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Este livro é resultado de uma extensa pesquisa, cujo objetivo
primeiro é reconstruir a história da imprensa no Rio de Janeiro através de
uma ótica singular e peculiar: o olhar do leitor.
Esta primeira etapa inclui além dessa perspectiva, uma verdadeira
viagem em torno dos jornais diários do Rio de Janeiro, durante 40 anos. De
1880 a 1920, os cinco mais importantes jornais do Rio eram responsáveis
pela impressão de 150 mil exemplares, distribuídos pela cidade e apregoados
nos bordões dos pequenos jornaleiros.
Em função desse poder de difusão, esses diários passaram a ser
dotados de um poder real e simbólico, transformando seus proprietários
em verdadeiros DOI/os do Rio.
Os DOI/os do Rio, título desta obra, é, pois, uma metáfora para
designar tanto os dirigentes dessas publicações - tais como José Carlos
Rodrigues, Edmundo Bitencourt ou João Lage -, quanto os próprios
periódicos.
Erguendo prédios monumentais na principal artéria da cidade, a
Avenida Central, cunhavam, ao mesmo tempo, um discurso normatizador e
regulador para uma sociedade recém-saída da escravidão. Construíndo um
diálogo permanente com o leitor, aumentavam a cada dia sua ingerência na
vida da cidade. E é essa complexa articulação que este Iivro recupera.
Partimos do pressuposto de que é possível remontar a história
dos leitores e das leituras a partir de um diálogo permanente entre público
e meio impresso, considerando que o texto não é mudo em relação ao leitor
e que existe uma "invenção quotidiana" nas artes de leitura, empreendemos
um verdadeiro diagnóstico dos leitores dos jornais mais populares do Rio
durante 40 anos, ao mesmo tempo em que visualizamos a construção textual
dos próprios leitores.
O estudo se insere numa preocupação permanente e atual da
comunicação em considerar o circuito da comunicação, isto é, perceber
que para além de uma produção do emissor existe uma construção textual
permanente do público, com caráter autoral.
Nesse percurso, é fundamental considerar o processo que na fala
de Nestor Garcia Canclini (1997) é definido como "hibridação cultural", ou
seja, visualizar a questão cultural não como dicotômica, uma vez que este
tipo de visão não dá conta da complexidade resultante do desenvol vimento
do chamado mercado de bens simbólicos. É preciso estudar o popular na
sua interação com as diversas culturas da mesma sociedade, inclusive as
chamadas indústrias culturais. Nesse sentido, as produções culturais do
público leitor dos diários do Rio de Janeiro seriam constituídas por
Barbosa, Marialva.
Os Donos do Rio. Imprensa, Poder e Público.
Marialva Barbosa - Rio de Janeiro: Vício de
Leitura, 2000
257p.21cm

ISBN 85-87009-04-4
Inclui bibliografia
I. Imprensa - Brasi I - História.
2. Jornalistas - Brasil - Formação.
3. Poder e Público. I. Título

Projeto Gráfico Capa


DG Studio Gráfico

Fotos da capa
e abertura capítulos
MarcFerrez
Capítulo I -Imprensa na Belle Epoque Tropical
O polêmico Correio da Manhã
O popularíssimo Jornal do Brasil
O conservador Jornal do Commercio
A literária Gazeta de Notícias
O "amigo de todos os governos" O Paiz

Capítulo II - Quem são os jornalistas?


Os dirigentes
Repórteres e redatores
Arcadas para os jornais
Boêmia Literária

Capítulo 11/- Imprensa e Poder


Ojornal é
Memórias de jornal istas
É preciso divulgar. ..
Relações de poder
Favores e favorecimentos
País de jornalista

Capítulo IV - Leitor: este ilustre conhecido 185


Repórter: "o rei do jornalismo moderno" 193
E os leitores? Quem são? 197
Leitores particulares 214
Queixas e mais queixas 220
As notas sensacionais 233
processos híbridos e complexos, usando como signos de identificação
elementos procedentes de diversos grupos sociais.
Essa hibridação, definida por Jesus Martin BarbeI'o como mediação
e por diversos historiadores culturais como "circularidade da cultura", de
fato, tem seu momento inaugural nesse instante de reformulação do espaço
urbano real e simbólico da cidade do Rio de Janeiro. E nesse processo, os
meios de comunicação ocupam papel primordial ao possibilitar a migração
de "falas" e a integração da múltiplas faces de uma mesma sociedade.
Informando sobre as experiências comuns da vida urbana estabelecem redes
de comunicação e tornam possível apreender o sentido social, coletivo, do
que acontece na cidade. Em uma escala mais ampla é possível dizer que ao
relacionar patrimônios históricos, étnicos e regionais e ao difundi-Ias, os
meios de comunicação estão procedendo a uma espécie de coordenação
das múltiplas temporal idades de um público di versi ficado.
A segunda etapa desta pesquisa reconfigurará esta mesma história
pela ótica do leitor nas décadas de 1930 e 1940. A essas seguir-se-ão
outras, atingindo as décadas futuras, de tal forma que ao final teremos a
história da imprensa do Rio de Janeiro pelo olhar do público, durante os
últimos 100 anos.
Este empreendimento, sem dúvida, audacioso, demandará, estamos
certos, o esforço concentrado de inúmeros pesquisadores, sejam bolsistas
de inciação científica, sejam de apoio técnico, sejam pesquisadores
associados, alguns dos quais já envolvidos neste projeto, que conta com
o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro -
FAPERJ.
"Os Donos do Rio" é, com algumas modificações básicas, de forma a
tornar o texto mais inteligível e, sobretudo, mais agradável, o resultado de uma
extensa pesquisa sobre a Imprensa, o Poder e o Público dos jornais diários do Rio
de Janeiro, durante 40 anos.
Analisando os mais importantes jornais matutinos existentes no Rio de
Janeiro, entre 1880 e 1920, além de uma vasta documentação, que inclui memórias e
correspondências de jornalistas, arquivos dos jornais, relatórios dessas empresas,
entre centenas de outros documentos, percorremos aquilo que um jornalista e também
historiador - Robert Darnton - classifica como sistemas de comunicaçãol .
Mostrando a ampla mudança por que passou os principais periódicos do
Rio - Jornal do Brasil, Correio da Manhã, Gazeta de Notícias, O Paiz e Jornal
do Commercio - destacamos, ao mesmo tempo, o novo papel que esses veículos
passam a ter na sociedade.
Ao analisar essas mudanças, a partir do instante em que esses matutinos
se estruturam como empresas jornalísticas, não se pode esquecer a parti~pi1.Ç~o do
Jeitor nesse processo e, principalmente, aintrodução de uma nova fonlla de faz~r
jornal. Participando também do jogo de poder e prestígio necessário à conquista de
novos leitores e à participação política, a imprensa busca nova configuração em
fórmulas editoriais.
Assim, esse li\ll"0~_nfoca as relações do leit.or com e~s~s il~pr~s~os,
destacando o processo de recepção, uma vez que o significado dos textos não se
encontra imobilizado nas páginas impressas, mas é construído pelos leitores. Para
reconstruir esse difícil caminho é fundamental a aproximação da história com a crítica
literária e com as teorias da comunicação.
Mas essa aproximação conduz também a outros insights, como por exemplo
o de não forçar uma distinção entre fill~ ~ ficção, visualizando na própria obra o
elemento ficcional e percebendo nos relatos d; r;ssado a sua característica de texto,
onde estão presentes diferentes formas de imaginação" .
Utilizando a literatura como suporte teórico, encontra-se a solução de, a
partir do conteúdo dos impressos, considerar as particularidades de leituras e
interpretações. Ou seja, 'visEalizar o leitor no e a partir do texlQ impr~so.'
Visualizando os jornais como um bem simbólico, é necessário ainda analisar
a ~-ª-o ~JIe imRI~nsa.~ literatura, a partir do instante em que condições para a
divulgação em maior escala da palavra impressa - institucionalizada por oposição à
falada como a única válida - se concretizam. A produção de obras como os folhetins,
divulgados por um impresso capaz de ser produzido mais agilmente e em maior
quantidade do que os livros, isto é, os jornais, coincide com o aumento do público,
em função da generalização do ensino elementar.
Assim sendo, o desenvolvimento do jornalismo - área de atuação de
intelectuais que ainda não encontrou o seu lugar na política e nas profissões liberais
ou que o achou em função do prestígio que conferia trabalhar nesta profissão - é
paralelo ao processo de diversidade do público.
É possível distinguir em relação a esses produtores de mensagens dois
tipos distintosJo jornalista que busca no jornª a possibilidade de ascensão social,JiL -
forma a conquistar espaço na política, ou o ue divide a profissão com outra liberal,
fazendo do jornalismo o lugar do reconh cimento e uma, boêmia literária, onde se
incluem escritores consagrados ou não e que verão na profissão a possibilidade de
alcançar notoriedade, se afirmando nquanto literatos. Há que considerar ainda o
grupo dirigente desses jornais.
Na virada do século, s esluda!!tes ou jove~ls recém-saídos das esco~
superiores, a maioria das vezel da Faculdade de Direito, querem se tornar jornalistas.
Essa aspiração é uma estratégia prática e simbólica, cujo ganho é a própria nomeação.
Muitos desses profissionais - os que exercem com distinção profissões liberais -
chegam mesmo a trabalhar sem qualquer remuneração nesses periódicos, em nome de
ocupar uma posição de prestígio.
Cooptados pela classe dominante, esses intelectuais produzem uma
mensagem visando a criação de um consenso, cujo fimlJltimo é perpetuar a dominaçiiQ
de classe. Exemplares nesse sentido, são as campanhas e as mensagens veiculadas
pelos diferentes jornais. Muitas vezes com linhas editoriais diferentes e públicos
aparentemente diversos, os diários possuem uma identidade de conteúdo de suas
mensagens.
Mas os jornais também são fundamentais no processo de construção do
Rio de Janeiro como capital de uma nova institucionalidade: a República. A outros
discursos produzidos com o sentido claro de normatizar a sociedade - como omédicQ=..
~igienista, o jurídico e o político - agrega-se o da imprensa, que passa a aliar ao texto
impresso a veracidade da fotografia e a crítica das caricaturas ou a "~produção" da
realidade contida nas ilustrações. Promovendo campanhas, os periódicos unificam os
vários discursos da sociedade, em busca de um ideal de progresso e civilização.
A imagem do poder também está presente nos textos impressos, difundindo
muitas vezes uma idéia de eficiência. Por outro lado, fazer-se compreender é
fundamental para os grupos dominantes. E para isso não basta a imposição de normas
sociais nas ruas: é preciso um discurso que unifique normas, padrões e valores a
serem incutidos ou disseminados. E a imprensé!. cumpre essa "missão".
As mudanças que se observam no jornalismo carioca do Império para a
República têm sido freqUentemente explicadas por duas expressões genéricas, definidas
como processo: concentração da imprensa e adoção de modelos estrangeiros. Por
concentração esses autores en'tendem o desaparecimento de inúmeros títulos e o
surgimento de alguns jornais que iriam, em função de sua organização em moldes
empresariais, conquistar público, publicidade, tendo, em contrapartida, uma vida
mais longa.
A segunda mudança seria aJlxação de padrões estrangeir:osno jornalismo
carioca, com a proliferação das revistas ilustradas, críticas e de costumes, além de
outras técnicas adotadas pelos jornais diários, como, por exemplo, a abertura de
grandes fotos na primeira página, a difusão do folhetim e a proliferação das
caricaturas) .
Percebendo que, de fato, há alguma mudança no envolvimento dessa
sociedade com a palavra impressa, esses estudos, entretanto, não objetivam fazer a
história dos sistemas de comunicação e, assim, questões fundamentais para a
compreensão de como as idéias são transmitidas via imprensa, afetando o
comportamento dos leitores, não serão o foco central dessas análises4 .
Outra questão que precisa ser melhor compreendida é a da absorção dos
homens de letras. Esses literatos se, por um lado, pretendem assim aumentar o seu
poder de ação social sobre as camadas urbanas, por outro, ao vender o produto de
seu trabalho ao periódico, ganham notoriedade e participam igualmente do jogo de
manipulação de poder que esses jorn~is oferecem.
Na verdade, ao fazerem da pena um meio de vida, de projeção e de conquista
do poder, utilizado muitas vezes em proveito próprio, esse grupo institui instrumentos
essenciais para estabelecer a ordem e conservá-Ia, através da normatização dos
comportamentos.
Nesse contexto se inserem também a discussão e a dupla relação literatura
e técnica que possibilita, ao mesmo tempo, aumento de circulação, diminuição no
preço e popularização dos impressos. Banaliza-se a condição de autor e é sob esta
ótica que deve ser analisada a proliferação dos folhetins - processo que se dá na
imprensa carioca a partir de L8l0 _- e, posteriormente, a popularização da crônica e
das reportagens policiais que invadem a imaginação e os lares dos leitores.
"Os Donos do Rio" mostra, pois, o processo de transformação do
jornalismo carioca enfocando algumas questões básicas: a absorção dos literatos
pelos jornais de maior circulação (o quem escrevia nos jornais); as mudanças que são
introduzidas no jornalismo também em função da tecn'icidade do período (o quê se
escrevia nos jornais); como esse CO/jJUS de texto cheg;va aos leitores (as técnicas de
produção) e a representatividade que tinham sobre os leitores (o jogo de poder criado
a partir do simbolismo adquirido por esses impressos); e, finalmente, quem eram
esses leitores.
O jornalismo carioca, a partir de 1880 e com mais intensidade na década
seguinte, passa por um momento de drástica transformação. Do ponto de vista da
impressão, as inovações técnicas permitem a reprodução de fotos e ilustrações e
maior rapidez no processo de produção. Transformados em indústria da informação,
divide-se o trabalho no interior da~_~5?:n{as: modernas impressoras capazes de
imprimir até 20 mil exemplares por './:~~.~bstituem as antigas manuais; máquinas à
vapor, caldeiras de força de 25 cav 10s começam a invadir os jornais da cidade.
Paralelamente, nas r dações, um novo personagem - o repórter - é
responsável pela apuração j to aos Ministérios, Câmara, Senado, Delegacias de
Polícia e Teatros. As no~'as "mundanas", ou seja a crônica social, proliferam nos
jornais. E os literatos ~umem lugar na primeira página dessas publicações.
A imagem transformada em letras impressas oferece ao meio social uma
representação adequada da verdade. As diferenças entre a ficção impressa e as suas
relações com o acontecimento são extremamente tênues. Para a narrativa ser "verídica"
multiplicam-se as provas de sua autenticidade. Nos diários são os boletins fixados à
porta ou a própria notícia transformada em letras impressas. Nas revistas são,
sobretudo, as imagens transfiguradas em fotografias.
O jornal passa a ser usado como arma polêmica e também através das
novas técnicas tenta se popularizar. E popularizar significava valorizar o grotesco, o
violento, as matérias policiais. Essa valorização, muitas vezes levada ao extremo, faz
com que os fatos policiais, as tragédias do quotidiano, as catástrofes sejam, de fato,
o assunto principal. Popularizar também significa se transformar no intermediário
entre o público leitor e o poder.
Reapropriando-se de temas do quotidiano dos grupos populares e
retransformando o texto - vestindo até mesmo os romances com uma nova linguagem
e formas de expressão - esses impressos se constituem no intermediário possível
entre os grupos populares e o poder público.
Cria-se, pois, a partir de 1890, um novo jornalismo, com profundas
repercussões na sociedade. Essa nova fórmula editorial inclui edições de notícias
policiais, que passam a tomar mais espaço nos periódicos, até mesmo na primeira
página, até então destinada aos assuntos políticos; de reportagens; de entrevistas. O
artigo de fundo perde terreno para as crônicas e para a crítica literária que ocupam
lugar de destaque nas primeiras páginas. A técnica introduz novas máquinas de
compor, de imprimir e, posteriormente, de escrever e fotografar.
Os jornais mudam o seu conteúdo, a forma como editavam as notícias e o
teor das informações. A foto publicada ao lado do texto procura dar o tom de
veracidade e construir uma das representações possíveis dessa sociedade.
Reconstruir o sentido de uma obra - e neste caso a obra é os grandes jornais
do Rio de Janeiro até o final dos anos 20 - exige que se considere as relações entre o
texto, o objeto que lhe serve de suporte (no caso a impressão) e as práticas que
instrumentalizam (a leitura realizada e a reapropriação feita pelo leitor).
Ao pensar as mudanças gráficas e editoriais desses jornais - onde se destaca
a inclusão de recursos gráficos, como grandes ilustrações e fotografias, a criação das
manchetes de página, a diminuição do fonnato dos periódicos; de novas fórmulas
editoriais, com a introdução das entrevistas, o destaque às reportagens, notadamente
às de caráter sensacionalista, o isolamento dos textos opinativos dos infonnativos,
entre outras - desvendamos, ao mesmo tempo, o sentido dessas inovações.
Possibilitaria esse novo jornalismo a conquista de mais leitores e de uma nova
leitura?
Utilizando o modelo proposto por Robert Darnton para uma história
social e cultural da comunicação impressa é preciso investigar quem escreve nesses
jornais, como procuram se popularizar - ou seja, que estratégias, apelos e valores
invocam no seu discurso -, como funcionam essas empresas e de que fonna esses
textos chegam ao público. Percorrido esse caminho é preciso ver ainda como os
leitores entendem os sinais na página impressa, quais são os efeitos sociais dessa
experiência" .
As inovações devem ser pensadas na relação direta com o leitor. Estariam
os jornais com isso atendendo a uma expectativa cultural dos leitores, para quem, até
então, esses veículos não eram familiares?
Novos processos de produção são introduzidos, com o trabalho da redação
separado definitivamente das oficinas e com uma divisão de trabalho também nas
redações. A criação da figura da figura do repól1er, um produto direto dessa divisão
realizada por essas "fábricas de notícias", mostra claramente que agora não era mais
possível a existência apenas dos redatores de banca, que escreviam sobre todos os
assuntos. O público quer notícias inéditas, de última hora. Quer, enfim, saber o que
se passa não só no mundo mas na sua cidade e no seu país e em profusão. Criam-se
divisões na redação, com variados setores de reportagens, chefiados por um secretário,
auxiliado por paginadores, elementos da ligação das oficinas com as redações.
Por outro lado, a chegada da primeiras agência de notícias - a Havas, em
1874 - marca definitivamente esse novo jornalismo. O mundo está cada vez mais
perto do leitor. Cabe agora a cidade e o país também ficarem próximos. O
desenvolvimento do sistema de correios, ainda no Império, e dos meios de transporte
e do sistema telegráfico - que possibilitou a inauguração dos serviços de
correspondências nacionais e estrangeiras - tudo isso é fundamental na criação desse
novo jornalismo.
Todos os grandes jornais da cidade inauguram a nova fórmula de fazer
jornal: jornal barato, com notícias infonnativas)é Ciltima hora, que valoriza as
ilustrações, com menos textos e mais recursos que prendem a atenção do leitor.
Esse jornalismo vigorará absoluto (té os anos 20, quando há duas outras
grandes mudanças. A primeira será a intr ução de uma imprensa de escândalo, onde
as notas sensacionais, as calúnias, ~. amação ocupam inteiramente o co~teúdo da
publicação, sendo Manhã e Crít'ca os exemplares mais característicos. E também
na década de vinte que se f -mam os primeiros conglomerados de imprensa,
representados pela criaçã aos Diários Associados, a partir do instante em que
Assis Chateaubriand assume o controle do primeiro periódico do grupo, O Jornal.
Há mais correlações entre a história e a imprensa, ou para ser mais ampla,
entre os meios de comunicação e o seu estudo, do que se pode supor inicialmente.
O historiador ao reconstruir o tempo de ontem está inserindo na sua
análise não apenas a sua subjetividade, mas recuperando uma história que é também
individual.
Não há possibilidade de isenção diante da história reconstruída. Ao falar
de velhos fatos, de velhos temas, estamos irremediavelmente nos referindo a nossa
própria história. Estamos também introduzindo nessa reconstrução um feixe de
subjetividades: a do narrador de hoje - o historiador - e a dos de ontem, contidas, nos
relatos, nos documentos, nas fontes ...
Idealizar é uma atitude freqüente de quem faz da escrita o seu meio de vida
e dos textos - impressos ou não - fontes para a reconstrução de um acontecimento
próximo ou distante. Ao escrever estamos colocando no texto muito de nós mesmos,
fale ele do hoje ou do ontem. Essas idealizações, entretanto, estão sujeitas a limites
de natureza ideológica e cultural. Descobrir esses limites é, sob certo aspecto, refletir
sobre nossas próprias ideal izações, os nossos próprios sonhos.
Nesse sentido, esse trabalho contém um outro sonho. O de falar de outras
vidas, de um outro tempo, para refletir sobre vidas presentes e sobre o hoje.
Um historiador disse, certa vez, que fazer história é simplesmente conversar
com os mortos) . Concordo, apenas em parte, com a frase de alto teor poético. Para
mim fazer história é, sobretudo, falar de vida, embora, muitas vezes, para isso seja
indispensável conversar com os mortos.
Notas:
I DARNTON. Robert. O beijo de Lamourelle. mídia. cultura e revolucão. São Paulo: Cia. das
Letras, 1990, p. 109-1:11.
2 Os representantes mais signilicativos dessaaproximação história e crítica literária, na atualidade,
sãosem dúvida Haydcn White e Domenique LaCapra. - -
:1Sobre a questão da importação de idéias e sobre o tema da imitação ver ainda a controvérsia entre
SCHWARTZ, Roberto( Ao vencedor às batatas. São Paulo: Duas Cidades, 1977) e CARVALHO FRANCO,
Maria Sylvia de ("As idéias estão no lugar". In: Cadernos de Debate. n. I. São Paulo: Brasiliense, 197:1).
A autora contesta a teoria da dependência (aceila por Schwartz), alinnando que ela não rompe por completo
com astesesdualistas. uma vez que pane do pressuposto da diferença essencial entre nações metropolitanas,
sedesdo capitalismo. núcleo hegemônico do sistema e os países periféricos e dependentes. As idéias devem
ser vistas como parte de um todo social e se constituem como ele. Elas se engendram no interior de um
processo histórico e são parte construtivas dele. As representações são produtos de relações contraditórias,
mas nãoas revelam.
4 Como exemplo dessa tendência citamos o trabalho de SEVCENKO. que ao analisar as tensões
sociais e a criação cultural na Primeira República descreve, em vários momentos. o descnvolvimento desse
novo jornalismo. que, segundo o autor, "representa o fenômeno mais marcante na área da cultura com
profundas repercussões sobre o comportamento do grupo de intelectuais". Literatura como missão -tensões
sociais e criação cultural na primeira república. São Paulo: Brasiliense, 1985.
6 Darnlon. op. cil., 1990, p. I 12.
7 Idem, p.20.
"O POI'Oqlle mais /ê é o povo qlle mais lia/e.
A imprensa é o esta/rio do progresso "I .

Rio de Janeiro, 190 I. O primeiro ano do novo século anuncia drásticas


l11udanças. Envolvida pela ideologia do progresso que iguala a idéia do novo à
civilização, comparando-a com atitudes européias, notadamente francesas, a cidade
vive a febre da modernização.
É preciso conquistar o novo. E o novo para a sociedade burguesa que se
forma, desde os anos 1880, é o não tradicional. Critica-se a sociedade hierarquizada
e organizada com base no trabalho escravo. É necessário construir uma outra ordem.
Para isso inúmeros discursos são formulados: o médico-higienista, o jurídico,
o político. Referendando todos eles, o discurso da imprensa passa a aliar ao texto
impresso a sensação de veracidade da ilustração e, mais tarde, da fotografia.
Além disso, é preciso justificar a adequação dos grupos populares à nova
face urbana da cidade. A ideologia do progresso é usada também como parte desse
processo. Na verdade, a República pôs em prática um projeto político cujas idéias-
chaves são o progresso e a disciplina.
Modernizar é a palavra de ordem do Rio de Janeiro para se igualar aos
europeus. Buscando um novo ideal de civilização, novas avenidas e novos prédios
são construídos e derruba-se, em contrapal1ida, tudo o que lembre o atraso colonial.
Por outro lado, o fato de o Rio de Janeiro ser capital produz uma atmosfera
urbana singular. Os monumentos e edifícios imponentes devem representar a soberania
do povo ou a prosperidade do poder público e como centro administrativo tornar-se
pólo agregador das várias regiões nacionais e elo de ligação com as capitais de outros
países. Ao mesmo tempo, a autoridade legislativa representa o ideal nacional e a
capital torna-se, assim, protagonista no cenário político, refletindo de forma imperfeita
ou incompleta a imagem da nação' .
A Proclamação da República é o marco nesse processo de transfonnação
urbana que define a identidade cultural da cidade. Sua função de capital torna-se um
dos alvos principais da ampliação do projeto político do novo regime, convergindo
IIlteresses do governo federal com objetivos da administração municipal.
A especificidade de uma capital pode ser observada ainda pela variedade
de grupos que acorrem ao centro de poder para lutar pelos seus interesses. Mas a
característica mais marcante é seu papel de formador de opinião. A capital é a
autoridade para os donos dos periódicos e para todos aqueles que vi vem nas cercanias
do poder, em contato estreito com quem toma as decisões políticas. Ao ser
representante do país no cenário internacional e, também, pelo seu papel nacional,
torna-se lugar do cruzamento de informações, fazendo da cidade fonte permanente
de notícias.
Acrescente-se a isso o fato a-flassagem da Monarquia para a República
possibili ar surgllnento de uma nova cultura política. O movimento abolicionista e
republicano expande as polêmicas para além dos ambientes fechados, ganhando os
temas controversos às ruas. Uma verdadeira cidade política emerge, com a ampliação
do universo de discussão dos temas do momento) .
Na verdade, os temas abolicionistas e republicanos desenvolvidos nos
periódicos surgidos no decorrer da década de 1870-80 preparam terreno para um
novo jornalismo que seguirá ainda os passos da polêmica até a primeira década do
século XX, embora passe a divulgar cada vez mais uma idéia de imparcialidade. A um
elevado números de títulos efêmeros, eSlruturados administrativamente como
empresas familiares, com clara intenção política, surgidos no cenário carioca nos
anos 1870, sucede empresas em moldes industriais, onde as relações familiares e de
amizade dão lugar às subscrições entre representantes de capitais solidamente
constituídos para adquirir um novo jornal.
Na verdade, as transformações econômicas, políticas e sociais, que mudam
completamente o cenário urbano da cidade, criam condições indispensáveis para o
desenvolvimento da imprensa como empreendimento industrial.
O processo de inserção do Brasil na economia capitalista mundial ganha
novo impulso com a Abolição e a República, fOljando o quadro institucionalnecessário
para maior participação do país na divisão internacional do trabalho. Fluxos de
capital e de força de trabalho se deslocam e há um aumento real das exportações.
Paralelamente, as inversões de capitais estrangeiros crescem consideravelmente, a
partir de 1870, participando, sobretudo, na expansão de atividades ligadas aos
transportes e ao setor de serviços. Os investimentos britânicos no Brasil, por exemplo,
de 39,9 milhões de libras, em 1880, atingem 68,7 milhões, na década seguinte.
Com o gradual declínio da cafeicultura na Província do Rio de Janeiro, a
economia urbana se modifica já que os recursos se deslocam principalmente para
atividades vinculadas aos setores secundário e terciári04 •
A acumulação urbana, por outro lado, possibi lita a própria industrialização,
criando condições para novas áreas industriais e para que capitais se concentrem em
setores distintos do comércio. Nesse sentido, o desenvolvimento dos sistemas de
transportes e de uma infra-estrutura de serviços transformam o Rio de Janeiro na
cidade com a maior rede urbana de serviços e transportes, com recursos que a tornam
centro comercial e financeiro, possibilitando, ao mesmo tempo, a concentração do
capital industrial.
A cidade tem, pois, todas as condições necessárias para a ampliação e o
desenvolvimento de uma nova indústria - a de notícias - construída em moldes
inteiramente diverso do que fora, até então, a atividade de fazer jornal.
Em 1874, com o desenvolvimento do sistema telegráfico, instala-se na
cidade a primeira agência de notícias - a Havas. Logo a Gazeta de Notícias e o
Jornal do Commercio passam a publicar as notícias internacionais, sob a forma de
telegramas, na sua primeira página.
Por outro lado, o desenvolvimento dos Correios, ainda no Império,
possibilita melhor e maior distribuição desses periódicos. A construção de uma
malha ferroviária atingindo cada vez mais lugares longínquos dá a certeza de que um
público ainda mais extenso poderia ser consumidor das novas publicações. Entre
1870 e 1890 são inauguradas 12 novas estações da Estrada de Ferro D. Pedro II e é
possível chegar de trem, desde 1878, até Santa Cruz. A Leopoldina Railway inaugura,
em 1897, as novas estações de Bonsucesso, Penha e Meriti. No ano seguinte, os
trens da Linha Auxiliar, incorporada à Central em 1903, páram em Triagem, DeI
Castilho, Honório Gurgel e Cavalcanti.
A cidade tem, pois, um peso como tradicional centro comercial e financeiro,
com um amplo mercado consumidor concentrado também nos seus próprios limites.
Os efeitos da prosperidade agrícola, após 1890, aceleram o processo de formação de
capital. A população cresce num ritmo acentuado. Paralelamente, as tarifas
alfandegárias e o surgimento da eletricidade determinam um período de grande
desenvolvimento para a indústria.
O aumento real e a diversificação da população, decorrentes, em parte, do
atluxo de libertos e imigrantes, fazem com que o período entre 1870 e 1890 registre
um dos maiores crescimentos demográficos da cidade. Em 1872,274.972 é a população
do Rio de Janeiro. Dezoito anos depois este número atinge 522.651. Em 1900, o seu
contingente populacional já ultrapassa 600 mil e o Rio de Janeiro com 621.565
tlloradores é a mais populosa cidade do país e a única com mais de 600 mil habitantes' .
Núcleo comercial e industrial, com a maior rede ferroviária do país, além de
possuir o maior contingente populacional, o Rio de Janeiro detém todas as condições
indispensáveis para o florescimento de uma imprensa em moldes empresariais. Ainda
que o ramo gráfico, de maneira geral, fosse um setor amplo e disperso, caracterizado
pela existência de pequenas empresas de base técnica artesanal, apresentando de um
lado um baixo grau de concentração e de operários, não se pode dizer que esse
modelo perdurasse nos diários mais importantes, principalmente após 1890.
. . Já nessa década o Jornal do Commercio importa as suas primeiras
hnotlpos. Suas três máquinas Marinonis podem imprimir, de uma só vez, oito ou até
16 páginas, com uma tiragem de 10 mi I exemplares por hora. Só na impressão o jornal
de José Carlos Rodrigues possui 12 máquinas. O Jornal do Brasil também importa
uma Marinoni dupla que podia rodar até 8 páginas. Mais diante de Walter Scott de
O Paiz, na década seguinte, ou da impressora alemã da Gazeta, que em 1907 é capaz
de imprimir até cinco cores, as inovações do decênio anterior já parecem obsoletas.
Cria-se, no Rio de Janeiro, desde os anos 1880, e com mais intensidade a
partir da década seguinte, um novo jornalismo que muda o padrão editorial das
publicações. Agora, os textos pretendem sobretudo informar, com isenção,
neutralidade, imparcialidade e veracidade, sobre a realidade. E esses adjetivos se
repetem sem cessar nos periódicos. Editando com destaque as notícias policiais e
reportagens, sob uma capa de neutralidade, introduzindo a entrevista nas primeiras
páginas, os jornais procuram construir uma representação ideal da sociedade. A
opinião isola-se no artigo de fundo e a ilustração, posteriormente substituída pela
fotografia, publicada ao lado do texto, cumpre também esse papel.
A edição ganha novo caráter: o sentido de ordenar a sociedade. Os dramas
cotidianos e os mexericos devem provocar tanto ou mais interesse quanto os temas
políticos discutidos diariamente nos cafés pelos repórteres.
Embora tenha, até os anos 20, um poder de difusão restrito, se
considerarmos o papel que assume posteriormente, não se pode negar o poder
influenciador da grande imprensa que se forma. Os principais jornais do Rio de
Janeiro, que se constituem como empresas visando sobretudo o lucro, vivendo
fundamentalmente das benesses do poder público, da venda de espaço publicitário e
de assinaturas e da venda avulsa, juntos, tiram, segundo informações da época, em
1900, cerca de 150 mi I exemplares6• Numa cidade com 691.565 habitantes e
considerando-se ainda o grande número de publicações efêmeras, de tiragens reduzidas,
além das revistas de críticas e de costumes mais expressivas, percebe-se o poder
intluenciador e formador dos principais matutinos do Rio de Janeiro.
A drástica transformação por que passa o jornalismo inclui, também, do
ponto de vista da impressão, inovações técnicas que permitem a reprodução de
ilustrações e fotos e maior rapidez no processo de produção. Do ponto de vista
editorial, mudam o teor das notícias publicadas e a forma como são distribuídas nas
páginas. A valorização do caráter imparcial do periódico leva a criação de colunas
fixas para a informação e para a opinião, ao mesmo tempo em que se privilegia a
edição de notícias infonnativas, em detrimento da opinião. O altigo de fundo tem um
lugar determinado, não se confundindo com as colunas informativas.
Para conquistar maior número de leitores, os jornais dedicam espaço a um
tipo de notícia que, até então, estivera relegada a segundo plano: as de natureza
policial. Com o mesmo objetivo assiste-se à difusão do folhetim. Quase todas as
publicações do Rio de Janeiro abrem espaço ao gênero, classificado por Machado de
Assis como "nova identidade literária") .
Os jornais publicam também charges diárias, os escândalos sensacionais,
os palpites do jogo do bicho, as notícias dos cordões e blocos carnavalescos, entre
uma gama variável de assuntos, com a preocupação de atingir um universo significativo,
vasto e heterogêneo de leitores.
A lenta e gradual mudança no processo de produção dos matutinos da
cidade é marcante, sobretudo, nos cinco maiores periódicos,e segue um caminho
mais ou menos uniforme até o início dos anos vinte, quando o jornalismo ganha nova
configuração. Além do aparecimento de uma imprensa inteiramente sensacionalista,
que fará do escândalo e dos dramas do cotidiano a totalidade de seu conteúdo, surgem
não apenas jornais estruturados em moldes empresariais, mas grupos isolados que
passam a dominar mais de um título. A instalação de novas agências noticiosas, desta
vez norte-americanas, e a vinda das primeiras grandes agências de publicidade dão a
senha para a entrada do jornalismo num novo tempoX .
Em 1903, o Almanaque do Jornal do Brasil anuncia as cinco oficinas
daquele jornal, que ocupa a moderna sede da Rua Gonçalves Dias e já se prepara para
mudar para a Av. Rio Branco. Cinco anos antes, é o Jornal do Commercio quem
introduz algumas inovações, como a substituição de sua impressora por outra mais
moderna e, sobretudo, mais veloz. Em 1890, Henrique Chaves pede licença para
imprimir a Gazeta de Notícias num novo endereço - à Rua Sete de Setembro, 72 -
onde há espaço suficiente para uma nova máquina rotativa mais moderna. Um ano
depois, o Jornal do Brasil, publica um novo tipo de jornalismo, onde destaca
sobretudo a ilustração.
A rivalidade entre todos esses jornais - em função de conquistar sempre
um público mais amplo - é contundente. O Jornal do Brasil, então o mais popular
da cidade, se vê ameaçado em 190 I, com o lançamento e a rápida ascensão na
preferência do público do Correio da Manhã. O Paiz, que procura alcançar grande
número de leitores, e a Gazeta de Notícias, pioneira no processo de fazer jornal
barato e popular, fazem de suas páginas verdadeiros libelos de denúncias contra o
jornal de Edmundo BittencoLll1 e contra o novo Jornal do Brasil. As denúncias de
favorecimento, clientelismo e protecionismo também se voltam contra o mais
conservador, do ponto de vista editorial, de todos esses periódicos: o Jornal do
Commercio.
o polêmico Correio da Manhã
Rio de Janeiro, 15 de junho de 190 I. Pela cidade, os gritos dos pequenos
jornaleiros anunciam o mais novo matutino: o Correio da Manhã. Esse jornal que
será, ao lado do Jornal do Brasil, o mais popular nos vinte primeiros anos do
século, surge embalado pel~e-lllQdf.~ação e de mudanças de natureza
empresarial e editorial que tomam conta do jornariS1~
Definindo-se como folha política e criticando o idêãt de neutralidade
constantemente referendado pela imprensa, o seu al1igo de apresentação enfatiza:
"a nota de neutralidade com que certa imprensa tem por costume carimbar-se é, bastas vezes,
um estratagema para, mais a gosto e ajeito, poder ser parcial e mercenária. Jornal que se
propõe e quer deveras defender a causa do povo, do comércio e da lavoura, não pode serjornal
neutro. Há de,forçosillllente, ser umjomal de opinião e, neste sentido, umafolha política "Y.
Tal como ocorreu a partir de 1875 com a Gazeta de Notícias, o Correio
da Manhã revoluciona o jornalismo ao valorizar a informação em detrimento da
opinião. As notícias policiais, o cotidiano dos grupos populares, as reportagens, as
entrevistas assumem lugar de destaque. Por outro lado, passa a destacar mais a
crônica, ligada a temas do cotidiano, em detrimento do próprio folhetim, impresso
no rodapé de uma página de seu interior.
Pretendendo divertir, informar e, sobretudo, ilustrar o leitor, a crônica que
nasce no espaço inicialmente destinado ao folhetim - o romance em forma de fragmentos
- separa-se definitivamente dele e toma o seu lugar. Mais adaptada às contingências
do próprio jornalismo - a pressa e a obrigação profissional - assume uma coloquialidade
agradável, fazendo do leitor um verdadeiro cúmplice, ao mesmo tempo em que revela
contradições e imperfeições, já que o cronista recorre sistematicamente à memória.
A ligação direta com o veículo que a divulga, faz com que a própria imprensa
seja com freqüência tema de crônicas. Notícias, outras crônicas, artigos são referências
permanentes, tornando-as espaço férti I também para o apareci mento e
desenvolvimento de polêmicas . lll

O Correio da Manhã, fundado pelo advogado e ex-colaborador de Rui


Barbosa, em A Imprensa, é caracterizado por Edmundo Bittencourt, desde o início,
como um jornal de oposição.
Funcionando no antigo endereço do periódico dirigido por Rui Barbosa, de
'quem adquire as máquinas e arrenda o prédio 117 da Rua Moreira Cézar, o novo
Imatutino é impresso inicialmente em oito páginas, com oito colunas em cada uma. A
\' primeira contém sempre o artigo de fundo, de cunho opinativo, sobre política,
literatura ou economia. As outras colunas são A Política, assinada por Gil Vidal,
pseudônimo do advogado Leão Veloso Filho, ex-redator do Jornal do Brasil e,
agora, redator-chefe do novo periódico; Hontem, tratando do dia-a-dia do presidente;
além de reportagens-denúncia. A segunda traz os artigos policiais, os telegramas com
noticiário internacional e o Correio do Theatro. A terceira divide-se entre informações
sociais, acadêmicas (na coluna Vida Acadêmica) e militares. A quarta estampa o
comércio, as finanças e o esporte. As outras quatro são ocupadas por anúncios.
O jornal que valoriza, ao lado dos temas políticos, a literatura, chegando a
publicar crônicas e poesias na capa, dedica o rodapé da terceira página ao folhetim
diário, ao contrário do que acontece na década anterior, quando esse tipo de texto
ocupa espaço nobre na página um. É o que ocorre com Assombração, estréia de
Coelho Neto, em dezembro de 190 I.
As estratégias editoriais, redacionais e administrativas do Correio da
Manhã para se tornar um jornal popular atravessam toda a primeira década do
século e revolucionam o jornalismo de então. Ainda no primeiro mês de funcionamento,
adicionam às seções já existentes, Vida Acadêmica, uma coluna destinada a dar as
informações mais completas sobre o movimento da academia, e Vida Operária, tratando
de fatos das associações de trabalhadores. Nesse mesmo mês iniciam Pelos Subúrbios,
publicando notas diversas sobre os bairros servidos pela E.F.Central do Brasil e
arredores e seus moradores, iniciando uma prática que será também comum no
periódico: inserir as reclamações dos leitores" .
A publicação dessa fala é constante no Correio da Manhã. Além das
cartas avulsas, algumas assinadas e outras não, edita as queixas dos habitantes da
cidade, recebidas pessoalmente ou por carta, intermediando pedidos ao poder público,
também através da coluna Reclamações.
Introduzindo um estilo fundamentalmente informativo, o jornal noticia
não apenas os fatos políticos e policiais de última hora, mas as grandes festas
populares e os acontecimentos cotidianos da cidade. Em novembro, invariavelmente,
abre espaço na primeira página e na segunda, as duas mais nobres até então, para
noticiar a "romaria" aos cemitérios da cidade. No mês anterior, publica com destaque
detalhes sobre a Festa da Penha e durante todo o mês de fevereiro abre a rubrica
Momo para descrever amplamente o carnaval carioca. Em dezembro de 190 I,
inaugura uma nova seção, para publicar telegramas especiais do Brasil e do mundo:
Pelo Telégrafo. E anuncia que as informações telegráficas e internacionais seriam "da
mais completa perfeição", por terem correspondentes especiais nas mais importantes
capitais do mundo, além de estar Edmundo Bittencourt seguindo para Buenos Aires,
para criar o serviço especial de informações sul americanas. Com isso, "os nossos
leitores ficarão assim a par de todo movimento nas grandes capitais e conhecedores
das modificações que se dão na política internacional".
Se há do ponto de vista redacional essas inovações, introduzidas com o
intuito claro de conquistar novos leitores, aumentando a venda avulsa e, em
conseqüência, seu poder de difusão, sua importância política e a comercialização dos
espaços publicitários, também no que se refere ao aspecto gráfico, as mudanças são
evidentes desde o primeiro ano. "O material tipográfico será completamente
~ transformado a fim de que o Correio da Manhã em todos os pontos cOlTesponda às
I
exigências de um jornal moderno, cuidando também com apuro da parte estética".
Inicialmente essa "revolução" limita-se à utilização de uma tipologia mais
rebuscada nos títulos e ao uso de um corpo maior no texto impresso, mas naquele
ano de 1902, o Correio da Manhã começa a publicar as primeiras fotos na capa e no
interior (a primeira foto é pul:J.Licadaem 30-CJ~ na coluna Correio
dos Teatros) e, no ano seguinte, iniciam na página quatro a seçao ôeanúncios com o
resultado do jogo de bicho sob a rubrica Roda da Fortuna. Passa também a editar
charges, às vezes funcionando como chamada, no alto da primeira página, recebendo
a rubrica, a partir de 1905, o nome de Cinematógrafo.
Jornal de oposição ao Governo, empreende virulenta campanha contra
Campos Sales. Em função disso tem a sua publicação suspensa em 19 de novembro
de 1904, só voltando a funcionar em 15 de dezembro do mesmo ano, mesmo assi m
tendo que conviver com um censor diariamente na sua redação. Durante a vigência do
estado de sítio, o Correio e outros jornais recebem a seguinte orientação: "O Correio
da Manhã na vigência do estado de sítio conviria abster-se da análise apaixonada dos
atos do governo e de seus agentes, com o fim manifesto de manter latente a agitação
do espírito público, já pacificado".
Todas essas transformações são ainda maiores a partir de 1905. Nesse
ano, além de publicar extensas reportagens, verdadeiras crônicas do cotidiano, abusa
da transcrição integral de documentos e desloca a crônica literária para o lugar do,
artigo de fundo. O Correio da Manhã passa a ser fundamentalmente um jornal
infolmativo nos dias de semana e literário aos domingos.
O noticiário policial invade em manchetes, inicialmente em corpo 18, mas
já nos anos seguintes em até corpo 48, as suas primeiras páginas. Logo abaixo da
manchete o resumo da notícia, em pequenos títulos entrecortados, anuncia o novo
estilo do jornalismo sensacionalista. "Desmoronamento - Duas Vítimas - Quadro
Terrível - Os mOl10s - As providências - Encontrados corpos - No Necrotério -
Notas Diversas - Um dia aziago - O prédio em que se deu o desastre - Antes de
demolida a parede principal".
Na Polícia e nas Ruas, que desde o primeiro ano concentra as notas policiais,
ocupa agora duas colunas na página 2. Mas as notícias dos crimes e tragédias do
cotidiano estão por toda a parte.
A ilustração passa a integrar a própria notícia, com a publicação de
fotografias, reproduzindo o momento da tragédia. Nas matérias policiais publica-se
sempre o retrato do assassino e da vítima, sendo a foto invariavelmente a da cena do
crime. Mas não são apenas as notas policiais que merecem o destaque e a sensação
de veracidade da fotografia: os grandes homens, os grandes feitos, o desenvolvimento
e o progresso dos nossos navios são reafirmados pela imagem fotográfica.
Essa montagem de um jornalismo preocupado com a veracidade,
desvendando para o leitor como se dá a própria construção da notícia, assume a
marca mais patente com a publicação de entrevistas, nas quais toda a trajetória do
jornalista na cena da reportagem, suas sensações e, finalmente, a transcrição literal
das perguntas e das respostas do entrevistado são descritas. O Correio da Manhã
publica com grande destaque a sua primeira entrevista em novembro de 1905,
reproduzindo como título o nome do próprio entrevistado - "Rui Barbosa"- e dando
como subtítulos o tema da entrevista - "O Projeto do Código Civil"- e o novo estilo
- "Interview".
"Eram duas horas da tarde quando transpusemos o portão da magnífica casa (...) em que
reside o SI: Rui Barbosa, afigura primacial do nosso mundo presente (...). A tarde era
deliciosa na suavidade própria para o recolhimento operoso na paz de 1II11 gabinete ".
Após esta introdução, descrevendo o ambiente externo e o próprio
entrevistado, o repórter reproduz para o leitor, sempre em primeira pessoa, a sensação
que se apodera dele ao realizar tão importante missão:
"Uma vaga hesitação nos agarrou à idéia de que fossemos importunar no seu labor infatigável
o grande mestre e perturbar-lhe o espírito com a nossa curiosidade bisbilhoteira( ...). Tocamos
com viva ansiedade a campanhia da porta embaixo da arcada pela qual se passa ao parque sem
fim, além da moradia( ...). Uma curiosa emoção nos prendeu enquanto subíamos a elegante
escada que nos levava ao primeiro andar".
O detalhamento da descrição, que ocupa duas colunas de alto a baixo na
primeira página, introduz o leitor nos jardins, no interior da casa, no gabinete onde se
realizaria a entrevista.
Criando um clima de expectativa e, ao mesmo tempo, anunciando a
qualificação do entrevistado com uma descrição minuciosa, o repórter termina a (

..\;
matéria introdutória para a entrevista publicada no dia seguinte. "O Sr. Rui Barbosa
entrou neste momento na sala e a entrevista começou. Publicá-Ia-emos amanhã".
No dia seguinte na primeira página aparece a entrevista, transcrevendo-se
as perguntas e as respostas e reproduzindo, assim, a conversa do jornalista com o
conselheiro. Como fecho da repoliagem, mais uma vez as sensações do repórter são
reveladoras não só do seu ofício profissional, como também das suas aspirações
intelectuais.
"Anoitecia. Já quase não se percebiam as fómosas pinturas na parede interior da sala. E
saímos com a lzumilllClnte certeza da mesquinhez da nossa vidafóbril e efêlllera diante do
grandioso espetáculo de tanta inteligência, de tanto sabCl; de tão vasto e nobre trabci/ho"J2.
A entrevista dura, portanto, perto de quatro horas. Mas esta conclusão
não mostra apenas isso. Fica claro também o desejo do profissiõnal da imprensa em
ser reconhecido pelo seu valor intelectual, como ele se sente limitado em seus
conhecimentos diante do entrevistado e, finalmente, como classilj.GtrÔ seu trabalho
cotidiano: fabril e efêmero. Todos os dias ele realiza, cO~lifha fábrica, a mesma
tarefa, de redigir notas a serem publicadas, lidas e deiydas de lado a seguir.
, \ Dez anos depois do aparecimento de s uprimeiro número, o Correio da
Manhã muda quase que inteiramente. Nos . s de semana, o af1igo de fundo, crítico
e que destaca a campanha oposicionis do jornal no momento, ainda é assinado por
Gil Vidal, mas é por vezes substituído pelo Registro Literário, de Osário Duque
Estrada. A política domina outras colunas, ao lado de Pingos e Respingos, escrita
por Bastos Tigre, em substituição' a Antônio Sales, desde 1904. Na página dois, Pelo
Telégrafo ocupa agora quatro colunas e destaca as notícias de São Paulo ao lado de
outras do exterior. Na três, notas do cotidiano, a Crônica Policial, que substitui Pela
Polícia e nas Ruas e o Correio dos Teatros. Pelos Subúrbios se chama agora Correio
Suburbano, ao lado de Reclamacões, que não sofre alterações. Na página quatro, a
coluna Terra e Mar, com notícias do Exército, da Marinha, do Corpo de Bombeiros
e da Força Policial, divide o espaço com as notas das Associações e o Dia Social. Na
seguinte, o Comercio, Vida Mineira, Notícias de Portugal e Vida Acadêmica, que não
mudam muito. Na sexta, os Avisos, o Indicador, criado em 1903, e a Biblioteca do
Correio da Manhã, onde reproduz, sob a forma de livro, duas páginas a serem
recortadas de um romance/folhetim e que, ao final, se encadernadas, virariam urna,
brochura tradicional. As quatro seguintes são ocupadas pelos pequenos e grandes
anúncios. Invariavelmente, o jornal é editado com 10 páginas.
Aos domingos, com uma feição mais literária, é impresso em 14 páginas.
Na primeira, Carmem Dolores, o pseudônimo da jornalista Emília Moncorvo
Bandeira de Meio, que no início do século já fazia crítica literária em O Paiz, divide
o espaço com Traços da Semana, resenha política dos sete dias anteriores, assinada
por Costa Rego e com a crônica de Arthur Azevedo. Na página dois mais crônicas,
algumas destinadas ao público infantil, e poesias, além de transcrições de pequenas
peças teatrais. As seguintes reproduzem, com pequenas variações, as mesmas seções
dos dias de semana. Os anúncios ocupam as páginas 9, 10, 11, 12, 13 e 14. Tudo isso
quando interesses editoriais ou políticos não determinam mudanças na primeira
páginal) .
As fotos agora utilizam-se de novos recursos gráficos para ganhar ainda
mais destaque, como o recorte e a superposição. Na matéria principal mais de uma
fato é quase sempre editada ao lado do texto. Os acidentes, as rebeliões, os crimes,
mas também os times esportivos merecem o destaque da fotografia. As entrevistas
podem ser feitas com o sentido de esclarecer matérias publicadas anteriormente e
não envolvem apenas personagens de relevo da sociedade. E ainda do ponto de vista
gráfico o jornal assume definitivamente a edição das matérias em duas colunas,
introduzindo a manchete de página, seguida de subtítulos maiores.
Se as estratégias redacionais e editoriais introduzidas pelo mais novo
matutino carioca são inúmeras, não menos numerosos são os recursos administrativos
e empresariais utilizados para conquistar um pLlblico cada vez mais amplo e
heterogêneo. Afinal o novo periódico, desde o seu primeiro número, pretende ser
"uma folha livre que vai se consagrar com todo o ardor e independência à causa da
justiça, da lavoura e do comércio - isto é, a defesa dos direitos do povo, do seu bem
estar e das suas Iiberdades" 14 •
Na conquista desses leitores, deve ser um produto de venda fácil e intensa.
E o preço determina essa característica.
Assim, o jornal é um dos mais baratos da cidade, custando o exemplar
avulso 100 réis, e as assinaturas que inicialmente são de 30$000 a anual e 19$000 réis
a semestral, diminuem de preço em 1904, passando para 25$000 e 16$000.
Na concepção expressa inúmeras vezes pelo periódico a circulação
determina a sua própria prosperidade. "Desde que o jornal perde a circulação, perde
os anúncios. O negociante paga o seu anúncio para que ele seja lido", afirmam em
19021.1. A busca permanente de leitores leva a criação de outras seções de pequenos
anúncios, onde os oferecimentos e pedidos de emprego, ao lado dos aluguéis de casas
simples se sucedem. Mas não basta apenas criar esse espaço: é preciso torná-Io
acessível ao bolso de um público leitor mais amplo. Pedidos e Ofertas de Empregos
criada em junho de 1902 se transforma, dois anos depois, numa coluna mais
abrangente, incluindo aluguéis residenciais, cujos pequenos anúncios podem ser
negociados pelo dobro do preço da vencia do exemplar avulso: 200 réis.
A estratégia empresarial adotada com o intuito claro de conquistar leitores
é apresentada como mais uma benevolência e um serviço ao público prestado pelo
periódico:
"Atendendo à situaçâo difícil que aflmessa o país, trazendo afalta de colocaçâo, onde
honestamente se possa ganhar os lIIeios de subsistência, e desejando o Correio da Manilâ ir em
auxílio dos lIIais necessitados, proporcionando-liles ocasiâo dejácillllente adq/tirir elllpregos,
resoli'el/lOs estabelecer para os pequenos al/líncios IIII/atabela de preços que esteja ao alcance
dos lIIenos fal'Orecidos pelafortuna".
E continuam:
"Assim, os muíucios de letras, pediudo emprego ou empregados, custarão de agora em diante a
insignificante quantia de 200 réis. Tendo em vista ofato de ser o Correio da Mallhã ojomal
mais lido, éfácil compreender a extraordinária circularão do al1líncio podendo-se com aquela
quantia, em poucos dias, conseguir um/ugar para proporcion~rtféssririo à subsistêucia ".
A justificativa para cobrar igual quanti, para os anúncios de aluguéis é do
mesmo gênero: ajudar aqueles ue não uem nada além da intermediação que o
jornal pode oferecer. "O mesmo preço cobramos para os anúncios de casa, visto
desejarmos com o maior número de oferta proporcionar ao pobre um meio de escolher
a residência e não ter dificuldade em encontrá-Ia ao alcance de sua bolsa"'6.
À política da venda barata do periódico, ao lado dos anúncios a preços
reduzidos, somam-se os brindes oferecidos pelo jornal em datas especiais, como um
livro no final do ano, ou cupons que davam "ao portador o direito de comprar na
Farmácia N.S.GIÓria um sabonete por $500 e um vidro de Bromil por I$000", entre
outros do gênerol] .
Assim, o Correio da Manhã que naquele 15 de junho de 190 I tirou três
mil exemplares da sua primeira edição numa velha máquina impressora, orgulha-se,
já em 1903, de imprimir 30 mil exemplares, que são distribuídos pela cidade, pelo
estado e por outras unidades da federação e destacam, a partir de 1910, a impressão
em modernas máquinas rotativas Marinoni e em papéis da Casa Prioux & Cia, de
Paris.

A busca de popularidade, uma constante no jornalismo carioca a partir dos


anos 1880, leva os jornais a se tornarem verdadeiras revistas ilustrada dos
acontecimentos diários. E o mais marcante exemplo dessa modificação na própria
natureza do jornalismo é, sem dúvida, o Jornal do Brasil.
O mais popular diário da cidade, desde 1894, se orgulha de publicar os
palpites do jogo do bicho, as marchas dos cordões e blocos carnavalescos e os
crimes, segundo os cronistas de época, tão ao gosto de um público mais vasto.
Ser popular é atingir os ainda não alinhados entre os leitores tradicionais.
É ser o jornal dos caixeiros, dos balconistas, dos empregados de comércio, dos
militares de baixa patente, dos trabalhadores em geral IX • E na busca desta popularidade
o periódico rivalizar-se-á, a pal1ir de 190 I, com o Correio da Manhã.
Mas não é apenas o destaque "aos crimes sarabulhentos, às notícias
hediondas, às tragédias quotidianas", ocupando mais de 50% do seu noticiário, que
caracteriza essa busca de uma gama mais variada de leitores. A partir de 1900, o
jornal abre grandes espaços às ilustrações - criando edições especiais ilustradas às
quintas e domingos - num pioneirismo, rapidamente imitado pelos outros periódicos.
Com ilustrações a bico de pena de páginas inteiras, resumindo as notícias
da semana sob a forma de caricaturas, inovando ao criar "o conto sem palavras", na
verdade uma espécie de história em quadrinhos sem fala, o Jornal do Brasil valoriza
mais e mais as imagens - ainda em forma de desenho - em detrimento do texto. Este,
por sua vez, assume uma configuração até então desconhecida no jornalismo: passa
a ser fundamentalmente objetivo, direto e informativo.
"Na praia de Santa Luziafoi preso ontem, ao meio dia, o gatuno Antônio Alexandre, na
ocasião em que subtraia a carteira do SI: Bento José Monteiro. Alexandre achava-se em
companhia de Amam Bastos do Nascim.ento, que tambélllfoi preso, sendo ambos recolhidos ao
xadrez da 5"circunscrição urbana "N.
E mesmo em textos mais longos e de caráter analítico, procura ser o mais
simples possível, atingindo dessa forma um universo expressivo de leitores.
Essa busca de popularidade começa, na verdade, em 1894, quando é vendido
à firma Mendes & Cia., ex-proprietária do Diário do Commercio. Até então o
Jornal do Brasil pouco se diferencia dos periódicos mais tradicionais.
Fundado em 9 de abril de 1891, por Rodolfo Dantas, Ministro da Educação
do Império e tendo na gerência comercial o ex-administrador do Jornal do
Commercio, Henrique de Villeneuve, o jornal afirma-se no artigo de apresentação
com o dever de fiscalizar os abusos do poder, acima das convicções ideológicas.
Entretanto, era nitidamente monarquista, tendo entre os fundadores Joaquim Nabuco,
que assume a chefia de redação em junho daquele ano.
"A imprensa I'elll do período ditatorial, coberta de chagas. Esperamos, entretanto, que se lhe
tenha restituído de vez, no domíuio da Constituição 1101'0, o regime de liberdade que nriofoi a
menor glória da Carta autiga haver assegurado durante 70 anos em altura e que desafiam
paralelo aos sistemas mais liberais deste séCIIlo. Nesta convicçrio é qlle l'i,IIOScolocar-nos neste
posto à serl'içoda Pátria "!II.
No aspecto gráfico, distribui as colunas Dia a Dia, Telegramas, Notícias
Diversas, Folhetim, Teatro e Salões, Notícias Políticas, Exterior, Tribunais, Os
Estados, Avisos, Memorandum, Comércio e Ineditoriais, além dos anúncios, em
quatro páginas. Impresso em corpo 10 e em 8 colunas de 6 cm cada, destaca na
primeira os telegramas internacionais, notícias policiais, políticas e notas diversas.
Na página dois ficam o Folhetim, Teatros e Salões e as notas dos tribunais. Na
seguinte, priorizam os assuntos dos Estados e avisos diversos, além de pequenos
anúncios na coluna Memorandum. Ao pé da página as notas do Commercio incluem
o câmbio, notícias do movimento do porto, importação e exportações, das associações
e marítimas. Dividindo o espaço com os anúncios, na última, cartas e editais são
publicados na coluna Ineditoriais.
No seu primeiro ano, custa 40 réis o exemplar e as assinaturas anuais são
de 12$000 e as semestrais de 6$000, o mesmo preço da Gazeta de Notícias. Com a
tiragem ainda modesta de 5 mil exemplares, muito longe dos 60 mil que já imprimem
no início do século XX, é vendido principalmente na zona sul pelos meninos que
gritam ao público o nome da nova folha. O restante das edições é levado por quatro
carroças aos quiosques que se espalham pelas ruas centrais da cidade, que ao lado de
diversos outros artigos também vendem jornais11• /
Com o agravamento da crise entl~rn<í1 e o Governo Republicano, logo
após a entrada de Joaquim Nabuco BJ1I~a sua chefia, o Jornal do Brasil tem sua
oficina depredada em 16 de ~ní6í'0 de 1891. Rodolfo Dantas e Nabuco deixam o
jornal, ficando Villeneuve apenas alguns meses para efetuar a transição. Em abril de
1892 passa a ser propriedade de uma sociedade anônima, cujos sócios majoritários
são Ferreira de Almeida e o Conde de Figueiredo. Com a propriedade, muda também
a redação: José Veríssimo assume a crítica literária e na chefia da redação Ulisses
Viana é substituído por Constâncio Alves. Fazia palie dessa segunda redação, Pedro
Leão Veloso Filho, o popular Gil Vidal, redator-chefe do Correio da Manhã, a
parti r de 190 I.
Em maio de 1893, o jornal é de novo vendido, assumindo Rui Barbosa o
cargo de redator-chefe. Constâncio Alves permanece na redação, tendo como secretário
Tobias Monteiro. Sob a censura do estado de sítio, o Jornal do Brasil, contrariando
ordens expressas do Governo Floriano, noticia a Revolta da Armada e na madrugada
de I de outubro tropas do governo invadem a sua redação e as suas oficinas, ocupando-
o militarmente. Sua edição é suspensa por mais de um ano, só voltando a circular, em
novembro de 1894, já sob nova direção.
A p3l1ir daí passa por drásticas transformações que são responsáveis pelo
próprio slogan criado pelo periódico: "o popularíssimo".
Essa nova fase começa em 15 de novembro de 1894, quando é vendido à
firma Mendes & Cia e passa ser chefiado pelo advogado Fernando Mendes de
Almeida, tendo como gerente o irmão Cândido Mendes e como secretário Arthur
Costa, e se caracteriza por profundas alterações na estrutura empresarial,
administrativa, redacional e editorial que definitivamente o transformam no
"popularíssimo".
Dividindo esquematicamente a empresa em variados setores, o Jornal do
Brasil separa, na sua estrutura administrativa, a redação da administração geral e das
oficinas. É composto das seguintes seções: a redação; as seções técnicas, onde estão
a composição, a paginação, as máquinas, as oficinas de obras, a estereotipia, a
fotogravura, a fotozincografia, a galvonoplastia, a encadernação e a eletricidade; e os
demais serviços que englobam a revisão, a expedição, o almoxarifado e o correio.
Na parte administrativa ficam a caixa, a contabilidade, a escrituração geral
e as especiais, o recebimento dos anúncios e das assinaturas, o expediente do interior
e do estrangeiro e o serviço especial da Revista da Semana, a partir de 1900.
A redação, por sua vez, também é dividida em setore , onde trabalham os
repórteres e redatores: o redator de plantão; o encarregado de atender aos pobres; o
redator de Palcos e Salões e os responsáveis pelo serviço telegráfico, pelas notícias
da Marinha, pelo noticiário policial, pelo foro, comércio e esporte. Na redação fica
ainda a seção de desenhos, a qual dedica especial atenção" .
A prosperidade do jornal a partir dessa nova estruturação é assombrosa.
Seis anos depois dessa transformação administrativa, que leva igualmente a uma
profunda mudança redacional/editorial, imprime uma segunda edição diária - a
vespertina - e adquire o controle da Revista da Semana, que passa a ser uma
publicação semanal do Jornal do Brasil. Editam além dos inúmeros romances,
publicados anteriormente em suas páginas sob a forma de folhetim, uma edição
mensal - o Guia Mensal do Jornal do Brasil - e uma edição anual - o Anuário do
Jornal do Brasil.
O sucesso de público e vendas provoca a crítica irada de seus correntes. O
Correio da Manhã em freqüentes artigos denuncia "os embustes do popularíssi mo",
duvidando da rapidez do seu noticiário.
"Di: o popu!aríssilllo que o seu wTiço te!egráfico de segunda feira passadafoi UII/triunfo real
e qucfoi ll/Utrabalho enorllle. co!ossal. Mas na verdade os resu!tados ignora\,{/1II3!8 distritos,
lIIau grado o se/Tiço da Hal'as e dos correspondentes especiais do lOl'l/a! do COllllllercio, da
Cazeta de Notícias e do Estado de São Pau!o. O que nos cabe, COIIIOjOl'l/a!istas honestos e
decentes, é!JI'el'enir o púb!ico contra as contínuas e esconda!osíssilllas Inistijicações elll que o
lOl'l/a! do Brasi! é useiro e vezeiro e COIIIas quais engasopa e i!ude os seus !eitores"2.!,
Do ponto de vista editorial, introduz uma série de inovações: a profusão
de ilustrações, o que leva a criação de uma edição ilustrada - o Jornal do Brasil
Ilustrado - já em 1898; a pretensa isenção nas notícias, que recebem um cunho
claramente infollllativo e desloca a opinião política para duas colunas semanais; a
edição de notícias e ilustrações que se referem ao cotidiano dos habitantes da cidade;
a crítica concentrada nas caricaturas; a publicação das modinhas e canções populares
e a inclusão de uma seção de passatempo podem ser alinhadas entre as mudanças
mais marcantes. O jornal publ ica diariamente os palpites para o jogo mais popular da
época - o do bicho - sob a fonna de quadrinhas:
"Nüo preciso de concurso
De palpile de quem quer
Há de dar o gato ou o urso
Só perderei se quiser"N.
Além de tudo isso, faz questão de referendar o seu papel de intermediário
entre a população e o poder público, de defensor do pobres e. dos oprimidos,
abrindo espaço às Queixas do Povo, ou incluindo n suas caricaturas a figura do Zé
Povo - com uma fala expressiva - ou ainda d mindo-se claramente neste papel.
"Vitima da prepotência ou de um abuso, a imeira lembrança que tem o homem do
povo é exclamar: Vou ~ ornal do Brasil! E vem efetivamente e nós o
ouvimos com a maior atenção, aconselhando-lhe calma e prudência, tornando-nos
advogados de sua causa".
Essa estratégia editorial faz com que de fato o jornal fosse "deveras e
desvanece-se de ser - popularíssimo". Q Jornal do Brasil é assim, o jornal popular
por excelência e do agrado desse povo que quotidianamente lhe dá provas de simpatia
e incentivo à manifestação do seu programa"!;.
Com essa popularidade afirmam que as suas edições da manhã e da tarde
esgotam-se quase todos os dias, apesar de ter a maior tiragem já alcançada, até então,
por um jornal no país.
A necessidade de aumentar o número de exemplares e de páginas - sai com
quatro nos dias de semana e com oito aos domingos - leva-o a adquirir o número 54
da Rua Gonçalves Dias, para ali instalar a distribuição e a expedição, abrindo espaço
no número 56 para as novas máquinas rotativas, que dividem as instalações com a
administração e a redação. As oficinas têm agora quatro máquinas impressoras,
sendo uma Marinoni, a mais moderna no gênero até então:
"Desde ontem o Jomal do Brasil conta com uma Marinoni dupla, podendo imprimir 4, 6 ou 8
páginas, de modo que assim conseguiremos satis!azeras exigências da nossa extraordinária
tiragem, pondo a trabalhar simultaneamente quatro máquinas singelas de 4 páginas cada uma,
ou duas máquinas duplas para 6 ou 8 páginas "21'.
Ainda em 1900 realizam obras na seda da rua Gonçalves Dias, embora já
estejam preparando a transferência para a Av. Rio Branco. Em 14 de outubro de 1904
lançam a pedra fundamental da nova sede da Av. Central, mas a mudança da redação
e das oficinas só ocorrerá em 12 de janeiro de 1910. Desde 1900, imprime uma edição
ilustrada aos domingos e outra às quintas-feiras. A primeira, custa 200 réis, e publica
em páginas inteiras de caricaturas, o retrospecto ilustrado da semana, seções de
quebra-cabeça e modinhas populares também ilustradas; uma seção de modas, com
as últimas novidades parisienses e dezenas de outros desenhos a bico de pena. Aos
domingos são publicados, na segunda página, dois folhetins, igualmente ilustrados.
A edição de quinta-feira custa os mesmos 100 réis, mas a veiculação dos anúncios,
agora mais cara, é justificada pelo periódico em função do sucesso de público alcançado.
"SOI/IOSobrigados a aI/mental' o preço dos aniÍncios às qllintas-feiras, porqlle sendo enorme a
nossa tiragem, neio podemos alimentar o niÍmero de páginas, I'elldo-nosforçados a concentrar
nas qllatro páginas todos os elementos qlle I'(io tornar afolha de qllintafeira 11mI'erdadeiro
sllcesso e mais procllrada pelo po\'o, qlle enconlrará ali tlldo qllanto possa seJ'I'ir de atrativo,
iÍtil e agradál'el"27.
A partir de 190 I torna-se comum também a ilustração inclusive das matérias
policiais, quando o jornal publica ao lado do texto desenhos a bico de pena reproduzindo
a cena do crime. Ou o ilustrador faz o croquis a partir de "uma fotografia tirada no
local da tragédia" ou da visão que pessoalmente presenciara!X . A ilustração, mesmo
antes da introdução da fotografia, passa a figurar ao lado do texto não mais com o
sentido crítico e opinativo, mas para dar a sensação de veracidade à informação.
Assim, ao preço de 16$000 réis a assinatura semestral e de 30$000 réis a
anual, o Jornal do Brasil em quase nada se parece, ao iniciar o século, com a
publicação surgida em 1891. Na primeira página a coluna de maior destaque é
Telegramas, reproduzindo as correspondências exclusivas enviadas de Lisboa, Porto,
Paris e Roma, além de outras de diferentes estados do país. Uma vez por semana
publica Coisas de Política e a Semana Política, ambas de responsabilidade de Dunshee
de Abranches. A seguir, ainda na primeira página, o Noticiário, onde inserem inúmeras
matérias policiais. Na página dois, continuam as notícias policiais, as Queixas do
Povo, a coluna Estrada de Ferro Central do Brasil. Palco e Salões, o Sport, as notícias
das Associações. Na três, o Memorandum, semelhante ao Indicador do Correio,
divide espaço com o Enigma Pitoresco, dando o resultado dojogo de bicho e inúmeros
anúncios, além das Notícias Avulsas do Comércio, Exército e Guarda Nacional. A
página quatro é toda tomada por anúncios. Aos domingos, incluem as Modinhas
Populares e uma seção de passatempo variada.
A partir do lançamento da vespertina, o jornal passa a oferecer assinaturas
conjuntas, incluindo as duas edições, pelo preço de 56$000 (anual), 28$000 (semestral)
e 14$000 para as trimestrais. Os assinantes das duas edições ganham como brinde o
Anuário, com 553 páginas, vendido ao preço de 3$000 e com capa ilustrada à cores,
além de um dos volumes publicados pela biblioteca do Jornal do Brasil. Qs assinantes
de uma das edições só têm direito a volumes da referida biblioteca.
Atribuindo-se um papel humanitário e de benfeitor dos pobres, tem ainda
um serviço regular de recebimento de donativos em dinheiro que são distribuídos às
pessoas que procuram a redação para este fim. "O SI'. João Batista Pereira mandou-
nos a quantia de 20$ em comemoração ao aniversáriode sua filinha Noêmia, para que
façamos chegar aos mãos da infeliz Virgínia de Jesus, em tratamento no Hospital da
Misericórdia. Hoje mesmo nos desempenharemos dessa grata incumbência"2~.
É comum também receber subscrições para ajudar vítimas de intempéries,
como por ocasião da seca cearense, de 190 I. Possui ai nda um serviço de mala postal,
para receber cartas e encomendas, que podem ser procuradas na- sua redação.
Em 1906, passa a ser presidido por ~11.hóde Morais, tendo como
acionista Ernesto Pereira Carneiro, responsáv l.-pela parte comercial e financeira. A
mudança acionária não intluenc', -ne- cesso empresarial do jornal. Publ ica, então, de
cinco a seis edições di nas e, em 1912, introduz as primeiras máquinas de escrever na
redação. Quatro anos mais tarde possui um dos maiores parque gráfico da imprensa
brasileira, com 12 máquinas linotipos, 3 monotipos e a mais moderna impressora.
O controle acionário do Jornal do Brasil muda de mãos mais uma vez no
final dos anos 10: em 1918, o Conde Pereira Carneiro adquire o jornal da Mendes &
Cia e assume a direção do periódico, nomeando como redator chefe o futuro fundador
dos Diários Associados, Assis Chateaubriand. Barbosa Lima Sobrinho é repórter
político.

O mais antigo jornal em circulação na cidade e o que menos sofre


transformações do ponto de vista editorial, tem também papel fundamental na
configuração desse novo jornalismo.
Transfol111ados em empresas, os cinco diários mais importantes da cidade,
passam a vender além do matutino ou do vespertino que diariamente imprimem,
outros produtos. A partir de 1890, todos se transformam em verdadeiras editoras,
comercializando serviços de impressão a terceiros. Ao lado da tipografia destinada à
impressão do jornal existe sempre uma outra: a oficina de obras.
A Gazeta de Notícias, O Paiz, o Jornal do Brasil e o Jornal do
Commercio possuem as suas oficinas de obras, onde imprimem opúsculos de
propaganda do próprio jornal ou dos grupos políticos e econômicos que lhe dão
sustentação ou transfonnam folhetins em romances encadernados.
Mantendo sua feição conservadora e de claro apoio a quem está no poder,
o Jornal do Commercio, fundado em 1827, passa por uma drástica mudança na sua
estrutura empresarial, a paliir de 1890, quando assume o controle do periódico José
Carlos Rodrigues.
Em 17 de outubro daquele ano, o antigo correspondente nos Estados
Unidos, em conjunto com mais 23 associados, adquire o jornal pela quantia de
3.500:000$000, se tornando sócio solidário, gerente e redator chefe do periódico.
Para isso, um empréstimo por subscrição pública no valor de 2.600:000$000 é
solicitado ao Banco do Brasil. Como garantia são dados os prédios que a empresa
possui às ruas do Ouvidor, Quitanda e Travessa do Ouvidor, em valor superior a
1.000:000$000. No mesmo documento há referência de que, para pagar os juros e a
amortização de 208:000$000 anuais, não haveria problema, pois o Jornal do
Commercio tem uma renda superior a esta quantia há muitos anos. Nova orientação
é dada ao jornal: as seções são ampliadas, dilata-se o noticiário, com o intuito de
torná-Io mais abrangente, sem deixar de ser "o verdadeiro defensor das classes
conservadoras do Brasil"lo.
Cinco anos depois, o lucro anual do jornal é da ordem de 300:000$000. O
seu capital subscrito 3.500:000$000 e o realizado em 650 ações de 1.480:000$000.
Emprega 429 pessoas, sendo 220 tipógrafos nas oficinas do jornal diário e de obras
e 66 pessoas na redação, sendo 20 efetivos e 46 colaboradores. Entre tipógrafos,
pessoal das máquinas, entregadores e dobradores trabalham nas oficinas 349 operários.
Há ainda dois paginadores e 50 revisores, enquanto na administração 12 pessoas se
revezam. Nestes números não estão incluídos os suplentes, aprendizes e serventes.
Em 1906, o número de empregados já se eleva a 512 pessoas11 .
As inovações técnicas também são marcantes. Ainda na década de 1890 é
o primeiro jornal do Brasil a importar máquinas linotipos e um dos primeiros da
América do Sul a utilizar uma rotativa, o que representou uma rapidez extraordinária
no processo de produção. Em carta a José Carlos Rodrigues, em 1889, o então
diretor do Jornal do Commercio, Francisco Picot, informa-o sobre uma maravilhosa
invenção - a IVllotype - lançada em Londres e que logo seria adotada pelo periódico:
"Vi 110 Tillles de 200u 2/ passado, algulllas linhas sobre a abertura de Ul//(/ subscrição para
lallç([f: elll LOl/dres, lI/lia I/ova lIIáql/il/a de COllljJO!;a IYllotype. Mandei vir de Londres o que há
a resjJeito e recebi ontelllullla papelada e IIIna brochura que dá algulllas explicações sobre essa
lIIaravilhosa illl'en('rio. Vi tudo e estou de cabeça torta, tal é a I/lil/ha adllliração".
A seguir, resume aquilo que mais lhe causa espanto:
"Toda a lIIáquil/afaz o trabalho de cinco cOlllpositores. Espacejar ejustificarfaz-se
all1olllaticalllel/te. Nrio há I/elll cOlllposição. I/elll distribuiçrio. A linha sobe il/teiriça, /1/1/11

pedaço de lIIetal e, portal/to, não há pastel possíl'el"32.


Ao lado de argumentos técnicos, como justificativa para melhorar o produto
final, Picot enfatiza o aumento da produção. O que causa admiração ao diretor do
Jornal do Commercio é a invenção de uma máquina capaz de fazer o trabalho de
cinco compositores e de forma mais perfeita, isto é, sem empastelamento.
No início do século possuem três máquinas impressoras Marinoni, capazes
de imprimir de uma LlI1icavez, entre oito e 16 páginas, num total de 10 mil exemplares
por hora. Há também duas máquinas menores que podem imprimir duas ou quatro
páginas, com tiragem de 12 mil exemplares por hora. A oficina de obras possui sete
máquinas. O jornal tem ainda uma oficina para fundir tipos com seis máquinas,
sendo três para fundir, uma para laminar o fio, outra para laminar entrelinhas e a
última para cortar espaços de corpo 5 a 14.
Em junho de 1906, ao ser lançada a pedra fundamental do novo edifício à
Av. Central, já possui 12 máquinas de impressão e nove para fundição de tipos,
ocupando cinco prédios da Rua do Ouvidor e dispondo de lu létrica em todas as
suas instalações, desde 190 I.
Naquele dia, dois anos an~' e o jornal se transferir para o novo endereço,
assim José Carlos Rodrig se refere a ele: "Toda essa fábrica (grifo nosso) com
seus terrenos e mecanismos, por mais cifras que represente nos balanços, de pouco
vale na verdade comparada com o que vai na história do Brasil independente pelo
nome do Jornal do Commercio"u .
Do ponto de vista editorial, na primeira década do século, o Jornal do
Commercio introduz algumas modificações, sem, entretanto, abandonar o seu estilo
eminentemente opinativo, com uma mancha gráfica que ocupa toda a sua extensão,
sem a valorização da ilustração ou outros recursos gráficos. É editado em 8 colunas,
com 272 linhas em cada uma e invariavelmente em corpo 7.
Na primeira página publicam, habitualmente, os Telegramas, reproduzindo
as notícias divulgadas pela Agência Havas e por seus correspondentes nacionais e
internacionais; a Gazetilha, coletânea das notícias mais importantes do dia, e o
Folhetim, que ocupa todo o rodapé da página. Na Gazetilha dá igual destaque às
notícias nacionais as mais diversas, enviadas pelos correspondentes, às notas teatrais
e a um ou outro caso de polícia. O texto pode reproduzir a íntegra de notícias já
divulgadas por outros jornais e as correspondências enviadas dos estados.
Ao contrário dos periódicos mais populares da cidade, não destaca os
dramas cotidianos, os crimes passionais, as tragédias diárias. O noticiário policial é
introduzido invariavelmente com um pequeno título em corpo 12, onde resume, em
uma palavra, o tema principal da notícia. Assim, logo abaixo, do título Espancamento,
informam:
"ManueL Nunes Campinas, proprietário de uma padaria à/lia A/zira Va/detaro, 2" Distrito
do Engenho Novo,foi preso por uma praça do destacamellto do distrito, por estar dCllwo em
um boi, que /LOS disse ser manhoso. Levado à estação foi recoLhido ao xadrez. O cabo
comandallte quando chegou entendeu que devia vingar o boi e esbordoarsem piedade '
Campinas, ern que ameaçou /neter oferrão de que se se/vira parafústigar o boi"3~ .
Em 1900, passam a editar pequenos anúncios na primeira página, sob a
rubrica Avisos Especiais. Introduzem também uma nova coluna Hontem, na qual
reproduzem o resumo das principais notícias internacionais e nacionais, que podem
ou não ser complementadas na Gazetilha ou nos Telegramas.
Aos domingos, a partir de 1902, as Dominicais, assinadas pelo ex-repól1er
policial João Luso, embora mantendo o nome folhetim são, na verdade, pequenas
crônicas do cotidiano, geralmente arquitetando uma história, baseada numfait-divers
ou recordando alguma figura conhecida. Constâncio Alves publica às quintas-feiras,
.Dia a Dia, um folhetim ao estilo de Machado de Assis e que, desde o final do século,
deixou de ser publicado nos jornais. Apesar dessas mudanças, continua mantendo a
sua feição nitidamente política e de apoio ao poder público. Publicando os relatórios
da Diretoria das Finanças, os despachos dos diferentes ministérios, do Tribunal de
Contas e os atos oficiais da Prefeitura, o jornal se constitui numa espécie de Diário
Oficial paralelo. "Prefeitura. Atos do Prefeito - dia 6 de maio. Transferências - O
agente da Prefeitura Dr. José Francisco de Mendes Júnior, do sexto distrito para o
sétimo (Gloria). Os escrivães Luiz Adalberto Fabregas da Costa do quarto (S. José)
para o oitavo (Lagoa)")) .
Com 10 páginas, mas eventualmente publicando números com 32, 36 ou
até 40 - algo inteiramente inovador na época - imprime Lima edição especial aos
domingos e em datas comemorativas, como o Natal, adotando o modelo norte-
americano, segundo definição de seus próprios idealizadores.
Continuando a dar grande destaque ao folhetim, publicando romances
inéditos de Zola, Vítor Hugo e Eugene Sue, em sua primeira página, as suas edições
priorizam também as notícias do exterior, que se iniciam em 1877, quando reproduzem
os primeiros telegramas distribuídos pela Agência Havas. Possuem correspondentes
em Paris, Lisboa, Roma, Buenos Aires, além de "outros pontos da Europa e da
América".
Compunham ainda as habituais 10 páginas do jornal, as Várias Notícias,
seção onde destacam pequenas notas, de cunho político e de grande popularidade, as
.Notas de Sciencia, de Arte e de Letras, Teatros e Música, o Sport, Associações,
Notícias Religiosas, Revista dos Estados, Parte Judiciária, Conselho Municipal e os
,Atos Oficiais da Prefeitura e da Brigada Policial. Publicam ainda as notícias e notas
de interesse do poder ou que são pagas previamente na sua coluna mais polêmica:
,Publicações a Pedido.
Sem a aspiração de ser popular, fazendo questão de acentuar o seu trânsito
entre a classe dominante - orgulha-se de ser "o jornal das classes conservadoras, lido
pelos políticos, pelos homens de negócios, pelos funcionários graduados" - o Jornal
do Commercio é o periódico mais caro do Rio: a sua assinatura é o dobro da do
Jornal do Brasil, 32$000 a semestral e 60$000 a anual. Isso, entretanto, não invalida
a estratégia empresarial de fornecer brindes aos seus assinantes.
"Os que assinarem o Jornal do Commercio pelo mlO de 1912 (pagamento adiantado) receberão
mensaltnente, e COUIOprêmio, o novo Jornal Ilustrado, linda publicação mensal com excelente
matéria, nacional e estrangeira, e belas gravuras, algumas impressas a três cores e também
folhas coloridas de modas. O primeiro número, extraordinário, compreenderá quarenta páginas
e será distribnído eUljaneiro. Os números que se seguirem não conterão menos de 24 páginas".
Os que assinam o jornal por um semestre recebem "um exemplar do Atlas
Portátil do Jornal do Commercio, bela produção do melhores belecimento geográfico
do mundo". O Atlas consiste "de uma Introdução e de soberbos mapas dos quais
doze do Brasil, todos em português, muito co etos e lindamente coloridos e
gravados em aço")6 .
No velho prédio da Rua do Ou 'é1or, 93, inicialmente e, posteriormente,
no moderno edifício da Av. Central, re órteres e redatores escrevem diariamente as
colunas fixas e a reportagem, num tr alho milimetricamente dividido, como o espaço
que ocupam na redação:
"Ao entrm; sentado à primeira mesa da esquerda está o D,: Pederneiras, com a sua cabeleira
defios levíssimos de seda, a longa barba, tênue e alvíssima caindo-lhe docemente ammfanhada
sobre o peito".
A memória de João Luso, pseudônimo de Almando Erse de Figueiredo,
que fora secretário de A Imprensa, em 1900, compõe, passo a passo, a redação do
início do~século. A idealização presente na descrição - encoberta por uma aura de
sonho e de ficção - não invalida a composição da cena.
"Em contraste com essa resignada melancolia a trafega jovialidade de Ernesto Selma, de mesa
em mesa, até ao jill1do da sala, do ji/ndo da sala até as janelas (...); atendendo a toda sorte de
pretendentes a empregos de solicitantes de cartas de apresentação e, no meio de tudo isso, de
repente, a qualquer rumor da rua, correndo à sacada, afarejar a notícia com o instinto
alarmado de um repórter verdadeiramente de raça!"
Ao velho redator contrapõe-se, nessa descrição, a figura do jovem repórter,
com toda a idealização construída em torno da profissão. O mais famoso repórter do
Jornal do Commercio é apresentado em sua agilidade, presteza e, sobretudo, com
os olhos e ouvidos aguçados em busca da notícia de última hora.
Na redação estão também trabalhando em suas mesas, ao final do dia, o
redator das notas do Senado, o tradutor das "Gazetilhas", o redator comercial. E
muitos outros:
"As quatro horas chega Carlos Américo dos Santos, com as Notas de artejá escritas em
invariáveis tiras de papel almaço, vem do seu escritório da Great Western (...). Os dois
plantões para os telegrmnas do interiOl; Machado e Souza, ambos tão simpaticamente
modestos, só apareceullá para as 9, /0 horas ... Mas, pela tarde foram entrando vários
repórteres: Mário Franco Vaz, meu querido cOlnpanheiro da polícia, depois diretor da Escola
15 de novembro, pediatra dos mais notáveis; João Guimarães, aplaudidíssimo autor teatral,
qlle traz as notícias da Gllerra: Francisco Valill/, da Aifandega; Ellclydes Mac/iado, qllefaz o
Sport ... E ao cair da noite, ofegante, transpirando de tanto correr repartições públicas,
agências, bancos, associações, irll/andades. casas cOlI/erciais (...) Baldoll/em Carqlleja "37.
Se por um lado, não há grandes mudanças editoriais no mais tradicional
periódico, as seções e colunas, inlroduzidas em profusão, permitem a explosão das
pequenas notícias, tornando-o mais fácil de ser lido. Por outro lado, o jornal passa -
tal como os seus concorrentes - a valorizar as reportagens1X•
Como em qualquer indústria - ou fábrica - parodiando a própria definição
de seu sócio majoritário, há uma rígida divisão e hierarquia do trabalho. Na redação,
os responsáveis por cada seção dividem a tarefa de escrever. Tudo isso premido pelo
tempo. O jornal agora tem hora certa para sair das oficinas para as ruas e, neste
contexto, o tempo se torna fator preponderante. O tempo da apuração das notas, o
tempo da redação das notícias, o tempo da sua distribuição, tudo é regulado pela
premência de um uma nova realidade temporal que também toma conta da cidade.

É, na verdade, a Gazeta de Notícias quem inaugura essa forma de fazer


jornais na cidade: "jornal barato, popular, fácil de fazer". Para isso passa a empregar
"os escritores mais estimados do tempo, que dando a sua colaboração à Gazeta a
tornaram querida em todo o país"J9. Além disso, o periódico, fundado em 1875,
inicia no Rio o sistema de venda avulsas, através de pequenos jornaleiros, que a
partir de então passam a gritar por todos os cantos os nomes dos principais diários.
Jornal barato e popular, desde os anos 1880, a Gazeta custa, quando do
seu aparecimento em 2 de agosto de 1875, 40 réis o número avulso e tem como
principal característica o destaque que dá à literatura, de maneira geral, e aos folhetins
particularmente. Nesse jornal Machado de Assis escreve os seus "Bons Dias e Boas
Noites", desde 1882. Publica também crônicas de Olavo Bilac, de Arthur Azevedo.
Entre seus colaborados figuram Raul Pompéia, Silva Jardim e Adolfo Caminha, com
as Cartas Literárias.
Antes do seu lançamento, num prospecto de propaganda que anuncia o
novo periódico, destacam o peso que a literatura teria em suas páginas.
"Aléll/ de ulI/fol/ietill/ roll/ance a Gazeta de Notícias todos os dias dará IIl1/fol/ietill/ da
atllalidade. Arte, literatura, teatros, II/odas, acontecill/entos notál'eis, de tlldo a Gazeta de
Notícias se propõe a trazer ao corrente os sens leitores. A Ga:eta de Notíciasfomecerá aos
sells assinantes inforll/ações cOlI/erciais, qlle II/ais possall/ inleressar-l/ies, procllrando assill/
II/erecer a slIa benevolência e distinçcio ";(J .
Fundado por Ferreira de Araújo, Henrique Chaves, Manoel Carneiro e
Elísio Mendes, o jornal passa a ser dirigido, com a doença de Ferreira de Araújo, em
1896, por Chaves. Como redator-chefe assume Carlo Palagreco. Bilac, Guimarães
Passos, Coelho Neto, Pedro Rabelo e Emílio de Menezes são os seus principais
colaboradores. Todos boêmios inveterados do seu tempo e freqüentadores assíduos
da popular roda da Colombo. Bilac escreve crônicas a s domingos. Pedro Rabelo,
inaugura, em 1900, a seção humorística Casa de Do' os, Guimarães Passos, redige
sueltos41, enquanto Coelho Neto publica folhe' s e Emílio de Menezes prosa e
versos. Os artigos de fundo sobre economia s- de autoria de João Lopes Chaves e
João do Rio é, sem dúvida, o seu mais pop ar repórter2 • Com exceção do Correio
da Manhã, é o jornal que melhor pag a seus jornalistas. Na primeira década do
século, um repórter recebe de 160$ a 0$, um redator de 280$ a 400$ e um secretário
ou redator-chefe de 500$ a 700$ . Bilac ganha 50$000 por crônica41 .
No início dos anos 20, para fazer esse trabalho, algumas vezes reconhecido
como o mais importante da redação, os repórteres podem ganhar, por mês, até
300$000. Um redator, que também tem como encargo ir buscar as infonnações de
400 a 1000$, uma soma extremamente elevada para a época, embora o teto só fosse
atingido em condições excepcionais. Um redator chefe recebe entre 1000 e 2000$000
e um fotógrafo, em torno de 1000$00044. Só para efeito comparativo, no mesmo
período um revisor ganha em torno de 240$000 e um tipógrafo 180$000, por mês45 .
Com escritório na Rua do Ouvidor, 70, a Gazeta tem sua oficina tipográfica
à Rua Sete de Setembro, 72. A assinatura mensal custa, na Capital, I$000, e além
disso é vendida "por toda a cidade, nos quiosques, nas pontes das barcas, nas
estações de bondes e em todas as estações da Estrada de Ferro D. Pedro lI".
O primeiro número - com quatro páginas, de cinco colunas cada - publica,
na primeira, os Telegramas nacionais e internacionais, distribuídos pela Agência
Havas, além de notas diversas, e do Folhetim da Gazeta de Notícias, no rodapé, uma
crônica literária da atualidade. Na página dois, diversas notícias anunciadas por
pequenos subtítulos, além do tradicional Folhetim. Na três, Declarações, Leilões, a
Revista dos Jornais, os Preços Correntes dividem o espaço com alguns anúncios. E,
finalmente, a última página é inteiramente ocupada por anúncios.
Além dessas colunas publicam, já a partir do número dois, Publicações à
Pedido, onde introduzem textos previamente pagos pelos que desejam ter suas
mensagens impressas no jornal. A partir de 1907 passam a editar Reclamações do
Povo, onde divulgam as queixas do público, notadamente referentes às deficiências
dos serviços essenciais da cidade e extremamente semelhante a coluna com o mesmo
nome do Correio da Manhã.
o uso de ilustrações, desenhos a bico de pena de Hastoy, é comum desde
os primeiros números. Além de ilustrarem o folhetim, as notícias também podem ser
destacadas com a utilização desses desenhos, que reproduzem ora o retrato do
personagem enfocado, ora as construções, embarcações ou outro tipo de objeto a que
a nota se referia.
Anunciando ainda no primeiro ano de publicação uma tiragem de 12 mil
exemplares, a Gazeta, cinco anos depois, dobra esse nllmero e adota diversas
estratégias promocionais no sentido de conquistar novos assinantes. "Para compensar
o incomodo de virem ao nosso escritório daremos aos nossos assinantes prêmios.
Entre esses prêmios está o Almanaque que mandamos fazer para este fim"4(i .
Quem renovasse a assinatura por um ano teria direito, além do almanaque,
a um volume dentre os cinco títulos publicados pelo jornal, entre romances, notas de
viagens e poesias.
Aos poucos acrescentam novos brindes a serem distribuídos aos assinantes.
Além do Almanaque, oferecem um exemplar do Figaro ou um Atlas, dois romances
ou 10 volumes da Biblioteca do Povo ou um álbum de cromos. Em outras datas
aleatórias distribuem gratuitamente aos assinantes uma gravura que era vendida no
escritório a 40 réis o nllmero avulso.
Algumas inovações gráficas e editoriais são também introduzi das. Aos
domingos, ao iniciar 1880, saem com oito páginas, onde distribuem-se novas colunas,
como a de modas, nas Cartas Parisienses, ou o Almanack, relação de médicos,
parteiras e outros profissionais liberais, além de alguns prestadores de serviço, como
cabeleireiros, ou lojas comerciais, como farmácias e perfumarias. Em abril de 1880,
anunciam mais uma vez o aumento da sua tiragem.
"Julgamos conl'eniente consignar a tiragem a que elem-se atualmente nossafolha, de 24 mil
exemplares. O interesse que desperta a atual seçâo do parlamento, bem como a expectativa do
procedimento do nOl'o ministro, influenciam, é certo, sobre a tiragem, mas porque nâo podemos
prever o que será estável, consignamos o algarismo a que elevou-se nestes últimos meses"J?
Essas novas seções que despertam o interesse dos leitores, a que se refere
o jornal, são o Boletim Parlamentar e o Diário das Câmaras, que quando deixam de
ser publicadas, são substituídas pelos Assuntos do Dia. Agora, o jornal edita dois
folhetins literários: um na primeira página e outro na três.
Defenindo-se, desde o primeiro número, como um jornal jovem, a Gazeta
de Notícias apregoa também a sua própria liberdade.
"Umjornal nasce com a idade do espírito de seus redatores. Idade do espírito, digo, porque
embora seja trio íntima a Iigaçâo entre a matéria e o espírito, que algunsfazem depender este
daquele, há homens cujo alma se amolda às mgas do COl]JO,como há moços cujo espírito
envelhece prematuramente. A Gazeta de Notícias tem vinte e... tantos anos".
A juventude faz com que, sem ter a pretensão de corrigir, de orientar,
possa dizer o que pensa e o que sente, com a mais ampla liberdade.
"Nâo temos com isso a pretensiio, nem de encorajar os inteligelltes e l'irtllosos, porqlle lliio
precisam disso, nem de corrigir os mCll/S,porqlle niio SOIlIOSa palmatória do mundo. A nossa
preocllpaçiio é simples: dizer o que pensamos e síjÍtimos, ser o qlle somos".f8.
O ideal de modernidade da Gazeta de ~Ótícias - marca registrada desde os
primeiros números - faz com que todas as in ~ações editoriais introduzidas, com
destaque para a valorização dos textos lite rios, sejam apresentadas como uma
necessidade para continuar sendo jovem e I oderna. A mesma modernidade levava a
Gazeta, sem se esquecer dos preceitos li rários de que é a principal divulgadora, a
produzir um texto cada vez mais simpl s, leve, ao gosto de um público mais vasto.
Por outro lado, na ponta extrema d formação dessa auto-identidade, referenda
sempre sua independência frente a rupos e facções políticas, o que possibilita a
mais absoluta liberdade. Na práti a, entretanto, nem essa liberdade existe, como
também não há essa independência.
A prosperidade leva a modificações de natureza técnica. Para conseguir
elevar a sua tiragem, é necessário importar uma nova máquina rotativa, até então
desconhecida pelos periódicos da cidade. Em 10 de junho de 1880, a Gazeta anuncia
a inauguração da Máquina Rotativa de Marinoni, capaz de imprimir 20 mil exemplares
por hora, a quem deram o nome de "Camões", em alusão à comemoração dos 300
anos do poeta português.
No dia seguinte, além do número tradicional do jornal, publicam um
suplemento especial totalmente dedicado a Camões. Para tirar um total de quase 120
mil exemplares, segundo suas próprias cifras, - isto é, 24 mil da edição tradicional, 24
mil do suplemento encaItado e um número não divulgado do suplemento em papel
especial - as oficinas da Gazeta de Notícias trabalham sem cessar.
"O trabalho das oficillas nesse dia foi extraordillário; enqllallto IlIlIadas máqllillas rotalil'as, a
Siio Paulo, imprimia afolha dupla da Ga<:eta,a olltra, a Camôes, imprimia afo/l/O especial. A
tiragem total das três folhas foi perto de 120 mil exemplares C/Ija ediçiio esgotou-se
illleirwllellte (...). Das três às quatro horas da tarde as dllas máqllillas.{tlllciollaram em
presença de crescido lIúmero de pessoas, entre os qllais o S,: Galenga, correspondellte do
importantíssimo jornal de LOlldres, o Times".
No mesmo jornal, reproduzem um desenho da rotativa, tomando para si o
papel de divulgadores da nova tecnologia, ao mesmo tempo que justificam a ousadia,
tendo em vista o crescente aumento da tiragem do próprio jornal e a expectativa de
ultrapassar a marca de 40 mil exemplares.
"Imprimindo hoje 11111 desenho, qlle representa a máqllilla mtativa de Marinolli, cllja tiragem
eleva-se a 20 mil exemplares por hora, o nosso intllito é tornar bem conhecida dos 1I0SS0S
colegas das prol'Íl1cias, a quem fornecemos todas as informações de que precisarem, caso
queirOlIl{azer aquisiçrio de trio útil apelfeiçoamento".
E continuam:
"A tiragem do dia 10 de junho jáfoi a primeira que justificou, mesmo aos olhos dos mais
severos, a extrema providência de que usamos, mOllfaudo 1m/([máquina que pode ser necessária
para tiragens superiores a 40 mil exemplares. Todas as vezes que o público reclamar estmuos
habilitados afornecer-Ihe eUIpoucas horas Ulllmímerode exemplares que nenhuma outra
tipografia da capital e do Império pode trio rapidOlueJIte imIJl'iulir"!Y.
Essa expectativa, entretanto, só se cumpriria nos primeiros anos do século
XX. Na década de 1890, cinco anos depois do início do funcionamento da nova
máquina, o jornal ainda divulga uma tiragem de 35 mil exemplares. O número avulso
permanece a 40 réis e a assinatura de seis meses é de 6$000 e a anual 12$000. É,
portanto, o jornal mais barato da cidade.
A partir de 1900, uma série de inovações redacionais passa a fazer parte
do periódico. A de maior sucesso de público é a introdução da coluna Binóculo, uma
espécie de crônica da sociedade, escrita por Figueredo Pimentel e que se tranforma,
no dizer dos cronistas da época, na "bíblia das elegâncias da terra".
"Nrio há quem o nrio leia. A elite devora-o. É nesse plano de prosa que o D,: Ataulfo de Paiva
vai aprender a melhor u/(/neira de colocar a cartola na cabeça; oude o S,: HII/uberto Goftuzzo
tOll/aconhecimento da cor da moda para as suas gravatas e onde os smarts urbanos e
suburbauos aprendem, a propósito de elegância e de chic, coisas edi/icontes,,;n.
Graficamente o jornal também muda. É impresso em oito colunas e utiliza-
se invariavelmente das ilustrações e das caricaturas críticas na sua primeira página. O
número avulso custa 100 réis e a assinatura anual é de 30$000, enquanto a semestral
é de 16$000. E em primeiro de janeiro já anunciam a sua nova tiragem: 40 mil
exemplares.
Continuando mantendo a marca literária que sempre o caracterizou, em
dezembro daquele ano destacam os seus colaboradores literatos: Araripe Júnior,
Ramalho Ortigão, Olavo Bilac, Guimarães Passos, llilia Lopes de Almeida, Luiz
Guimarães Filho e Pedro Rabelo. O jornal mantém correspondentes em Lisboa, em
Paris, na !lál ia e em Londres.
As transformações não páram aí. Em 1907, importam da Alemanha uma
máquina capaz de imprimir até cinco cores, publicando, em conseqüência o primeiro
clichê a cores. A partir de então o feitio pesado do jornal muda. Aos domingos edita
um suplemento literário, com desenhos coloridos e fotografias ilustrando um texto
em que figura sempre o Cinematógrafo, comentários dos dias da semana, algumas
poesias, um conto e artigos. A grande sensação é a coluna de Figueiredo Pimentel,
registro da vida mundana carioca. Desde então, os jornais imitam o esti 10 que introduz
na crônica social um texto leve, fLltilou lírico e que anuncia os aniversários, noivados
e casamentos.
A prosperidade do periódico, ao contrário do Correio da Manhã e do
Jornal do Brasil, deve-se menos a sua venda avdsa, do que aos vultosos contratos
firmados com os órgãos municipais para a publi~ção dos atos oficiais da Prefeitura.
Em abril de 190I, a Gazeta assina/contrato com a Diretoria Geral de
Interior e Estatística, substituindo nesse se\Niço o Jornal do Commercio que
publica esses atos desde 1890. Oito anos épois a Prefeitura paga 380$000 por
quatro editais sobre a proibição de queimar fogos de artifícios nas ruas'l .

O último dos grandes do Rio de Janeiro que participa, ainda que com
menos intensidade, dessa revolução no jornalismo carioca é o matutino O Paiz.
Instalado num casarão da Rua do Ouvidor, o jornal é vizinho ao Jornal do
Commercio, desde I de outubro de 1884. Nos seus primeiros anos é dirigido por
Quintino Bocayuva, seu mentor intelectual, com a ajuda financeira do proprietário,
o comerciante João José dos Reis JLlIlior, o Conde São Salvador de Matosinhos.
"junto ao pardieirooude se instala o 'jol'llal do Com macio 'fica o pardieiro de 'o' que é
como se chama, el1/âo, o 'O País', casarrio velho, sombrio, a pedil; COII/Oo seu companheiro de
lado, a esmola de I/ma boa picareta, a gmça de um desabamento, 01/ el/.trio, UlIlincêl/.dio
providencial. Em cill/a está a redaçrio. Em baixo, a loja da gerêl/.cia, com o seu longo balcrio,
as mesas da cOlltabilidade e unws quatro ou cil/.co portas abrindo pam a ma "52.
A descrição ficcional, percebida como invenção da narrativa, com o autor
colocando no texto a carga inventiva da ficção e simultaneamente o tempo da sua
vivência pessoal - contida nas memórias e relatos -, revela uma construção que em
nada se parece com o caráter monumental do novo prédio do jornal, na Av. Central.
A prosperidade do periódico, a partir do instante em que passa a ser propriedade do
polêmico João Lage, pode ser detectada não só por números extremamente reveladores,
mas pela própria suntuosidade da sua sede, de quatro andares na esquina de Rua Sete
de Setembro, com 20 metros de altura e 36 metros de frente, para onde se muda em
novembro de 19045).
Se a própria qualificação do velho prédio como pardieiro, deve-se em
pal1e a comparação do autor com os novos endereços para onde se mudam - O Paiz,
o Jornal do Commercio e o Jornal do Brasil constróem sedes monumentais na
Av. Central -, a descrição revela uma característica comum desses periódicos. O
isolamento e o destaque dado à redação, a partir do momento em que há uma nítida
divisão do trabalho no interior dessas empresas.
No primeiro andar, na redação, ficam o diretor, que pode ou não acumular
as funções de redator-chefe e o secretário - figura indispensável nos jornais a partir
desse instante, pois é quem faz a ligação da redação com as oficinas - e os redatores
e repórteres, responsáveis por colunas e coberturas fixas.
Enquanto que na parte administrativa, frontal à rua, facilitando o próprio
atendimento do público, o movimento maior é pela manhã e a tarde, no primeiro
andar o burburinho de pessoas se inicia invariavelmente a pal1ir das 18 horas. Os
repórteres e redatores, nos matutinos, trabalham à noite, premidos pelo tempo, já
que agora os jornais têm hora exata para serem distribuídos. As oficinas, em
contrapal1ida, ocupam quase sempre os fundos do andar térreo.
Começando a circular em I de outubro de 1884, o jornal tem como redator-
chefe, Quintino Bocayúva e é uma publicação modesta, de quatro páginas, ocupadas
por artigos de cunho opinativo.
Essa primeira fase, definida pelo próprio periódico como a de "primitiva
feição do jornal", vai até 1899, quando Quintino se afasta da redação, sendo substituído
no seu posto por Eduardo Salamonde. A partir daí "O Paiz pode fixar definitivamente
o seu feitio de imprensa neutra, sem sobrepor aos princípios e ao seu critério particular
a invariabilidade dos homens e dos p3l1idos"54. Em 21 de outubro de 1891 é constituída
a Sociedade Anônima O Paiz, com o capital social de 4.000:000$000. O maior
acionista é Pedro de Almeida Godinho.
Ainda em 1899, o Conde Matosinhos se retira da sociedade, passando o
jornal a ser propriedade de Francisco de Paula Mayrink, Rodolfo de Abreu, Belannino
Carneiro e Manoel Colta. Durante esse período, Antônio Leitão acumula o cargo de
diretor de redação e dos serviços anexos (composição, impressão, etc.). É nessa
segunda fase que entra para o jornal como gerente comercial João ele Souza Lage.
Em 1904, o controle elo jornal passa, numa transação escusa, para João ele
Souza Lage, elescrito pelos cronistas da época como "um amigo incondicional de
toeios os governos". Lage, que era gerente elo jornal, aproveita a iela elo principal
acionista para Portugal, para com a cUuelaexplícita elo Banco da República conseguir
um empréstimo para a compra das ações ele Goelinho, logo que este regressa ao
Brasil. O inimigo número um ele Edmundo Biltencourt, a quem chamava pelas páginas
do Correio da Manhã de "estelionatário" e "gatuno", chegando a mover contra ele
uma denúncia formal na Justiça, compra pela quantia de 500:777$961, em dinheiro
e títulos, o direito de ser o proprietário da Sociedade Anônima O Paiz.
Para isso, faz um empréstimo no valor de 375:000$000, ao Banco da
República, em 17 de fevereiro de 1905. No ano seguinte efetua um outro empréstimo,
no mesmo banco, nos meses de novembro e dezembro no valor de 279:000$000. "O
contrato de empréstimo, garantido pelas imaginárias debentures, feito sob a influência
e proteção do conselheiro Rodrigues Alves, não~i ha prazo fi~o: o seu vencimento
ficava ao arbítrio do Banco, mediante aviso prévi (doc. n.8)")).
Com a mudança de propriedade, ml ôa também a chefia de redação.
Quintino Bocayúva se afasta da Presidência da 9iretoria da Sociedade desde abril de
1902, passando a ter o cargo de Presidente \fIonorário de O Paiz. Nessa mesma
Assembléia, Eduardo Salamonde é mantido na chefia de redação. A Assembléia
Geral dos Acionistas em agosto de 1904 e ge nova diretoria - composta por João
Lage, Quintino Bocayúva e Rodolpho A eu - e ratifica a substituição de Eduardo
Salamonde da chefia de redação, em ra ao de seu estado de saúde, por Dunshee de
Abranches. No ano seguinte, Alcindo G anabara assume o cargo. Salamonde volta a
ser redator-chefe do periódico em 1910. essa época, o controle acionário da Sociedade
Anônima O Paiz é dividido entre João Lage e a família Sampaio, primeiro representada
pelo banqueiro Franklin Sampaio e, após a sua morte, por seu tio José Fen'eira
Sampaio.
Do ponto de vista redacional, O Paiz também separa a notícia do
comentário, criando a tradição da coluna no canto esquerdo da primeira página para
o artigo literário. Nela colabora por muito tempo Carlos de Laet, com a rubrica
Microcosmo, mantida anteriormente no Jornal do Commercio.
O Paiz desse início de século ainda lembra o periódico de 1884, quando
anunciam uma tiragem diária de 12 mil exemplares. Em 1900, ainda com as mesmas
quatro páginas impressas, escondem propositadamente esse número no slogan "O
Paiz é a folha de maior tiragem e de maior circulação da América do Sul".
O exagero é flagrante. A sua própria estrutura redacional, comparada com
a de outros diários, invalida essa afirmativa. Com parcos recursos gráficos, com
poucas ilustrações, também dão destaque à literatura. A crítica literária assinada por
Frota Pessoa ocupa o espaço nobre da primeira página. Ao lado, os Telegramas
reproduzem as notícias do exterior, dividindo a página com pequenas notas policiais.
Na dois, publicam o Memorial, Avisos Especiais, Declaracões e o Folhetim.
Eventualmente divulgam as críticas e anseios do público na coluna Oueixas e
Reclamações. Medeiros e Albuquerque, Aluísio de Azevedo, Gonzaga Duque, Júlia
Lopes de Almeida são os seus colaboradores mais ilustres.
Por outro lado os apelos freqüentes para que "os velhos assinantes e bons
amigos" renovem a assinatura mostra o quanto é exagerado o slogan em que se
atribuem a maior tiragem da América do Sul. "Esperamos por todo este mês, a visita
de nossos velhos assinantes e bons amigos, fazendo-nos em vales do Correio as suas
ordens de reforma de suas assinaturas( ... ). Havemos de corresponder a esse apoio".
Para conseguir essa renovação não só oferecem brindes aos seus assinantes
_o Almanaque de O Paiz é um exemplo, com 30 mil exemplares, dos quais há ainda
uma sobra vendida avulsamente no escritório, o que prova mais uma vez os números
falsos de sua tiragem -, como enumeram os avanços em termos editoriais.
"Do dia I dejaneiro elll diante, selll qnerelllos exporprogralllas espetaclllares, prollletelllos qlle
!lavelllos de dar na I'ista COIIInotáveis reforlllas. Alllllentará o nlílllero de páginas, o lUílllero de
seções, extraordinarialllente o nosso sen'iço de inforlllações do exterior e dos estados, elll
telegralllas e elll correspondências".
E numa atitude claramente política, defendendo o interesse dos grupos a
que estão vinculados, proclamam que o Estado do Rio vai merecer uma especial
atenção. Isso já é previsível em função do cargo ocupado por seu antigo redator-
chefe Quintivo Bocayúva. "O Estado do Rio vai merecer-nos uma particular atenção,
publicaremos tudo que, oficial e particularmente seja do seu direto interesse"'!>.
Adotando mudanças gráficas e editoriais com mais lentidão do que os seus
concorrentes, O Paiz, a partir de 1905, aumenta extraordinariamente o número de
suas páginas, em função dos anúncios, principalmente oficiais, que publicam
diariamente. Os Atos Oficiais da Prefeitura ocupam por vezes até 10 páginas do
periódico. Paralelamente à publicação desses editais, também não poupa elogios a
todos os governos. "Surpreende a quantos passam pela praia de Botafogo o andamento
das obras da Av. Beira Mar que está sendo construída com tanto carinho pela
Prefeitura como um embelezamento a mais com que ela vai dotar esta capital"') .
As mudanças editoriais se limitam à publicação das primeiras entrevistas
e de manchetes em quatro colunas, como na edição de 8 de outubro de 1905, quando
em duas páginas anunciam "As Grandes Manobras", enfocando os exercícios
simulados dos militares em Santa Cruz.
Só cinco anos depois começam a adotar, com mais intensidade, as
inovações do jornalismo de então. Em 1910, as ilustrações são freqüentes tanto no
interior, como na primeira página, bem como passam a publicar as primeiras
fotografias. Os atos oficiais da Prefeitura continuam merecendo destaque, sendo por
vezes divulgados até na primeira página, como, por exemplo, quando transcrevem o
Decreto 757 prorrogando o orçamento de 1909 para o exercício de 191O'x.
A polêmica entre o jornal e o Correio da Manhã é, sem dúvida, o grande
destaque do ano. Apoiando claramente a eleição do Marechal Hennes da Fonseca, O
Paiz se indispõe com o jornal de Edmundo Bittencourt que sustenta a candidatura de
Rui Barbosa. Poucas semanas antes das eleições, começa a transcrever artigos do
Correio, mostrando as contradições do periódico em notícias anteriores em que
elogia o Marechal Hermes e critica o Senador Rui. A indignação de Edmundo
Bittencourt manifesta-se pelas críticas ferozes que veicula nas páginas do Correio
contra João Lage. Em resposta, o diretor de O Paiz chama-o de epitélico, patife,
miserável e uma série de outros adjetivos de igual te r59•
Justificando e tentando desvendar os f tos que o levam de gerente à
proprietário do periódico, João Lage traça a su trajetória no jornal, cometendo,
entretanto, algumas inverdades. Afirmando que terreno da Av. Central, dado como
hipoteca a um empréstimo, de sua exclusiva p priedade e adquirido por 140 contos
de réis, o ex-gerente do jornal contradiz o qu está expresso no relatório da comissão
construtora da Av. Central, onde consta qu o terreno da esquina com 7 de setembro
foi comprado em 7 de maio de 1904 pel própria Sociedade Anônima O Paiz e por
40 contos de réis!>1i.
"Quando o DI: Alllleida Codinho entrou pé "(I o País, era eu proprietário da lIIetade das ações
da elllpresa, seu diretor-gereI/te e til/ha COlltOcOlllpal/heiros de diretoria o lIIel/ qllerido lIIestre e
afetuoso allligo Qllil/tino Bocayúva e o corol/e1 Rodollo de Abreu. IlIcolllpatibilizado COIIIo D,:
Codinho paguei-lhe 508 contos, se nrio lIIefalha a lIIelllória, illlportâl/cia total COIllque el/trou
para a elllpresa. Para realizar esse pagalllel/to fiz ullla operaçrio hipotecária COIIIo cOl/de de
Modesto Leal, 1/.0 valor de 230 cal/tos e obtive o restante, por adial/talllento feito pelo SI:
Visconde de Moraes, por cal/ta da hipoteca do prédio da Av. Cel/tral, cujo terreno já eu til/ha
adquirido porl40col/tos de réis, pagos elll boa espécie"ó1.
Dois dias depois, João Lage publica, ainda na primeira página do jornal,
três recibos de Almeida Godinho referentes à venda do jornal. E termina o artigo
vociferando mais do que nunca contra Edmundo Bittencourt.
"Meslllo COIIIas I'el/tas sangrando elll petição de lIliséria, não te largo o cOllgote, continuo a
esfregar-te ofocinho na tua prosa infecta, para que o público que te vel/deste, lIIiserável e por
isso te desdizes, e por isto viraste a casaca, e por isso arrellletes cOl/tra lIIilll elllfiíria de
epiléptico. A tua baba I/rio lIIe atinge, leproso. A transcriçrio aí está.
Lê, lIIiserável! lê... lê... lê"ó2.
Tendo sempre elogios para os governos de quem recebe claramente apoio
sob forma de publicidade, O Paiz atravessa toda a década de 10 envolvido em
escândalos, criticando os jornais concorrentes e sendo achincalhado por eles, Illas
sobretudo valendo-se de suas estreitas relações com o poder para continuar se
mantendo, apesar de ser cada vez maior a sua distância em lermos de crescimento
empresarial em relação aos concorrentes. Essa defasagem se reAete no número de
leitores.
Para conseguir aumentar sua circulação vale-se de inúmeros expedientes
como o de - inspirado "num conto do vigário", segundo sLlas próprias palavras -
oferecer, em troca da assinatura do jornal, uma mercadoria, a ser retirada nas casas
comerciais listadas, no valor do que fora gasto.
Para isso, apesar de anunciar com grande alarde "O Paiz grátis", na verdade,
aumentam a assinatura de três para seis mil réis por mês. Ao pagar, o assinante
recebe um "bond", "que será aceito pelo seu valor integral, como pagamento das
mercadorias que forem compradas nas casas cujas listas abaixo publicamos".
"Por umafeliz combinação com importantes casas comerciais dessa cidade conseguimos
resolver UlII problema do máximo interesse. O Paizpode ser lido diariamente, sem que a
assinatura custe um real( ...). Opreço da assinatura do Paizjica sendo de 6 mil réis por mês. A
assinatura pode ser tomada pelo tempo que quiserdes, desde um mês até 12 meses. Haverá
alguém que não deseje receber diariamente O Paiz, em sua casa, sem que isso lhe custe um real,
sequer?"ó3.
A mesma estratégia é estendida para os assinantes da capital paulista,
onde a assinatura mensal é mais cara: 9 mil réis. Essa assinatura, tal como no Rio, dá
direito a retirar mercadorias em farmácias, chapelarias, padarias, papelarias, fazer
gastos em hotéis e restaurantes e retirar cupons de ingresso em cinematógrafos.
A relativa prosperidade do jornal no início da década de 10 não impede a
sua "quase falência", já 1915. Começa aí uma longa crise, atribuída ao aumento do
preço do papel de imprensa e a diminuição geral da sua receita, e que culmina com o
incêndio na sede do jornal dois anos depois. O prejuÍzo expresso no balanço de 1915
é superior a 300:000$000. No ano seguinte, mais uma vez, amargam novos prejuízos.
Em 1917, o jornal deve mais de 590:000$00004 •
A comparação das fontes de renda mais tradicionais dos principais
periódicos da cidade - a venda de números avulsos, o preço da assinatura e o valor
dos pequenos anúncios - são indicações mais do que suficientes para mostrar que
esses não conseguem a sua prosperidade econômica com estas rendas. Na verdade, a
grande receita dos periódicos é resultado de ligações políticas com grupos dominantes.
Assim, enquanto o Correio da Manhã, segundo denúncias, recebe subvenções do
governo baiano e mineiro, o Jornal do Commercio fica com mais de 50% das
quantias pagas por Campos Sales à imprensa do Rio. Isso sem falar nos valores
recebidos pelo jornal de João Lage ou mesmo pela Gazeta de Notícias.
Por outro lado, ao manter por anos a fio o preço do seu exemplar avulso
em 100$, todos, com exceção do Jornal do Commercio, procuram aumentar o
número de leitores e incutir o hábito de consumo de jornais junto às camadas urbanas.
No que se refere ao preço da assinatura, os números são semelhantes em
todos os periódicos, excetuando-se, mais uma vez, o Jornal do Commercio. Para o
mais tradicional diário do Rio, com um público já conquistado entre pessoas de
maior poder aquisitivo e querendo permanecer como o jornal dos banqueiros, dos
grandes negociantes e dos grandes fazendeiros, não faz parte de sua estraté~ia aumentar
~
...
, ~
o seu poder de difusão para um público mais vasto. Para ele, basta continuar seu
trânsito junto aos tradicionais leitores e, por conseqüência, junto ao poder.
Os outros, entretanto, precisam conquistar mercado. Se o público leitor
tradicional é aquinhoado pelo Jornal do Commercio, é preciso criar necessidades
num outro tipo de público, para quem o preço da enda avulsa e das assinaturas
pesam no orçamento doméstico. Assim, enquant que o Jornal do Commercio
mantém inalterada em 30 e 60$000 a assinatura, o Correio da Manhã, o Jornal do
Brasil, a Gazeta de Notícias e O Paiz a elam para inúmeras estratégias
administrativas de forma a diminuir o preço d', até então, mais tradicional fonte de
renda.
O valor irrisório dos pequenq anúncios é também uma estratégia
empresarial desses periódicos, que, asisim( demonstram publicamente o seu alcance
perante a opinião pública. Quanto mais equenos anúncios publicam, mas evidente
fica, para os leitores, para os grandes unciantes e para a sociedade pol ítica, o seu
poder junto a um público não alinhado, até então, entre os principais consumidores
desses impressos.
Apesar de ser de difícil apuração, pelas informações esparsas recolhidas
nos periódicos ou nas memórias de época, é possível identificar o Jornal do Brasil
como a maior tiragem e O Paiz como o de menor difusão num período de dez anos.
Enquanto que "o popularíssimo" atinge 60 mil exemplares, o Correio da Manhã, a
metade desse número, apesar de ser recente o seu aparecimento, o Jornal do
Commercio, 20 mil, O Paiz imprime apenas IS mil. Já a literária Gazeta de
Notícias divulga uma tiragem em torno de 40 mil exemplares('\ .
Como o jornal é geralmente lido em voz alta nas rodas noturnas familiares
e pelo menos quatro pessoas tomam conhecimento do conteúdo de um único número,
podemos perceber o poder de difusão desses impressos apesar dos altos índices de
analfabetismo da população.
Se o poder de difusão dos periódicos é inquestionável, ao mesmo tempo
em que é possível aferir a pouca impOI1ância das tradicionais fontes de renda para a
prosperidade econômica dessas publicações, caracterizando esses periódicos do
ponto de vista editorial, pode-se resumir as estratégias editoriais e redacionais
elaboradas para criar o hábito de consumo urbano junto a um públ ico mais vasto.
Nesse sentido, os jornais mais populares são aqueles que se valem, ao mesmo
tempo, do prestígio dos literatos e do diálogo permanente com o público leitor.
Assim, todos os jornais do período - com maior ou menor destaque - destinam uma
parte de seu espaço as "queixas do povo", que percebe nos periódicos uma via de
acesso possível junto às instâncias de poder.
As mudanças editoriais não se limitam, entretanto, a inclusão do leitor nas
suas páginas. Utilizando-se do prestígio e da linguagem dos literatos, acrescentam à
divulgação do folhetim outros tipos de textos literários, ao gosto do público. Crônicas,
poesias, contos, peças teatrais ganham destaque, notadamente nas edições dominicais.
O jornal passa a ser, do ponto de vista editorial, um meio informativo e, ao mesmo
tempo, de entretenimento.
Essa característica de mesclar a informação com as colunas leves ou literárias,
dilui mais e mais a opinião. Para criar o hábito de leitura entre um público de maioria
analfabeta é preciso também vestir os periódicos com a roupagem da ilustração.
Assim, mais uma vez com exceção do Jornal do Commercio, todos os diários
abusam das ilustrações, das caricaturas e das fotografias desde os primeiros anos do
século.
Mas essa verdadeira revolução na forma de fazer jornal não se limita às
mudanças de natureza editorial. Também do ponto de vista da técnica é fundamental
o desenvolvimento de novos artefatos que possibilitam maior rapidez no processo
de produção.
Às primeiras linotipos importadas, em 1897, e adotadas por todos os
periódicos (o Correio da Manhã é o último a se valer da novidade, em 1909), segue-
se a introdução de máquinas rotativas, capazes de imprimir até 20 mil exemplares de
por hora, em todos os diários.
Essas inovações, se por um lado significa uma maior rapidez no processo
de fazer jornal, por outro pel1l1ite a explosão de novas técnicas, como a introdução da
cor, adotada, já em 1907, pela Gazeta de Notícias. Mas, se o uso da cor fica restrito
ao jornal de Henrique Chaves e à Revista da Semana, então uma publicação do
Jornal do Brasil, os avanços na impressão possibilitam a edição de gravuras,
litografias e, finalmente, fotografias.
Criando uma série de estratégias empresariais, editoriais e redacionais, os
jornais procuram fundamentalmente atingir um público cada vez mais vasto. Além
disso a imagem do poder público está sempre presente nos textos impressos,
difundindo uma eficiência, pois fazer-se compreender era também fundamental para
os grupos dominantes. E, para isso, não basta a imposição de normas sociais nas
ruas, é preciso também a unificação do discurso. E a imprensa cumpre esse papel
através dos homens de letras.
Essa idealização do jornalista, o homem de letras, tem no Rio de Janeiro
um campo de atuação ímpar. Numa sociedade com significativos os índices de
analfabetismo, esses intelectuais são assimilados pela sociedade civil, que se utilizam
do seu potencial crítico e criativo.
o homem de letras, o jornalista, o repórter, que figura com destaque nas
listas de profissões, a partir de 1904, no Almanaque Laemmel1, vive muito mais da
sua própria representação e dela aferem proveito!>!>.
Crescendo emparelhado com o processo de mercantilização da cidade, o
jornalista invade territórios até então intocados e zelosamente defendidos. Passando
a ditar modas e novos hábitos, chegam mesmo a desafiar a própri;Jgreja na disputa
pelo controle das consciências. As cartas e consultas às zedaç es manifestam esse
claro poder que a profissão confere.
Impondo uma padronização à linguagem, emJ! gando os intelectuais nas
suas redações, os jornais contribuem para a banalização da linguagem literária. Num
momento em que o analfabetismo impede o deserfvolvimento de amplo mercado
editorial, há que se considerar igualmente-~u~esados impostos sobre o papel de
impressão dos livros, limitam essa ativiga1kedit;rial.
As grandes editoras importam seus livros da Europa e as tipografias
restrigem-se a realizar serviços de pequena monta. Apenas os jornais diários fogem
a esse padrão e, portanto, é nessas empresas que a modernização do selor traz as
maiores conseqüências.
Os intelectuais viam-se, assim, arrastados para o jornalismo, o
funcionalismo e a política. Os jornais, por outro lado, exercem de fato uma força e
uma ação. Aproveitando-se da atmosfera de modernização, de regeneração e de
mudança, promovem campanhas contra os velhos hábitos e pela introdução de
novos costumes, sempre sob a égide de um discurso pretensamente científico, de
fonna a implantar uma nova ordem.
É preciso criar um novo tempo e uma nova representação para o trabalho,
numa sociedade saída da escravidão, onde o que era desvalorizado precisava agora
ser aceito e valorizado. O tempo do lazer deve também ser controlado, diminuído e,
sobretudo, ordenado. Tudo precisa encontrar uma nova ordem. Inclusive os próprios
Jornais.
Porta-vozes dessa remodelação urbana, decifradores do discurso da ciência,
cunham inúmeras fórmulas redacionais para tornar a sua mensagem mais clara para
um número maior de leitores.
Utilizados pelos periódicos para promover essa decifração, muitos dos
jornalistas acreditam, de fato, nesses ideais e submetem-se a sua difusão como forma
de sobreviver como assalariados, de se tornar conhecidos do grande público ou de
subir o primeiro degrau para ingressar na burocracia oficial ou na política.
A imprensa, como o setor mais amplamente ocupado pelos literatos, vive
um período de enorme agitação intelectual. As transformações sociais, econômicas e
políticas influenciam também a prática jornalística.
No caso dos jornais diários, a ansiedade por uma orientação proveniente
das redações e o desejo dos intelectuais de exercer um domínio mais amplo sobre as
camadas letradas dão a esses veículos um poder de ação inusitado, muito distante do
que se pode pretender com a atividade literária. O poder simbólico daquele que sabe
verbalizar os sentimentos pode, através dos jornais, transformar-se em poder de
fato.
Ao lado disso, os longos comentários dos cronistas são restringidos pelo
novo tempo dessa sociedade, na qual também a fotografia e o cinema imponhem um
novo código para as palavras. A leitura deve acompanhar o ritmo do cotidiano, onde
o tempo passa a ser cada vez mais apropriado para o trabalho. Os jornais selecionam
e informam cada vez mais.
Sob a capa da neutralidade, entretanto, escondem-se inúmeras facetas: um
novo tempo mais programado e fielmente dividido; a manipulação das camadas
letradas e a unificação dos discursos da nova ordem.
Notas:
I LOBO, Cordeiro. Como se faz o Jornal do Brasil. Rio de Janeiro: Oficinas Obras do Jornal do
Brasil, 1896.46 p.
2 Sobre as funções da capital cf. MORSE, Richard. "Las ciudadescomo personas'·. In: HARDOY,
Jorge E. e MORSE, Richard P.(Ed.). Nuevas perspectivas enlos estudios sobre historia latinoamcricana.
Buenos Aires: Grupo Editor Latino Americano S.R.L, 1989 (Colección Estudios Politicos y Sociales), p.
59-76. Ver também ARAÚJO, Rosa Maria Barboza de. Capital Cilies: Rio de Janeiro and Washington aI the
turn ofthe twelllieth centurv. Baltimore: The Johns Hopkins University, Latin American Scminar, 1986,
mimeo, p. 2-10. Idem. A reforma de Paris: o podercle urna capital. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui
Barbosa, Seminário Rio Republicano, oul. 1983, mimeo. Idem. A vocação do prazer: a cidade e a família no
Rio de Janeiro Republicano. Rio de Janeiro: Rocco, 1993, p. 25-40.
3 Sobre o terna cL Humberto Machado Fernandcs. Palavras e brados: a imprensa abolicionista no
Rio de Janeiro (1880-1888). São Paulo, 1991. Tese (doutorado) Institutro de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas - Universidade São Paulo.
4 SINGER. Paul. "0 Brasil no contexto do capitalismo internacional".ln: FAUSTO, Boris (org.).
História Geral da Civilização Brasileira. São Paulo: Difel. 1977, p. 364. LOBO, Eulália Maria Lahymeyer.
História do Rio de Janeiro (do capital comercial ao capital industrial e financeiro). Rio de Janeiro: IBMEC,
1978, p. 156.
5 Lobo, p.448-453-
6 Segundo o crítico José Veríssimo, osjornais mais importantes da cidade possuíam uma tiragem
conjunta em torno de 100 mil exemplares. Cf. Veríssimo, A instrução e a imprensa. Rio de Janeiro: s.e, s.d"
JáOlavo Bilac, no Momento Literário, serefere a uma tiragcm global de 150 mil exemplares.
7ASSIS, Machado de. "O folhetinista". In: O espelho. Ecliçõescrítica de obras de. Rio de Janeiro:
MEC-Civilização Brasileira, 1975. Neste texto. extremamente rico. Machado, que fora colunista fixo da
Gazeta de Notícias até 1897, refere-se à importância do jornal para o folhelinista e à aproximação existente
entre este e o jornalista.
8 Em 1921, o ex-reclatorchefecloJornal do Brasil, Assis Chateaubriand compraria O Jornal, dando
origem ao primeiro conglomerado da imprensa brasileira. Com o apoio de Epitácio Pessoa,Virgílio Meio
Franco e Arthur Bernardes, Chaleaubriand compra por 5.000 conlos de réis o diário de Renalo Toledo
Lopes. O jornal seria o primeiro veículo de uma série de outros ligados à Chateaubriand. Em 1924 funda
o Diário da Noite e qualro anos depois lança a revista O Cruzeiro, que atingira o seu apogeu em 1954, com
a edição nacional de 720 mil exemplares, seguida de uma edição imernacional em espanhol, lançada em abril
de 1957. Posleriormenle, adquire A Cigarra, a Revista do Brasil, funda a Agência Meridional, a Radio Tupi
do Rio e a de São Paulo, a Educadora (mais tarde Tamoio). Quando mOITytl em 1968, a rede de rádios
pel1encenles a Chateaubriand abrangia 25 eSlaçõese fazia parte do congl<)l1feradoa TV. Tupi, de São Paulo
(1950), e a do Rio. Em 1968, os Associados contavam com 18estações ételevisão inslaladas nos principais
eslados. CL TAVARES, José Nilo. "Gêneses do império 'associado' e Assis Chauleaubriand·'.ln: Revista
Comunicação e Sociedade. São Paulo: Cortez Editora, mar. 19. ,p. 144-169.
9Correio da Manhã, 15jun.190 I, p. I.
10 Eslamos compreendendo crônica como u a expressão alegórica, no senlido de Benjamin, ou
seja, em oposição à símbolo. A alegoria despe-sedo elemenlos edificantes e enigmálicos parasetransformar
numa escrila a sercompreendida.ldenlifieand ,como represenlação Iilerária do fragmenlário, do ambíguo
e do elcmero, Benjamin destaca igualmenle a utilização da maneira alegórica para apresenlar o presenle-
narrado já como passado- como ruína. BENJAM IN, Walier. Origem do drama barroco alemão. São Paulo:
Brasiliense, 1984. Sobre crônica ver também ARRIGUCCI JR., Davi. Enigma e coment,írio. Ensaios sobre
literalUra e experiência. São Paulo: Cia das Lelras, 1987.
11 Correio da Manhã, 18 e 22 jun. 190 I, p. 2. Em 1910, Pelos Subúrbios mudar,í de nome para
Correio Suburbano e, ainda no mesmo ano, passou a sechamar Subúrbios e arrabaldes. Para a análise do
jornal que se segue, pesquisamos as edições do Correio da Manhã de 9 jun. 190 I a :1 I dez. 1910.
12 Correio da Manhã, 19 e 20 novo 1905, p.l.
U CL por exemplo asedições dejaneiro e fevereiro de 1909em apoio acandidatura de Rui Barbosa
à Presidência da República, quando o jornal publica, em corpo 48 no título, o regresso do candidato e a
campanha dos estados, ocupando toda a primeira página.
14CorreiodaManhã,15jun.1901,p.1.
15 Correio da Manhã, 24mai. 1902, p. I.
16 Correio da Manhã, 16-17 jun. 1904, p. I.
17Correio da Manhã, 5 mar. 1910, p.l.
18 Cordeiro, p. 16.
19 Jornal do Brasil, 26 jan. 190I, p. 2.
20 Jornal do Brasil, 9 abr. 1891, p. I.
21COELHO, Adalberto. Coisas do Jornal do Brasil. Rio de Janeiro: Tip. Esperanlisla, 1940.
22Corcleiro, p. 18.
nCorreio da Manhã, 10 novo 1904, p.1.
24 Jornal do Brasil, 4jan. 1900, p. I.
25 Jornal do Brasil, 15nov. 1900, p. 2.
26 Jornal do Brasil, Ijan.1901,p.l.
27Jornal do Brasil, 7mar. 1900, p. I.
28 cr. "A infeliz Guilhermina, vílima do desastrede ontem na Rua Benedilinos (croquis tirado do
natural pelo nosso companheiro J. Arthur)". In: Jornal do Brasil, 17jan. 190 I, p. 2 e "O cadáver de Luiz
Carlos da Cunha, a panir de uma fotografia lirada na Casa de Detenção". In: Jornal do Brasil, 11 OUI. 1900,
p.1.
30 SENNA. Ernesto. Jornal do Commercio. Rio de Janeiro: Tip. do Jornal do Commercio, 1901,
16p. eJORNAL DO COMMERClO. Edição comemorativa do primeiro centenário do Jornal do Commercio.
Rio de Janeiro, 1928.
31 JORNAL DO COMMERCIO. Edição comemorativa do 18 aniversário da direção de José
Carlos Rodrigues. Rio de Janeiro: Tip. do Jornal do Commercio, 1908.
32 Carta de F. Picot a JoséCarlos Rodrigues, 4 ago. 1889.Correspondência passiva de JoséCarlos
Rodrigues. Seção de Manuscritos Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro.
33 JORNAL DO COMMERCIO. Palavras de José Carlos Rodrigues no lançamento da pedra
fundamental do novo edifício do Jornal do Commercio. Rio de Janeiro: Tip. do Jornal do Commercio, 14jun.
1906
34 Jornal do Commercio, 1I abr. 1892, p. I.
35 Jornal do Commercio, 7 maio 1907, p. 2.
36 Jornal do Commercio. 12jan. 1912. p.l
37 Jornal do Commercio. op. cit., 1928, p. 769-71.
38 Em maio de 1907 publicam, por exemplo, uma série de reportagens assinadas por Euclides da
Cunha sobre a Transacreana. Cr. Jornal doCommercio, maL 1907, p. I.
39 Veríssimo, op. cit.. p. 72.
40 Gazeta de Notícias. Prospecto. s.d.
41 Chama-se suelto o pequeno texto opinativo, mas com característica jocosa e humorística,
publicado pelos jornais brasileiros desde o início do século.
42 João do Rio trabalhou durante onze anos na Gazeta. chegando a ser seu redator-chefe em 1911
Em 191.) abandona ojornal, na época de propriedade de Oliveira Rocha, e vai para O Paiz.
43 EDM UNDO, Luiz. O Rio de Janeiro do meu tempo. Rio de Janeiro: Ed. Conquista. 1957. vol.
5, p. 922.
44 Os fotógrafos fornecem por suaconta o material a ser usado no trabalho. As chapascustam cada
uma em torno de 10$000. Em 1913, são essesos fotógrafos que trabalham na imprensa diária: F.Garcia,
Arthur Carmo. Carlos Chaplam, Jayme Ramalho, Benjamin Vermont. J. Teixeira. Antenor Sabrosa, Luiz
Bueno. Daniel Ribeiro, A. Prine, Manoel Nunes, Augusto Malta, Mário Aleixo, Capdeville, G. Vieira,
Felippe Jorge, Luiz Almeida, Alfredo Couto e F. Sales. "A fundação da Associação dos fotógrafos de
imprensa". In: O Paiz, 29 OUI. 1913, p.l
45 Os tipógrafos, bem como os revisores ganham diárias: o primeiro de 6$000, e o segundo entre
5 e 8$000. em 1919. Na mesma época a diária de openírio da construção civil fica em torno de 8$000
(pedreiro). Cr. BRASIL. Recenseamento do Rio de Janeiro realizado em I de setembro de 1920. Rio de
Janeiro: Typ. da Estatística, 1927, Volume V - 2a parte - Salários. A Plebe, 28 mar. 1913 e BARBOSA,
Marialva. Operários do pensamento. Dissertação (mestrado). Instituto de Ciências Humans e Filosofia-
Universidade Federal Fluminense. Niterói, 1991, p. 131
46 Gazeta de Notícias, 7 jan. 1880, p. I.
47 Gazeta de Notícias, n abr. 1880. p. I.
48 "Folhetim da Gazeta de Notícias". In: Gazeta de Notícias. 2 ago. 1875, p. I.
49 Gazeta de Notícias, 10-11 jun. 1880. p. 2.
50 Edmundo, p. 955-956.
51 PUBLICAÇÕES. Códices45-4-35 e44-4-20. Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro.
52 Edmundo, p. 929.
53 Em 7 de maio de 1904, a Sociedade Anonyma O Paiz, compra por40:000$000 (40 contos de
réis, como se dizia na época) o terreno 500 A, que 05l1P~O um quarteirão na esquina com Rua Sete de
Setembro. Cf. FERREZ, Marc. O ãlbum da Avenidátentral. Um documento fotogrãficoda construcãoda Av.
Rio Branco. Rio de Janeiro. 19ü:1-19~Ri6de Janeiro: João Fortes Engenharia/Editora Ex. Libris, 1983,
p. 170-171,224 ePlanta da Avel}iclcrCenlral e Obras Complemenlares (Anexa).
54 O P3IZ, I out.)91Ó, p. I.
55 Denúl~pÍ'esentada por Edmundo Bitleneourt a I' Vara Criminal, em 4 de abril de 1910, e
transcrita no CorreIO da Manhã, 4 abr. 1910, p. I.
56 a Paiz, 13 dez. 1900, p. I.
a
57 Paiz, 21 jan. 1905, p. I.
a
58 Paiz, 2 jan. 1910. p. I. As primeiras folos são publicadas na pãgina 6 da edição de I1 jan.

59 A polêmica seestendeu por todo o mês de março e final de abril, quando Edmundo viaja para
a Europa, e resultou em duas queixas crimes apresentadas najustiça. A primeira de Edmundo Bittencourt
conlra João Lage, a quejã nos referimos, ea segunda de João Lagecontra Edmundo Biuencoul1 pelo crime
de calúnia. Cf. O Paiz, I mar.1910a22abr. 1910.
60 Cf. relatório da comissão construtora da Av. Central. "Terrenos vendidos", In: O album da Av.
Central, p. 224.
a
61 "Paroxismosde epiléptico·' .•ln: Paiz, 13 mar. 1910, p. I.
a
62 Paiz, 15 mar. 1910. p. I.
63 a Paiz, 6jan. 1910, p. 12.
a
64 Ata da Assembléia Geral EXlraordinãria de 18 novo 1909, publicada em Paiz, 18dez. 1909,
a
p. 3; Balanço da Sociedade Anônima O Paiz de 1915, publicado em Paiz 16jan. 1916. Ata da Assembléia
Geral EXlraordinãria de 30 jun. 1907, publicada em O Paiz, 22 jul. 1917, p. 2.
65 Comenlando o processo de produção do Jornal do Brasil, Adalberto Coelho assim se referiu a
divulgação das tiragens dos jornais: "E no Rio como vai a tiragem? Heis um segredo indevassãvel. Não
hã dentro de qualquer jornal quem informe, com exatidão, sobre semelhante ponto". Coelho, p. 21.
66 Em 1904, o Almanaque inclui uma interessante relação de "Literatos, jornalistas e escritores
de ciência e política e, uma outra alinhando os "Repórteres". Ao lado do nome do jornalista, aparece o
periódico no qual trabalhava. Ao todo são relacionados 28 repórteres. Na relação figuram nomes de
tradicionais repórteres como Ernesto Senna, do Jornal do Commercio, Caslellar de Carvalho, de A Notícia,
a
Gustavo de Laccrda, de Paiz, Baldomero Carqueja, do Jornal do Commercio" e oulros inusitados nessa
classificação, como alavo Bilac e Rui Barbosa. Almanaque Laemmert. Rio de Janeiro: Tip. Universal de
LaemmeI1,1904.
"Sentado li mesa coletiva, no centro da redação, durante aqueles dois dias eu me
mantive quase sempre silencioso, observando cada um dos jornalistas que escreviam sem
par(lI; também em silêncio, na exeCllção de suas tarefas. De repente a campainha do telefone
tilintou.
- Crime na ma São José. gritou o I'elho Tibúrcio
Todos se entreolllGram como ({indagar quem correria para o local.
- Vá l'ocê 'fazer este crime '. Veja ofotógrafo. " I

A memória do ex-redator da Gazeta de Notícias se, por um lado, descreve


minuciosamente o ambiente das redações, por outro, generaliza as atitudes de um
personagem que aí ganha identidade: o jornalista.
Figura central no processo de transformação da imprensa no período
tem, além da própria representatividade simbólica da profissão, uma face real.
Oriundo em grande número das faculdades de Direito, esse profissional
que irá ocupar cargos de prestígio ou simplesmente ser redator e repórter nos
jornais diários, faz a maioria das vezes da profissão um patamar para alcançar
posições políticas ou situações de estabilidade financeira, participando da burocracia
estatal.
Ser repórter e ser redator é, sobretudo, através do prestígio que o lugar
confere e das relações pessoais que possibilita, "cavar" um cargo público ou
ingressar na política e na diplomacia.
Se aos repórteres cabe a participação na burocracia estatal, também
como forma de complementar os rendimentos aferidos com a profissão, aos
dirigentes e profissionais mais importantes o lugar natural é a política.
A imprensa, na verdade, cria as condições necessárias ao desenvolvimento
de um campo intelectual, cujos integrantes vão participar diretamente das instituições
e dos grupos que irão exercer a própria dominação. A dependência dessas posições
intelectuais do poder político, faz com que o recrutamento, as trajetórias possíveis,
os mecanismos de reconhecimento e outras condições necessárias à consagração
intelectual dependam fundamentalmente da participação como profissionais do
novo jornalismo. Toda a vida intelectual passa a ser dominada pela grande imprensa
que se constitui na principal instância de produção cultural, fornecendo a maioria
das posições intelectuais.
Os escritores profissionais se ajustam aos novos gêneros, fazendo da
reportagem, da entrevista, do inquérito literário e, em especial, da crônica, um
patamar para o seu reconhecimento e a sua inserção no grupo dominante' .
As correlações entre literatura e jornalismo são profundamente evidentes.
Arrebatando os escritores, os jornais procuram alcançar maior popularidade. Por
outro lado, os literatos vêem nesse tipo de publicação a possibilidade de atingir um
número mais expressivo de leitores. Estabelece-se, pois, uma verdadeira
cumplicidade entre literatos e jornais, onde os primeiros percebem os periódicos
como a via de divulgação de sua obra e, em conseqüência, de ascensão social. Os
jornais, por outro lado, utilizam esse profissional com a expectativa de alcançar
um público maior, conseguindo, com isso, mais anunciantes, prestígio e poder.
O desenvolvimento desse novo jornalismo torna a atividade compatível
com o slall/s do escritor. O Jornal do Commercio paga 30, 50 e até 60$000 pela
colaboração literária, o mesmo acontecendo com o Correio da Manhã. Em 1907,
Bilac e Medeiros e Albuquerque recebem 50$000 pelas crônicas que publicam na
Gazeta de Notícias e em O Paiz'.
O desenvolvimento dessas empresas como amplas unidades de produção
e a transformação da escrita num trabalho assalariado significam uma mudança na
relação do produtor com? seu trabalho, nas representações que possui à cerca de
sua posição, na sua função na estrutura social e nas ideologias pai íticas que
professam.
Vendo o seu poder de ação social aumentado, esses intelectuais anseiam
por levá-Ia às ultimas conseqüências, desejando exercer uma tutela sobre extensa
faixa de público, o que se traduz em poder de fato. Através de construções
freqüentemente referendadas e cristalizadas, a população compõe uma imagem da
imprensa que, na verdade, é construída pelos próprips periódicos. Uma imagem
próxima da mitificação, na qual reduções adjetivadas compõem um cenário de
ilusão e camuflagem~ . Nesse contexto, o jornalista também adquire uma imagem
mitificada, sistematicamente associado a múltiplas reduções interpretativas: pode
ser o interlocutor privilegiado, o intermediário eficaz, o polemista demolidor,
assumindo ora a faceta de conspirador, ora a imagem de salvador. A imagem
construída do jornalismo e dos jornalistas ganha, pois, o contorno de um verdadeiro
mito pai ítico.
Para os antropólogos e historiadores do sagrado, o mito deve ser concebido
como uma narrativa, que se refere ao passado, mas que conserva no presente um
valor eminentemente explicativo, na medida em que esclarece e justifica certas
formas de organização social. Para Mircea Eliade, por exemplo, o mito conta uma
história sagrada, ressalta um acontecimento que ocorreu no tempo imemorial, "o
tempo fabuloso dos começos". Ou seja, conta como uma real idade chegou à
existência, preservando e transmitindo os paradigmas, os modelos exemplares,
para todas as atividades a que o homem se dedica) .
Raoul Girardet percebe no mito político todas essas instâncias de definição
do conceito, vendo-o, ao mesmo tempo, como fabulação, deformação ou
interpretação objetivamente recusável do real. Para ele, a narrativa legendária também
exerce uma função explicativa, fornecendo as chaves para a compreensão do presente
e lendo, ao mesmo tempo, um papel mobilizador. O mito seria, pois, no sentido
mais completo do termo, ficção, sistema de explicação e mensagem mobilizadorail.
E essa idealização atinge os principais dirigentes dessas publicações e o
jornalista de maneira geral.
Alguns literatos realizam toda uma caracterização desses dirigentes, que
merece ser relembrada. E, sem dúvida, o mais fascinante desses perfis é composto
por Lima Barreto, falando de Edmundo Bittencourt. Batizando-o com o nome
fictício de Ricardo Loberant, da mesma forma que nomeia o Correio da Manhã
como O Globo, Lima Barreto começa caracterizando fisicamente o diretor do
periódico criado em 190 I.
"Era o Doutor Ricardo Loherant, um homem muito alto e muito m.agro, anguloso, com Inu
grande bigode de grandes guias, louro, de lllulouro sujo, tirado para o castanho, e 11m
olhar arredio, cheio de desconfiança ".
A seguir, o escritor acrescenta a representatividade que os diretores de
jornais possuem e o poder que o domínio de um saber e, sobretudo, da possibilidade
de divulgar idéias e opiniões Ihes confere:
"Era uni homem temido, temido pelos fortes, pela gente mais poderosa do Brasil, ministros,
seuadores, capitalistas; mas em quem, com espanto IlOtei llluafalta de pouem, de certa
segurança de gestos e olhen; própria dos j·encedores".
A crítica ferrenha ao proprietário do Correio de Manhã, que valeu a
Lima BaITeto uma dura retaliação e uma ostensiva perseguição, coloca em primeiro
plano o temor dos grupos dominantes para com esses homens que podem innuenciar
na divulgação de idéias para um público cada vez mais vasto. Esse medo provoca
alianças, seja com os que estão no poder ou, no caso do Correio da Manhã, com
aqueles que almejam alcançá-Ia.
A descrição ponnenorizada do autor de Recordações do Escrivão Isaías
Caminha enfoca também a formação escolar do personagem.
"Ninguém o sahiajol'l/alista, mesmo durante o seu curso mal amanhado nâo sacrificara às
letras:fora sempre tido como Vil'elll; gostando de gastar efreqiien ta r a sociedade das
grandes cocolles( ...) Algumas pessoas de foro informaram que o doutor RicO/'do Loberant
era UIIIadvogado violento, atrevido que tinha por liábito discutir pelo 'a pedidos' do Jornal
do Commercio, com ais azedume de lógica, as causas intrincadas que lhe eram cOl~fiadas"7.
Mas quem é de fato Edmundo Bitlencourl?
Oriundos de famílias abastadas, ligadas aos grupos agrários dominantes
no cenário do Império ou filhos de pais advogados, engenheiros e médicos, ocupando
altos cargos na burocracia estatal, esses homens, que idealizarão das principais
reformas nos jornais mais importantes da cidade, são, em sua quase totalidade,
também advogados de formação. Essa formação escolar, aliás, é a mais comum
entre os jornalistas.
Edmundo Bittencourt, fundador do Correio da Manhã, José Carlos
Rodrigues, sócio majoritário do Jornal do Commercio, a partir de 1890, Fernando
Mendes de Almeida, redator-chefe do Jornal do Brasil, após 1894, Leão Veloso
Filho, redator-chefe do Correio da Manhã, Henrique Chaves, redator-chefe da
Gazeta de Notícias, lodos, sem exceção, são formados em Direito, no Rio de
Janeiro, em São Paulo ou mesmo em Recife. O Conde Pereira Carneiro, proprietário
do Jornal do Brasil, após 1918, inicia seus estudos de Direito em Recife, seguindo
depois para a Europa onde se especializa em "estudos econômicos". Apenas
Ferreira de Araújo, que antecede Henrique Chaves na direção da Gazeta, é formado
em Medicina, pelo Rio de Janeiro. Os únicos entre os dirigentes dos jornais diários
que não possuem nível superior é o português João de Souza Lage, diretor de O
Paiz, e José Felix Pacheco, redator-chefe do Jornal do Commercio após 1906 e
acionista já em 1916.
Independentemente da posição de classe que ocupam - advogados-
jornalistas no comando dessas empresas - há identidades entre eles no que se refere
à condição de classe: todos originários de famílias bem sucedidas economicamente,
quer de origem agrária ou urbana.
José Carlos Rodrigues é de uma família abastada, de origem agrária, com
domínio na política local e estadual, e foi criado por uma tia de hábitos fidalgo,
viúva do filho do Marques de Ponte de Lima Pais e Oliveira. Também Edmundo
Bittencourt tem sua condição de classe ligada à origem agrária, mas de médio porte,
no Rio Grande do Sul. Outros dirigentes são de famílias de elevada posição
econômica, mas notadamente urbana, em função da atividade que exercem na área
jurídica, na burocracia estatal ou na política. O pai de José Felix Pacheco é juiz de
Direito e seu tio senador. Também o pai de Assis Chataubriant, redator-chefe do
Jornal do Brasil, a partir de 1918, é advogado e funcionário público da Alfândega.
Já o pai de Fernando Mendes é jurisconsulto e senador no Império. Dunshee de
Abranches é filho de abastado negociante português do Maranhão, educado em
Paris. Sua mãe, fundadora do Colégio N. S. Graças vigia de perto a educação do
menino, que ainda na infância tem aulas de língua, pintura, desenho e música.
Assim, em relação à orige'll familiar, embora haja alguma diversificação
no que se refere à profissão do pai - dois são fazendeiros, quatro advogados, três
comerciantes, um professor e um militar - todos possuem o capital simbólico de
um título, advindo do diploma de origem superior, das ligações ou da efetiva
participação junto ao grupo dominante.
Dos 21 nomes arrolados na pesquisa, no que se refere à condição familiar,
33% têm profundas ligações com a política, uma vez que os seus pais estão
diretamente envolvidos com esta atividade.
O pai de Leão Veloso Filho foi ministro e senador do Império, o de João
Ferreira, ocupou alto posto na Guarda de Honra Imperial, o de Antônio Botelho e
o de Rodolfo Dantas eram conselheiros imperiais. E, finalmente, o de Fernando
Mendes de Almeida foi senador.
Pierre Bourdieu ao caracterizar os conceitos de condição e posição de
classe pressupõe a existência de propriedades de posição, relativamente
independentes de outras de natureza intrínseca e que se referem, por exemplo, a
certo tipo de prática profissional ou às condições materiais de existência.
Considerar, pois, as propriedades de posição impede a utilização de
esquemas explicativos generalizantes. Grupos definidos por condições de existência
e práticas profissionais semelhantes podem ter propriedades diferentes, quando
ocupando posições diversas. Do mesmo modo, grupos caracterizados por condições
de existência e práticas profissionais diversas podem apresentar propriedades
comuns porque ocupam posições homólogas em duas estruturas di ferentesH •
No mesmo estudo, Bourdieu chama a atenção para ver a posição do
indivíduo ou grupo na estrutura social, como relativa a um dado momento, ou seja,
como ponto da sua trajetória social, onde aquela posição é, na verdade, etapa de
ascensão ou descenso. Assim, pode-se igualmente distinguir propriedades ligadas
sincronamente à posição ou ao seu futuro.
Essas observações são importantes para se entender a trajetória dos
acionistas e diretores das principais publicações. Redatores sem maior prestígio
inicialmente, todos fazem carreira nos jornais, aliando-se a grupos dominantes na
estrutura social de forma a ascender socialmente e adquirir o capital necessário
para ocupar o cargo dirigente. Para isso não basta a formação intelectual mas
também as alianças que estabelecem valendo-se, muitas vezes, do capital advindo
de sua condição de classe. Ser jornalista é, portanto, um ponto da trajetória social
desses homens, uma etapa necessária, mas não obrigatória para a ascensão.
A formação acadêmica, entretanto, fornece elementos imprescindíveis
para~;;;:e
---I:l<1fa se tornar, sob certo aspecto,
::':~:;:a::u:~~~~~;:~:-e~
bacharel

verdadeiro porta-voz das elites políticas, na
medida em que se constitui também em palie atuante dessa elite.
É esse efetivamente o papel exercido pelo grupo dirigente nos jornais
diários, formados em quase sua totalidade por egressos da Faculdade de Direito.
Rasteando a vida desses homens, entre 21 nomes arrolados, 15 são formados em
Direito.
A academia - no caso das Faculdades de Direito - forma profissionais
para ocupar cargos políticos ou no aparelho burocrático. O projeto de ensino no
final do século é voltado para o ecletismo e para a formação de profissionais
dirigentes. Curso pioneiro e predominante na formação das elites, a Faculdade de
Direito tem outras especificidades no que diz respeito à formação de seus quadros.
Considerando-se que a escola propicia aos indivíduos um corpo comum
de categorias de pensamento, que permite a comunicação, sendo o homem o produto
de um sistema de ensino, detecta-se uma profunda coerência de pensamento
expresso nesses jornais - mesmo adversários - e que segue o sistema de pensamentos
de seus dirigentes, todos com a mesma formação acadêmica~ .
A valoração da ciência levada ao extremo, a missão de condutor dos
pensamentos e das ações da população - que deve se submeter às novas normas de
conduta, alcançando naturalmente a civilização e o progresso -, a idealização de
uma nação, identificando-se suas diferenças, para ~ partir daí estabelecer uma
unidade são, em resumo, o pensamento corrente nesses periódicos e que refletem
os esquemas e sistemas de pensamento da academia de onde esses dirigentes são
produto. Os jornais do período apresentam a nação como moderna, industriosa,
civilizada e científica e divulgando o ideário evolutivo-positivista de Darwin,
Spencer e Comte associam conceitos como ciência e modernidade.
A própria ideologia da modernização contribuiria para a reatualização da
mentalidade tradicional. Sônia Regina Mendonça, por exemplo, ao estudar um
grupo peculiar, os agrônomos, chama a atenção para o fato, enfatizando as
ambigüidades inerentes a esta intenção, presentes nas práticas discursivas dos
tipos arrolados na sua pesquisa.
O mito da modernidade, segundo ela, consite numa imposição também
ao ritmo das transformações internacionais do capitalismo, veiculada através do
cosmopolitismo ilustrado e da erudição atualizada. Nesse aspecto, a autora destaca
a inclusão da economia no currículo dos cursos de Direito, Engenharia e Agronomia,
cujo núcleo ideológico reside tanto na economia política clássica, quanto nos
neoclássicos italianoslll. Convém ainda ressaltar a representatividade que possui o
saber na sociedade brasileira e especificamente o sfafl/s que confere o fato de o
. indivíduo se tornar bacharel. O diploma é a certeza da inserção num outro patamar,
onde a outorga confere o capital necessário para exercer determinadas funções. E
aqueles que, inicialmente, não encontram lugar nos quadros dirigentes, se direcionam
para outras atividades, fazendo delas o patamar necessário para a sua inserção. E,
sem dúvida, o jornalismo cumpre esse papel.
A academia, por outro lado, consagra a distinção, opondo a classe
dominante aos grupos populares e determinando o seu papel parente aqueles,
separando visivelmente os que recebem esse conhecimento do restante da sociedade.
Discutindo a questão do bacharelismo também Sérgio Buarque de Holanda
enfatiza o fato de os oriundos das Faculdades de Direito ocuparem posições junto
à burocracia estatal, não raras vezes acumulando funções. Segundo ele, o verdadeiro
"vício do bacharelismo" existente na sociedade reforça uma tendência a exaltar
acima de tudo a personalidade individual. O título de doutor confere ao indivíduo
uma dignidade e uma importância que o liberta mesmo da necessidade de buscar
bens materiais.
Mais do que ensinamentos adquiridos, as Faculdades de Direito fornecem
a possibilidade de manejar a palavra escrita, a frase lapidar, o pensamento inflexível
vistos pela sociedade como fundamentais e como a verdadeira essência da
sabedori a II .
Concomitantemente à academia, os futuros dirigentes iniciam-se no
jornalismo, ocupando posições subalternas. O prestígio advindo de sua condição
de classe, reforçado pelo sistema escolar, leva-os a galgar rapidamente degraus
nessa nova carreira. As alianças políticas e econômicas, com grupos dominantes,
onde também se inserem, tranformam-nos em porta-voz dessas elites. O passo
seguinte é a fundação de um novo jornal que cumpre o papel de divulgador do
pensamento desses grupos.
Ser dono do jornal, entretanto, não é, a maioria das vezes, o ponto
culminante na carreira desses homens, mas um estágio anterior ao ingresso efetivo
na política ou na diplomacia, o que só é possível pelo poder que detém como
proprietários ou dirigentes desses periódicos. Quando isso não ocorre,
invariavelmente ocupam uma posição de prestígio junto ao poder, sendo
intermediários de negócios vultosos, conselheiros ministeriais ou representantes
do governo junto a organismos internacionais. Tornam-se, pois, porta-vozes oficiais
do próprio poder.
No Quadro I, onde todos esses dados estão sistematizados, percebe-se
que dos 21 nomes arrolados como dirigentes, sete se tornariam políticos. Essa
porcentagem
~~::tí" secon~í<:~:,I:::s
~-=:-P:~í,,;::::~7n~
cargos wJ,l1lÍcos ou na diplomacia: mais de 50% têm um papel destacado na
buruefacia oficial ou na política e, podemos dizer, que 100% têm alguma ingerência
junto ao poder, quer através de cargos efetivos, quer como intermediários de
negócios,
O número representativo de proprietários de jornais como intermediários
de negócios, contrasta com a pouca expressividade numérica daqueles que,
concomitantemente, exercem a profissão na qual são formados e, mesmo assim,
por um curto período de tempo: 33%, Ferreira de Araújo concilia por algum tempo
a medicina com a direção da Gazeta de Notícias e Edmundo Bittencourt, Dunshee
de Abranches, Henrique Chaves e Luís de Castro, por interesses claramente
pessoais, advogam em alguns casos, Esse é o caso também de João de Maximiano
de Figueiredo, diretor-tesoureiro de O Paiz e também advogado de João Lage,
Sérgio Adorno, analisando especificamente a Faculdade de Direito de
São Paulo, enfatiza o domínio da tradição jus-naturalista naquela academia, o
ecletismo filosófico, ainda no século passado, e o predomínio do positivismo, já
neste século. Por outro lado, o autor vê na introdução de matérias como Economia
Política ou Direito Comercial os pressupostos básicos para a identificação do
idealismo predominante nessa escola".
Na prática, entretanto, há diferenças significativas no ensino de Direito
de estado para estado e na própria configuração das esc91as na formação do habilus
de advogado.
Enquanto a Faculdade de Recife se caracteriza pelo seu caráter doutrinador,
a do Rio, pelo conteúdo das disciplinas e pela estrutura do curso, assemelha-se
com a de São Paulo, ainda que sofra influência do ensino ministrado pela escola
nordestina, Ao lado de cadeiras tradicionais, como Direito Romano, Direito Natural
e Direito Civil, há outras mais específicas, como Direito Criminal, além da posterior
inclusão da cátedra de Economia, A maior inovação acontece já nos anos 10, com
a introdução da cadeira Ética Jornalística na Faculdade Livre de Ciências Jurídicas
e Sociais do Rio de Janeirol\.
Esse fato por si só já é representativo do papel desempenhado pelo
jornalista no interior da academia. Por outro lado, a escola via-se na contingência de
dar ao profissional que, saindo de suas arcadas, ocuparia cargos dirigentes nos
jornais, noções comportamentais e, principalmente, incutir a importância de alguns
conceitos chaves tomados como verdades absolutas na idealização do jornalismo:
a imparcial idade, a neutral idade e a própria verdade.
Por outro lado, é preciso considerar que a academia confere ao diplomado
um capital simbólico extremamente valorizado. Ser bacharel é conseguir o título
indispensável para ocupar altos cargos na burocracia estatal. Ser bacharel confere
ao portador do diploma, caso não tivesse capital próprio, resultante da sua condição
de classe, a possibilidade de assumir o papel de jornalista. Mas para ser dirigente
é necessário, além da posição, também a condição de classe.
Buscando-se as biografias, estabelece-se uma identidade na trajetória
desses homens. José Carlos Rodrigues, proprietário do Jornal do Commercio, de
1890 a 1915, formado em Direito por São Paulo, escreve nos dois últimos anos do
curso para o Correio Paulistano e é correspondente do Correio Mercantil.
Com 23 anos, em 1867, emigra para os Estados Unidos, onde se torna proprietário
da revista Novo Mundo e correspondente do Jornal do Commercio.
Concomitantemente a essa posição, passa a ser intermediário de vultosos negócios
para particulares ou para o governo. E mesmo como proprietário do jornal, após
1890, nunca abandona sua condição de intermediário de negócios do governo
brasileiro, vindo a ser também Diretor do L1oyd, além de um dos principais
interlocutores dos presidentes Campos Sales e Prudente de Morais'4.
Edmundo Bittencourt também formado em Direito, em 1895, pela
Faculdade Livre de Ciências Jurídicas e Sociais, criada no Rio de Janeiro em 1891,
amigo pessoal de Rui Barbosa, começa a sua vida pública pelas mãos do Ministro
da Fazenda de Campos SaJes. Com ele trabalha em A Imprensa, ainda recém
formado, ao mesmo tempo que auxilia Rui como advogado. Numa estratégia
claramente política, arrenda as instalações do antigo jornal e ali instala o polêmico
Correio da Manhã, que será um ferrenho opositor do Governo e um aliado
permanente de Rui Barbosa. Tal como José Carlos Rodrigues, Edmundo, que
esporadicamente se dedicava à advocacia enquanto esteve à frente do Correio,
após deixar a sua direção, torna-se fazendeiro no interior de São Paulo.
Já o fundador do Jornal do Brasil, Rodolfo Dantas, formado em Direito
por Recife, faz do periódico um trampolim para galgar outras posições políticas.
Ministro no Império, Rodolfo Dantas será Deputado e Senador, após a sua
passagem pelo periódico.
A mesma ascensão política, possibilitada pelo poder advindo do fato de
ser dirigente no Jornal do Commercio, tem José Felix Pacheco. Sem curso
superior, o futuro dono do jornal, inicia sua can'eira jornalística como redator da
Cidade do Rio, de José do Patrocínio, ingressando como repórter, ainda no início
do século, no Jornal do Commercio. Em 1906, passa a ser redator-chefe, e é
nessa posição que ocupa altos cargos na burocracia estatal (Diretor do Gabinete de
Identificação; membro da Comissão de Recenseamento do Distrito Federal, nomeado
/. C,p{m', 2 . . 72

por PeSfira Passos), antes de ser deputado federal, senador (1921) e Ministro de
~dÔ (1923-1926). Ao deixar o Ministério, torna-se proprietário do Jornal do
~ommercio, embora já sendo acionista desde 1916.
O redator-chefe do Jornal do Brasil a partir de 1894, advogado, formado
por São Paulo, em 1879, idealizador, fundador e professor da Faculdade Livre de
Ciências Jurídicas e Sociais do Rio de Janeiro, Fernando Mendes de Almeida,
torna-se senador, em 1910, depois de sua passagem pelo mais popular periódico
da cidade. Dunshee de Abranches também diretor em O Paiz, em 1914, é eleito
deputado pela Assembléia Legislativa do Maranhão, em 1903, e dois mais tarde
será deputado federal, cargo que ocupa até 1917. Alves de Souza e João Maximiniano
de Figueiredo, ambos dirigentes de O Paiz, também se elegem deputados federais.
Tal como o advogado, o jornalista procura agir como árbitro das questões
políticas. Para isso, assume o papel de denunciador. A sua tribuna é o jornal e a
audiência o público leitor. O habilus do jornalista, ao contrário do advogado, não
evoca a neutralização do conflito, mas seu estímulo. Dessa forma, sua posição
como juiz entre as partes fica mais evidente.
Por outro lado, atribui-se o papel de defensor da verdade, da
imparcialidade, de porta-voz das causas nacionais. Ao habilus do advogado,
acrescente-se outro extremamente particular: o de fiscalizador das ações no domínio
do público, seja na sociedade política, seja na sociedade civill\ Essa posição repleta
de simbolismo, não apenas por ser dono de um saber, mas por ser capaz de
divulgar idéias e opiniões, disseminando conceitos e modos de pensar, deve ser
assumida por quem estiver preparado para desempenhar esse papel. E o capital
simbólico necessário é fornecido pelo saber acadêmico, notadamente no curso que
ocupa o topo da hierarquia entre os saberes de nível superior no início da República.
Embora também possuam uma condição de classe que os distinguem,
todos ocupam efetivamente a mesma posição de classe e é aí que residem suas
similitudes. lndependentemente dos laços de parentesco, das tradições e da situação
financeira das famílias, são igualados pela representatividade da profissão: do
aristocrata José Carlos Rodrigues, ao bacharel Edmundo BiUencourt e até mesmo
o português parcamente alfabetizado João de Souza Lage.
Como donos de jornais são poderosos. O jornal é capaz de derrubar
ministros, promover campanhas, influenciar as elites e disseminar conceitos e
formas de pensar entre o restante da população.
Se trabalhar num jornal fornece um slalus peculiar, ser dirigente produz
um poder inigualável.
"Veiga Filho acavolt de ler a /lotícia /Ia /I/eio da sala, cercado de redatores e repórteres.
Enqual/to ele lia cheio de paixão, esquecido de quefora ele mesmo o autor de trio lindos
elogios,jiquei também esquecido e cOIll'el/cido do seul/wlabarisl/w vocabulw; do sopro
heróico de sua palavra, da sua emdição e do seu saber Cessando, lembrei-me que amanhei
aquilo ia ser lido pelo Brasil boquiaberto de admiração(. ..). Naquela hora, presell.cial/do
tudo aquilo. eu Sei/ti que tinha travado conhecimelllo com um eIlgenhoso aparelho de
aparições, espécie complicada de tablado de mágico e espelho prestidigitadOl; provocando
ilusões,fal/tasmagorias, ressurgimentos, glorificações e apoteoses com pedacinhos de
chumbo, uma máquina Marinoni e a estupidez dos multidões. Era a Imprensa, a Onjpotente
Imprel/sa, o quarto poder/ora da Constituição "M.
O "engenhoso aparelho de aparições que provoca ilusões, glorificações e
apoteoses" é capaz de promover campanhas, arrebatar multidões, influenciar a
sociedade política e civil.
Ficção e realidade se misturam no início da República. Tanto num domínio,
como no outro, a evidência de que os jornalistas - dirigentes ou não - possuem um
capital simbólico suficientemente expressivo para participar do jogo de poder. O
jornalista como produtor de bens simbólicos encarna a pessoa do "criador",
produzindo uma originalidade que enfoca principalmentea vida social. Produtor de
mensagens para a "pessoa do leitor", transforma-se num verdadeiro formados de
conceitos, normas e padrões permitidos e cuja vulgarização é necessária.

O perfil do mais famoso boêmio do Rio de Janeiro do início do século -


o repórter policial Paula Nei - serve para caracterizar esses homens que, mal
terminando os estudos secundários ou ainda freqüentando as faculdades, dividem
o seu tempo entre as redações dos jornais e as confeitarias da moda. Sem a condição
de classe que o permitiria galgar posições políticas, recém-chegado de Fortaleza,
Paula Nei, ao mesmo tempo que freqüenta a Faculdade Nacional de Medicina, para
suplementar a mesada enviada pelo pai, "resolve cultivar seus pendores literários
e, nas horas vagas, trabalha em algum jornal e assim ganha pequeno ordenado que
fosse para ajudar a manter-se"l .
A pouca expansão do mercado editorial, faz da imprensa o único meio
de divulgação, de prestígio ou mesmo para adquirir algum dinheiro necessário ao
sustento. O grande ideal dos estudantes das Faculdades de Direito, em maior
escala, Medicina e até mesmo Engenharia é fazer parte dessa roda boêmia, fazendo
da pena o seu meio de vida nas principais publicações. Por outro lado, a inserção
nos jornais é o primeiro patamar, um verdadeiro trampolim, para a atividade
política ou para ocupar cargos na burocracia oficial.
~:s:::.:
cO~Il{porâneos
Natas de om cep:::'::"::: n~e-'~~~~-~~-;::n
de Paula Nei, alinha os cargos na política, na diplomacia ou
~úÍ'ocracia oficial que conseguiam a partir de sua inserção no mundo do jornalism02 .
Ao mesmo tempo que os escritores mais consagrados se adaptam aos gêneros
novos dessa imprensa, esses anônimos transformados inicialmente em repórteres,
fazem da reportagem, da entrevista, do inquérito literário, da crônica o seu meio de
vida.
Nas redações existem três grupos claramente distintos: os jovens
estudantes que ocupam cargos subalternos na hierarquia dessas empresas - sendo
inicialmente revisores, repórteres policiais, passando a seguir a repórteres
especializados -; o secretário, subsecretário e redatores; e os colaboradores. Os
que detém cargos superiores nessa hierarquia - secretários e redatores - são
geralmente os mais experientes. Já os colaboradores podem ser políticos ou
profissionais liberais gue, através dos artigos publicados, procuram alcançar a
notoriedade almejada. E comum nessas empresas a colaboração gratuita de políticos,
médicos, advogados, juizes e outros profissionais, que fazem do jornal meio de
divulgação pessoal. Não se pode esquecer também os literatos mais famosos, mas
estes merecem um capítulo a parte. A criação da figura do repórter é produto das
mudanças que ocorrem nos jornais a partir de 1880. Com a separação do trabalho
tanto a nível industrial, quanto intelectual nas redações, há a delimitação das tarefas,
criando-se uma divisão entre redatores e repórteres.
Aos repórteres cabe a apuração detalhada de informações junto aos
organismos - quase sempre oficiais - para onde são designados: há o responsável
por recolher informações na Alfândega, na Marinha e nos Ministérios. Há o que
atuava junto ao Itamaraty e o repórter policial, por onde invariavelmente começam
os que ingressam nas redações. O amplo destaque dado a este tipo de notícia
propicia o aumento do número de profissionais ligados ao setor e nada melhor para
isso do que aproveitar os jovens estudantes, na árdua tarefa de coletar as infQrmações.
"Ullla das preocupações lIIáxilllas da illlprellSa na época era o IlOticiário policial. E a
cobertura de todas asfolltes i/!forlllatil'as exigia ulIIllIílllero cOllsiderál'el de repórteres. Os
uleios de cou/IInicação eralll por delllais escassos. Nell!iul/w ell/presa jOl'llalística possuía
autOlnóveis ou carros de transporte para seus serviços. Para as reportagens urgel/tes e para
a distribuição da folha no celltro e arrabaldes usavalll bondes e, às vezes, carros de aluguel.
Os jornais destinados às bancas dos SIIblÍrbios e certos bairros lIIais distantes ialllnos
bondes e nos trells da Central e da Leopoldina ".
A visão da redação no início do século - uma grande sala onde se distribuíam
os profissionais, capitaneados pelo chefe de redação, pelo secretário e subsecretário,
ao lado dos redatores de plantão -, bem como dia-a-dia de trabalho estão presentes
nessa caracterização.
Além da ronda diária em busca de notícias através do telefone, feita
pelos repórteres de polícia, muitas vezes é necessária a presença física do jornalista
para a apuração, quer pela importância do próprio acontecimento, quer pela recusa
das autoridades em darem a informação por telefone, quer por outros motivos.
''Todas as redações de jornais possuíam o telefone oficial que somente permitia ligação com
qualquer repartiçrio pública. Além defacilitar as comullicaçiJes do celltro urbano com
Assistência, delegacias policiais e outras repartições, presta\'{{ grande serl'iço aos repórteres
para os contatos com os distrilos dos sublÍrbios longínquos e das ilhas. A mesa de ligações
esta\'{{ ligada na Delegacia do 23" Distrilo, Madureira. Das redações pedia-se 11Central do
Telégrafo ligaçrio para Madureira e daípara o distrito. Mas as I'ezes, as linhas de
Madureira, ou porque roubassem osfios ou porque estes rebentassem, fical'am sem cOlltalo
dias seguidos. Toma\'{/-se mtrio del'eras peuoso o trabalho da reportagem, que. além do
trem, linha que caminhara pé, quase sempre "3 .
Fazer carreira, por outro lado, pressupõe galgar postos na hierarquia
dessas empresas: de repórter policial passa-se a repórter especializado junto aos
diversos organismos, a repórter comercial, a repórter mundano e, finalmente, a
cronista ou a editorialista. Tornar-se responsável por uma das colunas fixas é a
grande aspiração dos jovens jornalistas e ser editorialista é um posto cobiçado por
muitos escritores, pois representa a ponte necessária para o início de uma carreira
política. "Naquele tempo, entrar para a redação do Jornal do Commercio eqLiivalia
à conquista de uma senatória, tanto era considerada a importância política e social
do jornal na imprensa carioca"~ .
Felix Pacheco revive a importância que tem para os jovens redatores e
repórteres ingressar no mais influente periódico político do Rio de Janeiro, embora
seja outro profissional a recordar o acúmulo de funções com o serviço público e a
política. "Sem nunca abandonar os meus afazeres na redação, tive outros encargos
fora daí: advogado, funcionário público, político (qual o jornalista que não o é?),
deputado e senador de meu estado, membro de delegações diplomáticas no
estrangeiro ..."; .
Contabilizando nome a nome esses profissionais da imprensa, algumas
características peculiares se sobressaem: mais de 90% têm curso superior, sendo a
maioria absoluta egressa da Faculdade de Direito, seguida pelos cursos médicos. A
Escola M iIitar e a de Engenharia ocupam a tercei ra e a quarta colocação na formação
dos jornalistas!> . Mais de 50% fazem o curso de Humanidades no Colégio Pedra 11
e há um número expressivo de oriundos de outros estados. Além disso, mais de
90% ocupam também um emprego público, quando não se dedicam à política ou à
diplomacia.
Se a maioria absoluta é formada em Direito, há outras características
~

~ :'ss~ pmfissw"is da impcensa pe":'::";:~::::,:~::-:~r::


cidades ou estados; igual porcentagem divide o seu tempo com a política ou a
diplomacia e ingressam nos jornais, em geral, com idade em torno de 20 anos.
Esses dados numéricos fornecem indicações preciosas capazes de
caracterizar as questões de posição e condição de classe e definir o habitlls do
jornalista, a pal1ir de sua posição na estrutura social e da sua própria trajetória de
vida. Jovens em sua maioria absoluta, com idade que varia entre 16 e 35 anos,
sendo que o maior número ingressa nos jornais entre 16 e 22 anos, os jornalistas
iniciam como revisores ou repórteres, acumulando com o trabalho em um ou mais
periódicos, um cargo na burocracia oficial, forma de complementar os ganhos
aferidos diariamente e, mais do que isso, de garantir uma maior estabilidade que a
imprensa não proporciona.
"Entrei para a revisrio de 11111 jornal COIIIo propósito de ter recursos para ser IlIn dia
engenheiro civil e I'iver no mato constmindo estradas de ferro. A bondade de Rodolpho
Dali/as e Henrique Vil/enelll'e fez Inudar o mlllo da nIinha I'ida ao challwrelll-/ne para a
redação do lomal do Brasil elll 1891 e para o secretariado em 1892. Fiquei homem de
únprensa e a ela del'o o pOIlCOque valho e lIIuitas das lIIinhas alllizades que seio o consolo da
minha velhice e o culto da minha salldade".
Na verdade, repórteres, redatores e secrelários de redação alternam-se
de ano para ano nas principais publicações da cidade. E essa evidente instabilidade
é ainda maior quando se ocupa um cargo inferior na hierarquia. A maior aspiração
continua sendo alcançar um posto, qualquer que seja, na redação do Jornal do
Commercio. Muitas vezes, entretanto, a repentina ascensão leva o jovem acadêmico
a enveredar pelo caminho do jornalismo, abandonando a profissão na qual fizera o
curso superior, como acontece com Antenor de Roure, cronista da Câmara, no
Jornal do Commercio, após 1904. Nas suas memórias, o jornalista relembra o
anseio dos profissionais de imprensa em entrar para o jornal de maior prestígio
político do país e os caminhos que é, por vezes, necessário percorrer para conseguir
esse intento. "O sonho dourado da rapaziada do meu tempo era entrar para o
Jornal do Commercio e fui bastante feliz em consegui-Io, a chamado, depois da
publicação implorada de alguns al1igos de colaboração. A minha vaidade de moço
estava satisfeita") .
Alguns dirigentes especializam-se na tarefa de facilitar a ascensão na
vida pública dos jornalistas, valendo-se da prerrogativa para diminuir suas
remunerações. Esse é o caso, segundo depoimento da época, de João Lage.
"Grosseiro em regra, tinha raspos espolltâneos que o tomnl'am sem pátria aos cOInpllllheiros
que lhe douravam as pílulas com que engordava os políticos provincianos. Prestigia\'O-os.
Pagava-lhes pouco, IIlasfacilitCII'a-lhes a ascensão na vida pública. Para todos arranjam
empregos lalltos, sinecllras opíparas no funcionalismo do Estado. Militas chegaram à
Câmara e ao Senado pela meio desse mecenas de arribaçelo"8.
João Guedes de Mello, presidente da Associação Brasileira de Imprensa,
entre 1917 e 1920, por exemplo, começa sua carreira como redator do Diário do
Comércio do Rio de Janeiro. A seguir, transfere-se para o Jornal do Brasil, A
Notícia, Cidade do Rio, A Tribuna. Isso num período de apenas nove anos, de
1891 a 1900. Neste ano ingressa, ainda como redator, em O Paiz, ficando nesse
cargo por cinco anos. Em 1905, aparentemente, troca o seu posto por um inferior
na hierarquia da profissão, vindo a ser repórter policial do Jornal do Commercio.
As vezes a carreira jornalística é mais rápida. Saul de Gusmão consegue
o cargo de subsecretário do Jornal do Commercio, pouco antes de concluir o
curso de Direito, no Rio de Janeiro, em 1916. Tendo começado como revisor de A
Notícia, em 1910, passa a ser repórter policial no ano seguinte e subsecretário em
1914. Dois anos depois transfere-se como repórter para o Jornal do Commercio,
assumindo a subsecretária três anos mais tarde. Esses dois exemplos mostram uma
trajetória profissional comum: o jovem acadêmico que complementa sua
subsistência, dá vasão a sua ânsia literária ou quer adquirir prestígio escrevendo
nos jornais e revistas da cidade, transferindo-se de um para outro em função não só
a remuneração, mas da importância do próprio periódico. Bilac, que fez da imprensa
o seu principal meio de vida, escreve no prefácio de Ironia e Piedade.
"Hoje nrio iJájornal qlle nrio esteja abel'fO à atividade dos moços. O talento já nriofica à
porta de chapéll na IllriO,triste e encolhido, I'exado e em farrapos, como mendigo tímido que
nelll sabe cOlno h(fl'erá de pedir a esmola. A minha geraçrio se nrio teve Olltro mérito, teve este
qlle nelofoi peqlleno: desbravou o call1inllO,fez da imprensa literária Ulllaprofisselo
remunerada, impôs o trabalho "'.
Na época, o jornalismo passa por sua mais profunda fase de
modernização, cuja primeira etapa se inicia com Ferl"eira de Araújo na Gazeta de
Notícias e com Patrocínio na Cidade do Rio. Entretanto, conserva-se o sentido
doutrinário da imprensa e a Gazeta se caracteriza, sobretudo, por ter valorizado
ao extremo a literatura. Em final da década de 1880, a Gazeta de Notícias é a folha
que maior espaço abre à colaboração literária no Brasil e a que melhor paga os
escritores.
De 1900 em diante, os jornais tomam um caráter menos doutrinário,
sacrificando os artigos em favor do noticiário e da reportagem. Facultando trabalho
aos intelectuais, aos escritores, os jornais pedem cada vez menos colaboração
literária - crônicas, contos e versos - e cada vez mais reportagem, noticiário, trabalho
de redação. Jovens acadêmicos, com pretensões literárias passam a fazer da
reportagem policial, dos "suei tos" que escrevem anonimamente, ao lado de artigos
assinados publicados na primeira página, um meio de subsistência e, principalmente,
de prestígio. Escrever na imprensa possibilita se tornar conhecido e reconhecido,
alcançando distinção na sociedade.
Outra característica desses jornalistas é o fato de serem, em sua quase
totalidade, egressos de outros estados. A maioria das vezes filhos de famílias com
condição financeira que podem enviá-Ios à Capital para estudar e assim se tornarem
bacharéis, esses jovens com pretensão literária vêem nos jornais um meio de exercer
essa prática e a sua própria boêmia. O passo seguinte é, através da indicação de
algum nome influente, conseguir ultrapassar as fronteiras da redação, alcançando
um posto nessas publicações.
Dos 84 jornalistas mais importantes do período, 49 são procedentes de
outros Estados ou de outras cidades, que não a capital da República. Vinte e um
nascem no Rio de Janeiro e quatro emigram de outros países. Nessa compilação
não identificamos a origem de dez jornalistas. Com o sfafas e o poder que a
profissão confere é mais fácil conseguir um posto elevado na burocracia oficial.
Assim, os médicos jornalistas são concomitantemente funcionários da Prefeitura,
da Diretoria de Higiene, do Hospício dos Alienados e de outras instituições. Os
advogados e engenheiros são inicialmente fiscais da Alfândega, do Tesouro,
funcionários ministeriais, do Senado ou da Câmara, Chefe de Seção nas diversas
diretorias estaduais, entre dezenas de outras ocupações. Com o passar do tempo
tornam-se altos funcionários públicos, políticos ou diplomatas. Raros são os que
exercem apenas o jornalismo e mais raro ainda os que se dedicam ao mesmo tempo
à profissão na qual se formam. No mesmo quadro, de um total de 84 jornalistas,
identificamos apenas 12 que trabalham exclusivamente na imprensa. O número
maior fica com aqueles que dividem a redação com um emprego público (45). A
seguir vêem os que exercem alguma atividade política - 9 - e logo abaixo aqueles que
se dedicam às profissões liberais: 5. Apenas não foi possível identificar outros
empregos de oito jornalistas.
Independentemente de sua condição de classe, esses jovens intelectuais
acadêmicos ocupam uma posição no interior da estrutura social que definirá o
próprio habitas de classe do grupo: são jornalistas com o poder de nomeação que
a profissão confere. Para ocupar essa posição é fundamental estar inserido no
próprio academicismo, tendo adquirido a visão de mundo, o comportamento e as
prerrogativas que se espera de um bacharel. Essa característica dá a eles o material
simbólico necessário para veicular o pensamento da classe dominante. Por outro
lado, quando não fazem parte da classe dirigente, por origem ou condição, os
jornalistas são legitimados intelectualmente para ocupar essa posição no campo
intelectual pelas relações objetivas que estabelecem, cujo aval inicial é dado por
sua inserção na academia. A medida que o campo intelectual amplia a sua autonomia,
os jornalistas ingressam no jogo de conflitos junto à classe dominante, o que não
significa, em nenhum instante, se afastar dos interesses desse grupo.
As escolas, no caso as faculdades de Direito, Engenharia, Medicina e
outras, servem para consagrar a "distinção", separando os que recebem a sua
cultura do restante da sociedade, dando a eles, ao mesmo tempo, o capital simbólico
necessário para ser porta-voz, perpetuando a própria ordem social. Para Bourdieu,
a escola é apenas um dos agentes de socialização, mas todos os traços que compõem
a personalidade intelectual dos membros cultos da sociedade são reforçados ou
constituídos pelo sistema de ensino. Esse sistema pode modelar discentes e docentes
pelo conteúdo e pelos métodos pelos quais se efetuam a sua transmissão.
A expansão dos detentores de títulos escolares mais prestigiados entre
os membros da classe dirigente pode significar a necessidade de evocar a escola
para legitimar a transmissão do poder e dos privilégios. Os mecanismos culturais
e escolares reforçam ou substituem os tradicionais, como a transmissão hereditária
de um capital econômico, de um nome de família, de um legado de relações sociais'lJ.

No caso dos jornalistas, a condição de ser hereditariamente ligado a um


profissional do setor facilita o ingresso nos jornais, uma vez que a admissão se faz
invariavelmente por apresentações pessoais: o jovem acadêmico torna-se repórter
levado pelas mãos de um parente próximo ou de um conhecido com prestígio
político e/ou alguma relação com um dirigente dessas publicações. A paItir dos
próprios conhecimentos travados nos jornais pode ser convidado para assumir
postos em outras publicações.
Júlio Barbosa, recordando como ingressara no jornalismo, enfatiza que
fora recomendado em carta por Antônio Pereira Leitão, seu parente próximo,
então redator-chefe do Jornal do Commercio, a Belarmino Carneiro de O Paiz.
É dessa forma que entra para a revisão daquele jornal. Também por intermédio de
Antônio Leitão transfere-se, mais tarde, da revisão de A Notícia, onde também
passa a trabalhar, para a redação,fazendo algumas reportagens especiais II .
O trecho de uma carta de José Carlos Rodrigues a Felix Pacheco mostra
o quanto inusitado é começar a trabalhar em qualquer jornal sem o pedido de
alguém. Referindo-se a José Barbosa, diz o proprietário do Jornal do Commercio:
"O meu colega entrou para ojornal sem pedido de ninguém e devido apenas ao seu próprio
mérito. Quanlo acabou suajolha, disse-me em con\'ersa o índio do Brasil que quem ajazia
//,:."", j,""" "wd"," , tmb,lh,dm "" ,I, fi::::':::': d'::'::::-I:::'-"~:':O
""ti,
me 1/0 espírito e procurei logo depois conhecê-Ia e daí a sua elltrada /10 jomal".'~

O que chama atenção na carta é a forma como, de fato, o pedido fora


feito, ainda que não explicitamente, por um outro jornalista, ao comentar a ituação
de José Barbosa. Se as relações pessoais - vinculadas a sua condição de classe - são
fundamentais para determinar a ocupação de um lugar no jornalismo, o diploma de
um curso superior dá o capital simbólico indispensável. Até mesmo os que não
possuem uma posição dominante, se aquinhoados com o grau de doutor, podem se
aventurar a fazer parte desse seleto grupo de homens que faz do jornalismo o
"ofício de orientar o público, sempre sequioso de novidades". "A minha situação
no Rio estava garantida. Obteria um emprego. Um dia pelos outros iria as aulas, e
todo o fim de ano, durante seis, faria os exames, ao fim dos quais seria doutor!"ll .
O texto ficcional do escritor e repórter do Correio da Manhã e da
Gazeta de Notícias mostra com crueza o simbolismo e o sfofus do diploma
superior na sociedade brasileira e particulariza o comportamento desses jovens
que dividem seu tempo entre a academia e um emprego, normalmente nos periódicos
da cidade.

Sendo a Faculdade de Direito, na República Velha, a principal instância


de produção ideológica, concentrando inúmeras funções políticas e culturais, não
chega a causar espanto o fato de a maioria absoluta dos jornalistas ser egressa
dessas academias. Com uma função claramente hegemônica, devendo perpetuar,
divulgar e possibilitar a reprodução das idéias dominantes, esses profissionais da
imprensa cumprem nos jornais a tarefa para qual já haviam sido treinados nas
Faculdades de Direito. A própria imagem mitificada que se tem da profissão -
vendo o jornal como uma tribuna do direito e da justiça - faz com que a prática
jornalística seja complemento do próprio curso. O jovem bacharel, ansioso por
participar do mundo intelectual e político, vê no jornalismo o lugar natural para
desenvolver os seus dotes literários e a função para qual fora treinado.
Mapeando a trajetória acadêmica não só dos dirigentes, como também de
outros jornalistas que ocupam cargos inferiores na hierarquia dessas publicações,
de um total de 44 jornalistas oriundos das Faculdades de Direito, 27 são formados
pelo Rio de Janeiro e sete por São Paulo. Nove outros concluem o curso em Recife
e apenas um no exterior (Coimbra). Antes de freqüentar o curso superior de
Direito, a maioria absoluta conclui o curso de Humanidades no Colégio Pedro 11, o
que influencia a sua formação profissional, a sua maneira de pensar e as suas
relações sociais. As noções comportamentais e disciplinares, enfatizadas
posteriormente no recinto da Academia, são introduzidas no dia-a-dia desses homens
ainda quando muito jovens, ao freqüentarem o colégio inaugurado em 1837.
Incorporando os preceitos da educação européia, onde a submissão à autoridade é
um verdadeiro axioma, os rapazes do Pedro 11vestem, em meados do século XIX,
um traje formal de cavalheiro e estão submetidos a uma rígida disciplina. Uma
sineta marca a hora exata da entrada e da saída do colégio, o início e o fim de cada
aula, o quarto de hora de recreio, habituando os alunos à disciplina, à exatidão e à
pontualidade. Todos os horários, o comportamento e as entradas e saídas, bem
como todas as atividades, são controlados.
O ensino, enfatizando as humanidades clássicas, fora inspirado na
educação francesa, priorizando línguas e literatura antiga e moderna, filosofia,
história, retórica e religião, em detrimento da matemática e das ciências naturais. O
currículo contempla cinco anos para o estudo do latim, quatro para a geografia, três
de francês, inglês, grego e matemática, dois de filosofia e história medieval e um de
português, leitura e análise, história antiga européia, história romana, história
sagrada, química e física experimentais, história moderna, gramática filosófica e
retórica, história e geografia do Brasil, história natural, poesia e literatura e história
natural experimental2.
O diploma garante a admissão em qualquer curso superior, o que faz dele
a via preferencial de acesso a este ensino, no Império. Com as transformações que
sofrem os exames preparatórios, a parti r de 185 I, a procura pelas escolas
secundárias declinou. Muitos alunos do colégio abandonam o curso antes do término,
porque já haviam conseguido aprovação naqueles exames1 .
Assim, antes de ingressar nas Academias, os futuros jornalistas fazem
sua formação básica, preferencialmente, no colégio secundário mais importante,
aprendendo francês e retórica, com ênfase, ainda, ao ensino de língua e de literatura.
O gosto pela escrita é quase que uma conseqüência natural. E mesmo aqueles que
não concluem a academia ou que não chegam a ela, fazem do ensinamento ministrado
no Pedro II a base para o seu trabalho profissional.
Após esse contato inicial com o estudo das humanidades clássicas, os
jovens jornalistas dividem-se entre as escolas de Direito, Medicina e Engenharia,
as principais instâncias de formação de quadros para o aparelho político e
administrativo no século passad04• A passagem pelas academias Ihes assegura
uma posição social superior, o que neutraliza suas críticas à ordem tradicional e
impede que suas divergências se transformem em conflito. Essa marca orientada
pelo próprio ensino será evidente na formação do habirus do jornalista, que fazendo
do jornal a sua própria tribuna, se atribui a função de árbitro entre as partes.
Se os cursos de medicina e engenharia são importantes na formação das
elites, a formação jurídica é a preferida por quem pretende se dedicar às letras,
como crítico ou como escritores. O jornalismo funciona como primeira porta para
a carreira de escritor, mas, muitas vezes, as entradas subseqüentes não podem ser
alcançadas e o bacharel perpetua-se na profissão, dividindo-a, como vimos
anteriormente, com um cargo na burocracia oficial. Objetivando, desde o início,
formar não apenas "magistrados e advogados, mas dignos deputados e senadores
e outros que pudessem ocupar lugares diplomáticos e mais empregados do Estado",
os cursos jurídicos, que inicialmente têm uma duração de cinco anos, são
transformados, em 1854, em Faculdades de Direito.
O currículo do ensino de ciências jurídicas contempla não apenas as
disciplinas ligadas diretamente aos diversos campos do direito, mas outras que
contribuem para formar profissionais para ocupar cargos nos quadros burocráticos,
na política, na diplomacia, enfim, se constituindo nUlna elite intelectual.

No primeiro ano, o aluno tem cadeiras como direito natural, direito


público universal, análise da constituição do Império, direito romano. No segundo,
além das três primeiras matérias, é incluído o direito das gentes, diplomacia e
direito eclesiástico. No terceiro e quarto anos, o direito civil pátrio com análise e
comparação do direito romano, o direito criminal, incluindo o militar, o direito
marítimo e o comercial são contemplados. E, finalmente, no último ano, além da
hennenêutica jurídica, processo civil e criminal e prática forense, há aulas sobre
economia política e direito administrativo.
Em 1871, tanto a Faculdade de São Paulo quanto a de Reci fe incluem nos
seus currículos duas cadeiras de gramática e uma de língua nacional. Deseja-se,
cada vez mais, um profissional que saiba manejar com perfeição a linguagem e a
escritas.
Além dessas disciplinas que possibilitam o acesso a conhecimentos
capazes de formar um intelectual apto a ocupar cargos dirigentes, não só na
administração, na diplomacia, mas também na política, as Faculdades de Direito,
como as demais, controlam também o comportamento, como se esse fosse requisito
imprescindível para o próprio aprendizado.
Assim, o estudante deve permanecer em silêncio nas salas de aula, usar
palavras de respeito para com o lente, além de ser proibido uma série de
comportamentos, como fumar, portar armas ou ter o chapéu na cabeça. Com essas
normas detalhadas no decreto 1.568, de 24 de fevereiro de 1855, criando um
regulamento específico para as academias, procura-se formar não apenas um cidadão
apto a exercer funções dirigentes, mas com atitudes adequadas a esses papéisó•
As reformas por que passam o ensino jurídico no país, desde 1879, têm
como função básica aproximá-Io de conteúdos capazes de formar um advogado
com conhecimentos amplos, de forma a inseri-Io automaticamente em postos
chaves da administração. Forma-se cada vez mais um profissional com saberes
econômicos, financeiros, contábeis e de ciências sociais, verdadeiros intelectuais
orgânicos da classe dominante, capazes de atuar em amplas áreas da burocracia
estadual, na política, na diplomacia e, também, na imprensa.
Com a reforma Franco Sá (1879), nos cursos de ciências jurídicas e
sociais, de cinco anos, introduz-se as cadeiras de administração, economia política,
higiene pública, ciência das finanças e contabilidade do Estado. Doze anos mais
tarde, a reforma Beijamin Constant cria em cada Faculdade três cursos: o de ciências
jurídicas, o de ciências sociais e o de notoriado.
A influência positivista na política educacional, marcada pela atuação de
Beijamin Constant, leva ao surgimento de escolas superiores livres, empreendidas
por particulares, como a Faculdade Livre de Ciências Jurídicas e Sociais do Rio de
Janeiro, fundada em 1891, pelo redator chefe do Jornal do Brasil, Femando
Mendes de Almeida, e a Faculdade Livre de Direito da Capital Federal criada no
mesmo ano e dirigida pelo diretor proprietário do Correio Paulista no, Leôncio
Carvalho) .
O curso de Direito é um verdadeiro curso de cultura geral. O bacharel
está apto, concluído os cinco anos, a ser um burocrata em qualquer organismo do
Estado, já que a interpretação de leis e elaboração de normas jurídicas, como
portarias, avisos e proclamações, constituem o principal meio de atuação da
burocracia civil. Mas não é só O título de bacharel que dá aos seus portadores
status especial na sociedade: o anel de grau, o vestuário e a fala também se constituem
em signos dessa nova condição.
No caso do grupo que analisamos, as idéias dominantes no cenário do
jornalismo carioca são as oriundas das Faculdades de Direito do Rio de Janeiro, de
onde vêm o maior número de jornalistas e essas escolas mesclam o ensinamento
"científico" de Recife com as aspirações políticas de São Paulo.
A década de 1870, assinala a entrada no país de um novo ideário positivo-
evolucionista onde os modelos raciais de análise cumprem papel fundamental. E as
faculdades de Direito vão ajudar a compor, a partir de então, um panorama intelectual
aindamLificadO EnquantoSãoPaulo::~~~::'2m:::;~:;~:e~:~s:-~::i::
baseia-i'e no social darwinismo de Haeckel e Spencer.
A partir de 1875, a Faculdade de Direito de Reci fe passa a sofrer o
prttd0mínio de idéias de uma nova geração, em que Tobias Barreto e Silvio Romero
si distinguem, adotando o evolucionismo de filósofos alemães como Haeckel e
uckle e autores como Spencer, Darwin, Le Play, Le Bon e Gobineau, como
centrais na elaboração de seu pensamento. Assim, além do evolucionismo social, a
escola determinista geográfica foi fundamental para a concepção do pensamento da
Escola de Recife, que vê o direito como uma noção científica, aliado à biologia
evolutiva, às ciências naturais e a uma antropologia física deterministaX •
Na verdade esse "bando de idéias novas", que domina as Arcadas do
Recife, encontra conjunta favorável para a sua disseminação a partir das reformas
por que passa essa academia após 1854. Enquanto naquele ano, a reforma acadêmica
visa, sobretudo, disciplinar e conter a desobediência que impera em Olinda, nas
décadas seguintes destacam-se as sucessivas propostas de alteração de currículo.
A reforma de 1879, estabelece o "ensino livre", abole a obrigatoriedade de freqüência
e divide o curso em duas seções: ciências jurídicas e ciências sociais.
No primeiro, são ministradas noções de direito natural, romano,
constitucional, civil, criminal, comercial, legal, teoria e prática do processo. Já no
de ciências sociais há cadeiras de direito natural, público, universal, constitucional,
eclesiástico, das gentes, administrativo e diplomacia, história dos tratados, ciência
da administração, higiene pública, economia e política.
Busca-se dar ao direito "estatuto científico", afastando-o das iniluências
rei igiosas e metafísicas, até então dom inantes, bem como se di vide o curso com a
clara intenção de formar dois profissionais, ainda que semelhantes, mas com
especificidades: um para ser, em primeiro lugar, um burocrata-advogado e outro
para ser, sobretudo, um burocrata-político. O curso de ciências sociais elege, como
fundamental, disciplinas que, em princípio, não guardam nenhuma relação com o
direito, como higiene pública e ciência da administração, mas que são importantes
na formação dos futuros empregados da burocracia estatal. Por outro lado, matérias
como economia e política aprofundam os horizontes de conhecimento desses
homens que são formados para ocupar funções de natureza pol ítica, onde o
jornalismo também se insere.
Construindo o direito como uma noção científica, onde a disciplina alia-
se à biologia evolutiva, às ciências naturais e a uma antropologia física e determinista,
a nova geração, que assume as principais cadeiras ela faculdade, tinha por objetivo
expurgar antigos padrões, sempre em nome da civilização. Um novo jargão
evolucionista entra em cena, principalmente depois das leituras que Tobias Barreto
fez dos filósofos alemães Haeckel e Buckle e da difusão de autores como Spencer,
Darwin, Littré, Le Play, Le Bon e Gobineau.
A insistência na cientificidade e na especificidade do direito assume a
liderança retórica da Escola do Recife. Longe da metafísica, distantes do
subjetivismo, esses intelectuais acreditam estarem construindo não apenas novas
teorias, mas sobretudo uma nova nação. Pela afinnação do direito e pela negação
das demais disciplinas essa nova geração, liderada inicialmente por Tobias Barreto
e, posteriormente, por Silvio Romero, se auto define como arauto de um novo
tempo, como uma elite verdadeiramente escolhidaY•
Caracterizando as diferenças entre as faculdades de Reci fe e São Paulo,
Lilia Moritz Schwarcz chama ainda a atenção não apenas para os detalhes cotidianos
que diferenciam os dois centros de estudos, mas também para os grandes contrastes
teóricos.
Para a antropóloga, enquanto Recife se prepara para produzir
doutrinadores, "homens de ciência", no sentido que a época Ihes confere, São
Paulo é responsável pela formação dos grandes políticos e burocratas de Estado.
Apesar das divergências intelectuais há, segundo ela, um certo projeto de inserção,
comum, ainda que diverso. De Recife vem a teoria, os novos modelos e de São
Paulo partem as práticas políticas convertidas em leis e medidas'll.
A idealização da profissão, expressa na Revista da Faculdade de Direito
de São Paulo, caracteriza o advogado como um eleito, cuja função é ser além de
advogados e juizes, diplomatas, legisladores, administradores públicos. Somente
como homens de Direito, podem ser também homens de Estado.
Como homens de Estado, sua missão é legislar e também orientar a
população. Os professores fazem da redação em jornais diários uma prática e os
jovens alunos, inicialmente nas revistas e jornais acadêmicos, exercitam uma
atividade para a qual estão destinados.
A função social da prática do Direito é cada vez mais identifícada com a
imparcialidade, como responsável pelo caminho que retiraria o país da barbárie e
o encaminharia para a civilização. Outra característica é a identificação da profissão
com a política, vinculando o projeto profissional a um programa missionário.
Estudando especificamente a Faculdade de Direito de São Paulo, Sérgio
Adorno destaca o caráter autodidata de seu ensino, ao mesmo tempo em que
evidencia o ecletismo de sua produção, o que leva os jovens acadêmicos à mi Iitância
política, ao jornalismo, à literatura, à advocacia e aos cargos públicos.
No mesmo estudo, Adorno chama a atenção para o fato de não ser
apenas a estrutura curric "tár a influenciar as idéias dos estudantes, tendo grande
peso, na divulgação d se ideário, a imprensa acadêmica. Assim, para ele, é também
ao jornalismo g,v deve ser imputada a responsabilidade pela formação jurídico-
polític~dOS tíêadêmicos paulistas, decisiva no processo de homogeneização da
elite. C cteriza ainda o fato de vários acadêmicos virem a se tornar notáveis
'orn 11•
I'stas

7 Mas esses jornalistas raramente se dedicam exclusivamente à atividade


nas redações. O prestígio da palavra escrita, das construções retóricas e rebuscadas,
absorvidas como uma espécie de lei nas Arcadas do Direito, dão a eles condições
indispensáveis para ocupar posições de prestígio junto ao poder e para ser porta-
voz dessas elites. Como enfatiza Sérgio Buarque de Holanda, ainda que essa "praga
do bacharelismo" não seja uma exclusividade brasileira, observa-se no país uma
tendência a exaltar aqueles que possuem o título de doutor. O mesmo título que
fornece as condições indispensáveis para que ocupem "altos postos e cargos
rentosos" .
Explicando essa inclinação para as profissões liberais, notadamente o
Direito, em função da própria formação colonial e agrária e relacionada com a
transição do domínio rural para a vida urbana, o autor destaca também o fato de o
prestígio do bacharelismo ser herdado, em certa medida, da própria tradição
portuguesal) .
Influenciada por algumas idéias dominantes no cenário do bacharelismo
de Recife e pela participação política existente nas arcadas paulistas, a Faculdade
de Ciências Jurídicas e Sociais do Rio de Janeiro, criada em 1891 e onde se formam
dezenas de jornalistas que trabalham nos diários mais importantes da cidade, tem
em seus quadros catedráticos oriundos de Recife e outros que começam sua vida
acadêmica em São Paulo
Entre os seus professores figuram o nacionalista, ex-deputado pelo
partido liberal, formado por São Paulo, em 1876, Conde Afonso Celso; intelectuais
como Silvio Romero, que trazem para o Rio parte do ideário disseminado no curso
do Recife; o jornal ista Pedro Leão Veloso Fi lho, redator chefe do Correio da
Manhã, a partir de 1901, formado em Recife, em 1877; o discípulo de Tobias
Barreto, Souza Bandeira, também egresso de Recife; Fernando Mendes de Almeida
e seu irmão Cândido Mendes, o primeiro formado por São Paulo e o segundo, um
monarquista ferrenho, bacharel por Recife; o spenceniano José Higino, entre outros.
Na verdade, a composição do quadro de professores divide
harmoniosamente os originários da faculdade nordestina, com aqueles formados
em São Paulo. Entre os 15 professores que começam com a fundação da Faculdade,
sete são formados por São Paulo, sete por Recife, além de um - Antônio Maria
Teixeira, professor de Medicina Legal - formado, em Medicina, pelo Rio de Janeiro.
O víeis de participação política entre os estudantes do Rio de Janeiro
também é claro desde os primeiros tempos, quer por sua ligação ao jornalismo
acadêmico, quer através de grêmios que fundaram. Em 1895, os estudantes criam a
Revista Jurídica e, no ano seguinte, aparece a sua publicação mais famosa - A
Época - e onde se iniciam estudantes que mais tarde ocupariam importantes funções
na imprensa diária, como Renato de Toledo Lopes, fundador de O Jornal, Vítor
Vianna, redator chefe do Jornal do Commercio, Veloso Neto, redator do mesmo
periódico e, posteriormente, diplomatal~ . No ano seguinte, criam o Grêmio Literário,
dirigido inicialmente por Maurício Lacerda e, a partir de 1909, por Antenor
Nascente.
No que se refere, especificamente, ao corpo docente, tal como em São
Paulo, os lentes dividem o seu tempo na Faculdade com outras atividades,
notadamente a política e o jornalismo: a maioria absoluta ocupa ou havia ocupado
cargos no executivo, como ministros, presidentes de província, ou no legislativo,
como deputados e senadores. Há também a absorção de alguns ex-alunos no corpo
docente da faculdade, mesmo recém-formados, ao lado de professores consagrados
em Recife ou em São Paulo e que são recrutados para as salas de aula.
Há, pois, como professores, mais do que alguns nomes extremamente
significativos no cenário intelectual e político brasileiro do final do século XIX e
início do XX. Estão juntos, ministrando ensinamentos aos acadêmicos, teóricos
como Silvio Romero, Souza Bandeira, José Higino, Afonso Celso, entre outros;
políticos como Augusto Olímpio, Paulino Souza, Viriato de Freitas, Capistrano
Bandeira de Mello; e dirigentes de jornais influentes, como Fernando Mendes de
Almeida, Leão Veloso Filho e Cândido Mendes. O que merece destaque é o fato de
essa faculdade reunir, entre políticos, jornalistas e teóricos, a elite intelectual que
moldava o pensamento dominante no início da República.
Observa-se que 48% dos professores são também políticos, sendo
Deputados, Senadores, Presidentes de Província ou Ministros. Esse total é ainda
mais expressivo, quando se soma aos 15 políticos mais dez, que dividem o seu
tempo entre a Faculdade e altos cargos públicos. Dos 36 nomes arrolados como
professores, 35 exercem ou haviam exercido uma função de importância no
Legislativo, no Executivo ou no Judiciário. Entre esses, figuram seis ex-presidentes
de Províncias, um Prefeito do Distrito Federal, dois ministros de estado.
Formando os estudantes de Direito do Rio de Janeiro está, pois,
fundamentalmente, a elite política do país, os homens de Estado e os homens de
Governo, que moldam, assim, não apenas advogados, mas os continuadores de seu
papel na direção da nação.
Inicialmente na Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais funcionam três
cursos: o de Ciências Jurídicas, ministrado em quatro anos, o de Ciências Sociais,
em três, e o de Notoriado, em apenas dois anos. Em 1895, entretanto, há a unificação
dos cursos de Direito e é restabelecido o período de cinco anos, como o mínimo
indispensável.
No primeiro ano, os alunos do curso de ciências jurídicas estudam
Filosofia e História de Direito, com o Conde Afonso Celso, e Direito Público e
Constitucional, com o conselheiro Augusto Olímpio Gomes de Castro. No ano
seguinte, Bulhões de Carvalho ministra Direito Romano; Antônio Coelho Rodrigues,
Manoel do Nascimento Machado Portela e José da Silva Costa ensinam Direito
Civil. João Batista Pereira é o responsável por Direito Criminal. Na terceira série,
os alunos têm noções de Medicina Legal, Direito Civil e Direito Comercial. E na
quarta e última, História do Direito Natural, com Fernando Mendes de Almeida,
Processo Civil, Criminal e Comercial, Noções de Economia Política e Direito
Administrativo além de Prática Forense. Já os inscritos no curso de ciências sociais
têm as seguintes cadeiras: Filosofia e História do Direito, Direito Público e
Constitucional, Direito das Gentes, Diplomacia e História dos Tratados, Economia
Política, Higiene Pública, Ciência da Administração e Direito Administrativo, Ciência
das Finanças e Contabilidade do Estado, Legislação Comparada sobre o Direito
Privado.
Percebe-se que embora o segundo curso seja muito mais voltado para a
formação de profissionais que exerceriam funções de comando na burocracia estatal
ou na diplomacia, também o curso de ciências jurídicas fornece conhecimentos
mais abrangentes. O curso de Direito forma um profissional para atuar mais junto
ao Estado, em diversas funções, notadamente as de comando, do que para ser
propriamente um advogado.
A existência de cadeiras no curso de ciências sociais como Ciência das
Finanças e Contabilidade do Estado mostra a ênfase dada à formação de quadros
administrativos. Assim, os alunos têm ao lado de matérias específicas, outras que
privilegiam o estudo da Economia, com enfoque político, e a Contabilidade, também
direcionada para as contas do Estado.
Em relação ao currículo do curso de ciências jurídicas pode-se perceber a
importância maior dada ao Direito Criminal e Direito Comercial. Através da
diversidade teórica dos lentes, dessa última disciplina, procura-se aumentar o
campo de atuação dos futuros bacharéis.
São professores da cadeira, um profissional com larga experiência em
administração de jornal (Leão Veloso Filho), um ex-presidente de Província e,
portanto, com bagagem de atuação no executivo (Antônio Coelho Rodrigues), um
literato (Inglês de Souza), além de Paulino de Souza, que é fundamentalmente
político.
Não seria, pois, exagero supor que ao promover essa diversificação, a
Faculdade procura abranger todos os níveis possíveis da própria administração,
fornecendo subsídios para que o futuro bacharel atue em posições dirigentes, tanto
nos organismos governamentais, como na iniciativa privada.
Se esse é o panorama em relação ao Direito Comercial, no que se refere
ao Direito Criminal há uma maior concentração de políticos entre os lentes, sendo
a exceção Cândido Mendes de Almeida, gerente e administrador do Jornal do
Brasil, com amplos conhecimentos na moderna ciência econômica. Um ano após
a sua fundação matriculam-se 78 novos estudantes. Aos exames finais, ainda naquele
ano, concorrem 50 alunos, sendo 34 aprovados. O nome de jornalistas, famosos ou
não no Rio de Janeiro, se sucedem nos anos seguintes.
Edmundo Bittencourt, o fundador do Correio da Manhã, se forma em
1895. Dois anos depois, Freitas Jr. recebe o título de bacharel em ciências jurídicas.
Em 1898, dois novos jornalistas colam grau: João Câncio Nunes de Matos e
Otávio Kelly. No ano seguinte, entre os quatro novos bacharéis, figura o fundador
da Revista da Semana, Álvaro de Teffé. Álvaro Sá Castro de Menezes, redator
do Jornal do Commercio, recebe o diploma em 1905 e Pedro Leão Veloso Neto,
filho de Leão Veloso Filho, redator do mesmo jornal e, posteriormente, diplomata,
torna-se bacharel um ano depois. Otávio do Nascimento Brito, redator do Jornal
do Commercio e, também mais tarde, diplomata, se forma em 1909. Gustavo
Barroso, jornalista, secretário de estado e deputado federal, recebe o diploma em
1911. Heitor Nóbrega Beltrão, futuro secretário da AB!, cola grau um ano depois,
junto com Renato de Toledo Lopes, o fundador de O Jornal. Quatro anos mais
tarde é a vez de Vítor Vianna, futuro redator chefe do Jornal do Commercio.

Esse panorama da Faculdade Livre de Ciências Jurídicas do Rio de Janeiro


não se diferencia, em essência, do que ocorria na Faculdade Livre de Direito da
Capital Federal, também fundada em 1891.
A grande especificidade em relação a sua concorrente é, sem dúvida, a
maior influência que o ensino paulista exerce, quer no que se refere aos seus lentes,
quer no que diz respeito à filosofia do curso.
Apregoando que a "freqüência seria livre, os lentes respeitáveis, os exames
rigorosos e os métodos recentes", a Faculdade Livre de Direito da Capital Federal
tem como seu primeiro diretor o político paulista, ex-professor e ex-diretor da
Faculdade de São Paulo, Leôncio Carvalho'5 .
Dessa forma, os seus professores são oriundos em sua quase total idade
da faculdade paulista, sendo que, tal como os que ministram aulas na escola fundada
por Fernando Mendes de Almeida, ocupam ou haviam ocupado altos cargos,
notadamente na esfera política. Entre os lentes, os nomes mais expressivos, pela
inlluência intelectual que exercem sobre os alunos ou pela sua impol1ância política
e administrativa, figuram: França Carvalho (redator chefe de A Reforma, deputado),
Benedito Valadares (Diretor de Jnstrução Pública, político), Ubaldino do Amaral
(Prefeito do Distrito Federal, Diretor do Banco da República, senador), Plínio
Guedes (redator de A República, A Reação, Secretário da Justiça), Demerval da
Fonseca Uornalista, diretor da Gazeta de Notícias), Nilo Peçanha (deputado,
Governador do Estado do Rio, Presidente da República), Serzedelo Correia
(ministro, deputado, Prefeito DF), Graça Aranha (diplomata e escritor), Sancho
Barros Pimentel (sócio de Rui Barbosa), Rodrigo Otávio Uornalista, secretário da
Presidência da República), Viveiros de Castro (deputado, Presidente de Província),
João Pedro Dias Vieira (Ministro do STF, senador), Antônio Sá Pereira Leite
Uornalista, político) e Esmeraldino Bandeira (deputado e Ministro da .lu ,tiça),
Dos 43 professores da Faculdade, no período 1891-1900, 2S são formados
em Direito por São Paulo e 13 por Recife, Os demais são bacharéis de outros
cursos (da própria Faculdade) ou em outras especialidades.
Entre eles, figuram 12jornalistas e 16 que ocupam cargos no Legislativo,
como deputados ou senadores. Se acrescentarmos a este número nove outros que
ocupam cargos públicos - como diretor de instituições financeiras, repartições do
Estado, secretários de Governo e ministros do Supremo - há um total de 2S
professores exercendo direta ou indiretamente a atividade política.
O curso de ciências jurídicas da Faculdade Livre de Direito da Capital
Federal contemplata matérias como Filosofia do Direito, Direito Público
Constitucional, Direito Romano, Civil, Criminal e Comercial, Medicina PClblica,
História do Direito Nacional, Processo Civil, Economia Política, Prática Forense,
Direito Internacional e Higiene.
Comparando-o com o da Faculdade Livre de Ciências Jurídicas e Sociais
percebe-se pouca diferença entre o que copia o modelo da faculdade paulista com
o criado por Femando Mendes de Almeida. A novidade mais marcanle é a inclusão
das disciplinas Direito Internacional e de Economia Política, num curso de ciências
jurídicas. Na Faculdade Livre de Ciências Jurídicas do Rio de Janeiro privilegia-se
o Direito Administrativo e a Economia Política é dada apenas nos cursos de
ciências sociais. No de ciências jurídicas, essa matéria é ministrada de forma menos
abrangente, com o título de Noções de Economia Política.
A Faculdade de Leôncio Carvalho amplia também o universo da cadeira
Medicina Legal, incluindo no currículo noções de saúde pública, que assim passa a
se chamar Medicina Pública. Ao lado dessa matéria, os alunos têm também noções
de Higiene (no caso da Faculdade fundada por Ferreira de Araújo é ministrada
apenas no curso de ciências sociais).
Tal como na Faculdade Livre de Direito do Rio de Janeiro, a da Capital
Federal tem entre os seus alunos futuros políticos de renome e, principalmente,
integrantes de altos postos, quer no Executivo, quer no Legislativo ou no Judiciário.
Entre esses figuram também o de importantes jornalistas. Dos 35 nomes
identificados como ex-alunos da Faculdade, 15, ou seja, perto de 50%, exercem
alguma atividade jornalística, como dirigente, como importantes redatores ou como
colaboradores da imprensa.
Sobressai o expressivo contingente de integrantes de cargos públicos, ao
lado daqueles que vieram a ocupar um lugar na política: nove se tornaram deputados
e onze exerceram alguma função na burocracia oficial ou na diplomacia. Esses
dados demonstram uma série de constatações referendadas ao longo dessa exposição:
essas faculdades formam homens para ocupar postos chaves, compiladores do
pensamento dominante, disseminadores de normas, valores e comportamentos. E
nesse sentido, mais uma vez, o jornalismo, as letras, a escrita têm papel
preponderante, tão importante quanto o exercício claramente político.
Na memória história da Faculdade, em 1918, Virgílio Sá Ferreira, aluno
do último ano e também jornalista de O Paiz, resume o pensamento dominante
entre os discentes e a importância do jornalismo para esses estudantes:
"Éramos republicamos ejlorianisf(/s e a 110ssa tenda, O Paiz, em cuja redação eu
traballia\'{{, bisonho jOl'llalista do Norte, assustado 110 meio de uma elite, a cujaji'ente se
erguia esse liomem admirável que se cliamou BocailÍl'a. Mas O Paiz tinlia duas redações, a
que trabalhm'a subsidiada pelo jornal e a que trabalhava gratuitamente fora do jornal. A
esta pertenciamliomens que ocupavam ou ainda ocupam os mais altos postos do país e el1tre
eles Francisco Fazardo e Crl/'Ios Seidl"M.
Na constatação de Virgílio de Sá Pereira percebe-se a impol1ância dada
ao jornalismo por esses "eleitos", que concebem a atividade como uma forma de
aumentar a sua participação política e, principalmente, como já afirmamos
anteriormente, de alcançar maior notoriedade.
Se Recife forma os "homens de ciência" e São Paulo fornece a prática
política, podemos dizer que o Rio de Janeiro, a partir da constituição das suas
primeiras faculdades de Direito, tem a pretensão de formar "homens de ciência
políticos", capazes de disseminar ideais modernizadores e civilizadores, palavras-
chaves no dicionário da República. Para isso, a academia busca o que de mais
moderno há no pensamento da elite docente de Recife, cujo representante principal
é, sem dúvida, Silvio Romero, e o que de mais político há entre os ex-alunos da
Faculdade paulista, agora membros do corpo docente.
Nessas academias constitui-se um tipo intelectual, algo cosmopolita, e
que se aventura em outros campos de saber, não apenas restrito ao universo da lei
e do Direito, fundamental no processo de homogeneização social da elite política,
não dependendo pois o preenchimento de cargos na administração estatal
exclusivamente dos bacharéis provenientes dos grupos dominantes.
O jornalismo se apresenta para o estudante de Direito como lugar "natural"
para o exercício de uma prática profissional, uma vez que é cada vez mais identificado
com imparcial idade e neutral idade. A associação da atividade a uma função
claramente política produz ainda mais essa aproximação. Por outro lado, tal como
o detentor do poder de fixar normas e leis, o jornalista-advogado possui a inegável
missão - também restrita aos eleitos - de disseminar noções e valores e privilegiar
informações.
Essa trajetória da profissão explica, sob certo aspecto, as marcas
distintivas do discurso jurídico que passam a se fazer presente, a partir de então,
no discurso jornal ístico.
Bourdieu ao caracterizar o campo jurídico, por excelência um campo de
nomeação, onde a própria divisão do trabalho, milimetricamente hierarquizada,
constitui o verdadeiro princípio de um sistema de normas e práticas, particulariza
o que ele chama uma língua jurídica.
Combinando elementos da língua comum com outros estranhos ao seu
sistema, o discurso jurídico se caracteriza pela retórica da imparcialidade ao lado
da neutralidade. A neutralização é obtida por caraterísticas sintáticas, como o
predomínio das construções passivas, das frases impessoais, fazendo enunciar um
sujeito universal e, ao mesmo tempo, imparcial e objetivo. Já a universalização é
obtida através de outros recursos. O emprego de verbos na terceira pessoa do
singular no presente ou no passado composto, exprimindo o realizado, o uso de
indefinidos, do presente intemporal e de valores que pressupõem a existência de
um consenso ético, além do recurso a fórmulas fixas e lapidares, em detrimento das
variações individuais, revelam a retórica da autonomia, da neutralidade e da
universalidade'? •
Todas essas características fazem parte, cada vez mais, do texto
jornalístico a partir de 1880. O uso dos verbos na terceira pessoa, a indefinição
proposital presente no texto, ao lado de opiniões que têm em aparência o sentido
de expressar um consenso, enfatizando sempre os valores morais, são marcas do
discurso do novo jornalismo. Montando o texto com uma aura de imparcialidade, 1
neutralidade e também universalidade, passam a conferir-lhe o caráter de documento. j \)
O documento se caracteriza, em essência, por ser uma espécie de meio
neutro, que não interferiria no caráter do que prova ou testemunha, ou como diz
literalmente Luiz Costa Lima, seria um instrumento que comprova a existência de
algo outrolX. A pretensa neutralidade da informação é uma forma de transformar o
texto em documento, meio neutro que comprovaria a existência do fato. Se por um
lado o texto jornalístico se atribui essa caracterização, o reverso da medalha é o
desprezo à carga ficcional. Se a busca da verdade é o ponto a ser encontrado, veta-
se o ficcional, ou seja, a liberdade de falar do que não ocorreu, mas que poderia ter
havido.
Mas não é apenas a característica de construção do próprio texto
jornalístico que lhe confere esta marca. O fato de ser objeto de análise freqüente, de
interpretações diferenciadas, que o tomam como relator de um momento histórico
e social, também o insere num quadro documental.
A presença humana tem a capacidade de convelter o texto, os fatos, os
objetos em documentos. Essa documentação generalizada se relaciona à posição do
analista. A reflexão que os teóricos produzem, baseados nesses textos, já os
transformam em documentos, na medida em que se procede a uma articulação para
se atingir uma interpretaçãol~ .
A constituição física dos jornais, com os assuntos distribuídos em
verdadeiros blocos de informações semelhantes ou próximas, os transformam em
verdadeiros arquivos do passado, onde variados temas estariam resumidos e ao
alcance do leitor, também no futuro.
O próprio leitor ao ler a notícia, ao refletir sobre ela, ao discordar, ao
concordar, ou seja, ao ser parte interativa no processo, está conduzindo o texto a
sua carga de documento. E ao redigir um texto para o futuro, os jornal istas produzem
documentos, carregados de pressupostos que se constituem em verdadeiros axiomas
da imprensa e do campo jornalístico: a objetividade, a imparcialidade, a
universalidade, a verdade e a popularidade.
Da mesma forma que a ficção é definida para um sujeito, o texto
jornalístico é fOljado para um leitor que tem a expectativa de reconhecê-I o como
tal20. O texto se constitui numa representação da realidade observada e possui
marcas distintivas que o configuram: a identificação do sujeito da ação, as declarações
dos integrantes da narrativa, a precisão dos detalhes dos fatos, a descrição do
espaço geográfico onde se deu o acontecimento, a delimitação do tempo da análise
de forma linear, onde os fatos se sucedem cronologicamente. Ao presente está
sempre referido um passado que lhe deu origem e um futuro para onde a trama se
encaminha.
Neutro e imparcial, postulando ser um reflexo da realidade, o texto
jornalístico passa a ser um documento do presente desvendado no futuro, se
apresentando como prova e testemunho do que ocorreu.
Tal como o campo jurídico, também o jornalístico é, por excelência, um
campo de nomeação. A divisão hierárquica do trabalho no interior das redações,
delimita e propicia a consolidação de um sistema de normas e práticas, com a
presença da lógica positiva da ciência e normativa da moral, reconhecido por uma
ética própria: os postulados do campo jurídico do qual o jornalismo igualmente
participa.
Mas não são apenas os estudantes de Direito que ingressam no jornalismo.
Também egressos da Faculdade de Medicina, da Escola Politécnica ou da Escola
Militar engrossam as fileiras profissionais dos jornais diários.
O debate ideológico mais forte da virada do século se dá entre as escolas
de Direito e de Medicina. Disputando a hegemonia e o predomínio científico de
suas idéias, os homens de direito acreditam-se detentores da responsabilidade de
conduzir a nação, através de um código unificado. Aos médicos cabem diagnosticar
e curar os males que assolam o país. Enquanto estes prevêem a degeneração,
constatam as doenças e propõem projetos higienistas e saneadores, os bacharéis
acreditam encontrar no direito uma prática acima das diferenças sociais e
raciais21 .Alguns desses médicos - como forma de também alcançar notoriedade -
participam do debate higienista também através de artigos publicados nos maiores
jornais da cidade, colaborando muitas vezes gratuitamente com essas publicações.
O número de estudantes ou ex-estudantes de medicina, odontologia e
farmácia entre os jornalistas, embora menos expressivo do que o de bacharéis,
revela não apenas a inserção privilegiada do jovem acadêmico - qualquer que fosse
a sua formação - no interior dessas publicações, mas torna evidente o debate entre
essas duas áreas e a disputa por fazer prevalecer as suas idéias.
Traduzindo a ciência em termos populares, os diários buscam nas mesmas
teorias cientificistas e evolucionistas, que dominam a formação acadêmica de seus
profissionais, os argumentos para negar fundamentalmente a igualdade dos homens,
em nome da natureza, que deveria ser descoberta pela ciência. Nesse debate, a
ciência submete a própria ética e a política.
Pela doutrina cientificista, da qual também faz parte o positivismo, o
conhecimento (ciência) deve orientar o comportamento (a ética). Para Comte só
com a ajuda da ciência seria possível estabelecer a boa constituição e a tarefa do
positivismo é ajudar os homens a avançar nesse caminho" .
Apresentando a nação como civilizada, moderna e científica, os jornais
abusam na divulgação do ideário evolutivo-positivista de Darwin, Spencer e Com te.
O tema da modernidade presente na representação da época inunda as publicações
que, assim, mostram a sociedade como moderna e civilizada, de onde é preciso
expurgar todos os males, físicos e morais. Só assim conseguir-se-ia elevá-Ia a esse
patamar.
Grandes programas de higienização e saneamento dominam a burocracia
médico-oficial, as normas impostas no Rio de Janeiro e também as páginas dessas
publicações. Trazendo a racional idade científica para os centros urbanos,
implementa-se projetos eugênicos que pretendem eliminar a doença e separar a
loucura e a pobreza. É preciso, a todo custo, construir um Rio de Janeiro como
capital de uma nova República, onde progresso e modernidade são palavras-chaves2) .
Dessa construção do Rio de Janeiro como capital de uma nova identidade
participam inúmeros atores. Os jornais disseminam idéias, distribuindo-as em
todas as esferas da vida social. Nesse projeto é fundamental a cooptação dos
jovens estudantes ou acadêmicos recém-formados que dominam as redações dos
jornais diários, como repórteres e redatores. Mas além desses, há ainda nessas
publicações um outro grupo de literatos e boêmios, cuja maior aspiração é ser
reconhecido no círculo literário da cidade. Para isso, nada melhor do que se aproximar
dos escritores de renome, que também gravitam em torno dessas publicações.
Aspirando ser literatos famosos, essa boêmios da literatura nunca passaram,
entretanto, de repórteres e redatores.

Ao lado de escritores consagrados e popularizados através das


contribuições sistemáticas que publicam nos jornais diários, há toda uma plêiade
de jovens boêmios que gravita em torno destes e que faz do jornalismo seu meio de
vida.
A imprensa, a paJ1ir de 1880, vai buscar também na literatura uma fonte
para a sua popularização. Utilizando-se dos literatos, procuram atingir um público
cada vez mais vasto. Estes, em contrapartida, fazem do jornal meio de divulgação
e de publicação de seus escritos.
Essa cumplicidade entre a imprensa e os literatos é evidente. Depois dos
folhetins, as crônicas, as poesias, as narrativas do cotidiano invadem as páginas
dessas publicações. Na verdade, a popularidade da condição de literato é construída
pelos próprios jornais.
FreqUentando os cafés e as confeitarias da moda, essa roda boêmia vê
nos jornais e na profissão de jornalista um apelo para se tornar conhecida, mas
também a chave para ocupar empregos públicos ou "cavar" oportunidades e
benesses.
Ao lado de nomes consagrados posteriormente na literatura, como Coelho
Neto, Olavo Bilac, Aluísio e AI1hur Azevedo, Emílio de Menezes e João do Rio,
outros menos expressivos, na sua época e posteriormente, fazem parte dessa
boêmia literária que nas ruas da cidade encontra material ideal para os seus escritos.
O mais famoso boêmio do início do século é, sem dúvida, o repórter
policial Paula Nei. Vindo para o Rio estudar engenharia, em 1877, nunca chegou a
freqüentar o curso, matriculando-se, em seguida, na Faculdade Nacional de Medicina.
Torna-se repórter de polícia da Gazeta de Notícias e divide o seu tempo entre a
redação do jornal e os cafés da Rua do Ouvidor, onde fica, junto com outros
literatos, "a dizer versos, a fazer literatura, a perder tempo'" . Reprovado nos
exames finais do quarto ano de medicina, em 1880, vai, no ano seguinte, para
Salvador, de onde volta sem concluir o curso. E como literato nunca deixou de ser
repórter.
"Col/tinuo afa~er reportagem para os jamais, 11111 de lIIanhã, outra de tarde, inillligos
irreconciliáveis elll política, n/{/s unha e came elll sofecislllo e outras barbaridades
gralllaticais. Alllbos pagamlllal. Cavo notícias COIIIOos porcos de Perigord descobrem
tríbanas:fossando nos fameiras. Quando não as encontro, inl'ento-as"!.
O sarcasmo de Paula Nei mostra a realidade da vidajornalística no Rio de
Janeiro, quando, para garantir melhor salário, é necessário trabalhar em mais de
uma publicação - às vezes com interesses políticos divergentes. Deixa claro também
o comportamento do literato como repórter. A veracidade apregoada pelo jornalista,
esbarra na inventividade do escritor que, não encontrando temas para as reportagens
sensacionais, admite a prerrogativa de inventar as próprias notícias.
Com essa atitude deixa de ser, ainda que simbolicamente, um profissional
da "verdade" e do "real", para ser um escritor, a quem se dá a licença poét ica de
criar os seus próprios personagens.
Nos anos 1880, Paula Nei é o líder de uma roda boêmia que dita as leis e
lança hábitos extravagantes na rua do Ouvidor. Coelho Neto, então com 24 anos,
Guimarães Passos, Luiz Murat, Olavo Bilac, Pardal Mallet e José do Patrocínio -
o mais velho de todos - são os parnasianos da confeitaria Pasca!.
É ali que se reúnem, em torno de Patrocínio, pelo menos até a decadência
da Cidade do Rio, após a Abolição. Em )900, a folha que fizera a mais aguda
campanha contra a escravidão, já está em franca decadência, instalada na Rua
Sacramento, 8, onde Patrocínio arrendara o material e uma tipografia arruinada e
dois pavimentos do prédio. Dali mudaria para a Uruguaiana e, posteriormente, iria
para a tipografia do Diário, na rua do auvidor, onde deixaria de circular.
a fundador da Cidade do Rio é, sem dúvida, um dos mais importantes
jornalistas do período, não só pela participação dos seus jornais nas lutas políticas,
mas pela espécie de domínio que exerce, principalmente, entre os mais jovens, que
começam no jornalismo quase sempre pelas suas mãos, na Cidade do Rio, ou de
Ferreira de Araújo, na Gazeta de Notícias. Ele mesmo passara também pela
Gazeta, onde permanece até 1881, quando funda a Gazeta da Tarde. Seis anos
depois nasce a Cidade do Rio' .
Apregoando sua liberdade, como o motivo principal para não se tornar
escritor, Paula Nei, tal como a maioria dos jornalistas, se tornaria também
funcionário público, a partir do prestígio que adquire ao ingressar no mundo do
jornalismo.
Descrevendo seu próprio cotidiano, o repórter fala das "cavações" e dos
pequenos expedientes de que se vale a roda boêmia para continuar, pelo menos em
tese, a ser dona da própria liberdade.
"Deito-lIIe selllpre 1/0dia segllinte, alllloço a hora do jant{//; por econolllia de dinheiro e
telllpo, COIIIOde lIIadl'llgada à lIIesa opípara da alllizade. Continllo no regillle amigo: àfalta
de níqllel para o bonde, mlho-lIle do tí!l}/{re do Peixoto,jiado; qllando não tenho dinheiro
para envenenar-lIIe no 'Renaisssance', banqlleteio-lIIe opiparalllente /10 'LolIl're', a crédito. As
ceias acolllpanhadas correlll por conta dos allligos e adllliradores. Leio osjOl'l1ais,fi'anceses
para dar-lIIe a illlsão de viver elll Paris"! .
a jornalismo é para ele a possibilidade de ser literato, sem ter o
compromisso com a criação de maior monta. É também a porta de entrada para a
estabilidade de um emprego público. Na suas próprias palavras, ricas em emoção,
sintetiza o porque de não se dedicar ao ofício de escritor:
"Plldesse ell escrel'er'llll'ejo os qlle escrel'elll, essesCOllstróelll elll terreno firllle: ellfaço os
lIIellS castelos no {//: Mas isso de perlllanecer horas e horas sentado à lIIesa. dia 11 te de tiras
de papel, lIIolhando, a espaços, a pena 110tinteiro, a garatlljar illlagellS, elllpacando regras
de gralllática ... Nâo. nâo é cOllligo Adoro a liberdade, qllero os IlIol';'lIentos livres e a
'
palal'ra l'oa ... "5.
a aumento do público leitor, com o surgimento dos primeiros jornais
verdadeiramente populares, cria condições para a formação de uma boêmia dedicada
às letras, uma vez que pela via do jornalismo encontra formas de garantir a sua
sobrevivência.
o jornalpassa a fornecer o públ ico necessário à própria configuração da
obra do escritor, a sua remuneração e às condições para que assuma, ao mesmo
tempo, um lugar na burocracia oficial, melhorando suas condições de subsistência
e satisfazendo a sua ambição de se integrar às elites. Na medida em que o público
não é capaz de fornecer a remuneração do escritor, cabe ao Estado, intermediado
pelo jornal, interpor-se entre ambos, como forma de assegurá-Ia() .
"Ah! é verdade ... O lIleu elllprego. O gOl'el'1I0 lelllbrou-se de lIlilll e deu-Ille, de lIlão beijada,
U1l1lugar de al/[{/I/uense. Estou ua Inspetoria de IIIl.igralltes, COIIIexercício na Ilha das Flores.
Voilá' E achas que 'estou crescel/do'. É possível, I//eu allligo, II[{/S COlIIOa cauda do cavalo:
para baixo".
Paula Nei procura, pessoalmente, Floriano na Presidência da República,
para pedir uma "colocação intelectual que o garantisse para defender-se dos
cobradores impertinentes". E é assim que o mais famoso boêmio do Rio é nomeado
por Floriano, transformando-se em diretor do Serviço de Imigração, na Ilha das
Flores, cargo do qual seria destituído no Governo Prudente de Morais. Quando
falece, em 1897, era amanuense na diretoria geral da Saúde Pública.
Na visão do jornalista, entretanto, o cargo na burocracia, embora uma
prerrogativa para a sua sobrevivência, não traz glórias, nem referenda a sua posição
de homem de letras. O eu crescimento se dá através da consagração como escritor
e não como burocrata. Isso talvez explique a ironia com que afirma talvez "estar
crescendo" - ou seja, ocupando Ulll outro lugar na escala social - mas "como a cauda
do cavalo: para baixo".
Na mesma carta, em tom afetuoso e, principalmente, poético, carregada
de expressões francesas, Paula Nei assim se despede de Coelho Neto: "Escrevo-te
em linda manhã azul, com um raio de sol, diante dos olhos e um coro de cigarras
chamando-me para a 'joie de vivre'. Lá vou!. Teu d'alma. Paula Nei"7.
Perambulando pela rua do Ouvidor, freqüentando os cafés e as confeitarias
da moda, Paula Nei encontra a inspiração e a matéria prima de muitas das reportagens
que faz anonimamente na Gazeta de Notícias, na Gazeta da Tarde ou no Diário
de Notícias. O jornalismo e o emprego público, conseguido através das relações
que fizera a partir de sua inserção no jornal, garantem-lhe a "joie de vivre".
"Detesto o definitivo. Não tellho casa, coI/Io não tenho esposa, lIellllivro, tlldo transitório: o
hotel, a alllal/te e o jomal. Vivo ao Deus dará e dia-a-dia. Essas preocllpações doft'lII do
lIIês: alllgllel de casa, caderno de Fenda, cOllta de gaz, etc., I/rlO são para 11111 hOlllelll COIlIO
eu. Instalo-lIIe elll qllalqller cubíClllo de hotel, beijo a prillleira boca Iflle lIIe sorri, ColIIo onde
lIle apetece, leio o jornal qlle acho a IIIrlO "8.
As aspirações políticas de muitos desses literatos são também evidentes.
Através do jornalismo procuram não apenas conquistar o público - condição
indispensável para a própria criação - mas também ter efetivamente um papel
político, seja através de cargos diplomáticos ou ministeriais.
A função do jornal como fornecedor de um público é primordial nesse
período. As tiragens das editoras são limitadas, reduzidas e voltadas para os
escritores consagrados. E mesmo os mais conhecidos só conseguem publicar um
livro depois de sua inserção nos periódicos: o que se faz, na verdade, é uma
republ icação.
A dependência do literato do seu público - podemos mesmo afirmar que
só existe a obra literária na dependência direta dos leitores - faz com que as relações
entre os escritores e os jornais se tornem cada vez mais estreitas. A sua inserção
nos periódicos é a única fórmula de atingir o público. Assim, as colaborações na
imprensa diária por esses homens de letras tornam-se cada vez mais imperativas.
Como colaboradores, redatores ou repórteres da Gazeta de Notícias - o que mais
absorve e maior espaço dá às contribuições literárias -, de O Paiz, do Jornal do
Commercio, do Correio da Manhã, do Jornal do Brasil, entre outros,
conquistam o seu público, podendo então partir para a con trução da sua obra.
O escritor não é apenas um indivíduo capaz de exprimir a sua
originalidade, mas alguém desempenhando um papel social, ocupando uma posição
relativa ao seu grupo profissional e correspondendo a certas expectativas dos
leitores. A matéria e a forma da sua obra dependerão em parte dessa tensão,
determinada pelo próprio meio, e que caracteriza um diálogo vivo entre criador e
público.
A literatura é um sistema vivo de obras, agindo umas sobre as outras e
sobre os leitores e só existe na medida em que estes a vivem, decifrando-a, aceitando-
a e deformando-a. A obra não é um produto fixo, nem o público é passivo e
homogêneo. Obra e leitor atuam um sobre o outro, aos quais se junta o autor, nesse
processo de circulação literária, para configurar a realidade da literatura atuando no
tempo.
Antonio Candido ao enfatizar a relevância do público para o escritor,
uma vez que o autor só adquire plena consciência da obra através da reação de
terceiros, o que faz com que o público seja a condição do autor para conhecer a si
próprio, prioriza essa dependência e a importância dos meios de comunicação na
formação desse público9•
Como instrumento de divulgação dos literatos, esses jornais diários se
constituem no principal formador de leitores para os escritores, que vêem assim a
possibilidade de alcançar a notoriedade almejada através da sua divulgação pelas
páginas dos periódicos mais populares da cidade.
Atingindo um pClblico cada vez mais vasto, inicialmente utilizando-se do
folhetim como via de acesso privilegiada à divulgação das obras literárias,
diversificam o seu conteúdo de forma a absorver os literatos não apenas através de
colaborações sistemáticas e remuneradas, mas também como profissionais fixos da
redação como é, por exemplo, Paula Nei, Lima Barreto, Bastos Tigre, Guimarães
Passos, Pardal Mallet, João do Rio, entre outros.
O número expressivo de analfabetos se, por um lado, limita as tiragens
dos livros, por outro não impede o aumento da circulação dos jornais populares.
Mesmo numa população em que apenas 18,5% sabem ler, em 1890, ou 33, I%, em
1900, os principais diários imprimem e vendem, juntos, de 100 a 150 mil cópias,
por dia. Enquanto isso uma edição considerada satisfatória para um livro de poesia
é de 1000 exemplares ou de 1100 a de um livro de prosa, mesmo de extraordinário
sucesso como As Religiões do Rio, de João do Rio. As edições da Garnier comumente
situam-se entre 2 mil e 2200 cópiasllJ •
Considerando-se que cada jornal é lido por pelo menos quatro pessoas e
que muitas vezes essa leitura se faz em voz alta, atingindo um número ainda mais
expressivo de espectadores, percebe-se a importância dessas publicações para os
literatos como via de acesso à conquista do público. Os próprios escritores têm
consciência da importância do jornalismo para o desenvolvimento de suas
atividades, seja por receber uma remuneração em troca do seu trabalho, seja por
que através desses diários alcançam notoriedade.
Numa maravilhosa obra em que faz uma espécie de radiografia do
pensamento dos literatos - escritores ou personalidades aclamadas e conhecidas
no momento da produção das perguntas - João do Rio realiza um "inquérito
literário" com 44 escritores que deveriam responder a diversas perguntas, figurando
entre elas a seguinte: "o jornalismo, especialmente no Brasil, é um fator bom ou
mau para a literatura?"
João do Rio afirma que o "inquérito" supre uma lacuna: a imprensa,
segundo o escritor, fala de toda a gente, só não se refere ainda aos literatos. As
perguntas, que são dirigidas para "ídolos" - "o homem que escreve é sempre um
ídolo, mesmo quando escreve mal" -satisfariam, assim, uma curiosidade do público,
sentimento exacerbado pelo próprio jornalismo, que transforma a crítica e faz a
reportagem, ou funde ambas na "terrível reportagem experimental" II .
Analisando O Momento Literário, dos 32 literatos - romancistas, cronistas
e outros, que nem sempre fazem da pena o meio de sua sobrevivência, mas que são
reconhecidos como dominando o poder da nomeação nessa sociedade, como Afonso
Celso, Silvio Romero, apenas para citar alguns - que respondem a pergunta sobre
o jornalismo, 17 apontam aspectos positivos na atividade em relação à criação
literária. Quatorze enfatizam que a atividade jornalística prejudica a literatura.
Entre os mo ti vos destacados por aqueles que consideram o jornal ismo
fator de positividade, 10 enfatizam o fato de a atividade possibiitar a divulgação do
literato e de sua obra, enquanto sete apontam a criação de trabalho nos jornais para
os escritores. Já a maioria que via o jornalismo como um mal, enumera a massificação
e as mudanças na atividade - burocrática, industrial, balcão, negócio - como ruins,
na medida em que favorece escritores medíocres, suscitando disputas e vaidades.
Para nove literatos, portanto, o jornalismo é ruim para o homem. Para sete outros
limita a criatividade, ao submeter o escritor a uma produção maciça, baseada em
fatos e não na imaginação. O jornalismo para esses asfixia a originalidade, sendo
ruim para a atividade criadora.
Treze dos participantes no "inquérito" são colaboradores sistemáticos
nos jornais, mas isso não impede que mais de 50% deles (7) também vissem o
jornalismo como prejudicial à literatura. Todos atrelam isso ao fato de o jornal ser
indústria, diferente da arte pura, produto da criação do literato.
Fica claro também a partir das respostas, que para os literatos, seja
como fator positivo ou negativo, houve uma radical transformação no jornalismo,
enfatizando a característica industrial de sua produção, o que pode favorecer a
divulgação ou limitar a criatividade.
Esses julgamentos homólogos podem ser explicados também em função
do capital simbólico comum a esses literatos, advindos de uma mesma posição ou
situação de classe e, em larga medida, do capital escolaJ·11 .
Para Olavo Bilac, Coelho Neto, Medeiros e Albuquerque, Julia Lopes de
Almeida e dezenas de outros, que fiziam dos periódicos o meio privilegiado para a
divulgação de seus escritos, sendo colaboradores sistemáticos e remunerados dessa
imprensa diária, o jornalismo é bom para a literatura na medida em que possibilita
ao autor "ser lido", "permite a sua "difusão", "prepara o público" ou "cria o
trabalho".
Através dessas colaborações, por outro lado, os jornais atingem um
público mais vasto. Está estabelecida uma cumplicidade extremamente duradoura
entre os Iiteratos e os periódicos da cidade.
"Qllando II/n poeta, 11111
prosado/; IIl1ljOl'lla/ista, /1111
pilltO!: lI/li cO/llpositorcollleçm'alll a
romper às coto veladas a massa espessa do al/onill1ato, era ele [Ferreira de Araújo, da
Gazeta de Notícias 1 a desbra\'(/r-Ihes o caminho, a pô-Ios ao sol, a elllpllrrá-Ios para a
evidência, a celebrar-lhe o \'(/101' "/3.
Para outros, entretanto, esse círculo de escritores para alcançar a
popularid de e a glória se vale de numerosos expedientes, "mendigando favores da
impr sa jornalística".
" uem se colocar diante do Ineio intelectual brasileiro, elllfrellle ao círculo de escritores e
artistas que, nunw sede I'oraz de popularidade e glória, anda a lIIendigar osfal'ores da
imprensajornalística, ordinariamente leal a lun rigoroso prograllla econômico e a IIIU
modus-vil'endi pouco literário e muito burguês, há de reconhecer na luta pelo renollle a
classe dos nulos(. ..), dos medíocres(. ..) e em terceiro lugar a classe oprimida "I,.
Dizendo-se sempre jornalistas, esses escritores recebem pelas
colaborações enviadas à imprensa um valor proporcional ao seu reconhecimento
público. Coelho Neto, por exemplo, tem o privilégio de determinar, ele mesmo, o
preço da sua colaboração no Correio da Manhã, enquanto outros permanecem
anos a fio com a mesma remuneração, o que faz com que tenham como aspiração
um cargo na burocracia oficial. "Das letras estou até aqui. Meu ideal é um emprego
público, coisa aí como amanuense ou escriturário com vencimentos certos", dizia
Aluísio de Azevedo 'j
A dependência do periódico, em função da notoriedade já
.

alcançada, é por vezes impressionante. Em 1904, Coelho Neto se desliga do Correio


da Manhã por que um conto seu - "Viúvas"- tem sua publicação retardada. Em
função disso recebe uma carta de Edmundo Bittencourt, lamentando o ocorrido,
dizendo que, se estivesse ele presente na redação, isso não aconteceria. E acrescenta:
"Tomaras/un dia na selllana, na quinzena, no mês, como quiseres. Este dia será para um
trabalho teu, conto, crítica, crônica,fantasia, o que quiseres. O preço do teu trabalho tu
mesmo ofarás. Ou receberás artigo por artigo ou receberás mensalmeute. Ontra coisa lIIais:
quando quiserdes I'irpara o Rio terás um ordenado de 500 lIIil réis ou lIUIconto porlllês ·'Jó.
Dois anos antes, o mesmo Edmundo Bittencourt cobrara de Coelho
Neto o fato de não estar recebendo "nenhuma linha da tua pena", e oferecia a
quantia de 300 mil réis mensais, com a condição "de me mandar pelo menos um
artigo por semana (conto, crônica, política, o que entenderes)".
"Há mnito tempo /lâo recebo lIIua linha de tua pena, nem para milll nelll para o 'Correio'.
Em alguma coisa te desgostamos? Seja lá como forfaço quesfÜo de dar o teu retrato elu
fotogravura em/llnnúmero especial, que vamos publicar no dia I. Como é que hei de obtê-
Ia? Tinha pensando em ullla coisa. Vê lá se te conl'ém: - EIII lugar da combinaçâo que
tínhalllos sobre a lHa colaboraçâo, proponho-te o seguinte: TreZelltos mil réis lIIensais COIIIa
condição de me IllCIndarespelo lIIenos um artigo por semana (conto, crônica, política, o que
entenderes). Serve-te? Responde ao teu Edulllndo Bittencour! "17.
Apesar de ter esta prerrogativa junto ao periódico de Edmundo
8ittencourt, Coelho Neto, tal como os outros literatos, buscara na burocracia
estatal um lugar para garantir maior estabilidade que, afinal, a imprensa de todo não
p ro po rc 10 na.
Enquanto escreve incessantemente, Neto obtém nomeações e cargos
políticos, além de colocações acadêmicas e burocráticas. Nos períodos em que tais
posições não estão disponíveis, depende inteiramente do jornalismo literário,
produzindo crônicas, romances e folhetins em ritmo incessante, trabalhando dez
ou doze horas por dia1x .
Filho de um modesto comerciante português do Maranhão, Coelho Neto
vem para o Rio, em 1870, onde estuda no Colégio Pedro 11. Em 1882, entra para a
Faculdade de Medicina, abandonando o curso no ano seguinte. Entre 1883-85,
estuda Direito em São Paulo e Recife, também sem concluir os estudos. Retomando
ao Rio, dedica-se à roda boêmia que deixa histórias pitorescas na memória da
cidade, aproximando-se de Bilac e de outros, se relacionando com jovens que, na
meia idade, se tornariam consagrados literatos, burocratas e políticos. Ele mesmo
é eleito deputado federal pelo Maranhão, em 19091~.
"Muito de nós, os chamados homens de letras brasileiros, mas realmente, na generalidade,
professores, empregados públicos, advogados,jornalistas, muitos de nós, poderiam.os sei; na
França, por exemplo, homens de letras no sentido preciso, restrito da expressão"21J.
No sentimento do literato, a divisão do tempo entre a literatura e outro
tipo de ocupação descaracteriza o homem de letras. Para Rodrigo Otávio, o
verdadeiro escritor "no sentido preciso, restrito da expressão" é aquele que pode
viver exclusivamente da literatura, não dividindo a tarefa criativa com qualquer
outra, mesmo o jornalismo. Buscando, mais uma vez, a trajetória de vida desses
homens, observa-se que os literatos são quase sempre professores, funcionários
públicos e, invariavelmente, jornalistas.
Para outros, entretanto, o fato de emprestarem sua colaboração diária
aos jornais não os caracterizam dessa forma. Na idealização de Aluísio de Azevedo,
embora dizendo-se jornalistas, a denominação é incorreta, porque "não escrevemos
substanciosos e pesados artigos sobre o destinos da pátria e sobre a sua miséria,
não rendilhamos a crônica, nem alinhamos a local: fazemos romances e contos"21 .
Além de Bilac e Coelho Neto, outros jovens literatos transformam-se em
repórteres ou colaboradores regulares da imprensa. Nas horas vagas, perambulam
pela Rua do Ouvidor, onde se localizam então os principais periódicos da cidade e
onde ficam também as confeitarias e os cafés tão a gosto dos boêmios de então.
Paula Nei chega a ter um "escritório" no fundo da Confeitaria Castelões.
Na rica descrição do cotidiano do mais famoso boêmio do Rio de Janeiro, Coelho
Neto particulariza o fato de o próprio trabalho do repórter ser realizado no seu
escritório improvisado, na última mesa da confeitaria, junto ao lavatório:
"Todas as Il1anhãs o boêmio, às dez e meia, mais ou menos, entrava no Castellões, ainda
estremul1hado, com 11mI//{{ço de jornal debaixo do braço( ...}. Ele começava pela leilllra da
correspondêllcia, separando as cartas pelos asslllltos: as de illteresse pecllniário, ri direita;
as de (/InOI; à esqllerda, as 'subsidárias' debaixo do tillteiro( ... ). A slla correspondência era
metódica. Primeiro o expediente: cartas a banqueiros, indllstriais, a políticos iI~flllentes para
o movimento da caixa; depois o erotikoll, {fI/e era a correspondência (/IlIorosa; bilhetes a
médicos, recomelldolldo elif'emlOs pobres, na maioria crianças, 011a alltoridades policiais
intercedendo por presos. Porfim, o trabalho honrado para ojomal da tarde"22 .
A função política do jornalista e as possibilidades que a ele se abrem, em
função da representação real e carismática da profissão, fazem com que pudesse
ser o intermediário possível entre a população e o poder público. Assim, entre a
variada correspondência enviada por Paula Nei, a referência às cartas remetidas às
autoridades policiais e aos bilhetes enviados a médicos recomendando doentes
destaca esse papel. Por fim, é também na mesa da confeitaria que o repórter
policial redige as reportagens, para assim fazer juz a remuneração, "cavando"
dessa forma a sua subsistência e a própria boêmia.
Brito Broca comentando sobre esse Rio literário, refere-se à roda de
Olavo Bilac e a de Emílio de Menezes, que se confundem, onde se distinguem as
figuras de Guimarães Passos e Pedro Rabelo. Ao lado de nomes conhecidos nas
letras gravitam os boêmios, talentos fracassados. Fala-se dos admiráveis sonetos
de Raul Braga, do destino literário de Rocha Alazão, secretário informal de Paula
Nei, da erudição do excêntrico Santos Maia. Na verdade, todos vivem à sombra dos
escritores reconhecidos, formando uma espécie de grupo secundário, indispensável
ao espetáculo cotidiano das rodas dos cafés1J .
A maioria desses homens de letras, que constitui a roda boêmia da cidade,
inicia-se no jornalismo, como já falamos, ou na Cidade do Rio, de José do Patrocínio,
ou na Gazeta de Notícias, de Fen'eira de Araújo. Pardal Mallet, ainda estudante
do curso de Medicina, no Rio de Janeiro, que nunca completou, participa junto
com Coelho Neto, Olavo Bilac, Paula Nei, Luiz Murat e Guimarães Passos da
fundação do jornal de Patrocínio.
"José do Patrocínio {file vive sempre a procllrar os 1101'0.1',os qlle aillda lIão apareceram,foi
na impren.sa, o padrinho de todos IIÓS.E o Ferreira de Araújo, bom e olímpico; este de qllem
a gente tem receio de se aproxim(lI; IlIas qlle se faz amigo e protelor dos {file sahem l'encer
esse receio, nllnca nos recIIsou todo o prestígio da slla direçrio e o sell apoio".
Na mesma carta, Mallet refere-se ainda a sua condição de boêmio, o que
não invalida a dura labuta diária nos jornais da cidade.
"AssimfOll/os pela vida, boêmios, como liaS Ch(/lllaVanl, mas trabalhando, nllnca nos
deitando sem a leitllra de lima página, IlIInca acordando sem a escrita de 1I11/{{linha. Não
mudamos,fomos e somos sempre os mesmos. A sociedade é qlle vai mlldando de opinirio a
nosso respeito"!!.
A Cidade do Rio, fundada por Patrocínio e onde fizera a mais aguda
campanha abolicionista, já não mais interessa ao público, após a Abolição. Os
redatores recebem, às vezes, algum dinheiro, através de vales, enquanto o diretor
continua a aumentar-Ihes os ordenados hipotéticos e imaginários. E apesar da
simpatia que Patrocínio desperta nos redatores, não podem suportar por muito
tempo trabalhar quase sem remuneração. Um a um, os jornalistas vão abandonando
o jornal, permanecendo apenas, Henrique Câncio e Batista JÚnior".
Para realizar o sonho maior de todo o jornalista - a fundação de seu
próprio jornal - Paula Nei também deixa, em 1889, o jornal de Patrocínio. Junto
com Coelho Neto e Pardal Mallet, funda O Meio. No seu artigo de apresentação
justifica, assim, a criação do novo periódico: "O que por aí há são papéis mercenários,
páginas avulsas de diários comerciais. Nós precisamos de um órgão de autoridade
e estilo, escrito com independência e brilho que, no calaclismo que nos ameaça,
sirva de tábua de salvação à nacionalidade""6 .
O primeiro número, impresso na tipografia de O Dia, à Rua do Carmo,
45, vendido ao preço de 100 réis, é um fracasso.
"A tipografia era ullla coisa sórdida, nofimdo de 11111 poreio infecto, illlundo o alllbiente, o
assoa lho por Im'ar-se, baratas e bichos estranhos a passearelll, nos lIIontes de lixos,
enquanto enorllles aranhas tecialll suas teias, pacatalllente nos cantos das paredes( ...). O
prelo, a rollquej(n; era 1II000idoa lIIão por Inl/negro que suava, reluzente "li.
A descrição das oficinas tipográficas do jornal de Paula Nei mostra,
claramente, o tipo de iniciativa que foi a publicação. Com apenas dois redatores -
o periódico é inteiramente escrito por Mallet e Coelho Neto - O Meio consegue
subsistir até o número 13, suspenso que é por ordem do Governo Provisório.
Paula Nei se encarrega de descobrir os casos, de desvendar os boatos. É o homem
da matéria pri ma, o repórter, que fareja tudo, tudo vê e tudo sabe.
A tiragem nunca chegou a dois mil exemplares, embora Nei dissesse que
era a maior da América do Sul. Distribuem-na pelos engraxates e os que restam são
impingidos pelos seus redatores aos políticos e aos homens de dinheiro na vã
tentativa de conseguir recursos para imprimir mais um número.
Para se distinguir nessa república das letras é preciso mover-se por entre
ela, freqüentando as confeitarias e os cafés da moda, onde os homens de letras e de
Imprensa - posições que ocupam concomitantemente - se reúnem, formando a
opinião. O escritor precisa ser visto e ser reconhecido pelo público leitor.
"Uns seio poetas, outros oradores, outrosfilósofos e tambélll os que gostalll de quando em
quando fazer ullla feúna nos bichos do Bareio de /)nllnlllond ou, enteio. nos cal'a/inhos( ...).
Os restaurantes elll geral pouco lucro telll COII/.essa boa e hOllesta rapaziada de lIIiolo cheio e
bolso vazio. CUlllprilllentalll os garçons e pedelll com loda elegância e distinção a saborosa
papa a portuguesa ".
Além de qualificar esses homens de letras que fazem das colaborações
sistemáticas nos jornais mais importantes da cidade o meio principal de sua
sobrevivência e, principalmente, do seu reconhecimento público, o jornalista mostra
todo um comportamento comum entre essa boêmia literária.
"O garçãofica decepcionado COIIIo pedido, pois o papeiro tão belllfalall/e, tão aristocrático
nos IllOdos e lIIaneiras de traj(n; dá a illlpressão, a prillleira vista, de um bastardo fazendeiro
ou de um diplolllata saído naquele instante do Italllaraty".
A verve no falar, os modos de trajar e, principalmente, o título de doutor
fazem com que, mesmo sem possuir recursos econômicos, se comportem como
abastado. Não possuindo o reconhecimento público, mas se distinguindo por
impor uma língua oficial, esses homens de letras são sobretudo possuidores de um
capital simbólico altamente eficaz. E para detê-Io é necessário ostentar os símbolos
vivos dessa posição: um modo de falar próprio, um modo de vestir peculiar e o
diploma de bacharel.
"Os poetas bebellllllllilo ... café efillllalll delllais, enquanto tiralll baforadas observalll
discretalllente se há algum parceiro por perto para abordOl: Militas Fezes rimalll, mas não
entoam, pois nos versos pés quebrados e lIIanelas vão fazendo seus pedidos que em geral são
'facadas' e 'lIIordidas' ... "2S.
OS boêmios literários, repórteres e redatores fazem dos cafés a parada
habitual das idas e vindas das redações. Descrevendo esse cotidiano, também
Gilberto Amado, se refere ao trabalho nesses jornais e aos encontros e discussões
em torno dessas mesas.
"O trabalho na redação da A Imprensa,jomal político, despreocupado de tlOtíeias de últillla
/Ora, valendo só pelo editorial e 11111 ou Oltlro tópico, terlllinava cedo. COIIIa noite diante de
nós, íalllos. Abneu Mourão, Bumo Monteiro e eu para O Paiz, onde Mourão cOllleçara
t 'lIIbém a escreva Passávalllos no Suiço, à esquilla de Asselllbléia, para UII/{( lIIédia, ullla
cerveja ... Qualldo saíalllos da redação, tarde, ali voltávalllos para 11111 bife-a-cavalo "IV.
É preciso ainda considerar o papel de intelectual orgânico exercido por
esses homens de letras, cuja maioria absoluta é cooptada pelo poder, através de
sua inserção no mundo do jornalismo ou na burocracia oficial. Poucos foram os
que, como Lima Barreto, mais por força das circunstâncias e pelo fato de sua
condição interferir permanentemente na sua posição de classe, exercem um papel
independente, apesar de freqüentemente se referirem a sua própria liberdade.
Há, pois, dois tipos de jornalistas-intelectuais, ambos mantendo uma
relação ambivalente com a classe dominante e com a dominada. O primeiro,
claramente cooptado, será o literato, o repórter, o redator, o cronista, o folhetinista,
entre dezenas de outros substantivos, nas maiores publicações da cidade, recebendo
salários regulares, ao mesmo tempo em que exerce uma função na burocracia estatal,
na política ou na diplomacia. O segundo, do qual fazem parte, por exemplo, Lima
Barreto, Pardal Mallet e outros, percebem a sua condição econômica e a sua
exclusão social como fundamentos essenciais de uma solidariedade com as classes
dominadas e de hostilidade com os dominantes e com seus representantes no
campo intelectual11•
Ao contrário dos dirigentes das grandes publicações e tal como a maioria
dos repórteres e redatores, têm sua origem de classe Iigada a famíl ias de origem
urbana, profissionais liberais, professores, comerciantes, todos de um grupo
econômico menos abastado e em ascensão no cenário social da República. Com
exceção de Bastos Tigre, filho de um rico comerciante, todos os outros boêmios
literários são originários de famílias de origem modesta. O pai de Paula Nei é
alfaiate, o de Olavo Bilac, um médico de pouca expressão, o de Lima Barreto, um
tipógrafo da Imprensa Nacional, o de Alcindo Guanabara, um modesto professor
no interior do Estado, o de João do Rio também professor e o de Coelho Neto, um
pequeno comerciante no Maranhão.
A partir do instante em que, ao trabalharem nos jornais, tornam-se
conhecidos pelo público leitor, conseguem publicar seus romances, crônicas ou
poesias, sendo reconhecidos, a partir de então, como "verdadeiros" literatos. Outros
se valem das relações estabelecidas a partir da sua inserção no jornalismo para
melhorar a sua condição na escola social, como PatrocínioJ4• Alguns, entretanto,
nunca passaram de alegres e irreverentes boêmios literários, a dizer poesias, a fazer
prosa, oralmente, nas confeitarias e cafés da cidade. Para esses, a obra literária
deixada para a posteridade perdeu-se anonimamente nas letras impressas e
guardadas sob a forma de jornal.
Notas:
I NETTO. Manoel Cardoso de Carvalho. Norte oito quatro. Rio de Janeiro, 1977, p. 20.
2 Sobre o lema cr. ainda MICELI, Sérgio. Poder, sexo e lelras na República Velha. São Paulo:
Perspectiva, 1977,86 p. e Intelectuais e classe dirigente no Brasil (1920-19451. São Paulo: Direi,
1979,210 p.
3Sevcenko, Nicolau. Literatura como missão (tensões sociais e criação cultural na Primeira
República). São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 78-108. Nesse livro Sevcenko também trata das
conseqüências que o jornalismo trouxe para a literalura. noladamenle o efeito negativo que se Iraduz
sobre a criação literária.
4Nessa definição, portanto, eslamos considerando a noção de milo lal como a concebeu Roland
Barthes e Alben Sauvy. Cr. BARTHES, Roland. Mitologias. Rio de Janeiro: Ed. Bertrand, 1989, 180 p.
e SAUVY, Alberl. Milhologies de nolre lemps. Paris: Payot, 1965, 208 p.
5ELlADE, M ircea. Images el symboles. Essais sur le symbolisme magico-religieux. Paris:
Gallimard, 1952; Aspect dumythe. Paris: Gallimard, 1963; Mito e realidade. São Paulo: Ed. Perspectiva,
1994. e Mito do eterno retorno. São Paulo: Mercuryo, 1992.
6GIRARDET, Raoul. Mitos e mitologias políticas. São Paulo: Cia. das Letras, 1987.
7BARRETO, Lima. Recordações do escrivão Isaias Caminha. São Paulo: Ed. Ática, 1984, p.

91bidem, p. 203-313-
10MENDONÇA, Sônia Regina. Ruralismo: agricultura. poder e estado. São Paulo, 1990. Tese
(Doutorado) Instituto de Filosol'ia, Letras e Ciências Humanas - Universidade de São Paulo. p. 243-
245.
II HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raizes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1993, p.
113-125.
12ADORNO, Sérgio. Os aprendizes do poder. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 95-107.
13Sobre o curso de Direito em São Paulo, cf. Adorno, especialmente capo 3, "O liberalismo
sobre as Arcadas: o confronto entre a academia formal e a academia rural". Sobre a eseola de Recife e I'.
SPENCER, Roque. A ilustração brasileira e a idéia de universidade. São Paulo: Convívio/Edusp,
1959, p. 154-158.
14A interessantíssima correspondência privada de José Carlos Rodrigues mostra esse papel
que o dirigente exercia, se tornando mesmo um verdadeiro poria-voz dos Governos Prudente de Morais,
Campos Sales e Rodrigues Alves. Sobre a vida de José Carlos Rodrigues, cf. Também CARDIM, Elmano.
Na minha seara. Rio de Janeiro: s. e., 1949, especialmente "José Carlos Rodrigues, sua vida e sua obra".
Conferência realizada em 5 set. 1944, no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em seção solene
comemorativa ao centenário do jornalista.
15Sobre o conceito de habillls cf. Bourdieu. P. Bourdieu concebeu o conceito como uma recusa
um ceno mecanicismo e psicologismo comum às ciências sociais. Desejando por em evidência as
c, pacidadcs criadoras, ativas c inventivas do sujeito, o sociólogo chamou a atenção para a idéia de que
est~Doder gerador - o habillls - não é o de um espírito universal, de uma natureza ou de uma razão
hum1~a. Como mostra a palavra, habilll:i é um conhecimcnto adquirido e, diz literalmente Bourdieu,
"um h~ver, um capital de um sujeito transcendental". O habitus indica a disposição quase postural de
um agente em ação. Bourdieu, "Gênese do conceito de habitus e de campo". In: op. cit., 1989 e tamhém
"Onthe literary history". In: Poetics, vaI. 14, n. 3/4, ago. 1985, p. 199-207.
16Barreto, op. cit., 1984, p. 84. Vciga Filho é na verdade Leão Veloso Filho, redator chefe do
Correio da Manhã.
17 MENEZES, Raimundo de. A vida boêmia de Paula Nei. São Paulo: Marlins Ed., 1957, p. 39.
18 José Carlos de Carvalho, na época tenente de Armada Nacional e, posteriormente, deputado
federal; José Augusto Neiva, deputado federal pela Bahia; Manuel da Silva Pontes Jr., cônsul geral em
Buenos Aires; Manuel Ernesto Campos Pano, oficial da Secretaria do Senado Federal e Maximiano ,,'
Serzedelo, oficial da Diretoria dos Correios. Citado por Menezes, p. 66-67.
19 Netto. p. 5 I-52.
20 JORNAL DO COMMERCIO. Felix Pacheco. Rio de Janeiro: Tip. Jornal do Commercio,
1952, p. 69.
21 Discurso de Júlio Barbosa, por ocasião do seu cinqüentenário como jornalista, em 1944,
transcrito por GUASTINI. Mário. Tempos idos e vividos. São Paulo: Ed. Universitária. 1944. p. 41
22 Estudando 200 intelectuais que compunham a chamada Repúhlica das Letras, no período
1870-19.10, A. L. de Machado Neto contabilizou 52,5% com formação superior em Direito, 14,5% em
Medicina e 8,5% em Engenharia. Os oriundos das escolas militares ocupavam a quarlacolocação. Segundo
o sociólogo 86% dos intelectuais pesquisados tinham curso superior, completo ou não, 8,5% possuíam
formação secundária, .1.Wr nível primário e apenas 2% eram autodidatas. Machado Neto, A. L. de. Estruturà
social da República das Letras (Sociologia da vida inlelectual brasileira - 1870/1890). São Paulo:
Grijalbo-USP, 1979, p. 252.
2.1ROURE. Antenor de. ·'Recordações'·. In: Jornal do Commercio, 1928, p. 751-2.
24MAUL, Carlos. Grandezas e misérias de vida jornalística. Rio de Janeiro: Liv. São José,
1968, p. 50.
25 BILAC, Olavo. Ironia e piedade. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1916.
26 Bourdieu, 1987. p. 189-192 e 227-.112.
27JORNAL DO CüMMERCIO. Júlio Barbosa. Riode Janeiro: Tip. do Jornal do Commercio,
1950,75 p.
28 Jornal do Commercio, 1952, p. 26
29Barrelo. 1984, p. 2.1-
.10Menezes.op. cit.. p. .19.
.1lCarta de Paula Nei a Coelho Neto, citada por Menezes, op. cit., p. 97 .
.12Sobre José de Patrocínio, seu pensamento, suas contradições, sua trajetória de vida e o seu
papel nojornalismo abolicionista, ct'. Fernandes.op. cit., 1991.
.1.1Menezes, op. cit., p. 97 .
.14lbidem, p. 85 .
.15Sobre o papel do Estado como fornecedor da remuneração ao escritor e sobre a questão do
público leitor ct'. também CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. São Paulo: Cia Editora Nacional,
1967, p. 90-102 .
.16Menezes, op. cit., p. 97 .
.17Neto. Coelho. Fogo fátuo. Porto: Livraria Chardon, 1929, p. 27. Coelho Neto escreveu dois
romances em que Paula Nei é o personagem central: A conguista e Fogo fátuo .
.18Candido.op. cit.. p. 86-87 .
.19R10, João do. O momento literário. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 1994, p.
11. e Sevcenko, op. cit.. p. 88-89.
40Rio, op. cit, 1994, p. 4-9.
41 Bourdieu, op. cit., 1979. Pierre Bourdieu nesta obra analisa, sobretudo, as ingerências do
capilal escolar até sobre elementos, em princípio, estranhos a este meio. como gostos, identidades, etc.
Para ele as ações de inculcação e imposição de valor da instituição escolar contribuem para constituir
a disposição geral de uma culiura legítima que tende a se aplicar para além dos limites escolares, tomando
a forma de uma propensão "desinteressada".
42Bilac, Crítica e fantasia. Lisboa: Liv. Clássica Editora, 1904, p. 224-225.
4.1CAMINHA, Adolfo. Cartas literárias. Rio de Janeiro: Tip. Aldino, 1895, p. 1.1-14.
44No início do século o Jornal do Commercio paga .10, 50 e até 60 mil réis pela colaboração
literária e o Correio da Manhã 50 mil réis. Em 1907, Olavo Bilac e Medeiros e Albuquerque têm ordenados
mensais pelas crônicas publicadas na Gazeta de Notícias e no Paiz. O mesmo acontece com Coelho Neto
no Correio da Manhã. Humberto de Campos recebe, em 1915, .100 mil réis e Alphonsus de Guimarães
400 mil réis em 1906. Já o Jornal do Commercio paga a Constâncio Alves 50 mil réis por uma crônica
s~manal por 30 anos a fio. Cr. Machado N~IO,op. cil., p. 81-83.
45Carta d~ Edmundo Bill~ncourt a Co~lho N~to, 20 lá 1904. Anais da Bibliot~ca Nacional,
vol. 78. Rio d~ Jan~iro: Biblioteca Nacional - Divisão d~ Publicaçõ~s, 1963, p. 98-9.
46Carta de Edmundo Bill~ncourt a Co~lho N~to, 9 dez. 1902. Ibid~m, 97-8.
47N~ed~ll, op. cil., p. 236-237.
48lbidem.
490T Á VIO, Rodrigo. Minha m~mória dos outros. Rio d~ Jan~iro: JoséOlímpio Ed., 1934, p.

50N~IO, A conquista. Porto: Livraria Chardron, 1913, p. 189. Aluísio d~ Az~vedo é, na ficção
de Co~lho N~to, personificado por Ruy Vaz, ~nquanto Paula N~i é Paula N~iva.
5 lidem, op. cil., 1929, p. 75-76.
52BROCA, Brito. A vida Iit~rária no Brasil - 1900. Rio d~ Jan~iro: Ministério da Educação
- Serviço de documentação, s. d., p. 44-49.
53Carla d~ Pardal Mallel, citada por M~n~zes, op. cil., p. 258.
54Broca, op. cil., p. 22-23. Também BastosTigr~ r~f~r~-s~ao fato d~a Cidad~ do Rio s~ro Q.G.
da literaturajornalística ou do jornalismo literário. ~mbora Patrocínio pagass~mal aos redatores ~ os
ord~anados viv~ss~m ~m p~rmanent~atraso. E acr~sc~nta:"Mas quando algum reclama, s~ele por falta
de numerário não Ih~ acerta as contas, consola, ~ntretanto o reclamanl~. - Quanto você ~stáganhando"
C~m mil réis. - Pois, d~sle mês em diant~, passa a ganhar cento e cinqlienta·'. Cr. TIGRE, Bastos.
Reminiscências. Brasília: Thesaurus, 1992, p. 24.
550 M~io, artigo d~ apr~s~ntação, 17ago. 1889,p. I, citado por Men~z~s,op. cil., p. 178-179.
56M~n~z~s, op. cil., p. 179-180.
57AMM IRATO, Giacomo. Hom~ns ~ jornais. Rio d~Jan~iro: Gráfica Ed. Aurora, 1963,p. 117-

58AMADO, Gilb~rto. Mocidad~ no Rio ~ primeira viag~m à Europa. Rio d~ Jan~iro: José
Olympio, 1956, p. 56.
59Bourdi~u, op. cil., 1982, ~sp~cialm~nle capo I, "A produção e a r~produção d~ uma língua
legítima", p. 23- 69.
60Estamos ~mpregandoo t~rmo intelectual orgânico, tal como o conc~b~uGramsci. Cf. op. cil.,

61Estigmatizado por suaorig~m pobr~ (s~u pai é tipógrafo da Impr~nsa Nacional) e por suacor,
Lima Barreto tenla v~ncer ~ssasmarcas, ingr~ssando na acad~mia, ao mesmo tempo que se inicia no
jornalismo como n:pórter. D~pois colaborar nagrande impr~nsa, ch~gando a s~r r~pórt~r do Correio da
Manhã, Lima Barreto trava forl~ polêmica com Edmundo Bill~ncourt, a qu~m critica rerozm~nt~ nas
Recordaçõ~s do Escrivão Isaías Caminha, e é alijado da grande impr~nsa, passando a escrev~r para
pequenas empresas. A b~bida, os ~sligmas de sua condição de c1ass~I~varam-no a uma decadência
precoce, ao isolam~nto, ao Hospital dos Alienados.
62Bourdieu, op. cil., 1987, p. 192-196. Entendemos qu~ essa dualidade é extremament~
abrangent~ ~ m~r~c~ria um ~studo mais aprofundado, o que, entr~tanto, fog~ ao tema mais amplo dessa
pesquisa.
63Fernandes, op. cil., 1991.O mesmo autor, com~nta ainda a não absorção de Patrocínio entre
os que exerceram um papel atuant~como intelectuais na R~pública, destacandoo fato de o abolicionista
t~r sido colocado em segundo plano, o que se reflete, mesmo, na decadência da Cidade do Rio. Pela
compl~xidade do lema e, fu ndamentalmente, por não ser objeto da nossaanálise, não nos delivemos na
questão.
64 PEDERNEIRAS, Raul. "A vida do estudante do Colégio Pedro 11em 1884·'.ln: MARINHO,
I. e INNECO, L. O colégio Pedro II cem anos depois. Rio de Janeiro: Villas Boas, 1938, p. 50 e MELO
E SOUSA, João Batista de. Estudantes do meu tempo. Rio de Janeiro: Colégio Pedro 11,1958, vol. I,
p. 280-4 e vol. 3, p. 25. Citados por NEEDELL. JelTrey D. Belle épogue tropical. São Paulo: Cia das
Letras, 1991
65lbidem, p. 78-79.
66Até 1851 os exames preparatórios são realizados nas escolas superiores nas quais os
estudantes desejavam ingressar, tendo validade de um ano, e na escola onde eram prestados. Desse ano
até 1871 os exames podem ser feitos também no Riode Janeiro peranteà Inspetoria de Instrução Primária
e Sccundária e. depois. no Colégio Pedro 11:são os chamados exames gerais preparatórios. A aprovação
garantc ao candidato matrícula em qualquer escola superior do Império. A partir de 1873, o exames
passam a ser realizados também nas capitais das províncias, onde não há escolas superiores, perante
delegados do inspetor de instrução e bancas constituídas segundo indicação dos presidentes dessas
províncias. CUNHA. Luiz Antônio. A universidade temporã. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1980, p. 114-115.
67Até 1943,com a criação de um Curso de Jornalismo anexo à Faculdade Nacional de Filosofia,
pertcnccnte à antiga Universidade do Brasil. não há curso de jornalismo no Rio de Janeiro, sendo este
uma vertente do curso de Direito. Em São Paulo, o jornalista Cásper Libero, pouco antes da sua morte,
em 1943, rcgistrou em cartório o seu testamento criando a primeira escola dejornalismo do país. Após
a sua morte é celebrado um convênio com a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São Paulo,
possibilitando, assim. a implantação do Curso de Jornalismo, um ano antes da Universidade do Brasil,
em 1947. A primcira turma de jornalistas é diplomada, tanto no Rio. como em São Paulo, em 1950. A
primeira proposta para o funcionamento de uma escola dejornalismo foi feita no Congresso Brasileiro
de Jornalistas realizado pela ABI, no Rio de Janeiro, em 1918. Também o projeto pioneiro da
Universidadc do Distrito Federal. de Anísio Teixeira. prevê um curso de jornalismo de caráter reflexivo
e não profissionalizante. Meio, "Cásper Libero, pioneiro no ensino de jornalismo no Brasil". In:
Transformacões do jornalismo brasileiro ética e técnica. São Paulo: INTERCOM, 1994, p. 13-26. SÃ,
Vítor de. Um repórter na ABI. Rio de Janeiro: Editora A Noite, 1955 e "Primeira turma de jornalismo
analisa curso 44 anos depois". In: Jornal da ABI, nov-dez. 1994, p. 7.
68 Sobre os cursos jurídicos no Brasil cl'. BASTOS, Aurélio (org.). Os cursos jurídicos e as
elites políticas brasileiras. Brasília: Câmara dos Deputados. 1978; FACULDADE DE DIREITO DA
UNIVERSIDADE DO RIO DEJANEIRO. Livro do centenário dos cursos jurídicos (1827-1927), vol.
I e 11.Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1928; Cunha. op. cit., 1980.
69 Decreto citado por Cunha, Ibidem, p. 110-111.
70 Em 1882, Fernando Mendcs de Almeida funda com um grupo de amigos essafaculdade, que
no entanto não passada ata. Só em 1891, com a reforma Beijamin Constant é que a iniciativa tem êxito.
O crcscimcnto do ensino superior no país seria expressiv~ após essa reforma. Em 1880, há escolas
superiores voltadas para reduzidas áreasdo saber -medicina e cOlTelatas,engenharia e correlatas, direito
e agronomia -localizadas em apenassetecidades e comum número de estudantesque chega a 2.300. Em
1915, há 1.30 I calouros em sete faculdades do país, não incluindo-se nesta cifra os estudantes novos
dc outras 37 faculdades c das duas universidades existentes. Segundo Luiz Antônio Cunha pode-se
estimar o número de estudantes do ensino superior em mais de 10 mil, chegando a 20 mil ao final da
Primcira República. Ibidem, p. 133-134.
71 Schwarcz, O espetáculo das raças. São Paulo: Cia. das Letras. 1993, p. 146-172.
72lbidem, p.148-150
n·íbidem, p. 177-178.
74 Revista da Faculdade de Direito de São Paulo, n. 169, 1929, citada por Schwarcz. Ibidem,
p. 178.
75 Adorno, op. cit., 1988, p. 142-141
76 Holanda, op. cit., 1993, p. 102-116
77Com urna tiragem de mil exemplares, A Época é fundada pelo acadêmico Manoel Paes Oliveira,
que tal como outros dirigentes ocupam lugares de relevo na política e na burocracia oficial. Manoel
Oliveira é posteriormente Secretário de Fazenda no seu estado (MT); Teodoro Figueira de Almeida,
oficial de gabinete da Presidência da República e, posteriormente, deputado e Mário Newton de
Figueiredo, mais tarde funcionário do Tribunal de Contas da União. O Paiz, 1 nov. 1913, p. 5.
78Fonnado por São Paulo, em 1868, Leôncio Carvalho. proprietário do Correio Paulistano, é
um inlluente político liberal, deputado, ministro do Império, lente catedrático de Direito Constitucional.
Participa da elaboração da Constituição Republicana (1890-1) e colabora também na elaboração da
Constitllição de São Paulo. Calmon, op. cit., 1945, p. 145.
79 "Memória histórica de 1918 da Faculdade Livre de Direito da Capital Federa!"'. In: Ibidem.,

80 Bourdieu, op. cit., 1987, p. 209-219.


81 Costa Lima, Sociedade e discurso ficcional. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986, p. 187-239.
82lbidem, p. 187-189.
83lbidem, p. 243 e seguintes.
84Schwarcz, op. cit., 1993, p. 240-241.
85Analisando o etnocentrismo, o cienti ficismo, o i1uminismo, o pensamento de Saint-Simon e
Condorcet e refletindo sobre a territorialidade da identidade e da diferença, sob forma de uma doutrina
das raças - a doutrina racialista - Todorov chama a atenção para as diferenças entre cientificismo, enquanto
sistema de pensamento, e as teorias científicas da 'tilosofia do lIuminismo", corno movimento de idéias,
que existiram no século XVII L Cientificismo e humanismo corno sistemas de pensamento coerentes não
pertencem a urna época particular, mas como urna doutrina e corno um postulado do determinismo illle-
gral regendo o mundo. faz parte das correntes de pensamento tanto de Saint-Simon, quanto de Condorcet
e do positivismo de Augusto Comle. CL TODOROV, Tzvetan. Nós e os outros: reflexão francesa sobre
a diversidade humana - L Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1991
86Esse projeto de construção de urna nova ordem na cidade do Rio de Janeiro já foi
exaustivamente estudado sobre os mais variados enfoques e particularidades. CL entre outros SOIHET,
RacheI. Condição feminina e formas de violência: mulheres pobres e ordem urbana - 1890-1920. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 1989; CHALOUB, Sidney. Trabalho. lar e botequim. O cotidiano dos
trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque, São Paulo: Brasiliense, 1986; ENGEL, Magali.
Meretrizes e düLllores. Saber médico e prostituição no Rio de Janeiro (1840-1890). São Paulo: Brasiliense,
1989; ESTEVES, Martha de A. Meninas perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro
da belle époque, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989; e RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar. A utopia da
cidade disciplinar. Brasil 1890-1930. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
"Por não termos aspirações políticas podemos agir livremente, cOl1lojol"11alistas,censurando
o abuso das autoridades, advogando a causa dosfi"acos, batendo-se pelas garantias
COllstilllcionais, atacando veementemente o Poda sempre que ele exorbita de suas
atribuições "I .

Respeitados e temidos, os donos dos matutinos são responsáveis pela


idolatria ou pelo descrédito de figuras públicas e notórias. Através das duras
campanhas que promovem nos seus periódicos podem demolir reputações, derrubar
ministros ou nomear políticos. Edmundo Bittencourt, João Lage e, principalmente,
José Carlos Rodrigues são de fato os "donos do dia".
Emitindo mensagens dos grupos dominantes, os matutinos elaboram
verdadeiras estratégias para transformar o uso das letras em mito social, tornando
possível, assim, a sua inserção num lugar privilegiado. A criação de identidades
próprias - como opositores ou defensores dos que ocupam os lugares chaves na
política - também faz parte dessa estratégia dos jornais se auto-construirem como
legitimadores do poder.
A identidade dos conteúdos e das mensagens que divulgam, a
representação da realidade com tintas mais ou menos idênticas, o fato de todos se
arvorarem em intermediários entre o público e a sociedade política não devem ser
vistos apenas como coincidências editoriais.
Tendo como função formar um discurso unificado e fazendo parte de
uma nova ordem letrada, esses diários possuem um poder inquestionável.
As relações desses jornais com o Estado, entendido não apenas como
comando político, mas como formação que combina uma simbologia, onde os
aspectos semióticos se sobressaem, passam a ser fundamentais2 .
Gramsci, na sua teoria ampliada de Estado, chama a atenção para o
caráter multidimensional dos processos sociais, já que, para ele, o Estado seria
produto de múltiplas e dinâmicas inter-relações entre sociedade civil e sociedade
política, num permanente movimento de pressões e contrapressões entre grupos
de indivíduos organizados, visando a produção do consenso, ou seja, a aceitação
do projeto de um desses grupos por todos os demais.
Essa concepção implica na idéia fundamental de direção intelectual que é
imposta por um grupo a toda a sociedade, através do consentimento e não apenas
da coerção explícita. As representações, valores e concepções, apresentadas muitas
vezes Como divergentes ou conflituosas, fazem parte de um único processo, onde
o que está em jogo é a imposição de projetos elaborados pelos grupos dominantes.
A hegemonia deve ser lida tendo em conta, muitas vezes, a contra-hegemoniaJ .
Numa sociedade recém-saída da Monarquia, onde é emergente a formação
de uma nova ordem e dinâmica capitalistas, as divergências, rivalidades e dualidades
são múltiplas. Mas, a par disso, há todo um projeto de criação de uma estrutura de
poder, onde as lutas entre os grupos dominantes afloram para o restante da
sociedade. Há também o projeto comum de disseminação de uma nova visão de
mundo, e é nessa intenção que os periódicos assumem o seu papel emergencial.
A sociedade política depende das instituições da sociedade civil, onde os
jornais se incluem, para divulgar o simbolismo da recém-criada República. Por
outro lado, os símbolos incorporados ao novo cenário social precisam se materializar
sob as mais variadas formas, onde a transfiguração em realidade se sobressai.
Nesse sentido, também, os jornais cumprem a "missão" não apenas de
disseminar idéias, mas ao transportar o relato da narrativa para o nível do real, são
responsáveis pela criação de uma outra realidade.
Ao mesmo tempo que materializam o Estado, tornando pública a sua
simbologia e ideologia política, esses periódicos, ao narrar as ações, criam contextos
para a descrição, referendando convenções que passam a ser interpretadas
significativamente de uma forma ou de outra. Estado, hegemonia e cultura são
dimensões dos mecanismos de exercício de dominação de classe e da reprodução
social.
Por outro lado, através da criação de uma imagem extremamente peculiar,
os jornais e os jornalistas criam também uma idealização da profissão e do papel
que devem desempenhar esses veículos. Essa imagem, divulgada ao extremo e
imortalizada nas páginas impressas, se constitui numa memória do grupo fOljada
por ele mesmo.
Ao priorizar um conteúdo valorizando também o excepcional, o
extraordinário e o inédito, veiculado sempre como imparcialidade e verdade,
constróem, por outro lado, uma memória da sociedade sob uma ótima singular. As
campanhas que realizam com finalidades específicas se contrapõem ao silêncio
ideológico de determinados temas. Entre a dialética lembrar e esquecer, os diários 11
ft constituem-se como um dos senhores da memória da sociedade, aumentando seu
campo de atuação e, sobretudo, o seu poder.
Definindo-se freqüentemente como defensor dos fracos e dos oprimidos, "
cuja principal missão é "censurar o abuso das autoridades" e "denunciar o próprio
poder", sendo, dessa forma, o intermediário possível entre o pClblico e a sociedade
política, o Jornal do Brasil, por exemplo, constrói uma auto-imagem extremamente
peculiar. Há ainda da parte desses veículos e dos jornalistas, em particular, toda
uma preocupação em definir o jornalismo e o jornalista para o leitor.
Entretanto, essa não é uma prerrogativa apenas do Jornal do Brasil.
Havia, entre eles, algo além da proximidade física de suas redações: todas localizados
no quadrilátero formado pelas ruas do Ouvidor, Sete de Setembro e Av. Central4•
Também do ponto de vista de uma memória construída e de uma auto-
identidade atribuída, as semelhanças entre os cinco mais importantes diários são
maiores do que as di ferenças que fazem questão de apregoar nas campanhas tornadas
públicas.
É preciso considerar, também, que o jornalista, ao selecionar fatos, ao
relegar outros ao esquecimento, ao escolher a forma de sua narrativa e ao definir o
lugar na página a ser ocupado pelo texto, dirigindo um olhar subjetivo sobre o
acontecimento, mantém como essencial a dialética lembrar e esquecer. Aos relatos
que devem ser perenizados, imol1alizados na prisão da palavra escrita, contrapõem-
se outros que devem ser relegados ao esquecimento.
Distinguindo memória e história por possuírem natureza diversa, é
necessário perceber a memória como um conjunto de relações, de acumulação de
fatos e, sobretudo, como uma dialética entre lembrança e esquecimento: só é possível
lembrar porque é permitido esquecer.
Para David Lowenthal essa questão é central. Segundo o autor, a memória
seria uma seletiva reconstrução do passado, baseada em ações subseqüentes - ou
seja, não localizáveis nesse passado -, em percepções e novos códigos, através dos
quais se delineia, se simboliza e se classifica o mundo. A memória não preservaria
o passado, mas o adaptaria, para enriquecer e manipular o presente. Essa seleção
é feita pela história, que, assim, se constitui numa construção subjetiva e seletiva
desse passado; .
Funcionando como uma espécie de memória escrita de uma determinada
'I época, o jornal retém o excepcional. E mesmo quando os fatos mais quotidianos
aparecem fixados sob a forma de notícias, há sempre um nexo da narrativa que
transpõe esses mesmos acontecimentos do lugar do comum para o do extraordi nário.
Aprisionando o acontecimento num suporte de excepcional idade, reproduz-se sob
a forma de letras impressas a memória do que é excepcional.
Por outro lado, a escrita deve ser vista como elemento básico de construção
seletiva da memória que engendra, sobretudo, a questão do poder. Percebendo-a
como seleção e construção, é necessário ver os agentes ou os senhores dessa
operação como detentores de poder. Tornar-se senhores dos lugares, das agênciaS\\
da memória é, ao mesmo tempo, ser senhor da memória e do esquecimento.
Eternizar um dado momento, através da escrita é, sob certo aspecto,
"domesticar e selecionar a memória". Ao selecionar o que deve ser lembrado e ao
esquecer o que deve ficar em zonas de sombra e de silêncio, os jornais tornar-se-
iam também senhores de memória!> .
A partir de 1880, num longo processo, onde a construção de uma imagem
é fundamental, os diários do Rio de Janeiro, ao lado de outras instituições da
sociedade civil, formulam e sedimentam ideologias.
Entre essas construções, destacam-se as considerações em torno da visão
da imprensa. O jornalismo é o lugar da imparcialidade e da neutralidade e os jornais
são a expressão da verdade, porque representam o pensamento da sociedade,
graças a sua popularidade. O jornal é também a própria verdade, porque impresso
transforma-se em documento o que, a priori, identifica o que está contido em suas
páginas com a verdade absoluta.
Tributário da notícia inédita, o jornalista passa a ser testemunha, ator,
mediador e observador do próprio acontecimento, tornando-se candidato à operação
histórica. Cabe a ele, agora, racionalmente situar o acontecimento, ordenar suas
seqüências, relacioná-Io a um sentido menos problemático. Entretanto, só é
permitido reter o excepcional. Só raramente o monótono e o quotidiano podem ser
considerados: o que passa a existir é uma concepção da atualidade baseada no
sensacional. Essa concepção, fixada através da impressão, é transformada em
documentos, que se constituem verdadeiros monumentos de memória.
Na verdade, todo documento é também um monumento de memória, na
medida em que é produzido e uti Iizado com fi ns específicos pelo poder. O
documento não é algo que revela um dado do passado ou do presente, sendo antes
produto da sociedade que o fabricou, segundo as relações de força dos que detém
o poder. É, em última instância, o resultado do esforço de sociedades históricas
para impor ao futuro - voluntária ou involuntariamente - determinadas imagens de
si próprias) .
A constituição física das redações, divididas em setores estanques, onde
cada tarefa é cumprida por um jornalista responsável, mostra, a partir de então, a
centralização dos assuntos em três eixos principais. As notícias de caráter nacional
e político criariam a memória da Nação. As referentes à cidade e às de natureza
policial - cada vez mais destacadas - criariam a memória da cidade. As outras
seções, de natureza literária ou não, - como contos, folhetins, poesias,
entretenimentos, moda, etc. - têm como tarefa uma nova função: a diversão e o "
entretenimento que o jornal passa a oferecer, ao mesmo tempo em que procura
instruir e normatizar a sociedade, embora haja cada vez mais a valorização da
informação e o veto ao ficcional. Os redatores de banca, como se diz então, são
figuras em extinção. O que passa a existir são repórteres, encarregados de colher
nas ruas as informações, transformando-as em acontecimentos.
"A redaçeio modernaneio é mais o que era há trinta anos atrás. Hoje só um velho
anquilosado do jornalismo pode ser o que antigamente era unlClhonra: o redator de banca.
Um homem que neio explica a sua razeio de ser pelo luellOS com quatro ou cinco novidades
por dia é imprestiÍl'e/. Os redatores catam notícias tmubém e a base de seus artigos quando
neio é a rec/auwçeio para o bem público, é sempre a infornlClçeio"8.
Há que se considerar também o destaque que passa a ser dado às notícias
internacionais, o que é possível com a chegada da primeira agência de informação.
A partir daí, os diários destacam, inicialmente em quase toda a primeira página, os
telegramas, publicando, já no dia seguinte, uma súmula dos fatos internacionais
mais relevantes. Perceber o mundo, a partir daquelas páginas, significa para o leitor
estar em contato com as novidades, com o imediato, mesmo que se referisse a
longínquos e desconhecidos mundos. Por outro lado, esse verdadeiro panorama da
atualidade, insere a Nação brasileira nesse contexto, como participante de uma
ordem econômica e política que ultrapassa as fronteiras do país.
Como um monumento de memória, os diários passam a centrar a sua
análise e a difusão das informações sobre eixos preferenciais, criando também uma
imagem da cidade; do país, identificado com uma idéia pré-concebida de Nação; e
de si mesmo. A necessidade premente de construir uma identidade própria, ao
assumirem uma nova feição e tarefa e uma outra missão, ganha também destaque
nas páginas dessas publicações.

Quando o Jornal do Brasil começa a circular, em 9 de abril de 1891, o


artigo de fundo de Rodolfo Dantas faz questão de afirmar que o jornal não é
político e que, apesar de não ter contribuído para a implantação da República,
considera um dever de patriotismo ajudar na sua consolidação.
Desde o primeiro instante procura reafirmar a sua imparcialidade diante
de facções políticas, uma vez que possui um dever mais nobre: fiscalizar os poderes
públicos. Só com a liberdade de não estar atrelado a nenhum gmpo seria possível
cumpri r
"o serviço mais supremo e leal da imprensa aos sistemas políticos como o que atualmente
nos rege: o mérito desse serviço sobe de ponte, de valor e de necessidade a considerarmos
que suprimidas as normas parlamentares, até aqui representadas luesmo nestaformo de
governo o meio de fiscalizar os abusos do podei; essafilllçeio essência das sociedades livres
há de tocar naturalmellle e na sua maior latitude ri imprensa "y.
\\ Começa assim a criação de uma auto-identidade que destaca o papel
fiscalizador e denunciador da imprensa e, especialmente, do Jornal do Brasil, só
possível, segundo o argumento freqüentemente repetido, em função de sua
independência política.
Na prática, entretanto, neste período, que se estende até a entrada de Rui
Barbosa para a chefia do periódico, o jornal é monarquista. Relatos, inúmeras
vezes reproduzidos nas edições comemorativas, contam também que, no dia de
seu lançamento, um grupo, de forma provocativa, gritara à porta da Rua Gonçalves
Dias, 56, onde inicialmente funcionam a redação e as oficinas, "Viva a República",
apesar do pavi Ihão preto hasteado por Rodolfo Dantas à porta do jornal. A ausência
de cor queria indicar, segundo a tradição da época, isenção políticalll.
Essa isenção, entretanto, nunca existiu. Monarquista nos primeiros
tempos, filia-se à causa republicana, já em 1892. Fechado por Floriano, volta a
circular a circular em novembro de 1894, assumindo nitidamente uma posição de
defensor dos grupos econômicos e políticos que lhe dão sustentação. Defende com
vigor os atos oficiais, principalmente os referentes à modernização da cidade. Com
mais vigor ainda, afirma-se como apartidário e aliado indispensável dos fracos e
dos oprimidos.
Buscando uma marca que o caracterize, através da qual conseguiria alcançar
um público mais amplo, constitui-se de vez, a partir então, como um veículo
popular.
Criticado por seus adversários por ser "um jornal destinado aos
analfabetos", a par de toda uma idealização onde se destaca a imagem de grande
defensor dos menos favorecidos, o periódico introduz uma série de inovações,
para, de fato, atingir esse leitor. A profusão das ilustrações, que ocupam páginas e
páginas, sua marca característica, é sem dúvida um dos recursos eficazes para
alcançar este objeti vo I1 •
Assim, ao mesmo tempo em que difunde a imagem de isenção política e
de imparcialidade, o que permite cumprir com a missão da imprensa - fiscalizar os
poderes públicos e denunciar o precisa ser revelado - editorialmente, é elaborado
para referendar essa posição. As informações ganham o lugar que lhe é devido,
cada vez mais distantes das opiniões, graficamente colocadas onde é permitido.
Três quartos do jornal são ocupados por colunas fixas, onde se privilegia a edição ,.,
de informações.
Se a sua tarefa ou "serviço", como afirmam literalmente, é fiscalizar os
abusos do poder, esse papel é não apenas do novo periódico, mas da imprensa. O
Jornal do Brasil é freqüentemente igualado à imprensa, o que faz com que, por
vezes, sua própria identidade pareça relegada a segundo plano.
"Vamos assumir as responsabilidades e obrigar-nos aos deveres da imprensa, emfase
deveras singular e no momento realmente crítico até para a imprensa, mas sobretudo para o
país, quando velhas são chamadas instituições ainda de ontem, e IW1'as instituições sem
dlÍvida jáfill1dadas, estc70porfuncionar em grande nlÍmero dos seus mais importantes
órgãos"!2.
O texto acima revela não apenas uma generalização que pretende,
sobretudo, particularizar uma identificação - no caso o Jornal do Brasil igual à
imprensa -, mas também a sua posição política, por vezes escamoteada nos textos.
Ao destacar que "instituições ainda de ontem" são consideradas velhas - no sentido
de ultrapassadas - critica aqueles que vão contra o antigo regime: a Monarquia.
Ao construir identidades, os periódicos referendam uma idéia que também
é corrente entre escritores, jornalistas e demais intelectuais. Cria-se entre os letrados
uma espécie de consenso sobre o papel privilegiado da imprensa, ao mesmo tempo
em que há a transformação dessas idéias em documentos-memória.
Anal isando uma série de artigos publicados sobre o tema, é possível
visualizar as mesmas nuanças de opinião sobre a missão do jornal, da imprensa e
dos jornalistas, com aquela fOljada pelo Jornal do Brasil. A missão do jornal,
como a da imprensa, é "servir aos interesses da Pátria".
Numa conferência sobre "A Boa Imprensa", Clóvis Dunshee de
Abranches, após caracterizar cada uma de suas fases, define o que é o jornal da
República.
"Ojornal debalde procura manter as Sl/{/S gloriosas tradições. A vida utilitária do país,
cada vez mais intensa e exigente, muda rapidamente o cenário nacional, ajudada pela
degeneração crescente nos hábitos, nas idéias e nas crenças, principalmente, das classes
mais cultas. Ojornalista começa parecer acanhado de ser doutrinado I: O artigo de fundo
decai,fica fora de moda. As próprias crônicas literárias e científicas minguam porfafta de
leitores. Um vocábulo estranho - o 'suelto' - torna-se o lÍnico gênero suportado e suportável
de crítica ou de censura. A imprensa doutrinária, a imprensa política, a imprensa partidária
sucede porfim a imprensa industrial e ao seu lado a imprensa de escândalo ".
Mais adiante, no mesmo texto, o diretor do Jornal do Brasil, criador da
coluna Coisas de Política, caracteriza o jornal e o jornalismo:
"A imprensa no Brasil nasceu nobre, altiva, cavalheiresca. Ojornal começou corno panfleto,
destinado a ser guardado emlivl'O, doutrinário e doutrinadO/; obedecendo defesa de uma
causa e apresentando idéias que se iam vitoriosamente condensando em sucessivos capítulos.
Ojornal era os jornalistas e ojOl'l1alismo uml'erdadeiro sacerdócio "13 .
A boa imprensa, digna, honesta, moralizadora, é aquela - segundo as
idealizações correntes - que se paute pela busca da verdade, que pregue a conciliação,
a ordem e o respeito à lei. É aquela que publica a verdade dos fatos. A imagem
construída pelos jornais define-a como uma instituição imparcial e pOltadora da
verdade. A essas idealizações uma outra ainda é acrescida: a de intermediário entre
a população e o poder público.
Se inicialmente o Jornal do Brasil particulariza uma imagem de
independência, num período subseqüente - caracterizado nas edições hi tóricas
como sendo sua segunda fase - a construção freqüente de sua identidade repousa
sob dois conceitos: ser moderno e popular.
Classificando-se como uma popularíssima folha, gabando-se de ser o
diário de maior tiragem da América do Sul, em 1900, enumera, em alguns textos,
uma série de adjetivos para a sua classificação e que são, por si só, altamente
reveladores: "folha popular por excelência", "paladino de todas as boas causas",
"eco de todas as queixas e necessidades do público".
A delimitação dessa nova fase é de tal ordem, que passam a comemorar
a sua fundação, não mais em abril, mas em 15 de novembro, data em que Fernando
Mendes de Almeida assume a sua direção em 1894.
"Dia 15 do corrente //lês cOlllpleta o lomal do Brasil seis anos de sua uovafase, e
ilupossível seria deixar despercebida esta data, elll que, entre dúvidas e incertezas,jillldalllos
a nossa tenda de trabalho, se//l outro fito que não fosse servir ao interesse público, selll
outra esperança que não a de lIIerecer as silllpatias populares. Desvanece-nos acreditar que
telllos cUlllprido a nossa lIIissão, pelas cOllstantes provas que diarialllente recebelllos da
estillla e popularidade que 1l0Scercam "li.
Aliam assim dois fatos: a data fundadora passa a ser identificada com a
da República e caracterizam esta fase com um novo marco, que não se confunde
com nenhum outro. O Jornal do Brasil é a própria imagem da República e com
uma missão tão nobre quanto a daquela: promover a ordem e o progresso, além da
defesa dos fracos e dos oprimidos.
Não é por acaso a publicação de inúmeras litografias identificando a sua
imagem com a de uma figura feminina, por vezes, com louros na cabeça. Essa é
extremamente semelhante à imagem de mulher com que também representam a
República.
Os jornais reproduzem temas contidos no imaginário social, que se
expressa não apenas por ideologias e utopias, mas também por símbolos, alegorias
e rituais. Essa simbologia projeta interesses e aspirações coletivas e na medida em
que atinge o imaginário, molda as visões de mundo e a própria conduta na sociedade.
Os símbolos, onde se inclui a representação feminina da República, são arquétipos
de toda uma visão de mundo que se materializam nos materiais forjados pela
ideologia dominante.
A imagem do jornal pode se confundir com uma outra, representada
também por uma mulher: a imprensa livre. Assim é na edição de 15 de novembro
de 1901, quando publicam, com destaque, uma ilustração na página um, onde uma
figura feminina aparece olhando em um espelho, tendo a seus pés diversos números
do Jornal do Brasil. Ainda na gravura pode ser vista a inscrição "pela Verdade,
pela Justiça e pela Caridade".
Todos os diários procuram retratar os mesmos símbolos presentes na
representação feminina da República, através de uma imagem onde também se
igualam a uma figura de mulher, igualmente onipresente e representativa da pátrial5 .
Essa imagem aparece em inúmeros momentos, principalmente nas datas
comemorativas, quando o jornal é invariavelmente fixado para a lembrança como
uma jovem altiva, soberba e, principalmente, dominadora. Essa idealização aparece
na edição do centenário da imprensa no Brasil em O Paiz, onde uma mulher, com
uma túnica romana, senta-se sobre um pilar, com as datas 1808-1908 gravadas.
Nas mãos, a chama da Iiberdade e um exemplar de O Paiz e aos pés todos os
demais jornais da cidade. Ao lado de um globo terrestre, o seu braço repousa sobre
livros, expressando o domínio do saber e do conhecimento universal.
Da mesma forma na edição de décimo aniversário, o Correio da Manhã
reproduz uma alegoria feminina como síntese do jornal. Tendo em umas das mãos
(( uma enorme pena - também símbolo do saber - na outra ostenta o periódico, lido
atentamente. Sob seus pés, rosas, e a sua frente um pequeno jornaleiro corre
apregoando o nome do matutinol6 •
Alguns matutinos, como o Jornal do Brasil levam ao extremo suas
ideal izações, como a missão de ser o intermediário entre o públ ico e poder, chegando
a criar em sua redação um cargo fixo - o redator das Quei xas do Povo - para atender 1\
a quem se dirige ao jornal para falar de seus queixumes.
"A qualquer hora do dia ou da noite UIIIredator especial do Jornal do Brasil está à
disposição do pOl'Oque telllfollle e sede de justiça. Não telll outras atribuições, não lhe são
distribuídos outros afa:eres; a sua própria personalidade sefilnde, dispensa e dissolve na
illlpersonalidade da DOI: Não discute COIIIos queixosos. não COlllenta as suas queixas,
registra-as nafol'lllO literária lIIais colllpreensíl'el ao público, selll galas de estilo, sem
atmios de linguagelll. Esta seção é o parlalllento dos oprilllidos ".
Destacando a produção de um texto peculiar para registrar essas "queixas",
impessoal e claro, isto é "sem galas de estilo e nem atavios de linguagem", classifica
a seção como "o parlamento dos oprimidos". Mas, com este serviço, o que busca,
na verdade, é a conquista de um novo tipo de leitor.
Por outro lado. ao prestar esse serviço, contribui para difundir, ao máximo,
uma imagem de proximidade com o público o que se constitui, sem dúvida, na
construção mais acabada de uma identidade introjetada e difundida pelo jornal.
Cumprindo a missão de intermediar as reclamações, tem ainda como
tarefa denunciar as irregularidades da administração, prestando também um serviço
ao próprio poder político. Em ambos os casos, registra sempre a "imparcialidade"
.com que relata os fatos.
"CO/ll a lIIesllla illlparcialidade CO/llque registra as acusações, talllbélll o lomal do Brasil
insere a defesa dos acusados, seja qualfor a sua posiçâo social, econôlllica ou jurídica. O
público que nos lê dirá se algullla \'ez lIIenti/llos a este prograllla ou sofislllalllos alguns de
seus itens. Mas nelll só os oprilllidos te/ll esta seção prestado serviços relel'ílntes. É graças a
ela que os representalltes da autoridade pública belll intellcionados e ~elosos têlll chegado ao
con/iecilllento de lIIuitas irregularidades, que, do contrário,ficarialll illlpnnes, selll ciência
dos responsáveis diretos e COIIIgravíssilllo desprestígio para estes" 17.
Assim, "iam os perseguidos ou os castigados ilegalmente a caminho do
Jornal do Brasil", que os defendia. Essa é a razão apresentada para a "peregrinação
de reclamantes e queixosos" que todos os dias vão a sua sede. Esse é o motivo
maior de ser o "popularíssimo".
Ao mito da popularidade cultivado ao máximo, acrescentem-se outros
também cultuados pelo periódico: jornal moderno e instituição portadora da
verdade.
Na face física modernizada do Rio de Janeiro, intermediam as queixas do
povo, ao mesmo tempo em que apresentam a descaracterização da cidade como
inserção no futuro, construindo, assim, uma imagem onde se configuram, eles
próprios, em símbolos dessa modernidade.
O Jornal do Brasil, que em 7 de junho de 1903, imprime na sua primeira
página a planta da Avenida Central "projetada pelo governo para sanear a cidade e
facilitar o deslocamento urbano", se mudaria para um prédio na mesma avenida,
orgulhando-se do que mandara erigir: jóia arquitetônica, com relógio e holofotes no
topo, vinha a ser o prédio mais alto do continente (10 andares!) e o primeiro a ser
levantado com O uso de estruturas metálicas.
Através das ilustrações, entretanto, essa idealização fica ainda mais
evidente. No sétimo aniversário "da nova fase do Jornal do Brasil", Celso Hermínio
publica uma "alegoria humorística", onde se vê um homem dirigindo o automóvel
Jornal do Brasil, na "Avenida da Popularidade". Milhares de pessoas esperam-
no passar. Da buzina sai a palavra "modernismo" e nas ruas esmaga a inveja e a
calúnia. A legenda sintetiza essa busca do novo, do moderno, do progresso e de sua
popularidade: "No automóvel do modernismo e do progresso o Jornal do Brasil é
que vai na frente vencedor do recorde do jornalismo brasileiro"'x.
Definindo-se a partir de critérios extremamente próprios, fazendo do
impresso a mola mestra para a fixação da lembrança, esses periódicos constróem
uma memória baseada em referências de natureza cultural e social.
Imparcial e procurando sempre a verdade dos fatos, não é apenas um
impresso, e sim um ideal. Ser popular, segundo a idealização proposta, é ser o
intermediário possível entre os leitores e o poder público. Essa função torna-o
procurado e confere-lhe, aos olhos da sociedade, popularidade.
Refletindo esse ideal, onde modernização se iguala à civilização, uma
forma de vencer o atraso e caminhar em direção a um tempo superior, orgulha-se de
possui r ofici nas capazes de operar verdadei ros mi lagres tecnológicos. Plantado na
cidadela do progresso, a Av. Central, constrói um lugar para abrigar sua redação,
oficinas e administração. Um lugar que, na verdade, se torna símbolo real e material
do próprio jornal. Um lugar onde guarda a memória de si mesmo que vem se
delineando desde os primeiros tempos. Uma cidadela de sua auto-construção,
onde criar-se-ia a ilusão da eternidadel9.
Se o Jornal do Brasil é "o defensor dos fracos e dos oprimidos",
"difusor da verdade", "imparcial", "moderno" e "popular", na criação de uma
identi.dade o Correio da Manhã usa outros adjetivos para moldar uma face perante
o público: independência e verdade. .
Querendo ser tão popular quanto o seu concorrente, faz da polêmica a
principal arma na conquista de novos leitores. Na criação de uma identidade,
referenda, desde o primeiro número, a sua posição de jornal político, ainda que não
ligado diretamente a grupos ou facções. A verdade que deve espelhar sempre em
suas páginas é o ideal maior a ser conquistado.
No artigo de apresentação, informam que essa posição política é
indispensável para resolver os problemas jurídicos, econômicos e sociais. Uma
política
"urio de partidos; luas uma folha política patriótica, nobre e sã, pela qual todo cidar/cio,
qualquer que seja o seu partido, sejam quais forem as suas idéias, tem o del'er de iuteressar-
se porque é ela que resolve os problemas econômicos, jurídicos e sociais, no seio dela é que
agiram todas as mauifestações da I'ida uacioual, por isso os seusfeitos tocam em todos os
topos da nossa I'ida, até os mais íutimos recautos".
Isso, entretanto, não lhe tira a liberdade e muito menos a independência,
razão pela qual podem defender o povo, divulgando, sobretudo, a verdade
"O povo está cansado, o povo seute que lhe ocultam a verdade, e que transformam até os
seus clamores em uma antífona sacrílega de aplausos. O povo quer a verdade; ele
compreeude que só ela salva e redime, embora as vezes fira. E hoje, mágoa é dizê-Ia, todo o
programa de um jomal, sincero e independente, pelo qual o povo anseia, se pode resumir
nestas palavras: dizer a verdade".
Denunciando os subornos a que estão submetidos os periódicos,
Edmundo BiUencourt segue fazendo da polêmica, na oposição sistemática ao
Governo, arma na conquista de novos leitores. A busca da popularidade faz com
que, ao lado dessa identidade, o jornal se auto-construa também como defensor
dos fracos e dos desprotegidos.
Na memória criada para o leitor do presente e do futuro, o Correio da
Manhã se apregoa como um "jornal limpo, honesto, tolerante, independente, em
cuja vida não há um ato só de transigência. Não faz oposição ao governo; nada pede
ao governo, quer apenas que ele seja honesto, cumpra a lei, respeite o povo e nada
mais". Mas, sobretudo, um jornal livre.
Recordando sua própria história, segue construindo Slla identidade. Em
suas páginas, o público leitor só encontra a crítica independente e verdadeira. Os
escândalos públicos são denunciados, os conchavos políticos desnudados, tudo
para que cumpra sua verdadeira missão. E por desempenhá-Ia, por espelhar tal
posição, ainda segundo as palavras de seu diretor, alcança o sucesso:
"Dias depois as suas edições esgotando-se ialll subindo de 5 a 10, 15, 20, 30 lIIil nÚllleros.
Foi UlIl sllcesso nunca visto, qlle pode ser apreciado qllando se tOllla 11111 trem, 11111 bonde e elll
todas as lIIãos se I'ê o Correio da Manhã(. ..). /-Ioje o Correio da Manhã representa a alllla e
o pellsalllenfo poplllw; é a I'OZdo sentimento e da indigllação por IIll1ilO telllpo sopitado no
coração do povo. Perdell sell cllnho pessoal, nele colaboram todos os qlle s()fi"elll; as I'ítimas
de todas as violências; ele é o redil to sagrado qlle procuralll osfi'acos e os oprilllidos "]('.
A popularidade dos periódicos está, pois, diretamente atrelada à
fi possibilidade de participação do leitor na publicação. Vendo sua fala ou
identificando-se com os personagens cotidianos que ocupam agora aquelas páginas,
sente-se mais próximo da, até então, distante imprensa.
Valendo-se disso, buscam mais e mais a inclusão dos leitores e a publicação
de personagens quotidianas. Mas tanto essa fala, como esses sujeitos são fixados
dentro de parâmetros extremamente peculiares.
Para satisfazer os desejos do novo leitor, o Correio da Manhã polemiza
com temas, até então, ausentes da imprensa, como as denúncias explícitas e diárias
do recebimento de propinas e de verbas governamentais pelos periódicos mais
tradicionais.
A indignação que Edmundo Bittencourt classifica como individual, nt
verdade, espelha uma atitude social. Na conquista de um público mais amplo é
necessário tornar essa indignação cada vez mais veemente, ao mesmo tempo em
que abre espaço para a inclusão do leitor. Também ele, indignado, pode reclamar -
porque o jornal permite - dos males cotidianos que diretamente o afetam.
Isso obriga-o a manter, tal como o ,Jornal do Brasil, uma seção
permanente para a inclusão de reclamações. Para isso fica na redação, durante doze
horas, um redator especialmente encarregado de atender esse público, redigindo as
notas a serem publicadas no dia seguinte.
O jornal, ao mesmo tempo que informa ser essas informações registradas
gratuitamente - o que as distingue, por exemplo, dos "A Pedidos", do ,Jornal do
Commercio, cuja veiculação é paga - procura também se firmar como grande
opositor de todos aqueles que, direta ou indiretamente, contrariam os interesses de
seus leitores.
Dez anos depois de seu aparecimento, continua com a construção dessa
imagem-memória, na qual se afirma pela "moral idade, pela serenidade, em prol
dos direitos populares, das liberdades públicas, dos interesses nacionais e,
sobretudo, pela verdade".
O editorial de Gil Vidal, pseudônimo do redator-chefe Leão Veloso Filho,
no seu décimo aniversário, deixa claro esta idéia:
"Colltilll/arelllOS a sei; cl/ste o que nos cl/stm; os propl/gnadores da verdade, da justiça, dos
direitos popl/lares, das liberdades públicas, dos interesses lIacionais, da lIIoralidade e
seriedade 110 governo e do belll estar e trallqiiilidade, quer de nossos patrícios, quer dos
estrallgeiros ql/e nos acolherelll, para viver e prosperm; à sOlllbra de nossas illstitl/ições, que
Iiles garantelll, tanto quanto aos naciollais, a inviolabilidade de todos os direitos
cOllcernmtes à liberdade, à segl/rança illdividual, à prosperidade "2/.
Revivendo o passado para construir a memória presente, o Correio da
Manhã idealiza-se como defensor da própria nacionalidade, na medida em que
garante as instituições, onde também se inclui. Reafirmando sistematicamente
essas idéias, empreende, à exaustão, violentas campanhas contra o Governo e
contra os periódicos mais populares, firmando cada vez mais a sua imagem de
jornal oposicionista.
Na verdade, a elaboração da memória se dá, sempre, no presente e para
responder às solicitações desse presente. Esse caráter de atualidade de sua elaboração
e, ao mesmo tempo, a característica de os textos impressos reter vestígios,
valorizando o excepcional e colocando de lado o quotidiano e o usual, conferem aos
meios de comunicação impressos uma especi ficidade exemplar quando se quer
anal isar como se dá a construção dessa memória.
Vendo o relato não como a expressão do que ocorreu, mas percebendo
porque é apresentado daquela forma, pode-se captar o olhar lançado pelos
construtores do acontecimento sobre o próprio fato e, por extensão, sobre as
estruturas sociais. O relato retira, no presente, algo do esquecimento para a memória.
Isso possibilita aos produtores de discursos públicos, revestidos de
uma característica de oficialidade, selecionar o que deve ser fixado, do que deve
ficar em zonas de sombra e de silêncio. Reter o acontecimento significa reter traços
da memória construída no presente. Uma memória infinitamente mais dominada
pela própria estrutura do poder.
Um dos principais acontecimentos para o jornal é ele mesmo.
Multiplicam-se nas suas páginas notícias sobre a performance dos repórteres,
sobre sua posição política e as ações na justiça movidas contra seus adversários ...
Afirmando-se como indispensáveis para tornar o leitor informado sobre
realidade que o cerca, falam dessa realidade e assim são capazes de produzir uma
representação conhecida e reconhecida da existência.
Mas não é apenas a capacidade de informar o que se passa no mundo
que dá a esses veículos poder. O fato de ser capaz de transmitir a informação, ou
seja, uma capacidade de saber, ao mesmo tempo em que produz uma língua legítima,
no sentido de reconhecida, confere igualmente essa aura simbólica. Produzindo um
discurso digno de ser publicado, isto é, oficializado, aumenta ainda mais sua área
de atuação de poder" .
No processo de criação do acontecimento, o jornal produz, no que se
refere a sua imagem, uma especificidade e, ao mesmo tempo, uma dualidade, que
coloca de um lado todas as instituições e de outro o periódico como o lugar único
de difusão da verdade e de busca da justiça.
Assim, embora divulguem imagens específicas mais contundentes - o
Jornal do Brasil é o defensor dos fracos e dos oprimidos, enquanto o Correio da
Manhã é independente - todos se igualam naquilo que classificam como a missão
jornalística: a busca da verdade e da imparcialidade.
"Afimdação do lomal do COllllllercio, há cemallosdecorridos.sllrgill da compreellsão da
necessidade de 11111 órgão imparcial qlle prestasse ao comércio da cidade e do país
informações segllras, que oriellrasse sem a oblireração múlareral do parridarismo e do
espírilO de facção"!I.
O trecho do al1igo comemorativo do centenário do Jornal do Commercio
se realça inicialmente essa imparcialidade, destaca também as datas-marco-fundação.
No caso do mais antigo periódico do Rio, tal como o Jornal do Brasil, há dois ~,
momentos fundadores: a criação do jornal e o início de uma nova direção. A partir
do instante em que assume a direção da folha José Carlos Rodrigues, o aniversário,
a data-marco-fundadora do jornal passa a ser 17 de outubro.
Na construção de uma auto-identidade, também O Paiz, tal como o
Correio da Manhã, privilegia o seu caráter de jornal independente, não atrelado a
grupos ou facções políticas. O Paiz é um matutino que, ao informar com
"imparcialidade", cumpre o seu dever de defender as instituições e a própria
independência do jornalismo nacional. Por outro lado, criticam aqueles que fazem
da oposição arma para a conquista do público, não sendo sinceros nesse propósito.
O Paiz não é jornal de oposição, nem partidário e não se pretende
popular. Quer ser tão somente independente e, portanto, imparcial.
Definindo-se como republicanos e, de fato, o sendo desde a primeira
hora, mas ao mesmo tempo como homens de imprensa, sentem-se no dever de
"reconhecer esse serviço real, prestando às instituições e à independência do
jornalismo nacional".
Assim, na concepção freqüentemente repetida, a missão do jornalista é a
crítica, a luta quotidiana de idéias, com a qual pode construir a pátria e defender a
nacionalidade. E esse tipo de jornalismo, essa missão primeira da imprensa, não se
coaduna com o novo jornalismo que vem sendo posto em prática:
"Ojol'lla/ do POI'O, CO/1I0 e/e tem sido idealizado e posto em prática nestes ú/timos tempos, é
ItIlIOdas mais igllominiosas e ultrajantes criações( ...). Essa espécie de jOl'llalismo, com esses
grandes ares bllrglleses de honradez e seriedade, é comp/emente inédita e representa, CO/1I0 já
está el'idenciado pelo desprezo com qlle o povo o \'(fi abandollalldo e repelindo. cheio de asco
pelos seus torpíssimos processos, o mais descarado, sórdido e ousado dos contos do vigário
passados ricredibilidade pública, assumindo as proporções de um verdadeiro insulto a
dignidade de 11111 meio qlle se preza"24.
Essas idealizações sintetizam a imagem constlllída e o processo que vive
o jornalismo carioca. Na busca constante de público, procuram por todos os
meios se tornar populares e, para isso, é necessário também assumir a posição de
oposicionista.
Muitas vezes, entretanto, apenas esse caráter de crítico ferrenho a grupos
e facções políticas não é suficiente. É preciso inserir em seu conteúdo novos tipos
de relatos, fatos que se transformam em acontecimentos memoráveis. É preciso 11
1\ introduziro quotidiano, o usual, o diário, revestido de uma carga de excepcional idade.
O leitor quer cada vez mais fatos inéditos e menos opiniões. O leitor quer o
excepcional em primeira mão, a realidade e, nada melhor para dar essa impressão,
do que a edição da imagem ao lado do texto.
Um relato extremamente rico da Gazeta de Notícias enumera as ações
que devem ser feitas pelas empresas jornalísticas para conquistar um novo tipo de
público.
Apregoando modernidade, apesar dos seus 33 anos de idade, a Gazeta,
na edição de 4 de julho de 1907, publica um interessante artigo "A Gazeta é moça
ou velha?", onde destaca as mudanças que é obrigada a fazer para permanecer -
apesar dos 33 anos - um jornal jovem e, portanto, atraindo sempre mais leitores.
"Desde os doces tempos em que o leitor se contentava com as lIIimísculas notícias até
anteontem e Irás-ante-ontem, até hoje, que as colunas palpitam e vibram de 24 elll24 horas,
com osfatos da véspera, e exigemlOda a inlensidade do jornalismo moderno - poucas \'ezes
telll sido pmenteados os nossos alOres, que I,ão cada vez lIIais conquistando a silllpatia do
ptÍblico efom/ando a sua grande platéia".
Não basta mais os folhetins e artigos de fundo. O público quer informação,
mas, sobretudo, a imagem complementando o texto.
"A frieza das colunas já não elllocionava o leito I: Era preciso representar-lhe em ptÍblico,
sem a intervenção do tipógrq(o. Introduziu-se então a caricatura, a gravura, recompondo
uma cena trágica, o retrato. O ptÍblico fremiu de entusiasmo. Choveram os aplausos. E
desde aíficarant os calungas adlllitidos no seio da illlprensa carioca. O assassino bárbaro, o
tipo ridíclllo, o hOlllem do dia passaralll a ter IIIn interprete d'aprés nalure, illlpostos pelos
lápis dos lIIelhores caricatllristas, desenhados pelos lIIelhores artistas. Velll afolOgr(~fia e-
zás! - se não pôs o lápis inteiralllente de lado, tOllla-lhe pelo lIIenos o IlIgar todas as vezes
que a reprodllção de cCltas 011 de hOl/lellS ca recesse de toda afidelidade" 25 .
Os avanços técnicos são introduzidos, não só para conquistar novos
leitores, mas porque tornam patentes a imparcialidade, neutralidade e fidedignidade
da notícia. O que o jornal procura difundir é uma realidade construída, mas
apresentada como verídica. A imparcialidade do jornalismo é a meta maior a ser
buscada, como também é a construção mais acabada de sua auto-imagem.
Acompanhando a atmosfera de modernização, a Gazeta constrói um
"palácio" de três andares para lhe servir de sede, reconstruindo inteiramente o
prédio da rua do Ouvidor, e remodela o edifício de suas oficinas, na rua Sete de
Setembro, "reconstruindo-os por uma estética moderna, de acordo com a
transformação que sofreu a cidade". Paralelamente, introduz em suas oficinas o
que de mais moderno existe em termos gráficos.
Se há especificidades na construção de uma auto-identidade entre todos
esses jornais, existem também igualdades. Seja o opositor Correio da Manhã, o
popular Jornal do Brasil, o conservador Jornal do Commercio, o independente
O Paiz ou a moderna Gazeta de Notícias, os "donos do dia" se afirmam, sobretudo,
como imparciais e pOltadores da verdade. Além disso, a divulgação que oferecem '.'
legitima o próprio poder pLlblico.
Se os jornais conslróem uma imagem-memória de seu papel e missão na
sociedade e, em conseqüência, do próprio jornalismo, também os jornalistas criam
uma idealização da profissão. Aparecendo como memória do grupo, esses relatos
individuais produzem o simbolismo dominante da profissão.
Reconstruindo a trajetória do grupo e sofrendo a influência dos trabalhos
de memória, ou seja, das escolhas, esquecimentos e deformações da memória daquele
grupo, os depoimentos são mais do que meras recomposições do passado. Através
deles estariam construindo uma memória e legitimando-a, enquanto dominante no
tecido social.
Assim, se o jornal afirma-se como independente, verdadeiro e imparcial,
os jornalistas, na idealização corrente, devem ter educação esmerada e inteligência
brilhante. A sua personalidade se caracteriza pela imparcialidade.

Mesmo os relatos baseados em memórias individuais são, por natureza,


sociais, uma vez que foram escritos por indivíduos a partir de suas referências
dentro de um grupo. Além disso, se reportam a símbolos, sinais sociais e não
seriam recuperados sem as imagens do passado que ainda têm significação na
memória coletiva. A memória não é uma operação mecânica, e sim de natureza
simbólica.
Nessas memórias, além de descrever o trabalho nas redações e o
funcionamento dos jornais - fazendo assim uma reportagem o "mais imparcial
possível" sobre o dia-a-dia da profissão -, qualificam a todo instante o que é ser
jornalista. E a característica de orientador e formador de opiniões se sobressai. O It
jornalista é, ao mesmo tempo, aquele que informa, mas sobretudo quem orienta.
"Cada jornalista é para o povo comum, ao mesmo tempo, um mestre de primeiras
letras e um catedrático de democracia em ação, um advogado e um censor, um I'
familiar e um magistrado"26.
O texto qualificativo de Elmano Cardim resume um tipo de idealização
freqüente que destaca o caráter de alguém que, por ocupar o lugar da imparcialidade,
é capaz de julgar com isenção.
A imagem de imparcialidade do jornalismo pressupõe a idéia de um
profissional igualmente distante das paixões e dos arroubos momentâneos. Em
busca da verdade, da justiça e por ser intelectual tem a missão de orientar o leitor,
no instante em que informa sobre os fatos da atualidade.
Por dominar esse conhecimento, quando a valorização do acontecimento
inédito começa a se operar, tem não apenas admiração, mas sobretudo poder. O
poder de conhecer a atual idade antes do públ ico, que só pode tomar conhecimento
dela através de SLlas palavras.
"Havia ontelllnas repartições lIlunicipais grande curiosidade para saber o desenlace da
questüo que originou o pedido de demissüo do 5/; D,: Cesário Alvilll do elevado cargo que,
há lIIais de UlUano, ocupa. Cada repórter que galgava as escadarias de mármore do palácio
da Prefeitura era abordado por todos os lados" 27.
O repórter é descrito como o detentor da notícia inédita que causa
curiosidade junto aos funcionários da própria Prefeitura. Para o Jornal do Brasil,
entretanto, o ineditismo e a rapidez com que divulga as novidades faz do seu
repórter o mais capacitado a ser proprietário daquela informação.
O que importa agora é descobrir as novidades e com rapidez. Uma nova
expressão - o "furo jornalístico" - passa a ser perseguida pelos repórteres que, ao
informar com exclusividade, garantem prestígio não só junto ao periódico, mas
também perante o leitor.
"Os repórteres chegavam a invelllarpara apresentar serviço e lIIanterpúblico constante para
o seu jornal. E o repórter para a grande lIIassa era um serpl'il'ilegiado. Quando ele surgia
no local do crillle ou II/I/na reuniüo, o POl'Oabria alas, apontando-o com o dedo - o repórter
é aquele ali, de papel na IIIÜO.\.ílnlOs ver o que ele descobre "28.
Esse domínio da atualidade, cultuado ao extremo como marca principal
da profissão, distingue-o de todos os outros elementos da sociedade. Mais do que
o político, o ocupante de importantes cargos públicos, é ele, o jornalista, quem
descobre as novidades e as transmite ao público.
Essa busca se, por um lado, colabora para a criação de uma imagem do
profissional da imprensa, notadamente o repórter, como perspicaz, curioso e que
não mede esforços para conseguir a notícia, por outro serve para caracterizar a
dureza da profissão.
"Era no telllpo elll que a reportagem de illlpre/lsa sefazia /10 dura, /10 local do
acontecilllento. Nc70havia notas de política, inforlllações de agências, selll auxílio de
qualquer natureza. Nc70se conhecialll as 'coberturas'. As notícias tinham de ser descobertas,
isto silll.. elll todos os seus porlllenores. Cavadas".
A característica da atividade leva, na memória do jornalista, o profissional
a agir de forma destemida para conseguir o seu objetivo: "o furo jornalístico".
"Hal'ia repórteres falll.osos COIIIOexcelemes cavadores. Nc70tinham o lIIenor escrtípulo em
invadir as dependências íntilllas da casa em que se dera o crillle, cascavilhar gal'etas,folhear
álbuns, subtrair retratos da vítillla 011 do criminoso, em várias idades, para estalllpá-Ios, no
dia seguinte elll seu joma!. Era o 'juro' o que contava. O 'juro' fazia a carreira de U/lI
repórter"2Y.
A crônica "Atribulaçães de um foca", publicada em 3 de fevereiro de
1907 pela Gazeta de Notícias, talvez seja um dos textos mais representativos da
idealização do novo profissional da imprensa - o repórter. Essa imagem reflete a
visão construída pela sociedade do profissional, fosse ele um iniciante - um "foca"
- ou mais experiente:
"O Mall'ino qne é 11mcamal'alesco dos quatro costados e nm repórter que usa óculos para
enxergar mais longe, porque n(/o enxerga nada de perto, também pensa como o cronista a
ponto de esquecerdosfuros e barrigas, para pensarnoulrosfuros e eUIoutras barrigas".
Destacando inicialmente a grande preocupação em dar a notícia em
primeira mão (o furo), não sendo ultrapassado pelos concorrentes (sofrendo uma
barriga ao não informar o fato ou ao fazê-Io de forma incorreta), o cronista pontua,
logo no início, uma característica essencial para o repórter: enxergar em profundidade,
descobrindo os fatos inéditos.
"Assim, o Ma/l'iJlOfoi anteontem até o Clube do Alto Lá Vem Cá, esquecido das cabeças
quebradas, dos assassinatos, para só se lembrar duns maxixes complicadíssimos dos quais
ele conhece toda a coreografia. Ontem foi o diabo. Mall'ino acordou com gosto de cabo de
chapéu de chuva l'e/l1Oe com o seu serviço de reportagemtodinllO furado pelos colegas.
Quem tal diria? O Mah'ino dos óculos, com aqueles óculos de enxergar ao longe sairfurado
num caso complicadíssilllo de infanlicídio?"
A paixão pelo Carnaval faz com que o repórter esqueça do dia-a-dia da
profissão, os fatos que freqüentam suas narrativas - cabeças quebradas e assassinatos
das notícias sensacionais -, possibilitando aos concorrentes darem as informações
que ele não se preocupara em apurar. Como seria possível, pergunta-se o cronista
na sua metáfora sarcástica, o Malvino de óculos sair furado num caso
complicadíssimo de infanticídio?
A seguir, relata as dificuldades que teria o jornalista para explicar ao seu
chefe imediato - o secretário - a não divulgação da notícia. Ao jornal é indispensável
o ineditismo e, principalmente, não ser vencido pelos concorrentes.
"Mas o Mall'ino é um rapaz de expediente. Imaginou a carranca do secretário do jornal
quando aparecesse na redaç(/o e tratou de articular um plano. Quando apareceu emji'ente ao
secretário, Malvino desembestoulogo: Aquela notícia do infanticídio n(/o foifill'o,foi antes
//lI/a tremenda barriga. Calculem que a criança n(/o foi assassinada pela mãe, mas sim, como
nascesse muito aborrecida por não se poderfantasiarno Carnaval, ao dar os primeiros
vagidos lembrou-se de se suicidar efoi o que fez ".
A perspicácia, também uma característica do repórter que enxerga longe,
permite que ele invente uma história fantástica, transformando o que seria um
furo, na linguagem jornalística, numa barriga dos outros jornais.
"O secretário dojol'l1al, ao ouvir 1(/0 clara explicação do caso, n(/o quis saber de lI/ais
nada: aposentou o Malvino da reportagem. do jornall COIIIalegria o Malvino fantasiou-se
desde entelOde bebê e anda agora pela rua do Ouvidormonlado 1111/11 cabo de vassoura com
ullla cara lI1uito chorona,ji'aldinha suja escapando-se-Ihe dos calções ".1().
Relacionada a um fato da atualidade - o Carnaval - a crônica recria o que
seria a figura de um repórter aos olhos do jornalista e do público: um espírito
curioso, capaz de reverter qualquer situação e, sobretudo, um ser imaginativo.
Considerando que um texto sempre aponta para fora - ou seja para o
momento de sua produção ou recepção - é preciso ver os discursos que formam
uma imagem do grupo como relatos repletos de intencional idade onde o autor,
contando histórias e narrando o dia-a-dia da profissão, forja a identidade do grupo.
Ao lembrar um número restrito de acontecimentos, ao valorizar fatos e relegar
outros ao esquecimento, mas principalmente ao manter um mesmo fio condutor,
percebe-se que essas histórias de vida são instrumentos de reconstrução da identidade
do grupo e não apenas relatos fatuais.
Assim, por mais literárias que sejam, documentam uma maneira de pensar
do grupo num determinado tempo. Nelas, importa mais as reações do autor frente
aos eventos vividos, do que propriamente o relato.
Utilizando como contraponto a concepção bergsoniana de memória, se
não se pode reduzir a memória à representação que possuímos dela, também é
falso fazer da matéria algo que produziria representações. Em Bergson se
interpenetram os conceitos de memória, tempo, devir e energia. Ao fazer a sua
fenomenologia, destaca que a lembrança se une à consciência atual e, portanto, ao
corpo das idéias e representações.
Nas memórias individuais estariam presentes, pois, uma percepção do
meio físico e social que circunda o sujeito. Esse presente contínuo se manifesta por
movimentos (ações e reações) do corpo sobre o ambiente. O lugar ocupado por
quem relata tem, portanto, influência decisiva no processo da lembrançaJ1 .
O jornalista como detentor da palavra, cuja função social é sempre a de
relatar, reconstrói a sua vivência baseado neste lugar social. Os pontos significativos
da sua lembrança, se relacionam ao ambiente de trabalho. Os marcos são a entrada
na profissão (a iniciação), a vida profissional e a aposentadoria (o fim). Dividindo
essa trajetória em períodos, sua existência resume-se à profissão. Mesmo a infância
é relembrada em relação à atividade futura.
"Em nossa casa todos /iam.)ol'l1al. O primeiro leitor era meu pai. Mal surgia a manhã -foi
sempre IIIU madrugador pontual - após o banhoFio, no verão e no inverno, a saborear uma
xícara de café bemtilllo e de enrolar e acender seu cigarrinho de palha com fI/mo goiano,
picado a canivete, lá estava ele, afolha ma tI/tina em pl/nho, del'olwldo o noticiário dos
acontecimentos políticos da I'éspera. Dois eram os jornais de sua preferência: Correio da
Manhã e Jornal do Brasil"3!.
Esse tipo de narrativa se repete nessas memórias. Desde a mais tenra
infância o contato com os periódicos é apresentado como determinante nas suas
vidas.
Se para os jornais os marcos significativos são a fundação, as mudanças
e a inserção do periódico na política, para os jornalistas. esses relacionam-se, por
excelência, à sua atividade.
Percebendo o jornal como lugar do relato verdadeiro, constróem uma
imagem igualmente mitificada da profissão, cuja função primeira seria desvendar a
"verdade". Por outro lado, o jornal se transforma no fio condutor da narrativa.
"O noticiário do nosso tempo. não saía da mesma matriz: era como hoje se diz
expressil'{unente 'clll'ado no duro'. Corríamos para diferentes postos policiais e a Centra/.
Colhíamos e trocámmos dados. Depois, cada um dal'a a notícia aforma que melhor
mtmdesse de acordo com a importância que lhe atribuísse".
Destacando a escolha subjetiva na construção da notícia, o autor valoriza
na memória individual, apresentada como do grupo, o trabalho desenvolvido no
noticiário policial, onde quase todos os repórteres começam e, mais uma vez, a
importância de dar a informação em primeira mão.
"Quando se registram crime ou acidente 'de primeira' não havia combinação. Corríamos ao
local, olll'íanlOs testemunhas presentes, interpelámmos, quando possível, a vítima, o
criminoso, acompanhando o inquérito até ofim e até o sumário e julgamento. Nunca
abandonámmos as delegacias. Trabalhávamos incessantemente e com del'otO/nento. Tínhamos
gosto pela coisa eficál'O/nos acabrunhados quando não podíamos aparecer na redação com
farto material, para encher uma página ou, ao menos, uns dois pares de coluna "'1.1.
O fato de o jornal ser o fio condutor da narrativa explica também a
profusão de dados sobre o aparecimento, desenvolvimento e desaparecimento dos
periódicos sempre em contraposição à trajetória profissional do jornalista.
No esforço de lembrar, o jornalista enumera nomes e nomes, de forma a
não esquecer nenhum dos que conviveram com ele "nos domínios da imprensa".
Cada um é caracterizado por um adjeti vo. Todos, entretanto, possuem a curiosidade
e, principalmente, o dinamismo indispensável à profissão.
"Na escala dos menos jovens que, entretanto, não eram l'elllOs. estão Victor Hugo Aranha,
Demerml Lessa, Victor Pujol. O primeiro destacam-se pelo dinamismo. Profissional
completo, com capacidade para executar qualquer larefajomalística, inclusil'e substituir o
secretário. Possuía admirál'el agilidade mental e redigia com incrível rapidez"'''.
Na fixação de uma imagem peculiar, o autor segue caracterizando os
traços da personalidade desses jornalistas. Nos vestígios de sua lembrança surge,
aSSim, além da agilidade mental e da rapidez necessária à produção, a sua natural
predisposição não a neutralização, mas ao estímulo do conflito. Nas descrições
particulariza, ao mesmo tempo, os profissionais: o que se dedica exclusivamente à
profissão, aquele que a divide com um alto cargo público e os diletantes, que
buscam no jornalismo a notoriedade, emprestando sua colaboração aos jornais
como forma de alcançá-Ia. .
Considerando a memória como representação e ao mesmo tempo como
ação, isto é, fazendo parte do presente, sendo revi vida, no momento mesmo da
lembrança, mais do que representada, Bergson conclui que esta intercala o passado
no presente, condensando momentos múltiplos da duração. O passado se
amlazenaria, pois, de duas formas extremas: nos mecanismos motores que o utilizam
e nas imagens lembranças que desenham os acontecimentos com seu contorno, sua
luz e seu lugar no tempo.
Essas observações são valiosas para se perceber a inclusão nesses relatos
de toda uma nostalgia do passado, presente na caracterização da lembrança. Escritos
no instante em que o jornalista sente-se distante daquela vivência, estão repletos
não só de imagens lembranças, mas dos movimentos motores de seus autores. A
distância física do mundo do jornalismo, no presente, reforça a caracterização do
passado.
Daí toda a nostalgia mítica do tempo de antes, apresentado como o
momento do trabalho, da intensa atividade profissional, em contraposição ao
presente onde só há lugar para a rememoração. A memória do grupo é construída,
assim, através das imagens pessoais e da ação vivida não no passado, mas no
presente.
Através de mecanismos peculiares, onde se destaca a transformação da
profissão em imagem significativa, expõem também um corpo de idéias e
representações da sociedade a cerca do papel que deveria ter os jornalistas não no
passado, mas no presente.
Assim, do ponto de vista profissional, privilegia-se o poder de ser
detentor da informação, da atualidade imediata e inédita, de se destacar pela polêmica
e ser o orientador do público, cumprindo uma missão única no verdadeiro sacerdócio
da imprensa.
A imagem de sacerdócio ligada à atividade profissional faz, por outro
lado, com que se destaque sempre os sacrifícios inerentes à profissão e ao quotidiano
duro, com horários incertos e parcos recursos materiais, em que viviam esses
profissionais. E é esse quotidiano, em parte, determinante para uma outra imagem 1I
freqüentemente associada ao jornalista: a de boêmio.
As características da atividade, onde o trabalho se desenvolve até altas "i

horas, a maioria do tempo no espaço da rua, onde o contato com o público é


indispensável, favorece a vida noturna no mundo do jornalismo.
"Osfi'egueses retardatários do Braço de Ferro eram os jomalistas. Explica·se: a maioria
trabalhava elllll/{{tutiIlOS. Depois de cUlllpridos seus horários lia redação é que corriam para
o bar ali próximo de todos, uu/{{ \'ez que lliío havia naquele tempo jomal situado fora do
quadrilátero: Rosário, Asselnbléia, Urnguaiana e Ouvidol: Faziam, uns, sua rápida ceia e
raspal'Om.-se para casa, ao passo que outros, habituados aos encontros noturnos no 'Braço
de Ferro', ali se deixavatnjicar batendo papo e tomando chope"35.
Na verdade, inserir-se no mundo da boêmia literária é a certeza de ser
reconhecido entre os notáveis da literatura. Se o jornal é o elo de ligação entre os
escritores e os leitores, que através deles se tornam conhecidos, os jovens jornalistas
devem ser igualmente boêmios para participar quase que naturalmente desse grupo.
Luiz Costa Lima chama a atenção, ao estudar o gênero memorialístico,
para as diferentes formas que este assume: o autor pode ser testemunha de uma
época ou apresentar sua experiência diante de algo capital, assumindo ou uma
direção analítico-teórica ou analítico- narrativa.
Considerada como um gênero literário, as memórias seriam, pois, uma
forma específica de comunicação com regras e exigências que as distinguiriam de
outros gêneros, como o ficcional.
Os gêneros são, na verdade, formas historicamente reconhecida da
comunicação, literária ou não, escrita ou oral, presentes em discursos claramente
configurados, ou difusos, como o do quotidiano. Deve-se, portanto, subordinar a
categoria à idéia de discurso.
Na verdade, são molduras menores que se integram a cada discurso,
como modalidades de sua manifestação. Adotando regras básicas que orientam o
próprio processo de comunicação, as memórias, o romance, a lírica, entre outros,
podem ser vistos como gêneros pertencentes a um mesmo corpus de texto, no caso
o discurso literário.
Assim, ao visualizar a autobiografia como gênero do discurso literário,
considera-se dois pressupostos: o do indivíduo relatando sua experiência de vida e
a sua própria independência frente a um discurso ficcional. A autobiografia e a
ficção seriam espécies discursivas distintas. Na ficção o eu empírico do escritor é
suporte de invenção, enquanto que na autobiografia é fonte de experiências que o
autor tentará transmitir'6.
Nessas memórias, os jornalistas procuram transmitir ao futuro todo um
legado de experiências adquirido no dia-a-dia da profissão, onde desempenham
papel de testemunha privilegiada de uma época. Ao fazê-Io, constróem uma imagem
preponderante do seu eu - sujeito de sua própria descrição - caracterizando-o de
maneira peculiar e transmitindo essa idealização como memória do grupo.
Constróem a própria profissão, através de parâmetros extremamente
pessoais, mas apresentados como comuns ao grupo. Realizam, assim, uma
transformação do objeto de memória - no caso a atividade jornalística - numa
imagem significativa, criando um mecanismo de transmissão da memória coletiva.
Por outro lado, nesses relatos - onde o eu empírico do escritor é a fonte
de todas as experiências que deseja transmitir - percebe-se sistemáticas simbologias
em torno da figura do jornalista, da profissão que exerce, retirando do silêncio para
a memória o objeto de sua simbolização.
Sua experiência permite uma construção textual próxima do vivido. Com
base nessa vivência idealizam uma imagem preponderante da profissão e do
profissional da imprensa, onde dois mecanismos essenciais de transmissão da
memória coletiva - a simbolização e a globalização - estão sempre presentes.
O amor e a dedicação à atividade também se destacam nesses vestígios
do passado. Mediado pelo seu lugar no mundo, esses autores fazem da lembrança,
o objeto de seu relato, uma das memórias coletivas válidas do próprio grupo.
Se os jornalistas e os jornais se preocupam em construir sua própria
história, no que se diz respeito aos temas veiculados por esses jornais a dialética
essencial entre lembrar e esquecer está também presente no momento mesmo de
seleção dos aconteci mentos.

É preciso divulgar ...

Com as novas estratégias editoriais - onde se destaca em primeiro lugar


a divulgação do sensacional, violento e cotidiano - os matutinos do Rio inlroduzem
uma nova leitura que atende a uma expectativa cultural do público.
Do ponto de vista do conteúdo, passam a destacar o sensacional - crimes
hediondos, mortes violentas, suicídios -, as tragédias do cotidiano - anomalias
genéticas, grandes catástrofes - e introduzem, paralelamente, o entretenimento, o
passatempo e os mexericos em suas colunas.
Raras são as edições dos dois jornais mais populares e destinados a um
público de menor grau de escolaridade e renda, que não estampam com destaque as
tragédias quotidianas.
O sentido sensacionalista e popularesco do jornal pode, por vezes, chegar
ao extremo. Na edição de 22 de setembro de 190 I, sob o título "Cena de Sangue",
o Jornal do Brasil reconstrói a cena de uma tragédia quotidiana através de uma of
ilustração de Bambino que ocupa meia página.
Na ilustração, uma mulher morta, enquanto um homem com um revólver
esbraveja. Uma outra mulher grita com a mão na cabeça. Estão num quarto. Sobre
a cadeira, vestes; em cima da cômoda uma vela acesa.
A legenda da foto complementa o quadro trágico.
"O crime da rua Visconde de Sapucai, 61 noticiado pelo Jornal do Brasil nas edições da
tClldee da manhã de 18 e 19 do corrente. Amaro Telles, por questões de ciúlue, desfechou
sobre sua nntlhel; Josina Fonseca, dois tiros de revólvel: Aos gritos da infeliz acudiu a sua
irmã Delfina da Fonseca. Nessa ocasião, Amam voltou a armCl cOlltra si, disparalldo-a no
ouvido direito. Josinafaleceu em conseqüência dos ferimelltos recebidos e o criminoso acha-
se em estado gravíssimo"37.
A valorização do sensacionalismo leva a apresentar até mesmo os folhetins
com a roupagem das notícias policiais. Exemplo disso são as notícias, sob o título
"Homem ou Mulher?", publicadas em O Paiz, onde se ocupam do caso de um
inglês "duplo", que fora molestado na Av. Rio Branco. Transcrevendo cartas,
enfocando a repercussão da notícias ou pedindo ratificações, só desfazem o mistério
mais de uma semana depois. Com o título "A esfinge. Homem ou Mulher?"
informam, afinal, tratar todos os artigos anteriores de um inocente "reclame ao
romance Esfinge que Coelho Neto acabara de escrever expressamente para ser
publicado nas colunas de O Paiz"Jx. O surgimento e o sucesso de uma literatura
naturalista realista, no período, caracteriza essa expectativa de natureza cultural
dos leitores em busca do sensacional, a par de uma literatura romântica que ainda
tinha o seu lugar.
Antonio Candido analisando esse naturalismo, classifica-o como um
momento exemplar, na medida em que espelha toda uma contradição: de um lado a
grandiosidade das aspirações liberais e, de outro, o fatalismo das recentes teorias
cientificistas, apontando para a inferioridade inexorável das nossas diferenças em
relação às culturas matrizes.
Deslocando as questões para a dimensão da natureza e da raça, os
intelectuais perdem, assim, a visão dos aspectos sociais. Os fatos narrados ganham
claramente um sentido alegórico.
O crítico aponta também a dualidade em que vive o intelectual: ao mesmo
tempo que aceita, rejeita a sua terra, resultando essa duplicidade em situações, das
quais se pode vangloriar ou se envergonhar. A um otimismo reinante na visão
oficial contrapõe-se um pessimismo generalizado ao se conscientizar do atraso
existente no país em relação às culturas européias.
Por outro lado, os intelectuais advogam a necessidade de auto-definir o
nacional. O discurso desses literatos pretende, sobretudo, ser representativo do
país, ainda que destacando os temas cienti ficistas, onde o meio e a raça se
sobressaem como verdadeiras obsessõesw.
Tal como na literatura naturalista, em muitos textos publicados por
esses diários, principalmente aqueles de conteúdo sensacionalista, que objetivam
espelhar a realidade, há uma transposição direta dos acontecimentos (ou seja, da
realidade), como se o escritor ficasse diante dela numa situação de mero sujeito
observador, registrando noções e impressões, a partir dos quais se construiria o
texto.
Na verdade, o conteúdo desses jornais populares é elaborado sobre uma
dicotomia que coloca de um lado a realidade, com as notícias policiais, as greves, os
fatos bombásticos quotidianos e, de outro, a fantasia, representada pelos folhetins, ))
crônicas e outros textos de entretenimento. Há também um outro - normalmente
opinativo - cuja principal função é, sem dúvida, orientar o público.
Uma ilustração de Julião Machado, "Psicologia de hoje, o jornal
moderno", complementada por notas elucidativas, caracteriza bem o conteúdo
dessas publicações. O caricaturista começa definindo o artigo de fundo. Sob a
ilustração de um homem enfurecido com uma caneta e um pedido de conciliação,
pal1iculariza o que seria o principal texto opinativo dos diários:
"O arligo dejilndo 011 é verlllelho e explicilo elllfavor da reforllla da sociedade elll geral 011
do gOl'emo em particlllar 011 é conciliado/; IIIIII'I/l/lrando exortações ripaciência e
aconselhando a esperar lelllpos lIIelhores, 011 ainda olilllisla,jol'ial.feliz e cor de rosa ",
Ao enfocar a crítica ferrenha, não importa a quem, ou o espírito moderador,
II o texto aponta a dualidade a que estão submetidos os jornais: ou um crítico de tudo
ou um exortador da conciliação permanente.
A seguir, Julião Machado ironiza, com a descrição da seção do tempo -
"indispensável para elucidar o leitor sobre se deve sair de sapatos amarelos ou de
galochas" -, o conteúdo superficial de muitas notícias. Depois, destaca a crítica
política. Esta é composta de "poucas linhas, mas sólidas, compactas de critério.
Estilo sibilino quanto possível, de sorte que o leitor não perceba nada, mas exclame
no fim - sim, senhor, este homem tem lume no olho!"
Aqui o que fica evidente é a necessidade de mostrarem, principalmente
neste tipo de artigo, o grande conhecimento do seu redator, que por possui-Io está
capacitado a incitar o leitor a pensar tal como ele. O estilo, rebuscado, e, sobretudo,
intrincado, também é caracterizado na legenda.
As Várias Notícias, com suas notas entrecortadas e abordando variados
temas, e os fatos policiais são caracterizados a seguir. Mais uma vez fica evidente,
+
na ironia de Julião, o destaque que se dá a este tipo de informação.
"Falos policiais. O conlo do \'igário. Crillle e sanglle. O rapto. SlIicídio por desespero (para
não eslarrecer o leiror será pmdenle não Ihefomecer lIIais de 11111sllicídio por dia). O
pavoroso incêndio (o COlpOde bombeiros 1111011 principalmenle conlra atalta d'áglla). ESlão
selldo abertos rigorosos illqllériros".
Por fim, o humorista destaca a crônica mundana, a crítica teatral,
publicações a pedidos e até mesmo os anúncios, onde se publica "cartas" enviadas
pelos que haviam sido curados pelos remédios milagrosos~lI.
A característica de orientar o público, nos artigos claramente feitos com
este propósito - críticas políticas e artigos de fundo - nas reportagens e entrevistas,
é, sem dúvida, a principal "tarefa" ou "missão" do jornal.
Nesses textos, temas como os da modernização da cidade e da impOltância
dos progressos científicos são freqüentes. A cientificidade é tornada pública e
acessível. O jornal assume o papel de orientador, de difusor das ideologias
dominantes e de porta-voz das elites e do próprio poder.
"Ao que primeiro cumpre atendel; em relação ao operário, é asno sOlíde,fator aliás de
primeira ordem para a prosperidade geral; e a saiÍde depende C/ngrande parte, talvez na
maior parte, da habitação. Não é possíl'eluma população sadia em habitações infectas, ou
mal orientadas, sem ar e sem luz. No Rio de Janeiro a população pobre, na sua maioria,
habita casinhas e cortiços. que dificilmente se acreditariam habitâl'eis, pelo que não é para
admirar a irrupção repetida de certas epidemias e o deselll'olvimento da tuberculose ".
Referendando sua opinião em estudos cientificamente comprovados, o
articulista continua discorrendo sobre um tema atual, sedimentando sua opinião
no conhecimento que adquirira a respeito.
"Os que estudam e investigam, com atenção e consciência, as necessidades higiênicas das
populações são adl'ersos às habilações coletivas. Todos preconizam a casa, pequena embora,
nlOSde uma só família. Aconselham casa afastada do centro da cidade e casa
CO/II'ellÍentemenle arejada, porque a ventilação, o arejo corresponde para a casa àfunção
respiratória para o indivíduo".
Por fim, apregoa a destruição das "habitações insalubres", com
argumentos calcados na ciência e no conhecimento do tema. Orientando seu público,
leva-o o concluir da necessidade imperiosa de implementar o projeto saneador das
casas populares.
"A administração piÍblica tem o direito, tem antes o devC/; de proibi/; de destmir até, todas
as habitações insalubres, todas as aglomerações imundas e pestilentas de seres humanos;
Inas para desempenhar-se desse dem; tem antes que prOl'idenciar para Ihes suprir afalta e
proporcionar abrigo aos que não encontram em oulra parte senão nessas mesmas habitações
condenadas ";/ .
Esse texto veiculado pelo mesmo jornal, que, em 1903, movera dura
campanha contra a abertura da Avenida Rio Branco e que fora contrário ao projeto
saneador de Oswaldo Cruz, chegando mesmo a ter sua edição suspensa em função
disso, mostra não uma contradição do periódico, mas, de certo modo, uma coerência.
Embora momentaneamente não alinhado ao pensamento dominante, isso
não quer dizer que o Correio da Manhã cunhasse um discurso contrário às idéias
correntes de seu tempo. Daí ser precipitado estabelecer-se dicotomias que colocam
os jornais em trincheiras fixas, quer como opositores, quer como situacionistas.
Até mesmo o "nariz de cera"42 das notícias policiais introduzem um
texto opinativo que ajuda o leitor a formar uma opinião a respeito dos temas do
momento. O culto às teorias cientificistas e ao progresso serve, pelo tipo de
conteúdo, de texto introdutório a muitas das matérias policiais.
"O trelllelldo cri//le que vamos Ilarrar é da espécie daqueles que lias deixa//l e//l dúvida acerca
da identidade hUlllana de seus (/I/tores. Süo la//las onde IlÜOse filtram o //Iais débil raio de
civilizaçüo e que, elll vez da si//lplicidade rude do illculto, traze//l delltro de si uma fera de
instintos torvos que a todo //Iomento aguça as unhas e mostra os dentes a//larelos".
Respaldado nessas teorias, na classificação lombrosiana dos criminosos,
o repórter procura justificar o próprio desenrolar do crime numa localidade afastada
do centro:
"A teratologia classificou tais casos, catalogou-os //Ias ainda é IIIll//listério a estranha
razüo de ser desses illdivíduos que nafereza do trato ultrapassa//l os próprios irraciollais,
sem o //Ienor vislu//lbre de afetuosidade ou de doçura que eles //Ies//los revela//l. CO//lOem
geral te//l sido se//lpre, esses caos de irraciollalidade cri//lillal desellvolveJll-se, prolifera//l !70S
recantos afastados da civilizaçüo, CO//lo seu deselll'olvi//lento e prolit'emçüo lisonjeados pela
espontaneidade pI.ljen.ta da Il{/(ureza quefazflorescerco//l igualfórça e vigo!; ao lado do
lírio illgênuo e suave, o cardo agreste e agl'essil'o".
E prossegue:
"No lugar deno//linado Tindiba, a pequella distância de Jacarepaguá, U//l destes illdil'íduos,
já suspeito de ter assassinado a esposa e UJllfilho, //Iatoll, aforça de cOlltíllllOS IlIallS tmtos,
SilO Illüe, 111110 velha de 90 C/nos!
É este elll sílltese o fato qlle desenvolvere//los a segllir COJllas notas colhidas pela Ilossa
reportagelll "4.1.
Não raras vezes, deixam claro que divulgam essas notícias e que realizam
determinadas campanhas com o intuito principal de orientar também o poder
I' público. O jornal é não só o interlocutor privilegiado do poder, mas cunha a
imagem de opositor destemido ou de orientador desinteressado.
Assim, por exemplo, num texto em que reafirmam o propósito de "auxiliar
o prefeito do Distrito Federal, no cargo há alguns meses, e chamar a sua atenção
para o que julgamos e a própria população julga urgente", a Gazeta de Notícias
divulga uma série de artigos sob o título Cousas da Cidade, em que traça não só
uma radiografia das mazelas quotidianas que afetam o Rio de Janeiro, se colocando
claramente como porta-voz da população.
I. Falando em nome da totalidade dos habitantes, na verdade, o jornal
possui uma linha editorial que o liga aos grupos diretamente interessados no
saneamento e na remodelação do centro. Difundindo essa visão como unívoca
procuram fazer prevalecer a ideologia desses grupos como de toda a sociedade.
Descrevendo também as favelas em torno da zona central, chamam a
atenção para um fato que afeta também seus leitores: a falta de água. A seguir,
justificam a razão de tão veemente campanha. Não que fossem contrários à
remodelação, muito pelo contrário. Acabando com os símbolos anti-progresso,
conseguir-se-ia aumentar o prestígio da própria cidade.
A solução, que deveria incluir o saneamento completo, tem como ponto
principal - isso fica claro nos artigos posteriores dessa intensa campanha
desenvol vida durante todo o ano de 1907 pelo jornal - a construção de casas
populares fora do centro urbano.
"O contraste entre melhoramentos de certa ordem e a manutençõo de elementos prejudiciais
aos resultados que com aqueles se procurou obter quase chega a ser ridículo. Porque não é
sério erguer-se um palácio cOlno o Monroe, Ulnedifício como o Teatro Municipal e deixar
quase a marginá-Iosfocos de miséria e de infeção CO/1/0 os do UIOITO de Santo Antônio. Os
palácios, as (fI'enidas, os parques, osjardins não são demais; o que é de menos são as
condições higiênicas para as classes que não freqiientam os palácios, as avenidas e os
parques "44.
Essas campanhas, entretanto, não são apenas visíveis nos artigos.
Também as ilustrações e as fotografias servem para difundir essas idéias dominantes.
O público ao ver, em primeiro lugar, os desenhos ou as fotos, pode ou não
complementá-Ios com a leitura do texto. O jornal é também produzido para os "
menos alfabetizados.
Ao mesmo tempo procuram atingir novas parcelas de público - como as
mulheres e os jovens -, criando para isso seções específicas: literatura infantil,
quadrinhos, modas ao lado do tradicional folhetim. A Gazeta de Notícias tem,
por exemplo, uma coluna destinada especificamente aos jovens: Gazeta Jovem. O
Jornal do Brasil publica todos os domingos uma seção de modas. Também na
Gazeta essas seções são destacadas. O folhetim, que não deixa de ser editado,
embora passe a ocupar uma localização secundária, procura sobretudo atingir esse
público feminino.
Construindo uma identidade e U1~a nova realidade,. os diários procuram, ~
na verdade, redefllllr a face urbana do RIO e de seus habitantes, numa Cidade
moderna, progressista, civilizada, onde as marcas dos acontecimentos singulares
promovem a diferenciação de seus moradores. De um lado, os responsáveis pelas
mazelas e males cotidianos. De outro, os que com seu discurso político constróem
a nova institucionalidade.
Introduzindo com destaque no seu conteúdo, o sensacional e o
entretenimento, montam estratégias para atingir um público amplo, construindo-
se também como mediadores entre esses leitores e o poder público. Com isso
aumentam sua influência na sociedade e seu poder de ação.
Sem perder o seu caráter orientador, procuram cada vez mais informar.
Mas, ao informar, estavam igualmente forjando novas identidades, fisionomias e
comportamentos a serem disseminados.
Os textos, como objeto lingüístico, têm o poder de construir ou reproduzir
relatos sobre o mundo que servem, sobretudo, aos interesses de grupos ascendentes.
A linguagem, que atua nesse modelo socialmente reprodutivo, denominada discurso,
é, em certo sentido, a manifestação lingüística da ideologia. Sem incorrer em erros
freqüentes dos que, ao tomar a crítica e a teoria literária como pressuposto básico
para o estudo do discurso, anulam muitas vezes a existência real do sujeito, é
preciso considerar em uma análise, que envolve um corpus específico de texto, a
existência não somente da construção discursiva, mas sobretudo de um leitor e de
um mundo, onde se inclui com destaque o autor.
Entretanto, é preciso ver o discurso não como tudo aquilo que é fictício,
nem como um meio transparente que espelha o mundo. Entendendo-o como prática
comunicativa, é necessário distinguir significado e verdade. É condição definidora
do discurso que ele possua significado, mas não é condição que seja verdadeiro.
Enquanto a noção de verdade traz como pressuposto um mundo objetivamente
existente, a de significado introduz na análise o sujeito. Assim, só é possível
f' caracterizar o discurso em função do sujeito a que ele se destina· j
.

Isso explica, em certa medida, a temática valorizada por determinados


jornais e esquecida por outros. Explica, também, a narrativa construída, a maneira
como editam o texto e as imagens na página, sempre em relação ao público-alvo.
Esse dado objetivo, entretanto, não permite abandonar a idéia de uma auto-identidade
construída pelos periódicos, destacando sobretudo o culto à informação, fazendo
com que se transforme num documento imparcial. Um documento imparcial que se
constitui, a partir de então, na memória viva da própria sociedade.
Criando diariamente grandes acontecimentos, verdadeiros lugares de
memória, os jornais, ao selecionar, ao destacar ou ao relegar fatos ao esquecimento,-t·
operam uma seleção, onde se valoriza aspectos e temas, em detrimento de outros.
O cotidiano, revestido de uma carga de teatral idade, de violência, de não
usual, constrói, por contraponto, a realidade que se pretende ideal.
O presente selecionado é reconstruído e aprisionado em impressos, fixados
para o futuro, constituindo-se, dessa forma, numa seletiva memória. A sua fixação,
por outro lado, passa a se dar também através de imagens, que procuram mostrar-
se como a reprodução mais fiel da realidade e, portanto, como instrumento poderoso
para os rearranjos sucessivos da memória coletiva.
Se a imagem guarda essa relação no que diz respeito à fixação da lembrança,
a escrita, por outro lado, confere à memória um caráter oficial, uniformizador e, ao
mesmo tempo, doutrinador. A memória coletiva organizada resume a idéia que a
sociedade majoritária ou o Estado desejam passar a impor. Ao silêncio ou a memória
silenciada e a esquecida contrapõe-se, portanto, outra, publicada e oficializada. O
relato retira, no presente, algo do esquecimento para a memória4il.
Assim, no processo de criação do acontecimento, os diários no instante
em que valorizam a informação aumentam, na verdade, a dicotomia entre o que
deve ser lembrado e o que precisa ser esquecido.
Inúmeros fatos passam, então, a serem relegados ao esquecimento,
enquanto outros são transformados em aconteci mento no momento em que chegam
ao conhecimento do leitor. Essa característica eleva um fato, por si só, à categoria
de acontecimento?
O acontecimento seria, pois, nessa visão, algo unívoco, que se definiria
a partir de sua materialização em impressos. Mas não é apenas a escolha do fato
que transforma o acontecimento em algo seletivo. Por mais que haja um esforço no
sentido da narrativa, seja ela jornal ística ou não, de apreender tudo o que se produz
em torno do narrador, isso não é possível: a percepção é seletiva e a atenção
reflexiva.
Assim, o narrador escolhe os elementos do seu relato, mesmo quando
quer que nada lhe escape: o conjunto das unidades registradas será sempre um
subconjunto do que realmente se passou.
Os jornais registram, de preferência, fatos que os jornalistas estão
convencidos terem visto ou compreendido e, em assim fazendo, decompõem o
tempo vivido em uma seqüência ordenada de unidades descritas e individualizadas.
Cada unidade corresponde a uma mudança que o espectador percebe em
torno de si, a uma passagem de um estado a outro, a uma descontinuidade em
relação ao momento imediatamente precedente, resultado do aparecimento ou
desaparecimento de algo ou da rearrumação dos elementos. A mudança que o leitor
percebe a sua volta, seria, pois, um "acontecimento", no sentido que se dá a esta
palavra na literatura histórica.
Assim, para que haja acontecimento, no sentido jornalístico, não basta a
existência de um leitor. É necessário que haja mudança e que ela seja acessível a uma
pluralidade de espectadores virtuais, capazes de comunicar reciprocamente os
resultados de suas recepções. E são os meios de comunicação que tornam essa
mudança acessível e visível a uma plural idade de leitores.
É necessário considerar aiilda que a narrativa do acontecimento não é
apenas uma simples descrição das mudanças percebidas. O jornalista confere uma
significação àquilo que fala, mesmo quando não há um propósito deliberado para
ISSO.
O acontecimento seria, assim, não uma mudança perceptível no tempo e
no espaço, mas uma descontinuidade construída a partir de um modelo de
normalidade e anormalidade considerado a prior??
Nos jornais diários, com a constituição desse modelo de imparcialidade,
acontecimento é tudo aquilo que foge a um padrão preestabelecido de normalidade.
A parti r das di ferenças, valorizando-se o grotesco, o violento, as tragédias do
cotidiano, os periódicos, por outro lado, constróem um padrão de normalidade, ao
destacar o seu contraponto.
É, dessa fonna, que se explica também a profusão de temas vinculados
ao violento e ao sensacional. Com eles, ao contrário do que se pode supor, espera-
se fixar um padrão de normalidade que foge por completo aos relatos freqUentemente
repetidos.
Outra questão que precisa ser considerada é a característica social presente
em toda e qualquer construção mnemônica. O tempo revivido nos textos impressos
se relaciona sempre a uma estrutura de natureza social, mesmo quando
aparentemente fala do indivíduo.
A conceituação de Maurice Halbwachs, que, ao elaborar sua teoria,
classifica a linguagem, o tempo e o espaço como quadros sociais de memória, é
valiosa para perceber esta construção como uma operação de natureza social.
A linguagem, que possibilita a unificação da memória do grupo, bem
como o tempo e o espaço são quadros sociais privilegiados. O sistema simbólico é
a essência da memória coletiva e o espaço e o tempo são os meios pelos quais se
servem diferentemente as memórias coletivas para lembrar aquilo que está próximo
ou distante.
Já a noção de espaço como quadro social é desenvolvida por Halbwachs
em duas de suas obras. O espaço passa a ser, como o tempo, atualização de traços
e vestígios do passado. Esse não seria apenas o meio físico e geográfico, mas o
espaço interior de sua representação. E nesse sentido se constituí também num -t.
símbolo4x.
Por outro lado, a memória se dá num contexto preciso, já que não é uma
atitude individual, mas social e num tempo que também tem esta natureza. A
questão da memória está, pois, intrinsecamente ligada a do tempo, entendido
também como uma construção histórica.
Krzysztof Pomian, no seu livro L'ordre du temps, ao caracterizar a
arquitetura temporal da civilização contemporânea, distingue um tempo solar,
cíclico; um tempo litúrgico, linear e orientado; e um tempo político, semelhante ao
psicológico, ao mesmo tempo linear e cíclico.
O tempo político comportaria elementos cíclicos - certos acontecimentos
voltam periodicamente todos os anos - mas mesmo esses acontecimentos repetitivos
se inscrevem numa história linear e orientada. Sendo linear e orientado e contendo
elementos cíclicos, o tempo político é também irreversível, aberto a um futuro
infinito.
O passado coletivo se manifesta, pois, de duas formas: ele se deixa ver,
ler e imaginar por intelmédio de vestígios e através desses mesmos restos pode ser
estudado e mensurado.
No mesmo estudo, o autor insere a questão do texto. O estatuto
privilegiado atribuído aos textos, como portadores de saber, modifica a própria
atitude em relação ao passado e à maneira de ver o futuro. Sendo indestrutível, cada
geração herda conhecimento das precedentes, graças a sua característica cumulativa.
Assim, o maior saber é sempre legado à posteridade.
Relacionando a questão memória à do tempo, Pomian acrescenta como
fundamental a problemática da mudança. Para o autor, o fato de o tempo emergir a
partir de uma multiplicidade de mudanças, contribui para a sua diversidade. Para
que isso ocorra é preciso que haja diversas mudanças e que não estejam longe uma
das outras. Assim, uma multiplicidade de mudanças é uma condição necessária do
tempo4Y.
O certo é que a atitude prospectiva em relação ao tempo vem se
modificando ao longo da história. Da temporização do universo composto de um
imenso número de elos dispostos em ordem hierárquica, de Leibniz, no século
XVIII, à idéia de tempo como progresso linear, do século XIX, um longo caminho,
com fases anteriores, foi percorrido. No século XIX, a idéia de sucessão temporal
assume importância vital na vida e no pensamento humano. Influenciado pelas
teorias evolucionistas biológicas, acredita-se no progresso, ao mesmo tempo em
que a importância do conceito de tempo aumenta.
Se reportando a símbolos, na verdade sinais sociais, a memória seria,
pois, um sistema simbólico, expresso na interação da linguagem, com o tempo e o
espaço.
A pergunta que se faz é como se opera essa seletiva reconstrução do
presente e que tipo de olhar é lançado pelos construtores sobre o acontecimento? íl
E finalmente porque os fatos são representados de uma determinada forma e o que
revelam das estruturas sociais?
Atribuindo-se o papel de intermediário entre a população e o poder
público, denunciando o que considera fora dos padrões esperados de
compoltamento, seja para auxiliara administração, seja para introduzir uma nova
1\ conduta, os jornais mais importantes do Rio de Janeiro divulgam, a par das
divergências políticas e ideológicas, um conteúdo uniforme.
Criando as necessidades do público e alargando a sua própria audiência,
abrem caminho para a formação de um público consumidor dos fatos da atualidade.
A criação dos primeiros conglomerados de imprensa no final da década de 20,
mostra a existência desse público formado pouco a pouco pelos grandes jornais
que apareceram ou se desenvolveram a partir do final do século XIX.
Aliando o sensacional ao entretenimento e colocando-se como mediadores,
os diários lançam as estratégias fundamentais para a conquista do público.
\! Participando desse jogo, aliam-se, cada vez mais, aos grupos dominantes,
referendando o seu papel e conquistando benesses, ao mesmo tempo em que
aumentam a sua participação no próprio jogo de poder.
Considerando que a relação da narrativa diz respeito não apenas ao
objeto, mas também ao sujeito que o relatou, deve-se visualizar esses textos como
construções que são produtos de uma inter-relação entre um evento e um olhar.
Os fatos cotidianos da cidade do Rio de Janeiro, em quarenta anos,
vistos sob a ótica de um produtor de texto que se assume claramente como condutor
das idéias, orientador do público e auxiliar direto da sociedade política, estão
repletos de uma ideologia que revela muito mais sobre a questão intrínseca do
saber e do poder na sociedade contemporânea.

A extensa correspondência dos redatores chefes, literatos e jornalistas,


que ocupam as primeiras posições na hierarquia das redações, mostra não apenas
a importância da verba oficial para a manutenção dos jornais, mas os acordos
políticos que são realizados entre os grupos dominantes e essas publicações para
a divulgação de feitos particulares ou para dar início a campanhas ferrenhas contra
quem fosse contrário aos interesses do momento. Os jornais se transformam em .•..
porta-vozes do poder público. As tiras podem vir previamente escritas com o
avi so publ ique-se.
Por outro lado, transformados em grandes empresas, importando
modernos equipamentos, aumentando o número de suas páginas e a tiragem dos
exemplares, dependem não apenas do pequeno anúncio, da publicidade particular,
mas sobretudo da verba oficial para a manutenção das empresas.
Receber em troca de matérias em defesa do Governo é prática comum no
período Prudente de Morais. O ministro da Fazenda distribui verbas a jornais e
jornalistas de confiança do presidente. A Gazeta de Notícias, sob a direção de
Fen'eira de Araújo, recebe, por cada matéria em defesa de Prudente de Morais, I mil
réis por linha. Campos Sales, em seu livro, Da Propaganda à Presidência, afirma ter
subvencionado os jornais que apoiaram o seu governo (1898-1902). Pagando um
total de I milhão de contos de réis ou 250 mil contos por ano, contempla toda a
grande imprensa carioca do período;1I .
O crítico literário Medeiros e Albuquerque em seu livro de memórias,
Quando eu era vivo, refere-se também às subvenções distribuídas por Campos
Sales e Prudente de Morais. Campos Sales teria sido "quem começou a corrupção
da imprensa em larga escala", já que no tempo de Prudente "o caso estava restrito
à inserção de editais e outras publicações claramente tidas como do expediente
normal das repartições". "O que havia era que elas se davam aos jornais amigos e
se negavam aos outros", completa.
"Campos Soles saiu desse regime relativamente honesto e começou a subvencionar osjornais
que o defendiam. E que subvenções' Ele confessou ter gasto com isso 4mil contos, mas na
realidade gastou mais de 7 mil. De alio para ano as rabos cresciam, porque a oposição
popular cont ra o Cavemo também foi crescelldo em proporçlies fomtidál'eis "5/ .
As denúncias de favorecimentos oficiais se sucedem nas próprias
publicações. Em 1902, o Correio da Manhã afirma que o Jornal do Commercio
recebe mensalmente 20 contos da famosa "verba secreta da polícia";2. No mesmo
período, o Jornal do Commercio denuncia que o diário de Edmundo Bittencourt
é subvencionado pela Companhia de Loterias Nacionais, para obter de graça o
papel de imprensa.
FreqUentemente classificado como "homem de confiança do Presidente"
durante o Governo Campos Sales, José Carlos Rodrigues, principal acionista do
Jornal do Commercio, é, sem dúvida, um dos homens mais poderosos do início
da República.
Quase que diariamente chega à redação da rua do Ouvidor, os pedidos
oficiais para que publique desmentidos ou divulgue feitos considerados relevantes
pelo governo. E José Carlos Rodrigues transforma-se em informante e conselheiro
do próprio presidente.
"Devolvo o seu telegrama, agradecendo a importante informaçr7o. Nr70tenho bastante
conhecimento do nosso ministro para saber que destino de\'(} dar-lhe: 1//(/.1, se V tem motivos
para acreditar que ele não nos representa com a devida lealdade, peço que me auxilie (grifo
nosso) COIIIas i/!{om/{/ções que a respeito tiveI: É UUIposto aquele elll que podelllos ser lIIuito
prejudicados. Basta a inércia ante notícias disparatadas COIIIOas que lá telll circulado nestes
dias"5.! .
Se fosse possível tl'açar uma cronologia das relações explícitas desses
periódicos com o poder público e da importância que têm durante os primeiros
vinte anos do século XX, podemos afirmar que a supremacia cabe nos primeiros
cinco anos ao Jornal do Commercio, embora durante todo este período nunca
tenha perdido a sua importância junto à sociedade política. A partir de 1905 e até
o seu declínio, em 1915, O Paiz divide com o periódico de José Carlos Rodrigues
as maiores benesses oficiais. Em função da sua popularidade, o Jornal do Brasil
passa também a ser visivelmente cortejado. O Correio da Manhã mantém a sua
auto-construção como opositor de tudo e de todos e se vincula periodicamente aos
grupos opositores, exercendo um papel claramente contra-hegemônico.
"Hoje Feio o Femando Mendes dizer-lIIe, da parte da sociedade do Cassino, que era
necessário /(/n auxílio de 30 contos para o baile, que ela projeta. Respondi que eutinlia eln
vista contribuir colll5 contos, e COIIIOele insistisse na sOllla de 15 contos, a que reduziu o
prillleiro pedido, elevei a lIIinlia oferta a 10 contos, que ele disse ser ainda insujiciente,
continuando a pedir 15. Que aclia aue devo fazer? Dou o que eles exigelll? COIIIOeu pedisse
para dar a resposta depois, desejo aue V lIIe aconsellie (grifos nosso)"5;.
Por outro lado, a reafirmação freqUente da independência das publicações,
faz palie de uma estratégia para que fossem reconhecidas pelo público como uma
It. verdadeira força dirigente, superior mesmo aos partidos e às facções políticas.
Como um estado maior intelectual do partido orgânico, supostamente apolíticos e
reafirmando sua própria independência, os jornais atuam como uma força dirigente
superior, mesmo que em função de objetivos específicos se liguem a um ou a outro
grupo" .
Como um "partido", desempenham não só uma função política, mas
também de propaganda, de polícia, de intluência moral e cultural. A função política
é indireta, pois há sempre outros partidos, com os quais travam extensa polêmica
e, às vezes, luta explícita.
"Precisalllos conversm: Há de ter notado que se trata de forlllar UlllulOFillleuto ua opinião
no sentido contrário à sovinaria, que é a política de econolllias posta elll execução pelo
govemo. É cliefe da nova escola o redator da IlIIprensa, que vai jàzendo carreira,
estilllulando a ullltelllpo o sentilllento nacional e o 011101' próprio das classes arllladas. A
necessidade urgentíssillla da defesa nacional, a illlinência de UIIIperigo allleaçando a nossa
soberania, lieis os lIIais preciosos do espírito oposicionista ".
No período a que se refere à correspondência de Campos Sales, mais
uma vez endereçada ao proprietário do Jornal do Commercio, o grande opositor
é A Imprensa, então dirigida por Alcindo Guanabara. O papel indispensável do
jornal na difusão da política governamental e na formação de um movimento de
opinião na população favorável a essas idéias não só é reconhecido por Campos
Sales como atribui ao jornal essa "missão".
"V compreende qllando isso pode prejlldicar os intllitos do goremo, criando embaraços de
ordem moral, qlle, sem detê-Io, pode conllldo dificultar a sua ação. Mauteuho firme o
propósito de não ceder uma linha, aconteça o que acontecer: mas o cerlo é que a idéia de
cllidar de nossa d~{esajá 1'{/i criando algumas dificuldades sérias ao meu gOl'emo. Há quem
peuse que o Tesouro já pode despender milhões em na I'ios,forlificações, armamentos, etc.
Ninguém lembra que há apenas fUIIano vendíamos nal'ios para tapar bicos. Peço que pense
uesses assuntos e dê-me os seus conselhos, e os seus auxílios. O Jomaltell/llllW ill/portante
missão aí (grifas uossos) "56.
Gramsci identifica duas formas de partido, O constituído por uma elite,
que tem como função dirigir, do ponto de vista de uma ideologia geral, um grande
movimento de partidos afins, na verdade, frações do mesmo partido orgânico; e o
partido de massas que possui uma fidelidade genérica ao centro político.
Percebendo como fundamental para a sua existência três elementos básicos
. o público, a força coerciva, centralizadora e disciplinadora e o elemento de
articulação que possibilita o contato moral e intelectual·, é possível ver, pois,
esses diários como verdadeiros partidos orgânicos cuja principal função é a
articulação entre os grupos dominantes, que centralizam, disciplinam e organizam
ideologicamente as idéias, e o público para o qual devem ser difundidas. O jornalista,
como elemento responsável por esta 31iiculação intelectual, ganha notoriedade não
apenas em função do poder simbólico que desempenha, mas do poder de fato que
detém,
"A 'vária' acerca da qllestão das apólices estae magistral e deve ter exercido benéfica
iufluêucia, não só 1/0 espírito público, COIlIOno dos próprios possuidores desses títulos. Com
esse poderoso concurso não desespero de conseguir quebrar as resistências. assim COII/O
tenho esperança de ir desfazendo a nuvem de antipatias, qlle o clamor dosfall/intos tell/
procurado{ormar sobre o governo. Tit'e lima carta milito interessante do Lui: Vi(ma e dela
fjz um extrato Dara as Várias, se V julgar que está em bons termos e sem inconvenientes.
Está entendido aue V poderá {azer as alterações aue ({IIiser e até inutilizá-Ia (grifas nossos).
Acho que neste momento de intrigas o pel/Samen/o do Luís Viell/apode ser·mefm'oráve!"57
Detentor do papel de difusor das idéias do Governo, de articulador dos
conceitos favoráveis a esta política e de fomentador das opiniões que formariam,
assim, uma vasta aliança, o Jornal do Commercio, durante todo o período Prudente
de Morais e Campos Sales, assume notória importância política. As notícias oficiais
chegam primeiro, vindas diretamente das mãos do Presidente da República, ao
jornal de José Carlos Rodrigues. E este tem ainda como função distribuÍ-Ias aos
outros periódicos.
"Peço-lhe o obséqllio de pllblicarno lomal do COllllllercio o agrodeÓlllento ;unlO e de
lIIandar provas aos outros ;oJ'l1ais (grifo nosso). Pretendo seguir IIInmlhã cedo paro
Teresópolis, onde espero cOlllpletar a lltillha cOIII'alescellça. Deixei hoje o Morro do Inglês - e
desta vez selll saudades - pelo lIIuito que ali solá. Agradeço-lhe IIIl1ilO- e ao lOJ'l1al- o
grande interesse COIIIqlle acolllpan!/{/ralll a lIIinha el1ferlllidade e os votos sinceros qne
fizerolll pelo lIIeu restabelecilllento".
No Governo Prudente de Morais a ingerência do matutino é de tal ordem
que no Palácio do Catete o seu repórter é o de maior ascendência. O depoimento do
jornalista Lopes Sampaio é revelador:
"O noticiário da presidência, cOlltendo cópias dos atos do gOl'eJ'l1o, era lIIandado à sala de
imprensa e entregue diretalllente ao representante do lomal do COllllllercio, qlle, por slla I'ez,
deveria perlllitir (grifo nosso) qlle os delllais colegas tirosselll dele SilOSnotas. Arvorado elll
chefe da sala, IIIl1itas e IIIniras vezes sonega\'([ aos cOlllpanheiros as notícias lIIais
illlportantes. No dia segninte, ao ler o velho órgão, verificávalllos qlle hm,íalllos levados
grandes :litros' "58.
Duas seções têm a primazia na divulgação das notas do Governo: a
Gazetilha e as famosas Várias. Tão famosa e polêmica quanto as Várias é a coluna
A Pedidos. Campanhas as mais diversas, apelos os mais veementes e, sobretudo,
calúnias, infâmias e difamações são veiculados por esta seção, onde se paga pelo
espaço e normalmente se acoberta o autor com a assinatura de jornalistas e outras
pessoas pouco conhecidas.
A Gazetilha é outra coluna polêmica. Através dela se faz afirmações,
acusações, se imputa declarações, que são desmenti das, algumas vezes, de f0l111a
veemente.
"Acredito qlle não é V. S. o inventor da IllOnstruosafalsidade articulada IW Gazetilha de
hoje - de ser eu Ullldos lIIelllbros de /11/1 dos Sindicatos para COlllpro do lomal do
Cornl1lercio. É positivallleme, absollltalllente falso, afirlllo a v.s. nllllca ltillguéllllllefaloll
sobre tal assnnto, no qllaljalllais tOlllei parte direta ou indiretamente. A razão é claro: só
entra nestes negócios quellltelll dinheiro e eu não posso cOlllprornellll/ln debentllre. E COIlIO
V. S. está apllrondo a verdade das coisas, creio qlle não se recllsará a indicar afonte donde
partilltal inforlllação. Pedindo a pllblicação dessa carta"5Y.
Essa prerrogativa de imputar acusações e demolir reputações é muitas 'i'.

vezes criticada pelos próprios jornais. Em março de 1910, sob o título "O veneno
da imprensa", O Paiz publica uma excelente charge onde um "facínora" rellete:
"Por que não me fiz jornalista? A lei que condena o que esfaqueia o próximo,
protege a liberdade de quem sabe envenenar a reputação de famílias inteiras com a
tinta de imprimir". E conclui, novamente se perguntando: "Por que não me fiz
jornalista? Estaria hoje livre, opulento e temido!"('O
A polêmica, as denúncias das relações dessa imprensa com o poder
político, as intrigas e difamações não são exclusivas das colunas mais famosas. No
restante das páginas, em artigos de fundo e no noticiário, os exemplos dessas
relações e desses favorecimentos são encontrados aos milhares.
Referendando-se como um órgão de combate, o Correio da Manhã
denuncia, com minúcias, esses favorecimentos. Em 190 I, mais uma vez o alvo do
periódico de Edmundo Bittencoul1 é o Jornal do Commercio. Segundo o Correio
"milhares de contos de réis saíram do Banco da República para pagar a jornalistas,
amigos do governo, elogios ignóbeis que depois eram transcritos nos' A Pedidos'
do Jornal do Commercio". E acrescentam:
"A custa do Banco da República viviam. em arranjos e negócios. os adeptos do SI: Campos
Soles e do seu Ministro da Fazenda. Era preciso comprar na imlJl'ensa IlIn coro unânime de
aplausos para o goremo que tais alas praticam, era preciso, para iludir a miséria em que
viremos sem pão e sem calçado para os IlOSSOSfilhas. era preciso pedir a imprensa que
pintasse um quadro risonho e cor de rosa. Estas pinturas cuslamllluilo caro "I>' .
O que é denunciado como negociata e como notícias pagas pela imprensa
oposicionista é, em contrapartida, objeto de vivos agradecimentos por parte do 1\
Governo que reconhece no apoio o patriotismo e, sobretudo, a missão do próprio
jornal.
"Agradeço-lhe muito cordialmente o magistral artigo em que o lornal do Commercio, com
sua competência incoulestável e grande autoridade,jez a crítica do manifesto do DI: Manuel
Vitorino, reduzindo-o a suas mesquinhas proporções. Bem sei que, assim procedendo, o
lomal do Commercio, nesse como em outros assuntos, inspira-se no seu patriotism.o e
desempenha-se de sua elevada missâo, sendo exatamellte esse IIlOdode proceder que deu-lhe a
grallde alltoridade que exerce lia opilliâo".
Indo mais além, Prudente de Morais expressa claramente a sua "profunda
gratidão" ao jornal e ao seu redator-chefe que, com as opiniões saídas de sua pena,
o auxilia a sua tarefa. "Por isso mesmo tanto maior é o meu reconhecimento e mais
profunda a minha gratidão para com o grande órgão da nossa imprensa e seu digno
redator-chefe, pela justiça que fazem-me auxiliando-me eficazmente no desempenho
de minha tão difícil quanto patriótica tarefa"('}.
Essa missão, segundo os adversários, tem um preço. E aqueles que são
momentaneamente contrários a esses interesses sofrem duras críticas.
"Toda \'ez que o Governo compra a imprensa, é contar como certo aqueles que Ihes fazem
oposiçâo, para logo, sâo cobertos de insullos pelos badalos que entram para o aluguel. No
d/{f seguinte, úll'({rim,elmente, os mesmos insullos vem reproduzidos nas entrelinhas do
Jornal do Commercio, órgão dirigido pelo conhecido falsário e ladrão José Carlos
Rodrigues e por um mulatinho pernóstico, que foi copeiro do SI: Rui Barbosa e hoje é
conhecido pela alcunha de 'DI:' Tobias( ...). Também quando o S,: Campos Sales deixou a
presidência, soube-se que havia gasto 6 mil e tantos contos com a imprensa. E não escapou
de le\'C/rvaia "63.
Nenhuma das colunas do Jornal do Commercio tem maior força política"
do que as "Várias". Inúmeros são os pedidos, lembretes, ordens para que
determinada informação saia sob a forma de "vária". Segundo depoimentos, é uma
seção de tamanha repercussão que tal como o próprio diário passa a ser ela mesma
um substantivo. Assim como ninguém se refere ao Jornal do Commercio como
tal, bastando falar "Jornal", também ninguém diz Várias Notícias. "Você já viu a
Vária do Jornal de hoje? Dizia-se correntemente".
"O Jornal do Commercio ao tempo em que comecei a lê-Io (1900) era de longe o diário de
maior prestígio no Brasil. Havia outras como a Gazeta de Notícias, o Jornal do Brasil, A
Notícia, A Tribuna. Mas nenhum o igualava emforça e prestígio. Essaforça vinha desde o
Governo Campos Sales, sobretudo depois que Tobias Monteiro, tendo representado ojornal
na viagem do presidente eleito, tornou-se secretário de fato do presidente. As principais
várias, sobretudo a primeira delas, traduziam o pensamento do Governo"!>4.
Outros depoimentos atestam a importância da seção. Sua leitura significa
adquirir informação suficiente para sustentar conversas sobre os mais variados
assuntos da atualidade.
"Nas conversas dos maiores, uma coisa despertava enorme curiosidade: a importância por
todos atribuída a uma entidade, oUlnelhOl; a uma família de entidades que não foi fácil
identificaJ; em sua natureza, dir-se-ia quase que sobrenatural: as 'Várias '. Que seriam as
'Várias'? Algo de misterioso, misterioso e terrível. Vel; entendel; acompanhar as 'Várias' era
um dever de todo cidadão prestante. Quem não estivesse a par da 'Vária' do dia era um,
cOlno dizer? Hoje diríamos, talvez, um alienado, incapaz de participar de qualquer conversa
mais séria e mais profunda. Não leu a vária? Então não sabe de nada. Cresça (leia a vária)
e apareça. A Vária - sussurrava-se derruba \'C/ chefes políticos e ministérios".
No seu depoimento, Pedra Dantas ressalta ainda a força política da
seção mais poderosa do Jornal do Commercio.
"Ne/n mesmo quando foi possível identificá-Ias, encontrá-Ias na terceira página efazer
algum esforço para tomar conhecimento do que nelas se continha,foi s/ificiente esclarecido o
mecanismo de sua força. Derrubar ministérios, com Ulna conversa por escrito? Bem, vamos
deixar prá lá, coisas, esquisitices de gente grande. Efoi preciso crescer também para -~".
entenda Outros interesses, outras leituras, um mínimo de familiarização com os
mecanismos de formação do poder político, acabaram por elucidar cOlno poderia Ulna 'vária'
derrubar o gabinete "65 .
Usuário freqüente desse canal de comunicação, Prudente faz dele um
meio eficaz para desfazer as dificuldades políticas de seu governo.
A crise entre ele e Manoel Vitorino, em 1897, é um exemplo e está
retratada com tintas vivas na correspondência, a maioria das vezes identificada
como confidencial, entre Prudente e José Carlos Rodrigues. O presidente, que
chama o proprietário do Jornal do Commercio de "amigo e colega", é capaz de se
referir ao vice como "desgraçado", de se queixar da traição explícita de Manuel
Vitorino, entre inúmeras outras confidências. Como um conselheiro informal, José
Carlos Rodrigues, em função da força política do Jornal do Commercio, se torna
um dos mentores da República66.
Reveladora também dessas relações dos jorna~ com ()jJoder~blico éa
extensa correspondência entre o Barão do Rio Branco e José Carlos Rodrig~~
cobrindo o períodoI895~t902-.--Nas cartas, telegramas, I5iTfietese cartões Rio
Branco pede favores pessoais, solicita a intermediação de José Carlos junto ao
Presidente da República, instiga a publicação de artigos, seja para desfazer mal
entendidos, seja para divulgar fatos que considera relevantes, seja para a sua
promoção pessoal.
A publicação de extensos artigos, na Gazetilha, notas nas Várias, mapas
ilustrando as áreas litigiosas nas reportagens, informações tidas como confidenciais
nas colunas, tudo se torna explícito na correspondência entre o futuro Ministro
das Negócios Exteriores e o dono do Jornal do Commercio.
A ingerência de Rio Branco é de tal ordem que chega a reproduzir nessas
correspondências os tópicos frasais que deveriam ser repetidos na notícia. Quando
no Brasil, o Barão costuma pessoalmente redigiros aJ1igos sobre questões polêmicas
publicados ora no jornal de José Carlos Rodrigues, ora no Paiz, como por exemplo
durante a Questão do Acre.
Nas memórias dos jornalistas que reproduzem a redação do Jornal do
Commercio, a figura do Barão do Rio Branco sempre aparece descrição da cena.
"Sentava-se à grande mesa do centro e ali se demorava como se fosse um redator da
sala".
"A grande sala de redação do Jornal do Commercio com a azáfama do trabalho I/otumo, na
certeza de ter sempre com quem conversm; constituía para o Barão uma atra1eio constante,
de quase todas as noites( ...). NO/1m da noite, o Bareio ail/da ali estOl'o, sem sono a
cal/versar com o redator de plal/teio. Muitas vezes saíam jUl/tos e pelas mas desertas da
cidade, já madrugada, o Ministro e ojomalisto vagavomuma 01/ duas horas "~7.
Cada grupo social, segundo Gramsci, cria para si seus intelectuais
orgânicos, sendo necessário ver a função que estes exercem no conjunto do sistema
de relações sociais. Esses intelectuais se transformam em executores do grupo
dominante exercendo as funções subalternas da hegemonia social e do governo
político.
o pensador italiano chama ainda atenção para a verdadeira divisão de
trabalho existente dentro da categoria de intelectuais, havendo toda uma gradação
de qualificações, sendo que algumas não têm nenhuma atribuição diretiva e de
organização.
É este o papel do jornalista, especialmente os que ocupam o núcleo
dirigente, enquanto intelectual orgânico. Não exercendo nenhuma função explícita
junto ao Estado, não estando diretamente atrelado ao comando político e, portanto,
não participando como organizador, é claramente um executor do grupo dominante,
mediatizando suas ações, decodificando o seu simbolismo, divulgando-as e buscando,
principalmente, o consenso espontâneo da populaçãd'x.
A capacidade de tornar explícito, público, visível, oficial, aquilo que
poderia permanecer como experiência individual, representa um considerável poder,
constituindo dessa forma o senso comum, o consenso explícito do próprio grupo.
E na luta pela imposição de uma visão legítima do mundo social, os jornalistas
detém um poder proporcional ao seu capital, isto é, na razão direta ao
reconhecimento que recebem do próprio grupo.
"No dia 16 de novelllbro passado, pela lIIanhã,jui ao escritório da redação e à residêucia
do redator-chefe do Jornal do Couul/ercio e aí lIIanijestei o lIIeu profundo reconhecilllento e
sincera gratidrio para com o grande órgrio da illlprensa brasileira pelo I'alorosíssimo apoio
COIIIque, lIIuito eficazmente, auxiliou o li/eu atribl/lado govemo, especiallllente nas siruações
lIIais melindrosas e difíceis que teve de atravessar".
Na sua última carta como Presidente da RepClblica a José CarJos Rodrigues,
Prudente de Morais reconhece a importância da outorga que fora dada ao redator-
chefe do Jornal do Commercio como pOlia-voz, ou seja, aquele que ao falar do
grupo o institui, o que é inerente à própria nomeação.
Como um último ato na função que desempenhara durante todo o período,
José CarJos Rodrigues edita uma edição especial com o Retrospecto da Presidência
de Prudente de Morais, motivo de agradecimento "penhoradíssimo" do presidente.
"Agora, depois de concluída a leitura,jeita com atenção religiosa, do Retrospecto da
Presidência de Prudente de Morais, que ocupou dez páginas da edição especial do Jornal, de
19 de novelllbro, venho de /101'0 agradece/; e afaço do ílllilllo da alllla e penhoradíssimo, ao
meu tão distinto quanto generoso e dedicado amigo o grande benefício que feZ-li/e com a
publicaçcio desse trabalho, de extraordinário valor histórico, COIIIquefechou a sua obra de "~.
amparo ao mell gOl'enlO durante quatro longo anos "ÓY.
Na verdade, essa "obra de amparo ao seu governo" fora acertada
previamente com o próprio presidente. Em suas memórias Rodrigo Otávio, então
redator do Jornal do Commercio, rememora como foi feita a publicação.
Junto com Antônio Pereira Leitão e José Higino, redige as 10 páginas
que compõem o Retrospecto da administração Prudente de Morais. "Nós três nos
reunimos na sala de Rodrigues combinamos o plano e dividimos o trabalho. Coube-
me o capítulo inicia!. .. Prudente me forneceu todos os elementos, enviando-os em
calias que ainda conservo".
A seguir, reproduz uma dessas calias: "De acordo com o que combinamos
ontem, remeto-lhe: pareceres dos chefes republicanos sobre as bases; instruções;
cópia de telegramas; o caderno com retalhos de jornais de 1895-96. Se precisar de
quaisquer outros documentos, eu fornecerei logo que os indique"711.
As relações que se estabelecem entre os jor!1alistas e os detentores do
poder são também fundamentais para a sua inser ão em postos de comando junto
à burocracia oficia!. O próprio~odrigo Otávio se transforma em c e e a casa civil
de Prudente de Morais. Além dele, outro antigo redator do Jornal do Commercio
trabalha na Secretaria da Presidência como oficial de gabinete: Feliciano José Neves
Gonzaga. Nessa função exerce uma espécie de intennediação entre as informações
da Presidência da República e o jornal, municiando seu antigo patrão José Carlos
Rodrigues com informações que, aos olhos do Governo, deviam ser tornadas
públicas.
"Disse-lIle que no 1/10lllento crítico por que passa o país, e COIllas difiC/{ldades
que assoberballl o gOl'erno, I/ão pode ele prescil/dir do apoio do Jornal, que telll sido órgão
go\'emalllental, sustel/tado selllpre e anilllal/do o D,: Prudente ".
Além desse, dezenas de outros exemplos mostram não apenas a inclusão
de José Carlos Rodrigues no campo político, mas também a impoliância fundamental
que tem "o amparo do seu jornal" para o sucesso ou fracasso do governo.
Se as relações entre Prudente de Morais e .José Carlos Rodrigues tornam
o redator do Jornal do Commercio palia-voz informal da Presidência, no governo
seguinte não menos poderoso deixa de ser o ex-proprietário da Revista Novo
Mundo. O jornal continua sendo, durante o período Campos Sales, responsável
pela divulgação oficial dos atos da Presidência e diariamente a redação da Rua do
Ouvidor recebe tiras para publicação. "Campos Sales agradece cordialmente a
referência que a 'Vária' fez ao seu governo noticiando o empréstimo para as obras
do porto e envia os mais afetuosos comprimentos".
Cartões e bilhetes como esses são freqüentes . .José Carlos Rodrigues é
chamado de amigo e tratado com a maior intimidade possíve!.
Apresentando pessoas e agradecendo os bons serviços, são inúmeros os
exemplos referindo-se a favores pessoais do então presidente ao proprietário do
Jornal do Commercio. "Campos Sales apresenta o Sr. .Jesuíno de Meio ao seu
amigo DI'. José Carlos Rodrigues". Ou: "Campos Sales. De pleno acordo,
agradecendo desde já os bons serviços".
Essas relações são de tal ordem que as sugestões para que publique
notícias, elabore várias, divulgue ou esclareça atos oficiais se tornam diárias. "Acho
interessante e muito sensato o artigo do DI'. Pereira Barreto, publicado em editorial
do Correio Paulistano e que vai aqui em retalho. Não valerá a pena dar-lhe transcrição
em lugar de honra no Jornal?" 71
Se, além dessas relações explícitas, ainda considerarmos a língua não
apenas como código, mas como sistema simbólico, a inter-relação entre a produção
do discurso e a questão teórica do poder ainda é mais evidente. O poder da palavra
é o de quem detém essa palavra, ou seja, não só o discurso, mas também a
formalização da maneira de falar. Por outro lado, detê-Ia significa criar um sistema
de codificação, intencionalmente produzido, que possibilita a ordenação e a
manutenção da própria ordem simbólica.
Quando a isso se soma o fato de codi ficar na forma escrita, isto é,
tornando conceitos, idéias e a língua oficial visível, pública, conhecida de todos,
estabelece-se uma distinção entre a quem é delegado esse papel e todos os outros
que não possuem essa função.
O autor, no verdadeiro sentido, é quem torna público aquilo que parece
confuso. É alguém com a infinita capacidade de publicar o implícito e assim realizar
o verdadeiro trabalho de criação. A publicação é um ato de oficialização, por
excelência, que legaliza, pois implica divulgar e desvendar algo para o público e, ao
mesmo tempo, na sua homologação, através do consenso de todos para quem se
revelou.
Assim, os jornalistas se transformam em autores no sentido empregado
por essa palavra quando se estuda o processo de codificação. A eles cabem não só
divulgar, informar, mas sobretudo tornar público e revelado. As suas relações com
o poder vão, portanto, além dos limites das relações explícitas com o Estado e com
os grupos que detém o poder político num determinado momento72 •
O que os jornais pretendem é atuar no campo político - lugar onde se
geram problemas, programas, análises, comentários, conceitos e acontecimentos,
entre os quais os "consumidores" devem escolher - e conseguir uma mobilização
cada vez maior do público. Quanto maior a sua audiência, maior o seu poder de
divulgação e a lógica da conquista do próprio poder. . t•..
periódicos, ainda que ocupando o mesmo campo de atuação, a se colocarem muitas
vezes em lados opostos.
As disputas, rivalidades, lutas explícitas entre eles devem ser vistas
mais do que como desavenças momentâneas. 2-
ue ~tá em i2.go--i a .9~ltor(}a do
papel privilegiado de pQrta-voz dos grupos dQmLoantes...
É possível encontrar diariamente críticas a outros jornais, pelos mais
variados motivos. Mas, sem dúvida, a disputa mais ferrenha ocorre entre o Correio
da Manhã e O Paiz. Embora critique todos os principais diários, durante 15 anos
sem interrupção, Edmundo BittencolJlt move uma campanha sem trégua contra o
periódico de João Lage. Nas denúncias, explicita o funcionamento da máquina
administrativa das publicações e, principalmente, deixa claro os favores e
favorecimentos que faziam o dia-a-dia da imprensa.
Em 190 I, segundo o jornal de Edmundo Bittencourt, o principal
financiador dos periódicos é o Banco da República. Há, também, a "verba s eta"
da polícia que subvenci9na aimprensa. O Jornal do Commercio é, então, o
principal beneficiário. Os elogios fartos que aparecem nas suas páginas em favor
do Presidente e de seu Ministro da Fazenda são comprados e pagos mensalmente.
"COIII exceçrio de dois jornais, eles (COlllpOS Soles e 1. Murtinho) hal'ialll cOlllprado a
illlprensa inteira, a cOllleçar pelo lomol do COllllllercio, que só pela verba secreta da polícia
recebia 20 contos porlllês. COIII que filll cOlllpraralll eles a illlprensa? Para poderelll vender o
país, para se apropriarelll de nossos bens. parafazerel/lnegociatas e patotas a nossa C/lsta,
para nos cobrirelll de illlpostos e vergonlws"73.
Os favorecimentos não partem apenas do governo central.. Os overnos lr
Ir estaduais também financiam as publica ões. Em 1898, o Rio Grande do Sul paga ao
Jornal do CommercTo]90 mil réis pela publicação de um edital sobre o
prolongamento da Estrada de Ferro de POltO Alegre a Novo Hamburgo, conforme
nota encontrada nos arquivos de José Carlos Rodrigues.
Os contratos para publicação dos atos oficiais da Prefeitura, bem como
a possibilidade de fornecer serviços são disputados avidamente. Em 1890, o Jornal
do Commercio firma um contrato com a Prefeitura do Distrito Federal para a
publicação desses atos. Onze anos depois perde a exclusividade para a Gazeta de
Notícias, que, por sua vez, deixa de prestar o serviço seis anos mais tarde, quando
O Paiz firma um novo acordo com a Diretoria Geral do Interior e de Estatística e,
em função disso, acrescenta às oito páginas tradicionais do jornal mais duas.
O valor pago pela publicação dos editais explica, em parte, a luta travada
pela conquista da prerrogativa. Em 1909, enquanto que um pequeno anllllcio, de
três linhas, vale nos jornais 200$, a Prefeitura paga pela publicação de quatro
editais sobre a proibição de queima de fogos de 31tifícios nas ruas 380$000, cada
lIm.
Em 1909, O Paiz quase perde essa subvenção oficial, que custa aos
cofres da Prefeitura 150 réis a linha. Pelo contrato, o jornal divulgaria
"gratuitamente" o serviço de publicação avulsa e boletins, cobrando pela inserção
dos editais. A comissão encarregada de analisar as propostas acha por bem não
aceitar os argumentos de O Paiz, sendo favorável ao Jornal do Commercio,
acrescentando: "De resto, há a considerar a situação constrangida em que ficaria a
Prefeitura, tendo um dos seus serviços arrendado a uma empresa particular, a
título precário, sem a fiscalização rigorosa que é mister nesse serviço"74 .
Apesar do parecer contrário, em 31 de dezembro de 1909, O Paiz
consegue renová-Io, sem antes denunciar o concorrente de "correr em torno do
contrato, se servido das suas influências clandestinas na diretoria administrativa,
entre cujo pessoal cavou o vergonhoso parecer que estamos pulverizando".
Segundo O Paiz, aproveitando-se da doença do Prefeito, o Jornal do
Commercio consegue que "lhe seja dada a publicação da mensagem ao Conselho
Municipal" 75.
Em 4 de março de 1910, João Lage pede a ratificação do contrato, para
não obrigá-Io a publicar o anuário de estatística, denunciando ainda a má vontade
de um departamento da Prefeitura para com a sua empresa que, mesmo com a
decisão contrária ao parecer da comissão encarregada de analisar as propostas,
ganha o direito de publicar os atos oficiais. Mais uma vez Serzedelo Correia defere
o pedido em favor de O Paiz.
Valendo-se das mesmas armas que usam quando conseguiam os seus
objetivos - as letras impressas - os jornalistas utilizam a crítica, movendo campanhas
difamatórias, toda vez que vêem seus interesses contrariados.
A oposição do Jornal do Commercio aos atos do Prefeito Pereira
Passos tem muito desse componente. Em agosto de 1903, o jornal de José Carlos
Rodrigues não consegue fornecer os diplomas necessários às escolas primárias,
encomendados pela Prefeitura, sendo preterido por outra empresa que cobrara um
valor infinitamente inferior. Como resposta, as críticas diárias aos atos da Prefeitura
se sucedem no jornal.
Em defesa de interesses momentâneos, o Governo vale-se freqUentemente
do apoio da imprensa. Nas várias questões diplomáticas em que o Brasil se envolve
no período do Barão do Rio Branco, o Ministro quase que diariamente ia ao final
da tarde à redação do Jornal do Commercio para, com seu próprio punho, redigir
os artigos de fundo, as várias e outros textos defendendo suas idéias. Mas isso não
se restringe ao Jornal do Commercio. Também O Paiz, durante a questão do
Acre, apoia vivamente o interesse do Ministério, que é favorável a indenização em
dinheiro ao governo boliviano. A extensa polêmica se estende durante vários meses
nos principais periódicos. Segundo denúncias do Correio da Manhã, o Barão
precisa
"armnjarllmjornal qlle lhe pllblicasse, como coisa de redaçrio, IIns artigos sllstentando que
se del'e dar a Bolh·ia. para acabar com a qllestrio do Acre, 40 mil contos em dinheiro, /IIna
estmda de ferro e /.500 I'idas de soldados e, ainda. 11mlargo pedaço do nosso território.
Nrio hOlll'ejornalista brasileiro que se prestasse a semelhante papel, pago, aliás, CO/110era
natllral, a peso de Ollro tirado aos coJi'es da nação. Apareceram-lhe nesta emergência os 51'S.
Eduardo Salamonde e Jorio de Souza Lage, dois portllglleses renegados, IIln deles até
jacobino, que dirigem O Paiz. Fechou negócio com eles, pensando quefossem brasileiros,
com aUlOridade para convencel: ou antes, iludir os seus patl'Ícios em lima qllestão de puro
patriotismo ".
Enquanto isso, O Paiz reafirma o seu apoio irrestrito ao Barão do Rio
Branco:
"O Pai~ qlle há longo tempo estllda a qllestrio do Acre e qlle professa pela capacidade e pelo
patriotismo do Barrio do Rio do Bmnco lima admiração qllase cultllal,jlllgoll-se no dever de
dar ao público os motil'Os por qlle empossoll as bases anllnciadas do tratado, analisando-as
sob o ponto de l'ista constitllcional, político e econômico. Em resposta, o SI: Bittencollrt nos
denllncioll cOlno I'endidos ao gOI'erno, qllejá não pode obter na imprensa deste desgraçado
país que aplallda o S,; Barrio do Rio Branco senrio a cIIsta de saqlles clandestinos ao
Tesouro Nacional".
No extenso artigo em que tenta argumentar ser a defesa feita em nome de
interesses patrióticos e nacionalistas, João Lage insinua claramente que se para
elogiar a Sorocabana, o Ministério dos Negócios ~xteriores e Júlio de Castilho
recebem por isso, também o Correio da Manhã empresta a seu irrestrito apoio
ao governo da Bahia, a Pereira Passos e ao London Bank recebendo, em troca,
pagamento por esses "serviços" prestados.
Para Edmundo Bittencourt o fato de O Paiz defender veementemente os
interesses da Cia. Sorocabana e publicar matérias favoráveis a Júlio de Castilho é
uma prova cabal de que
"receberam dinheiro de Júlio de Castilho, com o SI: Campos Sriles fizeram a mesma coisa.
Apoiaram-no por dinheiro, por dinheiro o agrediram mais tarde. desesperadamCl1te (...).
Protestei ell, (kendo qlle O Paiz é /IInafolll({ mercenária. Disse, sllstento e rito umfato que
posso dar prol'({: - O Paiz alllgoll-se à Cia. Sorocabana, isto é, atacolI o governo do D,:
Campos Sales por conta do comendador Mãozinha. Recebeu 74 contos de réis pelos seus
serviços e passou recibos. Neglle sefor capaz.! "7~
O próprio João Lage admite, posteriormente, ter recebido da Sorocabana
74:000$000, embora' afirme que esta quantia foi paga não em uma única vez, mas
em múltiplas parcelas e justifica a subvenção como uma atividade própria do
jornalismo, que explorando a "indústria da publicidade" pode publicar matérias
pagas defendendo os interesses daquela empresa.
"Esse dinheiro foi legitimamente ganho por esta empresa que explora a induslria da
publicidade, pelo fato de, durante este longo período de acidentada luta, ter publicado os
artigos do SI: Comendador Casimiro Alberto da Costa e os trabalhosjurídicos e de
polêmica do advogado da companhia do ilustre DI: Ulysses Vianna, tudo em primeira
página, COIIlOeles desejavCIIIl.Naturalmente que eu na uúnha qualidade de administrador
comercial desta empresa, não publicaria trabalhos destinados à seção livre na primeira
página do jornal, sem que essa exceção fosse devidamente recompensada".
Em outra 0poI1unidade, ao receber um pedido do Secretário de Fazenda
de São Paulo, Cardoso de Almeida, para que O Paiz iniciasse uma campanha
contra as Docas de Santos, Lage assim responde, por escrito, ao jornalista
responsável pelo jornal, em São Paulo:
"Essa história das Docas que o Cardoso pediu como sefosse notícia de casamento ou de
batizado é coisa /lnúto complexa e ainda para ser discutida pelos Tribunais. Diga ao
Cardoso que vou pensar no caso, mas faça-lhe esta consideração: as Docas, na pior das
hipóteses, publicam seu relatório anual no Paiz e a Secretaria de Fazenda de São Paulo não
publica o seu" 77.
~_Qublicação de anúnçiQs é fundame'!\.&2ara a sobrevivência do eriódico_

- -
e determina o enfoque que a matéria toma. O jornal não pode ser contra uma
empresa que insere publicidade nas suas páginas, a não ser que a compensação
oferecida pelo opositor fosse mais rentável. Além disso, faz parte da sua receita a
publicação de matérias subvencionadas.
É também prática comum o recebimento de empréstimos especiais dos
organismos oficiais. Em 1903, 1904 e 1905 para se tornar o principal acionista de
O Paiz, João Lage obtém junto ao Banco da República empréstimos no valor total
de 1.250 contos, em parte para pagar 500:777$961 a Almeida Godinho pela compra
do jornal e outra para financiar a construção de uma nova sede na Avenida Rio
Branco. Em fins 1906, o jornal ainda deve 811 :000$000, mas após a reorganização
do Banco, Lage propôs para quitar o total da dívida pagar apenas 230 contos.
Para conseguir o empréstimo e saldar a dívida dessa forma, vale-se o
proprietário de O Paiz das suas relações com o Ministro da Fazenda, Leopoldo
Bulhões.
"Lage, com a lábia maneirosa que constitui o predicado dos delinqiientes dessa espécie,fez-
se amigo do governo Rodrigues Alves. Nem era para menos. Achava-se na pasta da Fazenda
o DI: Leopoldo de Bul/lões, cujo escrúpulo no manejo dos dinheiros públicos já é bastante
conhecido. Firmado nesse laço de amizade, Lage podia dizer que, estando nele, esta\'({
montado no cobre do Banco da República. E dito efeito. O genial escroc (Lagefaz questão
de que se o trate de gênio),joi ao Banco, arrotou essa amizade. mostrou as suas canelas de
aço de rija tempera e num ápice, viu que as portas dos cofres dessa casa de crédito se lhe
abriam com a mesmafacilidade com que o vento escancara umajanela sem trincos, nem
trancas "78.
Analisando-se as campanhas desenvolvidas, os destaques e elogios
explícitos ao período da Presidência Rodrigues Alves, parece claro que as denúncias
de Edmundo Bittencourt não são desprovidas de fundamento.
Nas suas memórias, o jornalista responsável pela edição das notícias
paulistas de O Paiz reproduz, em diversos trechos, cartas e bilhetes mostrando a
relação estreita entre Lage e o Presidente Rodrigues Alves.
"Certa vez, estava na presidência da República o conselheiro Rodrigues Alves. O Governo
carecia orientar a opinião pública acerca de determinado assunto. O Paiz erajornal de elite.
Seu corpo redacional e de colaboradores simplesmente notá\'el. Vm secretário do presidente
foi procurar Lage, dizendo-lhe que o chefe da nação necessitava explicar o caso através das
'Três entrelinhas'.
Em 14 de novembro de 1906, sob o título "A Presidência Rodrigues
Alves", O Paiz faz um balanço do período 1902-1906, reproduzindo o retrato de
todos os ministros e do prefeito Pereira Passos. A notícia ocupa três páginas e
meia do jornaF0 .
Em 1911, também o Jornal do Brasil consegue junto ao Banco do
Brasil um empréstimo de 1.773: 180$800, para saldar uma dívida com o Mosteiro
de S. Bento, dando como caução títulos no mesmo valor. Na época, o capital total
da Sociedade, divido em 12.500 ações ao portado~: é de 2.500:000$000 e suas
dívidas somam 1.500:000$000. Segundo denúncias, a intervenção do Ministro 1. 1.
Seabra foi providencial para a liberação do empréstimo.
"Mas cOlno conseguiu o Jornal do Brasil arrancar do Banco tão elevada verba? Afirmava-se
ontem quefoi o ministro da Viação quem amparou aquela negociara(. ..). Seja, porém, como
fr!!; o certo, o indiscutível é que o Jornal do Brasil, empresa falida, por meio de títulos que
nada representam, arrancou aos acionistas do banco a grossa soma, para poder pagar ao
Mosteiro de S. Bento o que Ihi;devia "SI!.
Acompanhando, ano após ano, durante uma década e meia essas denúncias,
o que sobressai é a extensa polêmica do Correio da Manhã primeiro com o
Jornal do Commercio e, posteriormente, e de forma mais acirrada ainda com O
Paiz. Enquanto de início envolvam invariavelmente instituições do Governo ou o
próprio Presidente da República, a partir dos anos 10, o leque de opções dos
jornais para venda do -seu apoio se alarga. As instituições financeiras e até mesmo
os governos estrangeiros - como ocorre com a Alemanha durante a Primeira Guerra
- passam a ser, cada vez mais, o outro sujeito envolvido no favorecimentdl _
No período que se estende de 1900 a 1915, chama a aten ão a pulverização
de denúnci~s nos cinco primeiros anos, evolvendo, sem exceção, todosõs principais
periódicos. Em 1901, o principal alvo de Edmundo Bittencourt é o jornal do
Commercio e, no ano seguinte, o jornal do Brasil é acrescentado a lista. Em
1903, O Paiz é cada vez mais atingido pelas duras campanhas. Ninguém escapa
das subvenções oficiais em 1904 e 1905, segundo o Correio da Manhã.
Na década seguinte, o denunciante é o periódico de João Lage. A Light,
as oligarquias paulistas e baianas e Afonso Pena são os principais financiadores do
Correio da Manhã, segundo O Paiz. A polêmica civilista e hermista se sobressai,
em 1910, e culmina com a abertura de processos na justiça.
De 1911 a 1915, mais uma vez, o destaque é a luta explícita entre o
periódico de João Lage e o de Edmundo Bittencourt. Situados em campos
aparentemente opostos, O Paiz denuncia as ligações de Bittencourt com o Dresden
Bank, enquanto que o Correio acusa João Lage de receber pelos elogios ao senador
Pinheiro Machado, por defender a idéia do arbitramento do litígio entre o Paraná e
Santa Catarina, por ser subvencionado pelo Estado do Rio e até pela Prefeitura de
Niterói. Em 1915, O Imparcial, diário ilustrado fundado por Eduardo Macedo
Soares, em 1912, divide com o Correio da Manhã as denúncias de Lage.
No período que antecede a eleição de Hermes da Fonseca, a luta explícita
do Correio e de O Paiz assume proporções inimagináveis. Edmundo BiUencoul1
chega a mover um processo contra João Lage por crime de estelionato. Em resposta,
João Lage processa-o por crime de calúnia.
Para materializar junto ao leitor que o apoio irrestrito do Correio ao
civilismo fora uma atitude de última hora, O Paiz passa a republicar, durante mais
de quatro meses, em sua primeira página, matérias anteriormente divulgadas pelo
jornal de Bitlencourt onde criticam abel1amente Rui Barbosa.
Desde 31 de maio de 1909, o jornal de João Lage assume publicamente
sua posição de apoio a Hermes da Fonseca e critica o fato de o seu principal
opositor ainda não ter tomado uma posição explícita.
Esse apoio é flagrante. Até o final de 1909 são incontáveis as vezes em
que o Marechal aparece com destaque nas primeiras páginas. Banquetes em
homenagem ao futuro presidente, ao seu vice, seu programa de governo, entrevistas,
visitas, tudo merece o aplauso e a notícia de O Paiz. Paralelamente, passam a
criticar duramente o Correio da Manhã por não ter tomado uma posição clara em
relação ao futuro governo.
Segundo, O Paiz a demora e, finalmente, a definição do periódico de
Edmundo Bittencourt é produto de um negócio explícito. Em troca do apoio à
candidatura Rui Barbosa, Bittencourt recebeu do Governo de São Paulo 10 mil
contos e do Governo da Bahia 3 mil. De acordo com a denúncia, o Governo de São
Paulo financia também o apoio da Gazeta de Notícias.
"Faltalldo-Ihe a coragem da Gazeta de Notícias, de mudar de atitude da noite para o dia, o
Correio faz esse barulho para que o seu diretor possa despercebidamente escafeder-se para a
Europa, deixando 110seu lugar o antigo cúmplice das suas tramóias, esse desclassificado Gil
Vidal, que lel'a sobre o parceiro a vantagem. do talento: igualando-o nafalta de escrúpulos e
lia lJe/fídia dos processos. Em torno do dillheiro de São Paulo agitam-se os comedores
projissiollais. até 1I1eSlllOos que já estavam//{{ reserva; o Lambe-Feras mifazer uma I'iagem
de recreio 110I'elho II/ulldo e o Lambe Fichas assume no Correio a direção da campanha
contra a candidatura do marechal".
Essa polêmica, que se estende durante três anos, não cessa sequer quando
O Paiz também deixa de apoiar Hermes da Fonseca, já em 1911. Segundo denúncias
do Correio, o rompimento deve-se a recusa do Governo em dar
"400 cOlltos, que era quanto o patife pedia pelo apoio de sua meiafolha de papel aos atos
da admillistl'Oção e da política do Marechal Hermes. Se esses 400 contos lil'essell/ saído dos
cofi'es do Tesouro para a caixa dojomal do Lage, então não hal'eria bombardeio capaz de
lel'Ol/tar a sua indignação. como ncio levmlfOl'Ol1l os morticínios na Ilha das Cobras e do
Satélite. que Lage não quis profligar"N!.
Assim, após um período de apoio ostensivo ao Governo e de apregoar
pelo jornal quase que diariamente a intimidade de seu diretor-proprietário com o
presidente da República, O Paiz começa a fazer sistemática campanha contra o
Marechal. E o Correio da Manhã não cessa de denunciar que por detrás dessa
tomada de posição está o fato de ver contrariado os seus interesses econômicos.
Em março de 1910, Edmundo B ittencourt entra na I a Vara Ci vi I com um
processo de estelionato contra João Lage, com o argumento de que este não podia
ter contraído um empréstimo em nome de O Paiz, em 1903, uma vez que ainda não
era proprietário da empresa. Para tal, teria apresentado documentos falsos junto
ao Banco da República. Em contrapartida, em abril do mesmo ano, João Lage
apresenta na 3a Vara Civil queixa contra Bittenéourt, por crime de calúnia, em
função deste ter dispensado a ele "os insultos mais baixos e grosseiros em suce sivos
artigos da sua autoria, sendo que entre ditos insultos figurava o epíteto de
estelionatário"xl.
Apesar disso, Edmundo Biuencourt embarca para a Europa. Em 23 de
junho, o promotor arquiva o processo contra Lage e, finalmente, em 14 de novembro
de 1910, a Corte de 'Apelação impronuncia o réu. Mais uma vez o Correio da
Manhã denuncia as ingerências do Presidente da República para que tal desfecho
se desse.
Tal como José Carlos Rodrigues no período anterior, agora é João Lage
quem recebe as visitas do Presidente da República, quem comparece aos banquetes
oferecidos no Palácio, quem recebe telegramas por ocasião de seu aniversário.
"Uma nota: o Sr. João Lage, esteve ontem no palácio do Catete onde foi agradecer
ao Sr. Presidente da Republica o telegrama que lhe dirigiu por motivo de seu
aniversário natalício".
Em todas as comemorações, festas e promoções impressiona o expressivo
número de integrantes dos mais altos cargos da República, seja do Executivo, do
Legislativo ou do Judiciário, presentes. O poder dos jornais materializa-se nas
suas relações explícitas com os grupos dominantes.
Em junho de 1911, quando João Lage embarca para um período de férias
na Europa, destaca-se nas fotos publicadas as figuras eminentes da República que
foram se despedir dele no cais Pharoux. Pinheiro Machado conversa a um canto
com o Presidente Hermes. Nas outras três fotos, deputados, senadores, diplomatas,
enfim, "todas as classes, todas as individualidades sociais estiveram representadas
no embarque do publicista vigoroso". E particularizam: "representantes dos poderes
públicos, personalidades em destaque na diplomacia, na política, nas indústrias,
nas letras, nas ciências, nas várias mobilidades da organização social"x~ .
Muitas vezes essas relações não são apenas tornadas públicas, mas
apregoadas, com o intuito claro de mostrar o apoio que os dirigentes recebem em
momentos de dificuldades. É o que acontece por ocasião do aniversário de João
Lage, em 1910. No instante em que há na Justiça um processo movido contra ele e
que o Correio da Manhã estampa diariamente amplas notícias sobre os
favorecimentos, negócios espúrios e negociatas em que estaria envolvido, é preciso
tornar público o quanto é respeitado não apenas pelos jornalistas, mas também
nas altas esferas do poder.
Em I" de setembro daquele ano "uma comissão de políticos e de altos
representantes do meio social" oferece ao diretor de O Paiz um banquete no
restaurante Assírius. Organizado por Pinheiro Machado, J. 1. Seabra, pelo já
deputado Alcindo Guanabara, pelo general Dantas Barreto, por Dunshee de
Abranches, entre outros, o banquete é presidido por Quinlino Bocaiúva, primeiro
redator-chefe e mentor intelectual do jornal. Além do prefeito e do chefe de polícia,
ministros, senadores e diplomatas lotam os salões. Todo o grand monde do poder
está presente e O Paiz faz questão de reproduzir o nome de todos os participantesXí .
Pela manhã, o apoio pal1ira dos próprios jornalistas. Um almoço na sala
da redação reúne não apenas os diretores do periódico - como o comendador
Ferreira Sampaio e João Maximiniano de Figueiredo - mas os principais redatores
de outros diários aliados naquele momento, como o Jornal do Commercio, a
Gazeta de Notícias, A Imprensa, O Século e o Jornal do Brasil, num total de 53
profissionais. Lá estão João Barbosa, Julião Machado, Oscar Guanabarino, Eduardo
Salamonde, Joaquim de Salles, Figueredo Pimentel, Castello Branco, Abner Mourão,
Paulo Vital, apenas para citar alguns.
Essas reuniões deixam claras as alianças que formam com os seus pares
e com outros integrantes do campo político e mostram também a importância de
tornar pública, explícita, visível a participação do periódico num lugar de destaque
entre os dom inantes.
Por outro lado, as lutas travadas entre eles - do qual o embate entre o
Correio da Manhã e O Paiz é apenas um exemplo, ainda que expressivo - tornam
evidentes que, mesmo ocupando uma posição dominante, esses grupos podem
estar envolvidos em lulas diversas o que não os colocam em campos diametralmente
opostos. Longe de serem antagonistas num espaço social multidimensional, ão
protagonistas de uma mesma peça onde o que está em jogo é a luta simbólica pelo
poder. E essa luta parece clara aos olhos dos próprios dirigentes.
"O S,: Bitlel/cOl/rtnâo explora só a pl/blicidade COIll intl/ilos lIlercantis: alélll da boa renda,
ele al/er al/toridade. a posiçâo evidente e dOlllinadora (grifo nosso), e pelo sen jomal é que a
há de obtel; lIlanejando para essefilll as paixões da tl/rba ql/e o onve, COIllOa I/lIllllestre"M.
Considerando que as relações de comunicação dependem
fundamentalmente do que foi acumulado material ou simbolicamente pelos agentes
envolvidos, é preciso ainda perceber que estão em jogo a participação efetiva no
campo político e o uso de uma categoria particular de sinais e, deste modo, da visão
e do sentido do mundo socialx7 .
Dessa forma, é possível ver no mesmo período uma dura crítica a um
periódico, colocado naquele momento como adversário e, no instante seguinte,
encontrar seus dirigentes entre os participantes de uma solenidade. Isso não quer
dizer que não houvesse luta ou que o embate fosse fingido. O que há, na verdade,
é um jogo que acomodações, onde nova aliança se forma, em função de interesses
momentâneos. .
Não se pode afinnar - mesmo nos momentos mais duros da luta explícita
entre eles - que o Correio da Manhã e a Gazeta de Notícias estão num campo
oposto ao Jornal do Commercio, Jornal do Brasil ou O Paiz ou que são
intrinsecamente seus adversários.
As críticas, desavenças e campanhas devem ser consideradas sob dois
aspectos: como legitimação de uma auto-identidade construída e corno efetiva
disputa' pelo papel pioimordial de divulgador, estruturador e centralizador das
visões dominantes. O embate entre os periódicos é, sem dúvida, urna luta de e pelo
poder.
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A polêmica como modo específico de prática intelectual se aproxima, em
sua estrutura, da política partidária e parlamentar e das lutas entre oligarquias.
Mas a luta se dá sempre entre iguais. O combate é travado entre indivíduos situados
em campos idênticos, onde se sobressai o exagero retórico e teatral das diferenças
e oposições. Com a polêmica cada um dos participantes daquele teatro se esforça
por afirmar o caráter pessoal e individual do seu ponto de vista para o restante da
sociedade. Os donos de jornais polemizam com os olhos voltados para as reações
do público e para a forma como o debate seria recebido. O locutor não se dirige
apenas ao adversário. O seu objetivo é atingir o leitor.
A República se estabilizara, em 1898, no governo Campos Sales. A
derrota política dos setores militaristas e jacobinos, junto com a de Canudos,
sedimenta o predomínio dos grupos civilistas, apoiados nas elites regionais. Como
divulgador das idéias desse grupo, o Correio da Manhã se sobressai na crítica aos
setores governistas. Apoiando as oligarquias agrárias, a lavoura, o comércio e os
bancos, o Jornal do Commercio, a Gazeta de Notícias e O Paiz situam-se junto
a outros grupo dominantes. Na mesma trincheira, mas com um discurso
extremamente peculiar, em função da sua própria função comunicativa, o Jornal
do Brasil alinha-se ora a um setor ora a outro, mas é nítida a sua tendência em
reafirmar os valores de novos grupos surgidos no cenário urbano, como os ligados
à prestação de serviços e à construção civil.
A restauração financeira, trazida com o empréstimo do .ftmding loan,
abre caminho para a restauração da capital: a regeneração como dizem os cronistas.
As reformas urbanas realizadas por Pereira Passos de 1903 a 1906 inserem a
cidade numa nova atmosfera.
r A reconstrução nacional, representada pela dissolução da cidade imperial,
se dá associada à criação de um espaço urbano com características modernas.
Transforma-se o espaço público e a mentalidade urbana. E nessa tarefa a imprensa,
mais uma vez, tem um papel preponderante. Condenando hábitos e costumes
) brasileiros e africanos, relacionados ao passado colonial e à sociedade tradicional,
empreende longas campanhas em favor dos novos costumes, dos novos hábitos e
da nova civilização. A missão dos literatos e dos jornalistas deixa paulatinamente
de ser crítica e contestadora para adquirir feições Iiterárias e informativas, vinculadas
a sua própria afirmação profissional.
~ Por outro lado, a medida em que a palavra escrita adquire valor de verdade
e autoridade em relação à oral idade, cresce a importância dos letrados e dos
/i especialistas, educados segundo princípios laicos e científicos. As regras e normas
se tornam explícitas e fixas, sob a forma de códigos e leis, de estruturas nonnativas
genéricas. A expansão, ainda que restrita, da escrita contribui não apenas para
fortalecer as instituições burocráticas e para distanciar o Estado da Jgreja, mas
também para dar ao jornalismo uma nova "missão", como eles mesmos com
freqüência apregoam. Ao jornalista cabe difundir idéias, visões de mundo e I(
representações da sociedade. A sua função comunicativa ganha força ao lado de
seu papel político.
Observa-se, por outro lado, uma verdadeira mudança no padrão
intelectual, principalmente nas primeiras décadas do século XX. Uma geração de
intelectuais partidários ou especializados, ligados a sua época e principalmente a
concepções irredutíveis umas às outras, substitui a dos pensadores universais. A
crise do liberalismo da Primeira República introduz definitivamente outro tipo de
divisão intelectual, até então irrelevante: o conflito entre ideologias e teoriasxx.
Se o bacharelismo jurídico fornece quadros para a burocracia oficial,
participando da formação do Estado nacional e formulando, por meio do
evolucionismo e do positivismo, as primeiras expressões da ideologia modernizante,
também cria mão-de-obra especializada para a imprensa difundir essas ideologias
e teorias.
A dinâmica cultural. que gira em torno do embate entre o moderno e o
retrógrado, entre a ciência valorizada no presente e a metafísica localizada no
passado, passa a ser percebida em concepções científicas diversas, vanguardas
literárias e partidos políticos opostos. Além da campanha em favor da modernização,
destaca-se nas discussões projetos divergentes quanto à reformulação do Estado e
da própria sociedade. A produção intelectual assume caráter nitidamente ideológico
e político, apesar de muitas vezes o intelectual-jornalista, partidário e/ou
especializado, apresentar a sua atividade como dotada de universalidade e
imparcialidade em relação aos paltidos e interesses.
Baseados na sua audiência e, sobretudo, nas suas relações com os grupos
dirigentes, os diários seguem vendendo as linhas e.scritas em favor de determinados
temas. As intermediações de negócios valem também vultosas quantias. Em 1913,
o Correio da Manhã denuncia que João Lage recebe comissão por defender a ação
do então ex-ministro da Fazenda Francisco Salles, que contratara ao governo alemão
a cunhagem de 60.000 contos, em moedas de prata, "sem concorrência e sem
qualquer formalidade legal". Em contrapartida, O Paiz acusa o Correio de estar
recebendo propina do Dresden Bank, de tal forma que, se o negócio fosse efetivado
com aquela instituiçãO financeira; pagar-se-ia a mais 2 mil libras.
Em artigos posteriores, denuncia o silêncio da imprensa a respeito do
assunto, o que revela uma certa solidariedade e, principalmente, o envolvimento
em negócios semelhantes. Com exce ãe-~ Imparcial e de A Noite, nenhum
outro diário do Rio de Janeiro se ocupa do assuntoX~ .
Aquele que é apresentando como inimigo e objeto das mais contundentes
descomposturas é, na verdade, o intermediário de um processo de comunicação
que envolve o interlocutor e o público, cuja adesão é disputada usando-se para isso
todas as armas.
Deste modo, procuram reduzir a distância do leitor, mas sobretudo criar
uma identidade própria para o periódico, que o identifique com aquele público.
Num mercado de bens culturais, ainda não plenamente constituído, é fundamental
montar uma nova versão de folhetim. Um folhetim que tem como tema a realidade.
Como nos folhetins publicados em capítulos, as campanhas contra outros
periódicos, denúncias e críticas são apresentadas em série, com um tema sucedendo
o outro e com cada novo aspecto no dia posterior adicionado à trama.
O leitQ.!:,_por outro lado, é promovido a posição de verdadeiro árbito,
onde, num campo a princípio neutro, recebe tanto o discurso do locutor quanto o
do seu adversário. A retórica empregada tem o intuito de persuadi-Io e de conquistá-
10. O polemista ora se dirige ao adversário, ora se dirige ao público, de modo a
apossar-se de sua simpatia, audiência, aprovação e fidelidade enquanto consumidor
daquela publicação.
As denúncias de recebimento em troca do apoio explícito não páram. O
Correio acusa João Lage de fazer um novo empréstimo fraudulento junto ao
Banco do Brasil, no valor de 250 contos, para custear uma viagem à Europa. Em
contrapartida, O Paiz afirma que Edmundo Bittencourt compra o seu apoio ao
Governo do Paraná na questão do Contentado. Em janeiro de 1914, O Paiz é
acusado de vender o seu apoio ao Governo do Estado do Rio de Janeiro e a
Prefeitura de Niterói, o que é desmentido, de maneira veemente, no artigo
"Chafurdando na lama".
Durante a I Guerra, as denúncias envolvem o apoio que a imprensa
estaria recebendo da Alemanha. Em 1916, O Paiz afirma que os jornais brasileiros
- deixando perceber nas entrelinhas que se refere ao Imparcial e ao Correio da
Manhã - receberam 150 milhões de contos do Reichstag para defender os interesses
alemães.
Apesar dos vultosos negócios, nem sempre conseguidos de maneira
idônea, os jornais enfrentam di ficuldades financeiras, algumas bastante graves.
Esse é o caso de O Paiz, que, após a crise do preço papel de imprensa ocorrida
durante a Primeira Guerra, não consegue se soerguer financeiramente. Fechando o
balanço de 1915 comum prejuízo de 326:485$474, no ano seguinte amargam novo
débito da ordem de 25:000$000, apesar de terem arrecadado 173:341 $375 com
publicidade, contra uma despesa de 138:551 $618~1I.
Para completar esse quadro, em agosto de 1917, a sua moderna sede na
Av. Rio Branco é destruída por um incêndio. Os prejuízos são em muito superiores
aos 470 contos, em que estão segurados o prédio, as máquinas, o mobiliário e o
papel de imprensa. Na época, deve 590:685$029 e vem amargando prejuízos em
seus balanços há dois anos consecutivos.
O principal credor do jornal é a família de Franklin Sampaio. Deve
também a E. Lambert, à Agência Havas, ao Lond & B. Bank, ao Banco Ultramarino,
ao Credit Foncier, ao Banco Francês e Italiano e a diversos outros fornecedores,
como por exemplo a Societé Anonime du Gaz. E o "amigo de todos os governos"
entra em franca decadência.
Após o incêndio, o Jornal do Brasil e o Jornal do Commercio oferecem
suas instalações para que o periódico não deixe de ser publicado. No primeiro é
feita a impressão e no segundo as composições. A redação passa a ocupar
provisoriamente as instalações da Mundial Seguradora na Av. Rio Branco, 133.
Além dessas alianças, o jornal recebe o apoio de inúmeros jornalistas e
dos proprietários dos principais periódicos. Nas visitas de solidariedade a João
Lage se sobressai o nome do Presidente da República, de inúmeros ministros, do
Governador do Estado do Rio, de senadores, deputados, do Prefeito do Distrito
Federal e de outras autoridades municipais.
Na trincheira oposta continuam o Corr'eio da Manhã, O Imparcial
acrescida da Gazeta de Notícias, embora esta no primeiro momento tenha
emprestado sua solidariedade ao jornal. Formando uma aliança momentânea, os
três empreendem, naquele final de 1917, uma dura campanha contra O Paiz,
afirmando nas entrelinhas de seguidas matérias que o incêndio fora incitado por
Lage, para, dessa forma, receber o seguro e assim tirar a empresa do abismo
financei ro.
João Lage, por sua vez, também duvida de o incêndio ser apenas um
acidente, ao mesmo tempo em que destaca a solidariedade recebida do Presidente
da República:
"Escrevo consciente/llente esta pal{/\'/"(/ - cri/lle - pois tenho a consciência da certeza de que o
incêndio do Paiz não foi causal, nws o resultado de n/lw intenção perversa, CO/110logo no
dia seguinte ao sinistro connmiquei e/ll reserva ao delegado D,: GO/lles de Maltas, e CO/110
expus a S. Ex. o Si: Prçsidente da Repnblica, no dia 7, quando fui ao Catete agradecer aS.
Ex. a delicada atellção que teve para CO/lIa uossafollw, /IIandando o seu secretário
apresentar os seus seuti/llentos de pesar"·/ .
A~~aleS' ex;Sle C~:;I:i'::~:::::;~-a-::-e~-:::~~::
corporativa entre aqueles que e 'cem o papel de dirigentes. Embora aparentemente
exprimam interesses conflitantes,~a solidariedade os c?locam definitivamente
na mesma trincheira, fazendo parte dêum grupo único. Unico e solidário muitas
vezes. Único e adversários outras tantas.
Participando efetivamente do poder, ainda que de forma indireta, os
elementos desse grupo - onde se inserem os dirigentes e os jornalistas de maneira
mais ampla - se colocam na função explícita de comandar diretamente os outros
membros da sociedade, não do ponto de vista econômico, mas politicamente. O
papel quase que natural do jornalista é orientar, educar, formar o público e recebem ~
essa tarefa por delegação dos grupos dominantes.

A identificação da escrita como motor privilegiado de ascensão social e


fator indispensável para a própria incorporação desses autores, no sentido pleno
do termo, ao centro de poder, transforma o jornalista - os que ocupam as funções
dirigentes ou os simples redatores e repórteres - em sujeitos aquinhoados com a
distinção própria de sua posição de classe.
Uma crônica de Carlos de Laet retratando a visão de um velho redator e
os conselhos que, em função disso, dá a um interioriano interessando em se tornar
também jornalista é extremamente representativa do poder simbólico deste
profissional. "O Sr. não imagina o prestígio que essa [a letra de forma] exerce sobre
o intelecto do burguês! Para este, tudo quanto está impresso é a manifestação da
verdade. Como todos os despotismos, a da imprensa em grande parte se baseia
sobre a toleima".
Depois de mostrar como um jornalista pode influenciar a maneira de
pensar da própria população - "a opinião pública", exclama - segue dando conselhos
indispensáveis para se tornar "popular".
"Nâo ligue, pois, illlportância a questões de linguagem. O que lhe cUlllpre é de antelllâo
lIlunir-se de vocábulos agressivos e contundentes. Sat'ardana já vaificando ji'aco. Avacalhar-
se é obsoleto: parece lIlelhor o elllporcalhar-se dos léxicos. Bandido deixou de ser
afrontoso ".
No mesmo texto, deixa claro que existem duas categorias de jornalistas:
~
~queles que tem opirlli!9 própria, "os dom quixotes do jornalismo", e os outros
que, baseados nas "paixões populares", divulgam preferencialmente determinados
assuntos e de forma a despertar o interesse do público leitorY2•
E esse profissional, capaz de ser "popular" e reconhecido com uma
distinção, participa igualmente do jogo de manipulação e poder que se estabelece
entre os dominantes e os intelectuais. Utilizando-se da escrita como alavanca de
ascensão social, atua junto ao centro do poder e também compartilha dos jogos de
favores, favorecimentos, "cavações", pedidos e recompensas.
Evidentemente essas ingerências, participação no campo político, poder
de fato e influência dependem do grau de divulgação de seus escritos. Quanto mais
"popular", maior é seu o reconhecimento e, em contrapartida, maiores as
possibilidades para exercer o seu domínio e poder.
Num crônica escrita, em 1915, João do Rio começa lembrando a vitória
dos jornalistas pelo fato de o medo, que a imprensa desperta, ter obrigado o
presidente a "reconhecer todos jornalistas". E completa - "A Câmara está cheia de
jornalistas!" - numa clara alusão à participação cada vez maior desses profissionais
no campo político.
A seguir, distingue o jornalismo de outrora do que é praticado naquele
momento. Ao invés de ser arma que, por vezes, se torna apostolado, no qual são
indispensáveis prática, talento e vocação, passa a ser exercido por todos. E com
mágoa reflete que os jornalistas se tornam deputados, senadores, políticos. "E o \ \
jornalismo deixou de ser uma arte para ser uma função ajudativa".
Na mesma crônica, lembra o desvio profissional que resulta num grande
número de políticos-jornalistas. E conclui:
"O I'elho político despediu-se rindo. Eu olhei COIIIindiferença a bancada da illlprensa e sai
hUlllilde, cUlllprilllentondo os lIIestres, os outrosjOr!1o!istos, os do Monroe. os do Avenida, os
das outras mas, todos os trallseuntesjorna!istas, deste país dejorno!istas "Y3.
A pal1ir desse texto algumas observações podem ser feitas, tomando-se
a crônica não apenas como testemunho de uma época, mas também como
representação de uma idealização corrente existente na sociedade. O jornalista
ideal, a quem João do Rio identifica como ausente, traz muito também da idealização
pessoal do escritor, com sua própria vivência influenciando a composição desse
quadro. Por outro lado, o jornalista reflete uma realidade quotidiana: a participação
cada vez maior desse profissional num campo de poder - a política - ao qual só é
possível ascender em função do papel, igualmente político, desempenhado na
arena da imprensa.
Único meio de comunicação de ampla penetração, quem detém alguma
ascendência sobre as redações tem quase que naturalmente projeção política,
recebe'ndo os dividendos sob a forma de mercados, solicitações, notoriedade,
respeitabilidade, convites e pronioções. O prestígio aumenta a audiência e, em
conseqüência, a publicidade e ~oder econômico e político dessas publicações.
Aumenta também o poder de quem atua nesses veículos.
"A tua últillla carta ellcheu-lIle de espanto. Eu illlaginam que já estarias lIollleado, tal era a
força das prolllessas que hm'ia, e tal era a coniiallça que as palavras do Rio Branco e do
DOII/ício inspiravall/. Não lIle espallta a birra do Rodrigues Alves; o que lIle espanta é afalta
de ellergia do Rio Branco, que deverias quebrar lallças por ti "Y'.
O episódio da tentativa de Coelho Neto conseguir uma nomeação, graças
à interferência do Barão do Rio Branco, é ilustrativo das relações que se estabelecem
na sociedade, onde o escritor, o literato, o jornalista buscam seus conhecimentos
para e intermediar a conquista de cargos mais rentáveis e, sobretudo, estáveis.
Coelho Neto vinha tentando ser nomeado desde o início de 1904. Neste
episódio, Edmundo Bittencourt tem participação decisiva ao oferecer o Correio
da Manhã como intermediário para o escritor conseguir o seu intento. Mais tarde,
quando Neto se candidata a deputado, mais uma vez Edmundo coloca o jornal à
disposição, para facilitar o seu acesso à política.
"Devo cOlI/eçar a respostafalalldo da tua eleiçc7o, ou lIIelhor do leu recollhecilllellto, porque
isso é o que II/ais nos illleressa. (...) Escrevi ill/ediatall/ellte ao Veloso dizendo que lhe
pusesse o 'Correio' à lua disposiçc7o, o que, estou cerlo, ele faria illdependellte do II/eu
pedido. Se achares que a lIlinha illtervençc70 le pode ser útil, lI/anda-lIle lIInlelegrall/a que,
por telegrallla,farei o que quiseres "Y5.
As relações de poder que estabelecem a partir de sua inserção nos
periódicos, fazem também dos jornalistas mais notáveis alvo freqüente de pedidos
para arranjar colocações de apadrinhados como colaboradores nessas publicações,
em cargos públicos e para diversas outras solicitações. Apenas na correspondência
pessoal de Coelho Neto encontra-se dezenas de pedidos do gênero. Alguns
extremamente representativos como a carta de José do Patrocínio Filho.
"Soube Olllelll, porélll, depois que lias deixall/os, que o DI: Souza Dantas, nosso CÔlIsul aqui.
solicitaria do Ministério do Exterior a lIlillha IIOlll.eaçc7opara o Consulado. UII/a palcll'l'a sua
ao Lauro Muller pode talvez decidir a resoluírio desle caso. COIIIgrandes probabilidades de
bOIllêxito e, sobreludo, COII/a urgência que ele reclallla. Porque a verdade é que eu estou
II/orrelldo defollle "Y6 .
Outros podem se valer de um prestígio mais reconhecido para intermediar
os seus favores. Coelho Neto interfere na nomeação como fiscal do crítico literário
do Jornal do Brasil, Osório Duque Estrada, em 1915. No ano seguinte é a vez de
o redator-chefe de O Paiz, Eduardo Salamonde pedir a interviniência do escritor
no episódio da dispensa de seu filho do serviço militar.
Reinventando a realidade, através da ficção, João do Rio cria uma galeria
de personagens nas suas crônicas, contos e em diversos artigos, onde vez por outra
aparecem jornalistas, "homens de letras que se dão com políticos de importância".
No romance A profissão de Jacques Pedreira, o protagonista é um intermediário
em concorrências e obras públicas, em função das relações que cultiva nos meios
jornalísticos.
"A imprensa é lima grandeforça e o menor dos repórteres poderia prejlldicá-Io, dando
notícias dos desastres cometidos pelos sells Olltonlól'eis, cOlno podiafazer-Ihe bem levando-
lhe qllalqller negócio. Depois, conferellcioll com GodoFedo. }acqlles não conhecia esses
jornalistas e. cOIno todos os de slla roda, não os tinha enl grande conta, principalmente
porqlle não tillham dinheiro, nelll nome. Só conhecia os donos dos jOl'/1ais e três 011 qllatro
cronistas, qlle como Godofi'edo, eram complexos: imprensa, aristocracia, política e chelpa ".
Nesse trecho fica evidente a força política dos jornalistas, principalmente
dos redatores-chefes, diretores, donos dos jornais e cronistas de renome. Esses
sim possuem verdadeiramente a força da pena.
Ele mesmo, João do Rio, se torna um deles. Em 1913, é eleito, em
assembléia da Sociedade Anônima Gazeta de Notícias, para o cargo de redator-
chefe. Na hierarquia dos jornais é o segundo em importância, incluído entre o de
presidente, na época, Manuel Jorge de Oliveira Rocha, e o tesoureiro e administrador.
Antes participa da experiência de fundação, junto com Irineu Marinho, do
vespertino A Noite. Para isso contribui com 20 contos de réis.
Para A Noite acorreram muitos dos jornalistas da Gazeta, mas o idílio
de João do Rio com o jornal dura pouco.
"Mas heis qlle precisamente anteontem abro ojOl'/1al trio bem feito e encontro 111/1 artigo mell
assinado na seção dos 'a pedidos'. Era ... esqllisito. Vejo asfelicitações e sei por elas qlle
era apenas há algllns anos redator da Gazeta. Então resoli'i abster-1Ile d~finitil'amente.
Ta/l'ez tlldo isso seja obra do acaso. Escllsado é dizer qlle tenho pelos rapazes a mais viva
simparia e considero extremamente o Marinho. Daí, porém, a pagar para escrel'er nos 'a
pedidos' da Noite \'{fi //m abismo tão grande qlle lleiOconseglli atral'essá-lo'''I7.
As acusações de que recebe pela publicação de páginas favoráveis a uns
em detrimento de outros, também o envolvem. Para desmentir o que classifica
como "maledicência", os "mexericos de teria acumulado grande fortuna graças as
suas constantes investidas contra governos e argentários", um dos seus
contemporâneos divulga uma carta em que o escritor reafirma todas as suas
dificuldades financeiras.
As referências dos próprios jornalistas às "cavações" e aos
favorecimentos são representativas. Mostrando quase sempre um discurso contrário
a esses. expedientes, demonstram, na verdade, a sua existência.
"Nesses 50 anos de I'ida na imprensa, tenho procllrado, na medida das IlIinhas forças, dar a
ela tlldo qllanto de bom fornece o mell espírito. Procllreifol'l//{{I' o mell caráter na escola do
devel; da lealdade e da honra. }mnais IIsei das //linhas prerrogativas de jomalisra para obter
lllcros 011 vantagens qlle nriofosse//l pelfeitmllellte nOrlllais e dignas "y,y.
Os baixos salários são evocados como razão principal para a participação
nesse jogo de interesses. Alguns proprietários oferecem como compensação pelo
pagamento irrisório, conseguir colocações em empregos públ icos para os jornal istas,
como faz João Lage. Possuir um emprego público é sinal de fortuna. Conseguir
intennediar um negócio, signo de franca prosperidade.
Na crítica ferrenha a essa imprensa que vive de favores, alguns literatos
são mais vigorosos. Mas talvez ninguém tenha sido mais veemente do que Lima
Barreto. Dedicando uma obra completa a desmisticar e a revelar as ligações
envolvendo um periódico - o Correio da Manhã -, Lima Barreto compõe um
quadro contundente da idealização corrente do profissional da imprensa, que em
função do lugar ocupado considera-se um poderoso, e dos jogos de favores e
favorecimentos que envolvem essas publicações.
Na primeira vez em que Lima Barreto em suas Recordações se refere aos
jornais deixa transparecer o que representa esses veículos também para as camadas
não letradas da população. O jornalista é um ser poderoso, porque conhecido e
popular. O jornal é capaz de derrubar ministros, promover campanhas, influenciar.
Ao lado de um certo idealismo descrito para a profissão predomina,
entretanto, na narrativa a crítica aos literatos-jornalista·: "Esses literatos' Livra!
Até as lágrimas cobram".
Essa frase sintetiza a oposição existente, no interior do jornal, entre os
anônimos e os literatos e jornalistas de maior renome.
Se esse grupo sofre as críticas do "escrivão", igualmente os jornalistas
menos importantes também aparecem sem maquiagem: "vocês não prezam a
Imprensa, fazem dela achego, ganho; não a dignificam, não a honram. Querem
empregos públicos, como se um reles burocrata valesse mais do que um jornalista ...",
brada o idealista da redaçãoYY •
Nesses dois pequenos trechos, observa-se, portanto, as dualidades,
divergências e desigualdades, marcas características desses jornais empresas que,
como tal, possuem contradições: centro de poder, ao mesmo tempo em que procuram
se identificar com um público mais amplo em troca de popularidade e, também, de
prestígio.
Analisando as Recordações, percebe-se uma nítida evolução no conceito
que o autor faz do jornalistas. Inicialmente há um misto de admiração e
desconhecimento - "É jornalista! Fala 10 idiomas"-, depois há a preocupação em
caracterizar os anônimos, valorizando-os por fazer do jornal único meio de sustento,
e os literatos - que cobram um preço alto pelos seus escritos e, ao mesmo tempo,
transformam o periódico em instrumento de poder pessoal -, criticando duramente
esses últimos. A visão de Isaías é, pOltanto, daquele que não participa do meio.
Posteriormente, a medida em que é absorvido, seu conceito sobre os periódicos e
seus profissionais é influenciado por esta vivência pessoal.
Nessa crítica e na própria caracterização do jornal percebe-se toda a
emoção e o envolvimento que colocam em destaque a subjetividade do autor
envolvido na própria história e com a sua própria história.
Assim, se para os jornais as relações explicitas com o poder são
indispensáveis para a sua sobrevivência, a sua receptividade junto ao público e
entendimento por este leitor são indispensáveis.
É preciso criar estratégias, produzir discursos, discutir, polemizar e,
sobretudo, atingir o imaginário desse público. Um discurso preferencial e temas
preferenciais são selecionados e produzidos. Formas especiais de conduzir a narrativa
também. Por que esses jornais produzem determinados tipos de conteúdo, onde o
sensacional se sobressai? Para quem divulgam sua mensagem? Quem era esse
público, quem era esse leitor?
Notas:
IJornal do Brasil. 15 novo 1900. p. I.
2Para Clifford Gertz, Estado condensa pelo menos três temas etimológicos: SlaIIlS, no sentido
de posto. posição. condição; pompa no sentido de esplendor, dignidade, presença e governação. no
sentido de rcgência, regime, soberania e comando. Paraele, a formação política que ele designa é do tipo
em que a ação combinada de slalus, pompa e governo não só permanece visível. mas é, de fato, alardeada.
GERTZ. ClilTord. Negara: o Estado teatro do século X IX. Lisboa: Difel, 1991, p. 15l-161
lGramsci, 1989 c Maquiavel, a política e o ESlado moderno. Rio de Janeiro: Civilização
Brasilcira, 1991. Concepcão dialética da hislória. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1986.
40 Jornal do Commercio fica na Av. Central esquina com Rua do Ouvidor, quase em frente ao
Jornal do Brasil, no número 110-112. Um quarteirão adiante, na mesma avenida, esquina com Sete de
Setembro. se localiza O Paiz. A Gazeta de Notícias ocupa dois prédios: a redação fica na Rua do Ouvidor,
76 e as oficinas na Rua Sete de Setembro, 72. O Correio da Manhã tem sua redação na rua do Ouvidor,
162.
5LOWENTHAL, David. The past is a foreign country. Nova lorque: Cambridge University
Press, 1989, p. 185-259
60 eSludo da mcmória no campo da filosofia e da literalllra sofreu diferentes debates e
interpretações no curso do século XX. A relação memória e poder, principalmentc no que se refere à
escrita. é abordada por Jacqucs LeGoll que contigura a memória escrita como uma construção e, portaI1lo,
diretamente ligada à questão do poder. Diz literalmente: "Tornar-se senhores da memória e do
esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram
e dominam às sociedades históricas. Os esquecimentos e silêncios da historia são reveladores desses
mecanismos de manipulação da memória coletiva". LE GOFE Jacques. '·Memória". In: Enciclopédia
Einaudi. Memória-História. vol. I. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984, p. \:1-46. Cf.
Também sobre o tema Barbosa, Marialva. Senhores de Memória. Niterói, 1991 Tese (ProressorTitular)
Departamento de Comunicação Social - Universidade Federal Fluminense. Também G. Duby, relaciona
memória e poder, evidenciando o papel da escrita, como forma de controle, cerceamento e "domest icação"
da memória. Dominar a escrita é ter o poder de domesticar e selecionar a memória, considerando-a como
um verdadeiro monumento. Duby acrescenta que a memória fixada pelo escrito penence ao domínio do
excepcional. DUBY, Georges e LARDREAU, Guy. "A memória e o que ela esquece". ln: Diálo~os
sobre a nova história. Lisboa: Publicações D. Quixole, 1989.
70 triunfo do documento coincide com o triunfo do texto com a escola positivista. A panir de
então, para o historiador tornar-se-ia indispensável o recurso do documento na realização do seu ofício.
Os fundadores da Ecole des Analles insistiram sobre a necessidade de se ampliar a noção de documento,
considerando nas suas pesquisas a palavra, entendida como ludo o que pertencendo ao homem. depende
dele, serve a ele, o exprime, demonstra a sua presença e a sua maneira de ser. O interesse da memória
coletiva e da históriajá não se limitaria aos grandes homens, mas a todos os homens, o que suscitou uma
nova hierarquia de todos os e1ocumentos. Le Gol'!'. "Documento/monumento", op. cil., 1987, p. 95-186.
8"Como se faz um jornal de hoje". In: Gazeta de Notícias, 2 ago. 1907, p. 2.
9Jornal elo Brasil, 9 abr. 1891, p. I.
10PEREIRA, Sérgio. "Histórias e glórias do Jornal elo Brasil". In: Jornal do Brasil, Cadernos
do IV Centenário - 13, 9 abr. 1965, p. 200-20 I.
II Correio da Manhã, 14 mar. 1902, p. I. Diz literalmente o arligo que critica o Jornal do Brasil:
"É feito para os analfabetos, diante de cujos olhos ignaros, passam como um tônico, a robustecer-lhe os
vícios, os convites especlaculosos ao jogo reles dos 25 bichos".
12Jornal do Brasil, 9 abr. 1891, p. I.
13ABRANCHES, Clóvis Dunshee de. "A boa imprensa". Conferência realizada no Éden Teatro
da cielade de Socorro, por ocasião elo festival organizado pelo Padre Antônio Sampaio, em benefício da
boa imprensa no Brasil. São Paulo: S.E., 1919. Dushee de Abranches foi ainda redator político de O
Paiz (1902), fundou o jornal O Dia - uma malograda experiência de apenas seis meses (o jornal durou
de I de janeiro a 24 de julho de 190 I) -, deputado (1903-1912) e esteve a frente da direção de O Paiz
entre 1914 c 1917, quando se afastou do jornal ismo.
14Jornal do Brasil, 9 novo 1900, p.l.
15Sobre a representação feminina da RepÚblica, c I'.CARVALHO, José Murilo ele. A I'orma~ão
das almas: o imaginário da RepÚblica no Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1990, especialmente capo IV.
Segundo o autor essas representações se baseiam em concepçôes de anistas positivistas. para quem
essas alegorias se constiluem num sistema de interpretação do mundo, da qual a RepÚblica é apenas uma
parte. Em primeiro lugar, na escala de seus valores, está a humanidade, seguida pela pátria e pela família.
A RepÚbl ica seria a forma ideal de organização da pátria. E os anistas reproduziam esw idéia, mostrando
uma mulher que representa muito mais a humanidade ou a pátria e menos a RepÚblica.
160 Paiz, 13 mai. 1908, p. I e Correio da Manhã, 15 jun. 1911, p. I.
l7Jornal do Brasil. I jan. 1901. p. I e 15 nov. 1900. p.1
18Jornal do Brasil, 1.) nov. 1901, p. I.
19Com essas afirmações não estanlOS pretendendo trabalhar com o conceito de Pierre Nora de
lugares de memória. A iniciativa de Nora, que se constituiu num momento especial, pela frutificação da
própria idéia, se por um lado é extremamente rica na definição desse mesmo conceito, por outro é
problemática para a sua utilização indiscriminada. Os lugares da memória são para o historiador francês,
antes de mais nada, restos e só se revelam como tal se a imaginação o revestir de uma aura simból ica. Eles
são tanto lugares no sem ido material. quanto funcional e simbólico. São os lugares onde se encontrariam
a memória e a história. NORA, Pierre. Les lieux de mémoire, vol. I. La Republique. Paris: Gallimard,
1984,p. XVII-XLII.
20CorreiodaManhã, 15e 170ut.1901 e 16dez. 1901,p. I.
21'Dez anos". In Correio da Manhã, 15jun. 1911, p. I.
22Bourdieu, 1982, p. 21.
23Jornal do Commercio, 1928, p. 3.
24 "Liberdade de imprensa". In: O Paiz, 25 maio 1902, p. I e "Zombaria à inglesa". In: O Paiz,
6 abro 1902, p. I.
2.'i"·A Gazeta é moça ou velha?". In: Gazeta de Notícias. 4 jul. 1907, p. 2.
26Cardim, op. cit., 1949, p. 30.
27Jornal do Brasil, I fev. 1900, p. I.
28Guastini, op. cit., 1944, p. 100.
29Tigre, op. cit.. 1992, p. 157.
30"Atribulações de um foca". In: Gazeta de Notícias, 3 fev. 1907, p. 7.
31 BERGSON, Henri. Matéria e memória. Ensaio sobre a rela~ãodo corpo com o espírito. São
Paulo: Martins Fontes, 1990, passim.
32Nello, 1977, p. 4.
33Guastini, p. 98.
34Nelto, p. 30.
35Nelto, p. 91.
36 Costa Lima, 1986, p. 187-239 e 260-299.
37Jornal do Brasil. 22 set. 1901. p. 2.
380 Paiz, 1-8mai. 1908, p. I.
39Candido. O discurso e a cidade. São Paulo: Duas Cidades, 1994, p. 139-152.
40Jornal do Brasil, 13 out. 1900, p. I.
41"Casas populares". In: Correio da Manhã. 7 lá 1910, p. I.
42Chama-se "nariz de cera" ao texto introdutório, normalmente comum sentido moralista, que
anteccdia a narrativa dos acontecimentos, comum no jornalismo brasileiro até os anos 50.
4l'Matricida' Cego assassino,alma selvagem, perversão tremenda, um monstro". In: Correio
da Manhã, 15jan. 1907. p. 2.
44 "Cousas da Cidade". In: Gazeta de Notícias, 16 abr. 1907, p. 2.
45Num excelcnte livro ondc faz uma crítica à teoria literária contemporânea, Richard Freadman
c Miller Scumas realizam um verdadeiro passeio teórico pelos principais movimentos que abrangem
essatcoria nos últimos anos, mostrando quc a principal limitação dessesestudosé rejeitar uma concepção
de sujeito individual nas amílises e os discursos de valor - estéticos e morais. Inserindo a importância
nãoapcnasdo texto, massobretudo do produtor e, mais do que isso, do receptor da mensagem,introduzem
com destaque a questão do contexto para o entendimento do próprio texto. FREADMAN, Richard e
MILLER, Seumas. Re-prensando a teoria: uma crítica da teoria literária contemporânea. São Paulo:
Editora da Universidadc Estadual Paulista, 1994.
46VEILLüN. Dümcnique. "La seconde guerre mondiale à travers les sources orales". In:
Cahiers de I'IHTF n. 4 (Qucstions à I'histoire orale), 1987,p. 53 et alli c PüLLAK, Michael. "Memória,
esquecimcnto, silêncio". In: Estudos Históricos 1989/3. Revistas dos Tribunais. São Paulo.
. 47 POMIAN, Krzysztof. L'orde du temps. Paris: Gallimard. 1984, p. 7-36.
48Halbawachs através de quatro obras fundamcntais - Les cadrcs sociaux de Ia mémoire. La
mémoire collective chez Ics musicicns. La topographie legendaire des Evangilcs e La mémoire coliec-
/ C"I'{"'{" J '80

tive - propõe o tra~mento da memória como fenõmeno social. Na sua obra, ao partirde uma polêmica com
Bergson, que J.lplÍnha o espírito, lugar da memória, à matéria, lugar da percepção, Halbwachs afirma que
a memólj;l,( por natureza social. A memória individual estaria sempre em relação ao grupo do qual o
indivídUo faz parte, em relação ao meio social e em relação a todos que ocercam. A partir do exame dos
lugares sagrados do cristianismo na Palestina e particularmente em Jerusalém, Halbwachs também extrai
observações gerais sobre a importância do espaço - geognlfico ou construído - para fixar a lembrança.
49Pomian, p. 219-350. Há inúmeros autores que se preocupam com a questão da temporal idade.
Cr. entre outros THOMPSON, E. P. Tradición, revuelta y consciencia de clase. Barcelona: Editorial
Critica, 1979, especialmente "Tiempo, disciplina de trabajo y capitalismo industrial"; Le GolT,
"Calendário" e "Passado/presente". In: op. cil., 1984 e WHITEOW, G. J. O tempo na história. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993.
50SALES, Campos. Da propaganda à presidência. In: Fonseca, 1941. Justificando-se com a
alegação de que na mornarquia, jornais e jornalistas também foram subvencionados e seguia precedente
aberto por Prudente de Morais, cujo ministro da Fazenda distribuía verbas a jornais e jornalistas da
confiança do Presidente, como a Gazeta de Notícias, cujas matérias de defesa oficial eram pagas ao preço
de I mil réis a linha, Campos Sales afirma ter subvencionado "somente à imprensa do Rio".
51 A Ibuquerque, 1981, p. 20.
52Correio da Manhã, 24 maio 1902, p. I.
53Carta de Campos Sales a José Carlos Rodrigues, 221'ev. 1899.ln: Correspondência passiva
de José Carlos Rodrigues. Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro.
54Carta de Campos Sales a José Carlos Rodrigues., Iljul. 1899. O Fernando Mendes a que a
carta se refere é Fernando Mendes de Almeida, redator-chefe e principal acionista do Jornal do Brasil,
no período.
55 Quem desenvolve esse idéia da imprensa atuando como "partido" e como um "estado maior"
do partido orgânico é Gramsci. Em MaQuiavel. a política e o Estado Moderno, o pensador italiano
destaca a freqüência com que esses veículos reafirmam a sua independência para serem reconhecidos
pelo público como força superior dirigente. No mesmo texto Gramsci afirma que um jornal (ou um grupo
de jornais) pode ser também "partidos", "frações de partido" ou "de um determinado partido". Gramsci,
1991, p. 22-21
56Carta de Campos Sales a José Carlos Rodrigues, I jun. 1899.
57Carta de Campos Sales a José Carlos Rodrigues, 15 fev. 1899.
58Carta de Prudente de Morais a José Carlos Rodrigues, 8 dez. 1898 e entrevista de Lopes
Sampaioa Manoel de Carvalho Nello. Nello, 1977, p. 111.
59Carta de Francisco Manuel da Cunha Júnior a José Carlos Rodrigues, I jan. 1895.
60"0 veneno da imprensa". In: O Paiz, 20 mar. 1910, p. I.
61"Um escândalo".ln: Correio da Manhã, 8 seI. 1901, p, I.
62Carta de Prudente de Morais a José Carlos Rodrigues, 9 mar. 1898.
63"Cômico e Indecente". In: Correio da Manhã, 18 novo 1903, p. I.
64GUDIN, Eugênio. "O Jornal do Commercio de Antanho". In: Jornal do Commercio. Edição
comemorativa dos 150 anos, 2 oul. 1977, p. 7.
65DANTAS, Pedro.ldem, p. 12.
66"Reslituo-lhe o ímerl'íell' - Nicosia- VilOrino - que dá uma idéia exata do que é o Vice-
Presidente desta infeliz República' A ameaça de publicar as poucas cartas que de mim recebeu esse
desgraçado - não me incomoda absolutameme - desde que exponha as próprias cartas para serem
examinadas. Saúde e felicidades desejei-lhe o colega e amigo Prudente de Morais". Carta de Prudente
de Morais a José Carlos Rodrigues, 20 fev. 1898.
67Cardim. "José Carlos Rodrigues, sua vida e sua obra. Conferência realizada em 5 sel. 1944
na sessão solene comemorativa do centenário de seu nascimento" . In: Jornal do Commercio, 1949,
p.196-7.
68Gramsci. 1989, p. 3-23-
69Carta de Prudente de Morais a José Carlos Rodrigues. 23 dez. 1898.
700távio, 1934, p. 143.
71 Carta de Feliciano José das Neves a José Carlos Rodrigues, 21 mar. 1896 e cartões de
Campos Sales a José Carlos Rodrigues, sido
72 Pierre Bourdieuloma como premissa básica na sua obra as relações de comunicação como
relaçõesde poder. A língua, considerada como um sistema simbólico, como instrumento de conhecimento
e de construção do mundo. seria por excelência suporte de poder absoluto na medida em que através dela
se pode também codificar o mundo social. CI". Bourdieu, 1982 e Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense,
1990.
7T'Murlinho & Cia. Chalaça'·.ln: Correio da Manhã., 17oul. 1901, p. I. Não é apenas contra
José Carlos Rodrigues que as denúncias de favorecimentos recaem. No mesmo período, segundo o
periódico, o Jornal do Brasillambém recebe recursos que financiam os elogios ao governo.
74Jornal do Commercio, 31 dez. 1909, p. I.
75"A concorrência da Prefeitura e a 'vexação' do Jorna!". In: O Paiz. 1jan. 1910, p. I.
76 Correio elaManhã, 16 novo 19m, p. I e O Paiz. 16 e 18 novo 19m, p. I. O apoio irrestrito
ao Barão eloRio Branco é veemente e1uranteloeloo ano ele1904e 1905. Em26 fevereiro 1905. em matéria
na primeira página, ilustrada a bico elepena, estampam em letras garrafais: "realiza-se hoje a granele
mani feslação brasileira da socieelade ao eminente estadista que. por felicidade de nossa Pátria, está
alualmenle a testa eloMinistério das Relações Exteriores". CI".também Correio elaManhã, 17 novo 19m,
p. I.
77 "Quem Comeu?" In: O Paiz, 18novo 1905, p. I e Carta eleJoão Lage a Mário Guastini. In:
Guastini, 1944, p. 15.
78CI". processo eleeSlelionato movido por Eelmunelo Bittencourt contra João Lage, citaelo por
Correio elaManhã, 4 e 5 abr. 1910, p. I. "Depoimento elePeelroeleAlmeiela Goelinho no processo contra
João Lage". In: Correio da Manhã. 8 mar. 1911, p. I. "Depoimento eleUbaldino do Amaral no processo
eleestelionato contra João Lage". In: Correio da Manhã, 2 mai. 1911, p. I. Num elos empréstimos, a
Sociedade Anônima O Paiz consegue a soma de 830:429$870. figurando neste total o desconto de uma
letra de 2S0eontos eleréis, elo Estado elo Pará. Essa lelra, e1epoiselereformaela uma vez, é paga. Assim,
em fins de 1906a díviela de O Paiz com o Banco elaRepública é de 680$429$670, que com juros de 8%,
à época em que Nilo Peçanha assume a presielência, a eleva a 811 :000$000.
79 Guastini, p. 26. "Três entrelinhas" era o nome elo principal artigo eleO Paiz na época.
Composto elealio a baixo em uma ou duas colunas na primeira página. aparecia em corpo sete e tratava
de um tema lido como o mais importante ou polêmico elomomento e "A Presidência Roelrigues Alves".
In: O Pai:, 14 novo 1906, p. 1,2 e 1
80''0 preço elosbonecos". In: Correio da Manhã. 27jan. 1911, p. I e 28 jan. 1911, p. I.
81 Para a análise que se segue utilizamos as eelições de Correio da Manhã, O Paiz, Jornal do
Commercio, elejan. 190I a e1ez.191S.
82"Co;1Io elo Vigário". In: O Paiz, 7 jun. 1909, p. I e "O Lage pela gola". In: Correio da
Manhã, 15 jun. 1912. p. 2.
8T'Queixa eleJoão Lage contra Edmundo Bittencourt", transcrita em "Crime de calúnia". In:
0P';"20'~':
/1 84 O Paiz, 2 set. 1910. p. 2 e 8jun. 1911, p. 2.
850 Paiz, I set. 1910, p. I, 2 e 3.
860 Paiz, 18 novo 1904, p. I. O anigo é assinado por João Lage.
87Bourdieu, 1989. p. 60-72.
88Ao estudar as polêmicas literárias no Brasil durante a Primeira República. Robeno VenlLira
aponta essadivisão, destacandoa importância que o bacharelismo adquiriu nesseprocesso. VENTURA,
Roberlo. Estilo tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil. 1870-1914. São Paulo: Cia.
das Lctras. 1991.
89"A roubalheira da prata". In: Correio da Manhã, ~Ojul. 191~, p. I e"A roubalheira da prata.
A reclamação diplonHítica". In: Correio da Manhã, 1ago. 191~, p. I.
90"lmprensa livre". In: O Paiz, I ~ OUI. 1916, p. I e "0 som do marco", 9 novo 1916, p.l. Com
o fechamento dos portos escandinavos, osjornais são obrigados a comprar o seu papel de imprensa do
mercado americano a um preço três vezes superior ao anterior à guerra e com fornecimento precário.
Também em cana a Coelho Neto, o proprietário de A Notícia, Oliveira Rocha, se refere às dificuldades
porque passa o jornal em função da escassez do papel de impressão: "A Notícia, forçada por
circunstâncias bem independentes de sua vontade, foi obrigada a fazer uma redução de despesasem
escala foníssima. Nós, um pouco como todos os jornais, estamos trabalhando para pagar o papel da
impressão". Cf. cana de M. de Oliveira Rocha a Coelho Neto, 7 out. 1916. In: op. cit., 196~, p. 294-5.
Ata da Assembléia Geral Extraordinária de ~O de jun. 1917. In: O Paiz, 22 jul. 1917, p. 2.
91"0 incêndio do Paiz. O Correio, a Gazeta e o Imparcial". In: O Paiz, 21 ago. 1917, p. I.
92Laet, Carlos de. "Microcosmo". In: O Paiz, I~ oul. 1915, p. I.
9~0 Paiz, 6 novo 1915, p. I.
94Cana de Olavo Bilac a Coelho Nelo, 6 ago. 1904. In: op. cit., p. 68.
95Carta de Edmundo Bittencourl a Coelho Neto, 5 abril 1915. Ibidem, p. 110-1.
96Cana de José do Patrocínio Filho a Coelho Neto. ~ I jul. 1913.lbidem, p. 164.
97Cana de João do Rio a Medciros e Albuquerque, 7 ago. 1911.Citado por Magalhães JÚnior.,
op. cil., 1978.
98 Cana de João do Rio a Mário Guastini. S. d. In: Guastini, p. 9 e Discurso pronunciado por
Júlio Barbosa em 18 seI. 1949. In: Jornal do Commercio, 19 seI. 1949, p. I.
99Barrelo, op. cil., p. 74.
"É corrente entre certos jamais illlstrados do Rio a exibição de horrores. Qllalqller crime ou
acidente serre de pretexto para gral'l/ras repelentes: crânios abertos, braços decepados, olhos
esgazeados e mãos crispadas pela dOI:Se é demasiado consagrar a notoriedade dos
criminosos pela dil'l/Igação do retrato - a não ser nos casos em qlle tal pllblicidade auxilie a
açeio policial -neio se compreende essa maneira de interessar os leitores. Que sadismo
barato esse qlle se pretende atribllir ao nosso público!"1

Naqueles jornais, desde as primeiras horas, o burburinho é intenso. De


madrugada ainda, por volta das cinco da manhã, o trabalho maior é o de dividir as
folhas impressas em maços, que são destinados, pela expedição, aos assinantes da
capital, dos outros estados e aos vendedores ambulantes, que as fazem chegar ao
seu destinatário: o público.
Na redação, o trabalho se concentra no período até às 22 horas, embora,
com a introdução das linotipos e novas impressoras, o jornal passe a ser editado
cada vez mais tarde: às três ou quatro da madrugada. Até essa hora, a paginação, a
composição e a impressão devem esperar os últimos telegramas e notícias para o
noticiário da manhã seguinte. Um redator de plantão permanece, após esse horário,
para qualquer eventualidade.
Às oito horas começa o trabalho na administração. A redação ganha vida
só no início da noite quando os repórteres, responsáveis pelos mais diversos
setores, depois de colherem as informações na rua, vão chegando, para redigir as
tiras a serem enviadas à composição.
Os progressos técnicos, que permitem a impressão das notícias as mais
distantes no dia seguinte ao seu acontecimento, mudam a relação do leitor com a
própria infonnação e é imperativo para os periódicos que, assim, adaptam as suas
páginas às exigências desse público.
"O cabo sllbmarino lran~fol'lnoll tlldo isso. Qllando o público pode todas as manheis saber
qlle hOIIl'e na l'éspera Inll terremoto nos antípodas, mandoll ao diabo o jornalista político e o
crítico dogmático, qllis saber commifllicias o qlle se p~lssava na própria terra. Afllnçeio de
repórter cresce 11 de importância: tlldo enteio concentroll-se nele. Uma notícia abala mais o
govemo do qlle 30 artigos e 30 artigos neio drio ao jornal a timgem qlle lima notícia
proporciona. Também, a conseqiiência disso é qlle já neio hájomalistas: todos nós somos,
mas aI/menos. repórteres e é dos sllcessos da reportagem qlle mais nos orglllhamos ... "
Aumenta também complexidade das empresas. São necessárias outras
máquinas e novas técnicas para que o jornal se adapte às exigências do público.
Ícones de um novo tempo, não são apenas as modernas Marinonis, vomitadoras de
folhas 'incessantes, ou as estranhas linotipos, com a sua rapidez transformadora de
chumbo em linhas compostas, mas também as amplas instalações que providenciam
para suas dependências. Vendo-se como indústria, é imperativo que acompanhem
a própria idéia de modernização da cidade.
"Parece uma necessidade nossa, uma necessidade da indústria, que em
nossos dia é o jornal, e que tem de acompanhar, numa união indissolúvel, a
sociedade cuja vida reflete o próprio meio físico em que se elabora", diz O Paiz, no
instante em que lança a pedra fundamental do seu novo edifício na Av. Central,
ocupando uma área de 850 m2 e com quatro pavimentos.
No mesmo período, o Jornal do Commercio e o Jornal do Brasil
também se mudam para a Avenida. O prédio do periódico de José Carlos Rodrigues,
com sete pavimentos, ocupa 1.076 m2. No sexto andar, localizam-se os escritórios
e a redação. No último, fica um enorme salão destinado a festas, conferências e
recitais.
Novos serviços precisam ser criados, não apenas na redação, mas também
na administração, à medida que mudam as máquinas, ocupam novas instalações e
aumentam o seu poder de difusão. O Paiz, por exemplo, a partir de 1905, quando
se instala definitivamente na Avenida, acrescenta ao quadro da administração da
parte comercial, além do gerente, chefe da contabilidade, caixa, ajudante de guarda-
livros, dois encarregados, igual número de cobradores e agentes comerciais e um
continuo, um carpinteiro, um encarregado da limpeza do edifício e um "motorista
do elevador" 2 .
Os periódicos distribuem elevado número de funcionários entre as tarefas
da redação, oficinas e administração. Em 1910, O Paiz emprega 43 pessoas na
redação, sendo 33 redatores/repórteres efetivos, seis colaboradores e quatro
revisores; nas oficinas, 45 compositores e 21 impressores e mecânicos; na
administração 14 pessoas; na distribuição e expedição 38 homens, num total de
166 empregados. Mas há jornais com um quadro de pessoal ainda mais complexo.
No mesmo período, o Jornal do Commercio emprega 429 pessoas. A Gazeta de
Notícias, por sua vez, possui, em 1907, 150 empregados, sem contar os
correspondentes nos estados e exterior e os colaboradores: 70 na tipografia, lOnas
máquinas, 8 na distribuição, 37 na redação, 12 nos escritórios e 7 serventes.
A introdução de novas e complexas máquinas de impressão e composição
obriga a contratação, por exemplo, de "mecânicos encarregados da montagem e da
conservação das linotipos". Nas oficinas, as mudanças são drásticas. A linotipo é
capaz de fazer o trabalho de até 12 compositores. Com a rapidez, diminui o
número de empregados e aumenta a possibilidade de o jornal ser concluído cada
vez mais tarde, numa busca crescente do ineditismo de última hora.
"O Paiz qlle possllía li/lia cOIporaçâo de 80 hO//lens. CO//l/III/trabalho efetivo, por noite. de
68 operários para Ulnnnmero de oito páginas, elevando-se aqnele contingente para os casos
to de páginas, tem hoje uma cOl]Joração de 45 compositores,
extraordinários de a 1II11e11
distribuídos em duas turmas, para os serviços duplicados do dia (parte da composição do
Paiz e da Cazeta da Tarde) e da lIoite. Desses, 24 são lillotipistas, correspolldelltes as duas
turmas. para as 12 máquillas existelltes lias 1I0ssas oficillas, e 21 tipógrafos de caixa, que
fazem a matéria que por sua lIatureza lIão cOIlI'ém ser 1I/{/lIipulada elllmáquilla - composições
defalltasia, determillados títulos, etc. - e executam os selTiços auxiliares da pagillação e
retranca. Quer dizer que o trabalho das doze ou dezesseis paginas habituais do Paiz éfeito
por 121illotipistas e 9 tipográficos".
As mudanças técnicas ao mesmo tempo que desvalorizam trabalho, antes
artesanal, do compositor-tipógrafo, faz com que este - praticado agora
industrialmente - aumente de volume e se prolongue até altas horas. O que é
apresentado pelas empresas como uma conquista representa, na verdade, uma
drástica transformação no mundo do trabalho das oficinas. "Hoje o linotipo faculta
ao compositor fazer regularmente de 800 a mil linhas com uma fadiga menor e uma
rapidez muito maior, de modo que, recebendo agora uma paga por linha inferior a
do regime antigo, ele ganha de fato o dobro do que ganhava outrora".
Recebendo, na verdade, menos por uma produção maior, as mudanças
técnicas têm ainda outras conseqüências que também se refletem nas tarefas da
redação. Assim,
"a lillotipo permitiu à redação e ao 1I0ticiário, margem ampla para um trabalho completo,
fazendo com que o sen'iço de illfor17/ações possa abranger os acontecimentos ocorridos a
horas adiantadas da 1I0ite. No regime de composição ,ilGlIlwl só por exceção afolha era
paginada depois de 2 horas da madrugada; ao cOlltrário, flO1'111OImentedevia estar pronta a
1 hora. Fora disso, era comprometer a expedição. Hoje, com a celeridade do trabalho
mecânico, afolha opera normalmelfle a sua reportagem, quer da cidade, quer telegráfica até
cerca de 3 horas, podendo ser paginada, em casos extraordinários, mesmo às 4 horas da
mClllha".l.
Terminado o trabalho de composição, as matérias, depois da revisão, são
paginadas com os assuntos mais urgentes, guardando-se a sobra - a "ficada", como
se diz na gíria da época - para edições posteriores. A seguir, o jornal vai para as
prensas onde se tira a matriz, colocada num molde, despejando-se chumbo quente,
fomlando o bloco de cada página. É a primeira fase: a estereotipia.
Antes de chegar à impressão, pOl1anto, cumpre um percurso nas seções
denominadas técnicas: primeiro a composição, depois, a paginação e, por último,
a estereotipia. Paralelamente, percorre a fotogravura ou a fotozincografia, para o
tratamento das ilustrações que acompanham o texto.
O Jornal do Brasil possui, em 1900, onze seções técnicas: composição,
revisão, paginação, máquinas, obras, estereotipia, fotogravura e fotozincografia,
gavanoplastia, encadernação, além da seção de eletricidade. Há ainda a de desenhos,
qual dedica especial atenção.
Orgulhando-se de ter sido pioneiro na introdução da ilustração, informa
\ ,~e nas suas páginas esses desenhos não se limitam à caricatura do acontecimento
pa~'tante da atualidade. "A local, o fait-divers, o folhetim, o crime sensacional, a
vid da cidade ou provincial" tudo é objeto de sua ilustração-l.
Ao inaugurar as novas dependências, com a reforma do prédio 56 da rua
Gonç Ives Dias, em junho de 1900, destina o térreo aos serviços administrativos,
ficando a redação e as oficinas no andar superior. Numa mesma sala localizam-se
quatro máquinas rotativas. A redação ocupa a parte frontal para a rua, enquanto
que, nos fundos, ficam a composição e a seção de desenho. Ainda nesse andar, mas
separado da impressão e da redação, dividem o mesmo espaço a oficina de obras e
a de encadernação. No que se refere especificamente à expedição essa é constituída
de três seções: a expedição propriamente dita, responsável pela distribuição dos
exemplares da venda avulsa, o correio, que distribui os exemplares dos assinantes,
e o almoxarifado:
A parte administrativa compõe-se da caixa, contabilidade, escrituração
geral e especiais, recebimento dos anúncios e das assinaturas, expediente do interior
e do estrangeiro e serviço especial da Revista da Semana.
Após a estereotipia, a folha vai para a impressão, nas máquinas rotativas,
que além de imprimir, cortam e dobram, um por um, todos os exemplares que,
assim, "saem aos milheiros".
A "tiragem rápida e copiosa da folha" é perseguida. Para isso, não se
mede esforços, equipando-se as empresas com o que existe de mais moderno.
Além das prensas a vapor, geradores para o seu aquecimento, forno para o metal
em fusão, moldes para a clicheria simples e para as gravuras, laminadores e outros
acessórios, alguns jornais chegam a ter um "ascensor para a descida e elevação das
páginas da composição para as máquinas movidas a vapor". Concluído esse trabalho
o jornal é impresso.
"A illlpressão erafeita elllullla lIIáquina I'Otativa dupla Walter Scott, de fabricação
alllericana, acionada por HlU Hlotor de /0 cOl'alosforça. A Waltel' Scott, que substituiu no
atual edifício da Av. Central as antigas Marinonis do Paiz,faz 111110 tirageHl de 16111il
exelllplares por hora, podendo illlprilllir qllatro, seis, oito, /0, 12011 /6 páginas de IlIna Fez.
Está aparelhada a oji'cina COIIIos lIIoldes parafabrico dos rolos da lIIáqllina e COIIIa
respectiva caldeira para dilllir a massa. A Walter Scotl imprime, corta e dobm as!iJIIHls
registrando igualmente o //limem de exemplares timdos ".
o orgulho com que apresentam as inovações, que significam, sobretudo,
maior rapidez no processo de produção e maior agilidade para chegar ao leitor,
revela um tempo cada vez mais premente.
"Aqui trabalha-se todos os dias. Às vezes há necessidade de retificar notícias a que a
urgência e a escassez do tempo neio permitiu examinar a exatideio e que assilll retificadas
represelltal/lulII duplo traballio( ... ). As Marinonis vieralll, vieralll as rotativas, as
forlllidál'eis I'onfitadoras defollias COIIIdobradeiras, coladeiras e tudo que encnrta e doma o
tempo e pode servira dezenas de lIIilliares de leitores"5.
Todos os mais importantes diários importam máquinas de compor e
novas impressoras. Em 1905, O Paiz adquire essa tecnologia dos Estados Unidos.
As linotipos, que junto com o Jornal do Brasil compram da Linotype Mergenthaler
Co., permitem maior velocidade na composição, enquanto que a impressora
possibilita a diminuição do tamanho original do jornal, mudança apresentada como
fórmula de facilitar o manuseio do periódico. Também com o mesmo objetivo -
facilitar a leitura - o Jornal do Brasil muda a sua tipologia, compondo as notícias
até em corpo 12.
A diminuição do formato, apresentada como exigência dos leitores,
permite, ao mesmo tempo, a expansão dos momentos e dos lugares da leitura. O
novo formato facilita a leitura em lugares públicos, deslocamentos e momentos de
espera. O jornal, ao mesmo tempo que adapta seu conteúdo aos leitores
preferenciais, ajusta seu formato tentando satisfazer essas exigências.
Mas as novas máquinas de compor e impressoras permitem mais: a
impressão de tipologias mais fortes, marcantes, maiores; a inclusão de ilustrações
mais nítidas; a introdução de tipos mais modernos. E tudo isso fica visível nas
páginas desses diários.
Substituindo a composição comum pela da linotipo, reduzindo o seu
formato, numa reforma que se estende pelos outros jornais, mudando a tipologia
para um tamanho que "faci Iita" a leitura, acentuam, ao mesmo tempo, o que
chamam "feição informativa", também com o clard intuito de criar hábito de consumo
em leitores diferenciados.
A Gazeta de Notícias, ao introduzir a cor no processo de sua impressão,
em 1907, procura mostrar que as drásticas mudanças realizadas são imperativas
para atender ao desejo do públ ico consumidor e despertar a atenção daqueles para
quem a leitura dos periódicos ainda não é um hábito consolidado.
Aquele nLllnero, inovador, à cores, cheio de imperfeições - segundo o
próprio periódico - é impresso, mais uma vez, à Iloite, Ilas oficinas da rua Sete de
Setembro, 70. A novidade leva dezenas de pessoas à Gazeta para assistir a tiragem
do primeiro diário à cores a circular no país.
No dia seguinte, anuncia o sucesso do empreendimento. A sua "grande
edição" esgota-se rapidamente e, em alguns pontos da cidade, ainda às primeiras
\i,
i
horas da manhã "já se não encontra um só exemplar, aumentando a procura pelo
correr do dia"!>.
Ii Mudando as formas de impressão e a tipologia, introduzindo títulos em
amanhOS até então não usuais e chegando ao ponto de imprimir fotos a cores, os
jornais adaptam o conteúdo e a forma às exigências de seu leitor potencial. A
distribuição de tipologias fortes na primeira página, a introdução de um conceito
~
manchete, a sucessiva edição de ilustrações e fotografias na capa, tudo isso faz
p rte de uma estratégia para alcançar um público mais vasto. O desenvolvimento
de novos sistemas de impressão, a introdução de máquinas capazes de imprimir
~
até 20 mil exemplares por hora indicam também a emergência dessa leitura de
massa no Rio de Janeiro.
O Jornal do Commercio, por exemplo, o primeiro a importar linotipos,
em 1890, é também pioneiro na introdução das rotativas. E no final dos anos 10,
possui duas máquinas rotativas, uma Walter Scott, capaz de imprimir 20 mil
exemplares de 48 páginas por hora e outra Hóe, que roda uma edição dupla de 20
mil exemplares de 40 páginas por hora.
Adaptando-se ao gosto e às exigências do público, criam também novas
edições em horários diferenciados. Além da matutina que vai às ruas ao alvorecer,
há a emergência de se editar periódicos também ao final do dia: as vespertinas.
Ao lado de jornais que já surgem para atender o público do final da tarde,
como A Noite, outros, como o Jornal do Brasil, passam a imprimir duas edições.
A descrição do lançamento da primeira edição vespertina do periódico criado em
1891 evoca não apenas o "sucesso da iniciativa", mas a aglomeração que se forma
a sua porta, antes de o primeiro número ganhar as ruas.
Descrevem, ainda, o alarido de vendedores aguardando a impressão da
folha e o hasteamento do pavilhão do jornal às 2:30 horas da tarde, hábito então
comum para marcar um feito grandioso.
Toda esta movimentação precede ao trabalho de impressão, que se inicia
exatamente as 4 horas e 20 minutos quando "alegres silvos das máquinas a vapor
anunciavam que ia começar a impressão".
Quando sai afinal o maço inicial com a primeira remessa,
"em menos de um minuto as centenas de exemplaresforam arrebatados das mãos do
vendedor - sabendo nós que contra o nosso assentimento, até a 500 réis o número se
venderam muitos exemplares do lomal do Brasil, contra o que mais uma vez protestamos,
pois é de cem réis o preço de cada número avulso. E sucessivamente a meclída que ia saindo
a ediçeio, em número extraordinário, ela ia sendo distribuída pelo público, que GI'idamente a
procurava. E apesar da avultada ediçeio, houl'e quem só pudesse obtero jornal por 200,300,
400 e 500 réis!"7
Essas edições, como as demais, da matutino ou da vespertina, chegam
aos leitores percorrendo dois caminhos: através do sistema de assinatura ou da
venda avulsa. Mesmo os assinantes da capital recebem seus exemplares via correio.
E o jornal utiliza o serviço dos vendedores para ampliar a venda avulsa e alcançar
elevadas tiragens.
Assim, nos jornais matutinos, por volta das cinco horas da manhã, começa
a última etapa desse circuito da comunicação, que permite o encontro dos periódicos
com os leitores: a distribuição. Em O Paiz, 18 entregadores levam os maços para
as agências dos Correios do Distrito Federal e daí seguem, pelos trens e bondes,
das primeiras horas da manhã, tanto para os lugares mais afastados da capital,
como para outros estados. Há ainda o serviço de venda avulsa, feito por ambulantes
que compram os exemplares ainda na madrugada, vendendo-os diretamente aos
leitores ou em pontos fixos como, por exemplo, nos quiosques.
"Osjol'llais saem dobrados e seio postos eUIcarrinhos depois de coladas as 'adresses' das
assinaturas dos estados. Os carros correm logo para o caminho defeiTO, com medo de
perder o 'Correio '. Ao mesmo tempo,já há ulua cinismo de !'endedores, gritando e exigindo a
folha. É chegado o momelllo do distribuidO/; que com eles se entende, recebendo o encalhe e
aumentando ou diminuindo o número de exemplares para di\'ersos pontos. Vai nascendo o dia
e os primeiros gritos da rua seio o pregr/o das nOl'idade~ do dia anterio/: 'Gazeta! Grande
assassiuatol A prisão do assassino"'\.
É dessa forma que o introdutor da venda avulsa descreve, em 1907, o seu
serviço de distribuição. Muitas mudanças se deram desde aquele 20 de agosto de
1875, quando a Gazeta de Notícias tenta arrebatar os primeiros pequenos
jornaleiros, oferecendo empregos e apresentando-os como uma solução para que
"crianças pobres pudessem com um ordenado fixo ajudar a família".
Fundamental para o recebimento do jornal pelo público, estes não poupam
esforços no sentido de tornar a distribuição eficiente. Além das mais diversas
promoções, lançam mão de expedientes inovadores como, por exemplo, o introduzido
pela Gazeta, em 1907, quando passa a distribuir prêmios aos melhores vendedores.
Um crime sensacional num determinado bairro é o suficiente para que,
alugando carros especialmente para o serviço, o jornal despeje naquela localidade
exemplares extra da publicação. A Festa da Penha determina o aumento da
distribuição principalmente no arraial que se monta em torno da igreja todos os
meses de outubro.
"As três edições da Gazeta saindo sucessivamente u/lIa após outra para sallara curiosidade
do público,foram avidamellte disputadas e esgotadas em brel'e tempo. A Gazeta para mellior
servir o público fez distribuir as suas edições em palitos distalltes da cidade, por autolllól'eis
expressamente cOlltratados para estefllll. De manhã cedo, em Botafogo, lIão havia um ti/lico
exemplar do nosso joma!! O mesmo sucedeu 1I0Ssubúrbios e elll todos os lugares distantes.
Foi U/1Isucesso extraordinário, lÍlIico lia nossa illlprensa, as três edições publicados olltelll
de lIlanhã pela Gazeta de Notícias "Y.
Para distribuição aos sublirbios e bairros distantes usam-se bondes e
trens da Central e da Leopoldina. Os horários incertos dos transportes atrasam
quase sempre a remessa para os lugares mais longínquos. Distribuídos na capital
mas também em cidades do interior - não apenas do Rio de Janeiro, mas
principalmente em Minas e São Paulo - freqüentemente os assinantes não recebem
suas folhas nas estações de destino. Além disso, as deficiências dos correios causam
transtornos semelhantes.
Criando colunas específicas destinadas ao pliblico de outros estados -
principalmente nos lugares onde é maior a sua circulação - procuram também
alargar sua audiência para além das fronteiras do Rio de Janeiro. Em 1912,
finalmente, o Correio da Manhã inaugura sua primeira sucursal: em Belo
Horizonte. A nova sucursal, que funciona também como agência geral do Correio
para toda Minas Gerais, atenderia os 15 mil assinantes de todo o estado. O Correio
de Manhã é, na própria definição do periódico, o "jornal de mais larga circulação
em Minas".
A sucursal passa assim não apenas a apurar matérias, mas a receber
correspondências dos leitores daquele estado, atender aos assinantes de Belo
Horizonte e de outras localidades e ter a seu cargo a venda diária do Correio da
Manhã na capital mineira. É ainda responsável pela publicidade de anúncios e de
matérias pagas.
Se as formas de materialização dos impressos mudam, fazendo com que
a impressão - suporte indispensável para que o texto cheg e ao leitor - ganhe
novos contornos, possibilitando que as cores soltem de suas páginas, transformando
a realidade física e transmutando imagens em algo mais próximo da realidade, na
redação todas as ações se voltam para conseguir a notícia inédita, o furo de
reportagem e a informação sensacional. Para isso não há limites, nem mesmo ética.
A reportagem é dividida em dois setores: a informação local e o serviço
telegráfico do interior e do estrangeiro. As notícias da cidade, ou as "locais", como
se chama na época, são desvendadas por hábeis repórteres que se espalham pelas
diversas repartições. Essa informação é ainda complementada com o trabalho dos
repórteres dos "teatros e concertos", "esporte", "policial" e outros, criando cada
jornal rubricas próprias.
O serviço telegráfico é feito pelos correspondentes e, principalmente,
pelo recebimento das notícias das agências de informação.
"Além do serviço combinado comulll dos primeiros órgãos de publicidade do continente
americano e dos seus correspondentes literários elll Lisboa, Porto, províncias de Portugal,
Paris e Roma, o Jornal do Brasil tem correspondentes telegráficos especiais em Paris, Roma,
Londres, Lisboa, Montevidéu e Buenos A ires, recebendo, elllmédia, pelo cabo sub,narino de
seiscentas a IIlilpalavras diárias "10.
Apesar da importância desse tipo de informação, que ocupa geralmente
as primeiras páginas, a reportagem local ganha cada vez mais destaque. O
sensacional, as catástrofes quotidianas e a notícia inédita despertam o interesse do
público e aumentam a importância do trabalho do repórter.
Esses passam também a escrever verdadeiras crônicas do cotidiano,
subindo os morros, descrevendo os bastidores das religiões populares, montando
reportagens em série sobre curandeirismo, favelas e Qutros temas. Algumas vezes,
valem-se de expedientes não muito éticos para conseguir a reportagem inédita e
sensacional. Bisbilhotar as conversas alheias, ler sorrateiramente textos sobre uma
mesa ou mesmo em bondes, são apenas algumas das ações de que se valem para
conseguir o furo de reportagem. Podem também se transformar em outro personagem
para elaborar a sua história.
"Uma gentil senhorita, que veio de Minas tentar no Rioa vida de imprensa, entrou para a
redaçc70 da Rua e engendrou l/lna reportagem muito interessante. Fingiu-se de transviada e
foi ao Asilo do Bom Pastor pedir agasalho para fazer penitência e regenerar-se. Muniu-se de
uma minúscula kodak e desembarcou no misterioso com'ento, onde a superiora a recebeu com
benignidade e bons conselhos. Não pode. entretanto, permanecer no asilo mais de 48 horas,
porque, segundo parece, um jornalista, por motivos desconhecidos, a denunciou à superiora
COlUOespiã, e ela tel'e de regressar da tranqiiila lI/{/nsc7odas madalenas arrependidas para o
seio buliçoso dos repórteres de onde saíra, nUIl/lIlomento de original inspiração"".
Os acontecimentos policiais têm cada vez mais a preferência do público.
As grandes massas desdenham a notícia se "o político x descobriu uma fórmula ou
apresentou um projeto capaz de salvar a Pátria". Mas se há
"llIlIa tragédia lia ma tal, cOllltiros,facadas, Illortes, IlIlIa to'Tl!lIte de sallglle e dil'ersas
olltras circllllstiincias dr{{/lIáticas, as tllrbas se interessalll, I'ibralll, telll avidez de deralhes,
qllereml'er os retratos das vítillws, dos crimillosos, dos policiais elllpelllwdos na captllra
destes".
E O jornal conclui. "Como pode o repórter de polícia deixar de fazer
verdadeiros romances-folhetins? A culpa não é deles, é do gosto do público, cuja
psicologia é, aliás, muito compreensível"l' .
Deslocando-se de trem ou bondes para conseguir as notas da reportagem,
desempenham um trabalho que é eminentemente externo à redação. Observando o
que está ao seu redor escrevem, algumas vezes, excelentes crônicas do cotidiano
que reproduzem a vida da cidade.
"Descemos do trelll e f()lIwmos o lado direito da gare. A feira esta 1'0 no sell allge. Toda III1W
população, lia sua Illaioria operários,formigava elll torno dos mercadores de hortaliças,
legllllles, peixes,frutas e OlltroS gêneros do COIISIlIlIOdiário. De rendosa assolliincia
sobressaía o I'ozem' dos quitandeiros oferecendo as suas Illercadorias. E osfreglleses
agitavalll-se de 11111 lado para o outro, ajázercolllpras regateando selllpre. Eralll criadas
sobraçando cestas, meninas e trabalhadores com bolsas dI! palha trançada, pendendo da
mão. No Illeio da multidão proletária algumas senhoras chie d(l\'{lIlIpitoresca nota de
elegância. Notavalll-se tambélll homellS belll tr{ijados e Illoças ellll'estes dOlllinglleiras ".
E a sua ronda continua:
"Já nos sentíamos bastante fatigados, pela excllrsão qlle acabávalllos defazel; através de
atoleiros, quando saltalllos na estação de Todos os Santos. UIll bonde com o aspecto das
coisas illlprestáveis esperava no ponto. Elllbarcalllos. O veículo rodoll del/tro em pOIlCO
entrando pela rua José Bonifácio, qlle é 111110 das Illais importantes do IlIg{lI: Estávalllos na
estação - ollde se faz o entroncalllento COIlla linha do Meie,: Fico a esqllina da rua
Zeferino".
Depois da peregrinação, já ao final da tarde regressa à cidade "para
passar a limpo as notas e entregá-Ias ao secretário". No dia seguinte, na coluna
"Pelos Subúrbios" aparecem as suas descrições.
Classificando sua profissão como "bisbilhoteir ", pode começar seu
trabalho ainda de madrugada. Às cinco horas, o repórter anônimo já está no Meier,
onde entra num botequim para tomar um café. A seguir, de bonde, e já com o dia
claro segue na sua peregrinação. "Eram então 6 horas da manhã e no desempenho
da nossa missão, já nos achávamos na estação do Engenho de Dentro. As 9 horas
os funcionários públ icos começavam a descer nas estações suburbanas. Tomamos
o trem às 9 e meia no Engenho Novo e começamos a escutar o que diziam"l\ .
Terminada essa tarefa, vai para a redação. Lá, em sua "banca", escreve as
notas em tiras, que são entregues ao secretário para a composição. Nas redações
cada um tem o seu lugar. O burburinho do trabalho é intenso, ao mesmo tempo em
que há um movimento incessante de pessoas. No Carnaval, há o costume de os
blocos e cordões saudarem os jornalistas. Nos dias comuns, os informantes e
queixosos formam verdadeiras peregrinações em busca da intennediação do jornal
para suas queixas e reclamações.
A valorização do ineditismo transforma o trabalho. O repórter passa a
ser o elemento principal para a composição da notícia. Dele se espera "o furo de
reportagem", a informação sensacional, todos os detalhes do fato. O que impolta
para o leitor é "a notícia, a impressão do fato, o fato com todas as suas minúcias,
todos os seus pormenores, todos os seus detalhes", pois
"o leitor apressado não qnerio pensm; não tinha telllpo poro ocolllponhor longos reflexões
filosóficos, posso por cilllo de todas os consideroções de ordelll social e política; diga-lhe o
que passou, COIIIOse passou, elll ql/e condições se deu ofato qne o ocnpo, pinte-lhe o tipo e o
caráter dos protagonistas. e seforpossívelfazê-Io selll palm'l'as, pelafotogrofia tOlltO
lIIelhor!"
Assim,
"O rei do jOl'l/alislllo lIIodel'l/o é o repórleJ: A importância do repórter cresceu tanto que hoje
o que decide o êxito dosjol'l/ais é a SI/Ocapacidade, a sua atividade, a sI/a competência. A
princípio, não hal'ia nosjol'l/ois,{tlnções mais modestas que as sI/as; ele ero pouco mais do
que o IIIOÇOde recados, ero apenas o veículo das notícias oficiais das secretarias de Estado
poro a sola dos redações "/;.
Descrevendo a complexa atividade do secretário de redação, a própria
Gazeta de Notícias admite que, embora sendo uma 'empresa comercial, paga mal
aos seus profissionais. Por uma tarefa que se estende do meio-dia à meia-noite
invariavelmente, sendo responsável pela redação e tendo que ordenar todas as
notícias e ilustrações em edições, devendo ler todas as matérias a serem publicadas
e lembrar de todos os detalhes, um secretário de redação recebe, em 1907,600$000.
"Há os de 800 e até de 500. A tabela mesmo é 600".
Naquele ano, um redator de banca - figur,a que desapareceria, dando lugar
aos redatores-repórteres - recebe no máximo 400$000, quando tem a incumbência
de substituir o secretário. Os colaboradores têm salários diferenciados em função
dos jornais para os quais trabalham. E conclui o articulista: "O redator que consegue
ganhar mais no Rio, o mais aclamado, não passa de 600$000. Daí só para baixo" 15 ,
Nas redações há dois grupos distintos de repórteres. Os notáveis,
responsáveis normalmente pela cobeltura política, e os que se dedicam a outras
repartiçõ.es de menos prestígio e poder. Esses recebem salários menores, tendo
uma condição de vida inferior.
Termi nada a reportagem, esta é entregue ao secretário, que, por sua vez,
a passa ao chefe da paginação. Decidido os aspectos gráficos - tipologia do título,
destaque a ser dado, ilustração, etc. - a página é enviada à estereotipia e daí à
impressão.
"Campos, antes de sair para o jantar às sete lioras da noite, exigia qlle os originais de todo
o noticiário importante, bem COIIIOos artigos e seções permanentes,fossem entreglles à
secretaria afim de que estivessem nas oficinas à liora do início da composição, emlllãos dos
linotipistas, del'idamente retrancados ".
O secretário chega aos matutinos por volta das três horas da tarde. Mas,
ainda em casa, examina todas as folhas da manhã, confrontado esse noticiário com
o de seu jornal:
"Se porventllra desse cotejo se evidenciasse a sllperioridade do jornal que secretaria\'({ e cllja
feitura estava integralmente a sell cargo, fica va radial/le. Ao entrar na redaçrio deixOI'a logo
transparecer seu bomliUlnOl: Fisionomia tranqiiila e olliar de satisfação( ...). Nesse estado
de espírito, se não ocorresse IIn/ imprevisto que lhe pertllrbasse a paz, passava o resto do
dia, ia pela noite a dentro até encerrar a edição às qllatro horas da madrugada ".
Mas se, ao contrário, a Gazeta levara um "furo" ou uma "formiga", gíria
com que se designa a publicação de notícias falsas, sua irritação é evidente.
"Daí a slla chegada à redaçâo daqllelejeito, cOlno qnem está voltando dofillleral de pessoa
querida. Depois de relance{f/; ainda em pé, os ollios na correspondência pessoal qlle estava
sobre a mesa, co/no se procIII'C/SSe, antes de abri-Ia, identifica/; pela letra dos sobrescritos,
os seus remetentes, despia o paletó, penduI'C/va-o no cabide e sentam-se à mesa, sempre
silencioso".
Depois de jantar, retoma ao jornal, por volta das nove horas da noite. A
redação está animada. Os que já terminaram de escrever suas tiras conversam.
Alguns olhares inquietos voltam-se para o relógio na parede: aqueles que a meia-
noite terminam suas tarefas.
A maioria dos matutinos começa a essa hora o seu "fechamento". A voz
do secretário, em tom grave, avisa que não há mais tempo a perder. Todos se
levantam. Os que ainda não concluíram suas notícias juntam as tiras escritas para
temlinar o trabalho nas oficinas. Os outros saem em direção à Avenida, para as
paradas habituais nos cafés.
Os que ficam de plantão nas oficinas têm que agüentar até às três ou
quatro horas da manhã. Há um revezamento permanente de repórteres e redatores
neste trabalho de aguardar que na cidade, no país ou no exterior aconteça algo que
mereça a descrição pormenorizada de suas penas. Há noites em que o trabalho é
tranqüilo. Apenas os telegramas das agências nacionais e estrangeiras ou notícias
policiais sem importância. A edição fecha por volta das três horas manhã, sem
atropelos.
Há dias, entretanto, que um grande incêndio, uma impressionante tragédia
passional, um terrível desastre ferroviário movimentam os repórteres. O secretário
se agita e dá instruções: "Olha a hora! O jornal não pode atrasar!".
A preocupação é com a remessa da folha para os assinantes e vendedores
do interior, através do Correio dos trens que partem ao amanhecer.
O secretário planta-se ao lado dos repól1eres. Passa às vistas rapidamente
pelas tiras, entrega-as ao chefe da oficina que, por sua vez, as retranca e distribui
aos linotipistas. Tudo feito rapidamente: cinco minutos depois da entrega, a
composição está revisada e paginadal('.
Os paginadores, em volta da mesa, distribuem-se no trabalho de colocar
fios, outro ajuda os emendadores e um terceiro vai juntando os paquês e justi ficando-
os. O secretário acompanha os retoques finais com ansiedade, consultando o relógio
a cada momento. Chega a gravura. Seu lugar já está reservado na página, na medida
exala que o gravador antecipadamente fornece. Fundida a telha, a gravura é nela
adaptada por meio de solda, em segundos apenas. Agora é ir para a calandra, de
onde sai o molde para a fundição, que, por sua vez, vai passando, às telhas, à serra,
ao torno e às frezes para a limpeza. Termina-se toda a tarefa da estereotipia, em
três minutos. As telhas são então ajustadas à rotativa. E ao leve toque do impressor
em um botão, a pesada máquina vai se mexendo lentamente, solta um silvo agudo,
que sai da polia, e ganha gradativamente velocidade. De suas entranhas mecânicas
começa a sair a folha, encadernada e dobrada.
Das Marinonis, das Walter Scott e de outras rotativas, as notícias,
transformadas em folhas impressas, saem aos milhares e ganham às ruas em busca
dos leitores, assinantes assíduos ou compradores eventuais, para quem o grito dos
meninos apregoando as folhas diárias é a senha para o conhecimento do que se
passa no mundo.

"Casa de Detençâo do Distrito Federal


S,: DOI/to Coelho Neto.
Paz e socego el/I vosso lar e ql/e 1'0.1.10.1 passos seja illl/mil/ado. SOl/lI/li cOlldenado ql/em.lhe
esael'e, e para iSfOellchime de coragem. Ellcolltra-me cOlldellado a l'inte e pOI/COSmezes de
prizâojá tendo ('/flllprido a metade da pena. A I'ida como V frcia é profl/ndo cOllhecedor tem
mystérios ql/e nâo podemos prescl/ltal-os, e por isso recl/so-me em desael'u-Ihe o motil'o da
minha Ijrizâo, smdo ainda jOl'eln, tenho na cidade de Campos mel/s paes e meus irmãos.
Encho-me agora de coragem. Aos domingos compro como enorme ditficuldade o jornal do
Brasil, e silo grande resignação com o soffrimento quando lheio os vossos artigos
dominicaes. Não tenho dinheiro para comprar uma obra de vossa autoria oh sabia, h/ullilho-
me em pedir-vos aI/e por /iraça me conceda a sI/prema ventl/ra de possl/ir UlIl livro de sua
aI/to ria "(Grifos nosso/7•

A carta assinada pelo detento Hidelbrando Mello Pedra e parte do arquivo


pessoal de Coelho Neto se, ao mesmo tempo, não serve a conclusões genéricas
sobre o público, conduz a uma reAexão profunda sobre a descoberta desse leitor
anônimo que, muitas vezes, com sacrifício compra o mais popular jornal de então
- o Jornal do Brasil - não apenas para estar em contato com as informações do
mundo, mas para através de textos encontrar significações extremamente
particulares.
Quando o leitor, através da leitura, se apropria do texto, na verdade,
escreve um outro texto em sua cabeça, quando a levanta, olha ao redor ou faz um
comentário sobre aquela leitura. O texto, como diz Roland Barthes, é sobretudo
uma leitura. O leitor escreve o impresso no momento em que se apropria da
narrativa. Para Barthes não se reconstitui o leitor, mas a leituralX •
Usando uma lógica simbólica que associa o texto a outras idéias, imagens
e significações, produz um suplemento de sentidos que foge aos limites estreitos
das significações possíveis encontradas naquele impresso.
Reconstruir essa leitura, é, sobretudo, apreender a lógica da narrativa -
de forma simbólica - num espaço cultural onde o leitor se insere. Remontando
essas formas de apreensão do texto num espaço social demarcado e as formas
simbólicas de sua apropriação estaremos reconstruindo a leitura.
A leitura, como enfatiza Robert Darnton, não é uma habilidade, mas uma
maneira de criar significados, que varia de cultura para cultura. Ao ler, estabelece-
se uma relação direta do corpo com os signos do texto, para além da memória e da
consciência, e com todas as linguagens que atravessam esse texto e que formam as
frases em sua profundidade I~ .
A pergunta que se faz, portanto, não é somente quem lê os jornais, mas
sobretudo como Hidelbrando Mello Pedra e outros leitores, anônimos, lêem e o
que entendem dos sinais impressos naquelas páginas. O que buscam nesses
periódicos, como se reapropriam daquelas mensagens e que significações passam
a ter após serem modificadas no momento mesmo da leitura?
A cal1a de Hidelbrando não é constatação isolada. As memórias, romances,
contos e crônicas são ricos em indicações que possibilitam o mapeamento desse
leitor de outrora.
Não apenas os ricos industriais, os fazendeiros, os políticos - público
tradicional do Jornal do Commercio - mas os trabalhadores, empregados do
comércio, ambulantes, vendedores, militares de baixa patente, funcionários públicos,
mulheres, presidiários, leitores habituais ou esporádicos dos jornais que se auto-
denomi nam populares.
"O Jomal do Brasil difill1dill-se Cllltodas as camadas sociais. Não o lê só o negociante
0plllento, nas horas qlle os sells afazeres deixalllvagas. TallliJélll o procllra qllotidianalllente
o hlllllilde operário, ao deixar operado o trabalho do dia. Indagllem aos l'endedores; os que
pensalll qlle exageramos. Se, enl geral, todos eles atestarão que a procura do Jornal do
Brasil é dobradwllente maior do qlle qllalqller olltrafolha, 110.1lllgares habitados pela
poplllação mais pobre, verão que a diferença ainda sobe consideravalmente"211.
Aparecendo quase sempre como obrigação matinal, o jornal é descrito
como leitura habitual nos bondes, nos trens, num umbral de uma palia à beira de
uma calçada, compondo as horas livres do dia. "Tomamos um trem. Era um dos de
Petrópolis. Ia cheio dos tais de que me falava a pouco Gonzaga. Compramos
primeira classe para Bom Sucesso, mas passamos logo para a segunda. O meu
amigo adquiriu um jornal e pôs-se a Ier")1 .
Pela manhã, há sempre alguém lendo um jornal. Não apenas os cultos,
como Gonzaga de Sá, mas também os trabalhadores aparecem com esses matutinos
à mão.
"Às.5 horas da 1II00Ihãollvia-se 11111 grito de máqllina rasgando o 01:Abrialll-se devagar os
boteqllins ainda com os bicos de gás acesos(. ..). Das mas qlle l'az{/\'amna calçada rebentada
do cais, aflllía gente, sem cessclI; gente que slllgia do nevoeiro, com as nlãos nos bolsos,
tremendo. gente qlle se metia pelas bodegas e parava ri beira do qlliosqlle numa grande
auífallla. Para o cais da alfândega, ao lado, 11111 grllpo de ociosos olhm'a através das
ji-inchas de IIII/tapllme, rindo a perder; 11mcarregadol; encostado nos IImiJrais de 111/10porta,
fia. de óculos, o jornal, (grifo nosso) e todos grit{/\'all/,falavalll, riam, agitavam-se na
Fia Idade daqllele acordar"!!.
Na belíssima descrição de João do Rio da alvorada em um cais, como que
interrompendo a cadência da narrativa, isolando-se em um canto, no meio daquele
burburinho, surge um trabalhador da estiva, que, alheio aos gritos, aos risos e à
agitação daquele amanhecer, refugia-se na leitura de um matutino. Seria exagero
atribuir o óculos, à freqüência com que, sob a luz ainda fraca do amanhecer, faz
esse tipo de leitura?
As repetidas referências à leitura nos transportes coletivos faz supor
um hábito comum, como também o de ler em voz alIa, após o jantar, em torno da
família, ou no trabalho, nas poucas horas vagas. O jornal não é exclusivo de um
leitor isolado, mas calcula-se nos mapas de circulação das publicações que um
mesmo impresso é "lido" por até quatro pessoas.
"Outrora o carioca cultivava hábitos que há lIIuitos anos desapareceralll, O de lerjomal no
bonde e no trelll era Ullldeles, COllleçou a perda do hábito depois de 30, COIllo
desaparecilllento do 'pequeno jomaleiro' e o pregão, A população era I/I/titíssilllo lllenO/; lIIas
a illlpressào que ainda hoje perdura é de que se lia entào lIIais jomais "1.1,
Coelho Neto, num texto chamado "A Antiga Cidade" recorda também a
maneira curiosa como um exemplar do Jornal do Commercio é consumido por
várias pessoas,
"Terlllinada a leitura, o tabemeiro entreg{f\'a o jomal ao caixeiro para que o levasse ao
freguês lIIais illlportante e, até à noite, a folha andava de casa elll rasa, lida, relida,
ilifol'll/ando sobre a política, sobre o preço dos gêneros e das fazendas, sobre os casos das
ruas efazendo sorrir e chorar COIllos episódios do folhetilll, selllpre suspenso no ponto Illais
interessante" 1, ,
Elmano Cardim, numa conferência realizada por ocasião do
sesquicentenário do Jornal do Commercio, faz menção à oralidade como forma
de apreensão do conteúdo desses diários, Ressaltando a dificuldade de se ampliar
o público em função das altas taxas de analfabetismo, acrescenta que no início do
século este aumenta consideravelmente, graças aos "fenômenos da oral idade",
"O texto era antesfeito para serfalado e ouvido do que para ser lido, donde, talvez, Ul/I
certo ar grandiloqiiente e retórico da nossafigura típica de intelectual, de que Rui Barbosa
seria aqni 'o hOlllelll e o lIIito'( ...}, Talllbélll o costullle dOllléstico dos serõesfoi ontra
instituiçào que I/lIfito contribuiu para alllpliar os nossos públicos, aí incluindo, lIIeSIllO,os
anaif'abetos",
Refere-se, ainda, ao hábito de "senhoras lerem em voz alia um romance
folhetinesco para o entretenimento e a exaltação sentimental de um público caseiro
predominantemente composto de mulheres"2),
A leitura, em voz alta, em torno da família e dos amigos, no ambiente da
casa ou, silenciosamente, no trajeto de casa para o trabalho e vice e versa, nos
bondes, nos trens, ao ar livre, e das duas formas, no ambiente privado do trabalho,
nas horas vagas do dia, coloca em evidência uma sociabilidade particular. Muitos
sabem ler, sem saber escrever. Outros não sabem ler, nem escrever mas tomam
contato com os sinais impressos naquelas páginas, Os jornais têm, seguramente,
mais ouvintes do que leitores e são, certamente, mais ouvidos e vistos do que lidos,
O tipo de leitura, coletiva, permite também supor uma apropriação de
textos peculiar. Comentados, a partir de uma experiência coletiva e não individual,
sofrem reelaborações não de segunda, mas terceira, de quarta, de quinta ordem, A
mensagem suscita dúvidas, comentários, discussões, controvérsias, favorecendo a
apreensões de sentidos distintos e diferenciados, Traz, também, emoção,
Apresentado de forma normalmente polêmica, causa outras polêmicas
no momento de sua leitura. O público gostaria, muitas vezes, de um outro tipo de
desfecho da trama ou uma crítica di ferenciada. Se algumas vezes concorda com o
que é veiculado, outras acrescenta um comentário ex plícito ou um discordar
contundente àquilo que é divulgado pelo jornal.
"Tenho lido, com o máximo interesse, os patrióticos editoriais de 1'0.1.10 brilhante diário a
respeito do projeto de lei qlle regula o sorteio militar e de OlltroS assllntos relativos às
forças de terra e mm: Em relaçüo ao qllefoi pllblicado na ediçüo de ontem, del'o discorda I;
pois nüo é de minha autoria nenhllm projeto de lei regulamentando essa matéria. Creio dever
tratar-se de IInl eqllívoco de sell repórter"2ó.
Esse tipo de diálogo dos leitores habituais com os periódicos é freqüente.
Somente em outubro de 1915, O Paiz publica oito cartas com desmentidos sobre
notícias veiculadas anteriormente pelo próprio jornal ou por outros matutinos.
Muitas vezes, para conseguir essas ratificações, o leitor vai pessoalmente à redação.
"Na nossa redaçüo, esteve, ontem, o Coronel Espírito Santo, chefe da Contabilidade da
Brigada Policial, qlle em nome do general Agobm; comandante dessa corporaçüo, nos pediu,
declarar ser inteiramente fantástica a notícia de um jornal de ontem sobre UlIIescandaloso
caso de dinheirofalso em qne estariam envoll'idos ao mesmo tempo oficiais da Brigada e
funcionários do Tesouro Nacional".
O leitor pode misturar na sua carta a crítica ferrenha dirigida a uma
publicação com elogios explícitos a outra.
"EII sal/leitor constante dos dois vespertinos A Rua e A Noite. De man/iü leio O Paiz. Deste
amo os seus slleltos. sempre feitos com milita graça. chiste e geralmente elllcidatil'os. Ora, é
a esta IIltima qllalidade qlle hoje recorro. Os dois citados \'espertinos pllhlicaralllnos seus
nlímeros de ontem dllasfotografias do nOl'io Empress of Ireland. Essas dllasfotografias süo
totalmente diferentes lllna da olltra. EIIpedia-l'os SI: RedatOl; a elllcidaçüo desse caso")).
Na sua carta, tivera o cuidado de juntar os recortes dos dois vespertinos,
mostrando as fotografias que materializam o engano: na primeira aparece um navio
com três grandes chaminés, um casco branco, sobre o qual se ergue duas pontes; a
outra, destaca um transatlântico, extenso, de casco mais baixo e negro, com três
pontes e duas chaminés. É flagrante a diferença ..
Assinando apenas como "um leitor", sem maior identificação, percebe-
se no texto a indignação do missivista ao ver explicitada a inverdade de um dos
periódicos. Para desvendá-Ia pede ao jornalista esclarecimento, o único que, ao seu
juízo, poderia resolver a intrincada questão. Comentando um tipo de texto freqüente
- o suei to - refere-se à capacidade de o jornal eluciclar fatos, para resolver também
as suas dúvidas.
'Para esse leitor anônimo, não fora fundamentalmente o texto o objeto de
sua leitura, mas a fotografia. Materialização expressa da realidade, na sua concepção,
a reprodução de realidades díspares se configura, sobretudo, como uma
representação enganosa do real.
Buscando conquistar também leitores eventuais, os jornais podem se
valer de qualquer tipo de expediente. A seção de venda avulsa fiscaliza, diariamente,
através de um mapa parcial e total de venda de exemplares, o aumento da circulação
em determinada área, em função de um evento particular ou de uma notícia
retumbante, muitas vezes construída e que será, posteriormente, duramente criticada
pelo próprio leitor,·
"Quando ocorria Ulllgrave acontecilllento na cidade, no país ou até no estrangeiro, COIll
grande repercussão entre nós, era certo o alllnento da venda avulsa na proporção da
illlportância do fato e da popularidade de cada jomal, Isso signijica que selllpre existiu e
deve existir ainda hoje e!n todas as call1adas do público, II/lla boa parte de leitores eventuais
eflutuantes, Sc70aqueles que só cOlllpranljol"llal qualldo querelll conheCe!; ellltodos os seus
detalhes, uma ocorrência de sUllla gravidade ou, então, 1I0tícia de interesse máxilllo das
classes a que pertellcem ":S.
As estratégias dos periódicos para buscar esse leitor eventual se
multiplicam, principalmente no sentido transformá-Io em assíduo. A introdução
de colunas específicas, voltadas para o mundo do trabalho,em O Paiz, ou a ampliação
de temas destinados às mulheres e às crianças, no Correio da Manhã, O Paiz,
Gazeta de Notícias e Jornal do Brasil, também fazem parte dessa estratégia.
A mulher é uma parcela importante do público e para ela é necessário
temas diferenciados,
"Embora o Correio da Manhã tivesse a preferência de lIleu pai, por seu feitio cOlltundellte de
criticar e pela alllplitude do 1I0ticiário de caráter político ou nüo, o lomal do Brasil eSIOI'a
talllbélll preselUe elllnossa casa, diarialllente, pela circunstância de ser lIlinha lIlc7esua
leitora assídua ",
Na descrição, o jornalista relata as rubricas de preferência da leitora
habitual: as notas sociais e o folhetim.
"Collleçava ela a ler o popular órgão carioca pelas notas srciais, A seção de IIl1flldanislllo,
naquele tempo, abrallgia do {//lil'ersário ao obituário, illformalldo tudo sobre lIaSrlmentos,
casalllelltos,festas, bailes, recepções.falecimentos e missas, Millha mãe explicm'a o seu
interesse pela vida social COIIIOUIIIdos lIleios pelos quais vol{{/ e lIleia tinha notícia de
amigas da sua gemção que se dispersamlll depois que contraíralll casalllentos ",
O jornal é, para ela, a possibilidade de inserção num mundo distante, de
recuperação de um tempo passado que se torna presente pela identificação de
personagens conhecidos nas descrições ou nas indicações esparsas fornecidas pelo
periódico.
"Certa IIlanhü eu a surpreendi COIllojomal aberto nas lIlãos e lágrilllas saltando-Ihes dos
olhos, que IlIlllca lhe faltaram com a visão perfeita até morrer aos setellta e Ilove anos.
- Morrell Sillhájllha Berqlló! Exclamoll com a I'OZmeio velada pelo choqlle emocional".
Colocando-a em contato com a realidade, mas também com a fantasia, o
Jornal do Brasil faz parte de seu quotidiano. Seja nas sociais ou nos folhetins, as
reações provocadas pela leitura são sobretudo emocionais,
"Das 1l0tÍcias sociais em qlle, assim, vez por olltm, encontram o nome de uma das amigas
dajlll'elltllde, millha mãe passava para os variados assulltos do Jornal do Brasil, 11111 órgão
Iloticioso e interessalltejá Ilaquela época. Ofolhetim diário com o capítlllo de um dos
gralldes romallces de Dllmas, Cmllito e tantos outros lIomesfamosos, era 11111 deles. Apesar
de destemerosa, I'erdadeira amazona nllm cavalo a galope, nllnca se arreceando de qualqller
perigo, millha mãe era profllndamente emotiva. Por isso sempre se debull/{/I'a em pranto
naqlleles 1II00llelltosreservados à leitura dos dramas qlle empolgaram a jUl'elltllde de IlIlIitas
gerações"2Y.
As referências a esse público são freqüentes, bem como as evidências
que saltam das próprias publicações. Afora o folhetim, criam colunas de modas, de
entretenimento, concursos femininos, destinam-Ihes artigos e enquetes. Como
resposta as cartas das leitoras inundam as publicações.
Em fevereiro de 1907, a Gazeta de Notícias publica uma enquete - "São
feministas as mulheres brasileiras?" - após a polêmica criada pela difusão de um
artigo em que o jornal é contra o fato de mulheres vir ocupando profissões liberais.
No dia seguinte, chega dezenas de cartas de mulheres indignadas.
"As cartas eram todas lIeste estilo: 'lima leitora indigllada contra um artigo a cerca da
mulher I'em cOlltestar 011,antes, pedir para protestar cOlltra as opiniões de pessoas CIUO
caráter indubital'elmente egoísta as leva a defender publicamente a illércia da mulher
brasileira el1lgeral, apontando-se quasefelizpara slla escravidão'. Dez, I'inte, cinqüenta
cartas neste estilo fez-nos imaginar uma porção de coisas, inclllsive a de que a Índole da
mlllher brasileira estam transformada e qlle 110Escola de Medicina, em I'ez de meninas da
terra, dam IIIlIapessoa de cara com anarqllistas e nibilislas mssas. Como respollder a
dÚl'ida? Indagando? Illterrogando? ".
Quatro dias depois, publicam mais ,quatro cartas respondendo às
perguntas da enquete. E nos dias que se seguem, novas cartas são transcritas.
Em outubro do mesmo ano, a Gazeta promove um concurso especialmente
destinado ao seu público feminino: de beleza. Justificando-o em função do próprio
sucesso - "as nossas edições sensivelmente aumentadas esgotam-se às primeiras
horas. Ainda ontem fomos forçados a fazer uma nova edição às 10 horas da manhã"
" acrescentam ser imperativo abranger maior parcela de público, onde as mulheres
se incluerhH1•
Entre um noticiário variado, destaca sempre moda e beleza. Mas passam
também a dar ênfase aos crimes sensacionais, publicando fotos das vítimas, mortas
e mutiladas, em sua primeira página. Os anúncios que divulgam - editais de bancos,
remédios para mulher, companhias de navegação, hotéis luxuosos, cofres que
garantem valores contra roubo ou fogo, pianos, elevadores -, entre os mais
freqüentes, particulariza o jornal como sendo preferencialmente destinado a leitores,
homens e mulheres, de melhor posição na escala social.
Em 1906, também O Paiz promove uma série de concursos destinados
especialmente às "moças", publicando pensamentos enviados e dando aos melhores,
como prêmio, um "cordão de ouro com medalha, uma rica ombrella e um belíssimo
leque". Na mesma edição como resposta ao "plebiscito", para responder "como
devia sereducada a mulher?", recebem "várias cartas", inclusive algumas de "leitoras
assíduas do jornal"31 .
Mas a sua estratégia mercadológica para atingir o público feminino não
pára aí: abrem a cada mês novos concursos, alguns com temas bem ao espírito da
época, como o que estampam na página 7, da edição de 8 de abril de 1906: "Como
deve ser o vosso noivo?".
Novas seções continuam sendo criadas. Na página mais nobre do jornal
editam, a partir de 1908, "Vida no Lar", dividida em três subtítulos: "as rendas", "a
doceira" e "a cozinha". Mesmo periódicos mais tradicionais, como o Jornal do
Commercio, destina parte de seu conteúdo a esse público, ainda que restrito no
caso de O Paiz e do jornal de José Carlos Rodrigues às mulheres dos grupos
dominantes.
Nas suas memórias, também Rubem Braga se refere às lembranças de sua
infância, quando em sua casa, tanto seu pai, como sua mãe liam habitualmente o
Jornal do Commercio.
"Meu pai era assinante. Eu me lembro dele, gordo (como eu sou hoje) com óculos de aros de
ouro, sentado na cadeira de balanço, a ler ojomalão. É bom confessar desde logo que a
minha memória é ruim, mas tenho a impressão de que, além do rodapé de João Luso, que era
semanal e na segunda página, hal'ia um outro diário, que era umfolhetimtraduzido, um
romance que tinha Ulllnome de lillllhel; algo mais como Ana Maria, lião sei mais. Mamãe lia
esse folhetim, e eu era encarregado de recortá-Io; às l'ezes também lia um capítulo ou
outro".
No seu depoimento, recorda não apenas o hábito de sua mãe ler o folheti m,
mas as emoções que lhe possibilitam esse tipo de leitura.
"Lembro-me de que Inwnãe se queixal'a de que a heroína do folhetim não tinha sorte. quando
as coisas da sua I'ida ia se arrumando e afelicidade começal'a a sorri!; lá l'inha outra
desgraça( ...) e era um desespero, tudo desandal'a. Coitada - dizia mamãe -, e eu procural'a
consolá-Ia dizendo que se Ana Mariaficasse feliz ofolhetim acabava "32.
Recriando a emoção, apropriando-se do texto a partir de uma
individualidade - vivendo como se fosse o personagem, sofrendo por ele e torcendo
para a solução positiva de seus problemas - a leitora identifica-se com a história e
transporta-se para ela, tentando recriá-Ia. O seu quotidiano habitual torna-se, a
parti r de sua inserção naquele ambiente de sonho, romanceado. Vendo-se como a
heroína do romance imaginado, vivido como um simbolismo, sente pena de seus
sofrimentos, alegra-se com seus sucessos, emociona-se com seus amores. A edição
fantasiosa da emoção retira-a da sua realidade previsível.
A leitura emocionada é feita de outra forma. Sussurrada com as amigas,
comentada, ainda que rapidamente e não em profundidade, com o filho, que vendo
o texto de outra maneira, o retira do universo de sonho, inserindo-o na realidade.
Para o menino, Ana Maria é uma personagem. Para a leitora, Ana Maria é, como
ela, mulher.
Mas não são apenas às leitoras de melhor poder aquisitivo que os veículos
se dirigem. Mulheres pobres podem não apenas ler o jornal, como fazer dele o
último meio para resolver suas agruras quotidianas.
"Ao Jornal do Brasill'eio D. Maria Joana, sexagenária banhada elll pranto, pedir-nos IIIna
reclalllação contra a lIIaneira injusta porqlle foi tratada pelo D/: Delegado da 2"
circunscrição que a lIIandourecolher ao xa(!I'e;" pelo silllples fato de ter ela pedido que
soltasse seu filho Femando Antônio Ferreira, lIIenor de 15 anos. preso por suspeita de ser
I'({gabundo. A Sra. D. Maria Joana 1II0ra a ma Capitão Serra, n. 37, é paupérrillla e seu
filho é o seu IÍnico arrilllo. Atuallllente está desenlpregado, lIIas é /uu bOIll oficial de funileiro
ejá estel'e colocado elll boas casas, nas quaisfoi selllpre lIIuito considerado ".1.1.
Se, em parte o grande número de analfabetos restringe a difusão dos
jornais, considerando-se não apenas o seu simbolismo, mas sobretudo a forma
como são lidos, percebe-se que esses textos influenciam também os não letrados.
Um texto nem sempre precisa ser lido. Ele pode e é ouvido. Portanto, mesmo os
que não dominam a leitura são influenciados por essas mensagens, reapropriando-
se delas de forma di ferenciada.
Ao visualizar de maneira ampla o público, peculiar e diferenciado, de
cada uma dessas publicações percebe-se igualmente que as construções emanadas
variam de veículo para veículo não só em função da mensagem preferencial que
divulgam, mas também em decorrência da expectativa que há por parte de leitores
extremamente diversos. Se há, por um lado, identidades de conteúdo, por outro, há
igualmente mensagens específicas destinadas a um público até então não
consideradà.
o diálogo entre duas esmoleres na porta da igreja, reproduzido na narrativa
romanceada de João do Rio, destaca mais uma vez esse leitor peculiar. No caso
duas mulheres, duplamente excluídas na configuração social existente na cidade.
"- Bom dia, D. Guilhenuina.
- Bom dia, D. Antônia. Como vai dos seus iucômodos?
- O rellluatismo não me deixa. É desta laje fria.
- Que se há defazer? É a voutade de Deus. Eutão, hoje, missas boas?
- Li no jornal: às nOl'e e meia a do general ... (grijo nosso). Mas, uão contemos. Os ricaços
estão cada vez mais sOl'inas ".i< .
Para essas mulheres, o jornal ou informa fatos que ajudam a compor sua
realidade quotidiana ou intermedia suas queixas e reclamações. Não tendo a quem
apelar, se dirigir ou pedir, os leitores pobres vêem os periódicos como o intermediário
possível entre o seu quotidiano de lutas e misérias e aqueles que têm poder suficiente
para mudar a realidade.
Quando levanta a cabeça, olha em volta, D. Antônia dá uma outra
significação, baseada na sua vivência, ao anúncio publicado sem maior relevo numa
coluna fixa, existente em todos os diários. A informação de que haverá a missa do
general, às nove horas, significa, para ela, que aquele dia não seria dos mais
promissores. As missas de pessoas importantes remetem a uma idéia de pompas
e circunstâncias, mas também de sovinice.
A narrativa de Lima Barreto, uma linguagem e ao mesmo tempo uma
obra literária, se constitui, até em função dessa relação em ponto de partida e de
chegada para o estudo da linguagem. Isolar o sentido de um texto num conjunto de
significações, se, ao mesmo tempo, fornece indicações preciosas para entender o
significado do próprio texto, permite uma interpretação peculiar.
Como enfatiza Todorov, no discurso literário, como no do cotidiano, o
sentido pode ser isolado de um conjunto de outros sentidos, aos quais se pode dar
o nome de interpretação. Dessa forma, a interpretação depende não apenas das
relações que se estabelecem entre o autor e a obra, mas da própria significação do
texto no sistema onde ele está incluído. Assim, em todo enunciado pode-se isolar,
de um lado, um ato de locutor - o arranjo lingüístico - e, de outro, a evocação de uma
certa realidade, cuja existência é conferida pelo próprio enunciado.
"Tendo aí na capital da República, um meu filho de nO/lle José de Araújo Jorge Pereira,
desde o ano de 1896, e como não tenho nenhUluanotícia dele há longos auos, rogo a v.s.
fineza ou esmola, para melhor dize I; de, pelas colunas do I'OSSO conceituadojomal anuuciar
q/le ainda I'il'o, se bem que sob o peso dos 64 anos, tendo unicamente a alimentar-me, meus
últimos dias, a esperança de encontrar este ente querido, que para aí seguiu em procura da
vida, mas que amim vem proporciouaudo a morte/".
Essa mulher anônima ganha um lugar, uma existência, bem como seu
filho José de Araújo Pereira, a partir da composição da narrativa. Na carta, a velha
mulher, de 64 anos, enxerga na intermediação do jornal e, ao mesmo tempo, no seu
poder de difusão a única possibilidade real de encontrar o filho. A distante leitora
de O Paiz - seja ela de segunda ou de terceira de ordem - conseguiria transformar
seu desejo e sonho em realidade a partir de uma ação peculiar ao periódico: a
publicação da sua carta, transformada em informação. A leitura para ela é mais do
que o conhecimento de uma realidade: é uma esperança.
No dia seguinte, José de Araújo agradece a inserção da carta de sua mãe
e de personagem desconhecido e fictício ganha dimensão real: José de Araújo é um
empregado de comércio, naquele momento trabalhando na casa Castro & Cia, a Av.
Rio Branco, n. 1035.
As mulheres também podem ir aos diários se queixar por delegação de
seus maridos.
"A Sra. Adriana Pereira lIIoradora a ma de S. Carlos 67-A veio ao Jornal do Brasil por I

parte de seulllarido SI: Manuel Fanandes Pereira dizer-nos que a City IlIIprovelllents está
procedendo lIIuito incorretalllente na cobrança do alinhalllento das ruas. O SI: Pereira foi
obrigado a pagar 157$500 por exigência dos elllpregados dessa cOlllpanhia, os quais,
enquanto ele nâo pode satisfazer tal pagalllento, seqiiestraralll-Ihe os lIIateriais do seu
serl'iço de carpinteiro, a título de penhOl: Queixando-se o Si: Pereira ao engenheiro do
Mangue este respondeu 'que nâo queria discussões e que os elllpregados que tiveram
selllelhante procedilllento estm'alll dentro da lei "3ó.
O carpinteiro Manuel Pereira, por compartilhar do conteLldo e da
vinculação política do jornal, designa à mulher a tarefa de ir pessoalmente fazer a
queixa ou ela fora por uma motivação pessoal, mas escamoteada em razão do lugar
social que ocupa?
Seja de uma ou de outra forma, o fato é que tanto para Manuel Pereira
como para Adelina, o periódico é possibilidade não de reverter uma arbitrariedade,
mas de divulgar - e assim talvez minimizar - a yiolência de que são vítimas. Ao ver
reproduzida a sua realidade nas páginas da publicação, viam-se também como
parte integrante daquele mundo, até então distante.
Essa relação dos leitores com os jornais mostra o caráter significativo
das mensagens que veiculam. Em princípio, um texto escrito é dirigido a um leitor
desconhecido e universal. Mas a obra cria o seu público, alargando o seu círculo de
atuação e iniciando novos modos de comunicação. Ao estabelecer esse contato, o
leitor deixa claro que um auditório está sendo formado.
O texto abre-se a um número indefinido de leitores e, por conseguinte, de
interpretações, que dependem em grande parte da forma como é apreendido.
Enquanto o texto impresso atinge o leitor no ambiente solitário, longe da sociabilidade
peculiar que a leitura em voz alta permite, o transmitido pela voz indica a presença
próxima de um outrem que influencia na compreensão daquela mensagem.
O que é lido, é, muitas vezes, oralmente, transmitido a outros. E, mais
uma vez, indiretamente, alarga-se os leitores, através da oral idade. O texto
transmitido pelos jornais é, assim, também um discurso falado, cuja força de
locução e de compreensão depende não apenas dos aspectos articulados do
discurso, mas da mímica, dos gestos, de elementos não articulados, aquilo que
alguns autores chamam prosódia\).
Embora mais eventuais, vez por outra aparecem referências esporádicas
aos jovens como leitores. E o conteúdo dessas publicações procura despertar
também o interesse desse leitor do futuro.
O Paiz cria, em 1907, uma seção denominada "O Paiz das Crianças", na
qual além de diversos jogos de entretenimento, promove concursos, dando como
prêmio "cycle e bonecas". Um ano antes, abre espaço aos domingos "para a
publicação de artigos, contos, poesias, fantasias que os seus jovens leitores lhe
enviassem". No carnaval, promove outro concurso, dando prêmios às crianças
melhores fantasiadas, o que obtém ampla repercussão.
"Recebemos cartas pedindo informações, somos wllm'elmente interrompidos no nosso
trabalho por senhores idosos qlle entram se desclllpando: - Os senhores me perdoem. Mas os
meninos lá de casa anda há dias a me importllnw: Qllerem saber do cOllcurso. E começam a
desenrolar questiúllclllas qlle gentilmente esclarecemos".!".
Mas como estas crianças, esses jovens e adolescentes lêem? Como tomam
conhecimento dessas mensagens, como essas informações são transmitidas em
sinais impressos?
Seja através da informação recebida pela leitura em voz alta, em torno da
família, seja através de trechos que recolhem, aqui e ali, ainda que eventuais, essas
leituras também são realizadas.
Como Rubem Braga, os mais ou menos jovens podem se interessar por
ler, eventualmente, trechos dos folhetins, tiras de entretenimento, que vez por
outra aparecem nas publicações.
"As colunas do Paizforam a minha primeira cartilha de ABC, quando menino. as primeiras
si/abas que soletrei foram o p-a pa, I· is - O Paiz. É pois COlltoo sentimenlO de quem
guarda essa doce recordação, que envio 11111 apertado abraço a seus ilustmdos redatores,
participando da dor que os aflige, desejando sinceramente que o valoroso baluarte de
República no gOl'el'llo Floriano Peixoto ressl/lja das cinzas ainda mais pujante, para
prosseguir impavidamente e/li sua marcha I'itoriosa e gloriosa ".!V.
Mais reveladora ainda não só do leitor, como também da leitura, é a
crônica "Jornais de crianças" escrita, em 1917, por João do Rio.
Depois de descrever o silêncio momentâneo da redação, o cronista relata
o objetivo da visita de um "rapazola de treze para quatorze anos": tirando de um
embrulho uma pequena folha impressa, oferece, em seu nome e de seus colegas, o
primeiro número de um jornal que classi fica como modesto e pede, ao mesmo
tempo, "o incentivo de sua opinião", isto é, a publicação da notícia do aparecimento
da folha. A atitude do menino, jornalista por imitação, por idealização de uma
profissão que segundo o escritor não vale a pena, deixa João do Rio comovido.
"Aquela criauça jomalista, quaudo deI 'ia audar remando ou jogando a péla - era um mundo
de coisas melancólicas. Estria, decididamente, temos a moda de meninos e meninas afingir
dejornalislas? Distintos cOlifrades por simples diversrio neste inverso, resolveram por em
/oco, comloul'Ores, IIInma/ da uossa educaçrio:jornaisinllOs em que escrevenl crianças.
Faralmente a noticia exasperaria o sentimento exibicionista de meninos, dos respectivos
Iwis( ... ). É de I/.OVOa moda? Mas, por que?"
O jovem, inicialmente leitor de jornais, arvora-se à condição de jornalista
precoce, o que também causa temor, pena e melancolia no articulista.
"Pobre petiz que sobe a UUIjornalmel/tindo, sem saber o que faz, implorando reclame como
os deputados que querem ser reeleitos, os autores de lil'ros medíocres e os secretários de
empresas teatrais? Que pellSara ele? Eu recordal'{/ oUlrosjomais idênticos e os resultados
dos precoces artificiais I'istos uo meu tempo de colégio e 110.1 meus primeiros tempos de
jomal( ...). Os pequenos nrio tem outro desejo senrio fingir-se de homem,fazer constar o seu
profllndo conhecimenlo da I'ida. Os sonhadores .Iriapoeras,fa/ando mal da vida com ares de
Mal!fÍ"edo. Os práticos redigiam jornais, mimando atitlldes dos pais. Por isso, por todas
coisas que depois de IlOlnon obsel"l'ei, uma grande pena e uma atroz melancolia eIlchem-me a
alma quando encontro uln jornal de crianças. Encontro, leio, enchem-me os olhos de água, e
guardo para comparar depois, srio todos iguais. Podialll ser assinados pelo conselheiro
Acácio; srio assinados por meninos que ainda nrio têm quinze anos! /-lá certo de I'ez em
quando talento. Mas para que fingir de homem antes de o ser?";()
Comparando a atitude desses jovens que, por um processo imitativo,
produzem eles mesmos os seus jornais, com a daqueles que através dos periódicos
desejam se promover, João do Rio no seu discurso literário reproduz uma situação
real e, ao mesmo tempo, cria uma narrativa fictícia.
Na sua complexa teorização, Paul Ricouer afirma que a escrita é a plena
manifestação do discurso. Entendendo discurso como evento ou proposição, onde
a função predicativa e de identificação convivem numa mesma frase, Ricouer insere
na sua discussão a idéia de abstração, inerente mesmo à noção de discurso, e,
portanto, dependente da unidade dialética de evento e significação. Para ele, se
todo discurso se atualiza como evento, todo o discurso é compreendido como
significação.
É porque esta dialética do evento e da significação se torna óbvia e
explícita na escrita que esta se transforma na plena manifestação do discurso. O
que escrevemos, diz Ricouer, não é o evento enquanto evento, mas a significação
do evento lingüístico. Assim como no discurso falado, a significação é diretamente
dependente da mímica, dos gestos e de outros aspectos não articulados do discurso,
na escrita a significação está diretamente vinculada ao receptor da mensagem. A
forma é também fundamental para esta significação~1 .
Ao narrar o seu texto sob a forma de crônica, João do Rio torna possível
a ele mesmo, enquanto construtor de mensagens, apresentar a situação vivenciada
como real, ao mesmo tempo em que externa opiniões, juízos de valor sobre o
acontecimento que se antepôs a sua narrativa.
Mas, certamente para o leitor de hoje, essa crônica possui significações
peculiares geradas pela distância temporal entre o escritor e o receptor da mensagem.
A não existência de situações comuns; as ausências das marcas externas da voz, da
face, do corpo do cronista como construtora daquele tempo e daquele lugar - a
redação do jornal; e a própria autonomia semântica do texto, que o separa do
escritor e o coloca no âmbito de leitores inteiramente desconhecidos do futuro -
como os que relêem esse texto já de segunda ordem, transcrito por um outro
narrador -tudo isso altera a significação do texto.
Recuperando-se o tempo e o espaço da descrição contidos na narrativa é
possível inserir uma marca distintiva, apreendendo a sua referência ostensiva,
inseri ndo o leitor na trama, como se parti Ihasse dela, graças a procedi mentos de
uma identificação singular. A plural idade de significações, construída na rede espacial
e temporal, faz com esse possa pertencer ao escritor e ao leitor de ontem ou ao de
hoje. A escrita liberta o texto do próprio autor, recolocando-o no lugar de sua
significação. O que importa agora não é mais o que o autor tentou dizer, mas a
significação explícita contida no seu dizer~' .
Assim, pode-se entender ainda hoje que produzindo textos - discurso
escrito e trabalhado - os jovens leitores passam de uma categoria a outra: de
leitores a produtores de mensagens. E isso só ocorre porque a leitura evoca
sobretudo uma produção: a leitura é condutora do desejo de escrever. Ao passar
para o lado do discurso escrito, também se inserem numa realidade que não é sua,
pelo menos aos olhos do cronista João do Rio, na significação que o texto readquire
a pani r de uma nova leitura.
Para aqueles jovens a leitura é a possibilidade de produzir algo escrito,
tornando-se, ainda que por imitação, jornalistas e tendo, embora limitada, toda a
notoriedade que envolve a profissão. A leitura não é a inserção em mundo real, mas
a possibilidade de transpor e criar uma nova realidade: igualmente de sonho.
Se a dificuldade em recuperar essa leitura e esses leitores é, ao mesmo
tempo, grandiosa e desafiadora, quando se refere aos grupos marginalizados na
sociedade torna-se ainda mais evidente. Os "excluídos da história" são também
leitores.
Recuperar sua leitura é quase impossível, não porque não tenham
história, mas por que a memória criada e fOljada desse tempo não contempla a voz
dos mais anônimos. Acrescente-se a isso o fato de fazerem, a maioria das vezes,
uma leitura de segunda mão, que é descrita, evidentemente, por aqueles que
efetivamente a realizam.
Em torno dos ambientes de trabalho, nas horas vagas do dia, leitores
anônimos lêem, em voz alta "a fúria informativa" dos periódicos. Recostados em
um canto, podem também ler si lenciosamente este mesmo jornal.
"Era costllme do carregador Domingos Paranhos Lorenzo, espanhol de 28 anos, solteiro,
residente a ma Visconde de Rio Branco, n. 13, ir ler ojomal, montado no tablado, enqllanto
0.1' operários trabalhm'amlá em cima. Cerca de II horas da manhã, tendo-se ele munido do

seujomalfoi para o local predileto saborearas sensações do noticiário. O pobre homem


mal sabia qlle estavafazendo a slla última leitura. Defato, qllando mais absorto ele estava
na leitllra. desprendell-se do andaime IInlOgrossa e pesadíssima tábna que veio de revés
bater-lhe I'iolentamente na nuca, jogando-o no chão, para afi'ente, com o crâniofendido,
morto instantaneamente "{1 .
A leitura é feita no local de trabalho, nas horas vagas, quando envolvido
pelas descrições dos noticiários sensacionalistas, apropria-se do texto, recriando-
o de tal forma que se distancia da realidade. Como estaria Domingos Paranhos
Lorenzo entendendo os sinais daquelas páginas?
Às vezes, essa leitura no trabalho traz transtornos, na medida em que
rouba o trabalhador da sua atividade profissional ou por que o jornal é visto com
reservas.
"Chegou ao nosso conhecimento que o comandante do posto policial do Rocha prendeu uma
de suas praças por estar lendo o Correio da Manhã e o mandou apresentar ao centro
policial do Meie/; aco/npanhado de uma carta de disciplina. 'Não admito que aqui no posto
se leiam jamais oposicionistas ';4.
Cabe aos jornais incentivar essa prática, criando estratégias para aumentar
a sua audiência. Além da distribuição de prêmios periódicos - alguns vultosos,
como por exemplo, o sorteio de automóveis, máquinas de costura, relógios de
bolso ou até mesmo a possibilidade de ser contemplado com uma casa, além de
outros menos expressivos como a distribuição de Atlas, romances, almanaques,
etc.45 - são capazes de oferecer "gratuitamente" um seguro de vida a quem provar
que no momento do sinistro estava de posse de um jornal. Isso é o que faz, por
exemplo, O Paiz em 1906. O que chama a atenção não é somente a estratégia,
comum nos jornais de então, mas, sobretudo, os vencedores da iniciativa.
A primeira a ganhar o prêmio, no valor de I milhão de contos de réis -
preço da apólice ao pOl1ador da Eqüitativa Seguradora publicada no jornaL - é a
viúva de um pedreiro, que caiu de um andaime do prédio em que trabalhava, pai de
cinco filhos e morador no Morro do Castelo. No dia seguinte, em que fica provado
que no momento da queda o leitor carregava um exemplar de O Paiz, publica, na
página 3, a foto da viúva - que "sabia ser o marido leitor fiel do jornal e que o trazia
consigo no dia do desastre" - e de seus filhos à porta do casebre de taipa miserável
em que vivem4ó •
A literatura de época mostra também o quanto esses veículos estão
próximos dos excluídos. Os leitores podem estar, até mesmo, nos hospícios.
"Mas a loucura tem tantos pontos de contato de U/li indivíduo para outro, que seria arriscar
tornar-se fastidioso se quisesse descrever muitos doentes( ...). Há três aqui muito
interessantes. Um é do tipo acaboclado em trapos, com dois aifcJljes pendurados à direita e
à esquerda, sequioso de leitura, a ponto de ler qualquerfragmento de papel impresso que
encontre. Não chega aos extremos de um português, que vive dia e noite, nas proximidades
das latrinas, senão nelas e que não trepida osfragmentos de jornais emporcalhados, para
ler anúncios e outros cousas sem interesse mas sempre delirando".
No seu Diário do Hospício são incontáveis às referências de Lima Barreto
ao hábito de leitura de jornais no Hospital dos Alienados. Ele mesmo os lê com
"relativa minúcia". E acrescenta: "até os crimes de repercussão eu leio". Mais
adiante refere-se a um militar que gosta de conversar cousas superiores. Embora
fosse "francamente e permanentemente doido, não lê coisa alguma, a não ser a
Gazeta de Notícias, de cabo a rabo".
Descrevendo a sua própria leitura, o escritor mostra, como para fugir
daquela realidade, concentra a sua atenção nas letras impressas. Para se distanciar
da conversa que o "arrastava de novo a pensamentos agoureiros" força a atenção
nos periódicos. "Li-os com cuidado, li seções que, normalmente, desprezava, mas
não findei a leitura. Misael chamou-me para o jantar". O texto leva-o a construir
não só uma outra leitura, como o transporta para outro lugar. As ambiências
descritas são como que recriadas, inserido-se ele mesmo naquela descrição,
transformando-se, dessa forma, o texto aprisionado pela sua leitura, numa vivência
particular.
Para isso é preciso "ler com cuidado", "ler minuciosamente", com toda a
sua atenção e todos os seus sentidos voltados para aquele universo de letras
impressas.
A reflexão sobre a leitura - ou seja, a apreensão de um sentido particular
do texto indubitavelmente ligado ao leitor - aparece explicitamente no mesmo
livro. Em outro trecho, um engenheiro, que num acesso de loucura matara a mulher
e um filho, "lia o dia inteiro o jornal". "Vivia na biblioteca, lendo o jornal e fazendo
em voz alta, de quando em quando, uma retlexão sobre a leitura"H .
João do Rio também descreve, com detalhes, a algazarra que se forma na
Casa de Detenção à passagem do repórter, quando os condenados balançam no ar
as folhas diárias, querendo provar inocência. Para o cronista, a imprensa é uma das
três idéias gerais da Detenção. Uma idéia, segundo ele, "quase obsessiva".
"Há os que têm medo de desprezá-Ia, há os que fingem desprezá-Ia, há os que a esperam
aflitos. O jomal é a história diária da outra vida, cheia de sol e de liberdade, é o meio pelo
qual sabem da prisâo dos inimigos, do que pensa o mundo a seu respeito. Nâo há cubículos
sellljol'l1ais ".
Além de espelhar uma idéia de temor, que evoca a problemática do
poder, o jornal, na composição montada, é, para o leitor, a inserção na realidade, na
vida quotidiana diária, longe das grades da prisão. É o meio pelo qual se colocam
em contato com o mundo. Daí a presença constante dos periódicos em todos os
cubículos.
O ócio é também preenchido com a leitura dos jornais. "Lêem com
avidez as notícias de crimes romantizados pelos repórteres e o pavor da pena é o
mais intenso sugestionador da reincidência". O repórter, por outro lado, é
apresentado como o próprio poder. O anúncio da sua visita provoca reações
diferenciadas. "Uns esticam papéis, provando inocência; outros bradam que as
locais dos jornais estavam erradas, outros escondem-se, receando ser conhecidos,
e é um alarido de ronda infernal, uma ânsia de olhos, de clamores, de misérias"4x.

Como que a transformar a ficção em realidade, os diários publicam cartas


de detentos, pedindo intennediação para amenizar as suas penas.
"[serel'e-I/os o 5,: Paulo Martins, detido na Casa de Detençâo, pedindo-nos que declaremos
nâo ser exata a imputaçâo que lhe foi feita, de hal'erfill"lado a importância de /6$ a seu
compan/leiro do cubículo n. 52, onde se acha detido, como pode provar com outros
il/dil'íduos que ali se acham e que se prontificam a dizer a I'erdade"n.
A leitura para esses dois grupos - os loucos e os prisioneiros - tem,
portanto, significações opostas. Enquanto para os primeiros ler pode representar
a fuga de um presente indesejável e a inclusão num mundo de normalidade, para os
segundos visualizar a cidade, os fatos da atualidade e o mundo indica uma fuga,
momentânea, do universo de restrições em que se encontram. Para os prisioneiros,
entretanto, o jornal é mais: a possibilidade de mudar a sua realidade.
Percebida dessa forma, evidentemente que essa leitura tem significações
peculiares e, ao mesmo tempo, plurais, em função mesmo de realidades individuais:
ler os crimes de sensação evoca uma recordação do passado, a identificação de
rostos conhecidos; ler sobre as mudanças que se operam no mundo lá fora faz
visua!izar a realidade, sentindo-se ao mesmo tempo, ainda que pela leitura, parte
desse mundo. Certamente não é a polêmica que interessa a esse leitor. Pode também,
como o missivista de Coelho Neto, querer tão somente se emocionar, amenizar a
sua dor e a sua mágoa com histórias semelhantes recontadas diariamente.
O fato de existir em 1890, na cidade, 40,2% de analfabetos numa
população de 522.651 habitantes, ou de apenas 59,8% de alfabetizados numa
população de 818.113 habitantes, em 1906, não faz supor, por antecipação, o
pouco poder de difusão e penetração desses periódicos. As tiragens dos jornais
revelam de antemão a sua importância, ainda mais quando se sabe que essas
mensagens multiplicam-se pela difusão oral'lI.
A leitura desses diários tem para os leitores signi ficações que decorrem
não apenas do ato de ler, mas da forma como esses sujeitos históricos se colocam
no mundo. Um trabalhador no umbral da porta; um carregador sobre um tablado no
ambiente de trabalho; uma leitora na poltrona de sua casa, solitária; um menino que
recorta e vez por outra lê trechos dos folhetins; um interno de um hospício no seu
delírio cotidiano; um presidiário para quem os jornais provam a inocência, cada um
deles possui uma leitura palticular. Cada um deles -leitores potenciais dos periódicos
- entende de forma diferenciada os sinais daquelas páginas. Cada um deles se
apropria do texto, construindo leituras diversas, no momento em que levanta a
cabeça, olha ao redor ou simplesmente foge da sua realidade mergulhando naquele
universo particular.

É possível - analisando tão somente o texto e a partir do texto - remontar


uma tipologia dos leitores? Quem é o leitor do Jornal do Brasil? Quem lê a
literária Gazeta de Notícias? Onde mora, onde trabalha o leitor do Correio da
Manhã? A que tipo de leitor preferencial se destina O Paiz e o Jornal do
Commercio?
Teórica e metodologicamente, a crítica literária fornece as chaves para
esta recuperação. Considerando o texto como uma série de marcas físicas que
possui significado, determinado por convenções lingüísticas, onde se inclui, com
destaque, o autor e o leitor, pressupondo também nesta noção o contexto - realidade
para além do autor, texto e leitor - e o significado, começa a ficar claro que é
possível visualizar o leitor no e a partir do texto, recuperando também a sua visão
de mundo" .
Assim, ao empreender uma aventura que começa na elaboração de um
texto, não se pode restringir a análise apenas aos produtores dos discursos, uma
vez que o circuito da comunicação acaba na apropriação dessas mensagens por
leitores diferenciados.
Domenique La Capra e H. Write, ao utilizar como suporte teórico de
suas análises, a crítica literária, enfatizam que o passado tem suas próprias vozes,
onde o historiador buscaria reinterpretações, em que estaria sempre presente o
elemento ficcional da narrativa.
Write vai ainda mais além ao considerar que toda narrativa se baseia em
um número limitado de enredos arquétipos. Duplicando esses modos de enredo em
quatro efeitos retóricas, ou tropos, a metáfora, a metonímia, a sinédoque e a ironia,
White afirma que mesmo no mais simples dos discursos - aquele em que o objeto
da representação não pretende ser nada além do que o fato - o próprio uso da
linguagem projeta um nível de significado secundário sob o fenômeno que está
sendo "descrito". Este significado existe apartado tanto dos "fatos", como de
qualquer argumento explícito presente na narrativa\2 .
Visualizar o texto é olhá-Ia como uma leitura, um ato de construção de
sentido, onde há o cruzamento de várias especificidades: textos, formas de
materialização dos escritos e, principalmente, leitores.
Analisando as mensagens divulgadas, parece evidente que uma das criações
mais contundentes é a de uma auto-identidade que define para o público o jornalismo, a
imprensa e os jOl11alistas, aumentando cada vez mais a' dependência do leitor desse tipo
de publicação. Constróem os jornais e o jornalismo como o lugar da imparcialidade e da
difusão da verdade, ao mesmo tempo em que se transfonnam no único intermediário
possível entre o público e poder.
Assim, todos os diários, com exceção do Jornal do Commercio, possuem entre as
suas coluna~, algumas de diálogo explícito com o leitor: Queixas do Povo, no Jornal do Brasil;
Reclamações, no Correio da Manhã; Queixas e Reclamações, em O Paiz. A Gazeta de
Notícias, também pa%a, a partir de 1907, a publicar mais sistematicamente coluna semelhante,
intitulacla Reclamàções cio Povo. Quantificanclo-a<;é possível perceber, nas entrelinhas ou nas
infolmações expressas, não só a natureza das queixas, reclamações, indagações, como também
montar uma tipologia desse público.
Havia duas fomlas básicas de o leitor se comunicar com o jomal: por cana ou
pessoalmente. Sem dúvida, éoJornal do Brasil o que mais recebe a visita de leitores pal1iculares,
que prOCUralllo periódico, muitas vezes, para que o redator de Queixas do Povo, anotasse as
suas reclamações. Mas, todos os outros também recebem visitas nas redações, seja para fazer
reclamações individualizadas, seja pal'a cump,imentw'jomalistas, seja para solicitar infollllações.
Muitos periódicos, além das colunas específicas de reclamações,
possuíam outras - como por exemplo, Pelos Subllrbios, de O Paiz e do Correio
da Manhã - nas quais o leitor também pode ser identificado. Além disso,
sistematicamente, abrem espaço às cartas. Elas revelam igualmente a face oculta
desse leitor.
São essas colunas que dão as referências que permitem montar uma
verdadeira tipologia dos leitores. Em alguns meses de 190 I e considerando-se
apenas as indicações explícitas dos jornais, 308 leitores escrevem ou vão
pessoalmente ao Correio da Manhã, Jornal do Brasil e O Paiz, pelos mais
diferentes motivos. Q maior número se dirige ao Jornal do Brasil (182), seguido
pelo Correio da Manhã, então no seu primeiro ano de funcionamento (95). O
menor número estabelece seu diálogo com O Paiz (31).
Entre os leitores do Jornal do Brasil sobressai o número de trabalhadores
e de mulheres: 31 no primeiro caso e 25, no segundo. No que se refere ao Correio
da Manhã também o número de trabalhadores é o mais expressivo: 20. Sobressai
ainda o número de leitoras. Mas o que esses números de fato signi ficam? Que tipo
de inferência sobre o leitor pode-se chegar?
Além da patente supremacia, em termos de difusão do Jornal de Brasil,
de fato o de maior tiragem, percebe-se uma certa identidade entre os seus leitores
e os de seu principal concorrente, o Correio da Manhã. Estabelecendo uma
caracterização do leitor, podemos dizer que se destaca entre os do Jornal do
Brasil os trabalhadores, dos quais dois rurais e cinco ambulantes, e as mulheres.
Mas o periódico não atinge apenas os grupos mais populares ou excluídos, como
os prisioneiros, mas também os de algum poder aquisitivo, aqui relacionados sob
a rubrica homens de negócios. Embora classi ficados dessa forma, estão agrupados
neste item principalmente proprietários de pequenos empreendimentos como
quitandas, casas de cômodos e quiosques. Apenas dois são, de fato, negociantes de
maior porte.
O Correio de Manhã tem um número mais expressivo de leitores entre
os trabalhadores, seguido pelos profissionais liberais e militares, sendo tal como
os do Jornal do Brasil a grande maioria de baixa patente (soldados, praças, etc.).
Sobressai, tanto em um como em outro, o expressivo número de leitoras. São de
fato os dois periódicos de maior difusão, que circulam com maior expressividade
entre os grupos mais populares, e também junto às mulheres.
Em termos de difusão, o Jornal do Brasil vem em primeiro lugar,
seguido do Correio da Manhã. Observa-se também a concentração dos leitores
do Jornal do Brasil - entre trabalhadores, militares de baixa patente, pequenos
comerciantes e mulheres - e uma maior pulverização do público do Correio da
Manhã entre trabalhadores, profissionais liberais, políticos, militares, homens de
negócios e funcionários públicos. Chama atenção também o fato de presidiários
aparecer entre os leitores do Jornal do Brasil e Correio da Manhã.
Já O Paiz não possui expressividade em termos de circulação,
pulverizando uma pequena preferência entre os grupos dominantes. No final da
década, o panorama sofre alteração.
O que merece destaque também é o fato de se encontrar leitoras tanto
nos periódicos mais populares, como o Jornal do Brasil e Correio da Manhã,
como em jornais mais tradicionais, como O Paiz.
No início dos anos 1910, a popularidade do Jornal do Brasil permanece
inalterada, mas que seu principal concorrente, o Correio da Manhã, conquista
mais e mais leitores. Verifica-se também o avanço de O Paiz no sentido de ter a
adesão de um leitor particular e o declínio da audiência da Gazeta de Notícias, se
comparada aos outros periódicos. O Jornal do Brasil continua sendo lido por
trabalhadores, pequenos comerciantes, profissionais liberais e mulheres. A
preferência dos trabalhadores também recai sobre o Correio. Em segundo lugar,
aparecem os profissionais liberais.
O Paiz tem maior penetração junto aos políticos e se destaca também o
número de literatos e jornalistas que estabelecem um diálogo explícito com o
jornal. Os estudantes de nível superior estão também entre os que mais se comunicam
com o periódico. Já a Gazeta de Notícias apresenta um quadro semelhante ao de
O Paiz na década anterior: uma pequena pulverização de leitores, principalmente,
nos grupos dominantes. Os trabalhadores são, em sua maior parte, empregados do
comércio
O fato de jornalistas e literatos estabelecerem esse diálogo permanente
Com os jornais, mostrando-se como leitores, não causa o menor estranhamento: os
autores são, sobretudo, leitores.
Chama a atenção a pulverização do público de todas as publicações e o
crescimento expressivo dos leitores do Correio da Manhã. Também em O Paiz,
se comparada a sua performance com a década anterior, é flagrante o aumento de
audiência.
Na configuração dos anos 10, o jornal de João Lage aparece em terceiro
lugar na preferência do público. Mas o leitor continua procurando avidamente o
Jornal do Brasil, que começa a ser francamente ameaçado pelo Correio.
O aumento expressivo da população - que cresce a taxa de 3,515% ao
ano desde 1890 - justifica, em parte, a maior pulverização do público e o aumento
das tiragens. Por outro lado, a concentração dos maiores contingentes entre aqueles
que efetivamente estão incluídos na categoria de "sem profissão" explica as
estratégias adotadas pelos veículos para atingir esse leitor. Em 1890, no Rio de
Janeiro, os que figuram como "sem profissão declarada" somam 48.100 pessoas.
Dezesseis anos mais tarde sobe para o impressionante número de 292.202 pessoas;\ .
Evidentemente, esses dados ajudam a perceber o leitor dentro de celtos
limites. É preciso considerar que dependendo da linha editorial do veículo e da
identidade construída, o periódico dá maior ou menor ên fase a essa identi ficação.
Esse é o caso da Gazeta de Notícias, que quase nunca informa a profissão de seus
leitores, encobrindo-os sobre as adjetivações "velho assinante", "leitor assíduo",
"morador na rua tal", entre dezenas de outras. Mas mesmo quando não os
identificam, normalmente os jornais explicitam a procedência da reclamação, o que
serve à montagem de um verdadeiro mapa da difusão e circulação dos periódicos.
Pelo Recenseamento de 1890, as paróquias mais populosas localizam-se
no centro: Santa Rita, Glória e Santana. Não há ainda uma nítida divisão do espaço
urbano no que se refere à moradia de seus habitantes. Em Santo Antônio, Glória e
São José tanto podem morar profissionais liberais, industriais e comerciantes,
como trabalhadores das indústrias ou da prestação de serviço e domésticos. Já o
Engenho Velho é o local preferido pelos banqueiros e industriais cariocas, logo
após Espírito Santo.
Com as reformas urbanas, a partir de 1903, estabelece-se uma nítida
divisão entre os habitantes, a medida que se expulsa das regiões centrais os de
menor poder aquisitivo. Com isso, houve o inchaço populacional das regiões
suburbanas. Em 1906, Inhaúma já está entre os distritos mais populosos, com
68.557 habitantes. Em 1920, tem o maior contingente populacional com 131.886
habitantes. Paralelamente, há cada vez mais o deslocamento dos grupos dominantes
em direção à Zona Sul;4 .
Assim, os leitores do Jornal do Brasil moram preferencialmente nos
subúrbios (48) e nos bairros centrais (40). Já o Correio da Manhã, é mais di fundido
no interior do Estado e em outras unidades da federação, como Minas e São Paulo,
embora seja lido em maior número pelos habitantes dos subúrbios (29), seguido
pelos do centro (15) e Tijuca e adjacências (11). Sobressai também na quantificação
o número de leitores do Correio da Manhã (10) e O Paiz (7) em outros estados.
Em todos os jornais, os subúrbios aparecem em primeiro lugar no que se
refere à procedência das reclamações evidentemente também pelo fato de os
problemas motivadores desse diálogo do leitor estarem concentrados nessa região
e em função do grande contingente populacional, principalmente após as reformas
urbanas'). Aparecem também leitores moradores nos morros do centro (3) e, no
que se refere ao interior, a maior incidência é de Niterói (5).
Se continua havendo uma identidade entre os leitores dos dois periódicos
mais populares, a literária Gazeta de Notícias tem na década seguinte maior
penetração na Tijuca e adjacências (17), sendo também lida pelos habitantes da
Zona Sul (06). Em relação ao Paiz chama atenção o expressivo número de leitores
da Zona Sul (13).
No que se refere à difusão por outras cidades e estados, todos têm
leitores além das fronteiras do Rio de Janeiro, no interior ou nos estados vizinhos
(principalmente Minas, Espirito Santo e São Paulo), embora atinjam também
lugares mais longínquos (como Pará e Amazonas).
Estabelecendo um perfil do público, podemos dizer que, no início da
década de 10, o leitor do Jornal do Brasil continua sendo constituído por
trabalhadores, mulheres, pequenos comerciantes, militares de baixa patente,
moradores dos subúrbios e bairros centrais.
Já o seu concorrente, o Correio da Manhã, conta como seus principais
leitores os trabalhadores das áreas suburbanas, seguido de militares e homens de
negócios. Tem também difusão expressiva em outros estados, principalmente Minas
Gerais. Isso é em pal1e comprovado pela necessidade que sente, já em 1912, de
criar sua primeira sucursal, em Belo Horizonte, não por acaso no estado onde tinha
maior penetração.
O leitor da Gazeta de Notícias habita a Tijuca e adjacências, alguns dos
distritos suburbanos e a zona sul e se caracteriza, sobretudo, por um público
pulverizado entre estudantes, políticos, funcionários públicos e profissionais
liberais. Também pelo teor das cartas percebe-se o fato de esse leitor ter melhor
escolaridade.
O Paiz é lido por políticos, profissionais liberais, literatos e estudantes
dos bairros da Zona Sul e subúrbios da Central, embora seja também marcante a
sua difusão por outros estados.
O que chama a atenção é o perfi I que se pode ter dos leitores em
decorrência do conteúdo das publicações. Assim, enquanto que os do Correio da
Manhã e do Jornal do Brasil se aproximam pela profissão e lugar onde moram,
os da Gazeta de Notícias e de O Paiz são diametralmente opostos.
Os jornais não são apenas os "intermediários dos egoísmos". São também
os intermediários das queixas e das reclamações. Uma estratégia de poder e editorial
que se reflete na conquista de mais leitores.

Reclamando dos males que lhe aflige, buscando a compreensão pública


de suas dificuldades, o leitor não só considera o jornal como intermediário desejável
e indispensável, como também passa a se identificar cada vez mais com os
personagens cotidianos que povoam as páginas dessas publicações.
Um relato é significativo não apenas porque representa os
acontecimentos, mas sobretudo pelas estratégias empregadas para construir uma
imagem, a partir daquele relato, e levar adiante o projeto que o motiva.
Dessa forma, os jornais deixam claro o que pretendem ao veicular, com
destaque, as queixas e reclamações: tornar-se aliado, cumprindo um papel único.
Ao mesmo tempo, introduzem no seu eixo de conteúdo personagens retirados da
realidade, muito mais do que aqueles que se tornam matéria-prima das notícias
sensaCIOnaIs.
Considerando-se que a palavra é dirigida a um destinatário que existe
numa relação social com aquele que fala - pertence a uma geração, gênero, grupo, é
alguém com mais ou menos poder, próximo ou afastado -, visualizar os relatos e as
respostas explícitas do público serve também à materialização desse destinatário
concreto.
Assim, ao analisar os textos das colunas de queixas publicadas é possível
verificar também o públicoi(). O pequeno comerciante, os trabalhadores, ambulantes,
militares de baixa patente e funcionários públicos do Jornal do Brasil e do Correio
da Manhã, ou políticos, literatos, comerciantes, negociantes, fazendeiros, um
público de melhor nível de instrução, maior poder aquisitivo e, sobretudo, com
outro tipo de reivindicação e visualização do jornal que lê habitualmente: O Paiz
e Jornal do Commercio. Atingindo também esse destinatário, a Gazeta e o
próprio O Paiz multiplicam as estratégias no sentido de conquistar um novo
leitor: morador nos subúrbios, empregado no pequeno comércio, trabalhador nas
fábricas, na construção civil. Mas ao que parece esse permanece fiel aos jornais
mais populares.
Analisando as colunas de diálogo do público com o jornal não é apenas
uma tipologia do leitor que salta dos relatos. As tragédias quotidianas, a tessitura
da construção desses textos e o seu simbolismo informam também sobre a forma
como as mensagens são apropriadas.
Sem dúvida, as queixas mais representativas, em termos quantitativos,
são às que se referem aos serviços prestados. E a campeã das reclamações é a falta
de água que atinge indiscriminadamente os moradores da cidade, principalmente os
das regiões mais pobres.
"Ajalta d'água é u/u estribilho que se encontra diarial//ente pelosjol7lais, ainda lI/eS/l/O nos
dois últi/l/os dias que o céu alagou toda a cidade CO/l/o preciso líquido que caiu a
cr/lltal"Os(...). Nestes últil//os dias, I'árias solicitações nosjoral// jeitas, por escrito e pelo
tele/alle, para que levássel//os à repartição incul//bida do serviço de distribuiçeio de água
potlÍl'el as reclal//ações de inúl//eros habitantes desta grande cosl//opolis, que se tem visto
primdos dela para as suas l1lais exigentes e i/l/periosas necessidades "57.
Introjetando um discurso veiculado incessantemente pelos jornais, o
leitor também clama por higiene.
O discurso higienista desses periódicos encarrega-se de construir
polaridades, do tipo saúde x doença, limpo x sujo, associando a idéia de moderno,
progresso e enriquecimento à de embelezamento e limpeza. Organizar a sociedade
implica, pois, em reordená-Ia, construindo novas formas de dominação e atualizando
as estratégias de poder. Entre essas está a delimitação dos espaços, associada à
questão da higiene que através de uma justificativa científica ordena não só os
lugares, como também os corpos. Procura-se, assim, criar uma nova ordem do
trabalho, dentro da ótica capitalista, colocando cada um no seu lugar e no seu papel
nessa sociedade. Longe de ser uma preocupação humanitária, a valorização dos
aspectos higiênicos pretende melhorar o mundo da produção, tornado-se, dessa
forma, mais eficaz. O corpo passa a ser objeto de estudos, cuidados e controle5x •
Mais importante do que estabelecer uma tipologia dessas reclamações,
que revelam a expectativa do leitor, é exemplificar também o teor das Caltas, nas
quais fica evidente a classificação que o periódico passa a ter para o pliblico, no
momento em que lhe presta um serviço.
"De há I//uito que aco/l/panho o I//odo gentil COI//que V S se digna a atenderas opril//idos,
el// toda espécie de sojri/l/el/./o, lançando protestos e pedindo prOl'idências aos I//andantes a
que se a,hal// subordinados os queixosos. Assi//l. pois, solirito de V S o obséquio de
recla/l/ar porl//eio da ilustrada seção que V S. teio dignalllente dirige, u/l/a vista d'olhos
pela trOl'essa das Chitas, pois, de há //Iuito que por lá não passeia U/Ilgary CO//lsua
respectim vassoura "5Y.
A carta acima, apenas um exemplo entre centenas de conteúdo semelhante,
mostra que ao se colocar como o intermediário entre os queixosos e os "mandantes",
a quem os primeiros estão submetidos, o jornal faz um trabalho para além de sua
função primeira - informar e orientar a população - e se torna indispensável para o
leitor.
As marcas signi ficativas contidas nesses textos apontam mais uma vez
para o como da leitura. O leitor não apenas lê, mas acompanha - o que dá uma idéia
de leitura sistemática -e também pode adjetivar a forma como se apropria daqueles
textos. É assíduo, assinante há quinze anos ou ainda se refere às notícias publicadas
e colunas fixas como objeto de sua leitura atenta. A par desse tipo, há um outro,
igualmente sistemático, que se dirige quotidianamente à publicação, mas de maneira
completamente di versa.
Não se apresentando como leitores, mas se identificando pela profissão
ou lugar onde moram, pela própria configuração do texto que criam, deixam claro a
sua condição de novo ou eventual leitor. Quase sempre toma conhecimento da
publicação, do "serviço" que o jornal oferece e do conteúdo dessas mensagens a
partir de um contato de segunda natureza. Como que pedindo desculpas por ter
que se utilizar do jornal e fazendo porque o periódico lhe dá esta prerrogativa,
aparece mais sistematicamente no Jornal do Brasil e no Correio da Manhã.
O seu texto - definido aqui como um conjunto de códigos que regem a
própria interação discursiva -, ao contrário daquele do periódico, é distante,
colocando o jornal num lugar quase que inatingível. Graças a uma deferência do
periódico, esse leitor comum se permite estabelecer um diálogo.
Já as notícias publicadas pressupõem, por contraponto, uma espécie de
intimidade e um interlocutor extremamente definido. Procura seduzi-Io e convencê-
10, ao contrário do leitor que quase implora a intennediação do periódico.
O jornal é sempre adjetivado - ilustrado, defensor, importante - e o
articulista responsável pela 'eção a quem solicita um obséquio ou favor é, não
raras vezes, brilhante e competente. Chega-se mesmo, através das marcas distintivas
de alguns textos, a visualizar o rosto desse leitor: titubeante, como a sua leitura, ele
sobe as escadas, pára na mesa do redator das "queixas", informa o que lhe aflige e
espera o desenrolar da trama. Humilde e humilhado, o que espera ele daquele
jornal? Que marcas significativas encontraria naquelas linhas distantes e distintas?
A imagem de defensor dos fracos e dos oprimidos é forjada não apenas
através da publicação das "reclamações do povo". A Gazeta de Notícias, por
exemplo, promove por ocasião das festas de fim de ano "O Natal dos pobrezinhos",
quando recolhe donativos que são distribuídos numa grande festa "aos pobrezinhos",
que aguardam pacientemente. E essa ação intermediária é também louvada pelo
leitor habitual. "Felicito a Gazeta pela muito louvável e carinhosa solicitude que
pelas crianças tem manifestado este jornal, o que é certamente uma das causas que
o tornam simpático à população dessa cidade"('(}.
Para aumentar a sua audiência, a Gazeta além de se transformar num
"jornal moderno, de leitura leve e interessante", de forma a "entreter e informar os
seus leitores", dizendo-se, assim, perfeitamente identi ficada com os interesses e
os desejos da população, além de realizar festas e campanhas para distribuir
donativos aos "necessitados da fortuna", vai gradativamente adaptando o conteúdo
de suas páginas às tragédias e dramas do cotidiano. Jornal literário desde a sua
fundação chega mesmo a concentrar essa característica nas edições dominicais para
nos dias de semana diversificar o noticiário. Empreende, a partir de 1907, uma
série de mudanças gráficas, editoriais e de conteúdo. Além da introdução da cor,
passam a destacar os crimes monstruosos, publicado fotos das vítimas mortas e
mutiladas.
Páginas inteiras mostram experiências fatais, mortes horríveis ou festas
populares. Os pobres são enfocados como curiosidade: aspecto de uma residência
pobre, o quintal de uma família honesta. A vida dos santos, ilustradas com fotos e
desenhos, tem também grande destaque. Em julho de 1907, passam a editar
"Reclamações do povo". lntroduzidas por um título que resume o teor da
publicação, são sistematicamente apresentadas como uma reivindicação de um
leitor assíduo, razão pela qual, o jornal se vê mesmo na contingência de atender ao
reclamante.
"Leitor assíduo de l'Ossafolha, \'illlos pedir para a seguinte rec!alllaçc7o que não pode ser
lIIais justa e que enl'Oli'e o interesse público, exigindo portanto prontas prOl'idências. Refiro-
lIIe S,: Redator a praga terrí\'el e devastadora de fo1'111igas sOIí\'a que infesta a rua Pedl'O
Reis, na estação D,: Fl'Ontin "1>1 •
Ao contrário do público dos periódicos mais populares, os leitores da
Gazeta e de O Paiz, adjetivam a própria reclamação, podendo classificá-Ia como
justa, por envolver interesse não apenas individuaL_Alguns se vêem na contingência
de exigir providências. Em contrapartida, o do Jornal do Brasil e do Correio,
como que pede desculpas por ter que se valer do periódico para ver suas queixas,
pelo menos, divulgadas. Fica clara também a participação quase sempre indireta na
redação, ao contrário do público dos primeiros diários. A diálogo de segunda
ordem faz supor igualmente uma leitura de segunda natureza.
Esse leitor que lê com a participação de todos os seus sentidos no ato de
apreensão daquele mundo contido nos textos, atravessado por diversas linguagens
peculiares que formam, dessa forma, frases singulares, possui uma expectativa
particular de leitura e conteúdos. A ele significa mais as imagens, a chamativa
tipologia das manchetes ou, quando muito, um texto direto e objetivo.
"Escreva para aí duas tiras. Diga alguma coisa que desperte a atenção do público ... Mas,
apenas duas tiras, não mais. Esse nosso secretário, que tanto ama o Carnaval como a
Semana Santa, tem idéias, que com certeza não seriam aproveitadas para os carros das
ditas! ... Que se vai escrever el/I duas tiras 1...E imagina o nosso sorumbático secretário que
isto de dizer coisas a quem se prepara para o Carnaval- um carnaval que vai meter no
chinelo todos os passados - é tarefa que se cometa a Ul/Ihomem disposto a divertir-se? ,,(,).
Assim reclama o repórter do novo texto de O Paiz. Mesmo o carnaval
que ocupa páginas e páginas das publicações deve restringir a crônica a duas tiras.
O leitor quer informação inédita, rápida e uma reconfiguração da realidade. Mas o
carnaval fornece ainda outras indicações sobre o público.
É comum, na época, os grupos carnavalescos visitarem as redações. lndo
de prédio em prédio, os integrantes dos clubes e cordões, dançando e cantando,
prestam homenagens aos repórteres e redatores, que trabalham à noite. No dia
seguinte, nas páginas dos periódicos aparece a notícia de sua passagem.
"Quase todos osjornais desta capital são visitados nas noites de carnaval por numerosos
cordões, blocos e grupos, que, acompanlwdos de música, exibem seus cantos e danças nas
salas de redação. Ninguém pode ignorar COI/IOé sinceramente populm; digamos mesmo
nacional, o carnaval no Brasil "ó3.
Ao ler, o destinatário da mensagem cria um novo texto. A notícia de sua
dança e da saudação dirigida ao redator de plantão não é apenas o registro de sua
visita, mas a sua inserção num novo mundo, distante e, de certa forma, inatingível.
De personagem do cotidiano transforma-se em personagem da notícia.
Percebe-se nas crônicas e, sobretudo, nas cartas e colunas quase uma
obrigatoriedade no ato de ler os jornais. Ler significa estar informado sobre a
realidade. Representa a inserção no mundo, a participação nos dramas cotidianos,
na vida da cidade e na realidade mitificada por aquelas páginas. Ler, ainda que fosse
ouvindo, é estar no mundo. Através do texto fantasia-se a realidade, cria-se um
novo mundo, simbólico, reimaginado, a partir de uma apropriação particular de
mensagens.
O veículo, algumas vezes, se torna para o leitor a única possibilidade de
defesa. Algumas das simbologias que os jornais constróem, passam, assim, ao
público.
O caráter de efemeridade do produto consumido - no outro dia é
substituído ainda que por um outro semelhante - determina também uma apropriação
particular. O mundo recriado num dia é, no dia seguinte, novamente montado
através de uma nova leitura. Conseguir estar no mundo é também repetir,
sistematicamente, o ritual. Com isso o leitor estabelece uma relação de fidelidade
com o título, fazendo questão de tornar pública essa marca de sua identificação.
Nomeado explicitamente ou não, caracteriza-se como "assinante assíduo",
"constante leitor", "velho assinante". E é também em razão dessa relação diária
que pode em seu nome ou de todos os leitores de uma rua, região ou grupo se dirigir
ao jornal para pedir a sua intermediação, imprescindível, dentro da ótica transmitida,
para resolver os problemas quotidianos. Quando falham todos os esforços, não
resta ao leitor, senão, apelar para o periódico.
"Peço-lhe ofavor de pelo seu simpático jomalfazer a seguinte reclamaçâo. Há mais de três
/IIeses que peço, na repartiçâo de matas, jardins, caça e pesca. por escrito. CO/110é de praxe,
para mandar podar o ál'l'ore do que fica e/llfrente as casas 2 a e b da ma Teodoro da Silva,
fazendo sentir que pelo seu alIo capado, eSlava escangalhando a platibanda dos prédios
dondejá caiu IIIna pilastm. SI: Redato/; até hoje, apesar de ter /II{/Ildado diversos recados, a
inspetoria de matas nâo mandoufazer este serviço e só mandará, talvez, quando os prédios
estil'el'elu de todo escangalhados, com as ventanias que temfeito. Seu velho assinante João
da Sill'{/ Machado"M.
A maioria absoluta das reclamações diz respeito a queixas de caráter
privado e individuais. Ofensas sofridas dentro de estabelecimentos comerciais,
roubo no interior de residências e denúncias sobre arbitrariedades da polícia ocupam
mais espaço do que as reclamações do mundo do trabalho.
"Ofoguista do cmzodor Paraíba. SI: El'I1esto José da Silva, que veio a esta redação queixar-
se de que, lendo entrado em/.una casa da ma do Regente, depois do n. 20, ao sair da mesma
casa. encontrolllla sala/llll indil'íduo que lá lIão esla\'{{ qualldo ele elltrara e IIOIOUque do
bolso da sua calçafaltava a quantia de 2$500"ó5.
O que poderia fazer o Jornal do Brasil para que o foguista recuperasse
o que lhe fora roubado? Nada. Mas o que o motiva a procurar o jornal para tornar
público o que lhe aflige?
Com a escrita o leitor se torna ele próprio personagem da narrativa. Ao
contar o seu drama particular, a realidade transfigura-se, passando a compor um
outro mundo. Por outro lado, a carta do foguista do cruzador Paraíba revela que a
leitura é feita não de imagens interiores, mas de projeções, que tem como fim
último uma outra produção. O produto que ele consome, como tantos outros
leitores que se dirigem aos jornais para fazer suas queixas e reclamações, se
transforma num desejo de produção. Além de leitores, gostariam de ser produtores
das narrativas quotidianas, o que afinal conseguem quando se dirigem ao jornal
para relatar fatos - por absoluta impossibilidade de escrever - ou quando remetem
cartas sobre os mais variados temas.
Isso talvez explique a profusão de relatos que pedem a intermediação do
jornal para resolver questões de âmbito doméstico e também aqueles que comentam
notícias já publicadas. Valendo-se de um momento propício, motivado por uma
campanha realizada ou por uma matéria divulgada por aqueles dias, o leitor pode
denunciar os mais variados fatos. Em 1905, tomando como pretexto um fato atual
- a mOl1e de uma menor em conseqüência do espancamento sofrido pelo patrão -
um assinante de O Paiz denuncia a "selvageria praticada contra as crianças, como
um mal que "se alastrava em todo o perímetro do Rio de Janeiro e cidades vizinhas".
E pede às autoridades que olhem para um infeliz que mora a rua Marques de
Olinda, 36, nesta capital, e "para uma pobre criança em Niterói na primeira casa,
lado impar, da rua Marques de Caxias, ao passar a do Barão do Amazonas"!>6 .
As reclamações de caráter coletivo dizem respeito, principalmente, ao
mau funcionamento dos serviços: os bondes, a falta de água, a higiene das ruas, o
estado de conservação das vias públ icas, entre dezenas de outros. Vez por outra, o
mundo trabalho aparece nas queixas, denunciando-se o atraso de pagamentos, as
baixas remunerações, os maus tratos e as arbitrariedades diárias.
"As operárias da Fábrica de Tecidos Aliança queixalll-se de que, alélll de ganharelll pouco,
trabalhando elll excesso, seio ainda obrigadas a cOlllprar os artigos de que necessitalll,
gêueros, etc., elll1llUa venda elll que !Irí ullllllo//opólio elll que jigura alguélll dC/fábrica,
sendo forçadas a pagar lIIais 20% do que em outra qualquer parte. Dizelll-nos que estando
enferlllas Ihes suspeudelll o crédito na referida venda,ficaudo selll recursos, qu(///do deles
necessitalll. Meses há elll que nada têm a recebe/; sendo o salário absorl'ido nas despesas
feitas na tal l'enda,fazendo o desconto o proprietário dafábrica de acordo COIUo tal
negocial1le. Travalham das 6 horas da lIlauhei às 5'14 da (arde e percevem sOlllente 3$600
diários; raro é, porem, terelll saldo a recever de suas férias "{,I.
Durante as greves alguns desses periódicos recebem a visita de comissões,
para agradecer o apoio manifestado ou para reivindicá-Ia. Na visão daqueles
trabalhadores essa adesão significa um fortalecimento do movimento, por torná-Ia
público, visível aos olhos do restante da população ou por explicitar, através dessa
opção, que as reivindicações são justas. No Correio da Manhã são incontáveis os
exemplos. "Cerca de meia-noite fomos procurados por uma numerosa comissão de
condutores efetivos e reservas (cerca de 60), que nos vieram pedir, ainda uma vez,
amparássemos a sua causa", afirma em 9 de janeiro de 1910.
Transcrevendo muitas vezes as cartas desses trabalhadores, agradecendo
o apoio do jornal, mostram também como é visualizado por esses grupos. Ao se
tornar um aliado, realizam não uma opção ideológica, mas uma gentileza. A posição
política favorável aos trabalhadores, mesmo em periódicos oposicionistas, é vista
como uma deferência. Há, afinal, uma grande distância entre um mundo e o outro.
"Agradecemos a ilustre redação do Correio da Manhã, o seu franco apoio, em tão
justa causa, pedindo pela vossa costumada gentileza a publicação deste pelo que
nos manifestamos agradecidos"('x.
Usando uma lógica simbólica que associa cada texto a outras idéias,
imagens e significações, há nessas narrativas um suplemento de sentidos dado
exclusivamente pelo leitor e que foge completamente as regras materializadas no
escrito. O que chama a atenção nessas cartas, muito mais do que a simples
identificação do leitor, é o poder que possui os jornais no imaginário popular. Isso
faz com que mulheres escrevam para reclamar do tratamento inadequado nos
hospitais, para suplicar a dispensa do filho do serviço militar, para gritar contra a
prisão arbitrária de um membro da família. Faz também com que os detentos
procurem o periódico para tentar se livrar da prisão através dessa intercessão. O
jornal se transforma no último recurso de defesa e de proteção.
"ElltFOu-nos 011 tem pela redação a dentro mil pobre diabo, IIluito pálido, muito tremulo,
trajalldo I'estes que se grudava 110 corpo completamente.
- o S/: Redator?
- Que há?
- Vma queixa.
- Fale.
Ele puxou pela cadeira, selltou-se comodamellte efalou".
Depois de romancear a narrativa, de forma a torná-Ia, do ponto de vista
da trama construída, a mais realista possível - detalhando a aparência física do
reclamante, seu estado de espírito, a forma como estava vestido e o diálogo - o
redator relata o motivo daquela visita.
"Vinha dar queixa cOlltra a policia do 5" distrito. Sofrera violências de todo o tamallho, e
meteram-no, porfim, no xadre;., onde o desgraçado permaneceu por mais de 48 horas, sem
comel:
- Note-se que não sou eu só. Mande lá um repórter e l'erá como está aquilo o xadrez cheio e
aqueles pobres diabos a morrerem de fome".
Antes de sair, segundo o redator da coluna Reclamações, o homem deixa
uma carta, que o jornal faz questão de transcrever "com o português em que foi
redigida". ..
"Si: Redator - Os presos do 5" distrito policial pedem a V Ex. pl'Ol'idencias sobre os atos
cometidos 110 dito distrito. Há aqui presos de 5 e II dias sem dar-Ihes a míllima satisfação
deixalldo-os passarfome, pois não dão UIIIpedaço de peio. seio chamados alta noite e
apallham COlIIOcries. A fome é horrorosa e chega-se aficar doellte. Quando lun preso pede
que cOllutniquem a suafamília negam, para que não lhe possam le 1'0 r malltimentos"ó9.
Como chegar ao Chefe de Pol ícia, como tornar pública a injustiça sofrida
- o que de certa fOrlna já a minimiza - se não fosse o periódico? O jornal não apenas
intermedia as reclamações, como também arvora-se o papel de dar voz aqueles que,
em princípio, não podem tê-Ia. Mas para isso é indispensável incluir-se numa nova
categoria: a de público. Mesmo do concorrente.
"O 51: Estev({/n dos Santos Figueireclo veio ontem a esta redação e IIOSdec!al'On ter sido
preso arbitrário e injustamente, uo dia 14 do corrente, pelo delegado Meira Lima, pois não
praticou ato algnm que merecesse punição(.,), O S,: Figneiredo é um homem honesto e
trabalhadOl; empregado dos Srs. Romcio Conde e Cia., estivadores da Saúde e não é
desordeiro e amigo do alheio cOlno lhe chamou o }ol'l/al do Brasil"7/1.
Ao que parece o estivador Figueiredo é leitor do Jornal do Brasil.
Assim, para mostrar-se publicamente como uma pessoa honesta e trabalhadora é
preciso tornar explícita a injustiça através de um outro periódico. Sua prisão se
dera, fora injustiçado, e essa realidade seria minimizada, aos seus olhos, se visse
transformada a mentira, a calúnia e a arbitrariedade em letras impressas. Não pede
nada, só quer tornar público o desmentido.
Mesmo que alguns desses reclamantes não sejam habituais leitores dos
jornais - no sentido da cotidianidade - ao se dirigir ao periódico, expondo suas
idéias, estabelecem uma relação direta de leitura, de segunda ou de terceira ordem.
No dia seguinte, verificam se a sua queixa lá está, sabem se adquiriram ou não uma
voz. O periódico passa a ser parte de seu cotidiano.
"Outra esperança uão nos resta na triste expectativa em qne nos encontramos,fracos,
desprotegidos, do que a de apelarmos para a l'ossafolha, incontestavelmente a cidade em
que se encontram guarida os deserdados dafortuna necessitados de amparo".
Com esse preâmbulo começa a cal1a dirigida ao Jornal 00 Brasil pelos
ambulantes pedindo providências contra a campanha que Ihes move os comerciantes.
Apelando para a voz do jornal, acreditam, ao ter publicada a sua reclamação, na
ação efetiva da autoridade política.
"Pedimos, pois, S,: Red({/OI; o vosso anxílio nunca negado aos.fi·acos, porqnanto se ele nos
faltasse, dentro em pouco outros pequenos negociantes teriam também de I'er cair-Ihes o raio
em casa, lemndo a miséria milhares de família. É, portanto, para FOZque apelamos ainda
uma vez, emfal'Or da pobreza, ameaçada de mais IIIn injnsto monopólio que se pretende criar
e que já tem, no Conselho Municipal, defensores"".
A ação arbitrária da polícia, os espancamentos sem motivo aparente e as
prisões ilegais pontilham variadas reclamações. Numa cidade em que cria a sua face
urbana, excluindo dos lugares públicos os que nas estatísticas figuram como "sem
profissão declarada", para isso usando a coerção, essa ação contundente se
multiplica e aparece, sob forma de queixas as mais diversas.
O Correio da Manhã divide com o Jornal do Brasil a maior quantidade
de reclamações dessa natureza. Enquanto que arbitrariedades ganham destaque
nesses periódicos, os leitores de outros diários, como os da Gazeta e de O Paiz,
clamam pela a ação vigilante da autoridade policial nas ruas.
"O cego Benedito Massono Feio a esta redação queixar-se de qne anteontem, pela nlanllei,
qllando pelo costllme qlle tem, tocam o sell rea/~jo na Praça do Mercado, ofiscal ali de
selTiço obrigoll-o a retirar-se, apesar de haver exibido a licença da Prefeitllra. Esse pobre
IlOmemfoi maltratado pelofiscal qlle o insulto/! bastante e desllmanamente,faltando até com
o respeito a sllajilhinllO que o acompanha fias peregrinações qllefazpelas ruas da cidade,
atrás de fllna esmola"17.
Atingindo uma gama variada de leitores e tendo entre os de menor poder
aquisitivo os seus mais fiéis consumidores, o Jornal do Brasil, particularmente,
recebe por parte do público uma verdadeira delegação: resolver, divulgar e denunciar
os males cotidianos.
"Ontem I'eio a nossa redação lima comissão nlllllerosa de proprietários de carrinhos de mão
agradecer o qlle em slla defesa hal'Íamos escrito no Jornal do Brasil de 31 do mês próximo
passado, a respeito do projeto a/Ho\'ado pelo Conselho Mllnicipal. alltorizando o
assentamento de dez balanças para pesar veículos. A referida comissão nos fez sentir qlle, se
tal projeto,for sancionado pelo Si: Prefeito terão eles de slljeitar-se a grandes prejllíz,os,
porquanto, pelo artigo 2 só poderão transportar 300 quilos de mercadorias. o que priva de
pedir por carreta o preço que poderiam exigir se Ihesfosse concedida afaculdade de
carregarem no máximo 600 qllilos. Ao retirar-se da nossa redaçc70 a comissão levantou
entllsiásticos vil'Os ao Jornal do Brasil "73.
Recebendo em sua redação a visita desses leitores, pelos mais variados
motivos, faz questão de reafirmar sua popularidade noticiando, com destaque,
essas manifestações. Grevistas e participantes de passeatas e de atos públicos os
mais diversos têm como caminho natural os prédios dos jornais, onde manifestam
o seu apreço ou o seu desprezo pela posição assumida. Nas notícias são incontáveis
as referência aos vivas dado ao Jornal do Brasil e ao Correio da Manhã, aos
apupos dirigidos ao O Paiz, às tentativas de apedrejamento de um ou de outro.
Nas fotografias é comum a multidão à porta dos jornais lendo os boletins com as
últimas notícias que são fixadas na entrada de todos os periódicos.
Mesmo nas suas campanhas, é imperativo a afirmação da popularidade,
mostrando nas fotos e descrições textuais "a massa popular" aplaudindo suas
ações.
"EramS horas da noite. Do largo de S. Francisco de Paula e da ma Urllgllaiana
encaminham-se pela ma do Ollvidor lona grande multidão de milhares de pessoas. As gritos
de '"iva o povo', 'abaixo os exploradores', morram os trusts, 'viva a imprensa independente',
'vim o Correio da Mal/M', o povo aproximam-se de IfOssa redação. A massa popular era
compacta e enorme. Ao el/fi'entar a nossa redação, uma enorme salva de palmas e vil'as
entllsiásticos, aclamações contínuas, saudaram o Correio da Manhã, reclamando o povo a
nossa palavra"74.
Enquanto os mais diversos tipos de leitores e reclamações invadem o
Jornal do Brasil e do Correio da Manhã, em outros periódicos, como O Paiz,
é possível mesmo visualizar o leitor pelo teor das cartas publicadas e pela expectativa
contida no próprio texto. A maioria absoluta do diálogo jornal-público se estabelece
para desmentir ou comentar informações publicadas.
"Veio a esta redação o 51: 1. Leopoldino, empregado da estaçrio telegráfica da Lapa que nos
pediu a pnblicação desta carta desmentindo IlOtícia publicada 110 Imparcial: 'Escrevi a
redação [do Imparciall pedindo desmentisse cabalmente aquela rifirmativa, porquanto não
pertenço a credo algum político, por entender que os telegrafistas devem gnardar a absoluta
neutralidade. Como porém a minha carta nãofosse publicada eUIsua integra, recorro ao
vosso jornal, afim de que, uma vez por todas, fique bem patente o meuulOdo de pensar com
relação à política dos telégrafos "75.
Evidentemente, o destaque dado à carta deve-se ao seu próprio conteúdo:
com ela, O Paiz aproveita a oportunidade para criticar o adversário. Mas o leitor
se vale também das brigas entre os periódicos para divulgar aquilo que deseja,
incluindo-se, ao mesmo tempo, como sujeito daquela extensa polêmica.
O Jornal do Brasil, ao contrário de todos os outros, publica inúmeras
queixas referentes a assuntos privados: desaparecimento de pessoas, reclamações
contra vizinhos, maus tratos infringidos a menores e mulheres, etc., alocados, nos
quadros a seguir, na rubrica Outros. Já em O Paiz sobressai.o número de cartas que
se referem ao conteúdo da publicação, comentando notícias anteriormente divulgadas.
A tipologia do Correio da Manhã é extremamente semelhante a do Jornal do
Brasil, embora neste último haja uma supremacia das reclamações envolvendo a
autoridade pol icial.
Comparando-se, inicialmente, 1901 e 191/ percebe-se uma clara
supremacia das queixas envolvendo as deficiências dos serviços. Em 190 I, 58
pessoas se dirigem ao Jornal do Brasil para denunciar a ineficiência na distribuição
de água, dos serviços de transportes, clamando por iluminação pública, criticando
os capinzais e buracos que tomam conta das vias públicas, só para citar os temas
mais recorrentes. No Correio da Manhã o número também é expressivo: 48
leitores.
Sobressai, entretanto, o número dos que vão ao Jornal do Brasil para
se queixar da autoridade policial. De um total de 76 queixas envolvendo o tema
Polícia, enquanto 47 denunciam arbitrariedades, injustiças e prisões ilegais, 28
pedem a ação efetiva da autoridade policial para combater "desordeiros", "menores
infratores" ou para solicitar providências em relação a assaltos e roubos de que são
vítimas. Isso não causa nenhum estranhamento se atentarmos para a própria
vinculação política do periódico e para sua "vocação" editorial, responsável mesmo
pela escolha do leitor.
Morador dos subúrbios, das casas de cômodos, dos cortiços do centro,
entre os leitores do Jornal do Brasil estão muitos dos excluídos, sobre quem mais
veementemente se volta a ação disciplinadora da polícia.
Tudo isso reforça todas as conclusões já estabeleci das para traçar o
perfil desses leitores. Enquanto o do Jornal do Brasil tem motivos para se
queixar da autoridade policial, dos serviços prestados e, ainda que em menor
escala, das próprias condições de trabalho, o de O Paiz se serve da pena, sobretudo,
para comentar aquilo que lera nos próprios periódicos. Em todos, entretanto,
figuram, vez por outra, desmentidos sobre informações veiculadas anteriormente
por um ou por outro jornal.
Atingindo público semelhante ao do Jornal do Brasil, as reclamações
do Correio refletem, na verdade, os anseios do leitor: tal como no primeiro
periódico, 11 pessoas reclamam das condições de trabalho, 18 criticam ou solicitam
a ação da autoridade policial e a maioria absoluta (58) se queixa dos serviços
prestados. Entre essas queixas, a higiene é a recordista das reivindicações neste
item: treze pessoas denunciam as condições de higiene de extensas áreas.
Enquanto se observa identidade nas reclamações dos leitores do Correio
da Manhã e do Jornal do Brasil, percebe-se diferenças marcantes no que diz
respeito a O Paiz. No periódico de João Lage a maioria absoluta do diálogo leitor-
jornal se faz para comentar notícias publ icadas, responder a cartas divulgadas,
desmentir fatos ou opiniões registrados. Em segundo lugar, vem o item Serviços
Públicos e, tal como ocorre em outras publicações, os leitores criticam o "péssimo
estado de ruas da cidade", "o mau funcionamento dos bondes", "o horário irregular
dos trens" e, evidentemente, "a falta de água" em extensas áreas.
O silêncio em relação às condições de trabalho também sobressai em
contraposição à freqüência com que o tema faz parte do universo dos leitores do
Jornal do Brasil, em primeiro lugar, e do Correio da Manhã, em segundo. O
público do periódico de Fernando Mendes de Allpeida se vale do jornal para
denunciar atrasos no pagamento de salários (7), péssimas condições no mundo do
trabalho (7) ou para criticar os baixos salários (2). Já no Correio, nove cartas
contemplam o tema atraso de salários, enquanto duas se referem às condições de
trabalho: um empregado demitido por reclamar e um outro denunciando maus
tratos. O mundo do trabalho ainda não faz parte da preocupação direta do leitor de
O Paiz.
No final da década, o panorama pouco muda. A supremacia das
reclamações, em todos os jornais, ainda é dos serviços prestados, vindo em segundo
lugar, nos mais populares, aquelas envolvendo a autoridade policial. Percebe-se,
entretanto, a diminuição dos apelos por uma cidade limpa e higiênica, ao mesmo
tempo em que as reclamações envolvendo o mundo do trabalho pelll1aneCem nos
mesmos níveis, computando-se os números dos dois jornais mais populares, embora
passem a figurar em O Paiz e, em menor escala ainda, na Gazeta.
O leitor de O Paiz continua incessantemente enviando correspondências,
comentando o que lera ou falando da vida do próprio periódico. Em contrapartida,
nos jornais mais populares tanto os desmentidos quanto os comentários sobre as
notícias publicadas merecem cada vez menos a atenção, o que pode igualmente
denunciar uma leitura mais visual do que pormenorizada daquelas páginas.
A diferença mais marcante é a inclusão de O Paiz na categoria dos que
acolhe temas diretamente vinculados ao mundo do trabalho, ao lado de outros que
envolvem assuntos privados. Passa a intermediar favores de natureza individual,
como, por exemplo, a localização dos desaparecidos, aqui alocados na rubrica
Outros. Sobressai o fato de divulgar mais intensamente reclamações sobre a prestação
de serviços públ icos.
Todas essas diferenças, no que se refere a O Paiz, faz supor uma
ampliação do universo dos seus leitores no início dos anos 10, como também fica
patente na análise de suas páginas.
Dialogando com os jornais, uma parcela dos leitores explicita o
reconhecimento de uma situação peculiar, pal1e da sua vivência. Enxergam naquelas
páginas não apenas a possibilidade de adquirir conhecimento, tomar conhecimento
do mundo e dos acontecimentos em torno de si, mas de participar, ainda que por
via indireta, das polêmicas criadas e estimuladas pelos jornais ou apenas para se
divertir.
O mundo impresso mostra que o seu quotidiano faz parte de um todo,
onde está inserido. Reconhecendo-se a si mesmo, introjeta comportamentos
desejáveis, participa do mundo que é construído e, ao mesmo tempo, envolve
parte de sua leitura numa aura de sonho que não guarda, em princípio, relação
maior com a real idade retransfigurada em notícia. O jornal é objeto da real idade e da
fantasia, mas necessário, na medida em que cumpre um papel singular: intermediar
suas queixas e reclamações para um sujeito que para ele, leitor, sequer tinha rosto.
Esses leitores querem, portanto, não apenas ver imagens reais em suas
páginas, mas sobretudo ver a sua realidade. Analisar as matérias, que reproduzem
uma atmosfera de sonho e de realidade, pode também servir para se desvendar um
pouco mais dessa leitura.
Ao escrever o jornalista visualiza a face de seu público. Nas notícias
mais destacadas naqueles dias, não seria possível, então, identificar esse leitor e,
sobretudo, perceber como entendia nas páginas impressas os sinais ali fixados?

Um tipo de informação passa a ter cada vez mais primazia nessas


publicações: abandonando as longas digressões políticas, os jornais destacam em
manchetes, em páginas inteiras editadas com profusão de ilustração e fotografias,
aquilo que eles mesmo classificam como notas sensacionais.
Em 1908, durante várias semanas O Paiz descreve "um caso sensacional
ocorrido na Freguesia Rural de lnhaúma". O repórter no meio da narrativa, na qual
os personagens centrais são transportados da realidade para a trama, se refere
igualmente aos objetivos que deseja alcançar com o destaque dado ao "Alma Grande".
Além de possibilitar o conhecimento dos fatos, que as edições sucessivas
permite acompanhar, como se fosse mesmo um romance-folhetim, procura "guiar
a opinião através de um inquérito difícil", também adjetivado como "verdadeiro
labirinto".
"Referilllo-nos ao solitário da Terra Nova, caso do assassinato do velho Medeiros, de que
tratalllos eUIedições consecutil'as, acolllpanhando e guiando a opiniâo através de UIII
inquérito dificil, verdadeiro labirinto; e o da 1II0rte de "Muciú ", o velho relojoeiro de
Cascadura,fato que se wnserl'ou nas crônicas da polícia por IIIl1ito telllpo76.
É dessa forma que o narrador introduz um novo fato. O crime a ser
narrado agora remete a outros acontecimentos que possuem a mesma série temporal.
"O crime de que nos vamos ocupar lembra esses dois outros e com eles coincidem
seus pormenores", informa o redator antes de introduzir novos personagens na
trama.
A notícia policial se constrói alicerçada nos fatos que começam com o
crime e os anteriores que levam a ele e que não' estão necessariamente restrito
sequer àquele fato. A reportagem contém duas histórias: a do crime e a de seus
antecedentes que englobam outras notícias semelhantes.
"EIII toda a vastíssillla/i-eguesia de !nhcnílllO sefa/al'a de ulllafigurCI origillal que residia
próxilllo à estaçâo do Ralllos, lia linha estrada de Ferro Leopoldina. Essa individualidade
tão popular em o 'Alllla Grande".
Assim, o narrador conta não apenas "o que se passou efetivamente" ou
explica de que forma tomara conhecimento daqueles fatos, como também transporta
para o relato algo que de certa forma já é do conhecimento do leitor. A popularidade
da vítima, sua bondade e originalidade, destacadas no texto ao relembrar sua vida,
são elementos que justificam a narrativa. Ao mesmo tempo, ao particularizar esses
detalhes, o narrador compõe uma seqüência textual, na qual o leitor também se
visualiza.
O fato de essas notícias utilizarem sempre reduções metafóricas,
reafirmadas ao longo do texto e nos títulos curtos e diretos - no caso "Alma
Grande" " indica também a necessidade de criar o interesse pela trama, não só
através da leitura, mas do conhecimento que se poderia ter ao saber daquele
verdadeiro slogan introduzido na notícia. Com isso os jornais criam uma necessidade
de leitura também para um público eventual e diversificado.
O fato e a trama das notícias policiais mostram, assim, não apenas o que
se passou, mas evocam uma realidade, acontecimentos semelhantes que se
desenrolam na vida dos próprios leitores. Ao se perceberem na narrativa, aumentam
a identificação com o veículo que materializa suas vidas de forma romanceada.
O crime passa a ser detalhe secundário na trama. Interessa tanto ou mais
a particularização da vítima, a descrição quotidiana de sua vida, a ponnenorização
do lugar onde mora, dos seus hábitos, tudo que a transforma numa pessoa e não
apenas num personagem.
A narrativa dos acontecimentos atuais implica, por outro lado, numa
integração do leitor àquele mundo. Ao se identificar, sai de seu lugar natural (o de
leitor) e se integra ao mundo do relato, para depois voltar novamente ao seu lugar
natural. Evidentemente quando evocamos essas premissas não nos referimos a um
leitor particular ou específico, mas a uma "função" de leitor, implícita mesmo no
texto, da mesma maneira que implícita também está a função de narrador77 .
Descreve-se a situação não apenas como um mundo dos personagens,
mas de pessoas efetivamente humanas, o que faz com que haja, por vezes, na
leitura ingênua de uma parcela desse público uma identificação com os sujeitos
particularizados na narrativa.
"A noite ia emlileio, noite abafada, em que se percebia a aproximação da clllll'arada que
caia e entrou pelo dia e a noite de ontem. O ar era pesado e opaco. O I'elho estava metido na
sua toca desde que anoitecera, cal no era seu costume. Despreocupado, sabendo-se justo e por
isso nada temendo, atirava a sujeira de seu corpo, maltrapilho e cansado, sobre o leito
imundo".
A introdução com uma descrição do dia, com a identificação de elementos
de fácil comprovação para o leitor - a chuva torrencial da noite do crime, por
exemplo - apela para a veracidade da informação. A partir daí, poder-se-ia compor
o restante da atmosfera.
Como um narrador onisciente e onipresente, o jornalista recompõe a
trama, anterior ao fato principal, destacando elementos que conduzem
necessariamente à reflexão e à participação do leitor na apreensão do sentido
daquele texto. Um velho maltrapilho, cansado, num ambiente pobre e, sobretudo,
sujo, induz a uma leitura na qual os elementos emocionais são privilegiados. Na
narrativa, quase é possível visualizar o lugar em que o "Alma Grande" mora, o que
efetivamente é comprovado com a edição das fotografias ao lado do texto. Como
não sentir pena, ser ameaçado ou se transformar personagem daquela trama, como
não se revoltar se um "justo", um "Alma Grande", é também vítima das tragédias
quotidianas?
Dirigindo-se a um leitor que reconhece aquela forma como tradicional da
arte de narrar - a trama é montada em capítulos e o clímax aponta para um desfecho
previsível -, codifica-se aqueles acontecimentos em função mesmo da expectativa
desse pLlblico e ainda com o objetivo de conquistar um leitor que reconhece na
trama um mundo imaginado e real.
"N(;o eralll ainda duas horas, porém, quando o A 11110Grande se sentiu sacudido por braços
robustos. Abrill os olhos COIIIOnlllll pesadelo, lIIas lido distinguill sendo dois \'/litos indecisos
qlle se IIIOI'ialllna esCltridão intmsa do aposento. Ele não llsam IlIz. O terror paralisoll-Ihe a
línglla, lIIas logo 111110
I'OZ,COIIIacentllada rail'a, dizia-lhe:
- Onde está o dinheiro l'elllO?
- Não o tenho ... articlllou o octogenário.
- Diz o//lIIorre!
- SOIl pobre!"
Mesmo os que visualizam aquele mundo como distante, percebem nas
marcas distintivas do texto elementos que o torna próximo. A compaixão, o horror
e o medo são atitudes previsíveis em uma narrativa que apela sobretudo a valores
emocionais.
O pobre velho indefeso, num casebre sem luz, é abruptamente acordado
por dois braços robustos. O narrador coloca, lado a lado, a fragilidade e a força, a
velhice e a juventude, o terror e a raiva, ou seja, todos os elementos indispensáveis
para tornar o leitor personagem, ao se transportar para a cena do acontecimento,
ainda que aquela realidade não fosse necessariamente a sua.
Quando porém a identificação é mais presente - por morar perto, por se
sentir numa situação de inferioridade, por ser pobre e também não ter a quem
apelar - a trama se transfigura numa realidade apresentada como fantasia. Se aquele
mundo real é de sonho, a sua realidade também pode ser sonhada.
Um texto composto com esses ingredientes remete a leituras diversas:
participativa, comentada, explicitada em dias e dias seguidos, quando ainda a
composição da trama está fixada diante dos olhos do leitor ou ainda é imaginada
como verídica.
A edição fantasiosa da real idade aparece nesses textos como uma descrição
romanceada dos acontecimentos. O relato separa-se do seu produtor e insere-se no
cotidiano daqueles que dele se apropriam: o leitor. A leitura aproxima o fato
descrito, recolocando em prática uma nova proximidade, que ora suprime e ora
preserva a sua distância física ou cultural em relação àquela mensagem. E as fÓl1l1ulas
intimistas empregadas torna o leitor ainda mais personagem daquela narrativa7X •
Os fatos cotidianos descritos nessa notícias que envolvem crimes,
desastres, roubos, incêndios, enfim, as tragédias diárias, transporta para aqueles
textos um Rio de Janeiro real, composto de lugares existentes e personagens
identificáveis. A sociedade parece de tal forma contida naquelas narrativas que o
leitor tem a impressão não só de estar em contato, como também participando
dessa realidade7Y• Compondo o seu texto a partir de um mundo, o repórter gera um
novo mundo.
Esse mundo mescla o realismo e o romance. Ao leitor não basta mais a
edição fantasiosa, mas a edição fantasiosa de sua realidade. Essa é uma expectativa
cultural existente entre o público e os que jornais editorialmente se apressam em
atender.
Modificando mesmo a estrutura do texto, ou seja, a forma de composição
da escrita, os autores se adaptam às novas contingências propostas por este leitor.
Alargando a sua audiência, desenvolvendo o gosto urbano pelos periódicos,
tornando-os acessíveis do ponto de vista da descrição textual e da edição, esses
diários durante quarenta anos vão criando um público profundamente diversificado.
Ao leitor fiel e ao assinante assíduo, junta-se o leitor eventual, aquele que ainda não
possui o hábito, mas que se interessa pelos dramas e tragédias quotidianos.
Transformar esse leitor em habitual significa adaptar conteúdos às suas exigências,
para dessa forma abrir espaços para transfonnação de um texto a ser vendido como
mercadoria.
O que dá unidade a esses textos é o leitor. A sua expectativa e leituras
evocam uma narrativa única. Tanto faz as crônicas do cotidiano, notas policiais,
locais, notícias internacionais, romances folhetins, todos os textos devem conter a
mesma uniformidade.
"Abro os jornais a noite. Os jornais, 110 capítulo sensacional do crime, ainda selo o reflexo
exato da curiosidade, do horror ou da piedade dos leitores. Procuro os pormenores, a ânsia
informativa elutorno do crime da poria do teatro Phenix. Noticias reprisadas e o ar
enfadado que as reportagens tomam, quando perdeuI interesse. Nada mais. O crime
impressionou /lulamente o público. Por que 1"
A crônica de João do Rio, 'Tragédia Falha", ilustra o destaque que todos
dão ao "capítulo sensacional do crime", o que para ele reflete um sentimento ou
uma apropriação da leitura, de forma a aplacar a curiosidade, manifestar o horror
ou despertar a piedade dos leitores.
Há, entretanto, temas que não impressionam o público. Porquê se
pergunta João do Rio. O que haveria naqueles relatos que não despertariam
sentimento no momento da leitura?
Ao transpor a realidade para a narrativa, o autor das notas sensacionais
constrói, na verdade, personagens e representações arquétipas. Quando consegue
esse objetivo, faz com que a narrativa represente a existência, atingindo diretamente
o público. Não é a representação de dados concretos que produz o senso da
realidade, mas é a sugestão de uma certa generalidade que dá consistência tanto aos
dados particulares do real quanto aos mundo fictício.
"Quando quatro tiros de revólver prostraram umjOl'e/1I amoroso e da melhor sociedade, a
porta do teatro. Hal'ia um conjuuto defatores capazes de mover a multidão oito dias pelo
mellos: o acusado do assassinato era almirante, COIIIcarreira brilhante; a causa do aime
UIIWsenhora de IIm'os, imprevista e illteressantíssima. A tragédia introduzia o povo IUlm
ambiente de luxo. com palacetes, automóveis, motoristas íntimos, bailes, testamentos,
celltellas de contos - ulI/a complicada historia, CO/IIOos inumeráveis quadros dos dramas
cillematográficos em seis partes. E en tretall to, o publico leu vinte quatro horas ofato sem
comoção e o crime ficou de u/lla I'ulgaridade a/liti\'{{ ".
O público é movido tanto pelo inusitado da trama, quanto pela
participação, ainda que indireta, na vida daqueles personagens. As notas
sensacionais podem introduzir os leitores em ambientes estranhos, reconfigurar a
realidade como num conto folhetinesco ou como numa cena dos cinematógrafos.
Pode também mostrar as tragédias quotidianas próximas da realidade vivida pelo
leitor.
A leitura apreendida nos seus mais diferentes sentidos serve à
identificação de situações homólogas ou ao romanceamento do real. Identificar-se
com os personagens, significa uma apropriação do texto de forma participativa.
Transportar-se para a realidade, através da imagin.ação e do sonho, significa uma
leitura contemplativa.
"Esse crime perdeu o interesse público pela absoluta ausêllcia de elementos passiollais - pela
falta do Destino e da IlIteligência. No teatro do IIlIlndo, as platéias não apreciam a confusão
da comédia e do drama. Nos flagrantes passionais pode-se exagerar a paixão. Ocultá-Ia com
IUII disparate é atroz. Os repórteres precipitam-se. O puhlico segue-os no noticiário. D.
Sarah atral'essa a idade elll que lIIesmo as histéricas sefixalll em paixões sublimes. Os seus
últilllO.\·meses tillham sido de amor irreal, com um pobre rapaz cego de I'entura. Que
ten'Íl'eis gritos de leoa/e ria, que desespero seria ()dela!"
Buscando a edição fantasiosa, esta deve, entretanto, ser apresentada
dentro de determinados parâmetros, onde a verossimilhança é o principal deles.
Afinal o jornal não é produto onde o sonho e a imaginação encontram lugar natural.
É preciso construir todas as descrições num meio termo, onde a realidade fica
envolta numa atmosfera de sonho. Assim, os elementos passionais não podem ser
ocultados, sob pena de não despertar o interesse do leitor. Mas não é possível
exagerar nas tintas descritivas, sob pena de transportar a notícia para o lugar do
folhetim.
Compondo um texto na verdade inspirado em outro, João do Rio tenta
reproduzir e interpretar a realidade. E dentro dela sobressai a configuração que o
público tem dos diários. A falta de sentimentos verdadeiros, a identificação da
mentira nas páginas dos periódicos é, segundo o cronista, mortal.
O leitor paIiicipativo na trama deve acreditar na veracidade da narrativa,
para poder comentar o fato, querer saber dos detalhes, visualizar a emoção que
salta dos textos e aprisioná-Ia. Deve também encontrar ali juízos de valor ao lado
de exposições detalhadas, porque cabe aos periodicos orientá-Ios e guiá-Ios nas
suas opiniões.
"Esse episódio de pessoas de alta sociedade, temI/ma tal al/sêl/cia de seI/ti mel/tos
verdadeiros - ql/e é impossível acreditar ql/e ele se desse. E, se I/ãofosse o desaparecimento
de CarlosA rwíjo e Sill'a rolal/do 1/0 cova premafl/ram.enle, CO/I/Otal/tos herdeiros cl/jo mal
foi a herança, - todos nós leríamos a sensação irreal de 1/1/10 dessas histórias
CÚlel/lCItogr(ljicas, laboriosamente organizadas efalhas pela falta de convicção dos
atores"'" .
Ao produzir um texto com total "ausência de sentimentos verdadeiros",
o redator não consegue reproduzir nem personagens, nem representações arquétipas,
não despertando a curiosidade do público. A notícia não seria, em função disso,
reescrita pelo público.
Construindo textos documentos, na esteira de um naturalismo realista
que também triunfa na literatura, os diários procuram convencer e seduzir, criando
nas narrativas uma espécie de intimidade em relação ao público, um interlocutor
reconhecido e, sobretudo, identificado, que existe naquele contexto comunicativo.
A experiência da narrativa evoca uma interação discursiva permanente entre os
veículos de produção daquelas mensagens e o seu público.
As notícias policiais passam a ser, sobretudo logo após o início dos anos
10, entremeadas por pequenos subtítulos que resumem o conteúdo, motivando
para a leitura do restante do texto ou possibilitando o entendimento a partir da
visualização de breves elementos textuais.
Com o título de "Explosão Formidável", o Correio da Manhã publica
em setembro de 1912 uma reportagem que, a exemplo de tantas outras, resume o
seu conteüdo em pequenos subtítulos: "morteiro em estilhaços; um morto; mais de
trinta vítimas, a festa da Lapa dos Mercadores; como se deu o desastre; no local;
as providências; a polícia age".
Jntroduzindo o texto, como é habitual, com dados que particularizam o
ambiente físico da cidade, o repórter depois de descrever elementos de fácil
comprovação - o tempo e a movimentação nas ruas - detalha como ele e tantas
outras pessoas souberam do acontecimento.
"O domingo ontemfoi assinalado por IImformidál'el desastre,fechando osfatos da semana
com /{IlIaimensa e dolorosíssimamancha de sanglle. A noite, conqllanto o célltivesse 11m
aspecto plúmbeo e lima neblina muitíssimo tênue caísse de espaço a espaço, era animada a
cidade. Alltomóveisfonfonavam pelas ruas centrais, carros rondal'am pllxados por belos
animais e /{Ina grande multidão enchia os cinematógrafos, as demais casas de diversões, os
"bares" efazia a Al'enida 011 peramblllava pelas mas. Vm boato de incêndio qlle sUlgill foi
imediatamente desmentido: era, apenas, IIIn rebate falso. Mais tarde, cerca de 10 horas,foi a
nossa poplllação sobressaltada por uma notícia, que circuloll rapidamClfte, de //m grande
desastre, ocorrido à Praça XV de Novembro. Esta notícia, como todas as notícias de
acidentes de grande vulto, dal'{/m as proporções de unlO colossal carástrofe ao
aC011lecimento ".
Descrevendo cenas quotidianas, insere o leitor no espaço onde se desenrola
a trama, que, assim, passa a se sentir também participativo na vida da cidade. O
fato de a catástrofe ser "colossal" - por envolver vítimas e se dar num local com
muito movimento - justifica o destaque. Mas é preciso colocar o leitor na trama. A
particularização dos detalhes traz a narrativa para a realidade evocada.
Ao ler aquela notícia, o leitor imagina cada cena. Comenta o espetáculo
que manchara de sangue o fim de semana, torna-se parte integrante daquele mundo
ao tomar conhecimento ou saber detalhes do que acontecera.
Mas não basta isso. É preciso formar um juízo de valor sobre o acidente
e o jornal arvora-se no papel de ajudá-Io.
"Infelizmente confirmarmn-se as IlOvas qlle se espalha;:am (...). Cabe a Pr~feitura, talvez, o
maior qllinlião de responsabilidade pelo sucedido, por não fazer cllmprir o lançamento de
fogos de artificio dentro do perímetro IIrballo. Ainda mesmo qlle a mllnicipalidade houvesse
consentido o selllançamento, nrio se compreende qlle tais licenças sejam feitas, sem a mel10r
fiscalização aos que q/lei/llalll os fogos e aos engenhos de pirotécnica qlle vão ser
empregados".
A introdução explícita desse juízo de valor faz supor também uma leitura
que se estrutura além da constatação do fato. Ao leitor cabe expressar opinião
ainda que direcionada pelo periódico, embora essa condução fosse apresentada
como natural e até mesmo naturalizada.
"Col/lodissel/los acima, já havial/l sido detollados militas Illorteiros. Às 9 e IIleia da Iloite
devia ser illcelldiado //m, de mais de Illeio Illetro de altllra, grosso. Este era o maisforte de
todos, talvez o qlle mais se assemelhasse aos tiros dos callhões de grosso calibre do Millas
Gerais. As reclal/laçõesjá se al'ohllllaram, porqllallto, os peqllellos morteiros, os melloresjá
haviam sido tão forte qlle os estampidos prodllziram a qllebra de vidros das caSI/S das
proximidades ".
Depois de detalhar cada passo daquela meia hora que antecede à explosão,
continua: "ao que parece o pavio da bomba incendiou-se ainda dentro da peça e ela
explodiu junto com a pólvora. O grande cilindro foi fracionado em mil pedaços.
Estes vitimaram dezenas de pessoas"~1 .
Evocando uma estratégia que enfoca valores individuais como coletivos,
esses textos exercem a função de legitimar produtos simbólicos, assumindo dessa
forma sua configuração discursiva. A publicação de temas do âmbito do privado,
como se fosse de toda a sociedade, o estímulo à opinião pública são instrumentos
de que os periódicos se valem para capturar o poder. Que sentimentos provoca
essa obra nos seus leitores?
Escrevendo aos jornais para comentar as notícias adjetivadas como os
"crimes de sensação", os leitores tomam partido do criminoso ou da vítima,
expressando sua solidariedade ou repulsa ao noticiário. Julgando ou inocentando,
assumem muitas vezes a posição de juiz na trama relatada, o que é incentivado
pelo periódico.
Emjulho de 1913, a grande sensação, motivo de conversas nas ruas, nos
cafés, nos transportes coletivos é a "hedionda tragédia da Rua Fluminense". O
Correio da Manhã publica durante todo o mês, sob a rubrica "os crimes de
sensação", o desenrolar daquele acontecimento que começa com o assassinato e
continua com todos os passos dados pela polícia para localizar os criminosos.
Na matéria ilustrada com seis fotos - mostrando as janelas da água furtada
por onde entrou o assassino, o seu trajeto por um terreno baldio, a casa onde
estava a mulher que ouve o grito das vítimas e até mesmo o cachorro bull-dog que
é amarrado pelo criminoso antes da tragédia - todos os detalhes são apresentados
de tal forma que a realidade transforma-se em fantasia.
Cada novo fato é acrescentado, no dia posterior, numa nova narrativa.
As últimas diligências policiais e a descoberta de uma camisa ensangüentada, nos
dias que se seguem, introduzem outros elementos àquele enredo, como se os
crimes de sensação fossem, do ponto de vista da composição, uma obra fantasiosa
da real idade.
Mas os dramas, descrições detalhadas, diálogos, testemunhas oculares
transportam a narrativa para o real, ainda que envolta numa atmosfera que induz ao
seu romanceamento.
o desvendamento do caso introduz todos os elementos e ingredientes
das narrativas folhetinescas. "Augusto Henriques confessa finalmente ter
assassinado Adolfo Freire, a mando de Maria Antonia. O jardineiro vendeu-se por
10:000$ prometidos pela companheira da vítima". E continua: "Apesar das
acusações que lhe faz o assassino, Maria Antonia persiste em negar a sua
cumpl icidade".
Nos dias que se seguem o jornal publica novos capítulos, com novos
fatos sobre esse crime de sensação. Na edição de IO de julho edita, com destaque,
a foto de "uma aglomeração de populares em frente ao Correio da Manhã lendo um
boletim". Na fotografia, em torno de 20 pessoas, espremidas uma ao lado da outra,
lêem um texto afixado à porta do periódico.
Essa leitura, coletiva, realizada apressadamente entre um lugar e outro,
ao passar e ver algo que chama a atenção, pressupõe igualmente uma participação
de variados leitores nas opiniões suscitadas pela notícia, ali mesmo, ao se discutir
as últimas informações, ainda no calor dos acontecimentos.
O jornal toma partido dos personagens da trama. Mas nem sempre o
leitor assume posição homóloga. Embora reafirme que "em geral o povo obedece as
impressões que lhe são transmitidas e não ao raciocínio", o Correio desmente sua
própria afirmação, provando que, nem sempre, um desejo se torna realidade. O
leitor forma - a par de uma nítido processo de orientação existente em todas as
notícias - sua própria opinião.
Segundo o jornal, "deixando-se empolgar inconscientemente pela obra
terrível de quem se oculta no anonimato", dezenas deles escrevem cartas manuscritas
ou dati logra fadas para atacar o irmão da vítima, que, apesar de não figurar na
notícia como mandante do crime, aparece como culpado aos olhos desses leitores.
O que os leva, mesmo com todos os esforços do Correio da Manhã em
imputar o crime à companheira da vítima, a formarem outra opinião?
No instante em que desviam os olhos do texto, analisam o conteúdo
impresso, relacionando-o a suas próprias vivências'e discutem as informações com
outras pessoas, podem formar e formam juízos de valor opostos àqueles desejados
pelo jornal. A leitura que esses leitores fazem é profundamente diversa do texto
que ali está impresso.
"Temos recebido dezenas de carlas sobre o crime da ma FlumineJlse, umas manuscritas e
outras escritas à máquina, em quase todas elas, que tem uma procedência igual, existe
senlpre o intuito de atacar o S,: Joaquim Freire. Felizmente, nrio se deixam ir pela ouda
pCll'Ol'osaos homens de critério como se nrio deixaram arrastar por ela, aqueles que tem
procedido as investigações policiais"81.
Criando um mundo simbólico e imaginado, sentindo-se participativos
numa realidade mitificada, os leitores ao mesmo tempo em que se informam sobre
o mundo, a partir da leitura, estabelecem uma relação direta com o periódico.
Naquelas leituras todas as suas emoções estão presentes. As notícias
despertam o fascínio, a dor, a volúpia. Produzem também inquietação, medo, a
concordância ou sentimento oposto.
A própria constituição de uma narrativa, que introduz no seu desenrolar
um elemento suspensivo, favorece essa verdadeira relação fetichista do leitor com
o texto.
"/-lá indivíduos no nosso meio social, cnja perversidade chega a tal ponto que parece a de
verdadeiros selvagens. Mas, as vezes, praticam eles tais atos, que os próprios selvagens se o
presenciassem com riam de I'ergonl/{{ ou timriam dele I/nla cruell'ingança. Está neste caso
Antôn;o}osé Dias".
Com este nariz de cera opinativo e orientador, o Correio da Manhã
inicia um texto, cujo título "Criança mártir" indica, mais uma vez, a opinião a ser
formada em relação àqueles que procedem de forma semelhante.
Reproduzindo uma situação comum - as queixas e reclamações mostram
o quanto os castigos corporais impostos às crianças atingem diretamente o leitor,
provocando sentimentos de revolta, comiseração, ódio e vingança -, o texto pinta
em cores fortes aquela tragédia.
A foto, mostrando as costas nuas com o corpo lanhado pelo chicote, traz
aquele fato para uma realidade, pel1encente também ao leitor. O texto se refere a
um espaço cultural onde ele está inserido. Ao reconstruirmos a forma de
compreensão da narrativa, reconstruímos o seu mundo e a sua leitura. Nesse texto,
como em tantos outros, está expresso o horror que a violência suscita ou a
proximidade desse público com formas semelhantes de violência. As suas visões
de mundo não podem igualmente ser recuperadas por estes textos?
"A polícia do 9" distrito recebeu há dias, denlÍncia de que ele, que vive C/lnasiado comnma
mulher a qual tem Ulna interessantejilha, Durvalina, espancava esta tão cruelmente, qne a
vizinhança de sua casa, a rua da Paz, já estava disposta a tomar conta desse ato de
selvageria. A vista disso, as autoridades policiais agir(//n imediatall/ente e prenderam o
bárbaro, que foi levado para a delegacia e ali al/fuado ".
Na confissão de Dias, o público identifica a frieza e a barbaridade, visualiza
a situação e o sofrimento da criança e sente, a partir daquela leitura, emoção.
Comenta o fato com outros, assume uma posição diante da narrativa ou
simplesmente passa os olhos pelo texto sem entender muito claramente os sinais
daquelas páginas.
Variadas leituras e variadas formas de olhar. Olhar um mundo real,
materializado em fragmentos escritos que recompõem não um mundo, mas uma
forma de olhar.
"Dias conj'essou,fi'iamente o ato de barbaridade que habitualmente praticava com a menina,
que apenas conta uni mIO e meses de idade. A amásia de Antônio José Dias logo que soube
que a polícia vinha a sua procura.fugill para lugar que (/polícia ainda nrio conseguiu
descobriJ: Chama-se ela Adelina de Meio Campos. Disse-nos o comissário Chm'es que não se
hm'ia ainda disposto a prendê-Ia temendo prevê perturbaçrio na sa/Íc/e da amásia de Dias,
porque ela se acha em estado interessaute. Pela nossa gravura, podem os leitores avaliar o
estado em que ficou a pobre petiza, com o COlpOtodo cortado a piuguelim. Ontem vimo-Ia na
delegacia, no colo de uma preta. Tinhafebre alta e estava arquejante, demonstrando sofrer
muito".
Certamente cada uma dessas narrativas, compostas num tempo com
outras vivências, outras vidas, outros personagens induz a pensar que esses textos
sào dirigidos a pessoas, a leitores profundamente diversos, com vivências
quotidianas particulares e leituras entendidas nos limites dessa mesma vivência.
Recuperar esse mundo a partir de uma leitura é possível. Mas isto é uma
outra tarefa.
Nesses textos amarelecido pelo tempo, falando de personagens, algumas
vezes de fácil reconhecimento, procurou-se tão somente refletir sobre um mundo.
Um mundo que é percebido, às vezes, sob a forma de leitura.
Em poucas palavras, com poucas palavras reconfigura-se a realidade.
Cria-se uma expectativa e necessidade para que aqueles dramas cotidianos passem
a compor um cenário também inerente à vida do leitor. E para isso não há limites.
"Para servir escândalos aos leitores,jal/wis deveriam os jornais se imisCllir emfatos da
I'ida privada. E quando esses escândalos avultam de I/lOdo tal que não é mais possível
escondê-Ias, ainda assim del'eriam ser tratados com relativa resen'a. Custa a crer que haja
jornalistas que desta linha se aj'astem por gosto e necessidade de escândalo 011 por
pelversidade. "83.
Na sua crítica de produtor de discursos e, ao mesmo tempo, de leitor
assíduo, o literato abomina os processos do jornalismo que procuram, sobretudo,
criar a necessidade do público, despertando sua curiosidade e atenção para dramas
e tragédias do cotidiano.
Criando uma realidade desejável também por contraponto, no instante
em que editam essas notícias, os jornais induzem os leitores a comportamentos
desejáveis e dentro de normas específicas. Os erros cometidos por aqueles que
saem da esfera da ordem não devem ser repetidos, ainda mais quando os exemplos
das conseqüências dessa conduta são dramáticos.
Com a introdução da realidade, ainda que romanceada, naquelas páginas
promove-se, em certa medida, uma desacralização da palavra impressa, preparando
terreno para uma leitura mais extensiva. Os textos devem ser apreendidos como
mercadorias, vendidas por aquelas fábricas de notícias para leitores reais que
precisam, mesmo sem saber ao certo, cada vez mais daquele tipo de mensagem.
Notas:
1"lluSlrações repugnantes". In: O Paiz, 2 novo 1916, p. 2
2 ·'Dia·'. In: O Paiz. 1I lá 1905, p. S ; "A primeira pedra". In: O Paiz, 8 maio 1904, p.1 e "Um
monumento". O Paiz, I mar. 1905, p. I e O Paiz, I ou!. 1910, p. I. O Paiz muda de forma improvisada,
ainda com o prédio da Avenida Central em construção, em novembro de 1904. Inicialmente somente a
redação,mascom aconclusão dasobras, emjaneiro de 1905, asolicinas e aadministração também mudam
para o edifício na esquina com rua Sete de Sctembro.
30 Paiz, I ou!. 1910, p. I.
4"0 Jornal do Brasil atual". In: Jornal do Brasil, I jan. 1902, p. I.
S O Paiz, I ou!. 1910, p. I e "Ontem, hoje e amanhã".ln: Gazcta de Notícias, 4 jul. 1907, p.

6 "Ontem, hoje e amanhã". In: Gazeta de Notícias, 4 jul. 1907, p. 3 e S jul. 1907, p. I.
7Jornal do Brasil, 3 abr. 1900, p. I.
8Gazeta de Notícias, 2 ago. 1907, p. 2.
9"A quadrilha da morte, um júri de sensação. O julgamento de Rocca e Leopoldina. O grandc
sucesso da Gazeta. Três edições". In: Gazeta de Notícias, 6 dez. 1912, p. I.
10"0 Jornal do Brasil atual". In: Jornal do Brasil, I jan. 190I, p. I.
110 Paiz, 16mai. 1914, p. 2.
12 "Os processos do jornalismo". In: O Paiz, 26 jun. 1914, p. I.
Il'O Paiz nos subúrbios". In: O Paiz, 20, 21 e 28 mar. 1906, p. 1
140 Paiz, 11 fev. 1906, p. S.
ISGazeta de Notícias, I se!. 1907. "Cinematógrafo", p. I. Citado por Magalhães JÚnior., op.
ci!., 1978, p. n
16 Netlo, op. ci!., 1977, p. 21,67 e 70. Chama-se "retrancar" a identificação nccessária à
paginação que é indicada em cada texto: a página que irá ocupar, o tipo de ilustração que receberá, a
rubrica onde ficarei localizada, entre outras.
17Carta de Hidelbrando Mello Pedra a Coelho Neto, s.d., op. ci!., 19.)8, p. 346-7. Fizemos
questão de manter a graria com todos os erros ortogrMicos encontrados no original.
18Barthes, O rumor da língua. Lisboa: Edições Setenta, 1987, p. 27-29.
19Darnton, "História da leitura". In: BURKE, Peter (org.). A escrita da história - novas
perspectivas. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1992, p. 218.
20"0 popularíssimo·'. In: Jornal do Brasil, 15 novo 1900, p. 2.
21 Baneto. Vida e morte eleGonzaga eleSá, Rio eleJaneiro: Ediouro, S.eI.,p. 34.
22Rio, João do. "OS trabalhadores de cstiva". In: A alma encantadora das ruas. Rio de Janciro:
Secretaria Municipal de Cultura. 1987, p. 107.
23Netlo, op. ci!., p. 11.
24Neto, Coelho. Palestras elaTarde. Rio de Janeiro: Garnier, 1911, p. 67.
25Cardim, op. ci!., 1978, p. 121.
26Carta do deputado Rodolfo Paixão. In: O Paiz. 22 ou!. 1904, p. I.
270 Paiz, I jun. 1914, p. 2.
28Netto, op. ci!.. p. 51.
29lbidem. p. 10-11.
30 Gazeta de Notícias, 5 fev. 1907, p. 2 e 27 ou!. 1907, p. 4.
31"Concurso especial para moças". In: O Paiz. 3 abr. 1906, p, 2 e 4.
32BRAGA, Rubem. "Porque sempre simpatizei com o Jornal do Commercio". In:Jornal do
Commercio,op, ci!., 1977, p, 8.
33"Queixas do Povo", In: Jornal do Brasil, 15 nov, 1900, p. 2.
34 Rio, "As mulheres mendigas". In: op. ci!.. 1987, p. 127.
35 O Paiz, 22 e 23 jul. 1914, p, 2.
36Jornal do Brasil, 9 novo 1903, p. 2.
37Ricoeur, Paul. Teoria da interpretação. Lishoa: Edições 70, s.d., p. 38-39.
38 O Paiz.janeiro de 1907. Cf.também "Página franca", nas edições de domingo, a partir
de 3 abr. 1906 e O Paiz, 26 fev. 1906, p. 2.
39Carta de um primeiro tenenle professor da Escola Militar, por ocasião do incêndio, In: O
Paiz, 9 ago. 1917, p, 2.
40"Jornais de crianças", In: O Paiz, 29 se!. 1917, p. I.
41 Ricoeur. op, ci!., passim. Para Ricoeur os gêneros literários nada mais são do que expedientes
generalivos para produzir o discurso, Antes de serem classificatórios, são para o discurso regras técnicas
que presidem a sua produção e o estilo de uma obra. O que distingue o pensamento de Ricoeur de outras
análises semio-linguísticas, é o fato de que para ele toda a explicação se enraíza numa compreensão
prévia ou experiência de mundo, onde rica visível a familiaridade com a prática lingüística da poesia ou
da narração. Cf.também A metáfora viva. Porto: Editora Rés, 1981
42 É mais uma vez Paul Ricoeur que trabalha com essa noção de "autonomia semântica". A
inscrição do texto num código torna-se, segundo ele, sinônimo de autonomia semântica, resultando
numa desconexão da intenção mental do autor em relação ao significado verbal, ou seja, do que o aulor
quis dizer ao que o tcxto significa, A significação, no momento de apreensão do texto, interessa mais do
que o que o autor quis dizer quando o escreveu.
H'Morreu lendo o jornal", In: Gazeta de Notícias, 5 jan, 1907. p.l
44Correio da Manhã, 14 ou!. 1902, p. 2.
45Em 8 de abril de 1906, O Paiz lançaria o seu "Concurso da moda". distribuindo 250$000
em prêmios semanais, a quem fosse sorteado entre os que enviassem a resposta em um cupom impresso
no próprio jornal. Em I de janeiro do ano seguinte, realizou o sorteio do Prêmio de Ano Bom: um
automóvel. A assinatura da folha daria direito ao "recebime'nto diário, ao sorteio de Natal, em que serão
distribuídos 400 relógios de algibeira e ao Automóvel". O Paiz, 8 abr. 1906, p. I e I ou!. 1906, p, 1
460 Paiz, 19 abr. 1906. p. I e 1 No mês seguinte, pagam o segundo seguro ao irmão de
Lourenço Bento Cardoso, vítima de um desastreem Santa Cruz. O leitor é "um pobre operário que vivia
de seu honrado trabalho num estado de pobreza de que dá idéia perfeita a casa em que morava". A foto,
onde a viúva, uma preta velha, estáà porta de uma casade pauà pique, dá a dimensão exata do que ojornal
diz. O Paiz, 19 mai.1906, p. I e 1
47Barreto, Lima. Diário do hospício. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, 1993,

48Rio,op.ci!.,1987,p.161-162.
49Jornal do Brasil, 6 novo 1900, p. 1
50BRASIL. Ministério da Agricultura e Indüstria. Diretoria Geral de Estatística.
Recenseamento do Brasil realizado em I seI. 1920; introdução, resumo histórico dos inquéritos
censitários realizados no Brasil. Rio de Janeiro, 1922, vol. I.
51 Freadman e Miller. op. cil., 1994, p. 250-272. Paul Ricoeur, por exemplo, tenta construir
uma teoria da literalllra apoiando-se na fenomenologia do ato de ler e na estética da recepção, pensando
a efetivação do texto e a leitura como condições indispensáveis para revelar as possibilidades semânticas
e para que o trabalho de refiguração da experiência se realize. Compreender a apropriação do texto, para
Ricoeur, é uma mediação necessária à constituição do próprio texto e à compreensão de si mesmo.
52WHITE, Hayden. Tropics 01' discourse: essays in cultural criticism. Baltimore: The Johns
Hopkins University Press, 1978, p. 99-110.
53Também o nümero de funcionários püblieos e empregados nas indüstrias dobra no período
passando de 17.989 para 334.921, no primeiro caso, e de 54.520 para 101550 no segundo. Os empregados
no comércio também apresentam um pequeno acréscimo: passam de 48.048, em 1890, para 62.062, em
1906. Mas o maior crescimento relativo fica com os profissionais liberais, que de 1589 passam a ser
12.050, em 1906.
540 Decreto 434 de I jun. 1903 divide o território do Rio de Janeiro em duas zonas (urbana
e suburbana). A urbana é constituída de 18 distritos e a suburbana por sete. BRASIL. Recenseamento
realizado em 20 seI. 1906. Rio de Janeiro: Or. de Estatística, 1907, p. 21 citado por Lobo, op. cil., Vol.
11, 1978, p. 828.
55Em 1906, 619.648 pessoas estão concentradas nos distritos urbanos, enquanto 185.687
nos rurais. Em relação aos primeiros, a área central, composta dos distritos da Candelcíria, São José,
Santa Rita, Sacramento, Santana, Santo Antonio, possui 241.197 habitantes. Já nos distritos suhurbanos
de Engenho Novo, São Cristóvão, Engenho Velho, Andarai, Tijuca e Méier moram 258.607 pessoas.
Nos distritos rurais, o maior contingente populacional encontra-se em Inhaüma - 68.557 -, que no caso
da quantificação realizada, considerou-se como subürbio. Lobo, op. cil., p. 828.
56Eduardo Silva estudou especificamente em relação ao Jornal do Brasil a coluna Oueixas do
Povo. Com objetivo fundamentalmente diverso - apreender o nível de cidadania da população, a partir
de valores e comportamentos expressos nessa coluna - o autor analisa durame o mês de abril dos anos
1900, 1905 e 1910 essas queixas, do ponto de vista do seu emissor (categoria sócio-profissional,
origem da queixa), temática envolvida, natureza (se individual ou em grupo). op. cil., 1988.
570 Paiz, 24 abr. 1914, p. 2.
58 Barbosa, op. cil., 1991, p. 177-181.
59Correio da Manhã, 8 mai 1910, p. 8.
60Gazeta de Notícias, 2jan. 1907, p.1 Através da campanha "O Natal das Crianças", que se
inicia em novembro pedem aos leitores doações de brinquedos a serem sOt1eados, como em 1907, quando
anunciam o "sorteio de mais de 200 brinquedos".
6l"Formigas formam panelas em plena rua. Reclamação justa". In: Gazeta de Notícias, lago.

620 Paiz, 25 fev. 1908, p. 4.


630 Paiz, 20 fev, 1916, p. I.
64Gazeta de Notícias, 60ul. 1908, p. 4.
65Jornal do Brasil, 8 seI. 1901, p. 2.
660ucixase Reclamações.ln: O Paiz, 221'ev. 1905, p. 2.
67 Oueixas do Povo. In: Jornal do Brasil, 8 seI. 1901, p. 2.
68 "Greve'! A Light e a Jardim, desmentidos". In: Correio da Manhã, 9 jan. 1910, p. 5 e 15jan.
1912, p. 2.
69 Correio da Manhã, 12 abr. 1912, p. 2.
70Correio da Manhã, 24 jun. 1902, p. 4.
71Jornal do Brasil, 100ul.1901,p.I.
nCorreio da Manhã. 70ul. 1910, p. 2.
73"Carrocinhas de mão. Reclamação dos interessados". In: Jornal do Brasil. 3 novo 190I, p. 4.
74Correio da Manhã, 15jul. 1913, p. 3-
750 Paiz, 2 jun. 1913, p. 3-
76"0 Alma Grande". In: O Paiz. 6 jan. 1908. p. 2.
77 Todorov é.mais uma vez. quem trabalha com essanoção de "função de leilor". Segundo ele,
essa função estaria inscrita no próprio texto, com a mesma precisão dos movimentos dos personagens.
Ao interpretar a leitura. ao seapropriar das mensagensde forma diferenciada ou simplesmente. como diz
Todorov. ao proceder uma interpretação, o leitor sairia do mundo dos personagens e voltaria ao seu
lugarnatural.lbidem. p. 150-1.)1.
78Na suateoria da interpretação Ricoeur chama a atenção parao fato de fazer parte da significação
do texlo estar aberto a um número indefinido de leitores e por extensão de inlerpretações. A leitura, como
um fenõmeno social. obedece a certos padrões e sofre limitações específicas. Um texto. em princípio,
seria dirigido àqueles que poderiam reter a sua mensagem. mas é preciso estar alento ao falo de a obra
criar ela mesma seupúblico, alargando o círculo da comunicação e iniciando novos modos decomunicação.
Ibidem, p. 42-43-
79Antonio Candido classifica como "redução estruturar, o processo pelo qual a realidade do
mundo e do ser se torna na narrativa parte de uma estrutura literária que pode ser estudada em si mesmo
de modo autônomo. op. cil., 1994.
80"Tragédia falha". In: O Paiz, 2 dez. 1916, p.1.
81"Uma Explosão formidável". In: Correio da Manhã, 9 seI. 1912, p. I.
82Correio da Manhã, edições de 1-10 julho de 1913-
83"Excessos do jornalismo". In: Correio da Manhã, 3 dez. 1912. p. I.
Fim. Chegamos ao fim. O que dizer nessas considerações
finais? Reafirmar cada conclusão já explicitada ao longo do texto ou
simplesmente fazer uma digressão, até meio poética, que ressalte
sobretudo o "prazer do texto". O prazer que foi pesquisar sobre
outras vidas, outras épocas e que nos traz, sobretudo, para épocas
presentes.
Essa idéia inicial nos remete imediatamente a um ponto que
é central para todo pesquisador. A escrita é também produto de uma
tradição e o pesquisador, como um escritor, também se dirige a um
público que espera reconhecer no seu texto as formas tradicionais
da arte de narrar. Sendo assim, essas linhas finais devem obedecer
a critérios determinados previamente. Ao pesquisador cabe concluir.
Mas nenhuma nan'ativa foge às reinvenções construídas pelo
próprio autor. Até a escolha do tema remete a uma subjetividade
que coloca o autor no centro da questão. Por que se preocupar com
a imprensa do Rio de Janeiro na virada do XIX para o XX e ao longo
dos primeiros vinte anos desse século? Por que querer saber que
imagem os jornalistas faziam deles mesmos, como se sentiam
enquanto sujeitos reais do seu tempo, inscritos naquele mundo? Por
que tentar desvendar formas de leituras e leituras?
Por variados motivos e também porque cada uma dessas
respostas nos remete ao presente. Só entendendo como se deu a
configuração dos jornais empresas, naquele tempo longínquo, pode-
se compreender construções ainda hoje presentes no jornalismo. O
poder dos meios de comunicação é também uma construção histórica.
Também a imagem do jornalista como alguém privilegiado,
por deter a possibilidade de informar em primeira mão e de estar em
contato direto com as instâncias políticas - o que fazia com que, por
exemplo, na década de 60 as portas se abrissem imediatamente para
o jornal ista da Revista Manchete e hoje o mesmo se dá com o da
TV. Globo - deve ser entendida nos limites de um longo processo
que, sem dúvida, começa com a construção das empresas jornalísticas
a partir dos anos 1880.
Como entender que a questão da "verdade", da
"imparcialidade" e da "neutralidade" seja preocupação tão presente
e tão diária na imprensa, a não ser vendo o processo de construção
dessas premissas na própria configuração do jornalismo?
A variadas maneiras de se fazer história e sua própria forma
narrativa assume um aspecto ou outro em função de como a trama
foi engendrada e dos objetivos do historiador. A obra do historiador
pode ser diacrânica ou processual por natureza, salientando a
mudança e a transformação no processo histórico. Pode também
ser sincrânica ou estática, acentuando o fato na continuidade
estrutural. O historiador pode achar que sua tarefa é evocar o espírito
de uma época passada ou acreditar que lhe cabe sondar o que está
por detrás dos acontecimentos a fim de revelar "leis" ou "princípios"
de urna época. Alguns historiadores consideram que sua obra é
fundamental para o entendimento dos problemas e conflitos sociais
existentes. Outros eliminam essas preocupações presentistas e tentam
determinar em que medida aquele período do passado diferia do
seu.
Qualquer que seja a relação do historiador com o seu objeto
não se pode eliminar o sujeito histórico, que reconstrói aquele tempo,
da própria natureza do que foi escrito. A vivência, a subjetividade e
as visões de mundo do narrador do presente estão também contidas
naquela história.
White disse certa vez que, para ele, a diferença entre história
e ficção é o que historiador "acha" suas estórias, ao passo que o
ficcionista "inventa" as suas. Mas não é só isso: o grau de "invenção"
também tem relevante papel na tarefa do historiadorl .
Ao escolher durante todo o tempo - selecionando fatos,
idéias, palavras, tramas -, ao encadear o seu texto de urna forma ou
de outra, ao narrar, o historiador - por mais que se cerce de elementos
teóricos e metodológicos - está também "inventando" a sua história.
Não há objetividade possível numa tarefa que também é criativa.
E é isso que dá ainda mais um caráter especial à história.
Outras vidas, outros tempos ressurgem das cinzas e ganham corpo
e alma pelas mãos do historiador.
Foi assim com esta pesquisa. Partimos de algumas hipóteses
básicas, escolhemos um método - recuperar essa história através do
desvendamento do circuito da comunicação - e chegamos ao fim.
As profundas mudanças estruturais por que passaram os
jornais diários do Rio de Janeiro, a partir de 1880, buscavam não
apenas novos leitores - o que afinal conseguiram - mas sobretudo
introduzir uma nova leitura que atendia a expectativa cultural de um
público mais amplo para quem, até então, aqueles jornais não eram
familiares.
Assim sendo, as modificações técnicas e editoriais e da
própria natureza das empresas, que se organizaram em moldes
capitalistas, não podem ser explicadas - como muitas vezes já o
foram - exclusivamente como uma decorrência "natural" da
importação de padrões estrangeiros ou ainda em função de uma
necessidade exclusivamente de natureza econômica. Queria-se com
esse novo jornalismo atender ao público e para isso a imprensa
multiplicou as mensagens dentro dos padrões culturais desse novo
leitor.
A edição fantasiosa da realidade fazia parte do conteúdo
dessas publicações, seja nas notícias de maneira geral, seja na
transfiguração das notas sensacionais e, até mesmo, das polêmicas
sob a forma de romances-folhetim. Os acontecimentos, as
desavenças e lutas dos periódicos eram apresentados em capítulos.
A par disso, solicitavam a todo o instante a participação no leitor no
processo da comunicação. Os jornais passaram a ser feito também
para o público.
Isso nos leva diretamente a mai prazeirosa de todas as
constatações e de toda a fase da pesquisa. Descobrir o público,
conversar com os leitores, saber o que pensavam, como viam aquelas
páginas impressas por aqueles dias. O que era o jornal para esse
leitor, o que esperava daquelas linhas impressas? Quem era esse
leitor?
Sempre foi uma constatação, o pouco poder de difusão
desses impressos. Argumentou-se, repetidas vezes, que o fato de
existir na cidade do Rio de Janeiro um maioria analfabeta justificava
a afirmação de que esses periódicos tinham uma circulação restrita.
Olhando para esses impressos de outra forma - recuperando o leitor
no e a partir do texto - colocamos por terra não apenas essa afirmação,
como também chegamos a visualizar o rosto desse leitor do passado:
através da sua leitura, muitas vezes mais auditiva do que visual, e
outras tantas, através de uma leitura que visualizava cenas ilustradas
a bico de pena e, mais tarde, realisticamente traduzi das pelas
fotografias.
Havia leitores, leitores variados, alguns de primeira natureza.
A maioria absoluta de segunda ou de terceira natureza. A leitura era
comentada, trazia variados sentimentos. Podiam visualizar naquelas
páginas a alegria, a emoção, a dor, a repulsa, a revolta, a raiva, a
pena, a compaixão. Os personagens, agora retransfigurados em
notícias, eram pessoas, como ele, leitor. Podiam também não se
interessar pela trama, passar os olhos e si mplesmente relegar a notícia
ao esquecimento. Rescrevê-Ia ou não.
Para isso o jornal mostrava, sobretudo, um mundo real. Um
mundo muitas vezes desconhecido, mas nem por isso menos palpável.
Um mundo real, ainda que muitas vezes transformado em edição
fantasiosa. Os relatos eram, sobretudo, enredos a serem seguidos,
que o colocavam no mundo.
A constatação de que esses periódicos, notadamente os mais
populares, onde o Jornal do Brasil se inclui com destaque, atingia
uma gama de público a princípio impensável, como os prisioneiros,
as mulheres, os trabalhadores nas fábricas, no pequeno comércio,
nas ruas - ou seja, os "excluídos" da história2 - remeteu-nos também
às formas de leitura.
Lia-se nos bondes e nos trens, lia-se em voz alta em torno
dos ambientes fechados do lar, lia-se em voz alta nos ambientes do
trabalho, lia-se nas horas roubadas do dia. Lia-se também porque
aquelas notícias eram comentadas, repetidas, recontadas. Lia-se no
instante em que se recortava o folhetim para guardar. Lia-se no alto
dos tablados da construção civil, a um canto, solitário, na hora do
almoço. Em grupo no meio da praça. Nas portas dos jornais, onde se
afixavam as notícias com as últimas informações. A leitura era uma
forma de estar no mundo. Um mundo que mudava, com uma
velocidade nunca vista até aqueles dias.
Lia-se também nos hospícios e nos presídios. Variadas
leituras e variadas apropriações das mensagens. Para muitos, o jornal
era o único intermediário possível entre o seu cotidiano de lutas e
misérias e aqueles que poderiam, se assim quisessem, mudar a
realidade.
Não seria possível supor que, de repente, já no final dos
anos 1920 houvesse a formação dos primeiros conglomerados de
imprensa e até mesmo recordar o que seria a imprensa já no decorrer
dos anos 1930, se esse público não tivesse sido criado. E quem fez
essa tarefa foram os diários mais importantes do Rio de Janeiro, a
partir do final do século XIX.
Na outra ponta da pesquisa contemplamos também a questão
do poder. Não se pode falar de imprensa, sem colocar em destaque
essa problemática, ainda que procurando não incorrer no erro de ver
poder em tudo e em todos.
O crescimento da audiência significava para esses jornais
não apenas a possibilidade de aumentar a sua receita, mas também
de ter maior ingerência junto à sociedade política. Participando do
jogo de dominação e de poder existente na sociedade carioca, alguns
desses jornalistas - os que ocupavam os postos dirigentes - se
constituíram em verdadeiros porta-vozes dos grupos dominantes,
divulgando suas mensagens, suas visões de mundo e suas idéias.
Por outro lado, ao se reafirmarem como o único intermediário entre
o leitor e a sociedade política, confirmavam a seu domínio e
participavam do jogo de poder que atingia todas as esferas da vida
quotidiana.
Os jornalistas, como produtores de mensagens, donos do
poder de nomeação e reprodutores de uma língua legítima,
aquinhoados com o capital si mból ico indispensável para cumprir esse
papel, reafirmavam sua importância também em função da
representatividade que adquiriram na sociedade.
Oriundos a maioria das vezes das Faculdades de Direito,
principal instância de formação intelectual na República Velha, os
jornalistas recebiam, por delegação, o papel de porta-voz. À imprensa
cabia difundir um discurso unificado e havia, ao mesmo tempo, a
transformação do uso das letras num verdadeiro mito social, tornando
a escrita alavanca para a ascensão, parq a respeitabilidade pública,
para ser incorporado ao centro do poder.
Introjetada pelos grupos sociais, construía-se uma imagem
idealizada dos homens de letras e das institu ições que representavam
essa palavra. É dessa forma que deve ser entendida também a
imagem mitificado dos jornais como portadores da verdade e como
defensores e intermediários entre a população e o poder público.
Participando do jogo político e de uma 31ticulação mais ampla,
esses diários se aliavam aos grupos que estavam no poder,
referendando o papel dos dominantes, conquistando as benesses e
as reverências desse grupo, aumentando, em contrapartida, a sua
própria participação no jogo do poder.
Mesmo aqueles que se colocavam permanentemente numa
trincheira oposta, como o Correio da Manhã, não estavam apaltados
desse jogo. A hegemonia, como diz Gramsci, pressupõe sempre a
contra-hegemonia. Além disso, esses diários podiam muitas vezes
estar num lado da trincheira e, no momento seguinte, no outro. Isso
não pressupõe um embate falso ou fingido: houve apenas umjogo de
acomodações.
Esse trabalho percorreu, assim, os diários do Rio de Janeiro
mais importantes - pelo seu poder de difusão -, durante 40 anos. Foi
um percurso atribulado em alguns trechos, suave em outros tantos.
Quase que diariamente íamos à Biblioteca Nacional ver
fotogramas e fotogramas daqueles impressos. Ler frases escritas
em outras épocas por autores, alguns que permaneceram anônimos,
outros que descobrimos afinal a sua identidade. Documentos e mais
documentos.
Quando estávamos chegando ao fim, nos deparamos com
uma notícia: José Carlos Rodrigues, o acionista majoritário do Jornal
do Commercio, deixara a direção do jornal e recolhera todos os
documentos de seu período à frente do diário, entregando-os à
Biblioteca Nacional. Em suajustificativa, o homem forte do início da
República dizia que assim o fazia, para que "se um pesquisador daqui
há exatos 80 anos se aventurasse a recontar aquela história,
encontraria, intacto, o pedaço do Jornal do Commercio".
Um historiador, de fato, exatos 80 anos depois, se debruçava
sobre aqueles papéis. Tentava visualizar vidas. Tentava falar de vida.
Tentava perceber rostos, vozes, ruídos apagados, em parte, pelo
tempo.
Ah! O tempo! Esse inexorável conceito que nos acompanha.
O ontem para aqueles homens e mulheres que liam notícias e mais
notícias - novidades de um mundo em movimento - era o agora e o
instante para nós.
Recuperar rostos e vozes inscritos num tempo. Num outro
tempo, num outro momento, tão distante e tão próximo.
Fazer história sempre será falar de vida. Fazer história
sempre será inventar uma estória. Uma história que transporta para
o lugar dos vivos, aqueles que, hoje, classificamos como mortos.

1 White, op. cit., 1995, p. 22.


2 Nos valemos aqui na expressão de Michelle Perrot, como logo no início dessa
conclusão tomamos emprestado outra de Roland Barthes.

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