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Sermão Sobre as Duas Espécies de Justiça

“Sermo de duplici iustitia, 1519”

por

Martinho Lutero

O sermão sobre as duas espécies de justiça é uma amostra das


tentativas de Lutero no sentido de comunicar ao povo as verdades
redescobertas nas obras do apóstolo Paulo e Santo Agostinho. Não se
sabe ao certo quando Lutero proferiu o sermão. O texto da Epístola
aos Filipenses 2.5-8 sugere o Domingo de Ramos de 1518 ou 1519.
Publicado pela primeira vez em 1519, na casa editora de Johann
Grünenberg.

Irmãos, “tenham em vocês o mesmo sentimento que houve também em


Cristo Jesus, pois ele subsistindo em forma de Deus não julgou como
usurpação o ser igual a Deus”. (Filipenses 2.5s)

A justiça dos cristãos é de duas espécies, como é de duas espécies o


pecado dos homens.

A primeira espécie provém de outra pessoa e é concedida de fora. É a


justiça mediante a qual Cristo é justo e justifica pela fé, como diz 1
Coríntios 1.30. "...o qual se nos tornou da parte de Deus sabedoria, e
justiça, e santificação, e redenção". Ele próprio afirma, em João 11.25:
"Eu sou a ressurreição e a vida: quem crê em mim, não morrerá
eternamente." E novamente, João 14,6: "Eu sou o caminho, a verdade
e a vida" Esta justiça, portanto, é concedida aos homens no batismo, e,
em toda época de verdadeira penitência, resulta que o ser humano
pode gloriar se, com toda confiança, gloriar-se em Cristo e dizer.: É
meu tudo o que e de Cristo: sua vitória seus feitos, o que disse e sofreu,
sua morte - corno se eu próprio tivesse vencido, feito, dito, sofrido tais
coisas e tivesse sido morto. Pertence ao noivo tudo o que a noiva possui,
e à noiva pertence tudo o que o noivo possui (pois todas as coisas lhes
são comuns visto serem em comum, uma vez que são uma só carne).
Assim também Cristo e a igreja constituem um só espírito. Foi assim
que o bendito Deus e Pai das misericórdias, conforme São Pedro nos
concedeu coisas excelsas e preciosas em Cristo. Da mesma forma, na
Segunda Epístola aos Coríntios: “Bendito seja o Deus e Pai do Nosso
Senhor Jesus Cristo pai das misericórdias e Deus de toda consolação”
(1.3) “que tem abençoado com toda sorte de bênção espiritual nas
regiões celestiais em Cristo”. (Efésios 1.3)

Esta bênção indizível foi prometida outrora a Abraão em Gênesis 12.3:


"Na tua semente (isto é, em Cristo) serão abençoadas todas as tribos da
terra." Em Isaías 9.6: "Um menino nos nasceu, um filho se nos deu."
"A nós" diz ele, porque é a nós que pertence todo ele, com todos os seus
bens, se nele cremos, como diz aos Romanos no capítulo 8.32: "Não
poupou a seu próprio Filho, antes, por todos nós o entregou;
porventura, não nos dará com ele todas as coisas?" São nossas,
portanto, todas as coisas que Cristo tem, concedidas que foram
gratuitamente a nós homens indignos, por pura misericórdia, quando,
na verdade, teríamos merecido ira e condenação, bem como o inferno,
Por essa razão também o próprio Cristo, que afirmou ter vindo para
cumprir essa vontade santíssima do Pai, tornou-se obediente a ele, e fez
em nosso benefício e quis que fosse nosso tudo o que fez, pois
declarava: “Eu estou no meio de vocês como alguém que serve” (Lucas
22.27), e novamente: “Este é meu corpo, que é dado por vós” (Lucas
22. 19); e Isaías diz no capítulo 43.24: “Fizeste-me servir em teus
pecados, e me deste trabalho em tuas iniqüidades”.

Pela fé em Cristo, portanto, a justiça de Cristo se torna nossa justiça, e,


com ela, é nosso tudo que é de Cristo, sim, ele próprio torna-se nosso,
Por essa razão, o apóstolo a chama "justiça de Deus", na Epístola aos
Romanos 1.17: "A justiça de Deus é revelada no evangelho, como está
escrito: o justo vive da fé!" E mais: Refere-se à fé como sendo tal
Justiça. Finalmente semelhante fé também é chamada de justiça de
Deus, no capítulo terceiro da mesma carta: "Concluímos que o homem
é justificado pela fé." (Romanos 3.28). Esta é a justiça infinita e que
absorve todos os pecados num instante, pois é impossível que haja
pecado em Cristo; antes, quem crê em Cristo, está apegado a ele, e é
uma coisa só com Cristo, compartilhando com ele a mesma justiça. Por
isso é impossível que nele continue havendo pecado. E essa justiça é a
primeira, é o fundamento, causa, origem de toda justiça própria ou de
conduta. Porque de fato a mesma é concedida em lugar da justiça
original, perdida em Adão, e realiza aquilo, sim, muito mais do que
aquela justiça original teria conseguido realizar.

Assim se compreende aquilo no Salmo 31.1: "Em ti, Senhor, me


refugio; não seja eu jamais envergonhado: livra-me por tua justiça";
ele não diz “por minha”, mas “por tua”, isto é, pela justiça de Cristo,
meu Deus, que foi feita nossa pela fé, pela graça, pela misericórdia de
Deus. E isso é chamado, em muitos lugares no saltério, de obra do
Senhor, confissão, força de Deus, misericórdia, verdade, justiça. Tudo
isso são designações para a fé em Cristo, sim, para a justiça que está
em Cristo. Por essa razão o apóstolo ousa dizer em Gálatas 2.20: “Já
não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim”, e em Efésios 3.17:
“Que ele vos conceda que Cristo habite pela fé em vossos corações”.

Essa justiça alheia, portanto, infundida em nós sem atos nossos,


somente pela graça, ou seja, quando o Pai nos leva interiormente a
Cristo, essa justiça alheia é oposta ao pecado original, o qual, de forma
semelhante, contraímos de fora por nascença e através de nossa
concepção, sem atos nossos. E assim Cristo expulsa o velho Adão dia a
dia, mais e mais, e nessa medida crescem aquela fé e conhecimento de
Cristo; pois ela não é infundida toda de uma vez, mas começa e
progride e é levada finalmente à perfeição com a morte.

A segunda justiça é nossa e própria; não porque nós a operamos


sozinhos, mas porque cooperamos com aquela primeira e alheia. Esta é
agora aquela boa vivência de boas obras: em primeiro lugar na
mortificação da carne e na crucificação da concupiscência em si
mesmo, conforme Gálatas 5.24: "Mas os que são de Cristo,
crucificaram sua carne, com as paixões e concupiscências." Em
segundo lugar também no amor ao próximo; em terceiro, também na
humildade e no temor a Deus, do que está repleto o apóstolo e toda a
Escritura. Mas ele resume tudo em Tito 2.12 dizendo: “Sobriamente”
(isto é, em relação a si mesmo, pela crucificação da carne),
“justamente” (ou seja, em relação ao próximo) “e piedosamente” (em
relação a Deus) “vivamos neste século”.

Essa segunda justiça é obra da justiça anterior, fruto e conseqüência da


mesma, conforme Gálatas 5.22: "Mas o fruto do Espírito (isto é, do
homem espiritual, que ele se torna através da fé em Cristo) é: amor,
alegria, paz, longanimidade, benignidade", etc. Pois o homem
espiritual é chamado de "espírito", nessa passagem, porque é evidente
que aqueles frutos são obras dos homens. E João 3.6: "0 que é nascido
da carne, é carne; e o que é nascido do Espírito, é espírito." Essa
justiça leva à perfeição a primeira, porque sempre atua no sentido de
arruinar o velho Adão e destruir o corpo do pecado: por isso ela se
odeia a si mesma e ama o próximo, não procura o que é seu, mas o que
é do outro, e nisto consiste toda a sua atuação. Pois ao odiar a si mesma
e não procurar o que é seu, ela efetua em si a crucificação da carne;
porém, ao procurar o que é do outro, ela opera a caridade; e, assim,
com ambas as coisas ela faz a vontade de Deus, vivendo "sobriamente"
em relação a si mesma, "justamente" em relação ao próximo, e
"piedosamente" em relação a Deus.

E nisso ela segue o exemplo de Cristo e se identifica com a sua imagem.


Pois isto mesmo também Cristo exige: Assim como ele próprio tudo fez
em nosso favor, não procurando o que é seu, mas apenas o que é nosso,
também nisso obedientíssimo a Deus Pai, assim ele quer que também
nós mostremos este exemplo frente aos nossos semelhantes.

Essa justiça é contraposta ao nosso próprio pecado real, conforme


Romanos 6.19: "Assim como ofereceram seus membros para a
escravidão da impureza, e da maldade para a maldade, assim ofereçam
agora seus membros para servirem a justiça para a santificação."
(Romanos 6.19). Portanto se levanta pela primeira justiça a voz do
noivo que diz à alma: "Eu sou seu", e pela segunda, a voz da noiva,
que diz: "Eu sou sua"; está feito então o matrimônio firme, perfeito e
consumado, como consta no Cântico dos Cânticos: Meu amado é para
mim, e eu para ele, o que quer dizer, "meu amado é meu, e eu sou
dele". (Cantares 2.16). Então a alma não procura mais ser justa
perante si mesma, mas tem como sua justiça a Cristo; daí ela procura
apenas o bem dos outros. Por isso o senhor da sinagoga ameaça através
do profeta tirar dela a voz da alegria, a voz do no noivo e a voz da
esposa Jeremias 7.34).

Isto é o que diz o tema anteposto: “Tenham em vocês o mesmo


sentimento etc” (Filipenses 2.5); isto é, que tenham a mesma atitude e
sentimento um para com o outro como vêem que Cristo os teve em
relação a vocês. Como isto? "Ele, subsistindo em forma de Deus, não
julgou como usurpação o ser igual a Deus; antes a si mesmo se
esvaziou, assumindo a forma de servo, etc." A forma de Deus não é
chamada aqui de essência de Deus, porque desta Cristo nunca se
despojou; de igual modo também a "forma de servo" não pode ser
chamada de essência humana; e sim, "forma de Deus" é sabedoria,
poder, justiça, bondade, e ainda liberdade, assim como Cristo foi um
homem livre, forte, sábio, sujeito a ninguém, nem ao vício nem ao
pecado, como são todos os seres humanos (pois ele era superior
naquelas formas que cabem principalmente a Deus). Mesmo assim ele
não se ensoberbeceu desta qualidade, não agradou a si mesmo,
tampouco se enfastiou com os outros nem desdenhou os que eram
servos e estavam sujeitos a diversos males, como aquele fariseu que
disse: "Graças te dou, que não sou como as outras pessoas" (Lucas
18.11), que se alegrava com o fato de os outros serem miseráveis, não
querendo de forma alguma que eles fossem semelhantes a ele. Essa é a
usurpação que a pessoa se arroga, sim, com a qual ela guarda o que
tem e não o atribui exclusivamente a Deus (a quem pertencem esta
coisas), nem serve aos outros com as mesmas, para fazer-se igual aos
outros. Assim querem ser como Deus, suficientes em si mesmos,
autocomplacentes, gloriando-se a si mesmos, sem dever nada a
ninguém, etc. Cristo, porém, não teve esta atitude, não é assim que ele
foi "sábio", e sim, aquela forma divina ele a atribuiu ao Pai, e se
esvaziou a si mesmo, não querendo utilizar aqueles títulos frente a nós,
não querendo ser diferente de nós; sim, antes ele se tornou para nós
como um de nós e aceitou a forma de servo (isto é, sujeitou-se a todos
os males). Mesmo sendo livre, como também diz o apóstolo (1 Coríntios
9.19), se fez servo de todos, não agindo de outra forma senão como se
fossem seus todos esses males que eram nossos. Por isso ele tomou
sobre si nossos pecados e castigos e agiu de forma tal que os vencesse
como que para si mesmo, sendo que na realidade ele os venceu para
nós. Com respeito a nós, ele poderia ser nosso Deus e Senhor. Ainda
assim não o quis, mas preferiu tornar-se nosso servo, como diz
Romanos 15.11,3: "Não devemos agradar a nós mesmos", pois também
Cristo não se agradou a si mesmo. Mas, como está escrito, "as injúrias
dos que te ultrajam caem sobre mim" (Salmo 69.9), que expressa o
mesmo que a sentença acima.

Daí sucede que essa autoridade que muitos entendem como afirmação,
deve ser compreendida de forma negativa, ou seja: Cristo não se julgou
igual a Deus, isso é, não quis ser igual, como acontece com aqueles que
o tomam para si, que dizem a Deus: "Se não deres (como diz
Bernardo) a mim a tua glória, eu mesmo dela me apossarei" A frase
"não julgou como usurpação o ser igual a Deus" não deve ser
entendida como afirmativa no sentido de que ele não julgou ser igual a
Deus; isto é: não teria julgado usurpação ser igual a Deus: porque esta
sentença não faz sentido adequado, pois fala de Cristo como pessoa
humana. O que o apóstolo quer é que cada cristão se torne servo do
outro, a exemplo de Cristo. E se alguém possui alguma sabedoria ou
justiça ou poder, através do que ele poderia superar os outros e gloriar-
se como se fosse deiforme, esse não deve tomar isto como seu, mas
atribuí-lo a Deus. De modo geral, deve despir-se dessas qualidades e
comportar-se como um daqueles que não as têm, para que cada um,
esquecido de si mesmo e despojado dos dons de Deus, aja com seu
próximo como se fosse sua própria a fraqueza, o pecado e a ignorância
do próximo; não se glorie, nem se ufane, nem desdenhe, nem triunfe
contra aquele, como se fosse seu Deus e igual a Deus; uma vez que se
deve deixar isso somente para Deus, semelhante soberba leva à
"usurpação". Assim, portanto, é compreendida a "forma de servo" e
se cumpre aquilo que o apóstolo escreve em Gálatas 5.13: "Sejam
servos uns dos outros, pelo amor." E em Romanos 12.4s e 1 Coríntios
12.12ss ele ensina, pela semelhança dos membros do corpo, como os
membros fortes, honestos e sãos não se ensoberbecem frente aos fracos,
desonestos e doentes, como se dominassem e fossem seus deuses. Ao
contrário, eles antes servem àqueles, esquecendo-se de sua honestidade,
saúde e força. Pois nenhum membro do corpo se serve a si mesmo nem
procura o que é seu, mas o que é do outro, e isso tanto mais, quanto
mais fraco, doente e desonesto for aquele. E para falar com as suas
palavras, são "solícitos os membros entre si, para que não haja divisão
no corpo". Com isso se torna claro agora como se deve agir com o
próximo em todas as coisas.

Porque, se não quisermos nos despir voluntariamente dessas "formas


de Deus" e vestir as "formas de servo", seremos forçados e despidos
contra a vontade. Quanto a isso observe em Lucas 7.36ss a história em
que Simão, o leproso, assentado em "forma de Deus" e em justiça
(própria,) julgava arrogantemente e olhava com desprezo para Maria
Madalena, na qual ele via a "forma de servo". Mas veja: Cristo logo o
despiu da forma da justiça e lhe pôs a forma do pecado, dizendo:
"Você não me deu o beijo, não ungiu minha cabeça." Repare quão
grande eram os pecados que ele não enxergava! Tampouco se julgava
ele deformado por uma forma repugnante. Não há qualquer
lembrança de boas obras suas. Cristo ignora a "forma de Deus" na
qual aquele se agradava a si mesmo e se ensoberbecia, nada menciona
de que tivesse sido por ele convidado, recebido à mesa ou honrado:
Simão, o leproso, nada mais é do que um pecador, que tão justo se
parecia a si mesmo. Tirou-se-lhe a glória da "forma de Deus",
deixando-o envergonhado na forma de servo, querendo ou não. Em
contraposição, a Maria ele honra com a "forma de Deus", sobrepõe-
lhe a sua e a eleva acima de Simão, dizendo: Esta ungiu meus pés,
beijou-os, regou-os com lágrimas e os enxugou com os cabelos. Veja
quanto mérito, que nem ela mesma nem Simão enxergavam! Não há
qualquer lembrança dos seus deméritos, Cristo ignora a "forma de
servidão" nela, a qual ele engrandeceu com a forma de senhorio, e
Maria nada menos é do que justa, exaltada na glória da forma de Deus,
etc.

Assim ele fará com todos nós, sempre que nos inflarmos por causa da
(nossa) justiça, sabedoria ou força, e nos irritarmos contra injustos,
tolos e os mais fracos que nos: pois então (esta é a maior perversão) a
justiça opera contra a justiça, a sabedoria contra a sabedoria, a força
contra a força. Porque você é forte não para fazer os fracos ainda mais
fracos, pela opressão, mas para que os torne fortes, exaltando e
defendendo-os. E é sábio não para rir dos tolos e assim fazê-los ainda
mais tolos, mas para aceitar, como quer que aconteça em relação a
você mesmo, e para os ensinar. Assim você é justo, para que justifique e
desculpe o injusto, não para condená-lo apenas, falar mal dele, julgar e
castigá-lo. Pois este é o exemplo de Cristo para nós, conforme ele diz:
“O Filho do homem não veio para julgar o mundo, mas para que o
mundo seja salvo através dele” (João 3.17); e novamente em Lucas
9.55ss: “Não sabem de que espírito são? O Filho do homem não veio
para destruir as almas dos homens, mas para salvá-las”. Mas a
natureza resiste violentamente, porque ela muito se deleita com a
vingança e a glória de sua justiça e com a vergonha da injustiça do seu
próximo. Por isso promove apenas sua própria causa e se alegra de
estar ela melhor que a do próximo, acossando, porém, a causa do
próximo e desejando que ela vá mal. Essa perversão é toda a injustiça,
contrária ao amor que não procura o que é seu, mas o que é do outro.
Portanto deve-se lamentar que a causa do próximo não esteja melhor
que a própria, e desejar que ela vá melhor que a própria, sem que a
alegria seja menor que sobre a própria causa: pois essa é a lei e os
profetas.

Vocês dizem: “Acaso não é permitido castigar os maus? Não convém


punir os pecados? Quem não tem a obrigação de defender a justiça?
Pois isso seria dar oportunidade à transgressão”.

Respondo eu: “Aqui não se pode dar uma resposta simples: é preciso
fazer uma distinção entre as pessoas: ou são homens públicos ou
pessoas particulares”.

Aos homens públicos, isto é, os que estão a serviço de Deus ou ocupam


posição de direção, não se referem essas coisas que foram ditas: pois a
esses Cabe punir e julgar os maus ex officio e por necessidade, vingar e
defender os oprimidos. Por que não são eles mesmos, mas quem o faz é
Deus, cujos servos eles são nisto, como o apóstolo expõe largamente em
Romanos 13.4, dizendo: "Não é sem motivo que (a autoridade) traz a
espada", etc. Isto, entretanto, deve ser entendido com referência aos
assuntos dos outros, e não dos próprios. Pois ninguém está encarregado
por Deus por causa de si mesmo ou de seu próprio interesse, mas por
causa dos outros. Se, porém, alguém tem uma causa própria, deve
requerer outro representante de Deus que não ele mesmo; porque ele
já não é mais juiz, mas litigante. Mas sobre esses fatos uns dizem uma
coisa, outros outra; o assunto é amplo demais para ser discutido agora.

Pessoas privadas e em causa própria há três tipos: os primeiros são os


que querem vingança e procuram julgamento junto aos representantes
de Deus, e desses há agora um grande número. Isto o apóstolo o tolera,
mas não aprova, conforme 1 Coríntios 6.12: "Tudo me é permitido,
mas nem tudo convém;" sim, ele até diz ali mesmo: "Em princípio já é
uma falha entre vocês o fato de terem demandas," (1 Coríntios 6.7).
Mas ainda assim, por causa do mal maior, é tolerado este mal menor,
para que não se vinguem a si mesmos e um não use da violência contra
o outro, retribuindo o mal com o mal ou reclamando seus bens.
Contudo esses não entrarão no reino dos céus, a não ser que mudem
para melhor e deixem do que é permitido para seguir o que convém.
Porque precisa ser extinta essa atitude de procurar a vantagem
própria.

Os outros são aqueles que não procuram vingança, os que estão


dispostos inclusive (segundo o evangelho) a dar ao que lhes tira o
manto, também a túnica, sem resistir a maldade alguma. Estes são
filhos de Deus, irmãos de Cristo, herdeiros dos bens futuros. Por isso
eles são chamados nas Escrituras de órfãos, pupilos, viúvas e pobres,
de quem Deus quer ser chamado de Pai e Juiz (Salmo 68.5); porque
não se vingam a si mesmos. Sim, se os regentes querem vingar em seu
favor, eles ou não o desejam e procuram, ou apenas o permitem; ou, se
forem de grande perfeição, o proíbem e impedem, dispostos antes a
perder também outras coisas por causa disso.

Se você disser: "Esses são pouquíssimos, e quem pode ficar neste


mundo, agindo assim?", respondo: Não é nenhuma novidade hoje que
poucos são salvos, e que é estreita a porta que leva para a vida, e que
poucos a encontram. E se ninguém o fizer, como ficará a Escritura que
declara serem os pobres, órfãos e pupilos e povo de Cristo? Por isso
esses se afligem mais do pecado dos que os ofendem do que por causa
do próprio dano e ofensa. E preferem agir de modo a chamar aqueles
de volta do pecado a vingar as injúrias. Por essa razão despem-se das
formas de sua justiça e vestem as formas daqueles, orando pelos que os
perseguem, falando bem dos que falam mal, fazendo o bem aos que
lhes fazem injustiça, estando prontos a sofrer e satisfazer os castigos
em favor dos seus próprios inimigos, (Mateus 5.44) para que sejam
salvos. Esse é o evangelho e exemplo de Cristo.
Os terceiros são aqueles que, na atitude, são corno os segundos, já
mencionados, mas no efeito são diferentes, São os que não reclamam de
volta o que é seu nem desejam punição por procurarem o que é seu;
eles, isto sim, através dessa punição e restituição do que é seu
procuram a melhora daquele que roubou ou ofendeu e que, segundo
vêem, não pode ser consertado sem punição. Esses são chamados de
zelosos e recebem louvor nas Escrituras. Mas isso não deve tentar
senão quem é perfeito e muitíssimo exercitado no segundo grau já
falado, para que ele não tome a fúria por zelo e não venha a ser
convencido de que aquilo que ele crê fazer por amor à justiça, ele o
tenha feito antes por indignação e impaciência. Porque a ira muito se
assemelha ao zelo, e a impaciência ao amor da justiça, de sorte que não
podem ser satisfatoriamente distinguidos, senão por pessoas
muitíssimo espirituais. Ato desta espécie fez Cristo (conforme está dito
em Jo 2.14ss), quando, tendo feito açoites, expulsou vendedores e
compradores do templo, bem como Paulo, quando disse: "Com a vara
irei até vocês", etc. (1 Coríntios 4.21).

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