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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS

ALAN CARLOS MONTEIRO JÚNIOR

ROSMANINHOS...
O ENTRE DO CARVÃO
AO CORPO-EM-ARTE
DE
ATOR-BRINCANTE

NATAL/RN
2011
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS LETRAS E ARTES

DEPARTAMENTO DE ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS

Rosmaninhos...

O entre do carvão
ao corpo-em-arte
de
Ator-Brincante

ALAN CARLOS MONTEIRO JÚNIOR

NATAL

2011
ALAN CARLOS MONTEIRO JÚNIOR

Rosmaninhos...
O entre do carvão
ao corpo-em-arte
de
Ator-Brincante

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação


em Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte – PPGArC/UFRN, como requisito
parcial à obtenção do título de Mestre em Artes Cênicas.

Orientadora: Profª Dr.ª Teodora de Araújo Alves.

NATAL
2011
Catalogação da Publicação na Fonte.
Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA).

Monteiro Júnior, Alan Carlos.


O entre do carvão ao corpo - em - arte de ator-brincante / Alan Carlos
Monteiro Júnior. – 2011.
198 f. -

Dissertação (Mestrado em Artes Cênicas) – Universidade Federal do Rio


Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa
de Pós-graduação em Artes Cênicas, Natal, 2011.
Orientador: Profª Dr.ª Teodora de Araújo Alves.

1. Artes Cênicas – João Pessoa (PB). 2. Teatro. 3. Atores – João Pessoa


(PB). 4. Dança – João Pessoa (PB). I. Alves, Teodora de Araújo. II.
Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título.

RN/BSE-CCHLA CDU 792


A todo delírio tornado sonho, lugar da realidade em potência, lugar da criação.
Eu procuro ser um deles.
AGRADECIMENTOS EM BLOCO

À minha orientadora, Prof. Dr.ª Teodora Araújo Alves, seu misto de simplicidade e
temperança mostraram o caminho do amor nas letras aqui contidas. Ao CNPq/CAPES e ao
PPGARC pelo apoio a esta pesquisa. A casa que tanto procurei a vida toda, coletivo UZUME
teatro, primeiro Clara Talha e Vitor Blam, agora mais Bertrand Araújo, Larissa Santana e a
nossa kogata Naiara Cavalcanti – minha família. A Tainá Macêdo, figurinista de
Rosmaninhos.... A artista Elisa Toledo, que me mostrou simplicidade nos primeiros passos da
pesquisa e na observação ativa do Cavalo Marinho Estrela de Ouro de Mestre Biu Alexandre,
a quem também agradeço por me mostrar o quão simples é a sabedoria da experiência. A José
Francisco Mendes, Mestre Zequinha, sempre disponível, alegre, vivo. A José Fernando de
Oliveira, Seu Nandinho da Cultura, sem o qual toda esta pesquisa não teria acontecido. A
Mestre Zé Hermínio rabequeiro e Mestre Antônio Bita pandeirista, pelo carinho e atenção. A
Helder Vasconcelos pela generosidade em dividir sua experiência. Ao professor Renato
Ferracini pelas mais variadas conversas e ideias. Ao professor Érico José de Oliveira cujo
livro e a presença em minha defesa abrilhantaram mais este escrito. Aos “Paraíba boy e girl”,
Antonio Deol e Ana Carolina Guedes - eternamente “mi cariño”, que repartiram suas ideias e
os trajetos entre João Pessoa – Natal. Sem você, Carol, esta dissertação não existiria. Aos
colegas de especialização e mestrado Rummenigge Medeiros, canalha, e Joevan Oliveira, que
gentilmente me abrigaram em Natal várias vezes. A Líllian da Cruz Régis, linda, eterno amor,
que compartilhou as vitórias e ajudou a superar várias inseguranças neste trajeto. À Maíra
Dutra, meu bebê, nosso reconhecimento me lança pra frente todos os dias, te amo!!! Aos
meus pais, Alan Carlos Monteiro e Helena Mercedes Monteiro, meu irmão, Célio Carlos
Monteiro, minha irmã, Mariza Carla Monteiro, meus sobrinhos, Israel Monteiro Mesquita e
Sophia Catharine Monteiro de Campos. A todos os meus Mestres e Professores responsáveis
por minha formação de artista-pesquisador. Aos Santos Reis do Oriente que me ajudaram no
caminho do amor e da dor destas experiências.

Nas horas de Deus, amém.


Pai, filho, espírito santo. 2x
São as primeiras cantigas
Que nessa vitória eu canto.
(trecho da música Nas horas de Deus amém do Cavalo Marinho de Mestre Zequinha).
Um rizoma não
começa nem conclui

No teatro, como em toda arte,


ideias claras são ideias mortas e acabadas
Antonin Artaud – O Teatro e seu Duplo

Mas o rizoma tem como tecido a


conjunção "e... e... e..."

Aliança, unicamente aliança

Só a palavra gêmeo é gêmeo


Osman Lins – Conto “O Retábulo de Santa Joana Carolina”

“É difícil eu me lembrar das coisas assim


Eu me lembro das coisas
na hora da brincadeira” Mestre Zequinha – Entrevista em aula de Cavalo Marinho

Entre
“O corpo-em-arte as coisas não
designa uma
é tão-só um conjunto de práticas” correlação
localizável Renato Ferracini – Curso “Conceituações sobre o corpo-em-arte
que vai de uma
para outra e reciprocamente,
mas uma direção perpendicular,
um movimento transversal
que as carrega
uma e outra,
riacho sem início nem fim,
que rói suas duas margens Há nesta
conjunção força
suficiente para sacudir e desenraizar o verbo ser
e adquire velocidade no meio.
Gilles Deleuze e Félix Guattari – Mil Platôs vol. 1

“Eis meu Rosmaninho.


É pra lembrança.
Eu te peço, amor
Não esquece!”
Trecho da primeira fala de Ofélia em Rosmaninhos...
RESUMO

Proponho nesta dissertação refletir sobre as experiências contidas na criação dos corpos-em-
arte (FERRACINI, 2006a, b) que originaram o espetáculo rosmaninhos... Este processo foi
desenvolvido junto ao coletivo UZUME teatro de João Pessoa – PB, por meio de recriações e
resignificações das corporeidades e fisicidades contidas nos passos, loas, aboios, cantos e
coreografias observados nos modos como Mestre Zequinha brinca em seu grupo de Cavalo
Marinho residente na cidade de Bayeux – PB, e a partir da apropriação do texto Hamlet de
William Shakespeare. O corpo-em-arte é entendido neste trabalho como um corpo vetorial
que dilata sua funcionalidade cotidiana, reconhecendo uma zona potencial de aprendizado
capaz de gerar linhas de fuga criativas que desestabilizem o “sujeito centrado em uma
individualidade e identidade” (FOUCAULT apud FERRACINI, 2006b, p.14), abrindo-o à
diferenciação de si mesmo, indicando a possibilidade de existência de um si-outro e do espaço
de troca-em-arte. Este processo de construção do corpo-em-arte a partir das formas de Mestre
Zequinha brincar o Cavalo Marinho, foi orientado metodologicamente pela apropriação do
coletivo UZUME teatro das etapas de Observação, Codificação e Teatralização contidas na
técnica de mimeses corpórea proposta pelo LUME Teatro (Campinas – SP). Esse uso resultou
em duas fases: Observação Ativa e Composição do corpo-em-arte. Através da repetição destas
matrizes estéticas do Cavalo Marinho, os atores descobriram ações que, codificadas e
organizadas, configuram seus corpos-em-arte, os quais, por sua vez, deram origem a um
espaço de troca-em-arte vetorial ao encontrado no folguedo do Cavalo Marinho. Esta procura
propôs os meios de potencializar o trabalho dos atores no que diz respeito a uma preparação
que permitisse dilatar a presença cênica e estimulasse a produção de ações, as quais
culminaram na montagem do espetáculo Rosmaninhos...

Palavras-chave: Corpo-em-arte, Cavalo Marinho, Ator, Brincante, mimeses corpórea.


ABSTRACT

I propose with this paper a reflection on the experiences contained in the creation of the body-
in-art (FERRACINI, 2006a, b) that originated the show Rosmaninhos... This process was
developed within the coletivo UZUME teatro from João Pessoa – PB, through recreations and
resignifications of the corporeity and physicality contained in the steps, loas, aboios, songs
and choreography observed in the manners that Mestre Zequinha plays in his group of Cavalo
Marinho (Sea Horse), resident in the city of Bayeux - PB, and starting from the appropriation
of the text Hamlet of William Shakespeare. The body-in-art is understood in this work as a
vectorial body that dilates its daily functionality, recognizing a potential learning area capable
to generate creative escape lines that destabilize the "subject centered in an individuality and
identity" (FOUCAULT apud FERRACINI, 2006b, p.14), being open to the differentiation of
itself, indicating the possible existence of an itself-other and of the exchange-in-art space.
This process of construction of the body-in-art based on Master Zequinha’s ways of playing
the Cavalo Marinho was methodically guided by the appropriation of the coletivo UZUME
teatro of the stages of Observation, Codification and Theatricalization contained in the
technique of corporal mimeses proposed by the LUME Teatro (Campinas - SP). That use
resulted in two phases: Active Observation and Composition of the body-in-art. Through the
repetition of these aesthetic matrixes of the Cavalo Marinho, the actors discovered actions
that when, codified and organized, can configure their body-in-art, which created a vectorial
exchange-in-art space to what was found in the Cavalo Marinho party. This search proposed
the means of potentiating the actors' work when it comes to a preparation that allowed to
dilate the scenic presence and stimulated the production of actions, which culminated in the
mounting of the show Rosmaninhos...

Key-words: Body-in-art, Cavalo Marinho, Actor, Brincante, corporal mimeses.


LISTA DE FIGURAS

FIGURA 01 – Evolução dos arcos com galantes do grupo de Boi de Reis Estrela do Norte. 36
FIGURA 02 - Mestre Pirralhinho, à esquerda e, à direita, Mestre Zequinha......................... 38
FIGURA 03 – Figuras do Mateus do Boi de Reis Estrela do Norte de Mestre Pirralhinho e o
Mateus e o Birico do Cavalo Marinho de Mestre Zequinha.................................................... 38
FIGURA 04 - Mestre Zequinha segurando a Zibumba ou Macaca; instrumento da figura do
Mateus e do Birico................................................................................................................... 44
FIGURA 05 - – Mestre Martelo, o Mateus do Cavalo Marinho Estrela de Ouro, e
Mateusinho, a nova geração deste folguedo............................................................................ 44
FIGURA 06 - Figuras do grupo de Cavalo Marinho de Mestre Zequinha............................. 49
FIGURA 07 - Dois passo ou Passo só, passo da dança do Cavalo Marinho.......................... 51
FIGURA 08 - Trupé Balanço com calcanhar.......................................................................... 51
FIGURA 09 - Trupé Balanço com ponta de pé....................................................................... 51
FIGURA 10 - Xaxado............................................................................................................. 52
FIGURA 11 - Tesoura de joelho............................................................................................. 52
FIGURA 12 - Abdominais e flexões estáticas trabalhados..................................................... 90
FIGURA 13 - As atrizes Larissa Santana e Clara Talha do coletivo UZUME teatro
participando de apresentação do Cavalo Marinho de Mestre Zequinha.................................. 92
FIGURA 14 - Minha interpretação do processo de composição do corpo-em-arte a partir do
proposto por Renato Ferracini.................................................................................................. 96
FIGURA 15 - Acolhimento do público em Rosmaninhos... Experimentação de espaço:
bosque da UFPB..................................................................................................................... 120
FIGURA 16 - Participação do público na cena das Bodas de luto em Rosmaninhos...
Experimentação de espaço: bosque da UFPB........................................................................ 122
FIGURA 17 – Legenda feita por Daniella Gramani de toques de rabeca............................. 126
FIGURA 18 – Ilustração de Daniella Gramani de como fazer uma partitura seguindo a
posição dos dedos................................................................................................................... 127
FIGURA 19 – Mestre Zequinha em apresentação no lançamento do CD Cavalo-marinho e
boi-de-reis na Paraíba. Abaixo, preparação do elenco de Rosmaninhos................................ 128
FIGURA 20 – Ocupação espacial do Cavalo Marinho de Mestre Zequinha........................ 129
FIGURA 21 – Cena final de Rosmaninhos... 2° Experimentação com espaço: Teatro Cilaio
Ribeiro.................................................................................................................................... 132
FIGURA 22 – Cena inicial de Rosmaninhos... 1° Experimentação com espaço:
Córrego............................................................................................................................... 132-3

FIGURA 23 – Posicionamento dos atores para cena inicial de Rosmaninhos... 3°


Experimentação com espaço: lateral do Theatro Santa Roza................................................ 147
SUMÁRIO

TERRITÓRIO I: A PESQUISA E AS CONTRADANÇAS.............................................. 11


TERRITÓRIO II: OBSERVAÇÃO ATIVA – QUANDO OLHAMOS E SOMOS
VISTOS, ALGO NA DANÇA VIBRA EM NÓS
1.1 – BOI DE REIS E/OU CAVALO MARINHO: TERRITÓRIOS E
INDISCERNIBILIDADES................................................................................................ 32
1.2 – OBSERVANDO O FOCO DA PESQUISA: O CORPO DO CAVALO MARINHO DE
MESTRE ZEQUINHA...................................................................................................... 45
1.3 – A TÉCNICA DE MIMESES CORPÓREA E O PROCESSO DE AQUISIÇÃO E
RECRIAÇÃO DAS CORPOREIDADES E FISICIDADES DO CAVALO MARINHO
INCORPORADAS POR MESTRE ZEQUINHA .................................................................. 59
1.4 – RELAÇÕES E: ATOR, BRINCANTE, ATOR-BRINCANTE =
TERRITÓRIOS/FRONTEIRAS E ZONAS DE VIZINHANÇA............................................ 76
TERRITÓRIO III: COMPOSIÇÃO DO CORPO-EM-ARTE
2.1 – VÁRIOS CORPOS DE ESPAÇOS DIVERSOS - MUDAR E AINDA PODER SER O
MESMO................................................................................................................................... 94
2.2 – VIRTUALIDADE, MEMÓRIA E CRIAÇÃO: EXPERIMENTANDO HAMLET E O
CAVALO MARINHO SURGE Rosmaninhos...................................................................... 108
TERRITÓRIO IV: O ENTRE DO CARVÃO AO CORPO-EM-ARTE DE
ATOR-BRINCANTE .......................................................................................................... 140
REFERÊNCIAS................................................................................................................... 148
APÊNDICES......................................................................................................................... 152
11

TERRITÓRIO I: A PESQUISA E AS CONTRADANÇAS

A diversidade é o sintoma da vida.


Jerzy Grotowski

Começo. Parece que sempre a parte mais difícil é começar. Vários fatores
parecem me impedir de compor este corpo-em-arte. Eu mesmo pareço me impedir.
Desejo construí-lo com a mesma redundância que parece preparar a explosão do
acontecimento nas manifestações populares. Não entremos em detalhes, pelo menos não
por agora – é preciso começar. Mesmo quando se atinge o que acredito ser o principal
agenciamento – a prontidão, o estar decidido – falta escolher o onde; por qual lugar
começar? Decido, então, delinear as cartografias da atualização de meu passado no
presente do corpo que ao mesmo tempo é minha propriedade e sou eu. Talvez esta
decisão proponha uma narrativa enfadonha para o leitor, mas prometo não me delongar
sobre ela. É necessário me colocar neste escrito! Logo, o primeiro movimento: sou ator.
Esta designação de ser é muito importante para minha vida hoje. Passei muitos anos em
estado de dúvida, em uma espécie de espaço de entre, de estar como ator.
Sempre estudei em colégios particulares, exceto quando fiz a seleção para a
ETFPB, Escola Técnica Federal da Paraíba, seguindo um tipo de tradição de família;
meus irmãos mais velhos estudaram lá e minha mãe, desde o começo dos anos noventa,
trabalhou nesta instituição até se aposentar. Cursei entre os anos de 1998 e 2000 o
técnico em Mecânica Industrial. Foi ali onde, quase que por acidente, tive meu primeiro
contato com o universo teatral. As aulas de arte eram oferecidas somente no primeiro
ano. Escolhiam-se várias linguagens artísticas e, dentre elas, diferentes modalidades.
Minha intenção era fazer aulas de violão, mas não foram ofertadas naquele primeiro ano
de meus estudos, todavia, nos anos que seguiram, optei por continuar fazendo parte do
grupo de teatro da Escola Técnica.
No decorrer de meus estudos no curso Técnico em Mecânica Industrial, e
paradoxalmente graças a eles, comecei a fazer, cada vez mais, parte do universo do
teatro. Ao final de meu ensino médio, fiz talvez a opção mais natural para quem cursou
o técnico em Mecânica: prestar vestibular para o curso de Engenharia Mecânica na
Universidade Federal da Paraíba – UFPB. Cursei quatro anos deste curso. Nesse meio
tempo, saí do teatro estudantil e ingressei num grupo amador denominado TENDA –
12

Teatro Nordestino Divulgado, em que participei de algumas montagens como o


espetáculo Deboche. No transcorrer do curso de Engenharia providenciei minha DRT de
ator – decidi fazer teatro profissional, ou seja, tentar tornar profissão, o que antes
considerava, mesmo sem muita consciência, apenas um lazer.
Depois de algum tempo, assistindo a um espetáculo, uma adaptação de Dom
Quixote do autor espanhol Miguel de Cervantes, com atuação única de Carlos Moreno –
o garoto propaganda da palha de aço Bombril – foi que decidi fazer o vestibular para o
curso de Educação Artística da UFPB. A peça apresentava-se de forma diferente de tudo
com que eu já tinha tido contato até então. Quando os espectadores entraram no teatro o
ator já estava no palco, em meio a uma conversa frugal ele começava a vestir o figurino
de Dom Quixote de La Mancha. Só ele era a peça toda. Com mímicas e narrativas
contava aos meus sentidos, ainda inexperientes sobre técnicas e fazeres cênicos, a
história que Cervantes escreveu. Uma fala em especial desencadeou uma turbulência
significativa em minha vida, fazendo-a mudar bruscamente de rumo. Era uma fala do
Sancho Pança, escudeiro do Cavaleiro da Triste Figura, quando próximo ao final do
espetáculo, Dom Quixote havia sido preso e sofria com os juízos de seus parentes que
lhe atribuíam à loucura por andar tão fora das normas. Neste momento, o ator Carlos
Moreno direciona-se à platéia e, representando Sancho Pança em um de seus
monólogos, questiona o motivo que leva as pessoas a encararem de forma negativa as
ações de Dom Quixote, proferindo a seguinte fala: “Nós fazemos tudo, menos o que
queremos!”.
Percebi num estalo o quanto essa frase possuía sentido dentro do que vivia até
então. Desde muito tempo, por exemplo, tinha o desejo de deixar o cabelo crescer. O
que me impedia, no entanto, era a resistência de meus familiares. Eles me diziam:
“Quando você for mais velho, você faz isso”. Exclamações como essa também surgiam
quando eu demonstrava interesse em seguir a profissão de ator. Este contexto me
inquietava. Mesmo com a estabilidade financeira que a profissão de engenheiro
mecânico pudesse me trazer, onde estaria minha felicidade? Sabendo que não existe
mudança sem dor, após ouvir aquela frase do Dom Quixote de Carlos Moreno, tomei
duas decisões: deixar o cabelo crescer e fazer o vestibular para o curso de Educação
Artística na UFPB.
Cheguei a cursar o primeiro ano de licenciatura em Educação Artística com
habilitação em Artes Cênicas, junto ao quarto e último ano de Engenharia Mecânica.
13

Neste tempo tive aulas misturadas, como de Cálculo II seguidas de História e Estética
da Arte I. Até então tinha participado de peças, cursos e oficinas, ou seja, vivia o fazer
teatral, mas não lia nada sobre ele, a não ser textos teatrais. Minha teoria era a prática a
qual vivenciava.
Chego num ponto crucial de minha história. Neste imbricamento, torna-se
importante esclarecer ao leitor sobre o que já expus, tentando, assim, evitar mal-
entendidos. Meu intento em delinear minha trajetória no fazer artístico não teve por
objetivo incitar pena ou frases do tipo: “Coitadinho, sofreu tanto, mas conseguiu fazer
teatro!”. Este tipo de escrita pode tender a um romantismo que fere o rigor e a
objetividade exigidos no texto acadêmico. O que almejo narrando esta história é me
colocar neste escrito na forma da memória do corpo que sou, de modo a fazer parte
direta deste corpo-em-arte. Proponho ou, ao menos, tento desenhar a trajetória de meu
desejo e as cartografias de seus agenciamentos pois “não há desejo que não corra para
um agenciamento. O desejo sempre foi para mim, se procuro o termo abstrato que
corresponde a desejo, diria: é construtivismo. Desejar é construir um agenciamento,
construir um conjunto, conjunto de uma saia, de um raio de sol...” (DELEUZE, 1988,
p.15).
Continuemos. Ao terminar a graduação em Educação Artística, tinha-me tornado
o que meu mundo permitiu e que, de certa forma, também desejava: um artista
acadêmico. Passado um mês após minha colação de grau, fiz a seleção para o curso de
especialização em Representação Teatral oferecido pelo Departamento de Cênicas da
UFPB, tendo sido aprovado.
Este curso era organizado em disciplinas modulares, ministradas em seis dias
seguidos, com quatro horas de duração cada uma. Nele tive aulas com Prof.° Dr.°
Renato Ferracini, ator-pesquisador do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais da
Universidade de Campinas – SP - LUME Teatro UNICAMP, que ministrou a disciplina
Treinamento Técnico do Ator, em que tive contato com uma prática diferenciada de
reflexão sobre o fazer teatral proposta pela arte de ator, idealizada primeiramente por
Etienne Decroux e assumida no trabalho de Luís Otávio Burnier, fundador do LUME
Teatro:

Ele (Etienne Decroux) estabeleceu a sutil, mas fundamental, diferença


ao dizer l’art d’acteur e não l’art de l’acteur. Ele se refere a uma arte
que emana do ator, algo que lhe é ontológico, próprio de sua pessoa-
14

artista, do “ser ator”. E não à arte do ator, pois ela não lhe pertence,
ele não é seu dono, mas é quem a concebe e realiza (BURNIER, 2001,
p.18, grifos do autor).

Para resumir esta vivência no curso de especialização, Renato Ferracini


trabalhou de maneira a expor sucintamente sua visão sobre o trabalho e o treinamento
de ator no LUME em suas dimensões técnica e energética. O treinamento técnico
objetiva abordar o caráter mecânico de uma ação, sua precisão, ritmo, desenho no
espaço. O nível energético faz com que o ator esmiúce e potencialize suas capacidades
de manifestação do tônus muscular, explorando diferentes intensidades e variações da
corporeidade. Nesta exploração o ator busca “não só o aspecto físico-mecânico, mas
principalmente a dimensão interior, a dinamização de suas energias potenciais, e
aprender a fazer a correlação entre esses dois universos” (FERRACINI, 2003, p.127).
Essa vivência no curso de especialização enfatizou meu desejo sobre o trabalho
de ator proposto pelo LUME Teatro, a quem conhecia até então por ter assistido
algumas de suas montagens. Em seguida, comecei timidamente a realizar a junção
destes pressupostos apresentados com outra vivência que descreverei a seguir, pretendo
com isso abordar a gênese da pesquisa que desenvolvi durante meu curso de mestrado
em Artes Cênicas na UFRN junto ao grupo de teatro de que faço parte – coletivo
UZUME teatro.
De abril a julho de 2006 participei do Curso de Iniciação à Pesquisa Teatral –
Módulo I, realizado nas dependências do Centro Cultural da ENERGISA em João
Pessoa – PB. Nele conheci a brincadeira1 do Cavalo Marinho praticada por Mestre Biu
Alexandre. Este curso estava organizado em três eixos: Anatomia Humana e Cadeias
Musculares com Inhá Navarro, Direção de Ator e Voz com Elisa Toledo e aulas de
Cavalo Marinho com Mestre Biu Alexandre, mestre de Cavalo Marinho com mais de
cinquenta anos de prática, morador da cidade de Condado, localizado na Zona-da-Mata
Norte pernambucana. Ficávamos com cada ministrante em média duas a três horas, nas
sextas, sábados e domingos, sempre das duas da tarde às sete da noite.
Nas aulas de Inhá Navarro, abordávamos como perceber e distribuir as tensões
musculares acumuladas durante o cotidiano, enquanto as de Elisa Toledo direcionavam-
se para a composição de uma presença diferenciada para o trabalho cênico. Ambas se

1
Brincadeira é como mestres e participantes de tradições populares, a exemplo do Cavalo Marinho,
denominam suas práticas. Daí o nome de Brincante ou Brincador (TENDERINI, 2003) dado a seus
praticantes.
15

valiam de nossas vivências no aprendizado da dança do Cavalo Marinho. Estas aulas


eram acompanhadas, na maioria das vezes, pela encenadora Elisa Toledo, que nos
orientava na observação das formas do brincar de Mestre Biu Alexandre. Em uma de
suas orientações lembro-me de ouvi-la dizer: “Olhem o corpo dele. Vejam!”. Olhar o
quê? Eu me perguntava.
Ela chamava a atenção para o desenvolvimento daquele senhor com mais de
sessenta anos que parecia um menino em sua prática no Cavalo Marinho. Embora eu
não soubesse explicar, sabia que existia algo nele que me chamava atenção. A precisão
nos deslocamentos, a alteração do corpo cotidiano, colocando-o em uma relação
instável entre espaço, pessoas ou com a gravidade, produzindo discursividades. Essas e
outras características proporcionavam ao Mestre Biu Alexandre uma presença viva,
orgânica, que chamava a atenção por si, sem necessitar justificar suas ações de acordo
com a situação de uma fábula. Quando o questionei sobre o que pensava enquanto fazia
suas movimentações, o mestre me respondeu que somente brincava. Este me pareceu o
objetivo para poder ser um brincante do Cavalo Marinho e, como me disse uma vez
Mestre Biu Alexandre: “tem que brincar direito porque senão não é Cavalo Marinho”.
Na elaboração do projeto de pesquisa para o mestrado, cogitei, primeiramente,
fundamentar sua parte prática no elo teórico que percebo hoje entre as aulas de Mestre
Biu Alexandre no Curso de Iniciação à Pesquisa Teatral e as ideias de Jerzy Grotowski
referentes à via negativa, também conhecida como exercício obstáculo, esta teoria
consiste em não procurar direta e unicamente os meios pelos quais o ator possa
descobrir os materiais físicos que irão dar origem a sua atuação. O encenador polonês
orienta que o ator deve observar em si seus bloqueios, as amarras que o impedem de
expressar-se. Assim, os exercícios corporais vistos nas aulas do curso sobre pesquisa
teatral podem ser encarados como parte do que Grotowski denominaria de

[...] exercícios-obstáculo e para superá-los é necessário descobrir o


próprio bloqueio. São exercícios que têm um caráter de negação
daquilo que não se deve fazer. Nunca o contrário: não interessa o quê
e o como fazer. E isso sempre em relação ao próprio caminho de cada
executante (COELHO, 2006, p.29, grifos da autora).

Os pensamentos de Jerzy Grotowski referentes ao seu trabalho com técnicas


codificadas que auxiliam o ator na procura pela organicidade e suas ideias acerca da via
negativa, delineiam o que acredito ser um interessante referencial para a exploração do
16

ator sobre seus próprios limites e capacidades. Esta prática objetiva que o artista
identifique seus bloqueios de maneira a poder trabalhar e intensificar seu potencial
criativo e expressivo.
Como Grotowski indica, em primeira instância encontra-se o que não se deve
fazer. Um exemplo: se desejo trabalhar o alongamento de minha coluna objetivando
uma acrobacia, devo realizar exercícios que permitam encontrar os bloqueios que me
impedem de realizar tal manobra, percebendo então o que não devo fazer durante o
próprio exercício encontro seu objetivo: onde as mãos não devem posicionar-se, como o
tronco não deve curvar-se, etc. Assim, o acerto será uma decorrência do encontro das
formas de como não se fazer os exercícios. Entretanto, se o problema é o medo que
sinto de cair, como encontrar os meios de trabalhar minha confiança? Estas descobertas
podem ser pessoais e não mostrarem caminhos a outras pessoas, todavia, isto não
configura uma regra. Desenvolver uma busca pessoal e corporal, sem subjetivações ou
justificativas fabulares, por caminhos que possam gerar uma funcionalidade particular
do corpo-mente que sou:

Trata-se de convidar o corpo ao “impossível” e de fazer-lhe descobrir


que o impossível pode ser dividido em pequenos pedaços, em
pequenos elementos, até torná-lo possível. Nesta segunda abordagem
o corpo se torna obediente sem saber que deve ser obediente. Torna-se
um canal aberto para a energia e encontra conjunção entre o rigor dos
elementos e o fluxo da vida (a “espontaneidade”) (GROTOWSKI,
1992, p.09-10).

De certo modo, acredito que minha primeira percepção do Cavalo Marinho


tenha seguido a lógica da via negativa proposta por Grotowski: exercícios que
potencializam a prática do ator, objetivando trabalhar e identificar seus bloqueios. Essas
pequenas pistas, percepções, que teceram significados entre o que foi lido e o que se faz,
começaram a organizar e direcionar este processo de pesquisa.
Graças à oportunidade de participar deste curso de Iniciação à Pesquisa Teatral,
pude conhecer algumas formas do brincar de mestre Biu Alexandre e os demais
brincantes do Cavalo Marinho Estrela de Ouro da cidade de Condado – PE. Assim,
comecei a aprofundar meus conhecimentos acerca das danças populares brasileiras, em
especial o Cavalo Marinho, por meio de vivências e a aquisição de materiais sobre o
tema (livros, DVDs, CDs, apresentações, oficinas, etc.), procurando perceber formas de
suas práticas auxiliarem o treinamento de ator, mas ainda faltava um plissê, uma dobra
17

que ligasse esta preparação com a descoberta de ações que possibilitassem a


composição do corpo-em-arte. Faltava-me o elo de ligação – uma metodologia que
apontasse o caminho.
Em fevereiro de 2008, participei da oficina A Arte do Brincante, ministrada pela
atriz, bailarina e preparadora corporal Carla Martins2, realizada mediante o apoio
municipal da Fundação Cultural de João Pessoa – FUNJOPE e do Grupo SerTão Teatro.
Nesta oficina, tive contato com uma metodologia de trabalho para o ator que objetivava
a modelagem de ações a partir dos passos de danças populares como Coco, Maracatu e
Cavalo Marinho. O objetivo era compor uma frase coreográfica para ser trabalhada no
tempo e no espaço. Por meio de exercícios, éramos estimulados à modelagem e à
experimentação das possibilidades de junção entre ações e texto, no caso dessa vivência,
foram utilizados fragmentos da obra Senhora dos Afogados de Nelson Rodrigues.
Fomos orientados a procurar um fluxo, na experimentação, aberto ao imprevisto acerca
das possibilidades de junção entre as dramaturgias do autor (texto) e a do ator (ações),
de modo que uma se enraizasse na outra, criando turbulências de estímulos originados
por meio dos fragmentos de texto e dos passos de dança trabalhados.
No decorrer desta oficina, a ministrante, a partir da repetição, aplicou exercícios
que objetivavam a internalização da frase coreográfica reduzindo-a ao máximo no
espaço, transformando-a num fluxo, uma pulsação interior no corpo de modo a alterar
sua presença. Esta atividade se deu a partir da redução do desenho coreográfico no
espaço para seu prolongamento no tempo, originando uma potência de relação – a qual
entendo hoje como a organicidade no trabalho do ator. O que era dançado pelo corpo,
agora era dançado no corpo.
Neste ponto do processo criativo aplicado por Carla Martins, consegui, enquanto
ator, identificar maneiras de como elementos que compõem as danças populares, tais
como seus passos, loas e cantos, podem dilatar meu estado corporal cotidiano e instigar
a produção de ações. A partir das colisões provocadas pelas imbricações entre a
dramaturgia do ator e a do autor, é possível perceber-se a produção de significados para
além dos esperados tanto pelo senso ilustrativo, que a lógica de um texto pode oferecer,

2
Carla Martins é atriz e preparadora corporal natural da cidade do Recife – PE, onde participou do Balé
Popular de Pernambuco. Possui bacharel em Artes Cênicas com Habilitação em Interpretação Teatral pela
UNIRIO. No ano de defesa desta dissertação, ela ingressou no mestrado em Artes Cênicas da UFRN. Para
mais informações sobre a oficina A Arte do Brincante, acessar: http://ser-taoteatro.blogspot.com/2008/02/
uma-experiencia-sublime-que-levou-ao.html, visitado em 23/10/2008.
18

quanto os encontrados nas danças populares abordadas. Dito de outra forma, existe um
processo de modelagem da frase coreográfica, principalmente quando justaposta ao
fragmento de texto, gerando um fluxo de significados imprevistos pela lógica naturalista
de ações e pela composição tradicional das danças populares trabalhadas, surgindo uma
terceira organização originada pelas imbricações e modelagens entre texto e ações.
É a partir do olhar distanciado temporalmente sobre as experiências adquiridas
no curso de Iniciação à Pesquisa Teatral – Módulo I e na oficina A Arte do Brincante,
que começo a observar elos de ligação entre a prática apresentada por Renato Ferracini
durante o curso de especialização na UFPB e a do Cavalo Marinho. Percebo na junção
desses conhecimentos a possibilidade de existir um nível operativo na arte de ator, que
objetive sua formação e a composição do corpo-em-arte a partir de dinâmicas à primeira
vista externas, como os detalhes contidos no desenho dos passos de dança do Cavalo
Marinho. Este processo auxiliará ao mesmo tempo, num desenvolvimento técnico e
energético. Metodologicamente, a forma do passo e seu desenho podem ser entendidos
como a fisicidade de uma ação. Seguindo o entendimento de alguns teóricos do fazer
teatral como Constantin Stanislavski, é através do físico que o ator chega a trabalhar o
interno, a energia de sua presença que se irradia no exterior.

[...] Orgón busca Mariana para obrigá-la a firmar o contrato nupcial,


no entanto Elmira, Cleanto e Dorina resistem a ele. Qual é a ação
física desta cena?
Não me falem de sentimentos que não se podem fixar. O que se pode
recordar e fixar é a ação física. Neste caso tal ação se pode definir
com a palavra „esconder‟. Vocês tem que ocultar Mariana de seu
malvado pai. É o que devem fazer. Como o farão? Se quisermos
lançar mão de um clichê teatral, este seria: cobrir-la com seu corpo,
com as mãos voltadas para trás, olhando-a alarmadamente, etc., mas
não sei que qualidade criadora teria isso. O importante aqui é
„esconder‟ (STANISLAVSKI apud TOPORKOV in JIMÉNEZ, 1990,
p.300, grifos meus)3.

3
Tradução minha: “[...] Órgon busca a Mariana para obligarla a firmar el contrato matrimonial, mientras
que Elmira, Cleanto y Dorina se resisten a ello. ¿Cuál es La acción física de esta escena? [...] No me
hablen de sentimientos que no se pueden fijar. Lo único que se puede recordar y fijar es la acción física.
Em este caso tal acción se puede definir com La palabra „esconder‟. Ustedes tienen que ocultar a Mariana
Del cruel padre. Es lo que tienen que hacer. ¿Cómo lo harán? Si quisiéramos echar mano de um clichê
teatral, este sería: cubrirla com su cuerpo, con las manos atrás, la mirada alarmada, etc., pero no se qué
calidad creadora tendría esto. Lo importante aqui es „esconder‟.”
19

Por meio da fisicidade se pode chegar à corporeidade de uma ação4.

A fisicidade de uma ação é para nós a forma dada ao corpo, o puro


itinerário de uma ação. Já a corporeidade, além da fisicidade, é a
forma do corpo habitada pela pessoa. Assim, a corporeidade envolve
também as qualidades de vibração que emanam deste corpo, as cores
que ele, por meio de suas ações físicas, irradia (BURNIER, 2001,
pg.184, grifos do autor).

Este desenho exterior é encarado como a porta de entrada, ou seja, o caminho


que pode levar o ator a explorar a dimensão mais interna de suas ações. Estas qualidades
se manifestam por meio dos diversos níveis de tensão muscular e pulsações que a ação
pode assumir em seu espaço/tempo. Pude observar estas qualidades nos integrantes do
Cavalo Marinho Estrela de Ouro de Mestre Biu Alexandre em três apresentações
organizadas pelos integrantes do curso de Iniciação à Pesquisa Teatral. Duas delas
foram completas com duração média de dez horas. A primeira ocorreu em João Pessoa
– PB e a outra na cidade de Condado – PE.
Nas aulas de Cavalo Marinho, percebi a possibilidade de trabalhar as dimensões
técnica e energética do trabalho de ator. Percebo assim nesse processo de observação
das corporeidades e fisicidades do Cavalo Marinho, minha escolha como indivíduo que
se identifica com determinada manifestação e percebe nela potencialidades e vias de
acesso para a arte de ator5.
A partir dessa observação surge a seguinte reflexão: como desdobrar este
processo para estimular os atores na produção de ações, as quais organizadas
construiriam o corpo-em-arte e, por consequência, um espaço de troca-em-arte? O
corpo-em-arte seria, então, um vetor do corpo em estado cotidiano que propõe linhas de
fuga ao sujeito centrado em uma individualidade e identidade, incitando-o a um
processo de diferenciação, mostrando outras formas de ser dele mesmo, abrindo-o a
percepção de outras potencialidades:

4
Procurarei me deter mais adiante no entedimento de fisicidade e corporeidade da brincadeira do Cavalo
Marinho utilizado neste trabalho. Por enquanto, é necessário deixar claro que estas dimensões de uma
ação estão interligadas e que a partir de uma pode-se chegar à outra. É nesta relação que acredito estar
contido “um „instante de verdade‟, quando os opostos se abraçam” (BARBA, 1994, p.15, grifos do autor).
5
A ligação entre individuo e sociedade gerando afetos e criando mecanismos de identificação será
abordada no tópico Observando o foco da pesquisa: o corpo do Cavalo Marinho de Mestre Zequinha,
quando elencarei os motivos que levaram à escolha do foco desta pesquisa.
20

O corpo em criação, em dança, em arte, ao mesmo tempo, restaura e


resiste ao Homem. Resiste se entendermos esse Homem como o
sujeito centrado em uma individualidade e em uma identidade que o
realiza e que, por isso mesmo, exclui o outro e a diferença [...].
Restaura e recria se entendermos esse Homem como um Si-Outro.
Penso que esse corpo em criação gera esse espaço para poder puxar
esse Si-Outro pela mão, mas ele puxa não o Homem sujeito e centrado
em uma individualidade e uma identidade, mas cria uma fenda de
entrada de luz e diz ao outro: venha, nessa fenda iluminada é possível
criar, é possível jogar e brincar, é possível se relacionar. Criar essas
fendas de luz, mesmo tão ínfimas, significa buscar uma postura
positiva de vida, um dizer “sim” ao mundo. Dizer “sim” ao corpo-em-
arte em resistência e, ao mesmo tempo, dizer “não” ao corpo inativo,
estratificado, disciplinado, passivo, buscando colocar esse corpo
engessado em movimento criativo, em linhas de fuga e campos de
intensividade. Dizer “sim” à troca-em-arte, à inclusão, à diferença, à
possibilidade de se relacionar com o outro, em resistência à doxa, à
opinião, à frieza, à cristalização dessas mesmas relações, ou seja,
resistir ao Homem individual e centrado em uma identidade fixa que
expurga, através dessa identidade, o outro (FERRACINI, 2006b,
p.14).

Nossa passagem durante a vida estabelece relações em que somos afetados e


afetamos. Essa via de mão dupla acaba por compor as estruturas sociais, econômicas,
históricas nas quais estamos inseridos de acordo com o espaço-tempo que
compartilhamos. Ao mesmo tempo em que nossas relações compõem estas macro e
micro estruturas, elas auxiliam na formação das características cotidianas de nossa
corporeidade, ou seja, o que permite sermos identificado corporalmente. Dito de outro
modo, o instante em que compomos o momento histórico-social-econômico em que
estamos inseridos, somos formados por ele e perpetuamos sua existência. A esta relação
de retroalimentação, o filosofo Gilles Deleuze entende como Plano de Imanência:

Alguma coisa como unidade superior a toda coisa, nem Sujeito como
ato que opera a síntese das coisas: é quando a imanência não é mais a
imanência que a outra que não ela mesma, que podemos falar de um
plano de imanência. [...] diremos da pura imanência, que ela é UMA
VIDA, e nada mais. Ela não é a imanência à vida, mas a imanência
não está em nada e é em si mesma uma vida (DELEUZE apud
CARDOSO, 2007, p.11).

É graças à constituição do Plano de Imanência que recebemos os padrões sociais


que compõem nosso modo de agir, pensar, etc. Ele nos identifica enquanto indivíduos
que compartilham determinada cultura. Este tipo de colonização acaba por condicionar
21

as relações que estabelecemos com o mundo, delimitando o potencial de ação ao


esperado e condizente com nosso compartilhamento do Plano de Imanência.
Procurando não me ater a juízos de valores, meu intento nesta pesquisa é a busca
por maneiras de dar movimento à constituição do corpo cotidiano tal como é
compreendido por Ferracini (2006a), entendendo-o como um “conjunto orgânico
atravessado por um jogo de forças sem nenhuma fixação. O corpo é um devir que não se
cristaliza” (FERRACINI, 2006a, p.117). Assim, tento nesta pesquisa vislumbrar,
tangenciar e, talvez com um pouco de sorte e decisão, propor vivências sobre modos
que fissurem a constituição imanente do corpo cotidiano. Nestas fissuras residem a
criação artística e a dimensão do corpo-em-arte.
A formação profissional se dá a partir da aquisição de um léxico técnico
específico, que potencializa e orienta seu praticante. Sua prática compõe uma
circularidade, um território que caracteriza e forma tanto o praticante, como o ofício ao
qual a técnica pertence. Através da incorporação dessa potência o executante acessa
uma perícia, que pode levá-lo a qualquer lugar, fazer o que quiser com ela: entrar, sair,
modelar, recriá-la, tornar a técnica visível, escondê-la, deixar-se levar e estimular para ir
a outros sítios de si mesmo e das relações com que pode estabelecer. É este o processo
que observo na evolução de um Brincante que, por meio de seu repertório técnico
incorporado, conquista a liberdade de improvisar com esse léxico. Isso o qualifica e
singulariza sua performance perante os outros brincantes e quem testemunha a
brincadeira:

A profissão do ator inicia-se geralmente com a assimilação de uma


bagagem técnica que se personaliza. O conhecimento dos princípios que
governam o bios cênico permite algo mais: aprender a aprender. Isso é
de enorme importância para os que escolhem superar os limites de uma
técnica especializada ou para os que se vêem obrigados a fazê-lo. Na
realidade aprender a aprender é essencial para todos. É a condição para
dominar o próprio saber técnico e não ser dominado por ele (BARBA,
1994, p. 24, grifos do autor).

Como desdobrar um princípio técnico existente numa manifestação tradicional a


fim de construir outro espaço cênico, outro território que possa dialogar com sua
origem? Neste caso, a manifestação popular do Cavalo Marinho, mas encontrando um
devir que potencialize a descoberta de outro lugar para a troca-em-arte? “Dançá, pode
22

dançá do jeito que se quisé, depois que se aprende os passo!” 6. Que passos poderiam
surgir neste intento? Assim, procuro me valer do entendimento de potência como “uma
capacidade de diferenciação”7.
A própria Imanência nos oferece uma constituição que pode dar vazão a fendas
de luz, de fôlego à vida cotidiana, desdobrando e ampliando o potencial de ação por
meio de uma relação poética de sensações e intensidades comuns à troca-em-arte. Vista
deste modo, a composição do corpo-em-arte se caracteriza mais por uma postura do que
por uma fórmula. Assim pode-se entender o corpo-em-arte por um conjunto de práticas
das quais o artista se vale para descobrir e organizar seus materiais de trabalho e, desta
forma, configurar um espaço de troca-em-arte.
É este corpo-em-arte que propõe os discursos do ator e, ao mesmo tempo, em
que é anterior aos outros discursos da cena (luz, cenário, fábula, outro ator, entre
outros), prevê estas interações de forma potencial. Sua composição procura uma
capacidade de diferenciação em contato com os demais elementos da cena. Por fim, o
corpo-em-arte é um construto potencial formulado pelas ações descobertas e
organizadas pelo ator. Ele procura não negar o corpo em comportamento cotidiano, mas
buscar vetores a partir de sua própria constituição imanente, a fim de abri-lo,
desestabilizá-lo, colocá-lo em uma zona turbulenta de contaminações e afetos na qual
ele possa gerar e propor significados.
Experiência – é disso que quero falar nesta Dissertação. Por isso trato de minha
trajetória, até o momento, por acreditar que ela está presente na formulação deste
intento. Ela é esse eterno devir presente que oferece a esta dissertação um tempo que
logo se configurará em memória passível de atualização.
Entendo por experiência, “o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca.
Não o que se passa, não o que acontece, ou que toca” (BONDÍA, 2002, p.21). Para se
produzirem novos conhecimentos ou se reorganizarem elementos já conhecidos é
preciso uma passividade, como a que se refere o filósofo da educação Jorge Larrosa
Bondía (2002) quando trata do sujeito da experiência, definindo-o

6
Fala de Mestre Zequinha em aula proferida em aula de Cavalo Marinho ministrada em julho de 2010 no
Theatro Santa Roza em João Pessoa – PB.
7
Fala proferida pelo Prof. Dr. Renato Ferracini no curso “Conceituações sobre o corpo-em-arte”
ministrado em fevereiro de 2010 em ocasião dos “Cursos de Fevereiro” oferecidos pelo LUME Teatro.
23

[...] não por sua atividade, mas por sua passividade, por sua
receptividade, por sua disponibilidade, por sua abertura. Trata-se,
porém, de uma passividade anterior à oposição entre ativo e passivo,
de uma passividade feita de paixão, de padecimento, de paciência, de
atenção, como uma receptividade primeira, como uma disponibilidade
fundamental, como uma abertura essencial (BONDÍA, 2002, p.24).

É sobre esta passividade feita de paixão que quero refletir aqui. Neste sentido,
proponho-me a ser bígamo, entendendo esta como uma metáfora, figura poética
imprescindível ao teatro. “Eu sou bígamo. Existo em uma casa que é feita do vivido, do
convívio com os atores, da prática. Outra é onde tento traduzir em signos esta prática
sobre uma folha branca. Esta casa é a da teoria”8.
O artista que propõe ser acadêmico como, no meu caso, significa ser um ator que
procura elos de ligação, o espaço de entre da prática à teoria9. Isso não significa que
atores não-acadêmicos deixem de realizar esta ligação, mas é perceber que eles a fazem
de forma diversa – eles teorizam a partir da própria prática. Não se trata de eleger juízos
de valor em detrimento de um ou outro tipo de artista, mas localizar seus territórios e
fazeres para poder explorá-los e até mesmo fissurá-los. É perceber estes espaços de
teorias e práticas não como territórios de necessidade, mas fluxos regidos por
funcionalidades e desejos.
Teorizar, então, configuraria uma traição ao pensamento monogâmico que
divide atores entre práticos e teóricos, acadêmicos. Todavia, esta traição de uma ou
outra casa torna-se tanto uma ação extremamente necessária, quanto impossível, pois
“as palavras, enquanto signos, vazam nelas mesmas, gerando circularidades, espaços,
fendas e traços de diferença e ausência [...]” (FERRACINI, 2006a, p.59).
É o fluxo, as velocidades e intensidades que não permitem dissociar pensamento
enquanto corpo e vice-versa, em que acontece a propagação da experiência vivida.
Algumas maneiras de estruturar o pensamento podem-se considerar excludentes e, por
conseguinte, formarem momentos separados entre os processos do corpo, do agir, e do
pensar, da racionalização. É aqui que acredito residir a diferença entre trabalhos. É

8
Anotação de Fala proferida por Eugênio Barba em palestra na ocasião do centenário do Teatro José de
Alencar, Fortaleza – CE, 28/11/2009.
9
Anotação feita em ocasião do curso “Conceituações sobre o corpo-em-arte”, ministrado por Renato
Ferracini, em 12/02/2010, dentro da programação dos Cursos de Fevereiro oferecidos pelo LUME Teatro,
Barão Geraldo – Campinas – SP.
24

procurar onde o corpo pensa10. É encarar corpo e mente, ao mesmo tempo, uno e inter-
relacionados, e que possam ser distanciados didaticamente para dizer, refletir e criar um
com o outro e um para o outro.
A partir do curso de Iniciação à Pesquisa Teatral – Módulo I e da oficina A Arte
do Brincante, pude perceber os meios pelos quais o ator pode gerar mecanismos que
permitam potencializar seu trabalho, através de sua identificação com determinada
prática que o afete de maneira latente.
O contato que tive com diferentes formas de pensar o fazer teatral e as
experiências adquiridas nas duas vivências que descrevi acima me auxiliaram na
formulação do projeto de mestrado do qual esta dissertação é fruto. Como proposta,
busquei pesquisar o que estou entendendo como as corporeidades e fisicidades
encontradas no brincar do Cavalo Marinho praticado por Zequinha (Bayeux – PB). O
objetivo principal foi experimentar um processo de apropriação dessas matrizes
estéticas que, ao mesmo tempo, dilatasse a presença dos atores e trabalhasse os
elementos técnicos de suas ações como precisão, equilíbrio, oposições, dentre outros.
Este processo também teve o intento de desdobrar os elementos pesquisados do Cavalo
Marinho (passos de dança, coreografias, cantos, loas e aboios), com o objetivo de
estimular o ator na descoberta de ações, as quais possibilitassem a composição do
corpo-em-arte.
Esta prática surge no reduto do como abordar um fazer que carrega em si
intensidades e perícias capazes de transbordar a constituição do corpo cotidiano,
forçando-o a se re-colocar, a se repensar enquanto forma, funcionalidade e, no caso do
artista cênico, criação. Prática esta como a encontrada no Cavalo Marinho dançado por
Mestre Zequinha.
Este transbordamento da vida de modo intensivo visa a um processo de
diferenciação, de fôlego cotidiano, vislumbrando formas de como vetorizar o corpo em
sua formação originada na disciplina exigida pela funcionalidade cotidiana. Desta
forma, visualizo os passos de dança, as posturas das figuras, suas falas, cantos, como
ações orgânicas e codificadas possuidoras de corporeidades e fisicidades, características
que compõem essa dança popular, manifesta nos modos de Mestre Zequinha brincar,
seja no decorrer do folguedo ou em demonstrações individuais. A corporeidade não é

10
Idem.
25

desvinculada da fisicidade, mas pode ser modelada até a alteração completa da


fisicidade e manutenção da corporeidade de uma ação ou o caminho contrário; a
modificação da corporeidade sem alterar-se a fisicidade.
Este processo foi desenvolvido junto ao coletivo UZUME teatro, grupo de teatro
fundado em setembro de 2008 na cidade de João Pessoa – PB que tem por objetivo
principal realizar pesquisas no campo da linguagem cênica. Atualmente, o coletivo
UZUME teatro possui seis integrantes: o autor desta dissertação, Alan Monteiro, Clara
Talha e Vitor Blam (bacharéis em Teatro pela UFPB) e os atores-pesquisadores
iniciantes Bertrand Araújo, Larissa Santana (alunos do curso de Teatro na UFPB) e a
nossa kogata11 Naiara Cavalcanti.
Este processo orientado por mim se dá através da observação participativa ou
ativa das corporeidades e fisicidades do Cavalo Marinho demonstradas por Mestre
Zequinha. A incorporação dos detalhes que orientam esta prática popular oferecem um
forte referencial para a preparação de ator proposta neste trabalho. Este aprendizado
possibilita ao praticante acesso a um modo de pensar e de agir condizentes ao Cavalo
Marinho, o qual é por si vetorial ao modo cotidiano de uso do corpo. Aqui não existe
representação senão em sua forma potencial. Observo este fazer semelhante em nível
pré-expressivo, uma etapa operativa que

[...] vem antes da expressão, da personagem construída e antes da cena


acabada. É o nível onde o ator produz e, principalmente, trabalha
todos os elementos técnicos e vitais de suas ações físicas e vocais. É o
nível da presença, onde o ator se trabalha, independente de qualquer
outro elemento externo, quer seja texto, personagem ou cena
(FERRACINI, 2003, p.99).

Nesta etapa, então, trabalha-se o nível organizacional, que propicia a descoberta


e composição do corpo-em-arte.
Mediante a apropriação por parte dos atores dos modos de brincar de Mestre
Zequinha, se procura experimentar meios pelos quais se possa compor uma codificação
pessoal a partir dos elementos que compõem o Cavalo Marinho pesquisado. Com isto
cada ator descobre, para si, um léxico pessoal de ações que é denominado nas pesquisas
do LUME Teatro de matriz, entendido “como o material inicial, principal e primordial;
11
Este palavra foi introduzida no UZUME pela atriz Clara Talha após sua participação em uma oficina
ministrada pelo grupo carioca Uzina Uzona. Segundo eles é um termo utilizado na tradição do Teatro Nô
para designar o ator mais recente e inexperiente.
26

é como a fonte orgânica de material do ator, à qual ele poderá recorrer, sempre que
desejar, para a construção de qualquer trabalho cênico. A matriz é a própria ação
física/vocal, viva e orgânica, codificada” (FERRACINI, 2003, p.116).
Este léxico pode ser usado tanto num caráter de preparação, de trabalho do ator
sobre si mesmo – pré-expressividade (BARBA, 1995), quanto de forma a auxiliar o
processo de criação cênica. Estando os atores munidos desta bagagem técnica, são
realizadas experimentações junto a um texto, o quê se deseja encenar, permitindo que
este funcione como estímulo para a modelagem das matrizes, estando tanto o encenador
quanto os atores atentos às proposições discursivas que esta junção pode oferecer na
composição do corpo-em-arte.
Inspirado no processo criativo trabalhado por Carla Martins já relatado no inicio
desta dissertação, procurei um referencial técnico que me orientasse no trabalho com a
aquisição e modelagem de ações. Ao observar na brincadeira do Cavalo Marinho a
existência de variações de fisicidades e corporeidades, comecei a observar a
possibilidade de um paralelo entre o proposto pela ministrante da oficina, A Arte do
Brincante, e a técnica de mimeses corpórea desenvolvida pelo LUME Teatro, também
conhecida como “imitação de corporeidades” (BURNIER, 2001, p.181). A técnica de
mimese corpórea desenvolvida em pesquisas do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas
Teatrais da UNICAMP – LUME Teatro, prevê, didaticamente, as etapas de Observação:
“trata-se, sobretudo de uma observação ativa, ou seja, uma observação imitação” (op.
cit., p.186), Codificação: “uma vez transferidas para o corpo do ator as ações
observadas, inicia-se um processo de memorização e codificação dessas ações” (op. cit.,
idem.) e Teatralização: estando codificadas as ações físicas e vocais orgânicas
(matrizes) “são retiradas do contexto que as originou, transformando-se, como vimos,
em materiais ou objetos de trabalho. [...] „Trabalhar uma ação‟ significa operar
pequenas alterações em elementos componentes dessa mesma ação” (op. cit., idem.).
A técnica empregada pelos brincantes do Cavalo Marinho, mais
especificamente, a forma como Mestre Zequinha realiza sua performance, parte da
incorporação de determinados princípios contidos em suas codificações, os quais
permitem uma liberdade para improvisar como um ponto de partida para a
multiplicidade que compõe este brinquedo popular. A mimeses corpórea orienta em
como se observarem estes princípios a fim de incorporá-los. Ela chama a atenção para
os elementos contidos na fisicidade que por sua vez direcionam para a composição da
27

corporeidade típica do Cavalo Marinho. Mediante a incorporação destes elementos o


ator trabalha as formas de improvisar com a técnica e não improvisar a técnica.
A partir de uma atmosfera de improvisação gerada pela repetição seja de algum
exercício de alongamento/aquecimento físico ou do próprio passo do Cavalo Marinho,
os atores buscam a modelagem dos desenhos e tônus característicos dessa técnica base.
Durante este processo é pedido aos atores que procurem perceber, juntamente com o
encenador, o que lhes chama a atenção nesta produção de ações, ou seja, é observar
tanto o que se acredita poder propor leituras, quanto o que eles acreditam estar fazendo
de forma viva, presente, direcionando a percepção de modo a colocar em turbulência
sua funcionalidade cotidiana de agir. Estas observações procuram ser codificadas pelos
atores de uma forma que possam repeti-las. No primeiro momento, antes da proposta
textual a ser montada, é mais comum observar-se, durante as improvisações, o que
chama atenção por sua presença diferenciada, pelo comprometimento do ator ao fazê-lo.
Após a escolha textual passamos a selecionar as ações que ofereçam o que acredito
multiplicar as leituras da encenação.
Neste processo de pesquisa, a que esta dissertação se refere, foram trabalhadas
todas as etapas de Observação, Codificação e Teatralização previstas na técnica de
mimeses corpórea desenvolvida pelo LUME, especialmente, no que se refere às
abordagens de Luís Otávio Burnier e Renato Ferracini. No entanto, didaticamente, esta
passou por um processo de apropriação no coletivo UZUME teatro de maneira que suas
etapas foram reorganizadas em Preparação: observação e codificação tanto da técnica
base, quanto das ações descobertas durante as improvisações e experimentações, e,
também, Composição: codificação e teatralização, ou seja, os arranjos já direcionados à
montagem.
Esta apropriação da técnica de mimeses corpórea propõe a organização desta
dissertação da forma em que acredito auxiliar no entendimento da pesquisa aqui
relatada. Assim, ela é composta de Territórios que, ao mesmo tempo, localizam as
experiências adquiridas, auxiliando na visualização dos fluxos entre estes
conhecimentos.
O segundo Território denomina-se Observação Ativa – quando olhamos e somos
vistos, algo na dança vibra em nós. Nele me dedico a descrever e refletir sobre o
processo de aquisição das corporeidades e fisicidades do Cavalo Marinho, estudadas a
partir das formas de brincar de Mestre Zequinha.
28

No primeiro tópico, Boi de Reis e/ou Cavalo Marinho: territórios e


indiscernibilidades, tento trabalhar algumas particularidades e diferenças entre estas
duas manifestações encontradas na zona urbana das cidades paraibanas de João Pessoa e
Bayeux. Para tanto, faço uso de referenciais encontrados em autores reconhecidos como
Mário de Andrade, como também das falas de Mestre Zequinha e de outros brincantes,
além de minhas próprias observações sobre estas brincadeiras populares. Faço isso na
tentativa de observar os territórios da expressão do Cavalo Marinho e do Boi de Reis
praticados na grande João Pessoa. Seguindo este intento utilizo algumas configurações
dos grupos Cavalo Marinho de Mestre Zequinha e Boi de Reis Estrela do Norte de
Mestre Pirralhinho. Ainda no primeiro tópico observo a organização do Cavalo Marinho
Estrela de Ouro, da cidade de Condado – PE e coordenado por Mestre Biu Alexandre.
Procuro com isso abordar o que acredito serem alguns pontos de influência e
semelhança na formação tanto desse Cavalo Marinho pernambucano quanto na
expressão paraibana praticada no grupo de Mestre Zequinha.
No tópico Observando o foco da pesquisa: o corpo do Cavalo Marinho de
Mestre Zequinha, procuro elencar as cartografias desta manifestação: seu itinerário de
apresentação, seus passos básicos, suas figuras, etc. Ao abordar o histórico do grupo
denominado, hoje, Cavalo Marinho de Mestre Zequinha, enfoco a ligação deste com o
próprio Mestre Zequinha e sua trajetória de participação em manifestações populares
desde os nove anos de idade, até chegar ao falecido Mestre Gasosa do qual herdou seu
atual grupo de Cavalo Marinho. Ainda neste tópico, dedico-me a estender a lupa na
configuração deste Cavalo Marinho de maneira a elencar os motivos que me levaram a
escolher o foco desta pesquisa – as formas como Mestre Zequinha utiliza e improvisa os
passos de dança, coreografias, loas, cantos e aboios para brincar o Cavalo Marinho.
Em A técnica de mimeses corpórea e o processo de aquisição, recriação e
resignificação das corporeidades e fisicidades do Cavalo Marinho incorporadas por
Mestre Zequinha, procuro refletir acerca do processo de aquisição do que estou
entendendo como as corporeidades e fisicidades da brincadeira do Cavalo Marinho.
Entendo estes termos como os modos de dançar, cantar, aboiar, dizer uma loa, as
posturas das figuras e demais elementos que caracterizam e singularizam esta dança do
Cavalo Marinho, sempre centrando este aprendizado nas formas como Mestre Zequinha
os aprendeu e os executa atualmente. Esta aquisição, por meio de oficinas e o trabalho
de aperfeiçoamento em sala de ensaio, permitiram-me uma reflexão acerca de algumas
29

das maneiras em que a brincadeira do Cavalo Marinho poderia potencializar o trabalho


de ator.
Já no tópico Relações e: Ator, Brincante, Ator-Brincante = territórios/fornteiras
e zonas de vizinhança, detenho-me a expor conceitualmente as concepções de corpo,
atuação, ator e brincante na tentativa de delinear a postura de um Ator-Brincante na
construção do corpo-em-arte que direcionou esta pesquisa. Também tento refletir acerca
do processo de preparação de um Ator-Brincante, em contraponto à ideia de
treinamento, entendendo este como um tratamento corporal que tem como foco a
produção de condicionamentos. A preparação é entendida em seu caráter semântico
como o trabalho do ator sobre si mesmo com o objetivo de se preparar potencialmente
para a descoberta da ação. Destaco também, neste tópico, a importância do espaço da
festa popular como um ato não desvinculado da preparação tanto para o brincante, como
para o ator que se propõe a ser brincante. Encarando esta como um momento de
formação, de aperfeiçoamento, de contato e troca, que possui lugar de importância no
processo de pesquisa tanto quanto o desenvolvido em sala de ensaio.
No terceiro Território, dedico-me ao processo de Composição do corpo-em-arte.
No primeiro tópico, vários corpos de espaços diversos – mudar e ainda poder ser o
mesmo, destino tratar da formação do corpo-em-arte, a partir da constituição do corpo
em comportamento cotidiano, utilizando referenciais propostos pelo ator-pesquisador
Renato Ferracini (LUME Teatro). Também descrevo as experimentações que
acarretaram o processo de descobrimento e codificação das matrizes de cada ator. Deste
modo, os elementos que compõem o desenvolvimento corporal típico do Cavalo
Marinho pesquisado, o que estou assumindo como suas corporeidades e fisicidades, são
reorganizados de maneira a desterritorializá-las, ou, ainda, reterritorializá-las na busca
de vetores, brechas, fissuras que virtualizem seus signos característicos a fim de
encontrar outras configurações cênicas, que as típicas contidas na tradição. É a partir
dos atores mergulhados nas velocidades de um ambiente propício ao imprevisto, lugar
onde os atores procuram vetores e adensamentos, que surge a proposta de se trabalhar
com o texto Hamlet de William Shakespeare. Este texto surgiu de forma recorrente nas
experimentações dos atores Vitor Blam e Clara Talha, as quais começaram a delinear a
proposta cênica que daria origem à encenação.
Em Virtualidade e Memória e o processo criação: experimentando Hamlet e o
Cavalo Marinho surge Rosmaninhos..., narro o processo de composição do espetáculo
30

Rosmaninhos..., fruto das imbricações entre esta pesquisa sobre o Cavalo Marinho
brincado por Mestre Zequinha e a apropriação do texto shakespeariano, a qual teve
origem através da utilização dos conceitos filosóficos de Memória em Henri Bergson e
Virtualidade proposto por Pierre Lévy. Neste tópico, viso, também, relativizar o
desenvolvimento da encenação, mediante a procura da intertextualidade dos discursos
propostos no texto dramático e nos da dança do Cavalo Marinho.
No último território desta dissertação, O entre do carvão ao corpo-em-arte de
Ator-Brincante, tento relatar alguns dos conhecimentos adquiridos durante a pesquisa e
proponho a explicação do título desta dissertação, procurando ligar os caminhos
experienciados no decorrer deste estudo. A utilização corporal de Mestre Zequinha, seu
dançado no decorrer da manifestação, produz seu corpo-em-arte condizente com a
brincadeira, através do qual vislumbro um processo potencial de identificação capaz de
instigar o ator que sou na composição do corpo-em-arte. Este fazer propõe o trabalho de
Ator-Brincante, que se caracteriza pela utilização de princípios existentes tanto no
universo do teatro como no da brincadeira.
Nos Apêndices deste trabalho estão contidos anotações, feitas por mim, das
ações dos atores e dos ensaios do coletivo UZUME teatro, o processo de adaptação do
texto de Shakespeare, passando por escolhas para o nome do espetáculo; Experimento
Hamlet, Brinquedo de Hamlet, até o nosso Rosmaninhos... Também estão incluso dois
DVDs. O primeiro com vídeos das aulas com Mestre Zequinha, assim como fotografias
e vídeos das experimentações do coletivo UZUME teatro, referentes tanto ao processo
de descobrimento e modelagem de ações, como sobre as possibilidades de exploração
do espaço. Também se encontra nesse DVD uma gravação do espetáculo
Rosmaninhos... em sua versão trabalhada até a defesa desta dissertação, e os desenhos
dos croquis do processo de criação dos figurinos feitos por Tainá Vasconcelos. No
segundo DVD existe uma colagem de apresentações do Cavalo Marinho de Mestre
Zequinha, feita pelo professor Agostinho Lima, a qual tenta oferecer uma ideia sobre a
composição da brincadeira.
Para finalizar este começo resta agora tocar no conceito que fundamenta a
estrutura desta dissertação: o Território. Aqui ele é visto para além do espaço possuidor
de fronteira. É o lugar das diferenças de potencial que conectam sujeitos e objetos,
dando direção a suas cartografias – fluxos não cristalizados que se reorganizam segundo
demandas funcionais. O Território é zona de diferenciação em si mesmo onde a
31

experiência é processo e retroalimentação – criação e, no caso desta pesquisa, à procura


de poesia inscrita no espaço. Aqui, Território é o lugar no qual o sujeito da experiência
aguarda, se expõe, brinca, joga vetorizando saberes/fazeres que o afetam. Mais ainda, é
onde ele se cala. É seu Território de resignificação e recriação. É o espaço tornado
lugar, a terra em seus movimentos de reterritorialização e desterritorizalição, que geram
estas zonas de indiscernibilidade devido à organicidade que estabelece com quem povoa
o Território. Aqui, nos Territórios deste corpo-em-arte, as relações, as danças e os
trupés trocados entre seus habitantes se constroem no decorrer de sua constituição.
Ao longo desta dissertação, procuro os nós da rede que tece os fluxos entre o
corpo-em-arte deste escrito e a vivência desta pesquisa sobre a brincadeira do Cavalo
Marinho de Mestre Zequinha. Busco a origem destas ligações no movimento de tentar
não negar a velocidade do pensamento que o gera esta mesma pesquisa, seja ele mais
retilíneo, concatenado ou ondulante, sinuoso. O que desejo é uma ordem de fluxo que
entre e saia, atravesse e vaze, contamine e se deixe contaminar. As desacelerações
contidas neste trabalho se caracterizam pela formação de rizomas, de rosmaninhos,
conceituações e diversidades, de encontros e desencantos entre pensamentos, dúvidas,
transversalidades que regem o risível e o rigor desta investigação, visto que se as
influências não são mais vistas, mas percebidas, é que começam estes agenciamentos.
32

TERRITÓRIO II: O DA OBSERVAÇÃO, QUANDO OLHAMOS E SOMOS


VISTOS, ALGO NA DANÇA VIBRA EM NÓS

1.1 – BOI DE REIS E/OU CAVALO MARINHO: TERRITÓRIOS E ZONAS DE


INDISCERNIBILIDADE

Você sabe o que é cultura? Hábito ou


prática de cultivar, de plantio. É o que
tentamos fazer com o Cavalo Marinho:
plantar cultura.12

O que é Cavalo Marinho? Como delimitar em um único termo a infinidade de


características presentes nessa manifestação da então academicamente denominada
cultura popular? Ele é uma Brincadeira não só porque possui características de jogo
apontadas por Huizinga (2007), como: liberdade, evasão da vida cotidiana real,
capacidade de repetição e alternância, limites de tempo/espaço e lógica próprios, possui
regras, ou seja, ao mesmo tempo em que cria ordem é ordem. Devido a essas
características, é lúdico e festivo dentro do mais completo espírito de seriedade e
sacralização.
O Cavalo Marinho, bem como outras manifestações, se denomina dessa forma
porque seu praticante o evoca dessa maneira. Traduzindo-a, assim, como o alívio das
pressões e obrigações cotidianas, a exemplo das responsabilidades financeiras por meio
de trabalhos recorrentemente descritos como labutas por esses mesmos praticantes. No
entanto, essa brincadeira se apresenta na subversão dessa realidade, vetorizando-a sem
negar sua organização.
Pode ser caracterizada de Dança, assim como o Coco, o Maracatu, a Ciranda,
por possuir passos e coreografias com os quais seus praticantes dançam e improvisam
junto à base rítmica oferecida pela música. É Tradição devido a sua perpetuação
acontecer geralmente por indivíduos de uma mesma comunidade, oferecendo
continuidade a seus significados, pois ela faz e produz sentido para eles. Interessante

12
Fala de José Fernando “Seu Nandinho da Cultura” quando me levou em sua pampa 86 para conhecer
Mestre Zequinha, Bayeux – PB, 28/02/2009.
33

observar que geralmente há um processo de atualização desses significados na forma de


um vetor que parte do ancestral ao atual, mas não o esquece. São eles reorganizados por
seus praticantes no instante presente. É um Folguedo por se tratar de um instante festivo
para quem participa.
Há uma infinidade de nomes que podem ser evocados como, por exemplo,
dança dramática, chegança, reisado, dentre outros muitos. Todavia, acredito que esses
termos não conseguem abranger a grande e complexa rede de elementos que compõem
qualquer expressão de Cavalo Marinho. São conceitos que se permeiam e povoam o
universo de entendimentos dessa brincadeira, mas não o ocupam de forma a cristalizar
zonas limítrofes. Parece sempre haver algo que escapa e vaza, transborda o
entendimento sobre manifestações a exemplo do Cavalo Marinho. Acreditando nisso
opto neste escrito por não negar esses termos, mas utilizá-los quando acreditar que eles
auxiliarão na funcionalidade das organizações e na fluidez dos argumentos e
compreensões trabalhados. Todavia, não posso deixar de expor ao leitor o possível
perigo contido no uso indiscriminado ou inconsciente dessas denominações. Voltemos
ao que se propõe este primeiro tópico.
Até a conclusão deste escrito tive conhecimento de grupos de Cavalo Marinho
em atividade nos estados de Pernambuco e Paraíba, existindo ainda registros dessa
manifestação nas cidades paraibanas de “Lagoa de Roça, Bayeux, Mari, Pedras de Fogo,
Pilar, Pitimbu, Várzea Nova e São Miguel de Itaipu” (FRADE, 1982, p. 170). Todavia,
até a finalização desta dissertação, tive contato e informações sobre a existência dessa
brincadeira praticada tradicionalmente nas cidades paraibanas de Bayeux, Cavalo
Marinho de Mestre Zequinha, João Pessoa, Cavalo Marinho Infantil de Mestre João do
Boi, e Pedras de Fogo, Cavalo Marinho Boi de Ouro de Mestre Araújo.
O rabequeiro e músico Salatiel Marcos de Lima coordena junto a prefeitura de
Pedras de Fogo, um grupo denominado Cavalo Marinho Boi de Prata. Todavia este
grupo, por ser mais novo e não ser formado por um mestre, mas por pessoas
interessadas no folguedo do Cavalo Marinho, apresenta características distintas das
encontradas nos demais grupos citados. De acordo com esse mesmo rabequeiro, existe
ainda um grupo em Jangada, distrito de Pedras de Fogo, denominado Cavalo Marinho
de Seu João, todavia, não tive a oportunidade de conhecer este grupo. Há ainda um
grupo montado por pessoas interessadas nessa brincadeira denominado Cavalo Marinho
Acauã dos Sonhos, residente no assentamento Acauã, próximo a cidade de Sousa – PB.
34

Há um fator que podemos notar junto à prática desta manifestação popular e


quiçá isto também se aplique a outras: quanto mais próximo de Pernambuco, mais este
folguedo adquire características da expressão pernambucana, como passos e figuras. É o
caso das expressões encontradas no município paraibano de Pedras de Fogo. Ao mesmo
tempo, os grupos de Cavalo Marinho paraibanos mais próximos da capital possuem
características semelhantes ao Boi de Reis, como passos, músicas e coreografias. Um
exemplo disso é o ritmo da brincadeira. A expressão pernambucana é mais acelerada, a
paraibana é mais bailada e suave. Todavia, isso não configura uma regra, pois, segundo
informações do rabequeiro Salatiel, o grupo de Seu João em Pedras de Fogo possui
movimentação de passos e figuras condizentes com a expressão pernambucana do
Cavalo Marinho, mas seu ritmo é mais suave como o da brincadeira paraibana.
A origem deste brinquedo popular se mistura com o processo histórico
desenvolvido ao redor da cultura canavieira, similarmente ao maracatu rural e tantas
outras tradições. Esse fator torna ineficaz a determinação de como teria surgido
precisamente o folguedo do Cavalo Marinho. Podemos especular ideias, presumir
possíveis origens do brincar, mas torna-se escorregadia a tentativa de enquadrar uma
data, local e maneira de nascimento do Cavalo Marinho, pois elas se perdem no
emaranhado das dinâmicas culturais entre as distintas sociedades e as relações
indivíduo/coletivas que elas podem propor. Assim, é cabível considerar corretas todas
as teorias que tentam delinear as origens dessa brincadeira, ao mesmo tempo podemos
ponderar que também não o estão devido à impossibilidade que me referi anteriormente.
De outro lado, tentar desenhar características que permeiam as origens do Cavalo
Marinho, e até mesmo de tradições semelhantes, configura um exercício tão impossível
quanto necessário.
Alguns autores, como Mário de Andrade (1981), colocam a origem do Cavalo
Marinho no folguedo do Bumba-meu-boi, no qual existe o personagem do Cavalo-
Marinho, representado por um homem que é o dono da burrinha, do boi, etc. Assim, o
nome Marinho designaria o sobrenome do capitão que é dono do boi, da brincadeira e
da festa em homenagem aos santos reis do oriente tratada no roteiro de acontecimento
do Cavalo Marinho. Seguindo esta lógica, cavalo seria a montaria, na qual o capitão
chega de viagem com seu cortejo de galantes, após deixar sua festa aos cuidados de dois
negros fugidos, Bastião ou Birico e Mateus, juntamente à Catirina, que distintos autores
35

apontam como sendo irmã ou esposa de ambos ou amante de um deles que o trai com o
outro.
Esta manifestação surge na periferia da cultura da cana-de-açúcar e, assim como
o maracatu rural, representa o cotidiano e o imaginário dessa comunidade. Sua data de
encontro festivo é o dia 25 de dezembro, nascimento de Jesus Cristo, e dia 06 de
janeiro, Dia de Reis, demonstrando uma natureza sincrética com o cristianismo. É
devido a esse fato que alguns autores, como Agostinho Lima (2010), consideram o
Cavalo Marinho um reisado. Provavelmente devido à classificação de Mário de
Andrade (1993) para os folguedos populares do Ciclo Natalino, subdividindo-os em:
Bailes Pastoris, Cheganças e Reisados: “O Cavalo Marinho encontra-se entre os
Reisados de inspiração muito variada e caracterização pela sua constituição em um
único episódio, e que serve de fecho obrigatório ao Bumba-meu-boi” (ANDRADE,
1972, p.193, grifos do autor).
O Cavalo Marinho possui várias figuras que são uma espécie de personagens
deste folguedo, as quais são divididas, segundo Andrade (1972), entre seres fantásticos,
animais e humanos. Estas são caracterizadas por uma armação que o brincante veste,
ficando todo ou parcialmente coberto, ou por máscaras e figurinos. Uma apresentação
deste brinquedo pode ter duração de doze horas, divididos no que podemos considerar
atos ou quadros, selecionados pelo Mestre entre seu repertório de conhecimento de
acordo com as capacidades dos brincantes participantes de seu grupo e o interesse do
público. Estão registrados em bibliografias especializadas, como Andrade (1972 e
1981), aproximadamente 63 atos constituintes desta dança. Todavia, alguns quadros e
figuras estão presentes na maioria de suas apresentações, como

[...] os personagens Mateus e Bastião que participam do início ao fim


da brincadeira são dois negros amigos, que dividem a mesma mulher,
a Catirina, e estão à procura de emprego. Eles são contratados para
tomar conta da festa. O espetáculo é costurado ou coordenado pelo
Capitão, de quem se origina o nome do Folguedo. O nome do Capitão
é Marinho e ele chega montado em seu cavalo, daí a história dá seu
prosseguimento até o momento final, quando o boi é dividido entre os
participantes numa grande farra (D‟AMORIM, 2003, p.83)13.

13
Para mais informações sobre possíveis origens deste brincar e de sua denominação, consultar as
referências, especialmente em ASCLERAD, Maria. “Viva Pareia!” – a arte da brincadeira ou a beleza
da safadeza – uma abordagem antropológica da estética do Cavalo-Marinho. Dissertação de
mestrado em Sociologia e Antropologia – IFCS-UFRJ e orientada pela Prof. Dra. Elsje Maria Lagrou,
aprovada em julho de 2002.
36

A citação de D‟Amorim (2003) é uma das teorias para a origem da denominação


do Cavalo Marinho. Outros autores apontam que este folguedo teve origem na junção
de vários outros de menor duração, os quais comporiam seus atuais quadros.

É possível que o desenvolvimento desse folguedo na história tenha sido


realizado a partir da junção de diversos reisados, como o da burrinha, do
Jaraguá, do Guriabá, do Engenho, etc, e de músicas e danças, no final
dos quais se apresentava o boi. Ou que o boi fosse colocado depois da
apresentação de brincadeiras isoladas que, posteriormente, foram
aglutinadas em torno dele (LIMA, 2010, p.3) 14.

No entanto, é um fato que este folguedo é marcado pelas entradas e saídas das
figuras que possuem encenações com coreografias, passos, textos e músicas próprias.
Além disso, existe no Cavalo Marinho os galantes: coletivo de dançarinos que realizam
danças em cordões, comandado pela figura do Capitão Marinho e cujo momento
principal é a coreografia com arcos.

Figura 01 – Coreografia dos arcos feita pelo cortejo de galantes do grupo de Boi de Reis Estrela do Norte.
Foto: Líllian Régis. Lançamento do CD Cavalo marinho e boi-de-reis na Paraíba, Bayuex – PB, 2010.

14
Encarte do CD Cavalo Marinho e Bois de Reis na Paraíba, produzido por Prof.° Dr.° Agostino Lima
do Departamento de Música da UFRN, com patrocínio do Programa Petrobrás de Cultura 2010.
37

Érico José Souza de Oliveira (2006) aponta o Cavalo Marinho como sendo uma
manifestação de caráter espetacular, a qual é vetorial à teatralidade repetitiva do
cotidiano. Assim, é possível perceber a relação de retroalimentação entre esses
conceitos na citação abaixo de Armindo Jorge Bião:

[...] a teatralidade é o resultado da tradição vivida de uma


comunidade. Diz respeito a ritos rotineiros de interação que incorpora
todas as mudanças sociais. Vive-se dessa forma, não se pensa mais
nisso. Nós interpretamos nossos papéis e é tudo. É o trágico, o destino
e a fatalidade. A espetacularidade, por sua parte, representa todas as
tentativas de manipular a sociedade, de organizá-la, de compreendê-la,
na qual os resultados são formas espetaculares de interação social. É a
cena dramática, o universo da ação humana sobre o mundo. É, enfim,
o cômico e a moeda de troca que se dispõe para negociar com as duas
formas de jogo social. É o que epifaniza o substrato lúdico da vida
social (BIÃO apud OLIVEIRA, 2006, p.40).

Entre o Cavalo Marinho de Mestre Zequinha (Bayeux – PB) e Boi de Reis


Estrela do Norte de Mestre Pirralhinho (João Pessoa – PB), é possível se observarem
pontos de semelhanças e distinções em seus elementos constituintes como vestimentas,
figuras, letras de músicas, tipos de instrumentos utilizados, passos de dança e roteiro
coreográfico.
Em ambas as manifestações, a composição da indumentária dos galantes consta
de: sapato ou bota de cano longo, calça de linho ou malha de cor padronizada, camisa de
botão colorida, gola com fitas coloridas e coroa. A proposta desta indumentária é fazer
referência à comemoração de reis, procurando se assemelhar à vestimenta dos reis
magos do presépio católico.
38

Figura 02 – Mestre Pirralhinho, à esquerda e, à direita, Mestre Zequinha. Foto: Líllian Régis. Lançamento
do CD Cavalo marinho e boi-de-reis na Paraíba, Bayuex – PB, 2010.

No entanto, as figuras humanas destas danças populares possuem indumentária


distinta, enquanto as figuras de animais e as fantásticas reservam mais semelhanças que
diferenças. Isso, também, devido às diferentes pessoas responsáveis pela confecção do
brinquedo, as quais, também, não utilizam nenhuma imagem como exemplo, criando,
desta forma, particularidades nas figuras de cada grupo.

Figura 03 – À esquerda o Mateus do Boi de Reis Estrela do Norte. Ao centro e à direita o Mateus e o
Birico do Cavalo Marinho de Mestre Zequinha. Foto: Líllian Régis. Lançamento do CD Cavalo marinho
e boi-de-reis na Paraíba, Bayuex – PB, 2010.
39

Os mestres destes grupos também apontam um fator de diferenciação entre as


manifestações do Cavalo Marinho e do Boi de Reis na Paraíba. Além desta última só
contar com figuras de animais em seu enredo, o Cavalo Marinho, possui ainda
representações de seres fantásticos e humanos. Existem também duas coreografias que
são típicas de cada manifestação. No Boi de Reis encontra-se a dança de espadas, a
qual retrata a história de uma guerra fazendo menções ao Brasil colônia de Portugal na
letra da música. Enquanto que no Cavalo Marinho é característica a dança dos arcos.
Ela propõe diferentes imagens tornando-se quase que impossível não remeter ao
imaginário que permeia o Cavalo Marinho. Quando eu vejo essa coreografia, por
exemplo, sempre me lembro e teço a relação entre o movimento das fitas dos arcos e o
balançar da cana-de-açúcar ao vento ou as ondas do mar que quebram tanto na praia
quanto em alto mar, perto dos corais.
A música que acompanha a dança com espadas é típica e possui poucas
variações de um grupo para outro. Já a evolução com arcos segue as músicas Fulô,
Tracelim de Ouro e São Gonçalo do Amarante. Esta última é em homenagem ao santo
festeiro, casamenteiro das moças que utilizava a dança e a música para angariar fieis.
Segundo histórias, ele tocava a noite inteira se preciso para as prostitutas dançarem,
evitando que elas se vendessem.
Porém, tanto no grupo de Cavalo Marinho de Mestre Zequinha, quanto no grupo
de Boi de Reis Estrela do Norte de Mestre Pirralinho, podemos encontrar as músicas e
estas coreografias ou o conhecimento para executá-las. O que quero dizer é que em
nenhum destes dois grupos existe a coreografia da dança de espadas, mas ambos
conhecem os passos e as loas deste quadro. Segundo Mestre João do Boi, mestre do
Cavalo Marinho Infantil do Bairro dos Novais em João Pessoa,

[...] o boi-de-reis puro só tem a dança das espadas. É uma dança do


mestre e outra do contramestre. (...) Agora cavalo-marinho tem a
dança do arco. É fulô, é fulô, é fulô, ai meu bem é fulô. Essa pertence
ao cavalo-marinho. Tão misturando cavalo-marinho com boi-de-reis.
Tanto faz ser cavalo-marinho como boi-de-reis, hoje em dia tá tudo
igual. Ninguém sabe mais o que é cavalo-marinho, nem boi-de-reis,
nem nada (MESTRE JOÃO apud LIMA, 2010, p.07).

Podemos deduzir pela fala deste mestre que a manifestação do Cavalo Marinho
como é praticada pelo grupo de Mestre Zequinha possui influência da manifestação do
Boi de Reis encontrada na Paraíba, como me confirmou por diversas vezes Seu
40

Nandinho da Cultura: “Nós somos o único grupo de Cavalo Marinho que é uma variante
do Boi de Reis”. Falas como esta entram em concordância com a citação de Mário de
Andrade (1972) proposta no terceiro parágrafo deste tópico.
A expressão do Cavalo Marinho encontrada no estado de Pernambuco possui
várias diferenças da encontrada na Paraíba. A fim de tecer alguns exemplos me valho da
composição do primeiro grupo que conheci: o Cavalo Marinho Estrela do Norte de
Mestre Biu Alexandre da cidade de Condado localizada na Zona da Mata
pernambucana.
Em síntese, este grupo inicia sua brincadeira com o jogo de mergulhão entre os
brincantes, seguido da chegada da Figura do Mestre Ambrósio para vender ao Capitão
Marinho as figuras danadas de boas do Cavalo Marinho. Depois temos a contratação
dos negros escravos Mateus e Bastião para tomar conta e dar conta da festa durante a
viagem do Capitão Marinho. Algumas figuras aparecem até o retorno do capitão, como
o Empata Samba, o Guarda da Guarita, Seu Mané do Baile, e outras dependendo do
tempo da brincadeira e da disponibilidade de figureiros, como são chamados os
brincantes que possuem experiência para botar uma figura.
Tem-se o retorno do Capitão Marinho com seu cortejo de galantes. Em seguida,
existem alternâncias entre os quadros que se colocam devido as escolhas de Mestre Biu
Alexandre ou dos brincantes. Pude observar que isto acontece por vários motivos: se o
tocador, principalmente o rabequeiro, sabe as músicas de tal figura ou se as figuras
couberam no transporte. Existe a possibilidade do grupo não possuir o brinquedo da
figura, como é o caso das de animais e de algumas fantásticas que possuem armações ou
fantasias mais complexas que as mascaradas. O público também influencia na ordem de
entrada das figuras, uma vez que o Mestre, utilizando sua experiência em perceber o
desinteresse das pessoas que o assistem, altera a entrada dos quadros da brincadeira. O
que é possível observar neste grupo, como nos demais de Pernambuco, é que “depois da
última figura da noite que, geralmente, mas não obrigatoriamente, é o Boi, o grupo se
despede do público entoando canções de despedida e o „Viva!‟, uma espécie de
agradecimento e de exaltação ao desenrolar da noite de festa” (OLIVEIRA, 2006, p.457,
grifos do autor).
Percebo desta maneira que nas manifestações pernambucanas do Cavalo
Marinho existe a predominância de figuras mascaradas, fato que demonstra uma perícia
diferente ao Brincante. Com isso começo a entender o que Mestre Zequinha quer dizer
41

quando fala: “no interior [zona rural] tem dança melhor que a minha, mais avexada,
porque lá eles brincam mais”15. Talvez se referindo a manifestações como a do Cavalo
Marinho Estrela de Ouro, no qual ainda existe o costume de realizar a brincadeira de
forma mais longa, chegando a ter doze horas de duração.
No Cavalo Marinho de Mestre Zequinha é comum serem realizadas
apresentações nas festas da cidade, em congressos, feiras, festivais, enfim, em eventos
que solicitem a presença do grupo junto a Seu Nandinho da Cultura, que é reconhecido
como recursos humanos deste Cavalo Marinho, como ele mesmo e os demais
integrantes o denominam. Estas apresentações geralmente são de curta duração, entre
vinte minutos e uma hora. Até mesmo numa festa de aniversário de alguém da
comunidade à qual pertence este Cavalo Marinho, onde o grupo não tem
necessariamente limite de tempo para a brincadeira nem cachê a não ser o comum
lanche, a brincadeira dificilmente ultrapassa a duração das apresentações descritas
anteriormente.
O que percebo é um costume entre os Brincantes dessa manifestação. Eles estão
acostumados a uma brincadeira de duração limitada, o que faz talvez seu repertório
tornar-se igualmente reduzido. Esta característica, acredito, não influi na competência
dos Brincantes mais experientes como Mestre Zequinha, por exemplo, mas dificulta o
processo de construção da experiência que, por sua vez, é responsável pela formação de
um Brincante. Como quase sempre ouço de diferentes pessoas nas apresentações deste
grupo, Ninguém dança como Zequinha!
O que foi dito acima e o fato de o Cavalo Marinho de Mestre Zequinha estar
inserido em um meio urbano, que possui um movimento distinto do meio rural, onde se
encontram a maioria das expressões pernambucanas desta brincadeira, são os principais
fatores de diferenciação que atribuo entre as manifestações paraibana e pernambucana
do Cavalo Marinho. A dinâmica social rural produz uma composição corporal distinta
da urbana e vice-versa. Creio, também, que ambas as constituições sociais urbana e
rural proporcionam processos de significação e sistemas de valores distintos a seus
habitantes. Estas características chegam por imanência às expressões observadas do
Cavalo Marinho, as quais, acredito, influenciam diretamente – a duração e a
organização de seu itinerário, quantidade e forma das figuras e danças, dentre outros

15
Fala de Mestre Zequinha em aula de Cavalo Marinho, Theatro Santa Roza, setembro de 2010.
42

fatores. Todavia, esta é uma percepção originada em minha vivência como apreciador,
testemunha e, em certo grau, praticante de manifestações populares.
Além do que foi dito acima, segundo Mestre Zequinha, “no Boi de Reis
antigamente tinha uma Toda; um empanado como assim de teatro. Tanto que o mestre
chamava o Mateus e quando ele entrava, perguntava: „De onde você vem, pra onde você
vai?‟, „Eu vim da minha casa!‟, „E onde fica a sua casa?‟, „Do terreiro pra tras‟ (risos).
16
É muita diferença” . Segundo este mestre da cultura popular, existia uma armação de
pano por onde entravam e saíam as figuras do Boi de Reis, diferente do Cavalo
Marinho, que ficam já armadas pelo Brincante, o qual só espera o chamado do mestre
para iniciar sua evolução.
Desse modo, procurei elencar o que julgo como as principais diferenças e
proximidades entre as manifestações do Cavalo Marinho e do Boi de Reis paraibano, e
entre as expressões paraibanas e pernambucanas do Cavalo Marinho. Posso concluir,
então, que a proximidade entre as manifestações populares paraibanas, utilizadas como
referência, produzem influências na composição das brincadeiras. Este processo de
contaminações e diferenciação, também, acontece nas manifestações pernambucanas,
como se pode observar na fala do ator-bailarino-músico Helder Vasconcelos:

Estas diferenças eu identifico como variações sobre um mesmo tema.


Se você pega numa visão macro, você pode agrupar certas coisas. Mas
se você olha mais perto o Cavalo Marinho e o Maracatu, eles podem
pertencer a um mesmo tema. Mas se a gente chega no universo do
Cavalo Marinho; o Cavalo Marinho de Inácio é diferente do Cavalo
Marinho de Biu Alexandre. Com coisas em comum e coisas
diferentes. São variações de um mesmo tema. Esse Cavalo Marinho
tem uma proximidade com o Boi de Reis (referindo-se ao grupo de
Mestre Zequinha), mas ele se formatou como Cavalo Marinho. Pode
ser que esse seja mais próximo do Boi de Reis, mas é Cavalo
Marinho17.

Assim, mesmo sendo, perceptivelmente, mais próximo o Cavalo Marinho


paraibano do Boi de Reis, ainda, se denomina e se configura como um Cavalo Marinho.
Esse fato aponta para a existência de movimentos de diferenciação nas brincadeiras
populares, que ao mesmo tempo em que aproxima uma das outras auxilia a perpetuação
e atualização do próprio brincar. Desta maneira, é possível se perceber a existência de

16
Fala de Mestre Zequinha em entrevista concedida em 28/08/10 no Theatro Santa Roza.
17
Fala do ator-bailarino-músico Helder Vasconcelos em entrevista concedida em 16/09/10. Grifos meus.
43

processos de recriação na tradição que acompanham os sistemas de valores e a


significação de seus praticantes. É este devir que segue formando proximidades,
contatos, formações, dinâmicas diferentes de contaminação, as quais vão produzindo
suas singularidades e os territórios de cada brincadeira.
Insiro a imagem a seguir, a título de exemplo do que foi dito acima. Nela se
pode observar o instrumento das figuras do Mateus e do Sebastião ou Bastião ou, ainda,
Birico como é chamado no grupo de CM pesquisado. Eles são os palhaços do Cavalo
Marinho, os únicos que nunca saem da área de atuação. No grupo de Mestre Zequinha
utiliza-se a Zibumba ou Macaca, bastão de madeira amarrado a uma corda que possui na
ponta uma meia com serragem e um pouco de areia. No grupo de Mestre Biu Alexandre
estas figuras usam uma Bexiga cheia de ar feita do mesmo órgão do boi que lhe dá
nome. Ela possui as mesmas funções da Zibumba ou Macaca, mas também serve de
instrumento musical que acompanha o pandeiro, o qual, por sua vez, faz a base rítmica
para a dança. Ressalto um detalhe especial contido nesta foto (figura 5) tirada no
Encontro de Cavalo Marinho na Casa da Rabeca de Mestre Salustiano. Neste dia, na
apresentação do grupo de Mestre Biu Alexandre teve a figura do Mateus de Mestre
Martelo, do Bastião e do Mateusinho, uma criança que esta aprendendo a botar18 essa
figura, ou seja, neste dia essa brincadeira teve duas versões da figura do Mateus.

18
Termo recorrentemente utilizado pelos Brincantes do Cavalo Marinho para designar o ato de execução
ou conhecimento de determinando praticante sobre as figuras deste folguedo.
44

Figura 04 – Mestre Zequinha segurando a Zibumba ou Macaca; instrumento pertencente às figuras do


Mateus e do Birico para bater no chão ou nas figuras e fazer susto às pessoas que assistem. Foto: Alan
Monteiro, aula de Cavalo Marinho, Teatro Cilaio Ribeiro, João Pessoa – PB, outubro de 2010.

Figura 05 – Mestre Martelo, o Mateus do Cavalo Marinho Estrela de Ouro, e Mateusinho, a nova geração
deste folguedo. Foto: Alan Monteiro, Encontro de Cavalos Marinhos, Casa da Rabeca, cidade Tabajara,
Olinda – PE, 25/12/2010.
45

1.2 – OBSERVANDO O FOCO DA PESQUISA: O CORPO DO CAVALO


MARINHO DE MESTRE ZEQUINHA

Todos nós somos caixas de ressonância para o nosso tempo19.

No começo do século vinte, com a crise canavieira, muitas pessoas se mudaram


das regiões Agreste e Zona da Mata paraibana para as cidades litorâneas próximas à
capital. “O processo de industrialização das cidades de João Pessoa e Bayeux contribuiu
para esta migração. Com a população rural vieram também diversos folguedos como o
boi-de-reis, por exemplo” (LIMA, 2010, p.14). É nessa época, por volta dos anos
setenta, que ocorre a concentração de manifestações populares nas cidades de Bayeux e
Várzea Nova, em Santa Rita.
José Francisco Mendes, Mestre Zequinha, começou a brincar o Cavalo Marinho,
ainda criança, como dama no grupo de Mestre Zé Marcos de Belém de Caiçara, região
Agreste da Paraíba. Quando se casou em 1967, foi morar no sítio Moreno, da Usina
Santa Helena, no município de Sapé, Zona da Mata paraibana, onde trabalhou cortando
e limpando cana. Nesta época, conheceu os mestres Severino Rosa, Zé Biu, Cazuza e
Luiz Gomes. Dois anos depois se mudou para Várzea Nova, cidade próxima à Santa
Rita, onde conheceu o grupo de boi-de-reis de Mestre Manuel Lucas. Foi nesse grupo
que Mestre Zequinha foi “passando pra terceiro galante, pra segundo galante, depois pra
primeiro. Aí, botaro eu pra brincar de contramestre. Porque o mestre foi achando que eu
tava já... praticando muito, né? Valorizando minhas dança, né? Eu já sabia muita
música, já sabia das figura, dos bicho, quase tudo” (MESTRE ZEQUINHA apud
LIMA, 2010, p.17).
Na década de setenta, brincou de Mateus no grupo de Mestre Raul: “Brinquei
um bocado de ano... brinquei uns seis ano, aí foi o tempo que ele foi pra São Paulo” (op.
cit., idem). Sua primeira atuação como mestre se deu em 1992 em Várzea Nova, distrito
do município de Santa Rita, próxima a Bayeux, segundo o mestre

19
Fala do Prof. Jefferson Fernandes Alves anotada na disciplina “Seminários de Dissertação II”
ministrada para o PPGArC em 14/09/09.
46

Foi aí que eu inventei o grupo. Comecei um boi-de-reis, mas vi que


não dava certo um boi-de-reis porque os menino num dançava bem as
dança que eu tinha pra butar, aí eu fiquei dançando cavalo marinho,
porque era três trupe só. Mas depois começou a desandar tudo e eu
decidi acaba (op. cit, p.18).

Nessa época, Mestre Zequinha já morava em Bayeux, cidade próxima à capital


João Pessoa, e trabalhava como vigia noturno.
Mestre Zequinha era o Mateus no grupo de Cavalo Marinho de Mestre Gasosa,
José Raimundo da Silva, por sua vez, herdou o boi-de-reis de Mestre Messias, no qual
brincava como contramestre. Mestre Zequinha deu continuidade ao grupo quando
Mestre Gasosa morreu em 2003, o qual passou a se chamar Cavalo Marinho de Mestre
Zequinha.
Cada música ou conjunto de músicas e loas do Cavalo Marinho representa um
quadro da brincadeira. Para oferecer uma noção acerca da composição de uma
apresentação do Cavalo Marinho de Mestre Zequinha, valho-me da divisão contida no
encarte do CD Cavalo-marinho e boi de reis na Paraíba, produzido com patrocínio da
PETROBRÁS por Agostinho Lima, professor do Departamento de Música da UFRN.
Ele divide a brincadeira em quatro partes, a saber:
A primeira parte retrata a Chamada do Mateus, Birico e Catirina. O Capitão
chama cada uma destas figuras e troca diálogos com elas. Eles reafirmam a irmandade
entre Mateus e Birico, negros fugidos a quem o Capitão oferece o emprego de animar a
festa. Essas figuras realizam um jogo de espelho para provar que são parecidos e
logicamente irmãos. Também se apresenta neste grupo Catirina como mulher dos dois,
que, primeiramente, é repudiada pelo Mateus e o Birico por ser feia, mas depois a
aceitam para a brincadeira.
A segunda parte da brincadeira é quando o mestre, com os galantes, pede ao
dono da casa para brincar em seu terreiro „até a barra do dia quebrar e o galo cantar‟.
Geralmente o mestre fica no centro de duas filas de galantes, que realizam as
coreografias diante do banco ou conjunto de músicos. Neste momento são cantadas as
seguintes músicas: 2) Salvas, composto pela sequência de três músicas: Ô gente que
casa é essa?, Deus te salve casa santa e Abre-te porta do céu. A poesia destas salvas
iniciam a brincadeira do Cavalo Marinho avisando a chegada do brinquedo no terreiro
da casa do Capitão, pedindo-lhe para entrar nela e anunciando o começo do festejo; 3)
Nas horas de Deus amém, consiste numa oração com que os brincantes pedem
47

proteção e, em seguida, fazem saudações de boa noite aos presentes que assistem ao
folguedo; 4) Na chegada dessa casa, esta música faz alusão ao ato de fincar uma
bandeira para designar que naquele local encontra-se um grupo brincando. Os versos
seguintes pedem à dona da casa permissão para brincar “hora e meia de relógio” e que a
proprietária cuide da brincadeira, pois a mesma também lhe pertence durante aquele
intervalo de tempo; 5) Senhora dona da casa, esta música dá continuidade à anterior e
emenda uma série de vivas e avisos em seus versos como, por exemplo, “Viva santa
Madalena/Na igreja de Belém” e “Maria foi passear/Esse passeio de Maria/Vai fazer
mamãe chorar”; 6) Fulô, São Gonçalo do Amarante e Trancelim, correspondem às
evoluções com os arcos – estrutura feita a partir de uma mangueira de jardim ou de um
bambolê ornamentado com fitas coloridas. Cada música corresponde a uma sequência
coreográfica distinta de utilização dos arcos; 7) Mamãe tá chorando/Não chore dama
do rei, provavelmente, este quadro deriva do Boi de Reis devido à utilização das
espadas para encenar uma luta entre o Mestre e o primeiro Galante; 8) Capim da lagoa,
é uma música com um verso base sobre o qual o cantador pode tecer variações de
acordo com suas capacidades de improvisação sobre este. Geralmente versos como este
são utilizados para fazer a ligação entre um quadro e outro do Cavalo Marinho; 9)
Campeia, música que fala da vida campestre;
Na terceira etapa da brincadeira, começam a entrar as figuras. Elas não possuem
uma ordem rígida de entrada, dependem de vários fatores como a perícia do Brincante e
do grupo possuir o brinquedo – a armação de determinada figura, a percepção do
interesse do público pelo mestre, dentre outros fatores. A única que geralmente finaliza
a apresentação é o Boi. 10) Loa, toada e baiano do Cavalo Marinho, configura o
verso para a entrada da figura do Cavalo Marinho, seguido de seu cortejo de galantes,
que representa o dono da festa dada em homenagem aos santos reis do oriente; 11)
Margarida, é uma das figuras deste Cavalo Marinho caracterizada por uma boneca alta,
bem vestida e ornamentada. Sua música fala de uma moça bonita que da janela chama a
atenção dos passantes; 12) O Bode, diferente da figura do Boi, aparece no final da
brincadeira. Esta personagem dança suavemente, sem tentar bater no público como faz o
Boi; 13) A Burra, é uma figura ornamentada do Cavalo Marinho que traz em seus
versos o desejo de dançar para o povo ver; 14) O Jaraguá, possui uma cabeça de
pássaro com dentes; quem dança debaixo desta figura com cerca de três metros, leva
consigo um apito que o faz assobiar como um pássaro. Durante sua evolução esta figura
48

tenta bicar as pessoas que assistem à brincadeira; 15) Gigante, representa


provavelmente um estrangeiro alto que procura sua mulher Izidora. O capitão acusa nos
versos de sua música, que devido a ele a alma do Boi se perdeu; 16) Aboio,
caracterizado por versos de vaqueiros tangendo o gado, nos quais se procura sustentar as
vogais ê ou ô o mais agudo possível, alcançando desta maneira maior projeção da voz.
Nesta brincadeira os versos são de louvação para a entrada do Boi; 17) Chamado do
Boi, é a chamada da figura do Boi que é trazida por Birico e Mateus junto aos tocadores
para receber uma benção da música. Em seguida, ele sai a correr na tentativa de acertar
os negros que tomam conta da festa e o público; 18) Jesus Nasceu, neste quadro a
figura do Boi, guiada por Mateus e Birico, passa entre os espectadores abaixando sua
cabeça para que lhe façam carinho e coletando doações em dinheiro que os brincantes
denominam de Vendas ou Sorte; 19) Morreu meu Boi, esta parte da brincadeira talvez
faça menção a um conto popular no qual Mateus mata o Boi do Senhor de Engenho
porque sua esposa, Catirina, que está grávida, deseja comer a língua do Boi. Neste
Cavalo Marinho o Boi é dado como morto e os brincantes fazem um círculo em sua
volta chorando e soluçando; 20) Masseira é um tabuleiro onde a farinha é amassada
para se fazer o pão. Neste quadro, os brincantes escondem pães e bolachas, além de
simularem que estão fazendo estes alimentos; 21) Partilha do Boi, após sua morte, o
Boi é partilhado entre os presentes. Oferecendo as partes do Boi os brincantes
aproveitam para fazer gozações; 22) Se alevanta Boi, assim como Jesus Cristo, o Boi é
morto e ressuscita. A base melódica da música da morte do Boi e a deste quadro é a
mesma; 23) Engenho é a retomada da brincadeira que fala sobre a vida no engenho. Os
brincantes dançam ao redor de uma bolandeira e, fingindo serem animais, são tangidos
por Mateus;
A quarta e última parte do Cavalo Marinho é caracterizada por músicas e danças
de despedida e agradecimento aos presentes. 24) Despedida, é a música que antecede o
final da brincadeira na qual os brincantes dançam em fila indiana pelo espaço de
apresentação; 25) Bravo, é cantado com versos que homenageiam os presentes e os
próprios brincantes. Também pode ser seguido de vivas aos espectadores e a alguma
autoridade ou alguém a quem o grupo queira agradecer.
49

Figura 06 – Algumas das figuras do grupo de Cavalo Marinho de Mestre Zequinha. Encarte do CD
Cavalo-marinho e boi-de-reis na Paraíba, foto: Agostinho Lima, Bayeux - PB, 2010.

Além das figuras de animais, existem também as figuras de máscara, que entram
alternando-se entre as figuras de animais. Segundo Mestre Zequinha, em seu grupo
existem Brincantes, contando com ele, que tem o conhecimento para botar as figuras do
Véio Fri, o Abana Fogo e Mané Chorão.
O Véio Fri é um velho friento que é “velhinho por fora, mas novinho por
dentro”. Ele chega na roda procurando, entre as pessoas, que assistem à brincadeira,
uma mulher para se casar. O Abana Fogo é um vaqueiro que chega na festa com um
lampião dizendo que vai colocar luz nas cidades. Ele posiciona seu lampião embaixo de
um banco e vai girando ao redor dele recitando a loa: “Já botei luz em João Pessoa, vô
botá luz em Santa Rita. Ê Abana Fogo”. Diferente das duas figuras anteriores que se
apresentam de calça, paletó e máscara característica, Mané Chorão veste um short, com
camiseta e possui o rosto pintado de branco. Ele chora porque perdeu ou roubaram seus
bens. O Capitão o consola dizendo que alguém da brincadeira ou que está assistindo a
ela irá lhe dar outro em restituição. Uma de suas loas: “Buaaaaaaaáá!, Mestre: Que foi,
Seu Mané? – Zezinho que roubou a calcinha de Zefinha que era pano de coar café.
Buaaaaaaaaáá. – E agora mestre? Como é que a gente vai fazê café? Buaaaaaaaááá.
Mestre: – Se preocupe não, Seu Mané, que fulano vai lhe dá um calcinha nova”20.

20
Todas estas descrições e loas foram fornecidas por Mestre Zequinha em aulas de Cavalo Marinho entre
os meses de maio a novembro de 2010 no Theatro Santa Roza.
50

Infelizmente, no grupo pesquisado não se encontram mais os quadros


pertencentes às figuras descritas acima, devido a falta de Brincantes que saibam botar
essas figuras e além o tempo reduzido oferecido para as apresentações deste Cavalo
Marinho. Mestre Zequinha realizou demonstrações a nosso pedido durante as aulas, em
que pudemos observar as músicas, loas e as composições corporais dessas figuras.
Este enredo, base do Cavalo Marinho de Mestre Zequinha, que apresentei pode
sofrer variações em sua sequência, seja pela quantidade de Brincantes seja devido
principalmente ao tempo dado para a apresentação: “Primeiro vem a chamada do
Mateus, de Birico e da Catirina. Aí vêm as outras parte da brincadeira se tiver tempo,
porque, às vezes, dão vinte minuto pra gente brincá. A gente mal começa já tem que
colocar o Boi”21.
Cada música deste folguedo é seguida por uma coreografia específica, às quais
os brincantes seguem e fazem variações a partir dos passos de dança característicos
dessa expressão de Cavalo Marinho. Segundo Mestre Zequinha, no Cavalo Marinho
existem três passos ou trupés22. Esta última denominação, segundo os Brincantes, deve-
se ao som do sapateado no chão. Os passos base deste CM são: dois passos ou passo só,
galope ou trupé e contra dança ou trupé rebatido, como ilustrados nas figuras abaixo em
demonstração realizada pelo ator Vitor Blam.

Figura 07 – Dois passo ou Passo só. Foto: Alan Monteiro, ensaio do coletivo UZUME teatro, SESI
Centro João Pessoa – PB, 2011.

21
Fala de Mestre Zequinha em aula ministrada em maio de 2010 no Theatro Santa Roza.
22
Vídeos demonstrativos destes passos, bem como de um exemplo como estes foram trabalhados pelo
coletivo UZUME teatro, estão contidos no DVD localizado nos apêndices deste trabalho.
51

Observo o passo galope e o trupé rebatido como originados ou variações do


passo só. O galope assemelha-se a um galopar de cavalo em sua sonoridade. Enquanto o
passo só possui duas marcações com o pé, cada uma na extremidade do movimento, o
galope é executado com três batidas dos pés no chão e marcado com uma pausa entre
elas. Durante a brincadeira, ao executarem este passo, é comum os Brincantes
levantarem o joelho neste momento de pausa. O trupé rebatido é semelhante à umbigada
encontrada em algumas das expressões da dança do Coco. Ele é executado marcando-se
sete batidas do pé no chão e uma virada brusca de cento e oitenta graus. Ao contrário do
passo galope no qual a pausa marca o contra-tempo, existe uma oitava pisada que marca
o recomeço, ou seja, a repetição desse passo.
No modo de dançar pesquisado, ainda, existem o passo balanço ou trupé
balanço, o xaxado e o passo tesoura.

Figura 08 – Trupé Balanço com calcanhar. Foto: Alan Monteiro, ensaio do coletivo UZUME teatro, SESI
Centro João Pessoa – PB, 2011.

Figura 09 – Trupé Balanço com ponta de pé. Foto: Alan Monteiro, ensaio do coletivo UZUME teatro,
SESI Centro João Pessoa – PB, 2011.
52

Figura 10 – Xaxado. Foto: Alan Monteiro, ensaio do coletivo UZUME teatro, SESI Centro João Pessoa –
PB, 2011.

Este Cavalo Marinho possui muitas variações do passo tesoura no modo como
Mestre Zequinha dança, assim, opto por colocar uma imagem que exemplifica uma das
execuções deste Brincante sobre esse passo.

Figura 11 – Tesoura de joelho. Foto: Alan Monteiro, ensaio do coletivo UZUME teatro, SESI Centro
João Pessoa – PB, 2011.

O passo balanço altera o equilíbrio do corpo produzindo um leve balançar no


tronco. O xaxado impulsiona o corpo para frente devido à velocidade do pé que bate no
chão. O passo tesoura caracteriza-se por variações de trançados entre as pernas que
desafiam o equilíbrio do Brincante, ao mesmo tempo em que ele pode deslocar-se pelo
espaço.
Assim, como Mestre Zequinha nos mostrou a partir das muitas variações desses
passos do Cavalo Marinho e as músicas com que eles podem ser dançados, consigo
perceber que nesta prática existem muitas características, detalhes que fotografias não
conseguem captar com exatidão23. Acredito que estes detalhes proporcionam acesso a
uma segunda natureza do corpo, diferente de seu modo cotidiano de uso. Uma natureza
própria do brincar e da brincadeira. “Não é a dança chegar em você. É você chegar na

23
Para mais detalhes sobre os passos deste Cavalo Marinho praticado por Mestre Zequinha e suas
variações, ver os vídeos demonstrativos contidos no DVD em anexo.
53

dança” 24. O aprendizado das danças populares consiste em descobrir no próprio corpo a
corporeidade da Brincadeira. Se ela é mais terra e eu sou ar, é meu o trabalho de
descobrir como chegar nesse tônus, nessa energia condizente com a brincadeira. Para
outros contextos além da dança, pode-se repensar essa ordem.
“Esses são os passó do Cavalo Marinho. Mas se você quiser pode colocá outros
25
que você acha que cabe. É o que a inteligência dé” . As denominações destes passos
não seguem uma forma rígida. É comum aos Brincantes mais experientes, como Mestre
Zequinha, mudarem o nome de alguns passos quando questionados em momentos
diferentes. O que é perceptível é saber executá-los em sua plenitude. Isso talvez
demonstre a natureza de um aprendizado originado na observação. Do mesmo modo é
difícil precisar em qual música eles podem ser dançados. Sobre isso Mestre Zequinha
diz que “dá pra dançar qualquer passo que você achá que dá pra dançar. Agora - tem
26
que ouvir a música” . O mestre chama a atenção nesta fala para a percepção dos
toques do pandeiro, pois é esse o instrumento que fornece a base rítmica para os
Brincantes executarem os passos de sua dança. Do mesmo modo a rabeca o faz com o
canto. Observando de outro ponto, é como se o pandeiro reforçasse a execução da dança
e a rabeca da música.
É possível perceber nas apresentações ou em demonstrações de Mestre Zequinha
a existência de algumas músicas que são acompanhadas tradicionalmente por
determinados passos. Exemplo disso é o Campeia que é dançado com a contradança ou
trupé rebatido. O passo galope é usado com frequência nesta dança. Ele pode ser
utilizado em praticamente todas as músicas. Do mesmo modo existe também nesta
manifestação a capacidade de improvisação e variação acerca dos passos, como é o
passo para a música do Vamo Guerriar, a dança das espadas, que é dançada com uma
variante do passo só. Outro exemplo é o passo tesoura, que é mostrado por Mestre
Zequinha com diferentes modos e trançados das pernas.
Quando questionado sobre como aprendeu o Cavalo Marinho, Mestre Zequinha
nos conta que aprendeu “de pequeno. Tinha uns oito ou dez ano de idade. Eu via o povo
brincá no meio da rua, via aquelas figura mascarada, me escondia de medo (coloca as

24
Fala de Juliana Pardo – Cia MundoRodá no curso “Treinamento Técnico do Ator em Danças
Populares”, ministrado na sede do LUME Teatro em Fevereiro de 2009.
25
Fala de Mestre Zequinha em aula ministrada em maio de 2010.
26
Idem.
54

mãos no rosto e continua a fala), mas eu ficava ali, vendo. Depois juntava meus amigo
da rua e ia tentá imitá no quintal lá de casa”27. Mestre Zequinha hoje tem sessenta e dois
anos: “Eu aprendi sozinho. Sozinho mode de assim que ninguém me ensinava. Ensinava
28
assim de eu ficar olhando e aprendia os passo” . A persistência, a prática, parece
desenvolverem algo em nós, principalmente, no corpo que somos, fazendo com que
algo aconteça. É neste instante, nesse movimento orientado pela repetição, que parece
se formar a experiência: “quando passa tempo sem brincá parece que as coisas sai do
juízo. Até os menino quando vai ensaiar parece que esquece das coisa. Eu não. Posso
ficar o tempo que for que eu sei brincá”29.
Uma tradição configura-se não somente por sua identidade, ou seja, pela
perpetuação das relações de saber/fazer, gerando sua capacidade de visibilidade e
discursividade. Ela respira, tem vida e se diferencia em si mesma. Produz novos
conhecimentos ou reorganiza os já existentes em um processo de aprendizado que parte
da tradição, da memória, para a atualização, pois as tradições se inventam. Assim, a
tradição recria a si mesma. Neste caminho, tanto da tradição como de quem parte do
tradicional, como é o caso desta pesquisa, acredito ser necessária uma passividade feita
de paixão, como a que se refere o filósofo da educação Jorge Larrosa Bondía (2002)
quando trata do sujeito da experiência, definindo-o

[...] não por sua atividade, mas por sua passividade, por sua
receptividade, por sua disponibilidade, por sua abertura. Trata-se,
porém, de uma passividade anterior à oposição entre ativo e passivo,
de uma passividade feita de paixão, de padecimento, de paciência, de
atenção, como uma receptividade primeira, como uma disponibilidade
fundamental, como uma abertura essencial (BONDÍA, 2002, p.24,
grifos meus).

Bondía explica esta passividade feita de paixão em oposição ao binômio


informação/opinião próprio do mundo em sua tentativa de globalizar-se. Para ele, a
informação “não deixa lugar para a experiência, ela é quase o contrário da experiência,
quase uma antiexperiência” (LARROSA, 2002, p.21). O acúmulo de informação está

27
Idem.
28
Fala de Mestre Zequinha em aula ministrada em junho de 2010.
29
Idem.
55

organizado na sociedade contemporânea30 de maneira que nada signifique, que nada nos
aconteça. Ela anula as possibilidades da experiência entendida como “o que nos passa, o
que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou que toca”
(op. cit., idem.). De forma a exemplificar isso:

Depois de assistir a uma aula ou a uma conferência, depois de ter lido


um livro ou uma informação [...] podemos dizer que sabemos coisas
que antes não sabíamos, que temos mais informação sobre alguma
coisa; mas, ao mesmo tempo, podemos dizer também que nada nos
aconteceu, que nada nos tocou, que com tudo o que aprendemos nada
nos sucedeu ou nos aconteceu (BONDÍA, 2002, p.22).

Esta pesquisa parte à procura de vetores que atravessem intensamente o corpo


cotidiano, o qual é entendido como um corpo imanente, informado, centrado em sua
opinião, identidade e individualidade. É no intuito de dinamizá-lo a fim de se
encontrarem zonas de fôlego, de luz, de arte, que o abram para o outro e, para a
diferença, que percebo o potencial do Cavalo Marinho. Tentando experienciar esta
observação, procuro as ações que construam este desejo. Dito de outra forma, é a partir
da percepção da potência de um plano de composição-em-arte, que encontro em Mestre
Zequinha o sujeito da experiência – meu primeiro agenciamento.
Sua técnica incorporada durante anos demonstra uma potência de linha de fuga,
um vetor que parte do corpo estratificado e compartimentalizado dilatando-o a um modo
mais sensível de percepção, a uma organização que o abre para afetos, ao tempo em que
se contamina por eles – abrindo-o para o corpo-em-arte e para a troca-em-arte. É
deixando-se afetar que o corpo cotidiano afeta. Sendo assim é possível ampliar o
potencial de ação do outro ao mesmo tempo em que amplia o seu próprio. Percebo,
então, no Cavalo Marinho dançado por Mestre Zequinha “uma potência de vida e de
criação imanente ao corpo cotidiano. Uma zona de subjetivação, na qual o corpo é,
mesmo que de forma relativa, senhor de suas velocidades, de suas moléculas, de suas
singularidades, de seus micros devires” (FERRACINI, 2006a, p.137, grifos do autor).
Deste modo, consigo visualizar nas formas em que Mestre Zequinha brinca o
Cavalo Marinho uma experiência que não foi adquirida por meio dos imediatismos tão

30
“Etimologicamente, contemporâneo dá uma medida de sincronia de tempo: con(tempo) râneo =
sincrônico. (Titãs, Tudo ao mesmo tempo agora)” (COHEN, 1998, p.2). A esta compreensão
acrescentam-se as alterações de paradigmas, tais como a relação com o espectador, a noção de presença,
dentre outras que se vetorizam no decorrer do processo histórico.
56

almejados na sociedade capitalista moderna. Percebo nele, o mestre desta expressão de


dança popular, a própria manifestação. É possível ver e sentir a prática do Cavalo
Marinho em suas falas, no seu andar, na sua vida. O tempo foi sedimentando, formando
seu corpo, lapidando-o por meio da geração de memórias que se incrustaram de modo a
compor seu músculo, assim como outros acontecimentos, como seu trabalho por
exemplo. Suas práticas durante a vida marcaram a constituição corporal deste Brincante.
Ao mesmo tempo em que seu brincar influenciou esse movimento, o inverso é
verdadeiro e Mestre Zequinha aprimorou seu brincar com o passar dos anos, os quais
produziram memórias devido à repetição.
Este processo foi sedimentando sua experiência de modo a potencializar seus
conhecimentos, possibilitando-o ter uma performance diferenciada de qualquer outro
Brincante de seu grupo. Percebo, então, que o léxico utilizado por ele foi amadurecido
pela repetição que, por sua vez, potencializou sua capacidade de diferenciar-se em si
mesma, ou seja, de improvisação – de produzir o imprevisto.
De certo modo, posso presumir que esta técnica incorporada e produzida por
Mestre Zequinha, traz consigo a potência do sujeito da experiência de Larrosa, que
pode ser observada como uma disposição ao mesmo tempo histórica/vivencial e
temporal, pois se atualiza no corpo deste Brincante toda vez que a executa, e se perpetua
por meio da experiência e do aprendizado que este mesmo corpo irradia.
É notório perceber que os Brincantes não realizam esta percepção reflexiva
sobre sua prática, pelo menos, não de modo consciente. Pois, como colocado por
Eduardo Okamoto: “Na brincadeira quem percebe que há equilíbrio precário sou eu, o
ator, o acadêmico, o pesquisador, eles estão dançando. E não é por isso que a dança é
boa. Ela é boa pra eles porque eles dançam” 31.
Deste modo, observo na composição do corpo-em-arte deste Brincante uma
potência de diferenciação capaz de desestabilizar o sujeito centrado em sua identidade e
sua individualidade, puncionando, fraturando o plano imanente cotidiano do corpo,
lançando-o em um devir de percepções em velocidades e intensidades. É por perceber
esta potencialidade do sujeito da experiência de Larrosa contida na prática do Cavalo
Marinho de Mestre Zequinha que optei por pesquisá-lo em meu projeto de mestrado.

31
Fala do ator-pesquisador paulista Eduardo Okamoto em demonstração técnica sobre treinamento e
mimeses corpórea realizada no Barracão dos Clows, sede do grupo Clows de Shakespeare em Natal –
RN, em 24/05/10. Para mais informações sobre este ator e seus trabalhos acessar
http://www.eduardookamoto.com, visitado em 19/02/2011.
57

Existe também outro fator que julgo ser importante. Procuro encarar esta
manifestação, assim como outras , como sendo “variações de um mesmo tema”. O que
quero colocar é que, em certo grau, existem proximidades entre os fazeres e suas
práticas. Isto se dá entre as artes, pois, elas “se parecem em seus princípios, não em suas
obras” (DECROUX apud BARBA, 1994, p.29), bem como entre as manifestações
populares a exemplo do Cavalo Marinho, pois segundo o entendimento de Helder
Vasconcelos, esta brincadeira “antes de tudo, é um jeito de fazer. Um jeito de fazer
teatro, um jeito de fazer dança e tal” 32.
Procuro me aproximar desse brincar, não somente por visualizar seu potencial
como fonte de pesquisa, mas por perceber que ele, de algum modo, faz parte de mim, de
meu corpo, de minha pulsação. Assim como o exposto pelo dançarino-ator-músico
Herlder Vasconcelos: “O que é tudo isso? Isso tudo sou Eu. Eu sou assim” 33. Ainda nas
falas desse artista destaco:

Cavalo Marinho pra mim é uma escola de formação. Uma fonte de


energia criativa. Um conjunto de princípios regidos por regras e por
leis que estão na natureza. Repetição criativa. Uma repetição que
nunca é igual. Como um nascer de sol. A auto-geração de energia;
quanto mais você faz mais tem energia pra fazer. A pulsação que rege
e organiza a manifestação. É uma compreensão de onde eu me formei:
no palco e na tradição34.

Tentando entender melhor este meu processo de aproximação com a brincadeira


do Cavalo Marinho, encontro que o indivíduo na contemporaneidade é bombardeado
por um sem fim de informações e propostas que vão lhe fragmentando e seduzindo-o.
Este processo coloca em movimento dinâmico o que antes era tido como certo,
estanque, imutável – sua identidade. Existem tribos que ainda se identificam e se
movimentam por comungarem opiniões, valores, significados e geografias. Todavia, o
que parece caracterizar a dinâmica da identidade contemporânea é uma porosidade do

32
Fala do ator-dançarino-músico Helder Vasconcelos em entrevista cedida em 16/09/10. Helder
Vasconcelos é praticante da expressão pernambucana do Cavalo Marinho deste 1992. É Engenheiro
Mecânico formado e percussionista da já extinta banda “Mestre Ambrósio”. Para mais informações sobre
este artista acessar http://www.heldervasconcelos.com.br/CHEGADA.html, visitado em 19/02/2011.
33
Fala do ator-dançarino-músico Helder Vasconcelos em entrevista concedida em 16/09/10.
34
Idem, grifos meus.
58

sujeito a afetações, à diferença, que, por sua vez, parece tecer redes de ligação com o
sem fim de movimentos do mundo na tentativa de globalizar-se.
Não é preciso ir longe para se conhecer um sujeito moderno, ou seja, centrado
em uma identidade e individualidade. Em certa medida, nossos pais, amigos, parentes,
amantes e até nós mesmos assumimos atitudes que nos caracterizam como tais. O
próprio Mestre Zequinha, a quem dedico esta pesquisa, demonstra possuir uma
identidade e individualidade específica e enraizada. Este novo modo de perceber os
movimentos da identidade em busca de se colocar em devir, parece-me uma procura
pelo verbo no gerúndio e não mais no infinitivo, por algo que não é, mas sempre está
sendo. Uma identidade em eterno processo de formação – em um processo de
identificação regido por funcionalidades e não mais por apegos ou carências.
Então, em que pé se encontraria o processo da identidade no mundo
contemporâneo? Acredito que em uma abertura a afetos e percepções, à diferença,
enfim, há potencialidades funcionais em movimento que podem ser simultâneas e/ou
singulares, poligâmicas e monogâmicas. Um processo que permita o convívio de
paradoxos. São as diferenciações potenciais que esta abertura a contaminações pode
proporcionar.
Paradoxalmente, essa prática reivindica a constituição da Imanência. É nesta
dinâmica que a identidade é gerada e gera uma vida: planos imanentes, que são
fissurados em linhas de fuga que, por sua vez, são aglutinados pela Imanência, em
gigantesco tear que é causa e efeito de ações-reações, reações-reações, reações-ações,
reações... Gerar-se. “Só a palavra gêmeo, é gêmeo” (LINS, 2003, p.119).
Assim a passividade, permanência característica do sujeito da experiência, é
capaz de desestabilizar o indivíduo centrado em sua individualidade e identidade
colocando-o em movimento de rizoma. Um indivíduo por estar nesta dinâmica, pode
tecer ramificações de sua identidade, buscando um devir em eterno processo de
identificação, ao invés de enraizada, presa. É devido à incorporação desse processo que
um sujeito pode se aproximar e encontrar significação no Cavalo Marinho para o
trabalho de ator. Através dessa percepção, é possível experienciar um caminho pelo qual
a vida e sua constituição imanente possam ser puncionadas, propiciando, assim, a
incorporação de vivências, fazendo com que princípios deste mundo de regras e rituais
muito precisos sejam internalizados e remodelados no corpo e no trânsito do sujeito
encarnado, objetivando, deste modo, a composição de um plano de criação. É tendo em
59

vista que a experiência se torna corpo e o potencializa, que justifico minha escolha
acerca da pesquisa que realizei junto ao coletivo UZUME teatro, o qual foi
imprescindível na produção dos processos reflexivos que resultaram nesta dissertação.

1.3 – A TÉCNICA DE MIMESES CORPÓREA E O PROCESSO DE


AQUISIÇÃO E RECRIAÇÃO DAS CORPOREIDADES E FISICIDADES DO
CAVALO MARINHO INCORPORADAS POR MESTRE ZEQUINHA

Pretendo neste tópico abordar sucintamente o histórico35 da técnica de


mimeses36 corpórea como projeto de pesquisa do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas
Teatrais da UNICAMP – LUME Teatro. Em seguida, trato dos motivos que me fizeram
perceber nela uma metodologia que poderia orientar o processo de pesquisa do qual esta
dissertação faz parte. Por fim, dedico-me a descrever como fui me apropriando desta
técnica durante a rotina de ensaios do coletivo UZUME teatro. Tal apropriação consiste
na reorganização das etapas de Observação, Codificação e Teatralização da referida
técnica. Esta prática objetiva tanto direcionar o trabalho do que entendo como
recriações e re-significações do Cavalo Marinho, quanto auxiliar os atores na descoberta
de ações, que, por sua vez, serão organizadas de modo a originar outro contexto cênico.
Esses entendimentos delineiam e organizam o corpo-em-arte deste escrito e a orientação
metodológica da pesquisa desenvolvida sobre as corporeidades e fisicidades do Cavalo
Marinho praticado por Mestre Zequinha, na busca de experienciar um processo de
composição do corpo-em-arte.
Como projeto temático do grupo, a técnica de mimeses corpórea surge no
LUME a partir da justaposição de duas metodologias: o processo de imitação no
aprendizado da dança Butô proposto pela atriz-bailarina Anzu Furukawa e a da mimeses

35
Para mais informações acerca do histórico do LUME e suas linhas de pesquisa consultar suas
publicações e produtos. Sobre a técnica de mimeses corpórea, consultar em especial o livro Café com
queijo: corpos em criação (HUCITEC, São Paulo, 2006a) de autoria de Renato Ferracini, os extras do
DVD do espetáculo O que seria de nós sem as coisas que não existem (2006), além do próprio sítio do
grupo: www.lumeteatro.com.br.
36
Escolho utilizar o termo mimeses ao invés de mímesis, por aproximar-se mais da tradução para o
português, concordando, assim, com a escolha de Renato Ferracini (2006a) em sua mais recente
publicação sobre o tema: Café com queijo: corpos em criação (HUCITEC, São Paulo, 2006). Contudo,
mantenho a utilização de mímesis nas citações de Burnier (2001) e do próprio Ferracini (2003).
60

corpórea desenvolvida pelos atores-pesquisadores do LUME Teatro. O aprendizado do


Butô consiste em “metodologias para a busca de uma elaboração técnica pessoal”
(FERRACINI, 2006a, p.220), o que compactua com a proposta do LUME acerca do
trabalho de ator. Esta vivência com Anzu consistia na observação e “corporificação de
movimentos e ações observadas em animais de grande porte, insetos e mesmo em
animais microscópicos” (op. cit, p.221). Este processo assemelha-se ao proposto pela
técnica de mimeses corpórea no sentido de “ampliar o repertório de ações físicas e
vocais, por meio da observação e imitação de corporeidades e dinâmicas vocais [...]
Posteriormente estas ações são codificadas, teatralizadas e transpostas para a cena”
(FERRACINI, 2003, p.256).
Através da confrontação destas duas metodologias, originou-se uma montagem
cênica baseada no texto Cem anos de solidão de Gabriel Garcia Marques. Esta
experiência possibilitou a continuidade dos estudos referentes à técnica de mimeses
corpórea não mais como eixo temático, mas como projeto de pesquisa voltado, a partir
de 1990, para a corporeidade do povo brasileiro, originando espetáculos como Café com
queijo (1999) e O que seria de nós sem as coisas que não existem (2006).
Por meio da mimeses corpórea o LUME produziu vários espetáculos, dos quais
destaco Macário (1985) e Wolzen – um Giro Desordenado em Torno de Si Mesmo
(1992). Estas encenações são as primeiras experimentações desta técnica com direção
do fundador do LUME, Luis Otávio Burnier. Wolzen foi construída a partir de uma livre
adaptação do texto Valsa n°6 de Nelson Rodrigues, na qual seu diretor comenta sobre a
utilização da mimeses corpórea enquanto técnica de composição cênica: “foi onde a
aprimorei, testei sua validade e viabilidade, que comecei mais sistematicamente a
delinear um método para uma elaboração técnica a partir da imitação” (2001, p. 182).
Foi através da montagem de conclusão da turma de 1990 do Departamento de Artes
Cênicas da UNICAMP, Taucoauaa Panhé Mondo Pé (1993), também dirigida por Luis
Otávio, que Renato Ferracini, Ana Cristina Colla, Jesser de Souza e Raquel Scotti
Hirson, e mais sete atores, ingressam no LUME.
Com a morte de Burnier em fevereiro de 1995 e devido à saída de alguns atores
do grupo, montou-se em uma semana, por meio de fragmentos das montagens de
Wolzen e Taucoauaa Panhé Mondo Pé, o espetáculo Contadores de Estórias (1995),
com direção de Ricardo Puccetti, um dos primeiros atores do LUME junto com Carlos
Simioni. Com a saída de mais dois atores novamente é proposta uma remodelagem do
61

espetáculo anterior, dando origem à peça Café com Queijo (1999), sobre a qual Renato
Ferracini escreve sua tese de doutorado, que constitui um forte referencial teórico para
esta dissertação.
Na mimeses corpórea objetiva-se que o ator amplie seu repertório de ações
mediante a observação/imitação de agentes externos a ele como pessoas, animais,
quadros, fotos. É parte de seu trabalho procurar a vida em cada ação imitada, sua
organicidade, ou seja, os modos como estas podem se relacionar com suas energias de
modo a potencializá-las, na procura dos afetos de outras relações: outro ator, o
espectador e as demais dramaturgias que compõem o Estado Cênico, o qual é entendido
como “o momento específico em que o ator se encontra na ação de atuação juntamente
com o público e com todos os elementos que compõem a cena” (FERRACINI, 2006a,
p.31).
Deste modo, o LUME busca evitar por meio da técnica de mimeses corpórea
uma “imitação estereotipada e estilizada da pessoa. Não é este o objetivo. Buscamos
uma imitação precisa e real, sim, não só da forma e da fisicidade, mas principalmente
das corporeidades da pessoa” (FERRACINI, 2003, p.203, grifos do autor).
As corporeidades e fisicidades de uma ação são os elementos operacionais que
possibilitam um reconhecimento corpóreo, seja de uma pessoa, animal ou imagem. A
corporeidade é como um indivíduo se vale particularmente do corpo; o modo como ele
o habita e como os afetos de suas relações desenvolvem-se a fim de compor sua
formação e seu jeito de agir. São as intensidades de suas ações, originadas no trânsito
entre o interno/externo do corpo que manifesta-se por meio de suas dinâmicas, formas e
desenhos. É a corporeidade que nos permite dizer: Carlos tem este andar ou Manuela
olha desse jeito, além de Cecília tem uma desconfiança no olhar ou Arthur tem uma
tristeza no modo de falar.
Esses modos, essas discursividades marcadas no corpo de cada ser vivo durante
sua passagem pelo mundo, além de comunicarem, nos permitem perceber por meio dos
sentidos suas características. Eles possuem várias matizes, diferentes intensidades de
vibrações da energia em suas ações. A partir de estímulos internos ou externos, um som,
uma dor, uma doença ou uma emoção estas energias se sublimam configurando ações e
estados corpóreos cognoscíveis. É a partir da própria corporeidade, que estes níveis de
vibração potencial da energia, encontrados em qualquer corpo munido de vida podem
encontrar expressão.
62

A corporeidade se manifesta no espaço/tempo por meio de sua fisicidade que é


entendida como a mecânica pela qual se opera uma ação. É seu desenho no espaço, sua
fluência. Ainda sobre os conceitos de corporeidade e fisicidade, encontro que

Por corporeidade, entendo a maneira como o corpo age e faz, como


ele intervém no espaço e no tempo, o seu dinamorritmo. A
corporeidade é mais do que a pura fisicidade de uma ação. Ela, em
relação ao individuo atuante, antecede a fisicidade... [...] a
corporeidade está, pois, entre a fisicidade e as energias potenciais do
ator. Ela pode ser considerada como a primeira resultante física do
processo de dinamização das distintas qualidades de energias que se
encontram em estado potencial (BURNIER apud FERRACINI, 2003,
p.115).

Entendo estas energias potenciais (BURNIER, 2001) como aquilo que pode ser,
mas ainda não o é senão em potência; é a diferença em estado potencial que todo ser
vivente possui, uma possibilidade de se reorganizar – de se re-significar. No caso do
corpo, são estas energias que, ao mesmo tempo, constituem a imanência e vislumbram
linhas de fuga dela mesma. Elas constituem as possibilidades do Eu sou e do que Eu
posso ser, mas que por alguma cartografia fisiológica, anatômica, social, econômica,
histórica, acabou configurando-se ou não. Um exemplo disto é visto no trabalho do ator
ou atriz na composição de uma personagem: esta não é uma prostituta, por exemplo,
mas possui em si as energias potenciais que possibilitem a constituição deste devir
prostituta em seu corpo. O que esse artista necessita é descobrir como estimular estas
energias potenciais que auxiliem na composição-em-arte desta prostituta.
Equívocos como isto é um movimento da vida e não da arte são possíveis
mediante o exposto acima. Porém, é a busca por estímulos que auxiliem o ator a atiçar
suas energias potenciais que torna possível refletir sobre uma composição orgânica do
corpo-em-arte – e que o estímulo pode ser mais vivo se não procurado na própria
tessitura da vida e suas relações. É esta potência de relação que constitui a organicidade.
Não esqueçamos que ao representarmos a vida por meio da arte, procuramos
referenciais poéticos desta para aquela.

Vocês fazem um passeio a bordo de um barco em agradável


companhia. Estão almoçando, comem, bebem, conversam, cortejam as
damas. Estão fazendo isto tudo muito bem. Mas, isto é arte? Não, isso
é a vida. Agora imaginem outro caso: Vocês vêm ao teatro para
ensaiar. No palco se monta um barco, se põem a mesa; sobe-se ao
63

palco e se diz: Que faríamos se viajássemos a bordo de um barco e


almoçássemos em alegre companhia? Nesse momento começa a
criação artística (STANISLAVSKI apud TOPORKOV in JIMÉNEZ,
1990, p.307)37.

Para o ator, o trabalho com estas energias potenciais direciona e amplia suas
capacidades criativas. É na transformação destas em corporeidades e fisicidades que o
ator descobre ações, as quais são referenciais passíveis de modelagem para a
composição da presença e da organicidade do corpo-em-arte.
Por sua vez, acredito ser abstrato demais pensar em trabalhar-se diretamente
com a energia. Todavia, se a cogitarmos como indissociável do físico isso não se torna
tão absurdo quanto parece. A luz, por exemplo, se comporta ao mesmo tempo como
onda e como partícula. Irradiar presença e discursos a quem o assiste: não é a isso que o
artista cênico se dedica? Pensando dessa maneira, é pertinente cogitar que na
modelagem de uma ação, o trabalho com a fisicidade permite descobrir os pontos, as
microtensões que possibilitam o aprendizado da corporeidade. Esta incorporação
possibilita uma liberdade de se ir a qualquer lugar, de chegar ao cúmulo de se alterar
completamente a fisicidade e manter a corporeidade e vice-versa. Creio também na
existência do caminho inverso: chegar-se na fisicidade pela corporeidade.
O procedimento na mimeses corpórea inicia-se mediante a observação das
corporeidades e fisicidades de ações em pessoas, animais, fotos, pinturas, gravações,
etc, as quais o ator procura imitar posteriormente em sala de ensaio. Este processo de
aquisição se dá por meio de anotações, gravações, fotografias e da memória do ator. Na
busca da organicidade desta imitação no processo de sala de ensaio, o ator pode partir
do todo, tentando adquirir, ao mesmo tempo, as ações tanto físicas quanto vocais do
observado, e as intensidades que as acompanham. Este processo é viável, uma vez que o
foco de estudo pode ser revisitado a qualquer momento, porém, se este retorno à fonte
para consultas for inviável, pode-se dividir as características observadas de modo a
tornar sua aquisição o mais objetiva possível. Deste modo, o ponto de partida não se
torna o todo, mas suas especificidades, ou seja, ações, gestos, modos de falar e agir

37
Tradução minha: Usted hace um passeo abordo de um barco en grata compañia. Está almorzando en la
cubierta, come, bebe, charlla, corteja a las damas. Todo esto lo está haciendo muy bien. Pero, ¿es arte
esto? No, eso es la vida. Ahora imgínese otro caso: Usted viene al teatro a ensayar. En el escenario se
monta cubierta de um barco, se pone la mesa; sale al escenario y se dice: „¿Qué hariámos si viajáramos a
bordo de um barco y almozáramos em alegre compañia?‟ Em esse momento comienza la creación
artística.
64

registrados por meio de anotações, gravações de áudio, fotografias e da memória do


ator.
A técnica de mimeses corpórea, trabalhada pelo LUME, propõe a aquisição de
ações a partir da observação de pessoas em seu cotidiano ou na fala do ator Eduardo
Okamoto: “observação e imitação (recriação) de pessoas e animais”38. Portanto, torna-se
inviável a gravação em vídeo do observado, pois, segundo as próprias palavras de
Renato Ferracini, percebe-se que

[...] as pessoas portam-se de maneira diferente diante da câmera,


determinando, assim, uma relação diferente entre ator-observador e
pessoa-observada [...] a relação formalizada e estilizada provocada
pela câmera pode, de certa forma, criar uma imitação também
estilizada, pois provém de uma relação „não natural‟ e „filtrada‟ [...]
(FERRACINI, 2003, p.205).

A anotação é um recurso do qual se vale o ator para recuperar as ações


observadas. Este recurso pode ser trabalhado na mimeses de maneira objetiva, dividindo
em partes específicas as características do foco de observação, tornando-as mais fáceis
de serem adquiridas por parte do ator-pesquisador. A anotação adquire o caráter de
lembrar modos gerais e específicos das ações em sua sequência cronológica de
observação. O período desse registro deve ser o mais próximo, se possível, simultâneo,
impedindo que este material seja superficial devido a esquecimentos e à perda de
detalhes. Todavia, a utilização deste recurso deve ser equilibrada pelo ator na busca de
fornecer diferentes dimensões das ações pesquisadas.
Podem-se observar e anotar ações de modo direto, através do encontro com o
observado em um clima de entrevista ou conversa informal, por meio de encontros
contínuos ou alternados. Estes podem ser direcionados de maneira a suscitar variações
nos estados de ânimo, proporcionando variações nas ações que acompanham as falas do
indivíduo pesquisado. Outro modo de observação é a distanciada, sem contato direto
com o observado, para que a pessoa não se sinta observada e realize ações que
provavelmente não as faria sob contato direto.

38
Fala do ator-pesquisador Eduardo Okamoto em demonstração técnica sobre treinamento e mimeses
corpórea realizada no Barracão dos Clows, sede do grupo Clows de Shakespeare em Natal – RN, em
24/05/10.
65

Outra fonte para o processo de mimeses é o registro fotográfico. Este pode


acontecer durante a observação direta com o consentimento do observado, podendo
ocasionar novamente o mesmo efeito da filmagem em vídeo, isto é, produção de
posturas estilizadas. Para sanar este efeito procuram-se fazer algumas fotos sem aviso,
tomando o observado de surpresa. Após um tempo de contato, o indivíduo começa a
esquecer que está sendo fotografado e retorna a agir conforme a conversa e menos por
meio dos estímulos fornecidos pela presença da câmera.
O registro sonoro é feito de maneira similar, por meio de um gravador colocado
de forma estratégica e discreta, procurando interferir o mínimo possível no encontro
com o observado e em sua produção de ações. É importante frisar que a coleta do
material a ser trabalhado, principalmente no contato direto com o indivíduo pesquisado,
deve acontecer com um compromisso ético de respeito, para não gerar entendimentos
desagradáveis ou constrangimentos junto às pessoas pesquisadas. Toda e qualquer
atividade de anotação, fotografia ou registro de áudio deve ser feita com respeito ao
pesquisado, sendo trabalho do ator-pesquisador encontrar os meios para relacionar
organicamente os instrumentos de registro.
Para reativar a memória de uma observação o ator-pesquisador também pode se
valer de objetos doados durante o contato com o observado, ou comprados segundo
especificações originadas durante sua pesquisa. Estes objetos ajudam na aquisição das
ações coletadas, uma vez que as pessoas observadas os manipulavam, influenciando
diretamente na feitura da ação observada.
O LUME Teatro propõe ao ator que se vale da técnica de mimeses corpórea que
se utilize de suas anotações, fotografias e registros de áudio para a aquisição das ações
observadas. Primeiro, somente o ator que realizou a anotação pode se valer dela devido
ao seu caráter extremamente pessoal, gerando, assim, uma imprecisão na mimeses feita
por alguém alheio à sua produção. Postura distinta pode-se ter diante dos registros
fotográficos e de áudio que são menos subjetivos que as anotações de cada ator,
proporcionando, deste modo, um registro mais objetivo para a imitação.
Com este material de registro o ator inicia seu trabalho em sala de ensaio para a
recriação dessas ações em sua musculatura. Um exemplo de sequência prática de
aquisição de ações: consulta ao registro do material coletado (anotações, seleção de
fotos, ouvir as gravações), a procura do ator para recriá-las da maneira mais precisa,
buscando equivalentes na própria musculatura, pois a partir da repetição, o ator
66

consegue memorizar as ações e então codificá-las. Este processo de codificação das


ações observadas gera um repertório de matrizes de cada ator, o qual é entendido no
trabalho do LUME como “o material inicial, principal e primordial; é como a fonte
orgânica de material do ator, à qual ele poderá recorrer, sempre que desejar, para a
construção de qualquer trabalho cênico. A matriz é a própria ação física/vocal, viva e
orgânica, codificada” (op. cit, p.116, grifos do autor).
Estando codificadas, as matrizes podem ser modeladas e agrupadas na
composição da personagem, ou seja, na organização dos discursos do corpo-em-arte. O
trabalho com a modelagem das matrizes são o começo da terceira e última etapa da
técnica de mimeses corpórea: a teatralização. Nesta fase, inicia-se o processo de
composição da cena propriamente dita. Para tanto, o ator e o encenador trabalham o
repertório de matrizes, objetivando sua visualidade e a proposição de discursividades ao
espectador. Assim, tornar uma ação mais teatral é pensar na alteração de seus elementos
constituintes como: tamanho, ritmo, fluência, etc. É propor sua organização enquanto
poesia e não somente como a literalidade requerida no cotidiano. Dito de outro modo, é
organizá-la a fim de compor a poesia da cena e o espaço de troca-em-arte.
É a seleção e junção das ações codificadas pelo ator que podem ser originadas
de uma pessoa observada ou da organização pessoal do pesquisador sobre os vários
materiais coletados, que proporcionam a construção do corpo-em-arte por meio da
mimeses corpórea.
É na busca por uma repetição orgânica do material de ações coletadas que o ator
consegue a interiorização. Procurando os equivalentes destas em sua própria pessoa,
insuflando neste material, aparentemente mecânico, sua própria vida. “A interiorização
deverá, sempre, estar presente e será de fundamental importância para que a mímesis
realize-se com profundidade e verdade. Sendo assim, uma manifestação artística do
corpo, e não a mera estereotipização do cotidiano observado” (op. cit., p. 213).
Outra característica que pode estimular o ator na interiorização das ações
observadas é o que Ferracini (2003) denomina de “memória energética” (op. cit., idem.).
Ela consiste na percepção do ator de alguma característica do observado, um estado
corpóreo recorrente durante o contato, como, por exemplo, a dor, a alegria, tristeza, o
abandono, ou qualquer outra sensação manifesta no corpo do entrevistado ao tratar de
algum assunto. Todavia, “convém dizer que essas não são afirmações antropológicas
que busquem definir culturas e tendências deste ou daquele povo ou lugar, mas
67

simplesmente percepções de atores-pesquisadores que, de certa forma, „sentiram‟ esses


elementos nos encontros com as pessoas” (op. cit., p.214).
O mesmo processo pode ser feito ao observar ativamente Mestre Zequinha. É
percebendo os detalhes, as minúcias físicas contidas na singularidade de seu modo de
brincar, que encontramos os caminhos de acesso a um nível diferenciado de presença.
Cumpre dizer que partindo de fatores concretos como anotações, fotografias ou registros
de áudio, percebendo os detalhes nas ações observadas, com seus ritmos, tônus e demais
dinâmicas corporais, o ator pode realizar a mimeses de uma pessoa pesquisada.
Através de equivalentes orgânicos entre a energia registrada e a dos próprios
atores, a codificação originada pela mimeses ganha vida. Neste processo, é natural que o
ator se distancie da matriz original. A fala da atriz Ana Cristina Colla do LUME Teatro,
em entrevista concedida a Renato Ferracini em 1998, esclarece este processo
aparentemente paradoxal:

É como se eu mergulhasse na essência da matriz, que no caso é Dona


Maria. A voz, antes, quando imitada precisamente, não dava a noção
de velha. À medida que fui me abandonando à sensação dessa voz, ela
mudou ligeiramente, mas ao mesmo tempo, encontrei a essência
orgânica da matriz. Agora, ela é muito mais precisa que antes, pois
parece que estou imitando sua vida, e não simplesmente suas ações. É
como se, com o tempo, eu tivesse encontrado em meu corpo a
fragilidade dos oitenta anos. Não mais necessito provocar o tremelicar
externo, observado em Dona Maria. Basta mergulhar no universo
dessa fragilidade descoberta, que o tremelicar do corpo e da voz e essa
debilidade dos movimentos aparecem naturalmente em minha
musculatura (Ana Cristina Colla, entrevista concedida em 1998 apud
FERRACINI, 2003, p.215).

O treinamento proposto pelo LUME Teatro consiste em instigar o ator a fazer


um mergulho cada vez mais profundo em sua própria pessoa, explorando
potencialmente as dinâmicas de suas energias. É natural que, ao codificar uma ação
imitada transformando-a em um material de trabalho, o ator se distancie do referencial
que a originou. A composição da matriz permite um domínio sobre o material
observado e coletado. Este, por sua vez, proporciona ao ator um domínio sobre um
referencial que potencializa seu trabalho criativo por meio de sua porosidade a
modelagens, as quais o lançam a novos afetos e possibilidades de afetação. Pode-se
dizer, então, que, de certo modo, é a descoberta destes afetos que possibilitam a
68

aquisição das ações observadas. Afetos são nesse sentido entendidos como o que afeta o
ator para que ele possa afetar o espectador, transmitindo a poesia das ações observadas.
A poesia estaria então diluída no espaço-tempo cotidiano. O ator, a seu modo, capta este
poético na forma de afetos e tenta transpô-lo de forma teatral para a cena.
Esta observação configura-se por um ato minucioso de se perceberem as
características escondidas nas ações observadas, como sua duração, intensidades no
espaço, intenções, coloridos e dinâmicas que as particularizam gerando territórios
específicos, embora maleáveis após um tempo de prática. Assim a técnica de mimeses
corpórea

[...] se situa entre o treinamento e a montagem. Ela já não é em si


treinamento, mas, ao mesmo tempo, por ainda não existir, deve ser
treinada. Ela se encontra sobre a ponte que liga o treinamento à
montagem: precisa de um treinamento que a anteceda, mas ainda não
é a técnica de representação. Embora, com relação ao treinamento,
seja mais próxima da representação, existe um momento no qual ela
deve estar próxima de si mesma; um momento identificável com o
treino quando o ator se trabalha (BURNIER, 2001, p.182).

A palavra mimeses possui na língua portuguesa o mesmo equivalente linguístico


de imitação, todavia, para designar o trabalho desenvolvido na técnica de mimeses
corpórea seria mais propício entender esta imitação como uma busca do ator por
“equivalências orgânicas de observação cotidiana” (FERRACINI, 2003, p.204).
Acrescento ainda mais um ponto: é a procura por uma recriação destas ações pelo ator.
Se pensamento é criação (FERRACINI, 2006a, p.27), é na busca por estes equivalentes
orgânicos de ações externas ao corpo do ator, que se encontram os modos pelos quais
elas possam ser reativadas durante o Estado Cênico por este mesmo ator. Esta recriação,
esta busca por equivalentes orgânicos, não é o que está no corpo do observado, mas algo
que traga-lhe o vigor, a corporeidade observada no momento de coleta desta ação. É
neste trabalho que se encontra a mimeses do ser observado e as possibilidades de
modelagem da mesma.
Os contatos que tive com a técnica de mimeses corpórea se deram através de
leituras, espetáculos e demonstrações técnicas. Destas experiências, destaco o
espetáculo Café com Queijo (1999), a que assisti em 2002 nas dependências do Hotel
69

Globo em João Pessoa – PB, na época do festival Riso da Terra39, e a demonstração


técnica de Seu Teotonio de Jesser de Souza, ator-pesquisador do LUME Teatro, que tive
o prazer de ver no subsolo da Fundação Espaço Cultural – FUNESC, em época do VI
Festival Nacional de Arte – FENART, realizado também na cidade de João Pessoa –
PB. O que quero expor é que para o desenvolvimento desta pesquisa, não tive nenhuma
vivência prática acerca da mimeses corpórea. Todavia, isso não me impediu de observar
nela um referencial metodológico que guiou a pesquisa que originou esta dissertação.
No coletivo UZUME teatro, a mimeses corpórea orientou o processo de
aquisição das corporeidades e fisicidades do folguedo do Cavalo Marinho incorporadas
por Mestre Zequinha. Todavia realizei, como coordenador deste trabalho, algumas
apropriações acerca da referida técnica de modo a direcionar esta pesquisa ao objetivo
pretendido de experienciar um processo de construção do corpo-em-arte por meio do
foco de pesquisa escolhido.
Em primeira instância éramos três: Clara Talha, Vitor Blam e eu. Começamos os
ensaios em sala reservada no Teatro Lima Penante, onde funciona o Núcleo de Teatro
Universitário da UFPB. Começamos nos encontrando todos os dias de manhã, das oito
ao meio dia. Como primeira prática, orientei o aprendizado de danças populares de que
tinha conhecimento, tais como cavalo marinho pernambucano, batuque paulista, coco,
ciranda, jongo e frevo. Junto a este aprendizado realizamos séries de abdominais e
flexões paradas, a fim de trabalharmos a resistência muscular, a qual ajudaria a realizar
alguns dos passos das danças que estávamos abordando.
Procurei Emilson Ribeiro, coordenador de cultura popular da FUNJOPE na
época. Ele me apresentou Fernando Oliveira, Seu Nandinho da Cultura, o RH do grupo
de Cavalo Marinho de Mestre Zequinha, através do qual conheci Mestre Zequinha.
Neste momento conversamos, falei que fazia parte de um grupo de teatro e que gostaria
de pesquisar o grupo de Cavalo Marinho dele com a intenção de montar um espetáculo
de teatro. Perguntei se ele poderia ensinar a mim e a meu grupo de teatro como dançar
Cavalo Marinho. Ele respondeu, afirmativamente, e assim pude organizar aulas
semanais de três horas de duração com Mestre Zequinha.

39
Festival de palhaços ocorrido na cidade de João Pessoa – PB no ano de 2002, organizado pela
Fundação Cultural João Pessoa – FUNJOPE. Procurei registros desse encontro na referida fundação, mas
nada encontrei até o término deste trabalho. Todavia, consegui uma cópia em DVD de filmagens avulsas
deste festival na biblioteca do LUME Teatro, em Barão Geraldo, distrito de Campinas – SP.
70

Esses encontros se deram, primeiramente, no Rotary Club ou na sede onde são


guardados os brinquedos do grupo de Cavalo Marinho de Mestre Zequinha, ambos em
Bayeux – PB, depois em sala reservada pelo coletivo UZUME teatro no Theatro Santa
Roza em João Pessoa – PB. Devido à aprovação de um projeto organizado por mim
junto a FUNJOPE para aulas de construção de rabeca para, de Junho de 2010 até o final
da pesquisa, as aulas de Cavalo Marinho passaram a ser no Teatro Cilaio Ribeiro devido
à possibilidade de juntar as duas atividades.
Seguíamos a sequência de músicas em um CD gravado por Mestre Gasosa,
falecido mestre de Cavalo Marinho, do qual Mestre Zequinha herdou o grupo. Por meio
da ordem de suas músicas aprendemos os passos observando e sendo observados por
Mestre Zequinha. Aconteceu, algumas vezes, do CD não funcionar devido à arranhões
ou ao aparelho de som que não aceitava cópias. Mestre Zequinha era o mais
desconcertado entre nós, pois apontava as dificuldades no aprendizado dos passos de
dança do Cavalo Marinho sem a música para marcá-los. Percebi, então, que existem
duas camadas musicais neste folguedo. Uma conferida pelo banco de músicos e seus
instrumentos que, nesta expressão de Cavalo Marinho, se compõe de uma rabeca, um
triângulo e um pandeiro. Nesta primeira dimensão musical, encontra-se a base rítmica
da dança que é produzida pelo pandeiro guiando os passos de dança dos brincantes, “se
alguém se perde durante a brincadeira é só ouvir o pandeiro que logo se encontra”40.
Ainda produzido pelos músicos existe a camada melódica da brincadeira, que é feita
pela rabeca e acompanhada pelo canto de Mestre Zequinha.
No decorrer das aulas de produção e toques deste instrumento com Mestre Zé
Hermínio, rabequeiro deste grupo de Cavalo Marinho, após a morte em 2002 de seu
irmão, Seu Arthur, percebe-se claramente que a rabeca canta as músicas que são tocadas
nela ou, nas falas de Mestre Zé Hermínio: “Na rabeca não existe nota não. O que tem é
a ideia da música”41. É esta parte melódica que guia a evolução dos quadros do Cavalo
Marinho com seus passos e entradas de figuras. A outra camada musical constitui-se
pelo som do sapateado produzido pelos passos dos Brincantes. Desta forma, torna-se-ia

40
Mestre Zequinha em aula concedida em setembro de 2009 no Rotary Club em Bayeux – PB.
41
Fala do rabequeiro Mestre Zé Hermínio em aula no dia 18/06/10 à noite, em época do projeto
RABEQUIANDO: construindo e tocando rabeca, organizado por mim e financiado pelo Edital de
Oficineiros 2010 da FUNJOPE.
71

inviável realizarmos alguns encontros com Mestre Zequinha para aprender os passos do
Cavalo Marinho sem que tivéssemos o acompanhamento da música.
Aprendemos os passos desta dança popular seguindo a sequência contida no CD
de Mestre Gasosa, todavia, Mestre Zequinha nos passava alguma outra configuração
que não estava contida no CD que utilizávamos. Exemplos deste processo é a música
“São Gonçalo do Amarante”, uma variação da dança dos arcos, e os textos, músicas e
formas das figuras de máscara, como o Véio Frio, Mané Chorão e o Abana Fogo. Para
tanto Mestre Zequinha, enquanto nos mostrava os passos e posturas corporais dessas
figuras, cantava as músicas e marcava seu tempo com os pés ou com o apito, que é o
instrumento que marca tanto a entrada e saída das figuras, quanto o começo e o fim das
músicas e danças deste folguedo.
Nosso aprendizado sobre a expressão do Cavalo Marinho praticada por Mestre
Zequinha acabou por se concentrar nas músicas, loas, aboios, coreografias e passos de
dança, principalmente nesses últimos. Devido ao convívio proporcionado por esta
pesquisa, pude perceber que estes elementos eram os mais utilizados na composição
dessa expressão de Cavalo Marinho. Durante as aulas com Mestre Zequinha, procurava
chamar a atenção dos atores para os detalhes que diferenciam o modo de dançar do
Brincante pesquisado, dos demais praticantes de seu grupo: um pé que fica mais tempo
no chão, um impulso específico, uma batida, entre outros. Por menores que fossem estas
características, é perceptível a diferença que proporcionam na execução dos passos por
Mestre Zequinha. Ao fazer isso procurava estimular o desenvolvimento de um olhar
mais apurado em meus colegas de grupo.
Em sala de ensaio procuramos seguir a mesma configuração das oficinas de
Mestre Zequinha, ou seja, colocávamos o CD para tocar e dançávamos procurando
recuperar o que foi aprendido e observado. As principais fontes de consulta deste
processo foram as anotações dos atores e as filmagens que realizei. Diferentemente dos
modos de registro propostos pela técnica de mimeses corpórea trabalhada no LUME
Teatro, em nosso caso, o indivíduo observado não se encontrava em uma situação
cotidiana. Durante as aulas, Mestre Zequinha apresentava um comportamento
semelhante ao visto em suas apresentações com seu grupo de Cavalo Marinho.
Encontrávamo-nos em uma situação artificial no sentido de ser preparada
propositalmente, isso tanto nas aulas como quando assistíamos às apresentações de
Mestre Zequinha e seu grupo ou participávamos delas.
72

O que posso ressaltar é que existe uma constituição específica dos passos desse
Cavalo Marinho, os quais fornecem um referencial para a liberdade de improvisação
desse Brincante. Essa dinâmica de improvisação só era alcançada após um tempo,
quando o corpo de Mestre Zequinha se encontrava quente. Mesmo sendo filmado ele se
demonstrava à vontade para improvisar e fazer brincadeiras durante as aulas. Acredito
que a utilização de filmagens não interferiu em nossa pesquisa devido estarmos
estudando a composição de um corpo-em-arte da brincadeira do Cavalo Marinho, o
corpo de Mestre Zequinha, especificamente, com suas corporeidades e fisicidades
características.
Hoje, com o distanciamento sobre este processo, percebo que o intuito desta
pesquisa era aprender as minúcias que a experiência de Mestre Zequinha proporcionou à
composição de seu brincar, ou seja, à organização de seu corpo-em-arte para a
brincadeira. É por meio deste estado corporal que o Brincante realiza, comunica, resiste,
atualiza e oferece continuidade à manifestação do Cavalo Marinho. Este aprendizado,
por sua vez, seria refletido por nós, atores do coletivo UZUME teatro, para a construção
de outro espaço de troca-em-arte, diferente do composto na brincadeira organizada por
Mestre Zequinha, mas vetorial42 a ela. Assim, identifico as corporeidades e fisicidades
da brincadeira do Cavalo Marinho como os modos de brincar utilizados por seus
praticantes e suas características, que tornam, praticamente, individual cada forma de se
brincar.
Dito de outro modo, as corporeidades e fisicidades do CM são tanto os passos de
dança, as posturas das figuras, as músicas, loas, aboios e o modo como são executados
durante a brincadeira, quanto as características que diferenciam e territorializam cada
manifestação popular, constituindo e qualificando a performance de seus Brincantes.
Estas características são passiveis de observação durante a brincadeira e demonstrações
de seus praticantes, a exemplo de Mestre Zequinha. Assim, são válidas as orientações
fornecidas na técnica de mimeses corpórea, por que, por meio de uma observação ativa,
treinada para perceber as minúcias desta técnica é possível aprender e codificar as
características desta prática, possibilitando sua modelagem para a composição de outros
espaços cênicos além do seu tradicional. Na trajetória desta pesquisa, era o desenho dos

42
No sentido de partir desse algo para outro contexto, não necessariamente pertencente ao espaço
original.
73

passos do Cavalo Marinho e a observação ativa de como Mestre Zequinha os executa


que possibilitou o aprendizado das formas de como este mestre brinca.
Deste modo, após as aulas com Mestre Zequinha, para facilitar o aprendizado
das fisicidades e corporeidades típicas dos passos de dança do CM, procurei propor
alguns exercícios que auxiliassem a assimilação destas por parte dos atores. Para tanto,
procurei inspiração nas ocupações espaciais dos quadros do Cavalo Marinho
pesquisado. A título de exemplo cito um exercício que eu mesmo propus para um dos
ensaios do coletivo UZUME teatro.
Na composição desta brincadeira do Cavalo Marinho que estudamos, existe um
quadro denominado “dança do oito”, no qual os galantes dançam circundando em fila
indiana, Mateus, Birico e Catirina, de modo que seu trajeto forma um oito. O passo
dançado pode ser o passo só ou galope. A partir desta configuração, em sala de ensaio,
propus que fizéssemos o mesmo trajeto, mas com a seguinte orientação: a partir de
marcações no chão que eram feitas com sandálias, nos movimentaríamos como na
dança do oito, só que a primeira pessoa da fila iria propor qualquer dos passos deste
folguedo. Eu procurei participar desses exercícios, porém, algumas vezes tive que me
distanciar para melhor observar sua execução. Essa ação me possibilitou uma melhor
orientação do exercício, chamando a atenção para algum elemento do passo que sentia
falta na execução dos atores. Isto auxiliou na aquisição das matrizes básicas do foco da
pesquisa.
Como é passível de ser percebido, o momento de aquisição das corporeidades e
fisicidades encontradas no folguedo pesquisado se deram, praticamente, ao mesmo
tempo de sua observação. Em sala de ensaio procurávamos aperfeiçoar os passos e
demais elementos transmitidos por Mestre Zequinha, sua memorização. O processo de
aprendizado deste Cavalo Marinho configurou-se a partir de uma “observação ativa, ou
seja, uma observação imitação” (BURNIER, 2001, p.186). O caminho da memorização
deste material aprendido nas aulas de Mestre Zequinha configurou o início para a
codificação pessoal dos atores. Foram três modos principais de formalização que
utilizamos43:

43
Estas maneiras de codificação e trabalho com o Cavalo Marinho serão abordadas de forma mais
detalhada no tópico 2.1 Vários corpos de espaços diversos - mudar e ainda poder ser o mesmo, do II
Território desta dissertação.
74

1) O ator, munido dos conhecimentos apreendidos com Mestre Zequinha, gera


uma atmosfera de improvisação, seja por meio da repetição-dinamização de um
exercício de alongamento ou de algum passo de Cavalo Marinho, livremente ou por
estímulos da música, este deixa-se agir pelo espaço. Esta improvisação oferece calor e
velocidade, ou seja, dilatações e imprevisibilidade na produção de um livre
experimentar sobre as dinâmicas da dança popular aprendidas. Esta atitude visa reduzir
o espaço para sínteses de consciência, racionalismos que mais poderiam bloquear o ator
artificializando sua experimentação, diminuindo a organicidade que surge naturalmente
neste ambiente de modelagem da dança do Cavalo Marinho em questão.
2) O ator realiza uma organização pessoal, a partir dos elementos apreendidos do
Cavalo Marinho, e a repete até codificá-la. Esta pode ser trabalhada no tempo-espaço
por meio de estímulos diversos. Em nosso caso particular utilizamos geralmente
músicas ou trechos de texto, podendo ser o que pretendemos montar ou algum outro que
estimulasse o ator a experimentar algo direta ou indiretamente na composição do corpo-
em-arte.
3) Consiste no caminho inverso do processo descrito anteriormente. Através de
um trecho de texto a ser trabalhado, o ator, envolvido em uma atmosfera de
imprevisibilidade e improvisação proposta pela repetição e dinamização de algum
componente corpóreo do Cavalo Marinho, experimenta justaposições entre a dança
popular e o texto, de modo a permitir que um influencie a execução do outro, gerando
um terceiro elemento composicional.
A partir das atividades expostas acima, comecei a perceber a possibilidade de
junção entre as etapas de observação/codificação e codificação/teatralização da técnica
de mimeses corpórea.
Na primeira etapa o ator destina-se a aprender pormenorizadamente as
corporeidades e fisicidades características do Cavalo Marinho, procurando observar
atentamente os detalhes mínimos, escondidos na prática de Mestre Zequinha. O ator,
então, praticamente disseca a brincadeira no sentido de tentar entender suas minúcias
para, assim, melhor assimilá-las em seu próprio corpo. Nesta trajetória em busca da
aquisição dos conhecimentos empíricos do Cavalo Marinho, o ator procura equivalentes
orgânicos deste folguedo em seu corpo, procurando tornar o aprendido próximo do
transmitido por Mestre Zequinha, no entanto, com uma roupagem dada pelo ator que a
75

adquiriu. Assim, ele codifica as corporeidades e fisicidades, ao mesmo tempo em que


elas o abrem para buscar outras codificações para além da tradição.
Os processos de aquisição de corporeidades e fisicidades como pontos
referenciais passíveis de serem modelados para a composição do corpo-em-arte,
assemelham-se ao aprendizado de se tocar a rabeca.
A rabeca é um instrumento semelhante ao violino, mas construído de maneira
artesanal, procedimento que lhe confere um som mais rústico que o do violino. Ela
fornece a camada melódica da música do Cavalo Marinho. A primeira coisa que se
aprende a fazer para tocar a rabeca é afiná-la. No começo se passa mais tempo tentando
afinar suas cordas do que tocando, e qualquer acidente como uma batida, um aperto na
tarraxa errada se tem que começar novamente o trabalho. Porém, com o tempo, parece
que ela vai entendo a afinação que tem que segurar, tornando mais fácil e rápido afiná-
la. Do mesmo modo, com persistência, o ator vai incorporando tanto as organizações do
Cavalo Marinho, quanto as codificações propostas por ele. É a repetição assídua desse
material que auxilia a manutenção de sua potencialidade. Uma repetição mecânica, fria,
na qual se objetiva guardar o desenho, a espacialidade, enfim, a fisicidade da ação,
como também uma repetição energética que busca a memória das qualidades de
vibração e variações de coloridos e intensidades deste material, de sua corporeidade.
A mimeses corpórea ofereceu uma didática para nosso trabalho com a
composição da organicidade de ações e presença dos atores. O racionalismo mecaniza a
ação. Quando conversamos ou nos encontramos em algum ambiente que nos acolhe,
nossas ações são tranquilas, vivas; agimos e não pensamos nisso. Deve ser à procura
desta quietude da mente, deste acolhimento do consciente que partimos em busca de
repetições e improvisações que nos fazem suar, ofegar, doer os músculos. A prática da
observação nos acolhe fornecendo um referencial em que podemos apoiar os trabalhos
técnicos e energéticos desenvolvidos durante a preparação. É um processo ativo de
observação. Procuram-se captar os elementos físicos e, se isto é possível, os porquês
que constituem a significação deste estado de acolhimento no indivíduo. Reproduzir e
trabalhar estas ações, procurando uma capacidade de relacionar-se (organicidade).
Parece-me ser este o objetivo e mérito da técnica de mimeses corpórea.
Na etapa de observação/codificação dos elementos do Cavalo Marinho, o ator
afirma o aprendido partindo à procura de oferecer uma modelagem à prática do Cavalo
Marinho. Ele procura guardar ações que descobriu através de improvisações, ou seja, o
76

ator compõe matrizes, seja a partir dos passos do Cavalo Marinho ou de ações
encontradas por meio dele. As matrizes compostas serão trabalhadas na etapa seguinte,
de codificação/teatralização, na qual se inicia a composição do corpo-em-arte de outro
espaço cênico vetorial ao encontrado na brincadeira do Cavalo Marinho.
Objetivando modelar as organizações propostas na primeira etapa, procurei
oferecer aos atores estímulos diversos como músicas, objetos, relações
espaço/tempo/ator, até mesmo trechos de falas do texto que montaria como experimento
desta pesquisa. Este último direciona de maneira objetiva a modelagem do Cavalo
Marinho e a produção de ações dos atores para a composição do corpo-em-arte. Em
verdade, o foco desta pesquisa possui um caráter de dupla seta para o trabalho de ator:
ao tempo em que ele se vale da prática da brincadeira contida nesta manifestação para
trabalhar os elementos energéticos e técnicos de sua arte, o ator também pode procurar
nela um meio para ampliar seu repertório de ações. Desta forma, é possível que um
artista que se vale de uma técnica codificada como é a do Cavalo Marinho, possa
utilizá-la tanto na busca de potencializar seu trabalho de ator, como um poderoso
referencial para a descoberta de ações que farão parte da composição de seu corpo-em-
arte.

1.4. RELAÇÕES E: ATOR, BRINCANTE, ATOR-BRINCANTE =


TERRITÓRIOS/FRONTEIRAS E ZONAS DE VIZINHANÇA

As palavras vazam.
Edward Sapir44

Pretendo abordar neste tópico os entendimentos sobre Ator, Brincante45, ação46 e


preparação, os quais orientaram na experimentação prática sobre o Cavalo Marinho.

44
Ideia fornecida pelo linguista Edward Sapir, citado por Tomaz Tadeu da Silva no artigo Por uma
pedagogia da diferença, disponível no sítio: www.lite.fae.unicamp.br/papet/ep514/texto11.htm, visitado
em 16/11/2009. Esta ideia também está contida em Renato Ferracini, Café com Queijo: corpos em
criação, São Paulo: HUCITEC, 2006a, p.59.
45
Opto por escrever Ator e Brincante em maiúscula quando me referir a eles enquanto a pessoa e o
profissional, acreditando que assim estarei concordando com Grotowski ao tratar do Performer como “o
homem de ação. Não é o homem que faz a parte do outro. É o dançarino, o sacerdote, o guerreiro: está
fora dos gêneros estéticos” (1993, p.78).
77

Procuro fazer isto na intenção de delinear as escolhas teóricas que guiaram este
processo de pesquisa. Para tanto, me valho da filosofia proposta por Gilles Deleuze e
Félix Guattari, acreditando que, deste modo, me aproximarei mais do entendimento de
Renato Ferracini acerca do corpo-em-arte. Este autor se vale do mesmo referencial
filosófico para propor o conceito de corpo subjétil, o qual, em síntese, trata do corpo-
em-arte em contato com as demais dramaturgias do Estado Cênico: iluminação,
figurino, cenografia, atores, espectador, espaço, etc.
Ao abordar os conceitos que auxiliaram o desenvolvimento prático desta
pesquisa, procuro fazê-lo de forma a destrinchar estes entendimentos. Tento identificar
seus territórios no intuito de aproximá-los em suas práticas, para então tecer
considerações sobre o Ator-Brincante. Não seria o Ator um Brincante e o Brincante um
Ator? Nesse fazer, esbarro em outros dois territórios: a priori, o do corpo, a posteriori, o
que designa seu processo formativo – a preparação. Estes horizontes com suas
velocidades e infinitas possibilidades permeiam o conceito de Ator e Brincante, embora
de maneiras diferentes e, devido a essa diferença, as compreensões sobre eles se fazem
necessárias para melhor se entender o material de trabalho e as possibilidades de fazer
do Ator-Brincante.
A atriz-pesquisadora Ana Caldas Lewinsohn (2008) em sua dissertação O Ator
Brincante; no contexto do teatro de rua de do Cavalo Marinho, tece considerações
sobre uma proposta similar a que estou considerando como um Ator que procura ser
Brincante. Todavia ela se refere a um estado de brincadeira, acredito que isso se deva a
seu foco de pesquisa ter sido o Mateus feito por Mestre Martelo de Condado – PE.
Torna-se difícil tentar conceituar as figuras do Mateus, do Bastião e da Catirina, pois ao
mesmo tempo em que elas têm uma configuração precisa, realizam diversas
improvisações sobre ela.
Os passos de dança, cantos e loas vêm somar-se à configuração de um estado de
brincadeira dessas figuras. Talvez seja esta uma diferença entre o Cavalo Marinho de
Pernambuco e o da Paraíba: ao tempo em que o primeiro possui mais figuras
mascaradas, é possível observar-se uma composição de estado corporal ou um estado
brincante, organizado e preciso sob o qual o Brincante realiza variações. Na brincadeira
paraibana que pesquisei existem mais figuras fantásticas e de animais, as quais possuem

46
Prefiro usar o conceito de ação a ação física por acreditar que ambas possuem igual teor ao tratarem da
prática cênica. Todavia, em citações sobre o tema, mantenho o termo ação física.
78

o mesmo passo e geralmente são botadas por um mesmo Brincante. As loas e os cantos
dessas figuras são proferidos pela figura do Capitão Marinho. Todavia, existe uma
natureza de improvisação nos passos de dança realizados por essa figura junto ao
cortejo de Galantes. É sobre este modo de brincar o Cavalo Marinho, que esta pesquisa
se debruça. Embora possuam características semelhantes ambas as abordagens, cada
uma possui um território de observação distinto: eu, as formas como Mestre Zequinha
brinca o Cavalo Marinho e como o ator pode desdobrar essa técnica para a composição
do corpo-em-arte, diferente de Lewinsohn (2008) que busca na figura do Mateus de
Mestre Martelo um estado de brincadeira para o ator do Teatro de Rua:

Provavelmente, o que falta não é um elemento que pode ser


reproduzido, ou seja, não há como tentar imitá-lo. Esse elemento, que
chamarei aqui de estado depende de cada um. O estado mistura a
forma e uma intenção, gerada por uma motivação. Ou seja, ao
observar uma expressão artística, existe uma motivação para isso, uma
força subjetiva que atravessa o observador e faz com que ele se afete
com essa expressão e por isso queira apreende-lâ. Da mesma forma,
há uma força que gera o estado do artista observado, e é a partir do
encontro dessas forças, dessa relação criada pela observação, que o
observador deve perceber que força nova é essa, e guardá-la para que
seja um motor gerador de um novo estado e, conscientemente, juntá-lo
à forma apreendida quando quiser reproduzi-la em re-criações
(LEWINSOHN, 2008, p.84, grifos da autora).

A seguir a abordagem sobre o Ator-Brincante, proponho a ideia de uma


preparação em oposição ao termo treinamento, devido à crença de que este guarda em
si mais ambiguidades do que uma orientação para o trabalho de ator. Vejo o treinamento
mais como uma prática condicionante em busca de automatismos, de objetivos
divergentes dos almejados pelo artista cênico, é “uma palavra durante muito tempo
reservada ao trabalho de preparação dos cavalos de corrida [...] Esta prática „consistia
em corridas seguidas de cuidados que têm por objetivo livrar o cavalo de seu supérfluo
e ensiná-lo a correr‟” (LAISNÉ apud COURTINE, 2008, p.201).
Tendo esclarecido o que tratarei, começo por falar da terra e, como me disse
uma vez Renato Ferracini: “paradoxalmente, para poder voar é preciso que os pés
estejam enraizados no chão”47.

47
Fala de Renato Ferracini durante a disciplina “Treinamento Técnico do Ator”, ministrada durante o
curso de Especialização latu sensu em Representação Teatral oferecido pela UFPB nos anos de 2007-09.
79

É na terra, nesta memória-universo, neste tempo-espaço indistinto onde os


territórios são gerados. Nela aparecem lugares povoados e caracterizados por figuras e
conceitos. As figuras são imagens que propõem uma religião48, uma ligação entre os
diversos territórios. É por elas que podemos ligar os diferentes povos. São elas outras
velocidades do pensamento, ou seja, da criação que, por sua vez, produzem outras
desacelerações; sínteses do pensamento – conceitos que vêm do geral ao específico. São
eles, figuras e conceitos, que formam as fronteiras e tecem conexões entre os diferentes
territórios. A imagem e a palavra possuem em si mesmas uma dicotomia a qual uma nos
leva a outra e assim não existirá mais nem sujeito ou objeto, mas ambos imbricados
num só fazer. Impossível, então, pensar-se num mundo regido por imagens puras.
É tentando borrar estas fronteiras que se encontra uma zona turbulenta, de
indiscernibilidade. É nessa zona em que procuro perder-me e perdido não sabemos mais
o que é uma coisa ou outra que parecem uma coisa e outra. Este movimento me permite
pensar em uma ética de trabalho na qual não exista mais Ator ou Brincante, mas Ator e
Brincante – um Ator-Brincante.
Peço desculpas ao leitor se vez ou outra me detenho um pouco mais na
multiplicidade destes conceitos. Procuro me justificar por meio do objetivo de
identificar as diferenças sobre as escolhas feitas no decorrer deste processo de pesquisa
que desenvolvi junto ao coletivo UZUME teatro. Estes entendimentos possibilitaram-
me apreensões daquilo que me afetaram enquanto massa biológica sujeita à força
gravitacional (corpo bruto), enquanto constructo social-cultural-econômico-histórico
(corpo cotidiano) e enquanto bloco de sensação(ões) atravessado por intensidades (ator
e espectador). Elas fazem parte da zona de dilatação que procuro elencar aqui como
trajetória, o estado vetorial ao corpo cotidiano – um corpo-em-arte que flui em estado de
troca-em-arte.
Tangenciei, no parágrafo anterior, a abordagem referente à conceituação de
“corpo” nesta pesquisa. Partindo dessa reflexão de forma a seccioná-la para melhor
compreendê-la, pretendo chegar aos entendimentos sobre o Ator e seu processo
criativo/formativo manifestado no decorrer da Atuação49.

48
Entendida em seu sentido mais arcaico e ideológico, do latim religiore, o qual não se limita à crença
sobre uma divindade, mas a inclui.
49
Procurarei me deter mais sobre o conceito de Atuação utilizado nesta pesquisa no tópico 2.1 - Vários
corpos de espaços diversos - mudar e ainda poder ser o mesmo, do II Território, quando falarei das ideias
80

A compreensão do corpo enquanto tentativa de conceituação, encontra-se numa


zona abstrata, uma zona de devir intelectivo. Esta prática que, por um lado, pode se
tornar mais racionalista, distanciando o corpo de uma consideração mais objetiva, até
mesmo empírica. Por outro, torna possível a imaginação de uma funcionalidade desse
corpo em outros territórios além dos dispostos na vida cotidiana, a qual, por sua vez,
inscreve no corpo sua passagem e as relações antropomórficas a que está sujeito
diariamente. É no corpo que se passa toda e qualquer relação dos animais, inclusive o
humano, com o mundo, quer em nível de interação direta ou indireta. Ao mesmo tempo
em que ele é produto de seu trânsito pelo mundo, este mesmo trânsito é decorrente de
sua existência. Assim, o corpo cotidiano pode ser entendido como um construto de sua
passagem pelo mundo. É um passado que se atualiza no corpo cotidiano, massa
biológica sujeita a acontecimentos, não distinguido do Ator, identidade social
encarnada. Assim, “quanto à valorização no tempo presente, o corpo é o ator e o ator é o
corpo” (CARDOSO, 2007, p.09).
Admitido isto, resta-me falar do que seria a memória. Grotowski e tantos depois
dele proclamaram que “o corpo não tem memória, ele é memória” (BURNIER in
FERRACINI, 2006b, p.26). Desta maneira o corpo é o veículo, a matriz primordial, o
mar, o livro no qual toda história está escrita e, no caso do corpo, inscrita. É ele e nele
que o ator procura compor seu instrumento de trabalho: um corpo-em-vida (BARBA,
1994), ou seja, um corpo que irradia sua presença em forma de vibração, em forma de
luz. Talvez possamos considerar este corpo cotidiano disciplinado (FOUCAULT apud
FERRACINI, 2006a), o suporte que sustenta e emoldura (fronteira) tanto o instrumento
de trabalho do ator, seu corpo-em-vida, quanto sua composição do corpo-em-arte. Um
como dobra do outro. O primeiro permite a descoberta do segundo que, por sua vez,
prepara o diálogo poético entre ator e espectador, possuído e possuidor virtual do estado
de troca-em-arte.
Deste modo compreendo que um corpo-em-arte “não pode ser conceituado como
uma ponta de um dualismo, mas como um corpo integrado e vetorial em relação ao
corpo com comportamento cotidiano. Chamei, então, esse corpo integrado expandido
como corpo-em-arte [...]” (FERRACINI, 2006c, p.119). Ressalto, ainda, o não contato

de Representação e Interpretação propostas por Burnier (2001), as quais compõem o entendimento de


Atuação deste trabalho.
81

com o público e demais elementos de cena, que conferem ao corpo-em-arte o que


Ferracini (2006a) procura conceituar de corpo-subjétil. Assim, a descoberta e o
desenvolvimento do corpo-em-arte se dá na fase pré-expressiva do trabalho do ator em
seus processos criativos.
Se o corpo cotidiano é um constructo, ou seja, uma construção em potência de
nossa passagem pelo mundo, sendo não possuidor de uma memória, mas produto,
encarnação desta própria memória inscrita nele, então, como o passado se atualiza no
corpo? Ferracini, valendo-se do pensamento filosófico de Bergson e Deleuze, esclarece:

O corpo, como espacialização do aqui-agora, ou seja, do presente,


mantém uma relação intrínseca com o tempo. Ele, em si, sendo
“presente”, não pode nunca ser passado, mas por outro lado assume,
acumula esse passado nele mesmo, ou seja, no presente. Sendo assim,
o corpo é uma presentificação do passado acumulado. Poderíamos
dizer, paradoxalmente, que, no corpo, o passado é co-extensivo ao
presente (2006a, p.120).

O passado se acumula no presente de forma virtual. O passado, como soma de


todas as relações estabelecidas pelo sujeito vivente se virtualiza no presente do corpo
em forma de névoa, algo que paira ao seu redor à espera de uma atualização. Assim
podemos entender o virtual não em oposição ao real, mas ao atual (LÉVY, 1996). É a
realidade em estado de potência e, de acordo com Deleuze, potência é uma capacidade
de diferenciação (DELEUZE, 2006). Dito de outra forma, o passado é um real em forma
virtual que se torna condensado no presente do corpo, o qual

[...] nada mais é que a percepção que tenho do corpo no aqui-agora. O


presente do corpo é um tempo virtual situado em algum ponto de meu
passado imediato e de meu futuro imediato, e esse futuro imediato
carregará toda a minha memória passada, refazendo-se a cada instante
(FERRACINI, 2006a, p.121).

Se o corpo possui “virtuais e atuais reais” (op. cit, p.124) e o presente carrega
toda a dimensão da memória condensada em seu plano de realidade atual é possível
ativar esta mesma memória por meio do corpo. A imagem do cone da memória
fornecida por Bergson auxilia neste entendimento (FERRACINI, 2006a, p. 125):
82

A lembrança seria, então, um elemento deflagrador que, ao mesmo tempo lança


o presente na constituição da memória, reivindica o passado na atualidade. A lembrança
é algo que nos toma de assalto, pulsação que, pressionando o corpo do eterno devir
presente, lança-o ao passado da memória que se atualiza, ou seja, novamente incorpora
o vivido de forma latente em seu instante presente.
Direcionando o que foi dito acima no trabalho com o Cavalo Marinho, toda vez
que um de seus participantes realiza um passo, canta uma toada ou recita um verso, ele
reativa esse passado virtual no presente do corpo de forma a atualizá-lo. Este passado,
esta técnica, modela o corpo de seu praticante oferecendo-lhe potencialidades
necessárias à sua execução, como precisão e equilíbrio, por exemplo. O léxico que se
encontra de forma virtual no cotidiano do praticante e ativado no instante do dançar,
atualizando-a e auxiliando a manutenção tanto da manifestação quanto de sua
performance. É característica do uso da técnica, seja ela qual for, sua inscrição no corpo
de forma a modelá-lo, a manter sua existência, seja de maneira latente ou sensível,
guardada no íntimo do corpo-memória.
Desta forma, o Ator encontra-se em coexistência técnica com o Brincante que se
está pesquisando. O Ator não difere em funcionalidade do Brincante, ambos usam seus
corpos de modo a estabelecer uma conexão, seja consigo mesmo, com o espaço ao
redor, com um parceiro ou com o público que o assiste. Neste sentido, a observação de
Decroux é bem vinda: “As artes se parecem em seus princípios, não em suas obras”
(BARBA, 1994, p.29). Importante destacar quando me refiro ao Ator que o faço em
sentindo amplo, a fim de não distinguir ator e dançarino pois esta compreensão, além de
83

limitar o fazer de ambos, caduca o entendimento de seus processos criativos uma vez
que o próprio Brincante é ao mesmo tempo ator e dançarino. Assim como colocado por
Eugenio Barba:

A rígida distinção entre teatro e dança revela uma ferida profunda, um


vazio de tradição que continuamente corre o risco de levar o ator em
direção ao mutismo do corpo e o bailarino em direção ao virtuosismo.
Essa distinção pareceria absurda aos artistas das tradições clássicas
asiáticas, tanto como pareceria absurda aos artistas europeus de outras
épocas históricas: a um jogral, a um ator da Commedia dell‟arte ou do
teatro elisabelino. Podemos perguntar a um ator Nô ou a um ator
Kabuki como traduziria na sua linguagem de trabalho a palavra
“energia”. Mas sacudiria a cabeça se lhes pedíssemos para traduzir a
rígida distinção entre dança e teatro (1995, p.41).

A diferenciação entre estes dois conceitos, Ator e Brincante, situa-se, talvez, não
no contorno irregular destes, mas nos componentes que os povoam e compartilham. Em
meu entendimento, o que define um Ator ou um Brincante não é uma capacidade
intrínseca, algo que vem de berço, mas sim sua vontade, algo que se reflete no desejo de
sê-lo.
Para esta pesquisa é importante a consideração de Peter Brook para Ator, a qual,
também, pode ser estendida para o Brincante: “posso escolher qualquer espaço vazio e
considerá-lo um palco nu. Um homem atravessa este espaço vazio enquanto outro o
observa, e isso é suficiente para criar uma ação cênica” (BROOK, 2002, p.04). Um
espaço, um observador e alguém que realiza uma ação, é esta a unidade mínima para
que exista o fazer teatral que considero funcional nesta pesquisa.
Para Grotowski, uma ação50 é diferente de quando se realiza uma atividade ou
um gesto. A ação “deve nascer da coluna vertebral, deve ser algo de profundo e estar em
contato com a pessoa e as energias potenciais do ator” (FERRACINI, 2003, p.101).
Uma ação indica objetividade, diferente de uma atividade como lavar pratos ou preparar
uma comida. Todavia, “uma atividade pode se transformar em ação física. Por exemplo,
se vocês me fizerem uma pergunta embaraçosa, que é quase sempre a regra, eu tenho

50
Ao ler este termo entende-se também a ação vocal, pois a voz é produzida pelo corpo.
84

que ganhar tempo. Começo então a preparar meu cachimbo de maneira muito „sólida‟.
Neste momento vira ação física, porque isto me serve neste momento”51.
Gestos são respostas imediatas, imagens das quais já guardamos o significado
por dividirmos a mesma cultura, gesto de positivo, o gestual do padre, de indicar.
Geralmente, ele é realizado com a periferia do corpo, em especial com as mãos. Assim,
“a mesma coisa acontece com o cachimbo, que por si só é banal, transformando-a a
partir do interior, através da intenção – nesta ponte viva, e a ação física não é mais um
gesto” 52.
A ação é entendida nesta pesquisa, no comprometimento do ator, na ligação
destas com sua pessoa e suas energias de forma a potencializá-las. É esta profundidade
da ação que produz um comprometimento total no corpo do Ator. Se o indivíduo é um
construto social-cultural-econômico-histórico, então toda e qualquer vivência se
internaliza em seu corpo-memória e torna-se parte constituinte deste mesmo indivíduo.
Assim, através do trabalho corporal chegamos ao inconsciente, que nada mais é do que
um acúmulo de vivências imagéticas, concretas ou perscepcionais, constituintes do
individuo em uma ordem mais profunda à qual se necessita de estímulo para acessar.
Quando Stanislavski pede ao ator dar vazão ao inconsciente criativo (JIMÉNEZ, 1990 e
STANISLAVSKI, 2001), orienta não para acessar algo inato, quase que independente
do indivíduo, mas acessar a esta intrincada rede vivencial que o forma. Neste sentido,
trabalhar o inconsciente é explorar a composição da vida no corpo.
De acordo com o exposto, qualquer pessoa poderia ser Ator? Acredito piamente
nisto: qualquer pessoa pode realizar agenciamentos para concretizar sua formação e
então exercer a profissão de ator. Todavia, resta agora qualificar este Ator. Para tanto,
me valho de um exemplo dado por Peter Brook:

[peçam a um voluntário] para imaginar que durante a caminhada o


jarro escorrega de suas mãos e se espatifa no chão, derramando o
conteúdo. Aí ele vai se complicar. Tentará interpretar a cena e seu
corpo será possuído pela pior espécie de atuação artificial,
amadorística, tornando a expressão de seu rosto “teatral” – ou seja,
horrivelmente falsa. Realizar esta ação aparentemente simples de
modo que pareça tão natural como uma simples caminhada requer

51
Transcrição de uma palestra proferida por Grotowski no Festival de Teatro de Santo Arcangelo (Itália),
em junho de 1988, encontrada na internet por meio do Dreamule, programa de compartilhamento de
arquivos.
52
Idem.
85

toda a competência de um artista altamente profissional. Qualquer


idéia tem que se materializar em carne, sangue e realidade
emocional: tem que ir além da imitação, para que a vida inventada
seja também uma vida paralela, que não se possa distinguir da
realidade em nível algum (2002, p.08, grifo meu).

Ser Ator não somente designa um estado de crença ou a capacidade de


autogestão em restaurar seu comportamento cotidiano, com o objetivo de produzir uma
ilusão de naturalidade em um momento artificial como é a composição artística.
Tampouco é louvável que o ator se deixe dominar por uma emoção a ponto de esquecer
o que está fazendo na cena. O Ator não é só aquele que faz, mas aquele que tem a
capacidade de ser afetado. São as micro e macro percepções do espaço, do outro, do
enfim que caracterizam sua profissão.
O que quero me referir, como competência em comum entre o Ator e o
Brincante, é a capacidade de “ir além da imitação”. Munidos de sua técnica tanto um
quanto o outro procuram dinamizar suas energias a fim de satisfazer necessidades
expressivas, sejam elas originadas no território do teatro ou no terreiro da brincadeira. O
Ator, por meio de sua técnica, seja ela intuitiva ou codificada, dinamiza seu estado
corporal cotidiano com o objetivo da criação artística. O Brincante se vale de seu léxico
específico que caracteriza suas formas codificadas de expressão com as quais ele pode
improvisar, fazendo surgir, assim, o imprevisto na ação de brincar.
Então, não seria esquizofrenia tentar aproximar estes dois fazeres, o do Ator e o
do Brincante, uma vez que suas existências parecem estar diretamente imbricadas: não
seria o Ator uma espécie de brincante do palco e o Brincante um ator popular provido
de um espaço informal de acontecimento? Colocá-los em extremidades dualistas seria
diminuir seu potencial de ação criativa, gerando, assim, uma linha de afetação
espinosamente triste.
O Ator e o Brincante possuem fazeres semelhantes, mas diferentes, pois
pertencem a tradições distintas, ou seja, em ambas as práticas, a do Ator e a do
Brincante, existem processos diferenciados de significação. Seus territórios podem se
aproximar, tangenciar, até mesmo se permear, mas guardam ou podem guardar em si
suas singularidades. O que intento neste projeto é encontrar pontos, linhas nesses
espaços de saber/fazer e propor fluxos entre eles provocando assim o ato criativo.
86

Para ajudar neste entendimento, procuro a proposta dada por Eugênio Barba
(1994, 1995) ao diferir os atores-dançarinos, segundo a utilização de suas técnicas de
inculturação e aculturação.
O caminho da inculturação baseia-se no uso da espontaneidade que chega
naturalmente aos indivíduos de determinada cultura, a qual é originada em uma
organização identitária entre membros de uma mesma cultura, estabelecendo, desta
forma, um padrão de naturalidade e normalidade funcional a ela. Atores inculturados
elaboram esta espontaneidade que lhes chega, naturalmente, de forma a suprir as
exigências criativas de sua arte. Ela é marcada pelo uso de uma psicotécnica e pela
verossimilhança, assim, podemos observar que Stanislavski ofereceu talvez a maior
contribuição a este tipo de processo: “o „se mágico‟, por meio de uma codificação
mental, os atores alteram seu comportamento cotidiano, mudam sua maneira habitual de
ser, e materializam a personagem que eles vão retratar” (BARBA, 1995, p.189). O “se
mágico” é um elemento técnico de inculturação elaborado por Stanislavski que auxilia o
ator a se colocar na situação da personagem. É perceptível sua utilização tanto nas
primeiras fases da pesquisa deste encenador, quando a memória emotiva é o alicerce de
seu método, tanto quanto na etapa final de seu trabalho próxima à sua morte, na qual ele
procura embasar seu método na ação física.
Entretanto, uma técnica aculturada caracteriza-se por negar este comportamento
que chega de forma natural pelo convívio social. Ela artificializa o corpo na busca de
reorganizá-lo em seu tempo e espaço de acontecimento em arte, assim, ela torna
possível

[...] observar outro caminho para o ator-bailarino: a utilização de


técnicas corporais específicas que são distintas das usadas na vida
cotidiana. Os dançarinos modernos e bailarinos clássicos, mímicos e
atores de teatros orientais tradicionais recusaram sua „naturalidade‟ e
adotaram outros meios de comportamento cênico. Eles se submeteram
a um processo forçado de „aculturação‟, imposto de fora, com
maneiras de ficar em pé, andar, parar, olhar e sentar, que são
diferentes das maneiras cotidianas (BARBA, 1995, p.189-90).

Desta maneira, o processo de inculturação caracteriza-se pelo tecido imanente


constitutivo da sociedade e a aculturação como um processo externo a ele,
proporcionando ao praticante outra relação de uso do corpo. Um processo de
aculturação desorganiza o sujeito social, forçando-o a redimensionar seu corpus social
87

típico em detrimento de uma nova maneira de agir. Tanto um ator que se vale de uma
técnica inculturada, quanto outro que utiliza a aculturação, no momento de atuação,
procuram diferenciar sua presença da utilizada no cotidiano.
Seria, então, o ator inculturado desprovido de um repertório, de um léxico de
ações, à mercê de sua própria intuição e comportamento cotidiano, e o brincante estaria
abastecido tecnicamente com suas codificações que lhe permitem liberdade de
improvisação, uma vez que, como na Commedia dell’art, o brincante improvisa com a
codificação e não a codificação? Perguntas como esta podem suscitar dicotomias entre o
trabalho do artista cênico, limitando o entendimento de seus processos criativos e
formativos. Acredito que existem artistas cênicos: atores, dançarinos, performers,
brincantes, circenses, um sem fim de profissionais e seus mistos. O que necessariamente
se percebe nestes artistas e que os distinguem e singularizam suas formações são as
limitações que estes possam possuir em seus fazeres.
Existe um sem fim de imprevisibilidades na prática dos Brincantes do Cavalo
Marinho, as quais, à primeira vista, podem sugerir que os elementos constituintes da
brincadeira são totalmente improvisados. Como se os passos de dança e posturas das
figuras, por exemplo, fossem assim feitos de qualquer jeito. Esta característica pode
levar ao equívoco de que qualquer movimento poderia ser executado no Cavalo
Marinho, sem que seu executante fosse chamado à atenção da inocorrência de um erro,
de fazer algo que não pertença ou seja característico desta manifestação. Todavia, existe
um dentro e um fora nas manifestações que levam tal afirmativa ao engano. Nas danças
populares improvisa-se com a máscara e não a máscara. Mais ainda, este sentido de
improvisação traz consigo principalmente o elemento do que é imprevisto, do que é
organizado no calor de sua realização, a qual, no caso das danças populares, é realizada
a partir de um léxico principal de passos, dinâmicas, pulsações musicais e coreografias
sobre os quais os participantes desenvolvem variações.
A proposta do Ator-Brincante é misturar os meios de inculturação e aculturação
formando um todo da arte de ator na composição do corpo-em-arte. Por inculturação
entendo como um caminho no qual os atores usam “sua „espontaneidade‟, elaborando o
comportamento que a eles chega naturalmente, que absorveram desde o seu nascimento
no meio cultural e social no qual cresceram” (BARBA, 1995, p.189). Já por aculturação,
como uma técnica que “„artificializa‟ (ou estiliza), o comportamento do ator-bailarino.
88

[...] é a distorção da aparência usual (natural), a fim de recriá-la sensoriamente de uma


maneira fresca e surpreendente” (Idem, p. 189-90).
Desta maneira, a construção do ator não está mais somente ligada ao Cavalo
Marinho como técnica aculturada, nem pertence a uma espontaneidade elaborada pela
inculturação. A prática de Ator-Brincante a qual visualizo se caracteriza por formar este
misto, um entre territórios e fronteiras de memórias que se atualizam no momento da
atuação, ou seja, do contato com o espectador. É utilizar uma técnica aculturada, no
caso as corporeidades e fisicidades do Cavalo Marinho, oferecendo assim ao ator um
léxico de ações que possuem uma presença diferenciada e uma potencialidade à
diferenciação por elas mesmas.
A partir desta gramática o ator procura os meios pelos quais possa reorganizar e
recriar o Cavalo Marinho, compondo matrizes que darão origem à dramaturgia do ator,
ou seja, como o ator organiza suas ações na composição do corpo-em-arte. Esta
estrutura permite que a dramaturgia do autor possa servir também de estímulo na
organização da dramaturgia do ator, entendendo ambas como níveis de organização do
plano de composição do espaço de troca-em-arte.
A utilização da técnica existente no Cavalo Marinho corresponde a uma linha
intensiva com a qual a criatividade do ator procurará produzir fissuras, visando
transbordar o corpo cotidiano. A dinamização desta forma de utilização do corpo, por
sua vez, auxilia na modelagem dos elementos composicionais do Cavalo Marinho, ao
mesmo tempo em que potencializa o ator, prepara-o para a descoberta das ações
constituintes do corpo-em-arte. Um corpo-em-arte, o do Brincante do Cavalo Marinho,
que auxilia na construção de outro corpo-em-arte, o do Ator que se torna Brincante sem
deixar de ser Ator, um Ator-Brincante.
Assim, um Ator pode (e deve) procurar o que lhe cause identificação, o que é
capaz de lhe causar afetação de forma intensiva, verdadeira, bem como se valer disto em
um plano de composição, e até mesmo antes, na fase que visa tornar isto possível, em
seu treinamento e na forma de preparar a ação. Isto, porém, gera outra inquietação:
como seria a preparação de um Ator que se propõe a ser também Brincante? Como uma
vez ouvi o ator do LUME Teatro, Jesser de Souza, dizer: “Tudo é treinamento!
Pontualidade, assiduidade, consciência corporal, generosidade, etc.”53. Se pudermos

53
Anotação em curso “Treinamento Técnico do Ator em Danças Populares”, 30/01/09 – 1° Dia.
89

encarar isto como um processo utilizável a fim de satisfazer determinada


funcionalidade, então, onde ficaria a festa neste contexto?
O espaço da festa, obviamente, é distinto do espaço de aprendizado que
tínhamos nas aulas de Cavalo Marinho. No começo da pesquisa, percebemos em Mestre
Zequinha uma resistência corporal que atribuímos ser responsável pelos anos de
trabalhador rural e a prática de Brincante. No sentido de auxiliá-lo resolvi realizar duas
atividades: a primeira consistia em incluir no começo dos ensaios sequências estáticas
de abdominais e flexões, como também exercícios de enraizamento e lançamento54. Era
perceptível sentir que estas atividades trabalhavam a parte mais interior da musculatura,
ampliando sua resistência. Outra percepção era a concentração de tensão no abdômen de
Mestre Zequinha, fato que auxilia na execução dos passos do Cavalo Marinho, pois as
pernas ficam mais livres para se movimentarem com o peso do tronco sendo dividido
com o apoio do abdômen. A seguir insiro figuras contendo demonstrações desses
abdominais e flexões exemplificados pelo ator/encenador Alan Monteiro:

54
Tive contato com esta prática pela primeira vez no curso “Treinamento Técnico do Ator em Danças
Populares”, ministrado por Juliana Pardo e Alício do Amaral, CIA MundoRudá, e Jesser de Souza,
LUME Teatro, de 30/01 à 08/02/2009, em Barão Geraldo, distrito de Campinas – SP. Por serem muitos
os detalhes destes exercícios, optei por gravar uma demonstração minha sobre eles, a qual está contida em
DVD anexo.
90

Figura 12 – Abdominais e flexões estáticas trabalhados. Foto: Vitor Blam, sala Preta da UFPB, João
Pessoa – PB, 2011.

O exercício de enraizamento consiste em procurar afundar o pé no chão a partir


do dedão, passando pela borda externa do pé e chegando ao calcanhar. Tronco em
bloco, a rotação se dá pelo abdômen. Com o impulso de empurrar a terra. Depois o
mesmo exercício deixando a coluna “molinha”, permitindo a este empurrar do solo
reverberar no tronco, que não está abandonado, mas livre, disponível. Aos poucos se
experimenta na lateral, depois se dinamiza o processo procurando arriscar um pouco
mais. Depois vai se reduzindo até ele ficar pequeno no espaço. Olho participa. Reduzir
ainda mais no espaço, deixando o movimento pequeno, apenas, a memória do
movimento no músculo, como se o pé se movesse bem pequeno e cada vez menor até
restar, apenas, a tensão do movimento, seu tônus. Com esta qualidade de energia
construída, realizam-se ações cotidianas com o objetivo de perceber a presença criada.
A sensação proposta por este exercício é como se o pé se abrisse no chão,
fazendo um buraco e estendendo uma raiz sobre ele, utilizando-se o peso do corpo para
afundar o pé no chão. Este exercício fornece uma base firme ao corpo, como uma raiz,
na qual se pode fazer qualquer coisa.
Os lançamentos eram feitos por meio do enraizamento. Depois de enraizar o pé
no chão, empurra-se o chão de modo a permitir que este impulso passe pelo corpo todo,
reverbere na coluna e saia pela ponta dos dedos das mãos e do olhar. Neste exercício, é
irradiada a energia que o ator concentra. É um impulso que nasce do empurrar do pé
enraizado no solo e passa por todo o corpo até ser lançado pelas mãos e pelos olhos. Há
redução do movimento no espaço, mas sua continuação no tempo permite uma
percepção mais precisa desta energia e, por consequência, maior facilidade no manuseio
de seu fluxo interno que se irradia ao exterior. É a energia que o ator não guarda só para
91

si, mas a compartilha. Não há redução, mas contaminação, um novo foco de produção
de energia é gerado – o espectador.
Com o tempo fomos descobrindo como fazer estes dois exercícios em
movimento, por exemplo, saltar e cair enraizando o pé no chão e depois lançar, lançar
com diferentes partes do corpo, lançar objetos reais ou imaginários entre os
participantes, enfim, infinitas variações que pudéssemos bolar a partir destes dois
exercícios.
A segunda prática, que auxiliava a desenvolver as potencialidades do corpo, é a
mais óbvia: dançar o Cavalo Marinho. Existe uma mecânica do movimento nas danças
populares, mas também existe o respeitar do tempo dentro. Às vezes é mais importante
vivenciar. A vivência pode trazer experiências que respondem aos próprios
questionamentos. Ao mesmo tempo em que isso ajudava na assimilação dos passos
estudados e no desenvolvimento da improvisação, tendo-os como base, auxiliava a
trabalhar o caráter tanto técnico como energético dos atores. Trabalhar estas dimensões
é procurar a precisão e a objetividade dos movimentos, assim como alcançar seus
coloridos e intensidade muscular característica e explorar como vetorizar o aprendido,
modelando-o de modo a conquistar liberdade no agir. No intuito de alcançar esse
objetivo, procurei dar estímulos variados aos atores, como diferentes tipos de músicas
que oferecessem pulsações diversas para dançar o Cavalo Marinho.
Após incorporarmos estas práticas de maneira a podermos brincar com elas, e
tendo passado mais de um ano de contato com o grupo pesquisado, chegou o momento
da festa. Algumas vezes assistimos ao Cavalo Marinho de Mestre Zequinha e fomos
convidados em determinado momento a entrar na brincadeira. Outras vezes, Seu
Nandinho me ligava e perguntava se queríamos ou se podíamos participar de
determinada apresentação do grupo. Neste momento, ele dava pra cada um de nós uma
coroa e uma gandola, espécie de sombreiro com fitas que os Brincantes usam no
pescoço. Prontos, dançávamos juntos com o folguedo que pesquisávamos.
92

Figura 13 – As atrizes Larissa Santana e Clara Talha do coletivo UZUME teatro participando de
apresentação do Cavalo Marinho de Mestre Zequinha. Foto: Alan Monteiro. João Pessoa – PB, 2010.

A festa acontece quando valores são comungados. Tanto nela quanto durante as
improvisações e preparações dos atores, a partir dos passos do Cavalo Marinho era
possível perceber outra lógica de pensamento, como se o corpo pensasse enquanto a
mente dançava. O pensamento enquanto vibração física, qualidade existente no ato de
pensar, mas nem sempre percebida pelo sujeito que pensa. É esta qualidade de vibração
que pode produzir um estado de experiência o qual, nesta pesquisa, se configura como
um hífen – um espaço de entre Ator e Brincante = Ator-Brincante.
Entre nós do coletivo UZUME teatro, participar de apresentações do grupo de
Cavalo Marinho de Mestre Zequinha era um vivência, um misto de satisfação e
experimentação. Satisfação porque nossa ética para com Mestre Zequinha e seu grupo
aparentava estar dando certo, estávamos conseguindo estabelecer uma relação com o
foco da pesquisa. E experimentação por mostrar um campo a ser explorado, vivenciado,
enfim, dançado. Na festa, podíamos nos divertir, mas também deveríamos observar e
testar os exercícios que praticávamos em sala de ensaio. Observávamos, especialmente,
as formas como os Brincantes realizam enraizamentos e lançamentos dentro da
brincadeira, principalmente por Mestre Zequinha, que demonstrava uma instiga
diferente da encontrada nas aulas a nós ministradas. Nessas aulas conseguíamos uma
relação direta de aprendizado, mesmo que parte desta afirmativa seja ilusão. Existia um
certo controle de nossa parte, pois podíamos pedir para Mestre Zequinha repetir o passo,
era possível observarmos de perto sua movimentação e percebermos seus detalhes,
93

posturas do corpo, mínimas relações dinâmicas que caracterizavam a presença


diferenciada da performance deste Brincante.
Na festa era preciso desenvolver outro tipo de percepção que permitisse
aproveitar o momento da brincadeira, mas não de modo a esquecermos tudo e somente
nos divertir. Estávamos ali em caráter investigativo, também. Contudo, é delicada esta
postura, pois é preciso ter cuidado para não ofender a composição que estávamos sendo
convidados a participar. Ou seja, no instante da festa é necessário estar atento e também
saber deixar-se levar pelos acontecimentos, pelos fluxos propostos na brincadeira. É
brincar de maneira séria, sem esquecer qual seu objetivo de estar ali e, principalmente,
de comungar com as pessoas ali presentes.
Deste modo, é possível perceber uma prática mais condicionante nos exercícios
que descrevi na primeira etapa do processo de preparação. A segunda, na qual
procurávamos dançar o Cavalo Marinho, se apresenta de maneira menos rígida,
aparenta trabalhar mais a expressividade e a criatividade dos atores.
São sutis, mas significativas, as diferenças entre a primeira etapa, a qual
poderíamos considerar mais próxima da noção condicionante de treinamento, e o
processo de preparação; assim como são tênues as distinções entre ação e gesto ou ação
e atividade. Elas estão na dimensão dos objetivos e das posturas que o Ator toma
perante cada prática. A ideologia que estou querendo defender com o conceito de
Preparação é entendida no contexto semântico dessa palavra. A preparação, então, se
encontraria como toda e qualquer prática que visa preparar potencialmente o Ator para a
descoberta, organização e modelagem de ações. É pensar o treinamento como uma
poiesis, a improvisação como um canal e um modus de improvisação – o discurso que
se faz da coisa e a coisa.
O que é conclusivo é que a preparação do Ator não envolve somente ampliar seu
potencial mecânico ou físico, mas sua capacidade de criar e comunicar suas
composições. É em busca de potencializar essa capacidade que reflito sobre a prática do
treinamento acreditando que essa palavra já não cabe tão inteiramente quando nos
referimos ao trabalho do Ator. Existem partes condicionantes? Sim, não são negadas.
Mas elas atravessam o processo de preparação e são desdobradas a fim de gerar uma
dinâmica criativa que instigue e atravesse o Ator, permitindo que ele produza sua Arte
por meio da composição e modelagem de ações.
94

TERRITÓRIO III: COMPOSIÇÃO DO CORPO-EM-ARTE

2.1 VÁRIOS CORPOS DE ESPAÇOS DIVERSOS - MUDAR E AINDA PODER


SER O MESMO

A construção do ator é como uma criança, como um filho.


O que importa é permitir que este filho viva e ao mesmo tempo protegê-lo.55
Eugênio Barba

Os atores tendo aprendido as dinâmicas do Cavalo Marinho propostas por


Mestre Zequinha e já com algumas matrizes descobertas, nas quais eu observava
possibilidades de recriações e resignificações desta dança popular, podíamos partir para
a etapa de composição do corpo-em-arte que vai gerar a cena e o espaço de troca-em-
arte. Contudo, que narrativa poderia ser composta uma vez que estávamos partindo de
um caminho inverso ao de costume na composição cênica: primeiro a descoberta de
ações, depois o texto. “O espetáculo para mim é como uma esfinge: ele impõe
questões!”56.
Existem trajetórias que não controlamos e, em certos casos, é melhor assim, pois
processos dessa natureza têm o poder de propor seu modo de composição; é estar aberto
ao encontro na espera apaixonada de que, como em um passe de mágica, surja uma
explosão feita do próprio encontro e da intensidade dos materiais utilizados.
Neste território, procuro delinear a trajetória dos desejos, processos e propostas
que foram configurando a experimentação cênica do coletivo UZUME teatro sobre os
modos como Mestre Zequinha brinca o Cavalo Marinho.
Parto da formação do corpo cotidiano, da imanência de um corpo que abre alas
para a descoberta do corpo-em-arte, haja visto, que o ser humano deixa brechas para a
luz entrar. Uma luz que não é, necessariamente, caracterizada como arte, mas típica de
um plano de criação que toca o sensível do ser, sua humanidade mais tranquila que

55
Anotação de Fala proferida por Eugênio Barba em palestra na ocasião do centenário do Teatro José de
Alencar, Fortaleza – CE, 28/11/2009.
56
Idem.
95

revoluciona e aquebranta as crostas formadas pelo cotidiano disciplinado (FERRACINI,


2006a, p.91).

A imagem acima, oferecida por Ferracini (2006a), ilustra a compreensão de


práticas que dilatam as formas e funcionalidades do corpo cotidiano rumo ao corpo-em-
arte, ampliando suas capacidades e potencialidades. Mas quais caminhos e movimentos
que estas práticas constroem? Eles são necessariamente linhas retas que dilatam o corpo
em comportamento cotidiano? Creio que não necessariamente. Acredito que quando
Ferracini se refere à expansão do corpo subjétil57 por meio da capacidade de afeto, que
este adquire, e não por acúmulo, o faz no sentido de mostrar o movimento básico de
composição do corpo-em-arte e não de propor dicotomias, pois o pensamento desse
autor aponta para um processo de diferenciação em si mesmo. Um vetor não só
representa o módulo, o sentido e a direção de uma força, mas indica a passagem de um
estado, de uma dimensão para outra. Nesse entremeio, os caminhos macro e micro, as
cartografias dessa trajetória podem ser das mais diversas. Parece-me que no conjunto de
práticas que compõem o corpo-em-arte podem surgir retas, mas também explosões,
curvas, declives, fagulhas, vagalumes, como também incêndios, é “queimar a casa dos

57
Corpo-em-arte colocado em contato com as demais dramaturgias que compõem o espetáculo.
96

meus pensamentos”58. Assim, me vejo livre para brincar com a imagem proposta por
Ferracini (2006a) e pensar/criar outra a partir desta que auxilia minha compreensão e
funcionalidade de criação do corpo-em-arte.

Figura 14 – Minha interpretação do processo de composição do corpo-em-arte a partir do proposto por


Renato Ferracini.

O corpo-em-arte é um corpo artificial no sentido de ser construído, descoberto


por meio de artifício, de técnica. O corpo cotidiano também é construído, mas ele nos é,
em certa medida, dado pela ação que realizamos todos os dias de nadar nas macro e
micro marés da imanência em que estamos inseridos, às vezes sem perceber. O corpo-
em-arte é conquista. Ele é pré-expressivo no sentido de que parte de sua elaboração e
descoberta se dá em momentos anteriores ao encontro com o público e os demais
elementos da composição cênica, os quais conferem a ele a potencialidade do corpo
subjétil, ou seja, o corpo-em-arte compreende o corpo que é o ator em suas
potencialidades de objeto e sujeito. Não um ou outro, mas um e outro imbricados. O
corpo-em-arte é o corpo subjétil em estado de potência, de mistura; de preparação para
o encontro com o espectador. Sua denominação de subjétil inclui direta e
experimentalmente a percepção e comunicação com o outro. Existem aprendizados que
só o corpo subjétil propõe – que só são possíveis de serem descobertos por meio dele
nas relações do espaço cênico. No entanto, propor uma dissertação que procura refletir

58
Anotação de Fala proferida por Eugênio Barba em palestra na ocasião do centenário do Teatro José de
Alencar, Fortaleza – CE, 28/11/2009.
97

sobre o corpo-em-arte é lembrar de pensar um passo atrás. É pensar antes, quando se


está na sala de ensaio nu, perdido e por se estar assim é que se pode encontrar algo.
Tentando estender um paralelo para melhor compreender a constituição do
corpo-em-arte, podemos entendê-lo como um corpo-sem-orgãos (Artaud) organizado,
uma vez que o corpo-em-arte é descoberto e decupado pelo ator. Todavia, este se deixa
aberto a intensidades, porosidades, permitindo-lhe respirar para as diferenciações ou a
possibilidade de fazê-lo. O corpo-em-arte é extrato, desaceleração e condensamento, um
referencial de segurança com o qual o artista pode jogar. Enquanto o corpo-sem-orgãos
é aceleração, velocidade – eterno horizonte por chegar, ou seja, o corpo-em-arte
também é um conjunto de práticas, mas ele é alcançável e pode-se retornar a ele. O
corpo-sem-orgãos ao qual Artaud se refere na poesia Para acabar com o juízo de Deus,
parece-me pura luz, eterno processo de construção e demolição.
Para compor o corpo-em-arte do espetáculo Rosmaninhos..., trabalhei com
processos de re-significação e recriação do Cavalo Marinho, a fim de estimular um
fluxo de criação nos atores que não elegem prioridades ou hierarquias, mas tão só
intensidades. Meu objetivo era que eles se abrissem de modo a serem atravessados e
contaminados por afetos que partiam das dinâmicas da dança popular que estávamos
estudando. Era propor um entendimento às vezes objetivo, outras não, com ou sem
palavras, na tentativa de não negar certas fases em que as ações se encontram
mecanizadas, truncadas – parecendo que “não saímos do canto”. Mas encarando estas
fases e as deixando ir, é pensar antes. É não querer acertar, mas tentar. É permitir-se
estar no rizoma:

Nossos pensamentos eram de uma e de todas, em círculo a energia


tinha uma vibração muito forte que eclodia numa seta em diagonal.
Meu medo era nosso, meu choro e meu riso partia ora de mim, ora de
meus pensamentos que saiam da boca de outra Ofélia. Vozes me vêem
à mente, pensamentos súbitos, incongruentes... minha mãe parece
uma fada, eu tenho oito anos, ela me trata como uma princesa, passei a
acreditar que um dia seria de fato... tem a voz mais doce do mundo,
me enfeita os cabelos de flores... rosmaninhos, suas favoritas! Mas,
doze anos, ela se despede, vira estrela, é o que me dizem59.

59
Extraído do texto Sobre a invasão do castelo da Dinamarca e a loucura de Ofélia, produzido
voluntariamente em 03/03/2011 pela atriz Larissa Santana durante o processo de criação de
rosmaninhos... Este texto está contido na íntegra nos Apêndices deste trabalho.
98

Desse modo, observo que as relações estabelecidas pelo ator durante a


encenação, ou seja, no espaço de troca-em-arte, podem ser dadas pelo entendimento de
Burnier (2001) sobre os processos de interpretação e representação. Os fluxos entre
estes modos de comunicação do corpo-em-arte, compõem o que posso entender como a
atuação dos atores no decorrer da encenação.
A física quântica procura considerar tempo, espaço e movimento como
dimensões indissociáveis. Nesta dissertação procuro zonas de indiscernibilidade nas
formas pelas quais a ação é composta pelo ator. Ele estaria sujeito a ser considerado um
intérprete tal qual Burnier (2001) descreve como aquele que traduz fielmente em ações
a arte do autor, ou, como colocado ainda por Burnier (2001), poderia encontrar sua
própria poética no trabalho com ações orgânicas, organizando-as e modelando-as de
forma a compor o que Ferracini (2006a) propõe com os conceitos de corpo-em-arte e
corpo subjétil?
Luis Otávio Burnier (2001) indica que a arte de interpretar possui seu foco no
quê se vai montar sua base temática, textual. Na arte da representação, o processo
evidencia o como irá se compor a obra cênica. Colocados assim as formas de se
organizar o corpo-em-arte de um ator que interpreta e de outro que representa
permaneceriam nas extremidades de um dualismo. Todavia, como o ator pode trabalhar
em zonas de turbulência, de fluxos, de rizoma, de entre nos processos de composição do
corpo-em-arte? Pode o ator objetivar um ato de representação, como apontado por
Burnier (2001), trabalhando a partir de ações vivas, orgânicas, na busca de vetores que
dilatem seu uso cotidiano do corpo, a fim de produzir um estado de troca poética com o
espectador e, ainda, poderia este mesmo ator estabelecer um livre diálogo entre a
dramaturgia do autor e sua própria composição discursiva do corpo-em-arte? Se
possível, observaríamos, enquanto espectadores, diálogos particulares, íntimos, secretos,
os quais poderíamos não saber do que se trata, mas perceberíamos sua existência na
forma de velocidades e intensidades irradiadas a um espaço entre ator e espectador – o
espaço da troca-em-arte. Nestes fluxos de signos emanados pelo ator, é que se realiza o
espaço do livre fluir de significantes no espectador.
Por um lado, observar o ator no entre do trabalho interpretativo e representativo
é buscar os meios pelos quais o texto não se torne mero alicerce, um pretexto fabular,
uma linha paralela à composição do ator. De outro lado, não se trata de encontrar nas
ações orgânicas do ator, uma linha narrativa ou as formas pelas quais elas se encaixem
99

no domínio da arte do dramaturgo ou como pode ela originar uma narrativa


independente desta. Tento tratar de questões no domínio do ou, mas do e. É tentar não
eleger hierarquias, mas estabelecer misturas, imbricações, fluxos. Por em um só
preparado, em uma só mistura, o quê está se contando, e o como mostrar e esconder os
conteúdos e as formas, produto e processo, tentando distanciar os dualismos e as
hierarquias, restando tão somente fluxos num espaço de troca-em-arte.
Didaticamente, a apropriação do Cavalo Marinho divide-se em duas etapas: 1ª)
Observação Ativa: mediante aulas de Cavalo Marinho com Mestre Zequinha,
observávamos características específicas de sua prática e tentávamos reproduzi-las em
suas formas de improvisação para, então, conquistarmos nossas próprias maneiras de
improvisar com esta base; e 2ª) Composição do Corpo-em-Arte: tendo já adquirido as
fisicidades e corporeidades, procuramos modelá-las por meio das improvisações. A
dança popular é então reorganizada de forma a estimular a descoberta de ações, as quais
foram posteriormente codificadas para a composição do corpo-em-arte.
Dentro do contexto que teci inicialmente, na primeira etapa buscamos a
aquisição de memória na forma de incorporações e pulsões que se lançam do atual ao
virtual. A segunda caracteriza o movimento da virtualização no qual conferimos
velocidade ao que aprendemos com Mestre Zequinha a fim da recriação para outro
contexto cênico. Assim, nesse processo não se cria por lembrança, mas por devir que
gera atualização – a reorganização desta memória virtual numa atualização que cria. A
lembrança é estímulo, material a ser resignificado, ou seja, atualizado no presente que
está sempre em processo e por isso é criação.
Trabalhar a dramaturgia das ações junto à textual encontra-se entre dois
processos: 1ª) cada ator organiza livremente uma sequência de ações, sejam elas do
Cavalo Marinho ou descobertas a partir deste, o que estamos chamando de matrizes. Em
seguida, explora formas de reorganizar esta composição junto ao texto; 2ª) o ator,
munido do repertório técnico do Brincante pesquisado, experimenta livremente o texto e
os passos do Cavalo Marinho, buscando imbricá-los. Uma maneira de o ator organizar
esses dois processos é o improviso com o Cavalo Marinho e, por meio da repetição,
encontrar a re-significação de suas matrizes estéticas, originando ações que podem ser
codificadas e trabalhadas junto ao texto cênico. Organizando de outra forma este
pensamento, podemos observar que na primeira proposta de codificação, o como se
localiza à frente do quê. Já na segunda, o como procura se juntar ao quê para criar a
100

matriz. É através desses processos que mergulhamos na rede sígnica da poesia do ator,
procurando encontrar os meios de como transformar a poética do autor em ação, em
cena, em impulso, ou seja, da ação ao texto e do texto à ação e entre eles.
Assim entendo que, tanto nós, atores do coletivo UZUME teatro, quanto os
Brincantes populares, improvisam com a codificação e não improvisam a codificação. É
a partir da base, da raiz, que a corporeidade e a fisicidade do Cavalo Marinho oferecem
a arte de ator, que descobrimos as ações que irão compor o corpo-em-arte. Ela é um
referencial, um ponto de partida para o fluxo, para o rizoma. Neste rio encontram-se
infinitas possibilidades de recriação e re-significação do CM. Por sua vez, essas
modelagens da ação podem surgir a partir de estímulos diversos como: repetições,
variação tempo/ritmo (lento, rápido, sustentado, súbito)60, espacialidade da ação
(redução ou ampliação)61, da pulsação musical; a música do Cavalo Marinho propõe
uma pulsação, outros ritmos propõem outras pulsações, assim como outras roupas e
objetos também o fazem; diferentes indumentárias e adereços influenciam a execução
da matriz. Meu trabalho maior é este: estar atento ao inesperado e propor maneiras com
que o ator dinamize suas energias potenciais, fazendo ligações destas fagulhas com os
temas e a fábula que estamos trabalhando, tentando estabelecer relações poéticas entre
uma e outra. Pois, um ator por mais que saiba intelectualmente que deve dinamizar suas
energias potenciais de forma a criar o espaço transformando-o em lugar da troca-em-
arte, é preciso que o saiba na ação, pois não se toca uma ação, uma dinâmica, como se
toca um objeto – elas são percebidas.
A título de exemplificação do processo de ensaio para a modelagem do Cavalo
Marinho e a composição do corpo-em-arte dos atores, transcrevo as anotações feitas por
mim em um dia normal de trabalho com o coletivo UZUME teatro.

Ensaio UZUME 17/04/10


- Dinamização corpórea a partir da exploração das articulações, tanto em torção quanto
em extensão. Em seus dinamismos como fluente ou estancado, rápidos e lentos, suaves
e pesados;

60
“É parar um segundo antes. É perverter o cotidiano de forma a construir para si uma segunda natureza
que eu conheço, mas, mais ainda, que eu reconheço”. (fala de Eugênio Barba, demonstração técnica de
Julia Varley, Fortaleza – CE, 27/11/2009 pela manhã).
61
“Como esconder os passos e gerar um deslocamento extracotidiano?” (Fala de Jesser de Souza –
05/02/09 – 7° dia e último dia).
101

- Perceber a relação de influência por meio do pé até mesmo provocá-la. Observar esta
relação não só nas transferências de peso, apoios, peso em energia (coloridos), mas
também nos toques, energias, ou seja, toda e qualquer influência que nasça nos pés e
afete todo o ator;
- Dentro desta exploração com os pés experimentar os passos do Cavalo Marinho;
- Explorar relação com o outro;
* Adicionei na experimentação os arcos.
Roda de Avaliação:
- Clara: dificuldade em movimentos fora de controle;
- Fragmentar o texto: dizer só uma sílaba de uma frase;
* Os arcos vistos como o rio, hoje ficou com uma cara de luta de Laertes com Hamlet.
Talvez experimentar cores e iluminação.

- É preciso não só incorporar os passos do CM, mas também a música que ele propõe, é
sua pulsação, seu ritmo.
- A repetição dura, fria parece oferecer mais equívocos do que materiais palpáveis que
forneçam alguma densidade. É preciso ter calma. Esta parte não está separada do todo.
É preciso passar por ela para se chegar a outro lugar e é nele que o fluxo parece se
localizar; num plano de consistência das ações onde elas aparecem muito mais firmes e
vivas.
- Despertar de pequenas tensões (impulsos), andar com isso, dançar o CM
fazendo/percebendo isso em seguida fazer a própria matriz com esta percepção, depois
fazer isso em dupla – dançar as próprias matrizes para o parceiro.
- Existe uma pessoa que pode auxiliar o ator a dar forma e intenção à matriz, seja eu ou
outro ator;
- Pegar uma matriz simples, que é viva e orgânica, e reduzi-la para realizar uma ação
cotidiana. * Outra forma é pedir ao ator que selecione, organize uma sequência com os
elementos corporais do CM (passos, loas, cantos, etc.) e, a partir desta dramaturgia,
trabalhar a carpintaria cênica ligando fábula e ação dos atores, permitindo, assim, a
descoberta das cenas e suas possibilidades de relação, de fuga.

Procurei destacar quais foram os principais estímulos trabalhados na modelagem


texto/ação. Todavia, o ator encontra a organicidade, aberto à potencialidade de relação e
102

diferenciação que sua composição possa encontrar: música, corporeidades e fisicidades


do CM, o peso do corpo, outro ator, texto, espaço, espectador, etc. É nessa procura que
surge a fluência da dramaturgia do ator, a qual não necessariamente busca equilíbrio
com as demais organizações da encenação, mas possibilidades discursivas. Esta
capacidade de afeto, ou seja, de se deixar afetar, potencializa o trabalho de ator. É na
retroalimentação das corporeidades e fisicidades do CM que os atores e atrizes
compõem suas matrizes e têm acesso à diferenciação, ou seja, as re-significações e
recriações que auxiliam na manutenção da vida e, de certo modo, da organicidade de
suas matrizes.
É possível observar, em alguns Brincantes, assim como na prática de alguns
atores, que os passos do Cavalo Marinho se encontram num patamar mais próximo do
virtuosismo, em que existem “só distância; a inacessibilidade, em definitivo, de um
corpo virtuoso” (BARBA, 1994, p.31). De outro lado, as palavras do poeta Manoel de
Barros no poema Uma didática da Invenção: “repetir, repetir até ficar diferente/Repetir
é uma figura de estilo”, oferecem um valioso processo para a reorganização e
resignificação dos passos da dança do Cavalo Marinho – a repetição.
Repetição – é através dela que encontramos a diferença. É necessário partir para
outras coisas do CM, além dos passos de dança, mas é preciso insistir nesses passos,
levá-los ao extremo da precisão, da incorporação dos movimentos e nesta repetição,
encontramos os elementos imprevistos do improviso. Aquela zona de indiscernibilidade
na qual ainda se vêem elementos da manifestação popular, só que agora misturados
entre o trabalho de ator e os território/fronteiras do folguedo, sejam eles passos, cantos,
loas, aboios, etc.
A escolha do texto Hamlet de William Shakespeare se deu no calor do trabalho
de sala de ensaio. No começo éramos três: Clara Talha, Vitor Blam e eu. Comecei
ensinando os passos de algumas danças populares que conheço como Batuque paulista,
Coco, Ciranda, Jongo, Frevo e Cavalo Marinho pernambucano. Após seis meses de
trabalho, pedi para que Clara e Vitor dançassem misturando os passos que tinham
aprendido de acordo com o ritmo das músicas propostas por mim. Depois de algum
tempo de prática, pedi aos atores que experimentassem esse exercício com um texto a
escolha deles. Nesse momento surgiram falas de Hamlet e Ofélia, as quais iam sendo
trocadas livremente pelos atores: Clara dizia falas de Hamlet e Vitor podia responder
103

com falas do próprio Hamlet ou de Ofélia. Neste contexto surgiu a ideia de


trabalharmos o texto shakespeariano, focando as personagens de Hamlet e Ofélia.
Escolhido o texto, fui experimentando e organizando os materiais dos atores já
encontrados na fase anterior, de modo a multiplicar, abrir e não somente direcionar os
discursos propostos pelo autor. Nesta etapa, era notório que os passos do Cavalo
Marinho tornavam-se estímulo para a produção de ações pelos atores – como
referenciais iniciais para a diferenciação por repetição. Assim, pude perceber que o
processo de Observação Ativa, que utilizamos proposto pela técnica de mimeses
corpórea, além de caracterizar uma organização dramatúrgica geral a partir da aquisição
física de ações observadas, encara o corpo como um somatório – das relações e do
rizoma. Isto é observar no outro um potencial de diferenciação.
A cartografia desse processo era partir do corpo que sou, do próprio corpo
cotidiano, até chegar à composição do corpo-em-arte do Brincante, organizado em
ações, de maneira a permitir sua repetição e diferenciação típicas da brincadeira do
Cavalo Marinho. Tendo conquistado isso, se partiu na busca de outras ações,
entendendo estas como uma atualização/recriação do brincar assimilado pelos atores.
Tanto o primeiro quanto o segundo repertório de ações viriam compor outro corpo-em-
arte vetorial ao corpo cotidiano e ao corpo-em-arte do Cavalo Marinho. Todos estes
corpos são formados pela mesma anatomia, só que em estados funcionais diferentes. A
isso entendo como recriação das corporeidades e fisicidades que tínhamos aprendido
com Mestre Zequinha.
Na segunda etapa, a qual era mais direcionada à composição cênica, objetivava-
se a polissemia discursiva entre a junção texto e ação dos atores. A manifestação
estudada não só era recriada, mas também se podia observar a re-significação de um
passo de dança, uma coreografia, uma toada, um canto, um aboio, enfim. Por meio da
relocação destes elementos do CM, tal como se apresentam na manifestação, a fim de se
encontrarem os imbricamentos deles com o texto shakespeariano que estávamos nos
apropriando, de modo a ampliar seu potencial discursivo, era visível o processo de re-
significação deste. Um ator realizava um passo do Cavalo Marinho estudado, o passo
balanço, por exemplo, ao fazer isso junto a um texto escolhido, podia-se perceber que
nesta junção texto/passo, um estimulava a execução do outro, produzindo, assim,
significações um no outro. São estas modelagens, re-significações e recriações do
104

Cavalo Marinho que originam o corpo-em-arte de cada ator, os quais, por sua vez,
deram origem aos discursos da encenação em Rosmaninhos...
Toda recriação propõe uma resignificação do discurso original, mas nem toda
resignificação configura-se em uma recriação. No condizente a este trabalho com as
corporeidades e fisicidades do CM, existe a possibilidade de realocação de uma matriz
encontrada na tradição do Cavalo Marinho para outro contexto cênico. Esta colagem por
si oferece uma resignificação do discurso original dessa matriz. Este tipo de organização
não modifica o principio físico criador da ação, no caso, o passo de dança do Cavalo
Marinho é passível de ser reconhecido, mesmo estando acompanhado de elementos que
auxiliem na multiplicidade de significados, de discursos a serem captados por quem os
observa.
A re-significação não redireciona intensamente o fluxo de criação a fim de
estimular a produção de outra ação com corporeidades e fisicidades vetoriais. Por
exemplo: em determinado momento a atriz executa o passo balanço falando tal texto,
com tal figurino, ocupando determinada disposição espacial, com uma luz específica,
enfim, dialogando com os elementos que compõem a encenação de tal forma que o
passo balanço ainda é identificado por mim como pertencente ao CM, mas não só. Ele
está num fluxo que potencializa os significados deste quadro – deste poema. A poesia,
por cima, produz um sentido lógico, mas, por baixo, trás um sentido icônico de sons,
imagens, comprimentos de onda e partículas discursivas que diferenciam a ação nela
mesma. Se na época da globalização o tempo caracteriza-se pela quantidade, o ator,
como um poeta, não vê só as palavras em seu valor de face, mas procura encontrar as
palavras dentro das palavras.
Talvez dentre todos os exercícios para estimular os atores na modelagem do CM,
a repetição seja o primeiro e mais óbvio processo. Todas as formas de modelagem do
CM são fruto dessa prática em maior ou menor grau. Estímulos diversos provocam
diferentes processos de repetição, a qual produz matizes, intensidades distintas de
diferenciações, gerando os processos descritos de descoberta de ações. É na repetição
que se observa uma mudança gradual dos elementos matriciais do CM, provocando as
possibilidades de estruturação de outro estado cênico vetorial, as experimentações sobre
estes mesmos materiais.
O trabalho com objetos na produção de ações seguiu um caminho semelhante
com a prática da repetição. Quando improvisamos com objetos parecem existir duas
105

instâncias: uma que chamarei de alegoria e outra que entendo por extensão. Na
primeira, o objeto ganha foco na improvisação parecendo que existem dois corpos: o do
objeto e o do artista. Na segunda o objeto não se diferencia da intenção, ou seja, da
tensão interna produzida pelo ator durante a improvisação, ao invés, aparenta tornar-se
uma extensão do que este faz durante o exercício. Ambas, acredito, são capazes de
produzirem uma organicidade, ou seja, uma capacidade de relação viva, no entanto, de
intensidades diferentes, com variações entre os matizes da energia.
Nas artes marciais existe um processo semelhante em que as armas encontram-se
numa relação primeira de alegoria, quando se tenta dominar, até mesmo interiorizar o
objeto. Nesta etapa é como se o artista apresentasse a arma. Na segunda o objeto ganha
interioridade e atinge seu objetivo de potencializar a capacidade mecânica do indivíduo
e ampliar a extensão de seu corpo. Nesse processo, objeto e artista formam praticamente
um mesmo corpo orgânico, talvez, no primeiro momento, hermético em si mesmo.
Todavia, é preciso não negar esta primeira conquista, mas deixar-se atravessar por ela a
fim de encontrar seu potencial de diferenciação. A matriz guarda esta potência de linha
de fuga do corpo em estado cotidiano para outro estado criativo.
A imanência é constituída e constitui o corpo cotidiano, então, pode-se pensar o
corpo-em-arte como um transbordamento dessa constituição. Algo que transcende, mas
não nega sua composição, ao contrário, parte de dentro dela, que junto com outras
práticas produzem zonas de fôlego, de criação e troca. É nesse contexto que podem
surgir linhas de fuga de si mesmo para um si-outro. Pensando desta forma, a questão da
“vida” das ações, se é um movimento vivo ou mecânico, pode passar por viés talvez
subjetivo, pessoal e até mesmo tendencionista. Eu sou fruto da minha história – de
minha memória. Diz-se que tais ações são fruto da sinceridade do Ator consigo mesmo
e, geralmente, produzidas com a ausência de racionalismos. É sua capacidade de se
colocar plenamente no exercício, deixando-se afetar pelos estímulos que aparecem e
reagindo a eles da forma mais verdadeira para com sua pessoa, ou seja, para com todo o
cone de memória que se atualiza num ponto do plano presente. A improvisação, nesse
contexto, seria um modo de aquietar a mente, o consciente do ator para sínteses de
pensamento e racionalismos. Ela o coloca num estado do imprevisto, o qual é rápido
demais para ser pego ou gerado pelo frio pensar objetivo, mas quente o suficiente para
que a pele, a pulsação, a percepção do corpo que é o ator, seja afetado no momento em
que algo lhe acontece. É este algo que produz um referencial que permite a retomada da
106

ação descoberta. Neste estado de improvisação ele não deve temer encarar o vazio e
deixar-se mover quando é arrebatado a fazê-lo. É um mergulho de espera, como
colocaria Larrosa (2002) – uma passividade feita de paixão.
Diz-se que tais ações comprometem o corpo enquanto bloco, como um todo
composto por partes relacionais que o formam, todavia, o todo não é feito de partes,
mas é a relação entre estas que forma o todo (DECROUX in BURNIER, 2001). Dizer
que o corpo todo está comprometido na feitura de uma ação é colocá-lo em relação com
a coluna vertebral na execução da mesma ação, pois é por meio dela que se compromete
o corpo como um todo – ela é o cerne da energia (GROTOWSKI, 2007). Os
movimentos da coluna irradiam a presença do corpo. Os pés podem causar reverberação
na coluna proporcionando, até mesmo compondo uma gama de variações dos coloridos,
de intensidades diversas da energia. “A coisa mais importante para o ator é o trabalho
com os pés”62. Parece-me que isto é o importante: não tanto a extensão, o tamanho do
movimento da coluna, mas sim suas intensidades. Todavia, para alcançar algumas das
demandas cênicas como, por exemplo, a distância entre o espaço cênico e o espectador,
seria necessário saber como juntar tamanho e energia da ação, quantidade e qualidade,
quando o que aparentemente se configuram como opostos se dão as mãos. É na variação
destas intensidades, que parece morar a gênese da corporeidade.
A energia é este colorido que dá tom e direção à vontade e ao desejo de
existência, seja da criatura (corpo-em-arte) seja no ser que o cria (corpo cotidiano). Mas
a energia não é só isso. Ela encontra expressão através disto, mas é também o que nos
modifica por dentro. É o que se movimenta no turbilhão de sentidos, sentimentos e
emoções do ser, pedindo ao corpo vazão, para além da fronteira primeira, imposta pela
pele. É isto que se irradia no tempo/espaço compartilhado por artistas e espectadores
com a potencialidade de transformar e contaminar tanto na ida quanto na volta. Esta
relação de transformação/contaminação é própria da existência de organismos vivos,
todavia, ela é modelada e até mesmo potencializada, fraturada para compor a troca-em-
arte.
O movimento vivo, a ação cênica viva, presente, pulsante, talvez até mesmo a
sinceridade no fazer do ator, seja temporal-histórico-econômico e, por isso, individual.
Talvez isso aconteça quando encaramos a ação como metáfora e não só em sua

62
Fala de Eugênio Barba, demonstração técnica de Julia Varley, Fortaleza – CE, 27/11/2009.
107

literalidade; um jeito de se chegar a este efeito é entendê-la como música, uma pulsação
referencial que, no caso desta pesquisa, é oferecida pela prática do Cavalo Marinho
proporcionada por Mestre Zequinha. É compreender o trabalho do ator como um poeta e
não um jornalista. O ator, neste pensamento, preenche o espaço com suas palavras não
de forma objetiva, na ideia de passar uma informação direta, fechada, mas transforma-o
em lugar povoado de poesia, metáforas que abrem ao invés de delimitar os discursos da
cena, potencializando, assim, as possibilidades de leitura.
Parâmetros como estes podem apresentar-se de forma relativa aos olhos de quem
os observa. Se perguntássemos a uma quantidade de espectadores que ator eles
consideram mais vivo, ou seja, mais presente, comprometido na realização de suas
ações, provavelmente não encontraríamos uma unanimidade nas indicações. Assim
como nós estamos sujeitos à formação de nossa passagem pelo mundo, as considerações
sobre o corpo-em-arte também. As organizações de Mary Wigman, Pina Bausch,
Stanislavski, dentre outras, correspondem ao momento histórico-econômico-social ao
qual elas pertencem. Isto não significa que estas ações sejam datadas e pouco tenham a
dizer aos artistas atuais. Elas se tornam em memórias, virtualidades que atualizadas se
reorganizam de modo a oferecer caminhos e significados atuais. Deste modo,
pensaríamos não mais com olhos do passado, mas entenderíamos essas teorias com os
olhos de nossa face vendo o que passou. É nessa ação que, por exemplo, Stanislavski
não estaria mais preso ao teatro naturalista do início do século XX, mas estaria lá e cá,
no hoje, na fala de uma atriz ao ver o espetáculo Shi-Zen 7 cuias (2004) do LUME
Teatro, montado a partir da técnica do Butoh-Ma e dirigido pelo coreógrafo japonês
Tadashi Endo. “Este é o espetáculo mais stanislavskiano que já vi. (Ferracini titubeia
com dúvida e exclama “como assim?”) É que as pessoas prendem Stanislavski no
formato que ele trabalhou. Vocês trabalharam neste espetáculo o que ele queria, que é
um comprometimento total do ator na feitura de suas ações”63.
Se o ator é o poeta do espaço, como já disse uma vez Artaud, observo que
existem fluxos na produção poética da ação. Ler os discursos do espetáculo é propor um
embate de repertórios entre as dramaturgias que compõem a encenação e o espectador.
Assim, poderíamos encontrar que os significados só existem na relação. Nesse sentido,
a obra de arte não tem significado; ela produz significado. Por sua vez, essa potência de

63
Renato Ferracini contou essa história em aula na disciplina “Treinamento Técnico do Ator” no curso de
Especialização em Representação Teatral oferecido pela UFPB nos anos de 2007-09.
108

relação no encontro é entendida neste trabalho do ator como a organicidade. É por meio
dela que se pode construir significados instáveis na encenação.
Desta maneira, as corporeidades e fisicidades encontradas no folguedo do
Cavalo Marinho praticado por Mestre Zequinha, ou seja, os passos de dança e suas
variações, as coreografias, cantos e aboios, foram encarados como portas, janelas,
frestas, rachaduras que possuem uma potência de fuga do plano de imanência cotidiano.
É nesta criação, que consigo perceber um redimensionamento do corpo cotidiano,
abrindo-o a afetações e contaminações, à troca, ao outro, seja ele público, elementos da
cena, etc. O passo de dança me faz pensar diferente, pulsar de outro modo que em meu
cotidiano frugal. Não há nele fábula ou síntese de consciência de causa e efeito que
racionalize suas cartografias. O que sinto é um vibrar que obedece a uma pulsação
particular, própria, não rígida, mas marcante e que me serve de guia. Posso sair dela e ir
para outros lugares, mas ela está lá, pronta a me receber, me acolhendo, me alimentando
para que novamente eu possa viajar e vislumbrar outras paragens, outras potencialidades
– comer outros pratos, que também virão compor meu metabolismo.
Em todo este caminho, a pulsação está lá, na memória e, quando necessária, a
lembrança reivindicará sua atualização acolhedora. Nessa trajetória são descobertos os
vetores que darão origem ao corpo-em-arte. É assim que a personagem nos chega em
Rosmaninhos... – aos poucos. É aos poucos que encontramos as intensidades, os
detalhes que, lentamente, compõem outra funcionalidade, uma dilatação que
presentifica a corporeidade ou, dito de outra forma, os discursos que formam as
potencialidades de leitura da encenação.

2.2 VIRTUALIDADE E MEMÓRIA E O PROCESSO CRIAÇÃO:


EXPERIMENTANDO HAMLET E O CAVALO MARINHO SURGE

Rosmaninhos...

Criar imagens e palavras que rebatem em vocês64.


Eugênio Barba

64
Fala de Eugênio Barba, demonstração técnica de Julia Varley, Fortaleza – CE, 27/11/2009.
109

Em 2008, começei a trabalhar como professor da área de teatro no projeto “Arte-


Educação: um contexto na prática da Indústria”, organizado pelo Serviço Social da
Industria da Paraíba – SESI – PB. Este projeto também contemplava as áreas de
literatura brasileira e música. Em setembro do mesmo ano curso a disciplina Tópicos
Especiais de Teatro, como aluno do bacharelado em Teatro oferecido pela Universidade
Federal da Paraíba – UFPB. Nessa disciplina, o professor Paulo Vieira propôs que a
turma fosse dividida em grupos e trabalhássemos textos do autor brasileiro Plínio
Marcos. Externalizo, então, meu desejo de dirigir e os alunos Clara Talha e Vitor Blam
de atuarem. Eu conheci Clara há alguns anos, quando participamos em 2002 da
adaptação para o teatro do conto A Faca, do autor pernambucano Ronaldo Correia de
Brito, através dela conheci Vitor. Estando o grupo formado, escolhemos montar o texto
Quando as Máquinas Param, o qual retrata cinco dias na vida de um casal recém
casado que sofre com o desemprego.
Por esta época aconteceu a finalização do projeto Arte-Educação no SESI, com a
junção das áreas de Literatura e Teatro em uma montagem cênica. Nessa ocasião foi-me
oferecida a parceria com o SESI. Para tanto, foi necessário a organização de uma pessoa
jurídica sob minha responsabilidade. Clara e Vitor trabalhavam comigo há alguns meses
na montagem do texto de Plínio Marcos e me ajudaram na finalização projeto Arte-
Educação, em que organizei uma adaptação do romance O Cortiço de Aluísio de
Azevedo. Estendi o convite de parceria do SESI aos dois e, assim, procuramos um
grupo de teatro amigo, Grupo Graxa de Teatro, para tirar dúvidas de como abrir um
CNPJ. Utilizamos o estatuto deles como exemplo e pedimos orientações a um contador.
Deste modo, fundamos o coletivo UZUME teatro em março de 2009.
O nome do grupo surgiu de sugestões dos integrantes. Vários nomes foram
propostos: Seu Ambrósio, Teatro-Vida... Foi no livro Corpos em Fuga, corpos em arte,
com organização de Renato Ferracini (2006b), que encontrei a proposta aceita pelo
grupo. Transcrevo o trecho abaixo que inspirou o nome de Uzume para nosso grupo:

Em algum lugar do Japão mítico, Amaterasu, deusa do sol, enfurecida


pelas travessuras do irmão, esconde-se em uma gruta e priva o mundo
e os próprios deuses de sua luz divina. Uma reunião é realizada e
muitos deuses vão até a gruta tentar dissuadir Amaterasu a sair para
que o mundo conviva novamente com a luz. Alguns entoam canções
sagradas, outros tocam instrumentos mágicos, mas Amaterasu está
irredutível. A deusa Uzume, então, prende suas vestes, amarra uma
faixa em torno da testa, sobe em um grande barril e começa a dançar e
110

bater os pés. Com essa dança Uzume entra em êxtase e desnuda os


seios e as partes íntimas. Nesse momento os outros deuses, vendo a
situação na qual encontra-se Uzume, soltam uma grande gargalhada.
Amaterasu sai da gruta para ver o que está acontecendo, trazendo sua
luz novamente ao mundo e palavras sagradas impedem que ela
retorne.
O corpo em êxtase, o corpo em dança, o corpo em ação restaura a luz.
Ele não pensa, pois é pensamento e nesse pensamento age, cria e,
portanto, resiste. Ele não possui memória, mas é memória e nessa
memória recria, restaura e, portanto, se atualiza. No bater dos pés, na
dança e no êxtase de Uzume, o mundo e os próprios deuses se
enxergam novamente, não um si-novo ou um si-desconhecido, mas
voltam a vislumbrar, através da luz, um mundo, ou um si-mesmo,
como uma nova possibilidade de existência e desejo (FERRACINI,
2006b, p.13-4).

O coletivo UZUME teatro em seu estatuto, tem por objetivo, dentre outros,
“Desenvolver a pesquisa no âmbito das artes cênicas e demais manifestações artísticas
culturais”65. Quando se escolhe um grupo se escolhe uma afinidade. No começo,
embora não soubéssemos bem o que significava e nem como fazer, sabíamos o que
desejávamos enquanto grupo: realizar pesquisas no campo das artes cênicas. Não
queríamos, apenas, montar espetáculos, mas pensar e propor práticas, nos melhorarmos
enquanto atores. Com o tempo, percebemos que tomando essa decisão, sempre nos
colocaríamos perdidos em sala de ensaio. O próprio processo e nossos desejos é que
acabariam por mostrar os caminhos.
Faltava-nos definir qual seria nosso foco. No começo tudo é muito movediço,
mas é preciso caminhar, mesmo que não se saiba para onde se está indo. Queríamos
trabalhar com processos que focassem a pesquisa, mas como fazer isso? Quando são
dados os primeiros passos eles são feitos por imitação, por uma tentativa de recriar em
mim uma ação que observo. Então, nesse tempo, eu começava meu curso de mestrado
no Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas da UFRN. Naturalmente propus meu
projeto aos integrantes do grupo como a primeira pesquisa a ser desenvolvida pelo
coletivo UZUME teatro.
Assim, fomos delimitando o foco de pesquisas do grupo. Primeiro, imitando as
fontes do projeto de mestrado oferecidas pela formação do LUME Teatro, definimos no
trabalho corporal técnico de ator. Com o transcorrer da pesquisa, vimos que todo nosso
processo não tem como centro o trabalho do ator, ainda estamos nos configurando nesse

65
Artigo 2°, I Tópico do Estatuto Social – coletivo UZUME teatro de 06/03/2009.
111

caminho, mas, até a conclusão deste trabalho, temos nos direcionado para o campo da
pesquisa de linguagem, compreendendo esta como as formas e técnicas contidas nas
dramaturgias que compõem um espetáculo, as quais se articulam no objetivo de compor
os discursos da cena:

Existe a tendência inversa que faz da linguagem dramática uma


linguagem cênica e que inclui, como LEMAHIEU, a encenação (a
direção) e mesmo a recepção do espectador: “A linguagem dramática
é a composição do texto, de sua direção, completada e reescrita pela
projeção criativa do espectador, decifrador da arte do teatro, desde que
ele se preste ao jogo refinado da decodificação dos signos manifestos
no palco” (PAVIS, 2007, p. 229)

O ser humano é uma obra e, como tal, eu posso lê-lo em suas diversas, talvez
virtuais e infinitas vicissitudes. Cada ser, indivíduo ou objeto, é composto por uma
linguagem; um repertório que está inscrito no corpo e o forma. É neste momento que se
insere o trabalho do ator, o qual procura um recurso técnico para poder explorar suas
potencialidades e descobrir uma corporeidade outra, vetorial à sua própria – à sua
própria linguagem. Aqui, procura-se entender técnica como a capacidade de articular e
ampliar o potencial mecânico e criativo, mas também pode ser uma porta para
descoberta de uma energia, da presença, de ações e estados corpóreos que possibilitem a
organização ou vislumbrem a potência de composições discursivas na cena e, por
consequência, do espetáculo.
Desse modo, pensar o espectador é pensar a linguagem do corpo. A teatralização
consistiria, então, em procurar o poético de modo a tentar descobrir as respostas à
esfinge, que é o espetáculo que nos quer devorar. Esta composição oferecida é fruto de
como o artista se alimenta poeticamente. É um reflexo de sua própria leitura de mundo,
que compõe sua linguagem, os discursos que de algum modo habitam o corpo que, ao
mesmo tempo é propriedade do artista e é o próprio artista. Dito de outro modo, a
composição do artista que utiliza um recurso técnico para mergulhar em si mesmo,
mostra como ele povoa seu imaginário. No caso deste trabalho, bem como o exposto
anteriormente pelo artista Helder Vasconcelos, esta proposta encontra no folguedo do
Cavalo Marinho um modo de fazer, uma formação específica que alimenta o artista, seja
ele Brincante ou não.
Com a concordância dos integrantes do grupo em participarem de meu projeto,
procurarmos formas de subsidiar nossas atividades. Até aquele momento, iniciávamos a
112

parceria com o SESI no projeto Arte-Educação, ministrando aulas de interpretação. Este


trabalho em conjunto viria a se desdobrar num contrato de concessão de sala de ensaio
para o coletivo UZUME teatro, em contrapartida de seis apresentações anuais não
acumuláveis de esquetes com duração máxima de trinta minutos.
A fim de fomentar o primeiro processo de pesquisa em grupo, sugeri que
escrevêssemos projetos para leis de incentivo municipal e federal. Tínhamos duas ideias
para veicular: o texto de Plínio Marcos que montamos e o projeto de estudo vinculado
ao meu mestrado que se desdobraria em um experimento cênico. Éramos três: Clara,
Vitor e eu. Nos reuníamos na casa de um dos integrantes para escrever os projetos.
Geralmente, nos encontrávamos à noite, por volta das nove horas, e encarávamos a
madrugada, ou num domingo em que pegávamos o dia todo para este intento. Dessa
atividade formulamos dois tipos de projeto: um de pesquisa com montagem sobre o
Cavalo Marinho de Bayeux - PB e outro de circulação de nossa montagem de Quando
as Máquinas Param. Enviamos estes projetos para os editais: BNB de Cultura 2010,
Fundo Municipal de Cultura de João Pessoa – FMC 2009, Prêmio FUNARTE de Teatro
Myrian Muniz 2010, Itaú Cultural 2010 (Teatro e Pesquisa). Como resultado,
aprovamos dois projetos: um de circulação no edital do BNB de Cultura 2010 e outro de
montagem no edital FMC 200966. Este último, custeou o desenvolvimento da parte
prática desta pesquisa de mestrado junto ao coletivo UZUME teatro, desde os ensaios e
aulas de Cavalo Marinho com Mestre Zequinha, até as apresentações conjuntas desse
folguedo popular e do espetáculo que montaríamos como decorrência do estudo
proposto no projeto.
A princípio, tínhamos a pretensão de montar um infantil, ao menos foi isso que
propusemos no cronograma do projeto. Esse intuito refletia meu desejo de explorar
algumas ideias provenientes de leituras do livro Mil Platôs: Capitalismo e
esquizofrenia, Volume 4, de Gilles Deleuze e Fêlix Guattari. Queria trabalhar com o que
estava entendendo como devir criança – uma capacidade que as crianças têm de re-
significar as coisas pelos seus significados de face. Um exemplo direto disso é dado
pelo que li uma vez no site dos Doutores da Alegria: “uma vez perguntamos para uma

66
O projeto de montagem foi decorrente da adaptação de meu projeto de mestrado para as regras do edital
FMC 2009. Ele esta contido nos anexos desta dissertação.
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criança internada no setor de queimaduras o que era um palhaço pra ela. A resposta nos
surpreendeu. Ela disse: um palhaço é um homem pintado de piadas”67.
“O que importa é realizar um processo e no decorrer dele alcançar algo
completamente inesperado. Para isso, é necessário fases de desespero, de dúvidas. O
importante é não parar!”68. No decorrer dos ensaios, parece existir um momento em que
a mágica explode e justifica toda inquietação e aperreio. Este instante surgiu quando,
passados alguns meses de experimentações sobre os passos de danças populares, os
atores utilizaram durante uma improvisação fragmentos do texto Hamlet, de William
Shakespeare. Eram trechos de falas das personagens de Hamlet e Ofélia, dentre outros.
Pude perceber nessa experimentação as possibilidades de explorar esta trama, junto ao
recurso técnico oferecido pelos modos de brincar o Cavalo Marinho aprendidos com
Mestre Zequinha. Ainda me restava saber como trabalhar este texto? Como me
apropriar dessas técnicas para que ela externasse nossa língua sem que ficássemos
reféns delas? O esforço partia agora, à busca de como abrir o diálogo entre texto e
técnica. A resposta seria dada a partir do nosso processo de trabalho com o Cavalo
Marinho.
No princípio, eu pensei que pudéssemos trabalhar com todo o texto, criando
saltos na atuação, oferecendo uma compreensão fragmentada da fábula a qual seria
unida pelo espectador. A partir dessa proposta, fui delimitando o foco para as
personagens Hamlet e Ofélia e as relações que estas estabeleciam em sua trama de amor
não realizado. Por fim, decidi centrar na trajetória de Ofélia procurando retratar suas
memórias, oferecendo um olhar particular de acordo com nossas interpretações
originadas ao estudar este texto de Shakespeare. Tentávamos compor a trajetória de
Ofélia e como havia percebido os acontecimentos ao seu redor. Já trabalhávamos com a
decupagem de ações, o que se assemelha a trabalhar com fragmentos, pareceu-me
natural trabalharmos com fluxos de memórias e lembranças. Para embasar esta prática
de seleção de textos recorri aos conceitos de Virtualidade e Memória abordados,
respectivamente, por Pierre Lévy (1996) e Henri Bergson. Como estou trabalhando com
os entendimentos de Renato Ferracini (2006a) sobre o corpo-em-arte visto que utiliza
estes conceitos filosóficos, procuro me valer de suas leituras para me auxiliar na prática
com estes conceitos.
67
Para mais informações acessar o sítio: www.doutoresdaalegria.org.br, visitado em 10/10/09.
68
Fala de Eugênio Barba, demonstração técnica de Julia Varley, Fortaleza – CE, 27/11/2009.
114

“Este é um rosmaninho, serve para lembrança” (SHAKESPEARE, 2007, p.108).


“E que outro bem humano existe mais insidioso que as lembranças, com seu dúplice
caráter, trazendo-nos, ao mesmo tempo, a alegria da posse e a defraudação da perda,
sendo esta um reflexo daquela?” (LINS, 2003, p.130). Quando nós, artistas cênicos ou,
recorrendo à poesia artaudiana, poetas do espaço, encontramo-nos desenvolvendo um
processo de criação, recorremos frequentemente à memória como suporte de um estado
de verdade e de presença em nossas ações. Todavia, a que necessariamente recorremos?
Qual sua matéria? Onde a procuramos - a evocamos? Henri Bergson chama a atenção
para a formação da memória como uma nuvem de virtuais pairantes que aguardam
atualização em meu plano presente. A imagem do Cone da Memória fornecida por
Bergson e incluída anteriormente neste trabalho auxilia nesta compreensão69.
Cada par AB representa o passado geral que sempre será levado pelo ponto S.
Esta ideia direciona o pensamento e responde, em algum grau, à afirmativa de
Grotowski que o corpo não possui memória, mas é memória e, desta forma, o presente
também (FERRACINI, 2006a, p.125). Não negando a nuvem de virtuais que compõe o
processo de formação da memória, é uma escolha minha, adicionar-lhe a terra. Estas
imagens são metáforas, figuras poéticas tão caras à produção cênica. A terra é base,
formação, constituição matricial que sustenta e, como me disse uma vez Renato
Ferracini: “paradoxalmente, para poder voar é preciso que seus pés estejam enraizados
no chão”70.
Pierre Lévy elucida que a virtualidade não se opõe ao real, ao contrário, possui
existência real, enquanto virtual, entendendo-a como realidade em estado de potência e,
de acordo com Deleuze, potência é uma capacidade de diferenciação (DELEUZE,
2006). O virtual se opõe ao atual; expressão passada que se condensa no momento
presente. Vista dessa maneira, permito-me entender a virtualidade como uma
aceleração, uma velocidade que problematiza e encobre o passado numa nuvem de
possibilidades. Em contraponto, a atualização responde ao virtual condensando-o,
desacelerando as incertezas a fim de constituir sínteses no ponto S presente sobre o
plano P atual. Assim “a atualização ia de um problema a uma solução. A virtualização
passa de uma solução dada a um (outro) problema. Ela transforma a atualidade inicial

69
Página 79 desta dissertação.
70
Fala de Renato Ferracini durante a disciplina “Treinamento Técnico do Ator”, ministrada durante o
curso de Especialização latu sensu em Representação Teatral oferecido pela UFPB de 2007-09.
115

em caso particular de uma problemática mais geral, sobre a qual passa ser colocada a
ênfase ontológica” (LÉVY, 1996, p.18).
Diferente do que o senso comum possa cogitar, passado e presente constituem
um paradoxo ininterrupto. Enquanto o presente coloca-se em eterno devir, ou seja,
sempre está sendo em contínuo processo de formação – a memória é. Ela persiste na
forma de virtuais – de problemas que aguardam atualização:

[...] o presente não é; ele seria sobretudo puro devir, sempre fora de si.
Ele não é, mas age. Seu elemento próprio não é o ser, mas o ativo ou o
útil. Do passado, ao contrário, é preciso dizer que ele deixou de agir
ou de ser-útil. Mas ele não deixou de ser. Inútil e inativo, impassível,
ele É, no sentido pleno da palavra: ele se confunde com o ser em si
(DELEUZE, 2006, p.42).

A lembrança seria este elemento deflagrador que, ao mesmo tempo lança o


presente na constituição da memória, reivindica o passado na atualidade. A lembrança é
algo que nos toma de assalto, pulsação que pressionando o corpo do eterno devir
presente, lança-o ao passado da memória que se atualiza, ou seja, novamente incorpora-
se ao vivido de forma latente em seu instante presente: “O presente do corpo é um
tempo virtual situado em algum ponto de meu passado imediato e de meu futuro
imediato, e esse futuro imediato carregará toda a minha memória passada, refazendo-se
a cada instante” (FERRACINI, 2006a, p.121).
Na contemporaneidade, memória pode ser encarada não mais como uma
lembrança. Pode vir de Mímese: deusa grega da memória, que recria o passado no
presente, ou Museu, proveniente de Zeus, poder da memória. Pode-se presumir,
portanto, assim como o poder se dá entre as relações (FOUCAULT apud FERRACINI,
2006a), a memória também surge nesse território de entre.
É nesse ponto que encontro confluência para falar de virtualidade e memória na
criação do espetáculo Rosmaninhos... Os passos da dança, suas coreografias, loas,
cantos e aboios, são os elementos que observo como fisicidades e corporeidades desta
brincadeira popular. Dentro do contexto que teci no primeiro território desta dissertação,
a primeira etapa é onde buscamos a aquisição de memória na forma de incorporações e
pulsões que se lançam do atual ao virtual. A segunda caracteriza o movimento da
virtualização no qual conferimos velocidade ao que aprendemos com Mestre Zequinha a
fim da recriação para outro contexto cênico.
116

A memória seria, então, nosso tema aglutinador. Não qualquer memória, mas a
que pretende refletir como a personagem Ofélia presenciou os acontecimentos à sua
volta. Por meio desse mote são selecionados os trechos da obra shakespeariana. Em
ambos os processos de composição de ações e textos, o que acredito ser importante é a
maneira como se improvisa sobre estas bases que, em nosso caso, configuram-se como
a brincadeira do Cavalo Marinho e o texto Hamlet de William Shakespeare. Conferimos
velocidade a estas matrizes à procura de um estado de improvisação no qual o ator
recria e imbrica seus elementos. Na desaceleração ocorre a síntese de ações no
adensamento das intensidades experimentadas pelo ator para a criação do corpo-em-
arte.
Quais as cenas que Ofélia participa ou que teve conhecimento de alguma forma?
Seguindo essa inquietação selecionamos alguns fragmentos de texto para nosso
trabalho. Outros criamos, pois alguns dos acontecimentos ocorridos com Ofélia são
narrados e não mostrados no texto. Um exemplo disso é a cena de seu afogamento, que
é descrita pela rainha Gertrudes. Procuramos dar nossa versão para esta ação da
personagem em nossa montagem, a partir de organizações descobertas em
experimentações e planejamentos de sala de ensaio. Essa característica contida no texto
nos oferece uma abertura para criarmos segundo nossas interpretações, estudos da trama
shakespeariana e a base técnica do Cavalo Marinho.

É importante observar que Shakespeare faz, constantemente, uso das


culturas tradicional e popular, em suas peças, mas de forma indireta,
subvertendo costumes ao criar o mundo às avessas, típico da
carnavalização, saturado, em geral, de sutil ironia, construindo, com
isso, a ambigüidade que permite mais de uma leitura, ou seja, que dá
oportunidade a um texto subliminar, subversivo e contundente, de se
alinhar, em um segundo nível, ao texto primeiro, que parece apoiar o
sistema dominante. Tal construção textual leva a possibilidades
variadas de encenação e recepção das peças, resultantes do momento
e da situação sócio-político-cultural em que as mesmas são
produzidas (RESENDE in LEÃO e SANTOS, p.109-10, grifos meus).

História, também, é discurso e dramaturgia. É organizada a fim de compor


propostas de leitura. O processo criativo é um esforço de se dialogar com os mortos,
com uma referência datada, que gera sentido no momento histórico-econômico-social
em que é produzida. Trabalhar uma obra feita há tempos idos é vê-la como uma
memória à espera de atualização; é trabalhar o passado no presente. Para Peter Brook
117

(2002) o teatro morto é esse teatro que troca a palavra por ela mesma e não o que ela
pode significar enquanto imagem. É um teatro que o espectador, ainda, é contemplativo
e não ativo, vivo, participativo.
Nesse processo de montagem cênica e organização do texto shakespeariano,
procurei ideias que oferecessem reflexos, na concepção de Burnier (2001), sobre o
trabalho de interpretação e representação do ator, que considero facetas de sua atuação
durante a cena. Ao utilizar estas ideias para a arte de ator, encontro eco na proposta de
Beigui (2006) ao falar sobre os processos de adaptação e apropriação de um texto para a
cena.
O ato apropriativo não se preocupa com a originalidade fixada, mas com a das
reorganizações cartográficas que podem realizar entre os elementos constituintes
provenientes da matriz estética pesquisada. Contrário à adaptação, que se refere a um
processo de ajuste, “uma ação genérica” (BEIGUI, 2006, p.17) que não entra em
conflito com a matriz utilizada, mas procura traduzi-la de forma harmoniosa. O ato de
adaptar se localizaria, então, em um decalque, um cortar-colar das matrizes estéticas
textuais para o contexto cênico. Nesta lógica, texto e ações se encontram em planos
paralelos de significação, diferente da forma encontrada no ato de apropriação que
mistura elementos textuais e de ação em um único preparado. O papel do ator e do
encenador consiste em realizar estas misturas de signos dispersos, diluídos,
fragmentados, os quais são pegos inadvertidamente pelo espectador que se localiza no
círculo de Moébios ∞, ou seja, no fluxo de possibilidades de leitura.

Visando à ambigüidade como valor, os artistas contemporâneos


voltam-se consequentemente e amiúde para os ideiais de
informalidade, desordem, casualidade, indeterminação dos resultados;
daí por que se tentou também imposta o problema de uma dialética
entre “forma” e “abertura”: isto é, definir os limites dentro dos quais
uma obra pode lograr o máximo de ambiguidade e depender da
intervenção ativa do consumidor, sem contudo deixar de ser “obra”.
Entendendo-se por “obra” um objeto dotado de propriedades
estruturais definidas, que permitam, mas coordenem, o revezamento
das interpretações, o deslocar-se das perspectivas (ECO, 1991, p.22-
3).

Deste modo, compor ações a partir de matrizes estéticas do Cavalo Marinho no


estado de espontaneidade dinamizada origina modelagens imprevistas sobre estas. Isto,
juntamente com a exploração do texto, fornece uma composição fraturada da cena, a
118

qual necessita da participação ativa do espectador na junção dos discursos propostos, a


fim de construir um todo interpretativo próprio. Esta atividade decorre-se num
deslocamento71 da compreensão do nível de entender não a fábula posta, porém, o quê
está sendo contado, numa sensível percepção poética do como a cena foi organizada, é
no intuito de transubstanciar sua unidade de conteúdo e forma, pois assim, o texto se
torna uma melodia, uma pulsação, que dança e oferece ritmo às modelagens das ações
descobertas pelos atores, assim como a música o faz. As dramaturgias do autor e do ator
são vistas como eixos sobre os quais as demais dramaturgias vão se unindo para
construírem discursos instáveis na encenação, projetando-se para o espectador em
micros e macros dinâmicas.
Dito de outra forma, procuro na encenação de Rosmaninhos... concentrar um
criativo que acrescente à fábula outras possibilidades de leitura, além de causa-efeito e
psicologismos, propondo interpretações provenientes de fissuras de seus eixos lógicos,
ou seja, dos resultados esperados de um processo de adaptação (BEIGUI, 2006) e de
interpretação (BURNIER, 2001). Busco, por meio da utilização das corporeidades e
fisicidades do Cavalo Marinho, oferecer ao espectador de Rosmaninhos... linhas de fuga
vetoriais às lógicas criativas condizentes com as composições interpretativas do ator
(BURNIER, 2001) e de adaptação textual (BEIGUI, 2006). Não se trata de negar esses
processos, mas saber passar por eles, deixar que ganhem existência, permitindo que eles
atravessem a encenação e partam, dando lugar a outros tipos de composição que, por
sua vez, também se apresentam de passagem. Assim, os fluxos da encenação são
produzidos – árvores que geram rizomas, que geram árvores...
Seguindo esse processo tento compor uma característica do teatro
contemporâneo: a produção de zonas de turbulência. Não é mais o ator, diretor, autor
(apolíneo) que estão no centro, mas o espectador, prioritariamente, dionisíaco porque
não tem uma máscara definida. Todavia, é preciso que isso esteja contido nas formas de
organização dos discursos da cena. É como o estar decidido que Eugênio Barba (1994)
propõe ao ator que deseja dinamizar suas energias e o faz. Este centro de gravidade da
encenação pode ser móvel, pode estar em fluxos e produzir fluxos como no círculo de
Moébios ∞.

71
“O deslocamento é um ato político de sair do velho referencial, se distanciar dele sem perder o ponto de
partida e voltar, resignificando o próprio referencial” (Fala do professor Alex Beigui em aula do dia
27/04/09).
119

A cultura popular possui em sua composição tradicional e geralmente ancestral


esse processo de produção de turbulência. São as colagens, a utilização de várias
linguagens, os diversos elementos e como são organizados para formarem a brincadeira.
Se eu, enquanto artista que procura movimentos de criação, desloco algo de lugar, o
faço porque visualizo a possibilidade de gerar sentido nessa ação. “Se você é produtor
destas emendas, você sabe onde aquelas coisas diferentes se tornaram as mesmas”72.
Assim como as palavras, os signos que compõem os discursos do espetáculo deixam
rastros, expõem fraturas, que abrem seus significantes de maneira a potencializar seus
significados. Dito de outro modo, a construção de uma poesia no espaço vetorial à ações
genéricas e da tradução da arte do autor para a cena, amplia a capacidade discursiva
abrindo suas leituras, ao invés de fechá-las.
Basicamente, para a composição cênica em Rosmaninhos..., procurei
similaridades de significados entre nossa apropriação do texto de Shakespeare e a
manifestação do Cavalo Marinho. Busquei uma organização por meio da semântica, ou
seja, pensar o espetáculo nas escolhas que se tomam para a composição discursiva dele,
tentando revisar discursos, a fim de produzir sentido. Por exemplo, o espetáculo começa
com o acolhimento do público, quando o chamamos para ensinar a música da Fulô junto
ao Passo Galope do Cavalo Marinho. É nosso meio de receber o público e convidá-lo a
brincar conosco nesse primeiro momento da peça. Esta característica também é
encontrada na manifestação pesquisada, em que a participação das pessoas que assistem
ao espetáculo está sujeita ao convite do Mestre de Cavalo Marinho. Cada ator tem o que
chamamos de toca, que é um pequeno lugar periférico ao espaço cênico onde se guarda
o material de cena. Em círculo, começamos a cantar e lentamente vamos dançando o
Passo Galope e induzindo o espectador a participar dele.

72
Fala da bailarina baiana Clara F. Trigo, no FESTIVAL CANAVIAL 2009, realizado na zona da mata
pernambucana - Seminário de Interações Estéticas 03/12/09.
120

Figura 15 – Acolhimento do público em Rosmaninhos.... Experimentação de espaço: bosque da


UFPB. Foto: Lindinaldo Silva, 2011.

Para isso, convidamos quem do público quer vir conosco, como havíamos
convidado no início. A atriz Clara Talha começa o primeiro texto de Ofélia com uma
poesia retirada do livro As águas que conversam de Carlos Nejar (2003), inserido em
nossa encenação a partir de propostas dos atores Vitor Blam e Clara Talha.

Duas águas conversavam:


solteiras e mansas, bem cuidadosas tranças.
Águas tão macias.
Fios de seda vinham junto a fios de favos.
Eram como olhos: pálpebras baixavam.
Que a luz, flutuando, se apura ao contato de outra luz.
Eu vi o peixe da lua mergulhar, ficar azul.
Súbito vento as empurra, como um clarão – pombo raio.
Em ambas tombam a brancura da correnteza, entre flores.
A corrente onde vamos é árvore de muitas cores.
A corrente roda a vida.
A mesma entrada, saída.
A corrente move a sorte, leva de roldão a morte.
Vai cada dia mais longe.
E mais a morte distante.
Foi a morte na corrente.
Não quis nadar, não nadava.
121

Foi corrente na morte.


Morreu a morte afogada.
E as águas caminham fortes.
E juntas, são libertadas.
Eis meu Rosmaninho
É para lembrança
Eu te peço amor,
Não esquece!

Quando ela termina, nós que estávamos fora de cena começamos um aboio. É a
trupe que chega para o casamento do rei Cláudio com a rainha Gertrudes – cena das
bodas de luto. O rei dá as boas vindas e começam os festejos. Para simbolizar essa festa,
seu corpo de baile e suas danças, optei por colocar algumas evoluções pertencentes à
coreografia da Dança dos Arcos, com as músicas Fulô e São Gonçalo do Amarante. O
público que optou por seguir conosco depois do acolhimento, dança nesse momento e
nos ajuda a compor a cena até o final da música do São Gonçalo do Amarante. Para as
bodas de luto, utilizamos um arco com fitas brancas, negras e vermelhas, diferente do da
chegada que é todo colorido. Arcos coloridos: alegria, festa. Arcos de fitas brancas,
pretas e vermelhas: bodas, morte, amor, sangue.
Atores e espectadores compõem o caminho para a noiva que nesse primeiro
momento, também, é representada por uma espectadora escolhida pela atriz Clara Talha.

Figura 16 – Ator Alan Monteiro e a participação do público na cena das Bodas de luto em Rosmaninhos...
Experimentação de espaço: bosque da UFPB. Foto: Lindinaldo Silva, 2011.
122

O rei termina seu anúncio de boas vindas e dá início à festa. Cantamos a música
da Fulô enquanto Clara e Vitor, Ofélia e Hamlet, cumprimentam os convidados. Seus
olhares se cruzam. Como estão diferentes. Eles se conheciam de crianças e nunca
tinham se visto como adultos. Este é o primeiro momento que se olham depois de
crescidos. Na música seguinte, São Gonçalo do Amarante, os demais atores que guiam
os cordões que dançavam em volta de Ofélia e Hamlet entregam a guia dos arcos para
estes, os quais passam a orientá-los como se os convidados dançassem ao redor deles na
festa, a festa é para eles – para o encontro no qual Hamlet e Ofélia se apaixonam. O
desejo de união entre estas personagens é recorrente no texto de Shakespeare. Tento
tecer um paralelo com isso através da letra da música São Gonçalo do Amarante, uma
vez que ela descreve o desejo de uma moça em se casar:

São Gonçalo é o santo casamenteiro falecido em 1259, na cidade de


Amarante, Portugal. Era tocador de viola e diz-se que usava a dança
para converter os fiéis. A letra da música retrata a crença dos
brincantes no poder desse santo „feito de um pau de alfavaca‟ e na
coreografia dessa música, os galantes e damas se ligam através dos
arcos e, dançando um galope, as duas fileiras entrelaçam os arcos e o
grupo dança em círculo (LIMA, 2010, p.63).

Segue as quadras que cantamos da música São Gonçalo do Amarante no


espetáculo Rosmainhos...

Ai, São Gonçalo do Amarante


Feito de um pau de alfavaca
Quem não tem cama nem rede
Dorme no couro da vaca.

Ai, São Gonçalo disse que tinha


Duas filha pra casá
Uma é com o filho do rei
Outra é com seu Gaspar.

São Gonçalo do Amarante


Casamenteiro das moça
Casai a mim primeiro
Pra depois casar as outra73.

73
Retirada do encarte do CD Cavalo-marinho e boi-de-reis na Paraíba, produzido pelo Prof. Dr.
Agostinho Lima.
123

Nossa seleção de cenas parte das leituras dos atores sobre o que acreditávamos
que Ofélia presenciou ou teria tido conhecimento de alguma forma. Utilizamos para a
composição da cena elementos do Cavalo Marinho de Mestre Zequinha, como
coreografias, cantos, loas e aboios, que tivessem alguma similaridade ou que
pudéssemos fazer alguma ligação com o que se passava na peça. Mover estes elementos
do Cavalo Marinho de lugar e colocá-los numa encenação teatral gerava uma
composição que procurava dar outro significado a essa matriz.
Como já mencionado neste trabalho, os passos de dança ofereciam uma base
técnica com qualidades possíveis de serem modeladas pelos atores, dando origem a seus
repertórios de ações. Sem ter uma consciência clara ou proposital, me vali de outro
recurso da manifestação pesquisa para compor a cena final em Rosmaninhos...
No Cavalo Marinho, assim como em outros folguedos com partes encenadas,
existe, como mencionei no primeiro território desta dissertação, uma sequência de
entradas e saídas dos quadros que geralmente é respeitada. No caso do Cavalo Marinho,
o começo é marcado pela entrada das figuras do Mateus, do Birico e da Catirina. No
final quase sempre aparece a figura do Boi, seguida das salvas de Vivas. O entremeio da
brincadeira pode variar segundo as necessidades de tempo ou pessoal, pois, às vezes, o
Brincante que bota determinada figura não veio, a relação com o público, o tempo da
apresentação, ou até mesmo o brinquedo da figura não pode ser levado. Dessa forma, é
possível perceber que existe um repertório de ações e cenas ou quadros codificados que
organizam uma brincadeira do Cavalo Marinho. Não existe uma amarração rígida neste
folguedo – ele se modifica de acordo com os percalços e necessidades de seu
acontecimento. Existe um jogo de cintura, de improviso por parte de quem organiza a
brincadeira que, no caso do Cavalo Marinho de Mestre Zequinha, pode ser tanto Seu
Nandinho, coordenador e quem faz os brinquedos do grupo, ou mesmo Mestre
Zequinha que orienta os Brincantes durante a apresentação.
Para a última cena de Rosmaninhos... utilizei esse princípio de improviso sobre
elementos codificados. No final, existe o delírio de Ofélia, quando entramos em sua
(in)sanidade, procurando dar vislumbre às imagens do que aconteceu, acontece e o que
aconteceria com ela. Possibilidades de casamento, gravidez, felicidade, loucura,
sofrimento, morte – água e flores. A partir de algumas ações descobertas pelos atores
decidimos que improvisaríamos com elas. Existe a figura da morte azul, as falas da
rainha para Ofélia, o acalanto cantado por Laertes, por exemplo, materiais codificados,
124

matrizes (FERRANICI, 2003) como “células-tronco potenciais”74 que surgem no


decorrer da apresentação, mas as formas, modelagens ou sequência que apareceram
serão definidas pelo calor do momento.
Resumidamente, Rosmaninhos... são as memórias da personagem de Ofélia
sobre sua trama de amor não realizado com o príncipe Hamlet. Esse fantasma, ou
melhor, essa lembrança vem contar sua história, paralelamente à chegada da trupe de
atores que é convidada para os festejos do casamento do rei Cláudio com a rainha
Gertrudes. Procuramos misturar essas duas ideias para ligar as cenas no espetáculo. Para
tanto, no meio da encenação, quando será representada a peça A ratoeira, realizamos
uma auto referência, pois a trupe que chega no início do espetáculo é o próprio coletivo
UZUME teatro. Existe um prólogo que montamos a partir do mito da deusa Uzume, que
dá nome ao nosso coletivo teatral75. Assim, acredito estar trabalhando com citações e
referências características do teatro contemporâneo: “uma referência é uma apropriação,
uma lembrança de outra obra já acontecida. Citação é colocar a obra como ela é em
outro contexto. É um deslocamento que re-significa originalmente oferecendo outro
alicerce poético à composição que a usa”76.
No decorrer da montagem de Rosmaninhos... foram surgindo demandas naturais
da etapa de finalização: como seria o figurino e qual espaço utilizaríamos? Outra
necessidade, a qual procurei abordar primeiro, foi o trabalho com a musicalidade, uma
vez que cantamos durante o espetáculo e em algumas cenas existe músicas tocadas na
rabeca.
No começo, eu concebia uma pessoa que tocaria a rabeca durante toda a peça.
Ela estaria com um figurino de Ofélia e não sairia nenhum instante de cena, mas logo
essa ideia foi abandonada devido à dificuldade de organização do tempo de uma
musicista para nossos horários de ensaio, além de não estar previsto no orçamento da
montagem. Como estava na coordenação de uma oficina de construção de rabecas com
o rabequeiro do grupo de Cavalo Marinho que estava pesquisando, um dos participantes
dessas aulas comentou comigo que havia uma professora recém-chegada no curso de

74
Fala de Renato Ferracini em ocasião da Demonstração Técnica da atriz Naomi Silman “Não Existe Flor
Quadrada” – Terra Lume, 05/02/09.
75
Por acreditar que descrições aqui serão redundantes e incompletas, peço que o leitor veja o DVD do
espetáculo contido nos anexos deste trabalho.
76
Fala da Prof. Maria Helena em aula da disciplina “Metodologia do Trabalho Cientifico”, ministrada
para o PPGArC da UFRN em 30/06/09.
125

Canto Popular da UFPB que tocava rabeca, os acasos programados, que ajudam a
gente. Tentei algumas vezes entrar em contato com essa pessoa por e-mail, mas nada de
resposta deixei então o intento de lado. Passados alguns meses e com o desenrolar da
encenação, via crescer a necessidade musical tanto de instrumentos, quanto do canto
uma vez que cantamos muitas músicas juntos. Foi num show do grupo Mawaca em João
Pessoa no Ponto de Cem Réis, que encontrei a pessoa que me tinham sugerido meses
atrás na aula de confecção de rabeca. Tratava-se da professora Daniella Gramani77.
Anotei seus contatos e nos organizamos para ter aulas de rabeca, especialmente para
aprender a tocar algumas das músicas do espetáculo, e ela, ainda, nos ajudaria a
ensaiarmos as partes cantadas de Rosmaninhos... com o objetivo de cantarmos juntos.
O trabalho de Dani, como ela pediu para a tratarmos, foi direcionado à
montagem. Nas aulas de canto ela nos orientou de modo que ouvíssemos uns aos outros.
Ela também dividiu as músicas junto conosco, facilitando assim que as cantássemos,
uma vez que cantamos ao mesmo tempo em que dançamos, característica que não é
encontrada na manifestação do Cavalo Marinho. Ela nos indicou alguns exercícios
simples, como cantarmos sem nos vermos, procurando atiçar a audição para nos
escutarmos. Também nos mostrou maneiras fáceis de aquecermos a voz direcionando
para o espetáculo, fazendo, apenas, um vibratto com os lábios e alternando entre outro
com a língua no palato duro (céu da boca). Fazer estes exercícios com as músicas que
cantamos durante a encenação.
Nas aulas de rabeca Daniella nos mostrou como afinar a rabeca utilizando um
afinador digital. A partir das músicas do espetáculo, de CDs do Cavalo Marinho e de
encontros com seu Zé Hermínio rabequeiro, ela organizou uma escala para a afinação da
rabeca:

77
“Possui mestrado em Música (2009) pela Universidade Federal do Paraná, graduação em Educação
Artística - habilitação em Música (1999) e especialização em Fundamentos da Música Popular Brasileira
(2004) pela Faculdade de Artes do Paraná - FAP. Atualmente é professora efetiva do Departamento de
Música da Universidade Federal da Paraíba. É cantora, arranjadora e também toca rabeca e percussão. Foi
integrante do grupo artístico Mundaréu (Curitiba-PR) e é membro da Associação Cultural Caburé”.
Extraído da plataforma lattes em 03/04/2011.
126

Figura 17 – Legenda feira por Daniella Gramani para as aulas de toques de rabeca. Nela existem duas
afinações, a primeira em vermelho é mais aguda e a segunda de azul é mais grave.

Começamos a ter aulas na casa dela, onde nos mostrou a coleção de mais de
quarenta rabecas herdadas de seu pai, o músico, pesquisador e rabequeiro José Eduardo
Gramani78. Ela foi nos orientando a tocar a rabeca não por meio das notas, mas da
posição dos dedos e que, na maioria das vezes, só tocávamos as três primeiras cordas. O
dedo indicador seria representado pelo número 1, o dedo médio pelo número 2 e o
anelar pelo 3. A corda solta seria o número 0. A primeira corda, a mais aguda, seria
indicada com um traço em cima do número, a segunda corda com um traço no meio e a
terceira corda com um traço embaixo do número. No grupo, concordamos que para
indicar a quarta corda usaríamos uma bolinha ao lado do número. Assim, fomos
aprendendo a tocar a rabeca. Algumas músicas ela nos fornecia de ouvido e fazia a
partitura conforme segue o exemplo abaixo:

78
Autor da pesquisa Rabeca, o som inesperado, organizada por Daniella Gramani e publicada em 2002
com patrocínio da SIEMENS.
127

Figura 18 – Ilustração de Daniella Gramani de como fazer uma partitura seguindo a posição dos dedos.

O figurino foi concebido por outra profissional, Tainá Macedo. Ela é estudante
do bacharelado em Teatro da UFPB, com curso técnico em Figurino pelo IFPB. Foi
escolhida devido sua abertura ao diálogo da criação e por estar interessada em
desenvolver sua monografia sobre os elementos visuais do Cavalo Marinho paraibano.
Desse modo, a criação do figurino seguiu no tocante a tentar tecer imbricações entre a
concepção tradicional do texto shakespeariano e da indumentária encontrada no Cavalo
Marinho de Mestre Zequinha, gerando, assim, um misto entre a realeza que é tratada no
folguedo nas vestimentas da figura do Capitão Marinho e do cortejo de galantes, e da
noção datada proposta no texto de Shakespeare79.

79
Por serem vários figurinos, pois somos seis atores fazendo dez personagens e a trupe, optei por colocar
nos apêndices do trabalho figuras que mostrem o processo de sua criação. Em primeira proposta, Tainá
apresentou algo mais próximo do Cavalo Marinho. Fomos orientando no sentido de simplificar o projeto,
procurando conservar cores e propostas de movimento do figurino e dos atores.
128

Figura 19 – Acima, Mestre Zequinha em apresentação do lançamento do CD Cavalo-marinho e boi-de-


reis na Paraíba, foto: Líllian Régis, Bayeux – PB, 2010. Abaixo, preparação do elenco de Rosmaninhos...,
da esquerda para a direita: Bertand Araújo, Clara Talha, Larissa Santana, Alan Monteiro, Vitor Blam e
Naiara Cavalcanti. Experimentação com espaço: Bosque da UFPB. Foto: Lindinaldo da Silva, 2011.
129

Outra forma de composição, que trabalhei mediante a que encontrei no Cavalo


Marinho foi à ocupação do espaço. Observei que essa brincadeira se distribui
espacialmente a partir da organização do banco de músicos. Diante deles se encontra o
Mestre do grupo que geralmente representa a figura do Capitão Marinho, que recebe as
demais figuras em sua festa em homenagem aos santos reis do oriente. No extremo
oposto ao banco de músicos se localizam os Brincantes que aguardam a entrada no
espaço da brincadeira. O público geralmente ocupa as laterais. A parte de trás onde se
localizam os músicos é raramente ocupada devido se encontrarem num palco armado,
pois o grupo de Cavalo Marinho de Mestre Zequinha se apresenta geralmente em
ocasiões festivas não organizadas por eles.
Desse modo, os músicos se localizam num palco como em um show musical, a
parte de onde acontecem as evoluções dançantes e encenadas da brincadeira. Na região
da frente da brincadeira, onde estão localizados os Brincantes que aguardam seu
momento de participação, não é permitida a permanência do público. Geralmente, este é
convidado no final da brincadeira, a participar dela. Após o ressuscitamento do Boi,
quando o grupo faz uma ciranda para a despedida. Raramente, o público é chamado para
participar dos cordões de galantes. Isso acontece quando tem alguém que o Mestre sabe
que conhece a brincadeira e tem confiança naquele para participar. A fim de ilustrar a
configuração do espaço ocupado durante a brincadeira do Cavalo Marinho de Mestre
Zequinha, me arisco a fazer um desenho:

Figura 20 – Ilustração da ocupação espacial do Cavalo Marinho de Mestre Zequinha.


130

A partir dessa organização espacial pensei em como utilizá-la na montagem do


espetáculo Rosmaninhos... Existe uma configuração típica das danças populares que é o
círculo, mas dentro deste é possível perceber a existência de um corredor por onde
entram os Brincantes para a apresentação e por onde saem dela, algo semelhante à coxia
no teatro à italiana. Meu desejo era que pudéssemos nos apresentar num espaço
semelhante ao do Cavalo Marinho, mas que não fosse a rua, pois queria que o lugar
reforçasse a carga semântica do espetáculo. Além disso, o formato do teatro de rua
exige um domínio técnico que fugia ao nosso alcance a essa altura do processo. Meu
intento era que não apresentássemos no palco italiano, pois sempre que presenciei uma
brincadeira popular apresentada neste espaço, percebi que a divisão palco-platéia
acarretava em mais perdas das relações intensivas propostas do que os ganhos técnicos
que o palco podiam contrabalançar. Uma vez que na montagem de Rosmaninhos... eu
queria propor um espaço de troca-em-arte vetorial ao encontrado na brincadeira do
Cavalo Marinho, a configuração do palco italiano não colaboraria nesse intento.
A simples alocação ou realocação de um texto, de uma ação ou uma cena inteira,
espacialmente, reorganiza essa dramaturgia a fim de oferecer multiplicidades de
leituras, seja intensificando a carga semântica dessa composição ou potencializando,
abrindo suas leituras a um processo de diferenciação em si mesmas. Foi com esse
objetivo que passei então a pensar na ocupação espacial em Rosmaninhos... No
folguedo do Cavalo Marinho existe uma configuração do espaço com base para o
acontecimento da brincadeira, mas os Brincantes interagem muito pouco com ele,
limitando-se a brincarem com a platéia. Geralmente, o espaço para sua apresentação
deve ser plano e vazio, livre de obstáculos que entrem no caminho da evolução dos
Brincantes. Em Rosmaninhos... propus algo diferente. O lugar da apresentação poderia
ter obstáculos com os quais os atores pudessem jogar, estimulando a diferenciação em
suas matrizes.
No começo de meu segundo ano do curso de Educação Artística na UFPB,
cursei a disciplina Expressão Corporal e Vocal I com a professora Daniela Kuhn. Numa
de suas aulas ela expôs uma ideia que humildade não é se diminuir diante de alguém,
mas saber de que tamanho se é. É sabendo a dimensão da própria matriz, tendo domínio
sobre ela, que se pode brincar com ela no espaço. “Com isso, aparecem outras
possibilidades para a construção de uma geografia da cena, isto é, se antes o que
havíamos produzido foi com a intenção de explorar, apenas, a parte inferior e superior
131

dos boxes, a partir das características arquitetônicas do espaço emergem alternativas


que se integram ao espetáculo” (REBOUÇAS, 2009, p.53, grifos meus).
Assim, optei por compor uma organização em Rosmaninhos... de modo que os
atores fossem estimulados a jogar com o espaço onde ocorresse a apresentação.
Definimos que haveria um corredor semelhante ao encontrado na brincadeira do Cavalo
Marinho. Este seria delimitado por almofadas que orientariam a localização dos
espectadores. Esta disposição trás o público para perto dos atores, possibilitando que
estes interajam diretamente com eles. Esse é nosso espaço de segurança, onde
construímos e sabemos dar movimento à peça que montamos. A partir dessa
configuração do corredor nos lançamos no espaço durante a apresentação, tentando
jogar com ele de modo a potencializar os discursos da cena.
Este risco é, de certo modo, controlado, por assim dizer. Até a entrega desta
dissertação, realizamos durante o processo de montagem quatro experimentações com
organizações espaciais diferentes: um córrego na estrada que vai do bairro de
Mangabeira para a praia do Seixas, na área de um prédio antigo onde já funcionou uma
escola pública e hoje é o Teatro Cilaio Ribeiro, no espaço do hall de entrada, platéia e
palco do Teatro Armando Monteiro Neto no SESI Centro João Pessoa, e num bosque
próximo à Central de Aulas na UFPB. Nessas experimentações descobrimos modos de
nos preparar para a interação com o espaço.
Um deles é tentar delimitar racionalmente o espaço para a apresentação. Assim,
definimos primeiro onde seria o corredor de ação marcando-o com as almofadas.
Depois disso, podemos escolher onde ocorreriam as cenas. Por exemplo, no rio optei
por colocar a cena inicial da atriz Clara Talha dentro da água do córrego. Já no Teatro
Cilaio Ribeiro, como a área que utilizamos era repleta de escadas que possibilitam
mover a cena na vertical, decidi organizar o corredor ligando duas escadas que tem um
pequeno coreto no meio. Nesse dia, não colocamos as almofadas para definir o local do
público. Optamos por aglomerá-las juntamente às cadeiras e sugerimos aos espectadores
que ficassem onde bem quisessem no espaço, inclusive que poderiam se movimentar
dentro dele.
132

Figura 21 – Cena final de Rosmaninhos..., da esquerda para a direita estão as atrizes Larissa Santana,
Clara Talha e Naiara Cavalcanti. 2° Experimentação com espaço: Teatro Cilaio Ribeiro. Foto: Lindinaldo
da Silva, João Pessoa – PB, 2010.
133

Figura 22 – Cena inicial de Rosmaninhos... com a atriz Clara Talha. 1° Experimentação com espaço:
Córrego. Foto: Thiago Alberine Silva de Araújo, João Pessoa – PB, 2010.

Assim planejamos racionalmente as possibilidades de interação com o espaço a


partir de nossas marcações de cena e das matrizes dos atores. Outro modo é quando
realizamos antes da apresentação um contato livre com o espaço, jogando com ele. Isso
acabou por se configurar num ritual nosso de improvisação a fim de explorar as
134

possibilidades do espaço e nos acostumarmos com ele. Nem sempre isso é possível
devido a vários fatores como a configuração do espaço, do trânsito de pessoas, do
tempo que temos para começar a apresentação, etc. Também concebemos de após essa
exploração ou no lugar dela, passarmos o espetáculo sem o público no lugar que ele será
apresentado. Uma espécie de ensaio geral no espaço. Todavia, essa logística demanda
muito tempo e desgaste dos atores antes da apresentação. Por isso, de acordo com as
possibilidades de organização, escolhemos por realizar a experimentação com o espaço
e/ou o ensaio geral nele no dia anterior ao da apresentação.
Como estamos trabalhando com o tema da memória de Ofélia, procurando estar
dentro de suas lembranças, de sua (in)sanidade, buscamos espaços que redimensionem
os assuntos abordados na peça. A ideia dessa lembrança compondo talvez os lugares
onde elas ocorreram, como o castelo onde se passa o texto de Shakespeare ou o bosque
com o rio no qual o autor sugere seu suicídio.

Essas características semânticas que se referem ao espaço público, se


agregadas aos temas abordados nos espetáculos em questão,
interferem, sobremaneira, nas ideias centrais de cada um deles. Nesse
sentido, a percepção de quem assiste ou participa desses espetáculos
recebe interferência de outros elementos além daqueles relativos ao
texto e à encenação, essencialmente, em função da carga semântica de
cada espaço (REBOUÇAS, 2009, p.140).

O espaço escolhido para a encenação possui uma trama de sentidos que pode se
relacionar com o texto e as várias dramaturgias do espetáculo. Sua historicidade,
arquitetura e como a cena se encaixa nela e prevê a participação do espectador, são
fatores que influenciam na percepção da peça. É tentar “pegar a engrenagem que é a
estrutura do espetáculo e encaixar no espaço”80. Da mesma forma, existem
conhecimentos que só vêem com as apresentações.
Tínhamos descoberto em experimentações que as lembranças que Ofélia devolve
para Hamlet podiam ser coisas variadas. O texto indica que seriam cartas de amor que
eles trocaram. Primeiramente, pensei que poderia ser a rabeca que Ofélia poderia estar
tocando, dando a ideia de que este instrumento foi um presente de seu amado. Ela
tocaria a música da Fulô, a qual foi tocada na festa em que se encontram pela primeira
vez depois de crescidos. Quando Hamlet entrasse na cena, ela devolveria esta
80
Fala de Ricardo Pucetti – Ator do LUME Teatro, TERRA-LUME 2009, Mesa Redonda: A
Teatralização dos Espaços – 04/02/09.
135

lembrança. Mais tarde, cogitei a possibilidade de serem cartas que Ofélia entregaria ao
público para este ler. Mas foi num ensaio que surgiu a proposta do ator Vitor Blam de
estas lembranças estarem na forma de barquinhos de papel, que em sua borda estariam
escritos algumas poesias trocadas entre os amantes. Este formato sugere ideias como a
viagem feita pela memória trazendo lembranças, ao mesmo tempo em que trás o
elemento da água muito presente na história de Ofélia. Em nossa última experimentação
com espaço, ocorrida num bosque da UFPB, este elemento ganhou um fator importante
para a encenação.
Neste dia choveu, mesmo assim nos abrimos à vivência e não paramos o
espetáculo. Os espectadores se abrigaram numa passarela próxima ao local da
apresentação e continuamos. Com a chuva, percebi que é necessário proteger alguns
elementos de cena como as rabecas. Todavia, a água que caia molhou o chão, os
figurinos e os barquinhos das lembranças, remetendo ao afogamento da personagem,
reforçando a ideia de uma imagem do passado que está sendo composta diante dos
espectadores. No término da apresentação um dos espectadores ressaltou a sensação tátil
de receber o barquinho molhado: “É como se eu pudesse tocar o espetáculo. Eu gosto
muito disso!”81.

No trabalho de apropriação do espaço – e levando em consideração a


arquitetura, a sua atmosfera e as pessoas que o circundam –
conseguimos projetar novas possibilidades para as personagens.
Interferências do campo tátil, olfativo e da própria geografia do
espaço colaboram para a ampliação dos discursos (REBOUÇAS,
2009, p.58).

O que tentamos, então, com a utilização de um espaço não convencional para a


encenação de Rosmaninhos... é romper com os mecanismos cotidianos do espaço
através dos recursos técnicos do trabalho de ator que, em nosso caso, se configura por
nossa apropriação das corporeidades e fisicidades do Cavalo Marinho. É permitir-se
contaminar pelo espaço e jogar nele com a composição da encenação, sabendo ser
maleável, tanto na geografia do lugar, quanto do espetáculo. É estar atento ao modo de
ocupação que compõe o cenário da peça. Assim, ao organizá-la nesses lugares
pensamos em maneiras de como a performance dos atores poderia dialogar com o todo

81
Fala de Chavannes Procopio aluno do bacharelado em Teatro da UFPB. Experimentação de espaço:
bosque da UFPB, 31/03/11.
136

para que houvessem uma construção funcional, expressiva e segura de si. Isso é
conquistado na periodicidade do trabalho de sala de ensaio por meio da investigação
que busca vetores nas experimentações com o Cavalo Marinho, através das quais
descobrimos os discursos a serem trabalhados no espaço.
É o mergulho nas tramas que se apresentam, esmiuçando seus elementos, suas
corporeidades e fisicidades e os estímulos que elas ou propostas externas possam
contribuir para sua realocação, acarretando, assim, na descoberta das possibilidades do
espaço cênico. É nessa procura que pode nascer o brocado, o crochê, o desenho das
linhas de ação enredadas, entrelaçando a formar outro espaço-em-arte. Um espaço
tornado lugar da troca-em-arte anunciada pelo corpo-em-arte. “As encenações ganham
outros matizes em função da carga semântica impregnada nos espaços públicos, já que a
historicidade desses locais está arraigada no imaginário coletivo. Assim, uma igreja, um
hospital, um presídio ou um banheiro público possuem suas cargas semânticas que, na
interseção entre o texto e a encenação, possibilitam outras leituras em relação à ficção
(REBOUÇAS, 2009, p.180).
Ao fechar os discursos da cena é necessário certo nível de controle para que não
haja interrupções em seus canais de comunicação e realização. Ao escolhermos o
espaço da apresentação tentamos gerar esse mecanismo de controle produzindo
segurança nos realizadores. Quando alteramos o espaço e colocamos em algum lugar
aberto onde o controle diminui ou se torna relativo, a segurança não está mais no
espaço, mas em cada ator e sua relação – sua capacidade de modelar-se às vicissitudes
externas. “Isso é muito mais interessante, ao invés de ter uma linha para seguir, ter um
espaço inteiro para explorar”82. Ver o espaço e conceber as possibilidades de comportar
a encenação. É a capacidade de gerar fissuras e mostrar a verdade do próprio espaço
como relativa e não absoluta.
O acesso aos discursos contidos numa composição de fissura, fraturada,
geralmente não é conquistado por meio de leituras horizontais. É possível perceber que
a profundidade das interpretações está ligada ao nível de afetação de quem lê. Esse
efeito é conseguido graças ao receptor que se permite afetar e por meio da cena que
busca modos para afetá-lo. A composição cênica que trabalha com fluxos na ordem de
fragmentos exige a participação do público na completude destes discursos. Outro

82
Fala de Renato Ferracini durante o curso “Conceituações sobre o corpo-em-arte”, em 12/02/10 – 5° dia.
137

espectador, já viciado por uma dramaturgia fechada, poderá não se abrir às novas
percepções propostas por um modo diferente de organização. Esta postura fecha o
indivíduo ao acontecimento, protegendo sua individualidade e identidade, colocando-o
num espaço de eterna passagem e projeção. Num delírio contínuo do momento futuro:
“O teatro virou a ante-sala da pizza!”83. Este indivíduo, estando centrado em sua
individualidade e identidade, até mesmo sem perceber que está, rejeita a existência do
outro ou de um si-outro que porventura se apresente. É na busca de fissurar esta
constituição que a participação do espectador se faz necessária em Rosmaninhos...: para
organizar a obra junto à sua formação, enquanto indivíduo sócio-cultural-histórico-
econômico. Nesse contexto, ele pensa/cria as emoções a partir da percepção dos efeitos
poéticos e traços estéticos que compõem as possibilidades discursivas da cena.
Desse mesmo modo, um pensamento não compartimentalizado não é
necessariamente carente de objetividade. A forma de pensar não estruturalista obedece à
ordem de fluxos e não de um único fluxo estruturado, linear. É como o processo de se
montar um quebra-cabeça: não se obedece à ordem linear do encaixe das peças, pois
estão misturadas dentro da caixa do brinquedo. Sua montagem se dá pela ordem dos
encaixes das peças que se vai encontrando. Nesse processo, frequentemente, recorre-se
à memória para lembrar-se de algo que se achou no começo da procura e trazê-lo para
junto do que se apresentou depois, formando uma organização pessoal da leitura. Mais
ainda, parece que o espectador produz ou encontra peças que não estavam na caixa do
brinquedo, mas que se encaixam nele.
A objetividade de uma ordem de fluxos se encontra no embate entre repertórios
para além dos valores de face que a própria linguagem pode impor. É a objetividade
oferecida pela dinâmica do pensamento rizomático, a qual abre ao signo um processo de
diferenciação em si mesmo. Até mesmo um rizoma possui e produz territórios e
fronteiras, mas não previsibilidade. Posso até esperar encontrar algo nesses fluxos, mas
achar outras descobertas, umas inesperadas, outras diferentes dos objetivos almejadas
no início da pesquisa. Refiro-me ao pensamento rizomático que incluso numa pesquisa
pode impulsionar a produção dos objetivos desta, mas quase sempre arrasta outros em
sua conclusão.

83
Trecho de fala da peça-teatro “7 minutos”. Direção Bibi Ferreira, texto: Antonio Fagundes. Globo
Filmes, 2007.
138

As falas dizem muito nos textos de Shakespeare. Erigir uma ordem de fluxo, de
afetos e percepções em potência, seja caracterizada não pela ausência de voz, uma vez
que esta parece ser super valorizada no drama de causa e efeito. Uma composição de
fluxos se caracteriza pela enxurrada de falas e/ou de ações. Numa composição
aristotélica, a fábula é contada por meio de diálogos. É neles que as ações do ator
ganham sustento ou vêm auxiliar a tradução do texto teatral.
Na composição que procura outro fluxo, as ações do ator oferecem um discurso
impreciso, com lacunas e frestas acerca do que trata a peça. Esta organização tenta
oferecer outra dimensão para a dramaturgia do ator do que a literal. A temática do
espetáculo e suas leituras se tornam borboletas, pequenos beija-flores ou até mesmo
escorpiões prestes a picar o espectador ou voar sobre ele. Essa organização de ações e
textos imbricados, cruzados, atravessados, propõe ao espectador leituras dos discursos
contidos na encenação, às vezes de forma não proposital, mas potencial ao plano da
criação artística no qual este desenvolvimento se encontra. Composições incompletas
tocam o passado comprimido no presente corpo do espectador, gerando leituras
imprevisíveis manifestadas em falas do tipo: “quando Horácio chega de barco”, “o
medo dela estava no pé e não no rosto”. Relatos como estes mostram o espectador como
um cúmplice do ator em guardar um segredo particular, descoberto no segundo da
fugacidade da ação que, talvez, para o vizinho deste mesmo espectador confidente, nada
venha significar.
Na incompletude das ações e falas que constroem os discursos do espetáculo
encontramos a inutilidade deste mesmo casamento. Paradoxalmente, este inútil arranjo
não é visto como algo vazio, sem sentido ou utilidade objetiva, funcional na composição
cênica, mas algo que espera completude no contato com o espectador. Observando
dessa forma a inutilidade de uma ação ou a utilidade não programada na composição
cênica, posso considerá-la um potencial que aguarda no corpo perceptivo e ativado do
espectador, explicação, leitura, conferindo uma funcionalidade pessoal aos discursos
contidos na encenação.
Seguindo o raciocínio anterior, o tema de uma pesquisa ou o título da fábula,
seja ela conhecida ou não, me fornecem, enquanto espectador, uma deixa que auxilia a
percepção das discursividades contidas nos fluxos da encenação. Principalmente,
quando esta se destina a propor leituras alheias a causas e efeitos, a psicologismos, os
quais podem estar presentes na encenação, porém não é seu foco. Os discursos
139

potenciais contidos num espetáculo dessa natureza se encontram em velocidades.


Rizoma que não nega sua estrutura tradicional, sua árvore, mas procura dinamizar seu
potencial de diferenciação. É no fluir destas correntezas de marés discursivas que
visualizo a viagem do espectador e os infinitos caminhos a que estas podem levá-lo, os
quais podem ser alheios ou conhecidos pelo encenador e demais artistas envolvidos. O
que desejo é relativizar a ação dos atores, particularizá-las, tentando recriar o literal, até
mesmo naturalista por assim dizer, em busca de metáforas, de poesias escritas e
inscritas no espaço pelo corpo de atores. Fazendo isso proponho um ponto de vista da
memória de Ofélia, de suas lembranças – de sua (in)sanidade.
140

TERRITÓRIO IV
O entre do carvão ao corpo-em-arte de Ator-Brincante

Aboiar chamando, criando e recriando a vida.


Alan Monteiro

Esta dissertação teve como mote refletir sobre as experiências adquiridas durante
a pesquisa que buscou experimentar formas de composição do corpo-em-arte
(FERRACINI, 2006a), por meio das corporeidades e fisicidades encontradas na maneira
como Mestre Zequinha brinca o Cavalo Marinho. Ela teve orientação metodológica nas
etapas de Observação Ativa e Composição do corpo-em-arte, as quais foram resultantes
da apropriação do coletivo UZUME teatro sobre a técnica de mimeses corpórea
proposta pelo LUME Teatro. Este processo culminou na montagem do espetáculo
Rosmaninhos... a partir de fragmentos do texto Hamlet de William Shakespeare,
organizados no sentido de propor um fluxo de lembranças provenientes da memória da
personagem Ofélia. Participei desse processo junto ao coletivo UZUME teatro como
encenador e posteriormente como ator.
Quando em 2006 conheci o Cavalo Marinho, pude perceber uma potencialidade
intrínseca à qualidade de suas ações e aos modos de uso do corpo contidos nessa
manifestação. Isso afetou simultaneamente minha vivência no trabalho como ator e de
identificação com danças populares, onde passei a acreditar que poderia transpor as
qualidades deste para aquele universo que despontava como minha profissão. Isto e o
desejo de me aproximar tanto físico quanto relacionalmente de um folguedo dessa
natureza, me levaram a propor a experimentação de um processo de composição do
corpo-em-arte a partir de como Mestre Zequinha brinca o Cavalo Marinho como foco
desta pesquisa.
Quando comecei a compor o corpo-em-arte dessa dissertação, pretendia fazê-lo
com a mesma característica do conhecimento popular: às vezes ele parece ser
redundante, mas eis que de repente, como uma fagulha que cria o incêndio, surge a flor
que justifica toda redundância. O que achava ser o menos importante parece dar base ao
florescimento.
É interessante pensar que existem objetivos diferentes: uns querem estabelecer
fronteiras, torná-las visíveis para que suas criações configurem raios de luz, frestas de
141

fuga de outro lugar. No caso desta pesquisa, a linha de fuga chega quando a fronteira
entre os níveis de vibração e qualidades como precisão e presença existentes no Cavalo
Marinho e em nós, Uzumes, começa a borrar, tornando indiscernível estes dois
territórios ou a divisão entre eles, mesmo que isto seja momentâneo e ilusório, utópico.
A reflexão, a teoria no teatro vem ajudar isso. É uma forma de tornar as coisas menos
intuitivas dando nome aos bois, de se saber onde, em que território se está.
Chegar a esta encruzilhada final é encontrar com outros olhos o porto do qual se
partiu. Olhos estrangeiros, nômades. Olhos que enxergam o lar de forma diferente,
estranha, distanciada e, devido a isto, resignificada, recriada. Encontrar-se na
encruzilhada final de um escrito é sentir que deve explicações sobre o feito, e, agora,
pode dá-las para as nuvens que insistiam em deixar nubladas as visões no início da
caminhada, as quais ainda existem, porém, agora com um tom de amizade e não mais
como dívidas e credores aos quais não se tem dinheiro ou bens que quitem o débito.
Na busca por fazer dialogar os territórios desta dissertação, culminando assim
num fluxo de retroalimentação do qual Rosmaninhos... é um adensamento, um florir e
florecer. É nesse ponto que retorno e proponho explicar o mais básico material de
composição deste escrito: seu título.
É de Carvão que é feita a máscara das figuras do Mateus, do Birico e da
Catirina. O vejo como persona que não esconde, mas vetoriza a funcionalidade
cotidiana do corpo. Uma dobra deste cotidiano rumo ao corpo-em-arte. Encaro este
Carvão como uma matriz, ou seja, uma ação orgânica codificada. Ele é mater, insumo
fundamental através do qual a liberdade de variações, organizações de diferenciação e
improvisação ganham vazão. No título desta dissertação ele tem a funcionalidade da
síntese que condensa em si toda a manifestação no Cavalo Marinho estudada. É o ponto
de partida de nosso vetor.
Procurei formas de vetorizar essa matriz, buscando seus redimencionamentos
para a composição do corpo-em-arte de outro artista cênico que não o Brincante, e para
a descoberta de outro lugar de troca-em-arte, para além do encontrado na brincadeira do
Cavalo Marinho.
A preposição de é assumida a partir das práticas propostas nas pesquisas do
LUME Teatro, as quais serviram de inspiração na construção desta pesquisa. Além de
não distinguir gênero, ela oferece à profissão de ator um importante caminho: o da soma
de práticas no intuito de deixar-se atravessar e contaminar-se pelo que lhe tocar e se
142

mostrar funcional aos desejos, propondo modos de trabalho para a criação. O Ator-
Brincante é o profissional que realiza essas emendas e sabe onde elas foram feitas. Ele
esta entre os fazeres do Brincante popular e do Ator que encontra em expressões da
cultura popular o desencadeamento de um processo de identificação. Este entre, então,
assumiria o caráter da percepção do potencial que a prática do Brincante pode
proporcionar ao trabalho de Ator. É encarar este fazer em estado de entre como uma
exploração de fissuras.
Nesse espaço de entre do Carvão ao corpo-em-arte de Ator-Brincante que se
localiza os conteúdos desta dissertação.
Muitas coisas surgiram que eu nem imaginava, muito menos concebia para o
espetáculo. O título, detalhes das cenas, organizações, eu mais orquestrei as
composições do que literalmente as produzi. Talvez minha principal preocupação com
os atores tenha sido de como transformar opiniões em perguntas, reflexões sobre o
próprio trabalho e seus modos de composição. E como eles se demonstraram entregues,
disponíveis. Talvez não no começo, quando éramos somente Clara, Vitor e eu. Tive que
provar que o que eu acreditava era um caminho e não somente um devaneio, uma
loucura. Depois vieram Bertrand e Larissa, por meio das oficinas de Cavalo Marinho,
em seguida Naiara, por indicação minha após ter feito uma oficina com ela, onde sua
presença e entrega me chamaram a atenção.
Estes escritos e a arquitetura de Rosmaninhos... se devem a mim? Sim, e a todas
as mãos, pés e gênios que participaram dessa sinfonia. Como encenador eu tenho diante
de meus sentidos uma situação que carece povoamento e a isto se lança meu desejo:
descobrir e propor agenciamentos, estímulos aos atores para que eles, munidos de um
estar decidido, que, talvez no caso desta pesquisa seja proveniente das corporeidades e
fisicidades do Cavalo Marinho, partam na procura do que não possuo: as ações e
presenças diversas, os conceitos que virão a compor e povoar as circunstâncias, este
espaço de entre; lugar potencial, lar do corpo-em-arte.
Eu concebi a pesquisa e o espetáculo decorrente dela, mas no caminhar do
projeto ela se tornou mais do que eu esperava. Apontou outros conhecimentos, produziu
experiências. Eu somente tive que fazer uma coisa: estar aberto a ouvir, experimentar e
organizar os discursos que se apresentavam durante a pesquisa. É um processo que
encara o conhecimento nômade, uma arte lacunar que ganhava existência por meio dos
ensaios com os atores. Espectadores também, mas são os atores que passam mais tempo
143

juntos, dividindo as angústias e as belezas que surgem durante o processo. O poder de


criação contido na voz dessas pessoas dedicadas e decididas, seja em ações ou em
palavras, é indescritivelmente belo.
Pesquisas como a que desenvolvi junto ao coletivo UZUME teatro não se
preocupa em roubar o popular, como já ouvi de várias pessoas no decorrer de meu
interesse pelo assunto. Ao mesmo tempo em que o realizo, esse escrito não é só meu,
mas também de quem eu escrevi. Acho que é neste movimento de pertencer e
pertencimento é que reside o principio antropofágico do modernismo brasileiro no
início do século XX: comamos todos uns aos outros então e todos faremos parte do
metabolismo uns dos outros.
Tampouco estamos resgatando algo. O tempo e as relações selecionam os
fazeres que mantêm significado. Esse movimento é organizado por seus praticantes.
Pesquisas como esta documentam, analisam, até mesmo praticam e estão sujeitas à
dinâmica da tradição. Podem até mesmo causar modificações, pois não há como não
afetar alguém que se tem contato. O nível desta talvez esteja sujeito a intensidade criada
nessa mesma relação.
Não creio se tratar ou não de roubar o popular. No entanto, quando vejo as
condições de vida das pessoas que mantém a tradição, sua luta pela sobrevivência
financeira, não raro os leva a descrer de suas brincadeiras. Neste contexto, tento ajudar
os detentores desses conhecimentos percebendo seu desejo de poder ajudar no sustento
financeiro através das práticas que aprenderam, às vezes até mesmo de modo acidental,
como é o caso de Mestre Zequinha que via a brincadeira do Boi de Reis quando era
criança e tentava reproduzi-la com seus amigos. Por meio da organização de projetos
junto à prefeitura de João Pessoa, comecei este intento que lentamente se ligou ao
coletivo UZUME teatro e hoje faz parte de uma de suas linhas de pesquisa. Assim, não
é a televisão ou a internet, a mídia que matam o popular, como me disseram, mas as
condições de vida dos Brincantes. Violências como essa fazem com que silenciemos. O
que tentamos com os projetos organizados pelo UZUME é oferecer espaço, cada vez
maior, aos discursos existentes na brincadeira do Cavalo Marinho.
Um Teatro Popular não é só aquele feito para o povo, entendido como um
sentido democrático, mas é também aquele feito com e pelo povo. Um teatro ou fazer
teatral diferente do encontrado nos prédios e palcos do edifício teatral. Todavia, existem
muitas fronteiras entre os universos culturais, formadas pela valorização de uma cultura
144

em detrimento de outra. Esta promoção parece reafirmar as distinções entre classes


sociais e suas culturas, colocando de forma exótica e diminuída as manifestações
culturais da população menos favorecida financeiramente. Essa dicotomia cria fronteiras
e territórios que dificultam o acesso tanto semiótico, quanto sinestésico a estes produtos
e fazeres. Dificultam e não incentivam a diferença. Nesses termos, a pessoa que assiste
a uma brincadeira popular pode assumir dois papeis: o de testemunha ou de espectador.
O primeiro caracteriza-se pelo acontecimento entre os praticantes no qual existe
o fator de mostrar para os outros verem, mas este não se encontra como principal, mas
sim porque aquele tipo de brincadeira faz e produz sentido para quem a realiza. Como
testemunha eu tenho uma postura mais ativa perante o acontecimento porque eles não
fazem para que eu veja, ao invés, tenho que procurar modos para poder vê-los.
O espectador, ao assistir um espetáculo que é feito para ele, tem todo o direito de
reivindicar coisas como conforto e passividade ao assistir a ele, negar-lhe isso pode
significar desrespeitá-lo, mas, deixando o juízo de valor sobre isso de lado, talvez nesta
ação de desconsiderá-lo possa estar o encontro que potencialize as relações e não mais
as torne novelescas e televisivas, ou seja, tenham como objetivo principal o
entretenimento. Propor uma relação de testemunha do acontecimento é um modo de
exigir e até mesmo propor ao espectador uma postura mais ativa, diferente do que
tradicionalmente se acostuma ver no teatro. Talvez seja este um modo para que algo
aconteça, todavia, no final, o que dirá se esse algo vai produzir experiência ou não em
determinada pessoa é ela mesma, sua história, sua própria vida. Seu corpo mostrará
onde ele poderá ser puncionado de modo a fissurar a existência desse mesmo corpo.
Por meio da relação de identificação que acabo desenvolvendo com as tradições
populares, percebendo seu potencial de trabalho para outros contextos cênicos, nasce
minha inspiração. É este tipo de formação que escolhi, o qual me abre a diferença e se
junta aos afetos do corpo que sou, me alimentando poeticamente. Nas manifestações
populares encontro agenciamentos para criar; é uma construção que se origina do nó
rizomático de conhecimentos que me constroem e que não necessariamente afetam
outros profissionais. São as esferas sociais, econômicas e históricas que se chocam no
momento, não só ideológico, mas em meus nervos, em meus músculos. É neste trânsito
que surge a inspiração. É isto o divino: construção, percepção, afeto no sentido do que
nos afeta, que se imbrica e explode devido à pressão.
145

Não existe regra. Não existe fio condutor que prenda todos os processos
criativos, mas, como Barba (1995) nos fala, existe entre eles, em um nível pré-
expressivo, princípios que retornam. É preciso ao artista saber desapegar, se abrir e
deixar os acontecimentos o atravessarem e contaminarem. Cada caso dependente de
suas necessidades criativas e formativas. Acho que um processo de pesquisa pode ser o
eixo que permeia a escolha do processo criativo e como o artista trabalha ele: quais são
os elementos que ele irá modelar para originar sua criação? No meu caso é a
corporeidade/fisicidade contida nos modos de Mestre Zequinha brincar o Cavalo
Marinho. Como o artista pesquisador pode se valer deles modelando-os a fim de suprir
necessidades da criação, tais como a preparação e a composição? É preenchendo meu
tudo, o corpo que sou, com seus saberes e técnicas, com outros tudos e gerar um fluxo
entre estes territórios. É nesta dinâmica que concebo o corpo-em-arte.
É experimentar fazer junto os movimentos do Cavalo Marinho ou recriações
destes e uni-los ao texto. No final teríamos duas cartografias: uma de ações outra de
textos; uma junto à outra. Assim, existem várias dramaturgias em um espetáculo,
focamos nosso trabalho em duas: a do autor, textual, e a do ator, de ações. São dois
fluxos, dois rios, duas marés nas quais a criação está nas explosões que uma pode causar
na outra, formando assim uma terceira composição, uma efígie, um terceiro signo; um
terceiro discurso que não está nem no território do autor, nem no do ator, mas numa
zona de entre – na partícula e do rizoma que une estes territórios. É o hífen que
encontramos em várias palavras para designar a junção de fazeres e profissões: ator-
bailarino (BARBA, 1995), ator-compositor (BONFITTO, 2007), a dança-teatro de Pina
Bausch e, no caso desta pesquisa, o Ator-Brincante.
Mesmo que não tenha conseguido explorar todo o intento desta pesquisa, ao
menos esta aponta um vislumbre sobre uma possibilidade que acredito ser amplamente
válida: o processo de aquisição e modelagem das corporeidades e fisicidades contidas
na prática de um Brincante do Cavalo Marinho para a arte de ator na composição do
corpo-em-arte. Este trabalho configura, apenas, um exemplo daquilo que atravessa o
artista e o afeta, o contamina de forma a apontar vetores que potencializem seu trabalho.
Isto desemboca numa proposição cênica de acordo com minha cultura ou, ao menos,
com movimentos culturais que me identifico a cada instante com seus próprios
processos de manutenção e diferenciação.
146

Talvez minha prática forneça um relato muito pessoal, alguns vislumbres muito
particulares pertencentes a uma experiência inserida num contexto histórico, social e
espaço-temporal específico. Mas toda prática não é isto: um olhar da sombra do que
passou para vislumbrar o hoje, o agora, a respiração de cada segundo que compõe a
ação? Desse modo, estaremos todos num mesmo rizoma. Possuímos princípios comuns
em formatos artísticos distintos que nos unem pela correnteza de macro e micros
saberes e devires, conhecimentos que eclodem e explodem nas flores e dos brotos
indissociavelmente imbricados que propõe o rizoma. Aprender a aprender como uma
abertura, uma capacidade de reorganização e resignificação de matrizes, de
conhecimentos, de fluxos em um plano de criação rizomático que nada nega e a tudo
acrescenta.
A dificuldade de desenvolver um processo em rizoma deverá estar quando nos
consideramos talentosos demais e já sabemos de tudo. É confortável repetir o
conhecimento, ao invés de arriscar com algo que desconhecemos, correndo o risco da
descoberta. No teatro é doloroso e caro abrir mão do que já sabemos funcionar. É difícil
para nós cair num mar de desconhecimento e nadar rumo a uma praia que nem sabemos
ser verdadeira sua existência. Como é possível a descoberta senão pelos vetores do que
já sabemos? Para encontrar algo é necessário se perder, estar nu e frágil tal como
viemos ao mundo, mas com o corpo do hoje – no hoje. Como podemos descobrir algo
senão pelo risco, pelas vias da dor e do amor, pelo desagradável, pela incerteza
movediça da dúvida...?
O que quero dizer no final das contas: se perca. Só assim se encontra o caminho.
Não queira errar ou acertar. No decorrer de um trabalho isso pouco significa. O que
importa é tentar – errar ou acertar se apresentam como decorrências desse processo.
Deixe que as coisas venham e partam, que lhe atravessem e contaminem do modo que
seus agenciamentos se organizam. Não existe mudança sem dor, mas ela passa quando
se chega a desacelerar e condensar algumas das inúmeras descobertas que se
apresentam durante os ensaios. Nesse momento é que se chega a cena, a apresentação e
a brincadeira, ao lugar da troca-em-arte – do corpo-em-arte.
147

Figura 23 – Posicionamento dos atores para cena inicial de Rosmaninhos.... 3° Experimentação com
espaço: lateral do Theatro Santa Roza. Foto: Lindinaldo Silva, 2011.
148

REFERÊNCIAS

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152

APÊNDICES

EXEMPLOS DE ANOTAÇÕES DO ENCENADOR FEITAS EM ENSAIOS

30/10/10 (sábado) Cilaio Ribeiro


- Geralmente nas músicas do CM se encontra:
- Começo somente tocado e dançado;
- Parte cantada e tocada, sem dança;
- E uma parte tocada, dançada e cantada com uma loa que se repete.

* Memória não só do que foi, mas também do futuro, do que poderia ter sido. Exemplo:
Ofélia noiva, casada com Hamlet, Ofélia grávida.

- Trabalhar com saltos, pulos na atuação, transformações entre o CM, partes dele que
podem também ter significação ou não no texto de Hamlet, e dessas partes saltar para
cenas de Hamlet, fazendo isto sem nada dever à cronologia do texto, mas sim à sua
fábula; de sua dramaturgia organizamos a nossa própria. Exemplo: imagino o Mateus e
o Birico, uma cena burlesca que poderia ter a ver com a cena que Hamlet apresenta a
peça ao Rei. Quando estes dois palhaços se enroscam no chão, disto poderia ir se
transformando numa cena de sexo de Hamlet e Ofélia. TALVEZ – o figurino e os
adereços são essenciais para que isto aconteça.

06/11/10 (sábado) Cilaio Ribeiro


- A lembrança corporal nos surge pela repetição. Existe a base oferecida pelo CM que é
a porta de entrada para a retomada de ações. A resignificamos pela repetição e esta
mesma repetição auxilia em sua lembrança de forma mais eficiente, às vezes, mais do
que pelas anotações, vídeos ou sínteses de pensamentos.
- A mera e simples alocação ou realocação de um texto ou uma ação ou cena inteira
espacialmente, fornece a esta composição, a esta dramaturgia, possibilidades múltiplas
de leitura.
* A noção de natural na contemporaneidade assume o valor não mais como em Diderot
ou em seus pregadores Stanislavski e Monet. Hoje a noção do natural perde a dimensão
fetichista do olhar pela fechadura para ganhar a dimensão do telescópio que se utiliza
153

tanto para observar estrelas distantes, como a janela do vizinho. A nova, mas não tão
nova dimensão do natural se dá pela lupa que a câmera filmográfica produz. É o
advento do voyerismo do detalhe, juntamente com a sociedade do virtual, do simulacro.
- A noção do espaço/tempo altera a percepção.

16/11/11 → É preciso dar algumas vezes orientações diretas, mas direcionadas para a
composição do que se quer compor em cena.

25/11/10
- Uma matriz descoberta no calor da improvisação já constrói por si mesma um
estranhamento e é por ela mesma uma presentificação, uma individualização das ações
que temos como inculturadas em nosso cotidiano (citação de Barba sobre técnica
inculturada?).
→ A ideia do começo do ensaio, as partes de alongamento e aquecimento, é que ele
comece sem que os atores percebam.
* Um exercício mais avançado é, depois de percebida a pulsação dos passos do Cavalo
Marinho, levar ela para outros lugares até chegar ao ponto de se estar parado, mas
dentro da pulsação.

AÇÕES DOS ATORES ANOTADAS PELO ENCENADOR

Ensaio 25/04/10 (sábado) Theatro Santa Roza


1ª Parte:
- Alongamentos individuais – 10 min;
- Incluir face e voz;
- Clara fazer o passo do carvão com as costas baixas;
- Vitor com o passo do Balanço trabalhando ele na extensão;
- Vitor fazer o passo do carvão se abaixando;
- Vitor fazendo o texto de Ofélia da loucura de Hamlet (agarrou-me pelo pulso...), Clara
cantarola. Logo após emenda com o texto de Hamlet da loucura;
- Vitor fazendo o trupé e olhando pra traz a cada passada;
- Vitor de joelhos diante de Clara;
- Avanços com arcos como luta;
154

- Avanços de Vitor, recuo de Clara. Avanço de Vitor, mergulhão de Clara.


Enfrentamento

29/05/10
- Clara experimentando o “balanço” como uma Ninfa;
- Vitor com o “trupé rebatido”, bem mais lento e as mãos meditativas;
- Vitor com o galope e o braço direito à frente, um rei que chega em seu cavalo, depois
misturou com “um passo só”;
- Clara com “passo tesoura” na guerra;
- Vitor com esse caminhar do Ambrósio, misturado com o mergulhão, e esta cara de
medo quando entra na guerra;
- Vitor com os cordões dos arcos nos braços fazendo seus desenhos;
- Clara também com os arcos desenhados nos braços mas de forma mais suave;
- Clara com um “passo tesoura” bem desenhado, lento, e no final marcado no chão;
- Vitor só andando no ritmo do campeia;
- Vitor desesperado fugindo com algo parecido com “xaxado”;
- Clara só com a marcação dos dois pés;
- Vitor com o caminhar no ritmo da música do Governador
- O arco que pode ser capas de chuva, bandeira, Santidade, que esconde e mostra a cara
de Vitor. *Duelo como duas cobras*
- Arcos que se cruzam são espadas que batem e formam o infinito. Do duelo, volta para
os amantes que trocam juras de amor;
- Esse som do balançar do arco como cobra é muito interessante;

22/06/10
- Clara experimentando o “passo balanço” e lançamento e raiz com o texto de Ofélia da
morte do pai;
- Vitor experimentando enraizamento, com pêndulo e lançamento, fazendo uma espécie
de aboio: “Voa, voa, voa...”

06/07/10 – cena da UZUME ou morte de Ofélia


- Larrisa com a faixa verde sobre os olhos;
- O fantasma pode dançar sobre o tecido (?)
155

- Vitor girando com os arcos apontando pra fora;


- Larrisa fez uma casinha com o tecido;
- Vitor sai da coxia meio que com um trupé rebatido, o rosto vai pra cima, a mão
dedilha a frente, caminha à frente, pega o paletó, “o que é o homem?”, improvisa
com o paletó, o joga no chão, cai sobre o tecido azul e se lamenta por Ofélia.
Larrisa passa por cima dele e o cobre com o tecido vermelho;
- Vitor cobrindo os olhos com o tecido meio cabelo, vendado;
- Vitor – Ofélia se lamentando por baixo do tecido azul. Salto - Hamlet-Ofélia;

11/10/10
- Vitor fazendo movimentos com o pano como um pássaro;
* Acho que cada um pode ter uma célula, uma composição para a chegada que pode ser
vista de longe ou eles dançarem livres (?)
- Eles podem dançar sozinhos e depois se juntar;
- Bertrand- fantasma girando
- Ritual: UZUME – Morte de Ofélia – peça encenada para o Rei
→ Uso do “trupé rebatido” como sonoridade durante a cena das bodas de luto (fala do
Rei Claúdio).

13/10/10
- Larissa com um samba no meio do galope;
- Bertrand com uma mistura de galope, balanço com um braço de despedida;
- Bertrand fez uma sequência com o galope que tinha um som bem interessante.

02/11/10
- Bertrand: parada com o dedo da mão direita;
- Clara: parada com olhar e caminhar do Ambrósio;
- Vitor e Clara: Vitor guiando Clara atrás dela pela cabeça;
- Bertrand e Clara: girando. Bertrand em um sentido com uma espécie de galope. Clara
em outro sentido e sobre o mesmo eixo, com passo-balanço. CENA DO ADEUS
começo;
156

Um tipo de experimentação: - Alongamento individual com progressão para


experimentação dos passos do Cavalo Marinho no ritmo de outras músicas;
- Ensaio Rosmaninhos...: músicas começo, bodas de luto, poesia de Ofélia,

LARISSA:
- galope sambado;
- galope de guerra – entrada de Hamlet
- saudação/comprimento com passo carvão (CM Pernambuco);

CLARA:
- Sequência de Ofélia “me pegou pelo pulso” – experimentação no espaço.

VITOR:
- Mergulhão desequilibrado;
- Balanço sem fôlego;
- Movimentação com os arcos;
- Juntar todos os arcos e colocar qualquer passo;
- Saudação fora do equilíbrio;
- Trupé rebatido com guinada.
* → Codificação: uma pessoa fala um texto, enquanto outra pessoa experimenta,
improvisa uma sequência.

16/11/10
- Na trupe todos podem estar juntos, fazendo o mesmo passo, mas improvisando ele de
formas diferentes
*→ É preciso dar algumas vezes orientações diretas, mais direcionadas para a
composição do que se quer propor enquanto cena.

25/11/10
* Fazer arcos de várias cores.
→ Fazer estandarte do grupo.
*Larrisa: Ofélia pode ter arcos brancos na hora da sua morte.
* Clara: quando ela estivesse bem alegre.
157

* Durante a dança de Ofélia e Hamlet com os arcos, os outros atores podem continuar
dançando.
- Bertrand: caminhada lenta com passo da luta quando se fala do funeral.

11/12/10
- Vitor: pequena carreira com pegar da estrela;
- Larissa com bastão estátua caminhando e tirando som com batida do bastão no chão
- Naiara já tem uma suavidade que lhe é própria – direcionar isto para Ofélia!
- Naiara mãos nos cabelos;
- Coceira das mãos de Vitor em Naiara – cena da devolução dos presentes;
- Clara e Larissa – carreira juntas com a fala Afogada;
- Vitor batida no peito e que no chão – falando da mãe;
- Vitor „sem mais escorias‟ com mão tremendo;
- Girada Clara, Vitor e Larissa;
- Fizeram do bastão o corpo de Ofélia – pode ser um buquê (?);
- Bastão como mastro de fitas (?);
* Existem algumas falas de Polônio que podem ser ditas por Hamlet e ganharem outra
conotação – cena da despedida de Laertes, Hamlet pode estar presente.

14/12/10
- Naiara com trupé rebatido e um olhar caído no chão;
- Larissa com o passo de guerra, deixando a perna mais tempo no ar;
- Larissa puxando rede;

15/12/10
- Bertrand com uma chegada parecendo uma figura do C.M;
- Larissa com uma queda para um lado e para o outro, ondulando, girando;
- Larissa galope parando no último passo;
- Larissa balançando descendo como se descesse um véu;
- Larissa com passada de pé em ¼ de circulo e mãos que guardam um segredo que ela
leva a boca e engole;
- Bertrand chegando perto de Larissa “Vigia”!;
158

- Bertrand vai sair no primeiro texto de Polônio e ele o trás de volta para lhe dar os
conselhos.

20/12/10
- Naiara com um caminhar desequilibrado, uma queda, ida ao chão e recuperação
rápida, parada, neutra. Ou seja, movimentação rápida, queda e recuperação, parada.

21/12/10
Naiara quando fecha o olho é outro discurso, variação de mãos balanço suaaaaave com
pequenas paradas, calcanhar levantado, a mesma coisa com o passo galope;
- Girada do passo galope na marca de um tempo para o outro. Compromete a coluna.
- Carreirinha baixa, plano médio;
- Vinda de frente com passo galope meio como corredora;
- Cabelo, franja, sobre o rosto molhado;
- Correndo com galope dizendo que o príncipe escreveu as cartas;
- Fragmentação do trupé rebatido lento, decepcionada... Tum, tá, tá, de
- Olhar decidido junto com passo de guerra.

22/12/10
- Jogada de Cabelo para o chão e retomada com as mãos cruzadas por debaixo dos
cabelos. Meio ajoelhada. → Esta jogada de cabelo pode ser para o público? Seria
interessante fazer isto para o espectador, talvez em cima dele? Propor este tipo de
relação?

- Continuidade no trupé rebatido. Não fazer a última batida de virada. Isto da uma
continuidade ao movimento, ao passo.

23/12/10 – Naiara
- Passo balanço de lado, olhar para o chão como estátua;
- Redução do trupé rebatido no espaço;
- Virada brusca com o Galope. PARADA. Olho;
- fazer o balanço com as mãos frente/baixo no corpo;
- Trupé rebatido na pulsação da música “Contraditório” do DJ DOLORES. Faixa 4;
159

→ Posso reduzir o passo de guerra nela até ficar só a energia, a pulsação dentro e o
caminhar fora;
- Fazer o xaxado no ritmo do galope;
- Viradas – música 5 DJ DOLORES.

Sobre a invasão do castelo da Dinamarca e a loucura de Ofélia

Texto produzido pela atriz do coletivo UZUME teatro Larissa Santana após
improvisação

Nossos pensamentos eram de uma e de todas, em círculo a energia tinha uma


vibração muito forte que eclodia numa seta em diagonal. Meu medo era nosso, meu
choro e meu riso partiam ora de mim, ora de meus pensamentos que saiam da boca de
outra Ofélia. Vozes me vêm à mente, pensamentos súbitos, incongruentes... minha mãe
parece uma fada, eu tenho oito anos, ela me trata como uma princesa, passei a acreditar
que um dia seria de fato... tem a voz mais doce do mundo, me enfeita os cabelos de
flores... rosmaninhos, suas favoritas! Mas, doze anos, ela se despede, vira estrela, é o
que me dizem. Mãe, não vá! Não me deixe sozinha!

Vou precisar de você! Cresci! Seu rosto não é nítido em minha lembrança, mas
me prometeu que papai cuidaria de mim e me pediu para lembrar, rosmaninho é pra
lembrança me disse antes que sua doce voz sumisse para sempre.

Desde então papai tem sido minha mãe e meu pai, Laertes minha melhor amiga e
meu irmão. Gostaria de que você estivesse aqui agora, Hamlet vem me cortejando, sei
que como donzela não posso dar-lhe tanta atenção, mas jurou me amar... Fui feliz algum
tempo, acreditei é bem verdade, mas um dia me chegou alguém, sussurrando coisas pra
minha desgraça, tudo foi por água a baixo, Hamlet matou meu pai!

Neste momento não houve mais chão em meus pés, foi como se te perdesse de
novo, a minha estrela guia dos meus passos na vida, meu pombinho de luz... MORTO!
Por aquele que mais amei na vida.

Como encarar a casa vazia? Laertes, meu Deus, como lhe dizer? se nem eu,
acreditei! Lembranças me vem à mente, as promessas seguidas do desprezo, as juras
seguidas do escárnio, será que ele me amou algum dia? Sabendo hoje, do que sei, não
quero mais viver, não tenho mais nada a perder, nem a temer! Quero que todos saibam,
que todos saibam que foi isso que me enlouqueceu! Nem sequer pude ver seu corpo... o
jogaram numa cobertura fria, uma margaridinha que levei ao seu enterro, murchou em
minha mão, não me deixaram por ao menos uma flor sobre seu corpo ensangüentado.
160

Ainda lembro dos cortesãos me segurando pelos braços, esbravejando que estava
louca, meus braços... me apertaram com força, me machucaram e a dor maior nem era
esta!

Louca! Como é perder um pai pelas mãos de quem se ama? Eles não sabem, não
conhecem a minha dor, de ter crescido órfã de mãe, de ser mulher e obedecer cegamente
quando se quer ir contra tudo e contra todos. E agora nem o irmão para me dar atino ao
juízo! Me sinto a mais desgraçada das mulheres, poderá haver dor maior no mundo?

Que me importa! Nada mais importa! Está morto, está morto... Eu quero
vingança! Eu quero sangue! Não lastimo perder a compostura, por que sempre abaixei a
cabeça, agora não mais! NÃO MAIS! Minha vontade é rasgar nos dentes a carne de
todos estes que riem do meu sofrer. Radiosa rainha da Dinamarca, rainha de que reino?
Um reino em que sangue é derramado, por hécuba! Não quero sua pena! Mas vejam no
que vocês me transformaram! Ah! Ele me deu flores outro dia, escondi bem nas mãos,
seus toques me faziam cócegas. Era tão divertido! Outro dia, entrou no meu quarto, me
amou e prometeu que seria sua rainha, duvida de tudo Ofélia mas não duvida do meu
amor! Foi o que ele disse. Jurou me amar com mais sagrados juramentos do céu. Mas
flores... trago flores senhoras, até queria dar-vos algumas violetas... sim! Eu queria dar-
vos algumas violetas mas murcharam todas quando... meu...pai... morreu.... NÃO! Por
quê? Não consigo acreditar! Não pode ser verdade! Algo está errado eu sei! Mas dizem
que ele teve um bom fim, um fim muito bonito! ... sem cobertura para ser comido pelos
vermes! Queria arracar da minha carne cada pedaço em que Hamlet tocou, queria
morder-vos até não restar mais nada! Morder-voa como os vermes mordem os
cadáveres que são jogados ao léu para serem comidos pelos urubus como animais...
dizem que ele teve um bom fim... ah um fim muito bonito! Como era branca a cabeleira,
eu deidava minha cabeça sobre seu colo, ele acaricia os cabelos assim como mamãe...
Mamãe! Vou me casar com Hamlet, o vestido vai ter muitas flores! A senhora há de
ficar orgulhosa! Flores? Para vós funchos e aquiléias, são do meu casamento, são o
convite, peguem senão não vão entrar no castelo! Arruda, violetas... sobre o vento frio,
seu corpo se esvai! Papai! Papai! Minha cabeça dói, não consigo mais! Tudo está
girando como quando brincava de roda com Laertes! Laertes? Laertes? Cadê vocês?

Pois vejam o que faço com a pena com que vocês me olham, se não posso
estraçalhá-los que não sobre nada deste banquete! As flores são as vossas cabeças, que
se vão uma por uma, desfeitas pelas minhas mãos. Foi-se a última, nenhuma sobre sua
cobertura...

Não posso mais! Não aguento mais! Para mim alguma coisa, para mim alguma
coisa... vejo o espelho, me vejo e por um momento me encontro, me olho nos olhos, me
estendo as mãos, cheias de flores. Ofélia, vim me despedir de mim! Adeus amada irmã,
não esquece o que eu te disse! Um mundaréu de água jorra sobre mim, fortes torrentes,
enquanto vou me perdendo pouco a pouco, minhas mãos não me encontram, as sobras
vão me perseguindo, eu quero me salvar, mas quando me dou as mãos... as flores
161

comigo caem, escuro véu cai sobre mim, sinto a água me arrastar para baixo, não
respiro mais, terra sobre mim, muita terra.

(Acorde! Não consigo acordar, não completamente, ainda sinto a terra sobre mim.
Não me sinto respirar. Alguém me acolhe, nasço de novo e respiro! Mas nasci como
Ofélia, não sou! Quem eu sou? Por que não reconheço nada? Por que estou molhada?
Por que me doem as mãos? Aos poucos forço a mente a me lembrar de mim, Larissa
que sou, Larissa que estou, estou novamente em mim, como quem volta de uma viagem
muito longa, retorno ainda sentindo as rodas do carro que me levou, turbilhão de
sentimentos, ódio, alegria, ironia, raiva, melancolia, tristeza, desespero, solidão.)

PROCESSO DE APROPRIAÇÃO DO TEXTO


HAMLET DE WILLIAM SHAKESPEARE

1° ROTEIRO PROPOSTO EM E-MAIL PELA ATRIZ CLARA TALHA

Roteiro experimento Hamlet

Coletivo Uzume teatro – 17-07-2010

Na minha opinião, por ser bem forte a movimentação do cavalo marinho já presente em
cena o figurino deve ser bem básico entre o clássico que se espera de Hamlet e o cavalo
marinho mas com cores neutras ou cores frias, para equilibrar melhor o visual, as
música do cavalo marinho deve ser executadas pelo banco onde deve permanecer
sempre alguém do uzume que esteja fora de cena coordenando o som com a cena.
Porém deve ser cantada sempre por nós do grupo em português natural nosso e
selecionando os versos que concordem com a peça. Não é necessário cenário apenas o
banco e o espaço alternativo com entrada estilo portal, uma fonte, e uma janela exemplo
a lateral do santa rosa ou as ruínas da guia.ou qualquer praça com fonte. Pensei esse
roteiro para o dia a noite requer iluminação adequada que é complicada ao ar livre. O
roteiro ficaria melhor se pudéssemos representar toda a peça é criminoso corta
Shakespeare, mas vá lá:

Prólogo

Na entrada dessa casa: Recebemos a platéia de súditos da Dinamarca nas portas do


teatro é um rito de passagem o primeiro espetáculo nascido no seio de UZUME . A
porta do teatro é um umbral por onde nos iniciaremos junto com o público. Chegamos
erguendo a bandeira do grupo. Somos também a trupe que chega no reino da Dinamarca
para fazer a peça para Hamlet, na praça em frente ao Santa Rosa podemos encenar a
mímica da morte do rei começando a peça pelo meio.
162

E cantando:

Na entrada dessa casa levantei minha bandeira

2x

Levantei minha bandeira

Bravo povo está presente

2x

Viva a nação brasileira

Senhora dona da casa (nessa frase elegemos a Gertrudes da platéia deve ser eleita por
contato visual identificação)

Passe a mão nos seus cabelos 2x (cada ator passa a mão nos cabelos de uma senhora
entre as mais velhas e mais jovens)

Que do céu já vem caindo 2x

Pingos de água de cheiro (de cima para baixo espargimos perfumes no público)
primeiro nas damas depois em todos, esse momento não é representativo é vivência e
comunhão é o selo do pacto e para nós é o momento de estudar as pessoas, senti-las
saber do que precisam, pelo olhar convidá-las a fazer teatro conosco)

Senhora dona da casa não me dê por agravado

2x

Senhora é nossa madrinha (reverenciando a escolhida com um beijo na mão como se


fosse pedir a benção)

2x

Nós somos seus afilhados (apontando todos os súditos da Dinamarca em reverência esse
gesto incluí as pessoas presentes como componentes da cena)

Senhora dona da casa licença eu quero pedir

2x

Hora e meia de relógio

2x

Pra maruja divertir!

Repetimos toda a música damos as instruções (O coletivo Uzume teatro tem o prazer de
recebê-los, agradecendo por isso ao Fundo Municipal de Cultura, ao banco do nordeste ,
163

a sei quem lá sei quem lá e tal, pedimos que se dêem a oportunidade de desligar seus
aparelhos eletrônicos e vivam um bom espetáculo etc...)

Ficamos na porta com o perfume enquanto as pessoas entram quando todos estiverem
acomodados silêncio sagrado...

Vamos entrar no teatro enraizando com os pés direitos juntos devagar como quem rouba
vamos cantar o aboio

Seguindo a música do mito do Uzume que deve ser cantado e dançado no momento em
que uzume for dançar para tirar Amaterasu da caverna podemos fazer o mergulhão
como aquecimento para nós e eventualmente mergulhar com a platéia ao invés de dizer
“BATER CAVALO MARINHO É BOM” podemos criar uma chamada tirando
Amaterasu da caverna.

Terminado o mito vamos contar Hamlet

Cena I

Durante a dispersão da platéia depois do mito da Amaterasu um dos atores vai junto
para a platéia e comenta com um interlocutor

A cena dos guardas noturnos : Porque tanto trabalho de obreiros navais transformando a
noite em companheira de trabalho dia? (esse texto questiona o trabalho diário pode ser
enxertado pelo ator que for desenvolvê-lo pode ser acompanhado da figura do engenho
sem música.

Depois comenta da visão do fantasma (a essa altura o fantasma já foi eleito na platéia
por outro ator e já está se preparando para entrar em cena)

Chama o príncipe Hamlet.

Cena 2

Cena de Hamlet com o fantasma do pai (seria bom se nessa cena houvesse no espaço
alternativo um local mais alto onde o fantasma aparecesse (no santa rosa seria na janela
do teatro nas ruínas da guia também há lugar apropriado com janela.) toca nas horas de
deus amém selecionando os verso interessantes .

Aparição do fantasma: Bertran recruta da platéia uma pessoa para fazer o fantasma sem
falar nada combina só com a pessoa que vai caminhar de um lugar a outro veste nele a
“armadura” o texto deve ser gravado e modificado o áudio pode ser gravado por
qualquer ator do uzume do sexo masculino e lançado no momento da cena Vítor deve
ensaiar essa cena com o áudio

De modo a pegar o tempo da fala.


164

CENA 3 BODAS DE LUTO

Música governador da coroa imperial (pode haver entrada dos galantes colorido e outros
com arco pretos)

Bertrand e Larissa vestidos de capa preta recrutam da platéia O rei e a rainha Gertrudes
colocando neles as coroas de cipó (luminárias que vende no centro na frente das lojas de
instrumento na casa de coisas do sertão) toca a música governador da coroa imperial.

Colocam as coroas e capas neles unem as mãos dos dois e Bertrand fala o texto do rei
no ouvido do rei (platéia) que deve repetir para a platéia de súditos.

CENA 4 Entra Vítor de Hamlet monólogo do: isso é um deserto

Hamlet sai.

CENA 5 ENTRADA DE OPHÉLIA E LAERTES (São Gonçalo do Amarante bem


animada emenda música de despedida ou ver seu filhinho embarcar pra marinha)

Ophélia com os patins imita os movimentos dos arcos sem eles como uma dança que
envolve Laertes e ganha todo o espaço cênico termina com encerrei em meu coração e
só você tem a chave.

Diálogo entre eles interrompido por Polônio que é uma pequena participação que pode
ser feita por Alan outro ator que não estiver em cena dirige esse momento

Segue a cena de Ophelia e Polônio e termina com “obedeço.”

CENA VI

Segue a cena eu estava costurando no quarto quando o jovem príncipe ....me pegou pelo
pulso....Ophélia deve estar descalça como se fosse dormir.

Se houver condições de iluminação a cena pode ser encenada muda em determinado


espaço que a platéia veja por uma janela ou através de um véu e em seguida ela
narrando o que acabou de acontecer.

CENA VII

DEVOLUÇÃO DAS LEMBRANÇAS

Polônio manda ler o breviário com o livrão verde Ophelia espera ele sair e troca pelo
livro de bolso.
165

As lembranças que Ophelia vai devolver: os patins, a rabeca e o livrinho Hamlet pocket
No fim dessa cena Hamlet NÃO CARREGA AS LEMBRANÇAS! Os pantins ficam
rolando sozinhos em cena enquanto Ophelia canta São Gonçalo do Amarante bem triste
e termina com as falas : o olho, a espada sei que lá sei que lá desgraçada de mim que vi
o que vi vendo o que vejo.

Cena VIII

MORTE DE POLÔNIO. Essa cena acontece na hora em quanto Hamlet e Gertrudes


discutem é uma cena muito legal (quem pode comparar isso a isto? Mostra o fantasma
eleito da platéia e o Claudio eleito da platéia já a Gertrudes precisa ser do UZUME.

Cena IX

INVASÃO DO CASTELO DA DINAMARCA

Ophelia deve usar um vestido em tudo igual ao de antes, entretanto completamente


transparente mostrando a nudez que a loucura lhe impõe. Distribui as flores para a
platéia deflorando-as sobre as cabeças de quem escolher. Menos a arruda que deve ser
usada de outra maneira essa será espargida como na macumba e depois junta nas mãos
como fazem com os defuntos e rosmaninho que deve querer forçar Laertes a engolir.
Aqui pode ser feito o monólogo da flauta quando na fala: Mas se perguntarem do que se
trata respondes assim: cola aqui o monólogo da flauta que pode ser substituído pela
Rabeca , pode se coroar algumas moças da platéia com flores de modo que elas também
se tornem ophélias como num corpo de baile , ou todos os atores podem ser ophelias
nesse instante cantando em coro hora uníssono, hora polifônico para nomear uma
ophelia basta coroar-lhe de flores também. Porém sem ares de festa já que essa cena a
personagem se despede contando que sai para o suicídio

MORTE DE OPHELIA

Se houver uma fonte ou qualquer água no espaço (no mar se fosse na guia mesmo que o
público veja de longe) (ou se o grupo tiver coragem de montar onde for fica chique e sai
barato na internet ensinam a fazer fonte o problema é que tem que ter um buraco o ideal
é que o treco já exista)

Distribui-se para as ophelias guarda chuvas pretos para o restante da platéia se distribui
os arcos que podem ser todos brancos ou cores de rio ou furta cor , uma ophelia do
Uzume puxa a dança dos arcos cantando ela se afogará ao mesmo tempo que a outra na
fonte
166

Uma ophelia (do uzume) cantando se dirige para a fonte enquanto uma Gertrudes (do
uzume) narra a passagem do salgueiro no santa rosa pode se usar a arvore ao lado da
fonte)

Ophelia cai na água e fica boiando e cantando até de repente cessar

As outras ophelias em dupla abrem os guarda chuvas de par em par como as asas de
Ismália esses guarda chuvas precisam ser daqueles que produzem som.

A Ophélia que morreu nos arcos dá um deles a cada Ophelia do guarda chuva formando
uma flor ao redor da fonte com os arcos e deposita sua coroa na água enquanto a outra
Ophelia da roupa transparente permanece lá cada pessoa que tiver uma rosa deve ir
colocar nesse túmulo quem tiver guarda chuva deve ir devagar para não tapar a cena.

CORTEJO FÚNEBRE EM QUE HAMLET APARECE

Quando todos os guarda-chuvas estiverem fechados depois de passar pelo cortejo (de
preferência toda a platéia deve participar do cortejo. É um momento como a comunhão
na igreja católica. A Ophélia dos arcos junto com a Gertrudes devem retirar o corpo e
secá-lo carregando ele em direção a platéia que deve retirá-lo de cena então Hamlet
aparece.

DUELO DE HAMLET E LAERTES

Vai direto da briga no cemitério para o cochicho com o rei Claudio (dessa vez deve ser
do uzume) sobre a vingança da morte de Ophelia e de Polônio segue imediatamente o
duelo quando tiram o corpo de Ophelia de cena. Daí vai até o resto é silêncio. (duelo de
espadas do cavalo marinho)

Finaliza convidando para o debate ou para a apresentação de cavalo marinho através de


uma poesia que construiremos juntos.

2° ROTEIRO PROPOSTO POR ALAN MONTEIRO – Brinquedo de Hamlet – 1ª


VERSÃO

O público aguarda a entrada no teatro. Ofélia sai de dentro do Castelo e passa


cumprimentando o público. Posiciona-se diante dele e recita uma poesia com/sobre
rosmaninhos, flores para a memória, que termina com a seguinte frase “Rosmaninho, é
para a lembrança”. Ela retorna pela mesma porta que entrou e, assim que a porta se
fecha, a trupe chega nas portas do Castelo cantando:
167

Na entrada dessa casa


Levantei minha bandeira 2x
Bravo povo que está presente 2x
Visa à (nação brasileira) mudar

Neste momento elegemos uma Rainha Gertrudes e um Rei Claúdio da platéia e os


posicionamos nos umbrais do Castelo. Cantamos para eles:

* O espaço onde acontece a apresentação vai se modelando – hora é o salão de festas do


Castelo, hora é o quarto dos personagens, o bosque... O que pode propiciar essas
mudanças são os atores com suas ações e adereços, e a posição dos espectadores (?)
Quem são os espectadores em cada quadro? Dimensão do jogo para sustentar a
proposição do espaço.

Senhora, dona da casa


Passe a mão nos seus cabelos 2x
Que do céu já vem caindo
Pingos de água d‟cheiro

* Quem vai tocar para os atores cantarem? Os próprios atores, o banco do Cavalo
Marinho? Se os atores eles tem que aprender a tocar os instrumentos, se o banco do
Cavalo Marinho, como faríamos para viajar com eles? Pode ser uma solução juntar estas
duas ideias!

A rainha e o rei recebem a trupe e os demais convidados para a festa de casamento


(cena das bodas de luto pg. 19).
REI CLAÚDIO: Embora a morte de nosso querido irmão Hamlet esteja fresca,
ainda,em nossos sentimentos a memória recomende luto em nosso coração E o reino
inteiro ostente a mesma expressão sofrida, A razão se opõe a natureza, E nos manda
lembrar dele com sábia melancolia sem deixar de pensarmos em nós mesmos. - Por
isso, tomamos por esposa nossa antes irmã, e agora nossa rainha, a imperial herdeira
deste reino guerreiro, com alegria, por assim dizer, com alegria desolada, um olho
auspicioso o outro chorando, aleluia no enterro, réquiem no casamento, sabendo
equilibrar a dor e o encanto, tomamos como esposa, após ouvirmos vossos conselhos,
sempre e em tudo livres. Nossos agradecimentos por tudo isso.
168

É nesta festa que Hamlet e Ofélia vão se encontrar pela primeira vez depois de
crescidos. A trupe ainda canta antes de entrar no Castelo:

Senhora dona da casa


Licença eu quero pedir 2x
Hora e meia de relógio
Pra maruja divertir
Senhora dona da casa
Não me dê por agravado 2x
Senhora é nossa madrinha
Nós somos seus afilhados

A trupe vai entrando conduzindo os espectadores para o interior do Castelo onde esta
acontecendo a festa. Eles já podem ir convidando as pessoas para ir dançando,
formando um corpo de baile. Quando o baile estiver pronto, as pessoas dançando, um
ator se paramenta discretamente para entrar como Hamlet. E circula pela festa. Em
seguida, uma atriz faz o mesmo até que seus olhares se encontram. Durante os
comprimentos para os convidados pela festa, os atores podem comentar algo com os
espectadores, inclusive um sobre o outro.

* Esta festa pode ser composta pela música da “Fulô” e coreografia dos arcos. Onde dar
os vivas? Quando Hamlet e Ofélia se encontram pode ser tocado o “São Gonçalo do
Amarante”. Quem canta neste momento? Cada ator e atriz, Hamlet e Ofélia, neste
momento da festa pode ter um monólogo que será dito congelando a cena (?) Cada ator
pode conduzir um cordão e ter paradas na música para eles falarem.
** Talvez seja bom construir algumas narrativas para Ofélia, para ir costurando a
encenação (?).

- A festa é interrompida pela entrada do guarda falando ter visto o fantasma. Hamlet sai
com ele para tentar falar com a figura do fantasma;
Pg. 24-7

HORÁCIO: Deus guarde a Vossa Alteza.


169

HAMLET: Alegra-me rever-te com saúde... Horácio, se a memória não me falha.


H0RÁCIO: O mesmo criado, príncipe, de sempre.
HAMLET: Amigo, amigo; é o nome que eu te dou.
Qual a razão de haveres tu deixado. Wittenberg?... Marcelo?
MARCELO: Meu bom príncipe...
HAMLET: Muito prazer. (A Bernardo.) Bons dias. Mas falando sério, por que deixaste
Wittenberg?
HORÁCIO: Simples disposição de um preguiçoso.
HAMLET: Eu não permitiria que um inimigo teu dissesse isso. Por isso, não me faças
ao ouvido a violência de depores contra ti mesmo. Não, não és vadio. Qual o motivo
que a Elsinor te trouxe? Conosco aprenderás a beber muito.
HORÁCIO: Senhor,vim assistir os funerais de seu pai.
HAMLET: Não zombes; creio que vieste para o casamento de minha mãe.
HORÁCIO: Realmente, foi bem perto.
HAMLET: Economia, Horácio! Os assados do velório puderam ser servidos como frios
na mesa nupcial Preferira encontrar no céu o meu pior inimigo, a viver tal dia, Horácio.
Meu pai! Às vezes julgo ver meu pai.
HORÁCIO: Como, senhor?
HAMLET: Com os olhos da alma, Horácio.
H0RÁCIO: Eu o vi uma vez; um grande rei, de fato.
HAMLET: Era um homem,e nada mais importa; jamais poderei ver alguém como ele.
H0RÁCIO: Creio, senhor, que o vi nesta noite última.
HAMLET: A quem?
HORÁCIO: A vosso pai, senhor.
HAMLET: O rei meu pai?
HORÁCIO: Prestai-me ouvidos, refreando o espanto por algum tempo, até que eu vos
relate tal maravilha.
HAMLET: Pelo céu, falai.
H0RÁCIO: Duas noites a fio este senhor, quando guarda montavam, na hora morta da
meia-noite, viu uma figura parecida com vosso pai, armado da cabeça até aos pés,
avançando com postura lenta e grave. Três vezes pelos olhos pálidos lhes passou. Ele,
gelado pelo medo, ficou sem ter ânimo para falar-lhe. O fato me confiou. Montei guarda
com ele na outra noite... E eis que na hora indicada, sob a forma que me descreveu, tudo
exato, voltou a aparição... Sim, vosso pai; o reconheci; estas mãos não seriam tão
parecidas.
HAMLET: Onde foi tudo isso?
MARCELO: Na esplanada acima de nós, senhor.
HAMLET: Falaste com a aparição?
HORÁCIO: Falei-lhe, sim, meu príncipe, mas não me respondeu. Contudo, quis-me
parecer que ele o rosto levantava, pondo-se em movimento, como prestes a falar. Mas,
nessa hora, cantou o galo. A esse canto, esgueirou-se ele apressado, sumindo à nossa
vista.
HAMLET: É muito estranho.
HORÁCIO: Por minha vida, príncipe, é a verdade. Pensamos que o dever nos
prescrevia dar-vos conta de tudo.
HAMLET: Não vos encubro a minha inquietação. Montais guarda esta noite?
MARCELO: Sim, alteza.
HAMLET: Tinha armas, o dissestes?
MARCELO: Sim, alteza.
170

HAMLET: Da cabeça aos pés?


MARCELO: Sim, de alto a baixo.
HAMLET: Então não lhe pudestes ver o rosto.
HORÁCIO: Como não? A viseira estava erguida.
HAMLET: E as feições, carregadas?
H0RÁCI0: Expressão mais de dor do que de cólera.
HAMLET: Corado ou pálido?
H0RÁCI0: Muito pálido.
HAMLET: E o olhar? Chegou a fitar-vos?
HORÁCIO: Durante todo o tempo.
HAMLET: Desejara tê-lo visto.
HORÁCIO: Sem dúvida, isso havia de causar-vos profunda admiração.
HAMLET: Muito provavelmente. E demorou-se?
HORÁCIO: O tempo de contar, com certa calma, até cem.
HAMLET: E a barba? Era grisalha?
H0RÁCI0: Tal como a vi, quando ele ainda era vivo: negro-prateada.
HAMLET À noite, eu farei guarda; talvez ele retorne.
HORÁCIO: É quase certo.
HAMLET: Se ele me aparecer sob a figura de meu pai, falar-lhe-ei, ainda que o inferno
abrisse e mandasse ficar quieto. Mas peço a todos: se a ninguém falastes dessa visão,
sede discretos nisso. A qualquer ocorrência desta noite, trocai sinais apenas, não
palavras. Saberei ser-vos grato. Passai bem. Na esplanada, entre as onze horas e as doze,
pretendo aparecer.
TODOS: Nossos respeitos.
HAMLET: Vosso amor, como o meu. E agora, adeus.
(Horácio, Marcelo e Bernardo saem.)
A sombra de meu pai em armas! Tudo vai muito mal. Temo qualquer desgraça. Ah!
Quem dera que a noite já chegasse! Mas até lá, minha alma, sê paciente. A verdade
aparecerá nem que tenha que desencavá-la da mais profunda terra.

- Ofélia com Laertes. Falas de Polônio vão para Laertes. Este diálogo termina com a
fala de Ofélia “Obedeço”;

Pg. 27-31 Acho que pode haver um Polônio. Hamlet saiu com o guarda e Horácio.
Só Ofélia ficou, aparece Laertes e, em seguida, Polônio. OU podemos selecionar os
textos de Polônio para Laertes e, assim, esta cena acabaria quando Laertes sair e a
próxima começando com a entrada de Hamlet.

LAERTES: Tudo o que é meu já se acha a bordo; adeus.


Cara irmã, se houver ventos favoráveis e navios no porto, não te ponhas a dormir: dá
notícias.
OFÊLIA: E duvida?
LAERTES: No que diz respeito a Hamlet, e seu namoro, toma-o como capricho,
simples moda, violeta precoce no inicio da primavera,suave mas efêmera, perfume e
refrigério de um minuto, nada mais.
171

OFÉLIA: Nada mais?


LAERTES: Não mais; pois a natureza ao fazer-nos crescer não nos favorece apenas em
forças e tamanho mas na medida em que o tempo vai passando, se amplia dentro dele o
espaço reservado pra alma e pra inteligência. Talvez Hamlet te ame, agora, e não haja
mácula ou má-fé, mas é um vassalo do seu nascimento. Não pode como as pessoas sem
importância, escolher a quem deseja, pois disso depende a segurança e o bem estar do
Estado. Então, quando diz que te ama, convêm a tua prudência só acreditar nisso até
onde a vontade universal da Dinamarca o pode permitir o seu desejo pessoal. Assim,
pese o que pode sofrer a tua honra, se ouvir suas canções com ouvido crédulo, lhe
entregar o coração ou abrir teu mais casto tesouro à sua luxuria sem controle. Cuidado,
Ofélia, cuidado, amada irmã, vigia!
OFÉLIA: Encerrarei no peito, como guardas, essas sábias lições. Mas, caro irmão, não
faças como alguns desses pastores que aconselham aos outros o caminho do céu, cheio
de dificuldades, enquanto eles seguem alegres a estrada dos prazeres, sem dos próprios
conselhos se lembrarem.
LAERTES: Não se preocupe comigo; mas é tempo; aí vem nosso pai.
(Entra Polônio.)
Dupla bênção, graça dupla.
O acaso me concede este outro adeus.
P0LÔNIO: Ainda aqui, Laertes? Para bordo! O vento já sopra na proa do teu barco; já te
reclamam. Vai com a minha bênção, e grava na memória estes preceitos: Não dês língua
ao que estiver pensando. Nem transforma em ação um pensamento bobo. O amigo
comprovado, prende-o firme no coração com vínculos de ferro, mas a mão não calejes
com saudares a todo instante amigos novos. Foge de entrar em briga; mas, brigando,
acaso, encurrala o medo no inimigo. A todos, teu ouvido; a voz, a poucos; ouve
opiniões, mas forma juízo próprio. Conforme a bolsa, tenhas a roupa: sem fantasia; rica,
mas discreta, que o traje às vezes faz o homem. Nisso, principalmente, são caprichosas
as pessoas de classe e berço na França. Não emprestes nem peças emprestado; quem
empresta perde o dinheiro e o amigo, e quem pede emprestado já perdeu o fio da
economia. Mas, sobretudo, sê fiel consigo mesmo; segue-se disso, como o dia à noite,
dessa maneira não serás falso com ninguém. Adeus; que minha bênção tais conselhos
faça frutificar.
LAERTES: Humildemente me despeço, senhor.
P0LÔNIO: O tempo é curto; vai logo, que os criados já te esperam.
LAERTES: Adeus, Ofélia; guarda o que eu te disse.
OFÉLIA: Está encerrado na minha memória, e só você tem a chave.
LAERTES: Adeus.
(Sai.)
P0LÔNIO: Que palavras, Ofélia, ele te disse?
OFÉLIA: Se deseja saber, falou do príncipe Hamlet.
POLÔNIO: Ah, bem lembrado. Já me disseram que ele te dispensa alguma intimidade e
que tu própria tens sido liberal em dar-lhe ouvidos. Se é assim e assim me foi contado,
devo te dizer – como um aviso – que você não compreende claramente o que te convém
como minha filha e quanto a tua honra. Que há entre vocês? Fala a verdade.
OFÉLIA: Senhor, ultimamente fez-me muitas propostas de ternura.
P0LÔNIO: Ora, ternura! Falas tal qual mocinha inexperiente do perigo de certas
situações. E tu? Acreditas em tais propostas?
OFÉLIA: Não sei como pensar, meu pai, sobre isso.
172

POLÔNIO: Ouve, então: é preciso que não passes de um bebê, para teres recebido como
moeda corrente essas propostas.
OFÉLIA: Mas senhor, sua insistência sempre foi de moral honrosa e digna.
P0LÕNIO: Moral! Bela expressão. Adiante! Adiante!
OFÉLIA: E ele soube firmar os seus protestos de amor com os mais sagrados
juramentos.
POLÔNIO: Conheço isso; armadilha para rolinhas. Quando o sangue ferve, como a
alma é prodiga em emprestar mil artimanhas à língua. São chispas, minha filha, dão
mais luz que calor e não se instigue no momento da promessa – não são fogo verdadeiro
não deves esquecer que o príncipe Hamlet é jovem e príncipe; tem rédea bem mais solta
do que a tua. Não quero mais de hoje em diante que você conspurque um minuto
sequer, trocando palavras, ou conversando com o príncipe. Preste atenção: é uma
ordem. Pode ir.
OFÉLIA: Eu obedeço, meu senhor.

- Laertes sai ao mesmo tempo em que entra Hamlet esbaforido do encontro com o
fantasma. Ao mesmo tempo em que narra o encontro ele é encenado;

HAMLET: Para onde me conduzes? Não darei mais um passo.


FANTASMA: Ouve-me!
HAMLET: Isso é o que desejo.
FANTASMA: Já está perto o momento em que é forçoso que de novo me entregue às
labaredas e ao enxofre do tormento.
HAMLET: Pobre espírito!
FANTASMA: Não me lastimes; ouve com atenção o segredo que passo a revelar-te.
HAMLET: Fala, que estou obrigado a dar ouvidos.
FANTASMA: E também a me vingar, depois de me ouvir.
HAMLET: Como!?
FANTASMA: Sou a alma de teu pai, por algum tempo condenada a vagar durante a
noite, e de dia a jejuar na chama ardente, até que as culpas todas praticadas em meus
dias mortais sejam nas chamas, enfim, purificadas. Escuta, Hamlet! Se algum dia
amaste teu carinhoso pai...
HAMLET: Ó Deus!
FANTASMA: Vinga o seu assassinato estranho e torpe.
HAMLET: Assassinato?
FANTASMA: Sim, assassinato torpe, como todos; mas esse é estranho, vil e
inconcebível.
HAMLET: Conta-me, a fim de que eu, com asas rápidas como os pensamentos de amor,
voe para a vingança.
FANTASMA: Te vejo decidido e serias mais insensível do que a espessa planta que nas
margens do Leste apodrece, se isso não te abalasse. Escuta, Hamlet! Contaram que uma
cobra me picara, quando, eu dormia no jardim. Assim, foi ludibriado todo o ouvido da
Dinamarca por uma notícia falsa de minha morte. Mas escuta, A cobra que peçonha
lançou na vida de teu pai, agora cinge a coroa dele.
HAMLET: Oh, minha alma profética! Meu tio!
FANTASMA: Sim, esse monstro adúltero e incestuoso. Com o feitiço pessoal e com
presentes - ó dotes maus, ó brindes, que tal força tendes de sedução! - pôde a vontade da
173

rainha conquistar, que parecia tão virtuosa, dobrando-a para o vício. Que queda,
Hamlet! Pressinto o ar da manhã. Serei breve. Ao achar-me adormecido no meu jardim,
na sesta cotidiana, teu tio se esgueirou por minhas horas de sossego, munido de um
frasquinho de meimendro e no ouvido despejou-me o líquido leproso, cujo efeito de tal
modo se opõe ao sangue humano, que corre pelas portas e caminhos do corpo, tão veloz
como o mercúrio, fazendo coagular com vigor súbito o sangue puro e fino, como o leite
quando o ácido o conturba. Me privou o irmão, a um tempo, da vida, da coroa e da
rainha, morto na florescência dos pecados, sem óleos, confissão nem sacramentos, sem
ter prestado contas, para o juízo enviado com o fardo dos meus erros. Não consintas que
o leito real da Dinamarca fique como catre de incesto e de luxúria. Contudo, se nesse
ato te empenhares, não te manches. Que tua alma não conceba nada contra tua mãe; ao
céu a entrega, e aos espinhos que o peito lhe compungem. Eles ferem e sangram. E
agora, adeus! Mostra-me o pirilampo da madrugada; já seu fogo inativo empalidece.
Adeus, Hamlet! Lembra-te de mim.
(Sai.)
HAMLET: Legiões do céu! Ó terra! Que mais, ainda? Invocarei o inferno? Firme,
firme, coração! Não fiqueis velhos de súbito, músculos; agüentai-me! Que me lembre de
ti? Sim, pobre fantasma, sim, enquanto tiver sede a memória neste globo conturbado.
Lembrar-me? Sim; das tábuas da memória vou apagar todas as notícias frívolas, as vãs
idéias dos livros, as imagens, os vestígios que os anos e a experiência aí deixaram. Essa
tua ordem, só, há de guardar-se no volume e no livro do meu cérebro, sem mais
escórias. Sim, pelo alto céu, ó mulher perniciosa! Vilão, vilão que ri! Vilão maldito!
Minhas lembranças... Preciso tomar nota que o homem pode sorrir e ser infame. Sei que
ao menos é assim por aqui.

Grito de Ofélia ao ver Hamlet.


POLÔNIO: O que acontece?
OFÉLIA: Oh, meu senhor, causou-me tanto medo!
POLÔNI0: Fala, em nome do céu! Medo por quê?
OFÉLIA: Estava a costurar no quarto, quando, descomposto, me surge lorde Hamlet,
gibão aberto, sem chapéu, as meias caídas pelo tornozelos, branco como a camisa que
vestia; os joelhos tremendo e o olhar apavorado de quem foi solto do inferno para contar
aqui em cima os horrores que viu. Desse modo me apareceu.
P0LÓNIO: Louco de amor por ti?
OFÉLIA: Não sei, senhor; tenho medo que sim.
POLÔNIO: Que disse ele?
OFÉLIA: Me pegou pelo pulso e me apertou com força, depois afastou-se a distância de
um braço inteiro e os dedos de sua outra mão pousou na própria testa, mergulhou numa
leitura tão demorada e profunda do meu rosto como se quisesse desenhar. Ficou um
tempo enorme assim. No fim, uma sacudida curta no meu braço e três vezes fazendo
sinal com a cabeça pra cima, pra baixo, pra cima, pra baixo, pra cima e pra baixo e
soltou um suspiro suspirou tão sentido e aliviado, que parecia que seu corpo se desfazia
em pedaços e a sua vida morria. Feito isso me deixou com a cabeça virada para mim por
cima do ombro, parecia encontrar seu caminho sem ajuda dos olhos e, até o fim, grudou
o brilho deles em mim.
POLÔNIO: Vem comigo; contemos isso ao rei. É o delírio do amor, nem mais nem
menos, que com a própria violência se aniquila, conduzindo a vontade ao desespero
como o não faz outra paixão, de quantas sob o céu nos afligem. Estou triste. Não foste
áspera com ele ultimamente?
174

OFÉLIA: Não, meu pai; mas, conforme o prescrevestes, lhe devolvi as cartas e neguei-
me a recebê-lo.
POLÔNIO: Foi o que o pôs doido. Pesa-me não o haver considerado com mais vagar;
pensei que era um namorico, e que sua intenção fosse perder-te. Maldita desconfiança!
Em nossa idade é comum sempre o excesso nos juízos, como é próprio dos moços
carecerem dele. Convém contá-lo ao rei. Maior dano colheremos se calarmos, do que
ódio, se esse amor lhe revelarmos. Vem.
(Saem.)

Pg. 35-8 Organizar, adaptar este texto em uma NARRAÇÃO que se alterna com
diálogos com o fantasma. Esta cena marca o encontro de Hamlet com Ofélia, utilizando
como base a cena com Polônio em que ela diz “Me pegou pelo braço...”. Toda esta
narrativa de Ofélia é encenada em nossa montagem. Mas ao mesmo tempo é como se
Hamlet quisesse contar para Ofélia seu encontro com o fantasma. Mas ela somente o vê
desvairado, atordoado com o que acabou de ouvir do fantasma. ANEXAR UM TEXTO
DE OFÉLIA EXPONDO SUA DÚVIDA SOBRE O ESTADO DE SEU AMADO???
* Será que esta narração do fantasma pode ser transformada em ação ou algo mais
dinâmico?

- Entrega das cartas para o público ler, cartas enviadas a Ofélia por Hamlet e vice-versa.
Ofélia pode entrar andando de patins, como uma brincadeira e entregar as cartas para o
público ler no tempo presente das suas lembranças. Polônio aparece, visão do passado, e
a manda devolver as LEMBRANÇAS para Hamlet (um patins, uma rabeca e um livro
de Shakespeare);
* A morte de Polônio pode ser dita para Ofélia por meio de uma carta lida por um
espectador. Como fazer estas cartas pelos atores? Que estímulos posso oferecer a eles
para este intento?

OFÉLIA Como tem passado, príncipe, no correr de tantos dias?


HAMLET: Muitíssimo obrigado; bem, bem, bem.
OFÉLIA: Tenho algumas lembranças suas, príncipe, que há muito devolver eu desejara;
receba-as, por favor.
HAMLET: Eu, não; eu, não; eu nunca te dei nada.
OFÉLIA: O príncipe bem sabe que é verdade, e com palavras tão doces, que o valor dos
presentes aumentava. Mas, evolado o aroma, agora os trago. Os brindes se empobrecem,
para uma alma bem-nascida, de par com os sentimentos de quem os dá. Ei-los aqui, meu
príncipe.
HAMLET: Ah! Ah! És honesta?
OFÉLIA: Como assim, príncipe?
175

HAMLET: És bela?
OFÉLIA Que quer dizer Vossa Alteza com isso?
HAMLET: É que se fores, a um tempo, honesta e bela, não deves admitir intimidade
entre a tua honestidade e a tua beleza.
OFÉLIA Mas, príncipe, poderá haver melhor companhia para a beleza do que a
honestidade?
HAMLET: Realmente, que a beleza, com o seu poder, levaria menos tempo para
transformar a honestidade em alcoviteira do que esta em modificar a beleza à sua
imagem. Já houve época em que isso era paradoxo; mas agora o tempo o confirma.
Cheguei a amar-te.
OFÉLIA: Em verdade, o príncipe me fez acreditar nisso.
HAMLET: Não deverias ter-me dado crédito, porque a virtude não pode enxertar-se em
nosso velho tronco, sem que deste não remanesça algum travo. Nunca te amei.
OFÉLIA: Tanto maior é a minha decepção.
HAMLET: Entra para um convento. Por que hás de gerar pecadores? Eu, de mim,
considero-me mais ou menos honesto, mas poderia acusar-me de tais coisas, que teria
sido melhor que minha mãe não me houvesse dado à luz. Sou orgulhoso, vingativo,
cheio de ambição, e disponho de maior número de delitos do que de pensamentos para
vesti-los, imaginação para dar-lhes forma, ou tempo para realizá-los. Para que
rastejarem entre o céu e a terra tipos como eu? Todos somos consumados velhacos; não
deves confiar em ninguém. Toma o caminho do convento. Onde se encontra teu pai?
OFÉLIA: Em casa, alteza.
HAMLET: Que lhe fechem as portas, a fim de impedirem que faça papel de tolo, a não
ser em sua própria casa. Adeus.
OFÉLIA: Ajuda-o, céu de bondade.
HAMLET: Se tiveres de casar, dou-te por dote a seguinte maldição: ainda que sejas
casta como o gelo e pura como a neve, não escaparás à calúnia. Vai; entra para o
convento; adeus. Ou então, se tiveres mesmo de casar, escolhe um néscio para marido,
porque os assisados sabem perfeitamente em que monstros as mulheres os transformam.
Para o convento, vai; e isso depressa. Adeus.
OFÉLIA: Poderes celestiais, restituí-lhe a razão!
HAMLET: Conheço muito bem vossas pinturas; Deus vos deu um rosto e arrumais
outro; andais aos pulinhos e com requebros, falais cheias de esses e dais nomes
indecentes às criaturas de Deus, fazendo vossa leviandade passar por inocência. Vai;
não insisto, porque foi isso que me deixou louco. O que digo é que não teremos
casamentos; os que já são casados, com exceção de um, hão de continuar vivos; os de
mais, prosseguirão como estão. Para o convento; vai! (Sai.)
OFÉLIA: Que nobre inteligência assim perdida! O olho do cortesão, a língua e o braço
do sábio e do guerreiro, a mais florida esperança do Estado, o próprio exemplo da
educação, o espelho da elegância, o alvo dos descontentes, tudo em nada! E eu, a mais
desgraçada das mulheres, que saboreei o mel de suas juras musicais, ter de ver essa
admirável razão perder o som, qual sino velho, essa forma sem par, a flor da idade,
fanada pela insânia! Ó dor sem fim! Ter já visto o que vi, e vê-lo assim!

- A trupe é recebida por Hamlet para encenar “A Ratoeira” (?). Hamlet pode usar o
próprio livro que recebeu de Ofélia indicando que aquele autor faz uso de uma cena e
176

um criminoso ao ver seu crime encenado sente-se tão culpado que se entrega. TANTOS
JEITOS DE SE FAZER ISTO. MUITOS, MUITOS!!!

(Entram quatro ou cinco atores.)


Bem-vindos, senhores; sois todos bem-vindos. Alegro-me ver-vos com saúde. Bem-
vindos, bons amigos.
Olá, meu velho amigo! Da última vez que te vi, não tinhas essas franjas no rosto. Vieste
à Dinamarca para pegar-me pela barba? Oh! a minha menina e senhora! Por Nossa
Senhora, Vossa Senhoria está mais perto do céu do que da última vez que a vi, a
diferença de um chapim. Queira Deus que não tenha acontecido com a voz como com as
moedas que são retiradas da circulação, por ficarem rachadas junto da orla. Senhores,
sede todos bem-vindos. Façamos, porém, como os falcoeiros franceses, que solam
contra tudo o que vêm. Linguagem direta: dai-me uma amostra de vossa arte, um
discurso bem patético.
PRIMEIRO ATOR: Qual será, príncipe?
HAMLET: De uma feita ouvi-te declamar um trecho que nunca foi levado à cena, ou,
quando muito, uma única vez. Lembra-me perfeitamente; a peça não agradou aos
milhões; era caviar jogado ao povo. Mas, segundo o meu modo de ver e o de pessoas,
cuja opinião no assunto é mais autorizada do que a minha, era uma peça excelente, com
boa disposição de cenas e escrita com tanta sobriedade quanta argúcia. Recorda-me ter
ouvido a alguém que os versos não continham nada de picante para torná-los aceitáveis,
e que nenhuma expressão traía afetação por parte do autor; o estilo foi qualificado de
honesto, tão sadio quanto agradável, e aprazível sem rebuscamentos. Apreciava
muitíssimo certa passagem, e fala de Enéias a Dido, especialmente quando ele trata do
assassínio de Príamo. Se a tens de memória... Começa pela frase... Espera um pouco...
Deixa ver... Como tigre da Hircânia, o feroz Pirro... Não, não é isso. Começa com Pirro:
Esse Pirro feroz, que armas trazia da cor do próprio intenso, igual à noite. que o
envolvia no ventre do cavalo sinistro e malfadado, a negra forma com brasões mais
sinistros ora cobre: da cabeça até aos pés é todo rubro; enfeita-o horrendamente o triste
sangue dos pais, das mães, das filhas, dos filhinhos, ressecado nas ruas abrasadas, que
emprestam uma luz maldita e bárbara a seus crimes nefandos. A arder de ira, empastado
de sangue coagulado, os olhos a brilharem quais carbúnculos, Pirro, o maldito, busca o
venerando Príamo. Agora prossegue.
POLÔNI0: Por Deus, príncipe; muito bem declamado; boa cadência e discrição.
PRIMEIRO ATOR: Conseguiu por fim achá-lo, a lutar sem vantagem contra os gregos.
Sua antiquada espada, ao braço infenso, fica onde cai, rebelde a seus mandados. Em
duelo desigual, Pirro o acomete; mas ao simples sibilo de seu gládio, tomba o velho
enervado. Exânime, Ílio pareceu ressentir-se desse golpe: dobra até a base o pico de
suas chamas, e com medonho estrondo prende o ouvido de Pirro. Vede! A espada que já
vinha baixando sobre a cândida cabeça do venerando Príamo, parece que o próprio ar a
detém: desta arte, Pirro, qual tirano em pintura, fica imóvel, como que neutro entre a
vontade e o braço, sem fazer nada. Mas, tal como pouco antes das tormentas silêncio em
todo o céu, calmas as nuvens, os ventos sem falar, e a terra embaixo tão quieta quanto a
morte - quando o raio de súbito fuzila: assim, depois da parada de Pirro, a despertada
vingança o compeliu para outros feitos. Os malhos dos Ciclopes nunca as armas de
Marte percutiram, fabricadas para ampararem sempre, com tão pouco remorso, como
bate a espada rubra de Pirro sobre Príamo. Fortuna! fora, meretriz! Ó deuses do
177

conselho geral, tirai-lhe a força! Quebrai pinas e raios de seu carro, e fazei do alto céu
rolar o cubo para o centro do inferno!
POLÔNIO: Acho muito comprido.
HAMLET: Enviai-a, então, ao barbeiro, para que a corte juntamente com vossa barba.
Continua, peço-te eu; a não ser em farsas ou histórias obscenas, ele adormece logo.
Prossegue; cheguemos logo a Hécuba.
PRIMEIRO ATOR: Oh! Quem visse a rainha encapuzada!
POLÔNIO: Não fica mal; rainha encapuzada; vai muito bem.
PRIMEIRO ATOR: Descalça corre, as chamas ameaçando; as lágrimas a cegam; por
diadema cinge apenas um trapo, e, como vestes, sobre os lombos delgados e sofridos,
um cobertor, às pressas apanhado. Quem visse tal, com língua envenenada, acusara a
Fortuna de traidora. Mas se os deuses, nessa hora, a contemplassem, quando ela a Pirro
deparou no esporte maligno de cortar do esposo os membros: o clamor subitâneo de sua
mágoa - se os mortais não lhe são de todo estranhos - faria enlanguescer os olhos
quentes do céu e os próprios deuses se apiedarem.
POLÔNIO: Vede como ele muda de cor e tem os olhos marejados de lágrimas. Não
prossigas, peço-te.
HAMLET: Está bem; depois me dirás o resto. Caro senhor, quereis incumbir-vos da
hospedagem destes atores? Mas tomai nota: que sejam bem tratados, porque são o
espelho e a crônica resumida da época. Ser-vos-ia preferível um ruim epitáfio depois de
morto, a andardes em vida difamados por eles.
POLÔNIO: Pois não, príncipe; hei de tratá-los de acordo com seu merecimento.
HAMLET: Com a breca, homem! Muito melhor! Se fôsseis tratar todas as pessoas de
acordo com o merecimento de cada uma, quem escaparia da chibata? Tratai deles de
acordo com vossa honra e dignidade. Quanto menor o seu merecimento, maior valor
terá a vossa generosidade. Levai-os.
P0LÓNIO: Vamos, senhores.
HAMLET: Amigos, acompanhai-o. Amanhã teremos representação.
(Sai Polônio com os atores, com exceção do primeiro ator.)
Ouviste, velho amigo, podes representar a peça "A Morte de Gonzaga"?
PRIMEIRO ATOR: Perfeitamente, senhor.
HAMLET: Então será amanhã à noite. E ser-te-á possfvel, em caso de necessidade,
decorar um discurso de doze ou dezesseis linhas, que vou escrever, para insertar na
peça? É possível?
PRIMEIRO ATOR: Perfeitamente, meu senhor.
HAMLET: Muito bem; acompanha aquele senhor; mas peço-te que não zombes dele.
(Sai o primeiro ator.) Meus bons amigos, vou deixá-los até à noite. Sois bem-vindos a
Elsinor.
HAMLET: Que Deus os acompanhe. Enfim, sozinho! Que velhaco sou eu, que vil
escravo! Pois não será monstruoso? Este ator pôde, numa simples ficção, num sonho
apenas de paixão, forçar a alma aos seus preceitos, a ponto de fugir-lhe a cor do rosto,
marejarem-lhe os olhos, o conspecto confundir-se-lhe, a voz tornar-se trêmula, e toda a
compostura conforma-se às suas influições. Tudo por nada, por Hécuba! Que é ele de
Hécuba, Hécuba que é dele, para chorar por ela? Que faria, se tivesse, como eu, deixas
violentas? Inundara de lágrimas o palco, rasgara o ouvido a todos com seus gritos;
assombrados deixara os inocentes, insanos os culpados, confundidos os ignorantes; sim,
deixara atônitos os sentidos usuais da vista e ouvido. Ao passo que eu, um parvo feito
só de lama, um néscio, como um joão-sonhador, sem nenhum plano de vingança, me
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calo, quando a vida preciosa e o trono um rei a perder veio por maneira tão bárbara e
maldita. Serei covarde? Quem me lança o apodo de vilão? a cabeça me abre em duas? a
barba arranca-me e atira-ma no rosto? puxa-me do nariz? de mentiroso me acoima até
os pulmões? Quem me faz isso? Ah! Fora bem feito. E a causa não é outra: tenho
sangue de pombo, o fel me falta que a opressão torna amarga, ou já teria dado as
entranhas desse escravo a todos os abutres do céu. Vilão nojento, sanguinário, traidor,
devasso, estéril! Oh vingança! Oh! Que grande asno eu sou! Como é ser bravo! Filho de
um pai querido, assassinado, a quem o inferno e o céu mandam vingar-se, e aliviar-me a
falar como uma simples meretriz, a insultar como uma criada! Que vergonha! Vamos,
cabeça, a postos! Tenho ouvido dizer que os criminosos, quando assistem à
representações, de tal maneira se comovem com a cena, que confessam na mesma hora
em voz alta seus delitos, pois embora sem língua, o crime fala por modo milagroso.
Esses atores irão representar para meu tio a morte de meu pai. Hei de observar-lhe os
olhos e sondar-lhe a alma até o fundo. Se se assustar, conheço o meu caminho. Talvez
que o espírito que eu vi não passe do demônio, que pode assumir formas atraentes. Sim,
talvez mesmo tencione perder-me, aproveitando-se de minha melancolia e pouca
resistência, como sói proceder com tais espíritos. Preciso de razões mais convincentes
do que isso tudo. E a peça é a coisa, eu sei, com que a consciência hei de apanhar o rei.

(Marcha dinamarquesa; clarins. Entram o Rei, a Rainha, Polônio, Ofélia, Rosencrantz,


Guildenstern e outras pessoas.)

A RAINHA: Vem para o meu lado, querido Hamlet; senta-te perto de mim.
HAMLET: Não, minha mãe; o ímã deste metal tem mais poder.
POLÔNIO (ao Rei): Oh! Oh! Observastes bem?
HAMLET: Senhorita, poderei sentar-me no vosso regaço?
(Senta-se ao pé de Ofélia.)
OFÉLIA: Náo, príncipe.
HAMLET: Quero dizer, recostar a cabeça em vosso regaço?
OFÉLIA: Sim, príncipe.
HAMLET: Pensastes que eu estivesse usando linguagem do campo?
OFÉLIA: Não pensei nada, príncipe.
HAMLET: Bonita idéia, deitar-se a gente entre as pernas de uma donzela.
OFÉLIA: Que idéia, príncipe?
HAMLET: Nada.
OFÉLIA: O príncipe está hoje muito alegre.
HAMLET: Quem, eu?
OFÉLIA: O príncipe, pois não?
HAMLET: Sou apenas vosso bobo. Que pode uma pessoa fazer de melhor, a não ser
ficar alegre? Vede minha mãe, como apresenta semblante prazenteiro; no entanto, meu
pai morreu apenas há duas horas.
OFÉLIA: Não, príncipe; duas vezes dois meses.
HAMLET: Há tanto tempo assim? Então que o diabo se cubra de luto, que eu vou
vestir-me de zibelina. Oh céus! Morto há dois meses e ainda não esquecido? Nesse caso,
há esperança de que a memória de um grande homem lhe sobreviva meio ano. Por
Nossa Senhora, que trate de fundar igrejas, ou ninguém pensará nele, como se deu com
o cavalo de pau, cujo epitáfio rezava: Pois oh! Pois oh! O cavalo de pau ficou
esquecido! (Clarins.) Entra a pantomima: um rei e uma rainha, com mostras de muito
afeto; a rainha abraça o rei e este a ela. A rainha se ajoelha diante do rei e por meio de
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gestos lhe assegura submissão. Ele a faz erguer-se e inclina a cabeça sobre seu ombro;
depois, senta-se sobre um banco de flores. Ao vê-lo adormecido, ela o deixa. Logo
depois, entra um indivíduo que lhe tira a coroa, beija-a, despeja veneno no ouvido do rei
e sai. Volta a rainha e, ao verificar que o rei morrera, dá mostras de grande mágoa. O
envenenador volta com duas ou três pessoas, parecendo lamentar-se com a rainha. O
corpo é removido. O envenenador requesta a rainha com presentes; a princípio, a rainha
parece relutar, mas acaba aceitando o seu amor.
(Saem.)
OFÉLIA: Que significa isso, príncipe?
HAMLET: Maroteira disfarçada; significa infortúnio.
OFÉLIA: Sem dúvida a pantomima serve de argumento à peça.
(Entra o Prólogo.)
HAMLET: É o que vamos ver por este freguês. Os atores não guardam segredo. Vereis
como vão revelar tudo.
OFÉLIA: Irá dizer-nos o que significam aqueles gestos?
HAMLET: Não só aqueles, mas quantos quiserdes representar-lhe. Se não ficardes
acanhada, ele também não o ficará, para explicar-lhes o sentido.
OFÉLIA: O príncipe é mau; o príncipe é mau; vou prestar atenção à peça.
O PRÓLOGO: Para nós toda a indulgência, para a tragédia e demência de vossa alta
paciência.
HAMLET: Isso é prólogo ou emblema de anel?
OFÉLIA: Foi curto.
HAMLET: Tal como o amor das mulheres.
O REI DA PEÇA: Trinta vezes já o Sol o giro há feito por Télus e Netuno, e com
perfeito cômputo trinta vezes doze vezes a lua assinalou ao mundo os meses, dês que as
mãos Himeneu e Amor o afeto. Nos ligaram num vínculo concreto.
A RAINHA DA PEÇA: Que a luz e o Sol nos dêem iguais jornadas, sem que as rosas
do amor fiquemfanadas. Mas tão cansado te acho e tão mudado da alegria primeira,
certo, o estado normal em ti, que o susto ora se apossa de mim, sem que isso, aliás,
turvar-te possa, pois o amor, na mulher, se casa ao medo: ou grandes até ao fim, ou
morrem cedo. Já dei provas de ser, no amor, constante, mas se o amor é tranqüilo, o
medo é instante; um grande amor nos sustos se confirma; crescendo o medo, o amor
também se afirma.
O REI DA PEÇA: Muito cedo deixar-te me é forçoso, que me oprime a fraqueza. No
formoso mundo tens de viver, sempre acatada, porventura escolhida e muito amada por
um segundo...
A RAINHA DA PEÇA: Basta! Basta! Um feito de tal negror me condenara o peito. Só
se alegra com outro companheiro quem foi causa da morte do primeiro.
HAMLET: (à parte): Isso é absinto.
A RAINHA DA PEÇA: O interesse mesquinho, nunca o amor, do segundo consórcio é
o causador. Fora o esposo matar do mesmo jeito a cada beijo do outro no seu leito.
O REI DA PEÇA: Sei que és sincera; mas é bem freqüente não cumprirmos a jura mais
ardente. Da memória a intenção é simples serva; forte ao nascer, o tempo a não
conserva; fruto que está no galho por ser duro, para cair por si quando maduro. Parece
necessário que no olvido se atire o que a nós próprios é devido. O que a paixão concebe
de perfeito, suprimida a paixão fica desfeito. A violência da dor ou da alegria com sua
própria atuação não dura um dia. Onde o prazer se exalta a dor se encolhe; um nada a
dor extingue e o riso tolhe. O mundo passa; é natural, portanto, que com a fortuna o
amor se altere tanto; pois é problema que ainda está sem norte, se a sorte guia o amor,
180

ou o amor a sorte. Cai um dos grandes, somem-se os amigos; sobe um pequeno,


adulam-no inimigos. Daí ligar-se o amor sempre à fortuna; tem amigos quem nunca a
outro importuna; pois quem ao falso amigo pede, vê-se de um imigo aumentado, sem
que o cresse. Mas, para terminar pelo começo, entre a vontade e a sorte há sempre
empeço. Nossos planos são frutos só do acaso; a idéia é nossa; os fins, de cada caso.
Não digas que de novo não te casas; morto o esposo, o propósito bate asas.
A RAINHA DA PEÇA: Que a luz o céu me negue; a terra, o pão; a noite, a calma; o
dia, distração; que a esperança se mude em desespero; penitência no cárcere é o que eu
espero. Que quanto enturva o rosto da alegria se me antolhe a afligir-me noite e dia.
Repudiada seja eu por todo o povo, se, chegando a enviuvar, casar, de novo.
HAMLET: E se ela quebrar o juramento?
O REI DA PEÇA: Palavras bem solenes; mas, querida, deixa-me; sinto a fronte
dolorida; quero dormir.
(Adormece.)
A RAINHA DA PEÇA: Repousa sossegado; que nenhuma aflição nos dê cuidado.
(Sai.)
HAMLET: Que tal acha a peça, minha senhora?
A RAINHA: Parece-me que a dama faz protestos demasiados.
HAMLET: Oh! Mas ela é de palavra.
O REI: Ouviste o argumento? Não contém nenhuma ofensa?
HAMLET: Não, não; é tudo por brinquedo; envenenam por brinquedo; é o que não
existe no mundo, ofensa.
O REI: Como se intitula a peça?
HAMLET: "A Ratoeira"; mas, já se vê, simples metáfora. A peça se baseia na história
de um crime ocorrido em Viena; Gonzago é o nome do duque; Batista, o da mulher.
Ides ver dentro de pouco: pura velhacaria. Mas, que importa? Nem Vossa Majestade,
nem eu, que temos a consciência limpa, somos atingidos. Os sendeiros que esperneiem;
não estamos com o lombo pisado.
(Entra um ator, no papel de Luciano.) Esse é um tal Luciano, sobrinho do rei.
OFÉLIA: O príncipe serve muito bom de coro.
HAMLET: Poderia servir de ponto numa vossa conversa com o namorado, se visse os
movimentos dos títeres.
OFÉLIA: O príncipe está muito afiado hoje, muito afiado.
HAMLET: Havia de custar-vos gemidos embotar-me o fio.
OFÉLIA: De bem para melhor; de mal para pior.
HAMLET: Os maridos são desse jeito. Vamos, assassino, começa logo! Deixa tua cara
amaldiçoada, peste, e principia de uma vez! Vamos. O corvo, em seu grasnar, chama a
vingança!
LUCIANO: Pensamentos escuros, droga a jeito, tempo oportuno, mãos para esse feito,
ninguém perto... Bebida desprezível, três vezes à meia-noite com a terrível maldição de
Hécate mexida: neste corpo despeja os males que escondeste!
(Despeja veneno no ouvido do Rei adormecido.)
HAMLET: Envenena-o no jardim, por causa do reino; chama-se Gonzago. A história
existe; foi escrita em italiano primoroso. Vereis dentro de pouco como o assassino
obtém o amor da mulher de Gonzago.
OFÊLIA: O rei se levantou.
HAMLET: Que é isso? Medo de um falso alarma de fogo?
A RAINHA: Como passa o meu senhor?
POLÔNIO: Suspendam a representação!
181

O REI: Tragam-me luzes! Vamos-nos embora! (Saem todos, com exceçãõ de Hamlet e
Horácio.)

- Hamlet e Gertrudes – morte de Polônio sentida por Ofélia. Narração de Ofélia


enquanto esta cena é feita ao fundo (?);

- Invasão da Dinamarca por Laertes – cena da loucura de Ofélia;

Elsinor. Um quarto no castelo.


Entram a Rainha, Horácio e um nobre.
A RAINHA: Não quero falar a ela.
O NOBRE: De fato, ela é importuna no desvario. Compungem os seus modos.
A RAINHA: Que a preocupa?
O NOBRE: Fala muito no pai; diz ter sabido que o mundo é mau, bate no peito, e geme,
zangando-se por nada. Diz palavras dúbias e sem sentido: nada, em suma, conquanto
esse seu modo leve o ouvinte a tirar conclusões, interpretando-lhe as palavras ao jeito
do que pensam, concluindo de seus gestos, da maneira de piscar, dos meneios da
cabeça, que algo querem dizer. Ainda que sejam suposições, tudo desgraça inculca.
A RAINHA: Seria bom falar-lhe, que ela pode suscitar conjeturas dos maldosos. Fazei-
a entrar.
(Sai O nobre.)
Para a alma criminosa e feperjura, tudo anuncia alguma desventura. Tanto se agita o
crime, em tal enredo, que a si mesmo se trai, de puro medo.
(Volta O nobre, com Ofélia.)
OFÉLIA: Onde se encontra a bela Majestade da Dinamarca?
A RAINHA: Que há de novo, Ofélia?
OFÉLIA: (canta): Como reconhecer em meio à turba o jovem meu amado? Pelo chapéu
de conchas, as sandálias, e mais pelo cajado.
A RAINHA: Minha doce menina, a que vem isso?
OFÉLIA: Que dizeis? Escutais, vos peço, agora:
(Canta.)
Senhora, ele se foi; não mais existe; morreu; nada mais ousa. À cabeça lhe nasce um
tufo de erva; sobre o corpo uma lousa. Oh! Oh!
A RAINHA: Querida Ofélia, escuta...
OFÉLIA: Por favor, escutai:
(Canta.) Como um monte de neve era a mortalha
(Entra o Rei.)
enfeitada de flor;
orvalhada baixou para o sepulcro,
pelo pranto do amor.
O REI: Como vai passando, gentil menina?
OFÉLIA: Bem, graças a Deus. Dizem que a coruja era filha de um padeiro. Sabemos,
senhor, o que somos, mas não o que viremos a ser. Deus assista na vossa mesa.
O REI: Alusão ao pai.
OFÉLIA: Por favor, não falemos mais disso; mas se vos perguntarem o que significa,
dizei-lhes:
182

(Canta.)
Raiou o dia de São Valentim; de pé todos estão.
Para ser vossa Valentina, irei pôr-me à janela, então.
Ela se alça depressa, a roupa veste
e a porta lhe franqueou,
fazendo entrar a virgem, que, assim, virgem,
não mais ali passou.
O REI: Meiga Ofélia...
OFÉLIA: Realmente, vou concluir sem nenhum juramento: (Canta.)
Pela Virgem e a Santa Caridade, que vergonha, meu Deus!
Os moços o farão, se aí se encontrarem...
Vergonha para os seus.
Fá-lo-ia, respondeu, caso ao meu leito não quisesses entrar.
O REI: Há quanto tempo está ela assim?
OFÉLIA: Espero que tudo corra bem. Precisamos de paciência, conquanto não possa
deixar de chorar, ao pensamento de que vão depô-lo no chão frio. Meu irmão há de ficar
sabendo disso. Muito obrigada pelo conselho amigo. Que venha o meu carro. Boa noite,
senhoras! Boa noite, encantadoras senhoras! Boa noite! Boa noite!

Barulho ao fundo. Laertes arromba a porta.


O REI: Calma, meu bom Laertes.
LAERTES: A gota de meu sangue que ficasse calma, me insultaria de bastardo,
mancharia meu pai, lançando a pecha de meretriz na fronte imaculada de minha santa
mãe.
O REI: Qual é o motivo, Laertes, de assumir ares gigantes essa rebelião? Deixa-o,
Gertrudes; nada temas por nós. De tal maneira o caráter divino ao rei protege, que a
traição mal espreita o que almejara, sem nada conseguir... Dizei, Laertes, o que vos pôs
assim. Gertrudes, deixa-o. Falai, jovem.
LAERTES: Meu pai, que é dele?
O REI: Morto.
A RAINHA: Mas não por ele.
O REI: Deixa que me fale.
LAERTES: Como morreu? Não quero ser ludíbrio de ninguém. Para o inferno os
juramentos! Fidelidade, os diabos a carreguem! Consciência e graça, o abismo as sorva
logo! Venha a condenação! Chego até ao ponto de arriscar esta vida e a porvindoura,
sem medir conseqüências, tão-somente para a meu pai vingar.
O REI: Que vos detém?
LAERTES: Afora o meu querer, nem todo o mundo. Quanto aos recursos, hei de
encontrar jeito de obter muito com pouco.
O REI: Ouvi, Laertes; se desejais, de fato, saber como vosso pai faleceu, acha-se escrito
nos vossos planos, que deveis num lance, sem distinção de amigos e inimigos, arrastar
os culpados e inocentes?
LAERTES: Não, só seus inimigos.
O REI: Desejais conhecê-los?
LAERTES: A quantos se mostrarem seus amigos, os braços tenho abertos e, como o
pelicano, com meu sangue lhes darei vida e alento.
183

O REI: Essas palavras são de bom filho e bravo gentil-homem. Minha inocência relativa
à morte de vosso pai, e a mágoa de perdê-lo hão de ao juízo tão claro aparecer-vos como
aos olhos a luz.
DINAMARQUESES (dentro): Deixai-a entrar.
LAERTES: Que significa esse barulho?
(Entra Ofélia.)
Febre. seca-me o cérebro! Corroei-me, lágrimas sete vezes salgadas, a virtude dos
olhos! Pelo céu! Tua loucura será pesada até que desça o prato da balança. Rosa de
maio, irmã, doce menina, querida Ofélia! Ó céu! É então possível que a razão de uma
jovem seja frágil como o alento de um velho? A natureza se depura no amor e,
florescendo, empresta à coisa amada algo da essência preciosa de si mesma.
OFÉLIA (canta): Levaram-no a enterrar sem cobertura...
Tra-lá, la-rá!
Quanto choro lhe rega a sepultura!
Adeus, pombinho!
LAERTES: Se com toda a razão me concitasses a vingar-te, nem tanto me abalaras.
OFÉLIA: Deveríeis cantar: "Abaixo! abaixo! Chamai-o para baixo!" Oh! Como a roda
lhe vai bem! É da canção do intendente falso que raptou a filha do amo.
LAERTES: Este nada vale mais do que tudo.
OFÉLIA: Aqui está rosmaninho, para lembrança. Não te esqueças de mim, querido.
Estes amores-perfeitos são para o pensamento.
LAERTES: Uma sentença na loucura: a lembrança e o pensamento harmonizados!
OFÉLIA: Para vós, funcho e aquiléia; arruda para vós, e um pouco para mim, também.
Poderemos chamar-lhe erva da graça dos domingos, mas a vossa deverá ser usada de
outro jeito. Aqui está margarida. Quisera dar-vos algumas violetas, mas murcharam
todas, quando meu pai morreu. Dizem que ele teve um fim muito bonito.
(Canta.)
Era a minha alegria o bom Robim!
LAERTES: À tristeza, à paixão, ao próprio inferno, a tudo ela dá graça e empresta
encanto.
OFÉLIA (canta): Nunca mais o veremos? Não mais retornará? Sumiu deste mundo;
baixai para o fundo, que ele não voltará. Barba branca de neve, de linho a cabeleira. Já
foi, sem parar; é inútil chorar; que no céu Deus o queira e a todas as almas cristãs, é o
que eu rogo a Deus. Deus seja convosco!

- Morte de Ofélia;

O REI: Laertes, vosso pai vos era caro, ou sois tal como a imagem da tristeza, rosto sem
coração?
LAERTES: Por que isso agora?
O REI: Não penso que esse amor vos falecesse; mas sei que o amor no tempo se
origina, sobre haver-me a experiência demonstrado que o tempo lhe modera o ardor e o
brilho. No centro dessa chama se acha sempre uma mecha ou pavio que a amortece.
Nada conserva sempre o mesmo aspecto; que até mesmo a bondade, em demasia, morre
do próprio excesso. O que queremos, deve ser feito, que o querer varia, mostrando
tantas quedas e delongas quantas línguas existem, mãos e casos, e o "devia" se muda
num suspiro que alivia e faz mal. Mas vamos à úlcera: Hamlet volta; como
demonstráreis que de tal pai sois filho, mais com atos do que simples palavras?
184

LAERTES: Cortar-lhe-ia o pescoço na igreja.


O REI: De fato, não devia haver santuário que o homicida amparasse, nem limites para
a vingança. Mas, bondoso Laertes, se concordais, ficai no vosso quarto. Hamlet vai
saber que já voltastes; cuidarei que de vós lhe falem muito, pondo duplo verniz nos
elogios do francês. Em resumo: aproximamo-nos e faremos apostas. Desatento como ele
é, sobre nobre e sem suspeita, as armas não verá. Daí ser fácil, na confusão, ficardes
com o florete não protegido, o que vos ensejará, num bote calculado, compensá-lo por
vos ter morto o pai.
LAERTES: Aceito o alvitre, e ainda mais: enveneno minha espada. Comprei de um
charlatão certa mistura tão mortal que, banhando nela a faca, uma vez feito o sangue,
não há emplastro, ainda que preparado só de simples virtuosos sob a lua, que consiga
dar vida a quem tocado for de leve. Vou pôr esse veneno na minha arma, porque
esflorar o contendor já seja para ele a morte.
O REI: Vamos tratar disso. Pesemos ora o tempo e as circunstâncias adequadas ao caso.
Se essa traça falhar, transparecendo nosso intento por falecer-nos jeito, melhor fora não
ter tentado. Daí o ser preciso novo plano, numa espécie de reforço, para o caso de a
prova não dar certo. Esperai... Quero ver... Apostaremos por maneira solene na arte de
ambos... Eis aqui! Quando a luta vos der calor e sede - esforçai-vos para isso nos
ataques - e ele quiser beber, hei de uma taça ter à mão. Bastará que nela molhe de leve
os lábios, caso ele consiga livrar-se do florete envenenado, porque o plano dê certo.
Mas, que é isso?
(Entra a Rainha.)
Então, meiga rainha?
A RAINHA: Tanto as desgraças correm, que se enleiam no encalço umas das outras.
Vossa irmã afogou-se, Laertes.
LAERTES: Afogou-se? Onde? Como?
A RAINHA: Um salgueiro reflete na ribeira cristalina sua copa acinzentada. Para aí foi
Ofélia sobraçando grinaldas esquisitas de rainúnculas, margaridas, urtigas e de flores de
púrpura, alongadas, a que os nossos campônios chamam nome bem grosseiro, e as
nossas jovens "dedos de defunto". Ao tentar pendurar suas coroas nos galhos inclinados,
um dos ramos invejosos quebrou, lançando na água chorosa seus troféus de erva e a ela
própria. Seus vestidos se abriram, sustentando-a por algum tempo, qual a uma sereia,
enquanto ela cantava antigos trechos, sem revelar consciência da desgraça, como
criatura ali nascida e feita para aquele elemento. Muito tempo, porém, não demorou,
sem que os vestidos se tornassem pesados de tanta água e que de seus cantares
arrancassem a infeliz para a morte lamacenta.
LAERTES: Afogou-se, dissestes?
A RAINHA: Afogou-se.
LAERTES: Querida irmã, já tens água de sobra; não te darei mais lágrimas. Contudo,
somos assim, que a natureza o obriga, sem que importe a vergonha; uma vez fora,
deixou de ser mulher. Adeus, senhor. Com as palavras, só chamas me sairiam, se não
fosse apagá-las a tolice.
(Sai.)
O REI: Sigamo-lo, Gertrudes. Que trabalho me custou para a cólera acalmar-lhe! Receio
que de novo a explodir venha. Sigamo-lo, portanto.

- TALVEZ:
185

– Duelo entre Laertes e Hamlet. Ofélia faz um carinho no rosto de Hamlet. Fazer uma
poesia como no começo da peça. PODE SER CANTADA.
- Som de metal – tão fazendo armas – guarda fala ter visto o fantasma;

2° ROTEIRO – coletivo UZUME teatro – Rosmaninhos...


VERSÃO FINAL

O público aguarda a entrada no teatro. Ofélia sai de dentro do Castelo e passa


cumprimentando o público. Posiciona-se diante dele e recita uma poesia com/sobre
rosmaninhos, flores para a memória, que termina com a seguinte frase “Rosmaninho, é
para a lembrança”.

CLARA
Duas águas conversavam:
solteiras e mansas, bem cuidadosas tranças.
Águas tão macias.
Fios de seda vinham junto a fios de favos.
Eram como olhos: pálpebras baixavam.
Que a luz, flutuando, se apura ao contato de outra luz.
Eu vi o peixe da lua mergulhar, ficar azul.
Súbito vento as empurra, como um clarão – pombo raio.
Em ambas tombam a brancura da correnteza, entre flores.
A corrente onde vamos é árvore de muitas cores.
A corrente roda a vida.
A mesma entrada, saída.
A corrente move a sorte, leva de roldão a morte.
Vai cada dia mais longe.
E mais a morte distante.
Foi a morte na corrente.
Não quis nadar, não nadava.
Foi corrente na morte.
Morreu a morte afogada.
E as águas caminham fortes.
E juntas, são libertadas.
Eis meu Rosmaniho
É para lembrança
Eu te peço amor,
Não esquece!84

Ela retorna pela mesma porta que entrou e, assim que a porta se fecha, a trupe chega nas
portas do Castelo cantando:

84
NEJAR, Carlos. As águas que conversavam. Ilustrações: Carla Fatio – Editora Escrituras. São Paulo:
2003. (coleção Mar de Letras: poesia).
186

Partitura do ABOIO:

Eu avistei o rei da corte ôêêêêê e a rainha na janela.

ôôô ê ôôôô iô é gado ÊÊÊ touro manso

Ôbâ ôôôôô io

Na entrada dessa casa


Levantei minha bandeira 2x
Bravo povo que está presente 2x
Viva nossa brincadeira
Olha a chave do baú
A rainha tem.
Você sabe, você viu?
Eu não meu bem.

VITOR
Boa Noite, Senhor dono da casa. Boa Noite pra Senhora dona, também. Nós viemos
oferecer nosso brinquedo pra nóis brinca no terreiro da casa, com gosto e satisfação, até
a barra do dia quebra e o galo canta. Se a licença não for dada, peço licença pra me
arretirar.

Neste momento elegemos uma Rainha Gertrudes e um Rei Claúdio da platéia e os


posicionamos nos umbrais do Castelo. Cantamos para eles:

Senhora dona da casa


Licença eu quero pedir 2x
Hora e meia de relógio
Pra maruja divertir

BODAS DE LUTO
A rainha e o rei recebem a trupe e os demais convidados para a festa de casamento. Os
reis passam pelo corredor dos convidados enquanto a trupe canta o verso abaixo num
ritmo mais lento.

TRUPE
Olha a chave do baú
A rainha tem.
Você sabe, você viu?
Eu não meu bem.

ALAN
REI CLAÚDIO: Embora a morte de nosso querido irmão Hamlet esteja viva ainda em
nossos sentimentos, a memória recomende luto em nosso coração e o reino inteiro
ostente a mesma expressão sofrida. A razão se opõe a natureza e nos manda lembrar
dele com sábia melancolia sem deixar de pensarmos em nós mesmos. - Por isso,
tomamos por esposa nossa antes irmã, e agora nossa rainha, a imperial herdeira deste
reino guerreiro, com alegria, por assim dizer, com alegria desolada, um olho auspicioso
187

o outro chorando, aleluia no enterro, réquiem no casamento, sabendo equilibrar a dor e


o encanto, tomamos como esposa, após ouvirmos vossos conselhos, sempre e em tudo
livres. Nossos agradecimentos por tudo isso.

Durante a fala do Rei Claúdio a trupe canta a seguinte estrofe, primeiro lentamente e, a
partir da terceira estrofe, em um tom quase gregoriano.

Nas horas de Deus, amém.


Pai, filho, espírito santo.
São as primeiras cantigas
Que nessa vitória eu canto!
A virgem da conceição
Nos cubra com vosso manto.

É nesta festa que Hamlet e Ofélia vão se encontrar pela primeira vez depois de
crescidos. A dança é representada pela dança dos arcos.

Música da festa:

Tava dormindo papai me acordou


Acorda menino pra apanhá fulô.

É fulô, é fulô, é fulô ai meu bem é fulô.

Ai o dono da casa também é fulô.


É fulô é fulô, ai menino é fulô.

É fulô, é fulô, é fulô ai meu bem é fulô.

Esse povo todo também é fulô


É fulô é fulô, ai menino é fulô.

É fulô, é fulô, é fulô ai meu bem é fulô.

Viva o dono da casa!


Viva!
Viva o povo todo que tão presente!
Viva!
Viva os cantadores!
Viva!

Hamlet e Ofélia que antes só se observavam na festa, se encontram pela primeira vez. A
velocidade da dança muda.

Ai, São Gonçalo do Amarante


Feito de um pau de alfavaca
Quem não tem cama nem rede
Dorme no couro da vaca.
188

Ai, São Gonçalo disse que tinha


Duas filha pra casa
Uma é com o filho do rei
Outra é com seu Gaspar.

São Gonçalo do Amarante


Casamenteiro das moça
Casai a mim primeiro
Pra depois casar as outra.

A trupe vai entrando conduzindo os espectadores para o interior do Castelo onde esta
acontecendo a festa. Eles já podem ir convidando as pessoas para ir dançando,
formando um corpo de baile. Quando o baile estiver pronto, as pessoas dançando, um
ator se paramenta discretamente para entrar como Hamlet. E circula pela festa. Em
seguida, uma atriz, Ofélia, faz o mesmo até que seus olhares se encontram. Durante os
comprimentos para os convidados pela festa, os atores podem comentar algo com os
espectadores, inclusive um sobre o outro.
Depois da festa entra Horácio falando a Hamlet ter visto o fantasma de seu pai.

BERTRAND e VITOR
HORÁCIO: Deus guarde Vossa Alteza.
HAMLET: Horácio, se a memória não me falha... Alegra-me rever-te com saúde.
HORÁCIO: O mesmo criado de sempre, príncipe.
HAMLET: Amigo, amigo; é o nome que eu te dou. Qual a razão de haveres tu deixado.
Wittenberg?
HORÁCIO: Simples disposição de um preguiçoso.
HAMLET: Eu não permitiria que um inimigo teu dissesse isso. Por isso, não me faças
ao ouvido a violência de depores contra ti mesmo. Não, não és vadio. Qual o motivo
que a Elsinor te trouxe? Conosco aprenderás a beber muito.
HORÁCIO: Senhor, vim assistir os funerais de seu pai.
HAMLET: Não zombes; creio que vieste para o casamento de minha mãe.
HORÁCIO: Realmente, foi bem perto.
HAMLET: Economia, Horácio! Os assados do velório puderam ser servidos como frios
na mesa nupcial. Preferira encontrar no céu o meu pior inimigo, a viver tal dia, Horácio.
Meu pai! Estou vendo meu pai, Horácio! Às vezes julgo ver meu pai.
HORÁCIO: Como, senhor?
HAMLET: Com os olhos da alma, Horácio.
H0RÁCIO: Creio, senhor, que o vi nesta noite última.
HAMLET: A quem?
HORÁCIO: A vosso pai, senhor.
HAMLET: O rei meu pai?
HORÁCIO: Prestai-me ouvidos, refreando o espanto por algum tempo, até que eu vos
relate tal fato. - Duas noites a fio um guarda, durante a hora morta da meia-noite, viu
uma figura parecida com vosso pai, armado da cabeça até aos pés, avançando com
postura lenta e grave. Três vezes pelos olhos pálidos lhe passou. Ele, gelado pelo medo,
ficou sem ter ânimo para falar-lhe. O fato me confiou. Montei guarda com ele na outra
noite... E eis que na hora indicada, sob a forma que me descreveu, tudo exato, voltou à
aparição... Sim, vosso pai; o reconheci; estas mãos não seriam tão parecidas.
HAMLET: Onde foi tudo isso?
189

HORÁCIO: Na esplanada acima de nós, senhor.


HAMLET: Falaste com a aparição?
HORÁCIO: Falei-lhe, sim, meu príncipe, mas não me respondeu. Contudo, quis-me
parecer que ele o rosto levantava, pondo-se em movimento, como prestes a falar. Mas,
nessa hora, cantou o galo. A esse canto, esgueirou-se ele apressado, sumindo à nossa
vista.
HAMLET: É muito estranho.
HORÁCIO: Por minha vida, príncipe, é a verdade. É minha criação dar-vos conta de
tudo.
HAMLET: Não vos encubro a minha inquietação. Montais guarda esta noite?
HORÁCIO: Sim, alteza.
HAMLET: Então à noite eu farei guarda; talvez ele retorne.
HAMLET: Se ele me aparecer sob a figura de meu pai, falar-lhe-ei, ainda que o inferno
abrisse e mandasse ficar quieto. Mas peço: se a ninguém falastes dessa visão, sede
discreto nisso. A qualquer ocorrência desta noite, trocai sinais apenas, não palavras.
Saberei ser grato. Passai bem. Na esplanada, entre as onze horas e as doze, pretendo
aparecer. (dirigi-se a Horácio) Vosso amor, como o meu. E agora, adeus.
(Horácio sai.)
Ah! Quem dera que a noite já chegasse! Mas até lá, meu minha coração alma, sê
paciente. A verdade aparecerá nem que tenha que desencavá-la da mais profunda terra.

DESPEDIDA DE LAERTES

BERTRAND, LARISSA, CLARA e ALAN


LAERTES: Adeus. Tudo o que é meu já se acha a bordo; adeus.
Cara irmã, se houver ventos favoráveis e navios no porto, não te ponhas a dormir: dá
notícias.
OFÊLIA: E dúvida?
LAERTES: No que diz respeito a Hamlet, e seu namoro, toma-o como capricho,
simples moda, violeta precoce no inicio da primavera, suave mas efêmera, perfume e
refrigério de um minuto, nada mais.
OFÉLIA: Nada mais?
LAERTES: Não mais; pois a natureza ao fazer-nos crescer não nos favorece apenas em
forças e tamanho mas a medida em que o tempo vai passando, se amplia dentro dele o
espaço reservado pra alma e pra inteligência. Talvez Hamlet te ame, agora, e não haja
mácula ou má-fé, mas é um vassalo do seu nascimento. Não pode como as pessoas sem
importância, escolher a quem deseja, pois disso depende a segurança e o bem estar do
Estado. Então, quando diz que te ama, convêm a tua prudência só acreditar nisso até
onde a vontade universal da Dinamarca o pode permitir o seu desejo pessoal. Assim,
pese o que pode sofrer a tua honra, se ouvir suas canções com ouvido crédulo, lhe
entregar o coração ou abrir teu mais casto tesouro à sua luxuria sem controle. Cuidado,
Ofélia, cuidado, amada irmã, vigia!
OFÉLIA: Encerrarei no peito, como guardas, essas sábias lições. Mas, caro irmão, não
faças como alguns desses pastores que aconselham aos outros o caminho do céu, cheio
de dificuldades, enquanto eles seguem alegres a estrada dos prazeres, sem dos próprios
conselhos se lembrarem.
LAERTES: Não se preocupe comigo; mas é tempo; aí vem nosso pai.
(Entra Polônio.)
Dupla bênção, graça dupla.
190

O acaso me concede este outro adeus.


POLÔNIO: Ainda ai, Laertes? Vai embarcar! O vento já curva os ombros da tua vela;
só estão te esperando. Toma aqui minha benção, vai com ela e guarda na memória estas
poucas dicas: cuida da imagem. Não dê língua ao que estiver pensando. A um
pensamento irrefletido, ação nenhuma. O amigo que tiver comprovado prende no
coração com vínculos de ferro. Mas não caleja a mão abrindo a palma à toa, saudando a
todo instante amigos novos. Cuidado pra não comprar briga, mas se comprar segura de
modo que o inimigo passe a temer você. Dê ouvidos a todos, voz a poucos. Que suas
roupas custem o quanto você puder pagar. Ricas, mas sem ostentação, que o hábito faz o
homem. Não empreste nem peça emprestado. Quem empresta perde ao mesmo tempo o
dinheiro e o amigo. Quem pede emprestado já perdeu o fio da própria economia. Sobre
tudo isso sê fiel consigo mesmo. Segue-se disso como o dia à noite e assim não vai ser
falso com ninguém. Vai e que a minha benção frutifique tudo isso em você. Adeus.
LAERTES: Humildemente me despeço, senhor.
POLÔNIO: Vai, teus criados te esperam.
LAERTES: Adeus, Ofélia; guarda o que eu te disse.
OFÉLIA: Está encerrado na minha memória, e só você tem a chave.
LAERTES: Adeus.
(Sai.)
POLÔNIO: O que foi que ele te disse, Ofélia?
OFÉLIA: Se deseja saber, falou do príncipe Hamlet.
POLÔNIO: Ah, muito bem, bem lembrado. Já me disseram que ele te dispensa alguma
intimidade e que você tem dado ouvido liberal – LIBERAL. Se é assim e assim me foi
dito, devo te dizer – que você não compreende o que te fica próprio como minha filha e
quanto a tua honra. Que há entre vocês? Quero a verdade.
OFÉLIA: Senhor, ultimamente fez-me muitas propostas de ternura.
POLÔNIO: Ternura!? Não diz, não diz! Você fala como uma mocinha inexperiente do
perigo de certas situações. E tu? Acreditas nessas propostas?
OFÉLIA: Não sei como pensar, meu pai, sobre isso.
POLÔNIO: Eu lhe digo: é preciso que não passes de um bebê, para ter recebido como
moeda verdadeira essas propostas.
OFÉLIA: Mas senhor, sua insistência sempre foi de moral honrosa e digna.
POLÕNIO: Moral! Muito bonito. Linda essa palavra. Adiante o que ele disse!
OFÉLIA: Soube firmar os seus protestos de amor com os mais sagrados juramentos.
POLÔNIO: Conheço isso; alçapão pra apanhar rolinhas. Ah, eu sei muito bem quando o
sangue ferve, como a alma é prodiga em emprestar mil artimanhas à língua. São
chispas, minha filha, dão mais luz que calor e se instiguem no momento da promessa –
não são fogo verdadeiro. Você não pode esquecer que o príncipe Hamlet é jovem e
príncipe; tem rédea muito mais solta do que a tua. Pra resumir: não quero mais de hoje
em diante que você conspurque um minuto sequer, trocando palavras, ou conversando
com o príncipe. Preste atenção: é uma ordem. Pode ir.
OFÉLIA: Obedeço, meu senhor.

ENCONTRO DE HAMLET COM O FANTASMA

Hamlet entra correndo. Paisagem sonora de floresta à noite. A voz do fantasma é feita
pela rabeca.
191

VITOR
HAMLET: Para onde me conduzes? Não darei mais um passo.
FANTASMA: Ouve-me!
HAMLET: Isso é o que desejo.
FANTASMA: Já está perto o momento em que é forçoso que de novo me entregue às
labaredas e ao enxofre do tormento.
HAMLET: Fala, que estou obrigado a dar ouvidos.
FANTASMA: E também a me vingar, depois de me ouvir.
HAMLET: Como!?
FANTASMA: Sou a alma de teu pai, por algum tempo condenada a vagar durante a
noite, e de dia a jejuar na chama ardente, até que as culpas todas praticadas em meus
dias mortais sejam nas chamas, enfim, purificadas. Escuta, Hamlet! Se algum dia
amaste teu carinhoso pai...
HAMLET: Ó Deus!
FANTASMA: Vinga o seu assassinato estranho e torpe.
HAMLET: Assassinato?
FANTASMA: Sim, assassinato torpe, como todos; mas esse é estranho, vil e
inconcebível.
HAMLET: Conta-me, a fim de que eu, com asas rápidas como os pensamentos de amor,
voe para a vingança.
FANTASMA: Te vejo decidido. Escuta, Hamlet! Contaram que uma cobra me picara,
quando, eu dormia no jardim. Assim, foi ludibriado todo o ouvido da Dinamarca por
uma notícia falsa de minha morte. Mas escuta, A cobra que peçonha lançou na vida de
teu pai, agora cinge a coroa dele.
HAMLET: Oh, minha alma profética! Meu tio!
FANTASMA: Que queda, Hamlet! Pressinto o ar da manhã. Serei breve. Ao achar-me
adormecido no meu jardim, na sesta cotidiana, teu tio se esgueirou por minhas horas de
sossego, munido de um frasquinho de meimendro e no ouvido despejou-me o líquido
leproso. Me privou o irmão, ao mesmo tempo, da vida, da coroa e da rainha. Não
consintas que o leito real da Dinamarca fique como catre de incesto e de luxúria.
Contudo, se nesse ato te empenhares, não te manches. Que tua alma não conceba nada
contra tua mãe; ao céu a entrega, e aos espinhos que o peito lhe compungem. Eles ferem
e sangram. E agora, adeus! Mostra-se o pirilampo da madrugada; já seu fogo inativo
empalidece. Adeus, Hamlet! Lembra-te de mim.
(Sai.)
HAMLET: Que me lembre de ti? Sim! Enquanto tiver sede a memória neste globo
conturbado. Lembrar-me? Sim; das tábuas da memória vou apagar todas as notícias
frívolas, as vãs idéias dos livros, as imagens, os vestígios que os anos e a experiência aí
deixaram. Essa tua ordem, só, há de guardar-se no volume e no livro do meu cérebro,
sem mais escórias. Sim, pelo alto céu, ó mulher perniciosa! Vilão, vilão que ri! Vilão
maldito! Minhas lembranças... Preciso tomar nota que o homem pode sorrir e ser
infame. Sei que ao menos é assim por aqui.

ME PEGOU PELO PULSO

CLARA
OFÉLIA: Meu senhor que medo que eu tive! Eu estava costurando no meu quarto,
quando me surge lorde Hamlet, sem chapéu, gibão aberto, as meias sem ligas caídas
pelo tornozelos, branco como a camisa que vestia. O que ele disse? Me pegou pelo
192

pulso e me apertou com força, depois se afastou a distância de um braço inteiro e os


dedos de sua outra mão pousou na própria testa, mergulhou numa leitura tão demorada e
profunda do meu rosto como se quisesse desenhar. Ficou um tempo enorme assim. No
fim, uma sacudida curta no meu braço e três vezes fazendo sinal com a cabeça pra cima,
pra baixo, pra cima, pra baixo, pra cima e pra baixo e soltou um suspiro tão sentido e
aliviado, que parecia que seu corpo se desfazia em pedaços e a sua vida morria. Feito
isso me deixou com a cabeça virada para mim por cima do ombro, parecia encontrar seu
caminho sem os olhos, pois atravessou a sala sem a sua ajuda e até o fim, grudou o
brilho deles em mim.

ALAN
POLÔNIO: Lê este breviário. Para que o exercício espiritual dê um colorido à tua
solidão. Vamos ser acusados de coisa tão provada; com um rosto devoto e alguns gestos
beatos, açucaramos até o demônio.

Ofélia toca a rabeca e entra. Pede para alguém da platéia tocar a rabeca para ela. Após
fala o texto:

MONÓLOGO DA FLAUTA

LARISSA
OFÉLIA: Pois veja só que coisa mais insignificante você me considera! Em mim você
quer tocar. Pretende conhecer demais os meus registros. Pensa poder dedilhar o coração
do meu mistério. Se acha capaz de me fazer dar da nota mais baixa ao topo da escala.
Há muita música, uma voz excelente nesse pequeno instrumento e você é incapaz de
fazê-lo falar. Pelo sangue de Cristo! Acha que sou mais fácil de tocar do que uma
flauta? Pode me chamar do instrumento que quiser. Pode me dedilhar quanto quiser, que
não vai me arrancar o menor som...

DEVOLUÇÃO DAS LEMBRANÇAS

Ofélia entrega as cartas para o público ler, cartas enviadas a Ofélia por Hamlet e vice-
versa. Ofélia entrega as lembranças para Hamlet.

VITOR e NAIARA
OFÉLIA: Como tem passado, príncipe, no correr de tantos dias?
HAMLET: Muitíssimo obrigado; bem, bem, bem.
OFÉLIA: Tenho algumas lembranças suas, príncipe, que há muito gostaria de lhe
devolver. Rogo que as aceite agora.
HAMLET: Eu, não; eu, não; eu nunca te dei nada.
OFÉLIA: O príncipe sabe muito bem que deu, e com elas palavras tão doces, que o
valor dos presentes aumentava. Mas, perdido o aroma, agora os trago. Os presentes
ricos se tornam pobres, quando o doador se faz cruel. Ei-los aqui, meu príncipe.
HAMLET: Ah! Ah! Você é honesta?
OFÉLIA: O que quer dizer?
HAMLET: És bela?
OFÉLIA Que quer dizer, Vossa Alteza, com isso?
HAMLET: É que se fores, ao mesmo tempo, honesta e bela, não deves admitir
intimidade entre a tua honestidade e a tua beleza.
193

OFÉLIA Mas, príncipe, poderá haver melhor companhia para a beleza do que a
honestidade?
HAMLET: Realmente, que a beleza, com o seu poder, levaria menos tempo para
transformar a honestidade em alcoviteira do que esta em modificar a beleza à sua
imagem. Já houve época em que isso era paradoxo; mas agora o tempo o confirma. Eu
te amei um dia.
OFÉLIA: Em verdade, cheguei a acreditar.
HAMLET: Não deverias acreditar, porque a virtude não pode enxertar-se em nosso
velho tronco, sem que deste não remanesça algum travo. Eu nunca te amei.
OFÉLIA: Tanto maior é a minha decepção.
HAMLET: Vai para um convento. Por que hás de gerar pecadores? Eu mesmo me
considero mais ou menos honesto, mas poderia acusar-me de tais coisas, que teria sido
melhor que minha mãe não me houvesse dado à luz. Sou orgulhoso, vingativo, cheio de
ambição, e disponho de maior número de delitos do que de pensamentos para vesti-los,
imaginação para dar-lhes forma, ou tempo para realizá-los. Para que rastejarem entre o
céu e a terra tipos como eu? Todos somos rematados, canalhas; não deves confiar em
ninguém. Toma o caminho do convento. Onde se encontra teu pai?
OFÉLIA: Em casa, alteza.
HAMLET: Que lhe fechem as portas, a fim de impedirem que faça papel de tolo, a não
ser em sua própria casa. Adeus.
OFÉLIA: Ajuda-o, céu de bondade.
HAMLET: Se tiveres de casar, dou-te por dote a seguinte maldição: ainda que sejas
casta como o gelo e pura como a neve, não escaparás à calúnia. Vai; entra para o
convento; adeus. Ou então, se tiveres mesmo de casar, escolhe um idiota para marido,
porque os espertos sabem perfeitamente em que monstros as mulheres os transformam.
Para o convento, vai; e isso depressa. Adeus.
OFÉLIA: Poderes celestiais, restituí-lhe a razão!
HAMLET: E eu sei bem como você se pinta; Deus te deu um rosto e você faz outro;
anda aos pulinhos e com requebros, falas cheias de esses, e dais nomes indecentes às
criaturas de Deus, fazendo tua leviandade passar por inocência. Vai e quero que todos
saibam: Isto foi o que me enlouqueceu! O que digo é que não haverá mais casamentos;
os que já são casados, continuarão todos vivos com exceção de um,os demais que
continuem solteiros . Para o convento; vai! (Sai.)
OFÉLIA: Que nobre inteligência assim perdida! O olho do cortesão, a língua e o braço
do sábio e do guerreiro, a mais florida esperança do Estado, o próprio exemplo da
educação, o espelho da elegância, tudo em nada! E eu, a mais desgraçada das mulheres,
que saboreei o mel de suas juras musicais, ter de ver essa admirável razão perder o som,
qual sino velho, essa forma sem par, a flor da idade, afanada pela insânia! Ó dor sem
fim! Ter visto o que vi, vendo agora o que vejo!

A TRUPE

VITOR
HAMLET: Enfim, só! Que velhaco eu sou, que vil escravo! Pois não será monstruoso
este ator aí, numa simples ficção, num sonho apenas de paixão, forçar a alma a sentir o
que ele quer , a ponto de que o rosto empalidece, marejarem-lhe os olhos, angustia no
semblante a voz trêmula e toda sua compostura conforma-se a sua vontade? Tudo isso
por nada, por Hécuba! O que é Hécuba para ele ou ele para Hécuba para que chore
assim por ela? Que faria se tivesse, como eu, deixas violentas? Mas eu, idiota inerte,
194

alma de lodo, vivo na lua alheio a minha própria causa e não sei fazer nada nem mesmo
por um rei cuja propriedade e vida tão preciosas foram arrancadas numa conspiração
infame. Serei eu um covarde? Quem me chama canalha? Me arrebenta a cabeça? Me
puxa pelo nariz? Me enfia a mentira pela goela até o fundo dos pulmões? Quem me faz
isso? Vilão nojento, sanguinário, traidor, devasso, estéril! Oh vingança! Oh! Que grande
asno eu sou! Como é ser bravo! Filho de um pai querido, assassinado, a quem o inferno
e o céu mandam vingar-se, e aliviar-me a falar como uma simples meretriz, a insultar
como uma criada! Que vergonha! Vamos, cabeça, a postos! Tenho ouvido dizer que os
criminosos, quando assistem a representações, de tal maneira se comovem com a cena,
que confessam na mesma hora em voz alta seus delitos. O negócio é a peça que eu
usarei para explodir a consciência do rei.

MITO DA UZUME – apresentação do coletivo UZUME teatro da peça “A Ratoeira”.

MÚSICA DA UZUME

Aboio Clara, Larissa, Bertrand e Alan

Materasu, mãe terra e sol


Materna estrela aquecerá
Brilhando em nós
Aqui será Materasu

Fecunda semente
Ser mente de ator 2x

Quem é, quem é?
É Uzume que vem de lá
Pra tirar, Materasu
Pra gerar, Materasu
E abraçar, Materasu
Pra nós.

Mandei chamar
Chamei! 2x

Mandei chamar
UZUME a bailar.

UZUME:
Eu, Uzume
Desafio e proponho a diferença.
Danço a desordem do mundo.
Não trago nada.
Minhas vestes devastadas
Oferecem o que resta de mim
Meu corpo, minha dança
Em troca somente luz.
195

TRUPE LARISSA: Como se chama a peça?


TRUPE BERTRAND: "A Ratoeira"; mas, já se vê, simples metáfora. A peça se baseia
na história de um crime ocorrido em Viena; Mateu é o nome do rei; Catarina, o da
mulher.

Entra a pantomima:
TRUPE VITOR:
Já o sol trinta voltas perfeitas tinha dado
Desde que o amor uniu Catarina e Mateu
Pelos Laços sagrados do Himeneu.
Eu devo te deixar e muito em breve
Mas o fim da existência me é mais leve
Sabendo que você, quando eu tiver partido
Amada e honrada com outro marido.
Não, eu não aceito.
Um outro amor não cabe no meu peito
É ter novo companheiro
Só tem o segundo quem mata o primeiro.
A intenção é apenas escrava da memória
Violenta ao nascer, mas depois transitório.
O mundo não é eterno e tudo tem prazo
Nossas vontades mudam nas viradas do acaso;
Pois esta é uma questão ainda não resolvida:
A vida faz o amor, ou este faz a vida?

Pantomima: um rei e uma rainha, com mostras de muito afeto; a rainha abraça o rei e
este a ela. A rainha se ajoelha diante do rei e por meio de gestos lhe assegura submissão.
Ele a faz erguer-se e inclina a cabeça sobre seu ombro; depois, senta-se sobre um banco
de flores. Ao vê-lo adormecido, ela o deixa. Logo depois, entra um indivíduo que lhe
tira a coroa e despeja veneno no ouvido do rei, dizendo:

NAIARA e ALAN
TRUPE: Pensamentos negros, drogas prontas, hora dada, tempo cúmplice, mãos hábeis
– e ninguém vendo nada; tu, mistura fétida destilada de ervas homicidas infectadas por
Hécate com tripa maldição, três vezes seguidas, faz teu feitiço natural, tu mágica
obscena, usurparem depressa esta vida ainda plena.
OFÉLIA: O Rei se levanta!

MORTE DE POLÔNIO

Clara e Vitor fazem uma espiral. Vitor, como Hamlet, arrasta o figurino de Polônio que
será enterrado. Clara encontra o corpo do pai no final da espiral.

CLARA
OFÉLIA:
Morrer, dormir, nada mais,
Termina a vida e com ela terminam as nossas dores.
Um punhado de terra, algumas flores...
E depois uma lágrima fingida
196

Que me importa que a manhã se esboroe ou que desabe?


Se a natureza pra mim está morta?
Vem morte, ao nada me transporta
Morrer, dormir, talvez sonhar
Quem sabe?
Canta música “Ele não voltará mais”.

LOUCURA DE OFÉLIA

LARISSA, BERTRAND, CLARA e ALAN


A RAINHA: Não quero falar com ela.
HORÁCIO: Mas ela é insistente; está fora de si – seu estado merece piedade.
A RAINHA: O que ela quer?
HORÁCIO: Fala muito no pai; diz ter sabido que o mundo é mau, bate no peito e geme,
zangando-se por nada. Fala coisas sem nexo ou com apenas metade do sentido. O que
diz não diz nada, mas permite aos que escutam tirarem suspeitas dessa deformação; e ai
conjeturam, rearrumando as palavras de acordo com o que pensam.
A RAINHA: Seria bom falar com ela, pois pode espalhar suposições perigosas em
cérebros maldosos. Fazei-a entrar.
(Sai O nobre.)
Para a alma criminosa que conjectura, tudo anuncia alguma desventura. Tanto se agita o
crime, em tal enredo, a si mesmo se trai, de puro medo.
(entra Ofélia.)
OFÉLIA: Onde está? A radiosa rainha da Dinamarca.
A RAINHA: O que foi, Ofélia?
OFÉLIA: (canta): Como distinguir de todos o meu amante fiel? Pelo bordão e a
sandália; pela concha do chapéu.
A RAINHA: Minha doce menina, a que vem isso?
OFÉLIA: Que diz? Não, presta atenção, por favor:
(Canta.)
Está morto, está morto, foi embora, embora.
A RAINHA: Querida Ofélia, escuta...
OFÉLIA: Senhora, Dona da casa
Passe a mão nos seus cabelos 2x
Que do céu já vem caindo
Pingos de água de cheiro.
O REI: Como vai passando, gentil menina?
OFÉLIA: Bem, graças a Deus. Dizem que a coruja era filha de um padeiro. Sabemos,
senhor, o que somos, mas não o que viremos a ser. Deus esteja em vossa mesa.
O REI: Alusão ao pai.
OFÉLIA: Por favor, nem uma palavra sobre isso; mas quando perguntarem o que
significa, respondam assim:
(Canta.)
Amanhã é dia santo
Dia de São Valentim
Na janela desde cedo, tu vais esperar por mim.
Para ser sua Valentina, ele ergeu-se, se vestiu.
Deixou entrar a menina, pois a porta do quarto abriu.
Pra donzela Valentina que donzela não saiu.
197

O REI: Meiga Ofélia...


OFÉLIA: Espero que tudo corra bem. Devemos ser pacientes, mas não posso deixar de
chorar pensando que o colocaram neste chão frio. Meu irmão há de ficar sabendo disso.
Muito obrigada pelo conselho amigo. Vem minha carruagem. Boa noite, senhoras! Boa
noite, lindas senhoras! Boa noite! Boa noite!
Ofélia se retira para junto do público com quem interage.

INVASÃO DO CASTELO POR LAERTES

Paisagem sonora da invasão do castelo. Laertes entra.

RAINHA: Que barulho é esse?


O REI: Arrebentaram a porta. (Entra Laertes). Calma, meu bom Laertes.
LAERTES: A gota de meu sangue que ficasse calma me insultaria de bastardo,
mancharia meu pai, lançando a pecha de meretriz na fronte imaculada de minha santa
mãe.
O REI: Qual é o motivo?
LAERTES: Como morreu? Não quero ser enganado por ninguém. Para o inferno os
juramentos! Fidelidade, os diabos a carreguem! Consciência e graça, o abismo as sorva
logo! Venha a condenação! Chego até ao ponto de arriscar esta vida sem medir
conseqüências, tão-somente para a meu pai vingar.
O REI: Que vos detém?
LAERTES: Afora o meu querer, nem todo o mundo. Quanto aos recursos, hei de
encontrar jeito de obter muito com pouco.
O REI: Ouvi, Laertes; se desejais, de fato, saber como vosso pai faleceu, acha-se escrito
nos vossos planos, que deveis num lance, sem distinção de amigos e inimigos, arrastar
os culpados e inocentes?
(Fala Ofélia do público).
OFÉLIA: Não, só seus inimigos. A quantos se mostrarem seus amigos, os braços tenho
abertos e, como o pelicano, com meu sangue lhes darei vida e alento.
LAERTES: Boa irmã, rosa de maio, doce Ofélia! Ó céu! A natureza é sutil no amor e
nessa sutileza sacrifica um pedaço precioso de si mesma.
OFÉLIA: O puseram no caixão com o rosto descoberto.
Quanto choro lhe rega a sepultura!
Vai em paz, meu pombinho!
LAERTES: Se estivesse em teu juízo e me incitasse à vingança não terias tanta força.
OFÉLIA: Todos tem que cantar: "Embaixo! Embaixo! Chamando-o baixinho! A roda
da fortuna gira assim! É da canção do falso vaqueiro que roubou a filha do patrão.
LAERTES: Isto não é nada e é mais do que tudo.
OFÉLIA: Eis um rosmaninho, é para lembrança. Eu te peço amor, não esquece. E
amores-perfeitos que são só para o pensamento.
LAERTES: Uma sentença na loucura: a lembrança e o pensamento harmonizados!
OFÉLIA: (ao Rei) Funchos, para o senhor, e aquiléias; (a Rainha) arruda para vós, e
para mim também, alguma coisa. Vamos chamar de flor da graça dos domingos; ah, tem
que usar sua arruda de outro jeito. Aqui está uma margarida. Queria lhe dar algumas
violetas, mas murcharam todas, quando meu pai morreu. Dizem que ele teve um bom
fim, um fim muito bonito.
(Canta.)
O meu bonito Robim é toda a minha alegria!
198

LAERTES: À magoa, à paixão, ao próprio inferno, a tudo ela dá graça e empresta


encanto.
OFÉLIA (canta): E ele não voltará mais? Ele está morto, já voltou pro seu porto. Está
morto, está morto. Foi embora, foi embora. É inútil nosso pranto que Deus o proteja
agora. E para todas as almas cristãs eu peço que Deus esteja convosco.

MORTE DE OFÉLIA – CENA IMPROVISADA

TODOS
DELÍRIOS DE OFÉLIA!!!! IMAGENS! VISÕES! LEMBRANÇAS DO PASSADO E
DO FUTURO. IMPROVISO.

A RAINHA: (Espargindo flores) Flores às flores. Adeus! Esperava que fosses a esposa
do meu dileto Hamlet; pensava adornar o teu leito de noiva, doce criança, não florir tua
sepultura.

As outras Ofélias tiram a roupa da Rainha, preparando-a como Ofélia para o casamento.
Ela dá alguns passos com Hamlet. Uma delas faz uma barriga. Segue-se com
improvisos a partir de ações descobertas nos ensaios.

LAERTES: Um salgueiro reflete na ribeira cristalina sua copa acinzentada. Para aí foi
Ofélia sobraçando grinaldas esquisitas de rainúnculas, margaridas, urtigas e de flores de
púrpura, alongadas, a que os nossos campônios chamam nome bem grosseiro, e as
nossas jovens "dedos de defunto". Ao tentar pendurar suas coroas nos galhos inclinados,
um dos ramos invejosos quebrou, lançando na água chorosa seus troféus de erva e a ela
própria. Seus vestidos se abriram, sustentando-a por algum tempo, qual a uma sereia,
enquanto ela cantava antigos trechos, sem revelar consciência da desgraça, como
criatura da água ali nascida e feita para aquele elemento. Muito tempo, porém, não
demorou, sem que os vestidos se tornassem pesados de tanta água e que de seus
cantares arrancassem a infeliz para a morte.
Querida irmã, já tens água de sobra; não te darei mais lágrimas. Contudo, somos assim,
que a natureza o obriga, sem que importe a vergonha; que eu chore, depois disso não
haverá mais mulher em mim. Adeus, senhor. Com as palavras, só chamas me sairiam, se
não fosse apagá-las a tolice.
Canta:
Sai Jaraguá de cima do telhado. 2x
Deixa essa menina, dormir sono sussegado.

REI CLÁUDIO
Abandonada de todos:
Pelo pai que respeitava,
Pelo homem que levou
Sem voltar, meu coração,
Pelo pássaro que, agora,
Perdeu o encanto que tinha,
Não tem razão de viver
Quem nessas vidas vivia.
Agora morro sabendo,
Aquilo que não sabia:
199

Pensei que estava vivendo


Mas, na verdade, morria. 85

FIM

PROJETO DE PATROCÍNIO APROVADO NO EDITAL 02/2009 DO FUNDO


MUNÍCIPAL DA FUNDAÇÃO CULTURAL DE JOÃO PESSOA –
FMC/FUNJOPE

NOME DO PROJETO

O entre do Cavalo Marinho de Mestre Zequinha ao ator-brincante

PROPONENTE

Alan Carlos Monteiro Júnior

JUSTIFICATIVA

Entre os meses de abril a julho de 2006 foi oferecido o curso Iniciação a Pesquisa Teatral –
Módulo I, financiado pelo edital BNB Cultural 2006 do Banco do Nordeste. Este curso se
organizava em três eixos: A coreógrafa Inhá Navarro abordou anatomia e fisiologia humanas nas
aulas de cadeias musculares; a encenadora e teatróloga Elisa Toledo ministrou aulas de treinamento
corporal e vocal, além de análise de texto dramático e atuação; e Mestre Biu Alexandre, do Cavalo
Marinho Estrela de Ouro de Condado – PE, ministrou aulas de Cavalo Marinho. Foram
viabilizadas no decorrer deste curso três apresentações do Cavalo Marinho Estrela de Ouro de
Condado – PE. Duas delas completas, com duração aproximada de onze horas cada, sendo uma em
João Pessoa e outra na cidade de Condado – PE.

Neste curso tive a oportunidade de conhecer a dança popular do Cavalo Marinho e comecei a
perceber as possibilidades de suas práticas para o treinamento do ator, como a precisão dos
movimentos e a modelagem da energia no corpo. Desde então procurei aprofundar meus
conhecimentos acerca de manifestações populares, em especial a do Cavalo Marinho, com
vivências de oficinas e apresentações e a aquisição de materiais sobre o tema como livros, CDs e
DVDs.

85
LOUREIRO, João de Jesus Paes. Pássaro da Terra: peça inspirado no “pássaro junino”, teatro popular
paraense. Ilustrações: Vera Andrade, Editora Escrituras, São Paulo: 2003. (Coleção Mar de Letras:
teatro).
200

Já em fevereiro de 2008 participei da oficina A Arte do Brincante, com a atriz, bailarina e


preparadora corporal Carla Martins86, realizada através do apoio municipal da Fundação Cultural
de João Pessoa – FUNJOPE e do Grupo Sertão Teatro. Nesta oficina tive contato com uma
metodologia de trabalho do ator que utilizava os passos de danças populares como o Coco,
Maracatu e o Cavalo Marinho pernambucano, para compor uma frase coreográfica. Esta sequência
era trabalhada no tempo e no espaço por meio da repetição ou dinamização de algum exercício que
objetivava construir uma atmosfera de jogo entre os participantes, a fim de experimentar as
possibilidades destas danças populares na busca de sua modelagem. Em seguida, juntava-se à
sequência coreográfica um trecho de texto, no caso desta oficina foram utilizados fragmentos de
Senhora dos Afogados, de Nelson Rodrigues. Esta junção transformava a sequência coreográfica
pessoal, originada nas danças populares abordadas, em estímulos para sua modelagem.
Proporcionando, desta forma, a descoberta de ações físicas e vocais com impulsos e qualidades
energéticas advindas dos movimentos corporais e coreográficos das danças populares citadas. Esta
seqüência de ações era trabalhada com dinâmicas que visavam não só a modelagem de ações
físicas e vocais no tempo e no espaço, mas sua interiorização no corpo em forma de impulsos e
organicidade. Buscava-se com isto não só estofo para as ações, mas também trabalhar a relação e o
jogo entre os participantes.

As vivências descritas acima enfatizaram meu desejo de pesquisar as danças populares em busca
de contribuições ao trabalho do ator. Esta pesquisa originou o projeto “Do carvão ao corpo-em-arte
de ator-brincante”, o qual está sendo desenvolvido no programa de Pós-Graduação em Artes
Cênicas – PPGARC strictu sensu (mestrado) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte -
UFRN. O objetivo deste projeto é procurar contribuições da dança popular do Cavalo Marinho
encontrado na cidade paraibana de Bayeux para o trabalho do ator, tanto em sua etapa de
treinamento, entendendo este como o ato de preparar potencialmente o artista para a descoberta da
ação cênica, quanto servindo de estímulo para a composição e modelagem do corpo-em-arte,
conceito explorado por Renato Ferracini em pesquisas no LUME - Núcleo Interdisciplinar de
Pesquisas Teatrais da UNICAMP.

Por fim, em março de 2009, participei juntamente com mais dois atores da fundação do Coletivo
Uzume Teatro, o qual tem por objetivo pesquisar o trabalho corporal/técnico do ator. Tendo em
vista este objetivo comum, decidimos vincular o desenvolvimento do meu projeto de mestrado a
pesquisa do grupo.

O diferencial proposto pelo presente projeto baseia-se em pesquisar o Cavalo Marinho de Bayeux –
PB em sua singularidade e diferenciação do Cavalo Marinho pernambucano, o qual é mais
divulgado que o paraibano. Assim, a originalidade deste projeto reside não somente na pesquisa do
grupo de dança popular denominado Cavalo Marinho de Mestre Zequinha, mas também no
desenvolvimento de um percurso metodológico próprio que, embora possua objetivos comuns com
outros projetos cênicos similares, procura desenhar seu próprio trajeto no transcorrer desta
pesquisa, referenciando-se em pesquisas já existentes, mas não esquecendo de oferecer sua própria

86
Para mais informações sobre esta vivência, acessar: http://ser-taoteatro.blogspot.com/2008/02/uma-
experincia-sublime-que-levou-ao.html.
201

contribuição.

Demonstrar o potencial dos elementos constituintes da manifestação do Cavalo Marinho (passos,


oralidade, música, corporeidade, etc.) como matrizes estéticas para o processo criativo do ator,
fomentar a pesquisa no âmbito das Artes Cênicas, especialmente das tradições de cunho popular e
propor a interação entre o conhecimento acadêmico e a cultura popular são objetivos principais
deste projeto. Além disto, está a valorização e divulgação do Cavalo Marinho de Mestre Zequinha
em Bayeux – PB, por meio da montagem de espetáculo teatral como resultado da pesquisa, e
apresentações deste junto a este grupo de dança popular. O que instiga, simultaneamente, o contato
da população espectadora com essa manifestação da cultura popular e o desenvolvimento do
processo de formação de platéia.

Também é fator motivador deste estudo a carência de pesquisas que relacionem o Cavalo Marinho
de Bayeux – PB ao trabalho do ator. Fator este que direciona minha atenção a importante
necessidade das artes, em especial as cênicas, em dialogar com manifestações populares na procura
de gerar novas interfaces de significação com o espectador. Esta prática procura evidenciar o
potencial de manifestações populares que carregam em si o poder da tradição, que é,
concomitantemente, mantido e resignificado por seus participantes no transcorrer do tempo e das
gerações.

Assim, a realização desta pesquisa e do espetáculo reflete a característica dos processos criativos
das artes cênicas na contemporaneidade que é a necessidade de dialogar com tradições populares, a
exemplo da CIA MundoRodá com o espetáculo “Donzela Guerreira”, da performance de Helder
Vasconcelos “Espiral: brinquedo meu” e do espetáculo “Gaiola das Moscas” do Grupo Peleja.
Espetáculos estes que utilizam como matriz estética o Cavalo Marinho típico da Zona-da-Mata
Norte pernambucana.

Considerando estas motivações propõe-se o presente projeto que visa pleitear bolsa de estudos, a
fim de auxiliar na viabilização do processo de pesquisa acerca da dança popular do Cavalo
Marinho coordenado por Mestre Zequinha em Bayeux – PB. Como resultado deste estudo
pretende-se a produção de espetáculo teatral, oferecendo uma ferramenta metodológico-técnica na
criação cênica que articula áreas diversas de conhecimento como dança, teatro, sociologia,
antropologia, potencializando o alcance destas informações e instigando novos processos de
pesquisa.

Em contrapartida ao FMC serão realizadas apresentações gratuitas do espetáculo nas sextas e


sábados do mês de Setembro de 2010 no teatro Armando Monteiro Neto – SESI Centro João
Pessoa, seguidas de apresentações do grupo de dança popular denominado Cavalo Marinho de
Mestre Zequinha. Além disso será oferecida oficina gratuita de vinte horas-aula no mesmo local,
acerca do processo de criação utilizado no espetáculo.

OBJETIVOS

GERAL:
202

Viabilizar, por meio de bolsa de estudos, pesquisa acerca das matrizes estéticas (passos, oralidade,
corporeidade, fisicidade, etc.) da dança popular do Cavalo Marinho da cidade paraibana de Bayeux
mestrado por Mestre Zequinha, observando possíveis contribuições deste ao trabalho do ator em
suas etapas de treinamento e composição do corpo-em-arte.

ESPECÍFICOS:

Montar espetáculo teatral a partir da pesquisa acerca do Cavalo Marinho de Mestre Zequinha;

Realizar 08 (oito) apresentações gratuitas do espetáculo nas sextas e sábados do mês de Setembro
de 2010 no teatro Armando Monteiro Neto – SESI Centro João Pessoa, sendo que aos sábados a
sessão será seguida de apresentação do grupo de dança popular denominado Cavalo Marinho de
Mestre Zequinha;

Realizar 24 (vinte e quatro) oficinas gratuitas de Cavalo Marinho na cidade de João Pessoa - PB,
ministradas por Mestre Zequinha, abertas ao público estudantil e geral;

Ministrar 01 (uma) oficina gratuita de com carga horária de 20 (vinte) horas-aula acerca do
processo de criação do espetáculo;

Auxiliar no processo de desenvolvimento da dissertação até então denominada “O entre do Carvão


ao corpo-em-arte de ator-brincante: Diálogos Corporais entre a brincadeira do Cavalo Marinho de
Mestre Zequinha em Bayeux – PB e os Processos Criativos/Formativos do Ator”, no Programa de
Pós-graduação em Artes Cênicas da UFRN;

Fomentar a pesquisa no âmbito das Artes Cênicas, especialmente das danças de cunho popular;

Propor a inteiração do conhecimento acadêmico e a cultura popular;

Demonstrar o potencial dos elementos constituintes do Cavalo Marinho de Mestre Zequinha


(passos, oralidade, corporeidade, fisicidade, etc.) como matriz estética para o processo criativo do
ator;

Valorizar as tradições populares em seus princípios e manifestações tradicionais;

Divulgar as danças populares, em especial o grupo de Cavalo Marinho mestrado por Mestre
Zequinha, por meio de montagem e apresentações do espetáculo;

Fomentar o desenvolvimento na formação de platéias, tanto teatral quanto da cultura popular;

Instigar o contato da população espectadora com manifestações da cultura popular.

INFORMAÇÕES GERAIS

LOCAL (IS) DE REALIZAÇÃO: Teatro Armando Monteiro Neto no SESI Centro João Pessoa.

DURAÇÃO DO PROJETO (em meses): 08 (oito) meses para a realização do projeto, estando estes
divididos em:
203

- 07 (sete) primeiros meses de ensaios para desenvolvimento da pesquisa e montagem de


espetáculo como seu produto final;

- No sétimo mês será criada a arte gráfica dos materiais de divulgação a serem
confeccionados neste mesmo mês;

- O sétimo e oitavo meses serão para a divulgação das apresentações;

- No oitavo mês ocorrerá a apresentação do espetáculo.

PÚBLICO-ALVO: Pretendemos alcançar estudantes do ensino fundamental e médio da rede


pública e particular de ensino, universitários, pesquisadores e estudantes das artes cênicas,
professores de teatro e dança, participantes de grupos de manifestações populares como o Cavalo
Marinho, além do público em geral. Classificação livre.

NÚMERO DE PESSOAS BENEFICIADAS: Estimamos um público de 200 pessoas por


apresentação, totalizando 1600 espectadores, além de 20 participantes da oficina.

OUTRAS FONTES DE FINANCIAMENTO E/OU INCENTIVO: Não possui.

ESTRATÉGIAS DE AÇÃO

1. Ensaio da montagem
Organizada em cinco ensaios semanais de quatro horas diárias esta etapa se
destinará ao trabalho específico em sala de ensaio, no qual se desenvolverá
o aperfeiçoamento do aprendizado das matrizes estéticas do Cavalo
Marinho e sua modelagem para outro contexto cênico que o tradicional e a
busca pela temática do espetáculo por meio de experimentações propostas
pelos atores. No decorrer deste trabalho serão observadas possíveis
contribuições das matrizes do Cavalo Marinho ao trabalho do ator em suas
etapas de treinamento e composição do corpo-em-arte. Pretendo observar
janeiro
estas contribuições tanto em meu próprio corpo como no de dois atores
pesquisadores que participarão desta pesquisa. à julho /2010
O aprendizado da dança popular do Cavalo Marinho será orientado
metodologicamente pela técnica de mimese corpórea, desenvolvida pelo
Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais da UNICAMP (LUME). Tal
método é composto por três etapas: observação, codificação e
teatralização;

 1ª etapa – observação: Consiste na observação ativa das qualidades


de movimento que compõe as matrizes estéticas da dança popular
do Cavalo Marinho. Observa-se ao mesmo tempo em que se repete
o passo, a postura, o tônus do corpo, as formas de utilização da voz,
enfim, se procuram os meios pelos quais se adquire o que identifica
a dança popular do Cavalo Marinho. Esta etapa está sendo realizada
desde o início da pesquisa em Março de 2009 com o intuito da
204

aquisição (memorização) da corporeidade típica do Cavalo Marinho


de Mestre Zequinha. Na etapa de montagem este aprendizado será
intensificado por meio do aumento de duas para quatro oficinas
mensais com Mestre Zequinha, mestre do cavalo marinho
pesquisado, juntamente aos quatro ensaios semanais de montagem
do espetáculo;
 2ª etapa – codificação: Nesta fase pretende-se codificar as ações que
compõe a corporeidade do Cavalo Marinho, a fim da construção de
matrizes, ações orgânicas codificadas, as quais formam o material
base da construção cênica. Nesta etapa o ator forma um repertório
pessoal de matrizes, estas por sua vez são denominadas, facilitando
assim seu manuseio.
 3ª etapa – teatralização: É o momento no qual transferiremos as
ações observadas do contexto do Cavalo Marinho para um novo
contexto cênico, organizando e modelando este material adquirido
nas etapas anteriores junto a experimentações temáticas, originando
assim o espetáculo. Nesta etapa também será definida, junto as
experimentações temáticas, a ocupação do espaço cênico, a
indumentária, a cenografia e a iluminação, este último junto a
profissional da área.
2. Oficinas de Cavalo Marinho com Mestre Zequinha
Consiste em oficinas de Cavalo Marinho, abertas a participação de todos os
interessados desde que previamente inscritos ou de comum acordo com o
ministrante, não superando o número de vinte participantes. Serão
janeiro
realizadas no teatro Armando Monteiro Neto no SESI Centro João Pessoa,
com mestre Zequinha, mestre do Cavalo Marinho pesquisado. Estas à junho / 2010
oficinas já estão realizadas mensalmente no município de Bayeux desde
março de 2009, quando iniciei a pesquisa para minha dissertação de
mestrado. Com o advento da bolsa pretende-se intensificar a frequência das
oficinas para semanais. Sua divulgação acontecerá no âmbito do público
universitário e de grupos de danças populares tradicionais, parafolclóricos e
público em geral.

3. Indumentária maio e junho / 2010


Pretende-se que a proposta de figurinos, objetos e adereços parta dos
atores, estando em sintonia com seu trabalho corporal e a proposta temática
do espetáculo, como também da indumentária Cavalo Marinho de Mestre
Zequinha.

4. Cenário junho / 2010


Trata-se da confecção do cenário do espetáculo decorrente da pesquisa
acerca do Cavalo Marinho de Mestre Zequinha, junto a experimentações
temáticas. Este material poderá se originar da cenografia característica da
dança do Cavalo Marinho pesquisada, a exemplo de suas figuras do “Boi”,
da “Burrinha” e demais elementos que compõe sua visualidade, como
também a partir de experimentações mesclando elementos do Cavalo
205

Marinho a propostas dos atores. Desta forma, o que se objetiva é que esta
proposta parta dos atores-pesquisadores envolvidos em um processo
colaborativo.

5. Iluminação julho / 2010


Trata-se da confecção da iluminação do espetáculo decorrente da pesquisa
acerca do Cavalo Marinho de Mestre Zequinha e as experimentações
temáticas. Pretende-se contratar profissional da área para elaborar o plano
de iluminação partindo das experimentações cênicas dos atores.

6. Confecção do material gráfico e divulgação do espetáculo julho e agosto /2010


Pretende-se divulgar a temporada gratuita do espetáculo nos principais
meios de mídia como rádio e impressos. Também serão divulgados em
escolas e universidades por meio de cartazes e filipetas a serem distribuídas
em atividades performáticas.

7. Apresentação do espetáculo e do Cavalo Marinho de Mestre agosto / 2010


Zequinha
O espetáculo teatral, produto final da pesquisa acerca das matrizes estéticas
do Cavalo Marinho de Mestre Zequinha, será apresentado gratuitamente no
teatro Armando Monteiro Neto do SESI Centro João Pessoa, nas sextas e
sábados do mês de setembro de 2010. A cada sábado, após a apresentação
do espetáculo, realizar-se-á uma apresentação do Cavalo Marinho de
Mestre Zequinha

8. Realização da oficina acerca do processo de criação do agosto / 2010


espetáculo
Será oferecida gratuitamente uma oficina de 20 (vinte) horas-aula nas
dependências do SESI Centro João Pessoa. Esta oficina visa oferecer uma
vivência acerca do processo de pesquisa que acarretou na montagem do
espetáculo, a fim de refletir sobre o processo de composição cênica
desenvolvido e oferecer ferramentas metodológicas descobertas no mesmo.

PLANILHA DE CUSTOS

Estrat Unidade de Nº Quanti Valor VALOR


égias Medida de dade
de DESCRIÇÃO DA DESPESA me Unitário TOTAL R$
Ação (descreva o tipo de serviço ou ses
(enu compra de material referente par
mere a estratégia de ação aa
de rea
acord liz
o açã
com o
206

a fl
IV)

1 Atores-pesquisadores Ator 07 02 R$ 300,00 4.200,00

1 Bolsa de estudos Direção 07 01 R$ 300,00 2.100,00

2 Oficinas de Cavalo Marinho Oficina 06 24 R$ 30,00 720,00


com Mestre Zequinha

3 Criação e Confecção de Material 01 01 400,00


Indumentária

4 Criação e Confecção de Material 01 01 400,00


Cenário

5 Criação e Operação de plano Serviço de 01 01 R$ 300,00 300,00


de Iluminação terceiros

6 Confecção de Cartazes Cartaz 01 1.000 R$ 0,55 550,00

Tam. 30x30cm

6 Confecção de Banners Banner 01 01 R$ 150,00 150,00

Tam. 100x150cm

6 Confecção de Filipetas Filipeta 01 1.030 R$ 0,13 134,00

Tam. 10x21cm

6 Confecção de marca textos Marca texto 01 1.200 R$ 0,20 240,00

6 Confecção de Programas Programa 01 1.200 R$ 0,225 270,00

Tam. A4

7 Apresentação do Cavalo Apresentaçã 01 04 R$ 400,00 1.600,00


Marinho de Mestre Zequinha o

a) SUBTOTAL desta planilha 11.064,00

b)RECURSOS DE OUTRAS FONTES - informe os valores em reais 00,00

c) VALOR TOTAL DO PROJETO (a + b) 11.064,00

PLANO DE DIVULGAÇÃO
207

Para divulgação do Projeto “O entre do Cavalo Marinho de Mestre Zequinha ao ator-brincante”, nos
utilizarei mecanismos diversos, procurando de maneira eficaz, tornar público as ações do projeto, bem
como o patrocínio da Prefeitura Municipal de João Pessoa, pelo Fundo de Municipal de Cultura. Para
tanto, precisaremos atingir esferas dentro e fora das comunidades onde se localizam os públicos-alvos
que pretendemos atender neste projeto, utilizando para tanto desde o corpo a corpo, até o serviço da
mídia impressa, falada e televisiva.

O primeiro contato para a divulgação deste projeto se dará mediante as oficinas abertas de Cavalo
Marinho ministradas por mestre Zequinha. Estas oficinas semanais ocorrerão nos primeiros seis meses
da pesquisa. Elas serão divulgadas através de convite, seja ele pessoal, por escrito ou por meio de cartaz,
junto ao público estudantil, em especial o universitário de cursos de licenciatura que trabalhem com o
corpo como profissionais de teatro, dança e educação física. Juntamente a isto se divulgará a ocorrência
destas oficinas a grupos parafolclóricos e pesquisadores de danças populares. O objetivo principal da
realização destas oficinas é, além da aquisição das matrizes estéticas corporais da dança popular do
Cavalo Marinho pelos atores-pesquisadores, tornar seus participantes agentes divulgadores diretos da
realização deste projeto, bem como das apresentações de seu produto final. Cada participante agirá como
um divulgador deste projeto em seu meio particular e profissional.

Outro meio de divulgação será próximo ao período das apresentações. Esta etapa compreenderá os
últimos dois meses do projeto. Nela os atores-pesquisadores distribuirão pessoalmente, em pontos
estratégicos de trânsito dos principais públicos que este projeto visa alcançar, o material gráfico com os
dias e horários das apresentações do espetáculo e do Cavalo Marinho de Mestre Zequinha. Este material
gráfico será composto de cartazes (tamanho 30x30cm, papel couchê 115g, impressão 4x1 cor) fixados
com fita dupla face em lugares estratégicos como teatros, universidades e escolas privadas e públicas da
rede municipal de ensino. Nesta ocasião os atores-pesquisadores farão performances de trecho do
espetáculo, auxiliando a divulgação do mesmo. Após cada performance de divulgação os atores-
pesquisadores distribuirão ainda filipetas (tamanho, 10,21cm, papel couchê 115g, impressão 4x0 cores)
das apresentações aos presentes.

Os programas (folder, tamanho A4, papel couchê 150 g, 4x4 cores, contendo as informações das peças
teatrais) serão entregues aos espectadores para que os mesmo conheçam o material dos espetáculos e
possam repassar as informações referentes à pesquisa, bem como do patrocínio cedido pelo Fundo
Municipal de Cultura.

Mandaremos semanalmente fotos, programa, cartazes e releases aos meios de comunicação, divulgando
as ações já realizadas e demais informações acerca do projeto, bem como de seu andamento. Tendo os
atores-pesquisadores preparados para oferecer entrevistas a jornais, rádios e tevês.

Antes de cada uma das apresentações previstas no projeto, distribuiremos programas e marca-textos
(colorido papel couchê 250g) aos espectadores presentes.

Tanto nas atividades de divulgação, quanto nas oficinas e apresentações do projeto será afixado o
banners do projeto (tamanho: 1,00 x 1,50 metros) em local visível e de fácil acesso, possibilitando a
leitura das informações ali impressas.
208

Em todo material gráfico: cartazes, programas, marca textos e banners; constará as logomarcas da
Prefeitura Municipal de João Pessoa e do Fundo Municipal de Cultura, garantindo assim a efetividade e
visibilidade merecida ao patrocínio a esse projeto de cunho social, artístico e educativo. Além disto, se
fará citação e agradecimento do incentivo antes e depois de cada apresentação, oficina ou atividade de
divulgação, bem como em entrevistas concedidas em mídia escrita ou falada.
209

DVDs

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