Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
ROSMANINHOS...
O ENTRE DO CARVÃO
AO CORPO-EM-ARTE
DE
ATOR-BRINCANTE
NATAL/RN
2011
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
DEPARTAMENTO DE ARTES
Rosmaninhos...
O entre do carvão
ao corpo-em-arte
de
Ator-Brincante
NATAL
2011
ALAN CARLOS MONTEIRO JÚNIOR
Rosmaninhos...
O entre do carvão
ao corpo-em-arte
de
Ator-Brincante
NATAL
2011
Catalogação da Publicação na Fonte.
Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA).
À minha orientadora, Prof. Dr.ª Teodora Araújo Alves, seu misto de simplicidade e
temperança mostraram o caminho do amor nas letras aqui contidas. Ao CNPq/CAPES e ao
PPGARC pelo apoio a esta pesquisa. A casa que tanto procurei a vida toda, coletivo UZUME
teatro, primeiro Clara Talha e Vitor Blam, agora mais Bertrand Araújo, Larissa Santana e a
nossa kogata Naiara Cavalcanti – minha família. A Tainá Macêdo, figurinista de
Rosmaninhos.... A artista Elisa Toledo, que me mostrou simplicidade nos primeiros passos da
pesquisa e na observação ativa do Cavalo Marinho Estrela de Ouro de Mestre Biu Alexandre,
a quem também agradeço por me mostrar o quão simples é a sabedoria da experiência. A José
Francisco Mendes, Mestre Zequinha, sempre disponível, alegre, vivo. A José Fernando de
Oliveira, Seu Nandinho da Cultura, sem o qual toda esta pesquisa não teria acontecido. A
Mestre Zé Hermínio rabequeiro e Mestre Antônio Bita pandeirista, pelo carinho e atenção. A
Helder Vasconcelos pela generosidade em dividir sua experiência. Ao professor Renato
Ferracini pelas mais variadas conversas e ideias. Ao professor Érico José de Oliveira cujo
livro e a presença em minha defesa abrilhantaram mais este escrito. Aos “Paraíba boy e girl”,
Antonio Deol e Ana Carolina Guedes - eternamente “mi cariño”, que repartiram suas ideias e
os trajetos entre João Pessoa – Natal. Sem você, Carol, esta dissertação não existiria. Aos
colegas de especialização e mestrado Rummenigge Medeiros, canalha, e Joevan Oliveira, que
gentilmente me abrigaram em Natal várias vezes. A Líllian da Cruz Régis, linda, eterno amor,
que compartilhou as vitórias e ajudou a superar várias inseguranças neste trajeto. À Maíra
Dutra, meu bebê, nosso reconhecimento me lança pra frente todos os dias, te amo!!! Aos
meus pais, Alan Carlos Monteiro e Helena Mercedes Monteiro, meu irmão, Célio Carlos
Monteiro, minha irmã, Mariza Carla Monteiro, meus sobrinhos, Israel Monteiro Mesquita e
Sophia Catharine Monteiro de Campos. A todos os meus Mestres e Professores responsáveis
por minha formação de artista-pesquisador. Aos Santos Reis do Oriente que me ajudaram no
caminho do amor e da dor destas experiências.
Entre
“O corpo-em-arte as coisas não
designa uma
é tão-só um conjunto de práticas” correlação
localizável Renato Ferracini – Curso “Conceituações sobre o corpo-em-arte
que vai de uma
para outra e reciprocamente,
mas uma direção perpendicular,
um movimento transversal
que as carrega
uma e outra,
riacho sem início nem fim,
que rói suas duas margens Há nesta
conjunção força
suficiente para sacudir e desenraizar o verbo ser
e adquire velocidade no meio.
Gilles Deleuze e Félix Guattari – Mil Platôs vol. 1
Proponho nesta dissertação refletir sobre as experiências contidas na criação dos corpos-em-
arte (FERRACINI, 2006a, b) que originaram o espetáculo rosmaninhos... Este processo foi
desenvolvido junto ao coletivo UZUME teatro de João Pessoa – PB, por meio de recriações e
resignificações das corporeidades e fisicidades contidas nos passos, loas, aboios, cantos e
coreografias observados nos modos como Mestre Zequinha brinca em seu grupo de Cavalo
Marinho residente na cidade de Bayeux – PB, e a partir da apropriação do texto Hamlet de
William Shakespeare. O corpo-em-arte é entendido neste trabalho como um corpo vetorial
que dilata sua funcionalidade cotidiana, reconhecendo uma zona potencial de aprendizado
capaz de gerar linhas de fuga criativas que desestabilizem o “sujeito centrado em uma
individualidade e identidade” (FOUCAULT apud FERRACINI, 2006b, p.14), abrindo-o à
diferenciação de si mesmo, indicando a possibilidade de existência de um si-outro e do espaço
de troca-em-arte. Este processo de construção do corpo-em-arte a partir das formas de Mestre
Zequinha brincar o Cavalo Marinho, foi orientado metodologicamente pela apropriação do
coletivo UZUME teatro das etapas de Observação, Codificação e Teatralização contidas na
técnica de mimeses corpórea proposta pelo LUME Teatro (Campinas – SP). Esse uso resultou
em duas fases: Observação Ativa e Composição do corpo-em-arte. Através da repetição destas
matrizes estéticas do Cavalo Marinho, os atores descobriram ações que, codificadas e
organizadas, configuram seus corpos-em-arte, os quais, por sua vez, deram origem a um
espaço de troca-em-arte vetorial ao encontrado no folguedo do Cavalo Marinho. Esta procura
propôs os meios de potencializar o trabalho dos atores no que diz respeito a uma preparação
que permitisse dilatar a presença cênica e estimulasse a produção de ações, as quais
culminaram na montagem do espetáculo Rosmaninhos...
I propose with this paper a reflection on the experiences contained in the creation of the body-
in-art (FERRACINI, 2006a, b) that originated the show Rosmaninhos... This process was
developed within the coletivo UZUME teatro from João Pessoa – PB, through recreations and
resignifications of the corporeity and physicality contained in the steps, loas, aboios, songs
and choreography observed in the manners that Mestre Zequinha plays in his group of Cavalo
Marinho (Sea Horse), resident in the city of Bayeux - PB, and starting from the appropriation
of the text Hamlet of William Shakespeare. The body-in-art is understood in this work as a
vectorial body that dilates its daily functionality, recognizing a potential learning area capable
to generate creative escape lines that destabilize the "subject centered in an individuality and
identity" (FOUCAULT apud FERRACINI, 2006b, p.14), being open to the differentiation of
itself, indicating the possible existence of an itself-other and of the exchange-in-art space.
This process of construction of the body-in-art based on Master Zequinha’s ways of playing
the Cavalo Marinho was methodically guided by the appropriation of the coletivo UZUME
teatro of the stages of Observation, Codification and Theatricalization contained in the
technique of corporal mimeses proposed by the LUME Teatro (Campinas - SP). That use
resulted in two phases: Active Observation and Composition of the body-in-art. Through the
repetition of these aesthetic matrixes of the Cavalo Marinho, the actors discovered actions
that when, codified and organized, can configure their body-in-art, which created a vectorial
exchange-in-art space to what was found in the Cavalo Marinho party. This search proposed
the means of potentiating the actors' work when it comes to a preparation that allowed to
dilate the scenic presence and stimulated the production of actions, which culminated in the
mounting of the show Rosmaninhos...
FIGURA 01 – Evolução dos arcos com galantes do grupo de Boi de Reis Estrela do Norte. 36
FIGURA 02 - Mestre Pirralhinho, à esquerda e, à direita, Mestre Zequinha......................... 38
FIGURA 03 – Figuras do Mateus do Boi de Reis Estrela do Norte de Mestre Pirralhinho e o
Mateus e o Birico do Cavalo Marinho de Mestre Zequinha.................................................... 38
FIGURA 04 - Mestre Zequinha segurando a Zibumba ou Macaca; instrumento da figura do
Mateus e do Birico................................................................................................................... 44
FIGURA 05 - – Mestre Martelo, o Mateus do Cavalo Marinho Estrela de Ouro, e
Mateusinho, a nova geração deste folguedo............................................................................ 44
FIGURA 06 - Figuras do grupo de Cavalo Marinho de Mestre Zequinha............................. 49
FIGURA 07 - Dois passo ou Passo só, passo da dança do Cavalo Marinho.......................... 51
FIGURA 08 - Trupé Balanço com calcanhar.......................................................................... 51
FIGURA 09 - Trupé Balanço com ponta de pé....................................................................... 51
FIGURA 10 - Xaxado............................................................................................................. 52
FIGURA 11 - Tesoura de joelho............................................................................................. 52
FIGURA 12 - Abdominais e flexões estáticas trabalhados..................................................... 90
FIGURA 13 - As atrizes Larissa Santana e Clara Talha do coletivo UZUME teatro
participando de apresentação do Cavalo Marinho de Mestre Zequinha.................................. 92
FIGURA 14 - Minha interpretação do processo de composição do corpo-em-arte a partir do
proposto por Renato Ferracini.................................................................................................. 96
FIGURA 15 - Acolhimento do público em Rosmaninhos... Experimentação de espaço:
bosque da UFPB..................................................................................................................... 120
FIGURA 16 - Participação do público na cena das Bodas de luto em Rosmaninhos...
Experimentação de espaço: bosque da UFPB........................................................................ 122
FIGURA 17 – Legenda feita por Daniella Gramani de toques de rabeca............................. 126
FIGURA 18 – Ilustração de Daniella Gramani de como fazer uma partitura seguindo a
posição dos dedos................................................................................................................... 127
FIGURA 19 – Mestre Zequinha em apresentação no lançamento do CD Cavalo-marinho e
boi-de-reis na Paraíba. Abaixo, preparação do elenco de Rosmaninhos................................ 128
FIGURA 20 – Ocupação espacial do Cavalo Marinho de Mestre Zequinha........................ 129
FIGURA 21 – Cena final de Rosmaninhos... 2° Experimentação com espaço: Teatro Cilaio
Ribeiro.................................................................................................................................... 132
FIGURA 22 – Cena inicial de Rosmaninhos... 1° Experimentação com espaço:
Córrego............................................................................................................................... 132-3
Começo. Parece que sempre a parte mais difícil é começar. Vários fatores
parecem me impedir de compor este corpo-em-arte. Eu mesmo pareço me impedir.
Desejo construí-lo com a mesma redundância que parece preparar a explosão do
acontecimento nas manifestações populares. Não entremos em detalhes, pelo menos não
por agora – é preciso começar. Mesmo quando se atinge o que acredito ser o principal
agenciamento – a prontidão, o estar decidido – falta escolher o onde; por qual lugar
começar? Decido, então, delinear as cartografias da atualização de meu passado no
presente do corpo que ao mesmo tempo é minha propriedade e sou eu. Talvez esta
decisão proponha uma narrativa enfadonha para o leitor, mas prometo não me delongar
sobre ela. É necessário me colocar neste escrito! Logo, o primeiro movimento: sou ator.
Esta designação de ser é muito importante para minha vida hoje. Passei muitos anos em
estado de dúvida, em uma espécie de espaço de entre, de estar como ator.
Sempre estudei em colégios particulares, exceto quando fiz a seleção para a
ETFPB, Escola Técnica Federal da Paraíba, seguindo um tipo de tradição de família;
meus irmãos mais velhos estudaram lá e minha mãe, desde o começo dos anos noventa,
trabalhou nesta instituição até se aposentar. Cursei entre os anos de 1998 e 2000 o
técnico em Mecânica Industrial. Foi ali onde, quase que por acidente, tive meu primeiro
contato com o universo teatral. As aulas de arte eram oferecidas somente no primeiro
ano. Escolhiam-se várias linguagens artísticas e, dentre elas, diferentes modalidades.
Minha intenção era fazer aulas de violão, mas não foram ofertadas naquele primeiro ano
de meus estudos, todavia, nos anos que seguiram, optei por continuar fazendo parte do
grupo de teatro da Escola Técnica.
No decorrer de meus estudos no curso Técnico em Mecânica Industrial, e
paradoxalmente graças a eles, comecei a fazer, cada vez mais, parte do universo do
teatro. Ao final de meu ensino médio, fiz talvez a opção mais natural para quem cursou
o técnico em Mecânica: prestar vestibular para o curso de Engenharia Mecânica na
Universidade Federal da Paraíba – UFPB. Cursei quatro anos deste curso. Nesse meio
tempo, saí do teatro estudantil e ingressei num grupo amador denominado TENDA –
12
Neste tempo tive aulas misturadas, como de Cálculo II seguidas de História e Estética
da Arte I. Até então tinha participado de peças, cursos e oficinas, ou seja, vivia o fazer
teatral, mas não lia nada sobre ele, a não ser textos teatrais. Minha teoria era a prática a
qual vivenciava.
Chego num ponto crucial de minha história. Neste imbricamento, torna-se
importante esclarecer ao leitor sobre o que já expus, tentando, assim, evitar mal-
entendidos. Meu intento em delinear minha trajetória no fazer artístico não teve por
objetivo incitar pena ou frases do tipo: “Coitadinho, sofreu tanto, mas conseguiu fazer
teatro!”. Este tipo de escrita pode tender a um romantismo que fere o rigor e a
objetividade exigidos no texto acadêmico. O que almejo narrando esta história é me
colocar neste escrito na forma da memória do corpo que sou, de modo a fazer parte
direta deste corpo-em-arte. Proponho ou, ao menos, tento desenhar a trajetória de meu
desejo e as cartografias de seus agenciamentos pois “não há desejo que não corra para
um agenciamento. O desejo sempre foi para mim, se procuro o termo abstrato que
corresponde a desejo, diria: é construtivismo. Desejar é construir um agenciamento,
construir um conjunto, conjunto de uma saia, de um raio de sol...” (DELEUZE, 1988,
p.15).
Continuemos. Ao terminar a graduação em Educação Artística, tinha-me tornado
o que meu mundo permitiu e que, de certa forma, também desejava: um artista
acadêmico. Passado um mês após minha colação de grau, fiz a seleção para o curso de
especialização em Representação Teatral oferecido pelo Departamento de Cênicas da
UFPB, tendo sido aprovado.
Este curso era organizado em disciplinas modulares, ministradas em seis dias
seguidos, com quatro horas de duração cada uma. Nele tive aulas com Prof.° Dr.°
Renato Ferracini, ator-pesquisador do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais da
Universidade de Campinas – SP - LUME Teatro UNICAMP, que ministrou a disciplina
Treinamento Técnico do Ator, em que tive contato com uma prática diferenciada de
reflexão sobre o fazer teatral proposta pela arte de ator, idealizada primeiramente por
Etienne Decroux e assumida no trabalho de Luís Otávio Burnier, fundador do LUME
Teatro:
artista, do “ser ator”. E não à arte do ator, pois ela não lhe pertence,
ele não é seu dono, mas é quem a concebe e realiza (BURNIER, 2001,
p.18, grifos do autor).
1
Brincadeira é como mestres e participantes de tradições populares, a exemplo do Cavalo Marinho,
denominam suas práticas. Daí o nome de Brincante ou Brincador (TENDERINI, 2003) dado a seus
praticantes.
15
ator sobre seus próprios limites e capacidades. Esta prática objetiva que o artista
identifique seus bloqueios de maneira a poder trabalhar e intensificar seu potencial
criativo e expressivo.
Como Grotowski indica, em primeira instância encontra-se o que não se deve
fazer. Um exemplo: se desejo trabalhar o alongamento de minha coluna objetivando
uma acrobacia, devo realizar exercícios que permitam encontrar os bloqueios que me
impedem de realizar tal manobra, percebendo então o que não devo fazer durante o
próprio exercício encontro seu objetivo: onde as mãos não devem posicionar-se, como o
tronco não deve curvar-se, etc. Assim, o acerto será uma decorrência do encontro das
formas de como não se fazer os exercícios. Entretanto, se o problema é o medo que
sinto de cair, como encontrar os meios de trabalhar minha confiança? Estas descobertas
podem ser pessoais e não mostrarem caminhos a outras pessoas, todavia, isto não
configura uma regra. Desenvolver uma busca pessoal e corporal, sem subjetivações ou
justificativas fabulares, por caminhos que possam gerar uma funcionalidade particular
do corpo-mente que sou:
2
Carla Martins é atriz e preparadora corporal natural da cidade do Recife – PE, onde participou do Balé
Popular de Pernambuco. Possui bacharel em Artes Cênicas com Habilitação em Interpretação Teatral pela
UNIRIO. No ano de defesa desta dissertação, ela ingressou no mestrado em Artes Cênicas da UFRN. Para
mais informações sobre a oficina A Arte do Brincante, acessar: http://ser-taoteatro.blogspot.com/2008/02/
uma-experiencia-sublime-que-levou-ao.html, visitado em 23/10/2008.
18
quanto os encontrados nas danças populares abordadas. Dito de outra forma, existe um
processo de modelagem da frase coreográfica, principalmente quando justaposta ao
fragmento de texto, gerando um fluxo de significados imprevistos pela lógica naturalista
de ações e pela composição tradicional das danças populares trabalhadas, surgindo uma
terceira organização originada pelas imbricações e modelagens entre texto e ações.
É a partir do olhar distanciado temporalmente sobre as experiências adquiridas
no curso de Iniciação à Pesquisa Teatral – Módulo I e na oficina A Arte do Brincante,
que começo a observar elos de ligação entre a prática apresentada por Renato Ferracini
durante o curso de especialização na UFPB e a do Cavalo Marinho. Percebo na junção
desses conhecimentos a possibilidade de existir um nível operativo na arte de ator, que
objetive sua formação e a composição do corpo-em-arte a partir de dinâmicas à primeira
vista externas, como os detalhes contidos no desenho dos passos de dança do Cavalo
Marinho. Este processo auxiliará ao mesmo tempo, num desenvolvimento técnico e
energético. Metodologicamente, a forma do passo e seu desenho podem ser entendidos
como a fisicidade de uma ação. Seguindo o entendimento de alguns teóricos do fazer
teatral como Constantin Stanislavski, é através do físico que o ator chega a trabalhar o
interno, a energia de sua presença que se irradia no exterior.
3
Tradução minha: “[...] Órgon busca a Mariana para obligarla a firmar el contrato matrimonial, mientras
que Elmira, Cleanto y Dorina se resisten a ello. ¿Cuál es La acción física de esta escena? [...] No me
hablen de sentimientos que no se pueden fijar. Lo único que se puede recordar y fijar es la acción física.
Em este caso tal acción se puede definir com La palabra „esconder‟. Ustedes tienen que ocultar a Mariana
Del cruel padre. Es lo que tienen que hacer. ¿Cómo lo harán? Si quisiéramos echar mano de um clichê
teatral, este sería: cubrirla com su cuerpo, con las manos atrás, la mirada alarmada, etc., pero no se qué
calidad creadora tendría esto. Lo importante aqui es „esconder‟.”
19
4
Procurarei me deter mais adiante no entedimento de fisicidade e corporeidade da brincadeira do Cavalo
Marinho utilizado neste trabalho. Por enquanto, é necessário deixar claro que estas dimensões de uma
ação estão interligadas e que a partir de uma pode-se chegar à outra. É nesta relação que acredito estar
contido “um „instante de verdade‟, quando os opostos se abraçam” (BARBA, 1994, p.15, grifos do autor).
5
A ligação entre individuo e sociedade gerando afetos e criando mecanismos de identificação será
abordada no tópico Observando o foco da pesquisa: o corpo do Cavalo Marinho de Mestre Zequinha,
quando elencarei os motivos que levaram à escolha do foco desta pesquisa.
20
Alguma coisa como unidade superior a toda coisa, nem Sujeito como
ato que opera a síntese das coisas: é quando a imanência não é mais a
imanência que a outra que não ela mesma, que podemos falar de um
plano de imanência. [...] diremos da pura imanência, que ela é UMA
VIDA, e nada mais. Ela não é a imanência à vida, mas a imanência
não está em nada e é em si mesma uma vida (DELEUZE apud
CARDOSO, 2007, p.11).
dançá do jeito que se quisé, depois que se aprende os passo!” 6. Que passos poderiam
surgir neste intento? Assim, procuro me valer do entendimento de potência como “uma
capacidade de diferenciação”7.
A própria Imanência nos oferece uma constituição que pode dar vazão a fendas
de luz, de fôlego à vida cotidiana, desdobrando e ampliando o potencial de ação por
meio de uma relação poética de sensações e intensidades comuns à troca-em-arte. Vista
deste modo, a composição do corpo-em-arte se caracteriza mais por uma postura do que
por uma fórmula. Assim pode-se entender o corpo-em-arte por um conjunto de práticas
das quais o artista se vale para descobrir e organizar seus materiais de trabalho e, desta
forma, configurar um espaço de troca-em-arte.
É este corpo-em-arte que propõe os discursos do ator e, ao mesmo tempo, em
que é anterior aos outros discursos da cena (luz, cenário, fábula, outro ator, entre
outros), prevê estas interações de forma potencial. Sua composição procura uma
capacidade de diferenciação em contato com os demais elementos da cena. Por fim, o
corpo-em-arte é um construto potencial formulado pelas ações descobertas e
organizadas pelo ator. Ele procura não negar o corpo em comportamento cotidiano, mas
buscar vetores a partir de sua própria constituição imanente, a fim de abri-lo,
desestabilizá-lo, colocá-lo em uma zona turbulenta de contaminações e afetos na qual
ele possa gerar e propor significados.
Experiência – é disso que quero falar nesta Dissertação. Por isso trato de minha
trajetória, até o momento, por acreditar que ela está presente na formulação deste
intento. Ela é esse eterno devir presente que oferece a esta dissertação um tempo que
logo se configurará em memória passível de atualização.
Entendo por experiência, “o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca.
Não o que se passa, não o que acontece, ou que toca” (BONDÍA, 2002, p.21). Para se
produzirem novos conhecimentos ou se reorganizarem elementos já conhecidos é
preciso uma passividade, como a que se refere o filósofo da educação Jorge Larrosa
Bondía (2002) quando trata do sujeito da experiência, definindo-o
6
Fala de Mestre Zequinha em aula proferida em aula de Cavalo Marinho ministrada em julho de 2010 no
Theatro Santa Roza em João Pessoa – PB.
7
Fala proferida pelo Prof. Dr. Renato Ferracini no curso “Conceituações sobre o corpo-em-arte”
ministrado em fevereiro de 2010 em ocasião dos “Cursos de Fevereiro” oferecidos pelo LUME Teatro.
23
[...] não por sua atividade, mas por sua passividade, por sua
receptividade, por sua disponibilidade, por sua abertura. Trata-se,
porém, de uma passividade anterior à oposição entre ativo e passivo,
de uma passividade feita de paixão, de padecimento, de paciência, de
atenção, como uma receptividade primeira, como uma disponibilidade
fundamental, como uma abertura essencial (BONDÍA, 2002, p.24).
É sobre esta passividade feita de paixão que quero refletir aqui. Neste sentido,
proponho-me a ser bígamo, entendendo esta como uma metáfora, figura poética
imprescindível ao teatro. “Eu sou bígamo. Existo em uma casa que é feita do vivido, do
convívio com os atores, da prática. Outra é onde tento traduzir em signos esta prática
sobre uma folha branca. Esta casa é a da teoria”8.
O artista que propõe ser acadêmico como, no meu caso, significa ser um ator que
procura elos de ligação, o espaço de entre da prática à teoria9. Isso não significa que
atores não-acadêmicos deixem de realizar esta ligação, mas é perceber que eles a fazem
de forma diversa – eles teorizam a partir da própria prática. Não se trata de eleger juízos
de valor em detrimento de um ou outro tipo de artista, mas localizar seus territórios e
fazeres para poder explorá-los e até mesmo fissurá-los. É perceber estes espaços de
teorias e práticas não como territórios de necessidade, mas fluxos regidos por
funcionalidades e desejos.
Teorizar, então, configuraria uma traição ao pensamento monogâmico que
divide atores entre práticos e teóricos, acadêmicos. Todavia, esta traição de uma ou
outra casa torna-se tanto uma ação extremamente necessária, quanto impossível, pois
“as palavras, enquanto signos, vazam nelas mesmas, gerando circularidades, espaços,
fendas e traços de diferença e ausência [...]” (FERRACINI, 2006a, p.59).
É o fluxo, as velocidades e intensidades que não permitem dissociar pensamento
enquanto corpo e vice-versa, em que acontece a propagação da experiência vivida.
Algumas maneiras de estruturar o pensamento podem-se considerar excludentes e, por
conseguinte, formarem momentos separados entre os processos do corpo, do agir, e do
pensar, da racionalização. É aqui que acredito residir a diferença entre trabalhos. É
8
Anotação de Fala proferida por Eugênio Barba em palestra na ocasião do centenário do Teatro José de
Alencar, Fortaleza – CE, 28/11/2009.
9
Anotação feita em ocasião do curso “Conceituações sobre o corpo-em-arte”, ministrado por Renato
Ferracini, em 12/02/2010, dentro da programação dos Cursos de Fevereiro oferecidos pelo LUME Teatro,
Barão Geraldo – Campinas – SP.
24
procurar onde o corpo pensa10. É encarar corpo e mente, ao mesmo tempo, uno e inter-
relacionados, e que possam ser distanciados didaticamente para dizer, refletir e criar um
com o outro e um para o outro.
A partir do curso de Iniciação à Pesquisa Teatral – Módulo I e da oficina A Arte
do Brincante, pude perceber os meios pelos quais o ator pode gerar mecanismos que
permitam potencializar seu trabalho, através de sua identificação com determinada
prática que o afete de maneira latente.
O contato que tive com diferentes formas de pensar o fazer teatral e as
experiências adquiridas nas duas vivências que descrevi acima me auxiliaram na
formulação do projeto de mestrado do qual esta dissertação é fruto. Como proposta,
busquei pesquisar o que estou entendendo como as corporeidades e fisicidades
encontradas no brincar do Cavalo Marinho praticado por Zequinha (Bayeux – PB). O
objetivo principal foi experimentar um processo de apropriação dessas matrizes
estéticas que, ao mesmo tempo, dilatasse a presença dos atores e trabalhasse os
elementos técnicos de suas ações como precisão, equilíbrio, oposições, dentre outros.
Este processo também teve o intento de desdobrar os elementos pesquisados do Cavalo
Marinho (passos de dança, coreografias, cantos, loas e aboios), com o objetivo de
estimular o ator na descoberta de ações, as quais possibilitassem a composição do
corpo-em-arte.
Esta prática surge no reduto do como abordar um fazer que carrega em si
intensidades e perícias capazes de transbordar a constituição do corpo cotidiano,
forçando-o a se re-colocar, a se repensar enquanto forma, funcionalidade e, no caso do
artista cênico, criação. Prática esta como a encontrada no Cavalo Marinho dançado por
Mestre Zequinha.
Este transbordamento da vida de modo intensivo visa a um processo de
diferenciação, de fôlego cotidiano, vislumbrando formas de como vetorizar o corpo em
sua formação originada na disciplina exigida pela funcionalidade cotidiana. Desta
forma, visualizo os passos de dança, as posturas das figuras, suas falas, cantos, como
ações orgânicas e codificadas possuidoras de corporeidades e fisicidades, características
que compõem essa dança popular, manifesta nos modos de Mestre Zequinha brincar,
seja no decorrer do folguedo ou em demonstrações individuais. A corporeidade não é
10
Idem.
25
é como a fonte orgânica de material do ator, à qual ele poderá recorrer, sempre que
desejar, para a construção de qualquer trabalho cênico. A matriz é a própria ação
física/vocal, viva e orgânica, codificada” (FERRACINI, 2003, p.116).
Este léxico pode ser usado tanto num caráter de preparação, de trabalho do ator
sobre si mesmo – pré-expressividade (BARBA, 1995), quanto de forma a auxiliar o
processo de criação cênica. Estando os atores munidos desta bagagem técnica, são
realizadas experimentações junto a um texto, o quê se deseja encenar, permitindo que
este funcione como estímulo para a modelagem das matrizes, estando tanto o encenador
quanto os atores atentos às proposições discursivas que esta junção pode oferecer na
composição do corpo-em-arte.
Inspirado no processo criativo trabalhado por Carla Martins já relatado no inicio
desta dissertação, procurei um referencial técnico que me orientasse no trabalho com a
aquisição e modelagem de ações. Ao observar na brincadeira do Cavalo Marinho a
existência de variações de fisicidades e corporeidades, comecei a observar a
possibilidade de um paralelo entre o proposto pela ministrante da oficina, A Arte do
Brincante, e a técnica de mimeses corpórea desenvolvida pelo LUME Teatro, também
conhecida como “imitação de corporeidades” (BURNIER, 2001, p.181). A técnica de
mimese corpórea desenvolvida em pesquisas do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas
Teatrais da UNICAMP – LUME Teatro, prevê, didaticamente, as etapas de Observação:
“trata-se, sobretudo de uma observação ativa, ou seja, uma observação imitação” (op.
cit., p.186), Codificação: “uma vez transferidas para o corpo do ator as ações
observadas, inicia-se um processo de memorização e codificação dessas ações” (op. cit.,
idem.) e Teatralização: estando codificadas as ações físicas e vocais orgânicas
(matrizes) “são retiradas do contexto que as originou, transformando-se, como vimos,
em materiais ou objetos de trabalho. [...] „Trabalhar uma ação‟ significa operar
pequenas alterações em elementos componentes dessa mesma ação” (op. cit., idem.).
A técnica empregada pelos brincantes do Cavalo Marinho, mais
especificamente, a forma como Mestre Zequinha realiza sua performance, parte da
incorporação de determinados princípios contidos em suas codificações, os quais
permitem uma liberdade para improvisar como um ponto de partida para a
multiplicidade que compõe este brinquedo popular. A mimeses corpórea orienta em
como se observarem estes princípios a fim de incorporá-los. Ela chama a atenção para
os elementos contidos na fisicidade que por sua vez direcionam para a composição da
27
Rosmaninhos..., fruto das imbricações entre esta pesquisa sobre o Cavalo Marinho
brincado por Mestre Zequinha e a apropriação do texto shakespeariano, a qual teve
origem através da utilização dos conceitos filosóficos de Memória em Henri Bergson e
Virtualidade proposto por Pierre Lévy. Neste tópico, viso, também, relativizar o
desenvolvimento da encenação, mediante a procura da intertextualidade dos discursos
propostos no texto dramático e nos da dança do Cavalo Marinho.
No último território desta dissertação, O entre do carvão ao corpo-em-arte de
Ator-Brincante, tento relatar alguns dos conhecimentos adquiridos durante a pesquisa e
proponho a explicação do título desta dissertação, procurando ligar os caminhos
experienciados no decorrer deste estudo. A utilização corporal de Mestre Zequinha, seu
dançado no decorrer da manifestação, produz seu corpo-em-arte condizente com a
brincadeira, através do qual vislumbro um processo potencial de identificação capaz de
instigar o ator que sou na composição do corpo-em-arte. Este fazer propõe o trabalho de
Ator-Brincante, que se caracteriza pela utilização de princípios existentes tanto no
universo do teatro como no da brincadeira.
Nos Apêndices deste trabalho estão contidos anotações, feitas por mim, das
ações dos atores e dos ensaios do coletivo UZUME teatro, o processo de adaptação do
texto de Shakespeare, passando por escolhas para o nome do espetáculo; Experimento
Hamlet, Brinquedo de Hamlet, até o nosso Rosmaninhos... Também estão incluso dois
DVDs. O primeiro com vídeos das aulas com Mestre Zequinha, assim como fotografias
e vídeos das experimentações do coletivo UZUME teatro, referentes tanto ao processo
de descobrimento e modelagem de ações, como sobre as possibilidades de exploração
do espaço. Também se encontra nesse DVD uma gravação do espetáculo
Rosmaninhos... em sua versão trabalhada até a defesa desta dissertação, e os desenhos
dos croquis do processo de criação dos figurinos feitos por Tainá Vasconcelos. No
segundo DVD existe uma colagem de apresentações do Cavalo Marinho de Mestre
Zequinha, feita pelo professor Agostinho Lima, a qual tenta oferecer uma ideia sobre a
composição da brincadeira.
Para finalizar este começo resta agora tocar no conceito que fundamenta a
estrutura desta dissertação: o Território. Aqui ele é visto para além do espaço possuidor
de fronteira. É o lugar das diferenças de potencial que conectam sujeitos e objetos,
dando direção a suas cartografias – fluxos não cristalizados que se reorganizam segundo
demandas funcionais. O Território é zona de diferenciação em si mesmo onde a
31
12
Fala de José Fernando “Seu Nandinho da Cultura” quando me levou em sua pampa 86 para conhecer
Mestre Zequinha, Bayeux – PB, 28/02/2009.
33
apontam como sendo irmã ou esposa de ambos ou amante de um deles que o trai com o
outro.
Esta manifestação surge na periferia da cultura da cana-de-açúcar e, assim como
o maracatu rural, representa o cotidiano e o imaginário dessa comunidade. Sua data de
encontro festivo é o dia 25 de dezembro, nascimento de Jesus Cristo, e dia 06 de
janeiro, Dia de Reis, demonstrando uma natureza sincrética com o cristianismo. É
devido a esse fato que alguns autores, como Agostinho Lima (2010), consideram o
Cavalo Marinho um reisado. Provavelmente devido à classificação de Mário de
Andrade (1993) para os folguedos populares do Ciclo Natalino, subdividindo-os em:
Bailes Pastoris, Cheganças e Reisados: “O Cavalo Marinho encontra-se entre os
Reisados de inspiração muito variada e caracterização pela sua constituição em um
único episódio, e que serve de fecho obrigatório ao Bumba-meu-boi” (ANDRADE,
1972, p.193, grifos do autor).
O Cavalo Marinho possui várias figuras que são uma espécie de personagens
deste folguedo, as quais são divididas, segundo Andrade (1972), entre seres fantásticos,
animais e humanos. Estas são caracterizadas por uma armação que o brincante veste,
ficando todo ou parcialmente coberto, ou por máscaras e figurinos. Uma apresentação
deste brinquedo pode ter duração de doze horas, divididos no que podemos considerar
atos ou quadros, selecionados pelo Mestre entre seu repertório de conhecimento de
acordo com as capacidades dos brincantes participantes de seu grupo e o interesse do
público. Estão registrados em bibliografias especializadas, como Andrade (1972 e
1981), aproximadamente 63 atos constituintes desta dança. Todavia, alguns quadros e
figuras estão presentes na maioria de suas apresentações, como
13
Para mais informações sobre possíveis origens deste brincar e de sua denominação, consultar as
referências, especialmente em ASCLERAD, Maria. “Viva Pareia!” – a arte da brincadeira ou a beleza
da safadeza – uma abordagem antropológica da estética do Cavalo-Marinho. Dissertação de
mestrado em Sociologia e Antropologia – IFCS-UFRJ e orientada pela Prof. Dra. Elsje Maria Lagrou,
aprovada em julho de 2002.
36
No entanto, é um fato que este folguedo é marcado pelas entradas e saídas das
figuras que possuem encenações com coreografias, passos, textos e músicas próprias.
Além disso, existe no Cavalo Marinho os galantes: coletivo de dançarinos que realizam
danças em cordões, comandado pela figura do Capitão Marinho e cujo momento
principal é a coreografia com arcos.
Figura 01 – Coreografia dos arcos feita pelo cortejo de galantes do grupo de Boi de Reis Estrela do Norte.
Foto: Líllian Régis. Lançamento do CD Cavalo marinho e boi-de-reis na Paraíba, Bayuex – PB, 2010.
14
Encarte do CD Cavalo Marinho e Bois de Reis na Paraíba, produzido por Prof.° Dr.° Agostino Lima
do Departamento de Música da UFRN, com patrocínio do Programa Petrobrás de Cultura 2010.
37
Érico José Souza de Oliveira (2006) aponta o Cavalo Marinho como sendo uma
manifestação de caráter espetacular, a qual é vetorial à teatralidade repetitiva do
cotidiano. Assim, é possível perceber a relação de retroalimentação entre esses
conceitos na citação abaixo de Armindo Jorge Bião:
Figura 02 – Mestre Pirralhinho, à esquerda e, à direita, Mestre Zequinha. Foto: Líllian Régis. Lançamento
do CD Cavalo marinho e boi-de-reis na Paraíba, Bayuex – PB, 2010.
Figura 03 – À esquerda o Mateus do Boi de Reis Estrela do Norte. Ao centro e à direita o Mateus e o
Birico do Cavalo Marinho de Mestre Zequinha. Foto: Líllian Régis. Lançamento do CD Cavalo marinho
e boi-de-reis na Paraíba, Bayuex – PB, 2010.
39
Podemos deduzir pela fala deste mestre que a manifestação do Cavalo Marinho
como é praticada pelo grupo de Mestre Zequinha possui influência da manifestação do
Boi de Reis encontrada na Paraíba, como me confirmou por diversas vezes Seu
40
Nandinho da Cultura: “Nós somos o único grupo de Cavalo Marinho que é uma variante
do Boi de Reis”. Falas como esta entram em concordância com a citação de Mário de
Andrade (1972) proposta no terceiro parágrafo deste tópico.
A expressão do Cavalo Marinho encontrada no estado de Pernambuco possui
várias diferenças da encontrada na Paraíba. A fim de tecer alguns exemplos me valho da
composição do primeiro grupo que conheci: o Cavalo Marinho Estrela do Norte de
Mestre Biu Alexandre da cidade de Condado localizada na Zona da Mata
pernambucana.
Em síntese, este grupo inicia sua brincadeira com o jogo de mergulhão entre os
brincantes, seguido da chegada da Figura do Mestre Ambrósio para vender ao Capitão
Marinho as figuras danadas de boas do Cavalo Marinho. Depois temos a contratação
dos negros escravos Mateus e Bastião para tomar conta e dar conta da festa durante a
viagem do Capitão Marinho. Algumas figuras aparecem até o retorno do capitão, como
o Empata Samba, o Guarda da Guarita, Seu Mané do Baile, e outras dependendo do
tempo da brincadeira e da disponibilidade de figureiros, como são chamados os
brincantes que possuem experiência para botar uma figura.
Tem-se o retorno do Capitão Marinho com seu cortejo de galantes. Em seguida,
existem alternâncias entre os quadros que se colocam devido as escolhas de Mestre Biu
Alexandre ou dos brincantes. Pude observar que isto acontece por vários motivos: se o
tocador, principalmente o rabequeiro, sabe as músicas de tal figura ou se as figuras
couberam no transporte. Existe a possibilidade do grupo não possuir o brinquedo da
figura, como é o caso das de animais e de algumas fantásticas que possuem armações ou
fantasias mais complexas que as mascaradas. O público também influencia na ordem de
entrada das figuras, uma vez que o Mestre, utilizando sua experiência em perceber o
desinteresse das pessoas que o assistem, altera a entrada dos quadros da brincadeira. O
que é possível observar neste grupo, como nos demais de Pernambuco, é que “depois da
última figura da noite que, geralmente, mas não obrigatoriamente, é o Boi, o grupo se
despede do público entoando canções de despedida e o „Viva!‟, uma espécie de
agradecimento e de exaltação ao desenrolar da noite de festa” (OLIVEIRA, 2006, p.457,
grifos do autor).
Percebo desta maneira que nas manifestações pernambucanas do Cavalo
Marinho existe a predominância de figuras mascaradas, fato que demonstra uma perícia
diferente ao Brincante. Com isso começo a entender o que Mestre Zequinha quer dizer
41
quando fala: “no interior [zona rural] tem dança melhor que a minha, mais avexada,
porque lá eles brincam mais”15. Talvez se referindo a manifestações como a do Cavalo
Marinho Estrela de Ouro, no qual ainda existe o costume de realizar a brincadeira de
forma mais longa, chegando a ter doze horas de duração.
No Cavalo Marinho de Mestre Zequinha é comum serem realizadas
apresentações nas festas da cidade, em congressos, feiras, festivais, enfim, em eventos
que solicitem a presença do grupo junto a Seu Nandinho da Cultura, que é reconhecido
como recursos humanos deste Cavalo Marinho, como ele mesmo e os demais
integrantes o denominam. Estas apresentações geralmente são de curta duração, entre
vinte minutos e uma hora. Até mesmo numa festa de aniversário de alguém da
comunidade à qual pertence este Cavalo Marinho, onde o grupo não tem
necessariamente limite de tempo para a brincadeira nem cachê a não ser o comum
lanche, a brincadeira dificilmente ultrapassa a duração das apresentações descritas
anteriormente.
O que percebo é um costume entre os Brincantes dessa manifestação. Eles estão
acostumados a uma brincadeira de duração limitada, o que faz talvez seu repertório
tornar-se igualmente reduzido. Esta característica, acredito, não influi na competência
dos Brincantes mais experientes como Mestre Zequinha, por exemplo, mas dificulta o
processo de construção da experiência que, por sua vez, é responsável pela formação de
um Brincante. Como quase sempre ouço de diferentes pessoas nas apresentações deste
grupo, Ninguém dança como Zequinha!
O que foi dito acima e o fato de o Cavalo Marinho de Mestre Zequinha estar
inserido em um meio urbano, que possui um movimento distinto do meio rural, onde se
encontram a maioria das expressões pernambucanas desta brincadeira, são os principais
fatores de diferenciação que atribuo entre as manifestações paraibana e pernambucana
do Cavalo Marinho. A dinâmica social rural produz uma composição corporal distinta
da urbana e vice-versa. Creio, também, que ambas as constituições sociais urbana e
rural proporcionam processos de significação e sistemas de valores distintos a seus
habitantes. Estas características chegam por imanência às expressões observadas do
Cavalo Marinho, as quais, acredito, influenciam diretamente – a duração e a
organização de seu itinerário, quantidade e forma das figuras e danças, dentre outros
15
Fala de Mestre Zequinha em aula de Cavalo Marinho, Theatro Santa Roza, setembro de 2010.
42
fatores. Todavia, esta é uma percepção originada em minha vivência como apreciador,
testemunha e, em certo grau, praticante de manifestações populares.
Além do que foi dito acima, segundo Mestre Zequinha, “no Boi de Reis
antigamente tinha uma Toda; um empanado como assim de teatro. Tanto que o mestre
chamava o Mateus e quando ele entrava, perguntava: „De onde você vem, pra onde você
vai?‟, „Eu vim da minha casa!‟, „E onde fica a sua casa?‟, „Do terreiro pra tras‟ (risos).
16
É muita diferença” . Segundo este mestre da cultura popular, existia uma armação de
pano por onde entravam e saíam as figuras do Boi de Reis, diferente do Cavalo
Marinho, que ficam já armadas pelo Brincante, o qual só espera o chamado do mestre
para iniciar sua evolução.
Desse modo, procurei elencar o que julgo como as principais diferenças e
proximidades entre as manifestações do Cavalo Marinho e do Boi de Reis paraibano, e
entre as expressões paraibanas e pernambucanas do Cavalo Marinho. Posso concluir,
então, que a proximidade entre as manifestações populares paraibanas, utilizadas como
referência, produzem influências na composição das brincadeiras. Este processo de
contaminações e diferenciação, também, acontece nas manifestações pernambucanas,
como se pode observar na fala do ator-bailarino-músico Helder Vasconcelos:
16
Fala de Mestre Zequinha em entrevista concedida em 28/08/10 no Theatro Santa Roza.
17
Fala do ator-bailarino-músico Helder Vasconcelos em entrevista concedida em 16/09/10. Grifos meus.
43
18
Termo recorrentemente utilizado pelos Brincantes do Cavalo Marinho para designar o ato de execução
ou conhecimento de determinando praticante sobre as figuras deste folguedo.
44
Figura 05 – Mestre Martelo, o Mateus do Cavalo Marinho Estrela de Ouro, e Mateusinho, a nova geração
deste folguedo. Foto: Alan Monteiro, Encontro de Cavalos Marinhos, Casa da Rabeca, cidade Tabajara,
Olinda – PE, 25/12/2010.
45
19
Fala do Prof. Jefferson Fernandes Alves anotada na disciplina “Seminários de Dissertação II”
ministrada para o PPGArC em 14/09/09.
46
proteção e, em seguida, fazem saudações de boa noite aos presentes que assistem ao
folguedo; 4) Na chegada dessa casa, esta música faz alusão ao ato de fincar uma
bandeira para designar que naquele local encontra-se um grupo brincando. Os versos
seguintes pedem à dona da casa permissão para brincar “hora e meia de relógio” e que a
proprietária cuide da brincadeira, pois a mesma também lhe pertence durante aquele
intervalo de tempo; 5) Senhora dona da casa, esta música dá continuidade à anterior e
emenda uma série de vivas e avisos em seus versos como, por exemplo, “Viva santa
Madalena/Na igreja de Belém” e “Maria foi passear/Esse passeio de Maria/Vai fazer
mamãe chorar”; 6) Fulô, São Gonçalo do Amarante e Trancelim, correspondem às
evoluções com os arcos – estrutura feita a partir de uma mangueira de jardim ou de um
bambolê ornamentado com fitas coloridas. Cada música corresponde a uma sequência
coreográfica distinta de utilização dos arcos; 7) Mamãe tá chorando/Não chore dama
do rei, provavelmente, este quadro deriva do Boi de Reis devido à utilização das
espadas para encenar uma luta entre o Mestre e o primeiro Galante; 8) Capim da lagoa,
é uma música com um verso base sobre o qual o cantador pode tecer variações de
acordo com suas capacidades de improvisação sobre este. Geralmente versos como este
são utilizados para fazer a ligação entre um quadro e outro do Cavalo Marinho; 9)
Campeia, música que fala da vida campestre;
Na terceira etapa da brincadeira, começam a entrar as figuras. Elas não possuem
uma ordem rígida de entrada, dependem de vários fatores como a perícia do Brincante e
do grupo possuir o brinquedo – a armação de determinada figura, a percepção do
interesse do público pelo mestre, dentre outros fatores. A única que geralmente finaliza
a apresentação é o Boi. 10) Loa, toada e baiano do Cavalo Marinho, configura o
verso para a entrada da figura do Cavalo Marinho, seguido de seu cortejo de galantes,
que representa o dono da festa dada em homenagem aos santos reis do oriente; 11)
Margarida, é uma das figuras deste Cavalo Marinho caracterizada por uma boneca alta,
bem vestida e ornamentada. Sua música fala de uma moça bonita que da janela chama a
atenção dos passantes; 12) O Bode, diferente da figura do Boi, aparece no final da
brincadeira. Esta personagem dança suavemente, sem tentar bater no público como faz o
Boi; 13) A Burra, é uma figura ornamentada do Cavalo Marinho que traz em seus
versos o desejo de dançar para o povo ver; 14) O Jaraguá, possui uma cabeça de
pássaro com dentes; quem dança debaixo desta figura com cerca de três metros, leva
consigo um apito que o faz assobiar como um pássaro. Durante sua evolução esta figura
48
Figura 06 – Algumas das figuras do grupo de Cavalo Marinho de Mestre Zequinha. Encarte do CD
Cavalo-marinho e boi-de-reis na Paraíba, foto: Agostinho Lima, Bayeux - PB, 2010.
Além das figuras de animais, existem também as figuras de máscara, que entram
alternando-se entre as figuras de animais. Segundo Mestre Zequinha, em seu grupo
existem Brincantes, contando com ele, que tem o conhecimento para botar as figuras do
Véio Fri, o Abana Fogo e Mané Chorão.
O Véio Fri é um velho friento que é “velhinho por fora, mas novinho por
dentro”. Ele chega na roda procurando, entre as pessoas, que assistem à brincadeira,
uma mulher para se casar. O Abana Fogo é um vaqueiro que chega na festa com um
lampião dizendo que vai colocar luz nas cidades. Ele posiciona seu lampião embaixo de
um banco e vai girando ao redor dele recitando a loa: “Já botei luz em João Pessoa, vô
botá luz em Santa Rita. Ê Abana Fogo”. Diferente das duas figuras anteriores que se
apresentam de calça, paletó e máscara característica, Mané Chorão veste um short, com
camiseta e possui o rosto pintado de branco. Ele chora porque perdeu ou roubaram seus
bens. O Capitão o consola dizendo que alguém da brincadeira ou que está assistindo a
ela irá lhe dar outro em restituição. Uma de suas loas: “Buaaaaaaaáá!, Mestre: Que foi,
Seu Mané? – Zezinho que roubou a calcinha de Zefinha que era pano de coar café.
Buaaaaaaaaáá. – E agora mestre? Como é que a gente vai fazê café? Buaaaaaaaááá.
Mestre: – Se preocupe não, Seu Mané, que fulano vai lhe dá um calcinha nova”20.
20
Todas estas descrições e loas foram fornecidas por Mestre Zequinha em aulas de Cavalo Marinho entre
os meses de maio a novembro de 2010 no Theatro Santa Roza.
50
Figura 07 – Dois passo ou Passo só. Foto: Alan Monteiro, ensaio do coletivo UZUME teatro, SESI
Centro João Pessoa – PB, 2011.
21
Fala de Mestre Zequinha em aula ministrada em maio de 2010 no Theatro Santa Roza.
22
Vídeos demonstrativos destes passos, bem como de um exemplo como estes foram trabalhados pelo
coletivo UZUME teatro, estão contidos no DVD localizado nos apêndices deste trabalho.
51
Figura 08 – Trupé Balanço com calcanhar. Foto: Alan Monteiro, ensaio do coletivo UZUME teatro, SESI
Centro João Pessoa – PB, 2011.
Figura 09 – Trupé Balanço com ponta de pé. Foto: Alan Monteiro, ensaio do coletivo UZUME teatro,
SESI Centro João Pessoa – PB, 2011.
52
Figura 10 – Xaxado. Foto: Alan Monteiro, ensaio do coletivo UZUME teatro, SESI Centro João Pessoa –
PB, 2011.
Este Cavalo Marinho possui muitas variações do passo tesoura no modo como
Mestre Zequinha dança, assim, opto por colocar uma imagem que exemplifica uma das
execuções deste Brincante sobre esse passo.
Figura 11 – Tesoura de joelho. Foto: Alan Monteiro, ensaio do coletivo UZUME teatro, SESI Centro
João Pessoa – PB, 2011.
23
Para mais detalhes sobre os passos deste Cavalo Marinho praticado por Mestre Zequinha e suas
variações, ver os vídeos demonstrativos contidos no DVD em anexo.
53
dança” 24. O aprendizado das danças populares consiste em descobrir no próprio corpo a
corporeidade da Brincadeira. Se ela é mais terra e eu sou ar, é meu o trabalho de
descobrir como chegar nesse tônus, nessa energia condizente com a brincadeira. Para
outros contextos além da dança, pode-se repensar essa ordem.
“Esses são os passó do Cavalo Marinho. Mas se você quiser pode colocá outros
25
que você acha que cabe. É o que a inteligência dé” . As denominações destes passos
não seguem uma forma rígida. É comum aos Brincantes mais experientes, como Mestre
Zequinha, mudarem o nome de alguns passos quando questionados em momentos
diferentes. O que é perceptível é saber executá-los em sua plenitude. Isso talvez
demonstre a natureza de um aprendizado originado na observação. Do mesmo modo é
difícil precisar em qual música eles podem ser dançados. Sobre isso Mestre Zequinha
diz que “dá pra dançar qualquer passo que você achá que dá pra dançar. Agora - tem
26
que ouvir a música” . O mestre chama a atenção nesta fala para a percepção dos
toques do pandeiro, pois é esse o instrumento que fornece a base rítmica para os
Brincantes executarem os passos de sua dança. Do mesmo modo a rabeca o faz com o
canto. Observando de outro ponto, é como se o pandeiro reforçasse a execução da dança
e a rabeca da música.
É possível perceber nas apresentações ou em demonstrações de Mestre Zequinha
a existência de algumas músicas que são acompanhadas tradicionalmente por
determinados passos. Exemplo disso é o Campeia que é dançado com a contradança ou
trupé rebatido. O passo galope é usado com frequência nesta dança. Ele pode ser
utilizado em praticamente todas as músicas. Do mesmo modo existe também nesta
manifestação a capacidade de improvisação e variação acerca dos passos, como é o
passo para a música do Vamo Guerriar, a dança das espadas, que é dançada com uma
variante do passo só. Outro exemplo é o passo tesoura, que é mostrado por Mestre
Zequinha com diferentes modos e trançados das pernas.
Quando questionado sobre como aprendeu o Cavalo Marinho, Mestre Zequinha
nos conta que aprendeu “de pequeno. Tinha uns oito ou dez ano de idade. Eu via o povo
brincá no meio da rua, via aquelas figura mascarada, me escondia de medo (coloca as
24
Fala de Juliana Pardo – Cia MundoRodá no curso “Treinamento Técnico do Ator em Danças
Populares”, ministrado na sede do LUME Teatro em Fevereiro de 2009.
25
Fala de Mestre Zequinha em aula ministrada em maio de 2010.
26
Idem.
54
mãos no rosto e continua a fala), mas eu ficava ali, vendo. Depois juntava meus amigo
da rua e ia tentá imitá no quintal lá de casa”27. Mestre Zequinha hoje tem sessenta e dois
anos: “Eu aprendi sozinho. Sozinho mode de assim que ninguém me ensinava. Ensinava
28
assim de eu ficar olhando e aprendia os passo” . A persistência, a prática, parece
desenvolverem algo em nós, principalmente, no corpo que somos, fazendo com que
algo aconteça. É neste instante, nesse movimento orientado pela repetição, que parece
se formar a experiência: “quando passa tempo sem brincá parece que as coisas sai do
juízo. Até os menino quando vai ensaiar parece que esquece das coisa. Eu não. Posso
ficar o tempo que for que eu sei brincá”29.
Uma tradição configura-se não somente por sua identidade, ou seja, pela
perpetuação das relações de saber/fazer, gerando sua capacidade de visibilidade e
discursividade. Ela respira, tem vida e se diferencia em si mesma. Produz novos
conhecimentos ou reorganiza os já existentes em um processo de aprendizado que parte
da tradição, da memória, para a atualização, pois as tradições se inventam. Assim, a
tradição recria a si mesma. Neste caminho, tanto da tradição como de quem parte do
tradicional, como é o caso desta pesquisa, acredito ser necessária uma passividade feita
de paixão, como a que se refere o filósofo da educação Jorge Larrosa Bondía (2002)
quando trata do sujeito da experiência, definindo-o
[...] não por sua atividade, mas por sua passividade, por sua
receptividade, por sua disponibilidade, por sua abertura. Trata-se,
porém, de uma passividade anterior à oposição entre ativo e passivo,
de uma passividade feita de paixão, de padecimento, de paciência, de
atenção, como uma receptividade primeira, como uma disponibilidade
fundamental, como uma abertura essencial (BONDÍA, 2002, p.24,
grifos meus).
27
Idem.
28
Fala de Mestre Zequinha em aula ministrada em junho de 2010.
29
Idem.
55
organizado na sociedade contemporânea30 de maneira que nada signifique, que nada nos
aconteça. Ela anula as possibilidades da experiência entendida como “o que nos passa, o
que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou que toca”
(op. cit., idem.). De forma a exemplificar isso:
30
“Etimologicamente, contemporâneo dá uma medida de sincronia de tempo: con(tempo) râneo =
sincrônico. (Titãs, Tudo ao mesmo tempo agora)” (COHEN, 1998, p.2). A esta compreensão
acrescentam-se as alterações de paradigmas, tais como a relação com o espectador, a noção de presença,
dentre outras que se vetorizam no decorrer do processo histórico.
56
31
Fala do ator-pesquisador paulista Eduardo Okamoto em demonstração técnica sobre treinamento e
mimeses corpórea realizada no Barracão dos Clows, sede do grupo Clows de Shakespeare em Natal –
RN, em 24/05/10. Para mais informações sobre este ator e seus trabalhos acessar
http://www.eduardookamoto.com, visitado em 19/02/2011.
57
Existe também outro fator que julgo ser importante. Procuro encarar esta
manifestação, assim como outras , como sendo “variações de um mesmo tema”. O que
quero colocar é que, em certo grau, existem proximidades entre os fazeres e suas
práticas. Isto se dá entre as artes, pois, elas “se parecem em seus princípios, não em suas
obras” (DECROUX apud BARBA, 1994, p.29), bem como entre as manifestações
populares a exemplo do Cavalo Marinho, pois segundo o entendimento de Helder
Vasconcelos, esta brincadeira “antes de tudo, é um jeito de fazer. Um jeito de fazer
teatro, um jeito de fazer dança e tal” 32.
Procuro me aproximar desse brincar, não somente por visualizar seu potencial
como fonte de pesquisa, mas por perceber que ele, de algum modo, faz parte de mim, de
meu corpo, de minha pulsação. Assim como o exposto pelo dançarino-ator-músico
Herlder Vasconcelos: “O que é tudo isso? Isso tudo sou Eu. Eu sou assim” 33. Ainda nas
falas desse artista destaco:
32
Fala do ator-dançarino-músico Helder Vasconcelos em entrevista cedida em 16/09/10. Helder
Vasconcelos é praticante da expressão pernambucana do Cavalo Marinho deste 1992. É Engenheiro
Mecânico formado e percussionista da já extinta banda “Mestre Ambrósio”. Para mais informações sobre
este artista acessar http://www.heldervasconcelos.com.br/CHEGADA.html, visitado em 19/02/2011.
33
Fala do ator-dançarino-músico Helder Vasconcelos em entrevista concedida em 16/09/10.
34
Idem, grifos meus.
58
sujeito a afetações, à diferença, que, por sua vez, parece tecer redes de ligação com o
sem fim de movimentos do mundo na tentativa de globalizar-se.
Não é preciso ir longe para se conhecer um sujeito moderno, ou seja, centrado
em uma identidade e individualidade. Em certa medida, nossos pais, amigos, parentes,
amantes e até nós mesmos assumimos atitudes que nos caracterizam como tais. O
próprio Mestre Zequinha, a quem dedico esta pesquisa, demonstra possuir uma
identidade e individualidade específica e enraizada. Este novo modo de perceber os
movimentos da identidade em busca de se colocar em devir, parece-me uma procura
pelo verbo no gerúndio e não mais no infinitivo, por algo que não é, mas sempre está
sendo. Uma identidade em eterno processo de formação – em um processo de
identificação regido por funcionalidades e não mais por apegos ou carências.
Então, em que pé se encontraria o processo da identidade no mundo
contemporâneo? Acredito que em uma abertura a afetos e percepções, à diferença,
enfim, há potencialidades funcionais em movimento que podem ser simultâneas e/ou
singulares, poligâmicas e monogâmicas. Um processo que permita o convívio de
paradoxos. São as diferenciações potenciais que esta abertura a contaminações pode
proporcionar.
Paradoxalmente, essa prática reivindica a constituição da Imanência. É nesta
dinâmica que a identidade é gerada e gera uma vida: planos imanentes, que são
fissurados em linhas de fuga que, por sua vez, são aglutinados pela Imanência, em
gigantesco tear que é causa e efeito de ações-reações, reações-reações, reações-ações,
reações... Gerar-se. “Só a palavra gêmeo, é gêmeo” (LINS, 2003, p.119).
Assim a passividade, permanência característica do sujeito da experiência, é
capaz de desestabilizar o indivíduo centrado em sua individualidade e identidade
colocando-o em movimento de rizoma. Um indivíduo por estar nesta dinâmica, pode
tecer ramificações de sua identidade, buscando um devir em eterno processo de
identificação, ao invés de enraizada, presa. É devido à incorporação desse processo que
um sujeito pode se aproximar e encontrar significação no Cavalo Marinho para o
trabalho de ator. Através dessa percepção, é possível experienciar um caminho pelo qual
a vida e sua constituição imanente possam ser puncionadas, propiciando, assim, a
incorporação de vivências, fazendo com que princípios deste mundo de regras e rituais
muito precisos sejam internalizados e remodelados no corpo e no trânsito do sujeito
encarnado, objetivando, deste modo, a composição de um plano de criação. É tendo em
59
vista que a experiência se torna corpo e o potencializa, que justifico minha escolha
acerca da pesquisa que realizei junto ao coletivo UZUME teatro, o qual foi
imprescindível na produção dos processos reflexivos que resultaram nesta dissertação.
35
Para mais informações acerca do histórico do LUME e suas linhas de pesquisa consultar suas
publicações e produtos. Sobre a técnica de mimeses corpórea, consultar em especial o livro Café com
queijo: corpos em criação (HUCITEC, São Paulo, 2006a) de autoria de Renato Ferracini, os extras do
DVD do espetáculo O que seria de nós sem as coisas que não existem (2006), além do próprio sítio do
grupo: www.lumeteatro.com.br.
36
Escolho utilizar o termo mimeses ao invés de mímesis, por aproximar-se mais da tradução para o
português, concordando, assim, com a escolha de Renato Ferracini (2006a) em sua mais recente
publicação sobre o tema: Café com queijo: corpos em criação (HUCITEC, São Paulo, 2006). Contudo,
mantenho a utilização de mímesis nas citações de Burnier (2001) e do próprio Ferracini (2003).
60
espetáculo anterior, dando origem à peça Café com Queijo (1999), sobre a qual Renato
Ferracini escreve sua tese de doutorado, que constitui um forte referencial teórico para
esta dissertação.
Na mimeses corpórea objetiva-se que o ator amplie seu repertório de ações
mediante a observação/imitação de agentes externos a ele como pessoas, animais,
quadros, fotos. É parte de seu trabalho procurar a vida em cada ação imitada, sua
organicidade, ou seja, os modos como estas podem se relacionar com suas energias de
modo a potencializá-las, na procura dos afetos de outras relações: outro ator, o
espectador e as demais dramaturgias que compõem o Estado Cênico, o qual é entendido
como “o momento específico em que o ator se encontra na ação de atuação juntamente
com o público e com todos os elementos que compõem a cena” (FERRACINI, 2006a,
p.31).
Deste modo, o LUME busca evitar por meio da técnica de mimeses corpórea
uma “imitação estereotipada e estilizada da pessoa. Não é este o objetivo. Buscamos
uma imitação precisa e real, sim, não só da forma e da fisicidade, mas principalmente
das corporeidades da pessoa” (FERRACINI, 2003, p.203, grifos do autor).
As corporeidades e fisicidades de uma ação são os elementos operacionais que
possibilitam um reconhecimento corpóreo, seja de uma pessoa, animal ou imagem. A
corporeidade é como um indivíduo se vale particularmente do corpo; o modo como ele
o habita e como os afetos de suas relações desenvolvem-se a fim de compor sua
formação e seu jeito de agir. São as intensidades de suas ações, originadas no trânsito
entre o interno/externo do corpo que manifesta-se por meio de suas dinâmicas, formas e
desenhos. É a corporeidade que nos permite dizer: Carlos tem este andar ou Manuela
olha desse jeito, além de Cecília tem uma desconfiança no olhar ou Arthur tem uma
tristeza no modo de falar.
Esses modos, essas discursividades marcadas no corpo de cada ser vivo durante
sua passagem pelo mundo, além de comunicarem, nos permitem perceber por meio dos
sentidos suas características. Eles possuem várias matizes, diferentes intensidades de
vibrações da energia em suas ações. A partir de estímulos internos ou externos, um som,
uma dor, uma doença ou uma emoção estas energias se sublimam configurando ações e
estados corpóreos cognoscíveis. É a partir da própria corporeidade, que estes níveis de
vibração potencial da energia, encontrados em qualquer corpo munido de vida podem
encontrar expressão.
62
Entendo estas energias potenciais (BURNIER, 2001) como aquilo que pode ser,
mas ainda não o é senão em potência; é a diferença em estado potencial que todo ser
vivente possui, uma possibilidade de se reorganizar – de se re-significar. No caso do
corpo, são estas energias que, ao mesmo tempo, constituem a imanência e vislumbram
linhas de fuga dela mesma. Elas constituem as possibilidades do Eu sou e do que Eu
posso ser, mas que por alguma cartografia fisiológica, anatômica, social, econômica,
histórica, acabou configurando-se ou não. Um exemplo disto é visto no trabalho do ator
ou atriz na composição de uma personagem: esta não é uma prostituta, por exemplo,
mas possui em si as energias potenciais que possibilitem a constituição deste devir
prostituta em seu corpo. O que esse artista necessita é descobrir como estimular estas
energias potenciais que auxiliem na composição-em-arte desta prostituta.
Equívocos como isto é um movimento da vida e não da arte são possíveis
mediante o exposto acima. Porém, é a busca por estímulos que auxiliem o ator a atiçar
suas energias potenciais que torna possível refletir sobre uma composição orgânica do
corpo-em-arte – e que o estímulo pode ser mais vivo se não procurado na própria
tessitura da vida e suas relações. É esta potência de relação que constitui a organicidade.
Não esqueçamos que ao representarmos a vida por meio da arte, procuramos
referenciais poéticos desta para aquela.
Para o ator, o trabalho com estas energias potenciais direciona e amplia suas
capacidades criativas. É na transformação destas em corporeidades e fisicidades que o
ator descobre ações, as quais são referenciais passíveis de modelagem para a
composição da presença e da organicidade do corpo-em-arte.
Por sua vez, acredito ser abstrato demais pensar em trabalhar-se diretamente
com a energia. Todavia, se a cogitarmos como indissociável do físico isso não se torna
tão absurdo quanto parece. A luz, por exemplo, se comporta ao mesmo tempo como
onda e como partícula. Irradiar presença e discursos a quem o assiste: não é a isso que o
artista cênico se dedica? Pensando dessa maneira, é pertinente cogitar que na
modelagem de uma ação, o trabalho com a fisicidade permite descobrir os pontos, as
microtensões que possibilitam o aprendizado da corporeidade. Esta incorporação
possibilita uma liberdade de se ir a qualquer lugar, de chegar ao cúmulo de se alterar
completamente a fisicidade e manter a corporeidade e vice-versa. Creio também na
existência do caminho inverso: chegar-se na fisicidade pela corporeidade.
O procedimento na mimeses corpórea inicia-se mediante a observação das
corporeidades e fisicidades de ações em pessoas, animais, fotos, pinturas, gravações,
etc, as quais o ator procura imitar posteriormente em sala de ensaio. Este processo de
aquisição se dá por meio de anotações, gravações, fotografias e da memória do ator. Na
busca da organicidade desta imitação no processo de sala de ensaio, o ator pode partir
do todo, tentando adquirir, ao mesmo tempo, as ações tanto físicas quanto vocais do
observado, e as intensidades que as acompanham. Este processo é viável, uma vez que o
foco de estudo pode ser revisitado a qualquer momento, porém, se este retorno à fonte
para consultas for inviável, pode-se dividir as características observadas de modo a
tornar sua aquisição o mais objetiva possível. Deste modo, o ponto de partida não se
torna o todo, mas suas especificidades, ou seja, ações, gestos, modos de falar e agir
37
Tradução minha: Usted hace um passeo abordo de um barco en grata compañia. Está almorzando en la
cubierta, come, bebe, charlla, corteja a las damas. Todo esto lo está haciendo muy bien. Pero, ¿es arte
esto? No, eso es la vida. Ahora imgínese otro caso: Usted viene al teatro a ensayar. En el escenario se
monta cubierta de um barco, se pone la mesa; sale al escenario y se dice: „¿Qué hariámos si viajáramos a
bordo de um barco y almozáramos em alegre compañia?‟ Em esse momento comienza la creación
artística.
64
38
Fala do ator-pesquisador Eduardo Okamoto em demonstração técnica sobre treinamento e mimeses
corpórea realizada no Barracão dos Clows, sede do grupo Clows de Shakespeare em Natal – RN, em
24/05/10.
65
aquisição das ações observadas. Afetos são nesse sentido entendidos como o que afeta o
ator para que ele possa afetar o espectador, transmitindo a poesia das ações observadas.
A poesia estaria então diluída no espaço-tempo cotidiano. O ator, a seu modo, capta este
poético na forma de afetos e tenta transpô-lo de forma teatral para a cena.
Esta observação configura-se por um ato minucioso de se perceberem as
características escondidas nas ações observadas, como sua duração, intensidades no
espaço, intenções, coloridos e dinâmicas que as particularizam gerando territórios
específicos, embora maleáveis após um tempo de prática. Assim a técnica de mimeses
corpórea
39
Festival de palhaços ocorrido na cidade de João Pessoa – PB no ano de 2002, organizado pela
Fundação Cultural João Pessoa – FUNJOPE. Procurei registros desse encontro na referida fundação, mas
nada encontrei até o término deste trabalho. Todavia, consegui uma cópia em DVD de filmagens avulsas
deste festival na biblioteca do LUME Teatro, em Barão Geraldo, distrito de Campinas – SP.
70
40
Mestre Zequinha em aula concedida em setembro de 2009 no Rotary Club em Bayeux – PB.
41
Fala do rabequeiro Mestre Zé Hermínio em aula no dia 18/06/10 à noite, em época do projeto
RABEQUIANDO: construindo e tocando rabeca, organizado por mim e financiado pelo Edital de
Oficineiros 2010 da FUNJOPE.
71
inviável realizarmos alguns encontros com Mestre Zequinha para aprender os passos do
Cavalo Marinho sem que tivéssemos o acompanhamento da música.
Aprendemos os passos desta dança popular seguindo a sequência contida no CD
de Mestre Gasosa, todavia, Mestre Zequinha nos passava alguma outra configuração
que não estava contida no CD que utilizávamos. Exemplos deste processo é a música
“São Gonçalo do Amarante”, uma variação da dança dos arcos, e os textos, músicas e
formas das figuras de máscara, como o Véio Frio, Mané Chorão e o Abana Fogo. Para
tanto Mestre Zequinha, enquanto nos mostrava os passos e posturas corporais dessas
figuras, cantava as músicas e marcava seu tempo com os pés ou com o apito, que é o
instrumento que marca tanto a entrada e saída das figuras, quanto o começo e o fim das
músicas e danças deste folguedo.
Nosso aprendizado sobre a expressão do Cavalo Marinho praticada por Mestre
Zequinha acabou por se concentrar nas músicas, loas, aboios, coreografias e passos de
dança, principalmente nesses últimos. Devido ao convívio proporcionado por esta
pesquisa, pude perceber que estes elementos eram os mais utilizados na composição
dessa expressão de Cavalo Marinho. Durante as aulas com Mestre Zequinha, procurava
chamar a atenção dos atores para os detalhes que diferenciam o modo de dançar do
Brincante pesquisado, dos demais praticantes de seu grupo: um pé que fica mais tempo
no chão, um impulso específico, uma batida, entre outros. Por menores que fossem estas
características, é perceptível a diferença que proporcionam na execução dos passos por
Mestre Zequinha. Ao fazer isso procurava estimular o desenvolvimento de um olhar
mais apurado em meus colegas de grupo.
Em sala de ensaio procuramos seguir a mesma configuração das oficinas de
Mestre Zequinha, ou seja, colocávamos o CD para tocar e dançávamos procurando
recuperar o que foi aprendido e observado. As principais fontes de consulta deste
processo foram as anotações dos atores e as filmagens que realizei. Diferentemente dos
modos de registro propostos pela técnica de mimeses corpórea trabalhada no LUME
Teatro, em nosso caso, o indivíduo observado não se encontrava em uma situação
cotidiana. Durante as aulas, Mestre Zequinha apresentava um comportamento
semelhante ao visto em suas apresentações com seu grupo de Cavalo Marinho.
Encontrávamo-nos em uma situação artificial no sentido de ser preparada
propositalmente, isso tanto nas aulas como quando assistíamos às apresentações de
Mestre Zequinha e seu grupo ou participávamos delas.
72
O que posso ressaltar é que existe uma constituição específica dos passos desse
Cavalo Marinho, os quais fornecem um referencial para a liberdade de improvisação
desse Brincante. Essa dinâmica de improvisação só era alcançada após um tempo,
quando o corpo de Mestre Zequinha se encontrava quente. Mesmo sendo filmado ele se
demonstrava à vontade para improvisar e fazer brincadeiras durante as aulas. Acredito
que a utilização de filmagens não interferiu em nossa pesquisa devido estarmos
estudando a composição de um corpo-em-arte da brincadeira do Cavalo Marinho, o
corpo de Mestre Zequinha, especificamente, com suas corporeidades e fisicidades
características.
Hoje, com o distanciamento sobre este processo, percebo que o intuito desta
pesquisa era aprender as minúcias que a experiência de Mestre Zequinha proporcionou à
composição de seu brincar, ou seja, à organização de seu corpo-em-arte para a
brincadeira. É por meio deste estado corporal que o Brincante realiza, comunica, resiste,
atualiza e oferece continuidade à manifestação do Cavalo Marinho. Este aprendizado,
por sua vez, seria refletido por nós, atores do coletivo UZUME teatro, para a construção
de outro espaço de troca-em-arte, diferente do composto na brincadeira organizada por
Mestre Zequinha, mas vetorial42 a ela. Assim, identifico as corporeidades e fisicidades
da brincadeira do Cavalo Marinho como os modos de brincar utilizados por seus
praticantes e suas características, que tornam, praticamente, individual cada forma de se
brincar.
Dito de outro modo, as corporeidades e fisicidades do CM são tanto os passos de
dança, as posturas das figuras, as músicas, loas, aboios e o modo como são executados
durante a brincadeira, quanto as características que diferenciam e territorializam cada
manifestação popular, constituindo e qualificando a performance de seus Brincantes.
Estas características são passiveis de observação durante a brincadeira e demonstrações
de seus praticantes, a exemplo de Mestre Zequinha. Assim, são válidas as orientações
fornecidas na técnica de mimeses corpórea, por que, por meio de uma observação ativa,
treinada para perceber as minúcias desta técnica é possível aprender e codificar as
características desta prática, possibilitando sua modelagem para a composição de outros
espaços cênicos além do seu tradicional. Na trajetória desta pesquisa, era o desenho dos
42
No sentido de partir desse algo para outro contexto, não necessariamente pertencente ao espaço
original.
73
43
Estas maneiras de codificação e trabalho com o Cavalo Marinho serão abordadas de forma mais
detalhada no tópico 2.1 Vários corpos de espaços diversos - mudar e ainda poder ser o mesmo, do II
Território desta dissertação.
74
ator compõe matrizes, seja a partir dos passos do Cavalo Marinho ou de ações
encontradas por meio dele. As matrizes compostas serão trabalhadas na etapa seguinte,
de codificação/teatralização, na qual se inicia a composição do corpo-em-arte de outro
espaço cênico vetorial ao encontrado na brincadeira do Cavalo Marinho.
Objetivando modelar as organizações propostas na primeira etapa, procurei
oferecer aos atores estímulos diversos como músicas, objetos, relações
espaço/tempo/ator, até mesmo trechos de falas do texto que montaria como experimento
desta pesquisa. Este último direciona de maneira objetiva a modelagem do Cavalo
Marinho e a produção de ações dos atores para a composição do corpo-em-arte. Em
verdade, o foco desta pesquisa possui um caráter de dupla seta para o trabalho de ator:
ao tempo em que ele se vale da prática da brincadeira contida nesta manifestação para
trabalhar os elementos energéticos e técnicos de sua arte, o ator também pode procurar
nela um meio para ampliar seu repertório de ações. Desta forma, é possível que um
artista que se vale de uma técnica codificada como é a do Cavalo Marinho, possa
utilizá-la tanto na busca de potencializar seu trabalho de ator, como um poderoso
referencial para a descoberta de ações que farão parte da composição de seu corpo-em-
arte.
As palavras vazam.
Edward Sapir44
44
Ideia fornecida pelo linguista Edward Sapir, citado por Tomaz Tadeu da Silva no artigo Por uma
pedagogia da diferença, disponível no sítio: www.lite.fae.unicamp.br/papet/ep514/texto11.htm, visitado
em 16/11/2009. Esta ideia também está contida em Renato Ferracini, Café com Queijo: corpos em
criação, São Paulo: HUCITEC, 2006a, p.59.
45
Opto por escrever Ator e Brincante em maiúscula quando me referir a eles enquanto a pessoa e o
profissional, acreditando que assim estarei concordando com Grotowski ao tratar do Performer como “o
homem de ação. Não é o homem que faz a parte do outro. É o dançarino, o sacerdote, o guerreiro: está
fora dos gêneros estéticos” (1993, p.78).
77
Procuro fazer isto na intenção de delinear as escolhas teóricas que guiaram este
processo de pesquisa. Para tanto, me valho da filosofia proposta por Gilles Deleuze e
Félix Guattari, acreditando que, deste modo, me aproximarei mais do entendimento de
Renato Ferracini acerca do corpo-em-arte. Este autor se vale do mesmo referencial
filosófico para propor o conceito de corpo subjétil, o qual, em síntese, trata do corpo-
em-arte em contato com as demais dramaturgias do Estado Cênico: iluminação,
figurino, cenografia, atores, espectador, espaço, etc.
Ao abordar os conceitos que auxiliaram o desenvolvimento prático desta
pesquisa, procuro fazê-lo de forma a destrinchar estes entendimentos. Tento identificar
seus territórios no intuito de aproximá-los em suas práticas, para então tecer
considerações sobre o Ator-Brincante. Não seria o Ator um Brincante e o Brincante um
Ator? Nesse fazer, esbarro em outros dois territórios: a priori, o do corpo, a posteriori, o
que designa seu processo formativo – a preparação. Estes horizontes com suas
velocidades e infinitas possibilidades permeiam o conceito de Ator e Brincante, embora
de maneiras diferentes e, devido a essa diferença, as compreensões sobre eles se fazem
necessárias para melhor se entender o material de trabalho e as possibilidades de fazer
do Ator-Brincante.
A atriz-pesquisadora Ana Caldas Lewinsohn (2008) em sua dissertação O Ator
Brincante; no contexto do teatro de rua de do Cavalo Marinho, tece considerações
sobre uma proposta similar a que estou considerando como um Ator que procura ser
Brincante. Todavia ela se refere a um estado de brincadeira, acredito que isso se deva a
seu foco de pesquisa ter sido o Mateus feito por Mestre Martelo de Condado – PE.
Torna-se difícil tentar conceituar as figuras do Mateus, do Bastião e da Catirina, pois ao
mesmo tempo em que elas têm uma configuração precisa, realizam diversas
improvisações sobre ela.
Os passos de dança, cantos e loas vêm somar-se à configuração de um estado de
brincadeira dessas figuras. Talvez seja esta uma diferença entre o Cavalo Marinho de
Pernambuco e o da Paraíba: ao tempo em que o primeiro possui mais figuras
mascaradas, é possível observar-se uma composição de estado corporal ou um estado
brincante, organizado e preciso sob o qual o Brincante realiza variações. Na brincadeira
paraibana que pesquisei existem mais figuras fantásticas e de animais, as quais possuem
46
Prefiro usar o conceito de ação a ação física por acreditar que ambas possuem igual teor ao tratarem da
prática cênica. Todavia, em citações sobre o tema, mantenho o termo ação física.
78
o mesmo passo e geralmente são botadas por um mesmo Brincante. As loas e os cantos
dessas figuras são proferidos pela figura do Capitão Marinho. Todavia, existe uma
natureza de improvisação nos passos de dança realizados por essa figura junto ao
cortejo de Galantes. É sobre este modo de brincar o Cavalo Marinho, que esta pesquisa
se debruça. Embora possuam características semelhantes ambas as abordagens, cada
uma possui um território de observação distinto: eu, as formas como Mestre Zequinha
brinca o Cavalo Marinho e como o ator pode desdobrar essa técnica para a composição
do corpo-em-arte, diferente de Lewinsohn (2008) que busca na figura do Mateus de
Mestre Martelo um estado de brincadeira para o ator do Teatro de Rua:
47
Fala de Renato Ferracini durante a disciplina “Treinamento Técnico do Ator”, ministrada durante o
curso de Especialização latu sensu em Representação Teatral oferecido pela UFPB nos anos de 2007-09.
79
48
Entendida em seu sentido mais arcaico e ideológico, do latim religiore, o qual não se limita à crença
sobre uma divindade, mas a inclui.
49
Procurarei me deter mais sobre o conceito de Atuação utilizado nesta pesquisa no tópico 2.1 - Vários
corpos de espaços diversos - mudar e ainda poder ser o mesmo, do II Território, quando falarei das ideias
80
Se o corpo possui “virtuais e atuais reais” (op. cit, p.124) e o presente carrega
toda a dimensão da memória condensada em seu plano de realidade atual é possível
ativar esta mesma memória por meio do corpo. A imagem do cone da memória
fornecida por Bergson auxilia neste entendimento (FERRACINI, 2006a, p. 125):
82
limitar o fazer de ambos, caduca o entendimento de seus processos criativos uma vez
que o próprio Brincante é ao mesmo tempo ator e dançarino. Assim como colocado por
Eugenio Barba:
A diferenciação entre estes dois conceitos, Ator e Brincante, situa-se, talvez, não
no contorno irregular destes, mas nos componentes que os povoam e compartilham. Em
meu entendimento, o que define um Ator ou um Brincante não é uma capacidade
intrínseca, algo que vem de berço, mas sim sua vontade, algo que se reflete no desejo de
sê-lo.
Para esta pesquisa é importante a consideração de Peter Brook para Ator, a qual,
também, pode ser estendida para o Brincante: “posso escolher qualquer espaço vazio e
considerá-lo um palco nu. Um homem atravessa este espaço vazio enquanto outro o
observa, e isso é suficiente para criar uma ação cênica” (BROOK, 2002, p.04). Um
espaço, um observador e alguém que realiza uma ação, é esta a unidade mínima para
que exista o fazer teatral que considero funcional nesta pesquisa.
Para Grotowski, uma ação50 é diferente de quando se realiza uma atividade ou
um gesto. A ação “deve nascer da coluna vertebral, deve ser algo de profundo e estar em
contato com a pessoa e as energias potenciais do ator” (FERRACINI, 2003, p.101).
Uma ação indica objetividade, diferente de uma atividade como lavar pratos ou preparar
uma comida. Todavia, “uma atividade pode se transformar em ação física. Por exemplo,
se vocês me fizerem uma pergunta embaraçosa, que é quase sempre a regra, eu tenho
50
Ao ler este termo entende-se também a ação vocal, pois a voz é produzida pelo corpo.
84
que ganhar tempo. Começo então a preparar meu cachimbo de maneira muito „sólida‟.
Neste momento vira ação física, porque isto me serve neste momento”51.
Gestos são respostas imediatas, imagens das quais já guardamos o significado
por dividirmos a mesma cultura, gesto de positivo, o gestual do padre, de indicar.
Geralmente, ele é realizado com a periferia do corpo, em especial com as mãos. Assim,
“a mesma coisa acontece com o cachimbo, que por si só é banal, transformando-a a
partir do interior, através da intenção – nesta ponte viva, e a ação física não é mais um
gesto” 52.
A ação é entendida nesta pesquisa, no comprometimento do ator, na ligação
destas com sua pessoa e suas energias de forma a potencializá-las. É esta profundidade
da ação que produz um comprometimento total no corpo do Ator. Se o indivíduo é um
construto social-cultural-econômico-histórico, então toda e qualquer vivência se
internaliza em seu corpo-memória e torna-se parte constituinte deste mesmo indivíduo.
Assim, através do trabalho corporal chegamos ao inconsciente, que nada mais é do que
um acúmulo de vivências imagéticas, concretas ou perscepcionais, constituintes do
individuo em uma ordem mais profunda à qual se necessita de estímulo para acessar.
Quando Stanislavski pede ao ator dar vazão ao inconsciente criativo (JIMÉNEZ, 1990 e
STANISLAVSKI, 2001), orienta não para acessar algo inato, quase que independente
do indivíduo, mas acessar a esta intrincada rede vivencial que o forma. Neste sentido,
trabalhar o inconsciente é explorar a composição da vida no corpo.
De acordo com o exposto, qualquer pessoa poderia ser Ator? Acredito piamente
nisto: qualquer pessoa pode realizar agenciamentos para concretizar sua formação e
então exercer a profissão de ator. Todavia, resta agora qualificar este Ator. Para tanto,
me valho de um exemplo dado por Peter Brook:
51
Transcrição de uma palestra proferida por Grotowski no Festival de Teatro de Santo Arcangelo (Itália),
em junho de 1988, encontrada na internet por meio do Dreamule, programa de compartilhamento de
arquivos.
52
Idem.
85
Para ajudar neste entendimento, procuro a proposta dada por Eugênio Barba
(1994, 1995) ao diferir os atores-dançarinos, segundo a utilização de suas técnicas de
inculturação e aculturação.
O caminho da inculturação baseia-se no uso da espontaneidade que chega
naturalmente aos indivíduos de determinada cultura, a qual é originada em uma
organização identitária entre membros de uma mesma cultura, estabelecendo, desta
forma, um padrão de naturalidade e normalidade funcional a ela. Atores inculturados
elaboram esta espontaneidade que lhes chega, naturalmente, de forma a suprir as
exigências criativas de sua arte. Ela é marcada pelo uso de uma psicotécnica e pela
verossimilhança, assim, podemos observar que Stanislavski ofereceu talvez a maior
contribuição a este tipo de processo: “o „se mágico‟, por meio de uma codificação
mental, os atores alteram seu comportamento cotidiano, mudam sua maneira habitual de
ser, e materializam a personagem que eles vão retratar” (BARBA, 1995, p.189). O “se
mágico” é um elemento técnico de inculturação elaborado por Stanislavski que auxilia o
ator a se colocar na situação da personagem. É perceptível sua utilização tanto nas
primeiras fases da pesquisa deste encenador, quando a memória emotiva é o alicerce de
seu método, tanto quanto na etapa final de seu trabalho próxima à sua morte, na qual ele
procura embasar seu método na ação física.
Entretanto, uma técnica aculturada caracteriza-se por negar este comportamento
que chega de forma natural pelo convívio social. Ela artificializa o corpo na busca de
reorganizá-lo em seu tempo e espaço de acontecimento em arte, assim, ela torna
possível
típico em detrimento de uma nova maneira de agir. Tanto um ator que se vale de uma
técnica inculturada, quanto outro que utiliza a aculturação, no momento de atuação,
procuram diferenciar sua presença da utilizada no cotidiano.
Seria, então, o ator inculturado desprovido de um repertório, de um léxico de
ações, à mercê de sua própria intuição e comportamento cotidiano, e o brincante estaria
abastecido tecnicamente com suas codificações que lhe permitem liberdade de
improvisação, uma vez que, como na Commedia dell’art, o brincante improvisa com a
codificação e não a codificação? Perguntas como esta podem suscitar dicotomias entre o
trabalho do artista cênico, limitando o entendimento de seus processos criativos e
formativos. Acredito que existem artistas cênicos: atores, dançarinos, performers,
brincantes, circenses, um sem fim de profissionais e seus mistos. O que necessariamente
se percebe nestes artistas e que os distinguem e singularizam suas formações são as
limitações que estes possam possuir em seus fazeres.
Existe um sem fim de imprevisibilidades na prática dos Brincantes do Cavalo
Marinho, as quais, à primeira vista, podem sugerir que os elementos constituintes da
brincadeira são totalmente improvisados. Como se os passos de dança e posturas das
figuras, por exemplo, fossem assim feitos de qualquer jeito. Esta característica pode
levar ao equívoco de que qualquer movimento poderia ser executado no Cavalo
Marinho, sem que seu executante fosse chamado à atenção da inocorrência de um erro,
de fazer algo que não pertença ou seja característico desta manifestação. Todavia, existe
um dentro e um fora nas manifestações que levam tal afirmativa ao engano. Nas danças
populares improvisa-se com a máscara e não a máscara. Mais ainda, este sentido de
improvisação traz consigo principalmente o elemento do que é imprevisto, do que é
organizado no calor de sua realização, a qual, no caso das danças populares, é realizada
a partir de um léxico principal de passos, dinâmicas, pulsações musicais e coreografias
sobre os quais os participantes desenvolvem variações.
A proposta do Ator-Brincante é misturar os meios de inculturação e aculturação
formando um todo da arte de ator na composição do corpo-em-arte. Por inculturação
entendo como um caminho no qual os atores usam “sua „espontaneidade‟, elaborando o
comportamento que a eles chega naturalmente, que absorveram desde o seu nascimento
no meio cultural e social no qual cresceram” (BARBA, 1995, p.189). Já por aculturação,
como uma técnica que “„artificializa‟ (ou estiliza), o comportamento do ator-bailarino.
88
53
Anotação em curso “Treinamento Técnico do Ator em Danças Populares”, 30/01/09 – 1° Dia.
89
54
Tive contato com esta prática pela primeira vez no curso “Treinamento Técnico do Ator em Danças
Populares”, ministrado por Juliana Pardo e Alício do Amaral, CIA MundoRudá, e Jesser de Souza,
LUME Teatro, de 30/01 à 08/02/2009, em Barão Geraldo, distrito de Campinas – SP. Por serem muitos
os detalhes destes exercícios, optei por gravar uma demonstração minha sobre eles, a qual está contida em
DVD anexo.
90
Figura 12 – Abdominais e flexões estáticas trabalhados. Foto: Vitor Blam, sala Preta da UFPB, João
Pessoa – PB, 2011.
si, mas a compartilha. Não há redução, mas contaminação, um novo foco de produção
de energia é gerado – o espectador.
Com o tempo fomos descobrindo como fazer estes dois exercícios em
movimento, por exemplo, saltar e cair enraizando o pé no chão e depois lançar, lançar
com diferentes partes do corpo, lançar objetos reais ou imaginários entre os
participantes, enfim, infinitas variações que pudéssemos bolar a partir destes dois
exercícios.
A segunda prática, que auxiliava a desenvolver as potencialidades do corpo, é a
mais óbvia: dançar o Cavalo Marinho. Existe uma mecânica do movimento nas danças
populares, mas também existe o respeitar do tempo dentro. Às vezes é mais importante
vivenciar. A vivência pode trazer experiências que respondem aos próprios
questionamentos. Ao mesmo tempo em que isso ajudava na assimilação dos passos
estudados e no desenvolvimento da improvisação, tendo-os como base, auxiliava a
trabalhar o caráter tanto técnico como energético dos atores. Trabalhar estas dimensões
é procurar a precisão e a objetividade dos movimentos, assim como alcançar seus
coloridos e intensidade muscular característica e explorar como vetorizar o aprendido,
modelando-o de modo a conquistar liberdade no agir. No intuito de alcançar esse
objetivo, procurei dar estímulos variados aos atores, como diferentes tipos de músicas
que oferecessem pulsações diversas para dançar o Cavalo Marinho.
Após incorporarmos estas práticas de maneira a podermos brincar com elas, e
tendo passado mais de um ano de contato com o grupo pesquisado, chegou o momento
da festa. Algumas vezes assistimos ao Cavalo Marinho de Mestre Zequinha e fomos
convidados em determinado momento a entrar na brincadeira. Outras vezes, Seu
Nandinho me ligava e perguntava se queríamos ou se podíamos participar de
determinada apresentação do grupo. Neste momento, ele dava pra cada um de nós uma
coroa e uma gandola, espécie de sombreiro com fitas que os Brincantes usam no
pescoço. Prontos, dançávamos juntos com o folguedo que pesquisávamos.
92
Figura 13 – As atrizes Larissa Santana e Clara Talha do coletivo UZUME teatro participando de
apresentação do Cavalo Marinho de Mestre Zequinha. Foto: Alan Monteiro. João Pessoa – PB, 2010.
A festa acontece quando valores são comungados. Tanto nela quanto durante as
improvisações e preparações dos atores, a partir dos passos do Cavalo Marinho era
possível perceber outra lógica de pensamento, como se o corpo pensasse enquanto a
mente dançava. O pensamento enquanto vibração física, qualidade existente no ato de
pensar, mas nem sempre percebida pelo sujeito que pensa. É esta qualidade de vibração
que pode produzir um estado de experiência o qual, nesta pesquisa, se configura como
um hífen – um espaço de entre Ator e Brincante = Ator-Brincante.
Entre nós do coletivo UZUME teatro, participar de apresentações do grupo de
Cavalo Marinho de Mestre Zequinha era um vivência, um misto de satisfação e
experimentação. Satisfação porque nossa ética para com Mestre Zequinha e seu grupo
aparentava estar dando certo, estávamos conseguindo estabelecer uma relação com o
foco da pesquisa. E experimentação por mostrar um campo a ser explorado, vivenciado,
enfim, dançado. Na festa, podíamos nos divertir, mas também deveríamos observar e
testar os exercícios que praticávamos em sala de ensaio. Observávamos, especialmente,
as formas como os Brincantes realizam enraizamentos e lançamentos dentro da
brincadeira, principalmente por Mestre Zequinha, que demonstrava uma instiga
diferente da encontrada nas aulas a nós ministradas. Nessas aulas conseguíamos uma
relação direta de aprendizado, mesmo que parte desta afirmativa seja ilusão. Existia um
certo controle de nossa parte, pois podíamos pedir para Mestre Zequinha repetir o passo,
era possível observarmos de perto sua movimentação e percebermos seus detalhes,
93
55
Anotação de Fala proferida por Eugênio Barba em palestra na ocasião do centenário do Teatro José de
Alencar, Fortaleza – CE, 28/11/2009.
56
Idem.
95
57
Corpo-em-arte colocado em contato com as demais dramaturgias que compõem o espetáculo.
96
meus pensamentos”58. Assim, me vejo livre para brincar com a imagem proposta por
Ferracini (2006a) e pensar/criar outra a partir desta que auxilia minha compreensão e
funcionalidade de criação do corpo-em-arte.
58
Anotação de Fala proferida por Eugênio Barba em palestra na ocasião do centenário do Teatro José de
Alencar, Fortaleza – CE, 28/11/2009.
97
59
Extraído do texto Sobre a invasão do castelo da Dinamarca e a loucura de Ofélia, produzido
voluntariamente em 03/03/2011 pela atriz Larissa Santana durante o processo de criação de
rosmaninhos... Este texto está contido na íntegra nos Apêndices deste trabalho.
98
matriz. É através desses processos que mergulhamos na rede sígnica da poesia do ator,
procurando encontrar os meios de como transformar a poética do autor em ação, em
cena, em impulso, ou seja, da ação ao texto e do texto à ação e entre eles.
Assim entendo que, tanto nós, atores do coletivo UZUME teatro, quanto os
Brincantes populares, improvisam com a codificação e não improvisam a codificação. É
a partir da base, da raiz, que a corporeidade e a fisicidade do Cavalo Marinho oferecem
a arte de ator, que descobrimos as ações que irão compor o corpo-em-arte. Ela é um
referencial, um ponto de partida para o fluxo, para o rizoma. Neste rio encontram-se
infinitas possibilidades de recriação e re-significação do CM. Por sua vez, essas
modelagens da ação podem surgir a partir de estímulos diversos como: repetições,
variação tempo/ritmo (lento, rápido, sustentado, súbito)60, espacialidade da ação
(redução ou ampliação)61, da pulsação musical; a música do Cavalo Marinho propõe
uma pulsação, outros ritmos propõem outras pulsações, assim como outras roupas e
objetos também o fazem; diferentes indumentárias e adereços influenciam a execução
da matriz. Meu trabalho maior é este: estar atento ao inesperado e propor maneiras com
que o ator dinamize suas energias potenciais, fazendo ligações destas fagulhas com os
temas e a fábula que estamos trabalhando, tentando estabelecer relações poéticas entre
uma e outra. Pois, um ator por mais que saiba intelectualmente que deve dinamizar suas
energias potenciais de forma a criar o espaço transformando-o em lugar da troca-em-
arte, é preciso que o saiba na ação, pois não se toca uma ação, uma dinâmica, como se
toca um objeto – elas são percebidas.
A título de exemplificação do processo de ensaio para a modelagem do Cavalo
Marinho e a composição do corpo-em-arte dos atores, transcrevo as anotações feitas por
mim em um dia normal de trabalho com o coletivo UZUME teatro.
60
“É parar um segundo antes. É perverter o cotidiano de forma a construir para si uma segunda natureza
que eu conheço, mas, mais ainda, que eu reconheço”. (fala de Eugênio Barba, demonstração técnica de
Julia Varley, Fortaleza – CE, 27/11/2009 pela manhã).
61
“Como esconder os passos e gerar um deslocamento extracotidiano?” (Fala de Jesser de Souza –
05/02/09 – 7° dia e último dia).
101
- Perceber a relação de influência por meio do pé até mesmo provocá-la. Observar esta
relação não só nas transferências de peso, apoios, peso em energia (coloridos), mas
também nos toques, energias, ou seja, toda e qualquer influência que nasça nos pés e
afete todo o ator;
- Dentro desta exploração com os pés experimentar os passos do Cavalo Marinho;
- Explorar relação com o outro;
* Adicionei na experimentação os arcos.
Roda de Avaliação:
- Clara: dificuldade em movimentos fora de controle;
- Fragmentar o texto: dizer só uma sílaba de uma frase;
* Os arcos vistos como o rio, hoje ficou com uma cara de luta de Laertes com Hamlet.
Talvez experimentar cores e iluminação.
- É preciso não só incorporar os passos do CM, mas também a música que ele propõe, é
sua pulsação, seu ritmo.
- A repetição dura, fria parece oferecer mais equívocos do que materiais palpáveis que
forneçam alguma densidade. É preciso ter calma. Esta parte não está separada do todo.
É preciso passar por ela para se chegar a outro lugar e é nele que o fluxo parece se
localizar; num plano de consistência das ações onde elas aparecem muito mais firmes e
vivas.
- Despertar de pequenas tensões (impulsos), andar com isso, dançar o CM
fazendo/percebendo isso em seguida fazer a própria matriz com esta percepção, depois
fazer isso em dupla – dançar as próprias matrizes para o parceiro.
- Existe uma pessoa que pode auxiliar o ator a dar forma e intenção à matriz, seja eu ou
outro ator;
- Pegar uma matriz simples, que é viva e orgânica, e reduzi-la para realizar uma ação
cotidiana. * Outra forma é pedir ao ator que selecione, organize uma sequência com os
elementos corporais do CM (passos, loas, cantos, etc.) e, a partir desta dramaturgia,
trabalhar a carpintaria cênica ligando fábula e ação dos atores, permitindo, assim, a
descoberta das cenas e suas possibilidades de relação, de fuga.
Cavalo Marinho que originam o corpo-em-arte de cada ator, os quais, por sua vez,
deram origem aos discursos da encenação em Rosmaninhos...
Toda recriação propõe uma resignificação do discurso original, mas nem toda
resignificação configura-se em uma recriação. No condizente a este trabalho com as
corporeidades e fisicidades do CM, existe a possibilidade de realocação de uma matriz
encontrada na tradição do Cavalo Marinho para outro contexto cênico. Esta colagem por
si oferece uma resignificação do discurso original dessa matriz. Este tipo de organização
não modifica o principio físico criador da ação, no caso, o passo de dança do Cavalo
Marinho é passível de ser reconhecido, mesmo estando acompanhado de elementos que
auxiliem na multiplicidade de significados, de discursos a serem captados por quem os
observa.
A re-significação não redireciona intensamente o fluxo de criação a fim de
estimular a produção de outra ação com corporeidades e fisicidades vetoriais. Por
exemplo: em determinado momento a atriz executa o passo balanço falando tal texto,
com tal figurino, ocupando determinada disposição espacial, com uma luz específica,
enfim, dialogando com os elementos que compõem a encenação de tal forma que o
passo balanço ainda é identificado por mim como pertencente ao CM, mas não só. Ele
está num fluxo que potencializa os significados deste quadro – deste poema. A poesia,
por cima, produz um sentido lógico, mas, por baixo, trás um sentido icônico de sons,
imagens, comprimentos de onda e partículas discursivas que diferenciam a ação nela
mesma. Se na época da globalização o tempo caracteriza-se pela quantidade, o ator,
como um poeta, não vê só as palavras em seu valor de face, mas procura encontrar as
palavras dentro das palavras.
Talvez dentre todos os exercícios para estimular os atores na modelagem do CM,
a repetição seja o primeiro e mais óbvio processo. Todas as formas de modelagem do
CM são fruto dessa prática em maior ou menor grau. Estímulos diversos provocam
diferentes processos de repetição, a qual produz matizes, intensidades distintas de
diferenciações, gerando os processos descritos de descoberta de ações. É na repetição
que se observa uma mudança gradual dos elementos matriciais do CM, provocando as
possibilidades de estruturação de outro estado cênico vetorial, as experimentações sobre
estes mesmos materiais.
O trabalho com objetos na produção de ações seguiu um caminho semelhante
com a prática da repetição. Quando improvisamos com objetos parecem existir duas
105
instâncias: uma que chamarei de alegoria e outra que entendo por extensão. Na
primeira, o objeto ganha foco na improvisação parecendo que existem dois corpos: o do
objeto e o do artista. Na segunda o objeto não se diferencia da intenção, ou seja, da
tensão interna produzida pelo ator durante a improvisação, ao invés, aparenta tornar-se
uma extensão do que este faz durante o exercício. Ambas, acredito, são capazes de
produzirem uma organicidade, ou seja, uma capacidade de relação viva, no entanto, de
intensidades diferentes, com variações entre os matizes da energia.
Nas artes marciais existe um processo semelhante em que as armas encontram-se
numa relação primeira de alegoria, quando se tenta dominar, até mesmo interiorizar o
objeto. Nesta etapa é como se o artista apresentasse a arma. Na segunda o objeto ganha
interioridade e atinge seu objetivo de potencializar a capacidade mecânica do indivíduo
e ampliar a extensão de seu corpo. Nesse processo, objeto e artista formam praticamente
um mesmo corpo orgânico, talvez, no primeiro momento, hermético em si mesmo.
Todavia, é preciso não negar esta primeira conquista, mas deixar-se atravessar por ela a
fim de encontrar seu potencial de diferenciação. A matriz guarda esta potência de linha
de fuga do corpo em estado cotidiano para outro estado criativo.
A imanência é constituída e constitui o corpo cotidiano, então, pode-se pensar o
corpo-em-arte como um transbordamento dessa constituição. Algo que transcende, mas
não nega sua composição, ao contrário, parte de dentro dela, que junto com outras
práticas produzem zonas de fôlego, de criação e troca. É nesse contexto que podem
surgir linhas de fuga de si mesmo para um si-outro. Pensando desta forma, a questão da
“vida” das ações, se é um movimento vivo ou mecânico, pode passar por viés talvez
subjetivo, pessoal e até mesmo tendencionista. Eu sou fruto da minha história – de
minha memória. Diz-se que tais ações são fruto da sinceridade do Ator consigo mesmo
e, geralmente, produzidas com a ausência de racionalismos. É sua capacidade de se
colocar plenamente no exercício, deixando-se afetar pelos estímulos que aparecem e
reagindo a eles da forma mais verdadeira para com sua pessoa, ou seja, para com todo o
cone de memória que se atualiza num ponto do plano presente. A improvisação, nesse
contexto, seria um modo de aquietar a mente, o consciente do ator para sínteses de
pensamento e racionalismos. Ela o coloca num estado do imprevisto, o qual é rápido
demais para ser pego ou gerado pelo frio pensar objetivo, mas quente o suficiente para
que a pele, a pulsação, a percepção do corpo que é o ator, seja afetado no momento em
que algo lhe acontece. É este algo que produz um referencial que permite a retomada da
106
ação descoberta. Neste estado de improvisação ele não deve temer encarar o vazio e
deixar-se mover quando é arrebatado a fazê-lo. É um mergulho de espera, como
colocaria Larrosa (2002) – uma passividade feita de paixão.
Diz-se que tais ações comprometem o corpo enquanto bloco, como um todo
composto por partes relacionais que o formam, todavia, o todo não é feito de partes,
mas é a relação entre estas que forma o todo (DECROUX in BURNIER, 2001). Dizer
que o corpo todo está comprometido na feitura de uma ação é colocá-lo em relação com
a coluna vertebral na execução da mesma ação, pois é por meio dela que se compromete
o corpo como um todo – ela é o cerne da energia (GROTOWSKI, 2007). Os
movimentos da coluna irradiam a presença do corpo. Os pés podem causar reverberação
na coluna proporcionando, até mesmo compondo uma gama de variações dos coloridos,
de intensidades diversas da energia. “A coisa mais importante para o ator é o trabalho
com os pés”62. Parece-me que isto é o importante: não tanto a extensão, o tamanho do
movimento da coluna, mas sim suas intensidades. Todavia, para alcançar algumas das
demandas cênicas como, por exemplo, a distância entre o espaço cênico e o espectador,
seria necessário saber como juntar tamanho e energia da ação, quantidade e qualidade,
quando o que aparentemente se configuram como opostos se dão as mãos. É na variação
destas intensidades, que parece morar a gênese da corporeidade.
A energia é este colorido que dá tom e direção à vontade e ao desejo de
existência, seja da criatura (corpo-em-arte) seja no ser que o cria (corpo cotidiano). Mas
a energia não é só isso. Ela encontra expressão através disto, mas é também o que nos
modifica por dentro. É o que se movimenta no turbilhão de sentidos, sentimentos e
emoções do ser, pedindo ao corpo vazão, para além da fronteira primeira, imposta pela
pele. É isto que se irradia no tempo/espaço compartilhado por artistas e espectadores
com a potencialidade de transformar e contaminar tanto na ida quanto na volta. Esta
relação de transformação/contaminação é própria da existência de organismos vivos,
todavia, ela é modelada e até mesmo potencializada, fraturada para compor a troca-em-
arte.
O movimento vivo, a ação cênica viva, presente, pulsante, talvez até mesmo a
sinceridade no fazer do ator, seja temporal-histórico-econômico e, por isso, individual.
Talvez isso aconteça quando encaramos a ação como metáfora e não só em sua
62
Fala de Eugênio Barba, demonstração técnica de Julia Varley, Fortaleza – CE, 27/11/2009.
107
literalidade; um jeito de se chegar a este efeito é entendê-la como música, uma pulsação
referencial que, no caso desta pesquisa, é oferecida pela prática do Cavalo Marinho
proporcionada por Mestre Zequinha. É compreender o trabalho do ator como um poeta e
não um jornalista. O ator, neste pensamento, preenche o espaço com suas palavras não
de forma objetiva, na ideia de passar uma informação direta, fechada, mas transforma-o
em lugar povoado de poesia, metáforas que abrem ao invés de delimitar os discursos da
cena, potencializando, assim, as possibilidades de leitura.
Parâmetros como estes podem apresentar-se de forma relativa aos olhos de quem
os observa. Se perguntássemos a uma quantidade de espectadores que ator eles
consideram mais vivo, ou seja, mais presente, comprometido na realização de suas
ações, provavelmente não encontraríamos uma unanimidade nas indicações. Assim
como nós estamos sujeitos à formação de nossa passagem pelo mundo, as considerações
sobre o corpo-em-arte também. As organizações de Mary Wigman, Pina Bausch,
Stanislavski, dentre outras, correspondem ao momento histórico-econômico-social ao
qual elas pertencem. Isto não significa que estas ações sejam datadas e pouco tenham a
dizer aos artistas atuais. Elas se tornam em memórias, virtualidades que atualizadas se
reorganizam de modo a oferecer caminhos e significados atuais. Deste modo,
pensaríamos não mais com olhos do passado, mas entenderíamos essas teorias com os
olhos de nossa face vendo o que passou. É nessa ação que, por exemplo, Stanislavski
não estaria mais preso ao teatro naturalista do início do século XX, mas estaria lá e cá,
no hoje, na fala de uma atriz ao ver o espetáculo Shi-Zen 7 cuias (2004) do LUME
Teatro, montado a partir da técnica do Butoh-Ma e dirigido pelo coreógrafo japonês
Tadashi Endo. “Este é o espetáculo mais stanislavskiano que já vi. (Ferracini titubeia
com dúvida e exclama “como assim?”) É que as pessoas prendem Stanislavski no
formato que ele trabalhou. Vocês trabalharam neste espetáculo o que ele queria, que é
um comprometimento total do ator na feitura de suas ações”63.
Se o ator é o poeta do espaço, como já disse uma vez Artaud, observo que
existem fluxos na produção poética da ação. Ler os discursos do espetáculo é propor um
embate de repertórios entre as dramaturgias que compõem a encenação e o espectador.
Assim, poderíamos encontrar que os significados só existem na relação. Nesse sentido,
a obra de arte não tem significado; ela produz significado. Por sua vez, essa potência de
63
Renato Ferracini contou essa história em aula na disciplina “Treinamento Técnico do Ator” no curso de
Especialização em Representação Teatral oferecido pela UFPB nos anos de 2007-09.
108
relação no encontro é entendida neste trabalho do ator como a organicidade. É por meio
dela que se pode construir significados instáveis na encenação.
Desta maneira, as corporeidades e fisicidades encontradas no folguedo do
Cavalo Marinho praticado por Mestre Zequinha, ou seja, os passos de dança e suas
variações, as coreografias, cantos e aboios, foram encarados como portas, janelas,
frestas, rachaduras que possuem uma potência de fuga do plano de imanência cotidiano.
É nesta criação, que consigo perceber um redimensionamento do corpo cotidiano,
abrindo-o a afetações e contaminações, à troca, ao outro, seja ele público, elementos da
cena, etc. O passo de dança me faz pensar diferente, pulsar de outro modo que em meu
cotidiano frugal. Não há nele fábula ou síntese de consciência de causa e efeito que
racionalize suas cartografias. O que sinto é um vibrar que obedece a uma pulsação
particular, própria, não rígida, mas marcante e que me serve de guia. Posso sair dela e ir
para outros lugares, mas ela está lá, pronta a me receber, me acolhendo, me alimentando
para que novamente eu possa viajar e vislumbrar outras paragens, outras potencialidades
– comer outros pratos, que também virão compor meu metabolismo.
Em todo este caminho, a pulsação está lá, na memória e, quando necessária, a
lembrança reivindicará sua atualização acolhedora. Nessa trajetória são descobertos os
vetores que darão origem ao corpo-em-arte. É assim que a personagem nos chega em
Rosmaninhos... – aos poucos. É aos poucos que encontramos as intensidades, os
detalhes que, lentamente, compõem outra funcionalidade, uma dilatação que
presentifica a corporeidade ou, dito de outra forma, os discursos que formam as
potencialidades de leitura da encenação.
Rosmaninhos...
64
Fala de Eugênio Barba, demonstração técnica de Julia Varley, Fortaleza – CE, 27/11/2009.
109
O coletivo UZUME teatro em seu estatuto, tem por objetivo, dentre outros,
“Desenvolver a pesquisa no âmbito das artes cênicas e demais manifestações artísticas
culturais”65. Quando se escolhe um grupo se escolhe uma afinidade. No começo,
embora não soubéssemos bem o que significava e nem como fazer, sabíamos o que
desejávamos enquanto grupo: realizar pesquisas no campo das artes cênicas. Não
queríamos, apenas, montar espetáculos, mas pensar e propor práticas, nos melhorarmos
enquanto atores. Com o tempo, percebemos que tomando essa decisão, sempre nos
colocaríamos perdidos em sala de ensaio. O próprio processo e nossos desejos é que
acabariam por mostrar os caminhos.
Faltava-nos definir qual seria nosso foco. No começo tudo é muito movediço,
mas é preciso caminhar, mesmo que não se saiba para onde se está indo. Queríamos
trabalhar com processos que focassem a pesquisa, mas como fazer isso? Quando são
dados os primeiros passos eles são feitos por imitação, por uma tentativa de recriar em
mim uma ação que observo. Então, nesse tempo, eu começava meu curso de mestrado
no Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas da UFRN. Naturalmente propus meu
projeto aos integrantes do grupo como a primeira pesquisa a ser desenvolvida pelo
coletivo UZUME teatro.
Assim, fomos delimitando o foco de pesquisas do grupo. Primeiro, imitando as
fontes do projeto de mestrado oferecidas pela formação do LUME Teatro, definimos no
trabalho corporal técnico de ator. Com o transcorrer da pesquisa, vimos que todo nosso
processo não tem como centro o trabalho do ator, ainda estamos nos configurando nesse
65
Artigo 2°, I Tópico do Estatuto Social – coletivo UZUME teatro de 06/03/2009.
111
caminho, mas, até a conclusão deste trabalho, temos nos direcionado para o campo da
pesquisa de linguagem, compreendendo esta como as formas e técnicas contidas nas
dramaturgias que compõem um espetáculo, as quais se articulam no objetivo de compor
os discursos da cena:
O ser humano é uma obra e, como tal, eu posso lê-lo em suas diversas, talvez
virtuais e infinitas vicissitudes. Cada ser, indivíduo ou objeto, é composto por uma
linguagem; um repertório que está inscrito no corpo e o forma. É neste momento que se
insere o trabalho do ator, o qual procura um recurso técnico para poder explorar suas
potencialidades e descobrir uma corporeidade outra, vetorial à sua própria – à sua
própria linguagem. Aqui, procura-se entender técnica como a capacidade de articular e
ampliar o potencial mecânico e criativo, mas também pode ser uma porta para
descoberta de uma energia, da presença, de ações e estados corpóreos que possibilitem a
organização ou vislumbrem a potência de composições discursivas na cena e, por
consequência, do espetáculo.
Desse modo, pensar o espectador é pensar a linguagem do corpo. A teatralização
consistiria, então, em procurar o poético de modo a tentar descobrir as respostas à
esfinge, que é o espetáculo que nos quer devorar. Esta composição oferecida é fruto de
como o artista se alimenta poeticamente. É um reflexo de sua própria leitura de mundo,
que compõe sua linguagem, os discursos que de algum modo habitam o corpo que, ao
mesmo tempo é propriedade do artista e é o próprio artista. Dito de outro modo, a
composição do artista que utiliza um recurso técnico para mergulhar em si mesmo,
mostra como ele povoa seu imaginário. No caso deste trabalho, bem como o exposto
anteriormente pelo artista Helder Vasconcelos, esta proposta encontra no folguedo do
Cavalo Marinho um modo de fazer, uma formação específica que alimenta o artista, seja
ele Brincante ou não.
Com a concordância dos integrantes do grupo em participarem de meu projeto,
procurarmos formas de subsidiar nossas atividades. Até aquele momento, iniciávamos a
112
66
O projeto de montagem foi decorrente da adaptação de meu projeto de mestrado para as regras do edital
FMC 2009. Ele esta contido nos anexos desta dissertação.
113
criança internada no setor de queimaduras o que era um palhaço pra ela. A resposta nos
surpreendeu. Ela disse: um palhaço é um homem pintado de piadas”67.
“O que importa é realizar um processo e no decorrer dele alcançar algo
completamente inesperado. Para isso, é necessário fases de desespero, de dúvidas. O
importante é não parar!”68. No decorrer dos ensaios, parece existir um momento em que
a mágica explode e justifica toda inquietação e aperreio. Este instante surgiu quando,
passados alguns meses de experimentações sobre os passos de danças populares, os
atores utilizaram durante uma improvisação fragmentos do texto Hamlet, de William
Shakespeare. Eram trechos de falas das personagens de Hamlet e Ofélia, dentre outros.
Pude perceber nessa experimentação as possibilidades de explorar esta trama, junto ao
recurso técnico oferecido pelos modos de brincar o Cavalo Marinho aprendidos com
Mestre Zequinha. Ainda me restava saber como trabalhar este texto? Como me
apropriar dessas técnicas para que ela externasse nossa língua sem que ficássemos
reféns delas? O esforço partia agora, à busca de como abrir o diálogo entre texto e
técnica. A resposta seria dada a partir do nosso processo de trabalho com o Cavalo
Marinho.
No princípio, eu pensei que pudéssemos trabalhar com todo o texto, criando
saltos na atuação, oferecendo uma compreensão fragmentada da fábula a qual seria
unida pelo espectador. A partir dessa proposta, fui delimitando o foco para as
personagens Hamlet e Ofélia e as relações que estas estabeleciam em sua trama de amor
não realizado. Por fim, decidi centrar na trajetória de Ofélia procurando retratar suas
memórias, oferecendo um olhar particular de acordo com nossas interpretações
originadas ao estudar este texto de Shakespeare. Tentávamos compor a trajetória de
Ofélia e como havia percebido os acontecimentos ao seu redor. Já trabalhávamos com a
decupagem de ações, o que se assemelha a trabalhar com fragmentos, pareceu-me
natural trabalharmos com fluxos de memórias e lembranças. Para embasar esta prática
de seleção de textos recorri aos conceitos de Virtualidade e Memória abordados,
respectivamente, por Pierre Lévy (1996) e Henri Bergson. Como estou trabalhando com
os entendimentos de Renato Ferracini (2006a) sobre o corpo-em-arte visto que utiliza
estes conceitos filosóficos, procuro me valer de suas leituras para me auxiliar na prática
com estes conceitos.
67
Para mais informações acessar o sítio: www.doutoresdaalegria.org.br, visitado em 10/10/09.
68
Fala de Eugênio Barba, demonstração técnica de Julia Varley, Fortaleza – CE, 27/11/2009.
114
69
Página 79 desta dissertação.
70
Fala de Renato Ferracini durante a disciplina “Treinamento Técnico do Ator”, ministrada durante o
curso de Especialização latu sensu em Representação Teatral oferecido pela UFPB de 2007-09.
115
em caso particular de uma problemática mais geral, sobre a qual passa ser colocada a
ênfase ontológica” (LÉVY, 1996, p.18).
Diferente do que o senso comum possa cogitar, passado e presente constituem
um paradoxo ininterrupto. Enquanto o presente coloca-se em eterno devir, ou seja,
sempre está sendo em contínuo processo de formação – a memória é. Ela persiste na
forma de virtuais – de problemas que aguardam atualização:
[...] o presente não é; ele seria sobretudo puro devir, sempre fora de si.
Ele não é, mas age. Seu elemento próprio não é o ser, mas o ativo ou o
útil. Do passado, ao contrário, é preciso dizer que ele deixou de agir
ou de ser-útil. Mas ele não deixou de ser. Inútil e inativo, impassível,
ele É, no sentido pleno da palavra: ele se confunde com o ser em si
(DELEUZE, 2006, p.42).
A memória seria, então, nosso tema aglutinador. Não qualquer memória, mas a
que pretende refletir como a personagem Ofélia presenciou os acontecimentos à sua
volta. Por meio desse mote são selecionados os trechos da obra shakespeariana. Em
ambos os processos de composição de ações e textos, o que acredito ser importante é a
maneira como se improvisa sobre estas bases que, em nosso caso, configuram-se como
a brincadeira do Cavalo Marinho e o texto Hamlet de William Shakespeare. Conferimos
velocidade a estas matrizes à procura de um estado de improvisação no qual o ator
recria e imbrica seus elementos. Na desaceleração ocorre a síntese de ações no
adensamento das intensidades experimentadas pelo ator para a criação do corpo-em-
arte.
Quais as cenas que Ofélia participa ou que teve conhecimento de alguma forma?
Seguindo essa inquietação selecionamos alguns fragmentos de texto para nosso
trabalho. Outros criamos, pois alguns dos acontecimentos ocorridos com Ofélia são
narrados e não mostrados no texto. Um exemplo disso é a cena de seu afogamento, que
é descrita pela rainha Gertrudes. Procuramos dar nossa versão para esta ação da
personagem em nossa montagem, a partir de organizações descobertas em
experimentações e planejamentos de sala de ensaio. Essa característica contida no texto
nos oferece uma abertura para criarmos segundo nossas interpretações, estudos da trama
shakespeariana e a base técnica do Cavalo Marinho.
(2002) o teatro morto é esse teatro que troca a palavra por ela mesma e não o que ela
pode significar enquanto imagem. É um teatro que o espectador, ainda, é contemplativo
e não ativo, vivo, participativo.
Nesse processo de montagem cênica e organização do texto shakespeariano,
procurei ideias que oferecessem reflexos, na concepção de Burnier (2001), sobre o
trabalho de interpretação e representação do ator, que considero facetas de sua atuação
durante a cena. Ao utilizar estas ideias para a arte de ator, encontro eco na proposta de
Beigui (2006) ao falar sobre os processos de adaptação e apropriação de um texto para a
cena.
O ato apropriativo não se preocupa com a originalidade fixada, mas com a das
reorganizações cartográficas que podem realizar entre os elementos constituintes
provenientes da matriz estética pesquisada. Contrário à adaptação, que se refere a um
processo de ajuste, “uma ação genérica” (BEIGUI, 2006, p.17) que não entra em
conflito com a matriz utilizada, mas procura traduzi-la de forma harmoniosa. O ato de
adaptar se localizaria, então, em um decalque, um cortar-colar das matrizes estéticas
textuais para o contexto cênico. Nesta lógica, texto e ações se encontram em planos
paralelos de significação, diferente da forma encontrada no ato de apropriação que
mistura elementos textuais e de ação em um único preparado. O papel do ator e do
encenador consiste em realizar estas misturas de signos dispersos, diluídos,
fragmentados, os quais são pegos inadvertidamente pelo espectador que se localiza no
círculo de Moébios ∞, ou seja, no fluxo de possibilidades de leitura.
71
“O deslocamento é um ato político de sair do velho referencial, se distanciar dele sem perder o ponto de
partida e voltar, resignificando o próprio referencial” (Fala do professor Alex Beigui em aula do dia
27/04/09).
119
72
Fala da bailarina baiana Clara F. Trigo, no FESTIVAL CANAVIAL 2009, realizado na zona da mata
pernambucana - Seminário de Interações Estéticas 03/12/09.
120
Para isso, convidamos quem do público quer vir conosco, como havíamos
convidado no início. A atriz Clara Talha começa o primeiro texto de Ofélia com uma
poesia retirada do livro As águas que conversam de Carlos Nejar (2003), inserido em
nossa encenação a partir de propostas dos atores Vitor Blam e Clara Talha.
Quando ela termina, nós que estávamos fora de cena começamos um aboio. É a
trupe que chega para o casamento do rei Cláudio com a rainha Gertrudes – cena das
bodas de luto. O rei dá as boas vindas e começam os festejos. Para simbolizar essa festa,
seu corpo de baile e suas danças, optei por colocar algumas evoluções pertencentes à
coreografia da Dança dos Arcos, com as músicas Fulô e São Gonçalo do Amarante. O
público que optou por seguir conosco depois do acolhimento, dança nesse momento e
nos ajuda a compor a cena até o final da música do São Gonçalo do Amarante. Para as
bodas de luto, utilizamos um arco com fitas brancas, negras e vermelhas, diferente do da
chegada que é todo colorido. Arcos coloridos: alegria, festa. Arcos de fitas brancas,
pretas e vermelhas: bodas, morte, amor, sangue.
Atores e espectadores compõem o caminho para a noiva que nesse primeiro
momento, também, é representada por uma espectadora escolhida pela atriz Clara Talha.
Figura 16 – Ator Alan Monteiro e a participação do público na cena das Bodas de luto em Rosmaninhos...
Experimentação de espaço: bosque da UFPB. Foto: Lindinaldo Silva, 2011.
122
O rei termina seu anúncio de boas vindas e dá início à festa. Cantamos a música
da Fulô enquanto Clara e Vitor, Ofélia e Hamlet, cumprimentam os convidados. Seus
olhares se cruzam. Como estão diferentes. Eles se conheciam de crianças e nunca
tinham se visto como adultos. Este é o primeiro momento que se olham depois de
crescidos. Na música seguinte, São Gonçalo do Amarante, os demais atores que guiam
os cordões que dançavam em volta de Ofélia e Hamlet entregam a guia dos arcos para
estes, os quais passam a orientá-los como se os convidados dançassem ao redor deles na
festa, a festa é para eles – para o encontro no qual Hamlet e Ofélia se apaixonam. O
desejo de união entre estas personagens é recorrente no texto de Shakespeare. Tento
tecer um paralelo com isso através da letra da música São Gonçalo do Amarante, uma
vez que ela descreve o desejo de uma moça em se casar:
73
Retirada do encarte do CD Cavalo-marinho e boi-de-reis na Paraíba, produzido pelo Prof. Dr.
Agostinho Lima.
123
Nossa seleção de cenas parte das leituras dos atores sobre o que acreditávamos
que Ofélia presenciou ou teria tido conhecimento de alguma forma. Utilizamos para a
composição da cena elementos do Cavalo Marinho de Mestre Zequinha, como
coreografias, cantos, loas e aboios, que tivessem alguma similaridade ou que
pudéssemos fazer alguma ligação com o que se passava na peça. Mover estes elementos
do Cavalo Marinho de lugar e colocá-los numa encenação teatral gerava uma
composição que procurava dar outro significado a essa matriz.
Como já mencionado neste trabalho, os passos de dança ofereciam uma base
técnica com qualidades possíveis de serem modeladas pelos atores, dando origem a seus
repertórios de ações. Sem ter uma consciência clara ou proposital, me vali de outro
recurso da manifestação pesquisa para compor a cena final em Rosmaninhos...
No Cavalo Marinho, assim como em outros folguedos com partes encenadas,
existe, como mencionei no primeiro território desta dissertação, uma sequência de
entradas e saídas dos quadros que geralmente é respeitada. No caso do Cavalo Marinho,
o começo é marcado pela entrada das figuras do Mateus, do Birico e da Catirina. No
final quase sempre aparece a figura do Boi, seguida das salvas de Vivas. O entremeio da
brincadeira pode variar segundo as necessidades de tempo ou pessoal, pois, às vezes, o
Brincante que bota determinada figura não veio, a relação com o público, o tempo da
apresentação, ou até mesmo o brinquedo da figura não pode ser levado. Dessa forma, é
possível perceber que existe um repertório de ações e cenas ou quadros codificados que
organizam uma brincadeira do Cavalo Marinho. Não existe uma amarração rígida neste
folguedo – ele se modifica de acordo com os percalços e necessidades de seu
acontecimento. Existe um jogo de cintura, de improviso por parte de quem organiza a
brincadeira que, no caso do Cavalo Marinho de Mestre Zequinha, pode ser tanto Seu
Nandinho, coordenador e quem faz os brinquedos do grupo, ou mesmo Mestre
Zequinha que orienta os Brincantes durante a apresentação.
Para a última cena de Rosmaninhos... utilizei esse princípio de improviso sobre
elementos codificados. No final, existe o delírio de Ofélia, quando entramos em sua
(in)sanidade, procurando dar vislumbre às imagens do que aconteceu, acontece e o que
aconteceria com ela. Possibilidades de casamento, gravidez, felicidade, loucura,
sofrimento, morte – água e flores. A partir de algumas ações descobertas pelos atores
decidimos que improvisaríamos com elas. Existe a figura da morte azul, as falas da
rainha para Ofélia, o acalanto cantado por Laertes, por exemplo, materiais codificados,
124
74
Fala de Renato Ferracini em ocasião da Demonstração Técnica da atriz Naomi Silman “Não Existe Flor
Quadrada” – Terra Lume, 05/02/09.
75
Por acreditar que descrições aqui serão redundantes e incompletas, peço que o leitor veja o DVD do
espetáculo contido nos anexos deste trabalho.
76
Fala da Prof. Maria Helena em aula da disciplina “Metodologia do Trabalho Cientifico”, ministrada
para o PPGArC da UFRN em 30/06/09.
125
Canto Popular da UFPB que tocava rabeca, os acasos programados, que ajudam a
gente. Tentei algumas vezes entrar em contato com essa pessoa por e-mail, mas nada de
resposta deixei então o intento de lado. Passados alguns meses e com o desenrolar da
encenação, via crescer a necessidade musical tanto de instrumentos, quanto do canto
uma vez que cantamos muitas músicas juntos. Foi num show do grupo Mawaca em João
Pessoa no Ponto de Cem Réis, que encontrei a pessoa que me tinham sugerido meses
atrás na aula de confecção de rabeca. Tratava-se da professora Daniella Gramani77.
Anotei seus contatos e nos organizamos para ter aulas de rabeca, especialmente para
aprender a tocar algumas das músicas do espetáculo, e ela, ainda, nos ajudaria a
ensaiarmos as partes cantadas de Rosmaninhos... com o objetivo de cantarmos juntos.
O trabalho de Dani, como ela pediu para a tratarmos, foi direcionado à
montagem. Nas aulas de canto ela nos orientou de modo que ouvíssemos uns aos outros.
Ela também dividiu as músicas junto conosco, facilitando assim que as cantássemos,
uma vez que cantamos ao mesmo tempo em que dançamos, característica que não é
encontrada na manifestação do Cavalo Marinho. Ela nos indicou alguns exercícios
simples, como cantarmos sem nos vermos, procurando atiçar a audição para nos
escutarmos. Também nos mostrou maneiras fáceis de aquecermos a voz direcionando
para o espetáculo, fazendo, apenas, um vibratto com os lábios e alternando entre outro
com a língua no palato duro (céu da boca). Fazer estes exercícios com as músicas que
cantamos durante a encenação.
Nas aulas de rabeca Daniella nos mostrou como afinar a rabeca utilizando um
afinador digital. A partir das músicas do espetáculo, de CDs do Cavalo Marinho e de
encontros com seu Zé Hermínio rabequeiro, ela organizou uma escala para a afinação da
rabeca:
77
“Possui mestrado em Música (2009) pela Universidade Federal do Paraná, graduação em Educação
Artística - habilitação em Música (1999) e especialização em Fundamentos da Música Popular Brasileira
(2004) pela Faculdade de Artes do Paraná - FAP. Atualmente é professora efetiva do Departamento de
Música da Universidade Federal da Paraíba. É cantora, arranjadora e também toca rabeca e percussão. Foi
integrante do grupo artístico Mundaréu (Curitiba-PR) e é membro da Associação Cultural Caburé”.
Extraído da plataforma lattes em 03/04/2011.
126
Figura 17 – Legenda feira por Daniella Gramani para as aulas de toques de rabeca. Nela existem duas
afinações, a primeira em vermelho é mais aguda e a segunda de azul é mais grave.
Começamos a ter aulas na casa dela, onde nos mostrou a coleção de mais de
quarenta rabecas herdadas de seu pai, o músico, pesquisador e rabequeiro José Eduardo
Gramani78. Ela foi nos orientando a tocar a rabeca não por meio das notas, mas da
posição dos dedos e que, na maioria das vezes, só tocávamos as três primeiras cordas. O
dedo indicador seria representado pelo número 1, o dedo médio pelo número 2 e o
anelar pelo 3. A corda solta seria o número 0. A primeira corda, a mais aguda, seria
indicada com um traço em cima do número, a segunda corda com um traço no meio e a
terceira corda com um traço embaixo do número. No grupo, concordamos que para
indicar a quarta corda usaríamos uma bolinha ao lado do número. Assim, fomos
aprendendo a tocar a rabeca. Algumas músicas ela nos fornecia de ouvido e fazia a
partitura conforme segue o exemplo abaixo:
78
Autor da pesquisa Rabeca, o som inesperado, organizada por Daniella Gramani e publicada em 2002
com patrocínio da SIEMENS.
127
Figura 18 – Ilustração de Daniella Gramani de como fazer uma partitura seguindo a posição dos dedos.
O figurino foi concebido por outra profissional, Tainá Macedo. Ela é estudante
do bacharelado em Teatro da UFPB, com curso técnico em Figurino pelo IFPB. Foi
escolhida devido sua abertura ao diálogo da criação e por estar interessada em
desenvolver sua monografia sobre os elementos visuais do Cavalo Marinho paraibano.
Desse modo, a criação do figurino seguiu no tocante a tentar tecer imbricações entre a
concepção tradicional do texto shakespeariano e da indumentária encontrada no Cavalo
Marinho de Mestre Zequinha, gerando, assim, um misto entre a realeza que é tratada no
folguedo nas vestimentas da figura do Capitão Marinho e do cortejo de galantes, e da
noção datada proposta no texto de Shakespeare79.
79
Por serem vários figurinos, pois somos seis atores fazendo dez personagens e a trupe, optei por colocar
nos apêndices do trabalho figuras que mostrem o processo de sua criação. Em primeira proposta, Tainá
apresentou algo mais próximo do Cavalo Marinho. Fomos orientando no sentido de simplificar o projeto,
procurando conservar cores e propostas de movimento do figurino e dos atores.
128
Figura 21 – Cena final de Rosmaninhos..., da esquerda para a direita estão as atrizes Larissa Santana,
Clara Talha e Naiara Cavalcanti. 2° Experimentação com espaço: Teatro Cilaio Ribeiro. Foto: Lindinaldo
da Silva, João Pessoa – PB, 2010.
133
Figura 22 – Cena inicial de Rosmaninhos... com a atriz Clara Talha. 1° Experimentação com espaço:
Córrego. Foto: Thiago Alberine Silva de Araújo, João Pessoa – PB, 2010.
possibilidades do espaço e nos acostumarmos com ele. Nem sempre isso é possível
devido a vários fatores como a configuração do espaço, do trânsito de pessoas, do
tempo que temos para começar a apresentação, etc. Também concebemos de após essa
exploração ou no lugar dela, passarmos o espetáculo sem o público no lugar que ele será
apresentado. Uma espécie de ensaio geral no espaço. Todavia, essa logística demanda
muito tempo e desgaste dos atores antes da apresentação. Por isso, de acordo com as
possibilidades de organização, escolhemos por realizar a experimentação com o espaço
e/ou o ensaio geral nele no dia anterior ao da apresentação.
Como estamos trabalhando com o tema da memória de Ofélia, procurando estar
dentro de suas lembranças, de sua (in)sanidade, buscamos espaços que redimensionem
os assuntos abordados na peça. A ideia dessa lembrança compondo talvez os lugares
onde elas ocorreram, como o castelo onde se passa o texto de Shakespeare ou o bosque
com o rio no qual o autor sugere seu suicídio.
O espaço escolhido para a encenação possui uma trama de sentidos que pode se
relacionar com o texto e as várias dramaturgias do espetáculo. Sua historicidade,
arquitetura e como a cena se encaixa nela e prevê a participação do espectador, são
fatores que influenciam na percepção da peça. É tentar “pegar a engrenagem que é a
estrutura do espetáculo e encaixar no espaço”80. Da mesma forma, existem
conhecimentos que só vêem com as apresentações.
Tínhamos descoberto em experimentações que as lembranças que Ofélia devolve
para Hamlet podiam ser coisas variadas. O texto indica que seriam cartas de amor que
eles trocaram. Primeiramente, pensei que poderia ser a rabeca que Ofélia poderia estar
tocando, dando a ideia de que este instrumento foi um presente de seu amado. Ela
tocaria a música da Fulô, a qual foi tocada na festa em que se encontram pela primeira
vez depois de crescidos. Quando Hamlet entrasse na cena, ela devolveria esta
80
Fala de Ricardo Pucetti – Ator do LUME Teatro, TERRA-LUME 2009, Mesa Redonda: A
Teatralização dos Espaços – 04/02/09.
135
lembrança. Mais tarde, cogitei a possibilidade de serem cartas que Ofélia entregaria ao
público para este ler. Mas foi num ensaio que surgiu a proposta do ator Vitor Blam de
estas lembranças estarem na forma de barquinhos de papel, que em sua borda estariam
escritos algumas poesias trocadas entre os amantes. Este formato sugere ideias como a
viagem feita pela memória trazendo lembranças, ao mesmo tempo em que trás o
elemento da água muito presente na história de Ofélia. Em nossa última experimentação
com espaço, ocorrida num bosque da UFPB, este elemento ganhou um fator importante
para a encenação.
Neste dia choveu, mesmo assim nos abrimos à vivência e não paramos o
espetáculo. Os espectadores se abrigaram numa passarela próxima ao local da
apresentação e continuamos. Com a chuva, percebi que é necessário proteger alguns
elementos de cena como as rabecas. Todavia, a água que caia molhou o chão, os
figurinos e os barquinhos das lembranças, remetendo ao afogamento da personagem,
reforçando a ideia de uma imagem do passado que está sendo composta diante dos
espectadores. No término da apresentação um dos espectadores ressaltou a sensação tátil
de receber o barquinho molhado: “É como se eu pudesse tocar o espetáculo. Eu gosto
muito disso!”81.
81
Fala de Chavannes Procopio aluno do bacharelado em Teatro da UFPB. Experimentação de espaço:
bosque da UFPB, 31/03/11.
136
para que houvessem uma construção funcional, expressiva e segura de si. Isso é
conquistado na periodicidade do trabalho de sala de ensaio por meio da investigação
que busca vetores nas experimentações com o Cavalo Marinho, através das quais
descobrimos os discursos a serem trabalhados no espaço.
É o mergulho nas tramas que se apresentam, esmiuçando seus elementos, suas
corporeidades e fisicidades e os estímulos que elas ou propostas externas possam
contribuir para sua realocação, acarretando, assim, na descoberta das possibilidades do
espaço cênico. É nessa procura que pode nascer o brocado, o crochê, o desenho das
linhas de ação enredadas, entrelaçando a formar outro espaço-em-arte. Um espaço
tornado lugar da troca-em-arte anunciada pelo corpo-em-arte. “As encenações ganham
outros matizes em função da carga semântica impregnada nos espaços públicos, já que a
historicidade desses locais está arraigada no imaginário coletivo. Assim, uma igreja, um
hospital, um presídio ou um banheiro público possuem suas cargas semânticas que, na
interseção entre o texto e a encenação, possibilitam outras leituras em relação à ficção
(REBOUÇAS, 2009, p.180).
Ao fechar os discursos da cena é necessário certo nível de controle para que não
haja interrupções em seus canais de comunicação e realização. Ao escolhermos o
espaço da apresentação tentamos gerar esse mecanismo de controle produzindo
segurança nos realizadores. Quando alteramos o espaço e colocamos em algum lugar
aberto onde o controle diminui ou se torna relativo, a segurança não está mais no
espaço, mas em cada ator e sua relação – sua capacidade de modelar-se às vicissitudes
externas. “Isso é muito mais interessante, ao invés de ter uma linha para seguir, ter um
espaço inteiro para explorar”82. Ver o espaço e conceber as possibilidades de comportar
a encenação. É a capacidade de gerar fissuras e mostrar a verdade do próprio espaço
como relativa e não absoluta.
O acesso aos discursos contidos numa composição de fissura, fraturada,
geralmente não é conquistado por meio de leituras horizontais. É possível perceber que
a profundidade das interpretações está ligada ao nível de afetação de quem lê. Esse
efeito é conseguido graças ao receptor que se permite afetar e por meio da cena que
busca modos para afetá-lo. A composição cênica que trabalha com fluxos na ordem de
fragmentos exige a participação do público na completude destes discursos. Outro
82
Fala de Renato Ferracini durante o curso “Conceituações sobre o corpo-em-arte”, em 12/02/10 – 5° dia.
137
espectador, já viciado por uma dramaturgia fechada, poderá não se abrir às novas
percepções propostas por um modo diferente de organização. Esta postura fecha o
indivíduo ao acontecimento, protegendo sua individualidade e identidade, colocando-o
num espaço de eterna passagem e projeção. Num delírio contínuo do momento futuro:
“O teatro virou a ante-sala da pizza!”83. Este indivíduo, estando centrado em sua
individualidade e identidade, até mesmo sem perceber que está, rejeita a existência do
outro ou de um si-outro que porventura se apresente. É na busca de fissurar esta
constituição que a participação do espectador se faz necessária em Rosmaninhos...: para
organizar a obra junto à sua formação, enquanto indivíduo sócio-cultural-histórico-
econômico. Nesse contexto, ele pensa/cria as emoções a partir da percepção dos efeitos
poéticos e traços estéticos que compõem as possibilidades discursivas da cena.
Desse mesmo modo, um pensamento não compartimentalizado não é
necessariamente carente de objetividade. A forma de pensar não estruturalista obedece à
ordem de fluxos e não de um único fluxo estruturado, linear. É como o processo de se
montar um quebra-cabeça: não se obedece à ordem linear do encaixe das peças, pois
estão misturadas dentro da caixa do brinquedo. Sua montagem se dá pela ordem dos
encaixes das peças que se vai encontrando. Nesse processo, frequentemente, recorre-se
à memória para lembrar-se de algo que se achou no começo da procura e trazê-lo para
junto do que se apresentou depois, formando uma organização pessoal da leitura. Mais
ainda, parece que o espectador produz ou encontra peças que não estavam na caixa do
brinquedo, mas que se encaixam nele.
A objetividade de uma ordem de fluxos se encontra no embate entre repertórios
para além dos valores de face que a própria linguagem pode impor. É a objetividade
oferecida pela dinâmica do pensamento rizomático, a qual abre ao signo um processo de
diferenciação em si mesmo. Até mesmo um rizoma possui e produz territórios e
fronteiras, mas não previsibilidade. Posso até esperar encontrar algo nesses fluxos, mas
achar outras descobertas, umas inesperadas, outras diferentes dos objetivos almejadas
no início da pesquisa. Refiro-me ao pensamento rizomático que incluso numa pesquisa
pode impulsionar a produção dos objetivos desta, mas quase sempre arrasta outros em
sua conclusão.
83
Trecho de fala da peça-teatro “7 minutos”. Direção Bibi Ferreira, texto: Antonio Fagundes. Globo
Filmes, 2007.
138
As falas dizem muito nos textos de Shakespeare. Erigir uma ordem de fluxo, de
afetos e percepções em potência, seja caracterizada não pela ausência de voz, uma vez
que esta parece ser super valorizada no drama de causa e efeito. Uma composição de
fluxos se caracteriza pela enxurrada de falas e/ou de ações. Numa composição
aristotélica, a fábula é contada por meio de diálogos. É neles que as ações do ator
ganham sustento ou vêm auxiliar a tradução do texto teatral.
Na composição que procura outro fluxo, as ações do ator oferecem um discurso
impreciso, com lacunas e frestas acerca do que trata a peça. Esta organização tenta
oferecer outra dimensão para a dramaturgia do ator do que a literal. A temática do
espetáculo e suas leituras se tornam borboletas, pequenos beija-flores ou até mesmo
escorpiões prestes a picar o espectador ou voar sobre ele. Essa organização de ações e
textos imbricados, cruzados, atravessados, propõe ao espectador leituras dos discursos
contidos na encenação, às vezes de forma não proposital, mas potencial ao plano da
criação artística no qual este desenvolvimento se encontra. Composições incompletas
tocam o passado comprimido no presente corpo do espectador, gerando leituras
imprevisíveis manifestadas em falas do tipo: “quando Horácio chega de barco”, “o
medo dela estava no pé e não no rosto”. Relatos como estes mostram o espectador como
um cúmplice do ator em guardar um segredo particular, descoberto no segundo da
fugacidade da ação que, talvez, para o vizinho deste mesmo espectador confidente, nada
venha significar.
Na incompletude das ações e falas que constroem os discursos do espetáculo
encontramos a inutilidade deste mesmo casamento. Paradoxalmente, este inútil arranjo
não é visto como algo vazio, sem sentido ou utilidade objetiva, funcional na composição
cênica, mas algo que espera completude no contato com o espectador. Observando
dessa forma a inutilidade de uma ação ou a utilidade não programada na composição
cênica, posso considerá-la um potencial que aguarda no corpo perceptivo e ativado do
espectador, explicação, leitura, conferindo uma funcionalidade pessoal aos discursos
contidos na encenação.
Seguindo o raciocínio anterior, o tema de uma pesquisa ou o título da fábula,
seja ela conhecida ou não, me fornecem, enquanto espectador, uma deixa que auxilia a
percepção das discursividades contidas nos fluxos da encenação. Principalmente,
quando esta se destina a propor leituras alheias a causas e efeitos, a psicologismos, os
quais podem estar presentes na encenação, porém não é seu foco. Os discursos
139
TERRITÓRIO IV
O entre do carvão ao corpo-em-arte de Ator-Brincante
Esta dissertação teve como mote refletir sobre as experiências adquiridas durante
a pesquisa que buscou experimentar formas de composição do corpo-em-arte
(FERRACINI, 2006a), por meio das corporeidades e fisicidades encontradas na maneira
como Mestre Zequinha brinca o Cavalo Marinho. Ela teve orientação metodológica nas
etapas de Observação Ativa e Composição do corpo-em-arte, as quais foram resultantes
da apropriação do coletivo UZUME teatro sobre a técnica de mimeses corpórea
proposta pelo LUME Teatro. Este processo culminou na montagem do espetáculo
Rosmaninhos... a partir de fragmentos do texto Hamlet de William Shakespeare,
organizados no sentido de propor um fluxo de lembranças provenientes da memória da
personagem Ofélia. Participei desse processo junto ao coletivo UZUME teatro como
encenador e posteriormente como ator.
Quando em 2006 conheci o Cavalo Marinho, pude perceber uma potencialidade
intrínseca à qualidade de suas ações e aos modos de uso do corpo contidos nessa
manifestação. Isso afetou simultaneamente minha vivência no trabalho como ator e de
identificação com danças populares, onde passei a acreditar que poderia transpor as
qualidades deste para aquele universo que despontava como minha profissão. Isto e o
desejo de me aproximar tanto físico quanto relacionalmente de um folguedo dessa
natureza, me levaram a propor a experimentação de um processo de composição do
corpo-em-arte a partir de como Mestre Zequinha brinca o Cavalo Marinho como foco
desta pesquisa.
Quando comecei a compor o corpo-em-arte dessa dissertação, pretendia fazê-lo
com a mesma característica do conhecimento popular: às vezes ele parece ser
redundante, mas eis que de repente, como uma fagulha que cria o incêndio, surge a flor
que justifica toda redundância. O que achava ser o menos importante parece dar base ao
florescimento.
É interessante pensar que existem objetivos diferentes: uns querem estabelecer
fronteiras, torná-las visíveis para que suas criações configurem raios de luz, frestas de
141
fuga de outro lugar. No caso desta pesquisa, a linha de fuga chega quando a fronteira
entre os níveis de vibração e qualidades como precisão e presença existentes no Cavalo
Marinho e em nós, Uzumes, começa a borrar, tornando indiscernível estes dois
territórios ou a divisão entre eles, mesmo que isto seja momentâneo e ilusório, utópico.
A reflexão, a teoria no teatro vem ajudar isso. É uma forma de tornar as coisas menos
intuitivas dando nome aos bois, de se saber onde, em que território se está.
Chegar a esta encruzilhada final é encontrar com outros olhos o porto do qual se
partiu. Olhos estrangeiros, nômades. Olhos que enxergam o lar de forma diferente,
estranha, distanciada e, devido a isto, resignificada, recriada. Encontrar-se na
encruzilhada final de um escrito é sentir que deve explicações sobre o feito, e, agora,
pode dá-las para as nuvens que insistiam em deixar nubladas as visões no início da
caminhada, as quais ainda existem, porém, agora com um tom de amizade e não mais
como dívidas e credores aos quais não se tem dinheiro ou bens que quitem o débito.
Na busca por fazer dialogar os territórios desta dissertação, culminando assim
num fluxo de retroalimentação do qual Rosmaninhos... é um adensamento, um florir e
florecer. É nesse ponto que retorno e proponho explicar o mais básico material de
composição deste escrito: seu título.
É de Carvão que é feita a máscara das figuras do Mateus, do Birico e da
Catirina. O vejo como persona que não esconde, mas vetoriza a funcionalidade
cotidiana do corpo. Uma dobra deste cotidiano rumo ao corpo-em-arte. Encaro este
Carvão como uma matriz, ou seja, uma ação orgânica codificada. Ele é mater, insumo
fundamental através do qual a liberdade de variações, organizações de diferenciação e
improvisação ganham vazão. No título desta dissertação ele tem a funcionalidade da
síntese que condensa em si toda a manifestação no Cavalo Marinho estudada. É o ponto
de partida de nosso vetor.
Procurei formas de vetorizar essa matriz, buscando seus redimencionamentos
para a composição do corpo-em-arte de outro artista cênico que não o Brincante, e para
a descoberta de outro lugar de troca-em-arte, para além do encontrado na brincadeira do
Cavalo Marinho.
A preposição de é assumida a partir das práticas propostas nas pesquisas do
LUME Teatro, as quais serviram de inspiração na construção desta pesquisa. Além de
não distinguir gênero, ela oferece à profissão de ator um importante caminho: o da soma
de práticas no intuito de deixar-se atravessar e contaminar-se pelo que lhe tocar e se
142
mostrar funcional aos desejos, propondo modos de trabalho para a criação. O Ator-
Brincante é o profissional que realiza essas emendas e sabe onde elas foram feitas. Ele
esta entre os fazeres do Brincante popular e do Ator que encontra em expressões da
cultura popular o desencadeamento de um processo de identificação. Este entre, então,
assumiria o caráter da percepção do potencial que a prática do Brincante pode
proporcionar ao trabalho de Ator. É encarar este fazer em estado de entre como uma
exploração de fissuras.
Nesse espaço de entre do Carvão ao corpo-em-arte de Ator-Brincante que se
localiza os conteúdos desta dissertação.
Muitas coisas surgiram que eu nem imaginava, muito menos concebia para o
espetáculo. O título, detalhes das cenas, organizações, eu mais orquestrei as
composições do que literalmente as produzi. Talvez minha principal preocupação com
os atores tenha sido de como transformar opiniões em perguntas, reflexões sobre o
próprio trabalho e seus modos de composição. E como eles se demonstraram entregues,
disponíveis. Talvez não no começo, quando éramos somente Clara, Vitor e eu. Tive que
provar que o que eu acreditava era um caminho e não somente um devaneio, uma
loucura. Depois vieram Bertrand e Larissa, por meio das oficinas de Cavalo Marinho,
em seguida Naiara, por indicação minha após ter feito uma oficina com ela, onde sua
presença e entrega me chamaram a atenção.
Estes escritos e a arquitetura de Rosmaninhos... se devem a mim? Sim, e a todas
as mãos, pés e gênios que participaram dessa sinfonia. Como encenador eu tenho diante
de meus sentidos uma situação que carece povoamento e a isto se lança meu desejo:
descobrir e propor agenciamentos, estímulos aos atores para que eles, munidos de um
estar decidido, que, talvez no caso desta pesquisa seja proveniente das corporeidades e
fisicidades do Cavalo Marinho, partam na procura do que não possuo: as ações e
presenças diversas, os conceitos que virão a compor e povoar as circunstâncias, este
espaço de entre; lugar potencial, lar do corpo-em-arte.
Eu concebi a pesquisa e o espetáculo decorrente dela, mas no caminhar do
projeto ela se tornou mais do que eu esperava. Apontou outros conhecimentos, produziu
experiências. Eu somente tive que fazer uma coisa: estar aberto a ouvir, experimentar e
organizar os discursos que se apresentavam durante a pesquisa. É um processo que
encara o conhecimento nômade, uma arte lacunar que ganhava existência por meio dos
ensaios com os atores. Espectadores também, mas são os atores que passam mais tempo
143
Não existe regra. Não existe fio condutor que prenda todos os processos
criativos, mas, como Barba (1995) nos fala, existe entre eles, em um nível pré-
expressivo, princípios que retornam. É preciso ao artista saber desapegar, se abrir e
deixar os acontecimentos o atravessarem e contaminarem. Cada caso dependente de
suas necessidades criativas e formativas. Acho que um processo de pesquisa pode ser o
eixo que permeia a escolha do processo criativo e como o artista trabalha ele: quais são
os elementos que ele irá modelar para originar sua criação? No meu caso é a
corporeidade/fisicidade contida nos modos de Mestre Zequinha brincar o Cavalo
Marinho. Como o artista pesquisador pode se valer deles modelando-os a fim de suprir
necessidades da criação, tais como a preparação e a composição? É preenchendo meu
tudo, o corpo que sou, com seus saberes e técnicas, com outros tudos e gerar um fluxo
entre estes territórios. É nesta dinâmica que concebo o corpo-em-arte.
É experimentar fazer junto os movimentos do Cavalo Marinho ou recriações
destes e uni-los ao texto. No final teríamos duas cartografias: uma de ações outra de
textos; uma junto à outra. Assim, existem várias dramaturgias em um espetáculo,
focamos nosso trabalho em duas: a do autor, textual, e a do ator, de ações. São dois
fluxos, dois rios, duas marés nas quais a criação está nas explosões que uma pode causar
na outra, formando assim uma terceira composição, uma efígie, um terceiro signo; um
terceiro discurso que não está nem no território do autor, nem no do ator, mas numa
zona de entre – na partícula e do rizoma que une estes territórios. É o hífen que
encontramos em várias palavras para designar a junção de fazeres e profissões: ator-
bailarino (BARBA, 1995), ator-compositor (BONFITTO, 2007), a dança-teatro de Pina
Bausch e, no caso desta pesquisa, o Ator-Brincante.
Mesmo que não tenha conseguido explorar todo o intento desta pesquisa, ao
menos esta aponta um vislumbre sobre uma possibilidade que acredito ser amplamente
válida: o processo de aquisição e modelagem das corporeidades e fisicidades contidas
na prática de um Brincante do Cavalo Marinho para a arte de ator na composição do
corpo-em-arte. Este trabalho configura, apenas, um exemplo daquilo que atravessa o
artista e o afeta, o contamina de forma a apontar vetores que potencializem seu trabalho.
Isto desemboca numa proposição cênica de acordo com minha cultura ou, ao menos,
com movimentos culturais que me identifico a cada instante com seus próprios
processos de manutenção e diferenciação.
146
Talvez minha prática forneça um relato muito pessoal, alguns vislumbres muito
particulares pertencentes a uma experiência inserida num contexto histórico, social e
espaço-temporal específico. Mas toda prática não é isto: um olhar da sombra do que
passou para vislumbrar o hoje, o agora, a respiração de cada segundo que compõe a
ação? Desse modo, estaremos todos num mesmo rizoma. Possuímos princípios comuns
em formatos artísticos distintos que nos unem pela correnteza de macro e micros
saberes e devires, conhecimentos que eclodem e explodem nas flores e dos brotos
indissociavelmente imbricados que propõe o rizoma. Aprender a aprender como uma
abertura, uma capacidade de reorganização e resignificação de matrizes, de
conhecimentos, de fluxos em um plano de criação rizomático que nada nega e a tudo
acrescenta.
A dificuldade de desenvolver um processo em rizoma deverá estar quando nos
consideramos talentosos demais e já sabemos de tudo. É confortável repetir o
conhecimento, ao invés de arriscar com algo que desconhecemos, correndo o risco da
descoberta. No teatro é doloroso e caro abrir mão do que já sabemos funcionar. É difícil
para nós cair num mar de desconhecimento e nadar rumo a uma praia que nem sabemos
ser verdadeira sua existência. Como é possível a descoberta senão pelos vetores do que
já sabemos? Para encontrar algo é necessário se perder, estar nu e frágil tal como
viemos ao mundo, mas com o corpo do hoje – no hoje. Como podemos descobrir algo
senão pelo risco, pelas vias da dor e do amor, pelo desagradável, pela incerteza
movediça da dúvida...?
O que quero dizer no final das contas: se perca. Só assim se encontra o caminho.
Não queira errar ou acertar. No decorrer de um trabalho isso pouco significa. O que
importa é tentar – errar ou acertar se apresentam como decorrências desse processo.
Deixe que as coisas venham e partam, que lhe atravessem e contaminem do modo que
seus agenciamentos se organizam. Não existe mudança sem dor, mas ela passa quando
se chega a desacelerar e condensar algumas das inúmeras descobertas que se
apresentam durante os ensaios. Nesse momento é que se chega a cena, a apresentação e
a brincadeira, ao lugar da troca-em-arte – do corpo-em-arte.
147
Figura 23 – Posicionamento dos atores para cena inicial de Rosmaninhos.... 3° Experimentação com
espaço: lateral do Theatro Santa Roza. Foto: Lindinaldo Silva, 2011.
148
REFERÊNCIAS
- ______. Corpos em fuga, corpos em arte, Renato Ferracini, organizador. São Paulo:
Aderaldo & Rothschild Editores Ed: FAPESP, 2006b.
- ______. LUME: 20 Anos em Busca da Organicidade in SALA PRETA (USP), São
Paulo, v. 5, p. 117-128, 2006c.
- FRADE, Cáscia. Antologia de folclore brasileiro / [Organizado por] Américo
Pellegrini Filho. – São Paulo: EDART; [Belém]: Universidade Federal do Pará; [João
Pessoa]: Universidade Federal da Paraíba, 1982.
- GROTOWSKI, Jerzy. Revista Máscara, octubre 1992/enero 1993, Originalmente
conferência em Módena, Itália e na Unversity of Califórnia, em 1989/1990. Tradução
Jaime Soriano, Hernán Bonet e Fernando Montes, retificada e autorizada pelo autor.
- ______. O Teatro Laboratório de Jerzy Grotowski 1959-1969 - textos e materiais
de Jerzy Grotowski e Ludwik Flaszen com um escrito de Eugenio Barba; curadoria de
Ludwik Flaszen e Carla Pollastrelli com a colaboração de Renata Molinari; tradução
para o português: Berenice Raulino. São Paulo: Perspectiva: SESC; Pontedera, IT:
Fondazione Pontedera Teatro, 2007.
- HUIZINGA, Johan. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo –
SP: Perpectiva, 2007.
- JIMÉNEZ, Sergio. El evangelio de Stanislavski segun sus apostoles, los apocrifos,
la reforma, los falsos profetas y judas iscariote. México: Grupo Editorial
Gaceta,1990.
- LARANJEIRA, Carolina Dias. Corpo, Cavalo Marinho e dramaturgia a partir da
investigação do Grupo Peleja. Dissertação de mestrado em Artes – IA-UNICAMP e
orientada pelo Prof. Dr. Renato Ferracini, aprovada em agosto de 2008.
- LAROSSA, Jorge Bondía. Notas sobre a experiência e o saber de experiência in
REVISTA BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO, Jan/Fev/Mar/Abr 2002 n.º 19.
Disponível no sitio: http://www.anped.org.br/rbe/rbe/rbe.htm, visitado em 17/07/09.
- LÉVY, Pierre. O que é o Virtual; tradução de Paulo Neves. São Paulo: Ed 34, 1996.
- LEWINSOHN, Ana Caldas. O Ator Brincante; no contexto do Teatro de Rua e do
Cavalo Marinho. Dissertação de mestrado em Artes – IA-UNICAMP e orientada pelo
Prof. Dr. Eusébio Lobo da Silva, aprovada em janeiro de 2009.
- LIMA, Agostinho. Cavalo-marinho e boi-de-reis na Paraíba, encarte de CD
produzido por meio do Edital PETROBRÁS de Cultura, 2010.
- LINS, Osman. Os melhores contos de Osman Lins. São Paulo: Global Editora, 2003.
151
APÊNDICES
* Memória não só do que foi, mas também do futuro, do que poderia ter sido. Exemplo:
Ofélia noiva, casada com Hamlet, Ofélia grávida.
- Trabalhar com saltos, pulos na atuação, transformações entre o CM, partes dele que
podem também ter significação ou não no texto de Hamlet, e dessas partes saltar para
cenas de Hamlet, fazendo isto sem nada dever à cronologia do texto, mas sim à sua
fábula; de sua dramaturgia organizamos a nossa própria. Exemplo: imagino o Mateus e
o Birico, uma cena burlesca que poderia ter a ver com a cena que Hamlet apresenta a
peça ao Rei. Quando estes dois palhaços se enroscam no chão, disto poderia ir se
transformando numa cena de sexo de Hamlet e Ofélia. TALVEZ – o figurino e os
adereços são essenciais para que isto aconteça.
tanto para observar estrelas distantes, como a janela do vizinho. A nova, mas não tão
nova dimensão do natural se dá pela lupa que a câmera filmográfica produz. É o
advento do voyerismo do detalhe, juntamente com a sociedade do virtual, do simulacro.
- A noção do espaço/tempo altera a percepção.
16/11/11 → É preciso dar algumas vezes orientações diretas, mas direcionadas para a
composição do que se quer compor em cena.
25/11/10
- Uma matriz descoberta no calor da improvisação já constrói por si mesma um
estranhamento e é por ela mesma uma presentificação, uma individualização das ações
que temos como inculturadas em nosso cotidiano (citação de Barba sobre técnica
inculturada?).
→ A ideia do começo do ensaio, as partes de alongamento e aquecimento, é que ele
comece sem que os atores percebam.
* Um exercício mais avançado é, depois de percebida a pulsação dos passos do Cavalo
Marinho, levar ela para outros lugares até chegar ao ponto de se estar parado, mas
dentro da pulsação.
29/05/10
- Clara experimentando o “balanço” como uma Ninfa;
- Vitor com o “trupé rebatido”, bem mais lento e as mãos meditativas;
- Vitor com o galope e o braço direito à frente, um rei que chega em seu cavalo, depois
misturou com “um passo só”;
- Clara com “passo tesoura” na guerra;
- Vitor com esse caminhar do Ambrósio, misturado com o mergulhão, e esta cara de
medo quando entra na guerra;
- Vitor com os cordões dos arcos nos braços fazendo seus desenhos;
- Clara também com os arcos desenhados nos braços mas de forma mais suave;
- Clara com um “passo tesoura” bem desenhado, lento, e no final marcado no chão;
- Vitor só andando no ritmo do campeia;
- Vitor desesperado fugindo com algo parecido com “xaxado”;
- Clara só com a marcação dos dois pés;
- Vitor com o caminhar no ritmo da música do Governador
- O arco que pode ser capas de chuva, bandeira, Santidade, que esconde e mostra a cara
de Vitor. *Duelo como duas cobras*
- Arcos que se cruzam são espadas que batem e formam o infinito. Do duelo, volta para
os amantes que trocam juras de amor;
- Esse som do balançar do arco como cobra é muito interessante;
22/06/10
- Clara experimentando o “passo balanço” e lançamento e raiz com o texto de Ofélia da
morte do pai;
- Vitor experimentando enraizamento, com pêndulo e lançamento, fazendo uma espécie
de aboio: “Voa, voa, voa...”
11/10/10
- Vitor fazendo movimentos com o pano como um pássaro;
* Acho que cada um pode ter uma célula, uma composição para a chegada que pode ser
vista de longe ou eles dançarem livres (?)
- Eles podem dançar sozinhos e depois se juntar;
- Bertrand- fantasma girando
- Ritual: UZUME – Morte de Ofélia – peça encenada para o Rei
→ Uso do “trupé rebatido” como sonoridade durante a cena das bodas de luto (fala do
Rei Claúdio).
13/10/10
- Larissa com um samba no meio do galope;
- Bertrand com uma mistura de galope, balanço com um braço de despedida;
- Bertrand fez uma sequência com o galope que tinha um som bem interessante.
02/11/10
- Bertrand: parada com o dedo da mão direita;
- Clara: parada com olhar e caminhar do Ambrósio;
- Vitor e Clara: Vitor guiando Clara atrás dela pela cabeça;
- Bertrand e Clara: girando. Bertrand em um sentido com uma espécie de galope. Clara
em outro sentido e sobre o mesmo eixo, com passo-balanço. CENA DO ADEUS
começo;
156
LARISSA:
- galope sambado;
- galope de guerra – entrada de Hamlet
- saudação/comprimento com passo carvão (CM Pernambuco);
CLARA:
- Sequência de Ofélia “me pegou pelo pulso” – experimentação no espaço.
VITOR:
- Mergulhão desequilibrado;
- Balanço sem fôlego;
- Movimentação com os arcos;
- Juntar todos os arcos e colocar qualquer passo;
- Saudação fora do equilíbrio;
- Trupé rebatido com guinada.
* → Codificação: uma pessoa fala um texto, enquanto outra pessoa experimenta,
improvisa uma sequência.
16/11/10
- Na trupe todos podem estar juntos, fazendo o mesmo passo, mas improvisando ele de
formas diferentes
*→ É preciso dar algumas vezes orientações diretas, mais direcionadas para a
composição do que se quer propor enquanto cena.
25/11/10
* Fazer arcos de várias cores.
→ Fazer estandarte do grupo.
*Larrisa: Ofélia pode ter arcos brancos na hora da sua morte.
* Clara: quando ela estivesse bem alegre.
157
* Durante a dança de Ofélia e Hamlet com os arcos, os outros atores podem continuar
dançando.
- Bertrand: caminhada lenta com passo da luta quando se fala do funeral.
11/12/10
- Vitor: pequena carreira com pegar da estrela;
- Larissa com bastão estátua caminhando e tirando som com batida do bastão no chão
- Naiara já tem uma suavidade que lhe é própria – direcionar isto para Ofélia!
- Naiara mãos nos cabelos;
- Coceira das mãos de Vitor em Naiara – cena da devolução dos presentes;
- Clara e Larissa – carreira juntas com a fala Afogada;
- Vitor batida no peito e que no chão – falando da mãe;
- Vitor „sem mais escorias‟ com mão tremendo;
- Girada Clara, Vitor e Larissa;
- Fizeram do bastão o corpo de Ofélia – pode ser um buquê (?);
- Bastão como mastro de fitas (?);
* Existem algumas falas de Polônio que podem ser ditas por Hamlet e ganharem outra
conotação – cena da despedida de Laertes, Hamlet pode estar presente.
14/12/10
- Naiara com trupé rebatido e um olhar caído no chão;
- Larissa com o passo de guerra, deixando a perna mais tempo no ar;
- Larissa puxando rede;
15/12/10
- Bertrand com uma chegada parecendo uma figura do C.M;
- Larissa com uma queda para um lado e para o outro, ondulando, girando;
- Larissa galope parando no último passo;
- Larissa balançando descendo como se descesse um véu;
- Larissa com passada de pé em ¼ de circulo e mãos que guardam um segredo que ela
leva a boca e engole;
- Bertrand chegando perto de Larissa “Vigia”!;
158
- Bertrand vai sair no primeiro texto de Polônio e ele o trás de volta para lhe dar os
conselhos.
20/12/10
- Naiara com um caminhar desequilibrado, uma queda, ida ao chão e recuperação
rápida, parada, neutra. Ou seja, movimentação rápida, queda e recuperação, parada.
21/12/10
Naiara quando fecha o olho é outro discurso, variação de mãos balanço suaaaaave com
pequenas paradas, calcanhar levantado, a mesma coisa com o passo galope;
- Girada do passo galope na marca de um tempo para o outro. Compromete a coluna.
- Carreirinha baixa, plano médio;
- Vinda de frente com passo galope meio como corredora;
- Cabelo, franja, sobre o rosto molhado;
- Correndo com galope dizendo que o príncipe escreveu as cartas;
- Fragmentação do trupé rebatido lento, decepcionada... Tum, tá, tá, de
- Olhar decidido junto com passo de guerra.
22/12/10
- Jogada de Cabelo para o chão e retomada com as mãos cruzadas por debaixo dos
cabelos. Meio ajoelhada. → Esta jogada de cabelo pode ser para o público? Seria
interessante fazer isto para o espectador, talvez em cima dele? Propor este tipo de
relação?
- Continuidade no trupé rebatido. Não fazer a última batida de virada. Isto da uma
continuidade ao movimento, ao passo.
23/12/10 – Naiara
- Passo balanço de lado, olhar para o chão como estátua;
- Redução do trupé rebatido no espaço;
- Virada brusca com o Galope. PARADA. Olho;
- fazer o balanço com as mãos frente/baixo no corpo;
- Trupé rebatido na pulsação da música “Contraditório” do DJ DOLORES. Faixa 4;
159
→ Posso reduzir o passo de guerra nela até ficar só a energia, a pulsação dentro e o
caminhar fora;
- Fazer o xaxado no ritmo do galope;
- Viradas – música 5 DJ DOLORES.
Texto produzido pela atriz do coletivo UZUME teatro Larissa Santana após
improvisação
Vou precisar de você! Cresci! Seu rosto não é nítido em minha lembrança, mas
me prometeu que papai cuidaria de mim e me pediu para lembrar, rosmaninho é pra
lembrança me disse antes que sua doce voz sumisse para sempre.
Desde então papai tem sido minha mãe e meu pai, Laertes minha melhor amiga e
meu irmão. Gostaria de que você estivesse aqui agora, Hamlet vem me cortejando, sei
que como donzela não posso dar-lhe tanta atenção, mas jurou me amar... Fui feliz algum
tempo, acreditei é bem verdade, mas um dia me chegou alguém, sussurrando coisas pra
minha desgraça, tudo foi por água a baixo, Hamlet matou meu pai!
Neste momento não houve mais chão em meus pés, foi como se te perdesse de
novo, a minha estrela guia dos meus passos na vida, meu pombinho de luz... MORTO!
Por aquele que mais amei na vida.
Como encarar a casa vazia? Laertes, meu Deus, como lhe dizer? se nem eu,
acreditei! Lembranças me vem à mente, as promessas seguidas do desprezo, as juras
seguidas do escárnio, será que ele me amou algum dia? Sabendo hoje, do que sei, não
quero mais viver, não tenho mais nada a perder, nem a temer! Quero que todos saibam,
que todos saibam que foi isso que me enlouqueceu! Nem sequer pude ver seu corpo... o
jogaram numa cobertura fria, uma margaridinha que levei ao seu enterro, murchou em
minha mão, não me deixaram por ao menos uma flor sobre seu corpo ensangüentado.
160
Ainda lembro dos cortesãos me segurando pelos braços, esbravejando que estava
louca, meus braços... me apertaram com força, me machucaram e a dor maior nem era
esta!
Louca! Como é perder um pai pelas mãos de quem se ama? Eles não sabem, não
conhecem a minha dor, de ter crescido órfã de mãe, de ser mulher e obedecer cegamente
quando se quer ir contra tudo e contra todos. E agora nem o irmão para me dar atino ao
juízo! Me sinto a mais desgraçada das mulheres, poderá haver dor maior no mundo?
Que me importa! Nada mais importa! Está morto, está morto... Eu quero
vingança! Eu quero sangue! Não lastimo perder a compostura, por que sempre abaixei a
cabeça, agora não mais! NÃO MAIS! Minha vontade é rasgar nos dentes a carne de
todos estes que riem do meu sofrer. Radiosa rainha da Dinamarca, rainha de que reino?
Um reino em que sangue é derramado, por hécuba! Não quero sua pena! Mas vejam no
que vocês me transformaram! Ah! Ele me deu flores outro dia, escondi bem nas mãos,
seus toques me faziam cócegas. Era tão divertido! Outro dia, entrou no meu quarto, me
amou e prometeu que seria sua rainha, duvida de tudo Ofélia mas não duvida do meu
amor! Foi o que ele disse. Jurou me amar com mais sagrados juramentos do céu. Mas
flores... trago flores senhoras, até queria dar-vos algumas violetas... sim! Eu queria dar-
vos algumas violetas mas murcharam todas quando... meu...pai... morreu.... NÃO! Por
quê? Não consigo acreditar! Não pode ser verdade! Algo está errado eu sei! Mas dizem
que ele teve um bom fim, um fim muito bonito! ... sem cobertura para ser comido pelos
vermes! Queria arracar da minha carne cada pedaço em que Hamlet tocou, queria
morder-vos até não restar mais nada! Morder-voa como os vermes mordem os
cadáveres que são jogados ao léu para serem comidos pelos urubus como animais...
dizem que ele teve um bom fim... ah um fim muito bonito! Como era branca a cabeleira,
eu deidava minha cabeça sobre seu colo, ele acaricia os cabelos assim como mamãe...
Mamãe! Vou me casar com Hamlet, o vestido vai ter muitas flores! A senhora há de
ficar orgulhosa! Flores? Para vós funchos e aquiléias, são do meu casamento, são o
convite, peguem senão não vão entrar no castelo! Arruda, violetas... sobre o vento frio,
seu corpo se esvai! Papai! Papai! Minha cabeça dói, não consigo mais! Tudo está
girando como quando brincava de roda com Laertes! Laertes? Laertes? Cadê vocês?
Pois vejam o que faço com a pena com que vocês me olham, se não posso
estraçalhá-los que não sobre nada deste banquete! As flores são as vossas cabeças, que
se vão uma por uma, desfeitas pelas minhas mãos. Foi-se a última, nenhuma sobre sua
cobertura...
Não posso mais! Não aguento mais! Para mim alguma coisa, para mim alguma
coisa... vejo o espelho, me vejo e por um momento me encontro, me olho nos olhos, me
estendo as mãos, cheias de flores. Ofélia, vim me despedir de mim! Adeus amada irmã,
não esquece o que eu te disse! Um mundaréu de água jorra sobre mim, fortes torrentes,
enquanto vou me perdendo pouco a pouco, minhas mãos não me encontram, as sobras
vão me perseguindo, eu quero me salvar, mas quando me dou as mãos... as flores
161
comigo caem, escuro véu cai sobre mim, sinto a água me arrastar para baixo, não
respiro mais, terra sobre mim, muita terra.
(Acorde! Não consigo acordar, não completamente, ainda sinto a terra sobre mim.
Não me sinto respirar. Alguém me acolhe, nasço de novo e respiro! Mas nasci como
Ofélia, não sou! Quem eu sou? Por que não reconheço nada? Por que estou molhada?
Por que me doem as mãos? Aos poucos forço a mente a me lembrar de mim, Larissa
que sou, Larissa que estou, estou novamente em mim, como quem volta de uma viagem
muito longa, retorno ainda sentindo as rodas do carro que me levou, turbilhão de
sentimentos, ódio, alegria, ironia, raiva, melancolia, tristeza, desespero, solidão.)
Na minha opinião, por ser bem forte a movimentação do cavalo marinho já presente em
cena o figurino deve ser bem básico entre o clássico que se espera de Hamlet e o cavalo
marinho mas com cores neutras ou cores frias, para equilibrar melhor o visual, as
música do cavalo marinho deve ser executadas pelo banco onde deve permanecer
sempre alguém do uzume que esteja fora de cena coordenando o som com a cena.
Porém deve ser cantada sempre por nós do grupo em português natural nosso e
selecionando os versos que concordem com a peça. Não é necessário cenário apenas o
banco e o espaço alternativo com entrada estilo portal, uma fonte, e uma janela exemplo
a lateral do santa rosa ou as ruínas da guia.ou qualquer praça com fonte. Pensei esse
roteiro para o dia a noite requer iluminação adequada que é complicada ao ar livre. O
roteiro ficaria melhor se pudéssemos representar toda a peça é criminoso corta
Shakespeare, mas vá lá:
Prólogo
E cantando:
2x
2x
Senhora dona da casa (nessa frase elegemos a Gertrudes da platéia deve ser eleita por
contato visual identificação)
Passe a mão nos seus cabelos 2x (cada ator passa a mão nos cabelos de uma senhora
entre as mais velhas e mais jovens)
Pingos de água de cheiro (de cima para baixo espargimos perfumes no público)
primeiro nas damas depois em todos, esse momento não é representativo é vivência e
comunhão é o selo do pacto e para nós é o momento de estudar as pessoas, senti-las
saber do que precisam, pelo olhar convidá-las a fazer teatro conosco)
2x
2x
Nós somos seus afilhados (apontando todos os súditos da Dinamarca em reverência esse
gesto incluí as pessoas presentes como componentes da cena)
2x
2x
Repetimos toda a música damos as instruções (O coletivo Uzume teatro tem o prazer de
recebê-los, agradecendo por isso ao Fundo Municipal de Cultura, ao banco do nordeste ,
163
a sei quem lá sei quem lá e tal, pedimos que se dêem a oportunidade de desligar seus
aparelhos eletrônicos e vivam um bom espetáculo etc...)
Ficamos na porta com o perfume enquanto as pessoas entram quando todos estiverem
acomodados silêncio sagrado...
Vamos entrar no teatro enraizando com os pés direitos juntos devagar como quem rouba
vamos cantar o aboio
Seguindo a música do mito do Uzume que deve ser cantado e dançado no momento em
que uzume for dançar para tirar Amaterasu da caverna podemos fazer o mergulhão
como aquecimento para nós e eventualmente mergulhar com a platéia ao invés de dizer
“BATER CAVALO MARINHO É BOM” podemos criar uma chamada tirando
Amaterasu da caverna.
Cena I
Durante a dispersão da platéia depois do mito da Amaterasu um dos atores vai junto
para a platéia e comenta com um interlocutor
A cena dos guardas noturnos : Porque tanto trabalho de obreiros navais transformando a
noite em companheira de trabalho dia? (esse texto questiona o trabalho diário pode ser
enxertado pelo ator que for desenvolvê-lo pode ser acompanhado da figura do engenho
sem música.
Depois comenta da visão do fantasma (a essa altura o fantasma já foi eleito na platéia
por outro ator e já está se preparando para entrar em cena)
Cena 2
Cena de Hamlet com o fantasma do pai (seria bom se nessa cena houvesse no espaço
alternativo um local mais alto onde o fantasma aparecesse (no santa rosa seria na janela
do teatro nas ruínas da guia também há lugar apropriado com janela.) toca nas horas de
deus amém selecionando os verso interessantes .
Aparição do fantasma: Bertran recruta da platéia uma pessoa para fazer o fantasma sem
falar nada combina só com a pessoa que vai caminhar de um lugar a outro veste nele a
“armadura” o texto deve ser gravado e modificado o áudio pode ser gravado por
qualquer ator do uzume do sexo masculino e lançado no momento da cena Vítor deve
ensaiar essa cena com o áudio
Música governador da coroa imperial (pode haver entrada dos galantes colorido e outros
com arco pretos)
Bertrand e Larissa vestidos de capa preta recrutam da platéia O rei e a rainha Gertrudes
colocando neles as coroas de cipó (luminárias que vende no centro na frente das lojas de
instrumento na casa de coisas do sertão) toca a música governador da coroa imperial.
Colocam as coroas e capas neles unem as mãos dos dois e Bertrand fala o texto do rei
no ouvido do rei (platéia) que deve repetir para a platéia de súditos.
Hamlet sai.
Ophélia com os patins imita os movimentos dos arcos sem eles como uma dança que
envolve Laertes e ganha todo o espaço cênico termina com encerrei em meu coração e
só você tem a chave.
Diálogo entre eles interrompido por Polônio que é uma pequena participação que pode
ser feita por Alan outro ator que não estiver em cena dirige esse momento
CENA VI
Segue a cena eu estava costurando no quarto quando o jovem príncipe ....me pegou pelo
pulso....Ophélia deve estar descalça como se fosse dormir.
CENA VII
Polônio manda ler o breviário com o livrão verde Ophelia espera ele sair e troca pelo
livro de bolso.
165
As lembranças que Ophelia vai devolver: os patins, a rabeca e o livrinho Hamlet pocket
No fim dessa cena Hamlet NÃO CARREGA AS LEMBRANÇAS! Os pantins ficam
rolando sozinhos em cena enquanto Ophelia canta São Gonçalo do Amarante bem triste
e termina com as falas : o olho, a espada sei que lá sei que lá desgraçada de mim que vi
o que vi vendo o que vejo.
Cena VIII
Cena IX
MORTE DE OPHELIA
Se houver uma fonte ou qualquer água no espaço (no mar se fosse na guia mesmo que o
público veja de longe) (ou se o grupo tiver coragem de montar onde for fica chique e sai
barato na internet ensinam a fazer fonte o problema é que tem que ter um buraco o ideal
é que o treco já exista)
Distribui-se para as ophelias guarda chuvas pretos para o restante da platéia se distribui
os arcos que podem ser todos brancos ou cores de rio ou furta cor , uma ophelia do
Uzume puxa a dança dos arcos cantando ela se afogará ao mesmo tempo que a outra na
fonte
166
Uma ophelia (do uzume) cantando se dirige para a fonte enquanto uma Gertrudes (do
uzume) narra a passagem do salgueiro no santa rosa pode se usar a arvore ao lado da
fonte)
As outras ophelias em dupla abrem os guarda chuvas de par em par como as asas de
Ismália esses guarda chuvas precisam ser daqueles que produzem som.
A Ophélia que morreu nos arcos dá um deles a cada Ophelia do guarda chuva formando
uma flor ao redor da fonte com os arcos e deposita sua coroa na água enquanto a outra
Ophelia da roupa transparente permanece lá cada pessoa que tiver uma rosa deve ir
colocar nesse túmulo quem tiver guarda chuva deve ir devagar para não tapar a cena.
Quando todos os guarda-chuvas estiverem fechados depois de passar pelo cortejo (de
preferência toda a platéia deve participar do cortejo. É um momento como a comunhão
na igreja católica. A Ophélia dos arcos junto com a Gertrudes devem retirar o corpo e
secá-lo carregando ele em direção a platéia que deve retirá-lo de cena então Hamlet
aparece.
Vai direto da briga no cemitério para o cochicho com o rei Claudio (dessa vez deve ser
do uzume) sobre a vingança da morte de Ophelia e de Polônio segue imediatamente o
duelo quando tiram o corpo de Ophelia de cena. Daí vai até o resto é silêncio. (duelo de
espadas do cavalo marinho)
* Quem vai tocar para os atores cantarem? Os próprios atores, o banco do Cavalo
Marinho? Se os atores eles tem que aprender a tocar os instrumentos, se o banco do
Cavalo Marinho, como faríamos para viajar com eles? Pode ser uma solução juntar estas
duas ideias!
É nesta festa que Hamlet e Ofélia vão se encontrar pela primeira vez depois de
crescidos. A trupe ainda canta antes de entrar no Castelo:
A trupe vai entrando conduzindo os espectadores para o interior do Castelo onde esta
acontecendo a festa. Eles já podem ir convidando as pessoas para ir dançando,
formando um corpo de baile. Quando o baile estiver pronto, as pessoas dançando, um
ator se paramenta discretamente para entrar como Hamlet. E circula pela festa. Em
seguida, uma atriz faz o mesmo até que seus olhares se encontram. Durante os
comprimentos para os convidados pela festa, os atores podem comentar algo com os
espectadores, inclusive um sobre o outro.
* Esta festa pode ser composta pela música da “Fulô” e coreografia dos arcos. Onde dar
os vivas? Quando Hamlet e Ofélia se encontram pode ser tocado o “São Gonçalo do
Amarante”. Quem canta neste momento? Cada ator e atriz, Hamlet e Ofélia, neste
momento da festa pode ter um monólogo que será dito congelando a cena (?) Cada ator
pode conduzir um cordão e ter paradas na música para eles falarem.
** Talvez seja bom construir algumas narrativas para Ofélia, para ir costurando a
encenação (?).
- A festa é interrompida pela entrada do guarda falando ter visto o fantasma. Hamlet sai
com ele para tentar falar com a figura do fantasma;
Pg. 24-7
- Ofélia com Laertes. Falas de Polônio vão para Laertes. Este diálogo termina com a
fala de Ofélia “Obedeço”;
Pg. 27-31 Acho que pode haver um Polônio. Hamlet saiu com o guarda e Horácio.
Só Ofélia ficou, aparece Laertes e, em seguida, Polônio. OU podemos selecionar os
textos de Polônio para Laertes e, assim, esta cena acabaria quando Laertes sair e a
próxima começando com a entrada de Hamlet.
POLÔNIO: Ouve, então: é preciso que não passes de um bebê, para teres recebido como
moeda corrente essas propostas.
OFÉLIA: Mas senhor, sua insistência sempre foi de moral honrosa e digna.
P0LÕNIO: Moral! Bela expressão. Adiante! Adiante!
OFÉLIA: E ele soube firmar os seus protestos de amor com os mais sagrados
juramentos.
POLÔNIO: Conheço isso; armadilha para rolinhas. Quando o sangue ferve, como a
alma é prodiga em emprestar mil artimanhas à língua. São chispas, minha filha, dão
mais luz que calor e não se instigue no momento da promessa – não são fogo verdadeiro
não deves esquecer que o príncipe Hamlet é jovem e príncipe; tem rédea bem mais solta
do que a tua. Não quero mais de hoje em diante que você conspurque um minuto
sequer, trocando palavras, ou conversando com o príncipe. Preste atenção: é uma
ordem. Pode ir.
OFÉLIA: Eu obedeço, meu senhor.
- Laertes sai ao mesmo tempo em que entra Hamlet esbaforido do encontro com o
fantasma. Ao mesmo tempo em que narra o encontro ele é encenado;
rainha conquistar, que parecia tão virtuosa, dobrando-a para o vício. Que queda,
Hamlet! Pressinto o ar da manhã. Serei breve. Ao achar-me adormecido no meu jardim,
na sesta cotidiana, teu tio se esgueirou por minhas horas de sossego, munido de um
frasquinho de meimendro e no ouvido despejou-me o líquido leproso, cujo efeito de tal
modo se opõe ao sangue humano, que corre pelas portas e caminhos do corpo, tão veloz
como o mercúrio, fazendo coagular com vigor súbito o sangue puro e fino, como o leite
quando o ácido o conturba. Me privou o irmão, a um tempo, da vida, da coroa e da
rainha, morto na florescência dos pecados, sem óleos, confissão nem sacramentos, sem
ter prestado contas, para o juízo enviado com o fardo dos meus erros. Não consintas que
o leito real da Dinamarca fique como catre de incesto e de luxúria. Contudo, se nesse
ato te empenhares, não te manches. Que tua alma não conceba nada contra tua mãe; ao
céu a entrega, e aos espinhos que o peito lhe compungem. Eles ferem e sangram. E
agora, adeus! Mostra-me o pirilampo da madrugada; já seu fogo inativo empalidece.
Adeus, Hamlet! Lembra-te de mim.
(Sai.)
HAMLET: Legiões do céu! Ó terra! Que mais, ainda? Invocarei o inferno? Firme,
firme, coração! Não fiqueis velhos de súbito, músculos; agüentai-me! Que me lembre de
ti? Sim, pobre fantasma, sim, enquanto tiver sede a memória neste globo conturbado.
Lembrar-me? Sim; das tábuas da memória vou apagar todas as notícias frívolas, as vãs
idéias dos livros, as imagens, os vestígios que os anos e a experiência aí deixaram. Essa
tua ordem, só, há de guardar-se no volume e no livro do meu cérebro, sem mais
escórias. Sim, pelo alto céu, ó mulher perniciosa! Vilão, vilão que ri! Vilão maldito!
Minhas lembranças... Preciso tomar nota que o homem pode sorrir e ser infame. Sei que
ao menos é assim por aqui.
OFÉLIA: Não, meu pai; mas, conforme o prescrevestes, lhe devolvi as cartas e neguei-
me a recebê-lo.
POLÔNIO: Foi o que o pôs doido. Pesa-me não o haver considerado com mais vagar;
pensei que era um namorico, e que sua intenção fosse perder-te. Maldita desconfiança!
Em nossa idade é comum sempre o excesso nos juízos, como é próprio dos moços
carecerem dele. Convém contá-lo ao rei. Maior dano colheremos se calarmos, do que
ódio, se esse amor lhe revelarmos. Vem.
(Saem.)
Pg. 35-8 Organizar, adaptar este texto em uma NARRAÇÃO que se alterna com
diálogos com o fantasma. Esta cena marca o encontro de Hamlet com Ofélia, utilizando
como base a cena com Polônio em que ela diz “Me pegou pelo braço...”. Toda esta
narrativa de Ofélia é encenada em nossa montagem. Mas ao mesmo tempo é como se
Hamlet quisesse contar para Ofélia seu encontro com o fantasma. Mas ela somente o vê
desvairado, atordoado com o que acabou de ouvir do fantasma. ANEXAR UM TEXTO
DE OFÉLIA EXPONDO SUA DÚVIDA SOBRE O ESTADO DE SEU AMADO???
* Será que esta narração do fantasma pode ser transformada em ação ou algo mais
dinâmico?
- Entrega das cartas para o público ler, cartas enviadas a Ofélia por Hamlet e vice-versa.
Ofélia pode entrar andando de patins, como uma brincadeira e entregar as cartas para o
público ler no tempo presente das suas lembranças. Polônio aparece, visão do passado, e
a manda devolver as LEMBRANÇAS para Hamlet (um patins, uma rabeca e um livro
de Shakespeare);
* A morte de Polônio pode ser dita para Ofélia por meio de uma carta lida por um
espectador. Como fazer estas cartas pelos atores? Que estímulos posso oferecer a eles
para este intento?
HAMLET: És bela?
OFÉLIA Que quer dizer Vossa Alteza com isso?
HAMLET: É que se fores, a um tempo, honesta e bela, não deves admitir intimidade
entre a tua honestidade e a tua beleza.
OFÉLIA Mas, príncipe, poderá haver melhor companhia para a beleza do que a
honestidade?
HAMLET: Realmente, que a beleza, com o seu poder, levaria menos tempo para
transformar a honestidade em alcoviteira do que esta em modificar a beleza à sua
imagem. Já houve época em que isso era paradoxo; mas agora o tempo o confirma.
Cheguei a amar-te.
OFÉLIA: Em verdade, o príncipe me fez acreditar nisso.
HAMLET: Não deverias ter-me dado crédito, porque a virtude não pode enxertar-se em
nosso velho tronco, sem que deste não remanesça algum travo. Nunca te amei.
OFÉLIA: Tanto maior é a minha decepção.
HAMLET: Entra para um convento. Por que hás de gerar pecadores? Eu, de mim,
considero-me mais ou menos honesto, mas poderia acusar-me de tais coisas, que teria
sido melhor que minha mãe não me houvesse dado à luz. Sou orgulhoso, vingativo,
cheio de ambição, e disponho de maior número de delitos do que de pensamentos para
vesti-los, imaginação para dar-lhes forma, ou tempo para realizá-los. Para que
rastejarem entre o céu e a terra tipos como eu? Todos somos consumados velhacos; não
deves confiar em ninguém. Toma o caminho do convento. Onde se encontra teu pai?
OFÉLIA: Em casa, alteza.
HAMLET: Que lhe fechem as portas, a fim de impedirem que faça papel de tolo, a não
ser em sua própria casa. Adeus.
OFÉLIA: Ajuda-o, céu de bondade.
HAMLET: Se tiveres de casar, dou-te por dote a seguinte maldição: ainda que sejas
casta como o gelo e pura como a neve, não escaparás à calúnia. Vai; entra para o
convento; adeus. Ou então, se tiveres mesmo de casar, escolhe um néscio para marido,
porque os assisados sabem perfeitamente em que monstros as mulheres os transformam.
Para o convento, vai; e isso depressa. Adeus.
OFÉLIA: Poderes celestiais, restituí-lhe a razão!
HAMLET: Conheço muito bem vossas pinturas; Deus vos deu um rosto e arrumais
outro; andais aos pulinhos e com requebros, falais cheias de esses e dais nomes
indecentes às criaturas de Deus, fazendo vossa leviandade passar por inocência. Vai;
não insisto, porque foi isso que me deixou louco. O que digo é que não teremos
casamentos; os que já são casados, com exceção de um, hão de continuar vivos; os de
mais, prosseguirão como estão. Para o convento; vai! (Sai.)
OFÉLIA: Que nobre inteligência assim perdida! O olho do cortesão, a língua e o braço
do sábio e do guerreiro, a mais florida esperança do Estado, o próprio exemplo da
educação, o espelho da elegância, o alvo dos descontentes, tudo em nada! E eu, a mais
desgraçada das mulheres, que saboreei o mel de suas juras musicais, ter de ver essa
admirável razão perder o som, qual sino velho, essa forma sem par, a flor da idade,
fanada pela insânia! Ó dor sem fim! Ter já visto o que vi, e vê-lo assim!
- A trupe é recebida por Hamlet para encenar “A Ratoeira” (?). Hamlet pode usar o
próprio livro que recebeu de Ofélia indicando que aquele autor faz uso de uma cena e
176
um criminoso ao ver seu crime encenado sente-se tão culpado que se entrega. TANTOS
JEITOS DE SE FAZER ISTO. MUITOS, MUITOS!!!
conselho geral, tirai-lhe a força! Quebrai pinas e raios de seu carro, e fazei do alto céu
rolar o cubo para o centro do inferno!
POLÔNIO: Acho muito comprido.
HAMLET: Enviai-a, então, ao barbeiro, para que a corte juntamente com vossa barba.
Continua, peço-te eu; a não ser em farsas ou histórias obscenas, ele adormece logo.
Prossegue; cheguemos logo a Hécuba.
PRIMEIRO ATOR: Oh! Quem visse a rainha encapuzada!
POLÔNIO: Não fica mal; rainha encapuzada; vai muito bem.
PRIMEIRO ATOR: Descalça corre, as chamas ameaçando; as lágrimas a cegam; por
diadema cinge apenas um trapo, e, como vestes, sobre os lombos delgados e sofridos,
um cobertor, às pressas apanhado. Quem visse tal, com língua envenenada, acusara a
Fortuna de traidora. Mas se os deuses, nessa hora, a contemplassem, quando ela a Pirro
deparou no esporte maligno de cortar do esposo os membros: o clamor subitâneo de sua
mágoa - se os mortais não lhe são de todo estranhos - faria enlanguescer os olhos
quentes do céu e os próprios deuses se apiedarem.
POLÔNIO: Vede como ele muda de cor e tem os olhos marejados de lágrimas. Não
prossigas, peço-te.
HAMLET: Está bem; depois me dirás o resto. Caro senhor, quereis incumbir-vos da
hospedagem destes atores? Mas tomai nota: que sejam bem tratados, porque são o
espelho e a crônica resumida da época. Ser-vos-ia preferível um ruim epitáfio depois de
morto, a andardes em vida difamados por eles.
POLÔNIO: Pois não, príncipe; hei de tratá-los de acordo com seu merecimento.
HAMLET: Com a breca, homem! Muito melhor! Se fôsseis tratar todas as pessoas de
acordo com o merecimento de cada uma, quem escaparia da chibata? Tratai deles de
acordo com vossa honra e dignidade. Quanto menor o seu merecimento, maior valor
terá a vossa generosidade. Levai-os.
P0LÓNIO: Vamos, senhores.
HAMLET: Amigos, acompanhai-o. Amanhã teremos representação.
(Sai Polônio com os atores, com exceção do primeiro ator.)
Ouviste, velho amigo, podes representar a peça "A Morte de Gonzaga"?
PRIMEIRO ATOR: Perfeitamente, senhor.
HAMLET: Então será amanhã à noite. E ser-te-á possfvel, em caso de necessidade,
decorar um discurso de doze ou dezesseis linhas, que vou escrever, para insertar na
peça? É possível?
PRIMEIRO ATOR: Perfeitamente, meu senhor.
HAMLET: Muito bem; acompanha aquele senhor; mas peço-te que não zombes dele.
(Sai o primeiro ator.) Meus bons amigos, vou deixá-los até à noite. Sois bem-vindos a
Elsinor.
HAMLET: Que Deus os acompanhe. Enfim, sozinho! Que velhaco sou eu, que vil
escravo! Pois não será monstruoso? Este ator pôde, numa simples ficção, num sonho
apenas de paixão, forçar a alma aos seus preceitos, a ponto de fugir-lhe a cor do rosto,
marejarem-lhe os olhos, o conspecto confundir-se-lhe, a voz tornar-se trêmula, e toda a
compostura conforma-se às suas influições. Tudo por nada, por Hécuba! Que é ele de
Hécuba, Hécuba que é dele, para chorar por ela? Que faria, se tivesse, como eu, deixas
violentas? Inundara de lágrimas o palco, rasgara o ouvido a todos com seus gritos;
assombrados deixara os inocentes, insanos os culpados, confundidos os ignorantes; sim,
deixara atônitos os sentidos usuais da vista e ouvido. Ao passo que eu, um parvo feito
só de lama, um néscio, como um joão-sonhador, sem nenhum plano de vingança, me
178
calo, quando a vida preciosa e o trono um rei a perder veio por maneira tão bárbara e
maldita. Serei covarde? Quem me lança o apodo de vilão? a cabeça me abre em duas? a
barba arranca-me e atira-ma no rosto? puxa-me do nariz? de mentiroso me acoima até
os pulmões? Quem me faz isso? Ah! Fora bem feito. E a causa não é outra: tenho
sangue de pombo, o fel me falta que a opressão torna amarga, ou já teria dado as
entranhas desse escravo a todos os abutres do céu. Vilão nojento, sanguinário, traidor,
devasso, estéril! Oh vingança! Oh! Que grande asno eu sou! Como é ser bravo! Filho de
um pai querido, assassinado, a quem o inferno e o céu mandam vingar-se, e aliviar-me a
falar como uma simples meretriz, a insultar como uma criada! Que vergonha! Vamos,
cabeça, a postos! Tenho ouvido dizer que os criminosos, quando assistem à
representações, de tal maneira se comovem com a cena, que confessam na mesma hora
em voz alta seus delitos, pois embora sem língua, o crime fala por modo milagroso.
Esses atores irão representar para meu tio a morte de meu pai. Hei de observar-lhe os
olhos e sondar-lhe a alma até o fundo. Se se assustar, conheço o meu caminho. Talvez
que o espírito que eu vi não passe do demônio, que pode assumir formas atraentes. Sim,
talvez mesmo tencione perder-me, aproveitando-se de minha melancolia e pouca
resistência, como sói proceder com tais espíritos. Preciso de razões mais convincentes
do que isso tudo. E a peça é a coisa, eu sei, com que a consciência hei de apanhar o rei.
A RAINHA: Vem para o meu lado, querido Hamlet; senta-te perto de mim.
HAMLET: Não, minha mãe; o ímã deste metal tem mais poder.
POLÔNIO (ao Rei): Oh! Oh! Observastes bem?
HAMLET: Senhorita, poderei sentar-me no vosso regaço?
(Senta-se ao pé de Ofélia.)
OFÉLIA: Náo, príncipe.
HAMLET: Quero dizer, recostar a cabeça em vosso regaço?
OFÉLIA: Sim, príncipe.
HAMLET: Pensastes que eu estivesse usando linguagem do campo?
OFÉLIA: Não pensei nada, príncipe.
HAMLET: Bonita idéia, deitar-se a gente entre as pernas de uma donzela.
OFÉLIA: Que idéia, príncipe?
HAMLET: Nada.
OFÉLIA: O príncipe está hoje muito alegre.
HAMLET: Quem, eu?
OFÉLIA: O príncipe, pois não?
HAMLET: Sou apenas vosso bobo. Que pode uma pessoa fazer de melhor, a não ser
ficar alegre? Vede minha mãe, como apresenta semblante prazenteiro; no entanto, meu
pai morreu apenas há duas horas.
OFÉLIA: Não, príncipe; duas vezes dois meses.
HAMLET: Há tanto tempo assim? Então que o diabo se cubra de luto, que eu vou
vestir-me de zibelina. Oh céus! Morto há dois meses e ainda não esquecido? Nesse caso,
há esperança de que a memória de um grande homem lhe sobreviva meio ano. Por
Nossa Senhora, que trate de fundar igrejas, ou ninguém pensará nele, como se deu com
o cavalo de pau, cujo epitáfio rezava: Pois oh! Pois oh! O cavalo de pau ficou
esquecido! (Clarins.) Entra a pantomima: um rei e uma rainha, com mostras de muito
afeto; a rainha abraça o rei e este a ela. A rainha se ajoelha diante do rei e por meio de
179
gestos lhe assegura submissão. Ele a faz erguer-se e inclina a cabeça sobre seu ombro;
depois, senta-se sobre um banco de flores. Ao vê-lo adormecido, ela o deixa. Logo
depois, entra um indivíduo que lhe tira a coroa, beija-a, despeja veneno no ouvido do rei
e sai. Volta a rainha e, ao verificar que o rei morrera, dá mostras de grande mágoa. O
envenenador volta com duas ou três pessoas, parecendo lamentar-se com a rainha. O
corpo é removido. O envenenador requesta a rainha com presentes; a princípio, a rainha
parece relutar, mas acaba aceitando o seu amor.
(Saem.)
OFÉLIA: Que significa isso, príncipe?
HAMLET: Maroteira disfarçada; significa infortúnio.
OFÉLIA: Sem dúvida a pantomima serve de argumento à peça.
(Entra o Prólogo.)
HAMLET: É o que vamos ver por este freguês. Os atores não guardam segredo. Vereis
como vão revelar tudo.
OFÉLIA: Irá dizer-nos o que significam aqueles gestos?
HAMLET: Não só aqueles, mas quantos quiserdes representar-lhe. Se não ficardes
acanhada, ele também não o ficará, para explicar-lhes o sentido.
OFÉLIA: O príncipe é mau; o príncipe é mau; vou prestar atenção à peça.
O PRÓLOGO: Para nós toda a indulgência, para a tragédia e demência de vossa alta
paciência.
HAMLET: Isso é prólogo ou emblema de anel?
OFÉLIA: Foi curto.
HAMLET: Tal como o amor das mulheres.
O REI DA PEÇA: Trinta vezes já o Sol o giro há feito por Télus e Netuno, e com
perfeito cômputo trinta vezes doze vezes a lua assinalou ao mundo os meses, dês que as
mãos Himeneu e Amor o afeto. Nos ligaram num vínculo concreto.
A RAINHA DA PEÇA: Que a luz e o Sol nos dêem iguais jornadas, sem que as rosas
do amor fiquemfanadas. Mas tão cansado te acho e tão mudado da alegria primeira,
certo, o estado normal em ti, que o susto ora se apossa de mim, sem que isso, aliás,
turvar-te possa, pois o amor, na mulher, se casa ao medo: ou grandes até ao fim, ou
morrem cedo. Já dei provas de ser, no amor, constante, mas se o amor é tranqüilo, o
medo é instante; um grande amor nos sustos se confirma; crescendo o medo, o amor
também se afirma.
O REI DA PEÇA: Muito cedo deixar-te me é forçoso, que me oprime a fraqueza. No
formoso mundo tens de viver, sempre acatada, porventura escolhida e muito amada por
um segundo...
A RAINHA DA PEÇA: Basta! Basta! Um feito de tal negror me condenara o peito. Só
se alegra com outro companheiro quem foi causa da morte do primeiro.
HAMLET: (à parte): Isso é absinto.
A RAINHA DA PEÇA: O interesse mesquinho, nunca o amor, do segundo consórcio é
o causador. Fora o esposo matar do mesmo jeito a cada beijo do outro no seu leito.
O REI DA PEÇA: Sei que és sincera; mas é bem freqüente não cumprirmos a jura mais
ardente. Da memória a intenção é simples serva; forte ao nascer, o tempo a não
conserva; fruto que está no galho por ser duro, para cair por si quando maduro. Parece
necessário que no olvido se atire o que a nós próprios é devido. O que a paixão concebe
de perfeito, suprimida a paixão fica desfeito. A violência da dor ou da alegria com sua
própria atuação não dura um dia. Onde o prazer se exalta a dor se encolhe; um nada a
dor extingue e o riso tolhe. O mundo passa; é natural, portanto, que com a fortuna o
amor se altere tanto; pois é problema que ainda está sem norte, se a sorte guia o amor,
180
O REI: Tragam-me luzes! Vamos-nos embora! (Saem todos, com exceçãõ de Hamlet e
Horácio.)
(Canta.)
Raiou o dia de São Valentim; de pé todos estão.
Para ser vossa Valentina, irei pôr-me à janela, então.
Ela se alça depressa, a roupa veste
e a porta lhe franqueou,
fazendo entrar a virgem, que, assim, virgem,
não mais ali passou.
O REI: Meiga Ofélia...
OFÉLIA: Realmente, vou concluir sem nenhum juramento: (Canta.)
Pela Virgem e a Santa Caridade, que vergonha, meu Deus!
Os moços o farão, se aí se encontrarem...
Vergonha para os seus.
Fá-lo-ia, respondeu, caso ao meu leito não quisesses entrar.
O REI: Há quanto tempo está ela assim?
OFÉLIA: Espero que tudo corra bem. Precisamos de paciência, conquanto não possa
deixar de chorar, ao pensamento de que vão depô-lo no chão frio. Meu irmão há de ficar
sabendo disso. Muito obrigada pelo conselho amigo. Que venha o meu carro. Boa noite,
senhoras! Boa noite, encantadoras senhoras! Boa noite! Boa noite!
O REI: Essas palavras são de bom filho e bravo gentil-homem. Minha inocência relativa
à morte de vosso pai, e a mágoa de perdê-lo hão de ao juízo tão claro aparecer-vos como
aos olhos a luz.
DINAMARQUESES (dentro): Deixai-a entrar.
LAERTES: Que significa esse barulho?
(Entra Ofélia.)
Febre. seca-me o cérebro! Corroei-me, lágrimas sete vezes salgadas, a virtude dos
olhos! Pelo céu! Tua loucura será pesada até que desça o prato da balança. Rosa de
maio, irmã, doce menina, querida Ofélia! Ó céu! É então possível que a razão de uma
jovem seja frágil como o alento de um velho? A natureza se depura no amor e,
florescendo, empresta à coisa amada algo da essência preciosa de si mesma.
OFÉLIA (canta): Levaram-no a enterrar sem cobertura...
Tra-lá, la-rá!
Quanto choro lhe rega a sepultura!
Adeus, pombinho!
LAERTES: Se com toda a razão me concitasses a vingar-te, nem tanto me abalaras.
OFÉLIA: Deveríeis cantar: "Abaixo! abaixo! Chamai-o para baixo!" Oh! Como a roda
lhe vai bem! É da canção do intendente falso que raptou a filha do amo.
LAERTES: Este nada vale mais do que tudo.
OFÉLIA: Aqui está rosmaninho, para lembrança. Não te esqueças de mim, querido.
Estes amores-perfeitos são para o pensamento.
LAERTES: Uma sentença na loucura: a lembrança e o pensamento harmonizados!
OFÉLIA: Para vós, funcho e aquiléia; arruda para vós, e um pouco para mim, também.
Poderemos chamar-lhe erva da graça dos domingos, mas a vossa deverá ser usada de
outro jeito. Aqui está margarida. Quisera dar-vos algumas violetas, mas murcharam
todas, quando meu pai morreu. Dizem que ele teve um fim muito bonito.
(Canta.)
Era a minha alegria o bom Robim!
LAERTES: À tristeza, à paixão, ao próprio inferno, a tudo ela dá graça e empresta
encanto.
OFÉLIA (canta): Nunca mais o veremos? Não mais retornará? Sumiu deste mundo;
baixai para o fundo, que ele não voltará. Barba branca de neve, de linho a cabeleira. Já
foi, sem parar; é inútil chorar; que no céu Deus o queira e a todas as almas cristãs, é o
que eu rogo a Deus. Deus seja convosco!
- Morte de Ofélia;
O REI: Laertes, vosso pai vos era caro, ou sois tal como a imagem da tristeza, rosto sem
coração?
LAERTES: Por que isso agora?
O REI: Não penso que esse amor vos falecesse; mas sei que o amor no tempo se
origina, sobre haver-me a experiência demonstrado que o tempo lhe modera o ardor e o
brilho. No centro dessa chama se acha sempre uma mecha ou pavio que a amortece.
Nada conserva sempre o mesmo aspecto; que até mesmo a bondade, em demasia, morre
do próprio excesso. O que queremos, deve ser feito, que o querer varia, mostrando
tantas quedas e delongas quantas línguas existem, mãos e casos, e o "devia" se muda
num suspiro que alivia e faz mal. Mas vamos à úlcera: Hamlet volta; como
demonstráreis que de tal pai sois filho, mais com atos do que simples palavras?
184
- TALVEZ:
185
– Duelo entre Laertes e Hamlet. Ofélia faz um carinho no rosto de Hamlet. Fazer uma
poesia como no começo da peça. PODE SER CANTADA.
- Som de metal – tão fazendo armas – guarda fala ter visto o fantasma;
CLARA
Duas águas conversavam:
solteiras e mansas, bem cuidadosas tranças.
Águas tão macias.
Fios de seda vinham junto a fios de favos.
Eram como olhos: pálpebras baixavam.
Que a luz, flutuando, se apura ao contato de outra luz.
Eu vi o peixe da lua mergulhar, ficar azul.
Súbito vento as empurra, como um clarão – pombo raio.
Em ambas tombam a brancura da correnteza, entre flores.
A corrente onde vamos é árvore de muitas cores.
A corrente roda a vida.
A mesma entrada, saída.
A corrente move a sorte, leva de roldão a morte.
Vai cada dia mais longe.
E mais a morte distante.
Foi a morte na corrente.
Não quis nadar, não nadava.
Foi corrente na morte.
Morreu a morte afogada.
E as águas caminham fortes.
E juntas, são libertadas.
Eis meu Rosmaniho
É para lembrança
Eu te peço amor,
Não esquece!84
Ela retorna pela mesma porta que entrou e, assim que a porta se fecha, a trupe chega nas
portas do Castelo cantando:
84
NEJAR, Carlos. As águas que conversavam. Ilustrações: Carla Fatio – Editora Escrituras. São Paulo:
2003. (coleção Mar de Letras: poesia).
186
Partitura do ABOIO:
Ôbâ ôôôôô io
VITOR
Boa Noite, Senhor dono da casa. Boa Noite pra Senhora dona, também. Nós viemos
oferecer nosso brinquedo pra nóis brinca no terreiro da casa, com gosto e satisfação, até
a barra do dia quebra e o galo canta. Se a licença não for dada, peço licença pra me
arretirar.
BODAS DE LUTO
A rainha e o rei recebem a trupe e os demais convidados para a festa de casamento. Os
reis passam pelo corredor dos convidados enquanto a trupe canta o verso abaixo num
ritmo mais lento.
TRUPE
Olha a chave do baú
A rainha tem.
Você sabe, você viu?
Eu não meu bem.
ALAN
REI CLAÚDIO: Embora a morte de nosso querido irmão Hamlet esteja viva ainda em
nossos sentimentos, a memória recomende luto em nosso coração e o reino inteiro
ostente a mesma expressão sofrida. A razão se opõe a natureza e nos manda lembrar
dele com sábia melancolia sem deixar de pensarmos em nós mesmos. - Por isso,
tomamos por esposa nossa antes irmã, e agora nossa rainha, a imperial herdeira deste
reino guerreiro, com alegria, por assim dizer, com alegria desolada, um olho auspicioso
187
Durante a fala do Rei Claúdio a trupe canta a seguinte estrofe, primeiro lentamente e, a
partir da terceira estrofe, em um tom quase gregoriano.
É nesta festa que Hamlet e Ofélia vão se encontrar pela primeira vez depois de
crescidos. A dança é representada pela dança dos arcos.
Música da festa:
Hamlet e Ofélia que antes só se observavam na festa, se encontram pela primeira vez. A
velocidade da dança muda.
A trupe vai entrando conduzindo os espectadores para o interior do Castelo onde esta
acontecendo a festa. Eles já podem ir convidando as pessoas para ir dançando,
formando um corpo de baile. Quando o baile estiver pronto, as pessoas dançando, um
ator se paramenta discretamente para entrar como Hamlet. E circula pela festa. Em
seguida, uma atriz, Ofélia, faz o mesmo até que seus olhares se encontram. Durante os
comprimentos para os convidados pela festa, os atores podem comentar algo com os
espectadores, inclusive um sobre o outro.
Depois da festa entra Horácio falando a Hamlet ter visto o fantasma de seu pai.
BERTRAND e VITOR
HORÁCIO: Deus guarde Vossa Alteza.
HAMLET: Horácio, se a memória não me falha... Alegra-me rever-te com saúde.
HORÁCIO: O mesmo criado de sempre, príncipe.
HAMLET: Amigo, amigo; é o nome que eu te dou. Qual a razão de haveres tu deixado.
Wittenberg?
HORÁCIO: Simples disposição de um preguiçoso.
HAMLET: Eu não permitiria que um inimigo teu dissesse isso. Por isso, não me faças
ao ouvido a violência de depores contra ti mesmo. Não, não és vadio. Qual o motivo
que a Elsinor te trouxe? Conosco aprenderás a beber muito.
HORÁCIO: Senhor, vim assistir os funerais de seu pai.
HAMLET: Não zombes; creio que vieste para o casamento de minha mãe.
HORÁCIO: Realmente, foi bem perto.
HAMLET: Economia, Horácio! Os assados do velório puderam ser servidos como frios
na mesa nupcial. Preferira encontrar no céu o meu pior inimigo, a viver tal dia, Horácio.
Meu pai! Estou vendo meu pai, Horácio! Às vezes julgo ver meu pai.
HORÁCIO: Como, senhor?
HAMLET: Com os olhos da alma, Horácio.
H0RÁCIO: Creio, senhor, que o vi nesta noite última.
HAMLET: A quem?
HORÁCIO: A vosso pai, senhor.
HAMLET: O rei meu pai?
HORÁCIO: Prestai-me ouvidos, refreando o espanto por algum tempo, até que eu vos
relate tal fato. - Duas noites a fio um guarda, durante a hora morta da meia-noite, viu
uma figura parecida com vosso pai, armado da cabeça até aos pés, avançando com
postura lenta e grave. Três vezes pelos olhos pálidos lhe passou. Ele, gelado pelo medo,
ficou sem ter ânimo para falar-lhe. O fato me confiou. Montei guarda com ele na outra
noite... E eis que na hora indicada, sob a forma que me descreveu, tudo exato, voltou à
aparição... Sim, vosso pai; o reconheci; estas mãos não seriam tão parecidas.
HAMLET: Onde foi tudo isso?
189
DESPEDIDA DE LAERTES
Hamlet entra correndo. Paisagem sonora de floresta à noite. A voz do fantasma é feita
pela rabeca.
191
VITOR
HAMLET: Para onde me conduzes? Não darei mais um passo.
FANTASMA: Ouve-me!
HAMLET: Isso é o que desejo.
FANTASMA: Já está perto o momento em que é forçoso que de novo me entregue às
labaredas e ao enxofre do tormento.
HAMLET: Fala, que estou obrigado a dar ouvidos.
FANTASMA: E também a me vingar, depois de me ouvir.
HAMLET: Como!?
FANTASMA: Sou a alma de teu pai, por algum tempo condenada a vagar durante a
noite, e de dia a jejuar na chama ardente, até que as culpas todas praticadas em meus
dias mortais sejam nas chamas, enfim, purificadas. Escuta, Hamlet! Se algum dia
amaste teu carinhoso pai...
HAMLET: Ó Deus!
FANTASMA: Vinga o seu assassinato estranho e torpe.
HAMLET: Assassinato?
FANTASMA: Sim, assassinato torpe, como todos; mas esse é estranho, vil e
inconcebível.
HAMLET: Conta-me, a fim de que eu, com asas rápidas como os pensamentos de amor,
voe para a vingança.
FANTASMA: Te vejo decidido. Escuta, Hamlet! Contaram que uma cobra me picara,
quando, eu dormia no jardim. Assim, foi ludibriado todo o ouvido da Dinamarca por
uma notícia falsa de minha morte. Mas escuta, A cobra que peçonha lançou na vida de
teu pai, agora cinge a coroa dele.
HAMLET: Oh, minha alma profética! Meu tio!
FANTASMA: Que queda, Hamlet! Pressinto o ar da manhã. Serei breve. Ao achar-me
adormecido no meu jardim, na sesta cotidiana, teu tio se esgueirou por minhas horas de
sossego, munido de um frasquinho de meimendro e no ouvido despejou-me o líquido
leproso. Me privou o irmão, ao mesmo tempo, da vida, da coroa e da rainha. Não
consintas que o leito real da Dinamarca fique como catre de incesto e de luxúria.
Contudo, se nesse ato te empenhares, não te manches. Que tua alma não conceba nada
contra tua mãe; ao céu a entrega, e aos espinhos que o peito lhe compungem. Eles ferem
e sangram. E agora, adeus! Mostra-se o pirilampo da madrugada; já seu fogo inativo
empalidece. Adeus, Hamlet! Lembra-te de mim.
(Sai.)
HAMLET: Que me lembre de ti? Sim! Enquanto tiver sede a memória neste globo
conturbado. Lembrar-me? Sim; das tábuas da memória vou apagar todas as notícias
frívolas, as vãs idéias dos livros, as imagens, os vestígios que os anos e a experiência aí
deixaram. Essa tua ordem, só, há de guardar-se no volume e no livro do meu cérebro,
sem mais escórias. Sim, pelo alto céu, ó mulher perniciosa! Vilão, vilão que ri! Vilão
maldito! Minhas lembranças... Preciso tomar nota que o homem pode sorrir e ser
infame. Sei que ao menos é assim por aqui.
CLARA
OFÉLIA: Meu senhor que medo que eu tive! Eu estava costurando no meu quarto,
quando me surge lorde Hamlet, sem chapéu, gibão aberto, as meias sem ligas caídas
pelo tornozelos, branco como a camisa que vestia. O que ele disse? Me pegou pelo
192
ALAN
POLÔNIO: Lê este breviário. Para que o exercício espiritual dê um colorido à tua
solidão. Vamos ser acusados de coisa tão provada; com um rosto devoto e alguns gestos
beatos, açucaramos até o demônio.
Ofélia toca a rabeca e entra. Pede para alguém da platéia tocar a rabeca para ela. Após
fala o texto:
MONÓLOGO DA FLAUTA
LARISSA
OFÉLIA: Pois veja só que coisa mais insignificante você me considera! Em mim você
quer tocar. Pretende conhecer demais os meus registros. Pensa poder dedilhar o coração
do meu mistério. Se acha capaz de me fazer dar da nota mais baixa ao topo da escala.
Há muita música, uma voz excelente nesse pequeno instrumento e você é incapaz de
fazê-lo falar. Pelo sangue de Cristo! Acha que sou mais fácil de tocar do que uma
flauta? Pode me chamar do instrumento que quiser. Pode me dedilhar quanto quiser, que
não vai me arrancar o menor som...
Ofélia entrega as cartas para o público ler, cartas enviadas a Ofélia por Hamlet e vice-
versa. Ofélia entrega as lembranças para Hamlet.
VITOR e NAIARA
OFÉLIA: Como tem passado, príncipe, no correr de tantos dias?
HAMLET: Muitíssimo obrigado; bem, bem, bem.
OFÉLIA: Tenho algumas lembranças suas, príncipe, que há muito gostaria de lhe
devolver. Rogo que as aceite agora.
HAMLET: Eu, não; eu, não; eu nunca te dei nada.
OFÉLIA: O príncipe sabe muito bem que deu, e com elas palavras tão doces, que o
valor dos presentes aumentava. Mas, perdido o aroma, agora os trago. Os presentes
ricos se tornam pobres, quando o doador se faz cruel. Ei-los aqui, meu príncipe.
HAMLET: Ah! Ah! Você é honesta?
OFÉLIA: O que quer dizer?
HAMLET: És bela?
OFÉLIA Que quer dizer, Vossa Alteza, com isso?
HAMLET: É que se fores, ao mesmo tempo, honesta e bela, não deves admitir
intimidade entre a tua honestidade e a tua beleza.
193
OFÉLIA Mas, príncipe, poderá haver melhor companhia para a beleza do que a
honestidade?
HAMLET: Realmente, que a beleza, com o seu poder, levaria menos tempo para
transformar a honestidade em alcoviteira do que esta em modificar a beleza à sua
imagem. Já houve época em que isso era paradoxo; mas agora o tempo o confirma. Eu
te amei um dia.
OFÉLIA: Em verdade, cheguei a acreditar.
HAMLET: Não deverias acreditar, porque a virtude não pode enxertar-se em nosso
velho tronco, sem que deste não remanesça algum travo. Eu nunca te amei.
OFÉLIA: Tanto maior é a minha decepção.
HAMLET: Vai para um convento. Por que hás de gerar pecadores? Eu mesmo me
considero mais ou menos honesto, mas poderia acusar-me de tais coisas, que teria sido
melhor que minha mãe não me houvesse dado à luz. Sou orgulhoso, vingativo, cheio de
ambição, e disponho de maior número de delitos do que de pensamentos para vesti-los,
imaginação para dar-lhes forma, ou tempo para realizá-los. Para que rastejarem entre o
céu e a terra tipos como eu? Todos somos rematados, canalhas; não deves confiar em
ninguém. Toma o caminho do convento. Onde se encontra teu pai?
OFÉLIA: Em casa, alteza.
HAMLET: Que lhe fechem as portas, a fim de impedirem que faça papel de tolo, a não
ser em sua própria casa. Adeus.
OFÉLIA: Ajuda-o, céu de bondade.
HAMLET: Se tiveres de casar, dou-te por dote a seguinte maldição: ainda que sejas
casta como o gelo e pura como a neve, não escaparás à calúnia. Vai; entra para o
convento; adeus. Ou então, se tiveres mesmo de casar, escolhe um idiota para marido,
porque os espertos sabem perfeitamente em que monstros as mulheres os transformam.
Para o convento, vai; e isso depressa. Adeus.
OFÉLIA: Poderes celestiais, restituí-lhe a razão!
HAMLET: E eu sei bem como você se pinta; Deus te deu um rosto e você faz outro;
anda aos pulinhos e com requebros, falas cheias de esses, e dais nomes indecentes às
criaturas de Deus, fazendo tua leviandade passar por inocência. Vai e quero que todos
saibam: Isto foi o que me enlouqueceu! O que digo é que não haverá mais casamentos;
os que já são casados, continuarão todos vivos com exceção de um,os demais que
continuem solteiros . Para o convento; vai! (Sai.)
OFÉLIA: Que nobre inteligência assim perdida! O olho do cortesão, a língua e o braço
do sábio e do guerreiro, a mais florida esperança do Estado, o próprio exemplo da
educação, o espelho da elegância, tudo em nada! E eu, a mais desgraçada das mulheres,
que saboreei o mel de suas juras musicais, ter de ver essa admirável razão perder o som,
qual sino velho, essa forma sem par, a flor da idade, afanada pela insânia! Ó dor sem
fim! Ter visto o que vi, vendo agora o que vejo!
A TRUPE
VITOR
HAMLET: Enfim, só! Que velhaco eu sou, que vil escravo! Pois não será monstruoso
este ator aí, numa simples ficção, num sonho apenas de paixão, forçar a alma a sentir o
que ele quer , a ponto de que o rosto empalidece, marejarem-lhe os olhos, angustia no
semblante a voz trêmula e toda sua compostura conforma-se a sua vontade? Tudo isso
por nada, por Hécuba! O que é Hécuba para ele ou ele para Hécuba para que chore
assim por ela? Que faria se tivesse, como eu, deixas violentas? Mas eu, idiota inerte,
194
alma de lodo, vivo na lua alheio a minha própria causa e não sei fazer nada nem mesmo
por um rei cuja propriedade e vida tão preciosas foram arrancadas numa conspiração
infame. Serei eu um covarde? Quem me chama canalha? Me arrebenta a cabeça? Me
puxa pelo nariz? Me enfia a mentira pela goela até o fundo dos pulmões? Quem me faz
isso? Vilão nojento, sanguinário, traidor, devasso, estéril! Oh vingança! Oh! Que grande
asno eu sou! Como é ser bravo! Filho de um pai querido, assassinado, a quem o inferno
e o céu mandam vingar-se, e aliviar-me a falar como uma simples meretriz, a insultar
como uma criada! Que vergonha! Vamos, cabeça, a postos! Tenho ouvido dizer que os
criminosos, quando assistem a representações, de tal maneira se comovem com a cena,
que confessam na mesma hora em voz alta seus delitos. O negócio é a peça que eu
usarei para explodir a consciência do rei.
MÚSICA DA UZUME
Fecunda semente
Ser mente de ator 2x
Quem é, quem é?
É Uzume que vem de lá
Pra tirar, Materasu
Pra gerar, Materasu
E abraçar, Materasu
Pra nós.
Mandei chamar
Chamei! 2x
Mandei chamar
UZUME a bailar.
UZUME:
Eu, Uzume
Desafio e proponho a diferença.
Danço a desordem do mundo.
Não trago nada.
Minhas vestes devastadas
Oferecem o que resta de mim
Meu corpo, minha dança
Em troca somente luz.
195
Entra a pantomima:
TRUPE VITOR:
Já o sol trinta voltas perfeitas tinha dado
Desde que o amor uniu Catarina e Mateu
Pelos Laços sagrados do Himeneu.
Eu devo te deixar e muito em breve
Mas o fim da existência me é mais leve
Sabendo que você, quando eu tiver partido
Amada e honrada com outro marido.
Não, eu não aceito.
Um outro amor não cabe no meu peito
É ter novo companheiro
Só tem o segundo quem mata o primeiro.
A intenção é apenas escrava da memória
Violenta ao nascer, mas depois transitório.
O mundo não é eterno e tudo tem prazo
Nossas vontades mudam nas viradas do acaso;
Pois esta é uma questão ainda não resolvida:
A vida faz o amor, ou este faz a vida?
Pantomima: um rei e uma rainha, com mostras de muito afeto; a rainha abraça o rei e
este a ela. A rainha se ajoelha diante do rei e por meio de gestos lhe assegura submissão.
Ele a faz erguer-se e inclina a cabeça sobre seu ombro; depois, senta-se sobre um banco
de flores. Ao vê-lo adormecido, ela o deixa. Logo depois, entra um indivíduo que lhe
tira a coroa e despeja veneno no ouvido do rei, dizendo:
NAIARA e ALAN
TRUPE: Pensamentos negros, drogas prontas, hora dada, tempo cúmplice, mãos hábeis
– e ninguém vendo nada; tu, mistura fétida destilada de ervas homicidas infectadas por
Hécate com tripa maldição, três vezes seguidas, faz teu feitiço natural, tu mágica
obscena, usurparem depressa esta vida ainda plena.
OFÉLIA: O Rei se levanta!
MORTE DE POLÔNIO
Clara e Vitor fazem uma espiral. Vitor, como Hamlet, arrasta o figurino de Polônio que
será enterrado. Clara encontra o corpo do pai no final da espiral.
CLARA
OFÉLIA:
Morrer, dormir, nada mais,
Termina a vida e com ela terminam as nossas dores.
Um punhado de terra, algumas flores...
E depois uma lágrima fingida
196
LOUCURA DE OFÉLIA
TODOS
DELÍRIOS DE OFÉLIA!!!! IMAGENS! VISÕES! LEMBRANÇAS DO PASSADO E
DO FUTURO. IMPROVISO.
A RAINHA: (Espargindo flores) Flores às flores. Adeus! Esperava que fosses a esposa
do meu dileto Hamlet; pensava adornar o teu leito de noiva, doce criança, não florir tua
sepultura.
As outras Ofélias tiram a roupa da Rainha, preparando-a como Ofélia para o casamento.
Ela dá alguns passos com Hamlet. Uma delas faz uma barriga. Segue-se com
improvisos a partir de ações descobertas nos ensaios.
LAERTES: Um salgueiro reflete na ribeira cristalina sua copa acinzentada. Para aí foi
Ofélia sobraçando grinaldas esquisitas de rainúnculas, margaridas, urtigas e de flores de
púrpura, alongadas, a que os nossos campônios chamam nome bem grosseiro, e as
nossas jovens "dedos de defunto". Ao tentar pendurar suas coroas nos galhos inclinados,
um dos ramos invejosos quebrou, lançando na água chorosa seus troféus de erva e a ela
própria. Seus vestidos se abriram, sustentando-a por algum tempo, qual a uma sereia,
enquanto ela cantava antigos trechos, sem revelar consciência da desgraça, como
criatura da água ali nascida e feita para aquele elemento. Muito tempo, porém, não
demorou, sem que os vestidos se tornassem pesados de tanta água e que de seus
cantares arrancassem a infeliz para a morte.
Querida irmã, já tens água de sobra; não te darei mais lágrimas. Contudo, somos assim,
que a natureza o obriga, sem que importe a vergonha; que eu chore, depois disso não
haverá mais mulher em mim. Adeus, senhor. Com as palavras, só chamas me sairiam, se
não fosse apagá-las a tolice.
Canta:
Sai Jaraguá de cima do telhado. 2x
Deixa essa menina, dormir sono sussegado.
REI CLÁUDIO
Abandonada de todos:
Pelo pai que respeitava,
Pelo homem que levou
Sem voltar, meu coração,
Pelo pássaro que, agora,
Perdeu o encanto que tinha,
Não tem razão de viver
Quem nessas vidas vivia.
Agora morro sabendo,
Aquilo que não sabia:
199
FIM
NOME DO PROJETO
PROPONENTE
JUSTIFICATIVA
Entre os meses de abril a julho de 2006 foi oferecido o curso Iniciação a Pesquisa Teatral –
Módulo I, financiado pelo edital BNB Cultural 2006 do Banco do Nordeste. Este curso se
organizava em três eixos: A coreógrafa Inhá Navarro abordou anatomia e fisiologia humanas nas
aulas de cadeias musculares; a encenadora e teatróloga Elisa Toledo ministrou aulas de treinamento
corporal e vocal, além de análise de texto dramático e atuação; e Mestre Biu Alexandre, do Cavalo
Marinho Estrela de Ouro de Condado – PE, ministrou aulas de Cavalo Marinho. Foram
viabilizadas no decorrer deste curso três apresentações do Cavalo Marinho Estrela de Ouro de
Condado – PE. Duas delas completas, com duração aproximada de onze horas cada, sendo uma em
João Pessoa e outra na cidade de Condado – PE.
Neste curso tive a oportunidade de conhecer a dança popular do Cavalo Marinho e comecei a
perceber as possibilidades de suas práticas para o treinamento do ator, como a precisão dos
movimentos e a modelagem da energia no corpo. Desde então procurei aprofundar meus
conhecimentos acerca de manifestações populares, em especial a do Cavalo Marinho, com
vivências de oficinas e apresentações e a aquisição de materiais sobre o tema como livros, CDs e
DVDs.
85
LOUREIRO, João de Jesus Paes. Pássaro da Terra: peça inspirado no “pássaro junino”, teatro popular
paraense. Ilustrações: Vera Andrade, Editora Escrituras, São Paulo: 2003. (Coleção Mar de Letras:
teatro).
200
As vivências descritas acima enfatizaram meu desejo de pesquisar as danças populares em busca
de contribuições ao trabalho do ator. Esta pesquisa originou o projeto “Do carvão ao corpo-em-arte
de ator-brincante”, o qual está sendo desenvolvido no programa de Pós-Graduação em Artes
Cênicas – PPGARC strictu sensu (mestrado) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte -
UFRN. O objetivo deste projeto é procurar contribuições da dança popular do Cavalo Marinho
encontrado na cidade paraibana de Bayeux para o trabalho do ator, tanto em sua etapa de
treinamento, entendendo este como o ato de preparar potencialmente o artista para a descoberta da
ação cênica, quanto servindo de estímulo para a composição e modelagem do corpo-em-arte,
conceito explorado por Renato Ferracini em pesquisas no LUME - Núcleo Interdisciplinar de
Pesquisas Teatrais da UNICAMP.
Por fim, em março de 2009, participei juntamente com mais dois atores da fundação do Coletivo
Uzume Teatro, o qual tem por objetivo pesquisar o trabalho corporal/técnico do ator. Tendo em
vista este objetivo comum, decidimos vincular o desenvolvimento do meu projeto de mestrado a
pesquisa do grupo.
O diferencial proposto pelo presente projeto baseia-se em pesquisar o Cavalo Marinho de Bayeux –
PB em sua singularidade e diferenciação do Cavalo Marinho pernambucano, o qual é mais
divulgado que o paraibano. Assim, a originalidade deste projeto reside não somente na pesquisa do
grupo de dança popular denominado Cavalo Marinho de Mestre Zequinha, mas também no
desenvolvimento de um percurso metodológico próprio que, embora possua objetivos comuns com
outros projetos cênicos similares, procura desenhar seu próprio trajeto no transcorrer desta
pesquisa, referenciando-se em pesquisas já existentes, mas não esquecendo de oferecer sua própria
86
Para mais informações sobre esta vivência, acessar: http://ser-taoteatro.blogspot.com/2008/02/uma-
experincia-sublime-que-levou-ao.html.
201
contribuição.
Também é fator motivador deste estudo a carência de pesquisas que relacionem o Cavalo Marinho
de Bayeux – PB ao trabalho do ator. Fator este que direciona minha atenção a importante
necessidade das artes, em especial as cênicas, em dialogar com manifestações populares na procura
de gerar novas interfaces de significação com o espectador. Esta prática procura evidenciar o
potencial de manifestações populares que carregam em si o poder da tradição, que é,
concomitantemente, mantido e resignificado por seus participantes no transcorrer do tempo e das
gerações.
Assim, a realização desta pesquisa e do espetáculo reflete a característica dos processos criativos
das artes cênicas na contemporaneidade que é a necessidade de dialogar com tradições populares, a
exemplo da CIA MundoRodá com o espetáculo “Donzela Guerreira”, da performance de Helder
Vasconcelos “Espiral: brinquedo meu” e do espetáculo “Gaiola das Moscas” do Grupo Peleja.
Espetáculos estes que utilizam como matriz estética o Cavalo Marinho típico da Zona-da-Mata
Norte pernambucana.
Considerando estas motivações propõe-se o presente projeto que visa pleitear bolsa de estudos, a
fim de auxiliar na viabilização do processo de pesquisa acerca da dança popular do Cavalo
Marinho coordenado por Mestre Zequinha em Bayeux – PB. Como resultado deste estudo
pretende-se a produção de espetáculo teatral, oferecendo uma ferramenta metodológico-técnica na
criação cênica que articula áreas diversas de conhecimento como dança, teatro, sociologia,
antropologia, potencializando o alcance destas informações e instigando novos processos de
pesquisa.
OBJETIVOS
GERAL:
202
Viabilizar, por meio de bolsa de estudos, pesquisa acerca das matrizes estéticas (passos, oralidade,
corporeidade, fisicidade, etc.) da dança popular do Cavalo Marinho da cidade paraibana de Bayeux
mestrado por Mestre Zequinha, observando possíveis contribuições deste ao trabalho do ator em
suas etapas de treinamento e composição do corpo-em-arte.
ESPECÍFICOS:
Montar espetáculo teatral a partir da pesquisa acerca do Cavalo Marinho de Mestre Zequinha;
Realizar 08 (oito) apresentações gratuitas do espetáculo nas sextas e sábados do mês de Setembro
de 2010 no teatro Armando Monteiro Neto – SESI Centro João Pessoa, sendo que aos sábados a
sessão será seguida de apresentação do grupo de dança popular denominado Cavalo Marinho de
Mestre Zequinha;
Realizar 24 (vinte e quatro) oficinas gratuitas de Cavalo Marinho na cidade de João Pessoa - PB,
ministradas por Mestre Zequinha, abertas ao público estudantil e geral;
Ministrar 01 (uma) oficina gratuita de com carga horária de 20 (vinte) horas-aula acerca do
processo de criação do espetáculo;
Fomentar a pesquisa no âmbito das Artes Cênicas, especialmente das danças de cunho popular;
Divulgar as danças populares, em especial o grupo de Cavalo Marinho mestrado por Mestre
Zequinha, por meio de montagem e apresentações do espetáculo;
INFORMAÇÕES GERAIS
LOCAL (IS) DE REALIZAÇÃO: Teatro Armando Monteiro Neto no SESI Centro João Pessoa.
DURAÇÃO DO PROJETO (em meses): 08 (oito) meses para a realização do projeto, estando estes
divididos em:
203
- No sétimo mês será criada a arte gráfica dos materiais de divulgação a serem
confeccionados neste mesmo mês;
ESTRATÉGIAS DE AÇÃO
1. Ensaio da montagem
Organizada em cinco ensaios semanais de quatro horas diárias esta etapa se
destinará ao trabalho específico em sala de ensaio, no qual se desenvolverá
o aperfeiçoamento do aprendizado das matrizes estéticas do Cavalo
Marinho e sua modelagem para outro contexto cênico que o tradicional e a
busca pela temática do espetáculo por meio de experimentações propostas
pelos atores. No decorrer deste trabalho serão observadas possíveis
contribuições das matrizes do Cavalo Marinho ao trabalho do ator em suas
etapas de treinamento e composição do corpo-em-arte. Pretendo observar
janeiro
estas contribuições tanto em meu próprio corpo como no de dois atores
pesquisadores que participarão desta pesquisa. à julho /2010
O aprendizado da dança popular do Cavalo Marinho será orientado
metodologicamente pela técnica de mimese corpórea, desenvolvida pelo
Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais da UNICAMP (LUME). Tal
método é composto por três etapas: observação, codificação e
teatralização;
Marinho a propostas dos atores. Desta forma, o que se objetiva é que esta
proposta parta dos atores-pesquisadores envolvidos em um processo
colaborativo.
PLANILHA DE CUSTOS
a fl
IV)
Tam. 30x30cm
Tam. 100x150cm
Tam. 10x21cm
Tam. A4
PLANO DE DIVULGAÇÃO
207
Para divulgação do Projeto “O entre do Cavalo Marinho de Mestre Zequinha ao ator-brincante”, nos
utilizarei mecanismos diversos, procurando de maneira eficaz, tornar público as ações do projeto, bem
como o patrocínio da Prefeitura Municipal de João Pessoa, pelo Fundo de Municipal de Cultura. Para
tanto, precisaremos atingir esferas dentro e fora das comunidades onde se localizam os públicos-alvos
que pretendemos atender neste projeto, utilizando para tanto desde o corpo a corpo, até o serviço da
mídia impressa, falada e televisiva.
O primeiro contato para a divulgação deste projeto se dará mediante as oficinas abertas de Cavalo
Marinho ministradas por mestre Zequinha. Estas oficinas semanais ocorrerão nos primeiros seis meses
da pesquisa. Elas serão divulgadas através de convite, seja ele pessoal, por escrito ou por meio de cartaz,
junto ao público estudantil, em especial o universitário de cursos de licenciatura que trabalhem com o
corpo como profissionais de teatro, dança e educação física. Juntamente a isto se divulgará a ocorrência
destas oficinas a grupos parafolclóricos e pesquisadores de danças populares. O objetivo principal da
realização destas oficinas é, além da aquisição das matrizes estéticas corporais da dança popular do
Cavalo Marinho pelos atores-pesquisadores, tornar seus participantes agentes divulgadores diretos da
realização deste projeto, bem como das apresentações de seu produto final. Cada participante agirá como
um divulgador deste projeto em seu meio particular e profissional.
Outro meio de divulgação será próximo ao período das apresentações. Esta etapa compreenderá os
últimos dois meses do projeto. Nela os atores-pesquisadores distribuirão pessoalmente, em pontos
estratégicos de trânsito dos principais públicos que este projeto visa alcançar, o material gráfico com os
dias e horários das apresentações do espetáculo e do Cavalo Marinho de Mestre Zequinha. Este material
gráfico será composto de cartazes (tamanho 30x30cm, papel couchê 115g, impressão 4x1 cor) fixados
com fita dupla face em lugares estratégicos como teatros, universidades e escolas privadas e públicas da
rede municipal de ensino. Nesta ocasião os atores-pesquisadores farão performances de trecho do
espetáculo, auxiliando a divulgação do mesmo. Após cada performance de divulgação os atores-
pesquisadores distribuirão ainda filipetas (tamanho, 10,21cm, papel couchê 115g, impressão 4x0 cores)
das apresentações aos presentes.
Os programas (folder, tamanho A4, papel couchê 150 g, 4x4 cores, contendo as informações das peças
teatrais) serão entregues aos espectadores para que os mesmo conheçam o material dos espetáculos e
possam repassar as informações referentes à pesquisa, bem como do patrocínio cedido pelo Fundo
Municipal de Cultura.
Mandaremos semanalmente fotos, programa, cartazes e releases aos meios de comunicação, divulgando
as ações já realizadas e demais informações acerca do projeto, bem como de seu andamento. Tendo os
atores-pesquisadores preparados para oferecer entrevistas a jornais, rádios e tevês.
Antes de cada uma das apresentações previstas no projeto, distribuiremos programas e marca-textos
(colorido papel couchê 250g) aos espectadores presentes.
Tanto nas atividades de divulgação, quanto nas oficinas e apresentações do projeto será afixado o
banners do projeto (tamanho: 1,00 x 1,50 metros) em local visível e de fácil acesso, possibilitando a
leitura das informações ali impressas.
208
Em todo material gráfico: cartazes, programas, marca textos e banners; constará as logomarcas da
Prefeitura Municipal de João Pessoa e do Fundo Municipal de Cultura, garantindo assim a efetividade e
visibilidade merecida ao patrocínio a esse projeto de cunho social, artístico e educativo. Além disto, se
fará citação e agradecimento do incentivo antes e depois de cada apresentação, oficina ou atividade de
divulgação, bem como em entrevistas concedidas em mídia escrita ou falada.
209
DVDs