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Bibliografia.
ISBN 978-65-5555-138-9
21-78346 CDD-375.0981
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Folha de rosto
Sumário
Referências
(...) o Estado teria de fazer algum uso de sua força de coerção, caso seus ideais
devessem ser realizados. Deve obrigar as crianças a frequentarem a escola porque o
ignorante não pode apreciar e, portanto, escolher livremente as boas coisas que
diferenciam a vida de cavalheiros daquela das classes operárias. (…)
Ele reconheceu somente um direito incontestável, o direito das crianças serem
educadas, e neste único caso ele aprovou o uso de poderes coercivos pelo Estado… (p.
60 e 63)
Entendemos, porém, que os poderes gerais não devem de modo algum abdicar a
atribuição que esse mesmo parágrafo lhes confere de concorrer de sua parte para tão
útil fim, e mui principalmente no intuito de criar uma educação nacional homogênea e
uniforme, que gere e generalize o caráter brasileiro em todas as províncias... (p. 62)
Quanto ao ensino primário, que cumpre incentivar intensamente em todo País, pois,
cerca de 60% de nossa população infantil em idade escolar não dispõem de escola,
bem é que se padronizem, ainda que com o mínimo de característicos, diferentes tipos
de cursos, que possam ser adequadamente, e com facilidade, adotados nos vários
pontos do território nacional, nas zonas urbanas e rurais, afim de que, fazendo-se
rápida difusão da educação primária, se facilite a formação de fundo comum uma
enorme e rica variedade de psique brasileira.
O padrão da escola primária deve ser um só em todo o país, convindo apenas, quanto
aos horários e divisão dos dois períodos letivos anuais, que haja um tipo especial para
as escolas rurais, porquanto as condições de vida doméstica no campo divergem
bastante das da cidade... (p. 11)
O projeto enviado para a Câmara dos Deputados assim dispunha sobre o
ensino primário e currículo:
fixar, após ouvir educadores e comunidades científicas das áreas envolvidas, diretrizes
curriculares gerais, definindo uma base nacional de estudos para o ensino
fundamental, médio e superior de educação.
Por outro lado, cabe a esse Conselho, segundo o art. 7° da lei, o dever
de “assegurar a participação da sociedade no aperfeiçoamento da educação
nacional”.
Órgão de articulação entre a sociedade política e a sociedade civil, esse
órgão colegiado responde, por meio de suas Câmaras de Educação (Básica e
Superior) à atribuição, posta no art. 9° da Lei n. 4.024/61, com a redação
dada pela Lei n. 9.131/95, respectivamente: “deliberar sobre as diretrizes
curriculares propostas pelo Ministério da Educação e do Desporto; deliberar
sobre as diretrizes curriculares propostas pelo Ministério da Educação e do
Desporto, para os cursos de graduação”.
Veja-se o que dispõe o artigo 22 das Diretrizes e Bases da Educação
Nacional, Lei n. 9.394/96: “a educação básica tem por finalidades
desenvolver o educando, assegurando-lhe a formação comum indispensável
para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no
trabalho e em estudos posteriores”. (art. 22)
De modo constante, o termo educação básica, na LDB, se vê
acompanhado, no conjunto dos artigos, do adjetivo comum. Tal é o caso,
por exemplo, da formação básica comum dos conteúdos mínimos das três
etapas (inciso IV do art. 9°), da formação comum no art. 22, da base
nacional comum dos artigos 26, 38 e 64 e a diretriz do respeito ao bem
comum do art. 27.
Leia-se o que está posto no artigo 26 da LDB:
1. Este tópico teve como base, ora ampliada e revista, capítulo de livro do autor: Os
Parâmetros Curriculares Nacionais e o Ensino Fundamental. In: BARRETTO, Elba
Siqueira de Sá (Org.). Os Currículos do Ensino Fundamental para as Escolas Brasileiras.
Campinas: Autores Associados; São Paulo: Fundação Carlos Chagas, 1998, p. 233-259.
2. Cf. Cury, 2013 e Vasconcelos, 2004.
3. A associação entre gratuidade e obrigatoriedade só foi inscrita nas Constituições
Estaduais de Minas Gerais, Mato Grosso, Santa Catarina e São Paulo.
4. Esta é a primeira intervenção direta e financiada da União no ensino primário, por
meio do Ministério da Justiça, nos Estados do Paraná, Rio Grande do Sul e Santa Catarina,
respectivamente, mediante os Decretos: n. 13.175 de 6/9/1918, n. 13.390 de 8/1/1919 e n.
13.460 de 5/2/1919.
5. Nunca é demais insistir na necessidade de maiores investigações quanto aos
currículos e programas nas unidades federadas.
6. No projeto de LDB proposto por Clemente Mariani em 1946 pode-se ler no art. 66
que seria competência do Estado aperfeiçoar e baratear o livro didático. Além do que os
livros didáticos para serem divulgados nas escolas deveriam ser registrados no Ministério e
quando “impróprios aos fins educativos” seriam proibidos, ouvido o Conselho Nacional de
Educação.
7. No mesmo projeto, Mariani defendia a “unicidade do sistema educacional cujas
variedades estaduais obedecerão ao princípio de equivalência pedagógica em substituição
ao falso princípio da uniformidade pedagógica”. (p. 328)
8. Eis aqui um campo pouco explorado nas pesquisas da Pós-Graduação em Educação.
9. A CF/88 traz em seu conjunto várias entradas no currículo. Há o ensino religioso
(art. 210, parágrafo 1°), há a indicação de educação e etnia (art. 210, parágrafo 2°), há a
correlação educação e herança cultural (art. 242, parágrafo 4°), além de várias sugestões
transversais como meio ambiente (art. 225, VI) e desporto (art. 217, II).
10. Cf. a este respeito, tanto tais Diretrizes na página do Conselho Nacional de
Educação, inclusive o Parecer CNE/CEB n. 03/1997, quanto no Portal do MEC os
Parâmetros Nacionais de Educação.
2
BNCC e a Universalização do
Conhecimento
(...) estamos advertidos do fato milagroso, que por si fizesse as alterações necessárias à
passagem da sociedade brasileira de uma para outra forma. Porém, o que não se pode
negar à educação, é a sua força instrumental, que inexistirá se superposta às condições
do contexto a que se aplica. Vale dizer, por isso mesmo que, sozinha, nada fará,
porque, pelo fato de “estar sozinha”, já não pode ser instrumental. Por isso, se insiste
em não corresponder à dinâmica destas outras forças de transformação do contexto
estrutural, se torna puramente ornamental (...) (Freire, 1967/2005, p. 96).
Art. 210. Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a
assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos,
nacionais e regionais (Brasil, 1988) (grifos nossos).
Art. 1° A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados
e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e
tem como fundamentos:
I — a soberania;
II — a cidadania;
III — a dignidade da pessoa humana;
IV — os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V — o pluralismo político. (Brasil, 1988).
Ao pensar a educação escolarizada diante dos princípios da dignidade
da pessoa humana, da cidadania, dos valores sociais do trabalho e da livre
iniciativa, já se percebe quão difícil é uma formação comum no plural. No
entanto, podemos afirmar que o básico é o respeito ao ser humano, à sua
capacidade criadora e transformadora (valores sociais do trabalho), à
liberdade e à perspectiva de pluralidade de ideais.
Da mesma forma, trazer os princípios da República Federativa do Brasil
nos dá a ideia de igualdade na diferença, bem como da superação das
desigualdades sem anular as diversidades, como disposto no art. 3° de nossa
Constituição:
11. As idas e vindas da BNCC com suas disputas, avanços e retrocessos, serão
analisadas pontualmente neste ensaio mesmo não sendo seu objeto.
12. Fato é que nenhuma das propostas entrou em vigor em 2018 e, concretamente,
somente as pesquisas futuras poderão analisar como o comando legal curricular se
desenvolverá no “chão da escola”.
13. A Fundação Lemann é uma organização sem fins lucrativos brasileira criada em
2002 pelo empresário Jorge Paulo Lemann, conhecido por ser o brasileiro mais rico. Sua
fundação faz parte de um grupo de reformadores empresariais que se voltaram para a
Educação Básica nos últimos anos. É representativo da força desse grupo o Movimentos
Todos pela Educação, que é apoiado pela Fundação Roberto Marinho, Fundação Itaú
Social, Fundação Victor Civita, entre outros. Voltaremos a abordagem do movimento a
seguir.
14. “Currículo é, na acepção freireana, a política, a teoria e a prática do que-fazer na
educação, no espaço escolar, e nas ações que acontecem fora desse espaço, numa
perspectiva crítico-transformadora”. (Saul, 2008, p. 120).
3
Base Nacional Comum
Curricular é Currículo?
BNCC serve como referência para a construção e adaptação dos currículos de todas as
redes de ensino do país. As redes e escolas seguem com autonomia para elaborar, por
meio do currículo, metodologias de ensino, abordagens pedagógicas e avaliações,
incluindo elementos da diversidade local e apontando como os temas e disciplinas se
relacionam. BNCC e currículos têm, portanto, papéis complementares: a Base dá o
rumo da educação, mostrando aonde se quer chegar, enquanto os currículos traçam os
caminhos. (MEC, 2018a).
Ao longo das páginas iniciais da Base, suas palavras são reiteradas na ideia de que os
currículos serão elaborados ou construídos [pelos municípios, pelas escolas ou pelos
professores] tendo a Base como base. Em uma formulação mais direta dessa relação,
diz-se que “BNCC e currículos têm papéis complementares para assegurar as
aprendizagens essenciais definidas para cada etapa da Educação Básica, uma vez que
tais aprendizagens só se materializam mediante o conjunto de decisões que
caracterizam o currículo em ação” (MEC, 2017, p. 16). Surge, assim, um termo já
clássico no campo do currículo que pretende dar conta de que os currículos formais
não esgotam as possibilidades do que ocorre nas escolas. Currículo em ação, portanto,
é um conceito que só faz sentido com o seu duplo, o currículo escrito ou formal, neste
caso, a BNCC. A BNCC seria, assim, currículo, mas não esgotaria as possibilidades de
ser do currículo. (2018, p. 29).
Por isso, afirmo que, além da BNCC ser uma prescrição de currículo
nacional, ela é uma forma de tornar consensual o que pretende ser o
conhecimento oficial.
O consenso enganoso quando olhamos para a trajetória que esse
currículo percorreu de sua primeira versão até a última aprovada em 2017.
Já na primeira versão da BNCC, posições ideológicas e considerações sobre
o que fica como conhecimento a ser escolarizado e o que sai foram
explicitadas. Para ficar só em um exemplo, o ex-Ministro da Educação
Renato Janine Ribeiro recorreu à rede social para expressar sua perspectiva
ideológica em relação à primeira versão da BNCC, apresentada quando ele
era o Ministro, como noticiado pelo site do jornal Estadão:
A questão é sempre a seletividade; a maneira pela qual, de toda uma área é possível do
passado e do presente, somente determinados significados e práticas são escolhidos
para ênfase, enquanto outros significados e práticas são negados e excluídos. Mais
crucialmente ainda: alguns desses significados são reinterpretados, diluídos, ou postos
sob formas que sustentam ou pelo menos não contradizem outros elementos da cultura
efetivamente dominante. (Williams apud Apple, 2006, p. 39/40).
Crises são essenciais para a reprodução do capitalismo. É no desenrolar das crises que
as instabilidades capitalistas são confrontadas, remodeladas e reformuladas para criar
uma nova versão daquilo em que consiste o capitalismo. Muita coisa é derrubada e
destruída para dar lugar ao novo. (2016, p. 9)
Crises são oportunidades para reformas que aprofundam as
desigualdades, proporcionando medidas que restringem os direitos em prol
dos privilégios. Verbas para programas sociais são cortadas, há o aumento
vertiginoso do desemprego e medidas que poderiam equalizar o acesso à
educação são inibidas em prol da maximização dos lucros de poucos e
manutenção das desigualdades, ou melhor, aprofundamento das
desigualdades.
Nesse sentido, a ruptura institucional e democrática, ocorrida em 2016,
deixa marcas indeléveis nas políticas públicas brasileiras16. Nesse contexto,
o governo pós-golpe tem na educação políticas públicas alinhadas com os
interesses do capital frente ao sistema educacional público brasileiro. A
Reforma do Ensino Médio, o desinvestimento nas Universidades Públicas, a
redução de programas de financiamentos como o FIES e PROUNI, a
redução do financiamento para Escola em Tempo Integral, a extinção do
PIBID, com a criação do Programa de Residência Pedagógica e, o nosso
foco, a homologação de uma Base Nacional Comum Curricular, se colocam
como obstáculos aos direitos das classes menos favorecidas no que toca a
educação escolarizada. Da mesma forma, dificulta à construção de uma
sociedade plural e democrática que potencializa através da educação
escolarizada a transformação social.
Nesse curto espaço, não posso deixar de se registrar como a crise do
capitalismo acaba por atingir radicalmente as parcas conquistas das classes
trabalhadoras e traz medidas aparentemente técnicas e soluções falsamente
neutras que produzem efeitos nocivos à maioria da população. A BNCC se
situa nesse contexto de medidas e soluções para superação da crise.
Impossível compreender a Base sem investigar o cenário desenhado
pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE)
que reconhecidamente influencia políticas públicas educacionais brasileiras,
como atesta a própria BNCC em seu texto (MEC, 2018).
David Chaves (Escola Politécnica..., 2017) explica que a BNCC é
(...) produção de organismos como a Organização para Cooperação e
Desenvolvimento Econômico (OCDE). Segundo ele, a entidade é relevante porque
indica ao mundo empresarial quais países estão cumprindo orientações em áreas como
educação e economia, sinalizando os locais mais atrativos para investimentos
privados. Uma dessas variáveis é a existência de mão de obra qualificada. Qualificada,
claro, segundo os padrões estabelecidos pelo organismo.
[...] sabemos que as concepções que os homens elaboram não têm apenas um caráter
gnosiológico, isto é, relativo ao conhecimento da realidade, mas também ideológico,
isto é, relativo aos interesses e necessidades humanas. Em suma, o conhecimento
nunca é neutro, ou seja, desinteressado e imparcial (...) Mas esses dois aspectos não se
confundem, não se excluem mutuamente e também não se negam reciprocamente. Ou
seja: não se trata de considerar que os interesses impedem o conhecimento objetivo
nem que este exclui os interesses. Os interesses impelem os conhecimentos e, ao
mesmo tempo, os circunscrevem dentro de determinados limites. (Saviani, 2012, p.
66).
Cada uma delas contou com pouco mais de 10 minutos para expor posicionamentos e
histórico de ações em torno do tema. Apesar da diversidade de opiniões, algumas
críticas com relação à BNCC foram praticamente unânimes, como a problemática
centralização no desempenho e avaliação, a visão tecnicista e unificadora, a
desconsideração da construção dos saberes cotidianos, do histórico de conquistas e das
Diretrizes Curriculares, o não reconhecimento das condições de trabalho dos
professores, a eleição de conceitos e conteúdos controversos, que não garantem a
diversidade, além do próprio atropelo de prazos da construção da Base. (ANPEd,
2016)23.
Além da Moção, a ANPEd já havia remetido ao Ministério da Educação
um documento com o detalhamento de seus apontamentos em que
discriminava os limites da versão apresentada no tocante aos processos
desenvolvidos e ao seu conteúdo.
Ainda em 2015, a ANPEd apresentou um documento mais sintético
sobre a BNCC que contempla os seguintes pontos (críticos):
Semiformação e Educação
Para Adorno não basta examinar formação, semiformação ou cultura, tais como se
verificam na sociedade vigente. É preciso investigá-las tendo como referência o
contexto de produção da sociedade, como formação social autogerada pelos homens e
aprendida em sua dialética histórica. Cultura e formação precisam ser examinadas fora
do âmbito estritamente cultural ou pedagógico definidos na sociedade, para serem
investigadas no plano da própria produção social da sociedade em sua forma
determinada. A via régia de acesso ao essencial é o processo de sua reprodução
vigente em seu aparecer real, presente. (p. 471)
Por meio dos estudos de Reis e Borges (2016) e Reis e Gomes (2015)
reconhecemos a preocupação de Benjamin com o delineamento de uma
experiência imediata, uma vez que ela é valiosa por fornecer uma descrição
temática e uma oposição conceitual aos modelos centrados no idealismo
racionalista, cujas bases conceituais são trabalhadas ao longo de toda a sua
produção intelectual. Como vimos anteriormente, Benjamin explora os
conceitos de experiência e vivência, os quais podem ser complementares ou
não. Consideramos que suas contribuições são fundamentais para a
compreensão da educação de infância, contemporânea; sobretudo
vislumbramos sua relevância para compreender o esvaziamento do conceito
de experiência constante na BNCC.
Revisitando as elaborações teóricas de Benjamin, observamos que elas
contrastam com os vazios, sem espírito, isto é, Geistlosen, das
“experiências” apenas acumuladas ao longo de uma vida, Erlebt, e o tipo
privilegiado da experiência que é preenchido com conteúdo significativo
por meio do contato permanente com a imaginação pueril. Ao analisarmos a
BNCC no que diz respeito às experiências educativas na infância, entendida
como a faixa etária de 0 a 10 anos de idade, nos deparamos com ideias de
habilidades e competências as quais contrastam com a noção de experiência
que vimos defendendo.
Assim encontramos um campo consideravelmente fértil de teorizações
capazes de fornecer pistas à compreensão do conceito de experiência e suas
implicações para a educação das novas gerações.
Em Experiência e pobreza (1996), Benjamin disserta sobre a perda da
capacidade de contar histórias — e de, com elas, dar ensinamentos morais
através do intercâmbio de experiências —, que segundo ele se deu pela
dissolução dos vínculos familiares e pelo empobrecimento de experiências
comunicáveis da população.
O filósofo alemão prossegue afirmando que após a Primeira Guerra
Mundial, com a exacerbação da mecanização e da racionalidade com fins
bélicos, os combatentes voltaram taciturnos, sendo incapazes de relatar suas
experiências com a guerra; pois, os indivíduos, de acordo com Benjamin, se
tornaram mais empobrecidos em suas experiências de comunicação dados
os horrores e a barbárie a que foram submetidos:
A existência, porque humana, não pode ser muda, silenciosa, nem tampouco pode
nutrir-se de falsas palavras, mas de palavras verdadeiras, com que os homens
transformam o mundo. Existir, humanamente, é pronunciar o mundo, é modificá-lo. O
mundo pronunciado, por sua vez, se volta problematizado aos sujeitos pronunciantes,
a exigir deles novo pronunciar. (Freire, 2005a, p. 90).
O que é que eu quero dizer com dicotomia entre ler as palavras e ler o mundo? Minha
impressão é que a escola está aumentando a distância entre as palavras que lemos e o
mundo em que vivemos. Nessa dicotomia, o mundo da leitura é só o mundo do
processo de escolarização, um mundo fechado, isolado do mundo onde vivemos
experiências sobre as quais não lemos. Ao ler palavras, a escola se torna um lugar
especial que nos ensina a ler apenas as “palavras da escola”, e não as “palavras da
realidade”. O outro mundo, o mundo dos fatos, o mundo da vida, o mundo no qual os
eventos estão muito vivos, o mundo das lutas, o mundo da discriminação e da crise
econômica (todas essas coisas estão aí), não tem contato algum com os alunos na
escola através das palavras que a escola exige que eles leiam. Você pode pensar nessa
dicotomia como uma espécie de “cultura do silêncio” imposta aos estudantes. A leitura
da escola mantém silêncio a respeito do mundo da experiência, e o mundo da
experiência é silenciado sem seus textos críticos próprios (Freire; Shor, 1986, p.164).
Respeitar esses, de que falo tanto, para ir mais além deles, jamais poderia significar —
numa leitura séria, radical, por isso crítica, sectária nunca, rigorosa, bem-feita,
competente, de meus textos — dever ficar o educador ou a educadora aderida a eles,
os saberes de experiências feitos. O respeito a esses saberes se insere no horizonte
maior em que eles se geram — o horizonte do contexto cultural, que não pode ser
entendido fora de seu corte de classe, até mesmo em sociedades de tal forma
complexas em que a caracterização daquele corte é menos facilmente apreensível. O
respeito, então, ao saber popular implica necessariamente o respeito ao contexto
cultural. A localidade do educando é o ponto de partida para o conhecimento que eles
vão criando do mundo. “Seu” mundo em última análise é a primeira e inevitável face
do mundo mesmo (2005b, p. 86-87).
A curiosidade do estudante às vezes pode abalar a certeza do professor. Por isso é que,
ao limitar a curiosidade do aluno, a sua expressividade, o professor autoritário limita a
sua também. Muitas vezes, por outro lado, a pergunta que o aluno, livre para fazê-la,
faz sobre um tema, pode colocar ao professor um ângulo diferente, do qual lhe será
possível aprofundar mais tarde uma reflexão mais crítica. (Freire; Faundez, 1985, p.
44).
(...) o professor deveria ensinar — porque ele próprio deveria sabê-lo — seria, antes de
tudo, ensinar a perguntar. Porque o início do conhecimento, repito, é perguntar. E
somente a partir de perguntas é que se deve sair em busca de respostas, e não o
contrário: estabelecer as respostas, com o que todo o saber fica justamente nisso, já
está dado, é um absoluto, não cede lugar à curiosidade nem a elementos por descobrir.
O saber já está feito, este é o ensino. Agora eu diria: “a única maneira de ensinar é
aprendendo”, e essa afirmação valeria tanto para o aluno como para o professor. Não
concebo que um professor possa ensinar sem que ele também esteja aprendendo; para
que ele possa ensinar, é preciso que ele tenha de aprender. (Freire; Faundez, 1985, p.
46).
A educação deve partir da realidade para compreender o homem e ser posta a seu
serviço. Não pode ser reduzida a um conjunto de técnicas. O objetivo principal é a
compreensão e a interpretação do papel de cada educando no mundo. Sua ação se
torna um ato político porque ela mostra ou ela oculta a realidade. (2008, p. 332)
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