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PR E Tomás Prado
D Bacharel em Filosofia pela UFRJ. Mestre e doutor em
Filosofia pela PUC-Rio, com experiência de pesquisa dou-
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toral na Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne, e pós-doutor
pela Unifesp.
Atua como professor de Filosofia na Universidade
Federal do ABC e é autor do livro Foucault e a linguagem
do espaço, da Editora Perspectiva e da Editora PUC RIO.
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Direção editorial:
Ricardo Prado
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Assistente de redação:
Maria Isabel Galdino
Produtor editorial:
Antônio Tolipan
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Equipe M10 Editorial
Edição:
Alesssandra Corá
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Mônica Vendramin
Produção editorial:
Fernanda Azevedo
Vanessa Dionello
Coordenação da diagramação:
Eduardo Enoki
Diagramação:
Nathalia Scala
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Preparação e revisão:
Ficha catalográfica
Brenda Silva
Cristiane Dias
Ilustrações:
Alexandre Romão
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Iconografia:
Denis Domingues
Eduardo Enoki
EDITORA DA PONTE
Rua Praia do Flamengo, 66 -- Sala 1103 -- Bloco B
Flamengo, Rio de Janeiro, RJ
CEP 22210-030
SUMÁRIO
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APRESENTAÇÃO�����������������������������������������������������������������������������������4
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1 INTRODUÇÃO À SABEDORIA
PRÁTICA E TEÓRICA����������������������������������������������������������������� 10
1.1 O Universo-máquina e a realidade integrada����������������������������������11
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1.2 O cuidado de si������������������������������������������������������������������������������������ 19
1.3 Imaginação e arte������������������������������������������������������������������������������� 26
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2 AUTOCONHECIMENTO: O ENCONTRO CONSIGO�������������� 31
2.1 “O olho torto de Alexandre”, de Graciliano Ramos������������������������ 34
2.2 “O espelho”, de Machado de Assis��������������������������������������������������� 44
2.3 Dom Quixote de la Mancha, de Miguel de Cervantes������������������� 60
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ATIVIDADE DE TRANSIÇÃO 2����������������������������������������������� 73
3 EXPANSÃO E EXPLORAÇÃO:
O ENCONTRO COM O OUTRO E O MUNDO��������������������������� 75
3.1 Emílio ou Da educação, de Rousseau���������������������������������������������� 82
3.2 “O alienista”, de Machado de Assis�������������������������������������������������� 96
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4 PLANEJAMENTO: O ENCONTRO
COM O FUTURO E O NÓS����������������������������������������������������� 125
4.1 “Um homem célebre”, de Machado de Assis��������������������������������� 130
4.2 “O capote”, de Nikolai Gogol������������������������������������������������������������141
4.3 O mercador de Veneza, de William Shakespeare�������������������������154
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Você certamente já parou para pensar sobre o que fará da vida no futuro.
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Tanto na escola quanto em casa, grande parte das coisas que fazemos é con-
dicionada por aquilo que os outros esperam de nós. Devemos arrumar nossa
cama, levar o prato para a pia, estudar para avançar ao próximo ano escolar
e dar conta de muitas outras responsabilidades.
Pode ser bastante atraente a ideia de que chegará o momento em que
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ninguém mais nos dirá o que fazer. Mas outras questões aparecerão, cujas
respostas precisamos encontrar em nós mesmos. Esse processo, como em
toda grande aventura, pode ser estimulante, mas também gerar angústias.
Sabemos que é possível aprender com a experiência do outro desde que
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ela nos toque verdadeiramente, e que podemos encontrá-la nas artes, em es-
pecial na literatura, por oferecer narrativas. Para tirar dessas experiências o
que elas apresentam de mais significativo, aproximaremos filosofia e literatura.
Esperamos, assim, encontrar um retrato da condição humana que nos ajude
P
em nossas tomadas de decisão, compondo uma sabedoria prática.
Para isso, no capítulo 1, analisaremos a relação entre a sabedoria teórica
e a sabedoria prática. Trata-se de encontrar um lugar para essas questões
nos estudos escolares e na visão de mundo que o conjunto dos conhecimentos
científicos proporciona. Podemos nos referir a eles como uma visão ordenada
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do Universo e da vida. A riqueza da sabedoria teórica é que ela revela a regula-
ridade da natureza – suas repetições e direções. Ela espera prever fenômenos,
auxiliando o planejamento das nossas ações. No entanto, nem todas as nossas
experiências pertencem a essa regularidade. Buscaremos encontrar os limites
da sabedoria teórica para lançar mão, quando necessário, da sabedoria prática,
que é complementar e pode nos ajudar a lidar com o inesperado.
Os capítulos 2, 3 e 4 apresentam, respectivamente, o desenvolvimento da
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Ao longo do livro, você encontrará alguns boxes e seções
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que funcionam como aliados no trabalho com o livro do estu-
dante, ampliando pontos especiais dos ensaios e trazendo outras
perspectivas, exemplos e referências. São eles:
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VOBIA?
Você sabia?
Esses boxes trazem curiosida-
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des sobre temas, acontecimentos
históricos, frases importantes e re-
lações dos textos com pensadores
que podem ampliar o repertório
trabalhado.
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Indicação
As caixas de texto indicativas
INDICAÇÃO
apontam para referências exter-
nas, como filmes, livros ou tex-
tos que podem ser exemplos ou
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Conheça
Esse tipo de boxe traz in-
formações mais precisas sobre CONHEÇA
conceitos, movimentos históricos
e biografias de personalidades
importantes.
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PARA Para refletir
Aqui, há recursos mais dissertati-
REFLETIR vos. Eles trazem um comentário crítico
P
sobre temas e ocasiões específicos que
surgem nos ensaios, incentivando o
olhar reflexivo que permeia todo o livro.
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PARA
Para pesquisar
Traz uma proposta de pesquisa
PESQUISAR que ampliará o repertório sobre o te-
ma estudado.
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Para debater
PARA São propostos temas que permi-
tem mais de um ponto de vista, ofere-
DEBATER cendo ao grupo uma boa oportunida-
de para trocar perspectivas e, assim,
aprender uns com os outros.
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CAIXA HISTÓRICA:
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PESQUISE
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Caixa histórica: pesquise
Essas caixas têm uma característica especial, pois
são os próprios estudantes que, por meio de suas ideias,
pesquisas e discussões em sala de aula, somam informa-
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ção ao conteúdo. Os elementos descobertos nas pesqui-
sas poderão complementar, ampliar e também abordar
as interpretações dos textos literários que são propostas
nos ensaios.
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PROPOSTAS
DE VIVÊNCIAS
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Propostas de vivências
As propostas de vivências estão presentes no final dos
ensaios, oferecendo a oportunidade para que o grupo esco-
lar experimente de maneira própria alguns conceitos e ideias
que foram trabalhados durante os ensaios. É importante
entender que as vivências são uma estratégia pedagógi-
ca embasada nos ensaios. O objetivo é engajar o corpo,
a fala, as ações e o raciocínio para que os estudantes se
relacionem com o conteúdo, discutindo de modo ampliado
e colaborando para que, em sua singularidade, possam
projetar a si e a comunidade escolar nessa vivência.
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Atividades de transição
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As atividades de transição fazem a passagem entre os capítu-
los. São mais coletivas e criam relação com a comunidade escolar.
Elas são importantes porque constroem, no decorrer dos três anos
do Ensino Médio, um importante fio condutor do Projeto de Vida,
P
que envolve um olhar para si, para o outro, para o coletivo e para
o futuro. Trata-se de criar um processo concatenado que articule
as dimensões do Projeto de Vida, gerando também uma produção
final, individual e coletiva, de todo o trabalho.
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ATIVIDADE DE DESFECHO
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Atividade de desfecho
A atividade de desfecho engloba todas as outras e tem como
objetivo a produção coletiva de uma exposição de arte que ocorrerá
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1. INTRODUÇÃO
À SABEDORIA
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PRÁTICA E TEÓRICA
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Vamos supor que, ao final do Ensino sobre o que fazer da vida é tão complicada
Médio, seja possível decidir o que fazer da que não vale a pena pensar nela; basta viver
vida. Como, então, tomar a melhor decisão? um dia de cada vez.
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Cada um de nós tem interesses, expectativas Assim como adiamos tarefas do dia a dia
e um conjunto de informações importantes. que parecem difíceis ou apenas sem graça,
Mas como avaliar quais são os mais relevan- podemos, diante dessas questões existenciais,
tes? Se cada pessoa é única, existe algum nos distrair de nós mesmos. Porém, cedo ou
critério capaz de estabelecer o melhor ca- tarde, surgem os momentos de decisão, e é
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minho para mim, para você e para todos? melhor estar preparado, porque sempre há
Além disso, podemos pensar o futuro modos melhores ou piores de se posicionar.
em períodos diferentes. Como você se ima- Que frutos colheremos de um olhar de-
gina em cinco, dez ou vinte anos? O futuro sinteressado pela vida? Na verdade, não há
não será um bloco homogêneo. Ao entrar questão mais importante do que aquela que
na fase adulta, há uma rotina que se repe- trata do cuidado que é preciso ter conosco,
tirá para sempre, como uma engrenagem porque todas as outras são marcadas por ela.
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Formandos comemorando
o final de mais uma etapa
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da vida escolar.
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10 | 1. INTRODUÇÃO À SABEDORIA PRÁTICA E TEÓRICA
1.1 O UNIVERSO-MÁQUINA
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E A REALIDADE
INTEGRADA
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Quando observamos a natureza por um
longo tempo, notamos que muitas coisas se
repetem, como as fases da Lua. Outras re-
petições, como os dias e as noites, possuem
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condicionantes: quanto mais perto dos polos
sul e norte, mais desiguais são as suas du-
rações. Assim como há os dias e as noites,
há diferentes estações do ano e, quanto mais
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perto da linha do equador, menos perceptí-
veis são suas diferenças.
Seja pelo clima, seja pela flora, seja pe-
las épocas de cheia ou de baixa dos rios,
admiramos a regularidade da natureza e,
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sempre que possível, buscamos tirar proveito
FOTOS: PETR JILEK/ SHUTTERSTOCK
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Quanto mais os eventos se repetem, mais acreditamos que eles voltarão a ocorrer. A isso
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chamamos de aprendizado da experiência.
ROMÃO/ M10
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No exemplo acima, você pode observar uma senhora que um dia foi jovem, depois
viu seus filhos passarem pela adolescência e agora, ao ver um neto atravessar essa fase
e ter um comportamento inconsequente, ela pode dar ao filho preocupado um conselho
e uma visão diferentes, graças à sua vivência.
Portanto, a experiência é algo muito valioso, porque possibilita que as pessoas tenham
mais familiaridade com as transformações do mundo. Elas adquirem serenidade, pois enten-
dem que cada coisa tem o seu tempo. A experiência muitas vezes é conquistada por caminhos
desafiadores. Portanto, sempre que possível, devemos aprender com quem quer transmitir
a sua sabedoria, tendo gratidão pela oportunidade. Afinal, a experiência é algo que cada
um conquista por si mesmo, mas possui um significado que pode ser compartilhado para o
bem de muitas pessoas.
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V BIA?
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mundo pode proporcionar também um ga-
nho teórico.
A teoria procura sistematizar nossas ex-
periências em um modelo geral, que reúne
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as diferentes experiências adquiridas em Antes de serem um conceito da física
uma explicação comum. contemporânea, os átomos foram conce-
Ela reduz, por exemplo, a diversidade das bidos, no século V a.C., pelos pensadores
coisas inflamáveis (que atuam como causa) pré-socráticos Leucipo e Demócrito. Eles
P
ao conceito de combustível. E, assim como faz concluíram que, mesmo com tudo mu-
com o combustível e o calor, ela reduz a diver- dando a todo instante, as transformações
sidade das transformações da natureza até da natureza decorrem de novas associa-
encontrar leis gerais, como forças e princípios. ções de elementos imutáveis.
É o caso da força da gravidade e do princípio
IA
de causalidade. A observação nos conduziu
à teoria de que todas as transformações
na natureza são governadas pelo
princípio da causalidade ou que,
por toda parte, há uma força
que atua na atração dos
corpos. Depois de formu-
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Quando vemos
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fumaça, a experiência
nos leva a supor que
é o efeito de algo
pegando fogo, mas
muitas coisas diferentes
podem pegar fogo, como o
papel a madeira e a gasolina.
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A INVESTIGAÇÃO DAS
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LEIS NATURAIS
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O conhecimento teórico propõe que a realidade é governada por leis naturais necessárias,
que o Universo é um grande conjunto coeso e coerente e que tudo cumpre nele um papel
importante. Dessa forma, mesmo que as transformações ocorram, há princípios e forças que
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deverão continuar a agir para que a ordem geral do Universo se perpetue. Além das forças
em ação na natureza, há explicações teóricas sobre a constituição elementar das coisas
que estão em ação, como os átomos, que se combinam de diferentes maneiras, formando os
corpos percebidos pelos nossos sentidos.
P
Professor(a), a seguir apresentaremos uma série de teorias que
foram desenvolvidas ao longo da história, mas não serão apresentados
em ordem cronológica.
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Thomas Hobbes (1588-1679) é um exemplo O método cartesiano proposto
de filósofo mecanicista. Ele acreditava que todas pelo filósofo, físico e matemático fran-
as coisas que existem podem ser divididas em cês Descartes consiste em: 1. rejeitar
corpos naturais, que devem ser estudados pelas todo conhecimento duvidoso; 2. divi-
ciências, e corpos artificiais, que devem ser estu- dir o problema em partes simples; 3.
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dados pela filosofia política. Para Hobbes, todos analisar do ponto simples até o mais
os movimentos, da natureza e da sociedade, sem complexo; 4. fazer revisões e chegar a
distinção entre matéria inerte e matéria viva, de- conclusões gerais.
vem ser explicados por causas mecânicas.
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D SCOTTISH NATIONAL PORTRAIT GALLERY/ DOMÍNIO PÚBLICO ANTONIE LAVOSIER: UNIVERSITY OF TEXAS MEDICAL BRANCH, E.U.A./ DOMÍNIO PÚBLICO
FOTOS: THOMAS HOBBES: NATIONAL PORTRAIT GALLERY/ DOMÍNIO PÚBLICO; RENNÈ DESCARTES: LOUVRE MUSEUM/ DOMÍNIO PÚBLICO; DAVID HUME:
Era Moderna, foi bastante utilizado para provar fatos científicos. David Hume (1711-1776),
filósofo escocês, aborda a possibilidade de que a indução proporcione um conhecimento
necessário1. Como exemplo, o autor afirma que se acreditava que todos os cisnes eram
brancos. Porém, descobriram-se cisnes pretos. Desse modo, as afirmações
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científicas ficam limitadas a nossas observações realizadas e hábitos
passados.
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nicismo exagerado. Às vezes, é difícil perceber que fomos
nós que inventamos parte das regras que imaginamos
presentes nas próprias coisas. Por essa razão, o espírito
científico deve ser tão atento na observação da natureza
P
quanto rigoroso e criterioso no reconhecimento das suas
verdadeiras causas e regularidades. Dessa forma, ele é
capaz de perceber novos fenômenos que conduzem à
ampliação do conhecimento científico.
David Hume.
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A teoria de que todas as transformações da natureza são ordena-
das segundo leis constantes é bem expressa pela lei de conservação das
massas, do químico Antoine Lavoisier (1743-1794), conhecida como: “Na
natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma.”2 Trata-se de
uma sentença que não expressa apenas uma experiência ou certa quan-
tidade de casos observados, mas propõe uma teoria a respeito de todo
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integrada, o filósofo Henri Bergson1 (1859-1941) afirmou:
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espaço: é o plano das nossas ações eventuais que é reenviado aos
nossos olhos, como que por um espelho, quando percebemos
as superfícies e as arestas das coisas. Suprima-se essa ação e,
por consequência, as grandes estradas que ela abre antecipa-
N
damente, por meio da percepção, no emaranhado do real, e a
individualidade do corpo será reabsorvida na universal interação,
que é sem dúvida a própria realidade.
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Por exemplo, no espaço, os corpos se atraem pela
ação da gravidade e trocam radiação e calor. No caso
dos seres vivos, embora muitos deles possuam corpos
individuais e façam movimentos autônomos, eles sem-
pre precisam dos outros, seja para se reproduzir, seja
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Henri Bergson.
O físico Albert Einstein (1879-1955) certa vez afirmou, a respeito desse tema, que “Deus não
joga dados com o Universo”2, ou seja, que as leis fundamentais da natureza devem funcionar de
forma regular e coerente em todo o Universo, e não de forma aleatória.
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A teoria mecanicista considera que as ciências, cada qual voltada a uma parte desse
Universo-máquina, investigam um dos seus mecanismos. Se o Universo fosse um carro, ha-
veria o motor, o freio, a direção e muitas outras partes e funções. Como a máquina toda é
muito complexa, cada ciência deve estudar uma parte, isolando-a em um sistema fechado ou
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quase fechado. Assim, há a biologia e a química, mas há também a bioquímica, que estuda
a formação das primeiras e mais elementares formas de vida com base em seus compostos
químicos. Talvez possamos imaginar que haja, em algum planeta distante, uma forma de vida
cuja estrutura química não seja exatamente como aquela que se desenvolveu em nosso planeta;
então a ciência também pode se voltar a outras realidades possíveis.
Quanto mais específico é o campo de estudos, maior deve ser a regularidade encontrada. É
assim que o método científico foi compreendido por Descartes (1596-1650), quando ele defendeu
que é preciso dividir e simplificar as análises até que elas se tornem evidentes. Retiramos as
coisas do seu lugar natural, onde podem sofrer imprevisíveis influências que atrapalhariam
nossa compreensão, e as colocamos em laboratórios, para poder isolar, testar e ver como rea-
gem a relações que controlamos.
2
IMA, Melina Silva de. Einstein e a Teoria da Relatividade Especial: uma abordagem histórica e introdutória. Disponível em:
L
www.if.ufrgs.br/public/tapf/v24_n2_melina.pdf. Acesso em: 18 fev. 2020.
16 | 1. INTRODUÇÃO À SABEDORIA PRÁTICA E TEÓRICA
para se alimentar. As plantas precisam de água, de nutrientes e de luz, e a luz e a radiação que as
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estrelas emitem são resultado da fusão dos átomos.
Embora possamos compreender acontecimentos e até prevê-los, descobrimos que a reali-
dade é sempre mais complexa do que nossos sistemas de conhecimento. A nossa capacidade
de prever eventos fica mais ameaçada conforme nos dirigimos aos fenômenos mais complexos.
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Como exemplo, uma imagem bastante comum e à qual já nos referimos: as nuvens escuras
que anunciam a chegada da chuva. Embora saibamos explicá-la pela condensação do vapor de
água nas altitudes em que o ar é mais frio, nem sempre, depois de uma nuvem escura, a chuva
chega. Às vezes, ela vai embora, dissipando-se, levada pelo vento. O vento, nesse caso, intervém
N
e quebra nossas expectativas. Mesmo sistemas meteorológicos sofisticados, com satélites e com-
putadores muito potentes, não conseguem prever sempre ou com muita exatidão o comportamento
climático. A razão é que o clima é um sistema bastante aberto, com muitas variáveis imprevisíveis.
Quanto maior é o número de casos observados, mais tendemos a acreditar que uma relação
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de causa e efeito deve se repetir. É o costume ou hábito que nos faz acreditar que o que foi sempre
será, e o fato de usarmos o conhecimento das grandes regularidades da natureza nos faz confiar
nas crenças adquiridas. Procuramos por elas até mesmo onde é mais difícil reconhecê-las e muitas
vezes nos enganamos com relação à existência de padrões que imaginávamos ter encontrado.
1
BERGSON, Henri. A evolução criadora. Trad. Adolfo Casais Monteiro. São Paulo: Unesp, 2009. p. 26.
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PARA
REFLETIR
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Albert Einstein.
Os ecossistemas na natureza são
bons exemplos de como a integração
FOTOS DE HENRI BERGSON E ALBERT EINSTEIN: DOMÍNIO PÚBLICO
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Orientações pedagógicas: Tempo: 3 horas/aula (1. leitura coletiva, separação dos grupos e composição da
lista de comandos; 2. redistribuição das listas, teste prático e compartilhamento das modificações; 3. discussão
mediada pelo(a) professor(a) sobre as conclusões e fechamento da atividade). Espaço: sala de aula, corredores,
D
PROPOSTAS
ber teórico pode dar conta de todas as situa-
ções da vida. O mundo não funciona sempre
como uma máquina, com engrenagens bem
L
Competência Geral 1 nosso próprio manual do mundo e corremos o
risco de nos expor demais às crises ou de nos
1.1.1 NOSSOS PLANOS
fechar ao que os outros têm para ensinar.
N
A sabedoria teórica e a sabedoria prática Quando achamos que temos a resposta
têm ambas o seu valor e, sempre que possível, para tudo e algo sai do controle, a frustração
devemos tentar aproximá-las. Porém, elas não é certa e não conseguimos assumir respon-
são a mesma coisa. Nem sempre podemos sabilidade pelos acontecimentos, “nego-
ciando” com essa frustração e reorganizando
P
contar com o apoio da teoria. Ao longo deste
livro, conheceremos personagens que fizeram nossas teorias.
uma confusão entre elas, ao pensar que o sa- Observe a tirinha a seguir:
MARINA NICOLAIEWSKY
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dentro de contextos específicos, ou seja, em
Ao término do Ensino Médio, é possível lugares e épocas. Pode ser que um curso
ingressar no mercado de trabalho ou dar não esteja disponível na sua cidade ou que
continuidade aos seus estudos. haja uma atividade sendo desenvolvida por
L
Aqueles que continuam seus estudos em perto com grande potencial de expansão.
um curso superior geralmente pretendem Essas variantes implicam a necessidade de
conquistar a especialização em um domínio autoconhecimento, levantamento de informa-
de conhecimento. ções e bastante planejamento.
N
Depois disso, muitos seguirão o caminho Seja qual for a escolha de cada um, to-
da aplicação prática do conhecimento es- das as alternativas devem ser valorizadas,
pecializado, como é o exemplo de médicos, pois podem contribuir para o bem-estar e o
dentistas, engenheiros e advogados. Outros desenvolvimento da sociedade. Afinal, vive-
P
poderão se voltar ao ensino. mos juntos e, assim como é possível acreditar
Também existe a possibilidade de se- que tudo no Universo está integrado, o que
guir com os estudos, tornando-se pesquisa- cada um de nós realiza sempre acarreta al-
dor, mas, para descobrir novos fenômenos guma consequência para os outros. Por isso,
ou criar novos modelos teóricos, os estudos não devemos escolher ao acaso qualquer
IA
podem levar a vida toda ou, até mesmo, o alternativa. É desejável ter a ambição de
trabalho conjunto de diferentes gerações. realizar da melhor maneira nosso potencial,
O ideal é que o percurso de formação, reconhecendo uma vocação e aproveitando
do Ensino Médio ao início da carreira pro- os recursos disponíveis para auxiliar o nosso
fissional, na direção que for, seja feito de crescimento, a começar por aqueles presen-
maneira planejada. Para isso, é necessário tes na escola. Como? Nesse caso, não há
PROSTOCK-STUDIO/ SHUTTERSTOCK
que a pessoa conheça da melhor maneira muito segredo: descobrir e experimentar tudo
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possível a si mesma, suas qualidades, inte- o que for oferecido, sejam as aulas, os co-
resses e prioridades e que conheça também mentários dos colegas, as dúvidas, as curiosi-
as alternativas profissionais que se abrem, dades, os espaços de leitura e de troca. Essa
com seus pontos positivos e negativos. é uma atitude de respeito e interesse pela
Finalmente, é necessário compreender que escola e por todos aqueles que lá convivem.
G
D
As fronteiras do conhecimento de adquire mais conhecimentos, ampliamos
A integração dos saberes é uma ma- esse horizonte, e deixar para as gerações fu-
neira de nos aproximarmos da realidade turas uma compreensão ampliada do mundo
não pelo conhecimento dos eventos que é um sentido bastante nobre que podemos
L
se repetem, mas pela forma como eles se assumir em nossas vidas – não apenas por-
articulam e geram novos problemas, co- que o conhecimento tem valor em si mesmo,
mo parte das transformações do mundo. mas porque ele influirá no Projeto de Vida
Além disso, essas articulações podem nos das gerações futuras.
N
levar além da nossa realidade imediata,
o que seria muito positivo para o nosso
crescimento pessoal. É pelo conhecimen-
A preparação para a vida
to que rompemos fronteiras, e isso deve
profissional
No mercado de trabalho, as pessoas são
P
começar pelo desejo de sempre conhecer
convocadas mais e mais a se adaptar às exi-
coisas novas.
gências que se modificam constantemen-
Quanto mais reintegramos à
te. Assim, precisam sempre se
realidade os domínios de co-
reinventar, mas sem perder
nhecimento que havíamos
sua responsabilidade
IA
separado, mais ela se
com os outros e com o
revela complexa e im-
meio ambiente.
previsível. Isso se dá
Leia a repor-
porque o Universo,
tagem a seguir e
como um ser uno
ELLINNUR BA K A
permanece o mes-
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tendências listadas
mo. Nosso desafio
I N/
é acompanhá-lo e
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profissional. Discutam
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cesso de transformação.
G
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nos próximos anos. devem ditar o aprendizado de cada profissional. “A
Embora seja comum que o mercado de tra- liderança terá o desafio de construir uma empresa
balho passe por transformações com o tempo, as e mantê-la competitiva num mercado que está em
novas tecnologias e o desenvolvimento da ciência constante movimentação”, afirma o executivo.
L
farão com que essas mudanças aconteçam de forma
mais rápida nos próximos anos. O PageGroup, 4. O escritório do futuro será onde o profissional
empresa especializada em recrutamento, listou quiser
oito tendências que devem impactar o mercado Ficar preso em um escritório por muito tempo
N
de trabalho no futuro. Confira: se tornará coisa do passado. No futuro, será cada vez
mais comum trabalhar de qualquer lugar. Com isso, as
1. M aior concorrência no mercado de trabalho organizações poderão reduzir gastos e permitirão que
No futuro, a seleção de talentos será ainda os profissionais criem novos negócios e expandam sua
P
mais criteriosa. Isso porque cada perfil será avalia- dinâmica de trabalho. Até mesmo os modelos de escri-
do de acordo com o seu conhecimento técnico, e tórios físicos passarão por drásticas transformações.
não mais pela distância do local de trabalho ou até Em alguns casos, eles serão itinerantes e com espaços
mesmo pela classe social ou econômica. Gil Van esporádicos de coworking, e as reuniões presenciais
Delft, presidente do PageGroup no Brasil, explica darão lugar às chamadas de videoconferência.
IA
que, nos próximos anos, a concorrência será cada
vez mais global. “A pessoa não concorre apenas 5. As oito horas de trabalho diárias serão extintas
dentro do seu setor ou empresa, e sim com outros As jornadas de trabalho nas empresas tam-
países e candidatos que podem executar a mesma bém passarão por mudanças nos próximos anos.
atividade”. Além disso, os robôs e os sistemas de Redução na carga horária e expedientes menores
automação farão boa parte das atividades operacio- determinarão a escolha dos profissionais diante
nais que hoje são realizadas por humanos. das empresas em que querem trabalhar. “Uma
U
| 21
7. Globalização econômica mais oportunidades de negócios, é preciso
D
Limites geográficos não serão mais uma bar- perseverar em uma formação continuada
reira para empregos e negócios. Por isso, pensar que proporcione novamente habilidades
em rotas comerciais, e-commerce e na experiên-
abrangentes.
cia do cliente de forma mais rápida e interativa
L
Se nos tornarmos professores, ou pais e
será fundamental. “O profissional que estiver
mães, pode ser que tenhamos que explicar
alinhado à tecnologia de forma que otimize os
aos nossos alunos ou filhos uma matéria que,
negócios terá destaque no mercado de trabalho”,
afirma Gil Van Delft. quando tínhamos a idade deles, não consi-
N
derávamos interessante, apenas porque é
8. Novas profissões importante para eles. Isso significa que as-
Os avanços científicos e tecnológicos devem sumimos um compromisso com as próximas
mudar o perfil das profissões que surgirão no futu- gerações de apresentar a elas o mundo em
P
ro. “A evolução é tamanha que cerca de 70% das que vivemos e de guiá-las nesse mundo ain-
crianças de hoje em dia trabalharão em profissões da desconhecido, assim como um dia outra
que ainda não existem”, destaca o PageGroup. geração fez por nós.
Disponível em: https://epocanegocios.globo. Se alguém se torna escritor, artista, po-
IA
com/Carreira/noticia/2019/09/8-tendencias-que- lítico, administrador público, gestor ou em-
devem-revolucionar-o-mercado-de-trabalho.html.
pregado de uma empresa, pode precisar
Acesso em: 14 fev. 2020.
entender e lidar com campos de conhecimen-
to muito diferentes para poder articulá-los
Ao longo da nossa trajetória profissio-
nal, uma boa oportunidade pode aparecer ou simplesmente para compreender o que
em uma área diferente daquela em que os outros fazem, como parte daquilo que a
inicialmente acreditávamos ter interesse ou empresa toda produz ou que sua obra ou
U
tar nossa atenção. Portanto, não é possível de articular de modo crítico e reflexivo essas
saber exatamente, durante nossa formação informações, o que implica abrangência de
inicial, por qual caminho seguiremos pela
conhecimentos.
vida inteira. O importante é estar aberto
O certo é que, quanto mais profundo
para aproveitar da melhor forma possível
e extenso é nosso conhecimento do mun-
os recursos ao alcance. Essa é também
uma forma de planejamento. É por isso que do, maior é a consciência das dificuldades
a primeira formação é abrangente e ten- que iremos enfrentar e o campo das nossas
de a se especializar apenas quando esta- alternativas. Isso significa que o conheci-
mos mais perto de ingressar no mercado mento proporciona oportunidades e, so-
de trabalho. E, para conquistarmos depois bretudo, liberdade.
D
O planejamento da ação prática e não requer uma teoria. É o caso de
Como foi dito anteriormente, o conhe-
decisões que tomamos em nome da felicidade
cimento que orienta nossas escolhas pode
ou da saúde. Não perguntamos para que ser
conter alguma forma de precariedade. Ele
feliz ou para que ter saúde. Não precisamos
L
pode não se aplicar a todas as circunstân-
de uma teoria que fundamente o valor dessas
cias que vivemos ou ser provisório e sofrer
coisas, pois elas são bens em si mesmas.
alguma alteração.
No caso do dinheiro, é diferente. Embora
Como lidar com a insegurança de que
ninguém negue que seja preciso ganhá-lo, se
N
podemos nos equivocar na representação
possível o bastante para que dê segurança
das alternativas de escolha? Há algum modo
no futuro, a nós e àqueles que amamos, o
de se relacionar com a realidade que não
quanto precisamos dele é relativo. O sacri-
seja pela aposta de que dominamos o seu
fício da saúde e da felicidade pelo excesso
mecanismo? E quando esse mecanismo não
P
de dinheiro pode, para muitas pessoas, não
funciona e nossas vidas parecem se perder,
compensar. O mesmo vale para o reconhe-
o que podemos fazer?
cimento social. É desejável estarmos em paz
Para encontrar respostas a essas per-
com os outros, mas esperamos que essa paz
guntas, devemos retomar o que vimos sobre
não venha em detrimento do nosso amor-
a sabedoria teórica e a sabedoria práti-
IA
-próprio, fazendo com que realizemos coisas
ca. Embora sejam diferentes e cada uma
apenas para satisfazer a outras pessoas.
tenha seu valor, muitas vezes acreditamos
Nem toda sabedoria prática consiste no
que a teoria deve necessariamente vir an-
reconhecimento das coisas que são bens em
tes da prática, ou seja, que toda ação deve
si e dos modos de alcançá-las. Ela também
ser orientada por um modelo ideal. Uma vez
pode se voltar aos momentos de crise, pa-
que a teoria oferece um sentido para a ação,
ra que saibamos reagir da melhor maneira
passamos a exigir que toda ação possua de
U
possível a imprevistos.
antemão uma teoria.
A sabedoria prática não possui a siste-
No entanto, a ação pode
matização da teoria. Trata-se de um con-
ter seu fim em si mes-
junto de práticas independentes entre
ma. Quando ela não
si, e cada um poderá se interessar
G
to imediatos,
que são
então pode-
práticas
mos dizer
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As fotos retratam
uma família reunida
em um momento de
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lazer e o bem-estar no XE
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trabalho voluntário. OM
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T T E R ST O
| 23
de si mesmo, como um conjunto de maneiras menos reféns dos acontecimentos. Portanto,
D
de crescer, de se desenvolver e de se formar a prática de si é contrária à acomodação,
diante de uma realidade que poderá nos sur- na qual nos distraímos de nós mesmos, e se
preender. O que a sabedoria prática propor- coloca contra a alienação, que é um modo
ciona é o desenvolvimento de habilidades que de se deixar conduzir apenas por aquilo
L
servem a diferentes contextos, inclusive aos que os outros esperam.
inesperados. A sabedoria prática pode se vol- O corpo é fonte de uma grande sabedo-
tar, portanto, à preparação para o inesperado. ria a respeito da nossa relação com os outros
Aliás, toda teoria nasce de uma situação de e com o mundo. Ele fala conosco de muitas
N
crise e, por algum tempo, foi preciso agir sem maneiras, e devemos aprender a escutá-lo.
ela. A ação não tinha um parâmetro ideal; Ele nos diz se as relações à nossa volta nos
então se agiu como era possível. fazem bem e se estamos nos colocando em
situações de estresse excessivo, que podem
P
não ser construtivas. Em nossos sentimentos
A verdade em nós mesmos de desejo, medo, alegria, tristeza, ansiedade,
entre outros, nosso corpo revela como nos re-
A prática de si assume que somos seres lacionamos com o mundo. Portanto, o cuidado
em construção, que nunca estamos total- de si é também um cuidado com o nosso corpo.
IA
mente formados e que não detemos toda Quanto mais aprendermos a escutá-lo,
a verdade. Portanto, ela nos põe em mo- menos receios teremos de enfrentar novos
vimento, no qual assumimos outras pers- desafios. A experiência é fundamental para
pectivas e acabamos por revelar a nossa o nosso crescimento e não devemos ter medo
própria verdade, aquela que descobrimos de viver coisas novas, porque nosso corpo
nesse movimento. Ao mesmo tempo em que é o principal aliado em nos mostrar quais
nos conhecemos melhor, ficamos também podem ser nossos próximos passos.
U
INDICAÇÃO
G
D
1. Te nte id e nt i f ic a r q uai s fo r a m a s
aprendizagens de Phil, o protagonista
de Feitiço do tempo, que contribuíram
DE VIVÊNCIAS para quebrar o feitiço. O que foi que Phil
aprendeu de mais importante durante o
L
1.2.1 NOSSAS tempo em que ele ficou preso no feitiço?
N
Os conhecimentos que adquirimos na es- Porém, às vezes muitos anos se passam
cola nos oferecem bons modelos existentes até encontrarmos um sentido útil
para agir no Universo, na natureza e no mun- para as coisas que aprendemos. Você
do em que vivemos. Devemos sempre refletir consegue citar exemplos de coisas que
P
sobre como aproximar teoria e prática. aprendeu e só mais tarde descobriu sua
Aproximando teoria e prática, melhora- importância? Escrevam em um papel sem
mos nossa dedicação às coisas que quere- se identificar, depois misturem os papéis
mos realizar. Assim, cada novo conhecimento e leiam. Vocês conseguem identificar de
possui um importante aspecto estratégico. quem é cada aprendizagem? Fale mais
IA
O filme Feitiço do tempo trata justamente sobre ela aos seus colegas, pois talvez
de como o conhecimento contribui com o eles também possam aprender com a
planejamento de ações. Se for possível, as- sua experiência.
sistam ao filme e discutam em grupos. Orientações pedagógicas: Tempo: 3 horas/aula
(1. leitura coletiva, separação dos grupos e composi-
ção da lista de comandos; 2. redistribuição das listas,
INDICAÇÃO teste prático e compartilhamento das modificações; 3.
discussão mediada pelo(a) professor(a) sobre as conclu-
U
Competência Geral 1
Ciências Humanas e Sociais: Competência 1
EM13CHS101
| 25
1.3 IMAGINAÇÃO E ARTE lugar que mereça ser destruído. A condição
D
para encontrar e criar coisas novas não pode
É preciso esclarecer melhor em que me- ser a desertificação do mundo e a destruição
dida há nisso tudo uma prática, e podemos dos outros. Na verdade, a falta de empatia
adiantar que voltaremos a esse tema no início com as diferenças no mundo faz com que nos
L
do próximo capítulo. Consideremos que nem fechemos nos mesmos lugares, onde não po-
todo treino seja um exercício muscular. De que demos mais amadurecer.
treino, então, se trata? De um treino da nossa Portanto, a imaginação requer empatia,
imaginação. Ela é uma grande aliada do nos- ou seja, solidariedade com a natureza e com
N
so crescimento, porque, assim como em um os outros, mesmo que sejam diferentes de nós.
jogo, imaginar é uma forma de desenvolver Afinal, como poderíamos abrir nossa imagi-
habilidades que serão usadas no dia a dia. nação a outras vivências, a outros momentos
As coisas que imaginamos não precisam e a outros lugares se só houvesse interesse
P
partir de algo que já vivemos. Elas podem naqueles que já ocupamos em nossas vidas?
partir de algo que já vimos, ouvimos ou lemos. A imaginação deve, por isso, ser alimentada
Quanto mais exercitamos a imaginação, mais pelo sentimento de integração ao mundo, co-
ela nos leva além do lugar em que estamos. mo uma sociedade aberta e dinâmica.
A única coisa que é preciso cultivar antes A imaginação de se colocar em outro
IA
da imaginação é a empatia, ou seja, a capa- lugar para ampliar as nossas possibilida-
cidade de nos colocar no lugar dos outros. des de agir é a melhor alternativa
Da mesma forma, é fundamental ter amor ao ao conhecimento teórico que
mundo, à sustentabilidade dos seus processos entrou em crise.
de transformação, porque é
impensável querer
morar em um
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Familiares
compartilhando um
momento da vida.
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Professora e alunos
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desenvolvendo uma
atividade artística.
D
não se trata de substituir um pelo outro, de que poderiam ou poderão um dia ser reais.
escolher a imaginação em vez do conhe- Então sentiremos também a superação que
cimento ou a sabedoria prática em vez da elas proporcionam.
teórica. É preciso desenvolver as duas para
L
manter o equilíbrio, pois sempre haverá cir-
cunstâncias em que uma é mais necessária A arte e nós
do que a outra e, em última instância, elas A arte é o campo privilegiado para es-
se complementam e se alimentam. se exercício imaginativo por meio do qual
N
Deve ser tanto pela imaginação quanto cuidamos de nós mesmos, colocando-nos à
pela compreensão que devemos empreen- prova e praticando nossa preparação para o
der essa jornada. A imaginação abre ca- inesperado. Os sentidos que encontramos em
minho para a compreensão, torna-a mais uma obra, na maneira como a interpretamos,
P
sensível, permitindo que, além de com- sempre revelam algo que nos põe à prova.
preender, possamos também sentir. E, de A arte tira as pessoas do estado habitual,
fato, há muitas coisas que só conseguimos do ordinário, de tudo que para nós se tornou
compreender sentindo. Para tan- to, deve- cômodo ou banal. Ela nos comove e mobili-
mos estar dispostos za a assumir uma posição diferente. Trata-se,
IA
portanto, de reconhecer não o lugar da
análise teórica, por meio da qual pro-
curamos explicar as obras e os
movimentos artísticos de cada
época, mas o fato de que ela
nos transforma.
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Show de música.
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OC street dance.
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| 27
As artes oferecem um repertório de vidas crescer ou alguém cuja experiência poderá
D
diferentes das nossas, mas que possuem mui- servir de alerta se nos depararmos com uma
tas coisas que nos dizem respeito, não importa situação semelhante. De toda forma, trata-se
quão distante esteja a origem de uma obra no de conquistar um crescimento pessoal com
tempo e no espaço. O que elas proporcionam base em situações vividas pelos personagens
L
é um exercício para enfrentar desafios ainda que conheceremos. As aventuras que eles
desconhecidos e até mesmo imprevisíveis. É atravessam serão para nós a aventura do
como se elas tivessem um poder visionário, nosso próprio cuidado.
de nos preparar para o inesperado!
PARA
N
Todas as grandes obras produzidas pela
imaginação de um indivíduo ou coletivamente
poderiam ser aproveitadas em nossas pro- REFLETIR
postas para o Projeto de Vida, desde os mitos
A literatura apresenta persona-
P
antigos, passando pelos folclores populares,
gens com os quais nos identificamos e
até as mais diversas linguagens utilizadas
com quem compartilhamos emoções.
para a expressão artística, da escultura ao
Isso faz dela um caminho privilegiado
cinema e à dança.
para o cuidado de si, pois mostra que
No próximo capítulo, serão apresentados
podemos aceitar o que desejamos e
IA
alguns clássicos das literaturas brasileira e uni-
o que sentimos como partes da con-
versal. Faremos de cada narrativa ficcional uma
dição humana. O que os personagens
experiência da qual seja possível retirar impor-
vivem qualquer um pode em algum
tantes aprendizados. Cada personagem será
momento da vida experimentar.
um herói em quem é possível se espelhar para
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ALEXEY GRIGOREV/ SHUTTERSTOCK
G
D
(1. leitura compartilhada e primeiro plantio; 2. (duas
L
em plantio em um grupo só. Materiais: sementes de
girassol, 1 vaso por grupo, terra para plantio, fontes de
1.3.1 NOSSAS TEORIAS pesquisa sobre girassóis em vasos, 1 folha por grupo
(para anotar o desenvolvimento da planta). Mais orien-
tações no Manual.
N
Para encararmos os processos naturais e
1. Forme um grupo para plantar sementes
as situações que estão fora do nosso contro-
de girassol na área externa da escola.
le, não precisamos somente da experiência
Vocês farão isso sem consultar algum
prática; muitas vezes, o compartilhamento
P
tipo de manual ou fonte de pesquisa
de informações estruturadas, já construídas,
na internet e cuidarão intuitivamente
facilita o modo de encarar essas situações.
dessa flor durante duas semanas. Dia
após dia, um tempo será reservado
para que o grupo descreva o estado A agricultura é um exemplo de
IA
da planta. Anotem quais critérios e como o conhecimento técnico
O aumenta a produção e gera
métodos vocês desenvolveram para
N
produtos de mais qualidade.
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cuidar bem dela.
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Competência Geral 1
Ciências da Natureza: Competência 1
EM13CNT101
| 29
Orientações pedagógicas: Tempo: 4 horas/aula (1. leitura coletiva e composição coletiva das perguntas; 2. res-
postas às perguntas e compartilhamento das respostas; 3. separação dos grupos e criação da resposta dos perso-
nagens; 4. continuação do trabalho em grupo e fechamento do(a) professor(a)). Espaço: sala de aula. Agrupamentos:
de 3 a 4 alunos, sem critério específico. Materiais: folhas pautadas e canetas. Mais orientações no Manual.
ATIVIDADE DE TRANSIÇÃO 1
D
Pense em 10 perguntas que você acha
QUEM SOU EU?
que deve fazer a uma pessoa para conhecê-la
L
Talvez não estejamos muito acostumados de verdade. Fuja do lugar-comum elaboran-
a fazer essa pergunta explicitamente, mas do perguntas que vão além do nome, idade,
ela permeia nossas relações quando somos emprego. Produza questões que a incentivem
apresentados a um novo amigo, quando es- a narrar experiências de vida, como: “qual foi
N
tamos numa entrevista de emprego, quando o momento em que você sentiu mais medo?”
montamos um perfil em rede social. Você já ou “conte seu maior sonho”.
refletiu sobre isso? Apresentem suas perguntas ao grupo e
No próximo capítulo, conheceremos as his- escolham quais vocês consideram mais im-
P
tórias de Alexandre, Jacobina e Dom Quixote, portantes. Respondam vocês mesmos a essas
três personagens que nos ajudarão a refletir so- perguntas e compartilhem suas respostas.
bre como responder a essa pergunta. Quando Como produto final para a mostra anual,
nos apresentamos a alguém, costumamos dizer construam um mural coletivo com as 10 per-
nosso nome, idade, trabalho ou desejo de pro- guntas de cada grupo escolar. Esse mural
IA
fissão. Porém, essas informações não revelam deve conter um título, uma breve explicação
muito sobre quem somos. Os aprendizados da proposta e folhas ou cartolinas para que
que adquirimos por meio de experiências de as pessoas que passarem possam responder
vida podem dizer muito mais sobre nós. às perguntas ali fixadas, tendo como modelo
as respostas da turma.
O objetivo é exercitar a reflexão de quem
responde à pergunta e daqueles que leem
U
dos outros.
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O/
Não se esqueçam de
G HUS
Competência Geral 8
Linguagens: Competência 4
EM13LGG402
L
N
A sabedoria prática é o caminho para cuidado de si. O que reúne esses conceitos,
construir uma versão melhor de nós mesmos, no nosso entender, é o interesse profundo.
mais preparada para enfrentar o mundo, por- Não devemos confundi-lo com uma mera
P
que seremos testados e desafiados o tempo curiosidade. Ele está longe de ser um pas-
todo pela vida. Se acontecimentos imprevi- satempo. Um interesse é algo que nos mo-
síveis desviarem o nosso sonho, podemos, biliza para um destino, ou seja, para uma
se bem preparados, ser resilientes e buscar maneira de desenvolver algo que está em
outros caminhos para realizá-lo. Essa resi- nós. Quando reconhecemos nosso interes-
IA
liência pode ser conquistada se criarmos o se, descobrimos que ele atua em nossas
hábito de nos desafiarmos, de nos colocar- vidas como uma força gravitacional e que
mos constantemente à prova. o resto gira em torno dele,
O foco deste capítulo é a re- como os planetas
lação entre autoconheci- EX
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giram em tor-
mento, protagonismo e
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no do Sol.
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podemos pensar em alguns exemplos. Era é uma parte essencial da nossa saúde e do
muito comum, entre os antigos gregos (e ain- nosso bem-estar, exigem preparação.
da é entre os árabes), jejuar para dar valor
ao alimento. Costumava-se, no fim de cada
L
dia, antes de dormir, repassar na memória
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VOBIA?
as ocorrências do dia, o que se fez de errado,
onde se acertou e refletir no que poderia ter
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sido feito de forma diferente.
N
A prática pode se relacionar a hipóteses
sobre a fortuna, como sendo ela passageira
O uso da palavra “fortuna” não es-
e sem garantias de que se repita, ou sobre
tá relacionado ao simples acúmulo de
o infortúnio, de modo que este seja assimi-
dinheiro ou bens, mas sim à sorte dos
P
lado como parte da vida. O cuidado próprio
acontecimentos. Esse sentido do termo
de uma atenção constante com o lado obs-
deriva da deusa romana Fortuna, que cor-
curo da vida, por exemplo, quando pensa-
responde, na mitologia grega, à deusa
mos em nossa própria morte ou na morte de
Tique. Essa divindade era responsável
pessoas que amamos, pode dar ao sujeito
por dirigir todos os destinos e aconteci-
IA
uma espécie de musculatura espiritual, uma
mentos da vida humana (bons ou maus)
resistência em seu ânimo. Pode prepará-lo
e distribuía riquezas ao acaso.
para o momento em que essas coisas de fato
aconteçam. Portanto, a prática de si é uma
preparação para agir diante do inespera-
do, pois, mesmo sabendo que coisas como
a velhice e a morte acontecerão, podemos
U
MUSEU DO VATICANO
Imagem da
deusa Tique.
ASMIANA/ SHUTTERSTOCK
D
lembrar de dar valor às coisas boas que esses sentimentos, eles acabam reprimidos
acontecem, como encontros com pessoas e encontram uma forma de se manifestar
com quem estabelecemos boas trocas ou em nossas ações e, até mesmo, em nosso
quando, ao viajar, conhecemos lugares e for- corpo, que pode adoecer. Os psicanalistas
L
mas diferentes de viver. Do contrário, a vida chamam essas manifestações de sintomas
vai parecer muito penosa, e uma vida com- e, embora suas causas pareçam ocultas em
preendida dessa maneira é um entrave que nosso inconsciente, elas podem atrapalhar
mina o ânimo e dificulta nossas conquistas. muito a vida, aumentando os obstáculos e as
N
Uma vida com essas amarras pode acabar dificuldades. Os sintomas são sinais de que
se tornando uma profecia autorrealizada. precisamos dar mais atenção a nós mesmos,
Dizem que, quando um jogador de fute- enfrentando os problemas em suas raízes,
bol se dedica bastante aos treinos, ele chega por mais profundas que sejam.
P
preparado à partida e consegue fazer seu A prática de si amplia o repertório de
melhor. Mas, se ele treina de forma displicen- caminhos e soluções. Algumas vezes, a supe-
te, seu rendimento na partida nunca será tão ração pode residir em aceitar coisas que não
bom quanto poderia ser. Um jogador muito podemos alterar, como é o caso da morte,
talentoso e sem treinamento pode ter um ren- ou em descobrir uma crença que reconforte
IA
dimento aquém do jogador que é menos ta- nosso ânimo. Por mais que a morte faça par-
lentoso, mas que se dedica disciplinadamen- te da nossa existência, nossos sentimentos
te aos treinos. A falta de treino pode levar a podem se revoltar contra isso. Da mesma
um grande desperdício de talento, que é uma forma, eles podem se rebelar contra nossos
forma de nos referirmos aos interesses pro- interesses profundos, quando pensamos que
fundos, porque é no exercício que ele mais os outros não irão nos aceitar como somos,
encontra oportunidade de se desenvolver.
U
e tristeza.
G
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tecipação de acontecimentos, a
CK
| 33
gerando, no interior da pessoa, um conflito 2.1 “O OLHO TORTO DE
D
entre satisfazer aos outros ou a si mesma. Por
ALEXANDRE”, DE
isso, às vezes pensamos já ter compreendido
algumas coisas que não foram devidamente GRACILIANO RAMOS
elaboradas.
L
Antigamente, acreditava-se que os mais
velhos compensavam com a sabedoria a
Realidade e ficção
Nas páginas iniciais de apresentação do
perda da força física da velhice, mas que
seu livro Alexandre e outros heróis1, o ala-
tanto uma quanto a outra, sabedoria e força
N
goano Graciliano Ramos se dirige a nós, lei-
física, não são conquistadas sem exercício. É
tores, para apontar a fonte das suas histórias:
isso o que, como veremos adiante, pretendia
“não são originais: pertencem ao folclore do
Sócrates ao interromper os jovens na praça
Nordeste, e é possível que algumas tenham
pública para questionar se, em vez de se
sido escritas”.
P
ocuparem com a fama e a riqueza, já haviam
Somos ambientados no lugar onde aque-
se ocupado de si mesmos. Por trás dessa
les relatos se passam e levados a acreditar
atitude inquiridora, própria de um mestre que
no que será narrado. Mas em que devemos
não ensina um conteúdo, mas uma prática,
acreditar? Seria essa uma referência ver-
havia a compreensão de que não é errado
dadeira ou será um artifício do autor para
IA
as pessoas procurarem reconhecimento e
nos persuadir de que seus relatos, por mais
conforto material, mas que o maior bem que
extraordinários que pareçam, são verossí-
podemos conquistar está em nós mesmos;
meis? E, se nem tudo é factual, o que seria
está naquilo que podemos ser. Isso supõe
propriamente verdadeiro?
o autoconhecimento, e todos os outros bens
devem vir em consequência deste. RAMOS, Graciliano. Alexandre
1
Quando somos jovens, pode não ser fácil e outros heróis. Rio de Janeiro:
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racional. Há nessas escolhas um aspecto N
O
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afetivo, que podemos elaborar por meio da R
AC
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nossa identificação com outras pessoas, que N
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podem ser amigos, familiares, professores e SP
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outros profissionais que admiramos. Essas I EB
O
IV
pessoas podem ser também personagens RQ
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A
da literatura que passam por experiências
semelhantes às nossas. E é dessas escolhas
e formas de ver o mundo que tratam as
obras literárias que se seguem.
Graciliano Ramos.
D
abertura ao extraordinário.
L
• Há relação entre esses eventos e a obra? Qual?
Como veremos, Graciliano joga com os Dores –, já que algumas vezes estes, sobretudo
N
limites entre verdade e fantasia, realidade e Firmino, colocam-lhe questões e objeções.
ficção, com o que é literal e o que é metafórico, O que melhor caracteriza Alexandre é que
indicando que o que pretende é apresentar co- ele “tinha um olho torto e falava cuspindo a
mo mais verdadeiro algo que pode estar além gente”. Podemos compreender desses dois de-
P
dos fatos descritos, ou seja, uma significação da talhes o que é necessário para ser um grande
vida. Os fatos se somam a metáforas para reve- contador de histórias, ou seja, ver um pouco fora
lar algo verdadeiro sobre a condição humana. e além das coisas imediatas e deixar dançar
Como bom proseador de histórias da a língua, contando os fatos com entusiasmo.
própria juventude, Alexandre, já com idade
“Uma escuridão medonha”
IA
avançada, usufrui de bastante tempo livre.
Pode reunir os amigos em casa e passar o dia A primeira historieta que Alexandre
contando os casos que viveu e aos quais as- anuncia aos seus compadres deveria tratar
sistiu. Para tratar dos detalhes da sua história, das razões que deixaram torto o seu olho
e como artifício para torná-los convincentes a esquerdo – tema ao qual voltaremos em bre-
seus ouvintes, Alexandre busca sempre o apoio ve. Para a surpresa dos presentes, o caso
de sua mulher, Cesária. Dela, em nenhum mo- parece se desviar a um ocorrido na juven-
U
mento e a respeito de coisa alguma, Alexandre tude de Alexandre. Ele estava “no copiar,
discorda, o que não ocorre com seus outros esgaravatando a unha com a faca de pon-
ouvintes – Libório, Firmino, Gaudêncio e Das ta”, ou seja, em um cotidiano tranquilo, sem
DIVULGAÇÃO/ GLOBO FILMES
G ÃO
ODUÇ
REPR
| 35
Professor(a), para entender as relações de poder social e econômico que compõem a valorização de determinadas
variações linguísticas e a desvalorização de outras, confira o livro Preconceito linguístico: o que é, como se faz, de Marcos
Bagno. se preocupar com nada muito importante, Entretido, esqueci o almoço e à tardinha des-
D
quando seu pai aparece para perguntar o cansei no bebedouro, vendo o gado enterrar os pés
na lama. Apareceram bois, cavalos e miunça, mas da
paradeiro de uma égua. Alexandre respon-
égua pampa nem sinal. Anoiteceu, um pedaço de
de que não sabia de nada; então seu pai lhe
lua branqueou os xiquexiques e os mandacarus, e
L
ordena que “dê umas voltas por aí”, para
eu me estirei na ribanceira do rio, de papo para o ar,
ver se a encontra. “Nhor sim”, ele responde, olhando o céu, fui-me amadornando devagarinho,
partindo em sua busca. peguei no sono, com o pensamento em Cesária.
N
PARA
REFLETIR
P
Graciliano Ramos trabalha com um lé- nas gírias que você fala? Elas são um tipo de
xico regional, ou seja, com um vocabulário uso específico da língua, que é característi-
próprio de uma região do Brasil. Quando co de um contexto cultural. Essas variações
olhamos para a língua portuguesa no país, demonstram a riqueza da língua materna,
vemos uma série de variações linguísticas, além de nos mostrar que, na verdade, não
IA
expressões e modos de usar a língua especí- há um jeito mais ou menos correto de falar;
ficos. Por exemplo, você já prestou atenção o importante é ser compreendido.
se deixa estar. Ele sai à procura da égua de instante, ficou se perguntando o que fazer.
papo para o ar, com o pensamento longe em Preocupado com a satisfação que deveria
Cesária, e a tarde agradável passa até o sono dar a seu pai, Alexandre decidiu a solução
alcançá-lo. Podemos supor: tudo isso é um só mais destrambelhada.
longo sono? Deixar-se levar pela ordem do pai
G
será mesmo uma forma de se mobilizar? Até Passei o cabresto no focinho da bicha e, os
aqui, que apareça ou não a égua, nada reti- calcanhares presos nos vazios, deitei-me, grudei-
ra Alexandre da preguiça sem fim de quem -me com ela, mas antes levei muita pancada de
não precisa se preocupar com nada. Dessa galho e muito arranhão de espinho rasga beiço.
distração, entretanto, surgirá a transfiguração Fui cair numa touceira cheia de espetos, um deles
do mundo e sua própria transformação. esfolou-me a cara, e nem senti a ferida: num aper-
Alexandre dormiu na campina e, ao to tão grande não ia ocupar-me com semelhante
despertar sob “uma escuridão medonha”, ninharia. Botei-me para fora dali, a custo, bem
sente-se inseguro, com muito medo. Até con- maltratado. Não sabia a natureza do estrago mas
fessa aos seus ouvintes: “Tive desejo de voltar pareceu-me que deveria estar com a roupa em tiras
para casa, mas o corpo morrinhento não me e o rosto lanhado.
D
em seu propósito, Alexandre reúne uma co- Vossemecês adivinham o que estava amarrado no
ragem imprudente. Nesta passagem, conhe- mourão? Uma onça pintada, enorme, da altura
cemos o que ocorreu com seu olho esquer- de um cavalo. Foi por causa das pintas brancas
do, o olho torto. Como, no entanto, o próprio que eu, no escuro, tomei aquela desgraçada pela
L
Alexandre, preocupado com a captura da égua pampa.
égua, não percebeu o “estrago”, a história
ainda segue voltada ao foco paralelo. Ele A história anunciada do seu olho torto, e
luta “com puxavantes de cabresto, murros que parecia ter se perdido num caso parale-
N
na cabeça e pancadas nos queixos”. Porém, lo, começa, portanto, com um prévio engano
depois de vencê-la, já com a bicha resigna- da visão, quer dizer, em razão de uma visão
da dentro do cercado da fazenda, e sob o já enviesada. Precisamente por não ter con-
espanto do seu pai e de todos os familiares, seguido discernir a égua da onça, Alexandre
P
Alexandre enfim abrange a aventura em se acidenta no caminho e acorda do seu sono
que inocentemente enveredou: para uma situação de crise.
PARA
IA
REFLETIR
Você sabe o que significa “capacitismo”? Capacitismo é o nome do preconceito con-
tra pessoas com deficiência. Nesse conto, o uso da linguagem comum pode dar margem
ao preconceito. Devemos destacar a autoconfiança, a criatividade e as experiências do
protagonista. Alexandre não apenas estimula o respeito às particulares, mas ensina que
U
Amadornar: cochilar.
Cabresto: correia amarrada ao focinho que serve para controlar a marcha do animal.
Lanhado: cortado, ferido.
Mandacaru: cacto espinhento típico do semiárido brasileiro.
Miunça: gado de cabras ou ovelhas.
Mourão: estaca que sustenta a cerca.
Pampa (égua): que tem uma mancha visível no corpo que difere da cor predominante.
Touceira: moita, acúmulo de plantas.
Variação linguística: fenômeno de diversificação da língua, devido a questões históricas, cultu-
rais e regionais.
Xiquexique: cacto típico da região árida brasileira.
| 37
A distração de Alexandre Isso o leva a reconstituí-los, a procurar suas
D
O que poderia ser tomado como um des- causas. Da visão que não percebe os riscos
vio da história anunciada tem como função e considera apenas o que precisava encon-
mostrar que a deficiência da sua visão não trar para satisfazer a outro, seu pai, surgirá
incidiu por acaso. Ela ocorreu, na verdade, uma sensibilidade extraordinária. Sua visão
L
porque lhe faltara a clareza, como sempre própria nasce no momento em que ele refaz
deve faltar a quem vive apenas no copiar, por sua deliberação o percurso que então
embora já lhe sobrasse fantasia. Se pode apenas cumprira “no copiar”.
parecer que ele apenas se equivocou por ter A trajetória anterior, de sua aventura, será
N
andado distraído, é preciso ver que a aventu- refeita e, dessa segunda vez, nesse copiar que
ra permite que ele desenvolva sua vocação não é mais uma repetição, e sim uma elabora-
para a fantasia, ou seja, para se tornar um ção e uma reflexão sobre o que viveu, nascerá
contador de histórias. sua nova perspectiva, a saber, a de contador
P
REPRODUÇÃO de fabulosas histórias. Afinal, a primeira his-
tória, que justifica o olho torto, é também a his-
tória das condições pelas quais ele se tornou
um contador de histórias. É preciso conhecer
o modo pelo qual o menino surpreendido pela
IA
própria falta se torna um autor – um autor que
conta casos que misturam a realidade com a
fantasia, mas sobretudo o autor de uma gran-
de e autêntica visão da vida.
Na parte seguinte da narrativa, o propó-
sito de contar seu “defeito” se revela apenas
pretexto para demonstrar por que “o olho
U
Capa do livro Alexandre e outros heróis (2005), Alexandre percebeu o que lhe faltava e de co-
de Graciliano Ramos.
mo essa descoberta proporcionou a ele uma
Aquilo de que ele estava de fato mais capacidade de ver além das coisas habituais.
distraído era a sua vocação, de modo que
foi preciso que uma crise acontecesse para Uma desgraça, meus amigos, nem queiram
que ele pudesse assumi-la. Até então, o que saber. Antes de me espiar no vidro, tive uma sur-
ele via era o que lhe era ordenado ver, o que presa: notei que só distinguia metade das pessoas
seu pai queria que ele encontrasse. e das coisas. Era extraordinário. Minha mãe esta-
A descoberta da sua confusão e da va diante de mim, e, por mais que me esforçasse,
aventura em que se colocou faz com que eu não conseguia ver todo o corpo dela. Meu ir-
ele reflita sobre aqueles acontecimentos. mão me aparecia com um braço e uma perna, e o
D
era um pedaço de espelho. “Que trapalhada será
esta?”, disse comigo. E nada de atinar com a expli-
cação. Quando me vi no caco de vidro é que per- REFLETIR
cebi o negócio. Estava com o focinho em miséria: Essa história lembra a dos prisionei-
L
arranhado, lanhado, cortado, e o pior é que o olho ros da caverna de Platão, que conseguem
esquerdo tinha levado sumiço. A princípio não ver apenas as sombras de figuras que ou-
assuntei o tamanho do desastre, porque só avistava tras pessoas projetam de uma fogueira
uma banda do rosto. Mas virando o espelho, via o colocada atrás deles. Como tudo o que
N
outro lado, enquanto o primeiro se sumia. viram desde o nascimento foram essas
sombras, os prisioneiros acreditam que as
Enquanto focou na tarefa de domar a égua, sombras são a própria realidade. É preciso
que era na verdade uma onça, Alexandre não que o prisioneiro rompa seus grilhões e
P
percebeu a sua condição. Não foi capaz de olhe diretamente para a chama para com-
ver que não via. Toda sua visão recaía sobre preender que estava preso a um estado
o esforço em se convencer a ter coragem para de alienação. Como em toda crise, seus
dominar a fera a todo custo. Quando, porém, olhos doem ao encararem diretamente a
apontam o que lhe falta, o orgulhoso olho da luz. Mas ele segue em frente, sai da caver-
IA
vontade empaca, vacila. Agora, ao perceber na e descobre com seus próprios olhos
o perigo corrido, e preocupado com sua in- que havia outra realidade anteriormente
tegridade, porque ele via também o olhar de desconhecida. O prisioneiro da caverna de
preocupação dos outros, ele repara que algo Platão passa também por um despertar,
está faltando nele e em seu modo de ver. mas se, em seu caso, trata-se da constru-
Ao saber que a vontade não apenas ção do conhecimento efetivo, no caso de
não pode dar, mas faz-lhe perder a clare- Alexandre, seu protagonismo, sua visão
U
za, Alexandre se sente amuado, como se autêntica, consiste no modo pelo qual
tivesse sido iludido. Se não pela vontade, se suas próprias experiências dirigem a ela-
não montando nas feras e acertando-lhes boração das suas fantasias e na forma pela
murros no queixo, como poderá suprir a falta qual elas podem ser tão extraordinárias
que vê e que sente? Será, acaso, com rezas? para retratar a significação da vida.
G
| 39
A introspecção de Alexandre que se mexiam na minha cabeça. Refletindo, con-
D
Alexandre encontra-se inseguro e busca segui adivinhar a razão daquele milagre: o olho
a solidão. Sem se resignar, porém, acaba havia sido colocado pelo avesso.
encontrando uma modesta esperança, que
vem a ser: a possibilidade de refazer o ca- Pode parecer que foi de modo abrupto,
L
minho em que se perdera e, ali, reencontrar “de supetão”, que Alexandre reencontrou seu
o olho. Ele acredita que não terá de volta a olho, mas ele não poderia reencontrá-lo se não
visão, mas ao menos, tapando “aquele bu- estivesse à sua procura – uma procura não
raco vermelho”, o olho restituiria a sua “boa como fora a da égua, mas uma procura verda-
N
figura”. Alexandre acredita que, embora con- deiramente interessada. O olho que bateu em
denado a ver de modo precário as pessoas sua cara é como um olhar que se reencontra
e todo o resto, pior é que elas o vejam nesse e se redescobre nessa procura interessada.
estado precário, ou seja, que vejam o que Ele descobre uma verdade sobre si mesmo.
P
nele é faltoso. É, portanto, preenchendo aos Se antes caíra em distração, e pensando ter
vencido ele havia perdido algo mais valioso,
olhos dos outros a sua própria figura que ele
ele recobra-se, agora, introvertendo, voltan-
espera restituir a sua integridade.
do-se a si mesmo, ao interior. O olho já esta-
Assim, ele tenta reconstituir o caminho
va empoeirado e às moscas, mas, de modo
que fez… E o que ele encontra? Quem es-
IA
inesperado, o olho funciona, remetido a uma
pera por ele?
direção ou estímulo diferente. O olho que o
descobre é uma metáfora do que ele aprende
E já estava desanimando quando o infeliz me
de uma motivação própria, em seu caminho
bateu na cara de supetão, murcho, seco, espetado
próprio, como uma descoberta de si mesmo.
na ponta de um garrancho todo coberto de moscas.
Essa descoberta pela reflexão será apre-
Peguei nele com muito cuidado, limpei-o na manga
sentada de forma metafórica. “Encaixado no
da camisa para tirar a poeira, depois encaixei-o no
U
de pessoas em que eu pensava naquele momento. seus próprios pensamentos, ou seja, um olhar
Sim senhores, vi meu pai, minha mãe, meu irmão reflexivo e especulativo, mas a princípio, de
tenente, os negros, tudo miudinho, do tamanho de tão diferente, este lhe faz até especular estar
caroços de milho. É verdade. Baixando a vista, per- “malucando”. Enquanto vê o interior do corpo
cebi o coração, as tripas, o bofe, nem sei que mais. e aprende com a experiência como a ima-
Assombrei-me. Estaria malucando? Enquanto gem de tudo toca nosso corpo diretamente, vê
enxergava o interior do corpo, via também o que
estava fora, as catingueiras, os mandacarus, o céu e Bofe: pulmão.
a moita de espinhos, mas tudo isso aparecia corta- Catingueira: planta também conhecida co-
mo pau-de-rato, típica do bioma Caatinga.
do, como já expliquei: havia apenas uma parte das
plantas, do céu, do coração, das tripas, das figuras Garrancho: ramo tortuoso de árvore.
D
e de fora, estando disperso, assim separado, para ver, e isso bem sabe todo bom contador de
segue como se tivesse uma metade subtraída. histórias, também é preciso preencher lacunas.
Aos poucos, as experiências da visão
se tornam para Alexandre mais complexas. Meti o dedo no buraco do rosto, virei o olho
L
Esse percurso demonstra como o alcance e e tudo se tornou direito, sim senhores. Aqueles
a acuidade da visão requerem a sua dedica- troços do interior se sumiram, mas o mundo verda-
ção. Apenas ao se dar conta da implicação deiro ficou mais perfeito que antigamente. Quando
entre a falta nas coisas e a falta em si mes- me vi no espelho, depois, é que notei que o olho
N
mo, ele pode utilizar algo que tem de sobra, estava torto. Valia a pena consertá-lo? Não valia,
sua fantasia, para reconstituir um contorno foi o que eu disse comigo. Para que bulir no que
diferenciado para as coisas. Se há uma im- está quieto? E acreditem vossemecês que este olho
plicação entre a falta nelas e a falta nele, atravessado é melhor que o outro.
P
também pode haver uma implicação entre
a sua fantasia e a forma das coisas. É esse Quando Alexandre se lança novamente
olhar diferenciado que mais interessa aos em uma busca, ele o faz para encontrar antes
outros, ouvintes de Alexandre e leitores de de tudo a si mesmo, que foi o que ele havia per-
Graciliano Ramos. Quando o olho volta para dido na luta. Esse é o verdadeiro início, mesmo
IA
o seu lugar, ele não retorna para ver as coi- não sendo o começo da sua história, porque é
sas exatas, corretamente. Ele retorna para o início do seu protagonismo e da sua autoria.
ver as coisas desde a perspectiva da sua Alexandre, então, sabe que o mundo verdadei-
experiência, da sua aventura. ro é o que pode ficar mais perfeito, ainda que
Afinal, refletindo sobre as coisas de den- por resultado de um olho atravessado.
tro e de fora, coração, memória, pensamento,
espinhos e céu, os avessos puderam compor Bulir: incomodar, mexer.
U
| 41
Competência Geral 8
Linguagens: Competência 4
EM13LGG402
castigada caso não o faça ou premiada caso
D
PROPOSTAS faça, mas porque ela entrou voluntariamen-
te em acordo com o princípio.
Como mostrado anteriormente, Kant
DE VIVÊNCIAS entende que a maturidade vem por meio do
L
esclarecimento, ou seja, do conhecimento
que nos leva a pensar por nós mesmos, com
2.1.1 AUTONOMIA E a nossa própria cabeça. “Sapere aude”, ele
CUIDADO DE SI diz, citando um poeta antigo, ou seja: ouse
N
saber. Tenha a coragem de saber!
O Esclarecimento é a libertação do homem de A grande questão que Kant destaca nes-
sua imaturidade autoimposta. Imaturidade é a inca- se processo de alcançar a maturidade, a auto-
pacidade de empregar seu próprio entendimento nomia, é a coragem, a ousadia. Talvez possa-
sem a orientação de outro. Tal tutela é autoimposta
P
mos fazer coro com uma frase de Guimarães
quando sua causa não reside em falta de razão, Rosa, que diz:
mas de determinação e coragem para usá-lo sem
a direção de outro. Sapere Aude! Tenha coragem O correr da vida embrulha tudo. A vida é assim:
de usar sua própria mente! esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e de-
Immanuel Kant1
IA
pois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem.2
Alexandre, ao contar a sua história, narra Quando olhamos para a ficção, pode-
seu caminho em direção à autonomia. Você mos lembrar de várias histórias parecidas
sabe o que essa palavra significa? Alguém é com essas. Personagens que eram subme-
autônomo quando consegue tomar as próprias tidos às vontades alheias e que, quando de-
decisões por si mesmo, pela própria consciên- safiados, decidem romper com a dependên-
U
cia, ou seja, não porque obedece a regras arbi- cia, viver a própria vida e encarar a aventura
trárias ou porque quer agradar os outros. de ser autônomo. Esse tipo de narrativa é
Na história de Alexandre, isso se mostra chamada de “jornada do herói”. A jornada
por meio da descoberta do próprio interesse do herói (também conhecida como “mono-
profundo, deixando de lado as ações que ele mito”) é um modelo de narração sobre a
G
fazia só por causa das ordens que recebeu vida de uma pessoa que o antropólogo
do pai, enquanto vivia a vida só a “copiar”. Joseph Campbell identificou em vários mi-
Muitos pensadores refletiram sobre a tos ao redor do mundo. Essa estrutura nar-
autonomia. Um deles é Jean Piaget, que rativa é usada para contar histórias até hoje,
define autonomia como o momento em seja em livros, seja em filmes.
que a criança consegue não só entender as
regras, mas entender o princípio delas. As- 1. Com isso em mente, faça uma breve
sim, ela não obedece às regras porque será pesquisa na internet sobre os passos
1
KANT, Immanuel. Resposta à questão: O que é da jornada do herói.
esclarecimento? Trad. Marcio Pugliesi. Cognitio:
Revista de Filosofia, São Paulo, v. 13, n. 1. jan./jun. 2012. ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de
2
Orientações pedagógicas: Tempo: 4 horas/aula: 1. Leitura coletiva, pesquisa sobre monomito e paralelo com um
personagem da ficção; 2. (Uma semana depois) trazer as fotos individuais e organização da narrativa imagética; 3.
42 | 2. AUTOCONHECIMENTO | o encontro consigo
2. Em seguida, pense no seu personagem você não se identifique, ou seja, não
D
de ficção favorito e veja se a história dele ponha o seu nome.
se encaixa nessa estrutura. Escreva os 2. Em s e g uid a, e s s e s pa p éi s s e r ã o
episódios da vida dele que correspondem redistribuídos, de modo que cada um
a cada passo da jornada. fique com a descrição que não é sua.
L
3. Depois, faça uma reflexão a respeito da 3. Logo após, cada um deve desenhar, no
sua própria vida. Para tanto, junte fotos verso da folha que recebeu, a pessoa
suas que você considera significativas descrita.
para narrar o seu processo de autonomia, 4. Depois, toda a turma deverá fazer uma
N
sua jornada de herói. Essas fotos podem roda e apresentar os desenhos. Vocês
estar reveladas, impressas ou on-line. terão que adivinhar quem é a pessoa
4. Monte um álbum e compartilhe com desenhada.
seus amigos. Se desejar, você pode
P
incluir na sua história as coisas que Após essa última etapa, a turma pode-
deseja conquistar no futuro. rá refletir sobre a distância que pode existir
entre aquilo que somos, aquilo que descre-
vemos e aquilo que as pessoas veem de nós.
2.1.2 OLHAR PARA SI Para sermos conscientes do nosso caminho
IA
autônomo, é necessário sempre exercitar a
Ao narrar a trajetória de Alexandre, o sensibilidade dessa percepção, pois ela é
conto tem seu ápice quando o personagem um passo fundamental para a elaboração
encaixa o olho ao contrário e olha para den- das nossas narrativas sobre nós mesmos.
tro de si. No conto, ele vê seus órgãos, me- Competência Geral 8
Linguagens: Competência 4
mórias e ideias. Porém, podemos tomar isso EM13LGG402
como uma metáfora, uma imagem.
U
K
ST O C
TER
Qual é a imagem que temos de nós M/
SH
UT
CO
mesmos? Até que ponto essa imagem cor- XE
L.
PI
responde à visão que os outros têm de
W
RA
Exposição dos álbuns e fechamento do(a) professor(a). Espaço: sala de aula e sala de tecnologia (para a pesquisa).
Agrupamentos: atividade individual. Materiais: uma folha pautada e uma caneta para cada aluno, computadores
para a pesquisa e para a exposição dos álbuns (caso sejam digitais). Mais orientações no Manual.
| 43
Em Descartes, trata-se da alma compreendida como subjetividade racional, descoberta pela dúvida radical:
posso duvidar de tudo, menos de que existo como uma alma que pensa, pois é evidente que, ao ter dúvidas,
existe algo em mim que pensa.
2.2 “O ESPELHO”, DE Antes de conhecê-la, para identificar-
D
mos em que consiste sua novidade, vejamos
MACHADO DE ASSIS
aspectos notáveis de outras teorias da alma
humana. A primeira que destacamos é en-
As teorias da alma contrada na obra Fedro, de Platão3. Nela a
L
alma é dividida em três partes:
O conto “O espelho”, de Machado de
Assis1, tem um subtítulo esclarecedor, que A alma pode ser comparada com uma força
mostra que o texto trata de algo além da natural e ativa, constituída por um carro puxa-
N
ficção: “Esboço de uma nova teoria da al- do por uma parelha alada e conduzido por um
ma humana”. A ambição não é pequena,
mas, tratando-se de Machado de Assis, 3
PLATÃO. Fedro. Trad. Alex Marins. São Paulo: Martins
Claret, 2005.
também não é despropositada.
P
Todas as culturas, do Oriente ao
Ocidente, desde tempos remotos, produzi-
ram, por meio dos seus grandes gênios, con-
cepções da alma humana.2 Platão, Descartes
e Goethe são apenas alguns exemplos de
IA
autores que se dedicaram à questão. Em
Machado de Assis, autor nascido no Rio
de Janeiro em 1839, encontramos uma
“nova teoria” – aparentemente coberta
de modéstia, porque se apresenta ape-
nas como um “esboço”.
MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. O espelho.
1
U
DOMÍNIO PÚBLICO
G
CAIXA HISTÓRICA:
PESQUISE
Machado de Assis.
Na obra Fausto, Goethe explora o tradicional caso de um homem que vende sua alma ao diabo, Mefistófeles,
para realizar seu projeto de vida, que consiste em ter poderes para transformar o mundo natural em algo criado por
ele. Diferentemente de Descartes, a alma aqui não é tratada como dimensão racional, mas como dimensão moral.
44 | 2. AUTOCONHECIMENTO | o encontro consigo
cocheiro. Os cavalos e os cocheiros das almas perseguir prazeres imediatos. O que Platão
D
divinas são bons e de boa raça, mas os dos outros procura retratar é a dinâmica de conflito no
seres são mestiços. O cocheiro que nos governa interior de cada alma, entre a parte racional
rege uma parelha na qual um dos cavalos é belo e e a passional. A preferência pela primeira
bom, de boa raça, enquanto o outro é de raça ruim costuma ser a mais presente em nossa tra-
L
e de natureza arrevesada. Assim, conduzir nosso dição de pensamento, da religião à filosofia,
carro é ofício difícil e penoso. (...) O cavalo bom mas ela implica também o reconhecimento
tem um corpo bonito; pescoço altivo, focinho da existência dessa outra parte, formada
curvo, cor branca, olhos pretos; ama a honestida- pelas paixões.
N
de e é dotado de sobriedade e pudor, amigo como
é da opinião certa. Não deve ser fustigado e sim
dirigido apenas pelo comando e pela palavra. O
PARA
outro – o mau – é torto e disforme; segue o cami-
P
nho sem firmeza; com o pescoço baixo, tem um
focinho achatado e a sua cor é preta; seus olhos
de coruja são estriados de sangue; é amigo da
REFLETIR
soberba e da lascívia; tem as orelhas cobertas de Há na alegoria/imagem propos-
pelos. Obedece apenas a contragosto, ao chicote ta por Platão uma descrição que nos
IA
e ao açoite. dias de hoje poderíamos relacionar
ao racismo. A separação entre os de
Em vez de definir a alma, Platão apre- “boa raça” e os “mestiços” e a rela-
senta uma metáfora. Nela, a alma é com- ção entre o cavalo bom e a cor bran-
parada a uma carruagem que tem três ele- ca e o mau e a cor preta podem ser
mentos: o cocheiro, um cavalo alado fácil de usadas para reprodução desse pre-
governar e outro arredio. O cocheiro quer conceito racial. Novamente, devemos
U
que eles se elevem aos céus, em direção nos atentar à nossa linguagem e ao
às coisas divinas, mas o segundo cavalo que algumas ideias podem significar
os impede por impor sua vontade, que é na atualidade.
G
| 45
C Ê
D
Entre a razão e a paixão
Nem todos os autores farão o elogio da O
V BIA?
SA
razão em detrimento da paixão. Em Elogio
da loucura, Erasmo de Rotterdam1 afirma
L
que nos homens a “dose das paixões” é
predominante: O estoicismo foi uma escola de pen-
samento fundada por Zenão de Cítio no
Segundo a definição dos estoicos, sábio é século III a.C. e seguida por eminentes
aquele que vive de acordo com as regras da razão, personagens romanos como Sêneca e o
N
e louco, ao contrário, é aquele que se deixa arrastar imperador Marco Aurélio. Essa filosofia
ao sabor das suas paixões. Eis porque Júpiter, com consiste na ideia de que o prazer é um
receio de que a vida do homem se tornasse triste e inimigo do homem sábio, que só deve-
infeliz, achou conveniente aumentar muito mais mos desejar aquilo que nossa razão nos
P
a dose das paixões que a da razão, de forma que autoriza e que a virtude é o verdadeiro
vinte e quatro.
reconhecendo que elas estão integradas
Para tratar de uma alma em que predo- em nossa subjetividade, precisando ser cul-
IA
minam as paixões, Erasmo precisa se referir tivadas e atendidas para alcançarmos um
a um deus diferente do deus cristão – no ca- equilíbrio psíquico. Não podemos desenvol-
so, Júpiter. E ele a teria feito desse jeito não ver a razão sem cuidar das emoções,
buscando o mal para as pessoas, mas para como também não é bom cuidar
tornar suas vidas mais felizes. Insistindo na dos afetos sem se preocupar
W
AY
referência à cultura grega, Erasmo propõe com o bom senso.
HO
M
que se trata de uma concepção de felicidade
U
ES
TU
S H U T T E R ST O C
NG
EL
TE
K
OCK
1
ROTTERDAM, Erasmo de. Elogio da loucura. Trad. Equilíbrio entre emoções e reações
Paulo M. de Oliveira. São Paulo: Edipro, 2015. precisa ser a preocupação de todos.
D
viveu no século XX e pode ainda ser conside- senta a fábula de Higino:
rado um filósofo atual, investigou como pode-
mos nos voltar a projetos pessoais partindo Certa vez, atravessando um rio, Cuidado viu um
de situações no mundo, que sempre envolvem pedaço de terra argilosa: cogitando, tomou um pedaço
L
o lugar e o momento histórico em que nasce- e começou a lhe dar forma. Enquanto refletia sobre o
mos, os valores que herdamos, nossa relação que criara, interveio Júpiter. Cuidado pediu-lhe que
com os outros, entre diversos outros fatores. desse espírito à forma de argila, o que ele fez de bom
Ele reconheceu a dificuldade, diante desse grado. Como Cuidado quis então dar seu nome ao que
N
conjunto de influências, de perseguirmos um tinha dado forma, Júpiter a proibiu e exigiu que fosse
projeto radicalmente próprio e analisou os dado o seu nome. Enquanto Cuidado e Júpiter dispu-
afetos que correspondem aos modos de en- tavam sobre o nome, surgiu também a Terra (tellus)
carar nossa existência. Por exemplo, alguém querendo dar o seu nome, uma vez que havia fornecido
um pedaço de seu corpo. Os disputantes tomaram
P
que vive totalmente conforme as orientações
dos outros – pais, familiares, amigos ou a so- Saturno como árbitro. Saturno pronunciou a seguinte
ciedade em geral – pode sentir um tédio pro- decisão, aparentemente equitativa: “Tu, Júpiter, por
fundo. Alguém em crise com as orientações teres dado o espírito, deves receber na morte o espírito
que recebeu e que se vê diante da necessi- e tu, Terra, por teres dado o corpo, deves receber o
IA
dade de encontrar sentidos próprios para sua corpo. Como, porém, foi Cuidado quem primeiro o
existência pode sentir uma grande angústia. formou, ele deve pertencer ao Cuidado enquanto viver.
Portanto, os afetos não são sentimentos iso- Como, no entanto, sobre o nome há disputa, ele deve
lados no íntimo de cada um. Eles revelam os se chamar ‘homo’, pois foi feito de húmus (terra fértil)”.
modos pelos quais cada pessoa interage
dedicar a vida ao cuidado, como uma dívida Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2006.
Estoicos: filósofos da escola estoica (que surgiu em, aproximadamente, 300 a.C., na Grécia)
que tinham como objetivo atingir a tranquilidade de espírito (ataraxia) controlando as paixões
e emoções por meio da razão.
Cogitar: pensar, refletir com insistência e atenção.
| 47
Assim como fez a deusa, é pelo cuidado podem ficar de boca aberta, dar de ombros, tudo;
D
que damos forma à vida humana. E isso im- não admito réplica. Se me replicarem, acabo o cha-
plica um cuidado com a alma e com o corpo ruto e vou dormir. A alma exterior pode ser um
ao mesmo tempo, pois essa separação se espírito, um fluido, um homem, muitos homens,
dá somente na morte. A vida não é um cui- um objeto, uma operação. Há casos, por exemplo,
L
dado com a alma em detrimento do corpo em que um simples botão de camisa é a alma exte-
nem o oposto, um cuidado com o corpo em rior de uma pessoa; – e assim também a polca, o
detrimento da alma. A vida é um movimento voltarete, um livro, uma máquina, um par de botas,
cuidadoso de apropriação, de incorporação uma cavatina, um tambor, etc. Está claro que o
N
das experiências em que estamos presentes ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como
de corpo e alma. É esse o significado da fá- a primeira; as duas completam o homem, que é,
bula do cuidado. metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde
O que essas diferentes teorias apresen- uma das metades, perde naturalmente metade da
P
tadas em forma de metáfora possuem em existência; e casos há, não raros, em que a perda
comum é uma maneira de dividir em par- da alma exterior implica a da existência inteira.
tes a vida humana – razão e paixão, alma Shylock, por exemplo.1 A alma exterior daquele
e corpo –, às vezes propondo o domínio de judeu eram os seus ducados; perdê-los equivalia
uma parte sobre a outra ou retratando nossos a morrer. “Nunca mais verei o meu ouro, diz ele a
IA
conflitos internos. É uma forma de divisão Tubal; é um punhal que me enterras no coração.”
que também encontraremos na teoria ma-
chadiana apresentada no conto “O espelho”. Se a tradição geralmente divide a vida
Porém, sua novidade consiste em propor que humana em alma e corpo e, em seguida, a al-
os maiores conflitos da existência não são ma em razão e paixão, Machado, pela voz de
estritamente internos. Jacobina, que é o seu personagem, proporá
outra divisão da “criatura humana”: em uma
U
to: há uma divisão da alma em duas partes. teorias que vimos, Machado não se utiliza
Machado a retrata como a existência no ser de uma metáfora. De acordo com a teoria,
humano de duas almas. O diferencial da sua esses objetos poderiam ser realmente nossa
teoria consiste no modo pelo qual ele defi- alma exterior. Tudo depende da importância
ne essas duas partes: uma interior e a outra que eles têm em nossa existência. Além disso,
exterior. Antes de conhecermos a história, ele afirma que nem sempre a divisão entre a
vejamos como ele apresenta sua teoria: alma interna e a externa é equivalente, pois
há vezes em que “a perda da alma exterior
Cada criatura humana traz duas almas con- implica a da existência inteira”.
sigo: uma que olha de dentro para fora, outra que Voltaremos a este exemplo quando, no quarto capítulo,
1
olha de fora para dentro... Espantem-se à vontade, analisarmos O mercador de Veneza, de Shakespeare.
D
ber como seria a existência de uma pessoa cia”. Eram cinco, mas, enquanto quatro deles
sem a alma interior. Seria uma não existên- disputavam fervorosamente essas questões
cia? Como existir sem alma interior? Como transcendentes, que vieram a cair no tema
é uma existência definida pela importância da natureza da alma, um deles apenas os
L
dada a objetos exteriores? É para responder escutava, limitando-se a fazer um ou outro
a essas questões que Jacobina contará um “resmungo de aprovação”. Podemos supor
caso de sua juventude. que esses quatro cavalheiros expressavam
Porém, antes de nos voltarmos a ele, é as teorias da tradição, e a nova teoria surge
N
preciso conhecer um segundo aspecto da quando este quinto cavalheiro, o Jacobina,
teoria. Ele consiste em que, além da divisão finalmente se pronuncia.
em duas partes, as almas interior e exterior Mas por que Jacobina não participa da
são “de natureza mutável”. A alma interior discussão, se ele já possui uma posição a
P
pode, às vezes, ceder a existência inteira à respeito do assunto? É porque considera que
exterior, e esta, por sua vez, pode variar de “a discussão é a forma polida do instinto
um objeto a outro: batalhador, que jaz no ser humano, como
uma herança bestial”. Em outras palavras,
Há cavalheiros, por exemplo, cuja alma ex- quando discute, o homem volta a ser um bi-
IA
terior, nos primeiros anos, foi um chocalho ou cho, uma fera selvagem, não mais civilizada.
um cavalinho de pau, e mais tarde uma provedoria Devemos também reparar que sua recusa
de irmandade, suponhamos. Pela minha parte, de entrar em disputas está alinhada à teoria
conheço uma senhora, – na verdade, gentilís- que apresentou. Afinal, essa é uma forma
sima, – que muda de alma exterior cinco, seis de conservar sua alma interior contra a
vezes por ano. Durante a estação lírica é a ópera; ameaça de que outro o convença, deixan-
cessando a estação, a alma exterior substitui-se do-lhe com inveja; que outro roube demais
U
por outra: um concerto, um baile do Cassino, a seu amor-próprio, a alma interior, se é que
rua do Ouvidor, Petrópolis... ele verdadeiramente a possui. Seu receio é
que, perdendo a disputa, outro lhe tome a
Agora que destacamos em que consiste existência substituindo a alma interior por
a teoria de Jacobina, podemos nos voltar ao uma alma exterior.
G
| 49
Professor(a), proponha à turma uma pesquisa sobre o significado do termo “ânimo” e suas relações com o verbo animar
e com a origem etimológica do termo “ânimo” (do latin, anima). A alma era concebida pelos antigos romanos como aquilo que
A alma exterior é, portanto, aquela à qual o fardamento me foi dado por amigos... Vai en-
D
tanto nos dedicamos que ela se torna parte tão uma das minhas tias, D. Marcolina, viúva do
de nós, podendo arrebatar e abranger nosso Capitão Peçanha, que morava a muitas léguas da
ser inteiro. A teoria consiste na ideia de que vila, num sítio escuso e solitário, desejou ver-me,
as coisas que desejamos, tudo aquilo que ad- e pediu que fosse ter com ela e levasse a farda.
L
miramos, tornam-se parte de nós. Tanta aten-
ção aplicamos, tanto investimento de tempo
DOMÍNIO PÚBLICO
ou de amor colocamos em alguém ou em
algo, que isso se torna o que nos mobiliza,
N
nos anima. O que fazemos e o que pensamos
têm em vista essa outra coisa e, portanto,
já não é mais a alma interna a responsável
pelas escolhas e pelos caminhos da pessoa,
P
mas essa outra coisa, a alma externa.
Será que há nisso um mal? Qual é o pe-
rigo para uma existência que depende de
uma alma exterior? Será a possibilidade de
ela, ao perder seu objeto de amor, tornar-se
IA
uma existência desalmada? Retornemos à
questão que nos leva ao caso da juventude
de Jacobina.
A alma solitária
Imagem de um alferes da Guarda Nacional.
Tinha vinte e cinco anos, era pobre, e aca-
U
bava de ser nomeado alferes da Guarda Nacional. A conquista de Jacobina confere a ele um
Não imaginam o acontecimento que isto foi em novo status social, que gerou admiração e
nossa casa. Minha mãe ficou tão orgulhosa! Tão também alguma inveja. Em sua família, todos
contente! Chamava-me o seu alferes. Primos e ficaram muito satisfeitos e até uma tia mais
G
tios, foi tudo uma alegria sincera e pura. Na vila, distante, tia Marcolina, quis recebê-lo e vê-lo
note-se bem, houve alguns despeitados; choro e vestindo sua nova farda. Quando Jacobina
ranger de dentes, como na Escritura; e o motivo lhe pede que o chame de “Joãozinho” (como
não foi outro senão que o posto tinha muitos can- antes), ela se recusa, insistindo em chamá-lo
didatos e que esses perderam. Suponho também de “senhor alferes”.
que uma parte do desgosto foi inteiramente gra- Jacobina vai se acostumando a esses
tuita: nasceu da simples distinção. Lembra-me de obséquios, a essas bajulações que provo-
alguns rapazes, que se davam comigo, e passaram cavam o prazer do orgulho e da vaidade.
a olhar-me de revés, durante algum tempo. Em Foi então que recebeu de tia Marcolina um
compensação, tive muitas pessoas que ficaram presente simbólico, bastante adequado aos
satisfeitas com a nomeação; e a prova é que todo sentimentos alimentados por tantos elogios:
dota as coisas vivas de movimento. Da mesma forma, eles compreendiam que todas as coisas da natureza que estão ou
parecem estar em movimento, como o mar e o Sol, são dotadas de alma ou governadas por uma alma divina.
D
meiro servido. Não imaginam. Se lhes disser que
o entusiasmo da tia Marcolina chegou ao ponto C
VOBIA?
de mandar pôr no meu quarto um grande espelho,
obra rica e magnífica, que destoava do resto da
SA
L
casa, cuja mobília era modesta e simples...
O mito grego de Narciso possui um
Sabemos que é costume pensar daque- paralelo interessante com a história de
les que se olham bastante no espelho que se Jacobina. É dele que vem o termo “nar-
N
trata de pessoas vaidosas, mas o espelho cisismo”. Narciso, ao olhar para o seu
é também um objeto que mostra a verda- reflexo na água, apaixona-se por si mes-
de ao colocar cada um diante de si mesmo. mo, de modo que essa paixão, de forma
O extraordinário da teoria de Machado é a doentia, leva-o à morte. Como manter
P
abordagem dessa verdade de si mesmo, que uma imagem verdadeira de nós mesmos
divide a existência de uma pessoa em duas que nos leve a uma autoestima saudável?
almas. Afinal, se uma pessoa perde sua al-
ma interna, quando ela defronta sua figura
no espelho, quem é que a vê? A alma exter-
IA
na vê a si mesma? Essa figura no espelho,
que é a própria figura, é avaliada desde um
amor-próprio ou de um amor a outra coisa? A
Alferes: patente imediatamente abaixo do tenente, na hierarquia. Hoje, o nome dessa função
é segundo-tenente.
Destoar: não combinar, não estar harmonizado.
Escuso: oculto, misterioso, ilícito.
| 51
Qual transformação? A estranha trans- interesse não é no exercício da patente, a
D
formação de ver sua conquista pessoal servir ocupação em si mesma. Ele não se preo-
à satisfação dos outros e de vir dos outros a cupa com a vida militar, mas em obter, por
sua maior satisfação consigo. Afinal, já não meio dela, o elogio dos outros. O proble-
importavam mais seus interesses a não ser ma, então, é a sua dependência dos outros;
L
que eles provocassem a admiração alheia, é perder a fonte dos elogios que recebe.
que passa a ser seu grande interesse. E é exatamente o que ocorre quando, por
Sob o olhar retrospectivo, do momento um conjunto de circunstâncias imprevistas,
em que Jacobina narra os acontecimentos ele se encontra sozinho.
N
da juventude aos compadres, ele pode reco-
nhecer o que na época lhe escapou:
P
dias as duas naturezas equilibraram-se; mas não
tardou que a primitiva cedesse à outra; ficou-me
Machado de Assis era negro e
uma parte mínima de humanidade. Aconteceu
o tema da escravidão está presente
então que a alma exterior, que era dantes o sol,
em sua obra. Com seu apelo à ironia,
o ar, o campo, os olhos das moças, mudou de
o autor criticava a elite da sua épo-
IA
natureza, e passou a ser a cortesia e os rapapés da
ca, a hipocrisia e também o racismo
casa, tudo o que me falava do posto, nada do que
que permeavam os espaços nobres
me falava do homem. A única parte do cidadão
que ele frequentava. É nesse sen-
que ficou comigo foi aquela que entendia com o
tido que podemos entender a fala
exercício da patente; a outra dispersou-se no ar e
de Jacobina, quando, ao se referir
no passado.
às pessoas escravizadas, as vê como
“espíritos boçais”, ou seja, que não
U
D
grande opressão, alguma coisa semelhante ao só, não olhara uma só vez para o espelho. Não
efeito de quatro paredes de um cárcere, subita- era abstenção deliberada, não tinha motivo; era
mente levantadas em torno de mim. Era a alma um impulso inconsciente, um receio de achar-
exterior que se reduzia; estava agora limitada a -me um e dois, ao mesmo tempo, naquela casa
L
alguns espíritos boçais. O alferes continuava a solitária; e se tal explicação é verdadeira, nada
dominar em mim, embora a vida fosse menos in- prova melhor a contradição humana, porque no
tensa, e a consciência mais débil. fim de oito dias deu-me na veneta de olhar para o
espelho com o fim justamente de achar-me dois.
N
A consciência débil resultava da perda Olhei e recuei. O próprio vidro parecia conju-
da alma interior e da redução da alma ex- rado com o resto do universo; não me estampou
terior (que são os outros) a alguns “espíritos a figura nítida e inteira, mas vaga, esfumada,
boçais”, ou seja, que Jacobina julgava insu- difusa, sombra de sombra.
P
ficientes para preencher sua necessidade
LABUTIN.ART/ SHUTTERSTOCK
de ser amado.
E esse foi apenas o começo do seu
drama, pois dali a alguns dias os escravos
aproveitaram que a fazenda estava vazia
IA
e resolveram fugir, de modo que Jacobina
se encontrou absolutamente só, “sem mais
ninguém, entre quatro paredes, diante do
terreiro deserto e da roça abandonada.
Nenhum fôlego humano”. É oportuno ver
como ele descreve seus primeiros sentimen-
tos, aqueles presentes no momento da crise: “Um olhar vago”.
U
| 53
“no fim de oito dias”, cansado da solidão, ele como a bajulação dos outros, um olhar de
D
quis olhar para o espelho com o fim de ver fora para dentro.
uma figura humana, de encontrar alguma Jacobina, entretanto, não enfrenta sua
forma de companhia, de ver “dois”, ou seja, ansiedade para superá-la. Em vez disso,
aquele que vê e aquele que é visto. Ele quis ele deseja apenas escapar dela, já que não
L
encontrar em si mesmo a alma exterior, mas pode fugir da fazenda e receber de sua tia
o que encontrou foi o agravamento da sua uma reprovação moral. Sua estratégia de
crise, porque “o próprio vidro parecia conju- escape, embora inautêntica, é, ainda as-
rado com o resto do universo”, ou seja, o es- sim, engenhosa. O que ele fez para fugir
N
pelho parecia querer, como todo o universo, da crise?
deixá-lo sozinho, roubando-lhe toda compa-
nhia. Foi a sensação que teve quando o vidro Lembrou-me vestir a farda de alferes.
não mostrou sua figura, mas outra, “vaga, es- Vesti-a, aprontei-me de todo; e, como estava
P
fumada, difusa”. Jacobina era não um reflexo defronte do espelho, levantei os olhos, e... não
de si mesmo, mas uma projeção dos outros, lhes digo nada; o vidro reproduziu então a figu-
agora ausentes e, portanto, a ausência dos ra integral; nenhuma linha de menos, nenhum
ausentes, uma “sombra de sombra”. contorno diverso; era eu mesmo, o alferes, que
achava, enfim, a alma exterior. Essa alma ausente
A alma em fuga
IA
com a dona do sítio, dispersa e fugida com os
escravos, ei-la recolhida no espelho. (…) Assim
O ápice da crise, quando descobre a foi comigo. Olhava para o espelho, ia de um lado
ausência da alma interior, poderia ser para para outro, recuava, gesticulava, sorria e o vi-
Jacobina uma oportunidade de recuperá-la. dro exprimia tudo. Não era mais um autômato,
Ele poderia ter aprendido a não depender era um ente animado. Daí em diante, fui outro.
tanto do olhar dos outros para dar atenção Cada dia, a uma certa hora, vestia-me de alferes,
U
aos seus próprios interesses, como “o sol, o e sentava-me diante do espelho, lendo, olhando,
ar, o campo, os olhos das moças”. Devemos meditando; no fim de duas, três horas, despia-me
reparar que contemplar “os olhos das mo- outra vez. Com este regime pude atravessar mais
ças” não é esperar que as moças admirem seis dias de solidão, sem os sentir...
suas conquistas; é simplesmente ver beleza
G
naqueles olhos. Mesmo que estes lhe faltas- Ao colocar a farda de alferes, o vidro
sem no isolamento da fazenda, ele ainda ti- reproduz a figura integral porque já não re-
nha ali “o sol, o ar, o campo”. Por mais que produz a alma interior, mas apenas a alma
estes sejam objetos externos, eles estão no exterior, que é integralmente responsável
seu interesse contemplativo, sem que sua pela sua existência. Qual alma exterior?
existência dependa deles, de modo que a A farda? Não, os olhos dos outros, como
alma interior é um olhar de dentro para fora ele se recordava ou imaginava vendo-o
e, portanto, é algo muito diferente do modo vestindo a farda. A alma exterior era tu-
pelo qual o objeto exterior pode representar, do, seu ser integral, porque ela tomou o
Professor(a), talvez você tenha que explicar em que consiste a alma interna e como objetos externos, como
“o sol, o ar, o campo”, não configuram uma alma externa do personagem. Acontece que Jacobina não é depen-
dente ou vulnerável a esses fatores e, por isso, eles não roubam o seu amor-próprio. A relação é contemplativa,
ou seja, ele deixa que esses objetos sejam o que são, sem se misturar com eles.
54 | 2. AUTOCONHECIMENTO | o encontro consigo
lugar da interior. Ele, então, via sua figura uma teoria da alma que pudesse forçá-lo a
D
com farda através dos olhos dos outros. ver sua dependência do outro, uma depen-
Pelo espelho, os outros se tornavam mais dência que, paradoxalmente, algum outro
uma vez presentes. E Jacobina pôde, assim, poderia lhe fazer ver.
“atravessar mais seis dias de solidão sem Os outros não apenas retiram de nós
L
os sentir”, ou seja, sem sentir a solidão que nossa alma interior. Muitas vezes pode acon-
verdadeiramente tinha. tecer, com um amigo, um professor ou um
O que o espelho lhe proporcionou foi, familiar, até mesmo com desconhecidos, que
portanto, uma saída de si mesmo, um sub- alguém cuide de nos devolver a responsabi-
N
terfúgio da sua solidão existencial, uma vez lidade que devemos ter com nós mesmos. E
que ele dependia do elogio dos outros para era esse cuidado que Jacobina não poderia
preenchê-la – não somente naqueles dias. aceitar, porque esse cuidado pode muitas
Como Jacobina confessa: “Dali em diante fui vezes se dar na forma de um aparente con-
P
outro”. Sua vida, a partir de então, foi sempre flito que venha a substituir uma alma exterior
ser outro, e o que ele não admitia debater era por uma alma interior.
ROMÃO/ M10
IA
U
G
| 55
Jacobina estava muito ciente no plano extraordinária. Quando voltam a si, para a
D
teórico, ele já não conseguia lidar no plano alma interior, Jacobina tinha descido as es-
prático, não podia vivenciar. Ao fim do conto, cadas, como forma de diminuir na vivência
Machado o resume com um acontecimento o que fora elevado na teoria; como forma
emblemático: “Quando os outros voltaram a de escapar da sua verdade, a ser inquirida
L
si, o narrador tinha descido as escadas”. Os pelos outros. Por não poder vivê-la, a teoria
compadres de Jacobina, pelo tempo em que fica, então, limitada à forma de esboço, e
o caso foi narrado e pelo tempo em que ain- assim é a literatura, que se volta mais à vi-
da se mantiveram pensando nele, tiveram vência do que à teoria, ou seja, que faz de
N
nele a alma exterior – uma alma elevada, toda teoria, diante da vida, um mero esboço.
porque lhes apresentou uma teoria nova, Então, voltemo-nos a nós mesmos.
INDICAÇÃO
P
IA
Assim como Jacobina, o personagem Neo, do filme Matrix (1999), é confrontado pelo
dilema entre a realidade e a ilusão. Na foto, seu mentor Morpheus oferece a ele a escolha
entre uma pílula que fará com que ele esqueça as descobertas que fez, retornando para
a comodidade da sua vida anterior no universo construído pelas máquinas, ou a pílula
que o conduzirá a novas descobertas, aprofundando-se em uma realidade que deverá
colocá-lo cada vez mais à prova.
E você? O que escolheria?
U
D
PROPOSTAS
isso aumenta a preocupação com a autoimagem.
L
encontra satisfação, nós muitas vezes repro-
duzimos essa mesma experiência quando
2.2.1 NOSSAS IMAGENS rolamos o feed das nossas redes sociais.
Tiramos das imagens produzidas e das rea-
N
O conto “O espelho” expõe a teoria
ções manifestadas pelos nossos amigos e
do personagem Jacobina, que divide a
seguidores a necessidade que temos de
alma em duas: a interior e a exterior. A in-
concretizar num objeto o olhar do outro so-
terior pode ser entendida como as ideias
bre nós, alimentando nossa alma exterior.
P
que temos sobre nós mesmos e nossos
Há, portanto, uma distância entre a
interesses; a exterior pode ser pensada
alma exterior e a alma interior. Estar cons-
como o conjunto das coisas de que pas-
ciente dessa distância gera uma angústia,
samos a depender para nos sentir satisfei-
que é a experimentada por Jacobina ao
tos. A alma externa pode ser a ideia que os
olhar sua imagem no espelho e ver uma
IA
outros têm de nós e, assim, os outros pa-
figura difusa. Muitas coisas podem aconte-
recem determinar nosso interesse. No tex-
cer se deixarmos que a imagem do outro
to, o personagem principal passa por um
sobre nós se sobreponha à nossa autoima-
desequilíbrio entre essas duas almas, e a
gem, ou seja, quando a alma exterior subs-
exterior passa a prevalecer sobre a interior.
Essa situação faz com que o personagem titui a alma interior. Podemos ficar ansio-
se mostre difuso para si mesmo e o faz re- sos e com baixa autoestima caso não nos
encaixemos nos padrões sociais de beleza
U
D
imagens, vamos fazer o jogo “Quem
sou eu?” com o nosso grupo escolar.
Escreva o nome de cada uma das
pessoas da sala em post-its, e cada
pessoa vai colar na testa um desses
L
post-its sem ver qual é o nome.
2. Como o objetivo da brincadeira é a
pessoa adivinhar o nome que está
colado na sua testa, a própria pessoa
N
tem que fazer perguntas que serão
respondidas com “sim” ou “não”,
por exemplo: “Tenho cabelo preto?”,
“Sou a pessoa mais nova?”, “Gosto
P
de Matemática?”. Nessa brincadeira,
poderemos ver como as pessoas nos
descrevem e a diversidade das formas
como elas nos veem.
Não deve ser tolerado nenhum tipo
IA
de comentário ofensivo ou pejorativo
sobre o outro, sob a penalidade de
exclusão do jogo.
3. Na parte final da atividade, cada um
deve dizer algo sobre si mesmo que
os outros ainda não sabem.
U
2.2.2 “REFLEXOS E
REFLEXÕES”
G
Competência Geral 7
Linguagens: Competência 3
EM13LGG301
D
FRANKIE'S/ SHUTTERSTOCK
Magritte (1898-1967), chamada Reprodu-
ção proibida. Faça uma pesquisa dessa ima-
gem com a turma e reflitam. Nela, podemos
observar que a imagem reproduzida pelo
L
espelho é a imagem vista pelos outros, de
um ângulo que ele não poderia ver a não
ser em um jogo de espelhos. Faça essa ex-
periência. Use um pequeno espelho para
N
se observar e reflita: será que há partes de
nós que nunca enxergamos sozinhos? Quais
seriam? E, por outro lado, o que o espelho
pode revelar sobre os outros, que estão
P
atrás de nós, ao nosso redor?
É importante que nós entendamos a in-
fluência do olhar dos outros na construção
da nossa autoimagem, e que isso representa
um desafio, mas também uma potência para
IA
descobrir e construir a própria identidade.
| 59
Professor(a), sugerimos um trabalho conjunto entre os professores de História, Geografia, Filosofia e Língua Portuguesa.
2.3 D
OM QUIXOTE DE LA Quixote é alguém que parte da teoria para ir
D
ao encontro da experiência, ou seja, da prática.
MANCHA, DE MIGUEL
O que ele aprende nos romances de ca-
DE CERVANTES valaria serve de modelo para suas escolhas
e ações no mundo, assim como imaginamos
L
poder extrair da sua história algo capaz de
O s romances de cavalaria iluminar também as nossas ações no mundo.
andante Porém, se Dom Quixote procura nos livros
Dom Quixote de La Mancha, de Miguel de uma referência teórica, nós procuramos nele
N
Cervantes1 (1547-1616), é um romance dividido uma referência prática. A diferença é que
em duas partes. A primeira se chama “O en- Dom Quixote interpreta os livros de cavala-
genhoso fidalgo Dom Quixote de La Mancha”; ria literalmente, como se os romances, em
a segunda, “O engenhoso cavaleiro Dom vez de compostos por episódios fantásticos,
P
Quixote de La Mancha”. O romance conta a narrassem fatos mundanos, quase como se
trajetória de um fidalgo que vive na região de fossem verdades cientificamente demonstra-
La Mancha, Espanha, e se torna um cavaleiro. das. De nossa parte, devemos interpretar o
O fidalgo, que tem tempo livre, é um homem romance Dom Quixote de La Mancha meta-
de grande sabedoria, adquirida pela leitura foricamente, como experiências de um per-
IA
de livros. O seu conhecimento não advém da sonagem da ficção que retratam aspectos da
experiência, mas do mundo tal como visto por condição humana.
outros, os autores desses livros. Um cavaleiro, O que mais nos
por sua vez, é alguém que vive aventuras e interessa com-
com elas adquire experiência. É essa a fonte preender é que
da sabedoria que conquista. A estrutura do os preceitos
romance de Cervantes inverte o que, em geral, que ele encon-
U
1
CERVANTES, Miguel de. Dom Quixote de la Mancha.
Trad. Viscondes de Castilho Azevedo. Rio de Janeiro:
G
CAIXA HISTÓRICA:
PESQUISE
• Como foi a vida do autor?
• Quando ele viveu?
• O que estava acontecendo naquela época?
• Há relação entre esses eventos e a obra? Qual? Miguel de Cervantes
(1547-1616).
D
medida que são capazes de tocá-lo, envolvê-lo, gar um objeto por meio de diferentes rela-
deslocá-lo, mobilizá-lo, ou seja, de atingir seu ções, mas sempre segundo a visão de cien-
interesse. Sua leitura dos romances de cava- tista, com um entusiasmo de cientista, e não
laria não é fria, mas simpática. Assim ela nos segundo a visão de uma criança que quer
L
mostrará consequências, boas e ruins, de se brincar, de um poeta que quer renomear as
ter um interesse tão profundo que ele ocupa o coisas ou de uma tradição que atribuiu a
centro da sua vida, fazendo orbitar em torno esse objeto um sentido cultural.
dele a realidade. É desde essa posição, dessa Portanto, o interesse radical de Dom
N
perspectiva interessada, que tudo se articula. É Quixote é revelador de algo que, em diferentes
desse fato que podemos, de nossa parte, tirar graus, concerne a todos, porque dificilmente
do seu exemplo uma lição prática. uma visão do mundo é absolutamente neutra,
Algumas vezes, um interesse assim pro- descomprometida. Às vezes podemos confun-
P
fundo pode ser considerado uma mania, ou dir a neutralidade com afetos negativos, como
seja, um comportamento patológico, enten- a descrença, a desesperança, o tédio, o desâni-
dido socialmente como de louco, porque o mo, entre outros sentimentos, mas ainda nesse
maníaco não consegue variar de uma pers- caso há uma implicação do que a pessoa sente
pectiva a outra para lidar com a realidade de com o que ela vê, avalia e afirma.
IA
maneira complexa. Por outro lado, não é fácil Quando abrimos os olhos ao mundo,
conseguir variar nossa perspectiva e o mais sempre o interpretamos de uma determinada
comum é, como faz Dom Quixote, defrontar maneira, seja ela positiva ou negativa. O re-
o mundo desde um interesse mais profundo. conhecimento do interesse que nos mobiliza
U
G
| 61
expressa uma atitude honesta com os outros e dos seus bens” materiais. Dom Quixote fica
D
com nós mesmos, e isso será útil para uma co- todo voltado, imerso, interessado em uma
municação transparente e equilibrada. O pior ocupação tão prática quanto espiritual, que
é quando alguém não reconhece que possui é a cavalaria. Por isso, ele faz uma troca. Em
um interesse particular e deseja impô-lo aos vez de terras, ele quer “livros de cavalarias”,
L
outros, como se sua perspectiva fosse a única, a todos que pode encontrar desse gênero. E,
melhor, ou retratasse a realidade em si mesma. assim, não apenas preenche o seu tédio, o
Dom Quixote é alguém que tem um interesse vazio dos seus dias e noites. Ele encontra
e o explicita honestamente. A cada aventura, a um sentido para sua vida e para todas as
N
cada batalha, ele argumentará em sua defesa coisas do mundo com as quais entra em
e se comprometerá totalmente com ela. Isso já contato. Elas, então, tornam-se interessan-
é uma lição valiosa, mas haverá muitas outras. tes, tão mais interessantes para ele que os
Vejamos como Cervantes apresenta seu outros não podem compreendê-lo:
P
personagem – um verdadeiro protagonista:
Em suma, tanto naquelas leituras se enfras-
É pois de saber que este fidalgo, nos interva- cou, que passava as noites de claro em claro e
los que tinha de ócio (que eram o mais do ano), se os dias de escuro em escuro, e assim, do pouco
dava a ler livros de cavalarias, com tanta afeição e dormir e do muito ler, se lhe secou o cérebro, de
IA
gosto, que se esqueceu quase de todo do exercício maneira que chegou a perder o juízo.
da caça, e até da administração dos seus bens; e a
tanto chegou a sua curiosidade e desatino nes- Loucura ou interesse
te ponto, que vendeu muitos trechos de terra de A posição do narrador em relação ao per-
semeadura para comprar livros de cavalarias que sonagem principal, Dom Quixote, é claramen-
ler, com o que juntou em casa quantos pôde apa- te de distanciamento, pois o trata com ironia.
nhar daquele gênero. Nossa leitura, entretanto, por supormos que
U
Já não se trata mais de um passatempo. Esse Enfrascar: colocar dentro de um frasco, en-
garrafar, embebedar.
interesse toma conta dele para, a seu modo,
liberá-lo e promovê-lo, fazendo nascer, então, Ócio: tempo livre, sem trabalho; folga.
D
diferente, por não ser compartilhada. Quixote louco é que, em vez de cuidar dos
próprios afazeres, ele considere proveitoso a
DOMÍNIO PÚBLICO
L
pelo que deve ser proveitoso a todos? O fato de
Dom Quixote não ter esse poder e, ainda assim,
estar cheio de coragem pode ser tanto uma
razão de riso quanto de admiração, porque
N
vemos nele como pode ser grande a vontade
humana. O riso que o ridiculariza vem de quem
não aceita que outra pessoa possa realizar
feitos extraordinários quando ela mesma já
P
desistiu da sua capacidade de realizá-los.
Ser cavaleiro andante significa, em
primeiro lugar, não poder dar as costas
As imaginações de Dom Quixote parecem aos conflitos do mundo; estar sempre im-
invadir a realidade.
plicado a todos eles, ser responsável por
IA
Afinal, rematado já de todo juízo, deu no mais eles, interessar-se por eles. A ação só tem
estranho pensamento em que nunca jamais caiu valor para Dom Quixote se servir tam-
louco algum no mundo, e foi: parecer-lhe convi- bém ao interesse de todos. Nesse sentido,
nhável e necessário, assim para o proveito de sua que importa ao cavaleiro andante que a
honra própria, como para proveito da república, fa- cavalaria andante já foi extinta quando o
zer-se cavaleiro andante, e ir-se por todo o mundo, trabalho desse mérito é necessário mun-
com as suas armas e cavalo, à cata de aventuras (...). do afora?
U
PARA
G
REFLETIR
Por acaso hoje rimos dos heróis
do cinema que possuem superpode-
res quando eles protegem a Terra
de ameaças alienígenas? Rimos se
saem derrotados de uma batalha?
Ou o que provoca o riso é a ambição
de querer realizar grandes feitos sem
o poder necessário para tanto?
Pôster do filme Os vingadores,
da Marvel, de 2012.
DIVULGAÇÃO: DISNEY/ MARVEL
| 63
Dessa forma, embora pareça um interes- tomariam. Para os imitar, se conservou quieto por
D
se fora do comum “em que jamais caiu louco algum espaço e, depois de ter muito bem cogitado,
algum no mundo”, no sentido de ser muito deixou-o a escolha do Rocinante, o qual seguiu o
pessoal, particular, trata-se na verdade de seu primeiro intuito, que foi correr para a cavalariça.
um interesse que se volta ao mundo, que é
L
um interesse pelo mundo. Mesmo que não O método da cavalaria andante é a er-
possamos descobrir a verdadeira intenção rância, ou seja, sem planos e objetivos defi-
do autor e que esse interesse pelo mundo nidos; trata-se de lidar com as circunstâncias
pareça estranho ao nosso momento atual, que aparecem, sejam quais forem, pois to-
N
também poderia ser que, parecendo rir de das darão a oportunidade para o cavaleiro
Dom Quixote, Cervantes estivesse desafiando andante praticar seu interesse. Vimos que o
aqueles que riem de Dom Quixote a revela- cavaleiro andante procura influir no mundo
rem a si mesmos. à sua volta com base em uma perspectiva
P
O que, em segundo lugar, significa ser tão própria quanto responsável pelos outros
cavaleiro andante é viver sem garantias, e que as manifestações de loucura de Dom
sem comodidade, sem segurança, ou seja, Quixote resultam do modo pelo qual ele as-
viver errante, sempre disposto à aventura, sume radicalmente sua atividade. Como isso
pois apenas as aventuras propiciarão as poderia acontecer senão de forma criativa,
IA
conquistas que almeja. O método do cava- dando às circunstâncias que surgem um sen-
leiro andante é deixar vir ao seu encontro as tido integrado aos preceitos da cavalaria?
ocasiões em que poderá praticar seu interes- Isso remete ao episódio em que a sobri-
se, a ocupação de cavaleiro. Não há outra nha de Dom Quixote deseja queimar seus
estratégia, portanto, senão a prática de si livros de cavalaria e os de todos os outros
como forma de cuidado de si – um cuidado gêneros, para evitar que Dom Quixote, de-
que quer, mais do que segurança, tornar-se pois de curado da “mania dos cavaleiros”,
U
alguém melhor. E talvez seja isso que mais assuma outras manias extravagantes. A so-
incomode os outros. brinha representa as pessoas que, acomo-
Entre as aventuras, está o desafio de dadas, desejam também que os outros se
lidar com o fato de que, para os outros, acomodem em costumes ordinários e não
a vida deve tender à repetição, à rotina. aceitam que alguns queiram viver aventuras
G
D
uma atividade de ressignificação da realidade vivem. E muitas vezes pessoas como Dom
é, além de uma postura política, uma atitude Quixote podem estar certas e os outros, que
poética. Todo desbravador de novos mundos as criticavam, passarem a segui-las.
precisa ser também poeta, ou seja, precisa es-
L
tar disposto a recriá-lo, e não apenas destruí-
-lo. O poeta nomeia à sua maneira as coisas
A aventura dos moinhos de vento
do mundo, para que os outros possam vê-las
O romance revela uma série de atritos
com outros olhos. Portanto, mal sabe sua so-
N
interessantes de Dom Quixote com outras
brinha que a outra “enfermidade”, de se fazer
personagens, e o mais surpreendente e tam-
poeta, foi a primeira e a maior das condições
bém o mais constante é aquele travado com
para que Dom Quixote se armasse cavaleiro
Sancho Pança, seu escudeiro. Como Dom
andante. O ócio inicial não foi satisfeito pela
Quixote, Sancho é também guiado por um
P
leitura dos livros, nos quais as aventuras já
interesse, ou uma mania, que o leva a vi-
estão escritas. Os livros são fonte de inspiração
ver muitas aventuras de cavalaria andante.
para algo que deve ser vivido de modo autoral.
Entretanto, para Sancho, trata-se, simples-
Afinal, Dom Quixote não poderia agir de forma
mente, da mania de querer ganhar muito
diferente no mundo, sem criar um novo sentido
dinheiro. Assim como os livros convencem
IA
para ele, tendo sobre ele um olhar poético.
Dom Quixote, o próprio Dom Quixote con-
O conflito com a sobrinha reforça que o
vence Sancho a aderir à cavalaria andante
cavaleiro andante não procura corresponder
apelando aos relatos de que os cavaleiros
à tarefa do seu tempo. Ele antes traz consigo
conquistam grande fortuna. Se o primeiro é
uma compreensão do seu tempo com base
guiado por valores nobres, como a coragem,
na tarefa que assumiu sozinho para o interes-
o sacrifício pessoal e o desejo de ajudar os
se de todos, enquanto os outros lhe parecem
desprotegidos, o segundo espera um dia ga-
U
Pegadiço: contagioso.
mais correta do seu tempo, mas de ver em
Prado: campina.
seu exemplo que é muito custoso aos homens
Professor(a), podemos dizer que Dom Quixote é
um intempestivo ou um extemporâneo, ou seja, alguém
Qual é a importância da leitura em sua vida? Afinal, para que servem os livros? Será
que eles são apenas instrumentos para tarefas que somos obrigados a cumprir, como
passar de ano na escola? Ou será que há um sentido mais nobre e interessante para eles,
que os relaciona mais diretamente à vida de cada um?
na história, por homens que estiveram, de alguma maneira, à frente do seu tempo. O inventor e pintor Leonardo
da Vinci e o líder político Martin Luther King são bons exemplos.
| 65
algum reino próspero. A diferença entre o pareçam as coisas outras do que são”. Se,
D
interesse profundo de Dom Quixote e o inte- portanto, Dom Quixote acredita ver melhor
resse raso de Sancho é que ter e não fazer que os outros, ao menos melhor que Sancho,
é o que Sancho procura. E Dom Quixote irá é porque sabe que possui mais coragem
objetar: “Sabe, Sancho, que só quem faz que este. Embora a princípio pareça que
L
mais que outrem é que é mais que outrem”. Sancho está certo e vê melhor que Dom
O que será que Dom Quixote pretende Quixote, Sancho é convencido de que verá
fazer que seja mais significativo do que em breve a riqueza cair em suas mãos.
aquilo que Sancho faz? Vejamos o que Quando Dom Quixote toma consciência
N
sucedeu na “Espantosa e jamais imagi- de que atacou, não gigantes, mas moinhos
nada aventura dos moinhos de vento”. de vento, depois que contabiliza alguns os-
Contemplando um horizonte em aberto, sos quebrados, é que a verdadeira disputa
Dom Quixote percebe um conjunto de vinte começa a ser travada, não a da coragem,
P
a trinta gigantes, ao longe: mas a da fidalguia ou, em nossos termos,
a da sabedoria:
— Que gigantes? — disse Sancho Pança.
— Aqueles que ali vês — respondeu o amo —, — Valha-me Deus! — excla-
de braços tão compridos, que alguns os têm de mou Sancho. — Não lhe disse eu
IA
quase duas léguas. a Vossa Mercê que reparasse no
— Olhe bem Vossa Mercê — disse o escudei- que fazia, que não eram senão moinhos
CK
ro — que aquilo não são gigantes, são moinhos de de vento, e que só o podia des-
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vento; e o que parecem braços não são senão as conhecer quem dentro da ca-
TER
UT
velas, que tocadas do vento fazem trabalhar as mós. beça tivesse outros?
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— Bem se vê — respondeu Dom Quixote — que — Cala a boca, ami-
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SC
não andas corrente nisto de aventuras; são gigan- go Sancho — respondeu D.
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Z AV
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tes, são; e, se tens medo, tira-te daí, e põe-te em Quixote; — as coisas da guer-
oração enquanto eu vou entrar com eles em feroz ra são de todas as mais su- I NA
DO
pela qual há uma diferença entre aquilo sábio Frestão, que me rou-
que os dois veem e o que fazem é o medo bou o aposento e os livros,
de Sancho. Por mais que fossem moinhos e transformou esses gigan-
não gigantes, o medo é realmente um con- tes em moinhos, para me falsear
dicionante das coisas que vemos e fazemos. a glória de os vencer, tamanha é a
Em outra passagem, o “cavaleiro da triste inimizade que me tem; mas ao cabo
figura” afirma: “O medo que tens – disse D. das contas, pouco lhe hão de valer
Quixote – é que faz, Sancho, que nem vejas as suas más artes contra a bon-
nem ouças às direitas, porque um dos efeitos dade da minha espada.
do medo é turvar os sentidos, e fazer que
D
partilhá-la com os outros, é preciso comparti-
lhar referências, dados que sejam acessíveis
aos outros – o que não é o caso dos nigroman-
tes aos quais Dom Quixote se refere. Se que-
L
remos dar nossa própria chancela ao conhe-
cimento, devemos compreender que os outros
podem querer, para acreditar em nós, contar
com algo além da nossa palavra.
N
Podemos afirmar que a loucura, ao menos
no caso específico de Dom Quixote, reside em
suas decisões inconsequentes e no modo como
ele supõe que a realidade pode a cada vez
P
Reprodução da obra de Gustave Doré (1832-1883), na ser alterada conforme o capricho de terceiros.
qual está retratada a batalha de Dom Quixote contra os Quanto a essas coisas, podemos guardar res-
moinhos de vento.
salvas com as posições do nosso herói, mas o
fato de se equivocar quanto a elas não faz com
Os nigromantes que ele se torne menos capaz de nos revelar
IA
Quando os livros foram subtraídos pela muitas coisas verdadeiras.
sobrinha, Dom Quixote supôs que esse tenha
PARA
sido o artifício de um feiticeiro, um nigromante.
Quando investe contra os moinhos, mais uma
vez foi um sábio Frestão que manipulou seus
sentidos ou a própria realidade, sem no entanto REFLETIR
se apresentar. Afinal, “Os encantados não se Dom Quixote utiliza os nigroman-
U
| 67
Por exemplo, no episódio em que Dom no próprio interesse em vez de em um fim
D
Quixote confunde a bacia de barbeiro com o qualquer, todo acaso, em qualquer circuns-
elmo de Mambrino, sua sabedoria apregoa tância, será da mesma forma oportuno para
que as pessoas dão valor a coisas diferentes, se poder “provar a força do seu forte braço”, a
e uma coisa que tem valor para um pode força do seu interesse! Até mesmo as frustra-
L
não ter para outro. O maior problema surge ções, as derrotas, as “feridas”, nesse sentido,
quando uma pessoa só sabe dar valor às transformam-se em conquistas: “As feridas
coisas que os outros dão valor. Assim Dom que nas batalhas se recebem antes dão honra
Quixote fala a Sancho: do que a tiram”.
N
Dom Quixote é uma figura tão emblemáti-
— Olha, Sancho, pelo mesmo que tu me juraste ca na história da cultura ocidental porque, con-
há pouco te rejuro eu — disse D. Quixote — que tens trariamente ao que pensamos, nem sempre o
o mais curto entendimento que nunca teve, nem tem, que somos é anterior ao que fazemos. O que
P
escudeiro do mundo. Pois é possível que, andando ele faz (ler livros de cavalaria andante ou selar
comigo há tanto tempo, ainda não tenhas reconhecido o Rocinante e sair à caça de aventuras) reve-
que todas as coisas dos cavaleiros andantes parecem la quem é ele, Dom Quixote. Antes disso, ele
quimeras, tolices e desatinos, e são ao contrário reali- era apenas um Quijada, Quesada ou Quijana,
dades? E donde vem este desconcerto? Vem de andar um Zé Mané qualquer, uma possibilidade
IA
sempre entre nós outros uma caterva de encantadores, aberta, sem figura própria. O que e quem
que todas as coisas invertem, e as transformam, segun- ele é, portanto, não se dá antes nem se dá
do o seu gosto e a vontade que têm de nos favorecer ou fora, mas aparece nas aventuras, a cada
destruir-nos. Ora aí está como isso, que a ti te parece vez que elas proporcionam uma ocasião
bacia de barbeiro, é para mim elmo de Mambrino; (...) para o exercício do seu profundo interesse,
e a causa vem a ser: porque, sendo ele traste de tanto que para os outros poderá parecer loucura.
apreço, todo o mundo, se o conhecesse, me perse- Como diz, com fidalguia, o cavaleiro andan-
U
guiria para mo tirar; como porém entendem que não te: “cada um é filho das suas obras!”.
passa de bacia de barbeiro, não fazem caso de se matar
por ele, como bem o mostrou por sua parte o que di-
ligenciou quebrá-lo, e o deixou no chão em vez de o
C Ê
levar; conhecera-o ele, e veríamos se o deixava assim!
VOBIA?
G
D
Pergunta-o a mim, depois de o ter perguntado a
outras pessoas. Manda-os a periódicos, compa-
L
redator. Pois bem – usando da licença que me
2.3.1 EXERCÍCIO SEM deu de aconselhá-lo – peço-lhe que deixe tudo
RECOMPENSAS isso. O senhor está olhando para fora, e é justa-
mente o que menos deveria fazer neste momento.
N
No texto, nós observamos que, em de- Ninguém o pode aconselhar ou ajudar, – nin-
terminado momento, a sobrinha de D. Qui- guém. Não há senão um caminho. Procure entrar
xote, temendo pela sua saúde, queima os em si mesmo. Investigue o motivo que o manda
livros para afastá-lo do risco de que, depois escrever; examine se estende suas raízes pelos
P
de ser cavaleiro andante, ele possa querer recantos mais profundos de sua alma; confesse a
se tornar poeta. Segundo ela, essa seria si mesmo: morreria, se lhe fosse vedado escrever?
uma “enfermidade incurável e pegadiça”. Isto acima de tudo: pergunte a si mesmo na hora
De fato, é muito comum que grandes pai- mais tranquila de sua noite: “Sou mesmo forçado
xões sejam associadas a enfermidades, no a escrever?” Escave dentro de si uma resposta
IA
sentido de serem coisas que sofremos, ou profunda. Se for afirmativa, se puder contestar
seja, sobre as quais não temos poder de es- àquela pergunta severa por um forte e simples
colha. Pensando nesse trecho, leia a seguin- “sou”, então construa a sua vida de acordo com
te passagem da obra Cartas a um jovem esta necessidade. Sua vida, até em sua hora mais
poeta, de Rainer M. Rilke:1 indiferente e anódina, deverá tornar-se o sinal e
o testemunho de tal pressão. Aproxime-se então
RILKE, Rainer Maria. Cartas a um jovem poeta. Trad.
1
da natureza. Depois procure, como se fosse o pri-
U
Competência Geral 7
Pablo Picasso, Dom Linguagens: Competência 3
Quixote, 1955. EM13LGG301
| 69
parecer pobre, não a acuse. Acuse a si mesmo, o exame de consciência que lhe peço não terá sido
D
diga consigo que não é bastante poeta para extrair inútil. Sua vida, a partir desse momento, há de en-
as suas riquezas. Para o criador, com efeito, não contrar caminhos próprios. Que sejam bons, ricos
há pobreza nem lugar mesquinho e indiferente. e largos é o que lhe desejo, muito mais do que lhe
Mesmo que se encontrasse numa prisão, cujas posso exprimir.
L
paredes impedissem todos os ruídos do mundo
de chegar aos seus ouvidos, não lhe ficaria sempre A preocupação da sobrinha de Dom
sua infância, essa esplêndida e régia riqueza, esse Quixote supõe que tudo aquilo que nos
tesouro de recordações? Volte a atenção para ela. interessa pode despertar um interesse de
N
Procure soerguer as sensações submersas desse produção. Rilke, no entanto, dá a entender
longínquo passado: sua personalidade há de re- que amar poesia não é o suficiente para se
forçar-se, sua solidão há de alargar-se e transfor- tornar um poeta. Rilke não diz o que o jo-
mar-se numa habitação entre lusco e fusco diante vem deve fazer; não diz o que ele deve ser
nem se aquilo que ele faz é bom ou não,
P
da qual o ruído dos outros passa longe, sem nela
penetrar. Se depois desta volta para dentro, desse mas aborda as condições para que ele des-
ensimesmar-se, brotarem versos, não mais pensa- cubra em si mesmo a resposta a essas ques-
rá em perguntar seja a quem for se são bons. Nem tões. Rilke deseja pôr à prova o interesse
tão pouco tentará interessar as revistas por esses profundo do jovem poeta, perguntando-lhe
IA
seus trabalhos, pois há de ver neles sua querida se, mesmo sem pensar em recompensas,
propriedade natural, um pedaço e uma voz de ele sente necessidade de escrever.
sua vida. Uma obra de arte é boa quando nasceu
por necessidade. Neste caráter de origem está o 1. Faça como Rilke propõe. Procure
seu critério – o único existente. Também, meu examinar a si mesmo e escreva quais
prezado senhor, não lhe posso dar outro conselho são as coisas que mais lhe dão alegria
fora deste: entrar em si e examinar as profundi- e satisfação.
U
dades de onde jorra a sua vida; na fonte desta é 2. Em seguida, procure distinguir, entre
que encontrará a resposta à questão de saber se elas, quais são aquelas que você
deve criar. Aceite-a tal como se lhe apresentar à gosta de usufruir como espectador da
primeira vista sem procurar interpretá-la. Talvez produção de outras pessoas e quais são
venha a significar que o senhor é chamado a ser aquelas em que a satisfação não está no
G
um artista. Nesse caso aceite o destino e carre- resultado, mas na própria realização. Por
gue-o com seu peso e sua grandeza, sem nunca exemplo, você pode gostar de assistir
se preocupar com a recompensa que possa vir de a jogos de futebol ou shows de rock
fora. O criador, com efeito, deve ser um mundo e nem por isso querer ser um jogador
para si mesmo e encontrar tudo em si e nessa de futebol ou membro de uma banda
natureza a que se aliou. de rock. Nesta vivência, você não deve
Mas talvez se dê o caso de, após essa descida perguntar o que os outros acham.
em si mesmo e em seu âmago solitário, ter o senhor
de renunciar a se tornar poeta. (Basta, como já Ensimesmar(-se): ficar introspectivo, dentro
de si mesmo, reflexivo.
disse, sentir que poderia viver sem escrever para
não mais se ter o direito a fazê-lo). Mesmo assim, Soerguer: erguer, levantar.
D
K
dos seus interesses para a turma
C
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espontaneamente e procure apresentar
TE
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o mais detalhadamente possível quais são
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os principais aspectos desse interesse.
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M IC H A E LJ U
4. Ao terminar, reflita consigo mesmo
como foi a sua fala, se ela foi confiante,
por você ter expressado algo que
verdadeiramente lhe interessa, ou se
N
ela ainda reflete dúvidas e insegurança
com relação ao seu interesse.
P
Embora cada um se volte à turma, essa Buscar um interesse profundo
por nós mesmos e pelo futuro
vivência consiste em prestar atenção apenas é fundamental nesta fase.
em si mesmo. Portanto, não julgue seus co-
legas. Uma boa forma de ajudá-los em sua
Há muitas possibilidades de o interesse
busca é oferecer uma escuta acolhedora.
profundo se manifestar: primeiro, pode ser
IA
algo que perdure a vida inteira ou que se
2.3.2 INTERESSE transforme; pode ser algo único ou compar-
PROFUNDO Competência Geral 7
Linguagens: Competência 3
tilhado com outros; e podem ser coisas que
EM13LGG301 façamos sozinhos ou com outras pessoas. Fi-
Qual é o seu interesse profundo? nalmente, devemos ter em mente que o inte-
A resposta a essa pergunta é total- resse profundo pode ser descoberto e desen-
mente subjetiva e mutável. Mas atenção: volvido em dois lados: o teórico e o prático,
U
isso não equivale a perguntar “o que você tal como Dom Quixote teve sua experiência
faz para passar o tempo quando está en- como fidalgo e como cavaleiro andante.
tediado?” O aluno deve falar de algo que
o move a enfrentar desafios e amadurecer. 1. Após essas reflexões, pense em uma
G
Trata-se das ocupações que trazem um for- figura histórica na qual você se inspira.
te senso de realização pessoal e que dão Escreva uma pequena biografia sobre
sentido aos seus esforços. Deve falar das ela e sobre o que você entende que
relações pessoais e sociais que gostaria de seja o intere s se prof und o d e s sa
ter, de como quer aproveitar o tempo da pes soa. Adicione um comentário
sua vida e de uma dedicação que não ape- dizendo por que você se inspira nela.
nas produz algo, mas que ao mesmo tem- Ao final, junte os seus textos aos dos
po o torna alguém. seus colegas e produzam um livro
de inspirações.
Orientações pedagógicas: Tempo: 2 horas/aula (1. leitura compartilhada, pesqui-
sa e escrita; 2. junção dos textos, feitura do livro e fechamento do professor). Espaço:
sala de aula e espaço de pesquisa. Agrupamentos: atividade individual. Materiais:
uma folha sulfite e uma caneta para cada aluno, material de encadernação (furador
e fitas de cetim) e materiais para a capa (a serem definidos coletivamente). Mais
orientações no Manual. | 71
CONCLUSÃO
D
L
Neste capítulo, vimos personagens de Vimos que sua clareza teórica a respeito da di-
três grandes escritores: Graciliano Ramos, ferença entre a autenticidade e a inautenticida-
Machado de Assis e Miguel de Cervantes, de não conduz a uma atitude verdadeiramen-
respectivamente Alexandre, Jacobina e Dom te autêntica. Ao atravessar uma situação de
N
Quixote. Por meio de suas histórias, traba- crise, em vez de passar de um estado a outro
lhamos alguns conceitos que nos permitem de natureza diferente, Jacobina se aprofunda
compará-las, articulá-las e distingui-las, tais em sua alma externa, tanto que não suporta
como os conceitos de interesse, ocupação, entrar em conflito com os outros, recusando-
P
cuidado, distração e as possibilidades de se -se a discutir até mesmo seu próprio relato.
levar a vida de maneira própria ou imprópria, Dom Quixote: o personagem mostra
ou seja, autêntica ou inautenticamente. Na que é o interesse que nos move, nos faz ver
passagem de um desses estados a outro, as e realizar feitos. O interesse é o fundamento
personagens atravessam crises, que podem da forma pela qual compreendemos o mun-
IA
fazer com que elas assumam uma posição do e também de tudo aquilo que realizamos
diferente da inicial ou que mergulhem nela em nossas vidas. Somos resultado do nosso
mais profundamente. interesse quando o assumimos em vez de
Podemos também dizer que a visão apa- nos distrairmos dele. Enquanto Alexandre
rece como uma metáfora muito importante é alguém que parte de uma posição impró-
para a expressão desses elementos. Essas per- pria, inautêntica, para conquistar uma posi-
sonagens nos mostraram, cada uma à sua ma- ção própria como contador de histórias que
U
neira, que aquilo que vemos, como também encantam seus ouvintes e Jacobina alguém
aquilo que contamos ter visto, já é indício de que tem uma grande clareza a respeito dessa
um interesse que nos move, conforme o modo distinção, mas sem a transformar em atitude,
pelo qual cada um conduz a si mesmo ou se Dom Quixote é aquele que, na realização do
deixa conduzir pelos outros. seu interesse movente, entra em conflito com
G
D
obra e experiência pessoal). Espaço: sala de aula e sala de
pesquisa. Agrupamentos: atividade individual. Materiais:
materiais para pesquisa sobre a vida dos autores e para
registro das respostas (folha pautada e caneta).
DE TRANSIÇÃO 2
L
algo que, a cada momento, em circunstâncias Ao longo do estudo do capítulo, pude-
imprevistas, dá a cada coisa com a qual Dom mos observar as narrativas que mostraram
Quixote entre em contato uma significação para nós quem eram aqueles personagens.
que já lhe era íntima. Essas narrativas revelaram o interesse profun-
N
Esses exemplos revelam, por isso, casos do presente nas jornadas de construção do
extremos de visão autoral do mundo. Suas vi- protagonismo das personagens. Você deve
sões de mundo estão diretamente implicadas também ter observado que é muito importan-
com suas ocupações, que são mais do que suas te a relação com outros personagens para a
P
profissões. A profissão é algo que podemos construção das suas identidades.
ou não exercer sem mudar aquilo que somos. Você já refletiu sobre a importância que as
Mas, ao nos ocuparmos de um interesse pro- pessoas à sua volta têm na sua vida? Você seria
fundo, nós nos tornamos aquilo que fazemos. quem você é se essas pessoas fossem diferen-
As profissões podem ser apenas as ocupações tes? Já parou para pensar que, da mesma for-
IA
por meio das quais nos desenvolvemos. ma, você exerce influência sobre elas e que isso
Por exemplo, um atleta pode ou não par- implica responsabilidade? O próximo capítulo
ticipar de competições, mas ele não pode ser abordará esse conjunto de questões.
um atleta sem treinar, dedicando-se a algum A primeira coisa que podemos fazer
tipo de esporte ou atividade física. Ele pode para estar conscientes da presença e influên-
vir a se aposentar das competições e se tor- cia dos outros em nossa vida é percebê-los.
nar um treinador de outros atletas, mas ainda Isso significa tanto identificar-se quanto di-
U
assim ele perseverará em sua ocupação. Isso ferenciar-se das outras pessoas. Reconhecer
vale também para dançarinos e músicos. Um e aprender com a pluralidade humana é tão
músico pode não fazer gravações ou apresen- essencial quanto reconhecer e aprender com
tações, mas ele não pode ficar sem praticar a igualdade e com nosso sonho de equidade.
seu instrumento e estudar música. Qualquer Para que possamos exercitar essa per-
G
que seja a profissão, podemos ficar desempre- cepção, utilizaremos o modelo de entrevis-
gados por um período sem perder nossa téc- ta que o grupo escolar formulou no capítulo
nica, no sentido de algo que potencialmente anterior. Utilizaremos também as pesquisas
somos capazes de realizar. realizadas sobre a vida de Graciliano Ramos,
Em suma, a vida profissional é um modo Miguel de Cervantes e Machado de Assis.
de colocar em prática um interesse. No entan-
to, um interesse também pode surgir de uma
ocupação. A melhor forma de enfrentarmos a
aventura que nos espera é com autoconheci- Competência Geral 7
Linguagens: Competência 3
mento e cuidado de si. EM13LGG301
| 73
1. Formem grupos e discutam em que 3. Para enriquecer a experiência, procurem
D
medida é possível afirmar que aquilo expor que roupas eles usavam, que
sobre o que os autores escreveram materiais utilizavam para escrever,
reflete o que viveram. O quanto suas como estava seu país na época em
obras são produções da imaginação e que viveu e outras curiosidades. Vocês
L
o quanto expressam uma experiência conseguem pensar em outros exemplos
pessoal? de homens cuja obra entra em conflito
Atentem-se ao fato de que as pessoas ou ultrapassa os valores do seu tempo?
não podem ser reduzidas às socieda- Se possível, apresentem também outros
N
des e às épocas em que viveram. Vere- exemplos.
mos que a sociedade (a comunidade, 4. Tendo em mente o quanto um indivíduo
o coletivo) condiciona nossas vidas em pode revelar sobre sua époc a, e
muitos sentidos, mas não as determina vice-versa, reúnam as respostas que
P
completamente. A partir de um mesmo prod uzir am ao long o da s c ai xa s
contexto, podemos construir jornadas históricas sobre os autores. Com
de alienação ou de autonomia. base nessas pesquisas, escrevam
2. Preparem um material sobre os autores uma crônica. O narrador deve ser
que conheceram até a mostra anual. um dos autores e a crônica deve
IA
Exponham um mapa visual informativo revelar o cotidiano daquela pessoa
sobre a vida deles, com muitas imagens e em sua época: quais são as grandes
informações de quais foram as questões questões para a comunidade na qual
históricas e sociais que influenciaram ele está inserido? Quais são os eventos
suas obras e como esses autores as históricos marcantes nessa época?
trabalharam e ultrapassaram. Com quais pessoas ele se relaciona?
Como a sociedade dele lidava com os
U
doado à biblioteca
da escola.
Organizem-se para
fazer uma mostra anual
bem interessante.
D
O ENCONTRO COM
O OUTRO E O MUNDO
L
N
Sócrates foi um filósofo em quais ele se utiliza da
que não deixou registros figura de Sócrates co-
FOTO: COPYRIGHT: 2005 - ERIC GABA FOR WIKIMEDIA COMMONS ; MUSEO PIO-CLEMENTINO, MUSES HALL/ DOMÍNIO PÚBLICO;
escritos do seu próprio mo personagem para
pensamento. O aces- apresentar suas pró-
P
so que temos às suas prias ideias. De sua
ideias e aos aconteci- par te, A r istófanes
mentos da sua vida se escreveu um relato
REPRODUÇÃO; MUSEO PIO-CLEMENTINO, SALA DELLE MUSE/ DOMÍNIO PÚBLICO; DOMÍNIO PÚBLICO
dá por obras de au- da vida de Sócrates,
tores que conviveram na comédia A s nu-
IA
com ele, como Platão, vens, coberto de iro-
Xenofonte e Aristófanes. nia, ridicularizando-o.
Entre as narrativas Não é possível saber
Sócrates.
q ue fazem de sua v ida, qual relato corresponde mais
há muitas diferenças. Platão fielmente à figura histórica de
e Xenofonte foram seus discípulos e Sócrates. Afinal, uma abordagem simpá-
fizeram relatos mais simpáticos de sua tica, que o exalta, não é necessariamente
U
vida e de suas ideias. Porém, mesmo en- mais fidedigna do que aquela que o criti-
tre as obras de Platão, há diferenças na ca. Lidamos com visões diferentes e que
representação de Sócrates que fazem os revelam algo tanto sobre o personagem de
pesquisadores discutirem em quais de- Sócrates quanto sobre seus autores: Platão,
G
| 75
AS REFLEXÕES DE A incompreensão, a perseguição e a
D
acusação são riscos que correm aqueles
SÓCRATES
que revelam uma face da realidade dife-
rente da que interessa a homens poderosos
Talvez o mais seguro a respeito de
e que não desejam que as coisas mudem.
L
Sócrates seja aquilo que se repete nos rela-
Porque procurava que os outros mostras-
tos desses autores. Sócrates realmente viveu
sem a verdade de si mesmos, Sócrates não
entre 469 e 399 a.C. Ele foi, de fato, um filósofo
poderia dar um exemplo diferente e preferiu
que procurava mostrar para as pessoas na
ser condenado à morte a deixar de filosofar.
N
cidade, sobretudo aos jovens, que elas não
Esse era o seu interesse fundamental, sua
conheciam direito as coisas que acreditavam
ocupação, o que fazia ele ser quem ele era.
conhecer e que, por isso, precisavam cuidar
E essa ocupação consistia em questionar os
melhor de si mesmas.
outros sobre o cuidado que tinham consigo
Foi condenado à morte por um júri de ci-
P
mesmos, acreditando que assim prezava
dadãos atenienses em razão das suas con-
pelo bem de cada um e pelo bem coletivo.
vicções que, para muitas pessoas apega-
Sócrates é um grande exemplo de mestre
das a dogmas da tradição, representavam
que não quer substituir o cuidado que cada
um perigo. Elas alegavam que Sócrates
um deve ter de si mesmo pelo cuidado que
corrompia a juventude e procuraram cen-
IA
ele, Sócrates, propõe. O que ele quer é que o
surá-lo, mas não desconfiavam que a glória
outro cuide de si mesmo. Mas é possível cui-
de Sócrates e da filosofia cresceria depois
dar do outro sem lhe tirar a tarefa de cuidar
da sua morte.
DOMÍNIO PÚBLICO
U
G
A morte de Sócrates (1787), obra de Jacques-Louis David que retrata o momento em que Sócrates está prestes a beber
cicuta, depois de sua condenação à morte. Nela o filósofo pratica a filosofia até o último momento, conforme descrito por
Platão na obra A apologia de Sócrates. A reprodução está exposta no Metropolitan Museum of Art de Nova York, EUA.
D
de que é do outro por sua própria existência? diálogos em que Sócrates, por meio de suas
Ao ver que o outro se distrai de si mesmo, co- perguntas, conduz seu interlocutor a alcançar
mo fazer com que assuma a tarefa de cuidar um conhecimento cada vez mais elevado de
de si mesmo? ideias, que, para Platão, devem existir em si
L
Mais do que uma teoria, as ideias de mesmas, perfeitas, eternas e imutáveis. Em
Sócrates têm um cunho prático e político, o sua filosofia, não se trata de encontrar a pró-
que fica evidente no método que desenvolveu. pria verdade, mas a verdade que existe em
Esse método – chamado de maiêutica – pro- si mesma. Ele poderia, portanto, ter se apro-
N
põe perguntas em vez de respostas, para que priado da figura e da prática proposta por
estas possam ser encontradas por cada um Sócrates para expor uma concepção dife-
ao cuidar de si. rente de filosofia – concepção sua, em que a
filosofia e a prática se tornam subordinadas
P
a uma teoria que deve servir a todos univer-
A visão de Platão salmente, e não a cada um particularmente.
A filosofia, com Platão, seria não uma forma
Platão, por sua vez, transformou o mé- de cada um encontrar a sua verdade, mas
todo maiêutico de Sócrates em um método de encontrar a verdade universal.
IA
próprio: a dialética. Em suas obras, o método
C Ê
VOBIA?
SA
U
| 77
Percebemos, então, uma diferença en- para a realidade, para a história e para o
D
tre Sócrates e Platão quanto à concepção exemplo cotidiano dos homens. Os poderosos
política que possuem. Para Sócrates, o bem legislam em interesse próprio, governam em
comum é consequência da conquista do bem interesse próprio e fazem sempre a distri-
pessoal, que se encontra dentro de cada um. buição da riqueza coletiva de acordo com
L
Em Platão, o bem comum existe em si mes- aquilo que pessoalmente mais lhes convém.
mo, acima de todos, e todos devem se voltar Qualquer resposta diferente disso seria igno-
a ele como exercício individual. Embora o rância ou ingenuidade, pois sua resposta se
resultado pareça ser o mesmo, os caminhos basearia na realidade, no que ele entende
N
são bastante diferentes e refletem o que te- ser um diagnóstico evidente.
P
coletivo e pessoal. O Sócrates platônico, de sua parte, argu-
Vejamos alguns exemplos que real- menta que, para compreender o que é a justi-
çam essas diferenças. No início da obra A ça, não se deve olhar para o que as pessoas
República, de Platão, Sócrates e o sofista fazem, mas para as consequências dessas
IA
Trasímaco discutem acaloradamente sobre ações. Uma sociedade em que os indivíduos
o que é a justiça. Trasímaco responde que são justos uns com os outros e em que os go-
“a justiça é o interesse do mais forte” e, para vernantes governam para o povo, e não para
demonstrá-lo, afirma que basta olharmos si mesmos, é uma sociedade que prospera e
OC Ê
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V BIA?
SA
G
D
a descrita por Trasímaco é corrompida, que na vida das pessoas. O ideal de sociedade,
se degrada, ou seja, em que todos perdem. mesmo ainda não existindo na realidade, se-
Desse modo, não se pode definir a justiça co- ria um valor maior do que as vidas particula-
mo o interesse do mais forte, do poderoso. Ao res. Essa é a posição política de Platão, que
L
menos o homem sábio percebe que é melhor subordina a política à teoria filosófica.
agir pelo interesse de todos do que por um Por outro lado, conforme o exemplo de
interesse egoísta. Se todos agem pelo interesse Sócrates, uma posição que não lance mão
de todos, o ganho que todos individualmente da existência teórica de uma tal ideia deve
N
obterão será maior do que o ganho que qual- aceitar que cada pessoa possui um proces-
quer pessoa que aja sozinha será capaz de so de conquista da sabedoria prática e que
obter. Portanto, a justiça não é o interesse do esta lhe dará a consciência de que o bem
mais forte, mas o favorecimento do interesse comum deve estar acima do bem particular.
P
de todos. A justiça é a procura do bem comum. O melhor que os outros podem fazer pela
Está claro que a filosofia, assim, sociedade e por esse indivíduo é instigar-lhe
afasta-se de um mero diagnóstico da reali- a cuidar de si mesmo. Porém, nenhuma força
dade imediata, como propunha Trasímaco. deve coagi-lo a cuidar de si mesmo para o
A filosofia admite que a realidade pode ser seu bem e o de todos, porque ninguém pode
IA
transformada pelo conhecimento de algo se colocar em uma posição de autoridade
além da realidade, que sirva de modelo para do que deve ser o bem para todos, definindo
sua transformação. qual é a ideia que existe em si mesma, per-
A questão é se é preciso uma teoria uni- feita e imutável. A experiência de cada um, o
versal que defina o que é uma sociedade justa processo de aprendizagem particular, enfim,
para que o homem aja de forma justa. Quanto a sabedoria prática seria o meio pelo qual a
mais confiamos que a ideia de justiça existe sociedade toda tenderia, com o tempo, a se
U
PARA
G
DEBATER
A turma pode se dividir em grupos e organizar
uma discussão entre aqueles que se reconhecem
mais próximos à posição socrática e aqueles que
se reconhecem mais próximos à posição platônica.
De que modo essas perspectivas nos ajudam a
elucidar os conflitos da sociedade atual? Há uma
entre elas que se tornou predominante em nossos
CK
Estudantes em momento R
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para a sociedade? de debate sobre o tema. UT
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M O N K E Y USI N E SS I M
B
| 79
Diógenes abriu mão de sua riqueza e
D
S ócrates segundo viveu em Atenas como um mendigo. Morava
Antístenes e Diógenes em um barril e, durante a noite, andava pe-
las ruas segurando uma lanterna e procu-
Depois da morte de Sócrates, seu pensa- rando por um homem honesto. Sua atitude,
L
mento e suas atitudes deram origem a muitas como a de Sócrates, era provocativa, mas,
outras escolas de pensamento. Portanto, a enquanto Sócrates procurava instigar o cui-
escola platônica não foi a única, e isso de- dado de si, Diógenes promovia ações que
monstra a enorme riqueza do exemplo de procuravam revelar a verdade das pessoas
N
Sócrates. Antístenes, também discípulo de e das instituições, ou seja, o fato de que
Sócrates, foi um filósofo que se ocupou mais elas haviam se corrompido, se desviado
do aspecto prático do pensamento do seu do caminho da virtude. Em vez de propor
mestre do que do aspecto teórico. uma teoria, Diógenes procurou servir como
P
Antístenes acreditava que a filosofia, exemplo da virtude da autossuficiência. Ele
mais do que discutida por meio da dialética, era visto pedindo esmolas para as estátuas,
deveria ser vivida e transmitida por exem- que não podiam vê-lo nem lhe dar o que
plos. Essa é a ideia fundamental da escola pedia, e assim ele exercitava não esperar
que ele fundou, a qual foi chamada de Escola nada dos outros.
IA
Cínica. Ele também acreditava que o prazer Certa vez, Alexandre, o Grande, impe-
é um mal que corrompe a virtude do homem rador da Macedônia e grande conquista-
e que este deve buscar a autossuficiência. O dor do Oriente, por ter sido discípulo de
caso que trataremos para exemplificar como Aristóteles e dar grande valor aos filósofos,
a sabedoria prática se desenvolveu depois encontrou Diógenes e lhe perguntou o que
de Sócrates ocorreu com um discípulo de poderia fazer por ele. Diógenes, naquele
Antístenes chamado Diógenes. momento, tomava banho de sol e, quan-
U
D
lação com o Sol como metáfora da verdade.
Conta-se que, ao ver seus oficiais zom- DEBATER
barem de Diógenes, Alexandre teria dito:
“Se eu não fosse Alexandre, queria ser Seria o Sol aquilo que o filósofo con-
L
Diógenes”. templa, afastando-se de questões munda-
Neste capítulo, veremos exemplos da li- nas? Ao referir-se a esse objeto, Diógenes
teratura que colocam em questão a amplia- estaria dizendo que se interessa por coisas
ção do cuidado de si na direção da relação muito mais elevadas do que aquelas que
N
com o outro e com o coletivo em diversos Alexandre poderia lhe proporcionar? Ou
níveis, desde as formações comunitárias seria ele apenas o instrumento de que o
mais próximas, como a família e a cidade, filósofo se utiliza para revelar aos outros –
até o conjunto planetário. para iluminar – a verdade de Alexandre?
P
DOMÍNIO PÚBLICO
IA
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O encontro entre Alexandre e Diógenes, de Gaetano Gandolfi, 1792. Oléo sobre tela, 66 cm x 53 cm.
| 81
3.1 EMÍLIO OU DA Ao mudar-se para Paris, entrou em con-
D
tato com Diderot e outros filósofos iluminis-
EDUCAÇÃO, DE
tas, que o inspiraram a escrever livros que
ROUSSEAU logo fizeram um imenso sucesso, como o
Discurso sobre as ciências e as artes (1750)
L
A VIDA DE e o Discurso sobre a origem e os fundamen-
JEAN-JACQUES ROUSSEAU tos da desigualdade entre os
homens (1755).
Com família de origem francesa, Jean-
N
-Jacques Rousseau nasceu em Genebra,
na Suíça, em 1712. Perdeu a mãe ainda
cedo e viveu com o pai, um relojoeiro, até
os 10 anos de idade, quando foi morar com
P
um tio que era pastor protestante. Na ju-
ventude, recebeu a proteção da baronesa
de Warens e se dedicou aos estudos e à
música. Tornou-se mais tarde preceptor,
e essa experiência marcaria profunda-
IA
mente a obra Emílio ou Da educação, da
qual trataremos. Rousseau foi casado
com Thérèse Levasseur, com quem teve
cinco filhos. Em razão de dificuldades
financeiras, abandonou-os à assistên-
cia pública, e esse trauma pode tê-lo
motivado a escrever Emílio, como uma
U
doméstico.
G
D O M ÍN
Jean-Jacques
Rousseau (1712-1778).
CAIXA HISTÓRICA:
PESQUISE
• Como foi a vida do autor?
• Quando ele viveu?
• O que estava acontecendo naquela época?
• Há relação entre esses eventos e a obra? Qual?
D
obras mais conhecidas: Contrato social e
Emílio ou Da educação. A segunda obra
OC
V BIA?
causou polêmica pela Europa, chegando a
ser condenada pelo parlamento francês, e
SA
L
Rousseau passou a viver exilado, fugindo
de país em país. O cantor Renato Manfredini Júnior,
Sua morte, em 1778, causou imensa da banda Legião Urbana, adotou o nome
comoção, e seu corpo foi sepultado no artístico Renato Russo como homenagem
N
Panthéon, em Paris, um monumento em a Jean-Jacques Rousseau.
homenagem a grandes pensadores. A
partir de então, Rousseau passou a ser
conhecido como a principal referên-
PARA
P
cia dos revolucionários da década
seguinte.
DEBATER
Escute as músicas “Geração Coca-
L ICO
PÚB
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O -Cola” e “Índios”, da banda Legião
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Urbana, e verifique se é possível estabe-
lecer relações com as ideias de Rousseau.
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| 83
A filósofa Hannah Arendt afirma, em A tenha feito o que há de melhor, para eles mesmos
D
condição humana1, que Rousseau foi o gran- e para outrem.
de inventor da intimidade, sendo, por essa
razão, o único filósofo a quem nos referimos
pelo primeiro nome: Jean-Jacques.
EMÍLIO
L
A importância de estudarmos essa obra
A primeira coisa a observar a respeito
no Projeto de Vida, apesar de haver mais
da obra Emílio ou Da educação é que ela
uma coleção de acontecimentos na vida de
possui uma forma única na literatura uni-
Emílio do que uma trama que se desenvolve
N
versal. Podemos considerá-la um tratado de
continuamente, consiste na oportunidade que
filosofia, um tratado de educação, uma obra
Rousseau oferece para refletirmos sobre nós
de ficção – na medida em que Emílio é um
mesmos e em que medida a nossa formação
personagem criado, bem como as situações
e a nossa preparação para a vida de ma-
que ele vive – e uma obra de autoficção, pois
P
neira geral estão de acordo com a vida que
o preceptor de Emílio, identificado no texto
queremos ter. Afinal, somos formados para
como Jean-Jacques, é o próprio Jean-Jacques
ter o sentimento de nossa própria vida?
Rousseau. Como já sabemos, muitos anos
Em suas palavras encontramos o que
antes de escrever essa obra, Rousseau tra-
ele pretendeu com sua obra:
balhou como preceptor e quis dedicar sua
IA
vida à educação. Praticou-a por apenas dois
Basta-me que, em todos os lugares onde nas-
anos, mas essa obra imortalizou suas ideias.
cerem homens, se possa fazer deles o que propo-
Um dos grandes diferenciais presentes
nho; e que, tendo feito deles o que proponho, se
no livro é a valorização da criança e do jo-
vem, pois, até aquela época, a sociedade não
1
ARENDT, Hannah. Trad. Roberto Raposo. A acreditava que cada fase da vida
condição humana. 12. ed. rev. Rio de
tem seus próprios desafios
U
Estátua de Rousseau
em Genebra, na Suíça,
onde ele nasceu.
D
como miniaturas de adultos, como versões chamadas de “livros”, que apresentam as fa-
precárias e limitadas do que viriam a se tor- ses da vida de Emílio durante sua formação.
nar. Rousseau dedica a elas uma atenção e Os elementos que atravessam todas elas são:
um cuidado inéditos, investigando com extre- a compreensão de Rousseau da natureza hu-
L
mas sensibilidade e perspicácia um mundo mana; o seu diagnóstico de como é a socieda-
do qual tendemos a nos esquecer quando de; e o seu transformador método pedagógico.
nos tornarmos adultos. Rousseau defende que o homem nasce
bom, mas a sociedade o corrompe, de modo
N
DIVULGAÇÃO
P
com a natureza tende a nos fortalecer e nos
fazer felizes, a vida social nos enfraquece e
propaga o mal.
O filme Hook, a volta do Capitão Gancho, de 1991, conta A preservação da criança em seu esta-
como seria se Peter Pan saísse da Terra do Nunca e se
tornasse adulto. do natural pelo máximo de tempo possível
REFLETIR DEBATER
Nem todos os valores expressos na outros, mas entende que as mulheres de-
obra de Rousseau são bons exemplos para viam ser educadas para servir aos maridos
nos inspirarmos. A sociedade de sua épo- e aos filhos. Hoje sabemos que isso não
ca era profundamente machista e Emílio deve ser imposto a nenhuma mulher, pois
reproduz a visão de que a formação de todas devem ter os mesmos direitos que
homens e mulheres deve ser diferente. os homens de escolher um sentido próprio
Rousseau defende que os homens devem para suas vidas.
ser educados para não depender dos
| 85
De uma perspectiva mais didática da pedagogia de Rousseau, é importante também observar, quanto ao seu
método, o seguinte: (O preceptor) “Não deve jamais dar preceitos; deve fazer com que sejam encontrados” (p. 58).
é a base do método que Rousseau chama relação com isso. (…) Em vão, a tranquila razão nos
D
de “educação negativa”. Ele possui os se- faz aprovar ou condenar, pois apenas a paixão nos
guintes aspectos: faz agir; e como entusiasmar-se por interesses que
a) Não ensinar, mas exercitar: ainda não temos?
L
DOMÍNIO PÚBLICO
Aquele de nós que mais sabe suportar os bens
e os males desta vida é, em minha opinião, o mais
bem-educado: disso decorre que a verdadeira
educação consiste menos em preceitos do que
N
em exercícios. Começamos a nos instruir quan-
do começamos a viver; nossa educação começa
conosco; nosso primeiro preceptor é nossa alma.
P
b) Não deixar se acomodar. Ampliar
experiências:
imune a eles? (…) Feliz aquele que sabe abandonar todos esses exercícios de nada servirão se
a condição que o abandona, e permanecer homem não agirmos com paixão, despertando “in-
a despeito do destino! teresses” novos enquanto nos exercitamos.
A que conduz a educação negativa?
d) Buscar o que desperta interesse: Certamente, não podemos esperar dela que
proporcione uma profissão ou algum tipo de
As relações entre efeitos e causas cuja ligação saber técnico. O seu propósito, como já deve
não percebemos, os bens e os males dos quais não estar claro, é formar o caráter.
temos nenhuma ideia, as necessidades que jamais
sentimos, tudo isso é nulo para nós; e é impossível Viver é o ofício que desejo ensinar-lhe. Ao
que nos interessemos sem fazermos nada que tenha sair de minhas mãos, admito que ele não será nem
D
ramente um homem; tudo que um homem deve ra, ou seja, viver verdadeiramente, é preciso
ser, ele saberá sê-lo, segundo a necessidade, tanto enfrentar o sofrimento:
quanto qualquer outro, e, mesmo que a fortuna o
faça mudar de lugar, ele estará sempre no seu. Longe de manter-me atento para evitar que
L
Emílio se fira, eu ficaria muito contrariado caso
nunca se ferisse e crescesse sem conhecer a dor.
O SOFRIMENTO E O OUTRO Sofrer é a primeira coisa que deve aprender e a
que terá mais necessidade de saber.
Rousseau aborda com muita profundi-
N
dade um tema do qual se tem tratado nos
O papel do responsável pela criança
dias de hoje: a forma como a superproteção
seria o de dosar os riscos que ela pode e
de crianças e jovens pode ser maléfica. É
precisa correr para se desenvolver, estabe-
fácil compreender que, no mundo em que
P
lecendo um processo gradativo, para que
vivemos, problemas de segurança pública
esses desafios possam aumentar paulati-
fazem com que os familiares se preocupem
namente, favorecendo a cada vez um novo
legitimamente. Rousseau tinha em vista, no
crescimento. Isso pode ser bem exempli-
entanto, a importância de explorar o mundo
ficado no caso da superação dos medos.
e de se arriscar com coragem para desenvol-
IA
Trata-se de um dos “exercícios” aos quais
ver capacidades de resistência, temperança
Jean-Jacques se refere:
e persistência, que são fundamentais, em sua
concepção, para enfrentar os reais desafios
Todas as crianças temem as máscaras. Começo
da vida.
mostrando a Emílio uma máscara de aspecto agra-
Ele alerta para isso já no momento em dável. Em seguida, alguém coloca diante dele a
que a criança começa a dar os primeiros mesma máscara sobre o próprio rosto; ponho-me
passos. O que acontecerá se os pais teme-
U
não é ensiná-la a suportar a dor; é prepará-la para riu da primeira. Depois disso, não temo mais que
senti-la. se assuste com máscaras. (…) Com uma gradação
lenta e controlada, tornam-se o homem e a criança
Portanto, a vida supõe que se assumam ris- intrépidos diante de tudo.
cos. Deles virão as conquistas. Isso supõe uma
concepção bastante ativa e pujante da vida: Porém, é preciso atentar que não se trata
de fabricar riscos desnecessários e despro-
Viver não é respirar, é agir; é fazer uso de porcionais, que poderiam fazer da criança
nossos órgãos, de nossos sentidos, de nossas fa- uma pessoa assustada que vê o mundo
culdades, de todas as partes de nós mesmos que como um lugar fundamentalmente amea-
nos dão o sentimento de nossa existência. çador. Isso seria perverso e não é essa sua
| 87
intenção. Trata-se apenas de fazer com que conhece as consequências das coisas que
D
as experiências que naturalmente ocorrerão sofre, é natural buscar no outro uma referên-
não produzam traumas. A educação, em vez cia, e dessa situação nasce o modo como
de submetida a uma ciência da previsão, podemos passar a vida baseando-nos na
se aproxima mais de uma espécie de arte avaliação dos outros. Fazer isso na infância
L
da medida. A obra está cheia de circuns- é natural. A questão é se devemos fazê-lo
tâncias que são supostas pelo preceptor e por toda a vida.
que nos indicam uma boa conduta diante
do sofrimento.
O CORPO E O ESPÍRITO
N
Se ela cai, se ganha um galo na cabeça, se san-
Ao analisar a presença do sofrimento na
gra pelo nariz, se corta os dedos, em vez de acorrer
vida como algo natural, Rousseau propõe uma
com um semblante alarmado, permanecerei tranqui-
distinção muito importante entre o sofrimen-
P
lo, pelo menos por algum tempo. O mal está feito,
to do corpo e o sofrimento do espírito, dando
é uma necessidade que ela suporta; toda a pressa
mais peso ao segundo: “Ninguém tira a pró-
serviria apenas para assustá-la ainda mais e aumentar
pria vida em razão das dores da gota; apenas
sua sensibilidade. No fundo, é menos o golpe do que
as da alma produzem o desespero”
o temor que nos atormenta quando nos ferimos.
Como os males do corpo são menores
IA
Poupar-lhe-ei, ao menos, esta última angústia, pois
que os males do espírito, é preciso expor o
muito seguramente avaliará sua dor tal como a verá
corpo ao exercício, fortalecê-lo e torná-lo sau-
ser avaliada: se me vir acorrer com inquietude, para
dável, para que ele pese sobre o espírito. É
consolar e apiedar-me dela, considerar-se-á perdida;
preferível submeter o corpo a algumas feridas
se observar que mantenho meu sangue-frio, logo
e arranhões em favor da alegria do espírito,
recuperará o seu e acreditará estar a dor curada
assim que não mais a sentir. É nessa idade que se
U
D
nas para preservar o corpo desses riscos:
L
Lá, que corra, que brinque, que caia 100 vezes por dia, Eliminai a força, a saúde e o bom teste-
tanto melhor: aprenderá mais cedo a se reerguer. O munho de si, e todos os bens desta vida estarão
bem-estar da liberdade compensa muitas feridas. Meu na opinião; eliminai as dores do corpo e os re-
aluno terá contusões frequentes; em contrapartida, morsos da consciência, e todos nossos males
N
estará sempre alegre: se os vossos as têm em menor serão imaginários.
quantidade, eles se encontram sempre contrariados,
sempre acorrentados, sempre tristes.
A CURA DOS MALES DO ESPÍRITO
Se desejais, portanto, cultivar a inteligência
P
de vosso aluno, cultivai as forças que ela deve Vimos acima que, na visão de Rousseau,
governar. Exercitai continuamente seu corpo, os males do espírito podem ser mais penosos
tornai-o robusto e saudável para torná-lo sábio que os males do corpo. Sabemos quais são
e razoável; que trabalhe, que aja, que corra, que as causas das dores do corpo, mas conhece-
grite, que esteja sempre em movimento; que seja
IA
mos a causa das dores do espírito? O conhe-
homem pelo vigor e logo o será pela razão. cimento delas seria capaz de proporcionar
um tratamento ou uma cura?
A primeira coisa a compreender é, em
OCK
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UT suas palavras: “Nossos maiores males vêm
UD
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K O_ de nós mesmos”. Mas em que sentido deve-
NE
NA mos compreender isso? Certamente não é
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lições esse mestre teria alcançado depois surgimento da Revolução Industrial e o flores-
D
de seu longo treinamento? cimento da sociedade de consumo burguesa.
Em sua visão, essa sociedade teria feito com
Aquele cuja força ultrapassa as necessidades, que o homem fosse privado daquilo que ele
seja ele um inseto ou um verme, é um ser forte. mesmo produz e, por outro lado, fosse insti-
L
Aquele cujas necessidades ultrapassam a força, seja gado a ter aquilo que não possui:
ele um elefante ou um leão, seja ele um conquistador
ou um herói, ou até um deus, é um ser fraco. A sociedade tornou o homem mais fraco, não
somente ao privá-lo do direito que tinha sobre suas
N
Portanto, a força perante os sofrimentos próprias forças mas sobretudo ao torná-las insu-
psíquicos não é absoluta, algo que temos ou ficientes para ele.
não. Ela é relativa às nossas necessidades. A
questão, então, consiste em saber quais são as Uma sociedade que priva sua autonomia
P
nossas necessidades. Sobre parte delas não e aumenta suas necessidades torna o homem
temos nenhum controle, pois precisamos nos mais fraco e mais infeliz, em sua visão.
alimentar e nos hidratar para viver. Precisamos A cura, portanto, residiria em bastar-se
descansar. Precisamos nos proteger dos fe- a si mesmo, não dependendo dos outros, e
nômenos da natureza, entre outras coisas. No em colocar uma medida própria às suas
IA
entanto, algumas necessidades são fabricadas necessidades.
e nós as assumimos pela influência dos outros
e da sociedade em geral. Nesse caso, a força
seria relativa a um poder de viver conforme as
próprias necessidades, sem assumir aquelas
PARA
que nos foram atribuídas. Nas palavras de REFLETIR
Rousseau: “Ó homem! Encerra tua existência De onde vem a fraqueza do ho-
U
dentro de ti e não serás mais miserável” (p. 94). mem? Da desigualdade que se encontra
Tudo isso vai ao encontro do diagnóstico entre sua força e seus desejos. São nossas
social feito por Rousseau, de que o homem paixões que nos tornam fracos, pois seria
nasce bom e a sociedade o corrompe. Afinal, preciso, para contentá-las, mais forças que
um homem forte tende a ser bom, pois não tem
G
D
A ADOLESCÊNCIA que esse é o momento da ampliação de re-
pertórios. Se a criança estava voltada às
Segundo Rousseau, a passagem da infân-
coisas circundantes, o adolescente se abrirá
cia para a adolescência é marcada pela saída
às coisas mais distantes, a outras possibili-
L
da situação em que o ser humano não tem força
dades do mundo. Quanto menos refém das
suficiente para suprir todas as suas necessida-
necessidades e mais oportunidades ele ti-
des, dependendo dos outros, para a entrada
ver para empregar seu excedente de força,
na fase em que surge um excedente de forças.
melhor será para a sua formação e para o
N
A questão é como empregar esse excedente.
seu futuro.
O filósofo o organiza em dois sentidos,
primeiramente na forma do cuidado de si e Há pouco, cuidávamos apenas do que nos
da preparação para o futuro: afeta, do que nos cerca imediatamente; de repen-
te, encontramo-nos a percorrer o globo e a saltar
P
O que ele fará, portanto, desse excedente de fa-
até as extremidades do universo! Esta guinada é o
culdades e de forças que atualmente possui e que lhe
efeito do progresso de nossas forças e da inclina-
fará falta numa outra idade? Procurará empregá-lo em
ção de nosso espírito. No estado de fraqueza e de
cuidados que possam ser-lhe úteis, segundo a necessi-
insuficiência, o cuidado de nos conservar faz com
dade. Projetará, por assim dizer, no futuro o supérfluo
IA
que nos concentremos em nós mesmos; no estado
de seu ser atual: a criança robusta fará provisões para o
de potência e de força, o desejo de estender nosso
homem fraco, mas não depositará suas reservas em co-
ser nos leva além, e faz com que nos precipitemos
fres que possam ser roubados nem em granjas que lhes
para tão longe quanto possível (…).
sejam estranhas; para apropriar-se verdadeiramente
do que acumulou, é em seus braços, em sua cabeça, é
em si mesma que ela o colocará. Eis, portanto, a época
dos trabalhos, das instruções e dos estudos; e notai que
C Ê
VOBIA?
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TOC
E RS
U TT A adolescência nem sempre foi reconhe-
SH
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M cida, socialmente, na história. Não reconhecer
F
| 91
sem que houvesse muitos descontentes. Com o
D
AS PAIXÕES amor e a amizade, nascem as dissensões, a ini-
A adolescência é também a idade do mizade, o ódio.
início das paixões. Rousseau acredita que
Mais uma vez, a solução seria fazer
L
o primeiro sentimento de uma pessoa ao nas-
da própria existência, do amor-próprio, a
cer é amar a si mesma e que, aos poucos,
principal necessidade, e não depender dos
ela aprende a amar aqueles que a cercam. É
outros. Se o que os outros desejam e sen-
pelos cuidados que recebe que ela amplia o
tem a eles pertencem e não dependem de
N
seu amor na direção do outro. Esse laço cria
nós, por que fazer da reciprocidade uma
uma dinâmica de reciprocidade que deverá
necessidade a mais?
perdurar por toda a vida e é dele também
Quanto mais felizes na simplicidade, sem
– da expectativa de reciprocidade – que
exigir a preferência dos outros, mais as pai-
surgirão sentimentos ruins, como a inveja,
P
xões são como afetos ternos e alegres. Se
o ressentimento e a inimizade.
pudermos conter as nossas expectativas,
seremos nós mesmos os responsáveis pela
Desejamos obter a preferência que concede-
nossa felicidade. Ao mesmo tempo, nos tor-
mos; o amor deve ser recíproco. Para ser amado,
naremos mais solidários com os outros. É isso
é preciso tornar-se amável; para ser preferido, é
IA
que Jean-Jacques espera de Emílio:
preciso tornar-se mais amável que outro, mais
amável que qualquer outro, ao menos aos olhos (…) seu coração compassivo se comove com os
do objeto amado. Daí resultam os primeiros olha- sofrimentos de seus semelhantes; estremece de
res sobre seus semelhantes; as primeiras compa- alegria quando revê seu camarada, seus braços
rações com eles; a concorrência, as rivalidades, a sabem encontrar abraços carinhosos; seus olhos
inveja. Um coração repleto de um sentimento que sabem derramar lágrimas de ternura; é sensível à
transborda gosta de desabafar; da necessidade de vergonha de desagradar, ao arrependimento por
U
uma amante logo nasce a de um amigo: aquele que ter ofendido (…) A adolescência não é a idade
sente o quanto é doce ser amado desejaria sê-lo da vingança nem a do ódio; é a da comiseração,
por todo mundo, e todos não pode- da clemência, da generosidade.
riam querer a preferência
G
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PA T I WA
D
sociedade, a igualdade de direitos é uma dis-
DEBATER simulação. Em realidade, a força pública é
Você notou que esse processo educa- apropriada por alguns para oprimir os demais:
tivo retratado por Jean-Jacques é individual?
L
Quais são as diferenças entre esse tipo de Existe, no estado civil, uma igualdade de di-
educação e aquela que temos em conjunto, reito quimérica e vã, pois os próprios meios desti-
numa comunidade escolar? É possível que es- nados a mantê-la servem para destruí-la; e a força
sas ideias sejam realizadas nas escolas? Quais pública, unida ao mais forte para oprimir o fraco,
N
são as vantagens da educação escolar? rompe a espécie de equilíbrio que a natureza havia
colocado entre eles. Dessa primeira contradição
decorrem todas as que observamos na ordem civil,
O HUMANO E O SOCIAL entre a aparência e a realidade.
P
Rousseau acredita que o que une a socie- Esse tema é desenvolvido por Rousseau
dade humana são as necessidades comuns, na obra O contrato social, que foi publicada
como a proteção, a moradia e a alimentação. no mesmo ano de Emílio ou Da educação.
Porém, o que humanamente nos une são os Aquela é uma obra dirigida à sociedade co-
mo um todo. Esta, uma obra dirigida a cada
IA
sofrimentos que compartilhamos. Os pra-
zeres são particulares, mas os sofrimentos homem, sobretudo ao jovem, que deve se
despertam a identificação e a compaixão, ul- espelhar em Emílio. O que, finalmente, Jean-
trapassando qualquer diferença geográfica, -Jacques espera do seu aluno?
geracional, cultural ou social:
Que saiba que o homem é naturalmente bom,
Os homens não são naturalmente nem reis, que o sinta, que julgue seu próximo com base em
nem nobres, nem cortesãos, nem ricos. Todos nas- si mesmo; mas que veja como a sociedade depra-
U
ceram nus e pobres, todos sujeitos às misérias da va e perverte os homens e que encontre, em seus
vida, às mágoas, às doenças, às necessidades, às preconceitos, a fonte de todos os vícios; que seja
dores de toda espécie; enfim, estão todos conde- levado a estimar cada indivíduo, mas que despreze
nados à morte. a multidão, que veja que todos os homens vestem
G
| 93
Orientações pedagógicas: Tempo: 1 hora/aula (1. leitura coletiva, produção da caixa, das primeiras perguntas
e designação da escala entre os alunos que vão responder à questões [indicamos que seja em ordem alfabética]).
Espaço: sala de aula. Agrupamentos: atividade coletiva. Materiais: material para a produção da caixa, uma tira
de papel e uma caneta para cada aluno. Também indicamos que, em vez da caixa, utilizem um plástico que ficará
isso é uma das grandes influências no nosso
PROPOSTAS
D
caminho de cuidado de si.
É importante que nossa comunidade
escolar se veja como um ambiente de troca
DE VIVÊNCIAS autônoma, sobre questões de muitos tipos,
L
Competência Geral 6
Ciências Humanas e Sociais:
e não necessariamente só de conceitos aca-
3.1.1 NOSSAS Competência 6
EM13CHS605
dêmicos que estão no currículo das discipli-
nas. Jean-Jacques fala sobre a importância
CURIOSIDADES de buscarmos o que desperta interesse, e,
N
muitas vezes, nossos interesses vão além
Muitas vezes os estudantes se ques-
daquilo que já estudamos.
tionam sobre por que ir à escola. É muito
comum ouvirmos dos nossos colegas: “mas
onde vou usar tal coisa?”, “por que devo 1. Pensando nisso, façam uma caixa de
P
aprender isso?”, ou muitas vezes nós mes- perguntas na qual as pessoas depositem
mos já fizemos essas perguntas. Isso de- em tiras de papel suas questões (pode
corre de uma experiência de educação que ser anonimamente) e, diariamente,
não se importa muito em fazer com que o alguém tira uma pergunta e traz uma
conteúdo faça sentido para os estudantes, resposta no dia seguinte. As respostas
IA
desde que eles decorem o assunto e pas- não precisam ser escritas ou muito
sem nas provas oficiais. elaboradas, mas devem ser fruto de
Há muito tempo essa ideia de educa- reflexão e pesquisa. Essa caixa deve ser
ção vem sendo questionada e reformulada. realimentada diariamente, sempre com
A fala de Jean-Jacques: “viver é o ofício que perguntas convenientes ao ambiente
desejo ensinar-lhe” é sinal dessa reformu- escolar, por isso devem ser mediadas
lação, que, como é dito no ensaio, reflete pelo(a) professor(a).
U
D
1. Com base nessa reflexão, preparem
Camilo Hurtado, 8 anos).
uma lista das brincadeiras que o seu
Essas definições não parecem mui-
grupo fazia quando criança. Priorizem
to com o que aprendemos na escola, não
brincadeiras que não precisem de
é mesmo? Elas são, na verdade, verbetes
aparatos tecnológicos (videogame, por
L
de um dicionário produzido por crianças e
exemplo). Logo após, façam uma lista
compilado no livro Casa das estrelas: o uni-
de materiais necessários (por exemplo:
verso contado pelas crianças, de Javier Na-
corda, elástico, garrafas PET).
ranjo, um professor colombiano.
2. Conversem com a gestão escolar sobre
N
Estamos muito acostumados a pen-
a possibilidade de fazer uma visita à
sar no que as pessoas mais velhas podem
Escola Municipal de Educação Infantil
ensinar ou, até mesmo, no que as crianças
(EMEI) mais próxima para apresentar
podem aprender conosco. E, de fato, a ida-
essas brincadeiras. Para isso, redijam
P
de e a experiência podem trazer uma baga-
uma carta, coletivamente, fazendo
gem preciosa para se compartilhar. Porém,
essa proposta para a gestão da EMEI,
acabamos esquecendo o quanto temos a
e estejam aber tos para a resposta
aprender com as crianças. Elas também pro-
da instituição.
duzem cultura, narram, formulam hipóteses,
3. Após a visita, façam uma lista das coisas
IA
têm direitos e cidadania. Temos muito a
que vocês observaram, aprenderam e
aprender com o seu olhar desacostumado
acharam interessante nesse dia. Pensem
com o mundo, porque, para transformar a
no quanto a infância atual é parecida
realidade, primeiro nós devemos nos desa-
ou não com a sua infância e reflitam
costumar com ela; ou seja, imaginar que ou-
nos interesses e demandas que essas
tros modos de viver e pensar são possíveis.
crianças manifestam.
Por muito tempo, as crianças foram vis-
U
DMONTESSI/ SHUTTERSTOCK
são cidadãos criadores e atuantes, nas suas
especificidades, é muito recente. Hoje, os
documentos mais atuais sobre Educação
G
| 95
3.2 “O ALIENISTA”, DE da literatura, que é também uma forma de in-
D
vestigação psicológica, porém que se atém à
MACHADO DE ASSIS
experiência de um personagem fictício.
“O alienista” um conto exemplar do es-
O lugar da loucura tilo machadiano, por realizar uma literatura
L
O conto “O alienista”, de Machado de carregada de ironia, com severas críticas
Assis,1 cuja primeira edição data de 1881, sociais, que visam principalmente o univer-
apresenta críticas bastante atuais à psiquia- so psíquico e íntimo de figuras de destaque
tria, ciência que estuda e trata de doenças na sociedade. Ao mostrar que essas perso-
N
psíquicas. Por trás dessa crítica, há também nagens possuem fraquezas como qualquer
um questionamento sobre o poder que os pessoa, Machado revela que a ordem social
cientistas, desde aquela época, exercem em em que vivemos pode ser transformada. E o
nossa sociedade. principal recurso dessa ironia consiste em
P
Desde o século XIX, a ciência tem avan- jogar as pseudociências e as relações de
çado sobre aspectos gerais da vida humana, poder contra elas mesmas.
na história, na economia, na sociologia, na A crítica social presente nesse conto
psicologia, e gerado disciplinas ainda mais possui um especial caráter visionário, pois
específicas, como a psicopedagogia, a crimi- a prática de encarceramento dos loucos
IA
nologia, entre outras, abarcando os domínios em manicômios viria a ser muito questiona-
naturais e humanos da realidade. da na segunda metade do século XX pelo
O conto de Machado de Assis destaca movimento antimanicomial, que não aceita
essa intervenção direta na vida privada das a exclusão social generalizada de pessoas
pessoas, e podemos colocar em questão se com distúrbios psíquicos. Afinal, como
nossa vida pode ser sacrificada em benefício estabelecer o limite entre a razão e a
do desenvolvimento científico e do aparente loucura? Qual é a fronteira capaz de
U
D
prestígio com a monarquia, Machado indica
que as críticas que a ele se dirigirem dizem
CONHEÇA respeito também à ciência que ele domina
e ao poder que o prestigia. O problema não
L
O movimento antimanicomial é o é apenas seu mau uso da ciência e do po-
engajamento coletivo pelos direitos das der, mas o que é inerente àquela ciência e
pessoas com sofrimento mental. Com o àquele poder, pois são a ciência e o poder
lema “por uma sociedade sem manicô- que marcam uma época.
N
mios”, ele uniu e une pessoas de diver- Aparentemente, Simão Bacamarte tem
sas áreas (médicos, psicólogos, juristas e um interesse tão profundo e tão verdadeiro
sociedade civil em geral) para o fim do pela ciência que nada mais no mundo pode
encarceramento de pessoas com distúr- satisfazê-lo. Nenhum prestígio pode desviá-lo
P
bios psíquicos. No Brasil, o Dia Nacional e corrompê-lo; e ele não se importaria com
da Luta Antimanicomial é celebrado em as honras oferecidas pelo rei. No entanto,
18 de maio. como veremos, isso não se deve ao fato de
não se preocupar com honrarias, mas ao
fato de perseguir honrarias maiores, que
O universo em Itaguaí
IA
deverão ser conferidas pela humanidade
O conto começa com a apresentação do inteira, por muitas gerações.
personagem principal, de sua formação e do
local onde se desenvolve a trama, Itaguaí:
Ao apresentar Simão Bacamarte co- Retrato de Louis Pasteur, de Albert Edelfelt, 1885. Óleo
mo o “maior dos médicos do Brasil, de sobre tela, 155 cm x 127,5 cm. Museu de Orsay, Paris.
Alienista: aquele que trata dos “alienados”; termo que designava aqueles que estavam
“fora de si”. Essa profissão é hoje relacionada a psicólogos e psiquiatras.
Remoto: longínquo, antigo.
| 97
Estabeleceu-se, então, em Itaguaí. Essa Simão Bacamarte não estava interes-
D
cidade é o seu “universo”, ou seja, todo o sado na beleza de D. Evarista. Aliás, não
campo de que precisa para desenvolver estava interessado na própria D. Evarista.
seus estudos. E lá veio a conhecer D. Evarista, Queria apenas que ela lhe desse filhos
uma viúva que despertou nele um interesse “robustos, sãos e inteligentes”. Sua preo-
L
matrimonial. Mas de que natureza foi esse cupação, assim como no caso da ciência
interesse? Seria um interesse profundo, di- que buscava desenvolver, era apenas com
reto, verdadeiro? Segundo o consenso de o seu legado para a humanidade. Por isso,
todos, e até do alienista, D. Evarista não tinha ele confiava em todos os sinais de saúde
N
feições muito atraentes, o que fez com que que a ciência médica lhe dotara conhecer.
um tio excessivamente franco chegasse a lhe Esperava que esses sinais fisiológicos, su-
questionar aquela escolha, ao que Simão postamente obtidos por meio de rigorosas
Bacamarte lhe explica que: experiências, fossem tão confiáveis que
P
lhe dariam um dom divinatório, como a ca-
(…) D. Evarista reunia condições fisiológicas pacidade de prever como seriam os filhos
e anatômicas de primeira ordem, digeria com fa- que teriam. Porém, não tarda a ficar claro
cilidade, dormia regularmente, tinha bom pulso e que ele se equivocou: “D. Evarista mentiu
excelente vista; estava assim apta para dar-lhe filhos às esperanças do Dr. Bacamarte, não lhe
IA
robustos, sãos e inteligentes. Se além dessas pren- deu filhos robustos nem mofinos”. Não lhe
das – únicas dignas da preocupação de um sábio deu filho nenhum. A ciência, desde o início,
–, D. Evarista era mal composta de feições, longe frustrou suas expectativas, mas o ambicio-
de lastimá-lo, agradecia-o a Deus, porquanto não so médico fará disso uma oportunidade de
corria o risco de preterir os interesses da ciência na aprendizagem, para conter tais ambições?
contemplação exclusiva, miúda e vulgar da consorte. Tão apaixonado era o seu interesse pela
ciência, tão comprometido era o seu saber,
U
Lastimar: lamentar, sentir pena. que Simão Bacamarte não pôde tirar disso
G
INDICAÇÃO
“O alienista”, conto clássico de Machado de Assis, foi publicado no século XIX e até
hoje é uma das obras mais importantes da literatura brasileira. Por isso, ainda é reedi-
tado de muitas formas. Em 2008, uma versão em quadrinhos, de Fábio Moon e Gabriel
Bá, ganhou o Prêmio Jabuti na categoria de livros escolares. Vale a pena conferir como
grandes obras da literatura podem ser expressas das mais diversas formas!
D
Ao contrário, encontrou nas circunstâncias a todos:
da vida uma ocasião para nela mergulhar
ainda mais, porque “(…) a ciência tem o ine- A ideia de meter os loucos na mesma casa,
fável dom de curar todas as mágoas (…)”. vivendo em comum, pareceu em si mesma um sin-
L
A que campo especificamente ele se toma de demência e não faltou quem o insinuasse
dedicaria? Embora tantas coisas investi- à própria mulher do médico.
gasse, parecia cego ao fato de que seu — Olhe, D. Evarista, disse-lhe o Padre Lopes,
principal interesse de estudos era algo vigário do lugar, veja se seu marido dá um passeio
N
que lhe parecia presente nos outros, pare- ao Rio de Janeiro. Isso de estudar sempre, sempre,
cia externo, mas tinha motivações íntimas. não é bom, vira o juízo.
O problema que ele queria descobrir nos
outros, ele tardaria a ver que era um pro- E o narrador, então, descreve-nos al-
P
blema presente nele mesmo, motivando-o guns critérios utilizados pelo alienista, sem
a buscar resolvê-los por meio dos outros, nunca deixar de inserir alguma ironia.
utilizando-se deles. Portanto, era como se,
ao curar os outros, ele curasse a si mesmo: Eram furiosos, eram mansos, eram mono-
“A saúde da alma, bradou ele, é a ocupação maníacos, eram toda a família dos deserdados do
IA
mais digna do médico”. Voltou-se, então, à espírito. Ao cabo de quatro meses, a Casa Verde
saúde da alma dos outros porque a saúde era uma povoação.
de sua própria alma era já um problema.
Com isso, propõe que, havendo tantos
“Era a opulência” tipos de loucura, não poderia mesmo tardar
para encher a Casa Verde.
Simão Bacamarte precisava de um mé- Não haveria nisso, não apenas nos
U
todo de investigação. Pareceu-lhe oportuno critérios obscuros, mas também nas suas
reunir e recolher os loucos em um mesmo aplicações, alguns abusos, alguns exa-
local para poder melhor estudá-los e tra- geros da parte do alienista? Por exemplo,
tá-los. “Sem este asilo, continuou o alienis- “Os loucos por amor eram três ou quatro,
ta, pouco poderia fazer; ele dá-me, porém, mas só dois espantavam pelo curioso do
G
muito maior campo aos meus estudos”. delírio”. Pode ser que, entre esses três ou
Nascia assim, como depois ficou conheci- quatro, houvesse um ou dois intensamente
da, a “Casa Verde”, por ser a primeira casa apaixonados – coisa que o alienista por
em Itaguaí com janelas verdes, ou seja, de experiência própria não conhecia nem en-
uma cor geralmente associada à saúde, à tendia – e, por isso, eles lhe aparentassem
esperança e à liberdade. Ela era, entretan- ser loucos. Será que todos deveriam amar
to, como tantas que surgiriam nessa época como Simão Bacamarte amava D. Evarista,
pelo mundo, um manicômio, um lugar que ou seja, apenas segundo critérios lógicos,
encarcerava os loucos para pretensos pro- definidos pelo espírito? Ninguém mais teria
pósitos benfeitores, mas que com o tempo direito a um amor que não fosse o amor
se revelaram bastante problemáticos. de um “sábio”?
Professor(a), o sentido de sabedoria aqui é o de sabedoria teórica, ou seja, discute-se a submissão do amor,
a uma teoria.
| 99
INDICAÇÃO
D UÇ ÃO
L ME/ R
E PRO
D
O filme Bicho de sete cabeças, de Laís Bodansky,
IO F IL
conta a história de um rapaz que é internado em um
N
AR / R
manicômio pela família e ali sofre com tratamentos
T R IS T
psiquiátricos despropositados ou desproporcionais
à sua condição, que não era de doença mental, mas
M B IA
de comportamento social incompreendido.
C O LU
PARA
REFLETIR P
IA
A saúde mental é um assunto muito essa condição e não devem ser julgadas
sério, mas infelizmente, em nossa socie- pelo que sentem. É preciso que haja res-
dade, ainda enfrenta muitos tabus, ou se- peito e acolhimento para que elas se sin-
ja, não é devidamente compreendido e tam à vontade para procurar a ajuda de
respeitado. Há muitos transtornos e graus seus amigos, familiares e das comunida-
de intensidade diferentes. Pessoas em so- des a que pertencem, como a comunidade
frimento mental não escolhem passar por escolar.
U
D
meno e o remédio universal” e assim resolver a ideia disparatada, desatinada, exorbitan-
o “mistério do seu coração” – o que sugere te, louca. Mas, afinal, que ideia seria essa,
não apenas o poder de curar os outros, mas qual a descoberta, a renovada chave de
também a si mesmo. Esse mistério parece conhecimento da loucura? Assim o alienista
L
apontar, como aquele de João de Deus, a uma a apresenta:
certa megalomania, ou seja, a uma mania de
grandeza, de se julgar capaz dos feitos mais — Supondo o espírito humano uma vasta con-
extraordinários. E era assim mesmo que ele cha, o meu fim, Sr. Soares, é ver se posso extrair a
N
se referia ao seu trabalho: “Creio que com isto pérola, que é a razão; por outros termos, demar-
presto um bom serviço à humanidade”. quemos definitivamente os limites da razão e da
loucura. A razão é o perfeito equilíbrio de todas
as faculdades; fora daí insânia, insânia e só insâ-
P
os tempos, acrescentou, a loucura e a razão estão
perfeitamente delimitadas.
DEBATER
O professor pode propor, como de- Ao pretender ser tão preciso e rigoroso
bate, a comparação entre o altruísmo de na delimitação da razão diante da loucura e
IA
Simão Bacamarte e o de Dom Quixote. Por de encontrar no homem comum um “perfei-
trás do desejo de fazer bem aos outros, to equilíbrio” entre as faculdades, como se
havia no alienista sempre um desejo maior houvesse na mente das pessoas uma ordem
de fazer bem a si mesmo – um desejo de tão regular e ordenada como supostamente
glória. Essa glória viria como consequên- há nos fenômenos naturais, o alienista co-
cia de um esforço inteiramente pessoal meçou a colecionar casos de desvio. E não
ou seria conquistada aproveitando-se do desconfiava que o problema não estava nas
U
Insânia: loucura.
Opulência: Grande quantidade de bens e riqueza.
| 101
médico e protestavam cada vez mais que
D
era injusto o destino que ele dava a seus
A cura
amigos e familiares: “A casa verde é um Diante de tantos protestos, Simão
cárcere privado, disse um médico sem clí- Bacamarte se esconde atrás do poder que
nica. Nunca uma opinião pegou e grassou a ciência em sua época já havia conquistado:
L
tão rapidamente”. o poder de não precisar prestar contas à so-
De pouco a pouco, as críticas se ciedade das coisas que faz sob a desculpa de
acumulavam: que poucos seriam intelectualmente capazes
de compreendê-lo. É um caso bastante em-
N
— Tudo isso doido? blemático de como o saber constitui poder na
— Ou quase doido, obtemperou o padre. forma de exclusão, pela exclusão que os psi-
O terror acentuou-se. Não se sabia já quem quiatras operam dos loucos na sociedade e
estava são, nem quem estava doido. de toda a sociedade daquilo que os cientistas
P
sozinhos decidem. Como afirma o alienista:
Tantas indagações o povo da cidade
professava que um dia chegaram a formu- — Meus senhores, a ciência é coisa séria,
lar a questão principal: e merece ser tratada com seriedade. Não dou
razão dos meus atos de alienista a ninguém,
IA
Nada tenho que ver com a ciência; mas, se salvo aos mestres e a Deus. (...) Poderia con-
tantos homens em quem supomos juízo são reclu- vidar alguns de vós em comissão dos outros a
vir ver comigo os loucos reclusos; mas não o
sos por dementes, quem nos afirma que o alienado
faço, porque seria dar-vos razão do meu sis-
não é o alienista?
tema, o que não farei a leigos nem a rebeldes.
PARA
G
REFLETIR
O filósofo Michel Foucault (1926-1984) escreveu diversas obras que investigam a
marginalização da loucura e a produção de instituições de exclusão social. Em História
da loucura na idade clássica1 (p. 183), ele afirma: “O louco não é manifesto em seu ser:
mas se ele é indubitável, é porque é outro”. Com isso, sugere que não é possível
definir a essência da loucura. A loucura seria aquilo que cada sociedade con-
sidera estar fora das suas normas; seria relativa a essas normas e, ao mesmo
tempo, aquilo que é capaz de revelá-las.
FOUCAULT, Michel. História da loucura na Idade Clássica. Trad. José Teixeira Coelho Netto. 11.
1
D
do: — 1º que verificara das estatísticas da vila e
L
problema ético: em que medida a socie- examinar os fundamentos da sua teoria das mo-
dade, que deveria ser beneficiada pela léstias cerebrais, teoria que excluía da razão todos
ciência, deve se sacrificar em favor dos os casos em que o equilíbrio das faculdades não
interesses da ciência? Em que medida o fosse perfeito e absoluto; 3º que, desse exame e do
fato estatístico, resultara que para ele a convicção
N
interesse da sociedade deve esperar um
de que a verdadeira doutrina não era aquela, mas
ganho futuro e incerto?
a oposta, e portanto que se devia admitir como
era científico, ou melhor, estatístico: “quatro normal e exemplar o desequilíbrio das faculdades e
quintos da população estavam aposentados como hipóteses patológicas todos os casos em que
P
aquele equilíbrio fosse ininterrupto; 4º que à vista
naquele estabelecimento”. Como a loucura po-
disso declarava à Câmara que ia dar liberdade aos
deria ser bem mais comum que a sanidade?
reclusos da Casa Verde e agasalhar nela as pessoas
Como pretender tratar e curar aquilo que é a
que se achassem nas condições agora expostas (...).
regra, e não a exceção? Tudo isso gerou uma
grande reviravolta nas ideias do alienista, que,
IA
Diante dos dados estatísticos, sua ciência
no entanto, não abriria mão da confiança na
agora determinava que a regra era o desequi-
efetividade da sua ciência:
líbrio entre as faculdades e que o saudável era
o homem coberto de vícios. Os virtuosos eram
a minoria e, por isso, mereciam, estes sim, ser
internados para receber tratamento, ou seja,
para que lhe fossem inculcados os vícios que
U
| 103
Diante dos dados estatísticos, do fato de ainda estranhamente oportuna. De fato,
D
que a norma é o desequilíbrio e a corrupção era apenas em seu caso que tal coleção de
moral, Simão impõe destrambelhados recur- virtudes fazia mal aos outros. Não foi esse
sos com o fim de corrompê-los, ajustando-os sentimento de culpa que o levou a uma des-
à norma:“ coberta de si mesmo, mas apenas o aparente
L
processo lógico da sua investigação científi-
Suponhamos um modesto. Ele aplicava a ca. De uma forma ou de outra,
medicação que pudesse incutir-lhe o sentimen-
to oposto. (...) Para restituir a razão ao alienado, recolheu-se à Casa Verde (…) entregou-se ao
N
(...) recorria aos anéis de brilhantes, às distinções estudo e à cura de si mesmo. Dizem os cronis-
honoríficas, etc. tas que ele morreu dali a dezessete meses, no
mesmo estado em que entrou, sem ter podido
Em poucos dias, o médico obteve suces- alcançar nada.
P
so. A Casa Verde ficou vazia, porque todos
estavam “curados”! “(...) Não havia loucos em Embora tenha defrontado sucessivas
Itaguaí; Itaguaí não possuía um só mente- crises de todas as naturezas com o seu sis-
capto”. Mas mal começou a comemorar sua tema, reconhecendo que havia em si mesmo
conquista, irrompeu-lhe um sentimento de um desvio de comportamento com relação
IA
grande insegurança. Uma dúvida atravessou aos outros, Simão Bacamarte não conse-
sua existência, não mais quanto aos outros, guiu encontrar a sua própria cura. Faltou-lhe
mas quanto a si mesmo. Quando resolveu compreender a distância inexorável entre o
todos os problemas que lhe afligiam na vida saber científico, a teoria e a vida. Colocou-
alheia, pôde, enfim, voltar um olhar para -se de um lado, os outros do outro e, entre
si mesmo, para o que nele faltava, que era ele e os outros, ergueu os muros da Casa
precisamente aquele traço mais humano que Verde, muros que, até sua morte, ele man-
U
D
assistente de direção) para que essa
pessoa se apresente, exponha a sua
DE VIVÊNCIAS Competência Geral 6
função e fale um pouco das ações que
a escola faz para que a gestão escolar
L
Ciências Humanas e
seja democrática.
3.2.1 GESTÃO Sociais: Competência 5
EM13CHS502 2. As escolas de Educação Básica têm
DEMOCRÁTICA conselhos escolares em que a comunidade
escolar como um todo (responsáveis,
N
Bacamarte procurava conquistar reco- alunos, professores, funcionários) deve
nhecimento, fortuna e o poder do saber e participar. Perguntem à pessoa gestora
do controle. Porém, ele precisava de uma qual é o próximo conselho e escolham
estrutura que sustentasse esse anseio. Ela por eleição uma pessoa por grupo escolar
P
é o “asilo de loucos”, a Casa Verde, que é para participar.
legitimada pelos poderes constituídos (a 3. Para que essa pessoa represente seu
Ciência, o el-rei, a Câmara, etc.). Parecia grupo na reunião, colem uma cartolina
uma instituição que tinha como objetivo o no mural da sala com o título “Propostas
bem comum da cidade, o desenvolvimento e elogios do grupo escolar X”, na qual
IA
do saber e a promoção do bem-estar das diariamente vocês poderão anotar
pessoas em sofrimento psíquico, mas logo críticas, propostas de mudanças e
ela mostrou como objetivo sustentar a am- felicitações de ações na escola.
bição de Bacamarte.
Pense nas associações e instituições que
nos cercam. Pense naquelas em que você
IAKOV FILIMONOV/ SHUTTERSTOCK
Orientações pedagógicas: Tempo: 3 horas/aula (1. leitura compartilhada, conversa com a gestão, feitura do mural e
eleição do aluno representante; 2. assembleia de classe e escrita da ata; 3. compartilhamento do representante e eleição
do próximo representante). Espaço: sala de aula, roda coletiva. Agrupamentos: atividade coletiva. Materiais: cartolina para
o mural, materiais de escrita no mural, uma folha sulfite e caneta para a ata. Mais orientações no Manual. | 105
3.2.2 A CIDADE IDEAL
PARA
D
A história do alienista, com sua ciência
PESQUISAR ambiciosa e autoritária, não é mera ficção,
ASSEMBLEIA ESCOLAR como o texto mostrou. Essa atitude peran-
L
Pesquisem na internet qual modelo de as- te o mundo de pôr tudo sob controle, de
sembleia escolar pode ser mais adequado pretender obter do mundo todas as regras
nesse momento. Para isso, inspirem-se em do Universo-máquina, é representada no
exemplos de assembleias já feitas em ou- conto pelo interesse de Simão Bacamarte:
N
tras escolas. estabelecer o que é aceitável ou não para
a vida civilizada e, assim, obter poder e re-
conhecimento.
a. Faltando uma semana para o conselho, Tal atitude, se levada às últimas conse-
P
reúnam-se em roda para fazer quências, coloca a teoria acima da vida das
uma assembleia. Nela, o professor pessoas, acima do direito delas de viver,
deve mediar os turnos de voz para amar e existir com justiça tal como são, e é
que todos os pontos anotados no a base de toda exploração e de todo pre-
mural sejam analisados pelo grupo conceito. Por isso, temos de saber conviver
IA
(defendidos ou criticados) e votados com as diferentes formas de pensar e viver,
para decidir se devem ser levados ou de organizar a vida, de sistematizar e agir
não para a reunião, representando no horizonte do bem comum.
o grupo. É importante que haja Foi preciso que Itaguaí se posicionas-
não apenas críticas, mas também se perante o disparate de Bacamarte para
sugestões, elogios, análises e outros que a situação fosse resolvida. Esse conflito
encaminhamentos. teve que vir à tona: se a ciência do alienista
U
b. É importante também que haja, nessa não colaborava para o bem-estar da cidade,
assembleia, uma pessoa para fazer a se essa teoria aprisionava (até mesmo fisi-
ata. Para isso, busquem modelos de camente) as possibilidades de vida de seus
atas na internet. Cada decisão do cidadãos, havia alguma coisa errada.
G
grupo deve ser registrada. Ao final, Por isso, é sempre importante avaliar
todas as pessoas devem assinar a ata, quais são as consequências que o meu in-
se estiverem de acordo com ela. teresse gera para a comunidade em que
4. Logo após o conselho, deve ser separada estou inserido. E mais: qual é o nosso in-
uma aula ou tempo de aula para que a teresse como comunidade? Um interesse
pessoa que representou o grupo narre que se volta apenas ao desejo de reco-
sua experiência e quais foram as posições nhecimento não pode ser um interesse
da gestão diante das demandas do profundo e autêntico. E um interesse que
grupo. Em seguida, elejam a pessoa que seja verdadeiramente digno de reconheci-
deve participar do próximo conselho. mento deve ser um interesse integrado ao
bem-estar da sociedade.
Competência Geral 6
Ciências Humanas e Sociais: Competência 5
EM13CHS502
106 | EXPANSÃO E EXPLORAÇÃO | o encontro com o outro e o mundoo
Pensando nisso, façam uma pesquisa na 2. Em seguida, imaginem que vocês têm
D
comunidade escolar sobre qual seria a cida- um orçamento limitado para criar uma
de ideal. Registrem essas ideias em peque- cidade ideal. Os grupos constituídos
nos vídeos, com a autorização da pessoa que precisarão debater o que será priorizado
será filmada, e editem para que se torne um para colocar a cidade de vocês em um
L
único vídeo. Com base nisso, o grupo esco- bom caminho de desenvolvimento.
lar deve fazer o planejamento dessa cidade. Estabeleçam uma lista de prioridades
1. Separem-se em grupos; cada grupo vai e explicitem quais critérios utilizaram.
pensar em uma área conforme as suas 3. Refletir sobre esses critérios deverá revelar
N
curiosidades profissionais: arquitetura, o interesse profundo da comunidade
economia, saúde, educação etc. Tome engajada nessa cidade ideal.
cuidado para não cair em fórmulas
fáceis, como “haverá uma educação de
P
qualidade”. Pense mais profundamente:
o que é uma educação de qualidade? O
CK
que é um bom plano de urbanização? O
RS
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Para que serve o estudo da economia?
TT
HU
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Qual é o critério de qualidade em
ES
IA
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cada uma dessas áreas?
IM
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M O N K E Y BUSI N
INDICAÇÃO
Reunião do grupo de uma classe com
U
a participação do professor.
G
Nossa vida é cheia de expectativas, não apenas pessoais, mas também sociais. Usando
a imaginação, podemos pensar em qual seria o melhor emprego, a melhor casa, a melhor
viagem… E por que não a melhor cidade? Imaginando como seria a cidade ideal, nós podemos
fazer a crítica da cidade onde vivemos. E foi com esse intuito que Thomas More (1478-1535),
político inglês, em 1516, publicou sua obra A utopia1, em que ele descreve como seria a cidade
ideal. Há muitos que entendem as utopias como ilusões que devem ser descartadas. Outros
as entendem como horizontes que mostram um objetivo a ser perseguido.
E você? Já parou para pensar nas suas utopias?
1
MORE, Thomas. A utopia. Trad. Pietro Nasseti. São Paulo: Martin Claret, 2005.
| 107
3.3 CÂNDIDO OU O diz o biógrafo André Maurois1, em sua última
D
viagem a Paris, Voltaire foi:
OTIMISMO, DE
VOLTAIRE aclamado por uma multidão imensa que gritava:
Abram alas a Voltaire! Viva Voltaire! Na “Comedie
L
Um filósofo iluminista Française” (um importante teatro de Paris) viu seu
busto coroado pelos artistas, aos aplausos dos espec-
Voltaire é o pseudônimo de François- tadores que se puseram todos de pé para prestar-lhe
-Marie Arouet (1694-1778), um escritor e filósofo homenagem. Morreu algumas semanas depois. Teve
N
iluminista francês. Sua vida foi bastante agi- uma vida feliz e um fim triunfal!
tada: ele morou em diferentes países, como
Suíça e Inglaterra, prosperou com o comércio Voltaire não professava uma religião es-
e participou, como jornalista, crítico e analista pecífica, mas acreditava em Deus e se dedi-
P
político, de grandes eventos do seu tempo. Foi cou profundamente a compreendê-lo sob uma
preso duas vezes na Bastilha por desafiar o perspectiva filosófica. Defendia que a melhor,
poder da monarquia e da aristocracia france- ou talvez a única, forma de conhecê-lo era por
sas. Considerava suas condenações injustas, meio das coisas que Ele criou, ou seja, das
pois acreditava que os indivíduos devem ter
IA
liberdade de pensamento e de expressão. 1
MAUROIS, André. Voltaire. O pensamento vivo de
Voltaire. Trad. Lívio Teixeira. São Paulo: Martins
Cada injustiça que sofria ou a que assistia
Editora, 1967.
alimentava seu espírito combatente contra a
ordem vigente no mundo.
Voltaire foi, em todos os aspectos, uma pes-
soa à frente do seu tempo. Conhecia profunda-
mente as Ciências, a História e a Geografia.
CAIXA HISTÓRICA:
PESQUISE
• Como foi a vida do autor?
• Quando ele viveu?
• O que estava acontecendo naquela época?
• Há relação entre esses eventos e a obra? Qual?
Voltaire.
D
mais a ciência avançava em seu século, mais táveis que fazem do Universo uma máquina
evidente se tornava aos olhos das pessoas a perfeita, podemos nos inspirar nele para
perfeição do Universo-máquina em que vive- encontrar ordem nos assuntos humanos,
mos e, consequentemente, do seu criador. mas sem jamais esperar igualar à perfei-
L
ção da sua criação e tampouco conhecer
todos os seus propósitos. A respeito dessa
O mal praticado limitada capacidade que temos de conhe-
cer a Deus, Voltaire1 escreveu uma peque-
N
Há eventos da natureza, entretanto, como na anedota:
catástrofes climáticas, que podem nos fazer
sofrer, e Voltaire acredita que não há uma in- Um dia ouvi uma toupeira a raciocinar com
tenção da natureza em nos atingir diretamente um besouro, diante de um gabinete que eu mandara
P
ou nos punir. Porém, quanto aos males que os construir no fundo do meu jardim. “Eis uma bela
indivíduos provocam uns aos outros, são de construção, dizia a toupeira; só uma toupeira muito
poderosa poderia ter construído essa obra”. — “Ora,
responsabilidade humana, não de Deus nem
não brinque, disse o besouro, o arquiteto de uma
da natureza. Muitas pessoas podem demons-
tal construção tem de ser um besouro de gênio”.
trar satisfação em oprimir, explorar e fazer mal
IA
a alguém, e cabe às pessoas, e não à natureza
ou a Deus, evitar que isso ocorra, primando
VOLTAIRE. Cândido ou o otimismo. Trad. Samuel Titan
1
pela sociedade mais justa possível. Jr. São Paulo: Editora 34, 2013.
MUSEU DO LOUVRE
U
G
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Portanto, o máximo que podemos fazer humanos. Voltaire, por outro lado, irá explorar
D
é contemplar a parte da sua obra que se satiricamente essa ideia, operando uma cisão
apresenta aos nossos sentidos e aos limi- entre dois mundos: o mundo natural e o mundo
tes da nossa razão. Quanto aos assuntos dos assuntos humanos.
humanos, de natureza política e ética, ca-
L
be a nós construir uma sociedade tão justa INDICAÇÃO
quanto seja possível. Os ideais iluministas
de Voltaire, que irão influenciar a Revolução
Francesa, são:
N
Liberdade de pensamento e de expressão,
tolerância, supremacia do poder civil sobre o poder O Iluminismo foi um movimento filo-
religioso, possibilidade para as pessoas de classe sófico que defendia a superioridade da
inferior ascender às classes superiores e monarquia
P
razão sobre a ação humana, em nome do
constitucional controlada. humanismo e da liberdade. Voltaire foi um
dos nomes mais importantes desse pen-
O natural e o humano samento, não só de maneira teórica mas
também prática. Um exemplo disso foi a
IA
sua participação no caso Calas, no qual
A diferença que vimos entre a nature-
um homem foi acusado injustamente de
za governada por leis necessárias – como
ter matado o próprio filho pelo fato de este
a gravidade – e a autonomia dos assuntos
ter se convertido ao catolicismo e aquele
humanos é a base fundamental do célebre
ser protestante. O pensador escreveu sobre
romance Cândido ou o otimismo. Os suces-
esse caso na obra Tratado sobre a tolerância
sivos acontecimentos narrados formam um
(1763). O filme Voltaire e o caso Calas (2007)
conjunto de ironias com relação à confusão
U
D
REFLETIR
Na perspectiva de Voltaire, as ideias de e em bondade, visto que ela alcança tudo aquilo-
Leibniz poderiam ser compreendidas como que é possível. E como tudo está ligado, não há lu-
L
um caso de sabedoria teórica em conflito gar para admitir mais de uma. Seu entendimento
com a sabedoria prática. é a fonte das essências, e sua vontade é a origem
A seguir, veja como, em suas próprias das existências. Eis em poucas palavras a prova de
palavras, Leibniz sustenta seu argumento a um Deus único com suas perfeições, e a partir dele
N
respeito do melhor dos mundos possíveis a origem das coisas. Acontece que essa suprema
e reflita: sabedoria, unida a uma bondade que não é menos
Deus é a razão primeira das coisas: pois aquelas infinita do que ela, não pôde deixar de escolher o
que são limitadas, como tudo aquilo que vemos e melhor. Pois como um mal menor é uma espécie de
P
experimentamos, são contingentes e não têm nada bem, do mesmo modo um bem menor é uma espécie
nelas que torne a sua existência necessária, sendo de mal, se ele impede um bem maior; e haveria algo
manifesto que o tempo, o espaço e a matéria, uni- a corrigir nas ações de Deus, se houvesse meio de
dos e uniformes neles mesmos e indiferentes a tudo, fazer melhor. E como nas matemáticas, quando não
podiam receber totalmente outros movimentos e há o maximum nem o minimum, enfim nenhuma di-
IA
figuras, e em uma outra ordem. ferença, tudo se faz igualmente; ou quando isso não
Então, é preciso procurar a razão da existência é possível, absolutamente nada é feito; pode-se dizer
do mundo, que é a completa reunião das coisas con- da mesma maneira em matéria de perfeita sabedoria,
tingentes, e é preciso procurá-la na substância que que não é menos regradada do que as matemáticas,
traz em si mesma a razão de sua existência, a qual, que se não houvesse o melhor (optimum) entre to-
portanto, é necessária e eterna. É preciso também dos os mundos possíveis, Deus não teria produzido
que essa causa seja inteligente; pois esse mundo nenhum. Eu chamo de mundo toda a sequência e
U
que existe sendo contingente, e uma infinidade de toda a coleção de todas as coisas existentes, a fim de
outros mundos sendo igualmente possíveis e pre- que não se diga que muitos mundos podiam existir
tendentes igualmente à existência tanto quanto ele, em diferentes tempos e diferentes lugares. Pois seria
por assim dizer, é preciso que a causa do mundo preciso contá-los todos juntos como um mundo,
tenha tido consideração ou relação com todos esses ou, se você deseja, como um universo. E quando
G
mundos possíveis, a fim de determinar um deles. se preenchesse todos os tempos e todos os lugares,
E essa consideração ou relação de uma substância continuaria sempre verdadeiro que se poderia tê-los
existente com as simples possibilidades não pode preenchido de uma infinidade de maneiras, e que
ser outra coisa senão o entendimento que contém há uma infinidade de mundos possíveis dos quais é
as ideias delas e determina uma delas; não pode ser preciso que Deus tenha escolhido o melhor, pois
outra coisa senão o ato da vontade que escolhe. E é o ele não faz nada sem agir segundo a suprema razão.
poder dessa substância que torna a sua vontade efi- Algum adversário, não podendo responder a esse
caz. O poder vai ao ser, a sabedoria ou entendimento argumento, talvez responda à conclusão mediante
ao verdadeiro, e a vontade vai ao bem. E essa causa um argumento contrário, dizendo que o mundo
inteligente deve ser, de todas as maneiras, infinita podia ter existido sem o pecado e sem os sofrimen-
e absolutamente perfeita em poder; em sabedoria tos; mas eu nego que assim ele teria sido melhor.
| 111
representa a filosofia de Leibniz, segundo a
D
O melhor dos mundos qual, se tudo tem um fim e há de ser o bem,
O romance começa com a apresentação
então vivemos no melhor dos mundos possí-
do personagem principal, Cândido. Para am-
veis. Mas, para demonstrá-lo, os exemplos de
bientar seu nascimento, Voltaire se serve da iro-
Pangloss são estapafúrdios e nos fazem rir
L
nia à Alemanha, pátria de filósofos que, como
da leitura que Voltaire faz de Leibniz:
Leibniz, produziram grandes sistemas teóricos.
N
concorre necessariamente para o melhor fim.
a natureza dera os modos mais gentis. Sua fisio-
Observem bem, os narizes foram feitos para usar
nomia anunciava sua alma. Tinha o juízo reto e um
óculos, e por isso temos óculos; as pernas foram
espírito dos mais simples; é por essa razão, penso
visivelmente instituídas para vestir calças, e por
eu, que o chamavam Cândido. Os velhos criados da
P
isso temos calças. As pedras foram formadas para
casa suspeitavam que fosse filho da irmã do barão
serem talhadas e para construir castelos; por isso
e de um bom e honrado fidalgo dos arredores, que
monsenhor tem um belo castelo: o maior barão
essa senhorita não quisera jamais esposar, de vez
da província deve ser o mais bem alojado; e
que ele não tivera como atestar mais de setenta e
os porcos tendo sido feitos para
um quartéis e que o restante de sua árvore genea-
IA
ser comidos, comemos por-
lógica perdera-se pelos estragos do tempo.
co o ano todo; portanto,
aqueles que afirma-
O romance possui um subtítulo: “Cândido
ram que tudo vai
ou o otimismo”. Ambos, título e subtítulo, es-
bem disseram uma
tão certamente relacionados. Cândido é o
tolice: deviam ter dito
adjetivo que se dá a pessoas puras, inocen-
que tudo vai da melhor
tes, ingênuas e dóceis. Seu nome expressa
U
maneira possível.
características encontradas tanto em sua
“fisionomia” quanto em sua “alma”. Voltaire
sugere, com isso, que são características de
quem é otimista. Da mesma forma, podemos
G
D
tureza com o mundo fabricado pelo ser huma- tudo parecia bem para Cândido. À sua volta,
no: o nariz e os óculos; as pernas e as calças; as todos tinham razões para também se con-
pedras e o castelo. Mesmo os porcos existiriam vencer da teoria de Pangloss, até o dia em
apenas com o fim de satisfazer a um costume que Cândido e Cunegundes, a filha do barão
L
alimentar humano. Tal visão reflete um profun- do castelo, apaixonam-se e são pegos pelo
do egocentrismo, ou seja, uma crença vaidosa barão aos beijos. “O senhor barão passou
de que a natureza foi feita para atender à vida perto do biombo e, vendo aquela causa e
humana e sua busca por conforto. Trata-se de aquele efeito, escorraçou Cândido do castelo
N
uma visão também ingênua, mas que, depen- a bons pontapés no traseiro.”
dendo da condição material em que se viva,
pode por muito tempo ser sustentada. Difícil
é que ela permaneça por toda a vida, uma vez O terremoto
P
que, por maior que seja o conforto material de A partir de então, ocorre uma série de
que se usufrua, sempre temos que lidar com desventuras na vida de Cândido, de Pangloss,
os efeitos naturais da passagem do de Cunegundes, bem como de todas as de-
tempo sobre o corpo. Contra mais personagens da trama, que desafiarão
isso, não há remédio. aquela filosofia a que todos davam crédito
IA
quando as coisas iam bem no castelo. Ao to-
mar as estradas do mundo real, Cândido se
encontrará exposto a mil infortúnios, seja pela
mera condição da sua fragilidade humana
diante das forças da natureza, seja por se
encontrar refém da boa e da má vontade dos
outros. A frase que inaugura a nova condição
U
de Cândido é precisa:
| 113
e, finalmente, o fizeram se alistar no exército da natureza, nós não teríamos nem se Colombo
D
sem que Cândido entendesse o que se pas- não tivesse apanhado em uma ilha da América essa
sava. Certo dia, já vinculado ao exército, “ele enfermidade, (…) não teríamos nem o chocolate
decidiu sair para passear, acreditando que nem a cochonilha.
era privilégio da espécie humana, como da
L
espécie animal, servir-se das pernas a seu Quanto à infelicidade de Cândido, porém,
bel-prazer“. logo ficará claro que houve um mal-entendido
Em outras palavras, quis passear livremen- e nem todos foram mortos, mas os infortúnios
te pelo campo, mas foi surpreendido, tomado na vida de Cunegundes fariam com que, pa-
N
como desertor e castigado, quase até a morte. ra Cândido, ela viesse a se tornar uma mulher
Quando a guerra chega, Cândido assis- pouco atraente. Quando se casam, ele o faz,
te a uma carnificina. Depois, ao reencontrar comprometido com sua honestidade, apenas
Pangloss, fica sabendo que o castelo onde viveu para honrar a palavra que lhe dera quando era
P
foi destruído e que todos que lá viviam, inclusi- uma baronesinha cheia de formosura.
ve Cunegundes, foram maltratados e mortos. Mas não adiantemos demais a história. Há
Pangloss, que havia escapado, também não outros casos dignos de serem relatados. Cândido
estava bem, pois adquirira sífilis de outra em- e Pangloss são acolhidos por Tiago, um comer-
pregada do castelo. ciante que soube fazer bom uso das experiências
IA
e saberes daqueles dois. Certo dia, durante uma
Ah, meu querido Cândido! Você bem conheceu viagem a negócios para Lisboa, Cândido pediu
Paquette, a dama de companhia tão linda da nossa au- a Pangloss que explicasse a Tiago sua ideia a
gusta baronesa; desfrutei em seus braços as delícias do respeito do melhor dos mundos. Tiago, porém,
paraíso, que me causaram estes tormentos do infer- não concordou com ela, expressando, em seu
no que agora me devoram, como vê; estava infectada, lugar, uma ideia bastante distinta, que poderia
talvez esteja morta. Paquette ganhou o presente de muito bem ser a do próprio Voltaire:
U
reta de um dos companheiros de Cristóvão Colombo. as baionetas, e eles fabricaram baionetas e canhões
para se destruir uns aos outros.”
Indagado, então, se não estaria no diabo a
origem dessa estranha genealogia de transmis- Diante de tais objeções, Pangloss começa
são sifilítica, Pangloss sustentou que não, porque a replicar a fala de Tiago, quando um novo in-
fortúnio os acomete:
se Colombo não tivesse contraído, numa ilha da
América, essa doença que envenena a fonte das ge- “Tudo isso era indispensável”, replicou o
rações, que muitas vezes impede mesmo a geração doutor caolho, “e os infortúnios particulares
e que é evidentemente oposta à grande finalidade fazem o bem geral, de tal modo que, quanto
Professor(a), você pode aproveitar essa passagem para alertar seus alunos com relação à existência de
doenças sexualmente transmissíveis. A doença mencionada na passagem é a sífilis.
D
vão as coisas”. Enquanto arrazoava, o céu escu- virtuoso anabatista.
receu, os ventos sopraram dos quatro cantos do
mundo, e o navio foi atacado pela mais terrível Passado o episódio de Lisboa e no trans-
das tempestades, à vista do porto de Lisboa. correr de outros, junta-se a eles um segundo
L
pensador, mas de pensamento diametral-
Voltaire descreve um fato verídico, a cala-
mente oposto ao de Pangloss.
midade que, em 1755, foi o grande terremoto
Chamava-se Martin e, de sua parte,
de Lisboa: “trinta mil habitantes de todas as
“concluiu que o homem nascera para viver
N
idades e de todos os sexos são esmagados
entre as convulsões da inquietude ou na le-
sob as ruínas”.
targia do tédio”. Depois de extensas discus-
sões entre os dois filósofos, Martin conquista
O naufrágio o consentimento de Pangloss, que finalmente
P
“admitia que sempre sofrera terrivelmente;
Em seu livro, o filósofo mistura ficção e
mas, tendo sustentado um dia que tudo ia às
realidade. Tiago se lança ao mar para salvar
maravilhas, continuava a sustentar, e já não
um marinheiro, mas não consegue retornar.
acreditava em nada”.
Cândido está a ponto de se atirar também ao
Portanto, as teorias que professam nos-
IA
mar para salvar seu benfeitor, mas é impe-
sos filósofos derivam agora da experiência
dido por Pangloss, que pretende provar que
de suas vidas, mas ainda não retiramos delas
a baía de Lisboa fora feita expressamente para nenhuma sabedoria prática mais consistente.
que anabatista (Tiago) ali se afogasse. Enquanto Afinal, “sofrer com paciência”, embora muitas
o provava a priori, o navio acaba de rachar ao vezes seja necessário, não parece ser um bom
meio; todos morrem, à exceção de Pangloss, de retrato da vida nem uma boa direção a seguir.
U
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vezes dizia a Cândido: “Todos os acontecimentos
D
“É preciso cultivar nosso jardim” estão encadeados no melhor dos mundos possíveis;
pois, afinal, se o senhor não tivesse sido escorraçado
A moral da história surgirá de um encon- de um lindo castelo a bons pontapés no traseiro por
tro que Cândido, Pangloss e Martin travam amor à senhorita Cunegundes, se não tivesse sido
L
com um homem turco que os convida a co- entregue à Inquisição, se não tivesse trilhado toda
nhecer sua casa, e o seu exemplo deixará os a América a pé, se não tivesse dado um bom golpe
três companheiros muito bem impressionados. de espada no barão, se não tivesse perdido todos os
Depois de serem agraciados com carneiros do bom país do Eldorado, o senhor não
N
estaria aqui, comendo curada e pistaches”. “Muito
v ários tipos de sorvete que eles mesmos prepara- bem dito”, respondeu Cândido, “mas é preciso cul-
vam, ora com raspas de cidra curada, ora com sabor tivar nosso jardim”.
de laranja, limão, lima, ananás, pistache, ora ainda
de puro café Moka
P
“Trabalhemos sem mais argumentar”
não significa deixar de refletir, mas sim-
os três lhe perguntam:
plesmente não se prender a reflexões que
nos impeçam de agir. Significa não assumir
“O senhor deve ter”, disse Cândido ao tur-
como filosofia de vida aquelas teorias que
co, “uma vasta e magnífica propriedade ou não?”
IA
defendem a inação e o comodismo. Afinal,
“Tenho apenas vinte alqueires”, respondeu o
as coisas boas da vida, como os doces de
turco, “eu os cultivo com meus filhos; o trabalho
cidra e pistaches, não cairão do céu.
afasta de nós três grandes males: o tédio, o vício
Pangloss volta a insistir em sua filosofia
e a necessidade”.
do melhor dos mundos quando as coisas
começam a ir bem, o que sugere que ele a
Finalmente, encontram a sabedoria que
defende não por princípio, mas conforme as
U
D
crescimento das plantas, cuidando delas, ga- termina o Cândido, num sentido muito geral.
rantindo que tenham a medida certa de luz e É a moral do engenheiro. “Cultivar nosso jar-
de sombra, de água e de sol, que estejam na dim” quer dizer: construamos cidades limpas;
medida do possível protegidas de pragas e esforcemo-nos por melhorar a produção dos bens
L
das intempéries do clima. É dedicar atenção necessários aos homens; arroteemos a terra; viva-
para que haja o bom crescimento daquilo que mos, em suma, como o próprio Voltaire vivia em
se planta, para que haja também uma boa Ferney e não nos ocupemos com o resto. A vida
colheita. Em suma, é preciso trabalhar pelo não é boa nem má. É o que é. É preciso aceitá-la
N
jardim. Se o jardim é uma metáfora de todos e tentar melhorá-la, na medida de nossos fracos
os lugares onde vivemos, em que podemos recursos. Como? Pelo trabalho, pela modéstia,
cultivar a melhor morada possível, então é pre- pela paciência. Os argumentos dos metafísicos
ciso cuidar também da nossa escola, do nosso são inúteis; a pá do jardineiro é mais eficaz: “É
P
bairro, da cidade onde vivemos, do nosso país preciso cultivar nosso jardim”.
e até mesmo do nosso planeta. Não se trata
mais do “melhor possível” porque não poderia
haver outro melhor. Trata-se do melhor possível,
apesar das coisas que não controlamos. Ananás: abacaxi.
IA
Como afirma o biógrafo de Voltaire, Alqueires: unidade de medida de terreno
André Maurois: agrário.
| 117
gincana de equilíbrio em percurso com obstá-
D
culos utilizando borrachas e folha sulfite.
L
como se fosse uma bandeja. No meio
dessa folha, as outras pessoas do grupo
3.3.1 EQUILÍBRIO irão empilhar quatro borrachas (ou
COLETIVO outro objeto semelhante). As borrachas
N
podem ser de tamanhos diferentes;
O dilema retratado no Cândido, de isso fará parte das dificuldades da
Voltaire, é representado pelas duas teorias brincadeira!
principais e opostas apresentadas no livro: 2. Em seguida, haverá uma competição:
P
vivemos o melhor dos mundos possíveis ou os grupos terão que dar uma volta
a vida é somente sofrimento, e cabe a nós completa na área externa, revezando os
passar por ela com paciência e resignação. participantes, equilibrando a torre de
No primeiro caso, confundem-se os ele- borrachas sobre a folha de sulfite. No
mentos naturais e os processos humanos. Em percurso, deve haver alguns obstáculos:
IA
outras palavras, essa teoria traz a ideia de que organizem-se para colocar estojos,
o Universo se comporta de forma previsível, mochilas e cadernos no chão, dos quais
ordenada e harmoniosa. Porém, vimos que os participantes deverão se desviar no
ocorrem muitas desventuras a Cândido que trajeto. Os integrantes do grupo que
desmentem esse saber teórico e sugerem o não estiverem andando podem ajudar
oposto, que a vida é sofrimento. Finalmente, com conselhos (“desvie para a direita!”,
ao constatarem que muitos homens encontra- “cuidado com o caderno!”). O grupo que
U
ram a felicidade em uma vida simples, Cân- der a volta mais rapidamente, derrubando
dido e seus companheiros descobrem uma o mínimo possível a pilha com todos os
sabedoria prática. Algo que essa obra pode participantes, vence a brincadeira.
nos ensinar é que o universo humano não é
G
predeterminado e está sob nossa responsabi- Essa vivência nos faz perceber que, em-
lidade agir nele, ou seja, cultivar nosso jardim. bora existam variáveis fora do nosso contro-
O primeiro passo que devemos dar em le (os obstáculos), há coisas em que pode-
direção à prática do nosso interesse profundo mos nos engajar para construir ou proteger
na vida social é ser responsável pelas relações aquilo que desejamos. E note: podemos
que construímos no mundo e pela realidade fazer muito mais em grupo. Cada pessoa
humana, como ela é. Para que fique mais clara tem o seu ritmo, seu equilíbrio, seu cálculo
a diferença entre o que é natural e o que de- para ultrapassar aquela pedra no chão ou
pende de nós, vamos fazer um experimento. para percorrer uma área íngreme do pátio.
Na área externa da escola, dividam-se em Mas, quando estamos em grupo, podemos
grupos de até quatro pessoas. Faremos uma colaborar de muitas maneiras.
Competência Geral 6
Ciências Humanas e Sociais: Competência 5
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118 | EXPANSÃO E EXPLORAÇÃO | o encontro com o outro e o mundoo
Orientações pedagógicas: Tempo: 1 hora/aula (1. leitura compartilhada, exibição do clipe e abertura de
conta em um desses serviços de rede social no qual os usuários postam e interagem com mensagens. Espaço:
sala de aula, espaço de pesquisa e espaço de exibição de vídeo. Agrupamentos: atividade coletiva. Materiais:
materiais para a exibição do vídeo e plataforma de acesso ao serviço de rede social escolhido.
3.3.2 CONSELHOS Muitas vezes, as pessoas que amamos
D
manifestam cuidado e interesse por nós
Você já se deu conta da quantidade dando conselhos e contando suas experiên-
de coisas que vivemos todos os dias e que cias. Dessa fala, surgem coisas que não vi-
poderiam ser muito diferentes, caso algu- vemos e não tínhamos pensado. Por meio
L
ma coisa mínima se alterasse? Por isso, desses compartilhamentos, trocamos e am-
devemos estar abertos para as dinâmicas pliamos as nossas sabedorias.
da vida que estão fora do nosso controle,
e pensar no quanto não somos passivos 1. Como exercício, façam uma conta em
N
a nenhuma delas, mas que podemos nos alguma rede social para o grupo e
responsabilizar pelo modo como as en- postem, durante um mês, um conselho
caramos. Na vida social, a principal coisa por dia para alguém da sua idade
que foge do nosso controle e que, entre- baseado em como encarar situações
P
tanto, nos influencia muito é a vida e os inesperadas. Exemplos: “Caso você se
desejos das outras pessoas. sinta pressionado a fazer algo que não
Você está aberto para o que as outras quer, exponha sua opinião” ou “Não
pessoas podem lhe apresentar? Entende o desista de estudar caso você não passe
quanto a presença e as ações inesperadas no vestibular este ano”.
IA
dos outros podem colaborar para que nós
cuidemos bem do nosso próprio jardim?
D
L
vimos no conto de Clarice Lispector, de a
A FAMÍLIA
criança encontrar em seus pais, irmãos ou avós
Neste capítulo, trabalhamos quatro di- contradições e incoerências em seus compor-
tamentos. Em algum momento, é mesmo pro-
N
mensões da vida coletiva e da relação com
o outro: a família; a instituição; a cidade; o vável que isso aconteça, o que significa que
mundo. Da família recebemos um primeiro essa criança amadurece uma identidade pes-
cuidado e também um olhar de avaliação. soal e constrói sua própria visão de mundo. Às
vezes, durante a adolescência, isso pode gerar
P
Ela nos oferece, quando somos crianças,
referências de como nos relacionar e com- um conflito maior com os familiares, mas não
preender a nós mesmos. Para isso, rece- quer dizer que tenham deixado de se amar.
bemos ajuda para nomear sentimentos e, A falta de uma exatidão absoluta no
então, organizar nossas ações. Assim, por comportamento das pessoas e nas coi-
sas do mundo é o que metaforicamente
IA
exemplo, um menino pode entender que
está triste porque o coleguinha pegou o seu foi explorado no conto como uma miopia
brinquedo, mas que ele pode emprestá-lo progressiva. Podemos concluir que, quanto
para serem amigos e brincarem juntos. mais amadurecemos, mais percebemos que
Em casa, sob a proteção amorosa da fa- as coisas humanas não são exatas. Essa é
mília, as crianças aprendem o que é certo e uma sensação que cresce sempre que não
o que é errado recebendo aprovações ou re- encontramos um entendimento mútuo com
os outros, como se não conseguíssemos en-
U
volvimento. Sem esse apoio e essas trocas, a podem nos surpreender, como a paixão.
criança pode se tornar insegura e compreen- Nesse caso, em vez de querermos analisar
der o mundo como um lugar hostil, reagindo e entender tudo, como fazia o personagem
aos acontecimentos com agressividade. principal do conto, é possível simplesmente
Embora se espere que as famílias supram aceitar as coisas como são – aceitar o que
as necessidades de atenção, proteção e ca- sentimos –, mesmo que tudo pareça confu-
rinho da criança, toda família é composta de so. É o que faz o personagem ao retirar os
seres humanos que possuem suas próprias di- óculos a pretexto de limpá-los, olhando seu
ficuldades. Estas podem ser maiores ou meno- interlocutor com “uma fixidez reverberada
res a depender de cada pessoa, mas nenhum de cego”. Portanto, há momentos de enca-
ser humano é perfeito. Pode acontecer, como rar o outro lidando com seu aspecto enig-
N
cas disciplinares próprias que, assim como
No conto “O alienista”, de Machado de o manicômio visa ao tratamento da loucura,
Assis, encontramos mais duas dimensões da também têm suas finalidades. Por exemplo,
relação com o outro: a instituição e a cidade. os hospitais, para curar os males do corpo; a
P
Na história, a instituição é a Casa Verde, um escola, para formar e ensinar; os asilos, para
manicômio que tem como fim o tratamen- acolher pessoas idosas que necessitam de
to de loucos. Sabemos que a sociedade está cuidados. Em suma, a sociedade se organi-
cheia de instituições que funcionam para ou- za em espaços com atividades e funções es-
tros fins, mas de maneira semelhante, ou seja, pecíficas, e espera-se que os indivíduos que
IA
que possuem regras, rituais e valores próprios pertençam a elas respeitem e exerçam suas
e onde atuam profissionais que dominam um funções com o devido propósito.
determinado saber mais do que a maioria das
1
O surgimento das instituições disciplinares, como
pessoas. Esse saber lhes confere uma autori- o manicômio e a prisão, pode ser assumido como
dade legítima, mas, como ocorre no conto, consequência da transferência do Universo-máquina ao
mundo humano, em que o primeiro se torna modelo do
também pode significar um poder excessivo.
segundo.
U
INDICAÇÃO
REPRODUÇÃO
G
| 121
O conto de Machado de Assis alerta todo o campo necessário para o desenvolvi-
D
para casos em que muitas vezes, em vez de mento da sua ciência, que era o sentido, o inte-
favorecerem os indivíduos e a sociedade, resse profundo de sua vida. No entanto, a cida-
essas instituições buscam fins particulares. de é mais do que objeto do seu olhar. Ela é um
As suas normas de comportamento, para campo de relações humanas, de pessoas que
L
tornar as pessoas disciplinadas e produti- se conhecem há muito tempo e que convivem
vas, acabam comprometendo a liberdade cotidianamente em seus trabalhos, relações fa-
e os direitos individuais. Por exemplo, na miliares e demais formas de organização social.
história de Machado de Assis, Simão Baca- A cidade é o mundo mais próximo de
N
marte prendia aqueles considerados loucos todos nós, ou pelo menos era naquela épo-
na Casa Verde para usá-los de cobaia para o ca, porque hoje em dia as cidades ganharam
desenvolvimento de suas hipóteses científi- outra escala, de modo que poderíamos tam-
cas, mas o conto deixa muitas brechas para bém falar de bairros, comunidades e outros
P
questionarmos o desejo de reconhecimento recortes geográficos para tratar do conjun-
do alienista. Será que ele de fato era alguém to de relações pessoais que cultivamos para
dotado de um perfeito equilíbrio das suas além do círculo familiar. A cidade nos colo-
faculdades ou, como todos os outros “mo- ca diante de pessoas que não são aquelas
destos”, não cedia também à vaidade de que amamos, mas também não são uma
IA
querer conquistar a glória? Estaria a ciência ideia abstrata, como a humanidade em ge-
desprovida dessas inclinações humanas? ral. A cidade nos coloca diante de pessoas
Simão Bacamarte, ao internar tantos “lou- reais, com seus hábitos, às vezes diferentes
cos”, nem sequer possuía um saber consisten- dos nossos, suas realidades diferentes, seus
te para fundamentar suas ações. Sua opinião múltiplos costumes. Muitas identidades de-
(saúde é o perfeito equilíbrio das faculdades) vem conviver em uma cidade. E, mesmo sem
era tão inconsistente que, seguindo-a, che- perceber, estamos sempre vinculados a elas,
U
gou a trancar na Casa Verde quatro quintos porque vivemos no mesmo espaço, e todo
da população de Itaguaí. Por fim, chegou a espaço é um espaço de interação e de troca.
uma conclusão exatamente oposta à que de- Tudo o que fazemos influi na sociedade em
fendeu na maior parte da história, ou seja, a que vivemos, até mesmo o modo pelo qual
de que a verdadeira saúde mental consiste no nos apresentamos, como vemos e somos
G
desequilíbrio entre as faculdades. E quanto a vistos, o que ouvimos e o que dizemos. Nas
todos aqueles que, durante esse processo de escolas, aprendemos que as pessoas podem
descobertas, tiveram a privação de suas liber- ser diferentes e, na cidade, devemos por
dades e suas vidas interrompidas? toda a vida praticar o respeito às diferenças.
Toda comunidade e a sociedade em ge-
A CIDADE ral saem ganhando dessa forma, porque o
convívio com a diversidade faz a nossa sub-
Itaguaí é uma cidade que fica a sudeste jetividade mais rica, mais aberta. Uma cidade
do Rio de Janeiro, antes da fronteira com São que reúne diferentes culturas, crenças religio-
Paulo. No conto, ela representa o “mundo” do sas, valores, identidades e comportamentos
alienista, na medida em que lá ele encontrava é uma cidade que representa melhor o mun-
D
realidade. Por isso, quando possível, também neira: “É preciso cultivar nosso jardim”.
é bom viajar e conhecer outros lugares, não É fundamental observar que esse im-
somente as capitais, porque, em toda parte perativo – “É preciso cultivar nosso jardim”
onde as pessoas se reúnem, elas constroem – serve a todas as dimensões contextuais da
L
uma história para ser contada. vida humana: a família, a instituição, a cidade
e o mundo. O jardim é, nesse sentido, não
O MUNDO o quintal de casa, mas o lugar em que vive-
mos. Essa questão é absolutamente central
N
O romance Cândido ou o otimismo, de na atualidade, em razão de termos tomado
Voltaire, se passa em diferentes continen- consciência da necessidade de cuidar, de
tes: Europa, Américas e Oriente Médio. modo sustentável, de todo o planeta. Portan-
Isso ocorre porque o autor não pretendeu to, a boa vida buscada por Cândido e seus
P
retratar um povo específico nem somente amigos não pode se dar apenas em seu en-
as personagens principais, mas a realidade torno. Para uma consciência contemporânea,
planetária e a própria condição humana. é fundamental que ela se dê em uma dimen-
Ao retratar o quadro geral da existência, são planetária. Afinal, hoje, mais do que nun-
Voltaire nos coloca diante dos elementos que ca, sabemos que o comportamento humano
IA
trabalhamos na apresentação deste livro, ou acarreta consequências no planeta e que
seja, a sabedoria prática e a sabedoria teó- nosso modo de viver traz efeitos para toda
rica. A teoria de Pangloss, segundo a qual a civilização humana, não apenas para as ge-
vivemos no melhor dos mundos possíveis, rações futuras, porque os resultados devem
é uma sabedoria teórica derivada da com- ser sentidos no tempo de uma vida humana.
preensão de que nosso mundo, bem como Há, como vimos, uma dimensão de imprevisi-
todo o Universo, age como uma máquina, bilidade no futuro, mas é preciso reconhecer
U
de forma regular e ordenada. Agir de for- que isso não implica uma diminuição da nos-
ma ordenada é agir com fins determinados. sa responsabilidade com o futuro. Ao contrá-
Pangloss, expressando a filosofia de Leibniz, rio, a despeito da imprevisibilidade, é preciso
acredita que o criador do Universo, em sua ampliar nossa capacidade de planejamento.
perfeição, só poderia ter criado as coisas de O trabalho que visa ao ganho de bens
G
| 123
Competência Geral 6 Matemática: Competência 2
Ciências Humanas e Sociais: Competência 5 EM13MAT202
EM13CHS502
ATIVIDADE DE TRANSIÇÃO 3
D
Para orientações gerais, ver Atividade de transição 1 no Manual do(a) professor(a).
O capítulo anterior nos mostrou a impor- resposta fosse homogênea e que o gráfico de
tância de reconhecermos o outro para que rede nos revelasse um agrupamento único ou
quase único.
L
possamos trabalhar juntos. Os personagens
nos deixaram claro que a vida humana não é Quanto mais nos aproximamos de uma res-
previsível nem mecânica, não apenas em razão posta homogênea, maior é a chance de desco-
dos nossos processos internos, mas também da brirmos as características não de indivíduos, mas
de uma sociedade. Isso nos faz compreender
N
imprevisibilidade na relação com os outros.
Este capítulo mostrou que a responsabili- que nossas ações, gostos e desejos recebem
dade não é só uma tarefa individual, mas tam- grandes influências da rede de relações em que
bém coletiva. estamos inseridos. Essa rede de relações pode
O próximo capítulo aprofundará essas ser a família, o grupo escolar, o bairro, o país ou
P
ideias, focando em uma esfera específica da até mesmo a nossa época, em uma dimensão
vida: o planejamento para a dimensão profis- planetária.
sional. Entenderemos que essa dimensão re- 1. Agora criem dez questões no modelo
flete e concretiza muitas coisas que estamos dualista (a exemplo das cinco que vimos
IA
trabalhando aqui, como autonomia, interesse anteriormente) que vocês acreditem que
profundo, cuidado de si e responsabilidade. possam representar grandes conflitos da
Criamos, até agora, textos que revelam sociedade contemporânea e do mundo
quem somos e quem o outro é. Agora tentare- em que vivemos. Respondam vocês
mos descobrir mais coisas sobre como é coleti- mesmos a essas questões e reúnam
vamente o nosso grupo. Para começar a sensi- na comunidade escolar e nas famílias
bilizar a nossa percepção, vocês devem montar de vocês o maior número possível de
U
L
O FUTURO E O NÓS
N
Pode haver liberdade em um Universo Por outro lado, se a liberdade é real e
governado pela necessidade? nossas escolhas não são determina-
S e v i v ê s s emo s em u m das por fatores externos, então
Universo-máquina e todas a vida humana faz com que
P
as coisas da vida humana o universo não seja, em seu
a ele pertencessem, então conjunto, uma máquina.
fazer escolhas seria uma Ela se coloca como ex-
ilusão e não haveria ne- ceção. Assim, fazemos
É em razão de sentirmos fome que comemos. mundo, sofrendo influências das mais diver-
É contra o frio que nos abrigamos e nos co- sas direções e tendo que lidar com condições
brimos. Todas as nossas ações seriam for- que se impõem às nossas vidas?
mas de suprimir necessidades estabelecidas
pela natureza.
NOSSA VIDA SUBJETIVA uma ação e outra, inserimos possibilidades
D
abertas por tudo aquilo que já vivemos, ou
O filósofo francês Henri Bergson (1859- seja, pela nossa memória. Parte dessa me-
-1941) afirma que, se fôssemos feitos apenas mória está em estado latente, o que significa
de matéria inerte, se tudo em nós fosse ape- inconsciente, mas sempre atuante. Não rea-
L
nas corpo, como um corpo-máquina, então gimos aos eventos como uma bola colorida
nossos movimentos pertenceriam às leis me- atingida pela bola branca em uma mesa
cânicas do Universo. de sinuca, ou seja, de maneira previsível e
A liberdade seria realmente uma ilusão. calculável, porque a vida humana é como
N
Porém, temos também espírito, ou seja, uma uma grande bola de neve que, conforme
existência subjetiva, consciente, e essa exis- avança, cresce. As escolhas que fazemos
tência não é totalmente determinada pelo não se dão baseadas nos choques do úl-
corpo. Se nossa realidade interna, da cons- timo encontro que tivemos. São todos os
P
ciência, espelhasse o comportamento da encontros vivenciados em nossa vida que
matéria inerte, então cada escolha estaria, se colocam a cada escolha que fazemos.
de fato, presa à causalidade. Para a cadeira em que sentamos ou
Por exemplo, a cada sofrimento provoca- a porta que vemos diante de nós em uma
do pelos outros, reagiríamos imediatamente, sala de aula, o tempo é apenas o instante
IA
procurando retribuir com a mesma moeda,
como um ato de vingança. Toda a nossa li-
berdade se reduziria a uma lei de ação e
reação. Haveria uma fórmula matemática
para medir a reação necessária a cada
ação sofrida. Portanto, nosso comporta-
mento deveria ser previsível, tal como o
U
comportamento da matéria.
No enta nto, a i nda se g u ndo
DOMÍNIO PÚBLICO
Bergson, não é isso o que acontece.
A nossa vida subjetiva, que na filosofia
é comum chamar de espiritual, colo-
G
D
inerte, embora estejam presentes na sala de imprevisíveis, mas pelas quais podemos ser
aula, não adquirem experiências com as ati- responsabilizados.
vidades e discussões da turma. As pessoas, No conjunto de memórias que formam
porém, reagem a cada pequena coisa que nossa personalidade, há também habilida-
L
ocorre em suas vidas. Não há um único ins- des cultivadas que devem favorecer a esco-
tante que seja perdido e abandonado, porque lha de caminhos profissionais mais do que
ele forma a nossa personalidade, e é nela que outros. Se somos seres capazes de escolhas
assenta a nossa liberdade de escolha. livres e imprevisíveis, isso significa que pode
N
Apenas porque temos a memória de um ser angustiante lidar com toda essa liberda-
conjunto único de vivências, temos também de, com o futuro imprevisível e com a respon-
uma personalidade única, e nela embasa- sabilidade que temos sobre nossas próprias
mos nossas escolhas livres. Somente por- vidas. O que podemos fazer, nesse caso, é
P
que a liberdade é real, podemos também voltar o olhar para nós mesmos, para nossa
ser responsabilizados por essas escolhas. memória, para os encontros, habilidades e
Portanto, são nossas memórias que nos dis- interesses que cultivamos e, nessas coisas,
tinguem da matéria inerte, que nos propiciam encontrar um horizonte que será definido
liberdade de escolha e que fazem com que aos poucos.
IA
essas escolhas escapem das engrenagens
Ao longo da vida,
reunimos memórias.
| 127
daquilo que nos acontece. Segundo Sartre,
D
Existência e responsabilidade a única limitação para a liberdade é moral,
pois ela implica também a responsabilidade
Outro filósofo francês do século XX,
de ser um exemplo para os outros.
Jean-Paul Sartre (1905-1980), aborda de for-
Como afirma o filósofo:
L
ma muito interessante o tema da liberdade
humana. Para ele, as coisas da natureza têm,
De fato, não há um único de nossos atos
em geral, um fim previamente estabelecido,
que, criando o homem que queremos ser, não
o que significa que possuem uma essência
esteja criando, simultaneamente, uma imagem
N
já dada. Essa essência determina aquilo que
do homem tal como julgamos que ele deva ser.
essa coisa deve ser, o que ela deve fazer.
(…) Portanto, a nossa responsabilidade é muito
As árvores não podem escolher que fru-
maior do que poderíamos supor, pois ela engaja
tos deverão dar. Os animais, por sua vez,
a humanidade inteira.
agem por instinto. Porém, o ser humano é
P
uma exceção. Se as coisas em geral exis-
Portanto, somos livres. Podemos e de-
tem apenas para realizar a sua essência
vemos abraçar nossa liberdade – seja ela
natural, o homem, ao contrário, existe pa-
compreendida de uma forma radical, como
ra construir a sua essência. Assim como
em Sartre, para que não utilizemos nenhuma
Heidegger, filósofo de que tratamos no ca-
IA
pítulo 1, Sartre acredita que “a existência
precede a essência”1. Isso significa que
nada, senão sua própria liberdade, pode
definir a essência humana. Cada indiví-
duo cria sua identidade até o momento de
sua morte.
O que é mais interessante em
U
DOMÍNIO PÚBLICO
G
D
que temos conosco e com os outros; seja ela longo de toda a vida, podemos dizer o que
compreendida, segundo Bergson, como a essencialmente somos. Por mais que os
liberdade que nasce desde as vivências que outros possam nos ajudar nesse processo,
devemos enriquecer em um cuidado com nós trata-se de uma responsabilidade que com-
L
mesmos. De toda forma, a liberdade é real. pete a cada um, na escolha do que quer ser
Não somos peças de um Universo-máquina e do mundo que se dedicará a criar.
ou um mero corpo-máquina. E, se isso parecer muito difícil, podemos
Nossas escolhas, em grande medida, se procurar em nossas memórias quais são os
N
dão com base naquilo que somos, nossa me- traços mais presentes de um interesse pro-
mória, mas em grande medida também com fundo. Quais são os assuntos a que temos
base no mundo que queremos ver realizado, dado mais atenção? Em que questões inves-
do qual queremos participar como criadores. timos mais tempo?
P
Esses são dois aspectos do interesse profun-
do que cultivamos em nós e que participam
das escolhas profissionais que fazemos.
Viver é transformar
Nos momentos de mais incerteza, quan-
A vida é mais do que uma mera pedra
do precisamos fazer as escolhas aparente-
que rola morro abaixo pela ação da lei da
IA
mente mais difíceis, podemos lançar mão
gravidade. A vida percorre o movimento in-
das ideias desses filósofos, tornando-as uma
verso da matéria. Ela não quer a inércia nem
forma de sabedoria prática. Com Sartre, po-
somente se degrada com o tempo. Ela cria,
demos fazer com que nada nem ninguém
cresce, realiza coisas novas. Nascemos não
nos roube a nossa existência. Apenas nós
para morrer, mas para instaurar no mundo
novos e inesperados processos de transfor-
mação. Escolher o que devemos ser é definir
U
PARA
Universo-máquina um Universo-vivo.
DEBATER
G
Até hoje, muitos acreditam em uma “es- hábito. Você já parou para refletir sobre isso?
sência humana”. Um exemplo disso é quando Afinal, existe uma natureza humana?
se pressupõe que uma pessoa está predeter- Você acredita que os robôs e outros se-
minada para o exercício de alguma função, res artificiais poderiam se tornar tão huma-
dizendo que ela “tem o dom” de desenhar nos quanto nós? O que seria preciso para
ou que “nasceu para ser” músico. Essa ideia isso acontecer? Quais são, em sua perspec-
também é reproduzida quando imaginamos tiva, as fronteiras entre a vida humana e o
uma “natureza humana” má e egoísta ou comportamento das máquinas?
boa e louvável – antes de qualquer ação ou
| 129
INDICAÇÃO 4.1 “UM HOMEM CÉLEBRE”,
D
DE MACHADO DE ASSIS
L
O argumento central desses filmes Camelos também choram
consiste na ideia de que, se os humanos
podem se alienar de suas liberdades e de Ao chegar a uma festa, quem saberá
N
seus sentimentos, robôs dotados de inte- identificar uma milonga ou uma polca? A
ligência artificial poderiam, inversamen- milonga ainda entusiasma seus criadores,
te, desenvolver sentimentos e vivenciar os espanhóis. Na Argentina, deu origem
dilemas morais e angústias existenciais ao tango e, no Brasil, é valorizada no Rio
Grande do Sul, fortalecendo também uma
P
relativas ao sentido da vida e à liberda-
de de ação. Desse modo, poderia haver identidade regional. Em algum momento,
casos em que esses seres artificiais se como o axé baiano, o funk carioca e o
tornariam mais humanos do que nós, forró pernambucano, a milonga se expan-
verdadeiramente humanos. Nos filmes, diu na geografia dos gostos até se esta-
belecer nos mais acolhedores destinos. A
IA
eles são capazes de nos mostrar o que
nos faz propriamente humanos. polca, originada na Áustria, foi difundida
Há alguns filmes, como Blade Runner por toda a Europa e parte das Américas.
(1982), de Ridley Scott, e A.I. – Inteligência Nos salões da antiga capital do império, o
artificial (2001), de Steven Spielberg, que Rio de Janeiro, tornou-se a música popular
abordam de forma muito interessante as mais apreciada até ceder espaço para
fronteiras entre a vida humana e o com- outras melodias. É comum que estilos e
músicas tenham vida curta no gosto cole-
U
D
entre esses distintos fenômenos sociais, de
memória e de esquecimento consiste em que,
quando a música se transforma em um fe-
nômeno de mercado, sua presença se torna
L
fugaz, como uma novidade que deverá logo
dar lugar a outra. Nas metrópoles globaliza- Há alguns anos, um documentário
das, onde a diversidade de influências em cinematográfico mostrou, no meio do
geral predomina sobre o enraizamento cul- deserto de Gobi, um camelo derramar
N
tural e onde a cadeia econômica tem maior lágrimas comovido pela beleza de uma
domínio sobre os hábitos, formas artísticas se música de cultura muito particular, e o
confundem com itens de consumo imediato e espanto do público surgiu por suspeitar
fugaz. Outra característica importante da cul- que o reconhecimento universal do belo
P
tura urbana é o anseio de atualização, seja abrangeria também a sensibilidade dos
pela informação, seja pela tecnologia, como camelos. A música seria, assim, não ape-
uma recusa de que o tempo se estabilize em nas uma porta para o passado e para o
uma só identidade, mas muitas vezes o novo futuro, mas também para a eternidade
não é mais do que um disfarce do mesmo, e – visão que, de Pitágoras a Leibniz, se
IA
algumas experiências artísticas temporárias alicerça em sua estrutura matemática.
passam a ser recicladas.
| 131
Professor(a), para introduzir a influência e a representação relacionadas à identidade cultural que
uma música pode ter, compartilhe com os alunos a reportagem que trata da relação entre o funk e a cul-
tura periférica. Instigue a discussão em direção ao porquê das tentativas de criminalização desse ritmo
brasileiro. Disponível em: https://revistaforum.com.br/noticias/o_funk_como_manifestacao_cultural-2/.
Há músicas de grande difusão popu- aproveitar a alegria que sua música produz
D
lar ou de específico enraizamento cultural, no público, ele sofre com a ideia de que ela
músicas que se misturam à memória de um é passageira. As coisas que são passageiras
povo e outras feitas para somente uma dan- deveriam, nessa visão, ser todas tristes.
ça. Podemos resumir o nosso horizonte de Em um sarau festivo, pedem-lhe que vá
L
questões como o vínculo entre os fenômenos ao piano tocar algumas de suas composições:
sociais e o tempo por intermédio da música.
Agora encontraremos para ele contorno mais — Diga, minha senhora.
específico no conto “Um homem célebre”, de — É que nos toque agora aquela sua polca
N
Machado de Assis.1 Não Bula Comigo, Nhonhô. Pestana fez uma ca-
reta, mas dissimulou depressa, inclinou-se calado,
sem gentileza, e foi para o piano, sem entusiasmo.
“Não bula comigo, Nhonhô” Ouvidos os primeiros compassos, derramou-se
P
pela sala uma alegria nova, os cavalheiros correram
Pestana, personagem central do conto,
às damas, e os pares entraram a saracotear a polca
é um famoso compositor de polcas. Todos à
da moda. Da moda, tinha sido publicada vinte dias
sua volta nutrem por ele enorme admiração,
antes, e já não havia recanto da cidade em que não
mas isso não parece comovê-lo – não porque
fosse conhecida.
o reconhecimento devesse vir de quem ainda
IA
não o deu, mas porque, sendo ele baseado
no gosto pelas polcas, haveria de durar tanto
quanto elas: muito pouco. Viria o dia em que,
estando os seus admiradores enfadados das
mesmas composições e ele já não podendo
substituir as desgastadas polcas por outras,
o apreço que lhe demonstravam se perderia.
U
DOMÍN IO PÚBLIC O
CAIXA HISTÓRICA:
PESQUISE Machado de Assis.
D
que ficam famosas, mas logo desapare- mal encaixilhados e de diferente tamanho, mas
cem. E ele, que era um célebre compo- postos ali como santos de uma igreja. O piano
sitor de polcas, pressentia o dia em que era o altar; o evangelho da noite lá estava aber-
seria também esquecido. Quanto mais to: era uma sonata de Beethoven. Olhou para o
L
sua fama parecia uma promessa de es- retrato de Beethoven, e começou a executar a
capar ao enredo das pessoas comuns sonata, sem saber de si, desvairado ou absorto,
e quanto mais ao alcance o prêmio da mas com grande perfeição. Repetiu a peça, de-
glória eterna e da perpétua bajulação se pois parou alguns instantes, levantou-se e foi
N
insinuava, mais amarga era a derrota de a uma das janelas. Tornou ao piano; era a vez
ver que suas músicas deviam rapidamente de Mozart, pegou de um trecho, e executou-o
ser substituídas. do mesmo modo, com a alma alhures. Haydn
Há na música, mais do que em qual- levou-o à meia-noite e à segunda xícara de café.
P
quer outra forma artística, um elemento
que aumenta o abismo entre a experiên- “Desvairado ou absorto”, “com a alma
cia imediata do belo e a esperança de alhures”, ou seja, não presente no apo-
sua duração eterna: a falta de um suporte sento, mas no espaço etéreo da música,
material. Porque a música não é feita dos é a maneira como se pode descrever a
IA
mesmos blocos de pedras que erigiram as dedicação que Pestana tem ao que mais
pirâmides do Egito, o seu suporte não ama, que é a música dos grandes mestres
é o mundo físico, mas unicamente a Beethoven, Mozart e Haydn, e de muitas
memória dos homens. Por isso, já formas ele pode se dedicar a ela: como
na mitologia grega encontramos, pianista, como professor, como admira-
entre as musas, representantes dor, entre outras. O seu problema não
das formas artísticas, Mnemósine, está na música que ama, mas em espe-
U
a memór ia, como a musa dos rar obter algo extrínseco a ela, a fama
músicos. imortal e a superação da transitoriedade
Vejamos uma passagem que da própria existência.
descreve a paixão não recíproca en-
tre Pestana e as obras imortais que
G
| 133
Professor(a), neste momento, recorde a carta de Rilke ao jovem poeta e proponha que a turma discuta a
relação entre os textos.
A fama na cidade não o satisfazia. De polca nem da moça, mas das velhas obras clássicas,
D
toda parte, recebia elogios, bajulações, era interrogando o céu e a noite, rogando aos anjos,
requisitado, mas o que queria era a atenção em último caso ao diabo. Por que não faria ele uma
dos céus, de onde deveriam vê-lo os grandes só que fosse daquelas páginas imortais?
mestres. Sinhazinha Mota, uma jovem de seu
L
círculo de relações, apaixona-se por Pestana O que Pestana não considerou é que ja-
e sonha um dia ser a sua escolhida, mas o mais está ao alcance do artista julgar os futuros
artista sequer se dá conta do seu interesse. legados da história e, entre estes, forçar a inclu-
são de qualquer coisa sua. Se a arte favorece
N
A moça dormia ao som da polca, ouvida de a formação de memórias, e entre elas a músi-
cor, enquanto o autor desta não cuidava nem da ca é a que mais requer o uso da memória por
PARA
REFLETIR
Em um artigo chamado “Sobre a transi-
toriedade”1, o psicanalista Sigmund Freud P ocorre na morte de uma pessoa amada. Na
verdade, não consegue mais
IA
relata um passeio que fez pelo campo viver as experiências por
acompanhado de dois amigos, um deles temer a morte do
um jovem poeta. Este admirava a beleza objeto amado.
da natureza e da paisagem, mas não ex-
DOMÍNIO PÚBLICO
traía delas nenhuma alegria por dizer que
estavam destinadas a desaparecer.
Freud acreditava, ao contrário, que as
U
1
FREUD, Sigmund. Sobre a transitoriedade. In: FREUD,
Sigmund. A história do movimento psicanalítico, Sigmund Freud.
artigos sobre a metapsicologia e outros trabalhos. v.
XIV. Trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
D
mais decisivo para o fracasso do que confiar arte, ir plantar café ou puxar carroça: mas daí
na previsibilidade e na manipulação racional a dez minutos, ei-lo outra vez, com os olhos
desses fenômenos. O que podia fazer, em caso em Mozart, a imitá-lo ao piano.
de um amor e uma vocação sinceros, era se
L
dedicar a qualquer atividade que o aproximas- Sua memória revelava um interesse sincero
se da música, seja como professor, intérprete por músicas de concerto. Consciente e incons-
ou compositor. O problema é não ter feito da cientemente, elas a preenchiam. Mas a irritação
música a experiência de sua vida, mas o meio de não conseguir produzir uma grande peça,
N
para conquistar uma vida eterna. O fim que se apenas polcas, transformava o interesse au-
insinua inevitável, que pode surgir com a ve- têntico em inautêntico. Afinal, ele precisava do
locidade de um pestanejar, consome, então, o reconhecimento dos outros, precisava produzir
sentido da sua produção. para os outros. Quais outros? Não aqueles que
P
amavam suas músicas por se divertirem com
Se acaso uma ideia aparecia, definida e elas, mas os mestres nos retratos da parede, a
bela, era eco apenas de alguma peça alheia, que posteridade e todos que representassem não a
a memória repetia, e que ele supunha inventar. glória passageira, mas a glória imortal. Irritava-
-se, portanto, com o fato de não ser bom o su-
IA
ficiente como os outros e para os outros. Vivia
Pestanejar: abrir e fechar as pálpebras, a mirar seus retratados e a se sentir também
piscar.
julgado e diminuído por eles.
REPRODUÇÃO
U
G
| 135
Coisa bem diferente ocorria quando vi- confiado e teimoso, certo de que a vontade
D
nha a inspiração de uma polca: era tudo, e que, uma vez que abrisse mão
da música fácil...”
Correu à sala dos retratos, abriu o pia- Talvez a vontade não seja mesmo tudo.
no, sentou-se e espalmou as mãos no teclado. Talvez seja preciso, mais do que agradar
L
Começou a tocar alguma cousa própria, uma aos outros, comparar-se aos outros, medir-
inspiração real e pronta, uma polca, uma polca -se com os outros, atender a uma vocação,
buliçosa, como dizem os anúncios. Nenhuma a um interesse profundo que habita dentro
repulsa da parte do compositor; os dedos iam de cada um e que se manifesta “sem exas-
N
arrancando as notas, ligando-as, meneando-as; peração”, sem teimosia. Mas seria, então,
dir-se-ia que a musa compunha e bailava a um a música clássica a responsável por tudo?
tempo. Pestana esquecera as discípulas, esque- Seria o caso de esquecê-la e de querer
cera o preto, que o esperava com a bengala e somente ouvir polcas? Naturalmente que
P
o guarda-chuva, esquecera até os retratos que não. Pestana verdadeiramente as admira-
pendiam gravemente da parede. Compunha só, va. Seu problema não estava na dedicação
teclando ou escrevendo, sem os vãos esforços às obras clássicas, mas em querer lutar
da véspera, sem exasperação, sem nada pedir ao contra as polcas para ser um compositor
céu, sem interrogar os olhos de Mozart. Nenhum reconhecido por toda a eternidade. Pode
IA
tédio. Vida, graça, novidade, escorriam-lhe da ser mesmo que as obras clássicas o te-
alma como de uma fonte perene. nham ajudado a se tornar um excelente
compositor de polcas. Sim, amando-as, so-
Quando não se cobrava fazer uma nhando com elas, devotado a elas, ele fazia
obra imortal, a inspiração vinha facilmen- polcas melhores do que quaisquer outras. E
te e Pestana compunha com alegria e sem poderia ter sido feliz assim, mas continuou
em busca de subterfúgios, obcecado com a
esforço. Esquecia-se de todo o resto e ne-
U
D
multo dos dias. perpétua glória literária.
Embora se diga que piada não se ex-
Novamente, seu interesse não era a mo- plica, como o propósito deste ensaio não é
ça, mas o que ela deveria proporcionar à fazer gracejo, tratemos, sim, de explicá-la.
L
sua produção. Não queria uma família, mas
uma “família de obras sérias”. Casam-se e — Olhe, disse o Pestana, como é provável que
sua esperança em ter no matrimônio a de- eu morra por estes dias, faço-lhe logo duas polcas;
vida fonte de inspiração se esvai como uma a outra servirá para quando subirem os liberais.
N
aurora transitória, e também o matrimônio Foi a única pilhéria que disse em toda a vida, e
não dura muito tempo, pois a moça está era tempo, porque expirou na madrugada seguin-
tísica, ou seja, tem tuberculose. Seu estado te, às quatro horas e cinco minutos, bem com os
piora e ela morre em pouco tempo. Pestana homens e mal consigo mesmo.
P
procura tirar do luto com o amor que não
viveu os sentimentos que deveriam, agora O editor de Pestana havia, na última
sim, inspirá-lo para a composição de um ocasião em que se encontraram, enco-
réquiem, mas novamente sem sucesso. mendado uma polca para celebrar a che-
Profundamente desiludido, por muito gada ao poder dos liberais, e com eles as
IA
tempo abandona as polcas, mas a neces- eleições diretas. Com o súbito fracasso do
sidade financeira o faz ceder aos apelos do plano, nova polca seria necessária para
editor para compor mais algumas. E, assim, celebrar a manutenção do império – aten-
facilmente recobra seu sucesso como com- dendo, assim, ao interesse, econômico e
positor de polcas. não político, da recente indústria musi-
cal. Ciente de que as posições políticas
Assim foram passando os anos, até 1885. dos homens, como um item qualquer de
U
segundo, mas o centésimo em Roma. figurar entre aquelas compostas por Bach,
Mozart e Beethoven, Pestana fracassa na
Enredado em um previsível e ordiná- luta que acreditava travar consigo. Com os
rio drama, morreu cedo. Espantosa foi a homens reconcilia-se, entretanto, ao compor
piada com que gastou seu último suspiro – a dançante trilha sonora da inconstância
aliás, a única de toda a vida, mas que, com das suas posições políticas.
| 137
D
PROPOSTAS
DE VIVÊNCIAS
L
Competência Geral 6
4.1.1 VIDA DE ARTISTA Linguagens: Competência 2
EM13LP22
N
Como vimos, Pestana era músico, pro-
fessor de música e compositor. Suas habili-
dades múltiplas estavam centradas em uma
mesma grande área. Ele tinha duas possi-
P
bilidades: a de ser um músico popular ou
um músico dedicado às músicas orquestra-
das. Esses dois desejos, e a vontade de le-
gar algo grandioso e eterno com sua obra,
D
1. Escrevam na lousa as profissões que
desejos não compõe uma contradição, e sim
cada aluno quer seguir, sem deixar
a característica da nossa própria atuação. O
nenhuma d e for a, e ponham, d o
que observamos nos conflitos de Pestana é
lado, o número de pessoas que quer
que, para a execução de uma obra artística,
seguir essa profissão (por exemplo,
L
há uma pluralidade de referências que se
engenharia elétrica – 3; professor de
misturam. Porém, isso não acontece só na
Educação Infantil – 2 etc.).
vida dos músicos.
Muitas vezes imaginamos que, antes de 2. Em seguida, montem um gráfico de
N
sair da escola, devemos ter certeza do que barras, agrupando-as em grandes áreas
queremos estudar e fazer como profissão e (por exemplo, humanidades, saúde,
que essa certeza não pode se alterar, com o ciências exatas, linguagens artísticas).
risco de perder um tempo irrecuperável. As- Observem a área que predomina na sala
P
sim, ainda adolescentes, nós nos cobramos de aula.
e somos cobrados a tomar uma das deci-
3. Convidem um profissional atuante
sões mais importantes da vida.
de cada área para ser entrevistado e
Muitos seguirão, de fato, aquilo que de-
preparem as perguntas coletivamente,
cidirem no Ensino Médio; outros, porém, fa-
em gr upos reunidos por área de
IA
rão algumas tentativas antes de decidirem.
interesse. Depois das entrevistas,
Talvez alguns precisem de mais tempo; ou-
façam um registro dos pontos que
tros, de mais experiência. É preciso ter em
consideram mais interessantes e com
mente que, a partir de agora, iniciamos nos-
os quais mais se identificam.
sa jornada profissional, que será composta
por muitas variáveis: as demandas sociais,
nossos desejos, nossos interesses, nossos
U
| 139
Orientações pedagógicas: Tempo: 1 hora/aula (1. leitura compartilhada e os dois momentos do jogo dos
porquês). Espaço: sala de aula com carteiras individuais. Agrupamentos: atividade individual. Materiais: uma
folha sulfite e uma caneta para cada aluno. Mais orientações no Manual.
4.1.2 JOGO DOS PORQUÊS Por isso, a pergunta que começa essa
D
proposta não é banal, nem a sua resposta é
Como saber qual é o nosso interesse fixa ou única. Sempre que sentir necessida-
profundo? Em uma das vivências anterio- de, repita essa proposta de vivência e use-a
res, selecionamos algumas pessoas que como uma prática de si.
L
nos inspiram e pensamos sobre o interesse Para essa vivência, você vai precisar
profundo delas. Pestana, embora se ale- de um papel e de uma caneta. Escreva seu
grasse compondo as polcas e visse a im- nome e complete a frase: “Na minha vida
portância social da sua profissão, sentia-se profissional, quero xxxx .” Em se-
N
frustrado por não ser capaz de produzir guida, pegue uma caneta vermelha e escre-
uma obra que permanecesse viva na me- va: “Por quê?” Na linha de baixo, responda:
P
jarmos uma realização grandiosa. Então, uma linha e responda a essa questão: “Por-
aqueles que admiramos se tornam as que xxxx .” Esse procedimento deve
pessoas com as quais nos comparamos. ser repetido no mínimo 5 vezes ou até você
Descobrimos também que o ambien- chegar ao último porquê.
te profissional representa um lugar de A última linha dessa folha representa
IA
competitividade na vida contemporânea. algo muito parecido com o seu interesse
Essa situação pode acarretar muita an- profundo atual. Escreva ao lado “Interesse
gústia e ressentimento, como aconteceu profundo” e pense sobre ele.
com Pestana. Em seguida, faça o caminho oposto,
Porém, nossa realização social e indi- num mapa mental. Vire a folha ao contrário
vidual está em sermos coerentes com os e escreva no centro qual é o seu interesse
nossos interesses profundos, e não em profundo. Em seguida, puxe setas para to-
U
sermos melhores que os outros. Para que das as profissões que podem atender a esse
haja a construção dessa harmonia interna, interesse. Isso pode ajudar a criar outras
precisamos estar alinhados com esse in- possibilidades de atuação, a perceber áreas
teresse, tornando-nos conscientes do que afins e a ter caminhos paralelos, caso sinta a
realmente gostamos. necessidade de repensar sua profissão.
G
Competência Geral 6
Linguagens: Competência 2
EM13LP22
D
em seus próprios departamentos burocráticos.
NIKOLAI GOGOL
Diante deles, há uma massa de pessoas que
se comportam disciplinadamente, distraídas
A sociabilidade russa de si mesmas pelos trabalhos que executam
L
O grande romancista russo Fiódor com grande satisfação, apenas para não pre-
Dostoiévski certa vez afirmou: “Todos nós des- cisarem arcar com as consequências severas
cendemos de ‘O capote’”, o conto de Nikolai de entrar em conflito com os outros.
Gogol1 que agora analisaremos. Trata-se de Na virada do século XVIII para o século
N
um retrato magistral não somente da socie- XIX, na Alemanha e na França, escritores
dade russa pré-revolução, apresentando con- românticos, como Rousseau e Goethe, acre-
dições para a destituição do regime czarista, ditavam que a sociedade em que viviam
como também do regime que viria a substi- não prezava realmente a sociabilidade
P
tuí-lo, o socialismo soviético. A razão é que há humana, o respeito aos outros e ao bem
valores em uma sociedade que podem não
variar de um regime político a outro.
Nesse texto de 1842, Gogol apresenta a
Rússia como uma sociedade tecnocrata, como
DOMÍNIO PÚBLICO
IA
uma sociedade-máquina, em que os indiví-
duos não são provocados a pensar critica-
mente, mas apenas a seguir ordens. Aqueles
poucos a quem cabe a tarefa de dar ordens
são tomados pelo orgulho, como se o ambiente
pré-revolucionário não cultivasse uma verda-
deira socialização humana, mas a substituição
U
1
In: GOGOL, Nikolai. Os russos antigos e modernos.
Trad. Vinícius de Morais. Rio de Janeiro: Leitura, 1944.
(Coleção Contos do mundo).
G
CAIXA HISTÓRICA:
PESQUISE Nikolai Gogol.
Professor(a), sugerimos um trabalho conjunto entre os(as) professores(as) de História, Geografia, Língua
Portuguesa, Sociologia e Filosofia.
| 141
comum, mas apenas em aparência os ho- repetidor. Como afirma Gogol em uma
D
mens agiam em conformidade às leis para passagem emblemática: “O espírito de
não serem descobertos, enquanto aprovei- imitação tem grandemente infetado a
tavam oportunidades escusas para tomar nossa Santa Rússia”. E disso surgirão ti-
atitudes egoístas. Como alternativa, esses pos extravagantes, que parecem sofrer
L
escritores elogiavam a natureza humana, de patologias sociais – como agorafobia
dizendo que era a sociedade que a corrom- (medo do espaço público) ou megaloma-
pia e que, portanto, os homens deveriam nia (mania de grandeza) –, sem que pos-
buscar refúgio em seus próprios sentimen- sam propriamente escapar da origem dos
N
tos, como um mergulho em seu íntimo, ou na seus problemas. A solução exigiria uma
natureza intocada, onde podiam encontrar reformulação estrutural da sociedade, mas
isolamento e paz. que não pudesse ser imposta por um novo
Pouco tempo depois, os escritores rus- regime social, político e econômico, exi-
P
sos se antecipam a uma realidade global, gindo uma transformação mais radical,
a de que não há mais lugares de refúgio e mais profunda, ou seja, nos valores e na
que os homens sofrem uma enorme pres- sabedoria prática do povo – que é uma
são de conformarem-se, de se comporta- conscientização bastante favorecida pelo
rem passivamente, como modo de lidar contato com a literatura.
IA
com a pressão social que sofrem. A melhor
maneira de não ser notado é fazer o que
todos fazem, em geral cumprindo seus de- Um certo conselheiro titular
veres profissionais. Se franceses e alemães
pensavam que, quanto mais corrompida é Akaki Akakiévitch, personagem princi-
uma sociedade, mais os homens são for- pal de “O capote”, é um dos tipos que sur-
çados ao isolamento, os russos – e entre gem nesse contexto. Agora vamos conhecer
U
Podemos dizer que a literatura russa se era além do mais míope, calvo na fronte, com rugas
dedica mais a uma crítica da sociedade a vincar-lhe o rosto (…), tratava-se desse eterno
vigente – a sociedade de massa – do que conselheiro titular, personagem que tão bem se
a se apegar à utopia nascente, segundo tem prestado à risota por parte de um bom núme-
a qual os homens podem ser felizes se se ro de escritores, dentre os que possui o louvável
comportarem de modo padrão. costume de só cair em cima de pessoas incapazes
Na sociedade de massa, a poucos é de arreganhar os dentes.
dada a força ou as condições privilegiadas
para se impor sobre os outros. À maioria Em um departamento como há tantos,
cabe subjugar-se a um comportamento havia um funcionário como tantos outros,
D
mum”. Avançava já na idade, com “rugas terizado nesta passagem:
a vincar-lhe o rosto”, sem ter conquistado
grande posição de destaque, então ficando O pai se chamava Akaki; pois que o filho se
eternamente na mesma posição de conse- chame Akaki também. Razão por que o nosso herói
L
lheiro titular. Isso pode ser explicado pelo tinha esse prenome Akaki Akakiévitch. Batizou-
fato de ser incapaz de “arreganhar o den- -se o menino, que se pôs a chorar, fazendo uma
tes”, ou seja, por ser subserviente, submisso careta, como se pressentisse o dia em que viria a
na vida e, portanto, sem ambições. Ele é o ser conselheiro titular.
N
tipo perfeito contra quem “um bom número
de escritores” se coloca. Esses escritores O narrador quer caracterizar a vida do
deverão explorar tais personagens porque, personagem como medíocre, não exata-
ao explicitá-los, combatem a estrutura so- mente pela sua ocupação, mas pelo modo
P
cial em que vivem. como ela é encarada, ou seja, com tédio,
como algo previsível que pode se repetir
eternamente, sem lugar para o novo, sem
ROMÃO/ M10
| 143
Vejamos agora como são travadas suas re- diferença em relação às agressões que so-
D
lações sociais. Ele não tinha amigo. Ninguém fria, como se lhe faltasse a vontade neces-
demonstrava por ele a menor consideração. sária para impedir que o importunassem e
Ao contrário, sem qualquer razão aparente, fazer com que aquele comportamento social
muitos procuravam se divertir às suas custas, desrespeitoso e inadmissível não se repe-
L
fazendo-o de bobo. tisse. Apelava aos outros que se compade-
cessem com sua mágoa, pois queria apenas
Bolinhas de papel vinham-lhe frequentemente que o esquecessem, que o deixassem tra-
em cima: “uma chuva de neve”, como exclamavam. balhar em paz – como se o trabalho fosse
N
Akaki Akakiévitch, porém, não respondia uma um refúgio que substituísse o que, para os
palavra a tudo isso, comportando-se como se não românticos, era a natureza intocada. Mas
tivesse ninguém diante dele. Sem se deixar em por que será que ele se contentava com tão
absoluto distrair do trabalho, todas essas imper- pouco? Provavelmente por pensar que não
P
tinências não conseguiam fazê-lo cometer um só poderia escapar do conflito e para evitar
engano. Se a brincadeira passava dos limites, se sua escalada, voltando o mais rapidamente
alguém lhe empurrava o cotovelo, a querer tirá-lo possível para o seu estado de maior confor-
da tarefa, contentava-se em dizer: to, que era o trabalho.
— Deixem-me! Não veem que estão me Precisamos agora compreender melhor
IA
magoando? esse trabalho. O narrador afirma que:
D
pois o que seria “sempre novo”, e por is- cial deste livro, poderíamos dizer que Akaki
so capaz de despertar seu interesse, seu Akakiévitch aspirava a entrar em estado de
“amor” pelo emprego, era, na realidade, um absoluta inércia, como se fosse uma matéria
“eterno transcrever”, ou seja, uma mera re- inanimada. E todos os momentos de encon-
L
petição – a cada vez uma coisa diferente, tro com a matéria animada, que é a vida,
mas sempre copiar o que chegava pronto como a lida com tarefas imprevisíveis ou a
às suas mãos. relação com outras pessoas, causavam-lhe
Certa vez, para reconhecer seu esforço, desconforto. Desse modo, embora haja uma
N
para recompensar sua dedicação e incen- diferença de natureza entre matéria inerte e
tivá-lo a crescer, o diretor do departamento matéria viva, podemos perceber no exemplo
solicitou que ele produzisse um relatório, algo de Akaki Akakiévitch que há modos de existir
novo, mas simples, “consistindo todo o traba- que parecem tender mais para a inércia do
P
lho na mudança do título e na transposição que para a vida.
de alguns verbos da primeira para a terceira
pessoa”. Portanto, se havia uma fórmula, não
era nenhum trabalho propriamente criativo
A “capota”
nem uma resolução de problemas. A sua rea-
Como sabemos, a ordem das coisas é
IA
ção, mesmo assim, foi de recusa:
aparente; a regularidade da realidade se
mistura à nossa expectativa de previsão e
O serviço pareceu tão árduo que o infeliz,
de segurança. Em realidade, estamos todos
lavado em suor, coçou a testa e acabou por dizer:
— Não, decididamente; é melhor que o senhor me suscetíveis à mudança dos ventos e, se não
dê qualquer coisa para copiar. estamos bem preparados, podemos ser pe-
gos de surpresa, para não mais podermos
apenas copiar.
U
| 145
um sistema fechado, mas, na verdade, como de enaltecimento patriótico e que certamente
D
todos nós, ele estava suscetível a diversas alude a uma comparação entre o clima e o
vicissitudes do ambiente. comportamento dos homens. O frio se torna
Na Rússia, da mesma forma como não metáfora do caráter russo, para sugerir que
se pode viver a autenticidade isoladamente, a falta de calor humano é o que faz homens
L
também não se pode viver a inautenticidade fortes e que a força dos homens reside em
isoladamente. Simplesmente, não se pode viver que sejam capazes de se tornar severos e
isoladamente. O preço de cair nessa ilusão é rígidos, ou seja, resistentes às intempéries.
viver mais vulnerável a intervenções impre- Isso poderia fazer um certo sentido se não
N
visíveis, como o capricho dos outros. E Akaki houvesse, como no frio da Sibéria, alguma
Akakiévitch haveria ainda de conhecê-los. desmedida, um excesso. O clima adverso
Mas, primeiramente, o que o pega de surpre- seria saudável porque as adversidades
sa é a intervenção climática em seu caminho. fortalecem as pessoas, as põem à prova,
P
mas nem por isso se deve sair na neve com
Um poderoso inimigo vive emboscado, em roupas de praia. Faltaria nisso, justamente,
Petersburgo, na tocaia das pessoas que gozam uma sabedoria prática para compreender
de vencimentos de quatrocentos rublos por ano qual é a medida de ação adequada a cada
ou aproximadamente. Esse inimigo é nosso frio circunstância. Pelo fato de esse excesso de
IA
setentrional, do qual no entanto se diz ser muito frieza se tornar uma característica marcante
saudável. Pela manhã, entre oito e nove, no mo- do caráter russo é que o escritor se utiliza de
mento em que as ruas se enchem da multidão que ironia, defendendo, portanto, que lhes falta
parte para os departamentos, o frio é justamente maior calor humano. Então, esses homens
tão penetrante e se ataca com tal violência a todos resistentes ao frio, supostamente resistentes a
os narizes, sem discernimento, que seus infelizes todas as adversidades ambientais, tornados
proprietários não sabem onde os abrigar. E quan- “pobres conselheiros titulares”, encontram-se
U
do o frio chega a dar desses piparotes nos narizes indefesos. Vemo-los “sapateando” para po-
dos altos funcionários, a ponto de lhes arrancar derem retornar aos seus afazeres.
lágrimas dos olhos, é que os pobres conselheiros É em uma dessas circunstâncias que
titulares se encontram mesmo sem defesa. Só lhes Akaki Akakiévitch percebe que seu casaco,
resta uma única oportunidade de salvação: envol- o capote, já está bastante velho.
G
D
e do capote, ele imediatamente o associa a um servicinho!
um aspecto social. A “capota” era como o — Não, e é o que lhe digo; eu iria perder
próprio Akaki Akakiévitch, tão desdenhada o meu tempo e o senhor o seu dinheiro.
quanto ele. Desse modo, vemos se desen- A essas palavras, Akaki Akakiévitch saiu
L
volver a metáfora geral do frio russo para no mais completo desamparo. E por muito
outra específica, do capote como a imagem tempo ainda depois da sua partida, Petrovitch
da vida do personagem principal da história. conservou-se imóvel, a boca crispada, muito
Em outras palavras, o frio são os outros e a satisfeito de ter salvaguardado a sua dignidade
N
“capota”, Akaki Akakiévitch. e a do seu ofício.
Conformado com a necessidade de
arranjar para si uma nova camada prote- Podemos contrapor as posturas profissio-
tora contra o frio russo, Akaki Akakiévitch nais de Petrovitch e Akaki Akakiévitch no sen-
P
procura Petrovitch, seu alfaiate, para que tido de que este parece se utilizar do trabalho
este coloque, como de costume, mais alguns para escapar do conflito com as pessoas. Se
remendos – para que remende sua frágil ele realiza o seu trabalho com gosto, é porque
existência –, ao que este replica, travando com ele pode se alienar do restante do mundo.
em seguida o diálogo: Petrovitch, pelo contrário, defende a “dignida-
IA
de” do seu ofício, bem como a sua própria, ao
— O que o senhor devia fazer era enco- não evitar o conflito com os clientes. Poderia
mendar um capote novo. simplesmente recusar o trabalho, mas ele faz
A palavra “novo” só faltou cegar Akaki questão de dizer que o que lhe pede não é
Akakiévitch; todos os objetos confundiram-se possível e insistir, para o interesse do próprio
bruscamente diante dos seus olhos numa es- cliente, que o melhor é que providencie um
pécie de bruma (…). novo capote, para não se enganar nem ser en-
U
sua vida, o mal-aventurado Akaki Akakiévitch, siasma Akaki Akakiévitch, mas, como agora
que de ordinário falava até em voz bem baixa. veremos, também impõe severos sacrifícios.
(…) — Em nome do céu, me conserta isso de É alto o preço que ele deve pagar para, uma
| 147
vez na vida, não apenas se contentar com roupa, ao passo que o segundo traz consigo
D
remendar-se, mas conceder-se um presente, essa atitude ao fabricá-la. O narrador conta
satisfazendo um desejo próprio. que, na entrega, “Akaki Akakiévitch não co-
nheceu dia mais solene em todo o curso da
Depois de muito refletir, Akaki Akakiévitch sua existência”. E, quanto ao outro, ele afirma
L
resolveu reduzir suas despesas, ao menos por um que trazia uma expressão “imponente”:
ano. Desde então, não tomou mais chá à noite e não Petrovitch parecia plenamente convicto de
mais acendeu a vela, levando, quando se tornava que tinha executado a grande obra de sua vida e
necessário, a tarefa ao quarto da proprietária. Na
entrevisto de um só golpe o abismo que separa um
N
rua, pôs-se a andar bem depressa e na ponta dos pés
alfaiate de um remendão.
a fim de poupar as solas; só raramente recorria aos
préstimos da lavadeira, para não gastar a roupa bran-
ca, que, chegando em casa, trocava por um velho “Fecha a gola se
P
roupão de algodãozinho, ao qual o tempo não havia
em absoluto poupado. Para dizer a verdade, essas
não queres levar a pior!”
abstenções lhe foram um tanto penosas, mas aos
Poderia, impulsionado pelos sacrifícios
poucos se foi acostumando e um belo dia acabou por
se privar completamente da ceia. Como se sonhasse que agora o conduziram a um “intenso júbilo”,
IA
todo o tempo com o seu futuro capote, servia-lhe encontrar também uma nova atitude na rela-
esse sonho de alimento suficiente, embora imaterial. ção com os outros, de mais firmeza? Poderia
acontecer que alguém que não queria mais da
A diferença entre Akaki Akakiévitch e vida senão “copiar” se tornasse um verdadeiro
Petrovitch é retomada no momento em que “conselheiro titular” e não uma “capota”?
o capote fica pronto e é entregue. Para mudar Quando, no escritório, descobriram que
sua atitude, o primeiro precisa vestir outra Akaki Akakiévitch tinha um novo capote,
U
PEPGOONER/ SHUTTERSTOCK
G
D
se convencerem com seus próprios olhos. As con- seja, de vestir uma máscara. Iludindo-se com
gratulações choveram sobre Akaki Akakiévitch, a possibilidade de que isso fosse o bastante,
que a princípio as recebeu com sorrisos, e depois em sua ingenuidade, esse dia foi “a maior
com uma certa confusão. das festas”.
L
Não tardaria para a verdade se revelar,
Sua confusão consistia no fato de que o que era a incapacidade de Akaki Akakiévitch
que mudou fora apenas a aparência e, em se entrosar. Uma vez na festa, cada convi-
seu íntimo, tudo permanecia o mesmo. Mas, dado pendura na entrada o seu capote e se
N
afinal, quem ele era: aquela nova imagem apresenta tal como é, sem ter mais onde se
que projetava aos outros ou aquilo que eles proteger ou se esconder.
sempre viram? A confusão era o conflito en-
tre a imagem exterior e a realidade interior, Não sabendo bem que atitude tomar, emperti-
P
porque a segunda não acompanhou a trans- gou-se desajeitadamente. Mas logo que se apercebeu
formação da primeira. sua presença, todos o aclamaram e se precipitaram
Os colegas de trabalho resolveram or- na antessala para mais uma vez admirar o famoso ca-
ganizar um sarau em comemoração à con- pote. Na sua ingênua candura, Akaki Akakiévitch,
quista de Akaki Akakiévitch, na verdade apesar de muito confuso, sentia-se lisonjeado com
IA
porque tudo era ocasião para organizarem esse concerto de louvores. (…) Acabou por sentar-se
um sarau. O chefe da repartição resolveu ao lado dos jogadores, esforçando-se por seguir-lhes
que o faria em sua própria casa e exigia a o jogo; examinou-os um por um, mas, logo se aborre-
presença do nosso herói. cendo, começou a bocejar, que a sua hora de dormir
já soara há muito tempo. Quis então despedir-se do
A princípio Akaki Akakiévitch quis recusar, dono da casa, no que foi impedido; todos o retiveram,
mas como todos lhes censurassem a impolidez, cada um insistindo para que tomasse ao menos uma
U
teve que aceder às instâncias. Enfim, refletindo so- taça de champanhe em honra da estreia. (…) Akaki
bre o assunto reconheceu, não sem satisfação, que Akakiévitch se viu forçado a esvaziar duas taças, sen-
era uma oportunidade de exibir mais uma vez seu tindo depois que toda a sala ganhara muito em ani-
capote novo. Na verdade, esse dia foi para Akaki mação, sem que isso todavia lhe permitisse esquecer
Akakiévitch a maior das festas. que já era meia-noite e estava muito na hora de voltar
G
| 149
Akaki Akakiévitch teve seu capote novo rou- severidade. ‘Severidade, mais severidade,
D
bado. “Fecha a gola se não queres levar a sempre severidade!’”.
pior!”, disseram, antes de lhe darem uma Ao contar seu caso, seu caráter emer-
joelhada no estômago, derrubando-o no gencial e finalmente confessar que fazia um
chão e levando seu casaco. Mas isso não apelo direto porque, depois das alternati-
L
foi o pior. Ao procurar a polícia, ninguém vas fracassadas, não acreditava mais nas
quis ajudá-lo. instâncias mediadoras, ou seja, na própria
Dois dias depois, ao voltar ao trabalho burocracia de que fazia parte e da qual ago-
coberto com sua velha “capota”, alguns se ra esperava algum retorno pessoal, o que
N
comoveram com o caso, enquanto outros recebeu foi justamente uma resposta severa:
viram nisso razão para fazer mais chaco-
tas. Finalmente, foi convencido a pedir a um — Como! Como! — exclamou o personagem
chefe de departamento, no trabalho, que in- importante. — Que ousa insinuar com isso? De
P
tercedesse por ele com a polícia. Esperava onde lhe vieram essas ideias subversivas! Mas
que apenas as autoridades se entendessem onde será que a mocidade de hoje em dia adqui-
mutuamente e que, se uma se recusava a riu esse espírito de insubordinação, essa falta
lhe prestar auxílio, nada lhe restava senão de respeito para com os superiores e as autori-
solicitar ajuda à outra, mais próxima. dades competentes?! (…) Sabe com quem está
IA
Essa foi, porém, uma péssima ideia, pois falando desta maneira? Compreende na presença
se deparou com um homem tão orgulhoso de quem se acha? Compreende? Compreende?
que haveria de lhe roubar muito mais do que Vamos, responda!
uma vestimenta. O sistema de pensamento Esse “personagem importante”, da pior
desse superior “baseava-se unicamente na maneira, conseguiu capturar o ser mais
U
ROMÃO/ M10
G
D
para que pudesse elevar-se às suas custas e se esperar. Assim, pois, quando o médico chegou
derrubá-lo fatalmente. Já nada lhe restava pa- e tomou o pulso de Akaki Akakiévitch, só pôde
ra protegê-lo do “frio setentrional” da Rússia: receitar um cataplasma, e isso unicamente para não
privar o doente dos recursos eficazes da medicina.
L
Essa última frase ele a emitiu batendo com o
Mas declarou francamente que o dito não podia
pé e a voz num tal diapasão que gente mais segu-
durar mais de uns dois dias, e depois, virando-se
ra que Akaki Akakiévitch teria perdido o prumo.
Akaki Akakiévitch sentiu-se prestes a desfalecer: para a proprietária, acrescentou:
N
tremia-lhe o corpo todo, suas pernas vacilavam, e — Vamos, minha boa mulher, não perca seu
se os contínuos, atraídos pelo ruído, não o houves- tempo inutilmente; vá depressa encomendar um cai-
sem recebido nos braços, ter-se-ia infalivelmente xão de pinho: os de cedro são muito caros para ele.
estendido a fio comprido no assoalho. Levaram-no
P
quase sem sentidos. (…) Pôs a caminhar titubeando,
Talvez tenha sido o espírito tão burocráti-
expulso a cada vez da calçada pela neve que turbi-
co quanto hierárquico dos russos o que mais
lhonava furiosamente, pelo vento que o empurrava
dificultou a instauração dos ideais socialistas.
de todos os lados, como é de regra em Petersburgo.
No mesmo instante, apanhou uma boa angina, e É certo que eles entrariam em conflito com
IA
quando enfim chegou em casa, teve que se deitar os vícios sociais descritos por Gogol. Nesse
sem que a sua garganta inflamada pudesse emitir sentido, de nada adiantava uma louvável
o menor som. Tais são às vezes as consequências teoria se os homens não detinham uma sa-
de uma descompostura bem passada! Graças à ge- bedoria prática que fosse ao mesmo tempo
nerosa assistência do clima de São Petersburgo, a uma sabedoria coletiva.
U
| 151
Orientações pedagógicas: Tempo: 2 horas/aula (1. leitura compartilhada, escuta das músicas, discussão com o(a)
professor(a), início da produção textual; 2. término da produção textual e fechamento do(a) professor(a)). Espaço: sala
de aula com carteiras individuais. Agrupamentos: atividade individual. Materiais: uma folha sulfite e uma caneta para
cada aluno. Mais orientações no Manual.
PROPOSTAS INDICAÇÃO
D
DE VIVÊNCIAS
L
4.2.1 DISTOPIAS O modo de trabalhar do fordismo,
caracterizado pela repetição e fragmen-
COTIDIANAS
tação da produção na linha de monta-
N
gem, foi retratado no filme Tempos mo-
Akaki Akakiévitch tinha, em sua profissão,
dernos (1936), de Charlie Chaplin. Ele
uma prática estanque, repetitiva, automatiza-
mostra as péssimas condições de traba-
da, que caracteriza robôs, afastando as pes-
lho e como se dão as relações humanas
soas do movimento de criatividade e liberda-
P
nesse contexto.
de. Essa não é somente uma característica da
sociedade russa daquela época. É também
algo que podemos encontrar no nosso coti- pelas utopias. Porém, há outro modo de
diano. Muitos pensadores refletiram a respei- imaginar o futuro da sociedade, só que
to desse modo de vida rotineiro e em como oposto a esse: a distopia. Distopias são
IA
as pequenas e burocráticas demandas da vida narrativas sobre o futuro que preveem a
nos privam do tempo e do espaço necessá- ruína, a destruição, ou seja, o pior cená-
rios para refletir sobre elas de modo crítico. rio possível. Embora de maneira oposta à
Segundo o pensador Max Weber utopia, as distopias também são críticas
(1864-1920), sociólogo analítico, houve um ao nosso modo de vida.
processo pelo qual a sociedade ocidental Foi com esse objetivo que Aldous
passou e que caracteriza nossa vida contem- Huxley (1894-1963), em 1932, publicou o li-
U
porânea: a racionalização. Entre as conse- vro Admirável mundo novo, em que imagina
quências desse processo, está a racionaliza- uma sociedade condicionada pela tecnolo-
ção do tempo, uma das características mais gia e pelos modos de produção, guiada pela
fortes da sociedade capitalista, observada racionalização e o controle dos pensamen-
G
desde o fordismo. Nosso tempo, hoje, é or- tos, comportamentos e ações. Ouça duas
ganizado de modo a nos dar mais produti- canções inspiradas nessa obra: “Admirável
vidade, mais lucro, e não, necessariamente, gado novo”, de Zé Ramalho, e “Admirável
mais qualidade de vida, mais senso crítico chip novo”, de Pitty.
ou experiências satisfatórias. Essa obra fundamental de Huxley teve
Em outra proposta de vivência, fa- grande repercussão, pois narra de modo so-
lamos sobre cidades ideais, construídas cial aquilo que acontece com Akakiévitch.
Fordismo: modo de pensar e praticar o trabalho idealizado por Henry Ford (1863--1947),
baseado, principalmente, na atomização da produção, repetição e esteiras para fabricação
em série.
Competência Geral 10
Ciências Humanas e Sociais: Competência 4
EM13CHS404
152 | PLANEJAMENTO | O encontro com o futuro e o nós
Orientações pedagógicas: Tempo: 3 horas/aula (1. leitura compartilhada, separação dos grupos, escuta das músicas
e montagem do cronograma da música; 2. escolha dos critérios da rotina e criação do cronograma ideal). Espaço: sala de
aula. Agrupamentos: até 4 alunos, sem critério definido. Materiais: equipamento para reprodução da música, uma folha sulfite
para o grupo, uma folha sulfite e uma caneta para cada aluno. Mais orientações no Manual.
Faça uma redação ou um texto de ficção nosso cotidiano pode nos privar do tempo
D
(que pode ser também um poema) inspirado em que realmente podemos parar o auto-
nessa obra de Gogol, assim como as canções matismo e prestar atenção no que acontece
foram inspiradas na obra de Huxley. Use as ao nosso redor e nas atitudes que tomamos.
seguintes questões para direcioná-lo: Ou seja, o quanto nossas rotinas podem co-
L
• Por que Akakiévitch tinha tanto laborar para nos submeter aos interesses
medo de sair da zona de conforto alheios, nos desconectando dos nossos pró-
da cópia? prios interesses profundos e causando uma
• Vo c ê a c h a q u e e l e s e s e n t i a vida de frustração.
N
verdad eir amente relevante ou Akaki não se submetia somente aos inte-
realizado profissionalmente? resses da repartição em que trabalhava e das
• Como ele se sentia diante dos autoridades que o cercavam, mas também
colegas de trabalho? se negava a engajar-se autenticamente em
P
Escreva em primeira pessoa. O eu lírico sua profissão. Um exemplo disso é quando o
deve ser Akaki Akakiévitch. personagem se recusa a fazer qualquer coisa
que não seja o automatismo da cópia.
Por isso, é importante estarmos atentos à
4.2.2 ROTINAS
nossa rotina e à organização do tempo, para
IA
Há muitos modos de perceber e viver atuar profissionalmente com protagonismo,
o tempo, por exemplo, antes dos avan- ou seja: autonomia, autenticidade, criticidade
ços tecnológicos da energia elétrica, era e engajados em nosso interesse profundo.
comum que os humanos tivessem uma A partir disso, dividam-se em grupos.
organização do tempo mais próxima à da Cada um irá analisar uma música que trata
natureza: se levantavam quando o Sol nas- do tempo na vida de um personagem. Em
cia, se deitavam quando o Sol se punha. O seguida, montem um cronograma da 0h às
U
trabalho era, então, reservado a esse pe- 23h59 de um dia na vida dele. As músicas
ríodo. Hoje nós temos outra forma de nos são “Cotidiano”, de Chico Buarque; “Lú-
relacionar com o tempo, que pode ser in- cia”, de Rodrigo Campos; “Um dia útil”, de
dependente da luz solar. Maurício Pereira; “O último dia”, de Pauli-
G
Esse é só um exemplo para que nós nho Moska; “Sempre assim”, do Jota Quest;
percebamos que o modo como organiza- e “Tempos modernos”, de Lulu Santos.
mos nossas tarefas e rotinas não é um dado, Em seguida, discutam, no grupo, qual
não é imutável. É uma construção social, rotina colabora para uma prática profissional
moldada por uma cultura e carregada de saudável e autêntica. Elenquem três critérios
interesses. que definem uma rotina autêntica. Após isso,
Mas por que falar disso quando estamos construa a sua rotina ideal, baseada em horá-
tratando da rotina de um trabalhador? Por- rios. Pense nos tempos, nos ambientes e nas
que somente assim percebemos o quanto relações que você quer desenvolver.
Competência Geral 10
Ciências Humanas e Sociais: Competência 4
EM13CHS404
| 153
4.3 O MERCADOR DE sentimento a uma preocupação financeira,
D
pois os investimentos de Antônio estavam
VENEZA, DE WILLIAM
no comércio marítimo, suscetíveis a grandes
SHAKESPEARE perdas, uma vez que os navios estavam pelo
mundo e os incidentes de percurso eram algo
L
comum naquela época. Antônio nega que esteja
Laços afetivos e laços materiais preocupado com seu dinheiro, ao que Salarino
sugere que só pode, então, tratar-se dos males
A genialidade da peça O mercador de
do amor. Antônio rejeita mais uma vez essa ra-
N
Veneza, de William Shakespeare1, consiste em
zão, quando entra pela porta Bassânio, que é
não ser possível determinar se estamos lendo
outro personagem central da peça.
uma comédia ou um drama e se os persona-
Shakespeare não esclarece se é por
gens são heróis, anti-heróis ou todos vilões.
amor a Bassânio que Antônio sofre, mas é
Tudo depende de assumir ou não uma posição
P
certo que todos os acontecimentos da pe-
no conflito entre eles: de um lado os cristãos
ça demonstram que ele tem por Bassânio
de Veneza, Antônio, Bassânio e Pórcia, e de
uma profunda devoção. Como já fizera ou-
outro Shylock, que é um estrangeiro judeu. O
tras vezes, Bassânio procurou seu amigo
que propomos neste ensaio não é defender
um lado ou outro, muito menos entrar
IA
em uma discussão religiosa, mas ex-
plorar a dimensão conflituosa presen-
te na sociedade e ver de que forma
algumas ocupações profissionais e
até mesmo litígios judiciais estão
expostos ao confronto político.
A peça começa com um diálogo en-
U
DOMÍNIO PÚBLICO
CAIXA HISTÓRICA:
PESQUISE
• Como foi a vida do autor?
• Quando ele viveu?
• O que estava acontecendo naquela época?
• Há relação entre esses eventos e a obra? Qual? William Shakespeare.
D
afirma que dessa vez será diferente, pois
As nossas ambiguidades
seu propósito, se bem-sucedido, permitirá
Esse tipo de ambiguidade no caráter de
que ele pague as dívidas anteriores e não
Bassânio também está presente nos demais
precise mais lhe pedir ajuda financeira. O
L
personagens da peça, aprofundando tanto o
que Bassânio deseja é reunir um montante
seu aspecto cômico quanto o dramático. Todos
suficiente para poder se apresentar como
possuem algumas motivações legítimas, mas
pretendente à mão de Pórcia, uma moça
também a outros fazem o mal e se perdem nos
que perdeu recentemente o pai e herdou
N
meios para alcançar seus objetivos.
grande fortuna. Bassânio quer cortejá-la e
Quanto ao mercador Antônio, embora seja
pedi-la em casamento, mas, para isso, deve
um homem bom para seus amigos, generoso
dissimular possuir bens, até o momento
e afetuoso, pratica um antissemitismo que é
em que, uma vez tendo casado com ela,
absolutamente censurável. Os historiadores
P
possa usufruir de sua herança para pagar
afirmam que era muito comum esse compor-
suas dívidas.
tamento preconceituoso na Inglaterra da época
É o que Bassânio explica a Antônio na
de Shakespeare, mas não podemos inferir dis-
seguinte passagem da peça:
so que Shakespeare fosse antissemita. É pos-
sível que ele tenha se utilizado do preconceito
IA
Bassânio
existente para mostrar como o ser humano po-
Em Belmonte há uma jovem que de pouco
de ser tão complicado, ou seja, capaz de fazer
recebeu grande herança. É muito linda e, mais do
coisas boas a alguns, seus amigos, e ruins a
que esses termos, de virtudes admiráveis. Outrora
outros que, às vezes por razões bastante arbi-
eu recebi de seus olhos mensagens inefáveis (…) Ó
trárias, considera seus inimigos.
meu Antônio! Se eu possuísse meios para poder
A peça não se mantém atual por nos
apresentar-me como pretendente também, não me
levar a tomar partido nesses conflitos. Ela
U
| 155
A culminância desse conflito se dará em por Antônio. O fato de ele emprestar dinheiro
D
uma discussão jurídica, para resolver o con- a seus amigos sem esperar ganhos financei-
flito que Antônio e Shylock alimentam entre ros prejudica seus negócios, mas aparente-
si e que ganha a forma de um contrato de
mente Shylock seria capaz de manter com
empréstimo financeiro, mas antes é preciso
L
ele uma relação respeitosa. São as repetidas
ver como as suas profissões e suas relações
agressões de Antônio que transformam seus
interpessoais podem interferir na aplicação
das leis que recairão sobre eles. desprezo e antipatia em ódio.
A ocasião para o seu plano de vingan-
N
ça surge quando Bassânio pede dinheiro a
A escalada do conflito
Antônio e este não pode emprestar, pois seus
A ntônio tem o hábito de destratar
Shylock. Cospe nele, xinga-o e censura que recursos foram todos investidos no comércio
marítimo. Antônio, sem querer negar ajuda
P
cobre juros pelos empréstimos que oferece –
prática na qual Shylock não vê nenhum mal, a Bassânio, diz-lhe que vá procurar emprés-
pois seria uma forma legítima de comércio, timos em seu nome, pois será seu fiador. O
análoga àquela praticada por Antônio. Se mercador espera que, quando retornarem a
os juros que cobra lhe parecem justos, pa-
seus barcos, ele possa cobrir o empréstimo
IA
ra Antônio eles parecem excessivos, como
de Bassânio, até que ele consiga o dinheiro
avareza e agiotagem. Antônio, então, utiliza-
de Pórcia para lhe pagar.
-se de sua posição de riqueza e de prestígio
entre os cidadãos de Veneza para humilhar Bassân io então procura Shylock.
Shylock, despertando seu ódio e desejo de Vejamos como é travado o diálogo entre eles
vingança – não que Shylock tivesse simpatia a respeito do empréstimo a ser feito.
U
ROMÃO/ M10
G
ROMÃO/ M10
G
| 157
Para armar sua armadilha, ele se dirige é capaz de ceder. Shakespeare não toma
D
a Antônio com uma cordialidade contrária partido religioso, pois demonstra que, inde-
aos seus reais sentimentos. Seria a oportu- pendentemente da religião proferida, indiví-
nidade que Shylock dá a ele para se retratar duos, no caso Antônio e Shylock, podem dar
das ofensas feitas ou apenas uma dissimula- ao sentimento religioso um uso desvirtuado.
L
ção para atraí-lo à sua armadilha? Abre-se a Homens com nobres sentimentos podem
Antônio uma nova frente de diálogo, mas não realizar práticas censuráveis e desprezíveis.
totalmente franca. É também já uma forma de Portanto, é dos homens e não das religiões
ir à forra; é um primeiro sabor da vingança que trata a peça.
N
que Shylock espera obter. Antônio responde a Shylock:
Shylock Antônio
Signior Antônio, quantas, quantas vezes lá no Ainda agora pudera novamente dar-te o nome
P
Rialto, fizeste pouco caso do meu dinheiro e de eu de cão, de minha porta tocar-te a pontapés, cuspir-te
viver de juros! Suportei tudo sempre com um pa- o rosto. Se queres emprestar-nos teu dinheiro, não
ciente encolher de ombros, pois o sofrimento é apa- o faças como a amigos – em que tempo a amizade
nágio de toda a nossa tribo. De tudo me chamáveis: cobrou do amigo juros de um metal infecundo? –
cão, incrédulo, degolador, além de me escarrardes antes o empresta como a teu inimigo, pois no caso
IA
neste gabão judeu, e tudo apenas por eu usar o que de vir ele a faltar com o pagamento, com mais alegre
me pertencia. Ora bem; mas agora está patente que rosto hás de extorquir-lhe tudo o que te dever.
precisais de mim. Ótimo! Avante! Vindes buscar-me
e me dizeis: “Shylock”, dizeis-me “precisamos de Antônio pressente as más intenções de
dinheiro”. Vós, que esvaziado havíeis toda a vossa sa- Shylock, mas seu orgulho não permite que
liva em minha barba e me expulsáveis a pontapés, tal ele retroceda para fazer as pazes. Shylock
qual faríeis a um cão postado em frente a vossa porta, é quem precisa aparentemente retroceder,
U
solicitais dinheiro. Que vos devo responder neste na verdade para não deixar que Antônio es-
instante? Deveria perguntar-vos: “Cachorro tem cape de sua armadilha. Porém, da mesma
dinheiro? Será possível que um cachorro empreste forma como o orgulho de Antônio o conduz
a alguém três mil ducados?” Inclinar-me devo até o à armadilha de Shylock, este, em seu pró-
chão e, em tom de voz escravo, humilde a murmurar, prio orgulho, não percebe que arma para si
G
quase sem fôlego, dizer assim: “Na última quarta-fei- também uma armadilha.
ra, caro amigo, cuspistes-me no rosto; noutro dia,
chamastes-me de cão; e em troco dessas cortesias, Shylock
preciso ora emprestar-vos tanto dinheiro assim?” Quero dar-vos prova dessa amizade.
Acompanhai-me ao notário e assinai-me o
Diante da exposição de Shylock, Antônio documento da dívida, no qual, por brincadeira,
não se compadece com os fatos narrados, declarado será que se no dia tal ou tal, em lugar
não reconhece suas faltas nem se arrepende também sabido, a quantia ou quantias não pagar-
de suas falas cobertas de violência e precon- des, concordais em ceder, por equidade, uma libra
ceito. Ele tem diante de si um homem que se de vossa bela carne, que do corpo vos há de ser
vinga de forma orgulhosa, e ele mesmo não cortada onde bem me aprouver.
D
ter desafiado o orgulho de Antônio e, por ou-
Os mercadores de Veneza
Dissemos anteriormente que a peça de
tro, tratar como “brincadeira” o pagamento
Shakespeare não é maniqueísta, pois todos
de uma libra de sua carne em caso de não
os personagens são, em alguma medida,
recebimento do montante acertado (três mil
L
justos e injustos; para alguns conhecidos, são
ducados) em determinado prazo (três meses).
bons e, para outros, maus. Antônio gosta de
Antônio aceita a proposta e o conflito entre
ajudar seus amigos. Shylock quer vingar as
os dois está posto, para não mais poder ser
ofensas recebidas por seu povo.
remediado, para ser resolvido apenas com
N
A complexidade do caráter que demons-
a vitória de um e a derrota do outro. Mas o
tram também consiste em que todos eles, e
que poderá decidi-lo? Os ventos da sorte que
não apenas Antônio, levam a vida de certa
sopram as velas dos navios?
forma como “mercadores”. Antônio aceita a
extravagante aposta para ganhar o afeto de
INDICAÇÃO
P
Bassânio. Bassânio aceita que seu amigo a
leve adiante para poder fazer um negócio
em que se aproveita do amor de Pórcia. Esta,
por sua vez, que aparenta ser uma vítima na
história tramada nas suas costas pelos dois
IA
Na peça O auto da Compadecida, amigos, também organizará suas trocas.
de Ariano Suassuna, o argumento de O Para evitar que um marido qualquer lhe
mercador de Veneza é aproveitado. Chicó seja imposto a contragosto, Pórcia cria um
quer se casar com uma moça rica e coloca desafio, que consiste em colocar seu retrato
uma libra da sua carne como garantia de dentro de uma entre três caixas. Uma caixa
que é um rapaz rico. Seu amigo João Grilo é de ouro, a outra é de prata e a terceira,
de chumbo. No desafio, o pretendente deve
U
| 159
Ao escolher a de chumbo, Bassânio su- prova, tudo ela lhe oferece: seu amor e o que
D
postamente revela a virtude de quem não possui, desde que atenda a uma condição,
se apega às aparências. Isso seria uma de- que deve mais uma vez pô-lo à prova – talvez
monstração de que o dinheiro que ele tomou a verdadeira prova.
emprestado e a riqueza de Pórcia não são
L
para ele o mais importante, mas somente Pórcia
um caminho para conquistar sua amada. O Eu, com tudo o que tenho, desde agora passo
paradoxo é que, embora ele acreditasse que a ser toda vossa. Até há momentos, era eu senhora
o verdadeiro valor das coisas está além das desta bela casa, dona dos meus criados, soberana
N
aparências, tenha utilizado como estratégia de mim própria; mas desde este momento a casa, a
para conquistá-la justamente manipular as famulagem, minha própria pessoa, meu senhor, a
aparências, ou seja, mentir para ela. Esse vós pertence. Tudo vos dou com este anel. Se acaso
seria mais um aspecto cômico e ao mesmo vos separardes dele, ou se o perderdes, ou se pre-
P
tempo dramático da peça, pois não sabemos sente a alguém dele fizerdes, indício certo isso será
qual é a verdade a respeito do sentimento da morte de nosso amor e causa de queixar-me.
de Bassânio, ou talvez a verdade seja que
os sentimentos e as ações dos personagens A verdade a respeito de Bassânio de-
possam, entrelaçando-se, ser realmente verá ser revelada na sua capacidade de a
IA
complicados. Vemos a prática escapar das todo custo guardar o anel que ela lhe dá co-
teorias que podemos supor. mo símbolo do seu amor. Mas, assim como
De toda forma, Pórcia se mostra conven- Shylock armou uma armadilha a Antônio,
cida pela escolha de Bassânio, escolha que Pórcia também parece armar uma cilada
ela, por sua vez, já tinha feito antes de sub- contra Bassânio, ao menos para ter de volta o
metê-lo a essa prova. Se ela já o conhecia e que de material ela dividiu com ele, para que
o amava antes, por que o submeteu ao tes-
Famulagem: coletivo de “fâmulos”, os cha-
U
te? De toda forma, uma vez tendo vencido a mados “criados, serviçais”.
DIVULGAÇÃO
G
D
apenas seu amor. tudo o mais somos iguais a vós, teremos de ser
Enquanto isso, os investimentos de iguais também a esse respeito. Se um judeu
Antônio sofrem severas perdas. Seus navios, ofende a um cristão, qual é a humildade deste?
pelos mais diversos motivos, vão se perden- Vingança. Se um cristão ofender a um judeu,
L
do pelo mundo, de modo que ele fica sem qual deve ser a paciência deste, de acordo com
recursos para pagar a dívida com Shylock. o exemplo do cristão? Ora, vingança. Hei de
A questão é se Shylock levará a cabo suas pôr em prática a maldade que me ensinastes,
ameaças, se pretende ir até o fim com seu sendo de censurar se eu não fizer melhor do
N
plano ou se, no último momento, irá recuar da que a encomenda. (…) Isso me alegra sobre-
vingança, revelando a Antônio que o perdoa; modo. Vou atormentá-lo, torturá-lo… Isso me
que é capaz de ter com ele a compaixão que alegra sobremodo.
o outro não teve. Afinal, era ou não – como
P
ele disse que seria – tudo uma brincadei-
ra quando apostou uma libra da carne de
Amigos e inimigos
Quando o prazo é encerrado e Antônio
Antônio? Eles são, como propôs, amigos ou
não possui o dinheiro para quitar sua dívi-
inimigos?
da com Shylock, este decide cobrar, não de
Enquanto recebe as notícias das perdas
brincadeira, mas a sério, a libra da carne
IA
de Antônio, Shylock relembra as agressões
de Antônio que ficara afiançada. Bassânio,
sofridas e reforça seus sentimentos, por
porém, já possui os recursos de Pórcia e
meio dos quais podemos descobrir seus
conta com o consentimento dela para quitar
propósitos.
a dívida com Shylock. Chega a lhe propor
Shylock pagar três vezes mais do que devia, mas não
Ele me humilhou, impediu-me de ganhar o dissuade do plano. Shylock, que Antônio
pensava só querer dinheiro, não quer mais
U
judeu. Os judeus não têm olhos? Os judeus em torno do caso. Muitos tentam fazer Shylock
não têm mãos, órgãos, dimensões, sentidos, desistir da sua cobrança. Argumentam que a
inclinações, paixões? Não ingerem os mesmos forma pela qual ele trata os outros pode vir a
alimentos, não se ferem com as mesmas ser a forma pela qual será também tratado,
armas, não estão sujeitos às mesmas doenças, ao que Shylock responde que, independen-
não se curam com os mesmos remédios, não temente do que faça, ele já tem sido por to-
se aquecem e refrescam com o mesmo verão dos maltratado, especialmente por Antônio,
e o mesmo inverno que aquecem e refrescam e que o que exige foi posto em contrato, que
os cristãos? Se nos espetardes, não sangra- tem direito a ele segundo as leis de Veneza.
mos? Se nos fizerdes cócegas, não rimos? Se Nada mais exige, em sua concepção, senão
nos derdes veneno, não morremos? E se nos o cumprimento da justiça.
| 161
PARA & PARA
D
DEBATER PESQUISAR
L
Shylock sugere, na passagem apre- diferente do que era feito com os escravos,
sentada, que judeus, cristãos e todos os Shylock usa a analogia entre Antônio e um
seres humanos são fundamentalmente escravo para reivindicar com mais força a
iguais, mas que os venezianos são hipócri- validade do contrato, satisfazendo um plano
N
tas ao questionar que ele viva de cobrar pessoal de vingança. Para ele, não importa-
juros enquanto fazem pessoas de escravos. va, então, que os escravos sofressem, desde
Porém, há nuances para serem debatidas. que Antônio pudesse também sofrer.
O argumento legítimo acerca da igualdade Embora a peça possa estar coberta de
dos homens é conduzido à conclusão de preconceitos étnicos, religiosos e raciais,
P
que, se os venezianos tratam seus escravos que eram reais na época em que foi escri-
como uma posse sobre a qual possuem ta, é importante observar que a escravi-
qualquer direito, então ele também de- dão referida na peça de Shakespeare não
ve ter o direito de submeter Antônio ao possui as mesmas raízes históricas que a
contrato que fizeram – como se um erro escravidão ocorrida na história brasileira.
IA
justificasse outro. De todo modo, além de repudiar qualquer
Porque nos solidarizamos com os escra- forma de escravidão, é preciso questio-
vos e defendemos a igualdade, podemos ser nar a maneira degradante como Shylock
levados a concordar com Shylock. Porém, se refere aos escravos, rebaixando a sua
em vez de apenas demonstrar o absurdo condição em vez de apresentá-los como
da escravidão e fazer com Antônio algo seres humanos.
U
D
Que castigo tenho a temer, se mal algum A natureza da graça não comporta compul-
eu faço? Possuís muitos escravos, que como são. Gota a gota ela cai, tal como a chuva benéfica
asnos, cães e mulos tratais, e que em serviços do céu. É duas vezes abençoada, por isso que
empregais vis e abjetos, sob a escusa de os ha- enaltece quem dá e quem recebe. É mais possan-
L
verdes comprado. Já vos disse que os pusésseis, te junto aos poderosos, e ao monarca no trono
acaso, em liberdade? Que com vossas herdeiras adorna mais do que a coroa. (…) Por isso, judeu,
os casásseis? Por que suam sob fardos? Que lhes conquanto estejas baseado no direito, considera
désseis leitos iguais aos vossos? E iguarias que que só pelos ditames da justiça nenhum de nós
N
como ao vosso paladar soubessem? Em resposta, a salvação consegue. Para obter graça todos nós
decerto, me diríeis: “Os escravos são nossos”. rezamos; e é essa mesma oração que nos ensina
De igual modo vos direi, em resposta, que essa a usar também da graça. Quanto disse, foi para
libra de carne, que ora exijo, foi comprada muito mitigar o teu direito; mas, se nele persistires,
P
caro; me pertence; hei de tê-la. Se esse direito o severo tribunal de Veneza há de sentença dar
me negardes fora com vossas leis! São fracos os contra o mercador.
decretos de Veneza. E ora aguardo o julgamento.
Respondei-me: dar-me-eis meu direito? Sem convencer-se de seus apelos, Shylock
responde: “Que os meus atos me caiam na
IA
cabeça. Só reclamo a aplicação da lei, a pena
Enquanto isso, Pórcia é informada da
justa cominada na letra já vencida”. E assim,
situação por Bassânio. Quando chega uma
apelando à lei, não suspeita que ela poderá
carta de Antônio avisando seu amigo que a dí-
ser virada contra ele, e que pode ser ele o
vida está sendo exigida por Shylock na forma
“mercador” a receber uma sentença contrária.
de sua carne, Bassânio se vê forçado a confes-
sar toda a situação por eles vivida. Pórcia não
se mostra arrependida de ter se casado com A escolha de Shylock
U
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se acaso derramares, no instante de a cortares, pessoa por ele assim visada, assenhorear-se da metade
D
uma gota que seja, só, de sangue cristão, teus bens dos bens desse estrangeiro, indo a outra parte para
e tuas terras todas, pelas leis de Veneza, para o os cofres públicos. A vida do ofensor à mercê fica do
Estado passarão por direito. doge, apenas, contra os votos todos. Digo, pois, que
te encontras nesse caso, pois que se torna manifesto
L
Shylock fica então aturdido. Ele fracassa e claro que, usando de processos indiretos, e diretos
em sua vingança e está prestes a perder seu também, contra a existência do acusado intentaste.
patrimônio caso persista em seu orgulho, mas, Assim, incorres na pena cominada. Agora, ajoelha-te
por seus atos, revela o que os outros oportu- e ao doge implora que te dê o perdão.
N
namente ignoram: que as leis que julgam seus
atos não são universais. As leis de Veneza Shylock ajoelha-se e faz tudo que lhe pe-
estão a serviço dos seus cidadãos, ou seja, dem, ou seja, transfere a eles seu patrimônio
dos cristãos. A cidade do livre comércio não e a contragosto se converte ao cristianismo.
P
é uma cidade cuja lei serve a uma das partes. O fato é que ninguém aparece para defender
A lei foi criada em benefício não de todos os Shylock como apareceu para defender Antônio.
seres humanos, mas dos venezianos cristãos. Ele é levado, por fim, a perder, como réu de
Então, ele afirma: “Nesse caso, concordo com um processo instantâneo, todos os seus bens
a proposta: que me paguem três vezes a im- de acordo com as leis da cidade, que todos os
IA
portância da dívida, ficando o cristão livre”. presentes – exceto Pórcia travestida de um ad-
No entanto, Pórcia afirma que, pelo fato de ter vogado estrangeiro – em realidade desconhe-
antes recusado o quitamento, só tem agora ciam. Fica claro que as leis funcionam como
direito a exigir o que está posto em contrato, instrumento para proteger quem de fato pode
a libra da carne de Antônio, e que esta, se reivindicá-las, os amigos, e o saber que está
cobrada, o colocará em situação criminosa. associado a esse inquérito serve diretamente
Shylock pede, então, que o deixem ir a práticas de poder que sujeitam uns ou outros
U
D
se diferem da guerra apenas quanto aos ri- superando suas respectivas mentiras. Apenas
tuais. Nesses casos, o Direito não consiste em Shylock trocou o que era e o que tinha pela
alguma autoridade externa, de forma desin- revelação de algumas verdades.
teressada, determinar em um conflito entre
L
partes qual está certa, quem sofreu danos
e como corrigi-los. Não estamos tampouco INDICAÇÃO
diante de um Direito natural que impedisse
qualquer forma de atentado contra a vida de
N
um ser humano, seja ele quem for. Nesse caso,
acompanhamos apenas rituais de vingança
que demonstram a quem fica ciente dos fatos
A peça O mercador de Veneza é
que a violência cometida tem um antecedente
reconhecida pela valorização da força
P
e que prevaleceu o que tinha mais força.
feminina de Pórcia. No entanto, heroínas
Talvez se possa dizer que, ao emprestar
como ela, embora hoje mais comuns, são
dinheiro aos outros sem lhes cobrar juros,
raras na literatura, de modo que pode-
Antônio conquistou algo politicamente mais
mos questionar em que medida a litera-
poderoso, que é o apoio dos seus amigos.
tura reflete preconceitos sociais.
IA
Shylock, entretanto, jamais tivera essa alterna-
Além disso, ao precisar se vestir
tiva para escolher, porque era um estrangeiro
de homem não apenas para enganar
e cultuava uma fé diferente.
Bassânio como também para poder exer-
Quanto aos demais personagens, ficaram
cer o papel de jurista, Pórcia revela que
a princípio muito contentes com o resultado
as mulheres historicamente não gozavam
do processo. Bassânio e Antônio procuram o
dos mesmos direitos civis dos homens.
consultor jurídico, que em nenhum momento
Um filme muito interessante para com-
U
| 165
Orientações pedagógicas: Tempo: 2 horas/aula (1. leitura compartilhada, exibição do clipe, início da feitura
do fluxograma; 2. término do fluxograma, registro (caso tenha sido feito na lousa) e fechamento do(a) professor(a)).
D
PROPOSTAS – arador”. É comum que algumas áreas
envolvam mais de uma necessidade,
como a gastronomia, que envolve
L
4.3.1 TRABALHAR NA Esse fluxograma indicará o quanto as
Competência Geral 10 redes de relações profissionais são comple-
CIDADE Ciências Humanas e Sociais: xas e quanto dependemos uns dos outros
Competência 4
N
EM13CHS404 para o bom exercício dessa função e para o
A obra O mercador de Veneza exem-
bem comum.
plifica algo muito importante a respeito do
trabalho: mesmo que nossa atuação seja in-
dividual, não trabalhamos sozinhos, mas em 4.3.2 TRABALHAR PARA
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T E R ST O
comunidade. A atuação profissional não de-
ALÉM DA CIDADE
pende unicamente de nós mesmos e dos nos-
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sos desejos, mas da rede de relações em que
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As relações que existem entre traba-
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estamos inseridos. Nesse texto, essa rede
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lho e sociedade não são caracterizadas por
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de relações é exemplificada por Shylock,
SE
uma coesão pura. Ao narrar a história dos
Antônio e Pórcia. mercadores de Veneza, Shakespeare mos-
Muitos sociólogos, a exemplo do cien- tra que o bom andamento das relações de
tista social francês Émile Durkheim (1858- trabalho é relativizado quando tratamos
-1917), se debruçaram sobre a relação dos preconceitos e de outras mazelas so-
entre trabalho e sociedade. Durkheim, ao ciais, como ódio, egoísmo, ressentimentos
pensar sobre como se organiza a socieda- e interesses pessoais que se manifestam
de e a divisão social do trabalho, desen-
U
do ser humano, como vestir, comer, fissional pode estar na vanguarda do tipo
morar, criar. de sociedade que queremos construir. Po-
2. Em seguida, deve puxar setas, indicando rém, para que as transformações sejam efe-
quais profissões fazem parte daquele tivas, é preciso que não pensemos apenas
segmento. Por exemplo, se há alguém essa atividade individualmente, mas em um
que deseja ser cozinheiro, isso deve engajamento coletivo.
aparecer no encadeamento, como em:
“comer – cozinheiro – vendedor de 1. Pensando nisso, escreva como imagina
alimento – transportador – separador que será seu currículo daqui a 25 anos.
de alimento – colhedor – plantador Que legado quer deixar para o mundo?
Espaço: sala de aula. Agrupamentos: atividade coletiva. Materiais: materiais para registro do fluxograma
(papel kraft e canetões). Mais orientações no Manual. Competência Geral 10
Ciências Humanas e Sociais: Competência 4
166 | PLANEJAMENTO | O encontro com o futuro e o nós EM13CHS404
Orientações pedagógicas: Tempo: 2 horas/aula (1. leitura compartilhada e feitura dos currículos; 2. montagem do mural e fechamento
do(a) professor(a)). Espaço: sala de aula e sala de computadores. Agrupamentos: atividade individual. Materiais: computadores para
utilização individual, acesso a geradores de documentos (Microsoft
O que você gostaria de ter feito para
D
Word, Google Docs etc.), impressão em sulfite de todos os currículos,
materiais para o título do mural (a serem definidos coletivamente). a sociedade ser melhor do que é hoje?
Mais orientações no Manual.
Pelo que você gostaria de ser conhecido?
2. Pesquise modelos de currículos em
que caibam sua formação profissional,
L
suas experiências, suas habilidades e
competências… e mais: seus objetivos
alcançados. Ao escrevê-los, pense nos
objetivos individuais e coletivos.
N
3. Em seguida, procure articular o seu
currículo do futuro com os dos seus
colegas e faça com eles um mural do
grupo escolar, em que esses currículos
P
interligados possam ser afixados em
algum espaço de convivência da
escola, como o pátio.
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L U C K Y B U S I N E S S/ S H U T
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Grupo trabalhando
na apresentação.
| 167
CONCLUSÃO
D
Neste capítulo, tratamos do mundo do alcançamos nossos objetivos. Se houver
L
trabalho por aspectos bastante diversos. realmente uma área de interesse, então é
Com Pestana, vimos a importância de re- preciso se abrir a diferentes atividades que
conhecer nossas conquistas sem nos pren- possam estar nela. Podemos ser persisten-
der a grandes sonhos, embora seja preciso tes em seguir esse horizonte.
N
também sonhar alto, ambiciosamente, uma Com Akaki Akakiévitch, vimos que o tra-
vez que eles nos motivam a ir além das rea- balho pode se transformar em um perigoso
lizações fáceis, a superar a nós mesmos. As refúgio do mundo e, em vez de nos integrar
maiores ambições são como um norte que aos outros, nos afastar deles. Embora Akaki
P
devemos ter, uma referência que nos mo- Akakiévitch vivesse em uma sociedade que
biliza, mas certamente não é um lugar que impunha muitos desafios, os quais foram
define o que na vida vale a pena. Ter metas agravando as suas dificuldades de convi-
é, portanto, uma forma de planejamento, vência, era preciso que ele aproveitasse as
mas é preciso que haja também, nesse pla- oportunidades que teve para não se aco-
IA
nejamento, a flexibilidade necessária para o modar em uma forma de viver repetitiva,
ajuste dos objetivos, porque eles não per- que mais se assemelha a uma vida-máqui-
manecerão imóveis à nossa espera. na. Vimos que o “capote” e o “frio” com-
Vimos também que as relações profissio- põem metáforas muito interessantes sobre
nais estabelecem dinâmicas próprias, como a vida social, sobretudo em uma sociedade
a admiração que instigam em nós, mas que de massa, que é uma forma de vida afina-
podem suscitar formas destrutivas de com- da com o mundo-máquina, porque também
U
paração. Por isso, a principal referência para tende a nos transformar em meras engrena-
o caminho que trilhamos no mundo e com os gens de um sistema.
outros é o interesse profundo que está den- Na peça de Shakespeare O mercador
tro de nós. Sentiremos alegria quando puder- de Veneza, as relações profissionais e as tro-
mos fazê-lo crescer, crescendo nós também
G
L
esfera, ou seja, onde todas as ações circu- mundo melhor. Esses dois aspectos da
lam e retornam a nós mesmos. vida podem conviver dentro de cada um
Por fim, descobrimos que é difícil exi- de nós e trazer um sentido de realização
gir que uma teoria possa sistematizar uma pessoal, sem recaírem em uma mera en-
N
solução para a diversidade e a complexi- grenagem do Universo-máquina. Afinal, se
dade da vida. Como alternativa, podemos somos mais do que máquinas, aspiramos
desenvolver a nossa sabedoria prática, ou a nosso próprio crescimento como uma
seja, um modo significativo de ver a vida, forma de evolução pessoal. Se esse cresci-
P
coerente com nossas experiências e inte- mento deve implicar responsabilidade com
resses. Nem por isso, temos que reduzir o outro e com o mundo, somos capazes
esse sentido a uma forma de individualis- de articular as três grandes dimensões da
mo. A sabedoria prática envolve tanto o vida. Essa combinação será, então, a nossa
reconhecimento e a valorização dos inte- aventura do cuidado.
IA
resses individuais quanto a participação
DIVULGAÇÃO/ UNITED ARTISTS
U
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| 169
Orientações pedagógicas: Tempo: 3 horas/aula (1. leitura coletiva e esboço da
produção; 2 e 3. composição da produção). Espaço: sala de aula. Agrupamentos: ativi-
dade individual. Materiais: decididos individualmente. Sugerimos expor os trabalhos
na “Feira de Profissões” ou em algum evento semelhante. Mais orientações no Manual.
ATIVIDADE DE DESFECHO
D
Para o momento final do Projeto de Quais são os seus planos para o futuro? Há
L
Vida, você deve reunir o material desenvolvi- uma clareza maior dos desafios que eles en-
do ao longo de todo o projeto com o auxílio volvem? Como esses planos se relacionam
de seu(sua) professor(a) e com seus colegas, aos outros e ao mundo?
tanto nas Propostas de Vivências quanto nas Depois, volte-se à segunda atividade
N
Atividades de Transição. O material deve de transição, que tratou do modo pelo qual
constituir, além da produção coletiva, um a obra revela o autor e a sua época. Ago-
portfólio de cada aluno. Essa organização ra, olhando para o portfólio com todas as
deve levá-los a rever o percurso do trabalho produções que você e seus colegas reali-
P
que realizaram e as descobertas que fizeram. zaram, procure por expressões não apenas
Releia atentamente seus trabalhos e dos seus interesses pessoais, mas também
converse com os colegas sobre os temas da época em que vivemos. Discuta com
gerais do Projeto de Vida. Observando a eles quais são esses elementos que pude-
primeira atividade de transição, responda ram identificar nos trabalhos de vocês que
IA
novamente às perguntas que formularam retratam o nosso tempo.
naquele momento e verifique se as suas Na terceira atividade de transição, você
respostas mudaram. Compartilhe com os e seus colegas fizeram um levantamento es-
colegas as suas conclusões: você reconhece tatístico sobre a comunidade escolar. Reve-
melhor agora os seus interesses profundos? jam quais foram as posições hegemônicas e
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GNIEL TOC
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M E R N S T/ S H U T T E R
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Ciências Humanas e Sociais: Competência 4
EM13CHS404
discutam se vocês estão de acordo com elas. desse processo. Componha um poema, um
L
É possível identificar respostas que predomi- desenho, uma peça, uma performance, um
nam na comunidade, mas que surpreendem vídeo, uma música ou um conto. Ao final, essas
vocês? Como é possível tentar convencer as produções devem ser exibidas em uma exposi-
pessoas de maneira democrática? ção de arte, na mostra anual.
N
Aproveite todo esse material comparati- Para isso, além de organizar o espaço
vo que está reunido em seu portfólio pessoal expositivo das obras, é necessário preparar
e nos trabalhos coletivos produzidos pelo gru- uma agenda de apresentações. Não se pode
po escolar e procure identificar quais são as esquecer de reservar tempo para o deba-
suas aspirações para o futuro. Reflita em que te dos trabalhos, quando cada autor deve-
P
medida o conjunto das histórias que leu e das rá falar um pouco sobre o seu processo de
vivências realizadas no Projeto de Vida fez di- produção, como vê a obra e também abrir
ferença para você, ajudando-o a compreen- espaço para conversar a respeito delas com
der a si mesmo, a entender o nosso tempo e a o público, que será composto por toda a co-
planejar o seu futuro. munidade escolar.
IA
Em seguida, escolha se pretende traba- Assim como este livro apresentou um
lhar individual ou coletivamente na produção conjunto de obras de arte capazes de inspi-
de uma obra que seja capaz de revelar as des- rar o leitor, agora é hora de trabalhar para
cobertas mais importantes que fez ao longo inspirar outras pessoas!
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Mostra estudantil.
| 171
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
D
COMENTADAS
L
ARISTÓFANES. As nuvens. Trad. Mário da Gama Cury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.
Esse poema teatral de Aristófanes é citado por ser uma das referências doxográficas da vida de
Sócrates. Nessa comédia, o filósofo é retratado de modo a parecer um sofista, ou seja, contrariamente
ao que foi retratado por Platão e Aristóteles.
N
BERGSON, Henri. A evolução criadora. Trad. Adolfo Casais Monteiro. São Paulo: UNESP, 2009.
Essa obra é uma referência fundamental para a proposta da introdução do Livro do Estudante de
pensar como a Ciência pode abordar uma realidade em constante transformação e evolução. Além
disso, ela é a base para a concepção de Universo como realidade integrada. É preciso ressaltar que
P
a realidade integrada concebida por Bergson não é a mesma do Universo-máquina, pois não pensa a
relação entre os processos da natureza na forma de repetição cíclica. Ele supõe que, se algo no Universo
evolui, tudo no Universo evolui.
_______________ Ensaios sobre os dados imediatos da consciência. Trad. João da Silva Gama.
IA
Lisboa: Edições 70, 2011a.
_______________ Matéria e memória. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 2011b.
Essa obra e a anteriormente citada foram abordadas em um domínio de questões diferente, porém
análogo. Trata-se de explicar que a liberdade existe, em vez do determinismo mecanicista, porque a
realidade psíquica está em constante evolução. Escolhemos não com base em uma causa imediata-
mente anterior, mas com base em nossa personalidade inteira, que nunca para de crescer.
U
CERVANTES, Miguel de. Dom Quixote de La Mancha. Trad. Viscondes de Castilho Azevedo. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1991.
Dedicamos um ensaio a essa obra no capítulo “Autoconhecimento: o encontro consigo”.
G
DESCARTES, René. Discurso sobre o método. In: DESCARTES, René. Descartes. Trad. J. Guinsburg
e Bento Prado Junior. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Coleção Os pensadores).
Essa obra foi mencionada na introdução como modo de fundamentar a afirmação de que há um
método científico baseado na divisão da realidade, para que esses recortes tornem mais simples os
dados a serem analisados.
FOUCAULT, Michel. História da loucura na Idade Clássica. Trad. José Teixeira Coelho Netto. 11. ed.
São Paulo: Perspectiva, 2017.
Essa obra foi uma referência para tratarmos do tema da loucura, ou doença mental, na sociedade.
FREUD, Sigmund. Sobre a transitoriedade. In: FREUD, Sigmund. A história do movimento psicanalítico,
N
crescer na escassez do tempo, sofre ao antecipar o seu fim.
GOETHE, Johann Wolfgang Von. Fausto. Trad. Jenny Klabin Segall. Belo Horizonte: Itatiaia. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 2002.
Essa obra é citada como um exemplo de teoria da alma, em que a personagem vende sua alma
P
para Mefistófeles, o diabo, a fim de concretizar seus planos.
GOGOL, Nikolai. O capote. In: GOGOL, Nikolai. Os russos antigos e modernos. Trad. Vinícius de
Morais. Rio de Janeiro: Leitura, 1944. (Coleção Contos do mundo).
Dedicamos um ensaio a esse conto no capítulo “Planejamento: o encontro com o futuro e o nós”.
IA
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Trad. Marcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2006.
Nessa obra, encontramos a alegoria do cuidado, utilizada no ensaio sobre o conto “O espelho”,
de Machado de Assis.
HUME, David. Investigação acerca do entendimento humano. Trad. Anoar Aiex. São Paulo: Edusp, 1972.
_______________ Tratado sobre a natureza humana. São Paulo: Unesp, 2009.
U
Essa obra e a anteriormente citada são muito importantes para a abordagem do indutivismo,
conforme vimos na introdução.
KANT, Immanuel. Resposta à questão: O que é esclarecimento? Trad. Marcio Pugliesi. Cognitio: Revista
G
HUXLEY, Aldous. Admirável mundo novo. Trad. Lino Vallandro e Vidal Serrano. São Paulo: Globo, 2001.
Essa obra foi citada para refletirmos sobre utopias e distopias. Essa distopia, em especial, reproduz
uma característica do mundo contemporâneo, inclusive nas relações de trabalho, que é o automatismo.
MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. O alienista. In: MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. O alienista
e outras histórias. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996.
Dedicamos um ensaio a essa obra no capítulo “Expansão e exploração: o encontro com o outro e o mundo”.
| 173
_______________ O espelho. In: MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Obra completa. Rio de Janeiro:
D
Nova Aguilar, 1994. v. II. Disponível em: www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000240.pdf. Acesso
em: 10 jan. 2020.
_______________ Um homem célebre. In: MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Obra completa. Rio de
Janeiro: Nova Aguilar, 1994. v. II. Disponível em: www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000260.pdf.
L
Acesso em: 10 jan. 2020.
Dedicamos um ensaio a essa obra no capítulo “Planejamento: o encontro com o futuro e o nós”.
MAUROIS, André. Voltaire. In: MAUROIS, André. O pensamento vivo de Voltaire. Trad. Lívio Teixeira. São
N
Paulo: Martins Editora, 1967.
Trata-se de uma biografia de Voltaire que contribuiu para a criação do ensaio sobre o romance
Cândido ou o otimismo.
P
MORE, Thomas. A utopia. Trad. Pietro Nasseti. São Paulo: Martin Claret, 2005.
Essa obra foi indicada porque é nela que a noção de “utopia” nasce, conceito importante nesse livro para
tratarmos de sociedades e cidades ideais.
RILKE, Rainer Maria. Cartas a um jovem poeta. Trad. Paulo Ronai. Porto Alegre: Globo, 1975.
G
Uma passagem dessa obra foi selecionada em razão de sua pertinência tanto formal quanto te-
mática. A obra é composta por um conjunto de cartas que oferecem conselhos a um jovem que quer se
tornar poeta. Esse tipo de discurso direto, além de ampliar os formatos do nosso livro didático, é capaz
de tocar e envolver o leitor. Além disso, o conteúdo da fala de Rilke se aproxima da proposta trabalhada
na dimensão do Projeto de Vida: “Autoconhecimento: o encontro consigo”.
ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
Uma passagem dessa obra foi relacionada a um texto de Kant que fala da coragem, uma virtude
fundamental no Projeto de Vida.
D
Essa obra foi citada como um exemplo de teoria da alma que vai na contramão de Platão. Erasmo
de Rotterdam afirma que as paixões e emoções são parte básica da alma humana e assim faz um
elogio àquilo que não é totalmente racional no ser humano.
L
SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. In: SARTRE, Jean-Paul. Sartre. Trad. Rita
Correia Guedes. São Paulo: Nova Cultural, 1987. (Coleção Os pensadores).
Esse texto foi abordado como forma de tratamento da liberdade como protagonismo ou auten-
ticidade. O argumento central é que, não importa quão fortes sejam as influências que sofremos do
N
contexto histórico e social, há sempre uma liberdade a ser assumida com relação ao que podemos
fazer dentro desse contexto.
SCHMITT, Carl. O conceito do político: teoria do partisan. Trad. Geraldo de Carvalho. Belo Horizonte:
P
Del Rey, 2008.
Essa obra foi referenciada para contextualizar o uso de “amigo” e “inimigo” na esfera política. Para
o autor, as relações políticas se desenvolvem nesses termos. É com base nessa lente que analisamos
criticamente as relações na obra O mercador de Veneza.
IA
SHAKESPEARE, William. O mercador de Veneza. Trad. Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005.
Dedicamos um ensaio a essa peça no capítulo “Planejamento: o encontro com o futuro e o nós”.
VOLTAIRE. Cândido ou o otimismo. Trad. Samuel Titan Jr. São Paulo: Editora 34, 2013.
Dedicamos um ensaio a essa obra no capítulo “Expansão e exploração: o encontro com o
outro e o mundo”.
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SUMÁRIO
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Apresentação ..................................................................................................................................... 181
L
1.1 O papel do professor............................................................................................................ 182
1.2 O protagonismo do estudante............................................................................................. 184
1.3 As competências gerais da BNCC..................................................................................... 186
1.4 Os temas contemporâneos transversais........................................................................... 188
N
2. ORIENTAÇÕES ESPECÍFICAS..................................................................................................... 191
Cronograma e parâmetros práticos............................................................................................... 191
P
3. PLANEJAMENTO E APOIO AO LIVRO DO ESTUDANTE.......................................................... 195
1 Introdução à sabedoria prática e teórica............................................................................ 195
2 Autoconhecimento: o encontro consigo................................................................................ 200
3E
xpansão e exploração: o encontro com o outro e o mundo, com ênfase na
dimensão cidadã..................................................................................................................... 208
IA
4 Planejamento: o encontro com o futuro e o nós,
com ênfase na dimensão profissional.................................................................................. 214
D
Este livro foi estruturado pensando na re- com o meio ambiente, com o mundo e nos
lação entre filosofia e literatura. No entanto, seus projetos de futuro. É importante que ele
L
não é um livro de ensino de filosofia nem de seja apropriado também para os professores,
literatura, podendo ser trabalhado por todos não somente na forma de ferramenta de tra-
os professores. O que foi selecionado no am- balho, mas como algo que interessa a todos
plo leque de possibilidades é o que interessa nós, jovens e adultos, pois se trata do constante
N
ao Projeto de Vida, e, a partir desse núcleo, aprendizado da vida. As imagens são bastante
outros componentes como história, geografia, concretas para incentivar o leitor a praticar um
matemática e a área de ciências naturais são cuidado consigo e, então, ampliar esse exer-
solicitados a dialogar. O foco é a existência cício na direção de um cuidado com o outro e
humana, em especial as experiências que com o mundo.
P
manifestam a liberdade como protagonismo. O que os textos literários têm a oferecer
Protagonismo, aliás, é o conceito funda- é um conjunto de narrativas que apresentam
mental do Projeto de Vida, embora não seja dilemas existenciais de seus personagens, pro-
fácil defini-lo. Diz-se que protagonistas de uma vocando reflexões sobre a complexidade da
história são os atores principais, aqueles em vida. Estas, por sua vez, não devem nos deixar
torno dos quais se constrói uma trama, e é exa- atônitos, mas amadurecer nossas posições. O
IA
tamente isso que há em comum entre o que método que propomos pode ser visualizado
esperamos dos estudantes e os personagens como circular e em uma espiral crescente, em
dos textos literários selecionados. Esperamos que imagens e ideias se nutrem mutuamente na
que, assim como esses personagens, os estu- direção da ampliação e do aprofundamento.
dantes se tornem protagonistas das suas vidas O Livro do Estudante está organizado em
e dos processos de transformação do mundo diferentes partes. Há uma apresentação que
com os quais estarão envolvidos. mostra a perspectiva adotada. A introdução
Se buscamos mais do que semelhanças, explica os conceitos de sabedoria prática e teó-
U
ou seja, se queremos compreender o que cons- rica e os apresenta, inserindo tal perspectiva
titui em geral o protagonismo na vida de uma na vida escolar. Em seguida, encontram-se as
pessoa, então a filosofia pode ter muito a con- primeiras propostas de vivências a partir dos
tribuir. Acima, nos referimos à liberdade, mas textos lidos. É de se esperar que as atividades e
este é também de um termo bastante amplo. os textos enriqueçam uns aos outros, mediados
G
Por isso, tomamos emprestados da filosofia ou- pela condução do professor. Em seguida, en-
tros termos e expressões que devem, ao longo contraremos a primeira atividade de transição,
do livro, formar articulações com esse conceito. inserida em um grande projeto que engloba
Para usarmos alguns exemplos, tratamos de os três anos. Esse projeto tem como objetivo
sabedoria prática e teórica, de autocuidado, a formação da mostra expositiva anual, com
dos interesses profundos de cada um e da au- produções coletivas e individuais, voltadas para
tonomia e autenticidade, que podem ser contra- toda a comunidade escolar. Cada ano, turma
postas às noções de alienação e senso comum. e aluno encontrarão orientações ao longo das
A reflexão proposta no livro se volta ao atividades de transição e desfecho, bem como
Projeto de Vida dos estudantes para apoiá- das propostas de vivências, para formar um
-los em suas jornadas de autoconhecimento portfólio cumulativo de produtos do seu pro-
e na construção da relação com os outros, cesso de elaboração do Projeto de Vida.
| 181
A lém das três partes mencionadas com seus alunos; uma referência e um ponto de
D
(Apresentação, Introdução e Atividades de tran- partida, devendo ser apropriado por ele. Uma
sição e desfecho), há o conteúdo central do Livro identidade pessoal deve ser dada por cada
do Estudante, dividido em três capítulos, que professor a esse material, na medida em que
correspondem às três dimensões do Projeto de este dialogue com a sua experiência e com
Vida – Autoconhecimento: o encontro consigo; suas condições de trabalho porque, como sa-
L
Expansão e exploração: o encontro com o outro bemos, a realidade das escolas pode variar
e o mundo; e Planejamento: o encontro com o fu- bastante. Os professores sempre lidarão com
turo e o nós. Cada um desses três capítulos, por situações imprevisíveis, às quais responderão
sua vez, tem uma introdução, três seções sobre com suas próprias experiências, pois trata-se
N
textos literários e uma conclusão. Cada seção da liberdade do professor de criar e encontrar
é acompanhado por propostas de vivências,
soluções para os desafios em sala de aula.
atendendo à relação entre prática e reflexão
Nesse sentido, espera-se que todo o material,
já mencionada. Esperamos, assim, oferecer ao
em especial o Manual do Professor seja insti-
professor formatos diferentes e complementares
gante o bastante para estimular o autocuidado
P
para que ele possa abordar de maneira diversa,
do próprio professor e, assim, criar uma expe-
mas coerente, o Projeto de Vida.
riência genuína para todos.
Este Manual do Professor, por sua vez, es-
De forma complementar ao que foi dito, é
tá dividido em três partes. Em seguida a esta
importante também que isso não se torne uma
apresentação, procuraremos fundamentar al-
guns conceitos do Projeto: o papel do professor; relação de autoridade sobre um tema que diz
IA
o protagonismo do estudante; competências e respeito à vida de cada um. O professor deve,
habilidades; e os temas contemporâneos trans- então, ser um mediador. Ele conduz as ativi-
versais. Na segunda parte, apresentaremos, na dades, organiza o tempo disponível, coloca-se
forma de planejamento, um conjunto de refle- como interlocutor do processo e certifica-se de
xões e sugestões que servirão de apoio ao tra- que os alunos acompanhem e estejam enga-
balho do professor sobre o Livro do Estudante. jados no mesmo para, enfim, agregar e não
Vale destacar que apresentaremos uma pro- eleger perspectivas. Cabe ao professor auxiliar
posta de cronograma, mas é fundamental sa- o aluno a buscar suas próprias respostas.
U
ber que se trata apenas de uma sugestão para Além de mediadores, os professores po-
que o professor recrie o cronograma de acordo dem dar o exemplo pelo interesse na proposta
com as condições presentes na sua escola e e por suas experiências, tão válidas quanto as
com os seus alunos. Finalmente, apresentare- dos personagens apresentados, dos alunos e
mos comentários sobre a bibliografia utilizada
G
D
fessores estabeleçam também uma boa rela- ção de muitas maneiras. Por exemplo, caso
ção com as famílias, fazendo o possível para o professor de Língua Portuguesa se engaje
incorporá-las às propostas presentes neste ma- no trabalho sobre Projeto de Vida, ele pode
terial. Os familiares dos alunos poderão par- associar os romances, os contos e a peça a
ticipar de clubes de leitura, debates de filmes, movimentos literários. Professores de História
L
propostas de vivências, atividades de transição podem contextualizar as obras nas épocas
e das exposições anuais. Esperamos que o cui- em que foram produzidas ou associá-las a
dado de si e o protagonismo que incentivamos acontecimentos significativos. Professores
no Projeto de Vida dos alunos, e que implicam de Geografia podem contextualizar as obras
N
toda a comunidade escolar, sirvam também em lugares e culturas. Ambos podem discutir
de exemplo na vida dos familiares. O desafio a situação política e econômica apresen-
deste material, de articular o cuidado de si ao tada nas obras. Professores de Filosofia e
cuidado com o outro, com o mundo e com o de Sociologia podem trabalhar conceitos,
futuro, não pode se restringir a um espaço de- ideias e contextos sociais abordados pela
P
limitado: ele só será eficaz se for efetivamente obra. A escola como um todo pode organizar
aberto e se dirigir a todos. clubes de leitura e momentos para assistir
Os contos e os romances foram seleciona- aos filmes indicados como forma de garan-
dos para relacionar imagens a ideias instigan- tir acesso às obras originais. Esses eventos
tes. Os professores poderão expandir esse ma- podem reunir diferentes turmas, fortalecen-
IA
terial nas duas direções, tanto propondo que do a unidade da comunidade escolar. Será
os textos, filmes e músicas sejam trabalhados bastante proveitoso que esses momentos de
integralmente, quanto propondo pesquisas e encontro contem com debates, fazendo com
discussões que aprofundem cada ideia apre- que estes não sejam restritos a estudantes
sentada. O Livro do Estudante e o Manual do da mesma turma, exercitando diálogos mais
Professor apontam momentos oportunos para próximos de um debate público, que favore-
ampliações, mas os alunos e os professores ce o crescimento de todos os participantes.
poderão encontrar muitos outros. Quanto mais Talvez os pais e os funcionários da escola
U
espaço abrirem para o debate, mais ideias no- também possam ser convidados para par-
vas deverão surgir, bem como mais exemplos ticipar desses eventos, fortalecendo a inte-
capazes de estimulá-las ou ilustrá-las. gração da comunidade escolar.
Caso julgue adequado ao seu planeja- O professor que for responsável pelo tra-
mento, o professor pode incentivar os alunos a balho com uma turma pode engajar outros pro-
G
procurar os livros e contos em versão integral fessores nos diferentes processos, conforme
no acervo da escola, na biblioteca do bairro, a temática presente ou até mesmo aleatoria-
em livrarias ou em outros lugares. Ele pode mente para que estes tragam a contribuição
estabelecer grupos de leitura, gerando algum dos seus saberes de formação ou das suas
tipo de rodízio dos materiais. Ele pode con- experiências de vida. Afinal, a ampliação de
duzir leituras coletivas das obras e organizar perspectivas sobre os temas propostos é sem-
clubes de leitura em que haja encontros com pre positiva, e essa ampliação pode se dar com
participantes diferentes daqueles que inte- relação aos saberes de que mais se ocupam
gram sua turma escolar, se possível, gerando em seus trabalhos ou de suas experiências
um público mais amplo. pessoais. Esperamos que o Projeto de Vida se-
Embora o Projeto de Vida não esteja ja, também para o professor, uma oportunidade
circunscrito a nenhum componente ou área de estreitar a relação entre o conhecimento e
de conhecimento específicos, cada professor sua significação na vida e no mundo.
| 183
que procuram, nas caixas históricas, confron-
1.2 O protagonismo do estudante
D
tar as hipóteses dos alunos sobre os autores
e depois incentivam-nos a reformulá-las; as
Antigamente, o modelo de ensino e apren- atividades que usam como material as me-
dizagem estava baseado estritamente em aulas mórias dos alunos, incentivando-os a contar
expositivas, em que o professor apresentava suas experiências; e, sobretudo, os ensaios,
L
determinado saber e o aluno deveria aprendê- que usam de exemplos e temas comuns que
-lo sem levantar questões sobre determinado vão sendo paulatinamente aprofundados.
conhecimento ou o sentido que ele poderia ter Indicamos que, ao começar uma discussão
em sua vida. O que esperávamos dele é que sobre um ensaio, o professor faça algumas per-
fosse capaz de reproduzir o conhecimento tal
N
guntas disparadoras para recolher as opiniões
como o recebeu. Hoje em dia, a relação entre espontâneas, e depois retome essas perguntas
ensino e aprendizado considera que o estudan- para que o caminho que eles protagonizaram
te deve ter mais protagonismo na construção seja exposto. Assim, o professor desempenha
do conhecimento, pois este não pode ser enten- o seu papel mediador, acolhendo os conheci-
P
dido como mera reprodução de um discurso. mentos prévios.
O conhecimento supõe a articulação de infor- Uma atitude acolhedora da parte do pro-
mações e ideias, bem como a capacidade de fessor é fundamental para estimular o envol-
aplicá-la no mundo de forma significativa nas vimento dos jovens. Para tanto, é preciso re-
diferentes dimensões da vida, o que implica conhecer que eles podem assumir diferentes
maior responsabilidade tanto para o professor identidades sociais, inclusive assumir persona-
IA
quanto para o próprio aluno. lidades e fazer escolhas em ritmos diferentes.
Um professor assume mais a sua respon- Cabe ao professor e à escola acolher essa plu-
sabilidade na medida em que respeita a plu- ralidade, que é uma característica humana,
ralidade da juventude. De fato, ela não é com- mas que se torna particularmente notável na
posta de pessoas iguais, reduzidas a um objeto juventude. Dessa forma, os educadores favo-
ou um ser passivo, sobre o qual se deposita recem uma formação integral.
um conteúdo fechado. Se a própria concepção Portanto, há variáveis internas e externas
de conhecimento agora implica aspectos de que tornam o encontro na sala de aula bas-
U
D
riamente ligada à quebra do automatismo e lando que a separação entre o interno e o
ao conflito com o senso comum. Isso é posto externo também é problemática. Nossos sen-
à prova tanto no engajamento dos alunos no timentos refletem a maneira como nos rela-
trabalho sobre o Projeto de Vida quanto nas cionamos com o mundo e essa relação, por
ações da vida cotidiana. Sem um trabalho in- sua vez, também reflete como e se estamos
L
terno, não pode haver uma ação transformado- confortáveis com nós mesmos. Somos indiví-
ra no mundo; e não há ação transformadora no duos capazes de desenvolver novos proces-
mundo que não passe por um trabalho interno, sos – processos livres, imprevisíveis –, mas
ou seja, a autonomia não é só um conteúdo vivemos todos de forma integrada no mun-
N
central e recorrente do Projeto, mas também do, o que faz com que a saúde psíquica de
a forma de execução do mesmo – uma autono- um indivíduo esteja implicada à vida social,
mia praticada sobre si mesmo e exercida na cujas relações podem ser ou não saudáveis.
coletividade e no respeito ao outro. Quando se trata de jovens, essa sabedoria
Sendo assim, o Projeto exerce um papel prática ainda está em desenvolvimento. É
P
ligado à cidadania, direcionando o aluno pa- dever dos adultos ajudá-los a conquistá-la
ra uma responsabilidade social, com o outro para que sejam mais felizes e para que to-
e com toda a coletividade. Como o Livro do dos possamos viver em uma sociedade mais
Estudante revela, sofremos sempre influência harmônica.
das nossas redes de relação e, de manei- Nesse sentido, é fundamental que todo o
ra geral, da época em que vivemos, mas os trabalho do Projeto de Vida seja desenvolvido
IA
jovens deverão ver que tais influências não em um ambiente respeitoso e harmonioso, ou
são determinantes e que a capacidade de seja, propício a esses exercícios. Nele, deve
criticá-las e enfrentá-las supõe uma prática haver a valorização tanto das individualidades
de si. Da mesma forma, o engajamento no quanto da coletividade. Cabe não apenas aos
futuro não é algo automático, que se dá sim- professores, mas à coordenação, à direção da
plesmente pela natureza do tempo. Esse en- escola e à toda a comunidade escolar – inclu-
gajamento supõe a reunião de informações, sive aos familiares dos alunos – garantir que
uma reflexão concreta sobre as realidades o Projeto de Vida não seja um pretexto para
U
pessoais atentos a essa condição. Ao mes- da autoimagem e a preocupação que têm com
mo tempo, esse planejamento deve conter a o futuro, deve haver a maior seriedade. Nada
preparação para o inesperado, ser capaz deve ser menosprezado. Um dos propósitos
de lidar com os próprios sentimentos e ter mais importantes desse trabalho é combater
capacidade de perseverar na busca pelos formas de violência dirigidas a si mesmo e aos
interesses profundos. outros, especialmente o bullying e imagens
Outro ponto é que o autoconhecimento depreciativas.
e o engajamento, conteúdos e instrumentos Uma forma muito importante de favorecer
que permeiam o Projeto, também implicam o trabalho virtuoso é mostrar que, a despeito
um cuidado com o corpo e são atos de saúde das nossas diferenças, como seres humanos
mental. A relação consigo mesmo e com os todos nós compartilhamos algumas ques-
outros envolve a aceitação de si mesmo e tões fundamentais. Todos são favorecidos
o respeito às diferenças. Essas conquistas pelo debate franco, honesto e respeitoso de
| 185
questões como “Quem sou eu? Quais são
1.3 As competências GERAIS DA BNCC
D
meus interesses? Como me relaciono comigo
mesmo e com os outros? O que quero para
minha vida? O que faço ou posso fazer para A Base Nacional Comum Curricular des-
atingir meus objetivos?”. Se houvesse mais creve as competências gerais que podem ga-
espaço em nossa sociedade para compar- rantir as aprendizagens essenciais. Elas não
L
tilhar questões dessa natureza, certamente são disciplinares nem curriculares, estando
as pessoas seriam mais felizes e as tensões presentes ao longo dos dez anos de Educação
sociais, atenuadas. Estes são dois objetivos Básica de maneira transdisciplinar. Tê-las co-
centrais do Projeto de Vida. mo diretriz é uma maneira concreta de oferecer
ao aluno uma educação integral, que dialogue
N
As questões de caráter existencial são
favorecidas pelo desenvolvimento da capa- com as necessidades gerais da vida humana.
cidade do aluno de pensar de forma lógica, Por isso, elas são facilmente encontradas no
crítica, criativa e propositiva. Uma pessoa Projeto de Vida, que tem como um de seus
que não desenvolve essas qualidades terá grandes objetivos a implicação desses proces-
P
mais dificuldade em compreender a si mes- sos integrados de ensino, desenvolvimento e
ma e o seu lugar no mundo. Por isso, o Livro aprendizagem na vida de cada um.
do Estudante propõe uma série de recursos, Os componentes têm suas competências
entre reflexões, debates, indicações de mate- específicas e habilidades, mas apenas na me-
riais complementares e atividades, que não dida em que eles podem dialogar com os ob-
apenas amplia o repertório temático dos jetivos do Projeto é que elas são abordadas. A
IA
alunos, como também favorece o desenvol- relação direta do Projeto de Vida deve se dar
vimento do seu pensamento lógico e formal. com as competências gerais. Podemos dizer
É importante dizer que a expressão oral e que sobre essa relação se estruturam todos os
escrita dos alunos exercita sua capacidade conhecimentos, habilidades, atitudes e valores
argumentativa. As referências literárias e em suas especificidades.
filosóficas provocam esse exercício e, indi- Antes de apresentarmos como todas as
retamente, também contribuem para buscar competências se relacionam ao Projeto de
as respostas às questões existenciais que Vida, é preciso destacar as competências 6 e
U
D
si mesmo, dos outros e do planeta. da ciência. Porém, ele não apresenta essas
(BNCC, 2017, p. 9) discussões somente de forma teórica para
os alunos, mas traz instrumentos para com-
A especial afinidade que essas duas com- preender a realidade – a sua, a do outro, a da
petências têm com o Projeto de Vida pode ser natureza e a social. Assim, ele se sente capaz
L
observada claramente nas expressões “fazer de assumir uma posição produtora, crítica e
escolhas alinhadas ao exercício da cidadania transformadora a partir desses conhecimentos.
e do seu projeto de vida”, da competência As competências 3, 4 e 5 versam, respec-
6; e “argumentar […] com posicionamento tivamente, sobre repertório cultural, comuni-
ético em relação ao cuidado de si mesmo,
N
cação e cultura digital. Elas estão presentes
dos outros e do planeta”, da competência 7. tanto nos ensaios quanto nas atividades pro-
Em suma, trata-se de saber escolher e saber postas. Os ensaios concentram uma variedade
argumentar levando em consideração todas de textos literários, com características cultu-
essas formas de cuidado. rais, formatos textuais que discutem a vida
A primeira competência trata da valori-
P
concreta e virtual, não só nos textos como nas
zação e utilização dos conhecimentos para indicações. As atividades estimulam também
a construção de uma sociedade justa, demo- essas competências ao propor a expressão do
crática e inclusiva. Essa competência está aluno em diversas frentes (de vários formatos,
presente de forma abrangente e específica inclusive digital), levando à reflexão sobre di-
no Livro do Estudante. De forma geral, fa- versas formas de expressão. É importante en-
IA
z-se presente em cada atividade de leitura, fatizar que o livro agrega referências culturais
pesquisa e discussão propostas. De forma locais e mundiais.
específica, ela aparece na discussão intro- As competências 6 a 10 estão presentes
dutória sobre sabedoria prática e teórica, so- de modo muito especial no Projeto, pois são a
bretudo quando incentivamos a importância base ética da existência do Livro. Retomando
da aprendizagem contínua, bem como nas a análise da competência 6, todos os conhe-
análises da segunda e da terceira dimensões cimentos aqui fomentados são movimentados
do Projeto de Vida, que são voltadas para o em direção à construção de um Projeto de
U
outro e para o coletivo. O aluno é levado a Vida. Não um projeto único, inflexível, um “tu-
concluir que cada um desses conhecimentos torial de vida”, mas um projeto no sentido mais
tem sua importância na vida social e, juntos, amplo, uma projeção de si, um autoengaja-
são instrumentos que constroem a respon- mento no seu passado, presente e futuro, que
sabilidade coletiva e individual sobre nossos produza estratégias reais de planejamento
G
| 187
termos de desejo, empatias, em termos de como horizonte a mesma preocupação central
D
vida em sociedade, e sociais, em termos de dos temas contemporâneos transversais, que
necessidades humanas, articulando todas as é a vida social. Estudam-se esses temas para
competências e trabalhando especialmente a aproximar a experiência escolar da vida so-
décima, sobre cidadania). cial, para preparar a participação social em
Essas discussões são desenvolvidas, res- escalas local, nacional e global. Podemos dizer
L
pectivamente, nos capítulos 2, 3 e 4, tendo como que os TCTs apresentados na BNCC – Meio
pano de fundo uma discussão sobre a produ- ambiente; Economia; Saúde; Cidadania e
ção de conhecimentos teóricos e práticos sobre civismo; Multiculturalismo; e Ciência e tec-
a vida (o capítulo 1). Ou seja, são desenvolvidas nologia – estão reunidos dentro de um sentido
N
na direção da prática e do cuidado de si. No ético, ou seja, de uma orientação da educação
Projeto de Vida, o aluno tem sua existência para a ação. Desse modo, assim como eles são
e seus desejos individuais e coletivos como a uma referência fundamental para enriquecer
principal matéria deste estudo e deste exercício o trabalho com Projeto de Vida, eles podem
de três anos. também ser favorecidos pelo desenvolvimento
P
desse trabalho, em uma relação de enrique-
cimento mútuo.
1.4 O s temas contemporâneos Todo trabalho com Projeto de Vida, em razão
do seu sentido prático e do seu uso na realidade
transversais escolar, necessariamente apresentará um recorte
dos TCTs. Se esses temas devem estar no horizon-
IA
Os Temas Contemporâneos Transversais te do Projeto de Vida, este, por sua vez, favorece a
têm uma relação especial com o Projeto de aproximação ou a tangibilidade desses temas na
Vida. Em primeiro lugar, porque ele deve ser vida do estudante. Portanto, o Projeto de Vida tor-
pensado na relação entre as características na a urgência dos temas contemporâneos trans-
gerais da vida humana (como nascer, crescer, versais algo vigente na vida escolar. Ele permite
conquistar um sentido e um lugar responsável que, mais do que um tratamento epistemológico
no mundo antes de morrer) e as características interdisciplinar, esses temas sejam didaticamente
específicas do mundo contemporâneo, aborda- abordados de forma transversal.
U
das nos TCTs. O seu planejamento deve partir A seguir, veremos como nosso Livro do
de uma compreensão da condição humana e Estudante, por meio dos ensaios, das ativida-
ir ao encontro dos temas contemporâneos. Em des de transição e das vivências, abordam os
segundo lugar, porque o Projeto de Vida tam- temas contemporâneos transversais.
bém é um trabalho organizado didaticamente
G
D
verso-máquina, nem que suporte as investidas ciso discernir entre a profissão e o modo como
da ambição humana. À medida que admitimos cada personagem significa sua existência.
a integração da realidade sem uma garantia Também há a reflexão sobre a economia
absoluta de ordem, descobrimos a importân- quando, no último capítulo, os alunos são le-
cia de preservar e proteger essa ordem tanto vados a refletir sobre o caráter integrado das
L
quanto é importante criar coisas novas. ocupações com as necessidades humanas.
No terceiro capítulo, a ideia central sobre Entendendo que se trabalha “para a cidade”
o meio ambiente, e que resgata a primeira re- e “para além da cidade”, eles mapearão as
ferência, é a de que “é preciso cultivar nosso relações entre as ocupações e as relações hu-
N
jardim”. Nesse caso, não se trata apenas de manas que compõem as ocupações, inclusive
um compromisso com os outros, com o futuro e relações trabalhistas, de remuneração, de con-
com o meio ambiente (o que inclui outras espé- dição socioeconômica e de logística.
cies vivas na fauna e na flora), mas que a vida Há diversas atividades que poderão colo-
humana é melhor cuidando do lugar em que car os alunos em interlocução com profissionais
P
se habita. Há um sentido e uma recompensa e que poderão ajudá-los a reunir e organizar
nesse cuidado, e eles podem ser tão evidentes suas informações.
que nem sequer exijam outras referências teóri-
cas. Uma vida dedicada à prática de cuidar do Saúde
lugar em que vivemos e desse planeta de uma A saúde foi tematizada no capítulo de
forma geral é uma vida que percebe e usufrui “Introdução à sabedoria prática e teórica”
IA
das suas recompensas de um modo mais feliz. na relação entre a saúde psíquica e a saúde
do corpo. Vimos a importância de aprender
Economia a escutar o próprio corpo, de como ele pode,
Os momentos em que mais tematizamos a por exemplo, revelar que não aceitamos um
economia são os capítulos 1 e 4 (Planejamento: o interesse profundo em nós mesmos, gerando
encontro com o futuro e o nós). Neles, a principal conflito interno e sofrimento.
referência à economia se dá pela preocupação Podemos dizer que o tema da saúde psí-
com o trabalho e com a profissão. No entanto, quica é um dos mais constantes nos ensaios
U
há outras referências. Já no primeiro capítulo, presentes em nossas análises das três dimen-
desenvolvemos a ideia de que a sabedoria prá- sões do Projeto de Vida. Procuramos abordá-
tica discerne interesses por coisas que valem -lo não em suas bases biológicas, mas confor-
em si mesmas de interesses por coisas que são me tensões existenciais. Ela aparece quando
modos de conquistar aquelas que valem em Alexandre se machuca, quando Jacobina sen-
G
si mesmas. Saúde e felicidade, por exemplo, te-se sozinho a ponto de não se reconhecer no
valem em si mesmas, mas o dinheiro ajuda a espelho e nos devaneios de Dom Quixote. Ela
usufruir aquilo que nos faz felizes ou nos ajuda aparece nas patologias analisadas pelo alienis-
a ter boa saúde. ta e de muitas outras maneiras nos textos literá-
Na introdução, algumas reflexões sobre a rios. É importante observar que, muitas vezes,
escolha profissional são discutidas, principal- os personagens, em suas condições de saúde,
mente formas de planejar caminhos possíveis. Ao não são exemplos para seguirmos, mas exem-
longo dos ensaios, elencamos diferentes profis- plos que revelam algo a que devemos prestar
sões, como advocacia, medicina, comércio, vida atenção para termos uma atitude saudável.
de artista, distinguindo-as de modos de ocupa-
ção que implicam uma maneira de encará-las. Cidadania e Civismo
Naturalmente, não sugerimos que uma escolha Cada tema contemporâneo oferece uma
profissional determina uma vida semelhante à perspectiva importante sobre o material que
| 189
apresentamos de Projeto de Vida, mas espe- outros textos e filmes que surgem nas indica-
D
cialmente a cidadania e o civismo, pela sua ções de reflexão e debate, foi feita levando em
afinidade com o caráter ético, formam um eixo consideração o multiculturalismo. Pretendemos
que atravessa progressivamente todo o livro. abordar diferentes aspectos da cultura bra-
Vida familiar e social; educação em direi- sileira, como o folclore que serviu de fonte a
tos humanos; direitos da criança e do adoles- Graciliano Ramos, o Auto da Compadecida,
L
cente; processo de envelhecimento; e respeito que apresenta a inteligência e a sabedoria po-
e valorização do idoso são temas constantes pular, até nossas raízes reveladas de maneira
ao longo do livro. Como exemplo, começamos crítica por Machado de Assis. Essas referên-
o capítulo 1 com uma valorização da experiên- cias, a exemplo do que fez o próprio Suassuna
N
cia do idoso. Tratamos do direito da criança com O mercador de Veneza, são aproximadas
e do adolescente a uma educação integral, e tramadas em nosso Projeto de Vida com a
que respeite todas as suas dimensões e de literatura e a arte universal de outros autores
como a escola deve proporcionar a integra- canônicos. Portanto, poderíamos dizer que
ção e a significação dos saberes que ofere- o multiculturalismo é mais do que um tema
P
ce. Também reforçamos a importância dos abordado em nosso livro. Ele é uma das mais
direitos humanos, sobretudo na construção importantes bases sobre as quais o livro foi
de suas próprias identidades como modo de concebido e sobre a qual desenvolvemos uma
ser feliz, sendo respeitado pelos outros. A vida metodologia de trabalho.
familiar e social é especialmente desenvolvida Assim, tanto o conteúdo quanto a forma
a partir do capítulo “Expansão e exploração: do livro contêm elementos que incentivam o
IA
o encontro com o outro e com o mundo”. Está multiculturalismo levando os alunos a refletir
presente na relação entre Alexandre e seu pai, sobre preconceitos e estereótipos nas caixas
entre Jacobina e tia Marcolina e entre Dom de texto. As atividades buscam sensibilizar a
Quixote e sua sobrinha. Elas vão ganhando percepção das semelhanças e diferenças da
escala, tensão e complexidade até o conto de comunidade escolar e a sociedade, sempre
Gogol e a peça de Shakespeare, conforme em direção à valorização do que é singular.
a maturidade crescente dos alunos ao longo
dos três anos do Ensino Médio. Ciência e tecnologia
U
Nas atividades, esse tema também toma Ciência e tecnologia, embora não sejam
grande importância, já que são valorizadas o núcleo da nossa investigação, certamente
as vivências coletivas tanto na produção de não foram esquecidas. Nosso esforço inicial,
textos e outros materiais quanto nas discus- na “Introdução à sabedoria prática e teórica”,
sões propostas, incentivando a percepção foi dar um lugar ao Projeto de Vida na vida
G
das diferenças e a negociação dos interes- escolar frente a ciência e a tecnologia. Tudo
ses. Especialmente o civismo é valorizado ao parte da ideia de que a ciência não corres-
incentivar a comunidade escolar que pense, ponde a uma teoria de que vivemos em um
coletivamente, sobre uma sociedade ideal e universo-máquina. A ciência não depende
sobre gestões democráticas. Essas atividades e não espera encontrar esse determinismo.
concretizam o exercício do conflito, da discus- Vimos, nesse sentido, a problematização que
são e do acordo, mostrando que é possível, no David Hume faz do indutivismo, chegando à
macro e no micro, trabalhar para um governo conclusão, como é aceito hoje nas ciências, de
democrático e plural. que nosso conhecimento nos revela um certo
recorte da realidade, nos dá um horizonte de
Multiculturalismo expectativas e probabilidades.
A escolha dos nove textos de literatura É da lida com o caráter probabilístico do
que estão na base dos ensaios, bem como de conhecimento científico, ou seja, do fato de que
D
eventos inesperados, que precisamos desen- oportunidades de analisar suas informações
volver uma sabedoria prática e uma dedicação e veracidade. Além disso, ao trabalhar com
ao cuidado de si. a expressão pessoal através das tecnologias
Por fim, é importante dizer que as ativi- (pelo vídeo e rede social), o Projeto entende
dades também exercem um papel impor- que as competências de letramento também
L
tante ao valorizar as pesquisas nos meios devem ser digitais e contemporâneas.
2. ORIENTAÇÕES ESPECÍFICAS
N
2.1 Cronograma de interesses dos estudantes, estimulando o exercí-
e parâmetros práticos cio do protagonismo juvenil e fortalecendo o desen-
volvimento de seus projetos de vida.
Apresentamos um cronograma como uma (BNCC, 2017, P. 224)
P
proposta de organização do tempo, visando ao Os projetos de vida concretizam o prota-
bom entendimento das partes que compõem gonismo da juventude, levando em conta suas
o Projeto de Vida. A organização do tempo singularidades e diferenças. Por isso, este cro-
subentende uma proposta pedagógica. Porém, nograma não deve ser inflexível – caso o fosse,
ele não pode ser confundido com um currículo ele anularia a autonomia da unidade escolar,
IA
definitivo de Projeto de Vida. a especificidade da comunidade escolar e a
A realização de um currículo depende do diversidade da juventude.
contexto da unidade escolar, como propõe a Essa proposta de cronograma, além de or-
Base Nacional Comum Curricular, de tal modo ganizar temporalmente os momentos pedagó-
que a escola acolha da melhor maneira possível gicos do Livro do Estudante, apresentará suas
as juventudes, entendendo-as na suas singula- respectivas competências gerais, habilidades
ridades e especificidades de identidade e de e competências específicas.
território. É frente às suas condições específicas
O tempo dos capítulos
U
É assim que compreendemos as recentes seção, uma parte específica etc. Os estudantes
alterações da Lei de Diretrizes e Bases – Lei devem organizar as próprias ideias, dúvidas
nº 9394/96, consolidadas pela Base Nacional e questões que julguem interessantes para
Comum Curricular, que entendem que a estru- debater e até mesmo sugestões aos colegas
para ampliar a rede de relações presente no
tura que relaciona aprendizagens essenciais
material. O trabalho com os textos em sala de
da BNCC e itinerários formativos, como um
aula deverá ser mediado pelo professor, e aqui
“todo indissociável”, promove:
indicaremos docentes que podem se envolver
com cada parte do material e exemplos para
[...] a flexibilidade como princípio de organização
contextualizar as discussões.
curricular, o que permite a construção de currículos Em relação às vivências, elas exigem a
e propostas pedagógicas que atendam mais adequa- leitura compartilhada da proposta, traba-
damente às especificidades locais e à multiplicidade lho em grupo e, por fim, uma devolutiva do
| 191
docente, na qual ele poderá também pro- Outros parâmetros das vivências:
D
por formas de avaliação e de autoavaliação. espaço, material, agrupamentos e
Como as propostas são diversificadas, cada
objetivos gerais
uma tem um tempo diferente de execução.
As práticas pedagógicas envolvem
Algumas serão mais contínuas e transversais
muitas variáveis que, quando delimitadas,
(as que farão a transição entre os capítu-
L
também fazem parte da construção de um
los), outras mais pontuais. É importante que
currículo. Quando pensamos na organização
o docente atente à relação profunda entre as
do espaço, na utilização dos materiais e nos
vivências e o que é trabalhado nos ensaios,
critérios de agrupamento das propostas de
para que as duas partes possam aproveitar
atividade e vivência, olhamos os objetivos
N
o máximo possível.
que queremos alcançar.
O Projeto de Vida foi pensado para preen-
Os objetivos gerais das atividades são o
cher um espaço ideal de 2 horas/aula por se-
engajamento do corpo, da imaginação e dos
mana, totalizando 16 horas/aula por bimestre
conhecimentos prévios na realização de pes-
– tempo que seria dividido entre o trabalho com
quisas, seleção de informações, produções tex-
P
o texto, as propostas de vivências e atividades
tuais e artísticas, desenvolvimento de acordos,
de transição. Porém, pode ser facilmente adap-
negociações, hipóteses e testes práticos – indi-
tado a um cronograma de 1 hora/aula por se-
mana. Nesse caso, cabe ao docente selecionar viduais e coletivos – para estender as discus-
as atividades que considera mais significativas sões dos ensaios. As vivências permitem que
tendo em vista as singularidades daquele gru- as discussões dos ensaios sejam apropriadas
IA
po escolar e contexto de aula. pelos alunos, tornando-as mais significativas
Sugerimos que uma seção seja trabalhada para pensar o presente e o futuro.
em um bimestre. Há duas propostas de vivên- Temos como objetivo estimular a prática da
cias por capítulo, portanto, duas por bimestre. leitura, produção, interpretação e compreensão
Porém, o professor pode escolher trabalhar de textos (imagéticos, canções, vídeos, pes-
com apenas uma ou, em alguns casos, traba- quisas etc.), favorecendo o multiletramento
lhar apenas sobre as caixas de texto, que pro- dos alunos e incentivando a capacidade de
põem reflexões, pesquisas, debates e indicam expressão. Além disso, as práticas coletivas
U
materiais de diversas mídias (filmes, livros etc.) incentivam o grupo a compartilhar e transfor-
para ampliar as relações e os modos de ilustrar mar ideias, favorecendo não só habilidades
as ideias do texto. Para facilitar o critério de socioemocionais, como também a argumen-
escolha e ajuste, acompanham as atividades tação e a busca de acordos.
os seus respectivos objetivos, tendo como refe- Esses objetivos, tanto os gerais quanto
G
D
seja, os objetivos propostos estão de pleno Tão importante quanto a qualidade e o valor
acordo com o caráter integrador da BNCC, estético dos materiais, é a criatividade e o apro-
que é o objetivo mais geral das atividades veitamento sem desperdício, criando soluções
propostas. para o seu manejo e composição.
Portanto, a utilização do espaço e dos ma- Os agrupamentos incentivam a troca de
L
teriais, assim como as formas de agrupamen- informações. O conhecimento é um patrimônio
to, são meios e exemplos concretos para que social e interpessoal, e por isso o trabalho co-
as atividades possam se adequar ao contex- letivo é valorizado e incentivado nas atividades
to da unidade escolar e atender os objetivos (a não ser nos momentos de reflexão individual,
N
propostos. Isso faz com que eles possam ser que estão sinalizados nas orientações). Por es-
facilmente adaptados e revistos, segundo a se motivo, as interações entre os estudantes,
necessidade do docente e as características espontâneas ou direcionadas, devem ser sem-
da comunidade escolar. pre pensadas e usadas estrategicamente pelo
Tendo em vista que as unidades esco- professor, de modo que elas potencializem as
P
lares têm diferentes estruturas e materiais a experiências de troca.
sua disposição, fazemos uma indicação aber- Para as avaliações, selecionamos alguns
ta dos espaços e materiais necessários para critérios que não se limitem a um recorte da
que possam ser escolhidos de acordo com as atividade, podendo alcançar os alunos nos seus
condições disponíveis. O essencial é que se diferentes momentos e desempenhos, ou seja,
mantenha o propósito daquela prática. sendo processuais. Eles podem ser referentes
IA
Por exemplo, na proposta de vivência 3.3.1, aos fatos (saber informações concretas e seus
indicamos uma gincana de equilíbrio com fo- significados); aos conceitos e conteúdos (auto-
lhas de sulfite e borrachas no pátio externo. nomia para explicar, relacionar e confrontar
Porém, ela poderia ser realizada com o em- informações); podem ser referentes às práticas
pilhamento de qualquer material pequeno na (autonomia para realizar procedimentos de pes-
palma da mão, e o percurso pode ser feito en- quisa, construção, motores e encontrar estraté-
tre as mesas, na sala de aula. Outro exemplo gias para realizá-los e testá-los); e podem ser
são os murais que são parte importante da referentes às relações pessoais (autonomia para
U
mostra anual (fruto das atividades de transi- propor, negociar, respeitar, analisar consequên-
ção). A unidade escolar tem a possibilidade cias, incluir colegas, pedir ajuda, pontualidade
de escolher se eles serão móveis ou fixos na na entrega das atividades, assiduidade).
parede, se serão feitos em tecido, se terão ele- Essas avaliações também desenvolvem um
mentos virtuais ou expostos em papel craft etc. importante papel de investigação e reflexão do
G
Em relação ao espaço, entendemos que professor, que pode, durante a atividade, repen-
toda a unidade escolar é espaço e ambiente sar sua estratégia e adaptá-la para o contexto.
de aprendizado e ensino e deve ser utilizada Assim, ele consegue atender às especificidades
interna e externamente. A sala de aula pode dos alunos e auxiliá-los em suas dificuldades.
oferecer muitos confortos logísticos, mas pode Em conjunto com a avaliação dos docen-
também reduzir o número de interações pos- tes a autoavaliação do aluno, tanto do seu de-
síveis. Por isso, indicamos a ida para a área sempenho formal, quanto das suas atitudes
externa como alternativa, especialmente nas perante as relações com o grupo e os acordos
atividades que necessitam de mais espaço. estabelecidos. A autoavaliação é um ato con-
Em relação aos materiais, indicamos que creto de Projeto de Vida, jogando luz sobre a
sejam aproveitados ao máximo aqueles que autorreflexão e a expressão do aluno.
| 193
Sugestão de planejamento
D
1o ANO DO TRABALHO COM O PROJETO DE VIDA
BIMESTRE
(2 h/A POR SEMANA, ENCONTROS
TEXTOS PRÁTICAS DOCENTES
TOTAL 16 h/A POR (AULAS + VIVÊNCIAS)
L
BIMESTRE)
N
+ Segundo capítulo: 2.1
2.1.1 + 2.1.2 Biologia.
História, Língua Portuguesa
III BIMESTRE Segundo capítulo: 2.2 2.2.1 + 2.2.2 16
e Filosofia.
Segundo capítulo: 2.3 e História, Geografia, Filosofia
IV BIMESTRE 2.3.1 + 2.3.2 16
Conclusão e Língua Portuguesa.
P
2o ANO DO TRABALHO COM O PROJETO DE VIDA
ENCONTROS
BIMESTRE TEXTOS PRÁTICAS DOCENTES
(AULAS + VIVÊNCIAS)
Atividade de Física, Biologia, Língua
Atividade de transição 2
I BIMESTRE transição 2 + 16 Portuguesa e Filosofia.
+ Terceiro capítulo: 3.1
IA
3.1.1
Física, Biologia, Língua
II BIMESTRE Terceiro capítulo: 3.1 3.1.2 16
Portuguesa e Filosofia.
História, Sociologia, Língua
III BIMESTRE Terceiro capítulo: 3.2 3.2.1 + 3.2.2 16
Portuguesa e Filosofia.
História, Geografia,
Sociologia, Filosofia,
Terceiro capítulo 3.3 e
IV BIMESTRE 3.3.1 + 3.3.2 16 Língua Portuguesa e, caso
Conclusão
a escola disponha da ma-
téria, Ensino religioso.
U
D
3. A prática pode me ensinar coisas? A teoria
1 INTRODUÇÃO À SABEDORIA
pode me ensinar coisas? Quem é mais
PRÁTICA E TEÓRICA sábio: quem tem conhecimento teórico
L
A escolha de discutir a diferença entre sabe- ou prático?
doria teórica e sabedoria prática consiste em com- 4. Como posso cuidar de mim mesmo?
preender que o Projeto de Vida pode estar mais 5. A arte pode ensinar algo? O que eu aprendi
próximo dos componentes curriculares do que se com minha obra de arte favorita?
N
imagina, quando reconhecemos o sentido prático
do conhecimento. Em contrapartida, ter o conheci- Encaminhamentos
mento teórico não significa ser refém das teorias,
Introdução à sabedoria prática e teórica
porque se trata de modelos cuja validade é sua
aplicação concreta, mas que pode ser alterado, Por meio da leitura dos textos e das ativida-
des propostas neste capítulo, esperamos que
P
totalmente ou parcialmente, se forem descobertos
empecilhos à sua aplicação ou quando não puder os estudantes possam:
mais ser reconhecido em um novo caso. Portanto, I. perceber que existem vários tipos de
a teoria é um conhecimento provável. conhecimento sobre o mundo (sistematizado
Queremos sistematizar nossos conheci- e habitual; prático e teórico; mecanicista
mentos em teorias porque elas nos prometem e não mecanicista, artístico e científico,
IA
segurança na lida com a realidade que desco- autoconhecimento e conhecimento do
nhecemos. Porém, vimos que a teoria não é a outro);
única solução para lidar com a realidade que ii. entender os tipos de conhecimento como
desconhecemos. É possível, também, incluir em patrimônio humano e coletivo, com seus
nosso planejamento uma preparação para o valores específicos;
inesperado. Trata-se de uma prática ou exercício iii. r e c o n h e c e r- s e c o m o p r o d u t o r d e
de imaginação de situações concretas da vida conhecimentos;
que nos fortalecem para quando elas ocorrem iv. exercitar a crítica sobre os modos de
U
efetivamente. conhecimento;
Por isso, estabelecemos como método de v. c o m p r e e n d e r q u e c a d a t i p o d e
trabalho a aproximação com personagens da conhecimento reflete na maneira como
literatura (mas também do cinema e da his- vivemos pois é repertório para tomada de
tória da filosofia). Identificando-nos com eles, decisões.
G
| 195
e melhorem as condições de vida em âmbi- “Como se faz a previsão do tempo? Por que
D
to local, regional e/ou global” e de Ciências ela erra tanto?”.
Humanas., e sua competência 1: “Analisar A partir de uma conversa coletiva com o
processos políticos, econômicos, sociais, am- grupo, faça na lousa uma lista dos elementos
bientais e culturais nos âmbitos local, regio- que colaboram para a previsão exata; e, ao
nal, nacional e mundial em diferentes tempos, lado, uma lista das variáveis, que podem con-
L
a partir de procedimentos epistemológicos e tradizer a previsão.
científicos, de modo a compreender e posicio- Em seguida, reflita com eles sobre a nossa
nar-se criticamente em relação a eles, consi- capacidade de prever ou não os acontecimen-
derando diferentes pontos de vista e tomando tos e o grau dessa previsão. Recolha hipóteses
N
decisões baseadas em argumentos e fontes de e incremente a discussão com perguntas co-
natureza científica. mo: “Todas as ciências têm essa porcentagem
Também as propostas aproximam o tra- de erro? O que poderia ser mudado para a
balho da competência geral 1: porcentagem de acerto subir? O que poderia
“Valorizar e utilizar os conhecimentos his- acontecer que fizesse a porcentagem de acerto
P
toricamente construídos sobre o mundo físi- diminuir? Há um jeito mais seguro de produzir
co, social, cultural e digital para entender e esse conhecimento? Como as superstições po-
pulares dialogam com esse conhecimento?”.
explicar a realidade, continuar aprendendo e
Links para as reportagens:
colaborar para a construção de uma sociedade
<http://g1.globo.com/ brasil/noticia/
justa, democrática e inclusiva”.
2010/05/saiba-como-e-feita-previsao-do-
IA
Trata-se de fazer o estudante perceber
temp o.ht m l#:~:tex t=O s%2 0 dados%2 0
que o conhecimento possui um caráter pros-
ca ptados%20nas%20 esta%C3% A7%
pectivo. Com base nele, planejamos ações
C3%B5es,previs%C3%A3o%20para%20os%20
e operamos transformações na natureza,
pr%C3%B3ximos%20dias>.
fabricando um mundo artificial que facilita
<https://super.abril.com.br/mundo-estranho/
as nossas vidas. No entanto, nem todas as
como-se-faz-a-previsao-do-tempo-por-que-
coisas da realidade permitem essa forma de
ela-erra-tanto/>.
conhecimento, pois nem todas se comportam
U
é semelhante a um ser vivo, ou seja, ela é mais “Visto que todas as vezes que a repetição de um
imprevisível do que previsível. Por essa razão, ato ou de uma determinada operação produz uma pro-
as ciências constituem sistemas que isolam os pensão a renovar o mesmo ato ou a mesma operação,
fenômenos da integração da realidade, favore- sem ser impelida por nenhum raciocínio ou processo do
cendo a construção do conhecimento. Porém, entendimento, dizemos sempre que esta propensão é o
como esses conhecimentos são relativos a efeito do costume. Utilizando este termo não supomos
condições ideais, precisamos também desen- ter dado a razão última de tal propensão. Indicamos
volver outra forma de sabedoria, que lida com apenas um princípio da natureza humana, que é univer-
a imprevisibilidade dos acontecimentos. salmente reconhecido e bem conhecido por seus efeitos.
[…] O costume é, pois, o grande guia da vida humana.
A visão organicista de ciência É o único princípio que torna útil nossa experiência e
Leia com o grupo duas reportagens: nos faz esperar, no futuro, uma série de eventos seme-
“Saiba como é feita a previsão do tempo” e lhantes àqueles que apareceram no passado”.
D
Hoje em dia, através da tecnologias da in- construíram e sobre a efetividade das instru-
formação, nós temos acesso a muitos conteúdos. ções. Assim, haverá uma reflexão coletiva
Nos celulares, computadores, aplicativos e ou- sobre as relações e limites entre um saber
tros meios, as informações nos invadem e pode- teórico e um saber prático, bem como sobre
mos aprender o tempo todo. Aproveite, professor, os modos de expressá-los.
L
para provocar os alunos a refletir sobre a ne-
cessidade de ir à escola, se podemos aprender
muitos conteúdos em casa. O educador Antoni 1.2 O cuidado de si
Zabala afirma que, embora tenhamos grande
N
quantidade de dados informativos, é na escola O estudante é convidado a refletir sobre
que aprendemos instrumentos para articulá-los, a sua formação e as escolhas profissionais
criticá-los, confrontá-los, relacioná-los. que fará frente aos modos de conhecimento
Para saber mais, consulte: ZABAL A, apresentados anteriormente e, principalmente,
frente à imprevisibilidade dos acontecimentos.
Antoni. Enfoque globalizador e pensamento
P
A sabedoria prática é desenvolvida na direção
complexo: uma proposta para o currículo es-
do cuidado de si, ou seja, do autoconhecimento
colar. Porto Alegre: ARTMED, 2002.
– sobretudo quanto aos seus interesses profun-
PROPOSTAS DE VIVÊNCIAS dos – e de uma atitude saudável com relação a
As propostas de vivências são momentos eles, que envolvem aceitação, paciência, mas
especiais em que os alunos são convidados a também entusiasmo e ambição. Sugerimos
IA
relacionar as aprendizagens ao longo do capí- que a melhor maneira de se preparar para
tulo com suas percepções e realidades. Para circunstâncias imprevisíveis é se abrindo para
a realização dessa primeira, aproveite para experiências diferentes. Essa abertura é vivida
estabelecer combinados de como a atividade como um exercício que gera crescimento pes-
ocorrerá e planeje um tempo que seja possível soal, de modo que a melhor preparação para
sua realização com calma. o futuro, sobretudo nessa fase da vida, não é
aquela que visa a uma função específica, mas o
Vivência 1.1.1: Nossos planos desenvolvimento de competências e habilidades
U
Tempo: 2 horas/aula (1. leitura coletiva , se- que possam ser aplicadas a diversas situações.
paração dos grupos e composição da lista de
comandos; 2. redistribuição das listas, teste
prático, compartilhamento das modificações O planejamento da ação
e fechamento com o professor). O professor pode abordar o fato de que,
G
Espaço: Sala de aula, corredores, pátio. embora a saúde seja um bem que vale em si
Agrupamentos: na sala de aula, com 4 a 5 mesmo e não em vista de outra coisa, ela de-
alunos, critério indefinido. pende de boas condições de higiene, moradia,
Materiais: Uma folha sulfite ou pautada e uma informação e tratamento médico. Essas coisas
caneta para cada grupo. não são ofertadas a todos gratuitamente, ou se-
Objetivos específicos: Os alunos exercitarão ja, elas possuem também um valor financeiro.
a leitura e a compreensão. Ao escrever a lista, Para deixar esse ponto mais concreto, faça
trabalharão coletivamente no gênero, confron- uma discussão coletiva, com registro em lousa.
tando a experiência prática de andar com as Na conversa inicial, dirija-a de maneira que o
instruções que irão escrever. Eles formularão grupo conclua que a saúde é um bem básico
hipóteses, negociando uns com os outros a e com valor em si mesmo. Logo após, liste com
construção de um consenso. Ao confrontar a turma as coisas necessárias para ter saúde,
o texto escrito por outro grupo com o trajeto, como convênio médico, alimentação completa,
| 197
tempo de lazer e descanso, saneamento básico oferece contribuições profundas nesse sentido,
D
e moradia em boas condições. Peça que falem porque esse exercício especulativo, que nos
o preço de cada uma dessas coisas, no bairro leva a experiências diferentes daquelas com
deles. Quanto custa um almoço com arroz, fei- as quais estamos habituados, supõe empatia.
jão e proteína no restaurante perto da escola? Boas histórias favorecem nossa identificação
Escreva os preços na lousa, ao lado dos itens. com os personagens. Nem sempre se trata
L
Logo após, façam a soma total e reflitam de seguir seus exemplos, mas de encontrar
sobre o preço financeiro da saúde. Use per- em suas histórias inspiração para escolhas
guntas como: “Todas as pessoas podem pa- e decisões pessoais. Nesse sentido, o dife-
gar esse valor? Como poderíamos fazer para rencial deste trabalho é assumir a arte como
N
que todas as pessoas tivessem saúde? Como formadora. Indicaremos diversas referências,
priorizar os gastos com coisas que favorecem na pintura, na música, no cinema e, principal-
nossa saúde?”. mente, na literatura.
Ao trabalhar esse tema um bom subsídio é
PROPOSTAS DE VIVÊNCIAS o livro História da educação brasileira, em que
P
Paulo Ghiraldelli Jr. propõe uma metodologia
Vivência 1.2.1: Nossas realizações
com grande afinidade àquela utilizada neste
Tempo: 3 horas/aula (1. leitura coletiva, exibi-
ção do filme; 2. exibição de filme e conversa livro, segundo a qual o processo de aprendi-
coletiva; 3. dinâmica sobre experiências de zagem se inicia “quando os problemas já estão
aprendizagem). apresentados ou representados por meio de
IA
Espaço: Sala de aula e sala de exibição narrativas. Não há problema que venha puro,
de vídeo. bruto, para o aluno. O aluno já recebe (ou já
Materiais: Instrumentos de exibição do filme, vive) o problema enquanto problema. Ou seja,
uma folha sulfite e uma caneta para cada ele vê um filme, lê um livro, escuta um colega
estudante. ou sua mãe, lê um jornal, ouve o rádio ou a
Objetivos específicos: Analisar o filme televisão, consulta a internet, participa da con-
Feitiço do tempo, discernindo quais sentidos versa de adultos, enfrenta o sermão do padre
da existências que o protagonista descobre ou pastor, houve conselhos médicos etc. Ele tem
U
que transformam sua vida; relembrar quais ao seu redor problemas que lhe são proble-
situações semelhantes já viveu; compartilhar mas na medida em que assim aparecem nas
com os colegas as lições do filme e das suas narrativas que lhe chegam, e que é sua vida
experiências de vida que mais interessam cultural. As narrativas que preenchem sua vida
a todos. cultural são narrativas que trazem problemas.
G
D
Para entender melhor a escolha dos clássi- proposta com a mediação do professor).
cos da literatura brasileira e universal, ver este Espaço: Externo, com incidência de luz solar.
material: Aula, de Roland Barthes: Agrupamentos: Com 4 a 5 alunos; não agrupar
todos os alunos com experiência em plantio
em um grupo só.
L
A literatura assume muitos saberes. Em um
Materiais: Sementes de girassol, 1 vaso por
romance como Robinson Crusoé há um saber his- grupo, terra para plantio, fontes de pesquisa
tórico, geográfico, social (colonial), técnico, botâ- sobre girassóis em vasos, 1 folha por grupo
nico, antropológico (Robinson passa da natureza (para anotar o desenvolvimento da planta).
N
à cultura). Se, por não sei que excesso de socia- Objetivos específicos: Refletir sobre as dife-
lismo ou de barbárie, todas as nossas disciplinas renças entre os saberes práticos e teóricos e
a importância de relacioná-los. Assim, verão
devessem ser expulsas do ensino, exceto uma, é a
que um atravessa e desenvolve o outro. Os
disciplina literária que deveria ser salva, pois todas alunos formularão hipóteses com o repertório
as ciências estão presentes no monumento literário.
P
prático e espontâneo, de maneira coletiva, a
É nesse sentido que se pode dizer que a literatura, respeito do desenvolvimento da planta e suas
quaisquer que sejam as escolas em nome das quais demandas Depois, utilizarão a internet para a
ela se declara, é absolutamente, categoricamente pesquisa de informações, selecionando fontes
seguras e confiáveis (e desenvolvendo critérios
realista: ela é a realidade, isto é, o próprio fulgor
para reconhecê-las) e aplicá-las; percebendo
IA
do real. Entretanto, e nisso verdadeiramente enci-
a ampliação que provocam no conhecimento
clopédica, a literatura faz girar os saberes, não fixa, imediato e não sistematizado.
não fetichiza nenhum deles; ela lhes dá um lugar in-
direto, e esse indireto é precioso. Por um lado, ele
ATIVIDADES DE TRANSIÇÃO
permite designar saberes possíveis – insuspeitos,
As atividades de transição têm como ho-
irrealizados: a literatura trabalha nos interstícios rizonte uma mostra expositiva anual em torno
da ciência: está sempre atrasada ou adiantada com dos temas do Projeto de Vida. Os alunos do
U
relação a esta, semelhante à pedra de Bolonha, que primeiro, segundo e terceiro anos devem apre-
irradia de noite o que aprisionou durante o dia e, sentar o que trabalharam nessas atividades em
por esse fulgor indireto, ilumina o novo dia que formato de mural, produção textual e produções
artísticas. Portanto, mesmo que as atividades
chega. A ciência é grosseira, a vida é sutil, e é para
de transição não aconteçam todas ao mesmo
corrigir essa distância que a literatura nos importa.
G
| 199
Um mês antes da exposição, cada grupo autoconhecimento instigando quais são os so-
D
escolar apresentará a ideia que irá expor em nhos, interesses e motivações que movem os
uma reunião geral, para que seu planejamen- estudantes.
to seja articulado aos demais e aperfeiçoado Para tanto, discutimos a relação entre o in-
coletivamente. Deve haver um revezamento divíduo e o outro. Afinal, por “dimensão pessoal”
entre os alunos no dia da exposição para que não devemos entender apenas a interioridade,
L
sempre haja alunos no espaço para explicar mas as relações pessoais. Nesse momento, a
e comentar para o público o que está exposto. ênfase nesse tipo de relação não recai no ou-
É importante também que os alunos desenvol- tro, mas no ser próprio de cada um. Por isso, é
vam formas de instigar o público da exposição um momento muito importante para tratar do
N
de modo semelhante à forma como se sentem protagonismo, ou seja, de um modo de se re-
provocados pelo material e pelas aulas de lacionar com o outro em que haja uma valori-
Projeto de Vida. zação dos próprios sentimentos, pensamentos
Os responsáveis e a comunidade ao redor e aspirações.
da unidade escolar devem ser avisados com Isto pode parecer simples, como uma
P
antecedência a respeito da mostra, para que mera decisão, mas não depende somente de
se programem para participar da mesma e um deslocamento de atenção. Desde que nas-
estejam cientes da natureza dessa mostra, que cemos, antes mesmo de constituirmos uma
é fruto do Projeto de Vida. identidade própria e uma personalidade, já
Finalmente, é importante que todo material nos encontramos inseridos em uma rede de
produzido individualmente para as atividades
IA
significados que recebemos dos outros. Por
de transição e para as propostas de vivências
isso, se não houver um verdadeiro esforço
ao longo dos capítulos seja reunido em um
nessa atenção que devemos dedicar a nós
portfólio individual, que cada aluno deverá ter
mesmos, a tendência é passarmos a vida con-
consigo no momento da mostra expositiva anual
duzidos por essa rede de significações que
a fim de mostrar aos visitantes e aos colegas.
vem de terceiros. Ela certamente tem uma im-
ATIVIDADE DE TRANSIÇÃO 1 portância para nos orientarmos em um mundo
Objetivos específicos: Selecionar e arti- desconhecido e cheio de desafios, mas pode
U
cular critérios para construção e compartilha- não ser suficiente. Há momentos de conflito
mento de identidade pessoal e sua diversidade, ou de crise nas expectativas que recebemos.
produzindo uma entrevista e respondendo-a. Nesses momentos, podemos vivenciar mui-
Os alunos também articularão o que foi lido tas angústias, nos sentir perdidos, portanto,
até ali, formulando hipóteses lógicas e criativas o melhor é aprender desde cedo que essa
G
sobre a identidade das personagens literárias. rede de significação da vida e do mundo que
Há o trabalho formal com o gênero textual, re- recebemos não tem uma autoridade absoluta
conhecimento da diversidade humana e exer- sobre a realidade. Devemos experimentá-la
cício do pensamento lógico e imaginativo – in- nós mesmos.
dividual e coletivamente – a partir do conteúdo Esse é o sentido fundamental de prota-
formal trabalhado nos ensaios. gonismo com o qual trabalhamos neste li-
vro. Podemos formulá-lo de outras formas. Se
apenas repetimos os sentidos emprestados
2 AUTOCONHECIMENTO:
dos outros de forma acomodada, criamos
O ENCONTRO CONSIGO uma relação de alienação com esse senso
O enfoque do segundo capítulo, voltado à comum. Na filosofia, em autores como Kant,
primeira dimensão do Projeto de Vida, é um contrapomos essa forma de viver à ideia de
“encontro consigo”. Procuramos estimular o autonomia, que significa viver conforme uma
D
ser próprio. Heidegger sugere nomearmos mais esforço. Todos nós devemos aprender a
essa experiência de autenticidade. Sartre se pesar com sabedoria o tamanho desse esfor-
refere a ela como a própria liberdade. Seja ço, para nos aproximar tanto quanto possível
como for, trata-se de compreendê-la em ar- daquilo que amamos vivendo a vida de uma
ticulações concretas e, por isso, os persona- forma realista.
L
gens que apresentamos são tão importantes,
tanto para mostrar possíveis consequências Para mapear o conhecimento prévio do aluno
de uma vida autônoma, própria, autêntica, e criar um planejamento com mais elementos,
livre, quanto para mostrar possíveis conse- o professor pode, no segundo capítulo, propor
N
quências de uma vida na heteronomia, na as seguintes questões norteadoras:
impessoalidade, inautêntica, imprópria – vida
1. O que eu posso fazer para me conhecer?
que Sartre sugere ser tomada pela má-fé, por
2. Por que é importante se conhecer?
recusar a liberdade.
3. Quem sabe mais de mim mesmo: eu ou os
Esse ponto de partida, imerso na condu-
outros? Por quê?
P
ção e na orientação dos outros, é mostrado na
primeira caracterização da vida de Alexandre, 4. A opinião dos outros influencia quem eu
que, quando recebe mais uma ordem de seu sou? Eu já deixei de fazer algo por medo
pai, estava “no copiar”. Depois da crise que da opinião alheia?
atravessa, ele criará um planejamento próprio 5. O que faz com que eu tenha interesses
para enfrentá-la e esse momento marcará toda diferentes dos meus colegas?
IA
sua visão da vida, até o momento em que re-
velar sobre ele uma visão retrospectiva, como
Encaminhamentos
um contador de histórias. Este capítulo propõe um trabalho conjunto
Jacobina e sua teoria sobre as duas almas entre os professores de Língua Portuguesa,
são um retrato da alienação, ou impessoalida- Filosofia, Geografia e Biologia.
de, bem como de suas severas consequências. Merece destaque a competência em
Pode parecer que essa forma de viver é a mais Linguagens que aproxima o trabalho da com-
confortável e segura, mas ela é, na verdade, a petência específica 4:
U
| 201
que ela não consegue resolver somente com
2.1 O olho torto de Alexandre,
D
aquilo que já sabe. Esse momento é chama-
de Graciliano Ramos do “desequilibração”, e é essencial para que
a criança se mobilize para encontrar novas
Nessa seção, o professor pode encontrar soluções, ou seja, aprender. Aqui, vemos que
um bom argumento para provocar os alunos Alexandre passa por um processo parecido.
L
a respeito do modo como estão cuidando de si Nós também podemos passar por isso. Você já
mesmos. Será que vivemos como o Alexandre pensou na importância da crise, da frustração,
no início da história, ou seja, “no copiar”? Será para o seu crescimento?
que nossas vidas são orientadas pelos outros,
A realidade e a ficção
N
como Alexandre obedece a seu pai, vendo o
mundo à luz dessa obediência? A história re- Aproveite para explorar o entusiasmo de
vela como inesperadamente um acontecimento Alexandre ao contar histórias (p. 34).
arranca Alexandre de sua atitude acomodada O professor pode aproveitar o exemplo
e o força a tomar decisões próprias. Se por de Alexandre para propor à turma que, ao
P
um lado essa crise implica confusão, medos e longo dos encontros, mantenham em vista as
sofrimento, de outro ela permite a Alexandre qualidades de Alexandre para buscarem, eles
conquistar um olhar autêntico para o mundo, também, professor e alunos, uma atitude de
e é isso que o torna tanto um bom protagonista entusiasmo e de abertura ao extraordinário.
quanto um bom contador de histórias. Leia para eles o seguinte texto:
Para enriquecer a discussão sobre a prá-
IA
tica de si, veja o que Michel Foucault diz em: A “Como devemos contar histórias?”, per-
hermenêutica do sujeito: guntava um dos rabinos do cassidismo. Ao
que ele mesmo respondia: “Assim que ajudem
pois bem, a parauskeué é o que se poderia a nós mesmos!”. E contava: “Meu avô era pa-
chamar uma preparação ao mesmo tempo aberta ralítico. Certa vez, pedimos que contasse uma
e finalizada do indivíduo para os acontecimentos história de seu mestre. Então contou como
da vida. Quero com isto dizer que se trata, na as- o grande Baalschem, quando orava, costu-
U
cese, de preparar o indivíduo para o futuro, um mava saltar e dançar. Meu avô estava de pé,
futuro que é constituído de acontecimentos im- contando a história, e a narração comoveu-o
previstos, acontecimentos cuja natureza em geral tanto, que teve que demonstrar os saltos e a
talvez conheçamos, os quais porém não podemos dança como o mestre fazia. Daquela hora em
G
saber quando, se produzirão nem mesmo se se diante estava curado. É assim que devemos
produzirão (p. 387). contar histórias.”
SINNER, R.; WOLFF, E.; BOCK, C.
Vidas ecumênicas. São Leopoldo:
A distração de Alexandre Ed. Sinodal e Ed. Padre Reus, 2006. p. 159.
Crises e desequilíbrios são parte essencial
do nosso aprendizado. Muitos estudiosos se Em primeiro lugar, aponte que não se usa
debruçaram sobre essa questão, entre eles o mais a terminologia “paralítico” para pessoas
psicólogo Jean Piaget (1896-1980), que estudou com algum tipo de deficiência física ou para-
o desenvolvimento das crianças. Piaget enten- lisia. Inicie uma conversa dizendo que esse
dia que as crianças aprendem coisas novas texto mostra um momento catártico que a arte
somente quando entram em desequilíbrio; ou é capaz de proporcionar, quando uma história
seja, quando o seu ambiente põe um desafio é contada de um bom modo.
D
mas o jeito que se conta traz ou retira ele- o professor).
mentos importantes para o envolvimento do Espaço: Sala de aula e sala de tecnologia (pa-
emissor e do receptor. Diga que, durante todo ra a pesquisa).
o Projeto de Vida, as histórias das persona- Agrupamentos: Atividade individual.
gens serão recontadas para que nos toquem, Materiais: Uma folha pautada e uma caneta
L
e assim será também com as narrativas pes- para cada aluno, computadores para a pesqui-
soais dos alunos. sa e para a exposição dos álbuns (caso eles
Abra um espaço, em roda, para que eles sejam digitais).
compartilhem uma história que os envolve Objetivos específicos: Ler e interpretar o
N
(pessoal ou não, fictícia ou não) e incentive a texto filosófico. Utilizar a tecnologia como
disponibilidade dos estudantes de compartilhar meio de pesquisa, e selecionar e articular
histórias com entusiasmo. informações obtidas. Produzir um texto rela-
cionando as informações obtidas (passos do
Monomito) com saberes prévios (personagens
PARA REFLETIR, P. 36
P
da ficção). Selecionar elementos imagéticos
Ao trabalhar o “Para refletir”, um livro e pessoais e relacioná-los a fim de construir
fundamental é Preconceito linguístico, de uma narrativa direcionada à proposta da
Marcos Bagno. atividade e significativa para a expressão
Um modo de trabalhar com as ideias da sua identidade. Reconhecimento das se-
centrais desse livro, e entender as relações melhanças e diferenças entre as narrativas
IA
de poder social e econômico que compõem a fotográficas produzidas e entre as pessoas
valorização de determinadas variações linguís- que narram.
ticas e a desvalorização de outras, é fazer um
trabalho com estações a partir de trechos do Vivência 2.1.2: Olhar para si
primeiro capítulo do livro, que é organizado em Tempo: 2 horas/aula (1. leitura compartilhada
cima de oito mitos sobre a língua portuguesa e descrição de si; 2. redistribuição dos papéis,
falada no Brasil. feitura do desenho e fechamento do professor).
Separe oito estações, cada uma repre- Espaço: Sala de aula com carteiras individuais
U
| 203
eles compreendiam, na mitologia, que todas
D
2.2 O Espelho, de Machado de Assis as coisas da natureza que estão ou parecem
estar em movimento, como o mar e o Sol, são
De início, a seção resgata teorias tradi- dotadas de alma ou governadas por uma al-
cionais sobre a alma e, finalmente, apresenta ma divina.
uma nova teoria, que o personagem Jacobina O professor pode pedir que os alunos
L
desenvolve com base em uma experiência compartilhem em roda aquilo que os deixa
vivida na juventude. Ele relata que, quando animados. Muitas crianças têm a experiência
conquistou o posto de alferes da guarda na- de não conseguir dormir na noite anterior a
cional, isso orgulhou muito seus familiares um grande passeio, ou muitos de nós ficamos
e amigos. Pouco a pouco, ele foi se acostu-
N
inquietos antes de uma grande apresentação.
mando aos elogios que recebia. Certa vez, Esse pode ser um exemplo concreto de impulso
ao se encontrar totalmente sozinho, sentiu ao movimento.
um grande vazio e pôde perceber o quanto Tal concepção de alma não está só nas
sua existência dependia da aprovação dos coisas extraordinárias, mas também no coti-
P
outros. Dessa forma, compreende que os ho- diano. Assim, tudo o que se move é impelido
mens possuem não uma, mas duas almas. A em direção a algo. Nesse sentido, a alma está
alma interior diz respeito aos interesses que intrinsecamente relacionada ao interesse. Para
partem de cada um e trazem uma satisfação finalizar, faça perguntas como: “Qual seria o
pessoal, e a exterior é o que torna a pessoa interesse das coisas naturais que se movem?
dependente de algo externo, como aconteceu Esse interesse seria igual ou diferente dos in-
IA
com ele quando precisava da aprovação dos teresses humanos? Quais são os grandes in-
outros para se sentir bem. teresses que movem a natureza?”.
Sugerimos um trabalho conjunto entre os
professores de História, Língua Portuguesa
e Filosofia. PROPOSTAS DE VIVÊNCIAS
Em Linguagens, podemos nos aproximar Não deixe de preparar esse momento de
do trabalho com a competência específica da forma a garantir a participação de todos, a escu-
área 4: ta atenta e o compartilhamento de experiências.
U
D
ralidade das características das pessoas. em lousa. Depois, pode instigar outros exem-
plos e apresentar a discussão com base nos
Vivência 2.2.2: Reflexos e reflexões diferentes tipos de conhecimento (por exemplo,
Tempo: 2 horas/aula (1. leitura compartilhada, factual, conceitual, procedimental, atitudinal,
feitura do mural e escrita; 2. compartilhamento de Antoni Zabala) e convidar os estudantes a
L
das escritas, dos sentimentos e fechamento compartilharem a qual tipo de conhecimento
do professor). eles gostariam de se dedicar mais, com qual
Espaço: Sala de aula. possuem mais facilidade, quais sabem trans-
Agrupamentos: Atividade coletiva. mitir, compartilhar etc.
N
Materiais: Espaço na parede para o mural,
uma folha sulfite e uma caneta para cada alu- Sobre compromisso com ocupações cotidia-
no e material para a feitura do título do mural nas, p. 60
(definido coletivamente ou pelo professor). O professor pode aproveitar o exemplo
Objetivos específicos: Expressar as carac- de Dom Quixote para questionar os alunos
P
terísticas pessoais e refletir sobre as formas em que medida eles estão realmente compro-
de expressão. Reconhecer as semelhanças metidos com as suas ocupações cotidianas e
e diferenças uns dos outros valorizando a quão abertamente são capazes de reconhecer
diversidade. esse compromisso que, como veremos adian-
te, é tanto um compromisso consigo quanto
com os outros. A discussão pode começar
2.3 Dom Quixote de la Mancha,
IA
com o conceito de compromisso: “O que é ter
de Miguel de Cervantes compromisso?”. Convide-os a expressar as
coisas com as quais eles se comprometem vo-
Dom Quixote era um homem que possuía luntariamente, e do que abrem mão por esses
muitas propriedades e tempo livre, mas as tro- compromissos. Nesse momento, é importante
cou por livros de cavalaria andante e passou destacar que o tempo, por exemplo, é um re-
todo esse tempo a lê-los. Tão profundo era o curso finito, portanto, precisa ser negociado
seu interesse por esse universo, que um dia e dividido segundo prioridades. Quais são
U
ele resolveu se tornar um cavaleiro andante e os critérios que definem uma hierarquia de
viver aventuras como aquelas presentes nos prioridade? O grupo pode construir uma lista
livros. Tudo o que encontra em seu caminho é de critérios coletivos que revelem compromis-
significado pelas histórias antes lidas, e isso sos comuns, e essa lista pode ser fixada no
revela que, quando temos um interesse pro- mural da sala.
G
| 205
que os outros têm de nós, e Dom Quixote hábito não tem seu valor principal em obriga-
D
é alguém que não vive para agradar aos ções escolares
outros, mas nem por isso ele é alguém que
desconsidera os outros. Portanto, o cuidado Os nigromantes, p. 67
consigo mesmo pode implicar um cuidado Para enriquecer a reflexão do professor
também com os outros. a respeito dos eventos inesperados que Dom
L
Quixote atribui à ação dos nigromantes, é opor-
Proponha à turma que reúna exemplos
tuno refletir sobre essa passagem Nietzsche:
de interesses que, mesmo sendo individuais,
podem favorecer a coletividade. Quais são as
profissões que mais favorecem o bem comum? […] nós, anões espertos, com nossa vontade e
nossos fins, somos molestados pelos estúpidos, arqui-
N
Bons exemplos são as profissões de professor e
médico. Que outras atitudes as pessoas podem -estúpidos gigantes, os acasos, atropelados por eles,
ter, fora das profissões, que geram prazer e muitas vezes esmagados sob seus pés – mas apesar
também coisas boas, como a saúde? Um bom de tudo isso não gostaríamos de ficar sem a horri-
exemplo é esporte. pilante poesia dessa vizinhança, pois muitas vezes
P
Peça também aos alunos que reflitam
esses monstros vêm quando a vida na teia de aranha
sobre atividades de voluntariado: “Por que as
dos fins tornou-se para nós demasiado enfadonha ou
pessoas fazem trabalhos voluntários?”.
Para interiorizar os hábitos de leitura dos angustiante e proporcionam uma sublime diversão.
estudantes e, principalmente, a reflexão sobre […] Os gregos davam a este reino da incalculável e da
sublime burrice eterna o nome de Moira (destino),
IA
esses hábitos, construa com eles um diário de
leitura, no formato que achar mais conveniente, e o colocavam como o horizonte além do qual não
para que eles registrem suas impressões. Os podem atuar, nem ver […]. Aprendamos, portanto,
objetos de leitura inicial podem ser os próprios porque está mais que no tempo para isso: em nosso
ensaios do Projeto de Vida, mas incentive que
pretenso reino particular dos fins e da razão reinam
esse diário seja preenchido com as demais
igualmente os gigantes!
leituras realizadas durante o ano.
O diário pode partir de questões como: “O Sobre a intempestividade, p. 68
U
que eu gostei no texto? O que eu não gostei? Podemos dizer que Dom Quixote é um
Qual parte foi mais difícil? Eu me desconcentrei intempestivo ou um extemporâneo, ou seja,
em algum momento da leitura? De 0 a 10, o alguém que não compartilha os sentidos e
quanto me senti envolvido? Quais foram os sen- valores da época em que vive. Essa é uma
timentos que eu tive durante a leitura (tristeza, das formas de autenticidade que uma pessoa
G
alegria, raiva, surpresa, medo, tranquilidade pode ter. O professor pode propor à turma que
etc.)? O que eu aprendi de novo com esse tex- compartilhe outros casos de intempestividade
to? O que eu tenho vontade de contar para os na história, por homens que estiveram, de algu-
outros sobre ele? Qual era a minha ideia sobre ma maneira, à frente do seu tempo. O inventor
o texto antes de começar a ler? Alguma coisa e pintor Leonardo da Vinci e o líder político
nessa leitura me lembrou alguma outra coisa Martin Luther King são bons exemplos.
que eu já li ou já estudei?”. Nas propostas de vivências, os estudantes
Destaque que mesmo as opiniões pessoais são convidados a pesquisar e escrever sobre
registradas nesse diário devem ser fundamen- personagens históricos que foram movidos por
tadas, ou seja, ter um porquê, e o diário não seus interesses profundos e são inspiradores.
deve ser preenchido só com “sim” ou “não”. Aborde com eles a ideia de “estar à frente de seu
Nessa atividade, eles poderão entender o vín- tempo”: “Como isso é possível? Esse modo de
culo de valor pessoal da leitura, e que esse “estar à frente” não é justamente característico
D
que faz com que algumas ações sejam “típicas” demonstrando autoria.
de um tempo ou “atípicas”? Quais são esses
critérios? Quais grupos os definem?”. PARA SABER MAIS
(SOBRE ESCUTA)
CERQUEIRA, Teresa Cristina Siqueira.
L
PROPOSTAS DE VIVÊNCIAS O professor em sala de aula: reflexão so-
Para realizar as propostas, consulte as bre os estilos de aprendizagem e a escuta
sugestões de tempo, espaços e materiais pa- sensível. Psic, São Paulo, v. 7, n. 1, p. 29-38,
ra providenciar ou solicitar aos alunos. Não jun. 2006. Disponível em: <http://pepsic.bv-
esqueça que a promoção de um momento de
N
salud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pi-
compartilhamento de produções, sensações d=S1676-73142006000100005&lng=pt&nrm=i-
e comportamentos é de extrema importância. so>. Acesso em: 1 fev. 2020.
P
Objetivos específicos:
da, escrita individual das atividades e roda Usar tecnologias contemporâneas para
de compartilhamento; 2. término da roda de pesquisa e seleção de informações sobre a
compartilhamento e fechamento do professor). vida dos autores. Articular essas informações
Espaço: Sala de aula, com roda coletiva. para refletir sobre as características da socie-
Agrupamentos: Atividade coletiva. dade e as características individuais. Usar dos
IA
Materiais: Uma folha sulfite e uma caneta para resultados da pesquisa para a construção de
cada aluno. elementos informativos que serão expostos.
Objetivos específicos: Ler e interpretar o tre- Produção de uma crônica de autoria própria
cho literário. Usar a língua escrita para refletir relacionando o conteúdo.
e expressar seus desejos. Expressar, oralmente
e publicamente, suas características. Exercitar Encaminhamentos
a fala e a escuta ativamente. Adquirir repertório Retome que as atividades de transição têm
sobre si mesmo. como horizonte uma mostra expositiva anual
U
Espaço: Sala de aula e espaço de pesquisa. alunos junto à gestão escolar com relação a da-
Agrupamentos: Atividade individual. ta, decoração, materiais necessários, expogra-
Materiais: Uma folha sulfite e uma caneta para fia, espaços do prédio a serem utilizados, textos
cada aluno; material de encadernação (furador de parede, entre outros aspectos do evento.
e fitas de cetim) e materiais para a capa (a Organize a ideia do que apresentarão e
serem definidos coletivamente). auxilie os alunos em todas as etapas.
Objetivos específicos: Selecionar, entre to- É importante que todo material produzido
das, uma figura histórica a partir do critério de individualmente para as atividades de transi-
identificação de interesses. Usar tecnologias ção e para as propostas de vivências ao lon-
contemporâneas para pesquisa e seleção de go dos capítulos seja reunido em um portfólio
informações sobre a vida de uma personagem individual, que cada aluno deverá ter consigo
histórica. Produzir uma minibiografia articu- no momento da mostra expositiva anual a fim
lando as informações pesquisadas. Expressar de mostrar aos visitantes e aos colegas.
| 207
3 EXPANSÃO E capítulo, propor as seguintes questões
D
norteadoras:
EXPLORAÇÃO: O 1. Quando estou confuso com alguma decisão,
eu peço a opinião dos meus responsáveis
ENCONTRO COM O
ou dos meus amigos? Por quê?
OUTRO E O MUNDO, 2. Por que as pessoas têm opiniões diferentes
L
sobre os fatos e acontecimentos?
COM ÊNFASE NA 3. O que eu posso fazer para ser mais empático?
DIMENSÃO CIDADÃ 4. Sendo tão diferentes, como podemos
ser uma sociedade mais democrática, ou
Este capítulo se volta ao esforço de com-
N
seja, que respeita as diferenças e constrói
preender e de se relacionar com o outro de
a igualdade?
forma mais complexa e mais franca. O respeito
5. Trabalhar em grupo é fácil? Qual é o melhor
e a empatia surgem como consequências de
resultado: quando todos colaboram ou
uma compreensão madura, ao mesmo tempo
quando há um trabalho individual? Por quê?
P
em que essa compreensão é favorecida por
uma abertura respeitosa e empática, propor- Encaminhamentos
cionadas por exemplos dos personagens ana- Através da leitura dos textos e das ativida-
lisados nos ensaios e pelas vivências e ativida- des vivenciadas, esperamos que os estudantes
des propostas. Há, portanto, um ciclo virtuoso. possam:
A proposta é ampliar a relação com o outro I. Compreender a presença e a influência
IA
em suas distintas extensões, desde a escolar e das relações sociais na construção da
local até a familiar, a comunitária, a nacional e a
identidade pessoal;
planetária, em redes que são pessoais e virtuais.
II. perceber as consequências sociais e
Cada pessoa conquista um entendimento maior
políticas dos interesses e ações individuais;
de si mesmo quanto às suas possibilidades e o
III. entender que o conhecimento é construído
seu lugar no mundo. Isto permite um planejamen-
e ampliado frente a uma realidade social
to mais efetivo do seu futuro ao mesmo tempo em
e histórica;
que ela toma consciência das suas responsabi-
IV. diferenciar o que é responsabilidade
U
D
E da competência 6 da área de Ciências O professor pode propor aos alunos que
Humanas e Sociais Aplicadas: isso não ocorra apenas no caso de Sócrates.
Participar do debate público de forma crí- Devemos sempre ter cuidado com o que dize-
tica, respeitando diferentes posições e fazendo mos sobre os outros, porque aquilo que é dito
L
pode revelar algo mais sobre nós mesmos do
escolhas alinhadas ao exercício da cidadania e ao
que sobre os outros.
seu Projeto de Vida, com liberdade, autonomia,
Faça um exercício de imaginação com
consciência crítica e responsabilidade. os estudantes, levando-os a refletir sobre em
quem eles confiariam como fonte sobre a pró-
N
pria doxografia. Faça perguntas como: “Será
As reflexões de Sócrates que as pessoas mais próximas escreveriam
a mesma coisa? E as pessoas que não nos
Para a discussão que Sócrates propõe
conhecem bem ou que nos conhecem em
sobre cuidar de si mesmo, veja o que Michel
ambientes específicos? Quantos aspectos di-
P
Foucault diz em A hermenêutica do sujeito:
ferentes de nossas vidas apareceriam nessas
narrativas? Como unir todas elas?”.
Não se pode cuidar de si sem passar pelo mes-
tre, não há cuidado de si sem a presença de um PARA DEBATER, P. 79
mestre. Porém, o que define a posição do mestre O professor pode propor um debate ao es-
IA
é que ele cuida do cuidado que aquele que ele guia tilo “debate eleitoral” para o grupo. Organize
pode ter de si mesmo. Diferentemente do médico dois palanques na frente da turma, onde os
grupos terão de se posicionar e rivalizar inte-
ou do pai de família, ele não cuida do corpo nem
lectualmente e respeitosamente sobre alguns
dos bens. Diferentemente do professor, ele não
temas – de um lado, assumindo a posição pla-
cuida de ensinar aptidões e capacidades a quem ele
tônica e, de outro, a socrática. O professor deve
guia, não procura ensiná-lo a falar nem a prevalecer intervir com frequência na formulação dos ar-
sobre os outros, etc. O mestre é aquele que cuida gumentos, oferecendo exemplos e explicações
U
do cuidado que o sujeito tem de si mesmo e que, para que os estudantes se vejam capazes de
no amor que tem pelo seu discípulo, encontra a articular essas posições.
possibilidade de cuidar do cuidado que o discípulo Separe temas ou perguntas que devem ser
tem de si próprio (p. 74). debatidos. Comece com a questão da justiça,
trabalhada no ensaio, e, aos poucos, vá intro-
G
Também Jacques Rancière (1940), em seu duzindo outros temas como “conhecimento”,
livro O mestre ignorante (2007), conta a his- “educação” etc. Sorteie os temas novos um
tória de Jacotot, um professor que ensina a a um e valorize as hipóteses dos estudantes
seus alunos aquilo que ele mesmo não sabe. sobre o pensamento socrático e platônico.
Ele compreende que seu trabalho é dar as Cronometre os tempos de resposta, réplica e
ferramentas para a investigação, e não uma tréplica, para que isso seja um motivo de maior
explicação para tudo. Esse é um jeito de in- envolvimento dos grupos.
centivar a autonomia do estudante. Sócrates, Destaque que o objetivo do debate é a ela-
ao oferecer o método maiêutico aos seus se- boração, e não a competição, e que é possível
guidores, abre caminho para que esse tipo que algum estudante comece no grupo platô-
de reflexão, como a de Rancière, pudesse ser nico e depois se veja convencido do contrário,
feita atualmente. e vice-versa.
| 209
humana, e a sua importância na sociedade e
3.1 Emílio ou Da Educação,
D
para a vida do indivíduo.
de Rousseau
PROPOSTAS DE VIVÊNCIAS
No livro Emílio, de Rousseau, temos tam-
Vivência 3.1.1: Nossas curiosidades
bém a oportunidade de ver condensada em
L
Tempo: 1 hora/aula (1. leitura coletiva, produ-
uma só linguagem a filosofia e a literatura.
Além disso, ele aborda as três dimensões ção da caixa, das primeiras perguntas e de-
do Projeto de Vida: o eu, o outro e o mundo signação da escala entre os alunos que vão
de uma perspectiva formadora. O filósofo se responder as questões – indicamos que seja
N
coloca no lugar de um preceptor que é seu em ordem alfabética).
alterego, Jean-Jacques, e que orienta Emílio Espaço: Sala de aula.
desde a infância até a juventude. Somos apre- Agrupamentos: Atividade coletiva.
sentados a diversos desafios enfrentados pelo Materiais: Material para produção da caixa
menino, desde seus primeiros passos até o e uma tira de papel e uma caneta para cada
P
enfrentamento dos seus medos e a descoberta aluno. Também indicamos que, em vez de uma
das suas paixões e dos conhecimentos sobre caixa, possa ser usado um plástico, que ficará
o Universo. Podemos dizer que o ponto mais fixado no mural da sala, com as tiras de papel
sensível é a passagem do amor-próprio para dobradas dentro.
a relação com o outro, e todos os possíveis Objetivos específicos: Expressar suas dúvi-
IA
sofrimentos que esse processo pode acarretar. das. Procurar ferramentas para pesquisa e
Rousseau orienta a melhor forma de ajudar selecionar informações. Exercitar a explicação
um jovem a superar os desafios da relação para os colegas. Compreender-se como sujeito
com o outro. pesquisador. Valorizar as próprias dúvidas, as
dúvidas dos colegas e perceber a comunidade
PARA REFLETIR
escolar como produtora de conhecimento.
E PARA DEBATER P. 85
O objetivo da proposta aqui é que os es- Vivência 3.1.2: Aos olhos das crianças
U
tudantes diferenciem em que os jovens devem Tempo: 1 hora/aula (1. leitura compartilhada,
se inspirar e quais ressalvas devem guardar feitura coletiva da lista de brincadeiras e ma-
em razão das diferenças históricas. teriais, e produção da carta para a EMEI; 2 e
3. vivência na EMEI, segundo agendamento, e
VOCÊ SABIA? P. 91
fechamento do professor).
G
D
no caso de psicanalistas, recomenda-se que
de Machado de Assis cada analista faça sempre supervisão com
outro analista, para garantir que sua con-
O conto narra a história do alienista dução clínica não seja comprometida por
Simão Bacamarte, que é um prestigiado mé- questões pessoais, preservando a máxima
L
dico formado em Portugal. Ao voltar ao Brasil, neutralidade possível na forma como deve
ele se estabelece em Itaguaí e lá se dedica à acolher seu paciente.
cura dos males psíquicos. Para isso, ele funda Introduza uma conversa coletiva sobre
a Casa Verde, um hospício, onde interna as quais são as ações de autocuidado necessá-
N
pessoas que ele considera padecer de doença rias no nosso cotidiano para ter uma atuação
mental. No entanto, não ficam claros quais responsável e efetiva na vida política e social.
critérios ele utiliza para distinguir a saúde da
doença psíquica. Sua avaliação científica se PARA DEBATER, P. 101
confunde com preconceitos e visões pessoais. O professor pode fazer um quadro compa-
P
A consequência disso é a internação de uma rativo na lousa entre Bacamarte e Quixote e, a
parcela significativa da população de Itaguaí, partir disso, incentivar os estudantes a refletir
que questiona a sanidade do próprio médico. se existe um altruísmo absoluto. Instigue os
A conclusão a que chega é que a vida humana alunos a compartilhar como se sentem quando
é muito complexa para ser avaliada de forma fazem algo para o bem dos outros.
intransigente.
IA
A cura, p. 102
Sugerimos um trabalho conjunto entre os
Ao debater que, depois de tantas crises
professores de História, Sociologia, Língua
e conflitos, o alienista se convence de ter se
Portuguesa e Filosofia.
equivocado não pela pressão de um ou ou-
Em Ciências Humanas e Sociais Aplicadas,
tro, mas pela própria realidade dos fato, as
destaque para a competência 5:
questões lançadas: “Quatro quintos da popu-
Identificar e combater as diversas formas de lação estavam aposentados naquele estabe-
injustiça, preconceito e violência, adotando princí- lecimento. Como a loucura poderia ser bem
U
pios éticos, democráticos, inclusivos e solidários, mais comum que a sanidade? Como pretender
e respeitando os Direitos Humanos. tratar e curar aquilo que é a regra e não a
exceção?” podem ser efetivamente debatidas
O universo em Itaguaí em sala de aula. Procure estimular os alunos
Assim como no conto anterior propuse- a encontrarem soluções que não caiam em
G
mos que aquilo que dizemos sobre os outros um maniqueísmo ou que impliquem uma ne-
revelam algo sobre nós mesmos, agora pode gação das ciências. Sugira que pesquisem
ser proposto aos alunos que todo cuidado modos como a sociedade pode se organizar
com os outros exige a responsabilidade do para criar comitês de ética que acompanhem
cuidado de si mesmo. Para ilustrar essa ideia, o desenvolvimento científico, por exemplo, no
poderíamos lembrar que as orientações de caso do uso de animais ou no caso de aparatos
segurança nos aviões dizem para, em ca- tecnológicos que poderiam provocar grandes
so de despressurização, antes de colocar desastres ambientais.
as máscaras de oxigênio nas crianças, os
adultos devem vestir a máscara em si mes- PARA DEBATER, P. 103
mos. Isto ocorre porque a despressurização Traga para a discussão o estudo da
pode levar ao desmaio e, se os adultos des- Revolta da Vacina, ocorrida em 1904 no Rio
maiarem, não conseguirão mais colocar as de Janeiro, e quais são as causas para que
| 211
a sociedade não científica possa não aceitar compreender sua função. Expressar suas opi-
D
o discurso científico. Reflita também sobre os niões respeitosamente. Analisar o contexto
efeitos danosos da negação da ciência, como escolar. Negociar suas propostas e críticas
o retorno de doenças como o Sarampo, que coletivamente. Produzir coletivamente uma ata.
haviam sido erradicadas. Participar do conselho escolar.
Outro modo de conduzir essa discussão
L
é trazendo para a sala de aula o trabalho do Vivência 3.2.2: A cidade ideal
pensador Paul Feyerabend e seu polêmico Tempo: 3 horas/aula (1. leitura compartilhada e
anarquismo metodológico, que, em muitas colhimento dos depoimentos; 2. edição do vídeo
situações, explicita o possível conflito entre e separação dos grupos; 3. planejamento das
N
os conhecimentos não científicos e a Ciência. áreas de administração da cidade).
Instigue em discussão coletiva a reflexão so- Espaço: Todo o espaço escolar.
bre quais são as consequências de se adotar Agrupamentos: 1. individual; 2 e 3. grupos
ou não esse posicionamento frente ao conhe- com 4 a 6 alunos com critério de afinidade de
cimento científico e como encará-lo em um interesses.
P
país onde grande parte da população ainda Materiais: Equipamento de filmagem e edição e
não tem acesso a educação científica siste- exibição de vídeo; computadores para pesquisa,
mática e de qualidade. uma folha sulfite e uma caneta por grupo.
Texto indicado: FEYERABEND, P. Como Objetivos específicos: Registrar em vídeo as
defender a sociedade contra a ciência. Trad. falas das pessoas entrevistadas. Selecionar tre-
Paulo Luiz Durigan. Curitiba, 2009. Disponível chos dos vídeos e editá-lo usando a tecnologia
IA
em: <http://stoa.usp.br/daros/files/2856/16814/ disponível. Encontrar estratégias, articulando
feyerabend.pdf>. conhecimento de diversas áreas para pôr as
No texto indicado, o autor trata o ensino opiniões expressas pelas pessoas na prática
científico como uma espécie de doutrinação, de uma cidade. Mediar essas estratégias cole-
comparando-o com a religião. Questione com tivamente. Criar hipóteses sobre os resultados
o grupo: “Quais são as diferenças entre esses obtidos e registrá-las.
conhecimentos?”. É interessante, nesse contexto, recordar
Estas questões podem ser efetivamente a referência de Célestin Freinet (1896-1966),
U
D
Escola da Ponte: uma escola pública em debate. São plos que os próprios alunos podem oferecer.
Paulo: Cortez, 2015.
Também pode haver uma discussão para di-
ferenciar o universo-máquina coletivo e o com-
3.3 Cândido ou portamento maquinal de indivíduos.
O otimismo, de Voltaire
L
PROPOSTAS DE VIVÊNCIAS
Cândido é um jovem que vive de favor em Vivência 3.3.1: Equilíbrio coletivo
um castelo, mas, ao se apaixonar pela filha do Tempo: 1 hora/aula
barão, que é o dono do local, é expulso. Ele co- Espaço: Área externa da escola
N
meça, então, a viver uma série de desventuras Agrupamentos: 4 ou 5 pessoas por grupo.
que põe à prova a filosofia de seu preceptor, Materiais: Folha de papel sulfite, borrachas em
Pangloss, segundo a qual vivemos no melhor formato regular ou outros objetos semelhantes,
dos mundos possíveis. O romance de Voltaire estojos, mochilas e cadernos.
ironiza a distância entre essa teoria e a vida Objetivos específicos: Usar o corpo para criar
P
efetiva das pessoas, que enfrentam desafios estratégias para criar equilíbrio motor e lidar
constantemente e passam por muitos sofrimen- com elementos não controláveis. Analisar os
tos. Por outro lado, o autor não sugere que a resultados obtidos coletivamente na diferença
vida seja apenas uma sequência de infortúnios. dos engajamentos individuais.
Devemos sempre tentar dar a nós mesmos e aos
IA
outros uma vida melhor. Para isso, como afirma Vivência 3.3.2: Conselhos
Cândido: “É preciso cultivar nosso jardim”. Tempo: 1 hora/aula (1. leitura compartilhada,
Sugerimos um trabalho conjunto entre os exibição do clipe e abertura de conta em rede
professores de História, Geografia, Sociologia, social
Filosofia, Língua Portuguesa e, caso a escola Espaço: Sala de aula, espaço de pesquisa e
disponha da matéria, Ensino Religioso. espaço de exibição de vídeo.
Agrupamentos: Atividade coletiva.
Sobre determinismo e liberdade em Voltaire, Materiais: Materiais para a exibição do vídeo e
U
| 213
quantidade. Relacionar as características indi- Uma consequência disso é que, em vez de
D
viduais com as características grupais. lidarmos com elementos sociais que preparam
para a vida profissional, avaliemos a vida social a
Encaminhamentos partir da realidade do trabalho. São tratados temas
Retome que as atividades de transição têm como a mobilidade social, as tensões políticas que
como horizonte uma mostra expositiva anual
podem estar envolvidas e a construção de acordos
L
em torno dos temas do Projeto de Vida.
e construções afetivas no contexto profissional.
A produção deve engajar a comunidade es-
Procuramos distinguir, ao longo de todo o
colar nas atividades de planejamento, orçamen-
livro, a ocupação do interesse. É possível se ocu-
to e produção. Haverá um professor orientador
par de um interesse sem torná-lo uma dedicação
para cada ano, que deve mediar os desejos dos
N
profissional, assim como é possível ter diferentes
alunos junto à gestão escolar com relação a da-
ocupações profissionais em torno de um mesmo
ta, decoração, materiais necessários, expogra-
interesse. Estas distinções são fundamentais pa-
fia, espaços do prédio a serem utilizados, textos
ra se refletir sobre outros temas ligados ao plane-
de parede, entre outros aspectos do evento.
jamento do trabalho, tais como a flexibilidade, a
P
Organize a ideia do que apresentarão e
perseverança, a autonomia e a resiliência para
auxilie os alunos em todas as etapas.
lidar com obstáculos e frustrações.
É importante que todo o material produzido
Em primeiro lugar, trabalhar o interesse é
individualmente para as atividades de transi-
ção e para as propostas de vivências ao lon- uma ação de autoconhecimento, autocuidado
go dos capítulos seja reunido em um portfólio e respeito que põe em um lugar de primazia os
IA
individual, que cada aluno deverá ter consigo sonhos, as expectativas e aspirações do estudan-
no momento da mostra expositiva anual a fim te. Estes são frutos de hipóteses e conhecimentos
de expô-lo aos visitantes e aos colegas. que aparecem desde a Educação Infantil e são
O surgimento das instituições disciplinares, alimentados pelas referências que cada um reúne
como o manicômio e a prisão, pode ser assu- ao longo da vida. Instigar o interesse é uma ma-
mido como consequência da transferência do neira de fazer com que os alunos se percebam,
universo-máquina ao mundo humano, em que mapeando suas curiosidades e as valorizando.
o primeiro se torna modelo do segundo. Esse interesse também é trabalhado como algo
U
D
dos alunos tanto para a produção de resultados e políticas e que podem ser alcançadas
conjuntos quanto para a produção individual em através da coletividade;
um contexto de trabalho em equipe. VI. diferenciar uma atuação profissional
O capítulo conclui o Projeto favorecendo autêntica de uma inautêntica;
a certeza de que o caminho de descoberta e VII. entender que as relações profissionais são
L
construção de si está e estará sempre por fa- perpassadas pelas relações sociais como
zer. Sendo assim, experimentar, testar, falhar, um todo e que deve haver cuidado para
negociar e refazer são habilidades exigidas que a ocupação não reflita os preconceitos
pela vida, especialmente em uma realidade tão e mazelas sociais;
N
mutável quanto é a do mundo contemporâneo. VIII. compreender que a ocupação profissional
Desse modo, os ensaios demonstram que o pode ser um caminho de liberdade,
nosso caminho profissional deve reproduzir a transformação social e de construção
capacidade desse aluno de continuar apren- democrática.
dendo, se adaptando e refletindo criticamente Sugerimos um trabalho conjunto entre os
P
sobre sua realidade pessoal e social. professores de Língua Portuguesa, História,
Filosofia, Geografia e, caso a escola disponha
Para mapear o conhecimento prévio do da matéria, Música.
aluno e criar um planejamento com mais ele-
mentos, o professor pode, no quarto capítulo, Matéria e memória
propor as seguintes questões norteadoras: O professor pode lembrar que esse filósofo
IA
já foi mencionado no primeiro capítulo deste
1. Em quais variáveis eu penso quando vou livro. No entanto, as duas análises se baseiam
planejar minha vida profissional? em obras diferentes. Se, no primeiro capítulo,
2. O que eu posso fazer para me realizar citamos a obra A evolução criadora, a análise
profissionalmente? da liberdade está baseada nas obras Ensaio
3. Quais dessas variáveis estão sob meu sobre os dados imediatos da consciência e
controle e quais não estão? Matéria e memória.
4. Eu preciso ter certeza da minha profissão A ideia de que o comportamento humano
U
Por meio da leitura dos textos e das ativi- conceitos não observáveis, tomou como pres-
dades vivenciadas, esperamos que os estu- suposto que o comportamento humano era to-
dantes possam: talmente previsível, moldável e definido. Essa
I. investigar o próprio interesse profundo; teoria ficou conhecida como Behaviorismo
II. articular esse interesse profundo com Metodológico, e teve como seu principal re-
possíveis ocupações profissionais; presentante, John B. Watson (1878-1958), que
III. lidar com a possibilidade de frustração desenvolveu ideias como condicionamento
profissional e entendê-la e manejá-la; e recompensa, que influenciaram muito a
IV. compreender que a trajetória profissional educação de crianças.
tem variáveis que estão ao alcance do aluno,
que é capaz de planejar, replanejar e criar; Sobre Behaviorismo Metodológico, p. 122
V. compreender que a trajetória profissional A ideia de que o comportamento humano
tem variáveis que estão fora do alcance não é totalmente previsível pode parecer um
| 215
pouco óbvia para nós. Porém, quando a psi- Beethoven. Ele passa horas à frente do pia-
D
cologia nasceu, ela propunha ser uma ciência no, esforçando-se de maneira disciplinada,
do comportamento humano observável. Essa mas sua inspiração só gera belas polcas.
teoria ficou conhecida como Behaviorismo Todos na cidade têm grande apreço pela
Metodológico, e teve como seu principal repre- sua música, mas ele não dá valor a isso,
sentante John B. Watson (1878-1958), que desenvol- recusando a sua verdadeira vocação. Com
L
veu ideias como condicionamento e recompensa, isso, percebemos que seu interesse não es-
que influenciaram muito a educação de crianças. tá na lida direta com a música, mas que a
O professor pode incentivar a turma a com- música para ele é um meio para conquis-
partilhar exemplos em que o comportamento tar um reconhecimento duradouro. Sem se
N
pode ser previsível e em que é imprevisível. conciliar com as polcas nem com os homens
Direcione a discussão sempre relacionando que as apreciam, Pestana não encontra
essas ideias com o conceito de liberdade hu- uma verdadeira alegria na vida. Trata-se
mana e determinismo. de um personagem que não deve servir de
exemplo para o que devemos fazer, mas de
PARA DEBATER, P. 129
P
alerta para a importância que tem na vida
O professor pode trazer a questão da es-
a conciliação consigo mesmo e com o que
sência humana, por exemplo, relacionando-a
os outros oferecem de positivo.
com filmes como Divergente (2014), ou outras
ficções científicas que retratam um mundo on- Sobre identidade cultural e música, p. 132
de as pessoas nascem pré-determinadas para Para introduzir a influência e a represen-
IA
o exercício de algumas funções. tação relacionadas à identidade cultural que
Também pode ser usada como o exemplo uma música pode ter, compartilhe com os alu-
a teoria da alma em Platão, já citada aqui, em nos a reportagem “O funk como manifestação
que, na República (também já citada), as pes- cultural”, que trata do contato entre o funk e
soas têm almas que tendem para os serviços a cultura periférica. Instigue a discussão em
militares, braçais ou intelectuais. Destaque direção ao porquê das tentativas de crimina-
que, mesmo em concepções como essas, a lização desse ritmo brasileiro.
educação exerce grande importância como Peça que eles digam qual música mais
U
formadora da sociedade e do indivíduo. costumam ouvir ou qual música toca nas festas
A discussão deve se encaminhar para que eles frequentam e o porquê de gostarem
que os estudantes entendam que os seres desse estilo. É importante que não haja uma
humanos estão em constante aprendizado fala valorativa, e sim de diversidade cultural
e formação, sendo assim, sempre podem e reflexão crítica a respeito das relações de
G
D
mos que aquilo vai acabar? Tempo: 1 hora/aula (1. leitura compartilhada e
A transitoriedade da obra de Pestana os dois momentos do jogo dos porquês).
está na característica de ela não atravessar Espaço: Sala de aula com mesas individuais.
todas as experiências, não chegar a todos Agrupamentos: Atividade individual.
L
em todos os tempos. Porém, muitas coisas Materiais: Uma folha sulfite e uma caneta para
valiosas são específicas e efêmeras, como cada aluno.
uma festa de aniversário, que durou um dia, Objetivos específicos: Expressar de modo es-
mas é lembrada por anos, décadas pelo ani- crito e conciso seu desejo. Mapear, através da
versariante; ou o momento de um sorriso de escrita, suas possibilidades de planejamento.
N
alguém que amamos. Descobrir, através da interpretação dessa es-
Convide os alunos a compartilharem suas crita, seu interesse e usá-lo como ponto de par-
experiências. O importante é que seja com- tida do seu engajamento no futuro. Produção
preendido que cada um significa suas expe- de um mapa mental.
P
riências de maneira afetiva, de modo que o
valor delas varia de pessoa para pessoa e 4.2 O Capote, de Nikolai Gogol
todas elas podem ter um significado social,
sendo ele duradouro ou transitório. A obra de Gogol conta a história de Akaki
Akakiévitch, um homem de meia idade que
PROPOSTAS DE VIVÊNCIAS trabalha como funcionário de um departa-
IA
A proposta de vivência com a Música po- mento burocrático. Sua rotina é regular e ele
de ser dividida em aulas em que os alunos demonstra satisfação na sua função de co-
primeiro conheçam a letra e depois realizem pista. Akaki não tem amigos. Seus colegas
a atividade sugerida. de trabalho costumam importuná-lo para se
A segunda proposta deve ter os registros divertirem às suas custas, sobretudo por conta
recolhidos e organizados para o portfólio. do capote gasto que ele utiliza, o qual eles
chamam de “capota”. Um dia, sem ter mais
Vivência 4.1.1: Vida de artista como remendar o casaco, Akaki Akakiévitch
U
| 217
Analisar as relações de produção, capital e Materiais: Equipamento para reprodução da
D
trabalho em diferentes territórios, contextos e música, uma folha sulfite para o grupo, uma
folha sulfite e uma caneta para cada aluno.
culturas, discutindo o papel dessas relações na
Objetivos específicos: Ouvir e interpretar as
construção, consolidação e transformação das canções. Produzir, através da compreensão
sociedades. da canção, um cronograma de horários do eu
L
lírico. Produzir coletivamente um cronograma
Sobre burocracia, p. 150 ideal, analisando e decidindo coletivamente
Os estudantes devem ser orientados pa- os seus critérios.
ra que compreendam a diferença do tipo de Organize um momento coletivo para as-
autoridade dos quais eles abriam mão da sua
N
sistir ao filme sugerido Tempos modernos
autenticidade: o pai e a burocracia. (1936), de Charlie Chaplin. Esse momento po-
A discussão pode partir da seguinte de, inclusive, acontecer em um período fora
problemática: “O que pode fazer com que as aulas.
um adulto não exerça a sua autonomia ou O professor também pode aproveitar essa
P
abra mão da sua autenticidade?”. Instigue discussão para resgatar a carta de Rilke ao
os estudantes a pensarem em si mesmos, jovem poeta: “Seriam os valores de Rilke va-
quando adultos, apresentando exemplos lores românticos?”. O professor pode propor
de variáveis sociais e pessoais para isso. à turma que pesquise mais sobre os autores
Quais são as coisas a que um adulto deve românticos a fim de compreender o contras-
se sujeitar? Estar sujeito quer dizer não ser te com a literatura russa, representada pelo
IA
autônomo? Peça exemplos baseados nos conto de Gogol.
textos de Ramos e Gogol.
4.3 O mercador de Veneza
Vivência 4.2.1: Distopias cotidianas
Tempo: 1 hora/aula (1. leitura compartilhada, Essa peça de teatro conta a história da
escuta das músicas, discussão com o professor relação entre quatro personagens princi-
e produção textual). pais: Shylock, Antônio, Bassânio e Pórcia.
Espaço: Sala de aula com carteiras individuais. Eles formam uma rede de interesses que,
U
Produzir um texto analisando o ensaio. Refletir gue um empréstimo com Shylock, usando-o
sobre autonomia e alienação no ambiente de de fiador. Shylock, por ter sido muitas vezes
trabalho. agredido por Antônio em razão de ser judeu,
revolve se aproveitar da situação para se vin-
Vivência 4.2.2: Rotinas gar. Pórcia, fantasiando-se de jurista, salvará
Tempo: 2 horas/aula (1. leitura compartilhada, Antônio das intenções de Shylock, e estabele-
separação dos grupos, escuta das músicas cerá com Bassânio uma forma de casamento
e montagem do cronograma da música; 2. em que o amor deve ser posto à prova. Todos
escolha dos critérios da rotina e criação do os personagens têm argumentos legítimos,
cronograma ideal). mas também se utilizam de dissimulações
Espaço: Sala de aula. para defender seus interesses. A peça de-
Agrupamentos: Até 4 alunos, sem critério monstra como as relações humanas podem
definido. ser confusas, como a avaliação maniqueísta
D
são decididas em uma sociedade em razão O professor pode apresentar para os
das relações de poder. Não se trata de de- estudantes a afirmação da filósofa estadu-
fender nenhuma das personagens, mas de nidense Angela Davis: “Numa sociedade
abordar relações sociais que são baseadas racista, não basta não ser racista. É neces-
L
em mentiras. sário ser antirracista”. Incentive-os a refletir
Sugerimos um trabalho conjunto entre os sobre essa frase. A seguir, convide-os a pes-
professores de História, Geografia, Língua quisar sobre a Lei 11.645/2008 e analisar se
Portuguesa, Filosofia, Sociologia e, caso a es- a escola pôs a legislação em prática durante
cola disponha da matéria, Teatro. o Ensino Médio.
N
A competência da área de Ciências Pensem juntos em atitudes na escola que
colaborem para posturas antirracistas.
Humanas e Sociais Aplicadas 4 tem foco nes-
se capítulo: PROPOSTAS DE VIVÊNCIAS
P
Analisar as relações de produção, capital e Vivência 4.3.1: Trabalhar na cidade
trabalho em diferentes territórios, contextos e Tempo: 1 hora/aula (1. leitura compartilhada,
exibição do clipe, início da feitura do fluxogra-
culturas, discutindo o papel dessas relações na
ma; 2. término do fluxograma, registro (caso
construção, consolidação e transformação das tenha sido feito na lousa) e fechamento do
sociedades. professor).
IA
Espaço: Sala de aula.
A escolha de Shylock Agrupamentos: Atividade coletiva.
As ideias apresentadas nesse tópico po- Materiais: Materiais para registro do fluxogra-
dem ser encontradas na obra O conceito do ma (papel craft e canetões).
político, de Carl Schmitt. Objetivos específicos: Recolher informa-
ções do grupo escolar. Relacionar essas
Em O Conceito do Político, Schmitt busca informações com as necessidades básicas
U
definir o objetivo do político. Assim como o do- de um ser humano que vive em sociedade.
Produzir um fluxograma coletivo relacio-
mínio da moral é determinado pelas noções de
nando os desejos do grupo e as necessida-
bem e mal, o estético pelas noções de belo e feio,
des humanas. Analisar as relações huma-
o econômico pelas categorias do lucro, o político nas e suas complexidades sociais.
G
| 219
Objetivos específicos: Exercitar sua imagi- desafios do tempo em que vivemos e do mundo
D
nação expressando seus desejos de futuro. à nossa volta. Entender que lugar ocupamos
Concretizar esses desejos na produção de um nele e o que queremos realizar em nossas vidas
currículo fictício. Articular os desejos pessoais, a partir de uma visão realista. Expressar-se ar-
transformando-os em planejamento. tisticamente com suporte livre, porém com a pro-
posta direcionada. Relacionar os conhecimentos
L
ATIVIDADE DE DESFECHO sobre si, sobre o grupo e sobre a sociedade pa-
Rememorar o percurso de todo o Projeto ra a composição da obra. Servir de inspiração
de Vida e tomar consciência das descobertas e a outras pessoas, para que possam também
conquistas realizadas. Compreender melhor os conquistar coisas novas em suas vidas.”
N
RELAÇÃO, COMPETÊNCIAS E HABILIDADES DAS PROPOSTAS DE
VIVÊNCIAS E ATIVIDADES DE TRANSIÇÃO/ DESFECHO
1o ANO
P
1.1.1 + 1.2.1 Competência Geral 1 + Competência Geral 1/Ciências Humanas e Sociais: Competência 1/
+ 1.3.1 EM13CHS101 + Competência Geral 1/Ciências da Natureza: Competência 1/EM13CNT101
Atividade de Competência Geral 8 /Linguagens: Competência 4 /EM13LGG402 + Competência Geral
transição 1 + 8/ Linguagens: Competência 4/ EM13LGG402 + Competência Geral 8/ Linguagens:
2.1.1 + 2.1.2 Competência 4/EM13LGG402
2.2.1 + 2.2.2 Competência Geral 7/ Linguagens: Competência 3/ EM13LGG301 + Competência Geral 7/
IA
Linguagens: Competência 3/EM13LGG301
2.3.1 + 2.3.2 Competência Geral 7/ Linguagens: Competência 3/ EM13LGG301 + Competência Geral 7/
Linguagens: Competência 3/ EM13LGG301
2o ANO
Atividade de Competência Geral 7/ Linguagens: Competência 3/ EM13LGG301 + Competência Geral 6/
transição 2 + Ciências Humanas e Sociais: Competência 6/ EM13CHS605
3.1.1
3o ANO
G
D
ADORNO, Theodor. Educação e emancipação. Trad. Wolfgang Leo Mar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.
No capítulo “Educação após Auschwitz”, o filósofo Theodor Adorno propõe que a tarefa fundamental
da educação é impedir a barbárie, a exemplo daquela ocorrida no campo de concentração de Auschwitz.
Adorno, então, se dedica a compreender as condições que geram a barbárie e sugere que a principal é a
L
falta de autorreflexão crítica. Pessoas comuns tornaram-se cúmplices daqueles acontecimentos horríveis por
não serem capazes nem de avaliar as consequências daqueles atos nem de se solidarizar com o sofrimento
dos outros. Essa condição de alienação é chamada de “consciência coisificada”, a qual, por sua vez, seria
favorecida pela confusão entre o que é humano e o que é técnico. Trata-se de uma obra fundamental para
aqueles que desejam refletir com profundidade sobre o trabalho com o Projeto de Vida.
N
ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2016.
No capítulo VI, sobre a “ação” humana, Hannah Arendt trata de temas fundamentais para este livro,
sobretudo em dois aspectos: na diferença que propõe entre ação e obra; e na concepção que faz da ação
como realizadora de processos cujos resultados são imprevisíveis. A primeira distinção nos ajuda a com-
preender que quem somos é diferente daquilo que fazemos. A profissão, ou seja, o que uma pessoa produz
como obra não delimita quem uma pessoa é, e esta por sua vez é revelada para os outros em suas ações
e discursos. O caráter imprevisível da ação humana, por sua vez, aponta para o fato de que, embora seja
P
fundamental que haja planejamento, a realidade humana sempre implica o inesperado. O máximo que
podemos fazer é prometer, no sentido de nos engajar em nossos interesses mais profundos, mas não há
garantias de que realizaremos nossos planos como o imaginamos.
ARISTÓFANES. As nuvens. Trad. Mário da Gama Cury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.
Esse poema teatral de Aristófanes é citado por ser uma das referências doxográficas da vida de
Sócrates. Nessa comédia, o filósofo é retratado de modo a parecer um sofista, ou seja, contrariamente ao
IA
que foi retratado por Platão e Aristóteles.
ANÔNIMO. A epopeia de Gilgamesh. Trad. Carlos Daudt de Oliveira. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
A epopeia de Gilgamesh é muito interessante como uma referência originária às questões existenciais
que o ser humano se coloca, não importa onde ou em que época vive: sempre questionaremos o sentido
da existência. Sempre precisaremos lidar com nossa finitude, nossa mortalidade. A questão é que tipo de
aventura a vida se torna no enfrentamento dessas questões.
BACHELARD, Gaston. Estudos. Trad. Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.
Essa coletânea de artigos do filósofo Bachelard é muito interessante para compreender como a filoso-
fia contemporânea compreende o trabalho das ciências. A sua presença neste livro também sugere que a
U
nossa abordagem da ciência é fundamentalmente filosófica. A ideia que mais nos interessa nessa obra é
a de que, embora preocupada em reconhecer a regularidade da natureza, a ciência permanece sempre
aberta às anomalias no comportamento da natureza, ou seja, interessada em ampliar seu conhecimento
com base em novas descobertas.
BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico: o que é, como se faz. São Paulo: Edições Loyola, 1999.
G
Nesse livro, o autor conceitua o preconceito linguístico, mostrando de modo didático suas origens dos
mitos sobre a língua portuguesa. Bagno explicita, assim, como a veiculação da língua esconde, nas entre-
linhas, relações de preconceito e poder.
BARTHES, Roland. Aula. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 2002.
Esta obra de Barthes, que foi sua aula inaugural no Collège de France, é muito interessante para se
pensar o lugar central que a literatura ocupa entre os saberes humanos. Ela está sempre atenta aos outros
saberes, mas tem especial familiaridade, intimidade ou afinidade com a dimensão inefável da vida humana,
ou seja, com o fato de que não somos capazes de encerrá-la em um conhecimento determinado.
BERGSON, Henri. A evolução criadora. Trad. Adolfo Casais Monteiro, São Paulo: UNESP, 2009.
Esta obra de Henri Bergson é uma referência fundamental para a proposta da introdução do Livro do
Estudante de pensar como a ciência pode abordar uma realidade em constante transformação e evolução.
Além disso, ela é a base para a concepção de universo como realidade integrada. É preciso ressaltar que
a realidade integrada concebida por Bergson não é a mesma do universo-máquina, pois não pensa a
relação entre os processos da natureza na forma de repetição cíclica. Ele supõe que, se algo no universo
evolui, então tudo no universo evolui.
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______________ Ensaios sobre os dados imediatos da consciência. Trad. João da Silva Gama. Lisboa: Edições
D
70, 2011a.
______________ Matéria e memória. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 2011b.
Ambas as obras foram abordadas em um domínio de questões diferente, porém análogo. Trata-se de
explicar que a liberdade existe, em vez do determinismo mecanicista, porque a realidade psíquica está em
constante evolução. Escolhemos não com base em uma causa imediatamente anterior, mas com base na
L
nossa personalidade inteira, que nunca para de crescer.
CERVANTES, Miguel de. Dom Quixote de La Mancha. Trad. Viscondes de Castilho Azevedo, Rio de Janeiro:
Civilização brasileira, 1991.
Dedicamos um ensaio a essa obra no capítulo “Autoconhecimento: o encontro consigo”.
N
DESCARTES, René. Discurso sobre o método. Trad. J. Guinsburg e Bento Prado Junior. São Paulo: Abril Cultural,
1973. (Coleção Os pensadores).
Esta obra foi mencionada na introdução como modo de fundamentar a afirmação de que há um mé-
todo científico baseado na divisão da realidade, para que esses recortes tornem mais simples os dados a
serem analisados.
FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito. Trad. Marcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail. São
P
Paulo: Martins Fontes, 2006.
Trata-se de uma obra fundamental na construção da proposta que apresentamos para o Projeto de
Vida. Partindo de uma análise da filosofia grega, Foucault desenvolve os conceitos de cuidado de si, prática
de si, de preparação para o inesperado e de relação pedagógica na qual um mestre, no caso Sócrates,
deve despertar o cuidado que o outro deve ter consigo mesmo.
______________ História da loucura na Idade Clássica. Trad. José Teixeira Coelho Netto. 11 ed. São Paulo:
IA
Perspectiva, 2017.
Esta obra foi uma referência para tratarmos do tema da loucura ou doença mental na sociedade.
FREUD, Sigmund. Sobre a transitoriedade. In: A história do movimento psicanalítico, artigos sobre a
metapsicologia e outros trabalhos. Trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. vol. XIV.
Trata-se de uma referência importante para ilustrar as diferentes maneiras de se perceber a passagem do
tempo e a finitude. Freud sugere que a personalidade melancólica, em vez de ver a beleza crescer na escassez
do tempo, sofre ao antecipar o seu fim.
GHIRALDELLI JR., Paulo. História da educação brasileira. São Paulo: Cortez, 2015.
U
Trata-se de uma referência relevante para conhecer a história da educação brasileira e os principais de-
bates travados nos dias atuais. O autor também propõe um uso das narrativas na educação que possui alguns
paralelos com nossa proposta metodológica de utilizar literatura e filosofia para trabalhar o Projeto de Vida.
GOETHE, Johann Wolfgang Von. Fausto. Trad. Jenny Klabin Segall. Belo Horizonte: Itatiaia. São Paulo: Editora
da Universidade de São Paulo, 1981.
G
Essa obra é citada como um exemplo de teoria da alma, na qual o personagem vende sua alma para
Mefistófeles, o diabo, para concretizar seus planos.
GOGOL, Nikolai. O capote. In: GOGOL, Nikolai. Os russos antigos e modernos. Trad. Vinícius de
Morais. Rio de Janeiro: Leitura, 1944. (Coleção Contos do mundo).
Dedicamos um ensaio a esse conto no capítulo “Planejamento: o encontro com o futuro e o nós”.
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Trad. Marcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2006.
Nesta obra, encontramos a alegoria do cuidado, utilizada no ensaio sobre o conto “O espelho”, de Machado
de Assis.
HUME, David. Investigação acerca do entendimento humano. Trad. Anoar Aiex. São Paulo: Edusp, 1972.
______________ Tratado sobre a natureza humana. São Paulo: Ed. Unesp, 2009.
Trata-se de obras muito importantes para a problematização do indutivismo, conforme vimos na introdução.
KANT, Immanuel. Resposta à questão: O que é Esclarecimento? Trad. Marcio Pugliesi. In: Rev. Cognitio, São
Paulo, v. 13, n. 1, jan./jun. 2012. p. 145-154.
D
demos que ser autônomos exige certa coragem de buscar o conhecimento e autenticidade.
HUXLEY, Aldous. Admirável mundo novo. Trad. Lino Vallandro e Vidal Serrano. São Paulo: Globo, 2001.
Esta obra foi citada para refletirmos sobre utopias e distopias. Essa distopia, em especial, reproduz uma
característica do mundo contemporâneo, inclusive nas relações de trabalho, que é o automatismo.
L
LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm. Ensaios de teodiceia sobre a bondade de Deus, a liberdade do homem e a origem
do mal. Trad. William Piauí e Juliana Silva. São Paulo: Estação Liberdade, 2017.
Esta obra foi mencionada como contraposição às ideias de Voltaire apresentadas no romance Cândido ou o
otimismo. Leibniz é o filósofo responsável por propor que vivemos no melhor dos mundos possíveis, e o romance
de Voltaire foi criado como um crítica satírica a essa ideia.
N
MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. O alienista. In: MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. O alienista e outras
histórias. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996.
Dedicamos um ensaio a essa obra no capítulo “Expansão e exploração: o encontro com o outro e o mundo”.
______________ O espelho. In: MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Obra completa. Rio de Janeiro:
Nova Aguilar, 1994. v. II. Disponível em: www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000240.pdf. Acesso
P
em: 10 jan. 2020.
Dedicamos um ensaio a esse conto no capítulo “Autoconhecimento: o encontro consigo”.
______________ Um homem célebre. In: MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Obra completa. Rio de
Janeiro: Nova Aguilar, 1994. v. II. Disponível em: www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000260.pdf.
Acesso em: 10 jan. 2020.
Dedicamos um ensaio a essa obra no capítulo “Planejamento: o encontro com o futuro e o nós”.
IA
MAUROIS, André. Voltaire. In: MAUROIS, André. O pensamento vivo de Voltaire. Trad. Lívio Teixeira. São
Paulo: Martins Editora, 1967.
Trata-se de uma biografia de Voltaire que contribuiu para a criação do ensaio sobre o romance Cândido
ou o otimismo.
MORE, Thomas. A utopia. Trad. Pietro Nasseti. São Paulo: Martin Claret, 2005.
Esta obra foi indicada porque é nela que a noção de “Utopia” nasce, conceito importante nesse livro para
tratarmos de sociedades e cidades ideais.
NIETZSCHE, Friedrich. Fins? Vontade? In: NIETZSCHE, Friedrich. Aurora. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho.
U
ORTEGA Y GASSET, José. Meditaciones del Quijote. Madri: Biblioteca Nueva, 2004.
Esta obra é uma referência interessante para compreender o romance de Cervantes, Dom Quixote.
G
RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante Cinco: lições sobre a emancipação intelectual. Trad. Lílian do Valle.
Belo Horizonte: Autêntica, 2017.
Este livro conta a história de Jacotot, um professor que ensina algo que ele próprio ignora. Trata-se de um
caso que se contrapõe à concepção de educação pela explicação, método que estabeleceria de um lado um
professor dotado de saber e de outro um aluno carente de saber. Rancière é uma referência para a concepção
do professor como mediador na construção do conhecimento, oferecendo aos alunos subsídios para que estes
o conquistem por si mesmos.
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RAMOS, Graciliano. Alexandre e outros heróis. Rio de Janeiro: Record, 2005.
D
Dedicamos um ensaio a essa obra no capítulo “Autoconhecimento: o encontro consigo”.
RILKE, Rainer Maria. Cartas a um jovem poeta. Trad. Paulo Ronai. Porto Alegre: Globo, 1975.
Uma passagem foi selecionada desta obra em razão da pertinência tanto formal quanto temática da mes-
ma. A obra é composta de um conjunto de cartas que oferecem conselhos a um jovem que quer se tornar poeta.
Esse tipo de discurso direto, além de ampliar os formatos do nosso livro, é capaz de tocar e envolver o leitor.
L
Além disso, o conteúdo da fala de Rilke vai ao encontro da proposta trabalhada na dimensão do Projeto de Vida
“Autoconhecimento: o encontro consigo”.
ROTTERDAM, Erasmo de. Elogio da loucura. Trad. Paulo M. de Oliveira. São Paulo: Edipro, 2015.
Esta obra foi citada como um exemplo de teoria da alma que vai na contramão de Platão. Erasmo de
Rotterdam afirma que as paixões e emoções são parte básica da alma humana e, assim, faz um elogio àquilo
N
que não é totalmente racional no ser humano.
SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. In: SARTRE, Jean-Paul. Sartre. Trad. Rita Correia
Guedes. São Paulo: Nova Cultural, 1987. (Coleção Os pensadores).
Este texto foi abordado como forma de tratamento da liberdade como protagonismo ou autenticidade. O
argumento central é o de que, não importa quão fortes sejam as influências que sofremos do contexto histórico
e social, há sempre uma liberdade a ser assumida com relação ao que podemos fazer dentro desse contexto.
P
SCHMITT, Carl. O conceito do político: teoria do partisan. Trad. Geraldo de Carvalho. Belo Horizonte:
Del Rey, 2008.
Esta obra foi referenciada para contextualizar o uso de “amigo” e “inimigo” na esfera política. Para o autor,
as relações políticas se desenvolvem nesses termos. É a partir dessa lente que analisamos as relações na obra
O mercador de Veneza.
IA
SHAKESPEARE, William. O mercador de Veneza. Trad. Carlos Alberto Nunes, Rio de Janeiro: Ediouro, 2005.
Dedicamos um ensaio a essa peça no capítulo “Planejamento: o encontro com o futuro e o nós”.
VOLTAIRE. Cândido ou o otimismo. Trad. Samuel Titan Jr. São Paulo: Editora 34, 2013.
Dedicamos um ensaio a essa obra no capítulo “Expansão e exploração: o encontro com o outro e o mundo”.
ZABALA, A. A prática educativa, como ensinar. Trad. Ernani Rosa. Porto Alegre: Artmed, 2010.
Nesta obra, o educador analisa as práticas pedagógicas na sala de aula com um olhar crítico. Sua reflexão
passa, desde as relações entre alunos e professores até avaliações, organização da sala, atividades etc. A obra
foi citada pela tipologia dos conteúdos feitas pelo autor.
U
______________ Enfoque globalizador e pensamento complexo: uma proposta para o currículo escolar. Trad.
Ernani Rosa. Porto Alegre: Artmed, 2002.
A obra de Zabala oferece não só uma provocação a respeito do conhecimento escolar frente aos outros
saberes presentes na sociedade, como também um comentário a respeito da sua função social e no desenvolvi-
mento integral humano. O autor desenvolve uma proposta para a prática concreta de um enfoque globalizador
do currículo escolar.
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