrupção plena e total da linha [do procedimento normal huma-
no]; não pode haver atitude absolutamente boa nem se pode transformar a ati-
tude de “não-resistência” em algo de valor absoluto porquanto então, na verda-
de, estaríamos destruindo nossa esperança pelo mundo vindouro.
“Meditai sobre aquilo que seja bom à vista de todos!” [Almeida escre-
ve: Esforçai-vos por fazer o bem perante todos os homens]. (Prov. 3, 4). [Os
quatro primeiros versículos do Capítulo 3 de Provérbios, parecem reforçar a
maneira de traduzir do Autor].
Mais uma vez nos deparamos com a ética de Kant.
Determinada conduta é ética na medida em que, sendo aprovada pelo
invisível UM em todos, contrasta com a conduta visível de muitos; é por isso
que o comportamento ético nunca está (ou é) totalmente isento do caráter de
protesto — o UM em todos protesta contra o procedimento de muitos e por isso
mesmo ele é a medida [a dimensão] desse protesto. Bom somente é aquilo que
o é aos olhos de todos (que sabem ver!).
Se um determinado comportamento houver de significar, real e genui-
namente, a perturbação que, de parte de Deus, atinge a criatura e não unica-
mente a despótica perturbação da criatura, provocada pela incompetência de
seu semelhante, a criatura assim atingida não poderá eximir-se [da condição do
“bom a vista de todos”] nem pode temer a luz do critério da validade universal;
não pode recear a luz da publicidade.
Semelhante comportamento não pode alegar a existência deste ou da-
quele paradoxo, não pode basear-se nele nem pode deixar de ter sempre pre-
sente a realidade da existência do UM no outro [seu próximo] porquanto o
paradoxo ético [que se impõe ao mundo pelo seu contraste com o procedimen-
to usual] consiste exatamente em tomar em consideração este UM invisível e,
ao lado deste paradoxo, não pode haver outro (e aqui é conveniente colocar
Kierkegaard na posição devida, [corrigindo-o] por intermédio de Kant).
A ética divina não pode objetivar determinada espécie de felicidade (ou
de infelicidade!). Quanto mais a conduta individual estiverem desacordo com a
realidade histórica da sociedade — (como por exemplo a vocação do Apóstolo
— 1, 1), tanto mais necessário é que ela esteja em harmonia com a verdade que

722
Possibilidades Negativas 12, 17

proclama [ou representa]. A própria ação profética, por vezes em tão profundo
desencontro com a sociedade a que se dirige precisa, em ULTIMA RATIO
estar em harmonia com a verdade reconhecida por todos. [Quiçá, embora não
aceita e até combatida precisa ser — e é — confessadamente ou intimamente
reconhecida como sendo “o bom”]. Conseqüentemente, podemos abrir mão da
aprovação de “muitos”, porém em nenhum instante sequer, da “aprovação”
[(do consenso)] de todos.
A “aprovação de todos” é o critério pelo qual precisa ser medido todo
comportamento visível que não seja usual; [a este critério] sujeitam-se os he-
róis, os guias carismáticos, os pregadores de novas doutrinas, os ascetas, os
pietistas; julgados por este critério, consideram-se tratados com eqüidade todos
os “grandes personagens”, todos os super-homens, todos os artistas e todos os
gênios excepcionais, qualquer que seja o seu ramo; portanto, não existe moral
[ou ética] especial [ou diferente da usual] para aqueles que sobressaem [na
sociedade ou entre seus pares] e conseqüentemente também não existe ética
separada para os que forem [simplesmente] normais! Por isso, qualquer proce-
dimento que admirarmos por sua ética, ou mesmo que apenas reconheçamos
como sendo ético, (por exemplo, a ação de algum profeta!), torna-se, para nós,
força constrangedora da qual não podemos escapar mediante justificações cap-
ciosas ou de simples fuga, dizendo, (por exemplo): “Mas isso era Lutero!”
Basicamente a conduta humana somente deixa de ser normal [usual ou
comum], quando se relaciona com Deus e por isso mesmo ela é absolutamente
normal no seu relacionamento com as demais pessoas (pois a invisibilidade do
todo proporciona o corretivo necessário!) “sem cogitar do que está no alto” e
sem seguir “eventuais presunções” (12, 6), desta maneira anunciando o mundo
vindouro que é a verdade do “UM” em todos!
“Naquilo que depender de vós tende paz com todos!”
Manter a paz pode ser demonstração perfeitamente pertinente, própria.
Pode significar que a criatura é de tal maneira contida e mantida em cheque por
Deus que ela não tem alento para contragolpear, por mais justos e mais bem
aplicados que seus golpes fossem.
Ora. o correlacionamento humano é sempre mal conduzido e, por si
mesmo, gera constantemente a discórdia e está sempre predisposto a distri-
buir golpes à esquerda e à direita; também o nosso semelhante não faz jus a
qualquer reivindicação de paz porque (por assim dizer), ele nos provoca em
todas suas atitudes na qualidade de corporificação [materiaiização] do
“homem” que conhecemos bem demais, sempre em novas modalidades cada
qual mais irritante — em sua ignorância crassa, sua obstinação e sua absoluta
desagradabilidade.

723
12, 18 Possibilidades Negativas

Não se pode exigir que tratemos amigavelmente semelhante indivíduo


se, para o fazermos, temos de lutar em nós mesmos para nos dominarmos,
gerando enormes pressões internas.
Se, porém, acontecer que, brigando com ele, aliviamos [descarregamos]
em parte nossa pressão interior, por que não haveremos de lutar? Nada há mais
natural do que a guerra; porém a guerra aponta para além de si mesma porque,
em última análise, ela é dirigida contra o homem que conhecemos.
A guerra significa que reconhecemos o homem qual ele é, em sua im-
possibilidade [de transformar-se] e queremos livrar-nos dele; guerra é a afirma-
ção de que — de alguma maneira, vimos o nosso semelhante à luz do UM, que
ele não é.
[Guerra] é manifestação errada porquanto o conflito com nosso seme-
lhante de maneira alguma opera a supressão ou a negação da criatura que co-
nhecemos, ainda que a exterminemos na luta. Evidentemente, só Jesus Cristo
— aquele que é UM em todos — é a negação [a anulação] da criatura que
conhecemos. Portanto a luta dentro de nós e a luta com nosso semelhante deve-
riam cessar no instante em que reconhecermos esta realidade, por não terem
mais razão de ser.
Parece-nos ser impossível haver qualquer luta “em Cristo”, pois ELE É
A NOSSA PAZ!
Não é possível lançar nova carga sobre este ou aquele, dizendo-lhe que
“ele também é criatura humana!”. Não é possível fazer do direito de Deus pe-
rante todos, o direito de um homem perante outro! Não é possível ignorar que
justamente a provocação visível nos homens, testifica a sua invisível justifica-
ção divina!
A guerra é o procedimento natural da criatura que, assumindo atitude
radical e absoluta para com seu semelhante, quer fazer-se igual a Deus.
Isto nos diz respeito, muito de perto, para que mantenhamos paz com
todos, a todo e qualquer preço. De onde tiraremos a emoção e o ânimo necessá-
rios para brigar, quando houvermos reconhecido que NÃO SOMOS DEUS?
Acaso não nos é necessário testificar a liberdade e a misericórdia de Deus,
mantendo a paz’? “Enquanto depender de vós, preservai a paz!”.
Sabemos porque, também aqui, não dizemos mais. O limite da nossa
possibilidade é Deus.
Nada daquilo que denominamos PAI — e nisto não podemos acompa-
nhar Kant — pode ser, sequer, o mais remoto degrau preliminar da “paz eter-
na”, [a escada de] acesso ao “Reino do Bom Senso”.
Quando dizemos que vemos Jesus Cristo em nosso próximo e que, por
isso, na guerra vemos a paz, e que podemos e devemos efetivar essa perspectiva

724
Possibilidades Negativas 12, 18-19

mantendo a paz tratamos, na realidade, do conhecimento de Deus e da sua


PAZ. Deus, porém, jamais é conhecido; nós o reconhecemos. Deus permanece
livre. Continua existindo a possibilidade de entrarmos em luta contra nós mes-
mos e, um pouco mais longe, que entremos em conflito com nosso próximo;
existe também a possibilidade de que Deus poderia impedir-nos de ver Jesus
Cristo na pessoa deste ou daquele semelhante nosso; todavia, note-se bem:
falamos de uma possível reserva [e exceção] divina e de maneira nenhuma da
chamada “Moratória do Sermão do Monte” que os Luteranos — [aliás, a Igreja
Luterana da Alemanha, para justificar a beligerância do país, por ocasião da
guerra mundial de 1914-1918], — em sua aflição e para se justificarem perante
eles mesmos, inventaram.
Não confundamos com possível reserva divina a eventual exceção [que
imaginamos ou desejamos] para atender a possíveis dificuldades (ou circuns-
tâncias) humanas, por mais nobres que sejam [ou que fossem]. Não usemos a
(“pretensa”) reserva divina como pretexto para pregar a guerra, [como justifi-
cação] para que possamos agredir com “consciência tranqüila”. [Aliás] o ho-
mem não deve ter “consciência tranqüila”, nem na guerra nem na paz. Todavia,
mesmo o mais sincero amigo da paz sabe que estamos permanentemente, não
apenas na situação de não poder ver o UM no “outro” mas também, [fortemen-
te inclinados] a detestar [quiçá a odiar] o mal que “nele” vemos, (12, 9), pois a
existência do UM no “outro” não é realidade material. E nesta medida que se
torna necessária a demonstração (ou o protesto) mediante a luta e, quiçá, da
guerra.
O conhecimento de Deus [ou o reconhecimento de sua existência] im-
põe-nos que, na questão da guerra, desçamos de todas “alturas” guerreiras to-
davia, não para que sejamos conduzidos a outras “altitudes” pacifistas. O reco-
nhecimento de Deus conduz-nos a Deus e não a alguma ação ou circunstância
humana, quer seja na guerra, quer seja na paz. A Igreja que sabe o que quer
afastará de si, com mão forte, o militarismo; [porém não só ele] mas também o
pacifismo, embora o faça com gesto amigo.
A seriedade no cumprimento da ordem de preservar a paz esta no fato
de que essa ordem se refere também ao cumprimento do primeiro mandamento
e aponta, igualmente, a Deus; a seriedade dessa ordem consiste inteiramente na
peculiaridade de não ser ela uma determinação precisa, absoluta; na sua
condicionalidade — [“no que depender de vós” ...] este mandamento aponta à
paz do mundo vindouro.
“Não fazei justiça a vós mesmos, amados, antes dai lugar à ira de Deus.
Pois está escrito: “É a mim que compete fazer justiça, eu recompensarei, diz o
Senhor” (Deut. 3, 25). Porém se teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer! Se

725
12, 19 Possibilidades Negativas

tiver sede, dá-lhe de beber! Pois fazendo isto amontoarás carvões incandescentes
sobre sua cabeça”. (Prov. 25, 21-22).
Detenhamo-nos mais uma vez sobre o significado [o conceito] da pala-
vra INIMIGO. Evidentemente é na pessoa do “inimigo” que mais e melhor se
patenteia o que nos é defeso fazer.
O “inimigo”, conforme já vimos em 12, 14, é o OUTRO em sua forma a
mais estranha — [a mais misteriosa].
Segundo o nosso ponto de vista a respeito dessa ordem [de preservar a
paz], parece ser mais do que lógico que não precisamos mantê-la porquanto
todo o atro enigma [da maldade e da repulsa que nos inspira nosso semelhante,
conforme o vemos longe de Deus], parece aglomerar-se em nosso inimigo;
todas observações que foram abafadas e todas opiniões pessimistas a seu res-
peito, aparentemente se confirmam e nos parece ser completamente impossível
recuar do conflito em virtude do relacionamento biológico existente entre nós e
nosso antagonista no instante em que ele se opõe a nós como nosso “inimigo”,
seja pessoal ou nacional; por questão de princípios ou por classe social; por-
quanto, quem é o inimigo?
— Sabiam-no os cantores dos Salmos. Verdadeiramente, [o inimigo é]
não só o concorrente, o opositor, o adversário vil, o opressor, mas também,
para meu horror, aquele que ante meus olhos, deliberadamente, busca a injusti-
ça, que me faz ver o maligno no homem que conheço (12, 17) e que me põe em
vias de retribuir mal com mal.
Com toda razão Lutero vê seu inimigo no Papa de Roma e não apenas
um inimigo mas o arquimaligno em ação. E plenamente justificável o lamento
do Salmista quando vê o “inimigo” surgir qual grandeza quase absoluta peran-
te Deus, a quem clama por [justiça e] retribuição.
É o inimigo que abre os meus olhos para que eu veja o que secretamente
sempre me irrita em meu semelhante; ele o mostra a mim, como sendo o “mal”;
ele me mostra que, realmente, o “mal” é inerente à criatura humana e a acom-
panha até o fim da vida, no mundo; é através de nosso inimigo que percebemos
que o mal segue o seu curso naturalmente, sem impedimento, sem contenção,
sem reação e sem oposição nem interior nem exterior. E o inimigo que desperta
em mim o tumultuoso clamor por justiça que seja superior, que seja
compensadora, vingativa, (e que não encontro); é o clamor pedindo um juiz
que julgue sobre nós dois (e que, todavia, está ausente).
Quem há que me ponha em maior crise do que este inimigo? O que devo
fazer quando eu tiver a experiência elementar, mas avassaladora para mim, que
toda justiça “retribuidora”, está excluída? O que devo fazer quando me conven-
cer que tudo quanto eu poderia fazer contra meu inimigo é [também] o mal, e

726
Possibilidades Negativas 12, 19

está igualmente sujeito às sanções daquela justiça superior [pela qual tanto cla-
mo e] de cuja falta eu me ressinto tão dolorosamente?
Indubitavelmente aqui está, inquietantemente perto, a última e maior
tentação de titanismo, a tentação de fazer justiça com minhas próprias mãos, de
aceitar por minha conta (e risco) a luta pelo Direito, de colocar:me no lugar de
Deus Invisível, tornando-me o INIMIGO do inimigo e o TITA para os Titãs.
Se eu o fizer, quem me julgará? Acaso não estou oprimido [e angustia-
do], perguntando quem me fará justiça? Trata-se de avançar apenas uns poucos
passos além da pergunta [absolutamente] legítima sobre o que devo fazer. Que
mais devo, pois, fazer à vista do inimigo, senão assumir o lugar do Deus ausen-
te e, por meio de palavras e atos, com o poder das leis e das armas, servindo-me
de todo poderio ofensivo e defensivo do mundo, julgar o inimigo [com todo
rigor] e castigá-lo com todo rancor?
Se a criatura humana realmente pode e deve tomar medidas objetivas de
justiça, então a luta pelo Direito é inevitável. Se tivermos de tomar a justiça em
nossas mãos, então não teremos força moral para rejeitar o pensamento [os
conceitos] de Tirpitz, pois nossos argumentos estarão condenados ao fracasso,
desde suas bases.
Todavia, não é assim; a própria perturbação, vinda da parte de Deus,
que a criatura sente, põe [seriamente] em dúvida que ela deva e possa cuidar de
fazer justiça por si mesma. Todavia nada nos impede a que o tentemos porém,
é absolutamente certo que não poderemos realizar tal intento sem cair no
titanismo e sem empunhar o cetro de Deus; não podemos ignorar que se assim
procedermos estaremos nos colocando, cheios de rancor, ao lado de Deus no
campo de domínio da ira divina.
Este é o segredo de nosso inimigo; também ele, na essência de seu pro-
cedimento, está estendendo a mão para asir o cetro divino; também ele, de
alguma maneira, deixou que lhe passasse desapercebida a existência de justiça
mais alta; também ele chegou à fronteira da interrogação sobre o que deveria
fazer e foi impelido [ou compelido por sua própria maneira de ver] a avançar e
fazer justiça por suas próprias mãos. Mesmo o pior de nossos inimigos jamais
deixou de pensar subjetivamente que estava aplicando a “sua” justiça com ob-
jetividade; é justamente nessa maneira de agir que ele fere nossa consciência de
justiça; esta é a injustiça que ele pratica ante nossos próprios olhos e é desta
maneira que ele se torna réu perante Deus e os homens.
É por isso que, ao se deparar comigo, [meu inimigo] me afronta com
seu ardente zelo por Deus, zelo que o traiu pela cobiça de seu coração. (1, 24).
Acaso posso assumir a mesma atitude? Posso, também eu, tomar a defe-
sa do que é justo, em minhas mãos?

727
12, 19-20 Possibilidades Negativas

— Repetimos ainda uma vez: eu posso tentar fazê-lo e, talvez, até precise
tentá-lo. Como haveria eu de encontrar outra possibilidade senão a de enfrentar o
Titã, titânicamente? Apenas não posso, depois, admirar-me se eu tiver de reco-
nhecer no meu próprio destino titânico, trágico, apavorante e digno de compai-
xão, que também eu. na intenção de fazer justiça direta, apenas cometi injustiça.
É na intenção de estabelecer a justiça mais alta, que a renegamos “por-
quanto a ira de Deus se revela do céu contra toda impiedade e perversão dos
homens” (1, 18), impiedade para com meu inimigo e impiedade para comigo
mesmo, se eu quiser ser inimigo de meu inimigo.
Esta é a situação crítica do militarismo que, de passagem, atinge tam-
bém, e de cheio, o pacifismo.
Quem há que dê lugar à ira de Deus e não à ira humana? Quem cuida
para que a ação humana seja eliminada e suprimida pela superior ação divina?
Quem há que se esforce para que na dialética da vida (que se torna particular-
mente viva para nós através de nosso inimigo), nada mais reste senão a indaga-
ção [o clamor], pela justiça objetiva?
É isto o que nosso inimigo tem a nos dizer [na qualidade de nosso pró-
ximo e mensageiro de Deus]. Ele apenas desfaz a última ilusão de que a justiça
de Deus poderia ser, para nós — criaturas humanas — algo diferente daquilo
que se pode fazer [exclusiva e necessariamente] no contexto do mal; ele expõe
essa ilusão, mostrando-nos que ela é estranha, remota e invisível; nele transparece
a absoluta impossibilidade de que essa ilusão se torne verdadeira; no inimigo
apenas vemos a justiça de Deus, manifesta em sua ira e o próprio Deus em sua
qualidade absoluta de DEUS ABSCONDITUS.
Que posso fazer contra o inimigo, senão abster-me de toda e qualquer
retribuição, voltando-me à total abstenção e, em vez de lhe dar as respostas
[que seriam cabíveis], formular apenas perguntas, desistindo de todas ações
para ficar — apenas — nas respectivas pressuposições?
Que gestos devo fazer, [que atitudes tomar], — desde que me é vedado
contragolpear, — senão obedecer esta ordem [absolutamente absurda], totalmen-
te impossível, pouco prática, de maneira alguma [lógica ou] racional, que diz:
“Se teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer! Se tiver sede, dá-lhe de beber.”?
[Ora] esta atitude somente pode significar — e de forma muitíssimo
extraordinária — que ouvi este UM extremamente camuflado, na pessoa de
meu inimigo — meu próximo; que entendi a imprescindível necessidade de dar
a honra [e a glória] somente a Deus. “E a mim que compete estabelecer a justi-
ça, eu recompensarei, diz o Senhor!”
Como testemunho deste “a mim.” e deste “eu.”, como demonstração de
que a justiça vem de Deus e de Deus somente, conforme o reconhecemos justa-

728
Possibilidades Negativas 12, 20

mente na pessoa do Inimigo e, para marcar indelevelmente que o inimigo re-


presenta para nós um problema que nos oprime terrivelmente, não podemos
acompanhar, impertérritos as idéias militaristas [porquanto], “se teu inimigo
tiver fome, dá-lhe de comer! Se tiver sede, dá-lhe de beber!”
Podemos fazer dessas recomendações imediatas o alvo perfeitamente
alcançável de nosso procedimento (de nossa conduta) podemos calcar nessas
recomendações o nosso “método” e nosso desiderato. Trata-se de possibilidade
prática, pragmática, perfeitamente plausível. Todavia, também conhecemos a
futilidade de todas tentativas que se fazem para satisfazer essa recomendação.
O amor ao inimigo (que é a expressão mais inequívoca do paradoxo ético
do UM no outro) não pode ser transformado em procedimento humano, visível.
Devemos amontoar “carvões incandescentes” [brasas vivas] sobre a ca-
beça do inimigo; isto é, nosso procedimento deve desalojar nosso inimigo de
sua posição, por meio de golpe irresistível, O “outro”, que também é o UM
oculto no inimigo deve ser compelido a revelar-se. Para tanto preciso reconhecê-
lo como aquele que tem “fome e sede”. [Comparar com Mat. 25, 35-45]. Preci-
so reconhecer que [este meu inimigo] nada mais é que a vítima de seu trágico
destino (ainda que, visto de fora — [visto pelo mundo] — ele triunfe inteira-
mente); preciso ver nele a criatura batida pela ira de Deus e [preciso compreen-
der] que a justiça objetiva que contra ele procuro, já foi aplicada. O “outro”
assim batido, o inimigo fustigado por Deus, já não pode mais ser estranho para
mim; na parábola da morte, ele é o UM.
Todavia tal conhecimento, para ser genuíno, precisa ser alcançado pra-
ticamente; por isso, dá-lhe de comer e de beber! Tu és solidário com o [teu]
inimigo, batido por Deus. Seu mal é teu mal: seu sofrimento o teu sofrimento,
sua justificação, a tua justificação e, somente aquilo que o redime pode redimir
a ti também.
O BEM é todo procedimento que pode manifestar [ou expressar] essa
correlação entre ti e ele; e todo procedimento que, pelo padrão dos atos dos
titãs entre eles, só pode ser entendido como abstenção [como omissão ou au-
sência de ação]. Assim, quando tua conduta se elevar à altura do amor ao inimigo,
ela será qual a profundeza do vale e tua atitude será. (realmente). significativa.
O especial interesse da ética cristã no amor ao inimigo está cm que a
interrogação sobre “o que devo fazer” esbarre na impossibilidade de uma res-
posta material: que a pergunta nos convença de que ela é. precipuamente. a
interrogação sobre a fundamentação e sobre o objetivo daquilo que efetiva-
mente fazemos e, assim, se transforme na pergunta para qual somente Deus e a
sua obra são a resposta.
Esta é a sua significação como anunciação do mundo vindouro.

729
12, 16-20 Possibilidades Negativas

Comentários: 12, 16-20

SOLI DEO GLORIA parece ser para Barth a chave para a interpre-
tação do preceito de que devemos consentir nas coisas que são humil-
des. A primeira vista essa interpretação pode parecer-nos estranha como
soa estranhamente a redação que o Autor dá à passagem de 12, 16, par-
ticularmente se a confrontarmos com a tradução de Almeida. Escreve
Barth: “Refleti (vós) sobre a mesma coisa, não cogitando do que está no
alto”, mas consentindo que sejais levados a pensar e cuidar das coisas
humildes! O que tem isso a ver com a glória que só a Deus é devida?
Todavia, se acaso nos foi difícil aceitar prontamente a forma pouco
familiar da redação de Barth, a introdução do conceito SOLI DEO GLO-
RIA torna a sua maneira de escrever não apenas aceitável mas profun-
damente significativa; aliás esse conceito não se aplica unicamente ao
versículo 16, mas aos quatro versículos aqui analisados como “Possibi-
lidades Negativas” da ética cristã.
Quando cuidamos das coisas soberbas, quando dermos asas à presun-
ção humana, quando nos imaginamos vitoriosos, dominando os horizon-
tes quais altaneiras águias, quando segundo nosso modo de ver — somos
sábios e prudentes, estamos na realidade construindo a nossa “Torre de
Babel” com todo esmero de que somos capazes e nisto não nos falece
nem inteligência, nem sabedoria, nem prudência e, do ponto de vista do
“presente século”, podemos sentir-nos orgulhosos de nossos feitos; estamos
nos aproximando mais e mais de Deus: de sua sabedoria, dominando a
matéria e devassando o Universo; de sua grandeza penetrando nos misté-
rios da alma e da própria geração da vida; de sua graça, dispensando tole-
rância que chega às raias da conivência com o mal; da sua pureza, com
nosso puritanismo; da sua santidade, pela nossa sacrossanta religião!
Enquanto assim subimos, enquanto somos glorificados pelos homens
que vêem nossas obras quais as exibimos estamos verdadeiramente,
novamente — e sempre — enfeitiçados, fascinados, irresistivelmente
atraídos — e traídos — pelo eloqüente e traiçoeiro discurso da Serpen-
te: “Sereis iguais a Deus”.
É por isto que o Cristianismo vê “com desconfiança”, com reservas e
quiçá, até com crítica, tudo quanto fala da grandeza humana, até mesmo
de sua religiosidade quando nestes “altos montes” colocamos nossa espe-
rança e nossa confiança. É por isto que a “sadia piedade popular evangé-
lica” perde o lugar ao sofredor “homem russo” — quiçá conforme retrata-
do por Tolstoi e Dostoievski — e este, — agora talvez exaltado por Marx

730
Possibilidades Negativas 12, 16-20

e Lenine — ensoberbecendo-se em sua negatividade, cede novamente o


lugar ao homem mais simples — menos presunçoso perante Deus.
São os primeiros que passam para o rol dos últimos.
É por isto que a ética cristã deixa de ter valor quando o fixamos em
seu teor material; é por isto que o asceta em seu retiro. aparentemente
sem nada de útil produzir, pode estar mais perto do reino de Deus que o
diligente crente, inteiramente devotado ao construtivo trabalho social de
sua paróquia ou sua comunidade.
É por isto que somos todos instados a pensar e cuidar do que é sim-
ples e comum.
— O que há de comum?
— Sofremos todos da mesma enfermidade e fomos todos curados
pelo mesmo Salvador. Rendamo-lhe pois honra e glória com absoluta
simplicidade pois não temos senão mãos vazias!
É interessante observar que Barth apresenta em termos bastante ob-
jetivos a “aprovação universal” como critério válido para credenciar a
qualidade de nosso “pensamento” ou de nossa conduta. Seria, talvez, o
critério da VOX POPULI, VOX DEI. Seria? No sentido mais amplo,
talvez sim, a sujeição dos sacerdotes de Baal ao seu próprio extermínio:
a adesão pronta da turba ignara e fanatizada pelas “consultas aos astros”
— (haja vista os modernos seguidores de horóscopos, “bio-ritmos” e
coisas semelhantes) talvez não se desse tão prontamente, tão cabalmen-
te, se sacerdotes e povo não estivessem intimamente convencidos de
que Elias estava com a verdade; mesmo quando uma grande massa cla-
ma DELENDA CARTHAGO semelhante ato não será o BEM, se não
contar com a “aprovação de todos”, como jamais foram o bem os turbu-
lentos gritos “Crucifica-o! Crucifica-o!”. Portanto, “meditai sobre aqui-
lo que seja bom à vista de todos!”
É ainda sob a chave SOLI DEO GLORIA que devemos procurar a
inteligência das observações do Autor sobre o celibato, sem dúvida cal-
cadas no capítulo 7 da Segunda Carta aos Coríntios lembrando, todavia,
que as diretrizes do Apóstolo são dadas não ao clero mas à Igreja em
geral, segundo aquilo que ele, particularmente, considera ser o mais acer-
tado — o mais desejável — “por causa da instante necessidade”; em
vista da premente e urgente questão do momento que então vivia a Igre-
ja de Corinto e por extensão, toda cristandade dos primeiros séculos de
nossa era. Notar o cuidado do Apóstolo em destacar e ressaltar dentro
de suas considerações o que é, fundamentalmente, mandamento divino.
SOU DEO GLORIA

731
12, 21 a 13, 7 A Grande Possibilidade Negativa

A GRANDE POSSIBILIDADE NEGATIVA (12, 21-13, 7)


Barth aborda o tema da “sujeição à autoridade” com a franqueza e a
agressividade que lhe são peculiares, contrapondo a ordem à rebelião e vice-versa.
Se até aqui estivemos em guarda com respeito a possível colocação po-
lítica do Autor, podemos agora preparar nosso espírito para depor as armas;
não quer isto dizer que nossos conceitos serão referendados e nossos precon-
ceitos justificados: pelo contrário, quaisquer que sejam nossas simpatias esta-
remos sempre “do lado do mal”.
Se pretendermos ver o BEM na ordem estabelecida erramos pois ela
apenas testifica esse BEM qual parábola e o faz, justamente, em sua péssima
qualidade; é o rebelde que em sua revolta, assume o papel de “ministro de
Deus” para despertar a consciência da autoridade; porém, se entendermos que
o bem está na revolução erramos e agora, talvez, até duplamente, pois seremos
surpreendidos lutando contra Deus de quem a autoridade é ministro e, pior do
que isto, estaremos usurpando os poderes e as atribuições de Deus.
Ambas, autoridade e rebelião, são más, porque ambas são possibilida-
des humanas; todavia, se fora possível que houvesse uma pior, por certo seria a
revolução e isto precisamente porque ela mais se aproxima de Deus; ela quer. a
rigor, que se faça a justiça que o “Deus ausente” não faz ou tarda em fazer; por
isso ela mesma mete mãos à obra e se arvora em vingadora do mal e protetora
dos oprimidos e, assim fazendo, começa por oprimir os outros para, se e quan-
do ela mesma se instalar em autoridade, oprimir todos.
Logicamente é a rebelião que exerce maior atrativo sobre os homens;
apelando ao romantismo (ou ao idealismo) das almas nobres e pelo titanismo
natural à raça ou melhor, não natural mas nela inoculado pela “sabedoria da
morte” que é o discurso da antiga satânica serpente.
A seriedade do Autor, o seu empenho em dizer aquilo e somente aquilo
que lhe parece estar claro na Epístola, a sua ferrenha fidelidade ao que entende
ver na Escritura Sagrada, a absoluta ausência de partidarismo, estão patentes de
modo notório nesta parte da exegese. Talvez desagrade a muitos e até a todos;
talvez dê ocasião a que outros, menos escrupulosos,” o (seu) falar deformem e
com sua voz iludam aos que menos sábios forem” (Rudyard Kipling). Seja
como for a verdade está aí clara, até mesmo para quem não queira ver.
Para servir a Deus é preciso, não raro, desagradar aos homens, O Cristão
há de estar sempre em minoria — é o próprio Barth que o diz, algures — e
desconfie de seu (próprio) “Cristianismo” quem deixar de ser exceção no mundo.
O Autor consegue desagradar a “gregos e troianos”, isto é, à Autoridade
e à Rebelião. Todavia, mais vale obedecer a Deus!”

732
A Grande Possibilidade Negativa 12, 21 a 13, 7

Vs. 12. 21 a 13, 7 Não te deixes vencer do mal, mas vence o mal com o bem!
Toda pessoa sujeite-se às autoridades governamentais pois não há
autoridade que não venha de Deus e os que presentemente a detêm foram
instalados por Deus. Portanto, quem se sublevar contra as autoridades se
opõe à disposição divina. Tais insubordinados, porém, trazem justiça so-
bre si mesmos porque os que dispõem do poder não representam qualquer
susto para os que praticam o bem mas, sim, para os que fazem o mal.
Portanto, se não queres temer a autoridade, faze o bem e encontrarás até
o reconhecimento dela porque ela é serva de Deus, para teu bem. Se, po-
rém, fizeres o mal, então teme pois não traz a espada para aparentar: ela
é serva de Deus para dar cumprimento da ira de Deus contra aqueles que
promovem o mal. Daí a obrigação de nos sujeitarmos — não apenas por
causa da ira mas — por causa da consciência. E por isso que pagais os
impostos: elas [as autoridades) são sacerdotes de Deus investidos para
este único fim
Pagai a todos o que deverdes. A quem imposto, imposto; a quem direi-
tos alfandegários, alfândega; a quem temo!; temor; a quem honra, honra.

[Confrontar com a tradução de Almeida, sem dúvida mais expressiva;


não a transcrevemos em substituição à versão dada pelo Autor para manter a
coerência com as demais transcrições].
Tratamos agora da ordem da vida social (comunitária) cotidiana, que
não deve ser transgredida porque ela é a grande demonstração a favor da ordem
do mundo vindouro.
Para expor e ouvir o que aqui temos a dizer, vamos palmilhar terreno
acaloradamente disputado. Parece-nos pois, que não será inoportuna uma ad-
vertência endereçada a todos que estejam por demais interessados [nessa polê-
mica] e especialmente àqueles que estiverem na expectativa ansiosa de revela-
ções sensacionais. Se este livro cair nas mãos de tais pessoas, que não iniciem
aqui a sua leitura, pois quem não nos acompanhou e entendeu — no todo,
muito menos nos compreenderá agora pelo simples motivo de dizermos o que
dizemos, — nada mais e nada menos.
[A tradução inglesa escreve: “Ficarão embaraçados (intrigados) com
respeito ao motivo pelo qual dizemos o que estamos dizendo e porque não
dizemos mais ou por que não dizemos menos].
O problema que para nós representa o “UM” oculto no “outro” — [isto
é, em nosso próximo], — (problema com que nós defrontamos em sua totalida-
de e na forma a mais aguda possível na figura do “inimigo”,) está concentrado
na inegável realidade da ordem existente.

733
12, 21 a 13, 7 A Grande Possibilidade Negativa

Ora, é certo que o instante em que nos recordamos de Deus [ou em que
com ele nos encontramos], apenas pode ser considerado “eterno” na qualificação
que esse encontro lhe dá; todavia, dentro de nossa temporalidade será sempre
um acidente temporal, com épocas anteriores e posteriores a ele, isto é, ficará
situado entre um passado e um futuro. Semelhantemente, a decisão ética [ou
espiritual] que tomarmos na vida apenas poderá ser “absoluta” na medida em
que se referir a algum evento que já foi suprimido ou que jamais poderá ser
suprimido. [De outra forma será apreciada em termos de coisa passageira —
vale dizer — relativa e já não poderá pretender ser absoluta].
Também é certo que a “descoberta” do UM no outro somente pode
acontecer quando este outro for perfeitamente [identificado], determinado na
realidade concreta da multitude de indivíduos, quando essa realidade repre-
sentar para o indivíduo em particular o grande enigma ético que ele tem de
solucionar.
[Acontece porém que] quando o indivíduo quer renovar os seus pensa-
mentos (12, 2), quando procura meditar seriamente sobre Deus, a ele subme-
tendo as suas ponderações, reconduzindo-as à “origem”, prontamente se lhe
deparam [inúmeras] qualificações do tempo, as decisões críticas “eternas” e
“absolutas”já especificadas e o relacionamento ético da criatura já plenamente
resolvido; o grande enigma lhe é apresentado, já decifrado.
Existe [no mundo] uma pletora de “realidades éticas”, não apenas aque-
las baseadas nos tumultuários experimentos pessoais [isolados e casuais], po-
rém, muito além do mero acaso ou capricho, superabundam as [pressuposi-
ções, afirmações, qualificações e decisões] que procedem das superiores posi-
ções [ou razões] das altas esferas de objetivos específicos — Estado, Direito,
Sociedade, Igreja — que dão à multitude de indivíduos a configuração de tota-
lidade e [que pretendem já haver resolvido o problema ético]; pretendem já
conhecer a resposta à pergunta sobre o que devemos fazer. Com grande desem-
baraço e baseados em argumentos dos mais plausíveis, apresentam a “realida-
de” de suas soluções ou respostas e não apenas “provam” essa realidade como
afirmam que elas representam a ordem e o caminho a seguir que buscávamos
desnecessariamente (por já terem sido encontrados — por eles).
[Estas organizações humanas que não vêem razões para que nos morti-
fiquemos em sacrifício vivo — porquanto não vêem qualquer necessidade de
transformação, antes entendem que já estão impondo a ética de que Deus se
agrada (12, 1-2) ou então, porque simplesmente revogaram a “ética divina” e
implantaram a sua própria — estas organizações são “as autoridades instituí-
das”]; elas exigem reconhecimento e obediência e temos de nos avir com elas,
quer queiramos reconhecê-las e obedecê-las, quer as queiramos rejeitar.

734
A Grande Possibilidade Negativa 12, 21 a 13, 7

Se optarmos pela obediência então estamos, evidentemente, aceitando a


legalidade da ordem vigente; se optarmos pela rejeição então claramente esco-
lhemos a revolução. O importante, porém, é que nossa opção seja feita como
demonstração para a honra de Deus.
[De nossa parte] não elegeremos a aceitação conforme os mais afoitos
— ou melhor — conforme os leitores “contra-revolucionários” possam desejar
(pois todos tomam partido), nem tampouco decidiremos pela rejeição — que
não poucos dos outros leitores da “Carta aos Romanos”, intimamente espera-
vam constatar — porém, pela negação desta segunda possibilidade [o que, em
princípio, não implica em aprovação da “autoridade constituída” embora pres-
suponha a sujeição a ela].
(Por que escolhemos esta alternativa?
Isso vamos demonstrar já!)
Dizemos NÃO à revolução; também já dissemos, implicitamente, NÃO
à ordem instituída, à legalidade — e temos razões para dizê-lo explicitamente,
(peremptoriamente).
Aqui estamos tratando da grande possibilidade negativa! Grande por-
que esta demonstração [em honra e para a honra de Deus] não se refere APE-
NAS a determinados atos e atitudes de nosso próximo mas diz respeito ao com-
portamento dentro da coletividade com relação à pluralidade dos indivíduos
que, por sua vez, tem também a configuração de totalidade. A possibilidade é
negativa porque o motivo e o sentido dessa demonstração, verdadeiramente,
não estão na idéia de que o “Estado tenha de ser, necessariamente, admitido
entre as forças moralizadoras” (Juelicher) ou então, na pressuposição de que
“todo poder público é exaltado pela sua origem divina” (Wernle) mas está no
ataque desferido ao próprio indivíduo, isto é, à sua “cogitação pelas coisas que
estão no alto” (12, 16), [à preocupação que os homens têm com as coisas que
lhes podem trazer poder, honra e fama], na sua petulância de Prometeu.
Não estamos interessados nas organizações (leis e disciplina) humanas
— [ou das “autoridades seculares”, conforme escreve a tradução inglesa] —
nem tampouco pretendemos promover [ou defender] esta ou aquela conduta
individual em relação a tais ordenanças [regulamentos e determinações] —
(como por exemplo “os deveres do cidadão”, segundo Juelicher) mas o nosso
empenho é em não quebrar essa ordem existente, isto é, estamos interessados
em que o indivíduo não se porte contra a ordem [que a autoridade representa].
E o revolucionário que se tem aqui sob a mira, para tirar-lhe das mãos o princí-
pio [a base ou o pretexto] para [justificar] a revolução e isto, ironicamente, para
fins de ensino, conselho, sem nenhum interesse material, [político, social] ou
preconceito!

735
12, 21 A Grande Possibilidade Negativa

— Por que justamente o revolucionário?


Esta pergunta é perfeitamente justificável e cabível à vista da agressiva
periculosidade dos reacionários.
A estas alturas o “comboio dialético” está anormalmente penso para o
lado de fora da curva e temos de nos acautelar com o baricentro do sentido
textual de nossas palavras para que não descarrilemos.
— Portanto, respondemos [que nos dirigimos especialmente aos revo-
lucionários] porque é muito pouco provável que alguém se torne reacionário,
tendo por base a Epístola aos Romanos. O que é mais fácil de acontecer, a
ameaça que está mais à mão, é evidentemente a hibridez que possa resultar
mediante a confusão das carências que a Epístola apresenta, com as possibili-
dades que os homens julgam ter para resolver as coisas por suas próprias mãos
[isto é] entendendo que o desassossego, a indagação, a renúncia e tudo mais
que [na Epístola] tem a semelhança da morte e pelo que o Cristianismo tem, de
fato, decidida preferência (12, 16). possa ser (atingido. atendido e) resolvido
mediante atitudes, métodos [e ações] humanas no gigantismo da derrubada,
[da revolução e da anarquia], essa titânica pretensão dos homens de [em si e
por si mesmos] assegurarem a renovação e a transformação de valores.
É preciso que se diga que o revolucionário em seu titanismo, justamente
por estar, em sua origem, tão mais próximo da verdade, é tanto mais perigoso e
mais ateu que o reacionário.
Portanto, podemos dizer que, em qualquer hipótese, o reacionário repre-
senta o perigo minúsculo porém, seu irmão VERMELHO o maiúsculo. Por isso,
detemo-nos no perigo grande aplicando nossos esforços, com toda solicitude,
para trazer o revolucionário aos trilhos (como sacrifício especialmente digno!).
“Não te deixes vencer do mal mas vence o mal com o bem”.
Toda e qualquer “ordem existente” apresenta-nos a questão da vitória
do bem sobre o mal muito mais profundamente do que o problema do “inimi-
go” (12, 19-20).
Em que há de a ordem já estabelecida, já encontrada, impressionar aos
que buscam a ordem divina, senão como a triunfante materialização da injusti-
ça? O que é a ordem estabelecida senão a nova apologia e o refortalecimento da
oposição da criatura ao Criador’? [O que fala autoridade constituída segundo o
“presente século” senão buscar meios e métodos] para assegurar o curso nor-
mal do mundo contra a intranqüilidade que lhe acena de todos os lados ante a
grande dubiedade de suas bases [e seus fundamentos]? (Acaso não são as “au-
toridades”) É uma conspiração dos excessivamente muitos contra o indivíduo
que fala, — e só pode falar — de lá onde a pai. a sabedoria e o poder dos muitos
chega ao fim?

736
A Grande Possibilidade Negativa 12, 21

— Ordem! O que é a ordem estabelecida?


— Significa que a criatura, de forma dissimulada [ou hipocritamente],
entrou em paz consigo mesma; que o covarde pode, ainda uma vez, colocar-se
em lugar seguro ante o mistério de sua existência; que o tolo (ou ingênuo)
pode, ainda uma vez, mendigar a prorrogação da execução de sua sentença de
morte por mais um quarto de hora.
Não é a má qualidade da ordem estabelecida nem é a sua maior ou me-
nor deterioração que tem originado as acusações que lhe são atiradas desde o
Apocalipse de João até Nietzsche desde os anabatistas até aos anarquistas mas,
é a própria existência dessa ordem. E por ela que alguns podem impor o seu
direito superior a alguém; podem regular, praticamente, a totalidade da conduta
do indivíduo e até dar-lhe atribuições específicas em determinadas faixas da
vida. Para tanto, estribam-se em direitos fictícios que transformam em realida-
de, revestindo-os com nuvens de prepotência, aliás a única realidade em tais
direitos; nessa prepotência passam a exigir obediência e até sacrifícios, como
se fossem o próprio poder divino. Falam de maneira já previamente ajustada
como se fora a expressão da vontade do próprio “UM” [do próprio Deus], que
estivesse a manifestar-se pelos lábios dessa maioria.
Todavia. (ainda que esses “alguns” representassem a mais absoluta mai-
oria democrática — a de todos contra um!), essa pretensão de falar em nome da
comunidade, a pretensão de que eventual pacto ou arranjo social, inteiramente
fortuito, casual, seja aceito como esteio sólido e seguro na luta pela existência
e seja exaltado como sendo a paz que todos almejam e que todos devem respei-
tar, é a lesão, a chaga, que qualquer ordem constituída, por melhor que seja,
inflige na consciência sensível à justiça. Esta chaga é a transcendentalidade de
toda “ordem” que seja essencialmente imanente: “SUMUM IUS, SUMA
INIURIA”. Ainda que tal justiça tomasse a forma de teocracia, a forma de
capacidade espiritual superior efetivada por alguma Igreja ideal (por exemplo,
a Igreja de Calvino — [a Presbiteriana.] — que em apresentação melhorada
fosse expandida em Igreja da Liga das Nações — [ou modernamente na Igreja
das Nações Unidas.], da qual se acercassem e em que confiassem todos os
povos da terra: até esta [aparentemente a] mais alta justiça, seria a mais alta
injustiça. Também este sonho terminará, necessariamente, lá onde Satanás se
aproxima de Jesus e lhe oferece os remos deste mundo; termina no Grande
Inquisidor de Dostoiewsky.
A criatura humana não tem o direito de ter direitos objetivos contra seu
semelhante e quanto maior for a aparência da objetividade da qual ela se sabe
cercar, tanto maior é a injustiça que ela inflige no “outro” porquanto este “ou-
tro” espera pela justiça daquele que é “UM”.

737
12, 21 A Grande Possibilidade Negativa

Todavia, quando e onde a justiça de muitos — por maior que fosse o seu
número — seria a justiça desse “UM”? Onde e quando não foi esse direito “dos
muitos” obtido com subterfúgios ou, simplesmente, usurpado? Qual a legalida-
de que não seja ilegal em sua origem? Qual a autoridade que não estabelece
essa sua autoridade, na tirania?
Existem deficiências na ordem estabelecida que claramente indicam ser
ela má e, no indomável impulso pela liberdade, bons e maus refugam as alge-
mas que o “sistema”, quiçá com muito boas intenções, quer aplicar; de certa
forma percebemos que as razões dos muitos são quiméricas e que este tolhimento
que nos impõem não é justificável.
O conhecimento do mal que existe na ordem estabelecida, do mal que
subsiste nela e que ela sustenta, gera o revolucionário, a pessoa que pensa li-
vrar-se do mal e se dispõe a combatê-lo e a extirpá-lo, isto é, dispõe-se a remo-
ver a situação existente que vê como sendo a corporificação da injustiça para,
em seu lugar, erigir ordem nova e justa.
É um plano, por si mesmo, convincente, ao qual dificilmente podere-
mos negar nossa colaboração, aliás, em coerência com nossa notória conduta
anterior, quando nos foi difícil não dar largas à inimizade ao nosso inimigo ou,
quando entramos em conflito com nosso semelhante (12, 19).
Contudo, é precisamente ao revolucionário que precisa ser dito que,
quando ele se entrega a essa cogitação ele está sendo “vencido pelo mal”. (Não
se trata aqui do revolucionário que recorre ao mais do que proibido derrama-
mento de sangue. Aliás, a atividade revolucionária não se inicia com a violên-
cia sanguinária mas pelos secretos e venenosos ressentimentos contra o siste-
ma” existente que alguns tanto mais cultivam e saboreiam quanto mais abomi-
nam a violência!).
O revolucionário se esquece de que ele não é o “UM”; ele se esquece de
que ele não é o “sujeito” [o autor, o agente] dessa liberdade pela qual tanto
anseia; ele não é o Cristo que se defronta com o inquisidor mas é o próprio
inquisidor com quem Cristo se defronta.
O revolucionário faz, também, uma reivindicação que lhe é defesa: faz
da justiça (do direito) um objeto. Também ele, com “sua razão” passa por
cima de seus semelhantes; também ele usurpa uma posição que não é dele,
que não lhe deu respeito. Também ele visa a instalar uma legalidade que é
ilegal em sua origem, uma autoridade que não tardará muito a revelar seu
verdadeiro caráter tirano — conforme com terror o verificamos no bolchevismo
e que poderíamos mostrar em acontecimentos muito mais espirituais — [por
exemplo, no fanatismo da própria Igreja, tão bem exemplificado na “Grande
Inquisição”].

738
A Grande Possibilidade Negativa 12, 21

Qual o ser humano que teria [ou tem o direito de apresentar ou represen-
tar algo NOVO, novos tempos, — mundo novo ou até, algum “novo espírito”?
Acaso as coisas novas não se originam das coisas existentes, na medida em que
vão sendo armadas pelos homens? E essa “coisa nova” não passa a ser coisa já
existente no mesmo instante em que é engendrada?
Quem há que, ao criar o que é NOVO não esteja ele próprio (ele!) crian-
do o MAL? Acaso a coisa antiga que ele considera como sendo o mal e quer
substituir, não foi também inventada como coisa nova e, por isso mesmo, é ela
o mal?
O Revolucionário é mais “vencido pelo mal” do que o Conservador e
isto porque, com sua negação, ele se coloca terrivelmente próximo de Deus.
[Ele quer tomar o lugar de Deus, quer fazer a justiça por suas próprias mãos...].
Esta é a sua tragédia; o mal não é resposta [ou solução] para o mal. A consciên-
cia ferida pela ordem existente não se restabelece com a destruição dessa or-
dem; “Vence o mal com o bem!”
O que mais pode significar e indicar esta possibilidade que nos resta [de
vencer o mal com o bem] senão o fim, a supressão, de todo triunfo pessoal,
quer seja na ordem estabelecida, quer seja na revolução? E de que forma have-
ria isto de se realizar senão em misteriosa abstenção — [em “não-agir”] justa-
mente onde e quando, como seres humanos, sentimos o mais forte apelo à ação?
O Revolucionário engana-se; a revolução que ele quer é a possibilidade
impossível [para ele], pois é a implantação do Reino de Deus que se faz medi-
ante o perdão dos pecados e a ressurreição dos mortos. Esta é a resposta à
ofensa que caracteriza a ordem existente; [esta é] a verdadeira revolução e seu
vencedor é Jesus Cristo! Todavia, o revolucionário faz outra revolução, [aquela
em que só ele — aliás o próprio mal — pode ser vencedor!]. Ele faz a revolução
segundo a alternativa [que lhe é] possível, a revolução do ódio, da insatisfação,
do levante e da destruição. Esta revolução não é melhor, porém pior do que a
satisfação, a saciedade, a segurança e a conformação que se lhe opõem na or-
dem estabelecida porque na prevalência desta Deus é melhor compreendido
embora seja também pior seguido.
O Revolucionário imagina a revolução que estabeleça a ordem verda-
deira e faz a outra, que é a verdadeira reação. (Aliás, dá-se o mesmo, [MUTATIS
MUTANDIS] com o legalista que, também ele vencido pelo mal imagina im-
por a legalidade da qual resulte a verdadeira revolução — [aquela da qual só
Cristo é o vencedor] — no entanto instiga a outra preparando o caminho para a
revolta do ódio e da destruição).
Aquilo que o homem quer é sempre julgado por aquilo que ele faz
(7, 15 e 9).

739
12, 21 a 13, 1 A Grande Possibilidade Negativa

Se o Revolucionário reconhecer este tribunal, então será arrancado das


razões visíveis e tão bem fundamentadas de sua atividade revolucionária e será
remetido à invisibilidade da obra divina. Porém de que modo há de ele, agora,
demonstrar a favor da obra de Deus senão deixando morrer o revolucionário
que nele há no mesmo ponto onde nasceu, isto é, quando tomou conhecimento
[e se convenceu] do mal que existe no “sistema” existente’?
Como poderia ele agir mais drasticamente do que voltando exatamente
desse ponto à fonte original da “abstenção” — [do “não-agir”] — isto é, não
mais alimentar rancores, não dar lugar a ira, não agredir, não destruir?
Este retorno é a ética de VENCER O MAL COM O BEM.
Este preceito não diz uma única palavra a favor da ordem existente po-
rém diz um número infinito delas contra quem for seu inimigo.
Deus quer ser reconhecido [e aceito] como o vencedor da injustiça da
ordem existente: isto é o que a exortação significa e este é também o sentido do
Capítulo 13 desta Epístola.
“Toda pessoa se sujeite às presentes autoridades governamentais”.
[Almeida escreve: Todo homem esteja sujeito às autoridades superiores].
“Sujeitar-se” é conceito ético puramente negativo conforme, aliás, se
pode sempre verificar na prática. Sujeitar-se significa, recuar, desviar, não se
rebelar, não destruir. Aquele que se rebelou contra a ordem existente, que volte
e não seja rebelde.
— Por que não?
— Porque essa luta em que o rebelde se envolve não resulta do conflito
entre ele e a “autoridade governamental” mas é [a rigor], a luta entre o bem e o
mal.
Ora, mesmo a mais radical das revoluções apenas pode opor à ordem
existente aquilo que já existe; (mas, se o que existe é mau, como pode a revolu-
ção avocar a si o direito de representar o “bem”, servindo-se do que é mau?)
É preciso que se tenha sempre presente que toda revolução, por mais
profunda e decisiva que seja — e isto se aplica também as revoluções chama-
das “espirituais” ou “pacificas” — não passa de REVOLTA, [isto é, de movi-
mento intestino de agitação e modificação das disposições “nacionais” usando
os recursos humanos, materiais e quiçá intelectuais e morais disponíveis quer
dizer, EXISTENTES].
(Se admitimos como certo, por ser lógico e natural, que toda “situação
existente” tenha em si algum bem (por mínimo que seja) e, semelhantemente,
toda “revolução”, traga em seu bojo alguma injustiça (ou algum mal — ainda
que seja diminuto), então veremos logo que], a revolução vitoriosa dá vigor à
situação anteriormente existente fazendo sobressair o que então havia de certo

740
A Grande Possibilidade Negativa 13, 1

[e se enfraquece com seus próprios erros] sem tirar qualquer benefício das
falhas da situação derrubada — [das quais é feita “tábua rasa” pois, “afinal”, foi
por causa delas que se admitiu a revolução!].
É por isto que a capacidade de resistência [ou melhor, de sobrevivência]
da situação deposta não se quebra com a vitória da revolução porém subsiste
tomando novas formas e se tornando, assim, ainda mais perigosa [quiçá fomen-
tando, em seu rancor, nova revolução ...].
Enquanto a “ordem deposta” tende a se reorganizar e fortalecer, a ten-
dência da revolução segue em sentido contrário pois suas energias se diluem;
[ante as tarefas que a nova situação lhe impõe o prestígio se desgasta no atrito
constante dos interesses em choque] e a ação revolucionária se torna inócua.
Embora, na prática, a revolução sempre se proponha a ser “o julgamen-
to” da situação que ela combateu, na realidade ela jamais chega a essa situação
como rebelde, pois no instante em que a rebelião vencer, o revoltoso muda de
posição; deixa de ser rebelde para ser “ordem estabelecida”. (Lembremo-nos
do que] a luta em que o rebelde imprudentemente se mete é o conflito entre a
ordem divina e a ordem existente, [conflito esse do qual o revolucionário passa
a participar “do lado de cá” a partir do momento em que a rebelião passar a
dominar a situação].
Se o revolucionário “alçar as mãos, em ânimo tranqüilo, aos céus para
trazer à terra os seus ETERNOS DIREITOS que estão desfraldados lá no alto,
inalienáveis e intocáveis como as próprias estrelas”, (Schiller) então ele com-
prova com excelente propriedade que “o poder absoluto tem limites” todavia, o
seu gesto confiante para os céus de maneira alguma fixará esse limite pois,
ainda que pelo julgamento da História e segundo sua sentença [na temporalidade]
o rebelde tiver absoluta e plena razão, ele esta absolutamente errado segundo o
juízo de Deus.
Isto se comprova pelos resultados [de todas revoluções de que a História
dá notícia]: “A situação original, natural, antiga], volta sempre quando o ho-
mem se opõe a seu semelhante”.
A interrogação que Deus apresenta à “ordem existente”, o seu julga-
mento e a sua sentença — [que podem dar a essa ordem o sentido da verdadeira
revolução] — ficam necessariamente [prejudicados]. suspensos. [pospostos]
quando os homens passam a agir no lugar de Deus (isto é, quando a Rebelião
ou a Legalidade, cada uma a seu modo. quer mudar a situação existente, qual
quer que seja a modalidade ou a organização em que subsista, procurando in-
verter sua qualificação. Todavia, somente a invisível ação que vem de Deus
pode modificar — e efetivamente mudar — a qualificação dos indivíduos e das
organizações. Por força dessa misteriosa operação divina aquilo que a iniciativa

741
13, 1 A Grande Possibilidade Negativa

humana remodelar ou reformar será necessariamente desfeito para ser refeito


por Deus de modo que perante ele toda qualificação que os homens derem às
suas organizações será nula de direito e de fato e a situação retomará sempre a
sua condição original.
Para representar o que ocorre com essa mudança de qualificações va-
mos nos valer de uma analogia matemática, simples].
Sejam,
a, b, c, d, ...

a situação existente: Estado, Igreja, Direito, Sociedade, Família, etc.,


que, em sua totalidade, pode ser expressa pela soma
(+ a + b + c + d + ...)

A sua supressão pela ordem divina [ou a sua transformação], pode ser
representada colocando-se o sinal negativo na frente do parêntese.
- (+ a + b + c + d + ...)

É evidente que a mais cabal das revoluções mesmo que seja a mais ab-
solutamente radical em seu sentido histórico — [por exemplo as modernas re-
voluções culturais] —jamais pode ter o efeito abrangente e definitivo desse
sinal negativo aposto ao parêntese, [pois não poderá modificar todas as coisas
de forma definitiva e total], conforme é o caso do poder divino; [o que a revo-
lução, talvez, possa fazer] será, quando muito, mudar as características peculi-
ares de grupos isolados, o que poderíamos indicar matematicamente trocando
os sinais individuais dos termos.
- a, - b, - c, - d. - ...

ora, se novamente aplicarmos o “operador” divino teremos

- (- a, - b, - c, - d. - ...)

isto é, estaremos novamente na situação original

(+ a + b + c + d + ...)

Portanto, podemos dizer que, assim como nesse polinômio o sinal nega-
tivo do parêntese recambia, de fato, os sinais de todos termos individuais às

742
A Grande Possibilidade Negativa 13, 1

respectivas características primitivas, assim também... para nossa surpresa, a


característica divina repõe a sociedade e seus componentes na sua qualidade
natural.
Em outras palavras: a posição ou a situação dos homens no seu relacio-
namento com Deus volta sempre a ser o que era antigamente independente-
mente das medidas, [reformas e transações] que os “revolucionários” tenham
implantado [ou tentado implantar].
O Legalista comete logicamente, erro idêntico, dando conscientemen-
te o sinal positivo a cada um dos termos individuais [e nesta operação consci-
ente, pratica a usurpação que o abuso da presunção da legalidade envolve: o
titanismo! É justamente nesta prática consciente que Deus é “pior seguido”
embora “melhor compreendido”, conforme o Autor o diz na parte final da
exegese de 12, 21].
O sinal negativo divino, aposto ao parêntese, é o juízo divino que cance-
la, suprime, elimina todo autoconvencimento, todo fundamentalismo e toda
pretensão a “direitos humanos” [perante Deus]; [este sinal é o juízo de Deus
que] extermina todos principados, poderes e potestades, como tais.
“Que toda pessoa se sujeite!”, significa que cada pessoa deve considerar
o quanto é falsa, em si mesma, a avaliação humana; não podemos aplicar o
sinal negativo decisivo; apenas podemos tornar patente a nós mesmos o quanto
este sinal aposto por Deus invalida aquilo que — [segundo nosso conceito hu-
mano] — consideramos como sendo positivo ou negativo.
Precisamos admitir francamente que não podemos solapar mais energi-
camente a ordem existente do que submetendo-nos a ela sem quaisquer ilusões
porquanto o Estado, a Igreja, o Direito, a Família, a Ciência “conveniente”,
etc., vivem do entusiasmo [quiçá da “demagogia”] dos capelães que os alimen-
tam com toda sorte de asneiras festivas, reabastecendo a si mesmos e a crendice
do povo; tire-se-lhes a emoção e certamente morrerão à mingua! Todavia, o
“contra-vapor” de uma revolução alimenta e dá novo sustento a essa emoção.
A “NÃO-REVOLUÇAO” é a melhor preparação para a verdadeira re-
volução. todavia, isto não é uma receita: “submeter-se” é, em seu melhor senti-
do [humano], um procedimento inócuo. Somente à pessoa obediente a Deus
pode ocorrer a idéia [dessa submissão] que somente pode ter sentido nessa
obediência divina porque somente pode realmente sujeitar-se à autoridade quem
se houver encontrado com Deus [e se houver sujeitado a ele!]; esse tal não pode
deixar de dar lugar à justiça divina o que faz sem cogitar, — nem pública nem
intimamente, — se esta justiça efetivamente se faz, ou não. Daí ocorre que “não
há autoridade que não venha de Deus e os que presentemente a detêm, foram
instalados por Deus”.

743
13, 1 A Grande Possibilidade Negativa

À primeira vista pode parecer-nos que esta assertiva representa a confir-


mação da ordem existente o que, porém, estaria em conflito com a recomenda-
ção de que “toda pessoa se sujeite à autoridade”; [isto é, não podemos preten-
der deduzir dessa afirmação que a autoridade, em si mesma, (como pessoa)
seja de origem divina] pois é claro que “Deus” não pode ter, aqui, o sentido de
inequívoca realidade metafísica — o que seria uma idéia estranha à Epístola,
introduzida subitamente em oposição ao sentido que lhe é atribuído cm todo
restante da carta.
[Aliás], de que valeria guardar absoluta fidelidade ao [que “nos pare-
ce” estar] expresso, segundo a letra do texto, se com isto faiscássemos o sen-
tido [daquilo que realmente está escrito]? (O texto não diz que a autoridade é
divina mas) a “autoridade” é de Deus; [e parte do sistema cuja existência
Deus permite como existe, por exemplo, a Igreja, a Família; este Deus não
toma formas humanas nem delega poderes a homem algum]; este Deus é o
Senhor, o Deus desconhecido e recôndito, o Criador e o Redentor; é o Deus
que elege e rejeita; a “autoridade” é dele, e o que existe foi por ele constituí-
do. [O texto] significa que esta “grandeza” que designamos como “autorida-
de” — como qualquer outra grandeza humana, temporal, material, — é medi-
da em Deus; Deus é o seu princípio e o seu fim, sua justificação e o seu juízo,
seu SIM e seu NÃO.
Se assumirmos a posição [de oposição à ordem constituída] conforme é
a do revolucionário — (e esta é evidentemente a aproximação que a Epístola
aos Romanos dá ao tema, conforme inequivocamente se vê pelo encadeamento
do texto que cita a “autoridade constituída” imediatamente após mencionar o
inimigo [12, 20] e também pela “introdução que faz do tema, dizendo “vencei
o mal com o bem” [12, 21], — então chegaremos depressa à conclusão de que
a “ordem existente” — a “autoridade” constituída] — é realmente má e somen-
te má perante Deus, se nele ela for medida.
Somente Deus é o grande sinal negativo que, antecedendo o parêntese,
pode suprimir [e desmascarar] a falsa positividade dos termos que o polinômio
aglomera; isto é absolutamente certo e os “idealistas”, [os “românticos”, no
original] precisam saber que as atividades [ou as organizações] deste mundo só
podem ter características positivas genuínas se forem transformadas Pelo gran-
de operador “negativo” divino.
De nossa parte não nos é lícito tomar posse do padrão divino e passar a
agir como se Deus estivesse operando por nosso intermédio. Por isso, a revolu-
ção precisa renunciar também à “flor azul” do romantismo pois com relação a
Deus o mal não pode servir de motivo para nossa queixa (como não pode, o
bem, ser motivo para nossa glorificação!).

744
A Grande Possibilidade Negativa 13, 1-2

Como reação e resposta ao mal que encontramos na ordem vigente e


que tão diretamente nos atinge e fere, podemos apenas curvar-nos perante este
Deus que é tão maravilhosamente extraordinário e superior a todos os deuses
porquanto, se Deus for o juiz, quem contenderá com ele? E sendo assim, onde
não se fará justiça? Onde deixará o mal de testificar plenamente o BEM? Onde
e quando deixaria a realidade — [a situação existente e a autoridade constituí-
da] de ser referência plena ao que, originalmente, é imaterial? Como não have-
ria de o mundo existente ser plena parábola do não existente. [do mundo vin-
douro]? “Pois a criação está sujeita à vaidade, não voluntariamente mas por
causa daquele que a sujeitou” (8, 20).
“O existente cai e desaparece como coisa existente”. Este aforismo é
verdadeiro e o revolucionário parte dessa premissa, todavia ele deve [ou deve-
ria] lembrar-se de que é perante Deus que a situação existente desaparece e cai.
Se [à primeira vista] é certo que essa verdade justifica o sentimento de revolta,
por Outro lado [e em seu significado mais profundo] ela conclama o revoluci-
onário a abster-se de incitar [e emitir] julgamento; convida-o a não tomar o
combate em suas mãos mas ater-se ao fato de que o mal testifica o BEM; que na
verdade como sistema estabelecido, este está necessariamente em oposição à
ordem, da qual dá testemunho e a qual representa, não voluntariamente porém,
como sombra projetada, como silhueta, isto é, [uma realidade] “estabelecida
por Deus” — por Deus, em sua qualidade de Todo-poderoso — que estabele-
ceu a autoridade existente nesta sua condição determinada e definida que “ago-
ra” se torna problema para ele, o rebelde.
O fato de a ordem existente ter sido [e ser] instituída por Deus, é decisi-
vo para que a rebelião nos seja mais desvantajosa do que a sujeição. Na melhor
das hipóteses, este fato tira-nos o vapor, a emoção, o entusiasmo, a “vocação”
para apelar às “coisas que são do alto”, isto é, [a realidade de que a ordem
existente foi instituída por Deus]despoja-nos de tudo quanto nos e indispensá-
vel para “levantarmos as mãos confiantes aos céus”: “A mim pertence a vin-
gança; eu retribuirei.” (12, 19). Nenhuma outra condição nos é imposta senão a
de que não nos compete providenciar (ou fazer) justiça; [em outras palavras], a
característica negativa [do nosso exemplo matemático], aposta por Deus ao
parêntese que aglomera as parcelas diversas da sociedade humana, isto é, da
ordem existente, não pode ser atribuída por nós mediante qualificações anteci-
padas, [gerais ou parciais] que nos pareçam adequadas [porque assim proce-
dendo estaremos usurpando a prerrogativa divina],
[As “autoridades existentes”] que acaso se sentirem fortalecidas com o
que acabamos de dizer lembrem-se que a “revolução instalada” também é o
mal que deve testificar o BEM para que também ela, [por seus representantes

745
13, 1-2 A Grande Possibilidade Negativa

agora na qualidade de autoridade constituída] continue sem justificação e sem


romantismo, quiçá sem a auréola do idealismo e já despojada das pretensões do
titanismo] se transforme [ou se converta] e... deixe de ser autoridade. Quem se
subleva contra as autoridades se opõe à disposição divina. Tais insubordinados,
porém. trazem justiça sobre si mesmos.
[Almeida escreve: “De modo que aquele que se opõe à autoridade, resiste
à ordenação de Deus; e os que resistem trarão sobre si mesmos condenação”].
A revolução está sujeita a um prejulgamento, o que não acontece com a
“ordem existente”. Este prejulgamento se origina do fato de que a verdadeira
revolução vem de Deus e não pela rebelião dos homens; ao rebelde, a “autori-
dade” opõe o direito soberano do levante divino; é justamente esta autoridade
constituída que ensina ao rebelde que o objetivo (o sentido) do levante divino é
a ordem e não a desordem; é por meio dela que o rebelde precisa descobrir que
a “descoberta” (o encontro] do UM, no próximo, não se consegue de maneira
alguma por meio de atitudes e providências humanas; é pela autoridade consti-
tuída que o revolucionário deve [ser levado a] praticar a humildade sem a qual
a sua noção do mal, na ordem existente, é vã concocção. Se o rebelde agir de
alguma outra forma, se ele se revoltar contra a autoridade como se ele já hou-
vesse descoberto o UM no seu próximo, [quiçá como se a defesa dos coitados
e oprimidos fosse agora dever e privilegio dele], como se ele fosse algo como o
introdutor de “nova criatura” [no palco da vivência humana], então ele não
somente ignora [e desrespeita] a autoridade como estabelecida por Deus, mas
desconsidera também o quanto essa autoridade está justificada perante ele des-
de o instante em que ele se arrogou o direito de rebelar-se.
O direito a empunhar a espada da justiça a que se arvora o rebelde não
se justifica — e nem o ato é justificável — pelo fato de a autoridade o enfrentar
com essa espada; ela é foro da autoridade mas não o direito do rebelde.
Por maior que fosse [ou que seja] a razão do rebelde, ele não a tem,
objetivamente; no instante em que ele vai além do protesto é preciso que se
proteste contra ele: “naquilo que julgas aos outros a ti mesmo te condenas, pois
praticas as próprias coisas que condenas”. (12, 1). Entre os homens, a atividade
do revoltoso é possível — (tão possível, por exemplo, como a da Guarda Branca.)
— mas absolutamente impossível perante Deus, — (como também o é, a dessa
Guarda).
[A tradução inglesa explica a origem da referência à “Guarda Branca”,
que o Autor faz. Seria a “contra-revolução” russa isto é, a revolução “branca”
contra a “vermelha” que se instalou vitoriosa. Em outras palavras, parece-nos
que Barth quer deixar bem claro que não fala desta ou daquela revolução, mas
de TODA e QUALQUER rebelião contra a ordem constituída; é por isto que o

746
A Grande Possibilidade Negativa 13, 2-4

Autor deixa bem patente que a revolução, uma vez implantada, uma vez vitori-
osa, passa a ser, IPSO FACTO, ordem estabelecida].
Por trás da ordem existente — (que também pode ser a ordem recém-
instalada) — está Deus, ele, o Juiz e a Justiça!
A oposição — (e existe também oposição da direita.), é a oposição con-
tra Deus.
Vencido pelo mal o homem se entrega à esfera onde o mal passa a ser o
tribunal do próprio mal e então, já não pode, sequer, admirar-se de seu destino.
“Porque os que dispõem do poder não representam qualquer susto para
os que praticam o bem mas, sim, para os que fazem o mal. Portanto, se não
queres temer a autoridade, faze o bem e encontrarás até o reconhecimento dela
porque ela é serva de Deus para teu bem”.
O revolucionário [ou a revolta] toma alento quando a pessoa sente ferida
sua consciência de justiça; quando a pressão que “os muitos”, — o Estado, a
Igreja, a Sociedade, — exercem sobre os indivíduos, se lhe afigura como sendo o
MAL; quando [no indivíduo ou em parcela maior ou menor da sociedade], surge
o horror ante esse super-poder da justiça que [sempre] leva a palma da vitória, na
ordem existente. Todavia, até que ponto se justifica esse horror? Evidentemente
não o é na medida em que nosso procedimento está [ou estiver] no mesmo plano
de ação daqueles que enfeixam o poder em suas mãos, daqueles que estão “exer-
cendo a justiça” mas, sê-lo-á na medida em que opusermos ao mal o próprio mal
abrigado em nossos pensamentos, palavras e atos: quando opusermos a quem
designamos como autoridade, aquilo que classificamos como liberdade; quando
opusermos à legalidade, a ilegalidade; à ordem relativa, a relativa desordem; ao
antiquado, a novidade; quando à dureza respondermos com dureza!
Nesta selva humana, a única que conhecemos e em que atacamos e feri-
mos nossos semelhantes, precisamos estar prontos a receber golpes e a sermos
atacados e feridos; nela se sucedem as pressões e contrapressões quais as espirais
de uma rosca sem fim. E nessa arena que “os que detém o poder” precisam
suscitar o “horror” do revolucionário, dar motivo perene ao desapontamento; à
irritação, à preocupação, ao temor, ao amargor e à resistência — [porquanto o
revolucionário representa “tudo isto” à autoridade]. Este horror é compreensível,
pois ele nada mais é do que o temor que a criatura sente ante sua própria malda-
de, que envolve e abrange toda sua conduta: é o medo de sua própria existência.
[Em outras palavras, este horror] é o pavor do juízo divino sob qual está toda
criatura, tanto na ordem existente como na rebelião que contra ela se levanta.
Este horror [ou pavor] é o resultado do mau procedimento humano pos-
to sob a luz do julgamento divino; e qual seria a conduta humana que não fosse
[ou não seja] má?

747
13, 3-4 A Grande Possibilidade Negativa

Todavia, é para isto que a autoridade foi “instituída”. É por isto que ela
não representa qualquer “susto” para quem procede bem. E como poderia ser
diferente? As autoridades não tem poder onde se faz o bem.
O pensamento é livre mas a liberdade da obra invisível do UM em nós
todos é totalmente diferente; nesta liberdade a criatura [a saber, a “nova criatu-
ra”] não se rebela pois, contra o que se revoltaria ela? Ela não pratica o mal
[“simplesmente”] porque não é subjugada por ele; não é atacável porque não
ataca; não é vulnerável porque não fere. Ela não está lá onde o mal passa a ser
o tribunal do próprio mal e por isto não está sujeita à fatalidade, pois já foi
julgada por Deus e justificada por ele! O que seria a boa obra [dessa nova
criatura] senão esta sua permanência no campo eterno da justiça e da justifica-
ção? No seu modo de ver, o BEM é a supressão da criatura “conforme o presen-
te século”; é a sua fundamentação em Deus; é a abstenção em todas as ações
[de protesto ou de aplicação da justiça a que o “filho deste século” seja instiga-
do por seu romantismo — seu idealismo—, seu zelo ou seu sentimento de
justiça, renúncia essa] pela qual toda conduta e obra se volta à sua origem [em
Deus]. Este “bom procedimento”, que jamais se materializa, não representa
qualquer susto [ou motivo de receio], nem às autoridades nem à rebelião [ou à
anarquia!]; antes pelo contrário: enquanto a pessoa fizer o bem está ela livre
das convulsões que, inevitavelmente, assediam aos que se envolvem nessa luta
de Prometeu, contra (ou a favor!) da ordem existente.
[Quem pratica o BEM], verdadeiramente antevê o final [da providência
divina], além das coisas antepenúltimas que pode [ou poderia] fazer, agindo na
esfera do mal e assim, se torna cada vez menos visível, menos audível, de me-
nor dimensão. [menos perceptível nesse ambiente do qual se afasta]: ele se
liberta de todas emoções, de todas extroversões e de toda sua inquebrantabilidade
— [quiçá de toda dureza de sua cerviz]. Quem assim procede], já não é mais
um deus iracundo em luta com outros deuses mas, torna-se imparcial e encon-
tra até o reconhecimento da autoridade que, sem qualquer suspeita [de, tam-
bém ela, não ser aceitai, se compraz com o cidadão notavelmente pacífico con-
forme lhe parece ser a criatura cujo comportamento, na realidade, significa
apenas a aceitação da justiça de Deus — pela qual [como homem deste século]
tanto tem (ou teria) a opor a essa autoridade — e que, no entanto, prefere silen-
ciar [para dar lugar à ira de Deus!].
É por isto que semelhante indivíduo será de fato um “bom cidadão”
(ainda que por ironia!), pois renuncia a toda parcialidade [todo partidarismo] e
todo romantismo [ou, talvez quixotismo]; tendo ficado, ele mesmo, liberto dos
ídolos [políticos], tal cidadão já não precisa persistir no protesto contra eles:
não precisa preocupar-se permanentemente com a evidente insuficiência das

748
A Grande Possibilidade Negativa 13, 3-4

soluções atuais, da ordem estabelecida e dos meios que a Sociedade (ou a na-
ção ou o Estado) adota.
[Quem pratica o bem] não ignora que a sombra de julgamento que por
toda parte vê, é a sombra da retidão; tal pessoa também não deixa de perceber
o verdadeiro sentido de testemunho e de parábola que caracteriza todas tentati-
vas de purificar a conduta humana.
Contudo, essas tentativas são quase um “PARE!”, bradado ao despotis-
mo humano que, no mínimo, lembra ao sacrifício racional que devemos ofere-
cer a Deus com nossos corpos físicos — (12, 1).
[Nessas tentativas de corrigir a conduta humana] pede-se a obediência
que tem alguma semelhança com a graça divina. [Nessas tentativas] parece
que, de certa forma, a soberania do “UM” se contrapõe ao Eros [à paixão] do
indivíduo e a majestade da comunidade se contrapõe à destruição e à convulsão
das massas; à luta geral pela sobrevivência se contrapõe a sublimidade da paz!
[Quem se sujeita à autoridade] sabe que são extremamente duvidosas
todas tentativas [de consertar a sociedade ou de aperfeiçoar a ordem existente,
pela revolução e] disto não tem a mínima ilusão, ainda que “algumas delas
quase funcionem”. Quem se sujeita às autoridades jamais verá nessas tentativas
qualquer degrau de ascensão [ao bem] antes perseverará [e persistirá] em ver o
bem exclusivamente na incomensurável superioridade de Deus e, — por maio-
res que sejam os sucessos dessas tentativas, — ele verá sempre a negatividade
que representam, não necessariamente naquilo que realizam [ou deixam de re-
alizar] mas naquilo que se propõem a fazer. Todavia, tal pessoa terá, em tudo
isso, a paciência, a visão e o bom senso — (que semelhantes situações permi-
tem, ou melhor, exigem) — de ver o BEM entre o mal e de reconhecer nessas
tentativas a silhueta da configuração de uma situação superior que se lhe opõe,
meditando seriamente nisto e até participando desse protesto como prática e
demonstração que não se pode deixar de fazer.
Assim é que a “autoridade constituída [modernamente, talvez, pudésse-
mos dizer “o sistema”] é “ministro de Deus”. (Todavia, para aqueles que essa
autoridade não inquieta, [não incomoda], não disciplina, [para esses tais] o
“ministro de Deus” passa a ser a Revolução).
A “autoridade constituída” á ministro de Deus no sentido de que, uma
vez reconhecida a negatividade de todas as coisas, estas passam a refletir o
aspecto positivo da realidade imaterial, isto é, de Deus. Então as convulsões
revolucionárias podem ceder o lugar às meditações calmas sobre a Justiça e a
injustiça. Dizemos “calmas” porque as afirmações e queixas [feitas contra o
poder constituído] já não têm razão de ser quando analisamos conscientemente
as razões que estão por trás da luta do BEM contra o MAL. O universalismo e

749
13, 3-4 A Grande Possibilidade Negativa

o humanitarismo honestos [sérios], sabem que nessa luta não se trata do com-
bate entre o Reino de Deus e o Anticristo, — [pois sabem que] sempre onde [e
quando] os homens interagem com seus semelhantes ou se opõem a eles, —
seja no Estado, na Igreja ou na Sociedade, — certamente eles se enfrentarão
[uns com os outros] em seu peculiar tabuleiro de xadrez. (Assim, por exemplo,
a política só é possível [quando a pessoa que se dedicar a ela a considerar]
como jogo de oposições, quando for evidente que não se trata — nem é possí-
vel que se tratasse — de direitos objetivos, quando desaparece o tom absoluto
das teses e contrateses para dar lugar a um tom “relativo-moderado” ou, quiçá,
algo como “relativo-radical”, sem tomar em consideração as reais possibilida-
des [e necessidades] humanas). Contudo, não esqueçamos, nem por um só ins-
tante, que o BEM não é “uma coisa” como, por exemplo, a “moderação”, que a
criatura pudesse transformar em BEM; o “bem é para nos, sempre e de novo, a
indagação que a conscientização crítica e decisiva daquilo que Deus [realmen-
te] é para nós, torna inevitável; é a conscientização de que a ‘sujeição’ somente
contribui para nosso bem na medida em que ela liberta a comunidade de todo
romantismo afastando a idéia de que Deus tem assento na ordem rotineira exis-
tente. [Essa indagação, na realidade, jamais será respondida — segundo este
mundo — e] a pergunta sobre o que é o bom procedimento continua sempre em
aberto.”
[A tradução inglesa escreve: “Para nós o bem há de, sempre, implicar
em indagação. Sujeição, portanto, somente serve ao bem na medida em que
liberta a sociedade humana do romantismo e separa Deus da vida rotineira;
somente na medida em que deixa ‘o bem’ como ‘questão aberta’ mas, de modo
muito vívido, expõe a grande negação e torna inevitável a lembrança crítica”].
(Por outro lado é claro que, muito longe de aqui encontrarem sua confir-
mação, os revolucionários devem tomar a ocasião para meditar sobre o que
aqui foi dito, confrontando tudo com os seus próprios pontos de vista).
“Se, porém, fizeres o mal, então teme, pois não traz a espada para apa-
rentar. Ela [a autoridade] é serva de Deus para dar cumprimento da ira de Deus
contra aqueles que promovem o mal”.
Podemos ignorar a advertência contra a prática do mal e não nos enga-
naremos se admitirmos que constantemente a ignoramos, pois todo passo que
neste mundo dermos está sob a sombra do mal, até mesmo a objetividade [ou a
seriedade] com que acaso praticamos o bem no meio do mal ou então, até no
paciente trabalho de reforma a que porventura nos dediquemos, abstendo-nos
da revolução e nos retraindo; nada disso nos livrará da sombra do mal pois a
totalidade de nossa conduta se completa na aceitação da ordem existente ou na
sua rejeição e de uma ou outra forma, já estamos em erro.

750
A Grande Possibilidade Negativa 13, 3-4

Na realidade, em nossa abstenção somente podemos ter razão, com re-


lação a Deus. Apenas nos resta constatar o que, de fato, todos experimentamos
neste reino de sombras e ouvir a advertência para que não nos adentremos por
demais nesse reino.
Devemos temer o reino das sombras do mal; nele encontraremos inimi-
gos, opositores, invejosos, amigos falsos, companheiros incertos, observadores
maldosos, que se alegrarão com nossos infortúnios. Nesse reino, esperam-nos
os contragolpes, as paralisações, os obstáculos, os logros, os insucessos e as
derrotas em seqüência que bem podemos imaginar; nesse reino existem julga-
mentos, conflitos, erros, confusões e envolvimentos trágicos de toda sorte. Nesse
flutuador não se pode aplicar nenhum empuxo que não gere perigoso contra-
empuxo; não há passo [nem iniciativa] que, de alguma forma, não se volte
contra nós. Não há qualquer ação possível que não nos atraiçoe, em si mesma.
Estamos [inquestionavelmente] no mesmo plano da situação existente
e, com ela, estamos sujeitos ao mesmo julgamento (e isto quer nosso relaciona-
mento com ela seja amistoso ou hostil)!
Temos o nosso lugar fixado, algures, nesse plano, — desde o extremo
da rebelião ao outro extremo da aprovação e precisamos confessar, irremedia-
velmente, que todas posições que nele pudermos [ou quisermos] tomar, são
apenas relativas: quer assaltemos, ataquemos ou façamos a defesa; quer cons-
truamos ou derribemos; quer lutemos ou façamos paz; quer confirmemos ou
neguemos, sempre nos depararemos com um PARE! derradeiro, um último
perigo ameaçador, um pesado castigo final,... por sermos criaturas humanas!
Deus na verdade, responde aos homens à altura de suas transgressões; (e
quando deixamos de ser transgressores?). A transgressão dos anarquistas ele res-
ponde com a “espada da autoridade” e à transgressão dos legalistas com a “espa-
da da revolução”. Todavia, com temor e tremor, devemos ver no fado de uns e
outros, o nosso próprio destino pois, de qualquer forma, a ira de Deus se estende
plenamente sobre todos nós. De qualquer maneira, a espada foi desembainhada
contra nós todos, “não para aparentar” somente, porém para nos golpear. De uma
ou outra forma, [de uma ou outra parte material], todos somos feridos, todos nos
despedaçamos em nossas tentativas de erigir ou de destruir as grandes “possibili-
dades” deste mundo, para nos justificarmos. [É desta justificação] que tratamos,
no mundo; todavia é dela que não podemos, não devemos tratar.
”Daí a obrigação de nos sujeitarmos — não apenas por causa da ira mas,
— por causa da consciência.”
Experimentar a ira de Deus, apenas como sua ira, seria a morte eterna; a
consciência, porém, entende o PARE, ordenado à espada sacada contra nós e
reconhece a Deus na sua ira.

751
13, 4-5 A Grande Possibilidade Negativa

[A consciência] impede-nos de considerar o mal que nos atinge como


repressão ou destino e nos lembra de que nós mesmos praticamos o mal; ela
reconhece a justiça da mão de Deus que nos alcança em nosso trágico destino e
percebe o “ministério” que o mal nos deve prestar, “para nosso bem”. A consciência
nos esclarece sobre o julgamento a que estamos sujeitos, não para nossa vanta-
gem mas para nossa salvação. A consciência transforma o mal que nos ataca não
em motivo (fundamento ou causa) de nossa justificação, mas em esperança. A
consciência não nos dá licença a participar de novos levantes quando, amargura-
dos. saímos das refregas, durezas e embates; porém exige a supressão do funesto
encadeamento do mal com o mal. A consciência tira-nos para fora do ir e vir das
atividades e do sofrimento humanos e nos reconduz à origem, a Deus!
“Daí a obrigação de nos sujeitarmos”. A revolução é a grande
possibilidade que temos de “querer fazer” o que Deus faz, e isto é impossível.
Precisamos descer das “alturas revolucionárias”; precisamos nos compene-
trar de que a “nossa” novidade não é novidade. E necessário que voltemos
àquele ponto de origem da nossa rebelião, onde pela primeira vez reconhece-
mos o mal jacente na situação existente, antes de haver em nós nascido o
revolucionário, antes de haver surgido o procedimento [e até antes de nos
haver ocorrido] o pensamento rebelde.
Então [ainda] o nosso espanto era inocente e nos uníamos a Deus em
nosso horror ante o lamento da criatura; então também sabíamos infinitamente
mais — muito melhor e mais profundamente, — a respeito da sua esperança.
Todavia, esse “então” refere-se ao instante da mais pura introspecção na situa-
ção do homem com relação a Deus e se confunde com a “prática do bem”.
Esse “instante” jamais foi um momento da temporalidade; semelhan-
temente, a sujeição não é um ato mas um reconhecimento de que não temos
razão; não a temos, especialmente quando [julgamos que] a temos.
Nesse reconhecimento se confirma que temos uma esperança: a esperança
do mundo vindouro de Deus que será a um só tempo a Revolução e a Ordem.
“É por isso que pagais os impostos”.
É uma conclusão notável! Aí estais agindo, de certa forma, livremente:
pagais os vossos impostos ao Estado. Deveis saber o que estais fazendo. Trata-
se de ação plena de omissão, plena de reconhecimento, plena de esperança.
“São sacerdotes de Deus, investidos para esse único fim”.
— Os detentores do poder, as autoridades, os representantes oficiais da
situação existente — são eles sacerdotes de Deus?!
— Sim, exatamente. Em todo seu ser, em toda sua prepotência. na tota-
lidade de sua peculiar autojustificação, eles proclamam mui altamente uma única
coisa: a injustiça dos homens e o Reino de Deus, como o alvo proposto.

752
A Grande Possibilidade Negativa 13, 6-7

Acaso quereis destruir esta ordem estabelecida que fala tão eloqüente-
mente de outra ordem, totalmente diferente? [Evidentemente] NÃO, porém:
“Pagai a todos o que deverdes. A quem imposto, imposto; a quem direi-
tos alfandegários, alfândega; a quem temor, temor; a quem honra, honra.”
É exigência banal e destituída de qualquer interesse: fazei aquilo que, de
qualquer maneira, já fazeis! [Essa exigência] deixa-nos “insatisfeitos” e nova-
mente às voltas com nossas indagações sobre os direitos da ordem existente e
da revolução. Talvez precise ser assim. Além de todas coisas interessantes e
grandiosas que poderíamos realizar, espera-nos a grande possibilidade negati-
va de Deus. Talvez na prática (naquilo que sabemos) não possamos fazer me-
lhor demonstração a favor [daquilo que devemos fazer] do que fazendo aquilo
que, naturalmente, fazemos mesmo!

Comentários: 12, 21 a 13, 7

1. Barth afirma a certa altura de suas considerações em torno de 12, 21


que não há autoridade que não se estabeleça (e se firme) pela tirania.
Pode parecer-nos não ser assim nas adiantadas democracias do mundo,
onde a “lei das selvas” parece ter sido superada; onde sequer se admite
que as nações sejam invadidas por seus vizinhos; onde o apossamento
do governo por meios violentos seria um anacronismo: onde eleições
facciosas ou “pré-preparadas” parecem ser impossíveis.
Entendemos, por convenção, que não é tirana a autoridade que
pauta seus atos na conformidade de leis sancionadas pela vontade
soberana do povo. Todavia, só há uma lei que não é tirana porque se
baseia no amor: “Amarás ao Senhor teu Deus sobre todas as coisas, e
ao teu próximo como a ti mesmo!”
Qual o Estado que sequer tentou aplicar essa lei?
Qual a autoridade que já cogitou de se fazer respeitada e obedeci-
da, recorrendo à força deste conceito ético?
Parece, portanto, correta a insinuação do Autor:
”Qual a autoridade que não estabelece essa sua autoridade, na tirania?”
2. “O revolucionário não é aquele que tão terrivelmente olha por seus
olhos.” Parece-nos que esta maneira de dizer se relaciona (e tem sua
origem). com certa maneira de falar, na língua original. Creio que o
Autor quer dizer que o revolucionário imagina um Deus vingador e
feroz que deve ver o mundo conforme ele — esse revolucionário —
sinceramente acha que o mundo deve ser visto: no entanto, o “verda-
deiro” revolucionário vê o mundo com amor.

753
12, 21 a 13, 7 A Grande Possibilidade Positiva

Aliás, essa interpretação se impõe pelo paralelismo feito com “O


Grande Inquisidor”.
3. Barth procura demonstrar que, ao dizer que “não há autoridade que
não venha de Deus”, Paulo não quis afirmar que a autoridade está
revestida de divindade (conforme se consideravam não poucas “ca-
sas reais” da época e, freqüentemente, os próprios Cezares romanos).
O Autor se esforçou para demonstrar que a autoridade não deve ser
idolatrada mas respeitada e o resultado de suas elucubrações, que
procuramos expor com a fidelidade que nos foi possível, pode ser
apreciado e julgado pelo leitor.
No entanto, parece-me que o problema é simples e claro. Não
seria o grande demolidor da idolatria que iria criar o ídolo “autorida-
de”. Paulo não escreveu, “a quem culto, culto — mas, a quem obedi-
ência, obediência. Existissem homens dignos desse endeusamento,
outros haveria que mais o mereceriam pois foram depositários da lei,
das promessas e das alianças e de entre eles veio o próprio Cristo na
sua revelação humana. Porém para Paulo, só o Deus desconhecido, é
Deus, e Jesus Cristo o unigênito Filho de Deus é Emanuel” — Deus
conosco!
E por isto, e somente por isto, que não valeria a pena tentar “ser
fiel” a uma suposta interpretação “literal” do texto. contradizendo
todo ensinamento bíblico.

A GRANDE POSSIBILIDADE POSITIVA (13, 8-14,0)

Nesta porção de sua exegese do capitulo XIII o Autor aborda novamen-


te o problema da ética cristã que o mundo rejeita, sintetizando todos preceitos
contidos nos versículos 9 a 15 do capítulo 12, neste segundo grande manda-
mento: “AMARÁS A TEU PRÓXIMO COMO A TI MESMO”. Todavia, o faz
analisando a oportunidade dos tempos, dando ao “Grande Dia do Senhor” in-
terpretação possivelmente chocante a não poucos.
— O que permanece e o que podemos concluir depois de devidamente
escrutinadas as considerações de Barth?
— Respondemos: o “Grande Dia” vem e não falha; esteve, está e estará
sempre bem próximo de nós; mais próximo hoje do que ontem, quando nos
convertemos. Não podemos dizer quando vem, como não podemos dizer quan-
do nossa fé nasceu, porque a fé não é temporalidade, não é coisa ou matéria,
mas graça espiritual divina que sempre existiu e existirá; é dom do Espírito
Santo e não a podemos identificar nem situar no tempo e no espaço. Todavia,

754
A Grande Possibilidade Positiva 13, 8-14

sabemos “em quem temos crido!” Quando? Acaso foi no caminho de Damas-
co? Foi na casa de “um certo Judas?” Foi no ministério de Ananias? Foi no
apedrejamento de Estevão ou, quem sabe, aos pés de Gamaliel?
Sim, acaso foi naquele transe amargo ou, nesta experiência gloriosa?
Foi na oração fervorosa da mãe crente ou talvez, na sábia aula da Escola Domi-
nical? Foi aquele sermão inspirado, aquele hino ou aquela passagem?
— OBRA E GRAÇA do Espírito Santo, que somente Deus conhece;
Assim é e será o Grande Dia do Senhor — “EIS QUE VEM COM AS
NUVENS!” Quando? Só Deus o sabe.
O que nos importa é não recalcitrar. O que sabemos é que AGORA é o
tempo aceitável: “Eis que estou à porta e bato”
Vejamos o que Barth diz.

Vs. 8 a 14 A ninguém devais coisa alguma, excepto o amor mútuo! Porquanto


quem amar seu semelhante cumpriu a lei. Por isso os mandamentos: “Não
adulterarás.” “Não matarás.”” Não furtarás!” — e quaisquer outros man-
damentos que existirem, culminam nestas palavras: “Amarás o teu próximo
como a ti mesmo!” O amor não causa mal ao próximo; portanto o amor é
o cumprimento da lei. Fazei isto reconhecendo o momento presente; chegou
a hora para acordar do sono porquanto agora a nossa salvação está mais
perto (de nós) do que quando nos tornamos crentes. A noite avançou e o
raiar do novo dia está chegando; deixemos pois de lado as obras das tre-
vas e revistamo-nos com as armas da luz. Andemos com continência, como
se já fora dia: nada de orgias e bebedeiras! Nada de lascívia e impudicícia!
Nada de brigas e contendas! Antes imitai ao Nosso Senhor Jesus Cristo e
não segui a tendência da carne para satisfação de suas cobiças.

A ninguém devais coisa alguma, excepto o amor mútuo”. Não ficar


devendo!
[Antes do prosseguimento com o texto original, procuremos entender a
que se refere o Apóstolo quando recomenda aos cristãos de Roma que nada
“fiquem devendo” a quem quer que seja. Seriam dúvidas financeiras? Seriam
salários retidos ou mercadorias compradas a crédito, ainda não pagas?
Seria bastante ilógico e até relativamente indigno se aqui se tratasse de
contas não saldadas que somente seriam dolosas se a falta de pagamento tives-
se origem em má fé ou desídia do devedor; e sobre isto Paulo já estabeleceu
doutrina exortando seus leitores a pagar o que for de direito a quem de direito,
(13, 7). Aqui, porém, trata-se de um problema ético que se contrapõe ao AMOR;
a dívida não é financeira mas é questão de retribuição. O Autor parte direta-

755
13, 8 A Grande Possibilidade Positiva

mente para a análise sem entrar em qualquer cogitação sobre este aspecto do
assunto, porque na língua alemã o trecho parece não deixar margem a dúvidas:
“Não ficar devendo” é expressão idiomática alemã que significa “responder a
cada agressão com reação igual e contrária”; significa aquilo que, entre nós,
mais vulgarmente se traduz pela expressão “responder à altura” ou, “dar o tro-
co na hora” ou ainda “não levar desaforo para casa”. Conseqüentemente, “ficar
devendo” significa que a resposta não pôde ser dada na ocasião da ofensa e
pretendemos dá-la quando a oportunidade se apresentar; é o equivalente a “dei-
xe estar, que você me paga...”
O que Paulo está dizendo é que não devemos cultivar a vingança, o
ódio, a raiva, a ira; não devemos ameaçar nem “respirar ameaças”; nada deve-
mos retribuir senão o amor mútuo.
Repetimos pois: vejamos o que Barth tem a dizer.]
Podemos expressar isto de outra forma, dizendo: Não resistais. Não
busqueis a decisão no terreiro do mal, pela negação (ou renegação.). Não entreis
em transgressão!
Este é o sentido de todas aquelas estranhas possibilidades de “não-agir”
que designamos como “possibilidades negativas” (12, 16-20) e que, finalmente,
reunimos como a “Grande Possibilidade Negativa”. (12, 2 1-13, 7).
EXCEPTO quer dizer que volvamos “meia-volta”; abramos uma brecha
em nossa muralha e, evidentemente, saiamos da demonstração pela abstenção
e enveredemos na demonstração pela AÇÃO; voltemos às “possibilidades PO-
SITIVAS” (12, 9-15): EXCEPTO o amor mútuo! O AMOR, devemos retribuir
a TODOS. Em hipótese alguma nos é permitido alegar que não praticamos o
amor mútuo porque vivemos à sombra do Reino do Mal dizendo que, por isso,
somente podemos testificar o mundo vindouro pelo nosso retraimento. O amor
mútuo deve e precisa ser praticado neste mundo sombrio porquanto este amor
— [ÁGAPE, na terminologia do Autor em outra passagem] não está sob a lei
do mal.
O protesto contra este mundo deve ser levantado pela prática do “amor
mútuo”; portanto deve ser apresentado e não abandonado.
Lembremo-nos bem: procedimento ético — positivo é aquele em que
não nos conformamos com a condição do mundo presente (12, 2). (“Ética po-
sitiva consiste em querer fazer aquilo que tem conotação negativa para a condi-
ção existente no mundo em que vivemos e não consta de seu programa ‘lança o
seu protesto sobre o grande erro”; e... “somente pode ser encontrada naquilo
que Deus quer e faz!” [12, 9-IS]. É nesta sua forma totalmente [imaterial],
invisível, que a ética positiva testifica a originalidade de Deus [e de sua mani-
festação que, a nós, parece tão estranha].

756
A Grande Possibilidade Positiva 13, 8

Designamos o AMOR como a “Grande Possibilidade Positiva” com o


mesmo fundamento pelo qual designamos a SUJEIÇÃO como a “Grande Pos-
sibilidade Negativa”. Agora, também, não nos referimos a atos isolados mas ao
conjunto de todas as possibilidades éticas que (como atos de protesto!) possam
ser consideradas positivas [dentro de nossa definição]. Trata-se pois, novamen-
te, da atitude ética em seu sentido total.
Designamos o AMOR como a “Grande Possibilidade POSITIVA” por-
que nele o “sentido revolucionário” vem à luz; porque no AMOR [mútuo] dá-
se, realmente, a negação e a transgressão da ordem existente. E esse amor que,
definitivamente, tira a razão [isto é, a justificação] do reacionário, a despeito da
falta de razão [da atitude injustificável] do revolucionário e isto porque se tiver-
mos amor mútuo não podemos querer conservar a situação existente conforme
está porquanto, amando-nos mutuamente, praticamos a novidade ética que des-
trói a situação antiga. Portanto, agora trataremos dessa brecha na incompreen-
sível muralha do “não-agir”, isto é, falaremos agora dessa coisa ainda mais
incompreensível: a obra do amor.
“Quem amar a seu semelhante cumpriu a lei”.
No ápice de nosso arrazoado sobre o relacionamento da criatura com
o seu Criador, confrontamo-nos com o conceito altamente enigmático do
AMOR— (5, 5; 8, 28, etc., comparando também com 12, 9). Encontramos
esse conceito exatamente em oposição à possibilidade real desse relaciona-
mento ou, pelo menos, conforme o imaginamos; portanto, o encontramos
exatamente do “outro lado” da “lei” e da religião — isto é, — [não exatamen-
te em oposição mas] além de todas exigências que uma e outra impõem ao
nosso modo de pensar e nosso querer. Encontramos o “conceito do amor”
como o invisível ponto de referência do mais alto anseio humano e que, por
isso, é também o ponto incisivo da inversão do sentido de nossa vida — [qui-
çá de nossa conversão].
Ao definirmos o conceito do AMOR dissemos que ele não é produto de
pensamento ou de ato humano mas é, por assim dizer, apenas aquela pressupo-
sição psicológica, aquele derramamento do Espírito Santo (5, 5) que tomamos
como realidade descritiva em contraposição à problemática da existência. O
amor é a realidade por força da qual os homens conhecem a Deus, dele se
apropriam e se apegam a ele, — o Deus Desconhecido, o Deus Recôndito, —
como sendo o último SIM contido no derradeiro NÃO de toda vida humana.
[A tradução inglesa diz:” Descrevemos o conceito do AMOR como essa
realidade que, contrastada com a ambigüidade de nossa existência, não pode
ser definida como ato da vontade ou do pensamento humano mas apenas como
pressuposição de tudo quanto é analisável e observável. Na realidade, descre-

757
13, 8 A Grande Possibilidade Positiva

vemos [esse amor] como “derramamento do Espírito Santo” (5, 5), isto é, como
a realidade mediante a qual os homens conhecem a Deus, tomam posse dele e
se apegam a ele como o Deus Desconhecido, o Deus Recôndito, como o último
SIM no derradeiro NÃO de toda vida observável concreta”].
Amor é a apresentação existencial da criatura humana a Deus; é o toque
da liberdade de Deus e, justamente neste toque, é o fundamento de sua
personalização e “individualização”, se assim pudermos dizer).
O AMOR é “o caminho sobremodo excelente” (I Cor. 12, 31); é o senti-
do de todos caminhos que são compreensíveis para nós e o seu ponto culmi-
nante: é a possibilidade do homem religioso, como possibilidade divina e por
isso, na medida que isso se dá, é o “cumprimento da lei”.
[A versão inglesa escreve: “O amor é, por isso, a impossibilidade religi-
osa humana — quando for apreendido como a possibilidade divina. Em outras
palavras, o amor é o CUMPRIMENTO DA LEI].
O que significa isto quando verificamos que todo esse arrazoado cai por
terra ao ser confrontado com a nossa existência, com a vida que temos de viver
em sua singularidade e realidade, quando verificamos que no clímax de nosso
discurso sobre Deus ele mesmo nos perturba com a interrogação sobre “o que
devemos, pois, fazer?”.
O que significa isto tudo se, mediante essa pergunta Deus novamente se
encobre e se antepõe a nós como “o Deus Desconhecido?” (12, 1).
— A resposta é esta: quem ama a seu semelhante põe objetivamente em
prática a “Grande Possibilidade Positiva”, porquanto esse tal segue o caminho
incompreensível [sobremodo excelente]: amarás o teu próximo como a ti mes-
mo. (Lev. 19, 18).
“Amarás o teu próximo.” Na realidade do próximo confrontamo-nos
afinal — e no mais alto grau — com a inescrutável problemática da existência.
É no próximo que nos deparamos com o enigma da natureza original: é
nele que vemos a realidade do ser humano; nele nos confrontamos com nossa
própria criatura [como em espelho]; as suas peculiaridades nos lembram as
nossas próprias; nele vemos a nossa perdição, o nosso pecado e a nossa morte.
É no confronto com o próximo que precisamos decidir [o que Deus
representa para nós, isto é, se é mero produto de investigação intelectual, quiçá
de imaginação ou sentimentalismo, ou se é real]; precisamos decidir se a “impos-
sível possibilidade” divina — que está além de todas possibilidades humanas e
com a qual nos encontramos sempre novamente em nosso discurso sobre Deus
— não é apenas fantasma metafísico; se acaso não estávamos delirando quando
confirmamos a “pressuposição psicológica” do derramamento do amor divino
em nossos corações; se acaso não estávamos cegos quando “vimos” a Deus no

758
A Grande Possibilidade Positiva 13, 8

último SIM contido no derradeiro NÃO; se o nosso entendimento [nosso co-


nhecimento] de Deus não foi um “entendimento de renúncia” [de desistência
quiçá por desânimo, cansaço ou por incapacidade], (Kierkegaard), ou então, —
[e agora a outra alternativa] — se verdadeiramente o Deus Desconhecido nos
falou através de Jesus Cristo; se de fato recebemos o toque da liberdade divina
e se a fundamentação de nossa personalidade, [em Cristo] é real; se, existenci-
almente, estamos trilhando o “caminho sobremodo excelente!”.
Essa decisão, a fazemos, [e ela se efetiva] na medida em que re-
conhecemos e amamos o “Deus Desconhecido” na inidentidade do próximo”
que, sendo completamente diferente de nós, sintetiza todos enigmas da existên-
cia e exige nossa resposta em forma de obras. A decisão se dá na medida em
que, [no “próximo”] ouvimos a voz daquele que é UM.
Lembremo-nos de que o amor a Deus se torna realidade [em nós] quan-
do esse “TU” [que nos individualiza] se torna tão inexorável que já não pode-
mos afastar de nós a pergunta: [então], “quem sou?”
Lembremo-nos também de que, nesta pergunta profunda e na sua res-
posta, reconhecemos — e não podemos deixar de reconhecer — que este mui
duvidoso “EU” e este [incômodo] “TU” que nos pressiona e que domina todo
nosso pensamento, são uma única e a mesma pessoa.
Este “TU” que questiona e responde se encontra, afinal e, na sua forma
mais notável, na problemática do próximo que” caiu nas mãos dos salteadores”.
Se aqui eu não ouvir a pergunta e também não encontrar a resposta, se
aqui eu somente ouvir a voz do “outro” e não ouvir — na voz do outro — a voz
daquele que é UM, então na verdade — nada ouço!
Portanto... “amarás, o teu próximo COMO A TI MESMO!”
O próximo está sempre invisível, oculto no “outro” para quem já não
posso ser — ou continuar sendo — [simplesmente] “outro”; ao qual preciso
amar “como a mim mesmo”, tão certo quanto amo a Deus, se é que o amo.
Em Cristo, que é o ponto de mudança, o ponto de inflexão, [o ponto do
retorno] que vai da pergunta para a resposta, do NÃO Para o SIM, do juízo para
a justificação, da morte para a vida — [sim, em Cristo] não sou apenas UM,
com Deus porém (por que e na medida em que eu for UM com Deus!), sou UM
com o próximo.
Amor é o relacionamento [o parentesco] espiritual com o próximo
(Kierkegaard), isto é, o relacionamento que se estabeleceu pela pergunta que
me foi feita e pela resposta que me foi dada pelo TU (do espírito!) e que consu-
mou a unidade, a comunhão (COMMUNIO) entre mim e o próximo, na medi-
da e na certeza de que sou UM — [novamente] — em comunhão (COMMUNIO)
com Deus.

759
13, 8 A Grande Possibilidade Positiva

“Quem é o meu próximo?” pergunta o culto intérprete da lei e recebe a


resposta (que ele mesmo, a contragosto, precisa enunciar!): “Aquele que usou
de misericórdia para com quem caiu nas mãos dos salteadores”. — Vai tu, e
faze o mesmo! Sê tu mesmo o próximo e todas tuas perguntas cessarão. (Luc.
10, 30-37).
O próximo é reconhecido mediante a resposta à pergunta:
Então, quem sou?” É reconhecido como o UM, que é “TU”, “EU” e
“ELE”; esta é a operação e a autenticação do amor a Deus, que não vemos.
Portanto, “Amarás a teu próximo!”
O amor ao próximo não é o relacionamento do ser humano com seu
semelhante mas de Deus com Deus; este relacionamento se fundamenta no
conhecimento de Deus conforme revelado em Jesus Cristo (e por isto [não
apenas se fundamenta mas] também nele se desfaz). Se este relacionamento
[acaso] representa paz ou luta, se significa [para nós] aquilo que entendemos
como amorável ou se, em muitíssimo maior grau, se afigura como acrimônia e
aspereza, — isto é outra questão. (12, 9).
O AMOR [ÁGAPE] é sempre a descoberta [o achado] do UM, no outro
— neste, naquele, em qualquer outro. Podemos dizer que o amor está ligado ao
seu objeto (isto é, ao seu próximo!) porque é na medida em que, de alguma
forma, se antepõe a ele.
O amor vê, em “cada” PRÓXIMO a semelhança daquilo que se deve
amar e, — mais do que a semelhança — vê aquele que o mandamento exige
que amemos; o amor vê e ouve em cada “TU” deste mundo o eterno “TU” que
se lhe contrasta e sem o qual não existe “EU” (12, 3 — segunda parte até 12, 6
primeira parte).
O amor se volta a esta e àquela pessoa definida, concreta. [isto é, o amor
se manifesta a qualquer criatura determinada] justamente porque é na medida
em que ele não representa qualquer compromisso com quem quer que seja.
O AMOR [ÁGAPE] é o amor ao próximo [com quem nos deparamos]
em sua total irritabilidade, sua extravagância e seu modo original de ser e agir,
justamente porque — é na medida em que esse AMOR desata e solta esta origi-
nalidade que deve cair por terra qual manto que cai dos ombros (Kierkegaard).
O amor [ao próximo] é “justiça equalizadora eterna” (Kicrkegaard),
porque a ninguém justifica segundo o próprio desejo, o amor edifica a comuni-
dade porque unicamente procura comunhão; o amor nada espera porque já atin-
giu o alvo; nada procura porque já encontrou; nada quer porquanto já realizou;
nada pergunta. pois já sabe; não luta porque já venceu. O amor [ao próximo]
não é Eros. que sempre cobiça, mas Ágape, que jamais acabará.
E por isso mesmo que “amarás a teu próximo!”

760
A Grande Possibilidade Positiva 13, 8-10

Tomado a sério, o amor [ao próximo] é dever da “nova criatura” e, como


dever, está protegido contra todas arbitrariedades, todos enganos e todos abu-
sos. Todos mandamentos “Não DEVES” [fazer isto ou aquilo], os mandamen-
tos negativos: “Não adulterarás.””Não matarás!” “Não furtarás!” “Não cobiça-
rás!” (Exo. 20. 13-27 e Deut. 5. 17) culminam neste mandamento positivo —
“DEVES” [isto é, AMARÁS!].
A criatura que, para voltar a Deus, foi compelida a toda abstenção é
agora, por Deus impelida a agir novamente; é a criatura vencida, que se reergue;
é o pecador, que é justificado; é o amortecido que é vivificado. Neste [impulso]
imperativo toma-se visível a relampejante espada da morte e da eternidade.
O amor é completo em si mesmo porque é a obra NOVA; é a obra que
tem o sentido do preenchimento de toda abstenção; é o ar que passamos a res-
pirar [é o oxigênio que nos é ministrado] quando — e na medida em que — de
fato nos é tirado o fôlego no ambiente do mal [em que vivemos].
“O amor não causa mal ao próximo!” Portanto, o amor é a “obra do
bem” que vence o mal (12, 21), que anula e destrói a situação existente tão
certamente quanto a revolta (ou a revolução) não a consegue destruir — [em-
bora o tente e para isso se faça].
A novidade, a originalidade do amor é ele não participar do círculo vici-
oso que vai do mal ao mal e da reação à revolução. O amor suprime e anula
tudo quanto existe porque decidida e decisivamente reconhece [e acerta] tudo
quanto está pressuposto naquilo que existe.
O amor destrói os ídolos porque não cria outros.
O amor é o fim de toda “imitação” de Deus, [de tudo quanto quer subs-
titui-lo, resolver em seu lugar e exercer sua autoridade ...], hierarquias [clero],
intermediação [dos “santos” e da Virgem Mãe] e autoridades [a Igreja], por-
quanto o amor, inequivocamente e sempre se volta ao UM, tanto no indivíduo
como na coletividade.
O amor não contradiz e, por isso, não pode ser refutado; não concorre e,
portanto, não é vencido; não busca decisão e, conseqüentemente, ele próprio é
a decisão.
Na esfera do mal o amor somente pode ser definido mediante negativas
(pelo que não é e pelo que não faz!) (I Cor. 13!). É por isto que o amor refuta o
mal — se é que nos podemos expressar assim. [Todavia], não há nenhuma
impossibilidade de se fazer o bem no ambiente do mal [que é o único ambiente
nosso conhecido! Nada me desobriga do dever de amar, mas: se eu deixar de
amar ao próximo] sob a alegação de estar assim protestando contra o curso
deste mundo, então também não amo a Deus. Então já não há sacrifício [que é
o meu culto racional] e não há renovação de pensamento (12, 3).

761
13, 10-11 A Grande Possibilidade Positiva

Quão premente, quão inexoravelmente sério é o mandamento do amor!


“Portanto, o amor é o cumprimento da lei!”
“Fazei isto reconhecendo o momento presente”.
Quando e como se chega a cumprir a incompreensível obra do amor na
qual a criatura humana, impelida de volta a Deus pelo enigma do próximo é por
Deus recambiada ao próximo para nele descobrir a si mesma? Onde e quando
se realiza a impossível possibilidade do cumprimento da lei?
Se quisermos examinar atentamente o problema que a exigência [de
amor ao próximo] nos apresenta, não podemos encurtar distâncias [tirando con-
clusões apressadas]. A inaudita significação deste procedimento precisa
corresponder a uma oportunidade, também, inaudita. Trata-se disto: o cumpri-
mento da lei se dá quando o tempo presente se torna como a eternidade e esta,
como o tempo em que vivemos. A possibilidade [de cumprir a lei] surge medi-
ante “o reconhecimento do tempo presente” pois este é um “instante” que em si
mesmo não é um lapso de tempo. Todavia, qualquer momento do tempo pre-
sente pode conter a dignidade desse INSTANTE, em toda sua plenitude. [Este
instante] é o momento eterno, o AGORA no qual se paralisam o passado e o
futuro, aquele no seu ir, e este no seu vir. Neste INSTANTE, o tempo trai o seu
segredo: não é ele que vai e que vem, mas é o ser humano que FOI e SERÁ —
em Deus! [E o ser humano que] morre e vive; cai e se ergue; é “quem ele é” é
“quem ele não é”, quer dizer, criado conforme aquele e conforme este e criado
novamente como o UM — o indivíduo em sua total unicidade e em absoluta
generalidade [quiçá sua universalidade]; — sempre [como indivíduo], na qua-
lidade de “velha criatura e [na sua universalidade], como “nova criatura”, esta
sobrepujando aquela na invisível mudança dos tempos, em Jesus Cristo.
“Para lá vamos, peregrinando de ano em ano”; este é o segredo do tempo
revelado nesse INSTANTE eterno que existe sempre — todavia jamais existe
— pois é o INSTANTE da revelação [de Deus].
[A tradução inglesa escreve: “Os homens são sempre a primeira [a velha
criatura] ‘E’ a segunda; todavia são esta segunda no sobrepujamento da primei-
ra, em Cristo; isto é, na invisível Era Nova. ‘Gastamos nossos anos como um
conto que se conta’ — este é o segredo do tempo, que é revelado no ‘momento’
da revelação, nesse ‘momento’ eterno que sempre existe, “no entanto não existe”.
A citação inglesa faz pensar na passagem conforme v. 9 do Salmo 90 ou
em Tiago 4, 141.
O irreversível afastamento do instante que passa e a inevitável aproxi-
mação do instante vindouro são qual parábola deste INSTANTE da revelação
eterna [porque também este instante é irreversível]. E, igualmente, parábola do
instante eterno a absoluta inescrutabilidade, invisibilidade e imaterialidade desse

762
A Grande Possibilidade Positiva 13, 11

intervalo — [desse pequeno lapso de tempo que decorre entre o momento que
acaba de passar e o momento que chega] — minúsculo interregno nos tempos.
Analogia [ou parábola] do instante eterno é todo instante de tempo referido ao
passado e futuro que, como todo momento do tempo presente, contém subjacente
em si a revelação do “segredo da temporalidade” e pode, por tanto, transfor-
mar-se no instante QUALIFICADO [da revelação]. [Logo], fazei isto reconhe-
cendo o momento presente!”
[É no conhecimento do “Momento Presente” que se alcança a sabedoria
para o exercício da incompreensível obra do amor ao próximo].
É somente quando compreendemos e apreendemos o instante em que
vivemos, em sua significação transcendental, quando [pela nossa compreensão
e mediante a graça divina] percebemos o “invisível AGORA!” da revelação no
lapso de tempo presente que separa o tempo anterior do tempo vindouro, quan-
do este “instante eterno” da revelação qualifica o passado e o futuro, somente
então acontece a incompreensível obra do Amor; então “a vida e as lides do
amor [ao próximo] tornam-se realidade (Kierkegaard); a fé que vê, [sente e
aceita] esta revelação é o cumprimento da lei, e a obra humana [que se manifes-
ta nesse Amor] provém do mais alto conhecimento.
Quem ama ao próximo foi [movido,] tocado pela LIBERDADE DE DEUS.
O retorno central [básico], final, da temporalidade para a eternidade,
esse relacionamento [que assim se estabelece entre o temporal] com o que é
eterno e que somente pode acontecer por milagre, dá-se quando a Grande Pos-
sibilidade Positiva se transforma em mandamento.
[A tradução inglesa escreve assim: “A ação humana do amor, por conse-
guinte, nasce da sabedoria suprema porquanto quem ama foi tocado pela liber-
dade de Deus. Portanto, quando dizemos que o amor, como a grande possibili-
dade positiva se toma em mandamento estamos presumindo este relaciona-
mento derradeiro e central do tempo com a eternidade — na realidade, estamos
presumindo que o amor é um milagre”].
Apenas podemos fazer o que fazemos, conhecendo o INSTANTE, por
isso nunca “já o fizemos” pois, quando já se fez alguma coisa “nesse” conheci-
mento?
Apenas podemos fazer o que fazemos como testificação da vitória que
aconteceu, acontece e acontecerá em Cristo; apenas com vistas ao nascimento
da pessoa dentro da individualidade; é apenas no aguardo do FIM, (fim do
mundo da temporalidade, das coisas e dos homens) que está [na realidade], o
começo — o princípio [do novo céu e da nova terra!].
O amor não causa mal ao próximo e é o cumprimento da lei — [e o cum-
primento de tudo quanto nos é defeso fazer!] — por que se mantém

763
13, 11-12 A Grande Possibilidade Positiva

inexoravelmente à distância, porque peremptoriamente afasta de si tudo quanto


já foi feito, remetendo todas as coisas ao fim que é o começo [do novo Reino].
O amor penetra no âmbito do mal para imediatamente dele se afastar;
nesse território ele não constrói tendas para si; basicamente, o amor nada quer
criar, na temporalidade, que seja duradouro ou permanente. O amor somente
faz aquilo que realiza no INSTANTE ETERNO e, por isso mesmo, ele é o
próprio ato revolucionário.
“Chegou a hora para acordar do sono porquanto agora a nossa salvação
está mais perto (de nós) do que então, quando nos tornamos crentes”.
A noite avançou mas o raiar do dia está próximo.
O instante eterno se contrapõe incomparavelmente a todos instantes [da
temporalidade e deles se destaca], justamente por ser o sentido transcendental
de todos eles; é a incomparável SALVAÇÃO, é o DIA, é o REINO DE DEUS
de todos os tempos e deles é o cumprimento. Contudo, aqui vivemos na suces-
são de instantes da temporalidade mutável e se neles [ou no transcorrer deles]
não amarmos (ao próximo), então absolutamente não temos AMOR.
Jesus Cristo não passou sua vida terrena algures fora desta série de mo-
mentos dos tempos mutáveis mas esteve [plenamente] inserido nela e é tam-
bém dentro dela que achamos [o conhecimento para] o reconhecimento do ins-
tante eterno; nesse reconhecimento encontramos o local, o tempo e o estímulo
para amar o próximo].
O reconhecimento do INSTANTE [ETERNO] precisa dar-se em algum
momento da temporalidade; é preciso que, em alguma ocasião, se dê “o regres-
so” à eternidade. Este momento, esta ocasião, é a “hora para acordar do sono”
e [isto se dá] no invisível “AGORA” inserido no intervalo dos tempos, qualifi-
cando o passado e o futuro. Nem todo tempo, [nem toda hora], nem todo ins-
tante é essa ocasião — é esse momento ETERNO; nenhum deles o é, em si
mesmo; [no entanto] todo e qualquer instante de todos os tempos contém [ou
pode conter] o invisível interregno do AGORA!, estranho, incomensurável, ina-
cessível — até mesmo “aquele tempo”, “quando nos tornamos crentes”, —
pois a fé não pode transformar-se em realidade (3, 28), não pode ser algo que
“começou a existir” em determinada ocasião e passou “a ser” desde então. [Por
isto, esse “AGORA!” é inatingível, é inidentificável, é invisível em sua absolu-
ta realidade, isto é, mesmo “quando” COMEÇAMOS a crer.].
Este INSTANTE, [todavia] é início, maravilha, é criação a todo mo-
mento da temporalidade [e portanto] também naquele instante quando nos tor-
namos crentes. Tudo aquilo que esteja [ou tenha de ser] integrado na realidade
da temporalidade pertence ao inqualificável tempo do “sono”, ainda que seja a
crença.

764
A Grande Possibilidade Positiva 13, 11-12

Não há crença que não precise ser lembrada da REVELAÇÃO; não existe
obra que não tenha de ser lembrada de que lhe é necessário ter o respectivo co-
nhecimento [ou saber]; nem há pessoa alguma que não necessite de ser lembrada
da LIBERDADE de Deus. Enquanto esta lembrança não ocorrer — (e quando
“JÁ” teria ela ocorrido?) — todos estão adormecidos: TODOS, isto é. o Apósto-
lo. o Santo e também aquele que ama [o próximo]; estão todos irremissivelmente
entregues à temporalidade, todos jazem, quais seixos rolados, no fundo da “cor-
renteza do tempo” cujas vagas incansavelmente chegam e fogem céleres.
Ninguém é repelido de suas obras para que se abstenha ou se retraia e
ninguém que esteja retraído é impelido a tomar a iniciativa ou a agir. [Todavia],
cada um faz o que não deve e deixa de fazer o que deve; é por isto que o tempo
QUALIFICADO, o tempo do retorno e da arremetida, o tempo para a atitude
ou o procedimento ético-positivo, é o tempo que “ainda está para ser” e, en-
quanto ele não acontece, [enquanto ainda não for chegada a oportunidade para
o instante eterno], todos os tempos diferem entre si e cada instante particulari-
zado difere à sua maneira desse momento ETERNO que, no entanto, é igual-
mente estranho a todos.
Há tempos próximos e outros remotos; tempos de noite e tempos do
romper da alva; tempo de dormir e tempo de acordar; existem estes e aqueles
— uns são e outros não são, porém, há tempo CRONOLOGICAMENTE qua-
lificado: HOJE. “Hoje, se ouvirdes sua voz, não endureçais os vossos cora-
ções!” Também há tempo oposto: os dias quando “a Palavra do Senhor era mui
rara e as visões não eram freqüentes”. (I Sam. 3, l[e Heb. 3, 7-8; Sal. 95, 7-8] ).
“Agora nossa salvação está mais próxima que outrora, quando nos tor-
namos crentes”.
Sempre subsiste a tensão entre o tempo de “OUTRORA” — quando ain-
da estávamos descansados, [descuidados] e agora, o tempo presente, — quando
nos achamos sob a incomodativa lembrança daquilo que não somos; existe sem-
pre a tensão entre os tempos da revelação “já” encontrada, das obras “já” realiza-
das, de quando “já” havíamos reconhecido a Deus, e os tempos da meditação, da
expectativa e da introspecção na efetivação real do “já” que apenas SUPOMOS
como existente, [pois este “já” somente se dará na segunda vinda, isto é], no
INSTANTE ETERNO do retorno glorioso de Nosso Senhor Jesus Cristo no final
dos tempos: na realização do Juízo Final, com a presença de Jesus Cristo. [O
original emprega o galicismo “parúsia”. A tradução inglesa escreve: “Existe sem-
pre certa tensão entre ‘então’, quando levávamos existência calmosa e o ‘agora’
de nossa conturbada lembrança da não-existência. Há sempre certa tensão entre
‘os tempos da revelação’ que ‘já’ ocorreu, — as obras que ‘já’ foram feitas, Deus
que ‘já’ conhecemos, — e a nossa expectativa pela realização daquilo que ‘já’

765
13, 11-12 A Grande Possibilidade Positiva

ocorreu apenas aparentemente — a nossa expectativa e o aguardo pelo ‘Momen-


to’ eterno do Aparecimento, da ‘parúsia’, da presença de Jesus Cristo”].
Todavia, essa tensão entre os tempos (de “então” e os de “agora”) tem
tanto (ou tão pouco) a ver com a célebre história da Igreja nestes vinte séculos
os quais, — sabidamente — ainda “não nos trouxeram” o retorno glorioso de
Jesus Cristo no final dos tempos como, por exemplo, o número de semanas ou
meses que a Carta aos Romanos ficou na bagagem de Febe durante sua viagem
de Corinto a Roma (16, 1) ou então, significa tão pouco quanto a soma dos
minutos que se teriam escoado entre o ditado de Paulo e a escrita de Tércio,
porquanto: a hora do despertamento, a “última” hora, cujo soar aqui se anun-
cia, verdadeiramente não significa que existe “uma hora” que venha depois;
nem sequer entra aqui em cogitação a hipótese de que [ao despertamento], se
siga um tempo — (cronológico.), para o cumprimento dos tempos. Não é como
se a vida que vem da morte, o “NÃO-SER” que suprime tudo o que é, a justifi-
cação dos que já foram julgados, o “AGORA” que está no intervalo de todo
anterior e de todo porvir, pudessem preencher, [completar] algum tempo ao
lado do tempo [isto é] (ao lado e contido no tempo presente).
Tempo — são os tempos do desconhecimento [da ignorância] e da lem-
brança [isto é, quando somos recordados de nossa condição de criatura perante
o Criador] durante os quais todos somos instados ao arrependimento. O que
existe acima disto, não é tempo: é eternidade. No limite de todos os tempos,
ante o dominante muro de Deus que representa a supressão de toda temporalidade
e seu conteúdo, está a criatura da “hora final”, a criatura que aguarda o retorno
glorioso do Senhor Jesus, no final dos tempos, isto é, está a criatura ante o dia
e ante a hora que ninguém conhece, nem os anjos do céu, nem mesmo o Filho,
somente o Pai (Mar. 12, 32).
Acaso ninguém sente o estrídulo nos ouvidos? Acaso não cessará, de
maneira alguma nosso inútil discurso sobre o RETORNO GLORIOSO que
“nunca se dá”? Como se daria aquilo que, segundo seu próprio conceito, não
pode acontecer, de forma alguma? [Em outras palavras: como podemos dizer
que “tarda” um acontecimento que não está programado? Literalmente, diz o
Autor: “como haveria de “falhar” aquilo que, segundo sua própria natureza, de
modo algum pode acontecer?]. Porquanto o FIM que o Novo Testamento anun-
cia não é evento temporal, não e um fabuloso “fim do mundo”; [o fim anunci-
ado] nada — absolutamente nada — tem a ver com alguma catástrofe histórica,
telúrica ou cósmica: o fim anunciado pelo Novo Testamento é verdadeiramente
o FIM; é tanto o fim que estes vinte séculos pouco ou nada significam com
respeito à proximidade ou a longinqüidade de sua realização, Este FIM é tão
decisivo — e definitivamente o fim, que Abraão viu o dia e se alegrou!

766
A Grande Possibilidade Positiva 13, 11-12

Quem há que pretenda diluir esta eterna verdade, transformando-a em


acontecimento temporal pelo simples fato de somente se poder falar dele por
meio de parábola? Por outro lado, se for reconhecido [e aceito] que aqui as
palavras ‘são apenas analogias, quem há que pretenda acalmar-nos com este
“apenas”? Quem há que. tão desavergonhadamente. pretenda transformar Deus
em ídolo, deixando de o tomar a sério, baseado em nossa ignorância da realida-
de divina? Quem é que nos autoriza a transformar a esperança do fim, — a
expectativa daquele instante em que os vivos transformados e os mortos
ressurrectos, juntos, estarão perante Deus (I Cor. 15, 51-52), — nesta expecta-
tiva de espetáculo grosseiro, brutal, teatral e, [pior ainda] quando esta cena
espetacular — por mui justas razões — não acontece, [quem ou o que nos
autoriza ai que simplesmente nos deitemos novamente a dormir, consolados,
deixando como único sinal [ou memento] daquilo que na realidade deveríamos
(e de fato queríamos!) lembrar, um pequeno capítulo sobre a “ESCATOLOGIA”,
encerrando um tratado de “Dogmática”?!
Não é o RETORNO GLORIOSO que tarda mas, o nosso despertamento.
Se acordássemos, se nos recordássemos, se completássemos o passo que vai do
tempo não qualificado ao tempo qualificado, se nos assustássemos por estar-
mos a todo momento, (quer queiramos quer não) no ponto limite extremo, à
beira do INSTANTE [que pode ser o do retorno glorioso de Jesus Cristo]; se,
estando nesse limite, ousássemos amar o “DESCONHECIDO”, se reconhecês-
semos e apreendêssemos o principio do fim, então verdadeiramente, nem espe-
raríamos esse “fim do mundo” resplandescente ou catastrófico [fazendo coro]
com os mais excitados [emotivos ou neuróticos] nem acompanharíamos a pie-
dade (ou a religiosidade) da inabalável [racional e não emotiva] cultura protes-
tante, consolada com o FIM que não vem. Então não nos esquivaríamos —
(como estes e aqueles) — da amarga seriedade, [da dura realidade] do dia “que
se aproxima” porém, justamente por que o “Instante Eterno” não acontece —
(nunca aconteceu e jamais acontecerá) — reconheceríamos [ou reconhecere-
mos] a dignidade do instante temporal [do “momento presente”] que nos é
concedido, sua qualificação e o sentido ético que ele impõe.
Então estaremos aguardando o retorno glorioso de Jesus Cristo “no fi-
nal dos tempos” ou, por outras palavras, estaremos atribuindo à nossa existên-
cia a seriedade que ela tem; estaremos reconhecendo a Jesus Cristo como Autor
e Consumador [de todas as coisas]; então já não nos recusaremos a dar lugar ao
arrependimento, a mudar e inverter o rumo de nosso pensamento, a meditar nos
pensamentos eternos e, portanto, já não deixaremos de amar [o próximo]. Con-
tudo, sem “conhecer” o “momento presente” nada disto acontece. Sem este
conhecimento não há AMOR — [Ágape].

767
13, 11-14,0 A Grande Possibilidade Positiva

A somatória e a base da Grande Possibilidade Positiva e de todas possi-


bilidades éticas que a acompanham, consiste em agir “como se já fora dia”, isto
é, reconhecendo o instante do momento presente e voltando os olhos ao invisí-
vel lapso de tempo que existe entre o ANTES e o APÓS dos dias de nossa vida
e amando o próximo porque somos amados em Cristo.
O Reino de Deus está demasiadamente propínquo; a avassaladora mu-
ralha da eternidade [visível] em cada rocha, cada flor, em todo semblante hu-
mano!), o limite do [nosso] tempo (MEMENTO MORI!), a presença de Jesus
Cristo como a volta [a curva, a inflexão] dos tempos, [tudo isto] nos oprime de
tal maneira que o traço retilíneo [isto é, a uniformidade] de nossa existência
material — o procedimento humano sob a determinação [e o influxo] da vida,
da emoção e de “Eros”, não pode deixar de ser perturbado [fletido, quebrado].
Na verdade, nossa conduta foi [e está sendo] perturbada: a condição, (a aparên-
cia), deste mundo desaparece e o Reino de Deus vem!
O AMOR e o que este AMOR (Ágape) realiza, testifica o desapareci-
mento deste mundo e, também, a vinda do outro.
“Deixemos pois de lado as obras das trevas e revistamo-nos com as
armas da luz! Nada de orgias e bebedices; nada de lascívia e impudicícia! Nada
de brigas e contendas. Não segui a tendência da carne!”
Estas palavras são dirigidas aos “amados de Deus em Roma, aos que
foram chamados para a santidade!” (1, 7).
Acaso não é evidente que também (nós) estamos no reino dos
Karamazoff, onde tais possibilidades existem?
Aquilo que designamos como Reino de Deus e este outro reino [que é
tão bem exemplificado no “mundo” dos Irmãos Karamazoff] parecem ser cír-
culos que se sobrepõem em pontos diversos, de não pouca monta. Se nesse
terreno existir separação claramente definida na qual as “obras das trevas” são
postas de lado, então tratar-se-á de separação final [decisiva], separação [feita
mediante e sob] o conhecimento do “momento presente” porquanto, o que se
pode dizer se não que a linha real da existência humana nenhures e jamais é
interrompida e que “a tendência da carne” nunca se muda, seja nas pessoas
religiosas [ou piedosas], seja nos “filhos do mundo”?
O filamento do tempo não se interrompe por um segundo sequer, [em-
bora possam existir deformações e inflexões motivadas pelo impacto da lem-
brança de Deus]. Não existe nem emerge nenhuma santidade humana
cognoscível [reconhecível] e imutável. O mundo é mundo e o homem é ho-
mem; são ambos sempre altamente duvidosos, não somente na sua moral a
mais elevada como também na mais rude. As possibilidades santas enquadram-
se perfeitamente no mundo das possibilidades do tipo Karamazoff. Contudo,

768
A Grande Possibilidade Positiva 13, 12-14,0

(no conhecimento do “instante presente”) a criatura é posta em duvida por


parte de Deus; é por parte de Deus que ela se torna tão inviável e tão tola.
Portanto, acaso pode o ser humano admirar-se de estar sempre de novo à borda
do abismo, de estar sempre tão profundamente enredado na mais profunda du-
biedade? Há de o ser humano suportar estar nas profundezas da animalidade,
se não suporta as altitudes morais da humanidade? Acaso é mais fácil solucio-
nar o enigma da vida, lá embaixo do que aqui em cima? Para que [e por que]
fugir do “UM” contido no “UM” do amor (ao próximo)?
O ser humano é, em sua totalidade, atacado por Deus; o Reino de Deus
rouba-lhe o fôlego oprimindo-o em todas suas atitudes, em todas suas cobiças.
Já não é possível sanar a “grande perturbação”; ela atinge os “santos e os suí-
nos”. A longo prazo, não teremos opção [não nos será dada alternativa] para
fugir desse ataque divino e teremos de ceder à pressão de Deus ao longo de
toda linha [de resistência, ao longo de toda nossa vida “normal”]. Todavia, o
AMOR é o cumprimento da lei!
Portanto, “revistamo-nos com as armas da luz; andemos com continên-
cia! Imitai ao Senhor Jesus Cristo!”
Às mesmas pessoas [às quais foi preciso recomendar que deixassem de
lado as obras das trevas recomenda-se] agora a antítese?! Dar-se-ia então o
caso de estarmos todos, mesmo assim, entre os amados de Deus?
— Sim, é verdade! Também esta possibilidade subsiste dentro da Gran-
de Possibilidade Positiva, para aqueles que aceitam ser revestidos com as ar-
mas de proteção e de resistência contra o mal; também esta possibilidade celestial
e eterna existe e subsiste para aqueles que aceitam as armas que só Deus pode
dar [e efetivamente oferecei juntamente com a dádiva do próprio Senhor Jesus
Cristo, [o seu Filho Unigênito — João 3, 161.
[A tradução inglesa escreve: “Podemos ser armados com o próprio Se-
nhor Jesus Cristo].
Quem ousará excluir um só que seja, “do conhecimento do momento
presente”? E quem acaso haveria de excluir a si mesmo?
[“Venha a nós o teu Reino!”]

Comentários: 13, 8 - 14, 0

1. O Autor diz que no ponto culminante de nossas considerações sobre


o relacionamento entre os homens e Deus e além da possibilidade
desse relacionamento, (pelo menos conforme o imaginamos), encon-
tramos o enigmático conceito do AMOR.
O que quer Barth dizer?

769
13, 8-14 A Grande Possibilidade Positiva

Primeiramente parece-me que cada pessoa imagina o seu relacio-


namento com Deus segundo os preceitos da religião que pratica, qual-
quer que seja. Para alguns será mediante as penitências, os votos, as
promessas, as rezas; para outros será pela caridade; para muitos será
pela mística da piedade e da própria religiosidade; para outros ainda
será na esperança, pela fé nas promessas divinas ou então, talvez,
pela aceitação da graça de Deus.
Em segundo lugar, qual é o conceito do AMOR, segundo a Gran-
de Possibilidade Positiva? Não é, precisamente, o amor-renúncia, nem
o amor-sacrifício; de maneira alguma será o amor-condescendência,
o amor-compaixão. A Grande Possibilidade Positiva — o AMOR que
Barth também designa por ÁGAPE, é o amor que vê no “outro” aquele
por quem Deus mandou o seu Filho Unigênito e por quem Jesus Cris-
to morreu na cruz. É o amor que se manifesta ao “outro” porque nes-
se ser estranho vê a revelação daquele que é UM.
Seria enigmático, este conceito? Talvez sim porque o amor de
Deus é para nós, criaturas identificadas com o mundo, impregnadas
de seus interesses, de seus intercâmbios de conveniências e de seu
egoísmo — procedimento absolutamente estranho e incompreensí-
vel; o preceito de amar o inimigo é anormal e, mais do que isto, é
absurdo: a sua prática é enigma; a sua aceitação é mistério.
Finalmente, na culminância de nossa meditação sobre Deus, dentro
de nossa estruturação religiosa, se seriamente procurarmos conhecer
os caminhos do Deus Desconhecido, nos depararemos com esse amor
de Deus e, (em contrapartida, se assim podemos dizer,) com o amor a
Deus expresso no procedimento ético do amor ao próximo pois, “quem
não ama o próximo, a quem vê, como amará a Deus, a quem não vê?”
Isto talvez explique a existência do enigma; todavia por que esta-
ria o AMOR além (e, quiçá, até em oposição) ao relacionamento que
a religião apresenta?
Parece-me que a resposta é esta: a religião — (a mais elevada, a
mais séria, a mais digna do nome) — acentua a lei; destaca o manda-
mento: não matarás, não adulterarás, não... e, finalmente, ainda por
mandamento, AMARAS. Todavia o AMOR vai além do mandamento;
AMOR é a ética do mandamento posta em prática, mas não por coa-
ção; é por isto que o AMOR revolve os fundamentos da terra e tudo
quanto no mundo existe, e passa a ser a própria revolução porquanto,
pelo AMOR (Ágape) tudo se faz novo. Já não há lugar para a vingança
e retribuição de olho por olho e de dente por dente; nem mesmo da

770
A Crise da Livre Mordomia da Vida 14, 1 a 15, 13

retribuição da caridade pela caridade, do amor pelo amor, mas o AMOR


é em si mesmo soberano porquanto ele se origina cm Deus, na LIBER-
DADE de Deus, e se volta a Deus. Já não é mais “amor que com amor
se paga” mas é “o próximo” que vai ao encontro daquele que, — vítima
da maldade humana, — jaz ignorado à beira da estrada da vida, ferido,
necessitado; ainda mais: se um inimigo tiver fome, dá-lhe de comer; se
tiver sede, dá-lhe de beber. Também em meu inimigo, em meu desafeto,
em quem segundo o mundo vejo a maldade, a vileza, a má intenção, o
dolo, a mentira, talvez a ingratidão e a falsidade, o menosprezo, a trai-
ção, EM CRISTO, vejo aquele por quem Cristo morreu. (Vejo?)
Penso que Barth se refere à nossa unidade original em Deus e
com Deus, quando se refere ao enigma da natureza original; unidade
que volta quando “o próximo” — (o “outro”) — e eu somos justifica-
dos pela misericórdia de Deus, em Cristo Jesus.
O AMOR está além (e até em oposição à) religião porque a reli-
gião “ensina” a lei; o AMOR a cumpre.
2. O AMOR suprime tudo quanto existe porque aceita tudo quanto está
pressuposto naquilo que existe.
O AMOR destrói a materialidade e a materialização de todos pen-
samentos palavras e obras porque o AMOR, por seu próprio conceito,
pressupõe a perfeição que elide o que é imperfeito, porquanto o AMOR
“tudo crê”, tudo sofre, tudo espera, tudo suporta; nunca falha; não se
alegra com a injustiça; não é indecente, nem invejoso, nem leviano;
não se irrita, não suspeita mal; não busca seus próprios interesses”.
É por isto que o AMOR tudo anula e tudo supera.
A CRISE DA LIVRE MORDOMIA DA VIDA (14, 1 A 15, 13)
(Título dado a esta parte, pela tradução inglesa: “A Crise da Liberdade
Humana e Destacamento” (ou Destaque). Ver a nota de introdução à “Grande
Perturbação” — no início do Capítulo XII].
O fecho da “exortação” e principalmente da “mensagem” Paulina, apresen-
ta uma advertência endereçada essencialmente àqueles que, chegando ao fim da
Epístola, talvez julguem haver bem compreendido o que Paulo escreveu, ante a
suposição de estarem assim confirmados seus próprios pensamentos [e
autojulgamentos a respeito de seu “vigor espiritual”. A estes tais a parte final da
mensagem se dirige de modo todo especial] porquanto aqui, mais uma vez, são
peremptoriamente rechaçados todos os “sôfregos adesistas” e são repelidas todas
mãos que se levantam [em aprovação]; e é bruscamente interrompido o discurso
de todos quantos simplesmente repelem [as palavras que leram].

771
14, 1 a 15, 13 A Crise da Livre Mordomia da Vida

— O que aconteceu?
— É evidente que por entre as muitas palavras, interrogações, conceitos
e análises que surgiram e submergiram teremos, todos, vislumbrado, — pres-
sentido, [adivinhado], notado ou, talvez, até visto à distância — algum ponto
onde pudéssemos estabelecer-nos e dele viver.
Esse ponto que assim divisamos — próximo ou remoto, — pelas carac-
terísticas que o acompanham, foi por nos freqüentemente designado como a
LIBERDADE DE DEUS.
Ora, considerando que o discurso de Paulo na Epístola aos Romanos
abertamente nos incentiva [ou melhor, nos incitai a empreender uma determi-
nada conduta — [a viver uma vida que se amolde, se sujeite e siga a diretriz
que, embora com impropriedade relativa, poderíamos dizer ser condizente com
a liberdade de Deus] e que se exerce mediante a liberdade que cada pessoa tem
de adotar ou deixar de adotar o “procedimento Paulino”, designamo-lo como a
“Livre Mordomia da Vida”. “Livre” porque tal procedimento parece resultar da
descoberta da liberdade de Deus corno sendo a resposta prática e direta à gran-
de perturbação que nos vem da parte de Deus, e que assim nos constrange
[todavia não obriga].
— Quem há que ouse viver segundo essa liberdade de Deus, se nem
mesmo nos atrevemos a imaginá-la?
— Esta é a questão que a Carta aos Romanos nos apresenta.
[A tradução inglesa escreve: “Onde está o homem — pergunta a Carta
aos Romanos — que se atreverá não só a pensar na liberdade mas a, de fato,
viver sob sua direção?”].
Viver “Paulinamente” é viver livre; é estar oprimido por Deus, de todos
os lados, mas é, também, saber que se está por ele guardado em todos sentidos,
é ser constantemente lembrado da morte mas, continuamente encaminhado para
a vida; é ser desalojado do aconchego das acomodações e libertado dos com-
promissos e do enclausuramento das coisas triviais para, [galgando os patama-
res de horizontes mais amplos], consciente e em abundante vida, contemplar a
eternidade. [Viver “Paulinamente”] é ver a clareza do perdão dos pecados, ven-
do nesse perdão [concedido exclusivamente por Deus em sua plena liberdade]
a incomparável diretriz de nosso procedimento ético; é viver fundamentalmen-
te abalado, temendo todas grandezas relativas, tudo quanto [no mundo] tem
algum valor, isto é, temendo todos valores reais, estabelecendo porém, relacio-
namento objetivo com todos eles. Viver “Paulinamente” é estar firmemente
acorrentado a Deus, gozando, por isso mesmo, da maior tranqüilidade com
respeito a todas indagações, a todas exigências e a todos mandamentos que não
emanem diretamente de Deus, é ser completamente independente de todas

772
A Crise da Livre Mordomia da Vida 14, 1 a 15, 13

imposições que não sejam exclusivas e privativas de Deus — e de Deus somen-


te — de sorte que fica assim resolvida, relativizada, toda ordem [mandamento
ou regulamento], toda imposição e toda autoridade; ficam destituídas [de im-
portância, significado e poder] todas as semelhanças divinas neste mundo —
[sejam Tronos], Poderes, Potestades!
[Não é de estranhar] nem deixará de ser compreensível que aqueles que
vivem segundo o paradigma Paulino — e agora falamos da essência, [do pró-
prio cerne], do protestantismo! — se considerem fortes (15, 1) [pois os que
assim vivem] são os livres, os que gozam de preeminência, os que conhecem,
os que suportam inconcebível sobrecarga que vem da parte de Deus e, também
por isso, são os artífices de indizíveis empreendimentos divinos.
Acaso todas essas possibilidades éticas, positivas e negativas, que aca-
bamos de enumerar não apontam radicalmente para [o seu centro que é] a ousa-
dia da “impossível” possibilidade, isto é, para a ousadia da fé?
[A ousadia de crer] significa ser livre; significa não reconhecer qualquer
restrição do bem e do mal, senão a grande restrição divina porquanto, evidente-
mente só esta assegura o bem e condena o mal.
Acaso não é FORTE quem ousa avançar o grande passo da fé?
Acontece porém que agora, quando já nos saúdam as luzes do porto que
está próximo, quando PER VARIOS CASUS, PER TOT DISCRIMINA
RERUM, finalmente chegamos à interrogação que forçosamente teria de ser
respondida afirmativamente, somos barrados com um derradeiro PARE! Mais
uma vez nos deparamos com esta advertência depois de, na verdade já por
suficientes vezes, havermos sido advertidos. Mais uma vez somos freados,
mergulhados na incerteza e postos em meditação. Evidentemente precisamos
quebrar mais uma vez nosso próprio quebrantamento. E Paulo contra o
“Paulinismo!” E a Carta aos Romanos contra os próprios pontos de vista parti-
culares na Epístola! E a liberdade de Deus contra a Livre Mordomia da Vida
que, inevitavelmente, resulta dessa mesma liberdade!
Esta é a surpreendente volta que dá o capítulo XIV da Epístola o que, no
entanto, não pode surpreender ao leitor sensato pois dizemos “contra” quando
na realidade é “A FAVOR”.
Os LIVRES e os FORTES apenas são o que são por força da grande
interrogação que também se aplica à sua liberdade e à sua força.
Não somos advertidos contra a fé mas contra a NOSSA crença; não
somos postos em guarda [ou de sobreaviso] contra aquele ponto que nos é
visível, sobre o qual nos podemos firmar e pelo qual podemos viver mas, con-
tra a nossa estabilização e NOSSA vida, nesse ponto. Não somos admoestados
contra a Livre Mordomia da Vida mas contra a ambigüidade de sua aparência,

773
14, 1 a 15, 13 A Crise da Livre Mordomia da Vida

contra a segurança pela qual nos esquivamos [ou poderíamos esquivar-nos] da


crítica divina em qualquer de nossos passos, em alguma atitude ou posição, em
alguma presunção ou opinião, em algum caminho que, na prática dessa mordo-
mia, nos pareça digno de ser trilhado, ou pareça permitido e justificado.
A crítica em cujo conhecimento o FORTE tem a sua fortidão estende-se
também a ele mesmo, ao seu conhecimento e à sua força. Ninguém é justifica-
do por suas próprias qualidades, nem aquele que se sacrifica, — (12, 1) —,
nem o seguidor de Paulo, nem o que é livre [em Deus], nem mesmo o Cristão
(conforme deixamos bem claro no Capítulo 1).
É evidente que a Epístola aos Romanos nos desafia a [que pratiquemos]
mordomia específica, inteiramente definida, e quem a julgasse apenas como
diatribe teológica (o que sem dúvida, também é!) nada teria entendido da Car-
ta; absolutamente não a teria compreendido quem ignorasse a sua proclamação
ou não percebesse esta sua sonora clarinada: “... a ti se dirige este discurso; TU
DEVES!”
É claro que o sentido da mordomia a que a Epístola nos conclama é a
LIBERDADE: é [a Livre Mordomia] trazida por Cristo e considerada
desaconselhável e perigosa pelos “Grandes Inquisidores” de todos os tempos e
por eles tida como sendo a corrompida e fementida liberdade no cativeiro de
Deus. Todavia, a liberdade contida nessa liberdade de Deus e o que vive nesta
mordomia da vida é a “não justificação” de tudo quanto a criatura humana,
[como tal], designa por vida.
Se alguém, armado [e inspirado] pela Epístola aos Romanos incetasse a
luta [pela livre mordomia da vida segundo os preceitos “Paulinos”] e, todavia,
se esquivasse ao ataque que a Carta faz a ele próprio, esse tal — positivamente
— não a teria entendido porquanto, no clímax do ataque assim desferido [sem
aplicar a mesma “disciplina” a si mesmo] será afligido por sonoro “PARE” que
todavia será também sua confirmação, audível aos leitores mais sensíveis, aos
que melhor a entenderam, aos que estão, [por assim dizer], predispostos ao
“Paulinismo”.
Aqui, cada leitor é submetido à prova [e pode tirar suas próprias conclu-
sões] segundo a medida em que suporta a idéia de ainda uma vez, atento à
advertência, abrir mão de tudo quanto acreditou haver compreendido, apreen-
dido [e aprendido] na Epístola.
Se aqui não se manifestar a “Grande Perturbação”, se esta não se tornar
crítica [decisiva] para todo conhecimento — (até para o conhecimento cujo
teor é exatamente este dessossego!) — [se nesta contingência e nesta provação]
não restar [para o leitor] senão Deus e somente Deus, o Deus desconhecido e
oculto, como única fortidão dos FORTES, então tudo [quanto tal leitor pensa

774
A Crise da Livre Mordomia da Vida 14, 1-4

haver compreendido e apreendido] não passa de mero bronze que soa e címbalo
que tine.
No desfecho da Carta aos Romanos, (de maneira algo semelhante aos
epílogos dos romances de Dostoiewski) somos novamente postos ante a Impe-
netrável problemática da vida — (também da vida dos cristãos e de suas comu-
nidades!).
Não achamos saída (ou solução) para essa problemática e temos de re-
começar sempre [do mesmo ponto de partida], — vendo e sofrendo a aflição
que nossa meditação sobre Deus gerou [e gera]. Ainda uma vez temos de nos
defrontar com a realidade de nosso semelhante e que se expressa na Grande
Tribulação. — o problema ético que o próximo representa.

Vs. 1 a 4 Mantende comunhão com os fracos na fé e não susciteis dúvidas em


suas convicções! Pois um crê que de tudo pode comer porém, o fraco prova
apenas legumes! Aquele que come não despreze aquele que não conte.
Aquele que não come não julgue ao que come, pois Deus mantém comunhão
com ele. Quem és tu, para condenares o servo de um estranho? E para o
seu Senhor que ele está em pé pois o seu Senhor tem o poder para o suster

[Confrontar com a tradução de Almeida, talvez menos expressiva].


“Mantende comunhão com os fracos na fé!”
A livre mordomia da vida é uma das formas de mordomia de vida [entre
outras muitas] e, por sinal, é a que menos se destaca das demais e a que mais
facilmente desaparece; se não for assim, então algo está errado com sua supos-
ta liberdade porquanto o sentido desta liberdade não pode, em hipótese algu-
ma. ser a conduta do indivíduo, como tal, mas há de ser o procedimento do
UM, [portanto a invisível obra daquele que é invisível] no indivíduo; por isto,
[e aparentemente de maneira paradoxal], o seu sentido é a comunidade. Toda
atitude especial [extraordinária] que [essa livre mordomia] adota, põe em risco
o seu sentido básico. A coisa extraordinária dessa mordomia livre consiste em
ela não tomar atitudes excepcionais. Ela se estabelece com [plena] consciência
de que é a única alternativa possível, ao lado de outras, corno se tais houvesse.
É por isto que a pessoa [que adota essa livre mordomia para sua vida e se
orienta por ela] é forte embora tenha essa fortitude como se não a tivesse, te-
mendo imensamente sua eventual explosão. [O indivíduo que segue a livre
mordomia da vida que Paulo prega] é, ele mesmo, a própria agitação — [o
dinamismo a eletrização do ambiente], — por isso ele não entra nessa agitação
[que tudo revoluciona e transforma, tudo faz novo]; quando muito será o seu

775
14, 1-4 A Crise da Livre Mordomia da Vida

motor — [quiçá o elemento catalítico que provoca a reação, o levedo que fer-
menta a massa, o propulsor dos outros] mas então, será também, e com toda
certeza, o seu freio, [o elemento moderador].
Até ao “Paulinista” genuíno — (de passagem, note-se que se nem mes-
mo Paulo foi sempre [“Paulinista”] genuíno, o que diremos de nós?!) — falta o
necessário empenho e capacidade suficiente para se diferençar dos outros, mes-
mo quando estes, mui zelosamente, teimam em ser diferentes dele; tal
“Paulinista” não se apresenta [ou não se apresentaria] como acusador ou
fustigador dos demais, antes procura [ou procuraria] participar de seus pontos
de vista, indagando a respeito dos mesmos. O genuíno “Paulinista”, muito an-
tes dos “outros” despertarem, já foi o seu próprio opositor.
O genuíno “Paulinista” está convicto de que podem existir inúmeras
alternativas éticas divergentes dos moldes “Paulinos” todavia, as leva a todas,
[indiferentemente aos seus eventuais possíveis méritos], tão pouco a sério que
evita escrupulosamente acentuar as incompatibilidades [que as caracterizam] e
até mesmo prefere não defini-las. Se ele o fizesse estaria perdido porquanto a
sua posição não é moldada segundo determinado ponto de vista [isto é, a sua
ética não resulta de dedução ou erudição filosófica] e ai dele se consentir em
ser levado a essa arena onde a cada ponto, honradamente, se contrapõe outro
ponto [igualmente erudito e, quiçá, lógico], séria, — e solidamente — alicerçado.
O verdadeiro “Paulinista”] é ainda mais reservado que os filósofos socráticos
porquanto ele nem sequer procura despertar no seu interlocutor qualquer dúvi-
da sobre a certeza de sua convicção; para o “Paulinista” verdadeiro, o outro
deve seguir o seu caminho até o — fim (porquanto a pressuposição [da existên-
cia] do UM no outro é absolutamente fundamental.
A [ética da] livre mordomia da vida não se impõe [às demais formas de
comportamento humano] esgrimindo sucessivamente contra cada convicção,
mas reconhecendo o objetivo comum a todas elas.
Aquele que é FORTE está muito longe de praticar a “tolerância” que
abandona cada um a suas próprias convicções mas está também igualmente
distante da “intolerância” que procura extirpar do outro as convicções que
acaso tenha. Quem é FORTE aprecia a seriedade dos diferentes caminhos [e
procedimentos éticos] humanos, porém apenas na medida em que considera,
[analisa e vê] a crise da qual todos procedem; até mesmo o seu modo peculiar
de agir tem sua origem no fato de que ele não olvida essa crise, antes medita
sobre ela.
Tal pessoa tem razão apenas na medida em que não a pretende ter. Ela
age conforme deve — [conforme lhe é pertinente, isto é,] socraticamente, [qui-
çá reservadamente] desvendando [abrindo, arejando, ventilando] todas formas

776
A Crise da Livre Mordomia da Vida 14, 1

de mordomias, dissolvendo-as [dissecando-as] de forma crítica, [decisiva],


porém, como o faz?
Fá-lo não abandonando a comunidade [dos fiéis], não a confundindo,
não a bombardeando, porém nela pressupondo a existência da comunhão, que
busca e mantém.
[Tal pessoa — assim designada FORTE —] lidera sem inventar coisa
alguma; rompe [e abre as passagens], nada destruindo; brilha sem se tornar
visível, [conspícuo ou notável], vence, sujeitando-se, traz [consigo] a grande
perturbação divina não sendo, absolutamente, perturbadora.
Para que alguém cumpra tal programa [para assim se conduzir e agir
dessa maneira] é mister descer discretamente de todas alturas que houver esca-
lado, até mesmo das culminâncias que eventualmente pensar haver galgado
pela [leitura e estudo da] Carta aos Romanos!
“Pois um crê que de tudo pode comer”.
Quem não percebe a dureza do humor [ou a ironia] dessa afirmação?
Trata-se aqui da mesma FÉ (descrita nos Capítulos III e IV da Epístola) que
aceitamos [e defendemos] porém [subentendendo] a condição de que [seja raci-
onal], que venha ao encontro do bom senso, seja conforme nossa convicção inte-
ligente, sábia, [culta, quiçá liberal, como por exemplo] a “crença de que podemos
comer de tudo” (!!), a crença de que o sabor da carne e a delícia do vinho não são
pecados; a crença de que ninguém alcança a bem-aventurança pelo ascetismo e
de que não se constrói o Reino de Deus mediante reforma da vida; que para o
cristão não há caminhos, métodos ou esquemas obrigatórios nem há solicitações
ou obrigações que sejam absolutas; a crença de que não podemos elaborar dire-
trizes ou regras normativas para o procedimento dos cristãos em sua peregrina-
ção neste mundo, baseados no exemplo da vida de Jesus conforme nô-la relatam
os evangelhos sinóticos e nem mesmo tirados dos ensinamentos contidos no “Ser-
mão do Monte”; a crença de que — para citar apenas um exemplo [de natureza
política] — nem mesmo a proibição do poderio militar para o domínio dos povos
estaria perfeitamente definida [ou clara] na Escritura Sagrada (12, 18)!
— A fé? Em que crê essa crença? Acaso será “nas grandiosas elucubrações
que a ilimitada autonomia da consciência dos crentes proclama?” (Juelicher).
Este é, na realidade, um “grandioso” ponto de vista já de longa data ajustado a
todo “cidadão liberal” e a seu sacerdote, destituído de opinião própria!
[A tradução inglesa resume, escrevendo: “ [Acaso] é isto fé? Se for, em
que acredita o crente? Juelicher responde: Crê magnificamente no conceito da
consciência livre”].
Valerá realmente à pena crer que se “pode comer de tudo”? Alcançar
fortitude é assim, tão barato? O que acontecerá se adquirirmos essa força? O
que acontecerá se tivermos consciência de que estamos maravilhosamente livres

777
14, 2-4 A Crise da Livre Mordomia da Vida

de toda autoridade, tradição, regimentos [e constituições] de Igrejas, etc.? Aca-


so isto mudaria, o mínimo que fosse, a situação da criatura entre o céu e a terra?
[Seria] um paraíso assaz discreto [ou modesto], ante o qual sentiríamos
saudades, até de um mosteiro!
Todavia, quando se pergunta como se apresenta a livre mordomia da
vida, em que atividade ou retraimento nosso, ela se realiza e se obtém como
resposta, (quiçá) como no moderno protestantismo, que devemos contentar-
nos em fazer apenas perguntas [sem esperar respostas] — o que haveremos de
designar como nossa “liberdade de consciência” e (como “explicar”) nossa
crença “de que podemos comer de tudo”?
Semelhante pobreza não deveria tornar-nos sobremaneira sensatos? Não
deveria daí resultar claro para nós que o conceito do FORTE realmente não tem
fundamento ou então, que ele é a pior das ilusões?
Todavia, e em contraposição: “O fraco apenas come legumes”. Este é,
francamente, um critério que pode ser entendido. Os incultos [os ignorantes],
os “Não-Paulinos” sempre gozam da vantagem de que sua dubiedade não é
óbvia, antes parece que entre eles sempre “acontece” alguma coisa. Entre eles
vemos Igrejas fortes, seitas e facções aptas a viver; entre eles produzem-se
algumas coisas; ocupam-se cargos [e tomam-se posições definidas], delinei-
am-se perfis marcantes, existem “atos e fatos” e há campo fértil para biografias.
Entre os cristãos de Roma que apenas se alimentam de legumes vemos
os incontáveis seguidores de Orfeu, da mística dionisiana, vemos “neopitago-
reanos”, terapeutas, filopansas da antiguidade, a confraria das Ordens Mundi-
ais da Idade Média, os batistas dos tempos da reforma, os abstinentes, os vege-
tarianos, os idealistas do ar livre [os ecologistas (?) dos tempos modernos].
[Poderíamos juntar inúmeros nomes a essa lista curiosa: Macrobióticos, Iogas,
Astralistas para não incluir nomes mais próximos da grei protestante...].
Vemos [entre esses cristãos de Roma que recorrem aos legumes] a mor-
domia de vida do catolicismo — que falando com toda seriedade, deve ser
considerada grandiosa — o rigorismo da Reforma e também Tolstoi, com boa
parcela de socialistas e pacifistas religiosos.
Somos levados a meditar sobre como essa mordomia surge (e sempre
continua surgindo) organizando-se verdadeiramente em profunda seriedade e
respeitável perplexidade, com liberdade e disposição ao trabalho e ao sacrifício.
É com tributo de louvor que pensamos na longa lista de heróis, santos,
mártires e profetas cujo SER e QUERER cresceu [e se desenvolveu] nesse solo.
Sem dúvida, entre toda humanidade, os vultos mais dignos de honra, —
de uma ou outra maneira — pertenceram à linhagem daqueles cristãos de Roma
que se alimentavam com legumes somente.

778
A Crise da Livre Mordomia da Vida 14, 2-4

Com respeito à tragédia que inevitavelmente acompanha este quadro Idos


fracos], já no final da Epístola, não vamos gastar mais nenhuma palavra. Apenas
AO FRACO, — (que na verdade, tanto histórica como psicologicamente nada mais
é do que FRACO!) — contrapomos o FORTE para também a este lembrar de sua
tragédia e para lhe perguntar se, realmente, a sua fortitude “crendo que pode comer
de tudo” é tão superior à crença do fraco que apenas come legumes, a ponto de
justificar que possa segregá-lo de seu convívio em vez de manter com ele comunhão!
Não seria o caso de reavaliar e contra-avaliar os pontos de vista de um e
de outro? [Acaso] não poderia acontecer que o ponto de vista católico, ou o dos
batistas, ou de algumas de suas variantes levasse vantagem, pelo menos em
confronto com o “protestantismo moderno”?
Acaso a realidade paradoxal de que a fortidão do forte consiste exata-
mente na marcante ausência de caracterização, não o deveria impedir de ali-
mentar e ressaltar as características individuais que exibe? Em qualquer hipóte-
se, a mera lembrança da absoluta inutilidade de sua condição de fortes, quando
contrastada com a posição dos fracos não deveria ensinar-lhes a não procura-
rem suas forças na fortitude?
Dizemos: “Não desprezeis” “Vale dizer: “Não julgueis!”.
Parece não ser prudente opor a “liberdade de consciência” ao “rigorismo”
ou vice-versa; pelo menos, de modo algum, contrapor a liberdade ao rigorismo
pois, nessa polêmica os FORTES nunca poderão ter razão. Nessa discussão se
focaliza sempre o desprezo ao intelectualismo, ao entusiasmo, ao “farisaísmo”
do lado oposto e o homem reformista [rigorista] é vezeiro em responder ao
homem espiritual com redobrada energia, acusando “a carne que vive mansa e
suavemente em Wittenberg”.
[A tradução inglesa traz nota explicativa sobre esse trecho, informando
que a referência do Autor é ao título de panfleto publicado por Thomas Muenzer
— “o Anabatista”, em 1524, O título completo desse panfleto é “Defesa e res-
posta altamente provocadas pela carne que desespiritualizada e mansamente
vive em Wittenberg e que, de forma errônea, mediante o furto da Sagrada Es-
critura, enxovalhou tão lamentavelmente a infeliz cristandade”]. [Podemos in-
ferir que “a carne” seja Lutero(!)].
Trata-se de “CÍRCULO VICIOSO”. Ambos os acusadores (O Fraco e o
Forte) têm razão; (o que come legumes tem vantagens aparentes) porém, so-
mente na acusação. De nada adianta prosseguir nessa polêmica. O FORTE, se
realmente o for, deverá saber isto. A esta altura as partes não estão em pé de
igualdade, o que o FRACO, todavia, não tem condições de saber.
Todos “reformistas” são fariseus; falta-lhes o senso de humor [ou o bom
senso] e não podem deixar de condenar os outros. Retire-se de um abstinente,

779
14, 2-4 A Crise da Livre Mordomia da Vida

de um verdadeiro socialista religioso, de um homem de Igreja ou de um pacifis-


ta, a emoção [ou a paixão] da indignação moral e ele cairá por terra com a
espinha dorsal partida.
Aquele que come legumes vive — (e nisto encontra o consolo de sua
pacífica maneira de se alimentar) — do seu protesto íntimo ou público contra a
loucura do mundo, sobre ela meneando sua cabeça; vive de sua segregação dos
demais porque ele próprio não conhece a tragédia da vida humana que, por sua
imensidade, deveria fazer toda boca calar-se.
Todavia não é do FRACO que agora temos de nos ocupar [conforme já
foi dito mais atrás], mas do “Paulinista” que faz de sua liberdade uma “causa”,
comprovando assim que é mais fraco do que os FRACOS. Este “Paulinista”
deveria saber aquilo que seu opositor — (a quem ele nem deveria considerar
como opositor) — não sabe: “Deus mantém COMUNHÃO com ele” — [a
saber], com o OUTRO, [em qualquer dos casos]. “Quem és tu que condenas o
servo de um estranho?”
Se soubesses o que significa JUSTITIA FORENSIS então não exibirias
teu conhecimento contra os que não sabem. ELE fala por eles! “Para seu Se-
nhor estão em pé ou caem.”
Acaso a invisibilidade de Deus, sua justificação livre de qualquer moti-
vação [humana], não seria também a favor dos “fracos na fé”, dos incultos, dos
“não-Paulinistas”?
Acaso alguém que tenha tido — ainda que — apenas um vislumbre
[uma pálida percepção] dessa inaudita verdade de que Deus mantém comu-
nhão com o ser humano exclusivamente por misericórdia, poderia desprezar
um outro porque este não percebeu esta verdade mas, em seu otimismo, conti-
nua prosseguindo, esperançoso, nesta constante e íngreme rampa moral?
Acaso está fora da possibilidade divina ter comunhão — não apenas
com publicanos e meretrizes — mas também com fariseus?!
“Todavia ele permanecerá em pé porque o senhor tem poder para o suster”.
Acaso o “Paulinista” não se transforma em antifarisaico fariseu e se põe
em falta no mesmo dia, — ou melhor no mesmo instante em que “despreza” o
moralista? Ao desprezar o fariseu que acolá acusa um terceiro, ele — (o
“Paulinista”), também está acusando e, fraco, — muito fraco, — é quem con-
sente em ser levado à posição de acusador.
Quem é senhor? Quem deve julgar? Quem tem condições — para derrubar
ou para manter em pé? — Será o homem, ou Deus? O FORTE deveria sabê-lo!
Então, quem sabe o que sabemos — Deus o sabe — O FORTE nada tem de antemão!
Quem julga ter qualquer vantagem, “não sabe o que sabemos!” Só há
uma antecipação, e esta é desde a eternidade, desde o começo dos tempos para

780
A Crise da Livre Mordomia da Vida 14, 2-6

o gênero humano]: é a Eleição divina. Desta “antecipação”, porém, (podem


participar todos); nela pode ter parte um ingênuo vegetariano de hoje em toda
sua inquebrantabilidade e eventualmente até com vantagem sobre alguém que
conheça de cor a Epístola aos Romanos, da frente para trás e de trás para frente.
Deus pode ter mais prazer em qualquer ato de monasticismo do que na segu-
rança do teu protestantismo, oh néscio! “Deus mantém comunhão com ele” e
“tem poder para o suster em pé!” Na verdade, esta possibilidade deveria ani-
mar-nos a também manter comunhão com aquele [que goza até do privilégio
da comunhão divina]. Se não o fazemos, se queremos ser fortes “a toda prova”,
então certamente estamos fracos.
Se não tivermos sabedoria suficiente para descermos da altura de nosso
conhecimento imediatamente após a havermos atingido, então evidentemente
não somos sábios. Se quisermos novamente ser plenos de “caráter” então, nesta
mesma intenção certamente renunciamos ao CHARACTER INDELEBELIS.

Vs. 5 e 6 Unia observação secundária: Um também faz diferenciação entre


dias e outros consideram todos os dias iguais. Cada um esteja contente
com sua própria convicção. Também aquele que come, para o Senhor o
faz, porquanto nisso dá graças a Deus; e aquele que não come, deixa de o
fazer para o Senhor; também ele dá graças a Deus, nisto.

[Em nota de rodapé o Autor refere-se ao primeiro “também” do v. 5,


observando que este advérbio não deve ser omitido e diz que “os vs. 5 e 6
(conforme Zahn e Kuehl) contêm rico ‘ensinamento paralelo’ mediante o exem-
plo de práticas alternativas (a versão inglesa escreve, ...! mediante a ilustração
de falta de uniformidade!) na cristandade, como diversificações reconhecidas e
permitidas na mordomia da vida”].
Existem, evidentemente, diferenças que são toleradas mutuamente; nelas
o forte compreende o rigor do fraco, inda que não se submeta a esse rigorismo.
Ele silencia, considera e espera. Ele sabe que não se trata de dizer apressadamente
o que pensa com convicção, contra o ponto de vista ou o procedimento] do
outro ou, de combater o outro, porém trata-se de ter consciência e estar certo de
que seu próprio modo de ver e examinar a questão são corretos perante Deus
porquanto “neles há, não raro, mais flexibilidade [quiçá mais caridade cristã e
comunhão com o próximo], do que [agindo apenas] pela consciência claramente
informada” — (Steinhofer). [Quando o FORTE assim age é porque] percebe
que o “RIGOR” é exercido “para o Senhor” e por trás desse rigorismo existe a
perplexidade que se origina em Deus, mesmo que mal compreendida; ele

781
14, 5-12 A Crise da Livre Mordomia da Vida

considera [e conclui] que “o navio navega bem melhor em mar aberto todavia,
se preciso for, também pode singrar em canais estreitos”. (Bengel).
Entendendo o FORTE melhor o que se dá com o FRACO do que aquilo
que se dá com ele mesmo, seria o caso de estender as situações isoladas a
conjunturas mais amplas, generalizando-as talvez: “Ele agradece a Deus, nis-
so”. Esta referência a Deus é que decide sobre o valor ou o desvalor do proce-
dimento humano; ela é a balança na qual se deita o rigor do rigorismo e tam-
bém a liberdade dos livres. “A criatura humana, em sua oscilante constituição
espiritual, está na inteira dependência do gesto divino sem se atrever a mover,
sequer, um dedo. Esta é a lei básica de nossa existência”. (Calvino).
Todavia, a aplicação dessa regra, por sua própria natureza, é invisível
aos outros.
O que faremos se os “FRACOS” pretenderem afirmar a existência de
Deus por seu fanatismo e, mui especialmente, se for absolutamente claro para
nós que seu relacionamento com Deus se fundamenta em processo idólatra?
(Contudo, ao ponderarmos sobre isto precisamos lembrar-nos de que] é possí-
vel que nessa “afirmação” dos FRACOS eles tenham Deus em suas mentes,
que o teor do seu procedimento — realmente — faça sentido e tenha significa-
ção e pode, até mesmo, ter o sentido de demonstração necessária e conveniente
em honra a Deus, conquanto nem se pode admitir que para Deus o “comer” —
[que “alguns” entendem ser sinal de fortitude cristã”] — seja mais agradável
do que o “não-comer” [que os fracos defendem].
É a consideração sobre a “predestinação — da qual o fraco sequer tem
noção— que estimula [e ensina] ao forte a se colocar na mesma fila dos FRACOS.

Vs. 7 a 12 Agora uma observação básica: Porquanto nenhum de nós vive para
si mesmo e ninguém morre para si mesmo. Pois se vivemos, para o Senhor
vivemos e quando morremos, para o Senhor morremos. Por tanto, quer
vivamos quer morramos, somos do Senhor Foi por isto que Cristo morreu
e tornou a viver: afim de que seja Senhor sobre os mortos e sobre os vivos.
Tu, pois, o que acusas em teu irmão? Pois todos compareceremos perante
o tribunal de Deus, conforme está escrito: Tão verdadeiramente quanto
vivo, diz o Senhor perante mim se dobrará todo joelho e toda língua me
confessará! Portanto, cada um de nós precisará prestar contas de si mesmo.

Ser FORTE significa reconhecer que a criatura humana, como tal, se


encontra em crise que de forma alguma pode ser evitada. Nenhum de nós vive
para si”; “se vivemos, para o Senhor vivemos”. Não há vida em si; só há vida

782
A Crise da Livre Mordomia da Vida 14, 7-12

referida a Deus, [vida] que está sob o julgamento e ante a promessa de Deus;
esta vida é caracterizada pela morte mas é também qualificada pela esperança
da vida eterna, mediante a morte de Cristo. E isto o que a crise da “livre mordo-
mia da vida” e do “rigorismo”, representa; [a crise é uma só pois] tanto a “liber-
dade” como o “rigorismo”, evidentemente, objetivam a vida. Porém a VIDA,
na vida, está na liberdade de Deus o que para nós, é a morte, pois somente
vivemos para o Senhor.
Acaso esta destinação da livre mordomia da vida seria menos crítica
[menos decisiva, quiçá mais complacente] do que para os “RIGORISTAS”
porque os primeiros objetivam conscientemente a vida eterna enquanto para
estes o conceito de “vida” que procuram ainda não foi acrisolado [isto é, ainda]
está contaminado pela desconfiança de que se trata apenas de vida biológica?
Contudo, a “consciência” (dos FORTES) acaso não é também vida bio-
lógica? Como poderia [ainda que fosse] o mais poderoso [o mais forte, o supre-
mo] “ato de pensamento” ter latente em si a segurança e a justificação para a
criatura humana, [qualidades essas] que justificassem a superioridade [desse
“ato de pensamento”] sobre os demais? [E o que podemos nós reconhecer e
fazer valer como “ato de pensamento”?].
Somente o Senhor é a segurança da promessa. [Ele só é o avalista!] “Se
o Senhor não edificar a casa, em vão trabalham os que a constroem”.
Acontece porém que, em todas circunstâncias, o Senhor é também o
juiz e nossa esperança somente é viva, mediante a morte de Cristo.
Inversamente, “ninguém morre para si”. Quando morremos, para o Se-
nhor morremos”. Não há morte em si; só há morte referida a Deus; é a morte
que nos cerceia e enquanto assim nos cerca e prende, dá-nos saída para Deus;
esta é a morte daquilo que designamos vida e que é qualificada pela ressurrei-
ção de Cristo como o sinal de nossa adoção [por Deus, como filhos seus].
Também esta morte está no teor da crise, tanto para o “Rigorismo” como
para a “Livre Mordomia da Vida” pois ambos esses procedimentos, cada um a
seu modo, têm a morte em mira.
Porém, a MORTE na morte, está na liberdade de Deus, o que para nós é
a vida, pois somente morremos para o Senhor.
Aqui, novamente, precisa o FRACO purificar-se da desconfiança de
que nessa negação relativa, nessa supressão, nesse debate que consubstancia
sua mordomia de vida, se trate simplesmente de morte biológica, enquanto o
FORTE, com circunspecção e maior tranqüilidade, sabe que a morte que temos
de buscar é aquela qualificada pela ressurreição e nenhuma outra; todavia,
nem pôr isso a referência à realidade da morte é menos crítica para ele por-
quanto o que mais pode ela fazer valer, se não um determinado conhecimento

783
14, 7-12 A Crise da Livre Mordomia da Vida

que tem a expressão de simples analogia (ou parábola) ante sua efetiva morte
biológica?
De que maneira poderia a nossa meditação sobre as coisas eternas justi-
ficar-nos e de que forma a nossa aceitação da reconciliação mediante a morte
nos reconciliará com Deus?
Somente o Senhor é o fiador da ressurreição. “Quando o Senhor não
guarda a casa, em vão vigiam as sentinelas”. Todavia [ainda uma vez], em
qualquer circunstância o Senhor é também o juiz; e o sentido da cruz, sob o
qual todos estamos, somente é dado pela ressurreição de Cristo. Por isso, “quer
vivamos quer morramos, somos do Senhor. Foi por isto que Cristo morreu e
tornou a viver: a fim de que seja Senhor sobre mortos e sobre vivos”.
Ser forte significa reconhecer a Deus em Cristo mas, isto, na crise derra-
deira e inevitável de nossa vida e de nossa morte, nesse ponto onde nada mais
existe senão a misericórdia de Deus. Ser FORTE significa temer e amar a Deus
sobre todas as coisas, conforme ele vem ao nosso pensamento na mais alta
categoria dialética: como o SENHOR.
Se estivermos cientes [e conscientizados] de que “para o Senhor vive-
mos”, então reconhecemos que não podemos pretender obter qualquer justifi-
cação — (por exemplo a auto-justificação) — pelo nosso SIM nem pelo nosso
NAO, ao lado da justificação que só Deus pode dar, [ou que pudesse ser igual
ou semelhante a essa].
Nem nossa vida, nem nossa morte; nem nosso SIM, nem nosso NÃO;
nem o “Rigorismo” nem a “Livre Mordomia da Vida” fazem jús à justificação
divina; isto não o sabe o FRACO e é o que constitui a sua fraqueza; por isso
mesmo o FORTE precisa sabê-lo tanto melhor e portanto, na hora de agir, quando
chega a ocasião de curvar-se (e render-se) ante o mistério divino, não pode
esperar pelo FRACO porém, compete-lhe dar o primeiro passo, o passo da
humildade, sabendo que nada sabemos, porque sabemos que Deus o sabe!
“O que condenas, pois?” Ou então, perguntando muito mais objetiva-
mente: “O que desprezas tu? Aquele que desprezas é “teu IRMÃO!”
Não há qualquer razão (ou pretexto) para destruir a comunidade e exis-
tem inúmeras [ou todas] para a manter e preservar.
“Para o Senhor” é a grande verdade crítica sob a qual. como criaturas
humanas, estamos no mundo. (Esta verdade não diz respeito a FRACOS ou
FORTES mas a todos, reunidos em Cristo que está perante Deus, como nosso
IRMÃO!) Esta verdade crítica aponta a uma só coisa: “Todos compareceremos
perante o tribunal divino”.
Acabamos de ouvir que o SENHOR é o Juiz sobre vivos e mortos. Pre-
cisamos examinar isto sob todos aspectos.

784
A Crise da Livre Mordomia da Vida 14, 7-12

Porque o FUTURUM AETERNUM desse comparecimento é a realida-


de decisiva de nosso SER e ESTAR; porque todos compareceremos perante o
tribunal de Deus, haveremos todos de comparecer quais somos: uns como for-
tes e outros como fracos.
Todos, — espantados com esta realidade final [da Epístola], de que “so-
mos do Senhor” — tentamos, de uma ou outra maneira, fazer a vontade de
Deus, organizando a “mordomia” de nossa vida. (Isto não significa, porém, que
nesta tentativa estejamos agindo sabiamente ou não). No mesmo mistério pro-
clamado, na mesma perplexidade e na mesma esperança separam-se os cami-
nhos. Um segue para a liberdade e outro para o rigorismo. Uns são os FORTES
e outros os FRACOS, porém todos compareceremos perante o tribunal de Deus;
porque o julgamento divino e a dupla predestinação são a realidade decisiva de
nossa vida e de nossa morte. Trata-se da indubitável eleição dos primeiros e
rejeição dos últimos porquanto o sentido da liberdade de consciência é
declaradamente o reconhecimento da liberdade de Deus e de sua obra enquanto
o sentido do rigorismo é, também declaradamente, o reconhecimento do aprisi-
onamento da criatura e de suas próprias obras.
Porém, em vista de estarmos perante o tribunal de Deus, porquanto
estamos decisivamente sob a realidade de que é Deus quem elege ou condena,
a situação não confere nenhum direito — nem o mínimo sequer, — aos FOR-
TES (“aos eleitos”) sobre os FRACOS (os “rejeitados”), — [nem estão estes
em desvantagem com relação àqueles].
A fidelidade de Deus justifica pela fé; e o conhecimento humano é ver-
dadeiro na medida em que for conhecimento de Deus; semelhantemente, a es-
perança de nossa salvação é esperança em Deus e também o amor é o caminho
mais excelente sendo o amor de Deus. Portanto, jamais se gera qualquer direito
ao amor na esperança, no conhecimento ou na fé, antes: “Perante mim se do-
brará todo joelho e toda língua me confessará!” (Isa. 45, 23).
Quando e na medida em que o ser humano colocar a sua própria “pieda-
de” [ou religiosidade] no lugar de Deus e da liberdade divina, a ética daí resul-
tante — qualquer que seja — terá a rejeição de Deus. A conduta humana ape-
nas (“eventualmente poderá”) alcançar a eleição divina na medida em que [ge-
nuína e existencialmente] renunciar vantagens, direitos, prerrogativas e renun-
ciar à idolatração desta ou daquela determinada “religiosidade” [ou santidade].
É por isto que “cada um de nós precisará prestar conta de si mesmo”,
pois o que sabemos da renúncia dos ‘outros”? Vemos apenas o modo de agir de
cada um, a sua “religiosidade”. Como saberemos se ele, acaso é eleito justa-
mente naquilo em que pensamos ver sua condenação? Como saberemos se ele.
acaso é FORTE em sua aparente fraqueza?

785
14, 7-12 A Crise da Livre Mordomia da Vida

No “outro” somente podemos ver a pessoa julgada ou a ser julgada por


Deus, isto é, vemos a pessoa que esta perante Deus além de tudo quanto possa
ter algum significado para a conduta humana, portanto também além dos con-
trastes entre eleição e rejeição.
Somente podemos ver o FORTE em Cristo e no FRACO somente pode-
mos ver nosso irmão. A pergunta socrática, [quiçá a pergunta investigadora e
detalhadora] sobre o Cristo e a pessoa de nosso irmão na figura do FRACO
somente pode ser formulada [e examinada] por nós se renunciarmos [existenci-
almente] a todas as vantagens de que real ou supostamente gozamos ou que
“houvermos adquirido”, mesmo aquelas oriundas da renúncia fundamental que
nos tornou FORTES.
Tudo quanto de antemão pudéssemos ter de vantagem sobre os outros é
duvidoso, isto é, não é ganho líquido e certo.
[A tradução inglesa escreve: “Toda nossa suposta superioridade sobre
os outros é duvidosa”].
Temos de apresentar, de nós mesmos, a mais pesada prestação de contas
por isto, todo julgamento feito segundo critérios históricos ou psicológicos (Mat.
7, 1), é improcedente, e isto se estende até à dúvida que a respeito da validade
de tais ou quais critérios têm os membros mais tímidos das igrejas, os sectários
mais severos, os fervorosos religiosos-sociais e, com eles, toda sorte de fariseus
da liberdade.
É improcedente a interrogação sobre a salvação da alma do “outro”, sob
qualquer aspecto e [é indevida] a tentativa de julgar o relacionamento de al-
guém com Deus, de onde quer que essa tentativa venha, porquanto TUDO está
sujeito ao juízo de Deus.
Não julgueis! Esta é a única possibilidade que, todavia, não é uma pos-
sibilidade, não é receita, não é norma de conduta porém é a atitude em que nos
colocamos sob o juízo que nos espera, na esperança da impossível possibilida-
de da misericórdia de Deus — esperança essa para a qual, [na realidade], —
não temos qualquer fundamento — [senão a promessa divina — de Cristo:
“Quem crer em mim, de maneira alguma morrerá!”].
Esta advertência sobre a disposição teórica da Livre Mordomia da Vida
em confronto com o rigorismo, precisa ser analisada também em relação à sua
exeqüibilidade “prática”.

Vs. 13 a 15 Por isso não nos acusemos mais mutuamente porém comprovai
vossa aptidão para julgar não ofendendo nem escandalizando o irmão.
Porquanto eu bem sei, e estou firmemente convencido no Senhor, que nada

786
A Crise da Livre Mordomia da Vida 14, 7-15

é impuro em si mesmo e que [as coisas] somente são impuras para quem
assim [as] considera. Se, porém, por teu comer teu irmão ficar em cons-
trangimento, então já não procedes na conformidade do amor Não destru-
as por teu comer aquele por quem Cristo morreu.

O ponto de vista da Epístola aos Romanos, como tal, é o ponto de vista


de Deus. Julgar alguém, à luz desse ponto de vista, seria condenar essa pessoa
em nome de Deus, [declarar a sua condenação por Deus], acarretar-lhe a ofensa
e o escândalo que vêm de Deus. A simples lembrança disto deveria esmorecer
em nós toda e qualquer pretensão a julgar [o próximo].
[A análise da exeqüibilidade prática do exercício da “Livre Mordomia
da Vida”, a que mais atrás nos referimos] não trata da assimilação do “ponto de
vista” de Deus que a Carta aos Romanos apresenta, porém, de tê-lo em mira
sob todos os ângulos para sobre ele meditar e viver nessa meditação.
Julgar, significa “declarar culpado” [ou, eventualmente, “declarar ino-
cente”] e envolver determinada atitude em ira (ou, ainda em contraposição,
cobrí-la pela aceitação ante sua própria inocência ou pelo perdão, que é ação
“subjacente” no ato de julgar].
[No relacionamento da criatura com o Criador] o julgamento [com to-
dos os atos a ele correlatos ou dele decorrentes] é indubitavelmente prerrogati-
va exclusiva de Deus, sempre continuadamente por ele praticada e, como obra
sua, constitui invisivelmente uma única peça, (uma só coisa), ao lado do perdão
e da justificação.
Por outro lado, o julgamento que fazemos é desastrosamente unívoco;
não temos a liberdade divina de condenar e eleger [e o que é ainda mais terrível
para quem se atreve a avocar a si o privilégio divino — não temos meios para
penetrar nos recônditos mistérios da fé ...]; onde e quando pronunciamos a
condenação, nela nos fixamos e nessa atitude erigimos o ídolo da ira divina
[isto é, fazemos da “ira de Deus” um ídolo].
Esta é a forma de julgamento a que o FRACO, em seu monasticismo [ou
seu fanatismo], se entrega permanentemente; toda via, também o FORTE o faz
quando pelas suas recriminações — e talvez, ainda mais, pela sua comiseração
— provoca os que comem legumes, tornando-se assim “menosprezador”, quer
dizer, acusador — é portanto, [também ele], FRACO, [verdadeiro] fariseu da
liberdade.
A “Capacidade do Discernimento” que o FORTE, como tal, sem dúvi-
da possui, tem de se manifestar de outra maneira; [esse discernimento] há de
aplicar-se [primeiramente] contra ele mesmo, precatando-se para de forma
alguma considerar ou dirigir-se a seu irmão como se este fora o objeto da ira

787
14, 13-15 A Crise da Livre Mordomia da Vida

de Deus (porquanto tal ajuizamento, conforme o FORTE bem deveria saber,


não compete ao ser humano!). Desta maneira, a “capacidade de discernimento”
não apenas protege a quem a tem contra a prática do julgamento como tam-
bém contra o risco de suscitar “ofensas” e “escândalos”.
[Todavia], essa conduta [de moderação e prudência], também, apenas é
divina sendo de Deus pois, como obra humana (por ter então sentido exclusivo,
unívoco) é completamente impossível;) [inviável e contraproducente].
“Escandalizar” ou “ofender” significa induzir ao erro, ofuscar, obstinar,
separar de Deus, suprimir as possibilidades de arrependimento. É fora de dúvi-
da que Deus faz isto. (9,33). Todavia, [novamente aqui], no teor da invisível
obra divina tal procedimento [tal tropeço] está intimamente ligado [e constitui
peça única] com o seu oposto. [O próprio versículo citado diz: Todavia, “quem
crer não será confundido.”].
Enquanto Deus, pela ofensa e escândalo que gera, põe em ação sua sen-
tença condenatória, também aceita a criatura. Há a promessa e existe a esperan-
ça, [também], onde Deus condena e obstina (Cap. XI!). É da mesma pedra na
qual tropeçam os rejeitados que se diz: “Quem nela crer não será destruído.” (9,
23-33). É diferente se a pessoa, colocando-se no lugar de Deus, causar ofensa:
não provocará libertação mas, obstinação; oprimirá e não descerrará; matará e
não vivificará.
Acaso aqueles bem intencionados que em seu rigorismo alimentam-se
de legumes somente, obtiveram algum outro resultado se não, possivelmente,
ode que muitos tivessem seus olhos fechados, fossem amargurados e ficassem
privados do arrependimento?
O mais nobre farisaísmo jamais agiu senão [como fator] negativo e de
obstinação. Todavia, também o farisaísmo da liberdade de consciência — a
crença de que podemos comer de tudo, age negativamente quando não houver
“capacidade de discernimento”, quando não houver liberdade na liberdade, nem
possibilidade de, — talvez apesar da própria fé — não comer de tudo. Vê se
então novamente que o maior direito é também o maior erro se o tomarmos
como nosso direito.
“Eu bem sei e estou firmemente convencido no Senhor Jesus que nada é
impuro em si mesmo”. O ponto de vista do qual parte o “irmão” é errado e é de
antemão invalidado por Cristo. Monasticismo e reformismo da vida —
[rigorismo] — têm seu valor como semelhanças [analogias ou parábolas] po-
rém não têm valor em si mesmos. Jamais — e em nenhum sentido — são de-
graus de acesso ao Reino dos Céus.
Assim como existe um só bem também só há um único mal; assim como
só há uma coisa pura também só há uma única coisa impura, a saber: tudo [o

788
A Crise da Livre Mordomia da Vida 14, 13-15

que é do mundo] é impuro para Deus; conseqüentemente nada é particularmen-


te impuro e todas constatações de que esta ou aquela coisa específica seja im-
pura se originam da ilusão, íntima ou declarada, de que nem tudo seja impuro
perante Deus ou então a recusa, também íntima ou publicamente confessada, à
prática do arrependimento.
A [honestidade ou a] seriedade de propósitos dos ascetas e de todas
pessoas empenhadas na reforma da conduta dos indivíduos precisaria crescer
muito para que ficasse à altura do problema do mal [que com seu rigorismo
pretende resolver].
“Todavia [as coisas] somente são impuras para quem assim [as] considera”.
Admitamos que alguém, errando, (conforme já o demonstramos) adote
semelhante ponto de vista [isto é, considere alguma coisa como sendo impura]
e que essa pessoa se tenha firmado nessa conclusão errônea sentindo, portanto,
repulsa por algo específico. Parece-nos, então, evidente que o modo de ver
dessa pessoa ou o encaminhamento de seu raciocínio é diferente daquele que
nós seguiríamos pois a conclusão a que chega deve ser justa e certa segundo
seu modo de pensar e não pode ser contestada. A tabuada pela qual tal pessoa
opera certamente é correta; o erro está nos valores atribuídos às cifras. A serie-
dade e o discernimento de sua repulsa são justos [e até excelentes]; apenas é
fatal a arbitrariedade na escolha de seu objeto.
Por isso, tal pessoa precisa ser reconduzida à sua origem: como foi que
ela se fez?
Sob o ponto de vista humano foi, evidentemente, pelo mesmo sadio
dessossego da vida que dá origem à liberdade de consciência do FORTE; foi da
mesma premente consternação que a derradeira questão suscita também neste,
e da mesma ânsia de alcançar a justificação de Deus que este cultiva. Portanto.
se agora quem assim se fez precisa ser reconduzido à origem, o dessossego, a
interrogação consternadora e o anseio, [comuns às duas evoluções], precisam
ser resguardados [preservados]. A liberdade na qual cada pessoa está — mui
particularmente no instante de sua mais profunda aflição, — não pode ser per-
turbada. Todavia, quando a pessoa é obrigada a abandonar a conclusão a que
suas deduções anteriores a levaram sem ver e reconhecer o seu erro, fatalmente
surge essa perturbação, endurecendo a pessoa, [não como obstinção mas como
insensibilização, isto é, esse “endurecimento” nada tem a ver com o de Faraó,
por exemplo, antes deve ser entendido como indiferença, desinteresse e, neste
sentido sim, recusa obstinada em aceitar; em outras palavras] a firmeza e a
decisão [com que a pessoa outrora defendia o rigorismo”] deixam de ter razão
de ser e ela se torna leviana, indiferente, imprecisa [justamente naqueles pon-
tos] onde antes era ponderada, severa, definida; em vez de se radicalizar e com

789
14, 13-15 A Crise da Livre Mordomia da Vida

seu antigo vigor e rigor romper com o passado e ir ao encontro da liberdade de


Deus onde “todas as coisas são puras, para os puros” (Tit. 1, 15), [o rigorista
“humanamente” reconduzido à origem corre o risco de entrar no marasmo das
acomodações e, depois de se haver escandalizado com a ostentação, com o
‘Titanismo” dos “FORTES”, seguir tropeçando nas pedras postas no caminho
pelos sábios e iluminados ensinamentos dos modernos sustentáculos das igre-
jas — (quiçá pelos paladinos da tolerância, do ecumenismo e do evangelho
social) — e assim, de pois de muito haver tropeçado e algumas vezes caído,
finalmente, “nem quente nem frio” será lançado fora ou... quem sabe? “Tam-
bém a este Deus o receberá!”]
A possibilidade de arrependimento de cada pessoa está condicionada a
que percorra seu caminho até o fim porquanto o arrependimento é o único
procedimento que, como fim da criatura humana [no mundo] e seu novo come-
ço em Deus tem, por assim dizer, [as características dai individualidade,
unicidade e originalidade que ninguém pode tirar do outro. [O arrependimento
será, necessariamente, a última etapa do caminho para o retorno a Deus].
“Se porém, por teu comer, teu irmão ficar em constrangimento, então já
não procedes na conformidade do amor”.
Constitui constrangimento ao próximo todo ato [ou procedimento] pelo
qual perturbo sua caminhada; [todo comportamento ou exemplo] pelo qual o
estimulo a fazer o que ele, [no seu próprio conceito] não faria [ou pensa que]
não deveria fazer; [toda atitude ou ensinamento] mediante o qual abafo e neu-
tralizo a inquietação que sua teimosia e seu capricho (seu rigorismo), escon-
dem; em que o ajudo a alcançar uma paz, [um sossego, uma segurança] que ele,
absolutamente, não deve sentir.
[Constrangimento ao próximo] é toda ação [exemplo, ensinamento ou
pregação] que dele afaste a necessidade [e a urgência] do arrependimento. Se
assim eu o vencer, eu o conquisto, porém pelo seu desencaminhamento. Com-
bato o titanismo de sua atitude moral, conforme a vejo, sem procurar o motivo
dessa posição, [sua origem] mais profunda e conseqüentemente o lanço em
titanismo inda mais perigoso — [a presunção] da liberdade. — no qual eu mes-
mo [em minha fortitude] estou entalado.
Mostro-lhe uma liberdade que é, para ele, o pior dos cativeiros. Trans-
mito-lhe um conhecimento de Deus que mais propriamente se chamaria “co-
nhecimento de Satanás”. Talvez esteja eu, assim, a preparar-lhe o escândalo
que Deus, inevitavelmente lhe deparará — (é necessário que venham escânda-
los). Talvez aquilo que lhe impinjo até seja o “final do caminho” [e que portan-
to eu não esteja perturbando sua marcha e, quem sabe até estou ajudando . ..] e
nisto lhe seja dada a possibilidade do arrependimento. Talvez ao induzí-lo à

790
A Crise da Livre Mordomia da Vida 14, 13-18

tentação eu o esteja afastando de sua própria pessoa, e o esteja levando além da


inquietação de sua vida à presença de Deus.
Contudo. — [“ai daquele homem por quem o escândalo vem” Mat. 18, 7],
— o que posso eu saber “e conhecer” disso tudo? Como haveria eu de me
atrever a agir nessa hipotética possibilidade divina? Já “não estarei andando
segundo o amor” se na fraqueza do próximo eu esquecer a existência do meu
irmão em meu semelhante; do UM, no outro; e de Cristo, nesse [e em qualquer]
“próximo”.
Não sou justificado porque tenha razão nem porque Deus a tem. Portan-
to, “não destruas pelo teu comer aquele por quem Cristo morreu.”
Cristo morreu POR ele; eu, porém, como CONTRA ele! [Cristo, por
ele, se entregou à cruz; eu, contra ele, me entrego ao prazer da mesa!...] Isto é o
impossível absurdo da minha mais alta possibilidade — a saber, o absurdo da
minha religião [intelectualizada]; é o erro da minha suprema retidão.
Nenhuma vitória da minha liberdade de consciência — minha crença de
que “de tudo me é lícito comer” — me justificará a partir do momento em que,
assentado sobre o trono de Deus passo a “ofender e escandalizar” trazendo
confusão a meu irmão em vez de dar lugar à ira de Deus: nesse instante cessam
minha liberdade e minha fé e todo meu saber passa a ser como se eu nada
soubesse.

Vs. 16 a 18 Vosso bem não deve ser blasfemado porquanto o Reino de Deus
não consiste no comer e no beber mas na, justificação, na paz e na alegria,
no Santo Espírito. Quem assim serve a Cristo é agradável a Deus e aceito
pelos homens.

Estamos ante a barreira eril que se contrapõe à força dos fortes: a crise
daquilo que designamos como “nossa liberdade”.
Alegramo-nos com a liberdade que temos [para administrar nossa vida]
considerando-a o próprio “BEM”; todavia ela somente será o “BEM” se for a
vivência do Reino de Deus.
Está isto claro?
[Para facilitar — ou, quiçá, encaminhar a análise do problema no intuito
de esclarecê-lo vamos propor algumas questões, fazer certas indagações:]
Acaso esta liberdade de consciência de que tanto nos regozijamos é ape-
nas a liberdade que Deus toma e deve ter em nosso procedimento — quer quan-
do agimos ou quando deixamos de agir [no caso do exemplo objeto do discurso
de Paulo, — quer quando comemos quer quando não comemos], ou trata-se da
liberdade que, em seu nome, gostaríamos de ter?

791
14, 16-18 A Crise da Livre Mordomia da Vida

Sabemos que o valor de nossa liberdade está no fato de que nela Deus
demonstra a sua liberdade, ou entendemos que nossa liberdade tem algum va-
lor intrínseco?
Quando demonstramos nossa fortidão acaso é alguma expressão de “jus-
tificação”, paz e alegria, ou é a demonstração de nossa força “pelo comer e pelo
beber”?
Podemos fazer o que devemos, ou devemos fazer o que podemos?
Estamos interessados na “autonomia” da verdade [como um todo], ou
buscamos meios para implantar “a verdade que conhecemos”?
Se [nestas alternativas todas] a nossa posição se identificar com a se-
gunda hipótese então o nosso BEM já foi blasfemado por nós mesmos e aban-
donado à blasfêmia dos outros de pleno direito.
Quão duvidoso, quão comicamente presunçoso — ou melhor quão hi-
pócrita e perigoso se parece subitamente o “Paulinismo” quando ele fica sujei-
to a esse grande equívoco (conforme sem dúvida acontece no protestantismo
moderno (!)) [e que consiste na idéia da] justificação da criatura humana medi-
ante o conhecimento do mistério de Deus.
Para chegar a tal conclusão não seria necessário perlustrar a Epístola aos
Romanos. Se este tema fosse tudo o que a Epístola contivesse (e qual o “Paulinista”
que esteja — ainda que por um só momento — a salvo do perigo de agir como se
isso fora, realmente, tudo!), quanta razão não teria então o coro dos “fracos” com
as incriminações que desde sempre levantam contra a Carta!? Quão certo estaria
o “Grande Inquisidor” em suas ponderações [(então)] verdadeiramente bem fun-
damentadas contra a liberdade que Cristo trouxe! Teriam então razão todos esses
vastos exércitos de moralistas, pedagogos, psicólogos, sociólogos, todos os que
analisam o mundo pela história, todos os que estão seguros de que são retos e
práticos [objetivos] e todos os que se interessam pelo bom senso geral! De um só
golpe, teriam todos absoluta razão; subitamente a profunda insensatez [de toda
essa gente] nos pareceria desculpável pela sua inocuidade, ou melhor, nos pare-
ceria bem fundamentada e justificada. Teríamos então urgente necessidade de
nos sujeitarmos a qualquer lei que estivesse mais prontamente a nosso alcance;
havendo avançado longe demais em nosso exame, poderá parecer-nos mui agra-
dável voltar aos braços maternais da Igreja Católica.
[Talvez seja conveniente abrir aqui um parêntese para ventilar e procu-
rar entender o que o Autor quer que se torne realmente “claro”.
Primeiramente, o que “devemos e podemos fazer” e o — que “devemos
fazer se pudermos”?
Os sentidos usuais que damos a esses verbos não parecem definir com
precisão as alternativas em vista. Parece-me porém que ao afirmarmos que

792
A Crise da Livre Mordomia da Vida 14, 16-18

“podemos fazer o que devemos” estamos dizendo que sabemos qual o nosso
dever mas somos livres para cumpri-lo segundo os ditames de nossa consciên-
cia, segundo a expressão e a opção de nossa vontade. Todavia, na expressão de
que “devemos fazer o que podemos” estamos nos submetendo à obediência de
disposições superiores na qual não deixa de haver certa dose de oportunismo e
porção maior ou menor de acomodação.
Em seguida, o que é o mistério de Deus em torno de cujo conhecimento
o protestantismo procura (ou procurava quando Barth escreveu) encontrar a
justificação da criatura?
Talvez a expressão “justificação” não tenha (ou não deveria ter) aqui o
sentido total da justificação de Deus que é segundo a fé, mas o sentido de justi-
ficação da conduta do “crente”, quiçá “Paulinista”, perante os seus irmãos;
trata-se, talvez, de lhe dar a devida razão do ponto de vista humano, embora
essa aceitação possa, implicitamente, ser estendida à justificação divina.
Se assim entendermos a “justificação” que o Autor diz ser inerente ao
protestantismo de seu tempo, talvez ainda encontremos amplos vestígios dessa
característica no protestantismo de hoje; (e seriam somente vestígios?). Então é
evidente que o “mistério de Deus” é a liberdade de consciência consoante o
ensinamento da Epistola aos Romanos, liberdade essa que desde os primórdios
do cristianismo todos os leguleios e os legalistas religiosos — de qualquer de-
nominação ou seita, — sempre reprovaram e lamentaram, sendo seu modelo
exteriotipado no “Grande Inquisidor”.
Todavia, essa liberdade tem também a sua barreira: “Que não seja blas-
femado o vosso ‘BEM!. Tudo posso, mas nem tudo me convém!” A minha
liberdade de consciência dá-me o direito de “comer e de beber” mas me dá
também o direito de deixar de comer e de beber. Esta negação não é uma ordem
peremptória, uma lei “dos Medos e dos Persas”, mas é a lei do amor; se eu
constranger meu irmão, se eu o escandalizar, quer bebendo ou comendo, quer
me abstendo de o fazer, já não estou mais agindo segundo a lei do amor. É por
isto que o dilema é terrível; é por isto que (para minha comodidade, meu “apa-
ziguamento”), seria melhor apegar-me a qualquer “lei” que esteja a mão, lei
que me proíba a fazer isto e aquilo e me imponha critérios definitivos, circuns-
tanciados, para minha conduta; se isto me traz a paz, então melhor me fora
entregar-me aos braços da chamada Santa Madre Igreja Católica” que resolve
meus problemas temporais (temporariamente, é certo), com seu confessioná-
rio, com suas penitências e, a médio prazo, com o purgatório e as intercessões
da “Igreja”].
Todavia, é a própria justiça de Deus que nos leva a esta crise [isto é, à
crise da delimitação da liberdade dentro de nossa liberdade]. Se esta crise não

793
14, 16-23 A Crise da Livre Mordomia da Vida

for reconhecida como o próprio Reino de Deus, ela se transformará em nosso


tribunal. Servimos a Cristo “no Espírito Santo” e nunca jamais “em nosso espí-
rito!” Se optarmos por esta segunda possibilidade então a liberdade de mordo-
mia de nossa vida passa a existir em honra ao nosso espírito e já não nos pode-
mos admirar de não sermos “agradáveis” a Deus nem “aceitáveis” perante os
homens. (Quem há que não esteja [permanentemente muito] próximo da possi-
bilidade de servir a Cristo em seu próprio espírito?!)
[A tolerância com que o Forte acolhe o Fraco que cuida do “comer e do
Beber” como testemunho de sua fé, pode ser aceitável perante Deus na medida
que essa condescendência tiver fundamento legítimo na segunda parte do Grande
Mandamento — “Amarás a Deus de todo teu coração e ao próximo como a ti
mesmo”; portanto o gesto é um amorável Ágape, e só pode ter lugar em Cristo,
isto é, no Espírito Santo. Todavia se o Forte houver sido impulsionado por
outras considerações, ainda que sejam nobres e até mesmo espirituais, é possí-
vel que ao invés de Justificação alcance condenação, pois eventualmente estará
agindo em seu próprio espírito, erigindo a si mesmo em Deus.]

Vs. 19 a 23 Assim, aspiremos pela paz e pela edificação mútua. Não destruas a
obra de Deus por amor à comida. Tudo é limpo mas, quem come provo-
cando escândalo procede do maligno. E melhor não comer carne nem
beber vinho nem fazer coisa alguma que escandalize teu irmão. Tens fé?
Tem-na em ti mesmo, perante Deus! Bem-aventurado aquele que não pre-
cisa condenar-se naquilo que faz. Porém, quem come duvidando é conde-
nado à morte ao fazê-lo, porquanto este tal não procede conforme a fé e,
tudo quanto não for pela fé é pecado.

[O Autor comenta que no original grego o v. 22 escreve “Tu o qual tens


fé”; diz Barth que deve tratar-se de engano de copista que, talvez não notando
tratar-se de frase interrogativa, inseriu este “o qual”].
Será que nossa argumentação deixou clara essa linha duplamente parti-
da, — o caminho estreito da mordomia “Paulina” da vida, que jamais é eviden-
te por si mesma? Vamos (tentar) sintetizá-la mais uma vez, [porém de forma
diferente]: “Devemos aspirar pela paz” todavia, não pela “primeira boa paz”
que encontrarmos, na qual mais obedeçamos aos homens do que a Deus. [Por-
tanto, voltando ao nosso longo parêntese de mais atrás, nada de abraçar sofre-
gamente a “primeira” lei que nos aparece à mão ou de voltar, — conformado ou
acomodado — aos braços da” antiga” Igreja...]
Na liberdade de Deus [na liberdade de consciência], “PAZ” pode signifi-
car guerra com todo mundo. Portanto, a consciência independente [e esclarecida]

794
A Crise da Livre Mordomia da Vida 14, 19-23

seja o sol do teu procedimento ético [de tua moralidade]. Sim; mas há outras
condições: a consciência independente, em Deus; a PAZ é a paz de Deus que
está acima do melhor critério humano; a PAZ na liberdade, que é também a
liberdade do próximo e, finalmente, não há paz sem edificação mútua.
Agora, pois, prossiga no teu caminho!
“Não destruas por causa da comida, a obra de Deus!”
Vemos o “BEM”, o que é divino, em perigo; vemos como a humanidade
sofre e reconhecemos a necessidade de atacar, de oferecer holocausto e de fa-
zer alguma coisa. Verdadeiramente não é para a afirmação ou confirmação de
sua própria liberdade que alguém há de destruir a obra de Deus. Sim, pois
“TUDO é PURO”. Tudo! Este [tudo] é o ponto final de todo arrebatamento
moral; é a terminação básica, fundamental, de todo procedimento direto [a sa-
ber, é o fim, é o termino de toda ação humana que tem determinado fim em
vista como por exemplo alguma renúncia, abstinência, a reformação da vida;
este tudo] é a proclamação da liberdade de consciência de todos! [Este “tudo”
confirma que] o protestantismo está irrestritamente certo.
Todavia há uma segunda consideração: [o “comer de tudo”] “procede
do malígno para quem come escandalizando seu irmão”.
Isto quer dizer que se o meu próximo está em aflição, eu a aumento
usando da minha liberdade [de comer]; que ele está em tentação e eu estou a
empurrá-lo mais para dentro dela; que ele deveria seguir o seu caminho sem se
desviar [e sem se distrair de seu objetivo] e eu o detenho.
Posso fazer isso? [Se de fato posso, o que — como possibilidade — é evi-
dente] preciso realmente “QUERER FAZER” o que posso? Posso desprezar a ação
direta, (objetiva, a ação de comer), isto é, posso deixar de a praticar? (Ou então,
ainda) baseado em minha liberdade de consciência, posso passar ao largo daquele
que caiu nas mãos dos salteadores [isto é, posso deixar de atender a meu irmão que
está em aflição e “comer” (ou proceder) conforme estou convicto que seria “legal-
mente” aceitável por Deus, tendo em vista que sou “realmente” FORTE?].
Vamos adiante: “E melhor não comer carne nem beber vinho nem fazer
coisa alguma que escandalize teu irmão”. O Santo Espírito é o direito objetivo
e não o direito que tenho.
Vês as pedras que apontam no meio da correnteza? Não te demores
sobre nenhuma delas senão o tempo necessário para nelas apoiares o pé para o
passo seguinte pois só dessa forma chegarás à outra margem!
“Tens fé?” Sim, [é bom] que a tenhas; porém, “tem-na para ti mesmo” e
“perante Deus!”
Podes crer apenas por ti mesmo e perante Deus. Estás inteiramente a sós
com Deus, em tua fé, inteiramente preso a ele e lançado sobre ele; ninguém

795
15, 1-6 e 16, 25-27 A Crise da Livre Mordomia da Vida

mais é teu juiz nem teu Salvador e, “bem-aventurado é aquele que não precisa
condenar-se naquilo que faz!”
Está perfeitamente certo: porém, também aqui há uma segunda considera-
ção: é coisa terrível estar assim a sós com Deus; saber que só ELE é o “Bem”; que
não se pode zombar de Deus que tudo exige de nós e tudo suprime [e anula pela
nossa total imodéstia, nossa presunçosa liberdade de consciência e nosso
“Titanismo”]. Nesta proximidade de Deus chegamos todos à duvida se naquilo
que fazemos resta alguma coisa que se firme na fé pois o risco de que muito
pouco ou mesmo nada reste é muito grande e está infinitamente próximo de cada
um de nós e... “quem come duvidando é condenado à morte ao fazê-lo, porque
este tal não procede conforme a fé e tudo quanto não for pela fé é pecado”.
Quem há, então, que seja justificado? Quem ousa dizer: tenho fé? Quem
se atreve a assumir a responsabilidade [de responder à perguntai por si mesmo
ou pelos outros? Quem há que se atreva a jactar-se de sua independência e
liberdade (neste terreno)?
Portanto, nesta tétrica incerteza, apega-te a este único fio: Deus! E quem
haverá de apegar-se [a Deus] se não for sustentado?

Vs. 1 a 6 Porém nós, os fortes, temos o dever de suportar os fracos, os destitu-


ídos não vivendo para nossa própria satisfação. Pois também Cristo não
viveu para agradar a si mesmo porém, conforme está escrito: as injúrias
daqueles que te injuriaram caíram sobre mim! (Porquanto o que foi escri-
to, o foi para nosso ensino, para que alcançássemos esperança pela perse-
verança e o consolo inerentes aos cristãos). O Deus da perseverança e do
consolo, porém, vos conceda um mesmo espírito, com vistas a Cristo Je-
sus, a fim de que com um só ânimo e em uníssono, louveis a Deus — Pai de
nosso Senhor Jesus Cristo.

(Confrontando com a tradução de Almeida notamos que Barth escreve


“perseverança” onde Almeida registra “esperança”. Todavia Barth faz extensa
digressão explicando porque deixou de incluir os vs. 25-27 do Cap. XVI junta-
mente com 15, 1-6 conforme o fez na primeira edição. Diz Barth que, então,
assim escreveu os vs. 26-27, acompanhando Tholuck, Hoffmann e Zahn: “Po-
rém aquele que tem o poder para vos fortalecer — (Zahn diz ‘para vos firmar’)
— segundo meu evangelho e a proclamação de Jesus Cristo segundo a revela-
ção de um mistério — (Lietzmann escreve ‘em’ e não ‘segundo’ nos dois casos
acima) — que foi silenciado por tempos eternos porém foi agora revelado pelos
escritos proféticos por ordem do eterno Deus, (Zahn escreve: ‘Pelos escritos

796
A Crise da Livre Mordomia da Vida 15, 1-6 e 16, 25-27

proféticos e pelo aparecimento de Nosso Senhor Jesus Cristo!) — e foi dado a


conhecer por intermédio de Jesus Cristo, para ser obedecido pela fé, por todos
os povos, o Deus que — só ele — é sábio, a quem seja (frase que Zahn omite)
honra de eternidade em eternidade!” — (Zahn escreve apenas, “em eternidade!”).
Barth escreve que à vista das críticas que desde então se seguiram ao
texto, feitas por Corssan, Lietzmann e Harnack e também com fundamento em
novas exegeses (“que devem aqui ter a última palavra conforme Zahn, com
razão, afirma”), julga que sua primeira posição precisa ser corrigida, justifican-
do-se como segue:]

“Ficou demonstrado [nas referidas considerações] que provavelmente


por volta da passagem dos séculos 2 para 3 e, talvez até antes, existiam
em circulação nas igrejas regulares [não cismáticas] latinas, compêndi-
os das cartas Paulinas que não incluíam os capítulos XV e XVI da Epís-
tola aos Romanos. A razão dessa omissão, especialmente em vista de o
assunto tratado no capítulo XIV continuar com todo ímpeto no capítulo
XV, quais as causas ‘externas’ ou ‘internas’ que poderiam ter influído
para que isso acontecesse e, sobretudo, que relação há entre essa omis-
são e o texto de Marcion (sobre o qual Orígenes informa AB EO LOC:
UBI SCRIPTUM EST ‘OMNE AUTEM QUOD NUM EST EX FIDE,
PECCATUM EST’ USQUE AD FINEM CUNCTA DISSECUIT) — são
pontos totalmente obscuros. Baste-nos pois que essa provável omissão
(não somente nos textos marcionistas e, sem relação comprovada com
estes, também nos textos eclesiásticos) é tão notável que, ainda que não
possamos penetrar na sua razão, temos de contar com sua realidade.
“Admitindo-se esta extraordinária omissão, então a necessidade de
‘um grande epílogo de efeito litúrgico seria apropriada à seqüência da
leitura da Epístola no serviço religioso’ (Lietzmann) e o atendimento
dessa exigência mediante a introdução de semelhante doxologia [idéia
que o Autor, outrora, combateu], já não parece estranha.
“A falta de unidade de que se ressentiam os Capítulos XIV e XV já
não pesa sobre a correspondente liturgia mas, faz carga contra quem
publicou o texto mutilado.
“A passagem de 16, 25-27 é uma doxologia e eu — [diz Barth] — não
deveria ter seguido a hábil demonstração de Hoffmann, aliás refutada por
Zahn; as primeiras palavras do v. 25 — ‘agora aos que sendo hábeis’ não
poderiam ser tomadas como objeto direto das primeiras palavras de 15, 1
— ‘deveríamos assim’ — (conforme Hoffmann pretende); esse arranjo
gramatical é tão horrível que jamais deveria ter sido aceito o que, demais

797
15, 16, 25-27 A Crise da Livre Mordomia da Vida

a mais, torna-se perfeitamente claro comparando a passagem com as que


lhe são paralelas em Ef. 3, 20, Jud. 24 e 25 e também, embora com menos
precisão, em Mart. Polic. 20. [Provavelmente a carta do ‘Mártir’ Policarpo,
bispo de Smirna, aos Filipenses]. Em todas essas passagens trata-se de
invocação independente da frase seguinte. Se for assim, então a inserção
de 16, 25-27 entre 14, 23 e 15, 1 provoca inaceitável quebra de continui-
dade, com o que Hoffmann concorda. Nessas condições, o mínimo que se
poderia dizer é que seria difícil compreender a razão de ser desse hino
[dessa doxologia, nesse lugar] pois mesmo aceitando a idéia [geral] de
Hoffmann, não se pode admitir que a passagem seja ‘importante elemen-
to’ na exposição do pensamento Paulino [conforme Hoffmann pretende],
porquanto se este ‘elemento do pensamento’ se referir à fundamentação
da necessidade de cuidar dos ‘fracos’ será, sem duvida, uma fundamenta-
ção muito peculiar e forçada. Todos argumentos empregados para justifi-
car tal interpretação estribam-se na ênfase dada à expressão ‘para estabe-
lecer! [Almeida escreve ‘para vos confirmar’]. E de notar que se adotásse-
mos esta interpretação ficaríamos em flagrante contradição com o texto
de 15, 3-12 o qual segue 14, 23 naturalmente, enquanto 16, 25-27, neste
ponto, soa esdrúxulo, dispensável, quase impróprio, inteiramente fora do
contexto e apenas explicável como fecho litúrgico destituído de qualquer
outra correlação.
Se 14, 23 não for o final da Epístola — e não é fácil aceitar que o seja
embora aí houvessem terminado os referidos antigos manuscritos —
então a doxologia de 16, 25-27 não cabe neste ponto. Todavia, ela também
não cabe no fim do Capítulo XVI — conforme já o dissemos no comen-
tário da primeira edição. De que serviria ela, então? Seria ‘psicológica!
(Kuehl) para ser lida no final dos cultos [solenes ou] festivos? Mas a
carta aos Romanos nada tem de tais características, antes é ela objetiva
[prática]; vai ao desfecho com a pequena discussão de 16, 17-20, conclui
com as saudações enviadas pela gente de Corinto e, encerra com a bên-
ção de 16, 24 conforme convém — e esta sim, não pode ser suprimida.
“A idéia de que Paulo fosse criar após a ‘bênção’ nova ‘figura litúrgica’
parece ser fora de propósito; ainda que isto fosse possível, é preciso
notar que esta passagem de 16, 25-27 difere consideravelmente do esti-
lo corrente de Paulo, notadamente se a confrontarmos com a doxologia
de Efe. 3, 20-21, em comparação com a qual a passagem discutida soa
desagradavelmente empolada; a construção gramatical forçadamente
rebuscada; inegavelmente, os grupos conceituais são estranhos e, para
completar [o aspecto negativo desse ‘hino’!], há ainda a observação de

798
A Crise da Livre Mordomia da Vida 15, 25-27

Harnack a respeito do cunho marcionista que caracteriza estas poucas


linhas, indicando as ‘correções’ que Marcion teria introduzido para torná-
las aceitáveis à Igreja Regular [de então] e que, por isso mesmo, se tor-
naram Intragáveis. “Tudo isto leva à conclusão de que esta passagem
não é de Paulo. Ela foi acrescentada aos primeiros 14 capítulos como
conclusão litúrgica e depois foi transcrita na Epístola completa — já
com os 16 capítulos, — por vezes no mesmo lugar do seu ‘enxerto’
original entre os capítulos XIV e XV; outras vezes foi transferida para o
final do capítulo XVI — ‘sufocando! 16, 24; algumas vezes foi até trans-
crita nos dois lugares. Todavia, também existem transcrições que exclu-
em totalmente a ‘doxologia! de 16, 25-27.
“Esta é a transcrição que considero ser a original, certa”.

Somos “FORTES”. O que nos torna “fortes” procede da crise que, sem
esmorecer. irrompe sempre de novo em nossa fortidão: não buscamos outro
caminho senão aquele que segue no meio de dois precipícios; não queremos
outra passagem para transpor a correnteza senão aquela onde podemos apoiar o
pé por um momento apenas; não queremos outro repouso senão Deus. Todavia,
a crise subsiste: tudo quanto for auto-afirmação; liberalidade; conquistas econô-
micas, políticas e intelectuais; direitos; reivindicação de nossa crença ou fé; —
[sim, tudo isto nada tem a ver com a nossa fortitude. Se a nossa Livre Mordomia
da Vida, secretamente, tiver tal objetivo, então é melhor que passemos ao arrai-
al dos “Rigoristas”, dos “fracos”, pois é destas coisas que eles cuidam. Porém,
o que nos resta então? Visivelmente, nada. Apenas podemos concluir que, na
qualidade “dos que sabem”, dos “prudentes”, “como aqueles que são livres”,
também nós somos fracos; apenas podemos igualar-nos a eles. Conseqüente-
mente, será tanto melhor para nós quanto menos desprezarmos quem quer que
seja; quanto menos nos destacarmos; quanto mais deixarmos de liderar.
“Temos o dever de suportar as fraquezas dos destituídos”. Acaso só apa-
rentemente? Apenas por condescendência ou dissimuladamente, estando inti-
mamente satisfeitos com nossa fortitude e nossa liberdade?
— Não. Isto não seria “suportar”. O Novo Testamento não nos propõe
papéis teatrais. Este “suportar” é absolutamente existencial: é ser, realmente.
fraco com os fracos porquanto estes não se consideram fracos antes, para eles,
a sua fraqueza consiste no fato de que supõem que suas forças estão se desen-
volvendo; a nós compete carregar [ou suportar] aquilo que eles não podem ou
não querem carregar. Trata-se de toda aquela sobrecarga do dessossego que
Deus prepara para os homens. Temos de ser aqueles que sabem que não nos
podemos desnvencilhar dessa carga, nem pelo rigorismo nem pela liberdade de

799
15, 1-6 A Crise da Livre Mordomia da Vida

consciência; nem pelo catolicismo nem pelo protestantismo; nem pelo


asceticismo e reforma da vida, nem pela crença de que “tudo nos é lícito”.
Sabemos que no extremo da aflição humana, toda saída está bloqueada exceto
aquela única porta que Deus abre.
Os fracos também têm ciência de que existe gente que é sacerdotal, que
suporta e que sabe.
Seja esta a nossa livre mordomia da vida porém, “não vivendo para
nossa própria satisfação” porquanto no instante em que assim pensarmos (ou
pretendermos) “teremos perdido a batalha”. Pelo amor de Deus, nada de “delí-
rio protestante”, nada de “luta contra Roma!” Nossa força consiste em “supor-
tar” de tal maneira que nós mesmos não apareçamos [nem compareçamos],
senão como os que pensam e devem ser considerados.
A melhor porção do Paulinismo é aquilo que nele não é manejável nem
apresentável; também no protestantismo, a sua melhor parte está naquilo em
que ele é estranho ao mundo, aquilo nele que não é prático nem popular. No
instante em que o Protestantismo procurar ser uma grandeza que tenha influên-
cia [na sociedade, na política, na história, no mundo ...], no instante em que ele
passa a ser fator [ponderável], quando ele passa a desempenhar um papel, ele
realmente se entrega, se rende.
A crise do protestantismo se origina unicamente de sua relutância —
[talvez comum à ortodoxia protestante dos tempos de Barth — em tomar posi-
ção definida, tida como avançada na cultura secular. Dessa forma perde a oca-
sião de interrogar — questionar — e eventualmente aplaudir esta ou aquela
tendência deixando, conseqüentemente, de ser o fator decisivo na sociedade,
conforme lhe competeria.
Todavia contrastando com essa posição de alheamento, de afastamento,
o protestantismo insiste em ser alguma coisa, competindo com os romanos que
se alimentam de legumes.
[A versão inglesa escreve: “A crise do protestantismo se origina em sua
recusa a ousar colocar-se no extremo da civilização e da sociedade, da cultura e
religião do mundo, e ser aí o humilde (contudo decisivo) ponto de interrogação
e de exclamação. O protestantismo é julgado porque resolve ser algo a todo
custo, a projetar-se como rival dos romanos que comem legumes”].
“Cada um de nós viva para ser agradável ao próximo, com vistas ao bem,
para a edificação”. Este é o sacrifício, a renúncia, a jornada através do deserto,
que se requer do forte. Este sacrifício tem em mira o próximo; lembramos que o
“próximo” é o UM em cada pessoa; nessa lembrança cessa toda competição e
toda variedade [ou peculiaridade] de mordomia de vida; o forte está em pé por-
que não se opõe a ninguém e porque vem depois — atrás — de todos. Ele não

800
A Crise da Livre Mordomia da Vida 15, 1-13

procura adiantar-se, [não se apressa para isso]; [o “FORTE”] espera mas não
dorme; não critica, pois vê-se em situação por demais crítica para se atrever a
tanto, todavia, tem esperança; ele não educa [não se atreve a ensinar] mas ora,
(isto é, intercede) e, enquanto ora, efetivamente educa. [O FORTE] não avança
por sobre os outros, antes dá-lhes lugar. [O FORTE] não tem uma posição espe-
cífica para estar e onde possa ser encontrado, mas está em todo lugar [onde possa
servir desinteressadamente, sem oprimir o próximo de maneira alguma e, sem
proveito para si mesmo].
“Porquanto também o Cristo não viveu para agradar a si mesmo”.
Lembremo-nos de tudo quanto de Deus está revelado e oculto em Cristo
(ver Capítulos III e VIII). É disso que aqui se trata.
Também na ética, é assim; [em Cristo se oculta e também se revela a
ética divina]. “Ele não clamará nem se exaltará e sua voz não será ouvida nas
ruas.” É por isto — [por que se trata da ética divina] — que as coisas não
acontecem conforme, [do ponto de vista humano] possa parecer natural ou
lógico. Não acabará de quebrar a cana partida nem apagará o pavio que fume-
ga”, (Isa. 42, 2-3); “não teve por usurpação ser igual a Deus” (Filip. 2, 6). O
Reino de Deus que ele proclama é realmente a liberdade de Deus por isso, sua
vida inteira é sacrifício, renúncia e retirada constante. “Os insultos daqueles
que te injuriam caíram sobre mim” (Sal. 69, 9). E assim que ele passa como o
Grande Sofredor [o Grande Varão de Dores.], (Isa. 53!), através da história da
antiga aliança; para nós, ele é o CRUCIFICADO!
“Isto foi escrito para nosso ensino”. Esta figura é plena de perseveran-
ça” e de “consolo” e é muito mais do que figura porquanto o Deus da perseve-
rança e do consolo está por trás e não apenas ensina mas nos concede aquilo
que é incompreensível dando-nos, a despeito de sermos humanos, a despeito
de nossa total heterogeneidade e nossa desarmonia, a possibilidade de sermos
“do mesmo parecer” e que, por entre os choques dos múltiplos pensamentos
tomemos uma e mesma coisa [que é o UM] para o centro de nossas cogitações
e que, na dissonância das vozes dos membros da comunidade percebamos a
comunhão; “que com um só animo e em uníssono, louvemos a Deus — Pai de
nosso Senhor Jesus Cristo”.

Vs. 7 a 13 Portanto, mantende comunhão uns com os outros conforme também


Cristo vos concedeu comunhão para honra de Deus, pois quero dizer isto:
Cristo se tornou servo dos circuncisos por causa da verdade [por amor à
verdade] de Deus afim de que se efetivassem as promessas feitas aos pais.
Os gentios, porém, louvam a Deus por causa da misericórdia, conforme

801
14, 1 a 15, 13 A Crise da Livre Mordomia da Vida

está escrito: por isso, entre os gentios confessarei e cantarei ao teu nome!
e, em outro lugar; alegrai-vos, vós gentios, com o seu povo! e, outra vez:
todos os gentios, louvai ao Senhor e o louvem todos os povos! Novamente
diz Isaías: Haverá uma raiz em Jessé e por aquele que se levanta para
reinar sobre os gentios, por esse os povos esperarão. (Sal. 18, 50; Deut.
32, 43; Sal. 117; Isa. 11, 10).
O Deus da esperança vos preencha de abundante alegria e paz na fé
afim de que vos enriqueçais na esperança e no poder do Santo Espírito.

[Ver a tradução de Almeida que, embora semelhante, todavia, não é exa-


tamente igual, sendo que no v. 7 Almeida registra:... também Cristo ‘NOS!
recebeu para glória de Deus” e Barth escreve... “conforme também ‘VOS’ con-
cedeu comunhão!, etc. Em breve nota de rodapé o Autor diz que esse “NOS”
foi uma generalização posterior e que, aqui, Paulo está se dirigindo, mais uma
vez, especialmente aos “fortes”].
Cristo é a crise da livre mordomia da vida; ele dá força aos fortes para a
glória de Deus e, também para a glória de Deus, os reconduz aos fracos. Ele é
o Cristo de Israel, da Igreja; e por isto, por mais carente que seja o testemunho
que, a seu favor, dêem os fracos, esse testemunho não deixa de ter algo de
objetivo, algo que diga respeito a alguma verdade sobre Deus. Todavia, ele é
também o Cristo dos gentios, o Cristo do mundo; ora, a misericórdia divina
descobriu [achou] os fortes quando ainda eram fracos (5, 6) e a misericórdia e
a verdade, conjuntamente, mantêm juntos judeus e gentios, Igreja e mundo.
Quem é forte? Quem é fraco? Aqui está o “Deus da Esperança” à frente,
por trás e acima de toda mordomia da vida. Ao encontro desse Deus, reunindo
suas vozes, vão jubilosos todos os que foram achados por sua verdade e sua
misericórdia.
Deus vê a fraqueza no FORTE e a força no FRACO e, com seus própri-
os olhos vê os que participam do bem-aventurado mistério de sua liberdade, de
seu Reino, quer estejam no degrau mais alto, quer estejam no mais baixo.

Comentários: 14, 1 a 15, 13

1. Diz Barth que ousar crer significa ser inteiramente livre sem reconhe-
cer qualquer espécie de restrição, senão a “grande restrição divina”.
Que restrição é essa?
Dentro do contexto da exegese de 14, 1 — 15, 13 parece tratar-se
da liberdade de restringir a nossa liberdade de usar da liberdade que
Deus nos dá, ao procedimento ético que não escandalize nosso irmão.

802
A Crise da Livre Mordomia da Vida 14, 1 a 15, 13

2. Mais uma vez encontramos o estilo dialético do Autor em pleno vigor:


“A vida que há na VIDA é contudo a liberdade de Deus que, para
nós, é a morte — pois vivemos somente para o Senhor’ e. logo adian-
te: “A morte que há na MORTE é contudo a liberdade de Deus que,
para nós, é a vida — pois morremos somente para o Senhor!” Na
realidade, aqui, este jogo dialético não nos deveria surpreender por
quanto o próprio Apóstolo o emprega: “Se vivemos, para Deus vive-
mos; se morremos, para Deus morremos!”
O que Barth acrescenta é a conceituação aberta da liberdade divi-
na que está apenas implícita na afirmação Paulina.
Deus é livre e em sua liberdade rejeita a vida qual a temos e na
qual temos de morrer, passando a viver exclusivamente para o Se-
nhor, porquanto, ainda em sua absoluta liberdade, nessa morte Deus
nos concede ressurreição e vida pois efetivamente, para o Senhor
morremos embora aqui não se trate necessariamente da morte bioló-
gica mas também desta morte como analogia e símbolo.
3. Diz Barth que se não reconhecermos a crise da liberdade, a limitação
que ela mesma nos impõe no respeito devido à pessoa de nosso pró-
ximo — então essa crise se transforma em nosso tribunal. Portanto,
se dela fugirmos, quer seja “buscando qualquer lei que esteja à mão”
ou “voltando saudoso — à antiga Igreja” ou às “panelas de carne”
inda que fossem do cativeiro, a necessidade da delimitação da liber-
dade dentro da liberdade se levantará contra nós, para nos julgar.
Como? Por que?
Para responder como, é suficiente responder porque.
Porque “bem-aventurado é o homem que não se acusa naquilo
que faz”; porque Deus julga pelo que há no íntimo do coração; por-
que de Deus não se zomba; porque o pecado contra o Espírito Santo
não tem perdão.
Ora, Deus é soberano e livre; é justo, misericordioso e é fiel: Não
quebrará a cana trilhada! Quem ousa dizer que não peca?... Mas o
justo viverá pela fé e... eu sei que meu Redentor vive!

803
Capítulos XV (2ª parte) e XVI

O APÓSTOLO E A COMUNIDADE

V. 14 Eu porém, meus irmãos, estou por demais persuadido de que tendes


pleno conhecimento e estais aptos a vos aconselhardes mutuamente sobre
o que convém.

A Carta aos Romanos não contém alguma verdade nova, estranha ou de


caráter particular mas a verdade antiga, conhecida e universal; ela não pretende
ser original, profunda e cheia de riqueza espiritual mas, também não é possível
ignorá-la por causa dessa despretensão; não é um tratado de dogmática e, por
isso mesmo, não pode ser refutada nem atacada com tiradas antidogmáticas.
A Carta não proclama a autoridade de Paulo mas nem por isso pode ela
ser descartada sob o pretexto de que se trata “apenas” de Paulo porquanto o fato
de Paulo “não ser o Cristo” é corriqUeiro — não constitui novidade, — e coisa
banal que não causa qualquer impacto. Cristo “não está em livro algum” e
quanto a alguém acreditarem quem escreveu a Epístola aos Romanos ou naqui-
lo que nela foi escrito, isto jamais entrou sequer em consideração. Somente se
pode crer em Deus!
Esta é, justamente, a tese da Epistola, a tese do “Paulinismo”, que anula
qualquer objeção que lhe possam mover seus opositores mesmo antes de eles,
timidamente, se apresentarem aos olhos do mundo.
Quem, apesar de tudo, exaltar-se contra o Paulinismo como “sistema”, investe
contra moinhos de vento e mostra, apenas, que nada aprendeu e nada esqueceu.
A Carta aos Romanos não apela à crença em alguma autoridade superi-
or ou em alguma riqueza de pensamento construtivo; nem tampouco fala em
“mundos superiores” ou “recomenda” determinadas experiências [de natureza
espiritual ou psíquica]; não se volta a “consciências esclarecidas” nem a qual-
quer tipo de sensibilidade religiosa porém. apela ao SENSUS COMMUNIS. ao
“sentimento geral da verdade” (Oetinger), à ingenuidade infantil (sim senho-
res!) daqueles que observaram [e sentiram] toda a suposta simplicidade de nos-
sa geração e estão saturados dela.

805
15, 14 O Apóstolo e a Comunidade

[A Carta aos Romanos] apela à honestidade dos gentios e à sua disposi-


ção de não se esquivarem totalmente da observação objetiva da situação huma-
na; [para não deixarem de analisar com seriedade a condição da criatura no
contexto de eternidade].
A Epístola fala aos “irmãos” referindo-se a todas as pessoas às quais ela
é endereçada, isto é, ao um que existe em todos e conta com a participação, a
compreensão e a cooperação que não será recusada por ninguém que, contrari-
ando todas ideologias, realmente e com seriedade, deseje aceitar as coisas com
a simplicidade que nelas vê.
A carta enuncia aquilo que todos já ouviram e diz o que cada um pode
dizer a si mesmo; ela põe a descoberto aquilo que sempre e em toda parte foi [e
é] a verdade. Ela ensina aos doutos e tem mensagem para as pessoas de conhe-
cimento; ela admoesta aos homens de boa vontade; quando entra na arena anu-
la seu oponente, toma posse do campo, porém, apenas como analogia, (como
parábola, para depois do fato consumado retrair-se como se nada houvesse
acontecido.
Quem, contradizendo a Carta, quiser ter razão [ou razões] contra ela,
está inteiramente livre para assim agir — [procedendo, todavia,] por sua própria
conta e risco, [porquanto] “estou plenamente convencido de que estais cheios
de bondade e tendes plena posse do conhecimento”. Portanto, caro devoto, não
te incomodes; fecha os ouvidos às perguntas que te fizerem enquanto o puderes!
Acontece que, “falando sério”, estamos muito mais de comum acordo do que
pensas. Todavia [lembra-te], explosões de ressentimentos contra a ortodoxia
não podem mais ser consideradas senão como manifestações de humorismo.

Vs. 15 e 16 Em parte vos escrevi com um pouco mais de ousadia para vos
lembrar por força da graça que me foi concedida por Deus para ministração
do seu Evangelho como pregador de Cristo Jesus aos gentios afim de
constituirem oferta aceitável e santficada pelo Espírito Santo.

Na verdade, o “ponto de vista” da Espístola é “em parte” um tanto ousado


Em outros vergéis vive-se mais pacificamente do que à sombra das pos-
sibilidades que a Epístola nos mostra; nela o fitilho do “consciente desconheci-
mento” é assustadoramente tênue; o caminho que somos instados a seguir está
inquietantemente próximo do abismo e a alternativa de opção que nos é pro-
posta é extremamente aguda.
É necessário que seja assim?
É preciso aceitar esse ponto de vista extremo, tão perigosamente expos-
to que, aliás, nem sequer é um “ponto de vista”? E acaso necessário excluir de

806
O Apóstolo e a Comunidade 15, 14-16

nossa cogitação tudo quanto não for resposta definitiva, restrita, precisa, exata?
[E preciso ser necessariamente ou uma coisa ou outra, a vertente norte ou a
vertente sul, a leste ou a oeste, sem que jamais os filetes que do divisor escor-
rem se encontrem e sejam algum dia ou de alguma forma, iguais, sem que
sejam. desde agora. equipotenciais!].
Acaso é forçoso rejeitar todos os caminhos amistosos, pacíficos, práti-
cos, históricos, e psicologicamente esclarecedores [pelo simples fato de serem]
caminhos intermediários?
A adesão a essa linha divisória tão pronunciada, (a permanência no “gume
do cutelo”), é [assim tão absolutamente] obrigatória?
Respondemos: Certamente não! Estamos longe de querer afirmar que a
ética, as possibilidades e os métodos que são também visíveis na “Carta aos
Romanos”, sejam normais mesmo porque, em toda seriedade apenas podemos
prevenir [a todos] contra a adoção de [outros] “caminhos, éticas, e métodos”
[que sejam considerados] “normais” [pelo mundo].
Repetimos ainda uma vez que também o “Paulinismo”, no fim, condena
a si mesmo [e só pode condenar-se] porquanto mesmo o mais escarpado divisor
de águas que ele configurar e em toda vasta série de possibilidades que apre-
senta, não é mais do que simples analogia.
[Talvez seja conveniente lembrar aqui que o “Paulinismo” que o A. consi-
dera não é obra de Paulo e muito menos obra divina ou ensinamento inspirado da
Palavra de Deus, mas é a interpretação dada pelos crentes, — (particularmente
por aqueles que se julgam fortes) — às palavras ao ensino e a exortação do gran-
de Apóstolo dos gentios, este sim, divinamente inspirado pelo Espírito Santo].
Todavia, também sabemos avaliar [e apreciar] as demais possíveis situ-
ações, “mais relativas” e menos prejudiciais; sabemos o que significam e que
frutos podem produzir. Temos as condições e a aptidão necessárias para convi-
ver com católicos e também para travar relações com pessoas “do pensamento
positivo”, ou então [e até simultaneamente com] a alta cultura protestante; com
os teólogos da Liga das Nações [quiçá modernamente, das Nações Unidas, ou
do Conselho Mundial de Igrejas (e de quem não?)] e dizer-lhes o que tanto
anseiam por ouvir e o que tanto os acalma: tendes razão! porém sob a inquie-
tante condição suplementar de que “também não a tendes”.
É aqui que se inicia nosso discurso “em parte com um pouco mais de
ousadia” [e começa a manifestar-se nosso] premente interesse em que não seja-
mos silenciados.
[Não valeria a pena seguir pelo difícil caminho das opções decisivas] se
ao falarmos sobre Deus [isto é, se em nossa teologia, nossa pregação e nosso
testemunho] apenas pretendêssemos consolar-nos e nos ajudar [ou nos animar,

807
15, 14-16 O Apóstolo e a Comunidade

a nós mesmos ou mutuamente, entre os “irmãos”]; se quiséssemos discorrer


sobre Deus “para dizer de nosso progresso religioso” (Wernle), ou tratar de
assuntos com os quais “pudéssemos começar alguma coisa” ou ainda para dis-
cursar sobre aquele “X”, aquele “algo” metafísico de que fizemos o esteio de
nossos postulados.
[Se essas forem as nossas razões é melhor buscarmos a porta larga e o
caminho amplo pelo qual andam muitos. Todavia,] vale a pena palmilhar
impertérrito o caminho estreito que medeia entre os dois abismos, se realmente
ansiamos por ouvir e por falar de Deus — o Deus conforme ele vem ao encon-
tro da realidade de nossa vida, autenticamente interpretado em Jesus Cristo —
(quer isto seja ou não de nosso agrado e aceitável para nós;) — vem como o
Deus desconhecido o Deus Santo, o Senhor da vida e da morte. [Vale a pena
seguir pelo caminho difícil das opções decisivas] se afinal, a despeito de todas
especulações contemporizadoras ou inofensivas, também se tratar da indaga-
ção séria sobre a existência humana; se o objetivo de todo discurso ouvido e
proferido sobre Deus for o de lembrar-nos do Deus Desconhecido que havía-
mos esquecido, da verdade libertadora de que não nos recordávamos — sim,
neste caso, (e sob todos pontos de vista.) — é preciso usar de “certa dose de
ousadia” conforme o faz a Carta aos Romanos; então é preciso atirar bem ao
alvo; então é válido formular a pergunta das perguntas sem a mínima conside-
ração [de eventuais conveniências], falando com toda objetividade, (com a fir-
me intenção de não deixar um só de nossos vizinhos escapar do crivo, sendo até
impiedosos nesse ataque, testificando o paradoxo de nossa salvação naquele
que foi crucificado — mas ressurgiu!
Então vale a pena, desfraldar a pergunta de todas perguntas, fazendo tudo
— absolutamente tudo — depender exclusivamente do fio solitário da fé, [cons-
cientemente] desvalorizando, rejeitando, abandonando tudo mais isto é, todos
possíveis meios imagináveis de auxílio [ou socorro], todas representações, [todas
pretensas soluções], todas “aldeias de Potenkin”, todas realidades aparentes.
[Quando nosso interesse for realmente existencial pelo verdadeiro Deus
desconhecido] então já não haverá condescendência com “obras de carregação”,
[com contrafacções da obra divina] nem haverá concessões [a representantes
plenipotenciários de Deus — à Igreja, e seus sacerdotes ou a seus mortos] pelo
receio de conseqüências mais perigosas. Então ‘ardei em espírito!” (12, 11).
Sabemos muito bem que não há propriamente “discurso ousado” sobre
Deus mas apenas — discurso “em parte um pouco ousado”; sabemos que o
acontecimento existencial da “recordação” não acontece na forma de ato ao
lado de outros atos; sabemos que [esta recordação j em nenhuma circunstância
pode ter a configuração de acontecimento, no sentido absoluto das palavras,

808
O Apóstolo e a Comunidade 15, 15-16

porquanto isto seria o final de todas as coisas — o que não nos devemos atrever
a tomar em nossas mãos.
Contudo, ao lado dessas considerações ordeiras, regulares [quiçá prag-
máticas], “burguesas”, existe a possibilidade absolutamente excepcional, fora
de ordem, irregular, — a possibilidade “revolucionária” de cometer infração.
(Aliás esta possibilidade inesperada e surpreendente não existe propriamente
ao lado das alternativas normais mas — com nuanças de tragi-comédia, —
esperamos que exista [subjacente] no bojo de todas alternativas regulares. Esta
“infração” é, [na realidade a “ousadia” dai teologia que a Carta aos Romanos
comete, em seu discurso sobre Deus.
[Esta “infração”] se dá entre todas demais alternativas possíveis [e como
um caso todo especial] “por força da graça que me foi concedida por Deus, na
ministração do seu Evangelho como pregador de Cristo Jesus aos gentios a fim
de constituírem oferta aceitável e santificada pelo Espírito Santo”.
É [portanto], caso excepcional, não regular, quer dizer, é “um caso revo-
lucionário”.
Ora, também aqui se trata apenas de analogia! Sempre apenas parábola.
A teologia trata da graça do “Momento Absoluto” servindo-se da dialética
voraz do “tempo” e da “eternidade” com a qual as demais ciências souberam
colocar-se em segurança — com mais ou menos sorte, pois esta dialética ame-
açou a todos. Na conta que esta dialética abre, figura o seu posto, que — aliás
— não é posto nenhum pois a impossível possibilidade divina ameaça desfazer
a conta a todo e qualquer momento. Este posto, [lembrando sempre que estamos
analisando o teor da “Carta aos Romanos,] é o serviço sacerdotal, [é o ministé-
rio] prestado aos gentios, ao qual [o Apóstolo] está votado, dirigindo-se a de-
terminados indivíduos — visíveis, historicamente existentes, concretos, — a
fim de ensinar-lhes que cada um deles é o um que está invisível e desnudo
perante Deus. [Isto é Teologia].
Este ensinamento se destina ao gentio, isto é, ao gentio que há no próprio
gentio e também naquele que não é gentio. O que interessa nesse ensino é, exclu-
sivamente, a pessoa na medida em que ela pode e deve ser trazida a Deus, como
“sacrifício”; [interessa] exclusivamente a santificação da [pessoa] pelo Espírito
Santo, o rompimento de suas algemas, sua redenção, sua liberdade em Deus.
É um empreendimento que, absolutamente, não é prático e que está to-
talmente fora de [qualquer] conceituação religiosa porque trata do aspecto usu-
al e objetivo de todos anseios e do sentido (que vai além!) de toda religião.
Com a maior previdência [possível] e com a mais alta consciência dos
resultados, a teologia precisa, todavia, proceder sem a mínima intenção [de
qualquer espécie] e não pode aceitar qualquer resultado eventual, como tal; até

809
15, 15-16 O Apóstolo e a Comunidade

mesmo a extrema ousadia humana — [quiçá a ousadia de ocasionalmente falar


com alguma ousadia] deve a teologia manter sob cuidadosa vigilância, pois
todo arrojo humano apenas pode ser demonstração e analogia.
Todavia, a teologia é o que é, exatamente por causa dessa característica
de ousadia extrema na qualidade de “santo ministério do Evangelho de Deus”;
se ela não for isto, se ela não ousar ser o que é — [ou o que deve ser] então será
melhor que desapareça completamente — não amanhã, porém hoje mesmo.
Somente a esta sua qualidade característica de ter de ousar a “ousadia extrema”
examinando a “tentativa excepcional e revolucionária — deve ela sua existên-
cia histórica e a posição que usufrui na UNIVERSITAS LITERARUM. Esta
posição somente pode ser garantida pela ousadia e pela tentativa [de afirmar e
avançar] (e não pela utilização da teologia a serviço da Igreja e, muito menos,
pela sua grande e inevitável inclinação à ciência histórica!).
Ciência significa objetividade que, em teologia, se expressa em termos
de respeito absoluto ao tema escolhido: a criatura em sua extrema aflição e
esperança; a criatura perante Deus.
Teologia objetiva é arrependimento; é inversão da maneira de pensar; é
“pensamento renovado”. (Observe-se como este conceito é abordado em 12, 2).
[Teologia] é o ponto de interrogação e de exclamação que está na órbita
mais exterior da Universidade, posição que, de certa forma, corresponde à da
Igreja que deve desempenhar seu papel na franja mais extrema da cultura hu-
mana. (Na verdade, qualquer pessoa sensata situará a teologia nessa faixa peri-
férica [avançada] da universidade!).
É sempre muito própria a pergunta “se acaso não seria, de fato, melhor
que teologia e Igreja deixassem de existir”, tendo em vista que, [na prática]
nenhuma das duas tem o ânimo necessário de ser o que são [ou devem ser].
Todavia, se [pelo menos] tivessem suficiente ânimo para não fecharem; então,
a despeito de todas sufocantes considerações sobre a indiscutível banalidade
das obras humanas, não será [a teologia] banalidade excessivamente grande —
pelo menos — não será banalidade vitoriosa, porquanto, lembrando da passa-
gem que fala de discurso “em parte algo ousado”, feliz aquele que não precisa
tomar tais atitudes. Contudo, ai daquele que, estando nessa situação, não sabe o
que fazer [ou não se atreve a ousar.]

Vs. 17 a 21 Tenho pois minha glória em Cristo Jesus, a sabe, perante Deus.
Porquanto não me disporia a falar de coisas que Cristo não houvesse
realizado por meu intermédio, para trazer os gentios à obediência, por
palavras e obras, por força de sinais e maravilhas, pelo poder do Espírito

810
O Apóstolo e a Comunidade 15, 15-21

Santo, de sorte que completei a pregação do Evangelho da Salvação dan-


do a volta de Jerusalém até a Ilíria, tendo por questão de honra não pre-
gar onde o nome de Cristo já era conhecido a fim de não construir sobre
bases alheias porém, como está escrito: aqueles, aos quais ainda nada
dele se anunciou, deverão ver e aqueles que ainda nada ouviram hão de
entender! (Isa. 52. 15).

[Confronte-se o texto com a tradução de Almeida, bastante diferente em


detalhes]
Acaso a “glória” Paulina, ou a “pretensão” aqui manifestada, projetaria
alguma sombra sobre o conteúdo geral da Epístola ou serviria de pretexto para
rejeitá-la?
Estas linhas falam, efetivamente, de presunção. Porém presunção de
quem? De Paulo? Sem dúvida, é de Paulo que se trata. Contudo, como haveria
de ser de outra maneira?
Quando uma pessoa fala de Deus [ou sobre Deus] com tanta veemência,
a consciência da sua própria posição também há de vir perturbadoramente à
tona em abundância de palavras.
[A tradução inglesa escreve: “Quando uma pessoa fala de Deus tão ex-
pressamente, conforme Paulo o faz, como poderia ela dar a seu convencimento
ênfase excessivamente grande ou perturbadora?”].
Todavia, por força do “Perdão dos Pecados” pode dar-se o caso de neste
“convencimento” humano estar espelhado convencimento inteiramente dife-
rente; pode aqui acontecer que a crítica e os anseios dos que são “despretensi-
osos” se choquem contra rocha granítica; que Paulo nem sequer esteja onde
imaginam encontrá-lo, [pois] tem sua glória em Cristo Jesus, perante Deus.
Quem é Paulo? — Paulo pode ser abandonado; o ponto alto onde acaso
possa estar, não é por demais notável. O que Paulo “experimentou”, o que sabe,
o que disse e o que fez, “disto não me disporia a falar”. Paulo nada é; todavia,
não será justamente [nesta renúncia,] neste retraimento, deixando de falar de
sua própria pessoa [para referir-se exclusivamente ao que Cristo fez por sua
instrumentalidade] que Paulo se torna [“sério”] — perigoso, [no modo de dizer
do Autor]?
Talvez esta glória a que Paulo se refere e que soa tão mal [aos ouvidos
de certas pessoas] seja apenas o sinal da glória que subsiste “em Cristo, perante
Deus”, cuja luz não pode ser escondida de todo, debaixo do “alqueire”.
Talvez seja esta glória o fator que tanto provoca [e irrita] os modestos
atrevidos que consideram tão insuportável tal manifestação Paulina. Talvez este

811
15, 17-21 O Apóstolo e a Comunidade

fato deva ser destacado para o julgamento da missão histórica de Paulo e do


Paulinismo, em sua totalidade.
É evidente que este Apostolo, por seu convencimento, não foi pessoa
particularmente simpática, conquistadora; a quem ele houver convencido, o
terá conseguido a despeito de si mesmo e, jamais, por si mesmo. Também é
assim o seu Evangelho: um elemento perturbador na história do Espírito, que
poderia fácil e gostosamente ser suprimido do desenrolar dos fatos porquanto
está em toda parte qual grão de areia [no sapato] e, não raro, qual cascalho entre
os dentes lisos das engrenagens. Por isso a sua incontestável eficácia — que a
historia registra, — precisa ser procurada em alguma grandeza incomensurá-
vel, totalmente diversa que, forçosamente, teria de ser “terrivelmente” bem com-
preendida por seus interlocutores: [essa grandeza é] Jesus Cristo!
[Algumas manifestações pessoais de Paulo que talvez possam ser consi-
deradas como] expressões do “orgulho” do Apóstolo podem bem constituir a
característica mais significativa e menos amável do Paulinismo.
[Algumas dessas manifestações:]
Na recusa aparentemente orgulhosa de construir sobre bases alhei-
as; [nesta atitude] o Apóstolo evidentemente não pensa em termos his-
tóricos (pois ninguém haveria de querer refutá-lo alegando seu
posicionamento com relação ao Antigo Testamento!)
Paulo, de maneira assaz hostil, recusa-se a apoiar as práticas cristãs
e se nega a dar prosseguimento mesmo às mais honradas tradições. Ele
não diz um SIM direto às grandezas históricas, por maiores que sejam
nem à maior delas: Cristo segundo a carne!
Ele exibe sua peculiar e irônica suspeição por todas “colunas já exis-
tentes”. — (Gál. 2, 9).
Ele não consulta carne e sangue e, por motivos altamente
fundamentados, não subiu a Jerusalém mas partiu para a Arábia. (Gál.
1, 16-17).
Ele se arroga o direito de afirmar cabalmente que não recebeu nem
apreendeu seu Evangelho de qualquer homem. (Gál. 1, 11-12).
Conseqüentemente, todo golpe que, a qualquer tempo, a “mentalmente”
sadia, teológica e medíocre Igreja desferiu contra os “exaltados e entusiasma-
dos” que “não têm senso histórico”, acertou também em Paulo, quer tenham ou
não tenham tido essa intenção.
Esta maneira “estranha” no procedimento (do Apóstolo), em si mesma,
não tem maior importância por tratar-se de fenômeno histórico tão claro quanto
outro qualquer. Todavia, talvez essa conduta tenha algum significado; talvez

812
O Apóstolo e a Comunidade 15, 22-23

seja testemunho de fato estranho, bem diferente e, então, seria extremamente


supérfluo e perigoso ficar discutindo o assunto. Neste caso, melhor faria a teo-
logia em seguir a indicação que aqui lhe estamos dando.

Vs. 22 a 29 Por isso fui reiteradamente impedido de ir até vós, agora porém,
que não tenho campo nestas paragens e porque há muitos anos tenho pe-
dido para ir ter convosco e seguir viagem para Espanha, espero ver-vos de
passagem e encontrar entre vós companheiros para seguir até lá, — de-
pois de eu me haver recreado um pouco convosco. Contudo, agora viajo
para Jerusalém.
As igrejas de Macedônia e Acáia deliberaram enviar um auxílio em
beneficio dos necessitados entre os santos de Jerusalém. Elas o resolve-
ram e lhes devem isso pois se os gentios receberam o auxílio deles nas
coisas espirituais, são seus devedores para lhes servir também nas coisas
exteriores. Quando eu houver resolvido isto e lhes houver entregue com
segurança o produto [da coleta] então irei à Espanha passando por vós
para que quando eu aí chegai; seja na plenitude da graça de Cristo.

[Barth comenta que a expressão “MUITOS ANOS” poderia ter pareci-


do exagero a algum copista que, por isso, teria transcrito “muitas vezes”].
A aproximação, e o contacto pessoal objetivo com a comunidade, [com
a Igreja,] são coisas muito bonitas e devem ser procurados com alegria pois
constituem uma atitude simpática no ministério (1,9-13). [Todavia] o pequeno
desvio Corinto-Jerusalém deve ser tomado em sua perspectiva peculiar: é pre-
ciso fazer a entrega da coleta, já anunciada (12, 13), aos cristãos de Jerusalém,
exatamente como expressão prática da mensagem da unidade entre gentios e
judeus, entre os que estão perto e os que estão longe, entre os conhecidos e os
desconhecidos; — [esta mensagem] é o tema da Epístola.
O plano seguinte do homem, que já quase não encontra “campo” [para
as suas atividades] “deste lado da Itália”, é a viagem à Espanha, uma iniciativa
que demonstra a universalidade final [do cristianismo]. Neste plano, na realida-
de muito mais apocalíptico do que racional, está também encaixada a possibi-
lidade de o autor e os leitores da carta se verem e se reverem pessoalmente.

Vs. 30 a 33 Admoesto-vos porém, irmãos, por nosso Senhor Jesus Cristo e pelo
amor do Espírito Santo, que batalheis ao meu lado, orando por mim a
Deus para que eu seja salvo dos infiéis da Judéia e que meu ministério seja

813
15, 22-23 e 16, 1-16 O Apóstolo e a Comunidade

bem aceito pelos santos de Jerusalém, para que então eu chegue a vós com
alegria e, se Deus assim quiser recobre ânimo convosco.
O Deus da paz seja com todos vós. Amém.

Esse desvio não parece fácil e livre de perigos. Em qualquer hipótese. o


Apóstolo prevê uma “batalha”. Judéia — Jerusalém — é, sob todos pontos de
vista, a cidadela da Igreja. Existem as ameaças das chicanas dos judeus e, a “boa
receptividade dos Santos”, — não obstante a coleta que lhes será aportada,— de
forma alguma parece ser muito certa a ponto de, também por isto, ser preciso
orar. Quem vai aí chegar [nessa Jerusalém da Judéia] será nela estrangeiro e fala-
rá como tal; [por isso] ele conclama a todos que peçam pelo seu bem e que,
perante Deus, dele se lembrem, participando de sua terrível solidão.

Vs. 1 a 16 Recomendo-vos a nossa irmã Febe, que é também(1) ministro da


igreja de Cencréia, para que a recebais no Senhor conforme convém entre
os santos e que a ajudeis em todos negócios em que ela necessitar de vós.
Ela mesma socorreu a muitos e também a mim. Saudai a Prisca e Áquila,
meus cooperadores em Cristo Jesus (e que por minha vida arriscaram
suas cabeças o que não somente eu lhes agradeço mas, também, todas
igrejas gentílicas) — é a igreja que se reúne em sua casa.
Saudai meu querido Epêneto que é a primícia de Cristo na Ásia. Saudai
Miriam(2), que muito se esforçou por nós(3). Saudai a Andrônico e a Júnias,
meus conterrâneos e coprisioneiros, que gozam de bom nome entre os Após-
tolos e já foram cristãos antes de mim. Saudai a Ampliato, que me é caro no
Senhor Saudai a Urbano, nosso companheiro em Cristo e meu querido
Estaquis. Saudai a Apeles, aprovado no Senhor. Saudai aos que são da
criadagem de Aristóbulo. Saudai a meu conterrâneo Herodião. Saudai aos
cristãos da criadagem de Narciso. Saudai a Trifena e Trifosa, nas suas can-
seiras no Senhor Saudai a Rufo, esta excelência no Senhor e também a sua
(e minha!) mãe. Saudai a Asíncrito, Flegonte, Hermes, Pátrobas, Hermas e
aos irmãos que estão com eles. Saudai a Filólogo e Júlia, a Nereu e sua
irmã, a Olimpas e a todos os santos que com eles estão.
Saudai-vos uns aos outros com o ósculo santo.
Saudam-vos todas as igrejas de Cristo.

(Em nota de rodapé o A. comenta:


1) o “TAMBÉM” que no original dá ênfase à função de Febe na Igre-
ja, não deve ser suprimido, usando-se o mesmo critério adotado em 8, 24.

814
O Apóstolo e a Comunidade 16, 1-16

2) Dada a maneira (ou forma) em que o v. 6 está escrito no original,


somente se pode transcrever “Minam”.
3) Ainda com referência ao v. 6, é de notar que não se poderá escre-
ver “VÓS” mas será “NÓS”, pois louvar esta mulher por seus trabalhos
em prol dos destinatários da carta seria incoerente e até mesmo algo
excêntrico.]

Aqui surge perante nós um pequeno mundo de sofrimento, de destemor e


de valor (no Senhor!); [mundo de] auxílio e alta estima recíproca (também) no
Senhor! Seria o caso de indagar sobre fatos e obras que correspondam aos termos
[ou à ética] da Epístola porquanto aqui se encontra a “vida simples” tantas vezes
mal compreendida [ou perdida]. Todavia, a essa indagação os próprios leitores
(da Epístola) — (cada um a seu modo), poderão responder, até o dia de hoje.
[A lista de pessoas saudadas pode suscitar diversas questões e] os pro-
blemas que tenham algum mérito ou que sejam interessantes quanto à antigüi-
dade desse rol, e outras informações a seu respeito, podem ser encontrados nas
obras de Zahn e Lietzmann.
[Existe] suposição de que estes nomes sejam parte de outra carta,
endereçada à Igreja de Éfeso e, inadvertidamente, juntada à Epístola aos Ro-
manos; esta hipótese não é “simpática” pois parece ser mais agradável supor
que a “carta” aos Romanos foi endereçada especificamente a determinadas
pessoas, com fisionomias conhecidas e nomes certos; uma mulher — membro
da Igreja — foi sua portadora de Corinto até Roma, nos meados da década 50
do primeiro século; os destinatários da carta são homens e mulheres gregos,
romanos e judeus; senhores e escravos. A possibilidade de que Trifena e Trifosa
e os outros leigos (e também toda sorte de “teólogos” desta longa lista) não
entendessem “assim” — [isto é, não considerassem a carta como tendo sido
endereçada a eles] — parece não ser provável.
O que transparece, — [e isto é válido até mesmo admitindo a hipótese
de que a lista se refira a membros da Igreja de Éfeso!] é que houve outrora um
público ao qual se pôde dirigir [semelhante] carta e para cujas interrogações a
Epístola continha respostas; [um público] que, de alguma maneira, soube ava-
liar o teor da carta e para o qual a teologia (a teologia da Epístola.) era, sem
dúvida, assunto atual. Parece [e, ainda uma vez, transparece] que os problemas
daquele público começavam onde os problemas de “outros públicos” (e tam-
bém de não poucos teólogos.) parecem terminar. Contudo, temos a impressão
que aqueles espíritos [os dos destinatários da carta], eram muito livres, tinham
visão muito larga, e se estendiam amplamente [nos mais variados aspectos do
relacionamento da criatura com o Criador].

815
16, 17-20 O Apóstolo e a Comunidade

Admiramo-nos mais deste público do que dos eventuais problemas his-


tóricos que a carta possa suscitar. E não nos admiramos [por isso mesmo] de
que entre essa gente até o ósculo santo era possível.

Vs. 17 a 20 Exorto-vos porém, irmãos, a que sejais vigilantes contra os que


provocam divisões e escândalos, contrariando o ensino em que fostes inst
ruídos; — afastai-vos deles! Porquanto estes não servem ao nosso Senhor
— o Cristo, porém a seu próprio ventre e, com suas eloqüentes frases e
palavras beatas confundem os corações dos ingênuos, pois a vossa obedi-
ência é conhecida por todos e, agora, me alegro por vós. Gostaria, porém,
que fôsseis sábios para o bem e símplices com relação ao mal. O Deus da
paz em breve porá Satanás debaixo de vossos pés. A graça de nosso Se-
nhor Jesus seja convosco!

Um último e premente apelo; na realidade não se trata de corpo es-


tranho à Carta, porém [está] na súmula de sua polêmica — (e onde não é ela
polêmica?). Acautelai-vos contra os enganos especialmente [vindos] da-
queles que estão mais próximos de vós e [que vos parecem ser] mais escla-
recidos. Acautelai-vos da “feira religiosa do ano”, com seus negócios de
barracas reluzentes. Estais no meio delas e não tendes outro critério para
vos separardes e segregardes daqueles que “não servem ao Senhor mas ao
ventre”, senão pela, recordação de que fala 15, 15. Acautelai-vos para vos-
so próprio bem! Na “recordação” está a força para aquela sabia franqueza e
para aquele retraimento simples que não permite que a pessoa se afogue
completamente no turbilhão das opiniões. ETIAM CULTORES SAEPE
VERITATIS EA, QUIBUS HAUD ASSUEVERE, TARDIUS ADMITTUNT.
CUM PRIDEM AUDIERUNT: HOC EST! QUAERUNT DENIQUE: QUID
EST? CUMQUE DEMONSTRATIO DEFLUXIT, POSTULATA SIBI
PROPONI QUERUNTUR NONNULLI OBITU DEMUM SUO VERITATI,
IN PARTE NON AGNITA, OFFICERE DESINUNT. VERUNTAMEN NON
FRUSTRA LABORATUR: DUM ALII PRAETER OPINIONEM DESUNT,
ALII PRAETER OPINIONEM SE DEDUNT VEL DEDENT. LUX
CRESCIT IN DIES: PER ADVERSA AD VICTORIAM ENITITUR
VERITAS. (Bengel).
“O Deus da paz verdadeira, não da entorpecente, tem de fazer o melhor
e o faz multas vezes a curto prazo quando se tem, pelo menos, um pouco de
paciência e não se acorre apressadamente demais com os aplausos a si mesmo
— [com auto-elogio] “— (Steinhofer).

816
O Apóstolo e a Comunidade 16, 21-24

Vs. 21 a 24 Saúdam-vos Timóteo, meu cooperador Lúcio, Jason e Sosípatro


meus conterrâneos. Eu, Tércio, que escrevi a carta, saúdo-vos no Senhor
Saúda-vos Gaio que é o anfitrião meu e de toda a Igreja. Saúdam-vos
Erasto, O tesoureiro da cidade, e o irmão Quarto.
A graça de nosso Senhor Jesus Crista seja com todos vós, Amém

[O A. lembra em nota de rodapé que o v. 24 deve ser conservado porém


não a doxologia de 16, 25-27].

Comentários: 15, 14-23 e 16, 1-24

1. Como e onde a Carta aos Romanos entra em polêmica para dominar a


situação e, em seguida, retirar-se sem fazer alarde e sem alegações?
Parece-me que só pode ser no seu ensino; na ética que sugere e que
recomenda; no oferecimento do corpo natural, — das forças, dos dons,
da inteligência e até dos eventuais recursos em bens materiais, — em
sacrifício a Deus, através do próximo, sabendo que nada temos de
nós mesmos, que tudo vem de Deus; que dele é a eleição e a rejeição
e é ele quem valoriza o que há de ser valorizado. Nada temos a alegar
nem do que nos gloriar. E por isto, me parece, que a Epístola vem, vê,
vence e se retira sem vantagens e sem glórias, pois quem se gloriar,
glorie-se no Senhor!
2. O que quer o A. dizer quando se refere à impossibilidade de um “dis-
curso absoluto” sobre Deus? Talvez seja a realidade de que em nossa
imperfeição não podemos falar de forma absoluta sobre o ABSOLU-
TO, nem poderíamos ver a glória de Deus, que nem o homem do
éden pode contemplar face a face!
3. Barth termina a exegese da Epístola tecendo comentários sobre a per-
sonalidade do homem Paulo e em correlação com o assunto dá à “Te-
ologia” (e portanto aos teólogos) sugestão que, todavia, não formula
com precisão.
Talvez Barth tenha razão com o que diz respeito à personalidade
do Apóstolo. E possível que Paulo não tenha sido pessoa simpática a
seus contemporâneos e talvez até existam razões de ordem superior
— quiçá de alcance transcendental, para que assim fosse. Também é
possível que a sugestão deixada pelo A. aos teólogos e aos pesquisa-
dores da verdade tenha a sua razão de ser e, embora seja na vitória
plena que a verdade resplandece em seu verdadeiro fulgor, também é

817
15, 14-23 e 16, 1-24 O Apóstolo e a Comunidade

certo que a luz cresce com a aproximação do dia e que a pesquisa,


ainda que abandonada em meio, não será de todo perdida.
Por que teria o Apostolo tido “tão estranho” procedimento se o
seu objetivo era “ganhar as pessoas” para Cristo? É evidente que sequer
se pode imaginar que Paulo cuidasse de “ganhar amigos e influenciar
pessoas”; esta mercadoria sempre esteve e está à venda e se adquire
com certa “flexibilidade” que não fica bem a pessoas de “responsabi-
lidade” nem sua aplicação se coadunaria com o caráter do Apóstolo
dos Gentios. Contudo, ele tinha amigos: quem pode hoje contar com
pessoas que “pelo amigo” arrisquem “suas próprias cabeças”?
Que Paulo conhecia bem o valor da leal amizade, o epílogo da
Carta aos Romanos bem o atesta com sua longa lista de saudações,
onde cada um é apreciado de maneira objetiva e pessoal. E que dizer
das demais cartas de Paulo, particularmente as escritas a Timóteo, a
Tito, e aquele bilhete sobre Onésimo? Em nenhum lugar há lisonja ou
agrado mas, sempre respeito à pessoa.
Todavia, o que mais impressiona nas Epístolas Paulinas e mui
particularmente na Carta aos Romanos — talvez seja isto que a teolo-
gia devesse descobrir e esmiuçar — é a clarividência espiritual que o
Apóstolo revela.
Seria fácil explicar humanamente a relativa rejeição das “colunas
da Igreja”; o retiro para a Arábia contra a informação abundante em
Jerusalém; seria compreensível que Paulo não quisesse perder tempo
ceifando onde outros semearam, e é justo que quem se gloriar, glorie-
se em Deus: que novidade há nisso? Foi Jeremias que ensinou as-
sim... Insistir sobre qualquer desses pontos seria perder tempo e ten-
tar esconder a luz debaixo do alqueire.
O que Paulo prega, o que Paulo ensina, o que defende, é que só
DEUS É DEUS. Que não é licito ao homem ocupar o trono de Deus,
quer pessoalmente, quer entronizando representantes seus na forma
de imagens, conceitos, doutrinas, dogmas, organizações ou o que quer
que seja; não é lícito ao homem usurpar o trono de Deus, nem
tampouco lhe é permitido fazer-se seu íntimo mensageiro, ou seu pro-
feta, seu arauto — para “falar em nome do Senhor”. Tais posições
uma pessoa pode ter se para tanto for vocacionada, impelida por Deus
mas delas se desincumbirá com temor e tremor” Qualquer coisa que
alguém fizer além dessa vocação restrita, obscurecerá a verdade divi-
na com a injustiça, com a prepotência e com a auto-suficiência huma-
nas e estas coisas estão debaixo da ira de Deus.

818
O Apóstolo e a Comunidade 15, 14-23 e 16, 1-24

Paulo ensina que não há acepção de pessoas, nem pela família,


nem pela raça, nem gela fé, nem pelo conhecimento, nem por coi-
sa alguma. Deus é Deus tanto de gregos como de bárbaros; de
judeus e de gentios; de membros da Igreja e de não-membros da
Igreja. Ele é DEUS.
Paulo ensina que mais convém agradar a Deus do que aos ho-
mens e que não há agrado possível a Deus senão mediante a fé que
vem pela própria fidelidade de Deus e que por esta fé o justo vi-
verá; que este Deus nos avalia segundo seu exclusivo critério na
conformidade daquilo que abrigarmos no recôndito de nossos
corações.
Paulo insta que, inspirados na liberdade de Deus e servindo-nos
da liberdade de opção que seus nos concede, adotemos a ética da
renúncia, — que não exerce vingança, não se deixa levar pela ira, não
se justifica a si mesma, nem atribui a si qualquer mérito, antes serve a
Deus na força de sua natureza material: sua inteligência, sua instru-
ção, sua capacidade física e assim procedendo, amemos a Deus sobre
todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos, socorrendo-o, dan-
do-lhe de comer e de beber, mesmo que este próximo tenha a virulên-
cia de inimigo mordaz ou a vileza de amigo falso; que não o escanda-
lizemos, se ele nos parecer “fraco” na fé, com gestos e atos que pos-
sam ser pedras de tropeço para ele.
Paulo ensina que não sejamos preguiçosos em nós mesmos e pe-
rante Deus. Que não pretendamos julgar a Deus, porquanto unica-
mente ele é justo e reto; mesmo quando consente que sejamos tenta-
dos o faz em sua infinita sabedoria e graça: são insondáveis os seus
juízos e inescrutáveis os seus caminhos; infinita é a sua ciência e o
seu saber. Quem pode compreendê-lo?
É por isto tudo que Paulo anuncia a Cristo, somente a Cristo, o
Cristo crucificado, de cujo Evangelho não se envergonha.
Não seria também por isto tudo que Paulo se recusou ostensiva-
mente e até por vezes hostilmente, a prestigiar todas as tradições,
“mesmo as mais dignas de honra”?
Não seria por isto que ele repudiou todas as materializações, até
mesmo as que, em si mesmas, fossem condizentes com a história?
Não seria esse um motivo para enfatizar que devia a sua vocação
ao Senhor Jesus e não a este ou àquele homem?
Não seria por tudo isto que o Apóstolo se tenha referido da forma
que o fez, às “colunas” da Igreja nascente?

819
15, 14-23 e 16, 1-24 O Apóstolo e a Comunidade

Não teria sido a “conduta pessoal peculiar” de Paulo uma reação


e advertência, inspirada, contra a materialização que já ensaiava seus
passos na Igreja do primeiro século e que se tornou tão grotescamen-
te patente no seio do cristianismo (de todas “confissões”) nestes 2.000
anos de história da Igreja?
Ora, — contemplando a materialização da Igreja que se deu a
despeito deste “estranho” procedimento pessoal do Apóstolo e ape-
sar de o Evangelho conforme ele o apresenta ser “um grão de areia”
no sapato e “cascalho” nos encaixes lisos das engrenagens, — seria o
caso de indagar o que teria acontecido se houvera sido outra a atitude
do Apóstolo, se ele houvesse também procurado “agradar aos ho-
mens” sem praticar as apontadas rejeições, hostilizações e repulsas;
sem anunciar o Evangelho segundo o recebeu de Deus mas, suavizado
para atender, pelo menos, as tradições mais honradas e “consultar”
também “o sangue e a carne”.
O que teria então sobrado do sossobro provável da “evangelização
dos gentios”?
Foi no século I que Paulo escreveu aos Romanos e sua voz ecoou
poderosamente na Cristandade; no século XVI sua voz reboou nova-
mente, desagradável a muitos: DE GRAÇA SOIS SALVOS! — É o
dom de Deus. A mesma voz nos fala hoje e cada leitor há de respon-
der qual o eco que ressoa mais fortemente em seus ouvidos.
Uma coisa, porém, é certa: “Esta maneira estranha no procedi-
mento (do Apóstolo que) “em si mesma não tem maior importân-
cia”... talvez seja testemunha de infinita misericórdia de Deus e sua
providência para que o Evangelho, anunciado por Paulo aos gentios
de seu século, viesse aos gentios do todo mundo, até o dia de hoje!
É em Cristo Jesus que Paulo tem a glória de também “entre nós”
ter preparado “oferta aceitável” porquanto já agora podemos indivi-
dualmente repetir como o grande Apóstolo, ao afirmar sua fé: “Eu sei
em quem tenho crido e estou bem certo que é poderoso para guardar
o meu tesouro, até o dia final”! Amém.

820
...e, demais disto, minha filha, atente:
“Não há limite para fazer livros,
e o muito estudar enfado é da carne.

“De tudo quanto se tem ouvido o fim é:


Teme a Deus e guarda os seus mandamentos; porque este é o dever
de toda criatura”.

(Eclesiastes).
maio, 1981

821
ÍNDICES

1. Índice de Citações Bíblicas (1A e 1B) .................................................... 823

Contém as citações do Antigo e Novo Testamentos na ordem em que os


livros aparecem na Bíblia, sendo que as citações da carta aos romanos
estão reunidas separadamente (Índice 1B).
No texto os livros estão citados com suas abreviaturas usuais; as passa-
gens da Epístola são indicadas apenas pelo capítulo e respectivo versículo,
sem menção do livro.
(O registro do cabeçalho e os versículos seguidos da Epístola não estão
incluídos no índice).

2. Índice Alfabético de Nomes .................................................................... 835

Contém o nome dos autores, filósofos, teólogos, etc., citados ou referi-


dos no texto original e nos comentários, inclusive o de Barth (Karl),
quando são feitas referências específicas a ele.
Nomes de personagens bíblicas foram incluídos no índice remissivo.

3. Índice Geral Remissivo ........................................................................... 839

Contém verbetes que sintetizam idéias e, portanto, assuntos semelhantes


são reunidos sob um mesmo registro.

4. Índice Geral Progressivo ......................................................................... 849

Dá a seqüência das diferentes partes do livro.

823
CITAÇÕES BÍBLICAS
ÍNDICE 1

CHAVE:
18: 384; (10) 534; (17-19) 207
Indica: Citaçao do cap. 18 na pág. 384 e dos respectivos versículos, (10)
na pág. 534 e (17-19) na pág. 207.
Citações sucessivas de um mesmo capítulo são separadas por; e páginas
sucessivas de uma mesma citação são separadas por vírgula; s e ss indicam
“seguinte” e “seguintes” (em todos os índices).

Índice 1A
GÊNESIS 7: (2) 526
Cap. 11: (26) 508 9: (16) 545
3: (13) 393; (15) 192; (17) 508; 13: (14) 39
(22) 268 16: (3) 396
12: (1-3) 220; (2-3) 192; (7) 220 19: (17) 599
13: (4) 127; (16) 220 20: (13-27) 761
15: (1) 553; (1 ss) 220; (5) 224; 25: (17-21) 158; (22) 158
(6) 149; 187; 199; 210 33: (16-20) 543; (21-23) 544
17: (5) 187; 217; 219; (10) 199;
(17) 225; LEVÍTICO
18: 384; (10) 534; (17-19) 207 Cap. 16: (14-15) 158
21: (12) 532 18: (5) 579, 581; (15) 579
22: (18) 203 19: (18) 758
25: (23) 536 26: (12) 120
28: (17) 62
32: (25) 539; (36) 531 NÚMEROS
Cap. 7: (89) 158
ÊXODO
Cap. 3: (2) 259; (6 e 11) 62; (13-15) DEUTERONÔMIO
497; (14) 39; (14-15) 505 Cap. 3: (25) 725
4: (24-26) 552 5: (17) 761

825
Citações Bíblicas

6: (5) 111, 503; (13) 506 42: (3) 154; (6) 154; (7) 131; (7-
10: (17) 617 10) 494
18: (4) 628
30: (14) 585
32: (12-14) 580; (21) 598; (43) SALMOS
802 Cap. 5: (10) 129
8: (5) 270
JOSUÉ 10: (7) 129
Cap. 10: (12) 138 14: (1-3) 129; (7) 641
18: (50) 802
I SAMUEL 19: (1-4) 176; (4) 597
Cap. 3: (1) 765; (9) 364 22: (5-6) 247
4: (4) 158 25: (20) 247
12: (22) 606 30: (5) 620
32: 196; (1-5) 193
II SAMLEL 36: (2) 129
Cap. 6: (2) 158 (16ss) 710 39: 401
44: (22) 503
I REIS 51: 114; (4-6) 119; (10) 73; (17)
Cap. 19: (9-14) 556; (10) 607; (14) 344
607; (18) 608 62: (1) 638 (10-13) 85
69: (9) 801
II REIS 80: (1-2) 158
Cap. 22: 528 82: (6) 435
23: 528 86: (11) 600
90: (9) 762
JÓ 95: (7-8) 766
Cap. 3: (23) 492 103: (14) 303
6: (4) 492 104: (28-29) 496
7: (1) 492; (12) 492 106: (20) 62
9: 134; (2-3) 133; (11-21) 135; 116: (10-14) 119; (13-14) 119
(33) 492 117: 802
139: (1-12) 452; (12) 245
14: (4) 129 140: (4) 129
19: (29) 492 143: 134; (2) 133
23: 130
31: 130 PROVÉRBIOS
38: 131 Cap. 3: (4) 722
40: 131 (4) 133; (6) 81; (7) 131 24: (12) 85
41: (11) 651 25: (21-22) 726

826
Índice 1A

ECLESIASTES AMÓS
Cap. 12: (12-13) 821 Cap. 7: 219

ISAÍAS HABACUQUE
Cap. 1: (9) 554; (18) 142 Cap. 2: (1-3) 43; (4) 38, 47, 149
6: (5) 391
8: (14) 569 MALAQUIAS
10: (22-32) 554 Cap. 1: (2-3) 538
11: (6-9) 510; (10) 802
27: (9) 641 MATEUS
28: (16) 569, 586 Cap. 3: (5-9) 220; (9) 205
29: (16) 550 4: (6-7) 440; (10) 386, 506
40: 641; (13) 651 5: 227; (11-12) 24; (17ss) 581;
42: (2-3) 801 (39) 93
45: (9) 550; (23) 651 6: (6) 112
49: (4) 285 7: (1) 786; (35) 76
52: (5) 102; (13 ss) 580; (15) 9: (2) 315; (5) 315
811 10: (7) 613; (28) 613; (34ss) 689
53: 580; 801; (1) 594; (4) 398; 11: (1-4) 157; (5-6) 157; (25ss)
(5) 398; (10-11) 286 679
55: (11) 118 12: (30) 108
59: (7-8) 129; (20) 635; 641 16: (17) 147; (19) 172
64: (7) 550
65: (1) 598; (2) 599 17: (5) 174; (26) 174
18: (7) 791; (18) 172
JEREMIAS 19: (16ss) 670; (17) 721
Cap. 1: (6) 79 22: (37) 111; 700
7: (4) 77 24: (5) 313; (35) 140
9: (23-24) 192 25: (14-30) 114; (35-45) 729;
20: (7) 403 (37ss) 543
31: (10) 633 26: (63-68) 174
27: (39-43) 438
DANIEL 28: (19) 207
Cap. 2: (24-35) 157
MARCOS
OSÉAS Cap. 1: (11) 442
Cap. 2: (1) 554; (23) 554 3: (29) 430
8: (34) 48; 96
JOEL 10: (17-22) 103; (18) 408
Cap. 2: (32) 589 12: (28-31) 431, 648; (30) 666;

827
Citações Bíblicas

(32) 766; (33) 666 369; (23-31) 143 (24-25) 39;


16: (15) 70 (27-28) 56; (28) 144
19: 445
LUCAS 22: (10) 399
Cap. 1: (43) 422
2: (29) 542; (34-35) 160
5: (8) 404 ROMANOS – Ver Índice 1.b. pág. 833
6: (26) 24
10: (25-37) 684; (30-37) 760 I CORÍNTIOS
12: (2-3) 84 Cap. 1: (31) 192
16: (13) 333 2: (10) 501; 650
17: (24) 446 6: (2) 120; (19) 656
23: (35) 438 7: (31) 672
25: (21 e 23) 109 8: (2-3) 316; (3) 498
9: (16) 31
JOÃO 11: (23-29) 104
Cap. 1: (1-5) 174; (5) 174; (12) 149 12: (12-13) 686; (23) 66; (31)
3: (1-15) 317; (3) 236; (3-5) 367, 395, 492, 758
185; (16) 70, 97, 148, 149, 13: 703, 761; ( 1ss) 520; (4) 395;
337, 769; (16ss) 617; (18) (7) 500; (8) 493; (9) 405;
557; (30) 715; (36) 149 (12) 316; (13) 493
4: (24) 386 14: (1) 395
5: (18-27) 174; (24) 617 15: 312; (9-10) 240; (22) 257;
6: (47) 149 (25-28) 479; (26) 260, 623;
8: (32) 122; (32-26) 333 (28) 502; (34) 67; (45) 258;
10: (10) 344; (24-39) 174 (45ss) 266; (47) 487; (50-
14: (13) 378; (27) 76, 129, 352 57) 154; (51) 636; (51-52)
17: (11-21) 686 767; (54) 280, 502
20: (29 ss) 152
II CORÍNTIOS
ATOS DOS APÓSTOLOS Cap. 1: (3-11) 498
Cap. 2: (2) 428; (6) 70; (11) 430 3: (17) 441
4: ( 24ss) 542 4: (10) 301; (12) 243, 257; (16)
7: (53) 283 243; (16ss) 302 (18) 484, 500
9: (5-6) 62; (15) 657 5: (1ss) 160; (2) 280, 343; (4)
10: (34) 617 280; (17) 257; (19) 159;
11: (18) 219 (19-20) 498
16: (27-31) 399; (30-31) 350; 6: (8) 591; (16) 120
(31) 84 7: 731; (5) 243
17: (22-23) 144; (23) 39; (23-28) 8: 708

828
Índice 1A

9: 708 2: (13) 513


10: (17) 192
11: (31) 514 FILEMON
12: (9) 303 Cap. 1: (9) 403

GÁLATAS
Cap. 1: (11-12) 812; (16-17) 812 HEBREUS
2: (2) 617; (9) 812 Cap. 1: 679; (1) 174; (3) 153
4: (4) 284, 360, 422; (9) 316 2: (7) 270
5: (5) 145; (6) 493; (22) 460 3: (7-8) 765
6: (7-8) 97; (15) 120; (17) 301 10: (17) 310
11: 568; (5) 127; (6) 211
EFÉSIOS 12: (2) 147
Cap. 1: 227 13: (13) 450
2: (12) 514
3: (1) 403 (4) 403; (20) 798; I PEDRO
(20-21) 798 Cap. 1: (25) 140
4: (1) 403; (30) 431 3: (18) 314; (19) 251
5: (9) 460; (16) 471; (32) 636
TIAGO
FILIPENSES Cap. 2: (23) 344
Cap. 1: (15-18) 108 4: (14) 762
2: (5-11) 174; (6) 801; (6-7)
440 I JOÃO
3: (10) 301, 497; (20) 300 Cap. 5: (13-20) 174

COLOSSENSES JUDAS
Cap. 1: (13) 441; (24) 301 Cap. 1: (24-25) 798
2: (14) 360 (único)
3: (3) 154, 300; (24) 698
II TESSALONICENSES APOCALIPSE
Cap. 1: (12) 513 Cap. 1: (6) 338
2: (7) 636 2: 519; (9) 560
3: 519; (5) 267, 339; (20) 591
II TIMÓTEO 5: (11-13) 174
Cap. 1: (8) 403; (12) 136 7: 207
4: (8) 84; 349 20: (11ss) 80
21: 207; (1) 138; (2) 428;
TITO (22-24) 639; (27) 267
Cap. 1: (15) 790 22: (17) 149

829
CITAÇÕES BÍBLICAS
EPÍSTOLAS AOS ROMANOS
ÍNDICE 1B

Chave: (5) 35, 240, 447


Leia-se: O versículo 5 do capítulo referido está citado nas páginas 35, 240 e
447 (Os números das páginas estão separados por vírgulas).

CAPÍTULO 1 (19-20) 490


(1) 37, 77, 142, 240, 258, 679, (20) 60, 64, 79, 171, 245, 248,
698, 722 391, 447, 478, 483, 622,
(1-7) 31, 174 650, 679
(2) 55, 126, 133, 143 (22) 68
(3-4) 259, 280 (22, 32) 121
(4) 34, 40, 43, 45 (22ss) 139, 214, 238
(5) 35, 240, 447 (23) 76, 86
(6) 34 (24) 41, 727
(7) 768 (25) 513
(9) 699 (28-31) 66ss
(9-13) 813
(10) 37, 260 CAPÍTULO 2
(14) 35, 276 (1) 132
(16) 50, 55, 96, 139, 142, 155, (1-2) 86, 269
245, 258, 545 (1-13) 355
(16-17) 649 (3) 187
(17) 51, 577 (3-5) 269
(18) 41, 63, 121, 124, 125, 137, (4) 88, 92, 99, 161, 185, 553
139, 141, 191, 213, 239, (5) 266
245, 266, 267, 324, 377, (6) 89, 94, 101, 123, 134, 167,
502, 661, 728 185, 190, 669
(18-19) 662 (9) 245, 707
(18ss) 75, 261 (11) 190, 617
(19) 487 (11-12) 272

831
Citações Bíblicas - Epístola aos Romanos

(12-13) 269 (21-22) 31


(13) 86, 91, 278, 281, 300, 579 (22) 161, 295
(14) 88, 118, 131 (22-23) 205, 241
(14-15) 515 (23) 170, 243, 268
(14-19) 355 (24) 159, 295, 481
(14-29) 563 (24-28) 276
(15) 134, 677 (25) 163, 169, 191, 250, 552
(16) 113, 134, 161, 190, 336, 500 (25-26) 553
(17) 242, 514 (27) 242, 565
(17s) 269 (27-30) 197, 355
(17-20) 45 (27-31) 183
(19) 125 (27ss) 579
(19-25) 116 (28) 187, 191, 316, 471, 533, 764
(20) 132, 233 (29) 96, 183, 514, 515
(22) 242 (29-30) 204
(29) 89, 185 (30) 86, 171, 250, 278, 300, 515,
564
(31) 197, 208, 218, 283, 355
CAPÍTULO 3 777, 801
(1) 120, 132, 135, 173
(1-2) 45, 514 CAPÍTULO 4 355, 777
(1-4) 120, 126 (1) 217, 222
(1-20) 355, 380, 407 (1-8) 180
(2) 99, 131, 269 (2) 187, 242
(3) 116, 646 (3) 198, 316, 471, 533
(3-5) 291 (4-8) 200
(4) 530 (5) 136, 191, 200
(5) 122, 132, 540 (6-8) 198
(5s) 548 (9) 200, 564
(5-6) 616 (9-12) 180, 355, 591
(5-7) 123 (11) 99, 294
(5-8) 124, 125 (12) 594
(6) 120 (13) 209, 241, 278, 468
(8) 524, 547 (13-17) 180, 355
(9-18) 653 (13ss) 227
(10) 268, 281 (14-15) 218
(10-18) 129, 132, 133 (15) 269, 285, 328, 364, 389
(14-20) 269 (16) 296, 515, 532
(19) 170 (17) 136, 227, 231, 236, 297,
(20) 137, 161, 218, 285, 380, 408 300, 452
(21) 163, 180, 197, 239, 254, (17ss) 227
276, 296, 365, 447, 472, (18) 136, 163, 627
532, 577 (20) 187

832
Índice 1B

(21) 187 (1s) 548


(25) 236 (1-2) 616
CAPÍTULO 5 (1-12) 368
(1) 89, 162, 249, 284, 301, 341, (2) 292, 297, 300, 301, 305, 388
625 (2ss) 161
(1-2) 247 (3) 302, 337
(1-11) 256 (3-5) 303
(2) 163, 243, 253, 626, 679 (4) 309
(3) 498, 707 (4-5) 278
(3ss) 302 (5) 300, 307, 367, 444, 473, 497
(5) 238, 243, 491, 627, 700, (6) 322, 332
707, 757, 758 (7) 297
(6) 245, 497, 802 (8) 300, 314, 315, 440, 503
(6-8) 440 (9) 280, 341
(8) 248 (10) 316
(8-10) 625 (11) 301, 533
(9) 250, 274 (12) 275, 362
(9-11) 341 (12-23) 368
(10) 238, 249, 251, 274, 645 (12-31) 365
(10-11) 299 (13) 453, 666
(11) 276 (14) 300, 343, 364
(12) 41, 126, 199, 273, 275, 279, (14-15) 355
288 (15) 334, 525, 547
(12-14) 125 (15s) 548
(13) 285, 328 (15-16) 667
(13-14) 279, 282, 376 (17) 327, 338
(13-20) 355 (18) 334
(14) 256, 285, 639 (19) 326, 346, 349, 364, 365,
(15) 275 453, 666, 667
(15-17) 274, 279, 290, 333 (22) 361, 362, 368, 454, 667
(16) 277, 442 (23) 264, 356, 668
(16-17) 276, 277
(17) 277, 281, 300, 324 CAPÍTULO 7
(17-19) 86 (1) 358, 361, 364, 371, 415
(18) 268, 278, 279, 280, 288, 442 (4) 362, 686
(18-19) 256, 281 (6) 371, 399, 464
(19) 260, 276, 280, 300 (7) 394, 396, 398, 399
(20) 214, 261, 278, 328, 400, (7-13) 363, 561
525, 620 (7ss) 270
(21) 260, 264 (8) 270, 271, 379, 383
(8-11) 398
CAPÍTULO 6 (9) 383, 739
(1) 292, 305, 308, 547 (10) 264

833
Citações Bíblicas - Epístola aos Romanos

(11) 270 (28) 245, 503, 632, 757


(12) 283, 399 (28-29) 632
(13) 400 (28ss) 700
(14) 408, 409, 480 (29) 632
(14-17) 402 (29-30) 504
(14ss) 270 (31) 503
(15) 739 (38) 63
(16) 409
(16-17) 410 CAPÍTULO 9
(17) 447 (1-5) 597, 603
(18-19) 402 (2) 531
(18-20) 402 (4-5) 45, 99
(19) 114, 127, 241 (6) 637, 646, 680
(20) 317, 447 (12) 573
(13) 573
CAPÍTULO 7 (15-18) 51
(24) 319, 344, 426, 427, 448, 672 (18) 573
(25) 319 (19) 550, 551, 561, 621
(22-23) 620
CAPÍTULO 8 801 (23-33) 788
(1) 444 (31) 570, 572, 577, 581, 612
(2) 166 (33) 619, 627, 788
(3) 444, 447, 463, 497, 710
(4) 587
(5-9) 457 CAPÍTULO 10
(10) 451, 452 (1) 597, 603
(11) 463 (2) 96, 578, 581
(12) 462 (3) 578, 581, 586, 612
(13) 672 (4) 581
(14) 473, 498, 515 (4-5) 89
(15) 472 (5) 586, 590
(16) 473, 485, 532 (6-8) 586
(17) 301, 472, 473, 503 (9) 590
(18) 469, 533, 608, 706 (11) 589, 590, 627
(19-22) 509 (11-14) 513
(19ss) 245, 262 (12) 622
(20) 490, 745 (12ss) 592
(22-23) 490 (13) 590, 592
(23) 608 (14-15) 45
(24) 329, 481, 535 (15) 169, 455
(24-25) 707 (16) 610
(26) 59, 368, 378, 708 (16-21) 616
(27) 708 (17) 147

834
Índice 1B

(20) 629 (17) 726


(21) 603, 605 (18) 777
CAPÍTULO 11 788 (19) 738, 745
(2) 610, 646 (19-20) 736
(9) 627 (20) 744
(11) 633 (21) 743, 744, 753
(12) 638 (21 a 13, 7) 756
(13) 638 (31s) 367
(13-15) 638
(14) 638 CAPÍTULO 13 740
(15) 623 (7) 755
(25) 719 (9-10) 684
(25-26) 652 (11) 706
(28) 654 (12) 236
(30) 643 (14) 686
(32) 105
(36) 637 CAPÍTULO 14 797
(23) 798
CAPÍTULO 12
(1) 679, 680, 694, 746, 749, CAPÍTULO 15 797s
758, 774 (1) 773, 798
(1-2) 734 (1-6) 797
(2) 35, 681, 713, 734, 756, 810 (3-12) 798
(3) 690, 695, 714, 761 (15) 37, 816
(3-6) 760 (17) 163
(3-8) 678, 702 (20-22) 37
(6) 723 (30) 35
(8) 713
(9) 721, 725, 757, 760 CAPÍTULO 16 797ss
(9-13) 697 (1) 766
(9-15) 712, 754, 756 (6) 815
(11) 698, 808 (17-20) 798
(13) 698, 813 (19) 34
(14) 701, 726 (22) 236
(15) 711 (24) 798, 799, 817
(16) 730, 736 (25-27) 796ss, 817
(16-20) 713, 756 (26) 47

835
ÍNDICE DE NOMES
ÍNDICE 2

A 255, 266, 290, 295, 392, 402, 413,


Agostinho 126, 449s 421, 423, 473, 477, 483, 540, 542,
Angelus Silesius 165 550, 635, 648, 737, 782
Anselmo 275 Cohen, H. 15, 54
Arnd Joh. 406 Corssan 797
Atanásio 698
D
B Dostoiewski 93, 182, 189, 223, 285,
Barth, Fritz 13, 255, 294 339, 357, 392, 433, 458, 547, 549,
Barth, Karl (Excertos para esboço da 664, 730, 737, 775
personalidade) (13,20), (22, 23
itens 1 e 2), (49, item 3), (68/69, E
itens 2 e 3), (89, item 1), (106, item Edwyn, Sir 2
1), (169, primeira parte), (358, in El Greco 410
fine) Erasmo 214
Beck 373, 453, 513
Bengel 46, 152, 255, 782, 816 F
Bethmann – Hollweg 665 Feuerbach 363, 487
Beza (Bèze) 636 Filo 602, 651s
Bismark 15 Foerster 674
Blueher (Hans) 550, 703 Francisco de Assis (São) 78, (106, item
Blumhardt (pai e filho) 30, 78, 342, 1), (357, in fine)
392, 433, 565, 608
Blumhardt J. C. (pai) 325, 358, 481 G
Boll 608 Gellert 95
Godet 303, 316
C Goethe 413, 451, 476
Calvino 15, 118, 225, 239, 241, 253, Gouvêa, Ricardo Quadros 5ss

837
Índice de Nomes

Gruenewald 182, 203, 223, 248 Lutero 15, 28, 43, 50, 59, 78s, 103,
141, 149, 161, 182, 215, 223, 244,
H 258, 264, 270, 273, 285, 293, 298,
Harnack 347, 716, 797, 799 324, 393, 397, 407, (416, it 1),
Hegel 219 423, 432, 440, 445, 446, 450, 458,
Heiler, Fr. 485, 708 462,. 465, 471, 474ss, 490, 501,
Heráclito 258 528, 568, 606, 638, 647, 649, 650,
Hiller, Ph. Fr. 160 664, 701, 703, 709, 726
Hoelz 460
Hoffmann 248, 403, 513, 796s M
Holderlin (Hoelderlin) 547 Marcion 372, 374, 389, 799
Holz, Arno 460 Marco Aurélio 651
Holtzmann, H. 297 Martensen 214, (219, item 1)
Huss, João 239 Marx 20, 23, 730
Melanchton 492
J Merechkowski 238
Jean Emile Charon 429 Miguel Ângelo 385, 388
Juelicher 274, 514, 525, 608, 632, 648, Mota, Jorge Cesar 1, 153
698, 705s, 735, 777 Mota, Otoniel 1
Mozart 672
K Muck Lamberty 547
Kant 413, 460s, 567, 575, 592, 722 Mueller, Johannes 372s
Kierkegaard 15, 27, 30, 43, 78, 148,
180, 182, 214, 219, 236, 392, 401, N
421, 433, 436s, 526, 604, 607, Nietzsche 15, 152, 215, 221, 229, 475,
679, 684, 692, 722, 759, 760, 763 477, 479, 541, 547, 640, 674, 737
Kuehl 239, 357, 364, 513, 577, 781,
798 O
Kutter 239, 339, 607 Oetinger 453, 805
Orígenes 797
L Overbeck 30, 44, 151, 165, 183, 215,
Lao Tse 394 (219, item 1), 252, 313, 392, 414,
Lenine 465, 674, 731 421, 692
Lessing 413
Lhotzky 372 P
Lichtenberg 413 Platão 54, 117, 176, 223, 434, 451
Lietzmann 236, 247, 265, 328, 451, Plotino 175
513s, 628, 648, 698, 796s, 815 Polícarpo 798
Ludendorff 460, 674 Poradowski, Miguel 21ss

838
Índice 2

Potenkin 101 Tholuck 796


Preiswerk S. 150 Thomas Muenzer 779
Tirpitz 16, 665, 727
R Tolstoi 78, 79, 93, 694, 730, 778
Ragaz 372s, 674 Tomás de Aquino 10
Rothe 453 Tristan Tzara 298
Rousseau 271 Troeltsch 297, 313
Rudyard Kippling 732
V
S Vasconcelos C. C. 23
Schiller 741
Schlatter 29, 305, 316, 537 W
Schlegel, Fr. 402 Weinel 254
Schleiermacher 346, 351, 401, 404 Weiss, B. 513
Seume, R. 271 Wernle 297, 735, 808
Sócrates 176, 182, 426 Wettstein 513s
Steiner 453
Steinhoffer 247, 541, 632, 781, 816 Z
Stinnes 460s, 541, 632, 781, 816 Zahn 86, 287, 325, 403, 451, 513, 577,
Strauss, Dr. Fr. 65, 438 781, 796s, 815
Zinzendorff 238
T Zuendel 27, 51
Tersteegen 465, 703 Zwinglio 103s, 423, 433

839
ÍNDICE GERAL REMISSIVO
ÍNDICE 3

A Barthianismo 15, 89 (com. 3), 206, 266


“Ab Extra, Ad Rem” 22-25 Base fundamental, A 678
Abraão (Abrão) 104, 107, 127, 143, Batismo 69, 136, 199, 203, 220, 289,
181ss, 187ss, 196ss, 210, 218, 434 295ss, 303, 364
“Actus Purus”291 Bíblia 13s, 83, 169, 171, 180, 197, 207
Adão 127, 265, 287, 338 Bíblia (Traduções da) 12 (com. 2 e 3),
Ágape 493, 545, 700ss, 756, 759ss, 38
767
Alvo, O 634s C
Ama-Xosa 486 Carta a um pastor 9s, 24
Amazias 214, 191 (item 1) Catecismo de Heidelberg 10
Amor 489s, 702, 755ss, 770s Catolicismo 30, 21s, 69, 106 (in fine)s,
Amor a Deus 238, 248, 253, 491ss, 127, 149, (in fine)s, 165, 169, 172,
757ss 206s, 265s, 268, 422, 516 (in fine)s,
Amor ao próximo 700, 757s 575, 618 (in fine)s, 684s, 761, 792
Amor de Deus 148, 169, 241, 388s (in fine)s, 121, 807
Amós 214, 220 “Centrum Paulinum” 45, 68
Anabatistas 737 Comentários 37 (in fine)s, 48s, 57ss,
“Ananke”51 68ss, 89ss, 106ss, 173ss, 196s,
Antigo Testamento (ver testamento) 205ss, 219ss, 231ss, 287ss, 317ss,
Antinomia 556 349ss, 368ss, 399s, 416s, 448s,
Apóstolo (ver Paulo) 488s, 527, 555ss, 575s, 599s, 614s,
Árvore do Bem e Mal 270, 384, 386s, 633s, 652ss, 677s, 695ss, 710ss,
388s, 392s 730s, 753ss, 769s, 802s
Autoridade 27s, 98s, 686, 694ss, 705, Comunidade (O Apóstolo e a) 805ss
732ss, 744ss, 752ss Concílio de Trento 23
Condenação 96
B Confissão de fé do Westminster 267
Babel, Torre de 669, 730 Consciência 95, 664, 725, 751, 791

841
Índice Geral Remissivo

Conselho Mundial de Igrejas 807, 664s 619ss, 622s, 631, 541, 650s, (ver
“Creatio ex nihilo” 153 Predestinação
Crer 44 Elias 127, 556, 606s, 731
Criação do homem 175 Enoque 127
Crise 34, 40, 47, 122, 136, 161, 172, Epístola aos Romanos 2ss, 38, 648ss,
185, 233, 331 659, 677s, 679, 715, 735, 744, 772,
775, 779, 787, 792, 797s, 805s, 815
D Epístola de S.João (I) 701
Daniel 127 Eros 66, 657, 671, 699s, 706, 710, 760
Davi 127 Esaú 285, 556, (ver Igreja de Esaú)
Decisão 425 Escândalo 44, 49, 80, 89, 148, 151,
Desator (e ator) 172 155, 160
Deus 28, 29, 46, 50s, 52, 56, 97, 106, Escatologia 61(in fine), 85, 95, 137,
114, 118, 122, 124, 170s, 186s, (in fine), 154, 241, 365, 388, 527,
197, 223s, 370s, 389s, 432, 463, 579s, 590, 694, 764s
514, 541, 808, 817 Escravo 63, 77, 131
Deus de Esaú 539 Escrituração 80
Deus de Jacó 527 Esperança 32, 241, 298, 276, 482, 646,
Desconhecido, O 39, 54, 180, 221s 707
Deus (Relacionamento com) 51, 55, Esperança da Igreja 605, 610s, 613 (in
63, 66s fine), 626s, 636
Deus (Unidade de) 602 Espírito 425ss, 428s, 441ss, 450, 452,
Dia de Jesus Cristo 145, 147, 155s, 463, 482, 485ss, 668, 706
235s, 287, 365, 464, 473, 483, 494, Espírito Santo 30, 247s, 404
512, 527, 634, 647, 656, 673, 676, Espiritismo 334
755 Espiritualismo 453
Direito das Pessoas 737s, 749s, 789 Essência do cristianismo 648
Direitos Humanos 711 Ética 251 (in fine)s, 349, 460s, 464,
“Disangelho”10 506, 655, 657ss, 673, 695, 602, 807
Dogmática (de Barth) 10, 19, 89 (com. Ética cristã 718s, 720, 730 (ver 657,
1), 422s in fine)
Dor 507 Ética divina 722 (in fine)s, 801
Doxa 187 Ética negativa 713
Dualismo 274, 291, 340s, 347s Ética positiva 997s, 756s
Ética primária 657 (in fine), 668
E Ética problema da 657, 678 (comen-
Ecumenismo 22s, 41, 689, 790 tários)
Editorial 31 Ética secundária 657 (in fine), 690s
Ego 121, 248, 343 Evangelho 29, 38ss, 55, 75, 79, 96,
Eleição 32, 48 (com. 1), 82, 200, 266s, 142, 258, 346, 389, 541, 790
490ss, 534ss, 570, 609s, 612ss, Evangelho social 525

842
Índice 3

Evangelismo 664, 790 Gnosticismo 126, 179


Eucaristia 103 Graça 29, 31, 58, (com. 5), 80, 150,
Explicações Preliminares 2 153, 155, 169, 218, 275s, 286, 289,
306s, 320s, 326s, 335, 345, 352,
F 355, 360, 367, 371, 374, 416, 530s,
Fanatismo 78, 738, 609, 657, 666s, 693s
Farisaismo 28, 63s, 83s, 151, 164s, Graça, Salvação pela 68s, 396 (in fine)
214s, 220, 556s, 604, 625s (ver “Salvação”)
Fatalismo 124, 303, 341, 492 Guerra 774
“Fata Morgana” 17, 434, 471
Fé 28, 32, 43ss, 47s, 71, 74, 77, 79, 81,
85s, 88, 91, 105, 112, 136, 143, H
147s, 151, 154, 158, 159s, 162, 166, Heroísmo 105, 115, 118, 127s, 147,
170s, 174, 177ss, 187, 193, 197, 183, 187, 205, 779
199, 202s, 206s, 209, 215, 220, 227, Hierarquia 113, 151
230, 236s, 240, 247, 258, 282, 294, História 13, 20, 29, 55, 74, 78, 80, 85s,
309s, 316, 353, 466, 534, 566, 577, 98s, 113s, 118, 124, 126, 129, 132,
586, 591, 630, 649, 651, 763, 773, 136, 137s, 142, 143s, 147, 151,
777, 820, (ver fidelidade de Deus) 155, 159, 161, 162s, 178, 180,
Fetichismo 63 184s, 189, 192s, 197, 201, 213s,
Fidelidade de Deus 32, 34, 36, 38, 44, 218, 221s, 225s, 230s, 268, 300,
47, 49, (com. 4 e 5), 71, 112 (in 312s, 387s, 367, 409s, 433s, 479,
fine), 114, 113, 118, 124, 130, 133, 491, 516s, 677, 786s
142, 146, 147, 155, 160, 164, 166, História antiga 182s, 221, 265, 364s,
178, 197, 201, 210, 218, 223, 296, 453
318, 344, 353, 370, 417, 657, 785, História da Igreja 78, 103, 139, 198,
(ver “Fé”) 313, 365, 433, 566, 765ss
Filiação (em Espírito) 238, 250, 293, História da Redenção 78, 95, 107, 183,
303, 320s, 344, 360, 464, 492, 497 192, 204s, 209, 212s
Final dos tempos 765ss História da Religião 28s, 115, 181s,
Fruto proibido 393 (ver árvore do bem 189s, 200s, 312s
e do mal) História Sagrada 116, 139, 197
Fundamentalistas 87, 335 História da Salvação 78, 433 (ver “Sal-
“Futurum Aeternum” 293, 301, 365 vação”)
“Futurum Ressurrections” 300, 306, 310, História da Verdade 191
314, 315, 317, 326, 340, 343s, 640 História (Utilidade da) 221
História (Voz da) 177
G Homem Novo 155, 161, 168, 235, 298,
Genialidade 671, 674 303s, 326, 338, 354, 358, 415, 666
Glória 151 (in fine), 811, 817 (com. Homem Velho 297s, 303s, 338, 666
1), 811 Hóstia 77

843
Índice Geral Remissivo

I Inovação 19
Idealismo 65, 94, 583, 744 Inquisidor, O Grande 307, 602ss, 737,
Ideologia 100, 113, 805 715, 792
Idolatria 24, 32, 38, 41, 49, 51ss, 65s, Instante Crítico 31s, 35, 44s, 164, 168,
124, 169 180, 191, 195, 217, 257, 292, 310,
Ídolo 51, 58, 62, 68, 423 472, 610, 623, 647, 762, 766s, 769,
Igreja 17, 90, 149s, 199ss, 206, 270, 802
515, 518, 521, 527, 529ss, a 545, Intelectualismo 658s, 606s
571, 573, 575s, 578, 581s, 584ss, Interrogação divina 390
589, 594ss, 597, 599ss, 601ss, 612, Interrogação sobre Deus 42, 264
620s, 625s, 632, 637, 640, 643, Intolerância 333s
645, 652, 663, 680s, 690, 737 Introdução 27
Igreja (Aflição da) 531, 544, 555 Ira divina 50, 55s, 63, 74, 77, 79, 83,
Igreja (Alvo da) 635s, 642s, 647 86, 89 (com. 2), 96, 114, 139, 142,
Igreja Congregação dos Santos 690s 191, 253, 328, 334, 353, 553, 787
Igreja (Coroa da) 530 Irmãos Morávios 239
Igreja Crise do Conhecimento 559ss Isaías 107 (com. 2), 129, 598
Igreja (Culpa da) 559, 597 Israel (História de) 207s, 212, 217s,
Igreja (de Esau de) 531, 570, 578, 597, 230s
614
Igreja (Esperança da) 17, 601, 611ss, J
618ss, 623, 626, 636 Jacó 285, 553 (ver “Igreja de Jacó”)
Igreja de Jacó 531, 594, 639 (in fine), Jeremias 77, 107, 182, 410
680 Jesus 137
(Igreja) Luz nas Trevas 559, 576, 592, Jesus Cristo 433s, 437s, 585s
602, 613 Jesus Deus 174
Igreja (Palavras aos de fora da) 616s, Jesus Filho de Deus 249, 284, 331,
629, 632s 433, 764
Igreja Reformada 516s, 584 Jesus histórico 29s, 112, 159, 249, 284,
Igreja (Tributação da) 511, 536 311, 764, 777
Igreja (Unidade da) 602ss, 607, 609s Jesus homem 29, 112, 145s, 148, 156,
Imaculada Conceição (Dogma da) 268 161, 174
Imagens 41, 61 Jesus nosso Senhor 29, 54
Imanência 163s, 171, 180, 214 Jesus o Cristo 30, 39, 112, 145s, 174,
Imediação 263ss, 284s, 323, 339s, 350, 433
355s, 371s, 376, 386, 388s, 433s, Jesus Profeta 249
497, 520ss, 525 Jesus Sacerdote 249
Impostos 753 Jesus Rei 249
Índia 63 Jesus (o verbo) 385, 524
Indivíduo 173, 180, 758, 762s Jó 28, 50, 54, 129s, 143, 159, 246s,
Inimigo 726s, 733s 262, 391, 401, 469, 472, 492, 498

844
Índice 3

João Batista 117, 402 Livro da vida 189


Jonas 127, 634 Lógica 121, 123, 408, 677
José (Mal de) 615, 621, 637, 652 Logos 222, 381
Judas (Iscariotes) 603 Louvor 668
Juiz, O 73, 116, 245s Luteranismo 666 (in fine), 725
Julgamento 47, 50, 55, 74ss, 80s, 85ss, Luz 146s
90ss, 98, 112s, 116, 122ss, 130, Luz nas Trevas 576
183s, 185, 244s, 277s, 567, 784
Justiça 431, 561, 577 M
Justiça divina 29, 45s, 47, 51s, 74, 80s, Mãe de Deus 421
95, 112ss, 122, 130, 142, 153, Magia 295
160s, 164, 184, 190, 197 (com. 4), Mal 721s, 726, 728, 738s, 748, 750
209, 218, 281, 341s Mandamento 389s
Justiça humana 94, 155 (in fine), 164, Maometanismo 354
185 (ver “Retidão Humana) Maravilha 81s, 88
“Justificatio Forensis” 17 Marcionismo 372, 797
“Justitia Forensis” 141, 780 Maria 422
Justificação 169, 180, 188, 195, 199s, Mariologia 268, 422
285, 294, 338 Martírio (sacrifício) 250, 777s
Justo 47s Marxismo 21ss, 85, 207
Máscara 21ss, 190
K Materialismo 24, 65, 190
Kapporeth 158, 552 Mediador 51
Mensageiro 10, 28, 31s, 35, 38, 40, 69,
L 108s, 119, 646, 728
Laicismo 372, 630, 632 (in fine) Mensagem 38, 79, 107ss, 118s, 132,
Lei, A, 111s, 131 (in fine), 135, 269s, 150, 169
285, 332, 353, 362, 370, 374, 381, Mentira 116, 119, 105 (in fine), 120,
403, 411s, 416, 431s 122, 252
Liberdade da criatura 338s, 360ss, Méritos (excedentes) 69
364ss, 380s, 384ss, 398 (in fine), Método 76s, 81s, 105 (in fine), 149,
400 (in fine), 415, 772s, 785s 164s, 166, 211, 216, 728s, 734, 788
Liberdade de consciência 584, 664, Milagre 39, 61, 71, 81s, 87, 90s, 141,
718, 788 154, 178ss, 182, 191, 194, 227,
Liberdade de Deus 331 (in fine), 353ss, 308, 343, 566
367, 380 (in fine), 398ss, 359, 416, Militarismo 725, 728, 771
532, 546, 589, 592 Ministério 693, 809
Liberdade para pecar 329, 338s, 381, Ministro 521, 524, 572
384 Misericórdias (de Deus) 656, 661
Liderança 777, 799 Missão 93, 98, 100, 107, 150, 169,
Línguas estranhas 69s 562s

845
Índice Geral Remissivo

Missão da Igreja 636, 640, 647, 652s O


Misticismo 32, 81, 165, 222, 298, 301, Obediência 32, 35, 86 (in fine), 123,
330, 372, 401, 486, 651, 668 146, 281, 319s, 336 (in fine)s, 330
Mito 30, 212, 222, 295, 385 (in fine), 593
Mitologia 222, 383, 385 Obediência (Poder da) 319ss (ver sob
Mitras 410 “Poder”)
Moisés 107, 117, 143, 178, 579 Obras (de Deus e humanas) 55, 164ss,
Momento (binário) 167, 169 168, 549s, 716
Momento crítico (ver instante crítico) Oleiro (analogia) 551
Monasticismo 69, 301 Opção 45, 49, 51, 57, 71, 80, 89, 96,
Moral 60, 95, 129, 330, 333s, 345, 715 161
Morávios, Irmãos 239 Oração 35, 81 (in fine), 131, 326s,
Mordomia 656s, 669, 771ss, 781, 486s, 668
787s, 799ss Origens 15, 121, 129, 137, 141, 151,
Mordomia (A crise de) 771ss 153, 197, 203, 219, 221s, 261, 321
Morrer (em Cristo) 163 Ortodoxia 201ss
Morte 179, 260, 264s, 289s
Mortificação 461 P
Muenchhausen (Barão de) 407 Palavra 10, 28, 118, 146, 151, 171, 195
Mundo 17, 32, 43 (in fine), 59s, 96, 137 Palavra aos de fora 616ss
Mundo Novo 86, 90, 256ss Palavra de Deus 226, 433, 435, 528,
Munus 48, 69 566, 585, 626, 650, 677, 701
Munus Triplex 249, 311 Panteísmo 331, 335, 453, 517s
Papa 172, 410, 726
N Parábola 519, 541, 749 (ver semelhan-
Nação sacerdotal 201, 617 ça)
“Não-Deus” 46, 51, 53s, 63, 67, 71, Paradoxo 27, 30, 50s, 59, 65, 76s, 79,
73, 76, 80, 83, 97, 112, 121, 125, 81, 142, 147, 151, 159, 163, 170,
130, 245, 261, 357 174, 178s, 184, 185, 195, 239, 258,
“Não” divino 42s, 48, 50, 55, 59, 65, 308, 397, 435, 516, 636, 647
71, 79, 91, 106, 114, 129, 138, 143, Parúsia 242
152, 165, 168, 169, 180, 191, 194, Pastor 20, 693
218, 243, 275, 286, 290, 305, 347 Paulinismo 772, 792, 800, 805, 812
Natal 157, 183 Paulo 27, 107, 241, 286, 290, 330, 338,
Noite 48s, 50, 57, 59 350 (item 1), 401, 403, 407 (in fine),
As trevas 59 416, 472, 498, 522, 589, 625, 628
A origem 48 (in fine), 650, 654ss, 661s, 677, 679,
Nova criatura 97, 105, 168, 235s, 241s, 683, 690s, 705, 722 (in fine), 755,
254, 293, 306, 314, 317, 312, 338, 772, 805ss, 818 (ver Apóstolo)
341, 348, 427, 431, 554 (in fine), Paz 77s, 80, 129, 142, 238, 243, 276,
625 (in fine), 639, 666 284, 724

846
Índice 3

Pecado 161, 179, 190, 193s, 260, 269s, Profeta 83s, 89 (com), 115, 143, 249,
280, 281s, 374, 381, 398, 400s, 435 282, 376, 381, 408
Pecado original 263s, 265 (in fine), Professor 692
287ss, 291s, 306s, 390s Profissão de fé 199, 203, 295
Pedro 172 Promessa (de Eleição) 534, 668
Perdão 42, 81s, 96, 140, 142 (in fine), Propiciação 143, 158
145, 146 (in fine), 161, 293, 307, Protestantismo 16, 18, 23, 69s, 103,
329, 331, 337, 339, 346, 348, 361, 149s, 169, 217, 334s, 345, 351, 516,
389 632, 649, 656, 667, 683, 766s, 772s,
Perturbação 655s, 661, 667 778, 792ss, 794 (in fine)s, 800, 807
Pessimismo 126, 130, 152, 243s, 328s, Protesto 756
355s, 477 Próximo 683s, 695, 700s, 703, 708s,
Pietismo 164s, 240, 392, 433, 465, 727s, 757s, 800s
525, 715s Psicologia 74, 78s, 86, 98s, 118, 129,
Poder da obediência 319s, 326 (in 147, 149, 175, 195s, 303, 399s,
fine), 328, 333 (in fine), 337s, 345, 436, 463s, 481, 785
350, 352, 360s
Q
Poder da ressurreição 289, 292, 299,
Qualificação (por Deus) 666s, 741
316, 328, 336, 345, 350, 361
Qualis ab Incepto 416s
Poder de Deus 39, 45, 50, 55, 58, 141,
Queda (de Adão) 41,88, 143, 151, 275,
345
280, 281 (in fine), 386, 390s
Policarpo 798
Questões de fôro pessoal 34
Ponto central 48, 149, 249, 257
Ponto crítico 40, 53 R
Possibilidade negativa, A grande 732ss Racional, Culto 667
Possibilidade positiva, A grande 755ss Racionalismo 432s, 575
Possibilidades negativas 712ss Radicalismo 128
Possibilidades positivas 697ss Reacionário 136, 756
Predestinação 10, 70, 90, 190, 219, Recompensa 52, 58
266, 273, 277, 280, 336s, 375, Reconciliação 157, 163
378s, 381, 383, 385s, 389s, 497, Recordação 98s, 137, 175 (com 3)
532s, 536s, 546s, 550s, 554s, 573s, Redenção 139, 143, 157, 161, 163,
577, 579, 591s, 602, 632, 667, 717, 168, 196, 224s, 263, 296, 307s,
781, 785 344, 360, 621
Prédica 160, 339, 520, 525, 562s, 692s Reforma (Religiosa) 126, 498, 528,
Prefácios de Barth 14ss, 16ss, 20s 632, 778s
Prefácio Geral 6ss Reformadores 330, 408, 416
Pregador 407 Reino das sombras 751
Prerrogativas 629s Reino de Deus (Expressões do) 31s, 35,
Profecia 28, 143, 150, 273, 433, 458s, 39, 75s, 92, 113, 115, 131, 136s,
522s, 566 138s, 150, 154, 159, 217s, 241s,

847
Índice Geral Remissivo

257331s, 336, 342, 438, 461, 515s, Revolução 734ss, 744ss, 754s
565, 591, 614, 677, 682s, 713s, Riquezas 84ss
724s, 737, 763, 766, 777s, 791, 801s Ritos 295s
Reino do Mal 756 Romantismo 60s, 77s, 135s, 214s, 238,
Religião 16, 31s, 39s, 45s, 49, 52, 54s, 254, 261, 215s, 298s, 334s, 338s,
61, 64s, 76s, 81, 83, 85s, 89, 92s, 345s, 400s, 412s, 433s, 451s, 523s,
94s, 100s, 125s, 128s, 131, 135s, 547s, 566s, 618s, 682s
138s, 143s, 145s, 147s, 150s, Russianismo 339s, 715s
164ss, 170s, 180, 194s, 197s,
201ss, 212ss, 281ss, 284s, 290s, S
293s, 301s, 327s, 330s, 333s, 337, Sábado 69
345, 350s, 353ss, 387, 391s, 394, Sabedoria (Apócrifo) 550
400s, 411s, 430s, 432s, 441s, 446s, Sabedoria humana 412s
465s, 482s, 501s, 533s, 565s, 611s, Sacerdotes 690s, 752s
624s, 661s, 785s, 810 Sacramento 103, 116, 119s, 201s, 294s
Religião (limite da) 355 Sacrifício 249s, 667s
Reliião profética 777s Salmista 129, 143
Religião (realidade da) 400 Salmos 566, 726
Religião (significação da) 145, 376 Salomão 28, 54
Religiosidade 45, 102, 281s, 322s, Salvação 87s, 106, 113, 117s, 123s,
325s, 327ss, 345s 143s, 150s, 244s, 307s, 622, 763s
Religioso social 269s, 525, 567s, 733s, Salvação universal 614s
778s Sangue 157s, 163s, 169s, 191s
Reminiscência do Éden 175 (com 3) Santa Ceia 102s
Renúncia 163ss, 182s, 194s, 202s, Santidade divina 53s, 240s
204s, 223s, 295s, 330s Santidade humana 31s, 39s, 58s, 68s,
Resposta de Deus 295s, 330s 77s, 89, 103, 202s
Ressurreição 30s, 34, 41, 50, 141, 145, Santificação 341s, 345s, 348s, 667s,
178, 191, 223, 231, 234, 354, 361, 684s, 712, 767s (vos “Nova Cria-
368, 389, 662, 714 tura”)
Retidão divina 73, 113, 121s, 139ss São Francisco 78, 107, 357
(ver “Justiça Divina”) Satanás 709, 730, 790
Retidão humana 73, 85ss, 89, 93s, Satanás, Sinagoga de 560
102ss, 114s, 126s, 129s, 135s, Secreto 73, 95s, 108s, 114, 127s
163s, 188s, 269s, 341s, 345ss Semelhança 34s, 50, 62, 91s, 114,
Revelação 29s, 49s, 87s, 90, 98s, 114s, 131s, 144s, 162s, 183s, 200s, 252,
118s, 131, 134s, 138s, 193s, 146s, 265s, 300, 311, 323s, 339s, 344s
197s, 200s, 340ss, 347s, 375, 433s, Septuaginta (LXX) 119, 135, 158, 193
439s, 514s, 532s, 537s, 551s, 562s, Ser Humano 41
578, 605s, 636s, 639s, 653ss Servir 692
Revolta 53 Sião 641

848
Índice 3

Símbolo 295 Testamentos (Novo) 149, 374, 650


“SIM” divino 42s, 47s, 59s, 128s, Testemunhas 690s
138s, 142s, 163s, 167s, 169s, 191s, Tirania 120s
204s, 217s, 242s, 276s, 284s, 290, Titanismo 42, 162ss, 291s, 362s, 372,
304, 308s, 346s, 356s 377, 381, 440, 548s, 625, 654, 665,
Sinal 294s, 302s, 337s 674, 678 (in fine), 686ss, 695, 724s,
Sincretismo 656s, 688s 732, 736, 740, 772ss, 789s, 790,
Síntese da Epístola 31s 794
Sistema político 736ss, 742ss, 749ss, Tolerância 333, 656, 688, 696, 775s
805 Torre de Babel 669, 730
Socialismo 65s, 117, 214, 339, 412, Torquemada 357
525, 716 Tradição 69, 208
Sofisma 77, 123, 125 Transubstanciação 103
Sofrimento 469, 472s, 481s, 508s Trevas (sabedoria das) 60, 68
Solidariedade cristã 35, 152, 512 Tribunal 83, 94, 101, 104, 122, 135,
Sublapsarianismo 266 180
Suicídio 461, 674 Trilogia (da Igreja) 601
Superlapsarianismo 266 Tropeço 790

U
T Unidade 688
Tábuas da lei 700, 702, 714 Universalidade 144ss
Temas centrais 48, 249
Temas da Epístola 813 (ver “Centrum
Paulinum”) V
Tema da Igreja 535, 627, 641, 646 Verbo (Palavra) 140, 148ss, 155s,
Temor do Senhor 128s, 131, 437 159ss, 195, 207
Templo (Purificação do) 643 Verdade 135, 142, 145s, 155, 172, 179,
Tempo aceitável 591 186, 218, 450s, 570s, 577
Temporalidade 706ss, 711s Vida 146, 154, 794
Tempos 765s Virgem (Mãe) 69, 421s
Teocracia 737 Vocação 79, 99, 107, 117
Teodicéia 243, 469s Vontade divina 35, 107, 209
Teologia 16, 98s, 363s, 386, 498s, Voz (de Deus) 54, 82, 119, 139, 159,
648s, 692s, 696s (com it 5), 679s, 176, 209, 233
809s
Teologia moderna (1925) 346, 437ss, W
631s, 667ss, 716ss, 767, 777, 790ss Wittenberg 779
Teosofia 214s
Testamento (Antigo) 28, 149, 158, 183, Z
193, 208, 218, 374, 526, 641, 650 Zacarias 194

849
ÍNDICE GERAL PROGRESSIVO
ÍNDICE 4

EXPLICAÇÕES PRELIMINARES ............................................................................. 1


PREFÁCIO - KARL BARTH E SUA “CARTA” ..................................................... 5
PREFÁCIO DO AUTOR À 1ª EDIÇÃO .............................................................. 13
PREFÁCIO DO AUTOR À 5ª EDIÇÃO .............................................................. 15
PREFÁCIO DO AUTOR À 6ª EDIÇÃO .............................................................. 19
AB EXTRA, AD REM ............................................................................................... 21
APRESENTAÇÃO ...................................................................................................... 25

Capítulo I .................................................................................................................. 27
Paulo a seus Leitores (1, 1 - 7) ..................................................................... 27
Comentários: 1, 1-7 .......................................................................................... 32
Questões de Fôro Pessoal (1, 8-15) ............................................................ 34
Comentários: 1, 8-15 ........................................................................................ 37
O Tema da Epístola (1, 16-17)...................................................................... 38
Comentários: 1, 16-17 ...................................................................................... 48
A Noite .................................................................................................................. 49
A Origem (1, 18 - 21) ...................................................................................... 49
Comentários: 1, 18-21 ...................................................................................... 57
A Atuação da Noite (1, 22 - 32) ................................................................... 59
Comentários: 1, 22-32 ...................................................................................... 68

Capítulo II ................................................................................................................ 73
O Juiz (2, 1-13) .................................................................................................. 73
Comentários: 2, 1-13 ........................................................................................ 89
O Julgamento (2, 14-29) ................................................................................. 90
Comentários: 2, 14-29 .................................................................................... 106

851
Índice Geral Progressivo

Capítulo III ............................................................................................................. 111


A Lei (3, 1-20) ................................................................................................... 112
Jesus (3, 21-26) ................................................................................................ 137
Somente pela Fé (3, 27-30).......................................................................... 162
Comentários: 3, 1-30 ...................................................................................... 173

Capítulo IV ............................................................................................................. 177


Fé é Milagre (3,31 a 4,8) ............................................................................... 177
Comentários: 4, 1-8 ........................................................................................ 196
Fé é Começo (4, 9-12) ................................................................................... 197
Comentários: 4,9-12 ........................................................................................ 205
Fé é Criação (4, 13-15(a)) ............................................................................ 207
Comentários: 4, 13-17a .................................................................................. 219
Da Utilidade da História (4, 17a a 25) ..................................................... 221
Comentários: 4, 17-25 .................................................................................... 231

Capítulo V ............................................................................................................... 235


O Novo Homem (5, 1-11) ............................................................................ 235
O Mundo Novo (5, 12-21) ........................................................................... 256
Comentários: 5, 1-21 ...................................................................................... 287

Capítulo VI ............................................................................................................. 289


O Poder da Ressurreição (6, 1-11) ............................................................ 289
Comentários: 6, 1-11 ...................................................................................... 317
O Poder da Obediência (6, 12-23) ............................................................ 319
Graça (6, 1-23) ................................................................................................. 350
Comentários: 6, 1-23 ...................................................................................... 350

Capítulo VII ........................................................................................................... 353


O Limite da Religião (1, 1-6) ....................................................................... 354
Comentários: 7, 1-6 ........................................................................................ 368
A Significação (o Sentido) da Religião (7, 7-13) .................................. 370
Comentários: 7, 7-13 ...................................................................................... 399
A Realidade da Religião (7, 14-25) ............................................................ 400
Comentários: 7, 14-25 .................................................................................... 416

852
Índice 4

2ª Parte
QUALIS AB INCEPTO .......................................................................................... 421

Capítulo VIII .......................................................................................................... 425


A Decisão (8, 1-10) ......................................................................................... 425
Comentários: 8, 1-10 ...................................................................................... 448
A Verdade (8, 11-27) ...................................................................................... 450
Comentários: 8, 11-27 .................................................................................... 488
O Amor (8, 28-39) ........................................................................................... 489
Comentários: 8, 1-39 (O Espírito) .............................................................. 505

Capítulo IX ............................................................................................................. 511


Solidariedade (9, 1-5) .................................................................................... 512
Comentários: 9, 1-5 ........................................................................................ 527
O Deus de Jacó (9, 6-13) ............................................................................. 527
O Deus de Esaú (9, 14-29) .......................................................................... 539
Comentários: 9, 1-29 ...................................................................................... 555

Capítulo X .............................................................................................................. 559


A Crise do Conhecimento (9,30 a 10,3) .................................................. 560
Comentários: 9, 30 - 10, 3 ............................................................................ 575
A Luz nas Trevas (10, 4-21) ......................................................................... 576
Comentários: 10,4-21 ..................................................................................... 599

Capítulo XI ............................................................................................................. 601


A Unidade de Deus (11, 11-24) ................................................................. 602
Comentários: 11, 1-10 .................................................................................... 614
Uma Palavra aos de Fora (11, 11-24) ....................................................... 615
Comentários: 11, 11-24 .................................................................................. 633
O Alvo (11, 25-36) .......................................................................................... 634
Comentários: 11, 25-36 .................................................................................. 652

853
Índice Geral Progressivo

Capítulos XII a XV (1ªparte) .......................................................................... 655


O Problema da Ética (12, 1-2) .................................................................... 658
Comentários: 12, 1-2 ...................................................................................... 677
A Base Fundamental (12, 3-8) .................................................................... 678
Comentários: 12, 3-8 ...................................................................................... 695
Possibilidades Positivas (12, 9-15) ............................................................ 697
Comentários: 12, 9-15 .................................................................................... 710
Possibilidades Negativas (12, 16-20) ........................................................ 712
Comentários: 12, 16-20 .................................................................................. 730
A Grande Possibilidade Negativa (12, 21-13, 7) ................................... 732
Comentários: 12, 21 a 13, 7 ......................................................................... 753
A Grande Possibilidade Positiva (13, 8-14,0) ........................................ 754
Comentários: 13, 8 - 14, 0 ............................................................................ 769
A Crise da Livre Mordomia da Vida (14, 1 a 15, 13) .......................... 771
Comentários: 14, 1 a 15, 13 ......................................................................... 802

Capítulos XV (2ª parte) e XVI ....................................................................... 805


O Apóstolo e a Comunidade ...................................................................... 805
Comentários: 15, 14-23 e 16, 1-24 ............................................................. 817

Índices ..................................................................................................................... 823


Citações Bíblicas (Índice 1A) ...................................................................... 825
Epístolas aos Romanos (Índice 1B) .......................................................... 831
Índice de Nomes (Índice 2) ........................................................................ 837
Índice Geral Remissivo (Índice 3) ............................................................. 841
Índice Geral Progressivo (Índice 4) .......................................................... 851

854

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