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Artigo Científico - Sarrazac 2023 - Da Teoria À Prática Ok
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Artigo Científico - Sarrazac 2023 - Da Teoria À Prática Ok
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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE MATO GROSSO
PRÓ-REITORIA DE ENSINO DE GRADUAÇÃO
DIRETORIA DE GRADUAÇÃO FORA DE SEDE E PARCELADAS
NÚCLEO PEDAGÓGICO DE CUIABÁ
CURSO SUPERIOR DE TECNOLOGIA EM TEATRO
OVERNO DO ESTADO DE MATO GROSSO
G
SECRETARIA DE ESTADO DE CIÊNCIA, TECNOLOGIA E INOVAÇÃO
UNIVERSIDADE DO ESTADO DE MATO GROSSO PRÓ-REITORIA DE
ENSINO DE GRADUAÇÃO
CURSO SUPERIOR DE TECNOLOGIA EM TEATRO
“DA TEORIA À PRÁTICA: ANÁLISE DE UMA OBRA DE SARRAZAC
A PARTIR DE SUA TEORIA RAPSÓDICA”
rtigo final apresentado ao Curso Superior de
A
Tecnologia em Teatro com Ênfase em Dramaturgia.
Discente: Antonio Carlos Mattoso Sartori
Orientação: Prof. Túlio Paniago
CUIABÁ - MT - 2023
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“Da Teoria à Prática: Análise de Uma Obra de Sarrazac
A Partir de Sua Teoria Rapsódica”
Antonio Carlos Mattoso Sartori
1 - RESUMO
presente artigo propõe a análise do texto dramático de Jean-Pierre Sarrazac, "Bola de
O
Ouro, 2009" com tradução de Carolina Gonzalez, norteada pela leitura dostextosteóricos
do autor. O desafio é analisar como os pressupostosdateoriarapsódicasãoaplicadosem
sua obra dramatúrgica. A obra "Bola de Ouro" emerge como um exemplo paradigmático
desseestilo,apresentandoelementoscontemporâneosnaestruturadramática.Ainvestigação
também explora as influências literárias e filosóficas que moldam a visão de mundo do
dramaturgo, destacando como tais influênciassemanifestamemsuaobra.Emsíntese,este
artigo oferece uma visão abrangente da dramaturgia de Jean-Pierre Sarrazac, com ênfase
especial na obra supracitada. Ao fazê-lo, contribui para a compreensão mais profunda da
poética singular desse autor e seu papel na evolução do teatro.
Palavras-chave:Jean-Pierre Sarrazac; Teatro Rapsódico;Dramaturgia.
Abstract
hepresentarticleproposestheanalysisofthedramatictextbyJean-PierreSarrazac,"Bola
T
de Ouro, 2009," translated by Carolina Gonzalez, guided by the reading of the author's
theoretical texts. The challenge istoexaminehowtheassumptionsofrhapsodictheoryare
applied in his dramaturgical work. The work "Bola de Ouro" emerges as a paradigmatic
example of this style, presenting contemporary elements in its dramatic structure. The
investigationalsoexplorestheliteraryandphilosophicalinfluencesshapingtheplaywright's
worldview, highlighting howsuchinfluencesmanifestinhiswork.Insummary,thisarticle
providesacomprehensiveviewofJean-PierreSarrazac'sdramaturgy,withspecialemphasis
on the aforementioned work. In doing so, it contributes to a deeper understanding of the
unique poetics of this author and his role in the evolution of theater.
Keywords:Jean-Pierre Sarrazac; Rhapsodic Theater; Playwriting.
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2 - O TEXTO DRAMATÚRGICO E A TEORIA RAPSÓDICA
Apeça"BoladeOuro",conformedestacadoporValmirSantos,jornalistaecríticode
teatro, no site TeatroJornal, apresentaumaabordagemintrigante.Noprogramadapeçaem
questão,Jean-PierreSarrazacexpressaseudesejodecompreenderodestinodosintelectuais
de sua geraçãoqueestiveramenvolvidosnasguerrasdeindependênciaenomovimentode
maio de 1968 na França:
Jean-PierreSarrazac,dramaturgoeteóricofrancêsautordotexto,afirmatertidoo
desejo de investigar o que teria acontecido nas últimas décadas, cada vez mais
liberaiseglobalizadas,comaparceladeintelectuaisdesuageraçãoqueapoiouas
guerras de independência da Argélia e do Vietnã, lutou contra o apartheid e
participou do movimento de maio de1968naFrança. (ValmirSantos,2014,site
TeatroJornal)
Em Bola de Ouro, intelectuais recebem uma convocação anônima para se
encontraremnumcaféparisiensequedánomeàpeça,pontodeencontroderevolucionários
na década de 1960. Inspiradonaobra“AConspiração,1938”,dePaulNizan,amensagem
anônima da dramaturgia de Sarrazac carrega o peso do anti-herói Pluvinage e abre a
discussão filosófica da traição e da deserção, simbolizando o problema ético dos intelectuais.
O texto foi redigido em meio a um período de agitação social na França. As
personagens que compõem a dramaturgia são:aImóvel,oEscritor-Herói,oPraguejador,a
Estagiária e o Jornalista. El as estão dispostas em espaços geográficos distintos, mas a
construçãodramatúrgicapossibilitaumacoexistênciaemumcenáriocompartilhado,noqual
cada personagem se apresenta conforme sua perspectiva dos fatos de acordo com sua
memória, de modo que o entrelaçamento dessas narrativas vai, aos poucos, compondo a
subjetividade de uma mesma história compartilhada por todos, porém permeada pelas
reminiscênciasesignificaçõesindividuais.Adramaturgia,nestesentido,endossaamáxima
de Friedrich Nietzsche, segundo a qual "não há fatos, apenas interpretações".
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Há napeçadeSarrazac,namedidaquesevailendootexto,umacertaliberdadede
compreensão, como se o autor estivesse propondo um processo intuitivo de apreensão do
conteúdo.Nãoéalgoprogressivodopontodevistadaaçãoedoconflito,tampoucomediado
pela causalidade, portanto não se constrói a partir da lógica aristotélica de unidade
dramática. Eaelaboraçãodialógicatambémnãosegueosparâmetrosdadialéticahegeliana
de tese, antítese e síntese. Aliás, com exceção de alguns momentos, as personagens nem
sequer dialogam entre si. Elas se expressam através de solilóquios, compartilhando suas
respectivas reminiscências, e possibilitando que o público arranje essas peças soltas até
montar uma espécie de quebra-cabeça, mas ainda assim incompleto, cuja imagem finalse
apresenta mais abstrata do que figurativa.
1.
A Imóvel
Eu estou aqui imóvel diante da minha tela
Eu a observo durante muito tempo
Em todo este branco os primeiros traços
de um cavalo galopando
(Tudo recomeça)
O Escritor-o Herói
Eu saio do aeroporto
Acabo de chegar de Bogotá onde dei
Cinco conferências em oito dias
Sempre acompanhado por seguranças
Algumas vezes escapamos eu e Alice na Candelária
Procurando um táxi discutimos
Nós nos entendíamos tão bem lá
Eu acho enfim um táxi
Perdi Alice de vista
Ela deve ter voltado sozinha
Dois dias mais tarde
Nós não nos falamos ainda
Aconteceram tantas coisas em dois dias.
A Estagiária
Eu me pergunto se vou aguentar
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Este jornal é muito antiquado
E este cara que diz ser meu orientador
Um velho amigo da minha mãe
muito velho ele também
Além do mais parece que ele está me cantando
2
O Praguejador
Quanto a mim vocês me verão sempre de costas
O Jornalista
A mãe dela me largou essa bomba
(Seu retrato cuspido e escarrado na mesma idade) Até que ela se sai bem
Parece que foi feita para esta profissão
Nada que eu possa fazer
Sua presença me intimida
Como se Marta tivesse voltado
O Escritor-o Herói
Tanta coisa em dois dias
(Bola de Ouro, 2009, tradução Carolina Gonzalez, p. 3)
Percebemos que a ação, conceito de unidade dramática aristotélica, desmorona-se
pelainatividadedaspersonagens,ouseja,odramasedesenvolveapartirdacontradiçãocom
atradição,numtipodefaltadeaçãosobrecarregadaporpalavras,acompanhandoamudança
da modernidade e contemporaneidade. Sarrazac, em um de seus textos teóricos, reflete
sobreafunçãodaspersonagensnaconduçãododrama.Paratanto,tececonsideraçõesa
partir da obra "Seis personagens à procura de um autor", obra dramatúrgica de Luigi
Pirandello:
Pirandelloéumespíritotravesso.Umdomingodemanhã,horaemqueeleconcede
audiênciaasuaspersonagens,apresentam-se,devidamentemunidosdeumdrama
familiar,seispretendentesdosmaisinteressantes.Ora,contratoda expectativa,o
escritor“recusa”essespersonagens.(Sarrazac.2012.PoéticadoDramaModerno,
pág. 1)
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A forma dramática tem mudado com o tempo. A unidade detempo,espaçoeação
não é mais unânime. Não temos mais seguido um modelo específico para escrever. A
desconstruçãoereconstruçãoéumcaminhopermanente.Acadapeçafeita,umareinvenção
em curso de uma nova dramaturgia:
A perda da unidade dramática não é apenas - ou nem sempre - o fruto de uma
romantização deliberada;elatambémcorrespondeaumapuraesimplesperdade
modelos. Se a forma dramática parecer deserdada no século XX, é que ela não
reproduz de maneira idêntica um modelo pré-fixado. (Sarrazac, 2012, p.243)
NotextodeSarrazac,percebemosessacaracterísticanasprópriasrubricas,indicando
relatividade da unidade dramática:
Apeçaéumasequênciadevintefragmentos.Adireçãopodeaindacriarefeitosde
simultaneidade ou de interferência entre os fragmentos aqui apresentados
sucessivamente.Alémdisso,ascitaçõesoucertaspartesnarrativaspodemaparecer
nestemesmopainelondedevezemquandovê-semaisoumenosnítidoestecafé
perdido no tempo. (Bola de Ouro, 2009, tradução Cristiane Gonzales).
O conceito "rapsódia", segundo Sarrazac, manipula os gêneros lírico, épico e
dramático, rompendo seus limites, alterando a forma do drama convencional.
O primeiro efeito dessa emancipaçãoéapenetraçãonoseiodomododramático,
dosmodosépicoelírico.Nãosetratadesíntese"dialética"àmodadeWagnere,
sobretudo, de Hegel, - constituindo o dramático, para este último, uma
ultrapassagemdeépicoelírico.Etambémnãodessedevirépicodoteatro-sempre
a ultrapassagem - teorizado por Brecht.Umanovarelaçãotomaolugar:jogode
transbordamento incessante de uma instância - dramática, épica e lírica - para
outra. (Sarrazac. 2012. Poética do Drama Moderno, pág. 254).
EmBoladeOuro,vemosessestransbordamentosnosseguintestrechos,lírico,épico
e dramático, respectivamente:
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A Imóvel (lírico)
Eu vou gritar
Eu vou desmaiar
Sem fazer barulho
Ninguém vai me ver
Eu gostaria de desaparecer
Não tê-los conhecido
Não ter conhecido o Herói (inimaginável uma vida com ele)
E portanto eu sei que continuarei
Ainda durante anos trilhando meu caminho ao lado deles…
(Bola de Ouro, 2009, tradução Caroline Gonzales, p.58)
O Praguejador (épico)
O capitalismo se tornou
O que ele ameaçava ser
Uma “ordem eterna”
Oparadoxoéqueeusejaoúnicoameescandalizar/nãoglorificaremosjamaissuficientemente/amemóriados
traidores
(Bola de Ouro, 2009, tradução Carolina Gonzales, p. 55)
Orientação para direção (dramático)
A peça é uma sequência de vinte fragmentos. A direção pode ainda criar efeitos de simultaneidade ou de
interferência entre os fragmentos aqui apresentadossucessivamente.Alémdisso,ascitaçõesoucertaspartes
narrativas podem aparecernestemesmopainelondedevezemquandovê-semaisoumenosnítidoestecafé
perdido no tempo. (Bola de Ouro, 2009, tradução Carolina Gonzales, p. 1)
Ao trazer à tona a rapsódia teatral de Jean-Pierre Sarrazac, esta pesquisa visa
contribuir para o entendimento mais profundo das potencialidades expressivas do teatro
contemporâneo e para a apreciação da fronteira poética da dramaturgia rapsódica.
Adramaturgiacontemporâneatemsidoumcampofértilparaaexploraçãodeformas
inovadorasacadatextonascidoquedesafiamasconvençõestradicionais.Nessecontexto,a
obra teórica de Jean-Pierre Sarrazac se destaca por sua abordagem, especialmente ao
dialogar com doispensadoresdoteatro,PeterSzondieHans-ThiesLehmann,sobreacrise
da forma dramática a partir de rompimentos formais com essa linguagem teatral.
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Este trabalho visa justificar a relevância e aimportânciadeumaanálisepontualdo
pensamento rapsódico de Sarrazac, explorando suas contribuições para a teoria e prática
teatral.
Emprimeirolugar,opensamentorapsódicodeSarrazacrepresentaumarupturacom
as estruturas convencionais da narrativa teatral, desafiando a linearidade temporal, a
causalidade e a manipulação de gêneros tradicionais. Através de uma abordagem mais
fragmentada e poética, Sarrazac busca expandir as fronteiras do teatro em sua obra
dramatúrgica, alémdeanalisarorompimentocanônicodoteatroapartirdosanos1880em
sua obra teórica. A investigação desses elementos inovadores pode enriquecer nossa
compreensão das possibilidades expressivas do teatro moderno e contemporâneo.
Rompendocomadialéticahegelianadodramáticocomoultrapassagemdoépicoe
do lírico, o drama moderno e contemporâneo pratica a tensão dos três grandes
modos poéticos. (Sarrazac. 2012. Poética do Drama Moderno, pág. 255)
A visão rapsódica de Sarrazac muitas vezes dialoga com outras formas artísticas,
incorporando características que subvertem a expectativa tradicional do drama. Essa
interdisciplinaridade não apenas desafia as fronteiras entre as artes, mas também oferece
novas perspectivas sobre como a narrativapodeserconstruídaecomunicadanopalco.Ao
examinar como Sarrazac incorpora diferentes linguagens artísticas em sua compreensão
rapsódica,podemosexpandirnossoconhecimentosobreainterconexãoentreasartesesuas
potenciais sinergias.
Outro ponto relevante é a capacidade da visão rapsódica de Sarrazac de abordar a
história do teatro. A análise aprofundada de pensadores/fazedores pode fornecer insights
valiosos sobre como o teatro era feito e como pode vir a ser.
Aocompreendersuavisãorapsódica,presentenasobrasteatraisdoteatromodernoe
contemporâneo, esperamos enriquecer o discurso acadêmico sobre teatro e inspirar novas
reflexões sobre as possibilidades no palco.
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3 - A DRAMATURGIA SOB ANÁLISE DA TEORIA RAPSÓDICA
Em "Bola de Ouro", Sarrazac utiliza a metáfora daboladeourocomoumsímbolo
que encapsula as aspirações e desilusões da condição humana. A análise inicial revela a
habilidade do autor em articular uma narrativa que vai além da linearidade tradicional,
desafiando o espectador a participar ativamente na construção do significado da obra.
Numa forma de didascália, o texto prepara oencenadorparaaatmosferaespaçada,
com um texto que realoca diferentes ambientes em um mesmo espaço:
Nestatrama,diferenteslugarescoabitamomesmoespaço:umateliêdepintura-escritóriobempequenoemum
apartamento modesto, gruta da personagem Imóvel;oJornal;oterrassocobertocomvistaparaParisondeo
personagemHeróirecebeeescreve;oquartosemjanela–emumsubsolo–ondeopersonagemPraguejador
está diante de seu computador. (Bola de Ouro, Tradução Carolina Gonzales, p. 1)
AvisãorapsódicadeSarrazacseestabelecenacomunicaçãocomoteatroquejáfoi
feito.Éimportanteentenderaformaanteriorparaperceberatransformaçãoqueacontecena
formadodrama.Équando,segundoSarrazac,acontece,porexemplo,ofimdametáforado
belo animal, onde a fábula é essencial na teoria aristotélica do drama e se desenvolve
linearmenteumcomeço,ummeioeumfim.Porém,nodramamodernoessesistemadefatos
se torna obsoleto e a lógica aristotélico-hegeliana do belo animal é metamorfoseada pela
lógica analítica, com fatos queseencontramespaçadoseafábulaseencontrainvisívelem
alguns momentos:
O que é certo é que os princípios reguladores da fábula, que poderiam ser
resumidos à trilogia aristotélica “ordem, extensão e completude”, e que se
exprimemmetaforicamentepormeiodametáforado“beloanimal”,do“servivo”
“nem muito grande, nem muito pequeno” e “bem proporcionado em todas as
partes”, não são postos em cena. A peça não é mais esse organismo do qual a
fábula seria essa “alma”, e que sempre avançaria conforme um processo linear
definido por um começo, um meio e um fim. Além disso, a fábula, no sentido
aristotélico,nãoseriaapenasumorganismo,eratambémum“sistema”.Sistemano
interiordoqualarelaçãocronológicadosfatos,entreasações,estavalargamente
determinada por uma relaçãocausalqueencadeavaasaçõesumanasoutras,que
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instaurava uma instabilidade crescente a priori estável, estendia o conflito ao
máximo, provocava a catástrofe e o retorno da fortuna, Hegel acrescentaria: e
chegavaaum“apaziguamentofinal”.(Sarrazac.2012.PoéticadoDramaModerno,
pág. 8).
Vejamos no texto Bola de Ouro como se dá na fala das personagens:
O Jornalista
Formoesta garota e vou embora?
(Penso cada vez mais em deixar o jornal)
O aparecimento desta moça
O sinal da minha partida?
Eles esperam ansiosos por isto
Eles me detestam
(Para eles eu represento o passado)
O Escritor-o Herói
Tanto um como o outro lado eu devo assumir.
A Imóvel
Entre um gesto entre duas pinceladas na tela
Esvai-se algumas vezes mais de uma hora
Um tempo onde posso ficar perfeitamente imóvel
Alguns dias faço apenas isso
Fico imóvel diante da minha tela
Sem ao menos tocá-la
(Bola de Ouro, 2009, tradução Carolina Gonzales, p. 4)
PensandonaobradePeterSzondi,nateoriadoDramaModerno, Sarrazacavêcomo
inspiração. Jean-Pierre reforça que o drama ainda mantém-se vivo, e seu conceito
"drama-da-vida" (diluição doconflito)quesubstituio"drama-na-vida"atravésdeumnovo
paradigma, assim o que diferencia um conceito do outroéqueno"drama-da-vida"nãohá
umacontecimento.Asunidadesdetempo,lugareaçãoperdemseuspoderesnadramaturgia
que rompe a partir de seu transbordamento nos anos 1880:
Quantoaovelhoparadigmaqueodrama-da-vidavemsubstituir,euochamareide
drama-na-vida…queelacorrespondeàconcepçãoaristotélico-hegelianadodrama.
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AreferidaconcepçãoseimpôsnoteatroentrearenascençaeofimdoséculoXIX:
no drama-na-vida, afábulanãodevecobrirmaisdoqueumepisódiolimitadona
vida de um herói, quer dizer, o tempo da inversão da sorte. O conceito de
drama-na-vidanãodeixadeterparentescocomaquiloqueSzondidefiniucomoo
"dramaabsoluto,ouseja,oacontecimentointerpessoalemsuapresença".Ora,nós
constataremos que o que distingue precisamente o drama-da-vida do
drama-na-vida é que não há mais, a bem dizer, um "acontecimento". (Sarrazac.
2012. Poética do Drama Moderno, pág. 42)
Sarrazac não deixa de lado a evolução da personagem, e pensa no menos que a
personagempodeserquandofalamosnoteatromodernoecontemporâneo,entendendoquea
personagem na fábula, em Aristóteles, é totalmente subordinada à história e à ação. Na
tragédia a personagem tem uma composiçãodiferentedeumsimpleshumano.Nietzscheé
citadoporJean-PierreSarrazac,napassagememque ofilósofoalemãoquestionaaideiade
Dionísio ser excluído de cena em favor de personagens apresentados como o duplo do
espectador,aclássicapersonagemdodramaburguês,dotadaderazãoeindividuação.Enfim,
NietzschecriticainclusiveEurípedesporiniciaressamudançaperpetuadapelosdramaturgos
que o sucederam.
Em todo o caso, uma coisa é certa:adúvidanaexistênciadapersonagemtemo
duplo mérito de denunciar o lugar abusivo que ela ocupounatradiçãoocidental
(burguesa) do teatro e operar um retorno aos fundamentos da dramaturgia. Em
Aristóteles, a personageméinteiramentesubordinadaàhistória,àfábula,àação:
ela só seria levada em conta como “personagem agente” (pratton). Ora, essa
personagememaçãodatragédiaantigapossuiumaestruturaqueexcededelongea
simples pessoa humana. Nietzsche recusoucomforçaaconcepçãodominantedo
teatro burguês de uma personagem apresentadacomooduplodoespectador.Ele
censuraatémesmoEurípedeseseussucessoresdeterexcluídoDionísiodacenae
posto em seu lugar o indivíduo. Um indivíduo compreendido como entidade
psicológicaecomoserderazão.(Sarrazac.2012.PoéticadoDramaModerno,pág.
148) .
NocapítuloPulsãoRapsódica(mutaçãoquevemacontecendonodramadesde1880)
na“PoéticadoDramaModerno”,Sarrazacrespondeaquestãodecomonãoperderodrama,
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ainda que ele se autodissolva com o afastamento da tradição do teatro burguês. Segundo
Sarrazac, o dogma da unidade dramática cai:
Amutaçãoprofundadaformadramática,iniciadaem1880,pareceter-nosfeito,há
muitotempo,amnésicosàsregraseàsunidades.Atéapróprianoçãodeunidade,
também suplantada pelo disparate, pelo heterogêneo. Um dogma desmoronou:
aquele segundo o qual a forma dramática não se manifestaria "de uma maneira
inteligível a não ser com máxima unidade". (Sarrazac. 2012. Poética do Drama
Moderno, pág. 241)
Ao aplicar a visão rapsódica à análise da peça "BoladeOuro",deparamo-noscom
umexemploconcretodecomoessaabordagemsemanifestanapráticateatral.Apeçautiliza
elementos rapsódicos para criar uma narrativa que transcende as limitaçõesconvencionais
do palco. A interação entre personagens demonstra.
Comcerteza,aausênciadeumalinearidadetemporalofereceumaliberdadefluidaao
texto, mas ainda sim há drama, há uma progressão invisível:
O Praguejador
Vocês me verão sempre de costas
Curvado sobre o meu computador
O dia inteiro
Uma parte da noite
Eu acordo muito tarde
A Imóvel
Usar cores?
Mas a cor não é a minha preocupação
Não é o mimetismo que eu procuro
Mas o movimento.
O Praguejador
O meu dia começa no final da tarde
Faz tempo que eu não consigo me levantar
Muito tempo que a minha vida parou
A Imóvel
Imóvel diante do meu cavalo galopando
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O Escritor-O Herói
Existem dois lados no que está acontecendo
O que eu desejei e eu mesmo provoquei antes da minha partida
E o que eu ao contrário quis adiar
Com este pensamento completamente ilusório
Que me distanciando partindo o mais longe possível
Mesmo que fosse por alguns dias
Nada do que existia aqui
Poderia me afetar
(Bola de Ouro, tradução Carolina Gonzales, p. 3)
No texto podemos perceber a sutil construção da relação das personagens, mesmo que a
princípio não tenho uma relação direta aparente, em determinado momento do texto as
personagens se entrelaçam com mais distinção:
A Estagiária
Se eu ainda não fiz eu farei
Diga que o Herói
não é o meu pai
A Imóvel
Lógico
Lógico
Lógico
Que ele não é o seu pai
A Estagiária
Então é o outro?
A Imóvel
O outro?
A Estagiária
O Jornalista
A Imóvel
O Jornalista?
Você está louca?
De qualquer maneira nunca existiu nada de sexuel entre eu e ele
(Bola de Ouro, tradução Carolina Gonzales, p.44)
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4 - O AUTOR RAPSÓDICO E SUA DRAMATURGIA
AoimergirnarapsódiateatraldeJean-PierreSarrazacatravésdaanálisedesuaobra
dramatúrgica "Bola de Ouro", este estudo revela uma tremenda esperança na produção
dramatúrgica contemporânea. A visão rapsódica do autor, enraizadaemrupturasformaise
experimentação, desafia as convenções teatrais tradicionais.
A peça "Bola de Ouro" emerge como um exemplo paradigmático dessa estética
rapsódica, ondeaunidadedramáticaconvencionalcedeespaçoaumanarrativafragmentada
epoética.Adesconstruçãodalinearidadetemporaleadiluiçãodasfronteirasentreosmodos
poéticos evidenciam a influência da teoria sarrazaquiana na prática teatral.
ApropostadeSarrazacderompercomodogmadaunidadedramáticaémanifestada
de maneira marcante na obra analisada. A peça desafia a estrutura convencional ao
apresentar vinte fragmentos interconectados, permitindo à direção explorar efeitos de
simultaneidade e interferência. Essa abordagem amplia a liberdade interpretativa,
convidando o público a participar ativamente na construção do significado.
A metáfora da "Bola de Ouro" revela-se como um símbolo rico, encapsulando as
aspirações e desilusões da condição humana. As personagens, embora aparentemente
desconectadas inicialmente, entrelaçam-se ao longo da trama, revelando camadas mais
profundasdesignificado.AinteraçãoentreImóvel,Escritor-Herói,Praguejador,Estagiáriae
Jornalista cria uma teia complexa de relações, desafiando as expectativas do espectador.
AaplicaçãodavisãorapsódicadeSarrazactranscendeoslimitesdaformadramática
convencional. A peça não apenas desafia a linearidade temporal, mas também incorpora
elementos líricos e épicos, ampliando o repertório da linguagem teatral. As personagens
expressamseusmonólogos,compartilhandoreminiscências,eaquebradalógicaaristotélica
da tese, antítese e síntese adiciona uma dimensão mais abstrata à narrativa.
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O estudo também destaca a relevânciahistóricade"BoladeOuro",ambientadaem
um período de agitação social na França. A convocação anônima das personagensemum
café parisiense, permeada por referências à história e à filosofia, adiciona camadas de
significado à trama. A obra reflete sobre o papeléticodosintelectuaisemumcontextode
guerras e movimentos sociais, expandindo o escopo da narrativa para além do palco.
Ao confrontar a concepção tradicional da personagem, inspirado nas reflexões de
Nietzsche,Sarrazacdesafiaarepresentaçãoconvencionalnoteatroburguês.Aevoluçãodas
personagens em "Bola de Ouro" destaca a transformação que ocorre no teatro moderno e
contemporâneo, onde a personagem é mais do que uma entidade psicológica, explorando
novas formas de expressão.
Em última análise, a dramaturgia rapsódica de Jean-Pierre Sarrazac, exemplificada
em"BoladeOuro",proporcionaumavisãoprofundaeinovadoradoteatrocontemporâneo.
Ao desafiar as normas estabelecidas, romper com dogmas e explorar novas formas
narrativas, Sarrazac enriquece o campo teatral, inspirando reflexões contínuas sobre as
possibilidades expressivas da arte dramática. Este estudo visa contribuir para uma
compreensãomaisprofundadessapoéticasingulareparaaampliaçãododiálogoacadêmico
sobre o teatro moderno e contemporâneo.
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4 - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
SOUZA, Angélica Silva. OLIVEIRA, Guilherme Saramago. ALVES, Laís Hilário. A
Pesquisa Bibliográfica: Princípios e Fundamentos. Cadernos da Fucamp, v.20, n.43,
p.64-83/2021
GIOSTRI, Alex. Dramaturgia, Conceitos e Princípios. 1 Edição, São Paulo: Giostri, 2018.
SARRAZAC, Jean-Pierre. A Invenção da Teatralidade. Tradução: Alexandra Moreira da
Silva. 1ª edição. Porto : Deriva, 2009.
SARRAZAC, Jean-Pierre. A Oficina da Escrita Dramática. Educação e Realidade. 2005.
BRITO, Nayara Macedo Barbosa. Das novas escritas dramatúrgicas:
Aspectos Rapsódicos da Criação do Como se fosse [im]possível ficar aqui. Conceição |
Concept., Campinas. 2013.
MACIEL, Diógenes André Vieira.Das novas escritas dramatúrgicas:
Aspectos Rapsódicos da Criação do Como se fosse [im]possível ficar aqui. Conceição |
Concept., Campinas. 2013.
SARRAZAC,Jean-Pierre.LéxicodoDramaModernoeContemporâneo.SãoPaulo.Editora
Cosac Naify, 2014.
NAIF, Cosac. Jean-Pierre Sarrazac fala sobreLéxicododramamodernoecontemporâneo.
2012. Disponívelem:<h ttps://www.youtube.com/watch?v=K1WF_lqJaAY>Acessoem:20
junho 2023.
TEATROJORNAL, disponível em:
https://teatrojornal.com.br/2014/02/bola-de-ouro-tensiona-acoes-publicas-e-privadas/Acesso
em: 1 dezembro 2023.
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ENTREVISTA COM JEAN-PIERRE SARRAZAC,disponível em: Vista do Jean-Pierre
Sarrazac (usp.br)Acesso em: 28 novembro 2023.
5 - ANEXO
Bola de Ouro de Jean-Pierre Sarrazac
Tradução : Carolina Gonzalez
Anos 90.
Imagem quase apagada de um café, em um espelho envelhecido, com o
reflexo de um letreiro: “Boule d’or”. Nesta imagem, igualmente as
silhuetas pretas ou cinzas de muitas pessoas sentadas.
Nesta trama, diferentes lugares coabitam o mesmo espaço: um ateliê de
pintura-escritório bem pequeno em um apartamento modesto, gruta da
personagem Imóvel;o Jornal; o terraço coberto com vista para Paris
onde o personagem Herói recebe e escreve; o quarto sem janela – em
um subsolo – onde o personagem Praguejador está diante de seu
computador.
Uma mulher e três homens de cinquenta anos – a Imóvel, o Praguejador,
o Jornalista, o Escritor-Herói – mais uma mulher jovem – a Estagiária.
Eles se falam.
Nestas trocas verbais, é quase sempre impossível que eles estejam
reunidos. Porém, neste espaço prismático, reunidos, eles estão.
A peça é uma sequência de vinte fragmentos. A direção pode ainda
criar efeitos de simultaneidade ou de interferência entre os fragmentos
aqui apresentados sucessivamente.
Além disso, as citações ou certas partes narrativas podem aparecer
neste mesmo painel onde de vez em quando vê-se mais ou menos nítido
este café perdido no tempo. Colocando em cena personagens destinados
1
a diferentes formas de escrita, não seria incoerente que a forma escrita
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se misture à representação.
1.
A Imóvel
Eu estou aqui imóvel diante da minha tela
Eu a observo durante muito tempo
Em todo este branco os primeiros traços
de um cavalo galopando
(Tudo recomeça)
O Escritor-o Herói
Eu saio do aeroporto
Acabo de chegar de Bogotá onde dei
Cinco conferências em oito dias
Sempre acompanhado por seguranças
Algumas vezes escapamos eu e Alice na Candelária
Procurando um táxi discutimos
Nós nos entendíamos tão bem lá
Eu acho enfim um táxi
Perdi Alice de vista
Ela deve ter voltado sozinha
Dois dias mais tarde
Nós não nos falamos ainda
Aconteceram tantas coisas em dois dias.
A Estagiária
Eu me pergunto se vou aguentar
Este jornal é muito antiquado
E este cara que diz ser meu orientador
Um velho amigo da minha mãe
muito velho ele também
Além do mais parece que ele está me cantando
2
18
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O Praguejador
Quanto a mim vocês me verão sempre de costas
O Jornalista
A mãe dela me largou essa bomba
(Seu retrato cuspido e escarrado na mesma idade)
Até que ela se sai bem
Parece que foi feita para esta profissão
Nada que eu possa fazer
Sua presença me intimida
Como se Marta tivesse voltado
O Escritor-o Herói
Tanta coisa em dois dias
O Praguejador
Vocês me verão sempre de costas
Curvado sobre o meu computador
O dia inteiro
Uma parte da noite
Eu acordo muito tarde
A Imóvel
Usar cores ?
Mas a cor não é a minha preocupação
Não é o mimetismo que eu procuro
Mas o movimento.
O Praguejador
O meu dia começa no final da tarde
Faz tempo que eu não consigo me levantar
Muito tempo que a minha vida parou
A Imóvel
Imóvel diante do meu cavalo galopando
O Escritor-O Herói
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Existem dois lados no que está acontecendo
3
O que eu desejei e eu mesmo provoquei antes da minha partida
E o que eu ao contrário quis adiar
Com este pensamento completamente ilusório
Que me distanciando partindo o mais longe possível
Mesmo que fosse por alguns dias
Nada do que existia aqui
Poderia me afetar
O Jornalista
Formo esta garota e vou embora?
(Penso cada vez mais em deixar o jornal)
O aparecimento desta moça
O sinal da minha partida?
Eles esperam ansiosos por isto
Eles me detestam
(Para eles eu represento o passado)
O Escritor-o Herói
Tanto um como o outro lado eu devo assumir.
A Imóvel
Entre um gesto entre duas pinceladas na tela
Esvai-se algumas vezes mais de uma hora
Um tempo onde posso ficar perfeitamente imóvel
Alguns dias faço apenas isso
Fico imóvel diante da minha tela
Sem ao menos tocá-la
O Praguejador
Poderia-se acreditar que eu trabalho
A verdade é que já faz algum tempo
Que eu não faço nada
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Minha vida é um abismo sem fim
Uma derrota
Eu me coloquei por conta própria fora do circuito
4
A Estagiária
Eu comecei faz uma semana
E já estou contando os dias
O que eu teria preferido seria um jornal jovem descolado
E caio em um jornal mumificado
Em todo lugar aqui vejo os rastros da minha mãe
“Então esse é o seu sobrenome verdadeiro?”
“Você não seria a filha da Marta?
“Não é a sua mãe?”
O Praguejador
Alguém que não me conheça
E que me veja aqui
Neste porão agarrado ao meu computador
Poderia pensar
“Este homem trabalha
Ele está trabalhando”
Ninguém me incomoda
Minha mãe lá em cima na sua idade
Não desce mais até aqui
Ou eu teria que carregá-la
Das três horas da tarde
Às três horas da manhã
Eu fico aqui curvado em cima do meu computador
Ele lê a mensagem – uma citação de Jean-Paul Sartre
– que ele está digitando e enviando de seu
computador. A citação se inscreve letra por letra,
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palavra por palavra, na tela e em seguida se apaga.
“Algumas vezes uma lembrança confusa surgi-lhes de suas magníficas ebulições;
então eles se perguntam: ‘Mas, o que nós queremos?’ e não se lembram mais. Eu os
revejo com vinte anos, tão intensos, tão alegres, prontos a assumir a função dos mais
5
velhos. Eu vejo hoje os olhos deles comidos por este câncer, consternação, e penso que
eles não mereciam isso [...] Todos esses burguesinhos são da mesma espécie: impõe-se
lhes uma dignidade imbecil, eles se castram, o objetivo real de seus trabalhos lhes
escapam, acordam com cinquenta anos para se verem morrer”.
2.
O Praguejador, de frente
Você parece espantado
Você não pensava que eu ia te deixar em paz ?
Eu te imagino quebrando a cabeça
Você gostaria de saber quem te enviou isso?
Pluvinage em minúsculo
@yahoo.fr isto não te diz nada?
“Da onde surgiu esse aí ?
O que ele quer comigo?”
Você tem o meu endereço.
Você pode me responder
Não não perca o seu tempo
Eu te procuro.
A Estagiária
Você realmente não conhece este cara ?
O Jornalista
Por que você acha que é um homem e não uma mulher?
A Estagiária
Quem te enviaria um texto do Sartre?
Você disse que era Sartre, não?
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O prefácio de não sei quem
Tenho certeza que é um cara
Um cara com pelo menos a sua idade
A Imóvel
6
Existem mais de duzentas pessoas no Jornal
E você tinha que cair com ele
A Estagiária
Não me diga que você não esperava por isto
Me pergunto até se você
A Imóvel
O que você imagina ?
Eu não sou uma manipuladora
Não sabia que ele ainda estava lá
Faz tempo que ele não assina nada
Pensei que ele tinha parado para escrever
Na realidade como jornalista
Ele é cada vez mais contestado
Foi a Clara que me disse por telefone
Por que você não trabalha com a Clara?
No caderno Sociedade você aprenderia alguma coisa
A Estagiária
Você tem certeza que não conhece ele?
Vocês devem receber este tipo de mensagem no Jornal
iguais e até mais
Vocês devem ter uma lista?
O Jornalista
Eu estou boiando.
A Estagiária
Fale disso com seus colegas
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O Jornalista
De jeito nenhum
A Estagiária
Um mitômano
O Jornalista
Possível
7
De qualquer maneira ele insiste
Cinco mensagens
Em menos de quinze dias
A Estagiária
Pluvinage
Que nome engraçado
O Jornalista
Um pseudônimo
E não acho nada engraçado
A Estagiária
Parece personagem de um livro
O Jornalista
Bingo um personagem
De um livro de Nizan
A Conspiração
Você conhece?
A Estagiária
Um livro da época do Sartre
O Jornalista
Exatamente
Nizan era um condiscípulo
E um grande amigo de Sartre
Mas ele entrou para o Partido
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A Estagiária
Partido?
Partido comunista?
O Jornalista
A razão do divórcio com Sartre
E depois pacto germano
-soviético
Divórcio do partido
Morto na guerra em maio de 40
8
Uma bala explosiva na cabeça
Uma bala alemã
Quem lucraria com isso?
Quem iria querer que Nizan Couic desaparecesse?
Esta foi a questão
A Estagiária
Vocês eram um bando de
Paranóicos
Quem é Pluvinage?
Quer dizer
O Pluvinage que te envia essas mensagens
Esta é agora
A questão
O Jornalista
Me desculpa
Eu estou atrasado
O Escritor-o Herói
Eu não tenho muito tempo
Como te falei por telefone
Pessoalmente eu não recebi nada
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Quer dizer nada ainda
Desse
Incrível que ele queira ser chamado de
Pluvinage
Você não acha que é uma brincadeira?
A Estagiária
Preciso fazer uma pesquisa
De Gaulle Malraux Sartre tudo isso
Eu me lembro
Do tapa na cara de Jean Marais no crítico do jornal de Je suis partout
No filme de Truffaut
9
Me lembro dos amores de Deneuve e de Depardieu
Escolhi Cultura e não História
Ciências políticas na minha vida
É um acidente
Minha mãe você acredita
Sonhava em me ver trabalhando
No Caderno Sociedade
Esse Pluvinage
Você vai responder para ele ?
Vai contactar ele?
O Herói
Você tem uma idéia
do que isto possa ser?
O Jornalista
Não uma mas várias
Nenhuma com certeza
Eu achava que você
Enfim que você e eu
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A Estagiária
Você pode ser honesto comigo
Eu sou sua estagiária, não?
Este encontro marcado na sua agenda
Não é com o Escritor
Aquele que vocês chamam de Herói
Quando eu era pequena a minha mãe falava num tal de Herói
Não existiria uma relação
entre este encontro e o seu Pluvinage
Me diga quem era Pluvinage no livro
O Jornalista
Superficialmente?
A Estagiária
10
Como você quiser
O Jornalista
Um traidor
A Estagiária
E cuidadosamente?
O Jornalista
Todos nós somos Pluvinage
Mesmo o Herói
Aquele que chamávamos de Herói
Deve ter a sua carga de traição
Bem escondida imperceptível
Eu por exemplo minha traição
Foi a de ter me inscrito
Aqui no Jornal
Eu queria apenas participar do lançamento
Um puro ato militante
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Estou aqui há mais de trinta anos
E se o barco não afunda
(mas eu faço o máximo de buracos que posso no casco)
Estarei por aqui por no mínimo mais cinco anos
O Escritor-o Herói
A gente pode se ver na minha casa se isso te agrada
Fazer a lista dos camaradas
Turma por turma ano por ano
Mas agora eu preciso ir em
um encontro irrevogável
E além do mais eu não compreendo
Emails não são como cartas anônimas
Deve ser fácil identificá-lo
O Jornalista
Provavelmente
11
Talvez a gente não consiga
Preciso te confessar
Que no início as primeiras mensagens
Eu não prestei atenção
O Escritor-o Herói
Tudo isto não faz sentido
O Jornalista
As cinco primeiras mensagens talvez
Mas a sexta hoje de manhã
O Escritor-o Herói
O que tem esta sexta mensagem?
O Jornalista
Uma espécie de convocação
A Estagiária
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A entrevista com o Escritor
De maneira nenhuma você fará sem mim
O Jornalista
Não é uma entrevista
O Escritor-o Herói
Uma convocação?
Que convocação?
Quem é convocado?
A Estagiária
Eu sabia
Que tinha alguma coisa a ver com o Pluvinage
O Jornalista
Você eu todo mundo
Quer dizer
Todo o escritório da Revista
O Escritor-o Herói
A equipe do Caderno?
12
O Jornalista
Claro do Caderno
O Escritor-o Herói e o Jornalista
“A guerra civil seria um bom título?” “Um bom título para uma conspiração” “Nós não
somos conspiradores” “O que nós somos?” “Nós somos revolucionários” “Estudantes
revolucionários”
“Proponho
Os cadernos da Revolução”
“Aprovado e viva Lênin”
A Estagiária
Eu te previno
Não vou largar do teu pé
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Eu vou na casa do Herói com você
A Imóvel
Você se engana se você acha
Que eu quero continuar a te influenciar
Mesmo de longe
Desde que você partiu
Eu me fechei em mim mesma
O mundo exterior não me interessa
Estou imóvel e desenho
Alguém de fora
não me veria mexer
Portanto a minha tela avança
Imperceptivelmente
Você me disse que partia
E eu fiquei imóvel
Mas eu sentia uma raiva enorme
13
Como estou sentindo agora
Alguém de fora pensaria que estou calma
Mas ao contrário porque
Eu não aceito que você me jogue na cara
esta imagem de manipuladora
Eu me pergunto mesmo se a manipuladora
Não é você?
Sim, eu sei
A introspecção te cansa.
A Estagiária, tira um livro do bolso
Pluvinage
Acabo de conhecê-lo
Não pode ficar tranquilo não o seu
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Mas o do livro do Nizan
Escuta
“No fundo o que me conduziu à delegacia, foi a suspeita que vocês tinham sobre mim
desde o primeiro dia. A vontade de me inocentar, este ar de acusação onde meu nome,
meu rosto, minha infância me condenavam à viver o personagem que vocês nunca
suspeitaram que eu fosse, o sentimento da minha diferença, da comunhão
impossível...”
Rosenthal o outro personagem do romance
Rosenthal morre Rosenthal se suicida
(Eu acho que você se parece com Rosenthal)
Pluvinage vai viver ele vai continuar vivendo
Mas é ele o mais triste
Porque ele era filho de um policial
Hoje em dia está na moda
Ser delegado
“o personagem que vocês nunca suspeitaram que eu fosse”
Quanto sofrimento nestas palavras
No fundo o único personagem sincero
14
A única pessoa íntegra
O único verdadeiro revolucionário da turma era ele
O retorno à polícia para ele
É o desespero o último refúgio
Da Revolução impossível
Você me olha como se eu fosse uma doida
Ou pior uma jovenzinha ingênua
Desde que eu cheguei
Você fica me rondando
Como se eu fosse uma mercadoria contrabandeada
Dividido entre o desejo de confiscá-la
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E de jogá-la fora
Você sabe porque eu vim cair aqui
Praticamente nos teus braços?
(o que quero dizer é que você me aguenta)
Você quer saber minha motivação profunda?
Não era ser jornalista
Ser admitida na legião Cultura
Minha motivação são os velhos amigos
Ah! Desculpa os camaradas da minha mãe
Você claro mas não somente
Não particularmente você
Acontece que eu também
tenho minha investigação para fazer
Meu traidor para caçar
O Escritor- o Herói
Esta convocação quando e onde?
O Jornalista
Quando ele não disse ainda
Onde mas é aí
Que isto se torna incrível
15
A Estagiária
Você sabe que antes de partir minha mãe
Praticamente me proibiu
De trabalhar com você?
O Jornalista
Quando ela lerá o seu primeiro artigo
Ela vai mudar de opinião
Você sabe que aqui ela foi uma das melhores
O aborto o estupro
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Todos os combates dos anos setenta
Foi em grande parte sua mãe
Porque ela parou
Ninguém realmente compreendeu
A Estagiária
Mas você
Tirando o fato de condenar um livro
E de glorificar um outro
Você não tem a sensação de se repetir?
Você quer que te diga uma coisa?
Quando você me disse
Nós somos todos Pluvinage
Agora que eu conheço o Pluvinage
O Pluvinage de Nizan
Não este que vocês todos reinventaram
Eu tenho é vontade
De rir na sua cara
O Escritor- o Herói
No Boule d’or?
Nosso encontro no
Boule d’or?
Ou este cara é doido
16
Ou ele é muito inteligente
E ele nos prepara uma cilada
O Jornalista
Metafísica?
O Escritor- o Herói
Testamentária
Não sei porque
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A palavra que me vem na cabeça
Testamentária
O Praguejador, de frente novamente
Você quer algumas explicações?
Você só precisa perguntar
Que eu te dou
Por que este encontro?
Por que no Boule d’or?
Dois indícios
Que te permitirão talvez
Descobrir minha verdadeira identidade
Se por azar você não se tornou
tão caduco como este jornal
que te emprega
vamos eu te ajudo
Foi no Boule d’or
que vocês me excluíram
Que vocês me enviaram para a escuridão exterior
Que vocês injustamente me deram o apelido
Degradante de Pluvinage
Por isso que eu reivindico
Que seja no Boule d’or
Que eu obtenha justiça
O Escritor-o Herói
17
O mais impressionante
É que ele se exprima
O Jornalista
Como se nós nos tivéssemos visto ontem?
O Escritor-o Herói
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Por isso o encontro no Boule d’or
O Jornalista
Você sabia que o Boule d’or
não existe mais?
O Escritor- o Herói
Tem uma livraria no lugar
Fiz alguns lançamentos lá
O Jornalista
Eu não sabia
Imagine que eu fui até lá
Procurei por um tempo
Depois tive que aceitar
O Escritor-o Herói
Mas você por que você vem me ver
Depois de todo este tempo?
Só por causa deste encontro
No Boule d’or
Ou tem outra coisa?
O Praguejador
Ah! Já ia me esquecendo
De que foi através de você
Que eu resolvi me dirigir ao nosso coletivo
Nada de pessoal
(sua posição de jornalista)
Pra falar a verdade vocês me é indiferente
Individualmente vocês me são todos indiferentes
18
É ao grupo inteiro que eu me dirijo
É o grupo que me deve satisfações
Por uma vida absolutamente fodida
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Uma vida que eu mesmo
tive a decência de colocar trinta anos
entre parênteses
O Jornalista
Quase que eu não venho sozinho
O Escritor- o Herói
Ah
A Estagiária
É a mim que ele se refere
Eu tinha pedido para fazer a entrevista com ele
O Escritor- o Herói
Nunca se tratou de uma entrevista
A Estagiária
Ele fazia um mistério tão grande deste encontro
E depois eu tinha uma vontade tão grande de conhecer o senhor
Eu li todos os seus livros
O Escritor- o Herói
Eu aposto que nenhum te convenceu
Você deve ser tão exigente quanto a sua mãe
Ela nunca gostou do que eu escrevia
A Estagiária
Como o senhor sabe?
Faz tempo que vocês não se vêem
Ela mudou bastante
Tem um amargor nas suas palavras
Que eu não encontro no seus livros
O Escritor- o Herói
19
De manhã
O amargor
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Do álcool da noite anterior
Você sabia que eu e a sua mãe
A Estagiária
Não fale
O Escritor- o Herói
Você se parece demais com ela
Quantos anos você tem?
O Praguejador
Naquele dia no Boule d’or
foi como se vocês tivessem me condenado
A sentença que vocês me deram eu nunca deixei de transportá-la comigo
Eu tinha vinte três anos e vocês me executaram
Vocês se lembram como foi?
Um silêncio um silêncio absoluto
Vocês saíram de um em um ou em pequenos grupos
E no final eu fiquei sozinho
No porão sinistro do Boule d’or
Onde dizíamos que seguramente havia microfones
Mas sem nunca deixarmos de nos reunirmos aqui
Totalmente inerte as pernas quebradas
Eu fiquei aqui alguns minutos talvez horas
Eu fiquei neste porão
Que eu não reconhecia mais
Que me parecia estranho
(eu ainda não sai daqui
Eu espero por vocês aqui
Eu espero por vocês aqui)
O Jornalista
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Ele não diz ainda quem ele é
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(eu começo a pensar em alguém
E talvez você também)
Mas desde então ele me deu o motivo do seu gesto
Se ele me contactou foi segundo ele com o objetivo
O Praguejador
A Conspiração você se lembra desta passagem
Eu te envio
Caso você não tenha
O livro com você
Ele lê. O que ele lê aparece e desaparece na tela.
“... E como eles não tinham a necessidade deprimente de trabalhar para comer, eles
diziam que era preciso mudar o mundo. Eles não sabiam ainda como o mundo é
pesado e mole, como ele se parece muito pouco com um muro que se derruba para em
seguida construir um outro ainda mais bonito, mas principalmente a um amontoado
sem cabeça nem rabo feito de gelatina, a uma espécie de medusa enorme com orelhas
bem escondidas”
O que você acha?
(eu não me dirijo ao crítico literário)
Será que você já conhece esta medusa
Que paralisa os grandes revolucionários
E os transforma em estátua de sal?
Agora você vai anotar
Porque eu tenho uma missão para te dar
Na sua cabeça bem organizada
De jornalista profissional
Você vai reunir
Todos os nossos camaradas
Você vai convocar todos
21
Anote bem no Boule d’or
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Te dou a data e a hora
Pausa
No Boule d’or
A partir de hoje
Todos os dias
A toda hora
4.
A Imóvel
Eu me conservo imóvel no quarto da minha filha
No qual eu transformei esperando o seu retorno
Em meu ateliê de pintura
Tenho todo o tempo disponível para mim mesma de agora em diante
Não tenho quase necessidade nenhuma de sair
Necessidade de que o mundo exterior venha a mim
Porque o mundo é o tempo todo as minhas mãos
Eu pinto eu pinto imóvel um cavalo galopando
O cavalo atravessa o mundo
Eu digo a mim mesma que sou feliz
Nesta imobilidade perfeita
Do gesto de pintar
O pincel toca ligeiramente a tela
É ele somente
Que dá a minha mão ao meu braço
Todos os impulsos
É ele ele somente
Que cria este movimento imperceptível
Que anima a tela
Mas todas as vezes que eu devo me separar
22
Desta figura galopando que
39
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Vejo se distanciar pouco a pouco na minha frente
Se você soubesse como me sinto mal
É verdade
Eu sonhei em te ver partir
Eu desejo agora
A cada instante
Te ver de volta
A Estagiária
Você quer parar com este dramalhão?
A Imóvel
Me escuta
Eu sonhava te ver partir
Sonhava em te ver trabalhando no Jornal
Sim como uma revanche profissional
Porque minha demissão de quase dez anos
(Demorou para que eu compreendesse)
Não era pra mim uma decisão verdadeira
Mas eu gostaria agora que você voltasse
Teu quarto eu me instalei nele
Para me sentir menos sozinha
Você sabia que eu comecei a pintar?
Se você me disser que está voltando
Eu o arrumo imediatamente
Eu gostaria que tudo voltasse pro seu lugar de antigamente
Que você encontrasse o seu lugar
Na minha casa
A Estagiária
Na sua casa?
A Imóvel
23
40
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Na nossa casa
Nossa casa
A Estagiária
Não insiste
Você sabe muito bem que
Isto é página virada
Agora eu estou aqui
Fazendo este estágio no Jornal
E gostaria de poder ficar
Espero que aqui eles me aceitem
O Jornalista
Sua mãe se ela quisesse
(ela era tão talentosa)
Ela teria de volta o seu lugar no Jornal
A Estagiária
Você sabe porque ela deixou o Jornal?
Porque ela inesperadamente mudou de vida de cidade de profissão?
Ela não sabia na época
Ela compreendeu somente mais tarde
Mas ela começou a detestar
A detestar o Jornal
A detestar a ela mesma fazendo este Jornal
Que parecia cada vez menos
Com o que vocês todos tinham desejado que ele fosse
O Jornalista
Você está tentando me humilhar?
Você não vai conseguir
Nesse joguinho
Eu serei sempre mais forte que você
Mais forte que qualquer um
41
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Na verdade
24
Eu tenho uma coisa pra te dizer
Finalmente
Eu consegui me comunicar com ele
A Estagiária
Com quem?
O Jornalista
O Herói o Escritor
Tenho uma reunião na casa dele
E se você quiser você vem comigo
A Estagiária
Pra mim eu acho este Jornal perfeito
Não é ele que faz a época
É a época que o faz
E como não me deram
O direito de escolher a minha época
O Escritor-o Herói
Engraçado como você se parece com ela
A Estagiária
Faz quanto tempo
que o senhor não a vê?
O Escritor- o Herói
Foi ela que insistiu
A Estagiária
Mentira
O Jornalista
Você está escrevendo um novo livro
Ouvi falar de uma peça de teatro
Não te vejo como escritor de teatro
42
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A Estagiária é muito talentosa
(Ela teve de quem puxar)
Ela gostaria de fazer uma entrevista com você
25
Para a última página
O Escritor- o Herói
Nós temos tempo para pensar à respeito
Nem sei ainda se existirá um livro
Se chegaremos ao final
A Estagiária
Em relação à entrevista se o senhor quiser
Entro em contato
O Escritor- o Herói
Quando você quiser
Em relação aos emails desse Pluvinage
Porque ele quer ser chamado de Pluvinage
Vocês querem saber o que eu acho?
Nada
Nada de nada
Este cara tem um parafuso a menos
O Jornalista
Não é verdade
O Escritor
O que você quer dizer?
O Jornalista
Eu sei agora quem ele é
Nós sabemos nós dois
Não me diga que você se esqueceu
O Escritor- o Herói
O pretexto que ele dá
43
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para uma reunião
(Reunião do que afinal?
Reunião de fantasmas
Eu gostaria de saber
26
Quanto dentre nós está morto
Ou quase)
Isto não vai dar certo nem um minuto
Uma reunião do comitê do Caderno
Este Caderno eu nem sei mais
do que se tratava
A Estagiária
Planos de uma revolução planetária
Meu mapa do tesouro quando eu era pequena
O Escritor- o Herói
Vocês leu?
Quanta besteira que nós escrevemos
A Estagiária
Depende
O senhor eu não acho
O Escritor- o Herói
Seria melhor que você me tratasse por você
A Imóvel
Vocês mentem
Vocês mentem os dois
Ele é evidente
O velho pavão abre a sua cauda
Mas você também você mente pra ele você mente
Você não leu uma linha
do seus artigos da época
44
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Você nem sabia que o Caderno
Estava em casa
A Estagiária
Visto que você não joga nada fora
Eu pude imaginar
Você conheceu bem a minha mãe, né?
27
O Jornalista
Nós a conhecemos muito bem
Nós dois
A Estagiária
Mesmo se fico constrangida
Eu prefiro ver o senhor sozinha
Sem o Jornalista para me vigiar
O senhor viaja bastante
Por causa dos seus romances, não é?
É deste jeito que nós o vemos
Em viagem permanente
Em países longínquos
De preferência perigosos
Escritor viajante
Sempre ao lado de uma mulher muito bonita
Você viaja em breve?
O senhor não está me escutando?
Não está mais aqui?
Não está mais aqui
O Escritor- o Herói
Eu viajei bastante
Na maior parte das vezes sozinho
Mas me acalmei
45
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A Imóvel
Sozinho sim ele está sempre sozinho
E se você tem a impressão
que ele está se dirigindo a você
é apenas uma ilusão
Ele fala sempre pra ele mesmo
Bem ocupado
Em recolher
28
Para os seus livros
Estas palavras que vão
Dele
A ele mesmo
5.
O Escritor- o Herói, ao seu pai
Este velho costume
Este velho costume de te falar
Mesmo morto eu te falaria ainda
Todas estas viagens você bem que compreendeu
que era uma doença
Minha doença principal
O Álcool é apenas um adendo
Um adendo à viagem
(eu digo que estas viagens
Alimentam a minha obra
Mas é apenas uma fachada)
Sem o álcool sem estas viagens sem objetivo
Eu teria escrito dez livros a mais
O álcool é apenas para aguentar
A angústia das escalas
46
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O pânico que toma conta de mim
Entre duas partidas
O tempo de encontrar uma nova destinação
Com o apoio de um ministério de uma embaixada de um centro cultural
É doido como o governo gosta dos escritores viajantes
Que goste deles não tenho certeza
Que ele os ajude principalmente
Se paro de escrever
ninguém vai perceber
29
Mas se paro de viajar
Pausa
Vou parar
Você nunca teve necessidade de beber
Nem de viajar
Esta viagem na Colômbia com Alice
Terá sido a última
Eu te prometo
(promessa de bebum?)
Eu viajo porque eu não sei
Nem onde estou nem aonde vou
Exatamente o oposto de você
Você sempre soube escolher a sua direção
Não te insultarei dizendo
que era mais fácil
escolher entre a resistência e a colaboração
ou uma residência de escritor na Baviera
ou então uma conferência em São Paulo
e se você quer saber
Pausa
47
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Você se diz que o seu filho está completamente bêbado?
É que você subestima minha capacidade de absorção
Você preferiria que eu me calasse?
Eu não tardarei a me calar
Mas você meu pobre pai
Você continuará me ouvindo
Os mortos ouvem tudo
E os outros mortos principalmente
Eu já te disse como eles me chamam
Há trinta e cinco anos?
30
Eu não me reencontro com
A maioria
Há mais de dez anos
Mas eu tenho certeza que quando sem querer
Eles pensam em mim eles me chamam
(Eu tenho vergonha pai eu tenho vergonha)
Pausa
De qualquer maneira você sabe
Que eles sempre me chamaram de
O Herói o Escritor – o Herói
Não nesta ordem o Herói e em seguida o Escritor
Quando não houve para o Herói
A menor possibilidade de realizar suas aventuras
Mesmo se tudo tenha começado bem
Filho do meu pai eu tinha sem dúvida
Nascido para uma existência revolucionária
Infligir derrotas terríveis ao inimigo de classe
Atingi-lo na sua carne
Não um revolucionário de salão
48
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Um revolucionário de ação
Tinha imaginado a prisão
Ou anos de exílio
Mas também a luta final
O retorno triunfante
Eu me transformo em um escritor-viajante
Tudo tinha começado tão bem
Que ironia
Tudo isso é sua culpa pai
Você fez o seu filho a sua imagem
31
Teu filho que te considerava como um deus
Teu filho que nunca foi que uma imagem
Bem pálida do que você o Herói foi
Teu filho certinho como uma imagem
Que escreveu toda a sua vida em
Cadernos e mais cadernos
Cadernos para a Revolução
E que continuará
Até a morte
Saúde pai
(eu não escreverei mais esta noite
Tentarei me levantar cedo amanhã)
6.
A Imóvel
Estou imóvel na frente da minha tela
Aqui no escuro
Vejo apenas o leve brilho
Na minha frente do branco da minha tela
Eu estou aqui imóvel desde quando?
49
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Meus pensamentos se encadeiam lentamente
Eu sei que eles não me servem pra nada
Mas eu me vejo comprando uma passagem para Paris
Toco a campainha da casa da minha filha
Ela não acredita no que ela vê
“ – O que você está fazendo aqui?
“ – Eu não estou de passagem
“ – Também não foi para te ver
“ – Ou porque eu estava preocupada
“ – Eu voltei a trabalhar no Jornal
“ – Eu falei com eles
32
“ – Eles decidiram me contratar de novo
Pausa
Você está surpresa
Você se diz “Não não é possível”
Você tem razão não é possível
O motivo de eu ter retornado à Paris
É bem anterior a tudo isso
Eu também recebi essas mensagens
A mim também esta pessoa
(Eu me pergunto quem ele é exatamente)
Me enviou emails e marcou um encontro
Esse tal de Pluvinage no Boule d’or
Eu decidi vir
De deixar minha casa e minha pintura
E vir
Pausa
Claro que eu estou mentindo
Eu não decidi nada
50
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Faz tempo que eu não decido nada
Amanhece e eu estou ainda na frente da minha tela
Então eu me deito
Eu desmaio
Eu durmo na sua cama
7.
O Jornalista
Por que você aceitou?
A Estagiária
Porque eu não tenho grana
para pagar um restaurante como esse
33
O Jornalista
Você não me dá nenhuma chance
A Estagiária
Recomeçamos amanhã se você quiser
Vou pra casa agora
O Jornalista
Quero dizer a chance
De te fazer mudar de opinião
A Estagiária
Você paga também o táxi?
O Jornalista
Eu me pergunto
Se é realmente ódio
Ou um exercício de estilo
A Estagiária
Talvez os dois
Por que você gostaria que eu te odiasse?
Você me ensina a minha profissão
51
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Razoavelmente bem
Você me leva em restaurantes
Chiques e caros
Mas você sabe muito bem
Que eu não chegarei jamais
Perto da sua cama
O Jornalista
O escritor só é três anos mais novo do que eu
A Estagiária
Muito delicado
O Jornalista
A sua mãe e ele os dois viveram seis meses juntos
A verdade mas eu suponho que você já conhece
34
É que ela me deixou
para ficar com ele
A Estagiária
Você quer que eu vomite tudo?
O Jornalista
Vai
Eu me acostumei que as pessoas vomitam em mim
E eu nunca me senti intimidado
De fazer o mesmo aos outros
A Estagiária
Eles se viram novamente
minha mãe e o Herói?
Eles se viram novamente?
Eles não se viram novamente há digamos
vinte três vinte quatro anos?
Me responde canalha
52
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Me responde
O Jornalista
Eu a deixo pegar o taxi
Com sua questão
Sem dizer uma palavra
Ela pensou que eu a estava paquerando
(Ou ela fingiu)
Como se eu quisesse trinta anos depois
recomeçar a mesma história lamentável
Se ela soubesse como estou cansado
Como eu estou esgotado
Impossível de ir pra casa
Meu corpo me ordena de ir para casa e deitar
Minha cabeça recusa
Eu vou caminhar a noite toda pelas ruas
35
Talvez me arrastar
A Imóvel
Eu estou novamente imóvel
Longe de tudo na frente da minha tela
Sozinha face a esse cavalo correndo
Cujo traço ainda mais branco que esta tela
Percebe-se sutilmente
Faz muito tempo que eu não pertenço mais
ao que os outros chamam de
burburinho do mundo
E mesmo assim é como se eu te visse
Ou te visse outra vez
Você não mudou muito
Você se tornou um escritor conhecido
53
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Que recebe prêmios preside júris
(Eu até te vi duas ou três vezes na televisão)
Mas quando você escreve seus livros
Você tem eu tenho certeza esta postura
Corcunda de um estudante
No interior da sua cabeça suas idéias
São sempre irrepreensíveis
Mas quando você rever minha filha
Não represente o escritor sedutor
Lembre-se que você não passa de um estudante
Deixa minha filha tranquila
Se ela te perguntar algumas coisas
Diga que você não sabe de nada
Nada de nada
8.
O Escritor- o Herói (fragmentos de escritos do personagem)
36
A medida que o escritor for lendo algumas passagens
de seus escritos, estes últimos vão aparecendo
e desaparecendo na tela
“Retorno da Colômbia. Aterrissagem no aeroporto de Roissy com mais de três horas de
atraso. Ressaca. Briga com Alice. Como frequentemente, e quase sempre, eu me
pergunto o que me deu de aceitar este convite. De ir em um país que tem uma das mais
importantes guerrilhas marxistas ainda em atividade?... Toda vez, eu tenho a
impressão de ter sido enganado: o bom aluno. O que ele queria, este grupinho
francófono, o que eles sempre querem, é o que a Alice de cara percebeu – ela percebe
sempre tudo -, se esfregar por um momento nesta espécie de besta que você se tornou,
este híbrido de aventureiro e intelectual. E a mulher do Conselheiro Cultural que me
servia sem parar seu Bourbon, um jeito de verificar se eu era realmente digno da
minha reputação. Te transformando em um cara comportado.
54
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“A impressão – sem dúvida secretamente a mesma de Alice – que esta viagem era a
última que nos fazíamos juntos. Impressão confirmada.
As viagens, um álibi formidável – conferências e outros blablablás – para não
trabalhar. Eu irei finalmente terminar este texto ou jogarei tudo no lixo? Seria
maravilhoso ir amanhã de manhã à Yport e jogá-lo do alto do penhasco. Você
convidaria dois ou três críticos literários para te servir de testemunhas. Chamaríamos
isto de “performance”. Sim, mas o que seria necessário agora, para que o gesto seja
credível, seria jogar teu computador de lá de cima, fazê-lo se espatifar nos rochedos
quatro metros lá embaixo. Como se chamava este livro idiota, Suicídio, maneira de
praticá-lo, até que não tão idiota assim.
“Algumas circunstâncias – as quais talvez eu voltarei a comentar - me colocam,
depois de dezenas de anos de interrupção, na pista da Conspiração. Eu percebo que
este romance não perdeu nada do seu caráter vital (muito além do caráter literário) que
ele representava para mim há trinta anos ou mais. Mas nada do que possa me
vangloriar. Eu sou obrigado a constatar que eu trato minhas anotações exatamente
37
como Régnier, o escritor pretensioso e doentio de Nizan. Régnier passou por tudo
durante a guerra e fica insensível durante os trinta ou quarenta anos que ainda o
separam da morte. O que eu vivi naquela época e que me serve de matéria para os
meus livros e cujos ecos me chegam nestes últimos dias por vias exteriores, foi
somente a guerra? Uma espécie de guerra? Eu não saberia afirmar. Depois de Malraux,
todo escritor é um órfão da Ação.
“Bloche me prescreveu alguns exames. Especialmente uma colonoscopia. Só o nome já
me dá medo. Eu bebi mais do que devia e tenho a impressão, desta vez, que não vai
demorar para eu receber a conta. Seria fácil pensar que o meu medo é devido a esta
doença o que sancionaria minhas tendência alcóolicas, mas tenho que aceitar a
verdade: o medo estava lá e bem lá e é ele que desde muito tempo me induz à beber.
“Encontro uma passagem no Diário de Kafka, uma passagem que corresponde
exatamente ao meu estado psíquico e mental desde que estou espero por certos
resultados: “17 de outubro de 1921 – A maneira como me destruí ao longo deste anos
55
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é surpreendente; foi igual a ruptura de uma barragem progredindo lentamente, como
uma ação cheia de intenções. O espírito que realizou isto deve estar agora festejando
sua vitória, porque ele não me deixa festejar também? Sem dúvida, ele ainda não
realizou completamente seus objetivos, de maneira que ele não pode pensar em outra
coisa.”
“Revi pela primeira vez o Jornalista, na última vez foi na conferência de imprensa na
criação do Jornal. Depois o perdi completamente de vista. O máximo, foi que ele veio
com uma estagiária que ele me apresentou como a filha da... Na realidade, eu não
precisava saber do nome dela, porque é ela, tim tim por tim tim. Ela tal qual eu a
conheci. Ele quis me encontrar por uma razão que eu não entendi direito. Ou fez de
conta que não entendeu. Uma história de um encontro improvável, que teria sido idéia
– em um lugar que eu sei perfeitamente que não existe mais – de um velho camarada
que eu tinha quase esquecido a existência e que resolveu nos aterrorizar gentilmente se
escondendo atrás do pseudônimo de Pluvinage.
38
“Deus escreve certo por linhas tortas. Ela, a sua semelhança com sua mãe há trinta
anos. Mas também seu charme particular. Ao qual você não é insensível, não é? As
pernas são ainda maiores e mais finas. Nós decidimos nos rever, eu e a Estagiária.
Sem a presença do Jornalista.
9.
A Estagiária
Sou eu de novo.
Você tinha me dito que eu poderia te telefonar
Caso eu tivesse algumas dúvidas
Por que você me dá seu telefone
E não me atende?
10.
A Estagiária
O que você não suporta
é que eu queira seguir a mesma carreira que você
56
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Esta profissão que te rejeitou
A Imóvel
Ela não me rejeitou
Eu que não quis saber dela
O Jornalista
Nem mesmo uma vez em vinte anos
E agora três vezes em seguida
Você quer saber porque
eu quis te rever?
O Escritor- o Herói
Pluvinage
O Jornalista
Tem outra coisa
39
O Escritor- o Herói
A Estagiária
O Jornalista
Não
Algo de mais íntimo
O Escritor- o Herói
Você acha que pode existir ainda hoje
algo de íntimo entre nós?
É engraçado eu leio algumas vezes os seus artigos
Eles me divertem eu os leio mas
Sem fazer uma relação com você
Com a sua pessoa
Com nós naquele tempo
Desculpe minha sinceridade
O Jornalista
Eu te agradeço
57
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E agradeço Pluvinage
Eu vou te surpreender mas eu precisava te rever
(Eu precisava te rever
Era como uma necessidade)
Para esclarecer a minha vida
Sempre soube o que eu seria
Com vinte anos eu me via
Como sou hoje
Eu enganava
Eu me disfarçava
Disfarce de revolucionário
Depois da debandada coletiva
Em vez de me sentir liberado
Eu fiquei petrificado
Todos as nossas prestações de contas
40
Das quais sai sem um arranhão
Me esvaziaram interiormente
Sem que eu percebesse
A partir daquele momento
Eu vivi como se estivesse morto
Como você fez?
Como você conseguiu você
Que não mentia nunca
Você que os outros chamavam de Herói
Por que não te encontro destruído?
O Escritor- o Herói
Quem te disse que eu não estive?
Que eu não estou?
A Estagiária
58
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A sua demissão do Jornal
eu não a vejo como você
Você fala em decepção
Você considera que o Jornal te decepcionou
Mas o Jornal era você também mãe
As decepções nós sabemos o que são
Acreditamos estarmos decepcionados com alguém por algum motivo
A verdade é que nós nos decepcionamos com nós mesmos
O Escritor- o Herói
O que você quer que eu te diga?
O que você quer que eu faça para você?
Na época eu fiz como os outros
Constatamos que você não era corajoso
Quero dizer fisicamente
O Jornalista
Moralmente também não
A coragem eu a deixo ao Herói
41
É o teu ganha pão, não?
A Imóvel
Eu me interessei por outras coisas
Eu encontrei uma razão para viver
Um equilíbrio
E depois você nasceu
A Estagiária
Sem pai
Conheço o seu equilíbrio
(A imobilidade)
Eu quase morri
Do seu equilíbrio
59
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A Imóvel
Na época fazíamos muitas coisas
Pelas mulheres e pelo o que era preciso
O Jornalista
No fundo Pluvinage eu poderia tê-lo inventado
Eu me arrependo de não tê-lo inventado
Mas e você?
O Escritor- o Herói
Você acha
Que é uma invenção?
O Jornalista
O Pluvinage existe
um bom jornalista verifica suas fontes
é verdade que eu tinha necessidade de te rever
Esse tal de Pluvinage me ajudou
A Imóvel
Você mente
Ou você inventa
Durante a sua infância
42
Você não era triste
A Estagiária
Como você pode saber?
O Jornalista
Eu deveria ir embora
Não vale a pena que você tente encontrar as melhores palavras
Eu percebo sozinho
Como sou ridículo
Eu estou chorando
Que absurdo
60
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Me manda embora
A Estagiária
Você quer saber?
Eu fui até a casa dele
De madrugada
A Imóvel
Mentira
A Estagiária
Ele abriu a porta
Eu segui meu impulso
A Imóvel
Você está dizendo nada com nada
A Estagiária
E eu me atirei
no seus braços
E senti o seu coração
Que batia muito forte
Acima dos meus seios
A Imóvel
Mentira mentira
A Estagiária
43
Ele não ousou me abraçar
Pôr as suas mãos em mim
Elas ficaram acima da sua cabeça
Como um jogador de futebol que acabou
De cometer uma falta
A Imóvel
Fica quieta
Isto me dá nojo
61
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A Estagiária
Por que ele tem a sua idade?
A Imóvel
Eu não sou tão idiota assim
A questão não é a da idade dele ou da sua
A Estagiária
Então qual é a questão?
A Imóvel
Me diga que você não fez
A Estagiária
Se eu ainda não fiz eu farei
Diga que o Herói
não é o meu pai
A Imóvel
Lógico
Lógico
Lógico
Que ele não é o seu pai
A Estagiária
Então é o outro?
A Imóvel
O outro?
44
A Estagiária
O Jornalista
A Imóvel
O Jornalista?
Você está louca?
De qualquer maneira nunca existiu
nada de sexuel entre eu e ele
62
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O Jornalista
O que você está esperando
Para me colocar na rua?
O Escritor- o Herói
Você está muito pálido
Você não quer se sentar um pouco?
A Estagiária
Então quem?
A Imóvel
Mas o seu pai
você o conhece
você viu sua foto
Você mesmo o conheceu pessoalmente
O Jornalista
Eu preciso sair imediatamente daqui
A Estagiária
Sim mas
Eu não o reconheci
Eu não o reconheci como meu pai
Muito apagado
A Imóvel
Me escuta minha querida
Este homem O Escritor o Herói
Eu não quero que você chegue perto
45
Ele é muito perigoso
Eu preferiria até
O Jornalista
Eu não estou entendendo
o que está me acontecendo
63
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O Escritor- o Herói
Não tem nenhum problema em chorar
Você vem quando quiser
Se você tiver alguma coisa ainda para me dizer
O Jornalista
Eu te agradeço mas fique tranquilo
Em particular nós não nos veremos mais
11.
A Imóvel
Eu tive um sonho
Aqui na frente da minha tela
Parece com um filme do Fellini
Que eu vi há muito tempo atrás
Com uma orquestra
Onde cada músico estava em smoking
O pianista os violonistas a violoncelista o chefe de orquestra
(o chefe tem um rosto parecido com o do Herói como eu o imagino hoje
Como eu o vi na TV)
Cada músico tem o rosto de um membro do nosso grupo
Quando nós nos reunimos aqui no Boule d’or
No porão deste café que não existe mais
Eu vejo o Boule d’or e fico aterrorizada
Eu o vejo se transformar
em uma imensa bola preta
com uma corrente enorme
46
E esta bola enorme em cima das nossas cabeças
Começa a balançar
A ir cada vez mais longe
Tocar as paredes
64
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Os músicos o chefe e eu
E de repente a bola bate bate
E eu gostaria de acordar
A bola bate na parede
Que se desfaz em vários pedaços
Pedaços do teto caem sobre nossas cabeças
O espaço está completamente destruído
Nós estamos todos petrificados
Mas o mais apavorante
É que em volta do café destruído
Lá onde normalmente havia
A praça a avenida a cidade
Não existe mais nada
Absolutamente nada
O vazio
Um vazio cinza e gasoso
Eu acordo dizendo
Como antes
“De quem é a palavra?”
“De quem é a palavra?”
12.
O Jornalista
Ao mesmo tempo que o Jornalista fala,
seu texto aparece na tela e se apaga em seguida.
“De agora em diante e até o fim farei uma descrição de todos os meus atos e gestos.
Tudo o que penso. Afinal, continuo jornalista...
47
“Não vi uma alma viva durante estes últimos quatro dias. Não atendi o telefone, não vi
meus emails. No Jornal, eles se acostumaram com as minhas fugas cada vez mais
frequentes. Hoje de manhã, alguém toca a campainha de casa. Acho que é a Estagiária,
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não atendo. Mas a campainha me tirou da minha letargia. Como um sonâmbulo, eu
vou realizar o ato mais absurdo de uma existência que já é rica em absurdidades. Eu
pego o metrô, e sem pensar, saio exatamente aqui nesta praça tantas vezes percorrida
onde antes existia o Café. Confirmado: o Café não existe mais; no lugar, esta grande
livraria de nome bem conhecido (onde tantas vezes nós compramos, revendemos e,
onde várias vezes, roubamos os nossos livros). Eu continuo por muito tempo imóvel
olhando de longe a vitrine da livraria. Tanto que acabo fechando os olhos. É neste
momento que sou invadido pela imagem – e ela não vai nunca mais me abandonar –
do antigo Café.
A imagem do Café e o reflexo do letreiro
“Boule d’or” aparecem mais claramente
na tela onde continua também aparecendo
o discurso do Jornalista
Mas a imagem não é antiga. Ela está aqui, intacta e presente sob os meus olhos.
Perfeitamente desenhada. E eu entro neste Café. Tudo está no seu lugar. O balcão em
zinco e cobre na esquerda logo na entrada. As mesas em todos os lugares até ao fundo,
o terraço coberto no fundo sem muita claridade e cheio de fumaça. Eu olho tudo isso
– o café, os funcionários, os clientes – com um olhar rápido, mecânico, instantâneo. Eu
vejo a escada: ela está lá, descendo até o porão, com o corrimão em cobre. Penso
nesses universos virtuais onde meu filho Jean-Michel cria um história com tanta
facilidade. Se ao menos ele estivesse aqui. Se alguém estivesse aqui para me ajudar.
Mas estou sozinho na imagem que me aspira.
13.
A Imóvel
De quem é a palavra?
Uma questão por dia
48
“Como frequentar um lugar que não existe mais?
“Um lugar que existiu e não existe mais?”
A palavra ao Herói nosso camarada
66
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O futuro Escritor
O Escritor- o Herói
A questão do dia está errada
A questão mal colocada
O lugar existe ainda
Porque ele existiu
Todo lugar que um dia existiu
Existe por toda a eternidade
Embaixo das cidades modernas
Existem as cidades antigas
Roma ou a Grécia antigas
Existem debaixo dos nossos pés
Concluímos então
Que o Boule d’or existe
Que nós somos
nossos próprios arqueólogos
que fazemos renascer
os espaços vivos
do nosso passado esquecido
Este lugar que nos reúne
O Boule d’or
(embaixo da livraria o Café)
Levantem os livros
Vocês vão encontrar os vestígios
O Praguejador
Mais um paradoxo
O Herói nos cobre de paradoxos
49
14.
A Imóvel
67
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De quem é a palavra ?
O Praguejador
Que não reste nenhum equívoco
Aparentemente eu estou aqui com vocês
Mas na realidade eu estou do outro lado
Do lado dos traidores desmascarados
A Imóvel
De quem a palavra?
A Estagiária
Eu estou aqui
Neste lugar que não existe
Que não me diz respeito
Refém de uma certa maneira
Peço para ficar
Fora de tudo isso
A Imóvel
Te diz muito mais respeito do que você pensa
Você é minha filha sim ou não?
De quem é a palavra?
A Estagiária
São muitos
os que não ousam falar
E que são instrumentos
Do Herói e do seu comparsa o Jornalista
A Imóvel
Então falaremos
Por aqueles que não tomam a palavra
E azar se eles se arrependerem
50
Eu dou a palavra ao Herói
68
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(que tanto amei)
O Herói vai pronunciar
Palavras decisivas
(poderíamos dizer históricas)
Existirá um antes e um depois
Do discurso do Herói
Hoje à noite nosso grupo morrerá
Fim dos Cadernos da Revolução
Fim da grande Conspiração
O Escritor- o Herói
Escutem
Precisamos virar o disco
Nós não podemos nos contentar
Em criarmos juntos pacificamente uma revista
Enquanto nossos camaradas no Vietnã na China em Cuba
Então eu lhes digo
Existe de agora em diante nesta sala
Uma linha de divisão
Entre aqueles que estão prontos
Para colocar suas vidas na balança
(Da História
Da Revolução)
E aqueles que têm medo da morte
O Jornalista
“De quem é a palavra”
Diz mais uma vez a Imóvel
A Imóvel
De quem é a palavra?
O Jornalista
Ninguém ousa levantar a mão
69
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51
Entre os dez camaradas sentados aqui
Nesta sala do subsolo
Neste Café chamado Boule d’or
Tirando lógico aquele que ganhará
Muito mais tarde
O pseudônimo de Pluvinage
O futuro Pluvinage está bem agitado
Ele se apressa em sair
O Praguejador
Eu não preciso escutar a sentença
Os seus olhares já me condenaram
A Imóvel
A divisão está feita
Consideramos que a divisão está feita
Os Cadernos da Revolução estão suspensos
Estamos sob as ordens diretas do Herói
Pelo serviço da Revolução
Todos em ação com o Herói
A Estagiária
E etc e etc
O passado deles não me interessa
(Estou procurando um pai
E um trabalho)
O Escritor- o Herói
A questão de Nizan é esta:
“Como saímos da juventude?”
Alguém pode me indicar a saída?
Alguma coisa aconteceu
Que modificou definitivamente
70
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A grande máquina da História e do Tempo
52
Eu vi minha vida de repente parar
Ficar por um longo período imóvel
E depois retroceder
15.
O Praguejador
Vocês não me impressionam
Vocês têm apenas a idéia
Do menosprezo que possui Pluvinage aos Laforgues
Aos Rosenthals e aos Bloyés
(os pseudos revolucionários do romance de Nizan)?
Eles pensam tê-lo levado ao suicídio
Na verdade ele enterrará todos eles
(Rosenthal morrerá
Laforgue passará sua vida
Resmungando)
Porque vocês querem me julgar
Saibam que eu tenho pelos meus juízes
Um infinito desprezo
Ao Escritor
Mais eu falo mais eu me escuto
Menos eu me reconheço
É como se eu tivesse me metamorfoseado
Em uma coisa um objeto um instrumento
Em uma marionete que você puxasse os fios
Como você teve a idéia
de me tirar desse esquecimento
de vários anos
Você me colocou nesta máquina
71
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Que se serve de mim mais que ela me serve
Ela e eu a suas ordens
53
Ocupados a realizar seus desejos
Que eu não compreendo
As palavras que eu digitar neste teclado
Os detalhes que eu dou sobre a minha vida
(tirando duas ou três mentiras
que você me impôs)
é correto e corresponde
de muito perto aos meus próprios pensamentos
no curso real da minha existência
Mas tudo acontece como se
A cada nova palavra
A cada nova frase
Por exemplo quando eu digo
“Eu quis ser professor
“Eu tentei reatar relações
“Ter novos amigos
“O ano passado acreditei ter finalmente encontrado
“uma mulher com a qual
Quando eu me lamento assim
Porque você decidiu
Que eu deveria exprimir tudo
Toda minha miséria interior e exterior
Sim que tudo aconteça tudo aconteça como se
Minha vida minhas palavras meus pensamentos meus sentimentos
Fossem apenas uma repetição mecânica
Da vida das palavras dos pensamentos
De um outro que eu mesmo
72
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Ouça como eu decorei bem o meu papel
O papel do Pluvinage
Os seus pensamentos se tornaram os meus
A citação aparece na tela e desaparece
54
“Eu deverei acreditar para não me desesperar que o capitalismo é uma ordem eterna,
capaz de santificar como um Deus todas as traições que cometemos em seu nome?”
Para todos
O capitalismo se tornou
O que ele ameaçava ser
Uma “ordem eterna”
O paradoxo é que eu seja o único
a me escandalizar
não glorificaremos jamais suficientemente
a memória dos traidores
Sua fidelidade terrível
Eu me transformei na memória fossilizada
De tudo que nós temos em comum
Eu sou o arquivista e a testemunha
Foi deste jeito que as mensagens
Do miserável Pluvinage
Iniciaram em vocês este pânico
Foi assim que eu me tornei o último militante
De um combate que vocês acreditavam enterrado
Pausa
Se compreendo bem o jogo do Escritor
O que mais apavorou meu destinatário o Jornalista
O que o levou a entrar em contato com todos os membros do grupo
Os que estavam ainda vivos e ainda presentes
Não foi tanto o meu pedido
73
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De um encontro de uma reunião
Mas o lugar desta reunião
No Boule d’or
Ao Escritor
O irreal no real?
55
Era nisto que você apostava
Numa espécie de Classe Morta?
O Escritor- o Herói
O Passado no presente
O passado à altura do presente
Pluvinage era um personagem de um romance
Eu quis jogá-lo no palco de um teatro
Lá onde o romance não alcança
Na contracorrente no inverso da vida
Não da vida em direção à morte
Mas da morte em direção à vida
Eu tentei construir
Uma máquina que voltasse no tempo
Mas eu devo reconhecer
Que minha máquina não funciona
O tempo não voltou atrás
Eu espero os resultados dos meus exames
Eu estou muito doente e provavelmente eu irei morrer
Minha morte nunca esteve tão próxima de mim
Eu nunca me senti tão sozinho
16.
A Imóvel
Que vergonha
Eu não reajo
74
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Eu estou paralisada
Por dentro eu fervo de raiva
Nada se vê por fora
“De quem é a palavra?
“De quem é a palavra?”
Eu continuo executando
56
A partição que eles escreveram para mim
Eles massacram este indivíduo
Que ataquado
Se defende como um animal
Eu gostaria de gritar
Eu gostaria de chorar
Mas não sai nada
Eu sou incapaz
de pronunciar uma única palavra
que seja realmente minha
“De quem é a palavra?”
“O Herói quer falar alguma coisa?”
Eu me tornei o papagaio deles
Eles escutam o Herói
Que anuncia que de agora em diante
A Humanidade se divide
Entre aqueles que estão prontos
A colocar suas vidas na balança
E aqueles que têm medo da morte
Eles bebem as palavras do Herói
(esse homem que tanto amei
E que me dava medo)
Eu estou com enjôo
75
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Com vontade de vomitar
A divisão deles eu conheço
Uma guerra permanente
Contra aqueles que eles chamam de traidores
Eles dizem traidores mas eles pensam
mulheres mulherzinhas bichinhas
Eles vão seguir o Herói
(que não tardará a se livrar deles
57
E depois se perder ele mesmo)
Eles acreditam ser homens
que não têm medo da morte
Simplesmente porque eles gesticulam como o Herói
Eu não quero mais
Que eles se sirvam de mim
Eu vou gritar
Eu vou desmaiar
Sem fazer barulho
Ninguém vai me ver
Eu gostaria de desaparecer
Não tê-los conhecido
Não ter conhecido o Herói
(inimaginável uma vida com ele)
E portanto eu sei que continuarei
Ainda durante anos
Trilhando meu caminho ao lado deles
Existe este Jornal
Que nós criaremos juntos
E todos estes combates que eu travarei
pelas mulheres
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Com eles contra eles
“De quem é a palavra?
“Eu peço a palavra
“Eu peço a palavra”
Eu não quero nunca mais
ficar muda
Eu tenho vergonha do meu silêncio
Eu quero sair desta inércia
Desta imobilidade
Que me lembra a morte
58
Eu sonho com um cavalo galopando
Que atravessa o mundo
Então eu me levanto
Neste lugar devastado
Por esta imensa bola preta
Eu tomo a palavra
No meio deste desastre
Eu tomo a palavra
E eu não a deixo mais
Durante quinze anos
Eu não a deixarei mais
No Jornal dia a dia
O estupro o aborto a luta das mulheres
Quinze anos
Que se passaram como um instante
Até esta ferida
Até que eu não me sinta mais
em dia com o Jornal
Nem com o Jornal nem comigo
77
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E que me transforme na Imóvel
A Imóvel na frente da sua tela
A Imóvel como uma estátua de sal
Paralisada na frente da sua própria filha
Incapaz de explicar pra ela
De simplesmente falar com ela
17.
O Jornalista
Sua carta se inscreve, palavra por palavra,
na tela, depois se paga
“ Caro “Herói”
59
Se existe ironia no meu jeito de te chamar assim pela última vez, ela não é
dirigida contra você mas unicamente contra mim mesmo. (Eu vou morrer e eu não
tenho que esta mortalha para me oferecer). Eu posso ainda te confessar que você
sempre, durante todos estes anos mesmo sem nos ver como na época do nosso trabalho
conjunto, representou realmente para mim o Herói. O fato que você tenha se tornado
um escritor não mudou nada na imagem que tinha a seu respeito: considero que você
tenha se dedicado à literatura para dar as suas proezas de juventude a repercussão e a
perenidade que a literatura normalmente proporciona. No que diz respeito a mim
(desculpe falar da minha pessoa por um instante), foi exatamente o contrário: se eu me
tornei bom ou mau jornalista deste Jornal mais ou menos originário de nossos antigos
combates, foi com o único objetivo de me atordoar e de esquecer de mim mesmo
escrevendo sobre tudo o que acontecia. Me excedi neste objetivo além do que
imaginava.
“Mas, então por que um homem que, tendo uma vida aparentemente correta,
conseguiu brilhantemente abstrair-se de si mesmo – e eu não me refiro aos meus ideais
ou as minhas convicções – decida-se de uma hora pra outra se suprimir? Pretender que
o fato de ter te visto várias vezes nestes últimos dias, depois de anos e anos sem um só
encontro, sem uma única mensagem de ambas as partes, não ter sido o elemento
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inspirador seria uma mentira. Mas eu não gostaria tão pouco de alimentar o
narcisismo do Herói, nem a voracidade do Escritor. A verdade, é que não foi o retrato
vivo do Herói – seus restos de beleza viril, sua inteligência ainda afiada, sua bela
maturidade – que contribuíram na minha mudança. Ao contrário. A última vez que nos
vimos, se eu falava pouco – na verdade eu gaguejava e, sim, eu chorei – é que – eu não
sei como isto aconteceu – quero dizer: eu escutava – seus pensamentos. Em alguns
minutos, que me pareceram uma insuportável eternidade, eu vi o retrato se desfazer.
Ficou apenas o negativo. Você me olhava em silêncio – com este olhar que sempre me
hipnotizou – e eu ouvia seus pensamentos. Todos os seus pensamentos. O vazio do
seus pensamentos. Por detrás do seu rosto impassível. Por detrás de sua aparência
vagamente entediada. Não existia isso. O vazio dos seus pensamentos. A derrota
do Herói. Seu medo de morrer e sua hipocondria.
60
Eu me senti roubado. Roubado por estes trinta e cinco anos desde que nos
conhecemos, desde que participamos de alguns combates. Eu tinha acabado de fazer
uma descoberta: nós tínhamos somente o vazio para dividirmos. Ora, você sabe, o
vazio só tem uma utilidade: a de podermos nos atirar nele. O que conto fazer sem
demora”.
Rascunho de uma carta
Que não enviarei jamais
Interrompida
Rasgada
18.
O Escritor – o Herói (fragmentos do seus escritos)
O texto lido pelo Escritor se inscreve
simultaneamente na tela
“Continuo um adolescente que quando está sozinho fala a seu pai que morreu muito
cedo. Me sinto ameaçado e portanto no fundo creio que continuarei vivo.
Eternamente?... Tenho que marcar uma consulta com Bloche, pelos resultados. Mas,
eu compreendi pelo tom da sua voz que a situação não é boa. Os “Heróis” têm direito
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de ter medo. Principalmente aqueles que o são apenas de nome.
“Não tenho que menosprezo por estas pessoas que aos cinquenta ou sessenta anos de
idade descobrem uma pretensa verdade que invalida tudo o que eles pensaram ou
tentaram construir – ou destruir – na sua juventude “turbulenta” (como diz Sartre).
Uma pseudo verdade bem banal e, acima de tudo, bem covarde, que eles estão prontos
a utilizar como prova desta serenidade que eles esperam acompanhá-los até a suas
mortes. Então, dia após dia, eles combatem, mas sem nunca comprometer o seus
ritmos cardíacos, o motivo que anteriormente os impulsionava a lutar na juventude. É
como se eles tentassem bloquear um curso de água colocando uma pedra por cima.
61
“Tive um sonho desagradável. Eu era um gato. Gato de concurso, penteado,
perfumado, sentado em cima de uma almofada. Cercado por uma quinzena de velhacos
inquisidores. “Aqui, neste país, sou eu o responsável pela Revolução. Eu a fiz
sozinho”. Então os velhacos mostraram um rosto escandalizado. Dotados de uma
agilidade e de uma rapidez extraordinárias, eles pularam sobre mim e tentaram me
sufocar com uma almofada.
“Gato de concurso? Eu não tinha pensado nisso.
“Vi Bloche. Cancer confirmado. Tratamento proposto. Quimio seguida de uma rádio
terapia. Com uma certa urgência, mas Bloche me garante que tudo dará certo. Velho
Bloche!... Kafka, socorro. Diluir seu medo e seu sofrimento em um medo e um
sofrimento maiores. Febril, não consigo encontrar no seu Diário a passagem sobre o
tumor. Me lembro vagamente que ele falava do tumor como se fosse algo que você
tivesse de mais externo, de mais estranho é que de repente se torna sem mais nem
menos no que você tem de mais pessoal. Tenho certeza que está no Diário e não em
outro lugar.
“Boule d’or, bola de ouro. Bola preta. Tumor”.
19.
O Jornalista
Seu discurso continua e aparece na tela.
“Existe no mundo pelo menos um homem que, mesmo no tempo do Boule d’or,
80
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quando eu imaginava poder mudar completamente a sociedade, um homem que eu
nunca consegui olhar diretamente nos olhos. Este homem não é outro que o Herói. Têlo
visto, depois de anos e anos onde só tive contato com ele através de sua obra, foi
para mim uma redenção. O fato de ter que pagar com a minha vida esta redenção não
ameniza o alívio. A existência tinha-se tornado para mim a tal ponto insuportável que
eu tinha progressivamente me obcecado com a ideia de que deveria rever o Herói.
Revê-lo – sentir seu olhar pela última vez – e desaparecer. Abaixar a cabeça por causa
da força do seu olhar e desaparecer. Eu então vi o Herói. Eu reencontrei o seu olhar.
Este olhar que não cessava em me dizer que eu seria incapaz de suportá-lo, um olhar
62
que não tinha nenhuma confiança em mim, nenhum interesse particular. Na verdade,
mesmo quando nos víamos diariamente, mesmo quando iríamos supostamente destruir
juntos o capitalismo e o Estado burguês, eu sempre estive inquieto ao seu lado. Todo
mundo queria se grudar nele, cheirá-lo, seguí-lo. Eu, ao contrário, me esforçava em
manter uma certa distância. Ninguém percebia porque, quando ele estava lá, todos os
olhares o acompanhavam. Em direção a sua pessoa, unicamente. Onde quer que ele
fosse, ninguém me via. Creio que nenhum camarada nunca suspeitou desta aversão
que eu tinha por aquele que chamávamos de Herói. O Herói, ele mesmo, nunca supôs
este sentimento que eu tinha por ele. Ele ainda não supõe. Quando e o vi em um
restaurante há alguns dias, e depois quando nós fomos visitá-lo na sua casa, a Estagiária
e eu, eu o encontrei tal qual ele sempre foi comigo e com todos os antigos camaradas.
Direito. Aberto. Disponível. Com talvez ainda um pouco de cansaço e de distração na
sua atitude. Eu estava lá, na sua frente, eu falava com ele, mas eu me dizia: “Que seus
olhos não procurem os meus. Que suas palavras – invariavelmente doces, corretas,
quase amáveis, e portanto palavras de ordem – não se dirijam a mim. A mim
diretamente”.
Pós scriptum:
“Esta história – mas eu não tenho certeza de deixá-la para trás – não diz tudo da minha
relação com o Herói, particularmente deste último dia quando nos vimos e onde, na
sua frente, eu me vi impossibilitado – incapaz de falar e, pra dizer a verdade,
81
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extinguido. Restará então um pouco de segredo”.
20.
O Praguejador
Meu personagem chega ao fim
Eu não fui recompensado
Mas vocês me deram algo melhor
Que simples lamentações
Ou uma benção insignificante
O espetáculo de suas próprias agonias
A Estagiária
63
Mãe, você está me escutando?
Você está aí?
Você está se escondendo atrás da secretária eletrônica?
Mãe
Aconteceu um negócio
(Eu não me sinto muito bem)
Neste Jornal de loucos
De loucos e de fantasmas
Eu tô indo aí te ver
Talvez eu passe alguns dias com você
O Escritor – o Herói
Atrás desse nome Boule d’or
Eu não posso me impedir
De ouvir outra coisa
Algo de ruim
A Imóvel
Você é agora supersticioso?
O Escritor – o Herói
Talvez eu sempre fui
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A Estagiária
Mãe você não atende mais o telefone?
Eu não quero te incomodar
Se eu pudesse ficar no meu quarto
Apenas neste fim de semana
Na verdade eu não sei
Se eu voltarei
Para terminar meu estágio no Jornal
Eu precisaria rever tudo o que me aconteceu
Ao seu lado seria o ideal
O Escritor – o Herói
64
Boule d’or
Bola preta
Tumor
A Imóvel
Você deveria se tratar
E não se obcecar
O Escritor – o Herói
Se nós pudéssemos nos rever
(mesmo que apenas durante uma hora em um café)
Acho que isto me ajudaria
Você não poderia vir para Paris?
A Imóvel
Você vem quando quiser
O tempo que for necessário
Aqui você está em casa
A Estagiária
Verdade?
Verdade
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Eu não te atrapalho?
Eu posso te falar
De uma coisa?
O Jornalista
Esta carta para Jean-Michel
Será que eu coloco na minha história
Acho que ele não iria gostar disso
Nenhum filho gostaria de se confrontar
Com o vazio do seu pai
Eu destruo esta carta
E eu renuncio a esta história
A Imóvel
Você não me incomoda querida
65
Mas na verdade é possível
Que eu não fique em casa
A Imóvel
Por muito tempo?
A Imóvel
Alguns dias
Ou mais não sei
A Estagiária
Eu queria falar com você
Aconteceu um negócio
Teu amigo o Jornalista
E depois o Escritor
(Eu sei eu tinha te prometido
de não me encontrar com ele)
Você quer realmente viajar?
Você está querendo
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CURSO SUPERIOR DE TECNOLOGIA EM TEATRO
Voltar para Paris?
A Imóvel
Eu não sei
o que está acontecendo comigo realmente
Alguma coisa aconteceu
A Imóvel se coloca em movimento
O Escritor – o Herói
Seria bom saber que você está por perto
A Imóvel
Necessidade de colo?
(eu nem tenho certeza
Que se eu batesse na sua porta
Você me reconheceria)
O Escritor – o Herói
Você sabe que eu vi a sua filha?
66
A Imóvel
Minha filha é minha filha
Eu não sou a minha filha
O Jornalista
Eu abandono a história
Suprimo as cartas
Todas as cartas
Mesmo aquela ao meu filho
Não me cabe decidir
O que os outros dirão de mim
O que o meu filho dirá de mim
O Escritor – o Herói
Se você prefere
Eu irei
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Assim que eu tiver uma pausa
no meu tratamento
Eu pego o trem
Você me verá chegando
A Imóvel
Prefiro
Ir à Paris
Minha filha vai voltar a morar aqui
Por algum tempo
O Praguejador
Por que não
Um duo de amor para acabar?
O Herói reencontra seu amor de juventude
E apagamos tudo
As traições os suicídios
Apagamos a imagem desastrosa
Do Escritor tomado pelo pressentimento
67
Da sua morte próxima
Apagamos a imagem deplorável
Do Jornalista no fundo do poço
Um final bem deprimente
O canceroso sonha com uma lua de mel
O suicida sobe no parapeito da janela
Pensando fortemente no amor que tem pelo seu filho
A ex jornalista retoma seu trabalho no Jornal
Como se ela nunca o tivesse deixado
E a Estagiária se consola como ela pode
No seu quarto de criança
E eu no personagem de Pluvinage
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Pluvinage por toda eternidade?
O Escritor – o Herói
Você se aplica
Entendi
Isto te dá prazer
Você não partirá até que eu esteja
O Praguejador
Morto?
Como dizíamos na época?
Os destinos individuais
Não contam
Adeus camarada
Você morre
Um outro toma o seu lugar
A Imóvel
Morrer
Nada me apressa
Meu cavalo não acabou
Imóvel na sua tela
68
De atravessar o mundo em galope
Talvez eu retome
o meu trabalho no Jornal
O Escritor (eu tenho certeza)
talvez ainda escreverá alguns livros
Você está me escutando?
A Estagiária
Mãe
Fim do estágio
Deixo Paris
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A ex estagiária
Volta pra casa
Mãe você não está
.
Onde você está
?
O Praguejador
A Estagiária e eu
Nós nos dis
solvemos na paisagem
Deixamos este palco
Onde interpretamos
A Estagiária
Mãe onde você está
?
A Imóvel desapareceu
Azar meu
Como sempre
Eu me viro sozinha
Um dia você acabará ficando por aqui
Eu te farei minhas perguntas
E você me responderá
Você me responderá, não é?
A Imóvel
Você está me escutando?
69
Você está me escutando realmente?
As últimas palavras da Imovel ressoam como um eco
Eles são cinco embaixo do letreiro luminoso
Que se reflete no espelho: “La Bolue d’or”
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Depois o letreiro começa a piscar ao mesmo tempo
Que todo o espaço escurece
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